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Régis Frota

O HOMEM QUE MATOU


DOM QUIXOTE
E OUTROS ENSAIOS SOBRE CINEMA E LITERATURA
Presidente da República
Jair Messias Bolsonaro
Ministro da Educação
Milton Ribeiro

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC


Reitor
Prof. José Cândido Lustosa Bittencourt de Albuquerque
Vice-Reitor
Prof. José Glauco Lobo Filho
Pró-Reitor de Planejamento e Administração
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Prof. Edmar da SIlva Ribeiro


O HOMEM QUE MATOU
DOM QUIXOTE
E OUTROS ENSAIOS SOBRE CINEMA E LITERATURA

Fortaleza
2021
O Homem que matou Dom Quixote e outros ensaios sobre cinema e literatura
Copyright © 2021 by Francisco Régis Frota Araújo

Todos os direitos reservados

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Av. da Universidade, 2932, fundos – Benfica – Fortaleza – Ceará

Designer
Marisa Marques de Melo

Revisão de Texto
Mônica Barbosa Costa

Capa
Ilustração de Dom Quixote por Gustave Doré

Ficha Catalográfica
Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães CRB 3/801-98

A663h Araújo, Francisco Regis Frota

O homem que matou Dom Quixote: e outros ensaios sobre


cinema e literatura / Francisco Régis Frota Araújo. - Fortaleza:
Imprensa Universitária, 2021.

302 p.

ISBN: 978-65-88492-77-2

1. Cinematografia 2. Cinema e Filosofia 3. Cinema Cea-


rense 4. Ensaios I. Título

CDD: 778
Dedicatória

Dedico este livro aos meus netos Letícia,


Matias, Isabella e Sarquis Neto, ricos de encantos e,
mais ricos ainda, da herança de virtudes de seus pais,
todo o afeto do vovô Regis.
Agradecimentos
SUMÁRIO

DEDICATÓRIA ...................................................................................................... 5
AGRADECIMENTOS ........................................................................................... 7
APRESENTAÇÃO ................................................................................................13
PREFÁCIO
SOMBRA E LUZ, ENTRE O CINEMA E A LITERATURA ...........................15

PRIMEIRA PARTE
CICLOS SEISCENTISTAS .......................................................................19

CAPÍTULO 1
O CICLO SHAKESPEREANO .....................................................................................23

CAPÍTULO 2
O CICLO FILMOGRÁFICO CERVANTINO:
O HOMEM QUE MATOU DOM QUICHOTE ......................................................45

SEGUNDA PARTE
CLÁSSICOS DO CINEMA DO SÉCULO XX ..........................................71

CAPÍTULO 3
O ACOSSADO E A DESMISTIFICAÇÃO GODARDIANA ...............................75

CAPÍTULO 4
SOBRE A FILMOGRAFIA FELLINIANA, SUAS NOITES E A
COMEMORAÇÃO DE CENTENÁRIO DE SEU NASCIMENTO ...................95

CAPÍTULO 5
NOTAS REVISORAS ACERCA DA FILMOGRAFIA DE
STANLEY KUBRICK .................................................................................................... 111
TERCEIRA PARTE
CINEMA BRASILEIRO DE ONTEM E DE HOJE ................................137

CAPÍTULO 6
GRACILIANO RAMOS E LEON HIRZSMAN:
A CRIAÇÃO DE TEXTO/IMAGEM. ....................................................................... 141

CAPÍTULO 7
O CASO DOS NOVELISTAS NORTE-AMERICANOS DO SÉCULO XX
E SUA ATRAÇÃO PELO CINEMA ......................................................................... 167

QUARTA PARTE
CINEFILÔ ABISSAL E CONTEMPORANEIDADE ..............................187

CAPÍTULO 8
O ABISMO E O CINEMA MODERNO: COMO A LITERATURA
E O CINEMA ENCARAM ESTA POSSIBILIDADE, EM HORA DE
PANDEMIA ....................................................................................................................189

CAPÍTULO 9
CINEMA E FILOSOFIA: DE WALTER BENJAMIN A SLAVOJ ZIZEK ....... 207

CAPÍTULO 10
CINEMA E PSICANÁLISE – ANÁLISE DA OBRA DE DOSTOIEVSKI ..... 217

QUINTA PARTE
CINEMA CEARENSE ............................................................................255

CAPÍTULO 11
O CINEMA CEARENSE COMEÇOU CEDO E ... VAI LONGE .................... 259

ANEXO 1: ...........................................................................................................286
APRESENTAÇÃO

A
ensaística tem merecido algumas incursões teóricas, no
terreno da cinematografia moderna. Alguns teóricos,
contudo, acreditam que o cinema já conhece um tempo
pós-moderno, um pós-cinema.
Nossa intenção, em mais este livro despretensioso - o qual
contém ensaios de literatura e cinema – é ressaltar algumas expe-
riências cinematográficas que marcaram aos amantes da sétima
arte, seja pela natureza autoral de seus realizadores, seja pelo rela-
cionamento com a narrativa literária.
Dedicamos alguns capítulos dessa obra a cineastas-autores
já clássicos como os europeus: Jean-Luc Godard, Federico Felini e o
norte-americano Stanley Kubrick; nalguns casos, comentei um úni-
co filme do realizador, noutros discorri sobre toda a sua filmografia,
como no caso de Kubrick.
Outra parte de minhas observações ou comentários se vol-
tam para o cinema brasileiro, no caso, adaptações de romances
como no caso de São Bernardo, de Graciliano Ramos ou mesmo
sobre um filme, marcadamente pessoal, no caso de Entre Macacos e
Anjos, de Elizeu Ewald.
Por outro lado, reservei uma parte dos ensaios para tratar
das correlações entre a literatura dos séculos XVI e XVII com o cine-
ma dos séculos XX e XXI. Destarte, tento reflexionar sobre os ciclos
shakespeariano e cervantino.
Uma parte desses ensaios foi dedicada a uma certa visão
apocalíptica da humanidade, a partir da existência da pandemia do
COVID-19, durante este ano de 2020, caracterizado pelo temor glo-
bal da ausência de vacina contra o Sars-CoV-2 e da iminente possi-
bilidade de guerra híbrida, entre os EUA e China, cujo erro humano
poderia pôr termo à existência terrena.
Dois capítulos ulteriores descrevem, de um lado, as relações
entre a psicanálise e o cinema, através da literatura dostoievskiana,
e por outro, resume o pensamento de três filósofos – Benjamin,
Deleuze e Zizek - acerca do cinema.
Por último, relacionamos a produção de filmes cearenses
através da história.

13
PREFÁCIO

SOMBRA E LUZ, ENTRE O CINEMA E A LITERATURA

A
tarefa que me cabe no procedimento de comentar este
livro de Régis Frota é laudatória e didática. É laudatória,
porque o autor merece todos os louvores do mundo, ao
legar-nos suas profundas reflexões, tão essenciais, sobre temas re-
levantes da cultura, de que os leitores criteriosos estamos sequio-
sos de conhecer. A incumbência deste prefaciador tem também um
caráter didático, porque, diante das pertinentes considerações que
Régis Frota nos propõe sobre grandes artistas da literatura e do ci-
nema, o que me compete é destacar alguns aspectos específicos de
seus textos. Assim, acredito que conseguirei transmitir de imediato
uma ideia da densidade das informações contidas nesta obra.
De fato, O homem que matou Dom Quixote, ensaios de cine-
ma e literatura é um tratado sobre a arte da imagem e da palavra.
Régis Frota estuda aqui não apenas a cinematografia de diretores
da categoria de Jean-Luc Godard, Federico Fellini, Stanley Kubrick,
Akira Kurosawa, Orson Welles, entre outros, mas também as afi-
nidades eletivas entre a literatura e o cinema. Nesse sentido, faz
reflexões sobre as nuances que permeiam ambas as expressões ar-
tísticas, ao referir-se às adaptações fílmicas de magníficos textos,
como as peças de William Shakespeare, o romance Dom Quixote,
de Miguel de Cervantes, além de algumas das mais importantes
criações de Graciliano Ramos.
Com destreza imaginativa e dedutiva, Régis mostra, desse
modo, as semelhanças e as disparidades entre a linguagem literária
e a expressão direita da imagem projetada na tela cinética. Assim,
não obstante as diferenças dos códigos de linguagem de ambos os
gêneros da arte, eles são absolutamente complementares. Portan-
to, as preciosas transposições cinematográficas das obras literárias,
feitas pelos talentosos cineastas, configuram uma nova dimensão
estética e semântica, pela qual nos enriquecemos intelectualmente.
Neste seu magnífico O homem que matou Dom Quixote, en-
saios de cinema e literatura, Régis Frota exemplifica alguns filmes

15
que podemos considerar imperdíveis, como é o caso de À bout de
soufle, de Jean-Luc Godard. Nessa montagem cênica, cuja força ex-
pressiva tem o teor transgressor típico da sátira e faz de Godard a
um herdeiro da criatividade dos escritores surrealistas e dadaístas
que fundaram na França a revolução literária mundial do Século XX.
A respeito de Federico Fellini, Régis destaca a vinculação da
filmografia desse fabuloso cineasta à corrente do neorrealismo do
cinema italiano, inaugurado por Roberto Rossellini.
Mediante filmes da qualidade de La Strada, La dolce vita, Le
notti di Cabiria, Il Vitteloni, Roma, Otto e mezzo e Amarcord, Fellini
prova ser um grande expoente do neorrealismo, essa corrente artís-
tica italiana, na qual se engajaram também Luchino Visconti e Vit-
torio De Sicca e outros. Régis nos recorda, com exata oportunidade,
que a cinematografia de Fellini se caracteriza sobretudo pela crítica
a toda sorte de dogma e autoritarismo, bem como pela técnica da
descontinuidade da narrativa.
Ao analisar a obra do norte-americano Stanley Kubrick, Ré-
gis Frota observa o caráter dramático, tendente ao trágico, na fil-
mografia desse diretor. Destaca o aspecto pós-moderno, perturba-
dor e instigante de sua obra. Com efeito, em suas criações, Kubrick
imerge na temática do abissal e na crítica incisiva a uma sociedade
violenta, que fomenta guerras e outros procedimentos irracionais,
ao ponto de suscitar temerárias conjecturas sobre a perspectiva de
uma ameaça apocalíptica para o destino da humanidade.
Régis Frota recorda ainda que Orson Welles foi o precursor
de Kubrick na contextualização das inovadoras ideias que o autor
de Fear and desire, Dr. Strangelove e Clock Orange efetivou na pers-
pectiva audiovisual.
Quanto às produções brasileiras que exemplificam êxitos
na arte da transposição de textos literários para o cinema, o autor
de O homem que matou Dom Quixote, ensaios de cinema e litera-
tura considera dignas de nota as adaptações de alguns romances
de Graciliano Ramos para as telas cinéticas. São Bernardo, filmado
por León Hirzman, bem como Vidas Secas e Memórias do Cárcere,
concebidos por Nelson Pereira dos Santos são realizações em que
ficam patentes as eficientes prospecções efetivadas no processo da
mudança da narrativa literária para a narrativa cinematográfica.
Ainda no contexto de sua análise da transposição do lingua-
jar das letras para o dinamismo das luzes e das sombras cinéticas,

16
Régis aprofunda o assunto e considera as relações entre a filosofia
e o cinema, à luz do pensamento de mestres do nível de Walter
Benjamin, Gilles Deleuze e Slavoj Zizek.
Régis prossegue, considerando as bem-sucedidas adapta-
ções fílmicas de peças de Shakespeare, entre as quais merecem alu-
sões elogiosas as versões de King Lear, feitas respectivamente, por
Peter Brook, Grigori Konzintsev e Akira Kurosawa. Quanto a este úl-
timo, a montagem do filme Ran, que reproduz no cinema a referida
tragédia shakesperiana, apresenta um impressionante dinamismo
cênico na transposição do contexto de King Lear para um cenário
feudal do Japão no século XVI.
O brilhante ensaísta comenta ainda o filme brasileiro Entre
macacos e anjos, de Elizeu Ewald, classificando-o no gênero da fic-
ção de utopia e destacando que a película ressalta o aspecto da me-
talinguagem do próprio cinema, já que versa sobre a complexidade
do trabalho de realização de um filme.
Ainda na sequência dos estudos sobre as adaptações cine-
matográficas, este livro refere-se às transposições audiovisuais da
obra de Cervantes, sendo dos mais expressivos o ciclo de recriações
filmográficas de Dom Quixote. Com efeito, bastaria citar o filme O
homem que matou Dom Quixote (título que dá nome a este livro).
Trata-se de uma excelente realização audiovisual, dirigida por Terry
Gilliam e Toni Grisoni. Outros cineastas, como George W. Pabst,
Orson Welles e Jess Franco, retrataram também a obra imortal de
Cervantes com arguta criatividade.
Uma das mais brilhantes constatações de Régis Frota neste
seu tratado de cinema e literatura é o fato de ele haver percebido,
ao estudar a obra literária de Dostoiévski, que o grande romancista
russo antecipa alguns conceitos freudianos da psicanálise, ao apro-
fundar a interpretação psicológica da conduta dos personagens
que criou em sua magnífica obra.
Enfim, depois de anunciar as maravilhas que se ressaltam nos
ensaios de Régis Frota, resta-me reiterar que ele soube, efetivamente,
cumprir o escopo primordial de sua mensagem neste livro, ao demons-
trar a acuidade estética dos diretores de cinema na arte de transpor
para o panorama dinâmico das telas a obra dos grandes escritores.

Márcio Catunda, poeta, ensaísta e romances


Belgrado, 28 de outubro de 2020.

17
PRIMEIRA
PARTE
CICLOS SEISCENTISTAS
20
21
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 1

O CICLO SHAKESPEREANO

Quando em 1966, há mais de meio século, portanto, li, pela


primeira vez, o precioso texto do advogado e cinéfilo baiano, Walter
da Silveira, “As fronteiras do cinema”,1 cujo prefácio de Jorge Ama-
do alertava já para a elevada qualidade ensaística do livro, me de-
frontei com o interessante capítulo “o ciclo shakespereano”, o qual
despertou em mim, desde então, um intenso interesse, já tenha sido
pelo texto do Bardo inglês, já pelas diversas adaptações cinema-
tográficas que o mesmo vem sofrendo pelas mais de mil cinéticas
transposições para o audiovisual das vinte e sete peças teatrais de
autoria de William Shakespeare.
Ora, ao largo deste longo período, reli várias vezes, referido
capítulo do mencionado livro publicado pela editora tempo brasi-
leiro, admirador inveterado do ensaio de Walter da Silveira, bem
como do texto teatral shakespereano. Se impunha a indagação:
o que faz uma peça do bardo – cujo texto ultrapassa os quatro
séculos da morte do autor – , realizar-se como um “grande filme”?
Como adestrar-se para apreciar e eleger uma relação de trinta me-
lhores adaptações cinéticas, da obra shakespereana, levando-se
em conta quais melhores critérios críticos, de modo a possibilitar-
-se sua análise e estudo?
O crítico de cinema e autor dramático e apaixonado pelo te-
atro de Shakespeare, Fernando Gil Delgado, elabora uma relação de
25 dos melhores filmes adaptados de textos do bardo, com a qual
integralmente concordamos, embora acresça alguns títulos, com
vistas a ampliá-la até uma mencionada trintena de películas, dignas
de um ciclo shakespereano atualizado.2

1 SILVEIRA, W. Fronteiras do cineman. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1966.


2 GIL-DELGADO, F. Introducción a Shakespeare a través del cine. Madrid: Ediciones
Internacionales Universitarias, 2001. p. 37-38.

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Regis Frota

Estes filmes escolhidos, adiante apresentados por ordem


cronológico, com os respectivos diretores e anos de produção, co-
brem oitenta anos da história do cinema, e são:
1. Sonho de uma noite de verão, de Max Reinhart e William
Dieterle (1935);
2. Henrique V, de Laurence Olivier (1944);
3. Macbeth, de Orson Welles (1946);
4. Hamlet, de Laurence Olivier (1948);
5. Otelo, de Orson Welles (1952);
6. Júlio César, de Mankiewicz (1953);
7. Otelo, de Yutkevitch (1955);
8. Ricardo III, de Laurence Olivier (1956);
9. Trono manchado de sangue, de Akira Kurosawa (1957);
10. Hamlet, de Grigori Konzintsev (1964);
11. Campanadas a meia noite, de Orson Welles (1965);
12. A mulher indomável, de Franco Zeffirelli (1967);
13. Rei Lear, de Peter Brook (1969);
14. Rei Lear, de Grigori Konzintsev (1970);
15. Macbeth, de Roman Polansky (1971);
16. Ran, de Akira Kurosawa (1985);
17. Henrique V, de Franco Zeffirelli (1990);
18. Os livros de Próspero, de Peter Greenaway (1991);
19. Muito barulho por nada, de Kenneth Branagh (1993);
20. Othelo, de Oliver Parker (1995);
21. Romeu e Julieta, de Baz Luhhman (1996);
22. Noite de reis, de Trevor Nunn (1996);
23. Hamlet, de Kenneth Branagh (1996);
24. Trabalhos de amor perdidos, de Kenneth Branagh (1999);

24
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

25. Tito Andrônico, de Julie Taymor (1999);


26. Sonhos de uma noite de verão, de Michael Hoffman
(1999);
27. Tempestade, de Julie Taymor (2010);
28. Coriolano, de Ralph Finnes (2011);
29. Machbeth: ambição e guerra, de Justin Kurzel (2015), e,
30. Shakespeare apaixonado, de Tom Stoppard e Marc Norman.

Ora, evidentemente que a última película não se cuida de


uma adaptação de qualquer peça teatral Shakespereana, contudo,
o filme de Stoppard e Norman pode-se considerar como uma ver-
são mais de Romeu e Julieta, “Como William Shakespeare escre-
veu Romeu e Julieta”, e colocamos na lista acima, tendo em vista o
teor enorme de popularização do bardo através de um espetáculo,
leve e cinético, a que tanto atraiu a juventude contemporânea, ob-
jeto de prêmio melhor filme de Oscar do ano de 2010 à produção
da Universal, e várias indicações ao prêmio Oscar da Academia de
Artes Cinematográficas, por comédia biográfica que muito enfeita
e inventa a respeito da vida do bardo.

O CICLO SHAKESPEAREANO

Ora, seria de se saber quais e quantos destes filmes, destas


adaptações cinéticas conservam o vigor da cinematografia artística
e esteticamente recomendável, noutras palavras, quais delas po-
deriam ser consideradas “grandes filmes”, de um modo a compor
aquilo a que denominaríamos o “ciclo shakespereano”?
Pois, antes de nos referirmos especificamente a qualquer das
mencionadas películas, convém referir a reflexão de autor, Anto-
nio Álder Teixeira, 3para o qual, filmes apenas belos, empolgantes,
transgressores, provocativos, etc. não se sustentariam diante de
uma análise criteriosa do ponto de vista cinematográfico. Estou de

3 TEIXEIRA, A.A. O que fez de um filme um grande filme. In: alderteixeira.blogspot.com.


br. Acessado em: 03 jun. 2017.

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Regis Frota

acordo, desde o ponto estético, torna-se fundamental que um filme


para ser considerado um grande filme, ainda que não comportan-
do toda aquela adjetivação inicial, para ser considerado um grande
filme, seja soberbo como arte cinematográfica. É o caso das adap-
tações shakespereanas executadas e dirigidas por Laurence Olivier,
Orson Welles, Kozintzev e poucos outros diretores cinematográfi-
cos, além de Akira Kurosawa e Kenneth Branagh, em que, pese o
fato de cada um deles ter de três a mais películas, adaptadas de pe-
ças do bardo. E isto porque, consoante Álder, um filme grande “se
notabiliza pelo domínio da linguagem, pelo equilíbrio de massas
no quadro, pelo ritmo da narrativa, pela beleza da fotografia, pela
movimentação e angulação da câmera,” por sua poética autoral.4
Os teóricos Robert Stam, Bordwell e Aumont, além de Gilles Deleuze
sempre estiveram a ressaltar estas características cinematográficas
próprias da linguagem do cinema, concorrendo para tornar uma
película em um grande filme, a exemplo da pequena relação de
adaptações cinéticas da obra do autor inglês.
Num primeiro momento, apreciamos os seguintes filmes:
Henrique V, de Laurence Olivier (1944); e, Macbeth, de Orson Wel-
les(1946); Hamlet, de Laurence Olivier (1948); Otelo, de Orson Wel-
les (1952); Júlio César, de Mankiewicz (1953); Otelo, de Yutkevitch
(1955); Ricardo III, de Laurence Olivier (1956); Trono manchado de
sangue, de Akira Kurosawa (1957); Hamlet, de Grigori Konzintsev
(1964); Campanadas a meia noite, de Orson Welles (1965). Após
este grupo de dez películas (nem comentaremos todas, embora
possamos fazer breves referencias, sob o ponto de vista cinemato-
gráfico) voltaremos a comentar outro grupo de dez outros filmes,
até completar a referida relação das trinta melhores adaptações por
nós escolhidas e mencionadas na introdução deste ensaio.
Destarte, estaremos pontuando e associando as distintas lin-
guagens, a do teatro shakespereano e a cinematógrafo, enquanto
diferentes meios de comunicação das tragédias e comédias que o
gênio humano consertou, reflexão a qual se circunscreve no âmbi-
to dos estudos comparativos entre literatura e cinema a se propor
estudar e referir ou refletir sobre as transformações produto da mu-
dança de linguagem ou meio da voz narrativa de um texto teatral e
literário ao ser transposto ou adaptado para o cinema.

4 Idem, ibidem.

26
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Estas reflexões serão levadas a termo analisando os textos li-


terários shakespeareanos em sua versão original (naturalmente tra-
duzidos para o português, em geral, para facilitar a compreensão e
extensão do acesso pelo público leitor nacional) e, confrontando-os
com algumas de suas versões cinematográficas, filmes homônimos
de diversos diretores, caracterizando neles as especificidades de
cada discurso e, em particular, as características próprias da narra-
ção, da ficção e da criação do texto de cada um destes meios artís-
ticos, para compreender assim as consequências teóricas, práticas e
estéticas deste cambio fundamental na abordagem diegética.
Não carece ressaltar que, desse modo, estaremos cobrindo,
nesse primeiro momento analítico, uma faixa cronológica superior a
vinte anos, de 1944 a 1965, período no qual a arte cinematográfica
se especializou em adaptar o velho bardo inglês, mui especialmente
por influência daquele cineasta que ingressou na década do 40 com
a enorme inovação linguística introduzida por seu filme de estreia, o
Cidadão Kane (1941), o Orson Welles originário do rádio e do teatro,
intenso admirador de Shakespeare, talvez tanto quando o teatrólo-
go Lawrense Olivier, o qual tantas levou aos palcos londrinos, en-
cenações concretas de peças do Bardo. De 1944 a 1952, o primeiro
adaptou Macbeth, em 1946, e Otelo, em 1952, enquanto o segundo,
o cineasta Laurence Olivier levou às telas Henrique V (em 1944); e,
Hamlet (em 1948). Não é aqui o caso de inventar a roda: concorde-
mos com Walter da Silveira, 5 para quem “acusado de maneirismo,
Olivier não se importou de usar ainda um velho truque de filmagem,
o flou, dotando-o de novo efeito. A imagem dilui-se em dois instan-
tes da mais profunda densidade temática e estilística, o da aparição
do espectro do pai no pátio do castelo e o da atração para a morte
no alto da torre. No primeiro, o flou contém todo o terror e vacilação
do príncipe em face do sobrenatural. No segundo, funciona com
um símbolo do pensamento ainda indistinto, em névoa e agitação,
como aquele mar que só a seguir, se precisa em baixo.”
Ora, o abismo hamletiano, ou shakespeareano propriamente
dito, consiste precisamente, nessa tendência constante e permanente
do protagonista à morte, à perturbação psicológica e mental, à
dissolução ética e global da sociedade no reino podre da Dinamarca
que levará, necessariamente, às tantas mortes (em número de oito)

5 Op. cit. p. 80.

27
Regis Frota

provocadas por Hamlet, e em milhares resultantes das guerras e


conflitos históricos relatados pelo Bardo, de Macbeth a Júlio Cesar,
de Hamlet a Otelo, de tragédias a comédias como Romeu e Julieta
ou Tempestade, de Muito Barulho para nada a Sonhos de uma
noite de verão, de Henrique V a Ricardo III, de Coriolano a Hamlet
novamente, etc.

O ABISMO E O CINEMA, NUMA PERSPECTIVA
SHAKESPEARIANA

A perspectiva abissal do texto shakespeariano nos lembra


os tantos textos cinéticos, os quais, ao largo da história, tentaram
adaptações desse espírito correlacional.
Em recente comemoração cinquentenária do filme brasileiro,
“Terra em Transe” foi, novamente exibido em Fortaleza, acompanha-
do de debates no Cine Teatro São Luís, com enorme plateia, repre-
sentando exemplo da presença do abismo no cinema de Glauber
Rocha, quando Sara (Glauce Rocha), a companheira do personagem
central ou protagonista, Paulo Martins, reclama que o jornalista e
poeta se está entregando ao torpor e à depressão, durante passea-
ta e lhe acusa: - Veja Paulo, Vieira está perdido ante o abismo, você
jogou Vieira no ABISMO, ao que Paulo responde – Eu? o abismo
está aí ,aberto, e todos nós marchamos para ele...
É deste abismo, aberto ao ser humano, à humanidade, deste
sentimento da catástrofe, entre o real e o imaginário, na expressão
da filósofa Annie Le Brun, que pretendo falar e discorrer sobre o po-
tencial da arte cinematográfica em captar o abismo, em expressar o
destino humano, a própria vida tão transitória aqui na terra, com o
sentimento permanente, entre os seres vivos, da ameaça da presen-
ça da morte, já que o leque de nossas desgraças recentes – sejam
elas de origem química, alimentar, industrial ou nuclear (tal leque se
abre entre os desastres em Chernobyl, ameaças atômicas, terremo-
tos e vulcões, tsunamis, e a catástrofe em Fukushima, a pandemia
do COVID-19, etc.) não nos deixa esquecer a constante ameaça da
iminente e inevitável chegada escatológica do destino final, seja de
forma individual, seja coletiva.
A guerra híbrida dos Estados Unidos, de Trump, com a China,
de Xi Jinping está aí e seguirá, até quando não sabemos.

28
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

E, no ensejo temático, não há como não referir as relações da


pós-modernidade de algumas leituras shakespereanas, elaboradas
pelos interpretes e escritores atuais ou cineastas contemporâneos,
a exemplo do diretor australiano, Baz Luhrmann, cuja trilogia do
vermelho, conta com o filme de 1996, Romeu + Julieta, o qual
atualiza de modo insólito, criativo e provocativamente, em termos
estéticos, o universo do bardo inglês, em níveis de abissalidade,
pela utilização de uma trilha sonora insolitamente digital e de armas
modernas- onde as espadas viram revólveres. Os atores Leonardo
di Caprio e Claire Danes contribuíram para a obtenção dos prê-
mios BAFTA e a trilha sonora inclui Garbage, Givin Friday, Butthole
Surfers, The Cardigans, Radiohead, the Wannadies, e Des`ree. Traz
a marca da pós-modernidade do cinema australiano, o qual reali-
zador (Buz Lurhmann) faz uma bela dupla de reconhecido talento
internacional juntamente com Jane Campion (de O Piano).
Baseado na obra homônima de William Shakespeare, Ro-
meu + Julieta (1996), contudo ambientado em um ambiente con-
temporâneo, a fictícia Verona Beach, vemos o realizador misturando
digital, ficção cientifica, pós-modernismo abissal, etc.6
O abismo ,no cinema, tem especial relevo audiovisual, tam-
bém, em dois outros filmes ORDET de Carl Theodore Dreyer, o
mesmo célebre diretor de “Aurora” (1936) e Paixão de Joana D´Arc
(1948) e, VERTIGO ou UM CORPO QUE CAI, de Alfred Hitchcock,
os quais merecerão nossa apreciação, neste bate-papo descontra-
ído, tendo em vista que, tanto o espetáculo hitchcockiano que res-
suscita Kim Nowak pela dramaturgia hollywoodiana do suspense e
da vertigem reconstrutora do mesmo penteado prateado e louro,
mesma indumentária e mesmos trejeitos da suicida, quanto o filme
dinamarquês antecedente e prenunciador das perquirições berg-
manianas, A PALAVRA, igualmente centrado no tema da ressurrei-
ção, desta feita, ressurreição real e concreta, pelo Cristo da película,
efetuada pela fé do personagem filho do patriarca do filme.
O abismo nestes dois filmes é matéria central- no de Hit-
chcock, desde o início do filme, quando o James Stewart socorre
e salva a linda mulher que se lançara no rio, abismo abaixo, numa

6 Conferir COUSINS, Mark: The story of film – Na Odissey, identificável no Facebook, narra
a história do cinema como um evento cinematográfico sem precedentes, uma jornada
épica, na perspectiva do autor dessa odisseia, Mark Coussins que é um deleite para os
amantes da sétima arte. Atravessa 12 décadas, em seis continentes.

29
Regis Frota

tentativa suicida de retirar-se a própria vida, o espectador pode ver


e perceber a ABISSAL condição daquela que será reconhecida como
fantasma quando, sequencia adiante, ingressa no hotel, mas não é
encontrada seja pela gerente, Seja pelo próprio investigador que,
embora a tivesse visto penetrar naquele hotel, se surpreenderá sem
poder apreender ou identificar sua saída, a saída de um ser con-
creto, de qualquer mulher alguma. Já no filme ORDET (a palavra), a
busca do abismo transcende todo o filme, seja quando desaparece
Johannes, o Cristo ortodoxo da película, levando seu pai e irmãos a
gritarem e procurarem-no sem encontrar, pelos campos e capinzais,
vociferando e apelando por seu nome, inutilmente, até a morte de
nora, quando ele retorna, repentinamente, abruptamente, para efe-
tivar a ressurreição da morta, para resgatar a fé do marido, o qual,
AGORA, ama e crê, e acredita na vida, novamente.
E, por outro lado, a pobreza do que chamamos de filme de
catástrofe, estilo Hollywood, mostra o fim do mundo, com toda
brutalidade dos produtos de grande consumo, incêndios de arra-
nha-céus gigantescos(Inferno na Torre, Terremoto), rupturas de bar-
ragens colossais ou inundações de arquiteturas subterrâneas, etc.,
são apresentados como casos particulares para evidenciar de modo
mais pontual, o preço que o homem deve pagar por não ter queri-
do prestar atenção ao mundo no qual vive. Mas, como assinala Le
Brun, ao mesmo tempo, Hollywood tenta esconder que a evocação
dessas catástrofes, apesar de parciais, serve para nos divertir com
a catástrofe nuclear que, doravante, ameaça o planeta inteiro. De
fato, observa Annie Le Brun7, que “o fim do mundo deixou de ser
representado, precisamente quando, pela primeira vez, dispomos
dos meios de provocá-lo, qual a suicida do VERTIGO. E, igualmente
quando nos lançamos na mais frenética especulação a respeito dos
múltiplos desastres e abismos que se prefiguram com a moderni-
dade. Continua sendo verdade que o fato de se poder prefigurá-los
não suscita mais que imagens previsíveis, para não dizer realistas,
dando prova de uma retração do imaginário catastrófico ou abissal.
Nesse sentido, também se poderia dizer que as atuais catástrofes
– epifenômenos de uma relação com o mundo cuja natureza es-
sencialmente catastrófica desejamos ocultar - , não só deterioram
a paisagem real como atentam contra nossa paisagem imaginária,

7  LE BRUN, A. O sentimento da catástrofe, entre o real e o imaginário. São Paulo:


Editorial Iluminuras, 2016. p. 62.

30
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

fazendo o sonho de aniquilamento passar do infinito para a finitu-


de, afirma Le Brun.8
Por outro lado, não podemos esquecer de ressaltar o caráter
modernista e pioneiristico do teatro shakesperiano no tocante à re-
flexividade e autoconsciência. Consoante afirmado por Robert Stam:
“A analogia da matemática serve a Shakespeare para reforçar
o poder significante do teatro. Após desculpar-se pela precariedade
de seu palco, compara as palavras de sua peça a “cálculos” e cifra:
Perdoem-me, pois é possível com uma figura falsa
Validar um milhão delas em um espaço pequeno;
Cifremos, então, essa quantidade maior
No trabalho de suas forças imaginárias”9

Essa finitude, da qual fala Annie Le Brun, contudo, é apa-


rente, na medida em que durante essa pandemia do Coronavírus,
pelo globo vivenciada, com distanciamento de cerca de 3 bilhões
de humanos enquanto não saísse uma vacina contra a COVID-19,
(só Deus sabe quando ela sairá para o grosso da população pobre
brasileira e mundial...) mostrou-se apenas uma repetição histórica
de outras pandemias como a gripe espanhola (1918-19), a peste
bubônica e tantas outras medievais desgraças ou ameaças à es-
pécie humana, apocalípticamente simbolizando uma infinitude de
nossa condição terrena. Shakespeare tinha razão. Há que desmisti-
ficar a vida, pela arte.
Por outro lado, das tantas felizardas adaptações cinemato-
gráficas dos textos shakespearianos, se destaca uma das peças (Rei
Lear), a qual merece maiores comentários, hic et nunc: O Rei Lear,
versão nipônica da peça teatral de Shakespeare, digamos assim,
no caso, o filme Ran (1985), de Akira Kurosawa; Rei Lear, de Peter

8 Idem, ibidem.
9 STAM, R. O espetáculo interrompido – literatura e cinema de desmistificação. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 21. No original shakespeariano está assim: “O, pardon, since
a crooked figure may / Attest in little place a million; / And let us ciphers to this great
accompt / On your imaginary forces work”. E Stam diz, então, que a – evocação simultânea
de tropas agrupadas numa suposta Agincourt e da força da imaginação do espectador
para concebê-las mentalmente sugere, mais uma vez, a participação ativa do espectador”.
Idem, ibidem. Concordo plenamente com essa afirmação. O bardo inglês tinha razão e fez
teatro reflexivo, anti-ilusionista, desmistificador.

31
Regis Frota

Brook (1969); Rei Lear, de Grigori Konzintsev (1970), versão russa


da peça do teatrólogo inglês, tal o alcance universalista e atemporal
das ideias do bardo seiscentista.
Ora, Ran se constitui num dos melhores filmes do realizador
japonês, mestre do cinema da terra do sol nascente, de cuja beleza
plástica e dramaticidade admirável, extraída de uma mise-en-scène
inigualável, de modo clássico, adapta a tragédia shapespeariana Rei
Lear, a partir da própria história nipônica feudal. Já se pode afirmar
que a história ou a ação narrativa se passa no século XVI, no Japão,
onde o senhor Hidetora anuncia, de princípio, sua intenção de divi-
dir suas terras e seus reinos entre seus três filhos.
A partir daí – o anúncio antecipado da divisão da “legitima”
entre os herdeiros sanguíneos-, é deflagrada uma verdadeira guer-
ra entre os componentes do clã familiar. Considerando que o se-
nhor Hidetora é acompanhado todo o tempo por um súdito, que
não o deixa até que aconteça a traição, ou seja, tão somente o men-
cionado anúncio se precipita, tem início um processo que levará à
destruição incondicional tanto do clã nipônico, quanto do reino o
qual conhecera a glória do senhor Hidetora/Lear, personagem cen-
tral magnificamente interpretado na transposição fílmica por Tat-
suya Nakai, em filme absolutamente shakespeariano, no espírito e
na forma estética narrativa.
No território do audiovisual do século passado, muito contri-
bui para o repositório imenso da shakespeariologia moderna, senão
para os estudos sobre o palco elisabetano, pelo menos pela utili-
zação do cenário japonês do teatro de Kabuki e da cinematografia
kurosawiana, a qual tanto prestígio trouxe ao ocidentalizar-se.
Apesar de situado num cenário feudal japonês (e não da Bre-
tânha), 10 o Rei Lear de Akira Kuroswa, Ran, é uma tragédia que, a
exemplo de outras peças trágicas do bardo, como Hamlet, Otelo e
Macbeth, se encontra no topo das tragédias de Shakespeare, tra-
tando dos efeitos trágicos da ingratidão humana.

10 Ran, de Akira Kurosawa, faz outras pequenas alterações ou adaptações na narrativa, as


quais, a nosso juízo, em nada altera o espírito shakespeariano: ao invés do senhor Hidetora
anunciar que pretende, antes de sua morte, dividir seu reino, entre as três filhas Córdélia,
Regana e Goneril), por partes iguais, o filme narra como se fora três filhos varões, os quais
passam a guerrear entre si, ignorando a autoridade do pai.

32
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Com efeito, a loucura de Lear/Hidetora é intransponivelmen-


te captada pela câmara de Kurosawa, na originalidade da mise-en-
-scène vencedora de prêmio Oscar, em virtude de palheta de cor
avermelhada, dá conta de um cenário medieval e parricida, tendo
a consagração da loucura do personagem central, se concentra-
do numa incredulidade abissal do ser humano, especialmente filial,
cuja ânsia pelo poder e discórdia política da luta pela conquista do
mesmo, desconhece a figura paterna, caminha para a própria des-
truição de todos os laços amorosos construídos pelo pai, durante a
vida e educação dos filhos, ora em combate parricida.
Isto o filme japonês consegue captar, de maneira definitiva
e intransponível.
Andrew Cecil Bradley (1851-1935), o professor de poesia na
Oxford University de 1901 a 1906, publicou Shakespearean Tragedy
em 1904, tendo sido aclamado desde então como uma brilhante
realização, tendo sido reeditado dezenas de vezes, onde comenta,
com profundidade, essas peças trágicas de William Shakespeare,
e afirma:
“Rei Lear me parece a maior realização de Shakespeare, mas
não me parece sua melhor peça. E percebo que tenho a conside-
rá-la a partir de dois pontos de vista bastante distintos. Quando a
encaro estritamente como teatro, não obstante magnífica em cer-
tas partes, decididamente inferior, no todo, a Hamlet, Otelo e Ma-
cbeth. Quando me vejo sentindo que é maior que qualquer uma
delas, e a mais plena demonstração do talento de Shakespeare,
em dou conta de que não a estou encarando pura e simplesmente
como peça de teatro, mas perfilando-a mentalmente ao lado de
obras como Prometheus Vinctus (Prometeu Acorrentado) e a Divi-
na Comédia, e até mesmo das melhores sinfonias de Beethoven e
das estátuas da Capela dos Médici.”11
Por outro lado, não devemos esquecer o caráter um tanto
abissal e apocalíptico sobre o mundo, na peça trágica Rei Lear,
a partir das criaturas humanas ali retratadas, em sua ingratidão
que leva o pai ao desespero e loucura, queda e morte, hora final
de cada ser, do fraco ao poderoso, algo que podemos concluir
pelas falas confrangedoras de Lear ou Hidetora, no caso da pelí-

11 BRADLEY, A.C. A Tragédia Shakespeariana. Tradução de Alexandre Feitosa Rosas. São


Paulo: Martins Fontes Editora, 2009. p. 184.

33
Regis Frota

cula de Kurosawa. Nota-se, em texto shakespeariano, conforme


observação de Bradley 12:
“Encontram-se reiteradas comparações entre homens e
animais; a ideia de que a “linhagem do homem degenerou em
babuíno”, lobo, tigre, raposa: a ideia de que essa degradação irá
culminar numa luta furiosa de todos contra todos, na qual nossa
espécie perecerá”.
A trama de Ran não deixa, por mais ampla que possa ser,
um só momento de seguir a história do rei, no caso, de Hidetora
que, em sua primeira cena teatral, afirma que deseja “Livrar nossa
velhice de cuidados/ Deixando-os para os jovens com mais forças, /
Enquanto nós, sem cargas, rastejamos / a caminho da morte”.13 Pura
apocalipse, real e representada, auto reflexivamente.
A ideia hobbesiana do já clássico Homo homini lúpus14 está
presente no texto trágico de Shakespeare.
No começo do filme de Akira Kurosawa, Ran, quando cava-
leiros percorrem montados a cavalo, caçando sob a liderança do Hi-
detora / Lear, cruzam por javalis selvagens, e a imagem se repete,
no entremeio da edição fílmica, ressaltando a ideia de proximidade
entre a natureza do homem guerreiro e a animal selvagem, predador
por excelência. O filme se caracteriza e se singulariza pela intermitên-
cia da cor vermelha, nas sequências iniciais e finais, a salpicar a tela
de sangue, a demorar-se em pôr de sol avermelhados, no horizonte,
jamais deixando o espectador respirar, senão auto reflexivamente.
Aliás, essa palheta de cor “vermelho-sangue”, marca toda
a película, onde cenas violentas ou não, chamam toda a atenção
do espectador; exemplos rápidos: mulher ajoelhada é cortada ao
meio por espada de guerreiro, a cena seguinte é uma parede toda
manchada do sangue escorrido, em cascata, vermelhão total e não,

12 Idem, op. cit. p. 186. Negrito de nossa iniciativa. Continua o literato interprete da
tragédia shakespeariana: “Esse tom pessimista de Timon faz muitos leitores, ainda mais
inescapavelmente do que Rei Lear, imaginarem que Shakespeare estava dando vazão a
algum sentimento pessoal, nutrido quer naquele momento, quer pregressamente; pois
sua marca surge de maneira mais inequívoca quando o herói se põe a destilar seu ódio
contra a humanidade.” Ibidem, idem, p. 186.
13 Ato 1, cena 1.
14 Em tradução livre, do latim empregado por Thomas Hobbes (1588-1679): O homem é
o lobo do homem”, indica o verdadeiro pessimismo que tomou conta de alguns escritores
do século contemporâneo ao bardo inglês, em sua obra Leviathan.

34
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

o dilacerado corpo da referida mulher (ao espectador atento se


percebe, facilmente, o enquadramento akiriano, perfeito, com dois
samurais, sob armaduras, enquanto a parede ao fundo, recebe
como um balde repleto de tinta vermelha, feito sangue a escor-
rer; outro exemplo dessa específica palheta colorida: quando os
guerreiros do rei Hidetora / Lear se deslocam em posição de guer-
ra, todos os estandartes são vermelhos, aos milhares ou centenas,
em plano geral que abarca uma multidão de figurantes, todas as
armaduras e enfeites dos cavalos são igualmente de uma vermelhi-
dão só, esturricando a palheta de cor, significando a opção artística
pelo leitmotiv definido na tragédia shakespeariana transposta para
a cultura e civilização nipônica do seiscentismo.
Robert Stam15 consolida esse entendimento, ao afirmar:
“O teatro de Shakespeare alimenta-se de uma luta dialética en-
tre a imitação realista e o artifício realista. The taming of the Shrew (A
megera domada) é uma peça desempenhada para Christopher Sly. Este,
no palco, confunde o que vê com seus próprios sonhos, da mesma for-
ma que Buster Keaton, sonâmbulo, invade a tela do cinema em Sher-
lock Jr. Mas, além de incluir peças-dentro-de-peças, Shakespeare nos
mostra algo mais importante: peças em processo de preparação.”
E mesmo o célebre escritor russo Fiodor M. Dostoievski, em
pleno século XIX, percebe essas características possíveis de serem
incorporadas pelo homem, tanto que em seu livro Os irmãos Kara-
mázov, um dos irmãos, Dmitri Mítia, instantes antes de encontrar-
-se com sua paixão, Gruchenka, cita textualmente ao personagem
central de outra tragédia shakespeariana, Hamlet quando afirma:
“Você se lembra de Hamlet: “Eu me sinto triste, muito triste, Horá-
cio... Ai, pobre Yorick!”16 Talvez eu seja Yorick. Neste exato momento,
eu sou Yorick e, mais tarde, serei o crânio.”
Aliás, o icônico romance dostoievkiano mencionado, o qual
tanto impressionaria e apaixonaria a Sigmund Freud, algumas dé-
cadas após, motivando a identificação psicanalítica do complexo
de Édipo, segue até o extremo do desejo do personagem Dmitri

15 STAM, R. O espetáculo interrompido – literatura e cinema de desmistificação, Paz e


Terra, S. Paulo/RJ, 1981, p. 20.
16 Shakespeare, Hamlet, ato 5, cena 1, versos 176 ss., apud DOSTOIEVSKI, Fiodor M.: “Os
irmãos Karamázov, livro VIII, Martin Claret Edit., tradução de Herculano Villas-Boas, São
Paulo 2013, p. 453.

35
Regis Frota

assassinar ao próprio pai, maior tristeza para quem, como o velho


escritor russo, professava tanto a ortodoxia cristã, odiando o peca-
do do homicídio, quanto mais do parricídio.
Pois esse será o resultado da ingratidão das filhas de Rei Lear
/ Hidetora, no Ran (1985): loucura e morte, em razão da qual as
personagens puras, como Cordélia, filha de Lear, conhece um final
trágico, em que pese este leitmotiv shakespeariano da trágica peça
tenha sido e continue sendo, objeto de diversas adaptações, sejam
teatrais, sejam audiovisuais, da tela grande à TV; a BBC, por exem-
plo, fez recente (2018) adaptação para a televisão, com grandes
atores de cinema como Anthony Hopkins (Rei Lear) e as igualmente
ilustres atrizes como Emma Thompson, Emily Watson e Florence
Plug, sob a direção artística de Richard Eyre. 17
Torna-se imprescindível aclarar que o cineasta japonês
Akira Kurosawa já tinha tido suas experiências bem sucedidas
na transposição, para o bom cinema, de outra peça teatral de
William Shakespeare, seu Macbeth, conhecido desde os anos
50, no Brasil, com o título Trono manchado de sangue (1957).
Quase trinta anos depois, em 1985, realiza Ran, o qual se desta-
ca, como venho dizendo, tanto pela palheta colorida de sangue,
quanto pelo cenário horizontal aberto ao infinito, palco nipôni-
co de guerras com espadas, próprio aos samurais e guerreiros
medievais do Japão, liberto dos estreitos limites geográficos do
palco elisabetano, em que pese a afirmação da experta em tea-
tro shakespeariano, Bárbara Heliodoro:
“A estrutura do teatro elisabetano é excepcionalmente pro-
pícia à relação entre palco e plateia: com uma grande área projeta-
da para o centro do pátio – que será chamada de palco exterior ou
avental-, ele funciona como uma arena de três lados, o que é uma
vantagem por não deixar os atores de costas para uma parte do
público em momentos cruciais.”18
Kurosawa tira partido do cenário aberto, infinito, de longos
planos e sequências largas, esteticamente estruturadas como cenas

17 Ora, sugere-se ao paciente leitor desses ensaios que veja ou, até reveja, através dos
aplicativos Youtube.com, ou alugue pela Amazon ou outro qualquer site gratuito ou trailer
ou alguns dos filmes baseados em alguma das 37 peças teatrais de William Shakespeare,
numa forma de assenhorear-se do ciclo shakespeariano, possível atualmente de se ter
acesso, diferentemente de outras épocas.
18 HELIODORO, B. Caminhos do Teatro Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 170.

36
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

de batalhas em campos extensos, de tal modo que, tendo trans-


ferido para o Japão a atmosfera e os personagens da Bretanha, a
segunda adaptação shakespeariana de Akira, numa interpretação
bastante pessoal, convergiu para a adaptação cenográfica: Rei Lear
/ Hidetora ficou situado – e sitiado- dentro de rudes fortalezas de
uma Ásia bárbara. Orson Welles – grande criador norte americano
e admirador de Shakespeare- igualmente adaptou para o cinema
algumas peças do teatrólogo seiscentista: Otelo (1952), Campana-
das a meia noite (1965) e, Macbeth (1947), especialmente nes-
te último caso, tendo conservado ou aceitado o território escocês
como área da tragédia, apesar de suas já habituais audácias.
Como comparar o Ran, de Akira Kurosawa com o Otelo ou
com o Macbeth, de Orson Welles? Pela identidade da origem ou
pela oposição dos métodos artísticos?
A inquietação crítica dessas indagações surge e permanece.
Na conformidade da observação de Walter da Silveira, no princípio
dos anos 60, do século passado:
“A princípio se pensaria que o antagonismo estivesse na es-
colha das próprias tragédias, num contraste de tema, desenvolvi-
mento e ética. A contradição surge na forma de recriá-las dentro
do cinema. Hamlet (dirigido por Lawrence Olivier) era um filme
mais realizado, mais trabalhado, estudado em todos os aspectos.
Macbeth, uma improvisação, um rasgo de audácia, por vezes, o
esquecimento, paradoxal num cineasta brilhante, de que o cinema,
sendo arte, é espetáculo.”19
De modo assemelhado, podemos nos colocar a indagação:
como comparar o Macbeth, de Orson Welles, com o Ran, de Akira
Kurosawa? Porquanto o que mais há para admirar no filme de Ku-
rosawa veio do orientalismo, do cenário aberto ao infinito boreal
e crepuscular, num colorido deslumbrantemente sanguíneo com
que filmou a tragédia shakespeariana. Aquela audácia imposta por
Orson Welles a Macbeth e a Otelo e que deve existir em qualquer
obra enquanto arte, Akira nem o tentou.
Sem que o original reduzisse em densidade, o método de
Kurosawa lhe atribuiu um dinamismo cênico perante o qual o mé-
todo de Welles, com suas ousadias de câmara e enquadramentos

19 SILVEIRA, W. Fronteiras do cinema. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro Editora, 1966.


p. 84.

37
Regis Frota

verticais, parecia estático. Estranhamente, havia mais vida interior


na exterioridade do japonês – a velhice e a proximidade da queda
de Hidetora – do que no aprofundamento dialogal dos filmes do
americano.
Ran não admira apenas porque uma interpretação asiática
da intriga bretã. Olvidada a fonte, o filme permanece num valor
artístico autônomo. Recordada a origem, o filme tem aquela re-
criação que faz do metteur-en-scène um novo criador autêntico ao
lado do dramaturgo.
Aliás, Silveira 20 já observara que:
‘“Embora menos que Olivier, Welles havia experimentado dis-
farces cênicos para esconder o teatro subjacente. Akira Kurosawa (o
de Trono manchado de sangue quanto o de Ran) não teve esse medo
da importância shakespeariana. Todas as cenas da floresta sob a né-
voa vieram como uma solução espontaneamente cinematográfica – o
galope dos cavaleiros dinamizando o ritmo. Mas, as da fortaleza bár-
bara se faziam ainda mais cinematográficas, porque o longo plano
fixo da personagem à espera, durante todo o tempo artisticamente
necessário, da volta do assassino jamais seria um plano teatral, com
o seu prolongado silêncio, porém um plano fixo, no qual a imagem
silenciosa tudo narra plasticamente. Nem a sequência final da morte
do usurpador poderia ser executada teatralmente dentro da concep-
ção que teve Kurosawa, apesar do estilo japonês de uma lentidão
hierática ou de uma grandiloquência mímica, aparentar um exagero
já ultrapassado no ocidente até no baixo palco: os primeiros planos
do ator, seus olhos terrivelmente abertos, a boca hediondamente es-
cancarada, assumem um efeito cinematográfico à altura de lembrar
os planos imortais de Eisenstein em “O encouraçado Potemkim”, na
sequência da escadaria de Odessa.” Em que pese comentários pensa-
dos e elaborados há mais de meio século, as observações a respeito
do MacBeth kurosawiano (O trono manchado de sangue) continuam
válidas e atuais. O estilo de Akira continuou inconfundível. Em Ran
(1985), igualmente, percebemos os elementos dramáticos do Nô,
da tradição teatral nipônica. É fácil surpreendê-lo na maquiagem do
personagem central, cujo caráter é icônicamente japonês. Ran per-
manece como uma dignificação de William Shakespeare, plenifica o
ciclo shakespeariano filmográfico, em sua inteireza modernista.

20  Op. cit. Fronteiras... p. 87.

38
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, S.C. Retórica del Infortunio, persuasión, deleite y ejem-


plaridad en el siglo XVI. Madrid: Iberoamericana Edit.; Vervuert, 2015.
BRADLEY, A.C. A Tragédia Shakespeariana. Tradução: Alexandre
Feitosa Rosas. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.
CUNHA FILHO, F.H. (Org.). Organização do Estado e dos Poderes
em Shakespeare - Lições Atemporais. Fortaleza: Edições UFC, 2015 .
DOSTOIEVSKI, F.M. Os irmãos Karamázov. livro VIII, Martin Claret
Edit., tradução de Herculano Villas-Boas, São Paulo 2013.
FREIRE, Antonio de Abreu: Portugal - Oriente: momentos de
intercâmbio comercial e cultural, Avanca, 2017 (Inédito).
GIL-DELGADO, Fernando: Introducción a Shakespeare a través
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HELIODORO, Barbara: Caminhos do teatro ocidental. São Paulo:
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___________. Hamlet. Wordsworth Classics, edite by Cedric Watts,
London, 1987.
___________. Hamlet. tradução de Millor Fernandes. Porto Alegre:
L&PM Pocket, 1988, 1988
___________. O mercador de Veneza. Martin Claret Edit., tradução de
F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros. São Paulo, 2010
___________. Rei Lear. Tradução de Millor Fernandes. Porto Alegre:
L&PM Pocket, 2009.
SILVEIRA, Walter: Fronteiras do cinema. Rio de Janeiro: Editora
Tempo Brasileiro, 1966.
SMITH, Emma: Guia Cambridge de Shakespeare. Tradução de
Petrucia Finkler. Rio de Janeiro: L&PM 40 anos, 2014.

39
42
EPÍGRAFE

DON QUIXOTE NATIVO


LOYOLA RODRIGUES

General de batalhas tão renhidas


Por belas Dulcineias que pertencem
Aos outros generais que tanto vencem
Sem nunca combater em suas vidas.

Escritor de discursos que convencem


Pelo uso de razões bem esgrimidas,
Mas que vê suas causas tão perdidas
Pela falta de ouvintes que compensem

Exemplo de virtude e resistência


Que aos outros não arrasta; enfim, se atola
No lodo da geral inconsequência.

A esperança do céu é o que consola


Da aridez de seu mundo em decadência,
Da falta de bons pares, que o desola.

43
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 2

O CICLO FILMOGRÁFICO CERVANTINO:


O HOMEM QUE MATOU DOM QUICHOTE

A relação da literatura com o cinema se constitui em temá-


tica complexa e complementar. Na primeira metade do século XX,
a cinematografia se utilizou bastante da literatura, num período de
formação de sua linguagem, e, partir da segunda metade do século
passado, o filme influenciou o ritmo e a narrativa literárias.
Consoante afirmado por Biagio D’Angelo1: “Autores e direto-
res revitalizam reciprocamente o sistema de narração, embora com
óbvios recursos diferentes (uso da temporalidade, a disposição es-
pacial, a difícil – e milagrosa- obtenção da simultaneidade, sua pos-
sível e plausível releitura ou adaptação, sua transcodificação).”
Robert Stam, em sua obra icônica “A literatura através do cine-
ma”, aborda historiograficamente a narrativa do romance ocidental e
escolhe o romance de Miguel de Cervantes Saavedra para dar início a
suas observações acerca da magia, a arte da adaptação e o realismo
e interação entre essas duas manifestações. Eis algumas observações
altamente percucientes do professor da Universidade de Nova York:
“Ficções autoconscientes à la Cervantes desafiadoramente
chamam a atenção para o seu próprio mecanismo e operações, re-
jeitando uma linguagem transparente e discreta para abrir-se sere-
namente para o mundo. Quando Cervantes interrompe a história
da batalha de Dom Quixote com o biscainho, retratando, talvez,
o freeze-frame mais famoso da história literária, deixando ambos
com as espadas levantadas para que o fluxo não prosseguisse e
retomando a narrativa após descobrir um pergaminho que ilustrava
exatamente a mesma batalha, ele está conscientemente destruindo
a ilusão criada por sua história”2.

1 D´Angelo, Biagio: Alice, mentiras e videoteipes. O país das maravilhas segundo Jan
Svanmajer, p. 66, apud “Literatura e Cinema- encontros contemporâneos, Porto Alegre, 2013.
2 STAM, Robert: A Literatura através do cinema. Belo Horizonte: Editora UFMG/
Humanitas, p. 44.

45
Regis Frota

A exemplo do ciclo shakespeariano, anteriormente referi-


do, arrolamos, a seguir alguns títulos de filmes, por nós escolhidos,
adiante apresentados por ordem cronológica, com os respectivos
diretores e anos de produção (representantes de diversos países),
a cobrir oitenta ou noventa anos da história do cinema, capazes de
constituir uma espécie de ciclo cervantino quixotesco, a saber:

1- Uma versão francesa de cinema mudo, de 1903;


2- A versão espanhola de cinema mudo de 1908;
3- A animação de Émile Cohl de 1909;
4- A versão americana de Edward Dillon de 1915;
5- A versão inglesa de Maurice Elvey, de 1923;
6- A versão dinamarquesa de Lau Lauritzen, de 1926;
7- A versão de Georg Pabst, de 1933, um musical;
8- O desenho animado de Ub Iwerks, de 1934;
9- A versão espanhola de Rafael Gil, de 1947;
10- A versão de Orson Welles, iniciada as filmagens de 1955 e
inconclusa, antes de sua morte;
11- A versão israelita de Nathan Axelrod, de 1956;
12- A versão russa de Kozintsev, de 1957;
13- A peça televisiva de 1959, I, Dom Quixote – fonte teatral de
Mano of La Mancha;
14- A versão Finlandesa, de 1962;
15- A versão espanhola de Vicente Escriva, de 1962;
16- A versão da Carlo Rim, de 1963;
17- A versão russa de Yevgeni Karelov, Deti Don-Kikhota, tam-
bém conhecida como Quixote´s children, de 1965;
18- A versão mexicana de Roberto Gavaldon, de 1972;
19- O musical Man of La Mancha, de 1972;
20- A versão Nureyev de balé, de 1973;
21- A versão coreana, Asphaltwiui Don Quixote, de 1988;
22- Outra versão coreana, Naesalang Don Quixote, de 1989;
23- O curta surreal de Alfonso Alvarez, Quixote Dreams, de 1990;
24- O vídeo experimental, the cyberkinetic dream of Don Quixote,
de 1991;

46
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

25- A versão espanhola para TVE, de Manuel Gutierrez Aragón,


de 1992;
26- A versão russo-búlgara, Don Kikhot Vozrachatetsya, de 1996;
27- A versão TNT, de Peter Yates, de 2000; 3
28- Além de algumas adaptações filmográficas feitas já nesse
presente século XXI, a mais expressiva e que nos interessa
comentar é a realizada sob a direção de Terry Gilliam e Toni
Grisoni, após dezessete anos de tentativa de concretização,
intitulado O Homem que matou Dom Quixote.

DON QUIJOTE – CERVANTES

a) O Escritor – biografia e obra


Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares,
em 1547 e faleceu no ano de 1616, portanto, há pouco mais que
400 redondos anos, estamos todos a comemorar, no mundo oci-
dental, o quarto século da morte do famoso escritor espanhol, aliás,
faleceu no mesmo ano (1616) do bardo inglês William Shakespeare
(há até quem afirme terem falecido ambos os autores seiscentistas
no mesmo dia, em que pese a diferença de calendário, à época, en-
tre as nações espanhola e inglesa.
A primeira grande nota a sublinhar na obra cervantina é a
loucura; A insanidade de Don Quijote, a primeira grande insanidade
de protagonista da literatura ocidental, uma insanidade transcen-
dental, movida pela fé, enquanto o protagonista shakespeariano -
se move pela dúvida (to be or not to be..., do Hamlet, vide capítulo
anterior) – a transcendental forma de loucura se antecipa, no Oci-
dente, com Cervantes de Saavedra.

3 Basta referir, com Stam, que o festival de Cinema Espanhol de 1997, denominado
Cervantes em Imagens, apresentou nada menos que trinta e quatro filmes – longas-
metragens, curtas, documentários, desenhos animados etc.- inspirados em Dom Quixote
e outros textos do autor manchego. E a lista continua crescendo a cada ano, onde se
adaptam para o cinema e a televisão, diversas novas versões do famoso livro cervantino.
Conferir, das páginas 43 a 92, do livro de Robert Stam “A literatura através do cinema
(UFMG, 2008), capítulo muito interessante intitulado Um prelúdio cervantino.

47
Regis Frota

“APPROACH” HISTÓRICO – ANTECEDENTES


HISTÓRICOS E LITERÁRIOS

O Renascimento dos séculos XIV, XV e XVI – nas artes, se


caracterizou pela superação da religiosidade medieval; no ponto de
vista cultural, buscava-se um retorno aos clássicos gregos.
Uma data importante: 1453, a queda de Constantinopla,
queda do império romano no oriente, após dez séculos de era me-
dieval, com a invasão dos mouros, multiplicaram-se os estados no
continente, definidas por glebas medievais europeias; Ocorre, en-
tão, a mudança da cosmovisão: a terra agora é redonda, o mar já
não vai ao abismo, ao “finisterrae”.
A descoberta da imprensa gutemberguiana, no século XV,
concomitante à reforma protestante, conduz a uma visão antropo-
cêntrica e não mais, teocêntrica; Galileu e os astrônomos, em 1607,
usam o telescópio para afirmar-se a extensão da terra e do céu;
No Plano meramente hispânico, vejam que a península ibé-
rica foi ocupada/ invadida pelos mouros durante sete séculos, do
ano de 711, quando se instalaram na Andaluzia (Málaga, Córdoba,
Sevilha, Algeciras, em La Alhambra, de Granada, etc.), onde perma-
neceram até a reconquista do ano de 1498, liderada pelos reis cató-
licos Fernando e Isabel.
Influência literária: “O elogio da loucura”, de Erasmo de Rot-
terdam, 1511). Desde o prólogo, Cervantes se diz padrasto da obra
e do leitor desocupado, inaugurando um romance da modernidade
e até da pós-modernidade (com a fragmentação da racionalidade);
vide a hermenêutica de Heidegger e Gadamer, filósofos que reco-
nhecem o valor de Cervantes.
Régistra-se a ficção e a Meta – Ficção, a partir do PRÓLOGO
– “desocupado leitor... ”Um dos livros mais lidos do mundo atual –
após a Bíblia católica-, DOM QUIXOTE DE LA MANCHA ganhou mui-
tas outras e novas edições em 2005, ocasião do quarto centenário
da publicação da primeira parte; Merece ser lida a especial Edição do
IV centenário, da Editora Alfaguara, patrocinada pela real academia
espanhola e a Asociación de Academias de lengua Española .
O livro memorável, icônico e notável de Cervantes, DON
QUIXOTE, é um romance que trata o humano com extremada hu-
manidade, o qual tem inspirado a diversos cineastas e profissionais

48
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

do audiovisual modernista (como Georg W. Pabst, Orson Welles,


Jess Franco, etc.) a tentar transposições para a sétima arte, tanto da
forma autoconsciente autoral inaugurativa do célebre escritor his-
pânico, quanto do conteúdo humorístico-irônico do personagem
central da narrativa.
Consoante afirmado por Stam:
“no campo das artes, a reflexividade no sentido psicológi-
co/filosófico se aplica também à capacidade de auto-reflexão de
qualquer meio, língua ou texto. No sentido mais amplo, a reflexivi-
dade artística refere-se ao processo pelo qual textos, literários ou
fílmicos, são o proscênio de sua própria produção (por exemplo, As
ilusões perdidas, de Balzac, ou A noite americana, de Truffaut), de
sua autoria (Em busca do tempo perdido, de Proust, 8 ½ de Fellini),
de seus procedimentos textuais (os romances modernistas de John
Fowles) os filmes de Michael Snow), de suas influencias intertextuais
(Cervantes ou Mel Brooks), ou de sua recepção (Madame Bovary, A
rosa púrpura do Cairo). Ao chamar a atenção para a mediação ar-
tística, os textos reflexivos subvertem o pressuposto de que a arte
pode ser um meio transparente de comunicação, uma janela para o
mundo, um espelho passeando por uma estrada.”4
Ora, como se pode perceber, Cervantes foi pioneiro na uti-
lização da auto-reflexividade e da ficção autoconsciente, no lado
ocidental, a ponto de inspirar ao grande cineasta Orson Welles, o
qual, passou mais de duas décadas tentando adaptar seu roman-
ce fundamental, “Dom Quixote de la Mancha” aos tempos atuais,
ainda que sem o apoio hollywoodiano da produção (iniciadas as
filmagens em 1955, só foi finalizado em 1992, por intervenção da
montagem de Jess Franco) e, concluída às suas próprias custas. Os
resultados foram extraordinários; tanto em matéria de arte auto-
consciente quanto em relação à reflexividade que a versão welle-
siana prestigiou, e aponta, conforme observação de Stam (pag. 45)
que toda a “história da literatura moderna pode ser vista com uma
nota de rodapé de Dom Quixote. Sua influência estende-se a escri-
tores tão variados quanto Dickens, Melville, Goethe, Flaubert, Twain,
Turgenev, Borges, Machado de Assis e Alejo Carpentier.

4 STAM, Robert, Opus cit., p. 31.

49
Regis Frota

Para Dostoievsky, este “mais triste dos livros” apresentava


o modelo humano para o seu próprio “Idiota”, literatura magistral
cujo personagem central, o príncipe Mishkin, tudo indica ter sido
desenhado pelo escritor russo do século XIX com base numa sín-
tese de Jesus Cristo com o cavaleiro da triste figura, Dom Quixote.
Na verdade, no romance “O Idiota”, Fiodor Dostoievsky des-
creve o jovem e piedoso príncipe Mishkin, o qual regressa a sua
Rússia natal, após passar vários anos em um sanatório suíço, para
receber uma herança e “misturar-se com a gente”. De fato, em São
Petersburgo somente o aguarda uma sociedade obcecada com o
dinheiro, o poder e a manipulação que porá à prova seus puros
sentimentos. Antes, porém, de chegar a seu destino, o príncipe co-
nhece a Rogojin, filho de um abastado mercador, cuja fixação pela
bela e formosa Natascha Filipovna acabará por arrastar aos três a
um desenlace fatal.
O direito espanhol, na época de Cervantes, e suas vertentes
principais, a seguir arroladas, estão refletidos na narrativa cervanti-
na de Dom Quixote:
a) O direito da Corte
b) O direito penal das nacionalidades e das regiões
espanholas
c) O Direito civil e testamentário e suas características
regionalistas, e
d) A inquisição católica proveniente do Direito Canônico, na
Espanha, e suas consequências no Direito espanhol laico
do Reino espanhol
Uma leitura mais profunda do romance de Cervantes, lido
sob a perspectiva de apuração dos diversos aspectos jurídicos e
legais da narrativa, possibilitaria um levantamento mais detalhado
desses aspectos que não interessa tratar agora, vez que estamos
privilegiando uma visão biográfico-estética.
Por essa razão, convém ressaltar que, em 1568, Cervantes já
escreve poemas e vai no ano seguinte a Itália, Roma, onde é serviçal
da “entourage” do mons. Acquaviva (que mais tarde seria cardeal)
e mais tarde, Cervantes se tornaria soldado na Cia. de Diego de
Urbina (1569), atravessando o país, onde conheceu a literatura
renascentista italiana teocêntrica e da “Divina Comédia”, de Dante
Alhighieri a Boccacio.

50
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Participa da batalha de Lepanto, de 1571, onde baleado,


perde os movimentos da mão esquerda; Em 1575, Cervantes em-
barca de Nápoles para a Espanha, mas vai a embarcação atacada
e termina ele prisioneiro, em Argel, base dos piratas da Berbéria
e grande mercado de escravos, e onde permanece, preso, por 5
anos; Em 1580, de volta a Espanha, Cervantes tenta, sem sucesso,
viajar a América, passando a trabalhar como coletor de impostos,
em Sevilha, e acusado de vender trigo sem autorização, é preso em
1592, embora continue escrevendo. Vive em Andalucia, Córdoba,
Sevilha, Granada, La Alambra – sede do governo mouro até 1498,
ano da reconquista) publicando DON QUIXOTE, 1ª parte em 1605,
e após surgir versões clandestinas, em falsa continuação assinada
por Alonso Fernández Avellaneda, se sente Cervantes estimulado
a publicar uma 2ª parte, em 1615, vindo a falecer um ano depois,
com 68 anos.
Quanto ao livro “Dom Quixote da Mancha” – adaptado para
o cinema tantas vezes e, ora sob a forma musical (a versão pabs-
tiana, por exemplo, além de versões operísticas e televisivas), ora
procurando a forma mais fiel ao texto complexo de anedotas de
Cervantes, tinha tudo para não dar certo. Por quê? Ora, Cervantes
constrói e desconstrói (todo o tempo...) personagens e aventuras
impossíveis –, o dom Quijote = um velho leitor, fidalgo magro, so-
nhador que se constrói cavaleiro andante procurando um cavalo
pangaré (o rocinante – igualmente esquálido e alquebrado), uma
armadura velha com elmo reconstruído por ele e que se despeda-
ça,5 se esmorona na primeira oportunidade dando azo ao eterno
sonho de conquista do Elmo de Mambrino (ainda que sob o brilho
solar ilusório de uma bacia de barbeiro...), um escudeiro ignorante
(Sancho Pança), comilão e pantagruelesco, preguiçoso e inábil de
aventuras, enfim... escolhe ou elege uma amada, a Dulcinéia, que
não passa de uma camponesa desgrenhada e pouco asseada, em
que pese os encômios de Quixote.
Contudo, Dom Quixote apanha e sofre com grande digni-
dade, trata-se de um protagonista sincero e digno, na medida de

5 Robert Stam afirma que “assim como os adolescentes contemporâneos tomam como modelo
estrelas pop, Dom Quixote se mira em seus heróis literários. (p. 40). No mundo de Dom Quixote,
personagens sacam espadas para a hermenêutica do mesmo modo ou maneira como os fãs de
cinema da atualidade disputam os valores e significado do cinema, algumas vezes vivenciando
rupturas emocionais devido às suas reações aguçadamente discrepantes.

51
Regis Frota

exemplificação para o futuro da arte autoconsciente e de reflexivi-


dade estética, antes ressaltada. Nos lembra a atuação de Carlitos,
fruto da inspiração de Charles Chaplin, cujos filmes com o velho pa-
lhaço/vagabundo/mendigo, de O Circo (1925) a Em busca do ouro
(1933) ou Tempos modernos (1936). Aliás, uma das sequências mais
engraçadas do filme “O Circo” é quando o vagabundo, querendo
impressionar à namorada – filha do dono do circo-, entra na jaula
do leão, enquanto este, sonâmbulo, se aproxima de Carlitos e volta
a dormir, após espreguiçar-se, dando ao vagabundo a oportuni-
dade de exibir sua ausência de covardia, ousadia ante o rei dos
animais, para a surpresa moçoila, então, já refeita do desmaio. Com
efeito, um dos episódios de “Dom Quixote”, consoante Otto Carpe-
aux,6 “mais engraçados é a aventura do fidalgo com o leão (parte II,
cap.17); encontrando no caminho um leonero que levava um leão
enjaulado para o jardim zoológico d`El Rei, Dom Quixote mandou
abrir a gaiola, desafiando o rei dos animais; o leão saiu rugindo –
mas “no haciendo caso de niñerias ni de bravatas, volvió las espadas
y enseño sus traseras partes a Don Quijote, y con gran flema y re-
manso se volvió a echar em La jaula”.
Diríamos inclusive que Chaplin se inspirou totalmente nesse
episódio cervantino, tão humorístico e humorado. Em seu ensaio
mencionado, Carpeaux comenta que o próprio Cervantes realçou
esse episódio, chamando o capítulo El último punto y extremo adon-
de llegó y pudo llegar El inaudito ánimo de Don Quijote.7 É, pois, o
ponto culminante da obra.
Há quem confunda o chaplinismo com o carlitismo, quem
termine fazendo confusão entre Carlitos e Charles Chaplin. De igual
modo, o episódio do leão covarde ante o atrabiliário comporta-
mento de Carlitos e de Dom Quixote, conduz a uma constante ou

6 CARPEAUX, Otto Maria. “Ensaios Reunidos”, 1946-1971, vol. II, Topbooks, Rio de Janeiro,
2005, p. 190-191.
7 Carpeaux afirma que “justamente aí os comentadores falham. Interpreta-se geralmente
o Dom Quixote como expressão de humorismo doloroso em face da vitória da dura
realidade prosaica dos tempos modernos sobre o romantismo poético e irreal dos tempos
idos. Mas aquele leão não é bem o símbolo da realidade triunfadora; ao contrário, é um
bicho covarde e banal que prefere à luta a vida cômoda, fosse mesmo na jaula. Lembra
frase de Ortega y Gasset, escrita quando os arqueólogos no Egito escavaram o corpo da
Esfinge, desnudando o tronco de um leão comum: em vez do enigma milenário, só ficou
em El desierto un león más. E, se indaga: “Seria isso El último punto y extremo da sabedoria
de Cervantes? – idem, ibidem, p. 191.

52
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

comum confusão entre quixotismo e cervantismo. Na conformida-


de de intuitiva observação do ensaísta Carpeaux,8 “a aventura com
o leão representa el extremo de la jamás vista locura de Dom Qui-
xote; mas não exprime el último punto y extremo da jamais vista sa-
bedoria de Cervantes. Esta suprema sabedoria – tanto do manche-
go escritor seiscentista quanto do cineasta do século XX, Chaplin-,
encontra-se tanto na filmografia de Carlitos 9 “quanto nas últimas
linhas que Cervantes escreveu, poucos dias de morrer, na dedica-
tória da obra que ele mesmo considerava a mais perfeita de todas
as obras suas, despedindo-se da vida com um sorriso enigmático,
citando os versos de uma velha canção popular:
“Puesto ya el pie em el estribo/ com las ansias de la muerte/
Señora aquesta te escribo”.10
Os leitores de Dom Quixote, afirma Stam, relembrando o
episódio do Mestre Pedro cujo retábulo é desmanchado/assaltado
ou violado pelo cavaleiro da triste figura, episódio, aliás, igualmen-
te, histriônico e cheio de humor atrabiliário:
“o episódio em que o protagonista (Dom Quixote) pula so-
bre o retábulo onde Mestre Pedro realiza seu espetáculo de ma-
rionetes e descarrega sua fúria em alguns infelizes títeres, crente
que está agredindo um bando de mouros. Mestre Pedro – lembre-
mo-nos –, protesta: afinal, os objetos da ira do Don nada tinham
de mouros, eram apenas figurinhas de massa. O herói de Cervan-
tes, esse desmancha-prazeres involuntário, desmancha literalmen-
te o mundo mágico, expondo, de forma violenta, a fragilidade de
sua essência.”11

8 Op. cit. p. 191.


9 São 74 filmes divididos em cinco grupos: Keystone, Essanay, Mutual, First National e United
Artists. Segundo Antonio Muniz Viana “que arte, neste século (se referia, naturalmente, ao
século passado, o século XX), não se contentaria com um Charles Chaplin? Pois o cinema
dispõe de dois. O primeiro: da estreia Keytonniana (1914) à muda despedida de Modern
Times (1936). Apud Chaplin por ele mesmo, Martin Claret, 2004, São Paulo, pág. 169.
Por outro lado, o texto-dedicatória cervantina se encontra em seu último livro, o célebre
romance de aventuras, Persiles y Segismunda; Cervantes estava um escritor totalmente
amadurecido, inteiramente dotado de uma filosofia moderna, o perspectivismo.
10 CARPEUAX, J.M.: Op. cit. p.191.
11 STAM, Robert: “O espetáculo interrompido literatura e cinema de desmistificação,
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 18. Vejamos - como discorre o crítico de cinema
aqui mencionado - que a “representação artística é interrompida, tanto em Dom Quixote,
como em diversos filmes de Jean-Luc Godard, por exemplo, pela intervenção ingênua de

53
Regis Frota

Embora os leitores do livro de Cervantes percebam que as narra-


tivas se centram ou se circunscrevem em torno de três leitmotiv funda-
mentais, a saber; a) o mar (aventuras marítimas do personagem central,
com suas aventuras descritas e superdimensionadas pela imaginação
enlouquecida de Dom Quixote; b) a Igreja ou a Côrte, onde ajudantes
do Rei ou do reinado, constituem uma classe de aristocratas bajulado-
res e empregados da realeza ou do mundo eclesial medieval, cuja in-
quisição ou os atos inquisitoriais perseguem aos descrentes e mouros,
a ponto de se caracterizarem por uma violência inominável.
Ademais, a representação artística ou a própria arte ociden-
tal já nos habituou, segundo Robert Stam 12 às ficções que chamam
nossa atenção para seu próprio caráter ficcional:
“As histórias-dentro-de-histórias de Dom Quixote encontram
precedentes nas canções heroicas que ponteiam a canção heroica
maior, a Odisséia. Utilizar a paródia para criticar o estilo de uma fic-
ção não é característica exclusiva de Cervantes. Aristófanes, Horácio
e Ovídio já o haviam feito. O próprio Chaucer intervém em suas
fábulas, destruindo, assim, a ilusão gerada pela narrativa.”
A dificuldade de transformar o sonho em realidade, e a rea-
lidade em sonho, observada em Dom Quixote caracteriza um pro-
cesso que podemos denominar de quixotização de Sancho Pança
(o escudeiro do cavaleiro andante) e a sanchificação de Quixote,
nas situações e episódios em que a realidade pragmática se impõe
sobre os sonhos e devaneios do Quixote. No cinema, através da
transposição de linguagem literária para a cinematográfica, Orson
Welles já tinha dado um baile, na observação acurada de R. Stam:
“Somente um filme pode mostrar, ao invés de apenas
descrever, a beleza plástica dos moinhos de vento. Cervantes falou
de maneira poética sobre as “grandes asas” dos moinhos de vento,
mas apenas um filme pode literalmente mobilizar a multiplicação
cubista de perspectivas sobre um moinho de vento, como faz Welles,

um personagem que confunde a realidade com o espetáculo. Mais importante ainda é o


fato do próprio artista, por extensão, revelar a precariedade relativa e fortuita do mundo
mágico de sua arte. Cervantes, como que por procuração, faz cessar aquele espetáculo de
marionetes puramente verbal que encerra o próprio mundo de Dom Quixote, suspendendo
sua narrativa para nos mostrar, abruptamente, a sua artificialidade de papier-marché.
O espetáculo do Mestre Pedro é análogo à criação de Cervantes, em que ele próprio,
Cervantes, é o mutante imutável e o titeriteiro final.” p. 18, idem, ibidem.
12   Op. cit. p. 19.

54
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

de forma que as pás do moinho girem na direção da câmara, “varram”


o quadro, ou cortem a paisagem ao serem colocados no primeiro
plano. Dessa magnitude são os “ganhos” em potencial ao se traduzir
o romance para o filme. E ao passo que o romance de Cervantes
mostra muito pouca descrição física, o “excesso” do aspecto físico
no cinema nos dá as verdadeiras paisagens (ou, mais precisamente,
seu simulacro imagístico) e os céus maravilhosamente riscados da
Espanha (e dos outros países mediterrâneos onde Welles filmou).
Cervantes faz uma descrição verbal de Sancho Pança vendo a lua
através de um telescópio, mas somente um filme como o de Welles
pode dar-nos um plano a partir de um ponto de vista mostrando o
que Sancho vê ao olhar através do instrumento. O cinema fornece
ainda a contextualização material e visual de ideias abstratas. Welles
emprega ângulo e mise-em-scène, por exemplo, para contrastar
o idealismo de Dom Quixote e a mundanidade de seu escudeiro;
enquanto ângulos baixos idealizam o Dom e fazem dele um herói,
ângulos altos colocam Sancho Pança contra um pano de fundo
terreno, já que ele é “da terra, mundano”. 13
Com efeitos, nas duas partes de Dom Quixote – A primeira
parte, publicada em 1605, descreve o personagem central, o qual
sai duas vezes de casa, na primeira saída, volta logo, logo, rapi-
damente, todo quebrado... E sai uma segunda vez de casa, agora
acompanhado do escudeiro Sancho, em busca de novas aventuras
de cavalaria, até ser reconduzido à casa pelo barbeiro e o padre-
cura da aldeia de Aldonza Alonso, a Dulcinéia, em algum lugar da
Mancha, donde ele (quijote) não quer recordar... após implicá-lo
nos crimes da Sierra Morena, pois soltara os prisioneiros das galés...
o leitor se dá conta de várias fábulas, ao mesmo tempo que se aper-
cebe da destruição da ilusão gerada pela narrativa. Eis o processo
revolucionário do romance de Cervantes.
Consoante ressalta Stam, mais uma vez:
“Dom Quixote assume uma posição absoluta diante desse
desafio histórico e ontológico à narrativa instituída: ou todas as
histórias são verdadeiras, ou todas as histórias são falsas. Quem
acredita nos textos que falam de Moisés e Jesus tem de aceitar
Amadis de Gaula.”14

13 STAM, R. “A literatura através do cinema”, 2008, Belo Horizonte: UFMG Editora, p. 82-83.
14 Op. cit. “O espetáculo...”, p. 19

55
Regis Frota

Cervantes escreveu outros grandes livros, como as: “Novelas


exemplares,” cuja edição da Cosac Naif, de São Paulo, são um bom
exemplo, mas “Dom Quixote da Mancha” foi a obra que mais
adaptações e comentários elogiosos tem merecido ao largo desses
últimos quadro séculos, desde transposições teatrais, operísticas,
cinéticas e releituras.
Enquanto a versão de Orson Welles/Jess Franco cuida de
atualizar a interpretação da cultura e história ibérica, das procissões
católicas medievais da semana santa até os valores morais seiscen-
tistas do velho leitor de romances e novelas de cavalarias, Don Qui-
xote e seu escudeiro, Sancho Pança, numa leitura contemporânea
própria ao século XX, onde a utilização de transportes a petróleo
como motocicletas e carros estão presentes, sem prejudicar o senti-
do histórico das aventuras do “cavaleiro da triste figura”, o filme se
destaca pela fidelíssima interpretação de Francisco Riguera, como
personagem central, e Akim Tamiroff como seu fiel escudeiro, San-
cho Pança. Cuida-se de uma visão bastante pessoal da Espanha.
Percuciente se mostra o comentário de Stam15 sobre o filme
de Welles, em nossa opinião, apesar de inconcluso, de certo modo,
pelo diretor genial, cuida-se do melhor filme adaptado da obra icô-
nica de Cervantes:
“A versão de Dom Quixote feita por Welles deleita-se com
a linguagem e estilo do romance. Welles está entre os poucos que
parecem ter captado a modernidade fundamental do romance, aqui
atualizada através de uma montagem jazzística e uma mise-em-s-
cène estilizada, empregando o estilo barroco e o ângulo oblíquo
típicos de Welles.
Já a versão musical em cinema, dirigida por Georg Wilhelm
Pabst, em 1933, se trata de um filme musical cheio de fantasia que
conta a clássica história de Miguel de Cervantes de Alonso Quixada,
um espanhol que leva ao extremo a sua paixão de criança, aos dias
de cavaleiros e aventuras. Alonso está tão obcecado pelas histórias
de cavaleiros e donzelas, que renega todos os seus bens e passa a
chamar-se Don Quixote de La Mancha, partindo à procura da aven-
tura, montado no seu cansado cavalo Rocinante e acompanhado

15 STAM, Robert. A literatura através do cinema”, Editora UFMG, 2008, p. 79. Diríamos
que não conhecemos estudo mais completo sobre a versão de Dom Quixote, ao cinema
wellesiano, que este livro de Roberto Stam. Absolutamente magistral e icônico seu estudo
sobre o filme de Orson.

56
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

pelo seu escudeiro, Sancho Pança. Vivendo muitas aventuras nas-


cidas na sua ilusão, Don Quixote combate o seu grande inimigo, o
feiticeiro Malfatto, até que sua família decide fazê-lo regressar para
casa, traçando um plano que envolve os habitantes da sua cidade,
esperando que uma boa dose de fantasia o faça cair na realidade.
Antes, contudo, de encerrar essas rápidas considerações so-
bre o ciclo cervantino, convém referir algumas interpretações mais
recentes de críticos e estudiosos da obra de Miguel de Cervantes:
de Mario Vargas Llosa a Martin de Riquer, de Francisco Ayala a Fran-
cisco Rico, de Eduardo Godoy Gallardo a tantos expertos da obra de
Cervantes, nos países sul-americanos de cultura hispânica, poderí-
amos resumir opiniões ou referir pesquisas que conduzem a inter-
pretações que se distinguem ou, às quais podem ser classificadas,
por cada século – desde o XVII até o século XX –, tal o interesse que
mencionada inteligência vem sendo estudada ao largo desse tem-
po, mediante divulgação de seus resultados através de jornadas e
congressos internacionais.
Afirma o Nobel romancista peruano, Vargas Llosa:16

Antes que nada, Don Quijote de La Mancha, la inmortal nove de Cervantes,


es una imagem: la de un hidalgo cincuentón, emburtido em una armadura
anacrónica y tan esquelético como su caballo, que, acompañado por un cam-
pesino basto y gordinflón montado en un asno, que hace las veces de escu-
dero, recore lãs llanuras de la Mancha, heladas em invierno y candentes em
verano, en busca de aventuras.

Já o eminente estudioso em Cervantes, Francisco Ayala17, fala


de uma “invenção do Quixote”, de forma incisiva, alertando ao leitor
hodierno de algum risco e desafio:

[...] Ése es el hecho primordial que deberá tener en cuenta quien estudie el
proceso de creación del Quijote: la perspectiva del lector que hoy se aboca
al libro es diametralmente opuesta a aquella desde la que debió de abordarlo
quien leyera su edición original, y con la que su autor necesitó contar al
componerlo.

Em narrativa inspiradíssima, Dom Quixote confronta logo na

16 LLOSA, Mario Vargas. “Una novela para el siglo XXI”, in Don Quijote de la Mancha,
edición Del IV Centenário, Real Academia Española, Madrid, 2016, p. XIII e SS.
17 AYALA, Francisco. La invención Del “Quijote”, in Don Quijote de la Mancha, edición Del
IV Centenário. Real Academia Española, Madrid, 2016, p. XXIX e SS.

57
Regis Frota

primeira saída de casa um exército de carneiros, supondo se tratas-


se de inimigos armados, significando que, a exemplo da criteriosa
afirmação de Robert Stam, concernente ao efeito literário:

Com o advento do modernismo a descontinuidade ganhou um caráter filo-


sófico, programático e, de alguma forma, hostil. A descontinuidade passa a
apropriar-se do espetáculo. Na arte modernista, a problemática da narração
passa a ser associada a um ponto de vista ante essencialista e fenomenológico
do mundo.18

Francisco Rico, experto responsável por uma preciosa edição


de Dom Quixote, cujo estudo preliminar se mostra incontroverso,
preleciona:
“Fuera como fuese, las imprentas de hacia 1600 sólo por ex-
cepción trabajaban con el autógrafo de um texto inédito: la norma
era emplear uma cópia en limpio preparada por uno os vários ama-
nuenses profesionales y designada como “El original”.19
Por seu turno, Martin de Riquer20 tem toda razão quando
assevera sobre o espírito de escárnio e ironia do texto cervantino:
“Dom Quijote recibió la caballeria “por escarnio”, como
demuestra hasta la saciedad el capítulo tercero de la primera
parte, donde El ventero que le dio el espaldarazo no tênia “po-
derio de lo fazer” y no hizo más que escarnecer “tan noble cosa
como la caballería”.
Muitos outros estudiosos continuam pesquisando e emitindo
opiniões e interpretações sobre “Dom Quixote de la Mancha”. De
José Manuel Blecua, descrevendo historiograficamente sobre a po-
sição do livro na trajetória da língua e literatura espanhola, a Guiller-
mo Rojo, o qual toma Cervantes como modelo linguístico. E muitos
outros, poderíamos citar e referir, sendo dispensável, contudo, para
as pretensões e dimensões do presente ensaio sobre o ciclo cervan-
tino e o cinema.
Contudo, antes de clausurar este capítulo, torna-se im-
prescindível fazer alguns comentários sobre a recente adaptação

18 Idem, ibidem, p. 22
19 RICO, Francisco: “Nota al texto”, in Don Quijote de la Mancha, edición Del IV Centenário,
Real Academia Española, Madrid, 2016, p. LXXVII e SS.
20   RIQUER, Martin: “Cervantes y El “Quijote”, in Don Quijote de la Mancha, edición Del
IV Centenário, Real Academia Española, Madrid, 2016, p. XLV e SS.

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O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

cinematográfica do cineasta inglês Terry Gilliam, baseada no ro-


mance cervantino, após duas décadas de tentativas de conclusão,
The man Who killed Quijote (2018).
Todos sabemos que a pré-produção do filme teve início em
1998, com um orçamento de trinta e dois milhões de dólares. 21 O
próprio teorista de cinema e literatura, Robert Stam, em livro publi-
cado em 2007, quando, ainda não tinha sido possível aos realizado-
res do filme mencionado, conhecer sua conclusão- o que somente
ocorreria mais de uma década depois, tendo tão somente resultado
na filmagem de um documentário de interessante curta metragem,
intitulado Lost in la Mancha-, se reporta como a uma “tentativa frus-
trada de Terry Gilliam”. (p. 88, de “A literatura através do cinema”.
No entanto, retomadas e concluídas, atualmente, as filma-
gens do filme revisionista de um dos fundadores do grupo emi-
nentemente pós-moderno Monty Python, o cineasta independente,
Terry Gilliam, podemos fazer uma apreciação crítica da película, em
que pese o caráter da produção e sua natureza épica tragicômica,
“quando Gilliam recebeu os golpes a que o próprio Quixote havia
se sujeitado”. (sic)
Ora, Gilliam se trata – juntamente com Orson Welles-, de um
dos diretores de cinema mais cervantinos. Desde suas realizações
fílmicas como Brazil, o filme (1985), Os doze macacos (1995), A
vida de Brian (1979), Monty Python, o sentido da vida (1983) e
algumas outras, Terry Gilliam já demonstrara uma grande capacida-
de inventiva, em termos estéticos, quase surrealistas.

21 As redes sociais dão larga conta dos tempos e contratempos que a realização do filme
de Terry Gilliam conheceu, basta conferir, a seguir, o texto que o aplicativo Wikipedia
contém: A pré-produção do filme teve início em 1998, com um orçamento de trinta e
dois milhões de dólares, e o elenco contava com Jean Rochefort como Quixote, Johnny
Depp como Toby Grisoni e Vanessa Paradis como a protagonista. As filmagens iniciaram-
se em Navarra no ano de 2000, mas a produção acabou sendo suspensa por causa de
numerosas dificuldades, como o local de filmagem, o equipamento destruído pelas
inundações, a saída de Jean Rochefort do projeto devido a uma doença, os problemas com
a empresa de seguros para a produção e outras dificuldades financeiras que fizeram com
que o filme fosse cancelado. A produção original foi o tema do documentário Lost in La
Mancha, lançado em 2002. Terry Gilliam tentou relançar o projeto entre 2005 e 2015, que
incluía os atores Robert Duvall, Michael Palin e John Hurt para o papel de Quixote, e Johnny
Depp,  Ewan McGregor e Jack O’ Connell para o papel de Toby Grisoni, mas foi cancelado
por falta de fundos. O ator Johnny Depp saiu definitivamente do projeto devido à sua
agenda sobrecarregada, e o ator John Hurt viu-se obrigado a abandonar o filme, ao ser
diagnosticado com cancro” Acesso em: 03 ago. 2020.

59
Regis Frota

Assim como poderíamos considerar a Orson Welles uma


“personalidade renascentista”, um homem da renascença no que
tange ao seu idealismo enraizado na exuberância e moldura carna-
valesca de Shakespeare e Cervantes (basta verificar a quantidade e
qualidade das suas adaptações de peças do bardo inglês como Ma-
cbeth, Otelo, O mercador de Veneza, etc.), devemos afirmar que Ter-
ry Gilliam é, igualmente, um “homem renascentista” ou mesmo, um
homem “barroco”, na medida em que sempre procurou transgredir
os regramentos hollywoodianos da produção dominante, através
do qual pode ser comparado a Cervantes. O autor espanhol atacou
as novelas de cavalaria – cuja leitura excessiva teria enlouquecido a
Dom Quixote-, Cervantes atacava a tradição literária de sua época,
ao tempo em que criava para o leitor de sua obra os mesmos pra-
zeres gerados pela tradição que combatia.
Gilliam nunca se olvidou da urgência de prazer dos especta-
dores de seus filmes. Sua intenção sempre foi fazer filmes críticos,
irônicos e histriônicos, filmes B para intelectuais, os quais ainda as-
sim possibilitassem alta temperatura participativa no divertimento
dos espectadores, ressoando um Cervantes ou um Shakespeare.
Nos primeiros dez minutos de The man Who killed Don
Quijote, o arrogante diretor de comerciais, Toby Grisoni (interpre-
tado por Alam Driver) prefere ver seu documentário em DVD, o TCC
de final de curso – há pouco comprado de um vendedor pirata- a
fazer sexo com a mulher de seu patrão, o produtor, suspendendo
o prazer dos espectadores, embora não completamente porquanto
Toby pedira à mulher que segurasse a posição erótica.
A mulher até consegue sustentar a posição fetal ou de de-
cúbito dorsal, mas tão somente até o momento em que percebe o
interesse maior do diretor de comerciais por “assistir com urgência
seu filme, interesse maior que em seu traidor sexo... É uma varia-
ção feita em cima da história de Dom Quixote, com procedimento
narrativo cervantino, o espírito de Cervantes está aí nessa sequên-
cia cinematográfica, cuja continuação contém suspense, luta, fuga
e perseguição, são inovações e transformações feitas por Gilliam,
em cima da ideia de golpes e riscos corridos pelo personagem, a
qual, embora sem ser cópia fiel da narrativa de Cervantes, não lhe
trai o espírito aventuresco, quixotesco daquele que se transformará,
simultaneamente, em Sancho, apesar de magérrimo.

60
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

A experiência de Terry Gilliam na filmagem de The man Who


killed Don Quijote (O homem que matou Dom Quixote) corres-
pondeu, de muitos modos, à de Cervantes ao escrever Dom Quixote.
Da mesma forma que o escritor começou a escrever um conto e aca-
bou escrevendo um romance (publicado em duas partes, a primeira,
em 1605 e a segunda, em 1615), Gilliam começou com a tentativa frus-
trada dos anos noventa, experiência de produção sem fortuna capta-
da pelo documentário Lost in la Mancha (2002, de Keith Fulton22) e
terminou com o longa The man Who killed Don Quijote, em 2018.
Em diversas entrevistas, Terry Gilliam reconheceu que tudo
foi como se o seu projeto de filmagens tivesse sido desfeito por
“feiticeiros e encantamentos” dos tempos correntes, ainda bem
que, a exemplo de Quixote, o diretor voltou ao campo de trabalho,
tendo concluído e lançado o filme, mais de uma década posterior.
O tema do fascínio pelo ideal, da loucura transcendental e a
bruta resistência ao real, ao pragmatismo Sanchoniano, tão impres-
cindível ao romance cervantino, nesse caso, se esgotou na primeira
tentativa frustrada – como ressaltado já- de realização do filme de
Gilliam, bem como na necessária retomada das filmagens, mais de
década após, porquanto muitas ideias sólidas foram substituídas pe-
las limitações da produção e pela prática da produção independente.
A narrativa textual interrompida de Cervantes passou a ser,
no caso de Terry Gilliam, a narrativa da própria produção constante
e frequentemente interrompida pela diminuição dos pressupostos
financeiros e pelas constantes substituições de atuações, por moti-
vações de saúde dos atores (Jean Rochefort, ou atropelo de agenda
da parte de Johnny Depp, etc.).
Ademais, em diversos programas de televisão americana
(programas de entrevistas como os de Ricky Camillery, Sam Ashurst,
Letterman e muitos outros), Terry Gilliam teve que justificar-se ou
tentar explicar ao público o conjunto de razões pelas quais conti-
nuava acreditando na possibilidade de elaborar sua adaptação do

22 Na verdade, uma espécie de unmaking of da primeira tentativa de produção do longa


de Terry Gilliam, quando após sete semanas de pré-produção na Península Ibérica, todo
o projeto de filmagens veio abaixo em virtude de uma série de fatores negativos: a)
catastróficas enchentes; b) doenças incapacitantes (a infecção prostática de Jean Rochefort);
c) o estrondo anacrônico de jatos alçando voo em uma base da OTAN, vizinho às locações;
e, d) e, por fim, a suspensão do empreendimento pela companhia de seguros, algo como
“um equivalente contemporâneo das forças obscuras e demoníacas de Cervantes”.

61
Regis Frota

Quixote, de Cervantes. De igual modo que o escritor seiscentista


espanhol se referiu a Dom Quixote como seu filho, Gilliam referiu-
-se à sua adaptação como sua “afilhada”.
E da mesma maneira que Cervantes nunca parou de remen-
dar seu Dom Quixote – na verdade, ele somente publicou a segunda
parte porque constatou que estava sendo plagiado-, Gilliam con-
tinuou a se divertir com a produção e o material filmado de Dom
Quixote por diversos anos, reescrevendo o roteiro diversas vezes, a
diversas mãos, inclusive, até a exaustão.
Embora uma adaptação de Cervantes por um dos membros
fundadores da Monty Python fosse previsível ou mesmo aceitável,
artistas criativos como Terry Gilliam são, de alguma maneira, pícaros
cervantinos dos dias atuais, de mesmo modo que Dom Quixote foi o
Monty Python de sua própria época; e o projeto de Gilliam era, des-
de o início em 1998, era em si mesmo, totalmente quixotesco, na
medida em que seu orçamento não suportaria as dívidas contraídas
desde o filme anterior, As aventuras do Barão Munchausen.
Terry sempre sonhou com um orçamento maior, os assesso-
res discutem isto, o tempo todo, durante o próprio filme: se devem
fazer essa ou aquela cena por computação gráfica ou não, preferin-
do as locações reais, enfim, as opções narrativas e estéticas são uma
preocupação dentro do filme, o qual, a exemplo, do texto cervanti-
no, contém intertextualidades, no sentido de que Terry Gilliam não
apenas atualiza a história de Dom Quixote, mas ainda tenta emular
e modernizar as técnicas descritivas e narrativas de Cerevantes.
Ademais, desde o título do filme The man Who killed Qui-
jote, lembrando claramente o filme de bang-bang “The man Who
killed Liberty Valence(O homem que matou o fascínora)23 , nos fazen-
do recordar que o “gênero faroeste é o equivalente contemporâneo
das ficções de cavalaria ironizadas por Cervantes” (sic).

23 Dirigido por John FORD, em 1962, ”The man Who killed Liberty Valence” – trata-se de
um cow-boy clássico, interpretado por James Stewart, John Wayne e Lee Marvin,mostrando
o velho oeste onde o senador Ransom Stoddard retorna a Shinbone para o funeral de um
amigo, o vaqueiro Tom Doniphon e, ocasião em que é entrevistado por um jornalista,
donde surge a célebre frase: “Quando a lenda supera a realidade, publique-se a lenda...”
A importância desse faroeste se dá, a meu juízo, pelo fato de John Ford ter lançado um
olhar crítico sobre os heróis, ao mostrar que todas as lendas foram mitificadas. O trabalho
adaptativo de Terry Gilliam do Quixote segue a trilha da mitificação cervantina.

62
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

A realização do The man Who killed Dom Quijote torna-se,


portanto, “uma espécie de cavalaria andante, uma série picaresca de
improvisações itinerantes” (sic), traslada a alma cervantina. Gilliam
trata a filmagem do seu The man Who killed Dom Quijote não
como um drama histórico “fiel”, mas como uma transposição e uma
efetivação do romance, nas pegadas verdadeiras e efetivas de um
Orson Welles24, o qual estivera, igualmente, envolto em enormes
dificuldades de acabamento de seu Dom Quixote, o qual, diferen-
temente das outras tantas adaptações e transposições fílmicas refe-
ridas, logra captar – qual Gilliam, agora o faz- essa alma cervantina.
A exemplo de uma técnica desenvolvida na Parte II do ro-
mance, Gilliam reiteradas vezes provoca o comentário: “Veja! Dom
Quixote e Sancho Pança. Lemos um livro sobre eles”. Filmando e
trabalhando à maneira de Cervantes, Gilliam mostra a dificuldade
de identificação (contratação) dos atores e personagens por Toby,
quando ensina Javier, o pobre sapateiro, a demonstrar uma raiva in-
contida em suas investidas contra inimigos imaginários, de espada
na mão, bem como tentará fazer de Angélica uma artista; podemos
afirmar que Gilliam tematiza, auto-reflexivamente, os obstáculos, as
dificuldades e segredos comerciais da realização fílmica (permite
que Angélica manipule a câmara), precisamente como Cervantes
descrevera ou falara sobre os processos mecânicos da impressão e
publicação de Dom Quixote, no início de século XVII.
Gilliam mostra em sequências cinéticas iniciais esse processo
de adaptação filmográfica do romance – e criação do filme ficcio-
nal, espécie de ficcionalidade da ficção, em longa-metragem -, atra-
vés de uma montagem paralela entre imagens em preto e branco
contrastadas com imagens em colorido: nos quinze primeiros mi-
nutos da exibição de The man Who killed Dom Quijote, o dire-
tor de comerciais, Toby, migrará para um diretor ficcional do longa
transposto da obra de Cervantes, Dom Quixote, seja sonhando em
transformar ou continuar seu quixotesco sonho de enlarguecer seu
experimento de conclusão do curso de cinema, o qual insiste em
ver, ainda na companhia da mulher do patrão, ou rever em casa,

24 Robert Stam afirma que “Orson Welles e “seu filme sobre Quixote faz parte de uma
tradição wellesiana que começou com outra produção narrada pessoalmente e que
permaneceu inacabada: É tudo verdade, de 1992, que deveria ser uma visão muito
pessoal”, da mesma forma que Dom Quixote era uma visão pessoal da Espanha”. apud Op.
cit. “A literatura...” p. 79

63
Regis Frota

logo após a primeira tentativa frustrada pela chegada abrupta do


tal “boss” marido.
Aliás, a ideia de o produtor do filme publicitário, o “boss”, de
ter pedido ou sugerido ao Toby para cuidar de sua mulher, por uma
noite, enquanto ele vai a Nice, conversar com um financiador russo
do documentário publicitário sobre uma vodca chamada Mishkin
Vodca 25, lembra o Tarantino de Pulp Ficcion (de 1994, uma gran-
de paródia pós-moderna do filme de crime), onde e quando o boss
Marsellus Wallace, igualmente, pede a seu pistoleiro Vincent Vega
que cuide de sua mulher, Mia Wallace, por uma noite, e cumprindo
uma “moral” própria aos assassinos, ele o faz, competentemente
asséptico, sem tocar nela, biblicamente. 26
Por outro lado, não há como não ressaltar que, se por um
lado, Welles constituía um grupo seletíssimo de adaptadores de ci-
nema que parece ter captado a modernidade fundamental do ro-
mance cervantino, por agora temos Gilliam igualmente capaz de
ter, não somente captado o caráter moderno e até, pós-moderno
de Dom Quixote, como através de uma montagem dinâmica e dialé-
tica, estilizado o barroco e surrealista de sua câmara, em benefício
da marcante transposição.
A adaptação de Gilliam, como o romance de Cervantes, é
induvidosamente reflexiva, bem ao modo do escritor espanhol.
Não só vemos toda a preparação da equipe técnica de filmagem
no sentido de “arredondar” o roteiro de transposição para o audio-
visual da novela das duas partes (obra complexa, portanto), como
vemos toda a construção dos personagens centrais, Dom Quixote
e Sancho Pança, especialmente este incorporado na figura de Toby,

25 Impossível não referir que a denominação da vodca russa a ser objeto de publicidade,
Mishkin Vodca, não seja uma clara alusão de Terry Gilliam ao personagem central do
romance de Fiodor Dostoievski, O Idiota, o qual narra a história do humanista e epiléptico
Principe Mishkin, uma mistura de Cristo e Dom Quixote. O personagem central, Mishkin,
inspirado em Quixote, de Cervantes, revela dois séculos após a publicação da obra
cervantina, o valor que o grande escritor russo dava ao seu colega espanhol.
26 Conferir de BAPTISTA, Mauro: “O cinema de Quentin Tarantino, 2. ed., Papirus Edit.,
Campinas, 2013, cuja observação é criteriosa: “O Status e a função das cenas de violência
começam a mudar nos anos 1960; em Meu ódio será tua herança (the Wild bunch, 1969,
de Peckinpah), a longa cena do massacre com a metralhadora é central. Quentin Tarantino
percebeu que, a partir do final dos anos 1960, depois de Leone, de Peckinpah e de filmes
como Uma rajada de balas (Bonnie and Clyde, 1967), gêneros como o western, o filme de
crime e o filme de horror evoluíram até a paródia e o pastiche, passando a dar cada vez
mais importância às cenas de violência idem, ibidem, p. 76.

64
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

a partir da imaginação e da convicção quixotesca: nesta hipótese o


trabalho de Sancho como figuração no filme-dentro-do-filme de
Gilliam se transforma num pretexto para chamar a atenção para o
verdadeiro processo da realização cinematográfica, mui especial-
mente pela constante memória rediviva da tentativa frustrada de
sua elaboração, vinte e cinco anos passados.27
Gilliam adotou três estratégias narrativas em sua adaptação
do Quixote: a primeira, ele vendo o romance não apenas como uma
sucessão de aventuras e feitos quixotescos, senão uma sucessão de
sugestões de técnicas narrativas, na quais Cervantes foi pioneiro,
Gilliam faz seu duplo, o diretor de campanhas publicitárias e San-
cho, na perspectiva de Dom, a Toby, quem desenrola a narrativa
aventureira ao mesmo tempo que lamenta não ter concluído o lon-
ga-metragem, objeto da tentativa anterior de filmagem, revelar que
sente “cheiro” de Espanha.
Desde as primeiras cenas, vemos o diretor do filme The man
Who killed Dom Quijote elaborar teorias sobre Espanha, sua pró-
pria teoria sobre a adaptação, tanto que os técnicos e assistentes
de direção ficam em sua completa dependência intelectual e emo-
cional, donde as massagens que lhe fazem, entre cenas e desen-
volvimentos de sequências fílmicas, discutem se deveriam fazer “o
Gigante” em computação gráfica, trazido desde a Inglaterra, reco-
nhecem que o atacador do moinho ficou pendurado por falha da
manivela, etc.

27 Essa “memória da tentativa frustrada d e filmagem do The man Who killed Dom Quijote,
de Terry Gilliam é assumida e testemunhada pelo documentário Lost in la Mancha, onde
os documentaristas Keith Fulton e Louis Pepe foram convidados por Gilliam para fazer um filme
sobre a produção de ‘The Man Who Killed Don Quixote’, e após 80 horas de filmagem do processo
de pré-produção caótica, bem como um cronograma de filmagem abortado, criaram ‘Lost In
La Mancha’, narrado por Jeff Brigdes, é um olhar sobre o filme que não foi feito, a história da
ascensão breve do projeto e seu colapso confuso.
Neste vídeo podemos ver e entender o que realmente aconteceu durante estes dias de filmagens
na Espanha onde tempestades e aviões lançando bombas foram, juntamente com Johnny Depp,
protagonistas de um filme que tinha tudo para ser belíssimo se não fosse a famosa “maldição
de Quixote”.

65
Regis Frota

A segunda estratégia de Gilliam envolve tanto a utilização de


palavras exatas do romance, quanto textos que o personagem cen-
tral (Quixote/Javier) utiliza para reprimir a seu Sancho/Toby, o qual
houvera dito os ter escrito desde a primeira tentativa de filmagem,
frustrada (Dom mostra o livrinho, com as ilustrações de Gustavo
Doré). Cuida-se de uma técnica metaficcional gilliamniana – tan-
to quanto cervantina – de incluir crítica literária e cinematográfica
na obra. Quando vemos Toby/Sancho vendo e revendo, através de
DVD, sua filmagem em preto e branco, com tantas ganas de refletir
sobre a forma de adaptar em longa o seu Quixote, percebemos o
exercício e a estratégia de construção de uma transposição a outra
linguagem do verdadeiro espírito da obra literária original, em suas
especiais e multiperspectivas, das mais variadas dimensões.
A terceira estratégia diz respeito a um mecanismo de nar-
ração que envolve a cor – na rememoração do documentário de
TCC, o preto & branco piedoso das procissões de semana santa- e
a palheta de cor no colorido, transformado doravante o filme em
cores, desde o momento em que a equipe de pré-filmagem desco-
bre a casa do velho sapateiro Javier, aquele que terá que se ocupar
de incorporar no The man Who killed Dom Quijote o cavaleiro da
triste figura, aos doze minutos de projeção, lembrando-nos outras
adaptações gilliamnianas (Brazil, o filme e A vida de Brian) nas quais
a palheta de cor se constitui item fundamental. Angélica, a filha do
bodegueiro espanhol Raul Fernandez, a qual irá se corromper, con-
tudo, antes vai, na visão modernista do diretor, do aprendizado do
cinema (Toby lhe promete a fama hollywoodiana) ao paradisíaco
passeio na cascata natural do campo onde presenciará Dom Quixo-
te humilhar o diretor publicitário, Toby Frisoni, enquanto este resis-
te em assumir-se de Sancho.
Dessa maneira, Terry Gilliam capta a sensação multiperspec-
tivista do romance cervantino, na medida em que a representação
da luta contra os moinhos de vento (é especialmente multipers-
pectivista o fato dos moinhos medievais se localizarem ao lado de
torres eólicas contemporâneas, o cenário diegético não busca dis-
farçar a presença desses mecanismos de obtenção de uma energia
pura dos dias atuais) para exemplificar apenas um desses meca-
nismos pluriperspectivista da película, alterna entre a perspectiva
de Quixote, imaginando gigantes, e a do cético Sancho/Toby, que
vê apenas moinhos, chegando a concordar com a camponesa que
socorre Dom, levando-o a sua casa marroquina, de que lhe está

66
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

faltando um parafuso. Outro exemplo: Na noite que permanecem


na casa dos marroquinos, a representação dos “encantamentos e
feitiços” noturnos são enquadrados ou alternados entre perspecti-
vas contrastantes: enquanto Dom Quixote perfura os reservatórios
de vinhos com sua espada, imaginando demônios inimigos, San-
cho/Toby (Alam Driver) imagina ou vê, apenas, terroristas islâmicos
fundamentalistas. A montagem paralela identifica perspectivas con-
trastantes, temporal e espacialmente definidas. Gilliam entremeia
o filme com comentários críticos sobre questões contemporâneas.
Consegue Terry Giliam alfinetar inclusive a União Européia,
com sua ojeriza aos imigrantes sírios e turcos ilegais, ao tempo em
que comunica a presença dos membros da “irmandade sagrada”
– espécie de templários inquisidores – utilizando uma técnica cer-
vantina de mise-en-abyme, “representações embutidas em outras
representações, porquanto no filme se multiplicam gêneros cine-
matográficos, dos faroestes aos “Road film”, dos filmes de terror ao
musicais, misturando episódios representados no “set de filmagem”
(alegam que o “Gigante” se encontra, naquele exato momento, em
outro set) com planos de “estátuas, brasões gravuras e outros ele-
mentos associados a Dom Quixote.
Gilliam correlaciona gênero e personagem, ou seja, Terry
Gilliam liga Dom Quixote ao filme de ficção (a ficcionalidade das
ficções) e liga Sancho/Toby ao documentário, como se “as duas
maiores modalidades da produção filmográfica constituíssem equi-
valentes de gênero às fantasias e loucuras românticas de Dom e
ao realismo romanesco de Sancho. Com frequência, Gilliam coloca
seus personagens ficcionais no centro da filmagem do documen-
tário, do mesmo modo que Cervantes mesclava personagens fic-
cionais e reais. Exemplo: Em uma procissão real de semana santa
manchega, em preto e branco, o cortejo cruza com Dom Quixote
e Sancho gordo, com suas montarias e armaduras, em esquina da
cidadezinha medieval, no alto da colina.
Outro exemplo: Após cigano algemado e Toby serem con-
duzidos na viatura da PM, presos, desviando de engarrafamento de
outra procissão religiosa, enfrentam as investidas de Dom Quixote,
desejoso de libertar seu Sancho, o qual é salvo, aos 37 minutos da
duração do filme, para seguirem, em suas montarias, pela meseta
agreste e Dom Quixote responder a Sancho/Toby: - “As forças das
trevas nunca morrem”(41:00). A continuidade, o processo de san-
chificação de Toby e de Dom se agudizam.

67
Regis Frota

Gilliam nos mete e remete, cada vez mais, para perto do


mundo reflexivo, saturado pela mídia e pela parafernália documen-
tal, da representação pós-moderna.28
No percuciente comentário acerca de Dom Quixote, dirigido
por Orson Welles, Robert Stam afirma o seguinte: “Embora possa
parecer um exagero relacionar Cervantes ao pós-modernismo, de
certa forma o romance Dom Quixote antecipou quase todos os dis-
positivos reflexivos contemporâneos, típicos tanto do modernismo
quanto do pós-modernismo: a rápida aparição do autor; o comen-
tário metacrítico da própria ficção; a reciclagem de material pré-
-existente; o ato de se dirigir diretamente ao leitor/espectador; a
tendência a interrupções e “intervalos”; a colocação em primeiro
plano dos leitores (e dos espectadores); a inclusão de materiais in-
tercalados; o poliperspectivismo; a estética de colagem combinató-
ria; a relativização mútua de gêneros; o embaçamento das frontei-
ras entre o fictício e o real; a técnica de mise-en-abyme.”29

28 Gostaria de agradecer à professora Sarissa Carneiro, coordenadora do doutoramento


em literatura colonial da PUC –CHILE pelo nosso debate empolgado durante a projeção do
The man Who killed Dom Quijote.
29 STAM, Robert: “A literatura ...” Op. cit. p.84 Admirável a orientação constativa de R.
Stam acerca das inovações cervantinas. Aliás, igualmente agradecemos termos pego como
modelo teórico seus estudos sobre Dom Quixote, de Welles, o qual também gostamos e
acreditamos estar num mesmo patamar de criatividade e inventividade que o The man
Who killed Dom Quijote. Concordo, plenamente com a seguinte observação: “A prática
cervantina de justapor tipos variados de representação midiática, por exemplo, ao colocar
o manuscrito original de Cide Hamele Genengeli, em árabe, ao lado de retratos reais que
representam cenas daquele romance (Dom Quixote e o biscainho), faz dele um praticante
prolético daquilo que hoje é chamado multimídia ou hipertexto. Ao mesmo tempo, o
simples fato de podermos ver Cervantes como pós-moderno sugere que o próprio termo
é um tanto inflado e anistórico; o que o discurso pós-moderno apresenta como novo e
excitante não é, na verdade, nada novo.” Vide pág. 85, idem, ibidem.

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O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARSENAL, León: Adaptación de Don Quijote de La Mancha, de


Miguel de Cervantes, Ed. La isla de los libros/EDAF, Madrid, 2007.
GALLARDO, Eduardo Godoy (Coord.). Cuadernos de estúdios
cervantinos II, Universidad de Chile, Santiago, 2013.
GARCIASOL, Ramón de: Claves de España – Cervantes y El Quijote.
Espasa Calpe, Madrid: S.A. 1969.
GRANATO, Fernando: Nas trilhas de Quixote, uma viagem pelos
caminhos do cavaleiro andante. Rio de Janeiro: Record, 2005.
SAAVEDRA, Miguel de Cervantes: Dom Quijote de La Mancha,
Alfaguara, edición IV Centenário, Madrid: Real Academia Española.
___________. Dom Quixote, tradução de Viscondes de Castilho e
Azevedo, notas de José Maria Castro Calvo, Editor Victor Civita.
São Paulo: abril cultural, 1978.
___________. Don Chisciotte, liberamente tratto dal romanzo di
Cervantes, Fabbri Editori, avventure senza tempo.
___________. Novelas exemplares, São Paulo: Edit. Cosac naify, 2015.
DELEUZE, Gilles: Crítica e clínica 2. ed. Tradução de Peter Pal Pelbart,
São Paulo: editora 34, 1997.
___________. Cinema I – A imagem – movimento, Tradução de Stella
Senra, São Paulo: Edit. 34, 2018.
STAM, Robert: A literatura através do cinema. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2011.
___________. O Espetáculo interrompido – Literatura e cinema da
desmistificação. São Paulo: Paz e Terra editora, 1981.

Filmes:
1.WELLES, Orson: Don chisciotte, vers. curata da Jess Franco, 1992
2.PABST, G.W.: Don Quichotte, 1933.
3. Lost en la Mancha, documentário de Keith Fulton, com Gilliam, 2002.
­­
4. GILLIAM, Terry: The man Who killed Dom Quijote, 2018.

69
SEGUNDA
PARTE
CLÁSSICOS DO CINEMA
DO SÉCULO XX
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 3

O ACOSSADO E A DESMISTIFICAÇÃO
GODARDIANA

O Acossado e o cinema moderno da desmistificação godar-


diana - O pós-modernismo, em cinema, começou, na verdade, com
Acossado, de Jean-Luc Godard (JLG), e não mais parou...1
Em finais de 2019 e início de 2020, a imprensa ocidental co-
memorou em comentários cinéfilos e críticas especializadas, o pio-
neirismo do filme godardiano sexagenário, Acossado, o qual, apesar
de ingressar na idade de realização de “idoso” continua, consoante
tais veiculações, tão assustadoramente jovial e profético, porquanto
o protagonista Poiccard (Jean-Paul Belmondo), após caçado durante
toda a película, é deixado morto, no meio da rua, anonimamente,
como qualquer transeunte ou cidadão atual, o qual, uma vez infec-
tado pelo Coronavírus, venha a óbito, anonimamente, vindo a ser jo-
gado na vala comum da acumulação de cadáveres que o colapsado
sistema de saúde, madrileno ou parisiense, chegou a conhecer.
Profecia e ineditismo.
Há 60 anos, o cineasta Jean-Luc Godard abalava os alicerces
da estética cinematográfica clássica, consagrada durante a primeira
metade do século XX, através do predomínio modelar hollywoodiano,
ao revolucionar a cinematografia com seu filme “À bout de souffle”
(Acossado, 1959).
Na verdade, nossa intenção com este texto é tentar interpretar
o impacto que o filme de estreia do cineasta franco-suíço Godard
causou na estética cinematográfica do século XX. O anti-iluminismo
e a desmistificação que sua obra apregoa (mui especialmente neste
filme clássico que, ora, estudamos) atingiu um caráter filosófico,
programático e, de alguma maneira, hostil aos padrões anteriores,
fosse no ocidente europeu ou na América.

1 Este Capítulo sobre o cinema francês foi publicado, anteriormente, em edição conjunta,
pela editora portuguesa Lisbon Press, 2020, de autoria do professor de Direito Constitu-
cional (pag. 50-72), editor da Revista GRUA e integrante da Academia Cearense de Cinema,
sob a coordenação da professora Juliette Robichez. Refundido e atualizado, a temática se
integra à perfeição no conjunto de ensaios sobre o cinema pós-moderno.

75
Regis Frota

Acossado é um filme que inicia o modernismo no cinema2,


enquanto paródia e sátira reflexiva na medida em que o jovem
Jean-Luc Godard (juntamente com os conhecidos “jovens turcos”
- críticos cinematográficos do Cahiers du Cinéma, como François
Truffaut e outros), partiram para a prática da elaboração fílmica,
com uma visão crítica cáustica de sucesso. No entanto, alguns his-
toriadores pretendem atribuir esta autoria, ou a paternidade desse
movimento estético, ao cineasta Ingmar Bergman, com seu filme de
1954: Monika e o Desejo.
A referência que farei a seguir, de algumas sequências ou
alguns planos narrativos do filme Acossado, tem sempre a intenção
de recordar ao leitor/espectador a natureza lúdica e transgresso-
ra desse tipo “moderno” de cinema, cuja sutil didática mostra-se
dialética como o teatro brechtiano. Após as recordações imagéticas
e narrações dialogais, passaremos ao exame particular de algumas
características godardianas da desmistificação e do seu anti-ilumi-
nismo artístico.
Enquanto paródia dos filmes de gângsteres norte-america-
nos, Acossado já principia mostrando o protagonista Michel Poic-
card (Jean-Paul Belmondo3) como o típico “malandro” – seja pela
indumentária, a um tempo desleixada e pretensiosa, seja pelos há-
bitos de insistir no consumo de tabaco e óculos escuros, passando,-
com insistência, o dedo polegar nos lábios, ao baforar os cigarros,

2 Conferir de ARAÚJO, R. F. Ensaios sobre o cinema moderno. Fortaleza: Premius Editora,


2019.
3 Recomendo, a propósito, a leitura do livro autobiográfico de Jean-Paul Belmondo, escrito
com a colaboração de Sophie Blandinières, Mille vies valent mieux qu´une, da Editora
Librairie Arthème Fayard, 2016, com tradução de Lavínia Fávero, pela L&PM Editores, Porto
Alegre, Primavera de 2018: “Mil vidas valem mais do que uma”. O famoso ator Belmondo
descreve ali, com sinceridade, acerca de sua infância e maturidade, artística e pessoal,
chamando especial atenção para o traslado de sua atuação teatral na “Comédie-Française”
ao cinema, após desclassificação por júri professoral, de Amor e Piano, de Georges Feydeau,
em 1955, cujo personagem, Éduard, protagonizado por Belmondo, desclassificado porém,
ovacionado pelos colegas e público presente, narra, ademais, como iníciou a atuação no
cinema: “Uma caixa de papelão, por exemplo, pode servir de bola e dar o impulso para
uma partida de futebol improvisada diante do café da Comédie-Française. Um dia, graças
a essa improvisação, sou abordado por um homem que me pergunta, suscitando no nosso
grupo uma explosão de risos: ‘O senhor não gostaria de fazer cinema?’” Tratava-se do
cineasta Henri Aisner que convidava Belmondo para estrear com “Os companheiros de
domingo”. Adiante, Belmondo afirma que “escolheu ser ator e se recusou a ser espectador”.

76
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

qual herói de Casablanca, etc.4, que vive, descontraída e descom-


promissadamente, dando sempre “cabeçadas na humanidade”,
fazendo biscates, trocando de carros roubados, cobrando dívi-
das inexistentes.
A primeira sequência do filme – caracterizada pelo uso in-
comum, à época, da “câmera na mão”, principia com um primeiro
plano do ator, Jean-Paul Belmondo, fumando e lendo jornal na rua,
ao tempo em que confidencia (ao espectador) que se trata, então,
de um FDP, “pois isso tem que ser feito”... A namorada engana ou
entretém o guarda de trânsito, enquanto Poiccard liga direto a ig-
nição de um carro, o qual rouba, antes de dirigir-se em disparada,
por determinada rodovia, nas cercanias de Paris, dando tchau para
a amante cúmplice.
Chama a atenção do espectador, no início do filme quando,
Poiccard Belmondo, dirigindo o carro roubado em alta velocidade e,
após diversas ultrapassagens, mira para a câmera, ao indagar/afir-
mar: “se você não gosta do mar... se você não gosta da montanha...
se você não gosta da cidade... então se dane!”
Os raios solares penetram nas copas das árvores atingindo
o painel dianteiro do carro; Poiccard (Belmondo) se irrita com a luz
solar e, retirando a pistola do painel do carro, atira contra o sol. Ou-
tra irreverência transgressora, anti-ilusionista e desmistificadora do
Acossado, porquanto imediatamente antes, constatara e dissera:
“le soleil est beau”!
Logo é perseguido por guardas de trânsito em motos, os
quais são, gratuita e sumariamente, assassinados, executados pelo
protagonista. Após a execução, correndo a pé, Poiccard (Belmon-
do) foge pelos verdes campos dos vinhedos franceses, sob acordes
musicais de filme de suspense americano, cujas imagens posterio-
res, obtidas em claro travelling paralelo à catedral de Notre Dame
parisiense, percorre algumas ruas, até que o táxi, conduzindo o

4 Observe-se que estamos ante uma característica godardiana do cinema moderno,


por ele criado e multiplicado em filmes como Vivre sa vie, le Mépris, Pierrot, le Fou, les
Carabinniers, Alphaville, Tout va bien e Week-end. Consoante percucientemente observado
por Robert Stam (in O espetáculo interrompido - literatura e cinema de desmistificação, da
editora Paz e Terra, tradução de José Eduardo Moretzsohn, Rio de Janeiro, 1981, p. 57), “os
personagens de Godard tendem a imaginar suas vidas através de lentes cinematográficas
deformadoras. Em Acossado (A bout de souffle, 1959), Michel Poiccard arremeda o estilo
duro, porém sentimental de Humphrey Bogart, esfregando seus lábios enrugados com
ares de calejada indiferença”.

77
Regis Frota

protagonista malandro, e vemos ele sair do carro e entrar em uma


cabine telefônica, que não funciona, por sinal.
Retira-se, compra jornal e dá rápido “vistazo”. Em sua
posse, após limpar os sapatos, joga-o fora tendo, antes, pas-
sado na portaria do prédio da amante, senhorita Franchini, e
furtado a chave de seu apartamento. Procura por dinheiro em
gavetas (sem encontrar e sem deixar de afirmar que “mulheres
nunca têm dinheiro”)... Não é, contudo, a primeira oportunidade
que o filme demonstra certa misoginia do personagem central,
estilo gangsterista: ocasião da escapada pela rodovia campestre,
ao ultrapassar vários veículos, Poiccard (Belmondo) afirmara que
“mulher não deveria conduzir” quando, tendo adiante de seu
Cadillac roubado, um carro dirigido por mulher, embora logo
constatasse que sua lentidão era justificada por operários na
pista lenta. Igualmente, ao observar duas moças pedindo carona
na beira da rodovia, comenta consigo (e com o espectador, ob-
viamente, num diálogo modernista e godardiano) que ‘valeria a
pena trocar um beijo por km rodado’.
Observe-se, contudo, que o filme de Jean-Luc Godard,
Acossado, é um filme intelectual de gângster, o qual prima pela
paródia e a crítica reflexiva.
As poucas moedas encontradas no bolso, verificadas em pla-
no fechado da imagem, na palma aberta de Poiccard (Belmondo),
autorizam-no a pedir ovos na cafeteria; anuncia que voltará, após
comprar jornal - curioso por saber se já estaria noticiada sua prese-
pada assassina - contudo, ingressa na casa da amante que acordara
há pouco. Ainda de pijamas, retorna, preguiçosa, aos lençóis e o
dublê de ator indaga-lhe sobre seus empregos na TV, ao tempo em
que conta vantagem sobre sua temporada na Cinecittá. Franchini
atende a uma ligação telefônica. Ante o espelho, Poiccard, ao ouvi-
-la, arremeda, mais uma vez, o estilo durão, porém charmoso e sen-
timental, de Humphrey Bogart esfregando seus lábios enrugados
com ares de calejada indiferença, como se não estivesse a escutar o
telefonema alheio. Estava, sim, e pede dinheiro à amante, alegando-
-se não cafajeste, porquanto a aluga apenas por meia diária; ante a
oferta de quantidade menor disponível de dinheiro, Poiccard recusa
receber, mas enquanto a namorada, de costas, se veste, ele se apro-
pria de todo o dinheiro de sua bolsa, furtando-a e despedindo-se
com mero “arrivederci”.

78
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Pergunta a uma moça qualquer, em plena rua parisiense, por


Patricia (Jean Seberg), a jornalista e vendedora do New York Herald
Tribune, onde trabalha e a qual, a partir dessa sequência cinema-
tográfica contracenará com Poiccard (Belmondo), em momentos e
circunstâncias variadas e acronológicas, dando ao filme, Acossado,
sua temperatura e volatilidade valendo observar que, além de se
constituir em uma autogozação, no afirmar de Stam5, constrói uma
“orgia de citações, torna a narrativa literária, a subtrai de sua subs-
tância diegética e força-nos a contemplar o filme como uma colcha
de retalhos de pastichos literários e cinematográficos”.
Ora, Godard é mestre da autorreflexividade cinética e literá-
ria. Em Acossado, a dupla Patricia e Poiccard (Seberg e Belmondo)
almejam ser heróis de filmes, adotam o linguajar e o comportamen-
to dos gângsteres dos film noir.
Portanto, não surpreende o diálogo inicial da dupla, trava-
do no meio da calçada, enquanto vão e voltam da rua, quando ela
quer saber quando ele voltou de Monte Carlo e, por que, posto
que sempre afirmou odiar Paris... Ele responde que o fato de ter
inimigos em Paris não significa que odeie a capital francesa e que
retornou só para vê-la e para saber se ela, ainda, o ama. Ela anun-
cia e oferta, em voz alta, o NY Herald Tribune. Ele pede um exem-
plar e logo o devolverá sob a alegação de não possuir horóscopo.
Indaga se ela não quer saber sobre o futuro... Caminham lado a
lado, ele de chapéu da mesma cor marrom do blazer, mãos nos
bolsos da calça preta, gravata xadrez curta e desleixada; ela, cabe-
los curtos a la garçon, blusa branca com inscrição do jornal, porta
num braço um maço das edições do jornal NY Herald Tribune, na
mesma mão uma bolsa “pochete” branca, todavia mais alva que a
cor da blusa. Parecem se entender...

5 Op. cit. Página citada. Resume, destarte, o teórico: “Visto que a matéria da arte
autorreflexiva é a própria tradição – a ela se fazem alusões, com ela se brinca, se supera
e se exorciza – a paródia, por conseguinte, passa a ter importância capital. E a paródia
implica algumas verdades óbvias quando se refere ao processo de criação artístico. A
primeira é que o artista imita, não a Natureza, e sim outros discursos artísticos. Se pinta,
se escreve ou se faz filmes (como Godard) é porque viu quadros, leu romances ou assistiu
a filmes. O romancista faz uma imitação, afetuosa ou hostil, de outros romancistas
que porventura tenha lido. O artista obedece a uma tradição: o médium, o gênero e o
subgênero preexistem ao artista.” Idem, ibidem.

79
Regis Frota

Ante a indagação feita por Patricia do motivo da permanên-


cia de Poiccard, em Paris, ele afirma que carece encontrar-se com
um cara que lhe deve um dinheiro; que precisa vê-la (quer dormir
com ela, segundo ele, porque as duas garotas com quem dormiu
após “coucher” com Patricia, pela última vez, foram um “saco”). “As
duas vezes foram um saco”, afirma Poiccard (Belmondo), ao que
aquela quer saber que significa “um saco”, não foi bom, esclarece
ao corrigi-la ter dormido cinco vezes com Patricia e não, apenas,
três vezes. Pergunta-lhe as horas, ao convidá-la para viver com ele
em Roma. Ela esclarece que, se não frequentar a Sorbonne, seu pai
não lhe fornecerá a mesada.
Pura paródia. Cabe aqui aclarar a posição godardiana do fazer
artístico cinemático, a exemplo modernista de Acossado. O teórico
Robert Stam6 lembra que “para compreendermos o modernismo de
Godard, devemos vê-lo dentro do contexto da vanguarda artística
em geral”. Segundo ele, Godard deve ao Dadá e ao Surrealismo a
incorporação do acaso à Arte, uma característica típica da fase in-
termediária de seu trabalho. Em Godard, o sexo não é lascivo, ofere-
cendo-nos um contraexemplo à prática dominante hollywoodiana.
“Toda a manipulação erótica do espectador não passa de mais uma
expectativa convencional que Godard se recusa a satisfazer.”
Continuemos a rever o filme de Godard, Acossado. Combi-
nados Patricia e Poiccard de se encontraram naquela altura, daquela
rua, pela noite, se afastam, ele a uma banca de jornal, ela para o
trabalho, sem antes voltar a ele, beijando-o, como a demonstrar
o interesse pelo reencontro noturno, antes combinado. Poiccard
presencia um abalroamento na rua. O homem atingido, desfalece
na calçada; persigna-se e, com o exemplar do jornal aberto sob os
olhos apressados, nas mãos, indiferente, segue em busca do senhor
Tolmatchoff no balcão de uma companhia aérea.

6 STAM, R. O espetáculo interrompido. Op. cit., p. 90, quando adiciona que “Godard
demonstra, com frequência, o afastamento de seus personagens em relação à cultura
tradicional”. Conversando com Michel (Belmondo), em Acossado, Patricia (Jean Seberg)
menciona William Faulkner. Michel Poiccard pergunta: “Qui est-ce? Tu as couché avec lui?”
... Como afirmado, anteriormente, Godard parodia os filmes de gângster em Acossado,
parodia os musicais em Une femme est une femme, e parodia os filmes de faroeste em
Vent d´Est. A paródia é o meio de que o artista dispõe para utilizar, de maneira crítica, sua
própria cultura e, ao mesmo tempo, para eliminar as formas tradicionais e antiquadas de
narração. Jean-Luc Godard defende, destarte, uma revolução permanente na arte.

80
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Sempre de frente à câmera e em direção ao espectador,


Poiccard caminha rumo aos balcões da Cia. Aérea onde trabalha o
funcionário que lhe entrega um envelope com um cheque “cruza-
do”. Enquanto caminham lado a lado, dialogam sobre mulheres e
dinheiro. Carente de dinheiro “in cash”, Poiccard lamenta o che-
que “cruzado”; Pergunta por Berutti, outro devedor seu cujo nai-
pe em matéria de matreirice e malandragem se assemelha ao de
Poiccard. “Sim, chegou ontem de Tunísia”, informa-lhe o funcioná-
rio. Informado do número do telefone de Antonio Berutti liga para
ele, mas sem encontrá-lo. Se despede e sai, jornal no bolso do bla-
zer, onde já vira “estampada” sua foto, porquanto identificadas as
impressões digitais do matador dos guardas de trânsito. O cerco
a Poiccard começa a se estreitar. As imagens seguintes mostram
uma dupla de investigadores policiais indagando se os funcioná-
rios recebem a correspondência a eles dirigida, ali mesmo, donde
Tolmatchoff deveria denunciar o paradeiro de Poiccard, a quem
encontrara cinco minutos antes, segundo denúncia de invejosa
colega de trabalho.
De um lado, o protagonista entra e sai do metrô, diante do
Arco do Triunfo, enquanto os investigadores policiais correm pelas
ruas centrais para tentar encontrá-lo, debalde. Poiccard, anônimo,
para ante os cartazes de filme americano, Plus dure sera la chute,
estrelado por Humphrey Bogart, cuja imagem dura é mostrada em
plano “close”, ao tempo que o protagonista lança olhar de admira-
ção, sonhando em imitar o ídolo de carne, não perdendo a chance
de arremedar, mais uma vez, o estilo gangsterista durão, porém
charmoso e sentimental, másculo de Bogart, esfregando seus lábios
enrugados com ares de calejada indiferença, cheios de fumaça ad-
vinda das baforadas expelidas dos seus pulmões.
Poiccard se mostra espectador de filme americano, embora
diferenciado dos espectadores “voyeuristas” comuns, em função da
parodização godardiana.
O longo plano de admiração (em PPP frontal de Belmon-
do, sem óculos) que o protagonista do Acossado lança sobre os
cartazes do cinema daquela semana, não deixa dúvida sobre a
“expertise” do diretor cinematográfico Jean-Luc Godard; Ele co-
nhece o cinema americano clássico e se volta a parodiá-lo como
forma de superação, como maneira de revolução estética, de
introdução de uma versão modernista na produção audiovisual.

81
Regis Frota

Eis a importância do Acossado: desde a primeira cena ou se-


quência do filme já vemos o protagonista se voltando, diretamente,
para a plateia, em contraposição a uma certa convenção do teatro
e do cinema naturalista até então dominante, a qual ditava que os
atores e atrizes nunca deveriam se dirigir à plateia e isso, porquan-
to, os espectadores se sentiriam desconfortáveis e ameaçados, caso
fossem percebidos como “voyeuristas”.
Voltando ao filme, Acossado é moderno porque rompe com
o padrão antes consagrado.
Um flou se fecha sobre os investigadores desbaratados na
esquina, sem rumo do perseguido assassino. A próxima cena se dá
na escuridão do celuloide, sonorizada pelo diálogo da dupla heroí-
na, a nova-iorquina Patricia (Seberg) e o malandro Poiccard (Bel-
mondo), combinando-se um jantar, encostada em um carro esta-
cionado na rua parisiense. Poiccard coloca seu chapéu na cabeça de
Patricia e avisa que precisa dar um telefonema e que ela aguarde 30
segundos. Desapontada, ela afirma: “Quando um francês diz 30 se-
gundos, representa cinco minutos.” Permanece fumando, entre dois
carros estacionados, enchapelada. Enquanto espera, vê-se Poiccard
entrando no WC; lava as mãos antes de nocautear um colega de
banheiro e roubar-lhe o dinheiro da carteira.
Alcançando Patricia na rua, Poiccard continua seu diálogo in-
verossímil, porém cativante; pergunta-lhe aonde irão e se dormirão
juntos aquela noite.
– Não sei, contesta a garota sorrindo. Por que não? Não foi
bom da outra vez?
Poiccard comenta a notícia que diz ter lido no France Soir
(jornal que tem em uma das mãos, enquanto caminha ao lado de
Patricia): “Um motorista de ônibus roubou cinco milhões para pa-
recer rico e impressionar uma garota; gastaram o dinheiro em três
dias na Riviera”; E conclui: “Nem um pouco envergonhado, ele con-
fessou ter roubado o dinheiro; eu não presto, mas eu te amo.”
Poiccard insiste no interessante da narração de sua histo-
rieta, porquanto a garota não se teria importado com a confissão
de roubo do motorista, voltaram a Paris para assaltar em Passy,
ficando ela de guarda. “Boa garota!”, conclui Poiccard, antes de ser
interrompido por um transeunte, que lhe pede um isqueiro, rece-
bendo de Poiccard pequena quantia, recomendada para compra
de fósforos. Patricia, de supetão, se desculpa alegando que quase

82
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

esquecera um compromisso para aquele horário: uma entrevista,


cujo companheiro de cobertura jornalística passaria a recorrê-la,
de imediato. Poiccard sente-se frustrado e oferece carona a Pa-
tricia, que aceita pois já buscava um taxi. No trajeto, imagem la-
teral da moça com penteado a la garçon, Patricia pergunta pelo
carro anterior de Poiccard que alega encontrar-se no conserto.
Ante a imagem fixa do pescoço e cabeça da garota, Poiccard
afirma não poder viver sem Patricia, ao tempo que descreve ter
uma “garota de belos braços, belo pescoço, belos cabelos, belo
rosto... mas, quando, repentinamente, Patricia pede para descer
do carro, pois chegara na altura do compromisso, provoca Poic-
card a desferir comentários desairosos: “Você não presta, não te
quero mais, não te verei outra vez, etc.”
Patricia sobe a escada rolante e senta-se à mesa com o
amigo americano. Ele a presenteia com um livro e espera não
ocorrer com ela, o que tivera ocorrido com a heroína do livro,
posto que morrera na cirurgia de retirada do bebê, abortado.
Patricia comenta não saber se é infeliz por não ser livre, ou se
não é livre por ser infeliz.
– Desapareça como fazem os elefantes, recomenda o edi-
tor chefe do jornal NY Herald Tribune. E tenta animá-la contan-
do um encontro que tivera, há dois anos, com uma garota com
quem pretendera dormir: no almoço esqueceu de dizê-lo e en-
tão, mandou-lhe um telegrama informando sua intenção. A ga-
rota teria respondido, Régistrando a coincidência de ter pensado
exatamente a mesma coisa com ela em relação a ele. Patricia,
então, pergunta quando receberá novas tarefas jornalísticas do
Editor, o qual informa-lhe que ela irá, amanhã, ao aeroporto de
Orly, entrevistar o romancista Parvulesco. Que ela passasse no
Bureau para saber a hora exata. E saíram abraçados, escada a
baixo, com o consentimento de Patricia, e simultâneo desapon-
tamento de Poiccard que a aguardava, fumando sempre, cigarro
após cigarro, e somente poderá acompanhar, com o olhar an-
darilho, o casal americano entrando no carro esporte. Vai a uma
banca de jornal, mais uma vez. Com pretexto de observar melhor
o casal norte-americano (Patricia e Editor Chefe) e, desapontado,
ele os vê se beijar, carinhosa e ardentemente. Faz beicinho.
O carro esporte do americano percorre as ruas parisienses
até cruzar o Arco do Triunfo; a próxima imagem é da Torre Eiffel,
captada desde o ônibus elétrico que leva Patricia até baixar e

83
Regis Frota

caminhar cruzando os passos, com aparência felizarda, e então, antes


de ingressar em seu edifício residencial, se observa, sorridente, no
espelho da vitrine de uma loja próxima. Ao chegar em seu prédio,
não encontra a chave do seu apartamento, estando vazio o box de
madeira. Sobe, afinal, talvez tenha esquecido a chave na porta. Ao
entrar, se surpreende com Poiccard deitado em sua cama, sob a
alegação de que o Hotel Claridge não dispunha de quarto.
– Não faça careta, diz-lhe Poiccard, descontraído. “Como é
fazer caretas?” Ao indagar Patricia, Poiccard faz toda uma série de
“mungangos” na expressão do rosto, ora de riso, ora de raiva, ora
contraindo os lábios, ora abrindo a boca, franzindo a testa, em ex-
pressivo gesto que o caracterizará, na medida da paródia godardiana.
Travam longo diálogo sobre banalidades e tipicidades de gê-
nero. Deitados na cama, embora Patricia esteja vestida e Poiccard
de cuecas, abaixo dos lençóis, ele tenta convencê-la de que deve
dormir com ele, e que será considerada covarde, se não tiver ou-
sadia de trasladar-se a Roma consigo; Já Patricia está indecisa, não
tem certeza de coisa alguma. Gosta dele, mas o acha “maluquete”,
optando pela segurança do emprego e amizades parisienses. Aqui
vai uma observação fundamental na interpretação da estética go-
dardiana, na contramão do modelo hollywoodiano, o qual, no dizer
de Robert Stam, “sob a forma do pornográfico explícito ou do espe-
tacular pervertido, o cinema comercial continua fabricando novos
objetos de consumo que satisfaçam à cobiça de um dos órgãos eró-
ticos mais primários do corpo humano: o olho”. Tanto que Godard
apresenta a relação sexual de Poiccard e Patricia, encobertos sob
os lençóis, de modo não lascivo. O sexo, em Godard, não é lascivo,
visto que a manipulação erótica do espectador não passa de mais
uma expectativa convencional que o diretor francês se recusa a sa-
tisfazer. Portanto, a imagem sexy não lhe interessa.
Após demorada sequência cinematográfica (certamente, a
mais longa) dos dois heróis do filme Acossado, ela tentando co-
nhecê-lo melhor, ele tentando transar com ela, em que pese tenha-
-o feito durante a noite, se vestem ao meio-dia, após vários telefo-
nemas dele, cobrando dinheiro e o paradeiro de Antonio Berutti.
Partem em um novo Cadillac roubado por Poiccard que conduz a
jornalista ao emprego, sem antes de passar pelo NY Herald Tribune,
ser reconhecido por um leitor do jornal (o próprio diretor do filme)
que estampa a foto de Poiccard (o assassino dos dois guardas de
trânsito), a quem denunciará aos policiais fardados, sobre os quais

84
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

se fecha a imagem. Atente-se para o fato burlesco e identitário7 de


que o ator que denuncia Poiccard seja o próprio Jean-Luc Godard,
parece até como se víssemos pessoas reais como personagens de
um filme de ficção; Aliás, Godard empregou dessa forma diretores
outros - noutros filmes e oportunidades distintas - como Fritz Lang
(em O Desprezo) e Samuel Fuller (em O Demônio das Onze horas).
A entrevista com o famoso escritor Parvulesco, romancista in-
telectual – espécie de duplo de Godard - inserida nos desempenhos
da personagem feminina Patricia (Jean Seberg), em Acossado, dei-
xa entrever reflexões críticas ao pensamento dominante nos finais
da década de cinquenta do século passado. Com roteiro de Fran-
çois Truffaut e Godard, o filme exubera na intertextualidade, pelo
teor crítico intelectualista das perguntas e respostas, integrando-se
na narrativa fragmentada da película. No saguão do aeroporto, vá-
rios repórteres indagam ao famoso escritor “qual a diferença entre a
vida das mulheres americanas e francesas”? Resposta: “as mulheres
americanas dominam os homens... as francesas ainda não”. Quando
indagado sobre “qual sua grande ambição na vida”, o romancista
Parvulesco responde: “Tornar-me imortal e depois... morrer”. E, por
fim, perguntado sobre o que seria mais ético: “a mulher que trai o
homem, ou o homem que a abandona”? Ou ainda, “quantas mulhe-
res um homem pode ter na vida”? O romancista responde fazendo
os mesmos gestos (anteriormente feitos por Poiccard, ante inda-
gação de Patricia de com quantas garotas já tinha estado): cinco
dedos da mão aberta várias vezes e, por fim, um dedo indicador.
Mais que dezenas, portanto. Quase encerrando a entrevista, Patricia
indaga ao romancista se ele crê que uma mulher desempenhe um
grande papel na sociedade moderna, ao que o romancista particu-
lariza, galanteadoramente, a resposta: “Sim, se ela usa óculos ‘gati-
nho’ e porta um vestido ‘listrado’”, em alusão direta à indumentária
da jornalista, que sorri com o elogio indireto.

7 Para quem tiver interesse das idiossincrasias pessoais e profissionais desse famoso
diretor de cinema, sugiro a leitura do seguinte livro: BEACQUE, A. GODARD, Biographie.
Paris: editora Bernard Grasset, 2010, inclusive com caderno de fotos entre as páginas 336 e
337 e, igualmente interessantes e raras fotografias do cineasta entre as páginas 672 e 673,
antes de iniciado o capítulo epigrafado: “Historien du XX e Siècle – 1988 - 2000”.

85
Regis Frota

Entrevista encerrada, vemos Poiccard tentando fazer dinhei-


ro através da venda de “seu” carro roubado. do qual retira o cabo
de ignição, agride o pretenso comprador que regateara o preço
oferecido, roubando-lhe os trocados da carteira para pagar um táxi
que toma para conduzir Patricia ao centro da cidade. Passando por
vários bairros onde, não encontrando com Antoine que saíra há cin-
co minutos, faz “gracinhas” estúpidas ao levantar o vestido de uma
transeunte do parque por onde atravessa e engana o taxista sem
pagar-lhe a corrida. Na medida que atravessa uma galeria, a pé,
com Patricia saindo do outro lado obscuro da antiga Paris ocupada
pelos alemães, da II Grande Guerra, numa demonstração de esper-
teza matreira e gangsterista.
Enquanto Patricia ingressa no NY Herald Tribune, Poiccard
segue noutra direção da rua; sorte dele, pois, imediatamente os in-
vestigadores mostram a foto do protagonista à jornalista Patricia e
ela nega que o conheça. Contudo, insegura, sai da sede do jornal
para avisar a Poiccard sobre a iminente perseguição policial, ao tem-
po que aquele malandro apaixonado a acompanha, escondendo-se
o rosto por detrás de um jornal aberto, até que ela, se esquivando
pela janela de um banheiro público, foge do investigador policial
que a persegue.
Poiccard e Patricia vão, então, a uma sala de cinema da rua
assistir “Westbound” até o escurecer do dia, escapando do cerco
policial, no momento, em que ela supõe compreender o que pre-
tendia dizer Poiccard com a frase: “seria o dobro ou nada”. Diege-
ticamente, estamos ante “um filme dentro do filme”. Ao sair do ci-
nema, a pé, e empós a dupla de carro, pode ler - juntamente com o
espectador do Acossado - o letreiro luminoso da rua com os dizeres:
“o cerco a Michel Poiccard aperta”8...

8 Note-se o pioneirismo estético godardiano do uso de letreiros luminosos públicos


para fazer avançar ou prosseguir a narrativa imagética e audiovisual do filme, prenhe
de informações literárias e intertextuais. A propósito, Stam comenta muito bem que
pouco “pode fazer um cineasta anti-ilusionista para subverter um código de perspectiva
construído dentro das próprias fotografias que, uma a uma, formam o filme...”. Talvez o
uso de lentes que provocam perspectivas anormais, mas conclui que “por considerá-las
já integradas à estética naturalista, Godard evita as teleobjetivas e as grandes angulares”.
Op. cit. p. 161.

86
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Próxima sequência do filme: No carro estão Poiccard e Patri-


cia, cruzando ruas de Paris; ela lê o jornal com a foto do namorado
e confere-lhe se ele já foi casado: “sim, há tempos”, reponde o gân-
gster francês, “com uma maluquinha identificada pela polícia através
de uma denúncia” (por ele, considerada normal, pois “é normal que
denunciadores, denunciem, assassinos matem e amantes amem e se
apaixonem...”). Termina seu comentário realista em frente às luzes da
praça da concórdia, afirmando: “C´est belle la place de la Concorde!”.
Ingressam num parking subterrâneo para trocar de carro
roubado, em disfarce; Poiccard diz que ali sempre deixam as chaves
na ignição, pedindo que Patricia conduza o novo carro “roubado,”
porquanto ele se esconderá no banco traseiro; Ao sair na rua no-
turna, o letreiro luminoso informa: “Michel Poiccard na iminência
de ser preso”.9
Em busca de receber o dinheiro devido por Antonio Berutti,
percorrem o bairro de Montmartre e, indagando um transeunte,
esse informa o paradeiro do devedor em troca de um beijo na mão
de Patricia; quando a dupla de amantes encontra, por fim, o procu-
rado devedor de Poiccard, vê-se extorsão via foto de beijo “falso” da
acompanhante de Antonio, o qual, saldada a dívida com Poiccard,
chocam-se os punhos à moda de décadas posteriores.
Poiccard e Patricia seguem de carro, embalados pela tri-
lha sonora “de jazz” parodiado. O casal ingressa em um “studio
fotográfico” por indicação de Antoine, esconderijo ignorado pela
polícia. Dialogam enquanto uma “modelo”, em roupas sumárias, é
fotografada. Patricia diz a Poiccard que não aceitaria ser “modelo”
para não dar para todo mundo. Está indecisa. Põe o LP Concerto
de Mozart na radiola e pergunta se não incomoda. “Não, meu pai
era clarinetista”.
Às 5h da tarde, quando Patricia desce do balcão do segundo
andar para a sala, Poiccard lhe solicita ir comprar um litro de leite
e o jornal France Soir. Ela vai e aproveita para telefonar à Polícia,
denunciando o paradeiro do amante. Informa a Poiccard que o de-
nunciou para não mais se apaixonar por ele, para livrar-se dele.

9 Vejam que Jean-Luc Godard liderou o movimento conhecido por Nouvelle Vague, tendo
feito discípulos tanto na cinematografia francesa como além-mar. Lembro o exemplo de
Rogério Sganzerla, no Brasil, o qual imitou, à exaustão, o mestre no filme O bandido da
luz vermelha, nos anos 70, todo narrado através de letreiros luminosos.

87
Regis Frota

Diálogo: Patricia: Se te amasse, seria complicado. Poiccard:


“Agiste exatamente como todas aquelas mulheres que não dormem
com quem as ama, por isso não fugirei”.
Última sequência do filme, aliás, belíssima pela leveza da
filmagem: Poiccard (Belmondo), ao escutar a buzina de Antonio
Berutti, sai à rua dizendo-lhe que não reagirá, recusando revólver
oferecido por ele e, abandonando a mala de dinheiro, corre (tra-
velling demorado com câmera na mão, acompanha o ator/persona-
gem captado pelas costas, em disparada, até ser baleado e tombar
no calçamento, onde agonizará, sendo observado por curiosos e
por Patricia que parece não acreditar na opção pela morte de Poic-
card o qual, nos estertores da vida, deitado no chão, agonizando,
baleado, faz histriônicas “caretas” para a amante (franzindo testa
e passando os dedos nos lábios, em imitação humorística e paro-
diadora de Bogart). Segundos antes de morrer, dirige-se à Patricia
(Jean Seberg) e diz: “você é a escória” - “completement déguelasse”,
explodindo na tela a legenda “fim”.

Filme B de intelectuais
Concordo com o cinéfilo amigo, Bráulio Tavares10, quando
afirma, em relação ao trabalho de Godard, que o melhor tipo de
filme que existe é o filme B feito por intelectual. Seria, segundo ele,
com o qual de acordo estou, “muito melhor do que filme A, feito
por analfabetos. Sim, porque um filme B é, por definição, um filme
que não tem muitas ambições de bilheteria ou de crítica; é um fil-
me feito apenas para se pagar, sumir e dar lugar ao próximo. Não
quer invadir mercados, não quer disputar espaço de centenas de
salas; não foi feito sob uma enorme expectativa de desempenho
nas bilheterias; não teve ações negociadas numa bolsa de mercados
futuros. Só tem obrigações para consigo mesmo. O filme B é feito

10 TAVARES, B. Cinco ou seis coisas que eu sei sobre Alphaville, apud GRUA, por mim
editada, em 2012, Fortaleza, p. 28-35. Afirma, ainda, o articulista que “Howard Hawks deu sua
fórmula para um bom filme: “Três cenas boas e nenhuma ruim”. É uma definição exemplar
para um filme normal. Um filme B, em contrapartida, seria: “Se tiver três cenas boas, todas
as outras podem ser ruins”. O filme B não tem medo de atingir abismos, desde que confie
no próprio impulso para, cinco minutos depois, atingir um pico de qualidade. O filme B
feito por intelectuais (é o caso de Acossado, de Godard) é o último reduto de liberdade
criativa, desde que seja assumidamente B em sua orgulhosa precariedade técnica, e que
seja corajosamente intelectual ao dizer: “É só um filme B, mas toda a memória cultural do
mundo cabe dentro dele”. É assim.

88
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

por uma turma, não por uma equipe de grandes estrelas, diz Bráulio,
com total acerto. Por isso, escolhi para comentar sobre o filme de
estreia de Godard, o Acossado, tanto porque reconheça suas qua-
lidades estéticas, nesses meus sessenta anos de ligação com a cine-
filia francesa11, como, igualmente, por causa dos elementos jurídi-
cos encontráveis na película, a ponto de ser possível de ser o filme
abordado, unicamente, sob essa ótica estreita da juridicidade atra-
vessada pela arte, coisa que não fizemos aqui, deixando para outra
oportunidade. O Direito e o Cinema Francês estão estreitamente
ligados, reconheço, porquanto desde os primórdios da sétima arte,
ainda em 1895, final do século XIX, os irmãos Lumière constatavam
que “le cinéma est une invention sans avenir”, mas mesmo assim a
França tanto contribuiu, nestes dois últimos séculos para um Direito
de cunho universalista, quanto fez um cinema incontornável.
Mas, aí já deixamos para outra oportunidade.
Consoante afirmado por Mário Alves Coutinho12, “ao decidir
escrever este livro, eu não ignorava a publicação de uma quantida-
de enorme de livros por Jean-Luc Godard: roteiros (inumeráveis),
produção crítica (dois volumes), frases (dos filmes nos últimos dez
anos) e os quatro volumes de Histoire(s) du Cinéma. Para afirmar
que ele fizera literatura nesses livros, o que não era meu objetivo
primário, eu primeiro teria que responder a algumas perguntas: a
crítica de cinema pode ser literatura? E quanto aos roteiros cine-
matográficos? Diálogos de filmes, ou narrações em off, podem ser
considerados literatura?”
Eu digo e considero que sim, minha atitude ensaística se
volta para uma compreensão de que é literária a grande matéria
filmográfica, especialmente, de certos cineastas, os quais, como
Godard fez, faz e fazia literatura enquanto realizador de películas,
enquanto cineasta.

11 Conferir, para quem tiver interesse no tema, o ótimo livro de BAECQUE, A. Cinefilia, o
qual reflete sobre toda a formação intelectual e cultural do grupo do Cahiers du Cinéma,
liderado por Jean-Luc Godard e Truffaut, estes dois gigantes do filme B feito por intelectual.
12 COUTINHO, M. A. Escrita com a câmera: a literatura cinematográfica de Jean-Luc
Godard. Belo Horizonte: Editora Crisálida, 2010. p. 18.

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Regis Frota

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O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTINHO, M. A. Escrita com a câmera: a literatura cinematográfi-


ca de Jean-Luc Godard. Belo Horizonte: editora Crisálida, 2010.

FELLINI, F. A Arte da visão: conversa com Goffredo Fofi e Gianni


Volpi. Rio de Janeiro/São Paulo: Martins Fontes, 2012.

__________. Fellini conta Fellini. Lisboa: Livraria Bertrand, 1982.

MARTINS, L. R. Conflito e interpretação em Fellini. São Paulo:


EDUSP/Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1993.

PEDRAZA, P.; GANDIA, J. L. Federico Fellini. Madrid: Cátedra, 1993.

SILVEIRA, W. Fronteiras do cinema. Rio de Janeiro: Editora Tempo


Brasileiro, 1966.

STAM, R. A literatura através do Cinema: realismo, magia e a arte


da adaptação. Belo Horizonte: UFMG/Humanitas, 2008.

__________. O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmis-


tificação. Tradução: José Eduardo Moretzsohn. [S. I.]: Paz e Terra, 1981.

XAVIER, I. Sétima arte: culto moderno. São Paulo: Perspectiva, 1978.

91
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 4

SOBRE A FILMOGRAFIA FELLINIANA,


SUAS NOITES E A COMEMORAÇÃO DE
CENTENÁRIO DE SEU NASCIMENTO

Uma das formas de compreender a essência da grandeza do


trabalho de Federico Fellini seria situá-lo no contexto da produção
cinematográfica italiana do pós-guerra.
O grande filósofo Gilles Deleuze, aliás, filosofou sobre a his-
tória do cinema dividindo-a, de certo modo, enquanto imagens-
-cristal, e a obra de Fellini, sobretudo o filme 8 ½, é tomado como
exemplo paradigmático da “imagem-cristal em formação”, aquela
que não conhece cristal acabado; “todo cristal é, em direito, infinito,
está se fazendo, e se faz com um germe que incorpora o meio e a
força a cristalizar”1.
Deleuze exemplificou, como imagem-cristal perfeita ou pura
toda a filmografia de Max Ophuls, em primeiro lugar; Como exemplo
da imagem-cristal rachado a obra do cineasta francês Jean Renoir e,
por fim, como exemplo da imagem-cristal em decomposição com os
filmes do cineasta italiano Luchino Visconti (Leopardo, Obsessão da
carne, Morte em Veneza, etc.) é dizer, à revelação viscontiana, que
algo chega tarde demais. É o “tarde demais” como dimensão do
próprio tempo.
Mas, sobretudo, aqui não podemos deixar de ressaltar a
certeira percepção filosófica deleuziana de que Fellini é o grande
expoente da imagem-cristal em formação cuja exemplificação do
filme 8 ½ , no dizer de Silvano João da Costa, é o cristal tomado
em sua formação, crescimento e expansão que cristaliza tudo o
que toca, tornando-o novamente espontâneo, multiplicando as
entradas fellinescas. Contudo, antes de entrar em minúcias sobre
a película que acabamos de ver, Oito e Meio, de Fellini, urge pon-
derar que tanto Federico Fellini quanto De Sicca e Visconti, todos

1 DELEUZE, Gilles: A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo:


Editora Brasiliense, 2007, apud Silvano João da Costa, in Deleuze vai ao cinema, p. 49.

95
Regis Frota

reconheceram que o cineasta pioneiro do Neorrealismo italiano


foi Roberto Rosselini cujos filmes como Roma, cittá aberta (1944),
Alemanha, ano zero, Francisco, arauto de Deus, Stromboli, Europa
51, Viaggio a Itália (1954), etc., influenciaram a pegada neorrealis-
ta, incontornavelmente.
Walter da Silveira, ao descrever as noites de Federico Felli-
ni, afirma que, desde 1954, esse cineasta é uma personalidade
polêmica. Nesse sentido, o filme La Strada (A Estrada da vida)
que veremos, brevemente (no início da segunda temporada, em
março de 2020), em nosso ciclo rememorativo sobre Fellini, não
ganhou apenas o segundo prêmio do Festival de Veneza: dividiu
a crítica italiana, senão o cinema da Itália, em duas correntes
opostas. Os partidários do neorrealismo, representado por Lu-
chino Visconti, que concorrera com Sedução da Carne, mas não
fora premiado, e os adversários da escola que, nascida da guer-
ra, conferira ao país uma grande importância mundial, embora
atingisse um esgotamento estético, do qual o estilo de Fellini
valeria como uma superação, talvez uma negação.

1. NOMEANDO ALGUNS FILMES DE


ROSSELINI, DE VISCONTI E DE VICTORIO
DE SICCA - CONTEMPORÂNEOS DE FELLINI

Acreditamos que uma das formas possíveis de analisar, com


alguma maior precisão, a obra filmográfica de Federico Fellini seria
contextualizar sua produção e realização de filmes, é dizer, alocá-
-la no interior temporal e espiritual do neorrealismo italiano, cuja
produção de cinema de Studio (a exemplo hollywodiano como a
Cinecittá) houvera sido substituída pela filmagem com atores não
profissionais, baixos orçamentos, durante a segunda guerra (1939-
1944). Mesmo após o término da guerra, o cinema italiano só não
se destroçou ou acabou, na medida em que barateou completa-
mente suas produções de longa metragem, assim como imprimiu
uma nova concepção narrativa melodramática.

96
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Ora, no capítulo dedicado ao movimento neorrealista italia-


no , eu já tivera ressaltado: “O neorrealismo se contrapunha ao ci-
2

nema fascista que entre 1922/44, vigorara na Itália, montando uma


representação ideológica do regime totalitário. Uma de suas carac-
terísticas era, sem dúvida, a implantação de uma ideologia estética
totalitária fascista, consistente na representação da sociedade por
meio de uma ótica moralista/positivista, muito mais adequada à le-
gitimação do regime do que à realidade das massas. Consequência
direta dessa visão de mundo foi a produção em larga escala (esti-
mulada e apreciada pelo governo de Mussolini) de filmes melodra-
máticos, épicos, romanceados, construindo na tela uma representa-
ção um tanto distante da vida cotidiana da sociedade italiana.”
Do pioneiro cineasta que a todos influenciou, Roberto Rosse-
lini, não podemos deixar de referir os seguintes filmes neorrealistas:
Roma, cidade aberta (1944) e Francisco, arauto de Deus; o primeiro
pela atuação de Anna Magnani, no papel da mãe que se imola na
defesa do amor e da liberdade, os quais afrontam a prepotência
germânica e, o segundo, contando já com a presença de Federico
Fellini como assistente da realização. Por outro lado, cineastas como
Luchino Visconti e Vitorio De Sicca realizam A terra treme e Rocco e
seus irmãos, além de Ladrões de bicicletas e Umberto D, impactando
a narrativa neorrealista. Com seus filmes, Visconti confrontou uma
relativa palidez da realidade abordada dos fatos no teatro do ringue
de boxe (Rocco e i suoi Fratelli) com a riqueza e importância dra-
mática da teatralidade na estação de hidroaviões quando a perso-
nagem Nadia (Anouk Aimée) se contorce de dor sádica e erotismo
masoquista. Os contrastes são evidentes: morte/redenção, as brigas
de rua versus brigas de boxe no ringue, redenção versus culpa, nas
sequências de Nadia na Catedral, prometendo se matar, mudar de
vida pelo amor, etc. Observa-se uma cisão permanente entre os
personagens sem relevo, social versus individual, presente versus

2 FROTA, Régis: Ensaios de Literatura e Cinema, Fortaleza: Editora ABC e AIADCE, 2011,
p. 68. Ademais, havia chamado a atenção que “contra a representação fascista dos filmes
produzidos na Itália entre 1922/44, se insurgiu o neorrealismo, cujos cineastas como
Visconti, Fellini, Antonioni, Zavatini e Rossellini, buscaram, ao revés, apresentar (e não
apenas representar) a realidade social do povo, isto é, não unicamente representá-la
somente, mas apresentá-la, através de imagens cruas e nuas (veristas, portanto), captadas
e feitas fora dos estúdios, de modo a ressaltar o desemprego, o desespero, a desagregação
social em se encontrava o país, após a derrota na segunda guerra, embora vitoriosa pela
resistência enfrentada pelo próprio povo contra os invasores e seus próprios governantes
corruptos”, op. cit. p. 70.

97
Regis Frota

passado, ideologia versus ficção. Enfim, como percucientemente


observa Sam Rohdie3: “o sonho - ou para mudar levemente as coi-
sas, a ficção - é o meio mesmo de entender a realidade, de vê-la
em primeiro plano. A cisão, no filme, entre os ficcionalmente insípi-
dos, Ciro e Luca, que são, apesar disso, histórica e ideologicamente
densos, e os ficcionalmente densos Simone e Rocco que parecem
tão anacrônicos a ponto de demonstrarem somente a historicidade,
precisam uns dos outros, como o contraponto entre a realidade e a
necessária passagem pelo sonho e a ficção para conhecê-la”.

2. AS NOITES FELLINIANAS E SEU CICLO


FILMOGRÁFICO SENDO REVISTO EM
DUAS TEMPORADAS.

Revimos alguns dos filmes de Fellini, em duas temporadas, qua-


tro em 2019, no segundo semestre, e outros quatro já agora em 2020,
no primeiro semestre. Após cada exibição, promovida no âmbito da
Faculdade Ari de Sá, sob a parceria de Grupo de Estudos Psicanalíticos
da FAS, do grupo Só Freud e da Academia Cearense de Cinema – ACC,
Régistramos os debates entre o público fiel e presente, daí derivando
as principais ideias e sugestões interpretativas, a seguir expostas.
A ambiguidade de Fellini, dotando-o de um hermetismo que
não estava em suas intenções, parte mesmo desta contradição
que significa a morte de um dogma cinematográfico: a palavra
valer mais do que a imagem. Ou o espectador se integra no
novo processo do cinema, deixa de ser um emotivo num círcu-
lo de passividade, adquire a estrutura de um lógico que reage
diante do que vê e ouve, ou não penetra no mistério de filmes
como A doce vida, As noites de Cabíria ou Oito e Meio. Ou seja,
não penetra na ideologia felliniana.
Sem falar ainda que a memória, até então, tem suporte indi-
vidual, personalista, de estética pessoal. Ideologia, digamos assim,
que se tornou ainda mais enigmática em 8½ na medida, e por-
que, Fellini o realizou intencionalmente equívoco, numa fascinante
metáfora, com malícias oníricas. Autocrítica de suas concessões e

3 ROHDIE, Sam: Rocco e seus irmãos, Tradução de Elianne Ivo Barroso, Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 1995, Coleção Arte Mídia, sob a coordenação de José Laurenio de Melo. p.
27.

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O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

dubiedades, fere implacavelmente quantos o rodeiam, industriais


e mercadores do filme, colaboradores de criação cinematográfica,
o público e a imprensa. Numa perspectiva profética, percebemos
que 8 ½ esclareceu todo o drama pessoal do cineasta italiano. Não
apenas o do próprio Federico Fellini, mas de quantos, como ele,
serviram e servem a uma arte opressora, aniquilante, despótica.
Consoante Walter da Silveira o indicou e sublinhou, Fellini e
sua filmografia alteraram tanto a perspectiva criadora do autor (do
cineasta autoral) quanto a perspectiva consumidora do espectador.
Que havia em Fellini de singular, quais as suas intenções e os
seus mistérios?
Fellini vinha do mais puro e autêntico neorrealismo: o de Ro-
berto Rossellini. Argumentista de Roma, cidade aberta e Paisà, assis-
tente de direção destas duas datas fundamentais do neorrealismo,
fora dentro da concepção do filme - testemunho que participara
também como um dos roteiristas de “Sem piedade”, de Alberto La-
ttuada ou “Em nome da Lei”, de Pietro Germi. Nem estaria fora do
senso neorrealista quando, de novo, com Rossellini, tivera aquela
visão insólita dos fioretti de São Francisco em “Francisco, arauto de
Deus”, um dos mais válidos exemplos de despojamento dramático
no cinema. E o neorrealismo ainda o acompanhava em Mulheres e
Luzes, sua estreia na direção, numa coautoria com Alberto Lattuada:
o pequeno drama da companhia teatral adequava-se bem ao estilo
cinematográfico vigente na Itália do início dos anos 1950.
Portanto, quais as intenções criativas de Fellini e quais seus
novos mistérios, os mistérios embutidos em seus filmes mais re-
centes, é dizer, aqueles produzidos após os anos 60, de 8 e Meio,
Doce vida, passando por Roma e Amarcord, para referir apenas
os mais expressivos.
Na apresentação de sua tese no curso de jornalismo da Fa-
culdade de Filosofia de Comunicação da PUC (São Paulo), o pro-
fessor Luiz Renato Martins afirma que “superava-se a antiga duali-
dade autor-artesão VS. Indústria, posta na dicotomia entre o mo-
vimento neorrealista e o sistema hollywoodiano, em troca de uma
nova articulação entre a posição autoral - organizada em forma de
trabalho semicooperativos - e o sistema produtivo distributivo”.4

4 MARTINS, L. R. Conflito e interpretação em Fellini. São Paulo: EDUSP/ Instituto Cultural


Ítalo-Brasileiro, 1993. p. 15.

99
Regis Frota

Ali mesmo, o professor ressaltava que se abria a porta para a cele-


bração dos realizadores e a veiculação regular do cinema de autor
no mercado internacional.
Ora, o fenômeno Fellini se instala, precisamente, neste con-
texto histórico de constituição do novo papel do realizador/autor
cinematográfico, aclamada que vinha sendo a nouvelle-vague
francesa desde a explosão godardiana e dos contributos pessoais
e individuais dos “jovens turcos”, após 1959 e o Acossado. Chegava
o cinema moderno.
Quais as causas dessa apoteose às quais teriam levado à uma
iconização de Fellini? Teria sido somente pelo fato de caracterizar-
-se o cinema felliniano de autobiográfico? Que caracterizaria, afinal,
seu teor de novidade?
Não teria sido o fato de o diretor italiano essencializar
a discussão do próprio processo de formulação de sua comu-
nicação filmográfica? Desse modo, sua obra efetuaria a crítica
das premissas do cinema do autor, como do próprio movimento
cinematográfico denominado neorrealismo, desconstruindo a
fabricação do cinema.
Supõe, com razão, o professor Luiz Renato, que a um tempo
desmistificador do processo elaborador de cinema, a filmografia felli-
niana examina “as transformações históricas de uma cultura totalitá-
ria, com fundo agrário e provinciano(sic)5”, não podendo deixar de
ressaltar as diferenças de postura ideológica entre seu cinema e os de
Luchino Visconti, por exemplo: enquanto em Roma e Amarcord, Felli-
ni desbarata os padrões do fascismo, da monarquia e do cristianismo,
em Rocco e seus irmãos, Visconti - embora consciente da fundamen-
tação agrária e provinciana de seus personagens, os quais se deslo-
cam à grande cidade de Milão em busca do sonho da industrialização
- não apresenta qualquer denúncia à cultura totalitária italiana, cujos
excessos e discrepâncias Régistradas na película viscontiana apenas
revelam uma cisão entre o passado e o presente.
Como afirma, a esse propósito, Sam Rohdie: “O excesso de
sentimentos é mostrado no filme não pela linguagem, mas pelo
gesto, ou por grunhidos, gritos, ranger de dentes, muito além da
realidade prosaica que está sendo apresentada”.6

5 Op. cit. p. 18
6 ROHDIE, S. Op. cit. p. 31.

100
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Um repasse rápido das duas temporadas de revisão da fil-


mografia de Fellini (La Strada, La notti di Cabiria e Il Vitelloni, na
primeira) possibilita uma caracterização do tipo de ideologia felli-
niana impressa em seus trabalhos (especialmente, considerando-se
os filmes apresentados na segunda temporada como: La dolce vita,
Otto e mezzo, Roma e Amarcord).
Temos aí, claramente, duas famílias de imagens ou dois ti-
pos de ideologias fellinianas: a primeira ligada à tradição, com os
padrões do fascismo, da monarquia e do cristianismo; a outra, pro-
blematizando o processo de feitura da obra cinematográfica ou do
filme e, atualizando-a.
Desde essa primeira camada de filmes - aqui denominados
como pertencentes à uma primeira temporada revisional pela par-
ceria dos três órgãos conveniados - Fellini privilegia a memória indi-
vidual, tenta capturar o passado pelas recordações dos personagens
centrais dos dramas cinéticos em determinado presente, construído
a partir do ponto de vista pessoal (as sofridas, Cabíria e Gelsomina,
se batem para sobreviver num mundo agressivo e machista, deam-
bulam pelas estradas com suas crenças e desilusões, enquanto os
jovens “boas-vidas”, representados no Vitelloni penetram uns nas
casas dos outros, perambulam nos lares uns dos outros, numa re-
constituição memorialística onisciente - por parte do autor-narra-
dor - nada escapando da Remini felliniana e provinciana; Enquanto,
na segunda temporada, com películas como Roma, Amarcord, Dolce
Vita e Julieta dos Espíritos, percebe-se a narrativa cinematográfica
felliniana a dissolver a subjetividade das lembranças e memórias
dos personagens, obtendo um caráter alegórico, afirmando uma vi-
sada crítica do cinema, onde designa, efetivamente, uma sociedade
em estado de minoridade, enfim, uma população infantilizada, na
hermenêutica do cineasta italiano.
Com efeito, se fôssemos nos aprofundar à análise da cada
um dos filmes dessa segunda temporada - o que não o faremos,
por desnecessário no âmbito dessa matéria - a começar por Roma,
“como capital e sede distante da província, atua, nesses termos,
como objeto de contemplação, dotado de aura”, consoante con-
ceituada por Walter Benjamin7.

7 BENJAMIN, W. A obra de arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. Porto Alegre:


Zouk editora, 2012. O filósofo alemão analisa a importância do cinema na era moderna,
enquanto arte (a sétima arte) que se reproduz por inúmeras cópias, de modo a perder

101
Regis Frota

Conquanto o filósofo Benjamin percebe que a natureza ri-


tual, ou de aura, das artes antigas é substituída em virtude da re-
produtibilidade técnica que a fotografia e o cinema conhecem de
modo a superar a ritualidade da percepção, a função social da arte
(a sétima, no caso, o cinema) passa a se fundar em uma outra práxis:
na política. Daí que o filósofo se interessa em analisar especifica-
mente o fascismo italiano, enquanto movimento político.
Noutras palavras, Walter Benjamin constata - ao estudar
o cinema - como arte que se reproduz, tecnicamente e indus-
trialmente, o percebe utilizado pela política, pelo fascismo, por
exemplo, onde o filho de Mussolini trabalha na Cinecittà. Con-
soante ressaltado pelo filósofo da Escola de Frankfurt: “Os gre-
gos eram obrigados, pelo estágio de sua técnica, a produzir na
arte valores eternos”.8
Estes valores, ditos eternos, que caracterizavam a arte do
passado, quando para cada escultura ou objeto arquitetônico só
existia um único exemplar e, por isso, era tão reverenciado, por sua
dificuldade de reprodução, se transformava em objeto mítico ou
aurático, cambiaram completamente na modernidade do cinema,
cujas milhares de cópias circulavam, ao mesmo tempo, por milhares
de salas de exibição, donde o deslocamento do interesse místico
do produto artístico para o interesse político de sua utilização. Ou
seja, a produção da arte que começara com figurações a serviço da
magia - a pintura desde as cavernas sacras e míticas; a arquitetura,
a partir de um bloco de pedra maciça talhada até a perfeição; a
escultura, com fundamento no culto a deuses e heróis politeístas;
e de igual modo, as artes dinâmicas, literatura, música e teatro, até
chegar na sétima arte do cinema, no século XX, com linguagem e
reprodutibilidade industrial ou técnica, quando a arte foi separada,
completamente, de seu fundamento no culto9.

a aura que caracterizara as seis artes anteriores - da arquitetura e pintura, passando pela
escultura, artes estáticas, até a música e literatura, passando pelo teatro, artes dinâmicas -
as quais possuíam, desde a história da civilização greco-romana, uma aura mística, espécie
de culto ritual.
8 Op. cit., p. 49.
9 O desvio da interpretação da aura para a política, segundo Benjamin, vivenciada pela
arte através da história da humanidade, explicaria por que o fascismo se interessou tanto
pelo cinema. O autor alemão observa que a “crescente proletarização dos homens de
hoje e a crescente formação de massas são dois lados de um mesmo acontecimento”.
O autor, aliás, observa, por exemplo, que por séculos a situação da literatura foi tal que,

102
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Esta tese de que o fascismo italiano de Mussolini se utili-


za do cinema como arte reprodutível para estetizá-la, na linha de
raciocínio de Walter Benjamin, ao descrever a era da reprodutibili-
dade técnica da obra de arte - especialmente, da sétima arte - foi
testemunhada por Federico Fellini, cujas películas da segunda tem-
porada (Roma, Amarcord, Julieta dos espíritos, etc.) criticam, ao
tempo que se utilizam da Cinecittá.
E como bem o ressalta Luiz Renato: “Fellini inova na abor-
dagem do fascismo ao destacá-lo do nazismo ocultando, com isso,
sua gênese, especialmente sua psicologia de massa, autenticamen-
te nacional” ... “as histórias do fascismo e do cinema italiano se mes-
clam. Cinecittá foi uma obra estratégica do fascismo.”10
Tanto é verdade que foi o próprio Mussolini quem, em janei-
ro de 1936, pôs a pedra fundamental da construção do empreen-
dimento Cinecittà (inaugurada 475 dias após nascida, como uma
Hollywood fascista11), sonho de imitação de um país pobre e me-
galómano cultivado, sobretudo, pelo filho do Ducce, Vittorio Mus-
solini. Entre abril de 1937 e julho de 1943, foram realizados 279
filmes na Cinecittà, sendo 120 comédias, 17 de temas de guerra ou

para um pequeno número de escritores, havia um número multiplamente maior de


leitores... o mesmo se pode Régistrar em relação ao teatro e à música: para um muito
diminuto número de teatrólogos e compositores musicais havia um número muito maior
de espectadores teatrais e de concertos clássicos.
10 MARTINS, L. R. Op. cit., p. 68. Quando (em Roma e Amarcord) Fellini inova na abordagem
do fascismo, ao destacá-lo do nazismo, se contrapõe, na verdade, à visão tradicional na
cinematografia italiana, que costumava subsumir o fascismo ao nazismo, ocultando com isso
sua gênese, especialmente sua psicologia de massa. Assevera este autor que “o enfoque do
aspecto bélico ou militar do totalitarismo italiano e, principalmente, o tema da ocupação da
Itália pelos alemães, no final da guerra, eram propícios a tal abordagem visto que a supremacia
germânica era evidente. Só que, de muitos outros ângulos, é o fascismo no poder desde 1922,
que tem primazia e inventa modelos que seriam adotados pelos nazistas no poder, só a partir
de 1933”... “Fellini inverte, pois, o esquema corrente, ao representar o fascismo, não como um
fenômeno histórico Ex Machina, mas com um vulto familiar.” Idem, ibidem.
11 Fenômeno de produção e reprodução fílmica, imitado por alguns outros países, Brasil
inclusive, que montou a Empresa Companhia Cinematográfica VERACRUZ, que pretendia
ser, por sua feita, uma cinecittà paulistana, consoante observação efetuada na pesquisa
de Maria Rita Galvão: Burguesia e Cinema - o caso vera cruz”, publicada pela civ. Brasileira
e Embrafilme, Rio de Janeiro, 1981; “A alta burguesia paulista quis armar um poderoso
complexo cultural de entretenimento e informação, mas toda a imensa fortuna mobiliza-
da para esse fim não foi bastante para compensar a improvisação e o personalismo que
acabaram impedindo a transformação do sonho em realidade viável”, segundo a apresen-
tação da obra de Rita Galvão.

103
Regis Frota

propaganda, 142 de outros gêneros (como ópera lírica, filme his-


tórico, policiais e outros). Mario Lombardo (Cronologia, pág. 165)
afirma que depois da queda do fascismo (25 de julho de 1943) e
da prisão de Mussolini, a Cinecittà parece acabada, e os seus 1200
funcionários são licenciados e demitidos, interrompendo-se o ciclo
de produção cinematográfica.

3. INFLUÊNCIAS ESTÉTICAS NA FILMOGRAFIA


FELLINIANA E O CORTE TRANSVERSAL DA
LINGUAGEM OU DO DIÁLOGO OBJETIVO

Todos sabemos da enorme admiração que o cineasta Fe-


derico Fellini tinha pela arte de Charles Chaplin – artista e palhaço
completo, criador do célebre personagem Carlitos e sua mitologia
circense - e foi possível comprovar com as interpretações de sua
mulher, a atriz Giulietta Masina, cujo andar e trejeitos imitavam Car-
litos, fosse ante as desgraças e solidão que se abatiam sobre Gel-
somina, fosse ante as ilusões e desesperanças que comprometiam
o viver de Cabiria; Enfim, qual a diferença essencial entre um Fellini
dessas temporadas, sobretudo a primeira temporada revisional, do
cinema produzido por um Chaplin de O circo (1925) ou Limelights
(Luzes da Ribalta, 1952)? O velho palhaço Calvero (Chaplin), em-
bora consciente de sua desvalia profissional e da ameaça de término
de sua carreira, versejava toda a esperança na vida e na juventude da
bailarina Terry/Tereza (Claire Bloom), possuída de uma histeria enfer-
miça que a impedia de continuar a viver, antes de ser soerguida pelo
amor e a dedicação do velho palhaço. Nos filmes de Charles Chaplin
- em que pese toda sua criatividade definitiva e aperfeiçoamento da
linguagem cinematográfica, do mudo ao cinema falado, observa-se
uma forma artística que busca envolver o espectador, com música e
diálogos comovedores, de clara intenção ilusionista, enquanto nos
filmes fellinianos - desde Il viteloni (1953), I Clowns e aqueles todos
a partir dos anos 60, se caracterizam pela interrupção da emoção,
por aquilo que se consagrou denominar de espetáculo interrom-
pido, pelo cinema da desmistificação, próprios das eras moderna e
pós-moderna. Consoante ressaltado por Robert Stam: “com o ad-
vento do modernismo, a descontinuidade ganhou um caráter filosó-
fico, programático, e alguma forma, hostil. A descontinuidade passa

104
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

a apropriar-se do espetáculo. Na arte modernista, a problemática da


narração passa a ser associada a um ponto de vista antiessencialista
e fenomenológico do mundo”.12
Ora, a estética de Fellini privilegia bastante o espetáculo
descontínuo; seus filmes se caracterizam por uma descontinuidade
brutal, feroz, onde o teatro da barafunda, por exemplo, sofre cons-
tantes cortes na continuidade da narrativa, onde o espírito nacional
italiano é objeto de reflexão e crítica, da família ao clericalismo, ao
imperialismo, ao fascismo, ao patriarcalismo.
Portanto, as semelhanças entre Chaplin e Fellini podem ser
identificadas tanto no conteúdo como na forma, em que pese as
distâncias entre ambas as filmografias. Por exemplo, quando em
Limelight (Luzes da Ribalta), a bailarina é recolhida por Calvero
após tentativa frustrada de suicídio e ante suas argumentações de
desânimo na vida, o velho palhaço mostra-se gentil, gentilíssimo,
referindo à primavera como sinônimo de vida brilhante e gratidão
obrigatória de cada humano ante a natureza, as flores, árvores, etc.,
lembrando, destarte, a todo um conjunto de sequências de Amar-
cord quando, no início da película, as crianças e loucos buscam nas
manine que caiem sobre a praça provinciana, os sinais da chegada
da estação primaveril, a mesma primavera que o avvocato celebra
junto à comunidade fascista.
Edgar Morin13 assevera, com intuição acertada, que: “Em Mon-
sieur Verdoux vê-se, pela primeira vez, a realização imoladora do sa-
crifício: a morte. Limelight faz ressaltar, de modo sublime, o tema
essencial da redenção e do sacrifício que ilumina, retrospectivamen-
te, a morte de Verdoux, a solidão do vagabundo, as pancadas, as
agressões sofridas por todos os Carlitos e por todos os pobres-dia-
bos desde o início dos tempos. Calvero poderia ser feliz com Terry;
ela repete-lhe que o ama e ele o sabe. Ela quer ficar com ele, mas ele
responde: “Devo continuar meu caminho - é uma lei”. Ele sacrifica-se
voluntariamente, conscientemente, para libertar a juventude e a vida
de suas grilhetas. E, “quando a câmera se afasta de Calvero, morto
nos bastidores, e volta à cena da bailarina dançando, apesar de seu
desgosto, o movimento do aparelho parece seguir a própria alma.”

12 STAM, R. O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação. São Pau-


lo: Paz e terra Editora, 1981. p. 22-23.
13 MORIN, E. Chaplin por ele mesmo. [S.l], Ed. Martin Claret. p. 18

105
Regis Frota

Por outro lado, não podemos esquecer que a estética ou


o estilo chapliniano era, e foi, totalmente moldado pela ideologia
hollywoodianesca, cuja arte cinematográfica ali construída visava
iludir o espectador, envolvê-lo emocionalmente, consoante asseve-
ra o estudioso Bela Balazs:
“Hollywood inventou uma arte que não observa o princípio
da composição contida em si mesma e que, não apenas elimina a
distância entre o espectador e a obra de arte, mas deliberadamente
cria a ilusão, no espectador, de que ele está no interior da ação re-
produzida no espaço ficcional do filme”.14
Mas não esqueçamos que o cinema - enquanto linguagem
- deu saltos gigantescos, de Chaplin a Fellini, tendo este último ul-
trapassado a narrativa contínua, emotiva, ilusionista para, em filmes
como Roma e Amarcord, partir para uma lembrança coletiva, des-
provida de individualidade ou individualismo da memória de qual-
quer personagem, com seus marcos distintivos, “para a narrativa,
entre o discurso coletivo e o individual, exemplificativamente, defi-
nindo a transparência ou a opacidade15 das ações focalizadas, dá-se
no passeio com o tio de Tita, internado num asilo para enfermida-
des mentais. “Defronta-se a opacidade da loucura para o discurso
coletivo (sic), consoante ressaltado por Luiz Martins, na medida em
que o retrato do demente destaca sempre a estranheza dos seus
motivos e a incomunicabilidade insuperável com os demais.
Seu isolamento se salienta diante da estratificação explícita
das relações domésticas envolvendo todos os familiares, mas visi-
velmente não extensiva ao parente alienado”.16 Ora, quando o alie-
nado sobe na árvore, negando-se a descer, contra todos os apelos
familiares, sob furiosos gritos de “Voglio una Donna”, o espectador
tem a impressão que se cuidava de uma carência de natureza so-
mente sexual, impressão desmentida quando a freira-anã conse-
gue resgatá-lo (fazer o tio Téo descer da árvore) surgindo a dúvi-
da se não era ela própria a desejada. Bela e demorada sequência

14 BALEZS, B. Theory of the film. Dover Public Inc. NYC: [s.n.], 1970 (hoje existe tradução em
espanhol e em português). p. 50.
15 Sobre os conceitos de “transparência e opacidade”, conferir o livro de Ismail Xavier: “O
discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência”. Rio de Janeiro: Paz e Terra Editora,
1977.
16  MARTINS, L. R. Op. cit., p. 75-76.

106
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

cinematográfica na qual a recordação pontua o diálogo felliniano.


Logo temos a sequência fílmica do gigantesco Rex, o navio enor-
me frente às pequenas embarcações que o esperam, demonstrando
Fellini a admiração coletiva italiana da atualidade infantilizada, pelo
fascismo, regime político que se orgulhava de sua marinha. O tran-
satlântico Rex era uma glória naval do regime cuja lente felliniana
analisa e destroça, “na súbita assunção de transparência, por tipifi-
car o cinema do regime”. Fica, destarte, dissolvida a subjetividade
interpretativa do filme numa forma dada de unanimidade. O que se
apresenta nesta sequência cinética da passagem do REX é um para-
digma da estética fascista, grandiloquente e recorrente de padrões
tradicionais do modelo contemplativo.17
Em Amarcord, tudo é interpretação. Tudo é sonho, vida e
poesia felliniana.
É a forma de transformar a opacidade das imagens em
transparência das mesmas. É sonhar, com Federico, esse estranho
que se chama Federico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FELLINI, F. A Arte da visão: conversa com Goffredo Fofi e Gianni


Volpi. Rio de Janeiro: Martins Fontes Editora, 2012.

__________. Fellini conta Fellini. Lisboa: Livraria Bertrand, 1982.

MARTINS, L. R: Conflito e interpretação em Fellini. São Paulo:


EDUSP/ Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1993.

PEDRAZA, P.; GANDIA, J. L. Federico Fellini. Madrid: Cátedra, 1993.

STAM, R. O espetáculo interrompido: literatura e cinema de


desmistificação. São Paulo: Paz e Terra Editora, 1981.

17 Consoante afirmado pelo autor supracitado: “Em suma, a disjuntiva vem dada pela
encenação do paradigma estético fascista, e, simultaneamente, pela interrupção, através
de uma torção narrativa, nos efeitos persuasivos da narração. O que permite ao público
entrever as relações instituintes da obra, isto é, a sua própria estrutura”. Op. cit. p. 78.

107
109
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 5

NOTAS REVISORAS ACERCA DA FILMOGRAFIA


DE STANLEY KUBRICK

Stanley Kubrick está sempre à borda de um abismo, à beira


do colapso, do desespero e da morte.
Em livro anterior, Ensaios sobre o cinema moderno, dediquei
o capítulo quarto a descrever alguma relação entre o abismo e o
cinema, a supor que o erotismo superava a depressão, a morte. Eis
uma das razões pelas quais volto ao tema, retomo a temática do
abissal, do colapso, da visão nietzschiana impregnante da cinema-
tografia desse cineasta americano nascido em 1928 e morto em
1999, cujos dezesseis longas-metragens realizados trazem sempre
algo inusitado, marca autoral incontornável.
Aliás, Kubrick estaria completando seus noventa anos agora,
e muitos são os motivos para comemorar a vida e a obra de tão
inspirado e austero realizador cinematográfico.
Os de minha geração terão visto - como eu, suponho - os
filmes kubrickianos, ainda na tela grande, aguardando, um após o
outro, a distribuição acompanhada de comentários e críticas ensaís-
ticas componentes de livros sobre o cineasta (a maioria, um tanto
ácidos), matérias antes publicadas, normal e regularmente, nos su-
plementos literários dos grandes jornais do país e do exterior, das
tantas décadas da segunda metade do século XX, atualmente extin-
tos ou já inexistentes, desafortunadamente.
Em nosso passeio pelo trajeto filmográfico de longas me-
tragens de Stanley Kubrick - em número de treze (ao todo) adiante
comentados, um a um - notamos a verdadeira obsessão do cineasta
com a ameaça do colapso existencial da sociedade, como dos indi-
víduos por suas narrativas retratados.
Desde o primeiro longa - Fear and desire (Medo e desejo,
1953), até o último, produzido em 1999, Kubrick alertará para esse
destino do ser humano. Em Medo e Desejo, por exemplo, renegado
pelo próprio diretor como obra recomendável, tanto que retirou
as cópias da exibição comercial, consoante descrito por Michel

111
Regis Frota

Ciment1: “uma patrulha militar de quatro homens - o tenente Cor-


by, o sargento Mac e dois cabos, Fletcher e Sidney - encontra-se
atrás da linha inimiga de uma guerra abstrata depois da queda
de seu avião. Eles entram na floresta, pegam de surpresa alguns
soldados inimigos enquanto estão comendo e os massacram. De-
pois encontram uma garota e, com medo de que ela os denuncie,
amarram-na a uma árvore. Sidney a vigia enquanto os outros três
camaradas vão até a beira do rio para comprar uma jangada que,
assim esperam, os leve para casa. Para seduzi-la, Sidney desamarra
a garota e depois a mata quando ela tenta fugir. Corby, Mac e Fle-
tcher voltam depois de descobrir um posto de comando inimigo
ocupado por um general e seu ajudante. Mac os convence a voltar
lá, matá-los e roubar o avião deles. Enquanto Mac desce o rio de
jangada para pegar Sidney, Corby e Fletcher se aproximam do pos-
to no escuro e matam o general e seu ajudante. Os quatro homens
finalmente se reúnem”.
Como se vê, desde seu primeiro filme, Kubrick revela encon-
trar-se entre a razão e a paixão. Na conformidade de Ciment, Ku-
brick aparece na cena cinematográfica dez anos depois de Orson
Welles e a década que começa em 1950.
Dois anos depois da estreia na direção cinematográfica,
Stanley Kubrick, com apenas 27 anos de idade, roda pelas ruas de
Nova York, seu segundo longa-metragem: Killer´s kiss (A morte
passou por perto, 1955), uma espécie de film noir interessante, na
medida em que podemos reconhecer na experiência diretorial ku-
brickiana uma antecipação de quase seis anos aos espontaneísmos
estilísticos da nouvelle vague francesa, tendo o cineasta americano
precedido no modernismo a Jean-Luc Godard de A bout de souffle
(Acossado,1960), sobretudo, se considerarmos que Kubrick - embo-
ra seguindo a tradição clássica hollywoodiana de gênero cinemato-
gráfico policial, cujos nouvellevaguistas François Truffaut e Godard,
e mais os denominados “jovens turcos”, igualmente apreciavam, em
suas cinefilias - se deslocava dessa tradição da “era de ouro” para
inovar, artística e audiovisualmente. Se fazia de típico autodidata,
aquele que aprende tudo de cinema, in loco, que tudo faz para
chegar a ter o controle absoluto do equipamento técnico mais so-
fisticado, inclusive o controle econômico de seus filmes, algo que

1 CIMENT, M. Kubrick. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro, com prefácio de Martin Scorsese.
São Paulo: Ubu Editora, 2017. p. 321.

112
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

nunca ocorreu com o grande gênio que foi Orson Welles, na década
anterior de 1940.
Neste segundo filme, realizado nas ruas de NYC, em 1954,
Killer´s kiss (A morte passou por perto), Davy Gordon (Jamie
Smith) protagoniza um boxeador fracassado que arrisca sua vida
para proteger a uma jovem bailarina, Gloria Price (Irene Kane), a
qual mora em prédio de fronte ao do boxeador, a ponto de este
perceber ou ver, através da janela, quando o patrão desta tenta
agarrá-la à força, sendo impedido pela intervenção do boxeador,
que corre para socorrê-la e, então, escuta sua história de vida. O
filme se desenrola por meio de dois flashbacks: o primeiro, no hall
principal da estação Grand Central quando o boxeador protago-
nista relembra seus dois últimos dias; o segundo, por ocasião da
descrição da história de vida da bailarina, a qual, mais por palavras
que por imagens, descreve para Davy, o boxeador protetor, sua in-
satisfação com o tipo de trabalho e péssimo relacionamento com o
patrão. Unidos por algo mais que o perigo e seus perseguidores, o
casal protagonista, Davy e Gloria, decide fugir ou escapar da cidade
em uma desesperada fuga a nenhuma parte. Pela bela e eletrizante
montagem do filme de Kubrick - com os flashbacks mencionados,
e mais o conjunto de planos e sequências clássicas a demonstrar
seu impacto audiovisual, o espectador pode perceber a transmissão
kubrickiana de estados de ânimo mediante uma atmosfera dura,
violenta, quase irrespirável, que recorrerá suas obras e dezenas de
filmes - longas posteriores.
O próximo longa de Kubrick é produzido em 1956, The
killing (O grande golpe) e o enredo conta a estória de John Clay
(Sterling Hayden), o qual planeja roubar US$ 2 milhões em uma
corrida de cavalos, tendo armado um esquema onde “ninguém sai-
rá ferido”. Só não previu o protagonista que ele, e seus homens
comparsas, negligenciavam um imprescindível detalhe, encoberto
em segredos: Sherry Peatty (Marie Windsor), uma mulher obcecada
por dinheiro, planejava seu próprio golpe, mesmo que para tanto
tivesse que acabar com John Clay e todo seu bando.
A sequência final da película é magistralmente emotiva: após
tantas tensões da fuga do protagonista, circunstâncias da natureza
espalha toda a soma resultante do grande golpe, espalhando as mi-
lhares de notas de dólares ao vento inescapável. Cuida-se, induvi-
dosamente, de um dos melhores filmes hollywoodianos de crime e
suspense, noir exemplar na narrativa, sob magistral direção artística

113
Regis Frota

kubrickiana, com a marca de inventividade tecnológica, cheia de


modernidade narrativa.
Um quarto filme de sua produção filmográfica, todos com
sua marca pessoal - composta de treze longas metragens por nós
referidos aqui e, superficialmente, adiante analisados - a saber: Gló-
ria feita de sangue (Paths of Glory, 1958); Spartacus (1960); Lolita
(1962); Dr. Strangelove (Dr. Fantástico, 1963); 2001, Uma odisseia no
espaço (2001, a space odyssey, 1968); Laranja Mecânica (A clockwork
Orange, 1971); Barry Lyndon (1975); O iluminado (the shinning,
1980); Nascido para matar (Full metal jacket, 1987); e, De olhos bem
fechados (Eyes wide shut, 1999).
Em Glória feita de sangue (Paths of Glory, 1958), Kubrick
representa um ponto fora da curva na história dos filmes de guer-
ra; De fato, quando uns soldados do exército francês, na primeira
grande guerra, se negam a obedecer às ordens autoritárias e suici-
das de seus superiores, estes decidem dar exemplo de autoridade
de forma drástica e arbitrária. O filme mostra a rebelião do coronel
Dax (Kirk Douglas) e Régistra sua luta pessoal nas trincheiras e nos
despachos burocráticos e judiciários militares para defender uns
homens enviados injustamente à morte. Consoante resumido por
Michel Ciment, “os homens de Dax, exaustos devidos aos combates
precedentes, avançam com dificuldade e alguns não conseguem
sair das trincheiras. General Mireau (George Macready) ordena que
o capitão Rousseau (John Stein) atire em suas próprias tropas. Rou-
sseau se recusa. Enquanto isso, o ataque fracassa. Mireau convence
Broulard (Adolphe Menjou) que a disciplina exige sacrifício: um ho-
mem será escolhido em cada uma das três tropas e irá para o con-
selho de guerra: o coronel Dax será o defensor deles. O procurador
e major Saint Auban (Richard Anderson) condena à morte Férol, Ar-
naud e Paris. Dax (Kirk Douglas) tenta salvar seus homens revelando
a Broulard a ordem do capitão Rousseau. Broulard não a leva em
conta e os três soldados são executados ao amanhecer. Broulard
revela, então, seu plano: uma investigação sobre Mireau será aberta
e ele propõe o posto dele a Dax. Este recusa a proposta e se junta a
seus homens, que ouvem uma cantora alemã”.2

2 CIMENT, M. Op. cit., p. 321.

114
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Ora, pode parecer ultrapassado o enredo bélico, mas ven-


do-o de uma perspectiva simbólica e metafórica, se percebe que a
rebelião do coronel Dax (Kirk Douglas) às elevadas instituições da
justiça militar representa uma clara e meridiana denúncia do cineas-
ta ao establishment injusto e cruel da sociedade do século XX ou,
dito de outro modo, uma crítica ácida aos senhores da guerra de
todos os tempos, mordaz enfrentamento cinético e artístico contra
a cegueira e desumanização, as quais produzem os constantes con-
flitos bélicos enredados na humana história ocidental.
A película mostra o padre que tenta consolar os três solda-
dos que serão, necessariamente, executados ou sacrificados, para
servir de exemplo de coragem e, aparente anticovardia militar, a
contribuir para a regularidade e injustiça institucional das autori-
dades constituídas; são patéticos seus conselhos e exortações cris-
tãs aos condenados, apesar de inocentes, de os mesmos sonharem,
ainda, em continuar vivos, por esposar a certeza de não terem sido
covardes durante o embate bélico ridículo, das trincheiras france-
sas, na tentativa inviável da conquista do “formigueiro”. É de ex-
trema emotividade sensível a sequência fílmica da execução dos
três soldados (da preparação à própria fuzilaria), ante extensa tropa
perfilada, sendo levado em maca um dos três soldados, em virtude
de impossibilidade de seu deslocamento e choro desesperado de
outro, em função da impotência ante a prepotência do inusitado
contexto das determinações militares e religiosas superiores, ape-
sar de injustas e estapafúrdias, fincados em estacas quais os dois
ladrões e Cristo, no monte calvário, antes da execução sumária.
O diálogo de Dax (Kirk Douglas) com o General Mireau
(George Macready), no início da película, quando este tenta con-
vencer àquele a expor seus comandados à morte inútil, em troca de
seu interesse em promoção militar, em busca de mais uma estrela
na farda, o coronel diz preferir conduzir camundongos a rifles e
faz referência à frase de Samuel Johnson, segundo a qual: “o pa-
triotismo é a última trincheira do covarde”. O espectador constata
o quanto Kubrick se especializa em ironias, sarcasmos e críticas às
loucuras suicidas e exterminadoras de vidas humanas, pelas guer-
ras, pelas vanglórias do poder estatal irracional. Veremos a extrapo-
lação dessa paranoia alertadora no filme número 7, da filmografia
do jovial diretor, Dr. Strangelove (Doutor fantástico, 1963), cujo ex-
termínio possível do próprio planeta terra e da humanidade integral
poder-se-ia viabilizar por meio do uso das bombas atômicas e/ou

115
Regis Frota

de nitrogênio, irresponsavelmente passíveis de serem utilizadas ou


disparadas, algum dia, por equívoco dos presidentes de uma das
nações globais durante a guerra fria.
Essas inquietações kubrickianas, com a ameaça apocalípti-
ca do ser humano e da sociedade global produzida pelos dramas
bélicos, repercutirá por sua filmografia, mui especialmente após a
entrada da década de sessenta, quando Kirk Douglas, o ator prota-
gonista de Glória feita de sangue, em 1960, ao produzir Sparta-
cus, pede ao Stanley que assuma a direção artística desse que será
o quinto longa de Kubrick, após uma semana de filmagens com An-
thony Mann - quem dirigiu a primeira sequência e preparou a luta
dos gladiadores - por motivo de desentendimento com o referido
ator. E podemos afirmar que o filme clássico Spartacus, vencedor
de 4 Óscares, sucesso de bilheteria e aventura que, praticamente,
me inspirou a amar tanto as obras de cinema assistidos na infân-
cia e juventude, nos anos 1960 e 1970, trata-se de uma exceção
no percurso cinematográfico de Kubrick, porquanto, ele não tendo
trabalhado no roteiro (como sempre fará, doravante), teve que se
submeter ao projeto inicial do qual nunca participou. Teve, destarte,
que se submeter ao sistema de produção hollywoodiana, o qual,
segundo Ciment, caracterizaram os “anos 1950, os mesmos que vi-
ram o início do declínio das grandes produtoras, hierarquizadas,
onipotentes, fora das quais, em Hollywood, não havia salvação”.3
Assevera o crítico francês, ademais, que a “crescente popularidade
da televisão, o afastamento da população do centro das cidades
privariam o cinema de um público regular. Para recuperá-lo, os es-
túdios apelam para jovens talentos (a geração oriunda da televisão:
Frankenheimer, Lumet, Ritt, Mulligan, Penn), cheios de ideias novas,
dão mais independência aos cineastas mais cotados que se tornam
seus próprios produtores (Hitchcock, Wilder, Kazan, Prominger,
Mankiewicz, etc.). É nessa brecha que Kubrick vai se embrenhar rea-
lizando O grande golpe (já, anteriormente, comentado) distribuído
pela United Artists”.4

3 CIMENT, M. Op. cit., p. 27.


4 Idem, ibidem. Conferir, igualmente, o capítulo 4, de Ensaios sobre o cinema moderno, de
Régis Frota Araújo, Fortaleza: Premius Editora, 2019. p. 63-78.

116
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Observação necessária: Kubrick nunca é inteiramente absor-


vido pelo sistema hollywoodiano das Majors. Autodidata que apren-
deu tudo in loco lutou o diretor para chegar ao controle absoluto
do equipamento técnico de filmagens, desse modo se distinguindo
de Orson Welles que nunca deixou de depender das produtoras es-
cravizantes, em que pese ter sido tão genialmente inovador quan-
to Kubrick (ambos começaram a dirigir com 25 anos, tendo Orson
Welles realizado Cidadão Kane no início dos anos 1940, com abso-
luta liberdade criativa, apoiado pela indústria hollywoodiana, já no
topo da pirâmide, enquanto Stanley Kubrick, só após muito suor e
lágrimas, lograr controlar os elementos de seu filme, desde a com-
pra dos direitos autorais pois, adaptará para a arte cinética, muitos
livros por ele escolhidos, cuidadosamente eleitos, até a pós-produ-
ção e comercialização de suas películas.
Ora, Welles foi o gênio dos 40, enquanto em 50 desponta
Kubrick como promessa jovial e genial, a defender sua autonomia,
nas décadas posteriores até sua morte, em 1999, montando um ver-
dadeiro trapézio ao lidar com milhões de dólares, mais livre, contu-
do, do que no difícil princípio de sua carreira. Vejam como o próprio
diretor descreveu sua personalíssima experiência:
“A melhor educação que se pode receber no cinema é fazer
um filme. Eu aconselharia a qualquer diretor novato a tentar realizar
um filme por si mesmo. Um curta-metragem de três minutos vai
lhe ensinar muito. Sei que tudo o que fiz no início de minha carreira
foi, em microcosmo, o que faço hoje como diretor e produtor. Há
muitos aspectos não criativos na realização de um filme que devem
ser superados e todos serão encontrados ao fazer o menor filme:
as finanças, a organização, as taxas... É raro conhecer um ambiente
artístico sem entraves quando se faz um filme, e ser capaz de aceitar
isso é essencial. O que devemos ressaltar é que qualquer pessoa
seriamente interessada na realização de um filme deve arrecadar o
máximo de dinheiro, o mais rápido possível, mergulhar e filmar.”5
Ironicamente foi com o sucesso do filme Spartacus que Ku-
brick, ao sentir-se um mero “empregado” do sistema de produ-
ção hollywoodiana, decidiu mudar-se para Londres, donde nunca
mais voltou a filmar, nem residir, nos EUA. Foi “como se a distância

5 GELMI, J. The film Director as Superstar. NYC, Dubladay, 1970. p. 293-316, apud Michel
C. Op. cit., p. 28.

117
Regis Frota

geográfica simbolizasse, dali em diante, a altiva distância que ele


queria manter da meca do cinema”. (sic) O sucesso de bilheteria de
Spartacus foi, em parte, responsável pela independência financeira
do jovial diretor.
Fiquei marcado na juventude com a excelência desse filme
de ação, o qual conta a história de Spartacus (Kirk Douglas), o des-
temido gladiador que levou para Roma a revolta dos escravos e
Varínia (Jean Simmons), a mulher que acreditou em sua causa. Uma
película que ressalta o valor da liberdade, só comparável, na história
do cinema americano, e no imaginário juvenil de qualquer adoles-
cente que se inicia - como o fiz, nos anos 50 - como espectador da
sétima arte, ao filme Gladiador, de Ridley Scott, nos anos 1990.
É curioso observar a montagem rigorosa das sequências
fílmicas de Spartacus, em que multidões (de escravos, de solda-
dos, de gladiadores e suas famílias) se deslocam através de diferen-
tes paisagens, ora estações invernosas, ora em verões escaldantes,
rumo a capital do antigo império romano, por vezes com closes dos
personagens centrais da trama ou mesmo de crianças e mulheres
se deslocando entre os bravos escravos e soldados, e sempre vol-
tando ao épico sentido da narrativa, o faz mais que prender, assim,
a atenção do espectador, em poucos filmes epopeicos como este
dirigido por Kubrick.
A edição especial em DVD da Universal Pictures tem 110 mi-
nutos no primeiro disco e 86 minutos no segundo.
A aventura fílmica retratada na película - das diversas cenas
em que o Senado Romano discute sobre as medidas repressivas
ao exército de escravos liderado por Spartacus, às cenas de lutas e
amores dos principais personagens e protagonistas do filme - re-
velam as elevadas pesquisas e profundos estudos de costumes e
hábitos antigos que o cinema clássico hollywoodiano tão bem, e
insistentemente, teatralizou/retratou, naqueles anos.
O ciclo cristão inaugural de sucesso estrondoso nas bilhe-
terias mundiais, com exemplares como Quo Vadis, El Cid (dirigido
por Anthony Mann, 1961, com 177 minutos), O manto sagrado
(dirigido por Henry Koster, 1953, com 133 minutos), Os dez man-
damentos (dirigido por Cecil B. DeMille, 1956, com 231 minutos), O
rei dos reis (dirigido por Nicholas Ray, 1961, com 160 minutos) etc.,
justificava, mas não explicava, a presença de um filme como Spar-
tacus, na filmografia de Kubrick, embora ele não tivesse nada a ver

118
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

com o projeto inicial, embora deveremos reconhecer que se trata


do único dos filmes a retratar aquele período contemporâneo a Je-
sus Cristo, onde o profeta cristão não aparece... Foi muita coragem
de Kubrick de não incluir alguma manifestação humana de Cristo6,
em película que trata do período histórico em que Ele viveu, sob
influência do Império Romano e, aliás, veio a ser crucificado (como
Spartacus e os outros milhares de escravos revoltosos) em Gólgota.
Ainda é Michel Ciment quem nos dá a chave da compreen-
são da complexidade do trajeto filmográfico de suas obras:
“A lógica inflexível que estrutura as obras de Kubrick indi-
ca uma profunda angústia contra a qual ele talvez seja um último
refúgio. Os títulos de seus filmes, Fear and desire (Medo e desejo),
Killer´s kiss (o beijo do assassino), The killing (a matança ou o gran-
de golpe), Dr. Strangelove, traduzem bem a ligação entre amor e
morte que está no centro de seus filmes. Em A morte passou por
perto, o dono da boate abraça avidamente a moça enquanto se
delicia vendo na tv o massacre do herói por seu adversário num rin-
gue de boxe; Em O grande golpe, o gângster impotente descarrega
seu revólver na mulher que o traiu; em Lolita, a paixão de Humbert
é uma longa autodestruição que acaba na morte de Quilty; Em Dr.
Fantástico, o general Jack D. Ripper decide aniquilar o adversário,
segundo ele, polui os fluidos naturais do corpo ao colocar flúor na
água do mundo inteiro e decide evitar ter relações sexuais; em La-
ranja Mecânica, os balés eróticos de Alex com a senhora Alexander,
ou com a mulher dos gatos, são também balés de morte; em Spar-
tacus, Crassus quer possuir Varínia, a mulher amada pelo homem
que o perturba e cuja imagem o persegue. Em outro sentido, em-
bora ainda ligado à mesma obsessão, a cena em Spartacus em que
o chefe dos escravos livres e seu amigo Antoninus são condenados
a lutar um contra o outro até a morte, o vencedor tendo que morrer
crucificado. Spartacus, para evitar o suplício ao rapaz, o mata
abraçando-o e dizendo: ‘Eu te amo’. E as últimas palavras de Varínia
são: ‘Morra logo, meu amor’. A violência onipresente (campos abar-
rotados de cadáveres em Spartacus e Barry Lyndon, carnificina final

6 Olhe que desde a fundação do cinema, no fim do século XIX, no mínimo 2.095 produções
audiovisuais foram inspiradas na vida de Cristo, segundo a IMDb, relatada pela Folha
de São Paulo, edição de 21.4.2019, pág. C1, da Ilustrada. Houve um boom no ano 2012,
porquanto naquele recente ano foram produzidos no mundo pelo menos 176 filmes ou
novelas que tinham Cristo ou Jesus (e em alguns casos os dois nomes) em seu título.

119
Regis Frota

em O grande golpe, ataque noturno em Glória feita de sangue, briga


de gangues, estupros e agressões em Laranja mecânica, Duelos em
Barry Lyndon, assassinato lentamente em Lolita, luta de Bowman
com Hal 9000 que espelha as lutas dos macacos pelo ponto de
água em 2001, explosão nuclear em Dr. Fantástico) está ligada a um
mal estar sexual, a um estranho amor cuja única saída é uma morte
não menos estranha. Kubrick nos dá a visão de um pesadelo da
história que se encarna no holocausto atômico, no terror cotidiano,
na repressão das legiões romanas, nos fuzilamentos exemplares,
na sociedade americana corrupta e brutal. O Dr. Fantástico, como
Turgidson ou Ripper, está literalmente apaixonado pela morte. O
erotismo se deslocou da mulher para a morte, essa morte que a
sociedade americana tende a ocultar, mas que, através da violência
do poder, está no centro de seu funcionamento.”7
Eis exposta, com palavras magistrais, a compreensão crítica
da estreita relação entre o universo kubrickiano e o abismo ou o
colapso de que venho tratando em meus livros anteriores,8 quando
ressalto que o erotismo supera a depressão.
E considerando que o universo kubrickiano está sempre à
beira do colapso ou do abismo, torna-se razoável supor que, o
então jovial cineasta, Stanley Kubrick, adaptou o texto original de
Trumbo, na medida em que se aproveitava da revolta do prota-
gonista Spartacus, para concordar com uma crítica ao poder, ao
Estado, ao império (no caso do romano antigo), a toda forma de
arbitrariedade e autoritarismo.
No entanto, a bilheteria deu-lhe independência e autono-
mia, tanto que se mudou para Inglaterra e fixou ali residência até
a morte, passando a dirigir seus filmes em Londres e arredores. O
sexto filme de sua carreira de diretor será uma adaptação da obra
de Vladimir Nabokov, Lolita, em 1962.
O resumo do enredo da obra, transposto para a tela com
a maestria kubrickiana, é feito pelo crítico francês Ciment, nos
seguintes termos:

7 Op. cit., p. 50-51.


8 ARAÚJO, R. F. Op. cit., p. 76 e ss.

120
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

“Humbert Humbert entra na casa do escritor de televisão


Clare Quilty e o mata. Lembra-se então dos últimos quatro anos.
Professor de literatura francesa, ele aluga um quarto para passar o
verão em New Hampshire, na casa de uma viúva esnobe, Charlotte
Haze, cuja filha, Lolita, o atrai de modo irresistível. Ele se casa com a
mãe para se aproximar da filha, mas, quando Charlotte fica saben-
do da verdade, ao ler o diário dele, se joga debaixo de um carro.
Humbert vai buscar Lolita em uma colônia de férias para a qual sua
mãe a tinha enviado e a leva para Ohio onde ele deve dar aulas e a
inscreve em uma escola privada. Ele descobre que ela aproveita os
ensaios de um grupo de teatro para se encontrar com um homem.
Ele a leva para uma viagem de carro através do país e sente que está
sendo seguido por um desconhecido. Ambos ficam doentes e, em
certa noite, Lolita desaparece do hospital. Alguns anos mais tarde,
Humbert recebe uma carta de Lolita. Ela está grávida e casada com
um artesão. Ele vai visitá-la e ela confessa que sempre se encontrou
com Quilty, mesmo antes de eles se conhecerem; foi ele que os
seguiu e perseguiu Humbert. Ela se recusa a partir com Humbert.
Ele lhe dá dinheiro e vai matar Quilty. Um epílogo nos informa que
Humbert morreu de um ataque cardíaco na prisão.”9
Lolita se mostra, naturalmente, como um retrato da socie-
dade americana, como um relato de uma desagregação, de uma
dissolução, de um colapso da relação familiar e a presença de um
duplo. Clare Quilty é o duplo de Humbert Humbert. Como este per-
sonagem, aliás, é um duplo de si mesmo com a palavra Humbert
repetida duas vezes, se constituindo em um nome duplo. Ora, no
seu filme anterior, quando Spartacus é identificado por centenas
de escravos, uma centena de vozes se dizem ser o herói ou o lí-
der rebelde dos escravos amotinados, Kubrick revelava um duplo
que se incorporava em sua narrativa épica. Os próprios críticos e
comentaristas de cinema reconhecem tratar-se de um filme incom-
preendido, esta adaptação literária de Kubrick, em que pese alguns
poucos o valorizam e exaltam, exatamente, pela oportunidade de
uma “visada decisiva” para o diretor, “de uma das chaves de seu
universo interior”.

9 CIMENT, M. Op. cit., p. 325.

121
Regis Frota

Ademais, o personagem Quilty - em suas diversas aparições


e versões, ora como rico roteirista, ora como psicólogo investiga-
dor, ora como investigador policial etc. - é sempre interpretado pelo
mesmo ator, Peter Sellers, cujo humor e ironia, caracteriza a onda
de diversidade interpretativa do texto nabokoviano.
Ora, há outras versões adaptativas, mas tudo depende do
ângulo particular, personalíssimo de cada direção artística a con-
formar, ideológica e esteticamente, a película transposta de algum
texto literário específico, como in casu.
O flashback inicial do filme - inspirado no último capítulo do
livro - aprisiona toda a narrativa e a perspectiva escatológica pre-
ferida do cineasta adaptador, na medida mesma na qual o diretor
estabelece, de saída, o clima trágico e abissal que se Régistrará até
o fim do filme. Um colapso individual.
Desde a sequência inicial - as unhas dos pés de Lolita sendo
pintadas ou esmaltadas pelo obsesionado Humbert (assim mesmo
com nome e sobrenome idênticos, a revelar seu duplo), por oca-
sião dos letreiros introdutórios - vê-se a natureza da dependência
psicológica e sexual obsessiva na qual se enreda o protagonista,
interpretado por James Meson, cuja perspectiva diretorial e adapta-
tiva ou transpositiva, do texto de Vladimir Nabokov, é exatamente
explorar o tema da obsessão sexual - assunto revisitado por Kubrick
37 anos depois, em seu último filme De olhos bem fechados, na ver-
são profunda e com um toque de humor negro.
O acaso, como sempre, persegue o cineasta, o qual incorpo-
rou na intriga de Lolita, com suas sequelas naturais, efeitos um tanto
nefastos e escatológicos; na hipótese, quando a Charlotte (Shelley
Winters) é atropelada e morre, o motorista que a atropelou afirma
que somente a colheu por desviar de um cachorro. Em (Kiss killer´s
- A morte passou por perto), vemos o acaso agindo, igualmente, e
conduzindo alguém à morte inesperada: tendo marcado encontro
com o boxeador Davy (Frank Silvera) para pagar-lhe, em frente ao
prédio do patrão da bailarina Glória, os capangas daquele mafioso
sequestram-no e o matam, em rua sem saída, numa sequência com
luzes e sombras influenciadas pelo expressionismo cinético alemão;
Em Laranja mecânica, Alex chega, por acaso, na casa do escritor
cuja esposa tinha sido, por ele e sua gangue, estuprada, e conhece-
rá a vingança daquele, bem como, igualmente por mero acaso, na
cena final do filme, é encontrado e torturado, quando foge da pri-
são, por antigos companheiros de arruaça e violência na juventude,

122
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

agora investidos da função policial. Em Killing (O grande golpe),


por acaso, quando o carrinho que conduz as bagagens ao avião,
se desvia de um cachorrinho e a mala do dinheiro roubado abre,
deixando “voar” todas as cédulas de milhões de dólares, a intenção
e a vontade do protagonista se esvanece, desaparece sua vontade
de usufruir do golpe dado no turfe, se aproxima do colapso e do
abismo, da própria morte do projeto.
Em matéria de desânimo com a condição escatológica do
ser humano, expresso pela arte do cinema e da dramaturgia, só
encontramos na trajetória filmográfica de Kubrick desse período,
uma obra idêntica, a prognosticar morte e desespero, exatamen-
te o filme posterior, Dr. Fantástico, o qual, embora ironize a morte
coletiva, o juízo final do planeta através do uso descontrolado dos
bombardeios entre EUA e URSS. Em termos filosóficos, enquan-
to Lolita expressa uma nota de fatalidade numa relação amorosa
desafiadora, Dr. Fantástico amplia esta fatalidade para toda a co-
munidade humana. Questão unicamente de escala. Do individual
ao coletivo, a “visada decisiva” para o diretor, “de uma das chaves
de seu universo interior” parece se confirmar como sendo a abissal
condição humana de destruição e insensatez da morte, numa espé-
cie de pós-modernidade, pós-história, pós-verdade.
O sétimo longa realizado por Kubrick foi Dr. Strangelove
(Dr. Fantástico, 1963). Eis um filme original e instigante. Apesar da
incompreensão de críticos de cinema, diretores como Woody Allen
e Scorcese reconhecem que tanto mais o tempo passa, mais im-
pressiona como Kubrick foi preciso em observações sobre os segre-
dos militares, durante a guerra fria.
Segundo Ciment,10 a trama gira em torno da ideia de um ge-
neral, Senhor Ripper, o qual, “convencido de um complô comunista
para conquistar o mundo livre, o tal general, comandante da base
militar de Burpelson, lança um ataque de bombardeiros atômicos
B-52 contra a Rússia, sendo que só ele conhece o código secreto e
corta todas as comunicações com sua base. Quando informado da
notícia, o presidente Muffley convoca o embaixador soviético De
Sadeski em sua sala de guerra do Pentágono e, contra a opinião do
general Turgidson, seu chefe de Estado-Maior, que preconiza uma
guerra atômica limitada, ordena ao coronel Bat Guano que ataque

10 CIMENT, M. Op. cit., p. 326

123
Regis Frota

Burpelson. General Ripper se suicida para não se tornar prisioneiro


e o capitão Mandrake, da raf, descobre o código secreto que pode
acionar os bombardeiros. Mas o piloto T. J. King Kong quer conti-
nuar sua missão. Por telefone, o presidente Muffley fica sabendo,
por intermédio do primeiro-ministro soviético Kissov, que os russos
darão uma resposta nuclear geral se seu país for atingido. Muffley
se volta para seu conselheiro paraplégico, o Dr. Fantástico, ex-na-
zista, que calcula que a humanidade pode sobreviver se algumas
pessoas escolhidas ficarem cem anos em abrigos subterrâneos. En-
quanto isso, Kong cavalga a bomba e a Terra explode”. Como se
pode ver, essa adaptação fílmica do livro de Peter George, Red Alert,
elaborado o roteiro por ele, por Kubrick e Terry Southern, igualmen-
te prevê uma catástrofe coletiva, antecipa, pessimistamente, um co-
lapso coletivo de toda a sociedade humana.
A explosão da terra lembra o Big Bang e a sequência final do
filme mostra o nível de desânimo kubrickiano sobre a insensatez
humana e coletiva, porquanto remanesce entre as grandes potên-
cias atômicas, EUA e URSS, mais ogivas destrutivas nucleares, maior
potencial bélico que o necessário para a defesa de cada país, de
cada nação. Por outro lado, a possibilidade de um erro técnico e
humano no decidir atacar a outra nação, a concorrente atômica, em
última análise, funciona como uma “espada de Dâmocles” sobre o
destino humano.
Embora fruto da Guerra Fria e seus desânimos, a estória se
encaixa como uma mão na luva kubrickiana, cujo universo interior
já se mostrara, em alguns filmes anteriores, de uma acidez própria.
A ironia e o humor ácido, para não dizer humor negro do ci-
neasta, se faz presente em toda a duração do filme; diversos perso-
nagens estão no limite da loucura e do desvario (o general Ripper,
o King Kong, etc.) e os espectadores são levados a temer a realidade
planetária ante previsão tão substanciosa da temeridade do acaso
atômico revelado nas entrelinhas da narrativa causticamente catas-
trófica. Somente um cineasta genial como Kubrick teria sido capaz
de configurar com tal realismo a sala de guerra, a partir de inúmeros
desenhos do cenário, o qual foi construído, matematicamente, qua-
se algoritmicamente, no início da década dos sessenta.
Podemos supor que, agora, entrados na terceira década do
século XXI, os humanos estão mais evoluídos, mais distantes de
um juízo final? Passados mais de vinte anos da morte de Stan-
ley Kubrick, estaria o ser humano mais distante de um desvario

124
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

coletivo resultante da destruição dos estoques atômicos? Quem


poderia supor que estamos, definitivamente, alijados de um ge-
neral louco ou de alguma utilização desajuizada de alguma ogiva
nuclear, na contemporaneidade, a qual, uma vez disparada por al-
gum míssil intercontinental, conduzisse os contemporâneos todos
ao fim dos tempos?
Dr. Strangelove (Dr. Fantástico, 1963) revela a visão política
do diretor, conforme afirmado, de um pessimismo radical. Da época
pré-histórica (cena do macaco utilizando um osso, uma ferramenta
como arma) ao tempos hodiernos ou contemporâneos à segun-
da metade do século XX (para não dizer, à sociedade do futuro),
o homem seria para Kubrick, como discípulo exemplar de Thomas
Hobbes, um lobo para o homem.
O próximo filme de Kubrick gira no território da ficção cien-
tífica, em que pese ultrapassar esta e outras classificações, tipo do-
cumentário, ficção, etc. O filme 2001, a Space Odissey (2001, uma
odisseia no espaço, 1968), se constitui num ponto fora da curva da
realização ficcional-científica, seja pela concepção da busca do futuro
humano em seu passado pré-histórico - ficou famoso o corte mais
transversal da história da montagem cinematográfica, no mundo: a
transmutação de um osso lançado, no ar, das mãos de um macaco
herbívoro, em uma nave aeroespacial em direção à Lua - seja pela ex-
periência audiovisual revolucionária, contida na transposição para a
tela, do texto de Arthur C. Clarke (The Sentinel) e do próprio Kubrick.
Nessa verdadeira sinfonia visual que representa o filme 2001,
convém recordar o pensamento de Stanley Kubrick a respeito: 11
“Algumas palavras devem situar-se em um nível que o hu-
mano não pode situar. Esses seres provavelmente teriam poderes
incompreensíveis. Poderiam se comunicar por telepatia através do
universo inteiro. Poderiam ter a capacidade de modelar os acon-
tecimentos de uma maneira que nos parece divina. Poderiam até
mesmo representar uma espécie de consciência imortal que faça
parte do universo. Quando você começa a se interessar por tipo de
assunto, as implicações religiosas são inevitáveis, pois todas essas
características são as que se atribui a Deus. Assim, aí está, se quise-
rem, uma definição de Deus perfeitamente científica.”

11 GELMI, J. The film Director as Superstar. NYC, Doubleday, 1970. p. 293/316 apud
CIMENT. M. Kubrick. Op. cit., p. 91.

125
Regis Frota

E, consoante afirmado por Michel Ciment, a propósito do fil-


me, “a força de 2001 está em confrontar nossa civilização com outra
preservando o mistério desse encontro. O monólito preto aparece
ao mesmo tempo como uma ameaça e como um sinal de esperança
nos quatro momentos decisivos da evolução humana... O monólito
- seja ele uma imagem de Deus, dos extraterrestres ou de uma força
cósmica - é uma nova manifestação do determinismo que tende a
governar a visão do mundo de Kubrick”.12
A odisseia espacial de Kubrick, de fato, estabeleceu um corte
transversal na história do cinema como arte e interpretação do mundo.
A enorme quantidade de imagens sexuais do filme - ovulares, uterinas
ou fálicas - desde a esfera Aries pousando na Lua em base circular até a
anterior nave espacial Orion, em forma de flecha, que pousa na roda ce-
leste, os símbolos edipianos e freudianos presentes revelam as transfor-
mações, metamorfoses, nascimentos e fecundações pelas quais 2001,
uma odisseia no espaço Régistra, concluindo, inclusive, com uma au-
torreprodução quando se vê o velho astronauta Bowman morrer e o
feto astral lhe suceder. Aliás, o filósofo Jacques Goimard já indicara
perceber no filme 2001 uma nova representação do drama edipiano,
através do qual, na hipótese concreta, o monólito, que aparece nas qua-
tro etapas do filme - na história ancestral do homo pitecantropos, na
do homem civilizado pisando na lua, na busca estelar de Júpiter e, por
último, no mergulho de Bowman para além do infinito - não seria, pois,
o monólito, apenas o símbolo da divindade, mas simbolizaria a autori-
dade em geral, a paternitas autoritatem a que o filho ou a criança, em
termos psicanalíticos, busca assassinar para ocupar seu lugar.
Quando lembramos as referências científicas da substitui-
ção do rei que deve ser morto (em Shakespeare há muitos relatos)
possibilitando que seu sucessor ocupe o trono (ainda que mancha-
do de sangue), percebemos que em 2001, esta situação, em escala
cósmica, responde ao drama familiar que sempre marcou o pen-
samento profundo kubrickiano, tanto que no centro de seu outro
filme fantástico ou fantasmagórico, no caso, O Iluminado (1980).
No entanto, vejamos antes sua realização de 1971, Laranja
mecânica (Clockwork Orange). A trama, em poucas palavras, narra
as aventuras de um jovem cujos principais interesses são a violação,
a ultraviolência e Beethoven.

12 Op. cit., p. 92.

126
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Alex (Malcolm McDowell) tem e usa seus próprios métodos


para se divertir e descarregar sua tremenda agressividade e logra
êxito ao desfrutar às expensas da tragédia e da desgraça dos demais.
Desde a sequência inicial - seja pelo zoom profundo, cuja imagem
inicia com o olhar maquiado de Alex e se afasta até a visão geral do
ambiente onde se misturam sua gangue de delinquentes e as diver-
sas mulheres de artifícios, manequins como objetos sexuais piso-
teados pelos mesmos, seja já pela agressão que a gangue promove
contra um velho mendigo de rua, encontrado e molestado em túnel
londrino - o espectador vê o quanto o protagonista é agressivo e
malvado. A história de Alex, desde seus começos como delinquente
sem moral até converter-se em um civilizado cidadão integrado na
sociedade após se submeter a um tratamento capaz de eliminar seus
instintos violentos (o método Ludovico), formam a dinâmica e im-
pactante visão futurista da novela de Anthony Burgess, adaptada ao
cinema por imagens fortes e inesquecíveis de Stanley Kubrick.
As notas musicais superacolhedoras e os fascinantes diá-
logos revelam a originalidade kubrickiana nesta produção fílmica
marcante e humorada.
Conforme o próprio diretor afirmou: 13
“O filme fala da tentativa de limitar a escolha do homem
entre o bem e o mal. Está ligado às considerações de Skinner em
Além da liberdade e da dignidade (Beyond Freedom and Dignity),
embora Skinner fale de condicionamento positivo e negativo. Este
é o conteúdo-ideia da história, mas é a criação única de Burgess, o
fantástico personagem de Alex, que representa o inconsciente, que
faz com que ela funcione como drama, como obra de arte. Uma
interpretação muito interessante do filme foi feita por Aaron Stern,
presidente da Motion Picture Association, que é também psiquiatra.
Segundo ele, Alex, no início do filme, representa o homem em seu
estado natural. Seu ‘tratamento’ corresponderia, psicologicamente,
ao processo da civilização imposto ao indivíduo. Enfim, a liberação
sentida pelo público no fim corresponde à sua própria ruptura com
a civilização. Tudo isso funciona, é claro, em um nível inconsciente.
Não é o filme diz literalmente, mas isso faz parte do que provoca a
identificação do espectador com Alex.”

13 Entrevista concedida ao crítico de cinema francês, Michel Ciment, em 1972, publicada


na íntegra em seu livro sobre a obra cinematográfica do diretor americano que passou a
viver na Inglaterra.

127
Regis Frota

Na verdade, as reações do público inglês se voltaram com


imensa agressividade para Kubrick e sua família, ameaçados que fo-
ram de perder a integridade física, inclusive, numa demonstração
do impacto visual e mental nas pessoas, a ponto de Stanley haver
determinado a retirada de cartaz da película após as 60 semanas de
sucesso de bilheteria. Para que sintamos a influência e o impacto au-
diovisual sobre “corações e mentes” do princípio dos anos setenta.
O nosso inconsciente, no nível onírico e simbólico em que
o filme Laranja mecânica nos atinge é todo ele representado
pelas atitudes do herói Alex (Malcolm McDowell). Os cenários fu-
turistas (O Korova Milk Bar, por exemplo), bem como as músicas
que compõem a obra audiovisual kubrickiana, são, além de ex-
pressivas e impactantes, de uma estética perturbadora e insti-
gante. Meio século que o filme foi realizado e continua de uma
atualidade impressionante.
O próximo filme, a seguinte incursão kubrickiana na arte da
cinematografia se intitula Barry Lyndon (1975). Adaptação do ro-
mance histórico de Thackeray, tem-se uma parábola perfeita sobre
o destino humano, tragicamente, transposto para a tela pela habi-
lidade perfeccionista de Stanley Kubrick, o qual retratou no filme
a ascensão social de um jovem irlandês sem grana que, em pleno
século XVIII, entra para o exército, deserta, torna-se espião, joga,
casa-se por dinheiro e, depois, conhece o “declínio irremediável”, na
expressão de Ciment. Ora, embora transcorra no século XVIII, não se
trata de um filme histórico como aqueles que a narrativa hollywoo-
diana tornou costumeira e clássica, porquanto dela se distancia pela
desmistificação modernista e sardônica do estilo kubrickiano.
Barry Lyndon (Ryan O´Neal) e Lady Lyndon (Marisa Berenson)
enfrentam-se e enfrentam os acontecimentos da época, com todas
as contradições que a narrativa Régistra, chamando a atenção pela
forma dramática que o cineasta lhe dá, transpõe para a arte cinema-
tográfica, o conteúdo e trama contido no romance.
O clima de guerra constante do filme mereceu o seguinte de-
poimento do diretor: “Em uma obra de ficção é preciso que haja con-
flito, que algo fique atravessado. Isso acontece até em A Noviça rebel-
de (the sound of music, 1965)! Mas, principalmente, o estado de guerra
não é a imagem mais inexata que podemos mostrar da vida da maioria
das pessoas: quantos casamentos felizes existem? Quantos padrastos
amam seus enteados e reciprocamente? Entre as pessoas cuja única

128
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

ambição era o dinheiro, quantas a realizaram de maneira satisfatória?


Sobretudo para Barry, em quem ela paralisa toda atividade?” 14
Como os demais filmes de Kubrick, a artesania fotográfica de
Barry Lyndon beira ao perfeccionismo: há inteiras sequências cuja
iluminação natural, à luz de velas, impressiona pelo naturalismo rea-
lista do século XVIII retratado. E não é o único valor desse filme mo-
numental o qual estourou nas bilheterias dos EUA, levando o diretor
a creditar-se no mercado americano nas produções posteriores.
O próximo filme dele vem a ser produzido cinco anos após
o anterior – e, note-se que, doravante, o espaçamento entre as
realizações de Stanley Kubrick, será cada vez maior. The Shinning
(O iluminado) cuja trama está muito bem resumida por Michel
Ciment, assim: “Um ex-professor, Jack Torrance, quer escrever um
romance e aceita um emprego de vigia durante o inverno no ho-
tel Overlook, fechado durante essa estação e totalmente isolado
do mundo exterior. O diretor do hotel, Ullman, o avisa que, em
1970, o vigia Grady matou sua mulher e seus dois filhos antes de
se suicidar. Jack Torrance se instala com sua esposa Wendy e seu
filho Danny que tem poderes extra-sensoriais e um ‘duplo’ que fala
com ele, Tony. Antes de deixar o hotel, o chef de cozinha, Halloran,
‘comunica-se’ com Danny e o avisa que para as pessoas que, como
eles, têm o shinning, alguns acontecimentos deixam vestígios que
podem ser perigosos. Ele o aconselha, principalmente, a evitar o
quarto 237. Torrance fica cada vez mais nervoso e irritado e se isola
para trabalhar. Ele começa a frequentar o salão dourado do hotel
onde conversa com um barman, Lloyd. Seu filho tem cada vez mais
visões, é estranhamente ferido no pescoço e, depois, Torrance, por
sua vez, encontra uma mulher no quarto 237. No banheiro do ho-
tel, durante uma festa que ocorreu nos anos 1920, um empregado
chamado Grady o aconselha a ser severo com sua mulher e seu
filho. Torrance fica cada vez mais bruto com a família e Danny se
relaciona com Hallorann, que foi descansar na Flórida. Hallorann
volta para salvá-los, mas quando chega é morto por Torrance. Este
último persegue seu filho no labirinto cheio de neve próximo ao
hotel, mas morre de frio antes de conseguir matá-lo.”15

14 Entrevista a Michel Ciment, realizada em 1976 e publicada na íntegra, p. 129-141, do


livro sobre Kubrick, da Ubu Editora, São Paulo, 2017, com tradução de Eloisa Araújo Ribeiro.
15 CIMENT, M. Kubrick. Op. cit. p. 331.

129
Regis Frota

Baseado no romance de Stephen King, o filme, O iluminado,


produziu por muito tempo uma enorme repercussão na sensibilida-
de das pessoas, obteve grande plateia nos EUA, como na Europa,
pela maneira leve e sincera do tratamento cinematográfico, pela
fina e tênue separação entre o psicológico e o sobrenatural que
Kubrick imprime à história.
Ora, o próprio cineasta confessou ao entrevistador Ciment16
que “a ficção e o drama realistas têm limites: algumas coisas são
longas demais para encontrar uma expressão elegante. O proble-
ma que toda pessoa que escreve uma história tem que resolver é o
seguinte: qual é o sentido da história? E não acho que ele seja fácil
de ser respondido com alguma certeza. No campo da psicologia do
público, talvez a ficção que utiliza os arquétipos comova as pessoas
de modo mais profundo do que uma obra que insista em detalhes
da vida cotidiana. Poderíamos dizer também que a atração essen-
cial que as histórias de assombração exercem vêm do fato de elas
implicarem uma promessa de imortalidade: no nível inconsciente,
elas agradam porque, se podemos ter medo dos fantasmas, é por-
que aceitamos, mesmo que só por um instante, a ideia de que exis-
tem seres sobrenaturais, e isso supõe, evidentemente, que além do
túmulo há algo mais que o esquecimento”.
Sem dúvida, o fascínio desse filme - tipicamente kubrickiano
- se dá no terreno do fantástico; contudo, além de renovar a força
da literatura fantástica, Stanley exubera nas imagens e efeitos psi-
cológicos de captação da solidão e suas consequências no terreno
da loucura humana, a ponto do protagonista, ex-professor, tentar
destruir a própria família: esposa e filho amado.
Igualmente se pode observar uma prevalência do aspecto
sobrenatural ante os aspectos psicológicos. O Iluminado lembra,
na verdade, um filme de horror psicológico, onde a fronteira entre
a psicanálise e o transcendental mostra-se absolutamente tênue:
o escritor se isola, ao ponto de desconhecer as fragilidades e hu-
manidades da própria família. Escreve uma única frase milhares
de vezes digitada, por seus dedos, cujo calhamaço resultante da
datilografia de dias e dias continuados, acumulados, apavoram a
esposa que o lê, incrédula e apavorada, certa do estado de loucu-
ra a que chegou o marido... inicia a sequência da perseguição nas

16 Idem, ibidem. p. 143.

130
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

escadarias do hotel, cujo machado será usado contra a porta fe-


chada do quarto de casal... nada de spoiler, não devemos exagerar.
O próximo filme de Kubrick, Nascido para matar (Full me-
tal jacket, 1987), somente veio após sete anos da conclusão de O
Iluminado, na cadência de realização ou adaptação cinematográ-
fica, tipicamente kubrickiana, segundo afirmado pelo próprio dire-
tor, ainda que ante um livro bastante despojado, exigir-lhe-ia, em
primeiro lugar, “decidir o que precisava ser tirado ou acrescentado,
se necessário” 17 porquanto, o método do cineasta que, geralmente,
tratava o roteiro junto com o autor da peça original, ou outro escri-
tor, estudando, à exaustão, aquilo exigido pela narrativa da transpo-
sição às imagens e sons do texto literário escolhido. No filme ante-
rior, adaptado ou baseado no romance de Stephen King, roteirizado
pelo cineasta e por Diane Johnson, o cineasta confessara que, no
ensaio de Freud, “O inquietante”, o inventor da psicanálise faz uma
observação interessante quando diz que “o inquietante é a única
impressão que a maioria das pessoas sente de maneira mais forte
na arte ou na literatura do que na vida”. E diz mais: “certa ou errada,
essa observação é com certeza uma justificativa do gênero”.18
No caso do filme de Kubrick, Nascido para matar (Full me-
tal jacket, 1987), o corroterista, Michael Herr, declarou que “a guer-
ra é excitante, palpitante. Para quem a vive ela é uma prova, uma
iniciação, algo horrível e detestável”. Ora, o filme trata da guerra no
Vietnam - a exemplo de outros tantos filmes (Platoon) realizados
pela indústria hollywoodiana acerca do tema - de um modo pro-
fundo e particular. E o objetivo dos roteiristas - especialmente, do
próprio cineasta que integrou tal grupo adaptativo ou transpositor
para a filmografia de livro que se não definia nem como documen-
tário nem, necessariamente, como ficção sobre a realidade de guer-
ra vietnamita - foi definitivamente alcançado.
Stanley Kubrick lia bastante, era intelectualmente audacioso
como para somente escolher um livro para adaptação ao cinemató-
grafo após ter lido muitos outros livros, a ponto de identificar-se, fí-
sica e espiritualmente, com o livro, afinal, eleito. E, no caso concreto,
o livro foi o romance de Gustav Hasford, Nascido para matar (Full
metal jacket), definido pela revista Newsweek como a melhor obra

17 CIMENT, M. Op. cit., p. 222.


18 Idem, p. 158.

131
Regis Frota

de ficção sobre a Guerra do Vietnã. O próprio cineasta afirma que


não se encontra no livro nenhuma dessas cenas obrigatórias nas
histórias de guerra que explicam que determinado soldado tinha
um pai alcoólatra e outro, uma mulher infiel. O que ficamos saben-
do sobre os personagens vem apenas da ação principal.
A opinião do diretor sobre os filmes contra a guerra foi ex-
pressa desse modo:
“Talvez seja uma ilusão pensar que mostrar a guerra como
algo mau vai fazer com que as pessoas não queiram brigar tan-
to. Mas acho que Nascido para matar (Full metal jacket) sugere
que há mais a ser dito sobre a guerra do que declarar que é um
mal. A guerra do Vietnã foi, claro, um erro trágico desde o início,
mas acredito que ela nos ensinou algo útil. Se a guerra não tives-
se acontecido, certamente estaríamos lutando na Nicarágua. Acho
também que acabamos entendendo a lição de que não se deve se-
quer começar a pensar em iniciar uma guerra se sua sobrevivência
não depende dela. As teorias populares da época, como a teoria do
dominó, não funcionarão no futuro.”19
Ora, Kubrick acreditava que há elementos em um filme de
guerra que implicam o espetáculo visual, a coragem, a lealdade, a
afeição, o sacrifício de si, o espírito de aventura, e tudo isso tende
a complicar a natureza da mensagem antibelicista, que seu filme
Nascido para matar (Full metal jacket, 1987) encerra e descreve
com firmes cores e sons marcantes.
Somente doze anos após a realização de Nascido para ma-
tar (Full metal jacket, 1987), seria concluída a feitura do último
filme de Stanley Kucrick, cuja montagem foi terminada somente al-
guns dias antes da morte do cineasta: Eyes wide shut (De olhos
bem fechados, 1999).
Um último filmaço. “De olhos bem fechados (Eyes wide
shut) foi a última realização do cineasta norte-americano, Stanley
Kubrick, e desta feita retornando a utilizar o cenário novayorkino,
como nas primeiras produções. Ora, obra finalista, de maturidade,
conserva todas as características de um filme pós-moderno, de uma
experiência audiovisual grandiosa e instigante, seja em sua propos-
ta temática da fidelidade/infidelidade matrimonial, dos apelos pós-

19 CIMENT, M. Op. cit., p. 215.

132
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

-modernistas da vida cotidiana que antecipava o século XXI, a pós-


-história, todo o conjunto de indagações que continuarão, de todos
os modos, quer queiramos ou não, angustiando o ser humano, em
toda sua trajetória terrena.
Do ponto de vista estético, o filme não deixa a desejar coisa
alguma - para não dizer, nada - a todas as experiências do presen-
te século, do presente milênio, onde narrativas se multiplicam, de
modo industrial ou hollywoodiano, sem qualquer novidade em re-
lação às estratégias narrativas kubrikianas.
Do ponto de vista temático, se insere mais uma adaptação
literária contida numa interpretação vulcânica e filosófica de apru-
mar o rumo dos futuros cineastas.
Como lembrado por Michel Ciment, a filmagem efetiva ini-
ciada em setembro de 1996, “durou quase 52 semanas, mas os ato-
res e a equipe ficaram à disposição até maio de 1998. A escolha de
Tom Cruise e de Nicole Kidman, casados na vida real, para inter-
pretar um casal moderno em Nova York, alimentou as crônicas, e o
segredo absoluto que, como de costume, rondava o filme propiciou
os mais falsos boatos.”20
Convém ressaltar que, em seu último filme, Kubrick volta,
complementarmente, após vinte anos, ao conteúdo tratado em O
iluminado. Ou seja, após mostrar as ameaças e desafios de um iso-
lamento social, um confinamento exagerado no hotel arrodeado de
neve, próximos ao estado de loucura e derrelição dos personagens
ou chefe da família, a viver fora ou separado do universo exterior - a
exemplo das tantas doenças mentais que a pandemia do Coronaví-
rus trouxe ao ocidente, com o lockdown imposto a todos - em Com
os olhos bem fechados, Kubrick propõe ou narra um conto premoni-
tório ou em forma de aviso sob os perigos de penetrar no mundo,
sobre as tentações mortais ou fatais para além das viagens ao des-
conhecido. O personagem central segue seus instintos de perscru-
tar ou conhecer, mais e mais, do desconhecido universo mágico e
explorar sua curiosidade, a ponto de arrepender-se com a inusitada

20 CIMENT, M. Kubrick. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro, São Paulo: Ubu Editora, 2017.
p. 230.

133
Regis Frota

da estabilidade de sua vida e matrimônio. Desvenda o interior de


sociedades fechadas, tipo maçonaria ou máfia, representando seus
rituais e regras secretas.21
Como se pode ver, Stanley Kubrick ressurge sempre com um
abismo antológico, com a abissal ameaça que beira a fatalidade, a
qual rodeia nossas vidas humanas, transitórias e incertas.
Em que pese tenha produzido sua filmografia - abundante e
profundamente rigorosa - na segunda metade do século XX, Kubri-
ck se mostra, ainda, na atualidade do século XXI como um cineasta
pós-moderno, por sua perspectiva artística prenunciadora de ver-
dades intransponíveis.

21 Tendo em vista que o cineasta Kubrick veio a falecer por parada cardíaca tão logo
concluído este seu último filme, em 1990, sem concordar em cortar sequência fílmica de
mais de vinte minutos, sugerido pela produção executiva “De olhos bem fechados”, existe
toda uma série de versões sobre sua repentina morte; Teorias conspiratórias imaginam
que essa “morte” física do realizador teria sido provocada pelo “deep state”, contrariado
pelo arrependimento kubrickiano na participação, mais de duas décadas anteriores, na
elaboração da filmagem publicitária e “secreta” da descida do homem à lua, em 1969, sob
a qual se suspeita não tenha, efetivamente, ocorrido, e cuja versão audiovisual circulada
no ocidente, teria demandado o rigor técnico cinético do inventivo cineasta do 2001,
Odisseia no Espaço; Embora conheçamos vários dossiês a esse respeito, não nos interessa,
aqui, desencavar este assunto, porquanto embora morto, fisicamente, o cineasta Kubrick
continua vivo, cuja obra cinematográfica permanece especialmente atual e profética.

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O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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135
TERCEIRA
PARTE
CINEMA BRASILEIRO DE
ONTEM E DE HOJE
138
139
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 6

GRACILIANO RAMOS E LEON HIRZSMAN:


A CRIAÇÃO DE TEXTO/IMAGEM

1. A NARRAÇÃO E O CINEMA BRASILEIRO

Muitos são os textos literários adaptados para o cinema


brasileiro.
Se pode observar obras literárias sendo transpostas ao ci-
nematógrafo ou ao cinema, no Brasil, desde os primeiros anos de
1900, como “os guaranis”, de 1908, película dirigida por Benjamin
de Oliveira,1 uma dentre tantas adaptações de romances do cearen-
se José de Alencar, não podendo deixar de ressaltar que este seu
livro “O Guarani” chegou a conhecer 9 (nove) adaptações fílmicas,
no Brasil, até o presente.
De igual modo, a obra literária de Graciliano Ramos sempre
despertou grande interesse ao cinema nacional que o adaptou di-
versas vezes, desde “Vidas Secas” (1962), transposta ao cinema por
Nelson Pereira dos Santos, passando por “Memórias do Cárcere”
(1979), dirigido pelo mesmo cineasta paulista NPS, único homem
representante do cinema brasileiro a integrar, atualmente, os qua-
dros vitalícios da Academia Brasileira de Letras (ABL), sem esquecer
o próprio “São Bernardo”, filme objeto destes específicos comen-
tários comparativos com sua narrativa literária por adaptação cine-
matográfica pelo engenheiro cineasta carioca, Leon Hirszman, além
de outros filmes.

1 NORONHA, J. A longa luta do cinema brasileiro: os pioneiros. Rio de Janeiro: Funarte,


2002. p. 23.

141
Regis Frota

Destarte, a relação estreita da arte literária com a cinemato-


gráfica, no Brasil, vem se aprofundando de mais a mais, sugerindo
que as transformações produto do cambio de meio da voz nar-
rativa de um texto literário ao ser levado ao cinema merecem ser
estudadas, como adiante faremos com o caso concreto do livro
“São Bernardo”.
Após um início de história um tanto confusa, de 1895/98,
quando não se tinha nítido se o cinema tenderia para o docu-
mentário, na linha dos trabalhos dos Irmãos Lumiére com seus
filmecos de cinco minutos de duração tipo “Sortie de La Ga-
re”,“arroséur arrosé”, ou seja, abordagens familiares que eram
projetados nas feiras e pequenos ajuntamentos populares fran-
ceses, de um lado; ou por outra, se optaria antes pela inventi-
vidade criativa e imaginosa de Georges Meliés, o precursor dos
filmes de ficção e ficção cientifica, cujos filmes se inspiravam na
imaginação e magia humanas, e não apenas em seu Régistro do
atual, do contemporâneo ou documental, não tardou, contudo,
que o cinematógrafo encontrasse seu maior potencial na criação
e comunicação de histórias e tramas dramáticas, donde se pode
concluir não haver tardado bastante em recorrer ou socorrer-
-se da literatura, tanto ficcional quanto narrativa, em busca de
novos argumentos e roteiros, inclusive para legitimar-se como
arte respeitosa quanto as literárias que ocupavam os escaninhos
acadêmicos e notáveis. Fosse buscando inspiração na literatura
francesa oficial quanto na brasileira incipiente, o cinematógrafo
logo passou a ter mais da metade de suas películas efetivamen-
te realizadas com base em texto precedente.
Por outro lado, diremos que a experiência de rever, trinta e
oito anos depois de sua realização em 1972, o filme S. Bernardo,
de Leon Hirszman, baseado e adaptado da obra primordial do es-
critor Graciliano Ramos, escrita, por sua vez, em 1934, dois anos
antes dos absurdos e brutais anos que o alagoano vivenciaria no
cárcere sem processo, possibilita-nos apreender e refletir sobre o
significado daquilo a que chamamos de sentido histórico.

142
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

2. GRACILIANO RAMOS E SÃO BERNARDO:


A DIFICULTOSA CRIAÇÃO DE UM TEXTO E A
DESCRIÇÃO DE UM RELATO PELO NARRADOR/
PERSONAGEM PAULO HONÓRIO2

A literatura de Graciliano Ramos é seca e direta, se podemos


assim dizer. Como o próprio autor alagoano revelou, certa vez, ao
afirmar que “deve-se escrever da mesma maneira como as lava-
deiras lá de Alagoas fazem seu ofício... a palavra não foi feita para
enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. Ora,
dos romances de Graciliano, “São Bernardo”, me parece, aquele que
mais objetiva e diretamente, diz. Eis uma das características literá-
rias de sua linguagem, à qual ressalto, adiante, com a transcrição de
rápido texto do livro, para iniciar a comparação dos dois universos
linguísticos, o literário e o cinético, a partir da incursão adaptativa
de Leon Hirszhman, cujas imagens cinematográficas diretas e obje-
tivamente mostram (e não dizem), igualmente, do universo ramo-
siano, na medida em que captou a relevância do relato elaborado
pelo narrador/personagem Paulo Honório, de 50 anos.
O trecho que transcrevo, abaixo, descreve a juventude do
personagem central do romance “São Bernardo”, Paulo Honório,
cuja escrita rememorativa da dureza da profissão o atormentará
toda a vida, deste modo resumido (no filme, ao tempo em que o
recurso da utilização da voz off de Othon Bastos pontua a memória
ao expectador, a bela imagem do riacho corrente, dos operários
trabalhando a terra, arando o algodão, à distância, em contraste
com o primeiro plano do rosto de Paulo Honório, o narrador):
“Até os dezoito anos gastei muita enxada ganhando cinco
tostões por doze horas de serviço. Aí pratiquei o meu primeiro ato
digno de referência. Numa sentinela, que acabou em furdunço,
abrequei a Germana, cabritinha sarará danadamente assanhada, e
arrochei-lhe um beliscão na popa da bunda. Ela ficou-se mijando de
gosto. Depois botou os quartos de banda e enxeriu-se com o João
Fagundes, um que mudou o nome para furtar cavalos. O resultado

2 Observe-se que pequena “parte” desse ensaio foi, anteriormente, objeto de publicação
pela Lisbon Internacional Press, de Lisboa, integrando “51 ensaios jurídicos sobre o cinema
brasileiro”, intitulado “Direito e Cinema Brasileiro”, com prefácio do Prof. Paulo Ferreira
da Cunha, sob a coordenação de Ezilda Melo, Lisboa/São Paulo, 2020. p. 518/525.

143
Regis Frota

foi eu arrumar uns cocorotes na Germana e esfaquear João Fagun-


des. Então o delegado de polícia me prendeu, levei uma surra de
cipó de boi, tomei cabacinho e estive de molho, pubo, três anos,
nove meses e quinze dias na cadeia, onde aprendi leitura com o
Joaquim sapateiro, que tinha uma Bíblia miúda, dos protestantes.”3
Convém, antes, sublinhar as razões pelas quais a relação ci-
nema-literatura têm sido um dos campos de estudo privilegiados
das diversas teorias cinematográficas e, a partir dos anos sessenta,
dos estudos semióticos e estruturalistas, muito particularmente no
campo da narratologia. Ora, como anunciado no resumo que faría-
mos um estudo sob a ótica analítica da diegética, entende-se aqui
por Diegese como sendo um conceito da narratologia, dos estudos
literários, dramatúrgicos e de cinema, que diz respeito à dimensão
ficcional de uma narrativa. Os estudiosos e analistas4, a exemplo de
estruturalistas como Ginette, Per Aage Brandt, David Lodge, Manuel
Alcides Jofre e Etienne Souriau e Yves Reuter, reconhecem que a
diegese é a realidade própria da narrativa (“o mundo Ficcional”), a
vida fictícia, à parte da realidade externa de quem lê (o chamado ou
dito “mundo real” ou vida real. Quem consultar a Wikipedia no ver-
bete diegese, verá que este conceito da narratologia conhece um
tempo e um espaço dito diegéticos os quais são, destarte, “o tem-
po e o espaço que decorrem ou existem dentro da trama, com suas
particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor”5.
Este artigo se inscreve dentro do marco teórico da análi-
se da narrativa proposta por Yves Reuter,6 ao propor uma aná-
lise prática de um romance e o filme homônimo S. Bernardo (de
Graciliano Ramos e Leon Hirszman, respectivamente). Esse exercí-
cio prático consistirá na análise de um aspecto fundamental para
ambos os meios e linguagens: a situação específica da narração

3 RAMOS, G. São Bernardo. 88. ed. São Paulo: Record Editora, 2009. p. 16.
4 Conferir BRANDT, P. A. La diegesis. in Prada Oropeza Renato. Linguistica y Literatura
(Xalapa, México: Univ. Veracruzana, 1978; GENETTE, G. Figures III (1972), id. Nouveau
discurs du récit (1983); JOFRE, M. A. Analysis textual de la diegesis. Alpha: Revista das
artes, letras y Filosofia, 3 (1987); DAVID, L. Mimesis and Diegesis in modern Fiction in
Essentials of the Theory of Fiction, org. por Michael J. Hoffman e Patrick D. Murphy (2nd
1996); SOURIAU, Étienne (org). L’Univers filmique (1953); REUTER, Yves: A análise da
narrativa – o texto, a ficção e a narração. Rio de Janeiro: Difel, 2007.
5 DIEGESE. In: WIIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/
Diegese. Acesso em: 13 jul. 2010
6 REUTER, Y. Op. cit., p. 13/124.

144
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

como elemento definitório de veículos sígnicos ou significantes


essencialmente diegéticos, é dizer, comunicadores de histórias e/
ou tramas. Sobre a base das características particulares de cada
tipo de discurso, procuraremos verificar como se vinculam am-
bas as disciplinas em tanto, transmissoras ou comunicadoras de
uma diegése ficcional contudo, ao mesmo tempo, confrontando-
-as como formas discursivas divergentes, com formas de narrar de
cada uma, e que, obviamente, não são equivalentes.
Para cumprimento deste objetivo específico, utilizarei a me-
todologia essencial dos estudos narratológicos, aquela proposta
por Yves Reuter na obra “A Análise da narrativa”, como anterior-
mente anunciado, com vistas a adaptar ou produtivizar dito método
no estudo comparado do cinema. Nesta análise me deterei essen-
cialmente na mudança da prospecção semiótica ou narratológica
que afeta à voz narrativa que sustenta o relato, estudando, então,
as diferenças que se produzem ao ser transposta ao cinema uma
diegese originariamente literária, ou seja, ao adaptar-se ao fenôme-
no fílmico ou à linguagem cinematográfica um texto literário como
consequência desta mudança de narração.
Ora, num breve comentário dos princípios essenciais da aná-
lise interna da narrativa de São Bernardo, tomando como base de
referência as lições de Yves Reuter,7 já percebemos que o narrador
(ninguém menos que o personagem central da trama, Paulo Honó-
rio, o qual iniciará o romance fazendo seu planejamento escritural)
conta a história, dentro do texto, de forma agudamente direta e
sincera. Sendo, com efeito, o narrador distinto do escritor ou autor
(no caso concreto, cuida-se este do literato Graciliano Ramos en-
quanto ser humano que existiu, em carne e osso, prefeito de uma
das cidades de Alagoas, “filho de negociante miúdo, casado com a
filha de um criador de gado”, segundo o próprio autor) porquanto
o narrador Paulo Honório “é fundamentalmente constituído pelo
conjunto de signos linguísticos que dão uma forma mais ou menos
aparente àquele que narra a história”8, não devendo com aquele
ser confundido, Paulo Honório só existe no texto e mediante o tex-
to, por intermédio de suas palavras, as quais constituem a grande

7 REUTER, Y. A Análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Tradução de Mário


Pontes. 2. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2007. (Coleção enfoques - Letras.)
8 REUTER, Y. Op. cit., p. 19.

145
Regis Frota

atração da construção do texto narrativo, já que como afirmado por


Godofredo de Oliveira Neto9 o “narrador, além de nós, leitores, é
também destinatário da história que ele tenta reeditar.”
Sendo ainda um romance explicitamente ideológico, releva
observar como inicia o primeiro parágrafo do livro, com referência
a um (seu) projeto, a um imaginário obsedante do narrador/perso-
nagem central:
“Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão
do trabalho”10
Ou seja, pela divisão social das tarefas literárias, porquanto
para o narrador Paulo Honório, a língua não constitui um âmbito
homogêneo, todo pelo oposto, ele se decompõe em diversas e es-
pecializadas linguagens, como se pode inferir da continuidade do
texto a seguir transcrito:
“Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas;
João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; pro-
meti ao Arquimedes a composição tipográfica; a composição literá-
ria convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do
Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de
agricultura e pecuária, faria as despesas e poria meu nome na capa”.
Logo se percebe o dilema extremado impresso na conflitu-
osa relação entre o projeto da escrita ou concepção de criação co-
letiva do texto pelo narrador Honório e sua efetiva construção ou
realização, em outras palavras, entre a “faculdade e a capacidade do
narrador de imaginar o livro e a sua construção através da escrita,
através do processo de elaboração do texto e sua dimensão ficcio-
nal. Basta ver que um dos convidados para co-participar na constru-
ção do texto, não compreende o dilema do Paulo Honório: “Vá para
o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está
safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma”. (cap. 1) Se
Gondim é pernóstico, o é pelo seu estilo, pela desadaptação entre
a escrita e a matéria a dizer, a experiência concreta a transmitir.
Tanto assim, que no roteiro cinematográfico e na adaptação fílmi-
ca de Leon Hirszman não há qualquer referência a esta dificuldade

9 OLIVEIRA NETO, G. Posfácio à edição 88 do romance S. Bernardo, pela Editora Record,


Rio de Janeiro/S. Paulo, 2009, p. 223/233, em concreto. p. 224.
10 Conferir a mencionada edição 88 do romance S. Bernardo, publicada pela Edit. Record,
RJ/SP, 2009. p. 7.

146
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

diegética dos diálogos (aliás, quando transpostos o são ipsis litte-


ris), posto se tratar, na essência dificultosa da adaptação fílmica, da
utilização de outro linguajar: o da imagem, o das luzes e sombras a
substituir a construção da escrita.
Já se pode compreender quão felizarda e fiel foi a transpo-
sição de S. Bernardo ao cinema, vez que Hirszman entendeu abso-
lutamente que “a língua escrita não consegue dar conta do ímpeto
de contador do narrador” (sic) no texto literário ou no livro, quando
ainda no cap. 1, observa Paulo Honório que “João Nogueira queria
o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás
para diante. Calculem.” (início da pág. 8). No filme de Hirszman não
se vê uma montagem desmontada; Nada de flashbacks excessivos,
tão comuns nos filmes contemporâneos, a trama se situa do princí-
pio ao fim no presente narrativo/comentado em off pelo narrador
Honório (Othon Bastos), como uma forma de interiorizar o senti-
mento do narrador, como uma inteligente opção pela fidelidade ao
velho Graça.11
Genette já dizia que não há história contada sem que alguém
a conte. Reuter centra seus estudos na análise da ficção, da narração
e da montagem do texto. E em que pese se pode pensar em uma
narração cinematográfica, convém se contrapor ou por em tensão a
ideia de uma voz ou um narrador para o cinema equivalente ao lite-
rário, porquanto o cinema tem uma linguagem direta, a percepção
do expectador se faz de modo direto, através do que o filme mostra
na tela e não através de uma instancia mediadora que sustenta o dis-
curso fílmico, que entregue os dados relevantes deste mundo, que
guie ou dirija a interpretação mediante juízos valorativos o mundo

11 DE MORAIS, D. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 1992, 407 p. Uma ótima biografia do escritor alagoano o qual, segundo
palavras e Carlos Nelson Coutinho, teve que “esperar a comemoração de seu centenário
para ser objeto de uma ampla e exaustiva biografia”, conf. p. XV, op. cit. Por óbvio que
em 1992, já tinham sido publicadas diversas biografias de outros escritores brasileiros (a
exemplo da escrita por Francisco de Assis Barbosa, a propósito de Lima Barreto), contudo,
poucas tinham escapado da tentação biografista, o que não ocorre com a obra de Dênis
de Morais mencionada, na medida em que, consoante observado pelo autor da referida
biografia, vê-se concretizada ali a possibilidade de explicar uma obra literária pela biografia
de seu autor, denunciando-lhe os limites estéticos desta mesma obra. Coutinho releva que
“se S. Bernardo, Angústia e Vidas Secas se incluem entre os maiores romances brasileiros,
isso ocorre exatamente porque eles não se limitam a reproduzir as experiências pessoais
de Graciliano, seus traumas infantis ou seu inconsciente, mas porque dão expressão
estética a movimentos profundos e universais da consciência e da práxis social de grupos
fundamentais da sociedade brasileira”. Idem, ibidem.

147
Regis Frota

representado. Como observa Jean Luc Godard12 a história do cinema


– por seu caráter de linguagem direta –, procurou não abordar cer-
tas realidades desagradáveis, como a do holocausto, por exemplo.
Há pouca imagem divulgada do holocausto, para tanta realidade
ocorrida de amargura e atrocidade humanas no período. Teria sido
proposital que a arte cinematográfica olvidou de Régistrar/mostrar/
interpretar mencionado período histórico do século passado? Por
que enfim?
David Oubiña, da Faculdade de Filosofia e Letras da Univer-
sidade de Buenos Aires, coordenou interessante estudo intitulado
“JLG: El pensamiento del cine” – cuatro miradas sobre Histoire(s)
du cinéma”13, no qual ressalta as ideias do cineasta e teórico do
cinema no sentido de que “para que haja relato cinematográfico,
deve haver ao menos uma instancia de enunciação.” Com efeito, os
teóricos e estudiosos atuais14 da teoria cinematográfica coincidem
em afirmar (aliás, contrariamente ao consenso do cinema mudo,
quando nos inícios da teorização cinematográfica todos buscavam
crer) que as imagens cinematográficas não se contam a si mesmas,
como na vida real, senão que representam uma pseudo-realidade,
esteticamente estruturada.
O estudioso Christian Metz, em seus “Ensaios sobre a sig-
nificação no cinema”, discute este tema de modo exaustivo, quase
dando o estado da situação no território da teoria no capitulo 8, “o
cinema moderno e a narratividade”, quando faz um resumo das po-
lêmicas em torno das ideias que quatro vozes (Pierre Billard, René
Gilson, Michel Mardore e Marcel Martin) lançam acerca do cinema
moderno e seus esquemas interpretativos. Após reflexões várias,
Metz reconhece a “renovação da sintaxe cinematográfica moder-
na”: “con el nuevo cine, más que a um estallar cataclísmico de La
sintaxis del film asistimos a un amplio y complejo movimiento de

12 Conferir Histoire(s) du cinema, conjunto de documentários dirigido pelo cineasta


francês J. L. Godard, ou se quiserem, conjunto de vídeos realizado ao largo de 10 anos
(entre 1988 e 1998) cujo “relato sobre o cinema e a história que põe a gravitar o campo
dos estudos audiovisuais debaixo de uma luz completamente nova”.
13 SARLO, Beatriz/ Jorge La Ferla/ Rafael Filippeli/ Eduardo Gruner e David Oubiña: Jean
Luc Godard: El pensamiento del cine: “cuatro miradas sobre Histoire(s) du cinéma”,
Buenos Aires: Paidós, 2005.
14 Conferir, a propósito, Christian Metz: Ensayos sobre la significación en el cine –, Editorial
Tiempo Contemporâneo, Buenos Aires, 1972; Mitry, J.: Estética y psicologia del cine”, vol.
1 e 2; Bordwell etc.

148
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

renovación y enriquecimiento que se manifiesta em tres evolucio-


nes paralelas: 1) algunas figuras son por el momento abandonadas
en mayor o menor grado (ejemplo: La cámara lenta y la acelerada;
2) otras se mantienen, pero bajo variantes agilizadas que no deben
impedir reconocer la permanencia de un mecanismo semiótico más
profundo (ejemplos: El campo/contracampo, la escena, la secuen-
cia, El montaje alternado,etc); 3) por último, aparecen nuevas figu-
ras que vienen a engrosar lãs posibilidades expresivas del cine.”15
Se há narração cinematográfica, esta é essencial e fundamen-
talmente, pelo menos em seu nível básico, uma narração muda ou
silenciosa, posto que ninguém diz cinema (no sentido antes alerta-
do de que Graciliano Ramos, por exemplo, diz texto ou literatura)
e sim, mostra cinema (no sentido de que Hirszman mostrará em
S. Bernardo, como demonstraremos a seguir). O mundo da diegese
ou da “vida ficcional” da película que comentaremos, se mostra di-
retamente ao receptor, com uma aparência de imediatez, contudo,
esteticamente organizado.

O TEMA DE SÃO BERNARDO

Poderíamos nos perguntar: qual o verdadeiro tema do filme


S. Bernardo, dirigido pelo cinema novista Leon Hirszman?
Ora, inicialmente, convém não confundir o tema de um fil-
me com sua trama. O tema Enquanto aquele responde à indagação
“sobre que é este filme”, esta tenta responder à pergunta “como
este tema é narrado”? Em outras palavras, o tema de S. Bernardo é
precisamente a questão arte/linguagem, por um lado; e por outro,
a metamorfose pela qual passa o corpo do narrador e personagem
central da trama, Paulo Honório, ao revisitar ou escrever dramas de
sua vida na Fazenda que adquiriu de modo espúrio e casar-se com
Madalena, que finda por suicidar-se lá mesmo.
O tema de S. Bernardo cuida, na verdade, da forte influên-
cia ideológica que o movimento comunista exerce sobre o escri-
tor Graciliano Ramos, na década de 30, e sua narrativa, cuja função
precípua seria, segundo Oliveira Neto16 “contribuir, com a arte, para

15 METZ, C. Ensayos sobre La significación en el cine. Op. cit., p. 321/322.


16 OLIVEIRA NETO, G. A ficção na realidade em São Bernardo. Belo Horizonte: Nova

149
Regis Frota

transformar a estrutura social. E é conhecido que julgava indispen-


sável viver como um miserável para poder falar do ponto de vista
deste miserável.”
Ora, com efeito, o verdadeiro tema de S. Bernardo é o ciúme,
a desconfiança, a agressividade e a brutalidade que tanto caracte-
rizam o narrador. Seja no livro, seja no filme cuja transposição para
a tela por León Hirszman capta traços tão fieis da personalidade do
narrador – um Othon Bastos acaboclado e senhor dono da fazenda
S. Bernardo, a descrever em voz off todos os sentimentos seus e dos
outros personagens a quem manda e desmanda – sobretudo capta
tão bem a metamorfose pela qual esta personalidade brutalizada do
personagem-narrador principia a passar, após a metade do filme –
mais ou menos aos 52 minutos – quando começa a desconfiar de
Madalena (a excelente atriz Izabel Ribeiro que faz a correspondência
de S. Bernardo), desagradando-a na gravidez, através de estocadas,
maledicências e desconfianças da tia da esposa, d. Glória (igualmen-
te muito bem interpretado o papel por Vanda Lacerda), a qual é
acusada por Paulo Honório de meter-se em assuntos alheios, e o faz
de modo a aborrecer à sobrinha Madalena, que a defende sempre.

A PREMISSA DO FILME

A premissa de um filme é o modo como seu tema se mani-


festa. A premissa de S. Bernardo é constituído dos diversos elemen-
tos visuais e sonoros (muito especialmente a música de Caetano
Veloso ressalta o clima de brutalidade do personagem narrador,
bem como o desapontamento crescente das senhoras d. Gloria e
dona Madalena (Vanda Lacerda e Isabel Ribeiro), cujos sensibilida-
des são acentuadas pela composição musical sob a forma de la-
mentos, gritos de socorro, falsetes sonoros a pontuar as sensíveis
personalidades daquelas citadinas que se desadaptam com o clima
brutal e agressivo do sertão de S. Bernardo, moldado à imagem e
semelhança de Paulo Honório.
Em um estudo preliminar mínimo sobre o processo de re-
alização da película sob comentário, em suas fases de desenvolvi-

Safra; Blumenau: Editora da FURB, 1990, 109 p. Baseado no capítulo da tese do autor
(Doutorado- UFRJ, 1988) apresentado sob o título: O nome e o verbo na construção de S.
Bernardo. Bibliografia: p. 102-106.

150
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

mento, cujas principais etapas costumam ser – e o foram concreta-


mente, devemos evidenciar, no caso de S. Bernardo –, 1.a) a aqui-
sição de direitos (pitch, roteiro ou argumento ou obra já existente)
autorais de adaptação à cena fílmica pela produtora MAPA, onde
Hirszman era sócio; 2.b) análise de viabilidade com breakdown de
custos (não foram muito elevados posto que poucos personagens e
locações), análise da história (elenco, diretor sendo o próprio rotei-
rista e produtor Hirszman, gênero, público, etc.); cronograma/data
de entrega (devidamente cumprida não fora a censura que reteve o
filme por sete meses até sua liberação); 3.c) agregação de talento (o
diretor sempre foi conhecido, por seu caráter autoral/determinante,
na qualidade de diretor estabelecido, já inteiramente profissional,
à época da pré-produção, em condições de influenciar inclusive na
escolha do elenco principal, como se pode inferir da nota de rodapé
número 15, adiante); 4.d) Polimento do roteiro, concretamente se
baseou Hirszman em artigo da lavra de Antônio Candido sobre o
livro de Graciliano, que o ajudou a definir o tom narrativo/intimista;
e, 5.e) preparação de um roteiro de trabalho (shooting script) e es-
colha preliminar de locações – desde o princípio adotada a cidade
de Viçosa, em Alagoas, onde vivera o autor do texto original, e onde
permaneceu mais de mês toda a equipe essencial de técnicos (fotó-
grafo, iluminador, técnico de som e elenco).
O desenvolvimento da realização afetou o filme em virtude
dos seguintes aspectos: a) pequeno orçamento, o qual se tivesse
sido maior, logicamente teria dado ao filme mencionado, mais vi-
sibilidade de mercado, tendo contribuído para aumentar o sucesso
de público, o qual, de fato, não foi muito grande, apesar do sucesso
de crítica. A aparência de película pouco comercial, embora não ex-
perimental, deu azo às dificuldades financeiras e comerciais que do
filme resultaram, levando, ao fim e ao cabo, à falência da produtora
SAGA, na década de setenta. Afinal, não consta ter havido altera-
ções na história original de Graciliano com vistas ao incremento po-
tencial de mercado, para definir público-alvo ou ainda, para atender
desejos do diretor e/ou astros. A natureza autoral da realização foi
o grande definidor de como o desenvolvimento do filme o afetou.
Se fossemos analisar os esquemas de pré-produção e pós-produ-
ção de S. Bernardo consideraríamos: 1) Foi feito um breakdown do
roteiro através de um plano de filmagem, segundo o próprio diretor
Hirszman este roteiro consistiu basicamente em anotar em cima do
texto do romance passagens a serem filmadas tal e qual o original,

151
Regis Frota

tendo, afinal o plano de filmagens obedecido sobretudo às conveni-


ências de custos de produção nas filmagens concentradas em duas
cidades: Viçosa (Alagoas, onde viveu por alguns anos o autor) e Rio
de Janeiro(tomadas com atores cariocas, em diálogos aproximados,
fechados, com pouca iluminação, independentes do ambiente ex-
terno; outros aspectos que concorreram para a realização do filme
foram o planejamento de logística; o cronograma de produção; o
estabelecimento do conceito visual e sonoro do filme através de
storyboards, visualizações, padrão e palheta de cores, lentes, pelí-
cula, ângulos, equipamento da SAGA, figurinos e caracterizações.17

17 Comentários e críticas sobre o filme ora analisado foram e continuam circulando na


imprensa brasileira, bem como pela internet, da qual reproduzo o seguinte, para confirmá-
lo, a seguir: Tempo-narração: S. Bernardo, de Leon Hirszman, em comentário escrito por
Cassiano Terra Rodrigues, professor de filosofia na PUC-SP ) Por que alguém iria querer
contar a própria história? “A única ambição do narrador é aparecer como alguém necessário”,
diz Jean-Claude Carrière. Isto soa ainda mais verdadeiro quando se trata de querer contar
a própria história, como Paulo Honório, personagem principal de São Bernardo, romance
de Graciliano Ramos, filme de Leon Hirszman: Paulo Honório conta a história de sua vida
e conclui que ela foi o resultado de suas atitudes agrestes. Agora, tudo narrado, tudo
amarrado – os limites claros, os pingos nos is, nenhuma ambiguidade, nenhum ponto
desatado, não poderia ter sido diferente. Depois de contar sua história, Paulo Honório
pode parar, tudo agora faz sentido, resta esperar a luz da vela se extinguir. Diz-se que tanto
o livro quanto o filme mostram o embrutecimento, a reificação de Paulo Honório. Com o
lançamento recente do filme em DVD, pelo Projeto Leon Hirszman, é hora de lançar outras
interpretações. Acerca dos filmes de Leon Hirszman, um dos maiores cineastas nacionais,
muito ainda há a ser falado. Realizado sob estritíssimas condições orçamentárias, fracasso
de público, obra-prima de adaptação para certos críticos, realização duvidosa para outros,
o filme não se deixa enquadrar facilmente. E, ainda que a precariedade da produção resulte
em limitações do resultado final, o olhar atento percebe ali o toque de arte que diferencia
a banalidade corriqueira da obra genuína. O momento final da narração de Paulo Honório
coincide com o momento inicial da história a ser contada – a ação só pode começar depois
de já ter sido. A narração, assim, fecha-se sobre si mesma – e, de fato, o fechamento
lógico é condição necessária de todo ato de narrar, pois é condição de conhecimento. Se
fosse possível restaurar no conto todos os aspectos do real, signo e objeto coincidiriam,
e nenhuma mediação, nenhum significado seria possível – o narrador não conseguiria
encadear os eventos, porquanto não conseguiria uma perspectiva reflexiva. Uma narração
é um uso semiótico muito peculiar das leis do tempo, já que encadeia objetos, eventos,
estados e ações em certa sequência. Assim, uma narração é sempre uma interpretação;
não fosse assim, o leitor/espectador/ouvinte jamais se situaria como tal e se perderia em
meio a indefinições e não-conexões simultâneas. É preciso, portanto, escolher não só o que
contar, mas também como contar. Por isso, uma narração é uma operação transfiguradora
– dá sentido ao caos, liga distâncias, faz do fato um exemplo. A temporalidade narrativa
delineia um horizonte de possibilidades ali onde antes todas as possibilidades eram
possíveis. Ela opera, assim, uma restrição. Uma narração não pode, então, se desdobrar
ad infinitum. Somente quando ordenamos logicamente as ações empíricas concretas num
tempo é que conseguimos salientar e caracterizar distintamente certos traços e aspectos
como pontos discretos de uma continuidade; só assim conseguimos comunicá-las. Não
se trata só de determinar um ponto de vista, mas também de percorrer um caminho. E a

152
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Ora, por outro lado, convém verificar os dados e elementos


da pós-produção de S. Bernardo: Noutras palavras, os aspectos rela-
cionados com a montagem, a adição de efeitos sonoros e visuais, a
sonorização e a trilha sonora propriamente dita, com a composição
musical de Caetano Veloso, antes descrita, os créditos ou letreiros
(iniciais e finais, aliás, profundamente sugestivos visualmente, posto
que fixados numa nota ou cédula de 5 tostões - dinheiro recebido
por paga por doze horas de serviço de Paulo Honório, no começo
da vida de mascate- os créditos revelam e desvelam um a um todos
os atores e atrizes, técnicos e diretores artísticos e visuais da pelícu-
la, igualmente assalariados no Brasil, a duras penas.
Infelizmente, esta foi – e nalguns casos ainda continua sendo
no presente-, a situação da produção e realização cinematográfica no
Brasil dos anos 60/70. Não se pode afirmar tenha havido lugar para
etapas tão importantes da pós-produção de uma película fílmica no
país do cinema novo como o da retirada de cópias intermediárias para
testes, da avaliação do resultado destes mesmos testes, de mudanças
finais, da elaboração de campanha de lançamento (como pode sobre-
viver uma campanha de lançamento de um filme que passa – como
S. Bernardo efetivamente passou-, sete meses proibido pela censura

riqueza do relato será medida pela sua capacidade de nos mostrar o que normalmente
não vemos, ou, em outras palavras, de nos surpreender, encadeando o contado de uma
maneira como não imaginaríamos – liberando, com isso, nossas possibilidades de imaginar
outras tramas. Já se disse que a lentidão do filme foi a maneira encontrada pelo diretor
para transpor à linguagem cinematográfica a aridez da prosa de Graciliano. Mas como se
filma um advérbio? Esse é todo o problema: a câmera de Leon Hirszman não adapta a
linguagem de Graciliano Ramos, ela busca captar a experiência temporal de Paulo Honório
contando sua própria história – Paulo Honório religando, reconstruindo, ressignificando
sua vida. Meta-signos, os movimentos da câmera estão apostos às inflexões da voz do
personagem-narrador; ambos os tempos – o das imagens e o da voz de Paulo Honório
– se sobrepõem, sugerindo modalidades possíveis de ser/ligar/unir/continuar/mediar/
criar outra temporalidade. Paulo Honório usa uma linguagem agreste, súbita, seletiva,
cortada. Limitação sobre a limitação, negação da negação, signo de signo, os movimentos
da câmera de Leon Hirszman formam um peculiar modo de enunciação, ou seja, escolhem
uma maneira – dentre muitas possíveis – muito própria de contar como Paulo Honório
conta a própria história. A câmera é continuamente estática, lenta, demorada. Longos
planos, poucos cortes, cenas à distância, raros closes. Súbito, velozmente, a câmera
corre atrás de Paulo Honório, anunciando o momento decisivo. Dentre todas as outras,
é a única cena de movimentos bruscos e velocidade acelerada. A partir desse momento,
entendemos por que Paulo Honório precisa contar sua história. Aqui, Leon Hirszman nos
conta a lição do mestre: como transformar limitações orçamentárias em cinema. Cortar/
encadear/surpreender/mostrar. Eis a essência do cinema. Leon Hirszman atrás da câmera.
PROJETO: “Restauro digital da obra de Leon Hirszman”. Sonhara o cinema nacional tivesse
mais projetos como esse... Disponível em: http://www.leonhirszman.com.br.

153
Regis Frota

oficial de estrear?, se neste período todo o esquema de exibição se


modificou entre as salas exibidoras no Brasil, com a chegada frequen-
te dos brockbusters norte-americanos? A campanha de mídia também
se mostra insuficientemente precária, vindo a prejudicar o lançamento
do filme. Seguro que o lançamento de certos filmes brasileiros – den-
tre os quais, certamente S. Bernardo foi um deles- juntamente com
tantos outros do chamado ciclo do Cinema Novo brasileiro impediu
que toda uma nova geração tenha tido conhecimento dessas clássi-
cas experiências artísticas e literárias. Neste sentido, sua restauração
– como denunciado positivamente por Cassiano Rodrigues na nota
de rodapé número 15 transcrita – da obra cinematográfica de Leon
Hirszman se constitui um fator positivo, posto que possibilitará a toda
uma geração conhecer o que até o presente, desconhecia, fatalmente.

A TRAMA DA PELÍCULA ADAPTADA

A trama de um filme se não confunde com seu tema. Como


visto anteriormente, o tema de um filme é sobre o que ele é, en-
quanto a trama diz como esse tema é narrado.
Aqui nos encontramos com uma primeira interlocução
conflitiva entre estas duas formas de linguagem, a literária e a
cinematográfica. Embora tanto Graciliano Ramos é normalmen-
te visto como um mais importantes autores do século XX, no
Brasil, quanto Leon Hirszman18 seja igualmente considerado um

18 Leon Hirszman, ainda estudante de Engenharia iniciou suas atividades em cineclubes e


ligou-se a Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho. Começou suas
atividades cinematográficas junto com sua vigorosa e consistente militância política, no
movimento estudantil no Rio de Janeiro, tendo sido um dos fundadores do CPC – Centro
Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes (UNE). Foi no CPC que ele realizou
sua primeira produção, o curta “Pedreira de São Diogo”, um dos cinco episódios do filme
“Cinco vezes favela”, lançado em 1962. Documentarista e autor de ficção, em sua obra
figuram os documentários Nelson Cavaquinho”, “Megalópolis”, “Ecologia” e Sesta-feira
da Paixão, Sábado de aleluia”. Em 1971, ele realiza o longa-metragem “São Bernardo”,
baseado na história homônima de Graciliano Ramos, que apesar do enorme sucesso de
crítica, não conseguiu se transformar em sucesso de público. Ainda na década de 1970
filmou os importantes documentários “Cantos do trabalho no campo” em 1976, o longa-
metragem “Que país é esse? em 1977, “Rio, carnaval da vida em 1978 e realizou o longa
“ABC da greve”, sobre o movimento operário da região do ABC paulista. Em 1981, recebeu
a consagração de público e crítica e o Leão de Ouro do Festival de Veneza com o filme “Eles
não usam black-tie”, adaptação da peça teatral de Gianfrancesco Guarnieri, que escreveu
com Leon o roteiro e os diálogos do filme. Gianfrancesco Guarnieri também trabalhou
como ator no filme fazendo o papel de Otávio, o pai, militante e corajoso, que entra em

154
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

dos mais importantes cineastas do cinema novo brasileiro, per-


cebemos que o cineasta não tem interesse em discutir ou iden-
tificar a dificuldade que o personagem central de São Bernardo
no caso concreto, Paulo Honório (Othon Bastos) – devidamente
ressaltada por Graciliano Ramos em seu livro homônimo, sobre-
tudo conforme relevado desde o primeiro capítulo da obra lite-
rária-, na prática corrente da língua, “estratos de conhecimento
e de competência que devem estar presentes no seu livro, mas
que ele próprio não pode assumir”(v.g., percebamos que o filme
é composto de sons e músicas, ruídos, luzes e sombras, as quais
compõem um painel de escuridão da alma, psicanaliticamente
analisada pelo narrador em voz off .)
Parafraseando Oliveira Neto19 quando afirma que “dois
capítulos do romance em apreço deixam entrever com clareza
a composição intelectual da obra e, de quebra, a visão artísti-
ca do Graciliano Ramos-escritor: o capítulo 1, já referido, onde
vem exposta a questão arte/linguagem, e o 19, a partir do qual
tem início a metamorfose do corpo do narrador-personagem”,
afirmaríamos que duas sequências do filme homônimo deixam
igualmente entrever a composição fílmica/artística da película
cinemanovista, e de pronto, a percepção cine/artística/intimista
do Leon Hirszman-roteirista e diretor cinematográfico: os pla-
nos-sequências inicial e final, cujo primeiro plano do ator Othon
Bastos(encarnando o personagem narrador Paulo Honório, no

conflito com o filho Tião (Carlos Alberto Riccelli), dividido entre suas aspirações por uma vida
pequeno-burguesa ao lado da noiva Maria (Beth Mendes) e as exigências do movimento
grevista. Guarnieri compôs com Fernanda Montenegro (genial no papel de Romana,
mulher de Otávio), um dos momentos de maior expressividade do cinema: a cena em que
ambos, desolados por causa da ruptura com o filho e pela morte do amigo Bráulio (Milton
Gonçalves) se põem a catar feijão. “Eles não usam black-tie” recebeu outros importantes
prêmios como: Grande Prêmio Coral Negro no 3º Festival Internacional do Novo Cinema
Latino-Americano, em 1981; Grande Prêmio do Festival dos Três Continentes e Espiga de
Ouro do Festival Internacional de Vallodolid, também em 1981, alem do Prêmio Air France
de 1982. Leon Hirszman teve um papel extremamente importante na afirmação do cinema
brasileiro e deixou vários textos onde se pode ler agudas reflexões sobre as condições da
produção cinematográfica no Brasil, o mercado nacional e sua respectiva legislação de
proteção, a Embrafilme, as correntes de criação cinematográfica e o cinema político. Leon
morreu vítima de AIDS que ele contraiu durante uma transfusão de plasma sanguíneo,
depois de quase um ano de tratamento, deixando três filhos: Irma, Maria e João Pedro, uma
corajosa companheira, Cláudia Fares Menhem e uma imensa e incurável saudade entre seus
muitos amigos, acostumados a receber dele montanhas de afeto e sabedoria. (Pesquisa da
enciclopédia Wikipedia, verbete Leon Hirszman, visitado em 10.07.2010).
19 OLIVEIRA NETO, G. op. cit. p. 225.

155
Regis Frota

início a fumar seu cachimbo aristocrático, usando a pena para


tentar descrever ou fixar suas memórias aos leitores), barbado
e arrasado, sob a luz tênue de uma vela que insiste em se apa-
gar (na sequência final, ele reacende várias vezes, usando com
vários fósforos) revela o ver/não-ver da adaptação fílmica, inte-
rioriza a narração psicanalítica de Paulo, o senhor de S. Bernar-
do, o Honório-narrador inserido na solidão das suas memórias,
na falência de suas economias e na degradação de sua brutal
personalidade. Assim como Madalena (Isabel Ribeiro) parece ser
a honesta e digna mulher – anjo da morte, assim S. Bernardo
aparece como um lugar mítico, que atrai ao envelhecidíssimo
proprietário aos 50 anos, que não o deixa partir ou jamais sair
daquela fazenda, e que o atrapa em sua própria degradação até
a absoluta solidão e falência.
Porquanto, a trama ou história de S. Bernardo – filme se passa
na década de trinta e o narrador encarnado por Othon Bastos (cuja
imagem e voz compõem um Paulo Honório soberbo na história da
interpretação cinematográfica brasileira, a lembrar as suas atuações
em Deus e o Diabo na terra do sol, (1963) de Glauber Rocha, quan-
do empresta igualmente sua voz para diversos personagens como
o beato Sebastiao (Lídio Silva), Corisco e Lampião (ele próprio, em
sequência famosa na história do cinema, pela utilização do méto-
do interpretativo stanislavskiano e inspiração brechtiana) – enfim, o
personagem central de S. Bernardo tenta revisitar, através da escrita
puxada pela memória e pela insônia, dramas de sua vida e conflitos
internos que até o momento em que o livro era escrito permaneciam
inexplicáveis. Com efeito, nem a fazenda S. Bernardo, que Paulo Ho-
nório forçara adquirir e comprara de Padilha (Nildo Parente)por preço
irrisório, nem a professora Madalena, a quem contratou para alfabe-
tizar as crianças de seu empreendimento rural e com quem acaba se
casando, deram-lhe o sossego que tanto buscava. Resta-lhe a escrita:
talvez ela lhe devolva a paz desejada. Mas os fatos e o tempo não
voltam. Há, assim, como observado por Oliveira Neto20, em função
desse tipo de narrativa, uma constante transição entre passado e pre-
sente, “já que o narrador além de nós, leitores e/ou expectadores, é
também o destinatário da história que ele tenta reeditar.”

20 Idem, ibidem.

156
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

O GENERO CINEMATOGRÁFICO NO
QUAL SE ENQUADRA O FILME

Falar-se de gênero cinematográfico se trata de buscar iden-


tificar que recursos pré-existentes me ajudam a acompanhar esta
História e atingir este Tema. Em qual gênero do cinema poderíamos
enquadrar S. Bernardo? Consoante afirma Yves Reuter “a ficção de-
signa o universo encenado pelo texto: a história, as personagens, o
espaço-tempo. Ela se constrói progressivamente, seguindo o fio do
texto e de sua leitura.”21
Em consequência prática disto, e neste nosso exercício prático
de análise comparativa das linguagens cinematográfica e literária
do S. Bernardo, faz-se necessário trabalhar com a integralidade do
texto (na literatura) e das imagens e sons (no filme) para melhor
analisar a ficção e seus componentes. Por evidente, como toda
história se compõe de estados e ações, convém analisar se as ditas
cujas são numerosas ou não em S. Bernardo, se enfim, apresentam-
se sob diferentes formas.

3. A HISTÓRIA: AÇÕES, SEQUÊNCIAS, INTRIGA

- Há poucas ações, e elas são “internas” (o que em parte


está ligado ao funcionamento do romance como gênero psicológi-
co e dramático e ao seu processo de conscientização/rememoração
“coisificadora” do narrador Paulo Honório);
- As ações são facilmente assinaláveis e explicitas;
- Trata-se das “idas e vindas” de Paulo Honório para adquirir
(quase extorquir) a fazenda de Padilha, expandindo-a inclusive nos
limites e confrontações e, seu posterior casamento com Madalena,
mulher cuja bondade e honestidade o perturbará e enciumará, ao
ponto de levá-la ao suicídio;
- Essas ações se efetuam (desenrolar e desfecho), e se de-
compõem em frases e capítulos finais

21 REUTER, Y. Op. cit., p. 27.

157
Regis Frota

- Sua cronologia é clara e respeitada. Consoante assinalado


por Roland Barthes 22 existem as distinções entre as funções cardeais
(ou nodais), fundamentais para o desenrolar da história e o devir
das personagens, e as catálises que preenchem, com um papel se-
cundário, o espaço entre as primeiras. De verdade, as funções cata-
líticas são mais raramente conservadas nos resumos do que as fun-
ções cardeais, donde podermos chamar a atenção sobre as ações se
organizam para formar a história de S. Bernardo, e assim distinguir
as três formas essenciais de relações entre elas: 1) as relações lógi-
cas – aquelas atitudes de personagens secundários (quando Padilha
conversa com o vaqueiro Marciano, por exemplo, e isto enfurece o
narrador que passa a acusá-lo de preguiçoso, fuxiqueiro, maltra-
tando-o de não tratar do gado), ou seja quando a ação A é a causa
ou a consequência da ação B; 2) as relações cronológicas – aquelas
atitudes anteriores ou posteriores a outras (exemplo, quando Paulo
Honório, apoquentado, encontra uma folha de carta com letra de
Madalena no pátio (ação A) e supõe, máquina ou suspeita de tra-
tar-se de carta para um outro homem, vindo a acusá-la de traição
na Igreja (ação B), ou seja, quando uma determinada ação A pre-
cede ou sucede a uma outra ação B; e 3) as relações hierárquicas: a
ação A é mais importante ou menos importante do que a ação B,
é dizer, como no caso anterior o fato de Paulo Honório ter achado,
casualmente, folha de correspondência, levada pelo vento, da mesa
de Madalena ao pátio da casa da fazenda (ação A) teve muito mais
importância no relato para o narrador, que sua acusação de traição
à mulher companheira e fiel (ação B), mostrando, destarte, uma re-
lação hierárquica entre as ações mencionadas, sem olvidar que tais
relações, no romance, são essenciais para a articulação das ações na
intriga global que, segundo Reuter (2007), em compensação, inte-
gra e dá sentido às múltiplas ações que a compõem.
A questão da intriga convida a nos demandarmos sobre a
estrutura global da história de S. Bernardo, como aliás, fazem todos
os teóricos (Propp, Adam, Greimas, Larivaille, etc.) e estudiosos da
narratologia.23 O repertório das 31 funções da narrativa, segundo

22 BARTHES, R. Introduction a l’analyse estructurale des récits (1966) em R. Barthes e


outros. Paris: Poétique du récit –, Le seuil, 1977.
23 Vide PROPP, V. Morfologia do conto. [s.n.] Moscou, 1928. O autor soviético isolou 31
funções na formalização da intriga das narrativas, em seu caso concreto, dos maravilhosos
contos soviéticos ou russos. Segundo este autor, a partir de duas hipóteses estariam

158
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Vladimir Propp se mostrou eficaz na análise dos contos, contudo,


insuficiente no caso de outras narrativas como na hipótese do texto
de romance de Graciliano, para o qual nos socorremos do mode-
lo mais simples e abstrato de Larivaille denominado ou conhecido
como “esquema canônico ou quinário da narrativa. “Ora, as cinco
etapas do esquema quinário ou canônico da narrativa consistem na
seguinte superestrutura: a) estado inicial; 2- complicação ou força
perturbadora; 3- dinâmica; 4- resolução ou força equilibradora; e,
5- estado final. Concretamente, para ilustrar esse esquema de uma
forma muito direta e simples digo que, no romance S. Bernardo,
de G. Ramos, a transformação consiste na decisão de Paulo Ho-
nório de desconfiar de sua esposa Madalena, cuja tranquilidade e
honestidade (complicação), o suicídio e a carta deixada e dirigida
ao próprio marido e narrador (dinâmica), e não a outro homem
qualquer, consoante acusação infundada do fazendeiro, leva-o ao
clima de solidão e falência nos objetivos de coisificação de tudo (re-
solução). Essa transformação permite a passagem do estado inicial
(Paulo Honório é o mascate que virou fazendeiro próspero e rico,
e Madalena é a professorinha do interior, pobre e aparentemente
condenada a vitalina) em um estado final inverso (Madalena tomou
o rumo de sua vida digna, com a morte desejada e realizada, a seu
tempo e exclusivo alvedrio, conduzindo Paulo Honório para a soli-
dão, o abandono, a falência de S. Bernardo e a tristeza absoluta e
infinita de suas memórias e narrativas).
Apesar de Reuter alertar que do ponto de vista metodológi-
co, a análise permanece incerta entre uma parte das unidades múl-
tiplas e em grande parte calcadas no real, as ações e, de outro lado,
unidades muito abstratas e globalizantes, as etapas do esquema
quinário, lembramos a presença das sequências (tanto as fílmicas
de Leon Hirszman quanto as literárias de Graciliano Ramos) a se
constituírem enquanto respostas como unidade de análise da nar-
rativa. Os dois modelos mais conhecidos – os quais aplicamos neste
exercício prático comparativo de meios, em S. Bernardo –, são a
seguir citados:

constituídas a base comum a essas narrativas estudadas: 1 - “Para além de suas diferenças
superficiais, todos esses contos se reduziriam a um conjunto, finito e organizado em uma
ordem idêntica de ações ; e, 2 - as ações (diferentemente das personagens e dos objetos,
veja-se) seriam as unidades de base da narrativa.”

159
Regis Frota

O primeiro e mais rígido considera que há sequência desde


que uma unidade textual manifeste o esquema quinário atrás refe-
rido. Deste modo, em S. Bernardo o estado inicial pode ser conside-
rado como a conjunção de suas sequências: uma, que explicaria o
fato de Paulo Honório estar no posse da fazenda objeto do desejo
não somente dele, mas igualmente, da professorinha Madalena (–
“d. Marcela disse-me que o senhor tem uma propriedade bonita,
começou Madalena”, p. 91, penúltimo parágrafo e, – “Bonita? Ainda
não reparei. Talvez seja bonita. O que sei é que é uma propriedade
regular”, p. 91, último parágrafo). E outra, que tornaria patente o
processo segundo o qual a professorinha Madalena, em sua sol-
teirice interiorana, conhece Paulo Honório através da tia d. Glória,
e não resiste à proposta imediata de casamento, tempestivamente
apresentada (– “Parece que nos entendemos. Sempre desejei viver
no campo, acordar cedo, cuidar de um jardim. Há lá um jardim,
não? Mas porque não espera mais um pouco? Para ser franca, não
sinto amor.” (Madalena, à p. 106) (– “D. Glória, comunico-lhe que eu
e sua sobrinha dentro de uma semana estaremos embirados. Para
usar linguagem mais correta, vamos casar-nos. A senhora, está cla-
ro, acompanha a gente. Onde comem dois comem três. E a casa é
grande, tem uma porção de caritós.” (Paulo Honório, à p. 107).
O segundo modelo, mais flexível e em parte inspirado nas
divisões do teatro clássico, segundo Reuter (2007), considera que
há sequência desde que se possa isolar uma unidade de tempo,
lugar, ação ou personagens. Vimos pelos comentários anteriores
que, seja no texto literário de Graciliano, seja em sua transposição
ao cinema de Leon Hirszman, há poucas ações, muitas sequências e
uma estupenda intriga. Antes de entrarmos no estudo das persona-
gens, façamos mais uma aplicação do método analítico da narrativa
de S. Bernardo, utilizando as noções atrás formuladas com base na
teoria reuteriana: o estado inicial (a vida de professora primário na
cidadezinha interiorana) é rompido pela complicação representa-
da pela proposta de casamento apressado (uma semana, apenas).
A dinâmica dura mais de década, durante os quais anos a fio tra-
balhou “Paulo Honório estabelecido ali na sua terra, município de
Viçosa, Alagoas, onde planeou adquirir a propriedade S. Bernardo e
onde trabalhou, no eito, com salário de cinco tostões.” (cap. IV) Ela
termina com a resolução: o ciúme de Paulo Honório a desconfiar de
Madalena e suas ideias libertárias.

160
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Organizando as ideias antes expostas se podem compreen-


der algumas das resistências ante as que teve que enfrentar Leon
Hirszman, o diretor do filme homônimo, em que pese toda a equi-
pe que trabalha na realização de uma película.24 O ruído reflexivo
da voz narrativa (em voz off permanente, ao invés da presença
do diálogo intermitente do texto original) em um filme pode ser
causa do possível interesse que possa ter uma transposição literá-
ria ao cinema (desde o momento em que se apresenta como uma
outra forma de contar uma história), contudo, ao mesmo tempo o

24 Pela observação da Ficha Técnica se conclui o coletivo da realização de um filme como


S. Bernardo.
Título original: São Bernardo
Gênero: Drama
Duração: 110 mm
Lançamento (Brasil): 1972
Distribuição: Embrafllme
Direção: Leon Hirszman
Assistente de direção: Lúcio Lombardi
Roteiro: Leon Hirszman
Produção: Marcos Farias, Márcio Noronha, Henrique Coutinho e Luna Moschovitch
Co-produção: Saga Filmes, Mapa Filmes e Produções Cinematográflcas L. C. Barreto
Música: Caetano Veloso
Fotografia: Lauro Escorel
Camera: Cláudio Portioli
Assistente de camera: Renato Laclette
Som: Walter Goulart
Microfone: Jorge Rueda
Mixagem: José Tavares
Desenho de produção: Luiz Carlos Ripper
Figurino: Luiz Carlos Ripper
Assistente de cenografia: Artur Silveira
Edição: Eduardo Escorel
Assistente de montagem: Gilberto Santeiro
Maquiagem: Ronaido Abreu e M.Henrique;
Cartaz : Rogério Guimarães
Letreiros: Rogério Guimarães
Maquinista: José Pinheiro
Eletricista: Roque Pereira

Elenco
Othon Bastos /Isabel Ribeiro/ Nildo Parente/ Vanda Lacerda /Mário Lago/ Jofre Soares
Rodolfo Arena/ Josef Guerreiro/ Audrey Salvador/ José Policena/ José Lucena/ Angelo
Labanca / Luiz Carlos Braga

161
Regis Frota

ponto de inflexão sobre o qual versam grande parte dos proble-


mas de tal processo.
No caso de S. Bernardo é uma voz narrativa que assumiu
grande parte do conteúdo reflexivo, ensaístico (no sentido do tipo
de literatura própria a PH, que dispensou a divisão social do traba-
lho inicialmente imaginado no cap. 1, e terminou por se imbricar no
texto/vida do fazendeiro), ideológico do romance, e dito conteúdo
se compreende como um traço definidor tanto do romance em seu
conjunto como da diegese propriamente dita.
A essência de uma adaptação cinematográfica é a opção
pelo tipo de narrativa (direta, inversa, episódica ou fracionada e
não linear etc.), cujos elementos têm sido objeto de análise an-
terior, contudo, incrementamos mais algumas reflexões a seguir.
Com base em Reuter estivemos até o momento expondo a con-
creta análise comparativa entre as duas formulações linguísticas de
S. Bernardo, a literária e a cinematográfica, com seus específicos
processos narratológicos e de realização. Os arcos da “narrativa em
cinema” conhece recursos e elementos dignos de relevância, quais
sejam: a suspensão da descrença, o backstory, o foreshadowing, os
flashbacks e flashforwards, os McGuffin, os set pieces, (as tantas ex-
pressões inglesas revelam, afinal, o quanto a filmagem se tornou
um fenômeno anglo-saxão, típico da forte influência hollywoo-
diana). Por outro lado, a estrutura dessa narrativa fílmica – como
ressaltado anteriormente com base nos elementos narratológicos
reuterianos –, caminham desde Aristóteles (com sua teoria dos
três atos da narrativa dramática)25 à jornada do herói tipicamen-
te hollywoodiano (dentre todos os gêneros cinematográficos, do
cine de faroeste ao filme de gangster, do filme musical ao desenho
animado futurista ou não, etc.) cuja linha de raciocínio narrativo
se dá desse modo: no monomito, uma jornada de herói conhece:
a) o mundo da inocência; responde a um chamado; conhece sua
jornada e suas provações típicas da mesma; conquista o troféu;
dá-se a volta para casa onde compartilha as conquistas. Embora
um tanto estereotipado, o cinema comercial de Hollywood sempre

25 Aristóteles
Aristóteles dizia
dizia queque o ato
o ato número
número 1 1compreendia
compreendiaaaexposição
exposiçãoeeaa oposição,
oposição, enquanto
o ato num.2 era composto pelo auge da oposição e o conflito; então, se faria uma primeira
tentativa de resolução para anunciar o ato num. 3, com a resolução propriamente dita. Em seu
livro A poética, o filósofo estagirita afirmou: “A função do poeta não é relatar o que aconteceu,
mas o que pode acontecer, de acordo com as leis da probabilidade e da necessidade”

162
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

163
Regis Frota

respeitou este esquema de arco narrativo onde a ação conduz a


narrativa, enquanto o cinema europeu trata de permitir que sejam
os personagens os condutores da própria. E se nos perguntásse-
mos quem conduz a narrativa de S. Bernardo (seja no texto literário
de Graciliano Ramos quanto na transposição fílmica dirigida por
Leon Hirszman) diríamos que muito mais os personagens de Paulo
Honório e Madalena que as atitudes e ações ocorrida envolvendo
os mesmos (as ações tomadas ou deixadas de tomar na fazenda
alagoana se mostraram no filme de Hirszman inferiores às motiva-
ções interiores e o perfil psicológico do narrador).
Ultrapassado os limites da recepção heterogênea entre os
meios e as linguagens do texto literário e do filme, cabe-nos res-
saltar que o ruído da voz narrativa de Paulo Honório escrevendo
suas memórias (e amplificadas no filme de Hirszman pela música
de Caetano Veloso e pela montagem eisensteiniana de Eduardo
Escorel) podem até ser superadas, compreendendo-se as poten-
cialidades do novo meio, onde e quando a movimentação interna
da película se dá fundamentalmente pela edição entre imagem e
som: a câmara se aproxima e se afasta dos personagens, e con-
soante Cassiano Rodrigues “já se disse que a lentidão do filme
foi a maneira encontrada pelo diretor para transpor à linguagem
cinematográfica a aridez da prosa de Graciliano. Mas como se filma
um advérbio? Esse é todo o problema: a câmera de Leon Hirszman
não adapta a linguagem de Graciliano Ramos, ela busca captar
a experiência temporal de Paulo Honório contando sua própria
história – Paulo Honório religando, reconstruindo, ressignificando
sua vida. Meta-signos, os movimentos da câmera estão apostos às
inflexões da voz do personagem-narrador; ambos os tempos – o
das imagens e o da voz de Paulo Honório – se sobrepõem, suge-
rindo modalidades possíveis de ser/ligar/unir/continuar/mediar/
criar outra temporalidade.”

164
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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(1983); JOFRE, M. A. Analysis textual de la diegesis. Alpha: Revis-
ta das Artes, Letras y Filosofia, 3 (1987).

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Editorial Tiempo Contemporâneo, 1972.

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Rio de Janeiro: J. Olympio Editora, 1992.

NORONHA, J. A longa luta do cinema brasileiro: os pioneiros.


Rio de Janeiro: Funarte, 2002.

OLIVEIRA NETO, G. A ficção na realidade em São Bernardo. Belo


Horizonte, Nova Safra (Blumenau): Editora da FURB, 1990. 109 p.
Baseado no capítulo da tese do autor (Doutorado - UFRJ, 1988),
apresentado sob o título: “O nome e o verbo na construção de S.
Bernardo. Bibliografia: p. 102-106.

RAMOS, G. Angústia. 64. ed. São Paulo: Record Editora, 2009.

__________. São Bernardo. 88. ed. São Paulo: Record Editora, 2009.

REUTER, Y. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração.


Rio de Janeiro: Difel, 2007.

SARLO, B. et al. Jean Luc Godard: el pensamiento del cine - cuatro


miradas sobre Histoire(s) du cinéma. Buenos Aires: Paidós, 2005.

165
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 7

O CASO DOS NOVELISTAS


NORTE-AMERICANOS DO SÉCULO XX
E SUA ATRAÇÃO PELO CINEMA

Os norte-americanos vivenciaram um século XX cheio de


guerras. Desde a segunda guerra mundial (além do ataque surpresa
dos japoneses ao Pearl Harbour, em 1941), até as guerras da Coréia
e do Vietnam, os EUA se envolveram em litígios que marcaram a
vida social e política da grande nação. Sua literatura refletiu sempre
tais acontecimentos.
Da literatura clássica até os textos literários contemporâneos
sempre é possível identificar o reflexo que as narrativas operam
na realidade, e esta mais, todavia, naquelas. Ao ler os novelistas e
romancistas norte-americanos do século XX - não todos, naturalmente
-, observamos que os mesmos lidam com o tema das guerras de
colonização, descolonização, e submissão dos países mais atrasados
ao poderio capitalista e armamentista do império, no século passado.
Dos prêmios Nobel de literatura, de Saul Bellow1a Toni Morrison,2 ora se
percebe centrar-se a história de alguns de seus livros, seja na espera do
personagem central à chamada para a guerra (vide “Na corda bamba”,

1 Saul Bellow, nasceu em Quebec em 1915 e só foi naturalizado americano em 1941.


Foi galardoado com o premio Nobel da Literatura em 1976, tendo falecido em 2005,
com quase 90 anos, e publicou grandes obras como Na corda bamba, Morrem mais de
mágoa, As aventuras de Augie March, Ravelstein, O legado de Humboldt, Herzog,
sendo considerado um dos maiores romancistas americanos do pós-guerra.
2 Toni Morrison nasceu em 1931 em Lorain, Ohio, e recebeu o Premio Nobel de Literatura
em 1993, tendo escrito onze romances, dentre os quais se destacam, com tradução para o
português, Amada (1987), adaptado para o cinema, e tendo estreado nas letras em 1970,
com O olho mais azul, veio a falecer, em agosto de 2019. Publicou ainda Paraíso, Amor,
Jazz, Compaixão, Song of Salomon, Deus ajude essa criança, Sula e outras três novelas,
as quais demonstram se tratar de uma das maiores ficcionistas da América, a primeira
negra a ser galardoada pela Suécia por obra que não se afastou do seu tema central: a
condição da mulher negra nos EUA.

167
Regis Frota

Quetzal Editores, Lisboa, 2015, com tradução de Maria Adélia Silva


Melo), onde Joseph, o jovem desempregado, em forma de diário narra,
entre 15 de dezembro de 1942 até 9 de abril do ano posterior, seus
relacionamentos com os amigos e a sua mulher, e a frustração de viver
em Chicago à espera de ser arregimentado ou chamado para a guerra
da Coréia), quando, segundo o autor, neste 9 de abril, Joseph vivia seu
“último dia civil”... “Hurra pelo horário estipulado! E pela supervisão do
espírito! Viva a arregimentação!”.
Por outra, vemos aprofundada a reflexão literária na história
do século próximo passado, o século XX, pela grande ficcionista Toni
Morrison, em seu romance sobre a história do retorno a casa pelo
personagem central, depois da guerra do Vietnam, onde Frank Money
completa sua jornada de volta a casa, na Geórgia (Vide “Voltar para
casa”, Cia. Das Letras, 2016, com tradução de José Rubens Siqueira),
descrita com maestria a violência, a paixão e o arrependimento que
caracterizaram toda uma geração de veteranos e negros migrantes
do Sul, em emocionante descrição pela Morrison:
“Uma vez coberto com terra, Frank pegou dois pregos e o
pedaço de madeira do bolso. Com uma pedra martelou-o no tronco
da árvore. Um prego entortou, ficou inútil, mas o outro prendeu o
suficiente para expor as palavras que ele havia pintado no marcador
de madeira. Aqui jazz um homem. Em pé. Talvez fosse divagação, ele
podia jurar que o loureiro concordou, satisfeito. Suas folhas verde-
oliva enlouqueceram com a luz de um sol vermelho-cereja.”
Enfim, parece coincidência, mas não é, o fato dessas
referências temáticas que fazem os grandes romances ou novelas
norte-americanas às incursões bélicas estadunidenses, do século
XX, mesmo sem ter aqui, ainda, me referido às duas grandes guerras
mundiais e à grande depressão, vivida em 1929, pelo crack da bolsa
nova-yorkina, seguramente, base fática inspiradora da literatura
contemporânea, em maior medida que as guerras regionais
promovidas pela CIA/PENTÁGONO, é dizer, pelo deep state que
nesses últimos 80 anos – desde 1940, se preparam para impor o seu
império, com financiamentos das famílias Rockfeller e Rotschild.
Afinal, como afirmado por Gore Vidal, “o romancista tampouco
pode ser responsabilizado pela sociedade que ele reflete”.3

3 VIDAL, Gore: “ De fato e de ficção- Ensaios contra a corrente”. tradução de Heloisa Jahn.
São Paulo: Cia. das Letras, 1987. p. 170.

168
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Por outro lado, nos interessa referir a relação de influência


que a cinematografia hollywoodiana exerceu sobre os escritores e
romancistas norte-americanos, desde a primeira metade do século
XX. Em De fato e de ficção – ensaios contra a corrente 4 o ensaísta
Gore Vidal argumenta que “todos os americanos nascidos entre 1890
e 1945 queriam ser astros de cinema”. No livro de 1936, “Colando
juntos” (Pasting it together), Francis Scott Fitsgerald dissera que a
literatura estava ficando subordinada ao audiovisual, ao concluir
que a expressão literária
“era uma arte em que as palavras eram subordinadas às
imagens, em que a personalidade era desgastada até a inevitável
marcha lenta da colaboração. Já nos idos de 1930 eu tinha o palpite
de que com o cinema falado mesmo os romancistas de mais sucesso
iriam ficar tão arcaicos quanto o cinema mudo.”5
E, adiante, no ensaio sobre o caso F.Scott Fitzgerald- autor
de romances e mais de 160 contos, a exemplo de alguns deles
publicados no Brasil, como “O diamante do tamanho do Ritz,
Bernice corta o cabelo e O palácio de Gelo6, Gore Vidal volta a
insistir que:
“Fitzgerald tinha razão. Quarenta e quatro anos depois, 7 é a
escola de cinema que atrai os jovens brilhantes, enquanto a oficina do
escritor só convém àqueles cujo futuro não será literário, mas acadêmico.
Hoje, certamente, nenhum romance de nenhum autor concentra o tipo
de atenção mundial que um filme novo obtém automáticamente.”

4 VIDAL, Gore: “ De fato e de ficção- Ensaios contra a corrente”, Cia. das Letras, tradução
de Heloisa Jahn, São Paulo, 1987, pag. 24. A biografia de Gore Vidal, por si só já demonstra
a familiaridade do ensaísta norte-americano com temáticas políticas, literárias e gays,
porquanto tendo nascido em 1925, na Academia Militar de West Point (NY), de pai instrutor
de aeronáutica, desde 1946 publicou seu primeiro livro, Williaw, cujo sucesso escandaloso
se explicava, em parte, por tocar no tabu do homossexualismo, e logo, publicou uma
trilogia sobre política Burr, 1876, Washington D. C.. Terminou se destacando como um
dos mais mordazes ensaístas dos EUA, além de romancista que publicou Criação e Juliano,
À procura de um rei, Verde escuro, Messias, Vermelho brilhante, Myra Breckinridge, O
julgamento de Páris, além de muitos roteiros para a TV e Cinema, tendo falecido em 2012.
5 Apud VIDAL, Gore, op. cit., p. 25.
6 Contos publicados pela Editora L&PM Pocket, com tradução de Cássia Zanon e William
Lagos, 2010, que demonstram ter afirmado com segurança, John O´Hara sobre o colega
contista F. Scott: “Fitzgerald era melhor escritor do que todos nós juntos”.
7 Afirmação feita nos idos de 1976, na sexta edição do seu livro de ensaios citado,
anteriormente. Imagine hoje (2021), quase meio século depois do comentário de Vidal, a
impressão de Scott Fitzgerald ainda teria algum acerto?

169
Regis Frota

De fato, constitui enorme prazer a leitura dos contos de


Scott Fitzgerald, seja pelo que contêm de variedade e sutileza,
caminhos literários que vão da inventividade ao horror, ao fan-
tasma, enfim, com refinado humor o mencionado escritor entre-
teve seus leitores contemporâneos (de 1920/40), tanto quanto
ainda hodiernamente, impressiona os leitores atuais, com a le-
veza e curiosidade do “Diamante...”:
“John T. Unger era de uma família muito renomada em
Hades – uma cidadezinha às margens do rio Mississippi- havia
várias gerações.”
Quando o leitor acha ou supõe que o personagem central
do conto, ou o protagonista do relato, John Unger, além de rico,
estivesse “atualizado em termos de moda, etiqueta e literatura”, o
autor introduz um colega de classe de John, no colégio St. Midas,
de Boston, “o garoto quieto e bonito chamado Percy Washington”,
o qual afirmará e, informará ao colega John que, o seu “pai é de
longe o homem mais rico do mundo.”
Mas voltando à citação de Gore Vidal, segundo a qual, o
cinema da primeira metade do século passado estava destruindo
o interesse pela literatura... Para mim, Scott não tinha completa
razão, em seus presságios futuristas. Na segunda metade final
daquele século, em pleno século XX, posterior às duas grandes
guerras, a coisa seria muito pior, a influência negativa do
audiovisual e das redes sociais seria muito maior sobre o fazer
literário. Mas, afinal, a literatura norte-americana contemporânea
tem produzido muitos “Best Sellers”, que chamam a atenção
mundial. Não seria somente porque o cinema passou a atrair
o público que a leitura e a política editorial de publicação de
literatura seria atingido, seriam questionados pelos leitores da
primeira metade da mesma centúria, até mesmo prejudicados,
inevitavelmente.
O cinema conheceu, de fato, sua era de ouro, no primeiro
quartel do século XX, mas a expressão literária produzida nesta
mesma época deixou marcas indeléveis, a se concluir por obras de
Marcel Proust “Em busca do tempo perdido”, (1922) e de James
Joyce, Ulisses, do mesmo ano. Ora, não sei por qual motivo, os
romancistas ainda continuam fazendo eco à afirmação de Gore

170
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Vidal, que escreveu que o palpite de Scott Fitzgerald8 era um


pensamento inteiramente “inevitável”. Afinal, literatura e cinema,
se entrelaçaram no século passado como realidades inalienáveis e
inseparáveis, em suas dimensões artísticas e estéticas. E não seria
por que o cinema passou a ser sonoro, a partir dos anos 30, que a
palavra e o silêncio deixaram de desempenhar elevado significado
na linguagem cinematográfica posterior.
O desânimo e a crise editorial da literatura nos EUA, como
no mundo ocidental, ocorreu e continua ocorrendo, continua
sofrendo modificações e adaptações – vide os Ebooks a competir
com os livros impressos em papel, a política de Amazon e outras
grandes editoras- provocadas, não apenas pela atração exercida
pelo entretenimento do audiovisual, mas por transformações
culturais profundas ocorridas nas últimas décadas. Se o mercado
editorial e a indústria de publicação se precaviam, na hora de
se decidir a publicar autores novos – veja-se o exemplo de Jack
Kerouac, cuja obra-romance inicial estava sendo proposta sua
impressão desde 1950 e só tendo podido vir a lume, no ano de
1957-, não se devia tão somente a preconceito ideológico, mas
sobretudo a razões e perspectivas de retorno financeiro ou, não,
isto é, razões mercadológicas.
Destarte, a visão crítica e irônica de Gore Vidal, frente
ao fenômeno audiovisual da cinematografia, se mostra pouco
profética – especialmente, após o furor modificativo pós-pandemia
do coronavírus, quando o streaming, e não mais o público de salas
de cinema, parece, dominará a cena audiovisual-, e, sobretudo,

8 Francis Scott Fitzgerald (1896-1940), autor norte-americano casado com Zelda Zayre,
tendo publicado entre 1920 e 1940, quatro romances, desde This side of paradise- Este
lado do paraíso (1920), The beautiful and the damned – Os belos e os malditos (1922),
The great Gatsby (1925), Tender is the night- Suave é a noite (1934), e, dois últimos,
publicados post-mortem: The Crack-up – O colapso e, The Last Tycoon (O último
magnata, 1940). Scott Fitzgerald trabalhou em uma dúzia do roteiros para cinema e
publicou, ainda, 160 contos e alguns fragmentos de autobiografia. Seu amigo, desde os
tempos de Princeton, Edmund Wilson, compilou os dois últimos textos de Fitzgerald e
quando, os publicou, chamando-o de The Crack-Up, o escritor falido foi inteiramente,
ressuscitado. Afirma Gore Vidal que Scott Fitzgerald, a partir de 1945, foi objeto de centenas,
talvez milhares de biografias, estudos críticos e teses de doutorado, teses acadêmicas nas
universidades americanas. E mais: “ Por ironia, o cinema – que tanto fascinara e frustrara
Fitzgerald- atualmente transformou-os (ao Fitzgerald) e a Zelda em enormes monstros
míticos, eternamente rodopiando valsas vienenses rumo ao último rolo, onde explodem
como um par de pistolões num chuvoso 4 de julho – infiéis e queridos desencantados.” In
apud Op. cit. Gore Vidal, in p. 25.

171
Regis Frota

cuida-se de uma visão tacanha, um tanto despeitada e traumática,


especialmente se lembrarmos que o ensaísta foi escritor contratado,
por doze anos na MGM, depois da morte de Scoot Fitzgerald, o
qual por sua feita, também trabalhara como escritor-roteirista para
a cena hollywoodiana. Senão vejamos:
“ Quando escrevi que o cinema tinha substituído o romance
como a forma central de arte de nossa civilização, fui criticado por
ter dito que o romance estava morto, e me mandaram ler listas
de fantásticos romances novos. É óbvio que o romance sério, ou
romance-arte, ou seja como for que quiserem chamar o romance-
enquanto-literatura, continuará sendo escrito; afinal de contas,
a poesia está florescendo sem o amparo do leitor comum. Mas
também é um fato que muito dificilmente uma pessoa que não faça
parte de uma instituição tenderá a dar atenção a qualquer desses
artefatos literários. Pior, se o especialista-esquilo predominar, os
escritores não serão lembrados pelo que escreveram, mas pelos
Contos Exemplares constituídos por suas vidas.”9
Não podemos deixar de observar que ainda hoje (2021)
alguns filmes se arrimam de se basearem em fatos reais (True story),
de tão ilusórias e ficcionais são constituídas as tramas e alguns
relatos filmográficos. Mas, daí até se afirmar que os “escritores não
serão lembrados pelo que escreveram, mas pelos Contos Exemplares
constituídos por suas vidas”, parece exagero, tendo em vista a
diversidade dos contos constituídos por vidas de todo tipo de
interesse, para o público espectador do cinema, cujas jornadas
vivenciadas são bem mais espetaculares que aquelas de escritores
contemporâneos, cujas biografias – bem aquilatadas-, se passaram
ou transcorreram, grande parte delas, ocupados ou sentados em
escritórios, a redigir e pesquisar.
Não estou, tampouco, afirmando que as vidas do mítico casal
de escritores, Scott Fitzgerald e Zelda, não tenham sido plenas de
lances curiosos e espetaculares, em matéria de apelo cinético (desde
The birth of Nation se apresentaram a Hollywood, de mercenarismo
jornalístico, “de chapéu de abas moles e gim caseiro”, etc., tendo-se
tornado míticos e deslumbrantes.

9 VIDAL Gore: op. cit., p. 25.

172
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Interessa, contudo, mais no caso, as tantas cartas que escreveram


entre si 10 do que as batalhas de sobrevivência que tiveram que
enfrentar, desde os internamentos de Zelda nas clínicas particulares
francesas, até suas mortes fatais, a de Zelda, por loucura e depressão, e
a de Scott Fitzgerald por infarto, apesar de ainda tão jovem.
Literatura e cinema. Cinema da época de ouro (1915/1960)
versus literatos norte-americanos atraídos pela tentação do sucesso
e do consumo exagerado de bebidas e do capitalismo patriótico, o
qual Hollywood parecia atender. 11
O crítico literário e ensaísta Thomas C. Foster desenvolve
um capítulo de um de seus livros didáticos sob o título, “Grande
livro, péssimo filme”12 ao arrolar os tantos romances adaptados
para o cinema, enfadonhos e de péssima qualidade, e se refere,
especificamente às transcrições para a imagem do texto de Scott
Fitzgerald, The great Gatsby (O grande Gatsby), segundo sua
avaliação, a qual tendemos a apoiar(somente em parte, por suposto),
porquanto muito pior viria a ser um remake baseado no mesmo
livro, já sob os critérios do cinema digital, adiante referido:
“Procure os infelizes americanos. Alguém já foi mais mal
servido em Hollywood que Fitzgerald e Hemingway? E houve algum
outro livro mais mal servido que O grande Gatsby? Os cineastas
tentaram repetidas vezes, e cada vez foi um desastre. O fracasso
mais famoso foi acompanhado por uma enorme agitação. Aqueles
de uma certa idade talvez se lembrem do “Gatsby todo branco”,
incluindo utensílios de cozinha na primavera de 1974. Não poderia
ter dado errado. Robert Redford era o que havia de mais “quente”

10 Observemos que nos anos 60, esses escritores, Scott e Zelda, representavam uma
indústria acadêmica de peso; mesmo em décadas posteriores, tal pletora de biografias
e interesses por suas vidas, talvez mais que por seus escritos, continuam a dar “ibope”
nas universidades americanas; Exemplo disso são as publicações do professor Matthew
J. Broccoli, The notebooks of F. Scott Fitsgerald (Cadernos de nota), o qual inclui todas
as 2078 notas dos cadernos do famoso escritor, bem como Correspondance of F. Scott
Fitzgerald, contendo cartas de, e para, Scott Fitzgerald.
11 Vide os cinco primeiros capítulos do nosso livro de Ensaios de literatura e cinema,
da Editora ABC/AIADCE, Fortaleza, 2011, onde é feita uma apreciação e avaliação
historiográfica do período clássico do cinema, no mundo, e sobre as principais correntes
cinematográficas, da Escola Russa ao neo-realismo italiano, da nouvelle vague ao cinema
independente norte-americano, dos finais dos anos 60.
12 FOSTER C. Thomaz: “Para ler romances como um especialista”, Edit. Leya, S. Paulo,
2011, tradução de Maria José Silveira, p. 228. O autor procura que nós leitores (seus)
“aprendamos a ler nas entrelinhas dos maiores clássicos da literatura”.

173
Regis Frota

depois de Downhill racer, Butch Cassidy e Golpe de mestre. Um jovem


Francis Ford Coppola escreveu o roteiro. Mia Ferrow seria Daisy.
Havia todo tipo de grandes talentos – Bruce Dern, Edward Hermann,
Sam Waterston, Karen Black e a futura “Bond girl”, Lois Chiles. O
que poderia dar errado? Hã, tudo? Na prática, esse conceito se
revelou inexpressivo e constrangedor, elenco mal escolhido de cima
a baixo, dirigido de maneira afetada e detestável, e nem mesmo
muito interessante visualmente.”
Imagine o que diria tal ensaísta sobre a adaptação mais
recente, cujos papeis principais, em plena era digital, foram entregues
nada mais nada menos que a Leonardo DiCaprio, Tobey Maquire,
Carey Mulligan, Joel Edgerton, Elizabeth Debicki, Isal Fisher e Jason
Clarke, sob a direção de Baz Luhrmann, em 2013...
Porquanto o texto do crítico literário Thomas Foster-
anteriormente exposto, e ampliado a seguir-, até parece o de um
crítico cinematográfico 13, demolidor e devastador da versão cinética
dos anos setenta do Grande Gatsby, quando se indaga:
“Por quê? Como todas essas pessoas talentosas erraram
tão completamente? Existem muitas teorias, claro, mas, de minha
parte, acredito que eles não entenderam o romance. Ah, com
certeza eles entenderam o que estava acontecendo; todos nós
entendemos o que está acontecendo desde o segundo grau. Todo
mundo pode acompanhar a ação do romance. Não é tão difícil. E
não tão interessante”.
O crítico resolve explicar o romance (e, igualmente, uma das
adaptações fílmicas do Gatsby), assim:
“Volte sua mente para a primavera de 1925. Ouça com
atenção. Ouve alguma coisa? Aquele ruído surdo é de um romance
muito antecipado que não vai a lugar nenhum. Os Críticos foram
bastante gentis, eu acho, mas os leitores não estavam engolindo.
Eles tinham se apaixonado muito rapidamente pelo Fitzgerald dos

13 E olhem que não estou me referindo a uma crítica de cinema como a norte-americana
Pauline Kael, de reconhecida estatura, igualmente mordaz e devastadora de filmes B, tipo
Grande Gatsby, em diversas versões, bastando ver seu tratado sobre a construção ou
produção do célebre Citizen Kane, traduzido para o Brasil sob o título “Desconstruindo
mister Kane”, verdadeira antecipação do relato fílmico, em voga na Netflix, sob o título
Mank, destrinchando o roteiro de mister Kane, de Orson Welles, pela acuidade criativa e
embriagada da história tumultuosa de Herman J. Mankiewscz e sua luta contra Welles pelo
crédito do texto de célebre longa de 1940.

174
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

contos e Belos e malditos (1922), no qual o belo, o maldito, e os


belos malditos faziam cabriolas e coisas escandalosas, sendo jovens,
ricos e insolentes com as regras. Esse é o Fitzgerald que, no final,
exigia quatro mil dólares por conto no The Saturday Evening Post. O
romance era outra coisa. Os personagens principais não pareciam
estar se divertindo nem um pouco. Não eram brilhantes nem
envolventes, nem mesmo muito bêbados. Que tipo de impostor
era esse, afinal? O que tinha dado errado com esse cara? O que
errado foi que ele escreveu um grande livro e os leitores estavam
acostumados com o meramente bom. Isto iria lhe custar caro; Nos
quinze anos subsequentes de vida, O Grande Gatsby vendeu menos
de vinte e cinco mil exemplares.”
Evidentemente não se deve medir a grandiosidade de um
romance pela quantidade de exemplares vendida; Afinal, nem todo
best-seller é um grande livro. E o Gabsty, de Fitzgerald, o é; Não
devemos, contudo, fazer a besteira de considerar Thomas Foster
um crítico de cinema, trata-se de um professor de literatura inglesa
bem sucedido e orientador de leituras norte-americanas de fôlego.
De Scott Fitzgerald a Jacques Kerouack, em finais dos anos
50, cuja publicação de On the Road, em 1957, a vida atribulada
desse outro escritor- tão prolífico em romances escritos, quanto tão
jovialmente partinte dessa terra dos homens,- mitificaria novamente
a vida de novelista ou romancista norte-americano, dessa feita, não
somente por influência de periódicos ou atividade hollywoodiana,
mas fruto das entrevistas televisivas e “boom” editorial em torno
de uma nova geração de “beats” e hippies, sexo, e “rock´n´roll”. De
Woodstock a “movie-roads”, de “easy rider” ao consumo de drogas
as mais variadas, Kerouack foi lido, relido, venerado e até imitado,
juntamente com os amigos viajantes e contemporâneos escritores
drogados, William Burroughs 14e o poeta Allen Ginsberg. Assim
caminha a humanidade... Seria, ainda, um clássico?

14 Atente-se para o “gemido dolorido e lancinante”, contido no livro do poeta Allen


Ginsberg, Uivo, o qual juntamente com o “brado irreverente e drogado” do outro escritor
contemporâneo, William Burroughs, no romance “Almoço nu”, formaram a tríade literária
e revolucionária dos costumes retratados em obras-primas ao fundir “ação, emoção,
reflexão e ambiente”, segundo Eduardo Bueno, a influenciar “os movimentos de vanguarda,
do be bop ao rock, o pop, os hippies, o movimento punk e tudo o mais que sacudiu a
arte e o comportamento da juventude na segunda metade do século XX”. Apud introdução
e posfácio da edição da L&PM Pocket, da obra On the Road, de Kerouac, traduzida por
Eduardo Bueno, uma das melhores editadas no Brasil.

175
Regis Frota

Porquanto, Steinbeck ainda o é. Vejamos, agora, o caso de


John Steinbeck, cuja outorga do Nobel de Literatura em 1962,
despertou a atenção da indústria cinematográfica a ponto de ter
sido contratado o famoso diretor John Ford para supervisionar
a realização, da adaptação para o cinema, do livro mais notório
de Steinbeck, The grapes of wrath (1939) (As vinhas da ira,
tradução de Herbert Caro e Ernesto Vinhães, pela editora Edibolso,
São Paulo, 1978).15
Ora, qual teria sido a razão que justificasse a venda de 300 mil
exemplares do livro de Steinbeck, por semana, em determinado mês
de 1940, senão que descrevia com precisão e poesia uma mudança
das relações de trabalho, pelos EUA, especialmente, na fronteira
californiana, quando a sociedade americana do norte passava do
modelo agrário de posseiros para o agro-industrial, deixando um
rastro de fome e desemprego, de subempregados e traições, em
plena grande depressão?
Naturalmente que o filme adaptado por John Ford, o mestre
do cow-boy, desde 1939, com o célebre e clássico Stagecoach (No
tempo das diligências), teria contribuído para a divulgação daquela
narrativa épica, originalmente descrita com cores tão vivas, onde
predomina a descrição da natureza forte e cruel, como as podemos
ler, no inicio e final, por Steinbeck, tais como:
“As últimas chuvas lavaram suavemente as terras vermelhas
e parte das terras pardas do Oklahoma, não conseguindo amolecer-
lhes a crosta petrificada. Os arados traçavam sulcos sobre sulcos
nas terras revolutas. As últimas chuvas fizeram desenvolver-se
as hastes de trigo e espalharam lençóis verdes à margem dos
caminhos, trigais sob os quais se sumiam as terras vermelhas e as
terras pardas... pelos caminhos em que juntas de bois e veículos
transitavam, o peso das rodas e das patas dos animais rompera a

15 John Steinbeck nasceu em 1902, na Califórnia, tendo exercido várias atividades


profissionais, como aprendiz de pintor, químico, carpinteiro, etc, antes de decidir-se por
escrever, seriamente; publicou pela editora Penguins, o quarto romance, Tortilla Flat
(Boemios errantes, 1935), embora somente em 1935, sua literatura despertou interesse,
tendo escrito várias peças e novelas, muitas das quais adaptados pelo cinema, como Of
Mice and Men (Ratos e Homens), The Grapes of Wrath (Vinhas da Ira), Pearl (1947) (A
pérola), East of Eden (1952) A leste do Éden, O inverno da nossa desesperança (1961),
The moon is down, The short reign of Pippin IV, e Travel with Charley, e alguns outros
menos romances de menor expressão. Faleceu em dezembro de 1968.

176
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

crosta, transformando-a num leito de seca poeira. Agora, qualquer


movimento levantava essa poeira.”16
Desde a seca de Oklahoma às chuvas californianas a moldar
os destinos dos personagens, ao final da referida obra de Steinbeck,
percebe-se a presença forte da natureza a traçar os destinos dos
protagonistas Rosa de Sharon e Joad, além de toda sua família,
trasladada a novo mundo, hostil e desafiador:
“Por um minuto, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no
centro do galpão, em cujo teto cochichava a chuva ...Então, com
vagar, dobrou os joelhos e deitou-se ao lado dele. O homem
esboçou um movimento negativo com a cabeça, um movimento
fraco e muito lento. Rosa de Sharon desfez-se do cobertor, deixando
os seios desnudos.
_ Tem que ser – falou, aproximando-se mais dele, e puxando-
lhe a cabeça a si. – Assim – disse. Apoiou-lhe a cabeça com a direita,
e seus dedos lhe sulcaram suavemente os cabelos. Ergueu os olhos
e seu olhar percorreu o galpão escuro e seus lábios cerraram-se e
ela sorriu misteriosamente.” 17
Torna-se imprescindível recordar que tanto “As vinhas da ira”,
de Steinbeck, quanto “To kill a mockingbird” (O sol é para todos),
de Harper Lee, publicado mais de vinte anos após o primeiro,
igualmente, tendo conquistado o prêmio Pulitzer, em 1961, e
adaptado para o cinema, no ano posterior, sob a direção artística
de Robert Mulligan, obtiveram sucesso literário imediato no EUA, e
tornaram-se clássicas leituras obrigatórias no ensino fundamental
norte-americano.

16 Obra traduzida citada, pag. Pag. 5. No original: “To the red country and part f the grey
country of Oklahoma the last rains came gently, and they did not cut the scarred earth.
The ploughs crossed and recrossed the rivulet marks. The last rains lifted the corn quickly
and scattered weed colonies and grass along sides of the roads so that the grey country
and the dark red country began to desappear under a green cover... in the roads where
the teams moved, where the wheels milled the ground and the hooves of the horses beat
the ground, the dirt crust broke and the sust formed”. “The grapes of whath”, penguin
books ltd, Middlesex, England, 1939, p. 5
17 Obra e tradução citadas, pag. 542. No original da editora penguin: “ For a minute Rose
of Sharon sat still in whispering barn... Then slowly she lay down beside him. He shook his
head slowly from side to side. Rose of Sharon loosened one side of the blanket and bared
her breast. `You got to´, she said. She squirmed closer and pulled his head close. `There’.
Her hand moved behind his head and supported it. Her fingers moved gently in his hair.
She looked up and across the barn, and her lips came together and smiled mysterously.”
Op. cit., p. 416.

177
Regis Frota

Não tendo, nesse ensaio, quaisquer veleidades ou volunta-


rismos em esgotar o caso dos novelistas norte-americanos, nem
os mais importantes, sob o ponto de vista literário e estético, nem
aqueles escritores mais prestigiados, senão que descrevi sobre
aqueles livros e autores, de quem recentemente li, tais obras (deles),
referidas no corpo do texto.
Por oportuno, não poderia deixar de referir, e recomendar a
leitura, ainda, aos livros didáticos de Thomaz C. Foster, a exemplo de
“Para ler romances como um especialista”e “Para ler literatura como
um professor”, respectivamente traduzidos no Brasil por Maria José
Silveira e Frederico Dentello, em 2010 e 2011, pela editora Textos
Ed. Ltda, 18 cujo didatismo desperta no leitor comum, o especial
interesse pela literatura e romances britânicos e irlandeses do século
XX, bem como os romancistas norte-americanos do mesmo século
p. passado, o que nos interessa, em particular, no caso.
Nesse diapasão através do qual identificamos autores ligados
ao cinema, enquanto roteiristas contratados, dos que tiveram
relação com a bebida ou a riqueza exuberante ou, noutras palavras,
mantiveram estreita ligação com o álcool, a denominada “lost
generation” (F. Scott Fitsgerald, Gore Vidal, Ernest Hemingway,etc)
até detentores do prêmio Nobel de Literatura (Toni Morrison, Saul
Below, Steinbeck, etc), ou, tão somente, representantes de correntes
especiais de grupos sociais raciais e religiosidade e produção tardia
tão poderosa, como Philip Roth, por exemplo.19

18 Curioso o didatismo do autor norte-americano, da Universidade de Michigan, na


medida em que a cada novo capítulo de seus livros, vem inserida uma relação dos autores
comentados(observe-se que, com frequência, consta os novelistas norte-americanos que
referimos, aqui, especialmente, Toni Morrison, a quem Thomas Foster tanto admira), bem
como a sua lista de leituras, ao final de cada livro, com a intenção clara de possibilitar ao
leitor memorizar ou prestar um pouco de atenção e interesse na leitura dos romances
e novelas, dos quais as orientações ou comentários dele não alcançou ou esgotou.
Interessante complemento e desafio, consta ainda dos livros citados, é dizer, uma lista de
filmes para ler e fontes secundárias, a preceder a aula magistral.
19 Editado, no Brasil, pela Cia. das Letras, o escritor Philip Roth, tem sua obra completa
(mais de 30 romances) publicada pela prestigiosa editora norte-americana Library of
America, desde “Adeus, columbus”, livro de estreia do autor, em 1959, incluindo entre
tantos, O Animal agonizante, O avesso da vida, Casei com um comunista, O complexo
de Portnoy, Complô contra a América, Entre nós, Fantasma sai de cena, Homem
comum, A Humilhação, Indignação, A marca humana, Nêmesis, Operação Shylock,
Pastoral americana, Patrimônio, O professor do desejo, O teatro de Sabbath,
Zyckerman acorrentado. Dentre seus livros, alguns foram adaptados para a linguagem
do cinema, tais como Goodbye, Columbus (1969), O complexo de portnoy (1972) e outros.

178
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Será o próximo autor a nos interessar comentar ou incluir


neste ensaio, além de Tom Wolfe 20 e seus amigos escritores, Saul
Below e John Updike.21
Philip Roth esteve casado durante mais de uma década com
a atriz Claire Bloom, a bailarina de Limelights, que contracenou com
Charles Chaplin, no papel do velho palhaço Calvero. Talvez por isso,
baseou sua obra tanto em suas próprias memórias, lembranças,
desde a juventude, de um judeu vivendo nos EUA, com as agruras e
percalços de uma história real, de várias estórias reais como aquelas
retratadas na tetralogia formada por Homem comum, Indignação, A
humilhação e Nêmesis, onde a presença constante do judeuzinho
sobrevivente reaviva na mente de seus leitores um verdadeiro
repertório de memórias individuais que são, sobretudo, coletivas.
Em seu livro Patrimônio,22 Philip Roth inicia (observemos a
primeira frase do romance, a qual, segundo Thomas Foster, decide
se o leitor vai, ou não, prosseguir sua colaboração criativa do texto)23
e prossegue, até o final previsível da narrativa e da vida do pai -
quero garantir que o leitor que principia a leitura de Patrimonio lerá
até o final do livro, em virtude do modo incisivo da linguagem:
“Meu pai havia perdido a maior parte da visão no olho direito
aos chegar aos oitenta e seis anos, mas, fora isso, parecia gozar de
uma saúde excepciona para um homem de sua idade, quando um
médico da Flórida diagnosticou, erroneamente, que ele sofria da
paralisia de Bell, uma infecção virótica que causa um torpor, em geral
temporário, num dos lados da face” (pag. 7)... ”Acordei gritando. Tudo
que vi sob o capuz foi a indignação em seu rosto morto. E suas únicas
palavras foram uma censura: eu o vestira para a eternidade com a
roupa errada. Pela manhã me dei conta de que ele aludira a este livro,

20 Tom Wolfe nasceu em 1931 e faleceu em maio de 2018, aos 88 anos, após ter publicado
o célebre “A Fogueira das vaidades” e Emboscada no Forte Bragg, e ser considerado o
papa do new journalism.
21 John Updike, nascido em 1932 e falecido em 2009, escreveu mais de 50 livros, entre
romances, poesia, contos e ensaios.
22 Exemplar lido: Companhia de bolso, editora Schwarcz, com tradução de Jorio Dauster,
S. Paulo, 2017.
23 Vide “as dezoito coisas que a primeira página pode lhe dizer”, ou seja, sugestões e
esclarecimentos fornecidos pelo professor da Universidade de Michigan, Thomas C. Foster
em seu livro “Para ler romances como um especialista”, editora lua de papel, S. Paulo, 2011,
p. 16 a 25.

179
Regis Frota

que, confirmando a falta de decoro de minha profissão, eu vinha


escrevendo enquanto ele estava doente e morria. O sonho me dizia
que, senão nos meus livros ou na minha vida, ao menos em minhas
fantasias eu viveria eternamente como seu filho pequeno, com a
consciência de um filho pequeno, tal como nelas ele continuaria vivo
não apenas como meu pai, mas como o pai, proferindo sentenças
sobre tudo que eu faço. Você nunca deve esquecer nada.” Pag. 172.
E assim era sua expressão, real e sincera, baseada sempre
na própria vida. Em Casei com um comunista,24 Roth elabora um
maravilhoso retrato ficcional do pós-guerra, em plena época do
macarthismo, durante a guerra fria.
Sei que falei, anteriormente, do fato de a literatura de um
país refletir a sua sociedade, e no caso da norte-americana, as tantas
guerras de que participa esta nação se encontrarem refletidas nos
romances e novelas ficcionais de seus autores. Não poderia deixar
de reportar-me ao ensaio sobre “West Point”, de Gore Vidal, onde o
ensaísta escreve em 1973, que
“Há 32 anos os Estados Unidos são um estado militarizado.
Os militares gostam de estar participando de alguma guerrinha em
algum lugar do mundo para justificar todos os bilhões de dólares que
gastam. Ou, como disse o general Van Fleet (W.P.1915) com certa
satisfação: “ A Coreia foi uma benção. É preciso que haja Coréias, aqui
ou em qualquer outro lugar do mundo.” De modo que essas bênçãos
continuaram a chover sobre nossas cabeças até o dia 15 de agosto.
25
Será que finalmente vamos ter paz neste nosso agitado império?”

24 Exemplar lido: Companhia de bolso, editora Schwarcz, com tradução de Jorio Dauster,
1ª edição, S. Paulo, 2014.
25 O texto de Gore foi publicado, pela primeira vez, em 18/10/1973, pela New York Review
of Books. A ânsia de obtenção de paz no império americano, pelo ensaísta Gore Vidal,
parece se encontrar cada vez mais distanciada da realidade política do mundo, interna
e externamente. A noticia divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo, edição de 27.01.2021,
p. A11, nos preocupa, quando cuja manchete diz que: “ À espera de Biden, China mede
força com EUA” Ora, a matéria dá notícia de um documento do Pentágono, do final do
ano passado, no qual foi dito que a “marinha americana teria de ser mais agressiva
para tolher as intenções expansionistas da China no Pacífico e os movimentos da
Rússia, principalmente nos mares Negro e Báltico”. Concordamos com o depoimento
da premier Ângela Merkel, em palestra no Fórum Econômico Mundial, em 26.1.21,
quando afirmou que “o Mundo não pode ser forçado a escolher entre dois lados”; o
multilateralismo como instrumento de resolução de conflitos deve ser buscado, porquanto
demonstrações militares de força em nada contribuem para diminuir os riscos de um
apocalipse atômico global, em função da possibilidade, cada vez mais real e concreta, de
um encontro acidental das forças norte-americanas ou chinesas, rivais entre si.

180
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

A propósito, chama nossa atenção o texto goriano do


“quanto” o mesmo conserva seu teor de irônico, contudo, profético,
porquanto na semana em curso (06.01.2021, a data parece um
remake do 11/09/2001) foi transmitido ao vivo e, em cores, pela
TV, a invasão do Capitólio pelas multidões insufladas pelo então
presidente Donald Trump, numa tentativa de golpe de estado, há
alguns anos, inimaginável na democracia imperial norte-americana,
a não ser por profetas como o referido ensaísta, senão vejamos:26
Logo antes da segunda guerra, muitas vezes fiquei ouvindo
as discussões de generais da força aérea, cheias de um humor
que em pouco tempo transformava-se em obsessão, sobre como
seria fácil tomar a Casa Branca, dissolver o Congresso e manter o
país afastado da guerra que aquele judeu do Franklin D. Rosenfeld
estava querendo declarar a Hitler.”
Ele (Gore) lembra do thriller de enorme sucesso décadas
passadas, de Fletcher Knebel, seven days in may (Sete dias em
maio), o qual tinha por trama a possibilidade de um golpe militar
em Washington. O ex-presidente D. Trump buscou respaldo
popular para um eventual e, primeiro golpe no Capitólio, o qual se
frustrou, desastrosa e inequivocamente, uma vez que o eleito 46º
presidente dos EUA, Joe Biden, estava a menos de duas semanas de
sua posse, normalmente ocorrida, enquanto o Congresso articulava
o impeachment do audacioso e egocêntrico Donald.
Como se vê, o deep state yanque continua no controle da
máquina ideológica do país. Como afirmaria, a propósito, Pepe
Escobar, da TV 247, o tal deep state não pára...27
E Philip Roth, em seu romance Me casei com um comunista,
retrata o clima da febre anti-comunista reinante nos EUA, a qual
contagiava a todos, da política aos lares mais íntimos das famílias
americanas, consoante se conclui de qualquer diálogo do texto
mencionado, como revela o excerto aleatório:

26  Apud New York Review of Books, onde o texto transcrito, de autoria de Vidal Gore foi
publicado, pela primeira vez, em 18/10/1973, o qual, demonstra o caráter profético de
suas previsões e análises, na medida em que os EUA estão divididos e, ao que parece, meio
século após, à beira de uma guerra civil; e, o mencionado texto constitui um dos capítulos
do referido livro de ensaios, “De fato e de ficção” Op. cit., p. 251/271.
27 Vide os tantos comentários desse analista político via Youtube, cuja visão eurasiana,
ventila a discussão da matéria.

181
Regis Frota

“ – O partido progressista, senhor Ringold?


– O senhor considera Henry Wallace um comuna? O ex-vice-
presidente do senhor Roosevelt? Acha que o senhor Roosevelt ia
escolher um comuna para vice-presidente dos Estados Unidos?
– Não é tão simples assim – retrucou meu pai. – Gostaria
que fosse. Mas o que está acontecendo no mundo não é nem um
pouco simples.
– Doutor Zuckerman - disse Ira, mudando de tática –, o
senhor deve se perguntar o que tanto faço com Nathan...”28
A paranoia norte-americana que insiste em ver um comunista
atrás de cada árvore, tanto mais no interior craniano de cada
cidadão habitante do país, continua enquanto durar essa dualidade
do poder político mundial, potências comunistas de um lado, Rússia
e China versus império americano, do lado oposto. Nada de novo
no front, inclusive nos relatos novelísticos e ficcionais do romance
norte-americano. Os costumes e a moral da classe média americana
continuam sendo refletidos por sua literatura.
De John Updike, escritor nascido na Pensilvânia, em 1932 e
falecido em 2009, sabe-se que é autor de mais de 50 livros, dentre
estes, os célebres “coelhos” a fazer isto e aquilo.29 O escritor faz
uma obra política, de certo modo, como a grande maioria dos
autores; Thomas C Foster se indaga e responde: “ Então, toda obra
literária é política?”30
“Não posso ir tão longe. Alguns de meus colegas mais politi-
zados podem lhe dizer que sim, que toda obra é parte dos proble-
mas sociais ou parte da solução deles (dirão com mais sutileza, mas

28 ROTH, Philip: “Me casei com um comunista”. Tradução de Rubens Figueiredo, São
Paulo: Cia. de Bolso, 2014, p. 125/126.
29 A editora Cia. das Letras publicou os seguintes livros de Updike: Consciência à flor da
pele, Bem perto da costa, Coelho corre, Coelho em crise, Coelho cresce, Coelho cai, Brazil,
Uma outra vida, Na beleza os lírios, Bech no beco, Gertrudes e Cláudio, Coelho se cala,
Busca o meu rosto, Terrorista, Cidadezinhas e As viúvas de Eastwick. Neste último, Updike
aborda temáticas como a atmosfera entediante, para não dizer, asfixiante, das cidades
provincianas do interior norte-americano, bem como o tema do desespero que acomete
seus personagens por ocasião da chegada da meia-idade. Comungo dessa interpretação
de John Updike, porquanto ao ter vivido, seis meses, numa cidadezinha do interior do
Alabama (EUA), em Birmingham, senti na própria pele a atmosfera asfixiante de uma
cidade provinciana norte-americana.
30 FOSTER, Thomaz C. “Para ler literatura como um professor”. Tradução de Frederico
Detello, São Paulo: Editora Lua de Papel, 2010, p.117/119.

182
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

esse é o espírito). Penso realmente, no entanto, que a maioria das


obras deve se envolver com o próprio período específico, de modo
que podem se chamar “políticas”. Digamos o seguinte: escritores
tendem a ser homens e mulheres interessados no mundo ao redor.
Esse mundo contém muitas coisas, e no nível da sociedade parte do
que contém é a realidade política da época – estruturas de poder,
relações entre classes, questões de justiça e direitos, interações en-
tre os sexos e entre várias constituições raciais e étnicas. Eis porque
considerações políticas e sociais costumam achar um jeito de entrar
nas páginas sob alguma máscara, mesmo quando o resultado não
pareça terrivelmente “político”.
Ou terrivelmente “evangélico”, segundo nosso presidente. A
ideologia evangélica também é algo político...
Na verdade, por outro lado, os bichos e humanos retirados
da cartola de Updike (sejam “coelhos” ou suas metáforas) são todos
homens e bichos reais, cuja imaginação autoral identifica uma
oportunidade para refletir sobre a classe média norte-americana,
da qual participam e, de cujo linguajar literário ficcional reflete.
De igual modo, ocorre com os textos do romancista e crítico da
sociedade americana, Tom Wolfe, conhecido como o criador do
“New journalism”.
Em sua obra Emboscada no forte Bragg 31vemos uma
ficção calcada na imaginação, embora dosada da captação, por
um romancista, da essência dos anos 90, publicado originalmente
na revista Rolling Stone, em finais de 1996, consoante o leitor pode
concluir a partir do subtítulo do romance, ou seja, “Quando a Rede
Poderosa de Televisão se confronta com os Lordes da Testosterona
alguém vai acabar se dando mal”. Merece transcrever algum
excerto da narrativa:
“Ferreti, o produtor regional da matéria do assassinato gay
em Forte Bragg, já estava em Fayetteville há semanas, e toda vez
que chamava Irv em Nova York contava causos de guerra do Bragg
Boulevard. Além disso, no estúdio de Nova York, Irv havia passado

31 Tradução de Toni Marques, editora Rocco e L&PM Pocket, Porto Alegre, 2008, Embora
o romance “A fogueira das vaidades” (adaptado para o cinema) tenha traçado uma visão
ácida e perturbadora da era yuppie dos anos 80, e se tornado um texto mais famoso e
conhecido, o novelista do “jornalismo de invenção”, Tom Wolfe, desenvolveu uma habilidade
de conduzir ao universo ficcional a realidade social e política da última década final do
século XX, na América, com seu texto sobre uma Emboscada no forte Bragg.

183
Regis Frota

um número incontável de horas monitorando as transmissões ao


vivo, direto do DMZ, típica espelunca topless do Bragg Boulevard.
O que no Brag Boulevard, então, poderia se constituir em novidade
para Irv? Mesmo antes de chegar lá, no dia anterior, Irv tinha na
cabeça o retrato fiel desse lugar espalhafatoso e infernal.”32
Enfim, próximos de encerrar esse ensaio sobre o caso dos
novelistas norte-americanos do século passado, fazemos uma
auto-crítica e auto-avaliação: se, por um lado reconhecemos haver
deixado de falar sobre grandes livros – de prazeirosa leitura-,
como O velho e o mar, de Ernest Hemingway e obras de William
Faulkner e muitos outros autores tão interessantes da literatura
dos EUA, por outro lado, a opção de descrever somente as leituras
recentes que fizemos, nos animam a supor servir de bússola para
investidas mais profundas da parte dos eventuais leitores destes
ensaios acerca do cinema e da literatura.
Alea jacta est. Está lançada a sorte, posto o desafio a você,
caso leitor!

32 Wolfe, Tom: “Op. cit.” p. 37. Observar o conjunto de comparativos atribuídos pelo autor
ao protagonista, ”Irv Durtscher, o Costa Gravas do jornalismo investigativo da TV, o Goya
da paleta eletrônica”, sempre revelando uma ficção calcada na realidade atual, do universo
da TV.

184
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BELLOW, Saul: “Na corda bamba”. Tradução de Maria Adélia Silva


Melo Lisboa: Quetzal Editores, 2015.
LEE, Harper: To kill a mockingbird, Warner Books, NYC, 1982.
MORRISON, Toni: “Compaixão”. Tradução de José Rubens Siqueira,
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
__________. “Amor”. Tradução de José Rubens Siqueira, São Paulo:
Companhia das Letras , 2005.
__________. “Voltando para casa”. Tradução de José Rubens Siqueira,
São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
ROTH, Philip: “Casei com um comunista”. Tradução de Rubens
Figueiredo, São Paulo: Companhia de Bolso, 2014.
__________. “Patrimônio”. Tradução de Jorio Dauster, São Paulo:
Companhia de Bolso, 2017.
SCOTT FITZGERALD, Francis. “O diamante do tamanho do Ritz”.
Tradução de Cassia Zanon e William Lagos. Porto Alegre: L&PM
Pocket, 2006.
__________. “O Grande Gatsby”, Porto Alegre: L&PM, [s.d.].
STEINBECK, John: “As vinhas da ira”. Tradução de Herbert Caro e
Ernest Vinhaes, São Paulo: Edibolso, 1978.
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__________. “Gertrudes e Cláudio”. Tradução de Paulo Henriques
Britto, São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
VIDAL, Gore: “De fato e de ficção”. Tradução de Heloisa Jahn, São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.

185
QUARTA
PARTE
CINEFILÔ ABISSAL E
CONTEMPORANEIDADE
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 8

O ABISMO E O CINEMA MODERNO: COMO


A LITERATURA E O CINEMA ENCARAM ESTA
POSSIBILIDADE, EM HORA DE PANDEMIA

Em recente filme exibido em Fortaleza, uma co-produção


belga-paquistanesa, “A Garota ocidental-entre o coração e a tradi-
ção”, chama especial atenção do espectador a escadaria do prédio
de apartamentos, filmada desde o topo, onde a visão dos diversos
andares abaixo, dão a perfeita noção abissal da metáfora visual da
película, o abismo catastrófico no qual se enreda a protagonista ao
resistir aos costumes e tradições paquistaneses de casarem-se as
filhas somente com nacionais paquistaneses, interditando-se aven-
turas amorosas com ocidentais.
Outro exemplo da presença do abismo no cinema encon-
tra-se no filme de Glauber Rocha, Terra em transe, quando Sara, a
companheira do protagonista, Paulo Martins, reclama que o jorna-
lista e poeta se está entregando ao torpor e à depressão, durante
passeata e lhe acusa:
– Veja Paulo, Vieira está perdido ante o abismo, você jogou
Vieira no ABISMO, ao que Paulo responde – Eu? o abismo está aí,
aberto, e todos nós marchamos para ele...
É deste abismo, aberto ao ser humano, à humanidade, des-
te sentimento da catástrofe apocalíptica, entre o real e o imagi-
nário, na expressão da filósofa Annie Le Brun, que pretendo falar.
Pretendo discorrer sobre o potencial da arte cinematográfica em
captar o abismo, em expressar o destino humano, a própria vida
tão transitória aqui na terra, com o sentimento permanente, entre
os seres vivos, da ameaça da presença da morte, já que o leque de
nossas desgraças recentes – sejam elas de origem química, alimen-
tar, industrial ou nuclear (tal leque se abre entre os desastres em
Chernobyl, ameaças atômicas, terremotos e vulcões, tsunamis, e a
catástrofe em Fukushima) não nos deixa esquecer a constante ame-
aça da iminente e inevitável chegada escatológica do destino final.

189
Regis Frota

O abismo, no cinema, bem como na literatura, tem especial


relevo audiovisual, também, em dois outros filmes ORDET de Carl
Theodore Dreiher, o mesmo célebre diretor de AURORA (1936) e Pai-
xão de Joana D´Arc (1948) e, VERTIGO ou UM CORPO QUE CAI, de
Alfred Hitchcock, os quais merecerão nossa apreciação, neste bate-
-papo descontraído, tendo em vista que, tanto o espetáculo hitchco-
ckiano que ressuscita Kim Nowak pela dramaturgia hollywoodiana do
suspense e da vertigem reconstrutora do mesmo penteado prateado
e louro, mesma indumentária e mesmos trejeitos da suicida, quanto
o filme dinamarquês antecedente e prenunciador das perquirições
bergmanianas, A PALAVRA, igualmente centrado no tema da ressur-
reição, desta feita, ressurreição real e concreta, pelo Cristo da película,
efetuada pela fé do personagem filho do patriarca do filme.
O abismo nestes dois filmes é matéria central- no de Hit-
chcock, desde o início do filme, quando o James Stewart socorre
e salva a linda mulher que se lançara no rio, abismo abaixo, numa
tentativa suicida de retirar-se a própria vida, o espectador pode ver
e perceber a ABISSAL condição daquela que será reconhecida como
fantasma quando, sequência adiante, ingressa no hotel, mas não é
encontrada seja pela gerente, seja pelo próprio investigador que,
embora a tivesse visto penetrar naquele hotel, se surpreenderá sem
poder apreender ou identificar sua saída, a saída de um ser concre-
to, de qualquer mulher alguma . Já no filme ORDET (a palavra), a
busca do abismo transcende todo o filme, seja quando desaparece
Johannes, o Cristo ortodoxo da película, levando seu pai e irmãos a
gritarem e procurarem-no sem encontrar, pelos campos e capinzais,
vociferando e apelando por seu nome, inutilmente, até a morte de
nora, quando ele retorna, repentinamente, abruptamente, para efe-
tivar a ressurreição da morta, para resgatar a fé do marido, o qual,
AGORA, ama e crê, e acredita na vida, novamente.
E, por outro lado, a pobreza do que chamamos de filme de
catástrofe, estilo Hollywood, mostra o fim do mundo, com toda
brutalidade dos produtos de grande consumo: incêndios de ar-
ranha-céus gigantescos(Inferno na Torre, Terremoto), rupturas de
barragens colossais ou inundações de arquiteturas subterrâneas,
etc., são apresentados como casos particulares para evidenciar de
modo mais pontual, o preço que o homem deve pagar por não
ter querido prestar atenção ao mundo no qual vive. Mas, como
assinala Le Brun, ao mesmo tempo, Hollywood tenta esconder que
a evocação dessas catástrofes, apesar de parciais, serve para nos

190
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

divertir com a catástrofe nuclear que, doravante, ameaça o planeta


inteiro. De fato, observa Annie Le Brun1, que “o fim do mundo dei-
xou de ser representado, precisamente quando, pela primeira vez,
dispomos dos meios de provocá-lo, qual a suicida do VERTIGO. E,
igualmente, quando nos lançamos na mais frenética especulação a
respeito dos múltiplos desastres e abismos que se prefiguram com
a modernidade. Continua sendo verdade que o fato de se poder
prefigurá-los não suscita mais que imagens previsíveis, para não
dizer realistas, dando prova de uma retração do imaginário catas-
trófico ou abissal. Nesse sentido, também se poderia dizer que as
atuais catástrofes – epifenômenos de uma relação com o mun-
do cuja natureza essencialmente catastrófica desejamos ocultar – ,
não só deterioram a paisagem real como atentam contra nossa
paisagem imaginária, fazendo o sonho de aniquilamento passar do
infinito para a finitude, afirma Le Brun.2
O compositor pernambucano Antônio Maria, após conviver
com a socialite Danuza Leão, cunhou uma expressão que me parece
curiosa e aplicável ao tema. Ao prognosticar ele que “a mulher, após
30 dias de felicidade, tem sede e fome de desgraça”, representou
o sentimento da catástrofe no plano pessoal e amoroso privado,
enquanto nos interessa aqui, antes, discutir o sentimento do desas-
tre coletivo, humano, discorrer sobre a narrativa cinematográfica
que oscila entre o real e o imaginário catastrófico, inclusive como
meio de escamoteamento da ameaça nuclear de destruição final
da vida terrena. Afinal, desde os anos 1950, as hordas de monstros
pré-históricos ou de animais gigantescos (formigas, aranhas) que
surgiram como consequências inevitáveis de manipulações atômi-
cas desastradas, não invadiram telas e livros de ficção- muitos dos
quais adaptados por uma Hollywood sedenta de imaginosa tempe-
ratura dramatúrgica familiar), para se autoproclamarem os arautos
sinistros de um fim do mundo que não mais se deixa representar?
A filósofa francesa adverte para o fato de que o advento
destes monstros (lembram do Spielberg da série “dinossauros”?)
também é um pretexto para uma primeira denegação da reali-
dade nuclear. Esse fim do mundo, que não se pode figurar, mas

1 LE BRUN, Annie: “O sentimento da catástrofe- entre o real e o imaginário. São Paulo:


Editorial Iluminuras, 2016, p. 62.
2 Idem, ibidem.

191
Regis Frota

que se evoca, mentirosamente, por meio ou através da aberração


animal, passa a ser objeto de uma pura e simples recusa nos anos
1960, quando, apesar da gravidade da situação (basta lembrar
do episódio da Baía dos Porcos, entre Kennedy e Krutchev) , se
recorreu ao artifício fácil do charmoso espião, que tem em JA-
MES BOND, o principal protótipo, na medida em que representa-
va a aliança da maior parafernália técnica com a tradição política
conservadora e o símbolo dessa única possibilidade de vencer o
perigo atômico.
Ante uma civilização predadora como a nossa atual, não
basta retirar dos malvados as armas nucleares, como faz Monsieur
BOND, pois, no fim das contas, não há boa ou má utilização do áto-
mo no interior de nossa atualidade civilizatória.
A títulos como 2019, 2024 ou 2227 atravessa como um tra-
ço o ridículo otimismo da década finda, para abrir caminho para
a devastação do pós-catástrofe. Aliás, tal otimismo só vale até a
chegada de criaturas híbridas entre o homem e o robô, que, como
em Blade Runner, simbolizam a um só tempo essa progressão do
vazio no interior do homem e a ameaça constituída por seres cuja
humanidade nada mais é que aparência.
James BOND, para sobreviver, devia combater a aliança da
técnica com o conservadorismo e a tradição, nos anos 60. Já nos
anos 1980, outro herói cinematográfico, MAD MAX, para sobrevi-
ver, deverá combater a aliança da técnica com a barbárie. Aliás, ain-
da demasiado humana, a barbárie rapidamente desaparece em face
do imperialismo absoluto da técnica, e em contrapartida, os tipos
que não buscam resistir à desumanização de uma técnica que vem
satisfazer todas as necessidades, proliferam em grupos paramilita-
res ou parapoliciais, aterrorizando quem quer que pretenda escapar
a essa concepção ortopédica da vida.
Assim, o herói do filme de Terry Gilian, Brazil, por mais que
dê provas de sua notável disposição para a sabotagem e de contra-
riedade contra a burocracia, ao lado de dois ou três cúmplices des-
conhecidos, acaba esmagado, menos pela todo-poderosa técnica
que pelo conluio da técnica com o vivente.
A propósito, Eliane Robert Moraes Régistra ou observa, cor-
retamente, que o terremoto de Lisboa, catástrofe ocorrida em 1755,
fato contemporâneo do Marques de Sade, “teve enorme impacto
no pensamento europeu, fazendo surgir no horizonte um imaginá-

192
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

rio catastrófico que veio abalar os alicerces da racionalidade ilumi-


nista com furacões, naufrágios, tempestades, desabamentos e toda
sorte de cataclismos. Um desejo de fim do mundo se precipitou
então na sensibilidade coletiva, alcançando os anos oitocentos com
particular vigor, em especial no romantismo, para chegar ao século
XX como um legado importante que alimentou o espírito inquieto
das vanguardas.”
E continua Eliane Moraes:3 “depois da bomba atômica, po-
rém, a paisagem sensível passou a testemunhar o declínio do senti-
mento da catástrofe e sua normalização como dado real, cuja tene-
brosa evidência vem sendo dada pelos recentes desastres de Cher-
nobyl e Fukushima. Por isso, diz a mencionada Le Brun que aquela
tentação de fim de mundo que era induzida pelo desejo paradoxal
de recriar o mundo foi embargada pela efetiva concretização da
ameaça nuclear, cuja força de destruição parece ter se imposto ao
nosso poder de negação.”
O imaginário que repercute no cinema, bem como os so-
nhos de devastação passaram do infinito para a finitude, a ponto
de privar a catástrofe do devir imaginário que ela sempre teve e de
suprimir “aquela parte de desconhecido implícito de que ela era a
portadora”. Como consequência, ficamos privados da possibilidade
de representar os perigos que, de fato nos ameaçam e, impoten-
tes para sonhar com o que nos excede, tornamo-nos resignados
diante dos excessos que nos sujeitam. Na verdade, Le Brun acerta
perfeitamente no alvo quando ressalta que houve uma inversão de
perspectiva sem precedentes, pela primeira vez, diz ela, ao invés de
levar ao mais longínquo limite, o imaginário traz para o limite mais
próximo, também pela primeira vez, em vez de abrir o horizonte, ele
o fecha, valendo-se essencialmente do que pode ser verossímil, de
modo que as atuais encenações (hollywoodianas ou não) da catás-
trofe a simulam para lhe negar, antes de tudo, seu caráter imprová-
vel. Assim, reduzindo-se à extrapolação de uma situação-limite, tais
encenações acabam por privar a catástrofe do alcance imaginário
que ela era sempre teve, bastando para isso suprimir aquela parte
de desconhecido implícito de que ela era a portadora.”4
Muito a propósito merece referir as pesquisas de Sarissa Car-

3 MORAES, Eliane Robert: Do infinito como ponto de vista, Apresentação, p. 15 e ss.


4 LE BRUN, Anne, op. cit., p. 63.

193
Regis Frota

neiro5 e Abreu Freire 6, as quais atentam para a retórica do infortú-


nio no século XVI, para constatar que das 1578 naus portuguesas
que partiram ao Oriente, entre 1580 e 1700, somente 538 consegui-
ram retornar.
Afirma Abreu Freire que “Toda a dinastia de Avis (de D. João
I a D. Henrique) tinha assumido e divulgado a euforia da origem
divina do reino de Portugal: Jesus Cristo em pessoa, pregado numa
cruz, teria aparecido ao nosso primeiro rei na véspera de uma gran-
de batalha de desfecho imprevisível anunciando-lhe, no futuro, a
concretização de um império universal, aquele mesmo anunciado
no capítulo 20 do Apocalipse, após o extermínio das nações pagãs:
o reino dos que regressam à vida para reinar com Cristo durante
mil anos (Apo, 20,4). Durante os quase duzentos anos que durou
a dinastia (1385-1580), os oito reis apoiaram a ideia de um projeto
messiânico e imperial, de uma nova cruzada que se traduzia concre-
tamente na luta contra o poder muçulmano pela conquista da Terra
Santa e na criação de um império cristão mundial.”7
Que isto quer dizer ou revelar? Ora, primeiramente, que as
aventuras lusitanas de singrar os mares rumo a China e ao Japão,
atravessando e perdendo o medo do bojador e cruzando o cabo
da boa esperança, em plena dinastia dos Avis, significaram a su-
peração da ideia de uma finisterrae, de que após o conhecido mar
se precipitava um abismo. Em segundo lugar, a ultrapassagem do
teocentrismo barroco, da visão teocêntrica medieval para a mo-
dernidade civilizatória europeia. Por outro lado, voltando ao cine-
ma e sua atração pelo abismo, pela retórica do abismo. O abismo
enquanto metáfora visual cinematográfica tanto se comporta para
baixo, quanto para cima, para o infinito indefinido pela impossibi-
lidade da visão, só perceptível pelo imaginário. Veja-se o exemplo
de 2001, odisseia no espaço, a icônica película de Stanley Kubrick,
cuja sequência inicial mostra uma era anterior à do pitecantropos
erectus, onde e quando os macacos disputam os destroços de uma
presa caçada e, ao bater o osso na pedra, o mesmo se desloca de
sua mão, avançando rumo ao infinito, à atmosfera, onde se confun-

5 CARNEIRO, Sarissa A retórica do infortúnio no século XVI, alegoria, exemplaridade e


persuasão, editora Sudamericana, Madrid, 2015.
6 ABREU FREIRE, Antonio de - O comercio Portugal - Oriente, p. 10.
7 ABREU, A. de Freire> Op. cit., p. 1.

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O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

dirá com uma nave espacial, se transformará na nave que flutua no


espaço sideral da estratosfera, num átimo de tempo em segundos,
cuja montagem cinematográfica genial revela o trespasse temporal
que vai do homem pré-histórico aos astronautas do século XX, per-
corre a imagem montada um abismo que se desloca ou descola pra
cima, rumo ao infinito, ao som de Strauss.
Com efeito, a abissal mudança imagética obtida pela monta-
gem do filme de Kubrick nos coloca nos trilhos de uma viagem es-
pacial contemporânea e desafiadora. Assistimos aí uma espécie de
censura progressiva do sentimento da catástrofe, que, desde o fim
do século XVIII, aparecia como negação global da ordem das coisas,
que, por ser fictícia, fornecia a medida infinita de nossa liberdade.
Com o surgimento da situação nuclear, diz Le Brun, em sua céle-
bre conferência referida, e a efetivação do recalque do perigo da
aniquilação geral a que seríamos conduzidos, abissalmente, numa
eventual guerra mundial com os armamentos hoje acumulados e,
com seu potencial destrutivo, essa força está sendo exaurida como
a fonte mesma de nossa capacidade critica. Por certo, poderia se
contrapor aqui o argumento de um “novo desejo de catástrofe” que,
a se crer em sociólogos, filósofos e jornalistas, seria característico
da nossa época.
Dito de outra maneira, a censura do sentimento de catástrofe
se exerce pela contrafação que consiste em confundir catástrofe e
risco máximo. Nesse sentido, a constatação é tão desoladora quan-
to terrível é a ilusão. Catástrofe abissal como meio de adaptação:
será possível que o imaginário tenha nos traído a esse ponto? Se-
riam os filmes de catástrofe hollywoodianos assim tão enganadores
e dissimulados ou, até, tão dissimuladores?
Melhor seria não acreditar nisso.
Hollywood expressa, apenas, mais uma das tantas denega-
ções do cataclisma que a era nuclear nos impõe, inexoravelmente.
Consoante afirmado por Le Brun, “do caos ao apocalipse, do
Dilúvio ao fim dos tempos, da torre de Babel ao ano mil, da desor-
dem que engendra a ordem nos mitos fundadores à tábula rasa que
conduz à “grande noite”, inúmeras são as construções imaginárias
que remetem à catástrofe como a uma constante em torno da qual
a humanidade buscou se definir, estabelecendo sua relação com o
mundo sob o signo do acidental.”
Ora, o abismo exerce (sempre exerceu) atração constante ao

195
Regis Frota

cinema, assim como a catástrofe natural ou decorrente das agres-


sões humanas à ecologia e à natureza são objeto de um princípio
construtor. Como diria, por último, Annie Le Brun, “a melhor manei-
ra de evitar uma representação da catástrofe, que levaria inevita-
velmente a determinar suas circunstâncias, consiste em uma aposta
absoluta numa retomada da vida, ainda que ela deva se apoiar so-
bre as forças da morte. Assim, enterrando-se em verdadeiras próte-
ses no subsolo (vejam-se filmes como abrigo, etc.) desenvolvem-se
universos artificiais, fechados em si mesmos, diante dos quais só
resta ceder à evidência de que doravante a vida é um produto de
síntese, completamente indiferente ao meio ambiente”.8
Aliás, os ecologistas podem até se vangloriar de terem sido
os primeiros a se preocupar com os equilíbrios naturais, deve-se,
no entanto, lamentar que eles sempre tenham excluído a relação
das ideias com os seres e as coisas, condenando-se assim a uma
atividade de especialistas, tendo tão somente o direito de se gaba-
rem da intenção de limitar os estragos quando todos os outros se
contentam em administrá-los.
E voltando ao cinema – podemos aquilatar o quanto a re-
presentação dramatúrgica e estética da sétima arte tem-se voltado
para os cataclismas naturais tipo tsunamis, terremotos, etc., quando
exemplos recentes como o filme de Clint Eastwood sobre o tsunami
na Tailândia, e outros, lembram que os estragos não são apenas
materiais, parte deles permanecem na memória dos desafortuna-
dos habitantes destes locus abissais, tipo Chernobyl, ou o desapare-
cimento do mar de Aral ou a deterioração das florestas da Polônia
ou da Tchecoslováquia, e não foram poucos os que se resignaram
a um biscate técnico mais ou menos confiável para não remontar
às verdadeiras causas desses desastres. “Do mesmo modo, em vez
de aplicar todos os meios para encontrar uma maneira de escapar
a tal situação, a maior parte de nossos pensadores parece ter como
principal preocupação salvar a ficção de uma relação com o mundo
cada vez mais mentirosa.”
O Vertigo hitchcockiano prenuncia o abismo a que se subme-
terá o protagonista, e de consequência ao espectador que com ele
se assemelha ou se identifica, senão vejamos – quando o inspetor,
antes de aposentar-se pela constatação da acrofobia que o impediu

8 LE BRUN, Annie. Op. cit., p. 70.

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O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

de perseguir sua cliente na subida da escadaria, sente desmaios,


desconfortos acrofóbicos, tonturas, etc.
Não seria o abismo uma vocação cinematográfica: afinal, se-
gundo Louis Lumière, um dos fundadores da sétima arte, previu,
com equívoco, que “le cinema c´est une invention sans avenir”.
Não poderíamos finalizar sem uma referência especial ao
mais apocalíptico dos cineastas contemporâneos, Lars Von Trier,
cujo filme Melancolia (2011), recebeu o seguinte comentário do
grande e jovem filósofo sul-koreano, Byung-Chul Han,9 cujos excer-
tos são transcritos, abaixo, em virtude da absoluta compatibilidade
filosófica com nossas intenções nesse ensaio:
“No inferno do igual, a chegada do outro atópico pode tomar
uma forma apocalíptica. Aliás, hoje, só um apocalipse nos poderá li-
bertar – sim, redimir, – de um inferno do igual em direção ao outro.”
É, pois, nessa perspectiva que seguimos o comentário de Chul
Han ao observar que o filme Melancolia, de Lars Von Trier “começa
com o anúncio de um acontecimento apocalíptico, desastroso(...) E
faz quase um exercício de historiador da arte, da arte pictória que
se encontra no filme, como a pontuar a personagem central, Justine,
cujo erotismo proporciona a vitória sobre a sua depressão. É proposi-
tal que o cineasta dinamarquês filosofa a propósito de uma ocorrên-
cia desastrosa, apocalíptica. Conforme afirma Han “Desastre significa
literalmente des-astro (latim, des-astrum). Na noite estrelada, junto
com sua irmã, Justine (Kirsten Dunst) descobre uma estrela verme-
lha cintilante, que depois se mostra como um desastre (des-astro).
Melancolia é um des-astre, com o qual se inicia a desgraça completa.
Mas é também um negativo de onde surge um efeito salvífico e tera-
pêutico, purificador. Neste sentido, melancolia é um nome paradoxal,
quando o planeta aproxima justamente uma salvação ou cura da de-
pressão numa forma específica de melancolia. Ele se manifesta como
o outro atópico que arranca Justine do charco narcisista. Assim, ela
floresce em sua forma frente ao planeta mortal”.
Ora, o filme de Lars Von Trier capta a noção de abismo, de
apocalipse na medida em que o tempo diegético da película só
serviu para afastar as irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Char-
lotte Gainsbourg). Nem o casamento entre Justine e Michael (Ale-

9 CHUL-HAN, Byung: “Agonia do eros”. Tradução de Enio Paulo Giachini, Petrópolis:


Editora Vozes, 2017, p. 11/19.

197
Regis Frota

xander Skarsgärd) serve como desculpa para aproximá-las e, após


a cerimônia, Justine começa a ficar triste e melancólica. Quando
ocorre o desastre (des-astre) do anúncio sobre a colisão da Terra
com outro planeta, quando essa possibilidade de colisão apocalíp-
tica ou abissal chega ao conhecimento das irmãs Claire e Justine,
protagonistas do filme, são bem distintas as reações delas. Justine
se conforma, até chega a aceitar ou, eroticamente, a desejar que
a colisão se concretize, enquanto o desespero do iminente final
apavora à sua irmã Claire.
Chul Han afirma que eros vence a depressão. Segundo sua
explicação, em nível altamente filosófico, “a relação de tensão entre
amor e depressão domina o discurso do filme Melancolia desde o
começo. O prelúdio de Tristão e Isolda, trilha sonora do filme, con-
jura a força do amor. A depressão se apresenta como impossibilida-
de do amor. É só o planeta “Melancolia” como outro atópico, que
irrompe para dentro do inferno do igual, acende a cupidez erótica
em Justine. Na cena da nudez no lajedo do rio se vê o corpo de
uma amante tomado pelo cupido da voluptuosidade. Tomada de
expectativas, Justine se refestela na luz azul do planeta mortífero.
Essa cena desperta a impressão de que Justine anelasse a colisão
mortal com o corpo celeste atópico. Ela espera a proximidade da
catástrofe como uma união prazerosa com o amado. É inevitável
não pensar aqui na morte por amor, de Isolda. Na proximidade da
morte, também Isolda se entrega com prazer ao “todo que insufla
um hálito de mundo”. Não é por acaso que, justo nessa única cena
erótica do filme, ressoa novamente o prelúdio de Tristão e Isolda.
Ele conjura de forma mágica a vizinhança de eros e morte, de apo-
calipse e redenção. Paradoxalmente, Justine vivencia a aproximação
da morte. Ela a abre para o outro. Liberta de sua prisão narcisista,
Justine volta seus cuidados também para Claire e seu filho. A real
magia do filme de Von Trier é a transformação, segundo Byung Han,
que transmuta Justine, a protagonista, de uma pessoa depressiva
numa pessoa amorosa e amante. A utopia do outro mostra a uto-
pia de eros”. Intencionalmente, o cineasta introduz quadros de arte
clássicos, para dar direcionamento discursivo ao filme, e embasá-lo
com uma semântica específica de quem conhece história da arte e,
sobretudo, a gramática cinematográfica. É desse modo que, na tra-
ma surrealista, ele vai introduzindo a imagem de Pieter Brügel, Os
caçadores na neve (Die Jäger im Schnee), que transfere o espectador
numa melancolia invernal profunda. No plano de fundo do quadro,

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O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

a paisagem faz limite com a água como a presença de Claire, que


vem inserida na imagem de Brügel. As duas cenas apresentam uma
topologia parecida, de modo que a melancolia hibernal de Os caça-
dores na neve avança por sobre a presença de Claire. Os caçadores
vestidos com roupas escuras adentram a intimidade profundamen-
te inclinados. Os pássaros negros nas árvores deixam aparecer a
paisagem de inverno de forma ainda mais lúgubre. A placa da porta
da pousada Zum Schild (Aos cervos), com a imagem de um santo,
pende torta, quase despencando. Esse mundo melancólico-heber-
nal dá a impressão de ser abandonado por Deus. A mise-en-scène
de Von Trier coloca em cena então fragmentos negros caindo len-
tamente do céu e consumindo o quadro como um incêndio. Segue
a essa paisagem hibernal melancólica uma outra cena típica, bem
típica da mise-en-abyme da filmografia de Von Trier: a “cena nos dá
a impressão de quadro pintado, na qual Justine é retratada exata-
mente como a Ofélia de John Everett Millais. Tendo uma coroa de
flores na mão, ela flutua na água como a bela Ofélia.
O casamento ou as sequências cinéticas da cerimonia ma-
trimonial do filme não deixam de lembrar, um pouco, a cerimônia
do casamento que o último episódio da película argentina Relatos
selvagens(relatos selvages,2014), de Damián Szifron, em que a noiva,
igualmente, se angustia e alopra, não só entristecendo as festivida-
des, como agredindo os convivas por sua narcisista postura. Mas,
aqui em Von Trier estamos ante uma causa distinta, estamos os es-
pectadores, não ante uma traição e sim, ante uma depressão, uma
ameaça de apocalipse. É radicalmente distinto.
Quando aos 19 minutos da projeção de Melancolia, Justine,
a noiva se desloca ao pátio, sozinha, para verificar a proximidade do
meteoro ou planeta que se aproxima da terra, em ameaça apocalíp-
tica de colisão, a canção-tema de Tristão e Isolda retorna a comple-
mentar a imagem da depressão, da deprimida, inexplicavelmente,
para o casal –irmã e marido que financiaram a festa, e buscam in-
cessantemente a Justine, para juntar-se ao noivo, solitário e aban-
donado pelo narcisismo da protagonista.
Byung-Chul Han observa que “após uma discussão com Clai-
re, Justine entra novamente em desespero e deixa o olhar resvalar
desolado para a imagem abstrata de Malewitsch. Depois, como que
acometida de um ataque, retira os livros abertos da prateleira e os
substitui de forma ostensiva por outras imagens, todas indicando
paixões humanas abissais. Justo nesse momento toca novamente

199
Regis Frota

o prelúdio de Tristão e Isolda. Está em questão novamente, portan-


to, amor, cupidez e morte”. (CHUL HAN, 2017, p. 15). São paixões
humanas abissais como as que são representadas, igualmente, nos
Relatos selvagens, afinal, distintas tais paixões das representadas
por Von Trier, somente porquanto a morte aqui pressentida e, re-
presentada nos Relatos não é por amor, e sim, por desamor, traição,
vingança e egoísmo.
Primeiramente, “Justine abre o Caçadores na neve, de Brügel.
Depois pega Millais com sua Ofélia, seguido por Davi com a cabeça
de Golias, de Caravaggio, Terra de cocanha, de Brügel e, por fim, uma
pintura de Carl Fredrik Hill, que representa um cervo sozinho bra-
mindo.” Não é fácil perceber essas nuances ou referências artísticas
pictóricas de conteúdo filosófico ou psicanalítico transcendental em
relação aos temas de Melancolia. Mas, outra cena de Von Trier que
aponta para o comportamento depressivo de Justine é a imagem
da bela Ofélia flutuando sobre a água, com sua boca semiaberta e
seu olhar perdido no espaço aberto, que se assemelha ao olhar de
uma santa ou de uma amante, remete novamente para a proximi-
dade de eros e morte. Em Shakespeare, Ofélia morre cantando igual
as sereias, a amada de Hamlet, rodeada de uma chuva de flores. Sua
morte é bela, uma morte por amor. Na Ofélia de Millais pode-se re-
conhecer uma flor que não é mencionada em Shakespeare, a saber,
uma papoula vermelha, que aponta para eros, sonho e êxtase. Tam-
bém o Davi com a cabeça de Golias, de Caravaggio, é uma imagem
de cupidez e de morte. O Terra de coconha. de Brügel, ao contrá-
rio, mostra uma sociedade saturada de positividade, um inferno do
igual. As pessoas estão deitadas por todo lado apáticas com seus
corpos rechonchudos, esturricados de saciedade. Mesmo o cacto
não tem qualquer espinho. É feito de pão. Tudo aqui é positivo na
medida em que é “comível e saboreável” (BYUNG HAN, 2017, p.16)
A sociedade dos Relatos selvagens (último episódio) é igual-
mente, uma sociedade saturada. Diz Byung Chul 10que “essa socie-
dade saturada se assemelha à sociedade mórbida das núpcias de
Melancolia. É interessante notar que Justine coloca o Terra de co-
canha, de Brügel, bem ao lado de uma ilustração de William Blake
que representa um escravo dependurado vivo. A violência invisível
da positividade contrasta aqui com a violência brutal da negativi-

10  HAN, Byung Han: Op. cit., p. 16.

200
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

dade, que explora e rouba. Justine deixa a biblioteca imediatamen-


te depois de expor uma ilustração de um cervo bramindo, de Carl
Frederick Hill, sobre a prateleira. A ilustração expressa novamente a
cupidez erótica ou o anelo por um amor que Justine sente interior-
mente. Também aqui sua depressão se apresenta como impossibi-
lidade do amor.” (sic) De modo assemelhado, o egoísmo e o narci-
sismo da noiva de Relatos selvagens se transmutam a depressão em
impossibilidade do amor. Aniquilação do compromisso matrimonial
como manifestação de felicidade, de alegria. É de se supor que o ci-
neasta dinamarquês soubesse que o pintor Carl Frederick Hill sofreu
a vida inteira sob forte e intensa depressão e psicose. A sequência
de imagens descrita por Byung Han e possível de ser constatada
por qualquer espectador mais atento, dá uma visualização de todo
o discurso do filme de Lars Von Trier. Aqui, “o eros, a cupidez eró-
tica vence a depressão. Ele conduz do inferno do igual para a ato-
pia, para a utopia do completamente outro.” [...] O céu apocalíptico
de Melancolia se assemelha àquele céu vazio que representa para
Blanchot a cena originária de sua infância.”
A exemplo de Blanchot,11 o qual descreve sua experiência, na
literatura, de arrebatamento pela infinitude do céu vazio, Lars Von
Trier com seu Melancolia estabelece uma “dialética do desastre” no
cinema, que estrutura todo o filme e, igualmente, mostra uma des-
graça desastrosa convertida inesperadamente em graça ou salva-
ção. A desgraça se transmutando em graça, o apocalipse redimindo
a humanidade. Nos fazendo lembrar que a morte de Paulo Martins,
o revolucionário de Terra em Transe redime toda a dialética do de-
sastre que estrutura a película, salva a representação da política das
oscilações do protagonista, transforma o abismo a que estávamos
todos destinados, segundo Martins, em redenção ou graça.
Por certo que as reflexões sobre o abismo ou o apocalipse,
tipo a máquina do juízo final, em Dr. Strangelove (doutor fantástico,
de Stanley Kubrick, 1964), a sátira política da guerra fria, além de
funcionar como alerta à humanidade, possibilitam-nos optar pelo
erotismo à depressão, pela graça em vez da desgraça iminente da
atômica destruição civilizatória? O cinema contribui para isso.
Com efeito, a humanidade parece não aprender, após os

11 BLANCHOT, M.: “(...absolute Leere des Himmels...) in COELEN, M. Die andere Urszene,
Berlim, 2008, p.19, apud HAN, Byung Chul, Op. cit., p. 18.

201
Regis Frota

poucos anos de guerra de autoextermínio, nós humanos até pare-


ce temos sede e fome de abismo, de apocalipse. Após Guernica, o
caldeirão; após o caldeirão, a Polônia; após Polônia, Dresden; após
Dresden, Hiroshima e Nagazaki; após Nagazaki, o que se avizinhará?
Será que através da desgraça, do desastre (des-astro), en-
contraremos a salvação, a graça e a redenção, como previsto por
Von Trier em Melancolia? O erotismo vencerá a depressão?
A Literatura – assim como, agora o cinema- esperam que
sim. Em que pese o aumentado nível de depressão e desgraça que
a pandemia do covid-19 trouxe para o mundo ocidental, e o reco-
nhecido incremento de tristezas e depressões – objeto de avizinha-
mentos de guerras híbridas como as que a China e Rússia estão a
vivenciar com os Estados Unidos da América, mui especialmente
nesse período do primeiro governo de Trump, haverá um segundo,
por acaso?

202
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLANCHOT, M.: (...absolute Leere des Himmels...) In: COELEN, M.


Die andere Urszene. Berlim, 2008, p.19, apud HAN, Byung Chul,
Op. cit. p. 18.

CARNEIRO, Sarissa. A retórica do infortúnio no século XVI,


alegoria, exemplaridade e persuasão. Madrid: editora
Sudamericana, 2015.

CHUL-HAN, Byung: Agonia do eros. Tradução de Enio Paulo


Giachini, Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

__________. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulio Giachini,


Rio/Petrópolis: Editora Vozes, 2015.

LE BRUN, Annie. O sentimento da catástrofe – entre o real e o


imaginário. São Paulo: Editorial Iluminuras, 2016.

PAULO ENDO e Edson SOUZA. Sigmund Freud. Porto Alegre: L&PM


Pocket Encyclopaedia, 2015.

203
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 9

CINEMA E FILOSOFIA:
DE WALTER BENJAMIN A SLAVOJ ZIZEK

Em termos normais de temperatura e pressão, qualquer


ensaio devesse ter toda prudência ao se propor descrever as rela-
ções entre dois temas, duas temáticas tão interrelacionadas como
a filosofia e o cinema. Pois não é que, até parece estou desatento
a esta regra... desde o renascimento parecia que a ciência preten-
dia encontrar todas as respostas à vida humana. Será que resol-
veu tal paradoxo?
Mas alerto que escreverei este capítulo como se fora uma
forma sucinta de surpreender e ressaltar – de modo a que o leitor
possa memorizar ou ter em mente, após ler os originais de três fi-
lósofos modernos que se importaram com o cinema -os principais
pontos ou ideias de cinema de cada um dos três filósofos. Me refiro
a Walter Benjamin, Deleuze e Zizek.
Com efeito, tenciono descrever, resumidamente, o pensa-
mento de três filósofos do século XX, acerca da cinematografia:
Walter Benjamin, Gilles Deleuze e Slavoj Zizek. Ora, a imprudência
consiste em acreditar que seja possível resumir o pensamento filo-
sófico de tais escritores, mas considerando que resumirei, apenas,
o que teriam pensado sobre o fenômeno filmográfico, donde se
poderia inferir uma interrelação entre referidas disciplinas. Ou seja,
vamos tentar resumir ou conhecer o que pensaram sobre CINEMA
os filósofos Benjamin, Deleuze e Zizek.
Para WALTER BENJAMIN: o cinema é uma técnica (questão
de cinemática, segundo “a obra de arte na época de sua reproduti-
bilidade técnica”, edit. Zouk, 2012). Não há maiores considerações
sobre o conteúdo dos filmes (O cinema é a forma de arte que cor-
responde ao acentuado perigo de vida no qual vivem os homens de
hoje, dizia o alemão da Escola de Frankfurt. Corresponde às profun-
das transformações do aparelho de apercepção – transformações
tais como a vivência, na escala da existência privada, cada passante

207
Regis Frota

no trânsito de uma grande cidade e, na escala da história universal,


cada um que luta contra a ordem social de hoje”, afirmava o pensa-
dor. Dentre as dez lições sobre este autor, o filósofo Renato Franco
nos especifica uma, consoante por ele afirmado, “permite identifi-
car, no processo cultural agora mediado pela técnica, as condições
materiais adequadas ao florescimento de uma cultura não aurática,
destinada a ser uma cultura revolucionária das massas. O principal
agente da constituição de tal cultura – e do simultâneo declínio da
aura- seria o cinema”.1

Deleuze
• Foi com o neorrealismo que surgiram no cinema situa-
ções óticas e sonoras puras, distintas das situações sen-
sório-motoras da imagem-ação ou movimento.
• Deleuze cita nove (9) vezes a Stromboli (Rosselini com
Ingrid desadaptada na ilha) e Europa 51, onde uma bur-
guesa, depois da morte do filho, aprende a ver o que se
passa em torno dela, quando seu olhar abandona a fun-
ção prática de dona de casa ocupada com a vida mun-
dana, e ela descobre , por exemplo, o que é o mundo do
trabalho numa fábrica.
• A OBRA DE ARTE SEMPRE FOI REPRODUTÍVEL
• A PINTURA, desde as cavernas – sacras e míticas;
• A ESCULTURA, tem ainda fundamento no culto, feita a
partir de um bloco de concreto, por pouco reprodutível,
com intenções eternas, pouco perfectíveis;
• A ARQUITETURA, sempre existiu, pois, os edifícios são re-
cebidos de dois modos: por meio do uso e por meio da
percepção: táctil e ópticamente; a teoria da apercepção,
entre os gregos se chamava estética; AS TRÊS ARTES ES-
TÁTICAS E QUAIS AS TRES DINÂMICAS?
• LITERATURA, teatro e MÚSICA, TODAS SOMADAS RESUL-
TANDO NA

1  FRANCO, Renato: “10 lições sobre Walter Benjamin. Petrópolis: Editora Vozes, 2015,
p. 99.

208
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

SÉTIMA ARTE OU NA ARTE CINEMATOGRÁFICA


TRÊS IDEIAS DE WALTER BENJAMIN
• 1ª) Cinema é a obra de arte mais perfectível. E esta per-
fectibilidade tem a ver com sua radical renúncia ao valor
de eternidade (contrariamente, às obras de arte escultu-
rais gregas antigas as quais cultuavam valores eternos;
p.51.
• 2ª) O culto do estrelato fomentado pelo capital cinemato-
gráfico conserva não só aquela magia da personalidade,
que há muito consiste no brilho pútrido de seu caráter de
mercadoria, como também seu complemento, o culto do
público, e estimula igualmente a constituição corrupta da
massa, que o fascismo procura por no lugar de sua cons-
ciência de classe; p.77.
• 3ª) A reprodutibilidade técnica da obra de arte altera
a relação da massa com a arte (Picasso versus Chaplin)
“Dentre as funções sociais do cinema, a mais importante
é a de estabelecer o equilíbrio entre o homem e o apa-
rato.” p.95.

TRÊS IDEIAS DE GILLES DELEUZE


• 1ª) Na época de ouro do cinema (1915/1940), identifica-
-se o predomínio da imagem-movimento (in Cinema I,
1985);
• 2ª) Após a II Grande Guerra (com o cinema moderno do
neorrealismo italiano, sobretudo) identifica-se a preva-
lência de situações ótico-sonoras puras, é dizer, o predo-
mínio da imagem-tempo;
• 3ª) Bergson e a imagem-cristal: as imagens-cristais per-
feitos (Max Ophüls: Coração prisioneiro, 1949; Lola Mon-
tés, 1955; La Ronde, 1950; O prazer, 1952, etc.); A ima-
gem-cristal imperfeito (Fellini – 8 e meio, 1958; A estra-
da, 1954; I Vitelloni (1956), etc.; A imagem-cristal rôto ou
quebrado – E a imagem – cristal em decomposição Lu-
chino Visconti – A morte em Veneza, 1969; Obsessão da
carne, 1954; Noites brancas, etc.

209
Regis Frota

TRÊS IDEIAS DE SLAVOJ ZIZEK


• 1ª) Por que o filósofo se interessa pelo CINEMA? Além de
cinéfilo, porque ZIZEK monta uma conceitografia a partir
de casos concretos, de cada filme, na medida em que é
mais que psicanalista, SLAVOJ ZIZEK é um cientista social,
um filósofo ideológico;
• 2ª) Não escolhemos o filme, o filme é quem nos escolhe;
no Cinema, não escolho o que desejo e sim, COMO DE-
SEJO; O filme exerce uma função catártica, pois segundo
lição ZIZEKIANA, aprendida de LACAN, o cinema repre-
senta uma transferência psicanalítica: o filme diz como
é e o que desejar, pois quando presente a uma exibição,
qualquer psicanalista não passa de mero espectador, não
determinando o que desejar;
• 3ª) Fórmula ideológica do CINEMA: “é apenas você para
acreditar que algo é especial, você precisa apenas acre-
ditar nisso. Esta fórmula proporciona a contradição (di-
visão) fetichista em su forma mais pura. A mensagem é:
Sei muito bem que não existe ingrediente especial, mes-
mo assim acredito nisso (e me comporto de acordo) ...
A denúncia cínica (no nível do conhecimento racional) é
contra-atacada por um chamado à crença “irracional” – e
essa é a fórmula mais elementar de funcionamento da
ideologia nos dias de hoje.” VIDE os “Guias perversos da
ideologia e do cinema” (no youtube), segundo ZIZEK.

O CINEMA NUMA PERSPECTIVA FILOSÓFICA conhecendo o que


pensaram sobre CINEMA os filósofos Benjamin, Deleuze e Zizek

REVISÃO DOS TRÊS PRINCIPAIS PONTOS DA PALESTRA / EXPO-


SIÇÃO SUCINTA:
• 1ª) WALTER BENJAMIN: Cinema é a obra de arte mais
perfectível. E esta perfectibilidade tem a ver com sua ra-
dical renúncia ao valor de eternidade (contrariamente, às
obras de arte esculturais gregas antigas as quais cultua-
vam valores eternos; p.51

210
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

• 2ª) O culto do estrelato fomentado pelo capital cinemato-


gráfico conserva não só aquela magia da personalidade,
que há muito consiste no brilho pútrido de seu caráter de
mercadoria, como também seu complemento, o culto do
público, e estimula igualmente a constituição corrupta da
massa, que o fascismo procura por no lugar de sua cons-
ciência de classe; p.77
• 3ª) A reprodutibilidade técnica da obra de arte altera a re-
lação da massa com a arte (Picasso versus Chaplin) “Den-
tre as funções sociais do cinema, a mais importante é a de
estabelecer o equilíbrio entre o homem e o aparato.” p.95

TRÊS IDEAS SOBRE CINEMA DE SLAVOJ ZIZEK


• 1ª) Na época de ouro do cinema (1915/1940), identifica-se
o predomínio da imagem-movimento (in Cinema I, 1985)
• 2ª) Após a II Grande Guerra (com o cinema moderno do
neorrealismo italiano, sobretudo) identifica-se a preva-
lência de situações ótico-sonoras puras, é dizer, o predo-
mínio da imagem-tempo
• 3ª) Bergson e a imagem-cristal: as imagens-cristais perfei-
tos (Max Ophüls: Coração prisioneiro, 1949; Lola Montés,
1955; La Ronde, 1950; O prazer, 1952 etc.); A imagem-
-cristal rachado (Renoir); A imagem-cristal em formação
– (Fellini-8 e meio, 1958; A estrada, 1954; I Vitelloni (1956)
etc. E a imagem – cristal em decomposição Luchino Vis-
conti – A morte em Veneza, 1969; Obsessão da carne,
1954; Noites brancas etc. Obs.: “Estas imagens cristais
todas consistem na unidade indivisível de uma imagem
atual e sua imagem virtual” – (Deleuze)
• 1ª) Por que o filósofo se interessa pelo CINEMA? Além de
cinéfilo, porque ZIZEK monta uma conceitografia a partir
de casos concretos, de cada filme, na medida em que é
mais que psicanalista, SLAVOJ ZIZEK é um cientista social,
um filósofo ideológico;
• 2ª) Não escolhemos o filme, o filme é quem nos esco-
lhe; no Cinema, não escolho o que desejo e sim, COMO

211
Regis Frota

DESEJO; O filme exerce uma função catártica, pois se-


gundo lição ZIZEKIANA, aprendida de LACAN, o cinema
representa uma transferência psicanalítica: o filme diz
como é e o que desejar, pois quando presente a uma
exibição, mesmo qualquer psicanalista não passaria de
mero espectador, não determinando o que desejar;
• 3ª) Fórmula ideológica do CINEMA: “é apenas você para
acreditar que algo é especial, você precisa apenas acre-
ditar nisso. Esta fórmula proporciona a contradição (di-
visão) fetichista em sua forma mais pura. A mensagem
é: Sei muito bem que não existe ingrediente especial,
mesmo assim acredito nisso (e me comporto de acordo)
... A denúncia cínica (no nível do conhecimento racional)
é contra-atacada por um chamado à crença “irracional”
– e essa é a fórmula mais elementar de funcionamento
da ideologia nos dias de hoje.” VIDE os “Guias perversos
da ideologia e do cinema” (no youtube), segundo ZIZEK.

212
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade


técnica, Tradução de Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado,
Porto Alegre: Editora Zouk, 2012.

__________. La dialética em suspenso. Traducción, notas e Índices


de Pablo Oyarzún Robles, LOM ediciones. 2. ed. Santiago de Chile,
2009; BENJAMIN, Walter: Rua de mão única, Obras Escolhidas II,
São Paulo: Editora brasiliense, 2012.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997

__________. Cinema I, A Imagem-Movimento. Tradução de Stella


Senra, São Paulo: Editora 34, 2018.

FRANCO, Renato. 10 lições sobre Walter Benjamin. Petrópolis:


editora Vozes, 2015.

ZIZEK, Slavoj. Como ler Lacan, tradução de Maria Luiza X. de A.


Borges, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2010.

__________. Em defesa das causas perdidas. Tradução de Maria Bea-


triz de Medina. São Paulo/Rio de Janeiro: Boitempo Edit., 2011.

__________. A visão em paralaxe. Tradução de Maria Beatriz de Me-


dina, Rio de Janeiro: Boitempo editorial, 2011.

__________. O absoluto frágil. Tradução de Rogério Bettoni. Rio de


Janeiro: Boitempo Edit., 2015.

__________. Interrogando o real. Tradução de Rogério Bettoni. Rio de


Janeiro:Autêntica Edit., 2017.

__________. O sofrimento de Deus. Tradução de Rogério Bettoni, Rio


de Janeiro, 2015.

213
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 10

CINEMA E PSICANÁLISE – ANÁLISE DA OBRA


DE DOSTOIEVSKI

As relações entre cinema e psicanálise são muito fortes.


Na verdade, sem o auxílio da psicanálise, a crítica cinema-
tográfica fica diminuída; com o divã, a tela se abre, se projeta, se
compreende.
Ora, ambos, cinema e psicanálise nasceram na mesma época:
final do século XIX. Filhos que são, do mesmo pai e mesma mãe: o
sonho e a luz civilizatória. O divã surge da interpretação dos sonhos
humanos; a tela, nasce da tecnologia da ilusão ótica da percepção,
da projeção de imagens sucessivas, projetados de 16 a 24 quadros,
por segundo.
O cinema viria a ser a sétima arte, junção de três artes está-
ticas (escultura, arquitetura e pintura) e de outras três artes dinâmi-
cas, seculares, talvez milenares: a música, o teatro e a literatura. A
psicanálise, desde as pesquisas freudianas se tornaria no unguento
do século das depressões, o século XX, o qual conheceu as duas
grandes guerras mundiais, tendo saído de ambas com enormes
traumas e depressões.
Sigmund Freud (1856/1939) inaugura um mundo novo de
interpretações dos subterrâneos humanos, bem como dos seus so-
nhos... Lembram-se de Dostoievski?
Em 1931, o escritor Stefan Zweig, escreveu sobre o pensa-
mento freudiano:
“Hoje, os pensamentos de Freud – que, há vinte anos, ainda
eram blasfêmias e heresias- circulam correntemente na linguagem
e no sangue de nossa época; as fórmulas por ele concebidas pare-
cem tão naturais que para rejeitá-las é preciso um esforço maior do
que para adotá-las. Precisamente porque nosso século XX não pode
mais conceber por que o XIX se defendia com tanta exasperação
contra a descoberta, há muito esperada, das forças instintivas da

217
Regis Frota

alma, é necessário examinar retrospectivamente a atitude psicológi-


ca das gerações de então e tirar de uma vez do sarcófago a ridícula
múmia da moral do período pré-guerra”.1
O cinema, por sua feita, ali pelos anos 30, de século passado,
já tinha virado sonoro, tinha conhecido já desde o início de século
XX, de um lado, os sonhos de Georges Meliés, com técnicas sub-
versivas e inovadoras na arte de filmar o sonho,2 contrastando com
a tentativa de apreensão da realidade, pelo cinema, a partir dos
documentários curtos dos irmãos Lumière, na França. Mas, antes
da primeira guerra, nos EUA, David Wark Griffith, desenvolvera a
linguagem cinematográfica em suas experiências dos longas me-
tragens, Nascimento de uma nação (1915) e Intolerância (1916).
Na Rússia revolucionária, Serguei Mikalaioviski Eisenstein fi-
zera coro com Dziga Vertov, Pudovkin e Kuleschov, na utilização
eficiente de uma montagem dialética, a qual elevou a arte cine-
matográfica à categoria de “arte grande”, de sétima arte, capaz de
captar um novo olhar sobre o mundo e sobre o homem.
Em pouco mais de um século, a tela e o divã amadureceram
completamente, se instalaram em nossas casas, irreversível e ines-
capavelmente.
Não há espaço aqui, contudo, para uma história dessas duas
manifestações artísticas, científicas ou estéticas entretanto, levan-
do-se em consideração as lições e a biografia do pai da psicanálise
freudiana, o velho Sigmund, não podemos deixar de recordar que
Freud sempre foi um grande admirador da arte e da literatura, ten-
do encontrado na obra de escritores “a imagem necessária para a
explicitação de suas teorias”; Afirmam seus biógrafos 3 que Freud
encontrou em Sófocles, a imagem de Édipo; Em Dostoiévski, o la-
birinto da culpa; e em Shakespeare, especialmente em Hamlet, a
dívida em relação ao pai.

1 SOUSA, Edson e Paulo Endo: “Sigmund Freud”. Porto Alegre: L&PM Pocket Editora,
2010, p. 41.
2 Basta ver o filme de Martin Scorcese, “a invenção de Hugo Cabret, sobre o cineasta
pioneiro, Georges Meliés, o descobridor dos sonhos no cinema, inclusive com um filme
sobre a ida do homem à Lua.
3 SOUSA, Edson: Op. cit., p. 62.

218
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Seriam as três obras primas da literatura universal, segundo


Freud: Édipo Rei, de Sófocles, Hamlet, de Shakespeare e Os ir-
mãos Karamázov, de Fiodor Dosteoievki.
Numa reflexão elementar sobre o cinema e a psicanálise
freudiana, nos indagamos se o velho escritor russo não se teria an-
tecipado em definir certos traumas e comportamentos humanos
mais profundos, investigado os subterrâneos da psicologia do ho-
mem, de tal modo que as pesquisas de Sigmund, algumas décadas
após as iria nomear e, cientificamente, relacionar. Só podemos fazê-
-lo através da leitura da obra dostoievskiana, a seguir.
Comecemos pelo final, é dizer, por sua obra máxima, da ma-
turidade, Os irmãos Karamázov, publicada pouco antes dele mor-
rer, em 1881, na qual denuncia o parricídio, nas palavras do persona-
gem Ivan Karamázov, intenção que atormenta a mente de todos nós.
O livro é uma proclamação de amor à humanidade. E como
já afirmamos Freud amava essa literatura. Dostoievski tem oportu-
nidade de descrever, com profundidade, o caráter e a psicologia de
cada dos três irmãos, Dmitri, Ivan e Aliocha, os quais, em que pese
possuírem todos a forma ou o jeito “Karamazov” de ser, se diferen-
ciam no comportamento e nas convicções de cada um. Façamos
uma incursão interpretativa mínima do longo livro de maturidade
do autor russo, como forma de demonstrar a importância da litera-
tura natecipatória da psicanálise.
No longo capítulo 3, do livro 5 (“Os irmãos se conhecem”),4
o autor estabelece um largo diálogo entre os irmãos Ivan e Aliocha,
de 23 e 20 anos, respectivamente, onde e quando aquele persona-
gem fala de sua “sede de viver”, enquanto o caçula Aliocha – numa
espécie de comportamento a la príncipe Mischkin-, demonstra sua
fé, seu amor ao próximo, numa verdadeira reencarnação crística, em
contraste com a incredulidade de Ivan, o qual finda por reconhecer
que cada ser humano tem uma espécie de “demônio” dentro de si,
cuja argumentação contrária, o autor Dostoiévski tanto se preocu-
pou em carta, que o seu editor não alterasse, porquanto ele garan-
tiria a contra-argumentação, em capítulo posterior. E assim foi feito.

4 DOSTEOIEVSKI, Fiodor M. “Os irmãos Karamázov. Porto Alegre: Martin Claret Editora,
2012, p. 255 e SS., até p. 263.

219
Regis Frota

O livro de Dostoiévki foi adaptado para o cinema, mais de


uma vez. Interessa-nos comentar, aqui, apenas uma delas: a trans-
posição dirigida pelo filho de imigrantes judeu-russo, Richard
Brooks, em 1957, clássico de Hollywood que conta no elenco com
Yul Brunner, Maria Shell e Lee J. Cobb, mas o faremos só adiante,
porquanto importa comentar, antes, a literatura dostoievskiana no
que a mesma influenciou a gênero da Psicanálise Freudiana.
Convém ressaltar, ainda, algo como os leitmotiv do roman-
ce, um dos quais a largueza da narrativa fiodoriana “Os Irmãos Ka-
ramazov” a exemplo de quando Ivan afirma que as crianças são
inocentes e todo o universo não vale as lágrimas de uma só criança
que sofra castigos e a prática de maldades e torturas de adultos.
Em OS IRMAÕS KARAMAZOV, Dostoievski faz esse perso-
nagem (Ivan) reconhecer-se uma centopeia, a recordar a aranha,
de que se culpava equiparar-se o personagem central de Crime e
Castigo, o Raskolnikov, tanto quanto aracnídeo animal fica caracte-
rizado o pai dos irmãos, Fiodor Pavlovitch, o qual além de indivi-
dualista e sensual, se casa duas vezes e diz: “Não tem mulher feia,
gorda ou triste, rica ou pobre, tudo vale...”Com efeito, à página 159,
do livro da editora Martin Claret, no capítulo sobre “os sensuais”, o
autor mostra um Pavlovitch pedófilo, provavelmente, sendo o pai
biológico do adotado Smerdiakov, seu verdadeiro assassino, como
ficará provado ao final.
Consoante afirmado por Joseph Frank, em sua célebre bio-
grafia de Dostoievski:
“Os irmãos Karamazov alcançam uma expressão clássica do
grande tema que preocupava Dostoievski desde Memórias do sub-
solo: o conflito entre a razão e a fé cristã. A grandeza controlada e
medida do romance evoca espontaneamente uma comparação com
as maiores criações da literatura ocidental. Divina comédia, Paraíso
perdido, Rei Lear, Fausto – são os títulos que vem a mente quando se
tenta medir a estatura de “Os irmãos Karamazov”, pois essas obras
também tratam da discussão , que nunca tem fim e nunca terá, pro-
vocada pelas “questões malditas” do destino da humanidade.”5

5 FRANK, Joseph. Dostoievski- um escritor em seu tempo. a biografia. Tradução de


Pedro Maia Soares. São Paulo: Cia. Das letras, 2010, p. 997.

220
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Por outro lado, podemos afirmar que Dostoievski se aprofun-


da na psicologia de seus personagens, de tal modo, tão densamen-
te, que a psicanálise como ciência do entendimento e compreensão
das profundezas inconscientes humanos, teria sido antecipada pela
intuição autoral do literato russo.
Na conformidade de Laéria Fontenele, há uma singularidade
da interpretação em psicanálise: “Fundada em 1900, a psicanálise
utiliza a mesma nomenclatura conceitual de então para nomear algo
fundamentalmente heterogêneo aos saberes científico e filosófico.
Este último apresenta, por sua vez, uma longa tradição a respeito da
interpretação psicanalítica, que a distingue da posição que ocupa
no círculo hermenêutico da filosofia, de seu valor exegético para a
compreensão dos textos sagrados e de seu sentido científico.”6
Destarte, a sexualidade e a interpretação, se constituindo em
dois núcleos transcendentais de tematização freudiana, se encon-
tram já em demasia na obra dostoievskiana, a qual se caracteriza
pela investigação dos labirintos da culpa dos seus personagens, ver
a antecipação das descobertas psicanalíticas. Aliás, este foi um tema
mui caro ao século XIX, a descoberta do “monstro” interior, o lado
demoníaco no interior profundo do ser humano.
O velho escritor estava, por fim, obtendo algum reconheci-
mento popular, inclusive da juventude, porquanto fora aplaudido
– mereceu mais palmas nos “grandes debates” travados com Tcher-
nichévski, retornado à Rússia.
Na sua monumentalidade, Os Irmãos Dostoiévski merece
ser seccionado em partes, em atendimento à nossa pretensão de
analisá-las, mais detidamente. Inicialmente, as relações entre os
personagens Ivan Fiodorovitch e Smerdiakov, os assassinos men-
tal e material do pai Pavlovitch, cujos diálogos, em três conversas
demoradas, ocasião de visitas que Ivan faz ao valete, reveladas a
psicologia dos mesmos, pelo autor narrador.
Inicialmente, revemos o capítulo terceiro, do livro quinto, in-
titulado “os irmãos se conhecem”, das páginas 254 a 262, da edição
brasileira da editora Martin Claret: aí identificamos um núcleo ideo-
lógico/psicológico destes irmãos, o qual vai descrito com requintes
de detalhes e apuro, pelo escritor da “racionalidade inconsciente”
que foi Dostoievski, ao descrever razões viscerais dos seus persona-

6 FONTENELE, Laéria. “A Interpretação. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 2002, p. 10

221
Regis Frota

gens. Vejamos que no livro 3, já identificáramos a “largueza” ou um


dos leitmotiv do livro, especialmente no capítulo IX, “os sensuais”,
onde o autor demonstra o “modo Karamazov de ser”. 7
Já aqui, no livro 5, capitulo 3, observamos o quanto Dostoie-
vski se antecipou a Freud: identificou na alma humana as instâncias
do inconsciente, do pré-consciente e a da consciência, tanto quanto
o pai da psicanálise identificaria e nomearia de ego, superego e id.
No diálogo (p. 165) entre os irmãos Ivan e Aliocha, este indaga da-
quele: “Irmão, deixe-me fazer uma pergunta. É possível que todos
tenham o direito de julgar seus semelhantes, de decidir quem me-
rece viver e quem não merece mais?” A resposta de Ivan Fiodorovi-
tch mostra-se incisiva e esclarecedora de seu caráter, bem como do
desejo freudiano: – “Para que meter nisso a avaliação dos méritos?
Resolvendo essa questão, o coração quase não preocupa com os
méritos, mas com outras razões muito mais naturais. Quanto ao
direito, quem não tem o direito de desejar?” (p.166, id. Ibidem).
Afinal, desejar a pulsão de morte não dava cadeia, o show
precisava continuar. Adiantemo-nos na leitura dos Irmãos Kara-
mázov: pulemos para a quarta parte, livro XI, quando Ivan Fiodo-
rovitch demonstra sua alegria por Aliocha achar que seu irmão
Ivan seria capaz de ter desejado a morte do seu pai, preocupação
dostoievskiana e objeto dos tormentos psicológicos do autor, em
toda a extensão da obra, como se pode inferir do diálogos entre os
personagens, descritos e reveladores da antecipação literária das
pesquisas científicas freudianas, de como o Sigmund Freud chegou
à metapsicologia, em duas tópicas: na primeira tópica, identificando
a estrutura do consciente e do inconsciente; a teoria da ab-reação,
inicialmente, pelo método da hipnose, com a técnica da catarse e
da superação do trauma, e, depois, acontecendo a descoberta do
pré-consciente e as repressões, numa verdadeira estruturação en-
cadeada: consciente, pré-consciente e inconsciente, cujas páginas
dostoievskiana prenunciam.
Por exemplo: às páginas 306, 688, 692 ,792 e 705 dos “Irmãos...”
podemos identificar o verdadeiro prenúncio literário e artístico devi-
damente articulado de todas essas duas tópicas freudianas, cujo mé-
todo da segunda seria “uma associação livre de ideias” e, tendo utili-

7 Convém ler ou reler, com atenção as páginas 161/165, da edição mencionada, da Martin
Claret.

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O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

zado o cientista inaugurador da psicanálise, a técnica da interpretação


e ressignificação de representações, transferência e resistência.8
Vejamos ou revisemos: Ivan Pavlovitch ficara feliz ao ser bei-
jado por seu irmão Aliocha, no entanto, sua pré-consciencia pesada,
impede de ele aceitar o beijo do pai, antes da despedida a Moscou,
consoante descrito à página 306:
“Acompanhando a saída do filho, Fiodor Pavlovitch se agitou,
preparando-se para beijá-lo. Mas Ivan lhe apertou apressadamente
a mão, com visível desejo de evitar o beijo. O velho logo compreen-
deu isso e se conteve.” (op. Cit. Idem, ibidem, pág. 306)
Com efeito, dado o ortodoxismo dostoievskiano, se Ivan ti-
vesse aceitado o beijo do pai, se teria sentido qual Judas, o qual
entregou a Cristo após o beijo...
Já adiante, em pleno livro XI, da parte V, das páginas 688 a
692, Ivan Fiodorovitch retorna ao diálogo com seu irmão Aliocha, a
quem confia e ama, oportunizando a este afirmar a certeza de que
quem assassinou o pai comum não foi o irmão Ivan, Não foi você,
não foi”. À página 692, dialogam assim:
“ – Isso não é possível! – exclamou Aliocha.
– Como não é possível? Eu mesmo o li.
– Tal documento não pode existir – repetiu Aliocha, arden-
temente. – É impossível, pois não foi ele o assassino. Não foi ele
quem matou nosso pai, não foi ele!
Ivan Fiodorovitch parou bruscamente.
– Então, quem é o assassino, em sua opinião? – perguntou
Ivan, parecendo frio; até mesmo certa arrogância se manifestava no
tom de sua pergunta.
– Você mesmo sabe muito bem – respondeu Aliocha, de for-
ma suave e penetrante.
– Quem? Você quer contar a fábula sobre aquele idiota lou-
co, aquele epilético? Smerdiakov?
Aliocha logo sentiu seu corpo estremecer inteiramente.

8 FREUD, Sigmund: “O Inconsciente”, 1915, artigo integrante de suas obras completas,


cujo capítulo VI destaca alguns pontos que se referem, assim como o título do artigo, a
comunicação entre os dois sistemas (Cs e Ics- consciência e inconsciência)). Aliás, nesse
capítulo o pai da psicanálise nos traz uma nova etapa que poderá interferir ou não na
passagem da representação do Ics (inconsciente) para a Cs (consciência), passando
pelo Pcs (pré-consciência).

223
Regis Frota

– Você mesmo sabe muito bem quem – Aliocha deixou esca-


par fragilmente, sem fôlego.
– Sim, quem? quem? – exclamou Ivan, agora quase com rai-
va. Toda a sua frieza desaparecera de uma só vez.
– Só sei de uma coisa – disse Aliocha, quase sussurrando. –
Não foi você quem matou o nosso pai! “
– Não foi você? O que quer dizer “não foi você”? - disse Ivan,
aterrado de surpresa.
Não foi você quem matou o nosso pai! Não foi! – repetiu
Aliocha com firmeza.” (p. 692/3, id. Ibidem).9
Lá adiante, na página 792, a leitura remete à insinuação de
familiaridade do personagem Smerdiakov com Ivan, ao tentar –
em uma de suas três conversas, conjuntas-, quando aquele tenta
tranquilizar a consciência do irmão inteligente. À página 705, Ivan
Fiodorovitch já está mais tranquilizado, duas semanas depois de
retornado de Moscou, de onde voltara, dialogando com o valete,
Smerdiakov diz:
“Agradeço por tudo. Marfa Ignatievna nunca me esquece,
em sua infinita bondade, ela sempre me ajuda, sempre que eu pre-
ciso de alguma coisa. Pessoas boas me visitam todo dia.
– Até a vista. Aliás, eu não dizer que você sabe fingir um
ataque epilético... Você também não... não o aconselho a dizê-lo –
disse de repente Ivan, sem saber por quê.”
Acontece que o leitor sabe, àquelas alturas da leitura...o lei-
tor sabe que são dois cúmplices do assassinato, trata-se do “incons-
ciente” de Ivan a traí-lo. Essa foi a segunda conversa entre ambos,
no hospital. Só nos resta descrever a terceira e última conversa.
A terceira e última conversa de Ivan e o Valete mostram-se,
às escâncaras, os “estados conscientes e inconscientes” do primeiro
irmão, uma verdadeira “largueza” ou leitmotiv profundo do livro,
uma verdadeira pré-figuração de Freud na literatura mais amadure-
cida do escritor russo. Estes estados de “consciência e inconsciência”
de Ivan revelam os dois abismos psicanalíticos do personagem.

9 Observe-se que ambos os irmãos Ivan Fiodorovitch e Aliocha - conversam, se encontram


abaixo de um “poste”, representando uma luz, e o ex-seminarista Aliocha afirma que quem
mandou dizer a Ivan que não foi ele o assassino do pai deles foi Deus. Eis o espírito
religioso de Dostoievski atuando na narrativa...

224
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

De nós humanos todos, que abraçamos, por natureza, o bem


e o mal, as tentações do bem e as tentações do fazer algum mal, se-
gundo Dostoievski. Nessa “terceira e última conversa com Smer-
diakov”, contida no livro XI, capítulo VIII, porquanto Smerdiakov
percebera na visita anterior que seu meio-irmão irmão, apesar de
ser um “homem inteligente” não percebera, totalmente, do quanto
mal e decidido estava ele, valete, de retirar a vida do pai Pavlovitch,
carecendo, apenas, da autorização moral de Ivan, e então, necessita
voltar à carga, voltar a arrematar o quanto seria ele valete capaz
de executar os planos que corriam no inconsciente de Ivan. Eis, às
páginas 865 e seguintes, da edição de Martin Claret, a descrição
perfeita do perfil psicológico de Smerdiakov:
“Ele odiava as suas origens, sentia vergonha delas, não con-
seguia imaginar, sem ranger os dentes, que tinha “saído da S... mer-
di... áchtchaia”. Em relação ao empregado Grigóri e à sua esposa,
seus benfeitores em sua infância, ele não sentia respeito algum.
Amaldiçoava a Rússia e zombava dela. Seu sonho era emigrar para
a França e tornar-se francês.”10
Qual o homem do subsolo, Smerdiakov é descrito, verda-
deiramente, como uma mosca, e assim se considera ele próprio. E
como observamos do pequeno trecho inserido na descrição de seu
perfil, ele se considerava “filho de uma mãe merda, a partir do seu
próprio nome: S... merdi... áchtchaia.
Uma grande crueldade se pode extrair do texto dostoievskia-
no, mas assim é sua literatura, quase sempre trágica, negra, profun-
da na caracterização dos seus personagens humanos e pecadores,
sobretudo aqueles como Smerdiakov e Ivan, para quem, incrédulo
costuma afirmar que “se Deus não existe, tudo é permitido”. Toma-
dos pelo pecado da queda, eles reconhecem que Ivan puxou ao pai,
daí seu encontro com o diabo, o qual chega a dizer algumas coisas
certas, sendo que nessa prefiguração de Freud, o “Deus inconscien-
te” de Ivan Karamozov, é demoníaco.

10 DOSTOIEVSKI, F.M.: Op. cit. p. 865. O advogado o descreve com tintas verdadeiras:
“Parece-me que ele não amava ninguém, além de si mesmo, e tinha uma autoestima
impressionante. Imaginava que a civilização não fosse nada além de belas roupas, ternos
decentes, camisas limpas e botas brilhantes. Imaginava ser o filho natural de Fiódor
Pavlovitch (e, realmente, disto existem provas); a sua situação em relação aos filhos
legítimos de seu patrão, causava-lhe horror: tudo era para os outros filhos, nada para
ele mesmo; para eles, todos os direitos, toda a herança, mas ele mesmo, ele mesmo não
passava de um cozinheiro do próprio pai”. Id. Ibiem.

225
Regis Frota

Outra parte interessante do livro Os irmãos Karamazov a


merecer nossa transcrição, abaixo, se encontra na página 347 e SS.,
da mesma citada edição, em seu livro 6, capitulo 3, letra F, quando
nos fragmentos do Starret compilados por Aliocha, repousa a res-
posta à indagação: “Os senhores e os servos podem se tornar irmãos
espirituais?11
“– Meu Deus, alguns dizem, o pecado existe também entre o
povo. E, até mesmo, de hora em hora, o fogo da corrupção salta aos
olhos, vindo de cima. Também entre o povo, acontece o isolamento,
surgem os acumuladores e sanguessugas: o comerciante já se encon-
tra cada vez mais ávido de honras, aspira a exibir a sua instrução,
sem ter instrução alguma, e para tanto desdenha vergonhosamente
os velhos costumes.”
Dostoievski reconhece, sem preconceitos, a existência do
mal e da possibilidade da corrupção em todas as classes sociais,
inclusive no povo, na classe popular. Por último, urge ressaltar do
livro sob comentário, alguma característica de Dmitri Karámazov, o
qual é acusado de parricídio, que conserva, apesar das acusações
judiciais e persecutórias, um “senso de honra”, cuja dupla de irmãos
Ivan e o valete á não possuíam mais, destarte, o advogado de defe-
sa lembra o personagem intelectual Karmazinov, de Os dem|õnios,
ao atribuir esse caráter em Mitia, e ao afirmar que o pai Pavlovitch é
um mal pai, tratando-se de um pai desleixado, bebarrão e sensual.
Dmitri, aliás, em pese a acusação judicial de haver matado o próprio
pai – ainda que abaixo de “erro legal” –condenado a 20 anos de
trabalhos forçados-, confessa que, graças às orações de sua mãe,
não teria matado o próprio pai, ainda que tivesse prometido que o
faria, por diversas vezes.
Os irmãos Karamazov livro complexo e largo, de umas tais
larguezas que seria veleidade pretender esgotá-lo em tão curto es-
paço de rápidos comentários, significados apenas com a intenção
de ressaltar-lhe a pré-figuração freudiana de algumas definições
cientificas da psicanálise.
Outra preciosidade literária de Dostoievski se intitula O
eterno marido,12 cuja leitura se constitui num deleite: o embate

11 Op. cIt, p. 347, último parágrafo.


12 DOSTOIEVSKI, F. M.: “O Eterno Marido, tradução de Boris Schnaiderman, editora 34, S.
Paulo, 2016, após as duas edições anteriores (a primeira, pela JOE – J. Olympio, em 1961;

226
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

psicológico entre os personagens centrais, Vielchâninov e Paviel


Pávlovitch Trussótzki prefiguram personagens freudianos, com
suas neuroses e catarses, efetuadas no relacionamento, bem como
na convivência atribulada após nove anos de separação; No capítu-
lo 4, a mulher, o marido e o amante são paradigmas de psicologias
humanas repetidas na história russa, como na ocidental, em geral.
Por outro lado, o livro torna a leitura atraente, sob o ponto
de vista da nossa análise, na medida em Vielchâninov sonha em
dois capítulos, com tal vivacidade e beleza literária na descrição e
analise dos sonhos, que até parece que estamos a ler um texto de
Sigmund Freud, na “interpretação dos sonhos”. Nos capítulos 2 e 15
se encontram os dois sonhos do amante, Vielchâninov, os quais, se-
gundo Boris Schnaiderman, 13 “aparecem com tanta nitidez e inten-
sidade que dão a impressão de serem mais reais que os aconteci-
mentos do cotidiano”(sic); com efeito, e essa capacidade literária do
escritor russo de descrever com a intensidade e a nitidez os sonhos
de personagens controversos e complexos, em seus estados de in-
consciência (Régistrando a presença do id) e pré-consciência – ca-
racterística, ademais dos sonhos na obra de Dostoievski (releiamos
os sonhos do protagonista de Crime e Castigo, Rodión Raskolnikov)
e estaremos ante uma real pré-figuração freudiana da psicanálise.
No caso concreto de esparsas observações sobre O eterno
marido cabe-nos, igualmente, observar os capítulos 15 e 16, os
quais apresenta a “figura do homem do crepe no chapéu”, como
alguém representante do “assassino sem querer” (bem contraria-
mente ao Rodión que planeja e, executa seu assassinato duplo,
após longa preparação e planejamento), a ponto de merecer uma
transcrição de excerto, dada a maravilha de descrição onírica da
personagem central:
“Sim, é a verdade absoluta! – decidia ele, aprofundando-se
cada vez mais em seus pensamentos e procedendo a uma análise.
– Este Quasímodo de T... era suficientemente estúpido e grato para
se encher de amores pelo amante da própria mulher, em quem não
notara nada durante vinte anos! Respeitou-me nove anos segui-
dos, lembrava-se de mim com veneração e conservou na memória

e a segunda edição em 2003), conta com um belo posfácio do tradutor, o qual faleceu em
2016, com 99 anos.
13  Op. cit. p. 209, em posfácio da lavra do tradutor Schnaiderrman.

227
Regis Frota

minhas “lucubrações”. E eu não sabia de nada, meu Deus! Ele não


podia estar mentindo ontem! Mas amava-me acaso ontem, quando
expressou o seu amor e disse: “Ajustemos as contas”? Sim, amava-
-me por ódio; e este amor é o mais forte... 14
Outro livro de autoria dostoievkiana que nos interessa co-
mentar se intitula Humilhados e ofendidos,15 publicado em 1861,
dez anos após o cumprimento da pena de trabalhos forçados na
Sibéria, por vários anos, sofridos pelo autor russo.
A estória do livro se centra na figura do personagem escritor
Ivan Petrovitch, narrador da trama, daí porque muitos leitores iden-
tificam uma espécie de auto ficção, avant la lettre.
Desde o início da leitura já percebemos a profundidade psi-
cológica do personagem descrito, seu sentimento da culpa e a es-
perança de redenção se veem expressas, desde o princípio da des-
crição da vida do velho e rabugento alemão, que se acompanhada
de seu cachorro velho, Azorka, os quais ambos virão a falecer, logo
no primeiro capítulo, portanto, na primeira parte do romance. Vão
aparecendo muitos outros personagens (Natacha e seu pai, além do
poeta), ao largo da leitura, todos com tanta densidade que não deixa
de interessar à interpretação psicanalítica do texto; Exemplo é o caso
de Natacha, a qual, quando instada a se reconciliar com o pai, res-
ponde que a expiação para ser merecida, há que se fazer sacrifício, o
sofrimento é que apaziguará o orgulho, a vaidade do velho.
Frank 16 observa que “do início ao fim de Humilhados e
ofendidos, vemos Dostoievski à beira de uma nova fase de cria-
ção”. E afirma:
“Nesse romance podemos, vez por outra, captar sugestões
de tipos de personagens e motivos que servem como arautos ine-
gáveis de obras-primas por vir. As personagens têm muitas vezes
uma aparência familiar em sua psicologia, e não é exagero apontar
uma conexão entre a esfarrapada menina Néli, de Humilhados e
ofendidos, e a bela Nastácia Filippovna, de O Idiota. Ambas são
consumidas pelo “sofrimento egoísta”. Ambas exibem um orgulho

14 Op. Cit., “Eterno marido”, p. 186.


15 DOSTOIEVSKI, Fiódor: “Humilhados e Ofendidos”, tradução de Fátima Bianchi, São
Paulo: Editora 34, 2018.
16 FRANK, Joseph: Dostoievski – um escritor em seu tempo – A biografia, Cia. Das letras,
São Paulo, tradução de Pedro Maia Soares, 2010, p. 399.

228
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

feroz, uma tendência à auto humilhação masoquista e um ódio


eterno a seus perseguidores e opressores.”
Outro personagem, Valkovski, que roubara o dinheiro da ga-
rota e do pai, justifica sua maldade e seu cinismo, dizendo que não
devolveu o dinheiro da garota por que a estaria impedindo de ser
infeliz, ou seja, identificamos aí o complexo do sexo sofredor, de
Dostoievski... Consoante observado por Alberto Martins:
“É em Ivan Petrovitch que se cruzam as várias linhas do en-
redo: o drama dilacerante de Natacha, a jovem de boa índole e
alma elevada que rompeu com todas as convenções para viver uma
paixão estrambótica e desastrada; a fascinante, revoltada, despro-
tegida e ultrajada Nelli, imagem da infância mendicante e objeto de
exploração sexual (tema que Dostoievski aborda com aguda per-
cepção psicológica); a personalidade ambivalente e cheia de nuan-
ces de Masloboiev, o amigo de colégio do narrador que, ao mesmo
tempo em que frequenta os antros mais obscuros de Petersburgo, é
capaz de deslindar os planos que o perverso príncipe Valkolski traça
nas rodas da aristocracia.”17
Outra preocupação mínima de nossa parte é colocar o con-
texto do autor em cada época da publicação de cada livro que co-
mentamos. Por exemplo, em torno de julho de 1862, Fiódor Dos-
toievski viaja a França e Inglaterra, onde visita o “Palácio de cristal”,
durante a exposição mundial, em Londres; ao tempo que se admira
com o progresso capitalista londrino, identifica a apocalítica pers-
pectiva resultante desta cidade, desse “palácio de cristal,” em cujos
capítulos 8 e nove, do livro Memórias do Subsolo,18 por 3 vezes, é
feita referência como o “formigueiro humano”.
Na primeira parte do livro identificamos o buraco, o porão,
o subsolo descrito pelo autor como um debate do narrador com os
radicais dos anos 1860, do periódico “O contemporâneo”, a quem o
personagem central chama de “meus senhores”..., enquanto na Par-
te segunda, a “neve molhada” é clara referência aos anos 1840, no
estilo de Bieslinski, da geração de 20 anos anteriores à geração dos
sessenta. Cuida-se de um embate ideológico que o autor trava com
as duas gerações, oportunizando-se prefigurar as ideias de Sigmund

17 DOSTOIEVSKI, Humilhados e ofendidos, Editora 34, editora citada, orelhas.


18 DOSTOIEVSKI, Fiódor M. “Memórias do subsolo, Tradução de Boris Schnaiderman. São
Paulo: Edit. 34, 2019.

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Regis Frota

Freud acerca do inconsciente, na medida em que o personagem-


-narrador, o homem do subsolo, se insurge contra todos e tudo, à
potência e força de paradoxos, o protagonista que inicia o livro di-
zendo-se um “homem doente e mau”, investe contra a aparência da
consciência humana, perscrutando o inconsciente escondido.
Consoante afirmado por Joseph Frank, a respeito de Memó-
rias do Subsolo:
Os desenvolvimentos culturais mais importantes do século
XX- nietzchianismo, freudismo, expressionismo, surrealismo, teolo-
gia da crise, existencialismo – reivindicaram para si o homem do
subsolo ou foram associados a ele por intérpretes zelosos; e quan-
do o homem do subsolo não foi saudado por um prenúncio profé-
tico, foi exibido como uma advertência sinistra e repulsiva.”19
Nesse par de anos atribulados de viagens internacionais de
Dostoievski (1862/1864), o escritor russo escreveu além de Memó-
rias do Subsolo, outro livro “Notas de inverno sobre impressões de
verão”, constante de uma “série de artigos nos quais lança um ataque
em grande escala às principais devoções do credo radical,”20oportu-
nidade especial através da qual Dostoievski manifesta - qual russo
culto típico - sua aversão à imitação dos modelos europeus, já que
se mostra um eslavófilo inveterado, preparando-se, devidamente
para publicar seu “Memórias do subsolo”.
O prenúncio da psicanálise, ou pelo menos, de seus funda-
mentos. O contexto histórico era de luto e tristeza, porquanto em
1864, em 15 abril, morre Dmitrievna (esposa do escritor russo) e,
em agosto, seu irmão mais velho, Mikhail; Seria de se esperar que
Dostoievski, na condição de leitor assíduo e contumaz, recebesse
influências dos pensadores e filósofos contemporâneos seus. Em
1841, Feuerbach trouxe o céu teológico para a antropologia; Em
1861, ocorre o levante dos poloneses; Schoppenhauer elaborara a
teoria do porco espinho: se o homem se distancia, é por que o seu
semelhante o espeta; se aproxima-se é porque faz frio, ideia absor-
vida pelo autor russo
O egoísmo esclarecido ou educado, segundo Tchernichevski, é
o credo moderno da racionalidade, mas Fiodor Dostoievski não acre-
dita nisso, prefere crer na sua “irracionalidade” contra Tchernichevski.

19 FRANK, J.: “Op. cit., p. 497.


20 FRANK, J.: Op. cit. p. 451.

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O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

O próximo livro de Dostoiévski, será o “Crime e Castigo”


(Prestupleine i Nakazânie); Em 1864 – 1865 (no verão, Doitoievski
vai pra Alemanha(Wiesbaden) e quebra, jogando na roleta, e em
que pese Kraevski haver rejeitado a proposta de adiantar dinheiro
ao autor, por “os bêbados”, e Stelovski ter prometido dinheiro pelos
direitos autorais de toda a obra de Dostoievski, acrescida a propos-
ta de mais um romance novo, que será o “Jogador”, o qual vai ser
“estenografado “pela moça que o ajudará, doravante, na composi-
ção dos romances.
Crime e Castigo tem três versões: a 1ª , de Wiesbaden, que
é destruída por Dostoievki que deixa, no entanto, além do “teaser”,
anotações, as quais servirão de comentários críticos a Robert Frank,
o qual interpreta que o autor que pretendia apenas um conto –
objeto da primeira proposta contista-, mas cujo desenvolvimento
da Psicologia dos personagens – sobretudo da complexidade do
Raskolnikov, mais “os bêbados” (antes rejeitados), resolve ampliar,
recomeçando a escrever, com novas Narrativas; Na segunda versão,
escrita já em San Petersburgo, o narrador é o próprio assassino, o
Rodión Raskolnikov, o qual, na versão final, no entanto, na versão
definitiva, inicia dois dias antes do fato criminal (parte I) e só a partir
das partes 2 a 6, o autor (agora, narrador onisciente) se diferencia
do personagem central que investiga por quê fez ele o que fez,
onde, na superfície, se buscam pistas falsas do assassino (motivação
de Porfiri Petrovitch e do investigador policial), a la Conan Doyle
e/ou Agatha Christie, o nó profundo, consta de buscar as razões
últimas (tipo, febre emocional, implosão moral, cálculo utilitarista
humanitarista, etc.).
Desprezo e fúria, caracteres de Rodión Raskolnicov: nas ano-
tações N.B. – trata-se de uma menção a Napoleão Bonaparte. Mar-
tin Buble e o EU: o eu de Sócrates, o Eu de Goethe e o Eu de Jesus,
pois o eu demoníaco era o N.B.
O calor de julho em São Petersburgo, mal cheirosa, onde to-
dos os abonados vão para as Datchas, só ficando os ofendidos e
humilhados/ o isolamento de Raskolnikov / o disfarce para não se
encontrar com a sub-locadora, e poder ensaiar o crime, dois dias
antes do evento, e desprezar o medo, que parecia ter por “besteiras
cotidianas (aluguel atrasado, etc.).
Logo, na apresentação, o mau cheiro afeta os nervos aba-
lados do jovem estudante, os bêbados na rua, mesmo em dia útil,
ele chegava a saber inclusive quantos passos dava de sua casa até

231
Regis Frota

a casa da velha agiota (750 passos), com devaneio que o irritava,


passou um mês sobre a vacilação, até o empreendimento, vai testar
o crime, planejando-o.
Escritores como Albert Camus (e Scheller) em “O homem re-
voltado”, e o filósofo que morre em 1928, se indagam procurando
saber quanto do ressentimento dos revoltados (revolucionários) não
seria fruto da inveja, a revolta ou ressentimento de não terem a vida
dos ricos, não seja desprezo e fúria pela revolta que manifestam. E
o leitor percebe em Crime e Castigo, após o ressentimento ao sair
do Ensaio do cometimento do crime da velha agiota, o personagem
central sente sede de cerveja e encontra Marmieliadov (Cap. 2). O
romance é composto de seis partes e um epílogo.
Destarte, o ensaio do crime é descrito no livro com os se-
guintes tópicos:
1. Marmieládov na taberna
2. Carta da mãe (2º dia)
3. Análise da carta, Svidrigailov
4. O sonho (debaixo de uma árvore, Rodión dorme e sonha,
e ao acordar, se sente curado das tentações) Lisavieta na
praça – o acaso supersticioso
5. Flashback, os preparativos
6. O assassinato; enquanto na segunda parte, lemos o en-
contro na Delegacia, o entorno do roubo no cubículo de
Razumikhin, incidente da chicotada e da esmola... o pri-
meiro delírio, enfim.
Raskolniki age como os velhos crentes, dissidentes, aqueles
que não aceitaram, na Rússia ortodoxa, a mudança papal ocorrida
na Itália, cuja decisão após a reunificação daquele país, que deixou
a Igreja Católica somente com Roma, em 1870, o papa recebe pelo
concilio do Vaticano, além do título de Primado honorífico, o título
da infalibilidade do bispo de Roma (título jurídico e de fé).
Nesse sentido, recorremos a observação pertinente de Laé-
ria, na qual se enquadra a personalidade sonhadora extraordinária
do personagem central, Ródion Ralkolnikov, cuja interpretação psi-
canalítica merece nossa atenção:
“Ao apresentar em 1900 o conceito de interpretação em sua
forma nascente, Freud tomou todos os cuidados para transmiti-lo a
seu leitor de modo a que não pairassem quaisquer dúvidas quanto

232
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

à sua pertinência com aquilo que lhe mostrara a clínica psicanalítica:


a ultrapassagem do sistema consciente para um outro, dotado de
leis próprias – o inconsciente.”21
Outro livro, outra leitura. Agora é a vez de “UM JOGADOR”,
pensado pelo autor russo no verão de 1863, quando de viagem pela
Europa com sua antiga amante, Appolinaria Súslova, como tema
para uma novela, e descrito em carta para seu editor, Strakhov, da
seguinte maneira:
“Tenho em mente um homem que é franco, muito culto, mas
ainda incompleto em todos os aspectos, um homem que perdeu a
fé, mas que não ousa não acreditar, e que se rebela contra a ordem
estabelecida, mas ainda a tema. O principal, porém, é que toda a
sua seiva vital, suas energias, sua rebeldia, sua ousadia, foram cana-
lizadas para a roleta.”22
Alexei e Polina, personagens centrais da novela, vivem das
expectativas do jogo de roletas cujos destinos mudam de noite ao
dia, além de Madame Blanche, De Grieux e dr. Wesley; não esperan-
ça de ressurreição para esse jovem russo.
De 1867-1871, Dostoievski faz nova viagem à Europa onde
se encontra com cultos russos como Ivan Gontcharóv (Oblamov e
Olga) e Turguniev, o qual vivendo há algum tempo fora da pátria,
discute com o escritor russo, foi dura a briga com Turgueniev sobre
o caráter russo, após publicado por este, do livro “Fumaça”– eles
discordam, Turgueniev diz que se Rússia desaparecesse do mapa
mundi, nada perderia o mundo
Vão a Genebra, depois de Basiléia, onde Anna Grigorievna
se impressiona na pinacoteca onde vê o quadro de Hans Holbein
(1521), o qual nunca sairá da memória de Dostoievski, o qual ficara
longos minutos admirando, trepado em cadeira, para analisar... e se
referirá em O Idiota, no capitulo 2, da quarta parte.
O livro O Idiota tem 4 partes – e no diálogo de Rogojin com
o príncipe Michkin, pág. 255 e 256, da versão brasileira, da editora
34, vale a pena conferir o texto do profeta Isaías, parte 4, bem como
o capitulo “O terrorismo individual”, de Camus, de O homem revol-
tado, fazendo contraponto com Fiodor Dostoievski.

21 FONTENELE, Laéria: Op. cit., p. 15.


22 FRANK, Joseph: Op. cit., p. 623.

233
Regis Frota

Antes, Dostoievski escrevera artigo que não chegou a ser


publicado sobre Bielinski (morto em 1848) e refletido no periódico
“Diário de um escritor”, de 1873/1875. Escreveu sobre os niilistas e
sobre Bielinski, o qual afirmou que Cristo desapareceria em função
da modernidade, da ciência e da ação política.
Vários exilados russos estavam na Suíça (de Bakunin, a Olga-
riov, etc.), inclusive o casal Dostoievski participa de Congresso da
Liga da Paz, e embora perca o discurso de Bakunin, lê muito a res-
peito e se aproxima dos exilados, para ter acesso aos jornais russos
na Suíça, e escrever contra os niilistas.
Dostoiévski, em carta a Maikov, diz que: “Não perdemos o
jeito russo cristão de ser... Nosso povo russo é mais elevado, mais
ingênuo e cheio de uma ideia cristã diferente, que a Europa com
seu catolicismo doentio, e com seu luteranismo estúpido...”
Entre “O idiota” (1868) e “Os demônios” (1871), ele escre-
veu e publicou “O eterno marido”.
Contudo, o precursor da Psicanálise continuava com seus
apertos financeiros e sua segunda esposa , Anna Grigorievna, que
com ele viveu por 4 anos na Europa, odiava aceitar que Dostoievski
tivesse que mandar todo o dinheiro para manutenção dos filhos
malandros do irmão falecido (um casal), aos quais ele igualmente
não apreciava, exceto a sobrinha; E sempre pedindo a seus editores,
adiantamentos monetários.
Fiodor Dostoievski escreve a sua sobrinha dizendo que es-
creveria sobre um personagem (“um homem positivamente belo”)
um ser humano bom e vero, onde já se notava que o feio é mau; O
bom é belo, no sentido grego; ademais, de 1860 a 70 o romantismo
está morto!
O príncipe Michkin –personagem central de O idiota é um
ícone, é um ideal! Se se acredita ou não em ícone, a fé é acreditar
no bem além de nós, na perspectiva psicanalítica, eis o complexo de
salvador, que o escritor alimenta.
O amor grego já conhecia 3 facetas: o Eros, o amor carnal, a
paixão; a Filia, o amor amizade; e, o Ágape, o amor doação, fraternal.
Logo no início de O idiota, uma das Epantchine pergunta:
você já amou?
Já se apaixonou? Indaga ela na 1ª cena: Rogojin, Liebiniev
e Michkin no trem: notam que estão ante um “Rodovik”, ou um
“Louco sagrado” – Gania ou Gavrila tem complexo de inferioridade

234
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

e baterá no príncipe; E, mesmo assim, merece fazer atenção o lei-


tor às páginas 78-81, diálogo do príncipe com as filhas do general
Etpanchine, que rigolam, riem ultrajantemente, troçam do príncipe
Michkin, quando este descreve que um jumento o fez feliz. A since-
ridade desse personagem central lembra ser o mesmo um misto de
Cristo com Dom Quixote.
Dostoievski admirava seu compatriota escritor, o poeta Pus-
chkin, o qual morreu em duelo, era um homem do século passado,
já era do passado, de certa forma.
Eis um grande “leit motiv” de O idiota: ao escrever muito
contextualizado, lê os jornais e descreve, Dostoievski encaixa suas
ideias sobre a grande Rússia, por crer que a natureza não é seleti-
va, e sim, indiferente à dor alheia... O jovem personagem Hipolit é
revoltado, debocha da natureza, chama a natureza de Ela, a morte.
Enquanto Camus se revolta, não se firma em fé, Dostoievski pratica
um cristianismo profundo, compassivo, caritativo à humanidade. E
afirma: Se o preço de sermos saudáveis, for a hedionda mortandade
sistemática de crianças, não aceito, não gostaria de viver assim.
Outra ambivalência se identifica quando Hipolit quer se ma-
tar, bate o catolé do revólver... quer morrer, apressar a morte, mas
ao bater o catolé do instrumento, os amigos e vizinhos presentes
ao aniversário de príncipe Michkin, começam a zombar de Hipollit,
como se ele fizera isto, de propósito, apenas para se exibir.
Como a natureza, segundo Hipolit, zomba dos gênios, pou-
pando o gado, o rebanho de cordeiros da massa, Mozart morre
aos 30 anos, quedando-se na vala comum...Tantos poetas e gênios
são desfeitos, se é assim, por que os fez o criador?
Hipolit interpreta a pintura de Holbein como a de alguém
que perdeu a fé, que a natureza (ELA) eliminou também a Cristo,
como fará, ao final, com todos. Para Dostoievski, a natureza sig-
nifica amar doando a vida pelos outros, superar a vaidade, o self
egoísta. Nesse sentido, refere-se à pintura de Holbein, que mos-
tra um (Cristo ou alguém) que superou a própria natureza... não
tendo alimentado a revolta metafísica do personagem Hipolit Faz,
destarte, um paralelismo: Mischkin (crente) versus Hipolllit (des-
crente) face à morte ...
Fiodor Dosteoievski está chateado pelo liberalismo dos jo-
vens que lutam para reformas socialistas, em busca de superar os
“utópicos”, niilistas (Piesariev, Bakunin).

235
Regis Frota

Nessas alturas, a observação do biógrafo de romancista rus-


so pertine:
“No passado, Dostoievski criara personagens ficcionais que,
como encarnação de certas ideias e atitudes socioculturais, pode-
riam ser considerados “históricos” num sentido amplo, mas antes
de Os demônios (Biési) jamais se baseara em acontecimentos reais
que fossem de conhecimento público”. 23
Ora, quais os principais leitmotiv de “OS DEMONIOS”? Eis
alguns: 1- O afastamento da pátria quando alguém passa anos fora
de casa; 2- A fé é sempre mediada pela cultura e pala pátria; O amor
a Rússia é igual ao amor a Deus.
Destarte, o leitor atento irá perceber que Dostoievski preten-
deu escrever um romance sobre o Ateísmo, de alguém que perdeu
a fé (a geração de 1840); O caso Nietchaiev, inspira a criação de
personagens mitológicos inspirados igualmente em Pisariev, Baku-
nin, Bielinski, cujo ateísmo como pretendido personagem que não
publica, perde a fé e encontraria Cristo e o Deus Russo.
Dostoievski imagina e projeta para Katkof e Strakov (críti-
co literário) um novo projeto de escrita d´Os demônios”, antes, de
maio a novembro escreve “O Eterno Marido” enquanto viaja por
Praga, onde não se adapta e vai a Dresden, com a mulher grávida,
queixosa e ele cheio das ideias de desadaptação no Exterior força-
do, loucos para voltar para casa na Rússia, sem poder, pela pressão
dos credores, fugindo das dívidas...
O romancista é contra a colônia russa que vive em Dresden,
já não mais se sentindo como russos, senão alemães, qual Tur-
gueiniev, duplo do personagem Karmazinov; ora, em resposta ao
Vronski, de Tolstoi , cuja primeira menção a Apolon Maikov, sobre a
intenção de escrever “Os demônios”, a lá “crime e castigo”, mostra
o personagem deixando o ateísmo e encontrando o Deus (ou seja,
o povo russo). Dostoievski colhe a ideia de agrado popular nas pá-
ginas sangrentas dos jornais, porquanto o príncipe Mischkin não
agradara ao público leitor, o qual não compreendeu ou aceitou um
personagem belo e bom, um homem crístico e cervantino, inserido
na realidade russa, de finais do século XIX.

23 FRANK Joseph: Op. cit., p. 744.

236
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Em maio de 1869 – Serguei Nietchaia, como dito a Katkov, era


Serguei: um inveterado niilista e incitador do povo nas revoltas que
a geração de jovens de 1860, inicia, se propondo matar, até mes-
mo se suicidar pela causa revolucionária, contra jesuítas e padres,
posto que em novembro de 1869, Ivan Ivanov foi assassinado por
Nietchaia na academia agrícola, tendo levado ao envenenamento
da juventude. O romancista estava encontrando a motivação para
a escrita de mais uma novela ou romance: Pisariev – Basarov, Ther-
nichvevski, o qual responde a indagação seguinte: e se for minha/
sua mãe a ser sacrificada? Resposta: - Por que não? Já que satisfaria
minha porção racional, minha razão? Assim pensava o niilista jovial
russo da época de Os demônios, cujo início refere-se ao evangelho
do S. Lucas, a legião entrou nos porcos que se lançaram no pre-
cipício, ou seja, como a geração de 1840, a manada da juventude
radical foi tomada pelos demônios, qual legião, o espírito que saiu
do povo russo, se fez legião, comprovava Dostoievski em contrapo-
sição a Herzen, que escrevera para o escritor cristão, acusando-o de
não ter coragem suficiente para fazer, para efetivar a reforma, ou
seja, a política ! “Você é apenas um idealista, desça para a terra...!”,
Dostoievski, o qual responde desse modo: “O homem que perde
seu povo, que quer falar mal do seu país, desde o Exterior, também,
perde a fé de seus ancestrais... por isso que a Rússia não perde a fé.”
Procede inteiramente a observação de Frank, a respeito des-
se livro:
“Aquele que seria o primeiro romance político de Dostoievski
tornava-se agora Os demônios, um “poema trágico” sobre os ma-
les morais e espirituais que afligiam a cultura russa e tinham atingi-
do o ápice com o aparecimento de Nietchaiev e seus cúmplices.”24
Resulta em mais um livro extraordinário, seja na literatura
avant la lettre, seja na expressão da análise psicanalítica dos perso-
nagens humanos que constrói.
A figura de Nikolai Vsievolódovitch (Stavróguin): vive numa
total indiferença moral (tedium vivae) – doença antológica que os
romancistas já conheciam, como Svidrigailov ou Kirilov que preten-
dem se suicidar, e o farão ao final dos romances nos quais se cons-
tituem pessoas atormentadas.

24 FRANK, Joseph: Op. cit. p. 721.

237
Regis Frota

Por seu lado, o romance Os demônios avança e aprofunda a


psicologia de personagens, de tal modo que os novos niilistas tem
em Stiepán Trofímovitch, o pai dos personagens centrais, o velho
historiador, o qual já fora famoso nos anos 1840, todo vaidoso, no
início do romance e, que volta no final do livro, como representante
da geração de 40, da qual o círculo de Petrachevski e Bielinski (este
falecido em 1848), contava com o próprio autor enquanto seus con-
temporâneos, por ser daquela idêntica geração.25
Vejamos a citação: “Andaram dizendo que nosso círculo era
uma divertida tagarelice liberal russa, sem nenhum objetivo, socia-
listas de salão, só possível na Rússia, éramos românticos e lendo
poemas, ingênuos, esquerdistas de araque... utópicos...” ora, o Stie-
pán Trofímovitch , praticamente, só fala em francês, e por isso tinha
esse passado e que fala mal da nacionalidade russa (pag. 46 e Ss.),
enquanto o caráter alemão degradava a Rússia.. a seu ver, basta-
ria esse pan-eslavismo que nunca superou o ócio para caracterizar
bem o personagem e a visão culpada do autor.
A fortuna crítica elaborada pelo tradutor diretamente do
idioma russo ao português, Paulo Bezerra, à guisa de posfácio da
edição da 34 editora, dilucida:
“Bakhtin afirma que o romance é um gênero em formação,
o único nascido em plena luz do dia da história. A história é um
processo também em formação, e só um gênero em formação é
capaz de dar conta desse processo. Demais, o romance interpreta o
passado à luz do presente na perspectiva do futuro. Os demônios
é um romance em que Dostoievski revela sua sensibilidade excep-
cional para as vicissitudes da história, o seu sentido dialético, assim
como a dialética da alma do ser humano como entidade enraizada
na história alimentada por ela”.26

25 Há que Régistrar os três manifestos russos, durante o século XIX: o primeiro para
os cultos e letrados de Moscou, propugnou por uma espécie de Assembleia Nacional
Constituinte; o segundo manifesto foi denomina de a nova geração, a partir de 1861,
incluiu os ex-clérigos; e, por último, o terceiro manifesto ficou conhecido como – A nova
Rússia – , o qual apregoava a revolução sangrenta com a eliminação do casamento;
supressão da família; a dissolução dos conventos; a desapropriação dos bens da Igreja,
tudo em função do descontentamento dos agricultores com a abolição da servidão,
naquele país, pátria de Dostoievski.
26 DOSTOIEVSKI, Foódor M.: “Os demônios –, Editora 34, São Paulo, Tradução de Paulo
Bezerra diretamente do russo, conferir” – Posfácio – esclarecedor, das págs. 689 a 699,
intitulado “Um romance de tons proféticos”.

238
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Piotr Stiepánovitch bebe champanhe e fica falando mal de


nossa nacionalidade russa...tudo em função do ócio no qual vive,
caprichoso.
Piotr Stiepánovitch diz: “A nova sociedade não precisa de
mais livros, mais educação, apenas de trabalhadores, sem muita ci-
ência, sem muita saúde, só o básico, pensar é para os dirigentes”.
Destarte, Dostoievski se reconciliou, ao final, com Herzen, quando
este criticou Bakunin, ao afirmar que não precisava nivelar todos, o
escritor faz essa visão tacanha ser rejeitada.
Encontram-se no romance dois grupos: Em um deles estão
Chigaliov e Piotr Stiepánovitch – defendendo o conceito de críti-
ca política – o socialismo real, como se percebe na página 391 e
seguintes, da edição do livro editado pela 34 editora, quando, em
reunião, eles apresentam o” programa da nova sociedade”, da te-
mática política à filosófica, podendo o leitor atento, vislumbrar no
drama intelectual de Kirillov, a antecipação do Zaratrusta de Nietz-
che, e nas ideias dos nomeados Chigaliov e Piotr Stiepánovitch, os
fanatismos, o totalitarismo despótico, stalinista ou hitlerista, ou seja,
a montagem do Chigaliovismo. Merece a transcrição de um excerto
de pequena parte do diálogo entre Stavroguin e Vierkhovienski:
“Ouça, Stavroguin: igualar as montanhas é uma ideia boa, e
não é cômica. Sou a favor de Chigavióv! Não precisamos de educa-
ção, chega de ciência! Já sem a ciência há material suficiente para
mil anos, mas precisamos organizar a obediência. No mundo só
falta uma coisa: obediência.”27
Régistra-se uma grande mudança, de uma beleza para outra,
onde se indaga: que é mais belo: Shakespeare ou um par de botas?
Rafael ou petróleo?
Piotr Stiepánovitch conclui: “Eu proclamo que Rafael e
Shakespeare estão acima da libertação do homem, do socialismo, a
verdadeira interação entre o belo e o prático. Ora, na página 408 e
seguintes do livro há uma cena central na qual Starovsky tenta con-
vencer a Piotr Stiepánovitch (antigo niilista de 1840) que em 1860,
já não pode crer em nada, em coisa alguma.
Ele argumenta que sendo os governantes e cultos, apenas
um décimo da população (desde Platão, na República, já era as-
sim) com três tipos de sociedades: o povo/o médio/ e os dirigentes

27 Op. cit., p. 407.

239
Regis Frota

ou os aristocratas; Seu colega, Chigaliov, argumenta que a cada 30


anos, se constata, na sociedade, uma convulsão social, logo, não
tarda uma virá, há de vir uma revolução. Após ter visto a questão
política do romance (dos niilistas) ... vamos à questão metafísica, a
qual pode ser observada no livro Os demônios.
Será uma “questão metafísica”: – a) moral; b- regeneração de
um homem perdido; Piotr Stiepánovitch tem medo do arrependi-
mento, do ridículo... ele que era filho da Várvara e do General; Como
o pai fora morto muito cedo, na guerra da Criméia, e cuja mãe o
conduziu para o preceptor Stiepanovitch (os preceptores, desde
sempre tinham sido utilizados por reis, nobres, vejamos o caso de
Aristóteles que foi preceptor de Alexandre, o Grande), convém Ré-
gistrar que o apêndice do romance é de grande transcendência pois
a parte central do livro fora retirada, mas deveria compor o capitulo
9, da parte 2, justo como capitulo central da narrativa, de modo que
se tornou muito difícil para o leitor, se situar na leitura, sem o refe-
rido capítulo nono.
Outra observação: o duelo de Nikolai Vsievolódovitch versus
Gaganov, consoante descrito na página 236, bem como o dialogode
Kirilov com Nikolai Vsievolódovitch, quando aquele faz uma apro-
vação filosófica do mundo! É bonito, é bonito, é bonito!!! Na página
posterior, da edição da editora 34, “eles sabem que são maus, por-
que sabem que são bons!”.
Tanto Chatov (que sonha reconciliar-se com o povo russo)
quanto Kirilov são ambos “crias” do Starovski, que fará uma con-
fidência ou confissão sobre o Deus russo, é dizer, aquele persona-
gem, Chatóv, compreendeu, ainda na América, que o internacio-
nalismo não funcionava, porque ele amava o “Deus russo, o povo
russo”. Olhemos a página 253 do livro, onde consta a confissão de
Chatov: “Creio na Rússia! E em Deus? Em Deus? Sendo arguído,
Chatov responde: “Eu... Eu hei de crer em Deus”.
A literatura dostoievskiana, no caso, tanto antecipa a psica-
nálise, porquanto o famoso psicanalista Carl Jung dirá e reconhe-
cerá o quanto é difícil mudar de Deus (ele que nasceu em 1876, e a
publicação de “os demônios “data de 1871.
Vejamos que Stavróguin pretende se confessar com um
monge e, inclusive, confessar o mal do século de que sofre: o tédio,
próprio da geração dos românticos alemães e ingleses (Pushkin,
Hermantov, Lord Byron, Shelley, etc., contra o dandismo típico do

240
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

personagem Manfredo, de Byron, “Caim”, idem, Stavróguin teria


tido uma fase de “enfant terrible”, de dandi byroniano.
Nikolai Vsievolódovitch quando: a) puxara a venta de al-
guém ; b) mordera a orelha do velho governador – duas vezes, a
segunda com mais voluntariedade; c) quando dotado de uma bele-
za luciferina; d) dotado de ironia maliciosa ; e)possuidor de uma in-
diferença permanente aos outros; f) com ausência de autodomínio,
embora ele tivesse quando afirmara a Barbara que, se ela quisesse ,
ao final, ir morar com ele na Suíça, ele tinha determinação, até para
ir para um mosteiro, antes de confessar-se e suicidar-se; g) usa
em seu benefício, argumentos atenuantes, etc., tudo são caracteri-
zações profundas da personalidade de um personagem central de
Os demônios.
Outros autores como Camus (de “o homem revoltado”) a
Baudelaire (de “flores do mal”) descrevem, nas pegadas do escritor
russo, o prazer de sentir-se fosse carrasco, fosse vítima.
Nikolai Vsievolódovitch tem em Stavróguin seu Deus, na me-
dida em que a estética da singularidade é-lhe típica, porquanto sem
compromisso com os demais, quer é “chocar”, enquanto poeta do
crime, pretende “épater le bourgeois”, como diria o francês.
Nota-se que no Apêndice, Nikolai Stavróguin se rebela con-
tra os conselhos de Tikkon, o monge a quem se confessa , lê a
carta de sua confissão, a qual, antes era parte central do livro, mas
que o editor impugnou e veio, reconstruído ou reescrito, para o
apêndice ou anexo, das edições realizadas de Os demônios, já em
pleno século XX.
Doravante Dostoievski trabalharia muito para concluir sua
obra prima os irmãos Karamázov, obra e epílogo que, enfim, envia
a Nikolai Liubimov, seu editor, em 8 de novembro de 1880, afirman-
do em carta ao mesmo:
“Aqui está o romance acabado! Trabalhei durante três anos
nele, publiquei durante dois, é um momento memorável para mim.
Quanto a mim, permita não lhe dizer adeus. Ainda pretendo viver
vinte anos e escrever.”28
Pena que poucos meses após, a 28 de janeiro de 1881, Dos-
toievski vem a falecer.

28 TANASE, Virgil. “Dostoievski – biografia”. Tradução de Gustavo de Azambuja Feix,


Porto Alegre: L&PM Editora, 2018, p. 312.

241
Regis Frota

Bem antes tinha publicado outro livro, “O adolescente”, cujo


personagem central, Arkady, é um anti-herói, como grande parte
dos personagens de Dostoievski são anti-heróis, confessa no capi-
tulo quinto, parte I, o prazer que sente através da contenção, antes
de ejacular, como que para segurar a dor e o prazer da disparada,
trata-se de um personagem que é misógino, mas conserva uma
carta na manga de alguém que ele quer, contém-se com vistas à
pratica de uma maldade posterior.
Convém identificar aqui, a exemplo do que o faz o biógrafo
Frank, o que ficou conhecido como “a era das proclamações”: fo-
ram três as gerações de escritores ou pensadores que, na Rússia
de Pedro, o grande, podem ser identificados assim: primeira gera-
ção, denominada “o grande russo” (Obrutchev), da qual participou
Aleksander Pushkin, anterior a 1840; a segunda geração, identifica-
da como “a nova geração” (chelgunov/mikoilov), e da qual partici-
param Tchernichévski e Dubroninbov, além do próprio Dostoievski
(tendo pagado caro, com sua prisão na Sibéria), iniciando suas ati-
vidades entre 1840 até 1861, quando foi abolido o regime de servi-
dão, na Rússia; e, uma terceira geração, denominada “A nova Rús-
sia” (Zaitchnievski), após 1860, a geração dos niilistas; Embora de
1870/80, inicia uma outra geração quando os intelectuais passam a
acreditar que tinham que ir ao encontro do povo russo, no campesi-
nato, afinal, transformada nos “Terroristas”, cuja vida o autor Fiodor
Dostoievski já não acompanhou em função da morte, anterior aos
acontecimentos dos 80; por último, existiu uma geração de russos,
dos anos 1870 a 1880, para a qual o escritor Dostoievski já não
pode agir e interferir.
Ora, está claro que o mujique camponês russo não quer, de
fato, saber do ateísmo da nova geração terrorista, cujo raio de ação
se desenvolve durante um quartel de século (de 1880 a 1905). O
capítulo, O Cidadão, nome aliás, de uma revista editada e chefiada
a redação pelo conservador Fiodor, de 1872-74 (início), quando não
escreve romances;
Anna Grigorievna e Fiodor Dostoievski fizeram algo espeta-
cular, depois de publicar “os demônios”, com Katcov, decidem por
uma edição própria, tiragem de 3500 exemplares, e bancando, arre-
cadaram lucro de 4000 rublos
Acontece que Varvara (Bárbara), de 23 anos, revisora das pro-
vas da revista, colunista de esquerda da FAÍSCA – em 1904, em suas

242
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

memórias, descreve a impressão guardada de Dostoievski, desse


modo: “era taciturno e triste, considerado pela esquerda como “ma-
luco”, posto que quando estressado, exigia dos gráficos e empre-
gados, total cumprimento de suas ordens, quase como um “maso-
quista”, que suportava a dor, qual cristão...”
Enquanto o materialismo histórico critica a moral perene
(pois, historicamente, já não tem valores ou princípios...), caracteri-
zando-a como moral burguesa que devesse ser extinta, F. Dostoie-
vski tem valores absolutos, justiça e verdade cristãs ortodoxas;
Outros contemporâneos a Fiodor: Os Irmãos Soloviov
(Vladimir e Vladim, um crítico literário, o outro, filósofo); e
Narodichevski, que era populista, advogando que o artista quer
ir aonde o povo está.
Note-se que os “reich” germânicos: o 1º durou 1000 anos,
de 800 a 1806, cujo final se deu com Napoleão Bonaparte invadindo
a Alemanha; 0 2º REICH, com Bismarck, o qual durou até o final da
primeira grande guerra mundial, em 1918, quando se brigou pelos
“Vosges”, vitória de Estrasburgo francês; e o 3º REICH – de 1923 ao
final da 2ª grande guerra mundial.
O povo russo se pergunta como se desenvolver sem pas-
sar pela pobreza – miséria – do capitalismo londrino de fumaças
e cortiços, com operários e mulheres extenuadas, eis a indagação
profunda da Rússia do século XIX.
À pág. 813, a biografia escrita por Joseph Frank a respeito da
vida e obra dostoievskiana, aborda sobre a preservação da ruralida-
de russa nacional.29
Vale a pena conferir o diálogo do pai aristocrata (In “o ado-
lescente”) com o seu filho bastardo, Arkady, quando o pai preceptor
afirma que a mãe era rude, não sendo da mesma classe social, desi-
gual culturalmente que o filho...”
NARODINIK – retorno ao Cristo humano, correr para o povo,
ir onde o povo está, a nova geração que tenta valorizar o campesi-
nato, para instruí-lo, evitando o pauperismo capitalista... Disse Mi-
khailóvski: “Fiodor Dostoievski, cuja visão da nova geração, em “os
demônios” parece desenhada exageradamente caricaturizada, pos-
to que os russos não podiam ser como os europeus, ateus, matando

29 FRANK, J.: “Dostoievski: um escritor em seu tempo – biografia. [s.l.]. Companhia das
letras, p. 813 e SS.

243
Regis Frota

para a revolução... ”Ou seja, as classes altas estavam condenadas,


mas o povo russo podia, perfeitamente, descrer e portanto, pegar
na espada... Dostoievski responderá.
O escritor russo publicou o livro “O Adolescente” entre “Os
demônios” e os “Irmãos Karamazov”: em notas do autor russo, Fio-
dor Dostoievski declara que gostaria de fazer um romance com 3
irmãos – um incrédulo, outro crente e o terceiro caminhando para
eliminar o pai (já planejava os IRMAÕS KARAMAZOV) enfim, em
1875, publica O Adolescente, cujos personagens centrais são pai e
filho bastardo, numa difícil relação.
Arkady, o filho bastardo, que viverá uma fase dândi, e o pai
Vercilovsky, aristocrata – cuja rivalidade seria amar a mesma mulher
(Katerina Kiovska) que o filho bastardo;
Um 1º Leit-motiv da obra referência, ou nos leva ao final dos
DEMÔNIOS, na morte de Stiepán Trofímovitch, em cuja fase ante-
rior à morte se encontra com vendedora de bíblias, que pretende
convertê-lo, mas já com febre, encontra a Varvara, antiga namora-
da, que igualmente quer que ele se converta, se confesse antes de
morrer por uma extrema-unção, descrita na pág. 640, da Edit.34, o
qual, a exemplo de Tolstoi, cuja esposa o levara à extrema-Unção,
mas ele não aceita o padre...
Ele se passou com Voltaire, que passara toda a vida a ecrasser
l´église, e no final da vida, aceita se confessar para não ser enterrado
em vala comum, para ter uma morada eterna num cemitério cristão.
“Voilà, ma profesion de foi”, diz Stepian, o francófilo. – Se
Deus existe, por que não me perdoaria? se ele me ama? parece iro-
nia do intelectual que, todavia, duvida...
Stiepán Trofímovitch diz que mentiu a vida inteira... “O des-
medido, o infinito inspira todo ser humano, viva a grande ideia!” A
egolatria kantiana e hegeliana... É como se Fiodor Dostoievski qui-
sesse salvar a Stiepán Trofímovitch.
A situação de Arkady: a mãe, camponesa, antes casada com
um homem mais velho, tipo são José-, Nakar Goldorik, um antigo
servo, agora liberto, mas Arkady não era, de fato, filho dele e sim
de Versilov, antigo aristocrata que engravidara a mulher camponesa
e indeniza a gravidez, cujo dinheiro da indenização, será guardado
para, como espécie de “seguro” do futuro do garoto Arkady, que
vive o mal do século, o tédio, embora ele tenha sido deixado para
ser educado por terceiros, nem recebeu o nome do pai, que será

244
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

motivo de bullying no colégio, pelos colegas, sobretudo do colega


Lambert, forçando a Arkady ir morar com Kraft, conforme pág. 58,
da Edit. 34.
Kraft vai morrer porque não acredita que, sendo russo (ape-
sar do nome germânico), não crê que a Rússia possa contribuir com
alguma coisa para o progresso da humanidade do século XIX, qual
Chatóv, dos possessos.
A ideia-força de Arkady – pág. 63, é assim expressa:
“fui tomado de desejo de falar: cada um de nós é um uni-
verso, tem seu “telos”, e se não quiser trabalhar para a humanidade
(como eu que não quero fazer nada pelos outros, somente em meu
benefício...) Me deixem em paz...quero viver só, não fazer nada pelo
futuro da humanidade, quero a liberdade individual, utilitarista...”
Mas ele não acredita; e diz: “Por que devo acreditar no Fu-
turo? se não o verei, se não estarei mais aqui para desfrutar... Ele
(Arkady) culpa a sociedade por não mais acreditar nos “feitos heroi-
cos”, por ser individualista, utilitarista, “só tenho uma vida pra viver”
... (pag. 64).
Justifica seu projeto, seu Deus, na página 99, da Edição da 34,
um pouco como “o homem do subsolo”. Reconhece que desde os
12 anos, deixou de gostar das pessoas, elas se tornaram desagradá-
veis...Haverá uma dissociação da personalidade de Versilovski, tipo a
vilania de São Petersburgo em que vivera jogando, raparigando, etc.
Quando o filho Arkady pergunta ao pai como se tornou tão
culto, tão inteligente?
Na terceira parte do livro O adolescente, o personagem
Lambert terá um papel mefistofélico, quando introduzirá Arkady em
São Petersburgo; Aí, também, vai aparecer o pai velho (Dogoruk),
este sim, que se tornará seu guardião moral e não, Versilov, que
disputara com Arkady a posse da mesma mulher.
Arkady Andreievitch Dogoruk versus Versilov (pai biológi-
co e competidor amoroso, pois será um triângulo amoroso, bem
no estilo vierdung Roman – romance de educação estilo Goethe
– 1795 – com “anos de aprendizagem de Wiesmaster” e “Anos
de peregrinação.
Ora, no livro O Adolescente, Fiodor Dostoievski quer discutir
a ideologia – a partir da narração juvenil de Arkady (o narrador), da
geração do 1870.

245
Regis Frota

Ao final, Arkady é congratulado pela grande ideia, a no-


ção do grande povo russo, eis um Leit-motiv, a ideia de uma
largueza e a profundidade ou peso do triângulo amoroso, numa
história de adolescente.
Arkady, personagem central da trama, queria ser alguém im-
portante, tipo milionário ou “self made man”, para depois distribuir
tudo, mas sendo orgulhoso do seu passado obscuro, cheio de bulliyng
nos colégios, etc., se refere a seu meio-irmão e à sua ½ irmã, Lisa, que
pretende se casar com Sokolsky, o qual arquiteta, no final, o sequestro
do velho, mostrando um lado sombrio de sua personalidade;
Arkady se rende a ambos os pais: ao biológico (Versilov) e
ao legal (Doguruk) na terceira parte do romance, já adulto; identifi-
camos outra “larguesa” à pág. 424, na edição da Edit. 34: eis o leit-
-motiv: a exemplo de Dmitri Karamazov, que reconheceu ter “alma
de aranha”, pela aracnofobia de Dostoievski, livro, aliás, onde outro
personagem, Stalroguin, já tivera o mesmo sonho com aranha, sig-
nificando o “lado sombrio da personalidade” de Arkady.
Outra largueza presente no O adolescente: Arkady se indaga
como Versilov teria se mancomunado com Lambert, aquele verme?
Verificamos comprovação nas págs. 399 e segs., bem como na pág.
425 e seguintes, existe a largueza do povo russo.
Arkady se supera, ultrapassa seu egoísmo quando se inte-
ressa por sua meia irmã, Lisa, mas na descrição do sonho aracnídeo
percebe-se, hoje, uma antecipação das descobertas de Yung, uma
monstruosidade vulcânica da personalidade de cada um de nós,
que possuímos dois lados, o bom e o mal, no subconsciente, inte-
grando o ser humano, o jovem que descobre a baixeza, reconhe-
ce ter um coração devasso, de dupla personalidade, a questão do
Duplo – espécie de Ego e Id, que não conhecia por esses nomes, à
época, Dostoievski se antecipa à ciência psicanalítica, mais uma vez.
Na pág. 401, cap. 3, parte 1, vemos Arkady pedir que o leitor
não esqueça de nossa alma de aranha; Arkady diz: “Não estou fa-
lando da moral de mamãe, que é muito superior ao senhor pai, em
termos de moral, mas é apenas uma sombra a seu lado; Versilov é o
único que tem vida, que vive, tudo gira em seu torno...”
O fraco do livro é uma figura do príncipe que namora a sua
½ irmã, Liza, e cuja única fortaleza é entregar-se `a prisão, onde vem
a morrer, e a irmã (Andreievna) chega a cair numa escada e, igual-
mente, vem a falecer.

246
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Os caracteres do outro personagem, o pai Versilov, po-


dem ser resumidos desse modo: 1) abjeto, embora forte; 2) com
grande capacidade camaleônica de sobrevivência; 3) adaptação,
mostra fraqueza ao filho Arkady, embora se supondo um auto-
elogio; 4) vivaz como um cão de guarda; 5) faz sofrer à mulher
camponesa, mas quando querela ou quebra vai precisar dela,
fortalecida e inquebrantável;
São dois sentimentos opostos: ama e odeia à sua mulher
simples camponesa, a quem abandona quando supõe necessitar
liberdade para viajar, mas volta, posteriormente, para o conforto de
sua prestação de afazeres caseiros.
Kraft não se adapta, como Versilov o faz ou consegue, e por
isso, termina se suicidando, pág. 225, ali Fiodor Dostoievski prevê a
quebra da bolsa de valores, quando prevê o futuro do filho Arkady,
é uma previsão apocalíptica do autor.
Na página 525 , da edição da editora 34, o personagem
Versiloi se duplica, qual “o médico e o monstro”, o duplo, quando
Makar morre, o qual doara ou legara um ícone a ele, vide último
parágrafo da pág. 529, posto que ante TATIANA que ama tanto a ele
quanto ao filho e a uma outra mulher diz Versilov: “Eu me duplico,
em frente ao cadáver de Makar”; ele pega o ícone legado, e diz que
tem vontade de quebrá-lo, espatifá-lo no chão, qual a um inimigo
(em hebraico significa Satã), e sabe que sendo Sonia Tatiana uma
criatura pura, isto funciona como acusadora da sua maldade origi-
nária, e isto é uma alegoria.
Versilovski, no final, quer atirar em Katerina, mas Arkady o
impede e a bala só pega no ombro, salvando-o; Versilovski fala que
os prussianos e alemães estão se matando, e sendo russos é que
deveriam ser europeus, com valores fundamentais (apocalíptica ob-
servação), típico pensamento dostoievkiano
Arkady escondido ouve a conversa de Versilov com Katerina:
“Você ainda me ama? Amei, mas agora já não mais, pois numa épo-
ca, cheguei a me apaixonar por você, mas agora não mais”. Eis um
extraordinário diálogo, a exemplo daquele em que Chatov mantivera
com Stravoguin, quando, em Os demônios, revela que o admirava.
Se começamos pelo final, analisando Os irmãos Dostoié-
vski, encerremos essa crônica sobre a possibilidade literária da an-
tecipação psicanalítica do escritor russo do século XIX, com suas
primeiras obras ou romances: “Gente pobre” e “Recordações da

247
Regis Frota

Casa dos mortos”,30 embora não tenhamos tido a veleidade de en-


globar comentários à totalidade da extensíssima produção literária
do russo, o qual escreveu, ainda, outros romances como O eterno
marido, A senhoria, O sonho de um homem ridículo, Uma his-
tória desagradável, etc.
Fátima Bianchi, tradutora diretamente do russo, de diversas
obras dostoievskianas para a editora 34, de São Paulo, fez um belo
posfácio ao primeiro romance-livro de Dostoievski “Gente pobre”,
quando afirma:
“É provável que não haja outro caso, pelo menos na Rússia,
de um escritor que da noite para o dia tenha saído da mais comple-
ta obscuridade para a glória antes mesmo de ter sua primeira obra
publicada. Em 1845, aos 25 anos de idade e completamente desco-
nhecido, Fiódor Mikháilovitch Dostoievski surge no círculo literário
de Vissarion Bielinski, o principal crítico da época, trazendo consigo
os manuscritos de seu primeiro romance, Gente pobre, prontos para
vir à luz. O poeta russo Nikolai Nekrássov (1821-1878) e o escritor
Dmitri Grigoróvitch (1822-1899), ao terminar sua leitura, em lágri-
mas, saíram anunciando que havia surgido um novo Gógol e predi-
zendo um grande futuro ao então jovem escritor. “31
Como se vê, o primeiro romance de Dostoievski, Gente po-
bre, publicado em 1846, vem marcado pelas influências da litera-
tura fulgurante do passado russo recente, é dizer, é um misto da
corrente denominada “ensaio fisiológico” francês – o qual utiliza-
va a forma de romance epistolar-, com a “escola natural”– na qual
pontificava Gogol (1809/1852) e Alexander Puchkin (1799/1837), in-
trodutores do afastamento do romantismo literário na Rússia, colo-
cando a alusão ao protesto social como temática necessariamente
imprescindível, leitmotiv valorizado pelo romance de Dostoievski, o
qual descreve a sociedade russa do campo e da cidade (sobretudo
de Petersburgo) vivendo em situações de pobreza e injustiça, antes
da decretação, em 1861, do fim da servidão.

30 Conferir de Régis Frota (Organizador)e Bernardo Lima Vasconcelos Carneiro: “Direito na


Literatura e no Cinema”, Edições UFC, Fortaleza, 2015, o capítulo 1, “A casa dos mortos, de
Dostoievski, e os (limitados) Direitos Fundamentais dos Presos”, p. 13/77.
31 DOSTOIEVSKI, F.M. “Gente pobre”. Tradução de Fátima Bianchi, São Paulo: Editora 34,
2009, posfácio de Fatima Bianchi p. 174/183.

248
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

A tradutora expressa muito bem o clima russo da escrita ini-


cial dostoievskiana quando afirma que:
“Num plano mais geral, a obra toda é um diálogo entre Pú-
chkin e Gógol, visto da perspectiva de meados dos anos 1840. De
um lado está a identificação e aceitação da história de “O chefe da
estação”, de Puchkin, por parte de Diévuchkin, como uma narrativa
realista e compassiva com as vicissitudes de um funcionário pobre.
De outro está a sua rejeição a “O capote”, de Gógol, como algo “in-
verossímil”. 32
O personagem central de Gente pobre, Makar Diévuchkin,
escreve e se joga contra a outra personagem missivista, Akáki
Akakievitch, protagonista de “O capote”, de Gógol, a quem Dos-
toievski irá superar e se contrapor, com cartas desse tipo:
“Minha inestimável Varvara Alieksieievna!
Ontem fiquei feliz, desmedidamente feliz, feliz a mais não
poder. Ao menos uma vez na via deu-me ouvidos, sua teimosa...”
(pag. 11, da edição da 34 editora).
Seguem-se numerosas cartas, idas e vindas de epístolas en-
tre os personagens centrais, o casal que indica as condições sociais
e psicológicas da gente russa da geração de 1840, quando a preo-
cupação com o coletivo vai ultrapassando o individualismo român-
tico, a saber:
Prezado senhor Makar Alieksieievitch!
Sabe que me vejo afinal forçada a me indispor de uma vez
por todas com o senhor? Juro-lhe, meu bom Makar Alieksieievitch,
que me chega a ser penoso aceitar seus presentes...”33
Percebe-se, de pouco a pouco, a preocupação com o di-
minuto salário dos funcionários, do “homem sem importância” da
Rússia serviçal, em que pese se dever, igualmente, notar o quanto o
romancista orienta as cartas de Gente pobre no sentido de elas re-
velarem o drama popular e campesino das pequenas cidades afas-
tadas dos centros urbanos, cujos personagens parecem se encon-
trar fadadas ao fracasso, sonhadores que são com uma Petersburgo
distante e por enquanto, inatingível.

32 Idem, ibidem, p. 177.


33 DOSTOIEVSKI, F.M. “Gente pobre”, Tradução de Fátima Bianchi. São Paulo: editora 34,
2009, p. 17.

249
Regis Frota

Nesse sentido, assiste inteira razão à tradutora e posfaciado-


ra, Fátima Bianchi, 34 ao afirmar que “para abordar o tema caracterís-
tico do “ensaio fisiológico”, em Gente pobre ele (Dostoievski) pega
a personagem criada por Gogol, mas a apresenta do ponto de vista
da personagem puchkiniana”.
Como sabemos da biografia do ficcionista russo, nascido em
1821, vem a casar-se com Maria Dmitrievna, em 1857, após o cum-
primento da pena de prestação de serviços como soldado na Sibé-
ria, e da pena de trabalhos forçados na mesma região gelada, vez
que, em 1849, fora comutada sua pena de condenação de morte,
pelo Czar.
Tendo retornado a Petersburgo, Dostoievski funda, com o ir-
mão Mikhail, a revista O Tempo, fechado pela censura em 1863; No
ano posterior, lança outra revista literária, A época, onde imprime a
primeira parte de Memórias do subsolo. Em 1864, perde a mulher
e o irmão. Em 1866, publica Crime e Castigo e conhece Anna Gri-
gorievna, estenógrafa que o ajuda a terminar o livro Um jogador, e
viverá com ela até o final de sua vida. Em 1867, Dostoievski e Anna,
fugindo das dívidas e dos credores, embarca para a Europa, onde
permanece por 4 anos, período no qual publica O idiota (1868) e O
eterno marido (1870). Volta a Petersburgo e aí publica Os demô-
nios (1871), O adolescente (1875), e inicia a edição do Diário de
um escritor (1873-1881).
Por esses poucos dados biográficos do ficcionista russo já
se percebe quão intensa foi sua atividade editorial. Publicado, ini-
cialmente, em capítulos na Revista Mundo Russo, entre os anos de
1860 e 1862, “Recordações da Casa dos mortos,” livro igualmente
traduzido sob o título de Memórias da casa dos mortos35 consta
de uma narrativa dos anos em que Dostoievski passou na prisão, na
Sibéria, de 1850 a 1854, aproximando-se, embora, do relato docu-
mental, o texto constrói um minucioso e brutal relato do dia-a-dia
dos prisioneiros.

34 Idem, ibidem, p. 180.


35 Vejam-se as edições da L&PM pocket, Porto Alegre, 2010 e da editora Martin Claret,
São Paulo, 2011, assim como várias outras edições deste livro, por outras editoras como
a 34, de S. Paulo, traduzidos os textos diretamente do idioma russo. Confiram o capítulo
primeiro do livro “Direito na Literatura e no Cinema”, Fortaleza: edições UFC, 2015, onde
é feita uma análise dessa obra dostoievskiana.

250
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Nesse diapasão, cabe indagar: como a literatura dostoie-


vskiana revela o trânsito entre o cinema e a psicanálise prefigurada
em Freud?
Ora, rememoramos Enéas de Souza36 quando o escritor gaú-
cho afirma que “o analista no cinema é um espectador, e ele é diri-
gido. Para empregar um raciocínio de Hitchcock e do cineasta José
Padilha – diretor brasileiro que não contradiz o mestre- o cineasta
dirige a cabeça do espectador”.
Se recordamos que a literatura russa do século XIX – com es-
critores do quilate de Dostoievski, Tolstói, e alguns outros-, atingiu
um patamar insuperável, tal qual o cinema de meados do século XX
atingiu seu apogeu enquanto arte e linguagem, mostra-se inigua-
lável o prazer para os olhos e a inteligência do espectador do cor-
rente século XXI, ver e rever uma adaptação de um clássico conto
dostoievskiano como Le notti Bianche (Noites brancas, de Luchi-
no Visconti, de 1957), com música de Nino Rota, e atuação de Maria
Schell, Jean Marais e Marcelo Mastroiani nos papéis principais.
O filme, apesar de realizado nos estúdios da Cinecittá italia-
na, reconstrói o clima noturno das noites brancas russas, descritas
por Dostoievski, resgatando, destarte, a beleza da fotografia de Gui-
seppe Rotunno, de modo a justificar plenamente a caracterização
da filmografia desse diretor neorrealista, o qual segundo, o filósofo
Gilles Deleuze, representa a “imagem-cristal em decomposição”.37
Trata-se de uma película atemporal e acrônoma, cuja realiza-
ção fotográfica e de cenários bem trabalhados pelo conhecimento
que Visconti tinha do teatro 5, bem como da ópera lírica, tendo re-
sultado na construção de uma realidade que parecesse ficcional e/
ou uma ficção fabulesca que lembrava ser real. A utopia de Natalia,
personagem central, que nunca perde as esperanças da chegada ou
do retorno do inquilino que lhe prometera voltar ao mesmo ponto
da noite branca, desafia, em 1957, as perdas das ilusões esquerdistas
que a invasão da Hungria daquele ano, atingira a muitos ocidentais.
São, portanto, dois momentos-ápices dessas artes narrativas,
a segunda metade do século XIX, mediante a literatura antecipatória

36 SOUZA, Enéas de: ”Cinema, a tela e o divã”, Porto Alegre: Editora Artes e Ofício, 2011,
p. 13.
37 DELEUZE, Gilles. Cine I – Bergson y las imágenes, Cactus Serie Clases, vol. 6, Buenos
Aires, 2014, p. 503 e SS.

251
Regis Frota

das interpretações psíquicas que a obra dostoievskiana representa,


e por seu lado, a segunda metade do século XX, na qual o cinema
atinge o auge de seu classicismo linguístico e estético.
Desse mesmo ano de produção, 1957, Régistremos outra
transposição para a arte cinematográfica, de outra obra-prima dos-
toievskiana, Os irmãos Karamazov, dirigida por Richard Brooks,
com música de Bronislau Kaper, e atuação de Maria Shell, Yul Bryn-
ner, Claire Bloom, Richard Basehart e Lee J. Cobb nos papéis prin-
cipais. Embora narrativa no estilo clássico hollywoodiano, o filme
guarda em seus 140 minutos de projeção, uma intensa fidelidade
aos fatos descritos no famoso livro.
Embora haja muitas outras adaptações significativas da obra
dostoievskiana para o cinema (especialmente algumas produções
russas de Crime e Castigo e O idiota, assim como produções da
BBC), acreditamos serem dispensáveis à composição do presente
ensaio, abordagens sobre tais filmes.
Portanto, em que pese termos aqui descrito mais a literatura
que as versões adaptativas ao cinema da obra dostoievskiana, não
custa lembrar ser dentro dessa posição que se encontra um psica-
nalista, ao assistir um filme – ou mesmo o romancista, especialmen-
te quando além de narrador ele se localiza como personagem no
livro, hipóteses em que trata nas primeira e terceira pessoas – como
é caso de Dostoievski em Os demônios –, na posição de alguém
dirigido e não diretor, que o analista se encontra ou vai ao cinema.
E como todo espectador, seu processo para sair do envolvimento e
das identificações que o filme trabalha é buscar o avesso da cons-
trução do filme.

252
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAUJO, Régis Frota (Editor). GRUA, Revista de Cinema, Direitos


Fundamentais e Literatura, ano III, nº 5, Relações entre Cinema e
Psicanálise, A Tela e o Divã, março/2016.
BENJAMIN, Walter: A obra de arte na era da reprodutibilidade
técnica. Porto Alegre: Editora Zouk, 2012.
DELEUZE, Gilles: Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart, São
Paulo: editora 34, 2011.
DOSTOIEVSKI, Fiódor: Gente pobre. Tradução de Fátima Bianchi,
São Paulo: editora 34, 2018.
__________. O eterno marido. Tradução de Boris Schnaiderman, São
Paulo: editora 34, 2016.
__________. Uma história desagradável. Tradução de Priscila Mar-
ques, São Paulo: editora 34, 2016.
__________. Os irmãos Karamázov. Tradução de Herculano Villas
Boas, São Paulo: editora Martin Claret, 2013.
__________. O idiota. Tradução de José Geraldo Vieira, São Paulo: edi-
tora Martin Claret, 2015.
__________. Crime e Castigo. Tradução de Fátima Bianchi, São Paulo:
editora 34, 2018.
__________. Memórias do Subsolo. Tradução de Boris Schnaiderman,
São Paulo: editora 34, 2019.
__________. Humilhados e Ofendidos. Tradução de Fátima Bianchi,
São Paulo: editora 34, 2018.
FRANK, Joseph: Dostoievski – um escritor em seu tempo - a
Biografia, São Paulo: Cia. Das Letras, 2018.
PAULO ENDO e EDSON SOUSA: Sigmund Freud, ciência, arte e
política, Porto Alegre: L& PM Pocket, 2010.
PONDÉ, Danit Falbel: Cinema no divã – grandes filmes em análise,
São Paulo: Leya Edit., 2015.
SOUZA, Enéas de: Cinema, o divã e a tela, Porto Alegre: Editora
Artes e Ofícios, 2011.

253
QUINTA
PARTE
CINEMA CEARENSE
CAPÍTULO 11
Capítulo 11

O CINEMA CEARENSE COMEÇOU CEDO E ...


VAI LONGE

Até finais dos anos sessenta, o Ceará lembrava uma terra dos
filmes inacabados. Parecia estranho, porquanto a nossa é conheci-
da, desde muito como a “terra da luz”, da qual a produção cinema-
tográfica tanto depende.
Porque, então, tal estigma?
Em virtude das transformações tecnológicas as quais pontua-
ram o presente século XXI, adicionadas à inexistência de órgãos en-
carregados de preservar a produção audiovisual amadorista cearense,1
grande parte do acervo filmográfico produzido na década do setenta
cearense já não remanesce, senão na memória dos seus espectadores,
ou em Régistros editoriais- qual este que intentamos efetuar-, que
tentam preservar a mencionada memória, talvez em vão.
Parsifal Barroso, ex-governador e grande intelectual cearen-
se, afirmou, a propósito do desprezo cearense pela preservação da
memória local e de seus ilustres conterrâneos:
“Relembro a incompreensão de que fui alvo, quando gover-
nei o estado do Ceará e, graças aos justificados e diligentes cuida-
dos de meu ilustre assessor, Mozart Soriano Aderaldo, consegui
encomendar ao saudoso escultor Leão Veloso as estátuas de Fa-
rias Brito, Alberto Nepomuceno, Clóvis Beviláqua, Capistrano de
Abreu e Gustavo Barroso, bem como a herma de Delmiro Gou-
veia... Alguns de mim se condoeram por que, ainda beirando meus
cinquenta anos, já estava caducando, com essa mania de erguer
estátuas a quem não as merecia. Outros, em maior número, se per-
guntavam entre si de onde havia eu tirado “esse tal de Farias Brito”,

1 O ex-governador cearense, o intelectual Parsifal Barroso já denunciara um certo desprezo


pela preservação da memória por parte do cearense; Na sua icônica obra “O cearense”,
da Gráfica Editora Record, 1969, o autor afirma: “Sempre sustentei a tese de que o povo
cearense é avesso à tradição e não cultura o passado, malgrado o esforço de uma heroica
minoria que mantém sua posição de contra-ataque, sempre em vão”. Apud caderno de
Lucio Brasileiro, no jornal O POVO, edição de 8/06/1981.

259
Regis Frota

considerado então, “uma besta”. Se volto a essas considerações é


porque, ao dar conta da pesada tarefa de escrever Uma história
da política do Ceará: 1889/1954”, verifiquei que os poucos pre-
sidentes e governadores, com seus nomes gravados em ruas de
Fortaleza, não foram mencionados como chefes do executivo, mas
pelas suas patentes militares ou suas funções, feita a observação em
relação à fase republicana”.2
O escritor Raymundo Netto, ao pesquisar sobre a história da
produção de filmes e audiovisuais do Ceará, arrematou:
“Para nos impressionarmos com o silêncio que nos é sem-
pre revelado ao revolvermos a nossa terra, não apenas no que se
refere ao audiovisual, mas à literatura, à dramaturgia e a todas as
linguagens e práticas culturais que, em meio à correria e a cegueira
que a tecnologia paradoxalmente nos proporciona, não cultivamos
e permitimos apodrecer sem que essas botijas, esses pequenos e
irrecuperáveis tesouros que representam o capital simbólico da arte
e da cultura produzidas no Ceará, germinem e deem frutos”.3
É, de fato, unânime o desânimo de qualquer pesquisador da
história do cinema ou do audiovisual cearense; Firmino Holanda,
o mais criterioso pesquisador dessa historiografia de realizações,
publicou no caderno Vida & Arte, do jornal O POVO, edição de 21
de abril de 2000, artigo intitulado “Empresários Cearenses foram ao
cinema”, ocasião na qual se discutia sobre a criação de um “Polo
Cinematográfico” aqui em terras cearenses, onde instiga
“quem no Estado se habilita a resgatar esses e tantos outros
trabalhos audiovisuais que, independentemente de valores diver-
sos, são, acima de tudo, fragmentos de nossa história”? São inter-
venções de câmaras sobre nossa geografia física e humana, que ra-
pidamente são esquecidas na avidez de nossos Régistros, que logo
serão também descartados”4
Hoje sabemos que a Fundação Demócrito Rocha capitaneou
a produção de uma “Coleção Memória do Audiovisual Cearense”,
da qual já tem resultado em vários e diversos resgates dessa tão

2 BARROSO, Parsifal:” Vivencias políticas”, Revista da Academia Cearense de Letras,


1981, p. 227-28.
3 NETTO, RAYMUNDO. “Padre Cícero, o filme”, Fundação Demócrito Rocha, Fortaleza,
2017, p. 6.
4 HOLANDA, Firmino. Jornal O POVO, edição de 21.4.2000, p. 3, caderno Vida & Arte.

260
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

necessária memória audiovisual, quando é posta em questão e, re-


lembrada a experiência de realizadores locais em meados da déca-
da de 70, espancando, destarte, o problema da desleixada preserva-
ção de nossa memória audiovisual, no tocante às suas realizações,
porquanto relativamente à exibição cinematográfica, na capital e
nalgumas cidades do Estado, desde o século XIX, abundantes e
altamente produtivas se mostram já as pesquisas efetuadas pelo
emérito historiador Ary Bezerra Leite.5

DÉCADA DE 1910
Na primeira década do século passado, foi rodado, anonima-
mente, documentário sobre a Procissão dos Passos, e outro, em
1919, Ceará Cine Jornal.6
Seria mesmo o Ceará uma terra dos filmes inacabados?
Lutamos por discordar dessa ideia e, tentamos provar, atra-
vés dessa primeira relação, abaixo, de filmes produzidos aqui, no
Estado, pelos cineastas locais ou, ainda que por “não cearenses”,
como forma de dar uma primeira ideia do potencial da realização/
produção de filmes, no Estado do Ceará.
Ora, durante essa década foram exibidos – consoante a con-
solidada pesquisa do historiador Ary Bezerra Leite e Raymundo Net-
to7 – outros filmes produzidos aqui no Ceará, a saber: Film Cearense
(1919), o qual foi exibido no Cine Majestic, em 12 de setembro de
2019, cuja película trazia “vários aspectos de Fortaleza e vistas tira-
das na ocasião da visita do general Joaquim Inácio” e, “O corso de

5 As principais obras publicadas pelo pesquisador cearense, integrante do Instituto do Ceará,


são : BEZERRA LEITE, Ary: Fortaleza, a era do cinema- pesquisa histórica, vol. 1, 1891-1931,
editora leitura da cultura,SECULT, 1995; BEZERRA LEITE, Ary : A tela prateada, Cinema em For-
taleza 1897-1959, Edit. SECULT, 2011; BEZERRA LEITE, Ary e outros: Cartografia do audiovisual
cearense, Dedo de moça editora, SECULT/ UFC, Fortaleza, 2012; e, BEZERRA LEITE, Ary: Histó-
ria da Fotografia no Ceará no século XIX, Fortaleza: editora SECULT/ UFC, 2019.
6 Conferir de HOLANDA, Firmino: “História da produção de filmes no Ceará”, apud
“Cartografia do audiovisual cearense”, Dedo de moça Edit., Luiz Bezerril (organizador),
Fortaleza, 2012, p. 36. Por outro lado, o maior pesquisador de cinema no Ceará, de todos
os tempos, professor Ary Bezerra Leite, autor de vários livros sobre a exibição de filmes no
Estado, desde o século XIX, lamenta que tudo o que consta sobre a produção de filmes
cearenses, nesse período, na Cinemateca Brasileira, é mero Régistro gráfico, a partir de
indicações suas, somente. De filme conservado, nada.
7 NETTO, Raymundo. “Padre Cícero, o filme”, Fundação Demócrito Rocha, Coleção
memória do audiovisual cearense, Fortaleza, 2017, p. 13.

261
Regis Frota

automóveis”, exibido em 1913, tendo como responsável Antônio


Fiuza Pequeno, genro do exibidor Joaquim Rola, sócio proprietário
da sala do cinema Polytheama, que contratou um “cinematografista
do Rio de Janeiro” para realizar filmagem do baile do clube Iracema
e o festival do Polytheama. Embora o cinegrafista não fosse cearen-
se, essa filmagem realizada na capital integra as origens da produ-
ção local de filmes, a exigir Régistro historiográfico.

DÉCADA DE 1920
Na segunda metade da década de 1920, a produção de fil-
mes cearenses cresceu bastante. Adhemar Bezerra Albuquerque –
patrono da cadeira número 38 da Academia Cearense de Cinema
(ACC) e fundador da ABA FILME, realizou toda uma série de filmes
documentários dentre os quais se destacaram as seguintes pelícu-
las em 35 mm: O Juazeiro do padre Cícero e Aspectos do Ceará,
lançada em Fortaleza, em 8 de dezembro de 1925 na sala de cinema
Moderno, de 630 lugares, dividido o filme em cinco partes, todas
precedidas de um letreiro-legenda, a saber: O Juazeiro – vistas da
cidade- dias de feira – O movimento das ruas – o padre Cícero – os
devotos – a multidão – a excursão presidencial- paisagens – trechos
da viagem- o açude do Cedro – Fortaleza – Panorama da cidade – a
chegada do padre Macedo – Ponte do desembarque – Crato – Bar-
balha – Quixadá.
Teve grande destaque aqui, como em outras capitais brasi-
leiras, segundo relata o pesquisador potiguar, Rostand Medeiros,
de Recife onde teria estreado nas salas dos cines Royal e São José
a Manaus, onde foi lançado na sala do cine Politeama, e inclusive,
na capital federal, Rio de Janeiro, exibido na sala Parisiense. O em-
presário da ABA FILM, Adhemar Bezerra Albuquerque conheceu no
Cariri, durante as filmagens desses documentários ao sírio-libanês
Benjamin Abrahão Botto (1890/1938), fotógrafo e secretário par-
ticular de Pe. Cícero, patrono da cadeira número oito, da ACC, o
qual demonstrou interesse em filmar o cangaceiro Lampião, sendo
provido de equipamentos e instruções da parte do famoso empre-
sário e seu filho, o fotógrafo Chico Albuquerque, já logo em 1926;
Mencionada filmagem com o grupo de Lampião, pelo ex-mascate
e fotógrafo Benjamin Abrahão, demoraria uma década para obter
sucesso material, até 1936, após mais de uma tentativa, estimula-

262
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

da por Adhemar Albuquerque que se aproveitou do conhecimento


que o cangaceiro tinha com padre Cícero e seu secretário fotógrafo,
viria a obter concretização das filmagens, segundo confessa Nirez,
quando narra que em conversa com Chico Albuquerque, este lhe
teria dito “que a iniciativa de filmar o bando de Lampião partiu de
seu pai Adhemar Albuquerque.
Mas, ainda em 1925, Adhemar Albuquerque produziu vários
outros filmes cearenses, sobretudo em virtude do sucesso obtido
com O Juazeiro do padre Cícero.
Tiveram exibição no Cine Moderno, da praça do Ferreira, em
Fortaleza, em 1926: “A festa no Iracema”; A indústria de sal no Ce-
ará; A visita do dr. Washington Luís ao Ceará; A parada militar de 7
de setembro (estreou em 12 de outubro de 1926); Inauguração dos
filtros no Açude do Acarape do meio para abastecimento d´água em
Fortaleza ( já em 1927); O banquete oferecido pela colônia cearense,
no Rio, ao dr. Matos Peixoto e a visita de S. Excia. dr. Matos Peixoto
ao cais do porto, no Rio, ambos exibidos em 18 de julho de 1928; e,
entre outros mais, o documentário curto Fábrica de Tecidos São José.

DÉCADA DE 1930
Essa década, relativamente à produção de filmes no Ceará,
foi bastante prolífica. No plano federal, iniciou-se a era getulista,
com o governo provisório de 1930 e cuja ditadura duraria até 1945,
porquanto desde 1937, Getúlio Vargas iniciara o autoritário gover-
no do “Estado Novo”.
Governando através de decretos, o velho gaúcho voltou seu
olhar, desde cedo, para a produção de imagens cinematográficas,
ao tencionar, populistamente, conquistar a simpatia nacional; Em
1932, com o decreto número 21.240, “nacionalizou o serviço de
censura dos filmes cinematográficos”, ao determinar que “nenhum
filme poderia ser exibido ao público sem um certificado do Ministé-
rio da Educação e Saúde Pública” (art. 2º, do mencionado decreto).
Antes de qualquer produção se buscava obter o tal certi-
ficado e o velho ditador chegou a receber o título de presidente
de honra da Associação Cinematográfica de Produtores Brasileiros
(ACPB), em virtude da criação, em 1935, da Distribuidora de Fil-
mes Brasileiros (DFB) e do Instituto Nacional de Cinema Educativo
(INCE), durante seu governo, em 1936.

263
Regis Frota

Já no plano estadual observa-se, em 1934, o Régistro oficial


da Abafilm – por Adhemar Bezerra Albuquerque, empresa fotográ-
fica que financiaria muitos documentários da realidade cearense e
nordestina. Entre tais Régistros documentais audiovisuais, temos já
no mesmo ano do falecimento do padre Cícero, a realização de Os
funerais do padre Cícero e vasta reportagem sobre nossa terra,
estreado no cine Moderno, a 15 de outubro de 1934, como parte do
cinejornal Abafilm16.
Adiante, em virtude da DFB (Distribuidora de Filmes Brasi-
leiros), algumas realizações de Adhemar Albuquerque são exibidas
inclusive em salas do Rio de Janeiro, como: A lavoura mecânica
no Ceará (1935); Irrigações no Ceará, no Cine Glória; Irrigação do
vale de Jaguaribe (1935), no cine Broadway; Ceará hoje (1935), no
cine Pathé Palácio Theatro; As construções do Nordeste (1935),
lançada no cine Alhambra; e, Carnaubeira (1935), entre tantos ou-
tros, no cine Palácio Theatro, da capital federal.
Esse levantamento da produção de filmes cearenses inclui-
rá, naturalmente, mesmo aquelas películas que, embora não sendo
produções originárias do Estado, tenham sido, contudo, filmadas
no Ceará, tais como os curtas-metragens: A cidade de Fortaleza,
realizado pela Continental Film do Rio e exibido no Cine Moderno,
em 29 de maio de 1934; ou, ainda, Quixadá (1935), com lançamen-
to no Cine Moderno, em 6/1/1937. Em 1936, a Abafilm produz as
filmagens do bando de Lampião, por intermédio do pioneiro do ci-
nema cearense, Benjamin Abrahão, patrono da cadeira nº 8, da AC-
C(Academia Cearense de Cinema), filmado no interior de Alagoas,
película confiscada pela censura do DIP(Departamento de Imprensa
e Propaganda), do ditador Vargas, sob a acusação de publicidade
do cangaço. O filme Lampião, dado por perdido ou destruído, se-
gundo o pesquisador e acadêmico Ary Bezerra Leite, teria recupe-
rado pela FGV, na década de 50, a partir de uma cópia da película
guardada clandestinamente pelo produtor Adhemar Albuquerque,
“exemplar este negociado juntamente com outras produções da
Abafilm para distribuidoras paulistas.”8
DÉCADA DE 1940
Orson Welles não acabou, nos anos quarenta, seu It´s all

8 NETTO, Raymundo. “Padre Cícero, o filme”. Fundação Demócrito Rocha, p. 17.

264
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

true, filmado nas areias do Mucuripe.9 “Esse foi o desastre de minha


história”, definiria o famoso cineasta.10 Mas, antes de iniciar essa
década, em 27/6/1939, dois dos pioneiros da filmografia cearen-
se, José Augusto Moura (1913/1967), patrono da cadeira nº 5 da
Academia Cearense de Cinema (ACC) e o poeta, pintor e fotógrafo
Otacílio de Azevedo(1892/1978), patrono da cadeira nº35 da mes-
ma arcádia (criada em 2017, com uma das missões de incentivar o
estudo da filmografia e preservar a memória do cinema cearense)
se juntaram para criar a Sociedade dos Amadores do Cinema (Sac) e
tentar realizar alguns documentários: o primeiro, sobre a demolição
da antiga Sé, ocorrida no ano anterior, 1938, por ordem do bispo
dom Luís, a qual tentativa resultou inconclusa, de igual modo que o
planejado filme Cira Ira, uma vez que os negativos da película – em
função da deflagração da II Grande Guerra-, não serviram.
A Sac (Sociedade dos Amadores do Cinema) logo se trans-
formaria na Sociedade Cearense de Fotografia e Cinema(SCFC),
com a integração de sócios como Heitor Costa Lima, Rubens de
Azevedo, José Maria Porto, Rui de Castro e Silva, Fran Siena, César
Cals e alguns outros, os quais, por toda a década, debateram sobre
a produção do cinema no Ceará, promoveram exibições de muitos
filmes, dando destaque a sétima arte no Estado, por toda a década.
Ainda no início dessa mesma década (1940), embora tenha
sido lançada no Ceará (filmada que foi em Uruburetama), a produ-
ção de um longa-metragem ficcional, Eterna esperança, produção
paulista, dirigido por Leo Martem, rodado em 1937, sobre a seca ce-
arense, sua memória e repercussão foram bastante escassas. Existirá
ainda alguma imagem “conservada” desse filme? Ninguém sabe...

9 Conferir, a propósito, as pesquisas de HOLANDA, Firmino: “Orson Welles no Ceará”,


Fundação Demócrito Rocha, Fortaleza, 2001; e SIQUEIRA, Sérvulo: “Orson Welles no Brasil
– fragmentos de um botão de rosa tropical”, Rio de Janeiro, 2010.
10 Em nota de rodapé (número 46), o escritor e poeta Raymundo Netto “conta que, em 1985,
ano de falecimento de Welles, foram encontradas 300 latas com rolos do documentário
perdido. O diretor Richard Wilson, seu assistente nas filmagens de It´s all true, ciente disso,
teria se reunido com os críticos Bill Krohne e Myron Meisel para dar o devido a esse material
encontrado, transformando-o em documentário em 1993”. Op. cit. p. 21.

265
Regis Frota

O universo dos pescadores, bem como o cenário litorâneo


cearense foram objeto de diminuto ciclo filmográfico local, para o
qual a Aba Filme – empresa fotográfica dos Albuquerque-, concor-
reu com visitantes cineastas, como Rui Santos que, em 1941 reali-
zou um curta metragem E a jangada voltou só, tendo o compositor
Dorival Caymmi como ator principal, mas já em 1947, o ator paulista
Raul Roulien, não logrou concluir seu filme Jangada, objeto de per-
da total, motivado por fatídico incêndio.
No final dos anos quarenta, a SCFC (Sociedade Cearense de
Fotografia e Cinema) e o Clube de Cinema de Fortaleza Darcy Costa
(CCFDC), este último inaugurado em 1948, lutaram para dinamizar
a produção local de filmes, no Ceará, com pouquíssimos resultados,
no setor da realização, em que pese todo um cabedal de contribui-
ção cinéfila, no terreno da exibição e discussão de filmes de arte.
José Augusto Moura liderou o processo de tentativa de confecção
de um filme, em 1944, Caminhos sem fim, em 8 milímetros, tendo
sido um curta metragem rodado aqui no litoral, ainda que com a
temática sertaneja. Muito já se escreveu e falou sobre tal iniciativa
cearense da produção local de cinema, embora nada tenha restado
da película, inteiramente superada, tecnológica e audiovisualmente.
E pior, não “conservada”, por alguma cinemateca brasileira, qual-
quer imagem ou fotograma do referido curta.
Se intitulamos este ensaio de “o cinema cearense começou
tarde... mas vai longe”, é por mera provocação carinhosa, tendo
em vista que os primeiros Régistros de realização de imagens ci-
nematográficas no Ceará, na verdade, datam ainda de 1910, como
vimos anteriormente.
Afirma Raymundo Netto:
“Também na década de 1940, os cinejornais O Globo Espor-
tivo e o Jornal da Tela, originados do sudeste do país, traziam ilus-
trações do quadrinista e cartunista cearense Luiz Sá (1907/1979), na
época residindo no Rio de Janeiro”. 11
Ora, na 2ª metade da década de 1940, alguns debates se tra-
varam em nosso Estado: se buscou saber se o cinema era uma “arte
silenciosa” ou não. O poeta Vinicius de Morais 12 publicou artigo so-

11 NETTO, Raymundo: “Padre Cícero, o filme”, p. 19, Fortaleza: Fundação Demócrito


Rocha, 2017.
12 MORAES, Vinicius: “O Cinema de meus olhos”. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

266
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

bre essa “questão” em jornal A Manhã, ao defender o cinema silen-


cioso e ao lançar suspeita sobre o famigerado cinema falado, ideia
colhida, em parte, do encontro que tivera com o cineasta Orson
Welles, favorável ao cinema mudo, a exemplo de Charles Chaplin.
De fato, em 1942, por ocasião do I Congresso de Poesia, realizado
em Fortaleza, foi debatida, à exaustão, a questão mencionada, bem
como a criação de um cineclube, cujos intelectuais como Aderbal
Freire(patrono da cadeira nº 36, da ACC), Antônio Girão Barroso (pa-
trono da cadeira nº 4, da ACC- cuja ação libertária de ligação en-
tre literatura e cinema resultou na criação do Clube de Literatura e
Arte, o famoso grupo Clã, cuja revista publicou tantos artigos sobre
cinema de autoria do poeta13), Wagner Barreira, Luciano Mota, Rai-
mundo Ivan Barroso de Oliveira, Otacílio Colares, Aluízio Medeiros,
José Maria Porto, Darcy Costa -1923/86 (patrono da cadeira nº1, da
ACC e presidente, por largos vinte anos(de 1948/68), do Clube de
Cinema de Fortaleza) e Heitor Costa Lima terminaram por fundar o
cineclube CCF, alguns anos após.
No terreno da produção de filmes cearenses a década termi-
naria com o trágico malogro da produção do longa de Raul Roulien,
o qual, com o apoio da Abafilm, viu perder todo o copião de seu
longa acerca da história ficcional do dragão do mar, com argumen-
to de Rachel de Queiroz, Jangada, integralmente incendiado, em
1949, em laboratório de revelação do Rio de Janeiro. 14
Talvez a parte mais importante do cine cearense, nessa déca-
da, tenha sido as presenças do poeta e escritor Antônio Girão Bar-
roso, lutando e escrevendo sobre cinema, lutando e implantando o
cineclube CCF, ideário filosófico ainda hoje preservado pelas ativi-
dades audiovisuais do Estado, base intelectual e efetiva do reconhe-
cimento da imprescindibilidade da arte cinematográfica.

DÉCADA DE 1950
Nelson Moura, patrono da cadeira nº6, da ACC, seria o
pioneiro que logo no início da década tentaria realizar filmes no
Ceará. Proprietário da Cine Produtora, realizou os documentários

13 BARROSO, Antônio Girão. “Aproximações”, Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, sob


organização de Oswald Barroso, 2019.
14 Cfr. BARRO, Máximo. “Raul Roulien”, p. 8/27, FACOM: Revista da Faculdade de
Comunicação e Marketing da FAAP, nº 26, 1º semestre de 2013, São Paulo.

267
Regis Frota

Canindé (1952), acerca das romarias da cidade do sertão central,


e Vaquejada e Iguatu (ambos de 1954), sendo que o primeiro de-
les, pode ser considerado a primeira película sonorizada cearense.
Inconclusas ficaram, contudo, as tentativas de filmar tanto
texto do poeta Antônio Girão Barroso, Fortaleza, meu amor quan-
to uma dramatização das secas no Ceará, às quais Nelson Moura,
patrono da cadeira nº 6, da Academia de Cinema, pretendeu cine-
grafar. Por outro lado, texto do cinéfilo e pesquisador Ary Bezerra
Leite, mediante narração de Tarcísio Tavares (patrono da cadeira nº
31, da ACC), não logrou, tampouco, ser concluído, em 1953, intitu-
lado Carnaval Cearense cuja produção estava a cargo do artista
plástico Anquises Pirajá.
Nessa década, a principal produtora, a Cinegráfica Norte
do Brasil, foi fundada por Paulo Salles(patrono da cadeira nº 7, da
ACC), a qual com películas em 16 mm e 35 mm, realizava docu-
mentários institucionais para o governo e órgãos governamentais,
tendo desenvolvido, inclusive, uma técnica especial e própria para
copiar filmes.
Em 1959, Nelson Pereira dos Santos cogitou em rodar seu
filme Vidas Secas, em Itapipoca, projeto não concretizado, contu-
do. Naquele ano, aqui filmaria, no entanto, outro diretor visitante:
o francês Marcel Camus – o mesmo que realizara Orfeu Negro –,
desta feita com locações na Amazônia, Salvador e Brasília, e natu-
ralmente, com algumas filmagens locadas na capital cearense e, em
Canindé, tendo resultado no longa intitulado Os Bandeirantes.

DÉCADA DE 1960
Na década de sessenta, foram feitos alguns filmes, já agora
em 16 milímetros, sonoros alguns, e mudos, outros, como os dois
curtas de Antônio R. Lobo Furtado, O ponto e A metamorfose,
os quais participaram, respectivamente do I congresso nacional de
curtas metragens, por ocasião da VI Jornada Nacional de Cineclu-
bes, no Teatro José de Alencar, dos quais, no entanto, não se sabe
se restaram, ainda hoje, alguma imagem dos mesmos.
Darcy Costa e João Maria Siqueira tentavam filmar um inaca-
bado documentário sobre a obra do ilustre pintor Antônio Bandei-
ra, O Colecionador de crepúsculos; Inacabada restou, igualmente,
a tentativa da Faculdade de Direito da UFC, através do professor
Mario Barata, do fotógrafo João Maria Siqueira e do estudante de

268
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Direito, Eusélio Oliveira, de concluir a filmagem do curta: O delito


de matar. Eusélio, na direção do Centro de Arte Universitário (CAU),
desde 1969, inconcluiu, ainda, outro curta Guerreiro tambor, em-
bora tenha tido sucesso em vários outros documentários, realizados
em super-8 mm, bitola muito utilizada a partir, já, da década de
1970. Adiante, falarei sobre o movimento amador do Super-8, na
década do setenta, no Ceará.
Durante essa época, melhor sorte teve o pintor e cineasta
João Maria Siqueira, com seu documentário em 16 mm, sonoro,
Rede de Dormir (1965), baseado na obra de Câmara Cascudo, re-
alizado ao largo de cinco anos, o qual apesar de ter exaurido as fi-
nanças do artista plástico e diretor, trouxe alegrias ao João Siqueira,
através das várias exibições por associações e em clubes de cinema;
Narrava as diversas funções da rede nordestina, daquelas de piaça-
ba às de fino tecido, desde as comunidades indígenas - onde a rede
representa uso frequente, do nascimento à morte-, até sua utiliza-
ção pelas variadas camadas sociais da região do nordeste tropical.
Com narração de Antônio Miranda, o diretor Torgny An-
derberg realizou, numa co-produção sueco-brasileira, lançou
em 1963, o longa metragem Jangada, em 35 mm, cujo roteirista
foi João G. Martin.
Roberto Benevides e A. Frota Neto, colegas do jornal Tribuna
do Ceará, conseguiram concluir curta metragem em 1966, em 16
mm, Gênese, a ponto de inscrevê-lo no Festival de Curta metragem
do Mesbla/ Jornal do Brasil (JB), no Rio, enquanto em 1969, Régis
Frota iniciava as filmagens do documentário A poesia folclórica
de Juvenal Galeno, sonoro e em 16mm, cujas cópias foram ad-
quiridas pela então, recém criada SECULT, tendo sido preservadas,
atualmente, suas imagens e sons através de digitalização efetuada
por iniciativa da Casa Juvenal Galeno.
Aliás, leve-se em conta o livro de autoria do jornalista A. Fro-
ta Neto, Quase ... Pronto estória de um jornalista, onde consta
minha versão sobre a produção de filmes desses conturbados anos,
dessa década, no Ceará. 15

15 FROTA NETO, A.: “Quase”, Editora ABC, Fortaleza, 2000, interessando referir das
páginas 300 a 310, onde consta narrativa de minha autoria, a pedido do autor, sobre
mencionada produção de filmes cearenses e a fama da terra dos filmes inacabados. O
autor foi presidente do Clube de Cinema de Fortaleza Darcy Costa, a partir de 1968 até o
seu encerramento de atividades, me tendo dado o privilégio de ser seu secretário.

269
Regis Frota

Ora, nota-se que, ainda, em 1968, mesmo produções estran-


geiras ocorriam de não vir a lume por motivos vários: foi o caso de
Operação Tumulto,16 longa embargado pelos produtores norte-a-
mericanos, tendo impedido sua exibição, até os dias atuais, em que
pese ter sido filme dirigido por francês Edouard Luntz e, filmado em
Fortaleza e nas regiões praianas do Morro Branco e Canoa Quebrada.

DÉCADA DE 1970
Antes de Régistrar o movimento amadorístico de utilização
de Régistros audiovisuais em bitola Super-8, no Ceará, desde os
anos setenta, devemos ver que Régis Frota concluiu curtos docu-
mentários em 16mm, tais como: Meninos de Aço (1976) e Franz
Kafka, biografia (77), tendo fotografado alguns documentários e
filmes ficcionais de super-8 como Joaquim Bonequeiro (1980) e,
alguns outros.
Nessa década se desencadeou uma vigorosa produção ama-
dora de super 8 mm, a qual resultou em festivais e mostras, na épo-
ca. Desse movimento são representantes os seguintes cineastas ou
“videomakers” que tornaram a década de 70, no Ceará, reconhecida
como época bastante produtiva e criativa, fossem amadorísticos fic-
cionistas ou documentaristas do audiovisual, a saber: Pedro Martins
Freire, Hélio Rola e Edivaldo Diógenes; Germano Riquet, José Evan-
gelista Moreira, José Rodrigues Neto, Firmino Holanda; Régis Frota,
Marcus Vale, Heliomar Abraão Maia, Eusélio Oliveira, Joao e Gilberto
do Vale; Silvio Barreira, Rosemberg Cariry, Mauricio Matos, Carlos
Lázaro e Benedito Fernandes Fontenelle; Dogno Içaiano, Francisco
Heron Aquino, Ezildo Luiz Américo, Dennis Araújo e Antônio Vicelmo
do Nascimento; Nirton Venâncio, Carlos Normando, Tiano, Leotino

16 Em pesquisa na Wikipedia, em 28.9.2020, diz-se que se trata de um “Filme sobre


meninos marginais. O mistério cerca o primeiro filme estrangeiro a utilizar as belezas de
Canoa Quebrada, no final da década de 60. “Le Grabuge”, título original para ‘Operação
Tumulto’, teve locações no Ceará e no Rio, até ser destruído pela empresa distribuidora,
a Fox. Estrelado por Patricia Gozzi, Calvin Lockhart (falecido em 2007), Julie Dassin (filha
do cineasta Joe Dassin) e com participação dos brasileiros José Lewgoy e Zózimo Bubul,
o filme teve música de Baden Powell e nunca foi exibido em nenhum lugar do mundo. O
diretor chegou a ir a Justiça reclamar seus direitos, mas a produtora tomou uma atitude
radical: destruiu o filme. Só existem algumas fotos de “Le Gabruge”, uma tentativa do
autor de trabalhar fora dos clichês de Hollywood”.
Destarte, até tal época (início dos anos 70, o fracasso dessa produção hollywoodiana
contribuiu com mais um tijolinho na construção do mito ou da lenda cearense de terra
dos filmes inacabados.

270
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Eugênio, Marcus Guilherme, Francis Vale, Arlindo Barreto e Francisco


Perez; Oswald Barroso, Danilo Carvalho e Luiz Carlos Salatiel, Ronal-
do Correia de Brito, Francisco de Assis Lima e Emerson Monteiro,
consoante lista impressa sob os auspícios do CAU (Cinema de Arte
Universitário), igualmente conhecida por Casa Amarela, por ocasião
da reunião anual da SPBC, de 1979, em Fortaleza (CE), movimento
amadorístico audiovisual este que se Régistrou, tanto na capital do
Estado quanto no interior do Cariri e Zona Norte do Ceará.
Em termos de produção efetiva, cabe o Régistro dos fil-
mes da conhecida “Caravana Farkas”, cujos filmes Viva Cariri e
Padre Cícero (1970), ambos dirigidos por Geraldo Sarno, além
de Visão de Juazeiro (1970), dirigido por Eduardo Escorel, os
quais deixaram um rastro de esperança pela profissionalização
cinética do Cariri cearense.
Tudo isso, mudaria com as próximas décadas.
Ora, não parou, contudo, aí, a tentativa de profissionaliza-
ção dos cineastas cearenses. Nessa década de 1970, dois longas
metragens foram financiados por empresários cearenses e filma-
dos integralmente, no Ceará: Padre Cícero (1976) e O homem de
papel (1975), dirigido este último pelo jornalista Francisco Ezaclir
Pereira, o qual se assinava Ezaclir Aragão(1939/89 – patrono da ca-
deira nº18, da ACC). O primeiro desses longas-metragens, Padre
Cícero (1976), dirigido por Helder Martins de Morais(patrono da
cadeira nº 20, da Academia Cearense de Cinema, cuja estória de sua
completa realização, desde a idealização do roteiro à contratação
de elenco, desde as preparações de produção -pela constituição
da empresa Morais – produções cinematográficas Ltda., localizada
a Av. Des. Moreira, nº 1702, para além da consolidação da equipe
técnica, montagem e resultante legado para o cinema no Ceará, 17
vem descrito, à exaustão no livro de autoria de Raymundo Netto,
dispensando, aqui, maiores explicitações.
Era de qualquer modo, uma época de certa “inocência”,
quando e onde todos os figurantes e cearenses praticamente se
ofereciam para o trabalho, pelo tão só fato de ser “trabalho com

17 Impossível falar da importância deste filme – considerado o primeiro longa-metragem


colorido totalmente realizado e lançado no Ceará e a primeira obra ficcional sobre a vida
do patriarca do sertão-, sem recorrer ou socorrer-se do livro de autoria de Raymundo
Netto, “Padre Cícero, o filme”, Op. cit., o qual contribui para a preservação da memória do
audiovisual cearense, entusiasticamente.

271
Regis Frota

cinema”, milhares de figurantes voluntários ou apenas, simbolica-


mente remunerado.
Ora, sabe-se que a produção de filmes curtas e/ou longas-
-metragens, no Brasil, se concentra, sempre e basicamente, na re-
gião sudeste do país, no eixo Rio-São Paulo. Da Cinédia à Atlânti-
da, Vicente Celestino, Oscarito, Grande Otelo, Mesquitinha, Cinema
Novo, Embrafilme, etc. (cinema carioca), da Cia Cinematográfica
Vera Cruz (1949/1955) às Cias. Cinematográficas Maristela, Multifil-
mes e Kino filmes, Boca do Lixo, etc. (cinema paulista), a produção
sempre esteve concentrada nestes dois Estados da Federação, res-
tando pouco tempo e espaço industrial para os demais, particular-
mente, o Ceará. No entanto, na década de 1980, parecia que nos-
so Estado despontaria no cenário nacional como um espaço e um
tempo privilegiado para a produção de filmes, vez que os governos
estadual, municipal e organizações não governamentais (ONG), do
Estado e outras paragens, se mobilizavam para uma regularidade
de realizações fílmicas, para a montagem de festivais de cinema,
para a implantação de polo de filmes, debates, etc.

DÉCADA DE 1980
Nada melhor que dar ou ceder a palavra aos especialistas: o
pesquisador Ary Bezerra Leite comenta os fatos da década, com voz
autorizada: na história dos festivais de cinema se inscreve.

1988: A MORTE DE UM FESTIVAL


Na história dos festivais cearenses de cinema se inscreve o
triste episódio da supressão do III Festival de Fortaleza do Cinema
Brasileiro, que tinha sido estruturado pela Secretaria de Cultura, Tu-
rismo e Desporto do Ceará, na gestão do deputado Barros Pinho, e
a Universidade Federal do Ceará, tendo à frente o reitor Hélio Leite
e representado, no evento, pelo Professor Nelson Espínola, Pró-rei-
tor de extensão da UFC. O Festival deveria ocorrer no período de 2 a
8 de agosto de 1988, com premiação prevista para os longa-metra-
gens (Troféu lracema), para os filmes de média-metragens (Troféu
Benjamin Abraão), para os curta-metragens em 16mm. (Troféu Dar-
cy Costa), para curta-metragens em 35mm. (Troféu Nelson Moura),
para os vídeos VHS (Troféu Heitor Costa Lima) e para os audiovisu-
ais (Troféu Leocácio Ferreira).

272
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

A preparação do Festival foi antecedida pela constituição


da Comissão Estadual de Cinema, pela portaria nº 101/87, de 2 de
dezembro de 1987, efetivamente instalada em fevereiro do ano
seguinte. A esse respeito diz “OPovo” (17.2.88): “Para assessorar o
secretário Barros Pinho no planejamento e execução de metas ati-
nentes ao desenvolvimento participativo da atividade cine-cultural
do Estado do Ceará, foi instalada, no final de semana passada, a
Comissão Estadual de Cinema. Dela participam Odílio de Figueiredo
Filho – subsecretário de Indústria e Comércio, Clovis Coelho Catunda
Filho – técnico da Fundação de Teleducação do Ceará, Eusélio Oliveira
– diretor do Cinema de Arte da UFC, Ary Bezerra Leite – representante
da UECE, o cineasta Francisco Régis Frota Araújo, da Associne, Fran-
cis Vale – Associação Brasileira de Documentaristas/secção do Ceará,
jornalista Antônio Girão Barroso, membro do Conselho Estadual de
Cultura e um representante da Secretaria de Planejamento e Coor-
denação, além de Blanchard Girão, que coordenará os trabalhos.” A
constituição da Comissão Estadual de Cinema foi formalmente rei-
terada pela Portaria nº 60/88, de 26 de maio de 1988. Dessa medida
preliminar resultou a discussão do cumprimento da agenda de fes-
tivais e a decisão de definir a equipe de direção. Em consequência,
foi constituída, por ato do Governador Tasso Jereissati, a Comissão
Executiva do festival: Coordenação financeira - Odílio de Figueiredo
Filho; coordenação administrativa - Ary Bezerra Leite; coordenação
de planejamento - Antônio Hélio de Menezes; coordenação técnica
- Eusélio Oliveira; coordenação de publicidade - Francis Vale. O jor-
nalista e crítico de cinema Frota Neto, então Presidente da Funda-
ção Nacional de Televisão Educativa, presidia a Comissão de Honra.
Na programação, uma mostra competitiva de cinema e ví-
deo, mostras paralelas de filmes e vídeos, e realização de cursos,
oficinas e debates sobre técnicas de fotografia, iluminação e som,
e sobre a política cinematográfica do país. Pela primeira vez o fes-
tival teria repercussão na periferia da cidade com mostras paralelas
itinerantes. Haveria exibições de filmes abordando temas popula-
res, no Mucuripe (Centro Comunitário), em Messejana (Av. Recreio,
1290), em Parangaba (rua Elvira Pinho, 199), em Antônio Bezerra
(Rua da Mangueira, 101) e na Barra do Ceará (Rua Marcílio Dias,
624), com apresentação de filmes selecionados por Sérgio Pedrosa,
da Fundação do Cinema Brasileiro: “O Cangaceiro Trapalhão”, de
Daniel Filho, “Garrincha, Alegria do Povo”, de Joaquim Pedro de An-
drade, “Uirá - Um Índio à Procura de Deus”, de Gustavo Dahl, “Aju-

273
Regis Frota

ricaba”, de Oswaldo Caldeira, “O Mágico e o Delegado”, de Fernan-


do Coni Campos, e “Bye Bye Brasil”, de Carlos Diegues. Uma outra
mostra especial, “A hora e a vez dos proscritos”, deveria exibir filmes
brasileiros produzidos nos anos 70 e que ficaram inéditos para o
público brasileiro. Na Casa Amarela, a mostra especial “Panorama
do Cinema do Ceará” apresentaria “Caminhos sem Fim”, de Heitor
Costa Lima e José Augusto Moura; “Rede de Dormir”, de João Maria
Siqueira; “Canindé”, “lguatu”, “Vaquejada”, todos de Nelson Moura;
“A poesia folclórica de Juvenal Galeno”, de Régis Frota; “Brinquedo
Popular do Nordeste”, de Pedro Jorge de Castro; “Dona Ciça do Bar-
ro Cru”, “Músicos Camponeses” e “Patativa do Assaré - um poeta do
Povo”, todos de Jefferson A. Júnior; “O Caldeirão da Santa Cruz do
Deserto”, de Rosemberg Cariry; e uma seleção de filmes diversos do
ciclo de produção em 8mm. Ainda na Casa Amarela teria lugar uma
mostra dedicada aos “Pioneiros do Cinema Nordestino”, com sele-
ção feita e oferecida por Cosme Alves Neto, diretor da Cinemateca
do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em telegrama de
congratulação pela continuidade do festival cearense, dizia Cosme
Alves Neto (18.5.88): “Sugerimos inclusão mostra retrospectiva ‘Nor-
te e Nordeste do Cinema Brasileiro’, incluindo filmes realizados na re-
gião nas décadas de 1O e 20, pertencentes ao acervo da Cinemateca
do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro”.
Lúcia Rocha confirmou a apresentação em Fortaleza da mos-
tra “Glauber por Glauber”, com exposição fotográfica inédita, e exi-
bição dos filmes “O Pátio”, “Barravento”, “Amazonas, Amazonas”,
“Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Maranhão 66”, “Terra em Transe”,
“O Dragão da Maldade na Terra do Sol’’, “Câncer”, “1968”, “Cabeças
Cortadas”, “Claro”, “História do Brasil”, “O Leão de Sete Cabeças”
e “A Idade da Terra”. A exposição Glauber Rocha incluía material
inédito, como reproduções fotográficas de artigos do cineasta en-
quanto jornalista, poesias e desenhos de sua autoria, comentários
da imprensa, fotos do exílio revelando aspectos de Glauber Rocha
até então desconhecidos; ocuparia espaço central do Shopping
Center Iguatemi, em frente à Mesbla.
Na mostra competitiva, apesar da crise vivida pelo cinema
nacional, estavam inscritos “A Guerra do Brasil”, de Silvio Back, “No
Tempo de Glauber”, de Roque Araújo, “Romance”, de Sergio Bian-
chi, “Terra para Rose”, de Tetê Moraes; e “O Mentiroso”, de Wemer
Schunemann, com abertura pelo filme “Cinema Falado”, de Cae-
tano Veloso, e encerramento com o filme “Tanga”. “Deu no New

274
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Yorque Times”, do cartunista Henfil. Não foram aceitos, em razão


da próxima estréia em circuito comercial, os longas “Dedé Mama-
ta”, de Rodolfo Brandão, e “Feliz Ano Velho”, de Roberto Gervitz.
O pequeno número de longa­metragens inéditos, à época, já tinha
determinado que o IV Rio Cine (20 a 27/agosto) seria realizado com
premiação apenas para os filmes de curta e média-metragem. As
exibições contavam com a colaboração da Art Films, que confirmara
a presença do empresário Ugo Sorrentino, e contava-se ainda com
a ampla cobertura do Shopping Center Iguatemi, compreendendo a
publicidade em televisão, rádio e jornal, a produção e impressão do
cartaz oficial do Festival, a cessão das salas cinematográficas, sala
reservado para a imprensa e espaço da praça central para a mostra
fotográfica de Glauber Rocha. Sobre a decisão de realizar a mostra
principal do Festival no Iguatemi, fica um depoimento do Diário do
Nordeste (19.7.88): “Os filmes serão exibidos nos dois cinemas e os
debates também. Segundo Eusélio Oliveira, a ideia foi defendida pelo
professor Ary Leite, coordenador administrativo do Festival, e foi logo
aceita porque o objetivo é criar clima de integração. “Essa decisão não
veio com o espírito de ferir ninguém. Foi uma decisão democrática.
O São Luiz é realmente o nosso melhor cinema, mas ninguém pode
negar que hoje há uma descentralização urbana, e não seria possível
realizar lá todas as atividades do Festival. A nossa ideia é criar uma
convergência, e o Iguatemi oferece toda uma infraestrutura, que fa-
cilita a aproximação das pessoas”, diz Eusélio Oliveira.” Na semana
seguinte, o jornal “JD” (26.7.88) destacava: “Festival de Brasília adota
Fórmula do Festival Cearense e o colunista N.L.J. , na mesma edição,
faz seu comentário: “A mesma medida adotada pelos organizadores
do 3” Festival de Fortaleza do Cinema Brasileiro (Eusélio, Francis Vale
e Ary Leite carregam o Festival), aquela que transfere o Festival das
salas clássicas para os shoppings, foi adotada pelos organizadores do
Festival de Brasília. Manipuladores da sofrível crítica ‘elitista’ calai.”
Na mostra de vídeo, tinham sido selecionados: “E Daí?”, de
Demóstenes Farias e Luiz Carlos Bizerril (Ceará); “l’m Tupuniquim
Too”, de Adhelmar de Oliveira (Pernambuco), “O que passou, não
passou” e “Profissão: tentar Condição”, ambos de Glauber Santos
Paiva; “Saúde”, de Germano Coelho e outros. “Embarcações”, de Kit-
ty Figueiredo (Maranhão); “Circunlóquio”, de Marcelo Carvalho (Ce-
ará); “ZBM - Quem te viu, quem te vê”, de Júlia Emília (Maranhão),
“Isabel e seus Negrinhos”, da TV Viva (Pernambuco) e “Mutirão”,
de Diogo Gouveia (Ceará). Incluía-se em exibição especial o “Vídeo

275
Regis Frota

Mulher”, do Conselho Cearense dos Direitos da Mulher, e “A Dama


do Sertão”, documentário da Televisão Educativa do Rio de Janeiro,
produzido pela cearense Gilka Bastos, com roteiro de lclemar Nu-
nes, sobre a vida e a obra da escritora Rachel de Queiroz.
Foram inscritos os seguintes filmes para as mostras compe-
titivas de curta ou média-metragem em 35mm: “Mais Luz”, de Rei-
naldo Pinheiro (São Paulo); “Calazans Neto, o Mestre da Vida e das
Artes”, de Agnaldo Azevedo (Bahia); “O Homem que sabia Javanês”,
de Maurício Buffa (São Paulo); “Imagem”, de Ponti; “Fiat Luz não é
marca de fósforo”, de Gilmar Candeias (São Paulo); “Encontro com
Prestes”, de Sérgio Santeiro (Rio de Janeiro); “História Familiar”, de
Tata Amaral (São Paulo); “Esconde-Esconde”, de Eliana Fonseca (S.
Paulo); “Operação Brasil”, de Luiz Alberto Pereira (São Paulo); “O
Palhaço o 1:1ue é?”, de Alceu Silveira (Rio Grande do Sul); “Arrepio”,
de André Pompéia Sturn (São Paulo); “Branco e Preto”, de Ninho
Moraes; “Prazer em Conhecê-la”, de Flávia Seligman (Rio Grande do
Sul); “Frio na Barriga”, de Nilson Villas Bôas (São Paulo); e “Ah... Essa
é Boa!”, de Paulo José Friebe (Paraná). Estavam também inscritos
para o festival os seguintes filmes em 16mm: “Avesso do Avesso”,
média-metragem de Antônio de Sousa (São Paulo); “A Vida como
Ela é”, de Nilson Couto (São Paulo); “O Neto de W. Wilson”, de Jorge
Mitsuo (São Paulo); “A Árvore”, de Sérgio Malbergier (São Paulo); “A
Guerra do Pante” e “Querida Menina”, “curta-metrgens de Nivaldo
Lopes (Paraná); “A Cor da luz”, de Mário Kuperman (São Paulo); “O
Espetáculo Continua”, de Sérgio Ricardo (Rio de Janeiro); “A Ter-
ceira Margem”, de José de lima Acioli (Brasília); “Por que só Tatuí”,
de Agnaldo Azevedo (Bahia); “Eva, Vicente...”, de Fernando Passos;
“Estrelas de Celuloide” e “O Último Bolero no Recife”, ambos de
Fernando Spencer (Pernambuco); “Pé de Guerra”, de Rubens Xavier
(São Paulo); “24 Horas”, de Marcus Vilar (Paraíba); “Hipócritas”, de
Letícia lmbassay e Marcos Pando (São Paulo); “O Açougueiro do
Norte contra o Cineasta Voador”, de Altenir José Silva (Paraná); “Pé
de Guerra”, de Rubens Xavier (S. Paulo); “ltacoatiara”, de Torquato
Lima (Paraíba); e “Henrique”, de Cláudio Assis (Pernambuco).
Confirmavam presenças cerca de 72 convidados especiais,
alguns já de posse de passagens concedidas por instituições patro-
cinadoras. Eram esperados: Afonso Beato, Fernando Ghi, Ana Pes-
soa, Cosme Alves Neto, Vera Brandão, Hermano Penna, José Inácio
Parente, Zelito Viana, Nelson Honeiff, Silvio Back, Euclides Moreira
Neto, Hermes Filho Leal, Joaquim Pedro de Andrade, João Batista de

276
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Andrade, Rubens Ewald Filho, Francisco Paulo Aragão, Denoy Gon-


çalves de Oliveira, Ricardo Cota, Carlos Vereza, Wilson Grey, dentre
outros. Muitas propostas tinham sido encaminhadas por esses par-
ticipantes, como a de Ricardo Cota, da revista “Cinemin”, sugerindo
uma mesa-redonda para debater o papel da crítica e a importância
da criação de associações de críticos para a consolidação do pensa-
mento cinematográfico no Brasil.
Eventos especiais deveriam ocorrer em diferentes locais da
cidade. No Auditório Castelo Branco, da Reitoria da Universidade
Federal do Ceará, os debates: “A Política de Produção Cinemato-
gráfica no Brasil de Hoje” e “Festival, Cultura e Turismo”. Na Casa
Amarela teriam lugar oficinas sobre “Música e Cinema”, a cargo de
Sérgio Ricardo (Rio de Janeiro), “A Fotografia do Cinema Documen-
tário”, por Aloísio Raulino (São Paulo); “O Ator no Teatro e no Cine-
ma”, com participação dos atores Wilson Grey e Carlos Vereza (Rio
de Janeiro); “A importância do vídeo nos movimentos populares”,
conduzida por Luís Fernando Santoro; e ainda oficinas sobre Dire-
ção, com Denoy de Oliveira, e Cinema Político, a ser conduzido pelo
cineasta João Batista de Paulo.
No dia 23 de julho de 1988, “O Povo” comenta o evento que
se aproxima: A abertura do III Festival de Fortaleza do Cinema Bra-
sileiro será no Iguatemi, dia 2 de agosto, com a exibição do filme
“Cinema Falado”, dirigido por Caetano. .... “... o grande mérito do III
Festival será ele voltar a ser competitivo, o que significa o retomo
da pujança que se observou na primeira mostra, em 1985, e que foi
perdida no ano passado.” Estava de fato plenamente assegurada a
realização do Festival, tendo sido constituído todo o sistema logís-
tico, com participação de equipes de apoio e recepcionistas, com a
seleção de acadêmicos dos cursos universitários e servidores da Se-
cretaria de Cultura. Alterações no quadro de direção da Secretaria
da Cultura, quando da renúncia do Secretário Deputado José Maria
Barros Pinho no dia 13 de julho, criaram grande expectativa sobre
o andamento do projeto, a tão curto prazo da abertura do festival.
Ao jornal “Diário do Nordeste” (14.7.88), questionado sobre o mo-
mento difícil que se criava para o evento, respondeu Barros Pinho:
“Não é fácil administrar emoções. A atividade política exige uma cer-
ta habilidade na condução do processo e convivência com as pessoas.
A atividade cultural envolve artista e emoção, e é bem mais difícil. Eu
usei a minha sensibilidade para equilibrar a emoção exacerbada do
setor cultural e artístico. E este equilíbrio eu consegui. Mesmo saindo

277
Regis Frota

agora, o Festival é irreversível. Os recursos já estão reservados. Essa


dificuldade de emoção que envolve o cineasta será afastada em be-
nefício do próximo Festival. Quem vai ganhar é a cultura cinemato-
gráfica e a própria cultura cearense...”
A brusca mudança determinou a suspensão da publicidade
já preparada, em razão de a Secretária Violeta Arraes Gervaiseau
aguardar a sua posse no dia 25 de julho, quando formalizaria o can-
celamento do evento, fato consumado dois dias depois. Na matéria
“Festival de cinema em compasso de espera” (Diário do Nordeste,
22.7), foi dada oportunidade de externar nossa opinião e do Secre-
tário de Cultura interino, jornalista Blanchard Girão: “O professor Ary
Leite diz que está tudo programado para que o Festival aconteça no
período de dois a oito de agosto e que acredita que está tudo muito
em cima para que seja mudada alguma coisa. Ele ressalta, no entan-
to, que ninguém pode antecipar a decisão da nova secretária, e que
ela tem toda autoridade para tomar qualquer decisão. Como diretor
administrativo do Festival, o professor Ary Leite diz que tudo vem sen-
do feito para garantir o seu sucesso, e não acha que de todo negativa
essa polêmica em tomo do Festival... O jornalista Blanchard Girão
também não acredita que haja qualquer condição de adiamento a
essa altura. ‘Não posso falar pela secretária Violeta Arraes, mas não
creio em adiamento sob pena de comprometer o Festival. Seria uma
medida desastrosa e um prejuízo para o Estado...”
Mas a suspensão do Festival foi finalmente tomada pública
através de uma nota oficial do governo, tomada pública pelo Sub-
secretário Blanchard Girão, face à impossibilidade da titular receber
a imprensa. Como argumento a justificar a suspensão do Festival, o
“retardamento na chegada de filmes de longa-metragem “. A Uni-
versidade Federal do Ceará esquivara-se de assinar uma nota ao
público, permitindo simplesmente que fosse feita uma nota unila-
teral em que constaria a sua “anuência”. Ficava claro que, naquele
momento, encerrava-se definitivamente o Festival de Fortaleza do
Cinema Brasileiro.
A nota oficial tinha o seguinte texto: “O governo do Estado
do Ceará, por intermédio de sua Secretaria de Cultura, Turismo e
Desporto e com a anuência da Universidade Federal do Ceará, vem a
público comunicar que, após minucioso levantamento técnico sobre
as condições para a realização do III Festival de Fortaleza do Cinema
Brasileiro, decidiu adiá-lo por tempo indeterminado, face ao retar-
damento na chegada de filmes de longa-metragem, adotando-se ao

278
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

mesmo tempo, as providências no sentido de preservar o prestígio do


evento, que será levado a efeito oportunamente, cumprindo-se, desse
modo, a política do atual governo cearense de dar integral apoio a
todos os projetos relativos ao desenvolvimento do cinema em nosso
Estado.” Em paralelo aos fatos políticos, ocorria o inexplicável can-
celamento de inscrição de dois longa-metragens. O acontecimento
teve forte impacto, buscando-se interpretar possíveis razões da me-
dida e pessoas que teriam contribuído para o lamentável desfecho.
Há manifestações espontâneas de grande decepção, como telegra-
mas recebidos e não divulgados. E forte repercussão na imprensa. O
crítico de cinema Frederico Fontenele Farias, em “O Povo” (31.7.88)
comenta: “Se há razões técnicas fundamentais para o cancelamento
do Festival, menos aceitável, porém, é o fato de a decisão ter sido
tomada nas vésperas. Só uma crise nacional de maior envergadura
justificaria o adiamento.” O “Diário do Nordeste” (30.7.88) diz: “A
decisão de cancelar o III FFCB pode até não surpreender, mas, sem
dúvida, vai causar um grande trauma. O festival estava pronto. Foi
feita a divulgação, a programação estava definida e os convites tam-
bém estavam prontos. Existia o compromisso do governo do Estado
de liberar a primeira parcela de recursos, no valor de cinco milhões
de cruzados, no último dia 15 de julho, e a Universidade Federal do
Ceará, por sua vez, não parou o investimento: imprimiu folders, car-
tazes, papel timbrado e convites. Os filmes chegaram. Mais de 30, en-
tre curtas, médias e longas...” ...”A nota divulgada revela uma decisão
unilateral do governo do Estado, que conta apenas com a anuência
da Universidade Federal do Ceará. O pró-reitor de Extensão da UFC,
José Nelson Espínola Frota, diz que havia um protocolo entre as duas
entidades, mas lembra que a UFC, depois de idealizar o festival e re-
alizá-lo duas vezes, procurou passá-lo a outra instituição...
As últimas providências da comissão diretora do Festival fo-
ram sustar as viagens dos convidados que viriam de vários Estados
brasileiros, cancelar reservas de Hotel, apresentar desculpas às or-
ganizações que tinham assegurado cooperação e desculpar-se com
os cineastas que acreditaram no evento e colheram o duplo prejuí-
zo, financeiro e de oportunidade de inscrever seus filmes em outro
festival. Finalmente, foram reunidos todos os filmes na Casa Ama-
rela, quando a Universidade Federal do Ceará assegurou a guarda,
embalagem e devolução dos filmes aos cineastas ou filmotecas que
acreditaram no projeto cearense. Restava a tristeza pela morte do
Festival de Fortaleza do Cinema Brasileiro.

279
Regis Frota

Em linguagem e interpretação euseliana, toda essa planejada


vida e essa, inesperada e abrupta morte de “um eventual festival”,
devidamente descritos em detalhes tristonhos, porém, verídicos,
significaria um “É+Vento”. Razão parece ter tido, contudo, o pro-
fessor Mozart Soriano Aderaldo, para quem a nomeação de Violeta
Arrais para substituir ao positivo e proativo secretário da SECULT,
o poeta Barros Pinho, significou uma nomeação indemissível, por-
quanto o mano governador de Pernambuco, Miguel Arrais, o impos-
sibilitava: eis no que resultou para o cine cearense: uma frustração,
um retrocesso. De igual modo, quanto ao tema da criação do “polo
de cinema cearense”, sonhado e divulgado em finais desta década
e princípios da próxima, teria, em hermenêutica euseliana, resultado
em mero “pulo”, porquanto, nas palavras do cineasta Francis Vale, 18
“a primeira versão do Festival (1985) exibiu longas, médias e curtas.
Entre esses últimos, apenas um cearense, Patativa do Assaré, de
Jefferson Albuquerque Jr. E Rosemberg Cariry. No ano seguinte não
houve festival. Os recursos a ele destinados foram transferidos para
a realização do filme Luzia Homem, de Fábio Barreto, anunciado
como a primeira produção do Pólo. Referido filme não alcançou
boa receptividade, nem junto ao público nem à crítica. No entanto,
deixou muitas queixas de pessoas que dele participaram.19 Continua
o cineasta Francis Vale:
“Em 1987, aconteceu a segunda versão do Festival, nos mes-
mos moldes da primeira. No ano seguinte, o Secretário de Cultura,
Barros Pinho, designou nova comissão para coordenar o Festival.
Quando o festival estava em vias de realização, o Governador tro-
cou o secretário e o festival foi extinto (consoante descrito, ante-
riormente, por testemunho de Ary Leite), sendo seus convidados
chamados a participar de seminário ministrado por um casal de
franceses que falavam um espanhol dos piores, deixando a plateia
sem nada entender. Era o início de uma babel que duraria mais
quase três anos. Durante a nova gestão da Secretaria de Cultura do

18 VALE, Francis: “Cinema Cearense- algumas histórias”, Fortaleza: Assaré Editora, 2008,
p. 56.
19 VALE, Francis anexa documentos e matérias veiculadas na imprensa cearense(exemplo,
coluna “Em Off”, de O POVO, edição de 31.8.87, e coluna de Edmundo Vitoriano, de
15.6.87, segundo as quais, o produtor cinematográfico Luis Carlos Barreto, o Barretão,
estaria sendo reclamado de não pagamento de vultosas quantias a Ezaclir Aragão e a
Carlos Orlando Abrunhosa, bem como ao BEC, pela realização do longa “Luzia Homem”,
divida avalizada por Fernando Terra e Gonzaga Mota.

280
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Estado do Ceará, promoveu-se um concurso para a realização de


três curtas. Os projetos foram selecionados, mas os filmes jamais
realizados por falta de pagamento dos prêmios. E nenhum fotogra-
ma foi rodado nesse período. Foi nesse tempo (1989) que surgiu a
“brilhante” ideia de realizar o “Fest-Rio em Fortaleza”. Esse evento
consumiu mais de dois milhões de dólares dos cofres do Governo
do Estado, trouxe filmes de várias partes do Mundo, sendo que o
vencedor foi o israelense “Territórios Ocupados”. Por ironia, nosso
território encontrava-se ocupado por espertalhões vindo do Rio de
Janeiro embolsar os recursos que poderiam ter sido aplicados em
projetos de filmes dos realizadores cearenses. Depois de algumas
complicações, o Fest-Rio encerrou seus dias no Ceará. E assim, fica-
mos sem Festival. E também sem Pólo.”

DÉCADA DE 1990
A ideia de realização de festival de cinema, no Ceará, contu-
do, não morreu no Estado. Tanto que o cineasta Marcus Moura, for-
mado juntamente com Jane Malaquias, Amaury Cândido e Wolney
Oliveira, pela Escola Internacional de Cine e Vídeo de San Antonio
de los Baños, de Cuba, em 1992, ao assumir a direção da Casa Ama-
rela Eusélio Oliveira, da UFC, após o assassinato do antigo diretor, o
advogado e cineasta Eusélio, restabeleceu um clima de cooperação
com a Secretaria de Cultura do Estado, o qual tinha sido rompido,
em 1988, quando da extinção do Festival de Fortaleza do Cinema
Brasileiro. Com vistas ao retorno da cooperação indispensável ao
incentivo dos festivais de cinema, o Secretário de então, Augusto
Pontes, autorizou realização de oficinas de música cinematográfica
e direção de atores, com magistério de Walter Lima Júnior e Sergio
Ricardo, bem como, no ano posterior, 1993, já então na direção
do Cinema de Arte Universitário (CAU-UFC), entregue ao filho do
seu idealista criador, Wolney Oliveira, foi responsável por parcerias
que resultaram no projeto “Luz, Câmara, Imaginação” (uma série de
oficinas sobre cinema) que antecedeu a criação do Instituto Dragão
do Mar, estando na titularidade da SECULT, Paulo Linhares, tendo
propiciado a vinda a capital Cearense dos professores Maurice Ca-
povilla e Orlando Sena.
No início desta década, 1990, Fernando Collor assume a
presidência da República e não tarda a extinguir a EMBRAFILME, o
CONCINE (Conselho Nacional de Cinema) e a Fundação do Cinema

281
Regis Frota

Brasileiro, e no dizer do cineasta historiador da recente história do


cinema cearense, o cineasta que ocupou a cadeira nº 25, da ACC,
Francis Vale, com isso, com essas referidas extinções de órgãos
federais de cinema, o “Governo do Ceará teve mais facilidade em
esquivar-se do aporte de novos milhões de dólares para bancar os
festivais cinematográficos dos espertalhões.”20 Em abril de 1991, a
UFC(através do Cinema de Arte Universitário) e a Fundação Cultural
de Fortaleza realizaram o I Festival Vídeo Mostra Fortaleza, dado
prosseguimento sob a direção da Casa Amarela assumida, em
1992, por Wolney Oliveira, a qual, a partir de 1995, tendo recebido
o apoio da Secretaria de Cultura do Estado, mudou o nome para
Cine Ceará, realizando-se, anual e seguidamente, em todo este
último quartel de século (20 anos, dos quais, já em pleno século
XXI), sem interrupção, ainda que apenas, virtualmente, neste ano de
pandemia do coronavírus.
Nem só de festivais, pólos e projetos inacabados vive o cine-
ma cearense.21

DÉCADA DE 2000
Iniciado o século XXI, mais de uma centena de realizadores e
cinéfilos integravam as lides cinematográficas cearenses. O cineasta
Francis Vale prestou-lhes uma homenagem, ao finalizar sua pesquisa
– à qual homenagem aqui reproduzimos e ratificamos-, incluindo-os
mesmo àqueles que, como ele, já partiram, ou já se foram ou se afas-
taram da atividade, sabendo que “alguns poderão voltar a qualquer
momento, em face das facilidades oferecidas pelo digital” (sic).
Destarte, arrolamos, abaixo, alguns nomes de realizadores
históricos de audiovisual cearense: Ademar Albuquerque, Benjamin
Abrahão, José Augusto Moura, Heitor Costa Lima, Nelson Moura,
Paulo Salles, João Maria Siqueira, Enondino Bessa, Roberto Benevides,
Antônio Frota Neto, Darcy Costa, Eusélio Oliveira, Régis Furtado, Her-
mano Penna, Régis Frota, Ezaclir Aragão, Marcus Belmino, Jefferson
de Albuquerque Júnior, Firmino Holanda, Nirton Venâncio, Rosem-
berg Cariri, Oswald Barroso, Edvar Costa, Marcus Vale, Silvio Barreira,
Eliomar Maia, Mauricio Matos, Pedro Martins Freire, Franzé Santos,

20 VALE, Francis: Op. cit. p. 65.


21 Vide croquis hollywoodiano elaborado por cineasta francês, Gabriel Albicoco, integrante
do projeto de implantação de projeto ou polo cinematográfico em Fortaleza.

282
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Eymard Porto, Leontino Eugenio, Tiano, Telmo Carvalho, Glauber


Paiva (pai e filho), Wagner Gonzaga, Amaury Cândido, Jane Mala-
quias, Marcus Moura, Wolney Oliveira, Ronaldo Nunes, Silva Silvi-
no, Carlos Normando, Marcus Guilherme, Galdino Freitas, Evandro
Meneses, Gilson Bezerra de Meneses(Pluto), Hildemberg Carnaúba,
Eduardo Rennó, Luís Fernando Pessoa, Aderbal Simões Nogueira,
Aurila Carneiro, Francisco Santamaria, Francisco Lopes Viana, Cal-
vino Pereira da Silva, Jeff Peixoto, Cesar Rossas Mota, Rafael Xerez,
Ary Bezerra Leite, Duarte Dias, Antônio Alder Teixeira, Leda Maria
Paulino Souto, Rafael Parente Araújo, Regina Alcantara, José Rodri-
gues neto, Arão Furtado Ramos, Vander Silvio, Pedro Jorge de Cas-
tro, André Parente, Joe Pimentel, Beatriz Furtado, Cristiana Parente,
Valdo Siqueira, Francisco Perez, Tibico Brasil, Marcio Câmara, Danie-
le Ellery, José Araújo, Karin Ainouz, Luiziane Lins, Roberta Marques,
Iziane Mascarenhas, Verônica Guedes, Lilia Moema, Heraldo Caval-
canti, Micheline Helena, Herbert Rocha, Roberto Iuri, William Lima,
Augusto César Mota, Marcos Alberto, Flavio Paiva, Karla Holanda,
Thomas Rosen, Ismael Furtado, Eliseu de Souza, Ubaldo Solon, Zé
Alberto Simoneti, Jorio Nerthal, Julson Henrique, Henrique Dídimo,
Antonio Frederico M. Oliveira, Marcilio Freire, Jarbas Araújo, Cleto
Brasileiro Pontes, Marcio Ramos, Halder Gomes, Luiz Claudio Braga,
Luis Carlos Bizerril, Alexandre Veras, Solon Ribeiro, Silvio Gurjão, Eu-
sélio Gadelha, Glaucia Soares, Patricia Baía, Petrus Cariry, Armando
Praça, Janaína Marques, Felipe Barroso, Simone Oliveira, Ivo Lopes,
Marcley Aquino, Afonso Celso, Ives Albuquerque, Peregrina Campe-
lo, Rui Ferreira, Ricardo Juliani, Luiza Falcão, André Dias, Iara Izídio,
Ítalo Maia, Eugenio Leandro, Vanessa Oliveira, Luiza Marques, Eric
Laurence, Moisés Magalhaes, Neil Armstrong, Benedito Fontenele,
e muitos egressos das diversas escolas de cinema do Estado(UFC,
UNIFOR e Vila das Artes), os quais logo fazem seus filmes de gradu-
ação, e já não deixam de trabalhar em cinema, tão cativante a ativi-
dade... bem além dos diversos técnicos e cineastas das periferias de
Fortaleza – muitos formados pelo projeto “Alpendre” (2000/2012) e
“Movimento criativo 12”, que produzem seus filmes com celulares
de alta definição, capazes de produzir imagens audiovisuais mar-
cantes, pela edição criativa do Ceará.
A década inspirou a elaboração de muitos filmes, fosse por
ideias milenárias que sempre inspiram narrativas artísticas, fosse
pela inusitada e surpreendente queda das torres gêmeas(2001),
tantas vezes repetidas as imagens de suas destruições físicas e

283
Regis Frota

desmoronamentos repentinos, após as invasões aéreas, pelas TVs


do mundo inteiro a inspirar interpretações mesmo no distante Ce-
ará. Deixamos para arrolar os tantos títulos desses filmes produ-
zidos nessa década primeira do novo milênio, ao final, no quadro
sinótico resumido, anexado, evitando repetição de referências.

DÉCADA DE 2010
Ao descrever a cartografia do audiovisual cearense, o cineas-
ta e pesquisador Firmino Holanda, afirma:
“Vive-se hoje, uma nova produção audiovisual no Ceará, cujo
ponto de virada foi o advento de câmeras de vídeo mais baratas,
disseminadas no início dos anos 1980. Hoje, com as câmeras digi-
tais de alta resolução, passou-se a fazer filmes a partir dessa cap-
tação (eventualmente transferida para película). Nesse texto, não
caberia relacionar a grande quantidade de títulos finalizados nesses
processos, que se contentam em ser exibidos na sua forma original.
Uma série de longas em digital tem sido realizada, pelo coletivo
Alumbramento (Viagem para Ithaca, Os monstros), por Geraldo
Damasceno (Poço de Pedra), Daniel Abreu (Centopeia), etc. Mas,
no Ceará, o pioneiro em fazer longa dispensando a película fotográ-
fica foi Glauber Filho, com Oropa, França e Bahia (1999).”22

DÉCADA DE 2020
A década atual se iniciou com uma ameaça de paralização
das atividades audiovisuais, em virtude da pandemia do corona ví-
rus, especialmente tendo em vista o quanto esta atividade audiovi-
sual é fruto e obra de uma coletividade, contrariamente à produção
literária, por exemplo, que se faz no silêncio da subjetividade.
Desde 2017, o Governo do Estado que apresentara um pro-
jeto denominado Ceará Filmes, onde estivera na sala de Cinema do
Dragão do Mar a quase totalidade das instituições ligadas ao audio-
visual, na presença do governador Camilo Santana, que se compro-
metia a entrar com alguns milhões de reais, em complemento aos
investimentos federais do FSA, da ANCINE e outras patrocinadoras,
criando enorme expectativa em todos.

22 HOLANDA, Firmino: “História da produção de filmes no Ceará”, in Cartografia do


audiovisual cearense, Fortaleza: Editora dedo de moça, 2012. p. 55.

284
O Homem que Matou Dom Quixote – Ensaios de Cinema e Literatura

Ao descrever a produção de filmes no Ceará, na cartografia


do audiovisual cearense, o cineasta e pesquisador Firmino Holanda,
enfaticamente, conclui:
“A produção cearense se mantém numericamente razoável.
Passado o sonho do pólo de cinema, o Estado é reconhecido como
um centro de realizadores, muitos dos quais premiados no Brasil e
no exterior. Fortaleza dispõe de cursos de iniciação em audiovisual
na Casa Amarela Eusélio Oliveira e na Vila das Artes, além dos cur-
sos de graduação da UFC e da UNIFOR. O futuro nos reserva um
número cada vez maior de técnicos e de autores em audiovisual.
Resta saber se a nossa realidade histórica, cultural, política, social,
existencial etc., terá abordagens cada vez mais profundas por todas
as lentes e mentes aqui estabelecidas”.23
No entanto, desde 2019, no plano federal, sabe-se do presi-
dente Jair Bolsonaro tentando minar as forças do cinema nacional,
minimizar a ANCINE, estabelecer uma censura moral à produção ci-
nematográfica, fragilizar a cinemateca brasileira, etc., o que facilitou
ao governo estadual esquivar-se do aporte dos milhões prometidos
ao setor do audiovisual.
A perspectiva dos editais da SECULT de esboroar-se -para
seleção de filmes de curta e longa metragens- ou, simplesmente,
postergar-se, indefinidamente, foi objeto de matérias jornalísticas,
sem resultado concreto.24
A produção cearense se mantém numericamente razoável,
apesar desses empecilhos naturais da COVID e burocráticos (pos-
tergações editalícias do setor público), porquanto o cinema é fruto
dos sonhos dos jovens de se expressar através de sons e imagens,
consoante o quadro sinótico, abaixo, deixa transparecer.

23 HOLANDA, Firmino: Op. cit. p. 56.


24 Vide edição de 20/10/2020, do jornal O POVO, secção Vida & Arte, págs. 4 e 5, matéria
assinada pelo crítico de cinema João Gabriel Trêz, acerca do XVI Edital Cinema e Vídeo
(2019), alertando sobre o “descompasso entre discurso e prática” e no qual “agentes do
setor audiovisual apontam atrasos na chamada e falta de diálogo por parte da Secretaria
da Cultura do Ceará. Lançado em outubro de 2019, edital só teve as inscrições executadas.
Pasta aponta pandemia como justificativa” (sic). A chamada editalícia anterior, de 2016,
ainda estavam em aberto os pagamentos por ocasião do lançamento do XVI Edital, em
2019, o que parece, abalar sua credibilidade, em termos de tempestividade. Como diria
Euclides da Cunha, “o cinema cearense é, antes de tudo, um forte?”

285
ANEXO 1:
FILMES PRODUZIDOS NO CEARÁ – ALGUNS FILMES CEARENSES DE TODOS OS TEMPOS:

Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

A procissão dos passos 1910 doc. Descreve a procissão do Anônimo Anônimo 1910
Senhor morto em Fort

Ceará Cine Jornal 1919 idem Fatos ocorridos na Anônimo Anônimo 26/02/1919
capital cearense
Temporada maranhense 1925 idem Partidas de futebol Ademar Bezerra 1925
de futebol no Ceará no Ceará Albuque
1925 idem Cenas da cidade idem Aba Film 1925

286
O Juazeiro do pe. Cícero de Juazeiro e do
Pe. Cícero

Aspectos do Ceará 1925 idem Cenas e fatos do Estado do idem idem 1925
1º lustro Sec. XX

A festa no Iracema 1926 idem Instantâneos festivos da idem idem 1926


praia de Iracema

A indústria do sal no Ceará 1926 idem Aspectos da industrialização idem idem 1926
do sal no CE
A visita do Dr. Washington Luis 1926 idem Cenas da visita do presidente idem idem idem
ao Ceará W. Luís ao CE

A parada militar de 7 de setembro 1927 idem Cenas da parada militar idem idem 1927
do ano de 1927

Getúlio Vargas no Ceará 1933 idem Sequências da presença de idem idem 1933
Getúlio no Ceará
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

O Carnaval no Iracema 1934 idem Cenas e sequências da idem idem 1934


festa momina

Imigrações no Ceará 1935 idem Cenas de imigrações e idem idem 1935


imigrantes no Estado
O ministro Waldemar Falcão em 1938 idem Cenas da presença do min. idem idem 1938
Fortaleza W. Falcão no CE

O bando de Lampião 1936/1939 idem Cenas do bando de Lampião e Benjamim Abraão 1936/9
Maria Bonita Abraão
História de aviadora que cai
A eterna esperança 1937 ficção no sertão, acolhida por
sertanejos Leo Marten
It´s all true - quatro homens 1942 doc. O cotidiano de uma aldeia Orson Welles Rko 1942

287
numa jangada de pescadores

Caminhos sem fim 1944/9 drama Sertanejos de família José Augusto SCFC
flagelada tendo destino trágico Moura

Jangada 1947 idem Resgata algo do herói Nelson Moura Cine Prod
Dragão do Mar Nelson

Canindé 1951 doc. Cenas da cidade de idem idem


Canindé e romarias

Vaquejada 1952 idem Cenas de pegas de boi idem idem idem


em Morada Nova

Iguatu 1954 idem Cenas da cidade idem idem idem


de Iguatu

Rede de dormir 1965 idem Cenas da presença da rede nas João


classes altas e indígenas Siqueira
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia
A poesia folclórica de 1971 idem Encenação da tessitura Régis Frota idem Régis Frota
Juvenal Galeno poética de Galeno

Meninos de aço 1974 idem Presença da infância idem idem idem


maltratada de Ipatinga

Fotografia de lambe-lambe 1974 idem Trabalhos de fotógrafos idem idem idem


em praças e ruas

Franz Kafka 1975 idem Biografia do escritor idem idem idem


tcheco e metamorfone
Ciclo de super 8 e o CAU - 1976/9 idem Vida de Joaquim Bonequeiro Eusélio Ol Iveira idem
década de 1970 e outros
Brinquedos do povo idem idem Folclore e folguedos populares idem idem idem

288
Lua Cambará 1977 idem Longa ficcional Ronaldo Corrêa idem
em super 8
Pe. Cícero, o patriarca do sertão 1976 doc. Longa ficcional em 35 mm Hélder Martins idem

O homem de papel 1975 ficção idem Carlos Coimbra Ezaclir


Aragão

Iracema, a virgem dos lábios de mel 1978 idem Adaptação livre idem idem idem
de Iracema, de José Alencar
Os caminhos de Iracema 1978 idem idem Ezaclir Aragão idem idem

Chico da Silva 1976 doc. Sobre o pintor popular Pedro Jorge de idem
e suas cores Castro

Brinquedo popular do nordeste 1977 idem Sobre alguns brinquedos idem idem idem
populares do NE
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

De sol a sol 1982 idem Sobre a seca cearense idem idem idem

Tigipió 1985 ficção Adaptação do romance idem idem idem


de Hermann Lima
No calor da pele 1994 idem Adaptação do romance idem idem idem

Dona Ciça do Carro Cru 1979 doc. Mostra cerâmicas e Jeferson Alb Jr. idem
estatuetas de D. Ciça

Músicos camponeses 1981 doc. Mostra um grupo de idem idem


músicos do crato
Patativa do Assaré, um poeta do povo 1981 idem Cenas com o poeta idem e Rosemberg
- em super 8 popular Patativa Cariry

O cego Oliveira 1988 doc. Sequências com a rabeca Rosemberg idem

289
do cego Oliveira Cariry

Pífanos e zabumbas 1988 idem Cenas de músicas de idem idem idem


Pífanos e Zabumbas

Canto Cariry 1988 idem Curta-metragem, a exemplo idem idem idem


dos anteriores

O caldeirão de Santa Cruz do deserto 1987 doc. Longa-metragem sobre idem idem idem
a saga do caldeirão

A saga do guerreiro alumioso 1993 ficção Longa sobre a saga do idem idem idem
Guerreiro Alumioso

Corisco & Dadá 1997 idem Ficcional sobre as relações idem idem idem
dos cangaceiros

Patativa do Assaré, ave poesia 2007 doc. Longa documental sobre a idem idem idem
poesia de Patativa
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

Cine Tapuia 2006 doc. Longa sobre a Itinerância idem idem idem
Exibidora no CE
Siri-Ará 2009 ficção Longa sobre as origens idem idem idem
cearenses lendárias
Cego Aderaldo, o cantador e o mito 2012 doc. Longa sobre o idem idem idem
cego cantador
Folia de Reis 2014 doc. Longa documentário e idem idem idem
ficcional sobre a folia
O noviço rebelde 1997 ficção Longa humorístico filmado Tizuka Yamazaki Renato
no Quixadá Aragão
Bela Donna 1997 idem Ficcional sobre o amor Fabio Barreto L C barreto
de pescador com turista

290
A ostra e o vento 1998 idem Adaptado de romance de Walter Lima Jr. idem
Zé Lins do Rego
O sertão das memórias 1997 idem Memórias sertanejas e José Araujo José Araújo idem
familiares do diretor Idem

As tentações do irmão sebastião 2006 idem Mitos religiosos em idem idem idem
discussão no sertão do NE

Iremos a Beirute 1998 idem Relações de amor e amizade Marcos Moura idem
em Fortaleza
O amor não acaba às 15h30 1995 idem Curta metragem idem idem

Milagre em Juazeiro 1999 idem Longa sobre o milagre da Wolney Oliveira idem
beata Maria de Araújo

A ilha da morte 2007 idem Longa sobre a paixão pelo idem idem
cinema e o amor
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

A borracha para a vitória 2004 doc. Documentário sobre cearenses idem idem
no ciclo da borracha

Os últimos cangaceiros 2010 idem Depoimentos dos idem idem idem


remanecentes do cangaço

O artista contra o caba do mal 2005 ficção Média metragem sobre filme de Halder
lutas interrompida a exibição Gomes

Area Q 2009 idem Sobre OVNIs em Quixadá Sanguinito Halder


e suas crenças Gomes

As mães de Chico Xavier 2010 idem Sobre o trabalho espírita Halder Gomes idem
de Chico Xavier

2012 idem Narra as andanças de


Cine Hollywood família projetando filmes idem

291
no interior do CE

2016 idem Sobre as lutas de vale-tudo,


O shaolin do sertão anos 80, Li desafia idem
valentões do Sertão
O grão 2007 idem Retratando a solidão humana Petrus Cariry idem

A ordem dos penitentes 2002 ficção Curta metragem retrata idem idem idem
a velhice e solidão

A velha e o mar 2005 idem Curta que dialoga com seus idem idem
longas onde o tempo conta

Quando o vento sopra 2008 idem Curta dramatizando o tempo idem idem idem
e o fim das coisas

A montanha mágica 2009 idem Memória do cineasta na idem idem idem


imaginação e realidade
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

O som do tempo 2010 Curta Cenas de reflexão sobre idem idem idem
o tempo q passa...
CLARISSE OU ALGUMA COISA 2016 Longa Premiado no 26º idem idem idem
SOBRE NÓS DOIS Cine Ceará

Um cotidiano perdino no tempo 1988 Curta Integrando pretensa trilogia Nirton Venâncio idem
sobre o tempo
Último dia de sol 1999 idem idem idem idem idem
O amor do palhaço 2005 35 mm Documenta a vida do palhaço Armando Praça idem

Mulher Bionica 2008 idem Ficciona a vida de idem idem idem


Mulher Biônica
Documenta pai e filho visitando

292
#NOME? 2010 idem idem idem
escada rolante de shopping
Baseado em conto de Eugênio Menina q sonha
Águas de romanza 2002 idem Leandro mostra mulher e conhecer a
criança dif. idades Gláucia Chuva G.
Soares e Patricia Baía

Surto idem Vídeo doc. Seca, miséria e fome Gláucia Soares


no interior do NE
O prisioneiro 2002 Vídeo e Eric Laurence idem idem
35 mm
No rastro do camaleão 2002 doc. LM sobre os irmãos Aniceto idem idem idem
Adeus praia de Iracema 2001 Ficção Cm sobre a praia de Iziana Scarenhas idem
Iracema em Fortaleza Mascarenhas
Sob o céu de Iracema 2002 idem idem idem idem idem
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia
Dona Carmela 2004 idem Doc. Curta-metragem idem idem idem
sobre Dona Carmela
Querência 2012 idem Curta sobre idem idem idem

Retrato pintado 1995 doc. Sobre a técnica de pintar Joe Pimentel idem
fotografias familiares

Câmara viajante 2007 doc. Versa sobre exibição itinerante idem idem idem
de filmes no CE

Canoa veloz 2005 idem Em icapuí, pescadores de Idem Tibico Brasil idem
lagosta enfeitam mar

Homens com cheiro de flor 2007 doc. Versa sobre matadores de idem idem idem
aluguel no sertão

293
Uma nação de gente 1999 doc. Documenta depoimentos Margarita Itibio
de vaqueiros na lida Hernandez BRASIL

Labirinto 2001 doc. 35mm documentário sobre idem idem


ufólogos no CE

Não deu tempo 2002 15 min. id. Um retrato do fotógrafo Tibico Brasil idem
Zé Albano e o tempo

Filipe 2005 doc. Sobre transplante de Margarita idem


coração de uma criança Hernandez

Riso das flores 2004 doc. Sobre velha Risoleta e Karla Holanda karla
quando em criança Holanda

Sol de amém 2006 idem Sobre a seca cearense Yves Yves Albqq.
Albuquerque

Virando a página 2005 idem Sobre sexo, mentiras e idem idem idem
revistinhas de grupo
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

Retratos bandeiras 2005 Ficção Sobre movimento estudantil idem idem


com casal envolvido

Achados e perdidos 2006 idem A partir de uma agenda perdida,


grupo adolescentes discutem
s/ sexo e relacionamentos

Tangerine Girl 1998 Ficção Relato de jovem q se apaixona Liloye Boubli


por estrangeiro na II GG

Chico do Barro, artista do 3º mundo 2001 doc. O paulista Otavio Pedro Otávio Pedro
retrata o artesão Chico

A.M.A. Ceará 2001 idem O carioca pedro Martins Pedro


documenta no CE Martins

Campo branco 1998 Desenho Animação inserindo Telmo

294
pinturas e personagens Carvalho

Cine Cordel 1999 idem Desenho animado sobre Rui Ferreira


cordel e repentes

Patativa 2001 idem Animação sobre o Italo Maia


poeta caririense

Vida maria 2001 idem Animação sobre familia Márcio


sertaneja e sua luta Ramos

No passo da veia 2002 idem Jane


Malaquias

Titulo Inédito 2016 Longa idem

Paixão nacional metabólico irreversível 1995 Ficção Trágica história sobre a Karim
identidade nacional Ainouz
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

Madame Satã 2002 docudrama Versa sobre a vida e ações idem


de homosexual famoso

Céu de Suely 2006 idem Narra uma rifa do próprio idem


corpo por interiorana

Lua prateada 2008 LM ficção Acertos e desacertos idem


de casal no RJ

Praia do Futuro 2010 idem Relação amorosa de idem


cearense com alemão, aqui e lá

Rua da escadinha, 162 2002 doc. Vida e pensamento do Márcio


memorialista Cristiano Câmara Câmara

Torpedo 2009 cm 35 mm Drama em navio idem


durante a 2ª Guerra

295
A solidão dos dias difíceis 2003 ficção 1º dia de emprego Sandra
numa farmácia Kraucher

Formigas 2003 ficção Baseado em conto Verônica


de Lygia F. Telles Guedes

A luta da etnia Tapeba 2003 doc. Cenas da vida da comunidade Aline


tapeba no CE Cavalcanti

Selos 2009 ficção Vida familiar peq. Classe média Gracielly


sob ótica menino filatelista Dias
Sobre a confederação do
A sentença do Pau Brasil 2009 ficção equador qdo. Milagre salva
condenado ao fuzilamento

Cine Zé Sozinho 2007 cm 35 mm Sobre ambulante Adriano


Lima
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

SuperMemória 2010 S8 35 mm Somatória de cenas Danilo


domésticas de super 8 Carvalho

Fractais sertanejos 2010 35 mm-cm Heraldo


Cavalcanti
7 min. com homem e mulher
A insuportável comedora de chocolates 2010 ficção discutindo sobre cine,
Freud e assassinatos

O AUTO DA CAMISINHA 2009 Média met. Clébio


Ribeiro

Oropa, França e Bahia 1999 LM vídeo Narra danças, religiões e Glauber


folguedos populares Filho
Fortaleza In digente 1991 Vídeo digital Cenas da pobreza em Fortaleza idem

296
Centopéia 2008 ficção Daniel Abreu
cientif.
Solidão em apt. com música
Domingo 2006 Média met. erudita, intercalada com alga-
zarra na rua, música popular

Em quadros 2007 curta Experimental com janelas e


pintor q vai e vem
Desfoques dão sensações de
Em cantos 2008 idem pontos de luz e sombras, formas
e cores q se alternam e alteram

Rumo 2009 cam. de Ricardo e


celular Luis Pretti
idem +
Estrada para Ithaca 2012 Parente
e Pedro
Diógenes
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

Último pau de arara 2003 vídeo


Des. Animado mostra dados
Tolerância 2003 vídeo cm verde e azul se enfrentando em
guerra com dif. Armas
Mostra homem em notebook
A tecnologia aproxima o ser humano 2003 HQ curta e reações ao iphone c/ letreiros
à la antiga
Almofala. Matriz soterrada
idem pela areia, índia pagé indica
Guerra dos bárbaros, de Julia Manta 2001 aos jovens o ocorrido a aldeia.
Choram e índia mergulha na
água 9 min. 2001

297
Narra menino e adulto obser-
Experimen- vando casal em intimidades,
Uma folha que cai, de IVO LOPES 2003 tal depois ela banhando-se no rio,
desnuda, a sugerir distintas
reações 15 min.

A festa e os cães 2016 cm 35 mm Leonardo


Matamouros

Bezerra de Menezes, Narra a vida solidária e Glauber


O médico dos pobres 2006 lm 35mm caritativa de B. Menezes Filho e Joe
Pimentel

Amá-ja 1997 cm Roberta


Marques

Rânia 2011 Longa Descreve jovem q se realiza idem


como bailarina
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia
História de um humorista
A filha do palhaço 2017 LM ficção cearense q vai ter q conviver
por uma semana com filha
adolescente que mal conhece
Narra a história de um Sr. de
Os olhos do caranguejo 2017 idem 90 anos, q após fugir do asilo,
avança pelo sertão mítico
Pedro Diógenes
O último trago 2016 idem c/ Ricardo e Luiz
Pretti
Narra a presença
O clone de Deus 2017 idem de Deus nas dunas Jonas de Icapui SECULT

298
de Icapuí
Antonio: um, dois, três 2016 LM ficção Escolhido para participar Leonardo
do festival de LM Mouramateus
A vida invisivel de Euridice Gusmão 2019 LM ficção Adaptação do romance de Karin
Martha Batalha Ainoux

O inferninho 2019 LM ficção Guto Parente

Clube dos canibais 2019 LM ficção Guto Parente

Greta, 2019 LM ficção Adaptação de Armando Praça

Notícias do fim do mundo, 2019 LM ficção Barbara Cariry e


de Rosemberg Cariry Rosemberg
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

Encarnado Van gogh, de Halder Gomes 2020 LM ficção Visão particular da Halder Gomes
obra do pintor com Maria Fer-
nanda em Paris

Cine Hollywood 2, a chibata sideral 2020 LM ficção Continuação do folclore Halder Gomes
cômico do CE

Escravos de Jó 2019 LM ficção Apres. na 23 mostra Rosemberg


de Tiradentes-MG Cariry

Soldados da borracha 2019 LM ficção 41 Fest. intl novo cin latino Wolney

Joe Pimentel

299
A JANGADA DE WELLES 2019 LM doc. 41 Fest. intl novo Cin Latino Firmino e Petrus
OS OVOS DA RAPOSA - SERIE TEKEVI- PRODAV-ANCINE-13
SIVA O POVO 2019 LM ficção episódios o povo Valdir Oliveira

Prêmio em
Sobre dançarina Cine Ceará,
PACARRETE 2019 LM ficção do interior-bailarina Allan Deberton
Shangai e
Gramado)
Sobre a problemas Sara Benvenuto
MARCO 2019 CM 52 FEST da mulher no interior Iguatu
Sobre o centenário Glauber Paiva Fº,
MEU TRICOLOR DE AÇO 2019 doc. do Fortaleza Tibico Brasil e
Valdo Siqueira
Títulos dos filmes cearenses Data Natureza Enredo Diretor Produtor Estreia

A zuz salva 2019 doc. Sobre a produção de Tibico Brasil


Chico Albuquerque
Eu não conhecia Tururu 2000 lm ficção Sobre Uruburetama Florinda Bolkan
Um dia com Jerusa 2018 lm dic Sobre Viviane Ferreira
Eroica 2018 curta Sobre Josy Macedo
O mundo sem nós 2016 curta Sobre Noá Banoba

Terra ausente 2018 curta Da V turma da escola Noá Banoba


de audiovisuais Vila das Artes

Porque era ela 2018 curta doc. Luciana Vieira

300
O animal sonhado 2020 lm coletivo Luciana Vieira

Capitais 2019 curta Da ancine Kamila Medeiros

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