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Construindo Pontes

PAULO FREIRE
entre saberes, projetos e continentes
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

Reitor
José Jackson Coelho Sampaio

Vice-Reitor
Hidelbrando dos Santos Soares

Editora da UECE
Erasmo Miessa Ruiz

Conselho Editorial
Antônio Luciano Pontes Lucili Grangeiro Cortez
Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes Luiz Cruz Lima
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso Manfredo Ramos
Francisco Horacio da Silva Frota Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Francisco Josênio Camelo Parente Marcony Silva Cunha
Gisafran Nazareno Mota Jucá Maria do Socorro Ferreira Osterne
José Ferreira Nunes Maria Salete Bessa Jorge
Liduina Farias Almeida da Costa Silvia Maria Nóbrega-Therrien

Conselho Consultivo
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Eliane P. Zamith Brito | FGV Maria Lírida Callou de Araújo e Mendonça | UNIFOR
Homero Santiago | USP Pierre Salama | Universidade de Paris VIII
Ieda Maria Alves | USP Romeu Gomes | FIOCRUZ
Manuel Domingos Neto | UFF Túlio Batista Franco |UFF
Elaine Ferreira Rezende de Oliveira
Larissa Oliveira e Gabarra
Leandro Proença
Organizadores

Construindo Pontes:
Paulo Freire entre saberes, projetos e continentes

Anderson Gonçalves Costa Leandro Proença


Danilo Romeu Streck Mairce da Silva Araújo
Eduardo Machado Marcia Soares de Alvarenga
Elaine Ferreira Rezende de Oliveira Maria Tereza Goudard Tavares
Elcimar Simão Martins Milena Bittencourt Pereira Medeiros
Elisangela André da Silva Costa Paulo Roberto de Sousa Silva
Glauciana Aparecida de Souza Regina de Fatima de Jesus
Heloisa Josiele Santos Carreiro Rejane Baptista do Nascimento
Jacqueline Cunha da Serra Freire Roberto Kennedy Gomes Franco
Jane Chalão Lucchesi Sinara Mota Neves de Almeida
Jeannette Filomeno Pouchain Ramos Virna do Carmo Camarão
Larissa Oliveira e Gabarra

Fortaleza | Ceará
2018
Construindo Pontes: Paulo Freire entre saberes, projetos e
continentes
© 2018 Copyright by Elaine Ferreira Rezende de Oliveira, Larissa Oliveira
e Gabarra e Leandro Proença (Organizadores)

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

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Coordenação Editorial
Erasmo Miessa Ruiz
Projeto Gráfico e Capa
Carlos Alberto Alexandre Dantas
carlosalberto.adantas@gmail.com

Revisão de Texto e Normalização Bibliográfica


Mabel Knust Pedra

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Lúcia Oliveira CRB - 3/304
Bolsista: Carla Vasconcelos Alves
C758 Construindo pontes: Paulo Freire entre saberes, projetos e conti-
nentes / Elaine Ferreira Rezende de Oliveira, Larissa Oliveira e
Gabarra, Leandro de Proença Lopes (Organizadores); Anderson
Gonçalves Costa...[et al.]. – Fortaleza : EdUECE, 2018.
370p.
Isbn: 978-85-7826-595-3.
1. Educação. 2. Educação popular. 3. Freire, Paulo, 1921-1997.
4. Educação de adultos. I. Oliveira, Elaine Ferreira Rezende de. II.
Gabarra, Larissa Oliveira e. III. Lopes, Leandro de Proença. IV.
Costa, Anderson Gonçalves. V. Título.
CDD: 370
Sumário
Apresentação • 9
Elaine Ferreira Rezende de Oliveira
Larissa Oliveira e Gabarra
Leandro Proença

Prefácio • 25
Danilo Romeu Streck

COSTURANDO COM OS MOVIMENTOS SOCIAIS

Capítulo 1
A educação popular e a pedagogia da margem em uma periferia urbana do Rio
de Janeiro: as ações da Associação Comunitária Projeto Amo Salgueiro a partir
da fala de seus educadores populares • 31
Elaine Ferreira Rezende de Oliveira
Rejane Baptista do Nascimento

Capítulo 2
Movimentos sociais e a luta por creches no Rio de Janeiro: um diálogo com
Paulo Freire e a luta das mulheres no Guarabu • 54
Maria Tereza Goudard Tavares
Jane Chalão Lucchesi

Capítulo 3
Desafios da intervenção acadêmica no planejamento urbano: diálogos
sociológicos com a educação popular em Paulo Freire • 77
Eduardo Gomes Machado

Capítulo 4
O MST e a educação do campo: diálogo com o pensamento freireano • 101
Paulo Roberto de Sousa Silva
Capítulo 5
Educação popular em saúde em tempos de SIDA/AIDS • 125
Roberto Kennedy Gomes Franco

POR DENTRO DA EDUCAÇÃO BANCÁRIA

Capítulo 6
Usos e abusos do pensamento freireano em política de alfabetização de jovens e
adultos em contexto neoliberal • 151
Marcia Soares de Alvarenga
Milena Bittencourt Pereira Medeiros

Capítulo 7
Formação contínua de educadores de jovens e adultos numa perspectiva
freireana • 176
Jacqueline Cunha da Serra Freire
Elisangela André da Silva Costa
Elcimar Simão Martins
Sinara Mota Neves de Almeida

Capítulo 8
Gestão por resultados na educação básica: contrapontos à educação para a
liberdade freiriana • 197
Jeannette Filomeno Pouchain Ramos
Virna do Carmo Camarão
Anderson Gonçalves Costa

Capítulo 9
Caminhos e descaminhos teóricos no trabalho de pesquisa com a pequena
infância: contribuições dos estudos sociais da infância e da obra de
Paulo Freire • 223
Heloisa Josiele Santos Carreiro
AFIRMANDO A DESCOLONIZAÇÃO DA MENTE

Capítulo 10
Alfabetização, interculturalidade e questões étnico-raciais no cotidiano escolar:
diálogos com Paulo Freire • 255
Mairce da Silva Araújo
Regina de Fatima de Jesus

Capítulo 11
A desconstrução do “outro” por uma educação libertária: uma experiência de
extensão universitária do ensino de História da África no Ensino
Fundamental II • 280
Larissa Oliveira e Gabarra

Capítulo 12
Téla nón, clóçon nón: Paulo Freire e memórias sobre alfabetização de adultos em
São Tomé e Príncipe no pós-independência • 308
Jacqueline Cunha da Serra Freire
Sinara Mota Neves de Almeida
Elisangela André da Silva Costa 
Elcimar Simão Martins

Capítulo 13
Sob o signo de Paulo Freire: considerações acerca do projeto de universidade
popular • 328
Leandro Proença

Capitulo 14
Alguns aspectos da educação popular na Guiné-Bissau: o encontro de Paulo
Freire com a obra de Amílcar Cabral • 349
Glauciana Aparecida de Souza
APRESENTAÇÃO 9

Apresentação
Elaine Ferreira Rezende de Oliveira
Larissa Oliveira e Gabarra
Leandro Proença

E
ste livro é o resultado de uma bonita parceria entre
professores da Faculdade de Formação de Profes-
sores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
FFP-UERJ e professores da Universidade Interna-
cional da Integração Luso Afro-Brasileira do Ceará – UNILAB.
Essa parceria começou tímida, mas com muita vontade de se
tornar um grande espaço de debate sobre Educação a partir
de categorias caras nesse âmbito: raça e classe. O Núcleo de
Pesquisa e Extensão Vozes da Educação da Faculdade de For-
mação de Professores – FFP da UERJ e o grupo de pesquisa
África Contemporânea da UNILAB se encontraram pela pri-
meira vez em 2014. A partir desse encontro e intercâmbio de
professores foi celebrado em 2015 um convênio entre as duas
universidades, com vigência de cinco anos para aprofundar
questões teóricas sobre Educação, Raça e Classe, e construir
ações conjuntas, tais como formação e capacitação de pes-
soal, publicações, participações em bancas de monografias
e dissertações, eventos internacionais e nacionais, além da
criação de um núcleo interinstitucional sobre educação e mo-
vimentos sociais. Para celebrar e consolidar ações oriundas
do convênio foi realizada a I Jornada Paulo Freire, na cidade
de Redenção no Campus da Liberdade da UNILAB.
A Jornada contou com a participação de professoras da
UERJ-FFP, Maria Tereza Goudard Tavares e Elaine Ferreira

ELAINE FERREIRA REZENDE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO PROENÇA


10 APRESENTAÇÃO

Rezende de Oliveira, uma pesquisadora e ativista social da


organização SOWETO Organização Negra, Glaciana Souza;
Jeová Sampaio, representando o setor de Educação do MST-
-CE; e vários colegas de trabalho da UNILAB que agregaram
seus grupos de Pesquisa: Grupo Interdisciplinar em Pesquisa
Urbana, na pessoa de Eduardo Machado – IHL, Grupo de Pes-
quisa Educação, Cultura e Subjetividade, nas pessoas de Le-
andro Proença – IHL e Jeannette Pouchain Ramos, Grupo de
Pesquisa e Extensão Educação e Cooperação Sul-Sul – ELOSS,
nas pessoas de Elisangela André da Silva Costa – ICEN e Ja-
cqueline Freire – ICEN; professora e pesquisadora da UFC
Eliane Dayse Pontes Furtado; professores da rede pública de
Redenção, acompanhados de seus alunos; além de contarmos
com o apoio do Mestrado Interdisciplinar em Humanidades,
nas pessoas de Antônio Vieira – IHL e Roberto Kennedy – IHL
e com a Pró-reitoria de Assuntos Institucionais, com a pre-
sença do pró-reitor Edson Borges.
A realização da I Jornada Paulo Freire, intitulada “Re-
-construindo Pontes” ocorreu em 21, 22 e 23 de março de
2016. Foram três dias de debates intensos em torno das temá-
ticas que uniam dois lados de um mesmo oceano: Intercultu-
ralidade e Discriminação; Sociedade e Educação; Juventudes
de periferias urbanas, Educação de Jovens e Adultos e Desi-
gualdades Sociais; Movimentos Sociais e Educação Popular;
Presente, Passado e Futuro; Diálogos África e Brasil; Interdis-
ciplinaridade e Educação Superior. O evento atendeu a uma
demanda acadêmica, que capacitou alunos de graduação da
UNILAB e UECE e do Mestrado Interdisciplinar em Humani-
dades da UNILAB, mas também de extensão, com a participa-
ção de alunos das escolas de Educação Básica de Redenção,
tais como a Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Brunilo Jacó

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO DE PROENÇA LOPES
APRESENTAÇÃO 11

de Redenção, contando com algumas dezenas de estudantes


ouvintes nos três dias da jornada.
A decisão da publicação dos trabalhos que foram trata-
dos na I Jornada Paulo Freire – “Re-construindo Pontes” – em
forma de textos pretende marcar o evento, deixando registra-
do o profundo debate feito pelos colegas junto a seus grupos
de pesquisas, estudantes e a outros pesquisadores com quem
a parceria se estende. Para encantar ainda mais o leitor, foi
convidado a prefaciar o livro o professor Danilo Streck, pes-
quisador e estudioso da Educação Popular no Brasil.
Os capítulos estão alocados em três eixos, mantendo a
perspectiva original da organização da I Jornada Paulo Frei-
re, alinhavando ainda mais as propostas dos debates. Utili-
zando expressões próprias de Paulo Freire, o primeiro eixo
é denominado “Construindo com os Movimentos Sociais”, o
segundo foi chamado de “Por dentro da Educação Bancária”
e o terceiro, “Afirmando a descolonização da mente”. São es-
ses eixos que o título do livro procura sintetizar: “Paulo Freire
entre saberes, projetos e continentes” pretende apresentar o
sentido de descolonização da mente exposto por Freire em
contato com a construção dos Estados recém libertos da Áfri-
ca e sua perspectiva no Brasil, que transcende os campos e
possibilita um diálogo com uma educação anticolonial, antir-
racista e anticlassista, muitas vezes reproduzida no sistema
de ensino brasileiro.
Nessa perspectiva, compreendemos os saberes popu-
lares locais, as bagagens culturais, as experiências históricas
como aliadas à educação, uma educação para constituição de
uma consciência crítica que alicerça os Movimentos Sociais;
uma via de mão dupla em que a teoria freireana constrói jun-
to com os movimentos sociais e eles, em suas experiências

ELAINE FERREIRA REZENDE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO PROENÇA


12 APRESENTAÇÃO

de luta, atualizam essa teoria. Os projetos engessados de um


Estado que espera da Educação mentes ajustadas, e que são
implodidos por dentro a partir da perspectiva freireana, dan-
do voz a atores sociais que não se resignam ao papel de meros
subalternizados na sociedade.
O primeiro eixo do livro, “Construindo com os movi-
mentos sociais”, conta com cinco capítulos, que pensam os
saberes populares, base dos movimentos sociais em diálogo
com a perspectiva de educação de Freire.
O primeiro capítulo, de Elaine F. Rezende Oliveira e Re-
jane Baptista do Nascimento, chamado “A Educação Popular
e a Pedagogia da Margem em uma periferia urbana do Rio de
Janeiro: as ações da Associação Comunitária Projeto Amo Sal-
gueiro a partir da fala de seus educadores populares”, apre-
senta o percurso da Educação Popular no Brasil e aprofunda
o tema a partir de uma pesquisa em um projeto social em São
Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Na arquite-
tura da pesquisa foi usada metodologia qualitativa, por meio
de entrevistas semiestruturadas realizadas junto aos educa-
dores populares que atuaram no Projeto Amo Salgueiro – PAS,
projeto criado pela sociedade civil, que tem atuado junto a
jovens de camadas populares por duas décadas. O PAS está
localizado no Complexo do Salgueiro, localidade constituída
por um conjunto de favelas que sofre com forte presença do
tráfico de drogas que atua na cooptação da juventude des-
sas comunidades. A partir das entrevistas com esses atores
sociais foi resgatada a história do projeto que se aglutinou a
partir de um pressuposto importantíssimo na obra freireana:
a cultura local.
Pensando a infância de origem popular, o trabalho de
Maria Tereza Goudard Tavares e Jane Chalão Lucchesi, deno-

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO DE PROENÇA LOPES
APRESENTAÇÃO 13

minado “Movimentos sociais e a luta por creches no Rio de


Janeiro: um diálogo com Paulo Freire e a luta das mulheres
no Guarabu”, busca inventariar e atualizar a demanda dos
Movimentos Sociais por creche, em especial o movimento de
luta por creches no município do Rio de Janeiro, mais espe-
cificamente na favela do Guarabu, Ilha do Governador, desde
1980. Desse modo, as autoras contribuem para contar a his-
tória da conquista das mulheres de comunidades de origem
popular para a educação das crianças pequenas, por meio do
resgate da experiência histórica das lutas comunitárias. Além
disso, por meio dessa pesquisa é possível resgatar parte da
história de como se deu a construção e implementação de
políticas públicas de educação em contextos periféricos no
Brasil. Desse modo, esses movimentos populares podem ser
considerados uma força instituinte nas práticas educativas,
tais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o Mo-
vimento dos Trabalhadores sem Teto, a luta pela educação de
jovens e adultos.
O capítulo de Eduardo Machado, “Desafios da inter-
venção acadêmica no planejamento urbano: diálogos socio-
lógicos com a educação popular em Paulo Freire”, aposta na
dimensão do desafio teórico-metodológico da obra de Pau-
lo Freire para estabelecer o diálogo acadêmico com os mo-
vimentos sociais por meio dos projetos de ensino, pesquisa
e extensão no meio urbano. O trabalho propõe um debate
acerca dos lugares, sentidos e potencialidades da educação
popular no campo da produção do espaço e do planejamento
urbano em que o autor dialoga com a dimensão problemati-
zadora da obra de Paulo Freire. Nessa proposta socioantropo-
lógica de pesquisa, os conhecimentos dos agentes passam a
ser reconhecidos como instituintes de outras ações coletivas

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14 APRESENTAÇÃO

e políticas, possibilitadas somente pela adoção de uma postu-


ra dialógica tão cara e presente em toda proposta teórico-me-
todológica freireana.
O artigo de Paulo Roberto de Souza Silva, “O MST e a
educação do campo: diálogo com o pensamento freireano”,
analisa a dimensão da prática na Educação do Campo, perme-
ada pelo diálogo com a teoria freireana no estado do Ceará. O
autor recupera parte da memória do I Encontro Nacional de
Educadoras e Educadores da Reforma Agrária – ENERA, que
desde sua primeira edição em 1997 aponta Paulo Freire como
a inspiração da ação pedagógica dos educadores e educado-
ras populares que atuam cotidianamente no MST. Desde en-
tão a criação de escolas, a prática das místicas, a educação da
companheirada, composta por jovens e adultos, é feita na in-
terface com a obra freireana. Desse modo, o autor busca des-
tacar a caminhada do MST, que desenvolve uma Pedagogia
do Movimento em profundo diálogo com o legado freireano e
com as Pedagogias Socialistas da América Latina, inspiradas
em outros autores, como José Marti.
O último capítulo do eixo é intitulado “Educação Popu-
lar em Saúde em Tempos de Sida/Aids”, de Roberto Kennedy
Gomes Franco. O capítulo vem socializar as experiências de
educação popular em saúde efetuadas pelos ativistas da Rede
Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+Brasil).
As experiências de educação popular em saúde em tempos de
Sida/Aids oportunizam uma análise sobre a memória de gru-
pos oprimidos/excluídos pela experiência corporal de adoe-
cimento, em que, uma vez organizados, forjaram uma peda-
gogia da esperança. Os relatos trazidos no texto evidenciam
que, na maioria das vezes, estas pessoas, não sabem e nem
entendem ao menos de que doenças são afetadas, mas que

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APRESENTAÇÃO 15

fazem a perigosa travessia de aprender a viver e/ou morrer


em tempos de Sida/Aids.
O segundo eixo, “Por dentro da educação bancária”,
traz quatro artigos que tratam da Educação de Jovens e Adul-
tos, Alfabetização e Educação infantil. O eixo pensa o como
ingerir, infiltrar o pensamento de Freire nos projetos de Edu-
cação do Estado.
O primeiro capítulo desse eixo, “Usos e abusos do pen-
samento freireano em política de Alfabetização de Jovens e
Adultos em contexto neoliberal”, foi escrito por Marcia Soares
de Alvarenga e Milena Bittencourt Pereira Medeiros. Nesse
trabalho as autoras criticam o uso residual e fragmentado da
obra freireana em programas oficiais voltados para jovens e
adultos não alfabetizados ou com baixa escolarização. É ana-
lisado o Programa Alfabetização Solidária (PAS), do governo
de Fernando Henrique Cardoso, no período de 1997-2002,
e como esse programa buscou nas contribuições de Paulo
Freire a principal fonte para a construção de um consenso,
por meio da realização de suas ações e proposições político-
-pedagógicas. Nessa perspectiva, as autoras demonstraram a
distinção profunda existente entre o PAS e a pedagogia crítica
radical proposta por Paulo Freire em sua obra, quando apli-
cada ao contexto contemporâneo da educação na sociedade
brasileira.
Outra experiência no campo de Educação de Jovens e
Adultos – EJA – no estado do Ceará é apresentada pelo grupo
ELOSS, formado por Jacqueline Cunha da Serra Freire, Eli-
sangela André da Silva Costa, Elcimar Simão Martins e Sinara
Mota Neves de Almeida no trabalho “Formação contínua de
educadores de jovens e adultos numa perspectiva freireana”.
Nesse texto os autores nos instigam a pensar os desafios e

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16 APRESENTAÇÃO

possibilidades relacionados às políticas de formação de pro-


fessores de EJA, por meio de uma fundamentação freireana.
Com esse objetivo foram colhidos relatos de experiências de
formação continuada nessa área na Universidade Federal do
Ceará (UFC) e na Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). O capítulo buscou resga-
tar a reflexão crítica acerca da prática concebida por Freire,
especialmente no campo da formação de professores, em que
somos levados a pensar uma profunda revisão do processo
de ensino-aprendizagem desses profissionais. Nesse sentido,
os autores propõem apresenta alternativas de formação de
professores colocadas em prática no estado do Ceará, que são
fundamentadas na proposta de Educação Popular freireana e
se colocam em oposição aos atuais processos formativos da
profissão docente – em que o professor é treinado numa pers-
pectiva tecnicista com o objetivo de formar seu corpo discen-
te para os testes de larga escala, objetivando formar educa-
dores numa perspectiva emancipatória, somos convidados a
pensar o processo de ensino-aprendizagem docente de uma
forma dialógica, com o resgate de dramatizações, danças, po-
esias, vivências e uso da literatura popular.
No capítulo “Gestão por resultados na Educação Básica:
contrapontos à educação para a liberdade freireana”, escri-
to por Jeannette Filomeno Pouchin Ramos, Virna do Carmo
Camarão e Anderson Gonçalves Costa, é tratado o tema da
avaliação em gestão imposta pelo modelo do Programa Alfa-
betização na Idade Certa – PAIC – e é proposta uma análise
crítica desse programa, com base na compreensão freireana
de educação. O trabalho demonstra que há nesse modelo de
educação uma desqualificação do contexto social, político e
cultural no processo de ensino-aprendizagem em que a for-

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APRESENTAÇÃO 17

mação docente é tomada de forma pragmática e instrumen-


talista. Desse modo, os autores consideram que a gestão por
resultados imposta ao sistema de ensino brasileiro desde a
década de 1990, e presente no PAIC, se afasta da proposta de
“Educação para a liberdade” elaborada por Paulo Freire e se
aproxima de uma “Educação bancária”, que deve ser proble-
matizada por todos educadores e educadoras freireanos no
Brasil. O estudo se fundamentou em revisão bibliográfica e
entrevistas com gestores educacionais, com vistas a compre-
ender o debate acerca das políticas educacionais do Ceará no
período de 1990 a 2014.
Sobre a contribuição freireana na Educação Infantil,
temos o capítulo escrito por Heloisa Josiele Santos Carreiro,
“Caminhos e Descaminhos teóricos no trabalho de pesquisa
com a pequena infância: contribuições dos estudos sociais da
infância e da obra de Paulo Freire”. Nesse texto a autora des-
dobra elementos de sua tese de doutorado, realizada em um
Centro de Educação Infantil (CEI) no estado do Rio de Janeiro,
que envolveu adultos e crianças, em um processo de pesqui-
sa-ação em que foram investigadas as interações desses sujei-
tos com as rotinas propostas na instituição. A autora se pro-
põe a valorizar as vozes das crianças na sua pesquisa e buscou
dialogar com autores do campo do Cotidiano, da Sociologia da
Infância e com a obra de Paulo Freire. Nessa perspectiva, a
prática pedagógica foi concebida como caminho de reconheci-
mento e reorganização da rotina escolar num CEI, em que 13
educadoras desse centro foram instigadas a reelaborar seu co-
tidiano com as crianças por meio dos conceitos freireanos de
práxis e de diálogo, que pressupõe o estabelecimento de uma
outra lógica, que não seja a adultocêntrica que calou histori-
camente as crianças na ciência e no cotidiano escolar. Desse

ELAINE FERREIRA REZENDE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO PROENÇA


18 APRESENTAÇÃO

modo, a pesquisa demonstrou ser ainda hoje um desafio virar


o jogo epistemológico no trabalho de pesquisa com crianças
e seus educadores e educadoras a partir de uma abordagem
no/do cotidiano escolar, dadas as dificuldades de rompimento
com as lógicas adultocêntricas impostas nesse espaço.
Já o último eixo, chamado “Afirmando a descolonização
da mente”, composto pelos últimos quatro artigos, traz à dis-
cussão, principalmente, uma epistemologia do conhecimento
que, homogeneizante e hegemônica, afeta as relações entre
continentes, entre estados e nações, entre os seres humanos,
sobre bases na maioria das vezes raciais.
“Alfabetização, Interculturalidade e questões étnico ra-
ciais no cotidiano escolar: diálogos com Paulo Freire”, capí-
tulo de Mairce Araujo e Regina de Fatima de Jesus, apresenta
experiências em trabalhos de extensão e pesquisa. Nesse tex-
to as autoras buscam dar visibilidade às micro ações afirma-
tivas cotidianas que podem nos auxiliar a inventar caminhos
e possibilidades contra hegemônicas na educação. Tal obje-
tivo foi buscado por meio da análise das narrativas de duas
personagens, mulheres negras e escravizadas que buscam na
escrita seus processos de libertação. As autoras analisam o
processo de alfabetização à luz da perspectiva freireana, que
denunciou a interdição desse processo às crianças, jovens e
adultos das camadas populares, que têm também seus papéis
de sujeitos produtores/as de cultura historicamente negados.
Desse modo, as autoras propõem aproximações entre o le-
gado de Paulo Freire, a epistemologia da complexidade e os
estudos pós-coloniais com o objetivo de construir propostas
alfabetizadoras emancipatórias. Foram resgatadas narrativas
docentes e explorados ambientes alfabetizadores com o desa-
fio teórico/prático de trabalhar questões étnico-raciais e a im-

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO DE PROENÇA LOPES
APRESENTAÇÃO 19

plementação da lei 10.639/03 no município de São Gonçalo,


Rio de Janeiro, locus de suas pesquisas e ações de extensão. A
descolonização dos processos de ensino-aprendizagem ocor-
re, desse modo, no cotidiano, nas micro ações propostas aos
educadores e educandos das camadas populares.
Uma pesquisa que se propõe a analisar o ensino de
História da África no Ensino Fundamental, em diálogo com
o Currículo Mínimo de História a partir da experiência na
disciplina Estágio Supervisionado, com alunos dos cursos de
Licenciatura em História da Faculdade de Formação de Pro-
fessores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – FFP/
UERJ e da Universidade Federal Fluminense de Campos de
Goytacazes (UFF-PUCG), está presente no capítulo “A des-
construção do “Outro” por uma educação libertária: uma ex-
periência de extensão universitária do ensino de História da
África no Ensino Fundamental II”, de Larissa Oliveira e Ga-
barra. Nesse trabalho a autora procura identificar a imagem
representada do “Outro”, nomeadamente África e africanos,
por meio da análise do currículo mínimo estabelecido pela
Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Nesse
sentido, aproveita para verificar a forma da abordagem da
Lei 10.639/03 nesse currículo, não respeitada na sua íntegra,
pois em essência nega o direito de aprender dos alunos e de
ensinar dos professores, relacionados aos saberes de Histó-
ria, Arte e Literatura Africana. A distorção da abordagem da
Lei reafirma a perspectiva hegemônica de educação, oposta
à ideia freireana de diálogo e respeito pela bagagem cultural
do Outro. A autora propõe que a obra freireana seja um im-
portante instrumental para fazer a crítica a esse currículo,
imposto pelo estado e veículo da ideologia dominante. Des-
se modo, o capítulo se constitui uma relevante contribuição

ELAINE FERREIRA REZENDE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO PROENÇA


20 APRESENTAÇÃO

para pensar a formação de professores de História, o ensino


de História da África e a construção do currículo da Educação
Básica por meio de uma fundamentação teórica que bebe no
pós-colonialismo.
Acerca da presença de Paulo Freire em África e sua in-
fluência até os dias atuais em São Tomé e Príncipe, temos o
trabalho do grupo ELOSS da UNILAB, composto por Jacque-
line Cunha da Serra Freire, Elisangela André da Silva Costa,
Elcimar Simão Martins e Sinara Mota Neves de Almeida, cha-
mado “Téla Nón, Clóçon Nón: Paulo Freire e Memórias sobre a
Alfabetização de Adultos em São Tomé e Príncipe no pós-in-
dependência”. Nesse capítulo as autoras constroem uma sín-
tese das reflexões tecidas a partir de incursões e pesquisa de
campo na ilha de São Tomé, no ano de 2013, fruto de pesquisa
do Centro de Referência em Educação de Jovens e Adultos e
Cooperação Sul-Sul (ECOSS), implementado na Universida-
de da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB). São centrais nesse capítulo a contribuição da obra
de Paulo Freire na reconstrução de São Tomé e Príncipe, por
meio da atuação na alfabetização e educação de adultos e pela
presença na memória dos sujeitos educativos desse país. A
pesquisa permite afirmar que a noção de alfabetização como
um direito que possibilita a emancipação humana e a desco-
lonização das mentes, como contribuição da obra freireana,
permanece viva na memória do povo de São Tomé e Príncipe.
Sobre a influência da Educação Popular no âmbito uni-
versitário temos o capítulo, de Leandro Proença, que cons-
trói uma análise do projeto original da Universidade da Inte-
gração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira – UNILAB
– fruto de cooperação internacional Sul-Sul, chamado “Sob
o signo de Paulo Freire: Considerações acerca do projeto de

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO DE PROENÇA LOPES
APRESENTAÇÃO 21

Universidade Popular”. Nesse texto o autor afirma que a UNI-


LAB, criada em 2011, pode ser considerada um dos pilares da
política de educação superior do governo Lula, assim como
a Universidade da Integração Internacional Latino-America-
na – UNILA. Foram ambas criadas a partir de diretrizes que
buscaram fortalecer as relações entre países que se uniram
pela solidariedade e luta contra as relações de exploração
historicamente construídas em seus territórios. O autor tra-
ta do papel político e ideológico da Universidade, por meio
da crítica à produtividade exacerbada, disseminada no meio
acadêmico e imposta aos professores universitários, muitas
vezes de forma endógena e acrítica. O autor analisa o termo
Universidade Popular e seu significado para a Educação Po-
pular, tomada como oposição à própria educação formal, que
deveria garantir uma educação de qualidade para todos e to-
das que foram historicamente excluídos desse processo nos
sistemas tradicionais de ensino. O trabalho retoma a pergun-
ta inspirada em Paulo Freire: como pensar a educação a partir
do povo? E nos responde de forma instigante, afirmando que
a própria preparação dos estudantes para o ingresso no ensi-
no superior torna inviável um projeto de educação libertado-
ra; contudo, demonstra como a UNILAB tentou, em seu pro-
jeto inicial, dar conta de um modelo possível de universidade
popular. Nesse sentido, a oferta de cursos que atendessem às
necessidades específicas das regiões e países atendidos pela
UNILAB, assim como o perfil do corpo discente, contemplou
a população periférica e de origem popular. No entanto, na
dimensão pedagógica, o autor ressalta que as disputas polí-
ticas e ideológicas marcam as relações de poder que podem
impedir a implementação de um projeto de universidade ver-
dadeiramente popular.

ELAINE FERREIRA REZENDE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO PROENÇA


22 APRESENTAÇÃO

O capítulo “Alguns aspectos da Educação Popular na


Guiné Bissau: o encontro de Paulo Freire com a obra de Amí-
lcar Cabral”, escrito por Glauciana Aparecida de Souza relata
a experiência do trabalho de Paulo Freire realizado junto à
equipe do Instituto de Ação Cultural (IDAC) em Guiné Bissau
e registrado no livro Cartas à Guiné–Bissau, registros de uma
experiência em processo (1978). Nesse livro, que Paulo Frei-
re escreve em forma de cartas, o autor estabelece um diálogo
com a obra e legado do revolucionário Amílcar Cabral, já fa-
lecido na época. Nesse sentido, foi possível perceber a influ-
ência de Cabral na práxis freireana, por meio da atuação do
autor brasileiro na Escola de Có, cidade acerca de 50 km de
Bissau, a capital do país africano. A partir do contato com a
obra de Amílcar Cabral, é possível afirmar que o conceito de
cultura ganha importância na obra de Paulo Freire. Cultura
compreendida como uma das principais armas na luta por
uma educação emancipatória, sobretudo em sociedades que
viram suas culturas serem subordinadas por meio de proces-
sos de colonização que se fundamentaram na violência física
e simbólica, como os ocorridos em Guiné-Bissau e no Brasil.
Assim, pretendemos retomar pressupostos teórico-me-
todológicos da obra de Paulo Freire, a partir das interseccio-
nalidades que a tecem e fortalecem as lutas por libertação,
com o intuito de estreitar laços entre diversas instituições
brasileiras e com os movimentos sociais, em particular a par-
tir de professores, pesquisadores e estudantes da UNILAB e
da UERJ.
Nesse momento em que a sociedade brasileira assiste à
retirada de direitos historicamente conquistados, a expressão
coletiva de educadores e educadoras populares ganha força
por meio do lançamento deste livro, que também se faz mar-

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO DE PROENÇA LOPES
APRESENTAÇÃO 23

co da história do convênio entre UERJ e UNILAB, profunda-


mente afetadas pelo golpe de 2016, pois trazem em seu pro-
jeto e missão social um comprometimento profundamente
estabelecido com as causas populares.
Desse modo, essa obra pretende ser um marco de re-
sistência, do tipo de luta que é possível travar a partir das
universidades, atualizando questões e temáticas presentes
na obra de Paulo Freire e que merecem ser retomadas na con-
temporaneidade, respondendo a diversos desafios enfrenta-
dos pela sociedade e educação contemporâneas.

ELAINE FERREIRA REZENDE OLIVEIRA • LARISSA OLIVEIRA E GABARRA • LEANDRO PROENÇA


PREFÁCIO 25

Prefácio
Danilo Romeu Streck

P
aulo Freire teria dito de si mesmo que se enxer-
gava como um menino conectivo, uma frase que
expressa muito bem algumas de suas característi-
cas mais importantes. O menino é a pessoa curio-
sa que, independentemente do avanço da idade, continua
mantendo a curiosidade, fazendo perguntas inquietantes,
propondo novas questões e recolocando outras já postas. Os
títulos de suas obras indicam como seu pensamento pedagó-
gico se desdobra entre os temas da liberdade, da opressão, da
esperança, da indignação, da autonomia, entre tantos outros.
Já o adjetivo conectivo nos remete ao diálogo como uma mar-
ca de sua proposta de educação. Muito mais do que um méto-
do, o diálogo é para Freire um modo de ser no mundo que se
expressa na aposta da possibilidade de ser mais, da humani-
zação como uma vocação ontológica de homens e mulheres.
Construindo pontes: Paulo Freire entre continentes,
saberes e projetos situa-se dentro do espírito de busca e dia-
logicidade que caracteriza o pensamento freireano. Os textos
do livro testemunham a construção de pontes de diversas na-
turezas e dimensões. Sem a intenção de catalogar todas elas,
menciono algumas que, como leitor privilegiado dos manus-
critos, chamaram minha atenção. O primeiro é o encontro de
pessoas de lugares diferentes que se propõem a conhecer a
sua prática tendo incorporado em sua visão olhares de pes-
soas de outra região geográfica, com outras experiências no

DANILO ROMEU STRECK


26 PREFÁCIO

tocante a situações de classe, raça e cultura. A pesquisa pas-


sa por essas relações concretas de pessoas que se encontram
para pronunciar o mundo com seu trabalho investigativo.
O livro mostra também a importância da construção de
pontes entre grupos de pesquisa. O estudo está sendo realiza-
do cada vez mais por grupos de pesquisa que, por sua vez, se
conectam com outros a partir da compreensão de que a com-
plexidade dos problemas enfrentados pela sociedade atual
exige que, ao mesmo tempo em que se necessita de profundi-
dade em temas específicos, é imprescindível alargar o escopo
do trabalho conectando pontas e fios para compreender a so-
ciedade. Em Pedagogia da esperança, Paulo Freire (1992) usa
a metáfora da trama para expressar a necessidade de unir as
pontas e fios que compõem a tessitura que, no fim das con-
tas, sustenta a nossa vida. É com razão que os organizadores
falam na bonita parceria entre professores da Faculdade de
Formação de Professores da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro FFP-UERJ e professores da Universidade Interna-
cional da Integração Luso Afro-Brasileira do Ceará – UNILAB,
mais precisamente entre o grupo de pesquisa Vozes da Edu-
cação da UERJ e o grupo de pesquisa África Contemporânea
da UNILAB.
Os textos abrangem uma grande gama de temas rele-
vantes para os tempos atuais – tais como a luta pela terra e
por creches –, revisitam a alfabetização de jovens e adultos e
a educação básica, inserem a educação no planejamento ur-
bano e analisam a perspectiva de uma universidade popular.
O que une os diversos temas é a educação popular de inspi-
ração freireana. É uma educação que, independentemente do
lugar onde se realiza, se caracteriza por sua intenção insti-
tuinte, provocando instituições, organizações ou movimen-

DANILO ROMEU STRECK


PREFÁCIO 27

tos sociais a repensarem seus objetivos e suas práticas. Os


textos não se preocupam em interpretar teoricamente a obra
de Freire, mas em atualizá-la e reinventá-la em práticas con-
cretas. A teoria emerge dessas práticas, uma das tantas lições
que aprendemos com Paulo Freire.
Por fim, a conectividade se expressa na ponte que cons-
trói entre Brasil e África. Paulo Freire aparece aqui como um
elo sul-sul entre países que compartilham a mesma língua e
que foram tragicamente unidos na história da colonização.
Em tempos em que a internacionalização ocupa um lugar de
destaque na pauta da educação superior e da pesquisa, desa-
fiar-nos a ampliar nosso ângulo de visão para o vasto conti-
nente que fica na parte sul do Atlântico não é apenas oportu-
no, mas necessário. As reflexões propostas nos provocam a
pensar a internacionalização dentro de uma mesma herança
colonial que se manifesta de maneiras distintas em nossos
países, e que apenas poderá ser superada se construirmos
pontes que nos conduzam a um horizonte comum de vida
digna para todas as pessoas e de cuidado com a grande casa
que nos abriga.
É também oportuno que o livro introduza o tema da co-
lonialidade e da descolonização. Paulo Freire pode ser consi-
derado um precursor do que atualmente se configura como
teorias descoloniais, explicitadas por autores como Enrique
Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Catherine Walsh,
Arturo Escobar e outros (Mota Neto, 2016). Por exemplo, ao
denunciar a cultura do silêncio como uma das heranças mal-
ditas do colonialismo, e que estaria na base de nossa “inexpe-
riência democrática”, Paulo Freire já apontava para as condi-
ções objetivas e subjetivas que mantêm a histórica relação de
dominação e opressão.

DANILO ROMEU STRECK


28 PREFÁCIO

Por tudo isso, nós – leitores e leitoras – agradecemos


aos autores e às autoras que compartilharam as suas práticas
educativas e suas reflexões e, em especial, aos organizadores
e organizadoras, por reunir em uma mesma obra um conjun-
to de textos que encontram em Paulo Freire a sua inspiração
para construir novas pontes ou reforçar as já existentes. En-
contra-se no livro um belo exemplo do que Paulo Freire cha-
maria de Unidade na Diversidade.

Referências bibliográficas

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e Ter-


ra, 1992.
MOTA NETO. João Colares. Por uma pedagogia decolonial na
América Latina: reflexões em torno do pensamento de Paulo
Freire e Orlando Fals Borda. Curitiba: CRV, 2016.

DANILO ROMEU STRECK


COSTURANDO COM OS
MOVIMENTOS SOCIAIS
CAPÍTULO 1
A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
31
EDUCADORES POPULARES

Capítulo 1
A educação popular e a pedagogia da
margem em uma periferia urbana do
Rio de Janeiro: as ações da Associação
Comunitária Projeto Amo Salgueiro a partir
da fala de seus educadores populares
Elaine Ferreira Rezende de Oliveira
Rejane Baptista do Nascimento

N
o Brasil, a lista das ações e movimentos que fa-
zem parte do que podemos chamar de Educação
Popular é longa – os Círculos de Cultura Popular,
as Ligas Camponesas o Movimento de Educação
de Base e muitos outros escreveram a história de uma práti-
ca educativa que faz da sociedade sua sala de aula, recriando
os papéis de educador e educando, com diferentes métodos
e formas de intervenção no mundo. Nas décadas de 1950 e
1960 a Educação Popular fundou um movimento novo no pa-
norama pedagógico latino-americano e a educação passou a
ser vista como um instrumento de libertação para as classes
subalternizadas (­STRECK, 2009). A política populista buscava
adaptar as massas às estruturas sociais e por vezes se utiliza-
va da pressão popular para realizar reformas. Foram criados
espaços de participação que fugiam ao controle e representa-
ram uma tomada de consciência, como ocorreu na experiên-
cia de Angicos, com Paulo Freire (WEFORT, 1980).

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • REJANE BAPTISTA DO NASCIMENTO


CAPÍTULO 1
32 A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
EDUCADORES POPULARES

Silva (2004) afirma que no livro Pedagogia do Oprimido,


Paulo Freire concentra esforços em descrever a dinâmica pró-
pria do processo de dominação, muito mais do que demonstrar
como a dominação se transfigura em um reflexo das relações
econômicas. Suas críticas sobre educação tomam como base
a estrutura e o funcionamento da educação institucionaliza-
da. Dessa forma, o autor produziu uma crítica à escola tradi-
cional voltada para jovens e adultos nos países subordinados
na ordem mundial. É central em sua epistemologia o que ele
chama de conceito antropológico de cultura, o que significava
entender cultura em oposição à natureza, como criação e pro-
dução humana, sem distinção entre cultura erudita e cultura
popular, considerada como simplesmente o resultado de todo
trabalho humano. Essa concepção até hoje influencia as ações
de Educação Popular no Brasil, como veremos mais adiante no
trabalho que acontece em uma ONG que atende os jovens do
Complexo do Salgueiro, por meio dos depoimentos de alguns
de seus educadores populares. Desse modo, a teorização de
Freire pode ser considerada pedagógica, “na medida em que
ele não se limita a analisar como são a educação e a pedagogia
existentes, mas apresenta uma teoria bastante elaborada de
como elas devem ser” (SILVA, 2004, p.58).
O grupo de Paulo Freire que surgiu em Pernambuco, no
final dos anos de 1950, inovou ao dar ênfase na miséria e não
no analfabetismo como o problema da Educação das cama-
das populares do Nordeste (FREITAS e BICCAS, 2009). Para
esse grupo a educação e a escola passaram a representar não
a reprodução da sociedade existente, mas uma oportunidade
para a ação e transformação da sociedade, e que poderia dar
respostas concretas às necessidades dos setores mais empo-
brecidos do Brasil.

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • REJANE BAPTISTA DO NASCIMENTO


CAPÍTULO 1
A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
33
EDUCADORES POPULARES

É importante ressaltar que nesse modelo a cha-


mada “cultura específica” da comunidade teria
um destaque muito especial, instaurando uma
nova dinâmica, na qual a educação estaria intrin-
secamente articulada àquilo que, naqueles anos,
ganhou força e vitalidade: a ideia de cultura local.
Assim, comunidade e escola, de maneira integra-
da, experimentariam concretamente um processo
mútuo e simultâneo de transformação. (FREITAS e
BICCAS, 2009, p. 228).

Essa Pedagogia da margem (STRECK, 2009) fez com que


Paulo Freire fosse considerado, no fim da década de 1960, um
nome importante e conhecido no meio acadêmico, e com a
Teologia da Libertação vinculou essas áreas de conhecimen-
to e possibilitou a criação de um novo paradigma que partia
da realidade concreta do povo, que poderia aprender e ensi-
nar. Após 15 anos de exílio, Paulo Freire retornou ao Brasil
em 1979, numa conjuntura de luta por direitos humanos, tra-
balhistas e cidadania. Muitas dessas propostas foram incor-
poradas à Constituição de 1988, por meio da ação do Fórum
da Participação Popular na Constituinte. “Paulo Freire havia
insistido na ideia de que a ação pedagógica não é neutra, mas
que ela é sempre ação política” (STRECK, 2009, p.173).
No fim do século XX, o cenário apresentava variações
múltiplas, em que as organizações de comunidades, bairros e
ruas de localidades pobres traziam à tona reivindicações das
camadas populares urbanas por direitos, melhores serviços
públicos e educação de qualidade. Nas zonas periféricas das
grandes cidades, “o acesso a tais direitos já era realidade, mas
tratava-se de uma realidade sujeita a impressionantes níveis
de improvisação, deterioração e, por conseguinte, de desvalo-
rização social.” (FREITAS e BICCAS, 2009, p. 317).

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CAPÍTULO 1
34 A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
EDUCADORES POPULARES

A reconfiguração do capital levada a cabo na década de


1990 difunde o discurso da globalização, em que uma edu-
cação voltada para a ética do mercado invade os debates das
políticas públicas educacionais brasileiras. Para Paulo Freire,
“o discurso da Globalização que fala da ética esconde, porém,
que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser
humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos, na
verdade, por um mundo de gente”. (FREIRE, 1996, p. 144).
Nesse novo contexto, os movimentos sociais continu-
am a atuar na margem, pertence aos que se encontram na
margem, por isso é pouco pertinente se a Pedagogia de Pau-
lo Freire ainda pode ser aplicada em escolas públicas, ou
na educação de Jovens e Adultos na atualidade. O equívoco
ocorre ao não se considerar que esses movimentos se desen-
volvem em espaços ainda marginalizados na sociedade e ela-
boram estratégias de ação que visam dar continuidade à luta
por direitos sociais, civis e políticos num contexto diferente
daquele em que as ideias de Freire surgiram em meados do
século XX.
Nas periferias urbanas, surgem novos atores, as Orga-
nizações não governamentais – ONGs –, que se constituíram
principalmente a partir da década de 1990 e passaram a atuar
de forma privilegiada no cenário brasileiro, recebendo mui-
tos investimentos públicos e privados (GOHN,2013). Esses
novos atores concorrem com a escola pública e produzem al-
ternativas para a construção de uma educação de qualidade
para os jovens mais pobres das periferias urbanas, que têm
suas trajetórias de escolarização constantemente colocadas
na linha de fogo1.
1A partir de uma outra perspectiva teórica daquela adotada neste trabalho,
para uma análise do tipo de engajamento de jovens em resposta a problemas

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CAPÍTULO 1
A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
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EDUCADORES POPULARES

O trabalho na margem, feito por meio da ação e da


transformação do meio concreto em que vivem os indivídu-
os, pode até hoje impactar a educação e a vida de indivíduos
que vivem em contextos de periferias urbanas, pois para Pau-
lo Freire:
Impedidos de atuar, de refletir, os homens encon-
tram-se profundamente feridos em si mesmos,
como seres de compromisso. Compromisso com
o mundo, que deve ser humanizado para a huma-
nização dos homens, responsabilidade com estes,
com a história. Este compromisso com a humani-
zação do homem, que implica uma responsabili-
dade histórica, não pode realizar-se através do pa-
lavrório, nem de nenhuma outra forma de fuga do
mundo, da realidade concreta, onde se encontra os
homens concretos. (FREIRE, 1979, p. 18-19).

Nessa perspectiva, as autoras deste artigo desenvolve-


ram pesquisa de campo numa ONG denominada Projeto Amo
Salgueiro – PAS – nos últimos dois anos. Esse projeto social,
fundado em 1996 por um grupo da sociedade civil organiza-
da, foi posteriormente transformado em ONG. Os entrevis-
tados citados neste artigo são os fundadores e educadores
populares dessa associação2. O PAS está localizado em uma
das periferias urbanas do Rio de Janeiro que mais sofre atual-
mente com ações do crime organizado, mais especificamen-
te com o tráfico de drogas. Durante 20 anos, essa ONG tem
tentado resgatar a cultura local dos moradores do Complexo

específicos das sociedades atuais, ver: Melucci, Alberto. Tempo, juventude e


movimentos sociais. In: Revista Brasileira de Educação. Tradução de Angelina
Teixeira Peralva. Nº 6, Set/Out/Nov/Dez, 1997.
2 Todos os nomes dos educadores da ONG entrevistados nesta pesquisa foram

omitidos ou modificados para que a identidade dos sujeitos fosse preservada.

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CAPÍTULO 1
36 A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
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EDUCADORES POPULARES

do Salgueiro por meio de produção de material áudio visual


(fotos, filmagens e depoimentos). Outras atividades produzi-
das nesse espaço são: cineclube, peças, festas comunitárias e
intercâmbios com outros projetos sociais.
A missão do PAS era iniciar uma luta para que a comu-
nidade se conhecesse e reconhecesse no outro o lugar em que
viviam. A partir disso, que buscassem uma emancipação po-
lítica, por meio da produção cultural e da cobrança das au-
toridades de condições e vida digna para os indivíduos das
classes populares que moram no Salgueiro.
Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do
Rio de Janeiro, vemos que houve aumento significativo da
violência nas cidades de Niterói e São Gonçalo do ano de 2015
para o ano de 2016. Conforme publicação do Jornal Extra de
19 de maio de 2016, que traz em destaque a manchete “Vio-
lência Explode – Beltrame: ‘Tem gente da PM que não quer a
UPP’” –, a área de Niterói e São Gonçalo teve maior aumento
de mortes. A instalação das Unidades de Polícia Pacificadora
no Estado do Rio de Janeiro é uma iniciativa recente na polí-
tica de segurança pública, no entanto, os dados nos indicam
que após esse advento houve aumento significativo da crimi-
nalidade e violência no Estado e principalmente nas cidades
de Niterói e São Gonçalo.
No Salgueiro, conjunto de bairros localizado numa pe-
riferia urbana do Rio de Janeiro, no município de São Gonça-
lo, ações como a do PAS se justificam, pois nesse contexto a
violência, personificada no tráfico de drogas, busca seduzir
os jovens do lugar cotidianamente. A escola, por sua vez, em
vez de atraí-los, incorre numa linguagem diferente da leitura
de mundo trazida por esses meninos, que apresentam traje-
tórias de escolarização acidentadas, principalmente após o 6º

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • REJANE BAPTISTA DO NASCIMENTO


CAPÍTULO 1
A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
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EDUCADORES POPULARES

ano do Ensino Fundamental, produzidas devido a uma tenta-


tiva de enquadramento das escolas públicas locais sobre esse
grupo social oriundo do Complexo do Salgueiro3.

Os caminhos teóricos e metodológicos da pesquisa

Esta pesquisa foi sendo desenhada aos poucos, de acor-


do com o contato com o campo. O pesquisador deve saber a
medida de entrar no espaço de intimidade do outro, sem pa-
recer uma “invasão”. Demonstrar segurança e confiabilidade
para que o pesquisado se sinta à vontade e possa expressar
todas as suas impressões sobre as questões de pesquisa, de
forma interativa e dinâmica numa espécie de exercício espi-
ritual. Para Bourdieu, essa construção realista objetiva trilhar
esse caminho teórico e metodológico; o autor propõe o exercí-
cio de análise das conversas e discursos, em que os discursos
são contextualizados pelo lugar social dos entrevistados. Es-
tudar o Complexo do Salgueiro demanda um olhar das pesso-
as a partir dos efeitos do lugar (BOURDIEU, 1997b), do ponto
onde estão inseridas suas falas.
A maior parte da pesquisa qualitativa foi feita por meio
de análise das entrevistas semiestruturadas dos sujeitos, re-
velando suas trajetórias e práticas sociais. A escolha pelos
entrevistados da pesquisa se deu por considerarmos que os
educadores populares do PAS poderiam contar uma história
de vinte anos do Projeto através do resgate da memória da
instituição. A partir das respostas decidimos escolher temas

3 Sobre o complexo do Salgueiro, assim denominado por abrigar um conjunto


de bairros onde há predominância do crime organizado, rendimentos escola-
res e educação popular de jovens do lugar, ver Oliveira (2010) e Nascimento
(2016).

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • REJANE BAPTISTA DO NASCIMENTO


CAPÍTULO 1
38 A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
EDUCADORES POPULARES

que nortearam a organização e análise do material; são eles:


Autoestima; Cultura x Religião; O PAS como agência de socia-
lização; Ausência do Estado, Sociedade Civil, OSCIP e ONG.
O grupo entrevistado é composto por membros funda-
dores do Projeto PAS. Nesse universo, temos 4 educadores
populares com Ensino médio, 2 educadores com Ensino su-
perior e um educador com ensino fundamental. A faixa etária
dos entrevistados é composta por pessoas entre 25 a 50 anos
de idade. Todos moram no bairro do Salgueiro ou nas adja-
cências. As entrevistas foram realizadas de forma presencial,
via e-mail, whatsapp e facebook (conversas com áudios).
A seguir analisaremos categorias surgidas nas falas dos
entrevistados, educadores populares que construíram o PAS
ao longo de sua existência, e que são importantes para pen-
sar o impacto da atuação desse Projeto sobre a comunidade e
seus membros em 20 anos de história.

A autoestima

Nas falas dos entrevistados nos chamou atenção a per-


cepção acerca da necessidade de trabalhar a autoestima dos
moradores do Salgueiro. Percebemos nessas falas a existên-
cia do estigma de ser salgueirense. O lugar é representado
como violento e seus moradores associados à criminalidade,
e esse estigma é legitimado pelas camadas mais abastadas da
sociedade. Isso se verifica quando eles estão na escola, quan-
do saem para passeios fora da comunidade etc. O PAS inicia
seu projeto tendo como premissa o estímulo a autoconfiança
e autoestima do salgueirense, de que Jorge Canela, fundador
e primeiro presidente do Projeto, sentia falta nas pessoas
oriundas da comunidade.

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • REJANE BAPTISTA DO NASCIMENTO


CAPÍTULO 1
A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
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EDUCADORES POPULARES

A seguir, alguns depoimentos, cuja transcrição mantém


as marcas da oralidade dos entrevistados, refletem a impor-
tância que o PAS dá ao estimular a autoestima dos moradores
do Salgueiro:
Então eu tô aqui desde 2000 e hoje se encontro
na função de administração e o projeto na ver-
dade surgiu em duas fases: a primeira era res-
gatar a identidade da comunidade. E logo após,
e, foi, assim depois do resgate da comunidade
com essa finalidade, quer dizer a finalidade do
projeto na verdade foi resgatar a autoestima da
comunidade, através da família, da sua história.
(Entrevistado 2).

Acho que o Projeto PAS segue 20 anos desenvolve


essa estima que hora é destruída através das má-
culas do sangue né, que é derramado através das
facções tanto do lado da polícia quanto do lado do
tráfico e também da Igreja. (Entrevistado 3).

Principalmente na fala do entrevistado 3, fica claro


como as agências de socialização que existem na localidade
travam uma batalha entre si e não há mesmo como omitir que
a criminalidade no Salgueiro também se coloca como uma
agência de socialização dos jovens, principalmente daquele
que é excluído da escola.
Estas falas nos remetem à questão da valorização das
histórias de vida que podem fortalecer o coletivo. O senti-
mento de tentar aumentar a autoestima de cada indivíduo
em face de uma comunidade que é tão desconsiderada pelo
poder público foi um fator que nos chamou atenção. A impor-
tância da cultura está em destaque na fala dos entrevistados,
a cultura local é construída no cotidiano com seus pares e há

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • REJANE BAPTISTA DO NASCIMENTO


CAPÍTULO 1
40 A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
EDUCADORES POPULARES

uma missão de resgatar o sentimento de importância do lugar


onde se produz a cultura popular.
Bourdieu (1997a), quando fala sobre “os efeitos do lu-
gar”, nos ajuda a compreender a dimensão vivida pelos mo-
radores do Salgueiro. Para o autor, o lugar em que vivemos
pode nos estigmatizar ou nos qualificar. O viver no Salgueiro,
com todas as mazelas sociais, faz com que a estima de seus
moradores seja baixa, e as perspectivas de futuro sejam dis-
tantes das presentes na classe dominante. A falta de oferta de
políticas culturais, por exemplo, faz com que o sujeito se sinta
sem voz e sem força.

Cultura Popular x Religião

As categorias em destaque nos pareceram importantes,


pois a história do PAS começa a partir de uma tensão que Jor-
ge Canela, fundador do PAS, vivenciou quando ainda estava
numa Igreja Evangélica no Salgueiro, para onde ele almejava
levar cultura popular para os membros da congregação, mas
esbarrou nos dogmas religiosos defendidos por alguns; foi
quando se decidiu pela produção de cultura fora dos muros
da instituição.
Era um morador da comunidade e... que teve
essa visão de tentar, de desenvolver esse traba-
lho mesmo sendo criticado por todas as institui-
ções religiosas em desenvolver, mexer a cultura
do bairro. Ele avançou, ele não parou. Ele deu se-
quência a esse trabalho e nos fez vislumbrar que
é possível a gente desenvolver algum trabalho
social e de nível eclesiástico fora das paredes da
igreja. (Entrevistado 3).

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA • REJANE BAPTISTA DO NASCIMENTO


CAPÍTULO 1
A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
41
EDUCADORES POPULARES

Nas entrevistas ficou clara a influência das igrejas


evangélicas no lugar e sua dificuldade em lidar com a diver-
sidade, na constituição e na ideia de fundar uma Associação
Comunitária que trabalhasse para além do que as instituições
religiosas da localidade abordavam. Sob a égide do amor ao
próximo e tendo como estratégia a cultura popular, o men-
tor do PAS Jorge Canela propôs atividades culturais voltadas
para a comunidade, acreditando que a igreja não conseguia
atingir a todos.
Paulo Freire, em sua obra “Os cristãos e a libertação dos
oprimidos” (1978), nos chama atenção para a questão polí-
tica que envolve muitas ações das igrejas; inclusive, o autor
afirma que a instituição também serve a interesses da classe
dominante. Nessa obra, o autor ainda nos remete a duas ca-
tegorias de cristãos: “os espertos” e os “inocentes”. Nas insti-
tuições, existem aqueles que realmente estão sinceramente
buscando amenizar as mazelas da vida, em face de outros,
que se oportunizam da fé alheia, utilizando estratégias para
reforçar a estrutura de classes e a opressão também no inte-
rior das atividades eclesiásticas. O que Freire nos propõe é
uma reflexão sobre a não neutralidade das instituições. Seja a
Igreja ou a Escola, ambas tomam posições políticas. E acabam
por resguardar seus posicionamentos em meio à sociedade
em que estão inseridas (FREIRE,1978).
No Salgueiro, segundo Oliveira (2010), as igrejas evan-
gélicas cumprem ainda o papel importante de se constituir
como um espaço de sociabilidade para os pobres em um lugar
com quase nenhum equipamento público de esporte, lazer e
cultura.
A influência da experiência religiosa nos indica que o
amor ao próximo é indicado em praticamente todas as falas,

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CAPÍTULO 1
42 A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
EDUCADORES POPULARES

como objetivo do PAS. Freire (1979) também afirma que o ca-


minho para educação é o amor, é ele que impulsiona a liber-
tação. Vejamos:
Não há educação sem amor. O amor implica luta
contra o egoísmo. Quem não é capaz de amar os se-
res inacabados não pode educar. Não há educação
imposta, como não há amor imposto. Quem não
ama não compreende o próximo, não o respeita.
Não há educação com medo. Nada se pode temer
da educação quando se ama. (FREIRE, 1979, p. 29).

Entendemos que nesse caso a religião motivou a bus-


ca por outros horizontes. O que não se podia fazer exclusi-
vamente na igreja necessitava ser expandido para as ruas da
comunidade, e essa missão foi abraçada pelo PAS e seus fun-
dadores.

O PAS como agência de socialização

Outra dimensão a se considerar é de que o PAS entende


a cultura popular como uma forma mais ampla de possibili-
dade de socialização de sua comunidade, e que também, atra-
vés da cultura, é possível encontrar elementos para pensar a
realidade e intervir nela.
A solução para os problemas da comunidade estaria na
produção de cultura popular – fonte de sabedoria do próprio
homem, que se faz no cotidiano com os seus parceiros e re-
tornaria em favor da própria comunidade. Segundo Freire:
Para este humanismo radical, amar não é um ges-
to, é um ato e um ato de libertação, que implica a
comunhão dos sujeitos que amam e se amam. Por
isto é que não é possível amor entre os antagôni-

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CAPÍTULO 1
A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA DA MARGEM EM UMA PERIFERIA URBANA DO RIO DE JANEIRO:
AS AÇÕES DA ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA PROJETO AMO SALGUEIRO A PARTIR DA FALA DE SEUS
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EDUCADORES POPULARES

cos, como também aí está a razão pela qual se im-


põe a superação da contradição entre dominantes-
-dominados para que haja amor verdadeiro. E esta
é a tarefa que este amor impõe aos segundos, uma
vez que a libertação de uns e outros não pode ser
feita a não ser por estes. (FREIRE, 2014, p. 342)

Os pilares para criação do PAS nos remeteram à Peda-


gogia do Oprimido de Paulo Freire, em que ideais fraternais
levaram a uma conscientização da realidade, e como os su-
jeitos poderiam ser libertos da opressão a que são impostos
e buscar uma alternativa de libertação. Reconhecer a condi-
ção de dominado e oprimido e ter na religião uma forma de
pensar que Deus não está afastado da História, mas crer nele
pode indicar o caminho para que os homens sejam protago-
nistas, livrando-se das humilhações da vida terrena e voltan-
do a ter sonhos.
Quando comecei a dar aula no Projeto PAS, eu já
dava aula em outras escolas né escolas particula-
res, clubes, essas coisas assim e nunca tinha mi-
nha mente voltada ao social. Quando eu conheci o
Jorge Canela minha mente mudou. E na necessi-
dade eu tive que reinventar as minhas aulas né...
as atividades até a parte da linguagem também.
Porque tem uma diferença da linguagem que eu
tinha em convívio com o pessoal do Rio de Janeiro
né Niterói...e na minha comunidade eu não sabia
falar a minha linguagem. Então o que eu aprendi
com Jorge que se eu quero que as pessoas enten-
dam o que eu to falando eu tenho que estudar o
que as pessoas falam também. (...) Bom...é...eu
não vejo por esse lado, mesmo porque quem faz
a capoeira, faz as outras atividades também...mas
assim é...a capoeira ela não é só uma luta, um es-

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CAPÍTULO 1
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porte né... A capoeira é uma educação, uma inte-


gração social como eu disse antes, mas também
é a formação de sociedade. [...] Você conhecer, se
preparar pra conhecer o mundo lá fora. Mesma
metodologia de ensino do Projeto PAS. (...) A gen-
te acabou de citar aqui que a história da capoei-
ra está entrelaçada com a História do Brasil né e
falando de contribuição eu acho que ali...oficina,
atividade se for colocar os pingos nos is, estamos
dentro de um quilombo. É então assim, um qui-
lombo todo mundo se ajuda porque ali é um qui-
lombo. (Entrevistado 5).

Aparece na fala dos educadores populares diversas ve-


zes a palavra socialização, além de citarem questões relacio-
nadas a outras agências de socialização como a família e o
tráfico de drogas, por exemplo. Eles demonstram uma crença
forte na agência do PAS sobre os jovens e adolescentes do lu-
gar, e percebem que muitas vezes a própria escola local não
consegue esse feito.
Também se percebe na fala dos educadores a manuten-
ção da cultura afrodescendente como símbolo de luta e re-
sistência, utilizando-se a figura de Zumbi e comparando-se
o PAS a um quilombo. Observa-se que a oficina de capoeira
é a que possui o maior número de atendidos, em diferentes
idades. Podem-se ver sucessores que foram alunos e hoje são
auxiliares do educador popular, inclusive ministrando ofici-
nas quando ele não pode estar presente, tanto na sede quanto
na escola pública local, parceira do projeto. Na capoeira e no
jongo os alunos permanecem, e se presencia a renovação dos
atendidos que são agregados a cada ano.
Segundo Thin (2006), as famílias de classes populares
enfrentam mais dificuldades no processo de escolarização

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EDUCADORES POPULARES

dos filhos do que aquelas oriundas das classes médias e altas.


Isso ocorre devido à legitimação de um currículo na escola
que não contempla a cultura trazida por esse grupo, e as di-
ficuldades materiais que as crianças das camadas populares
enfrentam também não são consideradas. Nesse sentido, “A
questão da socialização, da confrontação das lógicas popula-
res e pedagógicas encontra-se no centro mesmo das relações,
nas quais o que está em jogo é o conjunto das práticas sociali-
zadoras das famílias” (THIN, 2006, p. 19).
Cabe ressaltar que também percebi vários atendidos
que se desenvolvem bem nas atividades culturais do PAS,
mas que são excluídos em atividades e avaliações da escola.
Nas escolas do Salgueiro a forma escolar hegemônica (THIN,
2006) parece ainda não saber como aproveitar a cultura pro-
duzida no e pelo lugar.

Ausência do Estado, Sociedade Civil, OSCIP e ONG

De acordo com o que foi pesquisado e encontrado nos


documentos que oficializaram a criação do PAS, a ideia inicial
foi preservada, assim como os objetivos do Projeto, mas com
o tempo eles tiveram que se adequar a algumas especifica-
ções, para que pudessem concorrer aos editais de empresas
públicas e privadas e pleitearem prêmios que fossem reverti-
dos para compra de equipamentos, alimentação das crianças
e remuneração das atividades e oficinas.
Em entrevista concedida a Maria Andréia Loyola, Bour-
dieu (2002) fala sobre a transformação que o neoliberalismo
provoca na organização das instituições nas últimas décadas.
A retirada do Estado das políticas sociais pressionou para que
as ações fossem realizadas através de outros atores, como as

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CAPÍTULO 1
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organizações da sociedade civil, pois foi atribuída à socieda-


de civil o papel que o Estado deveria fazer nessas localidades
em que as políticas públicas não chegam.
Gohn (2013) fala sobre a transformação dos movimen-
tos sociais nesse período, que para se adequarem à nova or-
dem social com o neoliberalismo, transformaram algumas
instituições em ONGs, para atender a editais em comunida-
des como o Salgueiro, em risco e vulnerabilidade social.
A ausência do Estado pode ser percebida na própria
constituição da comunidade do Salgueiro, como observamos
na entrevista abaixo:
(...) que foi com um conjunto habitacional que veio
para esse lugar depois da extinta Guanabara quer
dizer depois de fazer a ponte Rio-Niterói, as pes-
soas foram dispersas dessas favelas de Niterói e
foram jogadas mais ou menos aqui sem nenhum
acompanhamento social (...). (Entrevistado 2).

Sobre a busca de financiamento e as mudanças na cap-


tação de recursos do PAS, encontramos a seguinte resposta de
um dos seus educadores populares:
É a gente buscou o financiamento porque a gente
queria já existia há algum tempo e queria oferecer
atividade de qualidade mais pra isso a gente pre-
cisava de recurso financeiro que a gente não tinha
acesso e os recursos que a gente tinha era só do
pessoal mesmo do Projeto e de alguns comercian-
tes locais que ajudam o Projeto. Então a gente bus-
cou esse financiamento que a gente viu portas que
se abriu através do edital. Primeiro a gente tentou
regularizar a situação jurídica do Projeto e depois
disso é depois desse período de cada edital que
era aberto por estas instituições pública e priva-

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CAPÍTULO 1
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EDUCADORES POPULARES

da a gente tanto do Ministério da Cultura quanto


do Itaú que era o banco né é a gente se encaixou,
se adequou ao edital deles e começamos a se ins-
crever e graças a Deus e fomos contemplados em
algumas dessas desses editais que foram aberto. E
eles serviram pra que a gente expandisse o nome
do Projeto que né o Projeto ficasse conhecido e
também que a gente adquirisse alguns materiais e
recursos financeiros pra poder oferecer uma ativi-
dade de qualidade. (Entrevistado 3).

No depoimento, é expresso um ajuste da Associação


Comunitária para “enquadramento” nos editais, tanto do se-
tor público como no privado. Sobre essa questão, Bourdieu
afirma que:
Não sou um “poeta” da restauração do Estado a
qualquer preço. Sabe-se que as burocracias car-
regam uma enorme possibilidade de vícios, mas
é também claro que, quando o Estado se retira
completamente, o que se tem é o gueto de Chica-
go tal como o evocamos em A miséria do Mundo:
subúrbios problemáticos, onde não há mais escola
nem trabalhadores sociais. O setor humanitário
que não é Estado é composto de instâncias priva-
das orientadas por interesses privados, por pesso-
as que visam ao lucro privado e, que sabem muito
bem se servir de subvenções mundiais para fazer
valer seus interesses. (BOURDIEU, 2002, p.30).

O trecho acima nos faz refletir sobre a retirada do Esta-


do e a abertura desse espaço para a atuação de ONGs, ligadas
a setores privados, que utilizam dessa artimanha para lucrar
em comunidades de risco social para as quais seus editais são
direcionados.

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CAPÍTULO 1
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Ao observar a dinâmica da Associação Comunitária,


vemos que ela realmente se transforma para atender aos edi-
tais, principalmente o do Itaú Social Unicef, com o qual o PAS
foi premiado por duas vezes. Mas na fala do entrevistado fica
claro que eles se adequam por uma questão de sobrevivência,
qualificação e visibilidade do Projeto nos cenários municipal,
estadual e federal. A preocupação maior é com os equipa-
mentos para melhoria das oficinas prestadas, a remuneração
dos educadores sociais, visto que muitos não ganham nem a
locomoção ao local do Projeto e se dedicam há muito tempo,
muitos desde a fundação.
Além do financiamento privado para se tornar Ponto de
Cultura, buscaram-se recursos através da Secretaria do Esta-
do de Cultura, e também foi preciso o ajuste ao edital, que
fazia algumas exigências, como o apoio técnico de um peda-
gogo. Inclusive o uso de atividades e oficinas também foi algo
incorporado pelo edital. Segundo o atual presidente do PAS,
há diferença para o Itaú entre atividades de longa duração (o
ano inteiro), como no caso da capoeira, e atividades de curta
duração (3 meses), como o Vídeo & Fotografia.
A história do PAS também pode ser relacionada à lei do
Voluntariado de 1998 (BRASIL, 1998). Segundo essa lei, ha-
veria incentivo para que as pessoas se engajassem em ativi-
dades voluntárias com a finalidade de realizar atividades que
são dever do Estado. A essência do projeto é o voluntariado, e
até hoje isso ainda é cultivado. Eles deixam claro que o desejo
jamais foi de que os educadores trabalhassem como voluntá-
rios indefinidamente.
As ideias de fazer bingos, almoços e lançar produtos
que pudessem ser comercializados e rendessem uma profis-
são para os jovens também foram tentativas de tornar o pro-

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CAPÍTULO 1
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EDUCADORES POPULARES

jeto autossustentável. Mas até hoje esse desejo não se efeti-


vou na prática.

Considerações preliminares

Diante das análises das entrevistas, podemos afirmar


que o trabalho que o PAS vem desenvolvendo ao longo desses
vinte anos pode ser caracterizado como um trabalho de edu-
cação popular, feito por meio de uma “pedagogia da margem”
(STRECK, 2009).
Fala do presidente da Associação Comunitária, acerca
do Ver Se Vendo, que é o Ponto de Cultura Ver Se Vendo, con-
quistado pelo edital da Secretaria de Estado de Cultura e que
representa todas as atividades e oficinas do PAS: “Quando em
comunhão, eu olho o outro eu me vejo e esse reflexo coletivo
dá significado ao trabalho da Associação”.
Segundo ele, a intenção é dar espaço, vez e voz aos
oprimidos pela violência do lugar. Espaço esse que é de cons-
trução de cidadania e não apenas um ponto de encontro.
Um lugar onde eles pudessem fazer atividades e, ao mesmo
tempo, produzir uma Pedagogia da Margem (STRECK, 2009),
pensando de forma a instituir aqueles que são esquecidos
pelas políticas públicas, mas que também possuem direitos
que lhes são negados pela estrutura de classes da sociedade
contemporânea.
Segundo Freire (2014), a formação pela cultura liberta.
A cultura é um veículo para que as pessoas se conheçam e
se reconheçam nesse movimento do “Ver Se Vendo”, com o
amor, comunhão e fé objetivando a transformação da comu-
nidade em que vivem. “A questão do empoderamento de clas-
se social envolve como a classe trabalhadora, através de suas

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CAPÍTULO 1
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próprias experiências, de sua própria construção de cultura,


se engaja para obter poder político.” (FREIRE, 2014, p. 75).
Na Pedagogia do Oprimido, sob essa mesma lógica,
Freire (2005) nos aponta que o caminho para libertação seria
através do amor e da transformação pelos sujeitos históricos
que compõem a sociedade.
Ainda Freire nos ajuda a pensar sobre o papel do amor
nesse resgate da solidariedade humana que encontramos na
educação popular e na pedagogia da margem (STRECK , 2009)
que os salgueirenses constroem nas ações e no cotidiano das
oficinas e atividades do PAS.
A luta é travada cotidianamente, e não é realizada a
história sem embates. Nesses vinte anos de história do PAS,
alguns se perderam na criminalidade, com a possibilidade de
descrédito na utopia de fazer um Salgueiro melhor, na desis-
tência da luta pela criação de políticas públicas que não acon-
teceram, mas o PAS continuou de pé e vivo na comunidade.
A investigação das ações do PAS no campo da educa-
ção popular, no que se configura como uma Pedagogia da
Margem, pode revelar por meio da análise das atividades de
cultura popular desenvolvidas no lugar, experiências que são
designadas para esses indivíduos, impostas pelo lugar que
ocupam na hierarquia social, na medida em que o lugar estig-
matizado em que vivem contribui para determinar de forma
muito desigual o lugar dos indivíduos no espaço social.
Por outro lado, consideramos que mesmo compreen-
dendo o lugar social desse grupo de periferias urbanas, por
meio de uma relação de dominação em que, por exemplo, a
escola e os professores representam os agentes dominantes e
os jovens de camadas populares os agentes dominados, não
podemos nos deixar levar por “impasses conexos”, ou seja,

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CAPÍTULO 1
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EDUCADORES POPULARES

“pensar a dominação sem autonomia ou a autonomia sem do-


minação” (THIN, 2006, p. 52). Os últimos dados da pesquisa
de campo apontam que isso pode ocorrer por meio do enga-
jamento de alguns desses jovens em atividades que utilizam
estratégias de Educação Popular, e que possibilitam a cons-
trução de uma Pedagogia da Margem no lugar em que vivem.
Do ponto de vista metodológico, as entrevistas realiza-
das com os educadores populares que trabalham com esses
jovens permitiu compreender o impacto das ações e ofici-
nas desenvolvidas pelo PAS durante vinte anos de história e
centenas de moradores do lugar atendidos pelo projeto. As
entrevistam buscaram analisar as consonâncias e dissonân-
cias das experiências vividas pelos sujeitos da pesquisa com
o nosso referencial teórico, as relações entre as estruturas do
espaço social e as estruturas do espaço físico, assim como a
riqueza das ações de cultura popular criadas no local.
Nesse sentido, a pesquisa possibilitou a produção de
indicadores qualitativos sobre a situação do direito a políti-
cas públicas culturais no município de São Gonçalo, eviden-
ciando características específicas da demanda da população
junto ao poder público, bem como a identificação de fatores
que obstam e/ou motivam a busca pelo direito à cultura po-
pular numa periferia urbana do Rio de Janeiro.

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CAPÍTULO 1
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CAPÍTULO 2
54 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

Capítulo 2
Movimentos sociais e a luta por creches no
Rio de Janeiro: um diálogo com Paulo Freire
e a luta das mulheres no Guarabu
Maria Tereza Goudard Tavares
Jane Chalão Lucchesi

É preciso encher o mundo de histórias; histórias de sujeitos não


nomeados, histórias de pessoas e lugares que só passam a exis-
tir após instituídos por uma câmera de televisão, registrados
por fotografias ou narrados em filmes, revistas, jornais, novelas,
livros. O mundo, as vidas das pessoas, as identidades são cons-
truídos, inventados, instituídos a cada nova história que circula
(COSTA, 1998, p. 251).

Introdução

O
presente artigo tem muitos pretextos: um deles é
inventariar e atualizar a luta de Movimentos So-
ciais por creche, em especial, o movimento de luta
por creches no município do Rio de Janeiro, mais
especificamente na favela do Guarabu, Ilha do Governador.
Outro pretexto diz respeito à nossa participação na Iª Jornada
“Paulo Freire: reconstruindo pontes”, na Universidade de In-
tegração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB),
em março de 2016. Durante três dias, nos foi possível, profes-
sores/as e estudantes, discutir e investigar a contemporanei-
dade do pensamento de Paulo Freire e sua importância para o
aprofundamento de alguns paradoxos da Educação brasileira,
dentre eles a luta das mulheres por­­creche.

MARIA TEREZA GOUDARD TAVARES • ANE CHALÃO LUCCHESI


CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 55
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

Nessa perspectiva, buscando aprofundar os pretextos


do artigo em tela, nos propomos, do ponto de vista teórico e
metodológico, apresentar a pesquisa que vimos realizando,
optando pela pesquisa qualitativa de natureza etnográfica
(TAVARES, 2003), na qual concebemos a pesquisa como uma
experiência de conhecimento, e o trabalho de campo, longe
de ser apenas um trabalho de coleta de dados, um movimen-
to epistêmico que possibilita a ação-reflexão-ação coletiva
sobre o conhecimento, corroborando o que Freire defende
como o papel da pesquisa numa perspectiva emancipatória
(FREIRE, 1996).
Do ponto de vista contextual, desde 1980, o movimen-
to de lutas por creches no município do Rio de Janeiro vem
construindo uma pauta junto ao poder público e à socieda-
de civil, pois, segundo levantamento da Defensoria Pública
do Rio, há, atualmente, 42.640 crianças de zero a três anos e
onze meses aguardando por vagas em creches no município1.
Nesta faixa etária estão sendo atendidas pela Secretaria de
Educação 69.911 crianças, sendo 53.771 em creches munici-
pais, escolas e EDIs (Espaços de Desenvolvimento Infantil), e
16.1892 em creches comunitárias conveniadas3.
Estas questões demarcam o pano de fundo estrutural
e conjuntural no qual as lutas do movimento por creches se
tornam emergentes na cidade do Rio de Janeiro. Este cenário,
embora apresentado de forma breve, nos mostra que a cons-
trução e implementação de políticas públicas de educação em

1 <http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/rio-tem-42-mil-criancas-em-
-filas-para-creches-diz-defensoria-18860470#ixzz42hHCNRgN>
2 <http://www.rio.rj.gov.br/web/sme/educacao-em-numeros >.
3 As creches comunitárias tiveram sua origem como uma resposta alternativa

das classes populares ao direito à creche (TAVARES, 1996).

MARIA TEREZA GOUDARD TAVARES • ANE CHALÃO LUCCHESI


CAPÍTULO 2
56 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

contextos periféricos, os seus desafios, com avanços e dificul-


dades que hoje se apresentam na busca pela justiça social e
pelo direito à educação, tem sido fruto de lutas acirradas en-
tre diferentes atores, produzindo tensões entre as diferentes
escalas de poder político e econômico, em especial nos bair-
ros periféricos das grandes metrópoles brasileiras.
Neste sentido, problematizar algumas questões e atra-
vessamentos presentes na relação entre movimentos sociais
e o direito à educação da(s) infância(s) numa região periférica
do Rio de Janeiro, a favela do Guarabu, na Ilha do Governador,
relacionando essa luta com o conceito de conscientização de
Paulo Freire (1979), se apresenta como uma das segundas in-
tenções do texto, nos exigindo uma maior contextualização
dos conceitos e noções utilizados na construção do arcabouço
teórico e metodológico do artigo em tela.
Do ponto de vista do conceito de movimentos sociais,
segundo Magali Alonso (2009), nas Ciências Sociais, o termo
“movimentos sociais” foi criado no início dos anos sessenta
do século passado, com vistas a nomear multidões que se
manifestavam nas ruas exigindo mudanças pacíficas (“faça
amor, não faça a guerra”), aparentemente desinteressadas de
pressionar o Estado por algum tipo de poder. Nessa perspec-
tiva, o termo movimentos sociais vem assumindo nas últimas
cinco décadas diferentes significados e sentidos, fundamen-
tados em distintas teorias (TOURAINE, 1977, MELLUCI, 1989,
GOHN, 2010, e TARROW, 2009).
Ainda segundo Alonso (2009), tais teorias construíram
os seus principais fundamentos políticos e epistêmicos em
oposição à teoria marxista, à concepção de revolução social
e ao protagonismo das classes trabalhadoras, do operaria-
do urbano. Para esta autora (idem), as configurações desses

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CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 57
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

movimentos, os modos de luta e os seus repertórios de ação


buscariam explicitar modos distintos do movimento operá-
rio e fabril. E que esses movimentos sociais se caracteriza-
riam pela heterogeneidade de seus atores, pela origem não
operária de suas lideranças e da composição de seus mem-
bros, pelo repertório de ação distintos das mobilizações tra-
dicionais do operariado fabril, pela utilização de passeatas e
manifestações de massa nas ruas como forma de expressar e
reivindicar suas demandas.
Em linhas gerais, os movimentos sociais que até a dé-
cada de 60 do século XX eram compreendidos fundamental-
mente a partir de leituras marxistas, e que se pautavam no
estruturalismo e no funcionalismo para analisar/explicar as
ações coletivas do operariado sob o par política e economia,
sofreram novas configurações, sendo lidos e compreendi-
dos à luz de uma concepção culturalista-identitária (GOHN,
2010), que enfatizava as relações microssociais e culturais,
mobilizando outras questões relacionadas a gênero, etnia, es-
tilos de vida, meio ambiente etc.
No Brasil, uma das primeiras referências a ser desta-
cada no uso de novas abordagens e na construção de outras
categorias analíticas e conceituais sobre o campo dos movi-
mentos sociais, criticando as abordagens de cunho estrutu-
ralistas que hegemonizavam a leitura desses movimentos no
final da década de 70 do século passado, foi o sociólogo Eder
Sader, em seu livro “Quando novos personagens entraram em
cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande
São Paulo, 1970-80”, publicado em 1988.
Sader (1988) apresenta em seu livro algumas questões
nodais que englobam duas categorias desses novos perso-
nagens no contexto de lutas e reivindicações: a irrupção do

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CAPÍTULO 2
58 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

sujeito coletivo, social e descentralizado e as matrizes dis-


cursivas que estes vão utilizar para a leitura e a intervenção
na realidade social, sobretudo pela ação coletiva em prol das
conquistas de seus direitos fundamentais, como moradia,
educação, transporte, trabalho, saúde etc. Como indicador da
emergência de novas identidades coletivas, este novo sujeito
dos movimentos sociais se tornaria uma categoria fundamen-
tal, à medida que sua identidade e seus repertórios de ação
coletiva se materializariam a partir da coletividade, através
da qual os seus membros procurariam defender seus inte-
resses e expressar suas vontades políticas, constituindo essa
identidade coletiva na luta:
Ao final da década vários textos passaram a se re-
ferir à irrupção de movimentos operários e popu-
lares que emergiam com a marca da autonomia e
da contestação à ordem estabelecida. Era o “novo
sindicalismo”, que se pretendeu independente do
Estado e dos partidos; eram os “novos movimen-
tos de bairro”, que se constituíram num proces-
so de auto-organização, reivindicando direitos e
não trocando favores como os do passado; era o
surgimento de uma “nova sociabilidade” em as-
sociações comunitárias onde a solidariedade e a
auto-ajuda se contrapunham aos valores da so-
ciedade e inclusiva, eram os “novos movimentos
sociais”, que politizavam espaços antes silencia-
dos na esfera privada. De onde ninguém espera-
va, pareciam emergir novos sujeitos coletivos,
que criavam seu próprio espaço e requeriam no-
vas categorias para a sua inteligibilidade (SADER,
1988, p.35-36).

Ao reivindicar uma aproximação conceitual com as


questões citadas por Sader no livro em tela e os movimentos

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CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 59
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

de luta por creche no Rio de Janeiro, em especial o papel do


movimento das mulheres do Guarabu, intencionamos inves-
tigar a identidade coletiva desse movimento como “sujeito
histórico”, isto é, refletir sobre a composição e interesses em
disputas, tanto dos/das partícipes desse movimento, quanto
de outros atores envolvidos, tais como Prefeitura, Associação
de Moradores, Igrejas, Sindicatos dos Profissionais de Educa-
ção etc.
Dentro deste panorama, para dialogar com as nossas
questões de estudo, encontramos ancoragem no aporte teóri-
co freireano, compreendendo que o mesmo amplia de forma
vigorosa algumas das questões fundamentais para a compre-
ensão e análise da temática de estudo. Desta forma, dialo-
gando com Freire, entendemos que “é preciso compreender
qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem
trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”
(2005, p. 52). Esta citação nos parece exemplificar a relação
do pensamento de Freire com a questão do processo de cons-
cientização das mães do Guarabu.
Paulo Freire, em toda a sua trajetória epistêmica e po-
lítica, especialmente em sua teoria da práxis política, deixa
expressa a responsabilidade da ação social de cada sujeito na
transformação da sua realidade.
Assim, a influência do pensamento freireano vai além
do campo da educação. Está presente em muitos movimen-
tos sociais de caráter crítico e emancipatório, em especial,
segundo nossa compreensão, no despertar da consciência
crítica das mulheres do Guarabu que, ao perceberem que de-
veriam se mobilizar para lutar de forma coletiva, começaram
a reivindicar um espaço de educação e cuidados para suas
crianças. Desta forma, a creche conveniada Arca de Noé é

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CAPÍTULO 2
60 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

f­ ruto da luta coletiva de um grupo de mães pelo direito à edu-


cação de suas crianças, principalmente na situação concreta
da reprodução de sua força de trabalho.
Pela especificidade deste estudo, buscamos discutir
o sentido que os movimentos sociais têm para Paulo Freire,
através de um recorte do pensamento deste autor, estabele-
cendo uma relação entre a mobilização das mulheres traba-
lhadoras pelo direito à creche e os Movimentos Sociais, tão
importantes para a formação de diversos grupos na época em
que ocorre o início da luta pela creche conveniada Arca de
Noé, em 1984.
Na perspectiva da trajetória histórica da Educação
Popular, Paulo Freire e outros autores da EP intencionavam
que homens e mulheres discutissem as questões concretas
de suas realidades sociais, levando-os, dessa forma, a parti-
ciparem efetivamente do processo histórico e da situação de
mudança advinda de suas leituras de mundo. A Educação Po-
pular procura utilizar a realidade sociocultural do povo para
despertar a consciência crítica e transformadora dos sujeitos
das classes populares.
Nessa perspectiva, não haveria para Freire, então, uma
força sobrenatural guiando a história. Todos têm que assumir
a responsabilidade ética pelo que dizem e fazem, sem negar
os condicionamentos sociais, culturais e políticos a que se
está submetido. É imprescindível, portanto, reconhecer que
somos seres condicionados, mas não determinados, pois a
história é um tempo de possibilidades e não de determinis-
mos (FREIRE, 1996, p.58). Os conhecimentos e a realidade
não são, assim, fechados e inacessíveis; mas são, na realida-
de, campos de possibilidades. O futuro é, então, problemáti-
co, mas não inexorável.

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CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 61
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

Nesse ponto, a ideologia dominante se empenha em nos


convencer de que não podemos fazer nada, além de aceitar
passivamente e nos adaptarmos à realidade, que é apresen-
tada como se fosse um fenômeno natural, e não um processo
social construído e modificado permanentemente pela ação
de homens e mulheres na história, o que leva as mulheres
do Guarabu a enfrentarem o desafio da consolidação do novo
espaço da creche conveniada Arca de Noé, transformando, in-
clusive, a realidade de outras mães, desde 1984 até o presente
momento.
Portanto, de acordo com Freire (1979), para que ocor-
ra o processo de libertação individual e coletiva, é necessário
que haja a reflexão para ocorrer uma possível transformação
no pensar e na ação do sujeito. Sem a reflexão, o ativismo
pode se tornar desorganizado, e o engajamento político não
refletido pode acabar paralisando a utopia. Lembramos que a
utopia não pode prescindir do conhecimento crítico da reali-
dade, conhecimento este que vislumbra denunciar dialetica-
mente a estrutura perversa de descaso do sistema na qual os
(as) sujeitos das camadas populares, principalmente as mu-
lheres e mães, encontram-se subjugados (as).
Movida, então, pela utopia de um equipamento próprio
para o cuidado e a educação das crianças da pequena infância
da favela do Guarabu, no município do Rio de Janeiro e inse-
rida em uma conjuntura sociopolítica voltada para o processo
de redemocratização do Brasil, é que Maria das Graças Reis,
uma das lideranças do movimento no processo de luta, que já
cuidava das crianças vizinhas, mas ainda não era mãe, pro-
põe em reunião dos moradores da comunidade com repre-
sentantes da prefeitura que fosse construída uma creche para
que as mães pudessem trabalhar. Fato este que passa a dar

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CAPÍTULO 2
62 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

visibilidade às mulheres desta favela, pois “só os que anun-


ciam e denunciam podem ser proféticos, estando permanen-
temente engajados num processo radical de transformação
do mundo.” (FREIRE, p. 59, 1979)
Ainda segundo Maria das Graças, a proposta da creche
foi criada após perceber por várias vezes que muitas mu-
lheres da comunidade, que ficavam em casa cuidando das
crianças e dos afazeres atribuídos exclusivamente ao gênero
feminino, passavam por situações de violência doméstica, no
momento em que informavam ao companheiro que a comida
e/ou o dinheiro para comprá-la acabara. O companheiro, que,
por sua vez, já havia feito uso de bebida alcoólica antes de
chegar em casa, agredia a mulher física e moralmente.
A creche, então, representa um dispositivo importante
no processo de conscientização dessas mulheres, muitas víti-
mas do patriarcado violento e opressor.
No momento da construção do novo espaço da creche
comunitária conveniada Arca de Noé4, Maria das Graças, dia-
loga com as mulheres do Guarabu e com outros moradores. A
partir de então é que as mulheres se mobilizaram para lutar
pelo direito de suas crianças ao novo espaço da creche.
Podemos, então, pensar o diálogo como fonte de liberda-
de. É importante, portanto, que, de acordo com o pensamento
freireano, os homens e as mulheres tenham consciência de
si e do mundo, sejam autônomos, tenham liberdade, pensem
sobre as questões que os cercam. Ou seja, ter liberdade para
agir, agir concretamente, transformando seu lugar de ação,
4 A creche comunitária conveniada Arca de Noé iniciou o atendimento na As-
sociação de Moradores do Guarabu e, após um desentendimento em relação
ao gerenciamento do equipamento, a creche passou a atender as crianças em
outro local, um espaço que gerou disputas entre invasores, vizinhos do entorno
e mulheres da comunidade.

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CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 63
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

transformando a sua realidade, assim como as mulheres que


se mobilizaram para lutar pelo direito à creche Arca de Noé.
Na relação dialógica entre esses homens e mulheres, na
busca de informações com seu meio, é que eles e elas vão se
constituindo e tomando, cada vez mais, consciência de si e de
sua própria realidade.
É a partir do diálogo que a conscientização de si vai
construindo um novo homem e uma nova mulher, que, cons-
cientes de si, são capazes de agir sobre si e sobre o meio que
estão inseridos (as).
Em relação à ideia de conscientização, Paulo Freire, no
início da década de 1960, toma de empréstimo de um grupo
de professores do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasi-
leiros) este conceito, que vai nortear todo o seu pensamento.
Assim, a partir de um processo de conscientização das
mulheres de seus direitos e dos direitos de suas crianças em
serem atendidas pelo Estado em um equipamento para cuidar
e educar seus filhos (as) é que, em nossa concepção, as mulhe-
res do Guarabu passam por transformações permanentes da
realidade de descaso ao atendimento a questões anteriormen-
te consideradas privadas, como é o caso da ausência de creche.
Através do amadurecimento da visão crítica e dinâmica
para a conquista da creche para suas crianças, além de dar os
primeiros passos em direção ao rompimento da estrutura do-
minante da sociedade em vigência, essas mulheres mães são
liberadas para que possam se inserir no mercado de trabalho,
construindo história, pois “entre o anteprojeto e o momento
da realização ou da concretização do projeto, há este tempo
que se chama tempo histórico; é exatamente a história que
devemos criar com nossas mãos” (FREIRE, p.59, 1979).
Entretanto, ressaltamos que a nova realidade conquis-
tada com a luta do gênero feminino na favela do Guarabu, a

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CAPÍTULO 2
64 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

partir da relação desenvolvida entre a conscientização e o


mundo que extrapola as paredes dos lares dessas mulheres,
não encerra o processo de conscientização, pois, segundo
Freire (1979), este processo não tem fim.
Neste sentido, procuramos no texto em tela complexi-
ficar a luta do movimento das mulheres do Guarabu pela ex-
pansão da Educação Infantil na cidade, sobretudo a luta pela
ampliação das creches públicas nos bairros mais populosos e
pobres do município. Compreendemos que estudar de forma
mais aprofundada as lutas no lugar, isto é, os embates realiza-
dos nas entranhas do poder local, nos oferece pistas fecundas
sobre o processo de democratização do direito à educação,
sobretudo da educação infantil no município.

A constituição de Creches Comunitárias no Brasil e suas


implicações no direito à Educação Infantil: as lutas das
mulheres na favela do Guarabu

Em linhas gerais, a proliferação de creches comunitá-


rias no Brasil ocorreu a partir da década de 1970, quando o
contexto de crise econômica e deterioração das condições
de vida da população favoreceram a incorporação crescen-
te das mulheres ao mercado de trabalho e, juntamente com
isso, ampliou-se a demanda por espaços de educação e cui-
dados de seus filhos e filhas pequenos (as). A conjuntura do
período favorece, ainda, a eclosão de movimentos populares,
com destaque para os movimentos de mulheres e para as Co-
munidades Eclesiais de base (CEBs)5 da Igreja Católica, cuja

5As CEBs constituíram-se a partir de diferentes grupos da Igreja Católica que


comungavam da chamada Teologia de Libertação, cujas intervenções tinham
como público-alvo camadas da população em condição de exclusão dos bens

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CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 65
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

atuação é determinante para a formação de muitas creches


comunitárias, inclusive no município do Rio de Janeiro.
Em nossa compreensão, as creches comunitárias – mais
do que uma proposta educativa à ausência de equipamentos
de educação das crianças pequenas – surgiram principalmen-
te nas favelas e áreas pobres do município do Rio de Janeiro
como solução para o atendimento às crianças das camadas
populares em face à ausência histórica do Estado nesta área
educacional. Posteriormente, em função de suas lutas e pres-
sões, muitas delas adquiriram subsídios do poder público via
convênios e / ou apoio de organizações filantrópicas, tendo
em vista que começam a ser tratadas como entidades sem
fins lucrativos.
A lógica que sustentava essas ações era a expansão
a baixo custo, com a exploração da mão de obra da própria
comunidade para a manutenção de serviços que são de res-
ponsabilidade do Estado, visando a atender o maior número
possível de crianças sem realizar investimentos compatíveis
(AMMANN, 1986).
O intuito de muitos programas era ampliar significati-
vamente o atendimento em termos quantitativos, sem o apor-
te proporcional de verbas públicas, o que era viabilizado pela
exploração de mão de obra voluntária ou semivoluntária das
comunidades pauperizadas, das quais, muitas vezes, não era
exigida qualquer qualificação profissional para atuar em cre-
ches, sobretudo pela ausência histórica de um ethos profis-
sional neste campo do trabalho educacional, bem como a sua
associação com a maternagem infantil Além disso, a distorção
a que é submetida essa concepção de participação dos sujei-
culturais e sociais produzidos. Calcula-se que na década de 70 a 90 do século XX
cerca de 93.000 CEBs teriam sido criadas em todo o Brasil.

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CAPÍTULO 2
66 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

tos, principalmente das mulheres nesse tipo de ações merece


destaque, por conta de sua dimensão despolitizante, e muitas
vezes de cooptação. A atuação dos membros da comunidade é
identificada com a democratização dos processos educativos,
mesmo quando o que se percebe em muitas realidades é a po-
pulação local restrita ao papel de mera executora de funções
e projetos, para cujo processo de elaboração a mesma sequer
é (ou foi) convidada a participar.
Com as modificações que foram impetradas na edu-
cação infantil a partir da Constituição de 1988, que tornou
a educação dos “pequenos” direito das crianças, da família
e dever do Estado, e posteriormente com a implementação
da LDB/96, que definiu a educação infantil como a primeira
etapa da Educação Básica, além da implementação do FUN-
DEB, garantindo o financiamento para as creches públicas,
comunitárias e filantrópicas, os convênios passaram, a partir
de 2004, a ser efetivados através da Secretaria de Educação,
passando a ter caráter mais regulatório do que educativo, de-
vido às inúmeras burocracias e exigências legais para o seu
funcionamento.
Neste período, configuram-se na cidade duas formas
de atendimento em creches: uma na qual o poder público se
responsabilizava integralmente pelo atendimento em insti-
tuições públicas municipais; e outra forma na qual os inves-
timentos são parciais e os recursos possuem forte restrição
de utilização, sobretudo em relação à construção e melhorias
nos espaços físicos das creches comunitárias.
Numa sociedade altamente excludente, concentradora
de renda e patrimonialista como a nossa, compreendemos
que as lutas que emergem desses movimentos contra-hege-
mônicos e que de diferentes formas se expressam e articulam

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CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 67
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

as classes populares podem ampliar suas potencialidades


e possibilidades, tornando-se capazes de se fazerem ouvir,
pressionando de maneira ativa e crítica os processos de ela-
boração das políticas públicas e dos direitos à cidadania.
Segundo Sader (1988), poucas noções são tão ambíguas
e carregadas de sutilezas quanto a noção de sujeito na moder-
nidade ocidental. Essa ambiguidade e seu entendimento di-
fuso, por exemplo, podem ser interpretados tanto na perspec-
tiva da soberania do ator quanto na perspectiva da sujeição
do mesmo. Ainda segundo Sader, tanto no campo da filosofia,
da linguística, da sociologia, passando pela psicanálise, a no-
ção de sujeito é “um território minado, palco das mais acesas
polêmicas” (1988, P.50).
Assim, quem são os “sujeitos históricos” da favela do
Guarabu? Embora não tenha a intenção de realizar este in-
ventário semântico e conceitual da noção de sujeito, creio
que o exercício de pensamento, colocado mesmo que ainda
frágil na densidade analítica de sua interrogação, é uma fonte
fértil de questões sobre o movimento e suas aspirações.
Do ponto de vista da composição dos sujeitos e da re-
presentação de sua identidade coletiva, majoritariamente o
grupo das mulheres da favela do Guarabu é constituído por
mulheres na faixa etária de 20 a 50 anos, a maioria com baixa
escolaridade, muitas apenas com as séries iniciais, sendo que
a grande maioria do ponto de vista étnico-racial é negra, nas-
cida e criada nos bairros pobres e populares da periferia do
Rio de Janeiro. Ou, como as mais velhas, migrantes dos esta-
dos do norte e/ou do nordeste brasileiro, oriundas dos fluxos
migratórios produzidos pelo capitalismo desenvolvimentista
no período da ditadura militar no país.
Ainda segundo Sader e Paoli (1986), do ponto de vista da:

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CAPÍTULO 2
68 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

(…) representação substantiva, situada e tematiza-


da dos trabalhadores urbanos e de sua presença na
sociedade brasileira (...) põe em cena a formação
dos trabalhadores e de suas vidas como figuras cuja
articulação tem raízes históricas na própria socie-
dade que se quer conhecer. Como sugere Claude
Lefort, construir figuras e colocá-las em cena for-
ma uma matriz de representação, que produz uma
visão de Sociedade e é produto de uma elaboração
coletiva díspare e articulada (1986, p.40).

Nesse sentido, para traçar uma cartografia, mesmo que


ainda pouco consistente dos sujeitos que constituem o movi-
mento de mulheres por creches do Guarabu, se faz necessário
situar, de forma breve, a tradição da representação e do ima-
ginário instituídos historicamente sobre as classes populares
no Brasil.
De acordo com estudos de Sader e Paoli (1986), foi no
pensamento político gestado na Primeira República “que se
construiu, pela primeira vez, uma representação sistemática
e substantiva sobre os trabalhadores, os pobres, os domina-
dos desta sociedade” (1986, P.44). O povo brasileiro, segundo
a representação de alguns pensadores políticos mais conser-
vadores da época, como Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e
Alberto Torres, estaria fadado à “incapacidade de luta cívica”
(SADER e PAOLI, 1986).
Para esses pensadores, por conta da enorme heteroge-
neidade de sua composição, pelo efeito nefasto que esta he-
terogeneidade provocaria sobre a capacidade de ação política
coletiva popular, e pela ausência crônica de aptidão para a co-
letividade, este povo não teria “vocação para a solidariedade
e para a universalidade” (SADER e PAOLI, 1986, p.42).

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CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 69
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

Segundo ainda esses pensadores políticos da Primeira


República, nada poderia ser feito partir do povo, “pois não se
tratava de povo real, com expressão representativa ordenada
na Sociedade”( Idem, p.42).
Passado mais de um século da gestação e circulação
dessa representação negativa sobre a capacidade de ação
política coletiva do povo brasileiro, principalmente sobre
aqueles/aquelas oriundos das classes populares, nos parece
fundamental arguir a atualidade dessa representação no ima-
ginário e nas concepções concretas produzidas (e em produ-
ção) sobre a capacidade de ação e intervenção política autô-
noma desses sujeitos.
O que o trabalho de campo junto ao movimento de
Mulheres do Guarabu tem nos apresentado com dados con-
tundentes, que falam e nos obrigam a uma compreensão
mais complexa das dificuldades de fissurar essa representa-
ção negativa dos movimentos sociais, é justamente o caráter
de classe desse movimento:
classe é determinada, em grande medida, pelas re-
lações de produção em que os homens nasceram
– ou entraram involuntariamente. A consciência
de classe é a forma como essas experiências são
tratadas em termos culturais: encarnadas em tra-
dições, sistemas de valores, ideias e formas insti-
tucionais. Se a experiência aparece como determi-
nada, o mesmo não ocorre com a consciência de
classe (THOMPSON, 1987, p.9).

Do ponto de vista do trabalho em creches, bem como


a própria demanda e luta por esse equipamento educativo,
historicamente e majoritariamente tem sido uma experiência
de gênero: uma questão das mulheres.

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CAPÍTULO 2
70 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

Mesmo que a creche seja um suporte à esfera doméstica


e tenha importantes impactos na estrutura familiar, além da
presença de homens como trabalhadores nesse campo pro-
fissional e da existência, principalmente nas classes médias
urbanas, de uma maior divisão e responsabilização da família
(inclusive com efetiva presença masculina) na educação da
criança pequena, de 0 a 3 anos, a questão da creche ainda é
fortemente associada à esfera do privado e da responsabili-
dade feminina.
O trabalho majoritariamente feminino realizado pelas
educadoras das creches comunitárias que constituem o mo-
vimento das mulheres do Guarabu expressa questões ainda
pouco estudadas nos movimentos de profissionais da educa-
ção no Rio de Janeiro, tais como a interseccionalidade (MI-
GUEL, 2014) das diversas formas de opressão presente na luta
dessas mulheres: questões de gênero, de raça, de classe, de de-
sigualdade de poder simbólico pelos “efeitos do lugar” que as
mesmas ocupam nos territórios da cidade, dentre ­outras.
A luta das mulheres da creche pesquisada tem nos pro-
vocado a pensar e questionar o sentido privado da educação e
do cuidado com crianças pequenas, bem como o pouco valor e
reconhecimento social desse trabalho, principalmente quan-
do os sujeitos envolvidos (crianças, educadoras e familiares)
são pobres, favelados(as) e majoritariamente negros(as). Nes-
te sentido, uma das principais lutas do movimento é a pro-
dução de outra discursividade material e simbólica sobre a
experiência de trabalho na creche.
Subtrair a creche da esfera do privado, da esfera da
“maternagem”, do não-trabalho, do cuidado como um ofício
feminino por natureza, do baixo valor social das atividades
de cuidar, enfim, a desvalorização social do cuidado faz com

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CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 71
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

que atividades a ele relacionadas sejam, de modo geral, mal


remuneradas.
Com relação a essas questões, Flávia Biroli (2004, p.57)
nos alerta:
O treinamento social das mulheres para o cuida-
do com os outros e sua especialização no cuidado
dos dependentes em sociedades nas quais a divi-
são sexual do trabalho continua a ter importância
na organização das relações na esfera privada e na
esfera pública as mantêm nas posições mais bai-
xas nas hierarquias salariais e de prestígio, mesmo
quando se desdobram no exercício de atividades
remuneradas.

Reconhecer e estudar as lutas das mulheres do Guara-


bu, mesmo que ainda de forma inicial, nos remete ao desafio
de reconhecer que a sociedade civil não está em silêncio, e que
suas vozes parecem ressoar mesmo que ainda não estejam
sendo plenamente ouvidas. As jornadas de junho de 2013, os
movimentos em disputa nas eleições presidenciais de 2014,
as diferentes jornadas de lutas do MST, do MNST, do MPL, os
atos dos diferentes grupos que se autodenominam apolíticos
nas ruas brasileiras em março de 2016, bem como os vários
movimentos em luta nas ruas de todo o país, inclusive no Rio
de Janeiro, parecem confirmar que os movimentos sociais,
considerados populares ou não, estão em processo de franco
recrudescimento. E nos lastros desses movimentos nos pare-
ce fundamental investigar e compreender em que medidas os
movimentos sociais reforçam, questionam e radicalizam os
princípios da Educação Popular na contemporaneidade.
Estudar esse recrudescimento das lutas por projetos em
disputa, tanto no nível de questões macro como microssocio-

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CAPÍTULO 2
72 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

lógicas, me parece uma questão central na Educação Popular


hoje, sobretudo pelo caráter histórico da EP, que nasceu e se
consolidou articulada aos diferentes movimentos sociais, sem-
pre buscando uma pedagogia de luta como possibilidade de
(auto) formação e de afirmação dos sujeitos populares, homens,
mulheres, jovens e crianças como sujeitos políticos, autôno-
mos, solidários e criadores de mundos no mundo (FREIRE, 1996).

Considerações finais, embora muito provisórias


A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado
de exceção em que vivemos é na verdade regra ge-
ral. Precisamos construir um conceito de História
que corresponda a essa verdade. Nesse momento,
perceberemos que nossa tarefa é criar um verda-
deiro estado de emergência. (Walter Benjamin)

Segundo Paulo Freire (1979), é pela ação por melhorias


concretas em seu bairro ou das condições de vida, conquista-
das a partir da reflexão sobre o seu entorno e sobre estratégias
de luta, que o movimento de Educação Popular vai democra-
tizando a educação no Brasil. Esses movimentos populares
são uma força instituinte nas práticas educativas, tais como
o Movimento dos Trabalhadores Sem Terras, o Movimento
dos Trabalhadores sem Tetos, a luta das mulheres por creche,
dentre outros.
A problematização do cotidiano começa, então, a ga-
nhar espaço e, diante desta conjuntura, destacamos a impor-
tância do papel ocupado pela luta das mulheres por creches
no Rio de janeiro. O novo padrão de organização social desta
época traz em seu bojo a valorização do cotidiano dessas mu-
lheres, e o que antes era considerado como natural, domésti-
co e privado passa a ser uma questão pública.

MARIA TEREZA GOUDARD TAVARES • ANE CHALÃO LUCCHESI


CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 73
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

Assim é que a discussão sobre creches tem alcançado


relevância cada vez maior na sociedade brasileira. Em 2014,
esteve presente entre os principais temas da disputa presi-
dencial. A questão foi abordada pelos principais candidatos
e candidatas, entre eles e elas, a presidenta reeleita pelo voto
direto do povo, Dilma Rousseff, que intencionava, antes da
população brasileira sofrer um duro golpe na democracia, fi-
nanciar a construção de quase seis mil unidades de educação
infantil por todo o país.
A ausência de políticas de expansão de creches públi-
cas exige, portanto, a necessidade de construção de políticas
e ações que se voltem para a discussão do direito à creche,
pois a educação infantil, além de representar o espaço que
acolhe a infância, constitui-se como importante espaço para
o desenvolvimento pleno das habilidades e capacidades das
crianças, deixando claro todas as dificuldades existentes em
se conseguir uma vaga nos equipamento de atendimento à
pequena infância.
Neste cenário, as mães e a comunidade da creche con-
veniada Arca de Noé, após embates com a administração
da Associação de Moradores e com invasores do terreno da
nova sede, inauguram um local amplo e seguro para acolher
as crianças do entorno, oferecendo a elas o cuidar e o educar,
proporcionando a chance da busca, por essas mulheres, de
sua libertação e emancipação. Os filhos destas famílias são, a
partir de então, atendidos num espaço organizado, rico e esti-
mulador, ampliando, portanto, suas interações socializadoras.
O método completo que deveriam utilizar os líde-
res revolucionários não pode ser o da propaganda
libertadora. Tampouco podem concentrar-se os
líderes em sugerir aos oprimidos uma crença na

MARIA TEREZA GOUDARD TAVARES • ANE CHALÃO LUCCHESI


CAPÍTULO 2
74 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

liberdade, pensando ganhar assim a confiança. O


método correto é o diálogo. A convicção dos opri-
midos de que devem lutar por sua libertação não é
um presente dos líderes revolucionários, mas o re-
sultado de sua própria conscientização. (FREIRE,
p.44, 1979)

Assim, a luta das mães do Guarabu pelo direito à creche


Arca de Noé, bem como outros movimentos sociais popula-
res, são considerados como uma das grandes escolas da vida,
e a creche, ainda que apresente um funcionamento precário,
oportuniza que o coletivo infantil possa ser um espaço de
educação e cuidados, favorecendo o desenvolvimento inte-
gral de cada criança do Guarabu.
Em linhas gerais, a história da educação infantil no Rio
de Janeiro se entrelaça e se confunde com a própria história
das creches comunitárias e dos movimentos sociais da cida-
de, especialmente a luta das mulheres na favela do Guarabu.
No complexo e tenso cenário do direito à educação infantil na
cidade, a atual luta dos movimentos das mulheres por creches
poderá trazer vitórias ao atendimento de suas reivindicações.

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CAPÍTULO 2
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A 75
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

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CAPÍTULO 2
76 MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA POR CRECHES NO RIO DE JANEIRO: UM DIÁLOGO COM PAULO FREIRE E A
LUTA DAS MULHERES NO GUARABU

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CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 77
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

Capítulo 3
Desafios da intervenção acadêmica
no planejamento urbano: diálogos
sociológicos com a educação popular em
Paulo Freire1
Eduardo Gomes Machado

Introdução

O
s campos da produção social do espaço urbano
e do planejamento urbano detêm como elemen-
to específico, que os distingue de outros espaços
sociais, o fato de neles ocorrer o exercício do po-
der e a formação de decisões políticas que impactam a ocupa-
ção, uso, acesso, construção, regulação, posse e propriedade
da terra urbana.2 Nos últimos treze anos vivenciamos uma
inserção etnográfica nesses campos, com destaque para (I) a
revisão do Plano Diretor de Fortaleza, entre 2002 e 2009, (II) a
elaboração do Plano Diretor de Irauçuba e (III) as vivências na
região do Grande Bom Jardim, na região sudoeste de Fortale-
za, envolvendo agentes como o Centro de Defesa da Vida Her-
bert de Sousa (CDVHS) e a Rede de Desenvolvimento Local In-
tegrado e Sustentável do Grande Bom Jardim (­NASCIMENTO
E MACHADO, 2008; MACHADO, 2014, 2011, 2008; MACHA-
1 Este artigo origina-se de pesquisas apoiadas pelo Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), assim como de atividades ex-
tensionistas apoiadas pela Unilab – Pró-Reitoria de Extensão, Arte e Cultura.
2 A categoria campo remete a Pierre Bourdieu (2007, 2004ª, 2004b, 2001, 1996, 1989,

1976). A terra urbana envolve solo, subsolo e edificações/estruturas associadas.

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
78 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

DO, FREIRE E ALMEIDA, 2016; MACHADO E NASCIMENTO,


2009). Trabalhamos com metodologias da pesquisa ação e
da educação popular, aliadas a referências sociológicas, em
contato com variados agentes da sociedade civil e política e
integrando ações de pesquisa, extensão e educação.
A presença continuada no campo, em interação com
variados agentes, nos permitiu vivenciar as práticas cotidia-
nas enquanto experiências significativas, caracterizando um
“jogo de alternâncias” com idas e voltas entre diferentes “uni-
versos simbólicos” (FONSECA, 1999; MAGNANI, 2009).3 Vi-
vencia-se assim uma copresença que abrange paradoxalmen-
te a inserção intensa no campo e posturas de estranhamento
e/ou exterioridade, com vivências teórica e empiricamente
produtivas das tensões que compõem a abordagem etnográ-
fica, tais como as entre perto/longe e dentro/fora (MAGNA-
NI, 2009). A construção progressiva de referências e técnicas
adequadas às questões investigadas e enfrentadas articulou
uma “atitude de atenção viva” que possibilitou a recriação
analítica de fragmentos, detalhes e fatos observados (FONSE-
CA, 1999; MAGNANI, 2002, 2009).
Essas experiências revelaram como os agentes urbanos
de cariz popular são continuamente desafiados por condicio-
nantes materiais e imateriais de várias ordens e escalas, em
contextos perpassados por correlações de forças adversas e
onde derrotas, perdas, violências múltiplas, injustiças e vio-
lações de direitos são comuns, e deixam suas marcas.4

3 O universo acadêmico e o universo da produção social do espaço urbano e do


planejamento urbano.
4 Não é à toa que o sofrimento psíquico vivenciado por militantes e ativistas

de entidades e movimentos populares torna-se uma questão a cada dia mais


presente e complexa.

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 79
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

Nesse contexto, três elementos teórico-empíricos são


fios condutores às práticas desenvolvidas, revelando como
agentes populares e acadêmicos são continuamente desafia-
dos por vetores complexos, considerando as potencialidades
de recriação de identidades e promoção de mudanças so-
ciais. O primeiro envolve o questionamento sobre o caráter,
as potencialidades e as restrições do planejamento urbano,
problematizando sua natureza e seu escopo. O segundo, a ca-
pacidade de acionar ações coletivas, sequenciais e cumulati-
vas que permitam obter relativo sucesso no enfrentamento
das questões e problemas urbanos vivenciados. O terceiro, a
educação contextualizada e contínua enquanto exigência que
deve perpassar o cotidiano das entidades e movimentos ur-
banos, dinamizando e integrando processos educacionais de
caráter formal, não formal e informal. Gohn (2010, p. 48) dis-
tingue educação formal, não formal e informal, uma distin-
ção heuristicamente produtiva às ações coletivas vivenciadas
e analisadas:
A educação formal pressupõe ambientes normati-
zados, com regras, legislações e padrões comporta-
mentais definidos previamente. Perfil do corpo do-
cente e metodologias de trabalho são previamente
normatizados. A não formal ocorre em ambientes
e situações interativas construídos coletivamente,
segundo diretrizes de dados grupos, usualmente
a participação dos indivíduos é optativa, mas ela
também poderá ocorrer por forças de certas cir-
cunstâncias da vivência histórica de cada um, em
seu processo de experiência e socialização, perten-
cimentos adquiridos pelo ato da escolha em dados
processos ou ações coletivas. Há na educação não
formal uma intencionalidade na ação, no ato de par-

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
80 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

ticipar, de aprender e de transmitir ou trocar sabe-


res. A informal opera em ambientes espontâneos,
onde as relações sociais se desenvolvem segundo
gostos, preferências ou pertencimentos herdados.
Os saberes adquiridos são absorvidos no processo
de vivência e socialização pelos laços culturais e
de origem dos indivíduos.

Os três fios condutores remetem à problematização


sociológica das articulações e tensões entre estrutura e ação,
envolvendo questões como condicionamento/liberdade e
objetividade/subjetividade, e, no limite, à própria compre-
ensão da ação social (COLLINS, 2009; GIDDENS e TURNER,
1999; LALLEMENT, 2004). Nessa perspectiva, as categorias
campo e disposições sociais têm apoiado a compreensão do
planejamento urbano (a) enquanto espaço social demarcado
por condicionamentos objetivos e intersubjetivos onde coe-
xistem e interagem variados agentes e, ao mesmo tempo, (b)
complexos de práticas sociais que evidenciam, em certo grau,
um caráter recíproco, reflexivo e intencional.
Neste texto, a partir de Paulo Freire, discutimos refe-
rências conceituais da Educação Popular operantes em pro-
cessos de formação e planejamento de movimentos sociais
e em experiências democráticas e participativas de planeja-
mento urbano,5 realizando diálogos sociológicos com essas
referências conceituais, buscando evidenciar questões teó-
rico-empíricas muitas vezes não explicitadas ou discutidas,
particularmente em suas características e rebatimentos edu-
cacionais. Pretende-se assim participar do debate sobre os

5 As principais obras abordadas são Educação como prática da liberdade (1967),

Extensão ou comunicação (1969), Ação cultural como liberdade (1968-1974) e


Pedagogia do oprimido (1968-1970).

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 81
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

lugares, sentidos e potencialidades da educação popular, evi-


denciando referências conceituais e questões empíricas que
possam ser operacionalizadas em processos educacionais de
matiz popular, particularmente nos campos da produção do
espaço e do planejamento urbano.

Educação popular, pesquisa e dialogicidade

Para Freire (1981), a educação popular exige que se


passe das descrições e constatações sobre o mundo à expli-
cação do mundo, à indicação das causas que fazem com que
o mundo seja de tal forma e não de outra. Desta forma, não
se trata de descrever “como as coisas são”, mas de tentar en-
tender, para além das aparências imediatas, por que elas são
dessa forma, e, mais do que isso, se podem e como podem ser
diferentes (FREIRE, 1981). Operacionalmente, a questão pos-
ta é como realizar atividades e ações coletivas que permitam
aos agentes populares interpretar o mundo em que vivem,
explicá-lo, e, mais do que isso, constituírem outros mundos
possíveis, outros horizontes de sentido, outros futuros par-
tilhados.
É por isso que a educação popular contesta pedagogias
bancárias, nas quais os processos educacionais são percebi-
dos e vivenciados como transmissão unilateral de conteúdos
prontos e acabados por educadores – detentores de conheci-
mento –, assimilados passivamente por educandos – vazios,
sem conhecimento –, em situações controladas:
[...] a educação para a “domesticação” é um ato de
transferência de “conhecimento”, enquanto a edu-
cação para a libertação é um ato de conhecimento
e um método de ação transformadora que os seres

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
82 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

humanos devem exercer sobre a realidade (FREI-


RE, 1981, p. 73-74).

Cabe falar em uma concepção problematizadora da re-


alidade social, que valoriza as articulações entre educação,
pesquisa e conhecimento. Assim a educação popular evi-
dencia-se enquanto uma pedagogia da pesquisa, envolvendo
apropriação de referências conceituais, investigação e produ-
ção, difusão, apropriação e aplicação de novos conhecimen-
tos. Nessa perspectiva, na educação popular o conhecimento
é vivenciado em pelo menos três dimensões articuladas: (I) os
conhecimentos que os agentes detêm, requerendo a criação
de situações, espaços e processos que permitam valorizar e
evidenciar os acúmulos constituídos através de experiências
e trajetórias diferenciadas; (II) os conhecimentos já existentes
socialmente sobre os objetos que se investiga, o que envolve
a criação de condições que permitam o acesso aos conheci-
mentos científico-técnicos, com interlocuções complexas en-
tre diferentes agentes, saberes e práticas; (III) os novos co-
nhecimentos produzidos e/ou apropriados no decorrer dos
processos educacionais, requerendo diálogos e articulações
epistemológicas, teóricas, empíricas, metodológicas, éticas.
De modo mais concreto, cabe perguntar como, no coti-
diano das lutas urbanas, instituir situações, espaços e proces-
sos educacionais onde os conhecimentos dos agentes possam
ser dialógica e significativamente reconhecidos e evidencia-
dos, de modo sequencial e cumulativo. Como criar condições
para que cada agente possa dizer a sua palavra, descrevendo
e, mais importante, interpretando o objeto pesquisado? E,
mais do que isso, constituindo, para além das experiências
mais imediatas, outros futuros partilhados? Como promover

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 83
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

processos de sistematização que efetivem o caráter cumulati-


vo, sequencial e articulado necessário a processos educacio-
nais que pretendem impactar identidades sociais e promover
mudanças sociais? A nosso ver, isso exige assumir referên-
cias conceituais e políticas que permitam (1) reconhecer e vi-
venciar a amplitude e variedade das experiências, saberes e
práticas sociais, (2) criando espaços de inteligibilidade mútua
que permitam interlocuções entre as diversas agências possí-
veis e disponíveis, (3) enfrentando o desperdício social contí-
nuo dessa experiência (SANTOS, 2002, p. 239).
Nessa perspectiva, a denominada Sociologia das Ausên-
cias se contrapõe às desqualificações que tornam invisíveis,
ininteligíveis ou descartáveis de modo irreversível, agentes,
saberes e práticas que não se enquadram nas racionalidades,
estruturas e lógicas hegemônicas e dominantes (SANTOS,
2002, p. 246). A educação popular e a Sociologia das Ausên-
cias se encontram ao valorizarem experiências, práticas e
saberes periféricos, subalternos, invisíveis, descartados, as-
sumindo como princípio a criação de condições que permi-
tam a essas agências efetivamente existirem, superando a
não existência.6 Para tanto é necessário o que alguns autores
indicam como teoria da tradução, identificando o que une e o
que separa as diferentes agências, as possibilidades e limites
de articulação e agregação, particularmente no âmbito de mo-
vimentos contra-hegemônicos (SANTOS, 2002, p. 266). Mas é
preciso ir além. Vivenciando contextos e situações perpassa-
dos por relações de hegemonia e dominação e por opressões
diversas, como esses diferentes agentes podem, ao mesmo
tempo, sentir, pensar e vivenciar esses limites e suas causali-
6 Santos (2002, pp. 248-249) indica cinco formas de não existência: o ignorante,

o residual, o inferior, o local e o improdutivo.

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
84 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

dades – com o intuito de denúncia, resistência e destruição –,


e criar o novo, aquilo que os supera e que não está contido ne-
las? É por isso que Santos (2002, p. 262) indica como a teoria
da tradução busca captar, ao mesmo tempo, as realidades das
opressões e o que está para além delas, mesmo que subalter-
nizado ou ainda por existir (SANTOS, 2002).

Educação popular, problematização e prática

Como efetivar o caráter crítico, problematizador, na


educação popular? Principalmente ao se assumir que o pro-
cesso educacional vincula-se à conscientização do agente
sobre a situação real vivenciada, pois “todo aprendizado deve
encontrar-se intimamente associado à tomada de consciência
da situação real vivida pelo educando” (WEFFORT APUD FREI-
RE, 1967, p. 05). Freire (1981, p. 21, 23) destaca referências
conceituais importantes: (1) a necessidade de distanciamen-
to para problematização das realidades sociais vivenciadas,
inclusas nessas realidades as próprias visões e práticas; (2) o
caráter coletivo e dialógico dessa interpretação; (3) a impor-
tância da prática nesses processos coletivos, com a prática
envolvendo, em uma primeira aproximação, ações concretas
com a palavra oral e escrita, ações de leitura, escrita, sistema-
tização e análise de informações e dados.
Aqui cabe retomar a pesquisa enquanto requisito es-
sencial à educação popular, com tudo que ela envolve: cons-
trução do objeto, com problematização e definição do recorte
empírico; identificação, apropriação e operacionalização de
referenciais conceituais e metodologias; identificação das
fontes, coleta, sistematização e análise de dados; apresen-
tação dos resultados, dentre outros. Com a diferença de que

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 85
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

envolvem processos e dinâmicas a priori não acadêmicos e


efetivados, de modo geral, no âmbito das lutas urbanas. Nes-
se contexto, como efetivar o acesso teórico e a mobilização
prática de conhecimentos científico-técnicos que geralmente
não compõem o cotidiano e o patrimônio cultural dos agen-
tes populares? Um dos desafios aqui postos é o de promover
interlocuções entre diferentes tipos de conhecimento nas vá-
rias etapas da pesquisa. Através de quais processos, ativida-
des, metodologias, técnicas, instrumentos? E refletindo sobre
os sentidos dessas interlocuções, o que envolve questões éti-
cas, políticas e epistemológicas.
Ao refletirmos sobre o caráter problematizador da edu-
cação popular, cabe retomar a discussão sobre a prática. A
educação popular freireana destaca a prioridade e a centra-
lidade da prática, entendida enquanto práxis, porém é im-
portante discutir o que se compreende ou quais os sentidos
dessa prática. Discutimos duas perspectivas, não obrigatoria-
mente excludentes. A primeira entende a prática enquanto
exercício e agir cotidiano, possibilitando articulá-la a tradi-
ções sociológicas vinculadas a tradições das ciências sociais
como a fenomenologia e a interação simbólica. Assim, no agir
cotidiano a interpretação e a atribuição de significados estão
contidas nas ações sociais, com a prática envolvendo o con-
tínuo exercício de pensar sobre si, os outros e as coisas, ava-
liando, ponderando e atribuindo sentido. O ser humano é um
ser que continuamente interpreta, em situação e interação:
O interacionismo simbólico baseia-se [...] em três
premissas. A primeira estabelece que os seres hu-
manos agem em relação ao mundo fundamentan-
do-se nos significados que este lhes oferece [...] A
segunda premissa consiste no fato de os significa-

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
86 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

dos de tais elementos serem provenientes da ou


provocados pela interação social que se mantém
com as demais pessoas. A terceira premissa reza
que tais significados são manipulados por um pro-
cesso interpretativo (e por este modificados) utili-
zado pela pessoa ao se relacionar com os elementos
com que entra em contato (BLUMER, 1980, p. 119).

Dialogando com perspectivas fenomenológicas, a ex-


periência torna-se categoria essencial, mas não qualquer
experiência, e sim a que detém caráter vivencial, ou seja, a
que insere o agir cotidiano em contextos existenciais ou ho-
rizontes interpretativos coletivamente reconstituídos e parti-
lhados, através de esquemas cognitivos também socialmente
constituídos. Como decorrência, a educação popular deve se
articular à reconstituição das interpretações coletivas, dos
significados coletivamente constituídos e partilhados pelos
agentes sociais.7
Emerge a questão cultural enquanto elemento signifi-
cativo. Como lidar teoricamente com ela? Aqui nossas refe-
rências articulam a categoria disposições sociais. Pierre Bour-
dieu (2004, p. 22), ao se referir aos habitus – ou disposições
sociais consolidadas –, caracteriza-os como “princípios gera-
dores de práticas distintas e distintivas”, “esquemas classifi-
catórios, princípios de classificação, princípios de visão e de
divisão e gostos diferentes”:
Mas o essencial é que, ao serem percebidas por
meio dessas categorias sociais de percepção, des-
ses princípios de visão e de divisão, as diferenças

7Cabe lembrar que o planejamento, seja das entidades e movimentos urbanos


seja do planejamento urbano, envolve sempre a reconstituição dos horizontes
de sentido e dos futuros coletivamente partilhados.

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 87
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

nas práticas, nos bens possuídos, nas opiniões ex-


pressas tornam-se diferenças simbólicas e consti-
tuem uma verdadeira linguagem (Bourdieu, 2004,
p.22).

As relações de força mais brutais são, ao mesmo


tempo, relações simbólicas e os atos de submis-
são, de obediência, são atos cognitivos que, como
tais, põem em prática as estruturas cognitivas, as
formas e categorias de percepção, os princípios de
visão e de divisão: os agentes sociais constroem
o mundo social através de estruturas cognitivas
(Bourdieu, 2004, p. 97-115).

Cabe falar em disposições sociais, entendidas enquanto


referências que impelem e habilitam determinadas práticas.
Essa perspectiva complexifica os processos educacionais ao
destacar sua inserção nas vivências concretas no mundo, nas
experiências existenciais, e ao promover um deslocamento
no fazer educacional, integrando os conhecimentos a uma
categoria mais ampla, disposições sociais (FREIRE, 1981;
BOURDIEU, 2007, 2004a, 2004b, 2001, 1996, 1989, 1976).
Thiry-Cherques (2006, p. 33) amplia a compreensão das dis-
posições sociais ou habitus ao indicar como:
[...] [o habitus é um] sistema de disposições durá-
veis e transferíveis, que funciona como princípio
gerador e organizador de práticas e de representa-
ções, associado a uma classe particular de condi-
ções de existência [...] É adquirido mediante a in-
teração social e, ao mesmo tempo, é o classificador
e o organizador desta interação. [...] É composto:
pelo ethos, os valores em estado prático, não-cons-
ciente, que regem a moral cotidiana [...] pelo héxis,
os princípios interiorizados pelo corpo: posturas,

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
88 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

expressões corporais, uma aptidão corporal que


não é dada pela natureza, mas adquirida [...] pelo
eidos, um modo de pensar específico, apreensão
intelectual da realidade [...].

Wacqüant (2002, p. 102) indica como o habitus é “um


conjunto de desejos, vontades e habilidades, socialmente
constituídas, que são ao mesmo tempo cognitivas, emotivas,
estéticas e éticas”. Os habitus ou disposições consolidadas
constituem capacidades de mediação de conflitos e de redefi-
nição contínua e complexa, em cada situação e em interação,
das escolhas e posturas adequadas, dispondo cada agente
a enfrentar os desafios cotidianos e permitindo a recriação
contínua de vínculos, micropactuações e microcomprome-
timentos no campo. Evidenciando dimensões recursivas e
valorativas, impelem e habilitam os indivíduos a enfrentar
situações cotidianas. Desta forma, envolvem recursos que
permitem aos indivíduos e coletividades serem reconheci-
dos como jogadores competentes, participando de transações
sociais múltiplas e complexas. Ao mesmo tempo, agregam
propulsores intersubjetivos ou “estoques motivacionais” que
permitem a cada indivíduo valorar as situações vivenciadas,
ponderar e formar suas escolhas e decisões – com diferentes
graus de consciência e intencionalidade.

Educação popular, condicionamentos sociais e mudança social

Uma segunda perspectiva de compreensão da prática a


destaca enquanto agir humano vinculado à criação material
e imaterial de si mesmo, dos outros e do mundo interligados,
evidenciando a capacidade de o ser humano efetivar-se en-
quanto ser social que é capaz de interferir na recriação de si

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 89
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

próprio, dos outros e do mundo, o que envolve a identificação


e o enfrentamento de condicionamentos materiais e imate-
riais que compõem os contextos, enquadramentos e situa-
ções sociais (ANDERY et all, 1988; GOFFMAN, 2012).8 Abre-se
espaço para enfatizar a prática como inserção e agir contex-
tualizado, e, portanto, demarcado por condicionantes que é
preciso compreender e recriar.
Neste momento, cabe pontuar como Freire (1981) bus-
ca a unidade entre prática e teoria, rejeitando o praticismo
e o teoricismo, ao evidenciar quatro articulações teórico-em-
píricas: (I) educação e experiência existencial; (II) educação,
conhecimento e pesquisa; (III) indivíduo e coletividade; (IV)
educação e contexto. Neste momento, cabe discutir a questão
do contexto. Ao pensar a alfabetização, Freire (1981, p. 39; 40;
41; 42; 44) destaca dois contextos diferentes:
Como um ato de conhecimento, o processo de alfa-
betização implica na existência de dois contextos
dialeticamente relacionados. Um é o contexto do
autêntico diálogo entre educadores e educandos,
enquanto sujeitos de conhecimento. É o contexto
teórico. O outro é o contexto concreto, em que os
fatos se dão – a realidade social em que se encon-
tram os alfabetizandos.

O contexto educacional, portanto, entendido enquanto


lugar onde ocorre a problematização das próprias percepções
sobre o mundo e do próprio mundo, articula o contexto teóri-
co e o contexto concreto, com a consciência crítica se consti-

8 Aqui o diálogo com a tradição marxista é um elemento importante, inclusive


na trajetória de Paulo Freire, evidenciando o deslocamento de aportes existen-
cialistas para marxistas. Também cabe destacar o território da chamada socio-
logia contemporânea.

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
90 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

tuindo praxiologicamente na tensão entre teoria-empiria, no


jogo entre ação-reflexão-ação (FREIRE, 1981, p. 56).
[...] o conhecimento envolve a constante unidade
entre ação e reflexão sobre a realidade. Como pre-
senças no mundo, os seres humanos são corpos
conscientes que o transformam, agindo e pensan-
do, o que os permite conhecer ao nível reflexivo.
Precisamente por causa disto podemos tomar nossa
própria presença no mundo como objeto de nossa
análise crítica. Daí que, voltando-nos sobre as expe-
riências anteriores, possamos conhecer o conheci-
mento que nelas tivemos (FREIRE, 1981, p. 72).

Cabe indicar como, para Bourdieu (2004 c, p.41-42), os


agentes sociais não são “partículas submetidas a forças mecâ-
nicas, agindo sob a pressão de causas, nem tampouco sujeitos
conscientes e conhecedores, obedecendo a razões e agindo
com pleno conhecimento de causa”. Os agentes são “dotados
de um senso prático”, que articula “um sistema adquirido de
preferências, de princípios de visão e de divisão”, “estruturas
cognitivas duradouras” e “esquemas de ação que orientam a
percepção da situação e a resposta adequada” (Bourdieu, 2004
c, p.41-42). No livro “Meditações Pascalianas”, Bourdieu (2001,
p. 165-166) ressalta, em oposição a uma “lógica escolástica”,
uma “lógica prática” que perpassaria a realidade social:
O mundo é compreensível, dotado imediatamente
de sentido, porque o corpo, tendo a capacidade de
estar presente no exterior de si mesmo, no mundo,
graças a seus sentidos e a seu cérebro, e de ser im-
pressionado e duravelmente modificado por ele,
ficou longamente (desde a origem) exposto às suas
regularidades.

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 91
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

Tendo adquirido por esse motivo um sistema de


disposições ajustado a tais regularidades, o corpo
se acha inclinado e apto a antecipá-las pratica-
mente em condutas que mobilizam um conheci-
mento pelo corpo capaz de garantir uma compre-
ensão prática do mundo bastante diferente do ato
intencional de decifração consciente que em geral
transparece na ideia de compreensão.

Um enfoque sociológico destaca as relações entre es-


trutura e agência no pensamento de Paulo Freire, pois este,
ao pensar a educação como prática de liberdade, destaca
como ela exige condições sociais que a permitam, como há
diferentes escalas e dimensões de condicionamentos sociais
que podem dificultar ou impedir a educação como prática da
liberdade, e, portanto, as mudanças sociais. Há aqui uma in-
terface sociológica clara que evidencia como os agentes so-
ciais necessitam compreender e lidar com relações de poder
e correlações de força, e, mais do que isso, com condiciona-
mentos objetivos e intersubjetivos que perpassam os proces-
sos educacionais.
Essa discussão abre espaço para destacar os riscos da
compreensão da educação popular restrita à conscientização,
com o deslocamento para os processos de intersubjetivação
e a desconsideração ou fragilização analítica das dimensões
objetivas inscritas nas realidades sociais. Assim, efetiva-se
uma crítica a perspectivas educacionais voluntaristas ou ide-
alistas que entendem a educação como prática de liberdade
enquanto mero ato de consciência ou vontade:
Na verdade, nem a consciência é exclusiva réplica
da realidade nem esta é a construção caprichosa
da consciência. Somente pela compreensão da

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
92 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

unidade dialética em que se encontram solidárias


subjetividade e objetividade podemos escapar ao
erro subjetivista como ao erro mecanicista e, en-
tão, perceber o papel da consciência ou do “corpo
consciente” na transformação da realidade.

Se a consciência criasse, arbitrariamente, a reali-


dade, uma geração ou uma classe social poderia,
ao recusar a situação dada de que começa a par-
ticipar, transformá-la por meio de um mero ges-
to significador. Se, por outro lado, a consciência
fosse puro reflexo da realidade, a situação dada
seria eternamente a situação dada, “sujeito” de-
terminante de si mesma, de que os seres humanos
nada mais seriam do que dóceis objetos. Em ou-
tras palavras, a situação dada se transformaria a si
mesma. Isto implicaria em admitir a história como
uma entidade mítica, exterior e superior aos seres
humanos, comandando-os, também caprichosa-
mente, de fora e de cima (FREIRE, 1981, p. 80-81).

Efetivando diálogos interdisciplinares, categorias como


campo e disposições sociais podem abrir espaço para a com-
preensão e o enfrentamento dos condicionamentos objetivos
e subjetivos que impactam os processos de educação popular.
O campo é delimitado por estruturas que conformam
posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras,
definidas umas em relação às outras por sua exterioridade
mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de
distanciamento e, também, por relações de ordem, como aci-
ma, abaixo e entre (BOURDIEU, 2004, p. 18-19). Para Bourdieu
(2007, p. 31), situar-se em um campo remete a sentir suas for-
ças e/ou efeitos, o que implica que “um agente ou instituição
faz parte de um campo na medida em que nele sofre efeitos

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 93
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

ou que nele os produz”. Dessa forma, os agentes redefinem


continuamente as potencialidades, restrições e desafios exis-
tentes nos campos, o que faz com que Bourdieu (1996b, pp.
265-266) refira-se ao espaço dos possíveis:
[...] a herança acumulada pelo trabalho coletivo
apresenta-se a cada agente como um espaço de
possíveis, ou seja, como um conjunto de sujei-
ções prováveis que são a condição e a contrapar-
tida de um conjunto circunscrito de usos possíveis.
Aqueles que pensam por alternativas simples, é
preciso lembrar que nessas matérias a liberdade
absoluta, exaltada pelos defensores da esponta-
neidade criadora, pertence apenas aos ingênuos e
aos ­ignorantes.

Retomando a problematização

A problematização do mundo inscreve em si a proble-


matização das próprias referências cognitivas sobre o mundo,
e, portanto, a criação coletiva de outras formas de inserção no
mundo, de outras práticas e referências; em outras palavras,
a problematização do próprio conhecimento em relação com
a realidade social (FREIRE, 1983, p. 34). Para tanto, cabe criar
condições para que os agentes possam afirmar a palavra, di-
zer a própria palavra, e, portanto, afirmar uma compreensão
sobre o mundo, se posicionar, em interlocução com os de-
mais, reconhecendo as riquezas contidas em si e nos demais,
e, ao mesmo tempo, percebendo os limites, os não saberes, o
que remete à identificação – em diálogo – das visões limites e
das situações limites existentes (FREIRE, 1981).
O processo educacional, portanto, exige a criação de
condições que permitam aos agentes expressar “a forma

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
94 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

como se veem em suas relações com o mundo”, inclusive des-


tacando as potencialidades da dramatização para estimular a
expressividade e desenvolver a consciência política (FREIRE,
1981, p. 24).
Cabe aqui uma referência à importância das palavras
geradoras, entendidas enquanto modos de expressão de si-
tuações reais, palavras de uso comum dotadas de relevância
como significação vivida. A palavra nunca é vista como um
“dado”, ou como uma doação do educador ao educando, mas
como um tema de problematização dialógica, o que remete
às suas significações reais, ancoradas em situações ou intera-
ções concretas (WEFFORT APUD FREIRE, 1967, p. 05). Assim
articulam situações problema, entendidas enquanto desa-
fios cognitivos e vivenciais postos aos agentes participantes
(FREIRE, 1981, p. 16). Entendidas enquanto universo voca-
bular mínimo, articulam temáticas significativas aos agentes
em educação, permitindo a problematização das realidades
sociais vivenciadas, em suas dimensões objetivas e intersub-
jetivas, inclusas as próprias concepções e referências cogniti-
vas dos agentes envolvidos, em outras palavras, suas disposi-
ções sociais (FREIRE, 1981, p. 15).
Para Freire (1983, p. 19), todo pensamento detém uma
“estrutura lógica interna”, vinculada a linguagens e estrutu-
ras sociais específicas, e, portanto, os agentes que vivenciam
esse pensamento tendem a resistir a saberes ou práticas in-
vasores, que ameaçam “romper seu equilíbrio interno”. Nes-
sa perspectiva, algumas referências conceituais e empíricas
podem ser indicadas. Primeiro, o caráter necessariamente
coletivo do processo, pois esse “modo de pensamento e co-
nhecimento”, o “sistema de referências”, já está cristalizado
culturalmente, tendo sido socialmente constituído (FREIRE,

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 95
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

1983, p. 21). A visão social existente, que conhece de uma


forma específica, levará os agentes sociais a bloquearem
conhecimentos e práticas que não estejam em consonância
com ela. Dito de outra forma, as referências disposicionais
condicionam as percepções, classificações e práticas sociais,
e, por isso, para Freire (1983, p. 20), processos educacionais
críticos ou libertadores envolvem dimensões epistemológi-
cas, gnosiológicas, sociológicas, antropológicas, linguísticas,
estruturais.
A promoção de mudanças envolve o reconhecimento
das visões de mundo existentes e seu enfrentamento educa-
cional, através de palavras ou temas geradores que possam
ser sentidos e percebidos enquanto problemas concretos,
“percebidos destacados” (FREIRE, 1983, p. 22). Aos agentes
acadêmicos não cabe partir de sua visão pessoal da realidade,
e sim dos “homens em situação”, dos contextos de vida, sob o
risco de fracasso dos processos educacionais (FREIRE, 1987,
p. 48). Não se trata de levar uma “mensagem ‘salvadora’, em
forma de conteúdo a ser depositado”, e sim de criar condições
para que os agentes envolvidos, coletivamente problemati-
zem não só a objetividade em que estão, mas a consciência
que tem desta objetividade; “os vários níveis de percepção de
si mesmos e do mundo em que e com que estão” (FREIRE,
1987, p. 49).
Nessa perspectiva, o educador assume o papel de me-
diador nos/dos processos, buscando situar na totalidade a
parcialidade, desvelando pontos menos claros, construindo
diálogos de modo situado nas experiências e nos contextos
teóricos (FREIRE, 1983, p. 35). Mais do que isso, promoven-
do a identificação coletiva das visões limites e situações li-
mites, mediando os processos de sistematização. Para Freire

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
96 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

(1987, p. 59), é “tarefa do educador dialógico e, trabalhando


em equipe interdisciplinar esse universo temático, recolhido
na investigação, devolvê-lo como problema, não como disser-
tação, aos homens de quem recebeu”.
Mas uma pedagogia da problematização vai além des-
sas questões. Deve constituir situações, espaços e processos
educacionais que permitam a problematização do “homem
em suas relações com o mundo e com os outros homens”,
possibilitando que “aprofundem sua tomada de consciência
da realidade na qual e com a qual estão” (FREIRE, 1983, p. 21).
Portanto, o que está em jogo nesses processos educacionais é
a recriação das disposições sociais operantes e dos contextos
existenciais partilhados, que agregam horizontes de sentido,
expectativas/motivações e contrapartidas materiais e simbó-
licas singulares, requisitos essenciais à instituição de víncu-
los sociais. Mas, também, das estruturas objetivas que condi-
cionam as situações e as práticas sociais.

Considerações finais

Este texto foi construído a partir de práticas acadê-


micas – educacionais, de pesquisa e extensão – envolvendo
agentes acadêmicos e populares, continuamente desafiados
por relações de poder, por outros agentes e por condicionan-
tes objetivos e intersubjetivos de várias ordens e escalas.
Nesse contexto, esses agentes são continuamente interpela-
dos sobre como efetuar processos educacionais que poten-
cializem mudanças sociais, impactando estruturas e dispo-
sições sociais operantes. De modo mais concreto, algumas
interrogações perpassam as práticas desenvolvidas. Como
promover a mobilização social, efetivando ações coletivas

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A 97
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

com ampla participação? Como dotar de densidade edu-


cacional as práticas, eventos e atividades desenvolvidos?
Como efetivar processos de sistematização? Como impactar
o processo de reconstituição de identidades individuais e
coletivas?
A educação popular pode ser compreendida enquanto
uma pedagogia que nasce e se desenvolve nas lutas e movi-
mentos sociais, em diálogo com o campo acadêmico, envol-
vendo “princípios políticos, epistêmicos e pedagógicos” e
metodologias e técnicas que fundamentam ações políticas
(TAVARES, 2015). Nessa perspectiva, um pressuposto que
perpassa as reflexões desenvolvidas é o de que há diálogos na
obra de Paulo Freire com tradições importantes das ciências
sociais. Para desenvolver essa ideia, efetivou-se uma dupla
construção. Foram evidenciadas referências teórico-empí-
ricas da educação popular importantes para a efetivação de
ações coletivas que se pretendem de resistência e contesta-
ção às diferentes opressões, e, mais do que isso, que buscam
construir alternativas emancipatórias. Em segundo lugar, evi-
denciaram-se elementos ou interfaces sociológicas na obra
freireana, destacando referências conceituais importantes
para as práticas acadêmicas e as ações coletivas de cariz po-
pular. Nessa perspectiva, essas discussões compõem o deba-
te sobre os lugares e os papeis da Universidade, inclusas (I)
articulações entre intervenção social, pesquisa e educação,
(II) relações entre agentes acadêmicos e populares e (III) res-
trições e potencialidades à mudança social. Mas aqui já esta-
mos diante de outras questões.

EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 3
98 DESAFIOS DA INTERVENÇÃO ACADÊMICA NO PLANEJAMENTO URBANO: DIÁLOGOS SOCIOLÓGICOS COM A
EDUCAÇÃO POPULAR EM PAULO FREIRE

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EDUARDO GOMES MACHADO


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
101

Capítulo 4
O MST e a educação do campo: diálogo com
o pensamento freireano
Paulo Roberto de Sousa Silva

E
m maio de 1997, Paulo Freire partia deixando co-
nosco o importante legado de uma Educação como
Prática da Liberdade, de uma Pedagogia do Opri-
mido, de uma Pedagogia da Indignação, de uma
Pedagogia da Autonomia, de uma Pedagogia da Esperança.
Numa de suas últimas entrevistas, Freire (1997) dizia
de sua felicidade “por estar vivo, ainda, e ter acompanhado
essa marcha que, como outras marchas históricas, revelam o
ímpeto da vontade amorosa de mudar o mundo, essa marcha
dos chamados sem terras”, em referência à grande Marcha
Nacional por Emprego, Justiça e Reforma Agrária, realizada
em fevereiro daquele ano pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), enquanto denunciava a impunidade
em relação ao Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em
abril de 1996.
Ainda em 1997, o MST realizava o seu I Encontro Nacio-
nal de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (I ENE-
RA), e na mesa de abertura o grande educador fora lembrado
e homenageado com a exibição de um vídeo, por ele gravado
no final do ano anterior.
De lá para cá, Freire continua vivo entre nós contri-
buindo com seu pensamento nas elaborações pedagógicas e
nas práticas cotidianas de educadoras e educadores do cam-

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


102 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

po, nas áreas de reforma agrária. Lembrado nas místicas e


homenageado nomeando escolas, assentamentos, brigadas,
turmas e núcleos de base. Anualmente, seu legado é revivi-
do na Semana Paulo Freire e, especialmente ao longo de todo
esse ano de 2017, por ocasião dos 20 anos de seu falecimento,
sua memória é saudada nas várias atividades do Movimento,
Brasil afora.
A relação com Paulo Freire vem desde as origens do
MST. Se a luta por educação nasce da necessidade concreta
das famílias acampadas de educar seus filhos, a compreensão
de sua importância para transformação social é fortalecida
com os ensinamentos de Freire.
Já nos primeiros acampamentos e assentamentos, quan-
do a necessidade de organizar a educação das crianças sem ter-
ras apontava o desafio de construir uma escola que valorizasse
a história e a luta das famílias e que, ao ensinar a ler e escre-
ver, promovesse o amor à terra e ao trabalho, era na pedagogia
freireana que as primeiras educadoras encontravam os funda-
mentos de suas práticas. (CALDART; SCHWAAB, 2005).
Logo em seguida, vem o desafio de alfabetizar a com-
panheirada em luta. E, mais uma vez, a principal referência
vem de Freire, com o método de ensino através de temas ge-
radores, articulando letramento e leitura do mundo, situando
a educação como humanização e formação crítica dos lutado-
res do povo, nos círculos de cultura (MST, 2005).
Desde suas origens o MST compreende a educação de
jovens e adultos não somente como escolarização, mas como
formação política, conscientização e libertação. Compreende
que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que
a posterior leitura desta não possa prescindir da leitura da-
quele.” (FREIRE, 1989, p. 9).

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
103

Assim, das necessidades concretas nas experiências


com educação realizadas pelo MST ao longo de sua caminha-
da à elaboração original que desenvolve com a Pedagogia do
Movimento, a herança da Pedagogia do Oprimido é reconhe-
cida, como afirma Caldart (2006, p. 143):
Existe uma relação de origem entre a Pedagogia do
Movimento e a Pedagogia do Oprimido (teorizada
por Paulo Freire). Ambas são materializações his-
tóricas da Pedagogia da Práxis. E a Pedagogia do
Movimento também é herdeira da Pedagogia do
Oprimido.

A Pedagogia do Oprimido traz para a reflexão peda-


gógica o potencial formador da condição de opres-
são, que exige a atitude de busca da liberdade e de
luta contra a opressão, e que coloca os oprimidos
na condição potencial de sujeitos da sua própria
libertação. A Pedagogia do Movimento continua
esta reflexão e chama a atenção para a dimensão
humanizadora/formadora da radicalização desta
busca pela libertação que acontece de forma cole-
tiva através da luta social: as pessoas se educam/
se humanizam/ se libertam participando de Movi-
mentos Sociais cuja dinâmica combina luta social,
de perspectiva histórica, e organização coletiva.

Diante do exposto, o presente artigo pretende refletir


sobre a educação no MST, contextualizando a experiência do
Movimento no Ceará, e destacando como o pensamento frei-
reano comparece nesse percurso, em diálogo com outras teo-
rias e construções históricas relevantes na educação do MST,
a exemplo da Pedagogia Socialista; da elaboração crítica de
pensadores da América Latina, como José Marti; ou sua pró-
pria elaboração com a Pedagogia do Movimento.

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


104 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

Nesse sentido, o texto foi organizado em torno de três


aspectos da educação no MST, na prática indissociáveis, quais
sejam: a organização popular e a formação dos “Sem Terra”; a
luta por políticas públicas de educação; e a disputa do projeto
de educação escolar, traduzido na atualidade na concepção
de Educação do Campo.

A organização popular e a formação dos “Sem Terra”

O MST nasce da necessidade de parte da população


camponesa organizar-se para fazer enfrentamento ao avan-
ço do capitalismo no campo brasileiro, na luta por terra, por
reforma agrária e por transformação social. Desse modo, sua
força está na sua base social. Na capacidade de mobilização e
organização popular massiva.
Ao organizar-se num Movimento Social, constitui-se
não somente uma nova ferramenta de luta social, mas tam-
bém um novo espaço de socialização, de formação humana,
de formação de novos sujeitos sociais coletivos, um novo su-
jeito educador.
Segundo Caldart (2006, p. 138),
A participação nos Movimentos Sociais humaniza
as pessoas porque as educa (produz aprendizados
humanos) em sua dimensão de sujeitos, de sua
vida, de sua história, da luta pelo resgate de sua
dignidade, de sua liberdade; e porque faz isso radi-
calizando/potencializando sua condição de ser so-
cial; ou seja, através desta participação as pessoas
passam a constituir sujeitos coletivos e a se identi-
ficar como sendo “do Movimento”, e a se perceber
“em movimento” diante das próprias relações so-
ciais que as levaram a participar da luta.

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
105

Essa é a ideia base da Pedagogia do Movimento. Ao fa-


zer parte do MST, organizar-se coletivamente, compartilhar
seu projeto coletivo e sua luta, trabalhadores e trabalhadoras
despossuídos da terra, os “esfarrapados do mundo”, modifi-
cam-se em sua humanidade, compartilham uma experiência
educativa através da qual passam a identificar-se e ser identi-
ficados como “Sem Terra”.
Como elaboração original, a Pedagogia do Movimento
herda da Pedagogia do Oprimido a compreensão do potencial
educativo da experiência de opressão e reafirma na análise
concreta de sua própria trajetória, de organização coletiva e
de luta social, a convicção de que “o próprio movimento da
luta concreta em suas contradições, tensões, conflitos; nas di-
ferentes formas de enfrentamento, nos avanços, retrocessos,
nas conquistas e derrotas” educa. (CALDART, 2006, p. 138).
Efetivamente, o trabalho de organização popular da
base social que constitui o MST se materializa numa diversi-
dade de ações, cuja inspiração da educação popular é inegá-
vel, tendo a conscientização como principal método e a liber-
tação como objetivo.
Da mobilização inicial para as lutas, passando pela or-
ganização e realização das ocupações, dos acampamentos,
dos assentamentos, um longo processo educativo decorre,
quer seja pela natureza das próprias atividades, quer pela or-
ganização intencional de atividades de formação política.
Quem participa de uma marcha, de uma ocupação, ou
de um acampamento é fortemente modificado pela natureza
dessas experiências. Contudo, o MST, em sua organicidade,
tem o Setor de Formação como instância cuja tarefa especí-
fica é a coordenação da formação política dos sujeitos que
do Movimento fazem parte, o que o faz através de encontros,

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


106 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

cursos, jornadas de formação e outras experiências organiza-


das intencionalmente com propósito formativo, a exemplo da
Escola Nacional Florestan Fernandes, construída em mutirão
pelos Sem Terra para ser espaço de formação política da clas-
ses trabalhadora.
Nessas atividades importa não somente os conteúdos
formativos, mas também o jeito de educar. E aqui, mais uma
vez, muito aprendeu-se com a educação popular e os ensi-
namentos de Freire, haja vista que muitos dos que vieram
formar o MST ou contribuir com seus processos formativos
vêm de outras vivências com a educação popular, tomando-a
como principal referência pedagógica.
A pedagogia freireana contribui na concepção de edu-
cação como formação humana e seu compromisso com a li-
bertação e a transformação social. Fortalece a convicção de
que a educação não transforma o mundo, mas (trans)forma as
pessoas para a tranformação do mundo. Contribui na forma-
ção de lutadores e construtores do futuro.
A formação desses sujeitos não pode ser uma tarefa
idealista de um iluminado que conscientiza, pela transmis-
são verbalista de conhecimentos, uma “educação bancária”.
Mas somente se realiza como educação problematizadora e
dialógica, enraizada na realidade, na terra.
Pois, como bem nos ensina Freire (1983), “Ninguém
educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se
educam entre si, mediatizados pelo mundo”.

Da luta pela terra à educação do campo

Um segundo aspecto da Educação do MST, conforme a


organização aqui proposta, é a luta pelo direito à educação

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
107

pública da população camponesa, dos acampamentos e as-


sentamentos de reforma agrária, que irá avançar para a sínte-
se da Educação do Campo, como estratégia de luta que articu-
la a diversidade dos sujeitos do campo, reconhecendo-a como
direito e identificando, na atualidade da sociedade capitalis-
ta, o Estado como o responsável em provê-la.
O percurso expositivo adotado irá articular o contex-
to do MST no Estado do Ceará com o Movimento Nacional.
E como na história do MST no Brasil e dela fazendo parte, a
trajetória local do Movimento demonstra uma indissociável
relação entre a luta pela terra e a luta por educação, de tal
sorte que não é possível recuperar a história da educação do
MST no Ceará desvinculada da história da luta pela terra e da
própria formação do MST.
Igualmente, embora as pautas específicas sejam apon-
tadas pelas necessidades identificadas na caminhada da
construção da reforma agrária, não é possível dissociar a luta
local por educação da população camponesa, do movimen-
to nacional em defesa de políticas públicas de Educação do
Campo, que por sua vez insere-se nas lutas gerais por educa-
ção no Brasil.
Ocorre que, num período de crise estrutural do capita-
lismo e sua expansão no campo brasileiro, a década de 1980 irá
testemunhar a origem do MST, que se organiza nacionalmente
a partir de 1984, com seu I Encontro Nacional, no Paraná. A
conjuntura era de efervescência, abertura política e intensifi-
cação das lutas sociais, dentre as quais a luta pela terra, com
resposta violenta dos latifundiários para assegurar a proprie-
dade privada. Do outro lado, crescia a resistência camponesa e
a discussão sobre a reforma agrária, animada, sobretudo, pelo
Estatuto da Terra e o I Plano Nacional de Reforma Agrária.

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


108 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

No Estado do Ceará, o acirramento dos conflitos ocor-


ria, principalmente, no interior das fazendas, motivado pela
superexploração da renda da terra, com a predominância do
regime de “meia”, onde o trabalhador pagava 50% da produ-
ção para os patrões e em alguns casos, combinando paga-
mento com produto e trabalho.
Alencar e Diniz (2010) chamam a atenção para as ma-
nifestações em defesa da reforma agrária que ocorreram no
estado, em meados da década de 1980, mobilizadas pelos Sin-
dicatos de Trabalhadores Rurais, dentre os quais se destacam
os sindicatos de Quixeramobim, Quixadá e Canindé, além de
setores da igreja católica, tais como a Comissão Pastoral da
Terra (CPT).
Esse movimento partia do reconhecimento da neces-
sidade de articular os trabalhadores rurais em conflitos nas
fazendas, com a luta pela terra e por reforma agrária e não
somente pela redução do pagamento da renda da terra. Nesse
sentido, uma delegação do Ceará vem a participar do I Encon-
tro Nacional do MST, porém, somente em 1989 se constitui
uma articulação para organização do Movimento no Estado,
com o deslocamento de militantes para o Ceará e a organi-
zação da ocupação da Fazenda Reunidos São Joaquim, no
município de Madalena, no dia 25 de maio de 1989, dando
origem ao Assentamento 25 de Maio, primeiro assentamento
de reforma agrária do MST no Ceará, demarcando a fundação
do Movimento no estado (DINIZ, 2009).
Naquele ano, ocorreram duas grandes ocupações de
terras no Sertão Central, originando o Assentamento 25 de
Maio, numa área situada entre os municípios de Quixeramo-
bim, Boa Viagem e Madalena e o Assentamento Tiracanga, no
município de Canindé. Daí, então, a década de 1990 irá mar-

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
109

car a consolidação do Movimento no estado, a partir de uma


série de lutas e conquistas em defesa da reforma agrária.
Depois de conquistar a terra, constituindo um assenta-
mento de reforma agrária e saindo da condição de empregado
subordinado a um patrão, os camponeses precisam planejar,
negociar, elaborar projetos, prestar contas; organizar a pro-
dução e toda a vida no assentamento; compreender melhor
o mundo e a realidade para poder assumir esse novo papel
social de trabalhador camponês assentado.
Nessa nova realidade, a elevação da escolaridade é in-
dispensável para apropriação dos fundamentos científicos
implícitos nas diversas atividades produtivas e na organiza-
ção do trabalho camponês, exigindo uma relação intrínseca
entre teoria e prática, escola e produção.
No entanto, se a histórica negação do direito à educação,
para as populações camponesas, se expressava brutalmente
na ausência de escolas no meio rural; a nova realidade posta
com a luta por reforma agrária, como parte da luta por trans-
formações sociais, evidenciava sua necessidade e já bem se
compreendia, como dizia Freire (1983), a importância da edu-
cação na formação do sujeito, agente da transformação social.
A educação escolar assume, portanto, um papel funda-
mental. Já não é suficiente a precária escola das séries ini-
ciais, demandando uma educação pública de qualidade em
todos os níveis e modalidades, da educação infantil ao ensino
superior; da educação de jovens e adultos à educação profis-
sional. Numa estimativa do MST, até 2012 as áreas de reforma
agrária, no Brasil, contavam com aproximadamente 1.800 es-
colas públicas, com cerca de 200 mil crianças, adolescentes,
jovens e adultos estudando (KOLLING, VARGAS; CALDART,
2012, p. 503).

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


110 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

E assim, a luta pela terra, a partir das novas necessi-


dades que a realidade apresenta, se faz luta por políticas pú-
blicas de educação. Pois, contraditoriamente, a despeito da
necessidade ou da afirmação positiva do direito, expresso
inclusive na Constituição Federal, “vê-se, pois, que o direito
à educação segue sendo proclamado, mas o dever de garan-
tir esse direito continua sendo protelado” (SAVIANI, 2013, p.
754), sobretudo para as populações camponesas.
Por outro lado, as lutas para garantir as escolas funcio-
nando dentro dos acampamentos e assentamentos fomenta-
ram um debate no Setor de Educação Nacional do MST, a par-
tir da seguinte questão: “o que queremos com as escolas de
acampamento e assentamento?”. Essa questão foi discutida
com todas as famílias da base do MST resultando no Caderno
de Formação nº 18, sistematizando as opiniões do conjun-
to das famílias que participavam do MST naquele período,
apontando para um projeto de escola.
A reflexão crítica desenvolvida pelo MST e as famílias
assentadas, sobre a escola, revela uma preocupação com o
fato de que a educação “bancária” hegemônica reproduz as
relações sociais opressoras e a sociabilidade capitalista, com
sua subordinação do rural ao urbano, preparando os estudan-
tes para sair do campo.
O projeto de futuro em construção exigia que o “ensi-
no nas escolas dos assentamentos e acampamentos do MST
deve preparar os estudantes para ficar e transformar o meio
rural” (MST, 2004, p. 26). Indo, portanto, para além do direito.
E da necessidade concreta e reflexão crítica sobre a es-
cola, inspirados pelas elaborações construídas sobre o pro-
cesso formativo dos Sem Terra, na organização coletiva e nas
lutas do MST; recuperando matrizes pedagógicas desvalori-

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
111

zadas pela sociedade capitalista1, vai-se construindo um pro-


jeto de educação escolar diferente: a escola do assentamento,
a escola do MST, a escola do campo.

Educação do Campo: direito nosso, dever do Estado!

O final da década de 1990, sobretudo a partir das mobi-


lizações em torno da discussão da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei nº 9394/1996), e a década seguinte,
período de ascensão das lutas sociais no campo brasileiro e
de evidente protagonismo dos movimentos sociais campe-
sinos, em particular o MST, foi o período de constituição da
Educação Campo como concepção e como política educacio-
nal brasileira, tendo como marco a I Conferência Nacional
por uma Educação Básica do Campo, realizada em julho de
1998, em Luziânia, no estado de Goiás, promovida pelo MST,
UnB2, UNESCO3, UNICEF4 e CNBB5.
O referido evento tornou público, no debate educacio-
nal brasileiro, a expressão “Educação do Campo”, afirmando
uma concepção de educação forjada nas práticas e elabora-
ções dos movimentos sociais camponeses, emergentes na
fase atual da luta pela terra, e na disputa do projeto de desen-
volvimento do território6 camponês; colocando o campo na
1 “pedagogia do trabalho, pedagogia da terra, pedagogia da história, pedagogia
da organização coletiva, pedagogia da luta social, pedagogia da práxis...” (MOVI-
MENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA, 2004, p. 26).
2 Universidade de Brasília.
3 United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.
4 United Nations Children’s Fund.
5 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
6 O conceito de território não é utilizado neste trabalho apenas como referência

ao espaço geográfico controlado por determinada instituição ou relação social;


é aqui definido como espaço político por excelência, campo de ação e de po-

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


112 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

pauta das políticas públicas de educação e da pesquisa acadê-


mica, aportando uma especificidade ao conceito de educação
– o campo –, e selando um conjunto de articulações em torno
da defesa do direito e do reconhecimento da necessidade de
adequação da educação escolar à realidade das populações
camponesas.
A partir desse marco, temos avanços significativos na
política educacional brasileira no sentido de instituir a Educa-
ção com Campo como política pública. Ainda em 1998, é cria-
do o Programa Nacional de Educação em Áreas de Reforma
Agrária (PRONERA), importante instrumento na construção
de políticas públicas de educação para as áreas de reforma
agrária; em 2002, a publicação da Resolução CNE/CEB nº 01,
que institui as Diretrizes Operacionais para Educação Básica
nas Escolas do Campo, estabelecendo um marco legal que re-
conhece as especificidades da população do campo como su-
jeitos do direito à educação. Em 2004, temos a criação da Co-
ordenação Geral de Educação do Campo, vinculada à S ­ ECAD7,
no Ministério da Educação, responsável pelo desenvolvimen-
to de políticas específicas de educação no campo; e a realiza-
ção da II Conferência Nacional por uma Educação do Campo,
dessa vez articulada por um número bem maior de organiza-
ções e movimentos sociais, com uma ampla participação do
governo e de várias universidades públicas.
É nesse contexto que o MST, num primeiro momento
focado na luta pelo direito à educação escolar, na organização
das escolas e do próprio setor de educação nos assentamen-

der, onde se realizam determinadas relações sociais. Também é utilizado para


representar o poder das teorias nos processos de transformação da realidade
(FERNANDES; MOLINA, 2004).
7 SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
113

tos e acampamentos, desloca-se, imediatamente, para a dis-


cussão do projeto de educação das escolas dos assentamen-
tos do MST. Desse modo, já não basta lutar por escola para os
assentamentos e acampamentos; faz-se necessário construir
uma escola diferente, vinculada ao campo e à luta pela refor-
ma agrária.
E uma vez compreendida a educação escolar como
direito, a luta passa pela institucionalização da educação
do campo como política pública, cuja reivindicação ultra-
passa a garantia do acesso, chegando à disputa do projeto
de educação.
Desse modo, ao longo da década de 2000 ocorreram vá-
rias iniciativas no estado do Ceará, a fim de constituir uma
articulação local em defesa da Educação do Campo. Em 2004,
a realização do I Seminário Estadual por uma Educação do
Campo, promovido pelo MEC e Secretaria Estadual de Edu-
cação, reuniu mais de trezentos participantes de movimen-
tos sociais; movimento sindical; universidades; ONG’s; Se-
cretarias Estaduais e Municipais de Educação; educadores e
­educandos.
Ao final do Seminário foi proposta a formação de um
Comitê Executivo de Educação do Campo, com representação
de organizações do poder público e da sociedade civil, que foi
institucionalizado em 2005 e passou a reunir-se sistematica-
mente, tendo a sua atuação progressivamente reduzida.
Em março de 2006, o Comitê Estadual de Educação
do Campo promove o II Seminário Estadual de Educação do
Campo, que tem como objetivo a elaboração de diretrizes
pedagógicas para a Educação do Campo no estado do Ceará,
orientadoras dos sistemas estadual e municipal de educação,
culminando na Resolução CEC nº 426/2008, que regulamenta

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


114 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

a Educação Básica na Escola do Campo, no âmbito do estado


do Ceará.
Em 2010, temos um avanço importante na institucio-
nalização das políticas de educação do campo no estado.
Atendendo à reivindicação dos movimentos sociais e ao que
já previa a legislação da Educação do Campo, o governo do
estado institui uma equipe para coordenar as ações da Edu-
cação do Campo, na Célula da Diversidade da Coordenadoria
de Desenvolvimento da Escola – CDESC –, na Secretaria Es-
tadual de Educação, que passa a ser o principal interlocutor
com o MST, sobretudo em relação à reivindicação de escolas
de ensino médio nos assentamentos de reforma agrária, nível
escolar de responsabilidade da esfera estadual.
Em 2011, ocorre uma reestruturação na Secretaria Es-
tadual de Educação, sendo criada a Coordenadoria de Desen-
volvimento da Escola e da Aprendizagem – CODEA –, na qual
se institui um setor de Diversidade e Inclusão Educacional,
vinculando a ele a equipe da Educação do Campo.
Por fim, destaca-se no âmbito das políticas públicas
de educação do campo no estado do Ceará a publicação da
Lei Estadual nº 16.025, em maio de 2016, que dispõe sobre o
Plano Estadual de Educação (2016/2024), na qual consta uma
meta específica sobre a educação do campo, indígena e qui-
lombola, como conquista da intervenção articulada das orga-
nizações camponesas, indígenas e quilombolas do estado.
Do que foi até aqui exposto, é possível observar que,
nos limites de um Estado burguês, os movimentos sociais
camponeses, neles incluso com papel relevante o MST, de-
marcaram a política educacional brasileira e local com a ins-
titucionalização da Educação do Campo, com importantes
avanços na conquista do direito à educação pública para a

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
115

população camponesa, de modo geral, e das áreas de reforma


agrária, em particular.
Contudo, sem relevar o quanto se avançou na forma-
lização do direito, esse percurso é marcado pela luta perma-
nente para efetivação das políticas públicas de educação e
na disputa da direção político-pedagógica das concepções,
metodologias e finalidades que as orientam, sob a hegemonia
do capital. Luta tecida, concretamente, no cotidiano de cada
acampamento, de cada assentamento, de cada comunidade,
nos diversos contextos, em cada canto desse país.

Da concretização do direito à disputa dos sentidos

O terceiro e último aspecto da educação do MST refe-


re-se à disputa do projeto de educação escolar, traduzido, na
atualidade, na concepção de Educação do Campo. Ou seja,
que Educação do Campo o MST defende e quais os limites e
possibilidades de sua concretização no âmbito das políticas
públicas.
Sabendo que educação é mais do que escola e reco-
nhecendo a importância da práxis político-educativa rea-
lizada nos diversos espaços e atividades organizativas, de
autoformação política da classe trabalhadora camponesa, o
Movimento compreende, também, a importância da educa-
ção escolar na contemporaneidade, da sua importância para
a reforma agrária e para os trabalhadores, e, por isso, luta por
políticas públicas de educação.
Contudo, ao colocar-se diante da escola, a partir das ne-
cessidades encontradas na luta pela terra e por reforma agrá-
ria, num movimento de construção de um projeto de campo e
de sociedade, na perspectiva do polo do trabalho, ficam explí-

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


116 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

citos os limites e a inadequação do projeto de educação esco-


lar hegemônico, pois o que está em questão é uma educação
libertadora, formadora de um novo homem e de uma nova
mulher, para a construção de um novo mundo.
Diante disso, duas questões irão se colocar desde as
primeiras discussões das primeiras famílias, dos primeiros
acampamentos e assentamentos, atravessando toda a histó-
ria do MST até os dias atuais. Quais sejam: Que educação/es-
cola queremos? Como construir a escola que queremos?
Essas questões estão presentes em vários documentos
do Movimento e direcionam os “Princípios da Educação no
MST”, publicados no Caderno de Educação nº 8, em 1996, or-
ganizado em torno de um conjunto de princípios filosóficos8
(que educação queremos) e outro de princípios pedagógicos9
(como construir a educação que queremos), que expressam
as principais referências da educação do MST.
Na prática, a medida da concretização do direito e da
disputa do sentido é a luta, que parte da necessidade de esco-
las para as crianças sem terras; à educação de jovens e adul-
tos; à educação de nível médio e profissional da juventude; à
formação de educadores.
8 Educação para a transformação social; educação para o trabalho e a coopera-
ção; educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana; educação
com/para valores humanistas e socialistas; educação como um processo per-
manente de formação e transformação humana.
9 Relação entre prática e teoria; combinação metodológica entre processos de

ensino e de capacitação; a realidade como base da produção do conhecimen-


to; conteúdos formativos socialmente úteis; educação para o trabalho e pelo
trabalho; vínculo orgânico entre processos educativos e processos políticos;
vínculo orgânico entre processos educativos e processos econômicos; vínculo
orgânico entre educação e cultura; gestão democrática; auto-organização dos/
das estudantes; criação de coletivos pedagógicos e formação permanente dos
educadores/das educadoras; atitude e habilidades de pesquisa; combinação en-
tre processos pedagógicos coletivos e individuais.

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
117

À proporção que os desafios vão se colocando, o Movi-


mento vai buscando soluções criativas na sabedoria popular;
no acúmulo das experiências e elaborações teóricas da classe
trabalhadora; na própria caminhada dos Sem Terra em mo-
vimento, com avanços e recuos, a depender da correlação de
forças e da organização dos sujeitos em cada conjuntura.
Para ilustrar a materialidade da luta pelo direito e da
disputa do projeto educativo no Ceará, destacaram-se três
frentes de ações: a educação escolar, sobretudo, de nível fun-
damental e médio; a educação de jovens e adultos, principal-
mente em projetos e campanhas; e o ensino superior, em sua
grande maioria para formação de educadores e educadoras
dos assentamentos de reforma agrária.
A luta por escolas, como já afirmado anteriormente,
é uma das primeiras necessidades das famílias sem terra
acampadas e assentadas. E a crítica ao projeto de escola hege-
mônico logo expõe o desafio para além do direito.
De modo geral, há um avanço na oferta do ensino fun-
damental no Brasil, sobretudo nas duas últimas décadas, pra-
ticamente atingindo sua universalização, inclusive no cam-
po, em parte decorrente das lutas sociais, mas também em
virtude dos condicionamentos dos organismos multilaterais
ao Estado brasileiro, interessados na elevação desse nível de
escolarização.
No meio rural, contraditoriamente, o crescimento da
oferta acompanha um progressivo movimento de fechamen-
to de escolas, ultrapassando o montante de 30.000 escolas
fechadas na última década. Em contrapartida, o MST tem res-
pondido com uma campanha de denúncia, sob o mote “Fe-
char escola é crime!” e com mobilizações nacionais e locais
de resistência.

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


118 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

No estado do Ceará é evidente, sobretudo na última


década, o avanço em relação à conquista de escolas de nível
médio em assentamentos de reforma agrária e à intervenção
do MST em seu projeto político-pedagógico na perspectiva da
Pedagogia do Movimento e da Educação do Campo.
Até 2010 não existia nenhuma escola de ensi-
no médio em assentamentos de reforma agrária.
Ocorre que a partir da jornada de lutas realizada
em 2007, o MST/CE conquistou junto ao Governo
do Estado o compromisso de construção de esco-
las de nível médio em assentamentos de reforma
agrária indicados pelo Movimento. Do início de
2010 para cá, sete escolas já foram construídas10.
(SILVA, 2016, p.11).

No entanto, o referido avanço nesse nível de educação


escolar nos assentamentos de reforma agrária, em decor-
rência das lutas do MST no estado, fica pequeno diante da
demanda inicialmente apresentada de 64 escolas e o despro-
porcional esforço e volume de recursos investidos, no mesmo
período, pelo governo do estado do Ceará, na implantação de
115 Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEP), em
sua política de Ensino Médio integrado à educação profissio-
nal11 . (SILVA, 2016).

10 EEM Francisco de Araújo Barros, no Assentamento Lagoa do Mineiro, em Ita-


rema; EEM João dos Santos Oliveira (João Sem Terra), no Assentamento 25 de
Maio, em Madalena; EEM Florestan Fernandes, no Assentamento Santana, em
Monsenhor Tabosa; EEM Maria Nazaré de Sousa (Nazaré Flor), no Assentamen-
to Maceió, em Itapipoca; EEM Padre José Augusto Régis Alves, no Assentamento
Pedra e Sal, em Jaguaretama; EEM Filha da Luta Patativa do Assaré, no Assenta-
mento Santana da Cal, em Canindé; e EEM José Fideles, no Assentamento Bon-
fim Conceição, em Santana do Acaraú.
11 http://educacaoprofissional.seduc.ce.gov.br/index.php?option=com_conten-

t&view=article&id=3&Itemid=103, acessado em 11/10/2016.

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
119

No que se refere à disputa de sentidos, há um esforço


criativo de intervenção no currículo escolar, a partir das re-
ferências históricas que orientam a Educação do MST: a Pe-
dagogia Socialista, a Pedagogia do Oprimido, a Pedagogia do
Movimento, nos limites de uma escola pública sob a gestão do
Estado capitalista, obviamente.
Do que tem sido possível avançar, destacam-se o víncu-
lo do conhecimento escolar com a atualidade, com a realida-
de camponesa, com a cultura, o trabalho e as lutas, buscando
relacionar teoria e prática, conhecimento científico e saber
popular; a centralidade do trabalho como princípio educati-
vo, com foco para atividades produtivas camponesas, de base
agroecológica; a organização coletiva, autônoma e participa-
tiva dos sujeitos; e a formação integral, com diversificação
de tempos e espaços educativos, que contemplem a multidi-
mensionalidade do ser.
Outra frente que tem exigido respostas do MST do Cea-
rá é a Educação de Jovens e Adultos. Com significativo índice
de analfabetismo nos assentamentos e diante de novas ne-
cessidades que a realidade da reforma agrária coloca, o Mo-
vimento, desde suas origens, tem buscado alternativas para
alfabetização e elevação da escolaridade dos acampados e as-
sentados, que tem se efetivado, na maioria das vezes, através
de projetos e campanhas viabilizadas pelo Pronera, pelo Pro-
grama Brasil Alfabetizado ou em ações da própria Secretaria
Estadual da Educação.
Para ilustrar a medida da luta, vale lembrar o episódio
de 1997, quando o estado do Ceará enfrentava mais um ano
difícil de seca e o MST organizou uma grande mobilização
com 2.500 acampados e assentados, ocupando a Secretaria de
Agricultura, na Avenida Bezerra de Menezes, com uma pauta

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


120 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

que reivindicava projetos produtivos para os assentamentos,


acesso à água e alfabetização dos jovens e adultos das áreas
de reforma agrária. Essa luta tornou-se um marco histórico
pela violência da repressão policial utilizada, sob o comando
do então governador do estado, Tasso Jereissati, e pela firme-
za e resistência dos Sem Terra, em sua primeira grande mobi-
lização de massa a reivindicar o direito à educação de jovens
e adultos. As aulas iniciaram ali mesmo no acampamento da
Avenida Bezerra de Menezes e continuaram, após a conquista
com a luta, em 250 turmas, envolvendo 116 assentamentos,
totalizando 2.750 alfabetizandos, em 32 municípios.
Por ser iniciativa com maior autonomia do Movimento
na coordenação dos projetos, as experiências de Educação de
Jovens e Adultos sempre tiveram uma forte marca da educa-
ção popular, através dos círculos de cultura freireanos; com
o método dos temas geradores, vinculando a alfabetização
à cultura, ao trabalho, às lutas sociais. Desde 2008, o Movi-
mento tem introduzido na alfabetização de jovens e adultos
no Ceará o Método Cubano “Sim, eu Posso!”, combinando-o,
contudo, com a abordagem alfabetizadora de Paulo Freire de
articulação da leitura das palavras com a leitura do mundo.
E relação à formação de professores, desde a década
de 1990 o MST tem buscado parcerias com Universidades
públicas para dar conta dessa necessidade. Nacionalmente,
em 1993, organiza-se a primeira importante iniciativa de
formação de educadores do MST com o Curso de Magistério
dos Movimentos Camponeses, realizado numa parceria com
a Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa – FUN-
DEP –, em Braga (RS). No estado do Ceará, em 2004 o MST
organiza o Curso de Pedagogia da Terra, em parceria com a
UFC, como uma ação do Pronera, com um total de 107 estu-

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
121

dantes em duas turmas, concluindo em janeiro de 2009, com


88 estudantes graduados.
É notável, pois, como o Pronera tem sido uma impor-
tante ferramenta de políticas públicas educacionais para as
populações de áreas de reforma agrária e para o avanço da
Educação do Campo, em geral, contribuindo com a elevação
da escolaridade e, de sobremaneira, para o acesso ao Ensino
Superior. Com um desenho institucional que permite a par-
ceria entre os movimentos sociais, instituições públicas de
ensino superior e o Incra, tem possibilitado a construção de
arranjos pedagógicos criativos, incorporando o acúmulo da
Educação do MST, a exemplo dos cursos de Pedagogia da Ter-
ra e de tantos outros executados e em curso no país.
O recurso à Pedagogia da Alternância, permitindo arti-
cular teoria e prática, estudo e vivência; a opção por teorias
críticas; o vínculo com os movimentos sociais e suas lutas;
o trabalho como princípio educativo; e o compromisso com
as problemáticas camponesas são elementos constituintes,
comuns nessas experiências formativas que contribuem na
formação de sujeitos críticos, comprometidos com a trans-
formação social. A intervenção nesse nível de educação tem
sido importante na disputa do acesso e do sentido do Ensino
Superior, fazendo com que a “Universidade se pinte de povo”.

Algumas considerações

O avanço do capital sobre a política educacional brasi-


leira, sobretudo na última década, com a ação direta de suas
agências organizadas, no que se destaca o Movimento Todos
pela Educação, vem intensificando a subordinação da educa-
ção ao mercado: seja privatizando-a e reduzindo-a a condição

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


122 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

de mercadoria, seja restringindo-a aos seus interesses, inclu-


sive no contexto do campo.
Nessa conjuntura, alguns desafios seguem e outros a
eles se juntam, dos quais destacamos, primeiramente, a luta
pela garantia do direito à educação pública de qualidade
para os sujeitos do campo. Segue o fechamento de escolas e
a necessidade de continuar afirmando que “fechar escola é
crime”; o transporte escolar precário para deslocamento das
crianças e jovens continua sendo a principal política educa-
cional no meio rural; a política de educação de jovens e adul-
tos fora abandonada pelo poder público e os índices de anal-
fabetismo permanecem expressivos, mantendo atualizada
a pauta da alfabetização de jovens e adultos; a qualidade da
educação oferecida à população do campo continua precária
e restrita em relação ao acesso à escola e, mais ainda, no que
se refere ao acesso ao conhecimento.
Em segundo lugar, em relação à disputa do sentido,
existem avanços significativos nos espaços de formação polí-
tica, de organização popular, sob a autonomia do Movimento.
No entanto, em se tratando da educação escolar, de modo ge-
ral, o que se conseguiu inovar na forma escolar esbarra numa
série de mecanismos de controle do sistema de educação bra-
sileiro que limitam as possibilidades concretas de efetivação
de um projeto diferenciado específico, numa determinada
escola da rede pública, dentre os quais podemos citar: os sis-
temas de gestão escolar padronizados; o perfil da formação
inicial dos professores; o material didático; o financiamento
associado à adesão a projetos empresariais12 e, sobretudo, o
sistema de avaliação nacional. Acrescente-se a conjuntura re-
trógrada atual, em tempos de golpe, com tendências à inten-

12 A exemplo do Projeto Jovem de Futuro, do Instituto Unibanco.

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO
123

sificação da precarização, minimização e mercantilização da


educação pública, que tenciona as políticas educacionais na
direção contrária da que vem sendo apontada pela educação
do MST, e está posto o tamanho do desafio.
Nesse caso, como nos diz o poeta Zé Pinto, na canção
“Pra vida continuar”, “Que Paulo Freire nos ilumine de lá, da
onde ele deve estar, com sua pedagogia. Aqui na terra, vamos
lutando por ela, aprendendo nesta guerra, soletrar c­ idadania”.

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camponeses no Ceará em busca da sua libertação. Tese de
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PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


124 CAPÍTULO 4
O MST E A EDUCAÇÃO DO CAMPO: DIÁLOGO COM O PENSAMENTO FREIREANO

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que


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PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
125

Capítulo 5
Educação popular em saúde em tempos de
SIDA/AIDS
Roberto Kennedy Gomes Franco

Palavras iniciais
Nos últimos anos presenciamos um deslocamen-
to inédito de atenção de programas educativos
de AIDS baseados em informação para um novo
conjunto de modelos, enfocando a capacitação
coletiva e a mobilização comunitária, cruciais
para os esforços mais dinâmicos e inovadores
para responder à epidemia. Aproveitando as for-
mulações pedagógicas já clássicas, como as de
Paulo Freire, mais intimamente associadas com
a tradição da educação popular na América La-
tina, temos mudado cada vez mais daquilo que
poderia ser descrito como modelo “bancário” da
prática educacional...

De fato, a noção de Paulo Freire de conscientiza-


ção como processo social dialético, visando tanto
construir a consciência mediante o diálogo como
agir junto com outros para corrigir a injustiça
social, talvez seja a essência da capacitação (ou,
em inglês, o empowerment) e mobilização comu-
nitárias como estratégias na luta contra a AIDS.
(PARKER, 2000, p. 105)

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


126 CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS

S
ocializamos com o texto alguns resultados de
nossa investigação, efetuada sob a perspectiva do
materialismo histórico-dialético, para a escrita da
Tese de Doutorado intitulada a FACE POBRE DA
AIDS1.
Em síntese, chegamos à conclusão de que na realidade
brasileira, segundo o Boletim Epidemiológico de 2015/2016,
cerca de 58,5% da população sorologicamente positiva para o
HIV têm nível de escolaridade que não chega aos oito anos de
letramento, ou seja, que não concluíram nem o ensino fun-
damental. Por sua vez, os relatos evidenciam que, na maio-
ria das vezes, estas pessoas não sabem e nem entendem ao
menos de que doenças são afetadas. O adoecimento, nesse
sentido, reproduz as contradições de classe da sociabilidade
do Capital. (BOLTANSKI, 2004).
A este respeito, Parker (1993) comenta que a desigual-
dade social, aliada à opressão econômica, política e cultural
e auxiliada pela crescente rejeição e negligência, contribui
para a vulnerabilidade global ante o HIV/AIDS, produzindo os
efeitos mais dramáticos e, principalmente, nas partes mais
pobres e oprimidas do mundo em desenvolvimento, que são
as menos capacitadas a responder de forma eficaz contra o
avanço crescente da epidemia.
De forma complementar à nossa linha de interpretação
histórica, Altman (1995, p. 19- 20) acentua que:
A distinção crucial não é de caráter epidemiológico,
como foi sugerido pelas conceituações iniciais da
OMS, de Padrões I, II e III, mas sim de economia
1 FRANCO, Roberto Kennedy Gomes. A Face Pobre da AIDS. Tese (Doutorado)
– Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Gra-
duação em Educação Brasileira, Fortaleza (CE), 26/08/2010.

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
127

política, tanto no que tange à disponibilidade de


tratamentos quanto à vulnerabilidade à infecção.
Nos países ricos, os avanços na terapia com drogas
aumentam cada vez mais a possibilidade de que
a infecção pelo HIV esteja a caminho de torna-se
uma “condição administrável”, digamos, como o
diabetes, e de que os avanços médicos significarão
que mais pessoas infectadas poderão viver mais
e melhor após o diagnóstico. Mesmo se continu-
armos pessimistas sobre tais progressos, os trata-
mentos médicos podem ao menos prolongar a vida
e aliviar uma parcela considerável do sofrimento
causado por infecções oportunistas. Estes progres-
sos são em grande parte inconcebíveis na maior
parte dos países pobres, onde os recursos necessá-
rios para dispor de novas drogas são impensáveis.
Na maioria dos casos, a dispersão do vírus estará
intimamente relacionada às condições econômi-
cas, em que a pobreza não só dificulta ainda mais
a educação eficiente e a disponibilidade de camisi-
nhas e agulhas esterilizadas, como também costu-
ma privar o povo da opção de utilizá-las, mesmo se
estiverem disponíveis. Naturalmente, haverá casos
intermediários: a elite, em alguns países pobres,
poderá pagar pelos novos tratamentos, e os muito
pobres dos países ricos, não terão acesso a eles.

Diante deste cenário traçado, compartilhamos as ex-


periências de educação popular em saúde efetuada pelos ati-
vistas da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS
(RNP+Brasil). A emergência histórica da RNP+Brasil eclode
em 1995, sua peculiaridade é o engajamento político pelos
direitos humanos das PVHA (pessoas que vivem com HIV e
AIDS). Em nossas hipóteses, as experiências de educação po-
pular em saúde dos ativistas da RNP+Brasil seguem a linha

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


128 CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS

daquilo que é caracterizado como a emergência associativista


de “novos movimentos sociais”.
A este respeito, Gohn (2007, p. 07, 08 e 18) diz que:
O tempo passou, surgiram novos campos temá-
ticos de luta que geraram novas identidades aos
próprios movimentos sociais, tais como na área do
meio ambiente, direitos humanos, gênero, ques-
tões étnico-raciais, religiosas, movimentos cultu-
rais etc. Alguns movimentos transformaram-se em
redes de atores sociais organizados, ou fundiram-
-se com ONGs, ou rearticularam-se com as novas
formas de associativismo que surgiram nos anos
90; outros entraram em crise e desapareceram;
outros, ainda, foram criados com novas agendas
e pautas, como as recentes manifestações antiglo-
balização. Em suma, o novo associativismo é mais
propositivo, operativo e menos reivindicatório –
produz menos mobilização ou grandes mobiliza-
ções, é mais estratégico. O conceito básico que dá
fundamento às ações desse novo associativismo é
o de Participação Cidadã. O perfil do militante dos
movimentos sociais se alterou e as teorias estão a
exigir de nós explicações mais consistentes.

Agrega-se a esta reflexão a oficina ativismo e liderança,


ministrada por Jair Brandão, da RNP+Brasil.
Resumidamente, ele nos relatou que:
Ontem na oficina tentei fazer com que as pessoas
refletissem sobre que tipo de ativistas, de lideran-
ças se precisa hoje na RNP+? Para fortalecer a luta
por direitos humanos, para ter mais conquistas é
preciso investir na formação do sujeito político.
Eu Jair sou sujeito político das minhas ações. Acho
que nascemos sujeitos de direito, só que alguns

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
129

conseguem ser sujeito político de suas ações, os


outros continuam até morrer sendo somente sujei-
to de direito. Então é isso que precisamos entender
e fazer essa mudança, a partir do momento em que
me vejo enquanto cidadão e reconheço meus direi-
tos, também ajudo e contribuo nessa luta. Temos
essa carência muito grande na Rede e precisamos
está acordando, mostrando para esses novos ati-
vistas que tão surgindo que aqui tem muita gente
nova nesse encontro, essa galera nova carece des-
sa formação.

Os elementos relatados por Jair, articulados aos princí-


pios pedagógicos postulados por Paulo Freire, como podemos
perceber, contribuem de forma relevante para uma educação
politizadora. Conforme se refere Jair, tem relação conjuntu-
ralmente com a própria guerra política contra a AIDS/SIDA e
pela esperança de respeito a direitos humanos fundamentais,
como educação e saúde.
Apreendemos com estes relatos o termo organização
de base comunitária, amplamente desenvolvida por Altman
(1995, p. 23):
É impressionante a extensão da mobilização que
a epidemia causou entre as pessoas afetadas, e
merece a atenção de todos os interessados em ati-
vismo político e movimentos sociais. A epidemia
produziu uma extraordinária quantidade de cria-
tividade, atividade política e cuidado apaixonado,
em um nível bem popular, em praticamente todos
os países onde há a possibilidade de organização
comunitária.

Uma vez organizada comunitariamente, a sociedade


civil se torna menos fraca diante dos embates cotidianos de

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


130 CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS

luta e resistência social, não permitindo a individualização e


o enfraquecimento no confronto com os grupos antagônicos.
Estas reflexões são presentes na CARTA DE PRINCÍPIOS
DA RNP+ BRASIL. Ao definir como área de abrangência todo o
Território nacional, os ativistas buscam a mobilização e a in-
tegração de todas as pessoas vivendo com HIV/AIDS. Em seus
objetivos, estabelece a não vinculação político-partidária e
religiosa e, ainda, a promoção do fortalecimento das pessoas
sorologicamente positivas para o vírus HIV, independente-
mente de gênero, orientação sexual, credo, raça/cor ou etnia
e nacionalidade.
Os princípios filosóficos da RNP+ pretendem propor-
cionar às pessoas vivendo com HIV/AIDS a chance de se
encontrar, tomar atitudes ante sua condição sorológica, pre-
parar táticas mediante as quais se desenvolva o indivíduo,
combatendo o isolamento e a inércia, promovendo a troca de
informações/experiências, criando oportunidades para que
as vozes das pessoas que vivem com HIV/AIDS possam ser
ouvidas no plano municipal, estadual, nacional e internacio-
nal, sendo prioridade básica a defesa dos direitos humanos
das pessoas vivendo com HIV/AIDS.
As experiências de educação popular em saúde em
tempos de Sida/Aids oportunizam também, dialeticamente,
uma análise sobre a memória de grupos oprimidos/excluídos
pela experiência corporal de adoecimento, uma vez organiza-
dos, autonomamente forjarem uma pedagogia da esperança.
A este respeito, Socorro Freitas, ativista da RNP+ Piauí,
comenta que
A RNP+ tem o diferencial de dar a possibilidade
das pessoas aprenderem a falar por elas mesmas,
aprenderem a ir atrás, aprenderem a pensar, a me-

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
131

lhorar o seu pensamento, a melhorar o seu enten-


dimento e a partir daí essas pessoas começam a ca-
minhar sozinhas, melhora o nível de consciência.
A gente dialogar, não se coloca como vítima, pelo
contrário. Fazemos reuniões, encontros, trabalhos
nas escolas, universidades, enfim, para estudan-
tes de todos os níveis a gente vai dar palestras.
Nós estudamos, pois todos têm que aprender, pois
quando necessário sair daqui da Rede tem de se
virar, então cada um começa a fazer a sua parte.
Fazemos palestras com relação ao HIV, são depoi-
mentos, são entrevistas, enfim, tudo que tiver a
ver com a história do HIV, com o movimento. São
encontros que acontecem de outros movimentos,
movimento de mulheres, aí vai uma pessoa lá e re-
presenta, é movimento negro vai um lá e represen-
ta, é conferência de L.G.B.T. vão lá os meninos e re-
presentam. Enfim, sempre tem alguém para ouvir
e nesses momentos há sempre aprendizado, então
nesses momentos as pessoas vão se empoderan-
do, vão enriquecendo o seu saber sobre as condi-
ções de viver com HIV/AIDS. Isso é bom porque
desconstrói um monte de coisa, eles já vão poder
ter condições de aprender a viver e conviver com
pessoas de nosso cotidiano que possam passar nas
nossas vidas e que tenham HIV, daí podemos ver
o HIV de outra forma, veremos que apesar do HIV
continuamos sendo pessoas capazes de fazer tudo
sem nenhum problema.

Em linhas gerais, como podemos perceber na fala da


ativista, a RNP+ Brasil (Rede Nacional de Pessoas Vivendo
com HIV/AIDS) se propõe ao confronto com a lógica brutal de
concentração de direitos humanos fundamentais. Suas ativi-
dades se relacionam com a insurgência de ações educativas

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


132 CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS

comunitárias de combate e prevenção contra o HIV/AIDS.


Objetiva a aglutinação de pessoas soropositivas para o seu
fortalecimento em todo o território nacional, assim como o
início de uma educação política, técnica e solidária, para que
surjam mais lideranças a fim de atuarem em suas localidades
junto aos seus governos e comunidades. Espalhada por todo o
Brasil, durante esses anos, a Rede pôde fortalecer laços e de-
finir melhor o papel das PVHAs na luta por direitos humanos,
amadurecendo a participação política, assim como estabele-
cendo parcerias que visam ao fortalecimento da RNP+.
Em nossa interpretação, a experiência da RNP+Brasil,
enquanto território pedagógico para o aprendizado político de
resistência e luta por direitos humanos, este “novo movimen-
to social” (GOHN, 2007), possibilita também, dialeticamente,
uma análise sobre a possibilidade de grupos excluídos pela
experiência corporal de adoecimento, uma vez organizados,
forjarem uma consciência contestadora ao tempo em que
conferem notoriedade pública ao problema da AIDS/SIDA. Ao
se assumirem como pessoas sorologicamente positivas para
o vírus HIV, deflagram também uma educação popular em
saúde preventiva e combativa à disseminação do HIV/AIDS.
As narrativas das experiências educativas deflagradas
pelos ativistas da RNP+Brasil insistem em apontar a neces-
sidade de uma “pedagogia da esperança” (FREIRE, 2006) que
conscientize as pessoas sobre as formas de contaminação
das DST’s/Aids, objetivando evitar a contaminação de outras
pessoas e, ao mesmo tempo, refletir o estigma, e ainda, sobre
as inúmeras possibilidades destas pessoas continuarem suas
vidas profissionais e afetivas.
Sobre a necessária relação entre educação popular em
saúde, direitos humanos e HIV/AIDS no nordeste do Brasil,

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
133

chamamos a atenção para a experiência da ativista piauiense


Lysmara Amorim (2007), ao nos relatar que
Estava em casa quando a menina da Secretária de
Saúde de Esperantina/PI chega aos gritos me pe-
dindo ajuda, pois havia um homem positivo com
um corte no pé, espalhando sangue e quebrado
tudo na Praça Matriz. Era seu Antônio Alves, ele
estava completamente surtado, quando me apro-
ximei e pedi para falar, ele perguntou: “quem é
você?”, Eu me chamo Lysmara, mas pode me cha-
mar de Xuxa, brinquei. Seu Antônio depois diz que
“a vida é ingrata comigo”. Bicho a praça neste mo-
mento já estava lotada de gente que nem urubu de
longe observando a carniça, daí convido seu Antô-
nio para ir até o hospital, e enquanto agilizava um
carro, a polícia que já havia sido acionada, chega
e coloca seu Antônio na gaiola da viatura, preso.
No meio da confusão lembro que acabei por entrar
também na viatura dizendo que ia com ele. Den-
tro do carro da polícia me virei para seu Antônio e
falei que também tinha HIV, ele primeiro se assus-
tou e depois se acalmou. No hospital tempo depois
chega a mulher de seu Antônio, que diz não saber
de nada, que até já haviam se separado pois ele es-
tava sem trabalhar a seis meses, desde que chegou
com um envelope secreto, era o exame positivo de
HIV. Depois de 15 dias deste ocorrido seu Antônio
Alves morreu de ulcera estrangulada. Depois disso
a mãe e as duas filhas pequenas também fizeram
exames que deu positivo para HIV. Agora imagina
você como vai ser a vida dessa mãe paupérrima,
com essas duas meninas pequenas?

Apreendemos com o relato de Lys que quando as pesso-


as não estão educadas/conscientes a respeito do HIV/AIDS, o

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


134 CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS

observado é a proliferação desenfreada de novos casos, medo


generalizado, preconceito, segregação social, mortes e des-
respeito aos direitos humanos. Em decorrência das múltiplas
formas de transmissão, o HIV/AIDS afeta radicalmente a exis-
tência social de toda uma geração, ceifando precocemente
muitas vidas.
Articulado ao relato de Lys, temos a experiência de Wen-
del, coordenador regional da RNP+NE; o foco central do ativis-
mo desenvolvido por seu coletivo é o trabalho educativo de
conscientização sobre o viver com HIV, tendo em vista a com-
pleta desinformação desses segmentos mais pauperizados,
Seu relato é chocante:
Então, nosso objetivo é o fortalecimento de res-
postas comunitárias no interior, isso por conta da
demanda que chegava de casos de perseguição a
pessoas que viviam com HIV, pessoas que são ex-
pulsas, pessoas que tem suas casas queimadas,
como, por exemplo, um caso que me comoveu
muito, que foi de uma senhora em Santa Luzia do
Paruá, que chegou um dia de madrugada na casa
de apoio com a filha dela, as duas com a roupa no
corpo, veio de carona com o dono de uma van. O
fato é que ela inocentemente chegou ao povoado
logo após ter feito os exames na cidade de Santa
Inês e aí disse aos amigos: “Olha a minha doença
é essa doença medonha” e aí falou o nome da do-
ença, disse que era AIDS, aí o povo já todo assus-
tado porque ela só falava que era doença medonha
e disse que pegava, e aí quando ela falou o nome
da doença que era AIDS, o povo todo se juntou e
expulsou-a de casa, queimou a casa dela e o mari-
do dela ficou sumido um tempão e só depois é que
ele apareceu.

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
135

Estes relatos foram amplamente averiguados entre os


mais diversos lugares andados por nós durante a pesquisa de
campo. Em conversa com outros ativistas de outros estados,
tivemos outros relatos destas formas de preconceito e estig-
ma em relação ao HIV. Neste sentido, argumentamos que os
ativistas da RNP+ são testemunhas, produtores e produtos da
experiência do viver com HIV, e, assim o sendo, seus testemu-
nhos justificam-se em nossa investigação, pois narram uma
experiência histórica acerca de um tempo vivido, das contra-
dições de quem experimentou com esperança a perigosa tra-
vessia viver ou morrer em tempos de Sida/Aids.

Relatos de esperança em tempos de Sida/Aids no nordeste do


Brasil
Não entendo a existência humana e a necessária
luta para fazê-la melhor, sem esperança e sem so-
nho. Paulo Freire (2006)

Nosso fio-condutor de análise foi pautado na coleta


dos relatos orais acerca das experiências de educação popu-
lar em saúde em tempos de SIDA/AIDS. Metodologicamente,
isto se justifica na medida em que as entrevistas permitem
obter e desenvolver conhecimentos novos e fundamentar
análises com base no trabalho de criação de fontes inédi-
tas sobre a esperança do aprender a viver e conviver com
HIV. Nosso desejo é que, por intermédio dessa memória his-
tórico-educativa, possamos testemunhar a emergência da
educação política vivenciada pelos ativistas do movimento
social de luta contra a AIDS, especificamente a “memória so-
cialmente compartilhada”2 de formação da consciência polí-
2 Tomamos como referência, para a expressão memória socialmente comparti-

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


136 CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS

tica de ativistas da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com


HIV/AIDS (RNP+BRASIL).
Sobre esta luta por esperança em tempos de Sida/Aids
obtemos, por exemplo, o relato de experiência da ativista ma-
ranhense, residente na cidade de Bacabal, Antônia Mendes
Ramos, 55 anos de idade e cerca de 20 anos vivendo com HIV.
Diz ela o seguinte:
Na luta contra a AIDS tem a população pobre soro-
positiva que é mais vulnerável, mais carente e que
precisa de uma assistência maior, esse pé no chão
que eu vejo lá, ele não consegue o medicamento,
ele não tem um feijão pra comer em casa. Como é
que ele se aguenta em tomar a medicação se não
tá bem alimentado? ou com moradia? ou com es-
trutura social e econômica? Isso é uma coisa que
agente tem que rever e tem que criar uma política
em cima disso aí, porque uma coisa é você viver
com HIV/AIDS e não tomar nenhum medicamento
e uma coisa é você viver, com HIV/AIDS e tomar
medicamento, porque o medicamento ele é só um
complemento pra que você fique mais forte, seu
sistema imunológico suba e que você fique bem,
mais também se você não tiver o básico pra comer,
o arroz e o feijão você não vai viver só com aquele
medicamento. É mais fácil você viver com comida
do que com o medicamento, no caso do portador,
você tira mais proveito com a comida, por que na
realidade os dois se complementam, do que vale
eu tomar o remédio se eu não tenho a comida,
entendeu? E não só portador do HIV como outras
pessoas com outras patologias também se fragi-

lhada, Alessandro Portelli (1997, p. 16), ao assinalar que a memória é um proces-


so individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos
socialmente criados e compartilhados.

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
137

lizam muito com a pobreza nos interiores, como


o câncer, como a tuberculose, hanseníase, enfim,
então a gente não vê nenhuma cobertura em cima
disso pra que as pessoas tenham o acesso ao medi-
camento, mas também tenham o acesso à comida,
emprego, casas própria. Enfim tem pessoas que
você acompanha que tem vontade de chorar, não
é fácil não, meu filho...

O relato desta experiência apresenta a situação alar-


mante da população pobre soropositiva que, antes de se me-
dicar, precisa de alimentação, direito humano fundamental e
historicamente negado. Este fato demonstra a capilaridade do
movimento social de luta contra a AIDS, transcendendo o as-
pecto fenomênico da doença e em mergulho na sociabilidade
complexa e contraditória do capitalismo. Esse engajamento
político permite ampliar o debate que transponha o HIV, dis-
cutindo-se sobre o acesso à comida, à moradia, ao emprego
etc. Nesta luta pelos meios necessários à vida, Marx e Engels
(1982, p. 39), diante da precarização e pobreza econômica,
destacam o fato de que, para viver, é preciso antes de tudo co-
mer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. Den-
tre estas, algumas coisas mais necessárias ao corpo como
condições para viver, destacamos a luta em direitos humanos
por saúde e contra as doenças como o HIV/AIDS como uma
condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como
há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas
as horas, simplesmente para manter os homens vivos. (MARX e
ENGELS: 1982, p. 39). Estes são fatos históricos averiguáveis
em nossa pesquisa de campo, nas denúncias dos ativistas da
RNP+, na mídia escrita e falada, acerca da realidade da saúde
pública do Brasil.

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


138 CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS

Como se pode ver, o campo de atuação é o mais variado.


A capilaridade político-educativa do HIV em todas as instân-
cias da vida em sociedade em nosso tempo é um fato incon-
testável. Segundo os ativistas, é uma pena que o poder pú-
blico, além das campanhas midiáticas que apenas fortalecem
as estatísticas e servem de plataforma política na época das
eleições, não invista financeiramente em processos formais
e/ou não formais de educação preventiva.
Neste contexto de esperança em tempos de Sida/Aids
no nordeste do Brasil, ressaltamos ainda as narrativas da
ativista da RNP+ Natal/RN Jaqueline Brasil, presidente da
ATREVIDA (Associação de Travestis Reencontrando a Vida),
ao comentar que
Sou ativista porque estou construindo e ajudando
a construir um movimento que as pessoas se cons-
cientizem da sua sorologia, dos cuidados que se tem
tanto na prevenção, como na adesão ao tratamento,
se estou tendo esse cuidado para mim como tra-
vesti, também estou tendo para as outras pessoas,
não estou preocupada só em mim. Acredito que se
agente começar a plantar uma semente aqui, e todo
dia você vai aguando, um dia ela vai germinar. E é
isso que me faz está no ativismo, de está construin-
do, orientando. Eu trabalho muito com adolescente
de favela, aconselho é muito para eles se conscien-
tizarem. Dou palestra em colégio, indústrias. Eu
aprendi dessa forma, construo o movimento para
repassar as pessoas que não têm o mesmo acesso
que tenho. Para que tenham uma qualidade de vida
melhor, como eu tenho. É difícil você trabalhar com
o desconhecido, principalmente com o HIV/AIDS
que é uma doença mutante, que atinge teu organis-
mo, nunca sabe quando ela vai te atingir. (2008).

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
139

As experiências educativas da RNP+Brasil, mesmo li-


mitada em suas reivindicações e ações, são importante por
constituir oposição aos interesses da lógica capitalista de
mercantilização da saúde, estrutura esta que, pela retirada da
responsabilidade social do Estado na oferta de direitos huma-
nos fundamentais como educação e saúde, vem de maneira
dramática produzindo ainda mais precarização no sistema
de saúde público brasileiro e multiplicando a vulnerabilida-
de social dos segmentos menos instruídos e com baixa renda,
gerando ainda mais pobreza e desemprego.
Desta forma complementa, em entrevista sobre suas
experiências educativas, o ativista o maranhense Wendel:

Vamos frisar a questão da Educação. Dentro des-


sa questão do HIV/AIDS é um desafio pensar em
ações de prevenção para quem não sabe ler nem
escrever, a maioria dessa população se encontra no
interior, temos essa população na capital, nos cen-
tros urbanos, mas a maioria é no interior. Quando
você desce pro interior, você percebe no cotidiano
das pessoas o quanto elas são escravas desse mo-
delo de desenvolvimento capitalista de exploração
do homem pelo homem. Por conta de tudo isso às
vezes a gente até consegue juntar o povo para está
no Movimento, mas fica sempre aquela mesma de-
ficiência por quê? Porque precisamos ler, o povo
não tem o exercício de ficar sentado em uma sala
de aula. Está ali com o professor e tal, tal, tal e se
você não vem desse exercício você não vai aguen-
tar ficar meia hora em um local assistindo reunião,
por isso que as plenárias esvaziam tanto nos mo-
vimentos sociais. Nossa prática educativa foi pen-
sada dentro dessa demanda que já foi mapeado.
Então, a ideia para os próximos dois anos saindo

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


140 CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS

da proposta do III Encontro Nacional de Pessoas


Vivendo com HIV/AIDS é justamente, priorizar, ar-
ticulada aos problemas sociais a formação política.
Essa formação política se dar com uma série de ofi-
cinas subsequências em cada Estado, onde a gente
já acertou com os coordenadores de todos os nú-
cleos da RNP+, de forma que a gente tenha menor
custo possível para realizar essas oficinas. Com re-
lação ao Movimento AIDS a realidade do Nordeste/
Brasil é muito semelhante tem questões culturais
com relação ao preconceito, ao machismo, a homo-
fobia, a tudo isso, ao racismo. E aí o analfabetismo
ou semianalfabetismo, também que é fruto disso
tudo também contribui para o fortalecimento ou
para o não fortalecimento dessa resposta.

Como vemos, os ativistas da RNP+ agem como media-


dores de ações sociais coletivas em benefício do bem comum.
Esta experiência politizadora objetiva conseguir legitimar al-
gumas petições em favor dos menos favorecidos.
Os ativistas da RNP+, mediante os relatos de suas ex-
periências educativas em direitos humanos, ao mostrarem-se
conscientes da necessidade de luta social contra os antago-
nismos em tempo de AIDS, ou seja, exploração, miséria, fome,
analfabetismo, exclusão, desemprego estrutural, opressão de
todas as formas alternativas de viver, entre outras mazelas
sociais, afirmativamente tornam possível a gradativa retoma-
da de direitos humanos fundamentais.
No tocante ao trabalho de orientação sexual, a práti-
ca político-educativa da RNP+ traz bons exemplos, segundo
Fausto, da RNP+ AL:
Passamos muito tempo dando palestra pro pessoal
do Projovem, que são de escolas públicas, que tem

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
141

o projeto Projovem e sempre a gente era convida-


do. Eu prefiro trabalhar com jovens e adolescen-
tes, eles são mais abertos, lógico que no primeiro
momento eles têm a timidez mais com o tempo eu
começo a falar a linguagem deles e eles acabam
se entrosando, então acaba que no final que to-
dos participam muito. Procuro enfocar a questão
de que a relação sexual não é só a penetração em
si, então você pode sentir prazer de várias formas
sem que haja a penetração, fazendo assim uma
redução de danos, sem que haja infecção. Então
são duas coisas que são muito presentes dentro da
prevenção, que eu chamo de sexo protegido.

No que se refere especificamente às mulheres, o con-


texto é ainda mais opressor. Além de todos os fatores, agrega-
-se a opressão de gênero, o masculino sobre o feminino, um
grande tabu a ser transformado, pois o ato de uma mulher
tomar a iniciativa de exigir a camisinha é considerado uma
ofensa.
Em muitos relatos, temos o extremo de homens baten-
do em suas esposas ou as deixando por acharem que elas es-
tavam com nojo, ou, quem sabe, que haviam aprendido estas
coisas de usar camisinha sendo “sem vergonhas” com outros
homens.
De acordo com Eva da RNP+ Ceará, esta situação possui
relação com o fato de que
As pessoas adultas já têm seus valores, onde o con-
ceito de tudo já é predeterminado, principalmente
quando tem casais é importante está colocando
que fidelidade não é sinônimo de não infecção pelo
HIV. O homem e a mulher os dois têm que começar
a se abrirem e conversar sobre tudo, têm que dia-

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


142 CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS

logar sobre essa coisa do sexo, a mulher tem que


dar uma relaxada e conversar mesmo com o ma-
rido dela e dizer: “meu amigo se você for sair, de
alguma forma, tipo pular a cerca, use camisinha”
porque é muito melhor você dizer algumas frases
nesse nível, alertando, colocando a questão da in-
fecção do que você ser infectado depois.

Em especial na região Nordeste, onde o machismo é for-


te, também é forte a resistência em entender que é necessário
o uso do preservativo, de que hoje qualquer pessoa pode ser
infectada com o HIV.
Assim, pode-se dizer, com Parker (1994), que o HIV/
AIDS deve ser entendido, em todos os aspectos da saúde e da
doença, com um teor fundamentalmente coletivo – um cons-
tructo social que se molda em um contexto.
Partindo destas questões em análise, os elementos da
pedagogia da esperança em tempos de Sida/Aids no nordeste
do Brasil da RNP+Brasil contribuem de forma relevante para
a formação preventiva do adoecimento/saúde em tempos de
AIDS.

Considerações finais
Há uma esperança, não importa que nem sempre
audaz, nas esquinas das ruas, no corpo de cada
uma e de cada um de nós. Paulo Freire (2006)

Nossa esperança, nestas considerações finais que evi-


denciam a capilaridade do movimento social de luta contra a
AIDS, especialmente as experiências de educação popular em
saúde em tempos de Sida/Aids dos ativistas da Rede Nacional
de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+Brasil), é nos apro-
ximarmos de Paulo Freire, como nos relatam os ativistas, no

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
143

sentido de tomarmos como tema gerador a AIDS/SIDA como


ponto de partida para uma leitura consciente de mundo que
dialogicamente transponha o HIV, transcendendo o aspecto
fenomênico e biológico do adoecimento e em mergulho na so-
ciabilidade complexa e contraditória do capitalismo, no que
diz respeito à produção material dos meios mínimos neces-
sários à produção material da vida.
A este respeito, diz Wendel Alencar (RNP+ Maranhão)
que
Nosso trabalho não é só especificamente de educa-
ção preventiva de DST/AIDS, mas nessa conjuntu-
ra que contribui na redução da infecção, de com-
bate ao trabalho escravo, de igualdade de gênero,
entre outras coisas...

O fato é que, em detrimento da cobiça por acúmulo de


riquezas por parte da minoria da população mundial, a classe
burguesa, não é permitida a socialização da riqueza huma-
na produzida para a grande maioria da população mundial,
a classe pobre.
Constata-se, portanto, que o movimento político gera-
dor de associações como a RNP+ busca sobreviver diante do
constante ataque da lógica do capital, valendo ressaltar que,
histórica e gradativamente, a classe dominante se organiza
para conter toda e qualquer forma de movimento social que
incida em conquistas para os setores menos favorecidos da
população, reprimindo-os pela força das ameaças, violência
e/ou cooptando-os; pelo menos assim é possível observar nas
entrevistas dos ativistas.
Indiscutivelmente, como se pode ver pelos relatos, a
organização consciente de grupos não hegemônicos como
a RNP+ não é um evento que favoreça o grupo hegemonica-

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


144 CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS

mente dominante; pelo contrário, quanto mais desarticulada


e fragmentada se apresente a memória histórica dos grupos
subalternos, mais frágil e estranhada se torna diante da im-
placável desregulamentação que lhe é imposta.
Esta contradição se dá porque a exaltada sociedade
urbano-industrial, que estabeleceu a alfabetização em mas-
sa pela primeira vez no Ocidente, não eliminou com isso as
distinções entre as diferentes camadas sociais, tampouco o
próprio analfabetismo. Infelizmente, a “eficácia” não só da
escola, mas de todas as relações entre os seres humanos pare-
ce ser direcionada pela lógica produtora do lucro, o que, por-
tanto, traz em si a exclusão não só do enfermo, mas de toda e
qualquer atividade que se diferencie da dinâmica desigual e
combinada de produção, circulação e consumo de mercado-
rias, geradora de lucros.
Isto nos faz refletir profundamente também o caráter
excludente da AIDS/SIDA no contexto do capitalismo contem-
porâneo, pois, pelo menos na população pobre, analfabeta ou
pouco letrada e com sorologia positiva para o HIV, onde a ca-
pacidade produtiva em meio às adversidades biológicas e so-
ciais decorrentes do adoecimento é afetada, a sociedade, o Es-
tado, os indivíduos em geral tidos por “saudáveis”, “normais”
têm negligenciado, para esta classe produtiva com força de
trabalho debilitada ou segregada pelo estigma da sorologia
positiva para o HIV, direitos humanos fundamentais.
É preciso e possível termos esperança em revolucionar
ao mundo e a nós mesmos, o século XXI não pode ser o pro-
longamento histórico da miséria social em que estamos.

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
145

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ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


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ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


CAPÍTULO 5
EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE EM TEMPOS DE SIDA/AIDS
147

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ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO


POR DENTRO
DA EDUCAÇÃO BANCÁRIA
CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 151
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

Capítulo 6
Usos e abusos do pensamento freireano
em política de alfabetização de jovens e
adultos em contexto neoliberal
Marcia Soares de Alvarenga
Milena Bittencourt Pereira Medeiros

Introdução

N
a oportunidade da realização da Jornada Paulo
Freire, jornada esta pensada e organizada em
2015 pelos grupos de pesquisa da UNILAB e do
Mestrado em Educação – Processos Formati-
vos e Desigualdades Sociais, da Faculdade de Formação de
Professores da UERJ –, entre idas e vindas, pesquisadores e
pesquisadoras têm dado materialidade ao convênio1 inte-
rinstitucional vindo com este selar, em um só turno, tanto o
profícuo diálogo entre os grupos de pesquisa envolvidos nes-
te convênio como, também, a oportunidade de expandirmos
o horizonte do debate acadêmico nas suas interfaces com as
atividades de pesquisa e extensão.
A Jornada Paulo Freire constitui uma oportunidade
deste encontro, sobretudo quando nos perguntamos sobre a
atualidade de Paulo Freire diante de uma conjuntura que nos
convoca a ouvir e ler manifestações geradas por todos os mati-
zes ideológicos da sociedade brasileira que ganharam as ruas
1 Convênio celebrado em março de 2015 entre a UNILAB e a UERJ.

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
152 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

desde o ano de 2013. Destas manifestações, chamou atenção


a fração ideológica composta majoritariamente pelo perfil so-
cial e econômico da classe média branca exortada pela mídia
hegemônica e amparada pelos setores empresariais afinados
pelo interesse de realinhamento à política norte-americana
na região da América Latina.
Esta fração, com bandeiras consideradas conservado-
ras, defendeu e defende o fim das políticas sociais que le-
varam jovens pobres, negros e negras às salas de aula das
universidades, bem como o acesso à política de habitação po-
pular, transferência de renda, entre outras.
Foi durante uma das manifestações convocadas pela
mídia hegemônica, em março de 2015, que uma faixa com a
frase: Chega de doutrinação marxista. Basta de Paulo Freire ga-
nhou grande repercussão nacional e internacional, causando
estranhamento, principalmente, em setores da universidade,
no sentido de que as contribuições de Paulo Freire, no Bra-
sil, têm ocorrência residual e/ou fragmentada, especialmente
quando relacionadas a programas oficiais voltados para jo-
vens e adultos não alfabetizados ou com baixa escolarização
em contexto neoliberal.
No presente texto, submetemos uma análise crítica que
pretende discutir sobre os “usos” e “abusos” do pensamen-
to de Paulo Freire, tomado como referência nas orientações
teórico-metodológicas do Programa Alfabetização Solidária
(PAS), do governo de Fernando Henrique Cardoso, no período
de 1997-2002.
Abordaremos a questão da construção do consenso ope-
rando este conceito no Programa Alfabetização Solidária. Do
ponto de vista metodológico, nos apoiamos em alguns docu-
mentos publicados por estes principais programas induzidos

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 153
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

pelo governo federal que vieram a orientar os procedimentos


práticos e teóricos dos sujeitos e entidades envolvidas.
Em nossas breves conclusões, consideramos que, ao
menos discursivamente, a política de alfabetização analisa-
da parece ter buscado nas contribuições do pensamento frei-
reano a principal fonte para a construção do consenso, com
pretensões a dar legitimidade às suas orientações práticas e
político-pedagógicas.

A construção do consenso no Programa Alfabetização Solidária


(PAS): em busca da legitimidade em Paulo Freire

No início da década de 1990 a esperança por um Brasil


democrático e com ampla justiça social chocou-se com uma
barreira rapidamente erguida pelos sucessivos governos bra-
sileiros que aderiram fielmente ao ideário neoliberal.
O Programa Alfabetização Solidária emergiu de um
contexto histórico-político analisado pela literatura especia-
lizada como sendo próprio da crise do Estado de Bem-Estar.
Estas análises identificam que a diminuição do Estado se
comprovou como uma das suas mais graves consequências,
cujos principais impactos atingiram as políticas sociais sub-
metidas a intensos colapsos políticos promotores do seu de-
saparecimento em favor das medidas de ajustes econômicos
demandados pelos organismos internacionais em nome dos
países mais ricos do mundo.
No ano de lançamento do projeto-piloto, o PAS reunia
11 estados brasileiros, dos quais 9 pertenciam à região Nor-
deste e 2 eram da região Norte. Em seu primeiro módulo, este
programa envolveu 9.200 alunos, 11 empresas e 38 univer-
sidades brasileiras. No ano 2000, o PAS atingiu 350.000, em

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
154 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

1.200 municípios. O número de universidades, neste mesmo


período, era de 200 instituições de ensino superior, sendo
que a maior parte pertencia à rede privada. Em relação às
empresas parceiras, ao final de 2000 o número das que parti-
cipavam do PAS chegou a um total de 100 instituições.
O critério da escolha dos municípios priorizados para
a intervenção do PAS foi determinado tomando-se como re-
ferência o índice de desenvolvimento humano (IDH)2. Esta
referência situou o PAS como um programa que integrou as
grandes metas do Programa Comunidade Solidária (PCS),
mantendo com este uma relação umbilical que expressou
as concepções que o constituíram e as diretrizes pelas quais
pautaram as suas ações.
Cotejando o texto do decreto presidencial que deu ori-
gem ao Programa Comunidade Solidária, pode-se argumen-
tar sobre a filiação dos sentidos que sustentaram os princí-
pios do PAS. Tal como tinham sido preconizadas pelo PCS, as
prioridades do PAS encontravam-se voltadas para as regiões e
populações mais necessitadas, buscando reduzir os índices de
desigualdades e as condições subumanas do povo (1999, p. 9).
Para desenvolver sua proposta, o PAS estruturou-se
dentro de duas instâncias básicas encarregadas do processo
de articulação das suas ações. A primeira instância, o Con-
selho Comunidade de Solidariedade, era composto por mi-
nistros das áreas vinculadas aos objetivos e por represen-
tantes da sociedade civil (todos indicados pelo Presidente
da República).
A segunda instância, a Coordenação Executiva do PAS,
tinha a responsabilidade de identificar as comunidades,
2O método desenvolvido pela ONU para avaliar os níveis de desenvolvimento
humano baseia-se em três fatores: a educação, a expectativa de vida e a renda.

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 155
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

manter o encadeamento das ações, a articulação das entida-


des envolvidas e a mobilização constante dos novos parcei-
ros. É através desta segunda instância que são identificados e
selecionados, com a participação de órgãos e instituições de
pesquisa, os municípios com maior concentração de pobreza
no país.
Uma das estratégias do PAS, na época em que gozava
do status de programa oficial do governo pelas mãos de uma
organização não governamental, ou seja, o Comunidade Soli-
dária, era de trabalhar com o regime de rotatividade dos alfa-
betizadores a cada módulo de alfabetização, a fim de envolver
um grande número de novos alfabetizadores no período de
capacitação realizado pelas universidades parceiras.
Essas estratégias, entretanto, foram duramente critica-
das por muitos coordenadores das universidades, pois viam
nesta deliberação inegociável e, portanto, imposta pelos idea-
lizadores do programa, um dos pontos mais vulneráveis para
a continuidade do processo de alfabetização e de superação
do analfabetismo.
O sistema de parceria pareceu servir como eficiente
instrumento para contemporizar as desigualdades sociais e
dar impulso novo aos diferentes modos de exercício da cida-
dania entre estes grupos díspares. Através deste princípio,
parceiros empresários, grupos sociais incluídos e acadêmi-
cos compartilhavam e celebravam o exercício de sua própria
cidadania e, também, defendiam que contribuíam para que
os marginalizados pudessem exercê-la, tão logo se tornassem
alfabetizados.
O sistema de parcerias foi assumido como a forma ino-
vadora para levar a cabo uma tarefa crucial para o fortaleci-
mento da cidadania no Brasil, justificando política e social-

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
156 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

mente o empreendimento do seu propósito de “erradicar” o


analfabetismo no país.
A celebração do sistema de parceria, instrumento que
viabiliza a “cidadania solidária”, culminou com a condecora-
ção de alguns dos seus parceiros com o Selo Solidário3:
Essa foi uma maneira encontrada pelo Programa
para agradecer e premiar aqueles que assumiram
o compromisso de lutar contra o analfabetismo no
Brasil (...).

Esse selo demonstra a importância de buscarmos


nas parcerias a melhor forma para levar um proje-
to de alfabetização até os pontos mais recônditos
deste país4.

Em relação à estratégia da parceria, algumas contra pa-


lavras se manifestaram: tratava-se de uma metodologia polí-
tica que resgata práticas arcaicas de lidar com a pobreza e a
exclusão social, mantendo-as sob o domínio das ações carita-
tivas e assistenciais (LANDIN e SCALON, 2000).
Compartilho com estas autoras a preocupação em rela-
ção ao sentido atribuído a estas parcerias, considerando que
tal estratégia vem reanimar o velho modelo da “adoção”, em
que os “excluídos” são representados como massa amorfa e
sem vontade própria, dependentes da solidariedade dos gru-
pos sociais incluídos socialmente para poderem sobreviver.
Ao contrário do que proclamara o texto do decreto pre-
sidencial instituidor dos programas solidários, o sistema de
parcerias, forjado no modelo caritativo, fortaleceu a tradicio-
3 O Selo Solidário passou a ter duas versões: uma para empresas, instituições e
organizações; outra para cidadãos ( que compõem o grupo social dos incluídos).
4 “Mil dias reescrevendo o Brasil”: Relatório de três anos de atividade: Programa

Alfabetização Solidária (2000,a:32).

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 157
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

nal fórmula de facilitação do clientelismo e do populismo,


ainda em cena na política brasileira, muito embora tenha se
(re)apresentado como prática alternativa à ineficiência, frag-
mentação, descontinuidade, contenção do desperdício de re-
cursos públicos e do próprio clientelismo.
O significado desses modelos arcaicos, travestidos
como prática política democrática, ganhara funcionalidade
para os projetos neoliberais que, como discutimos, avança-
ram perversamente contra as políticas sociais nos anos 90.
Neste contexto, fértil às políticas neoliberais, foram evocados
os conceitos de solidariedade e responsabilidade social, vindo
estes a substituírem termos clássicos como assistência, cari-
dade, filantropia, doação, tutela. Embora tenham substituído
“antigos” termos, os novos conceitos funcionaram como es-
tratégia de ressignificação e reatualização de práticas e valo-
res que, ainda, permanecem vivos nas relações de poder da
sociedade brasileira.
Mesmo tendo deixado de ser o programa oficial de al-
fabetização de jovens e adultos do Governo FHC (1997-2002),
após as eleições dos presidentes Lula da Silva (2002-2010) e
Dilma Rousseff (2010-2014), o PAS continua sendo operado
por um sistema de parcerias no qual cada parceiro contribui
com recursos humanos, financeiros e técnicos, compartilhan-
do responsabilidades e atribuições. É importante destacar
que o PAS integra o campo das entidades não governamen-
tais que participam do Programa Brasil Alfabetizado, progra-
ma de alfabetização de jovens e adultos das três gestões dos
presidentes eleitos pelo Partido dos Trabalhadores.
Informando brevemente sobre o PAS, pensamos que
Apple (1998) nos ajuda a entender a preocupante apropria-
ção descontextualizada das ideias de Freire e, sobretudo, nos

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
158 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

alerta sobre os riscos que corre o pensamento deste educador


nas tentativas de incorporá-lo a um discurso oficial antagô-
nico às concepções freireanas de educação como prática da
liberdade.
A proliferação de uma “indústria de Freire” denunciada
por Apple em seu trabalho é fundamentada em duas catego-
rias básicas, ou seja, “a estratégia de conversão” baseada nos
estudos de Bourdieu e no “consentimento ativo”, presente na
reflexão gramsciana sobre a questão da hegemonia.
Sob o ponto de vista da construção do consenso nos
programas em referência, entendemos ser esclarecedor o
argumento de Gramsci para explicar como é que, através do
consenso, ou do consentimento ativo, um determinado gru-
po social pode obter a hegemonia sobre os demais grupos. A
expressão material desta hegemonia tem como expressão as
formas políticas, econômicas ou culturais. É na perspectiva
da expressão cultural que aduzimos à questão da construção
do consenso, especialmente, pelo PAS para a “aceitação” de
sua política de alfabetização.
Gramsci caracteriza o exercício da hegemonia pela
combinação da força e do consenso que, em equilíbrio variado,
faz com que a força não suplante em muito o consenso. Mas,
ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no
consenso da maioria, expresso pelos órgãos de opinião pública
– jornais e associações – os quais, por isso, em certas situações,
são artificialmente multiplicados (2000, p.95).
A partir dessa concepção gramsciana sobre a construção
do consenso, podemos fazer a distinção – política, ética e ideo-
logicamente – da pedagogia crítica radical de Freire em relação
ao PAS e que vem se constituindo na principal política de alfa-
betização no contexto contemporâneo da sociedade brasileira.

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 159
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

A construção do consenso nos parece mais acentuada no


PAS, já que, a nosso ver, foi estruturada pela e na linguagem,
seja ela veiculada pela mídia ou pela exortação à participa-
ção das universidades públicas e privadas. As primeiras por
serem consideradas parceiras “naturais” do programa dada
a sua subordinação ao poder federal, e as segundas por obte-
rem ganhos derivados (isenções fiscais ou outros benefícios)
reclamados como consequência de sua inserção na “parceria”
que mantinham junto à coordenação executiva do PAS.
O problema da construção do consenso esbarra na con-
cepção das práticas concretas, especialmente ligadas à con-
tinuidade e consolidação de uma política de alfabetização,
que inviabilizam a realização do processo de alfabetização
enquanto práxis política e de conhecimento.
Neste aspecto, a linguagem da cidadania e da democra-
cia que permeia o discurso neoliberal, a nosso ver, funciona
como astuta estratégia de convencimento em busca de um
consenso, sendo este discurso exaltado e entendido como
única possibilidade de alfabetização de jovens e adultos. Para
isto, e para atingir este grande feito, todos são convocados a
compartilhar esforços para cumprir a tarefa de “combate ao
analfabetismo”.
No cenário das políticas sociais que ornamentam a re-
tórica dos programas sociais implementados pela Comunida-
de Solidária, o PAS tem se apresentado como um destacado
exemplo que tenta “adesivar” o rótulo da pedagogia freireana
em seu pacote político-pedagógico.
Sugere, assim, acreditar que este empréstimo político-
-epistemológico seja suficiente para angariar respeitabilida-
de e isentá-lo da necessidade de submeter sua forma e con-
teúdo político-ideológicos às análises críticas dos diversos

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
160 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

setores da sociedade comprometidos com a defesa do direito


à educação de pessoas jovens e adultas.
A respeito da busca do consenso almejado, e parcial-
mente obtido pelo PAS, chama-nos atenção o documento inti-
tulado “Princípios Orientadores para a elaboração de Proposta
político-pedagógica” (1999) por trazer uma concepção que me-
lhor define a prática adotada para a construção do consenso,
tendo como suporte o apelo mítico ao pensamento de Paulo
Freire.
Muito embora seja Paulo Freire o autor mais citado nas
referências bibliográficas deste documento (oito citações),
observamos que não existe nenhuma interlocução teórico-
-prática entre os princípios sugeridos pelo documento e a pe-
dagogia crítica progressista freireana – fato este que sugere
uma completa desistoricização do autor e sua obra nas refe-
rências do documento.
Tentaremos evidenciar a desistoricização da perspec-
tiva freireana a partir de quatro questões-premissas, dentre
as sete que anunciavam os princípios políticos-pedagógicos
do PAS.
Dentre as quatro questões-premissas, a primeira delas
se referia ao caráter de urgência do atendimento à população
com pouca ou nenhuma escolaridade.
Tal caráter parece colaborar com a ideia de que o PAS não
se consagra como política de alfabetização de jovens e adultos,
mas se realiza como “campanha” de ação intensiva que visa
conter o analfabetismo em determinados locais e por um de-
terminado tempo, sem garantias de continuidade à inserção de
jovens e adultos nos processos de escolarização formal.
Desde logo, pode ser visto um primeiro desacordo en-
tre o que Paulo Freire considera ser uma política de alfabeti-

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CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 161
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

zação de jovens e adultos em oposição à ideia de campanha


de alfabetização propugnada como mobilizadora pelo PAS.
Para Freire, as políticas de alfabetização precisam es-
tar alicerçadas em uma concepção de alfabetização fundada
nas práticas sociais dos alfabetizandos como um ato cria-
dor, no exercício da compreensão crítica daquela prática,
sem ter, contudo, a ilusão de ser uma alavanca da libertação
(1982, p. 23).
Freire, inclusive, adverte que muitos casos de analfa-
betismo regressivo resultam de campanhas de alfabetização
messiânicas ou ingenuamente concebidas para áreas cuja
memória é preponderantemente oral.
Outra questão-premissa problemática a reger os princí-
pios políticos-pedagógicos do PAS deve-se à pertinência das
parcerias no financiamento da educação de jovens e adultos. A
ideia da parceria apresenta-se como alternativa de captação
de recursos que é feita junto a setores da sociedade.
Vemos, como um dos efeitos desta parceria, a destitui-
ção da alfabetização de jovens e adultos de sua posição no
domínio do direito que deve ser proclamado e realizado pelo
Estado.
Portanto, o PAS excluíra deste domínio o direito inalie-
nável de jovens e adultos à educação formal pública e gra-
tuita. O perigo desta exclusão deveu-se à falta de garantias
a respeito da consolidação e institucionalização deste direi-
to, lançando os analfabetos em um sentimento de incerteza
quanto à possibilidade de continuidade da sua alfabetização
e escolarização.
Os desdobramentos práticos e políticos destas duas
primeiras questões abordadas por nós trouxeram consequ-
ências imediatas para as demais e nos ajudaram a explicitar

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
162 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

alguns embates político-ideológicos entre o PAS e a pedagogia


crítica defendida por Freire. Assumimos o risco de apontar
alguns destes possíveis embates.
A concepção sobre a cidadania, terceira questão-premis-
sa evocada no texto do documento, argumenta que o desen-
volvimento da leitura, escrita e raciocínio lógico-matemático
contribuem à ampliação da cidadania. Por esta ótica apresen-
tada pelo documento, o acesso e exercício da cidadania estão
condicionados à aquisição das competências básicas lecto-
-escriturais e cognitivas.
O pressuposto de que saber ler e escrever permite ao
sujeito exercer a sua cidadania expõe, de certa maneira, a
preponderância da cultura escrita sobre a cultura oral, dico-
tomizando-as e associando-as, respectivamente, às ideias de
“progresso” e de “não progresso” (CERTEAU, 1994).
Enquanto o “progresso” é do tipo escriturístico, sinô-
nimo de adaptação de homens e mulheres às funções técni-
cas exigidas pela produção econômica e estando subordina-
da aos interesses da economia, o “atraso” está relacionado
às práticas da oralidade que não conduzem ao desenvolvi-
mento econômico e social. Não é por mero acaso que as po-
líticas de alfabetização, em contexto neoliberal, iniciaram
suas ações nas comunidades mais pobres do Brasil, como as
regiões do norte e nordeste, apontadas pelo PAS como terri-
tórios onde o analfabetismo é responsabilizado pelo atraso
econômico e, como consequência deste, da exclusão social
da população.
Em entrevista divulgada pela folha de São Paulo
(22/10/2000), a coordenadora executiva do PAS exortara que
o maior mérito do programa é sensibilizar comunidades rurais,
onde a cultura é basicamente oral, para a necessidade de apren-

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 163
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

der a ler e escrever. Tal afirmação tensionou a relação entre


oralidade e escrita, impondo à primeira uma relação de infe-
rioridade cultural em relação à segunda.
Em pesquisa realizada no município de Jaramataia, no
sertão alagoano, no ano de 2001, constatamos o quanto a cul-
tura oral organiza as relações societárias dos membros da sua
comunidade. As práticas cotidianas estão encharcadas pela
oralidade e se manifestam no dia a dia das pessoas.
Nesse município, por exemplo, a tradição oral está pre-
sente nas feiras dominicais, onde as mercadorias não são
identificadas pelos nomes nas tabuletas, mas apenas pelos
seus preços e, dependendo destes, após serem discutidas en-
tre os feirantes e os (as) fregueses (as), finalmente toma-se a
decisão de adquiri-las ou não; os cânticos das igrejas são re-
gidas pelas vozes dos devotos e não pelos poucos impressos a
eles distribuídos. Enfim, diversas marcas da cultural oral mo-
bilizam a vida de jovens e adultos com pouca escolarização.
Esta questão, a nosso ver, não cria impasses e tampou-
co exclui a importância ética que fundamenta o direito de
todos a terem acesso à leitura e à escrita, mas reclama pela
emergência de se tomar como centralidade os mecanismos
estruturais que produzem a exclusão socioeconômica, cujos
sentidos precisam ser explicitados pela história da produção
social da pobreza em nosso país e do analfabetismo como
uma das dimensões desta exclusão.
Contra esta visão etnocêntrica sobre as comunidades
de forte tradição oral, Freire adverte que a cultura constitui
questão central no processo de alfabetização e que, por isso
mesmo, nenhum projeto de alfabetização pode estar alheio
a esta cultura, mas ao contrário, deve dialogar com ela por
aquilo que ela apresenta de riqueza em sua diferença.

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
164 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

Isto implica dizer que, de acordo com Freire, nenhuma


ação educativa pode prescindir de uma reflexão sobre o homem
e de uma análise sobre suas condições culturais (1979, p, 61).
Neste sentido, considera que a alfabetização não pode se fazer
de cima para baixo, nem de fora para dentro, como uma doação
ou uma exposição, mas de dentro para fora pelo próprio analfa-
beto (p. 72).
Desse modo, é inequívoca a concepção política e epis-
temológica de Freire ao considerar os alfabetizandos como
sujeitos produtores de conhecimento e não como meros re-
ceptáculos de saberes legitimados pelas agências das classes
hegemônicas. Ou seja, os saberes das classes populares são
saberes construídos de sua prática, da sua relação com os ou-
tros e, portanto, expressam o seu cotidiano e a sua relação
com o mundo.
Esse processo tem no diálogo um princípio fundamen-
tal, pois o educador, ao dialogar com o educando, o faz sobre
as situações concretas, promovendo mediações sobre o con-
texto e os meios com e pelos quais o educando se reconhece e
com os quais possa se alfabetizar e realizar a práxis política e
social de transformação da realidade.
A alfabetização de jovens e adultos para Freire é conce-
bida como um ato político e um ato de conhecimento, por isso
mesmo, como um ato criador (1989, p. 19), daí sua crítica à al-
fabetização mecânica que reduz o alfabetizando à condição
de objeto da alfabetização e não de sujeito deste processo.
A compreensão crítica do ato de ler, como proposta de
alfabetização, é dotada de um movimento dinâmico em que a
leitura do mundo precede a leitura da palavra:
Este movimento do mundo à palavra e da palavra
ao mundo está sempre presente. Movimento em

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CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 165
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

que a palavra dita flui do mundo mesmo através


da leitura que dele fazemos. De alguma maneira,
porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura
da palavra não é apenas precedida pela leitura do
mundo, mas por uma certa forma de ‘escrevê-lo’
ou de ‘reescrevê-lo, quer dizer, de transformá-lo
através de nossa prática consciente (1989, p. 20).

Ao contrário desta concepção, o PAS atribuiu importân-


cia ao planejamento dos estruturantes do ensino (objetivos,
conteúdos, recursos e procedimentos, avaliação/recupera-
ção), sem que isto diminua sua necessidade didático-opera-
cional, buscando concretizar o princípio de que a aprendizagem
gera desenvolvimento (BRASIL, PAS, 1999, p. 9). Estes estrutu-
rantes compõem a quarta-premissa defendida pelo PAS.
Assim, ao que nos parece, não privilegia a alfabetização
como um ato criador, fundado no diálogo, ao mesmo tempo
em que desautoriza o conhecimento como construção coleti-
va e social, como ato de criação e recriação da realidade.
Tal silêncio desautorizador da alfabetização como ato
criador parece ser decorrente da crença de que, planejando
e controlando os descritores prévios de leitura e escrita com
o propósito de desenvolver habilidades básicas meramente
mecanicistas, se tem garantido o desenvolvimento das habi-
lidades básicas que deverão ser alcançadas pelos alfabetizan-
dos ao final dos cinco meses destinados como tempo previsto
para a alfabetização 5.
Neste sentido, entendemos que a concepção de alfabe-
tização defendida por este programa está fundamentada em

5 “Os conteúdos e as competências básicas”, descritas pelo PAS, encontram-se


relacionadas entre as páginas 17 e 21do documento “Princípios Orientadores
para a elaboração de Proposta Político-Pedagógica”(1999).

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
166 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

uma visão pragmática e funcionalista contra a qual Freire fir-


mava suas críticas e rejeições ao denunciar que este tipo de
pragmatismo neoliberal.
se funda no seguinte raciocínio, nem sempre ex-
plícito: se já não há ideologias, direita ou esquer-
da, se a globalização da economia não apenas fez
o mundo menor mas o tornou igual, a educação de
que se precisa hoje não tem nada que ver com so-
nhos, utopias, conscientização. Não tem nada que
ver com ideologias, mas com saber técnico. (...) A
educação para hoje é a que melhor adapte homens
e mulheres ao mundo tal qual está sendo. Nunca
talvez se tenha feito tanto pela despolitização da
educação quanto hoje (2000, p.95).

Esta despolitização da educação e da alfabetização, ide-


ologicamente construída pelo neoliberalismo, se antagoniza
com os princípios freireanos, pois o legado teórico-prático de
Freire em momento algum se desfilia do compromisso políti-
co e emancipador das práticas pedagógicas de alfabetização
de homens e mulheres que vivem as situações concretas de
excluídos e oprimidos nas relações sociais, econômicas e po-
líticas desiguais.
A questão da despolitização da alfabetização de jovens
e adultos no Brasil tem sido, em tempo neoliberal, cada vez
mais irrigada por práticas que negam, de maneira sistemática,
a cidadania do sujeito não alfabetizado e das classes popula-
res em seu conjunto. No período de 1997 a 2002, no Brasil, a
principal política governamental de alfabetização de jovens e
adultos, o PAS, foi sustentada por ações de filantropia, depen-
dente dos gestos da caridade individual e de empresários bem
sucedidos que vêm sendo estimulados pelo Estado brasileiro.

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 167
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

Através de doações feitas em cartão de crédito por pes-


soas físicas (quantia esta determinada pelo programa) e no
sistema de parcerias celebradas entre o Ministério da Edu-
cação e empresas privadas, o PAS vem se firmando com um
modelo de política de alfabetização que tem contribuído para
substituir o Estado na promoção das políticas educacionais,
transferindo esse seu histórico dever para a iniciativa priva-
da, baseado nas regras e orientações do modelo político-eco-
nômico neoliberal.
Em relação a essas práticas caritativas, Freire se posi-
ciona frontalmente contra elas ao dizer: não posso (...) aceitar,
impassível, a política assistencialista que anestesiando a cons-
ciência oprimida, prorroga, ‘sine die’, a necessária mudança da
sociedade (1996, p. 89).
A alfabetização enquanto ato político continua sendo
para Freire e para muitos de nós, educadores e educadoras,
um trabalho que consiste em desafiar os grupos populares para
que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda injus-
tiça que caracterizam sua situação concreta ( idem, p. 89).
Neste modelo, o sujeito não alfabetizado torna-se um
refém da desigualdade social, passando a ser objeto de pro-
priedade de uma minoria de cidadãos que têm mais acesso
aos bens culturais e de consumo e que são “sensibilizados”,
pelos meios de comunicação conservadores e pelo próprio
governo, a atenderem ao apelo caritativo desse programa.
Este modelo de alfabetização vem sendo empreendi-
do por uma contundente e inflexível ação pedagógica que,
ao invés de promover a cidadania dos que dela participam,
contraditoriamente produz a sua própria negação, pois
despotencializa o povo da sua capacidade de luta e de sua
historicidade.

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
168 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

A alfabetização, no sentido conferido pelo PAS, veio in-


formada pelas teorias da modernidade racionalista e funcio-
nalista do liberalismo burguês. Ao mesmo tempo, tem sido
marcada e reproduzida pelas concepções das elites hegemô-
nicas que condicionaram a aquisição do código escritural
como condição necessária para se ter acesso à cidadania.
Sob tal pretexto e condição, a “ideologia do analfabe-
tismo” tem se constituído em uma das consequências mais
difundidas da exclusão política, social, econômica e cultural
das classes populares trabalhadoras. A superação e crítica a
esse modelo político de alfabetização e de negação da cida-
dania dos grupos sociais subordinados encontram, no pen-
samento de Paulo Freire, uma vigorosa e inesgotável matriz
teórico-prática que (re)anima a relação alfabetização e cida-
dania como processo de inserção de homens e mulheres na
participação nos projetos que buscam a consolidação da de-
mocracia, da justiça econômico-social, em uma palavra, da
vida cidadã.
Neste sentido, o pensamento de Freire ressignifica a
concepção de uma alfabetização cidadã geradora da autono-
mia dos sujeitos históricos e sociais, ou seja, reafirmamos
que suas contribuições estão a serviço de uma alfabetização
como ato político, criador e produtor de conhecimento, con-
trário às ideias de treinamento e de adaptação às demandas
desumanizadoras exigidas pelo mercado e pela ideologia da
globalização.
Por isso mesmo, entendemos que o objetivo das polí-
ticas públicas de alfabetização de jovens e adultos deva ser
reconstruído sob a orientação de uma outra ética, uma ética
que venha a dar vigor à alfabetização como uma das possibili-
dades criadoras de um novo ethos cultural e político, motiva-

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 169
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

dor da própria vida cotidiana em suas dimensões individual


e coletiva.
Resgatar e atualizar as contribuições e o pensamento
de Paulo Freire, trazendo-os para esse cenário contemporâ-
neo, nos oferece perspectivas de rupturas em relação à ideo-
logia da globalização, (re)instaurando a voz da grande e cada
vez mais crescente massa dos excluídos.
Se acreditamos que a pedagogia freireana é fundada em
uma ética política, criadora e emancipadora, se essa ética for
capaz de contribuir para a (re)criação de uma alfabetização
cidadã assumida como processo de apoderamento da palavra
escrita, da aquisição e aprofundamento de atos culturais, so-
ciais, políticos e estéticos (re)inventando a própria cidadania,
poderemos afirmar, com alguma certeza, que a relação alfa-
betização e cidadania se tornará uma expressão indissociável
da realidade de homens e mulheres, sem a qual a vida cotidia-
na será cada vez menos possível.
Freire, ao se contrapor vigorosamente à tese da infe-
rioridade intrínseca do sujeito analfabeto, inaugura uma pe-
dagogia crítica, desmistificadora da pedagogia autoritária,
neutra e domesticadora. Uma pedagogia e uma alfabetização
críticas capazes de contribuírem para que o povo tome a his-
tória nas mãos, esteja presente nela e não simplesmente nela
ser representado (1989, p. 40).
Os “anos de chumbo” que se seguiram, principalmente
nas décadas de 60 e 70, reprimiram os movimentos sociais no
Brasil, golpeando a democracia e os segmentos progressistas
com ela comprometidos. Adiaram o projeto sonhado e que vi-
nha sendo construído por aqueles e aquelas que, embalados
por um projeto de sociedade justa e igualitária e pelas lutas
político-sociais, entendiam e se alimentavam da utopia de

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
170 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

que a educação, como práxis do ato político, era geradora da


conscientização e da transformação da sociedade.
Na trincheira educacional contra o autoritarismo e o ar-
bítrio, o pensamento político-pedagógico freireano se distin-
guiu como o mais sistemático e orgânico processo pedagógi-
co de conscientização, dimensionando-o como compromisso
histórico que gera a consciência histórica e, nela, a inserção
de homens e mulheres na ação de fazer e refazer o mundo.
Esse compromisso histórico-político exigia que o povo
excluído e oprimido tomasse posse da realidade e criasse sua
existência com o material da contradição e do conflito que a
própria realidade da vida lhe oferecia, mediada pelo processo
dialógico e dialético.
Nesta perspectiva, podemos afirmar que o projeto da
alfabetização crítica defendido por Freire, ao contrário do
PAS, não foi concebido como mero instrumento de educação
funcional composta por atividades pedagógicas simplificado-
ras do processo de aquisição da leitura e da escrita, mas como
instrumento de concretização e radicalização dos fundamen-
tos da democracia, dos direitos da cidadania e do fortaleci-
mento do poder e da cultura popular na condição histórica
de exercer a sua cidadania em função de seus interesses de
classe.
Ressaltamos que o pensamento freireano, investido
como ato político, e de conscientização, passou a marcar as
novas gerações de educadores e educadoras, instituindo um
novo estatuto e uma nova ética na relação pedagógica.
Estatuto e ética estes imbricados nas relações entre
educação e sociedade, entre saber e poder, entre opressor e
oprimido, diálogo e conflito até hoje não superados, mesmo
que nem sempre as condições objetivas da realidade brasi-

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 171
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

leira fossem favoráveis a esta pedagogia política de educação


popular de jovens e adultos.
A conscientização como processo de “reescrita” do
mundo visando a sua transformação é respondida, assim, por
Freire:
Para mim a conscientização não é propriamente o
ponto de partida do engajamento. A conscientiza-
ção é mais um produto do engajamento. Eu não me
conscientizo para lutar. Lutando, me conscientizo
(...). A conscientização é a tomada de consciência
que se aprofunda (...) gerada na práxis e a refle-
xão sobre a própria luta que iniciou o processo de
conscientização o intensifica. (1986, p.114-115).

No entanto, hoje, e não obstante a existência de uma


matriz construída, sistematizada e testada de educação com
e para as classes populares, Brandão (1987) lembra que, en-
quanto concepção de alfabetização, o método Paulo Freire
imaginou poder inverter a direção e as regras da educação
tradicional, para que os sujeitos conscientes, participantes
fossem parte do trabalho de mudarem as suas vidas e a so-
ciedade (p. 84),. Vale dizer que a concepção freireana de alfa-
betização sofreu um sistemático processo de despolitização
ou esvaziamento crítico e desistoricizado à época do governo
FHC.
Em relação a esta despolitização da alfabetização assis-
timos, perplexos, que as referências ao pensamento político-
-pedagógico freireano têm sido tomadas de empréstimo com
o objetivo de dar legitimidade ao PAS, a partir do que repre-
senta o pensamento de Freire na história da educação popu-
lar e do reconhecimento de sua envergadura epistemológica e
política na construção de uma educação libertadora.

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
172 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

Tal perplexidade se deve a um incontestável motivo: as


medidas educacionais que vêm sendo empreendidas no Bra-
sil e na América Latina, como um todo, têm sido sustentadas
e implementadas pela política econômica neoliberal que, sob
a influência dos organismos internacionais e em especial do
Banco Mundial, submetem a educação e as práticas educacio-
nais à ideologia da globalização e à lógica do mercado.
É necessário, assim, dar sentido a nossa perplexidade
alicerçada na postura inconfundível de Freire e do seu an-
tagonismo em face à ideologia neoliberal para quem esta é
fatalista e imobilizadora e que, com ares de pós-modernidade,
insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realida-
de social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar ‘quase
natural (1997, p.21).
Para concluir, tentamos dizer que nossa intenção neste
trabalho não foi inventariar/revisar o pensamento e ideias de
Paulo Freire na discussão da relação entre alfabetização e ci-
dadania dentro do PAS.
Consideramos que uma intensa e rica produção acadê-
mica sobre a vida e a obra do autor tenha e, ainda, esteja cum-
prindo esse papel ao realizar (re)leituras de suas contribui-
ções teóricas e militantes para a construção de uma educação
radicalmente comprometida com uma sociedade mais justa,
mais cidadã e mais fraterna.
Em nossa análise buscamos contextualizar um progra-
ma de alfabetização de adultos em sua interface com modelo
econômico neoliberal. Programa este (ou similar) que pode
retornar com grande força em um momento em que o gover-
no interino de Michel Temer, por via de um golpe de estado,
substitui a presidente eleita Dilma Rousseff, realizando com
velocidade e ferocidade políticas de corte neoliberal.

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 173
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

Oposto a este modelo de Estado, (re)afirmamos a práxis


freireana como um dos mais férteis instrumentos de análise
que expõe as contradições político-ideológicas do neolibera-
lismo para a alfabetização de jovens e adultos.
A construção do consenso pelo PAS, tema central deste
texto, não se esquiva de pensar o analfabetismo como produ-
ção das questões macro sociais onde este se radica. Como ar-
gumentamos, o PAS utilizou o legado de Freire como escudo
pelo qual tentou anular as críticas e resistências que pudes-
sem expor as suas disposições políticas e ideológicas funda-
das no neoliberalismo.
Outro efeito, aspirado pela construção do consenso
pelo PAS, diz respeito à naturalização da ideia de que a pas-
sagem para a cidadania só pode ser conseguida pela via da
alfabetização.
Esta ideia, baseada historicamente em pressupostos do
liberalismo-burguês, é antagônica ao pensamento freireano,
pois Freire associa à cidadania a conquista de direitos neces-
sários à vida a ser vivida com abundância material, estética
e ética . Saber ler e escrever é um dos direitos que animam
a constelação de direitos da cidadania e, junto aos demais,
animam a vida.
Entendemos que o PAS, ao ter reforçado a visão reden-
tora da alfabetização, se empenhou com maestria em não ad-
mitir que o analfabetismo não é, em si, um obstáculo ao aces-
so à cidadania, pois não pode ser vinculado, exclusivamente,
a meras práticas instrumentais.
No entanto, contrárias a esta concepção liberal, temos
aprendido com os alfabetizadores e alfabetizandos de escolas
públicas que a cidadania não é só uma ideia, mas um poder
que irriga esta ideia com a possibilidade de fecundar tudo

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
174 USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

aquilo que, em um primeiro momento, se apresenta como si-


tuação-limite.
É o poder de reivindicar escolas para seus filhos; o po-
der de lutar pelo direito de trabalhar na terra e não ser explo-
rado pelo grande latifúndio; o poder de lutar por condições de
moradia, saúde e vida dignas. E, principalmente, o poder de
escrever, contar e cantar as suas próprias histórias.
É com este poder, aparentemente impensável de existir,
que é montado o mosaico da resistência e da recusa, muitas
vezes silenciosas, a toda espécie de submissão e de construção
imposta pela violência simbólica e pela construção do consenso.

Referências bibliográficas

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& NÓVOA, A. (orgs.). Paulo Freire: política e pedagogia. Lisboa:
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______. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


CAPÍTULO 6
USOS E ABUSOS DO PENSAMENTO FREIREANO EM POLÍTICA DE ALFABETIZAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 175
EM CONTEXTO NEOLIBERAL

______. Pedagogia: diálogo e conflito. São Paulo: Cortez, 1986.


______. A importância do ato de ler: em três artigos que se com-
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Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.

MARCIA SOARES DE ALVARENGA • MILENA BITTENCOURT PEREIRA MEDEIROS


176 CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA

Capítulo 7
Formação contínua de educadores de
jovens e adultos numa perspectiva
freireana
Jacqueline Cunha da Serra Freire
Elisangela André da Silva Costa
Elcimar Simão Martins
Sinara Mota Neves de Almeida

Introdução

A
história da Educação de Jovens e Adultos (EJA)
no Brasil nos mostra que esta somente se cons-
tituiu como pauta das políticas educacionais
brasileiras a partir da década de 1940, materiali-
zando-se em ações de naturezas diversas que compreendiam
desde a instituição de fundo orçamentário e inclusão na es-
trutura administrativa do Estado até a formulação de campa-
nhas voltadas à escolarização da população jovem e adulta
pouco ou não escolarizada. Tais ações, no entanto, acabaram
por ser marcadas por aspectos como a pontualidade e a des-
continuidade política e pedagógica, traduzindo-se em movi-
mentos contraditórios de avanços e retrocessos orquestrados
por políticas de governo conduzidas por distintos projetos de
sociedade.
A partir deste contexto, os educadores e sociedade ci-
vil organizada foram decisivos para gradativas conquistas na
EJA, a exemplo do reconhecimento desta como um direito,

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA
177

positivado na Constituição Federal de 1988 e Lei de Diretrizes


e Bases da Educação Nacional nº 9394/96, além de sua inclu-
são no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educa-
ção Básica – FUNDEB (BRASIL, 2007).
Apesar de tais avanços, que garantiram matrícula e
condições de manutenção das salas de aula de EJA no con-
texto das escolas públicas brasileiras, podemos visualizar
através de nossas interlocuções com espaços de formação e
trabalho docente a existência de uma distância entre o direi-
to proclamado e o direito vivido nesta modalidade de ensino.
Tal afirmativa decorre do fato de que não é suficiente aos jo-
vens e adultos a garantia da matrícula para que seja efetiva-
do o seu direito de aprender. Fazem-se necessárias práticas
educativas que contemplem a história dos sujeitos, suas ex-
periências e saberes, além de suas expectativas em relação ao
processo formativo.
Para que se garantam tais condições, é indispensável
a presença de um corpo docente preparado para promover o
diálogo, de forma crítica e problematizadora, entre os saberes
da experiência dos estudantes e o saber cientificamente sis-
tematizado pela humanidade ao longo dos tempos. No entan-
to, se tornam evidentes no cotidiano das escolas, as lacunas
deixadas pela formação inicial dos educadores, marcada por
um caráter universalista e generalista historicamente presen-
te nos currículos dos cursos de licenciatura e que distancia
a universidade da reflexão crítica acerca da educação como
uma prática social concreta, perpassada por diferentes proje-
tos de homem e sociedade e, portanto, não neutra.
O objetivo deste texto é refletir, à luz do pensamento
freireano, sobre os desafios e possibilidades da formação
contínua de educadores de jovens e adultos na atualidade.

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
178 CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA

Para tanto, utilizamos a revisão de literatura, associada ao


relato de experiências formativas desenvolvidas no contex-
to da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universida-
de da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(­UNILAB).
Os resultados apontam para a formação contínua como
espaço de reflexão sobre a prática e também como espaço de
articulação política, que não pode distanciar-se das contribui-
ções trazidas por Freire através da educação popular, sob o ris-
co de reduzir-se a uma prática de mera instrução e alienação.

Formação continuada de professores e o diálogo com o


pensamento freireano

A formação de professores tem sido objeto de estudo de


diversos pesquisadores e abordada sob diferentes perspecti-
vas. Assim, nos parece interessante iniciar essa discussão a
partir de dois elementos presentes na ação docente e que ser-
vem como matriz para a formulação de proposições distintas
acerca do tema: a teoria e a prática.
A compreensão das relações estabelecidas entre estes
dois aspectos da profissão docente ora coloca o educador na
condição de prático, ora na condição de teórico, assim como
também surgem perspectivas que o compreendem como pes-
quisador ou intelectual crítico que realiza seu trabalho e sua
formação a partir da articulação indissociável entre esses
dois elementos.
Várias são as implicações surgidas a partir da compre-
ensão de quem seria o educador e de qual seria seu papel.
Os principais reflexos surgidos a partir dessas formulações
encontram-se expressos nas perspectivas de formação volta-

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA
179

das a esses profissionais: a perspectiva behaviorista, em que


o professor é visto como mero executor de conhecimentos,
acrítico e politicamente descontextualizado; a perspectiva da
formação personalista, que concebe o professor como indi-
víduo que se preocupa com o seu desenvolvimento pessoal,
preservando o status quo; o paradigma artesanal tradicional,
que coloca o professor na condição de artesão, semiprofissio-
nal, que baseia seu trabalho somente na própria experiência
e dentro de um contexto sociopolítico imutável e a formação
profissional orientada para a pesquisa, que tem como objeti-
vo formar o professor com habilidades ligadas ao ensino e à
pesquisa para que, assim, possa compreender de forma críti-
ca seu próprio trabalho docente (KINCHELOE, 1997).
Os paradigmas que compreendem o professor como
um consumidor acrítico de informações, deslocado da com-
preensão de coletividade e conformado com as práticas de
desigualdade social, trazem como referencial epistemológico
a compreensão da aprendizagem como reprodução de conhe-
cimentos, numa perspectiva bancária, que colabora para a re-
produção de práticas sociais de adaptação (FREIRE, 1994). No
entanto, a perspectiva de formação orientada para a pesquisa
e para a reflexão sobre o trabalho docente, situado no contex-
to social mais amplo, revelador de tensões e contradições que
emergem de visões de mundo e projetos de sociedade distin-
tos e conflitantes, é aquela que tem condições de colaborar,
através da apropriação crítica dos conhecimentos construí-
dos pela humanidade, para a transformação das práticas so-
ciais numa perspectiva de humanização e emancipação. De
acordo com Freire (1967, p. 43):
A partir das relações do homem com a realidade,
resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
180 CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA

atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinami-


zando o seu mundo. Vai dominando a realidade.
Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo
de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizan-
do os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o
jogo destas relações do homem com o mundo e do
homem com os homens, desafiado e respondendo
ao desafio, alterando, criando, que não permite a
imobilidade, a não ser em ternos de relativa pre-
ponderância, nem das sociedades nem das cultu-
ras. E, na medida em que cria, recria e decide, vão
se conformando as épocas históricas. É também
criando, recriando e decidindo que o homem deve
participar destas épocas.

Os processos de formação de professores no Brasil so-


mente passaram a considerar de maneira mais evidente a
necessidade de reconhecimento da identidade dos sujeitos
das práticas educativas com o avanço no processo de univer-
salização do acesso à educação, desencadeado na década de
1990, que trouxe para a escola a população que se encontrava
excluída desse espaço.
Novas linguagens, novas culturas, novas formas de
relacionamento com o conhecimento e novos desafios vêm,
desde este período, fazendo parte do cotidiano das institui-
ções de ensino, que precisam sistematicamente questionar
a si mesmas acerca de suas formas de organização e seus
compromissos sociais. Esses questionamentos devem levar
em conta os sujeitos da prática educativa, sua cultura, suas
histórias de vida e suas expectativas em relação à educação,
de modo que os processos formativos se constituam, de fato,
como uma prática social situada (PIMENTA, 2005). A partir
desses referenciais, os professores terão novas e reais refe-

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA
181

rências para reprogramar sua prática docente, se reconhe-


cendo como sujeitos deste processo e não apenas como re-
produtores de teorias formuladas por especialistas (ARROYO,
2007).
A reflexão crítica da prática, apontada por Freire (1996)
como possibilidade de revisão e desenvolvimento do proces-
so ensino-aprendizagem, vem sendo recorrentemente citada
como referência nos processos de formação docente. No en-
tanto, é necessário reconhecer os desafios de efetivação desta
postura, uma vez que o momento atual é marcado pelo ativis-
mo, decorrente fluidez do tempo diante do sem número de
atividades a serem desenvolvidas nas instituições de ensino,
que acaba por dificultar a vivência concreta da prática reflexi-
va, que demanda tanto tempo quanto trabalho coletivo.
A busca permanente por resultados, que marca as atu-
ais políticas educacionais orientadas para o mérito, tem pro-
movido a disseminação de práticas formativas em modelos de
pacotes com a finalidade de reproduzir técnicas ou metodolo-
gias de ensino que potencializem a capacidade de respostas
dos estudantes aos processos de avaliação em larga escala.
Tal perspectiva pressupõe a padronização e homogeneização
de estímulos e respostas, sem considerar as subjetividades
dos estudantes, numa atitude de valorização quase que ex-
clusiva da dimensão técnica, em detrimento das dimensões
política, ética e estética da educação (RIOS, 2008).
Aderir a esta perspectiva de formação, no contexto na-
cional, significa negar todas as lutas realizadas pela popu-
lação para que a diversidade fosse considerada como uma
importante referência nos documentos que norteiam a edu-
cação no Brasil. Significa, no mínimo, negar a diferença de
ritmos de aprendizagem, de modos de pensar e organizar o

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
182 CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA

pensamento, das maneiras de ser e estar no mundo. Nesse


sentido, o pensamento freireano torna-se cada vez mais atu-
al, pois sustenta a defesa da necessidade de que a definição
dos conteúdos curriculares a serem trabalhados nos proces-
sos formativos possam nascer do diálogo com as condições
reais de existência dos sujeitos das práticas educativas e de
todas as vivências e lutas que os tornam ao mesmo tempo
singulares e plurais (FREIRE, 1994).
A formação dos educadores de jovens e adultos precisa,
portanto, retomar o legado deixado por Paulo Freire para a
EJA a partir da educação popular e que foram sintetizados por
Arroyo (2005), como apresenta o quadro 1.

Quadro 1 – Legado de Paulo Freire e da Educação Popular


para a EJA
Traços Ideias
A atualidade “A educação popular, a EJA e os princípios e as concepções
do legado da que as inspiraram na década de sessenta continuam tão atu-
EJA ais em tempos de exclusão, miséria, desemprego, luta pela
terra, pelo teto, pelo trabalho, pela vida. Tão atuais que não
perderam sua radicalidade, porque a realidade vivida pelos
jovens e adultos populares continua radicalmente exclu-
dente” (p. 223).
Olhar pri- A EJA nomeia os jovens e adultos pela sua realidade social:
meiro para oprimidos, pobres, sem terra, sem teto, sem horizonte. Pode
os educan- ser um retrocesso encobrir essa realidade brutal sob nomes
dos, para sua mais nossos, de nosso discurso como escolares, como pes-
condição hu- quisadores ou formuladores de políticas: repetentes, defasa-
mana dos, aceleráveis, analfabetos, candidatos à suplência, discri-
minados, empregáveis [...]. Esses nomes escolares deixam
de fora dimensões de sua condição humana que são funda-
mentais para as experiências de educação. Podemos mudar
os nomes, mas sua condição humana, suas possibilidades
de desenvolvimento humano, entretanto, continuaram as
mesmas ou piores. Não aumentou apenas o número de anal-
fabetos, mas de excluídos (p. 223).

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA
183

Reencontro Chegamos a mais um traço das experiências populares


com as con- de EJA: ter estado na fronteira do reencontro com as con-
cepções hu- cepções humanistas de educação. Ter o ser humano e sua
manistas de humanização como problema pedagógico. Não reduzir as
educação questões educativas a conteúdos mínimos, cargas horárias
mínimas, níveis, etapas, regimentos, exames, avanços pro-
gressivos, verificação de rendimentos, competências, pros-
seguimentos de estudos etc... Institucionalizar a EJA nesses
estreitos horizontes será pagar o preço de secundarizar os
avanços na concepção de educação acumulados nas últimas
décadas (224-225).
Aproximar- A nova LDB abre outras perspectivas, incorpora uma con-
-se do campo cepção de formação mais alargada, acontecendo na plura-
dos direitos lidade de vivências humanas. Essa visão acompanhou as
experiências de EJA. A defesa dos saberes, conhecimentos
e da cultura popular é sua marca e não apenas para serem
aproveitados como material bruto para os currículos e os sa-
beres escolares refinados. Há algo de mais profundo nessa
percepção e valorização dos saberes e da cultura popular.
Trata-se de incorporar uma das matrizes mais perenes da
formação humana, da construção e apreensão da cultura e
do conhecimento: reconhecer a pluralidade de tempos, es-
paços e relações, onde nos constituímos humanos, sociais,
cognitivos, culturais [...] Reconhecer a cultura como matriz
da educação (p.228).
A educação Esse traço poderia englobar todos os comentados e outros
como direito mais: não podemos esquecer que as experiências mais ra-
humano dicais de EJA nascem, alimentam-se e incentivam movi-
mentos sociais ou sujeitos coletivos constituindo-se como
sujeitos de direitos. Nesses movimentos se descobrem anal-
fabetos, sem escolarização, sem o domínio dos saberes esco-
lares, sem diploma, porém, não só, nem principalmente. Se
descobrem excluídos da totalidade de direitos que são con-
quistas da condição humana. Excluídos dos direitos huma-
nos mais básicos, onde se jogam as dimensões mais básicas
da vida e da sobrevivência (p.229).
Fonte: Construído a partir de Arroyo (2005).

Considerados os traços da educação popular presentes


na educação de jovens e adultos e reconhecendo sua atuali-

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
184 CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA

dade, se faz necessário o exercício de tomá-los como referên-


cias para a elaboração de propostas de formação, tanto inicial
como contínua, dos educadores de jovens e adultos.
Partindo da compreensão de que “as experiências não
se transplantam, se reinventam” (FREIRE, 1978, p. 12), apre-
sentaremos, a seguir, o relato de dois processos de formação
contínua para educadores de jovens e adultos realizadas no
contexto do estado do Ceará pela UFC e pela UNILAB, pau-
tados nas ideias de Freire, buscando extrair dos mesmos re-
ferências que possam colaborar com o desenvolvimento de
novas práticas formativas.

Relatos de experiências de formação contínua de educadores


de jovens e adultos numa perspectiva freireana

Os desafios enfrentados pelos jovens e adultos pouco


ou não escolarizados, traduzidos em experiências diversas de
exclusão, se constituíram como elemento comum aos proje-
tos de formação contínua desenvolvidos pela UFC e pela UNI-
LAB. A perspectiva política e epistemológica das experiências
desenvolvidas por Freire ao longo de sua trajetória conduziu
os processos de elaboração das propostas de tais formações.
Apresentaremos, através dos relatos, reflexões, à luz do
pensamento freireano, sobre os desafios e possibilidades da for-
mação contínua de educadores de jovens e adultos na a­ tualidade.

Formação contínua: “A Educação de Jovens e Adultos e o direito


à educação”

A formação contínua “A Educação de Jovens e Adultos


e o direito à educação” vinculou-se ao Programa de Pós-Gra-

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA
185

duação em Educação Brasileira da Universidade Federal do


Ceará, na linha de pesquisa Educação Popular, Movimentos
Sociais e Escola.
A elaboração do citado projeto foi motivada pela rela-
ção que tínhamos com o município de Horizonte/Ceará, que
enfrentava no período de realização de nosso doutoramento
uma crise que se relacionava à negação do direito à educação
aos jovens e adultos pouco ou não escolarizados, traduzidos
na queda acentuada do número de matrículas. Os educadores
e gestores escolares comprometidos com a EJA nos procura-
ram para ajudá-los no processo de fortalecimento desta mo-
dalidade de ensino no município. Foi formulada a proposta
de uma pesquisa-ação, materializada através de processos de
formação contínua, numa parceria estabelecida entre UFC e
Prefeitura Municipal de Horizonte; e de articulação política,
através de parceria destas com o Fórum EJA – Ceará.
A prática de refletir a prática, apontada por Freire
(1996) como a única forma de pensar certo, nos conduziu a
perspectivas de formação que colocam o professor na condi-
ção de um profissional capaz de problematizar e transformar
a própria prática e a realidade na qual se insere. Para tanto,
nos apoiamos em alguns referenciais que compreendem:

• O professor como pessoa (NÓVOA, 1995), valorizan-


do as referências pessoais e profissionais como ele-
mentos indispensáveis para a percepção da visão de
mundo e valores dos mesmos diante das diferentes
questões abordadas nos encontros;
• O professor como pesquisador (ELLIOT, 1990 e STE-
NHOUSE, 1987), compreendendo a escola como
campo que possibilita a construção do conhecimen-

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
186 CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA

to acerca da docência, enquanto prática social, opor-


tunizando o desenvolvimento da autonomia profis-
sional em relação ao desenvolvimento do currículo,
compreendido como práxis;
• O professor como profissional (IMBERNÓN, 2009)
que precisa preparar-se constantemente para lidar
de forma crítica e reflexiva com a mudança e a incer-
teza presentes no contexto da contemporaneidade;
• O professor como profissional reflexivo (SCHON,
1992), que toma sua própria prática como elemento
de relevante importância no quadro de desenvolvi-
mento da docência.

Os diferentes aspectos relacionados à identidade dos


docentes foram perpassados pela dimensão política que,
transversalmente, necessita estar contemplada em todos os
referenciais apresentados, de modo que cada um dos profis-
sionais envolvidos refletisse não só sobre questões individu-
ais, mas sobre questões de natureza coletiva que os vinculam
politicamente a uma categoria profissional. A dialética entre
estes diferentes aspectos dialoga com o pensamento de Freire
(2001, p. 10) quando afirma que:
Não é possível entender-me apenas como classe,
ou como raça ou como sexo, mas, por outro lado,
minha posição de classe, a cor de minha pele e
o sexo com que cheguei ao mundo não pode ser
esquecida na análise do que faço, do que penso,
do que digo. Como não pode ser esquecida a ex-
periência social de que participo minha formação,
minhas crenças, minha cultura, minha opção polí-
tica, minha esperança.

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA
187

A partir do diálogo entre os referencias de formação de


professores utilizados com a perspectiva de inteireza de cada
sujeito abordada por Freire, compreendemos que para que o
professor possa respeitar e considerar as identidades dos su-
jeitos da EJA é importante que experimente tal experiência,
também, em seus espaços de formação.
A definição dos conteúdos pautou-se no objetivo geral
da formação, a saber: compreender a dinâmica de afirmação
e negação da educação de jovens e adultos como um direito. A
partir dos diálogos estabelecidos com o grupo de educadores,
foi sendo gradativamente definida a agenda dos encontros de
reflexão sobre a prática, que contemplou temáticas relacio-
nadas ao tema, como: a história da EJA no Brasil, dimensão
política e cultural da EJA; o trabalho e sua centralidade no
processo educativo do jovem e do adulto; a reflexão sobre a
prática como estratégia de autoconhecimento e autoforma-
ção docente; o trabalho coletivo em uma escola reflexiva; ava-
liação e rearticulação de conceitos e ações (COSTA, 2014).
O processo de colaboração entre os formadores e pro-
fessores, alimentado pela postura dialógica proposta por
Freire (1994), tomou a realidade, os conhecimentos, os de-
safios vividos, os valores construídos ao longo da existência
e os pontos de vista dos professores acerca do exercício da
sua profissão como ponto de referência para a construção de
novos conhecimentos sobre a docência. Tal movimento pres-
supõe a relação indissociável entre teoria e prática apontada
por Freire (1978) quando nos diz que, ao realizar a reflexão
crítica sobre a prática e sobre finalidades que a motivam,
aprendemos a organizar os nossos achados, superando a
mera expressão de opinião sobre os fatos, em direção à rigo-
rosa explicação dos mesmos.

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
188 CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA

Acessar os saberes da experiência e promover o diálo-


go dos mesmos com as teorias produzidas sobre a educação,
num movimento de ampliação da visão de mundo e ressigi-
nificação das citadas teorias, não é tarefa fácil. Assim, meto-
dologicamente propusemos aos professores em formação as
ações sintetizadas no quadro 2.

Quadro 2 – Ações metodológicas da formação continuada


Ações Detalhamentos

Com o objetivo de fortalecer a identidade individual e


coletiva do grupo, numa perspectiva de humanização
Dinâmicas de
das relações e de autoconhecimento, tomando como re-
grupo
ferência a educação biocêntrica proposta por Cavalcante
e Gois (1999);

Realizadas através de atividades apreciação de produ-


ções artístico – culturais, como músicas, poesias, ima-
Vivências in-
gens, trechos de vídeos, entre outras estratégias que
trodutórias das
permitissem colocar em pauta elementos pertinentes às
temáticas
visões de mundo e valores dos educadores em relação às
temáticas

Estudos teóri- Estudo de referenciais teóricos através de textos, entre-


cos vistas, relatos de experiências, pesquisas e vídeos.

A partir dos referenciais utilizados, os professores eram


convidados e socializar experiências vividas nos con-
textos de atuação profissional. A partir dos registros dos
Problematiza-
relatos, os mesmos eram problematizados, de modo que
ção das práticas
o grupo pudesse identificar a favor de que e a favor de
quem tais práticas eram desenvolvidas e, ainda, para que
horizonte as mesmas apontam.

Registros de Neste momento, os educadores apontavam o que conse-


aprendizagens guiam aprender com os colegas e com as leituras e re-
e encaminha- flexões sobre a prática, apontando coletivamente enca-
mentos minhamentos a serem realizados no espaço de formação.
Fonte: construído a partir de Costa (2014).

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SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA
189

A dinâmica dos encontros, como é possível visualizar,


partia da pessoa do professor, integrando-a a um coletivo de
trabalho e à modalidade de ensino, na perspectiva do profes-
sor como profissional e intelectual crítico. A intenção deste
movimento consistia na necessidade de percepção das sin-
gularidades de cada um dos sujeitos envolvidos, ressaltando
a possibilidade de convivência entre as diferenças e a riqueza
que esta diversidade traz para o contexto de trabalho, nas di-
mensões política, ética, estética e técnica.
De acordo com Santos (2003, p. 56):
[...] temos o direito a ser iguais quando a nossa dife-
rença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferen-
tes quando a nossa igualdade nos descaracteriza.
Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça
as diferenças e de uma diferença que não produza,
alimente ou reproduza as desigualdades.

As atitudes de reconhecer e valorizar a diversidade do


grupo se constitui, portanto, como ponte para que se reco-
nheça e valorize também a diversidade presente nas salas de
educação de jovens e adultos enquanto reflexo da diversida-
de presente nos contextos sociais mais abrangentes.
O movimento da formação contínua que ora relatamos
nos trouxe importantes lições sobre a relação dialética que se
tece entre indivíduo e coletivo; o pensar o agir; igualdades e
diferenças para a reflexão sobre os processos educativos que
alimentem os movimentos de mobilização em defesa de uma
educação mais comprometida com a humanização e a eman-
cipação dos sujeitos, como defendeu Freire ao longo de seu
trajeto como intelectual, homem e cidadão.

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
190 CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA

Curso de Atualização em Educação de Jovens e Adultos e


Diversidade(s)

O Curso de Atualização em Educação de Jovens e Adul-


tos e Diversidade(s) foi uma ação desenvolvida no contexto
do projeto de extensão Circuito Intercultural de Vivências em
EJA (CIVEJA), promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas
Educação e Cooperação Sul-Sul (ELOSS), vinculado à UNILAB.
Para contribuir com o alcance dos compromissos as-
sumidos pela UNILAB de colaborar com o desenvolvimento
loco-regional do contexto em que está situada, através da ar-
ticulação entre ensino – pesquisa – extensão, o grupo ELOSS
buscou realizar um movimento de articulação entre parcei-
ros locais, nacionais e internacionais para promover a cons-
trução de um projeto voltado para o fortalecimento da EJA,
que se constitui como possibilidade concreta de aumento dos
níveis de escolaridade da população e materialização de pro-
cessos de inclusão social. A articulação destes diferentes su-
jeitos traduz a intenção primeira da proposta em promover o
intercâmbio de múltiplos olhares e vivências (UNILAB, 2014).
A perspectiva da cooperação e da integração que mar-
cam a identidade institucional da UNILAB dialoga com a
visão freireana que se sustenta na compreensão de que no
processo de colaboração nenhum dos sujeitos parte do zero,
trazendo consigo experiências que anunciam possibilidades
e limites das ações em pauta; que todos são sujeitos do pro-
cesso de decisão dos caminhos a tomar; da ajuda mútua e
do esforço em conhecer a realidade para transformá-la. Para
Freire (1978, p. 11) “Somente numa tal prática, em que os que
ajudam e os que são ajudados se ajudam simultaneamente,

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SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA
191

é que o ato de ajudar não se distorce em dominação do que


ajuda sobre quem é ajudado”.
Fizeram parte do processo de construção do projeto:
unidades acadêmicas e de gestão da Unilab, Cátedra Unes-
co de Educação e Inovação para a Cooperação Solidária da
Unilab, as Secretarias Municipais de Educação do Maciço do
Baturité, Coordenadoria Regional de Educação do Maciço do
Baturité (Crede-8) da Secretaria Estadual de Educação do Ce-
ará (SEDUC/CE), Fórum de Educação de Jovens e Adultos do
Ceará (Fórum EJA/CE), aliado a parceiros nacionais e interna-
cionais (UNILAB, 2014).
Em conjunto, os parceiros materializaram o processo
de planejamento do curso de atualização com a definição do
total de vagas e da carga horária da formação; metodologia
a ser utilizada e sistemática de acompanhamento; locais de
realização dos encontros e compromissos de cada parceiro.
As temáticas definidas para o curso de atualização le-
varam em consideração estes múltiplos olhares, que traziam
tanto demandas locais como elementos presentes nas discus-
sões nacionais e internacionais sobre a EJA, conforme apre-
senta o quadro 3.

Quadro 3 – Temáticas do curso de atualização em EJA e


Diversidade (s)
CIVEJA EMENTA
CIVEJA 1: Marcos Estra-
EJA e Políticas Públicas. Marco de Ação de Be-
tégicos da Educação delém. Incidência de Políticas Públicas de EJA.
Jovens e Adultos (EJA)Educação de Jovens e Adultos, Movimentos So-
ciais e Participação.
CIVEJA 2: Educação ao Educação ao longo da vida: trabalho, formação e
longo da vida autonomia de jovens e adultos. EJA e o Mundo
do Trabalho. Cultura, Educação, Identidade(s) na
constituição dos sujeitos.

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SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
192 CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA

CIVEJA 3: Cultura, Cur- Currículo, Cultura e Diversidade(s). EJA e sujei-


rículo e Diversidade(s) tos educativos em formação. Juventude(s), cul-
na EJA tura(s), identidade(s). EJA e Diversidade Étnico-
-racial. EJA e Gênero. EJA e religiosidade.
CIVEJA 4: EJA: conheci- EJA, Múltiplas Linguagens e Interculturalidade.
mentos e múltiplas lin- Alfabetização e Letramento na EJA. Matemáti-
guagens ca na EJA: conhecimento e práticas educativas.
Arte, cultura e corporeidade na EJA. Ciências
na EJA: natureza e sociedade em foco. Ciências
Humanas na EJA: sociedade, cultura e educação.
CIVEJA 5: EJA: cidada- EJA, Educação Inclusiva e cidadania. Planeja-
nia, saberes e práticas mento e Avaliação da Aprendizagem. EJA e Di-
educativas versidade(s) africanas e afro-brasileiras.
Fonte: UNILAB (2014).

Para dinamizar a abordagem de cada conjunto de temá-


ticas foram definidas metodologias pautadas na abordagem
freireana, constando de:

a) Palestras – mediadas por docentes-pesquisadores/as


com produção e experiência na área correlata;
b) Círculos de Diálogos Temáticos – visando o aprofun-
damento teórico-metodológico, interações, troca de
experiências entre os municípios, mediada pela te-
mática das palestras e leituras;
c) Cirandas da Diversidade – com vivências intercul-
turais, lúdicas e de reflexão sobre as temáticas do
­CIVEJA;
d) Momentos Lúdicos – com atividades de relaxamento,
animação e integração.

A diversidade de atividades permitiu a expressão de


múltiplas linguagens e saberes. Dramatizações, danças, poe-
sias, vivências, leituras e diálogos promoveram a integração

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SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA
193

dos sujeitos na leitura crítica da realidade, articulando de ma-


neira permanente a reflexão e a ação.
A articulação entre ensino-pesquisa-extensão foi con-
cretizada pelas ações de formação, de pesquisa e expressão
dos resultados realizada de forma colaborativa entre a equipe
coordenadora da ação e os professores cursistas participantes.
Foram realizados movimentos investigativos e registros foto-
gráficos nos municípios a partir de 03 eixos: História e memó-
ria da EJA nos municípios e nos CEJA; Experiências recentes e
atuais de EJA nos municípios e nos CEJA e, por fim, Experiên-
cias de EJA em contextos interculturais e diversidade(s).
Os produtos gerados foram encaminhados para a coor-
denação do CIVEJA junto com documentos de autorização e
uso de sons e imagens, para serem tratados e posteriormente
postados no portal ECOSS, junto a outros registros já realiza-
dos pela equipe nas missões enviadas a países africanos.
A experiência formativa relatada constituiu-se como pos-
sibilidade de consolidar a formação contínua de professores
como um espaço de reflexão e de fortalecimento da profissiona-
lidade docente, definida por Sacristán (1995, p. 64) como “con-
junto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes
e valores que constituem a especificidade de ser professor”.

Considerações finais

Ao longo deste relato, buscamos refletir, à luz do pensa-


mento freireano, sobre os desafios e possibilidades da forma-
ção contínua de educadores de jovens e adultos na atualidade.
Nosso ponto de partida foi o reconhecimento da luta
histórica para que a Educação de Jovens e Adultos fosse re-
conhecida em cenário nacional como um direito, sem deixar

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA • ELCIMAR SIMÃO MARTINS •
SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
194 CAPÍTULO 7
FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA

de considerar, no entanto, a distância existente entre o direito


proclamado e o direito vivido. Tal distância nos remete a inú-
meras limitações existentes no contexto das políticas educa-
cionais, dentre as quais destacamos as lacunas presentes no
processo de formação de professores, decorrentes de para-
digmas de formação hegemonicamente presentes na história
da educação brasileira, que se constituem como elementos de
desprofissionalização docente.
A partir da identificação desta situação-limite, a forma-
ção contínua, como espaço de reflexão crítica sobre o exer-
cício da profissão, é apontada como oportunidade de cons-
trução de processos formativos que dialoguem com uma
concepção ampla de Educação e de EJA.
As experiências formativas desenvolvidas no contexto
da UFC e da UNILAB nos apresentam o pensamento freire-
ano como referencial epistemológico que contribuiu para a
compreensão da formação como espaço de reflexão sobre a
prática, como espaço de articulação política, de humanização
e de emancipação.
Desse modo, entendemos que a formação do educador
de jovens e adultos não pode distanciar-se das contribuições
trazidas por Freire através da educação popular, sob o risco de
serem reduzidas a uma prática de mera instrução e alienação.

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FORMAÇÃO CONTÍNUA DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS NUMA PERSPECTIVA FREIREANA
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SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA
CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 197
FREIRIANA

Capítulo 8
Gestão por resultados na educação básica:
contrapontos à educação para a liberdade
freiriana
Jeannette Filomeno Pouchain Ramos
Virna do Carmo Camarão
Anderson Gonçalves Costa

Introdução

O
modelo gerencialista de educação se tornou uma
tendência que, desde os anos 1990, dita os rumos
dos sistemas educacionais no Brasil, adotando
como meta a melhoria dos indicadores educacio-
nais. A ideia basilar deste debate questiona se o modelo de ges-
tão por resultados na educação vem constituindo um sistema
de aprendizagem nos moldes da educação bancária. A partir
da análise e resultados da pesquisa “GESTÃO POR RESULTADO
NA EDUCAÇÃO: a responsabilização e o regime de colaboração
na promoção do direito à educação no Ceará (1995-2010) 1“, nos
propomos a investigar como esse processo vem se construin-
do. Para tanto, nos referenciamos nas contribuições teórico-
-conceituais de educação emancipadora em Paulo Freire.
A gestão por resultados (GPR) na educação básica ce-
arense mediante o regime de colaboração e os mecanismos
1Financiada pelo CNPq (Edital Universal 14/2013), desenvolvida pelos Grupos
de Pesquisa Educação, Cultura Escolar e Sociedade – EDUCAS/UECE e Educa-
ção, Cultura e Subjetividade – UNILAB.

JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • VIRNA DO CARMO CAMARÃO • ANDERSON GONÇALVES COSTA
CAPÍTULO 8
198 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

de responsabilização (accountability) compreende sucessi-


vos governos, desde a década 90. Entretanto, detectamos um
“divisor de águas” na condução política de um processo até
então em transição para um processo em vias de consolida-
ção, com o Programa Alfabetização na Idade Certa – PAIC, que
foi criado tomando como exemplo a experiência exitosa em
Sobral (INEP, 2005) e a resposta aos desafios impostos pelo
diagnóstico2 do Comitê Cearense para a Eliminação do Anal-
fabetismo Escolar (2004).
O pacto em prol da erradicação do analfabetismo e da
aprendizagem na idade certa tem sido apresentado como fer-
ramenta que inovou na relação entre o governo do estado e os
municípios e despontou com um novo modelo de gestão que
integra e articula as dimensões da gestão, da aprendizagem e
da avaliação na melhoria dos resultados educacionais.
Em 2007, o governador Cid Gomes implementou o
PAIC como política pública estadual em colaboração com as
gestões municipais, com a missão de reverter um cenário his-
tórico de péssimos indicadores educacionais. Com o sucesso
dos resultados alcançados em 2011, o governo estadual do
Ceará amplia o programa até o 5º ano com a criação do PAIC
MAIS. A melhoria dos indicadores educacionais no Ceará, re-

2 O diagnóstico apontou para uma série de fatores que eram extremamente


preocupantes, a citar: que apenas 40% das crianças avaliadas estavam alfabe-
tizadas; as universidades não possuíam formação adequada para os professo-
res alfabetizadores; os profissionais não detinham metodologia correta para
alfabetizar. A constituição do comitê decorreu do pacto firmado entre diversas
entidades, dentre elas a Associação dos Municípios e Prefeitos do Estado do
Ceara – APRECE e a União dos Dirigentes Municipais de Educação do Ceará –
UNDIME-CE, a Assembleia Legislativa. Do diagnóstico, surgiu, em 2005 e 2006,
o projeto-piloto que contou com parceria financeira e técnica do Fundo das
Nações Unidas para a Infância – UNICEF, envolvendo 56 municípios do Estado
(SEDUC, 2012).

JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • VIRNA DO CARMO CAMARÃO • ANDERSON GONÇALVES COSTA
CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 199
FREIRIANA

sultante da eficácia do programa, desperta no governo federal


o interesse em federalizá-lo, iniciativa que, de fato, ocorre em
2013, constituindo o Pacto Nacional de Alfabetização na Ida-
de Certa – PNAIC.
Nos bastidores da mise-en-scène da qualidade da edu-
cação, em que o PAIC não só protagoniza como dirige o espe-
táculo, a pesquisa desvela um conjunto de fenômenos nada
desconhecidos, ou mesmo deslocados de um contexto mun-
dial, no qual experiências de gestão de resultados na edu-
cação em outros países como EUA (RAVITCH, 2011), França
(LAVAL, 2004) e China (ZHAU, 2014) já apontavam para o fra-
casso na aprendizagem. Para os reformadores,
É uma verdadeira industrialização da formação
que se instala, cujos efeitos tanto nos alunos (au-
mento do estresse) como nas finalidades da edu-
cação (produtos e exercícios diretamente assimilá-
veis, padronizáveis, normalizáveis, reprodutíveis)
não devem ser submetidos (LAVAL, 2004, p 125).

Paralelamente a este cenário mundial, no caso em tela


do PAIC, selecionamos dois fenômenos para, a partir deles,
desenvolver contrapontos referenciados pela compreensão
freireana de educação. São eles: 1) a desqualificação de um
contexto social, político e cultural no processo de aprendi-
zagem; 2) a formação docente pautada em orientações pro-
gramáticas e instrutivas. Essas realidades apreendidas no
âmbito da pesquisa vão de encontro em seus princípios e
fundamentos ao que Freire denomina de “Educação para a
liberdade” em detrimento da “Educação bancária”, que mais
adiante buscaremos problematizar.
O estudo de natureza exploratória, quanti-qualitativa,
utiliza como procedimentos técnico-metodológicos estudos

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CAPÍTULO 8
200 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

bibliográficos, análise documental e sete entrevistas do tipo


semiestruturada com gestores educacionais e está subdividi-
do em três momentos. No primeiro momento, discorreremos
acerca da conjuntura socioeconômica, no mundo e no Brasil,
que deu viabilidade à tendência gerencialista na educação
e, mais detidamente, o modelo de Gestão por Resultados; na
sequência, situaremos este debate na instância das políticas
educacionais do Ceará no período de 1990 a 2014, que con-
templa sua fase embrionária e de consolidação, com destaque
para o PAIC e, por último, teceremos os contrapontos sob o
prisma dos fenômenos detectados e orientando-nos pelas ca-
tegorias de autonomia, educação para a liberdade e bancária
em Paulo Freire, formação e prática docente, na perspectiva
de trazer à luz uma visão crítico-reflexiva sob o cenário edu-
cacional que se desenha.

A gestão por resultados na educação

Diante do cenário reincidente de crise econômica no


hemisfério norte, novas reformas foram pactuadas entre go-
vernos, organismos internacionais e o mercado, apontando a
gestão como eixo determinante para a reinvenção do Estado
numa nova forma de relação entre este, o mercado e a socie-
dade. São redefinidas as funções, o tamanho, as atribuições e
as relações sob o jugo do consenso mundial em torno da des-
centralização, da transparência, do controle do Estado e, nes-
te, da prestação de contas dos serviços prestados à sociedade.
Neste novo cenário, o Estado adquire o papel avaliador,
facilitando o controle social direto, a prestação de contas e o
exercício da democracia ao delegar à sociedade a organização
formal em conselhos, sindicatos, associações etc. Este novo

JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • VIRNA DO CARMO CAMARÃO • ANDERSON GONÇALVES COSTA
CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 201
FREIRIANA

papel tem, dentre os objetivos, o controle desde comporta-


mentos individuais quanto das organizações públicas, ou a
substituição destas na prestação de serviços, cuja prerrogati-
va era do Estado, responsabilizando-os pelos resultados.
Dentre os mecanismos que possibilitaram maior par-
ticipação das pessoas na gestão pública está o accountability.
Este estabelece resultados desejados a partir dos objetivos
de governo, prescreve o monitoramento e a avaliação do de-
sempenho da organização ou da política pública, que retroali-
menta o sistema com proposições de cunho corretivo.
Para Afonso (2012, p. 28),
O significado do vocábulo accountability indica
frequentemente uma forma hierárquico-burocrá-
tica ou tecnocrática e gerencialista de prestação
de contas que, pelo menos implicitamente, con-
tém e dá ênfase a consequências ou imputações
negativas e estigmatizantes, as quais, não raras
vezes, consubstanciam formas autoritárias de res-
ponsabilização das instituições, organizações e
­indivíduos.

Esta se sustenta, portanto, mediante a tríade avalia-


ção, prestação de contas e responsabilização, que possibilita
o controle, fiscalização dos governos e aplicação de sanções
(CASTRO, 2007, p. 3). A avaliação está presente na adoção de
testes padronizados e em larga escala para aferir os resul-
tados. Estes são publicitados, possibilitando o controle dos
processos de forma a prestar contas à sociedade da ação das
instituições escolares, de gestores, docentes e discentes e a
responsabilização como consequência de tais atos.
A gestão da educação, pautada com foco nos resulta-
dos educacionais – GPR, oportuniza à administração a trípli-

JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • VIRNA DO CARMO CAMARÃO • ANDERSON GONÇALVES COSTA
CAPÍTULO 8
202 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

ce ação de planejar-avaliar-corrigir. Sua essência consiste na


responsabilização dos sujeitos e na avaliação de forma siste-
mática dos impactos das políticas, comparando os resultados
alcançados às metas antes estabelecidas.
Considerando o cenário de crise mundial e a tendên-
cia à modernização institucional com a reinvenção do Estado,
foram tomadas como tarefas básicas da reforma do Estado,
segundo as diretrizes para a América Latina, a adoção de no-
vas formas de gestão da educação que priorizariam a descen-
tralização e a autonomia, a redistribuição de tarefas entre as
instâncias do Estado, as estratégias de regulação à distância,
a responsabilização pelos resultados, entre outros.

Novo modelo gestionário no ceará: a experiência do Programa


Alfabetização na Idade Certa – PAIC

Na contramão dos princípios democráticos referenda-
dos pela Constituição de 1988 está o Plano Diretor da Reforma
do Estado, alinhado à política neoliberal de fortalecimento do
Estado mínimo. O quadro abaixo apresenta as principais mu-
danças na estrutura da governabilidade com a Reforma do
Estado em 1995, por conseguinte o fortalecimento das polí-
ticas regulatórias e a presença do accountability nos modelos
de gerenciamento.
Em consonância com as diretrizes internacionais e em
decorrência da redemocratização do Estado (1988), o então
ministro Bresser Pereira “[...] se apoiou numa ideia mobiliza-
dora: a de uma administração voltada para resultados, ou mo-
delo gerencial, como era chamado à época” (ABRUCIO, 2007,
p.72). Estas ações reinventam e reduzem o Estado, buscando
conciliar a dita liberdade democrática com a ampliação dos

JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • VIRNA DO CARMO CAMARÃO • ANDERSON GONÇALVES COSTA
CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 203
FREIRIANA

direitos, a democratização da vida e da Administração Públi-


ca (BEZERRA, 2008).
Em sintonia com esta conjuntura mundial e nacional,
o estado do Ceará efetiva, em meados da década de noventa,
a revisão na estrutura e funcionamento do sistema educacio-
nal, pela reforma administrativa de cunho gerencial (CEARÁ,
1996), pela revisão do marco legal (LDB nº. 9396/96) e com
a implementação de políticas públicas. Tal esforço objetivou
modernizar e racionalizar a máquina administrativa, ade-
quando-a ao modelo de gestão flexível, que permitisse enxu-
gar custos operacionais e fomentar uma nova cultura insti-
tucional alinhada a novas formas da gestão do sistema e da
escola (RAMOS, 2009).
A gestão colegiada proposta pelos governos Todos pela
educação de qualidade para todos e Avançando nas Mudan-
ças (1995-2002) reorganiza o modelo da gestão educacional
adotando ações concretas e viáveis, como as eleições para
diretores das unidades escolares, a formação das organiza-
ções escolares (conselhos e grêmios escolares), a capacitação
continuada e em serviços dos gestores educacionais (CEARÁ:
PDS/SEDUC 95/98). O governo subsequente firma parceira
entre SEDUC e Banco Internacional de Reconstrução e De-
senvolvimento – BIRD na implementação do Projeto Escola
do Novo Milênio – PENM (1999-2002), cujo objetivo era am-
pliar o acesso à educação e fortalecer a capacidade gerencial
e pedagógica para oferecerem, com eficiência, os serviços de
educação básica (CEARÁ, Relatório do PENM, 2005, 08) a par-
tir de uma mobilização ampla, com foco na escola pública que
temos e na que queremos. Consideramos que estes governos
Tasso I e II (1995-2002) foram tempos de legitimação do pro-
jeto dos empresários.

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CAPÍTULO 8
204 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

Faz-se necessário destacar que, embora o fortalecimen-


to do controle social com o fomento às eleições para diretores,
conselhos e grêmios escolares estivesse presente na proposta
deste governo, o ex-secretário de educação Antenor Naspolini
(1995-2002) considera que estão esvaziando a gestão colegia-
da de modo tranquilo, mediante “vacina democrática”. Essa
política se estende até a atualidade; no entanto, no governo
subsequente – cujo slogan Escola melhor e vida melhor (2003-
2006) –, o que antes se configurava como nuances permeadas
pelo discurso democrático se explicitam como tempos de ins-
trumentalização da GPR. Para ilustrar, vejamos quadro abaixo
com ações deste governo:

QUADRO 1 – Mecanismos da Gestão por Resultados no Ceará


(2003-2006)
Modernização dos Processos Formação de Ferramentas de Suporte a
de Gestão Gestores Gestão
- Criação da Gestão Integrada - Realização -Consolidação do Sistema
da Escola (GIDE): instrumento de espe- de Acompanhamento e De-
de planejamento que congre- cialização sempenho da Rotina Escolar
gou o Projeto Político Pedagó- Lato Sensu (SADRE) que é um software
gico (PPP), Plano de Desenvol- em Gestão que viabiliza as informa-
vimento da Escola (PDE), do Educacional ções em tempo real para as
Programa de Modernização e como critério instâncias do sistema; con-
Melhoria da Educação Básica para a sele- densa resultados, monitora
(PMMEB), com o objetivo de ção de gesto- metas, baseado em fatos e
melhorar a comunicação entre res1. dados. (VIEIRA, 2007).
a SEDUC/Crede/Escola. Cada - Criado desde 1997 e con-
escola passou, assim, a assumir solidado nos anos 2000,
maior responsabilidade na pro- o Sistema Integrado de
moção do êxito de seus alunos. Gestão Educacional (SIGE)
(VIEIRA, 2007, 54). agrega subsistemas – Aca-
- Regulamentação e efetiva- dêmico, Diretor de Turma,
ção do regime de colaboração Professor, Lotação e Orga-
estado/municípios, mediante nismos Colegiados. Trata-
normatização e publicação de -se de monitoramento de
diretrizes, indicadores, etc. processos administrativos
e educacionais
Fonte: Elaborado pelos autores.

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CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 205
FREIRIANA

Dessa forma, em consonância com a questão do dis-


curso da modernidade e democratização da gestão e parale-
lamente aos procedimentos pontuais de eleição de diretores
e de fomento de organismos representativos como conselho
escolar e grêmio estudantil, foram consolidados nos gover-
nos em tela sistemas que explicitam a real intencionalidade
do governo em estabelecer uma nova forma de controle indi-
reto com o monitoramento quantitativo dos resultados, o que
caracteriza o gerencialismo no âmbito educacional. O que
antes se configurava como nuances permeadas pelo discurso
democrático se explicita como tempos de instrumentalização
da GPR.
No tocante à formação dos gestores, destaca-se a ênfase
no estudo da avaliação da educação, cuja centralidade se ex-
plicita no monitoramento dos indicadores, ou melhor, nos re-
sultados, na produtividade da escola, independentemente do
projeto pedagógico adotado pela instituição. A formação tem
incutido nos diretores eleitos pela comunidade princípios e
práticas empresariais da gestão para o sucesso escolar.
No entanto, no cenário da política educacional cearen-
se, o “divisor de águas” da gestão democrática à gestão por
resultados tem sido o Programa de Aprendizagem na Idade
Certa (2007-), universalizado pelo governo de Cid Gomes3. O
programa de governo O grande salto que o Ceará merece (2007-
2010) afirma que a diferença está no novo jeito de fazer para
que se possa distribuir equitativamente a riqueza entre as
3 A trajetória político-partidária deste, que já foi filiado ao Partido do Movi-
mento Democrático Brasileiro (PMDB), Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB), Partido Popular Socialista (PPS) e Partido Socialista Brasileiro (PSB) e,
atualmente, está no Partido Republicano da Ordem Social (PROS), revela a sua
identidade partidária fluida. No estudo em tela, percebe-se a continuidade e
aprofundamento das diretrizes políticas neoliberais na forma de governar.

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CAPÍTULO 8
206 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

pessoas e as regiões, fazer juntos. “Já provamos que podere-


mos tornar isso realidade pelo que estamos promovendo no
Brasil, em Fortaleza, em Sobral e em diversas outras cidades
do Ceará, construindo as bases para um desenvolvimento
econômico com inclusão social” (CEARÁ/DIRETRIZES PARA
O PLANO DE GOVERNO – DA COLIGAÇAO CEARÁ VOTA PARA
CRESCER, 2006, 05). Quando Cid Gomes era prefeito de So-
bral (1997-2004), a rede de ensino destacou-se pela promo-
ção de mudanças sistêmicas na gestão.
No segundo governo de Cid Gomes (2011-2014), coliga-
ção Pra fazer ainda mais, é reafirmada a responsabilidade do
Estado com uma educação que não se limita somente à rede
de ensino estadual, ao tratar do regime de colaboração com os
municípios do Ceará mediante a implementação do PAIC e,
por conseguinte, reestruturação da gestão educacional.
Portanto, este surge como ações do governo local, é sis-
tematizado como programa mediante projeto-piloto e consti-
tui-se como política de gestão educacional em 2007. Decerto
que este caminho trilhado segue “[...] na perspectiva de pro-
cessos de gestão eficientes e eficazes voltados para a elevação
dos resultados de aprendizagem” (ibidem, p. 28) e adoção de
mecanismos de incentivo e reconhecimento de alunos e pro-
fessores, formações focadas no planejamento, acompanha-
mento e avaliação dos processos educativos como garantia
do alcance de metas.
O programa acima citado organiza-se em cinco eixos;
são eles: gestão, alfabetização, educação infantil, literatura
infantil e formação de leitores e avaliação externa. Como o
objetivo central do programa é a aprendizagem na idade cer-
ta, cada eixo assumirá um papel fundamental na cadeia de
funcionamento do programa, a ponto de a fragilidade de cada

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CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 207
FREIRIANA

um acarretar danos tanto na eficiência do processo como na


eficácia dos resultados da aprendizagem.
A começar pelo eixo educação infantil, entende-se que,
como primeira etapa da educação básica, e propedêutica para
a inserção da criança na etapa da alfabetização, que se esten-
de do 1º ao 3º ano, quando bem realizada em seus objetivos
viabiliza a progressão da criança de modo a torná-la mais apta
para esta última. O eixo formação de leitores é a espinha dor-
sal do programa, cabendo a ele a qualificação profissional do
professor. A lógica da qualificação se estreita à ideia de estan-
dardizar a prática docente mediante a definição de conteúdos
e didáticas pré-moldadas. Nesse sentido, todos os professores
são obrigados a participar das formações, a reproduzirem os
conteúdos repassados nessas, de acordo com uma rotina pe-
dagógica a ser seguida. É função dos formadores acompanhar
e monitorar suas turmas na perspectiva de avaliar se, de fato,
as orientações repassadas estão sendo aplicadas em sala.
Para garantir a viabilidade dos três primeiros eixos, foi
engendrado o modelo de gestão por resultado (SEDUC, 2012,
p. 71). Trata-se de uma engenharia institucional implemen-
tada nos órgãos de atividades meio tais como Secretarias de
Educação, Coordenadorias Regionais, Superintendências,
Distritos Regionais (na capital); e estruturada na perspectiva
da definição de metas e na busca de resultados à luz de um
sistema de avaliação externa.
A efetivação dessa política não ocorreria sem a celebra-
ção do pacto colaborativo entre Estado e municípios. Advém
do Sistema Estadual de Educação toda a concepção e coorde-
nação do programa, cabendo aos municípios a adesão. À me-
dida que os municípios aderem, fica estabelecida uma relação
intersetorial de ações entre a secretaria estadual e as secreta-

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CAPÍTULO 8
208 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

rias municipais intermediadas pelas Coordenadorias Regio-


nais do Estado (CREDES), presentes em cada ­macrorregião.
Deste modo, o eixo da gestão da educação municipal e
da avaliação busca promover o fortalecimento dos sistemas
municipais de ensino mediante rearranjo institucional numa
perspectiva de responsabilização, ao delinear atribuições e
papéis e ao difundir uma cultura de avaliação educacional,
comunicando os resultados da avaliação por município, por
escola, por turma e por aluno.
“Trata-se da instauração de um processo de responsa-
bilização pela garantia do direito de aprender” (SEDUC, 2012).
Corrobora para o fortalecimento desse modelo o atrelamento
de um caráter tributário (no caso em tela o ICMS) à melho-
ria dos indicadores educacionais do município, funcionando
como mecanismo de pressão aos municípios, na medida em
que o montante do repasse do tributo depende da melhoria
dos indicadores, ou seja, quanto melhor os resultados, maior
a arrecadação. Segundo Brandão (2014), dos 100% da cota
parte do ICMS distribuído no Ceará, 72% correspondem ao
desempenho na área educacional.
Sendo assim, partindo desta análise preliminar da lite-
ratura e das diretrizes dos governos do estado do Ceará, em
sintonia com o cenário mundial e nacional da educação, asse-
veramos a relevância deste estudo ora proposto. O olhar para
as trilhas do Ceará nos possibilitou a percepção dos avanços,
limites e contradições deste modelo de gestão por resultados
e seus pontos e contrapontos com a perspectiva emancipató-
ria freireana. Este será analisado a partir do PAIC, que tem o
objetivo de alfabetizar as crianças da rede municipal de edu-
cação até o segundo ano do ensino fundamental, e elege a for-
mação docente como espinha dorsal.

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CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 209
FREIRIANA

Educação para a liberdade versus gestão por resultados:

Ciente de que não há nenhuma leitura da realidade que


seja plena em si e de que
Não há uma educação universal, boa em si. Ela é
uma forma irresistível, imposta sobre os outros
para cumprir fins determinados de fora. Se não
podemos nos libertar totalmente do seu poder, o
conhecimento dele pode atenuar seus efeitos. Se
cada sociedade considerada em determinado mo-
mento histórico do seu desenvolvimento, impõe
um tipo de educação, é necessário que conheça-
mos esta sociedade e seu momento histórico se
queremos desnudar o seu sistema de educação.
Especialmente quando é preciso reverter o proces-
so em que se está mergulhado (RODRIGUES, 2001,
p.78).

O estudo em tela está imerso em possibilidades, con-


tradições e ambiguidades, que podem induzir ou restringir a
interpretação da relação entre o PAIC e a proposta de educa-
ção para a liberdade em Paulo Freire. Sendo assim, buscare-
mos desvelar as nuances de um e de outro, tecendo paralelos,
quando possível, que podem nos ajudar a desnudar este divi-
sor de águas da política educacional cearense.
O PAIC que tem sido apresentado como ferramenta
de gestão que tem inovado na pactuação entre o governo do
estado e os municípios, ao integrar e articular as dimensões
da gestão, da aprendizagem e da avaliação na melhoria dos
resultados educacionais e na erradicação do analfabetismo
em crianças. Indagamos, então: O que se pode inferir de uma
política educacional que vem apostando há mais de dez anos

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CAPÍTULO 8
210 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

(2004-), no caso do estado do Ceará, no modelo de gestão por


resultados? Na contramão desse modelo produtivista e ge-
rencialista de escola, que parte da vertente ideológica que ex-
plica o fracasso escolar sob o prisma de fatores endógenos à
escola, novos estudos sobre política educacional na América
Latina e EUA vêm sinalizando um desgaste em razão de fato-
res como estes apontados por Freitas:
É importante saber se a aprendizagem em uma es-
cola de periferia é baixa ou alta. Mas fazer do resul-
tado o ponto de partida para um processo de res-
ponsabilização da escola via prefeituras leva-nos a
explicar a diferença baseados na ótica meritocráti-
ca liberal: mérito do diretor que é bem organizado;
mérito das crianças que são esforçadas; mérito dos
professores que são aplicados; mérito do prefeito
que deve ser reeleito, etc. Mas e as condições de
vida dos alunos e professores? E as políticas go-
vernamentais inadequadas? E o que restou de um
serviço público do qual as elites, para se elegerem,
fizeram de cabide de emprego generalizado en-
quanto puderam, sem regras para contratação ou
demissão? O que dizer da permanente remoção de
professores e especialistas a qualquer tempo, pu-
lando de escola em escola? O que dizer dos profes-
sores horistas que se dividem entre várias escolas?
(FREITAS, 2007, p. 971)

Permeados pelo espírito da pergunta, daquele que


questiona o óbvio e o arbitrário, desenvolvemos a seguir
contrapontos referenciados pela compreensão freireana de
educação acerca da desqualificação do contexto social, po-
lítico e cultural no processo de aprendizagem, da formação
docente pautada em orientações programáticas e instruti-
vas e, por último, do estreitamento curricular, com primazia

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CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 211
FREIRIANA

para as disciplinas contempladas nas avaliações externas


locais, nacionais e internacionais. Essas realidades apreen-
didas no âmbito da pesquisa vão de encontro em seus prin-
cípios e fundamentos ao que Freire denomina de “Educação
para a liberdade”?

A desqualificação do contexto social, político e cultural e a


centralidade nos resultados

Um aspecto nuclear no pensamento freireano é a di-


mensão social e cultural no processo educativo. No modelo
gerencialista de educação, ocorre o obscurecimento dessas
dimensões em primazia da gestão como ferramenta capaz de
garantir a qualidade do ensino. Daí o mecanismo da respon-
sabilização como ferramenta de gestão eficaz na cobrança de
resultados na instância da escola. Em se tratando do PAIC,
a verticalização do programa – no qual o poder decisório é
tanto maior quanto mais próximo estiver dos órgãos centrais
como, por exemplo, a Secretaria Estadual de Educação – faz
com que o mecanismo de responsabilização, de fato, ocorra
no âmbito da escola.
O protagonismo da direção reside justamente na res-
ponsabilidade deste profissional em responder pelos níveis
de proficiência de sua escola. Se a escola vai bem ou mal ca-
berá diretamente a ele o ônus e bônus da ação. Os elementos
endógenos à escola acabam respondendo por todos os pro-
blemas que circundam o processo de aprendizagem.
Diante da responsabilização, Paulo Freire denunciava
que
A liberdade de mover-nos, de arriscar-nos vem
sendo submetida a uma certa padronização de

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CAPÍTULO 8
212 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

fórmulas, de maneiras de ser, em relação às quais


somos avaliados. É claro que já não se trata de as-
fixia truculentamente realizada pelo rei despótico
sobre seus súditos, pelo senhor feudal sobre seus
vassalos, pelo colonizador sobre os colonizados,
pelo dono da fábrica sobre seus operários, pelo Es-
tado autoritário sobre os cidadãos, mas pelo poder
invisível da domesticação alienante que alcança a
eficiência extraordinária no que venho chamando
“burocratização da mente”. Um estado refinado de
estranheza, de “autodemissão” da mente, do corpo
consciente, de conformismo do indivíduo, de aco-
modação diante de situações consideradas fatalis-
tamente como imutáveis (FREIRE, 1996, p. 114).

Mediante a rígida rotina de trabalho, conteúdos e pro-


cedimentos previamente determinados em tempos, formas
e espaços, docentes e discentes têm negligenciado a postu-
ra de construtores, criadores, cocriadores de si, da leitura do
mundo e da letra. “(...) cai-se na armadilha, na verdadeira
manipulação ideológica que nega a possibilidade de articular
o mundo dele ou dela como um tema da história e não ape-
nas como um objeto a ser consumido e descartado” (FREIRE,
2001, p.68).
Fundamentado nas concepções construtivistas de Pia-
get, na teoria da psicogênese e nas contribuições de Simonet-
ti, o PAIC parte do princípio da indissociabilidade dos proces-
sos de letramento e de alfabetização.
Não são processos independentes, mas interde-
pendentes e indissociáveis: a alfabetização desen-
volve-se ‘no contexto de e por meio de’ práticas
sociais de leitura e escrita, isto é, através de ativi-
dades de letramento, e este, por sua vez, só se pode

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CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 213
FREIRIANA

desenvolver ‘no contexto da e por meio da’ apren-


dizagem das relações fonema-grafema, isto é, em
dependência da alfabetização. (SOARES, 2004,14)

No entanto, o que se observa é a instrumentalização


dos processos de alfabetização dissociados das práticas so-
ciais dos alunos. O uso de ferramentas de ensino na rotina
escolar, ferramentas essas apropriadas mediante materiais
didáticos e formações docentes. Esse processo fica bem ex-
plícito na fala do ex-diretor da CREDE 08, professor Bernardo
Torres, que considera que
[...] o PAIC trouxe uma tecnologia de sala de aula
muito importante. O professor entra na sala de
aula sabendo o que vai fazer e sabendo que tem de
fazer aquilo naquele dia. Ele entra com um manu-
al. Naquele dia é isso e no outro dia é aquilo. Então,
isso deixou o ensino muito mais profissional e isso
foi bom, o resultado apareceu (2015, p. 8).

Os ditos “manuais de ensino”, contrariando o pensa-


mento freireano, não tratam da própria realidade histórica
e social em que os indivíduos estão inseridos e nem reco-
nhecem os mesmos como sujeitos do processo. “Alfabetizar
não se trata de decodificar, de memorizar, mas de uma difícil
aprendizagem para ‘nomear o mundo’” (FREIRE, 2001, p. 75).
A educação problematizadora está alicerçada na criativida-
de, autonomia docente e estimula a ação e a reflexão sobre
a realidade histórica, bem como aponta que no processo de
apropriação dos saberes o homem transforma a si e ao meio
em que está inserido. Para Freire, palavra é palavra e ação.
Subtende-se uma concepção bem mais ampla de alfabetizar
ao “nomear o mundo”, agir para transformá-lo.

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CAPÍTULO 8
214 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

Partindo do pressuposto de que a formação humana,


mediante apropriação de saberes historicamente produzidos
e sistematizados pela sociedade, efetiva-se em determinado
espaço, tempo e conteúdo mediado por relações sociais, este
tempo-espaço-matéria e relações também podem se consti-
tuir como objeto de estudo e sistematização do aprendente.
Para Paulo Freire, ninguém ensina ninguém, os ho-
mens aprendem em comunhão; portanto, o estudante é su-
jeito do processo de ensino-aprendizagem e o tempo, o tem-
po presente, os homens presentes, a vida presente são a sua
matéria. Como cita Carlos Drummond de Andrade, Não serei
o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo
futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Na contramão desta leitura, Freire caracteriza a educa-
ção bancária pautada na repetição e memorização de conhe-
cimentos e em que “Ao estudante resta apenas a obrigação
de memorizar a narração que o professor faz da realidade.
Esse caráter torna a realidade distante do estudante. De fato,
ele aliena o estudante da realidade concreta, excluindo toda
experiência de primeira mão” (ROSSI, 1982, 100). Nesta, os
saberes adquiridos na vida comunitária são ignorados, pois
não são científicos, válidos. As questões sociais, políticas,
econômicas e ambientais também não são reconhecidas
como conteúdo escolar, pois “[...] dirá um educador reacio-
nariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com
isso” (FREIRE, 1996, 30). A tarefa da educação escolar é ajus-
tar, adaptar, conformar.
Indagamos, então: até que ponto o PAIC tem se cons-
tituído como um programa que tem fomentado a memoriza-
ção e repetição, mediante treinamento dos discentes para as
respostas dos sistemas de avaliação do programa, do Estado

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CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 215
FREIRIANA

(SPAECE-alfa) e da União (Avaliação Nacional a Alfabetização


– ANA)? As ideias dos docentes e discentes têm sido acolhi-
das e sistematizas pelo programa? Estes se reconhecem como
sujeitos, como parte que pensa e não apenas cumpre a rotina
prevista?

Orientações programáticas e instrutivas da formação docente

A organização do programa em eixos sistêmicos e arti-


culados, como cita a SEDUC (2012), se contrapõe a políticas
que têm apoios pontuais e estabelece metas que, articuladas,
proporcionam a promoção de políticas municipais que alcan-
cem o objetivo proposto. Cada um dos eixos, portanto, é pri-
mordial, de modo que qualquer desandar em um deles pode
comprometer todo o trabalho desenvolvido nos outros eixos.
Partindo do diagnóstico da comissão que revelou que a
maioria dos professores não apresentava um método para al-
fabetizar, a formação de professores tem-se destacado por ser
contínua, obrigatória, ministrada por editoras contratadas
pelas prefeituras e, de modo esporádico, pelo eixo de alfabe-
tização, com base nas rotinas pedagógicas. Ela tem como um
dos objetivos oferecer aos professores uma formação voltada
para alfabetizar letrando, pautada no marco teórico da Psico-
gênese da escrita, de Emília Ferreiro e Ana Teberosky.
Silva (2014, p. 69), ao indagar se a formação do PAIC
transforma ou cristaliza a ação pedagógica e quais as difi-
culdades, conclui que esta veio agregar conhecimentos à
profissão docente e, embora os professores compreendam
conceitualmente a importância de trabalhar com o PAIC, de-
monstram dificuldade de conseguir colocar em prática o que
desejam. Mesmo que os relatos não reconheçam que a for-

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CAPÍTULO 8
216 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

mação do PAIC seja um “[...]‘treinamento’, em algumas falas


ainda deixam resquícios de um antigo modelo de proposta di-
dática, como anota uma professora quando perguntada sobre
a importância do PAIC na sua formação: ‘A formação é muito
boa, nos ajudou bastante, já vem tudo pronto é só agente apli-
car’ (RUBI)”.
Essa fala final, da professora Rubi, aponta para duas
questões preocupantes. A primeira refere-se ao olhar dela so-
bre sua prática docente. Como se ao professor não coubesse
qualquer ato de criação e recriação sobre sua prática, a ele são
dadas todas as ferramentas e repassados todos os métodos
para aplicá-las. A professora exonera-se da capacidade inte-
lectiva de reconhecer-se como sujeito capaz e responsável
por criar as ferramentas, não para aplicá-las, mas para fazer
com que seus alunos se libertem do mito pedagógico de que o
mundo se divide entre espíritos sábios e espíritos ignorantes
(RANCIÈRE, 2011, p.24). A segunda preocupação relaciona-se
diretamente com a primeira e diz respeito à sua percepção
sobre o aluno, como um receptáculo vazio pronto para rece-
ber os conteúdos que a ela foram repassados, e como em uma
cadeia produtiva o conteúdo pré-moldado é transposto, o que
Freire qualificaria como educação bancária.
Ainda em torno da formação docente,
Nas formações que acontecem sobre o PAIC, o pro-
grama é muito trabalhado no sentido de preparar
os professores para executá-lo. Os professores não
passam muito tempo discutindo o programa. Eu
nunca vi nenhum momento para avaliar se o mes-
mo vale a pena realmente. Falar em encerrar o pro-
grama é algo que nem é cogitado nos encontros.
Lá se enfatiza muito os números alcançados, e a

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CAPÍTULO 8
GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE 217
FREIRIANA

gente tem a impressão de que ele tá dando muito


certo. Mas não sei se é assim mesmo em Fortaleza
(FÁTIMA SILVA, apud MAIA, 2013, 132).

Deste modo, a formação continuada do PAIC a princípio


era instigante, pois apresentava material didático que contri-
buía com a prática docente; no entanto, com o tempo, nas fa-
las das professoras denota-se que, imbuído num discurso de
colaboração, o autoritarismo da política em tela não dialoga
com seus pares, municípios, escolas, docentes e comunidade
acerca do material didático, metodologia, formulários de mo-
nitoramento, instrumentos avaliativos, entre outros.
Esta falsa autonomia se explicita para além da sala de
aula, pois no âmbito do sistema, a coordenadora da CREDE
08, professora. Joyce Santana (2015, p. 24), cita que “[...] nós
estamos na verdade sendo executores de políticas, nós não
temos tempo para sermos, vamos dizer, assim, pensadores”.
Há, como cita Laval (2004), o Estado como “coordenador” e
as regiões, estabelecimentos escolares e docentes como os
“operadores”. Tese reafirmada quando a entrevistada Márcia
Campos, uma das mentoras e coordenadoras do PAIC na SE-
DUC, comenta que não houve nenhuma prática pedagógica
que emergiu dos professores alfabetizadores que fora incor-
porada pela política.
No entanto, para Freire, é possível ultrapassar a falsa
dicotomia entre um não diretivismo ingênuo e um autorita-
rismo opressivo na formação e prática docente por meio da
educação dialógica, na qual a liberdade não significa omis-
são, mas engajamento associado “[...] a um saber crítico do
homem sobre sua própria vida e sobre o mundo em que ele
vive, quer dizer, sobre todas as relações que fazem do homem
o que ele é” (ROSSI, 1982, p.92).

JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS • VIRNA DO CARMO CAMARÃO • ANDERSON GONÇALVES COSTA
CAPÍTULO 8
218 GESTÃO POR RESULTADOS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: CONTRAPONTOS À EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE
FREIRIANA

À guisa de conclusão, percebemos que tal política se


constitui como um programa de gestão que integra e articula
diferentes dimensões, até então díspares nas ações do Esta-
do, como aprendizagem, gestão e avaliação, ao mesmo tempo
em que imputa mecanismos de responsabilização pelos re-
sultados.
A colaboração em pauta avança na definição das atri-
buições e no monitoramento das ações e resultados, mas não
tem fomentado a cocriação por meio da participação dos su-
jeitos que participam do processo de formação e prática do-
cente. Tais eixos e metas não têm sido pensados para e com
os trabalhadores docentes e nem reconhecem e valorizam os
fatores exógenos às realidades escolares e de suas comunida-
des como fatores relevantes na “performance”, nos planeja-
mentos e avaliações.
Há elementos na política que podem desvelar a reedi-
ção da educação bancária mediante a desqualificação do con-
texto social, político e cultural no processo de aprendizagem
e formação docente pautada em orientações programáticas e
instrutivas.

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CAPÍTULO 8
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CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 223
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

Capítulo 9
Caminhos e descaminhos teóricos no
trabalho de pesquisa com a pequena
infância: contribuições dos estudos sociais
da infância e da obra de Paulo Freire
Heloisa Josiele Santos Carreiro

Refletir, avaliar, programar, investigar, transformar são especi-


ficidades dos seres humanos no e com o mundo. A vida torna-se
existência e o suporte do mundo, quando a consciência do mun-
do, que implica a consciência de mim, ao emergir já se acha em
relação dialética com o mundo. (PAULO FREIRE, 2006, p. 21)

Introdução

O
presente artigo representa um desdobramen-
to reflexivo da tese que defendi em fevereiro de
2013, na Universidade Federal Fluminense, que
teve por título “Rotinas Arquitetadas e Cotidia-
nos Vividos: Tensões e Possibilidades na Educação Infantil”.
A investigação ocorreu no Centro de Educação Infantil (CEI)
Carolina Amorim e envolveu os adultos e as crianças da insti-
tuição em um processo de pesquisa-ação, sobre as interações
desses sujeitos com as rotinas que eram propostas na insti-
tuição.
Para desenvolver o trabalho investigativo, a tese tentou
priorizar as vozes das crianças em seu exercício de pesquisa.
O que nem sempre é comum nos estudos que se desenvolvem

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
224 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

sobre as práticas pedagógicas, que centram seus esforços, re-


correntemente, nas falas dos adultos.
Diante desta opção epistemológica – centrar esfor-
ços para que as questões da tese buscassem dialogar com
as vozes infantis – procurávamos defender que as crianças
poderiam nos fornecer pistas importantes para reorganizar
o trabalho pedagógico. Isso considerando que nossos esfor-
ços relacionados à organização do cotidiano escolar tinham
como propósito colaborar de modo significativo com desen-
volvimento social, afetivo, cultural e cognitivo dos meninos e
das meninas da Educação Infantil.
Assim, partíamos do pressuposto de que as próprias
crianças eram quem mais podiam nos ajudar a reavaliar os
investimentos que fazíamos nas práticas e nos planejamen-
tos, que corroboravam para os desenhos que imprimíamos
nas rotinas arquitetadas na instituição. Nesta perspectiva,
compartilhávamos da defesa de FREIRE (2009) sobre as es-
pecificidades humanas, pois também as crianças nos ajuda-
vam a refletir, avaliar (re)programar, investigar e transfor-
mar as práticas que arquitetávamos e desenvolvíamos no
cotidiano daquela Educação Infantil, tendo nosso próprio
trabalho como suporte para realizar tais movimentos de au-
toinvestigação e/ou, no dizer de Boaventura de Souza Santos
(2003), tínhamos um suporte para o exercício de autoconhe-
cimento. Logo, buscávamos (re)conhecer nosso trabalho, não
somente pelas reflexões que compartilhávamos com nossos
pares no campo profissional e com os estudos das teorias,
mas afirmamos que um elemento importante, no trabalho de
triangulação da investigação desenvolvida, foi dialogar com
as impressões que as crianças tinham das rotinas que lhes
oferecíamos.

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 225
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

Desta forma o artigo seguiu o seguinte caminho: apre-


sentação dos teóricos dos Estudos com o Cotidiano e com a
Sociologia da Infância e das questões que nos levaram a dia-
logar com Paulo Freire no desenvolvimento da tese; apresen-
tação das concepções de infâncias e de crianças que estive-
ram em jogo ao longo do processo de realização da pesquisa;
reflexões de como o conceito de práxis nos ajudou a repensar
(re)encaminhamentos possíveis às atividades de rotina na
Educação Infantil; os desafios que entram em campo quando
se propõe a pensar o diálogo entre adultos e crianças como
uma perspectiva metodológica e conclusões provisórias.

Teóricos e questões que nos levaram a dialogar com Paulo


Freire

Diante do desafio de auscultar (ROCHA, 2008) as vozes


infantis, procurávamos alternativas teóricas e metodológicas
que nos ajudassem na concretização deste caminho investi-
gativo, que buscava compreender as rotinas, partindo das ló-
gicas interpretativas infantis. Deste modo, pressupúnhamos
tencionar as lógicas adultocêntricas através de uma interces-
são entre a intencionalidade pedagógica e o que nos narravam
as crianças sobre as experiências vivenciadas nas atividades
de rotina, por meio de diferentes linguagens. Logo, o desafio
de auscultar era ainda mais complexificado, por questões que
envolviam a necessidade de alfabetização nessas diferentes
linguagens, a fim de melhor compreender o que as crianças
nos comunicavam sobre suas experiências cotidianas no CEI.
No campo teórico nos aproximamos da Sociologia da
Infância (CORSARO, 2011; SARMENTO, 2008; ROCHA, 2008;
FERREIRA, 2004; QVORTURP, 2011), uma vez que sinaliza-

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
226 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

mos como um dos principais desafios epistêmicos dos pes-


quisadores deste campo: o como desenvolver pesquisas
sensíveis às vozes infantis. Neste contexto, a Sociologia da
Infância se sustenta em uma concepção de infância que é
preciosa ao nosso trabalho de pesquisa: a criança como ator
social. Ela interfere, interpreta e coproduz cultura. Portanto,
acreditamos que meninos e meninas pensam, refletem e in-
teragem no/sobre/com o mundo social.
Sabemos que muitas das pesquisas envolvidas com os
estudos da Sociologia da Infância dialogam com os estudos
etnográficos (VELHO, 2007; GRAUE & WALSH 2003), readap-
tando e criando novas estratégias de aproximação da cultura
de pares infantis (CORSARO, 2011). Tal preocupação de apro-
ximação das culturas infantis surge do reconhecimento das
diferenças intergeracionais (FERREIRA, 2004) impostas às
relações tecidas entre adultos e crianças, e pelo afastamento
que muitos adultos possuem dos contextos nos quais desen-
volvem suas investigações.
A tese em questão utilizou-se de algumas estratégias
metodológicas dos estudos etnográficos para aproximação
da cultura de pares infantil, consolidando algumas aprendi-
zagens junto à Sociologia da Infância, principalmente no que
diz respeito a falar com as crianças sobre a pesquisa; com-
partilhar os instrumentos de investigação; pedir diretamente
sua autorização, ainda que no campo legal somente os adul-
tos possam fazer esta liberação; sobretudo, aprendemos e nos
questionamos sobre questões éticas que envolvem o trabalho
investigativo, procurando respeitar os momentos de interdi-
ção e de publicação de suas vozes.
Assim, apesar da autorização explícita no momento ini-
cial da pesquisa dos(as) adultos(as) educadores(as) e dos(as)

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 227
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

responsáveis legais dos meninos e das meninas matriculados


na instituição, no processo de investigação as crianças e pro-
fissionais nos forneciam pistas de suas interdições em relação
àquilo que podemos investigar. Assim podemos dizer que algu-
mas questões específicas não foram autorizadas à publicização
pelos sujeitos, como também em alguns momentos específicos
não foi permitido nosso envolvimento direto, observação e re-
gistro. Ou seja, embora, em linhas gerais a pesquisa estivesse
autorizada pelos adultos e pelas crianças. Algumas questões
específicas não foram autorizadas à publicização pelos sujei-
tos, como também em alguns momentos específico não foi per-
mitido nosso envolvimento direto, observação e registro.
Considerando os apontamentos acima, informamos
que apesar de dialogarmos com os estudos etnográficos, não
éramos estrangeiros no contexto investigado. Assumimos
nossos estudos como do campo do cotidiano escolar (CER-
TEAU, 1994; GOFFMAN, 1961; GARCIA, 2001/ 2003; ALVES,
2010; ESTEBAN & ZACCUR, 2002).
Entendemos ser importante reconhecer o caminho
efetivo que a pesquisa percorreu, reconhecendo suas contra-
dições epistemológicas, enfrentadas ao longo da investiga-
ção. Contudo, interpretamos esta contradição como comple-
xamente enriquecedora, diante do desafio que se colocava:
como investigar com as crianças e não sobre elas. Tal desafio
nos levou ao desdobramento de algumas questões: que teo-
rias se desafiavam ao pesquisar com crianças? Quais eram
as questões éticas que estavam em jogo nas pesquisas que
envolviam crianças? O quanto seríamos capazes de não im-
por, na interpretação dos dados, as lógicas adultocêntricas às
vozes infantis? Como as vozes de adultos e de crianças po-
dem dialogar, na pesquisa, sem que as lógicas adultocêntricas

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
228 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

“oprimam” as infantis que, historicamente, vêm sendo silen-


ciadas nas teorizações pedagógicas?
O enfrentamento dessas questões, de certo modo, di-
ziam respeito às próprias aprendizagens necessárias aos(as)
adultos(as)-educadores(as) e à possibilidade de materializa-
ção da pesquisa na instituição, uma vez que o desejo da mes-
ma era trazer as vozes infantis ao protagonismo dos enca-
minhamentos relacionados, tanto no planejamento como no
desenvolvimento das atividades de rotina.
A produção dessas questões que traziam o diálogo in-
tergeracional como uma possibilidade de pesquisa nos levou,
diretamente, ao encontro das contribuições teóricas de Paulo
Freire. Assim, centramo-nos em estudar e trabalhar com dois
conceitos que, para nós, são centrais em sua obra: o de práxis
e o de diálogo.
O conceito de práxis colaborou para pensarmos o ca-
minho metodológico das interações dos adultos com as vozes
infantis. Já o conceito de diálogo foi central para pensarmos
metodologicamente quem haveria de conduzir as interações
entre os sujeitos envolvidos na investigação (crianças, profis-
sionais da instituição e pesquisadora).

As concepções de criança em jogo no processo de construção da


tese

Antes de apresentarmos mais especificamente os mo-


dos como encaminhamos a aproximação aos conceitos de
práxis e de diálogo de Freire (2009), compreendemos ser im-
portante expor quais concepções de criança e de infância es-
tavam em jogo nas interações entre adultos-crianças e crian-
ça-criança.

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 229
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

Deste modo, um dos primeiros desafios da tese foi iden-


tificar e refletir com os sujeitos da pesquisa, principalmente
com os educadores do CEI, sobre quais concepções de criança
e de infância revelavam-se presentes nas relações cotidianas
daquela Educação Infantil, como já mencionado acima. Re-
ferimo-nos aqui tanto àquelas concepções que conseguimos
“ler” nas próprias interações infantis, como àquelas que se
manifestavam nas práticas pedagógicas planejadas e desen-
volvidas pelos adultos em seus momentos de encontro mais
direto com as crianças.
Durante a pesquisa conseguimos mapear os seguintes
territórios, que fazem nascer concepções específicas de infân-
cia e de criança: a) a criança por ela mesma; b) a criança e suas
interações com os adultos; e c) as crianças nas práticas peda-
gógicas e nas teorias. Abaixo, aprofundamos um pouco mais
nossas aprendizagens a partir de cada um desses territórios.

a) A criança por ela mesma


Observando as próprias crianças, conseguimos iden-
tificá-las como cheia de vida e de desejo de interagir com o
mundo social e natural, com seu grupo de pares, com os adul-
tos a sua volta e com as propostas que lhes eram oferecidas.
Estamos aqui reconhecendo que inclusive a negação em par-
ticipar das atividades oferecidas pelos adultos e/ou a prática
de subvertê-las também se traduzem como exercícios intera-
tivos. Crianças que sempre tinham coisas para contar de suas
experiências externas aos muros escolares e que gostavam
de compartilhar com os seus pares e com os adultos senti-
mentos e interpretações das experiências oriundas das ativi-
dades de rotina do CEI. Assim, as crianças por elas mesmas
revelavam-se ativas, observadoras, quase sempre dispostas

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
230 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

às interações com outros sujeitos e com os artefatos presente


no ambiente escolar. Elas revelavam-se exploradoras dos ob-
jetos a sua volta e das experiências de contato com os outros
seres vivos (plantas, animais, humanos). Enfim, meninas e
meninos que, como recém-chegados (ARENDT, 2000) ao mun-
do, acolhiam, rejeitavam, questionavam, exploravam, experi-
mentavam, reelaboravam, utilizando-se de diferentes lingua-
gens, os princípios científicos que interagiam e os mundos
naturais, sociais e culturais nos quais se encontravam.

b) A criança pela interação dos adultos


Naquela instituição os(as) adultos(as) compreendiam
as crianças como imaturas, dependentes dos adultos, como
sujeitos que estavam por vir a ser gente grande. Ao longo da
pesquisa pude perceber que estas concepções eram gestadas
não apenas no senso comum e nas relações que, historica-
mente, elas (educadoras) tinham com as crianças dentro e
fora da instituição escolar, mas também eram referenciados
processos formativos desencadeados pela Secretaria Munici-
pal de Educação e por outras fontes formativas (livros, artigos
de blogs e revistas sobre educação), com que elas iam ten-
do contato ao longo da profissão. Tal compreensão fazia com
que as relações estabelecidas por estes(as) profissionais com
as meninas e os meninos fossem recorrentemente verticais,
na crença de que os adultos sempre sabem o que é bom para
o desenvolvimento infantil. Isso limitava bastante as possi-
bilidades de ausculta (ROCHA, 2008) das crianças por parte
dos(as) educadores(as). Essa surdez às vozes infantis se dava
pela crença dos profissionais de que seria muito pouco pro-
vável aprender algo com as próprias crianças sobre elas mes-
mas. Temos por tradição aprender sobre as crianças a partir

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 231
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

das teorias que são produzidas sobre elas e as inscrevem his-


toricamente em uma condição de subalternidade intelectual.
A imaturidade infantil inscrevia nas relações cotidia-
nas um lugar de certo modo soberano aos saberes dos adul-
tos sobre os(as) pequenos(as). Nos encontros formativos, as
educadoras reconheciam as iniciativas de algumas crianças
em explorar o mundo e questionar as propostas de atividades
de rotina. Contudo, entendiam que era papel da Educação In-
fantil colaborar com a modelagem destes “comportamentos
infantis”, fazendo com que as crianças se comportassem do
modo como era esperado pelos(as) adultos(as). Assim, reco-
nhecemos que as concepções desenvolvimentistas do sécu-
lo XX1 inscrevem as crianças e suas infâncias em uma forte
condição de subalternidade aos adultos. Diante deste quadro,
como aproximar e tensionar esta concepção da criança, como
um “ser de ausências” (LEITE FILHO, 2001), às concepções de
sujeito histórico cultural e ator social, manifestadas pelas pró-
prias crianças nos exercícios interativos no grupo de pares in-
fantis e com os(as) adultos(as)? Apesar dos conhecimentos de
senso comum e científicos que as educadoras possuem, elas
reconhecem que meninas e meninos tentam resistir, re-exis-
tir a certas imposições e prescrições que fazemos sobre quem
são, seus modos de interpretar e se relacionar com o mundo.

c) As crianças na prática pedagógica e nas teorias


Na instituição pesquisada, a Proposta Curricular da
Rede Municipal e o Projeto Político Pedagógico encontram-
-se afinados com as concepções de criança e de infâncias
dos seguintes campos: psicologia, antropologia e sociologia
1 (PIAGET,1893-1980; FREUD, 1856-1939; LORENZ, 1903-1989; WALLON, 1879-

1962; SKINNER, 1904-1990; BANDURA, 1925-PRESENTE; GESELL, 1880-1961).

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
232 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

(WINICCOT, 1990; PIAGET, 1971; SARMENTO, 2008; VYGOT-


SKY, 1989; MORIN, 2003; CORSARO, 2011), e muitas delas
encontram-se presentes na formação proposta pela tese. As
concepções psicológicas encontram-se bem articuladas à teo-
ria desenvolvimentista, e as concepções sociológicas e antro-
pológicas, à compreensão da criança como sujeito histórico,
que pensa, reflete e interage com a cultura. Estas concepções
apareciam nos documentos lado a lado, sem que seus pontos
de tensão ficassem visíveis aos profissionais. Neste sentido,
todo processo recente de interpretação – antropo-social – da
criança como sujeito que reflete sobre a cultura encontrava-
-se subalternizado às perspectivas desenvolvimentistas, que
recorrentemente classificavam cronologicamente os saberes,
as capacidades e as potencialidades intelectuais, interativas
e perceptivas das crianças sobre si mesmas, os outros e os
mundos naturais e sociológicos. Diante deste contexto, reco-
nhecemos, juntamente com os profissionais, os avanços e as
tensões das perspectivas teóricas que, raramente, se refle-
tiam nas proposições pedagógicas – uma vez que estas eram
pensadas e construídas, sobretudo, através de parâmetros
desenvolvimentistas, refletidos em atividades de prontidão,
que se dirigiam a uma criança em constante estado de vir a
ser, negando-se recorrentemente a interagir com a criança
viva, pulsante, exploradora e interativa que se apresentava
no cotidiano. Nossos esforços pedagógicos eram investidos
em como ajudar a criança a deixar de ser infantil (criança)
para vir a ser um adulto (um ser maduro). Nossa escola de
infância, assim, como tantas outras que trilham os caminhos
desenvolvimentistas, ensinava suas crianças, ainda que não
estivesse plenamente ciente disso, a automutilarem sua na-
tureza infantil. Com a ajuda de Jenks (2002), conseguimos

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 233
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

hoje compreender que nossas intervenções junto às meninas


e aos meninos insistia que durante o tempo em que estives-
sem ali conosco no espaço escolar eles teriam que amadure-
cer, crescer, deixar gradativamente de ser o que eram (inquie-
tos, imaturos, seres de ausências, infantis).
Depois do rápido reconhecimento das concepções de
infâncias e de crianças que estavam em jogo no cotidiano es-
colar, através dos próprios pequenos, da prática pedagógica e
dos documentos oficiais que orientavam o trabalho na insti-
tuição, confirmamos que os educadores abraçaram o desafio
de pensar suas intervenções de modo mais afinado ao que
as crianças, de certo modo, diziam sobre si mesmas. Assim,
estreitamos o diálogo com a Sociologia da Infância e com al-
guns pesquisadores da perspectiva decolonial (CASA-NOVA,
2009; WALSH, 2001/ 2005/ 2009 & MIGNOLO, 2008). Os au-
tores decoloniais nos evocavam reflexões quanto ao próprio
modo como a Sociologia da Infância se consolidou, embora
não tenhamos, ao longo da tese, nos aprofundado. Referi-
mo-nos, especialmente, em relação aos grupos infantis que
colaboraram com a produção científica do campo: crianças
norte-americanas e europeias.
O grupo decolonial questionava o histórico processo de
colonização acadêmico e reivindicava a legitimidade cientí-
fica das ciências que se pensam, a partir da América Latina;
portanto, possuem lógicas e contextos culturais e sociais bem
diferentes da América do Norte e da Europa.
Em diálogo com estes estudos nos desafiamos a traba-
lhar com uma concepção de criança de modo a reconhecê-la
como principal informante de si mesma. Tentamos evitar in-
tervenções com elas, como se estivessem em estado de vir a
ser: gente, adulto, maduros, futuros responsáveis... Buscamos

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CAPÍTULO 9
234 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

compreendê-las, potencialmente, como nossas educadoras,


uma vez que, ao tentar educá-las, somos por elas educados
(FREIRE, 2003). Como se tratava de um processo de aprendi-
zagem, não foram poucas as vezes que fracassamos em nos-
so propósito. Contudo, cada fracasso pode ser reconhecido,
avaliado e reencaminhado exatamente porque estávamos
tentando ser na prática melhores profissionais com e para as
crianças.

A práxis como caminho de reconhecimento e reorganização da


rotina

Durante o processo de pesquisa, refletimos sobre quais


seriam os melhores caminhos formativos de todos os profis-
sionais envolvidos com a investigação. A pesquisa não podia
se furtar a este compromisso: pensar junto às treze educado-
ras do CEI estratégias de desenvolvimento de uma formação
continuada que ajudasse aquele coletivo a refletir sobre suas
concepções de Educação Infantil, de infância e de criança –
considerando, como ponto de partida, o próprio contexto de
atuação no qual nos encontrávamos e as questões que dele
emergiam.
Diante deste desafio formativo, decidimos nos apro-
ximar do conceito de práxis de Paulo Freire (2009), a fim de
compartilhar com o grupo de profissionais a compreensão de
como os estudos de Freire poderiam nos ajudar a reencami-
nhar as propostas e atividades de rotina do CEI.
Assim, apresentamos as seguintes definições da obra
do autor, que nos ajudam a compreender nossa ação reflexiva
no cotidiano: se não fosse a práxis, não haveria um “profun-
do questionar-se sobre si, sobre os outros e o mundo e, por

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO


CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 235
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

isto, esta palavra (práxis) verdadeira, transforma o mundo”


(FREIRE, 2003, p. 77). Freire ainda nos informa sobre práxis:
“a reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da
relação teoria/prática sem a qual a teoria pode ir virando blá-
bláblá e a prática, ativismo” (FREIRE, 2003, p. 22). Adentran-
do juntamente com o grupo de educadores do CEI no que con-
cerne à compreensão de Freire sobre a práxis, conseguimos
entender como prática e teoria poderiam estar de fato relacio-
nadas, não apenas conectadas – teoria e prática no cotidiano
escolar seriam duas faces de uma mesma moeda. Tal moeda
representava para nós o fazer pedagógico. Deste modo, teoria
e prática não deveriam encontrar-se distantes, como o senso
comum algumas vezes nos anunciava.
Logo, a teoria não seria um “blábláblá” se estivesse ar-
ticulada à prática. Para entender um pouco mais o caminho
desta articulação entre teoria e prática, nos remetemos aos
estudos de Garcia (2003), que em diálogo com o conceito de
práxis de Freire, defendia que a prática era o que colocava as
teorias em movimento e que as teorias se ressignificavam na
prática. Tal compreensão nos levava a entender que ambas
– teoria-prática – se retroalimentavam. Potencializavam, ain-
da, a prática, que nesta perspectiva não poderia ser um puro
ativismo, sem compromisso político. Nesta leitura, a prática
era, sobretudo, produtora de teoria. Ou seja, a atividade do-
cente envolvia, inevitavelmente, a produção de teoria – o que
potencializava a compreensão do/da professor(a) da peque-
na infância, como um(a) intelectual orgânico(a) (GRAMSCI,
2000).
Os estudos que fizemos na companhia de Freire possi-
bilitaram-nos o entendimento de que a práxis é o “que implica
a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transfor-

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CAPÍTULO 9
236 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

má-lo” (FREIRE, 2009, p. 77). E esse era nosso desejo ao longo


desta tese: transformar o nosso fazer pedagógico, a fim de que
ele nos ajudasse a compreender, a dialogar e a movimentar
melhor as teorias que naquele momento dispúnhamos para
pensar as interações das crianças conosco, entre si e com o
mundo, através das atividades de rotina.
Diante do reconhecimento de como Freire entendia
práxis, não foi difícil para os sujeitos envolvidos com o pro-
cesso de investigação criarem um paralelo entre a definição
freireana e os movimentos que pretendíamos. Ou seja, dese-
jávamos construir como estratégia de pesquisa no cotidiano
da instituição uma articulação constante entre teorias e prá-
ticas. De modo que uma triangulação entre saberes infantis
– saberes docentes-práxis – nos possibilitassem coconstruir e
re-construir aquele cotidiano.
Nosso primeiro movimento em diálogo com o concei-
to de práxis foi tentar identificar quais eram as teorias que,
efetivamente, se faziam presentes nas atividades de rotina
desenvolvidas no CEI. Ao olharmos para nossas propostas,
identificamos os seguintes elementos que se revelavam mais
presentes: a) uma concepção de crianças como um ser de au-
sências (LEITE FILHO, 2001), uma vez que suas vozes, seus
saberes e suas lógicas não eram considerados no processo de
elaboração das atividades, que por suas vezes eram pensadas,
quase exclusivamente sob a perspectiva dos saberes adul-
tos, sobre o que haveria de ser bom para o desenvolvimento
infantil; b) muitas das propostas de atividades que compu-
nham a rotina vinham de pesquisas feitas pelas educadoras
em blogs, coleções pedagógicas e um banco de atividades2
2 Considerando a composição deste banco de atividades, que de certo modo,
fornecia às educadoras mais antigas uma segurança sobre trabalhar sempre

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CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 237
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

que cada membro daquele grupo construiu ao longo de suas


trajetórias. Naquele lugar, as atividades autorais propostas
pelos profissionais para seus próprios grupos infantis eram
bem poucas; recorrentemente, fazia-se necessário convocar
as educadoras à reflexão sobre a necessidade de adaptações
das propostas pedagógicas, considerando o agrupamento
infantil no qual desenvolveriam determinadas propostas; c)
existia uma compreensão praticada (GOFFMAN, 1961), em-
bora oficialmente não dita, de que a Educação Infantil “boa”
era aquela que preenchia muitos papéis com as crianças. As-
sim, o “termômetro” para o envio das atividades das crianças
para casa era o volume de papéis preenchidos ao longo do
semestre. Em termos do conteúdo das propostas destas ativi-
dades de folhas, conseguimos mapear os seguintes elemen-
tos: registros de conceituação sempre dicotômicas (dentro x
fora, maior x menor, cheio x vazio etc.); celebração de datas
comemorativas de um modo bastante empobrecido (recor-
rentemente pintava-se uma imagem relacionada à data); o
reconhecimento e a diferenciação entre as formas geométri-
ca e cores; ensaios relacionados à escrita (cópia e colagem de
letras isoladas, às vezes relacionada a algum conteúdo literá-
rio, outras vezes a ensaios de escrita espontânea); exploração
artísticas livres, raramente tematizadas pelo reconhecimento
de algum tema local ou universal, e registro de discussões
articuladas por projetos e/ou estudos de centro de interesse,
planejado juntamente com a gestão para toda instituição e/ou
agrupamentos infantis específicos. O preenchimento dessas
com o mesmo agrupamento infantil. Este banco de atividade era a afirmação do
profissional de que ela sabia o que fazer em determinado agrupamento. Desta
forma, foi um desafio provocar a movimentação dos educadores entre as tur-
mas da Educação Infantil. Havia uma conformação com os saberes enraizados,
das experiências constituídas e uma resistência à mudanças.

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CAPÍTULO 9
238 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

folhas, para nós, educadoras, representava a tentativa de nos


comunicarmos com as famílias a respeito das questões que
trabalhávamos na escola infantil; d) entre esses elementos
gostaríamos de registrar que, embora, tivesse havido entre a
instituição e as famílias das crianças uma discussão sobre da-
tas comemorativas, tendo as famílias não aberto mão de qua-
tro das celebrações (dia das mães e/ou dos pais celebrados
de algum modo, assim como festejos das férias de meio de
ano -festa na roça- e confraternização de encerramento), tais
datas mantiveram-se no calendário de celebrações da insti-
tuição. Apesar desta opção das famílias, as educadoras se mo-
viam e norteavam muitas de suas interações e diálogo com os
pequenos considerando um calendário de datas comemorati-
vas, onde sempre apareciam carnaval, dia da mulher, páscoa,
índio, descobrimento do Brasil, independência do Brasil, pri-
mavera, dia das crianças e Natal. As datas foram escritas por
mim nesta sequência, porque de fato elas se traduziam como
uma “roda do ano”, que mobilizava muitas das conversas das
educadoras com as crianças. As datas comemorativas sem-
pre representaram um espaço de segurança para educadoras
sobre o que fazer com as crianças, tanto no que concerne a
pesquisas, quanto no modo como compreendem historica-
mente o que se faz na Educação Infantil, tendo sido sempre
um desafio tensionar este “lugar, aparentemente, seguro dos
saberes” daquelas educadoras. Ao longo da pesquisa o possí-
vel foi pensar outros caminhos para a discussão dessas datas,
buscando a superação, e, por fim; e) havia naquele grupo de
profissionais uma tentativa de incorporar, nas práticas, o tra-
balho por projetos, que eram feitos sempre coletivamente nas
reuniões pedagógicas de planejamento, tanto os temas como
muitas das atividades. Tratava-se de um planejamento acom-

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CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 239
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

panhado mais de perto pela gestão, que juntamente com os


profissionais, a partir de temas selecionados nas reuniões,
pensava atividades diferenciadas para cada agrupamento in-
fantil. As outras atividades citadas nos itens anteriores acon-
teciam em paralelo. As educadoras diziam estar somando
e investindo no desenvolvimento infantil, aproveitando os
tempos em que os meninos e as meninas se encontravam na
Educação Infantil.
Diante das propostas que pautavam os planejamen-
tos e a movimentação na rotina dos(as) profissionais, con-
seguimos, através de nossa práxis investigativa, marcar a
presença das seguintes perspectivas teóricas: a) a compre-
ensão da criança como uma tábua rasa (LOCKE, 1999), vazia
de conhecimento e de cultura; b) a presença do behavioris-
mo (1992); havia uma perspectiva comportamentalista que
buscava educar e controlar os comportamentos infantis em
uma perspectiva adultocêntrica, através da educação por
modelos, que deveriam ser copiados e reproduzidos pelos
pequenos; c) como já dito, a perspectiva desenvolvimentis-
ta também orientava as ações dos profissionais, principal-
mente a teoria psicogenética de Piaget (1971) (tal teoria era
balizadora da maturidade infantil sobre as possibilidades
interativas com as atividades propostas); d) a compreensão
da Educação Infantil como um espaço primordial de socia-
lização (PARSONS, apud JENKS, 2002) de crianças bem pe-
quenas, e e) como um espaço de prontidão para o ensino
fundamental, reivindicação exigida, sobretudo, pelas clas-
ses médias para seus filhos, que entendem a Educação In-
fantil como preparatória dos pequenos para a cultura esco-
lar. Tal educação favoreceria o sucesso escolar infantil, uma
vez que amenizaria os impactos entre os diferentes modos

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CAPÍTULO 9
240 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

de organização destas duas instituições: a família (cuja ex-


periência a criança já possui) e a escola (onde a crianças en-
contra-se como recém-chegada).
Nossa compreensão era de que estas perspectivas
teóricas estavam presentes, estruturando as atividades de
rotina da instituição – tanto as propostas pela Secretaria
de Educação como algumas articuladas pela gestão e pelas
educadoras do CEI. Reconhecemos que muitas delas denun-
ciam as contradições de nossas concepções pedagógicas,
e que muitos de nós só nos tornamos conscientes dessas
contradições através da investigação proposta pela tese, da
qual este texto nasce como um recorte de aprofundamento
da discussão.
Assim retomamos o movimento de práxis constituído
nesta pesquisa, pois foi ele quem nos possibilitou perceber
como as teorias se moviam na prática, como a prática trans-
formava e ressignificava as teorias, sendo ela a própria pro-
dução de teoria. Teoria e prática, articuladas pelos diálogos,
viram práxis, historicizam e reformulam, continuamente, os
saberes e as experiências humanas.

O diálogo e as questões em jogo no trabalho de pesquisa com


crianças

Ao longo do processo de pesquisa, tornou-se indispen-


sável pensar e discutir sobre questões que envolviam o modo
como encaminhávamos o processo dialógico com as crianças
no cotidiano, uma vez que não conseguiríamos realizar uma
aproximação e/ou uma articulação entre os adultos e os pe-
quenos sem nos dispormos a aprender a dialogar com os me-
ninos e as meninas, em perspectivas mais horizontais.

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CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 241
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

Neste sentido, compartilhávamos da compreensão de


que precisávamos estudar mais as questões que estavam em
jogo quando falávamos de diálogo entre adultos e crianças.
Decidimos, então, trabalhar na perspectiva freireana o
conceito em questão. Recortamos de sua obra a seguinte de-
finição de diálogo:
é uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma
matriz crítica e gera criticidade. Nutre-se de amor,
de humildade, de esperança, de fé, de confiança.
Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois
polos do diálogo se ligam assim, com amor, com
esperança, com fé, um no outro, se fazem críticos
na busca de algo. Instala-se, então, uma relação
de simpatia entre ambos. Só ali há comunicação
(FREIRE, 2006, p. 115)

Apesar dos desafios que enfrentávamos sobre como


dialogar com os pequenos, tínhamos fé nas crianças, como
uma alteridade que potencialmente poderia nos fazer melhor
compreender nosso próprio trabalho pedagógico. Desejáva-
mos nos comunicar com elas para melhor entender não ape-
nas as teorias que possuíamos sobre suas infâncias, mas tam-
bém desejávamos, na pesquisa, tentar compreender aquelas
crianças e suas infâncias, a partir do que elas próprias po-
diam nos dizer sobre si mesmas, através da relação que elas
conosco teciam naquele microcosmo do cotidiano no CEI.
É Freire quem fortalece a nossa compreensão de que “o
diálogo é comunicativo” (FREIRE, 2010, p.67) e só acontece
por meio da coparticipação do ato de pensar, pela reciproci-
dade, pela intencionalidade e não pela passividade. Logo, só
há diálogo diante do respeito e do encontro com o outro que
pensa, fala, interpreta e comunica seus saberes e suas expe-

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CAPÍTULO 9
242 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

riências no mundo ao outro. E como nos esforçávamos para


compreender na prática os pequenos, como sujeitos com ex-
periências e leituras de mundos (FREIRE, 2010), era-nos urgen-
te aprender a conversar com eles.
Considerando as questões que nos apresentava Freire,
sobre como o diálogo se desenvolve – através do reconheci-
mento das experiências e da historicização do outro, que se
encontra em uma arena, dialogando conosco –, nasceu nosso
movimento de pesquisa com o cotidiano. As educadoras fo-
ram, de certo modo, mobilizadas a estarem em constante es-
tado de alerta, policiando-se e vigiando-se, em relação às con-
cepções de criança e de infâncias que se materializavam em
suas práticas e que por nós foram mapeadas através de exer-
cício de práxis. Buscávamos superar as intervenções práticas
que inscreviam meninas e meninos como seres de ausências.
Neste sentido, policiar-se e vigiar-se nos apresentava
como convocação autoformativa, exercício de autoconhe-
cimento (SANTOS, 2003), que nos ajudava com nosso com-
promisso coletivo de aprender a auscultar (ROCHA, 2008) e a
dialogar (FREIRE, 2009) com as crianças.
Auscultar, ouvir sensível e mobilizadamente as vozes
infantis, não nos parecia tão difícil como buscar dialogar com
elas. Contudo, aprendemos que somente auscultar as meni-
nas e os meninos não nos ajudava muito, uma vez que nosso
compromisso com as vozes infantis era tentar deslocar nos-
sas práticas, recorrentemente adultocêntricas. Logo, ouvir,
escutar e auscultar nos convocava a falar, dizer e comunicar.
E como aprenderíamos isso sem subalternizá-las? Definitiva-
mente, não sabíamos se seríamos capazes de tal coisa. Hoje,
com a tese concluída, reconhecemos que o sucesso dos exer-
cícios de diálogos entre adultos e crianças numa perspectiva

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CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 243
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

horizontal foram raros. Todavia, o compromisso de que as re-


lações entre esses sujeitos na rotina fossem mais horizontais
fez-nos gestar e desenvolver práticas pedagógicas mais sensí-
veis às crianças. O que foi uma conquista da tese no contexto
em que a pesquisa se desenvolveu.
Reconhecemos atualmente que a tese, por si só, não se-
ria capaz de, na sua curta temporalidade investigativa, nos
fazer aprender a dialogar com as crianças. Mas revela-se in-
questionável sua importância em nos ajudar a sermos mais
sensíveis aos pequenos, às suas vozes – às suas experiências
e aos seus saberes –, que nos auxiliaram a desenhar rotinas
mais próximas e respeitosas às crianças como sujeitos histó-
rico-culturais, que pensam, refletem e afetam os fenômenos
sociais em seus contextos.
Durante a tese conseguimos mapear os seguintes desa-
fios que se colocavam ao desenvolvimento do diálogo entre
adultos e crianças:
O primeiro desafio, do nosso ponto de vista, refere-se
às diferenças intergeracionais (FERREIRA, 2004). Falamos
não somente das distinções cronológicas, mas, também, as de
senso comum. No que diz respeito às diferenças cronológicas,
desafiávamo-nos a reconhecer elementos culturais infantis,
diferentes das nossas infâncias. Tal tentativa de reconheci-
mento buscava facilitar nossa circulação com um pouco mais
de propriedade às articulações e aos sentidos que os peque-
nos faziam no processo de apropriação e de reinterpretação
das atividades de rotina.
Quanto às diferenças relacionadas ao senso comum,
nosso desafio era romper com as relações verticais de poder,
que os adultos estabeleciam junto aos pequenos. Pois estas
relações, como já dito, inscreviam as crianças como seres

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CAPÍTULO 9
244 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

imaturos, portanto, em situação de desvantagem em relação


ao tempo cronológico vivido pelos adultos. Neste sentido, re-
conhecer e respeitar as particularidades de cada grupo gera-
cional era fundamental para a articulação da perspectiva dia-
lógica no sentido freireano.
O segundo desafio desdobra-se do primeiro e referia-
-se às diferenças entre as linguagens utilizadas por esses dois
grupos em suas articulações dialógicas. Assim, reconhece-
mos que embora a fala tenha sido a linguagem mais utiliza-
da ao longo da pesquisa, revelava-se limitada em termos de
comunicação entre os sujeitos da pesquisa. Muitas vezes as
crianças não respondiam de acordo com as possibilidades de
leitura das lógicas adultocêntricas. A linguagem e as palavras
escolhidas para comunicação muitas vezes nos jogam em
uma arena, cujos sentidos traziam a polifonia de experiências
dos sujeitos com elas (BAKTHIN, 2003); tínhamos dificulda-
des de ler os sentidos do modo como às vezes as crianças uti-
lizavam-se das palavras. Nisso víamo-nos confinando o seu
compreender aos nossos, e não tínhamos certeza se conse-
guiríamos fazer diferente.
Assim, compreendíamos que muitas das dificuldades
comunicativas através da linguagem verbal relacionavam-se
ao modo como interpretávamos e utilizávamos os signos lin-
guísticos. A linguagem oral impunha uma certa linearidade
comunicativa que nem sempre é própria das crianças, nem
nossa. Há muitas outras linguagens que a complementam,
que acontecem simultaneamente, como, por exemplo, o cor-
po, que faz inferências, que complementa sem aviso prévio a
comunicação em jogo.
Diante deste entendimento, buscamos incorporar à
pesquisa outras estratégias comunicativas exploradas pelas

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CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 245
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

crianças: a brincadeira, o desenho, o gestuário do corpo e


suas expressões faciais. Isso exigia de nós um processo de (re)
alfabetização mais profundo em outras linguagens infantis.
Para isso passamos a explorar e, de certo modo, a exercitar a
comunicação com elas em outras linguagens.
E como terceiro desafio, gostaríamos de registrar nos-
sos esforços epistemológicos para romper com a perspectiva
desenvolvimentista, que constantemente conduzia nossas
concepções e práticas educativas. Tal perspectiva nos fazia
constantemente duvidar de que seria possível constituir in-
terações dialógicas com as crianças, sem subalternizá-las às
lógicas adultocêntricas.
No enfrentamento desses desafios, ao longo da tese,
que se desafiava a pensar o diálogo como uma perspectiva
metodológica na pesquisa com crianças (CARREIRO, 2013),
fomos aprendendo que ao tentar dialogar com os pequenos
conseguíamos efetivamente pensar as atividades pedagógi-
cas, mais próximas da cultura de pares infantis (CORSARO,
2011), daquela Educação Infantil.
Deste modo, defendemos que apesar de nossas contra-
dições epistemológicas e dos desafios que identificamos no
caminho para a constituição dialógica com as crianças, o tra-
balho investigativo revelou-se importante – pois este muito
colaborou para que as educadoras compreendessem atalhos
importantes, que coletivamente as levassem a refletir sobre
os elementos que envolviam a constituição da práxis peda-
gógica. Pensar e exercitar relações tecidas de modos mais
horizontais com as meninas e os meninos nos fortaleceu a
perseguir a prática do diálogo, como uma perspectiva mais
democrática ao desenvolvimento da prática educativa. Isso,
de fato, ocorreu no movimento de diálogo entre os sujeitos da

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CAPÍTULO 9
246 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

pesquisa. Pois conseguimos envolver as crianças no planeja-


mento das rotinas que arquitetávamos cotidianamente.

Conclusões provisórias...

A tese, ao longo de seu desenvolvimento, nos possibi-


litou compreender o quanto é complexo desenvolver pesqui-
sas que envolvam as crianças, não somente pelas implicações
teóricas, éticas, políticas e estéticas que se articulam na ela-
boração de um texto acadêmico mas, sobretudo, pelas ques-
tões metodológicas que ainda nos apresentam muitos desa-
fios, especialmente sobre como trazer as vozes infantis para
o trabalho acadêmico, reconhecendo a importância – a potên-
cia – do que pode significar aprender a dialogar com elas.
Não podemos esquecer que, ao fazer isso, estamos rom-
pendo com uma perspectiva histórica, na qual as crianças
pouco foram convidadas a falar nas ciências humanas, que
sempre foram produzidas sobre elas e não com elas. Por isso
mesmo, foram classificadas como infantes – supostamente,
“precisavam” de um adulto que falasse por elas. Neste movi-
mento investigativo, focado no que as crianças tinham a dizer
sobre suas experiências no espaço escolar, nosso principal
desafio foi como aprender a dialogar com elas, sem submetê-
-las às lógicas adultocêntricas.
Desafio que reconhecemos não ter conseguido dar con-
ta plenamente. Talvez inicialmente a pesquisa até tivesse
tido esta utopia (GALEANO, 2002): conseguir conversar com
as crianças, rompendo totalmente as relações verticais de au-
toridade dos adultos sobre as crianças. Mas, ao longo de seu
desenvolvimento, os(as) educadores(as) puderam reconhecer
que ainda nos falta um longo caminho para aprendermos a

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CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 247
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

dialogar horizontalmente com as crianças. O fato do reconhe-


cimento de que iniciamos um trabalho utópico não nos desa-
nimou. Pelo contrário, nos fortaleceu quanto ao entendimen-
to de que ele não aconteceria se não fosse iniciado.
Iniciamos o exercício de escuta sensível às vozes dos
meninos e das meninas (BARBIER, 1998) para aprender a
auscultar (ROCHA, 2008) o que elas falavam entre si e nos co-
municavam das experiências que vivenciavam no cotidiano
daquela Educação Infantil. Assumimos uma postura de res-
peito às suas vozes, tentando nos alfabetizar em suas culturas
e linguagens; simultaneamente, investigávamos nossas con-
tradições epistemológicas, tentando entender os caminhos,
descaminhos e (re)encaminhamentos possíveis entre discur-
sos e práticas pedagógicas. E compreendemos que os estudos
que fizemos sobre os conceitos de práxis e de diálogo na obra
freireana contribuíram bastante para que revisitássemos as
rotinas arquitetadas e os cotidianos vividos entre adultos e
crianças do CEI Carolina Amorim.

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CAPÍTULO 9
248 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS SOCIAIS DA INFÂNCIA E DA OBRA DE PAULO FREIRE

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CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 249
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250 CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA:
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CAPÍTULO 9
CAMINHOS E DESCAMINHOS TEÓRICOS NO TRABALHO DE PESQUISA COM A PEQUENA INFÂNCIA: 251
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AFIRMANDO A
DESCOLONIZAÇÃO DA MENTE
CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 255
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

Capítulo 10
Alfabetização, interculturalidade e
questões étnico-raciais no cotidiano
escolar: diálogos com Paulo Freire
Mairce da Silva Araújo
Regina de Fatima de Jesus

Que farei com as minhas noites quando acabar de


contar? (Florens, personagem de MORRISON, 2009)
[...] o meu bem mais precioso foi aprender a ler e a
escrever. Saber ler e escrever é uma maneira de es-
ticar, bem esticada, a voz da gente, fazendo que ela
chegue a tempos e a lugares distantes [...] (Esperança
Garcia, 1770)
A esperança na libertação não significa já, a liberta-
ção. É preciso lutar por ela, dentro de condições his-
toricamente favoráveis. Se elas não existem, temos de
pelejar esperançosamente para criá-las. A libertação
é possibilidade, não sina, nem destino, nem fado
(FREIRE, 1995, p. 30).

I
niciamos nosso artigo trazendo para o diálogo mais
três vozes, além das nossas, que nos inspiraram a re-
fletir sobre profunda imbricação entre o processo de
alfabetização no cotidiano escolar de crianças, jovens
e adultos das classes populares, questões étnico-raciais e os
legados freireanos.
Assim, as vozes de Florens, uma personagem do livro
“A Dádiva”, de Toni Morrison, a primeira mulher negra a ser
distinguida com o Nobel da Literatura; de Esperança Garcia,

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
256 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

mulher negra escravizada que se alfabetizou e ousou escrever


uma carta em 1770 ao governador de Piauí, denunciando as
condições em que vivia e pedindo clemência; entrecruzadas
com a de Paulo Freire, mestre sempre presente desde nossa
formação no Curso Normal, nos guiarão no propósito de re-
afirmar a potência da proposição freireana de que a “leitura
de mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE, 1996). Tra-
duzida como palavramundo, esta pode contribuir na luta pela
libertação das condições historicamente desfavoráveis a que
estão submetidas às classes populares em nosso país.
Este texto, portanto, é um texto de vozes, de palavras-
mundo de quem busca, por meio de microações afirmativas
cotidianas (JESUS, 2004, 2013), inventar caminhos e possibi-
lidades contra-hegemônicas.
Contextualizada na América do Norte, nos finais do sé-
culo XVII, o livro de Morrison nos traz a comovente história
narrada por Florens, uma menina africana escravizada que é
dada por sua mãe a um fazendeiro como pagamento da dívida
de seu patrão. Florens aprende a ler e a escrever e, em uma
escrita marcada pela dor, narra a sua trajetória, em busca de
se apropriar e tomar consciência daquilo que viveu, fazendo
da narrativa escrita um caminho para entender o dramático
ato de sua mãe. A indagação da personagem Que farei com as
minhas noites quando acabar de contar? expressa a potência
da escrita e da narrativa como um processo de busca de si.
Atravessamos o oceano e chegamos ao Brasil, pulamos
um século, e encontramos uma outra negra, uma mulher, tam-
bém de origem africana, porém agora não mais personagem
de um romance, mas sim um sujeito e uma história encarna-
da, que não pode ficar perdida para a história, como nos ensina
Benjamin (1994, p. 223), que também faz uso da escrita na

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 257
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

perspectiva da libertação. Esperança Garcia, mulher negra e


na condição de escrava no século XVIII, alfabetizada por pa-
dres jesuítas, vale-se da escrita para denunciar os maus tratos
sofridos. Em carta datada em 06 de setembro de 1770 e en-
dereçada ao governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho
de Castro, Esperança relata as precárias condições a que ela,
seus filhos e companheiros eram submetidos na fazenda do
Capitão Antônio Vieira de Couto, e ainda reivindica o direito
de retornar à antiga fazenda de algodão de onde viera. A carta
escrita pela mulher negra, ainda na condição de escrava, foi
descoberta no arquivo público do Piauí pelo historiador Luiz
Mott em 1979, sendo reconhecida como o documento mais
antigo no Brasil de reivindicação de uma escrava a uma auto-
ridade. Destacamos aqui a potência deste documento por ser
escrito por uma mulher negra que, subvertendo a lógica da
época, por sua condição de escravizada, conseguiu se alfabe-
tizar e ousar dizer sua palavra.
Ficamos pensando que Esperança Garcia, por sua histó-
ria de interdição, sabia, pela experiência, o que Paulo Freire nos
traz em suas reflexões: “A esperança na libertação não significa
já, a libertação. É preciso lutar por ela... e se as condições não
são, historicamente favoráveis,... temos de pelejar esperanço-
samente para criá-las” (FREIRE, 1995, p. 30). E Esperança, que
já se mostrava no nome, cria a possibilidade, cria o caminho,
diz sua palavra – uma palavramundo cuja dor e sofrimento não
impediu de anunciar possibilidades ­emancipatórias.
Com as histórias de Florens e de Esperança Garcia,
exemplares de tantas outras histórias que permanecem anô-
nimas, retomamos nosso diálogo com Freire, para quem o
processo de ensinar a ler e a escrever deve significar cons-
truir um caminho junto aos alfabetizandos e alfabetizandas,

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
258 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

que foram silenciados e marginalizados pelo poder, que con-


tribuísse para que eles e elas pudessem “tomar a palavra”.
Tanto Florens quanto Esperança Garcia “tomaram a palavra”
e confirmaram, assim, o sentido mais profundo do conheci-
mento, que é contribuir para o aperfeiçoamento do ser huma-
no, da sociedade e do mundo.
Ler e escrever para quê? Ler e escrever para quem?
Perguntas que continuam sendo simples, mas que ainda per-
manecem nebulosas no cotidiano escolar, esvaziadas por me-
todologias de caráter tecnicista, apoiadas por cartilhas, que
enfatizam a cópia e a repetição e que reduzem a aprendiza-
gem da leitura e da escrita a um mero processo de codificação
e decodificação. Nessa perspectiva, ainda é comum receber-
mos de crianças em processo de alfabetização, quando inda-
gadas sobre para que serve aprender a ler e a escrever, expli-
cações como para fazer dever, né?
Se o contexto de dominação vivido tanto por Florens
quanto por Esperança contribuiu, de uma forma mais concre-
ta, para que as mesmas pudessem entender o sentido mais
profundo do conhecimento, do qual se apropriavam ao en-
trarem no território das letras, essa descoberta não tem sido
facilitada para nossas crianças das classes populares.
Freire (1978) explica isso ao colocar em discussão a
concepção bancária de educação, que continua a inspirar
práticas alfabetizadoras na escola, muitas vezes apoiadas por
“especialistas”, que insistem em reeditar o velho com nova
roupagem, como, por exemplo, a redescoberta atual do mé-
todo fônico. Em artigo produzido recentemente, apontamos
essa questão:
São visíveis as consequências de um trabalho al-
fabetizador voltado para a apropriação de um mo-

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 259
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

delo textual tão pobre, como o que encontramos


nas cartilhas tradicionais. Produções do tipo: “A
mamãe é boa. A mamãe é bonita. A mamãe come
bolo”, tão comuns nos cadernos e livros didáticos
das crianças em fase de alfabetização, revelam que
os alunos e alunas aprendem na escola que escre-
ver não é registrar suas histórias, pensamentos
ou desejos. Escrever é reproduzir a ideia de outro:
aqui, a da autora da cartilha usada em sala de aula.
(MORAIS e ARAUJO, 2008, p.161).

Caminhando em outra direção, entendemos, como Fei-


re, que apesar das intensas contribuições e denúncias na área
da educação, acumuladas nas últimas décadas, grande parte
das práticas alfabetizadoras presente nas escolas ainda não
reconhece crianças, jovens e adultos como sujeitos produto-
res/as de cultura. Continua-se a se pensar o processo ensino-
-aprendizagem como um processo de doação de alguém que
sabe para alguém que não sabe. Da mesma forma como ainda
permanece pairando em nossas escolas um modelo abstrato
e idealizado de aluno.
Contudo, a maioria de crianças, jovens e adultos que es-
tão nas escolas públicas hoje, lutando pelo domínio da lingua-
gem escrita e pelo seu direito a dizer a sua palavra, faz parte do
grupo das Florens e Esperança Garcia, ou seja, o grupo daque-
les e daquelas que sofrem o sentenciamento da história através
de subjugação, dominação, diáspora, deslocamento. Com eles e
com elas podemos e devemos aprender nossas lições mais du-
radouras de vida e pensamento (BHABHA,1998, p. 206). Assim
como Freire, Homi Bhabha (1998) tem nos alertado sobre a po-
tencialidade criativa e revolucionária das estratégias de vida
construídas pelas classes populares a partir da experiência
afetiva da exclusão social (TAVARES e ARAUJO, 2003, p. 137).

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
260 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

São essas crianças, jovens e adultos que continuam a


desafiar a construção de uma prática alfabetizadora que dia-
logue com as experiências vividas por eles e elas fora do am-
biente escolar. Sujeitos pobres, negros e negras, mestiços e
mestiças, da periferia urbana, do campo, trabalhadores e tra-
balhadoras, das mais diferentes idades, que a partir de suas
experiências de vida elaboram conhecimentos, formas de
pensar, resolvem problemas, na vida são rápidas e espertas,
mas na escola são lentas e a cada ano engordam os números
das estatísticas do fracasso escolar. Martins exemplifica tal
afirmação com suas pesquisas dedicadas a ouvir crianças
das frentes de ocupação, nas regiões remotas da Amazônia,
cujas falas revelavam compreensões “surpreendentes sobre
os acontecimentos e sobre os limites e possibilidades de suas
vidas, além de uma discreta, mas clara crítica aos adultos por
excluírem-nas das discussões sobre o que estava acontecen-
do” (2009, p.106).
Na busca de contribuir para o rompimento desse
quadro, em reflexões sobre a vivência cotidiana no mundo
da escola, produzidas anteriormente (TAVARES e ARAUJO,
2003, p. 135), apontamos que as aproximações entre o le-
gado de Paulo Freire, a epistemologia da complexidade e os
estudos pós-coloniais poderiam apontar novas pistas para
a construção de práticas alfabetizadoras emancipatórias.
Práticas que potencializem professores/as e estudantes a
escrever e dizer suas próprias palavras, especialmente em
contextos históricos de exclusão e negação das diferenças
culturais, como na sociedade brasileira, em que o processo
de colonização historicamente contrapôs culturas, impon-
do uma cultura dominante e buscando silenciar as culturas
dominadas.

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 261
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

Entre essas práticas, dialogando com Freire (1978,


1992), temos defendido que ambientes alfabetizadores fa-
voráveis às crianças, jovens e adultos das classes populares
precisam incorporar as representações desses sujeitos sobre
a sua própria realidade, suas leituras de mundo que precedem
a leitura da palavra e clamam por tornar-se palavrasmundo.
Ou seja, não basta criar situações de leitura e escrita em que
crianças, jovens e adultos, interagindo com a linguagem es-
crita, possam dela se apropriar. É preciso que, desde o início
de sua interação com a linguagem escrita na escola, crianças,
jovens e adultos percebam que, por meio dessa forma de lin-
guagem, eles e elas podem expressar-se e expressar suas for-
mas de ver e interagir com o mundo (ARAÚJO, 2004).
Assim, o favorecimento de ambientes alfabetizadores
que se valham de perspectivas interculturais poderá acolher
e dialogar com histórias, experiências, valores, saberes, leitu-
ras de mundo de crianças, jovens e adultos que buscam na es-
cola um instrumento para esticar, bem esticada, a voz da gente,
fazendo que ela chegue a tempos e a lugares distantes, como nos
ensinou Esperança Garcia.
Pensar em ambientes alfabetizadores que potenciali-
zem crianças, jovens e adultos das classes populares nos es-
timula a pensar igualmente em processos emancipatórios às
professoras alfabetizadoras das classes populares, às muitas
professoras negras que compõem o magistério público, prin-
cipalmente em se tratando do município de São Gonçalo, lo-
cus de nossas pesquisas, um município marcadamente afro-
descendente.
Assim, a memória busca cenas cotidianas, e em uma
dessas cenas encontra-se uma professora que, ao participar
de uma aula do Curso de Pós-Graduação lato sensu “Alfabe-

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
262 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

tização dos Alunos das Classes Populares”1, traz uma narra-


tiva que muito nos instiga a pensar sobre a interdição, sobre
a invisibilização do pertencimento étnico-racial negro. Em
uma roda de conversa, pois nossos encontros são referencia-
dos pelos valores civilizatórios afro-brasileiros (TRINDADE,
2005), Elizabeth, mulher negra alfabetizadora, cuja voz ainda
ecoa de forma mais nítida por seu sentimento de potência/
impotência que marca muitas de nós, professoras, diz: Eu
ouço muito, fiquei por último. Escolhi esta foto2 (mulher ao tele-
fone) porque tive sempre o diálogo negado... E, ao final da aula,
depois que quase todas saíram, volta e, parecendo envergo-
nhada, pergunta: E aí, professora, como me saí? Eu não fiz feio?
A minha fala foi boa? E nos conta, também, que não tivera co-
ragem para olhar o resultado da prova para ingresso no Curso
de Pós, quem o fez foi sua filha: Mamãe, você conseguiu, você
passou, o seu nome está na lista!
Parece que tudo se torna pequeno, sem importância,
diante dos desafios contemporâneos. Pequena e insignifican-
te, sem voz e sem vez, talvez se sentisse a professora que há
18 anos é alfabetizadora: ... a minha fala foi boa? Quem ouve
a professora? De onde ela fala? Será que não sabe que em sua
voz ecoa a de tantas outras mulheres negras e alfabetizado-
ras? Será que não sabe que sua palavra reflete a de tantas ou-
tras? Que palavra ela fala? Que palavra ela escreve? Se foi por
tanto tempo calada, se ainda não reconhece a importância de
sua palavra que precisa ser dita para denunciar e anunciar,
1 Coordenado por Regina Leite Garcia, o Curso de Pós-Graduação é uma das
atividades desenvolvidas pelo Grupalfa – Grupo de Pesquisa Alfabetização dos
Alunos das Classes Populares e, fazendo parte do Grupo, também fomos profes-
soras do Curso durante alguns anos.
2 Na atividade de apresentação, disponibilizamos imagens para que cada aluna-

-professora escolhesse uma e se apresentasse a partir da mesma.

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 263
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

que palavra ensina aos alunos e às alunas das classes popula-


res, a ler, escrever e dizer? (JESUS, 2004).
É à palavramundo do mestre Paulo Freire (1988) que
nos referimos ao falar em alfabetização, pois o que importa é
compreender o processo de interdição, de negação da palavra,
historicamente vivido pelas classes populares, fruto da imposi-
ção de uma única lógica imposta pela classe hegemônica: “Para
dominar, o dominador não tem outro caminho senão negar às
massas populares a práxis verdadeira. Negar-lhes o direito de
dizer sua palavra, de pensar certo” (FREIRE, 1996, p.123).
Gusmão também nos faz pensar sobre a questão. Não
são somente os alunos e alunas das classes populares são in-
terditados em seu direito de dizer, mas há uma indiferença em
relação às diferenças do social refletindo nas relações educa-
cionais e, aí, encontram-se as professoras negras:
... os processos educativos, a escola e as políticas
educativas não podem se fazer indiferentes às di-
ferenças do social e ao saber antropológico que
as descortina e explica, sob pena de perderem-se
em práticas autoritárias que refletem tão somen-
te os segmentos dominantes, negando cidadania
aos sujeitos sociais, alvo e objeto de suas práticas
(GUSMÃO, 1999, p. 74).

Tais professoras, desviando-se da norma, não perten-


cem à classe média, e tampouco se identificam com a cultura
dominante, mas são formadas para trabalhar com a cultura
do outro, que nega a elas o direito de dizerem suas próprias
palavras, ou seja, a palavramundo impregnada por suas cul-
turas de origem.
Ao negar às classes populares o direito de dizer a pala-
vra, como aponta Freire, e ao ficar indiferente às diferenças

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
264 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

do social, como nos lembra Gusmão, a polissemia também é


negada, e é negado o direito de se contrapor à cosmovisão do-
minante. Em Bakhtin/Volochinov3 buscamos compreender o
porquê de a palavra perder o seu espaço polissêmico: La clase
dirigente se esfuerza por impartir al signo ideológico un carácter
eterno, supraclassista, por estinguir u ocultar la lucha entre los
juicios sociales de valor que aparecen en aquél, por hacer que el
signo sea uniacentual (1976, p. 37). Esse tratamento, dado ao
signo na escola pública, no cotidiano em que estão imersas
as mulheres-professoras, vem se refletir na desqualificação
da cultura das professoras, de seus pertencimentos étnico-ra-
ciais e de seus alunos e suas alunas, que em sua maioria per-
tencem às classes populares e são afrodescendentes, quando
lhes é imposta como única e verdadeira a visão da classe he-
gemônica, que é eurocêntrica.
O signo, tratado como uniacentual, afasta o perigo de
tornar-se um espaço de luta de classes e, além disso, como diz
Gusmão, questões de gênero, raça e etnia ficam encobertas
diante do mito da igualdade defendida no processo educativo.
O signo não é neutro nem fixo: é ideológico, é multiacentual.
No sentido de potencializar as práticas pedagógicas das
professoras alfabetizadoras, seus saberesfazeres, nossa opção
tem sido pela potencialização de espaços narrativos em que
as experiências pedagógicas são compartilhadas, e o que per-
cebemos é que, a partir dos momentos em que afirmam suas

3 V. N. Volochinov, um dos discípulos de M. Bakhtin, assinou algumas das obras


que posteriormente foram atribuídas a Bakhtin, dentre elas Marxismo e filosofia
da linguagem, publicado na Rússia em 1929. Não são claros os motivos pelos
quais o autor tenha se negado a assinar suas obras, mas acredita-se que não
tenha aceitado submetê-las aos cortes exigidos pela censura da época. Este frag-
mento pertence à obra El signo ideológico y la filosofia del lenguaje. Tradução:
Rosa Maria Rússovich, da versão inglesa Marxism and philosophy of languaje.

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 265
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

identidades, as professoras passam a desenvolver práticas


pedagógicas também afirmativas e potencializadoras de seus
alunos e alunas. Assim, Elizabeth, em outro momento de sua
narrativa, após a conclusão do Curso de Pós e na busca por
autoformação, instigada por sua própria história de vida, nos
diz:
O que sabemos até hoje é que nós fomos escravos.
Então, é preciso contar outra história para nossos
alunos se perceberem. A gente sempre estudou
com a visão eurocêntrica. Os brancos, os brancos
e os brancos; os negros, aquela história. Nem fa-
lavam na época que os negros foram trazidos, fa-
lavam: “os negros vieram”. Como se fosse algo es-
pontâneo. Os negros foram trazidos, a gente sabe, e
que aconteceu aquela exaltação à princesa Isabel...
Eu trabalho muito através da identidade racial, das
várias identidades que nós temos. (...) porque ini-
cialmente eles não conseguem se perceber. Tem a
pele clarinha, é branco. E falar negro é complicado,
aí ele vai trazendo o nome moreno, mulato... mas
ele nunca fala negro. Então, a gente começa a fazer
esse trabalho da árvore genealógica, quem são os
pais, avós, bisavós essa coisa toda para eles come-
çarem a se entender, conhecer a sua família para
saber quem é a sua família (Profª. Elizabeth).

Atentas ao que narra o próprio cotidiano escolar e aos


seus movimentos, os/as professores/as vão buscando uma
interferência a partir do seu lugar e das concepções episte-
mológicas que têm e/ou estão construindo no descortinar da
realidade e na busca por aprofundamento teórico. Ao per-
ceber e desnaturalizar papéis historicamente relegados aos
negros, as práticas pedagógicas vão contando outra história,

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
266 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

como propõe a professora, evidenciando as potencialidades


nas raízes africanas da cultura brasileira e, neste sentido, os
referenciais de identificação não são meramente individu-
ais, mas remetem ao coletivo, à ancestralidade africana, bem
como à comunidade em que se inserem e que traz as marcas
dessa ancestralidade – o município de São Gonçalo, RJ.
Trazemos a seguir alguns recortes dos caminhos que
temos trilhado, em nossas pesquisas, inspiradas pelos lega-
dos freireanos. Professoras do chão da escola, que somos, te-
mos uma trajetória em comum, com início na escola básica,
da rede pública de ensino e, no momento atual, atuamos na
Faculdade de Formação de Professores, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, localizada num município perifé-
rico. Tal trajetória nos faz entender e enfatizar a importân-
cia da “1ª Jornada Paulo Freire: Reconstruindo Pontes”, por
entender sua contribuição para fazer ecoar e reverberar em
nossas escolas e nossas pesquisas as lições mais duradouras
de vida e pensamento de Freire, considerando, especialmente,
os tempos de chumbo em que estamos vivendo, quando os
representativos avanços na conquista de direitos sociais para
a população mais pobre, conquistados bravamente nos últi-
mos treze anos, estão sendo duramente ameaçados.

Alfabetização, Memória e Formação de Professores: em diálogo


com a escola

Coordenada por Mairce, a pesquisa Alfabetização, Me-


mória e Formação de Professores é um desdobramento de ações
investigativas realizadas desde 2004 na FFP/UERJ. De natu-
reza qualitativa, a investigação tem como objetivos centrais
contribuir para a qualificação do trabalho pedagógico, além

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 267
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

de resgatar através de narrativas docentes “saberes, histórias


e memórias” impregnados nas práticas pedagógicas de pro-
fessoras alfabetizadoras da rede pública de São Gonçalo, as-
sim como contribuir para o fortalecimento de novas práticas
de leitura e escrita nas escolas gonçalenses (ARAÚJO, 2008,
FREIRE, 1996, 1978, FERREIRO, 1988).
O trabalho investigativo se apoia em encontros periódi-
cos, envolvendo o grupo da pesquisa, que acontecem de for-
ma intercalada na E. M. Dr. Armando Leão e na Faculdade de
Formação de Professores. Além disso, também são promovi-
dos encontros quinzenais com as professoras alfabetizadoras
da escola. Na Faculdade os encontros com as bolsistas acon-
tecem semanalmente, com o intuito de planejar as atividades
da pesquisa, promover o exercício reflexivo, a discussão e a
avaliação das experiências vivenciadas no processo de inves-
tigação-formação.
Por entendermos que é preciso complexificar a concep-
ção de que a universidade seria o lugar privilegiado de pro-
dução de conhecimento e, portanto, de proposições acerca da
formação “do outro”, temos buscado construir um diálogo com
a escola, nos recusando a reconhecê-la apenas como locus de
aplicação de projetos pensados sobre ela, para ela. Neste con-
texto, entendemos o movimento de estar na e com a escola,
não como um “espaço de coleta de dados”, mas sim, como um
espaçotempo de produção de coletiva de conhecimento.
Nesse sentido, as “oficinas da memória” promovidas
pela pesquisa nas escolas, têm se constituído como um ins-
trumento metodológico especialmente fértil, ao nos desafiar
“a ver o mundo através dos olhos dos atores sociais e dos
sentidos que eles atribuem aos objetos e às ações sociais que
desenvolvem” (GOLDENBERG, 1997, p.32). Caracterizando-se

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
268 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

como espaços de narração e produção de um conhecimento,


as oficinas contribuem para fortalecer uma via de mão dupla
na relação escola-universidade, que não só contribui para es-
tender o conhecimento produzido no interior da universida-
de, mas, também, para nos abrirmos ao conhecimento produ-
zido no cotidiano escolar (ARAUJO, 2004).

A oficina do turbante: não podemos ter vergonha de nossa cor

Definidos e planejados coletivamente – pesquisa e es-


cola –, os temas que darão origem às oficinas buscam atender
questões que emergem no cotidiano escolar.
Assim, a opção por convidar o grupo “Projeto Sócio
Cultural Afrontando”4 para realizar uma oficina de turbante
na escola nasceu de uma observação cotidiana. Ao olhar um
mural que havia sido produzido pelas crianças do 5º ano, com
o título “quem são nossos heróis?”, constatamos que não ha-
via um personagem negro sequer na seleção que as crianças
fizeram dentre artistas de novelas, jogadores de futebol, can-
tores, personagens da mídia. Tal fato chamou nossa atenção,
especialmente por considerar as características étnico-ra-
ciais da maioria das crianças, não só da turma, como também
da escola como um todo, marcadamente afrodescendente.
Quando indagamos à professora da turma, ela justificou: tam-
bém percebi isso, mas foram as crianças que escolheram.
Se colocava para nós, naquele momento, a necessida-
de de construir estratégias pedagógicas que nos ajudassem
a entender melhor a questão. Até que ponto a ausência, ou
talvez a baixa incidência, de referenciais positivos, articula-

4 www.facebook.com/Projeto-Sócio-Cultural-Afrontando.

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CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 269
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

dos ao universo afro-brasileiro, na sociedade, na mídia, na


escola, contribui para o não reconhecimento da efetiva parti-
cipação do negro na constituição da nação brasileira? De que
forma podemos contribuir para romper com a injustiça histó-
ria de invisibilizar ensinamentos, valores, formas de luta de
origem afro-brasileira? A não identificação de heróis negros
por crianças negras não seria um indício de “um profundo
recalque nos mecanismos de identidade e referências” de-
senvolvido por grupos historicamente subordinados? Como
contribuir para romper com tais mecanismos?
O convite para que o “Projeto Sócio Cultural Afron-
tando”, que se define como um grupo criado para empoderar
negros e passar valorização e aceitação, fosse à escola, num
sábado letivo, foi uma iniciativa que buscava mexer com as
questões anteriores.
A escola foi toda preparada para a recepção às mulhe-
res-narradoras que fariam as palestras e ensinariam às pro-
fessoras, bolsistas e crianças não apenas o uso de turbantes,
mas, especialmente, favoreceriam vivências e reflexões que
envolviam outras experiências estéticas, colocando a discus-
são sobre o que é considerado belo em nossa sociedade.
As malhas coloridas, já cortadas em tiras, aguardavam
em cima da mesa, sob os olhares curiosos e brilhantes da pla-
teia, o momento em que seriam manipuladas por mãos ágeis
e experientes, cheias de histórias para contar.
A narrativa, cujo tema era a aceitação do negro na so-
ciedade, seus desafios e enfrentamentos, entremeada com
relatos sobre experiências vividas pelas contadoras, trazia in-
formações sobre a origem e o significado dos turbantes como
símbolo de afirmação cultural e de poder na sociedade africa-
na. Mulheres belas, com extensas cabeleiras, até hoje chama-

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
270 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

dos por parte da população de “cabelos ruins”, empoderadas,


conscientes de sua beleza e da força de suas palavras, trans-
mitiam às crianças, professoras e bolsistas que ali estavam
bem mais do que meras informações, “davam aulas”: com
seus corpos, seus gestos, suas formas de se dirigir às crianças.
À medida que narravam, iam amarrando, de formas variadas,
os turbantes nas cabeças de crianças, professoras e bolsistas.
A fila se formou imediatamente. Meninos e meninas negros
e negras saíram naquele dia da escola reconhecendo-se mais
belos e belas por estarem de turbantes. Enquanto que um
grupo menor de crianças, algumas meninas e outros meni-
nos, exibiam com mais orgulho, nesse dia, suas cabeleiras em
estilo afro, e também eles e elas assumiam o papel de expli-
cadores/as, socializando os cuidados cotidianos necessários
para que seus cabelos mantivessem sua beleza.
Gomes (2002) nos ajuda a entender melhor a potencia-
lidade do momento vivido na escola ao afirmar que:
Durante séculos de escravidão, a perversidade do
regime escravista materializou-se na forma como
o corpo negro era visto e tratado. A diferença im-
pressa nesse mesmo corpo, a cor da pele e pelos
demais sinais diacríticos, serviu como mais um
argumento para justificar a colonização e enco-
brir intencionalidades econômicas e políticas. Foi
a comparação dos sinais do corpo do negro (como
nariz, a boca, a cor da pele o tipo de cabelo) com
os do branco europeu e colonizador que, naquele
contexto, serviu de argumento para a formulação
de um padrão de beleza e de fealdade que nos per-
segue até os dias atuais (p.42).

Se, como afirma Silva (1999, p.149), “o conhecimento


não é aquilo que põe em xeque o poder: o conhecimento é

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CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 271
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

parte inerente do poder”, construir estratégias favorecedoras


de experiências que trazem consigo conhecimentos, saberes,
lógicas, estéticas, historicamente, apartadas da escola, como
“microações afirmativas cotidianas” (JESUS, 2004, 2013), é
contribuir para que a escola assuma seu papel de proporcio-
nar o acesso a conhecimentos indispensáveis para a consoli-
dação de uma sociedade democrática e igualitária.

Compartilhando Experiências – possibilidades para a


implementação da Lei 10.639/03 em escolas públicas
gonçalenses

A pesquisa “Compartilhando experiências – possibi-


lidades para a implementação da lei 10.639/03 em escolas
públicas gonçalenses” (2011 – 2013) é um desdobramento
da pesquisa: “Microações afirmativas no cotidiano de escolas
públicas do município de São Gonçalo” (2008 – 2010), e am-
bas evidenciam a importância de pesquisas voltadas à pers-
pectiva de investigação-formação, junto a professores/as da
rede pública de ensino de São Gonçalo – RJ e a alunos/as em
formação, tanto dos Cursos Normais quanto da Faculdade de
Formação de Professores – FFP-UERJ, locus da pesquisa.
Envolvendo, também, a dimensão de extensão-ensino,
a pesquisa busca articular experiências de professores/as da
rede pública de ensino que participam de oficinas pedagógi-
cas realizadas na FFP – UERJ, visando a coconstrução de cami-
nhos para a implementação lei 10.639/035. A experiência tem
5 Lei Nº 10.639 de 9 de Janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro

de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir


no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana’. (http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/
leis/2003/l10.639. htm).

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CAPÍTULO 10
272 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

sido compreendida tal qual nos ensina a tradição oral africa-


na: como um dos seus fundamentos, como forma de conviver,
de ensinar-aprender em comunidade (BÂ, 1982, 2003). Com
o princípio de comunidade, buscamos aliar, nesse processo
formativo, alunos/as do Curso Normal e das Licenciaturas e
professores/as da rede pública de ensino gonçalense, visando
à construção solidária de possibilidades para a implementa-
ção da Lei Federal 10.639/03.
Em nossas Oficinas Pedagógicas, planejamos três mo-
mentos dialógicos, tendo por base os “valores civilizatórios
afro-brasileiros” (TRINDADE, 2005). O primeiro momento é
de apresentação por meio da “oralidade” em que outros va-
lores civilizatórios vão sendo potencializados, tornando-se
presentes em todos os momentos da oficina: “circularidade”,
“memória”, “ancestralidade”, “ludicidade”, “corporeidade”,
“religiosidade”, “cooperatividade”, “energia vital”; o segundo
momento é de problematização da realidade de racismo; o
terceiro momento é de escrita de propostas pedagógicas de
caráter antirracista.
Assim, ao mesmo tempo em que os/as professores/as
participantes da pesquisa reconhecem e denunciam o racis-
mo com o qual convivem cotidianamente e a lacuna históri-
ca em suas formações, também anunciam, por meio de suas
práticas pedagógicas, possibilidades de superação, buscando
a autoformação e desenvolvendo microações afirmativas co-
tidianas, contestando a lógica vigente e ousando dizer suas
palavras.
Ao consolidarmos espaços narrativos de formação, en-
tendemos que as experiências pedagógicas compartilhadas
são potenciais e potencializadoras dos sujeitos da pesquisa, re-
afirmando a importância da autonomia na formação d ­ ocente.

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 273
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

Boaventura de Sousa Santos (2000, 2010) aponta para o


desafio de se perceber a escola como um espaço intercultural,
quando nos fala do silenciamento submetido às ditas “culturas
dominadas”. Para o autor, uma das dificuldades de se estabe-
lecer um diálogo intercultural é consequência do epistemicí-
dio ocasionado pelo colonialismo ocidental, ou seja, a elimi-
nação das inúmeras formas de saber dos povos colonizados:
... um epistemicídio maciço tem vindo a decorrer
nos últimos cinco séculos, e uma riqueza imensa
de experiências cognitivas tem vindo a ser desper-
diçada. Para recuperar algumas destas experiên-
cias, a ecologia de saberes recorre ao seu atributo
pós-abissal mais característico, a tradução inter-
cultural (SANTOS, 2010, p. 61).

Em nome de uma razão, imposta hegemonicamente, as


demais racionalidades foram consideradas irracionalidades.
Cosmovisões que diferiam da hegemônica, com seus saberes,
culturas e lógicas foram sendo silenciadas sob o rótulo da ig-
norância e atraso (SANTOS, 2000).
“Os colonizadores prepararam um assalto à nossa histó-
ria”, nos diz Joseph Ki-Zerbo (2006), pois para o autor, embora
mais curta que o tráfico dos negros, a colonização foi mais de-
terminante, causando maior alienação. “A África é o berço da
humanidade. Todos os cientistas do mundo admitem hoje que
o ser humano emergiu na África. Ninguém o contesta, mas
muita gente esquece isso” (KI-ZERBO, 2006, p. 13).
Seguindo ainda este pensamento, o autor nos diz que
a exclusão intencional de História da África muitos danos tem
causado às construções identitárias afrodescendentes, pois,
ao dizer da ausência de referência à história da África duran-
te seus estudos, sua formação, nos diz: “... mas nada sobre a

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CAPÍTULO 10
274 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

África! Pouco a pouco essa exclusão foi-me parecendo uma


monstruosidade” (KI-ZERBO, 2006, p. 14).
O diálogo com os autores abordados fortalece nossa
reflexão sobre a importância de se complexificar as relações
entre culturas sem subjugá-las, reconhecendo-as como legí-
timas em suas diferenças. Para Santos (2010, p. 62), “Tudo
depende do uso de procedimentos adequados de tradução
intercultural. Através da tradução, torna-se possível identifi-
car preocupações comuns, aproximações complementares e,
claro, também, contradições inultrapassáveis.” Ou seja, não
é possível um diálogo a partir da ótica de um único referen-
cial. Sendo assim, segundo o autor, “a ecologia dos saberes
é constituída por sujeitos desestabilizadores, individuais ou
coletivos, e é, ao mesmo tempo, constitutiva deles” (SANTOS,
2010, p. 64).
William, em uma de nossas oficinas pedagógicas, con-
tou-nos sobre sua experiência no C. E. Walter Orlandini, en-
volvendo Dança de Rua. O professor dizia que os/as alunos/
as de São Gonçalo tinham uma relação muito íntima com o
ritmo hip hop: “dançando mesmo sem música”, revelando
movimentos em sua corporeidade.
Ao se apresentar em uma oficina pedagógica, a profes-
sora Jurema trouxe em sua narrativa a ideia de desmistificar
as tais dificuldades na implementação da lei, tendo em vista
que rompe com a ideia de que devamos ter um arcabouço te-
órico para o trabalho, mas enfatizando o caráter multidisci-
plinar da temática, remetendo-nos também às africanidades
brasileiras (SILVA, 2010):
... eu, como educadora, acho que é um tema mul-
tidiciplinar, entendeu? Eu sou professora de artes,
mas teve uma professora de história, (...) que ela

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CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 275
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

fazia um trabalho muito bom e tem a de geografia


também. Eu trabalho direto esta questão por ter
presenciado muito isso na escola particular e na
pública. [...] é um trabalho de formiguinha que a
gente faz, e devagar a gente implementa a lei, uma
lei que a gente já deveria estar falando há muito
tempo, e que agora que a gente vem falando, vem
ouvindo mais estas questões. E estou aqui também
para tentar melhor desenvolver o que faço... todas
as vezes que eu coloquei essas questões, eu con-
segui fazer um bom trabalho, junto com história,
junto com a geografia... eu consegui fazer um tra-
balho. ...não é uma comemoração, não é uma ido-
latria. O povo africano, a questão afro-brasileira,
não, não... É uma questão do dia a dia, e quando a
gente coloca isso... fazer questão no cotidiano de-
les, a coisa anda. A coisa abre da melhor forma. Eu
acho isso, trabalho assim e a coisa está indo. Não
está difícil, e não é nada de outro mundo trabalhar
com essas questões afro-brasileiras, os costumes,
né? (Profª Jurema – C. M. Melchíades Picanço).

Percebemos, pelos projetos narrados, que há uma pre-


ocupação em reestabelecer elos entre a cultura brasileira e
as matrizes culturais africanas, tais como o Projeto Dança de
Rua, o Portal da Diversidade, ambos desenvolvidos em escolas
públicas gonçalenses.
Os projetos desenvolvidos na escola por vezes envol-
vem a comunidade, o entorno da escola, o bairro, o município
de São Gonçalo e mesmo municípios vizinhos, pois são pro-
porcionados eventos em que as matrizes culturais africanas,
presentes na cultura brasileira, são valorizadas e colocadas
como importante possibilidade de sociabilidade e de leitura
de mundo. Tem a parte dos workshops que envolvem as ofici-

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CAPÍTULO 10
276 ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR:
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

nas de desenhos, as oficinas de tambores, as oficinas de dan-


ças, as oficinas de contas, as oficinas de desfiles.

Alguns apontamentos finais

Ao perceber e desnaturalizar lógicas, saberes, estéticas,


papéis historicamente relegados aos negros, as práticas peda-
gógicas vão contando a História brasileira sob novas óticas,
ou usando lentes não mais impregnadas pelo eurocentrismo.
Descolonizando os currículos escolares, inicialmente por
suas práticas pedagógicas, estes sujeitos vão evidenciando as
potencialidades nas raízes africanas da cultura brasileira e,
neste sentido, os referenciais de identificação não são, me-
ramente, individuais, mas remetem ao coletivo, à ancestrali-
dade africana, bem como à comunidade em que se inserem e
que traz as marcas dessa ancestralidade.
Este tem sido nosso trabalho, tanto nas oficinas pedagó-
gicas de Regina, quanto nas oficinas da memória, coordenadas
por Mairce. Com elas buscamos romper com a visão mono-
cultural e buscar uma perspectiva intercultural na educação,
entendendo com Freire que a libertação é possibilidade, não
sina, nem destino, nem fado e, com Jean Willis, que luto para
nós é verbo. Vamos juntas seguindo caminhos emancipatórios
e o passado muito nos ensina: nos coloca na sina, no caminho,
nos caminhos que nos libertam. Esperança Garcia nos em-
presta sua voz, a partir de palavras, pensamentos e provoca-
ções escritas em 1770: “Saber ler e escrever é uma maneira de
esticar, bem esticada, a voz da gente, fazendo que ela chegue
a tempos e a lugares distantes [...]” (Esperança Garcia, 1770).
Precisamos romper com o eurocentrismo ainda pre-
sente nos currículos e práticas escolares, e isso não é fácil,

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CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 277
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

pois a formação dos/as professores/as ainda se pauta por


essa lógica, mas os/as que estão dispostos/as a assumir uma
postura contra-hegemônica vão construindo esse caminho/
esses caminhos, de forma solidária e contagiando e sendo
contagiado/as por outros/as sujeitos cotidianos que já ousam
desenvolver trabalhos pautados por lógicas mais includentes,
vislumbrando nos diálogos interculturais essa possibilidade.

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CAPÍTULO 10
ALFABETIZAÇÃO, INTERCULTURALIDADE E QUESTÕES ÉTNICO- RACIAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: 279
DIÁLOGOS COM PAULO FREIRE

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MAIRCE DA SILVA ARAÚJO • REGINA DE FATIMA DE JESUS


CAPÍTULO 11
280 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

Capítulo 11
A desconstrução do “outro” por uma
educação libertária: uma experiência
de extensão universitária do ensino de
História da África no Ensino Fundamental II
Larissa Oliveira e Gabarra

A
o problematizar a implementação da Lei 10.639 e
do Currículo Mínimo do Estado do Rio de Janeiro
junto a professores da rede e estudantes de histó-
ria, coube assumir que o debate profundo sobre
o tema pode ser feito ao entrar no espectro do pós-colonialis-
mo1, subalterns studies ou decolonialidade2. Como diria Elísio
Macamo (2012), um pequeno toque de maldade pós-colonial
é suficiente para entender que a incorporação do tema Áfri-
ca na proposta do Currículo Mínimo3 não serve se não para

1 Entenda por pós-colonialismo intelectuais que estão pensando o mundo con-


temporâneo a partir das relações de força econômicas, políticas e culturais
desiguais da Europa, principalmente, com o resto do mundo. Entre esses in-
telectuais, desde a década de 1950, Alberto Memmi, Franzt Fanon, passando
por Eduardo Said, Ranahit Guha e Homi Bhabha, pode-se pensar nessa corrente
intelectual.
2 Cf.: MIGNOLO, Walter D. Histórias locais / projetos globais: colonialidade, sa-

beres subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Edufmg, 2003.


3 Este capítulo trata de uma pesquisa feita em 2012, por isso não incorpora a crí-

tica à nova proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de 2015 para o
Ensino de História. Mas boa parte da crítica presente neste capítulo pode servir
de suporte para a análise dessa proposta nacional. Em 26 fevereiro de 2016,
o GT de História da África da Anpuh Nacional Associação Brasileira de Estu-
dos Africanos (ABE-África) fez uma nota sobre a proposta, e uma das principais

LARISSA OLIVEIRA E GABARRA


CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 281
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

dar migalhas aos porcos. Por outro lado, diante de alguns sé-
culos de discriminação racial contra o negro, seus saberes e
fazeres, como não aceitar e mesmo parabenizar as iniciativas
cujas migalhas abrem brechas nesse sistema universalizante
e por isso mesmo extremamente excludente?
Ainda na trilha da crítica à epistemologia dominante
ocidental, faz-se necessário lembrar que numa narração exis-
tem enunciados implícitos. Esses enunciados só são percebi-
dos se questionado o texto original, a partir do contexto his-
tórico de sua produção e da construção histórica da área de
conhecimento, na qual a narração se configura4. Um currícu-
lo educacional, segundo a Secretária da Educação do Estado
do Rio de Janeiro, é a
referência a todas as nossas escolas, apresentando
as competências e habilidades básicas que devem
estar contidas nos planos de curso e nas aulas. Sua
finalidade é orientar, de forma clara e objetiva, os
itens que não podem faltar no processo de ensino-
-aprendizagem, em cada disciplina, ano de escola-
ridade e bimestre5.

O currículo, então, atende ao objetivo de seguir um


único caminho para a formação do cidadão, proposto pelo Es-

críticas é a presença marcante de temas que não confrontam com a episteme


eurocêntrica, e mesmo introduzindo conteúdos como reino do Mali, permanece
utilizando-se de “categorias ancoradas no paradigma do pensamento hegemô-
nico”. Opinião que vai ao encontro do debate proposto aqui.
4 Cf.: SAID, Edward. “A geografia imaginativa e suas representações: Orientali-

zando o oriental.” In: ___. Orientalismo. O oriente como invenção do Ocidente.


São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp.85-113. BAKHTIN, Mikhail. Palavra
própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos/SP: Pedro e João
Editora, 2011.
5 SEEDUC. Currículo Mínimo. Disponível: http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exi-

beconteudo?article-id=759820. Acessado em 22/08/2016.

LARISSA OLIVEIRA E GABARRA


CAPÍTULO 11
282 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

tado; é, pois, baseado na ideologia dominante. Para não ser


simplista, deve-se lembrar o que já dizia Marilena Chaui so-
bre o tema, em 1980: a ideologia não é uma representação
imaginária do real a servir à classe dominante, nem tão pouco
uma invenção imaginada que substitui os agentes históricos,
é uma:
forma especifica do imaginário social moderno, é a
maneira pela qual os agentes sociais representam
a si mesmos o aparecer social (grifo da autora), eco-
nômico e político, de tal sorte que essa aparência,
por ser o modo imediato e abstrato de manifesta-
ção do processo histórico, é o ocultamento ou a
dissimulação do real (CAHUI, 1980, p.3)

Isso significa dizer que o currículo como uma narração


esconde um enunciado representante de um aparecer social,
econômico e político, próprios de uma parcela de agentes so-
ciais, que dissimula a realidade, de maneira que o seu apa-
recer seja entendido como o aparecer da sociedade. No currí-
culo, pois, reside uma aparência ideal, que na verdade oculta
vozes de agentes sociais que não estão contemplados nessa
aparência, mas estão presentes na realidade.
Chatterjee (2004) diria que uma coisa é a democracia
como forma de governo e o povo que ela inclui como gover-
nados, outra coisa é a realidade, outros agentes sociais que
não cessam de se manifestar em relação ao governo ou não.
Na Educação, diríamos que a aprendizagem parte dessa reali-
dade manifestante, que normalmente não está representada
na ordem de saberes curriculares (a não ser pelas migalhas
oferecidas aos porcos), mas não cessa de interferir em como
esses saberes são apreendidos pelos alunos. Esses sabres são
a própria dimensão da experiência vivida, ou seja, a reali-

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 283
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

dade de si e das suas relações socais que serve para o aluno


como pressuposto para sua aprendizagem. Segundo, Juarez
Dayrell, “a homogeneização dos sujeitos como alunos corres-
ponde à homogeneização da instituição escolar, compreendi-
da como universal” (1996, p.139).
A distância entre o currículo oficial do Estado (seja os
parâmetros curriculares, seja o currículo mínimo do RJ) e
a diversidade cultural da sala de aula tem sido minimizada
com as discussões que são trazidas para o espaço escolar a
reboque da Lei 10.6396. A Lei promulgada em janeiro de 2003
veio cumprir com um compromisso do governo brasileiro na
III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Xenofobia
e Intolerância correlata de Durban, África do Sul, em 2001.
6 Essa Lei vem complementar o artigo A-16 da Lei de Diretrizes e Bases de 1996,

destacando na questão da diversidade étnica do país, o afrodescendente e a his-


tória e culturas Áfricas. Nesse sentido, ela obriga o ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e da África para o Ensino Fundamental e Médio, principalmente
nas áreas de História, Literatura e Artes Plásticas. Ela é de 2003; em 2007 a Lei
11.645/07 veio complementá-la, dando a mesma importância para a questão
da história e culturas indígenas do Brasil. No entanto, não trabalhamos com a
Lei 11.645/11, apesar de entender a importância fundamental de sua imple-
mentação. As duas Leis, uma valorizando a história e cultura africana e a outra
a história e cultura indígena, são complementares na medida em que trazem
epistemologias do conhecimento diferenciadas da ocidental. Nessa perspecti-
va, fazem a crítica ao universalismo da epistemologia ocidental que desqua-
lifica o diferente. No entanto, cada uma delas é repleta de idiossincrasias re-
presentadas na resistência que construíram autonomamente ao conhecimento
hegemônico e homogêneo. Quando são trazidas ao palco da educação formal,
não devem ser impressas num mesmo lugar por dois motivos: o primeiro diz
respeito a sua historicidade enquanto processo de luta, onde residem seus pró-
prios marcos; o segundo diz respeito ao papel de mantenedoras das diferenças
e não de desencadeadoras de uma outra espisteme unicista. Nesse sentido, a
Lei 11.645/11, implementada como única, substituta da 10.639/03, cumpre o
papel exatamente de homogeneizar as lutas idiossincráticas e trazê-las para o
palco da Educação formal como uma alternativa ao conhecimento universal oci-
dental, quando, na verdade, tanto os marcos históricos da Lei 10.639 como os
da 11.645 não trazem novos conhecimentos, nem tampouco alternativos, e sim
simplesmente outros saberes.

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CAPÍTULO 11
284 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

Para os brasileiros, a Conferência trouxe uma articulação in-


ternacional de antigas demandas contra o racismo no Brasil.
Ao obrigar o ensino de história e cultura Africana e de afro-
-brasileiros, principalmente nas áreas de História, Literatura
e Artes, estamos diante de um tratamento diferente para um
campo de conhecimento que representa um grupo grande de
agentes sociais até então tratados como sujeitos esquecidos.
O Currículo Formal de História há muito serviu e ainda
serve como disciplinarizador de um cidadão e operário que
ame a sua pátria acima de tudo, lute por ela, acredite na su-
peração das dificuldades de seu desenvolvimento. Ele é fruto
da construção da História como algo que deve ser ensinado
(GUIMARÃES, 2009, p.36). As áreas de conhecimento valori-
zadas pela História Ensinada são aquelas que tratam do Es-
tado e dos heróis da pátria. O enunciado do currículo de His-
tória se apresenta como universal, já que a pátria, ao menos
para os brasileiros, deve ser uma questão universal. No en-
tanto, 45% dos brasileiros que se declaram afrodescendentes
só apareciam nesse currículo universal como escravizados –
uma maneira de aparecer na História representando somente
os agentes sociais dominadores.
É no sentido de contornar a ideologia estatal que Pau-
lo Freire escreve suas obras: Pedagogia do Oprimido, Cartas à
Guiné Bissau, Aprendendo com a África e Pedagogia da Auto-
nomia. Para ele, ensinar e aprender é levar o aluno a conscien-
tizar-se de si próprio. Ou seja, conseguir enxergar-se sem ter
como pré-imagem de si mesmo o retrato do colonizador, para
usar as palavras Alberto Memmi. O colonizador da Era Moder-
na (colonização das Américas) ou da Era Contemporânea (co-
lonização da África) é o dominador para Paulo Freire. Aquele
que mantém o monopólio da palavra, do poder econômico e

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 285
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

da cultura. A aprendizagem só ocorre quando os dominados


tomam para si suas próprias palavras, fazem-nas serem ouvi-
das, retiram do dominador o monopólio do saber. Esse é um
exercício difícil de aprendizagem, e a pedagogia do oprimido
é um caminho de libertação do homem (FREIRE, 1987, p.11).
Se desde a década de 60 do século XX Paulo Freire toma
para si o ato expor as contradições do mundo humano, sejam
elas superestruturas, infraestruturas ou estruturas, “contra-
dições que impedem o home de ir adiante” (Idem), também
não podemos julgar o Ensino de História até 2003 (ano da pro-
mulgação da Lei) como um Ensino que só servisse ao Estado e
às classes dominantes. Selva Guimarães Fonseca já anuncia-
va, na década de 80 do século XX, que desde 1970 pressões de
setores organizados pediam revisão na legislação pertinente
ao Ensino de História. Já apontavam a importância da trans-
formação da produção do conhecimento histórico, das novas
temáticas e novas abordagens. Dizia ela:
no campo da produção historiográfica acadêmica,
vários balanços divulgados apresentam, a partir
dos anos 70, um repensar dos temas, dos pres-
supostos e das interpretações. Há uma expansão
do campo da história através da busca por novos
temas e novos documentos. A história social pas-
sa a ser redimensionada e os estudos sobre classe
trabalhadora são ampliados e enriquecidos (FON-
SECA, 1993, p.85).

Se houve avanços significativos no campo da produção


do conhecimento em História, no do Ensino da História nem
tanto. É verdade que a ideia de uma verdade única sobre a
História se quebrava naquele momento; o marxismo como
uma teoria acabada não sobreviveu, a história explicativa não

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CAPÍTULO 11
286 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

se configurava na única forma de fazer história; nem tampou-


co a história factual e política tiveram sucesso. Foi no mesmo
caminho das vozes operárias e das vozes das mulheres que as
dos afrodescendentes surgiram e assim se colocaram como
agentes histórico, agentes da sua História, agente da escrita
da História. Se no campo da História, os novos temas e novas
abordagens foram bastante explorados, no campo do Ensino
da História os avanços não foram muito longe. Segundo Luiz
Manuel, ainda há uma defasagem entre as práticas e teorias
do meio acadêmico para com o conhecimento escolar, pois os
campos da História e do Ensino de História não assumiram
um debate sobre o próprio oficio do historiador:
Significa, antes de tudo, que pensar o ensino de
história como um dos usos possíveis que foram
formulados para aqueles que se ocupam de escre-
ver sobre o passado articula-se a um tempo e às
formas próprias desse tempo de conceber a escrita
da história. Implica também, pensar o ensino da
história em sua dimensão particular e especifica
de uso do passado, o que implica igualmente pen-
sar a dimensão política subjacente a essa forma de
uso social do passado (GUIMARÃES, 2009, p.38)

Assim, precisamos rever o uso do passado no próprio


campo de Ensino de História, como também o uso da escri-
ta da História pelo presente. Nesse sentido, pensar história
e cultura da África e dos Afrodescendentes é construir num
texto sobre o passado, ensinado ou escrito, em que as vozes
excluídas pelos discursos universalistas ocupem lugares na
produção do conhecimento. Não apenas no sentido de al-
guém escrever ou ensinar sobre elas, mas delas escreverem
e ensinarem sobre si próprias, sem descontextualizar-se das

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 287
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

relações de força que operam entre os campos de saberes, já


institucionalizados e os marginalizados.
A incorporação, portanto, oficialmente, de um conhe-
cimento tratado como singular, que no caso são os saberes
de matrizes africanas, no âmbito do Parâmetro Nacional
Curricular, é um passo para a construção de um currículo
mais equânime, em que a distância do currículo oficial e a
dimensão da experiência vivida diminua. Os conteúdos são
inseridos nos planos de aula, através do currículo mínimo
ou principalmente da iniciativa dos próprios professores,
pois enquanto normas federais o que existe são diretrizes de
ação. Essas diretrizes nacionais para implementação da Lei
10.639/03 também balizam a produção de livros didáticos e a
inserção de disciplinas sobre África nos cursos de graduação
em História do país, além dos cursos de formação continuada
(extensão, aperfeiçoamento e especialização).
No caso do Estado do Rio de Janeiro, o PCN começou
a ser incorporado com certa rigidez a partir da implementa-
ção do Currículo Mínimo em 2011. Infelizmente, o currículo
mínimo do Estado do Rio de Janeiro não atendeu a um de-
bate sobre Ensino de História no âmbito dos professores da
rede fundamental (seja privada ou pública), ou de professores
universitário que pesquisem o tema. Ele veio suprir uma ca-
rência na qualidade do ensino do Estado apresentado pelos
números da pesquisa IDEB (Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica). Em 2011, o Rio de Janeiro pontuava para
o segundo ciclo do fundamental 3.2, abaixo do Ceará, por
exemplo, com 3.7, enquanto os Estados do sudeste, São Paulo
e Minas Gerais, pontuavam, respectivamente, 4.3 e 4.47.
7 Índice de Desenvolvimento da Educação Básica. Disponível em: http://ideb.
inep.gov.br/ Acessado em 10/03/2015.

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CAPÍTULO 11
288 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

É sabido que o IDEB não apresenta um resultado im-


parcial da qualidade, visto que esse tipo de objetividade não
existe. Seus números são orientados a partir do Sistema de
Avaliação da Educação Básica, implementado para o Ensino
Fundamental através da Prova Brasil, mas também do SAERj
e SAERjinho (Sistemas de Avaliação da Educação – aplicada
no 3ᵒ ano do Ensino Médio e da Educação Básica – aplicada 3ᵒ
e 5° ano do Fundamental, respectivamente). A portaria 931
de 2005 que homologa o Sistema de Avaliação está inserida
no quadro de políticas públicas para atender a pressões de
agendas internacionais, tais como o PISA (Programa Interna-
cional de Avaliação dos Estudantes).
Essas políticas partem da ideia de que todos os estu-
dantes no mundo (ou pelo menos aqueles cidadãos dos países
que fazem parte da OECD – Organização para a Cooperação
do Desenvolvimento Econômico) “devem evoluir [no caso
do Brasil atingir a pontuação 6.0 no IDEB até 2022] segun-
do pontos de partida distintos, e com esforço maior daqueles
que partem em pior situação”8. Claramente, existe uma meta
a se chegar, em que todos devem ocupar posições em uma
mesma linha evolutiva, que classifica cada país participante
em situações piores ou melhores, conforme a distância que o
país se faz aparecer em relação à meta ideal que os candida-
tos (países) devem alcançar.
Não há que se duvidar da força hegemônica do pensa-
mento neoliberal (que exerce uma coerção homogeneizado-
ra) pós queda do muro de Berlim. Pensamento que pode ser
interpretado, nas palavras de Romualdo Oliveira, como uma

8 Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes. Disponível em:


http://portal.inep.gov.br/internacional-novo-pisa-opisaeideb. Acessado em
11/07/2016.

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 289
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

determinante impulsionada por organizações multilaterais e,


particularmente, o Banco Mundial. Mas que, no entanto, ain-
da que sejam importantes no debate de gestão do Estado, o
resultado é “mera decorrência de implementação dessas con-
cepções” (2007, pp. 664-665). O autor diria:
Se a agenda internacional fosse a única ou mesmo a
principal explicação dos processos de reforma pelos
quais passa a maioria dos países, as respostas na-
cionais seriam idênticas ou muito semelhantes. En-
tretanto, as peculiaridades de cada formação social
e as condições em que se efetiva a luta de classes
e as expressões de seus conflitos na esfera educa-
cional são elementos determinantes para se com-
preender que aspectos dessa agenda se viabilizam
e que elementos permanecem como ‘programa’- no
sentido de ‘dever ser’ (OLIVEIRA, 2007, p.665).

Nesse sentido, podemos pensar, como pensam os uni-


versalistas, a construção de um Currículo Mínimo que di-
recione os conteúdos, tradados como habilidades e compe-
tências, cujos professores devem ministrar para conseguir
que seus alunos alcancem níveis no Prova Brasil, compatí-
veis com os números esperados para o IDEB. Assim, temos
um enunciado oculto que universaliza o ensino de História
do Estado do Rio de Janeiro, a partir de uma meta interna-
cional. Porém, como explicou Romualdo Oliveira, a maneira
como o pensamento hegemônico neoliberal via políticas de
gestão pública se efetiva em cada país se distingue conforme
as condições sociais que se colocam. Assim, somos obrigados
a concordar com alguns pós-colonialista9 que os agentes so-

9 Cf.: GUHA, Ranahit. “Las voces de la historia”. In: ____. Las voces de la historia
y otros estúdios subalternos. Barcelona: Critica, 2002.

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CAPÍTULO 11
290 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

ciais que se manifestam, na realidade não são aqueles repre-


sentados pelo governo.
Diríamos que esse pretenso universalismo atinge dife-
rentemente cada Estado brasileiro. O caso dos números mais
elevados do IDEB para São Paulo e Minas Gerais pode ser
explicado, entre outros argumentos, pelo amplo debate que
professores e pesquisadores do Ensino de História desses
Estados produziram na década de 1980. Naquele momento,
construíram diferentes Programas de Ensino de História, aca-
baram padronizando o ensino de cada um desses dois Esta-
dos, mas ao mesmo tempo atualizaram a discussão de Ensino
de História e Escrita da História (FONSECA, 1993, pp.99-101).
Já no Rio de Janeiro, se por um lado não se padronizou
o Ensino Fundamental de História na década de 1980, por ou-
tro não houve um amplo debate sobre os programas, a partir
do debate que ocorria no nível do Ensino de História. Essa
padronização chegou de cima para baixo, feita pela Secretária
do Estado com a apresentação do primeiro Currículo Míni-
mo em 2011. Criticado pelo corpo docente da rede pública,
em 2012 foi relançado com algumas modificações a partir do
debate produzido por alguns professores da rede de Ensino
básico, convidados à participação dessa reedição.
A circunstância histórica e social do Rio de Janeiro no
momento da construção do Currículo Mínimo do Estado se
dá pós a obrigatoriedade da inclusão dos saberes de matrizes
africanas. O que difere enormemente o debate, a elaboração
do Currículo Mínimo e a sua e apreciação nos estados do Rio
de Janeiro e São Paulo, separados por trinta anos, são as dis-
tintas forças de agentes sociais atuantes na realidade experi-
mentada, mas excluídos do enunciado das Diretrizes Básicas
da Educação.

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 291
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

A análise detalhada do Currículo Mínimo do Rio de Ja-


neiro foi feita em conjunto com alunos das disciplinas Estágio
Supervisionado II10 e Tópicos Especiais em Brasil, ministra-
das no segundo semestre de 2012 na Faculdade de Formação
de Professores -UERJ. O primeiro ponto a ser notado sobre
o Currículo Mínimo do Estado do Rio de Janeiro é que ape-
sar de estar inserido na lógica do capital como fim, o texto
de apresentação fala de conceitos presentes no cotidiano do
aluno; identidade, cidadania e diversidade; representações e
relações sociais, econômicas, culturais e ambientais, além de
citar uma metodologia de comparação, bastante complexa.
Ele também é dividido em quadros de conteúdo por bimestre
de cada série do Fundamental II, divididos mais uma vez em
Habilidades e Competências.
Por exemplo, no 6° ano, o Egito aparece no 2° bimestre
como conteúdo junto com Mesopotâmia e de cinco habilida-
des e competências a serem ensinadas, uma é Escravidão e
Politeísmo. No 3 º e 4º bimestres o conteúdo é civilização Gre-
co-romana, e entre dez habilidades e competências, uma é a
visão do Outro e o respeito à diversidade. Nota-se pelas habi-
lidades e competências que a proposta é a visão de uma his-
tória das representações sociais, tal como anunciam na apre-
sentação do Currículo. Porém, as representações que se faz

10 Estágio Supervisionado II é a disciplina que corresponde à antiga Prática de


ensino para nível fundamental. Os alunos deveram cumprir 40 horas de obser-
vação e monitoria em Escolas da rede Estadual. E outras 20 horas são cumpri-
das na Universidade para discussão sobre práticas pedagógicas. Nesse semes-
tre específico, por causa da greve dos professores de junho a outubro de 2012,
os alunos não puderam cumprir o total de carga horária em observação e mo-
nitoria – suas aulas foram na maioria em janeiro e fevereiro, período de férias
das Escolas do nível fundamental; por isso foi possível desenvolver um trabalho
sobre o Currículo Mínimo do Estado do Rio de Janeiro, livros didáticos e Planos
de Curso. A análise dos livros didáticos não será apresentada aqui.

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CAPÍTULO 11
292 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

aparecer são aquelas da ideologia hegemônica, onde o Outro


é o bárbaro e a cultura greco-romana é o berço da civilização.
O Outro bárbaro está localizado no mapa mundo na África
do Norte. Caso o professor siga a ideia de diversidade enun-
ciada no Currículo, ele vai negar os agentes sociais presen-
tes na dimensão da experiência vivida dos alunos e repetir a
ideia de que o lugar do afrodescendente é a representação dos
Bárbaros. Assim, pensar em identidade e diversidade como
conceitos presentes no cotidiano do aluno exige do profes-
sor muito mais que seguir as diretrizes do Currículo Mínimo.
Como é comum nas políticas públicas, a diversidade é apenas
retórica.
Continuando no 6º ano, procurar valorizar a África via
identificação da localização geográfica do berço da humani-
dade, o Egito, pode dar certo, mas não simplesmente pelo fato
de trazer a escravidão e o politeísmo egípcio. Trabalhar com
essas habilidades e competências, na verdade, pode reforçar
a discriminação para com o negro. Para que isso não ocorra
é preciso que seja feita uma discussão aprofundada sobre es-
cravidão não Atlântica e de diferentes formas de fé, mas esse
debate aprofundado exige muito do professor e dos alunos,
pois ambos são constituídos pelo exotismo, tanto religioso
como sobre a escravidão nos períodos que antecedem a Era
Moderna. Chegar ao debate da diversidade só é possível em
longo prazo. E depois alcançar, a partir dessa diversidade,
um questionamento sobre o lugar social do afrodescendente
no mundo e na sociedade brasileira está ainda mais longe.
O problema está na base do enunciado; ao se discutir Egito,
trabalhar com as habilidades e competências que envolvem
os conceitos de escravidão e politeísmo, não se incluem as
vozes dos agentes sociais presentes na realidade da sala de

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 293
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

aula. O afrodescendente, a partir da visão de África, continua


vinculado a religiões exóticas e à escravidão. Axum, Nubia,
Kuche, Estados africanos do mesmo período poderiam ser
trabalhados na suas dinâmicas inter-regionais, mas quando
são trazidos pelos livros didáticos (pós 2011), são apresenta-
dos como reino, numa concepção política ocidental de esta-
do centralizado, e isolados entre si, ao invés de apresentar as
rupturas, transformações, marcos históricos construídos nas
relações entre os Estados – o que mostra, assim, os africanos
como sujeitos históricos, fugindo de estereótipos do olhar es-
trangeiro sobre politeísmo e escravidão. Mas a proposta do
Currículo é outra.
No 7º ano, num primeiro momento, o que se poderia
julgar como brecha do Currículo aparece no 2º bimestre sob
o título de Reformas Religiosas, pois entre habilidade e com-
petências, novamente se encontra o respeito à diversidade e,
precisamente, à tolerância religiosa. No entanto, tratar de in-
tolerância religiosa via Reforma Religiosa é muito complexo,
pois para se ter a habilidade para trabalhar intolerância re-
ligiosa é preciso vivenciar vários universos religiosos, como
também entender minimamente a discussão conceitual so-
bre intolerância. Assim, essa brecha está reduzida à aprecia-
ção do professor sobre o movimento atual de várias vertentes
cristãs (católicas e protestantes) e espíritas (de matrizes afri-
canas ou kardecistas) para diminuir a destruição de templos
e trabalhos dos crentes de várias fés. O mais crítico é que no
conteúdo, intitulado Protestantismo no século XVII, não há
nenhum questionamento sobre o lugar social universal do
cristianismo, não desperta nenhuma consciência de si e das
relações que cercam os alunos, a partir das igrejas neopente-
costais, ou ainda dos terreiros.

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CAPÍTULO 11
294 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
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Os conteúdos de História África stricto senso são cita-


dos apenas nos 7º, 8º e 9º anos. Entre os três conteúdos do
3º bimestre do 7º ano, um é Encontro de Culturas: América
e África, com foco em diversidade dos patrimônios etnocul-
turais, e nenhum olhar para os agentes do tráfico negreiro
e a diversidade da sua dinâmica nos longos três séculos. No
conteúdo único do mesmo ano, no 4º bimestre está América
Portuguesa; entre habilidades e competências, o foco é cul-
tura brasileira e formação da nossa sociedade. Para os dois
momentos a pergunta é a mesma: como dar significado a essa
História para o aluno brasileiro – visto que somos todos afro-
-brasileiros, independentemente do fenótipo11. Ser afro-bra-
sileiro não é visto como um pressuposto cultural e formativo
de todos os alunos, mas sim a imagem de um resultado da so-
ciedade brasileira em que reside um encontro desumano, que
deixou marcas sociais de desiguais e culturais valorizadas, ao
bel prazer do indivíduo. Ou seja, as influências africanas são
apêndices de um passado injusto e a cargo do deleite do indi-
víduo para serem valorizadas. Assim, sob a responsabilidade
do prazer do professor, o encontro de culturas pode deixar de
ser uma simples consequência da Expansão Marítima e pos-
sibilitar que o aluno se enxergue, a partir de sua própria re-
alidade, desmistificando o mito das três raças12 – chave para
compreensão de qualquer brasileiro e seu papel nessa socie-

11 Ser afro-brasileiro não significa sofrer racismo. O ser afro-brasileiro está vin-
culado à concepção da formação histórica e social do Brasil. A questão racial e
consequentemente do racismo tem bases profundas no fenótipo, construído a
partir de teorias como a de Arthur de Gobineau, em Ensaio das Desigualdades
Raciais de 1855 do Darwinismo Social.
12 DAMATTA, Roberto. “Digressão a Fabula das três raças, ou problema do racis-

mo à brasileira”. In: ____. Relativizando. Uma introdução à Antropologia social.


Rio de Janeiro: Rocco, 2000. pp.58-85.

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 295
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

dade. No entanto, a leitura crítica de Gilberto Freire sobre a


sociedade colonial brasileira e sua verberação na realidade
social não é assunto problematizado pelo Ensino Fundamen-
tal, não sendo objeto de estudo nem de professores nem de
alunos. A centralidade da ideologia dominante na escolha
dos conteúdos nega aos cidadãos a compreensão da gênese
da sua própria configuração social. Conseguir olhar-se e dis-
tinguir-se daquilo que é único, monocultural, partindo retra-
tos e espelhos opressores não é responsabilidade da prática
docente, mas sim de toda a sociedade.
Continuemos. O 8º e 9º anos ainda tradicionalmente
com o foco na colonização africana e descolonização afro-asi-
ática, respectivamente, quarto bimestre do 8 º ano e terceira
parte do terceiro bimestre do 9 º ano. Para o 8º, ao contrário
do esperado, o século XIX é colocado em seu conjunto: Áfri-
ca, América e Europa; num único bimestre, as habilidades e
competências são: entender os conceitos de revolução, na-
cionalismo e nação no século XIX, compreender a expansão
colonialista europeia no século XIX, correlacionar a configu-
ração territorial e econômica das Treze Colônias com a políti-
ca norte-americana, relacionar as mudanças geopolíticas no
continente africano à expansão imperialista, entender os mo-
vimentos revolucionários. A maneira como a África aparece,
já relacionada com a expansão colonialista e com o imperia-
lismo, é mais apropriada do que, simplesmente, colonização
africana, como era de costume. O enunciado chama a atenção
para o contexto histórico e pode abrir para o professor um
campo de pesquisa. No entanto, no ensino básico é preciso
problematizar a palavra colonização. No contexto de ensino
de colonização africana no Brasil, a palavra causa confusão,
pois os alunos do fundamental não têm a discriminação dos

LARISSA OLIVEIRA E GABARRA


CAPÍTULO 11
296 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

períodos de colonização americana no século XV e XVI e da


africana no século XIX e XX. É fundamental esclarecer essas
diferenças para retirar o africano da visão de uma submissão
de longa duração, entre os séculos XV e XX. O mais grave é
que se essa distorção não é sanada com a contextualização
do período do imperialista, ela estende a longo duração de
submissão africana ao século XX, ou seja, até a descoloniza-
ção. A apresentação do conteúdo de colonização africana des-
contextualizada da ocupação efetiva da África e sua interiori-
zação, do fim do tráfico Atlântico e do surgimento de outras
fontes econômicas em África, da divulgação e propagação da
ciência e da civilização, como formas acabadas da evolução
social, marcadas pelo evolucionismo das raças, reforça a infe-
riorização africana. O século XIX em especial é um momento
riquíssimo em diversidade de agentes sociais para além da-
queles, que se imbuíram dessa ideia universalista da missão
civilizatória, mas de outros que fizeram parte da construção
da contemporaneidade.
No âmbito da manutenção desse olhar descontextua-
lizado da história da África, as lutas de independências afri-
canas, denominadas Descolonização da África, do 9ᵒ ano, são
apreciadas também descontextualizadas, sendo comparáveis
aos acontecimentos asiáticos. Não problematizar o conceito
de colonização e seus diferentes contextos deixa o aluno sem
alternativa para entender também o momento de descolo-
nização africana. Assim, da mesma forma que ele entende a
colonização começando no século XV, ele entende que a des-
colonização deveria ser junto com o Brasil, e por isso interpre-
ta como uma descolonização tardia, atrasada em um século.
O aluno só cria essa imagem completamente distorcida da
descolonização africana e asiática porque não entendeu que

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 297
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

a colonização africana começa aproximadamente no mesmo


momento em que o Brasil se tornou independente. As lutas
de independência afro-asiáticas deveriam trazer esses conti-
nentes como espaços cruciais do desenrolar socioeconômico
do pós II Guerra Mundial, do centro da disputa da Guerra Fria
e da formação do bloco do Terceiro Mundo. Nenhuma dessas
habilidades e competências é indicada no Currículo, e sim o
genérico: questionar as visões preconceituosas sobre a África
e o Oriente Médio e estimular o respeito à diversidade ­cultural.
Assim, mais uma vez o enunciado diversidade cultural
é justificado como o tratamento para a diminuição do racis-
mo e outras intolerâncias como a religiosa. É sabido que mul-
ticulturalidade ou interculturalidade13 são debates importan-
tíssimos no âmbito educacional, mas não trazem para o aluno
brasileiro a consciência de si e das relações que o cercam,
tão importantes para a pedagogia da autonomia. Constatado
o fato de o Currículo Mínimo ainda estar muito engessado
pela visão eurocêntrica, cronológica, sem conexões entre os
continentes sem passar pela Europa, procurou-se encontrar
brechas nesse esqueleto normativo, conciliando o dia a dia
dos professores da Educação Básica que estavam presentes
no curso de extensão com os professores da rede municipal
de Ensino Fundamental II da cidade de Campos de Goytaca-
zes e dos futuros professores, alunos da UFF de Campos de
Goytacazes (UFF-PUCG). Esse contato possibilitou perceber a
diferença da implementação de uma diretriz curricular fede-
ral que se justifica pela luta contra o racismo e a valorização
do conhecimento afro-brasileiro e africano (parte integrante

13Cf.: CANDAU, Vera Maria (Org.). Educação intercultural e cotidiano escolar. Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2007; CANDAU, V. M. (Org.). Cultura, linguagem e subjetivi-
dade no ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

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CAPÍTULO 11
298 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

da cultura nacional) e outra que se justifica pelo Sistema de


Avaliação da Educação Básica do Brasil.
No entanto, a oposição em relação à maneira como fo-
ram elaboradas as diretrizes educacionais, seja a Federal, que
acompanha a Lei 10.639, seja a estadual do Rio de Janeiro,
que propõe valorizar habilidades e competências específicas
dentro do Parâmetro Curricular Nacional, que sirva de padrão
normativo para a Educação do Estado, só faz diferença na for-
ma como o professor a aceita e procura lidar com os fatos. Na
verdade, ele deve conseguir certa complementariedade entre
elas, sem a qual não consegue cumprir sua função.
O dia a dia do professor impera na preferência do ma-
terial a ser utilizado em sala de aula. Por isso, antes de iniciar
as aulas propriamente ditas do curso de extensão, propôs-se
fazer um exercício como os de palavra geradora de Paulo Frei-
re para descobrir em que temáticas os professores da rede
tinham interesse diante dos materiais utilizados em sala de
aula e do dia a dia da docência. Ao invés de trabalhar com
palavra geradora, trabalhamos com tema gerador. O curso es-
tava programado para 14 encontros, mas as unidades ainda
não estavam definidas. Então, no primeiro encontro, foi feita
uma oficina “Re-conhecendo a África”. Com o mapa da África
no chão, os alunos divididos em grupos, havia tarefas especí-
ficas para cada grupo: a localização das regiões geopolíticas
africanas deveria ser relacionada com a bagagem cultural que
o aluno trazia sobre algum país na região geopolítica que o
grupo foi vinculado. Assim, conforme o grupo se apresentava,
fez-se um diagnóstico do conhecimento prévio que os alunos
tinham sobre África e o interesse em qual História da África.
A partir das temáticas reveladas na oficina, fez-se o recorte
temporal e geográfico do curso.

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 299
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

Assim, os temas geradores, escolhidos pelos profissio-


nais da educação do ensino fundamental II da rede de Cam-
pos de Goytacazes e pelos graduandos da UFF PUCG foram: O
mito da Partilha, A Colonização Africana, Angola (séculos XIX
e XX), Congo-Angola (período moderno com ênfase no século
XVIII), África do Sul (século XX). Entende-se que esses eram
os aspectos que geravam a vida nesses estudantes e profis-
sionais, pois são os temas que, a partir da visão de África que
eles tinham, constroem o mundo deles. Segundo Paulo Freire,
as palavras escolhidas são as palavras que fazem “o encontro
de cada um consigo mesmo e os demais” (1987, p.6).
Sem nenhum espanto, nota-se a conquista da África e
as lutas de independência como os temas geradores escolhi-
dos. Esses temas aparentemente impossibilitam a quebra de
alguns paradigmas eurocêntricos e monoculturais colocados
como parâmetros para a Educação básica brasileira. Para o
Ensino de História da África essa escolha representa o fardo
da negação da História da África pela Filosofia da História do
século XIX, que marcou a escrita da História da África. Uma
História da África aprisionada às ações externas, aos impul-
sos europeus no continente. Esse olhar mantém a existência
da História da África vinculada à História dos conquistado-
res. A retórica da falta de racionalidade, da falta de Estado, da
falta de escrita, ou ainda da falta de documentação são infun-
dadas, mas apenas a partir da década de 60 do século XX que
o continente se apoderou de sua História, de suas próprias di-
nâmicas, para contar que o registro do passado, as formas de
governo, a lógica de suas experiências existiram muito além
daquelas após o contato com os Europeus.
Assim, antes da revolução historiográfica africana, a
existência da sua História se restringia à presença dos euro-

LARISSA OLIVEIRA E GABARRA


CAPÍTULO 11
300 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

peus no continente, ou seja, o que muitas vezes era chamado


de história da África era na verdade a história do europeu na
África. Esse fardo ainda está presente nos temas propostos
pelo Currículo Mínimo, mas infelizmente também está pre-
sente na preocupação das pessoas que se interessam em
estudar história da África, visto o resultado do exercício do
tema gerador proposto no curso de extensão. A complexidade
e dinâmica da história africana desde o surgimento do homo
sapiens é aprofundada pela crítica ao recorte temporal, e
não pelo conteúdo em si. Assim, o tema gerador não é, como
diria Paulo Freire, só objeto do estudo, mas, sim, o próprio
­problema.
Nessa perspectiva é que o recorte temporal proposto
pelo grupo de professores e alunos se torna importante como
objeto para problematização da própria escrita da História
da África. A escolha geográfica também é representativa: An-
gola, Congo-Angola, África do Sul. As duas primeiras regiões
tratam de áreas com uma forte herança histórica e cultural
no Brasil; indiscutivelmente foram regiões de inúmeros em-
barques dos traficados para as Américas. Enquanto a África
do Sul, para além da divulgação ocorrida durante a Copa do
Mundo, exerce um papel importante na economia e desenvol-
vimento social e cultural do continente, sendo, portanto, um
dos países mais visíveis hoje em nível internacional. A Áfri-
ca do Sul também teve um papel importante na construção
dos marcos da luta contra o racismo no mundo, luta de que o
Brasil participou e de que participa, o que também cria certa
relação com o vivido do brasileiro.
Assim, durante o curso, procurou-se conhecer alguns
aspectos da história da África, criando diálogos com o conhe-
cimento acadêmico estrito senso sobre África e as possibili-

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 301
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

dades de tratar os conteúdos, mas também as abordagens na


prática do professor de ensino fundamental. A metodologia
adotada durante o curso foi de a cada aula o primeiro mo-
mento ser de discussão do texto teórico (lido previamente);
o segundo momento, era voltado para a prática docente, em
que se problematizava a elaboração de planos de aula sobre
o tema do dia que atendam à demanda do Ensino Fundamen-
tal. Depois do 1º encontro (dia da oficina “Reconhecendo Áfri-
ca”.), foram 13 encontros divididos em 3 unidades: I – Angola
e o Império Português, II – A Era Moderna e a África Central,
III – África Austral: o pan-africanismo e as lutas de libertação.
A dinâmica das aulas: leitura prévia do texto acadê-
mico, discussão sobre o conteúdo do texto e abordagem do
autor, construção coletiva para a prática docente a partir do
texto proposto foi essencial para a otimização dos efeitos do
curso em sala de aula no Ensino Fundamental II. Pois os pro-
fessores liam o texto, interpretavam, debatiam, mas também
socializavam formas didáticas de serem ensinados e podiam,
se estivessem no 7 º, 8º e 9º ano, colocar em prática, imedia-
tamente, o plano de aula elaborado em conjunto com outros
professores do curso de extensão. Assim, o objetivo principal
do curso de extensão foi conhecer a História da África entre
os séculos XVIII e XX stricto sensu e procurar estabelecer o
diálogo com o conhecimento escolar. O exercício dialógico do
conhecimento acadêmico e escolar se deu com seis artigos
científicos14 sobre História da África, especificamente que
14 CURTO, Diogo Ramada. “Projetos coloniais para a África ocidental” In:
_______. Cultura Imperial e Projetos Coloniais (séculos XV a XVIII). Campinas:
Ed. Unicamp, 2009; THORNTHON, John. As guerras civis no Congo e o tráfico
de escravos: a história e a demografia de 1718 a 1844 revisitadas. In: Revista
Estudos Afro-Asiáticos, n.32. Rio de Janeiro, 1997. pp.55-74; WHEELER, Dou-
glas. “Angola e a Republica, 1910-26”. In:____; PELISSIER, Rene. História de An-

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CAPÍTULO 11
302 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

fossem úteis para, ao discutir sobre planos de aulas, mediar o


tema apresentado de forma complexa para um formato profí-
cuo às turmas daqueles professores. Uma das preocupações
principais era pensar formas de mediação que auxiliassem na
construção de conhecimento de História da África para jovens
de 11 a 14 anos, procurando problematizar os preconceitos
científicos que marcam a construção do racismo no Brasil.
Entre a rigidez das leituras acadêmicas, surgiam reci-
tais de sambas-enredos, jongo e muitos causos de racismo
e violência urbana contra jovens da periferia. Muita roda de
cultura, o espaço da socialização era valorizado ao menos em
dois momentos da aula: o primeiro para trazer as impres-
sões do texto e o segundo, depois de dividido em grupo, para
apresentar os planos de aula produzidos. Cada plano de aula
era um aprendizado de como entender, mediar, sintetizar e
elaborar conteúdos. Nas falas dos professores apareciam
constrangimentos do dia a dia, dificuldades por excesso de
carga horária, questões sociais das escolas e dos alunos, resi-
liências, resistências, experiências na lida docente. Nas falas
dos alunos da graduação chegavam ousadias, autoafirmação,
falta de experiência de prática de sala de aula. Nas rodas de
cultura essas diferenças eram transformadas em produção e
aprendizagem.
A pesquisa foi importante para desvelar algumas falas
de professores da rede pública de Ensino e graduandos do cur-
so de Licenciatura em História. Ao se referirem às diretrizes
curriculares, seja da Lei 10639, seja do Currículo Mínimo, des-

gola. Lisboa: Tinta da China, 2009; PELISSIER, Rene. “Dilatação e retratação da


fronteira (1848-1878) trinta anos de incertezas”. In: Histórias de Portugal (26).
Histórias das Campanhas de Angola. Resistência e Revoltas 1845-1941. Vol. I.
Lisboa: Editora Estampa, 1997. pp.85-105.

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CAPÍTULO 11
A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO 303
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

qualificavam-nas, como também a si próprios. Insistiam na


perspectiva da impossibilidade de aplicação da primeira, ape-
sar de entender a sua importância, enquanto sentiam-se coa-
gidos a cumprir a segunda por medo da cobrança da secretária
de Educação, mas também por entender que os alunos preci-
sam estar atualizados às demandas do mercado de trabalho.
A formação contínua de qualidade (com condição de estudo
para o professor) é muito importante, pois é nele que o profes-
sor pode se reconectar consigo mesmo, organizar as relações
do mundo que o cercam e criar não só uma pedagogia da au-
tonomia para o aluno, mas uma autonomia para o seu próprio
ensino aprendizagem. Não é possível dizer que se teve como
resultado uma valorização profissional do educador, mas é
possível dizer que vislumbraram caminhos para a prática e o
cumprimento do dever como professor do Estado, abriram-se
brechas no Currículo, mas também nas relações entre pesqui-
sa e ensino vivenciadas no cotidiano do professor.
Este capítulo foi o resultado de uma pesquisa sobre
Ensino de História da África no Ensino Fundamental II, de-
senvolvida no âmbito das Universidades do Estado do Rio de
Janeiro no ano de 201215, na FFP – UERJ e UFF – PUCG. Pro-

15 Segundo Maria Auxiliadora Schmidth, a pesquisa acadêmica sobre Ensino


de História é possível utilizando a própria prática do professor em sala de aula.
Para ela essa é uma das maneiras de tornar as aulas mais interessantes para os
alunos e para o próprio professor, que não precisa se ausentar da sala de aula
para ter contato com o documento da pesquisa. As suas próprias aulas tornam-
-se espaços de produção de conhecimento. Ver em: SCHMIDT, Maria Auxiliado-
ra. Trajetórias da Investigação em didática da história no Brasil: Experiência da
Universidade Federal do Paraná. In: Epistemologia y Metodologia de las cien-
cias sociales. Disponível em: https://www.ub.edu/historiadidatica/. Acessado
em 06/02/2014; SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Jovens brasileiros e europeus:
identidade, cultura e ensino de história. In. Revista Perspectiva. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação, vol.20
Especial, jul/dez, 2002.

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CAPÍTULO 11
304 A DESCONSTRUÇÃO DO “OUTRO” POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO
UNIVERSITÁRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO ENSINO FUNDAMENTAL II

curou-se em momentos e universidades distintas, respectiva-


mente, analisar o Currículo Mínimo do Estado do Rio de Ja-
neiro, implementado em 2012 com um olhar para o Ensino de
História da África e a prática docente no Ensino Fundamental
II de História da África, utilizando-se textos acadêmicos que
tratassem de África stricto sensu. Conclui-se que não há re-
ceitas, mas que a proposta pedagógica de Paulo Freire ainda
é um grande trunfo para desenvolver no âmbito da Educação,
seja formal ou não, a consciência de si próprio e das relações
que cercam os indivíduos. Necessariamente, o percurso para
quebra dos paradigmas educacionais, baseados no eurocen-
trismo, machismo, monocultura e hegemonia passa por uma
revisão curricular ampla, desde as universidades até o ensino
infantil. Porém, essa revisão é muito estreita, pois perceber os
lugares sociais impostos e os caminhos para desmistificação
desses paradigmas não se restringe à educação formal e a po-
líticas públicas (apesar de reconhecer sua importância), mas
passa pela participação efetiva de agentes sociais em círculos
de cultura, pelas experiências diferenciadas que se possam
oferecer à vida dos profissionais da educação. Desconstruir
a ideia do Outro como exótico, defeituoso passa necessaria-
mente pela desconstrução de si próprio.

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LARISSA OLIVEIRA E GABARRA


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LARISSA OLIVEIRA E GABARRA


CAPÍTULO 12
308 TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

Capítulo 12
Téla nón, clóçon nón: Paulo Freire e
memórias sobre alfabetização de adultos
em São Tomé e Príncipe no
pós-independência
Jacqueline Cunha da Serra Freire
Sinara Mota Neves de Almeida
Elisangela André da Silva Costa 
Elcimar Simão Martins

Construir sobre a fachada do luar das nossas terras um mun-


do novo onde o amor campeia, unindo os homens de todas as
terras. Por sobre os recalques, os ódios e as incompreensões, as
torturas de todas as eras. É um longo caminho a percorrer no
mundo dos homens. É difícil sim, percorrer este longo cami-
nho de longe de toda a África martirizada. Crucificada todos os
dias na alma dos seus filhos... (Construir, poema de Alda do
Espírito Santo, 1978, p. 32)

T
éla nón, clóçon nón: Paulo Freire e memórias sobre
alfabetização de adultos em São Tomé e Príncipe
no pós-independência é inspirado no fragmento
do poema Construir, da poetisa Alda do Espírito
Santo (1978), e busca sintetizar reflexões tecidas a partir de
incursões de pesquisa de campo na ilha de São Tomé, uma
das duas ilhas que compõe o pequeno país insular São Tomé
e Príncipe. Téla nón, clóçon nón significa “nossa terra, nos-
so coração”, em forro1, língua predominante naquela ilha. É
1 Forro é um crioulo de origem portuguesa, que se originou da antiga língua fa-
lada pela população mestiça e livre das cidades. (http://www.linguaportuguesa.
ufrn.br/pt_3.4.e.php. Acesso em 18 de julho de 2016).

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA  •
ELCIMAR SIMÃO MARTINS
CAPÍTULO 12
TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO 309
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

nessa terra fértil de São Tomé e Príncipe que o sonho de liber-


tação se fez luta e a alfabetização constituiu-se parte de um
projeto de nação.
Os fecundos diálogos de Paulo Freire e Sérgio Guima-
rães (2011) no livro África Ensinando a Gente inspiraram
as incursões de campo na ilha de São Tomé no ano de 2013
no bojo de pesquisa vinculada ao Centro de Referência em
Educação de Jovens e Adultos e Cooperação Sul-Sul (ECOS-
S)2, implementado pela Universidade da Integração Interna-
cional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) com o apoio e
financiamento da DPAEJA/SECADI/MEC, bem como o apoio
da Embaixada do Brasil em São Tomé e Príncipe e da Direto-
ria de Educação de Jovens e Adultos (DEJA)3 do Ministério da
Educação daquele país.
O contributo de Paulo Freire em São Tomé e Príncipe na
reconstrução do país a partir da alfabetização e educação de
adultos e memórias de sujeitos educativos tem centralidade
no presente artigo. A abordagem está referenciada no diálo-
go com a revisão de literatura do pensamento freireano e sua
experiência na África, aliada às vozes de sujeitos educativos
históricos do país, observações e memórias das incursões de
campo na ilha de São Tomé.
A contextualização sobre São Tomé e Príncipe é o foco
da primeira parte do artigo, em que o poema Ilha Nua, de Alda
do Espírito Santo (1978), introduz a descrição da terra que

2 O ECOSS foi implementado na UNILAB entre 2011 e 2014 com o apoio e finan-

ciamento da Diretoria de Política de Alfabetização e Educação de Jovens e Adul-


tos (DPAEJA) da Secretaria de Educação Continuada Alfabetização Diversidade
e Inclusão (SECADI) do Ministério da Educação (MEC).
3 A DEJA consiste numa estrutura orgânica criada no Ministério da Educação

Cultura Juventude e Desporto, conforme ato publicado no Diário nº 2 de 30 de


Janeiro de 2007 do XI Governo Constitucional de São Tomé e Príncipe.

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CAPÍTULO 12
310 TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

se faz coração no povo santomense. Na segunda parte, ele-


mentos históricos da educação e alfabetização de adultos no
país dialogam com a contextualização e vozes de sujeitos que
teceram muito dessa história educacional naquele peque-
no país insular que clamou por justiça e o direito humano à
­educação.

Ilha Nua: um pouco sobre São Tomé e Príncipe


Coqueiros e palmares da Terra Natal. Mar azul
das ilhas perdidas na conjuntura dos séculos. Ve-
getação densa no horizonte imenso dos nossos
sonhos. Verdura, oceano, calor tropical gritando
a sede imensa do salgado mar. No deserto parado-
xal das praias humanas sedentas de espaço e de
vida. Nos cantos amargos do ossobô anunciando o
cair das chuvas. Varrendo de rijo a terra calcinada
saturada do calor ardente. Mas faminta da irradia-
ção humana. Ilhas paradoxais do Sul do Sará. Os
desertos humanos clamam na floresta virgem dos
teus destinos sem planuras... Alda do Espírito San-
to (2002).

Poema de Alda do Espírito Santo4 (1978), Ilha Nua é


reveladora das belezas e encantarias que o pequeno país in-
sular em África alberga. São Tomé e Príncipe é composto de
duas ilhas – ilha de São Tomé e ilha do Príncipe –, situadas no

4 Alda do Espírito Santo, também conhecida como Alda Graça, é santomense,


nascida nos idos da década de 1920 na ilha de São Tomé. Na década de 1940
mudou-se para Portugal, onde teve oportunidade de iniciar seus estudos uni-
versitários. Contemporânea de Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, Agos-
tinho Neto, Francisco José Tenreiro, entre outros, que se firmaram líderes da
independência em África, Alda do Espírito Santo destacou-se na militância, luta
política e resistência pela independência de São Tomé e Príncipe, tendo ocupa-
do cargos do alto escalão naquele país no processo de reconstrução nacional.

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CAPÍTULO 12
TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO 311
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

Golfo da Guiné, em frente ao Gabão. Sua extensão territorial


de aproximadamente 1.000 km² abriga, no dizer da poetisa,
uma diversidade natural de mar azul das ilhas do oceano
Atlântico e seu clima tropical abriga a “Vegetação densa no
horizonte imenso dos nossos sonhos” (SANTO, 1978, p. 121).
Em 2012 o país tinha aproximadamente 170.000 ha-
bitantes, segundo dados da Unesco (2014), tendo se tornado
nos últimos anos um país de rendimento intermediário, con-
siderando-se que em 2012 apresentava um Produto Interno
Bruto-PIB/habitante de US$ 1.556,00.
Internacionalmente é reconhecido como um país que
já vivencia condições socioeconômicas melhores em relação
a outros países do continente africano, considerando-se sua
posição em 144º lugar ao nível do Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH) no universo de 187 países. (UNESCO, 2014).
O crescimento do PIB entre 2000 e 2012 foi de 4,9% ao
ano, revelando-se maior do que o crescimento demográfico,
que foi de 1,9% no mesmo período. Na perspectiva de melho-
ria das condições de vida no país foi elaborado, em 2002, o
documento Estratégia Nacional de Redução da Pobreza (ENR-
P-I), que referenciou a busca da redução da metade da parcela
da população santomense que vivia na situação de pobreza.
A ENRP-I pretendia que tal redução até 2015 fosse inferior
a 1/3, enquanto a população em extrema pobreza passaria
de 15,1% para 4,9%, processos esses vinculados à necessida-
de do alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM) no país. (MINISTÉRIO DO PLANO E DESENVOLVIMEN-
TO, 2012).
Passados mais de dez anos da elaboração da ENRP-I,
constatou-se que a implementação da Estratégia ficou aquém
do desejado e previsto, conduzindo a elaboração da ENRP-II

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CAPÍTULO 12
312 TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

no sentido de redirecionar, a partir de um amplo processo de


participação social, a luta contra a pobreza entre 2012-2016,
assente nos pressupostos de fazer de São Tomé e Príncipe um
país “(i) bem governado com instituições fortes e credíveis; (ii)
com um ambiente favorável ao crescimento económico sus-
tentável e integrado e à (re) distribuição de rendimentos; (iii)
com recursos humanos bem formados e adequados aos desa-
fios de desenvolvimento; (iv) e que valorize o património cul-
tural e garanta a igualdade e oportunidade entre os géneros.”
(MINISTÉRIO DO PLANO E DESENVOLVIMENTO, 2012, p. 8-9).
A realidade das décadas mais recentes vincula-se a um
contexto histórico de um país que foi ocupado por Portugal
no último quartel do século XV, em que pese ter sido encon-
trado por colonizadores ainda em meados da década de 1470,
como aponta Seibert (2014). Na estratégia de dominação lusa
o país só teve sua importância reconhecida a partir de sua po-
sição estratégica e relação com o Reino do Congo. Na análise
de Seibert (2002, p. 34):
Os portugueses pretendiam estabelecer uma so-
ciedade europeia cristã, sustentada por uma eco-
nomia de exportação, que usaria mão de obra afri-
cana abundante e submissa, a ser submetida por
trabalhadores mestiços a médio prazo. A ilha era
suposta a representar um papel semelhante ao
dos Açores e a Madeira no hemisfério Norte, como
entreposto para a sua navegação portuguesa no
Atlântico-Sul.

O exitoso cultivo da cana de açúcar fez de São Tomé e


Príncipe o primeiro país na economia de plantations5 dos tró-
5 Plantations consiste num sistema agrícola marcado pela monocultura e expor-

tação, em que a produção se dá em latifúndios e recorre à mão de obra escrava.

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TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO 313
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

picos à época. A força de trabalho era proveniente do Gabão,


Benin, Reinos do Congo e de Angola, como é analisado por
Seibert (2002). Complexa e estratificada, a sociedade santo-
mense teve no passado secular o tráfico de escravos e a ex-
ploração do trabalho na cana de açúcar como marcas de sua
constituição, entre outros elementos.
A intensa miscigenação entre africanos e europeus e o
progressivo abandono desses últimos das ilhas de São Tomé
e Príncipe ensejou a formação de uma sociedade e cultura
crioula a partir e uma elite negra que passou a dominar o
país. Na análise de Rizzi (2012):
Os primeiros três séculos de colonização se ca-
racterizaram profundamente por tensões polí-
ticas, favorecidas pela distância (e desinteresse)
do governo central de Lisboa, pelo vácuo de fun-
cionários (com partida prematura, por não adap-
tação ao clima, ou morte por doenças tropicais),
pela fragmentação do poder político local entre
a Coroa portuguesa, a Igreja Católica e a Câmara
Municipal, pelo caráter miscigenado da socieda-
de ou ainda pelas constantes revoltas e fugas de
escravos (originando as guerras do mato contra
os fugitivos, por parte dos senhores) (RIZZI, 2012,
p. 72).

É no século XVI que emergem as primeiras sociedades


crioulas no mundo atlântico, na análise de Seibert (2014), a
partir de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Para o autor, os
padrões de povoamento de ambos os países insulares tive-
ram características muito semelhantes, em que se destacam:
“... instituição inicial de donatários com poderes
administrativos e judiciais;

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CAPÍTULO 12
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TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

• reduzido número de colonos brancos, muitos


dos quais degredados;
• povoamento sobretudo com escravos africanos
do continente, que serviam de mão de obra;
concessão aos moradores de direitos de comér-
cio com a costa vizinha;
• estabelecimento de entrepostos de tráfico de
escravos;
• mestiçagem biológica entre homens e mulhe-
res negras;
• introdução de culturas alimentares e animais
domésticos, seguida da cana de açúcar; ...” (SEI-
BERT, 2014, p. 47).

Em meados do século XIX o país viveu o segundo pe-


ríodo de colonização, em que as culturas do café e do cacau
reverteram a situação econômica das ilhas com a marca da
plantação extensiva, as roças. Berthet (2012) discute a roça
como intrinsecamente relacionada à cultura santomense sob
o domínio colonial.
As migrações humanas e deslocamentos de povos afri-
canos são analisados por Seibert (2002), as múltiplas influên-
cias para a constituição da sociedade santomense, os confli-
tos políticos, a estratificação econômica e social, as disputas
de interesses daí advindos, que (re) configuravam o domínio
de elites ao longo do século XX, tensionado por aspirações de
libertação do jugo português.
O Massacre de Batepá, em 1953, que culminou na mor-
te de aproximadamente mil pessoas, a partir da insurreição
dos forros6 ante a tentativa da administração colonial por-

6Forros são concebidos como os Crioulos em São Tomé e Príncipe. Denomi-


nados localmente com tal designação, os Forros, constituem a classe social e

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CAPÍTULO 12
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TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

tuguesa de obrigar a população crioula a trabalhar nas roças


para suprir a falta de mão de obra, é um marco na luta pela
libertação de São Tomé e Príncipe. A análise de Berthet (2012)
aponta contradições sobre a situação das roças, sua dinâmica
econômico-político-social no processo de luta pela indepen-
dência e no pós-independência, bem como a intervenção do
Banco Mundial nesse assunto em décadas mais recentes.
A criação em 1960 do Comitê de Libertação de São Tomé
e Príncipe (CLSTP), posteriormente reconhecido pela Organi-
zação das Nações Unidas (ONU), a aproximação com o MPLA
e PAIGC, a participação na criação da Organização da União
Africana (OUA), a reconstrução do CLSTP em 1972 por Movi-
mento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLST), esse últi-
mo sob forte influência do Partido Africano pela Independên-
cia da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), a Revolução dos Cravos em
Portugal, entre outros elementos, vão ser decisivos para a luta
da independência das ilhas, reivindicação da instauração do
regime democrático, anticolonialista e anti-imperialista.
A intensificação da mobilização de estudantes santo-
menses em Lisboa e de ações cívicas nas ilhas em 1974, com
forte impacto na economia cafeeira e cacaueira, tendo inclu-
sive paralisado a produção e a colheita dessas culturas, vai
marcar o processo de libertação do país, que teve entre as
lideranças desse movimento da Cívica pró-MLSTP a poetisa
Alda do Espírito Santo.
O importante processo de luta e libertação de São Tomé
e Príncipe, conforme relatos e análises de Rizzi (2012) e Sei-
bert (2002), culmina com o reconhecimento da independên-
cia do país em 12 de julho de 1975.
política dominante no país. Sanguin (2014) aborda importante discussão sobre
os Forros.

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CAPÍTULO 12
316 TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

A educação, em especial a alfabetização de adultos, tem


importância fundamental na luta pela garantia de direitos e
no processo de reconstrução do país, em que apontamentos
históricos sobre o assunto são parte da seção a seguir.

Alfabetização de Adultos: contributos de Paulo Freire e


memórias de Educadores em São Tomé e Príncipe
A África, berço da humanidade, foi para Paulo Freire
uma grande escola. (GADOTTI, 2012, p. 57).

É na grande escola que África foi para Paulo Freire que


seu contributo é aqui resgatado a partir do pequeno país in-
sular que é São Tomé e Príncipe. Historicamente, o dia 12 de
julho de 1975 marca a independência do país e com isso a
tarefa de alfabetização se coloca como um dos elementos es-
truturantes para a reconstrução do país após o jugo colonial
português.
No governo de transição, a partir de dezembro de 1974
e pós-independência até janeiro de 1976, Alda do Espírito
Santo assumiu o Ministério da Educação, de onde passou
para o Ministério da Informação e Cultura. Alda do Espírito
Santo relata à Guimarães (2011, p. 86) que ainda na luta pela
independência já haviam produzido ... um manual arcaico de
alfabetização, que era impresso... E, então, começávamos pela
palavra povo, porque na altura era toda a população que queria
a mudança e que queria a independência.
A criação da Comissão Nacional de Alfabetização em São
Tomé e Príncipe, abrangendo todos os Ministérios, se consti-
tuiu numa das estratégias de reconstrução do país. Naquele
contexto, Paulo Freire encontrava-se no exílio, em Genebra,
imposto pelos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil.

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CAPÍTULO 12
TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO 317
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

A trajetória de Paulo Freire em África se inicia na déca-


da de 1970, mais precisamente em 1971, tempo em que era
membro do Departamento de Educação do Conselho Mun-
dial de Igrejas, com sede em Genebra. No análise de Gadotti
(2012,) as experiências de Paulo Freire no continente africa-
no contribuíram “... para um novo desenvolvimento de sua
teoria emancipadora da educação, entendida como ato polí-
tico, ato produtivo e ato de conhecimento... (GADOTTI, 2012,
p. 56)”.
Em sua obra Cartas à Guiné Bissau, Freire (1978) afirma
que:
... a alfabetização de adultos se inscreve como uma
introdução ao esforço de sistematização do conhe-
cimento que trabalhadores rurais e urbanos alcan-
çam em decorrência de sua atividade prática, que
jamais se explica por si mesma, mas pelas finalida-
des que a motivam... (FREIRE, 1978, p. 29).

As aprendizagens de Paulo Freire na Guiné Bissau mui-


to inspiraram suas experiências em São Tomé e Príncipe. Re-
lata ele a Sérgio Guimarães (2011) que uma de suas preocu-
pações com as equipes nacionais em São Tomé e Príncipe era
com a criação dos materiais formativos e didáticos par dar
suporte ao processo de alfabetização e pós-alfabetização no
país.
A partir de tal preocupação, Paulo Freire fez várias vi-
sitas ao país e, mesmo à distância, mantinha contato perma-
nente desde com o Presidente da República até com os Edu-
cadores. Entre as primeiras produções destaca-se o primeiro
livro de texto intitulado Segundo Caderno de Cultura Popular
– textos para ler e discutir como introdução à gramática (FREIRE
& GUIMARÃES, 2011).

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CAPÍTULO 12
318 TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

A convicção de Paulo Freire de que não se estuda somen-


te na escola é reafirmada em sua experiência em São Tomé e
Príncipe a partir de muitos relatos seus da convivência com o
povo santomense, contribuindo assim para o repensar de sua
própria teoria, como já analisara Gadotti (2012). As aprendi-
zagens daí advindas inspiraram Paulo Freire a escrever com
simplicidade sem ser simplista, como faz questão de ressaltar
o mestre. Ao referir-se ao livro já citado aqui, em diálogo com
Sérgio Guimarães, Paulo Freire afirma:
Nesse sentido, Sérgio, talvez perdendo um pouco a
humildade necessária, e não fabricada, eu te diria
que talvez seja esse um dos melhores livros meus,
e que, por coincidência, vai ser publicado não com
o meu nome, mas sim com o nome do Ministério
da Educação de lá, como se fosse um nacional que
tivesse escrito. Eu achei muito melhor esse cami-
nho do que exigir o meu nome nesse negócio. Para
afirmar o quê? O que me interessa é dar uma con-
tribuição a um povo que está lutando para ser, e
não para por nas relações bibliográficas mais um
livro. (FREIRE & GUIMARÃES, 2011, p. 68-69).

As cartas escritas aos Animadores em nome da Comis-


são Nacional eram elaboradas por Paulo Freire para diminuir
a distância nos períodos em que não estava em visitas no país.
Presente em São Tomé e Príncipe, Paulo Freire privilegiava a
realização de Seminários de Avaliação, como relata para Gui-
marães (2011).
Na dinâmica de produção e diálogo sobre as cartas com
os Educadores santomenses, Paulo Freire nos diz:
... Como a África vai ensinando a gente! Como a
realidade vai ensinando! Na África, meu querido

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CAPÍTULO 12
TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO 319
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

Sérgio, a gente está enfrentando uma cultura cuja


memória – por n razões que não interessa aqui
agora conversar – é auditiva, é oral, e não escrita.
Então, antes da leitura silenciosa, numa cultura de
memória oral, tem que fazer a leitura em voz alta, e
a tarefa deve ser a do educador! ... Então eu mostro,
nessa primeira carta, que nem sempre você parte
da leitura da palavra, mas numa opção política re-
volucionária, você tem que juntar sempre a leitura
da realidade com a leitura da palavra... (FREIRE &
GUIMARÃES, 2011, p. 72-73).

Nas memórias de Alda do Espírito Santo, vivificadas


em diálogos com Guimarães (2011), a poetisa e lutadora pelos
ideais de libertação de seu povo rememora muitas pessoas
que teceram essa história de descolonização das mentes pela
alfabetização, e entre esses resgata a importância do Educa-
dor Galdino, que atuou em Monte Mário, comunidade situada
ao sul da ilha de São Tomé.
Nas nossas incursões de pesquisa na ilha de São Tomé,
na perspectiva do resgate da memória da alfabetização e edu-
cação de adultos no país no pós-independência, o encontro
com o Educador Galino Quaresma Vaz D’Almeida, nascido em
23 de março de 1923, nos inspirou. Na sua narrativa, a alfa-
betização de adultos assume destaque na luta e resistência ao
domínio colonial. Assim nos disse ele:
A educação entrou depois de haver um excesso de
opressão dos portugueses. As pessoas começaram
a quererem exprimir, mas exprimiam oralmente.
Depois havia a necessidade de escrever. Então, a
ideia de ler e escrever abrangia toda gente. Explo-
diu-se. Toda gente queria aprender a ler e escrever.
A educação começou a espalhar por todo o país.

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CAPÍTULO 12
320 TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

Então, veio surgir a alfabetização. Havia alfabeti-


zação, mas uma coisa muito particular. Quando
surgiu a independência então a escola espalhou-
-se por todo o país. Os alunos, os filhos da elite,
tinham um certo tratamento, e os de nação tinham
outro tratamento, o que não era de acordo com as
pessoas porque as pessoas não ficavam contentes
com esse sistema, mas como não havia outra alter-
nativa as pessoas suportavam até quando apare-
ceu a independência. (Galino Quaresma Vaz D’Al-
meida, alfabetizador e educador popular, 90 anos,
ilha de São Tomé, 2013).

Ao recordar do trabalho com Paulo Freire, do proces-


so de organização da Campanha de Alfabetização e formação
dos educadores em São Tomé e Príncipe, assim se manifestou
Galino:
Mais marcante para mim era sua maneira extraor-
dinária de ensinar. Ele ensinava de uma maneira
muito compreensível, que a gente compreendia
com facilidade. Primeiro ele escolheu os Profes-
sores que lecionavam. Depois foi a preparação do
Seminário Nacional com todos os Professores que
lecionavam. Depois eram esses Professores que
iam formar Animadores para depois lecionarem.
Esses Professores ficavam como Coordenadores
e iam ver como os Animadores se comportavam
na escola, como os participantes comportavam, e
qualquer falha que houvesse, os Coordenadores
que ficavam responsáveis. (Galino Quaresma Vaz
D’Almeida, alfabetizador e educador popular, 90
anos, ilha de São Tomé, 2013).

Muito emocionante encontrar o Educador Galino, que


foi à sede da ilha de São Tomé para encontrar a equipe do

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TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

ECOSS/Unilab e dar seu depoimento vivaz de um passado de


luta e dedicado à educação, que mais do que memórias ainda
se faz presente no seu dia a dia, ao continuar no ofício de en-
sinar, como partilha em seu relato:
Eu gosto de trabalho. Eu gosto de ensinar. Gosto
de transmitir esse pouco que eu sei ao terceiro.
Para ser engenheiro tem que passar pela primeira
a quarta classe. Esses passaram pela minha mão.
Eu gosto muito de ensinar até hoje, é um dom que
Deus deu-me. (Galino Quaresma Vaz D’Almeida,
alfabetizador e educador popular, 90 anos, ilha de
São Tomé, 2013).

No contexto da Campanha Nacional de Alfabetização


nos anos do pós-independência na década de 1970 e nos pri-
meiros anos da década de 1980, a responsabilidade perten-
cia ao Estado, o que posteriormente vai ser modificado. Sob
a égide do Estado a alfabetização prosperou, enquanto que
a mudança de orientação e desresponsabilização do Estado
enseja a decaída, como relatado por Alda do Espírito Santo.
(FREIRE & GUIMARÃES, 2011).
As experiências de Paulo Freire na África remodelaram
sua pedagogia, afirma Gadotti (2012, p. 60), contribuindo para
que, ao radicalizar o seu pensamento, Paulo Freire assumisse
o trabalho como princípio educativo, conforme afirma o au-
tor. A concepção mais totalizante da alfabetização imbricada
à dinâmica econômica, política, social e cultural é expressa
na citação de Paulo Freire:
Eu estou convencido de que, se se deixa o país em
paz, é possível desenvolver um trabalho lentamen-
te, não também por decreto, mas um trabalho no
campo da educação de adultos, que tem que ver

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TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

com a educação geral, em que se vão terminar por


oferecer – desde que você não faça uma educação
abstrata, que você ligue isso tudo à problemática
da produção, da saúde, da política –, oferecer, não
doar, instrumentos que constituem uma forma crí-
tica de pensar, de pensar a prática. (FREIRE, 2011,
p. 75).

Ao incursionar em memórias da alfabetização na ilha


de São Tomé, o encontro com o Educador João Viegas Neto de
Lima, nascido em 31 de agosto de 1943, mais conhecido como
Viegas, oportunizou conhecer o relato de que aos 25 anos já
era professor – no final década de 1960, portanto, contexto no
qual o país ainda vivia sob a égide do regime colonial, mas já
clamava por sua independência. Sua narrativa sobre o pro-
cesso de alfabetização no pós-independência é reveladora de
suas percepções:
... um povo analfabeto constitui um perigo porque
ele é facilmente enganado e ele não desempenha
cabalmente o seu papel em termos da política e é
por essa razão que eles desde a primeira hora in-
crementaram esse processo de alfabetização, por-
que nós tínhamos uma taxa de analfabetismo mui-
to alta. Com a grande Campanha ainda me lembro
que naquela altura participou Kimiko7, o Roberto,
eu me lembro assim o nome de alguns. De todas
as campanhas aquela foi a melhor e muita gente
aprendeu. Eu consegui alfabetizar cerda de qui-
nhentas e tal pessoas... (João Viegas Neto de Lima,
alfabetizador e educador popular, 70 anos, ilha de
São Tomé, 2013).
7Kimiko, citada pelo Educador Viegas, era Kimiko Nakamo, paulista, membro
da equipe Instituto de Ação Cultural (IDAC), este último criado por Paulo Freire
na época de seu exílio em Genebra, Suíça.

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TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

A leitura da realidade santomense pelo Educador Vie-


gas evidencia a importância da alfabetização e da educação
para o que Paulo Freire chama de descolonização das mentes,
inspirado em Amílcar Cabral, como é analisado por Gadotti
(2012). Afirma o autor que “A libertação política não elimina
a presença do colonizador. Ele continua na cultura imposta e
introjetada no colonizado. O trabalho educativo pós-colonial
se impõe como tarefa de descolonização das mentes e dos co-
rações” (GADOTTI, 2012, p. 101).
As campanhas de alfabetização cumpriram a importan-
te função política e educativa de garantir o direito humano à
educação, democratizar o acesso ao conhecimento pela lei-
tura da palavra também como expressão da leitura de mun-
do, fundamento esse da pedagogia freireana. A educação de
adultos possibilitou uma ruptura com o processo excludente
que o regime colonial impôs a parcelas significativas da po-
pulação santomense
Ao rememorar o trabalho com Paulo Freire, assim o
Educador Viegas se expressou:
... foi muito frutuoso. Muito aprendi com Paulo
Freire. Era um indivíduo de uma capacidade ex-
traordinária. E se alguém disser que não aprendeu
com esse senhor é porque não deu valor ou não
conhece boas coisas no homem de grande talento.
Entende de pedagogia, deu-nos a pedagogia dele e
ainda temos aplicado ainda até hoje. Eu li o livro
dele e para mim foi um grande guia, um grande
guia esse livro. Era um indivíduo com visão, não
era qualquer homem. Muito ele fez para o país...
Ele deu-nos a técnica, a metodologia dele, como
redigir. Isso foi para mim muito importante. (João
Viegas Neto de Lima, alfabetizador e educador po-
pular, 70 anos, ilha de São Tomé, 2013).

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA  •
ELCIMAR SIMÃO MARTINS
CAPÍTULO 12
324 TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

O reconhecimento do legado de Paulo Freire em São


Tomé e Príncipe é vivo na memória dos educadores e alfa-
betizadores que com ele trabalharam. O papel visionário que
Paulo Freire e sua pedagogia libertadora exerceram na educa-
ção popular em África é testemunhado por suas obras e nas
narrativas de sujeitos educativos, a exemplo dos educadores
Galdino e Viegas.
A Campanha de Alfabetização na memória do Educa-
dor Viegas é assim traduzida:
... Essa grande campanha muito contribuiu para
que hoje muitos jovens que estão no pós-alfabeti-
zação tivessem êxito, porque havia pessoa que não
conhecia, não sabia escrever o seu nome... e hoje
temos muitos que passaram pela alfabetização
que já fizeram o 11º ano, já fizeram o liceu. Até pa-
rece curioso, mas é verdade. Há quem diga: será?
Eu tenho provas disso, provas concretas. Muitos
que foram meus alunos que já fizeram o liceu, já
concluíram o liceu. Eu gostaria que toda gente de
São Tomé fosse alfabetizada. (João Viegas Neto de
Lima, alfabetizador e educador popular, 70 anos,
ilha de São Tomé, 2013).

As Campanhas de Alfabetização desencadeadas no país


e sua importância estão presentes nos testemunhos de edu-
cadores, como se constata nos relatos. O depoimento de Alda
do Espírito Santo a Guimarães (2011) de que a progressiva
desresponsabilização do Estado com a educação e a alfabe-
tização já nos primeiros anos da década de 1980 ensejou a
decaída, contribuindo para que o analfabetismo não fosse eli-
minado no país. Dados evidenciados pelo autor, baseado em
relatórios do Unicef, retratam uma taxa de alfabetização de
73% em 1991.

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA  •
ELCIMAR SIMÃO MARTINS
CAPÍTULO 12
TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO 325
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

O orgulho de que a partir das Campanhas de Alfabetiza-


ção muitos jovens tenham assegurado o direito à educação e
logrado êxito em nível básico e secundário, concluindo inclu-
sive o liceu, que contempla os anos mais elevados de escola-
rização, é evidenciado na narrativa do Educador Viegas. Mais
que o acesso à educação, o processo educativo desencadeado
sob liderança de nacionais no pós-independência, com a soli-
dariedade internacional de Paulo Freire e outros membros do
IDAC, teve a marca da educação como ato político e cultural,
da ruptura com a herança colonial. Tal processo se fez impe-
rativo para romper com o que nos ensinou Freire (1978):
... a educação colonial herdada, de que um dos
principais objetivos era a “desafricanização” dos
nacionais, discriminadora, mediocremente verba-
lista, em nada poderia concorrer no sentido da re-
construção nacional, pois para isto não fora cons-
tituída... (FREIRE, 1978, p. 20).

Edukason ku alfabetizason di n’guê: diretu di pôvô

É com a afirmação da educação e alfabetização de adul-


tos como direito do povo, escrito no crioulo forro de São Tomé
e Príncipe, que à guisa de conclusão são tecidas sínteses refle-
xivas da experiência de educação popular na Ilha Nua, como
o pequeno país insular São Tomé e Príncipe foi poetizado por
Alda do Espírito Santo.
A revisão de literatura e memórias de Educadores, dia-
logadas nas incursões de campo na Ilha de São Tomé, é reve-
ladora da alfabetização como expressão de um processo de
descolonização das mentes e reafricanização dos nacionais
que historicamente estiveram sob o jugo português.

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ELCIMAR SIMÃO MARTINS
CAPÍTULO 12
326 TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO
TOMÉ E PRÍNCIPE NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

Téla nón, clóçon nón: Paulo Freire e memórias sobre al-


fabetização de adultos em São Tomé e Príncipe no pós-inde-
pendência é um testemunho de afeto pela terra e afirmação
de direitos ao desvelamento do mundo pela leitura e escrita
da palavra.
Contradições entre o ideal de libertação, políticas na-
cionais no processo pós-independência e os ditames dos co-
operantes internacionais se evidenciam na minimização do
papel do Estado na política educacional e superação do anal-
fabetismo.
Tecer práticas educativas emancipadoras, capazes de
rupturas com a herança cultural do colonizador, descoloni-
zação das mentes e reafricanização de nacionais requer um
processo que compreenda e concretize a educação como ato
político vinculado à produção da existência material e tessi-
tura cultural de seu povo.

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JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA  •
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CAPÍTULO 12
TÉLA NÓN, CLÓÇON NÓN: PAULO FREIRE E MEMÓRIAS SOBRE ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS EM SÃO 327
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JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE • SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA • ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA  •
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328 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

Capítulo 13
Sob o signo de Paulo Freire: considerações
acerca do projeto de universidade popular
Leandro Proença

Primeiras palavras do diálogo1

E
screvo a partir do meu lugar, dado que seria des-
necessário se o lugar das falas, mais precisamente
o lugar dos corpos que falam2, não fosse também
ideológico; me insiro no contexto de implemen-
tação da Universidade da Integração Internacional da Luso-
fonia Afro-brasileira – Unilab –, criada em 2011, durante o
governo Lula, e que foi um dos pilares de sua política para
a educação superior3. Juntamente com a Universidade da
Integração Internacional Latino-Americana – Unila –, são
universidades construídas a partir de diretrizes como a co-
operação internacional Sul-Sul4 e o atendimento a deman-
1 O caráter dialógico é um aspecto fundamental na pedagogia freireana. Uma
máxima expressa uma de suas ideias sobre o caráter do diálogo: é necessário
dialogar com as diferenças, mas não é possível o diálogo entre antagônicos...
2 Ver ALMEIDA, Danilo Di Manno de. Uma ética para o corpo: cidadania e edu-

cação transformadora. In: ALMEIDA, Danilo Di Manno de (org.). Corpo em ética:


perspectivas de uma educação cidadã. São Bernardo do Campo: UMESP, 2002.
3 Que estranhamente conviveu, é fato, com incentivos que promoveram a ex-

pansão das instituições particulares.


4 Para a discussão sobre a globalização como possibilidade, ver, por exemplo:

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciên-


cia universal. 6ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2001. Sobre o conceito es-
pecífico de cooperação Sul-Sul, ver, dentre outras: SANTOS, Boaventura de Sou-
sa; MENESES, Maria Paulo (orgs.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2013.

LEANDRO PROENÇA
CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR
329

das concretas dos países parceiros e dos lugares onde foram


implantadas, no interior do Brasil5. A cooperação Sul-Sul ca-
racteriza-se não somente pelas relações entre países do Sul
Global, mas principalmente pelo tipo de relações, marcadas
pela solidariedade e não pela exploração. No caso da Unilab,
a cooperação internacional se dá entre Brasil, Angola, Cabo-
-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Ti-
mor-Leste e Portugal6. Sou professor da Unilab desde 2014 e
tenho tido a oportunidade de experienciar as bonitezas e as
contradições deste projeto, que sofre com demasiadas amea-
ças externas e internas. As ameaças externas transcendem ao
fato de a Unilab estar vinculada a um projeto de governo; tem
a ver com a objeção à democratização, expansão e interioriza-
ção do ensino superior, enfim, tem a ver com a contrariedade
ao ideal de universidade pública, gratuita e de qualidade – e
oxalá popular. As ameaças internas têm a ver com aqueles
que, desde dentro, trabalham de forma resiliente para a ma-
nutenção de uma universidade tradicional; têm a ver também
com determinadas ideologias neocoloniais, cuja missão seria
desenvolver e civilizacionar as regiões do sul global, suas cul-
turas e suas gentes.
A expressão que dá título ao texto, quase poética, foi em-
prestada de um artigo memorável de Maurício ­Tragtenberg,
no qual o autor faz duras críticas ao que ele chama de delin-
quência acadêmica7. É partir deste contexto que desenvolvo

5 A Unilab está inserida em Redenção-CE e em São Francisco do Conde-BA, e a


Unila se localiza em Foz do Iguaçu-PR.
6 Há que se debater o lugar e os interesses de Brasil e Portugal nessas relações.

Não deve ser ignorada a possibilidade de promover esses países a uma condi-
ção de centralidade e domínio.
7 TRAGTENBERG, Maurício. A delinquência acadêmica: o poder sem saber e o

saber sem poder. São Paulo: Rumo, 1974.

LEANDRO PROENÇA
330 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

as reflexões que apresento neste texto, cujo objetivo maior é


contribuir com este campo da educação popular.

Concepção de universidade

Após apresentar um breve resgate da história recente


da instituição universitária, Tragtenberg, no referido texto,
defende que o tratamento do tema exige encarar a relação en-
tre a dominação e o saber e a relação do e da intelectual com
uma instituição dominante e ligada à dominação.
O surgimento e o desenvolvimento histórico da univer-
sidade – apesar do constante esforço de fazer com que esta
instituição represente um reduto para a prática do livre pen-
samento e da crítica – estiveram ligados às relações de poder
em sociedades pautadas pela desigualdade social, restringin-
do seu acesso às elites e direcionando seus esforços aos inte-
resses daqueles que a financiam. Tragtenberg dirige pesadas
críticas à postura que ele chama de delinquência acadêmica: a
adequação aos interesses dominantes que instrumentalizam
a universidade e destroem o exercício da crítica radical. Os e
as profissionais da educação acabam dirigindo seus esforços
a servir à burocracia acadêmica e à lógica que ela impõe para
controlar a produção (produtividade?8) acadêmica. Uma das
expressões desse trabalho controlado, por exemplo, segundo
este pensador, é o fato de que “a maioria dos congressos aca-
dêmicos universitários servem de ‘mercado humano’, onde
entram em contato pessoas e cargos acadêmicos a serem pre-
8 A pressão por índices quantitativos de medição da qualidade acadêmica reve-
la uma determinada concepção de educação influenciada por uma lógica neo-
liberal, e parece impactar negativamente as práticas da pesquisa, do ensino e
da extensão na universidade, comprometendo principalmente as pesquisas nas
áreas das ciências sociais e das humanidades.

LEANDRO PROENÇA
CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR
331

enchidos”, enquanto que “o encontro entre educadores sob


o signo de Paulo Freire enfatiza a responsabilidade social do
educador, da educação não confundida com inculcação”.
Convencionou-se chamar de tradicional a universida-
de que não logrou romper com as históricas formas de do-
minação. Independentemente dos modelos organizativos – se
humboldtiana, napoleônica ou norte-americana9 –, a questão
é eminentemente política: a quais interesses a universidade
serve? A produção de conhecimento voltada às demandas do
complexo bélico-industrial e a rígida seleção de seu público
promovem desenvolvimento técnico-científico ao mesmo
tempo em que mantêm a estrutura social de divisão e explo-
ração de classes. Ainda segundo Tragtenberg, uma das carac-
terísticas principais dos intelectuais adaptados a esse tipo de
universidade é trocar o poder da razão pela razão do poder;
fato é que a universidade se torna uma instituição hostil ao
pensamento crítico avançado, o que representa mais uma
característica da delinquência acadêmica: “se os estudantes
procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época, é
fora da universidade que irão encontrá-los. A bem da verda-
de, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica”.
Há um bom número de pesquisas e escritos que fazem
a crítica aos descaminhos desta instituição, denunciando a
“delinquência acadêmica” (Tragtenberg), a “universidade es-
tagnada” (Milton Santos), a “universidade operacional” (Ma-

9 Trata-se dos modelos dominantes da universidade moderna. Resumindo bas-


tante a questão, têm a ver com a ideia de universidade como lugar predominan-
te de pesquisa científica x universidade como lugar de formação profissionali-
zante x e universidade como modelo universalizante. Ver: SILVEIRA, Zuleide
Simas da; BIANCHETTI, Lucídio. A universidade moderna: dos interesses do Es-
tado-nação às conveniências do mercado. Revista Brasileira de Educação, v.21.,
n.64, jan-mar.2016, pp. 79-99.

LEANDRO PROENÇA
332 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

rilena Chauí), a “universidade modernizada” (Severino), den-


tre outros. Como bom exercício da crítica, procuram propor,
também, alternativas, caminhos e possibilidades, que nos
ajudam, aqui, a pensar uma universidade sob o signo de Pau-
lo Freire, e esta há de ser a universidade popular10.

Educação popular

O termo Universidade popular remete a um conceito


ainda incipiente; não há consenso e, muita vez, clareza sobre
seu sentido. Encontra-se, todavia, dentro do campo da edu-
cação popular. Comecemos daqui. Em texto escrito sobre o
conceito, Carlos Rodrigues Brandão explora quatro sentidos
diferentes: “1) como a educação da comunidade primitiva an-
terior à divisão social do saber; 2) como a educação do ensi-
no público; 3) como educação das classes populares; 4) como a
educação da sociedade igualitária”11. Brandão esclarece que
alguns desses sentidos são pouco usuais, mas que jogam lu-
zes interessantes sobre o debate. Re-inverte a ordem pouco

10 Paulo Freire não escreveu muito sobre a universidade; e mesmo que muitas
vezes seja ligado a temas específicos, como educação de jovens e adultos, por
exemplo, ele se dizia mais “guloso”, e procurara pensar a educação enquanto fe-
nômeno social e político, em sua totalidade, a partir de um contraponto sempre
presente: a pedagogia do oprimido; num certo sentido, ou no sentido que vamos
defender aqui, o da educação popular. Quando secretário de Educação em São
Paulo, por exemplo, propôs-se o desafio da “reflexão em torno da relação entre
educação pública e educação popular. Não propõe um pensar sobre a educação
pública em si mesma nem tampouco sobre a popular, isoladamente, mas so-
bre cada uma em relação com a outra. No fundo, o enunciado – Escola pública
e educação popular – implicita uma indagação que possivelmente se poderia
explicitar assim: é possível fazer educação popular na rede pública?” (FREIRE,
Paulo. Política e educação. 7ed. São Paulo: Cortez, 1997).
11 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação popular. São Paulo: Brasiliense,

2006.

LEANDRO PROENÇA
CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR
333

questionada de que primeiro teria surgido a escola excluden-


te para que depois pudesse se pensar na educação das pesso-
as excluídas da – e na – escola.
A educação na comunidade que não conhece a divi-
são das classes sociais é, essencialmente, uma educação
popular, no sentido de que toda a comunidade se enquadra
no conjunto denominado de povo, e o saber ali produzido
está a serviço do próprio povo. Não existe, naquele contexto,
uma educação formal, escolar, o que não significa dizer que
a educação é algo ausente. É a divisão social do trabalho, e
consequentemente a divisão social do poder, e do saber, que
torna necessário o advento da escola, como o lugar privile-
giado do saber teórico separado do trabalho; lugar destina-
do, portanto, a quem era liberado do trabalho. O advento da
escola reproduziu a desigualdade social destinando aque-
les e aquelas que por ela passavam ao exercício do poder
e aqueles e aquelas que dela eram excluídos à exploração
de seu trabalho, realidade que não foi alterada substancial-
mente por longo período de tempo. Povo, naquele contexto,
já não significava a totalidade da comunidade, mas, na ex-
pressão da democracia grega, aqueles que tinham o privilé-
gio do exercício do poder.
São os ideais iluministas – liberais-republicanos – que
promovem a expansão da escola para o povo, na ideia de povo
pensado enquanto classe. A educação do povo era necessária
como parte do projeto político de construção de um estado
emancipado de poderes absolutistas, e, nesse sentido, pen-
sada de cima para baixo, por “educadores e intelectuais de
gabinete”, que assumem para si a tarefa de pensar o que é
o melhor para o povo. É nesse sentido que a escola pública
torna-se o lugar para a educação do povo, seja como princípio

LEANDRO PROENÇA
334 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

de civilização (colonização?)12, seja, mais explicitamente, por


meio de seu sucateamento13.
Contraposto a essa função da educação pública, os mo-
vimentos sociais das classes populares desde sempre des-
confiaram dos benefícios que a educação formal poderia pro-
mover-lhes. Nesse sentido, a educação popular surge como
oposição à própria educação formal, como forma de negar seu
projeto anti-povo e de afirmar os próprios projetos de eman-
cipação das classes populares por meio do próprio povo.
Por último, coloca-se a problematização tal como for-
mulada por Paulo Freire: é possível fazer educação popular
na escola pública? Dito de outra forma: é possível pensar a
educação formal transformada pelos princípios da educação
popular, voltada para os interesses de uma sociedade não
mais pautada para desigualdade, uma sociedade na qual cai-
bam todos, como na expressão muito feliz de Hugo Assmann.
A questão aqui é pensar a educação popular como educação
para o povo, mas, principalmente, educação a partir do povo.
Ou seja, o desafio que se impõe é pensar a educação popular
não mais a partir de seu lugar na margem, mas de seu poten-
cial transformador no contexto da superação da desigualdade
entre as classes sociais – o objetivo maior da própria pedago-
gia do oprimido.

12 Os ideais civilizatórios ocultam, muita vez, ideais colonizadores praticados


como imposição da ideologia dominante às classes dominadas, no contexto de
expansão territorial desta dominação.
13 É necessário considerar as contradições do sistema público de ensino, mais

precisamente o brasileiro, surgido como lugar de educação da elite, bem como


o uso da educação particular (de qualidade duvidosa) dentro das camadas po-
pulares.

LEANDRO PROENÇA
CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR
335

Universidade popular

Podemos falar de universidade popular em algum dos


três últimos sentidos discutidos por Brandão. Os primeiros
registros do termo remetem aos fins do século XIX, e se refe-
riam a projetos criados no âmbito dos movimentos populares.
Infelizmente não há muitas pesquisas sobre o tema, o que se-
ria desejável, pois há muito a ser explorado sobre o assunto.
Não há espaço aqui para tratar das conquistas e contribuições
desses projetos, mas desejo apenas trazer algumas de suas
características para alimentar o debate atual. Essas universi-
dades populares não eram instituições de ensino formal; em
boa parte dos casos, procuravam compensar as deficiências
da formação de seu público, oferecendo-lhe certo nivelamen-
to ou preparando-o para a entrada no ensino superior formal.
Correu desde aí o risco de não se concretizar como ação para
a liberdade, no dizer de Freire, no sentido de conscientização,
emancipação e transformação social. Promover acesso ao en-
sino superior formal e/ou ao conteúdo desta educação, sem
promover ao mesmo tempo uma crítica à estrutura e à dinâ-
mica desta instituição e às formas e critérios que estruturam
e legitimam seu saber pode provocar o risco de que o projeto
não se concretize nem como universidade e, muito menos,
como educação popular. Antônio Gramsci, por exemplo, fa-
zendo uma crítica ao projeto de universidade popular de Tu-
rim, reflete sobre aquilo que considera ser o seu fracasso:
Perguntamo-nos, às vezes, porque é que não foi
possível solidificar em Turim um organismo para
a divulgação da cultura, porque é que a Univer-
sidade Popular é aquela mísera coisa que é e não
conseguiu impor-se à atenção, ao respeito, ao amor

LEANDRO PROENÇA
336 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

do público, porque é que não conseguiu formar um


público. A resposta não é fácil, ou é muito fácil. Pro-
blema de organização, sem dúvida, e de critérios
informativos. A melhor resposta deveria consistir
em fazer alguma coisa de melhor, na demonstra-
ção concreta que se pode melhorar e que é possível
reunir um público em volta de um fogo de cultura,
contanto que esse fogo seja vivo e aqueça de verda-
de. Em Turim, a Universidade Popular é uma cha-
ma fria. Não é nem universidade nem popular.

O pensador, que afirmava que todas as pessoas são fi-


lósofas – no sentido de que nenhum existir humano é des-
provido de uma mínima reflexão, fundamentada numa con-
cepção de mundo que organiza a realidade14 –, era contrário
a qualquer forma de subestimar a capacidade das pessoas
das camadas populares de acessar e ressignificar a cultura
comumente restrita às elites. Uma universidade que partis-
se do princípio da necessidade de vulgarizar o conhecimento
para torná-lo acessível a seu público não seria universidade;
uma universidade que não fosse expressão da organicidade
do povo, criada a partir de suas demandas e para sua emanci-
pação enquanto classe, não seria popular.
Carlos Rodrigues Brandão faz críticas semelhantes a al-
guns rumos que certos setores da educação popular tomaram
a partir da segmentação dos movimentos populares, princi-
palmente aquelas forjadas dentro do contexto da educação de
jovens e adultos:
Algumas questões fundamentais devem encerrar
este entreato que nos deixa, leitor, entre os mode-
los antecedentes de educação com/das classes po-

14 GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da História. p.12.

LEANDRO PROENÇA
CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR
337

pulares e a educação popular, no seu sentido mais


atual. Primeiro, mesmo no interior de organismos
oficiais, e mesmo durante períodos de exercícios
autoritários do poder, aqui e ali experiências e pro-
jetos efêmeros de educação de adultos aproximam
propostas e vocações de prática àquilo que, em
outras esferas, em outros lugares, procuravam-se
concretizar como uma educação popular. Segundo,
tal como foi concebida e realizada, a educação de
adultos teve sempre um limite: o de ser uma ex-
pressão apenas compensatória da extensão do sa-
ber escolar a populações carentes15.

Incomoda a Brandão a ideia de desenvolvimento que


permeia certas concepções da educação de adultos, esvazia-
das de seu aspecto coletivo e social, ao tentar promover a in-
tegração dos sujeitos marginalizados à vida social, de forma
que o desenvolvimento social seja consequência disso, per-
dendo, assim, sua potencialidade de crítica e transformação
social. Trata-se, de fato, de um desvio do sentido de educa-
ção popular como expressão dos movimentos populares, cuja
característica, defende o autor, é a própria forma e dinâmica
de movimento, caracterizado pelas lutas que não separam a
educação de outras conquistas sociais. O sentido de educação
popular vinculado aos movimentos populares pauta-se “na
origem do poder e no projeto político que submete a agên-
cia, o programa e a prática de um tipo específico de educação
dirigida às classes populares” e também “no modo como um
modelo de trabalho do educador se pensa a si mesmo como
um projeto de educação, no sentido mais pleno que estas pala-
vras podem receber”.
15 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação popular. São Paulo: Brasiliense,

2006.

LEANDRO PROENÇA
338 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

Essa tensão entre concepções de educação popular no


âmbito dos movimentos populares e na perspectiva da cultu-
ra popular marcaram os anos 60. Uma das expressões mais
férteis desse debate envolveu a equipe do Serviço de Exten-
são da Universidade do Recife, coordenada por Paulo Freire
no começo daquela década. Bastante conhecido ficou o mé-
todo de Alfabetização Paulo Freire, muitas vezes associado,
de maneira equivocada, como a maior expressão de seu pen-
samento. Pouco conhecido, talvez porque tenha lhe faltado a
oportunidade de concretização de um projeto cuja alfabeti-
zação de adultos era uma etapa, ficou o Sistema Paulo Freire
de Educação. E é aí que aparece o conceito de Universidade
Popular. Membro daquela equipe, Jarbas Maciel talvez tenha
feito a melhor apresentação desse sistema que, desafortuna-
damente, aparece em poucos escritos, mesmo os do próprio
Freire. Dois textos são importantes: a Fundamentação Teórica
do Sistema Paulo Freire de Educação, publicado na Revista de
Cultura da Universidade do Recife, de abril/junho de 1963, e
Fundamentação Teórica do Sistema Paulo Freire de Educação,
texto que faz parte do livro Cultura popular, educação popu-
lar: memórias dos anos sessenta, organizado por Osmar Fave-
ro. Esse sistema de educação previa algumas etapas que lhes
permitisse concretizar, a partir de ações culturais por meio
da educação, ações políticas por meio da cultura, processo
no qual a educação não deveria ser pensada como única pro-
pulsora dos processos de transformação e nem separada do
processo total da cultura, do qual faz parte. Esse sistema de
educação resulta do planejamento do trabalho de extensão
universitária a partir dos pressupostos de cultura popular e
educação popular como vinham sendo elaborados por meio
da práxis daquela equipe. Esse planejamento organizou algu-

LEANDRO PROENÇA
CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR
339

mas etapas para suas ações, oriundas de ações de extensão


universitária e implicando a própria reorganização da ideia
de universidade. Essas etapas se iniciavam com a extensão
universitária desde a alfabetização infantil e alfabetização
de adultos, atuação nos diversos ciclos da educação formal,
extensão cultural nos setores populares, até a concepção de
uma universidade popular e culminando com relações inter-
nacionais pautadas pela integração com os países do terceiro
mundo16. Os esforços desprendidos daí resultaram em diver-
sas experiências bastante conhecidas, como as campanhas de
alfabetização, por exemplo; e também estão ligados a alguns
processos de institucionalização dentro da própria universi-
dade, como o Instituto de Ciências do Homem17 e o Centro de
Estudos Internacionais.
A universidade popular deveria ser, neste caso, parte
de um processo do projeto político de transformação social
por meio da cultura, entendida de modo dinâmico, composta
de elementos concretos e simbólicos, na qual o ser humano
é produzido, produz e se produz. Nas relações de dominação
entre classes sociais desiguais, a cultura é apropriada como
ideologia da classe dominante e disseminada como valor uni-
versal, e por isso imposta às pessoas oprimidas. Dentro des-
sa lógica, as possibilidades de uma educação libertadora são
bastante limitadas pela concorrência com outros modos mais
fortes de inculcação da ideologia. A educação libertadora faz
mais sentido no âmago das transformações de processos cul-
turais nos quais a cultura do povo alcança a condição de ser
humanizadora, expressão de relações de dignidade e liberda-
de, nas quais as pessoas se reconhecem enquanto seres hu-
16 Jarbas Maciel. Fundamentação Teórica do Sistema Paulo Freire de Educação.
17 Não havia ainda a preocupação com a linguagem inclusiva...

LEANDRO PROENÇA
340 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

manos que estão sendo e se produzindo juntas e em condi-


ções de igualdade. Diferentemente disso, até mesmo projetos
de “educação popular” ou “educação libertadora” não conse-
guem ser mais que mero assistencialismo, educação e cultura
para o povo.
É nesse sentido que os âmbitos da educação formal,
não-formal e informal se misturam enquanto ações culturais
para a liberdade, mas é evidente que a transformação da edu-
cação formal a partir dos pressupostos da educação popular
torna-se uma das etapas mais importantes do processo, ao ti-
rar da margem o lugar da cultura popular.

A Unilab no contexto da educação popular

É aqui que quero refletir sobre a Unilab como uma das


primeiras experiências de universidade popular no âmbito
da educação formal. Esclareço que não há consenso sobre
o sentido social e político desta universidade, tanto externa
quanto internamente; e isto é fruto constante de disputa ide-
ológica e política. O termo universidade popular não aparece
em seus documentos oficiais, não é conhecido e nem mesmo
seus pressupostos são defendidos por parte da comunidade
acadêmica. Mas defendo, e o faço também a partir da defe-
sa de um projeto político, ser possível classificar a Unilab18
como um projeto de universidade popular.
Comecemos por três características fundamentais: o
perfil dos e das ingressantes; a opção política pelas áreas e
cursos de formação; o perfil dos egressos.

18 A Unila compartilha de vários aspectos semelhantes. Mas eu não conheço


a realidade desta universidade e me limitarei a tratar do caso específico da
­Unilab.

LEANDRO PROENÇA
CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR
341

O acesso à universidade tem sido historicamente nega-


do às pessoas oriundas das classes populares – como na mú-
sica do Zé Geraldo, Cidadão, o mais perto que os pobres che-
garam das escolas foi ao construí-las. A formação tradicional,
ou o sentido tradicional de formação consegue, no máximo,
promover a ascensão social do indivíduo dentro da mesma
estrutura de desigualdade. Ademais, formado dentro de um
determinado sistema ideológico, os egressos tendem a atuar
para a manutenção desta estrutura que o formou.
O rompimento com essa lógica já está presente, de cer-
ta forma, no processo de interiorização das universidades pú-
blicas. A instalação de universidades ou campus acadêmicos
nos interiores do país promove acesso a pessoas que, sem
essa política, dificilmente frequentariam a universidade.
No caso da Unilab19, todavia, foram propostas que pu-
deram ir mais profundamente, ao menos enquanto projeto.
Suas diretrizes previam que metade do corpo docente e dis-
cente (silencia quanto a demais funcionários) fosse prove-
niente dos países parceiros. Fato que nunca se realizou, mas
nota-se presença considerável de discentes, a ponto de essa
presença não poder ser ignorada (46% dos alunos oriundos
dos países de língua oficial portuguesa em África e Timor). A
maior parte dos brasileiros e brasileiras discentes é da região
do Maciço do Baturité e das regiões periféricas de Fortaleza.
As áreas de formação, tais como pensadas pelas di-
retrizes, são bastante significativas, elaboradas a partir de
prioridades definidas pelas demandas das regiões com as
quais exerce cooperação e onde está inserida: 1) Produção de

19Como dito anteriormente, a Unilab está situada em dois estados, Ceará e


Bahia. Estou tratando mais especificamente da realidade da universidade no
Ceará.

LEANDRO PROENÇA
342 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

alimentos, na perspectiva da agroecologia e em oposição ao


agronegócio; 2) Saúde coletiva, na perspectiva da saúde po-
pular, com atenção à sanidade humana e animal; 3) Formação
de professores, na perspectiva de criação e qualificação de
quadros para a atuação na educação básica, seguindo princí-
pios da diversidade e da pluriculturalidade; 4) Gestão públi-
ca, diferente dos bastante badalados cursos de administração
de empresas; 5) Tecnologias e Desenvolvimento Sustentável,
buscando promover condições de infraestrutura tecnológica
a partir das características de cada região, ao invés de tecno-
logia que sirva somente aos ditames do capital20.
Do ponto de vista pedagógico, o paradigma da interdis-
ciplinaridade ganha centralidade como fio condutor de uma
concepção epistemológica construída em oposição àquela ca-
racterizada pela ideologia da dominação, exploração e coloni-
zação que marcou o surgimento e o avanço da ciência moder-
na. Além disso, procurou jogar luzes sobre os objetos a serem
estudados, a partir das realidades até então ignoradas pelo
saber dominante, tomando os processos do conhecimento
como aquilo que são, meios e não fim em si mesmos. Não se
trata apenas de conhecer a história e a realidade dos lugares
marginalizados e explorados, o que já seria um avanço, mas
conhecer a partir destes lugares, e a partir daí produzir sabe-
res e práticas transformadoras.
A implementação e o desenvolvimento dessas diretri-
zes não seguiu totalmente a proposta, e as disputas políticas
e ideológicas marcam relações de poder que aproximam ou
afastam seus projetos políticos dos pressupostos da univer-
sidade popular. Há razões para isso, e devem ser estudadas,

20 Diretrizes gerais da Unilab, p. 14-16.

LEANDRO PROENÇA
CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR
343

pesquisadas, esmiuçadas. De maneira breve, podemos fazer


alusão a uma falha política de contratação que não leva em
conta as formações e/ou disposições político-ideológicas ca-
pazes de qualificar para o trabalho na perspectiva da cultura
e da educação popular, ou, ao menos, em perspectiva crítica,
como se estes não fossem aspectos tão importantes quanto as
competências técnico-científicas.
Uma das características centrais do paradigma da uni-
versidade popular, naquilo que é possível formular a partir
de Paulo Freire, é exatamente a dimensão pedagógica. Tal
dimensão excede bastante a relação docente-discente, e está
presente em todas as relações travadas em e a partir de seus
espaços. E relações são aprendidas. Há uma certa arrogância,
paralela a uma certa subalternidade, que marca muitas das
relações com o público que, pela lógica da dominação, não
deveria estar presente na universidade. Há também uma di-
ficuldade natural nas relações de ensino e aprendizagem; na-
tural porque estão por serem inventadas nos espaços formais
de educação. Para quem não foi formado no âmbito dos movi-
mentos sociais e populares, a democratização dos espaços e
das relações pode ser dificultosa. Princípios freireanos como
“ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho” ou
“aprende-se quando se ensina e ensina-se quando se apren-
de” encontram na Unilab terreno fértil de significação e pro-
dução de novos sentidos e trabalhos pedagógicos. A ideia de
que a universidade presta um favor às pessoas das classes
populares que recebe é equivocada e arrogante. É muito co-
mum, por exemplo, o discurso de que o Brasil tem uma dívida
com a África, e que a Unilab é uma das formas de pagar essa
dívida; tal discurso sustenta ideologias neocolonizadoras,
começando pelo próprio princípio de relação desigual, pois

LEANDRO PROENÇA
344 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

uma relação de dividendos é necessariamente uma relação


de poder21.
Além disso, a construção de novos espaços e relações
que não descaracterize aquilo que esta instituição deve ser
de fato – uma universidade, a saber – parece ainda mais de-
veras problemática. Porém, trata-se, sobretudo, de uma con-
cepção de universidade a ser afirmada. Nos debates que mar-
cam as disputas pela concepção de universidade que se está
construindo, simplificadas na oposição universidade popular
x universidade tradicional – tal qual eu coloco –, é comum
fazer-se menção ao projeto da Unilab. O fato é que essa ex-
pressão acabou se transformando em uma espécie de chavão,
abrangendo qualquer coisa diferente do modelo tradicional
de universidade. O projeto, neste caso, é fragilizado, tornado
mera abstração. Porém, é possível falar de projeto num sen-
tido utópico, como referência. É o que propõe o conceito de
universidade popular. Defendo aqui o elemento da utopia, en-
quanto essencialmente político. O fato de ter me concentrado
aqui nas Diretrizes da Unilab em detrimento de outros docu-
mentos oficiais é o mesmo que leva esse documento a ser rei-
teradamente negado, sob o argumento que diretrizes não têm
caráter normativo. Para essa função, há estatuto, regimento,
PDI, resoluções etc. As diretrizes serviriam para estabelecer
horizontes a partir dos quais os objetivos e as metas serão
traçados e definidos nos documentos normativos. Todavia,
normas muito mais regulam ações do que alimentam práxis.
Nesse sentido, a discussão sobre os elementos utópicos que
animam os projetos de universidade em disputa parece ter
a sua importância. Sobre algo parecido, diz Milton Santos:
21O Brasil tem uma dívida, isso sim, com credores internacionais, e essa é uma
dívida bem polêmica...

LEANDRO PROENÇA
CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR
345

“A fidelidade reclamada não pode ser à universidade, e a ela


não temos razão para ser fiéis. Nossa única fidelidade é com
a ideia de universidade. É a partir da ideia sempre renovada
de universidade que julgamos as universidades concretas e
sugerimos mudanças”22.

Para outros diálogos...

Há muito que aprofundar e o que acrescentar ao de-


bate. É preciso reconhecer que avançamos ao ponto de am-
pliar o acesso à educação formal, inclusive à universidade.
Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer também que incor-
porar o grande contingente que esteve historicamente fora
dela sem repensar os conteúdos, sem reformular os currícu-
los, sem transformar as práticas e as relações significa incul-
car a ideologia de reprodução das desigualdades. Os desafios
para um razoável encaminhamento do tema se localizam na
conjunção da cultura, da política, da ideologia e da educação,
vista por dentro. É nesse sentido que ganha a importância a
discussão sobre a universidade popular enquanto projeto de
reinvenção necessária da própria ideia de universidade. O
resgate do sentido do termo no Sistema Paulo Freire contri-
bui bastante para o debate, em geral, e para problematizar o

22 SANTOS, Milton. O intelectual, a universidade estagnada e o dever da crítica


(p.168). Ver também: PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. Sobre sonhos, esperanças e
utopias: um diálogo com outros diálogos. Em: TAVARES, Maria Tereza Goudard;
ALVARENGA, Marcia Soares de; SILVA, Catia Antonia da (orgs.). Educação Popu-
lar, movimentos sociais e formação de professores: os 50 anos do golpe militar de
1964 e a mobilização de inéditos viáveis no campo social e educativo. São Paulo:
Outras Expressões, 2015, e STRECK, Danilo R., REDIN, Euclides., MÄDCHE, Flá-
via C., KEIL, Ivete Manatzeder., GAIGER, Luiz Inácio (orgs.). Paulo Freire: ética,
utopia e educação. 2ed. Petrópolis: Vozes, 1999; e do próprio Paulo Freire, a Pe-
dagogia dos Sonhos Possíveis.

LEANDRO PROENÇA
346 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

significado político e social de um projeto como o da Unilab.


Algumas questões merecem mais espaço, como as das diver-
sidades, tais como as de raça e etnia: os e as pobres, no caso,
são também os negros e as negras, e a cor da pele é elemento
preponderante quando se trata de acesso à cidadania; ainda
outras questões das diversidades de gêneros, culturais, reli-
giosas, linguísticas, sexualidades e deficiências, além de ou-
tras. Também merece desataque a reprodução de hierarquias
e desigualdades nas relações de poder internas, como as que
marcam as relações entre os três segmentos dos e das docen-
tes, dos e das discentes e dos servidores e das servidoras, além
da comumente tornada ausente categoria dos terceirizados e
das terceirizadas. Esperanço poder assistir e participar destes
diálogos e das mudanças que eles pretendem provocar.

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CAPÍTULO 13
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LEANDRO PROENÇA
348 CAPÍTULO 13
SOB O SIGNO DE PAULO FREIRE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PROJETO DE UNIVERSIDADE POPULAR

STRECK, Danilo R., REDIN, Euclides., MÄDCHE, Flávia C.,


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militar de 1964 e a mobilização de inéditos viáveis no campo
social e educativo. São Paulo: Outras Expressões, 2015.
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LEANDRO PROENÇA
CAPÍTULO 14
ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A 349
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

Capitulo 14
Alguns aspectos da educação popular na
Guiné-Bissau: o encontro de Paulo Freire
com a obra de Amílcar Cabral
Glauciana Aparecida de Souza

O
pensamento e a trajetória do educador Paulo
Freire (1921–1997), brasileiro e representante
da educação popular, atravessou fronteiras e foi
à África. O autor começa uma longa viagem para
chegar à Guiné-Bissau, saindo do Brasil, passando por Gene-
bra (Suíça), Tanzânia e finalmente Guiné-Bissau – palco das
ricas e inovadoras experiências que apontaremos neste breve
texto.
O educador Paulo Freire, em seu livro Cartas à Guiné–
Bissau, registros de uma experiência em processo (1978), relata
a experiência do trabalho realizado junto à equipe do Institu-
to de Ação Cultural (IDAC). As cartas são relatórios publica-
dos, endereçados ao Comissariado de Educação da Guiné-Bis-
sau, aos cuidados do engenheiro Mário Cabral e às equipes de
trabalho com as quais trabalhou. O livro relata a experiência
de alfabetização de jovens e adultos ainda em processo e, por
isso, encontramos muitas perguntas.
No livro Cartas à Guiné–Bissau, registros de uma expe-
riência em processo (1978), podemos encontrar relatos dos
diálogos entre educadores, educandos e pensadores africa-
nos que se juntaram ao educador brasileiro que observando,

GLAUCIANA APARECIDA DE SOUZA


CAPÍTULO 14
350 ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

ouvindo, indagando, respondendo, visou dar continuidade à


luta de libertação, à luta de reconstrução da nação guineen-
se, por intermédio da Educação e da Cultura. Neste trabalho
experimental e coletivo já vislumbravam o que hoje chama-
mos de pedagogia freireana, que afirma “Ninguém educa nin-
guém, os homens se educam em comunhão” (PAULO FREIRE,
1981, p. 79). É repetida como um mantra. Mas foi, naquele
momento, um elogio de Paulo Freire ao revolucionário afri-
cano Amílcar Cabral. O autor dedica a obra “Cartas à Guiné-
-Bissau” a Cabral: “A Amilcar Cabral, educador-educando de
seu povo”.
Amílcar Cabral nasceu em Bafatá, Guiné-Bissau, em
1924, e foi assassinado em 1973. Cabral foi um pensador,
educador, político, poeta, agrônomo, fundador do Partido da
Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC) e líder
da independência dos dois países – Cabo Verde em 5 Julho
de 1975 e Guiné-Bissau em 10 Setembro de 1974. Cabral foi
assassinado brutalmente na presença da sua mulher, Ana
Maria, em Conacry. Segundo registros da época, o autor dos
disparos foi Inocêncio Kani, guerrilheiro do PAIGC. Amílcar
Cabral estava sendo reconhecido como uma figura de des-
taque no continente africano como um dos líderes mais in-
fluentes dos movimentos de libertação naquela segunda me-
tade do século XX. Foi um pensador contemporâneo a Paulo
Freire, que leu atentamente sua obra antes e durante o traba-
lho realizado na Guiné-Bissau.
Acreditamos que a intenção de Paulo Freire ao publi-
car a experiência em processo em Cartas à Guiné-Bissau foi
compartilhar com os leitores (as) um olhar dinâmico sobre
as atividades em desenvolvimento e explicitar os problemas
teóricos e práticos com os quais ia se deparando durante a

GLAUCIANA APARECIDA DE SOUZA


CAPÍTULO 14
ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A 351
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

implantação do projeto de alfabetização de jovens e adultos


(FREIRE, 1978).
Naquele contexto, Paulo Freire considerou o convite
do Comissariado de Educação e Cultura do PAIGC como uma
tarefa militante em colaboração à construção daquele país.
Entendendo que o povo guineense tinha uma longa jornada
pela frente, era necessário, portanto, conhecer a realidade do
povo e estar em consonância com a mesma para juntos rea-
lizar um trabalho de desenvolvimento educacional que per-
mitisse transformar e atender a realidade daquela sociedade.
Entendia-se que apesar de arrasado, Guiné- Bissau não partia
do zero e, sim, de suas fontes culturais, políticas e históricas.
A retirada dos impostores deixou um legado de proble-
mas e de descaso que diz bem do “esforço civilizatório” do
colonialismo (FREIRE, 1978, p. 16).
Em Cartas à Guiné-Bissau, Paulo Freire escolhe como
ferramenta daquele intercâmbio de práticas e ideias a car-
ta, manuscrita ou datilografada. Carta, um dos mais antigos
e simples meios comunicação social. Freire criou, em parce-
ria com companheiros africanos, de forma simples, contudo
muito séria e revolucionária, uma espécie de sistema de edu-
cação à distância entre educadores e educandos, que funcio-
nou dentro dos seus limites e possibilidades.
A nossa opção política e a nossa prática em coe-
rência com ela nos proibiam, também, de pensar
sequer que nos seria possível ensinar aos educa-
dores e aos educandos da Guiné-Bissau sem com
eles aprender. Se toda dicotomia entre ensinar e
aprender, de que resulta que quem ensina se recu-
sa a aprender com aquele ou aquela a quem ensi-
na, envolve uma ideologia dominadora, em certos

GLAUCIANA APARECIDA DE SOUZA


CAPÍTULO 14
352 ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

casos, quem é chamado a ensinar algo deve apren-


der primeiro para, em seguida, começando a en-
sinar, continuar a aprender. (FREIRE, 1978, p.16).

Para Paulo Freire, a construção do Projeto Político-Pe-


dagógico teria que acontecer por iniciativa ou junto com os
educadores guineenses, a partir da sua realidade e pautada
nos objetivos da luta de libertação recém conquistada. Esta
construção teria sempre ações conjugadas entre educadores e
educandos: observando, escutando, dialogando e ­intervindo.
Durante o trabalho de formação com os educadores, em
contato com os educandos, em visita aos círculos de cultura,
Freire se convenceu de que o papel da Educação passa pela
transformação do processo produtivo. A experiência africa-
na de libertação, que passa pela via socialista, radicalizou o
pensamento de Paulo Freire, e isso foi possível mesmo que
por pouco tempo na Escola de Có, cidade a cerca de 50 km de
Bissau, a capital.
O pesquisador Afonso Celso Scocuglia, em A influência
de Amílcar Cabral e do trabalho na África na construção da prá-
xis de Paulo Freire, para explicar o que houve de novo na Esco-
la de Có, traz a seguinte argumentação:
A Escola de Có produzia um novo tipo de educador
intelectual. Um “novo intelectual” no sentido de
Gramsci (1982). Para ele, a grande chave explica-
tiva estava no binômio educação-trabalho e, mais
especificamente, na inseparabilidade dos traba-
lhos manuais com os trabalhos intelectuais. Às
atividades produtivas na agricultura, na saúde, na
higiene, na alimentação etc., associava-se a refle-
xão sobre estas práticas, num processo contínuo e
dinâmico (SCOCUGLIA, 2008).

GLAUCIANA APARECIDA DE SOUZA


CAPÍTULO 14
ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A 353
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

A experiência da escola de Có objetivou, traduziu e con-


solidou a práxis existente no pensamento de Paulo Freire e
Amílcar Cabral. Lá, educadores e educando construíram um
programa educativo que dialogava com a realidade da comu-
nidade, ao mesmo tempo em que estudavam a realidade lo-
cal, exercitavam o estudo na prática trabalhando na terra.
Para romper com o sistema educacional dos coloniza-
dores era preciso tomar algumas medidas. Entre elas, a re-
formulação dos programas para que os alunos passassem a
estudar a geografia de seu país e não mais a geografia do colo-
nizador, ou seja, de Portugal. Para dar continuidade à recons-
trução do país era necessário que os estudantes guineenses
estudassem, conhecessem de fato a história de seu país, a sua
realidade em seus diferentes aspectos. Para transformar era
necessário conhecer o objeto da transformação.
Paulo Freire analisou positivamente o Projeto Escola ao
Campo, do Comissariado de Educação e Cultura, coordenado
por Mário Cabral, que consistia em deslocar escolas urbanas
para as áreas rurais com objetivo de promover, trocar experiên-
cias, saberes integrados e unidade entre teoria e prática. O pro-
jeto também previa formação de quadros, criação de institutos
de formação ligados às necessidades concretas do país para sua
reconstrução. Em Cartas à Guiné-Bissau, Paulo Freire assegura:
As estruturas sociais no século XIX são influencia-
das por dois importantes acontecimentos: a aboli-
ção do tráfico da escravatura e a ocupação militar
efetiva das colônias. É importante notar que estes
dois acontecimentos estão relacionadas com o
contexto geopolítico da época e, nomeadamente,
da dominação inglesa sobre os destinos de Portu-
gal. A acumulação primitiva de capital, proporcio-

GLAUCIANA APARECIDA DE SOUZA


CAPÍTULO 14
354 ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

nada pelo desenvolvimento das Américas juntava-


-se agora a Revolução industrial inglesa, que impôs
novos conceitos de colonização. O alargamento do
modo de produção capitalista sujeitou Portugal a
novos métodos e à necessidade de se impor como
autoridade coercitiva nas suas colônias em África,
perdido que estava o Brasil (FREIRE, p. 32).

Percebemos que Paulo Freire educava e se educava, re-


fletindo, repensando, reencontrando sua própria história. O
autor em contato com a África viveu uma catarse, por assim
dizer. Ele descobriu, por exemplo, que a herança escravocrata
e a discriminação racial penetraram fundo na sociedade bra-
sileira, e estão impregnadas no ser brasileiro, nas elites e até
mesmo nas camadas sociais vítimas desta herança maldita.
Herança que se reproduz em diferentes formas na sociedade
contemporânea.
Em texto conjunto com Sérgio Guimarães, Paulo Freire
afirma:
Entrar em contato com as questões africanas é
mergulhar de cabeça em nossas origens, é nos
reconhecer na cultura e nas histórias das nações
africanas, mas é também refletir sobre as marcas
africanas no Brasil. Obriga-nos também a discutir
o racismo e muitas formas de opressão, violência e
exclusão a que são submetidos os afrodescenden-
tes no Brasil. A repressão a que foram submetidos
os povos africanos do escravagismo ao colonia-
lismo é tão perversa e cruel quanto os recalques
e chistes que a negritude enfrentou e enfrenta no
Brasil. Essa pode e deve ser vista também como
um espaço para a resistência e para a reflexão: é
na conscientização e na indignação. (FREIRE, P.;
GUIMARÃES, S. p. 228).

GLAUCIANA APARECIDA DE SOUZA


CAPÍTULO 14
ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A 355
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

Mas, não foram somente as semelhanças negativas en-


tre África e Brasil apontadas pelo nosso educador que foram
observadas. Semelhanças de diferentes matizes fez o autor
reconhecer-se feliz no processo de descoberta. No texto abai-
xo, Freire enumera aspectos da natureza e da cultura do con-
tinente africano, comparando-as com as do Brasil, no conti-
nente americano.
Daquele momento em diante, as mais mínimas
coisas – velhas conhecidas – começaram a falar a
mim, de mim. A cor do céu, o verde- azul do mar, os
coqueiros, as mangueiras, os cajueiros, o perfume
de suas flores, o cheiro da terra; as bananas, en-
tre elas a minha bem amada banana-maçã; o peixe
ao leite de coco; os gafanhotos pulando na grama
rasteira; o gingar do corpo das gentes andando nas
ruas, seu sorriso disponível à vida; os tambores so-
ando no fundo das noites; os corpos bailando e, ao
fazê-lo, “desenhando o mundo”, a presença, entre
as massas populares, da expressão de sua cultura
que os colonizadores não conseguiram matar, por
mais que se esforçassem para fazê-lo, tudo isso me
tomou todo e me fez perceber que eu era mais afri-
cano do que pensava (FREIRE, 1978, pp.13-14).

O texto acima indica o quanto o contato com o con-


tinente africano influenciou os escritos posteriores de Paulo
Freire, bem como sua maneira de interpretar o que é ser bra-
sileiro, nordestino e exilado.
...Tenho andado um pouco abalado de saúde, o que
me fez cortar certos compromissos. Não há dúvi-
da, porém, de que em breve estaremos ai nova-
mente, quando espero fazer um solene reencontro
com as mangas e os cajus – saudades grandes que

GLAUCIANA APARECIDA DE SOUZA


CAPÍTULO 14
356 ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

tenho! Pretendemos Elza e eu ficar uns dias além


da semana (FREIRE, 1978).

Acreditamos que após experiência africana, a práxis


passou a ser para o educador brasileiro uma ferramenta de
análise da sociedade. Uma lupa, uma lente para ver e enten-
der a luta de classes, suas consequências sociais e possibili-
dades de mudanças.
Assim como Paulo Freire, Amílcar Cabral compreendia
a cultura antídoto à dominação, uma ferramenta de resistên-
cia, de preservação da identidade de um povo. No texto abai-
xo, ele enfatiza esse aspecto:
O valor da cultura como elemento de resistência
ao domínio estrangeiro reside no fato de ela ser a
manifestação vigorosa, no plano ideológico ou idea-
lista, da realidade material e histórica da sociedade
dominada ou a dominar (CABRAL, 1980 – pp.55-56).

Ainda, complementando as afirmações de Paulo Freire,


o líder africano Amílcar Cabral afirmava:
Com efeito, pegar em armas para dominar um povo
é, acima de tudo, pegar em armas para destruir ou,
pelo menos, para neutralizar e paralisar a sua vida
cultural. É que, enquanto existir uma parte desse
povo que possa ter uma vida cultural, o domínio
estrangeiro não poderá estar seguro da sua perpe-
tuação. (CABRAL, 1980 – pp.55-56).

O pesquisador Carlos Lopes, em A transição histórica


na Guiné – Bissau, comenta o quanto é possível um povo ser
classificado como desqualificado por uma medida única, no
caso o letramento do alfabeto romano e, no entanto, não ter
nenhuma consciência política:

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CAPÍTULO 14
ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A 357
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

Um povo que, apresentando um alto índice de


analfabetismo, 90%, do ponto de vista linguístico,
e altamente “letrado” do ponto de vista político, ao
contrário de certas “comunidades” sofisticadamen-
te letradas, mais grosseiramente “analfabetas” do
ponto de vista político (LOPES, 1987, p.17). A alfabe-
tização, nessa perspectiva, não é uma simples téc-
nica, mas um processo de descolonização cultural.

Influenciado por Amílcar, Paulo Freire questiona a rela-


ção entre colonizados e colonizadores nos elementos de pro-
dução da vida, observando a imposição cultural que acom-
panhou à época e as estratégias de colonização que, embora
violentas, não conseguiram penetrar na essência do povo gui-
neense – essa essência é o fator determinante de transforma-
ção e resistência ao colonialismo. Freire, citando Cabral em
Cartas à Guiné-Bissau, quando Cabral almejava uma “reafri-
canização” das mentalidades.
A história dos colonizados “começava” com a che-
gada dos colonizadores, com sua presença “civi-
lizatória”; a cultura dos colonizados, expressão
da sua forma bárbara de compreender o mundo.
Cultura, só a dos colonizadores. A música dos colo-
nizados, seu ritmo, sua dança, seus bailes, a ligei-
reza do movimento de seu corpo, sua criatividade
em geral, nada disto tinha valor. Tudo isto, quase
sempre, tinha de ser reprimido e, em seu lugar, im-
posto o gosto da Metrópole, no fundo, o gosto das
classes dominantes (FREIRE, 1978, p. 234).

O processo de libertação da Guiné-Bissau, para além de


pegar em armas, era, para Amílcar Cabral e Paulo Freire, se
reconhecer enquanto povo, buscar em suas raízes o caminho
para a formação de uma nova sociedade.

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CAPÍTULO 14
358 ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

Por tudo isto é que, para os colonizados que passa-


ram pela alienante experiência da educação colo-
nial, a “positividade” desta educação ou de alguns
de seus aspectos só existe quando, independenti-
zando-se, a rejeitam e a superam. Quando, assu-
mindo com seu povo, a sua história, se insere no
processo de “descolonização das mentes”, a que
faz referência Aristides Pereira; processo que se
alonga no que Amilcar Cabral chamava de “reafri-
canização das mentalidades” (FREIRE, 1984 p. 20).

Para Amílcar Cabral, a língua portuguesa foi a única he-


rança positiva da colonização, pois se constituía em código
de comunicação dos diferentes segmentos sociais. Diferente-
mente dessa visão, Paulo Freire acreditava ser a língua um
instrumento de dominação, e criticava a determinação do
partido de alfabetizar o povo guineense em português, dei-
xando de lado as línguas nativas.
Em seu livro La-Le-Li-Lo – Luta: Um professor brasileiro
na Guiné –Bissau, 1984, p. 52), Rogério Andrade Barbosa es-
creveu sobre sua experiência como educador na Guiné-Bis-
sau, recém liberta da colonização portuguesa, em 1973. Ob-
servou que a língua crioula, amplamente falada nas Ilhas de
Cabo Verde e na Guiné-Bissau, é a língua de unidade nacional,
presente nos meios de comunicação, nas ruas e nas escolas.
Contudo, para tornar-se língua oficial, seria preciso muito es-
tudo para constituir as estruturas gramaticais e ortográficas,
embora haja um esforço dos movimentos nacionalistas em
adotar o crioulo como idioma da nação. Nas escolas, ensina-se
o português, que é a língua oficial do país até os dias de hoje.
No livro A África ensinando a gente – Angola, Guiné-Bis-
sau, São Tomé e Príncipe, Paulo Freire reflete sobre a experi-
ência de alfabetizar o povo guineense na língua portuguesa:

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CAPÍTULO 14
ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A 359
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

Essa experiência eu acho que foi muito boa, na me-


dida em que ela ensinou o óbvio, quer dizer: que
não era possível fazer o ensino da língua portu-
guesa nas zonas rurais do país. Eu estava dizendo,
na hora do almoço, que eu assisti, em diferentes
oportunidades, camponeses criando palavras a
partir da palavra portuguesa. E eles no fundo esta-
vam criando palavras em sua língua nacional, com
a ortografia portuguesa, o que demonstrou, duran-
te um ano todo, a impossibilidade do aprendizado
em língua portuguesa, uma língua que não faz par-
te da prática social do povo, uma língua estrangei-
ra (FREIRE, 2003, p. 33)

No livro Paulo Freire e Amílcar Cabral – A descoloniza-


ção das mentes, Moacir Gadotti (2012) analisa as razões pelas
quais as campanhas de alfabetização de Guiné-Bissau não fo-
ram bem sucedidas. De acordo com o autor, foram diversos
os fatores a ser considerados: a falta de apoio técnico, a falta
de qualificação profissional e quadros, a falta de material di-
dático básico como lápis e papel, falta de mobília apropria-
da, como cadeiras, mesas e lousa, falta de livros e formação
contínua de educadores e monitores. A carência material e
pessoal generalizada em que o país se encontra deve-se aos
longos anos de administração colonial. Embora o PAIGC ti-
vesse ressignificado e utilizado algumas estruturas para dar
continuidade à luta de libertação do país – como, por exem-
plo, o Centro de Capacitação Máximo Gorki, antigo quartel do
exército colonial que se tornou abrigo de um centro de forma-
ção com o objetivo de agregar o trabalho manual e intelectual
–, a quantidade de equipamentos não era suficiente para co-
brir todo o país (p.237).
Em visita ao centro, Paulo Freire observou que:

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CAPÍTULO 14
360 ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

A impressão que este Centro me vem dando, atra-


vés da prática nele realizando-se, que implica não
numa capacitação e recapacitação de professores
em termos verbalistas, na intimidade de suas sa-
las, mas, pelo contrário, na unidade da prática e da
teoria e na comunhão sempre maior com a popula-
ção em torno, é a de que se vem constituindo, cada
dia que passa num centro universitário do povo
(FREIRE, 1977, p. 54).

A escola instalada em um antigo quartel português


abandonado tinha a proposta de atender às necessidades da
comunidade local. Os estudantes fizeram uma pesquisa no
entorno da escola para levantar os temas geradores que se-
riam usados na alfabetização de adultos. Nos anos de 1976
e 77, como relata Paulo Freire, é possível perceber a relação
entre teoria e prática, a integração com a comunidade, gestão
compartilhada das decisões tomadas em assembleias. Tam-
bém era expressa a relação estudo e trabalho produtivo, em
que os estudantes estudavam a terra e trabalhavam na terra.
Para Paulo Freire, a alfabetização de jovens e adultos
deve partir da sua prática social. No caso da Guiné-Bissau,
a imposição do português aparece como uma problemática,
pois a maioria da população não falava o português, suas prá-
ticas sociais se davam em crioulo, ou nas outras variadas lín-
guas (à época, cerca de 30 línguas).
Já Amílcar Cabral considerava a língua portuguesa
um possível instrumento para a unidade nacional, e esta foi
a escolha do PAIGC para mediar a reconstrução nacional no
campo da Educação. Aqui reside a única divergência de Pau-
lo Freire em relação ao pensamento de Cabral que pudemos
constatar. A falta de meios e as condições econômicas impe-
diam que de imediato​ o Comissariado de Educação​ alfabeti-

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CAPÍTULO 14
ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A 361
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

zasse o povo guineense em suas línguas​​. Mesmo que optasse


pela língua crioula, levaria​ muito tem p o para produzir um
material didático consistente. Paulo Freire pensava que seria
importante alfabetizar a população guineense em crioulo e
não em português (língua do colonizador), porém, para alfa-
betizar em crioulo, teria que ter um estudo aprofundado da
gramática de uma língua oral, o crioulo. Na época, o partido
não tinha condições econômicas para isso, nem tempo, por-
que a ideia de Cabral era formar quadros com urgência para
reconstruir o país. (p. 237)
Este texto é um exercício inicial de compreensão do tra-
balho do Paulo Freire na Guiné-Bissau junto com educadores
e educadoras guineenses mediatizados pelo processo de li-
bertação e reconstrução nacional e entendimento da contri-
buição e impacto desse trabalho no pensamento do autor a
partir das suas cartas. Para realização de uma análise apro-
fundada dessa experiência histórica é preciso um estudo am-
plo de uma bibliografia atualizada e uma pesquisa minuciosa
de dissertações e teses produzidas em universidades.

Referências bibliográficas

BARBOSA, Rogério Andrade. La – le – li – lo – Luta: um profes-


sor brasileiro na Guiné Bissau. Rio de Janeiro, Ed. Achiamé,
1984.
CABRAL, Amílcar. A Arma da teoria (unidade e luta I). In:
Obras escolhidas de Amílcar Cabral. Lisboa, 1976: Seara Nova
(vol. 1).
CABRAL, Amílcar (1976). Unidade e Luta. Vol. I. Lisboa: Seara
Nova.

GLAUCIANA APARECIDA DE SOUZA


CAPÍTULO 14
362 ALGUNS ASPECTOS DA EDUCAÇÃO POPULAR NA GUINÉ-BISSAU: O ENCONTRO DE PAULO FREIRE COM A
OBRA DE AMÍLCAR CABRAL

CABRAL, Amílcar (1977). Unidade e Luta. Vol. II. Lisboa: Sea­ra


Nova.
GADOTTI, Moacir. Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descoloni-
zação das mentes, 2012, vol.3 série Unifreire.
GADOTTI, Moacir. Paulo Freire na África: notas sobre o encon-
tro da pedagogia freireiana com a práxis política de Amílcar
Cabral, Fórum Paulo Freire, Cabo Verde, 2010.
FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma expe-
riência em Processo. 2. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1981.
FREIRE, Paulo. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bis-
sau, São Tomé e Príncipe, 2003.
FREIRE, Paulo & GUIMARÃES, Sérgio. A África ensinando a
gente: Angola, Guiné-Bissau, São Paulo: Paz e Terra, 2003.
LOPES, Carlos. A Transição Histórica na Guiné-Bissau: do mo-
vimento de libertação nacional ao estado. Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisa, 1987.
SCOCUGLIA, Afonso Celso. África/africanidade: Angola,
Guiné-Bissau, Moçambique. In: STRECK, Danilo, Euclides Re-
din e Jaime José Zitkoski, orgs. 2008. Dicionário Paulo Freire.
Belo Horizonte: Autêntica.
SCOCUGLIA, Afonso Celso. A influência de Amílcar Cabral e
do trabalho na África na construção da práxis de Paulo Freire.
VII Fórum Paulo Freire, 2010.

GLAUCIANA APARECIDA DE SOUZA


363

APRESENTAÇÃO DOS AUTORES

ANDERSON GONÇALVES COSTA — Bacharel em Humanidades pela


Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasi-
leira (UNILAB). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientifico e Tecnológico – CNPq - nos grupos de pesquisa Educação,
Cultura e Subjetividade – (GEPEC/UNILAB) e Educação, Cultura Es-
colar e Sociedade – (EDUCAS/UECE).

DANILO ROMEU STRECK — Possui graduação em Letras pela Uni-


versidade do Vale do Rio dos Sinos (1972), mestrado em Educação
Teológica – Princeton Theological Seminary (1975) e doutorado em
Fundamentos Filosóficos da Educação – Rutgers – The State Uni-
versity of New Jersey (1977). Realizou estágio de pós-doutorado
na Universidade da Califórnia, Los Angeles, e no Max-Planck Ins-
titute for Human Development, em Berlim. É professor titular da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, onde atua principalmente
nos seguintes temas: educação popular, educação e exclusão social,
mediações pedagógicas e processos participativos. Integra o Comitê
Assessor da área da Educação do CNPq e o Comitê Assessor da área
da Educação e Psicologia da FAPERGS. É editor executivo da Revista
International Journal of Action Research.

EDUARDO GOMES MACHADO — Graduado em Ciências Sociais.


Mestre e Doutorem Sociologia. Coordenador do Grupo Interdisci-
plinar de Pesquisas Urbanas (GIPU). Professor Adjunto na Univer-
sidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB), lotado no Instituto de Humanidades e Letras (IHL). Coor-
denador do Curso de Sociologia da UNILAB.

ELAINE FERREIRA REZENDE DE OLIVEIRA — Doutora em Educa-


ção pela Universidade Federal Fluminense (2010), possui mestrado
em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janei-
ro (2004) e Graduação em História pela Universidade do Estado do
364

Rio de Janeiro (2001). É professora adjunta da Faculdade de Forma-


ção de Professores da UERJ, em que atua nos cursos de Pós-gradu-
ação em Educação e Licenciaturas. Trabalha nos campos da Educa-
ção Popular e Sociologia da Educação. Foi professora dos cursos de
Licenciatura do CPDOC/FGV-RJ, assim como professora de História
da Educação Básica, na rede pública estadual do Rio de Janeiro e
municipal de Niterói, de 2002 a 2015. Participa como integrante do
diretório de Pesquisa cadastrado no CNPq, Vozes da Educação: Me-
mória, História e Formação de Professores.

ELCIMAR SIMÃO MARTINS — Doutor e mestre em Educação pelo


Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Ceará, especialista em Ensino de Literatura Brasileira pela Uni-
versidade Estadual do Ceará e em Gestão Escolar pela Universidade
Federal do Ceará.Graduado em Letras com Habilitação nas Línguas
Portuguesa e Espanhola e suas respectivas Literaturas pela Univer-
sidade Federal do Ceará; pedagogo pela Universidade Metodista de
São Paulo. Professor Adjunto A do Instituto de Ciências Exatas e da
Natureza (ICEN) e do Mestrado Acadêmico em Sociobiodiversidade
e Tecnologias Sustentáveis (MASTS) da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Membro dos
Grupos de Pesquisas sobre Formação do Educador (GEPEFE/USP),
Educação e Cooperação Sul-Sul (Eloss/Unilab) e Formação Docente,
História e Política Educacional (GPFOHPE/UFC).

ELISANGELA ANDRÉ DA SILVA COSTA — Graduada em Letras pela


Universidade Federal do Ceará (UFC) e em Pedagogia pela Facul-
dade Evangélica do Piauí (FAEPI). Possui especialização em Gestão
Escolar pela Universidade Estadual de Santa Catarina e em Educa-
ção Biocêntrica pela Universidade Estadual do Ceará. Mestre em
Educação pela Universidade Estadual do Ceará e Doutora em Edu-
cação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. É professora
efetiva da Universidade Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
– ­UNILAB. É membro do conselho editorial da Revista Expressão Ca-
365

tólica. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Gestão,


Educação de Jovens e Adultos, Alfabetização, Didática e formação
de professores. Faz parte dos grupos de pesquisa Movimentos So-
ciais, Educação Popular e Escola (UFC) e GEPEFE-FEUSP – Grupo de
Estudos e Pesquisas sobre a Formação do Educador e ELOSS – Edu-
cação e Cooperação Sul -Sul – UNILAB.

GLAUCIANA APARECIDA DE SOUZA — Possui graduação em Licen-


ciatura e Bacharelado em História pelo Centro Universitário Funda-
ção Santo André (2002). Atuou em projetos de formação em Educa-
ção Popular, foi professora de história da rede pública de São Paulo.
Como historiadora, exerceu atividade de assistente de pesquisa no
Museu do Samba/RJ. É colaboradora da Ciranda Internacional da
Comunicação Compartilhada e presidenta da Soweto Organização
Negra.

HELOISA JOSIELE SANTOS CARREIRO — Professora Adjunta da


UERJ-FFP. Graduada em Pedagogia (2000) e Especialista em Educa-
ção Infantil (2006), ambos os títulos adquiridos pela Universidade
Católica de Petrópolis. Mestre em Educação (2005) e Doutora em
Educação (2013) pelo Campo de Confluência Estudos do Cotidia-
no e da Educação Popular, ambos os títulos adquiridos pela Uni-
versidade Federal Fluminense, sendo orientada por Maria Teresa
Esteban. Realizou doutoramento sanduích epela Universidade do
Porto, em 2012, por um período de seis meses, sob a orientação da
Professora Manuela Ferreira. Tem experiência em atuação docente
na escola básica (Educação Infantil e séries iniciais) e no ensino Su-
perior, em gestão pedagógica e administrativa na Educação Infantil
e na ministração de cursos, palestras e oficinas com educadores da
rede municipal de Petrópolis (promovendo diálogos entre teoria e
prática) e desenvolvimento de projetos pedagógicos. Experiência na
elaboração de pesquisas acadêmicas no campo da Educação. Atua
na coordenação-adjunta do curso de Pedagogia da UERJ-FFP desde
abril de 2016.
366

JACQUELINE CUNHA DA SERRA FREIRE — Professora da Univer-


sidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB). Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico
Úmido pela Universidade Federal do Pará (UFPA/NAEA/PDTU, Ca-
pes/conceito 6). Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento
(UFPA/NAEA/PLADES). Membro do Grupo de Pesquisa e Extensão
Educação e Cooperação Sul-Sul (ELOSS), cadastrado no Diretório do
CNPq. Atua na área de Educação, Políticas Públicas, Juventude, Co-
operação Sul-Sul.

JANE CHALÃO LUCCHESI — Mestranda em Educação na Faculdade


de Formação de Professores / UERJ. Graduada em História pela Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professora da rede
pública municipal do Rio de Janeiro no Ensino Fundamental / anos
iniciais. Atualmente é elemento de equipe da Assessoria de Inte-
gração da 11a Coordenadoria Regional de Educação da Secretaria
Municipal de Educação Esporte e Lazer /RJ.

JEANNETTE FILOMENO POUCHAIN RAMOS — Doutora em Educa-


ção Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (2009). Professora
efetiva do Instituto de Humanidade e Letras (IHL) da Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB),
atuando nos cursos de Pedagogia e Bacharelado em Humanidades
e professora permanente do Mestrado Interdisciplinar em Humani-
dades (MIH-UNILAB). ramosjeannette@unilab.edu.br

LARISSA OLIVEIRA E GABARRA — Graduada e Mestre em História


pela Universidade Federal de Uberlândia/MG e Doutora pela PU-
C-Rio em 2009, em História Social da Cultura. Iniciou os estudos
sobre o tema de escravidão no Brasil e manifestações populares
de matrizes africanas em 1997. A partir de 2005, por meio de uma
bolsa de pesquisa no Museu Real da África Central, em Tervuren,
direcionou seus estudos para a África central. Desde a criação da
Lei 10.639/03 colabora com sua implementação. Além da experiên-
367

cia no ensino fundamental, médio e à distância (UFPel e PUC-Rio/


UERJ-FFP), foi professora de História da África e Prática de Ensino
nas Universidades Federal Fluminense – Campos dos Goytacazes e
Estadual do Rio de Janeiro – Campus São Gonçalo. Hoje é professora
Adjunta da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia
Afro-brasileira/Ceará, dos cursos de Bacharelado em Humanidades
e Licenciatura em História, além de professora do Mestrado Inter-
disciplinar em Humanidades. É também coordenadora do progra-
ma de extensão Áfricas do Joá. Integra o Grupo de Pesquisa África
Contemporânea, do qual é segunda líder.

LEANDRO PROENÇA — Bacharel em Teologia; iniciou diversas vezes


a graduação em Filosofia, sem nunca tê-la concluído (curriculum
mortis...); Mestre em Ciências da Religião; Doutor em Educação;
com pós-doutoramento em Educação. Dedica-se à pesquisa nas
áreas de Filosofia e Fundamentos da Educação e Educação Popular.
Tem experiência docente no Ensino Médio e no Ensino Superior. É
professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofo-
nia Afro-brasileira - Unilab, lotado no Instituto de Humanidades e
Letras. (leandroproenca@unilab.edu.br).

MAIRCE DA SILVA ARAÚJO — Professora da Faculdade de Forma-


ção de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FFP/UERJ); Procientista; Professora do Mestrado em Educação
Processos Formativos e Desigualdades Sociais e Líder do Grupo de
Pesquisa Vozes da Educação: Memórias, Histórias e Formação de
Professores; Membro do GT 13 – Ensino Fundamental da Anped.

MARCIA SOARES DE ALVARENGA — Professora Associada da UERJ,


atua na Graduação e no Mestrado em Educação -Processos Formati-
vos e Desigualdades Sociais da FFP/UERJ. É bolsista produtividade
do Programa Prociência (FAPERJ/UERJ) e membro do Núcleo de
Extensão e Pesquisa Vozes da Educação – (FFP/UERJ). Pesquisa a re-
lação entre poder local, políticas educacionais e suas repercussões
368

sobre o direito à educação de jovens e adultos trabalhadores com


auxílio (CNPq).

MARIA TEREZA GOUDARD TAVARES — Professora Associada da


Faculdade de Formação de Professores da UERJ/Departamento de
Educação. Pesquisadora Procientista da UERJ e Jovem Cientista do
Nosso Estado/FAPERJ (2012-2015). Representante da FFP-UERJ no
Conselho Universitário da UERJ (2014-2016). Professora do Progra-
ma de Pós-Graduação – Mestrado em Educação: Processos Formati-
vos e Desigualdades Sociais/FFP/UERJ. Pós-Doutora em Educação
pela Unicamp/Supervisão da Prof. Drª Ana Lúcia Goulart de Faria/
Gepedisc/Culturas Infantis. Membro do GT de Educação Popular da
ANPED/Comitê Científico e Pesquisadora Associada ao GRUPALFA/
UFF.

MILENA BITTENCOURT PEREIRA — Mestre em Educação pelo Pro-


grama de Pós-Graduação Processos Formativos e Desigualdades So-
ciais. Licenciada em Letras pela Faculdade de Formação de Profes-
sores. Integrante do Núcleo de Pesquisa Vozes da Educação História
e Memória das Escolas de São Gonçalo/RJ

PAULO ROBERTO DE SOUSA SILVA — Membro do Setor de Educa-


ção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do
Ceará. Graduado em Pedagogia pela Universidade Federal do Ce-
ará (UFC); Especialista em Educação do Campo e Desenvolvimen-
to, pela Universidade de Brasília (UnB); Especialista em Trabalho,
Educação e Movimentos Sociais, pela Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e Mestre
em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

REGINA DE FATIMA DE JESUS — Professora da Faculdade de For-


mação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FFP/UERJ); Professora do Mestrado em Educação Processos Forma-
tivos e Desigualdades Sociais e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa
369

Vozes da Educação: Memórias, Histórias e Formação de Professores;


Membro do GT 21– Educação e Relações Étnico-Raciais da Anped.

REJANE BAPTISTA DO NASCIMENTO — Mestre em Educação


(2016) pelo Programa PPGEDU da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro. Professora especialista em Gestão Escolar pela Unirio
(2011) e em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a
Distância pela LANTE/UFF (2013). Graduação em Licenciatura em
Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense (1997). No mo-
mento, atua como Orientadora Pedagógica da Prefeitura Municipal
de São Gonçalo, tutora presencial da Fundação Centro de Ciências
e Educação Superior à Distância do Estado do RJ, das disciplinas
Estágio 1 (Educação Infantil) e Políticas Públicas da Educação da li-
cenciatura de Pedagogia EAD (UNIRIO). Orientadora educacional da
Prefeitura Municipal de Maricá, Professora da Universidade Salgado
de Oliveira nas disciplinas Fundamentos Teóricos e Metodológicos
da Educação Infantil, Pedagogia Social, Pedagogia em ambientes
não escolares e História da Educação, no curso de Licenciatura de
Pedagogia EAD. Palestrante convidada em Universidades (UNIVER-
SO, ISAT, UFF). Colaboradora voluntária na Associação Comunitária
Projeto Amo Salgueiro desde 2010.

ROBERTO KENNEDY GOMES FRANCO — Professor do Instituo de


Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-Brasileira – Unilab. Doutor em Educação Brasilei-
ra (UFC); Mestre em Ciências da Educação (UFPI); Graduado em His-
tória (UFC); Coordenador do GIM – Grupo Interdisciplinar Marxista.

SINARA MOTA NEVES DE ALMEIDA — Professora Adjunta da Uni-


versidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB). Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Fede-
ral do Ceará, Mestrado em Educação em Saúde pela Universidade
de Fortaleza e Doutorado em Educação Brasileira pela Universidade
Federal de Ceará. Membro do Grupo de Pesquisa e Extensão ELOSS
370

(Educação e Cooperação Sul-Sul), cadastrado no Diretório do CNPq,


coordena e desenvolve projeto sobre Mediação Escolar vinculado
ao PIBIC/Proppg/Unilab e PIBEAC/Proex/Unilab. Tem experiência
na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas:
escola, formação de professores, violência na escola, mediação de
conflitos e avaliação educacional.

VIRNA DO CARMO CAMARÃO — Possui graduação em Ciências


Sociais pela Universidade Estadual do Ceará (2000), mestrado em
Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (2006)
e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará
(2011). Atualmente é técnica em educação da Secretaria Municipal
de Educação de Fortaleza. Tem experiência na área de Educação e
desenvolve estudos no campo da participação popular em espaços
institucionais.

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