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ELEMENTOS SOBRE A CIENTIFICIDADE DA HISTORIA NO SÉCULO XIX

Janote Pí er Cha:rques
Joáo IKilame Coelho Craça

Introdução

O século XIX ê o século da Histó ria. Essa afirmacã o


parece nã o comportar maiores questionamentos, segundo Ma-
noel Salgado Guimarã es (2002). Foi aquele tempo em que o
conhecimento do passado tornou-se tarefa de uma disciplina
com todas as implicaçõ es daí decorrentes, seja a criaçã o de um
mé todo de pesquisa, seja um aprendizado, seja a afirmaçã o de
um profissional específico — o historiador. Foi, també m, no sé -
culo XIX, que se consolidou a ideia de que a experiê ncia hu-
mana poderia ser explicada a partir do prô prio movimento da
histó ria. Desvelar-se-iam, assim, o sentido e a razã o da existên-
cia humana, tornando-os eminentemente histó ricos. Por outro
lado, pouco se considera o fato de que este procedimento
disciplinar com relaçã o à Histó ria resulta de forte disputa pelo
monopó lio da fala com relaçã o ao passado. Noutros termos,
longe de uma natureza, o passado constitui objeto de disputa
mobilizando interesses políticos e de conhecimento “numa
rede complexa em que, se o saber pode significar poder, é
també m do lugar do poder que se tecem saberes a respeito
dos tempos preté ritos.” (CUIMARÂ ES, 2002, p. 184).
Ressalte-se que, ao longo do sé culo XIX, efetivou-se um
avanço significativo na metodologia dos estudos histó ricos; a
multiplicaçã o dos arquivos pú blicos; a conquista do status uni-
versitá rio pela Histó ria; a consolidaçã o de uma comunidade
de historiadores com a criaçã o, por exemplo, de sociedades e
institutos histó ricos. De acordo com José Carlos Reis (2006),

” 103
no século XIX, a Histó ria se emancipou da Filosofia e aderiu
a Ciência. A Histó ria científica seria produzida por um histo-
riador imparcial, que se neutralizaria enquanto sujeito para
fazer aparecer o seu objeto. A Histó ria científica (ou metó dica,
por sua supervalorizaçã o do método) deveria se basear em
enunciados válidos para todo o tempo e lugar, como faziam as
ciências naturais. O historiador deveria evitar hipó teses e jul-
gamentos. “Os fatos falariam por si”. Decorrente dos pressu-
postos da “Histó ria ciência”, intensificou-se a valorizaçã o dos
documentos oficiais como fontes e da Histó ria política como
objeto de estudo, posiçõ es que dariam margem a críticas ao
longo do século XX.
Mas, se o século XIX é conhecido como o século da
Histó ria, foi também porque nessa época surgiram correntes
teó ricas que buscaram dar a Histó ria carater de disciplina e de
Ciência. Assim, a chamada Histó ria científica foi constituída
no século XIX e teve vá rias orientaçõ es, como Positivismo, Es-
cola Metó dica, Historicismo e Marxismo. O que se constituiu
cada uma dessas correntes de pensamento ligadas ao fazer
histó rico?

AugusteComte ea Cientifiúdadeda Histézia

O Positivismo, sistema filosó fico criado por Auguste


Comte (1798-1857), e que pode ser sintetizado em três temas
basicos: 1) Lei dos três estados (seria a base de uma espé-
cie de filosofia da Histó ria), com as fases teoló gica, metafisica
e positiva. Nesta ú ltima fase, Comte defende a ciência como
orientadora da vida social e pessoal, pois o conhecimento das
leis naturais e sociais tornaria possível, de certa forma, prever
o futuro. O desenvolvimento tecnoló gico (no estado positi-
vo) levaria ao regime industrial (no sentido da exploraçã o da
natureza pelo homem) e a substituiçã o do poder dos juristas
pelo dos cientistas e industriais, e a concepçã o universal da
humanidade. 2) Classificaçã o das ciências. Escala que se inicia
por aquela cujo objeto é mais simples e determinado (permi-
tindo um maior grau de generalidade) indo até aquela cujo
objeto é mais complexo e específico: matemá tica, astronomia,
física, química, biologia e sociologia. A sociologia permitiria a
totalizaçã o do saber, relacionando-a a ideia de humanidade.
3) Reforma das Instituiçõ es. liiderada pela nova elite cienó -
fico-industrial. Essa reforma nã o se daria por meio de uma
revoluçã o e sim a partir da reforma intelectual do homem.
(BURGUIÉ RE, 1993; COMTE, 1988; CARDINER, 1995).
Em geral, entende-se que historiadores positivistas fo-
ram aqueles que adotaram como pressupostos a possibilidade
de um conhecimento humano inteiramente objetivo; a cons-
miçã o de uma Histó ria universal, comum a toda a humani-
dade; e a ideia de imparcialidade do historiador, ou seja, do
sujeito que produz o conhecimento histó rico. Sabe-se, tam-
bém, que houve fortes críticas de historiadores dos Annales
a historiografia positivista, tida como tradicional e retró grada.
Entretanto, segundo Guy Bourdé e Hervé Martin (2004) não
foram muitos os historiadores realmente positivistas, pelo me-
nos na França. Nesse sentido, dois autores do final do sécu-
lo XIX seriam bons exemplos do positivismo comtiano: Paul
Lacombe e Louis Bordeau. Este ú ltimo reafírmou os pü ares
fundamentais do Positivismo: Leis Cerais; metodologia apro-
ximada das Ciencias Naturais; neutralidade do historiador;
linguagem formal e avessa à narratividade.
A “verdadeira” histó ria positivista foi definida por Louis
Bourdeau em A história e os hirt ensaio cr 'ico sobre a
horária considerada como ciênciapositiva. De acordo com Bourdê
e Martin (2004), como bom discípulo de Comte, Bourdeau

ELEMENTOs SOsxEA ClExTlrICIDADE DA NIST6NIA x0 sÉ CUL0 xlx Ç


estabelece que o objetivo da História é encontrar as leis que
dirigem o desenvolvimento da espécie humana. Essas leis
poderiam ser classificadas em três grupos: 1) leis da ordem,
que mostram a semelhança das coisas; 2) leis da relação, que
fazem com que as mesmas causas provoquem os mesmos efei-
tos; 3) lei suprema, que regula o curso da História. Em suma,
tratar-se-ia, aqui, de uma filosofia da História, resolutamente
determinista, que pretende tanto reconstituir o passado, como
prever o futuro.

As Escolas Metédicas Alemâ e Francesa

A Escola àíetódica ou Científica alemã teve como um de


seus principais expoentes o historiador Leopold Von Ranke
(1795-1885), para o qual a ciência positiva seria capaz de al-
cançar a objetividade e conhecer a verdade da História. Se-
gundo José Honório Rodrigues (1978), entretanto, Ranke
não apenas discutia com comprovada erudição as fontes his-
tóricas, como estabelecia princípios críticos sobre o valor ade-
quado do exame e da interpretação das fontes. “Ele tornou o
método, a pesquisa e a investigação das fontes um processo
científico.” (RODRIGUES, 1978, p. 53). Em termos gerais, os
pressupostos teôricos e metodológicos rankeanos eram: 1) O
historiador não é juiz. 2) Neutralidade do historiador. 3) Se-
ria possível apreender a realidade passada. 4) O historiador
deveria promover uma crítica (externa e interna) dos docu-
mentos. 5) Haveria uma narrativa (descrição) cronológica, ou
seja, a tarefa do historiador consistiria em reunir um núme-
ro suficiente de eventos, apoiados em documentos; a partir
desses eventos, o próprio relato histórico se organizaria e se
deixaria interpretar. 6) Toda reflexão teórica seria até mesmo
prejudicial, porque introduziria um elemento de especula-

I06 JANOTE PIREs MARQUEs • i0i0 WILAu‹ COELHO GRAçA


çã o.7) Haveria uma verdade histó rica objetiva. (BOURDÉ e
MARTIN, 2004; REIS, 2006; RODRIGUES, 1978).
Quanto a Escola Metó dica ou Científica francesa, Guy
Bourdé e Hervé Martin chamam a atençã o para o fato de que
“é um erro que se tenha quarcado e que ainda se quali-
fique a escola metó dica que se impô s na França de 1880 a
1930 como corrente poJiú uú m. ” (BOURDÉ e MARTIN, 2004,
p. 142). Segundo esses autores, os partidá rios da Escola Me-
tó dica nã o se inspiraram no frances Auguste Comte, mas, sim,
no alemã o Leopold Von Ranke. Imediatamente depois da
guerra de 1870-71 (franco-prussiana), muitos jovens histo-
riadores franceses foram completar sua formaçã o superior na
Alemanha. Acreditavam que a vitó ria germâ nica se explicava
pela perfeita organizaçã o de suas instituiçõ es militares, mas
também civis e intelectuais. Em meados do século XIX, as
ideias de RanLe questionaram as filosofias da Histó ria “espe-
culativas, subjetivas e moralizantes” e defenderam fó rmulas
“científicas e objetivas (positivas)”, que influenciaram duas ou
tres geraçõ es de historiadores, primeiro na Alemanha, depois
na França (BOURDÉ e MARTIN, 2004).
A Histó ria científica alemã contou, na França, com dois
“tradutores” principais: a ANw Hú criada em 1876,
e os manuais de metodologia de Histó ria, dos quais o mais
conhecido foi o de autoria de Charles Langlois e de Charles
Seignobos — Introducion aux e"tudes hzrtoriquer publicado em
1898. De acordo com o manual de Langlois e Seignobos, a
Histó ria deveria ser baseada em documentos escritos; e o
historiador deveria escrever de maneira correta e elegante
ou, noutros termos, o historiador deveria ser também um
bom escritor. Grosso modo, o manual citado definia que o
método de pesquisa em Histó ria seria composto por: 1) Ope-
raçõ es analíticas, compostas pelo inventá rio dos documentos

aiuinwisoaniiciim o»isEanirrániiaostnionx 107


(heurística); pelo “desaparecimento” do próprio historiador
atrás dos textos; e pela crítica externa e interna (hermenêu-
tica) aos documentos. 2) Operações sintéticas, que incluíam
comparar documentos; agrupar, relacionar e eleger os fatos;
e, por fim, a escrita histórica (BOURDÉ e MARTIN, 2004;
REIS, 2006).

BrevesAspectos Sabre a Yisăo de História em Marx

Muitas vezes, “marxismo”, como modelo de açã o políti-


ca, e “materialismo histó rico”, como paradigma historiográ fi-
co e um método para a explicaçã o da Histó ria, sã o utilizados
como expressõ es sinô nimas. Por outro lado, Karl Marx (18 18-
1883) não deixou uma obra específica sobre a sua concepçã o
de Histó ria, embora haja alguns textos em que essa concepçã o
fique mais evidente. “A histó ria propriamente dita ocupa mui-
to pouco espaço no conjunto da obra de Marx.” (BURGUIÈ -
RE, 1993, p. 520).
Nă o obstante, a pretensă o de Marx é a de conferir cien-
tificidade å histó ria por meio de uma tese fundada, sobretudo,
na economia política. Noutros termos, é o chamado materia-
lismo histó rico, tese na qual o autor expõ e os fundamentos
de uma histó ria humana marcada, principalmente, pelos pro-
cessos econô micos. Para Marx, a economia age como um tipo
de motor que propulsiona a sociedade humana. O projeto
de Marx é demonstrar que a histó ria não caminha de forma
autô noma on ao bel-prazer das ideias humanas alienadas do
fator material (economico). Para este autor, a cultura humana
é alicerçada pelo passo das características economicas de cada
contexto social e histó rico.
Marx traça um panorama do desenvolvimento histó -
rico desde as sociedades mais primitivas as quais ele chama

108 inm*zææmsmæximnmaæ*
comunismo primitivo; depois escravismo; depois feudalismo
e seguido pelo capitalismo. O autor demonstra o carater e a
divisão classista presente em cada um destes sistemas. Em
todos eles os bens sociais ficavam concentrados nas mãos da
classe dominante. Na ótica de marx, o deslindar da história
humana acaba por ensejar um tipo de sociedade onde a eco-
nomia possa trazer a distribuição da riqueza produzida na
sociedade. A classe operária, dentro do capitalismo, teria o
papel de uma classe revolucionária que efetuaria a transfor-
mação social.

A História como Ciência em Schleiermacher E Dilthey

Se for possível dizer que a tentativa positivista de urna


“histó ria ciê ncia” acaba por gerar profunda desconfiança nas
geraçõ es seguintes, ja com Friedrich Schleiermacher e fi"i-
lhelm Dilthey o percurso é diferente. A vertente iniciada por
estes dois filó sofos, mesmo criticados em parte, ganhou res-
peito e status por ter alicerçado uma estrada pela qual ca-
minhariam nomes contemporâ neos como Ricoeur, Heidegger
e Cadamer. Este ú ltimo, por sinal, reconhece diretamente a
influê ncia que sofreu de Dilthey: “eu mesmo procurei ofe-
recer desde o principio em meus prô prios trabalhos a minha
contribuiçã o para o direcionamento da pesquisa que Dilthev
tinha desencadeado.” (GADHIER, 2007, p. 157).
Com Schleiermacher e Dilthey a histó ria enfrentaria
dois problemas que os impediam de galgar o patamar cientí-
fico: o primeiro, a ausê ncia de um mé todo que lhe conferisse
cientificidade e o segundo a falta de legitimidade dentro de
um campo de abrangê ncia acadê mica. Sã o estas principalmen-
te as duas questõ es abordadas por Schleiermacher e Dilthey.
Com o primeiro, a histó ria adquire um mé todo e com o se-

EL‹MENT05 S0BnE A CIENTIFICIDADE OA HISTORIA NO 5tCUL0 XIX Kg


gundo, ele ganha um campo de existência que lhe confere
legitimidade acadêmica.
Desde Aristóteles, os critérios adotados para atribuir
cientificidade a um saber eram: objeto de estudo determinado,
método adequado e mínimo rigor terminológico. Neste sen-
tido, a hermenêutica de Shleiermacher vem suprir a carencia
metodológica necessária para consignar a história enquanto
ciência. É importante lembrar que Schleiermacher adentra no
estudo histórico tendo por foco primeiro a teologia, portanto a
discussão sobre a história em Schleiermacher não se dá com a
pura autonomia da discussão histórica. Japiassú e Marcondes
ao comentarem a obra de Schleiermacher afirmam que:
Sua principal influência diz respeito a proposta de um
método exegético do Novo Testamento, acentuando
alêm dos aspectos filológicos e doutrinarios a analise
dos elementos históricos, considerando o texto bíblico
como parte de uma tradição cultural. Influenciou forte-
mente o pensamento de Dilthey e ê considerado um dos
principais precursores da hermenêutica. (J APIASSÚ;
MARCONDES, 2001, p. 171).

O método criado por Schleiermacher é o “histórico-


-crítico”. Antes a exegese bíblica era feita sem considerar os
critérios históricos, como com Lutero e seu método que con-
sidera o princípio retórico do todo e da parte em relação ao
todo das escrituras. Já o método católico se fundava princi-
palmente na interpretação efetuada pela autoridade católica,
nos concílios e também pelos chamados padres da igreja. O
método de Schleiermacher consiste naquilo que ele denomi-
na interpretação técnica e gramatical. A analise gramatical é
prévia, verificando e exaurindo os limites formais do texto.
Neste nível da interpretação,
o tradutor se esforça para, mediante seu trabalho, suprir
ao leitor a compreensão que lhe falte da língua do ori-

}§ iAn0TE PIRES MARQUES • J0i0 WILAuE COELHO GRAçA


ginal. E tenta participar aos leitores a mesma imagem,
a mesma impressão que ele próprio [...] teve da obra.
(SHLEIERMACHER, 2007, p. 32).

O conteúdo, então, sera explorado de forma técnica e


é aí que vemos a abordagem histórica. Na interpretação
técnica, a primeira fase é a chamada compreensão divinatória,
consiste em um tipo de empatia espiritual entre intérprete e
autor do texto. Seria um mergulho psicológico na tentativa
de aproxi- mação intuitiva para com a vontade subjetiva do
autor. É com a compreensão comparativa que vemos a
ênfase histórica no pensamento de Schleiermacher.
A compreensão comparativa, segunda espécie de inter-
pretação tecnica, diferentemente da interpretação divi-
natória, que dependeria de uma sensibilidade subjetiva
do intérprete, bu scaria atingir o sentido intencional
do autor no texto através de elementos objetivos. O
intérprete procuraria comparar diversos escritos do
autor, bem como diversos elementos [...] históricos.
(MACALHÀES FILHO, 2004, p. 34).

O que acontece é que quando Schleiermacher,


considerou a Bíblia como um simples texto de natureza
histó rico-literá ria, ele estabeleceu um mé todo que ser-
viria para a interpretaçã o nã o apenas da Escritura, mas
també m [...] de todos os textos que possuíssem essa
natureza. (MACALHÀ ES FILHO, 2004, p. 34).

Foi assim que Schleiermacher,


introduziu o mêtodo hermenêutico na História e na Filo-
logia, possibilitando o reconhecimento da cientificidade
desses dois ramos do saber humano, o que veio a ser
finalmente firmado com a divisão das ciências propostas
por Dilthey. (MACALHÀES FILHO, 2004, p. 34).

É o campo aberto por Shleiermacher que incita Dilthey


a fundamentar o campo de cientificidade da Histôria, pois

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tendo já um método, faltava agora um campo de existência
que lhe afirmasse a legitimidade.

Dilthey:a HistériacomoCiéncia do Espírito

A enfase do pensamento científico no século XIX se


dava em torno do formato das ciencias exatas. A mentalidade
cientificista iniciada por Descartes atingia seu ápice naquele
século que acreditava fortemente que a ciencia fosse resolver
todos os problemas da humanidade. Na verdade, o prestígio
alcançado pela física foi tão avassalador que transformou mes-
mo a matematica em um tipo de ciência secundária, ou mero
método, frente à suposta precisão científica da física. Diante
de tal mentalidade seria necessaria uma reformulação
profun- da em todo o conceitual da filosofia da ciencia para
que a história obtivesse estatuto de cientificidade.
Foi preciso então que Dilthey efetuasse tal revisão. É
preciso enfatizar, portanto, que o feito de Dilthey foi, não so-
mente, no campo da ciencia, mas na seara da filosofia da ci-
ência. Este autor mergulhou no próprio significado do termo
“Ciência”, e no campo de abrangencia deste conceito e é por
esta ênfase que,
o tema da filosofia da histó ria na escola histó rica alcançou
seu ponto mais elevado em Wilhelm Dilthey. Seu status
se deve a que reconhece realmente o problema episte-
moló gico que implica a concepçã o histó rica do mundo
face ao idealismo. (C•ADAMER, 2008, p. 295-296).

Dilthey sabia que,


durante muito tempo nã o se reconheceu a cientificidade
da Histó ria em face da afirmaçã o aristotélica de que
só existia ciência do geral e nunca do particular (fatos
histó ricos). (MACALHÀ ES FILHO, 2004, p. 35).
A soluçã o encontrada por ele parte da recepçã o de par-
te do conceitual até entã o utilizado. Ele tomou o leque das
ciê ncias empíricas e as chamou de ciê ncias da natureza repu-
tando-lhes a tarefa de empreender uma investigaçã o precisa,
pontual ou laboratorial sobre os elementos objetivos tangíveis
da natureza material. Se existe esta qualidade de ciê ncia, nã o
existem, entretanto, somente esta. A grande virada em filoso-
fia da ciê ncia ocorre quando Dilthey conceitua para alé m das
ciê ncias naturais, as chamadas ciê ncias do espírito.
Para entender Dilthey, vejamos que o pensamento kan-
tiano estipula os conceitos de Ser e Dever Ser. Dilthey aceita
este conceitual transportando-o através da ideia de ciê ncias
da natureza e ciências do espírito. Remontando ao ideario de
Kant podemos relacionar as ciê ncias do espírito com a ideia
de Dever Ser, enquanto as ciê ncias naturais se subsumem ao
campo do ser. Ou seja, diferentemente do campo da natureza
para as ciê ncias do espírito é a, “filosofia que cria nox•as disci-
plinas nas ciê ncias do espírito e as entrega depois as ciê ncias
particulares.” (DILTHEY, 1979, p. 155). As ciências naturais
se utilizam da explicaçã o para demonstrar os fatos da nature-
za e as ciê ncias do espírito usam a compreensã o. Enquanto as
ciê ncias naturais buscam a exatidã o, a precisã o e a repetiçã o,
enquanto elas buscam uma prova material e mesmo labora-
torial, as ciê ncias do espírito buscam desnudar aquilo que o
espírito humano deixou gravado na histó ria, já que, “os rasgos
fundamentais da experiê ncia da vida sã o a todos comuns.”
(DILTHEY, 2013, p. 10).
O mêtodo das ciências do espírito consiste na correlação
constante das vivências e dos conceitos. Na reprodu-
ção dos complexos estruturais individuais e coletivos,
encontram o seu cumprimento os conceitos científico-
-espirituais, como, por outro lado, o próprio reviver

ELEMENTOS S0BnE A CI‹NTIFICIDADE DA HlSTó xlA NO StCUfO XIX {3


imediato é elevado a conhecimento científico por meio
das formas gerais do pensamento. Quando coincider»
estas duas funçô es da consciência científico-espiritual,
apreendemos o essencial da evoluçã o humana. (DIL-
THEY, 1979, p. 11).

É deste modo que a Histó ria ficou consignada, segun-


do a definiçã o diltheyana, dentro do grupo das chamadas de
ciências do espírito, conceituaçã o que germinou a nomencla-
tura que chegou até nossos tempos como ciências culturais
ou ciências humanas. É , portanto, inegá vel que, ainda hoje,
quando analisamos a disciplina de Histó ria em sua dimensã o
científica somos obrigados a recorrer direta ou indiretamente
ao manancial teó rico deixado por este autor.

Conclusão

O tema exposto revela uma característica do pensamento


ocidental, tal seja a força da ideologia científica que se avolu-
mou na modernidade atingindo seu á pice no século XIX, sêcu-
lo abordado neste escrito. Foi, em ú ltima aná lise, a mentalidade
cientificista, nascida em Descartes, que empurrou a Histó ria na
busca de uma validaçã o científica que lhe referendasse e lhe
conferisse patamar junto aos saberes chamados científicos. Des-
tarte toda a discussã o exposta que traça o roteiro desta busca
de afirmaçã o no campo das ciências, é preciso perguntar se
de fato a histô ria precisa ser uma ciência? Tal pergunta pode,
ainda, ser elaborada da seguinte maneira: a busca de validaçã o
cientirca continua sendo o norte que guia a visã o da disciplina
de Histó ria? Em um tempo em que rompe no horizonte a ideia
de um novo paradigma de conhecimento que supere a visã o
cientificista, precisamos nos perguntar novamente sobre os cri-
térios de validaçã o da Histó ria, assim como dos demais saberes.

ll § usou riics uin¢ucs • ioãowiiiui coiinosniçi


Analisamos acima varios autores, mas é preciso mais do
que meramente repetir o que disseram Comte, Shcleiermacher
ou Dilthey. É necessario que consigamos nos revestir de sua
atitude intelectual, sua disposição de espírito, afinal o exemplo
destes pensadores nos mostra o esforço de quem tentou dis-
cernir sobre as indagações de sua geraçâo. O que eles escreve-
ram, o fizeram para influenciar ao seu tempo e seu contexto.
O que afirmaram foi o que lhes pareceu adequado ao seu mo-
mento. Isto nos mostra que, como eles, precisamos dar voz ao
nosso tempo, pois a ideologia da idade moderna jaz superada.
Se foi o prestígio do saber científico que levou a His-
tória para o campo cientificista, então que possamos
repensar tais conceitos, pois, hoje, sabemos que todo e
qualquer saber, para além da chancela científica, precisa sim
da capacidade de coexistir de modo dialógico dentro de um
grupo amplo de saberes. Nesse sentido, talvez a grande tarefa
da História hoje seja construir sua coerência dialogal e
holística com os demais saberes, bem como cumprir seu papel
ético e transdisciplinar. Isaac Newton disse em uma carta
que se conseguia ver mais longe, era por estar de pé sobre
ombros de gigantes. Eis a grande divisa do saber: poder
construir-se e reconstruir-se utilizando como esteio tudo
aquilo que já foi construído pelos gênios do passado, mas
como na màxima aristotélica, sendo mais amigo da verdade
que dos próprios amigos.

Referências Bibliográficas

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