Você está na página 1de 10
Falar com seu sintoma, falar com seu corpo Eric Laurent A escolha do titulo do VI ENAPOLI1]: "Falar com seu corpo" indica uma inquietago e corresponde a um fato. As palavras e os compos se separam na disposigao atual do Outro da civlizagao. O subtitulo "a crise das normas e a agitagZo do real’ remete- nos a uma dupla série causal, Por um lado, as normas nem — sempre conseguem fazer com que 08 comes, por sua inserigao forgada, se insiram em usos padronizados, nessa maquina infernal na qual o significante- mestre instala suas disciplinas de fazer marcas identiicatérias (marquage)e de educagdo. Os corpos so muito mais deixados por sua prépria conta, marcando-se febrilmente com signos que nao chegam a Ihes dar consisténcia, Por outro lado, a agitagdo do real pode ser lida como uma das consequéncias da "ascenso ao zénite” do objeto a. A apresentacao da exigéncia de gozo em primeiro plano submete 0s corpos @ uma “lei de ferro’l2] cujas consequéncias & preciso acompanhar. Os corpos parecem ocupar-se deles mesmos. Se alguma coisa parece se apoderar deles, é a linguagem da biologia. Ela opera sobre 0 corpo, recortando-o em suas proprias mensagens, suas mensagens sem equivoco, diversas daquelas da lingua. Produz corpos operados, terapeutizados, geneticamente terapeutizados ou geneticamente modificados (em pouco tempo, todos seremos organismos geneticamente modificados), alvos de uma operacdo cosmética que segue @ mesma via desses recortes - real cuja efetividade foi sublinhada por Jacques-Alain Miller em seu pequeno tratacio sobre a "biologie lacaniana’ A psicandlise apreendeu a juno das palavras com 0s corpos por um viés preciso, o do sintoma, Freud, baseado no espetéculo clinico de Charcot, extrai o rébus da formagéo do sintoma histérico. Lacan pode dizer: "Freud chegou em uma época na qual apreendeu que nao havia nada mais que o sintoma pelo qual cade um se interessava", que tudo aquilo que havia sido sabedoria, modo de fazer, ¢ mesmo, justamente, representago sob um olhar divino, tudo isso se distanciava; restava 0 sintoma na medida em que ele interroga cada um sobre 0 que vem incomodar-Ihe 0 corpo. Esse sintoma, por ser presenca do significante do Outro em si, é marca identificatéria (marquage), corte, Nesse lugar, 0 surgimento traumatico do gozo se da Baseado no sintoma histérico, Freud reconhece a via na qual se impde o ineémodo do corpo que vem, pelas palavras, recortar mais uma vez, marcar as vias pelas quais 0 gozo advém. O que constitui o eixo em toro do qual gira a constituicao do sintoma histérico € o amor ao pai Trata-se do que faz com que 0 corpo histérico esteja sempre prestes a se desfazer, 0 que faz dele 2 ferramenta/3], segundo a expressdo de Lacan. & precisamente isso que esta em questao em nossa época. Por isso, precisamos conceber o sintoma no com base na crenca no Nome-do-Pai, mas baseado na efetividade da prética psicanalitica. Essa pratica obtém, através do seu manejo da verdade, alguma coisa que toca o real... A partir do simbdlico, alguma coisa ressoa no corpo, e faz com que o sintoma responda © que se colocard para nés como questo € como "falam os corpos" para além do sintoma histérico, que supe no horizonte 0 amor ao pai O inconsciente e o sintoma histérico No inconsciente, trata-se de algo diverso de inconsciéncia. O inconsciente freudiano ndo é 0 inconsciente automatico, no € o inconsciente da inconsciéncia, no € proveniente dos automatismos inscritos sem que se tenha deles uma consciéncia no sentido cognitive, De que se trata no inconsciente? Deste, temos uma ideia mais clara pelo que Lacan chama de "o grande quadro clinico da amnésia da identidade” — no qual 0 sujeito nao sabe quem é, no ode absolutamente responder sobre nada concemente a sua identidade, suas lembrangas, sua familia, de onde ele ver... mas, em compensago, pode muito bem aceder aos saberes que adquiriu: linguas estrangeiras, o manejo de maquinas complicadas... E esse contraste entre 0 sujeito da enunciagdo e tudo 0 que é da ordem do enunciado - os enunciados possiveis — coloca um problema maior. Lacan prope, nesse contexto, que o inconsciente freudiano é uma certa relacdo entre falas e escrita, da qual se da conta a partir da nova escrita que propde entdo, aquela dos nés. Ele o diz explicitamente na primeira aula do Seminario posterior a0 23, 0 Seminério 24: "Tento introduzir alguma coisa que vai mais longe que o inconsciente’[4]. Nao se trata do Lacan do retorno a Freud, mas do Lacan do adeus a Freud. Ja era tempo, Lacan havia esperado muito tempo, ele proprio estava muito pressionado pelo tempo: disse isso em 1977, quando tinha mais quatro anos de vida. Prope alguma coisa que vai "mais longe que o inconsciente”. E, de inicio, uma metafora espacial, ¢ ela imediatamente se completa com uma questo sobre o tempo: "Por que obrigar-se, na andlise dos sonhos, a se restringir a0 que ocorreu na véspera?”, Para explicar o sonho, & necessario sem duivida apelar ara as coisas que remontam ao “proprio tecido do inconsciente”, Situar o inconsciente como tecido é também introduzir © que faz furo, ou seja, precisamente, a questéo do trauma Naqueles anos, Lacan enuncia uma série de proposigdes novas em psicandlise, dentre as quais a reformulagdo da questo da histeria € crucial. Apés 0 Seminario sobre Joyce, Lacan prope uma série de releitura dos Estudos sobre @ histeria, mas pelo avesso. Pode-se seguir esse percurso por um ano, um ano de pontuagées entre o dia © de marco de 1976 € o dia 26 de fevereiro de 1977 (data, justamente, de uma conferéncia, em Bruxelas, sobre a histeria). ‘Vamos comegar este ano, com Lacan, pela decifragéio do que ele nos propde sobre a histeria no Seminario 23, Pelo que sei, no Seminario 23, hd apenas uma referéncia direta & histeria, € € a propésito de uma evocagao amigavel, de uma maozinha dada a uma de suas amigas, Helene Cixous. Voeés a encontram na terceira parte do Seminario 23, cujo titulo & surpreendente: "A Invengao do Real'{S], € no capitulo 7 que tem também um titulo provocante: "De uma falécia que testemunha do real(é]”. "Faldcia” é uma palavra antiga como “sinthoma", pouca utlizada na lingua moderna. O que permaneceu na lingua contempordnea é 0 adjetivo “falacioso”. Este termo feminino antigo, falécia, corresponde ao novo lugar que Lacan dé a0 falo: 0 falo é um semblante € 0 que da testemunho do real. & muito diferente da maneira como o falo é Tepresentado nos Escritos. No texto que expe a posigtio cléssica, Die Bedeutung des Phallus ("A significagao do falo"), 0 falo estava ali para testemunhar da significagao, e mesmo ara demonstrar todos os efeitos de significagdo, Agora, ele é reencontrado como uma falécia que da testemunho do real. Essa nova posi¢o do falo, fora da metafora paterna, permite a Lacan retomar a questéo da histeria. A peca "Retrato de Dora’{7], escrita por Héléne Cixous, que estava sendo encenada num pequeno teatro, permite a Lacan dizer: "algumas pessoas podem se interessar em ver como @ pega ¢ realizaca’, “é realizada de um modo real’. A questo de ser “realizada de um modo real" é estranha e Lacan a explica: “quero dizer que a realidade, por exemplo a dos ensaios, no final das contas, foi o que dominou os atores" Portanto, foi realizada de tal maneira que néo ¢ 0 texto que dominou os atores, mas a pragmatica mesma do dizer. Isso ajuda a se desfazer da ideia de que o significante organiza um texto organizando os atores. Agora, so antes os atores que realizam o texto. Nesse espetaculo, “trata-se da histeria’, sublinha Lacan. Ele nota que, entre os atores, a que interpreta Dora esta bem embaracada. Ela "ndo mostra suas manias de histérica’. O temo “manias" deve ser destacado. O ator que representa Freud esta ainda mais embaracado, "ele dé a impressao de estar chateado, ¢ isso se vé por sua entonagao". Lacan diz: "Temos ali a histeria... que eu poderia dizer incomplete. Quero dizer que, com a histeria, é sempre dois, pelo menos desde Freud. Ela aparece ali reduzida a um estado que eu poderia chamar de material Essa estranha qualificagao "estado material da histeria’ € explicitada assim: "E € por isso que acaba combinando com 0 que vou Ihes explicar. Falta ali esse elemento que foi acrescentado ha algum tempo - no final das contas, desde antes de Freud -, a saber, como é que ela deve ser compreendida". Com a compreensdo, reencontramos nossas balizas classicas sobre a histeria. O sintoma histérico é por exceléncia um sintoma que fala, que é enderecado, Ele é Portador de um sentido, © material, no fundo, é 0 sintoma como tal, separado do sentido, E Lacan acha que o interessante na Dora de Cixous € que ela apresenta a histeria sem o sentido. © que faz com que ndo se a compreenda mais. E isso que ele considera importante. Lacan 0 diz de um modo muito surpreendente: "Isso constitu alguma coisa muito impressionante € muito instrutiva: € uma espécie de histeria rigida’. A histeria de Cixous apresenta Dora sem enhuma aparelhagem de sentido, uma histeria sem seu parceiro. Quando Lacan dz "A histeria, desde antes de Freud, € sempre dois", ele designa desse modo que a histérica é acompanhada de seu intergretante, e isso comega com Josef Breuer, e mesmo antes, com as terapias de hipnose. Em A Historia do inconsciente, de Ellenbergerf8], pode-se ver 0 catélogo de tudo 0 que, no final dos anos 1870, havia comegado a animar o interpretante. Para compreender 0 que Lacan quer dizer quando ele diz “histeria rigida’, ¢ preciso nos reportarmos ao Seminério, Ele apresenta ali uma cadeia borromeana "tigida'[8]. Com excegao do fato de que € representada por elos retanguleres no lugar de redondos, por que ela é chamada de rigida? Nada é "rigido”, a ndo ser pelo fato de se manter sozinho, unido, ou seja, de ser um modo do sujeito em que ndo ha necessidade de uma rodinha suplementar, o Nome- do-Pai, ¢ esta é toda a questio. A histeria apresentada por Cixous € uma histeria sem este interpretante que é 0 Nome-do-Pai, é uma histeria que se mantém intelramente sozinha. Lacan no representa esse estatuto "rigido” da cadeia apenas sob a forma retangular, mas também na forma da chamada esfera armilar. Como reescrita dos Estudos sobre a histeria baseada em Joyce, é 0 minimo, mas essencial, Passa-se do sistema falante ao sintoma como escrita, No fim do Seminario, na "Nota passo a paso" redigida por Jacques-Alain Miller, encontramos 0 seguinte: "Se 0 nd como suporte do sujeito segura, nao ha necessidade alguma do Nome-do- Pai: ele € redundante, Se 0 né no segura, o Nome exerce @ fungdo de sinthoma, Na psicandlise, ele é o instrumento para resolver 0 gozo pelo sentido[10]". Era o que Lacan havia de inicio escrito com a metafora paterna. O Nome-do-Pai permitia dar valor falico ao Desejo da Me. instrumento, 0 Nome, permitia dar a tudo o que se diz um valor falco, Essa metafora sera generalizada por Lacan, com 0 gozo (J), que € o que vem se inscrever sob a barra, na linguagem, no lugar do Outro (A), para ser metaforizado — AlJ. © Nome & 0 instrumento para resolver 0 gozo pelo sentido, da mesma maneira que, na metéfora paterna, o Nome resolve 0 significado do desejo materno dando-Ihe a significagao do falo. E isso que € reformulado nas esoritas da chamada cadeia rigida, aquela que se mantém inteiramente sozinha, Trata-se de uma cadeia tal que nela ha uma apreensto do gozo e do sentido sem necessidade de passar pelo Nome-do-Pai, pelo amor ao pai, pela identificagdo 20 pai Na primeira ligdo de Linsu que sait de I'une-bévue s’aile 4 mourre, o Seminario posterior ao 23, Lacan prossegue sua busca por um “para além do inconsciente'[11] Ele ousa traduzir /'Unbewussts freudiano, © inconsciente, por /'Une-bévue ("Um-deslize") que, em francés, € uma homofonia do termo alemao, € ndo uma tradugdo. Mas isso & extremamente fundamentado, pois 0 titulo, Liinsu que sait, & um jogo de palavras formidavel sobre o inconsciente como insabido (insu), um insabido que se sabe, que se sabe em alguma parte. Dentre as novas expressdes da lingua francesa, tomou-se famosa esta expresso usada por lum ciclista surpreendido na prética de doping: “ao insabido da minha plena vontade” (& linsu de mon plein gré). Ela & muito instrutiva quanto & questo do saber. Que saber é esse que se sabe? Liinsu que sait de /une-bévue siaile & mourre se inquieta com isso. Sintoma e identificagao Na primeira ligdo desse Seminario, Lacan levanta questées que se encadeiam diretamente a0 capitulo 7 do Seminario 23. Ele diz o seguinte na transeri¢ao publicada em Ornicar?: "A identificagdo € o que se cristaliza em uma identidade’... "embora tenha me dado conta de ter esquecido meu semindrio sobre a /dentifizierung de Freud, lembro-me muito bem de que, para Freud, ha trés modos de identificagdo, ou seja, uma identificagdo para a qual ele reserva, no se sabe bem por que, a qualficagéio de amor, € identficagao ao pai’. Apés terthe dado sua verso légica com a metéfora paterna, Lacan diz agora que ndo se sabe bem por que essa identificagdo € assim. Quanto ao que Freud chama o pai, hé uma série de fantasias, Totem € tabu, as histérias darwinianas, a pré-histéria de tudo o se queira, € a crenca fundamental de Freud no pai. Lacan apresenta o seguinte: “uma identificagao a qual ele [Freud] reserva, ndo se sabe bem por que, a qualifcaglo de amor, é a identificago ao pail; uma identificagso constituida de participagdo que ele pinga como a identificagao histérica; e depois aquela que ele fabrica @ partir de um trago que traduzi outrora como trago unério". A identificagso Participative implica um parceiro, tem a ver com o dois, Ele o diz: a histeria tem a ver com 0 dois. Este dois nao ¢ apenas a ligagdo da histérica com seu interpretante, mas designa também 0 fato de que @ histérica extrai um sintoma do outro do qual esté enamorada. 0 exemplo dado por Freud no capitulo 7 de Massenpsychologie ¢ aquele de Dora que esta affnica por identificar-se ao que ela pensa ser 0 gozo do pai consagrado ao cunnilingus na Sra. K. A afonia coloca em jogo sua propria boca nessa participagao no gozo do pai. O pai € objeto de amor, mas esse amor implica uma participac&o no gozo. Finalmente, a ultima identificacdo, a que era, antes de Lacan, totalmente negligenciada pela psicandlise e considerada como a mais banal. Seu exemplo : em um pensionato de mogas, uma delas recebe uma carta de seu namorado que a entristece. Todo 0 mundo chora no dormitério a noite, as jovens entram em rebuligo, é a epidemia histérica, Elas no conhecem 0 namorado, alias no sabem mesmo quem ele é, mas 0 softimento da amiga produz um rebuligo em todo o dormitério. Dessa ultima identificagdo, fundamento da epidemia histérica, Lacan faz uma chave. Quanto segunda identificagdo, Freud diz que ela construida "sobre um Unico trago desse pai’, ¢ Lacan faz disso a intuigdo freudiana fundamental da redugao da identificagao a0 trago, ao qual ele da 0 valor fundamental de trago de escrita, O traco que aparece em seu Seminario 9 € revestido de um peso totalmente especial. Ele retoma, a partir da segunda identificagdo, a primeira e, depois, a terceira, Além disso, ¢ a partir da terceira identifica que ele se pbe a interrogar a segunda, dizendo que a participagdo no gozo 20 qual Dora se identifica € um trago Questionara entéo a primeira identificago ao pai para remeté-la a um trago do pai, € no mais, 20 pai da horda e a toda a barafunda darwin-lamarckiana que, em certo momento, fascinava Freud. A questéo que Lacan quer retomar para esclarecer a questo da histeria é a da identificagao. Ele a retoma nao a partir de um mito, mas a partir da experiéncia da psicandlise. Ele levanta a questo: "A que identificar-se no final da andlise? Sera identificar-se a seu inconsciente? Nao acredito nisso"[12]. Diz que o inconsciente permanece o Outro. E diz: "N30 creio que se possa dar um sentido ao inconsciente”. Percebe-se que “identificagao” € "dar sentido a” se aproximam. O fim da andlise produz uma impossibilidade de se identiicar a seu inconsciente, Nesse sentido, a identificagao ao sintoma € o avesso da identificagao histérica. A identificagdo histérica € identificar-se 20 sintoma do outro, por participagdo. A essa identificagdo, Lacan opde a identificagao concebida a partir dos fendmenos do passe € do final da andlise. O real do sintoma analitico E a partir do “identificar-se a seu sintoma” que Lacan vai interrogar a tensdo entre o sintora histérico € © sintoma analitico. Ele complica a oposi¢ao entre identifiagéo histérica € identificagdo a "seu sintoma’, pois diz: "propus que o sintoma pode ser o parceiro sexual’ Trata-se do segundo tempo em relagdo 4 critica da identificagao histérica, Nao se trata de uma Participagdo no sintora do outro, & 0 seu, mas 0 seu pode ser o outro, Seu sintoma, o que ha mais de "si", é efetivamente o parceiro sexual. Levanta entio esta questo: 0 que é conhecer seu sintoma? E qual é a diferenca entre conhecer e saber. Dizer "O parceiro sexual é um sintoma’ quer dizer também que 0 parceiro sexual é aquele que ndo se conhece, que nao ha enhum conhecimento possivel do parceiro sexual. E preciso certamente se lembrar bem da oposic&o conhecerlsaber, e ndo se esquecer de que o sintoma esté do lado do saber, 0 que implica justamente nao conhecer. "Propus que o sintoma pode ser o parceiro sexual... o sintoma torado nesse sentido é o que... se conhece melhor. Esse conhecimento n&o vai muito longe, deve ser tomado no sentido que fol proposto de que bastaria um homem dormir com uma mulher para que ele a conhecal13]". Trata-se da imagem biblica: na biblia, conhecer ura mulher significa ter uma relagdo sexual com ela. "Como, apesar de eu me esforgar para isso, é fato que no sou mulher, n&o sei o que uma mulher conhece de um homem, € mesmo bem possivel que isso va muito longe, mas n&o pode, contudo, chegar sequer a perspectiva de que a mulher criou © homem”. Temos, ai, desenvolvimentos complexos de um avesso da metéfora da criagao divina. "E mesmo quando se trata de seus filhos, os filhos para uma mulher permanecem como parasitas. Trata-se ali de um parasita, de um parasitismo. No titero da mulher, a crianga é parasita, e tudo o indica, inclusive o fato de que as coisas podem ir muito imal entre 0 parasita e 0 ventre”, Essa notagdo muito util para os psiquiatras de criancas & para os psiquiatras em geral quanto ao fato de que toda gravidez tem um pequeno lado de denegac&o da gravidez. Nao ha conhecimento da gravidez. Hé sempre um ponto em que uma mulher ndo sabe que esta gravida, Nao ha apenas os casos graves que provocaram alarde na crénica judiciétia quanto a uma denegagio radical da gravidez, Existem detalhes muito precisos, muito delicades, que apenas aparecem em uma analise, mas, se os levarmos em conta, poder-se-ia dizer que em todos os casos hd alguma coisa que no se pode saber. no sentido de uma transparéncia do conhecimento a ele proprio. O saber pode ser insabido, nao 0 conhecimento, E 0 que Lacan diz nesse texto, Desde entiio, o que quer dizer conhecer? ‘Conhecer seu sintoma quer dizer savoir faire com ele, saber se virar com ele, manejé-lo'l14]. Eo que se faz com o parcelro sexual: consegue-se, pouco a pouco, se virar com ele, manipula lo. "O que © homem sabe fazer com sua imagem corresponde de alguma forma a isso, & permite imaginar a maneira de como se virar com o sintoma’[15] Lacan enuncia portanto que ndo se trata, assim, de saber como isso se da em uma esorita simbdlica, A gente se vira com 0 parceiro sexual como se vira com a prépria imagem. Ha sempre um narcisismo na escolha do parceiro sexual, no no nivel da imagem, mas no nivel da manipulacao que se pode fazer dele. O papel do imaginario como tal toma um valor efetivamente importante, Nao estamos mais na época do imaginario depreciado em relagio 20 simbélico, € 0 imagindrio na medida em que ele nos da as coordenadas fundamentais para viver nesse mundo. A gente se virar com a imagem € 0 que permite pouco a pouco se virar com 0 parceiro sexual. Imagindrio & real s80, aqui, colocados em continuidade. £ como na ciéncia que, também, tem necessidade da dimens&o do imaginario, A prova disso, nos diz Lacan, & seu desvio pela teoria dos modelos: “Lord Kelvin por exemplo considerava que a ciéncia era alguma coisa na qual funcionava um modelo que permitia prever quais seriam os resultados do funcionamento do real’. Na ciéncia, recorre-se entao ao imaginario para se ter uma ideia do real Lacan avanga em seu raciocinio dando ao imagindrio uma consisténcia equivalente 20 simbélico. Ele se coloca entdo a questo sobre o que seria a consisténcia do real. “Eu me dei conta de que consistir queria dizer que era necesséro falar de corpo: ha um corpo imaginario, um corpo simbélico ~ ¢ a linguagem - e um corpo real, do qual no se sabe como ele aparece[6]", © corpo simbélico € a linguagem, 0 conjunto dos equivocos da lingua. O imaginario € © que permite nos virarmos, 0 modelo. Mas © que pode ser 0 corpo real? Para Lord Kelvin é isso que a ciéncia se recusa a admiti tem-se um modelo, mas ndo se sabe 0 que € 0 corpo real. A esse respeito, no ha hipdteses. O mesmo e 0 corpo real Baseado na psicanalise, Lacan quer definir 0 corpo real. Introduz seu desenvolvimento a partir do mesmo: "como designar de modo andlogo as trés identiicagdes distinguidas por Freud, a identificagao histérica, a identificagéo amorosa chamada de identificagdo ao pai e a Identificagdo que nomearei neutra, aquela que no € nem uma nem outra, a identifcagao um trago que chamei de qualquer um, a um trago que seja apenas o mesmo"[17]. No que concerne 20 real, 0 importante é que o mesmo seja o mesmo materialmente, “a nogdo de matéria é fundamental, j4 que ela funda o mesmo'[18]. Entende-se porque ele estava muito contente de dizer que Héléne Cixous apresentava uma histeria “material”. Ela apresentava alguma coisa na vertente de um mesmo que se refere ao fora-do-sentido, que nao tem necessidade do sentido, Ihe & disjunto. Em compensacdo, diz ele, o significante faz série, esta sempre na oposi¢so entre o mesmo e um outro, 0 S1 e 0 S2. Do lado do assinalamento (signalement), hd uma série de outros, unidades dentre as quais sempre ¢ possivel um deslize (bévue). O real, em compensagdo, é a repeticao material do mesmo na medida em que é 0 gozo que se repete. No nivel do simbélico, ha os "um" que fazem série, e na qual é possivel se enganar. Dizer que hd “deslizes" é igualmente dizer que ha equivocos. © inconsciente de Lacan é feito de “um- deslize” (une-bévue) que s&o significantes-um que sempre geram equivocos. EmDie Bedeutung des Phallus, Lacan situava 0 equivoco a partir da diferenga entre sentido referéncia segundo Frege. Vocés podem dizer que Venus é a “estrela da manna” ou a "estrela vesper", trata-se da mesma Vénus. Essas duas descrigées, essas duas significacdes, so ambas signo de Vénus. Venus o planeta que esta ali quando, na lingua, pode-se dizer “a estrela da manha’ ou "a estrela vésper’. No Seminario 23, "a falacia testemunha do real” esta bem mais do lado do signo, © falo nao se situa mais nos efeitos de deslizamento (glissementda signifcagao. Tal deslizamento (glissementver marcar um modo de gozo que permanece sempre o mesmo e que pode ser nomeado na lingua através dos "um" significantes pelos quais a gente sempre pode se enganar. A consequéncia disso é @ apresentagao do corpo do falasser, do vivo, sem passar pela identificagao histérica que mistura sintoma e sentido, © corpo do sujeito histérico € retalhado pelo significante, j4 que os sintomas histéricos se apresentam sob o modo da perda. O corpo retalhado & aquele que perde seu braco pela paralisia histérica, o corpo que perde sua perma, que perde sua voz. A esse corpo retalhado se onde 0 corpo térico furado. © corpo coro agenclamento do real, do simbélico e do imaginario se apresenta em torno de um ou dois furos, € se mantém sozinho. © compo térico é uma representago do corpo do vivo para alm do corpo histérico. Nessa perspectiva, pode-se distinguir o sintoma como acontecimento de corpo € 0 sintoma histérico, Lacan o diz da seguinte maneira: "A diferenca entre a histérica e eu é que a histérica € sustentada em sua forma de bastio (trique) por uma armadura distinta de seu consciente, que € seu amor por seu pai[19]". Para se manter unido o sujeito histérico, ¢ preciso acrescentar um Nome-do-Pai. Isso ndo € mais necessario na versao da histéricea chamada rigida, @ le Cixous. "Freud tinha apenas algumas poucas ideias do que era o inconsciente, mas parece que se pode deduzir que pensava que se tratava de efeitos de significante, Nao Ihe era facil isso, ele nao sabia lidar (i ne sait pas faire) com o saber. E sua debilidade mental, da qual no sou uma exceo, porque tenho a ver com o mesmo material que todo o mundo, com esse material que nos habita’[20]. Nesse contexto, "material" € ainda apreendido do real do gozo. Lacan prope assim um inconsciente que ndo ¢ mais constituido de efeitos dos significantes. Prope outra verso de um inconsciente que no é constituido pelos efeitos do significante em lum corpo imagindrio, mas, sim, um inconsciente constituido desse né entre o imaginario, o simbdlico eo real. Inclui a inst&ncia do real que ¢ a pura repetigéo do mesmo, o que Jacques- Alain Miller, em seu ultimo curso, isolou na dimensao do Um-sozinho que se repete. As trés consisténcias e o acontecimento de corpo Por isso, Lacan pode dizer, em “Joyce, 0 Sintoma": "Deixemos 0 sintoma ao que ele é, um acontecimento de corpo ligado @ que se o tem, se tem ares de [...] Assim, individuos que Aristételes toma como corpes podem nao ser nada além de sintomas, eles préprios, em relagdo a outros corpos. Unia mulher, por exemplo, é um sintoma de um outro corpe'[21], Essa frase define a posi¢ao feminina como o anti-sintoma histérico’. Tal definiclo da posi¢so feminina permite diferencié-la da histeria. Quando isso no acontece, "ela permanece sintoma como © chamado sintoma histérieo, ou seja, paradoxalmente, s6 ihe interessa um outro sintoma’[22]. Este era de fato 0 caso de Dora que $6 se interessava por um outro sintoma, 0 do seu pai. Ela se identificava a seu pai, identificava.se a impoténcia de seu pai sendo afénica Lacan continua a precisar a oposigo: “O sintoma histérico est4 antes da questo do sintoma como tal’, © sintoma vem se inserever no corpo ainda que seja, nessa ocasiéo, também exterior ao corpo. O sintoma estd no compo. Ele nao € endopsiquico, esta fora Em Bruxelas, Lacan comega assim: "O que aconteceu com as histéricas de outrora, essas. mulheres maravilhosas, as Anna O., 2s Emmy von N.? Elas desempenhavam nao apenas determinado papel, mas um papel social determinado. © que substitui hoje esses sintomas histéricos de antigamente? A histérica n&o foi deslocada no campo social?"[23]: "A maluquicepsicanalitica a nao teria substituido?". Ao colocar em primeiro plano o simbélico, a psicandlise no sé desmontou os artificios do sintoma histérico, como também ooupa seu lago. E ele nota 0 seguinte: "O inconsciente se origina do fato de que a histérica no sabe 0 que diz ao dizer verdadeiramente alguma coisa pelas palavras que Ihe faltam. O inconsciente € um sedimento de linguagem". Lacan prope ento um horizonte da psicandlise que no ¢ histérico —€ 0 real como “ideia limite’, a ideia do que nao tem sentido. € isso que fez com que Jacques- Alain Miller pudesse qualificar 0 real como um sonho de Lacan, alguma coisa como uma ideia limite, mas uma ideia limite necesséria para contrabalangar uma tendéncia da psicandlise que @ sua tendéncia delirante — a tendéncia de uma preferéncia dada acima de tudo ao inconsciente’[24]. Por isso, nessa época, Lacan toca em alguma coisa de um real que, para ele, no € 0 real cientifico, mas o real da substancia gozante e considera ainda mais urgente proteger a psicandlise de sua tendéncia delirante que ele chama de “preferir o inconsciente acima de tudo". Nesse Seminario, ele dé um exemplo disso: Le Verbier de Homme aux loups, texto publicado por Nicolas Abraham e Maria Torok, psicanalistas franceses ou, se quiserem, neo-ferenczianos, que se propuseram a delirar com o homem dos lobos indo atras de todos os ecos dos significantes que o atravessam, pelas homofonias € pelos equivocos em todas as linguas por ele conhecidas: 0 russo, 0 alemdo, o dialeto vienense, etc... Sdo todas essas ressonancias ques eles.-«—chamam =— de Verbier("Verbério"), termo que mescla verbiage ("verborreia") e herbier("herbério"). & esse objeto que Lacan considera ropriamente delirante, Ele diz: "Nao considero, apesar de ter engajado as coisas nessa via, que este livro, nem seu prefacio, sejam de muito bom-tom. No género delirio € um extremo, € me assustei ao sentirme mais ou menos responsével por ter aberto as comportas"[25]. Diante da abertura das comportas do significante, Lacan considera que a unica coisa que poderia impedir a psicanalise de delirar era ter, sendo uma ciéncia nela, ao menos a ideia de um real. Ele constata que ela pode tocar um tipo de real. Ele delimita um fora-do-sentide que garante uma detengdo da cadeia, que permite ndo se deixar aspirar pelo inconsciente. O “material” no € uma representacdo, nem uma representacSes de palavras, mas palavras em sua materialidade. S40 palavras em seus equivocos fundamentais, 0 equivoco dos Um-desiize (Une-bévue) € que séo somente uma aproximagao do real. Acompanhando Lacan, teriamos uma chance de impedit a psicanalise de delirar, com a condi¢ao de no preferir uma das trés consisténcias em detrimento das outras. Trata-se de manter as trés juntas, de no preferir uma em detrimento das outras, de ndo fazer de uma um todo, © VIENAPOL serd a ocasido para desenvolver as conseauéncias do novo status do sintoma e da identifcagao através de todo 0 campo psi. Uma lista desses aspectos ja foi dada por Leonardo Gorostiza: “além da dimensdo da psicandlise pura, os temas mais presentes na ‘América — a violencia ou agressividade, 0 consumo generalizado de drogas, os chamados transtornos da alimentac&o, as mudancas de sexo nos corpos e da procriacdo, e seus efeitos nas normas, a crise das normas familiares e dos cédigos civis para dar conta disso, a polémica sobre a pertingncia de psicandlise no campo do autismo", A comissao de organizagao, com Ricardo Seldes, jé esta trabalhando para destacar as respostas que damos a essas diferentes questdes através dos trabalhos dos participantes. 27 de setembro de 2012 ‘Traduedo: Elisa MonteiroRevisdo: Sérgio Laia 10 1 2 8 14 15 16 "7 18 18 20 a 2 2B 24 2 NRT. ENAPOL é 8 sila para Encontro Americano de Psicanéiise de Ortentaeso Lacanvana. NRT. No orginal, ft cara 6 uma expresséo ullizada por Lassale, contemporaneo de Marx, para S@ rofeir lei que, no capitalismo, reduz 0 salério do operéno ao minimo necessérno a sobreviéncia NRT. no orginal, fe manche, termo que, de modo mais frequante, designs 0 "cabo", ou seja, a parte ‘onde se pega em um instrumento, Entretanto, Rabelais, que é ume referéncia importante para o Lacan {60 Seminério 23, uiliza tl termo pera se referr ao "membro vir. Porisso, nossa opy8o de traduziio por “erramenta" LACAN, J, Le seminaire: Linsu que salt de Tune-bévue sale & mourre (1876-77), aula de 16 de novembro de 1876, publicada emOrnicar? n°12, 9.5 LACAN, J. 0 Seminén. Livro 23: 0 sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Exitor, 2007, p.101 LAGAN, J. 0 Seminério. Livro 23:0 sinthoma (1875-1978). op ft, 9. 102. No die 26 de fevereiro de 1976, no Teatro d'Orsay (Companhia Renaud-Barreut), sconteceu a pphmoira apresentacdo mundial ce Portrait de Dora, peca escrita por Helene Cixous. ELLENBERGER, H_A la dScouverte de Nnconscient, SIMEP, 1974 (reectado com 0 tRulo Histore de Finconscient, Fayerd, 2001). LACAN, J. O Seminane. Livro 23:0 sinthoma (1975-1976), 8. 103-105, LACAN, J. 0 Semingna. Livro 22:0 sinthoma (1975-1976), p. 238, LAGAN, J. Le séminaire 1976-77. aula do dia 16 de novembro de1876, Ornicar ?n*12, p.5 LACAN, J. Le séminaire 1976-77... aula do dia 16 de novembro de 1978, Omicar ?n°12, p.8. LAGAN, J. Le séminaire 1976-77. aula do dia 16 de noverbro de 1976, Ormicar ? 1°12. p.6. LAGAN, J. Le séminaire 1976-77... aula do dia 16 de novembro de 1976, Omicar ?n°12, p.6. LACAN, J. Le séminaire 1976-77... aula do dia 16 de novembro de 1976, Omicar ?n*12, p.6. LACAN, J. Le séminaire 1976-77. aula do dia 16 de novembro de 1976, Omicar ?n"12, p7. LACAN, J. Le séminaire 1976-77... aula do dia 16 de novebro de 1976, Omicar ?n°12, p. 9 LAGAN, J. Le séminaire 1976-77. aula do dia 14 de dezembro de1876, Ornicar 70°13, p. 10, LAGAN, J. Le séminaire 1976-77. aula do dia 14 de dezembro de 1976, Omicar ? 1°13. p. 13. LACAN, J. Le séminaive 1976-77... aula do dia 11 do jansivo de 1977, Ornicar ? 0°14, p. 6. LAGAN, J, Autres Eonts, Pens, Seuil,2001, p. 509. NRT. Ne tredugé para 0 portugués, foram fetes ‘slgumas alteragSes com relacdo &quela publicada em: Outros eseritos. Ric de Janeiro, Zahar Editor, 2003, p. 568. LACAN, J. Outros asontas.. p. 585. LACAN, J, "Propos sur Fhystére, Quarto n°2, setembto de 1981, p.5 LACAN, J. Le séminaire 1976-77... aula do dia 14 de dezembro de1978, Omnicar 70°13, p. 15, LAGAN, J. Le séminaire 1976-77. aula do dia 14 de dezembro de1876, Ornicar ?n°13..p.8.

Você também pode gostar