Você está na página 1de 152




 
  
Dayenny Neves Miranda
Ximena Antonia Díaz Merino
organizadoras
LITERATURA, DECOLONIALIDADE
E PATRIMÔNIO CULTURAL NA
AMÉRICA LATINA

Dayenny Neves Miranda


Ximena Antonia Díaz Merino
organizadoras

2021
Comitê Científico e Conselho Editorial desta edição

Dra. Dayenny Neves Miranda (IFRJ) - Presidente


Dra. Ximena Antonia Díaz Merino (UFRRJ) - Vice-presidente
Dra. Jessica Suzano Luzes (UFRJ)
Me. Jonas Defante Terra (IFF)
Dra. Raquel Alvitos Pereira (UFRRJ)
Dr. Ronaldo Guimarães Vicente Filho (UENF)
Dra. Shirley de Souza Gomes Carreira (UERJ)
Dayenny Neves Miranda
Ximena Antonia Díaz Merino
Organizadoras

Literatura, Decolonialidade e Patrimônio Cultural


na América Latina

Alejandro Marcelo Médici

Anderson Albérico Ferreira

Aryelle Christiane Souza da Silva

Dayenny Neves Miranda

Lucia Carolina Colombato

Renata Ferreira Alves

Santiago Cabrera Hanna

Shirlene dos Santos Silva

Walquíria Rodrigues Pereira

Ximena Antonia Díaz Merino

Yasmin Justo da Silva

2021
Copyright ©2021 by Organizadoras:
Dayenny Neves Miranda
Ximena Antonia Díaz Merino
editorameusritmos@gmail.com

Todos os direitos reservados.


Proibida a reprodução desta obra, em seu todo ou em parte, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos
autores.

Projeto editorial / Diagramação – Meus Ritmos Editora


Capa – Anderson Albérico Ferreira

Ficha catalográfica:
Catalogação na fonte (CIP) Brasil

M672l Miranda, Dayenny Neves; Merino, Ximena Antonia Díaz.

Literatura, Decolonialidade e Patrimônio Cultural na


América latina / Organizadoras: Dayenny Neves
Miranda; Ximena Antonia Díaz Merino – Divinópolis,
MG : Meus Ritmos Editora, 2021.
150 p.; 21 cm.

ISBN: 978-65-00-19839-3

1. Patrimônio Cultural 2. América Latina 3. Literatura


Hispanoamericana I. Miranda, Dayenny Neves; Díaz Merino,
Ximena Antonia.

CDD 363.69

Meus Ritmos Editora & Produções Artísticas MEI.


Rua Cabo Mauricio Dos Santos, 42 – Anchieta
Divinópolis – MG – CEP 35502-825

Contato:
editorameusritmos@gmail.com
www.facebook.com/editorameusritmos
Instagram: @MeusRitmosEditora
(21) 9 8441-1642
Sumário

Apresentação

Dayenny Neves Miranda


Ximena Antonia Díaz Merino...................................................................................................................6

PRIMEIRA PARTE
Literatura, Decolonialidade e Patrimônio Cultural
CAPITULO 1
“Una Mirada” na poesisa de Raúl González Tuñón pelo viés do patrimônio e da decolonialidade

Dayenny Neves Miranda......................................................................................................................... 13

CAPITULO 2
Del ocultamiento al hallazgo de Coatlicue y de la piedra del sol

Ximena Antonia Díaz Merino...................................................................................................................25

CAPITULO 3
A presença de Malinche no lienzo de tlaxcala sob a ótica do patrimônio cultural histórico nacional

Walquíria Rodrigues Pereira...................................................................................................................37

CAPITULO 4
A “desobediência epistêmica” de Asalto al paraíso e suas contribuições

Renata Ferreira Alves............................................................................................................................... 51

CAPITULO 5
Patrimônio cultural e transculturação em Los ríos profundos

Shirlene dos Santos Silva.......................................................................................................................... 63

CAPITULO 6
A literatura como ponte para o turismo na cidade de Lima: uma análise de La ciudad y los perros de
Mario Vargas Llosa

Yasmin Justo da Silva...............................................................................................................................73

SEGUNDA PARTE
Decolonialidade, políticas e gestão do patrimônio cultural

CAPITULO 7

El derecho humano a los patrimonios culturales en clave decolonial

Lucia Carolina Colombato


Alejandro Marcelo Médici....................................................................................................................... 85

CAPITULO 8

Diversidade Cultural e seus reflexos na dimensão patrimonial


Anderson Albérico Ferreira....................................................................................................................105

CAPITULO 9

Péndulos. Políticas culturales y patrimonio en Ecuador


Santiago Cabrera Hanna........................................................................................................................117

CAPITULO 10
Identidade, memória, cidade e suas ressonâncias patrimoniais: um estudo de caso de Nilópolis - RJ
Aryelle Christiane Souza da Silva...........................................................................................................133
Apresentação

As temáticas relacionadas ao patrimônio cultural têm sido destaque nas pautas


contemporâneas, especificamente naquelas que giram em torno das políticas públicas de
diversidade e direitos culturais. Desde a década de 1970, no Brasil, uma série de debates
foram desenvolvidos acerca das dimensões e características do patrimônio histórico e
cultural, suscitando no desenvolvimento de novos paradigmas, marcos regulatórios,
modelos de gestão e metodologias de preservação do patrimônio. Fator que veio a reafirmar
sua multidimensionalidade e transversalidade. A partir desse movimento percebe-se que
a ideia de patrimônio enquanto bens materiais de excepcional valor histórico é alargada,
aumentando o espectro daquilo que pode ser considerado como um bem de um determinado
grupo social.
A partir dessa perspectiva, dirigida pela lógica dos direitos culturais, entende-
se que a preservação de bens culturais cultural não é importante somente por sua
configuração urbanística num determinado espaço ou sua representatividade estética,
mas especificamente por sua significação simbólica como herança histórica e identitária de
determinado grupo, que por sua vez funciona, também, como um dos principais artífices e
pontos de referência no processo de pertencimento e reconhecimento da população ao seu
local de origem.
Logo, ao se pesquisar sobre o patrimônio cultural, se referenciam além dos icônicos
“de pedra e cal”, os chamados patrimônios imateriais/intangíveis, que são entendidos,
conforme palavras da socióloga e antropóloga Mariza Veloso (2004, p.31): “como o
repertório das expressões culturais de um grupo social, aqui incluídos os seus acervos
históricos, em permanente e inexorável dinâmica, [...]”. Desta forma, percebe-se o quanto
esses estudos são importantes na medida em que revelam a identidade de um povo, um
grupo, não só majoritários, mas, sobretudo os invisibilizados, que muitas vezes não são
considerados como portadores de bens de passível reconhecimento, mas que seus costumes,
hábitos, tradições, enfim suas expressões culturais também se configuram como marcas
identitárias importantes para a noção de pertencimento e de reconhecimento de uma
nação. Muitas destas expressões foram ocultadas, durante um período, pela hegemonia do
“discurso do soberano”, mas que ao passo do tempo romperam o silêncio e hoje, cobram
seu lugar como bens culturais legitimados, tendo nos estudos decoloniais uma possibilidade
tanto de ampliação do entendimento do que é patrimônio cultural como de subsidio para a
reflexão sobre os processos de patrimonialização. 
Os Estudos Decoloniais na América Latina são o resultado de um processo de análises
críticas que busca romper com a imposição colonial das metrópoles europeias. Com

7
foco nas consequências da colonialidade e do sistema mundo moderno, os intelectuais
debruçados sobre a vertente decolonial vêm articulando projetos de resistência com
o propósito de desprender-se das amarras hegemônicas instauradas pelos europeus
desde finais do século XV. Walter Mignolo (2003, p. 39) defende a ideia de que o mundo
Moderno/Colonial instaurou a “diferença” colonial que “[…] consiste en clasificar grupos de
gentes o poblaciones e identificarlos con sus faltas o excesos, lo cual marca su diferencia y
la inferioridad con respecto a quien clasifica”. Cabe destacar que a perspectiva decolonial
denota um posicionamento transgressor de resistência que permite o desvelamento de
pensamentos originados em “lugares-outros” e da permanência de construções culturais
de genealogias “racionais-outras” diferentes das geradas pelo pensamento dominante da
Modernidade/Colonialidade. O conceito de colonialidade, entendido como a perpetuação
e permanência do colonialismo, detém em si próprio a diferença colonial. De acordo com
Dussel (1994, p.8) o ano de “1492 será el momento del ‘nacimiento’ de la Modernidad
como concepto, el momento concreto del ‘origen’ de un ‘mito’ de violencia sacrificial muy
particular, y al mismo tiempo, un proceso de ‘encubrimiento’ de lo no-europeo”. Optar pela
perspectiva decolonial implica aderir a “un proceso de des-prendimiento de todos esos
imperativos consecuentes del proyecto eurocentrado” (PALERMO, 2014, p. 9). Portanto,
entendemos que refletir sobre as consequências da colonialidade e do sistema mundo
moderno possibilita diálogos para a convivência da diversidade.
Dentro das perspectivas acima, a coletânea de estudos aqui apresentada reúne parte
das pesquisas divulgadas no Simpósio Temático intitulado O Pensamento Decolonial
e suas ressonâncias nos bens materiais e imateriais da América Latina
coordenado pelas professoras Dayenny Neves Miranda e Ximena Antonia Díaz Merino no
XI Congresso Brasileiro de Hispanistas de 2020. O tema do Simpósio foi pensado a
partir dos pressupostos que embasam o Grupo de Pesquisa Cardilla/CNPq-Cartografias dos
processos decoloniais literários e linguísticos Latino-Americanos, juntamente com o grupo
Lila/CNPq–Laboratório Interdisciplinar Latino-Americano, cujos integrantes compartem
o interesse em pesquisar e divulgar estudos tanto a partir de diálogos possíveis entre a
perspectiva decolonial e as diversas áreas do saber como em promover a reflexão crítica
sobre o espaço Latino-Americano privilegiando abordagens inter e transdisciplinares.
É importante destacarmos que este projeto, também, é um desdobramento da pesquisa
intitulada “Identidade, memória, cidade e suas ressonâncias patrimoniais: um estudo de
caso de Nilópolis-RJ”, coordenada pela professora Dayenny Miranda e fomentada pela
Coordenação de Pesquisa do IFRJ/Nilópolis. Agradecemos a essa instituição por subsidiar
não só o projeto, mas a produção desta obra.
Em consonância com a proposta do Cardilla, os estudos que compõem este livro abordam
o pensamento decolonial e suas proximidades com o patrimônio cultural em diálogo com
diversas áreas do conhecimento, motivo pelo qual a coletânea foi dividida em duas partes.
A Primeira Parte se fixa numa perspectiva mais simbólica, na qual as artes se destacam. São
apresentados estudos críticos de poesia e romances latino-americanos, além da análise de
personagens simbólicos na construção da América e do desocultamento de peças de arte de
culturas originárias. Já a Segunda Parte da obra apresenta estudos críticos e analíticos sobre
os processos de regulação e patrimonialização desenvolvidos no contexto da América Latina,
tanto numa perspectiva local como nacional, em articulação com seus desdobramentos nas
esferas da política cultural, da diversidade cultural e dos direitos humanos.

8
A obra se inicia com o texto “Una mirada” na poesia de Rául González Tuñón
pelo viés do patrimônio e da decolonialidade. Dayenny Miranda analisa os referentes
empregados no discurso lírico deste poeta argentino e como aqueles representam a noção
de patrimônio cultural por retratarem símbolos já consagrados pelo patrimônio histórico,
mas também aborda a noção de patrimônio imaterial, pois alguns símbolos evocam outras
práticas simbólicas que são tão legítimas quantos aquelas categorizadas pelo poder público
e vai além ao pontuar as vozes marginalizadas dos grupos minoritários dentro da poesia
tuñoneana, como reveladoras das consequências da colonialidade/modernidade.
Logo, Ximena Díaz Merino em Patrimonio ancestral: raíz y esencia de
la cultura de un pueblo destaca que os critérios valorativos disseminados pelo
colonialismo e a colonialidade desmerecem e desqualificam as formas de pensar, viver e
criar das sociedades não europeias. As consequências da permanência desses critérios são
observadas pela pesquisadora a partir de três esculturas portadoras de mitos da cultura
asteca, obras que permaneceram sepultadas durante o período colonial. De esse estudo
merecem relevância as palavras de Zulma Palermo ao afirmar que as manifestações
artísticas devem ser observadas com uma “mirada decolonizante” de forma que sejam
valorizadas as “expresiones marginalizadas por su diferencia con el canon occidental y la
consecuente propuesta de museologías otras”(2019, p. 13).
O patrimônio histórico nacional de um país representa a construção do povo, sua
história e memória, daí estarem legitimados pelo poder público, mas estes também
carregam “as pegadas” invisibilizadas dos povos originários. Em A presença de Malinche
no Lienzo de Tlaxcala sob a ótica do patrimônio cultural histórico nacional, a
autora Walquíria Rodrigues Pereira apresenta a relação dessa mulher e sua representação
entre o colonizador e povos originários analisando as imagens do Lienzo de Tlaxcala pela
ótica do pensamento decolonial.
No texto A “desobediência epistêmica” de Asalto al paraíso e suas
contribuições, Renata Ferreira Alves assevera que no romance analisado se restitui o
passado mal representado pelas narrativas do poder que assombra o presente histórico da
Costa Rica. Alves enfatiza que ao longo de séculos a sociedade costa-ricense acreditou no
mito de que na época colonial no houve desigualdade, escravidão nem atos de resistência
indígena. A partir das análises desenvolvidas foram identificadas como estratégias de
resistência na estrutura narrativa de Asalto al paraíso a reescrita da história e a metaficção
que contribuem para a reflexão e problematização da “verdade histórica”, elucidando
uma desobediência epistêmica, conceito proposto por Walter Mignolo (2008), que vai na
contramão dos mitos e discursos oficializados pela epistemologia colonialista.
Patrimônio cultural e transculturação em Los Ríos profundos de Shirlene
dos Santos Silva, pesquisadora que destaca a presença de elementos da formação autóctone
andina na narrativa de José María Arguedas. O Muro Inca, o Sino María Angola e o Pião
Zumbayllu favorecem a manutenção da cultura e tradição andina, além disso, verifica-se
que o estudo aponta para uma reflexão do processo formador da América Latina.
Finalmente, Yasmin Justo da Silva em A literatura como ponte para o turismo na
cidade de Lima: uma análise de La ciudad y los perros de Mario Vargas Llosa
reflete, entre outros assuntos, sobre a importância da inserção da cidade e do patrimônio
histórico no texto literário. Destaca-se no estudo de Justo da Silva que o protagonismo
da cidade de Lima nos romances de Vargas Llosa tem estimulado o turismo no cenário

9
cultural contemporâneo. A narrativa criada por Vagas Llosa, na segunda metade do século
XX, compõe hoje o imaginário social peruano que resultou na criação de uma rota literária
dedicada ao autor.
Sob a perspectiva de reflexão sobre o espaço Latino-Americano, norteadora do LILA,
a segunda parte começa com o texto, dos pesquisadores argentinos Lucia Colombato e
Alejandro Médici, que aborda a relação entre patrimônio cultural e direitos humanos
no estudo intitulado El derecho humano a los patrimonios culturales en clave
decolonial. Colombato e Médici enfatizam a necessidade de uma ressignificação e
reapropriação dos patrimônios culturais a partir de uma dimensão pessoal, temporal e
territorial, posto que o patrimônio cultural deve ser construído socialmente “a partir de un
proceso de selección simbólica, emocional e intelectual de bienes y prácticas culturales,
que son continuamente resignificados, reapropiados y valorizados como referentes de
identidad y de pasado de una comunidad”, de forma que seja garantida a participação da
comunidade nas políticas de seleção e gestão patrimonial.
Anderson Albérico Ferreira, em Diversidade cultural e seus reflexos na
dimensão patrimonial, desenvolve uma reflexão que se centra em duas questões
chave: como e em que medida a diversidade cultural se estabeleceu como paradigma da
políticas patrimoniais brasileiras? Para isso, o autor revisita o processo de surgimento
do conceito de diversidade cultural, bem como seu estabelecimento como um direito
cultural. Em seguida, tece um quadro sobre as políticas patrimonias do Brasil aponrando
as principais iniciativas que se aproximaram de uma visão mais democrática e plural.
Em Péndulos. Políticas culturales y patrimonio en Ecuador, o pesquisador
e professor Santiago Cabrera Hanna ressalta a oscilação das diversas formas de se
compreender a cultura e o patrimônio dentro do Equador e afirma que as dificuldades
em torno do patrimônio cultural e suas recentes políticas podem ser percebidas através
de três dimensões, situadas nos extremos de um vai e vem pendular: constatação-
imaginação, monumento-acontecimento e elitismo-populismo. Estes binômios funcionam
como receptáculos de problemas mais amplos a exemplo das políticas sobre patrimônio
monumental e imaterial equatoriano.
Por fim, no texto Identidade, memória, cidade e suas ressonâncias
patrimoniais: um estudo de caso de Nilópolis-RJ, Aryelle Christiane Souza da Silva
discute a noção de patrimônio cultural apresentando um breve estudo sobre a construção
da cidade nilopolitana e as ações empregadas pelo município no âmbito das políticas
patrimoniais. Para esse fim, elenca algumas construções dessa cidade problematizando o
seu reconhecimento ou não como patrimônio, bem como sua conservação. Logo, apresenta
uma entrevista com Rafaelle Vieira, atual Assessora Técnica de Turismo na cidade de
Nilópolis, a fim de entender um pouco mais acerca da relação patrimonial empreendida
na cidade.

Boa Leitura!

Dayenny Neves Miranda


Ximena Díaz Merino

10
PRIMEIRA PARTE

Literatura, Decolonialidade e Patrimônio


Cultural
“Una Mirada” na poesisa de Raúl
González Tuñón pelo viés do patrimônio e
da decolonialidade
Dayenny Neves Miranda

Falar de poesia, principalmente no Brasil, sempre nos remete a algo muito difícil,
pois a maioria da população a considera rebuscada e erudita, fazendo com que haja uma
rejeição a este gênero que está presente no mundo desde a formação da humanidade. Por
tradição, esse gênero literário esteve vinculado a uma determinada camada da sociedade
considerada “intelectual” e, ainda hoje, os estudos envolvendo poesia geram polêmica e
divisões dentro da academia. Há quem reconheça esse gênero somente como aquele que
mantém vínculo com a forma, métrica e plasticidade que muito formou seus primórdios
e o caracterizou durante séculos; outros afirmam sua renovação e utilização como voz da
sociedade, como os poetas modernos. Contudo, ainda assim, o que existe como estigma
da poesia é a ideia de pertencimento a um grupo restrito da sociedade, com formação
erudita. Mas se estudamos a poesia, especificamente a do período da modernidade, ou
seja, início do século XX, percebemos o quanto ela abandona seus “clássicos pedestais” e é
usada como um instrumento libertador a fim de modificar e atuar na sociedade, sobretudo
hispano-americana. No intuito de investigar essa atuação da poesia como partícipe ativa
da cidade moderna, selecionei um escritor cujo trabalho poético esteve à margem de um
grande reconhecimento acadêmico, porém, tal fato não diminuiu a importância de seus
textos e sua contribuição para o enriquecimento do patrimônio cultural argentino e para
as vozes silenciadas dentro daquilo que chamamos mundo.
A poesia do escritor portenho Raúl González Tuñón passeia por diversas cidades
ao longo de toda sua trajetória artística. Essas cidades estão plasmadas em sua obra e,
talvez por isso criem textos tão ricos, repletos de diferenças entre si, os quais permitem ao
leitor mais atento, localizá-los não só em épocas específicas de sua produção literária, mas
também na história e memória das cidades modernas. Se por um dado momento sua obra
poética apresenta características de um mundo inconsciente e inconstante, em outros nos
inaugura um mundo real e concreto, exposto a todo tipo de adversidade e crueldade.
As imagens poéticas tuñoneanas exprimem realidade e fantasia amalgamadas por
meio da memória e do olhar perspicaz de um eu poético citadino. Diante de um mundo
em desenvolvimento, este sujeito poético se apropria das palavras para cantar todo seu
encanto e espanto por estas cidades que se apresentam perante seus olhos. Em Buenos
Aires, ele encontra em suas esquinas e ruas motivos para exaltá-la. Nas cidades espanholas,
ele se lamenta pela barbárie humana. Nas cidades do mundo, transita entre a alegria e a
indignação como um perfeito “caminhador comprometido” com o seu tempo.

13
A poética de González Tuñón “fala”, “grita” e contagia este universo literário com
o sensível olhar de um portenho, que por ser tão citadino transformou-se em sujeito do
mundo. Diante do caso exposto, o objetivo deste artigo é realizar uma breve análise através
da poética tuñonena, verificando a presença de referentes1 que formam o patrimônio
cultural de um determinado grupo social e a percepção do discurso decolonial dentro das
cidades modernas, por meio de alguns símbolos retratados em seus versos.
Nas últimas décadas muito tem se falado em patrimônio, principalmente sobre a noção
do que seria patrimônio e suas diversas tipificações, como por exemplo histórico, artístico,
cultural, ambiental. Segundo o professor José Reginaldo S. Gonçalves (2009, p. 25),
Patrimônio” está entre as palavras que usamos com mais frequência
no cotidiano. Falamos de patrimônios econômicos e financeiros, dos
patrimônios imobiliários; referimo-nos ao patrimônio econômico e
financeiro de uma empresa, de um país, de uma família, de um indivíduo;
usamos também a noção de patrimônios culturais, arquitetônicos,
históricos, artísticos, etnográficos, ecológicos, genéticos; sem falar nos
chamados patrimônios intangíveis.

Mas, quero me ater ao conceito de patrimônio, usado pela maioria dos estudiosos, que
o caracteriza como a riqueza e a identidade de um povo ou nação, que conta a “história
de um povo e sua relação com o [...] ambiente. O legado que herdamos do passado e que
transmitimos a gerações futuras”2, que seria a maior riqueza deixada por nossos ancestrais
por carregarem em si nossa memória e nos caracterizar e identificar com ele e ele conosco,
relação mútua de conhecer e se reconhecer. Este seria o que chamamos de patrimônio
cultural material ou imaterial (intangível).
A poesia tem um papel duplo quando a pensamos no contexto dos bens culturais.
Ela é tanto um referente, um bem artístico historicamente legitimado, como um
instrumento de referenciação de outros referentes – em especial a poesia moderna,
que por sua vocação também social, abarca discursos, textos culturais e outros bens
culturais –, pois através da voz do poeta, principalmente moderno (já que este é o
sujeito da cidade) ela registra em seus versos as riquezas, costumes e hábitos de um
povo ou comunidade, seus monumentos, espaços, sua música e dança, enfim ela o torna
imortal ou os materializa. Isto significa dizer que embora haja a transformação ou perda
de espaços e monumentos, estes deixam um legado na população, participando de sua
história e de sua memória.
A poesia tuñoneana ressalta essa categoria de patrimônio não só argentino, mas
universal, pois carrega em si um registro do tempo, espaço, costumes, tradições,
enfim, retrata parte da história do mundo. Digo mundo, pois ela não se restringe a sua
localidade, ainda que seja bem local e por vezes, “bairrista”. Ela grita através do olhar
sensível do eu-lírico que caminha pelo mundo, o mundo.
Muitos são os símbolos aludidos na poética tuñoneana e em vários poemas, de
distintas épocas ou estilos, percebemos sua utilização. Estes símbolos, constantemente
retratados, revelam ao leitor o olhar perspicaz do poeta e, desta forma, evidenciam os
referentes com os quais se relaciona o sujeito lírico, atribuindo a eles notoriedade através
de seus versos e ressaltando para o leitor sua importância na construção da cidade, da
sociedade e do homem argentino do século XX. São eles: o circo, o porto, o blues, a
1 “Referentes” ou “pontos de referências” nada mais são que os objetos, símbolos e signos culturais denotados de
sentidos, informações, códigos e histórias que conferem a um grupo um sentimento coletivo de identidade.
2 https://www.caumt.gov.br/o-arquiteto-e-a-preservacao-do-patrimonio-historico/. Acesso em 08/11/2020.

14
música, o tango, os hábitos, os edifícios, os negros, os vendedores ambulantes, as praças,
as prostitutas, os malandros, etc. Todos estes símbolos trazem o popular, o comum e até
o marginal para dentro de um exercício artístico antes elitizado, a partir dos quais só os
costumes, os monumentos históricos ligados à aristocracia eram exaltados. Por isso, a
importância de se analisar os poemas de González Tuñón como objetos de ressonância
patrimonial que aludem a um possível discurso decolonial. Digo isto, pois sua poesia
atravessa o usual, retira-se dos grandes salões burgueses e nasce, cresce e se enraíza no
subúrbio, nas ruas e becos, nas personagens do “submundo” portenho. Há um empenho
em revelar, em enaltecer os marginalizados, em denunciar o preconceito, em legitimar o
pensamento do homem da América Latina e sua cultura.
Na cultura argentina, o tango é protagonista e a palavra tango na poética tuñoneana
tem um relevo especial, pois ela está aludida como símbolo identitário do ser argentino, do
poeta citadino em dezenas de poemas, além de dar título e ser o objeto lírico em seus versos.
São alguns exemplos: La calle con tango, Elogio del tango ‘Don Juan’, Alborada del tango,
Motivo para un tango de hoy, Poetango de la belle époque, Poetango de Villa Soledad.
O poeta diz no poema ‘La calle del tango’ (1983, p.75) “Hay un tango canción, como
um poema en tango”, para o sujeito-lírico tango e poesia se fundem em uma só voz,
uma voz que ecoa a cultura portenha e a torna universal, tanto que ele faz um jogo de
palavras ao aglutinar poeta com tango, criando “Poetango”. O poema é tango, posto que
vários cantores musicaram poemas transformando-os em tango. E a poesia tuñoneana
não ficou à margem, foi musicada pelo Cuarteto Cedrón, que dedicou um CD inteiro
aos poemas do autor. Desta forma, percebemo-la como símbolo do patrimônio cultural
imaterial da região do Rio da Prata, pois conforme afirma a professora e artista plástica
Fayga Ostrower (1987, p.21):

Quando, o conteúdo é tomado numa dimensão mais ampla de


generalização, quando no particular se entende também o universal,
quando o conteúdo se desdobra por meio de noções associativas, as
palavras funcionam como símbolos.

Sendo assim, não é de se estranhar que o tango, enquanto símbolo de uma cultura
regional, tenha ampliado seu conteúdo sendo reconhecido pela Unesco, em setembro de
2009, como patrimônio cultural imaterial da humanidade.
Em Elogio del tango ‘Don Juan’, o poeta faz alusão a esse famoso tango de Carlos Di
Sarli, a partir do qual é possível notar aspectos da vida social e cultural de determinada
classe social (operários que vivem nos bairros mais pobres), inaugurando no poema a
categoria de patrimônio imaterial, diz o eu-lírico:
“Don Juan” era y es de esos tangos que incitan a ser bailados en los patios,
en la calle.
Tango que bailaron mis tías obreras de la Fábrica de Cigarrillos, en la esquina,
con los muchachos que salían de la Fábrica de Alpargatas, a la hora en que
pasaba el organillero y se vendía el “Boletín de Ultima Hora” … ¡Tango
verdadero!
… Porque no hablo del tango de letras arrufianadas o melindrosas, sino del
tango salpicado por el barro, pero también besado por la luna del arrabal.
Tango nacido de la milonga y el candombe; hermano de los valsesitos criollos
y la vieja polka. (González Tuñón, Poemas de Buenos Aires. 1983, p.74)

Percebemos nesses versos aspectos ideais e valorativos da forma de vida nos subúrbios
bem como sua cultura e seus hábitos, ressaltando inclusive, uma oposição entre a forma do

15
tango mais poético, elegante, “tango raiz” ouvido nos subúrbios e o tango menos trabalhado,
de letras pobres e chulas. Também são citados gêneros musicais que caracterizam e fazem
parte da cultura portenha como a milonga, o candombe, o valse criollo e a polka. Com
isso, além da questão patrimonial apresentada, cria-se no poema um registro histórico dos
ambientes citadinos que funciona como memória, pois conforme Ostrower (1987, p.18),
“[...] o espaço vivencial da memória representa, portanto, uma ampliação extraordinária,
multidirecional, do espaço físico natural.”
A cidade cantada pelo eu-lírico desvela aquilo que o ensaísta argentino, Néstor García
Canclini enunciou como um dos elementos constituintes do espaço urbano: o imaginário. E
este apresenta, segundo o autor, patrimônios visíveis, materiais e invisíveis, intangíveis. No
poema percebemos a criação desse imaginário a partir do elemento tango, o qual transita
pela cidade, integrando-se a ela, identificando-a e se identificando com ela, através do
sujeito que cria seus próprios significantes e significados:
[…] ha formado un imaginario múltiple, que no todos compartimos
del mismo modo, del que seleccionamos fragmentos de relatos, y los
combinamos en nuestro grupo, en nuestra propia persona, para armar
una visión que nos deje poco más tranquilos y ubicados en la ciudad.”
(GARCÍA CANCLINI, 1999, p.93)

Percebemos em toda sua arte um comprometimento com deslocamento do lugar


de fala dos que estão à margem da sociedade, atribuindo-lhes uma voz que denuncia
os preconceitos sociais, ao mesmo tempo, que é representada como uma imagem de
beleza e relevância social. Já havia em sua poética vestígios do que hoje estudamos
como discurso decolonial do ser e do poder. Este propõe diferentes estratégias para
a desconstrução da colonialidade mascarada pela modernidade. Estas estratégias
apontam para pressupostos e argumentos do discurso decolonial que convergem com
a poesia tuñoneana tais como: dominação opressora do governo, invisibilidade dos
menos favorecidos, aculturação, etc. O próprio tango, no seu início era tido como cosas
de negros, segundo Don Vicente Rossi (1926).
A história do tango tem suas origens nos negros descendentes dos escravos da colônia
e conforme Juan de Dios Filiberto (apud ORGAMBIDE, 1996, p. 122): “Hacia 1870, los
negros de Buenos Aires bailaban al compás de unos tambores que ellos llamaban tangos
[…] Tango (o tan-gó) servía tanto para nombrar al instrumento (el tambor) como la danza
o al bailarín de ascendencia africana.”
Contudo, o que a maior parte da sociedade sabe sobre o tango hoje, renega toda
sua origem, sua construção. Não se fala de suas raízes afro-argentinas e pouco se fala
de seu desprestígio e até da descriminação inicial em relação aos seus bailes e, também
das perseguições que sofria o povo “tanguero”, “os morenos”. O tango aludido na poética
tuñoneana recobra essa voz perdida ou abafada pela colonialidade, ocultada, enfim, pelo
advento da modernidade.
Segundo o professor Walter Mignolo (2017, p. 13), “Colonialidade equivale a uma “matriz
ou padrão colonial de poder”, o qual ou a qual é um complexo de relações que se esconde detrás
da retórica da modernidade (progresso e felicidade) que justifica a violência da colonialidade.”
O negro, o afro argentino, sofreu e sofre até os dias atuais com esse silenciamento
imposto pelo que, o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005) denominou “colonialidade
do poder”, dizendo que esta cria um novo padrão de poder cujo eixo central está na “raça”,
na classificação da população mundial sobre o conceito de raça – desenvolvido com a
16
descoberta e colonização da América, no qual os povos ibéricos, europeus, por serem os
colonizadores (os dominantes), eram entendidos como superiores. Observamos que esta
classificação, cunhada no período colonial, persiste até os dias atuais, superando, inclusive,
o próprio colonialismo, sendo configurada, portanto, como um dos elementos de
dominação racial da colonialidade.
A poesia de Raúl González Tuñón sempre esteve comprometida com seu tempo, em dar
voz aos discriminados, massacrados socialmente e moralmente pelo discurso do avanço, da
prosperidade, no qual a modernidade se apoiou para cometer brutalidades legitimadas. Em
muitos poemas, o negro é exaltado, é tomado como símbolo de resistência, de denúncia.
As poesias tuñoneanas, atentas ao caos do mundo moderno, expõem e tornam visível o
preconceito sofrido pelo povo negro, não só na Argentina, mas também em outros países.
Este é o caso do poema Los Nueve Negros de Scottsboro que se vincula a um fato verídico3,
acontecido na cidade de Scottsboro, no Alabama Estados Unidos, em 1931. Neste poema, o
eu-lírico centra sua, potencial, voz para gritar pela barbárie sofrida por esses nove meninos
negros que foram acusados, injustamente por estupro, contra duas meninas brancas e
sentenciados a morte. Diz o sujeito lírico:

¡Oh cómo relucen los Nueve Negros de Scottsboro!

Los Nueve Negros de Scottsboro

aúllan esperando la muerte,

aúllan y muerden las rejas

los Nueve Negros de Scottsboro.

Nestes versos, que iniciam o poema de González Tuñón (2005, p.143), percebemos
a grafia em maiúscula das palavras “nove” e “negros” ao longo do texto como forma de
atribuir notoriedade aos meninos e chamar a atenção para o sucedido. Também é percebido
essa notoriedade através dos vocábulos “reluzir” (relucen) e “uivar” (aúllan) que os coloca
em evidência. O poema está dividido em duas partes, na primeira percebemos como é
ressaltado, pelo sujeito poético, o desfecho que terão os meninos, a forma brutal e injusta
de como foram julgados e deixa exposto como essa sociedade os olhava. A sociedade os
olhava como animais (aúllan y muerdenlas rejas). Está claro, durante a leitura do poema, o
preconceito sofrido pelos meninos.
A cada verso o eu-lírico marca, a partir de símbolos como “dientes blancos”, “ojos
brillantes”, “manos esposadas”, a discriminação tão comum sofrida pelo povo negro. A
partir de ironias como “tienen las manos esposadas, se han comprometido con la muerte”
(2º verso da 2ª estrofe), “ya sufren a plazos la muerte” (3º versos da 3ª estrofe), o sujeito do
poema explicita a agonia vivenciada pelos meninos e “desejada” pela sociedade.
Infelizmente, ainda nos dias atuais, esse olhar segue perpetuando-se, pautado
justamente nessa colonialidade do poder, nessa ideia de categorizar o humano por
“raça”, a partir da qual os negros são entendidos como “raça inferior”. E é exatamente
por isto, que continuamos convivendo com desigualdades e barbaridades como as que
temos visto nos últimos meses de 2020: uma série de assassinatos contra os negros
norte-americanos, cometidos pela polícia, isso sem citar as infindáveis atrocidades que
acontecem diariamente no nosso país e que nem sequer chegam à mídia.
3 A história integral do acontecido pode ser consultada pelo site https://pt.wikipedia.org/wiki/Scottsboro

17
A última estrofe do poema apresenta uma imagem de pesar dita através da interjeição
“Ay”. Neste verso, eu-poético se lamenta sobre a situação dos meninos quando diz: “Ay,
algunos tienen quince años” e segue com sua voz de tristeza quando cita: “y en otros ha
de nevar pronto”. O poeta se utiliza do símbolo da neve tanto para aludir a esterilidade
de vida referenciada na estação que esta representa; quanto também a uma purificação
de suas almas, haja vista que a cor da neve simboliza pureza e é usada nas religiões de
matriz africana também com este sentido. Ao final da estrofe se materializa uma imagem de
perpetuação da memória: “Ya nunca nos olvidaremos de los Nueve Negros de Scottsboro”.
Nela se imprime um campo simbólico que se comparte com o leitor. Nela se fundem leitor
e sujeito do poema, em um só pensamento, o qual vai amalgamar-se em memória coletiva,
pois conforme palavras do pesquisador Mario de Souza Chagas (2002),
A memória deve ser pensada em seu contexto e em sua produção sócio-
histórica, ou seja, em termos plurais, incluindo suas redes relacionais. A
memória considerada como sentido plural é uma expressão partilhada
de um sentimento e um modo de compreender e relacionar-se. Portanto,
trata-se de um articulador e produtor de identidades sociais e de um
campo de lutas simbólicas. (apud VELOSO, 2004, p. 33)

Desta forma, a memória enunciada no poema reivindica sua identidade passada, a fim
de lutar contra a desigualdade e injustiça sofrida pelos meninos negros, a qual ainda se
perpetua nos dias atuais. Esse campo simbólico de lutas pode ser visto, atualmente, através
do esforço mútuo de intelectuais do discurso decolonial, em busca seja da desconstrução da
colonialidade do poder, do ser e do saber ou da ruptura com o mito do eurocentrismo. Todas
essas categorias revisitam a questão do poder na modernidade e sugerem direções a seguir
na busca pelo reconhecimento do homem, principalmente latino americano, como um ser
produtor de sua própria cultura, não um mero reprodutor do pensamento eurocêntrico.
Como um ser que sofre com as mazelas da colonialidade, atreladas a um falso
pensamento de modernidade, no qual todos os indivíduos, não oriundos das classes
hegemônicas (brancas, de alto poder aquisitivo), estão desclassificados com indivíduos
pertencentes a essa sociedade e, portanto, factíveis de estar à margem de qualquer
desenvolvimento.
Na busca por entender-se como um ser que produz cultura e por sua vez é cultural,
falaremos da presença das praças dentro das composições poéticas de González Tuñón de
forma mais genérica, para posteriormente analisar algumas partes de um de seus poemas.
Estes espaços têm seu início na época da colonização e tinham uma função atuante dentro
da cidade colonial. Eram neles que circulavam as pessoas, as mercadorias, os encontros,
os protestos, tudo se dava na praça. Atualmente, este ambiente citadino teve sua função
inicial um tanto quanto modificada, adquirindo um novo formato dentro do espaço
urbano, contudo manteve sua característica de lugar de encontros.
No entanto, percebemos que uma grande maioria das praças foram “esquecidas”
não só pelas autoridades governamentais, como também pelo próprio indivíduo urbano,
dando espaço ao surgimento de outras construções. Isso se deve ao fato de que, segundo
a professora e historiadora Sandra J. Pesavento:
Naturalmente, a forma de uma cidade, seus prédios e movimentos contam
uma história não verbal do que a urbe vivenciou um dia, mas, por mais
que este patrimônio tenha sido preservado, os espaços, e sociabilidades se
alteraram inexoravelmente, seja enquanto forma, função ou significado.
No caso das cidades modernas, metrópoles de fato ou por atribuição de

18
seus habitantes, que a veem e sentem como tal, a complexidade da vida e
as sucessivas intervenções urbanísticas são agentes de descaracterização
e mesmo degradação da cidade. (PESAVENTO, 1995, p.11)

Dentro deste contexto urbano, entendemos a praça como ambiente descaracterizado


e passivo de degradação. Mas, é importante atentar-nos para a memória e representação
desse espaço dentro da construção imaginária individual e coletiva, já que esta é uma
imagem inerente a cidade e, portanto, constitutiva de significados e significantes
(SAUSSURE, 1916) do e no indivíduo. Dentro desta ideia, a imagem das praças trazidas
nos versos do autor, recobra-nos uma memória tanto coletiva quanto individual, uma
vez que é palco de importantes manifestações e acontecimentos que refletem a história
de uma sociedade, quanto a significação emocional e particular que ela instaura no
indivíduo.
É inegável a presença das praças desde a fundação da cidade e clara a sua vinculação
com esse sujeito citadino, pois é nessa época que essa construção física e também
imaginária se consolida no homem moderno, integrando-se a urbe e desempenhando
também um papel social, compondo assim a imagem citadina.
Dessa significação emocional e particular, surgiu o último livro de Rául González
Tuñón publicado postumamente, intitulado El banco en la Plaza (1977), que também deu
nome a um dos poemas que compõem este livro e que será aqui abordado.
O poema “El banco em la Plaza” está dividido em duas partes. Na primeira parte,
passeamos com o eu-lírico através de inúmeras praças do mundo que vão desde a América
do Sul, Europa, Caribe e Ásia. Como um cartógrafo das cidades, o sujeito poético, revela
através das praças, tanto os fatos históricos que marcaram a humanidade, quanto
às características e os significados que cada uma delas representa para a sociedade,
comunidade e seus indivíduos.
Nas praças da América do Sul, o eu-lírico marca as singularidades dos bairros e lugares
em que estão essas praças, além de fazer alusão a sua época juvenil com uma nostalgia
notória, diz:

La Plaza Dorrego añorando en San Telmo

cuando era baldío

Y la Plaza Garay, la recatada de los verdes noviazgos

bajo la luz que allí Constitución remansa.

Y la Plaza Zabala de aquel Montevideo

que me vio adolescente y cubierto de sueño.

Percebemos que ele é um evocador nostálgico do tempo, que olhando para o presente,
referência o passado, atribuindo sentido a este espaço citadino com o qual ele mantém
vínculo, pois conforme o urbanista Kevin Lynch (1997, p. 1), “cada cidadão tem vastas
associações com alguma parte de sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de
lembranças e significados”.
Já nas praças da Europa e da Ásia, o eu poético evidenciará a presença emblemática
desse espaço urbano livre, revelador de momentos históricos que marcaram a história da
humanidade. Na praça de Madri ele referência o início dos conflitos sociais espanhóis, em
1935, que desembocaram na trágica Guerra Civil espanhola, na qual seria morto o poeta

19
Federico García Lorca e preso o poeta Miguel Hernández. Na praça de Shanghai, alude a sua
importante função durante a Segunda Guerra Mundial, já que o porto serviu de refúgio para
os europeus. Na praça da Rússia faz alusão tanto a revolta dezembrista – que deu nome à
praça –, quanto a seu ilustre poeta Alexandre Pushkin, e ainda a revolta de outubro, que fez
com que a cidade passasse a chamar-se Leningrado. Diz o eu-lírico:

(…)
La Plaza de La Villa encantadora en el Viejo Madrid
y el memorable año 35 con García Lorca y Miguel Hernández,
donde la gracia espera que vuelva su sonrisa.
(…)
La Plaza de las Dalias Pintadas en el puerto
largo y estremecido de Shanghai.
La de los Decembristas de la estirpe de Pushkin
en la honda, armoniosa y heroica Leningrado.

Observamos a relevância que esta construção física/imaginária tem para o sujeito do


poema e, por conseguinte, com os citadinos. Com ela o eu-lírico estabelece uma relação
afetiva, cria vínculos e a atribuiu significação, ampliando assim o seu conteúdo. A praça
integra à cidade, logo “[...] a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção
artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem; é produto da
natureza, e particularmente da natureza humana” (PARK, 1967, p.29).
Percebemos então as praças como produto dessa natureza e, portanto, passível de
reconhecimento patrimonial. Esta, também pertence ao conjunto dos bens culturais
e também são portadoras de aspectos imateriais, haja vista sua nítida vinculação com o
imaginário, o que a torna um patrimônio cultural material (sua parte física) e imaterial
(suas relações, atividades, características, ...). O referencial de cultura contemporâneo, no
qual se ancora a noção de patrimônio cultural, permite que se tomem as praças, vinculadas
à cultura citadina, como referentes que expressam também elementos que a poesia nos traz
e que se vinculam às memórias afetivas silenciadas.
As praças, aludidas no poema tuñoneano, revelam fatos históricos que mudaram o
rumo da humanidade, ressaltam os hábitos da população e as atividades desenvolvidas
nelas, nomeiam personalidades literárias emblemáticas e bairros, aliás, a nomeação foi o
principal artifício usado pelo autor na construção do texto, por isso, podemos dizer que
seus versos se revelam como arcabouço para o reconhecimento de um patrimônio cultural
imaterial, pois, conforme palavras da socióloga e antropóloga Mariza Veloso (2004, p.31),
“Patrimônio cultural imaterial é entendido como o repertório das expressões culturais de
um grupo social, aqui incluídos os seus acervos históricos, em permanente e inexorável
dinâmica [...]”. Sendo assim, busca-se uma ampliação do entendimento de patrimônio
cultural, tomando o termo de Maria Cecília Londres Fonseca, entendimento para além da
pedra e cal, de um conceito que muitas vezes se confunde com o de propriedade.
As praças retratadas no poema vão muito além de uma mera área pública sem
construções dentro de uma cidade ou um local aberto onde se compra e vende; no espaço
urbano construído na poesia tuñoneana desenham-se inúmeros elementos da urbe moderna
e cada um desses elementos estão significados pelos indivíduos, e os próprios indivíduos
figuram como partes integrantes deste imaginário, não só as partes físicas, (LYNCH, 1997,

20
p.1) “os elementos móveis de uma cidade e, em especial, as pessoas e suas atividades, são
tão importantes quanto as partes físicas estacionárias”. Através do indivíduo e suas ações
é que a cidade e suas partes são significadas. São essas significações, essa memória que
tornará viável o reconhecimento dos símbolos empregados pelo autor como pertencentes
ao conjunto de bens culturais imateriais de uma coletividade.
Não obstante, percebemos que nessa relação do indivíduo com a cidade e suas
construções de significados, este inicia um processo de autorreconhecimento, buscando
seu discurso “original”, questionando os referenciais eurocêntricos, e neste sentido, o
pensamento decolonial tem um papel pedagógico ao proporcionar ao homem observar
e questionar as estruturas vigentes, o poder controlador do Estado, bem como a ideia da
colonização do ser.
Toda poesia de Raúl González Tuñón está pautada no ambiente citadino, na urbe,
no mundo onde este sujeito lírico está inserido, pois (SILVA, 1994, p. 10) “as cidades são
também o cenário de um processo de acumulação de valores históricos e de práticas sociais
vividas por seus moradores”. Desta forma, personalidades, monumentos, ruas, fatos,
lutas, discursos fazem parte do universo poético aludido em sua obra. Encontramos em
cada construção literária um hábito, uma fala, um ritmo, um local de representatividade
tamanha para o portenho, e quando seu eu-lírico sai a perambular pelo mundo, também
nos encontramos com essas outras memórias coletivas, com esses outros patrimônios
históricos, culturais materiais e também imateriais, tanto que afirma o eu-lírico no poema:
Esos y otros recodos marcados en el mapa/plural de la memoria vagabunda/son una sola
Plaza para mi em el tiempo./ Donde un banco me espera.

Considerações finais

Todo invólucro no qual a arte poética foi fundada, suas origens, seus precursores
precisam “ser exorcizados” dentro de nós. Precisamos reconhecer e tomar posse de nossa
poesia, dessa que canta a nossa história, que desafia o sistema e desperta a consciência
adormecida. Todo o estigma imposto a este gênero literário, muitas vezes importado e
ensinado a nós, e por isso mesmo sem nenhuma filiação em nós, torna-o incompreensível,
pois como entender aquilo que não nos pertence? que não conta a nossa história? que não
fala do que é nosso?
Creio que por isso, criou-se a ideia de que a poesia é um gênero incompreendido. Mas
precisamos olhá-la, lê-la, assim perceberemos que o que está em torno deste gênero é mais
uma das representações que assumimos diante da modernidade, do pensamento alienante da
colonialidade. É imperativo descolonizar a poesia. É necessário tirá-la dessa redoma, desse
pedestal no qual fora colocada pelos europeus e para o qual muitos de nós insiste em retê-la.
Por que não estudar a poesia? Por que a ideia de que seja só para uns poucos da sociedade?
Precisamos descolonizar o pensamento poético, visto que a poesia está no homem e dele é
parte. Ela é a essência sufocada pelas máscaras sociais e conforme Octavio Paz (1982, p.15):
A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de
transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza;
exercício espiritual é um método de libertação interior. A poesia revela este
mundo; cria outro. [...] Expressão histórica de raças, nações, classes.

A pluralidade da poesia de González Tuñón recobra algumas das ideias difundidas

21
pelo discurso decolonial como da colonização do ser. Nela, encontramos um eu-lírico
que busca exaltar as raízes de sua cidade, de seus habitantes mais invisibilizados; que
almeja cantar através de seus versos, seus símbolos (físicos ou abstratos), significativos de
representatividade e, por isso mesmo, percebemos em sua lírica e a própria lírica como
elemento cultural de uma prática social.
Sendo elemento de denotação e conotação cultural, pode ser entendido como suporte
de e para patrimonialização material/imaterial, pois conforme afirma Maria Cecília
Londres Fonseca (2009, p.69):
É, portanto, a partir de uma reflexão sobre a função de patrimônio e de
uma crítica à noção de patrimônio histórico e artístico, que se passou a
adotar – não só no Brasil- uma concepção mais ampla de patrimônio
cultural, não mais centrada em determinados objetos – como monumentos
– e, sim numa relação da sociedade com sua cultura.

É também, a partir da voz do eu-lírico, em toda a poética tuñoneana, que percebemos


aquilo que a pesquisadora Camila Penna (2014, p. 183), chamou de “estratégias para
reverter a colonização do ser. [...] São elas: revolução; objetivação da mitologia eurocêntrica;
deslocamento do lugar de fala; e valorização do conhecimento fronteiriço”. Encontramos
cada uma dessas estratégias em alguma fase da poética de González Tuñón. A revolução,
provavelmente, seja a mais marcante.
Em vários livros dedicados a conflitos bélicos, em vários poemas aludidos a confrontos
sociais, vemos um sujeito poético determinado a romper com o silêncio dos oprimidos,
deslocando seu lugar de fala, desmascarando a (PENNA, 2014, p.184) “construção
ideológica do outro (o colonizado) como atrasado, selvagem, primitivo, em oposição ao qual
a Europa poderia se classificar como moderna, civilizada, evoluída”. O próprio autor afirma
(In: DOMÍNGUEZ, 1980/1986, p.124): “Así aprendí que no somos subdesarrollados, es una
sabrosa mentira, nosotros somos mal aprovechados, mal organizados y mal dirigidos”.
A poesia tuñoneana exprime e se revela como esse patrimônio cultural da humanidade,
que a cada novo olhar se atualiza, ao passo que guarda partes da história do mundo. Ela
prestigia, exalta os que estão à margem. Nessa “aventura”, escreve através de símbolos
constantes, o patrimônio cultural material e imaterial, não só argentino, mas do mundo, pois
como o próprio autor afirma a poesia é universal, não pertence ou se restringe a uma região
ou a um só eu. Ela perpassa as muralhas do preconceito, derruba as fronteiras imaginárias
do egoísmo patriótico e amplia-se a condição de patrimônio cultural da humanidade.
Sobre sua poesia alguém poderia dizer, desenraizada? Alguém poderia definir,
politizada? Denunciativa? Surrealista? Marginal? Social? Rotulá-la me parece reduzi-la,
sufocar o potencial enunciador, clarificador que se revela a cada verso, a cada página que
lemos. Por isso, opto em ficar com a voz do poeta que a define como arte comprometida com
seu tempo. E que tempo é este? É o agora, pois o tempo não se restringe ao ontem ou ao
amanhã, o tempo é o hoje. E segundo o professor argentino Jorge Monteleone (GONZÁLEZ
TUÑÓN, 2011, p. 20),
Toda poesía de Tuñón es también un vasto mapa o una sucesión de planos.
Los poemas dibujan geografías o ciudades y donde no hay objetos, hay
nombres, y en cada nombre un lugar que se puebla de nuevos objetos mirando
o de acciones o de historia. El espacio imaginario del poema requiere de la
nominación o la referencia de los puntos espaciales, como un Baedeker lírico:
el poeta trashumante es un cartógrafo nominador, un flanear de la cosmópolis,
el vagabundo y el viajero, entre la revolución y el entresueño.

22
Toda a poética de Raúl González Tuñón nos convida a reflexão, seja através do
imaginário de um portenho chamado “Juancito caminador”, personagem criado pelo autor,
como seu álter ego; seja através das revoluções mundiais ou das pequenas insurgências
locais; podemos perceber em seus versos não só um patrimônio a ser explorado, mas
também sua filiação a uma ideologia na qual o indivíduo sul americano é tão importante
quanto seu “patrão” (colonizador), que suas palavras carregam tanta verdade como a de
qualquer “dono da cidade” (branco, rico, aristocrata).
O poeta é um ser social por excelência e sua poesia a arma mais poderosa que pode
mudar o mundo. Não podemos enclausurar a poética tuñoneana em diligências acadêmicas
que insistem em encaixá-la em um modelo, em uma estética dessa ou daquela. Prefiro,
portanto, ficar com a voz do poeta, que diz que a “poesia é uma e indivisível”.

Referências bibliográficas

DOMÍNGUEZ, Nora. Raúl González Tuñón. In: ZANETTI, Susana. Historia de la Literatura Argentina. Los
Proyectos de Vanguardia. n. 4. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1980/1986, p. 121-144.

FONSECA, Maria Cecília L. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In:
CHAGAS, M; ABREU, R. (orgs) Memória e patrimônio. Ensaios contemporâneos. 2ed. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2009, p. 34-48.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Imaginários urbanos. 2ed. Buenos Aires: Eudeba, 1999.

GONÇALVES, J. R.S. O patrimônio como categoria de pensamento. In: CHAGAS, M; ABREU, R. (orgs)
Memória e patrimônio. Ensaios contemporâneos. 2ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, p. 25-33

GONZÁLEZ TUÑÓN, Raúl. Poemas de Buenos Aires. Antología y notas de Luis Osvaldo Tudesco. Buenos
Aires: Torres Agüero Editor, 1983.

________. Poesía reunida. Buenos Aires: Seix Barral, 2011.

________. El violín del diablo. Buenos Aires: Gleizer, 1926.

________. Todos Bailan. Los poemas de Juancito Caminador. Buenos Aires: Seix Barral, 2005.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MIGNOLO, Walter. Desafios decoloniais hoje. Revista Epistemologias do sul. Foz do Iguaçu/PR, 1 (1), P. 12-32,
2017 Disponível em: <https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/article/download/772/645>.
Acesso em: 07 de ago. 2020.

ORGAMBIDE, Pedro. Ser argentino. Buenos Aires: Temas grupo editorial, 1996.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1987.

PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In:
VELHO, Otávio. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p.29-72

PAZ, Octavio. O arco e a lira. 2 ed. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

PENNA, Camila. Paulo Freire no pensamento decolonial: um olhar pedagógico sobre a teoria pós-
colonial latino-americana-americana. Revista de estudos & pesquisas sobre as Américas.
Brasília, v. 8, n. 2, p. 181-199, 2014. Disponível em: <https://webcache.googleusercontent.com/
search?q=cache:oGx5RVQ9lQAJ:https://periodicos.unb.br/index.php/repam/article/download/16133/
14421/+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em 06 ago. 2020.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Muito além do espaço: por história cultural do urbano. Estudos Históricos. Rio
de Janeiro, v. 8, n.16, p. 279-290, 1995.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo. A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:
CLACSO, 2005. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_
Quijano.pdf>. Acesso em: 07 de ago. 2020.

23
SILVA, Luis Roberto do Nascimento e. A escrita das cidades. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, n. 23, p. 7-10, 1994.

VELOSO, Mariza. Patrimônio imaterial, memória coletiva e espaço público. In: TEIXEIRA, J. G.; GARCIA,
M. V.; GUSMÃO, R. (orgs) Patrimônio imaterial, performance cultural e (re)tradicionalização. Brasília:
ICS-UNB, 2004, p. 31-36

24
Del ocultamiento al hallazgo de Coatlicue
y de la piedra del sol

Ximena Antonia Díaz Merino

Si se hicieron excavaciones, como se hicieron de propósito


en la Italia para hallar estatuas y fragmentos que recuerden
la memoria antigua de Roma, ¿y actualmente se están
haciendo en España [...] cuantos monumentos históricos no
se encontrarían en la antigüedad indiana? Cuantos libros
y pinturas que ocultaron aquellos Sacerdotes de los ídolos,
y principalmente de Teoamoxtli, en que terían escrito con
sus propios caracteres su origen; los progresos de su nación
desde que salieron de Aztlan para venir a poblar las tierras
de Anahuac; los ritos y ceremonias de su Religión; los
principios fundamentales de su Cronología y Astronomía? Y
cuantos tesoros no se descubrirían?
(LEÓN y GAMA, 1792, p. 2)

Sabemos que en el siglo XVI los europeos implantaron en América un sistema


colonial a partir de la dominación política, social y cultural sobre las sociedades indígenas.
Estructura de poder que institucionalizó construcciones sociales subjetivas con base en
una perspectiva racial, étnica y antropológica. La represión sistemática de creencias, ideas,
símbolos y conocimientos implantada durante el dominio europeo resultó en la colonización
del imaginario de los sujetos subyugados, por lo que a pesar de que el colonialismo sea
considerado eliminado a partir de las independencias de las colonias españolas, entre
1810 y 1825 aproximadamente, el sistema colonial perdura hasta hoy en las sociedades
americanas en la forma de un colonialismo interno. Esto se debe a que “no proceso de
independência da Colônia surgiu no imaginário social […] um colonialismo interno
originado na elite criolla, um poder que exercia o controle sobre aspectos da sociedade,
um colonialismo fundamentado na diferença colonial.” (DÍAZ MERINO, 2013, p. 32).
Como ejemplo se puede citar la situación de Chile, país en que la enseñanza de la historia
patria presenta graves distorsiones, motivo por el que el profesor Gustavo Canihuate Toro
(1999, p. 9) afirmó que es necesario “[...] rectificar una función tan esencial en la vida de un
pueblo como es asumir con fidelidad y entereza su propio pasado”, denuncia que puede ser
extendida al resto de los países latinoamericanos.
Cabe destacar que el dominio colonial actúa con base en un sistema que concibe la
cultura europea como racional e integrada por sujetos, mientras que las no europeas no son
racionales, por lo que pasan a ser objetos de conocimiento y de prácticas de dominación.
Se establece de esa manera el binomio sujeto/objeto, en que las “otras” culturas son objeto

25
de observación de los “sujetos” europeos. Ese patrón cultural pasó a ser el paradigma
mundial mientras que los pueblos colonizados fueron clasificados como subculturas
siendo despojados de sus modelos de expresión, como lo destacó Aníbal Quijano (1998,
p. 229) en Colonialidad del poder, cultura, y conocimiento en América Latina “Para esas
poblaciones la dominación colonial implicaba, en consecuencia, el despojo y la represión de
las identidades originales (mayas, aztecas, aymaras, incas, etc., etc., etc.) y en el largo plazo
la pérdida de éstas y la admisión de una común identidad negativa”.
El colonialismo instaurado en América se caracteriza tanto por la violencia implantada
como por la destrucción de las sociedades subyugadas. Walter Mignolo (2003, p. 39)
defiende la idea de que el mundo moderno/colonial instauró la “diferencia” colonial que
“[…] consiste en clasificar grupos de gentes o poblaciones e identificarlos con sus faltas o
excesos, lo cual marca su diferencia y la inferioridad con respecto a quien clasifica” y añade
que este raciocinio responde a la “lógica de clasificación y jerarquización de las gentes del
planeta, por sus lenguas, sus religiones, sus nacionalidades, su color de piel, su grado de
inteligencia, etc., fue y sigue siendo el principio fundante de la diferencia colonial. ” (2003,
p. 43) La diferencia colonial mencionada por Mignolo puede ser observada hoy en día en
monumentos y documentos que revelan creaciones resultantes de valores instituidos por los
europeos y que con el tiempo fueron naturalizados por los grupos autóctonos americanos.
Para Zulma Palermo (2014, p. 9-10) “La diferencia instala los criterios de superioridad/
inferioridad entre las culturas; la distancia señala una doble magnitud”, es decir, la distancia
entre el centro de poder y los grupos indígenas americanos puede ser asociada al binomio
progreso/atraso en el que los grupos ‘diferentes’ están fuera de los centros de poder, pues
los grupos eurocéntricos instituyen sus valores a partir de binarismos que desmerecen y
descalifican las formas de pensar, vivir y crear de los ‘otros’. Al reflexionar específicamente
sobre el Arte constatamos que el colonialismo artístico fue instaurado en el periodo de la
usurpación europea, cuando los extranjeros negaron la existencia de culturas y sociedades
diferentes y preexistentes a su arribo al territorio americano, como lo afirma Palermo
(2014, p. 10) al registrar que las estrategias utilizadas por los europeos para alcanzar sus
objetivos fueron “borrar las huellas de los modos de aprendizaje y transmisión de técnicas y
de uso de materiales propios del hábitat para sustituirlos por las miradas, los instrumentos
y materiales de su propia superior y avanzada civilización”.
Por otro lado, los centros de poder y los movimientos estéticos europeos impusieron
criterios de valor que han perdurado hasta hoy, descartando y desvalorizando las
producciones consideradas “autóctonas” en comparación a las producciones “canonizadas”;
de forma que las primeras debieron adecuarse a los “modelos exteriores”. Además, las
producciones autóctonas, fueron consideradas “asincrónicas”, pues llegaban tarde, por lo
que Palermo asevera que es esa “concepción de superioridad lo que llevó siempre a nuestros
artistas a travesar los mares y cruzar el continente para acercarse a las fuentes directas del
‘saber hacer’ como los ‘otros’” (2014, p. 10). Revelando con esa actitud la ‘colonialidad’, pues
los americanos concordaron con la idea de que “el bien, la verdad y la belleza, están en otro
lugar y no en el propio;” (2014, p. 10). En 2009 Palermo conceptualizó el término “opción
descolonial” o “encrucijada descolonial” con relación a las estéticas del arte latinoamericano.
Un arte menospreciado por la ‘diferencia colonial’ que establece un pensamiento binario
entre global/local y/o Arte/artesanía, instaurando, de esa manera, el par superior / inferior.
Siguiendo el raciocinio de Palermo visamos reflexionar sobre el binarismo eurocéntrico

26
instituido por los españoles, y naturalizado por los grupos locales, que posibilitó la
reproducción y la mantención de las relaciones de dominación en las diversas esferas de
la vida social. Las consecuencias del colonialismo y de la colonialidad serán observadas
a partir de esculturas aztecas portadoras de mitos que nos transportan a los orígenes del
pueblo mexica, pero que permanecieron sepultadas por siglos: Coatlicue y La Piedra del
Sol. Las esculturas seleccionadas forman parte del patrimonio arqueológico de México, son
obras que deben ser valoradas y protegidas, pues los patrimonios eternizan la relación de
los pueblos con la historia y sus legados ancestrales.
Al abordar el concepto de patrimonio, del latín patrimonium, cabe destacar que
inicialmente este concepto configuraba el conjunto de bienes heredados de los padres, por
lo tanto, era propiedad de un individuo o de una familia. En la modernidad estos bienes
pasaron a tener un carácter colectivo, de manera que será la sociedad quien reconocerá los
[…] bienes y costumbres que transmitimos porque reconocemos en
ellos un valor y les atribuimos una propiedad colectiva. [...] Porque es
la sociedad, es decir, somos nosotros los que damos sentido y contenido
al patrimonio, reconociendo determinados edificios, lugares, objetos,
costumbres y personas como señas de identidad colectiva (GARCÍA
CUETOS, 2011, p. 17).

En el año 1982 en un documento de la Organización de las Naciones Unidas para la


Educación, la Ciencia y la Cultura, UNESCO, se hace referencia a bienes de propiedad
colectiva, bienes que pertenecen a la sociedad y que comprenden
[...] todos los valores de la cultura tal y como se expresan en la vida
cotidiana [...] englobaba las obras materiales e inmateriales a través
de las cuales se expresa la creatividad de los pueblos: idiomas, ritos,
creencias, sitios y monumentos históricos, obras literarias, obras de arte,
archivos y bibliotecas [...] cada cultura representa un conjunto de valores
único e irremplazable, ya que las tradiciones y formas de expresión
de cada pueblo constituyen su manera más eficaz de manifestar su
presencia en el mundo. La identidad cultural y la diversidad cultural son
indisociables, y el reconocimiento de múltiples identidades culturales
allí donde coexisten diversas tradiciones constituye la esencia misma del
pluralismo cultural. (UNESCO, 1982, p. 14)

Por lo tanto, debemos entender por patrimonio cultural al conjunto de objetos


materiales e inmateriales, pasados y presentes, que definen a un pueblo en su lenguaje,
literatura, música, tradiciones, artesanía, bellas artes, danza, gastronomía, indumentaria,
manifestaciones religiosas y, por supuesto, en su historia y sus objetos materiales, es decir,
el patrimonio histórico.
La preservación de los bienes culturales es una preocupación que ha existido en
todas las sociedades, aún antes del establecimiento del concepto en sí. En las culturas
precolombinas, por ejemplo, la conservación de los bienes comunes era una preocupación
constante, incluso en lo que se refiere a bienes culturales de los pueblos enemigos, como
lo afirma el arqueólogo argentino Daniel Schávelzon (1990, p. 13) “cuando una ciudad era
dominada por otro grupo, los edificios eran rápidamente modificados o recubiertos por
otros acordes a los intereses de los nuevos amos [...]. Sin embargo, los edificios existentes
no eran desmantelados [...] sino que quedaban en el interior del nuevo.” Por lo que, para
preservar pinturas murales y objetos encontrados dentro de esas edificaciones, se recurría
a la construcción de una estructura superpuesta a la ya existente, como ha sido constatado
durante la excavación de la Pirámide de Cuicuilco entre los años 1922 y 1925. Construcción

27
descubierta por el arqueólogo mexicano Manuel Gamio que se encuentra localizada en la
Cuenca de México
El pueblo de Cuicuilco hizo dos superposiciones a su templo, y las dos
veces construyó un nuevo altar sobre el anterior. En una ocasión agregó
una nueva fachada a la estructura, utilizando ásperos bloques de lava en
sustitución de los guijarros. Dejó que se amontonaran desechos alrededor
de la base, que cubrieron un corredor angosto de piedras colocadas de
punta que respondía a – algún propósito olvidado de los constructores
primitivos. (VAILLANT, 1965, p. 43-44)

Schávelzon publicó en 1983 un Álbum fotográfico sobre la restauración de la pirámide


de Cuicuilco con el objetivo de recopilar las informaciones arqueológicas reveladas
durante las excavaciones del monumento. En su estudio el arqueólogo destaca que al ir
desenterrando la pirámide
[...] quedó a la vista un muro del revestimiento del primer nivel con sus
piedras bien acomodadas y unidas con barro [...] pudo observarse, así,
que la pirámide era el resultado de varias épocas de construcción que
se habían superpuesto unas sobre otras, además de haber sufrido varias
ampliaciones y algunas modificaciones. (SCHÁVELZON, 1993, p. 16-17).

De acuerdo con Schávelzon (1990, p. 13) acrópolis1 como las de Copan, Tikal o
Comalcancon presentan “ampliaciones, superposiciones, arreglos y modificaciones
realizados en un mismo lugar a lo largo del tiempo.” Y añade que “en el siglo XV fueron
construidos edificios, templos, altares y superposiciones en un mismo lugar lo que dio
origen a grandes montañas de mampostería2”.
Volviendo al momento de la invasión española a América, cabe destacar que lo
primero que fue destruido fueron las edificaciones de carácter sagrado, pues el objetivo
fundamental de la usurpación fue llevar la religión católica a los nuevos territorios
invadidos como relatado por el Fray Juan de Torquemada en Monarquía Indiana [1615]
(1975, p. 82-83)
Pusiéronlo en ejecución, comenzando por la ciudad y reino de Tetzcuco
donde eran los templos muy hermosos y torreados [...] comenzaron a
derribar y quemar los templos y no parar hasta tenerlos todos arruinados y
caídos por el suelo y los ídolos quitados de sus altares y castigado en ellos al
demonio que se preciaba de ser tenido por Dios, siendo espíritu engañador
y falso y sus imágenes cercadas de toda maldad y mentira. [...] Lo primero
que hicieron los frailes fue poner fuego al templo mayor que era en quien
todos los ciudadanos tenían puestos sus ojos, y cuando le hicieron arder,
que era un, día de mercado, comenzaron a hacer grande sentimiento
y a derramar lágrimas y dar grandes voces, alterándose todo el pueblo
[...] cobraron coraje para no sólo quemar los templos, sino reprehender
ásperamente a los que dello se dolían.

Torquemada relata que los religiosos que se encontraban en Tlaxcalla y en Huexotzínco


continuaron la devastación del patrimonio mexica, pues consideraban que lo que impedía la
instauración de la fe católica era la idolatría existente, por lo que consideraron que debían

1 Se denomina Acrópolis a la parte construida en el local más elevado de una ciudad. Se trata de construcciones que tienen
gran valor simbólico y estratégico. Era en la acrópolis donde se construían las estructuras más nobles, como templos, y
era considerada un lugar sagrado.
2 La mampostería es un sistema de construcción tradicional. Consiste en superponer rocas, ladrillos o bloques de concreto
prefabricados, para la edificación de muros o paramentos. Los materiales uniformes o no, también llamados mampuestos,
se disponen de forma manual y aparejada. Para su adición se emplea una mezcla de cemento o cal, con arena y agua.
Disponible en: https://www.rocasyminerales.net/mamposteria/

28
usar todos los medios que fueran necesarios para la instauración de su doctrina, de manera
que procedieron a “asolarles y destruirles los templos, con todo lo que les pertenecía, porque
quitadas y cortadas sus raíces, fácilmente se secasen las ramas.” (TORQUEMADA, 1975,
p. 85) Pero los habitantes originarios de ese territorio resistieron a los primeros ataques
contra sus templos, puesto que, aunque los españoles se jactaban de haberlos destruido,
en Tepeaca, Cholulla, Itztapalapan y Xochimilco, entre otros pueblos próximos a la actual
Ciudad de México
[…] volvían los indios a edificarlos [los templos] y quedarse en su
antigua idolatría, porque para consumirla no bastaba aquel repentino
remedio. Demás porque cuando se ocupaban en esto los mismos indios
escondían los ídolos que podían, por no verlas en manos de sus enemigos.
(TORQUEMADA, 1975, p. 85).

En diversos locales de América los indígenas fueron incumbidos por los europeos de
construir iglesias y conventos, muchas de esas edificaciones fueron levantadas sobre los
escombros de construcciones destinadas a ceremoniales prehispánicos, y generalmente
los materiales de las construcciones destruidas eran empleados en la nueva construcción.
Además de destruir las edificaciones de las culturas originarias los españoles ocultaron
diversos objetos, como ocurrió en el territorio mexicano en el siglo XVI. De acuerdo con
diversos documentos en 1790 mientras se realizaban las excavaciones necesarias para la
construcción de un sistema de drenajes en el Virreinato de Nueva España fueron encontradas
esculturas prehispánicas conocidas como Coatlicue y La piedra del Sol o Calendario Azteca.
El escritor venezolano Fernando Báez comenta este episodio de la historia de México en su
ensayo El saqueo cultural de América Latina: de la colonización a la globalización bajo el
título de “El primer etnocidio” (2010, p. 57)
El 13 de octubre de 1790, los mexicanos asistieron atónitos al
descubrimiento de una estatua de tres mil kilos, y casi tres metros,
distinguida por garras filosas y colmillos, adornada con una falda de
serpientes y un collar de corazones, y se supo entonces que había sido
ocultada bajo tierra, en el siglo XVI, al igual que ocurrió con la ciudad de
Tenochtitlán.

Imagen 1 - Coatlicue.

Fuente: LEÓN y GAMA (1832. p. 151)

29
Conocida como la “Madre de los Dioses” o “La Dama de la falda de serpiente”, Coatlicue
fue trasladada al patio de la Universidad de México y, al poco tiempo volvieron a enterrarla
por temor a que despertara las memorias religiosas prehispánicas y que el pueblo mexicano
volviese a adorarla. En 1808 fue desenterrada nuevamente a pedido de Alexander von
Humboldt, después de ser admirada por el explorador alemán, procedieron a enterrarla
nuevamente. Resurgió finalmente en 1824, permaneciendo escondida bajo una escalera a
lo largo del siglo XIX, hasta que 1982 fue expuesta de forma definitiva al público, junto a
la Piedra del Sol, en el Museo de Antropología en la Ciudad de México en el Salón Azteca,
como lo ratifica Schávelzon (1990, p. 34).
En 1824 la Coatlicue fue finalmente desenterrada en el patio de la
Universidad. Este monolito descubierto en 1790 había sido sacado para
ser enterrado de inmediato en dos oportunidades: una vez por Humboldt y
en 1823 por William Bullock para que sacara un molde. Al año siguiente se
decidió dejarla definitivamente a la vista: ‘considerando al pueblo maduro
para verla’.

La estudiosa de la cultura chicana Gloria Evangelina Anzaldúa, norteamericana de


origen mexicana, describió en Borderlands/La Frontera: La nueva mestiza (2016, p. 97) a
Coatlicue con las siguientes palabras
Coatlicue muestra lo contradictorio. En su imagen se integran todos los
símbolos importantes de la religión y la filosofía aztecas. Como la Medusa,
la Góngora, es un símbolo de la fusión de los opuestos: el águila y la
serpiente, el cielo y el inframundo, la vida y la muerte, el movimiento y la
inmovilidad, la belleza y el horror.

Anzaldúa es considerada la personificación de las tensiones que configuran la


experiencia que es vivir en “zonas de contacto” (PRATT, 2010, p. 31) es decir, en los
“[...] espacios sociales en que culturas dispares, se encuentran, chocan y se enfrentan, a
menudo dentro de relaciones altamente asimétricas de dominación y subordinación [...]”.
A través de los escritos de Anzaldúa comprendemos la importancia de reflexionar sobre
las relaciones jerárquicas impuestas a las culturas colonizadas, reflexiones que contribuyen
para la comprensión de la alteridad en el intuito de superar las huellas de la dominación
y subordinación con base en análisis retrógradas al respecto de los diferentes territorios,
pueblos y culturas que producen literaturas y artes consideradas estéticas decoloniales en
oposición a artes y literaturas eurocéntricas. Destacamos una de las reflexiones de Anzaldúa
(2016, s/p) que nos interroga sobre la diferencia
[...] Sim, venho de uma mestiçagem, mas quais são as partes dessa
mestiçagem que se tornam privilegiadas? Só a parte espanhola, não
a indígena ou negra. [...] Comecei a pensar em termos de consciência
mestiça. O que acontece com gente como eu que está ali no entre-lugar
de todas essas categorias diferentes? O que é que isso faz com nossos
conceitos de nacionalismo, de raça, de etnia, e mesmo de gênero?

Octavio Paz, en su texto “Diosa, demonia, obra maestra”, también reflexiona sobre las
diferentes concepciones de Coatlicue dependiendo de los ojos que la han observado a lo
largo de la historia
La carrera de la Coatlicue — de diosa a demonio, de demonio a monstruo
y de monstruo a obra maestra — ilustra los cambios de sensibilidad
que hemos experimentado durante los últimos cuatrocientos años.
Esos cambios reflejan la progresiva secularización que distingue a la

30
modernidad. Entre el sacerdote azteca que la veneraba como a una diosa
y el fraile español que la veía como una manifestación demoníaca. (PAZ,
2001, p.63)

Cabe destacar que el 17 de diciembre, cuatro meses después del hallazgo de Coatlicue,
encontraron la Piedra del Sol, esculpida posiblemente en la década de 1470, también
conocida como Calendario Azteca. De acuerdo con registros del fray Diego Durán en “La
Historia de las Indias de la Nueva España” e “Isla de la Tierra Firme” la escultura monolítica
había sido enterrada en el Zócalo a mediados del siglo XVI al mando del Fray Alonso de
Montúfar, dominico español y segundo arzobispo de México, por ser considerada piedra de
sacrificios: “La mando enterrar viendo lo que allí pasaba de males y homicidios y también
a lo que se sospecho fue persuadido la mandase tirar de allí a causa de que se perdiese la
memoria del antiguo sacrificio de que allí se hacía.” (DURÁN, 1880, p. 152). Después de
ser redescubierta, en 1790, la escultura de 358 centímetros de diámetro, 98 centímetros de
espesor y aproximadamente 21,8 toneladas fue instalada en la pared externa de la Catedral
Metropolitana donde era utilizada como tiro al blanco, de forma que estaba deteriorándose
poco a poco. Permaneció adosada a Catedral hasta 1885, año en que “la presión pública
permitió que este monumento extraordinario se conservase y fuese separado de las manos
de la iglesia y llevado a un museo.” (BÁEZ, 2010, p. 58) 
Imagen 2 - La piedra del sol

Fuente: LEÓN y GAMA (1832. p. 152)

El redescubrimiento de las esculturas prehispánicas en 1790 fue de gran importancia


para el inicio de la preservación cultural indígena mexicana, como lo destaca Carlos
Navarrete (2000, p. 8) al registrar que
A partir de su descubrimiento (ambas piezas) el pasado prehispánico ya
no se destruye. Los conquistadores arrasan con la civilización indígena,
con su arquitectura, su religión, cultura, con todo. Pero esto se detiene

31
en 1790. Nace el acto de conservar, una nueva actitud ante el patrimonio
prehispánico, nace el primer museo y la primera publicación de carácter
arqueológico que es la de León y Gama.

La obra de León y Gama (1792), astrónomo, antropólogo y escritor nacido en el


Virreino de Nueva España en 1735, marca el inicio de los estudios arqueológicos mexicanos
y el “acto de conservar” el patrimonio. Cabe destacar que ya en esa época León y Gama
registró sus inquietudes sobre el tratamiento dado a la memoria cultural indígena con
relación a los trabajos que estaban siendo realizados para la preservación de las culturas
europeas, y destaca la destrucción y ocultamiento cultural realizado durante la invasión y
colonización española
Si se hicieron excavaciones, como se hicieron de propósito en la Italia para
hallar estatuas y fragmentos que recuerden la memoria antigua de Roma,
¿y actualmente se están haciendo en España [...] cuantos monumentos
históricos no se encontrarían en la antigüedad indiana? cuantos libros y
pinturas que ocultaron aquellos Sacerdotes de los ídolos, y principalmente
de Teoamoxtli, en que terían escrito con sus propios caracteres su origen;
los progresos de su nación desde que salieron de Aztlan para venir a poblar
las tierras de Anahuac; los ritos y ceremonias de su Religión; los principios
fundamentales de su Cronología y Astronomía &c? Y cuantos tesoros no se
descubrirían? (LEÓN y GAMA, 1792, p. 2)

El cronista español Bernal Díaz del Castillo destaca la admiración manifestada por
los españoles al observar las construcciones mexicas, lo que nos lleva a identificar un
comportamiento contradictorio por parte de esos extranjeros, pues al mismo tiempo que
destruían los elementos constitutivos de esa cultura demostraban admiración por ella,
como podemos observar en “Historia verdadera de la conquista de la Nueva España”
(BERNAL DÍAZ DEL CASTILLO, 1960, p. 260),
Y otro día por la mañana llegamos a la calzada ancha y vamos camino de
Esta- palapa. Y desque vimos tantas ciudades y villas pobladas en el agua,
y en tierra firme otras grandes poblazones, y aquella calzada tan derecha
y por nivel cómo iba a Méjico, nos quedamos admirados, y decíamos que
parecía a las cosas de encantamiento que cuentan en el libro de Amadís, por
las grandes torres y cues y edificios que tenían dentro en el agua, y todos
de calicanto, y aun algunos de nuestros soldados decían que si aquello que
veían, si era entre sueños, y no es de maravillar que yo lo escriba aquí de
esta manera, porque hay mucho que ponderar en ello que no sé cómo lo
cuente: ver cosas nunca oídas, ni vistas, ni aun soñadas, como veíamos.

Ese pensamiento contradictorio que se desprende del contraste entre los registros de
Torquemada y Bernal del Castillo tal vez pueda ser comprendido a partir de las palabras de
Octavio Paz (1997, p. 65) al reflexionar sobre la conciencia histórica europea al depararse
con las impenetrables culturas americanas “A partir de la segunda mitad del siglo XVI se
multiplicaron las tentativas para suprimir unas diferencias que parecían negar la unidad
de la especie humana”. El poeta y crítico mexicano destaca también que a pesar de las
acciones españolas para encubrir las creencias de esas culturas diferentes “[…] la otredad
americana reaparecía. Era irreductible. El reconocimiento de esa diferencia, al expirar el
siglo XVIII, fue el comienzo de la verdadera comprensión”. Y concluye refiriéndose a la
importancia de reconocer al otro en su diferencia, reconocimiento que según Paz (1997, p.
64-65) implica una paradoja, puesto que “el puente entre yo y el otro no es una semejanza
sino una diferencia. Lo que nos une no es un puente sino un abismo. El hombre es plural:
los hombres.”
32
Sobre los códices aztecas, el sacerdote jesuita Francisco Xavier Clavijero (1945, p.
131) informa que “los primeros misioneros sospechando superstición en todas ellas, las
persiguieron a sangre y fuego. De cuantas pudo haber a las manos de Tezuco, donde
estaba la principal escuela de pintura (de códices) hicieron un grandísimo montón y
le pegaron fuego en la plaza del mercado”. En su texto informa que los cimientos de la
primera iglesia de México fueron construidos junto con sus ídolos, además de haber
demolido millares de estatuas indígenas. De acuerdo con el historiador argentino José
Luis Romero (2004, p. 137).
A Cidade do México, erguida à custa da destruição dos templos de
Tenochtitlán [...] ‘Ali morreram muitos índios’ – dizia frei Toribio de
Benavente – ‘e demoraram muitos anos até conseguirem arrancar a base,
de onde saiu uma infinidade de pedras’. Com elas, os senhores fizeram
aquelas casas que, em 1554, provocavam a admiração de Cervantes de
Salazar [...] Por causa de sua solidez, qualquer pessoa diria que não se
tratava de casas, mas, sim, fortalezas.

Aún en 2019 se intenta explicar el trazado de la ciudad de Nueva España y justificar


la destrucción de Tenochtitlan como consta en el Boletín n. 164 del 4 de junio de 2019
publicado por la Secretaria de Cultura de Ciudad de México:
La zona devastada tras la caída de Tenochtitlan, el 13 de agosto de 1521,
más de 170 hectáreas equivalentes a una cuarta parte de la otrora capital
mexica, experimentó en los tres años subsecuentes, una transformación
para resignificarse bajo el contexto de espacialidad, vivienda y uso español.

El boletín revela también que


la demolición de los templos menores del centro ceremonial, dejó una
enorme área despejada, de formato rectangular, donde actualmente se
encuentra la Catedral Metropolitana. Este gran espacio rectangular estaba
limitado al norte por la calle de las Escalerillas, al sur por la Acequia Real,
al este por el Palacio de Moctezuma y al oeste por el Palacio de Axayácatl,
representando la primera plaza de la Ciudad de México, la cual hoy ya no
existe.

Con relación a la concepción del Arte, Walter Mignolo destaca que el verdadero sentido
del concepto de aesthesis3 Con relación a la concepción del Arte, Walter Mignolo destaca
que el verdadero sentido del concepto de aesthesis a partir del siglo XVIII “se restringe,
y de ahí en adelante pasará a significar ‘sensación de lo bello’. Nace así la estética como
teoría, y el concepto de arte como práctica.” (MIGNOLO, 2007-2008, p. 3) El problema,
según Mignolo, es que la experiencia específica europea sobre lo bello no es universal,
pues no es necesariamente la misma experiencia sensorial experimentada por otras
comunidades. De manera que la teoría sobre las sensaciones (aesthesis) se universalizó
devaluando todo entendimiento de arte que no haya sido conceptualizado en los términos
europeos. Zulma Palermo propone reflexionar sobre el significado del Arte latinoamericano
con base en “un proceso de des-prendimiento de todos esos imperativos consecuentes del
proyecto eurocentrado”, imperativos que comprenden “los rigores de escuelas y modelos,

3 “La palabra aesthesis, que se origina en el griego antiguo, es aceptada sin modificaciones en las lenguas modernas
europeas. Los significados de la palabra giran en torno a vocablos como “sensación”, “proceso de percepción”,
“sensación visual”, “sensación gustativa” o “sensación auditiva”. De ahí que el vocablo synaesthesia se refiera al
entrecruzamiento de sentidos y sensaciones, y que fuera aprovechado como figura retórica en el modernismo poético/
literario.” (MIGNOLO, 2007-2008, p. 13)

33
competencias y requerimientos de ‘marqueting’ […] persistentes en el tiempo” (2014, p.9).
Es decir, pensar el Arte a partir de la producción local, alejados del patrón eurocéntrico.
Ese desprendimiento que menciona Palermo es de vital importancia al optar por
la perspectiva decolonial que va en sentido opuesto a los imperativos del proyecto
eurocentrado. Cabe destacar que el término decolonial no significa simplemente
[…] pasar de un momento colonial a un no colonial, como que fuera posible
que sus patrones y huellas desistan de existir. La intención, más bien, es
señalar y provocar un posicionamiento –una postura y actitud continua–
de transgredir, intervenir, in-surgir e incidir. Lo decolonial denota,
entonces, un camino de lucha continuo en el cual podemos identificar,
visibilizar y alentar ‘lugares’ de exterioridad y construcciones alternativas.
(WALSH, 2009, p. 14-15)

Se trata, por lo tanto, de un posicionamiento transgresor de resistencia que permite


el desvelamiento de pensamientos originados en “lugares-otros” y de la permanencia de
construcciones culturales de genealogías racionales-otras diferentes de las generadas por
el pensamiento dominante de la modernidad/colonialidad. El concepto de colonialidad,
entendido como perpetuación y permanencia del colonialismo, detiene en sí mismo la
diferencia colonial, diferencia instaurada en la modernidad, cuyo inicio
[…] se encuentran en la Conquista de América y no en la posterior
Ilustración o al finalizar el siglo XVIII, pues es en la conquista donde se
origina la construcción del ‘otro’ por la episteme europea […] Como lo
han puesto en evidencia los estudios sobre el período colonial, es en ese
momento cuando se producen los debates teológicos sobre los ‘derechos
de gentes’ y cuando se instalan los principios más radicales de la diferencia
étnica. (PALERMO, 2019, p. 11)

Por lo que concordamos con Palermo cuando destaca que las manifestaciones
artísticas deben ser observada con una “mirada decolonizante” de manera que se valoren
las “expresiones marginalizadas por su diferencia con el canon occidental y la consecuente
propuesta de museologías otras” (2019, p. 13), a lo que podemos añadir, que sean
valoradas también las propuestas patrimoniales otras que aún no han tenido la suerte de
ser comprendidas en su diferencia como ocurrió, aunque tardíamente, con las esculturas
mexicas destacadas en este estudio.

Referencias Bibliográficas

ANZALDÚA, Gloria Evangelina. Borderlands/La Frontera: La nueva mestiza. Trad. Carmen Valle. 2ª ed.
Madrid: Artes Gráficas Cofás, 2016.

ANZALDÚA, Gloria Evangelina. An Interview with Gloria Anzaldúa. Iowa Journal of Cultural Studies. n.
14, p.12-22, 1995. Disponible en: https://ir.uiowa.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1190&context=ijcs
Acceso en 02/11/2020.

BÁEZ, Fernando. El saqueo cultural de América Latina: de la colonización a la globalización. 2 ed. Buenos
Aires: Debate, 2010.

CLAVIJERO, Francisco Xavier. Historia antigua de México. Vol II. México: Porrua, 1945.

DÍAZ DEL CASTILLO, Bernal. Historia verdadera de la conquista de la Nueva España. Ed. Porrúa: México,
1960.

DÍAZ MERINO, Ximena Antonia. Poesia en doble registro: una estratégia de resistência cultural do povo
mapuche. Revista de Literatura, História e Memória. vol. 9, n. 14, p. 27-42, 2013.

DURÁN, Diego. La Historia de las Indias de la Nueva España e isla de la Tierra Firme. Tomo II. México:

34
Imprenta de Ignacio Escalante, 1880. Disponible en https://archive.org/details/historiadelasind02dur/
page/n4/mode/1up/search/Montúfar Acceso en 10/02/2020.

GARCÍA CUETOS, M.ª Pilar. El patrimonio cultural: conceptos básicos. Zaragoza: Prensas Universitarias
de Zaragoza, 2011.

LEÓN y GAMA, Antonio de. Descripción histórica y cronológica de las dos piedras. 2ª ed. México:
Imprenta del ciudadano Alejandro Valdés, 1832. Disponible en http://cdigital.dgb.uanl.mx/
la/1080017464/1080017464.PDF Acceso en 01/11/2020.

MIGNOLO, Walter. Historias locales/diseños globales Colonialidad: conocimientos subalternos y


pensamiento fronterizo. Madrid: Ediciones Akal, 2003.

MIGNOLO, Walter. “Mimesis & Transgression / Mimesis y Transgresión” [S3BM5A], de Black Mirror / Espejo
Negro: Suites Fotográficas, Pedro Lasch, 2007-2008.

NAVARRETE, Carlos. Palenque, 1784: el inicio de la aventura arqueológica


maya. México: UNAM, 2000. Disponible en: https://books.google.com.br/
books?id=j9GgvQqFHcwC&printsec=frontcover&source=gbs_atb#v=onepage&q&f=false Acceso en
07/02/2020

PRATT, Mary Louise. Ojos imperiales: Literatura de viajes y transculturación. Trad. Ofelia Castillo. México:
FCE, 2010.

PALERMO, Zulma [et. al.]. Arte y estética en la encrucijada decolonial. 2 ed. Ciudad Autónoma de Buenos
Aires: Del Signo, 2014.

PALERMO, Zulma. Alternativas locales al globocentrismo [1991]. Revista de Estudios Internacionales. v.


1, n. 2, p. 8-17, jul./dic. 2019. Disponible en https://revistas.unc.edu.ar/index.php/revesint/article/
view/27002 Acceso en 01/11/2020.

PAZ, Octavio. Diosa, demonia, obra maestra. Documentación fotográfica de la acción Sometimes Making
Something Leads to Nothing. Ciudad de México: Francis Alÿs, 1997. p. 62 - 65.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América Latina. Ecuador Debate. n. 44,
p. 227-238, ago. 1998. Disponible en: www.flacsoandes.edu.ec Acceso en 06/11/2020.

ROMERO, José Luis. América Latina: as cidades e as ideias [1976]. Trad. Bella Jozef. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2004.

SECRETARIA DE CULTURA. Revelan cómo se definió la primera traza de la ciudad novohispana, tras la caída
de Tenochtitlan. Dirección de Medios de Comunicación. Boletín n. 1644 de junio de 2019. Disponible
en: <https://www.inah.gob.mx/attachments/article/8171/20190604_boletin_164.pdf> Acceso el 05 de
febrero de 2010.

SCHÁVELZON, Daniel. La conservación del patrimonio cultural en América Latina: restauración de


edificios prehispánicos en Mesoamérica 1750-1980. Buenos Aires: Alsina. 1990.

SCHÁVELZON, Daniel. La pirámide de Cuicuilco. México: F.C.E.,1993.

TORQUEMADA, Juan fray. Monarquía indiana [1615]. 3 ed. México: UNAM,1975. Disponible en: http://
www.historicas.unam.mx/publicaciones/catalogo/ficha?id=154 Acceso el 01/02/2020.

UNESCO. 1982 - 2000: de MONDIACULT a “Nuestra diversidad creativa”. Disponible en: https://ich.
unesco.org/es/1982-2000-00309 Acceso en 11/08/2020.

VAILLANT, George C. La civilización Azteca [1941]. 4 ed. México: F.C.E., 1965.

WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito:
Universidad Andina Simón Bolívar: Ediciones Abya-Yala, 2009. Disponible en: http://www.flacsoandes.
edu.ec/interculturalidad/wp-content/uploads/2012/01/Interculturalidad-estado-y-sociedad.pdf

35
A presença de Malinche no lienzo de
tlaxcala sob a ótica do patrimônio cultural
histórico nacional
Walquíria Rodrigues Pereira

Apresentação

Malintzin é o nome que evoca a perda dos nahuas, a história pintada


e o peregrinar de mulheres vendidas e transportadas de uma região
para outra, de um homem para outro, de uma maneira de viver para
outra, todas incertas. (ROBLES, 2019. p. 291)

Nos últimos anos, podemos observar o crescente número de trabalhos referente aos
estudos críticos literários, que se propõem a discutir novas perspectivas sobre a história
e suas figuras. Nomes, personagens, discursos e documentos antes considerados como
verdade irrefutável são analisados e discutidos pela ótica dos sujeitos subalternizados que
foram submetidos à colonização.
Nesse sentido, um dos personagens significativos é Malinche, a mulher indígena que
atuou como a intérprete do conquistador Hernán Cortés durante a invasão do México
no século XVI. Séculos após o estabelecimento da conquista e depois de proclamada a
independência do México em 1821, surge o nacionalismo, já no século XIX. O nacionalismo,
que tinha como proposta um afastamento da influência espanhola, buscava nos mitos uma
forma de solidificar a identidade nacional. Desse modo, o discurso nacionalista transformou
Malinche no mito da mãe traidora, que se rendeu e se entregou ao conquistador ao se virar
contra o seu povo e sua nação ao atuar como intérprete e dá à luz a um filho com o Cortés,
mesmo que a ideia de nação mexicana fosse inexistente nos tempos da conquista. Essa visão
que trazia Malinche como traidora e apoiadora dos europeus na invasão foi apoiada pelo
discurso liberal, que a colocou como bode expiatório, ou seja, como a responsável pela culpa
da colonização.
Octavio Paz no seu ensaio “El laberinto de la soledad” (1950) deixou bem claro que os
mexicanos sofrem com sua situação de órfãos, sem origem, pois não desejam descender
nem de indígenas e nem de europeus pelo fato dessa origem está marcada com sangue,
violência e morte. Nessa ótica, Malinche é a mãe renegada da nação mestiça, pois foi
passiva, cúmplice do conquistador e permissiva da dizimação sofrida pelo seu povo.
Com as discussões propostas pela crítica literária, como nos estudos de Margo Glantz
(1995; 2001); Cristina González (2002); Jean Fraco (2005); Matthew Restall (2006);
Martha Robles (2019) entre outros; a figura de Malinche passou a ser relida com mais
37
atenção. Isto é, Malinche é relida como a mulher e intérprete vítima da colonização e não
apenas como amante e cúmplice do conquistador. Ela passou a ser enxergada não mais
como a mulher traidora, aquela que abriu a si e as suas terras ao estrangeiro, mas sim
com a mulher refém de um sistema violento, que na condição de escrava, como outras
mulheres indígenas, ficou à mercê do trânsito dos senhores que lhe eram designados.
Malinche carrega o peso da mestiçagem, devido ao filho que deu à luz de Hernán Cortés.
A mestiçagem presente na identidade mexicana é retratada pelo peso do conflito entre
as duas culturas, entre esses dois espaços. Malinche foi a mulher indígena que transitou
nesse lugar, ou melhor, nesse entre-lugar.

Uma releitura decolonial de Malinche a partir do entrelugar

Para a maioria dos cronistas, Malinche foi uma indígena que nasceu na região do
Golfo do México, natural de Painalla, que na invasão do México pelos espanhóis foi
usada como intérprete, muitas vezes chamada “língua” de Cortés. Sua mãe, após novo
matrimônio, a entregou aos índios de Xicalango para evitar conflito entre o novo herdeiro
na divisão do cacicado.
A partir desse triste evento, Malinche na condição de escrava e pouco depois da
adolescência, com a chegada dos conquistadores espanhóis, foi ofertada como presente com
um grupo de cerca de vinte outras mulheres indígenas para a tropa de Cortés. Mulheres que
foram ofertadas como objetos para serem escravas. Em seguida, foi batizada de acordo com
a crença do catolicismo e (re)nomeada Doña Marina.
A indígena logo se destacou ao notarem sua habilidade linguística, a facilidade que
possuía ao aprender línguas. A mulher que falava náuatle, ao ser vendida a outros indígenas,
aprendeu a falar maia e, com a convivência, o espanhol. Isso a permitiu atuar ao lado do
clérigo espanhol Jerónimo de Aguilar. O clérigo era o intérprete nesse momento, pois
devido a sua convivência com os indígenas teve com resultado a fluência em maia. Porém,
Jerónimo não falava náuatle sendo necessária a intervenção de Malinche, que falava as duas
línguas, na tradução de náuatle para maia. Quando a indígena se apropriou do castelhano,
a atuação de Aguilar tornou-se obsoleta.
Malinche tornou-se a intérprete daquele cenário conflituoso, deixando claro que a
posição não dependia da vontade de seus atuantes, mas sim da conveniência e estratégia
dos espanhóis na busca de um avanço mais rápido e significativo para a tomada das terras.
Mais tarde, depois que seu papel deixou de ser crucial e a conquista foi estabelecida, ela
gerou um filho com o colonizador, como outras indígenas, chamado Martín. Esse filho,
fruto das duas culturas, é considerado pelos mexicanos como a representação simbólica do
primeiro mestiço, que como mencionado anteriormente, é um simbolismo composto pela
carga de violência e submissão ao domínio europeu.
Ao observar o trânsito de Malinche é possível perceber que desde a infância os
acontecimentos de sua vida já provocavam uma situação que a deixava deslocada. Foi
vendida por sua mãe, ofertada aos colonizadores pelo seu próprio povo e usada como escrava
tanto na condição de intérprete como sexual. Mesmo antes da chegada dos espanhóis já se
encontrava à margem, e pelo fato de ser vendida, é possível que sofresse com a falta de
pertencimento. Malinche estava no trânsito entre as duas culturas.
Silviano Santiago (2000, p. 26) afirma que “a literatura latino-americana de hoje

38
nos propõe um texto e, ao mesmo tempo, abre o campo teórico onde é preciso se inspirar
durante a elaboração do discurso crítico de que ela será o objeto.” É importante analisar
as limitações que os textos históricos possuem para propor um diálogo. O olhar sobre a
América e o processo de colonização precisa estar além da tentativa de cópia proposta pela
Europa. O desafio é um olhar despido de nós, mas enxergando a perspectiva outra, pois se
as lentes estiverem arranhadas com as marcas do colonialismo não será possível ver o outro
como mais, isto é, além da perspectiva limitante que é atribuída a ele.
Em tal caso, a invasão da América gerou uma colonialidade do ser, pois nega a
humanidade dos povos indígenas, considerados bestas e selvagens, e em consequência
a liberdade, tratando-os como culturalmente atrasados ou menos civilizados. A
decolonialidade é uma proposta que refuta essa desumanização presente na colonização, no
sentido da não-existência como ressalta Catherine Walsh (2005). O colonialismo nega ao
outro a característica da humanidade, deixando-o com as estruturas culturais e identitárias
abaladas.
É válido refletir sobre quem fala de quem ou por quem, nos processos de colonialidade
de poder. De onde vem o discurso? Ele ainda é eurocêntrico? Os sujeitos subalternizados
precisam ter suas perspectivas inseridas no pensamento crítico, além da valorização de
seus saberes distintos, visto que, são povos considerados historicamente à margem na
existência cotidiana. O pensamento decolonial não consiste em simplesmente deixar
de ser colonizado, todavia, como próprio nome sugere, surge como uma proposta de
descolonização epistemológica. Isto é, ressalta a importância das discussões sobre as
relações históricas e seus legados. O ato de confrontar o colonial sob a ótica do outro, sob a
ótica do indivíduo que foi subalternizado pela dominação colonial.
Diante disso, é plausível considerar a reflexão acerca do entre-lugar, termo cunhado
por Silviano Santiago nos anos 1970, que conjectura esse como um espaço intermediário
e paradoxal. O pensamento reflexivo sobre o entre-lugar contrapõe o imperialismo, pois
a formação desse lugar (entre-lugar) no mundo é marcada pela diferença e contrariedade
entre os espaços. Ao propor um espaço entre dois lugares a ideia de dualidade é rompida.
Esse espaço intermediário é habitado por aqueles que foram deslocados de seus
lugares e culturas, destinados a perambular entre uma cultura e outra, entre um mundo
e outro, mas nunca em um deles. Malinche foi deslocada até ser designada a ocupar esse
lugar. Seu destino foi selado ao ser vendida pela sua mãe e dada à tropa de Cortés. Aos
olhos dos espanhóis era uma escrava e intérprete, nunca seria reconhecida europeia e
não escolheria seu próprio marido ou teria sua liberdade, pois até os filhos de espanhóis
nascidos na América tinham direitos restritos. Aos olhos dos indígenas era uma mulher
escrava, que provavelmente era vista como traidora por ajudar os europeus, mesmo que
sem escolha. Malinche representa o ocupar do entre-lugar, uma vez que estando no meio de
duas culturas, de certa maneira, não pertencia a nenhuma delas.
Hanciau (2012, p. 127) defende que “o desejo de releitura dos tradicionais espaços
de enunciação desafiados pelos discursos pós-colonialistas [...] fez com que fossem
criados esses novos espaços, que [...], atendem ao apelo de instâncias subjetivas dos
discursos em circulação.” A ideia de ruptura da noção de universalização visa uma
análise sobre a heterogeneidade da cultura latino-americana e questiona a referência
única atribuída a Europa.
O entre-lugar é considerado um espaço entre os opostos, uma “aglutinação dos

39
contrários”, além de um “terceiro tipo de construção identitária” onde os fluxos migratórios
são frequentes e numerosos (HANCIAU, 2012, p. 128).

Refletindo sobre o patrimônio cultural

O raciocínio acerca do termo patrimônio transmite a ideia de algo material herdado,


repassado de geração a geração. No sentido geral, pode ser considerado o conjunto de bens
materiais e imateriais herdados de nossos antepassados, que serão transmitidos aos nossos
descendentes. A perspectiva do patrimônio cultural está além e se apresenta como os bens e
costumes transmitidos pelo reconhecimento de valor presente neles, sendo atribuído como
propriedade coletiva (GARCÍA CUETOS, 2011), isto é, não é individual, mas faz parte da
cultura. É uma herança cultural.
Considerado parte do imaginário coletivo, é uma construção social, já que a sociedade
atribui sentido e conteúdo ao reconhecê-lo como símbolo da identidade coletiva. A
UNESCO, durante a conferência geral de novembro de 1972 em Paris, propôs a seguinte
definição para o termo patrimônio cultural.
[...] são considerados “patrimônio cultural”: - os monumentos: obras
arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas
arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional
do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, - os conjuntos: grupos
de construções isoladas ou reunidas, que, por sua arquitetura, unidade
ou integração à paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de
vista da história, da arte ou da ciência, - os sítios: obras do homem ou
obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que incluem
os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista
histórico, estético, etnológico ou antropológico. (UNESCO, 1972, p. 2-3)

Para a UNESCO o patrimônio mais valioso da humanidade é a raça humana,


justamente pelas suas características únicas que os distinguem dos seres viventes. O ponto
de encontro entre homem e patrimônio está diretamente marcado pelo território e as
tensões transmitidas por eles. Assim, o território é fator determinante entre o homem e o
seu patrimônio, pois é o resultado da dialética entre homem e o meio, entre a comunidade e
o território, como podemos observar nas reflexões de Díaz Cabeza (2011).
A existência do patrimônio provoca conforto no ser humano através da sensação
de continuidade no tempo, perpetuação de tradições culturais a pertencimento a uma
identidade cultural. A tradição, por meio do patrimônio cultural, transmite significação sobre
a identidade, seja pelas expressões orais ou pelas tradições culturais distintas em cada país.
O patrimônio cultural pode ser compreendido a partir de dois blocos: os bens
materiais tangíveis (móveis e imóveis) e os bens imateriais intangíveis, mais conhecidos
como patrimônio cultural material e patrimônio cultural imaterial, respectivamente. Os
bens materiais são as manifestações propriamente materiais de uma determinada cultura,
como por exemplo, os objetos histórico-sociais, a natureza, os documentos históricos, os
sítios arquitetônicos, paleontológicos, etc. Os bens materiais subdividem-se em: a) bens
móveis, aqueles que por uso e tamanho podem ser transportados sem prejudicar o valor e a
qualidade como as obras de artes, documentos históricos e manuscritos; e b) bens imóveis,
que não são capazes de serem transportados do lugar a que pertencem como um edifício
reconhecido com patrimônio, um monumento comemorativo e histórico, reservas naturais
e áreas de sítios arqueológicas.

40
Os bens imateriais são as manifestações culturais marcadas pela tradição de uma
determinada cultura. Essas manifestações são observadas pelas formas de linguagem,
a presença da tradição oral, o folclore, os costumes, as danças características, os ritos
religiosos, a gastronomia típica tradicional, entre outras.
O patrimônio cultural é uma forte inspiração para a literatura de várias culturas.
Muitos autores da denominada literatura citadina expõem relatos sobre a vida da e na
cidade. A relação entre patrimônio e literatura pode ser constatada pela manifestação do
barroco. O barroco foi a manifestação cultural ocorrida entre os séculos XVII e XVIII na
hispano-américa, que marca o confronto de ideias contraditórias. O homem barroco era um
ser que conflitava entre o seu próprio eu e o mundo.
As influências culturais pré-colombianas, europeias e a própria condição criolla e
mestiça proporcionaram um espaço de experimentação, que conduziu a complexidade
de uma identidade. O patrimônio barroco é o reflexo da própria heterogeneidade latino-
americana. Seu valor cultural é inestimável. As transformações culturais permitem analisar
o patrimônio sob uma nova ótica. Pensando nisso, é válida a proposta de observação sobre
o Lienzo de Tlaxcala, como patrimônio cultural material móvel, para pensar o contexto de
sua produção e a presença da indígena e intérprete Malinche.

A figura de Malinche nos códices coloniais

Os códices coloniais mesoamericanos, considerados documentos pictográficos que


narram a conquista pelos indígenas, fazem parte da cultura e da história tanto do povo
indígena como da América. Neles, é possível observar os acontecimentos que marcaram o
encontro entre indígenas e espanhóis. A produção de manuscritos pictográficos estendeu-se
até o século XVIII.
Durante a época do vice-reinado, as imagens da produção indígena eram uma espécie de
prova escrita apresentada à coroa para requerer os poucos direitos dados pelos vencedores,
sobre suas próprias terras. Também, era uma forma da igreja conhecer as crenças religiosas
nativas e combatê-las para promover evangelização. Os responsáveis pela elaboração dos
códices, chamados tlacuilos, foram convertidos em decoradores dos templos católicos. Eles
eram tidos como escribas, desenhistas e sábios, já que, também estavam a cargo dos mapas,
genealogias, ritos cerimoniais, livro de lei, além da interpretação do universo de crenças
mesoamericanas.
As telas de papel amate e de algodão, pincéis, compassos e as tintas caracterizavam a
produção do documento e as casas de códices, bibliotecas, eram responsáveis por guardá-
los. Muitos freis cronistas da conquista observaram o valor da riqueza e do testemunho
desses manuscritos e os incluíram no processo de confecção de suas crônicas. Um dos
mais famosos é o do sacerdote católico Bernardino de Sahagún, onde descreve a vida no
México, conhecido como “Códice Florentino”. Também há diversos outros como o “Códice
Durán”, “Códice Mendonza”, “Anais de Cuauhtinchan”, “Manuscrito de Glasgow”, “Lienzo
de Tlaxcala”, que trataremos mais adiante, entre outros.
Devido ao contexto histórico, a figura de Malinche aparece em alguns deles. A indígena
é descrita pela atuação de seu papel como intérprete na comunicação entre indígenas e
espanhóis. Abaixo, é possível ver alguns exemplos desses testemunhos pictográficos sobre
a conquista.

41
Figura 1: Malinche atuando como intérprete

Fonte: Códice Mendoza

Na imagem do códice é possível observar a atuação de Malinche como discutido


anteriormente. A interprete literalmente está no centro do diálogo, no centro da
comunicação e das duas culturas, os sinais vistos suspensos no ar são representantes
dessa comunicação. Malinche é descrita com as características da cultura indígena como
é observado nos detalhes de sua vestimenta. Malinche recebe as palavras que saem da
boca dos líderes indígenas para transmiti-las aos espanhóis, ocupando o entre-lugar desse
enredo, visto que, sua visão era conflitante entre as duas culturas: por um lado desejava o
fim dos sacrifícios humanos e por outro desejava a sua liberdade.

Figura 2: Chegada de Cortés ao porto de Chalchiuheueyecan e a recepção Moctezuma

Fonte: Códice Durán

42
Essa representação narra a chegada das caravelas ao porto de Chalchiuheueyecan e
como depois dos mensageiros irem de encontro aos recém-chegados se estabeleceu a
crença do retorno do deus criador e exilado, Quetzálcóatl, que na cosmovisão dos povos
originários regressaria em favor do seu povo. Diante do exposto, o imperador Moctezuma
saiu ao encontro de Cortés crendo que receberia seu deus. Mal sabia o imperador que seu
destino era de morte e que a queda da sua cidade viria das mãos daquele que com tanto
vigor celebrara, provendo tudo quanto necessário.
Figura 3: Cortés y Malinche

Fonte: Manuscrito de Glasgow

As ilustrações desse manuscrito apresentam um cunho religioso. Durante as diversas


ilustrações é possível encontrar elementos religiosos como a cerimônia de batismo dos
quatro líderes de Tlaxcala, além de imagens da Virgem Maria. Na imagem trazida há
elementos religiosos como a cruz, Jesus, a pomba, além do fato de Cortés está olhando
para os céus e Malinche com as mãos entrelaçadas como um sinal de prece, que contrasta
com a violência e morte provocada com a chegada dos europeus. Parece que a conquista, a
ganância e a violência são justificadas e até mesmo abençoadas pelo divino para os fins de
“salvação”, mas na verdade, o ato era motivado pela exploração.

43
Lienzo de Tlaxcala: a batalha e a presença de Malinche no documento

O “Lienzo de Tlaxcala” se apresenta como uma produção política marcada pelas


diferentes significações entre o discurso indígena e europeu. A produção indígena do século
XVI é o conjunto de manuscritos pictográficos que narram a participação dos tlaxcaltecas
como aliados dos espanhóis na conquista e no combate a outros povos vizinhos, cujo
objetivo era ser um instrumento político de uma organizada e longa campanha.
Assim, foram confeccionadas três versões: a primeira para Carlos I, rei da Espanha; a
segunda para o representante da coroa na América, o vice-rei; e a terceira para o Cabildo de
Tlaxcala, espécie de sede administrativa da época. De teor estratégico e político, foi pensado
para ser destinado aos espanhóis, porém seu discurso era intencionado aos dois públicos: a)
para as autoridades indígenas, para mostrar a força da elite e da tradição indígena; e b) para
os espanhóis, para demonstrar a legitimidade dessas mesmas elites tlaxcaltecas diante da
coroa espanhola. Era um modo de reafirmar a proteção obtida pela aliança com os espanhóis
para não ter o mesmo destino de outros povos indígenas que foram exterminados.
O Lienzo de Tlaxcala possui semelhança com oitenta folhas do Manuscrito de
Glasgow, que corresponde ao texto de Diego Muñoz Camargo - filho de um espanhol que
acompanhava Cortés na conquista e uma nobre tlaxcalteca - de sua descrição sobre a cidade
de Tlaxcala. De acordo com suas considerações, a produção narra a obra missionária dos
franciscanos entre os tlaxcaltecas, além da chegada de Cortés e a da batalha realizada pela
aliança entre eles.
Ao observar algumas folhas do relato proposto pelo Lienzo, Malinche aparece atuando
como intérprete na comunicação entre os indígenas e Cortés. Abaixo, segue algumas lâminas
consideradas principais, que mostram a atuação dessa mulher indígena em conjunto com
outros personagens e elementos conflitantes do período colonizador, marcado por violência
que transformou a história do povo do México.

Figura 4: Indígenas oferecendo presentes a Malinche e Hernán Cortés

Fonte: Lienzo de Tlaxcala

44
Malinche, na passagem descrita como encontro e oferta de presentes dos indígenas
a Hernán Cortés, aparece no que poderia ser o início de sua interpretação nesse contexto
de estabelecimentos de aliança em Tlaxcala, visto que, seu papel é destacado. Novamente,
é possível enxergar a mulher no centro, no entre-lugar das duas culturas e suas vestes
repletas de detalhe e cor. Ela estabelece comunicação entre os dois mundos, marcada pelos
gestos de suas mãos. O dedo indicador estendido aponta a fala e o ato da tradução. A oferta
dos presentes, a árvore, a característica de espaço aberto, indica a chegada dos espanhóis e
o encontro inicial entre eles e os tlaxcaltecas.
Figura 5: Reunião entre Cortés e os quatro hierárquicos de Tlaxcala

Fonte: Lienzo de Tlaxcala

A seguinte lâmina relata a reunião entre os quatro líderes de Tlaxcala, que mais tarde
foram batizados pela igreja no processo de evangelização como mostra o Manuscrito de
Glasgow. Malinche é a tradutora, como mostram os sinais de suas mãos que indicam o ato
da tradução. Apesar de sua interpretação, o poder da fala é masculino. Além de Malinche,
há outras mulheres em cena, que possivelmente estão a serviço dessa reunião ou mesmo
oferecidas em casamento a favor dessa aliança, pois era um fato costumeiro nessa época. O
destaque oferecido a essas mulheres é reduzido, tendo em vista sua proporção na tela e pelo
fato de que nem todas aparecem completamente.

45
Figura 6: Xicohténcatl e Cortés aliados para a derrota de Moctezuma

Fonte: Lienzo de Tlaxcala

O ápice do conflito e o resultado da aliança entre espanhóis e tlaxcaltecas é visto nessa


imagem. O peregrinar da campanha e os esforços para eliminar as nações resistentes aos
avanços da colonização levaram à busca pela derrota do imperador Moctezuma e pela queda
de Tenochtitlán. Essa união é destacada pelo encontro de saudação entre Hernán Cortés
e Xicohténcatl, enquanto seus soldados marcham na direção da tomada do território.
Malinche, no centro e abaixo e em meio ao caos do processo, representa o encontro das
duas culturas, dos dois povos, porém sem pertencer a um deles de fato. A indígena está
no entre-lugar do diálogo da colonização, traduzindo palavras de ambos os lados, palavras
decisivas e determinantes, mas acima de tudo palavras que não eram suas, ou seja, que não
a pertenciam e nem foram usadas ao seu favor.

46
Figura 7: Reunião de Cortés e Moctezuma

Fonte: Lienzo de Tlaxcala

A imagem acompanha os fatos que sucederam a entrada em Tenochtitlán em 1519.


Malinche está atrás de Cortés, desfocada do centro, e parece assentir com as ações selvagens
oferecidas pela conquista, assim como os tlaxcaltecas. Sua posição pode ser entendida
pelo fato de seu papel ter deixado de ser crucial, uma vez que a cidade já foi invadida e
a negociação visava uma rendição de Moctezuma para fins de controle e exploração de
Tenochtitlán em nome da Coroa Espanhola. Malinche ainda desempenhava seu papel de
intérprete, mas não com o destaque de fora disposto anteriormente. Tanto nas situações
discursivas como nas representações em telas.
Figura 8: Cuauhtémoc rendeu-se a Hernán Cortés em Tlatelolco

Fonte: Lienzo de Tlaxcala

47
Aqui também é possível identificar a aliança dos tlaxcaltecas juntos aos espanhóis na
batalha contra as outras nações indígenas. Cuauhtémoc, um dos últimos governantes de
Tenochtitlán, se rende a Cortés. Após a rendição da autoridade indígena e a tomada da
cidade, a figura de Malinche está posicionada atrás de Cortés e não ocupa mais o lugar
central na comunicação entre as duas. A indígena parece mais ouvir do que falar, parecendo
está relegada ao segundo plano da situação comunicativa, pois o espaço pertence a Cortés,
que colhe os frutos da rendição e celebra mais uma conquista sobre os povos indígenas.

Considerações finais

Em síntese, após os apontamentos propostos, é possível considerar que Malinche


foi triplamente traída. Primeiro por sua mãe, ao ser vendida. Segundo por seu povo, ao
ser dada como escrava de presente. E terceiro, pelos conquistadores que a usaram como
instrumento vital e linguístico para a conquista. Sob domínio de Cortés e um anseio de
liberdade, Malinche tinha um recurso poderoso: suas palavras. Porém, que em nenhum
momento desse triste enredo foi usado em seu favor.
Malinche foi a mulher indígena, assim como tantas outras, que não teve a liberdade
de escolher com quem se casaria. Foi dada em casamento, uma prática e destino comum
para mulheres indígenas para o estabelecimento de acordos. Martín, Diego Munõz e Inca
Garcilaso são exemplos do fruto de uniões entre pais espanhóis e mães indígenas, o próprio
Hernán Cortés que ao contribuir com a mestiçagem na América teve filhos com outras
mulheres além de sua esposa espanhola. Cortés não só engravidou Malinche, peça chave
na conquista, mas também Isabel Moctezuma, filha do imperador Moctezuma, entre outras
mulheres que poderiam lhe proporcionar vantagem política, pois o contrato de sangue e a
perpetuação de herdeiros estariam acima de qualquer outro.
O destaque de Malinche no lienzo tlaxcalteca acontece quando o uso de suas
habilidades linguísticas é essencial para o desenvolvimento da campanha de aliança e
dos acordos políticos. Depois disso, sua representação parece perder espaço e proporção
nas telas. Para cada etapa concluída, a indígena perde a relevância e o destaque na cena
comunicativa. Os discursos são construídos a partir de Cortés, Malinche é uma peça, uma
simples coadjuvante, que se transforma em figurante até sumir por completo. Ela nunca é
a principal. Assim como os tlaxcaltecas, Malinche pode não ser considerada uma traidora,
mas o reflexo da servidão, anseio de liberdade e sobrevivência. Um indivíduo que apenas
usava uma estratégia de autopreservação.
A produção do Lienzo de Tlaxcala é um relato pictográfico que mostra o retrato da
garantia indígena perante a Coroa Espanhola, que suas vidas seriam poupadas devido ao
acordo e apoio no combate aos outros povos indígenas. A riqueza patrimonial do documento
está justamente no fato de apresentar um significado muito mais que cultural e histórico.
Ele é, além de tudo, um tipo de contrato que reflete a busca pela liberdade, sobrevivência
e proteção.

Referências Bibliográficas
BROTHERSTON, Gordon. La Malintzinde los códices. In: GLANTZ, Margo (Coord.). Malinche, sus padres y
sus hijos. México: Santillana, 2001.

CÓDICES DE LA CONQUISTA. Pueblos originarios: escritura y simbología. Disponível em: https://

48
pueblosoriginarios.com/meso/maya/maya/codices/codices_coloniales.html. Acesso 5 de novembro de
2020.

DÍAZ CABEZA, María del Carmen. Criterios y conceptos sobre el patrimonio cultural en el siglo XXI.
Córdoba: Universidad Blas Pascal, 2010.

GARCÍA CUETOS, María Pilar. El patrimonio cultural: conceptos básicos. Zaragoza: Universitarias de
Zaragoza, 2011.

GONZÁLEZ HERNÁNDEZ, Cristina. Doña Marina (la Malinche) y la formación de la identidad mexicana.
Madrid: Ediciones Encuentros, 2002.

HANCIAU, Nubia-Jacques. Entre-lugar. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de Literatura e


Cultura. 2ª ed. Niterói: UFF; Juiz de Fora: UFJF, 2012.

LIENZO DE TLAXCALA. Pueblos originarios: escritura y simbología. Disponível em: https://


pueblosoriginarios.com/meso/valle/tlaxcalteca/lienzo.html. Acesso 5 de novembro de 2020.

NAVARRETE, Federico. Malinche, la virgen y la montaña: el juego de la identidad en los códices tlaxcaltecas.
História, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 288-310.

ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas. São Paulo: Aleph, 2019.

SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: _____. Uma literatura entre os
trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

UNESCO. Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Conferência geral da
Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura, Paris, de 17 de outubro a 21 de
novembro de 1972. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000133369_por. Acesso
5 de novembro de 2020.

WALSH, Catherine. (Re)Pensamiento crítico y (De) Colonialidad. In: ______. Pensamiento crítico y matriz
(de) colonial: reflexiones latinoamericanas. Quito: ABYA YALA, 2005.

49
A “desobediência epistêmica” de Asalto al
paraíso e suas contribuições
Renata Ferreira Alves

A “relatividade epistemológica” e o pensamento decolonial nas políticas


de patrimônio
“Se antes, quando se lidava com o conceito tradicional de
patrimônio, não parecia haver muita dúvida quanto aos
critérios para a classificação de um bem como patrimônio
cultural [...] hoje, com essa ampliação, toda a atribuição de
valor tem que ser explicitada, já que lidamos com uma matriz
muito mais complexa de valores”.
(Leonardo Barci Castriota, 2009)

Ao longo dos anos, a ideia de patrimônio cultural relacionada às grandes construções


monumentais do passado passou a sofrer consideráveis mudanças. De “monumento histórico
e artístico” à “bens culturais”, Leonardo Barci Castriota inicia sua obra Patrimônio Cultural:
conceitos, políticas e instrumentos (2009) apresentando as principais transformações em
torno deste conceito e de suas políticas de conservação. Atribuídas à nova configuração
da experiência temporal moderna, sob a ótica “da mudança, da substituição incessante de
valores e modelos” (CASTRIOTA, 2009, p. 14), as transformações do campo conceitual
no qual se articula a ideia de patrimônio cultural levantaram relações “com outras ideias
como as de cultura, tradição, modernidade, memória, história, entre outros” (CASTRIOTA,
2009, p. 14). Deste modo, ressalta Castriota (2009, p. 12), “não apenas os monumentos já
consagrados, mas diversas paisagens, tradições, expressões de arte, saberes populares e
documentos passaram a ser reconhecidos como patrimônio”.
Como explana a epígrafe introdutória, outra mudança, particularmente importante
para a presente discussão, gira em torno das políticas de conservação, isto é, o que deve
ser/é considerado patrimônio cultural e o que não deve/é? Castriota argumenta que:
Se pensarmos o patrimônio como um “campo”, no sentido que lhe dá
Pierre Bourdieu, espaço simbólico onde representações em disputa são
determinadas e validadas pelos diversos agentes, vemos o quanto este
campo se tornou mais complexo nas últimas décadas, passando de uma
temática de interesse restrito e limitada a algumas camadas de experts,
para um objeto que provoca controvérsia, mobilização e comoção pública
ao redor do globo (2009, p. 11).

Os questionamentos advindos do campo das ciências sociais e filosofia contribuíram


para um importante deslocamento e ampliação tanto do conceito, como das políticas de
patrimônio, destacando, com isso, cada vez mais, a necessidade de se explicitar as operações

51
de conservação. E a questão dos valores torna-se o elemento central das discussões
contemporâneas (CASTRIOTA, 2009). Obviamente, as avaliações e escolhas, permeadas no
processo de tombamento, ou seja, o reconhecimento do valor histórico de determinados bens
culturais ou artísticos, são atravessadas pela seletividade da ótica humana. Esta atribuição
valorativa sujeitada pelas decisões tomadas pelas comunidades e órgãos de preservação
será sempre um fator decisivo nas práticas do campo do patrimônio, como afirma Castriota
(2009, p. 95). No entanto, os paradoxos colocados pelos pensamentos contemporâneos
introduziram reflexões que, como vimos na epígrafe, “quando se lidava com o conceito
tradicional de patrimônio, não parecia haver muita dúvida quanto aos critérios para a
classificação de um bem como patrimônio cultural” (CASTRIOTA, 2009, p. 95). Com isso,
as políticas de patrimônio passaram a circunscrever um âmbito interdisciplinar no qual
abarcam história, antropologia, filosofia etc.
Por meio da atribuição de valores constitui-se uma adoção de significação impelida por
uma atitude subjetiva cuja problemática, ainda segundo Castriota, encontra-se no “próprio
relativismo epistemológico (e sua variante mais atenuada, o relativismo cultural)” (2009,
p. 95). Se pensarmos de acordo com as intervenções críticas de Aníbal Quijano, que afirma
“de algún extraño modo la especie animal que llamamos homo sapiens, es la única cuyo
sentido histórico de existencia, cuyo itinerario en el tiempo, por lo tanto también cuya
motivación central es el poder” (2009, p. 3, grifos nossos), poderemos compreender com
melhor propriedade o problema do “relativismo epistemológico” sinalizado pelas reflexões
contemporâneas conforme assinala Leonardo Barci Castriota (2009). Em estudos acerca
das ramificações do colonialismo e suas consequências nas dinâmicas sociais da América
Latina, Quijano argumenta em artigo intitulado Colonialidad del poder y clasificación social
(2014) que:
Desde el siglo XVIII, sobre todo con el Iluminismo, en el eurocentrismo
se fue afirmando la mitológica idea de que Europa era preexistente a este
patrón de poder; que ya era antes un centro mundial del capitalismo que
colonizó al resto del mundo y elaboró por su cuenta y desde dentro de la
modernidad y la racionalidad (2014, p. 287)

É válido sinalizar, como assim faz o sociólogo peruano, que as construções derivadas
e o termo “Europa” são arquitetados como metáforas de tudo que se estabeleceu como
expressão étnica e cultural referente a um caráter distintivo de identidade não submetida
à colonização e, posteriormente, à colonialidade (QUIJANO, 2014, p. 287). Dentro
dessa ordem de ideias, o curso constitutivo da história, da memória, das identidades
sociais e culturais de países submetidos à colonização europeia foi regido por relações
“intersubjetivas de dominación bajo la hegemonía eurocentrada” (QUIJANO, 2014,
p. 286), perpetuando os ideais colonialistas nas ações humanas contemporâneas. O
sociólogo aponta, com isso, para o enraizamento de uma subjetividade impregnada por
uma lógica de: estratificação, qualificação, superioridade que permeia desde a relação
social suas políticas organizacionais e institucionais. Podemos, pois, vincular, no âmbito
dos Estudos Decoloniais da América Latina a relatividade epistemológica envolvida nas
políticas de preservação e conservação de patrimônios culturais à colonialidade do poder
apresentada por Quijano.
Desde a chegada dos espanhóis, os territórios, posteriormente enquadrados em um
continente denominado americano, foram mais imaginados do que vistos. Neste sentido,
já propunha o historiador Edmundo O’Gorman que o tão disseminado e aclamado conceito
52
“descobrimento da América” fosse substituído por La Invención de América (1958), o
qual evidencia com mais veracidade o processo operativo de caracterização subjetiva do
continente, como, por exemplo, a ideia de um pedaço de terra sem memória. André Trouche
inicia seus argumentos no livro América: história e ficção, da seguinte forma:
14 de fevereiro de 1493. Um ponto qualquer do oceano Atlântico, na altura
das Ilhas Canárias. 18h 30min. Findas as manobras de ancoragem para
o pernoite e alimento, o Almirante se dirige, sisudo e pensativo para sua
cabine, no alto do castelo da popa. [...] A desafiá-lo, duas tarefas distintas
e complementares: informar e justificar [...]. Duas tarefas eminentemente
verbais (2006, p. 17).

Imaginando a força discursiva dos primeiros escritos históricos da América, Trouche


evoca as primeiras ações que deram início, - “totalmente no âmbito exclusivo da visão
europeia, balizada pela retórica do maravilhoso, próprio à crônica historiográfica
renascentista” (2006, p. 18) -, ao construto imagético e identitário americano imposto.
A perspectiva eurocêntrica, com todas as suas concepções de cultura, religião, história e,
inclusive, de humanidade, foi a responsável por idealizar e verticalizar o cenário americano,
utilizando um eficaz instrumento de propagação: a escrita. Como afirma o crítico
guatemalteco Arturo Arias, “la palabra nombra; la palabra indica; la palabra simboliza. La
palabra es, por lo tanto, por esencia, un signo ideológico” (1992, p. 42).
As descrições, que desde então se realizaram sobre a região e seus habitantes, criaram
uma identidade fictícia na qual reproduzem um imagético cenário acorde com os projetos
globais de hierarquização e estratificação de categorias sociais. Igualmente a outras regiões
– e ao mesmo tempo apresentando especificidades próprias –, a exemplo de Costa Rica
que foi, segundo ressalta a professora e doutora María Isabel Carvajal Araya, “repartida y
saqueada a conveniencia” (2011, p. 17). O discurso oficial do país, por exemplo:
hace creer que nuestros indígenas fueron más bien sumisos y hasta cobardes
y, como soporte a esta idea, los relatos que mencionan rebeliones y luchas
encarnecidas permanecen silenciados o apenas citados brevemente por el
discurso oficial y hegemónico (CARVAJAL ARAYA, 2011, p. 18).

Corroborando com Carvajal Araya, o antropólogo Carlos Leonel Borge Carvajal


(2013) afirma que foram incontáveis os atos de resistências armada contra a colonização
espanhola na região atlântica, hoje conhecida como Talamanca, todavia pouquíssimos são
os dados históricos que exaltam esses acontecimentos ou, quando aparecem, apresentam
argumentos partindo de um horizonte colonizador. Os seguintes extratos, retirados de um
registro histórico oficializado em 1889 por León Fernández, diz o seguinte:
Los indios sublevados incendiaron catorce iglesias que los misioneros
habían edificado en los pueblos de Talamanca y quemaron los
ornamentos, las vestiduras y los cuerpos muertos. Perecieron en las
diversas refriegas que tuvieron con los indios diez soldados españoles.
En su retirada á Cartago, fray Antonio de Andrade y sus compañeros
se vieron obligados a comer yerbas y cuero por carecer de víveres
(FERNÁNDEZ, 1889, p. 294).

E o motivo para tal revolta, como retrata o texto histórico, foi porque:
El cacique Pablo Presbere […] vio a los religiosos y a los soldados
escribiendo cartas y se figuró que lo hacían para llamar a los españoles.
En consecuencia, sublevó casi todos los pueblos de la comarca, y en unión
de muchos indios Borucas, Cabécares y Térrabas fue á San Francisco de

53
Uriana y mató en el convento a fray Pablo de Rebullida y a dos soldados. De
allí fueron los sublevados á Chirripó y mataron a fray Antonio de Zamora,
a dos soldados, a una mujer y un niño […] (FERNÁNDEZ, 1889, p. 293).

O trato argumentativo dos discursos hegemônicos trabalha com a memória e a


identidade dos grupos subalternizados sob a óptica “castradora ou inibidora do colonizador”
(COUTINHO apud DÍAZ MERINO, 2016, p. 165). No ensaio intitulado “Poder, derecho,
verdade”, Foucault defende que o poder produz efeitos de verdade que se tornam lei e gera
discursos assumidos verdadeiros. Os mecanismos de controle, acionados graças a esses
discursos do poder, exercem um controle sobre a população de madeira sutil (FOUCAULT,
1992, p. 43). Enquanto instrumento dos discursos autoritários, políticos e eclesiásticos, a
escrita conspirou a favor de construções estereotipadas e dos silenciamentos na América,
trabalhando para controlar as articulações dos outros do império e extorquir suas presenças
de fala e ação das páginas da história (BARBAS-RHODEN, 2003, p. 127).
A memória histórica do indígena Pa-brú Prebere, por exemplo, sofreu durante séculos
com as manipulações discursivas do poder colonialista. Carvajal Araya denuncia que, em
1997, ano em que a Assembleia Legislativa de Costa Rica passou a considerar Presbere
como defensor da liberdade dos povos indígenas, “se conmemoró el ‘fallecimiento’ de
Pablo Presbere” (2011, p. 18). A escolha lexical atribuída ao ato comemorativo é bastante
representativa do poder discurso dominante sobre a memória dominada. Em primeiro
lugar, Pablo, nome anteposto à Presbere nos atos de celebração nacional, é um nome
castelhanizado dado ao personagem histórico, Fernando González Vásquez (2013, p. 8),
ressalta que:
según Albir Morales, bribri, por entonces líder cultural en las comunidades
de Amubri y Cachabri, Presbere no se llamó Pablo, sino Pa-brú, que quiere
decir ‘jefe o rey de las lapas’ (pa significa en bribri lapa y buLu’ o bLu’
jefe o cacique; la ‘L’ representa en la grafía para dicho idioma, un sonido
intermedio entre la ‘r’ y ‘l’ que no existe en español, por lo que se opta
utilizar la ‘r’ para mayor comprensión)

Em segundo lugar, Presbere não faleceu por causas naturais, ele foi executado e
decapitado em praça pública, como aponta o seguinte trecho da sentença do líder indígena
documentada pela narrativa oficial:
En los autos y causa criminal que de oficio de la Real justicia he seguido
y sigo sobre la conspiración y alzamiento de los indios infieles […] Fallo
que debo de condenar y condeno al dicho Pablo Presbere, por lo que
contra él está probado, sin embargo de la negativa que tiene hecha en su
confesión, que sea sacado del cuarto donde le tengo preso, y puesto sobre
una bestia de enjalma y llevado por las calles públicas de esta ciudad
con voz de pregonero que diga y declare su delito; y, extramuros de ella,
arrimado a un palo, vendados los ojos ad modem belli sea arcabuceado
, atento a no haber en ella verdugo que sepa dar garrote; y luego que sea
muerto le sea cortada la cabeza y puesta en el alto que todos la vean en el
dicho palo […] (FERNÁNDEZ, 1889, p. 297-298).

Diante disso, é notório, como argumenta Carvajal Araya, “el encubrimiento que se
continúa haciendo de la realidad de los hechos” (2011, p. 19).
Se, como sugere Leonardo Barci Castriota, o “patrimônio cultural é uma construção
social, resultado de processos sociais específicos espacial e temporalmente” (2009, p. 106),
dentro de territórios submetidos aos abusos coloniais e posteriormente à colonialidade do
poder, como definir o que é patrimônio cultural sem abandonar ou rechaçar memórias,

54
histórias, lugares etc., de grupos que foram colocados às margens dos ideais de cultura e da
sociedade? Mais paradoxal ainda é pensar nas concepções que giram em torno do conceito
de patrimônio imaterial. Enquanto os patrimônios materiais referem-se aos bens concretos
e, ainda assim, já carregam a possibilidade de avaliação seletiva por parte dos órgãos
administradores, podemos dizer que os bens imateriais, que se constituem sobre as “‘formas
de expressão’ e nos ‘modos de criar, fazer e viver’, que são manifestações eminentemente
intangíveis” (CASTRIOTA, 2009, p. 218), assumem uma avaliação ainda mais seletiva.
O relativismo epistemológico pairou sobre a memória histórica de Presbere e de tantos
outros povos, culturas e histórias que foram colocados à margem pela lógica colonialista.
A tradição histórica costa-ricense tratou de apagar as manifestações culturais indígenas
e, com isso, durante séculos não se atribuía valor a essas formas de expressão cultural.
Carvajal Araya argumenta que o projeto nacional costa-ricense articulou um “imaginario
de nación al valle central y a sus moradores, a la vez que se ignoró, casi en su totalidad, a
los indígenas y a los habitantes de las costas, sus costumbres y a sus estilos de vida” (2001,
p. 16-17). Consequentemente, até no Programa de Rescate y Revitalización del Patrimonio
Cultural de Costa Rica de 2011, a memória e a cultura de um dos grupos indígenas guerreiros
do país eram desconsideradas.
Localizado na região sul de Costa Rica, o povo Buroca ou Brunka, durante décadas,
partilham uma celebração bastante representativa de sua identidade e cultura, o chamado
Cabrú˘ rójc, em língua boruca, ou Juego de los Diablitos em espanhol (CEDEÑO
VARGAS, 2014). A celebração, segundo Natalia Cedeño Vargas (2014) em texto publicado
em plataforma digital, é uma espécie de procissão que dura três dias, na qual “dos
personajes principales aparecen en escena, el toro, que representa al español y los diablos
representantes de la comunidad indígena”. De maneira irônica os indígenas vestem-se de
diablitos, categorização católica referente àqueles que exercem rituais religiosos distintos
dos do cristianismo, e dentro de etapas vão enfrentando el toro, cujo objetivo é matá-los.
Resumidamente, entre lutas e derrotas os indígenas capturam el toro e ritualizam um
sacrifício em sinal de celebração do triunfo transitório, já que, no ano seguinte, a luta volta
a ser repetida. E a persistente celebração anual vai além da luta “entre el invasor español y la
comunidad indígena, simboliza además el esfuerzo constante de las comunidades indígenas
por defender sus tradiciones, costumbres, creencias e idiomas” (CEDEÑO VARGAS, 2014).
Essa celebração, entretanto, permaneceu oculta entre das festividades nacionais
durante séculos, sendo unicamente celebrada pelos grupos Burocas (CARVAJAL ARAYA,
2011, p. 22-23). Diante de reivindicações, de programas de resgate e revitalização da
memória identitária, histórica e dos atos de resistências destes povos, que tanto sofreram
com as construções colonialistas, em 14 de dezembro de 2017, sob o Decreto Nº 40766-
C, o Juego de los Diablitos é declarado Patrimônio Cultural Imaterial das comunidades
Burocas e Rey Curré. Daí a importância do pensamento decolonial vinculado às ações
políticas nacionais. Sejam elas as políticas de classificação de Patrimônios Culturais,
políticas educacionais e governamentais ou, simplesmente, atitudes políticas em práticas
artísticas, como a de Tatiana Lobo ao arquitetar Asalto al paraíso em 1992, desobedecendo
a epistemologia colonialista.

55
A “desobediência epistêmica” de Asalto al paraíso e suas contribuições

“[O] objetivo é ‘aprender a desaprender, a fim de voltar a aprender”.


(Walter Mignolo, 2008)

A imersão de acontecimentos históricos em textos ficcionais tem sido uma tendência


predominante nos projetos literários latino-americanos, pois, vinculados a uma política
de (re)construção identitária, esses projetos assumem uma “atitude escritural de buscar
o histórico como intertexto ativo” (TROUCHE, 2006, p. 20). Segundo um dos mais
aclamados teóricos contemporâneos da crítica pós-colonial, Homi K. Bhabha (2013, p.
31), a resistência aos discursos hegemônicos ocorre diante do uso de estratégias inerentes
ao poder colonial, que possibilita a recuperação de histórias reprimidas por esse poder.
E nas artes, mais especificamente nas literaturas latino-americanas, vêm arquitetando
diversas estratégias escriturais que propõem (re)afirmar as tradições culturais e recuperar
a memória histórica dos povos subalternizados. Podemos sugerir, contudo, que a utilização
da história nas narrativas ficcionais, vinculada a outras estratégias, atua como um
“intertexto ativo”, enfrentando uma constante busca em resgatar valores que garantem a
fala das denominadas margens.
Arturo Arias argumenta que:
si estamos de acuerdo en que los textos narrativos son sistemas de
representaciones simbólicos que generan ‘efectos de verdad’ a través de
sus prácticas discursivas, (…) su estudio debe posibilitarnos la exploración
de las transiciones tanto en la identidad como en la ideología (1995, p. 73).

E o papel político do escritor literato torna-se crucial nesse aspecto. O interior das
culturas colonizadas foi calcificado com uma certa fixidez dos parâmetros coloniais de
poder que estratificou e desvaneceu a diversidade cultural nativa e propagou construtos
identitários homogeneizantes. Buscando mostrar, através da relação: arte, realidade social
e decolonialidade, como estas construções coloniais oprimiram e idealizaram histórias e
memórias, o ato crítico do escritor deve “assumir a responsabilidade pelos passados não
ditos, não representados, que assombram o presente histórico” (BHABHA, 2013, p. 36).
Diante disso, a viagem significativa de Asalto al paraíso escrito por Tatiana Lobo propõe
uma descolonização da história oficializada, pois, ao aventurar-se nos fatos documentados
do passado colonial de Costa Rica, responsável por criar as bases da identidade nacional do
país, a obra, enquanto narrativa de extração histórica, apresenta uma problemática lógica
diante do processo de oficialização dos acontecimentos. Em um artigo intitulado Abordar la
historia desde la ficción literaria (o como destejer la bufanda), Lobo denuncia que:

[L]a identidad nacional se construye como una pared siempre a punto de


desplomarse sobre las espaldas de los que la sostienen. No es espontánea ni
dinámica, pretende ser inmutable. Obedece a un patrón establecido y trata
de convencer que el tiempo pasa igual para todos. Para crear esta ilusión se
inventó la historia patria y su relato de supuestos hechos fundadores que
permite cohesionar a los ciudadanos alrededor de la Nación (2013, p. 2).

Frente à construção histórica de identidade nacional, a qual segue a mesma estrutura


dos romances, - ou seja, inscreve-se dentro de processos de seleção vocabular, cultural,
social e cultural -, segundo a autora, a narrativa literária é o lugar em que o sujeito

56
pode definir sua posição “de acatamiento o de rebeldía frente a la historia olímpica, con
sus dioses y sus mitos” (LOBO, 2013, p. 3). Ao longo de anos de investigação dos fatos
históricos registrados nos livros oficiais da história nacional de Costa Rica, a chilena-
costa-ricense imerge na atitude escritural política de apresentar, em seu primeiro romance
histórico “os passados não ditos” da nação costa-ricense, arquitetando diversas estratégias
que problematizam tanto a própria construção historiográfica nacional, quanto os ideais
mnemônicos de cultura e identidade.
O tema central da narrativa gira em torno da insurreição indígena liderada por Pa-brú
Presbere. No entanto, a estratégica organização do universo ficcional apresenta o período
colonial costa-ricense através de um protagonista fugitivo da Inquisição espanhola, Pedro
Albarán. Entre 1700 e 1710, Albarán foi “la pluma anónima que escribía actas, mortuales,
testamentos, denuncias, uno que otro embargo, uno que otro decomiso y una inmensa
cantidad de asuntos pajosos (…)” (LOBO, 1998, p. 49). O protagonista, encobrindo sua
condição de fugitivo, é agraciado com o ofício de escrivão do governo e da igreja local
que estavam em busca de uma pessoa que “lo único que tiene que hacer es escribir lo que
digan. Nada más” (LOBO, 1998, p. 96). E assim, Pedro, imerso em um anonimato, “llevaba
las columnas como se lo indicaban” (LOBO, 1998, p. 57), documenta os acontecimientos
considerados relevantes pelos poderosos, “que luego firmaba el escribano [oficial], José de
Prado” (LOBO, 1998, p. 49). A condição mascarada de fugitivo do escrivão torna-se uma
grande aliada do poder colonial, que apresenta recursos de manipulação dos documentos,
sem obter questionamentos ou oposição por parte de Pedro.
Dentro da narrativa, o processo de documentação dos acontecimentos decorre sob
dois eixos aparentemente contraditórios, mas fundamentais: ausência e presença. A escrita
obediente deixa de fora, por exemplo, as cuentas privadas. Como ressalta o narrador da
obra, “jamás entró en los libros la pérdida sistemática que, por concepto de juegos de naipes
y dados, tenía el guardián cada semana (…). Esas eran cuentas privadas que el guardián
llevaba personalmente en discreta soledad (...)” (LOBO, 1998, p. 57, grifos nossos). Os
acontecimentos não documentados são contrastados com fatos documentados que não
aconteceram, isto é, “las vacas desparecidas o los dineros faltantes, se hacían cuadrar,
en los libros, con imaginarias donaciones que Pedro nunca indagó” (LOBO, 1998, p. 57,
grifos nossos). E assim a oficialização manipulada dos acontecimentos ocorre no universo
ficcional articulado por Tatiana Lobo.
Não é necessário ressaltar que, devido a sua escrita obediente, todos do poder colonial
“estaban muy satisfechos con ese escribiente atento y discreto” (LOBO, 1998, p. 49). Em
contrapartida, a escrita, associada aos abusos e à corrupção das instituições de poder
entre a população majoritariamente indígena e mestiça, é temida. “[S]e le teme aquí a la
palabra escrita; a nadie le gusta ver a la palabra impresa” (LOBO, 1998, p. 259). Maureen
E. Shea argumenta que o conflito entre oralidade e escrita nas Américas tem uma longa
história, “desatando una guerra entre culturas distintas, la occidental caracterizada por
la importancia central de la escritura alfabética y la indoamericana definida por una larga
tradición oral” (2013, p. 2).
Esta dualidade entre veneração e temor pela palavra escrita é bastante representativa
na narrativa de Lobo. Além de apresentar o “amortiguamiento de una cultura oral indígena”
(SHEA, 2013, p. 2), revela a capacidade que as escrituras oficializadas tiveram em subjugar
e em destruir ou silenciar as memórias e as histórias autóctones. Diante disso, a primeira

57
ação do levante indígena representada na narrativa foi neutralizar o poder das escrituras
consideradas sagradas: “Fue desojado el misal del sacrificio (...). Cayeron las letras
muertas. (…) Cayeron como palomos heridas” (LOBO, 1998, p. 216). Esta representação
da resistência indígena coloca, pois, como ressalta Maureen E. Shea, “su marco sobre una
página de la historia que los ha dejado de afuera” (2013, p. 8).
Ao metaficcionalizar um processo de escrita problematizando suas bases estruturais,
Lobo articula uma estratégia que podemos caracterizar como estratégia escritural
decolonial. Linda Hutcheon em seu livro Poética do pós-modernismo (1991) apresenta
alguns argumentos que vão caracterizar as narrativas que têm por objetivo ficcionalizar
acontecimentos históricos. Segundo a autora, o modelo celebratório e unificador, idealizado
pelo Romance Histórico de Georg Lukács, já não dá mais conta dos questionamentos
trazidos por estas narrativas históricas contemporâneas, que carregam em sua estrutura
a autorreflexividade metaficcional. Hutcheon propõe, assim, o termo metaficção
historiográfica que se caracteriza por não reconhecer mais “o paradoxo da realidade do
passado, mas a sua acessibilidade textualizada para nós atualmente” (1991, p. 152).
Thomas Bonnici afirma que a “descolonização é o processo de desmascaramento e
demolição do poder colonial em todos os seus aspectos” (2009, p. 272). Quando Lobo em
Asalto al paraíso dedica-se a arquitetar um universo ficcional com bases históricas e, no
interior da narrativa, representar as manobras pelas quais a atividade de documentação
foi submetida, ela desestabiliza a aura da veracidade histórica. Feito isso, as histórias
fundacionais, especialmente as de países assolados pela colonização, conhecidas por
sua unidade e homogeneização, passam por importantes questionamentos: “como é que
conhecemos o passado? O que é que conhecemos (o que podemos conhecer) sobre ele no
momento?” (HUTCHEON, 1991, p. 152, grifos nossos). A autorreflexividade metaficcional
atua internamente, provocando o próprio fazer histórico e estabelecendo “a ordem
totalizante, só para contestá-la, com sua provisoriedade, sua intertextualidade e, muitas
vezes, sua fragmentação radicais” (HUTCHEON, 1991, p. 155).
Diante desta desestabilização da historiografia, Lobo desobedece a epistemologia
colonial relacionada à memória do líder indígena guerreiro Pa-brú Presbere. De acordo
com a perspectiva histórica oficializada de Costa Rica, a resistência indígena liderada
por Presbere durante o período colonial foi resultado de uma má interpretação por parte
do indígena. É como se a ingenuidade pairasse sobre o líder guerreiro, fazendo-o pensar
que, em uma circulação de cartas entre os líderes espanhóis, havia solicitações de reforço
colonial, levando-o à revolta armada (FERNÁNDEZ, 1889, p. 293).
Tatiana Lobo, entretanto, apresenta, em sua narrativa ficcional, uma outra leitura
do estopim do levante indígena. Para estes grupos subalternizados pelas organizações
coloniais, submetidos à escravidão, à violência física e epistêmica, “ha llegado el momento
de despertar” (1998, p. 181) e os deuses, “los señores del aire y de la tierra” (p. 12), trataram
de ajudar seus devotos dando vida à Pa-brú Prebere. Sobre a figura histórica desse
indígena, responsável pelos atos históricos de resistência armada – e também personagem
do romance analisado –, o discurso histórico o descreve como o “más temido en toda la
Talamanca” (1889, p. 313), já Lobo apresenta um líder guerreiro, enviado pelos deuses
para “que pusiera remedio al terrible daño que causaban los extraños con su crueldad y su
codicia” (1998, p. 12).
Coincidentemente ou não, um ano após a publicação de Asalto al paraíso, novela

58
premiada e considerada por muitos críticos costa-ricenses como uma “inapreciable ayuda
para conocernos mejor a nosotros mismos” (GUTIÉRREZ apud LOBO, 1998, contracapa),
a figura e as ações reivindicativas de Prebere começaram a serem valorizadas pelos órgãos
administrativos de Costa Rica, ainda que apresentando controvérsias, como vimos.
Inaugura-se, em 1993, uma estátua de bronze de 3,12 metros de altura na qual a figura
esculpida do indígena apresenta o punho fechado sobre a cabeça, como símbolo de sua
resistência. Fernando González Vásquez ressalta a intenção e as contribuições de Lobo ao
escrever a obra, segundo o autor:
Lo que comenzó con la idea de escribir un pequeño ensayo sobre el
héroe indígena Pabrú (Pablo) Presbere, muy oportuno en vísperas de la
conmemoración del medio milenio del arribo de los europeos a América
(la primera edición fue publicada en 1992, bajo el sello editorial de la
Universidad de Costa Rica) para reivindicar la memoria y los valores de los
pueblos sojuzgados en el “encuentro”, derivó en un meritorio aporte a la
historia y la literatura nacionales (2013, p. 7, grifos nossos).

Ao resgatar, através da escrita literária, os acontecimentos históricos que derivaram


atos de resistência armada por parte de grupos indígenas de Costa Rica, partindo de uma
perspectiva oposta à apresentada pelas narrativas do poder, Lobo arquiteta uma série de
estratégias que desobedecem a lógica hegemônica. Do ponto de vista decolonial, atitudes
de reescrever narrativas convencionalmente estruturadas pelas perspectivas do poder,
apresentando outras cosmovisões, outros desdobramentos que não tiveram lugar dentro
desta voz predominante, apresentam uma grande carga subversiva.
A reescrita é, pois, um fenômeno literário que “gira em torno de certos textos
particularmente preeminentes e simbólicos que o discurso dominante irradiava para impor
sua ideologia” (BONNICI, 2009, p. 271). Se de um lado a memória da figura histórica de
Prebere e seus atos de resistência são perpetuados pelos discursos oficializados, como:
bárbaros; “cacique” temido pelo seu próprio povo; ações violentas por motivos torpes etc.
Do outro, Lobo apresenta a memória de um líder indígena que lutou para defender sua mãe
Terra e seu povo das barbaridades coloniais.
O contraste ante a perspectiva histórica implantado pela atitude política da escritora
chilena-costa-ricense atua dentro do chamado giro decolonial, com o objetivo de, como
ressalta a epígrafe que dá início ao presente tópico, “aprender a desaprender, a fim de
voltar a aprender” (WASI apud MIGNOLO, 2008, p. 323). Essa atitude política vai além
dos parâmetros estruturalmente literários, isto é, a criação de uma estrutura narrativa
bem articulada, com um excelente domínio de escrita. De acordo com a professora doutora
Ximena Díaz Merino (2016) “el sujeto latinoamericano comprometido con los procesos de
resistencia, entendidos como la lucha que objetiva la recuperación de una historia y de una
cultura, se transforma en un sujeto denunciador y, luego, de emancipación cultural” (p.
167). A narrativa ficcional articulada por Tatiana Lobo sugere, portanto, uma desobediência
epistêmica na qual se “desvincula dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais”
(MIGNOLO, 2008, p. 290) e apresenta outras possibilidades de leitura.

Considerações finais

Ao longo dos séculos, as mais diversas camadas de estruturação social impregnaram


de alguma maneira fundamentos pré-estabelecidos e naturalizados sem qualquer intenção

59
problematizadora, entre elas, podemos destacar as que trabalham com o resgate e
preservação da memória e história da sociedade. Estátuas e monumentos, festividades e
celebrações datadas, entre outras, foram algumas das maneiras que os administradores
do campo encontraram para perpetuar eventos, culturas e personalidades históricas
na memória social. No entanto, nas últimas décadas, algumas correntes de pensamento
começaram a problematizar as ações, os personagens e, principalmente, a seletividade por
trás destas formas memorialísticas. Em torno do conceito e das políticas de preservação
de Patrimônios Culturais, Castriota (2009), em seu estudo, nos apresenta as principais
mudanças decorrente da introdução de questionamentos anteriormente indubitáveis.
Para criações memorialísticas, as políticas de preservação trabalham com a dialética
lembrar-esquecer, com isso, determinados elementos históricos são privilegiados em
detrimento de outros e a questão do valor torna-se central para as decisões. Como Castriota
(2009) faz questão de ressaltar, explícita ou implicitamente, a atribuição de valor será
sempre o ponto de referência que levará à decisão de preservação ou não. O problema,
entretanto, está na relatividade epistemológica responsável pela atribuição de valores. Em
cenários estruturados continuamente por uma lógica de estratificação social, superioridade
e dominação, como é o caso dos países da América Latina, a epistemologia dominante,
regida pela colonialidade enraizada, atribuirá, sem dúvidas, valores às ações, aos eventos e
às personalidades históricas hegemônicas. O pensamento decolonial, advindo dos Estudos
Pós-Coloniais e posteriormente dos Estudos Decoloniais latino-americanos, tornou-
se uma das correntes responsáveis por problematizar e transgredir essa colonialidade
epistemológica.
Presente nas mais restritas camadas sociais, o pensamento decolonial propõe uma
reelaboração epistémica versada na desconstrução, na desnaturalização de ideias, memórias
e históricas, se tornando, com isso, uma importante estratégia de combate às injustiças
sociais. Enquanto atitude política, o pensamento decolonial está presente na América
Latina desde os primeiros períodos da colonização, em grande maioria, materializado em
textos literários. Das crônicas de Inca Garcilaso aos textos poéticos e dramáticos de Sor
Juana Inés de la Cruz e de tantos outros, incluindo as narrativas de extração histórica de
Tatiana Lobo, podemos perceber que a literatura, um dos principais signos socioculturais,
se tornou uma grande aliada para a propagação do pensamento crítico de seus criadores.
Atitudes que, de uma forma ou de outra, acabam contribuindo para o (des)aprendizado e/
ou (des)construção de determinadas epistemologias.
A articulação narrativa de Asalto al paraíso versa sobre o pensamento decolonial
quando propõe, parafraseando Bhabha (2013), restituir um passado mal dito e mal
representado pelas narrativas do poder que assombra o presente histórico. Durante séculos,
pairou na epistemologia social costa-ricense mitos de igualdade, ausência de escravidão e,
inclusive, de atos de resistência autóctone durante a época colonial (CARVAJAL ARAYA,
2011; GONZÁLEZ VÁSQUEZ, 2013). As estratégias identificadas, analisadas e vinculadas
à estrutura narrativa de Asalto al paraíso, como a reescrita da história partindo de uma
releitura atenta e subversiva dos fatos históricos e a metaficção que contribui para a reflexão
e problematização da “verdade histórica”, apontam uma desobediência epistêmica, conceito
proposto por Walter Mignolo (2008), andando, assim, na contramão dos mitos e discursos
oficializados pela epistemologia colonialista.
Com tudo, podemos dizer que Asalto al paraíso, por intermédio de uma atitude crítica

60
decolonial por parte de sua autora, contribui para o resgate e revitalização da memória
identitária dos povos autóctones da Costa Rica. Dentro de um percurso temporal, a
narrativa contribui ainda para a valorização dos atos de resistência desses povos, que
desde os primeiros momentos da intrusão até a contemporaneidade, persistem em resistir
memorial, identitária e culturalmente.

Referências bibliográficas
ARIAS, Arturo. Conciencia de la palabra: Algunos rasgos de la nueva narrativa centroamericana.
Hispamérica. 1992, v. 21, n. 61, p. 41-58.

BARBAS-RHODEN, Laura. Writing women in Central America: gender and the fictionalization of history.
Ohio: University Press, 2003.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

BONNICI, Thomas. Resistência e intervenção: nas literaturas pós-coloniais. Maringá: EDUEM, 2009.

__________; ZOLIN, L. O. Teoria e crítica pós-colonialistas. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN; Lúcia Osana.
Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: EDUEM, 2009, v. 3, p.
257-285.

CARVAJAL ARAYA, María Isabel. Programa de Rescate y Revitalización del Patrimonio Cultural. Revista
Herencia. 2011, v. 24.

CARVAJAL, Carlos Leonel Borge. Pablo Presbere defensor de la libertad de los Pueblos Originarios. Guías Costa
Rica, 2013. Disponível em: https://guiascostarica.info/personajes/pablo-presbere/#:~:text=Fueron%20
incontables%20las%20sublevaciones%20contra,regi%C3%B3n%20espa%C3%B1ola%20del%20
mismo%20topon%C3%ADmico.&text=Esta%20pol%C3%ADtica%20de%20desarraigo%20de%20
la%20Corona%20Espa%C3%B1ola%20provoc%C3%B3%20la%20insurrecci%C3%B3n. Acesso em:
10.08.2020.

CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio Cultural: Conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo:
Annablume; Belo Horizonte: IEDS, 2009.

CEDEÑO VARGAS, Natalia. El Juego de los Diablitos. SICULTURA, 2014. Disponível em: https://si.cultura.
cr/expresiones-y-manifestaciones/el-juego-de-los-diablitos.html. Acesso em: 10.08.2020.

COSTA RICA. Archivos Nacionales. Índice de los protocolos de Heredia, 1721-1851. San José: Tipografía
nacional, 1904. Disponível em: https://archive.org/details/indicedelosproto02cost/page/n3. Acesso em:
20.08.2020.

DIAZ MERINO, Ximena Antonia. “Giro de-colonial” y “Gnosis Fronteriza”: (re)constitución (des)construcción
de las imagenes. In: ________; CRUZ, Antonio Donizeti; ALVES, Loudes Kaminski (org.). Imagens das
Américas: Interfaces sociais, culturais e literárias. Cascavel: Editora da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná. 2016, v.1, p. 165-190.

GONZÁLEZ VÁSQUEZ, F. Tatiana Lobo: artífice de la palabra. Revista Comunicación. v.12. p.1-10,
2013 Disponível em: https://revistas.tec.ac.cr/index.php/comunicacion/issue/view/164. Acesso em
07.11.2020.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.

LOBO, Tatiana. Asalto al paraíso. San José: Editorial Costa Rica, 1998.

__________. Abordar la historia desde la ficción literaria (o cómo destejer la bufanda). Revista
Comunicación, v. 12, p. 1-8, 2013. Disponível em: https://revistas.tec.ac.cr/index.php/comunicacion/
article/view/1241. Acesso em 11.10.2020.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento


liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

__________. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política.


Cadernos de Letras da UFF, v. 34, p. 287-324, 2008.

O’GORMAN, Edmundo. La invención de América. México: FCE, 1958.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In LANDER, Edgardo (ed.).

61
La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Caracas:
CLACSO, 2000, p. 201-246.

__________. Colonialidad del Poder y Des/colonialidad del Poder. In: Conferencia dictada en el XXVII
Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociología. Buenos Aires. 2009. p. 1-15.

__________. Colonialidad del poder y clasificación social. In: QUIJANO, Aníbal. Cuestiones y horizontes:
de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: Clacso,
2014, p. 285-327.

SHEA, M. E. Asalto al paraíso: Tatiana Lobo asalta la historia oficial. Revista Comunicación, v. 12, p. 1-12,
2013, https://revistas.tec.ac.cr/index.php/comunicacion/article/view/1238. Acesso em: 20.09.2020.

THOUCHE, André Luiz Gonçalves. América: história e ficção. Rio de Janeiro: EdUFF, 2006.

62
Patrimônio cultural e transculturação em
Los ríos profundos
Shirlene dos Santos Silva

La única manera que el nombre de América Latina no sea


invocado en vano, es cuando acumulación cultural interna
es capaz de proveer no sólo de “materia prima”, sino de una
cosmovisión una lengua, una técnica para producirlas obras
literarias.
Angel Rama (1984, p. 25)

O romance indigenista Los Ríos profundos (1958), do escritor e antropólogo peruano


José María Arguedas (1911-1969), revela o universo social e cultural do mundo andino no
qual se observa o processo de transculturação na formação da comunidade peruana. O autor
se opõe ao termo aculturação por identificar neste a sobreposição da cultura do dominador
sobre a cultura autóctone e declara não ser um “aculturado”: “yo no soy un aculturado: yo
soy un peruano que orgullosamente, como um demonio feliz habla en cristiano y en indio,
em español y en quechua”. (ARGUEDAS, 1997, p. 257). Diante disso, destaca-se que o termo
mais adequado para descrever o contato entre culturas é o vocábulo transculturação, que foi
utilizado pela primeira vez pelo crítico cubano Fernando Ortiz em seu ensaio “Contrapunteo
cubano del tabaco y el azúcar” (1940).
Logo, a relevância deste trabalho é entender a formação cultural andina a partir de alguns
elementos que compõem o patrimônio cultural material e imaterial apresentados na obra,
assim como corroborar com o pensamento decolonial e seu campo de estudos. Destacam-se,
para tanto, elementos da arquitetura e da cultura peruana como objetos de relevância para o
estudo em tela, tais como: Muro dos Incapazes, María Angola (sino) e Zumbayllu.
Sobre patrimônio cultural pode-se afirmar, de acordo com Carmen Díaz Cabeza
(2010), que a partir do século XXI há um enriquecimento do conceito passando a englobar
o enfoque antropológico e sociológico o que contribui para a preservação dos bens materiais
e a salvaguarda dos bens imateriais.
En los albores del siglo XXI, la noción del patrimonio cultural no ha cesado de
enriquecerse con un enfoque global antropológico y sociológico que lleva a considerarlo
como un conjunto de manifestaciones diversas, que hemos recibido de nuestro pasado, que
han llegado a ser testimonios insustituibles que representan el desarrollo de una sociedad y,
debemos transmitirlo a las futuras generaciones (DÍAZ CABEZA, 2010, p.3).
No romance de Arguedas identifica-se que a referência aos bens materiais (muro, sino
e peão) favorece a manutenção da cultura e tradição andina, além disso, verifica-se que o

63
estudo aponta para uma reflexão do processo formador da América Latina e a busca por sua
identidade cultural, e, assim, ampara o pensamento decolonial na região.
Como pensamento decolonial destaca-se na obra Interculturalidad, Estado, Sociedad:
Luchas (De)Coloniales de Nuestra Época (2009), de Catherine Walsh a seguinte abordagem:
Suprimir la “s” y nombrar “decolonial” no es promover un anglicismo.
Por el contrario, es marcar una distinción con el significado en castellano
del “des”. No pretendemos simplemente desarmar, deshacer o revertir
lo colonial; es decir, pasar de un momento colonial a un no colonial,
como que fuera posible que sus patrones y huellas desistan de existir.
La intención, más bien, es señalar y provocar un posicionamiento –una
postura y actitud continua- de transgredir, intervenir, in-surgir e incidir.
Lo decolonial denota, entonces, un camino de lucha continuo en el cual
podemos identificar, visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y
construcciones alternativas (WALSH, 2009, pp. 14-15).

Em “Los ríos profundos” (1958), Arguedas, constrói o espaço andino segundo o olhar
do narrador-protagonista Ernesto. Um jovem de quatorze anos que viveu entre brancos e
indígenas, a partir dessa experiência passou a ter um olhar crítico para condição social deste
último grupo. Em seu processo de formação, Ernesto vê as ambivalências de uma sociedade
nascida a partir do encontro de duas culturas distintas. A narrativa inicia-se na cidade
de Cusco e, em seguida, o protagonista segue para o interior do país com seu pai, até ser
enviado para viver na cidade de Abancay, em um colégio interno. Diante das experiências e
reflexões do personagem, analisa-se o processo de transculturação em elementos que foram
diretamente transformados pela interação entre a cultura europeia e a indígena. Torna-se
relevante destacar que a cultura colonizadora não apaga a colonizada, porém a transforma
de maneira significativa produzindo assim uma nova manifestação cultural.
Antes de iniciarmos as análises da obra literária faz-se necessário a definição do
vocábulo transculturação, assim como, também uma explicação sobre literatura indigenista,
que auxiliará para uma melhor compreensão dos termos que permearão todo o estudo.
O vocábulo “transculturação” foi utilizado pela primeira vez pelo estudioso cubano
Fernando Ortiz (1940) no ensaio “Contra punteo cubano del tabaco y del azúcar”, e:
Entendemos que el vocablo transculturación expresa mejor las diferentes
fases del proceso transitivo de una cultura a otra, porque este no consiste
solamente en adquirir una distinta cultura, que es lo que en rigor indica
la voz anglo-americana aculturation, sino que el proceso implica también
necesariamente la pérdida o desarraigo de una parcial desculturación, y,
además, significa la consiguiente creación de nuevos fenómenos culturales
que pudieran denominarse de neoculturación (ORTIZ, 1940, p. 96).

O neologismo criado pelo antropólogo contribuiu para identificar a formação identitária


cubana e, por extensão, a de toda América Latina. De acordo, com a pesquisadora Lívia Reis
(2010), o vocábulo passou a ser referência nos estudos sobre identidade em Cuba. Para Reis,
“[...] o vocábulo tornou-se referência obrigatória, sobretudo, na área da antropologia, para
toda reflexão sobre o fenômeno de mestiçagem não apenas em Cuba, mas, por analogia, em
toda a América” (REIS, 2010, p.465).
O crítico uruguaio Ángel Rama ampliou o conceito de transculturação de Ortiz e
aplicou para a literatura, por identificá-lo como insuficiente para atender “a los criterios
literarios de selectividad y de invención que son proprios de la ‘plasticidad cultural”, como
afirma David Sobrevilla (2001, p. 22).

64
Para Lívia Reis
[...] a visão de Ortiz é geométrica, de acordo com três momentos, ou seja,
no primeiro há uma desculturação parcial, que pode ter vários níveis e
alcançar diferentes zonas, tanto dentro da cultura, como da literatura,
embora acarrete sempre em alguma perda de componentes considerados
ultrapassados. Em um segundo momento, há assimilações e incorporações
procedentes da cultura externa em um movimento de reaculturação.
O terceiro momento se caracteriza por um esforço de acomodação, de
recomposição dos elementos sobreviventes da cultura originária com os
influxos que vêm de fora (REIS, 2010, p. 470-471).

Rama destaca em seu estudo “Tranculturación narrativa en América Latina” (1984)


o processo de transculturação identificado no romance de José María Arguedas, em seus
diversos elementos da cultura andina. Processo perceptível no primeiro capítulo intitulado
“El viejo”, o qual apresenta toda a temática da obra neste capítulo: “En Los ríos profundos, el
primer capítulo, ‘El viejo’ funciona como un ejemplo de esta iluminación que se transforma
en un módulo de aplicación posterior a diversas circunstancias: toda la novela está ya en ese
primer capítulo.” (RAMA, 1984, p. 256)
Os indígenas andinos possuíam sua própria expressão cultural, porém com a chegada
do colonizador espanhol foram obrigados a experimentarem a cultura do dominador e com
o contato ambas as culturas sofreram modificações, formando uma nova manifestação
cultural, da qual pela fusão das partes não se pode identificar o percentual que cada cultura
influenciou nesta formação.
A região do atual Peru foi o lugar onde se desenvolveu a civilização Inca, que segundo
Darcy Ribeiro (1983) era uma das quatro ou cinco maiores cidades do mundo, no período
da invasão espanhola:
[...] os Incas acabariam por cumprir seu papel civilizador se não tivessem
sido contidos por uma conquista externa paralisadora, como a espanhola.
Ela estancou seu impulso evolutivo para integrá-los, através da atualização
histórica, na condição de proletariado externo de uma formação
sociocultural mais avançada (RIBEIRO, 1983, p. 157).

Durante alguns séculos, os povos autóctones da América viveram sob influência da


colonização, que colocou o indígena na condição de subalternizado. O sistema latifundiário
implantado nas colônias empregava a força de trabalho dos indígenas e mestiços. Em 28 de
Julho de 1821, com a instauração da república no Peru, a sociedade precisava de estrutura e,
após alguns anos agitados, a organização social foi semelhante ao do período colonial, com
divisão de classes, proprietário de terras e trabalhadores servis, dando assim continuidade
ao sistema de dominação hispânico.
Por algum tempo, a literatura americana foi influenciada pela produção literária
europeia, porém em seguida, os escritores hispano-americanos buscaram se desligar
da influência colonizadora, procurando inspiração em outras fontes literárias. Nas
décadas de quarenta até sessenta do século XX, com a chegada do progresso às regiões
afastadas, como as serras peruanas, houve a destruição de comunidades indígenas e
foi nessa época que surgiu a literatura de “cor local”, considerada, hoje, literatura de
denúncia social.
Os autores que produziam nesse período tinham como foco a defesa da causa indígena
e retratavam as injustiças e mazelas sofridas por este grupo. A partir, desse momento surge,
então, a literatura indigenista. De acordo, com a pesquisadora Ximena Díaz Merino (2015),

65
os escritores indigenistas usaram a descrição detalhada da péssima condição de vida dos
indígenas como estratégia de denúncia e reivindicação de seus direitos.
Esa nueva mirada dirigida al indígena fue abrazada por los indigenistas
con el intuito de, por un lado, combatirlos grupos oligárquicos que se
empeñaban en implantar un perfil hispánico en América, y por otro,
favorecer las configuraciones mestizo-indígenas. Esta redefinición de lo
nacional, a partir de una perspectiva indigenista, se transformó en la tarea
de los intelectuales de la época. Los escritores indigenistas denunciaron
en sus narrativas la exploración ejercida por la oligarquía peruana sobre el
hombre andino (DÍAZ MERINO, 2015, p.158).

Los Ríos profundos é uma obra com características indigenistas, já que trouxe à tona a
realidade indígena e os efeitos da colonização sobre o povo originário do Peru. A literatura
indigenista, mesmo sendo uma obra de crítica social em defesa do indígena, é escrita por
brancos ou mestiços. Sendo assim, entende-se que é o “outro” quem fala por este grupo
social. O sociólogo peruano José Carlos Mariátegui (1928) destaca que em algum momento
o indígena poderá falar por si:
La literatura indigenista no puede darnos una versión rigurosamente
verista del indio. Tiene que idealizarlo y estilizarlo. Tampoco puede
darnos su propria anima. Es todavía una literatura de mestizos. Por eso
se llama indigenista y no indígena. Una literatura indígena, se debe venir,
vendrá a su tempo cuando los propios indios estén en grado de producirla
(MARIÁTEGUI, 2007, p. 283).

Arguedas foi de alguma forma um escritor diferenciado por causa da sua formação
pessoal. O escritor era branco e foi criado entre os indígenas, com isso aguçou sua percepção
para essa comunidade e se tornou um dos autores indigenistas de maior importância de
sua época. Logo, as contribuições desse antropólogo que viveu e estudou a realidade do
indígena peruano, assinalam uma “visão de dentro”, e se pode dizer que suas obras fazem
parte de um projeto literário.
O primeiro capítulo do romance de Arguedas apresenta de forma clara o processo de
transculturação na arquitetura de Cusco. A história inicia-se na cidade de Cusco e segue
para a área rural do país, a cidade de Abancay. Com a chegada do personagem Ernesto e
seu pai à casado “viejo”, cujo nome é suprimido e sua identificação é somente pelo adjetivo,
nota-se a imponência da casa com seus três pátios separados por corredores e sustentados
por colunas de diferentes espessuras:
Entramos al primer patio. Lo rodeaba un corredor de columnas y arcos
de piedra que sostenían el segundo piso, también de arcos, pero más
delgados. Focos opacos dejaban ver las formas del patio, todo silencioso.
[...] La escalinata no era ancha, para la vastedad del patio y de los
corredores (ARGUEDAS, 2020, p.9).

Na descrição da casa do “viejo” identificam-se traços do projeto iniciado pelos primeiros


europeus ao chegarem à América, um projeto de construção urbana e paisagística que
atendesse aos ideais colonizadores. Em “La ciudad Letrada” (1984), Ángel Rama destaca
que desde a destruição de Tenochtitlan até a construção de Brasília, as cidades latino-
americanas entraram “[…] en un ciclo de la cultura universal en que la ciudad pasó a ser el
sueño de un orden y encontró en las tierras del Nuevo Continente, el único sitio propicio
para encarnar” (RAMA, 1998, p.17).
Encontramos nesse primeiro capítulo duas estruturas que coexistem num mesmo

66
espaço, porém apresentam significações distintas para Ernesto. A casa do velho ao estilo
europeu, sem causar nenhum tipo de comoção no personagem e os muros Incas que
despertam os sentidos do jovem e provocam sensações e imagens vivas. Ao chegar à cidade
de Cusco com seu pai, Ernesto procurou os muros enquanto estavam a caminho da casa
do velho “Aparecieron los balcones tallados, las portadas imponentes y armoniosas, la
perspectiva as las calles ondulantes, en la ladera de la montaña. Pero ¡Ni um muro antiguo!”
(ARGUEDAS, 2020, p.9). Quando enfim ele o encontrou, correu para ver o muro:
Formaba esquina. Avanzaba a lo largo de una calle ancha y continuaba en
otra angosta y más oscura, que olía a orines. Esa angosta calle escalaba la
ladera. Caminé frente al muro, piedra tras piedra. Me alejaba unos pasos,
lo contemplaba y volvía a acercarme. Toqué las piedras con mis manos;
seguí la línea ondulante, imprevisible, como la de los ríos, en que se juntan
los bloques de roca. En la oscura calle, en el silencio, el muro parecía vivo;
sobre la palma de mis manos llameaba la juntura de las piedras que había
tocado (ARGUEDAS, 2020, p.12).

A percepção do personagem ao tocar as pedras do muro traz-lhe a sensação de um


muro vivo e resgata em Ernesto a lembrança de canções quéchua.
Eran más grandes y extrañas de cuanto había imaginado las piedras del
muro incaico; bullían bajo el segundo piso encalado, que, por el lado
de la calle angosta, era ciego. Me acorde, entonces, de las canciones
quéchuas que repiten una frase patética constante: <<yawar mayu>>, rio
de sangre;<<yawarunu>>, agua sangrienta; <<puk-tik’ yawark’ocha>>,
lagode sangre que hierve <<yawarwek’e>>, lágrimas de sangre. ¿Acaso
no podría decirse <<yawarrumir>>, piedra de sangre, o <<puk’tikyawar
rumi>>, piedra de sangre hirviente? (ARGUEDAS, 2020, p. 12).

Para Ernesto aquela imagem viva do muro causa fascinação e o personagem ignora a
construção espanhola, que para ele parecia servir somente para iluminar o muro inca: “La
construcción colonial, suspendida sobre la muralla, tenía la apariencia de un segundo piso.
Me había olvidado de ella. En la calle angosta, la pared española, blanqueada, no parecía
servir sino para dar luz al muro” (ARGUEDAS, 2020, p. 14)
Imagem 1: Muro dos Incas e incapazes.

Fonte:www.helenpercepcoes.blogspot.com.br

67
A arquitetura da cidade representa a coexistência de culturas diferentes dentro
do mesmo espaço, porém não se pode interpretar esta convivência como pacífica entre
os sujeitos sociais envolvidos. Cabe ressaltar que a arquitetura representa um elemento
material da divisão político-econômica dos espaços, a partir do qual a opulência indica o
lugar da elite que detém o poder socioeconômico e os espaços destinados aos indígenas e
mestiços são espaços simples e, por muitas vezes, miseráveis.
Arguedas revela a realidade peruana na qual os representantes do grupo colonizador
relegam indígenas e mestiços a viverem à margem da sociedade. Entende-se que no
primeiro capítulo a casa do personagem “el viejo” representa uma ilustração da sociedade
peruana, na qual a figura do velho reflete a imagem do poder colonizador e os indígenas ao
seu serviço, refletem a imagem dos colonizados. Nesse universo privado onde os espaços
são bem distintos, o salão que o velho recebe Ernesto e seu pai contrapõe-se ao espaço dos
indígenas. Ernesto descreve a sala do “velho” da seguinte forma:
El viejo estaba sentado en un sofá. Era una sala muy grande, como no
había visto otra; todo el piso cubierto por una alfombra. Espejos de anchos
marcos, de oro opaco, adornaban las paredes; una araña de cristales
pendía del centro del techo artesonado. Los muebles eran altos, tapizados
de rojo (ARGUEDAS, 2020, p. 22).

Em contrapartida o espaço destinado aos serviçais indígenas é descrito como


degradado:
Las paredes de ese patio no habían sido pintadas quizá desde hacía
cien años; dibujos hechos con carbón por los niños, o simples rayas,
las cruzaban. El patio olía mal, a orines, a aguas podridas. Pero el más
desdichado de todos los que vivían allí debía ser el árbol de cedrón. <<Si
se muriera, si se secara, el patio parecería un inferno>>, dije en voz baja.
<<Sin embargo lo han de matar; lo descascaran.>> Encontramos limpio y
silencioso el primer patio, el del dueño (ARGUEDAS, 2020, p. 21).

O contraste dos espaços segue nos capítulos sequenciais. É interessante pensar que o
processo transcultural da arquitetura peruana formou um novo elemento a partir do contato
da cultura espanhola e da indígena, mas que os espaços destinados a cada membro dessa
sociedade são distinguidos pela relação de poder, no qual dois tempos habitam juntos, o
Império Inca e da sociedade colonial.
Para Ángel Rama, a transculturação se dá em três níveis: na língua, na estruturação
literária e na cosmovisão. Sobre a cosmovisão Rama entende que “Queda aún por considerar
un tercer nivel de las operaciones transculturadoras, que es el central y focal representado
por la cosmovisión que a su vez engendra los significados.” (RAMA, 1984, p. 56). Nessa
perspectiva aponta-se o processo transcultural da obra. O protagonista Ernesto faz
observações que envolvem a cultura quéchua como elementos de compreensão de mundo.
No primeiro capítulo, vemos também um diálogo entre Ernesto e seu pai, a partir do
qual ambos discutem a origem do sino María Angola, sino esse, colocado na catedral de
Cusco em 1655, pesando seis toneladas e com dois metros e dez de altura. A lenda conta que
María Angola vivia na cidade de Cusco e teve um romance comum espanhol, engravidando
deste, e, por isso, seu pai, por sua vez, chamou o espanhol para um duelo, em que perdera
sua vida. O espanhol retornou para a Espanha prometendo voltar para María, mas morreu
na viagem. Desiludida, María Angola se enclausurou num convento e dou todas suas joias
para a construção do sino da catedral.

68
Entretanto, a personagem especula sobre a origem do ouro entregue por dona
María Angola e usado na construção do sino. No diálogo entre Ernesto e o pai, vemos a
possibilidade de o ouro ter pertencido ao Templo do Sol. O templo abrigava uma prancha de
ouro representando o deus sol1, que não foi poupada na pilhagem dos espanhóis.
– Nos levantaremos después que la campana toque, a las cinco- dijo.
– El oro que doña María Angola entregó para que fundieran la campana
¿fueron joyas? – Le pregunté.
– Sabemos que entregó un quintal de oro. Ese metal era del tiempo de
los incas. Fueron, quizá, trozos del Sol de Inti Cancha o de las paredes del
templo, o de los ídolos. Trozos, solamente; o joyas grandes hechas de ese
oro. Pero no fue un quintal, sino mucho más, el oro que fundieron para
la campana. María Angola, ella sola, llevó un quintal. ¡El oro, hijo, suena
cono para que la voz de las campanas se eleve hasta el cielo, y vuelva con el
canto de los ángeles a la tierra! (ARGUEDAS, 2020, p.19-20).
Imagem 2: O sino María Angola na catedral de Cusco.

Fonte: www.mariangola.com.pe

Em outro momento, Ernesto, reflete sobre o toque do sino e associa as imagens da


mitologia indígena.
Yo sabía que la voz de la campana llegaba a cinco leguas de distancia. Creí
que estallaría en la Plaza. Pero surgía lentamente, a intervalos suficientes;
y el canto se acrecentaba, atravesaba los elementos; y todo se convertía
en esa música cuzqueña, que abría las puertas de la memoria. En los
grandes lagos, especialmente en los que tienen islas y bosques de totora,
hay campanas que tocan a la medianoche. A su canto triste salen del agua
toros de fuego, o de oro, arrastrando cadenas; suben a las cumbres y
mugen en la altura. Pensé que esas campanas debían de ser illas, reflejos
de la <<María Angola>>, que convertiría a los amarus en toros. Desde el
centro del mundo, la voz de la campana, hundiéndose en los lagos, habría
transformado a las antiguas criaturas (ARGUEDAS, 2020, p.19- 20).

As palavras em quéchua illas e amarus significam: uma palavra polissêmica tendo um


de seus significados como os touros da mitologia que moram no fundo do lago; já a outra

1 Entidade cultuada pelos Incas.


69
representa um deus da mitologia indígena que tem forma de serpente e habitava no fundo
dos lagos e depois foi transformado em touro.
Dos elementos significativos da cultura andina destaca-se um, no qual o escritor
Arguedas dedica um capítulo da narrativa para ele, Zumbayllu.
A explicação para o instrumento Zumbayllu é dada por Arguedas com a etimologia da
palavra.
La terminación quechua yllu es una onomatopeya. Yllu representa en una
de sus formas la música que producen las pequeñas alas en vuelos; música
que surge del movimiento de objetos leves. Esta voz tiene semejanza con
otra más vasta: Illa. Illa nombra a cierta especie de luz a los monstruos que
nacieron heridos por los rayos de la luna. Illa es un niño de dos cabezas
o un becerro que nasce decapitado; o un peñasco gigante, todo negro y
lúcido, cuya superficie apareciera cruzada por una vena ancha de roca
blanca, de opaca luz; es también Illa una mazorca o Forman remolinos;
son illas los toros míticos que habitan el fondo de los lagos solitarios, de
las altas lagunas rodeadas de totora, pobladas de patos negros. Todas
losillas, causan el bien o el mal, pero siempre en grado sumo. Tocar un
Illa, y morir o alcanzar la resurrección, es posible. Esta voz Illa tiene
parentesco fonético y una cierta comunidad de sentido con la terminación
yllu (ARGUEDAS, 2020, p. 72).

A descrição do objeto constitui o imaginário mitológico e pode ser compreendido pela


etimologia ancestral resgatada por Arguedas. Para o personagem Ernesto o instrumento
representa um símbolo de conexão com a natureza e o universo. O jovem fica fascinado
quando vê o zumbayllu dançar. O canto do instrumento remete-o aos rios; “El canto del
zumbayllu se internaba en el oído, avivaba en la memoria la imagen de los ríos, de los
árboles negros que cuelgan en las paredes de los abismos.” (ARGUEDAS, 2020, p. 76)
O objeto representa a força da natureza o que para Irlemar Chiampi (2008) representa
o resgate dos elementos incaicos após a repressão da colonização espanhola.
Em Los Ríos profundos (1958) de José María Arguedas, o retorno dos
valores da cultura incaica, reprimidos pela colonização espanhola,
produz no leitor uma inquietação conceitual, a cada descrição de objetos
ou notação etimológica dos vocábulos quéchuas. Flores, aves, insetos,
rios, vales, instrumentos musicais parecem nesse romance estar dotados
de uma energia extranatural, graças à predicação animista, que reflete
a concepção dinâmica da cosmogonia incaica. (CHIAMPI, 2008, p.64).

Abaixo a imagem de um zumbayllu, escultura esculpida pelo artista peruano Edilberto


Jiménez.
Imagem 3: Zumbayllu

Fonte: www.casadeliteratura.gob.pe

70
Diante da análise de “Los ríos profundos” pode-se dizer que a cultura autóctone andina
permanece presente na sociedade peruana, apesar da tentativa de apagamento pela cultura
colonizadora. A obra representa a complexidade da convivência das diferentes culturas
dentro do mesmo espaço, além de indicar os contrastes de grupos sociais que fizeram parte
do processo transcultural.
Percebe-se nas observações do narrador-personagem Ernesto, entendido como o “alter
ego” do escritor Arguedas, a angústia de viver entre culturas dispares que separava branco
de indígenas, colocando-os em posição social antagônica.
Na análise observam-se elementos componentes do patrimônio cultural material.
Identifica-se, no primeiro capítulo, que esses elementos (materiais) se encontravam ali
condensados e no decorrer da narrativa foram desenvolvidos nos capítulos subsequentes.
A obra literária possui um grande valor para a compreensão do processo formador da
sociedade andina e por extensão para toda América Latina e o sistema de construção social
vigente na região.
Esta pesquisa não se encerra aqui, pois a partir dos conhecimentos adquiridos, novas
perspectivas e questionamentos surgem na abordagem e análise de textos literários tidos
como canônicos, proporcionando reflexão e olhar crítico na produção acadêmica para um
melhor desenvolvimento da pesquisa científica.

Referências Bibliográficas
ARGUEDAS, J. M. El zorro de arriba y el zorro de abajo. Santiago de Chile: AllcaXX, 1997.
__________. Los ríos profundos. Barcelona: linkgua-digital.com, 2020.
BONNICI, T. e ZOLIM, L. O. (Orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências
contemporâneas. 3ª Ed. Maringá: Eduem,2009.
CHIAMPI, I. O realismo Maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano.
São Paulo: Perspectiva, 2008.
DÍAZ CABEZA, M. C. Criterios y conceptos sobre el Patrimonio cultural en el siglo XXI.
Córdoba: UBP, 2010.
DÍAZ MERINO, X. Imágenes de la Amazonía peruana en la narrativa de Ciro Alegría Bazán.
In: GUBERMAN, Mariluci C. (Org.) Provocações da Amazônia: dos rios voadores aos
rios imaginários. Cascavel: EDUNIOSTE, 2015.
GARCÍA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
São Paulo: EDUSP, 2003.
MARIÁTEGUI, J.C. 7 Ensayos de Interpretación de la realidad peruana. Venezuela:
Fundación Biblioteca Ayacucho,2007.
ORTIZ, F. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002.
RAMA, Á. Transculturación narrativa en América Latina. Buenos Aires: El Andariego,
2008.
REIS, L. Transculturação e Transculturação Narrativa. In FIGUEIREDO, Eurídice (Org.),
Conceitos de Literatura e Cultura. Niterói: EdUFF; Juiz de Fora: EdUFJF,2010.
RIBEIRO, D. As Américas e a civilização: formação histórica e causas do desenvolvimento
dos povos americanos. Petrópolis: Vozes, 1983.
WALSH, C. Interculturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (De) Coloniales de Nuestra Época.
Quito: Universidade Simón Bolivar y AbyaYala, 2009.

71
A literatura como ponte para o turismo na
cidade de Lima: uma análise de La ciudad
y los perros de Mario Vargas Llosa
Yasmin Justo da Silva

Introdução

Literatura e Turismo estão cada vez mais associados, muitos escritores contribuíram
para essa ligação, entre eles, o peruano Mario Vargas Llosa (1936-) que colocou a cidade
de Lima na rota dos turistas que visitam o Peru. As obras “La ciudad y los perros” (1963),
“Conversación en La Catedral” (1969) e “Cinco Esquinas” (2016) são algumas das obras do
autor ambientadas na capital peruana.
Atualmente há no Peru duas rotas turísticas em homenagem a Vargas Llosa, uma na
cidade de Arequipa denominada “Ruta Cultural Mario Vargas Llosa” e outra na cidade de
Lima o “Literatour: Ruta Vargas Llosa2”, na qual iremos nos deter nesse trabalho.
Trata-se de um tour gratuito com duração de uma hora e meia que ocorre todas as
sextas-feiras e percorre alguns lugares pelos quais o autor circulou e em que suas obras
são ambientadas.
Neste estudo voltamos nossa atenção à identidade de algumas personagens e a noções de
patrimônio cultural que podem ser vinculadas ao romance de estreia do escritor Vargas Llosa,
“La ciudad y los perros”, publicado pela primeira vez em 1963, e ganhador dos prêmios:
Premio Biblioteca Breve3 (1962) e Premio de la Crítica (1963). O romance também ganhou
uma adaptação cinematográfica homônima com roteiro do artista em questão, em 1985.
O romance acompanha a trajetória de um grupo de jovens peruanos que estudam
no tradicional Colégio Militar Leoncio Prado. Importa dizer que tal instituição de ensino
onde parte do romance é ambientado, a época da primeira edição da obra completou 20
anos de existência em 1963. É o local onde Vargas Llosa passou dois anos como aluno,
ou seja, ele é um ex-cadete do Leoncio Prado, sendo um dos motivos pelos quais se
confere à obra traços biográficos, mas que aqui não serão expostos.
É nesse ambiente escolar que se estrutura a trama. O enfoque são jovens de distintas
classes sociais e regiões do Peru que apresentam tensões familiares e mudanças pelas quais
os “homens” da faixa etária dos alunos do colégio militar passavam.

2 Mais informações sobre a rota literária podem ser obtidas em: <https://www.miraflores.gob.pe/literatourmariovargas-
llosa/>.
3 O Premio Biblioteca Breve é concedido anualmente pela editora Seix Barral a um romance inédito em língua espanhola.
O valor do prêmio consiste no valor de € 30.000,00 e a publicação do texto vencedor. Ver em: https://www.escritores.org/
recursos-para-escritores/30788-premio-biblioteca-breve-2021-espana.

73
A estrutura do livro é composta por duas partes, o que separa a primeira da segunda
parte do livro é o suposto acidente que tira a vida da personagem Ricardo Arana. Em
ambas, acompanhamos os personagens entre presente e passado, entre o colégio militar e
os bairros de Lima. E um epílogo que aborda apenas as personagens Jaguar e Alberto em
que nos é revelado que nenhum dos dois seguiu a carreira militar.
Para enriquecer a nossa análise, torna-se importante recuperarmos o título do livro,
pois sabemos que o título de uma obra funciona, na maioria das vezes, como síntese da
história contada. Em “La Ciudad y los perros” é evidente o quanto a cidade de Lima é
fundamental para a narrativa, já que a palavra “ciudad” se encontra no título, esse vocábulo
pode ser lido de forma literal, já ao vocábulo “perros”, que também aparece no título, pode-
se atribuir um duplo sentido, um literal e outro metafórico. O primeiro sentido é atribuído
à denominação dada aos meninos que ingressam ao colégio militar, já o segundo sentido se
relaciona à forma como esses mesmos alunos vão se tornando agressivos, isto é, como cães
selvagens ao longo da obra.
A narrativa dá indícios de que os fatos acontecem na década de 1950 ela é ambientada
em dois lugares: na capital peruana e no colégio militar. Em “La ciudad y los perros” são
demarcadas as diferenças econômicas dos bairros por meio dos personagens Alberto
Fernández, Jaguar e Ricardo Arana, enquanto o primeiro vive no bairro nobre de
Miraflores os outros dois vivem em bairros mais humildes, Bellavista e Magdalena Nueva,
respectivamente.
De acordo com o filósofo francês Henri Lefebvre (2011, p.13), em O direito à cidade:
“No contexto urbano, as lutas de facções, de grupo, de classes reforçam o sentimento de
pertencer”. Ao longo da obra podemos verificar esse sentimento nas personagens que
apresentam hábitos influenciados pela sua classe social, enquanto Alberto frequenta festas
dos jovens da elite miraflorina, a personagem Jaguar vê nos roubos uma forma de conseguir
dinheiro para custear suas despesas já que ele vem de uma realidade muito humilde, com
pouco dinheiro até mesmo para sobreviver. A diferença de oportunidades mostra as
realidades distintas que existem na cidade.

Entre a cidade e o Leoncio Prado

A inserção do patrimônio histórico em uma obra literária é fundamental para


compreendermos um pouco da história do local, pois, como nos diz a arquiteta, cubano-
argentina, María del Carmen Díaz Cabeza em “Criterios y conceptos sobre el patrimonio
cultural en el Siglo XXI”, o “patrimonio histórico, es una herencia colectiva, no individual,
producto de hechos acontecidos, personajes, objetos materiales que han trascendido a
través del tiempo, y el espacio social” (DÍAZ CABEZA, 2010, p.3).
Na ficção latino-americana “La ciudad y los perros” de Vargas Llosa percorremos
grande parte de Lima, por meio dos personagens que moram na cidade e circulam por
suas ruas e, assim, descobrimos o quanto a arquitetura da cidade é fundamental para que
possamos compreender a obra, seja pelos cinemas de rua, praças e itinerários de ônibus, já
que o próprio título do romance alude à cidade.
A cidade é objeto de reflexão a longa data por diferentes pensadores. O filósofo francês
Lefebvre nos sugere o seguinte entendimento:

74
A cidade tem uma história; ela é obra de uma história, isto é, de pessoas
e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições
históricas. As condições, que simultaneamente permitem e limitam as
possibilidades, não são suficientes para explicar aquilo que nasce delas,
nelas, através delas (LEFEBVRE, 2011, p. 52).

O autor mencionado nos ajuda a pensar a cidade como uma construção social que
pode ser estudada a partir de relações de poder circunscritas no espaço e no tempo. Desta
forma, esse trecho não nos explica apenas sobre a cidade francesa, mas como podemos
fazer reflexões analíticas sobre diferentes cidades. Corroborando com essa premissa, nos é
interessante a abordagem decolonial, que de acordo com Catherine Walsh é “un camino de
lucha continuo en el cual podemos identificar, visibilizar y alentar ‘lugares’ de exterioridad
y construcciones alternativas” (WALSH,2009, p.15).Nesse sentido, o turismo em Lima,
que outrora fora colonizado, hoje atrai diversos turistas por sua própria cultura e história,
proporcionando um novo olhar para um local que séculos atrás era visto como mero objeto
de enriquecimento da Coroa Espanhola.
O que queremos assinalar é a forma como Lima, ex-colônia da Espanha, foi retratada
nos romances de Vargas Llosa, e como essa questão tem estimulado o turismo no cenário
cultural contemporâneo. Trata-se de uma construção imagética que é percebida por autores
de estudos contemporâneos. Em “Ciudad Express” (2005), Juan Carlos Pérgolis, em um dos
capítulos reserva espaço ao romance de Vargas Llosa, nele o arquiteto destaca os aspectos
urbanos da capital peruana na construção da narrativa:
Entre los dos extremos de la observación: la particularidad íntima del
barrio – Miraflores – y la heterogeneidad hilvanada por la continuidad de
la gran ciudad, se destacan sectores, otros barrios y lugares que exaltan esa
variedad de la metrópoli (PÉRGOLIS, 2005, p. 81).

Como vimos, para Pérgolis o autor peruano faz uma dupla divisão na cidade de Lima
na narrativa, a primeira com o famoso bairro de Miraflores: “El epicentro de la ciudad
marítima es Miraflores” (PÉRGOLIS, 2005, p.80); já a segunda com a grande parte que
resta da cidade. Além da divisão urbana proposta por Pérgolis, a obra também é ambientada
no Colégio Militar Leoncio Prado, localizado na cidade de Callao, próxima a Lima, o que
nos leva a ver, influenciados pela leitura do romance, o próprio colégio militar como um
patrimônio cultural, já que ele desperta a atenção dos turistas e leitores de Vargas Llosa.
O antropólogo Néstor García Canclini, no artigo “Los usos sociales del Patrimonio
Cultural” menciona sobre o crescente debate em torno do termo patrimônio e que por esse
motivo tem aumentado a dificuldade em conceituar o termo. O autor chama a nossa atenção
para o debate em torno dessa discussão:
Sin embargo, algunos autores empiezan a vincular el patrimonio con
otras redes conceptuales: turismo, desarrollo urbano, mercantilización,
comunicación masiva. Estos términos son mencionados casi siempre como
adversarios del patrimonio: desafíos o agresiones exteriores que proceden de
universos distintos (CANCLINI, 1999, p.16).

Canclini tem uma visão oposta àqueles que não se adaptam as novas atribuições do
termo e vê essa modernização do termo com bons olhos, o que nos faz reforçar ainda mais
a nossa hipótese de entender o Colégio Militar Leoncio Prado como patrimônio cultural.
O Colégio Leoncio Prado existe, sua arquitetura é formada por “los edificios plomizos”
(VARGAS LLOSA, 2019, p.69) e tem o nome em homenagem a um militar importante para a

75
história do Peru, um herói nacional do século XIX: Leoncio Prado. No passado, a publicação
do livro foi considerada uma afronta para o colégio e teve exemplares queimados no pátio
da instituição, mas hoje em outro contexto sócio-político-econômico, somada ao conjunto
da obra do autor, a narrativa gera interesse pela cidade. A narrativa criada por Mario Vagas
Llosa, na segunda metade do século XX, compõe hoje o imaginário de turistas e gera lucro
para a cidade que criou até uma rota literária dedicada ao autor.
Díaz Cabeza, ao se referir à Carta de ICOMOS4 (Conselho Internacional de Monumentos
e Sítios) de 1994, nos informa que de acordo com esse documento o itinerário cultural
é uma paisagem cultural, logo, entendemos que a “Ruta Vargas Llosa” é uma paisagem
cultural. A autora reconhece que “un itinerario cultural conlleva necesariamente una serie
de elementos y objetos materiales en un espacio natural, unidos a otros valores de tipo
inmaterial o sea varios paisajes culturales” (DÍAZ CABEZA, 2010, p.13).
Torna-se importante mencionar que os turistas que percorrem o trajeto da Ruta Vargas
Llosa conhecem locais que se inserem na narrativa, como o bairro La victoria e o centro
de Lima. Nesse trecho do tour, os turistas são incentivados a visitarem o Museu de Arte
de Lima (MALI), assim como os museus, com entrada gratuita, Casa de la Gastronomía e
Casa de la Literatura. Este último conta também com uma biblioteca denominada Mario
Vargas Llosa. Abrindo novas possibilidades aos turistas de se interessarem pela cidade e
consumirem a sua cultura.
Segundo Díaz Cabeza é crescente no século XXI essa tendência de itinerários, o que nos
faz ligar os itinerários a uma das três categorias de paisagem cultural denominadas: “Paisaje
Cultural asociativo”, definida como: “puede reflejar un hecho histórico o bienes artísticos
asociados a las creencias religiosas o culturales y también se puede producir asociado a los
elementos del medio ambiente” (DÍAZ CABEZA, 2010, p.12).
Em um dos momentos do livro, “La ciudad y los perros”, um dos personagens, Ricardo
Arana, é inserido na narrativa saindo da cidade de Chiclayo, e estava eufórico para conhecer
Lima: “esperando que las luces de la ciudad surgieran de improviso, como una procesión de
antorchas” (VARGAS LLOSA, 2019, p.15). Pode ser que seja essa a mesma euforia que um
turista, leitor da obra, tem quando vai conhecer a cidade, pois como nos informa Canclini,
“El patrimonio cultural expresa la solidaridad que une a quienes comparten un conjunto de
bienes y prácticas que los identifica, pero suele ser también un lugar de complicidad social”
(CANCLINI, 1999, p.17).
A organização da cidade que hoje é percorrida por turistas e nos é apresentada em
“La ciudad y los perros” demonstra uma divisão de classes, como mostraremos a seguir.
É curioso mencionar que a primeira edição do livro, traz um mapa de Lima, situando o
leitor do espaço em que os fatos da narrativa sucedem. Em 2018, na edição comemorativa
organizada pela Real Academia Española (RAE), devido ao cinquentenário da publicação de
“La ciudad y los perros”, o mapa volta a ser apresentado.
A capital peruana nos é apresentada pelos cadetes, ora em suas saídas aos finais de
semana, como transeuntes, ora em suas recordações do tempo em que ainda não eram
alunos do colégio militar e no epílogo do livro, quando já não são mais cadetes, mas sim
meros civis.

4 A carta de ICOMOS de 1994 ou carta de Nara é o documento resultado da conferência realizada no Japão, naquele
mesmo ano, pelo ICOMOS, que é uma associação civil não governamental ligada à Unesco. Essa associação se empenha
a promover teoria, metodologia e tecnologia dedicada à conservação, proteção e valorização dos monumentos, conjuntos
e sítios arqueológicos. 

76
No que confere a vida dos cadetes fora do colégio militar, ou melhor, como transeuntes
e habitantes de Lima, o leitor é conduzido pelos personagens Ricardo Arana, Alberto
Fernández, Jaguar e Boa. Eles nos conduzem pela cidade em três períodos: antes de
ingressarem no Leoncio Prado, em suas raras saídas do colégio militar aos finais de semana
e após as suas saídas definitivas da instituição de ensino. No prólogo do livro, entretanto, só
acompanhamos esse desfecho dos personagens Alberto Fernández e Jaguar.
A cidade se insere na narrativa através das vozes das personagens, no que confere à
elite vemos como é um domingo para os jovens miraflorinos e em dias de lazer:
Miran a su alrededor y encuentran rostros que les sonríen, voces que
les hablan en un lenguaje que es el suyo. Son los mismos rostros que
han visto mil veces en la piscina M Terrazas, en la playa de Miraflores,
en la Herradura, en el Club Regatas, en los cines Ricardo Palma, Leuro
o Montecarlo, los mismos que los reciben en las fiestas de los sábados
(VARGAS LLOSA,2019, p.256).

O personagem que nos conduz pelo luxuoso distrito de Miraflores é o poeta Alberto
Fernández.
A narrativa construída na obra acompanha personagens masculinas e proporciona
ao leitor diferentes pontos de vista sobre a rigidez do colégio militar e também sobre as
dificuldades da vida dessas personagens fora da instituição. Grande parte do livro está
centralizada na vida dos cadetes, entretanto, há fragmentos que acompanham o tenente
Gamboa que é um dos responsáveis pelos cadetes.
Uma das questões interessante da obra é trazer ao leitor os diversos motivos que fazem
os jovens ingressarem no Leoncio Prado, como sabemos, em um colégio militar os cadetes
têm uma rotina rígida e vivem sob regras de comportamento impostas pela instituição.
Em “Vigiar e punir” (1987), o filósofo francês Michel Foucault traz um panorama
sobre a vigilância hierárquica de instituições de poder: “O exercício da disciplina supõe
um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que
permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem
claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam” (FOUCAULT, 1987,196). Vemos,
na obra de Vargas Llosa, o quanto os jovens são monitorados pelo olhar dos oficiais, e
driblam esse controle por meio de esconderijos e conversas secretas, isto é, eles fogem
do olhar dos poderosos.
Os alunos do Leoncio Prado são de localidades e classes sociais diferentes, a instituição
tenta homogeneizar os seus comportamentos, e por isso acreditamos que os jovens que
ingressaram na instituição compõem um grupo híbrido. No livro “Culturas Híbridas:
Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade”, Canclini (2015, p.19) entende a hibridação
como “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de
forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”.
Como nos explica o sociólogo peruano Aníbal Quijano em seu artigo “Colonialidade
do poder, Eurocentrismo e América Latina”, no período colonial da América Latina
“apenas os nobres podiam ocupar os médios e altos postos da administração colonial,
civil ou militar” (QUIJANO, 2005, p.119). Entretanto, no século XX, jovens de diferentes
classes sociais e cores ao ingressarem no Leoncio Prado poderiam conquistar um lugar
na carreira militar.
A identidade do grupo como um todo é híbrida, mas separados cada um tem uma
identidade única que sofre alterações constantemente, pois na narrativa encontramos

77
meninos que estão crescendo, eles passam por um momento de transição, tanto pela idade
quanto pela forma como circulam entre o espaço público e o espaço privado, somadas
ainda às mudanças sociais, logo, suas identidades passam por transformações, por isso
acreditamos que as identidades individuais dos personagens da narrativa de Vargas Llosa
estejam próximas à identidade de “sujeito pós-moderno”, conceito proposto pelo sociólogo
jamaicano Stuart Hall em “A identidade cultural na pós-modernidade”, que:
É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que
nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas (HALL,
2006, p.13).

Suas identidades sofrem mudanças desde o início da narrativa até o final, a presença
de diversas temporalidades, congrega diferentes tempos cronológicos e nos ajudam a
compreender esse processo.
Na ficção se destacam os jovens que fazem parte do grupo el círculo. O grupo foi
formado pela primeira vez para se vingar do trote dado pela turma de cadetes veteranos
aos cães, ele é composto pelos personagens Jaguar, Alberto Fernández (conhecido como
o Poeta), Ricardo Arana (apelidado de o Escravo), Cava, Boa, Vallano, Rulos e Arróspide,
sendo os três primeiros os protagonistas do romance. El círculo é apresentado na narrativa
com as seguintes palavras:
El Círculo había nacido con su vida de cadetes, cuarenta y ocho horas
después de dejar las ropas de civil y ser igualados por las máquinas de los
peluqueros del colegio que los raparon, y de vestir los uniformes caquis,
entonces flamantes, y formar por primera vez en el estadio al conjuro de
los silbatos y las voces de plomo (VARGAS LLOSA, 2019, p. 57).

O grupo é liderado por Jaguar e teve duas formações. Nesse artigo gostaríamos de
destacar que iremos nos referenciar aos jovens de el círculo no que concerne a sua primeira
formação. El círculo representa violência. Os cigarros e o pisco, uma tradicional bebida
alcoólica consumida no Peru, também estão muito presentes no cotidiano dos meninos:
“El Esclavo había abierto la botella de pisco, y después de tomar un trago largo y escupir, la
pasó a Alberto. Todos bebían y fumaban” (VARGAS LLOSA,2019, p.145). El círculo era um
grupo secreto, mas após ser denunciado por Alberto é descoberto pelos oficiais e a tensão
que já havia entre os meninos que o compunham aumenta.
Quando falamos do el círculo estamos nos referindo a sua primeira formação, como
já dito acima, feita para que o grupo se livrasse do batismo pelos cadetes do quarto ano.
El círculo nasce a partir do sentimento de vingança dos recém-chegados ao colégio militar
para com os cadetes do quarto ano, posteriormente, el círculo aparece no romance com
apenas alguns integrantes: Cava, Rulos, Boa e Jaguar, que segue como líder do grupo, assim
como, na primeira formação.
A conturbada relação entre costeiros e serranos que assola o Peru também aparece no
romance. O ensaísta José Carlos Mariátegui (2007, p.279) comenta essa situação, na década
de 20 do século passado, em “Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana”: “El
costeño se diferencia fuertemente del serrano”.
Os costeiros são habitantes da capital peruana, muitos deles veem com desprezo os
serranos que desde a década de 40 migram da região dos Andes para Lima, os serranos

78
que chegam à cidade vivem situações de discriminação por conta de sua origem indígena e
habitam em bairros da periferia na capital.
É por meio do personagem Cava, um serrano, que vemos essa situação. Em um
pensamento do monólogo do cadete Boa: “Los serranos son bien hipócritas y en eso Cava
era bien serrano. Mi hermano siempre dice: si quieres saber si un tipo es serrano, míralo a
los ojos, verás que no aguanta y tuerce la vista” (VARGAS LLOSA,2019, p.265).
No livro há apenas um embate físico entre um personagem da capital (Boa) versus
uma personagem serrana (Cava). Como observamos em seus monólogos, Boa não gosta
de serranos e os vê com uma imagem negativa, para que o desentendimento entre as
personagens cesse Jaguar propõe que eles lutem entre si para que possam formar um novo
el círculo.
O ensaísta Mariátegui que se dedicou a estudar os problemas do Peru, como a
questão agrária do país e a questão do indígena peruano, em seu livro “Siete ensayos de
interpretación de la realidad peruana” (2007), publicado em 1928, traz em seu segundo
ensaio “El problema del índio” o quanto o indígena sofre nesse país desde o período colonial:
La suposición de que el problema indígena es un problema étnico, se nutre
del más envejecido repertorio de ideas imperialistas. El concepto de las
razas inferiores sirvió al Occidente blanco para su obra de expansión y
conquista. Esperar la emancipación indígena de un activo cruzamiento de la
raza aborigen con inmigrantes blancos, es una ingenuidad antisociológica,
concebible sólo en la mente rudimentaria de un importador de carneros
merinos (MARIÁTEGUI, 2007, p.30).

No Peru há uma marca indígena muito forte, como podemos ver nos textos teóricos
de Mariatégui e Quijano, assim como, na ficção de Vargas Llosa (2019), isto é, a questão
indígena atravessa gerações de intelectuais peruanos. Na ficção de Vargas Llosa a imagem
do indígena aparece de forma pejorativa, pois, primeiro o romance se inicia com o roubo
de uma prova de química e o ladrão da prova é Cava, indígena, entretanto, como sabemos
ao longo da narrativa foi um plano da segunda formação de el círculo, mas quem o colocou
em prática foi o serrano, depois nos monólogos ele é frequentemente “rebaixado” por seu
colega de seção Boa: “Nada con serranos, son unos cobardes” (VARGAS LLOSA,2019,
p.271). Cava é adjetivado pelo colega como “nanico” e “cabeça dura”, ambas características
de serranos de acordo com Boa.
Além das divergências costenhos versus serranos serem apresentadas no texto,
vemos de forma um pouco menos atenuada o preconceito contra o negro, isto é, contra
o personagem Vallano: “En los ojos se le vio que es un cobarde como todos los negros
[...]” (VARGAS LLOSA,2019, p.22). Às vezes os insultos aparecem como “brincadeira” de
meninos, de uma forma velada, ora de forma mais direta.
Um fator curioso é que em grande parte da narrativa quando o personagem Vallano é
introduzido a palavra negro precede seu nome. No artigo “Teoria e crítica pós-colonialistas”
o professor Thomas Bonicci (2009, p.278) relembra como os negros foram trazidos
para o continente americano: “Milhões de africanos, oriundos de várias tribos e nações,
foram escravizados e involuntariamente transportados às fazendas do Novo Mundo como
solução à escassez de mão-de-obra na produção de mercadorias para as metrópoles”. Essa
convivência entre negro, branco e índio, que aparece em La ciudad y los perros nada mais é
do que um fruto do passado colonial da América Latina.
A obra de Vargas Llosa nos leva a pensar que as diferenças entre o povo do Peru são

79
inúmeras e que elas causam divergências entre seus habitantes, o que acaba inferiorizando
algumas pessoas em relação a outras, por isso vamos nos debruçar no conceito, proposto
pelo movimento indígena equatoriano, interculturalidad usado por Walsh:
La interculturalidad es un proyecto que por necesidad convoca a todos
los preocupados por los patrones de poder que mantienen y siguen
reproduciendo el racismo, la racialización, la deshumanización de
algunos y la súper y sobrehumanización de otros, la subalternización de
seres, saberes y formas de vivir. Su proyecto es la transformación social y
política, la transformación de las estructuras de pensar, actuar, soñar, ser,
estar, amar y vivir (WALSH, 2009, p. 15).

Ao usar esse conceito, a pedagoga decolonial alerta para comportamentos que têm se
repetido nos dias atuais, comportamentos esses que aparecem refletidos nos personagens
de Vargas Llosa, todavia, como pudemos observar a interculturalidad propõe a
transformação desses modos.
Torna-se interessante observar como a elite miraflorina é representada ao longo da
narrativa, pois esse é mais um marcador social que aponta a diferença entre os jovens que
moram no ilustre bairro e estudam no colégio militar dos seus colegas de origem menos
favorecida economicamente. Entre os jovens afortunados temos os personagens Alberto
Fernández e Arróspide, o chefe de turma da seção, que apesar de não ganhar muito destaque na
narrativa, sabemos que vem de Miraflores e foi visto andando em um carro luxuoso pela cidade.
Fora do Leoncio Prado é um privilégio ser miraflorino, mas dentro não, como o próprio
Poeta reflete no epílogo do livro. O poeta vivia em Miraflores e gosta de futebol, no final da
narrativa vai para os Estados Unidos estudar engenharia como um filho da elite peruana.
A elite de Miraflores que aparece na narrativa usufrui de carros e relógios caros.
Enquanto, o personagem Jaguar, que mora no bairro pobre de Bellavista, precisa recorrer
a roubos para sobrevier e ajudar nas despesas de casa. O seu nome verdadeiro não nos é
revelado durante toda a narrativa, mas sabemos que ele não tem marcas indígenas.
O final da narrativa nos leva ao final de apenas dois personagens Alberto e Jaguar,
entretanto, o personagem Ricardo Arana tem seu fim já na segunda parte da narrativa
com a sua morte, e Cava também, pois é expulso do Leoncio Prado por roubar uma
prova de química.

Considerações finais

As considerações deste trabalho permanecem abertas, mas até aqui a leitura do


romance nos faz refletir que o próprio Colégio Militar Leoncio Prado é um patrimônio
cultural peruano, tanto pelos seus 77 anos de existência e tradição, quanto por meio do
imaginário criado pelos leitores do Prêmio Nobel de Literatura 2010.
Procuramos refletir aqui sobre Patrimônio Cultural, poder e classes sociais. A
obra de Mario Vargas Llosa é muito forte, pois aborda temas como a transição da infância
para a adolescência, a violência e a carreira militar, apesar de publicada por um jovem autor
de 27 anos, a obra é fiel à realidade de seu país. Em “La ciudad y los perros” observamos
uma tensão que se desloca do espaço físico do colégio para os seus alunos. Na ficção vemos
problemas individuais que refletem o coletivo da sociedade peruana.
Apesar da tentativa de igualar os cadetes isso não ocorre, pois eles têm origens e
sentimentos diferentes uns dos outros. Essa diferença em suas personalidades faz com que

80
cada um deles siga um rumo diferente quando sai do colégio. Além disso, o romance nos
mostra o quanto a masculinidade é imposta precocemente aos jovens que desde muito cedo
são incentivados a entrarem em contato com álcool, bordéis e cigarros.
Também devemos levar em conta que a cidade de Lima de La ciudad y los perros
eternizada pelo autor a mais de cinco décadas é diferente da metrópole que os turistas irão
encontrar quando forem visitar a grande capital peruana hoje.

Referências Bibliográficas
BONICCI, T. Teoria e crítica pós-colonialistas. In: BONNICI, T. & ZOLIN, L.O. (orgs). Teoria literária:
abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3ª ed. Maringá: Eduem, 2009, p. 257-285.

CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2000.

______. Los usos sociales del Patrimonio Cultural. In: CRIADO, Encarnación Aguiar. Patrimonio etnológico:
perspectivas de estudio. Andalucía: Junta de Andalucía: Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico, 1999.
p.16-33.

DÍAZ CABEZA, M. C. Criterios y conceptos sobre el patrimonio cultural en el Siglo XXI. Córdoba: Universidad
Blas Pascal, 2010.

FOUCAUL, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2011.

MARIATÉGUI, J.C. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Fundación Biblioteca Ayacucho:
Caracas, 2007.

PÉRGOLIS, J. C. Ciudad. Express: Buenos Aires: Nobuko, 2005.

QUIJANO, A. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In:______. A colonialidade do


saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf>
Acesso em: 28 de jun.2020.

VARGAS LLOSA, M. La ciudad y los perros. Barcelona: Penguin Random House Grupo Editorial, 2018.

WALSH, C. Interculturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Universidad
Andina Simón Bolívar, Ediciones Abya-Yala, 2009.

81
SEGUNDA PARTE

Decolonialidade, políticas e gestão do


patrimônio cultural
El derecho humano a los patrimonios
culturales en clave decolonial5

Lucia Carolina Colombato


Alejandro Marcelo Médici

Introducción

Pensar en el tratamiento, contenido y la exigibilidad de un “nuevo derecho” humano


al(os) patrimonio(s) cultural(es) expresa la complejidad y dificultad de definir los derechos
humanos, y las insuficiencias de hacerlo desde un registro exclusivamente normativo/
jurídico positivo.
Nuestro intento, entonces, no se reduce a concebir una fórmula orientada a la
consagración del derecho humano al patrimonio cultural en una norma jurídica enmarcada
en la promesa moderna de ciudadanía y democracia global6; sino que pretende ir más
allá, indagando los procesos socio-históricos que perfilan las articulaciones locales de las
relaciones de diferentes colectivos en torno a lo patrimonial, y de los conflictos asociados
a ellas, que en Argentina “desde donde escribimos como lugar geográfico pero también
epistémico”, se vinculan a la persistencia de una matriz de colonialidad del poder, del saber
y del ser7.
5 Este artículo ha sido publicado en: Guerrero, A.; Olivera García, J. y Olivera García, J.C. (Coods) (2017). Contornos de
diversidad y ciudadanía en América Latina. Ciudad de México: Universidad Autónoma del Estado de México; Universi-
dad Nacional Autónoma de México, Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe, y en Revista Brasileira
de Sociologia do Direito, v. 3, n. 3, set./dez. 2016.
6 Por “promesa moderna de ciudadanía” nos referimos a las expectativas que la modernidad occidental propone, como,
por ejemplo, la igualdad de derechos y oportunidades, que constituyen horizontes que, en el estado actual del capitalismo
avanzado, aún no han sido alcanzados. En el campo de los derechos humanos, esas expectativas futuras se expresan
en la política de aprobar, tenazmente, nuevas normas jurídicas, formuladas de modo general y abstracto, destinadas
a la creación de nuevos ciudadanos/as. En algunas ocasiones, esas enunciaciones de derechos pueden desempeñar
una función que, en lugar de dar respuesta a los reclamos de los sectores subalternos, contribuye a desarticular las
luchas políticas, sin que los grupos hegemónicos retrocedan su control sobre los espacios de decisión institucional. La
abstracción que produce la declaración formal de los derechos hace que las luchas sociales que las originaron resulten
rápidamente olvidadas. De este modo, como lo señala Herrera Flores (2005, p. 60) “los contenidos éticos son privatizados
por aquéllos que ostentan la hegemonía política, económica y cultural, lo cual les permite auto-presentarse a sí mismos
como los representantes en la tierra de la única generalidad con validez”. La superación del horizonte jurídico impuesto
por occidente requerirá, como lo propone Boaventura de Sousa Santos (apud HERRERA FLORES, 2005, p.60), expandir
“las luchas presentes y reducir el plano de las expectativas futuras”.
7 La inserción de Argentina en el sistema-mundo capitalista, a partir de la implementación del modelo agroexportador
que se desarrolló sobre las últimas décadas del Siglo XIX y las primeras décadas del Siglo XX se asienta sobre la captura
y ocupación efectiva por la fuerza del territorio, mediante el exterminio de los pueblos originarios que lo ocupaban
desde épocas inmemoriales, en una marcha que comienza en el período colonial y culmina con la campaña militar de
1879-1880. La metáfora del ‘desierto’ utilizada para denominar a la campaña militar de ocupación del espacio, pese a
que los territorios se encontraban densamente poblados, fue uno de los pilares de los discursos hegemónicos respecto de
la identidad local, que se centró en la negación de toda referencia a los pueblos indígenas y la afirmación, en su lugar,
del legado europeo o norteamericano. De este modo, se construyeron relatos identitarios al interior de los dispositivos

85
Entendemos los derechos humanos como procesos culturales, históricos y sociales
de apertura de espacios de lucha (institucionales, normativos, políticos) por las plurales
formas de entender y practicar la dignidad humana (HERRERA FLORES, 2005). De donde
su listado está siempre abierto a la reivindicación de nuevos derechos, de ahí su carácter
instituyente, y no solamente instituido, y de ahí su carácter eminentemente crítico, en
tanto los derechos expresan predicados normativos inconformistas acerca de las formas en
que vivimos. Es decir, acerca de cómo nos relacionamos los seres humanos entre nosotros
en los espacios culturales y biofísicos que co-habitamos. Acerca de cómo jerarquizamos
y clasificamos las relaciones e identificaciones en base al sexo, la cultura, la clase, los
fenotipos, la pertenencia a un grupo identitario, y reconocemos necesidades e imputamos
satisfactores sociales en base a esas clasificaciones jerarquizadas.
Las subjetividades de derechos, se han ido concretizando y pluralizando en los procesos
de lucha y reconocimiento, que nunca han sido formulaciones tecnocráticas ‘desde arriba’,
sino verdaderas respuestas a desafíos y críticas sociales que, independientemente de cuál
sea el resultado histórico en términos normativos, son sintomáticas de cambios en las
formas de percibirnos como sociedad y de relacionarnos como sujetos sociales.
Para esos procesos sociales la modernidad occidental, no sin claroscuros,
ambigüedades, avances y retrocesos, ha generado el significante de la dignidad humana:
derechos humanos como discursividad disponible para ser (re)enunciada desde nuevas
necesidades, subjetividades y situaciones. Por eso el carácter tensionado entre lo instituido
y normado y lo instituyente y formante del campo de los derechos humanos que nunca
puede cerrarse (no hay un fin de la historia de los derechos humanos). Derechos humanos
exhiben una historicidad abierta y diversos usos posibles.
Joaquín Herrera Flores (2005, p.122), desde su concepción de los derechos humanos
como productos culturales, sostiene que éstos no son neutrales, sino que pueden desempeñar
un rol que tienda a la regulación o a la emancipación. En el primer caso, contribuyen al
mantenimiento del statu quo; en el segundo, a la transformación. En el mismo sentido,
Boaventura de Sousa Santos (2009, p. 13) sostiene que los derechos humanos, en su
complejidad, pueden desempeñar un rol hegemónico o contrahegemónico. Este último
requiere para el autor una concepción multicultural de los derechos humanos
Las dimensiones del derecho en tanto orden normativo y de las políticas públicas son
entonces mediaciones y herramientas no menores sino centrales en esos procesos complejos
de derechos humanos, pero no los agotan ni estos pueden reducirse a aquellas. En todo caso
hay que conocerlas, comprenderlas y sobre todo saber usarlas como herramientas de avance
de los derechos en contextos problemáticos y conflictivos de gran complejidad social.
Resulta entonces fundamental una consideración del derecho humano a los patrimonios
culturales que se sitúe decididamente en la mirada del pluralismo y de la interculturalidad,
que critique el patrimonio cultural entendido desde la idea de nación monocultural, que
identifique la matriz de colonialidad del poder, del saber y del ser que lo atraviesa y que dé
cuenta de los derechos más específicos, de individuos y grupos en torno a los procesos de
selección y gestión patrimonial.

de poder y de saber que pueden inscribirse en la lógica modernidad/colonialidad. Estos mecanismos pueden observarse
en los listados de los llamados “Monumentos Históricos Nacionales”, donde el patrimonio cultural prehispánico se vio
sub-representado en su diversidad y en su número, frente a la impactante cantidad de los sitios históricos vinculados al
período patrio y colonial.

86
El patrimonio cultural como producto de la modernidad.

La conservación del patrimonio cultural nació en Europa, en el siglo XIX, cuando


la antropología y la historia del arte se preocuparon por abordarla científicamente,
y constituye un rasgo de la modernidad8 (GALÍ BOADELLA, 2001; HERNÁNDEZ i
MARTÍ, 2008). Uno de los procedimientos más básicos de las políticas patrimoniales
hegemónicas es la atribución de valores, fundamentalmente históricos, estéticos y de
uso (VILADEVALL i GUASCH, 2003, p.17). Esta concepción de lo patrimonial llevó a la
postre a una idea de puesta en valor económico de los bienes culturales susceptibles de
ser admirados por su historia o belleza y al nacimiento de un mercado que mueve cifras
astronómicas a su alrededor.
Si bien la idea tradicional del patrimonio se desarrolla con fuerza en la Europa del
siglo XIX, es un fenómeno cuya genealogía en la cultura occidental es antigua. Deriva de las
primeras formas de apropiación, vinculadas al coleccionismo de objetos, y, por ende, se la
asocia a la idea de propiedad privada.
En la Antigüedad y durante la Edad Media, los bienes culturales se adquirían, en
la mayoría de los casos, como botines de guerra. Por eso eran valorados sólo desde su
contenido económico, derivado de la rareza de sus materiales. Se los desligaba entonces de
las expresiones culturales de los pueblos vencidos o conquistados. Su disfrute era individual
o privado y se relacionaba con la expoliación (LLULL PEÑALBA, 2005).
Como excepción a esta regla, se rescataban de la destrucción ciertos monumentos del
mundo antiguo que tenían por objeto la rememoración de determinados héroes, personajes
o hazañas (GALÍ BOADELLA, 200, p.35). De este modo, sólo se reconocía protección a
aquellos bienes artísticos y/o escritos elaborados intencionalmente para recordar.
En el Renacimiento, los objetos comenzaron a ser valorados como testimonio de la
historia, dando lugar a un nuevo concepto: el de monumento, y a nuevas técnicas de estudio,
inventario, catalogación y mecenazgo. Etimológicamente, monumento procede del latín
monere, que significa recordar, lo que pone de relieve no sólo la cualidad rememorativa
sino sobre todo el valor documental de los bienes culturales y así se vincula al patrimonio
con la capacidad de reflexión histórica. Ello llevará a sostener que fue en el Renacimiento
cuando se originó la moderna conservación de monumentos y la instauración de normas
jurídicas para su protección.
En la Edad Moderna, los bienes culturales no solamente sirvieron para rememorar y

8 ‘Modernidad’ es un término de difícil definición desde que ha suscitado debates e interpretaciones contradictorias.
El significado más extendido la ubica como un fenómeno generado en occidente hace 500 años y luego extendido a
otras sociedades y culturas, basado en ciertos principios organizativos: el capitalismo, la industrialización, la democracia
liberal, el Estado-nación, el racionalismo, la familia burguesa. La modernidad se construye por oposición a lo tradicional
(entendido como primitivo), desde un esquema de evolución progresiva que se autorrealiza, y se expresa en una serie
de rupturas, que marcan una distancia histórica con el medioevo, y que contribuyen a explicar la dicotomía moderna/
tradicional en distintos ámbitos. Así las categorías capitalistas/pre-capitalista, pensamiento mágico/pensamiento
científico, sagrado/secular, se constituyen en las claves de un trazado jerarquizado del espacio y del tiempo, donde
Occidente es a la vez el pasado, en que se ubica el origen de la modernidad y el futuro, como horizonte al que todas las
sociedades deberían aspirar. Estos procesos se expresan en distintos tiempos y en distintos lugares del mundo, por lo que
también se ha hablado de ‘modernidades’ en plural (SZURMUK Y MCKEE, 1999). Desde América Latina, el grupo
modernidad/colonialidad, propone una mirada crítica sobre el fenómeno, señalando una relación de co-constitución
mutua entre ‘modernidad’ y ‘colonialidad’, que se asocia al surgimiento del nuevo patrón de poder mundial, capitalista
y eurocentrado en el que se inscriben relaciones de dominación que configuran el universo específico de la modernidad.
Para esta perspectiva, la colonialidad, que nace y se mundializa con la conquista de América “Se funda en la imposición
de una clasificación racial/étnica de la población del mundo como piedra angular de dicho patrón de poder, y opera en
cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones, materiales y subjetivas, de la existencia cotidiana y a escala social”
(QUIJANO, 2007, p. 93).

87
documentar el pasado, sino que además se constituyeron en modelos estéticos de la cultura
clásica europea.
Fue luego de la Revolución Francesa cuando se produjo un cambio de concepción
del patrimonio, que lo llevó desde el dominio privado al público, poniendo el acento en
su valoración como símbolo de la identidad nacional, edificada sobre la idea de nación
monocultural.
El interés por el tratamiento jurídico y político del patrimonio cultural se
institucionaliza junto con el nacimiento del Estado-Nación, período en el que inscribirá el
movimiento conservacionista moderno basado en un proceso de catalogación y selección
resuelto – en última instancia – en un dictamen experto (BALLART, 1997, p.53). Sin
embargo, esa primera institucionalización no logró colocar al patrimonio en el ámbito del
dominio público. Desde los orígenes, su regulación estará marcada por la colisión de este
interés con la propiedad privada, derecho estelar y omnicomprensivo del estado liberal.
Este es uno de los conflictos de intereses que están, a nuestro juicio, en los cimientos de
la exclusión del patrimonio cultural en los principales instrumentos internacionales de
protección de los derechos humanos.
La consideración del patrimonio nacional como bien público al que es preciso
proteger por sus valores históricos, económicos y simbólicos, es decir como objeto de
tutela estatal, eclosiona en los sistemas jurídicos de los Estados modernos de Europa
y América, en el siglo XIX. Claro que, la regulación del patrimonio nacional tendrá
un rol diferente en la configuración de las identidades nacionales en Europa que el
que desempeñó en América. Es aquí ilustrativa la metáfora de la doble cara de la
modernidad que plantea Mignolo (2001), porque en América, la idea de la identidad
nacional, homogénea y genéricamente europea, narrada y reproducida mediante el
patrimonio nacional, se sostiene sobre la cancelación violenta de la memoria y las
culturas originarias (SEGATO, 2010; BRIONES, 2005).
En este contexto surgirán las primeras normas jurídicas que establecerán criterios
de protección, órganos de expertos, restricciones al dominio destinadas a la conservación
e incluso la expropiación de bienes culturales. Este proceso se enriquecerá con la
incorporación, a los museos europeos, de numerosos bienes culturales saqueados durante
la expansión colonial9.
Paralelamente al desarrollo de la legislación interna sobre el patrimonio nacional,
la regulación de los bienes culturales, y su valoración como bienes jurídicos protegidos
ha sido materia de interés del Derecho Internacional, a instancia de los mismos Estados
europeos. Este proceso de desarrollo internacional de normas jurídicas de protección,
recomendaciones y políticas públicas en materia de patrimonio cultural, logrará expandir
territorialmente y hacer hegemónicos los discursos y las políticas patrimoniales antes
descriptos.
La Convención sobre la Protección del Patrimonio Mundial Cultural y Natural
(1972), norma fundamental del sistema, establece un dispositivo basado en un sistema
de listados de bienes culturales y naturales que son elegidos en base al criterio del ‘valor
universal excepcional’10, de otros catálogos de bienes propuestos por los estados parte en la

9 En el mismo sentido, Benjamin (1995, p.52) sostiene que el patrimonio cultural puede ser definido como un “documento
de la barbarie”
10 Una lectura crítica sobre la idea de patrimonio universal puede verse en Andrés M. Tello. Notas sobre las políticas del
patrimonio cultural. Cuadernos Interculturales, v. 8, n. 15, p.115-131, 2010.

88
Convención, pero no reconoce derechos de comunidades, grupos e individuos en relación a
sus patrimonios culturales.
El concepto de patrimonio, reducido al patrimonio material, que sostiene el artículo
primero de la Convención de 1972 y que, a partir de ella, se difunde a las normas de derecho
interno de sus Estados signatarios, es el siguiente:
A los efectos de la presente Convención se considerará ‘patrimonio
cultural’: - los monumentos: obras arquitectónicas, de escultura o de
pintura monumentales, elementos o estructuras de carácter arqueológico,
inscripciones, cavernas y grupos de elementos, que tengan un valor
universal excepcional desde el punto de vista de la historia, del arte o de
la ciencia, - los conjuntos: grupos de construcciones, aisladas o reunidas,
cuya arquitectura, unidad e integración en el paisaje les dé un valor
universal excepcional desde el punto de vista de la historia, del arte o de
la ciencia, - los lugares: obras del hombre u obras conjuntas del hombre
y la naturaleza así como las zonas, incluidos los lugares arqueológicos que
tengan un valor universal excepcional desde el punto de vista histórico,
estético, etnológico o antropológico11.

La plataforma de estos mecanismos consiste entonces en que los bienes


culturales que resultarán incorporados a los listados, y que en consecuencia recibirán el
financiamiento, la difusión y la asistencia técnica de la Organización, deben pasar por un
doble tamiz, el de la ‘identidad nacional’ (al ingresar al listado de propuestas del Estado
donde se encuentran) y el del ‘valor universal excepcional’ (para adquirir el carácter de
patrimonio común de la humanidad).
Sin embargo, dicho ‘valor universal excepcional’, que aspira a constituirse en
un criterio abstracto de selección (TELLO, 2010, p.119), no es otra cosa que un localismo
globalizado, entendido como “el proceso por el cual determinada condición o entidad local
extiende su influencia a todo el globo y, al hacerlo, desenvuelve la capacidad de designar
como local otra condición social o entidad rival” (SANTOS, 2009, p. 12).
En efecto, los listados revelan un marcado carácter eurocentrado no sólo en
cuanto a la prevalencia de bienes culturales europeos (TELLO, 2010; HERNÁNDEZ I
MARTÍ, 2008), sino también respecto de la elaboración de criterios para alcanzar tal
categoría, al sujetar la incorporación al Listado de Patrimonio Mundial Cultural y Natural
al punto de vista de la historia, el arte o la ciencia, disciplinas cuya raigambre se inscribe
en un patrón moderno/colonial del poder y del saber. Conforme a dicho patrón, en los
considerandos de la Convención de 1972 se anuncia que es indispensable “un sistema eficaz
de protección colectiva del patrimonio cultural y natural de valor excepcional organizada de
una manera permanente, y según métodos científicos y modernos”, lo que implica sustraer
el proceso de selección a los pueblos soberanos que construyeron y dieron sentido a ese
patrimonio.
En esta dirección, Tello (2010, p.118) afirma que:
[el] listado actual del Patrimonio Común Mundial de la Humanidad (…), se basa
en un supuesto criterio de ‘valor universal excepcional’ desde un punto de vista
histórico, estético, científico y antropológico. Sin embargo, este listado no ha
hecho sino afirmar una supuesta primacía cultural europea por sobre el resto de
los continentes y culturas, a tal punto que sólo siete países europeos llegan a tener
más nominaciones en esa lista que todo el continente americano.

La Convención de 1972 subordina la protección del patrimonio cultural en el derecho

11 El destacado es nuestro.
89
internacional, a la inclusión de ciertos bienes culturales a los listados de patrimonio mundial
de la UNESCO, a valores que se pretenden absolutos, pero no son otra cosa que mecanismos
que favorecen la reproducción y legitimación de poder de sectores hegemónicos, cuyo
capital cultural resulta jerarquizado frente a los bienes y prácticas de ‘otros’.

El patrimonio cultural como derecho humano

El desarrollo de la protección internacional del patrimonio cultural, que hemos


descripto a lo largo de este acápite, se produjo contemporáneamente al de los sistemas
internacionales de protección de los derechos humanos, pese a lo cual, el tópico del
patrimonio cultural, se mantuvo al margen de éstos, al no haber sido nombrado como
derecho específico en ninguno de los instrumentos generales de protección del sistema
universal que se lleva a cabo en el ámbito de la Organización de Naciones Unidas ni de los
sistemas regionales12. Al mismo tiempo, los derechos culturales constituyen una categoría
subestimada en el concierto hegemónico de los derechos humanos13.
En el año 2003, se aprueba la Convención para la Salvaguardia del Patrimonio Cultural
Inmaterial, estrechamente vinculada al Convenio para la Promoción y Protección de la
Diversidad de las Expresiones Culturales aprobado en 2005, que ha contribuido a ampliar
la noción de patrimonio cultural en cuanto a su contenido y complejidad. En este sentido,
se ha afirmado que
Durante las dos últimas décadas, la noción de patrimonio ha cambiado
sustancialmente y los sentidos de autenticidad, materialidad y
monumentalidad, en los cuales estaba basada, han perdido fuerza. Ahora,
se empieza a reconocer, desde las instituciones, que la cultura es dinámica,
que el patrimonio debe hablar a través de los valores que la gente le
otorga y no al revés. De esta manera, se empiezan a visibilizar, desde lo
institucional, significados y expresiones culturales que no producen obras
materiales monumentales o altamente estéticas, pero que son referentes
simbólicos importantes para las sociedades que operan al margen de
la lógica occidental y les dan mayor importancia a otras dimensiones
sensoriales y de pensamiento (Núñez, 2013, p.6).

El contexto de surgimiento de las Convenciones de 2003 y 2005 se inscribe en el


fenómeno de la globalización, que en ambos instrumentos se asocia a los riesgos de
destrucción del patrimonio cultural inmaterial14.
En una relación de tensión dialéctica con la homogeneización cultural que arrastra
la globalización, se produce otro fenómeno: la diferenciación, que se manifiesta en la
enunciación de identidades locales de las que el patrimonio cultural también es indudable
testimonio. Estos procesos, se ven acompañados por el surgimiento de organizaciones de la
sociedad civil que se movilizan para reivindicar determinados bienes y prácticas culturales,
desde su vinculación con las memorias e identidades colectivas, con los territorios, y con
la mejora en la calidad de vida que se desprende de la búsqueda de una dignidad común

12 Varios instrumentos reconocen el derecho de acceso a participar de la vida cultural: artículo 27 DUDH, artículo
27 PIDCP, artículo 15 PIDESC, artículo XIII DADH, artículo 14 del Protocolo de San Salvador anejo a la CADH.
La Observación General Nº21 del Comité de Derecho Económicos Sociales y Culturales, aprobada en 2009, contiene
algunas tibias referencias al patrimonio cultural al analizar el derecho previsto en el artículo 15 inc. a) del PIDESC.
13 Un análisis sobre esta cuestión puede verse en Symonides (1998)
14 Una discusión sobre la contribución de las políticas de la UNESCO a la globalización y homogeneización cultural
puede verse en Gil-Manuel Hernández i Marti, Un zombi de la modernidad: el patrimonio cultural y sus límites. La Torre
del Virrey: revista de estudios culturales, n. 5, p. 27-38, 2008.

90
con sentido histórico (HERNÁNDEZ I MARTÍ, 2008, p. 31). El ingreso de la sociedad civil
como actora central de la cuestión patrimonial, estará en el núcleo de la vinculación que
proponemos entre los patrimonios culturales y los derechos humanos.

Función reguladora del patrimonio cultural y sus políticas. El caso


argentino.

En Argentina, la construcción del mito de la identidad nacional se desarrolló sobre un


proceso de ‘desetnicización’ (GRIMSON, 2006), de ocultamiento de todo lo que pudiera
considerarse no-blanco, que tuvo como antagonistas en primer lugar a los indígenas, luego
a ciertos extranjeros (anarquistas, socialistas), más adelante a los ‘cabecitas negras’ del
‘interior’ y finalmente a los inmigrantes limítrofes.
La invisibilización de la diversidad cultural dio lugar a un “mestizaje –crisol de
razas, trípode das raças, cadinho– [que] se impuso entre nosotros como etnocidio, como
cancelamiento de la memoria de lo no-blanco por vías de fuerza” (SEGATO, 2010, p.26).
Esta práctica se consolida tachando el racismo del imaginario nacional (GARGALLO,
2006), de modo tal que:
la metáfora del crisol usada para construir una imagen homogénea de
nación ha ido inscribiendo prácticas de discriminación generalizada
respecto de cualquier peculiaridad idiosincrática y liberando en el proceso
a la identificación nacional de un contenido étnico particular como centro
articulador de identidad (una nación uniformemente blanca y civilizada en
base a su europeitud genérica) (BRIONES, 2005, p. 21).

La matriz de colonialidad del poder, del saber y del ser y la idea moderna de nación
implantada en nuestra región, sobre cuya réplica se construyeron inicialmente los estados
provinciales, fueron determinantes en la idea de patrimonio cultural de la nación argentina
como bien a tutelar. Sus formas elegantes y públicas de expresarse fueron la alta cultura
de origen invariablemente europeo y la ciencia positivista (fuertemente imbricada en el
darwinismo social) como expresiones de la civilización. Su otra cara fue el engranaje de
violencia social (que articula sus manifestaciones estructurales, simbólicas y directas).
En este sentido, es importante resaltar que las políticas públicas en materia de
patrimonio cultural se encuentran atravesadas por intensas luchas por el dominio de los
sentidos de identidad y pertenencia, donde los sectores hegemónicos que controlan los
mecanismos de selección del patrimonio, resultan permanentemente interpelados por
otros grupos, que cuestionan el modo en las identidades son representadas en el discurso
patrimonial. Como sostiene Tello (2007, p.3)
[…] el trabajo hegemónico del patrimonio cultural y sus políticas, consiste
en una disposición legitimadora de discursos y prácticas organizadas
en torno a una ‘narratividad específica’, que convierte determinados
productos culturales en memoria del pueblo o memoria nacional. Es en
este montaje ficcional y hegemónico donde se juega parte importante del
antagonismo social y cultural entre los grupos dominantes y los sectores
subalternos.

Uno de los órganos nacionales que diseñaron la protección del patrimonio cultural en
Argentina, fue la Comisión Nacional de Monumentos, Museos y Lugares Históricos, creada
por ley 12.665 de 1940. Como consecuencia de sus políticas y criterios de segregación/
incorporación, el patrimonio cultural prehispánico se vio sub-representado en su diversidad

91
y en su número, frente a la impactante cantidad de los sitios históricos vinculados al período
patrio y colonial (ENDERE & ROLANDI, 2007, p.36).
La consideración de monumentos, restos y ruinas como objeto de clasificación,
examen, y catalogación, fue la forma del tratamiento con la barbarie vencida e incluida
en ‘colecciones’ museísticas, (incluyendo restos biológicos humanos de pueblos originarios
vivientes), conjuntos arquitectónicos y espacios rituales de culturas existentes, intervenidos
y catalogados como ‘ruinas’ de interés turístico e histórico educativo dentro de su
funcionalidad a la construcción del patrimonio cultural de la nación. Como antecedente
inmediato y fresco, de esa construcción inicial del patrimonio cultural y de la idea de nación
concomitante, el trasfondo del genocidio social y cultural, denominado “Conquista del
Desierto”15, gigantesca operación apropiadora, reductiva y homogeneizadora que marca la
institución sesgada del estado nacional, así como de las instituciones científico culturales en
su seno, incluso las universidades nacionales formadas en ese período.
Un ejemplo que llama la atención respecto de lo que se juega en términos de
autocomprensión en la construcción social del patrimonio cultural y sus diversos procesos
y objetos culturales componentes, es la que conecta la historia de los restos humanos que
fueron restituidos por la Universidad Nacional de La Plata (UNLP) a distintas comunidades
originarias a partir de las últimas dos décadas del siglo pasado, con la idea de nación
subyacente y con la concepción misma acerca de qué es, cómo se preserva y promueve el
patrimonio cultural. El Museo de Ciencias Naturales de la UNLP, institución que custodia
diez mil restos humanos pertenecientes mayoritariamente a pueblos originarios vivientes
en el actual territorio nacional, y de otras naciones de la región, por sendas leyes del
Congreso de la Nación, restituyó los restos del Lonko Inacayal a la comunidad mapuche-
tehuelche de Tecka, en la Provincia de Chubut. Posteriormente hizo lo propio con los del
Lonko Panquitruz Guor, más conocido por su nombre colonial y cristiano como Mariano
Rosas, a la comunidad ranquel de Leuvucó, en Provincia de La Pampa (BEGUELIN &
GÓMEZ, 2011).
No obstante, los debates previos en el Consejo Académico de la Facultad de Ciencias
Naturales y en el Consejo Superior de la UNLP acerca de la responsabilidad de la institución
en la preservación del patrimonio, dilataron la respuesta a las demandas que estaban
planteadas inicialmente desde la década de 1970 y obligaron a la sanción de sendas leyes
nacionales (23940/1994 y 25.276/2000) para solucionar un problema que la propia
institución no pudo zanjar desde sus órganos de autogobierno.
En el primer caso, Inacayal, junto al Lonko Follel, y sus familiares más cercanos,
después de ser apropiadas sus tierras por la guerra de conquista denominada por
la historia oficial “Campaña del Desierto” y una vez rendidos, fueron engañados y
deportados a Buenos Aires. Después de permanecer prisioneros en El Tigre, donde
funcionaba uno de los centros de detención de los miembros de pueblos originarios (el
otro funcionaba en la Isla Martín García) en condiciones absolutamente inhumanas y

15 Así se denominó a la brutal campaña militar desarrollada entre 1878 y 1885. La metáfora del ‘desierto’ utilizada
para denominar a la campaña militar de ocupación del espacio, pese a que los territorios se encontraban densamente
poblados, fue uno de los pilares de los discursos hegemónicos respecto de la identidad nacional, que se centró en la
negación de toda referencia a la población indígena y la afirmación, en su lugar, del legado europeo o norteamericano
(Moroni, 2005, p.2). De este modo, se construyeron relatos identitarios al interior de los dispositivos de poder y de saber
que pueden inscribirse en la lógica modernidad/colonialidad. El ‘Desierto’ se constituirá en la tabula rasa sobre la que
se escribirá la identidad nacional, desarrollando un mecanismo de olvido activo, que exonera de toda responsabilidad
sobre el genocidio.

92
ejemplificadoras del ‘estado de excepción’ definido en el sentido filosófico de Giorgio
Agamben y no en el jurídico constitucional (en tanto este supone limitaciones y controles
sobre el poder del estado para disponer de la humanidad de sus ‘enemigos’), fueron
llevados por el Perito Francisco P. Moreno al Museo de La Plata, que dirigía, y sometidos
allí a servidumbre y exhibición como una ‘colección humana viviente’, disponible
para fines educativos y ‘objeto de estudio científico’. Follel pudo dejar el humillante
confinamiento tras declararse ‘argentino’ e incluso recibir unas ‘tierras fiscales’ en la
Patagonia, a la que retornó. Al Lonko Inacayal, en cambio, le tocó ver la muerte de sus
familiares y la exhibición de sus huesos en un corto lapso de tiempo y corrió la misma
suerte después de su muerte, producida en circunstancias dudosas, en el mismo lugar
de su confinamiento, es decir, el museo plantense, en 1888. Sus huesos, cuero cabelludo
y cerebro conservado en formol pasaron a integrar el patrimonio antropológico de la
institución y por su intermedio de la Nación. En el caso de Panquitruz, los restos del
líder ranquel fueron profanados del cementerio indígena por el militar Eduardo Racedo,
en ocasión de la mencionada “conquista del desierto” y fueron a dar a la colección de
Estanislao Zevallos, quien los donó al museo de La Plata.
Resulta destacable que en el catálogo de antropología editado a principios del siglo
XX (Lehman-Nische, 1910), figura número, origen y causas de la muerte de los sujetos a
los que los restos pertenecen (principalmente óseos, y entre estos mayormente cráneos,
aunque incluye también cerebros, cueros cabelludos, huesos y hasta cadáveres disecados),
existe una colección de los ‘recientemente vencidos’, otros murieron en su encuentro con
las propias expediciones del museo a la Patagonia en circunstancias que deberían ser
históricamente esclarecidas, (BADENES, 2006):
Esqueleto 1769, “Petizo”, toba, Resistencia (Chaco), fusilado en 1886 por
orden del coronel Obligado, Colección Spegazzini.
Esqueleto 1786, “Michel”, indio araucano (masculino), Corpen Aiken
(territorio de Santa Cruz), muerto en 1888 por expedición del Museo.
Esqueleto 1837, “Sam Slick”, asesinado en Rawson, Chubut. Desenterrado
por el doctor F. P. Moreno, viaje 1876-1877.

Las técnicas de la ciencia positivista darwinista descartaban, a la hora de verificar


empíricamente la idea de evolución desde los estadios de salvajismo y barbarie a la civilización,
junto a la importancia del grupo racial en la selección natural y la lucha por la vida, las técnicas
más sofisticadas que, en (otros) contextos coloniales, empezaba a usar la antropología
funcionalista británica, como la observación o la entrevista etnográfica, para persistir
en el naturalismo y biologicismo16 de colecciones fotográficas realizadas en condiciones
de desnudez de mujeres, niñas, niños, ancianos y hombres, medición antropométrica,
descripciones anatómicas y fenotípicas, para después comparar con las características de la
raza blanca, arquetípicamente en sus exponentes considerados entonces más “puros”.
Estos estudios ‘científicos’ sobre restos humanos inertes y ‘vivientes’, tomados
indistintamente como ‘objeto’, e integrantes del patrimonio científico de la institución
y cultural de la nación, fungían como comprobación empírica acerca de la ‘evolución’ y

16 Todavía hoy la carrera de Antropología se estudia en la Facultad de Cs. Naturales y Museo en la UNLP. Aunque
por supuesto, con una orientación de los estudios hacia lo cultural y social diversa de sus orígenes institucionales. No
obstante, en el Museo de Ciencias Naturales siguen ocupando un lugar destacado, ligado a la historia de la institución, con
una sala propia en exhibición, los muebles y utensilios de su primer director Francisco P. Moreno. La imagen humanista
del mismo, sostenida por una fundación que lleva su nombre ligada desde hace tiempo a la institución, está puesta en
entredicho y demandada su “desmonumentalización”.

93
‘progreso’ de la República Argentina, a partir del mejoramiento, inevitable en la selección
natural y la lucha por la vida, de su ‘tipo humano’. Esta impronta permanece y se acentúa
en la transición del museo y su institución sede desde el carácter de universidad provincial
a su carácter nacional, por ejemplo, en el propio discurso público de su fundador en la
nueva etapa de universidad nacional, Joaquín V. Gonzalez17.
Este fenómeno, que con matices se ha dado en otros lugares de Latino América ha
comenzado a transformarse a partir de la década del ’90, cuando la diversidad étnico-
cultural aparece en la agenda política y jurídica de los estados latinoamericanos, en
particular de la región andina. En ese escenario, la idea de identidad y junto a ella la de
patrimonio cultural, ganaron centralidad en la agenda de estos países18.
De este modo, será solamente en las últimas décadas del siglo pasado y a partir del
cambio que supuso la ratificación del convenio 169 OIT y la reforma de la constitución
nacional en 1994 con su incorporación, de pésima técnica constitucional, de los derechos
de los pueblos originarios como facultades legislativas del Congreso de la Nación en
el art. 75 inc. 17 CN, cuando comenzará el proceso de revisión de las colecciones de
restos humanos en los museos, la puesta en práctica de la restitución de los mismos a
sus comunidades, como deber inherente a las instituciones estatales correlativa de
los derechos de los pueblos preexistentes a los estados nacionales y provinciales, que
implican una revisión crítica de la idea de patrimonio cultural, y del imaginario de la
nación moderna/colonial que integra19.
Es desde la herida colonial que, en casos como estos, el derecho humano a los
patrimonios culturales emerge como una petición de principios hacia la reapropiación
social, participativa y plural de las funciones cumple la construcción de los patrimonios
culturales. Así entendido, el derecho a los patrimonios culturales es fundamental porque
supone y requiere un imaginario de la nación plural social y culturalmente, que entreteje
las narrativas de los sujetos sociales (de) (re) construyendo la memoria histórica,
redefiniendo el ‘nosotros’ a partir de las alteridades subalternizadas e históricamente
negadas y los ‘legados’ en forma plural para articular la dimensión de riqueza cultural y
solidaridad intergeneracional.

17 : “Eliminadas por diversas causas deltipo común nacional, los componentes degenerativos o inadaptables como el
indio o el negro, quedamos solo los que llamamos mestizos por la mezcla del indio y el blanco. Pero a la vez, la evolución
de un siglo, obrando sobre una proporción mínima de estos elementos, los elimina sin dificultad, y deja como ley de
composición el tipo étnico nacional la de la raza europea, pura por su origen y pura por la selección operada en nuestro
suelo sobre la sangre criolla, que es también europea. La enorme ventaja económica de esta evolución, no necesita acaso
inventario o prueba: suprimidos los elementos de degeneración o corrupción, que significan debilidad, agotamiento,
extinción y en otro orden ineptitud y falta de resistencia para el trabajo creador y reproductivo, quedaba, pues, un
producto selecto de sangre blanca pura o depurada, cuyo coeficiente o “ratio” de potencia mental, de labor, de energía y
voluntad, y cuya asimilación a las más altas formas de cultura se hallan demostradas por los resultados históricos de las
más grandes nacionalidades contemporáneas” (1979, pp.178-179) .
18 El derecho humano a los patrimonios culturales integra las nuevas constituciones del Estado Plurinacional de Bolivia
(2009) y de la República de Ecuador (2008). Estos derechos culturales deben ser puestos en la sistemática de sus textos
constitucionales como producto de procesos sociales y políticos que al operar una redistribución de poder social hacia
los grupos históricamente subalternizados dentro de la matriz estatal moderna/colonial, fueron concomitantes con un
cambio profundo en la autocomprensión de la nación que paso a valorizar su pluralismo cultural y a redefinir su historia
e identidad.
19 El reconocimiento de los derechos colectivos en el capítulo de los “Nuevos Derechos y Garantías” de la Constitución
Nacional reformada en 1994, fue acompañado de la incorporación con jerarquía constitucional de 11 instrumentos
internacionales de protección de los derechos humanos. Un análisis sobre los derechos culturales contenidos en los
mismos puede verse en Colombato (2014). Un análisis sobre el patrimonio en el Derecho Público Provincial puede verse
en Colombato (2013).

94
Hacia una resignificación del patrimonio cultural

Situar el patrimonio cultural en el campo de los derechos humanos, concebidos


como procesos socio-históricos (GALLARDO, 2008) y culturales (HERRERA FLORES,
2005), implica a la vez reconocer que el sitio social en que se fundamenta este y los otros
derechos humanos es la sociedad civil emergente, o lo que es lo mismo, sus movimientos
sociales contestatarios (GALLARDO, 2008, p.27) que pugnan por institucionalizar
jurídicamente sus reclamos, cuestionando las lógicas del orden social existente y las
identificaciones que ellas procuran.
Este proceso de innovación del derecho, atravesado por arduas luchas sociales y
tensiones políticas, se dinamiza al reconocer la importancia de la participación política,
de manera tal que los derechos vigentes no operen como bastión de resistencia a la
aparición de nuevos derechos, sino que formen parte de un corpus, cuyo contenido y
ejercicio puedan ser continuamente revisados (DUSSEL, 2010, p.235).
Una resignificación y reapropiación del(os) patrimonio(s) cultural(es) a partir de su
concepción como derecho humano requiere conectarlo con las comunidades que pugnan
por reproducir y visibilizar su herencia cultural desde referentes identitarios que les son
propios (NUÑEZ, 2013, p.8) y crear los cauces para conferir garantías no sólo jurídicas,
sino también sociales y políticas, para la apertura y consolidación de esos espacios de
lucha por la dignidad.

Tres dimensiones del derecho humano a los patrimonios culturales

El debate sobre los derechos culturales a partir de la reivindicación de la diversidad


cultural, y el creciente número de ratificaciones que han logrado la Convención de 2005,
lograron llamar la atención del Consejo de Derechos Humanos de las Naciones Unidas,
que mediante Resolución 10/23, y en base a los resultados de consultas previas con
organizaciones gubernamentales y no gubernamentales, decidió establecer en el año 2009
y por un período de tres años luego prorrogado, un nuevo procedimiento especial titulado
“Experto independiente en la esfera de los derechos culturales”
La pakistaní Farida Shaheed inició sus funciones como experta independiente en la
esfera de los derechos culturales en 2009, y sigue como Relatora Especial en el mismo tema,
de acuerdo con la resolución 19/6 del Consejo de Derechos Humanos de 2012.
Para el cumplimiento de su labor, escogió diversos enfoques sobre los derechos
culturales que dieron origen a una serie de informes temáticos20. En el año 2011, el informe
temático se centró en investigar la medida en que el derecho de acceso al patrimonio cultural
y su disfrute forma parte de las normas internacionales de derechos humanos. Para ello,
además del análisis de la normativa internacional, estatal y local respecto al patrimonio, se
realizó un cuestionario del que participaron estados, organizaciones no gubernamentales
y expertos, que, aunque no numerosos, fueron representativos de las múltiples miradas
sobre la cuestión.
Consideramos al patrimonio cultural, como una construcción social, a partir de un

20 Sobre desafíos para una puesta en marcha de los derechos culturales (2010), el derecho a gozar de los beneficios del
progreso científico y sus aplicaciones (2012), derechos culturales de las mujeres (2012), derecho a la libertad artística
(2013), derecho a la memoria (2013-2014), el impacto de la publicidad y el marketing sobre el goce de los derechos
culturales (2014) y los derechos intelectuales (2015).

95
proceso de selección simbólica, emocional e intelectual de bienes y prácticas culturales, que
son continuamente resignificados, reapropiados y valorizados como referentes de identidad
y de pasado de una comunidad, con la intención de ser transmitidos. La posibilidad de
participar de esa construcción social y de los mecanismos de disputa y de consenso que
dan lugar al proceso de selección significativa que convierte en patrimonio a ciertos
bienes y prácticas culturales constituye entonces una manifestación de pertenencia, una
identificación de un individuo con una comunidad, y en modo más amplio con una sociedad
dada.
Ello significa que el acceso a esa posibilidad, que en definitiva se traduce en el acceso
a bienes y prácticas culturales, se vincula a la dignidad humana, en tanto supone la aptitud
de que los diversos grupos, sus visiones de mundo, sus identidades y sus memorias se
encuentren representadas en el discurso patrimonial, lo que a la vez implica conectar a la
cultura con su fuente de producción en un determinado territorio. Se trata entonces de una
cuestión de derechos humanos.
Estos primeros pasos en la delimitación del contenido del derecho a los patrimonios
culturales nos permiten destacar tres dimensiones que contribuyen a su consideración
como derecho humano. La dimensión personal (individual y colectiva), la dimensión
temporal y la dimensión territorial.

a. Dimensión personal (individual y colectiva).


Como afirma Cançado Trindade (1994, p.63), todos los derechos humanos tienen una
dimensión individual y una colectiva, en tanto son ejercidos en el contexto social. Sin
embargo, ciertos derechos se relacionan más íntimamente con la vida en comunidad, lo
que ha llevado a los juristas a hablar de una nueva categoría de derechos, no comprendida
en los instrumentos generales de derechos humanos, a la que la doctrina mayoritaria
ha llamado ‘nuevos derechos humanos’ o ‘derechos de solidaridad’ y que preferimos
llamar derechos sobre bienes públicos relacionales21. Esta categoría de derechos reúne
las siguientes características: a) su titularidad es amplia, derivada de su carácter
colectivo y de interés público, que coexiste con una posible dimensión personal, referida
a derechos individuales en sentido estricto; b) son derechos conglobantes, que actúan
como condición de otros derechos más específicos y dependen de la generación de bienes
públicos relacionales, originando como contrapartida deberes públicos y privados; c) los
bienes públicos relacionales, son condición y modulan el contenido de estos derechos
que, en consecuencia, resultan indisponibles para el Estado, el mercado e incluso para
sus propios titulares; d) son transgeneracionales, trascienden el tiempo de su producción
y su conservación requiere solidaridad entre las generaciones presentes y las futuras; e)
requieren garantías pluridimensionales, es decir, no solamente jurídicas, sino también
políticas y sociales; f) finalmente, estos derechos para desarrollarse en plenitud, necesitan
de “regulaciones públicas democráticas que, según los casos, eliminen, minimicen
y vinculen jurídicamente a los poderes fácticos innominados privados, estatales o
paraestatales que apropian o impiden la generación de los bienes públicos relacionales
condición y contenido de esos mismos derechos” (MÉDICI, 2013, p. 44).
Todas estas características ponen de resalto la interdependencia entre el derecho a los
patrimonios culturales en su dimensión colectiva, y la participación democrática en sus

21 Denominación acuñada por Alejandro Médici (2013).


96
diversos grados de cooperación e interacción ciudadana, a saber: a) la participación como
derecho de acceso a la información, b) la participación como consulta, c) la participación
como co-decisión y d) la participación como co-gestión (MÉDICI, 2011, p. 234).

b. Dimensión temporal
Pensar el patrimonio bajo el prisma de los derechos humanos es especialmente
importante en Latinoamérica cuyas sociedades han atravesado procesos de violaciones
masivas de derechos humanos, primero en relación con los pueblos originarios, luego,
durante las dictaduras cívico-militares de la segunda mitad del siglo XX.
Es importante abordar cómo los procesos conmemorativos se traducen al campo
patrimonial, mediante representaciones materiales o rituales alusivos que se expresan en
el espacio público, y la responsabilidad de los diferentes actores (estatales y no estatales)
en su producción.
En nuestro continente, la cuestión de la preservación de la memoria histórica ha
influido en los procesos judiciales de reparación por las violaciones masivas de los derechos
humanos, a partir de la tendencia marcada por la Corte Interamericana de Derechos
Humanos, que desde sus primeras sentencias se ha preocupado por la producción de
medidas de reparación que actúen en el plano simbólico y de la memoria, construyendo una
verdadera doctrina jurisprudencial en la materia22.
De esta manera, es importante que el derecho a los patrimonios culturales fomente
una cultura democrática a partir del debate sobre la representación del pasado, sobre
las plurales y diversas identidades que configuran “la nación”, así como los objetivos que
persiguieron los discursos homogeneizantes, para asumir un desafío en el presente y hacia
el futuro frente a la violencia y exclusión.

c. Dimensión territorial
Las relaciones entre patrimonio cultural y territorio pueden ser equívocas en términos
de derechos humanos desde múltiples aspectos. Uno de ellos es la desconexión entre los
bienes culturales y su territorio como consecuencia de la gestión patrimonial.
Esta situación resulta especialmente problemática para los pueblos que sufrieron
el colonialismo, pero que también se identifica al interior de los Estados y ha originado
reclamos y llamamientos a la repatriación de patrimonio cultural23.

22 Ver entre otros: 19 Comerciantes v. Colombia, 2004 Corte I.D.H. (ser. C) No. 109, ¶ 273, ordenando un monumento
con sus nombres en un lugar elegido por el E y los familiares de las víctimas; Huilca Tecse v. Perú, 2005 Corte I.D.H. (ser.
C) No. 121, ¶ 115, requiriendo al E peruano erigir un busto en memoria de la víctima en un lugar público de la ciudad de
Lima); La Comunidad Moiwana v. Suriname, 2005 Corte I.D.H. (ser. C) No. 124, ¶ 218, dirigiendo la construcción de
un monumento cuyo diseño y ubicación fueran designados en consulta con los representantes de las víctimas; Gelman
v. Uruguay, 2010 Corte I.D.H. (ser. C) No. 221, ¶ 267, ordenando colocar en un espacio del edificio del Sistema de
Información de Defensa (SID) con acceso al público, en el plazo de un año, una placa con la inscripción del nombre de
las víctimas y de todas las personas que estuvieron detenidas ilegalmente en dicho lugar.
23 Existen múltiples ejemplos de repatriación de patrimonio en el plano internacional, algunos como resultado de
negociaciones bilaterales, como la repatriación a Perú de piezas arqueológicas de Machu Picchu, que estuvieron durante
cien años en poder de la Universidad de Yale, otros, bajo los auspicios del Comité Intergubernamental para la Promoción
del Retorno de Bienes Culturales hacia sus Países de Origen que funciona en el ámbito de la UNESCO. En el plano
normativo se puede mencionar el Artículo 12 de la Declaración de Naciones Unidas sobre los derechos de los pueblos
indígenas, aprobada por la Asamblea General en su 107ª sesión plenaria, el 13 de septiembre de 2007, establece la
obligación de los Estados de “facilitar el acceso y/o la repatriación de objetos de culto y de restos humanos que posean
mediante mecanismos justos, transparentes y eficaces establecidos conjuntamente con los pueblos indígenas interesados”.

97
Tres retos para una construcción descolonizadora del derecho humano
a los patrimonios culturales

De estos tres aspectos, surgen entonces tres retos para avanzar hacia una consolidación
del derecho humano a los patrimonios culturales en clave decolonial.

a. Recuperar la dimensión colectiva del derecho a los patrimonios culturales


mediante una gestión democrática del patrimonio cultural.
El primer reto propone la recuperación de la dimensión colectiva del derecho a los
patrimonios culturales a la luz del principio que pregona su gestión democrática. Ello
supone la incorporación de mecanismos de participación democrática en el proceso de
selección patrimonial.
En particular se proponen dos: las audiencias públicas y el consentimiento previo, libre
e informado.
El procedimiento de audiencias públicas tiene raigambre constitucional en el principio
de debido proceso sustantivo24, receptado en el art. 18 de la Constitución Nacional Argentina
y en los principales instrumentos internacionales de protección de los derechos humanos.
Si bien en su concepción original, esta garantía se reconocía sólo en su faz individual, es
decir, como el deber del órgano jurisdiccional de oír a la persona involucrada antes de
tomar la decisión que pudiera afectarlo25, hoy es pacíficamente aceptada por la doctrina
su extensión a la dimensión colectiva, en aquellos casos en que no sólo la decisión judicial,
sino también la decisión legislativa o administrativa involucre cuestiones de gran impacto
social, económico, ambiental o cultural para la comunidad, con arraigo en la interpretación
armónica de los artículos 18, 41, 42 y 43 de la Constitución Nacional.
La Acordada 30/07, de la Corte Suprema de Justicia de la Nación, estableció el régimen
para las audiencias públicas y su aplicación a algunos casos de su competencia, siendo las
más notables por su difusión pública, las celebradas en los casos “Verbitsky”26, “Riachuelo”27
y “Ley de Medios”28.
Nos interesa señalar la filiación constitucional e internacional del derecho de la
comunidad a ser oída en audiencia pública, ya que ello permite su aplicación aún en
aquellos casos en los que la ley específica que regula la materia no la prevé, como sucede
con el patrimonio cultural.
Es necesario recordar también que la participación política está reconocida como
derecho humano en los principales instrumentos internacionales genéricos de protección,
y que no se limita a los derechos electorales: Pacto de San José de Costa Rica, art. 23.1;
Declaración Universal de Derechos Humanos, art. 21.1; Pacto Internacional de Derechos
Civiles y Políticos, art. 25; Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre,

24 El debido proceso es una garantía constitucional que protege a los individuos frente a la arbitrariedad del Estado.
En su faz adjetiva, refiere a la necesidad de que los procedimientos judiciales se realicen de acuerdo a la ley, En su faz
sustantiva, refiere a la regla de razonabilidad, que exige la concordancia de las normas de cualquier grado, y los actos
públicos y privados con la Constitución Nacional.
25 Este principio implica también el acceso al expediente y su pleno conocimiento, el derecho a la defensa, la prueba, a
alegar y a que la decisión sea revisada por otro órgano.
26 CSJN, “Verbitsky H. s/ Hábeas Corpus”.
27 CSJN, ““MENDOZA Beatriz Silvia y Otros C/ ESTADO NACIONAL y Otros S/ Daños y Perjuicios (daños
derivados de la contaminación ambiental del Río Matanza - Riachuelo)”.
28 CSJN, “Grupo Clarín S.A. y otros c/ Poder Ejecutivo Nacional y otros s/ Acción Meramente Declarativa”
98
arts. XIX y XX. En consecuencia, el estado se encuentra obligado internacionalmente a
adoptar las medidas necesarias para su concreción.
Los principios que informan la audiencia pública son el debido proceso, publicidad,
oralidad, informalismo, contradicción, participación, instrucción e impulso de oficio,
economía procesal y gratuidad29.
De este modo, como lo afirma Médici (2011, p. 222), la audiencia pública constituye
uno de los mecanismos de innovación institucional, que desde el reconocimiento del (des)
acuerdo abre la democracia a los requerimientos de un consenso exigente, que debe ser
continuamente renovado, verificado y nunca presupuesto.
la forma de verificar y renovar el consenso exigente que el trabajo continuo
de la democracia supone, consiste en activar los mecanismos de la
democracia semidirecta, innovar institucionalmente en los mecanismos
de la participación-decisión, que tiene como supuesto el acceso a y la
transparencia de la información pública y los mecanismos consultivos,
tales como las audiencias públicas con la participación de las redes y el
asociacionismo de la sociedad civil (Médici, 2011, p. 225).

El segundo mecanismo, cuya incorporación se propone, es el consentimiento previo,


libre e informado. Originado en el derecho de consulta previa, de aplicación de los pueblos
indígenas a partir de su incorporación en el artículo 6 del Convenio 169 de la Organización
Internacional del Trabajo, resultó profundizado por la Declaración de las Naciones Unidas
sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas (2007) que desarrolla la obligación estatal
correspectiva de obtener el consentimiento previo, libre e informado.
Si bien se trata de un instituto asociado a los derechos de los pueblos indígenas,
proponemos además su aplicación extensiva a todas las comunidades locales cuando se trate
de emprendimientos o actividades que involucren un impacto cultural o ambiental en sentido
amplio (comprensivo no solo del ambiente natural sino también el cultural), o la realización
de megaproyectos que puedan afectar la sustentabilidad del modo de vida de una comunidad.
El consentimiento previo, libre e informado supone un plus frente a la audiencia pública,
en tanto no sólo tiene en cuenta la opinión, sino que involucra la co-decisión de los afectados.
Nos interesa destacar también que desde la concepción de derechos humanos que
hemos sostenido en esta tesis no se reduce a enunciados normativos ni sus garantías a las
jurídicas, por lo que insistimos en que el desarrollo de garantías políticas y sociales como las
aquí propuestas potenciará su consolidación.

b. Involucrar a los colectivos subalternizados en la política patrimonial, y


fortalecer las memorias alternativas a las oficiales, para garantizar el acceso
y goce democráticos de los patrimonios.
El segundo reto requiere identificar los colectivos que no se encuentran
representados o que están sub-representados en el discurso patrimonial para adoptar
medidas que los involucren. En este sentido, el necesario relevamiento de patrimonios
culturales del estado argentino requiere de medidas específicas de acción positiva,
que involucren y estimulen la participación de aquellos colectivos que se encuentran
históricamente segregados del discurso patrimonial, en articulación con diferentes
actores sociales implicados en la cuestión.

29 Para un análisis detallado ver Gordillo (2007), Capítulo XI.


99
A su vez, es necesario reconocer posibles interpretaciones divergentes en que
ciertas personas o grupos se sientan representadas y otros no en relación con ciertos
elementos específicos del patrimonio cultural, y que, en el devenir del tiempo, las ideas
y los significados sobre qué es y para qué se conserva determinado elemento patrimonial
pueden cambiar.
El reto consiste, como lo ha señalado la experta en materia de Derechos Culturales,
“en encontrar la forma en que las propias comunidades de origen se vean capacitadas
para participar activamente en todo el proceso de determinación, selección, clasificación,
interpretación, conservación y salvaguardia, administración y desarrollo del patrimonio
cultural” (A/HRC/17/38 § 80, c).
En este sentido, es necesario que los profesionales y las instituciones involucradas en la
gestión patrimonial, como depositarias de patrimonio cultural, establezcan relaciones más
sólidas con comunidades y grupos y respeten sus contribuciones en cuanto al modo en que
son interpretadas y representadas sus identidades.

c. Recuperar la dimensión territorial desde una concepción comunitaria de la


propiedad, que se asiente sobre su función social.
El último desafío, y quizá el más difícil, propone repensar las relaciones entre propiedad
y patrimonio para proponer modelos alternativos de gestión comunitaria.
La sostenibilidad y continuidad de la gestión patrimonial se hace dificultosa cuando es
impuesta desde afuera de las comunidades, por expertos o funcionarios públicos. No son
pocos los ejemplos que dan cuenta de la realización de obras de conservación de bienes
culturales en nuestra provincia, que al poco tiempo se vieron abandonados y nuevamente
desvalorizados.
Otras experiencias dan cuenta de que en los casos en que las comunidades organizadas
han podido liderar el proceso de patrimonialización y conseguido formas de autogestión, en
los que los expertos han jugado un rol de orientadores, los proyectos se han mantenido a
largo plazo (NUÑEZ, 2013, p.10).
Las cuestiones de derechos humanos que involucra la gestión de los patrimonios
culturales requieren que, desde formas organizativas locales, se propicien reapropiaciones
y resignificaciones de los patrimonios culturales, desde el desarrollo de metodologías de
investigación participativa, selección, manejo e interpretación de bienes culturales que
permitan revincular los patrimonios con las comunidades, para desarrollar proyectos
colectivos a partir de sus propios referentes estéticos y modos de pensar (NÚÑEZ, 2013: 11).
Ello requerirá, en algunos casos, la repatriación de piezas arqueológicas, museológicas
y restos óseos. Esta es una cuestión que produce una gran preocupación frente a la
comunidad científica, en cuanto al manejo de estos bienes.
Sin embargo, es necesario no perder de vista que son los usos, los contextos y los
criterios de valoración de las comunidades los que dan vida a sus patrimonios culturales.
De esta manera,
la restitución de una pieza de museo es un acto simbólico y social, donde se
cuestiona la autoridad del museo sobre la significación y uso de las piezas y
se abre la posibilidad de reconocer la validez de otros sistemas simbólicos
y lógicas de pensamiento (NÚÑEZ, 2013, p.16).

La opción por la propiedad y gestión comunitaria de ciertos bienes culturales no

100
debe descartarse, e implica una forma concreta de involucramiento de la comunidad en la
sostenibilidad y subsistencia de su patrimonio.

Conclusiones

El derecho humano a los patrimonios culturales involucra no sólo la dimensión


orientada hacia el pasado, sino su actualidad y su proyección intergeneracional.
Requiere articular la construcción de la memoria siempre en proceso abierto, con la
dimensión sincrónica del carácter popular y vivo de las manifestaciones que integran
los patrimonios culturales.
Este derecho humano necesita, además de las garantías jurídicas de amplia legitimación
activa judicial inherentes a su carácter de derecho colectivo, las garantías políticas de la
participación social en el acceso a la información, la consulta, la decisión, la gestión, el
seguimiento y el control de los patrimonios culturales, lo que marca una necesaria obligación
en la forma de elaborar e implementar las políticas públicas en todos los niveles del estado,
en cogestión con la sociedad civil. De este modo, es necesario redefinir normas y políticas
que garanticen las dimensiones personales, individuales homogéneas y/o colectivas de los
mismos.
Es que, desde su indivisibilidad e interdependencia, todas las categorías de derechos,
incluso los “personalísimos”, remiten a esa dimensión relacional de los bienes públicos
que les son inherentes, que modulan los contenidos, inciden en la forma histórica de
comprenderlos, y de disputarlos. Al mismo tiempo y justamente por eso, los bienes
relacionales que son condición de posibilidad e integran el contenido de los derechos, no se
corresponden con una dimensión ni homogénea, ni puramente estatal, ni exclusivamente
personal, sino social, y por lo tanto siempre en algún grado deliberativa y conflictiva. Eso es
lo que permite que las formas de comprender y practicar los derechos humanos tengan una
dimensión siempre abierta y dinámica que excede la normatividad instituida.
En el caso del derecho humano a los patrimonios culturales esta tensión se hace
evidente al remitir a locis y topois que son objeto de construcción social y polémica
(pensemos en los temas o personajes históricos a monumentalizar o desmonumentalizar,
los lugares de memoria, la construcción social de la verdad, la tensión entre selectividad
social de las actividades de declaración, clasificación, listado y catalogación con la
multiformidad del pluralismo social de una cultura con historia, pero viviente y dinámica).
El lugar que en esos procesos toman lo tremendum horrendum y lo tremendum fascinosum
en la construcción de memoria y procesos de identificaciones históricas, las tensiones
permanentes entre simbólicas simétricas (mercado, contrato, ágora) y asimétricas (desde
las alteridades invisibilizadas, excluidas, humilladas y su disenso) que están presentes en la
comprensión cultural de todos los derechos humanos, son, en el caso del derecho humano
a los patrimonios culturales, insumos más importantes aún.
De ahí la importancia y urgencia de desarrollar los derechos culturales desde prácticas
e investigaciones que permitan sus garantías, concreción normativa, la proyección y
evaluación críticas de las políticas públicas, desde el protagonismo de la participación de
las sociedades civiles concernidas.
Un ejemplo dramático de la actualidad del género de problemas a los que remite y
trata el texto que el público tiene entre manos, es el de la Ciudad Sagrada de los Quilmes,

101
en Tucumán, cuya significación disputada entre territorio ancestral, lugar de identificación
simbólico ritual vital para la existencia y reproducción cultural de la comunidad o su
clasificación como “ruinas” de interés turístico a poner en valor económico como patrimonio
del estado provincial, es un botón de muestra. No se trata de un problema meramente
teórico ni conceptual, sino de un caso que muestra la pervivencia cambiante de la matriz
de colonialidad del poder y del ejercicio de violencia no meramente simbólica frente a
los pueblos originarios. La consideración de los patrimonios culturales como derechos
humanos exige la definición de quiénes son sus sujetos titulares y cuáles son las garantías
jurídicas, políticas y las responsabilidades públicas para su efectivización. En el conflicto de
valoraciones, se privilegia el interés económico privado y estatal, se criminaliza la protesta
social legítima que reclama por los derechos históricamente negados de los pueblos. Por
eso hemos puesto más arriba que el derecho a los patrimonios culturales es “nuevo” para el
mainstream de los derechos humanos, pero es el fundamental y básico derecho colectivo
para los pueblos originarios que se juegan, en casos como éste, su persistencia en el ser.
En definitiva, la protección de los patrimonios culturales involucra cuestiones de
derechos humanos que deben ser consideradas a la hora de establecer mecanismos
jurídicos, sociales y políticos de garantía, de modo de asegurar la participación de personas,
grupos y comunidades en las políticas de selección y gestión patrimonial. Este trabajo, es un
aporte a la definición del contenido de este derecho humano, en pleno desarrollo.

Referencias bibliográficas
AGAMBEN, G. ¿Qué es un dispositivo? Sociológica, v. 26, n.73, p. 249-264, mayo-agosto de 2011.

BADENES, Daniel. Restos humanos en el Museo de Ciencias Naturales de la UNLP. Trofeos de guerra. Revista
La Pulseada. n. 43, p.43-52, 2006.

BALLART, J. El patrimonio histórico y arqueológico: valor y uso. Barcelona: Ariel, 1997.

BEGUELIN, Marien & GÓMEZ, Silvia. Restitución de restos humanos: debates actuales y posibles escenarios
futuros. Actas del X Congreso Argentino de Antropología Social. Buenos Aires: UBA, 2011.

BRIONES, C. Formaciones de alteridad: contextos globales, procesos nacionales y provinciales. In:


__________. (comp.). Cartografías Argentinas. Políticas indigenistas y formaciones provinciales de
alteridad. Buenos Aires: Antropofagia, 2005. p. 9-36.

CANÇADO TRINDADE, A. A. Derechos de solidaridad. In: __________. (coord.) Estudios Básicos de


Derechos Humanos, Tomo I. San José, Costa Rica: Instituto Interamericano de Derechos Humanos.
1994. p. 63-73.

COLOMBATO, Lucía. Avances, frenos y retos en la consolidación del patrimonio cultural como derecho
humano. Actas del VII Congreso del IRI / I Congreso del CoFEI /II Congreso de la FLAEI, La Plata, 2014.
Recuperado desde: <http://congresos.unlp.edu.ar/index.php/CRRII/CRRIIVII/paper/view/1640>
Accedido en 8 jun. 2015.

_______. El derecho al(os) patrimonio(s) cultural(es). Aportes a la definición de su contenido. Revista


del Equipo Federal de Trabajo, n. 102, 2013. Recuperada desde: <http://newsmatic.com.ar/
conectar/245/102/articulo/3524/El-derecho-al-patrimonio-culturalAportes-a-la-definicion-de-su-
contenido.html> Accedido en 8 jun. 2015.

DUSSEL, E. Derechos vigentes, nuevos derecho y derechos humanos. Revista Crítica Jurídica, 29, p. 229-235,
ene-jun, 2010.

ENDERE, M. L. y ROLANDI, D. Legislación y Gestión del Patrimonio Arqueológico. Breve reseña de lo


acontecido en los últimos 70 años. Relaciones de la Sociedad Argentina de Antropología XXXII, p. 33-
54, 2007.

GALÍ BOADELLA, M. La gestión y conservación del patrimonio urbano desde la perspectiva de la historia
del arte. In: VILADEVALL I GUASCH, M. (Coord.), Ciudad, Patrimonio y Gestión. Puebla: Benemérita

102
Universidad Autónoma de Puebla: Dirección General de Fomento Editorial: Gobierno del Estado de
Puebla: Secretaría de Cultura, 2001, p. 33-49.

GALLARDO, Helio. Teoría crítica: Matriz y posibilidad de los derechos humanos. México D.F.: Comisión
Estatal de Derechos Humanos: Universidad Autónoma de San Luís Potosí, 2008

GARGALLO, F. ¿Hacia un feminismo no occidental? In _______. Ideas Feministas Latinoamericanas,


Caracas: Fundación Editorial el Perro y la Rana, 2006, p. 197-219.

GONZALEZ, Joaquín V. El juicio del siglo. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina. 1979.

GRIMSON, A. Nuevas xenofobias, nuevas políticas étnicas en Argentina. In: GRIMSON, Alejandro & JELIN,
Elisabeth (comps.) Migraciones regionales hacia la Argentina. Diferencias, desigualdades y derechos.
Buenos Aires: Prometeo, 2006, p. 66-97.

HERNÁNDEZ I MARTÍ, G. M. Un zombi de la modernidad: el patrimonio cultural y sus límites. La Torre del
Virrey: revista de estudios culturales, v.5, p. 27-38, 2008.

HERRERA FLORES, J. Los derechos humanos como productos culturales. Crítica del humanismo abstracto.
Madrid: Los libros de la catarata, 2005.

LEHMAN-NISCHE, Robert. Catálogo de la Sección de Antropología del Museo de La Plata. Buenos Aires:
Coni Hnos, 1910.

LLULL PEÑALBA, J. Evolución del concepto y de la significación social del patrimonio cultural. Arte,
Individuo y Sociedad, v. 17, p.175-204, 2005.

MÉDICI, A. El malestar en la cultura jurídica. Ensayos críticos sobre políticas del derecho y derechos
humanos. La Plata: Edulp. Editorial de la Universidad Nacional de La Plata, 2011.

__________.. Nuevo constitucionalismo latinoamericano y giro decolonial Seis proposiciones para


comprenderlo desde un pensamiento situado y crítico. El Otro Derecho, v.48, p.19-62, 2013

MIGNOLO, W. Introducción. In: MIGNOLO, Walter (comp.) Capitalismo y Geopolítica del Conocimiento: el
Eurocentrismo y la Filosofía de la Liberación en el Debate Intelectual Contemporáneo. Madrid: Ediciones
del Signo. 2001. p. 9-53.

MORONI, M. La incorporación de los Territorios Nacionales en el proceso de consolidación del Estado


Argentino. El caso del Territorio de la Pampa Central. Revista Andes, v.16, 2005.

NÚÑEZ, A. Resignificaciones y reapropiaciones del patrimonio cultural. Baukara 4 Bitácoras de antropología


e historia de la antropología en América Latina Bogotá, p. 6-21, noviembre 2013.

QUIJANO, A. Colonialidad del poder y clasificación social. In: GÓMEZ, Santiago Castro & GROSFOGUEL,
Ramón (comp.), El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores: Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales
Contemporáneos: Pontificia Universidad Javeriana: Instituto Pensar, 2007, p. 93-126.

SANTOS, B. Direitos Humanos: o desafio da interculturalidade, Revista Direitos Humanos, v.2, p.10-18, junio
2009.

SEGATO, R. L. Los cauces profundos de la raza latinoamericana: una relectura del mestizaje. Crítica y
Emancipación, v.3, p.11-44, 2010.

SYMONIDES, J. Derechos culturales: una categoría descuidada de derechos humanos. Revista Internacional
de Ciencias Sociales, n. 158, 1998. Recuperado desde: http://red.pucp.edu.pe/ridei/wp-content/uploads/
biblioteca/090914.pdf Accedido en 11 jun. 2011.

SZURMUK, M. & MCKEE IRWIN, R. Diccionario de estudios culturales latinoamericanos. México: Instituto
Mora: Siglo XXI Editores, 2009.

TELLO, A. M. La (in)disposición ficcional del patrimonio cultural: Relatos subalternos de la ciudad de Lota.
Actas del III Congreso Interoceánico de Estudios Latinoamericanos. Mendoza, 2007.

TELLO, A. M. Notas sobre las políticas del patrimonio cultural. Cuadernos Interculturales, v.8, n.15, p. 115-
131, 2010.

VILADEVALL I GUASCH, M. Introducción. In: VILADEVALL I GUASCH, M. (Coord.), Gestión del patrimonio
cultural: Realidades y retos. PUEBLA: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla: Dirección General
de Fomento Editorial, 2003. p. 17-22.

103
Diversidade Cultural e seus reflexos na
dimensão patrimonial

Anderson Albérico Ferreira

As sociedades, com o passar do tempo, se tornaram cada vez mais complexas, no


sentido de que, estabelecidas em torno da nacionalidade, deram lugar a uma trama social
diversa e plural, uma vez que elas se constituíam a partir da absorção e integralização
de outras coletividades. Com a construção dos Estados-nacionais, vários grupos sociais
e étnicos foram inseridos nesses macro-organismos e suas particularidades e sistemas
simbólicos foram, em certa medida, sufocados nesse processo de estabelecimento de um
sistema simbólico nacional, em outras palavras, da identidade nacional.
O pesquisador colombiano Jesús Martín-Barbero (1987) evidencia que é o campo
da cultura que atuou como artífice para a operação e estabelecimento dessas identidades
nacionais. Sobretudo na América-latina, a cultura nesse momento é entendida, como
sinônimo de conhecimento e erudição, perspectiva eurocêntrica que fomentava a
proteção de bens e artefatos no intuito de uma contribuição ao conhecimento “humano”
(PRICE, 2000).
Nesse processo de criação da identidade nacional, notamos uma ênfase e protagonismo
dos patrimônios – históricos, artísticos e culturais – que, por possuírem uma função de
“formação” social, além de serem portadores de referência à identidade e memória,
se transformaram no carro-chefe de projetos nacionais que buscavam estabelecer sua
preponderância através de uma identidade homogeneizada, que subalternizou e silenciou
identidades, grupos e sistemas simbólicos que lhe eram destoantes.
No Brasil não foi diferente. Ainda que tenhamos um discurso pró-diversidade,
na prática, constatamos que certos grupos étnicos, bem como classes sociais, são
marginalizados e seus sistemas simbólicos e matrizes culturais vêm sendo sufocados de
forma que o capital cultural nacional, historicamente, estivesse sob o domínio de uma elite
social, que alinhava seus paradigmas socioculturais aos padrões europeus.
Esse processo de sufocamento do pluralismo sociocultural na contemporaneidade foi
atenuado com o advento da globalização. Observamos que, ao mesmo tempo que esse processo
ampliou novos horizontes econômicos, sociais e informacionais, propiciou um espaço de
mal-estar social, especificamente quanto à segmentação do campo simbólico. As culturas e
identidades locais passaram a concorrer com os sistemas e bens culturais globais, dos grandes
centros urbanos capitalistas, que Adorno e Horkheimer denominaram de indústria cultural.
Esse cenário de assimetria quanto à circulação e penetração de bens culturais de países
periféricos em relação a grandes potências, em certa medida, podemos dizer, foi reproduzida
na organização da sociodinâmica de sua cultura nacional. Esses países periféricos, alijados

105
do cenário internacional, passam a reproduzir em suas próprias fronteiras essa lógica
segregacionista, na qual as elites, representantes e dotadas de “poder” possuem o domínio
do capital cultural nacional na mesma medida em que fomentam uma cultura mercantil em
detrimento de uma cultura comunitária, que realmente representa a pluralidade identitária
de sua nação.
À medida que essas disparidades tomaram uma forma mais alarmante, as discussões em
torno da diversidade e dos impactos causados pelas trocas culturais e a interculturalidade,
decorrentes das diferentes formas de trânsito global, se intensificaram, o que impactou
diretamente nas discussões sobre cultura que ocorreram, a partir da segunda metade do
século XX, nas cúpulas governamentais e intergovernamentais, principalmente naquelas
promovidas pela UNESCO. Entendeu-se que todos indivíduos, independentemente de sua
etnia, nacionalidade ou gênero, possuíam o direito à identidade e à memória, bem como
teriam assegurados sua possibilidade de acesso, fruição e produção de bens simbólicos,
dando forma à ideia de direitos culturais.
Em paralelo, observamos, também, um crescente movimento de construção de novos
paradigmas, epistemologias, discursos e olhares sobre etnicidade, memória e história dos
povos e sujeitos subalternos e historicamente invisibilizados pelo processo de colonização
e o espectro do colonialismo. Os estudos pós-coloniais e de(s)coloniais são resultado dessa
empreitada, apresentam um giro reflexivo que reivindica a legitimidade da narrativa e
memória dos povos subalternizados pelo projeto homogeneizador da identidade cultural
nacional e na história oficial, além disso repudia e denuncia os processos de apagamento,
silenciamento e até mesmo soterramento de determinadas memórias e sistemas simbólicos,
propondo uma agenda político-pedagógica da descolonização do pensamento social.
Tal fato vai se alinhar às discussões sobre diversidade cultural e reafirmar os
documentos e discussões que se solidificaram no início da década de 2000, fazendo com que
as epistemologias da de(s)colonialidade sejam um substrato para as políticas patrimoniais a
partir do momento em que os processos e as políticas referentes à preservação e a chancela
desses bens estivessem pautados numa percepção mais próxima dos sujeitos, focando nos
valores, significados e usos desses bens num determinado contexto simbólico-social.
Longe de esgotar todo o debate que gira em torno da temática proposta, o que se
pretende aqui é contribuir para a reflexão e problematização dos usos e significados que o
patrimônio cultural tem evocado hoje. Levantamos algumas provocações que são inerentes
à dimensão não só patrimonial, mas da cultura per se, e que por muitas vezes são deixadas
à margem dos debates pela complexidade e delicadeza tanto crítica, como teórica e social.

A diversidade no Direito Cultural

O processo de estabelecimento e discussão dos denominados direitos culturais foi


paulatino e fruto tanto de uma evolução das ideias estabelecidas na Declaração dos Direitos
Humanos de 1948 como do estabelecimento, a partir da década de 1960, do novo paradigma
de políticas culturais, designado como democracia cultural, em que o pressuposto é a
postura ativa do cidadão como produtor de bens simbólicos e partícipe do processo de fazer
política cultural (MORAES, 2019).
O século XX foi marcado pela consolidação de diversos marcos regulatórios, tanto
nacionais como internacionais, para o campo da cultura. Nesse momento, se apresenta um

106
desabrochar da planificação e institucionalização do campo nas agendas governamentais.
Justamente, nesse contexto, que é estabelecido o conjunto de documentos que
compreendem os direitos culturais, são eles o direito autoral estabelecido pela Convenção
Universal sobre Direito de Autor, 1952; o direito à participação na vida cultural, cuja
origem se estabelece na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e ratificado
pela Declaração do México sobre Políticas Culturais em 1982, que englobam os direitos à
livre criação, livre fruição, livre difusão e livre participação nas decisões de política cultural;
o direito à identidade cultural ou de proteção do patrimônio cultural estabelecido pela
Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (1972) e também
ratificado pela Declaração do México sobre Políticas Culturais em 1982; e o direito/dever de
cooperação cultural internacional previstas na Declaração dos Princípios da Cooperação
Cultural Internacional, 1966). A partir do século XXI ganha destaque o direito à diversidade
cultural com a Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, estabelecida
em 2001, e a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais, da UNESCO, firmada em 2005.
No conjunto desses direitos, damos destaque à temática da diversidade cultural, que
antes de possuir um marco regulatório próprio, sutilmente, esteve presente em outros
documentos referentes à cultura, uma vez que ela se insere no contexto geral e fundante
do campo simbólico.
Vários autores (LIMA, 2014; DAGNINO, 2014, SMIERS, 2014) apontam que
a construção do conceito e, sobretudo, o estabelecimento de marcos regulatórios
internacionais sobre a diversidade cultural foi uma resposta a dois grandes desafios e
demandas sociais do século XX. Por um lado, diversidade aspirava identidade e cidadania,
como uma forma de responder às demandas e ao próprio estabelecimento das democracias
e políticas culturais democráticas, de participação social; por outro, diversidade cultural
seria uma forma de defesa dos mercados nacionais de bens e serviços culturais, ameaçados
pela desigualdade e ferocidade do comércio internacional.
Esse primeiro paradigma de diversidade cultural é estabelecido, ainda que de
forma sutil, no documento resultante da Conferência Mundial sobre Políticas Culturais
(Mondiacult), realizada em 1982, que expressa que as políticas culturais devem proteger
e estimular “a identidade cultural e o patrimônio natural de cada povo, e estabelecer o
respeito absoluto e a apreciação das minorias culturais e as outras culturas do mundo”
(UNESCO, 1982, p.2), dado que identidade e diversidade são pilares básicos não só dos
constructos da cultura e da cidadania cultural, mas da própria democracia.
Nas décadas finais do século XX cada vez mais era notório de que o campo cultural
estava se tornando em um importante e notável vetor de desenvolvimento. Stuart Hall
nos mostra que as históricas experiências de utilitarismo da cultura, que foram sendo
acumuladas pelas sociedades ocidentais capitalistas, se desenvolveram a um ponto no qual
os usos que lhe foram sendo dados romperam as barreiras do macropolítico e do social
(HALL, 1997, p. 22), de forma que a cultura passou a mediar tudo, a estar presente em tudo.
Se a cultura está em “tudo”, e ao mesmo tempo atua como mecanismo de mediação e
criação, por ser uma dimensão simbólica, ela sintomaticamente possui uma faceta de poder.
Cremos que essa ideia é um dos fatores centrais que motivam a predisposição e interesse de
atores e forças político-sociais, como o Estado, pelo campo. Contudo, não podemos negar
que a cultura passou a ser encarada também como um sinônimo de desenvolvimento tanto

107
social como econômico (BAYARDO, 2007; CALABRE, 2005; HERMERT, 2002). Tal fato lhe
conferiu um lugar de destaque nas agendas de diversos países e organismos internacionais
que passaram a desenvolver e pensar ações de organização e institucionalização de
entidades, programas e políticas. Em síntese, pensar em cultura parecia cada vez mais
imperativo para as nações que buscavam desenvolvimento, crescimento e poder.
Na medida em que a planificação e autonomização da cultura se tornava uma realidade
palpável, multiplicaram-se as discussões e preocupações da esfera econômica inerente
à dimensão cultural, ratificadas pelo acentuado processo de trânsitos e trocas globais,
antes jamais vivenciado. Como resultado, as discussões sobre diversidade cultural, nesse
momento, vão estar mais próximas desses novos desafios postos pela globalização. Não
podemos afirmar que os documentos estabelecidos no início do século seguinte, são
essencialmente de cunho economicista, mas da mesma maneira, não podemos negar que
esses marcos regulatórios terão uma forte carga econômica.
Segundo Joost Smiers (2014), o conceito de diversidade cultural ganha vida política
somente na década de 1990, período no qual vemos uma movimentação mais latente e
explícita sobre o assunto. Críticos mais veementes como Smiers, irão defender que esse
movimento só ocorre, justamente, porque nesse momento a diversidade cultural, bem
como o setor cultural, são considerados fatores preponderantes para o desenvolvimento
econômico. Contudo, devemos ter em mente que o estabelecimento de conceitos e
paradigmas são resultados de um processo, e com o de diversidade cultural não foi diferente,
a materialização de marcos regulatórios só foram possíveis, pois houve uma preocupação
anterior, presente já na década de 1980, como vimos. Obviamente seus reflexos econômicos
atuaram como um estímulo a mais, no entanto não foi o único.
É na virada para o século XXI que o primeiro marco regulatório que trata
especificamente sobre diversidade cultural é estabelecido, nomeado de Declaração
Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural foi aprovado na 31ª Conferência Geral
da UNESCO em 2 de novembro de 2001. A Declaração, reafirma os direitos humanos e
as liberdades fundamentais da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e ratifica o
respeito pela diversidade de culturas, tolerância, diálogo e cooperação, entendendo que
esses fatores são um dos melhores fiadores da paz e segurança internacional. Em linhas
gerais, no documento é frisado que se aspira “uma maior solidariedade fundada no
reconhecimento da diversidade cultural, na consciência da unidade do gênero humano e no
desenvolvimento das trocas interculturais” (UNESCO, 2001, p. 67, tradução nossa).
Até o advento do documento, a diversidade cultural estava estabelecida basicamente
em dois eixos, o da pluralidade identitária e o do desenvolvimento econômico, no entanto a
declaração pontua três esferas de impacto e ação, a relação da diversidade com a identidade
e a pluralidade, já expressas no Mondiacult; a relação da diversidade à cooperação e
solidariedade internacional, dimensão debatida na décadas finais do século XX; e, a mais
nova perspectiva, a da diversidade e criatividade, que podemos entender como um ponto
intermediário entre os primeiros.
Para a UNESCO a diversidade cultural é um patrimônio da humanidade, inseparável
do contexto democrático e da pluralidade, uma vez que ela evoca a participação de todos.
Entendemos que o uso da expressão “humanidade” é um recurso para igualar todas as
nações, visando assegurar suas particularidades, uma vez que, assim como o conceito
de cultura, “a diversidade cultural é a expressão de opostos. O singular, o intraduzível, a

108
capacidade e o direito de diferir, bem como a expressão do universal, de uma ética e de
um conjunto de direitos humanos” (BARROS, 2008, p.17). Contudo, como nos adverte,
ainda, José Márcio Barros (2012), definir diversidade cultural como uma mera soma das
diferenças é cair num reducionismo empobrecedor e simplista do conceito.
De acordo com Smiers (2014), a Declaração, estabelecida em 2001, estava fadada ao
fracasso, realmente não podemos negar que o documento carecia de algumas definições e
propostas mais diretivas. Ainda que acreditemos que Joot Smiers seja um pouco exigente
com o documento, o que vemos no texto é “um mais do mesmo”, tanto é que quatro anos
depois é criada a Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões
Culturais, também conhecida como Convenção para a Diversidade Cultural.
Observamos que esse segundo documento tem um tom mais formal, dado que uma
convenção é um instrumento jurídico, previsto pelo direito internacional. Identificamos
nela uma ratificação das disposições e ideias presentes na Declaração de 2001, no entanto
constata-se a conceituação de diversidade cultural, ausente no documento anterior.
Segundo a Convenção, diversidade cultural
se refere às diversas formas pelas quais se expressam as culturas de
diferentes grupos e sociedades. Essas expressões são transmitidas dentro
e entre os grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não
apenas nas diversas formas em que se expressa, enriquece e transmite o
patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade de expressões
culturais, mas, também, através de diferentes modos de criação artística,
produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, seja
por quaisquer meios e tecnologias utilizados. (UNESCO, 2005, p.3,
tradução nossa)

Outro ponto que merece destaque é o conceito de bem cultural. De acordo com o
documento todo, bem e serviço cultural, assim como a diversidade cultural, possuem
um valor, não aquele restrito à perspectiva econômica, mas especialmente ao contexto
simbólico. Essa perspectiva, mesmo que abra precedentes para a dimensão feroz do
capitalismo economicista, de alguma maneira reitera a diversidade como um direito.

Diversidade cultural no contexto brasileiro: reflexos e incursões na


dimensão patrimonial

No Brasil, o desenvolvimento de uma planificação e política de cultura se deu de forma


descompassada e instável. O pesquisador Albino Canelas Rubim (2007) aponta para três
tristes tradições das políticas culturais no nosso país, marcadas por ausências, autoritarismo
e instabilidade, além dessas características notamos, também, que elas historicamente
favoreceram a produção e circulação de bens e do capital cultural de uma determinada
parcela da sociedade. Contudo, é inegável que, no campo cultural, o patrimônio é o único
dos setores que se manteve numa relativa estabilidade e, em certos períodos, logrou
notáveis progressos e desenvolvimentos em nível institucional e de planificação. Esse fato
foi possível graças às possibilidades de uso que o patrimônio evoca (CANCLINI, 1999), que
por muitos anos se centrou na manutenção e imobilização da história oficial e dos heróis
nacionais.
A respeito disso, Joaquim Falcão, acrescenta ainda pontuando que
a continuidade da gestão, a homogeneidade e estabilidade técnicas
conferiram ao IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

109
Nacional], ao longo destes anos, uma certa ‘autonomia político-
administrativa’. Quer em relação aos sucessivos períodos de ‘apolítica
cultural’ do Estado, quer em relação aos sucessivos regimes políticos e
ciclos econômicos (FALCÃO, 1984, p. 24).

Obviamente, o IPHAN – entidade nacional responsável pela, dentre outras funções,


tutela dos patrimônios do país – esteve fora da mira dos desmontes, ocasionados seja por
conta da transição de governos, seja pelas ideologias político-partidárias, pois o conceito e
o discurso que permeavam o patrimônio, até então, coroavam a já estabelecida elite social
brasileira, e seus símbolos e signos. Segundo Falcão (1984), os 810 processos de tombamento
realizados desde a criação do instituto, em 1938, até 1981 tratavam-se, especificamente,
de monumentos vinculados à experiência vitoriosa da etnia branca, da religião católica,
do Estado e das elites política e econômica do país, caracterizando, desta forma, a política
patrimonial brasileira como uma política de “pedra e cal”, que primava “testemunhos
materiais imponentes, tanto do ponto de vista da ocupação e da permanência no espaço da
cidade, quanto dos padrões estéticos hegemônicos, valorizados como expressões de cultura
à época do tombamento desses bens” (FONSECA, 2009, p. 59)
Até a década de 1970, mesmo que Mário de Andrade já houvesse, em níveis ideais,
esboçado uma preocupação com os bens simbólicos de grupos subalternos, como os índios
e negros, nenhuma ação sistemática havia sido posta em curso. Foi Aloísio Magalhães o
agente protagonista na incursão de uma nova perspectiva sobre o patrimônio cultural e
suas políticas, uma vez que para ele “o conceito de bem cultural extrapola a dimensão
elitista, de ‘o belo e o velho’, e entra numa faixa mais importante da compreensão
como manifestação geral de uma cultura. O gesto, o hábito, a maneira de ser da nossa
comunidade se constituem no nosso patrimônio cultural” (MAGALHÃES, 1997, p. 72).
Essa sua perspectiva foi fruto de um movimento que visava uma reorganização do
conceito de bem cultural e a problematização dos mecanismos e tecnologias de fomento,
democratização e produção ferramentas pelo Estado até aquele momento, e que estavam
obsoletas, com o objetivo de construir uma identidade nacional, mais “realista”, que
apresentasse a amplitude da produção cultural brasileira. É nesse sentido que é criado
em 1975, o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), que dentre outras funções
buscava realizar um mapeamento e sistematização referencial da dinâmica e da produção
cultural do país.
A diversidade cultural, ainda que não nomeada dessa forma nesse período, atuará
como um constructo da identidade cultural nacional proposta por Aloísio Magalhães e o
CNRC, além disso, será um elemento chave na articulação internacional uma vez que o país
é rico não só em recursos naturais, mas também em sua dimensão cultural.
As ideias da premissa constitutiva do CNRC, do qual Aloísio Magalhães era um dos
precursores, sobretudo aquelas vinculadas à diversidade regional, foram importadas para o
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1979, momento em que
há a fusão entre os dois órgãos, criando assim a Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM),
e a ocupação de Aloísio como seu diretor. Joaquim Falcão (1984) aponta que Aloísio
Magalhães vai convocar as ideias presentes no anteprojeto de Mário de Andrade propor um
paradigma mais próximo da realidade diversa e multicultural do país. Essa nova política
patrimonial observava a cultura enquanto um processo, um elemento orgânico, contínuo,
heterogêneo e complexo, demonstrando a aproximação e opção de Aloísio Magalhães pela
perspectiva antropológica de cultura.

110
Esse novo paradigma vai transformar vertiginosamente o conceito limítrofe de
patrimônio enquanto bens destacados por sua excepcionalidade histórica, monumental ou
artística, estabelecido no artigo 1 do Decreto-Lei n. 25, de 1937. A partir desse momento,
Aloísio Magalhães propõe uma visão mais ampla, que deixa de se pautar na perspectiva
eurocêntrica e colonizadora. É proposto a reorganização das orientações para as medidas e
políticas patrimoniais, que passam a ser dirigidas a partir da noção de referências culturais
(FONSECA, 2001). Transcendendo, assim, um tecnicismo excludente e dotando ao
processo de patrimonialização um contexto social, dirigindo “o olhar para representações
que configuram uma ‘identidade’ da região para seus habitantes” (FONSECA, 2009, p.113).
Tal perspectiva veio para deslocar o foco nos bens, para a dinâmica de atribuição de
sentidos e valores. O processo de patrimonialização passou a considerar os sujeitos os
quais essas referências e esses bens faziam sentido. Em outras palavras, as referências
culturais seriam as significações, sentidos e valores conferidos pelos diferentes sujeitos a
bens e práticas culturais, por sua vez, inerentes ao processo de construção identitária e da
memória.
Esse movimento passa a apontar e coibir os equívocos e a tendência à oficialização e
chancela de bens culturais que enalteciam a cultura branca, a elite vitoriosa e a produção
artística nacional mimética à estética europeia.
No processo de planificação da cultura no Brasil, que resultou na criação do Ministério
da Cultura (Minc) em 1985, no Governo de José Sarney, observamos uma tentativa de
convergência das políticas patrimoniais desenvolvidas, até aquele momento pelo IPHAN,
com a política cultural nacional que estava se formando, como podemos constatar no
decreto fundacional do ministério, que aponta que sua estrutura se estabelecia em dois
eixos básicos: o de letras, artes, folclore e outras formas de expressão da cultura nacional; e
o de patrimônio histórico, arqueológico, artístico e cultural.
O patrimônio cultural, no âmbito dessa nova estrutura estatal para o campo da cultura,
vai ganhar uma real atenção somente na gestão do ex-ministro Celso Furtado (1986-1988)
que transforma o Instituto do Patrimônio Artístico Nacional (IPHAN) em Secretaria do
Patrimônio Artístico Nacional (SPHAN), em 1986. Celso vai compreender o campo da
cultura, e consequentemente do patrimônio cultural, não só como uma possibilidade de
desenvolvimento nacional, mas como artífice elementar para a valorização da identidade
brasileira, culminando na sua busca por instituir uma política patrimonial nacional.
Segundo a historiadora Lia Calabre (2009b), Celso Furtado vai efetivamente
estabelecer uma estrutura necessária para o funcionamento do ministério, e impulsioná-lo.
Concomitantemente, como nos mostra os pesquisadores Luise Villares e Bruno Borja (2020)
o ex-ministro busca esboçar uma profunda preocupação com os patrimônios culturais da
nação uma vez que, para ele, o conceito de patrimônio cultural se expressa como um dos
caminhos do desenvolvimento e da “identidade nacional que daria o tom da resistência e
mostraria os caminhos da construção de um novo tempo” (VILLARES & BORJA, 2020, p.
327). Tal preocupação vai desencadear na criação da Secretaria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional e elevar a preservação e o desenvolvimento do patrimônio cultural como
um dos nortes da política do Ministério da Cultura.
Após inúmeras incursões e transformações paradigmáticas quanto à gestão e políticas
dos patrimônios culturais, a inserção da percepção antropológica de cultura no ministério
e o alinhamento às ideias de Aloísio Magalhães, Celso Furtado aponta para a diversidade

111
cultural da nação, que ele nomeia como pluralismo cultural. Essa perspectiva vai ser
defendida pelo ex-ministro e terá um papel fundamental nas discussões sobre cultura
e patrimônio cultural na Assembleia Nacional Constituinte de 1988, que mobilizou a
sociedade e os intelectuais para sistematizar os pressupostos de uma nação democrática
(VILLARES & BORJA, 2020).
Com o estabelecimento e celebração da Constituição Federal de 1988 há uma
estruturação legal sobre a diversidade na política de Estado sobre patrimônio cultural,
que até então não havia sido estabelecida no país. Nesse documento, delineia-se um
Brasil preocupado com a democracia, autonomia, diversidade e a sociedade brasileira,
estabelecendo tópicos importantes referentes ao setor cultural do país. Como podemos
observar a seguir.
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais
e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização
e a difusão das manifestações culturais.
§ 1° - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.

§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta


significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à nação, à memória dos diferentes grupos
formadores da identidade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá
e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.
§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da
documentação governamental e as providências para franquear sua
consulta a quantos dela necessitem.
§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de
bens e valores culturais.
§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma
da lei.
§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos. (BRASIL, 1988)

Ao analisar esses artigos Bernardo Mata Machado (2011) nos chama a atenção ao fato
da seção que aborda sobre cultura, composta pelos artigos 215 e 216, iniciar fazendo uma
explícita menção aos direitos culturais. Essa ênfase pode ser traduzida como um eco e
tentativa de alinhamento aos paradigmas de política e gestão democráticas internacionais,
sobretudo aquelas provindas da UNESCO. Além disso, a ideia de cultura enquanto vetor,
preponderante, de desenvolvimento socioeconômico e direito fundamental dos indivíduos
já havia se consolidado fazendo com que os países que estivessem em descompasso à essas
ideias, também, estivam em desalinho com a democracia e o desenvolvimento.
Segundo o autor, “o direito à identidade e à diversidade cultural está bem detalhado

112
na Constituição” (MATA MACHADO, 2011, p. 113). Ambos os artigos, de forma geral,
asseguram e celebram a proteção da identidade e da memória dos diferentes grupos étnicos
e sociais que formam a sociedade brasileira, fazendo ênfase a proteção de grupos que
historicamente estiveram à margem da sociedade e sua história e cultura, se não negadas,
silenciadas.
Vale ressaltar que, ainda que esses artigos representem uma virada paradigmática e a
consolidação jurídica de uma política patrimonial de(s)colonial, na prática observamos que
é somente na gestão de Gilberto Gil que se começa a ver, efetivamente, um crescimento de
bens tombados ou patrimonializados referentes aos grupos subalternizados.
Outro ponto presente na constituição de 1988 e que nos chama a atenção são os agentes
dessas políticas. Segundo o inciso primeiro do artigo 216, notamos um novo ator no contexto
das políticas patrimoniais do país, a sociedade. Pela primeira vez até aquele momento,
os indivíduos antes silenciados possuem o direito à memória assegurado juridicamente.
Nesse mesmo inciso, há a menção ao Estado, contudo aqui inclui-se novos entes federados,
uma vez que o artigo 18 da constituição confere autonomia administrativa aos municípios
dotando-os de governo próprio e determinando competências legislativa e administrativa
em relação às do Estado e da União.
O artigo 18 expressa uma descentralização política visando o equilíbrio entre os entes
federativos. Diante da estrutura federal do Estado proposta, os entes menores foram
priorizados para a satisfação dos interesses locais, cabendo somente ao poder de nível
imediatamente superior exercer aquilo que não possa ser cumprido pelo inferior. Não
faremos aqui uma discussão sobre o processo e os motes da descentralização política no
Brasil, contudo, vale ressaltar, como expressa Lia Calabre (2009a, p.81), que “os debates
internacionais contemporâneos consideram a cidade, ou o município, como um lócus
especial dentro da gestão pública”. Essa visão demonstra uma grande preocupação da
gestão pública com o impacto e a eficácia das políticas públicas quanto à sociedade civil,
beneficiários dessas ações, em especial no contexto brasileiro, uma vez que o país possui
grande extensão territorial e é composto por uma sociedade heterogênea.
Sabe-se que as políticas e ações por parte do poder público para que sejam realmente
efetivas precisam de canais de escuta, de proximidade com a sociedade, e justamente
os entes locais, no caso os municípios ou cidades, se fazem estratégicos nesse processo.
Entendemos que é sob essa perspectiva que o artigo 18 da constituição foi elaborado,
além disso o compromisso e atribuições da prestação de serviços públicos passam a sair,
unicamente, da responsabilidade da União.
Ainda, sob essa perspectiva, as cidades ou municípios serão, de igual modo, estratégicas
no que tange ao campo da cultura. Essa relação cultura e cidade é histórica e enraizada uma
vez que “as cidades propiciam o convívio e o intercâmbio entre os grupos e suas práticas
culturais, permite a elaboração de políticas culturais que devem ser capazes de trabalhar
com a diversidade local de forma que produzam alternativas de enriquecimento do conjunto
da população” (CALABRE, 2009a).
Esse olhar para o território enquanto elemento fundante da identidade, da memória e,
consequentemente, da diversidade cultural foi uma das premissas das políticas culturais da
gestão de Gilberto Gil (2003-2008) no Ministério da Cultura. Observamos nesse período,
o delineamento de uma política cultural que buscava fomentar ações que pluralizassem
e democratizassem a história e a identidade tanto nacional como local, no intuito de

113
valorizar diversos passados. Esse período é marcado pelo processo de institucionalização
dos paradigmas da diversidade cultural no país, como podemos observar no discurso de
posse do ex-ministro Gilberto Gil.
[...] a política cultural deste Ministério, a política cultural do Governo Lula,
a partir deste momento, deste instante, passa a ser vista como parte do
projeto geral de construção de uma nova hegemonia em nosso País. Como
parte do projeto geral de construção de uma nação realmente democrática,
plural e tolerante. Como parte da essência de um projeto consistente e
criativo de radicalidade social. Como parte e essência da construção de um
Brasil de todos [grifo nosso]. (GIL, 2003, s/p.)

Há uma busca por um redimensionamento da cultura no contexto das políticas


públicas, numa perspectiva mais ampla, dialógica e participativa. A cultura seria um
meio de estabelecer um projeto democrático, no qual todas as vozes e memórias fossem
celebradas. Esse discurso, como o próprio ministro salienta em sua fala, estava alinhado
com as discussões internacionais sobre os direitos e a diversidade cultural que, em
2001, haviam sido ratificados na Declaração Universal da UNESCO sobre Diversidade
Cultural. Esse documento pontua a diversidade cultural como vetor preponderante para
o estabelecimento das democracias, das identidades culturais e do desenvolvimento, “não
só em termos de crescimento econômico, mas como um meio de acesso à uma existência
intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória” (UNESCO, 2001, tradução nossa).
Nesse contexto, os patrimônios culturais são celebrados e preservados com o objetivo
de ser referentes da memória e da identidade cultural, não só nacional, mas dos diversos
grupos que formam a sociedade brasileira. Observamos um movimento de transformação
paradigmática da concepção de patrimônio que servia como um mecanismo de formação
do “cidadão” e da nacionalidade, uma pedagogia da identidade nacional constituída
por referentes que exaltavam o Estado e seus heróis nacionais, e passa a ser encarada
como uma pedagogia da diversidade, na medida em que o cidadão se identifica, se
vê no patrimônio. Usamos o termo “pedagogia” porque, como aponta o professor e
pesquisador José Reginaldo Gonçalves (2009, p. 31), “o patrimônio é usado não apenas
para simbolizar, representar ou comunicar: é bom para agir [...] de certo modo, constrói,
forma as pessoas”.

Considerações finais

A pauta da diversidade cultural e, consequentemente, do pensamento de(s)colonial no


Brasil se deram de forma oscilante. Observamos que seu estabelecimento enquanto diretriz
para políticas culturais e patrimoniais ocorre relativamente rápido, levando em conta os
períodos tanto de surgimento desses paradigmas como de ditadura no país, no entanto, sua
efetivação, ou seja, uma política para a diversidade na prática, só vai ocorrer com a gestão
de Gil, que passa a reivindicar tais pressupostos. Até esse momento a diversidade cultural e
a de(s)colonialidade estarão no campo das ideias e de lá não saíram.
O aprisionamento dessas temáticas no campo das ideias gera o perigo alarmante de
distorção de sua real essência, pois, não podemos negar, tendenciamos construir discursos
que buscam um pretenso e limitador apaziguamento crítico-reflexivo e acabamos por cair
num vácuo que obscurece a natureza do campo simbólico ao tentarmos negar ou omitir seus
problemas, conflitos e dissensos. Acabamos por esquecer que o campo simbólico é arena

114
de disputas, de tensões, um mecanismo de possibilidade tanto de invenção, que fomenta e
produz identidades sociais, quanto de conquista, dado que é um espaço de lutas simbólicas.
Buscamos propor um consenso utópico e imaginário, sobretudo ao falar de diversidade,
mas diversidade está para democracia, logo
[...] a diversidade cultural encerra tensões e não pode, portanto, ser
transformada na busca de uma harmonia entre nossas diferenças. Afinal,
democracia não é o regime do consenso, mas, sim, uma maneira de
resolver nossos dissensos. É um regime que nos ajuda a resolver nossas
diferenças quando elas promovem enfrentamentos. (BARROS, 2012, p.31)

Por assim dizer, também não podemos relativizar o campo simbólico, nem muito
menos os patrimônios culturais e suas políticas. Estabelecer uma série de documentos
“crus” e “frios” que se encontram no alto escalão das cúpulas governamentais, e não
chegam na “ponta”, na sociedade, não é o suficiente para efetivar ações de preservação e
conscientização da pluralidade e diversidade simbólica e discursivas, me refiro aqui aos
textos culturais, inerentes a esses bens. Essas políticas têm de estar presente no cotidiano
e atender de fato seus destinatários, é necessário um movimento de (trans)formação, pois
como José Márcio Barros (2012) afirma, diversidade cultural é um aprendizado, e isso só
será logrado quando de fato houver um movimento de aproximação e real participação da
sociedade. Como pudemos ver na gestão do ex-ministro Gil, olhar para o território se torna
imperativo quando falamos em diversidade, participação e democracia.

Referências Bibliográficas
BARROS, José Márcio. Cultura, diversidade e os desafios do desenvolvimento humano. In: _______. (org.)
Diversidade Cultural: da proteção à promoção. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008

_______. Diversidade e cidadania. In: Políticas para as artes: prática e reflexão. Rio de Janeiro: FUNARTE,
2012.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal:
Centro Gráfico, 1988.

BAYARDO, Rubens. ¿Cultura y desarrollo: Nuevos rumbos y más de lo


mismo?  In: NUSSBAUMER, Gisele Marchiori (Org.) Teorias e políticas da cultura.  Salvador: EDUFBA,
2007. p. 67-94.

CALABRE, Lia. Política cultural no Brasil: um histórico. In:_________(Org.). Políticas culturais: diálogo
indispensável. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2005. p. 09-20. (Coleção aconteceu na Casa
de Rui Barbosa, v 1)

_______. Gestão Cultural municipal na contemporaneidade. In: _______. (org.) Políticas Culturais:
reflexões e ações. São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2009a.

_______. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009b.

CANCLINI, Néstor García. Los usos sociales del Patrimonio Cultural. In: CRIADO, Encarnación Aguiar.
Patrimonio etnológico: perspectivas de estudio. Andalucía: Junta de Andalucía: Instituto Andaluz del
Patrimonio Histórico, 1999.

DAGNINO, Evelina. Diversidade cultural, cidadania e construção democrática. In: MIGUEZ, Paulo; BARROS,
José Márcio; KAUARK, Giuliana. (orgs.) Dimensões e desafios políticos para a diversidade cultural.
Salvador: EDUFBA, 2014.

FALCÃO, Joaquim Arruda. Política Cultural e democracia: a preservação do patrimônio histórico e artístico
nacional. In: MICELI, Sérgio. (org.) Estado e Cultura no Brasil. São Paulo: Difel, 1984.

FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio. In:
CHAGAS, M. y ABREU, R. (orgs.) Memória e patrimônio: Ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2009.

115
_______. Referências Culturais: bases para novas políticas de patrimônio. Políticas sociais:
acompanhamento e análise, n. 2, p.111-120, 2001.

GIL, Gilberto. Discurso de posse do Ministro da Cultura. Brasília: MinC, 2003. Disponível em: http://rubi.
casaruibarbosa.gov.br/handle/20.500.11997/6330. Acesso em: 05 de out. de 2020.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In: Abreu, R. y CHAGAS,
M (orgs.) Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação e
Realidade. Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez. 1997.

HERMET, Guy. Cultura e desenvolvimento. Trad. Vera Lúcia de Mello Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 2002.

LIMA, Paulo André Moraes de. A Convenção da Unesco sobre diversidade cultural e a agenda internacional
da cultura. In: MIGUEZ, Paulo; BARROS, José Márcio; KAUARK, Giuliana (orgs.) Dimensões e desafios
políticos para a diversidade cultural. Salvador: EDUFBA, 2014.

MAGALHÃES, Aloísio. E triunfo? a questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

MARTÍN BARBERO, Jesús. De los medios a las mediaciones. Comunicación, cultura y hegemonía. México:
Editorial Gustavo Gili S.A, 1987.

MATA MACHADO, Bernardo Novais da. Os direitos culturais na Constituição federal brasileira: uma análise
conceitual e política. In: CALABRE, Lia. (org.) Políticas culturais: teoria e práxis. São Paulo: Itaú Cultural;
Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011. p. 104-117.

MORAES, Marcelo Viana Estevão de. Construindo a democracia cultural: cidadania, federação e participação.
Políticas Culturais em Revista, Salvador, v. 12, n. 2, p. 13-33, jul./dez. 2019.

PRICE, Sally. Arte Primitiva em centros civilizados. trad. Inês Alfano. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000.

RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas Culturais no Brasil: tristes tradições. Revista Galáxia, São Paulo,
n. 13, p. 101-113, jun. 2007.

SMIERS, Joost. Diversidade cultural como um conceito político: oportunidade e falha (...e ainda alguma
esperança se você desglobalizar um pouco). In: MIGUEZ, Paulo; BARROS, José Márcio; KAUARK,
Giuliana (orgs.) Dimensões e desafios políticos para a diversidade cultural. Salvador: EDUFBA, 2014.

UNESCO. Declaración de México sobre las Políticas Culturales. Conferencia mundial sobre las políticas
culturales (MONDIACULT), 1982. Disponível em: http://goo.gl/6Bn1rM

UNESCO. Convención sobre la protección y la promoción de la diversidad de las expresiones culturales. Paris,
20 de outubro de 2005. Disponível em: http://www.ibermuseos.org/wp-content/uploads/2020/05/
convencion-unesco-2005.pdf.

_______. Declaración Universal de la UNESCO sobre la Diversidad Cultural. Paris, 2 de novembro de 2001.
Disponível em: http://rubi.casaruibarbosa.gov.br/handle/20.500.11997/16808.

VILLARES, Luise Gonçalves; BORJA, Bruno Nogueira Ferreira. Celso Furtado e a política de patrimônio
cultural. Políticas Culturais em Revista, Salvador, v. 13, n. 2, p. 318-337, jul./dez. 2020

116
Péndulos.
Políticas culturales y patrimonio en
Ecuador30

Santiago Cabrera Hanna

Marco entra en una ciudad: ve a alguien que vive en una plaza


una vida o un instante que podrían ser suyos; en el lugar de
aquel hombre ahora pudiera podido estar él si se detuviese en el
tiempo mucho tiempo antes, o bien si mucho tiempo antes, en una
encrucijada en vez de tomar por un camino hubiese tomado por el
opuesto y al cabo de una larga vuelta hubiera ido a encontrarse en
el lugar de aquel hombre en aquella plaza. En adelante, de aquel
pasado suyo verdadero o hipotético él queda excluido; no puede
detenerse; debe continuar hasta otra ciudad donde lo espera otro
pasado suyo, o algo que quizás había sido un simple futuro y ahora
es el presente de algún otro. Los futuros no realizados son solo
ramas del pasado: ramas secas.
--¿viajas para revivir el pasado? –era en ese momento la pregunta
del Khan, que podía también formularse así:
¿Viajas para encontrar tu futuro?
Y la respuesta de Marco:
--el otro lado es un espejo en negativo. El viajero reconoce lo poco
que es suyo al descubrir lo mucho que no ha tenido y no tendrá.
Ítalo Calvino. Las ciudades invisibles
(Madrid: Siruela, 2001, p. 42.)

Movimientos pendulares y políticas patrimoniales

Como si se tratara del péndulo de un reloj, las políticas patrimoniales en Ecuador


basculan entre diversas formas de comprensión de la cultura y el patrimonio, todas ellas
problemáticas. Es posible que al describir su oscilación se pueda abrir un debate todavía
pendiente sobre el tipo de relaciones de poder y que se entretejen en la actual gestión
cultural. La problemática del patrimonio cultural y el funcionamiento de sus recientes
políticas puede ilustrarse mediante tres movimientos de vaivén: constatación-imaginación,
monumento–acontecimiento y elitismo-populismo. En esta contribución se consideran
estos binomios como habitáculos de problemáticas más amplias que se ilustran con
algunos casos relacionados con las políticas sobre el patrimonio monumental e inmaterial
ecuatoriano.
El actual contexto de crisis sanitaria y de la representación política, recesión económica,
emergencia de nuevas luchas y protestas sociales, represión policial, extenuación del Estado

30 Originalmente publicado como, Santiago Cabrera Hanna, “Política patrimonial y conflictos socioculturales en el
Ecuador: comentarios para un debate pendiente”, Revista del Patrimonio Cultural del Ecuador, n.5, p. 18-29, jan-jun,
2014). Esta es una versión actualizada.

117
de bienestar, pandemia y confinamiento agudizan las tensiones antes descritas y recolocan
al patrimonio cultural en el epicentro de las disputas sociales y culturales en el segundo
decenio del siglo XXI.
La intervención – y a veces destrucción– de estatuas y monumentos urbanos
consagrados (así como las reacciones de represión, castigo y judicialización de tales
acciones) pone en evidencia las controvertidas formas impugnar el dispositivo autoritario
de la memoria oficial y sus formas simbólicas de olvido y exclusión, o de denunciar la
inequidad social y el deterioro de las garantías civiles. Así como el perverso revés de la
consagración de la memoria monumental como “lugar de culto” y como pretexto para
legitimar la exclusión; cuando –literalmente hablando– “quisiera ser piedra del Centro
Histórico para que se ocupen de mi”. Aunque, como bien señala Françoise Choay (2017,
p. 97), “Romper con el pasado no significa abolir su memoria ni destruir sus monumentos,
sino conservar unos y otros en un movimiento dialéctico que –simultáneamente– asume
y supera su significación histórica original, integrándolos en un nuevo estrato semántico”.
En buena medida, este tipo de visiones es favorecida por los instrumentos
internacionales sobre la conservación y puesta en valor del patrimonio cultural. Un repaso
por el tipo de definiciones que estas agencias realizan sobre el carácter de los legados
materiales e inmateriales que componen el repertorio del llamado “patrimonio cultural”,
expone dos aspectos que consideramos problemáticos:
En primer lugar, estos instrumentos de gestión dejan en claroscuro el sentido de la
preservación y gestión patrimonial, y delegan la definición de esos contornos a la mirada
experta y criterios técnicos de especialistas sobre quienes descansa la tarea de determinar
“despolitizadamente” los mecanismos de conservación de los bienes. Estas operaciones
conllevan la jerarquización de determinados saberes o disciplinas patrimoniales como
“autorizadas” por sobre otras formas de conocimiento con las cuales se construyen
las relaciones significativas entre la sociedad y manifestaciones culturales tangibles y
no tangibles por ella producidas. Al depender de la mirada autorizada de expertos y
evaluadores del patrimonio, esas otras formas de significación pierden valor integrándose
como un mero dado al trabajo de “validación” de las decisiones oficiales relacionadas con la
patrimonialización de la cultura.31
Así las cosas, la conservación y manejo del patrimonio cultural se revisten de
un sentido eminentemente técnico y –solo en apariencia– no político, como base de
garantía para la puesta en valor “neutral” de tales legados; cuando, por el contrario, es
en la arena de la determinación “experta” en la que los conflictos culturales y sociales se
expresan con mayor evidencia. Pues es la construcción política del patrimonio la que, a la
postre, determina el tipo de acciones que se operan sobre los bienes culturales (selección,
valoración y discriminación de manifestaciones materiales e inmateriales); los cuales
tienen por propósito delinear los contornos de lo que “es” el patrimonio nacional, regional
y/o local, frente a aquellas expresiones que no logran obtener tal estatus. Es decir que se
trata de un ejercicio de poder que reproduce, en buena medida, las matrices ideológicas
de los sectores oligárquicos y grupos de poder económico y cultural, quienes retienen la
capacidad exclusiva de intervenir en decisiones clave para la gestión del patrimonio,
valiéndose Estado, de los saberes conservacionistas y de sus voces autorizadas: qué se
31 El involucramiento de la sociedad en la constitución de la política cultura, mediante reuniones de socialización, tiende
a la legitimación de decisiones previamente tomadas, y no a la promoción de debates y reflexiones sobre las políticas
que se emprenden en el sector.

118
conserva y cómo, qué tipo de recursos y cuánto se destina para estos procedimientos; cómo
explotarlo en función de determinado intereses económicos y visiones sobre el pasado
nacional (que tienden al autoritarismo) al usar el patrimonio como agente reproductor y
legitimador de una determinada versión de la historia nacional, que tiende a la exclusión.
Una lógica cultural denunciada en su momento por Néstor García Canclini (1989) como
“tradicionalismo sustancialista”.
En segundo lugar, la aplicación de los instrumentos internacionales de preservación
y valoración patrimoniales por los llamados “estados parte”, léase Unesco, les obliga
a establecer mecanismos funcionales de conservación y gestión que tienden a la
burocratización del sector cultural. Burocratización que, de suyo, institucionaliza la
mirada experta como mecanismo exclusivo que determina no solo los mecanismos de
conservación y los parámetros que deben seguirse dentro del manejo del patrimonio.
Más aún, definen las rutas por las cuales debe seguir la selección, catalogación y puesta
en valor de nuevos repertorios materiales e inmateriales, en un ejercicio que tiende a
la plastificación de estas expresiones – especialmente aquellas incluidas dentro de los
listados del Patrimonio Cultural Inmaterial, PCI.
El propósito del artículo es ilustrar las operaciones binarias que intervienen, desde la
perspectiva gubernamental central y local, en cuanto a la construcción de políticas públicas
para el sector del patrimonio cultural. ¿Cómo salir del binarismo? Es uno de los retos que
enfrentan tanto el Estado como los gobiernos locales, los especialistas y los científicos
socioculturales y la sociedad en su conjunto.

Constatación-imaginación

Constatar e imaginar son puntos extremos que recorremos en un ejercicio de apelación


cultural material e intangible que delinea trazos identitarios (lo que “somos”), aunque este
movimiento luzca imperceptible o, a ratos, inconsciente (BOSI, 1989).
Quien recorre, por ejemplo, los pasillos del Museo Nacional –anteriormente llamado
Museo del Banco Central del Ecuador, creado en 1969– no alcanza a aquilatar las
implicaciones de la inherente operación cognitiva de sus sucesivas museografías.
Concebida en función de los postulados de la llamada “Nueva Museografía”, la propuesta
implementada en su momento por el Banco Central del Ecuador –y que se mantuvo casi
sin alteraciones desde la creación del museo hasta el 2015– estuvo organizada de modo
que la historia transite ante nuestros ojos desde un pasado remoto y arcaico: se despliega,
así, el período prehispánico –que “contiene” entre sus impresionantes colecciones de oro,
piedras, escultura, piezas de barro y adornos la “esencia nacional”; atraviesa, luego, la época
de la Conquista y el mundo colonial mediante la exposición del arte religioso – como si
toda aquella época se explicase exclusivamente como el escenario de la Escuela quiteña, sin
indígenas, mujeres, gremios y actores populares urbanos; y nos deposita, finalmente, en la
época independentista y republicana – como escenario de grandes y masculinas campañas
militares emprendidas por caudillos y hombres necesarios. Una epopeya que se acompaña
de los testimonios materiales de la exploración geográfica y el naturalismo.
El pasado monumental que evoca el museo está ahí para ser constatado, no para
ser objeto de cuestionamientos o impugnaciones. Aquí, la historia, referida como una
concatenación de objetos-monumento, revalida una concepción lineal del tiempo evolutivo,

119
que empieza en circunstancias específicas de situación social (el pasado prehistórico) y
avanza artificialmente a un estadio siempre “superior” de cristalización del orden social
(la Independencia y la República). Una visión teleológica de la historia nacional es la
que organiza el recorrido por las salas del museo, montada sobre una concepción de la
historia que desatiende las reflexiones más actuales en cuanto a las maneras de interrogar
los repertorios del pasado, a propósito de incorporar la agenda de los actores excluidos
de dichas historiografías o integrarlos subordinadamente a relatos que apelan al pasado
indígena como mitología fundacional que legitima y fundamenta una nacionalidad de
tonalidad blanco-mestiza. Además, esta visión reivindica la Conquista como un elemento
clave de la formulación hispanista de la identidad nacional y replica patrones oligárquicos
de representación en los cuales mujeres, indígenas y afrodescendientes encuentran su lugar
supeditándose a un marco narrativo forjado en los moldes del relato patrio decimonónico.
Los objetos muesificados son apelados como “ventanas hacia el pasado” y no como
representaciones impregnadas de una subjetividad individual –la de quien creó dichos
artefactos como utensilios de uso, piezas de artesanía u obras de arte–, dentro de un
contexto social determinado por condiciones históricas específicas (SALLES OLIVEIRA,
2007). De ahí la incapacidad de pensar, por medio de la oferta curatorial del Museo
Nacional, en aspectos como la diversidad cultural y sus conflictos étnicos y sociales o en
los procesos de colonialismo interno operados en distintas épocas históricas. O en el lado
conflictivo de la construcción de la nación.
Pese a la declaración constitucional del Estado ecuatoriano como plurinacional,
pluricultural y multiétnico, el Museo Nacional mantuvo una propuesta curatorial a
contracorriente de aquellas declaraciones que insistía en una visión de la historia nacional
basada en patrones teleológicos de comprensión que legitimaron el blanqueamiento y el
mestizaje como improntas sine qua non de la ecuatorianidad.
El movimiento de constatación-imaginación del pasado histórico planteado por la
curaduría del Museo Nacional hasta hace poco contó una versión de la historia amoldada
a los patrones exclusivos del mestizaje y recorrió un régimen de historicidad destinado a
legitimar un relato autocomplaciente (HARTOG, 2013). Así las cosas, la historia nacional
es la del mestizaje, ya que todos los elementos expuestos en el recorrido presentan la
conformación de la entidad nacional como una consecuencia ineludible del desarrollo
sociocultural aborigen. La experiencia de la Conquista es representada como trauma y, a la
vez, como necesidad, puesto que es preciso echar abajo las estructuras sociales anteriores
para instalar un orden nuevo y civilizado: la época colonial, representacionalmente
construida en derredor del “arte colonial” y la religiosidad barroca; el contexto republicano,
evocado como momento de la manifestación del “arte nacional”, pletórico de tipologías
costumbristas –acuarelas–, naturalismo y paisajismo; y, finalmente, el arte contemporáneo,
evocan ese emprendimiento.32

32 Este régimen de historicidad sostiene el relato de la historia patria que reivindica el mestizaje como impronta de
la nación; mantiene, además, un correlato en la construcción imaginaria de lo regional, como estereotipo cultural que
se encuentra, todavía, en plena vigencia. Los años ochenta y noventa son el contexto en el que la política cultural del
entonces Banco Central toma especial atención de lo regional, lo que implica la separación temática de sus colecciones
para resituarlos en los espacios urbanos de Quito, Cuenca y Guayaquil. Esta acción coadyuva al posicionamiento de
estereotipos culturales en cuanto a las tres ciudades-región. Así, las colecciones de arte colonial se mantienen en Quito,
afirmando la imagen de la urbe conventual y barroca de orígenes hispánicos; los acervos de arte y producción literaria
republicana se custodian mayormente en Cuenca, contribuyendo al imaginario de ciudad “Atenas del Ecuador”; y
el arte contemporáneo que, concentrado en el Museo de Antropología y Arte Contemporáneo de la ciudad-puerto,
afirmará el referente de Guayaquil como moderna, laica y cosmopolita. Un artificio que colinda con los proyectos

120
Este ordenamiento de los repertorios patrimoniales se reproduce en la constitución
documental del Archivo Nacional del Ecuador a lo largo del tiempo. El historiador
Guillermo Bustos analizó la forma en que esta institución informó los acentos y maneras
con las que tanto historiadores liberales como conservadores del siglo XIX y la primera
mitad del siglo XX (casi todos ellos integrantes de la Academia Nacional de Historia),
escribieron la historia nacional con una innegable huella hispanista. El archivo fue,
entonces, referido como arcano del pasado, del cual los historiadores extrajeron
documentos monumentalizados a través de los cuales constataban determinados
acontecimientos bajo un indiscutible carácter hispánico, el cual decidía situar el
origen de la nación ecuatoriana en el mundo colonial, reconstruido en la historiografía
decimonónica y de la primera parte del siglo XX como crisol de un mestizaje en el que
la vertiente blanca se impone y determina a la indígena (BUSTOS, 2011; 2017). Lejos
de ser considerado como un registro documental imbuido de circunstancias históricas
e institucionales específicas de producción, con información sobre la cual reconstruir
críticamente una parte del pasado nacional, aquellos historiadores montaron sus
reconstrucciones historiográficas sobre una mirada en doble batiente que, al tiempo que
acudía a la fuente archivística para constatar la veracidad de su relato, abría la posibilidad
de imaginar el pasado, por medio de una evocación monumentalizada de dichas fuentes.
El derrotero reciente del Museo Nacional refleja no solo la pérdida de brújula del
espacio cultural llamado a representar la diversidad histórica y social del país. También
expresa las dificultades que ha tenido para institucionalizarse como lugar de memoria y
como espacio de manifestación de una política cultural coherente. En 2015 las puertas del
Museo Nacional se cerraron al público, pues sus espacios (cedidos por la Casa de la Cultura
Ecuatoriana mediante un convenio de comodato) fueron usados como sede del encuentro
Habitat III.33
El Ministerio de Cultura aprovechó el cierre temporal para llevar adelante varias
acciones en el campo jurídico-administrativo con miras a proporcionar los marcos legales
y de gestión para que el Museo Nacional adquiera un carácter institucional, mediante
la creación del Sistema Nacional de Cultura. El sistema dio paso a la creación de la
Subsecretaría de Memoria Social que, a su vez, integró repositorios patrimoniales de diverso
tipo: el Área Cultural del Banco Central del Ecuador, el Archivo Nacional y la Biblioteca
Nacional (inaugurada en septiembre de 2019, durante la pandemia), así como archivos,
museos de arte contemporáneo y de sitio en distintas regiones del país (CELI, 2019).
Este nuevo marco institucional creó las condiciones para que se produzca la
insólita supeditación de archivos, bibliotecas y sitios arqueológicos en todo el país
al control del Museo Nacional y otros espacios museales locales (como el Museo de
Arte Contemporáneo en Guayaquil o el Museo de Sitio Pumapungo en Cuenca), y la
limitación en acceso a especialistas y público interesado a estos bienes patrimoniales,
bajo un esquema de gestión patrimonial monumentalista, carente de criterios técnicos
sobre el tratamiento tipológico y diferenciado de los bienes culturales, contrario al

socioculturales de las – élites portuarias dedicadas al relieve de la ciudad como polo económico y moderno del país.
Una vocación heredada del boom del cacao y del posicionamiento, durante del siglo pasado, de la región guayasense
dentro del circuito del mercado mundial.
33 “Museo Nacional se abrirá luego de dos años y medio”. El Telégrafo, 18 de mayo de 2018. https://www.eltelegrafo.
com.ec/noticias/cultura/10/museo-reapertura-peter-mussfeldt; “Habitat III: la conferencia de las Naciones Unidaa cen-
trada en los ciudadanos”. https://www.un.org/es/chronicle/article/habitat-iii-la-conferencia-de-las-naciones-unidas-cen-
trada-en-los-ciudadanos

121
marco legal que racionaliza la gestión patrimonial y enfrentado con el derecho al acceso
al patrimonio y a la información archivística.34
Bajo el nombre de MuNa, el Museo Nacional fue reinaugurado en 2018 con una
curaduría que sus impulsores definieron como “desbordada”.35 En ella, el sentido narrativo
de la historia como lugar social cedió paso a la presentación de un guion pastiche que
puede seguirse de manera aleatoria y lúdica, sin sugerir conexiones o rutas narrativas.
En la propuesta, el recurso al ordenamiento epocal de sus exposiciones (cronológico)
fue denostado y relacionado de manera confusa con el sentido teleológico de anteriores
muestras. La dimensión “social” de la memoria que se procura representar se tradujo en
una curaduría que adopta la forma de un ático patrimonial (CHOAY, 2017), donde la
dimensión contenciosa de la construcción social del país y las diversidades se disuelven en
el contacto interactivo y lúdico del visitante con objetos desacralizados.36
La crisis institucional del Museo Nacional se expresa en una serie de inopinadas
decisiones gubernamentales tomadas en el contexto de la pandemia SARS-CoV-2, y tienen
como pretexto la divulgación de un Informe Técnico relacionado con el crítico estado del
edificio que alberga las reservas patrimoniales que pertenecieron a la Dirección del Banco
Central del Ecuador, hoy bajo la administración del Ministerio de Cultura y Patrimonio
(MCyP) (SNGRE, 2019). El documento señala el estado de grave riesgo de la edificación y
sugiere el traslado urgente de sus dependencias y bienes. Se insiste en la vulnerabilidad del
edificio ante sismos fuertes. Una situación de riesgo que fue detectada con anticipación en
el año 2017.
La presentación de este diagnóstico dio pie a la clausura de los servicios de atención al
público investigador desde diciembre 2019 hasta la fecha y la evacuación de una parte de
su personal técnico. Posteriormente, el MCyP anunció que los bienes arqueológicos y de
arte contemporáneo, así como los fondos bibliográficos y documentales, se trasladarían de
manera definitiva a 30 km. del pericentro de la ciudad de Quito (en la zona conocida como
Mitad del Mundo), usando las instalaciones construidas para un organismo de integración
sudamericana (Unasur).37 El Ministerio de Cultura ha justificado estas decisiones en un

34 Véase, Ministerio de Cultura y Patrimonio, “Acuerdo Ministerial No. DM-2020-064”, Quito, 08 de junio de 2020,
que Expide la Norma Técnica para el manejo y gestión de los bienes culturales de la colección nacional del Ministerio
de Cultura y Patrimonio del Ecuador”. En especial el Art. 6.- Distribución de Reservas y Fondos Documentales
para la Administración Técnica. Compárese con la “Ley Orgánica de Cultura”, Título VII.- SUBSISTEMA DE LA
MEMORIA SOCIAL Y EL PATRIMONIO CULTURAL, Capítulo 1.- De las definiciones, composición, ámbitos y
conformación del Subsistema de la Memoria Social y el Patrimonio Cultural. Registro Oficial, Año IV, n. 913 (Quito,
30 de diciembre de 2016).
35 Según anota la, por entonces, Subsecretaria de Memoria Social, Ivette Celi Piedra, “Para el proyecto en general,
el Ministerio de Cultura y Patrimonio solicitó un crédito al Banco Interamericano de Desarrollo por algo más de un
millón de dólares, presupuesto que permitió la integración del espacio histórico del Museo Nacional en la Casa de la
Cultura Ecuatoriana –de cinco mil metros cuadrados de superficie–, a la nueva propuesta museográfica. Ivette Celi
Piedra, “El Museo Nacional del Ecuador: acción colaborativa e itinerarios en red”, en Museo Nacional del Ecuador,
MuNa. Guion académico 2018, comp. Patricio Estévez (Quito: Museo Nacional del Ecuador, 2018), 13. La prensa, por
su parte, habló de un costo estimado de un millón y medio de dólares. “El Museo Nacional de Ecuador recibió a sus
primeros visitantes”. El Comercio, 19 de mayo de 2018. <https://www. elcomercio.com/ tendencias/ museonacional-
visitantes- reapertura- historia- casadela cultura.html>. Otros repositorios patrimoniales como el Archivo Nacional
del Ecuador no han merecido la atención presupuestaria que recibió el MuNa para su reinauguración, y desarrollan
su gestión con serias limitaciones, como son: falta de un espacio físico con las condiciones técnicas y arquitectónicas
para albergar bienes documentales, carencia de personal profesionalizado en gestión archivística y un escuálido
presupuesto. Véase Bustos, “La fragilidad…”.
36 La propuesta curatorial del MuNa fue desarrollada por el colectivo Wacharnak. Véase María Fernanda Cartagena
y Christian León, El museo desbordado. Debates contemporáneos en torno a la musealidad (Quito: Abya-Yala, 2014);
Celi Piedra, “El Museo…”.
37 “El traslado del patrimonio ecuatoriano a Unasur es de urgencia, dice ministro”. Agencia EFE, 22 de agosto de 2020.
122
informe en el que se evaluaron varios edificios con indicadores direccionados a favorecer
el edificio antes mencionado frente a otras opciones de traslado, que incluyeron espacios
físicos cercanos al Museo Nacional.38 El gobierno prevé que, junto con estas reservas
patrimoniales se traslade también el Museo Nacional, cuyas instalaciones no están en
riesgo.39
Tabla 1 - Composición de la Colección Nacional40

Fuente: Ministerio de Cultura y Patrimonio del Ecuador.

Estas decisiones, que fueron tomadas de manera apresurada, en el contexto de


los confinamientos y la crisis hospitalaria del Ecuador, sin adecuada fundamentación
técnica y al margen de los pronunciamientos de varios colectivos académicos nacionales e
internacionales, investigadores, estudiantes, gremios archivísticos y ciudadanía en general,41
reflejan la imposición de una visión monumentalista-turística del patrimonio cultural
a destiempo de las concepciones actuales de los museos como lugares de la producción
científica, la divulgación educativa y la producción de conocimiento (SALLES OLIVEIRA,
2014). Además, exponen la manera como los discursos patrimoniales de orden técnico se
supeditan a decisiones de carácter político, apenas para justificarlas. También expresan las
dificultades que enfrenta todavía la pendiente institucionalización del Museo Nacional. A
ello se suma el eventual uso político-electoral del traslado de estos bienes, y las sucesivas
trabas interpuestas al derecho al acceso de los fondos bibliográficos y documentales,
indispensables para la investigación histórica.
En reiteradas oportunidades se ha argumentado que el cierre y reapertura del Museo
Nacional en la Mitad del Mundo redunda en el desarrollo de la población de la zona, debido
a un aparente déficit de ofertas museales y patrimoniales para el consumo del público

https:/ /www .efe. com/ efe/ america/ cultura/ el-traslado- del- patrimonio- ecuatoriano- a-unasur- es-de- urgencia- dice-
ministro/20000009- 4325410
38 “Informe sobre Desalojo y Traslado de Dependencias del edificio Aranjuez Subsecretaría de Memoria Social”, Quito,
23 de marzo de 2020. Elaborado por la arquitecta Yadhira Álvarez C. Subsecretaria de Memoria Social.
39 “Museo nacional será trasladado a ex sede de Unasur”. El Universo, 7 de octubre de 2020. https://www.eluniverso.
com/noticias/2020/10/07/nota/8005105/museo-nacional-traslado-edificio-unasur-riesgo-colapso-sismo
40 Bajo custodia de la Dirección Cultural del Banco Central del Ecuador antes de la creación del Ministerio de Cultura
y Patrimonio, 15 de enero 2007
41 Véanse las intervenciones hechas por los integrantes del Grupo Interuniversitario por el Patrimonio: “Traslado de
bienes culturales a Unasur: voces expertas opinan” (tres partes); y la entrevista concedida por Guillermo Bustos en
el blog Paralaje.xyz. http://www.paralaje.xyz/traslado-de-bienes-culturales-a-unasur-voces-expertas-opinan-primera-
parte/; “Carta abierta al Ministro de Cultura y Patrimonio de Ecuador, Juan Fernando Velasco”, Quito 28 de abril de 2020,
suscrita electrónicamente a través de la plataforma de peticiones Change.org; la alerta “Ecuador: Fondos bibliográficos y
colecciones arqueológicas y de arte están en riesgo (30 de enero 2020)”, publicada en Network of Concerned Historians,
NHC, Annual Report 2020. http://www.concernedhistorians.org/content_files/file/AR/20.pdf; así como las intervenciones
de los integrantes del grupo en medios radiales convencionales (Francisco Estéreo, Majestad FM, Pichincha Universal)
y digitales (El Vecino Mario, Radio La Calle, entre otros). Pueden consultarse las entrevistas en los sitios web de cada
medio de comunicación.

123
local y extranjero. Lo cierto es que el complejo turístico Mitad del Mundo (creado como un
parque temático entre 1979 y 1982 como un homenaje a la misión geodésica que estuvo en
el país entre 1740-1751 (HERNÁNDEZ, 2008; RADCLIFFE y WESTWOOD, 1999) reúne
alrededor de diecisiete espacios culturales entre los que aparecen museos y recorridos
temáticos de orden etnográfico, pabellones referidos a la Misión Geodésica, al arte colonial
de Quito y a uno de los artistas plásticos consagrados del país, tiendas artesanales, estación
del ferrocarril, viviendas de los pueblos originarios y otras propuestas.42
Poco conviene redundar en el oneroso gasto que representa la adecuación de un
espacio creado para albergar oficinas y sitios de reunión oficiales, con miras a transformarlo
en un repositorio para contener a la llamada Reserva Nacional y el Museo Nacional. Una
inversión que, de acuerdo con sus impulsores no constituye una cifra representativa, si se
compara los potenciales ingresos recaudados por la afluencia turística que supone emplazar
el museo junto al parque temático más concurrido del país. Un argumento que no deja de
ser un falso silogismo, si se considera que el sector del turismo es uno de los más golpeados
por la crisis sanitaria.

Monumento-acontecimiento

¿Monumento o acontecimiento? Esta pregunta, concerniente a cómo referir el


pasado nacional a través de las prácticas curatoriales del museo llamado a poner en
escena el pasado compartido de los ecuatorianos. Evocados como monumentos, los
objetos organizados y presentados ante sus audiencias, el museo refrenda un ejercicio no
impugnador de constatación e imaginación y certifica la visión sobre el pasado nacional
de un sector específico de la población que lo proyecta como colectivo. La inclusión de los
grupos subalternos en las curadurías más recientes (“desbordadas” o “conceptuales”), si
bien dieron un paso en cuanto a la representación de la diversidad social, étnica y de género,
no impugnaron las anteriores narrativas del museo, debido a la ausencia de un tratamiento
cronológico o temático de su muestra, lo cual la desconectó del aparato educativo que es el
mecanismo elemental de difusión del saber histórico. Tampoco pudo poner en diálogo los
repertorios artísticos de los otros (como el trabajo escultórico en barro que representa la
dura cotidianidad de las mujeres afro ecuatorianas del valle del Chota, de la escultora Alice
Trepp; o la experiencia artística y colectiva de las trabajadoras sexuales del Centro Histórico
de Quito, con su Virgen de La Cantera) o las piezas de arte y colecciones arqueológicas
resignificadas por el enfoque de género,43 por ejemplo, junto a los objetos de la colección
incorporados representacional y discursivamente al conjunto de bienes culturales
consagrados por una memoria oficial todavía vigente.
Como acontecimiento, en cambio, los objetos culturales materiales –y también
aquellos considerados intangibles– interrogan su producción atendiendo a las condiciones
socioculturales que los hicieron posibles y al lugar contencioso en el que se inscriben. Su
forma de promover el conocimiento sobre el pasado es, entonces, accidental o contingente.
Los conflictos socioculturales producen las expresiones de la cultura material e intangible

42 Véase la información que consta en el sitio web del complejo turístico Mitad del Mundo: http://www.mitaddelmundo.
com/es/
43 Véase el catálogo de la exposición temporal “Divers []s. Facetas del género en el Ecuador prehispánico”. Curaduría
de María Fernanda Ugalde, Santiago Ontaneda y Alejandro López. Ivette Celi Piedra, coord. Divers []s. Facetas del
género en el Ecuador prehispánico, coord. Ivette Celi Piedra (Quito: Museo Nacional del Ecuador, 2019).

124
que informan sobre la configuración de las identidades. Todas estas particularidades
insisten en el estudio de la cultura como un proceso de reproducción social y no como
conjunto de manifestaciones dadas o estancas – como un objeto que contiene en sí mismo
valores que le son inherentes y que los preserva intocados a lo largo del tiempo –, sobre las
cuales cabe solo su disfrute (SMITH, 2011).
Las festividades ecuatorianas serranas son otro buen ejemplo para poner en perspectiva
el contencioso binomio monumento–acontecimiento. La eclosión de festividades en
parroquias y pueblos cordilleranos, desde el sur del país hasta las regiones del norte andino,
provocada por el proceso de patrimonialización de la cultura,44 trajo como consecuencia
una variedad de propuestas locales para declarar como patrimonios nacionales repetitivas
festividades religiosas, manifestaciones culinarias, rituales festivos, espectáculos, entre
otros, cuyas referencias se remiten en su mayoría al mundo hacendario que se actualiza
mediante la repetición ritual y festivo de “paseos del chagra”, “tomas de plazas”, “diabladas”
y mascaradas, carnavales, toros populares, procesiones, etc. Es decir, en un consumo
cultural que elude la pregunta sobre los conflictivos orígenes socioculturales de estas
festividades o por las matrices de dominación social, étnica y de género que continúan
reproduciéndose.45
Un huasipungo reactualizado en estos espectáculos vuelve cíclicamente con sus bagajes
de machismo, racismo, sexismo y estereotipos culturales que desandan el camino recorrido
en la conquista de derechos sobre la equidad de género, la erradicación del racismo y del
machismo y la reducción de las brechas culturales abiertas por los clichés socioculturales
insuflados por la cultura popular y la industria del espectáculo. De esta manera, el paisaje
del patrimonio inmaterial se transfigura en el lugar en el que se revalidan atávicas actitudes
de exclusión y segregación social, ensalzadas institucionalmente bajo el discurso del rescate
de “lo propio”.
La valoración de las manifestaciones intangibles pasa más por la pregunta sobre
el tipo de procesos sociales y culturales que se consolidan a lo largo del tiempo (como
acontecimientos enmarcados en un entorno revestido de conflictos que se reactualiza con
cada repetición), que por criterios expertos reflejados en expedientes o fichas de registro
patrimonial. Bien se sabe que el recurso a lo ancestral forma parte de un ejercicio de
ambigüedad técnica – y recientemente política– que conduce a un peligroso relativismo
cultural que no interroga los mecanismos de poder subyacentes en la promoción de
determinadas manifestaciones intangibles y que reduce la reflexión sobre el patrimonio
cultural a una mera cuestión económica-presupuestaria (CABRERA HANNA, 2011b) .
La oscilación, entre una mirada sobre los objetos memorables del pasado, y los
consumos que se hacen sobre ellos cuestiona, como lo ha señalado Laurajane Smith, el

44 Este boom detonó como consecuencia del Decreto de Emergencia del Patrimonio Cultural, entre 2007 y 2012. La
declaratoria se produjo luego del asalto al Museo en el convento de las religiosas conceptas de Riobamba, en el que
desaparecieron varias piezas de orfebrería (arte sacro) cuyos orígenes se remontaban a la primera villa de Riobamba,
desaparecida con el terremoto de 1797 (CABRERA HANNA, 2011a).
45 La patrimonialización de la cultura es una expresión acuñada por Rosemarie Terán para referir, críticamente,
las demandas locales que los gobiernos seccionales, municipios y juntas parroquiales tramitan para promover la
inclusión de una diversidad de fiestas locales en los listados de los bienes culturales patrimoniales nacionales, con el
ánimo mayoritario de conseguir presupuestos estatales y financiamientos que permitan “seguir la fiesta”, por decirlo
de algún modo. Estas acciones conducen a lo que Terán Najas ha identificado como “relativización de los elementos
que constituyen el patrimonio” y al empobrecimiento de los referentes culturales colectivos, como consecuencia del
debilitamiento en los criterios de orden histórico, social y antropológico que subyacen a la patrimonialización. Para este
respecto, ver Rosemarie Terán Najas, Eduardo Kingman Garcés, Eduardo Puente y Hernán Reyes, “Patrimonio: aporte
para la creación de la Ley de Cultura” (inédito).

125
discurso patrimonial autorizado: el tipo de elaboración política que parte del aserto de que
el patrimonio es una “cosa” dada, emergente del pasado con capacidades excepcionales
para refrendar sus narrativas como verdades históricas que deben asimilarse sin
preguntas. El pasado aparece como “herencia encapsulada” en el monumento o en el
evento inmaterial, que debe ser transmitido de una generación a otra, esencialmente,
sin alteraciones, o preservándolo (como si de un enlatado se tratase) de contingencias
sociales o culturales que reclamen su actualización (SMITH, 2011, p. 43). Igualmente,
el tipo de historia oficial que se afianza a la sombra de dicha visión del patrimonio (que
colinda con la visión de la Unesco y de las entidades oficiales nacionales de gestión)
afirma sin cuestionamientos los episodios de la historia nacional que legitiman, casi
siempre, relatos homogeneizadores de la sociedad, que excluyen tanto las diferencias
étnicas y culturales minoritarias, como las historias de los grupos subalternos y los
acontecimientos históricos considerados infelices, no deseados o merecedores de olvido,
en aras de consensos oficiales (HUYSSEN, 2002).
Lo que instituye el discurso patrimonial autorizado es un aparente consenso
sociocultural –sobre un determinado relato histórico y los elementos materiales e
inmateriales que deben referirlo–, promovido por las élites políticas y culturales nacionales,
con capacidad de sobre determinar las prácticas conservacionistas, mediante una selección
de repertorios emblemáticos, presupuestos para regeneración y conservación, y recursos
de promoción.
El discurso patrimonial autorizado supone que el patrimonio es algo que se
“encuentra”, que su valor innato, su esencia, es algo que “hablará” a las generaciones
presentes y futuras y asegurará su comprensión de su “lugar” en el mundo. La herencia
ofrecida por el patrimonio cultural es la creación de un sentido común y compartido de
la identidad humana. El discurso patrimonial autorizado también estipula que, debido a
que el patrimonio inevitablemente frágil y requiere protección, sus expertos, en particular
aquellos que lidian con el mundo material (arqueólogos, arquitectos, historiadores del
arte, etc.), deben trabajar como custodios del pasado humano. Más recientemente, con la
introducción del patrimonio inmaterial a las políticas internacionales, los antropólogos
también han sido identificados como otro cuerpo de conocimiento al que se puede recurrir
para dar sentido a los “eventos patrimoniales”. Dentro del discurso del patrimonio cultural
autorizado, a los expertos se les pide que asuman funciones administrativas en relación
con los bienes patrimoniales y los eventos, lo que está fuertemente respaldado por un
sentido de deber profesional no solo de proteger el pasado, sino de comunicar los valores
patrimoniales de ese pasado a la nación (SIMTH, 2002, p. 43).
Además, en la propuesta de Smith, resalta el contencioso entre la memoria pública y
el patrimonio cultural. Este es un aspecto que guarda relación con el binomio monumento-
acontecimiento. Si, desde la perspectiva del discurso patrimonial autorizado, el pasado
permanece cristalizado en una cápsula de tiempo en monumentos, edificios, piezas de
arte, archivos y patrimonios inmateriales; entonces, el conservacionismo, la regeneración
y los mecanismos de promoción de los patrimonios monumentales, lejos de ser actividades
despolitizadas, contribuyen al establecimiento y proyección de un tipo específico de
memoria pública y a su consumo sin controversias.

126
Elitismo-populismo

La década de los años noventa del siglo XX –caracterizada por el auge del neoliberalismo
en América Latina, de mano de las políticas de ajuste de las economías nacionales, según los
patrones señalados por el FMI y el Banco Mundial– correspondió a la consolidación de modelos
de gestión cultural “despolitizados” y basados en las concepciones de cultura promovidas por
las élites económicas y políticas latinoamericanas, sobre la base de procesos tecnocráticos
de gestión. Se operó, entonces, una profunda intervención en el ámbito de la producción
simbólica de carácter conservacionista, aparejada de agudos procesos de segregación social y
gentrificación del espacio público-patrimonial urbano (LACARRIEU, 2008).
En el caso ecuatoriano, emprendimientos como el Malecón 2000 o el Parque
Histórico Guayaquil empezaron a consolidarse en esos años y se establecieron como hitos
memorables de la ciudad-puerto, de su lugar en la historia nacional y en la conformación de
una identidad compartida, basada en la regeneración urbana, la privatización del espacio y
en los cambios de uso de suelo en los espacios patrimoniales edificados, para reutilizarlos
con fines turísticos. El emprendimiento local, que encajó en un mismo juego de engranes al
gobierno central y al municipio local, circuitos empresariales, élites económicas y culturales,
y administradores de los espacios artísticos, dio por resultado la consolidación de procesos
sociales de segregación socio espacial muy específicos; así como la proyección, a escala más
amplia, de la memoria de un sector exclusivo de la población con capacidad de intervenir
en la gestión cultural local y en la promoción del patrimonio. Estas acciones se expresan
en mecanismos de segregación social y en la forjadura de un pasado histórico de la ciudad,
escrito a partir de operaciones binarias y asimétricas (ANDRADE, 2004).
El recorrido por el Parque Histórico Guayaquil, en la cuenca del Guayas, es un modelo
de esta dinámica. El paseo re-creativo más frecuentado por los visitantes (que apela a
sus características lúdicas, y a un ejercicio de recreación del pasado encapsulado en los
edificios conservados y organizados en forma de parque temático, en un entorno ambiental
de especies naturales y animales endémicas) es el de la Zona Urbano Arquitectónica que
reconstruye, la época del segundo boom cacaotero. Los edificios de la casa Lavallén-
Paredes, el Banco Territorial y el Hospicio del Sagrado Corazón (sobrevivientes del gran
incendio de Guayaquil) reciben al paseante quien es guiado por un grupo de jóvenes –
hombres y mujeres– vestidos con trajes “de época”. Calles empedradas, farolas y bulevares
de madera componen un escenario recreativo y placentero; de goce. No existe en todo el
recorrido elemento alguno que rememore la organización popular o la movilidad social en
la ciudad-puerto de fines del siglo XIX e inicios del XX. La memoria social de los obreros
y trabajadores del puerto, empleados en el secado de la pepa de oro, su recolección en
costales, el trasiego de fardos (estibado) hacia los muelles, o en el trabajo de costureras,
sastres, sombrereros, batihojas, entre otros oficios, no está representada. Tampoco se
incluyen objetos de memoria de mujeres trabajadoras o los sindicatos artesanales y fabriles
que tuvieron su baño de sangre en la gran huelga del 15 de noviembre de 1922 (CABRERA
HANNA, 2014; HIDALGO, 2010; GALLEGOS LARA, 1977; CHIRIBOGA, 2013).
Algo semejante ocurre con la recreación del mundo rural guayaquileño en la Zona de
Tradiciones. En este espacio, representado como una Arcadia, el patrón de la hacienda luce
bonachón y magnánimo. Las relaciones de dominación que lo ligan con los trabajadores y
campesinos –el gran cacao– se expresa mediante formas paternales de relacionamiento
asumidas mediante el recurso al humor y el estereotipo jocoso.

127
La puesta en escena de la “gente del campo” se remite al imaginario de “cholos” y
montubios: gente representada con los trazos del buen salvaje: analfabeto, ingenuo,
chistoso al hablar, de mal carácter, pero “buena gente”, refundido entre las matas de cacao
y extraño a la modernización de la urbe y sus intensidades –aunque el registro histórico
y el literario refieran, a contrapelo, la imagen de una ciudad habitada mayormente por
campesinos y mujeres populares–. Este recurso gag para llevar a cabo la asimilación
del otro campesino tiende al ocultamiento de las inequitativas relaciones de poder entre
patrones y peones en la hacienda cacaotera, así como a disimular su incorporación dentro
del parque temático. En este sentido, la inclusión asimétrica del mundo cholo disimula su
incorporación cultural, cuando en realidad lo que se consagra es su segregación.
La primera década del siglo XXI parece ser, en cambio, la del populismo cultural.
El concepto conservacionista y monumental del patrimonio, lejos de abandonarse, se
supedita a un nuevo mecanismo que sigue los patrones de la industria del espectáculo, con
los mismos efectos de su antecesora: eludir la inclusión de los sectores subalternos en la
configuración de las políticas culturales y las lógicas que articulan la memoria colectiva
(LACARRIEU, 2008) .
El populismo patrimonialista celebra la diferencia cultural y la estimula festivamente
con el propósito de transfigurarla en moneda de uso simbólico para pagar con ella el
déficit en el ejercicio efectivo de la democracia, inclusión social, inequidad en el acceso
a la riqueza, la educación, la salud, necesidades básicas insatisfechas o la irresolución de
contenciosos inherentes a las relaciones de género, al feminismo, el etnocentrismo, la
xenofobia y el racismo.

Para concluir

Las oscilaciones que se ejecutan en el ámbito del patrimonio cultural y sus políticas de
gestión en el Ecuador, ponen en perspectiva los mecanismos internos de incorporación o
segregación sociocultural que, con mucha frecuencia, se operan al momento de situar los
marcos de la identificación y la gestión patrimonial. Al caracterizar estos movimientos, se
abre la posibilidad de considerar el patrimonio como arena de conflicto donde los procesos
de inequidad social, falta de participación y de inclusión democrática surgen como formas
latentes y manifiestas de exclusión o incorporación desigual
Si bien la configuración codificada de las políticas patrimoniales en el Ecuador tiene
pocos años y está todavía en desarrollo, se pueden señalar los nudos críticos de una
gestión cultural que se debate entre el predominio de los discursos patrimoniales de orden
conservacionista, y las consideraciones e intervenciones en el terreno de la producción
material e inmaterial cultural histórica que se orientan hacia la problematización de sus
usos sociales.
Esta tensión es elocuente, no solo por los desencuentros en cuanto a la institucionalización
–vale decir burocratización– de un ámbito de la vida social impregnado de las mutaciones y
cambios que supone el devenir de la producción humana, sino también por el escaso debate
local sobre estas cuestiones. También lo es por el desconcierto institucional en cuanto a qué
hacer con el patrimonio cultural –y, por extensión, con la cultura– que deriva en empeños
que reducen el problema de la gestión cultural al refinamiento del conservacionismo, la
restauración, la arqueología o la descripción etnográfica, como ciencias autorizadas para

128
definir no solo los criterios concernientes a la preservación tangible y no tangible de los
legados del pasado. Revestidas de una aparente neutralidad (tan solo aparente, pues se
trata de conocimientos puestos al servicio acciones de preservación y gestión politizadas),
estos conocimientos autorizados condicionan los modos en que las sociedades entablan
sus relaciones materiales y simbólicas con el pasado, al establecer marcos cada vez más
restringidos de participación y acceso.

Bibliografía

PERIODICOS

“El Museo Nacional de Ecuador recibió a sus primeros visitantes”. El Comercio, 19 de mayo de 2018. https://
www.elcomercio.com/tendencias/museonacional-visitantes-reapertura-historia-casadelacultura.html

“El traslado del patrimonio ecuatoriano a Unasur es de urgencia, dice ministro”. Agencia EFE, 22 de agosto de
2020. https://www.efe.com/efe/america/cultura/el-traslado-del-patrimonio-ecuatoriano-a-unasur-es-
de-urgencia-dice-ministro/20000009-4325410

“Museo Nacional se abrirá luego de dos años y medio”. El Telégrafo, 18 de mayo de 2018. https://www.
eltelegrafo.com.ec/noticias/cultura/10/museo-reapertura-peter-mussfeldt

“Museo Nacional será trasladado a ex sede de Unasur”. El Universo, 7 de octubre de 2020. https://www.
eluniverso.com/noticias/2020/10/07/nota/8005105/museo-nacional-traslado-edificio-unasur-riesgo-
colapso-sismo

“Traslado de bienes culturales a Unasur: voces expertas opinan”. Paralaje.xyz. http://www.paralaje.xyz/


traslado-de-bienes-culturales-a-unasur-voces-expertas-opinan-primera-parte/

DOCUMENTOS INÉDITOS

VELASCO, Juan Fernando. Carta abierta al Ministro de Cultura y Patrimonio de Ecuador. Quito, 28 de abril de
2020. (suscrita electrónicamente a través de la plataforma de peticiones Change.org)

ECUADOR. Ley Orgánica de Cultura. Registro Oficial. Año IV, n. 913. Quito, 30 de diciembre de 2016.

ECUADOR. Ministerio de Cultura y Patrimonio. Acuerdo Ministerial No. DM-2020-064, Quito, 08 de junio
de 2020.

SNGRE. Servicio Nacional de Gestión de Riesgos y Emergencias, Informe SNGRE-IASR-08-2019-193, 25 de


noviembre de 2019.

ARTÍCULOS, CATÁLOGOS Y LIBROS

ANDRADE, Xavier. Burocracia, museos, políticas culturales y gestión del patrimonio en Guayaquil. Íconos -
Revista de ciencias sociales, n. 20, p. 64-72, 2004.

BOSI, Alfredo. Fenomenologia do Olhar. In: NOVAES, Adauto. Olhar. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.

BUSTOS, Guillermo. La fragilidad de las huellas de la memoria y la ‘incuria’ en el manejo de los archivos
históricos en el Ecuador. In: CABRERA HANNA, Santiago (ed.) Patrimonio cultural, memoria local
y ciudadanía. Aportes a la discusión. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar: Ciudad Alfaro:
Corporación Editora Nacional, 2011. p. 51-63.

__________. El culto a la nación. Escritura de la historia y rituales de la memoria en Ecuador, 1870-1950.


Quito: Fondo de Cultura Económica: Universidad Andina Simón Bolívar, 2017.

CABRERA HANNA, Santiago. Reflexiones alrededor del inventario del patrimonio cultural inmaterial
ecuatoriano. El registro del Santuario de El Quinche, Apuntes: Revista de estudios sobre patrimonio
cultural, v. 24, n. 1, 106-123, 2011a.

_________. Introducción. In: CABRERA HANNA, Santiago (ed.) Patrimonio cultural, memoria local
y ciudadanía. Aportes a la discusión. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar: Ciudad Alfaro:

129
Corporación Editora Nacional, 2011b. p. 7-15.

_________. Segregación social y políticas de la memoria en el Parque Histórico Guayaquil. Procesos: Revista
Ecuatoriana de Historia, n. 39, p. 85-111, enero-junio, 2014a. Recuperado de: http://revistaprocesos.
ec/index.php/ojs/article/view/82/118

_________. Política patrimonial y conflictos socioculturales en el Ecuador: comentarios para un debate


pendiente. Revista del Patrimonio Cultural del Ecuador, n. 5, p.18-29, enero-junio, 2014b.

CARTAGENA, María Fernanda y LEÓN, Christian. El museo desbordado. Debates contemporáneos en torno
a la musealidad. Quito: Abya-Yala, 2014.

CELI PIEDRA, Ivette. Los usos de la memoria en el cambio de política cultural en Ecuador: de la Ley Orgánica
de Cultura al Subsistema de Memoria Social. In: PORRAS PAREDES, María Elena y ZÚÑIGA MENDOZA,
Rosana Daniela. (ed.) Archivística sin fronteras. Reflexiones sobre políticas de gestión, formación e
investigación en archivos. Quito: Consejo Nacional de la Judicatura: Abya-Yala: Universidad Andina
Simón Bolívar, 2019. p. 33-42.

__________. El Museo Nacional del Ecuador: acción colaborativa e itinerarios en red. In: ESTÉVEZ,
Patricio. Museo Nacional del Ecuador, MuNa. Guion académico 2018. Quito: Museo Nacional del
Ecuador, 2018. p. 11-15.

__________. (Coord.) Divers []s. Facetas del género en el Ecuador prehispánico. Quito: Museo Nacional
del Ecuador, 2019.

CHIRIBOGA, Manuel. Jornaleros, grandes propietarios y exportación cacaotera. 1790-1925. 2.a ed. Quito:
Universidad Andina Simón Bolívar: Corporación Editora Nacional, 2013.

CHOAY, Françoise. Alegoría del patrimonio. Trad. María Bertrand Suazo. Buenos Aires: Gustavo Gili, 2017.

GALLEGOS LARA, Joaquín. Las cruces sobre el agua. Guayaquil: Casa de la Cultura Ecuatoriana, 1977.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. Estrategias para entrar y salir de la modernidad. Ciudad de
México: Grijalbo, 1989.

HABITAT III: la conferencia de las Naciones Unidaa centrada en los ciudadanos. Recuperado de: https://
www.un.org/es/chronicle/article/habitat-iii-la-conferencia-de-las-naciones-unidas-centrada-en-los-
ciudadanos

HARTOG, François. Patrimônio e presente. In. _______. Regimes de historicidade. Presentismo e


eexperiências do tempo. Trad. Andréa Souza de Menezes; et al. São Paulo: Autêntica, 2013. p. 193-245.

HERNÁNDEZ, Raúl. El matemático impaciente. La Condamine, las pirámides de Quito y la ciencia ilustrada
(1741-1751). Lima: Universidad Andina Simón Bolívar: Instituto de Estudios Peruanos: Instituto Francés
de Estudios Andinos, 2008.

HIDALGO, Ángel Emilio. El Parque Histórico Guayaquil: materialidad, imagen, representación. Ponencia
presentada en el I Encuentro Patrimonial, la Historia en la Conservación del Patrimonio Edificado. Quito:
Fondo de Salvamento de Quito, 2010.

HUYSSEN, Andreas. Modernismo después de la posmodernidad. Trad. Roc Filella y María Abdo Férez.
Barcelona: Gedisa, 2010.

JELIN, Elizabeh. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002.

LACARRIEU, Mónica. Introducción. La plaza y la caverna. Dilemas contemporáneos de la gestión cultural”.


In: __________; ALVAREZ, Marcelo. (coord.) La (indi)gestión cultural. Una cartografía de los procesos
culturales contemporáneos. Buenos Aires: La Crujía, 2008. p. 11-30.

RADFCLIFFE, Sarah; WESTWOOD, Sallie. Rehaciendo la nación. Lugar, identidad y política en América
Latina. Quito: Abya-Yala, 1999.

SALLES OLIVEIRA, Cecília Helena de. Comentário II: entre história e memória – a visualização do passado
em espaços museológicos, Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 15, n. 2, p. 37-40,
2007.

________. O espetáculo do Ipiranga: reflexões preliminares sobre o imaginário da Independência, Anais do


Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 3, n. 1, p. 195-298, 1995.

________. Museos de Historia y producción de conocimientos: cuestiones para el debate, Procesos: Revista
Ecuatoriana de Historia, n. 40, p. 117-136, jul/dic 2014. Recuperado de: http://revistaprocesos.ec/index.
php/ojs/article/view/528/685

130
SMITH, Laurajane. El ‘espejo patrimonial’: ¿ilusión narcisista o reflexiones múltiples? Antípoda. Revista de
Antropología y Arqueología, n. 12, p. 39-63, 2011.

TERÁN NAJAS, Rosemarie, Eduardo Kingman Garcés, Eduardo Puente y Hernán Reyes. “Patrimonio: aporte
para la creación de la Ley de Cultura”, inédito.

SITIOS WEB

NHC. Network of Concerned Historians, NHC, Annual Report 2020. http://www.concernedhistorians.org/


content_files/file/AR/20.pdf

Mitad del Mundo. http://www.mitaddelmundo.com/es/

131
Identidade, memória, cidade e suas
ressonâncias patrimoniais: um estudo de
caso de Nilópolis - RJ

Aryelle Christiane Souza da Silva

Introdução

O termo Patrimônio Cultural pode evocar uma série de imagens e conceitos, desde a
mais simples lembrança de símbolos que marcam o cotidiano a monumentos históricos que
refletem a ideia de patrimônio cultural tradicionalmente construída no imaginário ao longo
da história. Cada vez mais estudos sobre preservação patrimonial vem mostrando como a
formação dos patrimônios são extremamente importantes para a vida social e destacam
a relação entre preservação e construção das identidades individuais e coletivas. Olhar
o passado através dos patrimônios mais do que registro da história significa conservar a
memória formada pelos signos, entendendo o passado como instrumento essencial para
compreender o presente e construir um futuro (GONÇALVES, 2009).
Para Canclini (1997), as imagens produzidas através dos patrimônios culturais
refletem o passado e norteiam o presente, dando sentido à vida urbana. Importante por
tecer a ligação entre o indivíduo e suas raízes, a preservação do patrimônio histórico
seja ele material ou imaterial é um dos pilares do conhecimento sobre si e sobre a
comunidade a que pertence. Um patrimônio reconhecido e preservado afeta as estruturas
socioespaciais e as referências do entendimento identitário, capaz de modificar valores e
convicções (MESENTIER, 2012).
Fazendo um recorte e se tratando da noção de Patrimônio Cultural Brasileiro é preciso
ressaltar que os meios de preservação patrimonial foram construídos com políticas de base
conservadoras e elitistas que por muito tempo enaltecem a história de um Brasil próximo
ao europeu em arquiteturas e invisibiliza a presença negra e indígena na construção do
país. Fonseca (2009, p. 59-61) ressalta como o conceito de patrimônio cultural construído
pelo Estado não reflete a diversidade que caracteriza a formação do país, no qual por muito
tempo apenas as produções patrimoniais deixadas pelos europeus são reconhecidas como de
excepcional valor via tombamento. Somente nas últimas décadas do século XX, a partir das
discussões provocadas pelos estudos multiculturais e das reivindicações dos movimentos
sociais, é que se amplia a noção de patrimônio cultural e conquistas importantes começam
a ocorrer neste campo (LOUIS et al., 2019). Analisando a questão dos patrimônios culturais
e entendendo sua importância para além da representação física, é possível observar

133
como falhas nas políticas de preservação podem afetar diretamente as estruturas sociais e
identitárias, uma vez que são cruciais para o processo de enraizamento e norteamento da
população em seu local de origem.
O presente trabalho se insere no campo de estudo sobre patrimônio cultural e tem como
objetivo analisar a questão patrimonial do município de Nilópolis, localizado na Baixada
Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro. A metodologia utilizada neste estudo
se debruça em duas etapas: uma pesquisa bibliográfica a fim de compreender a noção de
patrimônio cultural, a cidade de Nilópolis e as políticas patrimoniais no município e uma
entrevista com Rafaelle Vieira, atual Assessora Técnica de Turismo na cidade. É importante
pontuar as dificuldades encontradas durante a construção do presente trabalho, em
relação a coleta de informações sobre o município, os portais oficiais apresentam lacunas
referentes a documentos e decretos oficiais importantes no campo do patrimônio cultural, o
que dificulta a coleta de dados. Devido ao período de construção do trabalho ter coincidido
com o período eleitoral municipal, juntamente a pandemia do Covid-19, houveram algumas
dificuldades em relação ao contato com a Secretaria de Cultura, detentora da pasta de
Patrimônio Histórico e Artístico Municipal, mas a Secretaria de Turismo se voluntariou
para o repasse de informações.

Breve Histórico sobre Política de Patrimônio Cultural no Brasil

Os primeiros passos das políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil


surgem nos anos de 1930, a criação das políticas culturais marca um período de grande
mudança no setor cultural, mas as discussões acerca da noção de patrimônio cultural
brasileiro vinham acontecendo desde os anos 20 pautadas principalmente por pensadores
modernistas que propunham novos olhares para o país, discutindo a ideia de identidade
nacional (CALABRE, 2017). Em 1936, Mário de Andrade elabora o que vem a ser o
anteprojeto de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan),
a partir da narrativa de suas pesquisas e viagens, o anteprojeto esboçava uma ideia
abrangente da noção de patrimônio, contemplava a diversidade cultural brasileira, mas não
contribuía com a ideia de cultura e identidade nacional construída pelo Estado na época.
Apesar do antagonismo e de somente parte das ideias expressas por Mário de Andrade
terem sido incorporadas, é criada uma memória histórica que Márcia Chuva (2011),
problematiza, pois, esta memória estabelece uma continuidade na trajetória do patrimônio
desde as ideias propostas por Mário de Andrade até hoje e não dá espaço aos antagonismos.
A pesquisadora pontua o que chama de mito fundador de Mário de Andrade, pois apesar de
suas ideias inspirarem o que veio a ser a política de patrimônio no Brasil, o Sphan proposto
pelo modernista não teve espaço no contexto da época. A política de preservação oficial, o
decreto-lei n° 25 de 1937 responsável pela criação do Sphan, hoje conhecido como Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), era eurocêntrica e excludente, voltada
principalmente a preservação dos patrimônios de “pedra e cal”46 e privilegiava monumentos
produzidos pelo Estado e pela igreja (LARAIA, 2004).
Segundo o art. 1° do decreto-lei de 1937, Patrimônio Histórico e Artístico Nacional é “o
conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse

46 Termo utilizado pelos especialistas na área de patrimônio histórico para denominar a supervalorização dos
patrimônios materiais de estilo colonial (JUNIOR, 2018, p. 8).

134
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (IPHAN, 1937)
Até os anos 70 poucas foram as alterações nas políticas de preservação de patrimônio
no Brasil, por muitos anos na prática as ações do Iphan se voltam à bens materiais
considerados de excepcional valor em uma visão colonial de patrimônio, onde não há
espaço para pensar a cultura produzida pelos negros e indígenas na história de construção
do país. Vale ressaltar que os intelectuais da época defendiam a inferioridade desses povos,
não sendo considerados como agentes históricos e produtores de uma cultura que poderia
ser considerada de valor excepcional para a preservação. Somente a partir das últimas
décadas do século XX novas abordagens da concepção de patrimônio surgem, bem como
novas formas de gestão e uso, os patrimônios culturais começam a ser incorporados ao
cotidiano das cidades, nas atividades turísticas e utilizados como fonte de geração de renda.
Com a ampliação da noção de cultura e patrimônio, a pressão dos movimentos sociais para
a incorporação de outros modos de fazer cultura para além dos tradicionais considerados
pelo Iphan aumenta, reivindicando que os fazeres culturais afro-brasileiros, indígenas e das
camadas populares sejam valorizados e incorporados nos meios de preservação (LOUIS et
al., 2017; CORÁ, 2014).
Segundo Arantes (2009, p. 19) a reivindicação dos movimentos sociais promoveu uma
revisão crítica das políticas de preservação. A partir disso outras manifestações culturais,
não só as produzidas pelas classes dominantes, começam a ser vistas como patrimônios
passíveis de preservação. Uma virada importantíssima no campo da preservação do
patrimônio cultural, a ampliação da noção de bens deu espaço ao reconhecimento de
grupos até então não vistos como produtores de uma cultura significativa para o país, como
indígenas, quilombolas, imigrantes e religiosos de matrizes africanas.
A Constituição Federal de 1988 marca um avanço quanto a ampliação do que seria
patrimônio cultural legalmente, integrando ao conceito outras manifestações, documentos,
obras e monumentos culturais além dos considerados tradicionalmente. Segundo art. 216
são considerados patrimônios culturais brasileiros:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I —
as formas de expressão; II — os modos de criar, fazer e viver; III — as
criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV — as obras, objetos,
documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais; V — os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,
paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
(BRASIL, 1988)

O período de redemocratização do Brasil e as reivindicações sociais mostram uma


preocupação em contemplar oficialmente a representatividade e a diversidade presente no
processo civilizatório do país (SCHLEE & QUEIROZ, 2017). E se concretiza com o decreto
n° 3.551 de 2000 que institui o registro de bens de natureza imaterial e cria o Programa
Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), regulamentando o artigo 216 da Constituição
Federal. Mas o Estado se preocupou inicialmente em preservar e privilegiar patrimônios
que se aproximavam da ideia elitista e colonial de cultura, excluindo outras manifestações
importantes para a identidade do país, 63 anos depois as políticas culturais de preservação
do patrimônio cultural se aproximam do projeto inicial pensado por Mário de Andrade.

135
Segundo Laraia (2004), por mais oportuno e necessário que o decreto seja, é uma
manifestação tardia do Estado em reconhecer o valor do patrimônio imaterial.
Essa lacuna temporal e a limitação dos instrumentos de conservação restringem por
muito tempo o entendimento de preservação de patrimônio à tombamento e colabora
para uma visão conservadora de patrimônio por privilegiar bens de tradição europeia
(FONSECA, 2009). Ao trazer o registro como forma de preservação o decreto de 2000
permite a preservação sem congelamento, já que o tombamento do patrimônio imaterial
é inviável, e amplia as possibilidades de registro de manifestações antes invisibilizadas.
O desafio a partir disso, é promover políticas de preservação de patrimônio cultural nas
três esferas (nacional, estadual e municipal) que abarquem essa diversidade e que não
se restrinjam a burocracias isoladas, mas que aprofundem o diálogo entre as políticas
de patrimônio e a sociedade, ampliando, desta forma, a noção de patrimônio e trazendo
a necessidade de novas ações, recursos e de uma gestão mais participativa (CORÁ, 2014;
LARAIA, 2004).

Nilópolis: a Cidade e seus Patrimônios

Nilópolis é um dos municípios pertencentes à região da Baixada Fluminense no Estado


do Rio de Janeiro, formado hoje por 15 bairros divididos em dois distritos. Foi emancipada
em 1947 e mesmo sendo considerada uma cidade pequena, com cerca de 19. 393 quilômetros
quadrados, ocupa o 20° lugar entre as cidades mais populosas do Estado do Rio de Janeiro
atualmente, segundo o último ranking do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) em 2010.
Ao olhar para esta cidade de maneira superficial não se pode imaginar quantas
particularidades ela carrega. Estando situada em um território construído historicamente
como cidade-dormitório47 e morada da população mais pobre, a história da cidade é cercada
de mudanças históricas quanto ao seu território, divergências políticas e mudanças espaciais
ao longo do tempo. Mesmo sendo uma cidade jovem, possui uma história anterior a sua
construção e emancipação, obtendo um conjunto de patrimônios culturais significativos
para sua existência.
Historicamente, o território hoje ocupado pelo município passou por transformações
socioespaciais e culturais até se tornar a cidade que é atualmente. Albuquerque (2017)
divide essas transformações em três momentos principais: as primeiras ocupações
por diferentes etnias indígenas, provavelmente a etnia Jacutinga; a Fazenda de São
Mateus e a cidade de Nilópolis emancipada. Todos os momentos vividos pela história
de Nilópolis contribuíram para a construção da atual cidade, sendo esta uma cidade
pluricultural, podendo se encaixar no que Canclini (1997,) chama de cidade “vídeo-clip”,
com a existência de todas as outras civilizações dentro dessa cidade com suas culturas
individuais que se misturam dentro do espaço. É possível enxergar essa pluriculturalidade
em sua arquitetura, a imagem da cidade mescla o antigo e o novo, com a presença de
prédios contemporâneos ao lado de edificações históricas.
A autora Ximena Merino (2009, p. 250) resume essa pluriculturalidade como “tensão que

47 Termo utilizado para denominar municípios com baixo nível de desenvolvimento econômico e social e com
dependência econômica a um polo regional (OJIMA et al., 2010, p. 2), no caso da Baixada Fluminense, dependência
à cidade do Rio de Janeiro.

136
existe entre as tradições que ainda persistem, somadas a uma modernidade que não acaba de
chegar”, sendo esta uma característica importante da cidade que ao longo dos tempos e com a
chegada da modernidade e do capitalismo foi modificando sua imagem espacial.
Alguns historiadores dizem que a região teria sido ocupada inicialmente pela etnia
Jacutinga, visto que esta era a etnia mais numerosa que habitava a região da Baixada
Fluminense, outros que a região teria sido habitada por indígenas da etnia Tupinambá.
Albuquerque (2017) discute sobre essa distinção de informações acerca das etnias indígenas
que teriam ocupado este território:
“Pesquisas históricas estão sujeitas a imprecisões. Consequentemente,
adotar diferentes fontes conduz a resultados distintos em relação ao mesmo
fenômeno, os quais, contudo, não devem ser entendidos, necessariamente,
como análises contraditórias. No caso da população indígena da área, por
exemplo, os índios da etnia jacutinga poderiam ser os mais numerosos da
região, conforme expõe Silva (2007), ao mesmo tempo que a atual área
de Nilópolis era habitada pelos tupinambás, como ponderam Azevedo
e Monteiro (2012). O certo é que eventuais divergências são comuns na
prática de pesquisas históricas.” (ALBUQUERQUE, 2017, p. 191).

Com a chegada dos Portugueses e a divisão do território brasileiro em Capitanias


Hereditárias, a região fez parte da Capitania de São Vicente doada pela coroa portuguesa
a Martim Afonso de Souza em 1531. Porém, o que marca principalmente a história do
município é a Fazenda de São Mateus, propriedade rural que se desenvolveu na região e que
acaba por ser fundamental para sua identidade. No ano de 1621 a fazenda veio a pertencer à
João Álvares Pereira que mandou construir em 1637 a Capela de São Mateus48, erguida por
mão-de-obra indígena e negra escravizada, da qual se originou o primeiro nome da futura
cidade (PREFEITURA DE NILÓPOLIS, 2020; GUILHERMINO, 2015).
A história do município assim como a história do território da Baixada Fluminense
como um todo, tem seu processo de ocupação mais significativo a partir da construção
das ferrovias e que pode ser dividido em três importantes momentos: o esvaziamento da
região, a construção de lotes e o movimento migratório. A construção das estações de trem
juntamente com outros movimentos que ocorriam no século XIX, como por exemplo o
movimento abolicionista, as novas opções de trabalho e uma forte epidemia que assolou
a maior parte da Baixada Fluminense em 1855, acarretaram um processo que alterou a
estrutura agrária da região, essa mudança somada ao abandono pela população nativa no
pós-abolição configurou um esvaziamento e decadência da região da Baixada Fluminense,
consequentemente do território onde se situa a cidade de Nilópolis, nesta época Fazenda de
São Mateus. A mudança nas dinâmicas econômicas, populacionais e espaciais iniciam um
processo crucial para entender a atual Baixada Fluminense, o desmembramento da fazenda
e a venda de seus lotes. Em 1900 o que restou da Fazenda de São Mateus foi vendido à
João Alves Mirandela e a seu sócio Lázaro de Almeida, responsáveis pelo surgimento da
cidade. Com a construção das ferrovias, a primeira estação a ter loteamento ao redor foi
a de Engenheiro Neiva, atual estação de Nilópolis, construída na Fazenda de São Mateus,
que teve sua população aumentada com as primeiras casas construídas. Nesta época, em
1913, a região pertencia a João Alves Mirandela e o primeiro loteamento é formado pelo
retalhamento de parte de suas terras. (SIMÕES, 2006; PREFEITURA DE NILÓPOLIS,
2020; ALBUQUERQUE, 2017).

48 Patrimônio Material da cidade de Nilópolis, tombado em 1999.


137
Com a construção da estação, em 1914, o nome do local muda de Fazenda de São Mateus
para Engenheiro Neiva no ano seguinte a inauguração em homenagem ao engenheiro que
a projetou. Até que, em 1921, muda para Nilópolis em homenagem a Nilo Peçanha. Essa
mudança tem como agente principal o Bloco do Progresso fundado em 1915 por Júlio de
Abreu, um influente representante do setor imobiliário que atuava no território. O bloco era
formado por residentes influentes e sugeriu a troca de nome. Albuquerque (2017), confere
a essa mudança dois campos de representação, sendo estes: um campo simbólico que seria
uma tentativa de superação da condição de “aldeia”, retirando a nomeação em homenagem
a uma figura de importância local em troca de uma homenagem à uma figura de importância
nacional, neste caso o presidente Nilo Peçanha. E um campo pragmático com essa mudança
sendo mais uma ação para aumentar a venda de lotes. Simões (2006), também cita a nova
nomeação como uma forma de aumentar as vendas. Neste contexto, o bloco cria em 1918 a
Revista Nilópolis, e com o passar do tempo a região passa a ser conhecida por este nome de
maneira informal, assim como a estação de trem que tem seu nome alterado em 1°de janeiro
de 1921, com a região tornando-se oficialmente Nilópolis em 6 de outubro do mesmo ano.
A partir da década de 1930, ocorre um movimento que muda significativamente
a história de Nilópolis, principalmente no campo político e espacial, a chegada dos
imigrantes e migrantes. Dentre os novos habitantes que chegam se destacam os imigrantes
judeus e sírio-libaneses, e migrantes do Nordeste, Minas Gerais e do interior do Estado
do Rio de Janeiro. Os judeus foram os primeiros a chegar em Nilópolis e de acordo com
Raposo (2014) Nilópolis foi uma das regiões que receberam imigrantes judeus na década
de 30 devido ao fácil acesso à terrenos para construção de casas e comércio. Famílias
judaicas teriam se instalado preferencialmente na Rua Mena Barreto, onde construíram
o necessário para manter suas tradições, criando uma cidade judaica imaginada. De
acordo com o livro “Memorial Nilopolitano - Tomo I”49 (MONTEIRO, 2009, p. 190) mais
de 300 famílias teriam se instalado em Nilópolis nos anos de 1930 e 1940, contribuindo
significativamente para o desenvolvimento da cidade e uma de suas construções foi a
Sinagoga Israelita de Nilópolis - Tiferet Israel, erguida em 192850. Os sírio-libaneses
teriam sido os próximos a chegar, se instalando no território e posteriormente não apenas
formando um grupo político definido, mas tornando-se referência de poder político local
com as famílias Abraão, David e Sessim. Nesta época; a região da Baixada Fluminense
recebeu um grande fluxo de migrantes vindos do Nordeste, Minas Gerais e do interior do
estado, segundo Costa (2015) a região teria sido o principal destino de filhos e netos de
ex-escravizados, ocorrendo uma migração em massa que vinha desde os anos 20 e teve
seu ápice na década de 30, formando assim a população de Nilópolis e algumas lideranças
políticas locais (SIMÕES, 2006; RAPOSO, 2014; COSTA, 2015).
Nilópolis passou por um forte processo de urbanização iniciado com a instalação da
ferrovia que liga a cidade ao centro do Rio de Janeiro em 1914, marcando o início de um
crescimento significativo da região que, nas décadas de 30 e 40, já era considerada um
núcleo urbano com todos os seus lotes praticamente vendidos, até que em 1945 se inicia
um movimento pró-emancipação do então 7° distrito de Nova Iguaçu (SIMÕES, 2006).
O surgimento de comércio local, escolas, linhas de ônibus e a população cada vez mais
numerosa fizeram com que Nilópolis se destacasse dentre os distritos, em 1938 é publicado

49 Livro publicado em 2009, pela então Secretaria de Cultura e Turismo de Nilópolis.


50 Patrimônio Material da cidade de Nilópolis, tombado em 1999. Atualmente se encontra abandonado.
138
o primeiro livro editado na futura cidade contando sua história, em uma análise realizada
por Souza (2016, p.1-37) do livro escrito pelo jornalista Ernesto Cardoso intitulado
“Nilópolis de Hontem e de Hoje” destaca a percepção de como o autor tece a história a
partir das construções e momentos marcantes, descrevendo Nilópolis como uma cidade já
emancipada antes de realmente ser, segundo a autora (2016, p. 34) o presente para o autor
seria o desejo de ver Nilópolis como um município. Em 1945 foi solicitada a emancipação e
em 21 de agosto de 1947 o então distrito se separou oficialmente de Nova Iguaçu tornando-
se município de Nilópolis (PREFEITURA DE NILÒPOLIS, 2020; ALBUQUERQUE, 2017).
Pensar a cidade é pensar seus patrimônios, mais que observar, é conhecer a dinâmica, a
história e as particularidades que ela carrega, os patrimônios culturais formam imagens e as
cidades se formam por meio de imagens, sendo assim, a cidade é um lugar não apenas para
ser habitado, mas para ser olhado e imaginado (CANCLINI, 1997). Analisando o histórico do
município de Nilópolis, antes mesmo de ser uma cidade emancipada já se pode identificar
diferentes signos que formam sua identidade presentes nos diferentes contextos históricos
que a cidade passou ao longo de sua construção e que são importantes para compreender
sua história, alguns formam hoje o conjunto de patrimônios históricos da cidade.

Histórico da Política Municipal de Preservação do Patrimônio


Cultural

O histórico do município de Nilópolis mostra o potencial da cidade quanto a questão


patrimonial, o primeiro livro publicado na cidade, “Nilópolis de Hontem e Hoje” de
Ernesto Cardoso, publicado em 1938, anterior a emancipação, já descrevia o valor histórico
material e imaterial ao construir a imagem da cidade na visão do autor, mas os primeiros
movimentos em prol do reconhecimento e proteção do patrimônio histórico e cultural da
cidade só acontecem em 1999, ano que foi registrado o primeiro decreto de tombamento,
anterior a esta data não se tem registro de ações públicas no campo do patrimônio cultural
no município.
Até o presente momento, são quinze patrimônios históricos materiais tombados desde
o primeiro decreto, em que se destacam dois períodos de tombamento, em 1999 e 2016. No
decreto 2.440 publicado em 19 de agosto de 1999 são tombados como bens imóveis seis
construções que se tornam parte do Patrimônio Histórico e Artístico Municipal, são elas:
Capela de São Mateus; Palacete Queiroz Lopes; Antiga Sinagoga Israelita de Nilópolis; Loja
Maçônica União de Iguassu; Corpo principal da Matriz de Nossa Senhora da Conceição e
Igreja de São Sebastião.
Em 2009, a prefeitura do município organiza o livro “Memorial Nilopolitano - Tomo
I” escrito pelo historiador Marcus Antonio Monteiro Nogueira. A obra traz uma pesquisa
histórica, documental e iconográfica sobre a cidade do período de 1500 a 1946, onde é
possível observar a riqueza histórica do município para além dos patrimônios até então
reconhecidos. Em 2012, um novo levantamento de bens culturais é organizado denominado
“Inventário dos Bens Culturais de Nilópolis: Arquiteturas e Paisagens Culturais” que reúne
locais com valor histórico e cultural para o município (FERREIRA, 2017).
Após o decreto de 1999, são registradas algumas ações quanto ao patrimônio histórico
da cidade, mas cabe ressaltar a dificuldade em encontrar informações oficiais sobre o
município, bem como documentos e decretos. De acordo com a entrevista concedida pela

139
atual Assessora Técnica da Secretaria de Turismo do município de Nilópolis, em 2014 tem-
se o reconhecimento das Baianas de Acarajé como patrimônio imaterial da cidade51:
[...] a Baiana do Acarajé que foi tombada no período de 2014, ela é um
bem imaterial da cidade porque Nilópolis tem uma influência muito
grande nessa perspectiva religiosa também e com relação a característica,
a questão cultural, tem alguns pontos de acarajé no município, e aconteceu
nesse período de 2013 e 2014. (VIEIRA, 2020)

Até a construção do presente artigo não foram encontrados outros dados oficiais sobre
patrimônios imateriais reconhecidos pela cidade, mas pelo histórico levantado é possível
perceber na política de patrimônio histórico e cultural do município uma maior preocupação
em reconhecer os patrimônios materiais, característica de uma visão mais conservadora do
que representa o patrimônio cultural para a cidade, parecendo se aproximar do conceito
de patrimônio cultural proposto pelas primeiras leis de patrimônio de 1937. Em todo o
histórico de reconhecimento, o tombamento como forma de preservação se sobressai,
mas ainda assim de maneira ineficaz, pois apenas quinze patrimônios materiais foram
reconhecidos como de excepcional valor para a cidade até hoje. E de todos os patrimônios
reconhecidos, sejam materiais ou imateriais, a representação da cultura afro-brasileira e
indígena presente na história de construção da cidade, é minoritária.
Em 2016, tem-se um novo decreto de tombamento reconhecendo nove patrimônios
materiais como de valor histórico e cultural para a cidade, o decreto 4.106 de 21 de julho de
2016 tomba os seguintes patrimônios: Prédio da Estação Ferroviária de Nilópolis; Busto em
bronze do Conde André Gustavo Paulo de Frontin; Prédio sitio à Avenida Getúlio de Moura,
1147, Centro, Nilópolis; Prédio tipo sobrado, sitio a Avenida Getúlio de Moura, 1463, Centro,
Nilópolis; Prédio tipo sobrado, sitio a Avenida Getúlio de Moura, 1467, Centro, Nilópolis;
Prédio da Igreja do Divino Espírito Santo; Prédio sitio a rua Alaíde de Souza Belém n° 8;
Prédio da antiga Fábrica de Brinquedos WIDA (FERREIRA, 2017, p. 10).
No final do mesmo ano, foi tombado o prédio da primeira escola pública construída
na região, mas o mesmo foi destombado e demolido no ano de 201752. “Foi tombado como
patrimônio o antigo prédio da escola municipal, a fachada, não tinha mais o prédio, em um
determinado momento houve a necessidade de destombar” (VIEIRA, 2020)
O destombamento53 de um patrimônio pode ocorrer quando o processo de tombamento
é cancelado pelo órgão que tombou o patrimônio em questão, o bem é retirado do Livro
de Tombo e o ato é publicado no Diário Oficial. Ou quando o Poder Judiciário cancela o
tombamento, isso pode ocorrer mesmo sem o consentimento do órgão responsável ou
dos proprietários do monumento tombado (NASCIMENTO, 2015). O destombamento de
um bem reconhecido e tombado pode ocorrer por interesses que podem ser econômicos,
de modernização da cidade, por possibilidade de venda, por interesses dos proprietários,
entre outros, mas pensar no ato de cancelamento do tombamento, seja por qual motivo
for, é controverso visto que um bem é tombado por seu valor histórico, identitário e social

51 SANTOS, A. Baianas de Acarajé já são Patrimônio de Nilópolis. Nilópolis Online. 02 de dezembro de 2014.
Disponível em: https://nilopolisonline.com.br/2014/12/02/baianas-de-acaraje-ja-sao-patrimonio-de-nilopolis/. Acesso
em: 8 de outubro de 2020.
52Prédio centenário que abrigou a primeira escola pública de Nilópolis é destombado e destruído. Extra. 13 de julho
de 2017. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/predio-centenario-que-abrigou-primeira-escola-publica-de-
nilopolis-destombado-destruido-21583051.html. Acesso em: 8 de outubro de 2020.
53 O Decreto-Lei n° 3.866, de 29 nov. 1941 torna válido o cancelamento do ato administrativo de tombamento de um
bem cultural.

140
e pelo que representa para a comunidade em que está inserido, destombar um bem implica
em uma mudança em relação a memória e identidade da população. O cancelamento
suspende medidas de preservação e não impede a destruição dos bens (NITO, 2015). Após
o destombamento, o prédio que abrigou a primeira escola pública construída em 1915 na
região que posteriormente se tornou o município de Nilópolis (MONTEIRO, 2009), foi
demolido e deu lugar a um estacionamento.

Tabela 1. Patrimônios Culturais de Nilópolis

Patrimônio Informações N° do Decreto/Data

Capela construída em 1637, junto à


capela existe um Mausoléu do Escravo,
Capela de São Mateus inaugurado em 13 de maio de 1988.
Atualmente cuidada pela Igreja Católi-
ca, em funcionamento

Construído em 1871. Atualmente


Palacete Queiroz Lopes encontra-se ocupado e em alto grau de
Decreto n° 2.440 / 19 de agosto
deterioração
de 1999

Antiga Sinagoga Israelita de Nilópolis Construída em 1928. Atualmente


imóvel se encontra abandonado

Loja Maçônica União de Iguassu Construída em 1930. Prédio preser-


vado e em funcionamento como Loja
Maçônica

Corpo principal da Matriz de Nossa Fundada em 1920. Atualmente cuidada


Senhora da Conceição pela Igreja Católica, em funcionamento

Igreja de São Sebastião Inaugurada em 1959. Atualmente


cuidada pela Igreja Católica, em
funcionamento

Baianas de Acarajé Patrimônio Imaterial da cidade, Sem informação / 27 de novembro


reconhecido em 2014 de 2014

141
Prédio da Estação Ferroviária de Fundado em 1914. Cuidado pela
Nilópolis Supervia

Busto em bronze do Conde André Inaugurado em 1914. Sem informa-


Gustavo Paulo de Frontin ção atual

Prédio sitio à Avenida Getúlio de Construído em estilo eclético, possui a


Moura, 1147, Centro, Nilópolis data de 1916 em sua fachada.

Prédio tipo sobrado, sitio a Avenida Construído em estilo eclético na década


Getúlio de Moura, 1463, Centro, de 1920
Nilópolis Decreto n° 4.106 / 21 de julho de 2016

Prédio tipo sobrado, sitio a Avenida Construído em estilo eclético na década


Getúlio de Moura, 1467, Centro, de 1920.
Nilópolis

Inauguração da pedra fundamental


da Igreja no dia 16 de maio de 1937.
Prédio da Igreja do Divino Espírito Atualmente cuidada pela Igreja Católi-
Santo ca, em funcionamento

Prédio onde funcionou o 1º Fórum do


Prédio sitio a rua Alaíde de Souza Município de Nilópolis. Sem infor-
Belém n° 8 mação atual

Construída em 1915. O tombamento foi Tombamento - Sem informação / 2016;


Prédio da Primeira Escola Pública cancelado e o prédio demolido em 2017 Destombamento – Sem informação
/ 2017

Fonte: Elaboração Própria

O município de Nilópolis possui algumas problemáticas em relação às ações de proteção


e principalmente no que se refere ao reparo e restauração dos patrimônios reconhecidos, é
notável a situação de abandono dos patrimônios da cidade, com exceção dos bens ligados
à religião, sobretudo a religião cristã, os patrimônios materiais reconhecidos se encontram
em estado de abandono. Em relação à tutela dos patrimônios, dados coletados na entrevista
com a Assessora Técnica de Turismo da cidade indicam que todos os bens reconhecidos
como Patrimônio Histórico e Artístico do município são bens particulares o que dificultaria
a ação da prefeitura:
Todos são particulares, por serem bens próprios não podemos captar
recursos para preservação e ressignificação dos espaços, mas como é
realizado um mapeamento anual desses patrimônios a grande maioria
pode receber visitas, os que estão inviáveis a prefeitura está organizando
comissões para verificar a possibilidade de desapropriação do espaço.”
(VIEIRA, 2020)

Além da questão da tutela dos bens, o município não possui uma lei atualizada que
trate sobre a preservação do patrimônio histórico e cultural, segundo a entrevistada em
2016 a Câmara Municipal rejeitou um projeto de lei que tratava sobre a lei de patrimônio
no município
[...] nós temos um outro problema, nós tentamos uma aprovação da
câmara no período de 2016 para lei de patrimônio, uma das nossas
lutas no conselho de cultura era justamente a lei de patrimônio, fazer
a preservação, conservação do espaço, para que pudesse alugar como

142
acontece em Paquetá [...] nós gostaríamos de ter sido aprovados, nós
não fomos aprovados porque a Câmara entendeu que era despesa que a
prefeitura não podia arcar naquele momento [...] (VIEIRA, 2020)

O relato é a exemplificação de como falta de consciência sobre o valor do patrimônio


histórico implica em políticas públicas ineficientes neste campo, e como isso dificulta
o desenvolvimento de uma política de preservação que seja efetiva no município. O não
entendimento do real valor do patrimônio, faz com que a preservação seja entendida como
prejuízo financeiro (LOPIS, 2017), um dos desafios que se apresentam frente às políticas
de preservação do patrimônio é o não entendimento do que os bens culturais representam
e a importância da preservação para a consciência coletiva e individual, como elemento
identitário e norteador da comunidade.

Considerações Finais

A compreensão do que se refere a patrimônio histórico se faz necessária para a realização


de políticas públicas capazes de identificar e proteger a história e a memória contada através
dos patrimônios, de maneira a assegurar que a identidade dos pertencentes a cidade não
seja perdida. Estudar a questão patrimonial do município de Nilópolis revela o atraso e a
ineficiência das políticas aplicadas atualmente no município, mostra que a cidade tem um
longo caminho a percorrer em busca de uma política de patrimônio histórico e cultural
apropriada e atualizada que englobe os patrimônios materiais e imateriais que a cidade
possui, e que evidencie seu o valor histórico. Pensando na construção de uma cidade e no
vínculo entre ela e seus residentes, mais do que um registro histórico, os patrimônios são
capazes de produzir imagens, sentidos e tem um papel social importantíssimo na construção
de identidades, funcionando como fonte de símbolos individuais e coletivos que estabelecem
uma relação de harmonia entre o indivíduo e o que está a sua volta (LYNCH, 1997).
As políticas de proteção do patrimônio histórico precisam ser pensadas de maneira
a atender a comunidade ali inserida, formando imagens que contem suas histórias e
que sejam referências da vivência no território. É preciso que as gestões públicas parem
de pensar a proteção do patrimônio como gasto financeiro e comecem a enxergar o real
valor presente nos patrimônios históricos, sobretudo é necessário ampliar a noção local
de patrimônio histórico para a construção de mecanismos que consigam englobar todos
os signos presentes na cidade, ressignificando e inserindo-os no cotidiano da população.

Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE, E.A.A. De povoado a município: transformações socioeconômicas em Nilópolis. In:
MARAFON, G.J; RIBEIRO, M.A. orgs. Revisitando o território fluminense, VI [online]. Rio de Janeiro:
EDUERJ, p. 189-208. 2017.

ARANTES, A. A. Sobre Inventários e outros Instrumentos de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Intangível:


Ensaios de Antropologia Pública. Anuário Antropológico 2007/2008. Rio de Janeiro, p. 173-222. 2009.

CALABRE, L. O Serviço do Patrimônio Artístico Nacional dentro do contexto da construção das políticas
públicas de cultura no Brasil. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília: IPHAN.
N° 35, p. 33-43. 2017.

CANCLINI, N.G. Imaginários Urbanos. 2ed. Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires (serie
aniversario), p. 1- 149. 1997.

CHUVA, M. R. R. Por uma história da noção de patrimônio cultural no Brasil. In: Revista do Patrimônio

143
Histórico e Artístico Nacional. Brasília: IPHAN. n. 34, p. 147-165. 2011.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal:
Centro Gráfico, 1988.

CORÁ, M. Políticas Públicas Culturais no Brasil: dos Patrimônios Materiais aos Imateriais. Rev. Adm. Pública.
v.48 n.5 , p.1093-1112. 2014.

COSTA, C.E.C. Migrações negras no pós-abolição do sudeste cafeeiro (1888-1940). Topoi, v.16, n.30, p. 101-
126 .2015.

DECRETO-LEI. IPHAN. 1937. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Decreto_


no_25_de_30_de_novembro_de_1937.pdf. Acesso: 8 de outubro de 2020.

FERREIRA, A. A. Patrimônio, Política e Cultura: um Estudo sobre Política Patrimonial em Nilópolis. Anais do
XIII Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. p. 1-14. 2017.

FONSECA, M. C. L. Para além de pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In: CHAGAS,
M; ABREU, R. (orgs) Memória e Patrimônio: Ensaios contemporâneos. 2.ed. Rio de Janeiro: Lamparina,
p. 34-49. 2009.

GONÇALVES, J. R. S. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, R & CHAGAS, M. (orgs).
Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: lamparina, p. 25-33. 2009.

GUILHERMINO, R. O Turismo na Baixada Fluminense (RJ): Um Breve Estudo sobre a Potencialidade


dos Municípios de Nilópolis, Nova Iguaçu e Duque de Caxias. Monografia (Bacharelado em Turismo).
Universidade Federal Fluminense, p. 1-76 2015.

JUNIOR, M. V. P. Patrimônio Cultural e a Institucionalização da Memória Coletiva no Brasil. Biblio3W,


vol.23, n. 1.239, p. 1-13. 2018.

LARAIA, R. B. Patrimônio imaterial: conceitos e implicações. In: TEIXEIRA, J. G; GARCIA, M. V; GUSMÃO,


R. (orgs). Patrimônio imaterial, performance cultural e (re)tradicionalização. Brasília: ICS-Unb, p. 12-
18. 2004.

LYNCH, K. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997

LOPIS, E. A. Patrimônio histórico cultural: preservar ou transformar? Uma questão conflituosa. Revista
Mosaico. v.8, n. 12, p. 9-23. 2017.

MERINO, X. “O que é uma cidade”. In: GUBERMAN, Mariluci. Provocações da cidade. Rio de Janeiro: Capes/
UFRJ, 2009. p. 255-271.

MESENTIER, L. M. A Natureza política do Patrimônio Cultural. In: Anais III Seminário Internacional de
Políticas Culturais. Rio de Janeiro: FCRB, 2012.

IBGE. Nilópolis. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/nilopolis/


panorama. Acesso em: 30 de setembro de 2020.

MONTEIRO, M. Memorial Nilopolitano - Tomo I. Nilópolis: Prefeitura de Nilópolis, 2009.

NASCIMENTO, R. M. Destombamento do Patrimônio: Reflexões sobre um Tema Polêmico. Cultura Histórica


& Patrimônio. v. 3, n. 1, p. 52-66. 2015

OJIMA, R. et al. O estigma de morar longe da cidade: repensando o consenso sobre as “cidades-dormitório”
no Brasil. Cad. Metrop, v. 12, n. 24, p. 395-415. 2010.

Pierre-Louis, L. A; Lima, B. F; Eid, F. C. A (de)colonialidade do patrimônio na América Latina: lugares do


negro e do indígena no caso brasileiro e argentino. RELACult – Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura e Sociedade. Ed. Especial. p. 1-15. 2019.

Prédio centenário que abrigou a primeira escola pública de Nilópolis é destombado e destruído. Extra. 13
de julho de 2017. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/predio-centenario-que-abrigou-
primeira-escola-publica-de-nilopolis-destombado-destruido-21583051.html. Acesso em: 8 de outubro de
2020.

PREFEITURA DE NILÓPOLIS. História. Disponível em: http://www.nilopolis.rj.gov.br/site/municipio/


historia/. 2015. Acesso: 30 de setembro de 2020.

PRIESTER, M. F.; NITO, M. K. S. Destombamento, Explorando uma Política Pública Controversa: O Caso
De São João Marcos. Anais VI Seminário Internacional de Políticas Culturais. Rio de Janeiro: FCRB,
2015. p. 989-1001.

144
RAPOSO, F. Nilópolis Judaica: de cidade imaginada à tradição inventada. Anais do XVI Encontro Regional de
História da Anpuh-Rio, p. 1-11. 2014.

SANTOS, A. Baianas de Acarajé já são Patrimônio de Nilópolis. Nilópolis Online. 02 de dezembro de 2014.
Disponível em: https://nilopolisonline.com.br/2014/12/02/baianas-de-acaraje-ja-sao-patrimonio-de-
nilopolis/. Acesso em: 8 de outubro de 2020.

SCHLEE, A. R; QUEIROZ, H. F. O.G. O Jogo de Olhares. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Brasília: IPHAN. N° 35, p. 105-119. 2017

SIMÕES, M. A cidade estilhaçada: reestruturação econômica e emancipações municipais na Baixada


Fluminense. Tese de doutorado (Pós-Graduação em Geografia). Universidade Federal Fluminense, p.
1-292. 2006.

SOUZA, E. P. Nos caminhos de Nilópolis de Ontem e de Hoje de Ernesto Cardoso. Monografia (Licenciatura
em História). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – IM. Nova Iguaçu, p. 1-37. 2016.

145
Autores

Alejandro Marcelo Médici é Doutor em Direitos Humanos e Desenvolvimento


(Universidade Pablo de Olavide. Sevilha. Espanha), Mestre em Teorias Críticas do
Direito e da Democracia na América Latina. (Universidade Internacional da Andaluzia.
Espanha) Diploma de Estudos Avançados do Terceiro Ciclo. Área de Filosofia do direito.
(Universidade Pablo de Olavide, Espanha) Especialista em Pesquisa Social Participativa
(Universidade Pablo de Olavide, Espanha). Advogado (Universidade Nacional de La Plata,
Argentina). É Diretor da Especialização em Direitos Humanos (Universidade Nacional de
La Pampa, Argentina). Professor Ordinário de Direito Político nas Universidades Nacionais
de La Plata e La Pampa. Professor Adjunto de Introdução à Sociologia da Universidade
Nacional de La Pampa. Ministrou cursos de pós-graduação como Professor Visitante nas
Universidades Pablo de Olavide (Espanha), Federal do Paraná (Brasil), Federal de Santa
Catarina (Brasil), San Luis de Potosí (México). Entre as suas publicações mais recentes
encontram-se os livros “El malestar en la cultura jurídica” (2011, EDULP, UNLP) e “La
Constitución Horizontal” (2013, EDULP, UNLP).

Anderson Albérico Ferreira é mestrando no Programa de Pós-graduação em


História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH/UERJ). Bacharel
em Produção Cultural pelo Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de
Janeiro (IFRJ) e licenciando em História (UFRJ). Atualmente é Assistente de Pesquisa no
Setor de Estudos em Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), membro
da Cátedra UNESCO de Políticas Culturais e Gestão (FCRB) e colaborador nos grupos de
pesquisa Economia Política da Comunicação e da Cultura (EPCC/FCRB) e Cartografias dos
processos decoloniais literários e linguísticos latino-americanos (CARDILA-UFRRJ), nos
quais desenvolve pesquisas no campo das Políticas Culturais da Ibero-América e da Política
e Gestão do Patrimônio Cultural brasileiro.

Aryelle Christiane Souza da Silva é graduanda em Produção Cultural pelo Instituto


Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro – IFRJ. Bacharel em
Biomedicina (2018) pela Universidade do Grande Rio Professor José de Souza Herdy/
Unigranrio. Participou do Programa Institucional Voluntário de Iniciação Científica -
PIVIC (de 10/2019 à 11/2020) do IFRJ no projeto intitulado Identidade, Memória, Cidade
e suas ressonâncias patrimoniais: Um estudo de caso de Nilópolis-RJ, sob orientação da
professora doutora Dayenny Neves Miranda.

147
Dayenny Neves Miranda é Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
em Letras Neolatinas. Mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro / UFRJ em
Letras Neolatinas. Licenciada em Letras (Português-Espanhol) pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Professora de Espanhol do Instituto Federal do Rio de Janeiro/ IFRJ-
Nilópolis Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Hispano-americana,
Língua Espanhola, Literatura espanhola. Coordenou a Extensão do IFRJ-campus Nilópolis
de 2014 à 2017 e integra os grupos de Pesquisa LILA- Laboratório Interdisciplinar Latino-
americano da UFRJ e CARDILLA-Cartografias dos processos decoloniais literários e
linguísticos Latino-Americanos.

Lucía Carolina Colombato é mestre em Estudos Sociais e Culturais (Universidade


Nacional de La Pampa, Argentina), Especialista em Direito Civil (Universidade Nacional
de La Plata, Argentina), Advogada (Universidade Nacional de La Plata). É Secretária de
Pesquisa e Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Económicas e Jurídicas (Universidade
Nacional de La Pampa). É Professora Regular de Teoria do Ato Jurídico e dos Fundamentos
do Direito Privado, Professora Adjunta Regular de Direito Civil e Professora Adjunta
Regular de Direito Internacional Público e Direito Civil (Universidade Nacional de La
Pampa). É docente do Mestrado em Direito Civil, da Especialização em Direitos Humanos,
da Especialização em História Regional e do Diploma na Infância (Universidade Nacional
de La Pampa). É membro titular da Comissão Provincial do Patrimônio Cultural. É
Coordenadora da Comissão de Direitos Culturais do Observatório Universitário de Direitos
Humanos (FCEyJ-UNLPam). Entre suas publicações mais recentes estão os livros “La
incorporación de nuevos sujetos y nuevos derechos humanos en La Pampa (1994-2013)”
(2015, Edunlpam) e “El derecho humano a los patrimonios culturales. Avances, frenos y
retos desde La Pampa” (2016, Edunlpam).

Renata Ferreira Alves é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de


Literatura, subárea de Literaturas Estrangeiras Modernas, concentração em Literaturas
Hispânicas, na Universidade Federal Fluminense (UFF) e estudante-pesquisador do CNPq
integrante dos seguintes grupos de pesquisa: VARIUS – Variação e uso (2018) sob a linha
de pesquisa “As literaturas hispânicas como integração histórica, social e cultural desde
o período pré-hispânico” e CARDILLA – Cartografias dos processos decoloniais literários
e linguísticos latino-americanos. Fez graduação em Letras – Espanhol/Literaturas pela
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Na mesma instituição, compôs
o quadro de bolsistas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à docência (PIBID),
no subprojeto Discurso linguístico-intercultural nas aulas de Espanhol como Língua
Estrangeira (E/LE) (2016 – 2018). A área de atuação percorre o ensino-aprendizagem de
línguas: Portuguesa e Espanhola, bem como o ensino-aprendizagem de suas literaturas.

Santiago Cabrera Hanna é Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP).
Professor Associado da Área de História da UASBE. Pesquisador do LabMundi USP,
World System Laboratory e da Rede Iberconceptos de Pesquisa. Seus trabalhos enfocam
as relações entre os discursos do patrimônio, o planejamento urbano e a história das
cidades. Além disso, estuda o papel dos municípios na formação do estado republicano.
Dentre suas últimas publicações, destacam-se a obra “El patrimonio en disputa: La plaza
vs. el metro” (Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Paradiso Editores, 2018), “O
Centro Histórico de Quito no planejamento urbano (1942-1992): Discursos patrimoniais,
mudanças espaciais e mutações socioculturais”, Territórios, n ° 36 (janeiro-junho de 2017):
187215, e, em coautoria, “A pesquisa urbana no Equador: mudanças e continuidades”, em A
questão urbana na região andina: visões da pesquisa e da formação Pascale Metzger, Julien
Rebotier, Jéremy Robert, Patricia Urquieta e Pablo Vega Centeno, (Quito: PUCE / UNDP /
CNRS / Prodig / IFEA, 2016).

148
Shirlene dos Santos Silva é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos
de Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Licenciada em Letras- Português/
Literaturas pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Na mesma
instituição, compôs o quadro de bolsistas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação
Científica (PIBIC), no projeto “Transculturação e decolonialidade: relações culturais e
simbólicas em narrativas andinas”. Anteriormente, atuou como bolsista do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBIC), no subprojeto de Literatura - IM.
Atualmente, integra o grupo de pesquisa Cartografias dos processos decoloniais literários e
linguísticos latino-americanos.

Walquíria Rodrigues Pereira  é mestre em Letras Neolatinas (opção Literaturas


Hispânicas) pela UFRJ. Possui graduação em Letras - Português/Espanhol/Literaturas pela
UFRRJ e pós-graduação em Práticas de Letramento pelo IFRJ. Foi bolsista de Iniciação
Científica (PIBIC) na área de Literaturas Pós-coloniais Latino Americana. Desempenhou
a função docente nas séries iniciais e finais da educação básica, além de pré-vestibular,
através do espanhol em rede particular de ensino. Atuou como bolsista de apoio técnico
no NAGRAD na UFRRJ - IM e como bolsista CAPES/PIBID no subprojeto de Espanhol
na UFRRJ. É integrante do seguinte grupo de pesquisa cadastrado no CNPq: CARDILLA
– Cartografias dos processos decoloniais literários e linguísticos latino-americanos da
UFRRJ/IM. Possui interesse no ensino da Língua Espanhola como LE e suas respectivas
literaturas.

Ximena Antonia Díaz Merino possui Estágio Pós-doutoral em História pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ (2015-2017). Doutora e Mestre em Letras
Neolatinas opção Literaturas Hispânicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/
UFRJ. Professora Adjunta de Cultura e Literatura Hispânica da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro/UFRRJ. Líder do GP CARDILLA - Cartografias dos processos decoloniais
literários e linguísticos Latino-Americanos; Membro fundador da Rede Internacional de
Estudos Patagônia e Amazônia (RIEPA) 2020 e do GT “Teoria do texto poético” da ANPOLL
(2012-2016). Publicou como coautora os seguintes livros: Poesia hispano-americana:
imagem, imagem, imagem. (Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas UFRJ/
CAPES, 2006); O imaginário poético pré-colombiano ontem e hoje. Os astecas (v.1). Os
maias (v.2). Os incas (v.3) (Faculdade de Letras UFRJ, 2007); Provocações da cidade
(Faculdade de Letras UFRJ, 2009); Palabras en ristre: Reflexiones literarias de la Guerra
Civil Española (LILA/ CNPq/ UFRJ, 2009); El Pensamiento y la Expresión Americana
(Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas UFRJ/ CAPES, 2011); Experimentação
e ruptura / tradição e inovação: marcas do processo criativo huidobriano. (Programa
de Pós-Graduação Strito Sensu em Letras, 2012). Provocações da Amazônia: dos rios
voadores aos voos imaginários. Editora e Gráfica Universitária-Edunioeste, 2015. Imagens
das Américas Interfaces Sociais, Culturais e Literárias. Editora e gráfica Universitária-
Edunioeste, 2016. Bolsista Capes / PARFOR / Unioeste- 2013; Bolsista Capes/Parford/
UFRRJ em 2016. Pesquisadora dos seguintes GP cadastrados no CNPq: LABORATÓRIO
INTERDISCIPLINAR LATINO-AMERICANO/UFRJ; Poéticas do Imaginário e Memória/
UNIOESTE. Coordenadora do Subprojeto PIBID Letras- Espanhol/UFRRJ em 2017-2018;
orientadora do Programa CNPq/Pibic Vigências 2014-2015; 2017-2018; 2018-2019; 2020-
2021.

Yasmin Justo da Silva é mestranda no Programa de Pós-graduação em Estudos de


Literatura na Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui graduação em Letras -
Português/ Literaturas pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Atualmente integra o Grupo de Pesquisa Cartografias dos processos decoloniais literários
e linguísticos latino-americanos /CNPq – UFRRJ.  Seus principais temas de interesse são:
literatura de testemunho e patrimônio cultural.

149
Livro produzido em parceria com o grupo de pesquisa Cartografias dos processos
decoloniais lietrários e linguísticos latino-americanos da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro e o Laboratório Interdisciplinar de Estudos Latino-Americanos da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1° edição ABRIL de 2021


papel miolo PÓLEN 80G
papel capa TRÍPLEX 250G
tipografia GEORGIA
A presente obra é resultado do esforço reflexivo e de análise
de pesquisadores, professores e estudantes, acerca da
dimensão social dos bens culturais das sociedades
latino-americanas. A obra caracteriza-se por possuir uma visão
multidisciplinar, enfatizando trabalhos que abordam sobre as
lutas, os arranjos e construções políticas, sociais e discursivas
que permeiam os patrimônios culturais e como tais processos
reverberam nos projetos de memória e identidade, sejam elas
individuais ou coletivas. Organizado pelas professoras
doutoras Dayenny Neves Miranda (IFRJ) e Ximena Antonia
Díaz Merino (UFRRJ) o livro é uma iniciativa e articulação do
Laboratório de Estudos Interdisciplinares Latino-Americanos
(LILA-UFRJ) e do grupo de pesquisa Cartografias dos
processos decoloniais literários e linguísticos latino-americano
(CARDILLA-UFRRJ).

Você também pode gostar