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INSTITUTO DE LETRAS
NITERÓI
2020
FLAVIA COUTINHO FERREIRA SAMPAIO
NITERÓI
2020
AGRADECIMENTOS
À minha família, em especial a meu pai Antônio, à minha mãe Celme, à minha irmã Erika, a
meu sobrinho Arthur e à minha segunda mãe, Alice, pelo apoio incondicional. Vocês são
minha base e estrutura.
A meu irmão Bruno, que deixou este plano em 2018 e não conseguiu me ver concluindo este
ciclo. Você vive em nossas lembranças e nos nossos corações. Gratidão pela honra de ter
compartilhado sua vida comigo e por ter sido o melhor irmão que eu poderia ter.
A meu filho Benício, que nasceu em 2019, mudou todos os meus planos de vida e me fez
uma pessoa melhor. A seu pai, Rodrigo, que lhe deu toda a atenção necessária enquanto eu
me afastava para terminar esta pesquisa.
Às amigas Mariah e Renata por estarem sempre ao meu lado e se fazerem presentes nos
momentos em que mais preciso.
Aos colegas de trabalho do Instituto Federal Fluminense – Campus Itaperuna pela parceria e
apoio.
À professora Glenda Melo por aceitar a coorientação e por suas contribuições e críticas
sempre pertinentes.
Ao meu orientador, professor Xoán Lagares, pela humildade, paciência e disposição para
ajuda. Você é um exemplo de professor, pesquisador e ser humano. Obrigada por me
incentivar a não desistir.
A todas as pessoas pretas que lutam diariamente por melhores condições de vida em todos os
aspectos. Aos meus ancestrais, por tudo o que viveram para eu pudesse estar onde estou hoje.
Nós somos um.
A Deus, à vida.
RESUMO
Under the line of research into “History, politics and language contact”, the current survey
analyzes the linguistic policies of the University for International Integration of the Afro-
Brazilian Lusophony (UNILAB). It also intends to scrutinize the actions and glotopolitical
effects of this institution establishment. Moreover, through the study of official documents
and testimonies from the academic personnel and students, it examines the institution’s view
regarding Lusophony and how racial issues that permeate the context of its foundation are
considered. For suggesting, with its establishment, the cooperation between Brazil and the
member States of the Community of Portuguese Speaking Countries (CPLP), especially those
from the African continent, UNILAB makes an unprecedented proposal that raises the
following questions: What does Afro-Brazilian Lusophony mean? How was the linguistic
situation within the academic environment thought, in a way that students and teachers can
dialogue and acquire proper knowledge for training future professionals? Are racial issues,
which are straightly connected with the exclusion of populations in African countries and
black populations in Brazil, considered in official documents? How are these factors
addressed in practice? In order to reflect on these topics, the documents and speeches are be
analyzed in dialogue with the studies on Linguistic Policies, Lusophony, Glotopolitics and
Race. With an interdisciplinary character, this work also proposes a dialogue with different
scholars in the fields of human sciences, in attempt to think deeply how the building of
scientific knowledge is crossed by factors related to race and how the object of study
“language” is another component of racial hierarchy in society. On the one hand, this
interpretive qualitative work indicates that reflections on economic, gender and ethnic-racial
issues are present in the institution's policy proposition. On the other hand, it shows that
language issues are only explicit when UNILAB is already in operation. In addition, the
testimonies of the academic community members reveal that, in practice, the implementation
of integration policies is even more complex than suggested in the University’s texts and that
the integration of Afro-Brazilian Lusophony is more a political project than a linguistic one.
Finally, this study leads to the conclusion that public educational policies start with their
formulators, but their effectiveness and specificities depend on the participation and
engagement of the different social actors that are their target.
PL - Política Linguística
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12
2ª PARTE: METODOLOGIA.............................................................................................. 56
INTRODUÇÃO
superior faz parte do esforço diplomático de qualquer país que deseja ser reconhecido e
respeitado pelos demais” (MARTINS, 2017, s.p.).
Neusa Santos Sousa, na conclusão de seu livro Tornar-se negro, explica que os
negros, no Brasil, compartilham uma história que, por si só, não os ajuda a construir uma
identidade positiva de si, já que se forma a partir da escravidão, do desconhecimento de suas
origens e da discriminação. Nesse sentido, a autora da obra acrescenta que:
Por isso, é necessário que negros e negras aprendamos a nos reconhecer dentro de
uma sociedade racista para lutar contra ela, pois:
Nesse sentido, conforme afirmam Camargo e Ferreira, para que nos entendamos como
negros, precisamos nos conscientizar de tudo o que somos (e tudo o que nos impediram de
ser) de fato, e de como o racismo age em nossas subjetividades na e pela linguagem. Quando
não se faz esse trabalho desde a infância, em família, a pessoa negra pode passar uma vida
tentando lidar de diferentes maneiras com os episódios de racismo sofridos e se adaptar a um
mundo predominantemente branco, muitas vezes, optando por negar toda sua história e de seu
povo.
A consequência desse processo foi a transformação do meu olhar para todas as coisas
que me rodeiam, e, sobretudo, para a educação e o magistério, onde atuo profissionalmente.
Como professora de línguas, repensar meu fazer pedagógico tornou-se fundamental para que
eu usasse o conhecimento sobre linguagem de maneira ética e de acordo com o que passei a
entender como uma educação antirracista. Para que isso, de fato, ocorresse, foi preciso
entender a língua para além de um código, uma estrutura abstrata, e a linguagem a partir de
um ponto de vista social.
Nesse sentido, é relevante que se pense a linguagem como propõe Bagno e como
sugere, também, Hamel (1993), ao analisar os limites das políticas de linguagem. O autor
reforça a importância de um olhar sócio-pragmático sobre a linguagem, vendo-a como “ação
social mediante a qual os sujeitos transformam o mundo”, o que implica levar em
consideração não só sua função comunicativa, mas também de construtora de identidades e
relações de poder (HAMEL, 1993, p. 19).
Junto com a mudança em minha prática profissional, todo este processo me trouxe,
também, a necessidade de pesquisar uma temática que contribuísse não só com as reflexões
do meu campo de estudo, mas também com as reflexões sobre raça, que vêm ganhando cada
vez mais espaço na academia. Com relação a esse fato, Nilma Lino Gomes observa que a
categoria “raça” passou a aparecer com mais frequência nas pesquisas em Ciências Humanas
e que “os estudos das Ciências da Linguagem e Humanas tiveram uma inflexão analítica e
teórica quando a questão racial passou a ser tematizada e investigada” (GOMES, 2016, p.
118).
Nesse sentido, os estudos sobre raça e racismo estão possibilitando que os diferentes
paradigmas sob os quais se construíram as formas de ver e interpretar a realidade sejam
questionados. Nesse contexto, a língua é elemento fundamental para o questionamento e a
elaboração de novos paradigmas, pois, através da forma como os sujeitos sociais se
expressam, ficam explícitos seus posicionamentos diante dos fatos do mundo, e será pela
língua que novos discursos poderão ser construídos.
José Luiz Fiorin, no prefácio da obra organizada por Luiz Paulo da Moita Lopes, O
português no século XXI, faz uma reflexão que vai ao encontro do que afirma Rajagopalan
(2003) e do que buscarei refletir neste trabalho. O estudioso afirma que se faz necessário
pensar a ciência de maneira diferente da que nos acostumamos a pensá-la. E, para isso,
precisamos considerar que o conhecimento científico é, sim, determinado por ideologias e que
17
“as perspectivas epistemológicas não são neutras, mas são produzidas pelas circunstâncias
históricas de seu tempo e de seu espaço'' (FIORIN, 2013, p. 13).
Dessa forma, ao pensar sobre esta pesquisa e a questão da neutralidade, concordo com
Melo e Ferreira quando afirmam que:
Para contribuir com a reflexão proposta, usamos a abordagem glotopolítica, visto que
se trata de uma perspectiva de análise que entende a língua como um construto social,
histórico e que é dinâmico e mutável, pois acontece nas práticas de linguagem, que são
práticas sociais. Portanto, não há como refletir sobre língua sem relacioná-la a seus falantes, já
que o social e o linguístico estão integrados. A glotopolítica, portanto, estuda as intervenções
políticas na linguagem.
Elvira Arnoux (2016, p. 19) explica, sobre esse campo de estudos, que a glotopolítica
analisa as intervenções no espaço da linguagem em um sentido mais amplo já que tais
intervenções podem ser planejadas, explícitas, voluntárias, geradas por agentes coletivos ou
individuais, ou até mesmo produzidas espontaneamente sem mediadores claramente
identificáveis. Ademais, essa perspectiva “exige tomar partido de acordo com um ideal
democrático nas lutas políticas da linguagem, assumindo, portanto, as implicações éticas que
a própria pesquisa tem enquanto prática social” (LAGARES, 2018, p. 42).
Nesse sentido, a glotopolítica embasará nossas análises, visto que sua proposta
coaduna com a visão de linguagem defendida nesta investigação. Assim, o diálogo com
18
A Unilab é uma instituição que se propõe, segundo seu site oficial, a ser uma
universidade alinhada à integração com o continente africano, principalmente com os países
membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), baseando-se nos
princípios de cooperação solidária para buscar formas de crescimento econômico, político e
social entre os países parceiros. Sua criação faz parte das estratégias de interiorização e
internacionalização das instituições de ensino superior brasileiras, políticas públicas
educacionais propostas pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais (REUNI), iniciado em 2003 no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
A questão racial foi relevante para a escolha dos locais onde, hoje, se localizam os campi da
universidade e, não por acaso, suas atividades letivas iniciaram em 25 de maio de 2011, data
em que se celebra o dia da África.
Para nós, cearenses, é motivo de orgulho que a instituição tenha sido aqui
instalada. Havia de fato, motivos para que assim acontecesse. O Ceará, todos
sabem, se antecipou ao movimento de libertação dos escravos, no século
XIX, conquistando, por mérito, o título de Terra Luz. É natural, pois, que o
Brasil, ao estender a mão aos povos africanos, num gesto de paz e num
convite à cooperação, o faça a partir do Ceará, mais precisamente da cidade
de Redenção, onde pioneiramente se aboliu a mão de obra escrava.
(UNILAB, 2013, p. 38)1
A localização da reitoria no estado do Ceará também foi pensada pelo fato de que a
capital do estado, Fortaleza, encontra-se em uma área estratégica com relação à África e à
Europa. A Unidade acadêmica dos Palmares, onde se dão os cursos de Ciências da Natureza,
Enfermagem e Engenharia de Energias, também no Ceará, encontra-se no Município de
Acarape, na região do Maciço de Baturité, que foi habitada pelos índios Tapuias e Balurité,
sendo conhecida por vila dos índios, e que recebeu os índios expulsos da região de Jaguaribe.
Finalmente, o Campus dos Malês localiza-se na cidade de São Francisco do Conde, na região
1
Declaração se encontra no livro UNILAB: Caminhos e desafios acadêmicos da cooperação sul-sul. Disponível
em: https://issuu.com/glaymerson/docs/livro_unilab_5_anos. Acesso em: 30 nov. 2020.
19
Gomes, Lima e Santos (2018, p. 97) afirmam que a Unilab é não somente resultado da
ação do Estado. Ela é também fruto das ações e demandas do Movimento Negro Brasileiro
por um maior compromisso do Brasil com o continente africano e a superação do racismo em
nosso país. Nesse sentido, considerei a pertinência de realizar um estudo sobre essa
universidade devido a sua relevante proposta de integração com o continente africano e pelas
questões raciais que a permeiam. A ideia surgiu a partir das perguntas que me fiz ao tomar
conhecimento da instituição: qual é a visão de lusofonia da Unilab? Como é tratado o
plurilinguismo? Como é abordada a temática racial no ambiente universitário?
2
Informações retiradas do site da instituição. Disponível em: http://www.unilab.edu.br/. Acesso em: 30 nov.
2020.
20
permeiam esse conceito e, também, sobre o racismo presente (ou não) nas políticas
linguísticas, buscando, como sugere Gabriel Nascimento (2019, p. 64) “desbranquear uma
linguística vítima de um branqueamento racista desde que passou a ser vista como ciência”.
Finalmente, a temática proposta coaduna com a linha de pesquisa em que este trabalho está
inserido: História, política e contato linguístico.
Assim, para sistematizar este estudo, a investigação estará dividida em quatro partes: a
primeira se caracterizará pela apresentação dos pressupostos teóricos. A segunda explicará a
metodologia e a terceira se centrará na análise do objeto de pesquisa: contextualização da
fundação da Unilab, situação atual da instituição, análise dos documentos e depoimentos. Por
fim, na quarta e última parte, constarão as considerações finais com as conclusões geradas a
partir da análise feita.
Vejamos, então, de maneira breve, como a ciência moderna consolidou uma visão
eurocêntrica e racializada do mundo e qual foi a contribuição dos estudos linguísticos nesse
cenário, com o objetivo de entender como a questão racial permeia o que se entende por
ciência e, consequentemente, como ela está presente no que se entende por língua, já que “a
linguística como ciência não se desenvolve independentemente da disputa ideológica que se
trava na sociedade em que ela se engendra e do discurso científico que a legitima” (PONSO,
2014, p. 70).
O que se torna cada vez mais claro é que, depois que o Renascimento e
Reforma operaram a homogeneização espacial do mundo de acordo com o
ideário da modernidade europeia, a ideia de civilização espraiou-se
progressivamente como se fosse o produto natural de uma essência
ocidental, logo marcada pela cor branca. Uma espécie de “Ocidente
absoluto” para a consciência hegemônica. A naturalização do que era de fato
um construto cultural foi impulsionada- além de, claro, pela força das armas
23
Silvio Almeida (2019), no livro Racismo Estrutural, apresenta uma reflexão que
coaduna com a de Sodré ao afirmar que:
3
Muniz Sodré, no Livro Afrocentricidade. Uma abordagem epistemológica inovadora, organizado por Elisa
Larkin Nascimento. A apresentação é datada em 2008, mas a publicação foi lançada em 2009, assim seguimos o
ano da publicação do livro.
24
Makoni e Meinhof (2006), inclusive, explicam como a própria ideia de língua africana
foi produzida pelo europeu. De acordo com seu estudo, ao descrever as línguas na África, os
linguistas e os missionários ocidentais operaram uma intervenção social, já que, através do
letramento dessas populações, as formas orais foram reduzidas para caber na descrição de
uma língua que foi criada, adaptada e, consequentemente, apresentou-se como uma variedade
que não correspondia à fala real de nenhum dos povos estudados. Assim, “o letramento e a
política tiveram um papel crucial na nomeação das línguas africanas. A nomeação foi iniciada
por pessoas não africanas letradas em línguas europeias e em árabe”, causando, entre outras
coisas, uma alteração na forma de identificação das diferentes etnias, visto que “os nomes
foram usados como substitutos para identidades étnicas e não como rótulos linguísticos. Por
exemplo, esperava-se que um falante da etnia zulu falasse zulu e que um iorubá falasse
iorubá” (MAKONI; MEINHOF, 2006, p. 2017).
processo, tais variedades escritas passavam a ser o padrão e ditavam as normas da língua
alterando, dessa forma, as práticas sociais.
relacionado a como conectar os saberes metalinguísticos das diferentes línguas, logo, como
sistematizar o que viria a ser a disciplina denominada linguística.
Compreende-se, então, que, de acordo com essa visão, a alteridade foi a questão
motivadora do desenvolvimento dos conhecimentos sobre as línguas. Porém, se, inicialmente,
buscou-se compreender e decifrar o outro para conhecer e aprender sobre sua cultura (grega e
latina), posteriormente, a compreensão das línguas atendeu a objetivos como subjugação e
exploração de diversas populações. A gramatização do Tupi pelos portugueses para
catequização dos indígenas pelos jesuítas, como falado anteriormente, é exemplo relevante de
como a curiosidade pelo outro, carregada de admiração como acontecia com as culturas grega
e latina, deu lugar ao desejo de se comunicar para dominar quando o alvo eram outros povos.
Sobre esse fato, Mariani (2003) afirma o seguinte:
Portanto, entende-se que, a partir do processo de gramatização das línguas, houve uma
mudança epistemológica no campo das ciências da linguagem, visto que a forma de se pensar
a construção dos saberes foi impactada por esse fenômeno. Dezerto (2013), ao refletir sobre
os aspectos que envolvem a produção dos conceitos de “saber” e “campo disciplinar”,
enfatiza que toda produção de saberes se constitui dentro de um discurso, logo é sempre
histórica, ideológica e nunca neutra. Também dialogando com Auroux (1992), Dezerto (2013)
explica que, segundo o francês, algumas propriedades legitimam o que é considerado
conhecimento científico: a universalidade, que se dá a partir do apagamento da historicidade e
do aspecto ideológico que constituiu a construção desse novo saber, o efeito de totalidade, que
aparece como consequência dessa ideia do saber como universal, e a intangibilidade
decorrente da necessidade de que haja um objeto para o que o conhecimento seja representado
por meio dele.
A língua como objeto de estudo científico, dessa forma, passa a ser vista a partir
dessas propriedades e as teorias sobre as línguas se constroem sob essa ótica. A reflexão de
Dezerto (2013) é fundamental para se pensar que os saberes construídos sobre as línguas
indígenas e africanas se cristalizaram por meio do apagamento dos discursos por trás da
construção desses saberes. Portanto, esses conhecimentos legitimaram a hierarquização das
diversas línguas e, consequentemente, de seus falantes. Com relação a esta produção científica
sobre as línguas, Lagares (2018), reflete:
Hamel (1993, p. 6-7) afirma que políticas de linguagem existem desde que os seres
humanos passaram a se organizar em sociedade e estenderam suas relações de contato,
intercâmbio e dominação de outras sociedades cultural e linguisticamente diferentes. Segundo
ele, “na maioria dessas relações, as línguas têm um papel de primeira ordem, tanto para
organizar a dominação e hegemonia de um povo sobre outro, quanto para os processos de
resistência e libertação”. Assim, a colonização é um acontecimento que nos permite visualizar
como as políticas linguísticas operam em diversas instâncias sociais que vão além da língua.
Mariani (2003, p. 74) explica que a noção colonização linguística se refere a diversos
“fatos resultantes do acontecimento linguístico que foi o encontro de povos com línguas e
memórias diferenciadas e sem contato anterior”. A autora segue explicando que um processo
de colonização não existe sem línguas e que a construção desse processo de comunicação que
envolve o estabelecimento de um código comum, se caracteriza por “memórias e
apagamentos das imagens produzidas das línguas em circulação” (MARIANI, 2003, p. 74).
Assim a colonização linguística:
Nesse embate entre os diferentes povos e línguas, é preciso que se encontrem meios
para justificar a dominação e subjugação dos colonizados e, para isso, língua e religião
aparecem como aspectos fundamentais na construção de uma ideia de superioridade do
europeu com relação aos outros grupos. Sobre esse fato, Darcy Ribeiro (1995), discorrendo
sobre a colonização portuguesa no Brasil, descreve os portugueses como homens que
Ainda que a citação anterior se refira apenas ao indígena, é possível fazer uma
transposição desses aspectos à colonização do continente africano pelos portugueses, já que se
caracterizou por um procedimento similar ao descrito acima. Entretanto, algumas
particularidades das duas colonizações trouxeram consequências linguísticas distintas às
regiões. Uma delas é o surgimento de línguas crioulas de base portuguesa nos países
africanos, fenômeno que não aconteceu no Brasil.
Tanto o crioulo quanto o pidgin possuem uma simplicidade estrutural e seu surgimento
está relacionado à marginalização de um grupo (sobretudo as línguas crioulas, já que a
pidginização é um processo mais abrangente no qual nem sempre haverá uma relação
dissimétrica entre seus falantes), que precisa encontrar uma maneira de se comunicar nesse
contexto marcado por diversas formas de opressão. Desta forma, podemos afirmar que a
maioria das línguas pidgins e crioulas se formou em situações de extrema violência social, das
quais restam pouquíssima documentação e registro histórico, até porque, em muitos casos
ocorriam na clandestinidade. Por conta disso, as sociedades crioulófonas assim formadas
foram vítimas de todo tipo de preconceito e discriminação, quando não se mantiveram em
grande isolamento, sendo totalmente ignoradas pela cultura oficial e pela ciência
(LUCCHESI, 2019).
32
O linguista explica, nesse mesmo texto, uma das hipóteses para o surgimento de uma
língua crioula. Segundo ele, o tempo de interação entre os grupos de contato traz diferentes
resultados linguísticos que podem gerar um jargão, um pidgin ou uma língua crioula. O jargão
seria o resultado de uma interação efêmera e se limitaria a um pequeno vocabulário em
comum entre os grupos que seguem utilizando a gramática de sua língua nativa. Se o contato
entre eles se prolonga, esse pequeno vocabulário se torna insuficiente e é necessário que se
desenvolva uma mínima estrutura gramatical. Surge, então, um pidgin. Esse pidgin pode
desenvolver-se ainda mais tornando-se um pidgin expandido com uma estrutura gramatical
menos precária, o que faz com que esta língua se assemelhe a qualquer outra língua humana
(LUCCHESI, 2019).
4
Língua de superestrato é a língua do grupo dominante. Para saber mais, ler Lucchesi e Baxter (2009).
33
surgimento de um grupo chamado “filhos da terra”, formado por filhos de uniões entre
colonizadores e nativos. Esses “filhos da terra” foram os grandes propagadores do guineense,
ou crioulo de Guiné-Bissau. A pesquisadora afirma que “as praças (ou prasas), ainda
incipientes centros urbanos marcados pela presença do invasor português e onde a
necessidade de mútua compreensão entre os nativos e os estrangeiros obrigou a um meio de
comunicação híbrido” (SEMEDO, 2011, p. 12), foram locais de desenvolvimento do que
posteriormente seria a língua guineense, o idioma mais falado no país, hoje. Assim:
Vale ressaltar que o fato de, no Brasil, ter havido uma maior proximidade entre
colonizadores e populações escravizadas não diminuiu o processo violento desta relação,
ainda que a falácia da democracia racial tenha consolidado a falsa ideia de uma colonização
mais amistosa dos portugueses em território brasileiro. Com relação a esta questão, Abdias
Nascimento (2016, p. 59) afirma:
Durante séculos, por mais incrível que pareça, esse duro e ignóbil sistema
escravocrata desfrutou a fama, sobretudo no estrangeiro, de ser uma
instituição benigna, de caráter humano. Isto graças ao colonialismo
português que permanentemente adotou formas de comportamento muito
específicas para disfarçar sua fundamental violência e crueldade.
Desta forma, o contato entre as línguas dos colonizadores e dos colonizados, aqui,
trouxe consequências como a simplificação morfológica, que é também uma das
34
características apresentadas pelas línguas crioulas, porém essa característica, apenas, não é
suficiente para que ocorra o processo de crioulização. Segundo Lucchesi e Baxter (2009), o
que ocorreu com o português brasileiro foi uma transmissão linguística irregular que marcou a
língua com aspectos não só lexicais, mas também morfológicos e sintáticos das línguas
africanas:
Portanto, não se chegou a formar uma nova língua. As formas típicas do português
popular têm origem nesse contato entre colonizadores e colonizados no período colonial, e,
por remeterem aos africanos escravizados, são estigmatizadas, corroborando com o que o
autor chama de racismo linguístico.
Essa breve exposição sobre as línguas crioulas é relevante para a investigação, pois
essas línguas são usadas de forma recorrente no ambiente da Unilab, sobretudo, pelos
estudantes que não dominam a variedade do português falada no Brasil. Diante do exposto,
podemos constatar que o colonialismo operou na língua e através dela para racializar as
relações entre os povos. Gabriel Nascimento expõe este fato no trecho abaixo, ao explicar
sobre as ideias que fundamentam seu livro Racismo linguístico:
Uma vez que admitimos que o racismo está na estrutura das coisas,
precisamos admitir que a língua é uma posição nessa estrutura. Em minha
hipótese principal aqui, entendo que o racismo é produzido nas condições
históricas, econômicas, culturais e políticas, e nelas se firma, mas é a partir
da língua que ele materializa suas formas de dominação (NASCIMENTO,
G., 2019, p. 19).
Essa visão de mundo acabou se tornando a realidade por um longo tempo, por meio da
construção de um discurso eurocêntrico construído através da língua, até que novos estudos
emergiram trazendo outros paradigmas e contestando essas “verdades”. Entre tantas
35
Portanto, refletiremos, a seguir, sobre as mudanças nos discursos sobre raça ao longo
da história para entender como, a partir deles, os grupos dominantes encontram meios por
onde seguir com seu projeto de dominação.
A diferenciação por raças torna-se, então, o argumento ideal. Quijano (2010) chama
este fenômeno de racialização das relações de poder. Segundo ele, “a ‘cor’ da pele foi
definida como marca ‘racial’ diferencial mais significativa, por ser mais visível, entre os
dominantes/superiores ou ‘europeus’, de um lado, e o conjunto dos dominados/inferiores ‘não
europeus’, de outro” (QUIJANO, 2010, p. 119-120). Nilma Lino Gomes (2012) explica,
dialogando com a perspectiva pós-colonial, como o conceito de raça é estrutural e estruturante
da formação da América Latina, sobretudo do Brasil, visto que, muito antes de se ancorar na
ciência, tal conceito foi sendo construído como uma ideia, uma representação social. Hall
(2003), sobre a ideia de raça, completa que:
36
Em uma pesquisa mais atual, Silvio Almeida (2019), no livro Racismo Estrutural,
explica que a ideia de raça como um elemento que diferencia seres humanos surge a partir da
modernidade e que esta palavra não tem um significado fixo, mas, pelo contrário, seus
sentidos são fluidos e vão mudando de acordo com o momento histórico.
O autor segue explicando que tal conceito foi fundamental durante a formação dos
Estados nacionais, visto que, para que as nações se constituíssem como tal, era necessário que
houvesse entre seus cidadãos o sentimento de identificação e pertencimento cultivado por
meio do compartilhamento da mesma língua, cultura, religião, etnia, entre outros fatores.
Dessa forma, Almeida (2019), baseando-se em Mbembe (2018), explica que as novas nações
se construíam, também, a partir de “um discurso sobre o outro, tornando racional e
emocionalmente aceitável a conquista e destruição daqueles com os quais não se compartilha
a mesma identidade” (ALMEIDA, 2019, p. 103).
Mbembe (2014) mostra que, até hoje, essa ideia de nacionalismo se mantém,
entretanto operando por meio de outra dinâmica. De acordo com ele, a lógica racial volta a
configurar a consciência contemporânea a partir da política de securitização implantada pelos
países capitalistas. A propagação do medo do outro, reforçada pela ameaça terrorista, justifica
o controle excessivo dos corpos e, neste processo, uns são mais controlados que outros:
No Brasil, vemos que esta política de Estado que cultiva o medo do outro, a qual
Mbembe (2014) se refere, age não só contra o cidadão que vem de fora (e aqui, é importante
salientar que a xenofobia, em nosso país, se pratica contra estrangeiros de países cuja
população é, em grande parte, composta por negros e/ou indígenas, tais como países do
continente Africano e da América do Sul, como Bolívia e Venezuela), mas também contra
uma parcela de seus próprios cidadãos. A população carcerária brasileira, composta
majoritariamente por pessoas negras, os assassinatos constantes de jovens negros de periferia,
o aumento da violência contra a mulher negra e a invisibilização da população indígena
comprovam este fato.
Portanto, como se pode perceber a partir desses dados, “raça” é uma invenção
construída na linguagem e seus efeitos marcam de distintas maneiras as vidas dos diversos
grupos étnicos. Criado pelo homem branco, este conceito se firmou trazendo novas
identidades sociais (índio, negro, mestiço), sempre a partir da identidade que se vê como
universal. Esse processo cria marcas que afetam a vida de todos os grupos, entretanto, a
categoria “branco”, por ditar o padrão e se universalizar, não é marcada negativamente como
o negro e o indígena.
Gabriel Nascimento (2019, p. 109), já citado algumas vezes nesta investigação, reforça
a necessidade de que racializemos o branco “em seu discurso totalizante”, pois só desta
forma, a branquitude “conseguirá se ver no seu próprio espelho”. Ele complementa e dá um
exemplo pertinente relacionado à língua, afirmando que:
Gabriel Nascimento (2019) sintetiza bem como o signo raça afetou de formas
diferentes brancos e negros (e podemos dizer que não só negros, mas todos os não brancos):
Sempre que invocamos a noção de raça para projetar uma identidade positiva
a fim de enfrentar o racismo, não podemos esquecer ou negligenciar seu
papel enquanto signo criado e mantido pelo colonialismo. O poder colonial
foi perverso não apenas enquanto força estruturante, ao impor aos negros a
necessidade de branqueamento, seja para se assimilar ou resistir, mas como
uma força de mitificar a própria branquitude, impedindo que ela seja
concebida enquanto raça (NASCIMENTO, G., 2019, p. 76).
Para finalizar esta reflexão, é importante dizer que existem diversos estudiosos,
brasileiros ou não, além dos que foram aqui citados, que pesquisam/pesquisaram sobre o
39
conceito de raça e suas consequências não só para o povo preto, mas também para toda a
sociedade. A principal ideia a ser enfatizada, para esta investigação, é a de que o conceito de
raça é visto, aqui, como uma construção histórica, social e cultural que segue excluindo
determinados grupos étnicos, mesmo com a refutação das teorias embasadas na biologia, e
que endossar o discurso de que as raças não existem contribui com a manutenção das relações
desiguais entre os povos. Sobre isso, Mbembe (2014, p. 20) afirma que “no intuito de
aprimorar a prática da discriminação, tornando a raça conceptualmente impensável, faz-se
com que cultura e religião tomem o lugar da biologia”.
Para fazer uma análise crítica não só da linguística, mas também de todo o
conhecimento científico, buscamos dialogar com pesquisadores representativos de diferentes
perspectivas teóricas, com o objetivo de construir uma reflexão que coadune com nosso
propósito de pensar essas questões sem reproduzir aquilo que criticamos: um discurso
universalizante, que desconsidera a diversidade de pensamentos e saberes e que, portanto, não
contribui com uma sociedade mais justa e igualitária.
perspectiva, entre eles, podemos citar Hall (2003), Fanon (2008) e Mbembe (2014), por
exemplo, que apresentaram trabalhos significativos para discussões de importantes questões
sociais, sobretudo a questão racial. Estes autores estão vinculados à vertente dos Estudos
Culturais, uma perspectiva pós-colonial composta por estudiosos de diferentes áreas do
conhecimento que se propuseram a fazer uma tradução cultural, desnaturalizando os
conhecimentos construídos a partir da ótica hegemônica.
Desta forma, para superar o abismo existente entre norte e sul, é preciso resistência (e,
aqui, resistir será conscientizar-se para contestar a visão hegemônica) por parte dos povos do
Sul, pois, “a menos que se defronte com uma resistência ativa, o pensamento abissal
continuará a autorreproduzir-se, por mais excludentes que sejam as práticas que origina.
Assim, a resistência política deve ter como postulado a resistência epistemológica”
(SANTOS, 2010, p. 49).
Refletir sobre essas questões é relevante, pois questionar os discursos propostos pelas
teorias nas quais os diversos estudos se baseiam é uma forma de repensar a universalidade dos
saberes e possibilitar a ecologia deles. Uma ecologia de saberes é aquela que não se propõe a
um apagamento do pensamento eurocêntrico, pois reconhece sua relevância, mas que permite
um diálogo desse pensamento com outras formas de conceber a realidade.
Segundo Finch III e Nascimento (2009), o conceito de afrocentricidade foi criado por
Molefi Asante no final do século XX, ainda que estudos com esta abordagem já existissem
antes do surgimento do conceito. Os autores afirmam que a vitória da revolução haitiana, no
século XIX, foi um marco que contribuiu com o crescimento desses estudos, considerados
verdadeiros atos de resistência à visão de mundo eurocêntrica. No século XIX, então, ativistas
do pan-africanismo articulam esse pensamento afrocentrado que começa a se estabelecer na
diáspora, sobretudo, no Caribe e nos Estados Unidos.
No século XX, com o surgimento das faculdades e universidades negras nos Estados
Unidos, proliferou-se o número de pesquisadores negros, apesar do contexto de extremo
racismo em que viviam os afrodescendentes no país. Suas pesquisas eram influenciadas pelas
correntes políticas em destaque na época, tais como o marxismo, o liberalismo capitalista, o
nacionalismo negro e o pan-africanismo. Entretanto, ainda que as ideias do nacionalismo
negro e do pan-africanismo dialogassem com alguns preceitos do marxismo, como a luta de
classes, com relação à questão racial, este diálogo não acontecia:
Dessa forma, nos interessa, para esta pesquisa, além do fato de pensar os saberes como
plurais e coexistentes sem hierarquizá-los, o conceito de agência, visto que se trata da tomada
de consciência de todo o processo construtor de realidade desigual em que vivemos, para, a
partir dessa conscientização, repensar nosso olhar para nós mesmos e para o mundo, buscando
transformá-lo. Mais uma vez, afirmamos que a linguagem e o discurso são fundamentais para
a construção dos novos paradigmas que se estabelecerão a partir desse agir consciente. Nesse
sentido, importa que nos perguntemos se as políticas propostas para os estudantes africanos da
Unilab possibilitam a agência desses estudantes sobre a realidade em que vivem ou os torna
meros aplicadores de propostas vindas de cima.
Entretanto, o autor também apresenta como a teoria citada contribuiu para se pensar o
racismo na língua:
Uma outra crítica qualitativa a essa visão pós-estruturalista é que ela também
subestima o papel do sujeito porque ignora muitas vezes que o próprio
46
Dessa forma, Gabriel Nascimento (2019) mostra que, assim como o pós-colonialismo
se apresentou como crítica às teorias modernas, mas não superou muitos dos limites dessas
teorias, as correntes pós-estruturalistas, apesar de trazerem avanços às discussões e análises
sobre língua, tampouco superaram todos os conceitos e ideias criticados.
Assim, reforçamos que, nesta investigação, vemos a língua como campo de luta e
elemento fundamental de disputa de poder na sociedade e que, portanto, precisa ser analisada
a partir de abordagens teóricas que a vejam como tal. A Glotopolítica, nesse sentido, é uma
perspectiva que contribuirá com as análises que serão feitas.
Toda decisão que modifica as relações sociais é, do ponto de vista do linguista, uma
decisão glotopolítica. (GUESPIN; MARCELLESI, 1986, p. 1)
Del Valle (2014, p. 90) afirma que, para os estudos glotopolíticos, a linguagem é
pensada como um âmbito da vida social suscetível de ser objeto da ação política (e aqui, é
cabível pensar não apenas no conceito de política governamental, mas também na
micropolítica das relações interpessoais). Com relação à política, Lagares (2018) ressalta a
importância de entendê-la como, essencialmente, participativa e democrática.
Del Valle (2014, p. 92) também explica que a perspectiva glotopolítica se distancia
das teorias que analisam a linguagem como um sistema independente das práticas onde se
manifesta. Nesse sentido, ela é vista sob seus aspectos político e performativo, onde um
enunciado é observado “em contextos precisos e conectado a identidades e relações sociais
sempre em processo de negociação” (2014, p. 93). Guespin e Marcellesi (1986), no texto
citado anteriormente, explicam que a Glotopolítica refere-se às “diversas abordagens que uma
sociedade faz da ação sobre a linguagem, tenha ela ou não consciência disso” (GUESPIN;
MARCELLESI, 1986, p. 1), não se restringindo, portanto, às ações de política e planejamento
linguístico, que são casos particulares de glotopolítica, mas não os únicos. Essas ações podem
acontecer no âmbito da língua, da fala ou do discurso, o que torna este campo, segundo os
próprios autores, necessário para possibilitar a análise das consequências políticas dessas
intervenções dos falantes sobre a língua.
Elvira Arnoux (2000) explica que a Glotopolítica se refere às distintas formas em que
as ações sobre a linguagem participam na reprodução ou transformação das relações de poder,
além de abordar não só o conflito entre línguas mas também entre variedades e práticas
discursivas. A pesquisadora complementa esclarecendo que este campo de estudos:
Portanto, esta perspectiva nos permite analisar não só as políticas linguísticas de nível
macro, mas também as ações pensadas e produzidas (espontaneamente ou não) por membros
da comunidade acadêmica da Unilab. Dessa forma, ao entendermos que qualquer falante de
uma língua pode ser considerado um agente de glotopolítica, visto que a ação em quaisquer
dos âmbitos citados anteriormente (língua, fala, discurso) pode gerar efeitos diversos em
5
[…] atiende como marco social tanto a las pequeñas comunidades como a las regiones, los Estados, las
nuevas integraciones o el planeta según la perspectiva que se adopte y el problema que se enfoque; y que,
finalmente, puede considerar no solo las intervenciones reivindicativas sino también aquellas generadas por los
centros de poder como una dimensión de su política. Desde nuestra perspectiva, el análisis debe centrarse tanto
en las intervenciones explícitas como en los comportamientos espontáneos, la actividad epilingüística y las
prácticas metalingüísticas, más allá de que asigne importancia a las representaciones sociolingüísticas que las
sostienen (ARNOUX, 2000, p. 4).
48
Elas também afirmam que a disciplina “está servindo para alavancar mudança de
postura em relação ao tradicionalismo do ensino da língua portuguesa nos países
representados em sala de aula” (segundo o artigo, este fato fica perceptível na fala dos
discentes) (CARIOCA; SOARES, 2017, p. 59) e que, por meio das reflexões feitas em aula,
os alunos compreendem que a própria criação da universidade faz parte de uma política
linguística de internacionalização do português. Dessa forma, a inclusão da disciplina (que,
segundo o artigo, só é ofertada na graduação de letras da Universidade Federal de São Carlos
e da Universidade Federal de Santa Catarina) possibilita aos discentes reflexões que alteram
sua percepção sobre as línguas, sobretudo, a língua portuguesa.
6
Disponível em: http://www.revistas.unilab.edu.br/index.php/mandinga/about. Acesso em: 30 nov. 2020.
7
A identidade dos autores dos relatos não será divulgada.
50
Políticas Linguísticas na Unilab, este tema também aparece. As autoras afirmam que a
disciplina “se fundamenta nas variedades do português falado em diferentes países que têm
essa língua como oficial” (CARIOCA; SOARES, 2017, p. 53), pois tais variedades
“influenciam no processo de intercompreensão"(CARIOCA; SOARES, 2017, p. 55).
Portanto, de acordo com o texto:
Todas essas reflexões que estão em curso na instituição geram outra consequência, que
é a alteração do status da variedade do português brasileiro e a disputa por hegemonia entre
esta variedade e a europeia. Não há dúvidas de que a criação da instituição traz vantagens ao
português do Brasil nessa disputa.
Sabe- se que:
Segundo Faraco (2016), Portugal, ao longo dos anos, buscou diferentes formas de se
manter como uma grande nação e perpetuar a ideia de que o país era muito maior que suas
fronteiras, retomando sempre os grandes feitos de uma época em que, verdadeiramente, os
portugueses controlavam boa parte do comércio marítimo de diferentes continentes e tinham,
portanto, grande importância nas relações internacionais. Inicialmente, a defesa dessa ideia se
pautou nas “conquistas” de outros povos sob justificativa de levar a fé cristã a essas nações e,
posteriormente, essa busca pela formação de um império português aconteceu com a tentativa
de criação de um império cultural onde a língua seria instrumento fundamental para
concretização de tal intento. Sobre esse processo, fica evidente que a discussão em torno da
lusofonia e das questões que dizem respeito aos países falantes de português e suas políticas
linguísticas envolvem “os portugueses e o sentimento nacional marcado pelo histórico
imaginário mitológico e seu papel civilizatório” (SILVA, 2013, p. 79).
Na prática, com relação à língua portuguesa, o que mais vemos são ações pontuais
partindo dos países onde o português é a língua hegemônica: Portugal e Brasil, já que, toda
essa idealização que envolve o conceito de lusofonia não reflete a realidade dos países
lusófonos, visto que esses povos não partilham nada além da língua (quando a partilham, de
fato).
Brito (2013) afirma que a comunidade dos países falantes do português não é coesa e
apresenta uma realidade desigual. Segundo ela,
É necessário ter clareza quanto aos papéis distintos que a língua portuguesa
forçosamente cumpre em cada localidade; pensar a lusofonia é, igualmente,
considerar a função e o papel que o português desempenha em cada um dos
contextos de sua oficialidade (BRITO, 2013, p. 57).
Nesse sentido, é preciso ressaltar que esse termo e todas as questões que a ele se
referem, são discutidos, primordialmente, em Portugal. Com relação a esse fato, Faraco relata
que:
Ponso (2014) afirma, com relação à língua portuguesa nos países do continente
africano, que:
53
Mais adiante, ela acrescenta que “o status de que goza certa língua ou certa variedade
linguística pode implicar a legitimação de certos discursos e o silenciamento de outros,
proferidos em outras línguas, em outras variedades - não autorizadas, não hegemônicas, não
normativas, não letradas” (PONSO, 2014, p. 58). Essas afirmações ajudam a pensar no caso
da lusofonia Afro-Brasileira, proposta pela Unilab. Para além da idealização, é preciso
considerar todo este processo linguístico pelo qual passam os países africanos em que o
português se tornou língua oficial, e agir no sentido de se propor políticas linguísticas para a
instituição que contemplem as realidades plurilingues dessas populações.
Marcos Bagno (2020), em texto publicado no site da Parábola editorial8 (cujo título
me inspirou ao intitular o presente capítulo), com o intuito de falar sobre o dia mundial da
língua portuguesa, discorre sobre a real situação da nossa língua no mundo e mostra como a
atual crise política do Brasil contribui com a desvalorização do idioma. No trecho abaixo, ele
traz informações que nos ajudam a pensar no fracasso deste mundo lusófono idealizado:
8
Disponível em: https://www.parabolablog.com.br/index.php/blogs/ilusofonia?fbclid=IwAR13s1u-kAgh-
zkkGVdA6XVs73-2VAqdslgLMv8AQfeCLZC4Qw0AWvK99xQ. Acesso em: 30 nov. 2020.
54
a manutenção desse olhar idealizado sobre o português e a lusofonia. A partir da análise dos
documentos que fazem parte do corpus, será possível identificar se o termo Lusofonia Afro-
brasileira evoca novos questionamentos, reforça a idealização de um tipo de relação especial
entre os falantes da língua portuguesa, ou é esvaziado, não significando nada além do que o
compartilhamento do idioma por esse grupo.
A CPLP é uma organização internacional, com sede em Lisboa, criada em 1996 como
resultado de uma reaproximação portuguesa com suas ex-colônias, após o país já estar
integrado à União Europeia. Formada por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné
Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, a organização se
volta para “o cumprimento de três grandes objetivos: a concertação político-diplomática, a
cooperação em todos os domínios e a promoção e difusão da língua portuguesa (FARACO,
2016, p. 303)”.
Sua criação não foi alvo de interesse do Brasil até o momento em que as questões
geopolíticas citadas anteriormente impulsionaram a aproximação. Para os países dos PALOP,
a CPLP tampouco foi alvo de interesse, visto que tais nações não viam em Portugal uma
55
parceria que pudesse contribuir com seu desenvolvimento econômico, como outros países da
Europa poderiam. Sobre a cooperação entre os países pertencentes à comunidade, Faraco
(2016, p. 309) afirma que:
É importante também lembrar que a CPLP não pode sequer garantir a livre
circulação intracomunitária de cidadãos dos Estados-Membros. Não existe,
portanto, uma cidadania lusófona para além de um mero gesto simbólico sem
quaisquer efeitos jurídicos concretos (FARACO, 2016, p. 331).
Não fica claro o que significa “integrar-se por meio da lusofonia”. Portanto, só
compreenderemos, de fato, o que a instituição entende sobre esse termo com a análise mais
detalhada da documentação referente às políticas pensadas para a universidade. Contudo, em
um primeiro momento, o que se nota é o uso do termo para reforçar o projeto político que se
pretendia implantar com a criação da Unilab. Buscaremos, portanto, refletir se o debate sobre
esta questão se aprofunda e como a comunidade acadêmica vê/compreende a lusofonia.
56
2ª PARTE: METODOLOGIA
Por outro lado, segundo o mesmo aluno, o guineense é a língua de uso familiar, a
língua com a qual há uma relação afetiva. Outro dos estudantes afirmou que aprendeu
simultaneamente a língua de sua etnia e o crioulo ou guineense como primeiras línguas, com a
família. Só veio a aprender o português na escola, mas, inicialmente, não “dava muita
importância” ao idioma, de acordo com suas próprias palavras, já que não usava essa língua
em sua comunidade. Entretanto, ao perceber que a língua portuguesa, por ser oficial no país,
58
seria indispensável para o mercado de trabalho, passou a se interessar mais por seu
aprendizado. Esse interesse só se deu no final do Ensino Médio.
Um terceiro aluno relatou que se interessava mais pelas disciplinas de exatas ao longo
de seu Ensino Médio. Porém, ao se dar conta da importância do português para sua vida
profissional, passou a valorizar as aulas e chegou a fazer um curso de aperfeiçoamento no
idioma. Outro fator importante, que podemos perceber como uma consequência glotopolítica
da criação da universidade, foi a reflexão feita por esse estudante com relação à língua
portuguesa aprendida em seu país. Segundo ele, ao começar a estudar no curso de letras da
Unilab, foi possível concluir que falava uma variante guineense do português, visto que não a
identifica com a europeia, tampouco com a brasileira. De acordo com ele, por meio dos
estudos de fonética e fonologia, se deu conta de que sua pronúncia não coincide com a do
português europeu nem com a do português do Brasil. Com essa percepção, ele passou a ter
uma sensação de que o português também é do seu país, ou seja, que existe um português
guineense.
Um dos questionamentos que fiz aos estudantes estrangeiros foi sobre como a
sociedade vê as pessoas que não dominam a língua portuguesa em seus países. Respostas
como: “pessoas que não continuaram com seus percursos acadêmicos”, “pessoas que não
entendem a importância do português como língua oficial”, “são vistos como analfabetos e
inferiorizados”, “pessoas inferiores na sociedade” e “pessoas que desconhecem os
conhecimentos ocidentais, analfabetos”, nos mostram como a colonialidade ainda afeta nossa
subjetividade ao ponto de nos enxergarmos como inferiores por não dominarmos uma língua
do ocidente ( coloco o verbo na primeira pessoa do plural porque esta crença de que somos
inferiores por “não saber nossa língua” também é recorrente entre os brasileiros), além de nos
fazer perceber como a ideologia do monolinguismo opera, fazendo com que os falantes
questionem a própria inteligência por não dominar a língua (no caso, a variedade padrão da
língua) de prestígio social. Ademais, tais afirmações expõem o fato de que, nos países
africanos onde o português é língua oficial, faltam políticas linguísticas (ou uma melhor
59
gestão e implementação delas) que efetivem o acesso ao ensino deste idioma a toda a
população.
Outro fator importante, relatado por alguns alunos de Guiné Bissau, foi a constatação,
feita por eles, que a existência da Unilab e sua parceria com seu país foi o que possibilitou a
esses estudantes obterem um diploma de graduação/pós-graduação, visto que situações
políticas e econômicas conturbadas e até guerras civis naquela nação impediam que seus
cidadãos fizessem um curso universitário.
Percebi, no pouco tempo em que estive na universidade, que o português não era a
língua falada pelos alunos estrangeiros quando estavam fora de sala de aula, com exceção dos
casos em que entre eles estivesse um estudante brasileiro. Com relação à questão racial, foi
mais difícil entrar neste assunto. No evento da semana, que era um seminário de estudantes de
letras, as mesas redondas e trabalhos apresentados tratavam de diversas questões linguísticas,
mas não vi nenhum que as relacionasse a aspectos raciais. Em conversa informal, perguntei à
coordenadora do curso de letras sobre isso, e ela me disse que, no cotidiano dos alunos, era
possível analisar diversos aspectos relacionados ao racismo nas relações entre eles. Mas, não
entrou em detalhes e eu, infelizmente, depois dessa semana conhecendo a instituição, não
pude voltar para ficar o tempo suficiente para uma pesquisa etnográfica.
Nesse sentido, a análise documental apareceu como uma das opções, mas não a única.
Além dos documentos, pensamos na busca de depoimentos de estudantes e professores como
estratégia para alcançar informações que esses materiais não apresentam: a experiência de
quem viveu a realidade da instituição. Portanto, tais falas trariam dados analíticos importantes
e seriam uma maneira viável de analisar as questões dentro das condições em que me
encontrava, além de possibilitar uma reflexão contrastiva entre teoria e prática.
60
Com relação ao ponto “a” da citação acima, podemos afirmar que o problema aqui
trazido (como se pensou a implementação do projeto de integração da Unilab em seus
aspectos raciais e linguísticos, que políticas linguísticas foram pensadas para a instituição)
encontra ressonância na área de pesquisa à qual esta investigação se vincula, já que
analisaremos políticas linguísticas e suas consequências glotopolíticas. Sobre o ponto “b”,
ainda que dialoguemos com estudos de perspectivas teóricas distintas, como pós-colonialismo
e decolonialismo, por exemplo, procuramos aproximar as duas teorias onde é possível, em sua
crítica à epistemologia eurocêntrica em seu aspecto universalizante. Portanto, diferentes
referenciais de análise podem dialogar dentro de uma investigação, desde que não sejam
completamente antagônicos e que seus limites sejam explicitados pelo investigador.
61
Desta forma, reafirmamos o que já foi dito na introdução deste estudo: as escolhas
feitas pelo investigador não são neutras e refletem sua visão de mundo, o que não significa
que, devido a esta visão particular, não possa haver um rigor teórico nas análises. Com
relação a este fato, Gamboa (1989, p. 107) discorre que:
Deste modo, entendemos que o pesquisador, ao propor uma análise pautada em teorias
científicas sem deixar de considerar sua visão de mundo e seu lugar no contexto social e
político, está agindo na busca de compor o que Foucault (2015, p. 267-268) chamou de
genealogia do saber, já que está unindo o conhecimento teórico a suas memórias, permitindo a
“constituição de um saber histórico de lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais”.
a fala do professor de geografia do Campus dos Malês encontra-se no vídeo elaborado por
alunos desse campus.
Houve uma busca por entrevistar outros profissionais da instituição, entretanto, entre
todos os que foram abordados, apenas os dois referidos acima possuíam disponibilidade para
realizar a entrevista.
Em vista disso, ressaltamos que as narrativas não serão apresentadas com o objetivo
de formar uma visão única sobre a Unilab, mas sim contribuir para a reflexão sobre as
propostas dos documentos oficiais e sua vivência no cotidiano da instituição sob a ótica de um
grupo de pessoas da comunidade acadêmica.
63
9
Disponível em: http://www.unilab.edu.br/. Acesso em: 30 nov. 2020.
10
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/L12289.htm. Acesso em: 30
nov. 2020.
11
Disponível em: http://www.unilab.edu.br/nosso-diferencial-de-integracao-internacional/. Acesso em: 30 nov.
2020.
64
estudantes que cursaram o Ensino Médio no Maciço de Baturité (UNILAB, 2013, p. 21).
Entretanto, quando analisamos algumas falas da comunidade acadêmica, notamos que o
processo de interiorização foi mais complicado do que os dados acima apontam. A fala de um
estudante de Redenção explicita este fato:
Nilma Lino Gomes, que atuou de abril de 2013 a dezembro de 2014 como reitora pro
tempore da instituição e foi a primeira mulher negra a assumir tal cargo em uma universidade
federal no Brasil, afirmou, no livro UNILAB: Caminhos e Desafios Acadêmicos da
Cooperação Sul-Sul (UNILAB, 2013), se sentir encantada ao pensar na diversidade étnica,
racial e cultural vivenciada na instituição e complementou dizendo que com essa diversidade,
[...] temos possibilidade de construir relações que podem ser profícuas entre
os diferentes e as diferenças. E, ao mesmo tempo, com muitos pontos
comuns. Estamos desafiados a compreender a complexidade do que significa
a língua de expressão portuguesa, que está localizada, historicamente, em
contextos muito diferentes. Temos algo que nos aproxima e ao mesmo tempo
temos particularidades muito intensas. O objetivo é promover uma
convivência que seja acadêmica e interpessoal, vivendo toda essa
complexidade (GOMES, 2013, p. 9)
12
Os nomes dos membros da comunidade acadêmica não serão expostos. Link para acesso ao vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=iCyiKeTQtJg&t=94s. Acesso em: 30 nov. 2020.
65
As conclusões geradas na pesquisa à qual nos referimos acima, nos permitem entender
que entre a formulação das políticas e sua implementação muitas alterações podem ocorrer,
visto que, conforme refleti em minha dissertação de mestrado, “a política em educação vai
além do processo linear entre as intenções presentes nos textos políticos e sua prática no
contexto particular de cada instituição” (SAMPAIO, 2015, p. 35).
Os dados sobre raça revelam que 56,74% se declaram pardos, 19,66% se declaram negros,
15,73% brancos, 2,81% indígenas e a mesma quantidade de pessoas não fez autodeclaração
racial, e 2,25% se declararam de raça “amarela”.
14
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/L12289.htm. Acesso em: 30
nov. 2020.
68
que dispõe sobre despesas com ativos e inativos da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios. Não há, no texto da lei, nenhuma questão específica relativa à(s) línguas
falada(s) no ambiente da instituição. Entretanto, a proposta de integração entre países
membros da CPLP, inevitavelmente, exige da universidade a elaboração de algum
planejamento que abarque a questão da diversidade linguística, ainda que a temática não
apareça na Lei de Criação.
Nesse sentido, vejamos quais são os outros documentos nos quais examinaremos a
temática das políticas linguísticas para a instituição. O Plano de Desenvolvimento
Institucional (PDI) é composto de três documentos: o primeiro é referente ao período de 2013
a 2017, o segundo ao período de 2016 a 2021 e o último apresenta informações
complementares ao segundo PDI. Todos eles têm como objetivo apresentar a proposta de
desenvolvimento institucional em todos os âmbitos: ensino, pesquisa, extensão, infraestrutura,
buscando a “sistematização de dados, idealizações e realizações” que marcaram a
implementação da universidade. O PDI se baseia nas Diretrizes Gerais (2010).
Nas seções a seguir, analisaremos mais detalhadamente cada um dos textos, além de
depoimentos da comunidade acadêmica.
15
Disponível em: http://unilab.edu.br/noticias/2020/08/31/nucleo-de-linguas-sera-apresentado-nesta-sexta-feira-
4/. Acesso em: 30 nov. 2020.
69
Portanto, não só a lei de criação da Unilab é considerada uma PL que tem entre seus
objetivos a internacionalização da língua portuguesa, mas também o são, as decisões relativas
ao ensino de português e de outras línguas dentro da instituição. Logo, a partir das propostas
linguísticas pensadas para a universidade e dos depoimentos de professores e estudantes, será
possível identificar as consequências dessas políticas para esta comunidade de fala.
fato de o português ser língua oficial dos países africanos parceiros da Unilab, não significa
que sua população tenha acesso a um ensino efetivo do idioma. E segundo, pelo fato de que,
para os que já falam português, a fluência não seria, necessariamente, um problema, e poderia
ser adquirida na prática, no cotidiano da instituição. A questão de falar uma variedade do
português diferente da brasileira não é um “problema de fluência” no idioma como o texto dá
a entender. Portanto, na implementação da tutoria, o ideal seria diagnosticar qual é a real
situação do discente no que tange à língua portuguesa, para agir de maneira mais pontual com
cada aluno.
16
Disponível em: http://unilab.edu.br/observe/. Acesso em: 30 nov. 2020
72
Com 240h, as disciplinas desse núcleo são: Leitura e Produção de Textos I; Leitura e
Produção de Textos II; Sociedades, Diferenças e Direitos Humanos nos Espaços Lusófonos;
73
A Unilab está produzindo grandes, grandes quadros. E o que eu costumo dizer, é que
aqui nessa Universidade você não vai sair somente com uma formação, você vai sair
com duas formações, você vai ter uma formação cultural muito forte e uma
formação acadêmica muito forte. E depois, a interdisciplinaridade é muito forte aqui,
conviver com a diferença, sabe? Eu falo por mim. Eu cheguei aqui com uma cabeça.
Em Cabo Verde não conhecia essa realidade dos movimentos dos LGBTs e
movimentos de gênero, liberdade da mulher, claro, cheguei aqui com um certo
pensamento machista, mas, olha, eu não precisei frequentar nenhum curso pra saber
isso, sabe? Eu formei nessa área, eu formei. Eu consegui entender a luta dos LGBT,
eu consegui entender a luta das mulheres, eu consegui entender a relação humana
que existe entre nós e, o mais importante, eu consegui entender o respeito. É isso
que precisamos, respeitar o outro, sabe? Então, essa base que a universidade nos traz
é muito importante. Quando um novo quadro chega no país, ele tem consciência que
tem que respeitar o outro na sua diversidade. Então, isso é fenomenal, isso…
quadros que vão sair daqui da universidade, daqui da Unilab, eles têm capacidade de
entrar em qualquer tipo de mercado de trabalho, porque eles têm a consciência
humana de relação. Mesmo que você tenha esta questão técnica, mas primeiro você
precisa saber que estamos lidando com ser humano, então que isso é humano. Eu
acho isso muito importante. É isso que torna a Unilab rica, eu acho que ainda vai ter
grandes governantes nos nossos países que vão sair daqui da Unilab e que vão fazer
muita diferença na questão da diplomacia, na questão da política, na questão da
construção, na questão da dignificação de uma pátria, eu acho que a Unilab vai tirar
homens e mulheres que vão fazer isso na África. Unilab é um projeto muito
audacioso, é um projeto revolucionário, eu tenho que dizer isso. 17
17
Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iCyiKeTQtJg&t=55s. Acesso em: 30 nov. 2020.
74
provavelmente, pelo fato de que as questões de gênero apresentam problemas muito mais
graves em alguns países africanos. Um exemplo deste fato está no seguinte depoimento:
Certamente, não podemos afirmar que o exemplo do relato acima se refira a todo um
continente, entretanto, a fala serve como exemplo de como as questões de gênero podem estar
em uma discussão mais avançada, em relação ao direito das mulheres e da população
LGBTQI+ aqui no Brasil. Dessa forma, como o próprio aluno conclui, a formação humana
permitirá que se leve uma nova perspectiva social para os PALOP quando esses estudantes
voltarem para suas pátrias. Certamente, a disciplina “Sociedades, Diferenças e Direitos
Humanos nos Espaços Lusófonos” contribuiu para a mudança de consciência apresentada
pelo discente. Em sua ementa, encontramos os seguintes temas:
18
Link de acesso ao texto completo: http://www.usp.br/cje/saoremo/noticia.php?n=295. Acesso em: 30 nov.
2020.
75
Nesse núcleo, descrito por ser uma parte da formação que reflete sobre
língua/linguagem e sociedade, cultura, funcionamento e mudança linguística, há uma
disciplina intitulada “Estudo de línguas crioulas de base portuguesa e do português na
África”, cuja ementa é a seguinte:
linguísticos existentes nesses países, por outro, possibilita que os estudantes de países
africanos vejam suas línguas sendo apresentadas e sistematizadas.
É possível considerar a inclusão dessa disciplina como uma ação glotopolítica, já que
o estudo sistematizado das línguas crioulas alterará as representações linguísticas a respeito
delas não só por seus falantes, mas também pelos outros estudantes do curso, pois, segundo
Calvet (2004), quando falamos de representações linguísticas, nos referimos a ideias,
pressupostos, estereótipos, isto é, nos referimos a tudo o que os falantes dizem e pensam sobre
suas línguas e as línguas dos outros. Desta forma, o conhecimento das línguas crioulas por
meio de seu estudo, poderá trazer um olhar diferente daquele estereotipado, adquirido através
do conhecimento mais superficial.
Por outro lado, notamos que as referências bibliográficas dessa disciplina, em sua
maioria, são de estudos produzidos no ocidente, devido aos fatores que já abordamos ao falar
sobre a colonização linguística e a produção dos conhecimentos sobre as línguas: foram
discussões pensadas por aqueles que estavam em posição de decidir quais conhecimentos
seriam validados como científicos, e apresentavam o olhar dos falantes da língua hegemônica
e não dos falantes das línguas analisadas (indígenas e africanos). Isso não significa dizer que,
hoje, não exista a produção de estudos sistematizados sobre as línguas crioulas de base
portuguesa feitos pelos próprios falantes dessas línguas. O que nos impede de acessá-los,
possivelmente, é, ainda, o monopólio de produções (e divulgações) acadêmicas ocidentais.
Portanto, ainda que a exposição dos conhecimentos sobre as línguas crioulas estejam baseadas
na visão hegemônica, a relevância dessa disciplina consiste, também, em permitir que os
próprios falantes das línguas crioulas que cursam a faculdade de letras, posteriormente,
possam produzir estudos nos quais reflitam sobre suas línguas.
estudos na universidade podem ter alterado as relações dos discentes com o português, ela
afirma que:
O que a professora mostra com sua fala é que, como o português europeu é, de fato,
padrão para esses estudantes africanos, eles tendem a achar que essa variedade também é
padrão com relação ao português brasileiro. Portanto, uma disciplina como esta, é um espaço
para discussão desta questão, já que, no Brasil, a relação com a tradição padronizada lusitana
é mais complexa. Um exemplo desta complexidade está no fato de que o padrão fonético
europeu não se aplica ao nosso país. Por outro lado, algumas prescrições de tipo gramatical,
como o uso dos pronomes, ainda têm efeito aqui, o que gera muitas controvérsias quando
surgem propostas de homologação dos usos brasileiros.
19
Informação recebida por e-mail.
78
A professora relata uma questão importante referente à maioria dos cursos de Letras
no Brasil: a ausência da oferta da disciplina de Políticas Linguísticas para os cursos de
graduação. Pelo fato de ser uma linha de estudos que começou a ganhar espaço na década de
1960, as investigações e reflexões na área são relativamente recentes e, talvez, por este fato,
só agora estejam recebendo a devida importância por aqui. De acordo com a docente, ao
cursar a disciplina, o estudante adquire conhecimento para refletir sobre a situação linguística
da sua comunidade. Nesse sentido, como já foi dito, podemos considerar a presença dessa
disciplina como uma prática glotopolítica da instituição, visto que possibilita aos falantes
pensar a língua por outro viés.
Carioca e Soares (2017, p. 57) relatam que, durantes as aulas dessa disciplina,
encontram “um universo rico de possibilidades para a reflexão sobre o estatuto da língua
portuguesa no mundo.” A partir da declaração de um aluno, de que quando voltasse a seu país
teria que desaprender o português brasileiro, por exemplo, as professoras afirmam que
puderam trazer para a aula a reflexão sobre a internacionalização do português (e da variedade
brasileira) por meio das estratégias geopolíticas do país.
Ainda sobre esse núcleo, faz-se necessário entender o porquê do destaque dado à
língua inglesa. Por se tratar de uma graduação em Língua Portuguesa, o inglês não poderia ser
ofertado em um núcleo de línguas estrangeiras, ou até mesmo através dos cursos de língua
oferecidos pela instituição? A descrição desse núcleo afirma que:
De acordo com a apresentação acima, podemos perceber a presença de uma visão de ensino de
língua tradicional, pautada na decodificação de um sistema linguístico, já que estudam-se os fatores
sócio-cognitivos na aprendizagem das habilidades de leitura e escrita em língua inglesa. Esse processo,
fundamental para a formação do estudante de letras, precisa ser bem desenvolvido, partindo de uma
dimensão política e social ao explorar os gêneros e textos, caso contrário, corre-se o risco de ser uma
abordagem que se caracteriza, simplesmente, pela decodificação/tradução de uma língua estrangeira.
Além disso, analisando todas as disciplinas do núcleo e seus objetivos, percebemos que, para
que se cumprisse a finalidade de trabalhar a questão da linguística aplicada ao ensino-
aprendizagem de línguas estrangeiras, não seria necessário o enfoque no inglês, sobretudo,
quando percebemos, pela ementa das disciplinas do idioma, que se trata de cursos de inglês,
basicamente, instrumentais:
Língua Inglesa para Fins Acadêmicos I (60 horas. Pré-requisito: não há)
Ementa: Desenvolvimento das habilidades e estratégias de leitura e
compreensão de textos acadêmicos autênticos da Língua Inglesa. Noções
introdutórias de produção de textos. Fatores de textualidade e
intertextualidade na leitura e produção de textos de diferentes gêneros.
Ideologia e construção de sentido. Língua Inglesa para Fins Acadêmicos II
(Pré-requisito Língua Inglesa para Fins Acadêmicos I) Ementa:
Aprofundamento das habilidades e estratégias de leitura e compreensão de
textos acadêmicos autênticos da Língua Inglesa. Produção de textos. Fatores
de textualidade e intertextualidade na leitura e produção de textos de
diferentes gêneros. Ideologia e construção de sentidos (UNILAB, 2016, p.
76-77).
Sobre a hegemonia da língua inglesa, Rubio (2020), em sua tese onde analisa as
políticas linguísticas para o ensino de espanhol no Brasil, e o ensino de Português na
Argentina, relata que, um dos motivos pelos quais o ensino das duas línguas se enfraqueceu
nos dois países, foi a hegemonia do inglês. Essa língua se impõe como hegemônica mesmo
sem a presença explícita de políticas linguísticas com este objetivo. Este fenômeno ocorre,
pois, para línguas como o inglês, não há necessidade de leis que incentivem seu uso. Sua
importância no cenário linguístico, político, econômico, cultural e social, no mundo, faz com
que seu uso se torne mais relevante para os falantes de outras línguas, pois sua expansão é
dada como irreversível e natural. O status que a língua inglesa ocupa mundialmente, portanto,
permite com que sua promoção aconteça mesmo sem a presença (explícita) de políticas
linguísticas que cumpram este papel:
80
Percebemos, portanto, uma mistura de temas que não dialogam, tais como língua e
cultura inglesa e produção de material didático impresso para o ensino de língua portuguesa.
Além disso, a disciplina “Ensino de Português Língua Estrangeira/Adicional” deveria estar
entre os componentes curriculares obrigatórios, visto que um dos objetivos específicos deste
curso de Letras é:
21
Esta política lingüística, que actúa de forma silenciosa, es extremadamente eficaz porque se basa en presuntas
evidencias que, como tales, no llegan a ser cuestionadas. Como mencionábamos antes, la enseñanza de inglés
como lengua extranjera no necesariamente requiere de una legislación lingüística para establecerse como la
primera lengua extranjera o muchas veces la única. Los discursos sobre la necesidad de la enseñanza del inglés
en tanto “lengua franca” validan un orden global impuesto por determinados países centrales como un
fenómeno natural, inevitable e irreversible (RUBIO, 2020, p. 20).
81
No PPC dos outros campi, este núcleo não existe. Em seu lugar temos o “Núcleo de
línguas estrangeiras” que:
Esses núcleos trazem outra questão relevante que é pensar o processo de alfabetização
e aprendizagem de língua portuguesa nos Ensinos Fundamental e Médio nos espaços
lusófonos. Os estudantes estrangeiros, ao voltarem para seus países, ministrarão suas aulas em
português ou nas línguas de comunicação das comunidades nas quais forem lecionar? As
disciplinas desses núcleos (“Política Educacional e Organização da Educação nos países da
integração, “Alfabetização e Letramento nos espaços lusófonos” e as que se referem a práticas
de ensino de leitura, literatura e língua portuguesa) possibilitam que se traga para debate a
questão de como se desenvolvem as políticas linguísticas nos PALOP.
Ainda que essas disciplinas não sejam ofertadas como obrigatórias, o que seria ideal
para o contexto da universidade, sua presença reflete uma política de construção de um
professor da área mais consciente das questões que envolvem os contextos linguísticos e
extralinguísticos dos países de língua oficial portuguesa. Como consequência, espera-se um
estudante que reflita mais criticamente sobre o português no mundo, suas variedades e
representações, e, posteriormente, um docente com uma visão mais abrangente sobre as
línguas e tudo o que está envolvido com um ensino crítico delas, isto é, um professor que
entenda que a educação linguística envolve tratar além de questões linguísticas, as ideologias,
a história, a política, a cultura e as práticas sociais. Entretanto, esta reflexão só será possível
para os alunos que se propuserem a cursar tais disciplinas, visto que, como ficou demonstrado
anteriormente, entre as disciplinas obrigatórias, ainda prevalece uma visão tradicional do
ensino de línguas, pautado na decodificação e descontextualizado de seus aspectos históricos,
sociais e políticos.
83
Com relação a isso, o PPC do Campus dos Malês foi mais coerente ao colocar a
disciplina como obrigatória, devido a sua relevância para o contexto da Unilab. Um dos
membros da comunidade acadêmica relata sobre o cotidiano universitário que:
De acordo com esse depoimento fica clara a importância de uma disciplina obrigatória
sobre as línguas crioulas, se não para todos os cursos da graduação, pelo menos na faculdade
de Letras. Outro fato importante sobre esse relato é que ele dá uma pista sobre os usos
22
Relato enviado a mim, pelo professor, por Whatsapp.
84
Entre as disciplinas optativas que merecem destaque neste PPC estão: Tupi I e II,
Bantuística (estudo de línguas bantas), literaturas angolana, guineense e moçambicana. As
disciplinas Tupi e Bantuística, inclusive, poderiam ser ofertadas em mais cursos de Letras
pelo país, devido a sua importância na formação do português brasileiro. Com relação às
línguas bantas, Bagno afirma que:
Depois que entrei na gestão é que descobri que a Unilab não tem políticas
linguísticas, o que foi muito frustrante para mim. Havia um estudo
embrionário acerca de tais políticas que cheguei a participar enquanto
diretora do Instituto de Linguagens e Literaturas, mas que não seguiu
85
No dia 4 de agosto de 2020, o núcleo foi apresentado por meio de um evento online,
transmitido pelo canal da universidade na plataforma Youtube26. Até a implementação do
Nucli, o acesso dos estudantes ao ensino de línguas estrangeiras se dava por meio do
23
Esta docente me enviou suas reflexões por e-mail.
24
Continuação do depoimento anterior.
25
Informações disponíveis em: http://unilab.edu.br/noticias/2020/08/31/nucleo-de-linguas-sera-apresentado-
nesta-sexta-feira-4/. Acesso em: 30 nov. 2020.
26
Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=wRWcKJj8r4Q&list=WL&index=7&t=1427s. Acesso
em: 30 nov. 2020.
86
programa “Idiomas sem fronteiras” do Governo Federal. Portanto, já existia uma política
linguística (de Estado) na instituição, a mesma presente em outras universidades, visto que o
programa Idioma sem Fronteiras (IsF) se constituiu como uma política nacional de
internacionalização de todo o Ensino Superior brasileiro. Nesse sentido, a Unilab ao
desvincular o Nucli do IsF, torna-o um órgão pensado especificamente para o contexto desta
universidade.
Mais adiante ele afirma que a presença do Nucli é “um divisor de águas na
internacionalização e exercerá um dos papéis mais importantes da Unilab”. Sobre sua fala, há
27
Link de acesso: http://nucli.unilab.edu.br/index.php/2020/09/14/nucleo-de-linguas-oferece-curso-de-
portugues-como-lingua-adicional/. Acesso em: 30 nov. 2020.
28
Fala disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wRWcKJj8r4Q&list=WL&index=7&t=1427s.
Acesso em: 30 nov. 2020.
87
Em conversa com professores durante a semana que passei na Unilab, me foi relatado,
inclusive, que os alunos timorenses se comunicavam em inglês entre si. Segundo uma
professora, o uso do inglês era, para esses discentes, uma marca de distinção entre eles e os
alunos do continente africano, mais uma informação que nos dá pistas de que não existe, de
fato, uma integração entre os alunos da instituição. Portanto, o que se vê é que a intenção
central desta PL é a projeção do português internacionalmente, e, para isso, o discurso da
lusofonia acaba sendo uma “desculpa” para justificar a importância cada vez maior do
português no mundo, ainda que, na prática, pelo que se pode perceber, esta língua não seja
realmente falada pela quantidade de pessoas que se divulga.
Essa visão da língua como um capital que abre portas para oportunidades, já havia
aparecido no texto do PPC dos cursos de letras dos campi Liberdade e Palmares. Ao abordar
a temática da cooperação solidária entre os países de língua portuguesa, reforça-se, neste
documento, o fato de que a Unilab se coloca como uma instituição difusora da língua, não
apenas como “língua de cultura”, mas também como “língua de ciências e de negócios e a
nível internacional” (UNILAB, 2016, p. 8, grifo meu), portanto um instrumento estratégico.
Severo e Silvera (2020) explicam como os interesses econômicos influenciam as relações na
CPLP e, podemos, perceber, como esses mesmos fatores agem na promoção do português na
Unilab:
29
Fala disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wRWcKJj8r4Q&list=WL&index=7&t=1427s.
Acesso em: 30 nov. 2020.
89
A autora prossegue, afirmando que o planejamento de prestígio não é visto como uma
questão central no campo do Planejamento Linguístico e que este fato acaba restringindo
reflexões “sobre a maneira pela qual a seleção e a hierarquização das línguas e dos usos
linguísticos são afetadas por dimensões ideológicas evidenciáveis tanto nas avaliações
valorativas dos falantes em relação à língua, como nas práticas dos próprios pesquisadores”
(SEVERO, 2013, p. 455). Nesse sentido, entendemos que as declarações acima contribuem
com uma política de divulgação do uso do português por meio de uma valorização do lugar de
prestígio que, segundo essas falas, a língua ocupa atualmente.
Por meio dessas reflexões, concluímos que o Núcleo de Línguas é a política linguística
oficial da Unilab até o momento. Tal política se centra na internacionalização da universidade
e da língua portuguesa, e este objetivo se concretiza com a recepção dos alunos estrangeiros
que, mesmo com os relatos do crescimento internacional da instituição, ainda não chegam ao
número desejado de 50% dos membros da comunidade acadêmica. Existe aí, uma política de
planejamento chamada “política de prestígio” que tenta atuar na alteração do status do
90
Com relação ao ensino de línguas não só no Nucli, mas também no Curso de letras, as
propostas presentes nos componentes curriculares refletem a reprodução da ideia tradicional
do que seja o ensino de uma língua estrangeira: decodificação do sistema linguístico com a
finalidade de alcançar as habilidades de leitura e produção de texto. Com relação a esse fato, é
importante ressaltar que é um trabalho importante para pessoas já falantes de uma língua
(aulas de leitura e produção de texto em língua portuguesa para alunos que têm o português
como primeira língua, por exemplo), pois possibilita que se faça um trabalho de educação
linguística, trazendo para discussão os aspectos políticos e sociais por meio dos textos e
gêneros discursivos trabalhados. Entretanto, quando se trata do ensino de uma língua
adicional, é importante não deixar que estas práticas sirvam apenas para decodificação ou
como justificativa para a aprendizagem de regras gramaticais.
Por outro lado, estão presentes nesses currículos, diversas disciplinas imprescindíveis à
formação de um professor de português inserido no contexto da Unilab. Entretanto, a divisão entre
conteúdos obrigatórios e optativos, como se vê nesses currículos, pode prejudicar esta formação mais
completa, visto que, conteúdos relevantes, por não serem obrigatórios, podem ficar de fora da
formação de muitos discentes, comprometendo, assim, o que contribuiria com uma educação
linguística de fato, visto que muitos componentes curriculares apresentados discutem não só os
aspectos linguísticos, mas também os fatores culturais, políticos, sociais e discursivos que envolvem a
aquisição de uma língua.
os autores relembram como se deu o processo de colonização linguística nas diversas regiões
colonizadas por Portugal e suas consequências para os povos falantes das línguas minoritárias
e para o próprio status do português, e como, com a independência das ex-colônias, a difusão
da ideia de lusofonia e da língua portuguesa acabou centrada em Portugal e Brasil. Esse fato
contribuiu para uma idealização desses conceitos, fazendo com que os discursos que se
propagaram reforçassem “uma visão abstrata, reificada e cristalizada de língua, tomando
como referência uma língua imaginária que definiria supostos elos amigáveis e solidários
entre geopolíticas diferentes, e amortecendo as memórias coloniais e colonizadoras”
(SEVERO; SILVEIRA, 2020, p. 31). No contexto contemporâneo, eles explicam que a
relação particular de cada ex-colônia com o português é fundamental para se pensar
criticamente sobre o termo lusofonia e entender as motivações pelas quais muitos falantes da
língua (sobretudo os dos países africanos) não se sentem representados nela.
As ideologias linguísticas, segundo Del Valle (2005), são sistemas de ideias que
integram noções gerais da linguagem, da fala ou da comunicação, com visões e ações
concretas que afetam a identidade linguística de uma determinada comunidade. Assim, nos
trechos abaixo, é possível perceber a disseminação de uma ideia de lusofonia como
integradora dos países membros por meio da “língua comum”, ou seja, a lusofonia como
formadora de uma pátria de falantes do português espalhados por diversos territórios do globo
(sobretudo o continente Africano), com suas particularidades, mas que tem na língua seu
ponto de união, portanto, a reprodução de uma ideologia da lusofonia como um “imaginário
identitário” (RIZZO, 2019):
No PPC dos campi Liberdade e Palmares, a mesma ideia aparece. Em sua justificativa,
o documento, ao tratar da questão sociocultural nos espaços lusófonos, dá uma pista de como
é vista a lusofonia, ainda que o termo não apareça (destaque, na citação, feito por mim):
Em ambos os textos aparece a visão de língua como elemento de comunhão das ex-
colônias de Portugal e a suposição de “elos culturais” que unem as nações que “comungam” a
língua portuguesa. Entretanto, se, por um lado, por meio da literatura em língua portuguesa é
possível que se faça uma revisão crítica do papel das ex-colônias de Portugal no mundo, só
ela também não é suficiente para a constituição de elos que façam com que os falantes de
português dos diferentes países se sintam pertencentes a uma mesma comunidade. Essa
perspectiva confirma a visão apresentada no início deste capítulo no que tange a uma
construção idealizada de língua construída historicamente. A descrição também faz lembrar a
visão místico-religiosa forjada pelo ideologema do Quinto Império (FARACO, 2016). De
acordo com essa ideia, Portugal teria sido o escolhido de Deus para “cumprir a missão de
salvação e unificação da humanidade” (FARACO, 2016, p. 276) e a língua portuguesa seria o
meio pelo qual esta missão se concretizaria. O país, seria, portanto, maior que suas fronteiras,
formado por uma comunidade supranacional. A essa ideia, juntou-se, posteriormente, outra, a
de um grande complexo cultural unido pela língua portuguesa. Todos esses pensamentos
foram pontos de partida para o que depois seria conceituado como lusofonia. Dessa forma,
94
ainda que o currículo proponha uma perspectiva de ensino de literatura crítico, descolonizado,
o discurso presente nele se baseia, justamente, na visão colonial que ajudou a idealizar uma
lusofonia que nunca existiu.
Marcos Bagno (2020), com relação a este discurso sobre a lusofonia e aos projetos que
se formam com base nele, afirma, de maneira coerente, que toda a carga ideológica
colonialista por trás do termo acaba impedindo que se construam projetos realmente
democráticos e diversos em seu nome.
Portanto, ainda que a universidade apresente como grande tema a integração lusófona,
o que se vê no currículo dos cursos de letras é que as reflexões sobre o que é, ou qual
lusofonia não se aprofundam. Entretanto, é importante ressaltar que o que se vê no currículo
proposto não necessariamente será visto no currículo colocado em prática pelos docentes. Por
isso, não se pode afirmar como esse tema é, de fato, abordado. Nesse sentido, o que as
95
análises até o momento nos fazem compreender é que, assim como pensam a maioria dos
alunos, a lusofonia na Unilab se apresenta, basicamente, como o “espaço geográfico de uso da
língua portuguesa oficial”.
Portanto, podemos entender que, para a Unilab, a ideia de lusofonia coincide com a
definição de Faraco (2016, p. 318) quando a apresenta como “o nome de certos projetos
estratégicos de geopolítica que tomam a língua (teoricamente compartilhada) como sua
justificativa de base”. Entre essas justificativas, encontramos reproduções de visões
idealizadas tanto do português quanto da lusofonia. A ênfase na internacionalização da
universidade e do português e a visão dessa língua como um bem de consumo maquiam uma
realidade que é a de que o que se tem, de fato, é uma política de promoção da variedade
brasileira do português. Ao tratar a língua como uma só (o português), não se dá a devida
importância a suas variedades não hegemônicas e reforça-se a ideologia do monolinguismo na
qual se busca uma homogeneidade linguística.
Essa visão de língua coincide com o conceito de língua como hipóstase, explicado por
Marcos Bagno (2020, p. 268). De acordo com o professor, a hipóstase se refere a que se
confira uma existência concreta a uma realidade abstrata. Portanto,
Ao longo dos documentos, diversos projetos neste sentido são apresentados, desde o
incentivo à manutenção dos estudantes através de bolsas, o núcleo de formação comum no
currículo de todos os estudantes da graduação, cuja temática versa sobre essas questões, até a
insistência na composição da comunidade acadêmica com metade de seus membros oriundos
dos países parceiros, além de componentes curriculares sobre história e literatura africana nos
cursos de Letras. Todas estas políticas afirmativas reforçam a relevância da proposta da
97
instituição para o país, visto que a superação do racismo precisa ser a base para a
transformação de todas as outras pautas da sociedade.
Sobre os locais onde estão os campi da instituição, o PDI de 2016 afirma que “as
escolhas de Redenção e São Francisco do Conde como sedes de campi, além de sinalizarem
para o desenvolvimento regional, valorizam símbolos que indicam claramente para
compromissos acadêmicos e institucionais da UNILAB com a população brasileira
afrodescendente” (UNILAB, 2016, p. 9).
Ainda sobre essas regiões escolhidas, os Projetos Pedagógicos curriculares dos cursos
de Letras também apresentam justificativas. No PPC do Curso de Letras de São Francisco do
Conde, há a seguinte explicação:
Eu fiquei lá muito pouco tempo, talvez eu tenha ficado 1 ano e meio ou dois.
E nós fomos para lá para construir as pró-reitorias, né. E aí, imagina isso,
houve um tempo pra construção dessa pró-reitoria em si e, em paralelo, o
cuidado e a atenção com as bolsas, né, e os auxílios que esses estudantes
precisavam receber. A situação de legalização dos estudantes internacionais
no Brasil, tudo isso era uma burocracia enorme, e também a recepção e
alocação desses meninos e meninas, porque a maioria deles chegava sem ter
onde ficar e a instituição, naquele momento, ainda não tinha alojamento. E
aí, nós tínhamos que fazer parcerias com a Universidade Estadual do Ceará,
com igrejas, com locais que cedessem espaço, pelo menos, para, nos dois
primeiros meses, esses meninos e meninas poderem estar alocados até que
eles pudessem receber os auxílios provenientes do governo federal e alugar
os seus espaços.
Para além disso, havia uma série de dificuldades, né? Para você ter uma
ideia, a dificuldade com alimentação, porque qualquer pessoa, quando sai do
seu país, chega uma hora que tem saudade da comida, porque comida
também é cultura. E aí, nós criamos projetos em que a cada semana um país
era homenageado, aí tinha o prato desse país. O restaurante contava com a
ajuda de meninos e meninas para fazer o prato… e tinham as questões
culturais, as manifestações, as performances… nós tínhamos as festas da
África, tínhamos uma pró-reitoria de extensão que era fantástica, com Ana
Lúcia Silva Souza que fazia atividades incríveis para o melhor acolhimento
desses meninos e meninas.
Havia outras questões também que estavam ligadas à perspectiva desses
estudantes e dessas estudantes, aos anseios deles, né? Porque a Universidade
era em Redenção, interior do Ceará. Redenção, não sei como tá hoje, mas
Redenção era uma cidade muito pobre, havia, até mesmo esgoto a céu
aberto, o acesso a internet era péssimo, tv só por satélite, um índice de
pobreza muito acentuado. E a maioria deles chegava aqui em busca do Brasil
do Manoel Carlos, entendeu? Queriam encontrar uma Leblon em todos os
lugares. E muitos deles se chocavam quando chegavam a Redenção, e alguns
deprimiam tremendamente, e alguns falavam que vieram pra um lugar muito
mais pobre do que os lugares em que eles residiam, isso os que eram de
lugares pobres, porque alguns eram de classe média, alguns eram de classe
alta e havia até alunos oriundos da nobreza dos seus países. Isso aí era uma
dificuldade enorme, era um grande entrave, e pros estudantes que eram
muito pobres, eles tinham um problema maior ainda que era a questão
financeira, porque em função da chegada da universidade, os valores dos
aluguéis foram exacerbados, eram muito caros para aquela realidade e havia
todo esse tipo de dificuldade.30
do Conde (BA) como locais para receber os campi da instituição, levou-se em conta a questão
histórica, relacionada ao contexto racial das duas regiões. Também aparece, nos documentos,
o compromisso com projetos de extensão que contribuam com o desenvolvimento dessas
cidades. Entretanto, quando a Unilab se tornou realidade, foi preciso pensar em questões
básicas como as apontadas no depoimento: a cidade de Redenção não tinha estrutura para
receber os estudantes, os imóveis disponíveis aumentaram seus valores devido ao aumento da
procura e os alunos não faziam ideia da realidade que encontrariam naquela região. Tudo isso
não deve ser considerado um ponto negativo, afinal, a chegada da instituição, ao mesmo
tempo em que gera estas problemáticas, permite a reflexão para que se encontre uma solução
para elas.
O relato também mostra que, além das questões burocráticas para efetivação da
manutenção desses estudantes na cidade e, consequentemente, na universidade, uma questão
importantíssima apareceu: a mitificação do Brasil. O choque de realidade apresentado no
relato é a comprovação de que a imagem do país que chega aos países do continente africano
não representa a totalidade da nossa realidade. Tal fato gerou o conflito entre a expectativa
dos alunos por um Brasil representado pelo Rio de Janeiro e a realidade de uma cidade do
interior do Ceará, como é o caso de Redenção. Importante ressaltar que, aqui, a crítica não se
direciona à escolha da cidade de Redenção, visto que ela coaduna com a proposta de
interiorização das universidades brasileiras e permite o acesso dessa população ao ensino
superior, que é também seu direito. O que criticamos é a imagem de Brasil que é levada ao
exterior (não pela instituição, mas pela mídia, governo, etc.). Tal imagem gera expectativas
que depois precisam ser trabalhadas por esses estrangeiros que desconhecem os contrastes que
compõem o país.
Primeiro, eu percebi que, assim… houve todo um projeto para que a Unilab,
ela viesse para o município. Mas, a população local, ela não percebeu, assim,
nos detalhes, a implantação dos cursos, a chegada dos estudantes, e, de certa
forma isso causou, na minha visão, um impacto muito grande, né? Então, a
população, em algumas situações, começava a ver o estudante negro dos
páises de língua portuguesa como se fosse mais um elemento dificultador
das relações políticas locais, né. Um exemplo: as pessoas acham que muitas
pessoas que vem de outro lugar, vem tirar o que elas têm. E neste conjunto, o
estudante da Unilab, ele foi vitimado por essa questão. Por exemplo, eu
100
O depoimento deste professor, que atua em São Francisco do Conde, na Bahia, revela
o racismo sofrido pelos estudantes estrangeiros, sobretudo, quando afirma que algumas
pessoas diziam que se o grupo de estrangeiros fosse da Europa, a situação seria diferente.
Percebemos, diante do contexto apresentado, como as questões raciais ainda são basilares nas
relações sociais no Brasil e não estão nem perto de se resolver, tampouco foram pensadas com
a profundidade necessária pelos propositores das políticas de implantação da instituição.
Além disso, o relato nos faz refletir que não basta escolher uma cidade cuja população
afrodescendente é de 90% para sediar um dos campi da universidade sem pensar em um
processo de conscientização dos cidadãos da região com relação a seu lugar como pessoa
negra nesta sociedade e às mudanças que a presença de uma universidade com esta proposta
na região poderiam proporcionar a suas vidas. Nesse sentido, os trabalhos de extensão da
Unilab se tornam imprescindíveis para que se alcance o objetivo de diminuição das
desigualdades sociais e raciais proposto em suas diretrizes, já que, através deles, é possível
alcançar a população da região e fazer, com ela, este processo de educação para as temáticas
étnico-raciais. Vejamos a fala de dois estudantes de São Francisco do Conde que reforçam
essas conclusões:
Saí de Angola e vim pra cá sem saber direito onde eu iria, porque eu já tinha
conhecimento sobre o Brasil, mas não sabia quase muita coisa sobre São
Francisco do Conde. Aí, com a minha chegada, teve aquele impacto, né?
Tanto por minha parte, como uma estudante africana, como por parte da
31
Acesso ao vídeo com este depoimento está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=REPgS8ep0RA&t=136s. Acesso em: 30 nov. 2020.
101
O processo de integração, como muitos pensam, acham que é uma coisa que
acontece de uma hora pra outra, mas é um processo em construção. E já se
vê esta aproximação entre a galera, já tem aqui uma integração, eu sou
exemplo dessa integração. Eu falo bem com todo mundo, trato todo mundo
da mesma forma. Dentro da Unilab e lá fora, inclusive tenho um projeto de
extensão que eu participo, que é “Cunho preto”, hip-hop como meio de
integração faculdade-comunidade, um projeto que tenta fazer uma integração
além dessa que é promovida dentro do nosso campus... levar a ideologia da
Unilab por fora.33
32
Acesso ao depoimento disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=REPgS8ep0RA&t=136s. Acesso
em: 30 nov. 2020.
33
Link de acesso ao depoimento: https://www.youtube.com/watch?v=REPgS8ep0RA&t=136s. Acesso em: 30
nov. 2020.
34
Link de acesso ao vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=FSbuwg_1fPc&t=99s. Acesso em: 30 nov. 2020.
102
responde: “Porque eu sou guineense. Nos meus documentos tá lá guineense, não está lá
africano”.
A questão da mitificação do nosso país e do próprio racismo fica bastante nítida nas
falas narradas e nas situações apresentadas. Sobre como eram tratados os casos de racismo
pela gestão, temos o seguinte relato:
Enquanto eu estive lá, isso aí era uma das nossas grandes preocupações, e
como pró-reitor de políticas afirmativas e estudantis, nós tratávamos disso
nas reuniões que nós fazíamos com eles, nas palestras, e meu gabinete tava
sempre aberto pra recebê-los e recebê-las, e ouvir e orientar a respeito dos
casos que eles traziam. No entanto, muitos dos meninos e das meninas, pelo
fato de não conviver com o racismo da forma como ele se manifesta no
Brasil em seus países, muitas vezes não identificavam que estavam sendo
vítimas de racismo. Então, naquele momento, as nossas queixas não eram…
eram muito poucas, e todas as vezes que elas surgiam, nós tentávamos estar
ao lado dos alunos, ver o que, de fato, tinha acontecido e tentar, de alguma
forma solucionar os problemas.35
Aqui, o professor traz uma informação importante que é o fato de que o racismo se
manifesta de maneira muito diferente no Brasil e nos países da África. Entretanto, relatar
poucas queixas com relação ao tema também pode estar ligado a situações de racismo que não
são compartilhadas com professores ou gestores por diversos motivos, sendo um deles, o fato
de que costumamos falar sobre essas situações com pessoas com as quais temos mais
confiança. No depoimento de um aluno, que será apresentado mais adiante, esta situação fica
mais explícita. De todas as formas, certamente, a presença de pessoas negras em cargos como
este (pró-reitor de políticas afirmativas e estudantis) possibilita uma maior abertura dos
discentes para discussão das questões raciais.
35
Continuação do relato cedido pelo profissional por Whatsapp.
103
Na fala a seguir, apresentamos uma reflexão sobre como vivenciar o que é o racismo,
de fato, no Brasil, representou para um estudante:
O forte relato do estudante traz várias questões passíveis de reflexão. Mais uma vez, o
Brasil mítico é descortinado pela realidade que não chega ao exterior. O mito da democracia
racial é colocado à prova quando o estudante revela sua surpresa pela situação da população
negra no Brasil, já que a imagem vendida de país onde negros e brancos convivem em
haromina é destuída. Sobre esse mito, Nilma Lino Gomes, em entrevista a Glenda Valim de
Melo, explica que:
Esta falsa harmonia, apontada pela pesquisadora, se dá, também, pela aparente
cordialidade com que vivem brancos e não brancos no país. Entretanto, essa cordialidade
serve para legitimar um estado de coisas onde os lugares sociais são bem demarcados:
Meu amigo, essa questão da integração é muito complexo pra eu que já sou
antigo aqui, eu tenho uma visão muito ampla sobre essa questão da
integração. Olha, a integração acontece, ela acontece porque estamos aqui,
você é guineense, sou caboverdiano, tem brasileiro, a gente, por mais que
não tenha essa harmonia, esse amor sincero entre a gente aqui, mas acontece.
Convivemos aqui, tamos dividindo o mesmo espaço, né? Agora, teríamos
que avaliar essa integração, sabe? Porque a própria universidade, ele propõe
algo, ele não... ele não constrói mecanismos para regular isso, sabe? Por que
eu falo isso? Vejamos, a própria universidade, ele estabelece como um
105
entidade que luta contra o racismo, luta contra toda forma de discriminação
racial. Mas, no entanto, a universidade não tem critério para avaliar quem
são os racistas que vão entrar aqui. Você tem vários professores, técnicos
que entram aqui que são racistas. A universidade não consegue avaliar,
identificar essas pessoas. Por isso eu disse, é complicado porque eu penso
que a universidade aqui, nesses parâmetros que temos, nas condições
humanas que vivemos e sabemos, eu acho que tem que ter setores pra
identificar quem são as pessoas que vão entrar aqui, né? Não fazer seleção
para colocar funcionários aqui, essa seleção tradicional, temos que ter análise
de currículo pra ver o que a pessoa tem pra tá aqui, porque uma pessoa que
não conhece as questões raciais, ele não é culpado, ele não convive com isso,
ele chega aqui, simplesmente vem aqui pra trabalhar pra ganhar o seu
dinheiro, mas eu acho que o propósito é mais porque aqui envolve
dimensões humanas, envolve pessoas, seres humanos com seu sentimento,
com seu eu, então, eu acho que isso deve ser regulado, deve ser controlado
pela instituição. Agora, a instituição tem que ter a responsabilidade de fazer
o seguinte: de ter pessoas aqui capaz de promover isso porque se as pessoas
não têm a capacidade de promover a integração, acontece o que nós temos,
os professores chegam aqui, dão aula e vão pra Fortaleza. Os alunos ficam
aqui, quem tem mais condição sai, então fica uma coisa muito frustrante,
uma integração desarmônica, então eu acho que a universidade tem um papel
importante para produzir isso, que é avaliar quem são as pessoas que vão
entrar aqui dentro e como eles vão entrar. Será que eles têm condições de tá
aqui dentro? Será que eles entendem o projeto? Será que eles têm afinidade
com o projeto? Ou, caso contrário, será que temos que formar eles aqui
dentro para eles entenderem o que isso significa? Isso são questões que
temos que levantar para essa integração, mas… no entanto existe integração.
Existe, a universidade já provou coisas bacanas aqui, já demos respostas
necessárias para essa comunidade, não só para o Brasil, a nível de produção
de conhecimento, a nível de produção de cultura, a universidade tá
muito, muito avançada. Eu penso que este projeto é muito audacioso, pode
ser um dos melhores do mundo. Se levarem em conta essas dimensões para
regular quem vai projetar, quem vai discutir este projeto com seriedade, eu
acho que vamos construir uma universidade que o mundo vai conhecer, tá
certo? Esta é minha visão.37
Nesse trecho, o aluno mostra sua visão sobre a integração e a define como uma
“integração desarmônica” por todos os problemas explicados de maneira detalhada por ele. O
estudante levanta questões importantes sobre o racismo dos próprios professores e demonstra
como se sente separado (e não integrado) dos docentes que não entendem o que é o projeto da
Unilab, a que se propõe a instituição. Casos de racismo em universidade não são incomuns no
Brasil e não seria diferente na Unilab, a não ser que, como sugere o discente, houvesse uma
política pensada para os docentes no sentido de compreender a proposta e o público-alvo da
instituição.
37
Link de acesso ao depoimento disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iCyiKeTQtJg&t=394s.
Acesso em: 30 nov. 2020.
106
No trecho acima, explicita-se como a ambientação dos discentes precisava ser feita
unindo língua/linguagem à cultura, ao social, à religiosidade, à sexualidade e, certamente, à
raça. A proposta do seminário SAMBA foi uma relevante alternativa para diminuir os
desencontros causados por tamanha diferença de visões de mundo que se encontravam no
espaço da Unilab.
Por fim, o estudante aborda uma questão muito relevante sobre a Unilab ser uma
universidade Afro, porém gerida por, majoritariamente, pessoas brancas. Sua fala é relevante
porque, mais uma vez, traz o conceito de agência (apresentando no capítulo sobre a
perspectiva epistemológica afrocentrada) para o centro do debate, já que trata da tomada de
consciência da população negra sobre sua condição:
O discente traz, nesse trecho, uma informação dada pelos outros alunos e também
pelos professores: o fato de que as cidades onde se instalaram os campi não estavam
preparadas para receber a universidade. Ele mesmo apresenta uma possível solução: a parceria
com a prefeitura para a realização dessa aproximação entre a população da cidade e a
universidade.
Os relatos trazidos ao longo desta análise não representam todas as opiniões da Unilab
e tampouco são em número suficiente para que se façam generalizações. Entretanto, sua
importância está no fato de que apresentam falas que dialogam entre si e que trazem,
basicamente, as mesmas problemáticas. Unindo essas falas aos documentos analisados,
podemos ter uma noção de como as questões raciais e linguísticas se configuram na
instituição.
Dessa forma, entendemos que como a Unilab não está fora do todo que é o Brasil, ela
reflete as contradições da sociedade brasileira, tais como o racismo estrutural. Portanto, ainda
que a instituição esteja à frente de muitas outras com relação a políticas afirmativas, ainda
existem desafios a serem superados para que ela seja uma universidade afro-brasileira de fato.
39
Link de acesso ao depoimento disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iCyiKeTQtJg&t=394s.
Acesso em: 30 nov. 2020.
109
CONSIDERAÇÕES FINAIS
situações de racismo cometido por alunos, por professores e pela sociedade da região onde os
campi se encontram.
Com relação às políticas linguísticas para a língua portuguesa, percebemos que elas só
começaram a ser pensadas quando a universidade já estava em funcionamento, o que se
confirma nesta fala de um dos membros da comunidade acadêmica:
O português comum a todos os países membros, como se pode perceber por meio da
fala acima, é a variedade escrita da língua. Ademais, devido ao fato de que os países
considerados lusófonos da África seguem o padrão do português europeu, os discentes, ao
realizarem os exames de proficiência em seus países, foram avaliados de acordo com esse
padrão. Ao chegarem à universidade, portanto, se depararam com o fato de ter que aprender
uma nova língua: a variedade brasileira do português ou o chamado português brasileiro.
Diante dessa situação é que começaram a se pensar em medidas para resolver a questão da
comunicação, como fica nítido no trecho: “nós estávamos já em via de negociação para o
contrato de uma professora especialista em ensino de língua portuguesa como segunda língua
para ela nos orientar, nos apontar saídas e conversar com os professores, ministrar cursos,
ministrar palestras”.
língua não são suficientes para comprovar seu papel de destaque no mundo globalizado de
hoje.
Isso se comprova, pois com exceção de Portugal e Brasil, onde a língua portuguesa é
hegemônica, todos os países membros da parceria proposta pela Unilab têm uma realidade
sociolinguística muito complexa. E mais do que a língua portuguesa como oficial, o que une
tais países é o fato de que o português, nessas nações, é a língua minoritária. Portanto,
[...] como pensar em “lusofonia”, por exemplo, em São Tomé e Príncipe que,
na época da independência, há pouco mais de quarenta anos, contava com
95% de pessoas analfabetas e cujos falares próprios vêm sofrendo
estigmatização desde sempre? Ou em Moçambique, em que o índice de
alfabetismo total é de apenas 47%? Ou no Brasil, com sua taxa de
analfabetismo funcional estabilizada há mais de dez anos em 3/10 da
população? (BAGNO, 2020, p. 263)
Além disso, o Português europeu continua sendo visto como o modelo por todos esses
países, o que faz com que não só a variedade brasileira, aprendida pelos alunos da Unilab,
mas também as variedades africanas do português continuem sendo desvalorizadas.
condições particulares onde essa língua é falada, o Português Europeu segue sendo
hegemônico, sobretudo para os PALOP, e o português brasileiro disputa esta hegemonia.
Portanto, uma lusofonia que ignora as variedades existentes nos países africanos de língua
oficial portuguesa acaba sendo uma versão neocolonial da ideologia que via nesta fonia, uma
união entre seus povos.
114
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2020.
120
ANEXOS
Art. 2o A Unilab terá como objetivo ministrar ensino superior, desenvolver pesquisas nas
diversas áreas de conhecimento e promover a extensão universitária, tendo como missão
institucional específica formar recursos humanos para contribuir com a integração entre o
Brasil e os demais países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP,
especialmente os países africanos, bem como promover o desenvolvimento regional e o
intercâmbio cultural, científico e educacional.
Art. 4o O patrimônio da Unilab será constituído pelos bens e direitos que ela venha a adquirir
e por aqueles que venham a ser doados pela União, Estados e Municípios e por outras
entidades públicas e particulares.
Art. 5o Fica o Poder Executivo autorizado a transferir para a Unilab bens móveis e imóveis
necessários ao seu funcionamento, integrantes do patrimônio da União, bem como a transpor,
remanejar, transferir total ou parcialmente, dotações orçamentárias aprovadas na lei
orçamentária de 2010 e em créditos adicionais da Universidade Federal do Ceará - UFCE,
mantida a estrutura programática, expressa por categoria de programação, conforme definida
no § 1o do art. 5o da Lei no 12.017, de 12 de agosto de 2009, inclusive os títulos, descritores,
metas e objetivos, assim como o respectivo detalhamento por esfera orçamentária, grupos de
natureza de despesa, fontes de recursos, modalidades de aplicação e identificadores de uso e
de resultado primário.
II - auxílios e subvenções que lhe venham a ser concedidos por quaisquer entidades públicas
ou particulares;
Art. 7o Ficam criados, no âmbito do Poder Executivo Federal, os seguintes cargos, para
compor a estrutura regimental da Unilab:
Art. 8o O ingresso nos cargos do Quadro de Pessoal efetivo da Unilab dar-se-á por meio de
concurso público de provas ou de provas e títulos.
Art. 9o Ficam criados, no âmbito do Poder Executivo Federal, 37 (trinta e sete) Cargos de
Direção - CD e 130 (cento e trinta) Funções Gratificadas - FG, necessários para compor a
estrutura regimental da Unilab, sendo:
Art. 10. O provimento dos cargos efetivos e em comissão criados por esta Lei fica
condicionado à comprovação da existência de prévia dotação orçamentária suficiente para
atender às projeções de despesa de pessoal a aos acréscimos dela decorrentes, conforme
disposto no § 1o do art. 169 da Constituição Federal.
Art. 11. A administração superior da Unilab será exercida pelo Reitor e pelo Conselho
Universitário, no âmbito de suas respectivas competências, a serem definidas no estatuto e no
regimento interno.
Art. 12. Os cargos de Reitor e de Vice-Reitor serão providos pro tempore por ato do Ministro
de Estado da Educação até que a Unilab seja implantada na forma de seu estatuto.
Art. 13. Com a finalidade de cumprir sua missão institucional específica de formar recursos
humanos aptos a contribuir para a integração dos países membros da CPLP, especialmente os
países africanos, para o desenvolvimento regional e para o intercâmbio cultural, científico e
educacional com os países envolvidos, observar-se-á o seguinte:
I - o quadro de professores da Unilab será formado mediante seleção aberta aos diversos
países envolvidos, e o processo seletivo versará sobre temas e abordagens que garantam
concorrência em igualdade de condições entre todos os candidatos de forma a estimular a
diversidade do corpo docente;
III - os processos de seleção de docentes serão conduzidos por banca com composição
internacional, representativa dos países membros da CPLP;
125
IV - a seleção dos alunos será aberta a candidatos dos diversos países envolvidos, e o processo
seletivo versará sobre temas e abordagens que garantam concorrência em igualdade de
condições entre todos os candidatos; e
Administrador 9
Arquiteto e Urbanista 2
Arquivista 2
Assistente Social 2
Auditor 1
Bibliotecário - Documentalista 4
Biólogo 2
Biomédico 2
Contador 4
Economista 2
Engenheiro/Área 4
127
Jornalista 4
Médico/Área 2
Nutricionista/Habilitação 2
Pedagogo/Área 2
Psicólogo/Área 2
Relações Públicas 3
Secretário Executivo 9
Tradutor e Intérprete 4
TOTAL
69
QUANTIDADE
CARGOS DE NÍVEL INTERMEDIÁRIO (NI)
128
Técnico em Contabilidade 4
Técnico de Laboratório/Área 30
TOTAL 139
129