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Capitulo I

Lucy Borden nunca mais esqueceria aquela manhã de julho, quando


conheceu o Mais Horrível Homem do Mundo. Bem, primeiro
conheceu sua filha.
Lucy estava sentada na escada da varanda, olhando para o vazio da
estrada Ned's Point e ouvindo o som das ondas atrás da casa,
pensando em seus problemas. O sol era abrasador, e a única fonte de
alívio era a brisa que vinha do mar.
Ao longo de Ned's Point alinhavam-se magníficas mansões. A casa dos
Borden, de arquitetura do século dezoito, era a única que parecia
prestes a desabar. E Lucy Borden, Lucastra, na verdade, não tinha
herança ou qualquer outro meio para tentar impedir a catástrofe.
Assim, quando a criança surgiu do nada e parou na sua frente, Lucy
tentou livrar-se das preocupações e forçou um sorriso.
— Olá. Meu nome é Maude — a menina apresentou-se.
Não era bonita. Sólida como um hidrante, com cabelos castanhos que
pareciam não ver um pente há meses e sardas espalhadas por todo o
rosto, vestia uma calça que já devia estar no lixo e uma camiseta que
certamente viera do Exército da Salvação. Oito anos, talvez?
—Sou uma garota — ela explicou impaciente.
—Eu também — Lucy sorriu. — Veio pela praia?
—Estava caminhando.
—Maude de quê?
—O quê?
—Todas as pessoas têm um sobrenome. Você deve ser Maude Alguma
Coisa.
— Você é engraçada — ela riu. — Maude Alguma Coisa!
Meu pai é um homem muito importante. E meu nome é Maude
Proctor.
—Um nome bonito. Alguma coisa a ver com sabão, se não estou
enganada. Quem escolheu seu nome? Seu pai? Maude... É bem
feminino.
—Ah, não sei. Às vezes ele age como se não gostasse de garotas.
—Ele deve gostar de sua mãe.
—Não tenho mãe. Ela morreu quando nasci.
—Então somos muito parecidas. Minha mãe também morreu quando
nasci.
A criança balançou a cabeça num gesto de solidariedade e sentou-se
perto dela, no degrau de baixo.
—Pais também são legais. Onde está o seu? — perguntou.
—Ele... não está por perto — Lucy respondeu. Seu pai havia partido
para a guerra quando ainda cursava o magistério e nunca mais voltara.
E Mark, também... Serviam no mesmo pelotão da Força Aérea. Havia
sido um choque perder o pai e o noivo ao mesmo tempo, mas os
anos a ajudaram a superar a perda.
—Mas ele gosta de você, e você dele?
—Ah, sim! — Lucy sorriu. — Sempre nos amamos muito.
—Meu pai grita comigo. Francamente, acho que ele não gosta de
garotas.
—Se seu pai não gosta de meninas, deve ser muito estúpido — julgou,
imaginando de quem poderia tratar-se. Proctor? — Seu pai é um
homem estúpido?
—Meu pai? — a pequena repetiu espantada, como se a ideia jamais
houvesse lhe passado pela cabeça. — Ele é o homem mais
inteligente do mundo! E aposto que você também é esperta.
Não, acho que não. Uma professora não consegue ganhar muito
dinheiro, sabe? Se não conseguir encontrar um emprego para as
férias de verão, estarei bem encrencada.
— Oh, mas você é bonita — Maude afirmou com tom sério, como se
esse fosse o único requisito necessário para o sucesso de uma
mulher.
E agora, Lucy Borden? O que vai dizer? Um metro e sessenta de altura,
cinquenta e oito quilos, roliça, mas com todas as curvas nos lugares
certos, olhos verdes e cabelos castanhos claros... Por que depreciar-se?
—Obrigada. Infelizmente, beleza é algo que não dura eternamente.
Tenho vinte e oito anos, sabe?
—Uau! Você é bem velha! — Maude concordou com ar solene. —
Mas ele é ainda mais velho.
Lucy gostaria de saber a quem ela referia-se, mas conteve a
curiosidade.
—Mora por aqui?
—AH — a pequena apontou na direção da praia, onde uma linda
mansão erguia-se no centro de um imenso terreno retangular.
A casa era objeto da curiosidade de Lucy há anos, mas jamais tivera a
oportunidade de conhecê-la por dentro. — No verão, esse lugar é
incrivelmente solitário. Talvez...
—Pode vir me visitar sempre que quiser. Não estou trabalhando.
Quer alguns biscoitos e um copo de limonada?
—Não tenho permissão para comer entre as refeições — ela explicou,
fitando-a como se esperasse que desrespeitasse a norma.
—Essa regra não se aplica às quintas-feiras — Lucy sorriu.
A criança afirmou com a cabeça num gesto entusiasmado, mesmo
sabendo que era terça-feira.
— Espere aqui enquanto vou buscar o lanche.
Lucy havia subido os três degraus da varanda quando o som de um
carro a deteve. Um brilhante Cadillac percorria a Ned's Point em
velocidade espantosa, mas, ao passar por sua casa, o motorista
acionou o freio e invadiu sua propriedade como se estivesse
conduzindo uma diligência policial.
Maude levantou-se e cobriu a boca com uma das mãos. O automóvel
parou e finalmente ele desceu.
Um homem grande, forte e robusto, como sua filha, mas sem um único
grama de gordura no corpo impressionante. Devia ter mais de um
metro e oitenta, e uma linha profunda entre os olhos demonstrava o
quanto estava aborrecido. Era como deparar-se com Thor disfarçado
num temo, prestes a lançar alguns raios sobre os mortais.
—Que diabos está fazendo com minha filha?
—Não admito gritos em minha propriedade! — Lucy reagiu furiosa.—
Quem é você?
—Sou o pai de Maude — ele rosnou.
—E como posso ter certeza disso? Pode ser um seqiiestrador, um
bandido perigoso... Nenhuma garota que se preze tem um pai como
você! Maude?
A pequena abaixou a cabeça para esconder a lágrima que corria por seu
rosto.
— Ele é meu pai, mas não tenho culpa — sussurrou.
Emocionada, Lucy passou um braço por seus ombros.
—Não, querida. Você não tem culpa. Infelizmente, não podemos
escolher nossos pais.
—Muito obrigado — o recém-chegado interferiu com sarcasmo. —
Maude, entre no carro.
—Posso vê-la outra vez?
—Quando quiser — Lucy sorriu.
—Isso é o que você diz — o desconhecido indicou, esperando que a
filha entrasse no automóvel para fechar a porta e aproximar-se da
escada. — Escute aqui...
Apesar do temor, Lucy cerrou os punhos e preparou-se para enfrentá-
lo, mesmo que fosse fisicamente. Mas, ao encará-lo, viu que os olhos
negros estavam fixos na casa. O ar de reprovação foi o bastante para
incendiá-la.
— Qual é o problema? Nunca viu uma casa? Nós, os Borden, estamos
nesta região há dois séculos. Não somos um bando de imigrantes
atrevidos! — mentiu. Era descendente dos Chase, passageiros do
famoso navio Mayflower que trouxera os primeiros imigrantes do
velho continente.
De qualquer forma, o comentário serviu para atingi-lo como desejava.
Vermelho, o desconhecido aproximou-se e encarou-a com ar de ironia.
Mais uma ianque da Nova Inglaterra. Sua casa parece ter mil anos de
idade. Mais um vento forte, e ela se transformará numa pilha de
entulho. Com tanto tempo e dinheiro, não acha que seus ancestrais
podiam ter ao menos pintado esse lugar? São barracos como esse que
desvalorizam nossas propriedades.
Barraco? Lucastra Borden sentiu o sangue fervendo nas veias e não
pôde mais conter-se. Fechando os olhos, ergueu a mão e lançou-a na
direção de seu rosto, mas foi contida pouco antes de atingi-lo.
—Está me machucando — reclamou indignada, sentindo os dedos
que apertavam seu pulso.
—Você merece.
—Papai! — Maude gritou do carro.
—Gostaria de ser maior, seu... seu...
—Se você maior, eu já teria retribuído a tentativa de agressão. Mas
como é pequena e insignificante... -— e segurou-a pelos ombros,
beijando como se, assim, pudesse puni-la pelo atrevimento de tê-lo
enfrentado. Maude gritou novamente e ele afastou-se. —Espero que
isso tenha servido de lição. Deixe minha filha em paz, ouviu bem?
Você não é tão ruim quanto parece, mas sua geração é simplesmente
insuportável — e partiu sem olhar para trás.
—Volte quando quiser — Lucy gritou para Maude, recusando-se a
deixá-lo vencer o impasse. Gostaria de dizer algo mais contundente,
mas não podia gritar palavrões diante de uma criança, e por isso
limitou-se a resmungá-los.
Enquanto ligava o motor, o sujeito começou um sermão sobre os
perigos de se aproximar de estranhos.
—O que aconteceu? — perguntou ao pisar no acelerador.
—Do que está falando? — Maude perguntou.
—Não me venha com esse ar de inocente. Onde estão os homens
que contratei para cuidar da casa enquanto estou trabalhando?
—Ah, eles?
—Sim, eles!
—Não sei. Devem estar na cozinha, comendo — e silenciou,
preparando-se para a reação do pai. Já o conhecia o suficiente para
saber que conseguira irritá-lo.
—Não me desafie, Maude. Sabe muito bem que saímos Boston para
fugir daquela horrível onda de sequestros. Duas crianças de sua antiga
escola foram raptadas. Por que acha que a fazemos andar por aí
vestida como uma mendiga, mesmo aqui em Mattapoisett?
. _ Desculpe, papai. Eu... esqueci. Estava entediada. Aqueles homens
só sabem comer e conversar com a sra. Winters! Não devia contratar
uma cozinheira tão boa. Fui dar um passeio na praia, e Lucy estava
sentada em sua varanda, sozinha... Ela é uma boa mulher.
—Talvez seja, mas até termos certeza, não quero que corra riscos
desnecessários.
—E ela é bonita, também.
—Talvez. Mas beleza não é tão importante.
—Ah, por favor! Por que vive repetindo esses... como se chama?
—Clichés.
—Isso. Gosto dela. É divertida, diz coisas engraçadas. E ela gosta de
mim!
—Isso é o que você diz — ele resmungou, parando o automóvel diante
da porta da propriedade. — Entre de uma vez, ou...
—Ou o céu vai desabar?
—Ou o céu vai desabar.
Maude encarou-o com o queixo erguido, mas não pôde mais conter-se
e explodiu em gargalhadas, atirando-se nos braços do pai.
—E então ele entrou no carro e partiu — Lucy concluiu a história.
Havia contado tudo, menos a parte do beijo.
A anciã balançou a cabeça sobre o travesseiro e suspirou.
Nas tardes de quinta-feira, Lucy ia ao Asilo Merit para visitar Angela
Moore, ou Angie, como era conhecida na região. Aos noventa anos,
Angie era a última representante viva da família, e também vivera em
Point até dois anos antes, quando caíra da escada e fraturara a bacia.
Como em muitas outras famílias ianques, os diversos ramos colaterais
dos Moore haviam sido dominados pelos homens que, determinados,
acumularam fortunas com seu trabalho. Mas, gradualmente, os
homens foram morrendo e restaram apenas as mulheres para herdar o
dinheiro que haviam juntado. Angie Moore era a última dessas
herdeiras, e a cidade inteira sabia que sua riqueza era imensa.
O que a cidade não sabia, mas Lucy julgava saber, era que ela sempre
tivera uma irresistível paixão por cavalos, em cujas patas apostara
cada centavo do que um dia possuíra. Angie e Lucy eram amigas, e
haviam alcançado uma cumplicidade que superava o abismo criado
pela diferença de idade. Os segredos entre elas eram inexistentes. Ou
quase...
—Esse sujeito deve ser rude — Angie comentou, lambendo a colher
de sorvete. — Acha que pode me trazer torta de lagosta na semana
que vem, querida? Não suporto a comida deste lugar.
—Posso trazer tudo o que desejar, Angie. Mas a última torta de
lagosta arruinou seu estômago, lembra-se?
—E daí? Estava deliciosa. Você disse Proctor?
—Foi o nome com que a menina se apresentou.
—E moram na praia, perto de sua casa?
—Bem ao lado, para ser mais exata.
—Já ouvi esse nome em algum lugar. É uma família de destaque, mas
não consigo localizar o ramo de negócios. Dinheiro, talvez... Vou
acabar lembrando. Ele é parecido com alguém?
—Está falando de Mark?
—Exatamente.
—Ah, não! mark era quieto, doce, e esse sujeito é musculoso,
imponente e... Não. É impossível compará-los.
—Por quê? Todos eles usam calças.
—Não quero falar sobre isso, Angie. Ainda não esqueci
completamente...
—Desculpe, querida.
A enfermeira do andar entrou no quarto para avisar que o horário de
visitas havia chegado ao fim. Lucy aproximou-se para beijar o rosto
doce da amiga e despedir-se.
— Sabe de uma coisa, minha querida? — Angie anunciou antes da
enfermeira partir. — Você é tão boa comigo, que vou lhe deixar dois
milhões de dólares em testamento.
As duas riram. Sabiam que a velha senhora não tinha um único centavo
em seu nome.
Quando passou pelo balcão da recepção, Lucy surpreendeu-se com o
comentário da enfermeira.
__ Você é uma mulher de sorte. Dois milhões de dólares!
__ É verdade — sorriu, fingindo dividir um segredo. — Mas não deixe
que a notícia se espalhe pela cidade. Os credores não me deixariam
em paz.
Rindo, deixou o asilo e caminhou pela Barstow Street, a cabeça repleta
de preocupações. Desempregada, e sem nenhuma perspectiva para o
futuro próximo.
— Droga! Devo ter algum talento — resmungou, sem dar atenção aos
olhares curiosos dos outros pedestres. — Gosto de lidar com pessoas.
E gosto ainda mais de crianças. Talvez... — e Lucastra Borden teve uma
ideia brilhante. — Crianças! — gritou, atraindo a atenção de todas as
pessoas que aguardavam para atravessar a Water Street. Morava na
praia e tinha o certificado do curso de natação que fizera na Cruz
Vermelha antes de atuar como salva-vidas durante os três anos do
curso de magistério. — Vou limpar a praia e organizar o Clube dos
Pequenos Nadadores!
Ao entrar na Main Street, onde estacionara o cairo, Lucy sentia-se
radiante como o sol que brilhava no céu azul. Cantarolando, dirigiu pela
Water Street até o entroncamento com a estrada Ned's Point, de onde
podia ver o porto, o mar, as mansões... e sua casa.
Com um suspiro desanimado, passou pelo portão e foi guardar o carro
na garagem.
Felizmente ainda tinha a praia, uma razoável extensão de areia e mar
onde podia ficar a sós e pensar na vida. Órfã desde os dezoito anos
quando, quando o avião do pai fora destruído por uma bomba,
desenvolvera-se como um furacão, arrastando tudo e todos na esteira
de sua determinação. E agora não seria diferente.
Assim que entrou em casa, Lucy correu ao telefone.
Não — a recepcionista do jornal local respondeu paciente.
O prazo para os anúncios novos termina às dez da manhã de quinta-
feira, e a primeira publicação acontece na edição de sábado. Quer
colocar um anúncio nos classificados?
—Para ser franca, estava pensando em comprar uma página inteira.
—É claro. A tabela de preços...
Enquanto a recepcionista recitava os valores correspondentes aos
diversos anúncios, Lucy esforçava-se para esconder o espanto e a
decepção.
— Nesse caso, acho que vou ficar com os classificados simples —
concluiu, antes de ditar as palavras que pretendia ver publicadas.
Agora era esperar e planejar. Quantas crianças poderia atender? Dez,
decidiu. E todas entre cinco e dez anos de idade. E meninas, é claro.
Garotos sempre causavam mais problemas. Se os atendesse no
período da manhã, não teria de fornecer almoços. Mas se chovesse,
não poderia simplesmente mandá-los embora, o que significava que
teria de pensar em jogos e algum tipo de organização. E teria de
arrumar o telhado. Quanto ao preço... Não tinha a menor ideia de
quanto devia cobrar!
Disposta a pôr o plano em prática o quanto antes, trocou a calça jeans
e a camiseta pelo velho biquini amarelo e foi limpar a praia com o
ancinho que fora de seu pai. Era impressionante a quantidade de lixo
acumulado numa praia deserta!
Havia enchido vários sacos plásticos com folhas e outros detritos
trazidos pelo mar, quando sentiu as primeiras dores musculares e
percebeu que já eram quatro horas. Havia uma grande pedra no limite
entre sua casa e a propriedade do vizinho e, com um suspiro, Lucy
sentou-se para descansar e apreciar o resultado de seu trabalho.
— Não há como negar a beleza de uma praia limpa.
A voz masculina partira de algum ponto às suas costas. Assustada,
virou-se e viu Proctor parado a alguns passos da pedra, vestindo
apenas um short curto e justo. Como gostaria de fulminá-lo com o raio
fatal de seus olhos verdes!
Infelizmente, ele não a encarava. Parecia hipnotizado pelo sutiã do
velho biquini amarelo. A tentativa de ajeitar o traje de banho só
tornou a situação ainda pior.
—Quer ajuda? — ele adiantou-se alguns passos, sorrindo e
estendendo as mãos.
—Não se atreva a invadir minha propriedade!
Satisfeita por tê-lo contido, Lucy fez o possível para cobrir-se com o
tecido desgastado e sem elasticidade e levantou-se, partindo sem
olhar para trás.
— Ei, você!
Devagar, Lucastra! Se tentar virar o corpo depressa, vai acabar
nua diante desse sujeito!
Enquanto virava-se, acrescentou um maio novo à lista de prio-
ridades.
— Chamou, sr. Proctor?
Ele ultrapassou o limite entre as propriedades como se o mundo
lhe pertencesse. Lucy tentou engolir, mas a garganta estava seca.
Se ao menos estivesse vestido... A visão do peito musculoso e
bronzeado provocava sensações com as quais não estava acostu-
mada.
—Sim, chamei. E meu nome é Jim. í
—O que deseja, sr. Proctor?
—Jim. Estou com um pequeno problema.
Normalmente teria agarrado a chance de ajudar um semelhante
com unhas e dentes, mas esse sujeito precisava de uma lição, e
o primeiro passo nesse sentido seria esvaziar seu enorme ego.
Sorrindo, encarou-o e disse com voz doce:
— Meu coração sangra de compaixão, sr. Proctor.
— Não estou interessado em sangue. E muito menos em seu
coração. Na verdade, só preciso de uma babá. Afinal, por que
não usa um biquini do seu tamanho? Um homem de sangue
quente não pode conversar com uma mulher nesse estado
sem...
-— Ora, francamente! Não me visto para provocar seus instintos
masculinos! Infelizmente, esse é o único traje de banho que tenho
e...
—Tudo bem, tudo bem! — ele a interrompeu. — Não vamos
chegar a lugar algum trocando gritos e insultos. Podemos começar
novamente?
—Podemos tentar. Espere um minuto, sim? — e virou-se
devagar, caminhando com passos cautelosos. Deixava sempre uma
saída de praia pendurada atrás da porta da cozinha, um velho
vestido verde, e sentiria-se mais confiante se pudesse cobrir parte
do corpo.
Segundos depois retornou, ainda amarrando a faixa em tomo da
cintura.
—Assim está melhor — Proctor comentou ao vê-la. — Podemos
conversar?
—Sou toda ouvidos — ela respondeu com ironia, irritada com as
reações que o sujeito provocava em seu corpo.
—Bem, eu... gostaria de falar sobre Maude, minha filha. Ela tem
aquele pequeno problema e...
—Maude é uma menina adorável.
—Concordo. Independente, teimosa...
—Inteligente.
—Sim, inteligente. Adorável, como você acabou de dizer. E esse é o
problema. Preciso de alguém com quem ela possa passar a noite. Vou...
receber uma visita esta noite, e prefiro que Maude não esteja por
perto.
Então ia receber uma mulher e queria a filha fora do caminho! O
bastardo!
—É uma visita feminina, e não quero que Maude...
—Já entendi. Não quer que ela saiba que o pai está se divertindo.
—Gostaria de concluir algumas frases nessa conversa — e parou,
respirando fundo para acalmar-se. — Poderia ficar com ela esta
noite?
Direto ao ponto! Não seria melhor se Maude estivesse longe da orgia
que ele pretendia organizar em sua casa? Por que tinha de pensar
nele? Maude era a pessoa mais importante nessa história!
Tentando compreender os sentimentos confusos, encarou-o com ar
desafiante.
—Depois das coisas horríveis que me disse esta manhã, agora quer que
eu cuide de sua filha?
—Não conheço mais ninguém na vizinhança.
—Ah! Agora descobriu que sou útil, e por isso está me tratando com
educação! Acho que me sentiria melhor se estivesse gritando.
—Você é uma mulher interessante — ele comentou, aproximando-se
um passo.
— Não se atreva! Fique onde está, ou... Está bem, Maude pode
passar a noite em minha casa — concordou, temendo que ele
decidisse usar novamente seus métodos de tortura. — Essa mulher... é
alguém que ela conhece?
—Lucrécia Bórgia em pessoa.
—Quem?
—Não aprecia o hábito da leitura, srta. Borden?
—Sei quem foi Lucrécia Bórgia! Sou professora, quando estou
empregada, e leio muito.
—E é bastante curiosa, também. Bem, será só por uma noite... espero.
Voltarei dentro de alguns minutos com as roupas de Maude e a bolsa de
remédios. Ah, e quanto à mulher., é tia dela. Sua futura madrasta,
podemos dizer.
Proctor desapareceu além da porta da mansão e Lucy ficou onde
estava, sentindo-se uma idiota. Por que estava tão decepcionada. Que
importância tinha se ele pretendia casar-se? Afinal, era apenas um
vizinho. Ninguém importante. E por que Maude não podia encontrar a
futura madrasta? E Proctor havia falado sobre uma bolsa de
remédios?
O mistério foi mais que suficiente para despertar sua curiosidade.
Cansada, Lucy voltou para dentro de casa, sentou-se em sua poltrona
favorita e deixou-se levar pela imaginação.
CAPITULO II

Maude chegou às seis da tarde trazendo um urso pelúcia.


—Importa-se se Ruprecht ficar comigo?
—Não, desde que ele não coma muito — Lucy brincou.
—Ruprecht é um urso de pelúcia! Ele não come nada! Você é mesmo
engraçada. Foi o que disse a meu pai, mas ele acha que você é
peculiar, e não engraçada. Por que ele diria tal coisa?
—Não sei. Os homens são criaturas estranhas. Trouxe tudo de que
precisa para passar a noite?
—Tudo.
—Camisola, escova de dentes...
—Ah, não... Esqueci — Maude olhou por cima do ombro, como se
pretendesse voltar à mansão. — Ela chegou, e tive de sair correndo.
Não gosto de ficar perto dela.
—Entendo. — Tome nota, Lucy Borden. Descubra quem é ela, e por
que essa criança tem tanto medo. — Vamos entrar. Vou levá-la para
conhecer seu quarto, e depois faremos o jantar.
De mãos dadas, as duas subiram os degraus da varanda e entraram
pela cozinha.
—É bonito — Maude Proctor opinou ao ver a decoração da sala de
estar. — Sabia que nossa casa tem quinze cómodos, e que a maioria
deles está vazia?
—Não, eu não sabia. Pelo menos têm bastante espaço.
—É verdade. Mas quando papai resolve dar uma festa, a casa fica
repleta de gente que quer beber e dar tapinhas na minha cabeça.
Odeio tapinhas na cabeça! Um deles gosta de beliscar minha
bochecha. Acho que ainda vou matá-lo.
__ Palavras fortes — Lucy comentou antes de encolher os ombros.—
Talvez ele mereça. Muito bem, srta. Proctor, seu quarto fica bem aqui
no segundo andar. E o banheiro fica ao lado.
Maude parou na soleira.
—Meu quarto? Sabia que eu viria? A cama é do meu tamanho!
E o papel de parede é adorável! É feito de... tiras cómicas, não?
—Tiras importantes — Lucy corrigiu com ar solene. — Cortadas do
Boston Sunday Globe. Ocupei este quarto durante toda a infância e
adolescência, e meu pai deixava.que eu o decorasse como quisesse.
Maude correu e atirou-se na cama.
—Não vai ficar brava por eu ter pulado na cama?
—Hoje não. Mas, da próxima vez, procure conter-se.
—Seu pai nunca volta para casa?
—Não. Ele ficou muito triste depois que minha mãe se foi, e
finalmente partiu ao encontro dela. Mas isso aconteceu há muitos anos,
e agora já me acostumei com a solidão.
—Eu sinto muito. Sei como é terrível crescer sozinha. Talvez possamos
ser amigas, e assim teremos com quem conversar. Ou então... Bem,
você tem idade para ser minha mãe. Vai descobrir que sou uma boa
menina, e prometo cuidar de você quando crescer. Isto é, se cuidar de
mim até lá. Seria bom ter uma filha tão linda e inteligente, mas... Mas
eu pensei que já tivesse uma mãe.
—E claro que já tive, mas ela morreu.
—Sim, mas aquela mulher que está visitando seu pai...
—Ela é minha tia, e é muito má. Não sei por que papai quer se casar
com aquela bruxa. Ele diz que preciso de alguém para cuidar de mim, e
que por isso vai se casar com a irmã de minha mãe, tia Eloise. Mas ela
não gosta de mim. Os dois tiveram uma discussão terrível há dois anos,
e Eloise foi embora. Pensei que nao voltaria mais a nos perturbar, mas
agora ela está aqui novamente. Papai ainda acha que preciso de uma
nova mãe, e os dois reataram.
— Parece um grande plano. — Queria mesmo saber quem era a tal
mulher misteriosa, mas Maude Proctor estava começando a falar
demais. — Acho que não devemos falar sobre seu pai. Tenho certeza de
que ele ficaria furioso se soubesse que está contando a vida dele aos
vizinhos. E então? Gostou do quarto?
—É lindo! — a criança exclamou com entusiasmo, rodando para ver
tudo que a cercava. — Sabe o que tenho em meu quarto?
Nada. As paredes são pintadas de marrom. Ruprecht costuma dormir
em baixo da cama para não ter de ver aquela cor horrível.
Não imagina... como devo chamá-la?
—Meu nome é Lucastra, mas pode me chamar de Lucy. E também
pode usar uma de minhas velhas camisetas de basquete como
camisola. Também tenho uma escova de dentes nova em algum lugar.
Qual é o problema?
—Lucastra? Uau, que nome! E esta camiseta é do Rochester! Já foi
uma estrela do basquete?
—Não, mas namorei um jogador do time. E agora, qual é o problema?
—Nenhum. É que... seu quarto é muito longe? Às vezes acordo no meio
da noite, ou ando dormindo, falo e...
—Fica bem aqui, princesa — ela sorriu, levando-a ao quarto ao lado
do banheiro.
—Oh! Mas você não tem quadros!
—É claro que não! Agora sou uma garota crescida, e não preciso
mais de tantos enfeites. Isso é o suficiente — e abriu os braços,
esperando que ela examinasse o papel de parede em tons claros, a
penteadeira simples e a máquina de costura num canto, além da
cama.
—Entendo. Não vai ficar brava se eu vier...?
—Visitantes são sempre bem vindos — Lucy a interrompeu, passando
um braço em torno de seus ombros.
—Gostaria de ter uma mãe como você.
—Ah, mas não esqueça que sou muito velha. Além do mais, teríamos
de envolver seu pai nessa história, e acho que a operação seria
realmente complicada.
—Não entendo por que não gosta dele. Papai é um grande sujeito.
Todos o adoram! Inclusive eu. Quero dizer, nem sempre. Às vezes ele
consegue ser realmente aborrecido.
—Entendo. Bem, pessoas diferentes gostam de coisas diferentes.
Venha, vamos lavar as mãos e preparar o jantar. Tem alguma
sugestão?
Comeram hambúrgueres e batatas fritas sem nenhum sinal de verduras
ou legumes, ausência que Maude comentou com ar agradecido.
__ Isso é porque estamos vivendo um dia especial. Mas se morasse
aqui, saberia que como verduras diariamente, principalmente brócolis.
—Argh! Felizmente vim no dia certo. Nem o presidente gosta de
brócolis!
—Mas ele paga um preço alto por isso. É obrigado a viver em
Washington, e não tempo nem para uma visita rápida a Mattapoisett.
—Não sei se isso é um castigo — Maude suspirou. — Moro aqui há
pouco tempo, mas já estou ficando aborrecido com todo esse silêncio.
Posso ajudá-la com os pratos?
Terminaram de lavar a louça pouco depois das oito, quando o longo
dia de verão começava a transformar-se em noite.
—Quer sentar-se na varanda e apreciar o anoitecer? — Lucy sugeriu.
—Não parece muito animado — Maude comentou com um sorriso,
seguindo-a através da porta.
A lua transformava a areia da praia numa esteira de prata, e o ar
quente carregava os sons da festa na mansão vizinha.
—Começaram cedo — Lucy indicou.
—Eles sempre começam cedo e terminam tarde — a garota explicou,
sentando no último degrau da escada e apoiando a cabeça no ombro da
nova amiga. — E entre o início e o fim, mentem, bebem, fumam e
contam piadas sujas. Já ouviu aquela do...?
—Não estou interessada.
Maude parecia disposta a insistir, mas de repente a festa do vizinho
transbordou para a praia. Três ou quatro casais perseguiam-se e
corriam em círculos, gritando como loucos. Era difícil compreender o
objetivo do jogo, mas as pessoas iam tirando as roupas enquanto
corriam e o círculo diminuía gradualmente, movendo-se na direção da
casa de Lucy.
—Maude, acho que é hora de ir para a cama — ela indicou,
levantando-se de um salto.
—De jeito nenhum! Queria conhecer minha família? Fique aqui e
observe.
Os casais haviam desistido do círculo. Dois pares estenderam
cobertores na areia e deitaram-se. Apreensiva, Lucy segurou a mão da
garota e rezou para que não pretendessem fazer o que estava
imaginando. Apesar do calor da noite, Maude era sacudida por
tremores esporádicos. Um dos casais continuava correndo. A mulher
seguia na frente, e em poucos segundos ultrapassou a rocha que servia
de limite entre as duas propriedades e continuou aproximando-se do
terraço. O homem que a perseguia deixou-se cair sobre a rocha e
desistiu da brincadeira, exausto.
Cambaleando e respirando com dificuldade, a desconhecida parou
junto à escada da varanda e sorriu com expressão estranha. Maude
aproximou-se de Lucy e enlaçou sua cintura como se estivesse com
medo.
—Maude, querida — a invasora disse com voz pastosa, deixarido-se
cair de joelhos sobre a areia. — Que surpresa! Pensei que estivesse na
cama. E quem é essa... essa coisa esquisita?
—Vá para dentro, Maude — Lucy ordenou com firmeza,
acompanhando-a até a porta.
A desconhecida levantou-se e agarrou-se à balaustrada da varanda
para equilibrar-se.
— Ei, que maneira mais tirana de tratar uma criança! Já sei quem
você é. James vive falando a seu respeito. Não é engraçado? Vim até
aqui para me casar com ele, para prestar um favor, e tudo o que ele
sabe fazer é falar sobre a tal Lucy que mora na casa ao lado! A
propósito, meu nome é Eloise. Desculpe os trajes informais... ou a falta
deles — ela riu.
Havia uma toalha sobre a balaustrada e, irritada, Lucy a atirou para a
invasora.
— Cubra-se.
Eloise apanhou a toalha no ar, cheirou-a e torceu o nariz.
—Essa coisa cheira mal!
—O cavalo não reclama. Cubra-se de uma vez! Não somos de muitas
cerimónias por aqui, mas correr nua pela praia, e diante de uma
criança... alguém devia ensiná-la a comportar-se melhor.
A nudez é artística, minha querida. Tem uma bebida forte à mão?
__ Não. E saia de minha propriedade — Lucy explodiu, aproximando-se
de Eloise com ar ameaçador.
Pequena e delicada, a loira gritou como se alguém a ameaçasse de
morte e saiu correndo como se o diabo a perseguisse. O que ela não
sabia era que o demónio estava à sua frente, ao lado da rocha que
limitava as duas casas.
—Que diabos está fazendo? — a voz masculina disparou com
impaciência.
—Estava correndo pela praia — Eloise respondeu com tom meloso. —
E conheci aquela sua adorável vizinha. Ela é tão gentil, que até me
emprestou esta toalha. E também vi Maude. Por que a mandou passar
a noite fora de casa? — ela perguntou, deixando-se levar para o
interior da mansão. — Não devia ter feito isso. Sabe que adoro cuidar
daquela criança!
Lucy permanecia parada na escada da varanda, observando a cena
grotesca protagonizada por Proctor e sua noiva. Ao vê-los desaparecer
além da porta da mansão, suspirou e sentou-se no degrau mais alto
procurando acalmar-se.
Ainda não havia conseguido sequer recuperar o ritmo da respiração
quando ouviu a voz profunda e imperiosa.
— Srta. Borden? Lucy?
Então ele havia voltado!
Irritada e apreensiva, levantou-se de um salto e começou a explicar:
—Saímos apenas para apreciar a beleza da noite. Então aquela...
—Maluca — ele cortou. — Por acaso Maude os viu?
Espero que não. Eu a mandei para dentro de casa, mas ninguém sabe o
que uma criança é capaz de ver ou ouvir. Aquela e Eloise, a mulher com
quem pretende se casar?
— Maldição!
Era o que eu ia dizer. E agora, sr. Proctor, se puder recolher o que
restou de seus convidados, nós, pessoas... — pretendia dizer
decentes, mas achou melhor não abusar da sorte. — Nós, pessoas
normais, precisamos dormir.
—Gostaria de voltar mais tarde e explicar — ele murmurou.
—Não preciso de nenhuma explicação. Você tem o direito de fazer o
que quiser em sua propriedade. Vai levar Maude de volta?
—Oh, não! Por que acha que pensaria em levar uma criança tão doce
para perto daqueles...?
—Sim, por quê? — Lucy repetiu com sarcasmo, virando-se e entrando
em casa antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa.
—E então? Tenho de voltar para lá? — Maude perguntou ao vê-la
entrar na cozinha.
—Não. Seu pai não quis levá-la para casa.
—Aquilo não é uma casa! não enquanto aquela maluca estiver por lá.
Ficaria feliz se pudesse passar muitas noites aqui, sabe? — e espirrou,
arrepiando-se e respirando com dificuldade.
Oh, não! Por isso trouxera um inalador!
Apressada, Lucy foi buscá-lo no quarto e ajudou-a a usá-lo. Depois de
anos lidando com classes cheias de crianças, habituara-se com todo o
tipo de emergência médica. Maude respirou fundo várias vezes e
finalmente os espasmos começaram a diminuir.
— Vamos tomar uma xícara de chocolate quente antes de ir para a
cama, está bem?
A criança tossiu e, ofegante, perguntou:
— Também vai dormir? São nove e meia da noite! Adultos não vão
para a cama à esta hora!
Lucy já estava preparando o chocolate, a mente ocupada com milhões
de ideias conflitantes. Depois de observá-la em silêncio por alguns
instantes, Maude foi para o quarto sem insistir na pergunta.
Afinal, em que tipo de confusão estava metida? A mãe daquela menina
havia morrido. A tia coma nua pela praia com um bando de malucos. O
pai julgava-se capaz de explicar tudo. Era evidente que devia haver
algum tipo de explicação para um comportamento tão estranho. Uma
gota de leite fervente respingou em sua mão, trazendo-a de volta à
realidade.
__ fvjão há nada como um dedo queimado para nos fazer prestar mais
atenção — ela comentou, virando-se e sorrindo. — Maude?
Ouvindo os sons abafados no andar de cima, Lucy arranjou as xícaras
de chocolate e um prato com biscoitos numa bandeja e subiu.
— Maude?
__ Aqui — ela respondeu do quarto escuro.
Lucy caminhou até perto da cama e conseguiu colocar a bandeja sobre a
mesa de cabeceira antes de acender o abajur.
—Equilíbrio invejável — brincou.
—Tem razão. Não trouxe marshmallows?
—Não. Um marshmallow tem mais calorias do que uma fatia de bolo
de chocolate com creme. Beba enquanto está quente.
—Você sabe tudo? — Maude explorou com cautela.
—Não. Ainda não tenho certeza sobre algumas coisas.
—Quem enfrentou a Batalha de Jericó?
—Está vendo? Essa é uma das coisas sobre as quais ainda não tenho
certeza. Vamos beber o chocolate e dormir.
—Posso tomar mais uma xícara?
—Vamos deixar para amanhã, está bem? — Lucy sugeriu com um
sorriso, esperando que ela terminasse para recolher a bandeja com as
xícaras vazias. — Boa noite. Ah... — exclamou antes de sair. — Sobre a
Batalha de Jericó, a resposta é Joshua.
—Você sabia! — Maude reclamou.
Rindo, Lucy saiu e desceu a escada cantarolando uma canção que
aprendera na infância, nas aulas de catecismo.
—Joshua enfrentou a Batalha de Jericó e as muralhas ruíram...
—Já chega! — Maude gritou do quarto.
Cale a boca, garota, ou vou começar a cantar em italiano. Não, não,
por favor! Poupe-me! Evitar o castigo é estragar a criança.
Assustada com a voz masculina às suas costas, Lucy virou-se e
derrubou a bandeja com as xícaras.
Oh! Veja o que fez! Que diabos está fazendo em minha casa?

—O que qualquer pai faria em meu lugar. Vim ver se minha filha
está bem.
—Se acha que estou torturando sua garotinha, vá ver com seus
próprios olhos.
—De jeito nenhum! Se ela acordar, voltaremos à estaca zero.
—Até que não seria uma má ideia. Afinal, perdi õ fio da meada
no meio do caminho, e não sei nem em que ponto estamos. Sabe de
uma coisa, sr. Proctor? Conseguiu despertar minha curiosidade.
Por que não senta-se, enquanto vou buscar um drinque? Mal posso
esperar para ouvir suas explicações.
Jim afirmou com a cabeça e acomodou-se em uma das cadeiras da
cozinha.
— É uma velha casa — comentou casualmente.
— Mais do que pode imaginar. Meus ancestrais a construíram em
1746.
— Ah! Puritanos orgulhosas da terra?
— Não. Pioneiros orgulhosos da casa. Há uma enorme diferença,
como deve saber.
— Não, não sei. E pensei que ia me oferecer um drinque.
— Infelizmente, não temos muitas opções.
—Não vai conseguir livrar-se de mim com uma desculpa tão tola.
—Estou falando sério! Não tenho nenhuma bebida, a menos que...
—Prossiga.
—A menos que tenha muita coragem, sr. Proctor.
—Jim — ele a corrigiu. — Meu nome é James, mas as pessoas me
chamam de Jim. E por que preciso ser tão corajoso para tomar
um drinque?
—Porque só tenho licor de pêssego feito em casa. Minha avó o fez
antes de morrer.
—E há quanto sua querida vovó se foi?
—Há quinze anos. Vai arriscar?
Proctor riu como se não acreditasse no que ouvia.
— Se a bebida não quebrou a garrafa em todos esses anos, não
poderá fazer nenhum mal ao meu estômago.
—Isso é o que você pensa — ela resmungou enquanto apanhava o
saca-rolhas.
As coisas iam de mal a pior. Não tinha taças, nem cálices, nem
copos de cristal. Na verdade, os únicos copos que possuía eram os
de requeijão e massa de tomate que lavava e guardava depois de
utilizar o conteúdo. Pensando bem, talvez fosse melhor expor sua
verdadeira situação de uma vez por outras, disse a si mesma,
servindo uma dose dupla e colocando o copo grosseiro diante dele.
Proctor examinou a bebida com cautela e cheirou-a. Lucy esperou,
ansiosa. Sabia que o licor de sua avó tinha um excelente bouquet,
mas também conhecia seus efeitos.
— Minha mãe costumava usar copos como este — ele comentou.
Ah, podia apostar que sim! Como se não bastasse o constran-
gimento de receber uma visita sem as mínimas condições de con-
forto, ainda tinha de aturá-lo tentando conquistar sua simpatia
com truques ridículos.
— Sua mãe era uma mulher de bom gosto — ela respondeu com
ironia. — Beba de uma vez.
Jim ergueu o copo num brinde silencioso e esvaziou-o de um só
gole. Por um momento conservou o sorriso provocante, mas de
repente fechou os olhos e, vermelho, começou a tossir.
Lucy levantou-se de um salto e bateu em suas costas até que ele a
empurrou, lutando para recuperar o fôlego. Água! Talvez um
pouco de água o ajudasse. Rápida, correu até a geladeira e apanhou
a garrafa de leite que servia como jarra.
Em seguida voltou para perto dele e, solícita, despejou a água onde
deveria estar a boca de Jim Proctor. Deveria... mas não estava.
—Devo admitir que é um homem de coragem — Lucy reconheceu
quinze minutos mais tarde.
—Sou um homem de muita sorte, isso sim. Caso contrário, você
teria me afogado — ele resmungou, enxugando-se com uma toalha.
—Tem razão. Quer mais um pouco de licor de pêssego?
—Não quero mais nada desta casa — Proctor indicou em voz baixa,
aproximando-se com ar ameaçador. — Não me faça mais favores, está
bem? Quando a conheci, fiquei tentando imaginar por que ainda não
havia se casado. Agora sei a resposta. Você é uma catástrofe
ambulante!
—O que queria dizer a respeito de Maude? — Lucy perguntou,
disfarçando a apreensão e afastando-se alguns passos.
—Maude tem asma. Os episódios não são muito frequentes, mas
achei melhor mandar o inalador e o remédio. Acha que será capaz de
ajudá-la, se for necessário?
—Tenho certeza que sim, sr. Proctor. Normalmente consigo passar
cerca de quarenta e oito horas sem cometer grandes bobagens. Mais
alguma coisa?
—Eu... não. Só quero pedir desculpas por meus convidados. Não
imaginei que fossem tão longe. Eloise e eu planejamos uma pequena
reunião, e sugeri que ela trouxesse alguns amigos de Boston. Espero
que tenha sido apenas uma ocorrência isolada.
—Aceito suas desculpas — disse, apesar da vontade de argumentar.
Proctor também percebeu que ela só concordava para livrar-se de sua
presença, mas decidiu fingir-se convencido. Afinal, só teria a ganhar
se cultivasse sua amizade. Maude gostava dela, e agora percebia que a
vizinha não era tão sem atrativos quanto imaginara.
— O que faz para viver?
Lucy encarou-o com ar suipreso antes de responder:
—Sou professora substituta no sistema de ensino local. Durante as
férias de verão, faço um pouco de tudo.
—Qualquer coisa?
—Qualquer coisa legal... e moral. Não devia estar com seus
convidados? — ela inquietou-se. — Afinal, se vai mesmo se casar
com sua cunhada...
—O nome dela é Eloise. E as paredes realmente têm ouvidos por aqui,
não? Se quer mesmo saber, estamos pensando em nos casar pelo
bem de Maude.
—Por Maude? Ah, pelo amor de Deus!
—Por que o espanto? Não percebe que a menina precisa de uma
mãe? Ela é teimosa, rebelde, e não tenho tempo para discipliná-la.
Acho que Eloise, como irmã de sua verdadeira mãe, é a melhor
solução. E o arranjo certamente facilitaria as coisas para os avós dela.
Eles idolatram o chão que Maude pisa, sabe?
— Acho que sim.
Gostaria de insistir no assunto, mas era evidente que Proctor ficava
impaciente com suas perguntas, e não queria aborrecê-lo. Não depois
de tudo que já havia feito. Em silêncio, acompanhou-o até a varanda e
pensou se não estaria lhe prestando um favor impedindo seu
casamento com Eloise. Mas... seria capaz de roubar um homem de
outra mulher? E como se conseguia tamanha proeza?
Talvez houvesse algum livro sobre o assunto na biblioteca local.
Mas, no dia seguinte, quando saísse, Lucy não pensaria em livros. A
primeira coisa que faria ao chegar ao centro comercial seria comprar
um novo traje de banho, um maio que aderisse ao corpo como uma
segunda pele, mas mantivesse todas as partes mais importantes
cobertas.

Capitulo III

As estrelas haviam desaparecido e uma chuva for- caía sobre


Mattapoisett, abafando o ruído das ondas e o barulho da festa na casa
ao lado. Enquanto esperava que a água fervesse para fazer uma xícara
de chá, Lucy foi verificar se Maude dormia bem e, precavida, deixou o
inalador e o remédio sobre a mesa de cabeceira.
Pobre criança! O pai e a tia iam se casar só por que ela precisava de uma
mãe? Jamais ouvira pior motivo para um casamento. Especialmente
quando a mãe substituta era Eloise. Maude a considerava pior que a
madrasta malvada, e isso só poderia acrescentar problemas ainda
maiores aos já existentes. Afinal, a ciência já havia comprovado que a
asma era, antes de tudo, uma doença de origem emocional.
O apito da chaleira a atraiu de volta à cozinha. De posse da xícara de
chá, Lucy dirigiu-se ao banheiro e passou algum tempo mergulhada
num banho morno, tentando livrar-se da tensão física e mental.
Proctor ia se casar com Eloise, repetiu pela milésima vez a si mesma
enquanto enxugava-se. Por que ele faria tamanha besteira, se havia
uma substituta bem melhor na casa ao lado? Diante do espelho,
examinou-se com uma careta de insatisfação.
Eloise era alta, magra, com lindos olhos azuis e longos cabelos
dourados. Os ossos de seus ombros podiam ser vistos com perfeição
sob a fina camada de carne que os cobria. Os seios eram fartos, como
os daquelas modelos que cobriam as páginas das revistas masculinas.
E você, Lucastra Borden...
Baixinha, roliça, com seios firmes e cheios que pareciam encará-la
através do espelho numa atitude indecente. Cabelos castanhos na
altura dos ombros, pois nunca tivera tempo ou paciência para cuidar
deles e deixá-los crescer. E olhos verdes. O que uma mulher com
cabelos castanhos podia fazer com olhos verdes? Uma combinação
absolutamente sem graça!
— Portanto, tenho muito sorte por não querer esse homem —
concluiu em voz alta, vestindo a camisola e saindo do banheiro como
se o reflexo do espelho a incomodasse.
Eram duas horas da manhã quando Lucy acordou assustada com um
barulho estranho.
Choro. Uma criança chorando.
— Posso entrar?
Sobressaltada, sentou-se na cama e olhou para a porta.
—É claro que pode entrar! — exclamou, acendendo o abajur e abrindo
os braços para a pequena Maude. —- O que foi, querida?
—Eu... minha cama.
—O que tem a cama?
—Está molhada.
Molhar a cama era um sintoma claro de ansiedade e tensão, e uma
evidência de que a criança em questão precisava de apoio.
—Ei, acidentes acontecem. Vá tomar um banho morno, enquanto
mudo os lençóis de sua cama.
—Não foi um acidente.
—Não? Venha, vamos preparar o banho e tirar essa camiseta molhada.
—Acredita em mim?
—Ê claro que sim! Por que duvidaria dé sua palavra?
—Ela não acreditaria. Nunca acredita em nada do que digo.
—E mesmo? Ponha a mão na banheira e veja se a água está muito
quente.
—Está ótima. O que faço com essa camiseta?
—Jogue-a naquele canto. Virei buscá-la num minuto. Que tal esses sais
de banho? Espuma verde.
—Nunca tomei banho de espuma. Não está zangada comigo?
—Não, querida. Isso pode acontecer com qualquer pessoa.
Vamos, entre na banheira e divirta-se, enquanto vou cuidar da
cama.
—Tome cuidado.
—É claro.
Por que deveria tomar cuidado?
Assim que aproximou-se da cama, Lucy descobriu a resposta. Os
lençóis estavam ensopados! Não tinha grande experiência com as
necessidades íntimas de uma criança, mas devia haver litros de
água naquela cama!
Intrigada, retirou os lençóis e viu que o colchão também estava
ensopado. Quando inclinou-se para verificar a extensão do dano,
um pingo caiu sobre sua cabeça.
—Oh, não! — exclamou, olhando para cima e descobrindo o
grande círculo escuro no teto. No meio desse círculo formava-se
uma grande gota de água. E outra... Outra! — Maude! — gritou,
entrando no banheiro como um furacão. — Não precisa mais se
preocupar. Você não é responsável pela cama molhada.
—E claro que não! Você pensou...? Ah, não! Pensou que eu
houvesse molhado a cama? Há um buraco no seu teto! — ela
respondeu indignada, como se fosse crime ter uma goteira em
casa.
—Então você viu? Ora... Por isso não sou mãe de ninguém. Não
tenho a intuição necessária.
—Não se preocupe. Isso pode ser aprendido. Mas primeiro vai ter
de consertar o teto.
—Primeiro preciso conhecer alguém em algum banco disposto a me
emprestar um bom dinheiro — Lucy balançou a cabeça.
— É quase impossível, sabe? Eles preferem emprestar dinheiro
para quem não precisa dele.
—Conheço muitas pessoas num banco. Por que não vamos visitá-
lo amanhã?
—Seria uma excelente ideia — Lucy aceitou a sugestão sem
entusiasmo.
Já estivera em todos os bancos da região e nenhum deles aprovara
seu pedido de empréstimo. Mesmo assim, se não estivesse
chovendo na manhã seguinte, não perderia nada por tentar.
—Vamos lá, mocinha. Vai ter de passar o resto da noite em minha
cama.
Como jamais dividira uma cama com alguém, Lucy teve dificuldade
para pegar no sono. Deitada de costas, olhando para a escuridão,
pensou em todos os problemas que enfrentava e só conseguiu
agravar a insónia. Um empréstimo para reformar a casa... Por que
não construir uma casa nova, maior e mais espaçosa, e com teto
baixo para obrigar um certo sujeito a curvar-se antes de entrar?
Com algum treino, o tal homem poderia até tornar-se subserviente
e adquirir o hábito de inclinar-se diante dela sempre que
ordenasse. Talvez pudesse até fazer algumas outras coisas para as
quais ainda não conhecia os comandos.
Quando acordou, Lucastra Borden sentiu-se aliviada por ter
conseguido escapar do sonho erótico antes do desfecho fatal.
—E aqui — Maude indicou. — O banco de papai fica na esquina
da Highway com a Main Street.
Lucy conhecia o lugar. Há um ano, aquela havia sido a última parada
em sua infrutífera excursão pelas instituições financeiras da região.
Mas o setor de empréstimos estava cheio de rostos novos, e
Maude a levou diretamente à mesa do chefe do departamento, um
rapaz chamado John Ledderman. Ali estava ele! O dono da caneta
capaz de transformar sua casa num local digno de orgulho e
respeito.
Olá, sr. Ledderman. Lembra-se de mim? Sou Maude Proctor. Meu pai
é o dono deste banco.
E claro. O que posso fazer por você, Maude?
Essa é minha amiga Lucastra Borden. Lucy...
—Lucy Borden? — John Ledderman repetiu, encarando-a como se
vasculhasse a memória em busca de alguma informação, tao seus
olhos iluminaram-se e ele sorriu. — Lucastra Borden! É um prazer
conhecê-la!
—É? -- Ela retribuiu o sorriso, certa de que o sujeito a contundia
com outra pessoa.
— É claro que sim, srta. Borden. Posso chamá-la de Lucy?
—Como quiser. — Podia chamá-la de todos os nomes que esse,
desde que aprovasse o empréstimo.
—Lucy Borden — John balançou a cabeça. — Imagine só! Minha noiva
e eu falávamos a seu respeito ainda ontem.
—Sua... noiva?
—Mary Norris. A enfermeira Norris, do Asilo Merit. Ela me disse que...
ah, não tem importância. Em que posso ajudá-la, Lucy?
—Eu preciso... — e parou, sem saber como começar. Em seguida
respirou fundo, armou-se de coragem e disparou: — Preciso de dez mil
dólares para reformar minha casa.
—Só isso?
—Sim... por enquanto — ela estranhou, sentando-se na cadeira que ele
indicava.
—Às vezes é melhor emprestar uma quantia maior do que a
necessária.
— Mas minha casa não é muito...
—Não se preocupe — ele riu, atraindo a atenção das pessoas que
trabalhavam nas mesas mais próximas. Constrangido, ajeitou a gravata
e prosseguiu: — Os bancos existem para emprestar dinheiro, Lucy,
mesmo que as garantias pareçam insuficientes. Além do mais, você
tem potencial. Você e a sra. Moore, é claro.
—Nesse caso, por que não dobramos o valor? Vinte mil dólares. Só
para garantir, é claro. Onde devo assinar?
—Oh, não é tão simples — ele suspirou, como se estivesse aborrecido
por não poder abrir a gaveta e entregar o dinheiro imediatamente. —
Precisamos preparar a documentação legal. Espero poder levar a
papelada à sua casa dentro de... vinte e quatro horas. Se estiver de
acordo, é claro.
—Oh, estou! Onde estava no ano passado, quando precisei de você?
—Como disse?
—Ah, esqueça. Ficarei em casa à sua espera. Também levara o
dinheiro?
—Não exatamente — ele sorriu. — O dinheiro será depositado numa
conta corrente que abriremos em seu nome, aqui mesmo na agência.
Levarei um talão de cheques para que possa movimentá-la.
—Ótimo! Bem, foi um prazer fazer negócios com você. Odiaria ter de
discutir esse empréstimo com o sr. Proctor. Ele me dá... calafrios.
— Não acha estranho como as pessoas reagem de maneira diferente
aos mesmos estímulos? Todos nós gostamos muito do sr Proctor. Sem
falar na tropa de escoteiros que ele patrocina, o time de basquete, as
obras da igreja...
__ Deve ser outro Proctor — ela cortou. — Vamos embora, Maude.
Na porta do banco, a garota tentou detê-la para dizer alguma coisa,
mas Lucy a puxou pela mão.
—Corra, antes que ele mude de ideia!
—Lucy...
Seguindo a direção dos olhos da criança, Lucastra compreendeu que o
pior ainda estava por vir. Parado no primeiro dos quatro degraus da
entrada, Jim Proctor as observava como se quisesse esganá-las.
—Ora, ora... Por isso não consegui encontrá-las em casa. O que estão
fazendo aqui?
—Bom dia, papai. Lucy só queria conhecer o banco.
—E eu quero que passe o dia com Eloise. Temos muitas coisas a
acertar e pouco tempo para discuti-las.
—Mas, papai, ontem à noite nós...
—Não discuta! Quero que vá para casa imediatamente. Eloise está
esperando por você. Irei até lá assim que for possível para ver como
estão se saindo. Ia dizer alguma coisa, srta. Borden, ou costuma ficar
com essa cara de espanto sempre que encontra um vizinho?
—Gostaria de dizer várias coisas, sr. Proctor. Por exemplo...
—Agora não. Maude, entre no carro. Frank a levará para casa.
— Mas Lucy vai...
—Vai adorar caminhar pela praia num dia tão lindo — ele completou.
A criança foi colocada dentro do carro, o banqueiro foi tragado pelas
portas de seu império económico e Lucy ficou parada na escada, sem
saber o que fazer. Então as portas se abriram mais uma vez e
Proctor reapareceu.
—Fico feliz por ter vindo conhecer o banco, mas espero que não
volte. Estremeço ao pensar no que pode acontecer se tivermos de
discutir negócios — e entrou sem esperar por uma resposta.
—É melhor nem pensar — ela resmungou.
O Asilo. Merit ficava alguns quarteirões distante do banco, e Lucy
decidiu aproveitar para informar-se sobre o estado de saúde de Angie
Moore. Ao aproximar-se do prédio, a intensa atividade na calçada
chamou sua atenção. Um grande caminhão de mudanças estava
estacionado bem na porta do enorme casarão, e três outros
automóveis o cercavam. Alguns homens carregavam móveis para fora
do edifício.
No saguão, um grupo de enfermeiras e assistentes reunia-se em
torno do balcão de informações, e as vozes exaltadas davam a
entender que algo de muito sério acontecia. Certa de que não
conseguiria nenhuma explicação no meio de todo aquele caos, Lucy
atravessou o saguão e dirigiu-se ao quarto de Angie, onde a confusão
era ainda maior.
—Oh, Lucy! Graças a Deus veio depressa! — a sra. Moore uniu as
mãos num gesto de gratidão, os olhos azuis cheios de lágrimas. Um
cobertor havia sido colocado sobre suas pernas, na cadeira de rodas.
—Por que está tão aflita?
—Então não sabe? Pensei que estivesse aqui para tentar resolver o
problema!
—Que problema? O que está havendo aqui?
—O banco executou a hipoteca da casa. Temos vinte e quatro horas
para desocupá-la, e não sei para onde ir!
Por isso ele parecia tão animado! Sabia que existiam mais três bancos
na cidade, e que qualquer um deles poderia executar uma hipoteca,
mas um movimento como esse só poderia ser orquestrado pelo maior
vilão dentre todos os banqueiros. James Proctor!
Forçando um sorriso, Lucastra ofereceu um lenço à amiga e disse:
— Por que diz que não sabe para onde ir? Você vai para a minha
casa! Com todos aqueles quartos vazios, ainda perde tempo se
preocupando com bobagens?
—Mas... você não tem tempo para cuidar de mim. Não imagina como o
trabalho é terrível!
—Cuidar de uma boa amiga não pode ser terrível. Além do mais, não
consegui um emprego para preencher meu verão, e até a escola
reabrir, terei todo o tempo do mundo para você. Vou buscar o carro
em casa. Enquanto isso, peça às enfermeiras para prepararem suas
coisas.
—Sempre quis voltar a viver perto do mar — Angie confessou. — As
pessoas aqui são boas, mas... vai voltar logo?
—Imediatamente. Prometo — e inclinou-se para beijá-la na testa. —
Pense em como a comida será melhor, Angie!

O automóvel de Lucy era uma verdadeira antiguidade. Comprado por


seu avô na época da Segunda Grande Guerra, o Packard preto passara
anos na garagem, esquecido, até que um mecânico oferecera-se para
consertá-lo em troca de algumas aulas particulares para sua filha.
Lucastra aceitara de imediato, e felizmente podia contar com um bom
carro para qualquer emergência.
Havia ido buscar Angie no asilo e agora estava transportando todos os
objetos da amiga para dentro da casa. Era um trabalho árduo,
especialmente sob o sol inclemente da tarde, e por isso recebeu a
chegada do Cadillac com um suspiro aliviado.
—Precisa de ajuda?
—O que acha? — perguntou irritada, virando-se para tentar fulminar
Jim Proctor com os olhos.
Rindo, ele desceu do automóvel e aproximou-se. Havia algo de
diferente em sua atitude, alguma coisa além das roupas, uma calça
jeans informal e uma camiseta da mesma cor das alpargatas, que usava
sem meias. O sorriso, talvez? Ou o brilho nos olhos? Devia ser o ar de
felicidade. E por que não? Tivera uma manhã proveitosa executando
hipotecas e despejando pobres velhinhos!
—Já preencheu a cota do dia?
—Cota?
—Seu banco não tem uma cota diária de execuções e cobranças.
Não sei do que está falando... mas não me explique, por favor. Tenho
certeza de que acabarei compreendendo mais cedo ou mais tarde.
E enquanto isso, precisava dele para carregar toda aquela tralha. Para
que serviam tantos músculos, senão para ajudar alguém em extrema
necessidade e jogar mocinhas indefesas na cama?
—Será que pode me ajudar a levar todas essas coisas para dentro de
casa? Vamos transformar a biblioteca num quarto para Angie.
—Deixe isso comigo e vá fazer um café — ele ordenou, recolhendo
mais da metade dos objetos do porta-malas. — Ei, é um Packard'1934!
Funciona?
—É claro que funciona.
—Não precisa ficar nervosa. Foi só uma pergunta inocente. Sabia que
vocês colecionadores eram temperamentais, mas...
—Vai levar essas coisas para dentro, ou não?
—Já estou indo — ele apressou-se. — E não se preocupe comigo.
Posso encontrar o caminho sozinho.
Angie Moore estava sentada em sua cadeira de rodas na sala de estar,
e seus olhos luminosos fixaram-se no recém-chegado com interesse.
—Ora, se não é o pequeno Jimmy Proctor!
—Senhora?
—Não se lembra de mim?
—Eu... acho que não, senhora.
—Pare com essa história de senhora! Eu costumava bater em seu
traseiro três ou quatro vezes por ano por roubar as maçãs do meu
quintal. Sua família morava duas casas abaixo da minha, e você era um
moleque endiabrado. Olhe só para isso! Como mudou!
—É, acho que cresci um pouco — ele sorriu.
—Mas continua endiabrado?
—Bem... é difícil admitir certas coisas quando se é um banqueiro.
—Não me diga! Alto, bonito e bem posicionado profissionalmente?
—Mais ou menos — Jim concordou, lembrando-se vagamente da
vizinha com lindos olhos azuis que o castigava por roubar maçãs de
seu quintal, e depois o fazia tomar sorvete enquanto recuperava-se das
palmadas. A punição de Angela Moore era infinitamente melhor que a
de seu pai, cuja mão pesada podia deixar marcas mais profundas e
duradouras.
— Acho que apareceu na hora certa, Jim Proctor. Você é casado?
—Não... no momento.
—Otimo. Há uma garota maravilhosa lá fora cuja única falha é ser
solteira. Ela precisa de um marido para completar sua vida.
Uma garota maravilhosa? A demolidora da vizinhança?
—Quem disse que ela precisa de um marido? — perguntou, tentando
ganhar tempo.
—Eu. Toda mulher precisa se casar para ser feliz. Um marido, dois ou
três filhos... E ela é especialmente boa com crianças.
Aposto que formariam um belo casal.
—Ei, espere um minuto! — ele impacientou-se, deixando a carga no
chão e massageando os músculos dos braços. — Acha que eu me
casaria com uma mulher só para torná-la completa?
Já fui casado. Na verdade, tenho uma filha para criar.
—Melhor ainda. Não vai encontrar mãe melhor que Lucy para essa
menina.
—Se ela é tão boa assim, por que não está cuidando dos próprios
filhos?
Sabia que Lucy e Maude entendiam-se muito bem, mas não podia
mudar o rumo das coisas tão repentinamente. Comprometera-se com
Eloise, e não seria justo abandoná-la agora, às vésperas do
casamento. Por outro lado... mesmo que fosse a mãe ideal para
Maude, Eloise era magra e mal humorada, características que sempre
detestara numa mulher. E Lucy Borden parecia tão suave, tão cheia de
curvas...
Tarde demais para arrepender-se, Proctor!
—- Onde coloco essas coisas? — perguntou, recolhendo os objetos
que deixara no chão.
Angie apontou para a porta mais próxima e Jim aproveitou a
oportunidade para escapar. Quando voltou à sala, vozes exaltadas
discutiam do lado de fora da casa. Ou melhor, uma voz exaltada
discutia, enquanto a outra, mais contida, limitava-se a rebater as
acusações com justificativas serenas e equilibradas.
—Eloise! O que está fazendo aqui?
—Entre outras coisas, meu caro noivo — e parou para respirar fundo. —
Ah, deve ser o calor. Alguma coisa está abalando meus nervos.
Felizmente o encontrei. Você prometeu levar-me para velejar,
querido, e já está uma hora atrasado — a loira aproximou-se
insinuante, baixando o tom de voz. — E como se não bastasse, ainda
o encontro na casa da... como costuma dizer, James? A demolidora da
vizinhança? — ela riu, como se dividissem um segredo.
—Cuidado, Eloise. Esse tipo de linguagem não é muito comum fora das
grandes cidades. A srta. Borden é nossa vizinha.

—É claro que é — Eloise respondeu estridente. — E não pense...


Lucinda, não é? Não pense que não sou grata por ter cuidado de
Maude. Uma pessoa da minha idade tem dificuldades para entender as
crianças, sabe? É claro que vou aprender, mas acho que preciso de
mais algum tempo. Jim e eu somos quase da mesma idade, e por isso
nos damos tão bem. Talvez seja esse o motivo pelo qual vocês dois não
conseguem se entender, querida.
—Talvez. Não sabia que era tão mais jovem que vocês, mas é provável
que esteja certa.
Irritada, a loira pendurou-se no braço do noivo e sussurrou:
—Ainda temos tempo para um passeio de veleiro, Jim?
—Acho que sim. Onde está Maude?
—Não está pensando em...? Sim, onde está nossa garotinha? Vamos
nos divertir muito, querido.
—Eloise, onde está minha filha?
-— Não tenho a menor ideia. Ela recusou-se a almoçar e desapareceu.
—Lucy, vou mandar dois dos meus empregados para ajudá-la com a
mudança. Pode ocupá-los durante o resto do dia, se for preciso. A
sra. Moore vai passar alguns dias em sua casa? Eu a
conheci quando era... consideravelmente mais jovem.
—Angie vai morar comigo. Ela vivia no Asilo Merit, como deve saber.
Jim afirmou com a cabeça e Eloise o arrastou em direção à mansão.
Bem, isso provava que sabia do que estava falando, Lucy concluiu,
cruzando os braços e vendo os dois afastarem-se pela praia. Como
tivera coragem de executar a hipoteca de um asilo sem ao menos
pensar nos pobres velhinhos? Parecia até feliz!
Os homens chegaram em menos de dez minutos, e duas horas mais
tarde o novo quarto de Angie já estava arrumado.
—Ainda faltam alguns detalhes — Lucy comentou, abrindo as portas
do armário. Costumava usar o espaço para guardar livros velhos, mas
vendera todos os volumes antes do final do ano letivo, e agora havia
apenas...
—Maude Proctor!
—Então essa é a pequena Proctor — Angie sorriu.
—O que está fazendo aí?
A garota estava encolhida no fundo do armário, e havia um brilho
determinado em seus olhos.
— Ela está se escondendo — Angie respondeu. — Crianças adoram
brincar de esconder. Resta saber... de quem, e por quê?
Maude permanecia em silêncio, os olhos fixos na desconhecida.
—Não precisa me olhar desse jeito — a sra. Moore riu. — Se eu
houvesse sido um pouco mais esperta, hoje seria sua avó — e virou-se
para Lucy. — Alfred era um homem maravilhoso, e eu... Bem, por
volta dos vinte anos de idade, eu era ingénua e tola demais. Não fui
rápida o bastante, e havia outra candidata ao posto. A candidata da
mãe dele, podemos dizer.
—Mas...
—Minha oponente disse que estava grávida e, naquela época, só havia
uma solução para esse tipo de situação. Alfred casou-se com ela, e o
primeiro filho do casal só nasceu quatorze meses mais tarde. Mesmo
assim, eles acabaram se entendendo. Fiquei muito deprimida, mas
depois embarquei num cruzeiro para o Caribe e conheci... Ah, mas isso
já é outra história.
—Quer dizer que quase foi minha avó — Maude perguntou.
—E isso mesmo, criança. Por que não sai daí? Hoje em dia, ninguém
mais mantém os armários realmente limpos.
—Sim, saia daí — Lucy manifestou-se, tentando demonstrar um
mínimo de autoridade dentro de sua própria casa. — Afinal, do que
está fugindo?
—Fígado — Maude fez uma careta. — Fígado e brócolis. Ela queria
que eu comesse essas coisas no almoço!
—Pois bem, vou ter de mandá-la para casa — Lucy avisou.— Seu pai
vai ficar furioso comigo se descobrir que a deixei esconder-se aqui.
—Eu não estava fugindo dele. Meu pai é um grande sujeito.
Só estava fugindo do fígado... e dela. Além do mais, não precisamos
ter tanta pressa. Acabei de ver o veleiro partindo do ancoradouro.
. — Lucastra? Não disse que ainda faltavam alguns detalhes? Por que
não deixa essa adorável criança comigo? Ela pode me ajudar a desfazer
as malas.
Droga! Por que estava agindo como uma maluca, aceitando ordens em
sua própria casa e se derretendo toda cada vez que encontrava
aquele... aquele vizinho?
Como a pessoa prática que era, Lucy ignorou as questões incómodas e
foi para a cozinha, onde consultou a lista telefónica em busca de
nomes de empreiteiros da região. Enquanto procurava, ouvia as
gargalhadas no quarto de Angie. De uma coisa tinha certeza: com uma
avó como aquela, Maude não teria problemas.

Capitulo IV

O empreiteiro chegou na manhã seguinte, uma 'hora depois de John


Ledderman apresentar-se com o talão de cheques e a papelada do
banco.
—Terrível o que aconteceu com o Asilo Merit, não? — o funcionário
do banco comentou. — Minha noiva ficou chocada. Felizmente ela foi
convidada para trabalhar no Hospital Toby. É como sempre digo: em
tudo existe um lado positivo.
—É claro. Onde devo assinar?
—Aqui — ele apontou.
—Não concordo com essa história de sempre haver um aspecto positivo
— Henderson interferiu enquanto abria os projetos sobre a mesa
improvisada na varanda. — Malditos banqueiros! Arruinaram o país
em 1932, e agora estão tentando novamente.
—Ah, não sei — Ledderman respondeu. — Os banqueiros não são os
únicos gananciosos. Todos são culpados. Bem, boa sorte, srta.
Lucastra. Tenho certeza de que o dinheiro será suficiente para...
—Vai precisar de um novo teto — o empreiteiro avisou.
—Mande lembranças para sua noiva — Lucy despediu-se apressada,
percebendo que Aquele Homem aproximava-se pela praia com dois
de seus empregados.
Tentando evitar o desastroso encontro, segurou no braço do
funcionário do banco e praticamente o arrastou até a frente da casa,
onde ele deixara o carro. Quando retornou, o empreiteiro conversava
animadamente com Proctor.
—Esse lugar é só um monte de areia — Henderson explicava.
—Se não tomar cuidado, sua casa acabará afundando, como todas as
outras residências construídas recentemente. As casas mais antigas,
como a da srta. Lucastra, foram erguidas sobre rochas sólidas e firmes.
E nem pense em comprar uma propriedade do outro lado do canal,
porque aquela região está afundando ainda mais depressa. É como ter
um cachorro cavando seu quintal.
— Puxa! Felizmente não tenho um cachorro — Proctor sorriu. —
Apenas uma filha desaparecida — e olhou para Lucy com ar
desconfiado.
Atrás dele, os dois homens olhavam em volta como cães perdigueiros.
—Ela sumiu outra vez? — Lucy perguntou com falsa inocência.
—Outra vez. Por acaso a viu?
—Eu? Não.
—Eu já imaginava. Mas a levará para casa se a encontrar, não é?
—Pode ter certeza disso. É para isso que servem os vizinhos. Haverá
alguém em casa?
—Sim, o dia todo. Fico feliz por saber que decidiu melhorar o aspecto
de sua casa. Não imagina o bem que está fazendo a todos nós, seus
vizinhos. Conseguiu um empréstimo em algum banco?
—Sim, consegui.
—Teve muita sorte. Tenho impressão de que essa coisa vai
desmoronar, sabe?
—Minha casa?
—Meus negócios. Que banqueiro teve coragem de emprestar algum
dinheiro em troca dessa garantia? Sua casa é...
—Tenho meus trunfos — ela o interrompeu.
—Tenho certeza que sim — Jim sorriu, olhando para os seios
delineados pelo vestido fino.
—Não estou falando disso! E não seja atrevido, sr. Proctor! Será que
uma garota não pode ter um pouco de paz nem mesmo em seu
próprio quintal?
—Não. Quero dizer... sim. Sim, é claro. Algum jovem chefe de
departamento deve estar prestes a fazer carreira por causa desse
empréstimo. Ou perder o emprego. Bem, foi um prazer encontrá-lo
novamente, Henderson. Faça um bom trabalho em troca do dinheiro
da moça — e partiu.
—Em troca do seu dinheiro — Lucy resmungou aliviada.
—Proctor é um bom homem — Henderson comentou. — Quanto ao
telhado...
Bom homem? Vasculhando a praia com dois guarda-costas que mais
pareciam cruzadores em busca do inimigo? Bom para quê? As imagens
que invadiram sua mente a fizeram envergonhar-se de si mesma.
—Srta. Lucy?
—Sim? Ah, o teto — ela suspirou, pensando em todo o dinheiro
depositado em sua conta, no banco daquele maldito sujeito. — Sim,
conserte o telhado, sr. Henderson. E vamos precisar de mais um
banheiro no andar de baixo.
—Isso vai custar muito dinheiro.
—Faça tudo o que for necessário. Dinheiro não é problema.
Especialmente quando o dinheiro é de outra pessoa. E quando essa
pessoa descobrir...
—Fique tranquila, srta. Lucy. Vou fazer todos os reparos necessários.
Na verdade, sempre soube que os Borden tinham uma fortuna
escondida em algum lugar. Ao trabalho, rapazes!
Angie Moore sorriu ao ver Lucy entrar na sala.
—Hoje em dia os engenheiros não se preocupam com coisas
importantes. Antigamente, todas as casas tinham janelas voltadas para
o sul para permitir a entrada do sol no inverno.
—É verdade, Angie. Sabe se Maude está escondida em algum armário?
Não, não me diga! Não quero saber.
—Parece que passa mais tempo preocupando-se com ele do que com
qualquer outra coisa. E aquele telefone está tocando desde que
acordei.
—Ele? De quem está falando?
—O vizinho. Perdeu a filha outra vez, não é?
—Sim, e somos as principais suspeitas. Ele veio até aqui com seus
capangas mal encarados. Acredita que existem oito pessoas
trabalhando naquela casa? Oito pessoas, e não conseguem controlar
uma criança!
—E realmente impressionante. Bem, ela chegou dizendo que precisava
ir ao banheiro com urgência. Não podia mandá-la embora.
—Não quero saber. Disse que o telefone havia tocado?
—Várias vezes. As pessoas estão ligando para saber sobre o anúncio
que colocou no jornal. Aquele a respeito do clube de natação. Anotei
todos os nomes e telefones dos interessados. Os recados estão sobre
a mesa, ao lado do aparelho. Sabe de uma coisa? Estou feliz por
aquela droga de asilo ter fechado. Há anos não me divirto tanto. É
bom poder ocupar o tempo, sabe?
—Posso imaginar. É melhor tomarmos cuidado para evitar encontros
com o vizinho, Angie. Não quero encrencas com ele, e se sua filha
estiver... Não, não quero saber.
—Não quer encrencas com Proctor, Lucy Borden. Não sabe que é feio
mentir?
—Não estou mentindo. Ele... Eu...
—Não tente lutar contra um sentimento tão bonito. O amor é a
melhor coisa da vida, e Jimbo é um bom homem.
—Jimbo?
—Era como toda a vizinhança o chamava quando tinha cinco anos de
idade. Hoje em dia não se vê mais essas demonstrações de carinho
entre vizinhos.
—Não estou apaixonada por esse sujeito — Lucy falou com voz clara,
devagar, como se costuma falar com crianças pequenas ou adultos
idiotas.
—Isso é o que você diz.
—Não estou! Por acaso já esteve apaixonada para afirmar com tanta
certeza?
—É claro que já me apaixonei. Várias vezes! Mas no meu tempo
ninguém vangloriava-se de suas experiências amorosas, querida. Uma
moça tinha de tomar muito cuidado com sua reputação. E então, o
que vai ser? Vai correr dele, ou para ele?
—Vou... me esconder. Serei a proprietária de um próspero clube de
natação, e não terei tempo para pensar em bobagens. Lucy concluiu,
indo examinar os recados deixados sobre a mesa do telefone.
— Isso mesmo, corra e esconda-se. As mulheres faziam a mesma
coisa em minha época, e sempre se arrependiam.
Perturbada, Lucy foi trancar-se no banheiro e parou diante do espelho
para dar vazão à raiva.
—Maldito homem! — explodiu.
—Está falando de meu pai? — Maude perguntou, abrindo a cortina da
banheira. — Ele já foi?
—Maude Proctor!
A cortina fechou-se imediatamente.
A culpa é sua, Lucy Borden. Se não houvesse sido tão maternal, nada
disso estaria acontecendo. Devia ter tratado essa criança com firmeza
e distanciamento. Maternal!
De qualquer fornia, era inútil assustar a pobrezinha, agora que o mal
estava feito.
Com delicadeza, abriu a cortina e a viu encolhida num canto da
banheira, tremendo.
—Não precisa ficar tão apavorada, Maude. Ninguém vai devorá-la.
—Não? Como pode saber?
—Maude, pare com isso. Vamos, saia daí imediatamente.
—Não vou voltar para lá. Nunca!
—E onde vai morar?
—Pretendia ficar aqui, mas agora vejo que é tão cruel quanto eles e
todos os adultos. Não sei o que vou fazer, mas não porei mais os pés
naquela casa.
O estado emocional da menina era lastimável, e Lucy trabalhara com
crianças o suficiente para saber que devia haver algo de muito grave
por trás de tanto pavor.
—Maude, o que aconteceu?
—Nada — ela respondeu, cruzando os braços e apoiando as costas na
parede.
—Brigou com seu pai?
—Tentei conversar com ele, mas papai não quis ouvir.
A camiseta parecia aderir ao seu corpo roliço, e havia um odor
estranho e forte no banheiro.
—Tentou conversar com ele sobre o quê?
—Por que quer saber? Não pode fazer nada! Ele nem gosta de você!
— e abaixou a cabeça, tentando esconder as lágrimas. Lucy tentou
abraçá-la, mas Maude conseguiu saltar da banheira e correr para
perto da porta. — Isso é mentira. Ele gosta muito de você.
—Maude, tire a blusa.
—Não!
—Tire essa camiseta, ou serei obrigada a tirá-la por você!
—Não teria coragem... teria?
—Vai descobrir num minuto.
—Não, não! É que... está apertada.
—Nesse caso, talvez precise de ajuda.
Resignada, Maude deixou que ela a despisse e não tentou resistir
quando Lucy a fez virar-se de costas, intrigada com a maneira como o
tecido parecia aderir à sua pele. E aquele cheiro...
Finalmente conseguiu livrá-la da camiseta molhada e tirar suas próprias
conclusões.
— Meu Deus! Quem fez isso?
As costas de Maude haviam sido ensopadas com um líquido viscoso
cujo aroma a fazia lembrar... Seu avô! E aquele maldito copo de
conhaque que parecia grudado em sua mão.
—Quem fez isso? Seu pai?
—Meu pai jamais seria capaz disso!
—Então, quem foi?
Maude ergueu o queixo e Lucy percebeu que não obteria uma
resposta. E nem era necessário. O sangue dos Borden fervia em suas
veias exigindo ação imediata. Se Proctor não era o responsável por
essa crueldade, restava apenas uma possibilidade.
Sem pensar em mais nada, jogou uma toalha sobre as costas da
menina e puxou-a pela mão.
—Venha comigo.
—Meu Deus! — Angie exclamou quando passaram por ela.
— Que cheiro é esse? Parece que estou num bar de quinta ca
tegoria!
—Ainda não viu nada! — Lucy respondeu, pensando nas horríveis
brigas que normalmente aconteciam em bares como o que ela
mencionara.
Na varanda, Henderson a interceptou com ar preocupado.
—Algum problema, senhorita?
—Nenhum... por enquanto.
—Se precisar de ajuda, não hesite em me chamar.
—Talvez mais tarde — ela disse, examinando os músculos de seu
braço antes de seguir em frente.
—Não quero entrar naquela casa — Maude avisou ao passarem pela
rocha que limitava as propriedades.
—Lamento, mas dessa vez terei de contrariá-la. E é melhor continuar
andando. Ou prefere que ele a veja sendo arrastada como se fosse
Ruprecht?
—Papai vai ficar furioso. Absolutamente enlouquecido! E não quero vê-
lo nesse estado. Não quero!
—Ele merece — Lucy gritou, respirando fundo para contro lar-se. —
Pare de chorar, Maude. Você precisa ser forte.
—Preciso? Não sei por quê.
— Porque não pode crescer com medo do mundo! Vamos, comece a
andar ou vou ter de arrastá-la.
Temendo a humilhação, Maude acompanhou-a até a porta da casa,
onde um segurança as recebeu com um sorriso.
—Ei, você a encontrou!
—Encontrei, mas aposto que seu patrão não vai ficar tão contente.
Abra essa porta!
O guarda mal teve tempo de afastar-se antes que ela passasse como
um furacão.
O interior da mansão era silencioso como um santuário.
—Onde estão todos? — ela gritou.
Uma porta se abriu no final do corredor entre a cozinha e a sala e ele
apareceu, as mangas das camisas dobradas até os cotovelos.
—Ei, o que está acontecendo aqui? Ah, srta. Proctor...
Trémula, Maude escondeu-se atrás de Lucy.
—O que posso fazer por você, cara vizinha?
—Em primeiro lugar, pode chamar a polícia. E em segundo, deixe de
bancar o engraçadinho. Em terceiro lugar, trate de me chamar de
srta. Borden.
—Uma lista respeitável, não?
—Chame a polícia, seu... seu monstro!
Sério, Jim fez um sinal para um dos seguranças e o mandou à sala ao
lado, onde havia um telefone.
—Será que pode me explicar o que está acontecendo?
—Acho que terei de chamar a polícia sozinha.
—É melhor sentar-se naquela cadeira e começar a falar de uma vez!
— ele explodiu.
Consciente da inutilidade de tentar enfrentá-lo fisicamente, Lucy foi
sentar-se em uma das poltronas de couro e respirou fundo.
—Agora que está mais calma, será que pode me dizer o que está
acontecendo por aqui? Encontrei a casa mergulhada no caos!
—Jogar álcool numa criança é considerado abuso. E crime!
—De que diabos está falando?
—Ah, você a encontrou! — Eloise exclamou do alto da escada, descendo
devagar.
Os altos provocavam um ruído irritante contra o piso de mármore, e o
robe de seda transparente lhe conferia uma aparência vulgar. E ela
segurava uma bolsa de gelo sobre um olho.
—Elas acabaram de chegar — Proctor informou. — Devia ter ficado
no quarto, Eloise. Sente-se melhor?
—Por que não manda esse monstro para um colégio interno?
E o que essa mulher está fazendo aqui?
—Ela veio trazer Maude — Jim explicou com paciência, estendo o
braço para ampará-la.
—Meu olho está inchando, e temos aquele jantar dos Cartwright esta
noite. Precisa fazer alguma coisa, James!
—Vou fazer. Sente-se ali, Eloise. Chamarei o médico num minuto. Ele
cuidará de seu olho.
—Duvido! Lucy interferiu irritada. — Nenhum médico atende chamadas
a domicílio só por causa de um olho inchado.
—Não quero saber sua opinião. Mande-a embora, James!
—Srta. Borden, agradeço por ter trazido minha filha de volta.
Poderíamos falar sobre o assunto mais tarde? Minha noiva, Maude e eu
precisamos ter uma pequena reunião familiar. Importa-se de nos dar
licença?
—É claro que me importo! Não vou sair daqui enquanto não
esclarecermos tudo isso!
—Ora, francamente! — Eloise gritou. — Quem você pensa que é?
—Apenas uma vizinha que vai ficar aqui até a polícia chegar.
—Por favor — Maude soluçou. — Não quero que ele fique nervoso.
—Levante a cabeça! — Lucy a instruiu. — Vai ter de aprender a
defender-se, antes que seja tarde. Sr. Proctor, por que jogou bebida
alcoólica nas costas de sua filha?
—E no olho, também — a pequena interferiu. — Está ardendo muito!
—Eu joguei bebida em minha filha?
—Exatamente! Isso é crime, sabe?
—Que diabos está dizendo, sua maluca?
— Oh, não! — Maude exclamou apavorada. — Não foi ele!
-- Fique fora disso, mocinha! Vou me entender com seu pai de uma
vez por todas!
—É pouco provável, srta. Borden. E quero saber o que aconteceu com
o olho de Eloise!
—Eu... dei um soco no olho dela — Maude confessou.
—Está vendo? — Eloise gritou. — Ela confessou!
—Espere um minuto. Há algo estranho nessa história — ele indicou,
aproximando-se da filha e ajoelhando-se diante dela. —Por que
agrediu sua tia?
—Porque ela queria me obrigar a comer um monte de verduras. Eu me
recusei, e ela jogou aquela bebida horrível em minhas costas. O
conhaque respingou em meu olho, e quando vi que ela estava
enchendo o copo novamente, bati nela para poder escapar. Corri para
a casa de Lucy e...
—Já chega! — Proctor trovejou, levantando-se como se quisesse
matar alguém.
Pronto! Conseguira alcançar o objetivo. Lucy sempre soubera que, ao
acusá-lo, obrigaria a menina a revelar a verdadeira história.E agora que a
madrasta malvada havia sido desmascarada, tinham "de fazer alguma
coisa por Maude.
—O olho dela está vermelho, sr. Proctor. Acho melhor chamar um
médico.
Nesse momento um dos seguranças entrou na sala e avisou:
—O Doutor Walters chegou.
—Mande-o entrar — Jim ordenou.
Depois de um exame minucioso, o médico concluiu:
—Vai precisar de uma bolsa de gelo para conter o inchaço, mocinha.
E essas pílulas, caso haja alguma inflamação. Se isso foi um acidente,
alguém precisa ter mais cuidado. Se não foi um acidente, vou ter de
relatar o fato à polícia.
—Foi um acidente, doutor — Proctor afirmou. — Vou tomar
providências para que não volte a acontecer. Obrigado por ter vindo.
—Mas... ele não vai examinar meu olho? — Eloise perguntou
indignada.
Jim Proctor virou-se como se só então tomasse conhecimento de sua
presença. Depois de fitá-la por alguns instantes, balançou a cabeça e
disse:
—Adeus, Eloise.
—Mas... o que está dizendo? Vamos nos casar dentro de alguns
dias...
—Adeus, Eloise. Nunca agredi uma mulher em toda minha vida. Não
me faça ir contra a educação que recebi.
—Você é um idiota! Quer saber de uma coisa? Não queria mesmo me
casar com um homem como você! Só estava interessada em seu
dinheiro!
—Adeus, Eloise — ele repetiu, fazendo um sinal para o segurança que
aguardava junto à porta.
Obediente, o homem aproximou-se e segurou-a pelo braço,
arrastando-a para fora sem importar-se com seus gritos e ofensas.
—A menina precisa descansar — o médico lembrou. — E é bom que
alguém fique com ela para o caso de alguma emergência.
—Eu cuido disso — Lucy avisou, levando Maude para o quarto.
Proctor deixou-se cair numa cadeira e enterrou o rosto entre as mãos.
—Como pude cometer um erro tão terrível?
—Acontece — o médico sorriu. — E agora, se puder me explicar
alguns detalhes... Preciso fazer um relatório.
—Já não dói tanto depois do remédio — Maude comentou com voz
sonolenta, deitada de costas na cama que ocupava o centro de seu
quarto.
—Lembre-se de não esfregar os olhos.
—Vou me lembrar. Estou muito feliz por estar aqui comigo, Lucy. Tive
tanto medo! Acho que nunca vi meu pai tão zangado em toda minha
vida. Você foi corajosa!
—Quer saber um segredo? Fiquei com tanto medo que não
consegui fugir. Minhas pernas não obedeciam! Está com fome?
Não houve resposta. A menina havia adormecido sob o efeito do
remédio. Aliviada, Lucy arrastou uma poltrona para perto da janela e
acomodou-se. Havia sido um dia longo e cansativo, e acordara muito
cedo para receber o funcionário do banco e o empreiteiro. A tensão
emocional unira-se ao cansaço, e agora sentia-se incapaz de manter os
olhos abertos. Estava quase adormecendo quando a porta se abriu e
Jim Proctor entrou.
—Ela está dormindo — Lucy sussurrou.
—Eu sei. Preciso falar com você.
—Por favor, desculpe-me. Sabia que não havia agredido sua filha, mas
precisa forçá-la a revelar a verdade.
—Entendo — ele suspirou, sentando-se na cadeira próxima à dela. —
Tentei protegê-la. Realmente, era só isso que eu queria.
—Eu sei que sim — Lucy sorriu, pousando a mão sobre seu pulso num
gesto de solidariedade.
—A mãe dela era um horror. Pensei que pudesse cuidar de Maude
sozinho, mas então as coisas começaram a acontecer...
—Coisas?
—No verão passado, os bancos tiveram prejuízos imensos. Meu
irmão sofreu um esgotamento nervoso e tive de assumir a
presidência para tentar salvar o negócio da família.
—Está querendo dizer que... que não é realmente um banqueiro?
—Não. Meu pai administrava o negócio, e meu irmão mais velho
seguiu seus passos. Graças aos dois, tive tempo e dinheiro para viver
como bem entendia, percorrendo o mundo a bordo de navios e
trabalhando como piloto de provas de aviões. E me envolvendo com
as mulheres erradas, é claro.
—Está falando de sua esposa?
—Principalmente. Quando ela percebeu que eu não era tão rico
quanto imaginava, simplesmente fez as malas e partiu. No
meio do inverno, com neve até os joelhos. Foi direto para a ponte
do Rio Penobscot. O relatório da polícia dizia que a concentração
de álcool em seu sangue era duas vezes maior que o limite normal.
—E Maude? Não ficou ferida?
—Minha esposa nunca se preocupou com a filha. Quando decidiu
partir para ir à festa dos amigos num hotel de inverno, sem saber que
jamais chegaria ao destino, ela simplesmente abandonou a menina em
nossa casa, em Newton.
—Meu Deus!
—Naquela noite cheguei tarde, como de costume, e a encontrei
encolhida dentro do armário, abraçada ao urso de pelúcia e
tremendo. Desde então, Maude tem pavor do escuro. Não vou
permitir que ela sofra novamente, Líicy. Nunca! Jamais pensei que
Eloise fosse capaz...

—Não pense mais nisso. A culpa não foi inteiramente sua.


—Preciso pensar nisso. Tenho certeza de que meu plano era
perfeito, entende? Escolhi a mulher errada, só isso. Terei de ir a
Washington no final do mês para uma série de reuniões importantes
sobre o sistema bancário. Parece que vamos mesmo desmoronar. O
problema dos empréstimos parece crescer a cada dia!
Lucy afirmou com a cabeça como se dominasse o assunto.
— E então, o que acha? — ele perguntou.
O que achava? Devia ter perdido parte da conversa.
— Eu... não sei. O que acha sobre o quê?
Proctor levantou-se e inclinou-se diante dela, as mãos apoiadas nos
braços da cadeira.
—Já disse, Lucy. Preciso proteger Maude, mas estamos passando por
uma crise no setor bancário e tenho de participar de uma série de
reuniões no Departamento do Tesouro. Tinha certeza de que daria
certo. Eu me casaria com Eloise, ela cuidaria de Maude, e talvez
pudéssemos até aumentar a família. Mas agora entendo que só
poderia ter dado certo se Eloise fosse bondosa como você. Quase me
casei com uma maluca! Outra maluca. É isso.
—Isso?
—Sim, isso.
—Eu...
—Está tudo resolvido, Lucastra Borden. A igreja reservada, as flores
encomendadas e os convites distribuídos. Dentro de dez dias, às onze
da manhã de uma terça-feira, nos encontraremos na Igreja da
Congregação. Sabe onde fica?
—Faço parte da paróquia há dezesseis anos.
—Ótimo — e deu alguns passos em direção à porta.
—O que é ótimo? — ela o seguiu.
—Acho que já expliquei tudo, Lucy.
—Pois eu acho que perdi parte de sua explicação — ela inquietou-se,
fechando a porta do quarto de Maude e seguindo-o pelo corredor. —
O que tenho a ver com toda essa história?
Proctor virou-se e fitou-a com ar atónito.
— Ora, você é responsável por toda essa confusão. Por isso, vai se
casar comigo e cuidar de minha filha. E agora que já entendeu tudo,
será que pode largar meu braço? Preciso voltar para o escritório.
Ainda tenho muito trabalho pela frente.
Constrangida, Lucy soltou-o e permaneceu onde estava, boquiaberta.
Assim que Jim Proctor desapareceu além da escada, Lucastra Borden
cruzou os braços sobre o peito e respirou fundo. Então ele achava
que podia obrigá-la a se casar, e dentro de dez dias?
O inferno teria de congelar antes desse matrimónio, sr. Proctor!

Capitulo V

—Olá , srta. Borden — o empreiteiro chamou ao vê-la chegar em


casa.
—Olá, Henderson. Tudo bem?
—Não exatamente. Temos outro problema e vamos precisar de...
—Não diga! Mais dinheiro?
—Exatamente. Encontramos cupins sob a varanda, e vamos ter dex
arrancar todo o piso de tábuas paia matá-los. Só depois poderemos
construir a rampa de acesso que pediu para a cadeira de rodas
daquela simpática senhora. O trabalho deverá custar cerca de...
quatro mil dólares.
—E não temos essa quantia?
—Não.
—O dinheiro parece escorrer das minhas mãos como água!
Não há outra maneira de resolver o problema?
—Não.
Há duas semanas teria desmaiado se alguém lhe pedisse quatro mil
dólares. Agora... o que representavam quatro mil diante dos vinte mil
que já pedira emprestado? Certamente podia obter mais algum
dinheiro. Talvez não devesse ter comprado aquele maio. Cinquenta e
cinco dólares por um pedaço de pano que só podia usar para nadar?
Mas o maio era lindo, e a compra elevara seu moral.
Descalça, sentindo a areia da praia sob os pés, virou-se e olhou para
onde a casa daquele homem erguia-se imponente, banhada pelo sol
da manhã. Casamento? Que tipo de idiota pensava que era? Ia fazer
mais um empréstimo em seu banco, isso sim! Já era hora de Proctor
descobrir que esposas podiam ser caras.
A ideia era tão deliciosa que Lucy não esperou nem mais um minuto
para entrar em contato com John Ledderman.
—Mais dinheiro? — Angie perguntou assim que sentaram-se na
cozinha para uma xícara de chá.
—Mais dinheiro. Felizmente, o responsável pelo departamento de
empréstimos não parece preocupado. A propósito, ele perguntou por
você. Soube que não estava muito bem de saúde e mandou
recomendações.
—Quanta gentileza. E... que coisa mais estranha. Não conheço esse tal
John Ledderman. Será que ainda existem alguns poucos cavalheiros
nessa geração mais jovem?
—Se existem, não os conheço — Lucy riu, antes de mudar de assunto.
— Se tivesse coragem, tomaria emprestado todo o dinheiro daquele
banco e depois riria quando ele viesse receber o pagamento.
—Ele?
—Você sabe. Jim Proctor. Jimbo.
—Anda pensando muito no sr. Proctor, não? Qual é o problema? Ele
é parecido com Mark?
—Deus, não! Ele não é nada parecido com Mark. Mark era mais alto e
magro... e muito mais educado. Um cavalheiro, entende?
—E Jimbo?
—Forte, musculoso... e grosseiro, às vezes. — E mais poderoso e direto.
mark podia ser bajulado. Proctor jamais se deixaria envolver por amor
ou dinheiro.
—Entendo. Jim é mais forte, e mesmo assim está disposta a provocá-
lo. Não acha que vai se meter em encrencas, Lucy?
—Tenho certeza disso, e não sei como evitar. Proctor insiste em dizer
que vai se casar comigo. O que se pode fazer com um homem tão
obstinado? Estou cansada de repetir que esse casamento não vai
acontecer, e ele simplesmente ri. Bem, não posso pensar nisso agora.
As meninas devem estar chegando para a primeira aula de natação.
—Quantas são?
—Quatorze. E Maude, é claro.
—Ele sabe disso?
—Acho que não, mas não é da conta dele, é?
—De certa forma, sim. Está adaptando a casa ao novo negócio com o
dinheiro de Jimbo, mesmo que ele não saiba.
—Dinheiro emprestado não tem dono — Lucy insistiu. —
Emprestado legalmente! Acha que esse maio é muito ousado?
—De jeito nenhum! Se tivesse quarenta anos a menos, eu mesma o
compraria. Ah, as meninas estão chegando.
—Lá vamos nós — Lucy suspirou.
Sorrindo, recebeu as alunas na varanda, apresentou-se e explicou as
regras do clube. Nenhum dos pais demonstrou intenção de inspecionar
o local. Na verdade, duas das garotas foram simplesmente deixadas
pelos motoristas.
Às nove e meia, depois de dividi-las em grupos de acordo com os
conhecimentos, Lucy mandou-as para dentro da água e começou a
primeira aula.
A manhã passou depressa. Às onze e meia, quase todas as meninas
estavam deitadas na areia, sem fôlego. O novo banheiro ainda não
estava pronto, e por isso Lucastra achou melhor mandá-las para casa
sem banho. A casa parecia trepidar com o barulho que faziam. Na
verdade, toda a vizinhança podia ouvi-las. Mas, para Lucy, as vozes
estridentes e exaltadas eram como uma doce melodia. Quando
despediu-se da última aluna, já havia feito alguns cálculos mentais e
sentia-se eufórica.
—Quinze dólares semanais por cada uma delas — disse, os olhos
brilhantes fios no rosto de Angie.
—Duzentos e dez dólares semanais no total — a sra. Moore concluiu
depressa.
—Uau! Acho que vou gastar um pouco desse dinheiro!
—É melhor esperar até saber o valor da prestação que terá de pagar
ao banco.
—Prestação? Imagine! Mal acabei de pegar o dinheiro em prestado!
—E assim que funciona, meu bem.
Desencantada, Lucy foi tomar uma ducha e vestir algo mais prático.
Maude já estava no chuveiro, cantando.
—Guarde um pouco de água quente para mim, — Lucy pediu, batendo
na porta com firmeza.
O ruído do chuveiro cessou imediatamente e a cabeça de Maude
apareceu na soleira.
—Não temos água quente — ela informou. — O sr. Henderson disse
que...
—Vou conversar com ele pessoalmente.
Maude voltou para o chuveiro e Lucy desceu à procura do empreiteiro.
Angie estava no telefone da cozinha.
—Algum problema?
—Nenhum. Recebi o cheque da aposentadoria e apostei algum dinheiro
em Aqueduct.
—Ganhou alguma coisa?
—Calma, Lucy! O terceiro páreo está apenas começando! O cavalo
ainda nem entrou na pista!
Balançando a cabeça num gesto desanimado, Lucy foi para a varanda,
onde Henderson comia um sanduíche sentado no último degrau da
escada.
—Não precisa interromper seu almoço — ela indicou, sentando-se a
seu lado. — O que aconteceu com a água quente?
—Tive de retirar o reservatório. Instalaremos o novo tanque dentro de
dois ou três dias. Foi o maior que pude encontrar nessa região. Be, se
me desculpa, senhorita, tenho de voltar ao trabalho.
—Eu também — Lucy resmungou, levantando-se para ir buscar o
ancinho na garagem.
Numa única manhã, as meninas haviam conseguido acumular pilhas de
folhas e outros detritos naturais na praia.
Por volta de duas da tarde, Maude apareceu e desculpou-se.
—Não vai acreditar, mas acabei adormecendo. Não sei por que
estava tão cansada!
—Não faz mal — Lucy sorriu, indicando um ancinho menor.
— Agora que já descansou, o que acha de me ajudar um pouco?
Maude sorriu e lançou-se ao trabalho. As quatro da tarde Jim Proctor
apareceu. Usava um short velho e desbotado e uma camiseta
igualmente antiga.
—Trabalhando duro?
—Oh, não! — Lucy respondeu, endireitando as costas e gemendo de
dor. — Na sociedade moderna, todo o trabalho duro é
responsabilidade dos homens.
—Não pode estar falando sério! — Maude interferiu.
—Não, mas seu pai acredita nisso.
—Ei, espere um minuto — ele ergueu as mãos num gesto de defesa.
— Não ponha palavras em minha boca, mocinha! Vim até aqui apenas
para elogiar seu novo maio, e não vou tolerar agressões. Desistiu do
biquini?
—Desisti. Não aprovo o exibicionismo.
—Entendo. E por que tanto cuidado com a limpeza da praia?
—Agora temos uma escola de natação! — Maude revelou com
entusiasmo.
—Escola de natação?
—Exatamente — Lucy admitiu. — Reuni um pequeno número de
estudantes e estou dando aulas. Preciso de dinheiro.
—Dinheiro? Espero que não esteja cobrando pelas aulas. Não... você
não seria tão estúpida.
Lucy sentiu um estranho arrepio. Teria perdido alguma coisa? Como
ele podia saber a extensão de sua estupidez?
—O que há de errado em cobrar por serviços prestados? —
perguntou, tentando esconder o desconforto.
—Normalmente nada. Mas esta área é estritamente residencial, o que
significa que não se pode manter nenhum tipo de negócio por aqui. A
não ser que consiga uma licença do conselho municipal.
—Isso é bobagem! Não se pode dar aulas de natação a menos que se
esteja perto da água. A escola tem de funcionar à beira mar —
Maude interferiu. — Qual é o problema, Lucy? Por que está tão
pálida?
—De repente sinto-me indisposta — e correu para dentro de casa.
Maude e o pai ficaram parados na praia, balançando as cabeças.
—Ela trabalha demais — a menina comentou.
—Já percebi — Proctor respondeu, segurando a mão da filha e
levando-a para casa.
Enquanto isso, Lucy passava pela cadeira de rodas como um furacão a
caminho do banheiro, onde passou os quinze minutos seguintes.
—Algo que comeu? — a sra. Moore perguntou ao vê-la no vamente
na cozinha.
—Algo que ouvi. Ele disse... oh, Deus, não quero lembrar, ou vou
passar mal novamente. O que acha de um frango assado para o
jantar?
Depois de cumprir todas as obrigações de uma boa dona de casa, Lucy
levou a amiga para o quarto, ajudou-a a deitar-se e tomou um banho
frio. Usando um vestido de alças e tecido fino, foi dar um passeio pela
praia para pensar em seus problemas e tentar encontrar soluções.
Depois de uma longa caminhada, sentou-se na rocha que servia de
limite entre sua casa e a do vizinho e ficou apreciando a beleza da lua
cheia, deixando-se hipnotizar pelo ritmo cadenciado das ondas.
Não tinha a menor ideia de quanto tempo havia se passado. Estava
começando a sentir o frio da noite, mas uma espécie de torpor a
impedia de levantar-se e voltar para casa. E foi justamente nesse
momento que sentiu a aproximação de alguém. Não ouvia os passos
silenciosos sobre a areia macia, mas sentia a presença às suas costas.
De repente foi envolvida pelo calor de alguma coisa em torno de seus
ombros e virou-se devagar. Um paletó masculino. Encolhendo-se para
desfrutar do calor agradável, sentiu o braço que a envolvia e deixou-se
invadir pela sensação de conforto e proteção.
—Lucastra?
—É claro que sou eu. Sabe muito bem que não há outra garota num
raio de três quilómetros. Jim?
—Quem poderia estar praticamente dentro de sua propriedade,
abraçando-a? — e estreitou o abraço, percebendo sua intenção de
afastar-se. — Relaxe.
Era uma ordem, e Lucy não estava habituada a obedecê-las. Mas a
noite era especial, e de repente sentiu vontade de relaxar. Jim olhava
para as estrelas com ar de admiração.
— Uma beleza.
—Sim, são lindas — ela concordou, apoiando a cabeça em seu ombro
para apreciar o céu.
—Estou falando de você, Lucastra.
O elogio inesperado provou um estranho desconforto. Lucy tentou
afastar-se, mas o braço sobre seus ombros parecia de aço.
—O que foi? Nunca foi elogiada por sua beleza?
—Depois que vovó morreu, nunca.
—Já esteve apaixonada?
—Não recentemente. Apaixonei-me por Harry Tilman, mas foi só uma
paixão passageira.
—Harry Tilman? Ele mora por aqui?
—Como posso saber? Não o vejo desde que terminamos o curso
primário.
—Nesse caso, acho que não preciso me preocupar — e tocou seu
queixo com a ponta do dedo, obrigando-a a erguer a cabeça para
receber o beijo delicado. — Não suporto competição, sabe?
—Competição? Não sei do que está falando! — Sabia, mas preferia
fingir-se confusa. E jamais falaria sobre Mark!
—Otimo. Vamos manter as coisas como estão — Jim sorriu, movendo
uma das mãos para afagar seus cabelos.
—E você? Já esteve apaixonado?
O silêncio que seguiu-se foi tão prolongado, que Lucy sentiu vontade
de sair correndo e esconder-se. Como fora capaz de formular uma
pergunta tão estúpida? Proctor havia sido casado! Tinha uma filha! O
que esperava que respondesse?
— Eu acreditava que sim — ele disse em voz baixa, como se falasse
só para si. — Mas agora acho que não. Foi um terrível engano. Ela
queria uma vida totalmente diferente daquilo que eu desejava para
mim. É horrível dizer isso, mas quando tudo acabou, a única que senti
foi um imenso alívio.
Lucy respirou fundo e levantou-se.
— Lamento ter tocado num assunto tão doloroso. Bem, é tarde,
minhas alunas estarão aqui bem cedo para a aula de natação e...
Não sabia o que pretendia dizer. Jamais saberia, porque o beijo
simplesmente baniu todos os conteúdos de sua mente, enchendo-a
apenas com aquela sensação deliciosa e quente. Era como se os nervos
respondessem a uma infinidade de estímulos simultâneos, acionando
todos os sentidos de uma só vez. Como se o céu se iluminasse...
Proctor afastou-se ofegante.
— Que diabos foi isso? — perguntou.
Lucy conseguiu abrir os olhos. O céu havia realmente brilhado.
Além do porto, alguém enviou mais um sinal de luz.
—É só um farolete — ela explicou. — A Guarda Costeira está
conduzindo um treinamento noturno.
—Gostaria de matar todos eles.
Lucy também gostaria.'Lentamente, com requintes de crueldade.
Onde estavam? O que havia acontecido? Não sabia que um beijo
podia ser tão perigoso à saúde.
—Você está tremendo — ele constatou.
—Sim, eu... Está ficando frio. Acho que é melhor entrar. Preciso
preparar- algumas coisas para amanhã. — E pensar no que
estava sentindo antes de falar novamente com esse homem.
— Boa noite.
Sem esperar para saber qual seria sua reação, Lucy entrou e
correu para o quarto, onde passou o resto da noite virando-se na
cama.
Quanto a Jim Proctor, percorreu toda a extensão da praia duas ou
três vezes até certificar-se de que ela não voltaria, resmungou
meia dúzia de palavrões e foi para a cama. Onde também passou
a noite virando-se de um lado para o outro.
No quinto dia de funcionamento do clube de natação, um carro de
polícia parou diante da casa justamente no instante em que Lucy
coordenava a disputa de nado de peito.
— Lucy — a sra. Moore chamou da varanda, onde já podia ir
sozinha graças à nova rampa de acesso. — Há um policial aqui e
ele insiste em... Oh!
Um homem alto e uniformizado havia contornado a casa e
entrava na praia. Lucy deu algumas instruções às alunas mais
velhas, que também atuavam como monitoras, e foi atendê-lo.
—Quer falar comigo, oficial?
—Se for a proprietária deste lugar...
—Sou, por enquanto.

—Por enquanto?
—Até o banco decidir executar a hipoteca. Tive de fazer um
empréstimo para... Bem, isso não importa. Qual é o problema?
— É verdade que está dando aulas de natação em seu quintal?
— Sim, mas infelizmente não pode participar do grupo, porque só
aceito meninas.
—Não estou interessado em fazer parte do grupo. Tem algum
lucro com as aulas?
—É difícil dizer. Era o que pretendia, mas ainda não tive
nenhum lucro, e estou começando a desconfiar que não verei a
cor do dinheiro até o final da estação.
—Acho que não entendeu, senhorita. Quero saber se cobra
pelas aulas de natação.
—É claro que sim! Mas não o suficiente, receio.
Maude havia saído da água para ouvir a conversa e agora gritava
e acenava para alguém em sua casa.
—Tem licença para operar comercialmente nesta área, senhorita?
—Licença? Por favor, pare de me chamar de senhorita. Meu
nome é Lucy Borden.
—Eu sei qual é o seu nome... senhorita. Você estudou com meu
irmão.
—É mesmo? Quem era...?
—Escute aqui, senhorita, não vim à sua casa para uma reunião
social. Tem licença para operar comercialmente numa zona re-
sidencial? Recebemos uma queixa.
Lucy encarou-o em silêncio. Sabia que soltar o cachorro em cima
de um policial era ilegal. Além do mais, não tinha um cachorro
para soltar. Mas se oferecesse alguns dólares... Não. Preferia
pagar a multa.
—Afinal, o que significa tudo isso? — perguntou, fingindo não
compreender a situação.
—Significa que tenho o dever de adverti-la. Está violando a lei de
zoneamento municipal, e vai ter de fechar sua escola. Se quiser
apelar, pode enviar uma solicitação de licença em caráter
extraordinário para o conselho da cidade.
—Acha... que não posso continuar dando as aulas de natação até
a próxima reunião do conselho? Sei que ainda vai demorar algum
tempo e... não? — O policial estava balançando a cabeça. — Aposto
que seu irmão seria mais tolerante.
—Meu irmão?
—Aquele que estudou comigo.
—Ah, sim. Talvez. Infelizmente ele está na Arábia Saudita, cavando
poços de petróleo.
—Não posso nem concluir a aula desta manhã? Falta somente uma
hora.
—Pode terminar sua aula. Mas passarei novamente por aqui às duas
da tarde, e é melhor que não haja nenhuma aluna na água.
—Sim, senhor.
Gostaria de dizer muitas outras coisas, todas grosseiras e inadequadas
a uma mulher bem educada, mas o policial olhava por cima de seu
ombro como se algo chamasse sua atenção.
— Algum problema? — Uma voz masculina e firme perguntou às suas
costas.
Sobressaltada, Lucy virou-se e viu aquele sorriso irritante nos lábios de
Jim Proctor.
— Não. Você não — gemeu.
Todas as meninas reuniram-se num semicírculo em torno dos dois e ela
sentiu-se prestes a ter um ataque.
— Sou o sr. Proctor, dono do maior banco da cidade. Está acusando
minha noiva de alguma coisa?
Lucy pensou em protestar, mas ele a abraçou e apertou seu ombro
numa mensagem silenciosa.
—Bem, recebemos uma queixa, sr. Proctor. Alguém afirma que sua
noiva está operando comercialmente numa zona residencial.
—Quem faria uma reclamação tão idiota? A velha do outro lado da
rua?
Não podia ser! A casa mais próxima ficava tão afastada da estrada, que
apenas as chaminés podiam ser vistas de onde estavam.
— Sim, foi a sra. Chase — o policial confirmou. — Ela reclamou do
barulho, de um punhado de garotas seminuas correndo pela praia, e
parece que caiu da escada quando tentava ver o que estava
acontecendo através da janela do sótão. Como torceu o tornozelo,
pretende processar sua noiva por danos físicos. É claro que isso é uma
grande bobagem — ele riu. — Mas existe realmente um problema
legal, sr. Proctor. A prefeitura é bastante rígida com relação ao
cumprimento da lei de zoneamento, e se sua noiva pretende manter
uma escola nessa área, terá de solicitar uma licença especial do
conselho municipal. Até lá...
—Não exagere, oficial. Caso não tenha percebido, isso não é
realmente um negócio. E uma espécie de... hobby, e uma ação social.
Através das aulas, Lucy mantém um punhado de meninas afastadas das
ruas. Tenho certeza de que reconhece duas ou três delas, não?
—Sim, conheço três dessas meninas. Pais ricos, filhos mimados. Não
havia pensado nisso. Mesmo assim...
—Então, tem de admitir que ela não está realmente operando
comercialmente, correto?
O policial afirmou com a cabeça.
—Sendo assim, não há necessidade de fechar a escola tão
repentinamente. De qualquer forma, ela entrará com a solicitação de
licença o mais depressa possível. Não vai querer essas crianças soltas
pelas ruas, vai?
—De jeito nenhum! — o oficial exclamou. — Mas só posso permitir o
funcionamento da escola por um ou dois dias. Espero que
compreenda, sr. Proctor — e despediu-se com um aceno.
Lucy o viu desaparecer do outro lado da casa e virou-se para Jim.
—O que significa tudo isso, afinal?
—Significa que está infringindo a lei. Além de não ter uma licença
para administrar uma escola particular, não pagou as taxas exigidas. Ou
pagou?
—Não. Por que insiste em fazer perguntas idiotas cujas respostas já
conhece? E agora, que diabos vou fazer? Eu tenho uma licença!
—Do conselho municipal?
—Da Cruz Vermelha. E o suficiente para tornar meu negócio legal,
não?
—Infelizmente, vai ter de fechar sua escola por algum tempo. Ou
continuar operando sem cobrar pelas aulas. Enquanto isso, irei
procurar os pais das meninas para conseguir apoio e pedirei instruções
ao advogado do banco. Ele deve conhecer alguma forma de
contornarmos essa situação.
—Que mundo mais estranho! Parece até que estou cometendo um
crime!
—Não quer perder a escola, quer? Conversei com Angie há alguns
minutos, e ela disse que você realmente precisa do dinheiro.
—Muito bem, garotas! — Lucy bateu palmas. — A aula ainda não
terminou. Todas para dentro da água! Você também, srta. Proctor.
Depressa!
—Mas eu queria...
—Vá se divertir enquanto pode — Jim comentou, esperando que ela
se afastasse para voltar ao assunto. — Precisa do dinheiro porque...
—Isso não é da sua conta!
—Lucy!
—Não preciso de dinheiro nenhum, sr. Proctor. E não pretendo me
casar com você, e também não vou... — As últimas palavras foram
abafadas pelo beijo quase selvagem.
Ainda estava tentando recuperar o fôlego quando Proctor indicou:
— Não me importo com um pouco de independência de vez em
quando, mas às vezes você me faz perder a paciência, Lucy. Por que
precisa de dinheiro?
Gostaria de dizer que tinha de pagar aquele maldito empréstimo, mas
o bom senso a fez silenciar. Por que provocar a fera?
—Tenho algumas dívidas acumuladas.
—Se é só isso, por que não disse antes? Faça uma lista dos seus
credores e mandarei minha secretária cuidar disso imediatamente.
Faz parte do presente de casamento.
—Por acaso é surdo? Não vou me casar com você! Não estou à venda,
e não quero nenhum presente! Está começando a me deixar
realmente furiosa!
—Era exatamente o que eu pretendia — ele riu, beijando-a
novamente e provocando as mesmas reações intensas e inexplicáveis.
— Bem, por hoje é o suficiente.
— Do que está falando? — Lucy gritou descontrolada, vendo-o afastar-
se pela praia.
— Não esqueça! Faltam cinco dias para o casamento.
Adoraria correr atrás dele, jogá-lo sobre a areia e... Afinal, de onde
vinhas imagens tão indecentes?
Perturbada, respirou fundo e foi cuidar das quatorze alunas.
—Terei de pagar a primeira parcela do empréstimo na próxima semana
— Lucy concluiu, fingindo não perceber o ar preocupado de Angie. — É
uma quantia assustadora, e as parcelas devem ser pagas
mensalmente.
—Sei que tudo isso é muito complexo, mas conheço uma solução
absolutamente simples. Pelo menos para o primeiro pagamento.
—Simples?
Angie moveu a cadeira de rodas e aproximou-se do telefone.
— Sim, muito simples — disse enquanto discava. — O bando não se
mostrou disposto a emprestar todo aquele dinheiro?
Lucy afirmou com a cabeça, os olhos cheios de desconfiança.
— Então volte ao banco e peça outro empréstimo. O suficiente para
saldar duas ou três parcelas da dívida.
Ainda estava boquiaberta quando alguém atendeu o telefone do
outro lado da linha e Angie começou a falar.
— Abigail? Abigail Chase? Aqui é Angela Moore. Escute aqui, sua velha
intrometida e desocupada, como se atreveu a registrar uma queixa
contra minha Lucy?
Durante alguns segundos, Angie ouviu em silêncio.
— Bem, não gostaria de expor uma velha conhecida ao ridículo, Abigail,
mas ainda me lembro do que costumava fazer na praia na época da
Segunda Guerra Mundial. Você e aquele... como era mesmo nome do
sujeito? Ah, você também se lembra!
Mais alguns instantes de silêncio antes de uma nova interrupção.
— Já esqueceu que tenho a hipoteca de sua casa, Abigail? O que acha
de ser obrigada a fazer as malas em menos de vinte e quatro horas?
Conheço um asilo adorável no centro da cidade Os quartos são
pequenos, sem banheiros exclusivos, mas acho que adoraria poder
contar com a companhia de mais quatro ou cinco velhinhas
doentes e surdas nas longas noites de inverno. Teria com quem
conversar e... O que disse? Bem, se pretende retirar a queixa,
também posso mudar de ideia sobre a hipoteca. Sim, até logo — e
desligou o telefone com um sorriso satisfeito. — Está vendo,
Lucastra? Você tem muitos amigos na vizinhança.
—Mas... pedir outro empréstimo? Isso não seria desonesto?
—É claro que não! A velha lei Cristã condena a usura, e seis por
cento ao mês é uma taxa bastante elevada. Os banqueiros
merecem todos os castigos do mundo!
Nesse ponto, Angie tinha razão. Talvez Jim Proctor também
merecesse o castigo de se casar com uma mulher independente,
voluntariosa e determinada.

Capitulo VI

Na manhã seguinte, Lucy Borden acordou no meio de um sonho


terrível. Jim Proctor estava debruçado sobre sua cama, o rosto
contorcido numa horrível máscara de ódio.
— Dinheiro — repetia. — Dinheiro, ou... Ninguém trapaceia
dentro de meu banco!
Assustada, esfregou os olhos até livrar-se da terrível sensação
provocada pelo pesadelo. Dinheiro... Ultimamente, era como se
não fosse capaz de pensar em outra coisa. E então pensou em algo
que não havia lhe ocorrido. Como Angie tornara-se proprietária da
hipoteca daquela mansão do outro lado da rua?
— Ah, não importa. Preciso arrumar algum dinheiro.
Meia hora mais tarde, depois de ajudar a amiga a vestir-se e
empurrar sua cadeira de rodas até a cozinha, Lucy perguntou:
—O que vai querer comer?
—Presunto, ovos e café.
—O médico a proibiu de tomar café, lembra-se?
—Aquele moleque insolente! O que ele sabe a respeito da vida?
Quero café!
Lucy suspirou, encolheu os ombros e serviu o café.
—Angie, com relação à hipoteca...
—Que hipoteca?
—Você disse à sra. Chase que possuía a hipoteca de sua casa, e
sempre achei que estivesse falida!
—E estou. Quero dizer, não tenho nenhum dinheiro, mas tenho
uma sacola de papéis acumulados ao longo dos últimos vinte e
cinco anos. Gastava todo o dinheiro e ia guardando o restante nos
armários.
—Mas...
—Está curiosa? Por que não vai examiná-los? Os papéis estão
guardados naquele baú ao lado da minha cama. Acho que não valem
grande coisa, mas pretendia mesmo deixá-los para você.
—Não se importa se eu der uma olhada neles?
—É claro que não.
—Não está curiosa?
—Nem um pouco. Não há nada mais aborrecido que um baú repleto
de papéis. Toda aquela poeira provoca minha asma.
—Talvez os examine num dia de chuva. Suspendi a aula de natação
de hoje, mas preciso estar no banco às nove em ponto.
—Então é melhor correr.
Maude entrou nesse momento, animada e radiante como um raio de
sol.
—Vim cuidar de você, Angie — ela anunciou. — E é melhor correr,
Lucy. Papai está andando pela casa dando ordens como se fosse
Napoleão. Acho que ele não vai ao banco.
—Que criança adorável — Angie sorriu. -— O que vamos fazer com o
nosso tempo, meu bem?
Lucy respirou fundo e saiu sem olhar para trás, tentando acreditar que
nada de mal aconteceria em sua casa. Disposta a aproveitar a manhã
ensolarada, decidiu caminhar pela Ned's Point até o centro da cidade,
mas não havia percorrido nem cem metros quando um automóvel
aproximou-se e buzinou várias vezes.
—Maluco! — gritou assustada, virando-se para encarar o motorista do
Cadillac. — Por que fez isso? Podia ter me matado de susto!
—Vai para o mesmo lugar que eu? — Jim Proctor perguntou com um
sorriso.
—Não sei. Para onde está indo?
—Para a prefeitura.
—Não, obrigada. Estou indo em outra direção.
—E seu eu dissesse que posso me desviar do caminho?
—A resposta seria a mesma.
Proctor inclinou-se e abriu a porta do passageiro.
—Lucy Borden, não me provoque! Pare de discutir comigo e entre de
uma vez!
—Não quero entrar. E você não pode me obrigar!
Não devia deixá-lo intimidá-la só porque era grande, forte e... Por que
estava descendo do carro?
— Jim Proctor! Não se atreva... Não pode parar o carro no meio da
estrada!
— Ah, não posso? E também não posso obrigá-la a entrar?
No instante seguinte Lucy gritava e debatia-se em seus braços,
tentando soltar-se.
—Ponha-me no chão, seu monstro!
—O que é isso?
—É uma ordem!

—Sim, eu ouvi. Mas por que essas pessoas estão se glomerando à nossa
volta?
—Por que você parou o cairo no meio da estrada e impediu o trânsito
nos dois sentidos, seu idiota!
—Amável como sempre.
—Odeio esse tipo de atitude! Odeio, ouviu bem, sr. Qualquer Coisa?
—O nome é Proctor, Lucy. Continue tentando, e vai acabar se
acostumando. Afinal, esse vai ser o seu nome, também. Meu, seu e de
Maude.
—Nunca! Nem que eu viva mil anos! Não vou me casar com você! Nem
que...
Mais uma vez, Proctor conseguiu silenciá-la com um beijo.
O pequeno grupo de pessoas que os observava aplaudiu com
entusiasmo.
Vermelha como um pimentão, Lucy debateu-se na inútil tentativa de
obrigá-lo a soltá-la.
—Veja o que fez comigo! Todas essas pessoas me conhecem!
Estou totalmente embaraçada.
—Totalmente?
—Sim, totalmente! Ponha-me no chão agora mesmo.
Em vez disso, Proctor a segurou com mais força e respirou fundo.
— Senhoras e senhores, acabei de saber que todos vocês conhecem
Lucy Borden. Talvez estejam intrigados com um beijo tão apaixonado e
em público.
—Pare com isso! — ela sussurrou, encolhendo-se como se pudesse
desaparecer.
—Quero que saibam que esse beijo foi perfeitamente moral, decente e
legal. Na próxima terça-feira, Lucy vai me dar a honra de aceitar-me
como seu marido na Igreja da Congregação, e quero que todos vocês
estejam presentes. Após a cerimónia haverá uma recepção na praia, em
minha casa. Não esqueçam de avisar os amigos!
O grupo de cerca de trinta pessoas aplaudiu novamente e Jim finalmente
a colocou no chão, tomando a precaução de mantê-la entre os braços.
—Ei, você está chorando! Não precisa chorar, Lucy. De agora em diante,
prometo protegê-la em todos os sentidos. Venha, vamos embora.
—E quem vai me proteger de você?
Proctor afastou-se como se houvesse sido atingido por um raio. Depois
de fitá-la por alguns instantes, entrou no carro e partiu sem dizer nada,
deixando-a sozinha na estrada.
Lucy chegou ao banco exatamente às nove. O sr. Ledderman conversava
com um colega, mas correu para sua mesa ao vê-la entrar.
— Que maneira deliciosa de começar o dia — disse, indicando a cadeira
reservada aos visitantes.
Lucy sorriu. Ledderman era um homem gentil, mas não gostava de ser
tratada como uma boneca de porcelana.
—Sua noiva sabe que anda por aí falando desse jeito?
—Sabe, e até me encoraja. Engraçado ter perguntado. Ela e eu
recebemos uma proposta para trabalhar numa cidade do Arizona. Sol,
ar puro e toda aquela beleza natural. Mas em que posso servi-la, srta.
Borden?
—Poderia me conceder outro pequeno empréstimo, sr. Ledderman?
—Evidentemente! Na verdade, será um empréstimo histórico.
—Por quê?
—Trabalho para o banco há dois anos, e essa será minha última
transação no departamento de empréstimos. Qual é a quantia, srta.
Borden? Devemos considerá-la uma extensão da hipoteca?
—Sim... acho. Se é assim que costumam fazer — ela respondeu, antes
de revelar a quantia que tinha em mente. O suficiente para pagar
quatro prestações do primeiro empréstimo, de acordo com seus
cálculos. E depois disso? Deus proveria, Angie havia dito quando
discutiram o assunto. Mas Angie não era exatamente uma beata, e Lucy
não sabia se Deus aprovava a conduta dessa ovelha.
—Uma gota no oceano — Ledderman comentou com entusiasmo,
referindo-se à quantia reduzida. — Infelizmente meu chefe está nos
observando, e teremos de enfrentar toda aquela papelada novamente.
Resignada, Lucy assinou em três locais diferentes e esperou que o
conselho deliberativo aprovasse e assinasse seu pedido. Como o
cavalheiro que era, Ledderman a acompanhou até a porta e despediu-se
com um prolongado aperto de mão.
Grata como jamais estivera, Lucy não pôde conter-se e abraçou-o.
—Ora, ora, bem no meu nariz! — Jim Proctor exclamou às suas costas.
— E com um de meus funcionários!
—Ex-funcionário — Ledderman respondeu confiante. — Esse foi meu
último ato no banco, sr. Proctor. Vim acompanhar Lucastra até a porta,
e agora vou ao Departamento Pessoal para acertar minhas contas.
—Por quê?
—Vou para o Arizona. Sol, ar puro...
—E você vai com ele? — Proctor espantou-se, os olhos fixos em Lucastra.
—Eu não! Caso não saiba, John Ledderman já tem uma noiva. A
enfermeira Mary Norris.
—Ah, sim, a enfermeira — ele repetiu aliviado. Era evidente que jamais
ouvira falar em Mary Norris, mas o simples fato de saber sobre sua
existência era motivo de alegria. — Bem, só me resta desejar boa sorte
aos noivos, não é? Até logo, Ledderman — e estendeu a mão.
Sorrindo, o funcionário aceitou o cumprimento e aproveitou para
beijar o rosto de Lucy ao despedir-se.
—É melhor ir acertar suas contas — Jim indicou.
—Sim, é claro. Ah, antes que eu me esqueça, como vai a nossa sra.
Moore?
—Melhorando — Lucy respondeu. — Devagar e sempre.
—Bem, nem tudo é como desejamos. Adeus, srta. Borden. Adeus, sr.
Proctor.
—Que diabos ele quis dizer com esse comentário estranho?— Jim
Proctor resmungou.
—Não sei. Ele diz coisas parecidas sempre que nos encontramos.
—Não faz diferença. Escute, Lucy, acho que agi mal naquela estrada
esta manhã. Espero que possa... bem, Maude e eu vamos sair para um
passeio de barco essa tarde. Gostaria de vir conosco e respirar um
pouco de ar puro?
—Eu adoraria. Mas não posso deixar Angie sozinha.
—Mandarei um dos empregados passar a tarde com ela.
—Não sei... Não pode ser qualquer coisa. Tem de ser alguém de quem
ela goste.
—Minha governanta é uma mulher adorável, e parece que já conhece
sua... não sei qual é o grau de parentesco entre você e a sra. Moore.
—Somos apenas boas amigas. Na verdade, Angie foi uma grande
amiga de minha avó, e fiz questão de não perder o vínculo.
—Você é uma pessoa muito bondosa — ele sorriu, segurando seu
braço e levando-a novamente para o interior do banco. — Não vou
demorar — avisou,-indicando uma das cadeiras de couro de seu
gabinete. — Espera por mim?
Por que não?
Além da porta, Proctor dizia à secretária:
— Encontre o endereço de uma tal Mary Norris. É a enfermeira que
anda por aí com John Ledderman. Quando conseguir encontrá-la,
mande quatro dúzias de rosas amarelas. O cartão? Escreva apenas...
"Graças a Deus você existe."
Congelada pelo que acabara de ouvir, Lucy agarrou os braços da
poltrona e prendeu o fôlego, rezando para que ele não lembrasse de sua
presença.
A vida estava ficando mais excitante a cada dia! Seria essa a sensação
que as pessoas descreviam quando estavam apaixonadas? Não. Proctor
era um homem impertinente, um verdadeiro rolo compressor capaz de
atropelá-la e deixá-la esmagada no meio da estrada. Cuidado, Lucastra
Borden!
— Que diabos está acontecendo aqui? — Jim Proctor diminuiu a
velocidade do Cadillac.
Havia mais carros parados na porta da casa de Lucy do que transitando
na estrada.
— Não sei. Oh, meu Deus! Talvez tenha acontecido algo com Angie!
Proctor pisou no breque e Lucy desceu antes mesmo do carro parar.
Apressada, entrou pela porta da frente e atravessou a casa com um
raio até a cozinha.
Angie estava sentada na cadeira de rodas junto da porta aberta, e as
gargalhadas sacudiam seu corpo magro e encurvado.
—Angie! Você está bem?
—Oh, olá Lucy. Nunca estive melhor — ela apontou para fora. — Não
me divirto tanto desde que meu pai levou-me naquela viagem de vapor
pelos rios do país.
—E Maude?
—Está fazendo maravilhas. Por que não vai ver com seus próprios
olhos?
Maude estava parada no último degrau da escada da varanda,
encarando uma multidão de adultos furiosos.
—O que está acontecendo aqui?
—Lucy! Graças a Deus voltou para casa! Eles estão malucos!
—Pode apostar nisso, mocinha — um dos homens respondeu. —
Planejei minhas férias durante um ano, e agora você manda minhas
duas enteadas de volta para casa! Vou criar uma confusão por causa
disso, moça!
—E eu quero meu dinheiro de volta — gritou a mulher ao lado dele.
— E com juros! Vou processá-la por perdas e danos, srta. Borden!
Lucy aproximou-se da balaustrada e estranhou o súbito silêncio do
grupo. Teria sido capaz de intimidá-los com sua presença forte, segura
e confiante?
Mas então ouviu os passos às suas costas e virou-se, rindo da própria
pretensão. A presença forte, segura e confiante era de Jim Proctor,
evidentemente.
—Lamento pelos inconvenientes causados — disse, encarando o grupo
de pais e mães —, mas fui forçada a suspender as aulas de natação
sob pena de ir para a cadeia. — Um murmúrio de insatisfação brotou
da multidão e Lucy soube que era hora de um pouco de magia e
criatividade. Mentiras inocentes, como diria sua avó. — Meu noivo
negou-se a aceitar a ideia de me ver presa, e como sempre faço o
que ele diz, achei melhor fechar a escola.
—Que mentira mais descarada! — ele sussurrou em seu ou vido, antes
de dirigir-se à pequena multidão.
Apesar de manter-se atenta, Lucy não conseguia compreender quase
nada do que ele dizia. Parecia ter começado pelos artigos da
Constituição, passado para os cânticos de Jó, pela história da Nova
Inglaterra, e finalmente concluiu com terríveis ameaças veladas sobre
os inconvenientes de se colocar contra o maior banqueiro da cidade.
Todos concordaram e a multidão se dispersou rapidamente.
—E assim que se faz, minha querida noiva — ele comentou com um
sorriso satisfeito.
—Não sou sua noiva! Foi apenas um subterfúgio. E não vamos nos
casar, ouviu bem?
—Bata o pé! Você parece mais firme quando bate o pé no chão
como uma menina mimada.
—Sr. Proctor — Lucy começou, pensando numa maneira de livrar-se de
sua persistente companhia. Então lembrou o que Angie havia dito sobre
os papéis guardados no baú e disparou: — Lamento, sr. Proctor, mas
acabo de me lembrar de um problema sério e importante.
Infelizmente não poderei acompanhá-lo na
quele delicioso passeio de barco.
—Também tenho um problema, e o meu é mais importante —
Maude interferiu. — Vai se casar com meu pai?
—Maude!
—O que é, papai? Esse assunto é muito importante para mim. E então,
Lucy? Vai se casar com meu pai?
—Eu... ainda não pensei na proposta com a seriedade que o assunto
exige. Casamento é um passo muito importante, e seu pai...
—Não é o mais doce dos homens — Jim cortou. — Vamos deixar Lucy
decidir sozinha, está bem? Não queremos que ela se case comigo por
ter sido pressionada.
—É claro que queremos — Maude protestou. — Quaisquer meios são
válidos em caso de emergência. Para você é simples. Basta telefonar
para uma mulher e já tem com quem sair e passear pela cidade. Mas eu
preciso de uma mãe!
—Que história é essa dele sair com as mulheres da cidade?
—Primeiro vamos terminar de discutir o seu problema, Lucy —Jim
sugeriu apressado. — As paredes têm ouvidos. Maude, corra até
nossa casa e verifique se a sra. Winters pode preparar uma boa
refeição para todos nós. Algo portátil. Quando a comida estiver pronta,
os seguranças a trarão para a casa de Lucy.
—Mas...
—Vá!
-— Ninguém presta atenção em mim — a criança resmungou. —Lucy?
— e aproximou-se, abraçando-a com força. — Eu amo você.
—Também amo você, meu bem.
—Amanhã. Iremos velejar amanhã — Jim decidiu.
—Mas são só dez e meia da noite! — Lucy argumentou.
—Tem razão. Há mais alguma coisa nesse pacote?
—Não. Mas no outro...
—Então existem outros? — ele perguntou desanimado, olhando para a
mesa da sala de jantar e para os papéis que a cobriam.
—Só mais um. Por que não paramos um pouco e descansamos?
— Boa ideia. Olhe só para isso! Montanhas de papéis sem valor!
—Mas você disse que aquela pilha...
—Eu sei o que disse. Aqueles são bónus federais que ela pode trocar
por dinheiro quando quiser. E aquilo ali... não posso afirmar com
certeza, mas parecem cédulas do tempo da Confederação. Onde
conseguiu tudo isso, Angie?
—Os parentes foram morrendo e os papéis acabaram todos em
minhas mãos. Sabe como são essas coisas, não? — A sra. Moore
sorriu, exausta, porém feliz. Agora deixara de ser apenas uma piada.
Caso as coisas não acontecessem como esperava, agora tinha
realmente algo que podia deixar para Lucy. — Juro que não vou
apostar nem um centavo nos cavalos — prometeu.
Os outros dois riram e Lucy a levou para a cama. Quando voltou para
a sala de estar, parou junto à mesa para espreguiçar-se e flexionar os
braços.
—Dores nas costas? — Jim perguntou.
—Um pouco. Deve ser de ficar debruçada sobre a mesa. E meus
olhos ardem, também. Nunca havia percebido como a iluminação
dessa sala é fraca. Mas a felicidade de Angie compensa qualquer
sacrifício. Viu como ela melhorou nas últimas duas horas? Ultimamente
tenho me preocupado com ela. Sei que minha casa é grande, mas os
cómodos são pequenos, e às vezes tenho a impressão de que ela
sente-se presa.
—Não pode consertar o mundo, Lucastra Borden — ele sorriu, puxando-
a e obrigando-a a sentar-se sobre seu joelho. — Como um ser tão
pequeno pode querer encontrar todas as soluções?
—Não sou tão pequena.
Mas não havia a força habitual em sua afirmação. Por que sentia-se tão
plácida ultimamente? Como uma mulher que, envolvida pelo fluxo do
amor, não se preocupa em saber onde o fluxo a levará?
— E claro que não é pequena — Proctor concordou.
Estava tão satisfeito com a vida, que concordaria até que os maiores
absurdos.
—O que acha que devemos fazer depois dessa verificação?
—Acho que devemos nos beijar para sempre.
—Proctor! Não estou falando sobre nós! Refiro-me a Angie.
—Devia procurar um banqueiro para resolver esse problema.Conheço
um ou dois funcionários de um certo banco que poderiam realizar um
inventário e calcular os valores de todos esses documentos. E também
vamos precisar de um bom advogado para cuidar dos interesses de
Angie.
—Gosto quando diz... vamos precisar. Somos realmente nós, Jim?
—Realmente. Não há nada capaz de nos separar, minha adorável Lucy.
—Preferia que não estivesse rindo.
—Não faria diferença. Estou com os dedos cruzados.
—Preciso confessar uma coisa, Jim. Não sei nada sobre o
casamento. Minha mãe morreu há muito tempo e...
—Era exatamente o que eu precisava — ele riu. — Vou ensinar
tudo o que deve saber sobre o casamento, Lucy.
—É muita gentileza, mas gostaria de verificar seus dentes antes da
cerimónia. Lembra-se da história de Chapeuzinho Vermelho? Ela
acreditou na palavra de um lobo e... bem, lobos são muito melhores
que banqueiros.
—Lucy Borden, que coisa mais horrível! De onde tirou essa ideia?
—Um dia depois de conhecê-lo, você executou a hipoteca do Asilo
Merit e todos os pacientes foram despejados. Não acha que foi uma
grande crueldade?
—Acho que está me confundindo com outro banqueiro. Não executei
hipoteca de asilo nenhum. Talvez até a tivesse executado se a hipoteca
estivesse em poder de meu banco.
—Fico feliz por saber que não foi você. Mas... teria mesmo coragem
de despejar um bando de velhinhos indefesos?
—Não tenho escolha. Não tomo todas as decisões sozinho, sabe?
Existem acionistas e correntistas em meus calcanhares. Administro o
banco, tento ganhar alguma coisa para mim e para os acionistas, e uso
o dinheiro dos correntistas para trabalhar. Assim, todos os devedores
têm de pagar seus empréstimos em dia, ou...
Era difícil saber se um homem estava falando sério quando suas
mãos deslizavam ansiosas pelas costas de uma mulher.
— Essa coisa está colada? — Proctor perguntou com um brilho intenso
nos olhos.
O fecho fica na frente.
Quando as mãos dele tentaram alcançar o fecho do sutiã, Lucy
levantou-se de um salto e foi para o outro lado da sala.
—Bem... parece que é o fim do capítulo de hoje — ele suspirou.
—Pode acreditar que sim.
—Vai me fazer esperar pelo casamento?
—Droga, Jim! — ela exclamou, atirando-se em seus braços. — Não sei
o que está acontecendo comigo. Acho que estou apaixonada, e nem
ao menos gosto de você!
—Podemos passar a noite juntos e ver o que acontece.

—Obrigada pela oferta, mas a porta de meu quarto possui um


segredo que só permite a abertura depois do casamento. Minha avó
vivia dizendo que essa era a maneira correta de se fazer as coisas, e
ela era uma mulher sensata. É melhor ir para casa.
Maude pode estar tendo outro ataque de sonambulismo.
—Duvido. Ela não voltou a ter aqueles ataques desde que mandamos
Eloise embora.
—Mesmo assim, já é tarde. Boa noite, sr. Proctor.
Assim que ele partiu, Lucy fechou a porta e preparou-se para mergulhar
em sonos doces.
Todos os devedores têm de pagar seus empréstimos em dia, ou...
O que parecia um sonho maravilhoso transformou-se em pesadelo. O
que Jim Proctor faria quando descobrisse que Lucastra Borden, sua
futura esposa, não tinha como pagar o que devia ao banco?
Preocupada, foi para o quarto e aproximou-se da janela para fechar as
cortinas. Havia um homem do lado de fora, na estrada. A brasa do
cigarro traía sua localização, o que significava que não estava
interessado em esconder-se. Um dos homens de Jim Proctor,
provavelmente. Mesmo distante, ele tomava providências para garantir
sua segurança.
Talvez o amasse...

Capitulo VII

No dia seguinte, Lucy desceu a escada radiante i e sorridente só para


descobrir que o tempo não estava de acordo com sua disposição.
Nuvens negras encobriam o céu, e uma neblina densa pairava sobre o
oceano.
—Droga! Nosso passeio de barco vai ter de ser adiado.
—Por quê? Vocês podem passear em torno do porto. Não precisam
ir para o mar aberto — Angie lembrou. — O que há para o café?
—Panquecas.
—Acho que já engordei cinco quilos desde vim para casa. Ou melhor,
desde que deixei o...
—Por que está tentando corrigir-se? Esta é sua casa!
—Eu sei. Mas suponhamos que você tenha um ataque de loucura e
decida se casar com aquele banqueiro.
—As coisas continuarão como estão — Lucy encolheu os ombros: —
Proctor ainda não foi informado, mas se eu decidir aceitar o pedido
de casamento, ele terá de aceitar nós duas. É claro que não existe
nada definitivo...
—Não é o que ele pensa. Será que ainda não viu como os olhos do
sujeito brilham quando você está por perto? A natureza é mesmo
estranha. Quando uma mulher fica velha o bastante para saber o
que um homem está pensando, é tarde demais para desfrutar da
experiência. O que acha de alguns ovos mexidos?
Estavam no meio da refeição quando Maude e o pai chegaram. A
menina usava um encantador maio amarelo, e Proctor vestia calça
branca, camiseta azul e um par de ténis próprios para esportes
aquáticos.
Pensando na calça jeans desbotada que escolhera para o passeio,
Lucy teve certeza de que viver ao lado desse homem seria sofrer
eternamente de complexo de inferioridade.
— Bom dia, beleza — ele cumprimentou, depositando um beijo
carinhoso no rosto de Angie. — Bom dia, Lucy — e beijou-a
rapidamente nos lábios.
Maude distribuiu abraços e beijos mais entusiasmados.
—Vamos pescar! — anunciou. — Você, papai e eu.
—Vamos? Mas Angie e eu ainda não terminamos nosso café e...
—Eu ajudo.
—Maude! — Proctor censurou-a. — Ela acabou de comer. A sra.
Winters estará aqui em alguns minutos para lhe fazer companhia,
Angie.
—Quero que saiba que... Bem, fico muito grata, mas acho que
exagerou um pouco — Lucy comentou com um sorriso.
—Do que está falando?
—Do guarda que passou a noite vigiando minha casa — e abraçou-
o.
Jim aceitou o abraço com ar intrigado e indicou:
—Aí vem a sra. Winters. Acha que vai ficar bem, Angie?
—É claro que sim! Divirtam-se, e tomem cuidado com as rochas.
Por acaso têm uma licença para pescar?
—Não — Proctor riu. — Mas também não temos iscas.
Quando chegaram ao atracadouro, Maude afastou-se para verificar
o bote inflável amarrado ao veleiro e Lucy aproveitou para
esclarecer algumas coisas.
—Afinal, qual é a proposta dessa expedição, Jim?
—As pessoas costumam chamar de namoro. É claro que não levam
seus filhos, mas achei que podíamos inovar. Caso não tenha
percebido, está sendo cortejada, srta. Borden.
—É mesmo? Cortejada? Bem, vou ter de reservar meu julgamento
para mais tarde.
—Eu já esperava por isso. Venha, Maude está nos esperando.
Era delicioso contornar a costa sentindo o vento no rosto. Proctor
era um marinheiro habilidoso, e em pouco tempo alcançavam o
ponto entre Strawberry Point e Crescent Beach, onde ele lançou
âncora.
—Agora vamos pescar.
—Mas você disse que não temos iscas!
—Não importa. Maude vai se divertir com os pedaços de pão e a
vara de pescar, e nós vamos observá-la.
—Vamos ficar aqui sentados, olhando?
—Tem alguma ideia melhor? — ele abraçou-a.
—Acho que não.
—Eu já imaginava.
—Alguém já conseguiu pescar alguma coisa nessa região?
— Lucy perguntou, sentindo a mão dele deslizar por seus ombros
em direção ao seio.
—Não que eu saiba. Mas isso não importa. Maude não quer
realmente pescar, e já temos outro peixe para fritar.
A mão continuou deslizando até quase tocar um de seus seios e
Lucy estremeceu.
Outro peixe para fritar?
— Estou com fome! — disse, afastando-se dele como se houvesse
sido atingida por uma corrente elétrica. — Trouxe sanduíches?
—Sim, estão na cesta — ele suspirou. — Tem certeza de que não
é descendente dos puritanos?
—Já disse que meus ancestrais eram pioneiros.
—Mas...
—Papai? — Maude chamou com tom aflito. — A cidade
desapareceu.
Proctor virou-se e viu que uma névoa densa caíra sobre o mar,
encobrindo a visão. Ao mesmo tempo, um som estranho partiu de
seu bolso e ele rapidamente apanhou o pequeno aparelho de
recados.
— Lamento estragar o passeio, mas temos de voltar
imediatamente — ele anunciou com expressão séria. —
Problemas no banco.
Jim levantou a âncora em tempo recorde e colocou o veleiro em
movimento. Atrás deles, a neblina parecia cada vez mais densa e baixa,
como se quisesse tragar o mundo.
—Ei, isso é interessante — Lucy comentou enquanto espreguiçava-se.
— Tudo o que temos de fazer é...
—Rezar — Maude cortou com tom sério.
O vento que até então enchia as velas desapareceu, e a embarcação
ficou oscilando ao sabor das ondas cada vez mais altas.
—Não sei... Tenho a impressão de que estamos perdendo essa
corrida. O que vamos fazer, Capitão Sabe Tudo?
—Simples, marujo Lucy Borden. Vamos remar — e retirou um par de
remos de um canto do veleiro.
—Oh, não!
—Por que o espanto? São só remos.
—Não me venha com essa história de são só remos! Há seis anos
aceitei um convite para passear no barco de Hoagy Smith e ficamos
sem combustível no meio de um nevoeiro. Passamos quatro horas
remando até alcançarmos o porto!
—E o que aconteceu com Smith?
—Não sei. Nunca mais o vi.
—Bem, pelo menos conhece os instrumentos — ele suspirou
resignado. — Lucy, fique do lado esquerdo do barco. Eu cuido da
direita e Maude maneja o leme.
—Quanto tempo teremos de remar, e como saberemos em que
direção seguir?
—Estamos a menos de dois quilómetros de Ned's Point, Lucy.
O veleiro é de fibra de vidro, um material muito leve. Não vamos
demorar. E eu sei em que direção temos de seguir. Meu Deus,
conheço cada rocha desse mar!
— Aposto que sim — Lucy resmungou mal humorada, mergulhando o
remo na água e testando a força dos músculos. Seus braços doíam
antes mesmo de colocarem o veleiro em movimento!
— Muito bem, temos de sincronizar os movimentos. Preparada? Um,
dois, três... comece! — Jim instruiu.
A embarcação era realmente leve, mas tiveram de remar algumas
vezes antes de colocá-la em movimento. A cada remada o nevoeiro
aproximava-se mais, até que, eventualmente, foram envolvidos pela
névoa que parecia transportá-los para um mundo irreal.
—Papai, não estou gostando disso.
—Não se preocupe. Conheço cada rocha e cada banco de areia
desse mar. — Nesse momento foram sacudidos por um solavanco e
o veleiro foi erguido, ficando suspenso alguns instantes antes de
começar novamente a mover-se. — Está vendo? Aí foi a primeira
rocha.
—Engraçadinho! — Maude irritou-se, agarrando-se ao leme com
força. — Lucy, faça alguma coisa!
—Estou fazendo — ela respondeu ofegante, jogando o peso do corpo
sobre o remo para imprimir mais força aos movimentos. Mas havia
perdido o ritmo, e era difícil sincronizá-los novamente com o remo
manejado pelos braços musculosos de Proctor.
Ele havia tirado a camisa e parecia um viking lançando-se ao ataque.
Os músculos lembravam cabos de aço em ação, e as costas brilhavam
banhadas por uma fina camada de suor.
— Sonhando acordada?
Lucy piscou várias vezes antes de compreender que debruçara-se
sobre o remo enquanto o observava.
—Não, eu... estava olhando para aprender a maneira correta de
manejar o remo. Estamos indo na direção certa, Maude?
—Não sei. Todas as direções parecem iguais.
—Preste atenção no compasso!
Era a primeira vez Lucy o ouvia gritar com tanta ferocidade e,
assustada, parou de remar para fitá-lo.
—Não fique olhando para mim desse jeito! Reme! Reme!
—Estou remando —- ela murmurou, movendo os braços com toda a
força que possuía.
Estavam remando há cerca de uma hora quando Maude voltou a falar.
—Estou com medo.
—Estamos em boas mãos, querida. Seu pai tem consciência do que
faz.
—Estou com medo! — a criança soluçou. — Serei a única garota da
escola perdida no mar no veleiro do próprio pai!
-— Bobagem — Lucy tentou acalmá-la. — Estamos no meio de um
porto quase fechado, e centenas de pessoas continuam cuidando de
suas tarefas diárias bem ali na frente. Seu pai sabe o que faz. Temos de
confiar em sua habilidade de navegador. — A mochila que preparara
antes de sair estava bem perto de seus pés, e ela parou de remar para
apanhar o suéter e jogá-lo na direção de Maude, que tremia
convulsivamente. — Vista isso.
—Obrigada.
—Sente-se melhor?
—Um pouco. Diga que não preciso ter medo, por favor!
—Não há nada a temer, meu bem.
—Não mesmo — Jim concordou. — Mas chegaríamos mais depressa se
você não parasse de remar, Lucy Borden. Jim! A situação está sob
controle. Sei exatamente onde estamos e...
Um novo solavanco o interrompeu e, mais uma vez, o veleiro foi erguido
ao ultrapassar uma rocha.
—Estou vendo uma luz! — Maude gritou excitada.
—Estão vendo? — Jim entusiasmou-se, constatando a luz clara e
brilhante bem na frente da embarcação. — Conseguimos!
Nesse momento um baque mais forte os jogou para a frente e o barco
parou sobre uma superfície seca. A praia!
—Você está bem, Maude?
—Bati o braço no leme, mas acho que estou bem.
—E você, Lucy?
—Coberta de hematomas, mas viva.
—Otimo! — ele exclamou entusiasmado, levantando-se para ir soltar as
amarras das velas.
E foi então que o vento voltou a soprar e os lançou alguns metros à
frente, apesar de estarem sobre a areia.
— Bem, aqui estamos — Jim concluiu.
-— Aqui onde? — Maude quis saber, incapaz de orientar-se em meio
ao nevoeiro.
— Ora... exatamente onde eu esperava chegar. — A luz do farol de
Ned's Point continuava brilhando diante deles. — Em Ned's Point!
Todos para fora do barco!
Nem todos os habitantes do litoral eram bons marinheiros. E nem todas
as mulheres que escolhiam viver na praia por amor ao mar eram
fortes o bastante para consolar uma criança amedrontada.
Preocupada, Lucy abriu os braços para acolher aquela pequena criatura
assustada.
—Eu não estava com medo — Maude murmurou.
—Eu também não. Afinal, seu pai estava cuidando de nós.
—Parem com essa ladainha. E não mintam, porque sei que estavam
apavoradas. Eu também estava!
—Jim!
—Está bem, digamos que fiquei... preocupado. Vamos lá, este é o fim da
linha. Agora teremos de caminhar.
As duas desembarcaram e Proctor retirou as cestas do veleiro. Ned's
Point era um pequeno parque em cujo centro erguia-se o farol que há
anos sinalizava a entrada do porto. Os bancos espalhados pelo local
serviam como observatórios de onde as pessoas podiam apreciar o mar
em dias claros e, ao tropeçar em um deles, os três sentaram-se como se
houvessem encontrado um pedaço do paraíso na terra.
— Sabia que tudo acabaria bem — Maude riu. — Meu pai é mesmo
brilhante!
— Coma um sanduíche e fique quieta — Proctor indicou, abrindo a
cesta de piquenique.
-— Sua filha está certa — Lucy opinou.
Pela primeira vez na vida, havia falado com absoluta certeza. Desde a
morte do pai, nunca mais sentira o conforto de poder contar com
alguém mais forte que ela. Mas ele não é meu pai, censurou-se ao aceitar
o sanduíche de atum. Ele é... meu cavaleiro numa armadura brilhante?
Era evidente que velejar num dia nublado havia sido uma decisão
estúpida, mas Jim reparara seu erro levando-as de volta ao porto sãs e
salvas. Nenhum homem é perfeito, mas Jim Proctor era o melhor que
uma garota como ela podia querer. Talvez até gostasse dele...
O sanduíche de atum estava molhado e sem gosto. Maude ensaiou uma
reclamação, mas a expressão séria do pai a fez mudar de ideia. Jim estava
começando a assumir a aparência de uma certa figura lendária sobre a
qual lera muito na infância. Onde estariam as tábuas com os
mandamentos?
Resmungando, ele desistiu do sanduíche para apanhar o aparelho que,
mais uma vez, emitia sinais estridentes em seu bolso.
Decidi ser banqueiro porque achei que nunca teria de trabalhar num
fim de semana — balançou a cabeça. — E no entanto, alguém tem
coragem de me chamar em plena tarde de sábado!
Era ridículo. A neblina ainda os cercava como uma cortina
intransponível, e alguém insistia em chamá-lo de volta ao mundo dos
Cadillacs e das gravatas.
—Bem, só nos resta caminhar por esta estrada em linha reta—
Lucastra anunciou. — Devemos estar a menos de dois quilómetros da
porta de casa. Deixaremos as cestas...
—E o barco — Jim lembrou.
—Isso é evidente — Maude fez uma careta impaciente.
—E depois mandaremos alguém vir buscá-los.
—Assim que a neblina dissipar-se — Lucy ofereceu. — Muito bem,
comecem a andar.
—Gostaria que você fosse o Superman — Maude disse momentos
mais tarde. — Assim poderia voar e nos levar em seus braços.
—Não abuse da sorte — Proctor resmungou. — Continue andando, e
sem reclamar.
Maude seguiu na frente dos dois adultos com a energia típica das
crianças e Lucy segurou o braço de Jim.
—O que significa tudo isso? — perguntou em voz baixa.
—O quê? A neblina?
—O passeio.
—Ah, isso! Como disse antes, as pessoas costumam chamar esse tipo
de situação de namoro. Uma mulher bonita como você já deve ter tido
alguns namorados, não?
—Sim, mas nenhum deles me levou para velejar no meio da neblina.
—Talvez não seja tão bom nisso — ele admitiu irritado. — Passei a
maior parte de minha vida tentando ganhar dinheiro, e minha esposa
foi praticamente embrulhada para presente e enviada para minha casa.
—De qualquer forma, acho que saiu-se muito bem. Especia mente
com sua filha por perto. E a primeira vez que saio para namorar um
homem e sua filha — ela riu. — Francamente, Jim, foi muito bom.
Talvez possamos fazer isso novamente algum dia.
A umidade provocada pela névoa já não a aborrecia. Era como se
estivessem caminhando dentro de uma redoma, afastados do mundo
real, e isso era tudo de que precisava.
Haviam percorrido menos da metade da distância quando um Pontiac
aproximou-se e ofereceu carona.
—Parece que não é um bom dia para um passeio — Jim disse assim
que acomodaram-se no interior do automóvel.
—Tem razão — o motorista concordou. Exemplo típico dos habitantes
daquela parte do litoral, tinha o rosto vermelho e a barba branca e
longa. -— Mas vocês agiram corretamente. É sempre melhor manter-se
em movimento. Não teria saído de casa se um idiota qualquer não
estivesse precisando de ajuda no meio do oceano. Faço parte da
reserva da Guarda Costeira, e recebi um sinal pelo rádio. Espero que o
sujeito tenha ao menos fornecido a localização correta. Pode
imaginar? Sair num barco no meio dessa neblina, sem um radar a
bordo? E sem combustível suficiente para voltar para casa!
—É realmente uma grande irresponsabilidade — Jim respondeu com
ar solene. — Veja, ali está nossa casa. Obrigado pela carona.
—Você é um homem de sorte — Lucy cochichou quando saíram do
carro.
Proctor limitou-se a encará-la como se estivesse prestes a apertar seu
pescoço.
Angie e a sra. Winters foram até a porta assim que ouviram o ruído
do automóvel.
—Graças a Deus! — a sra. Moore uniu as mãos em sinal de gratidão.
— Estávamos preocupadas. Vocês estão bem?
—Tudo bem — Jim respondeu antes de correr para o telefone. —
Tivemos alguns problemas, mas acho que ninguém espera
normalidade num dia como o de hoje. Alô?
—O homem que nos trouxe é da Guarda Costeira — Maude contou. —
Ele disse que só um maluco sai para velejar no meio dessa neblina.
—E melhor subir e vestir roupas secas — Lucy recomendou,
lembrando-se das peças que a menina deixara em sua casa naquela
primeira noite.
—Não posso acreditar! — Jim Proctor exclamou ao desligar o telefone.
— Hoje é sábado, e há uma equipe de auditores federais examinando
todas as contas do banco!
—Quer uma carona até a cidade?
—Obrigado, Lucy, mas já telefonei para casa e chamei o motorista.
Pode cuidar de Maude enquanto me livro desse aborrecimento? Dei
folga aos empregados. Achei que poderíamos...
— e aproximou-se com um brilho insinuante nos olhos.
— Não se preocupe com Maude — Lucy afastou-se apressada. — E
tome cuidado. Essa neblina parece estar em todos os lugares. Vou
acender um fogo para espantar o frio, e talvez possamos até assar
algumas salsichas na lareira. Sra. Winters? Se quiser aproveitar sua
folga...
—Vou levá-la comigo até a cidade — Jim anunciou olhando pela
janela. — 'Aí está o carro.
—Você está ensopado, Jimbo! Não pode ao menos vestir roupas
secas antes de ir ao banco?
—Não se preocupe, Angie. Estou tão furioso, que secarei as roupas só
com o calor da raiva. Até logo. Ah, Lucy... Foi um dia muito
agradável. Talvez possamos repeti-lo.
— Talvez — ela riu, sabendo o que Proctor realmente pensava. Teria
forças para resistir?
Maude desceu a escada no momento em que ele abria a porta.
—Papai? — chamou, correndo para abraçá-lo. — Posso ir com você?
—Hoje não, querida. Fique aqui com Lucy e a sra. Moore. Acabei de
saber que vão assar salsichas na lareira.
—Otima ideia! Podemos aproveitar para conversar um pouco. Sra.
Winters, sabia que Lucy será minha nova mãe?
—Ainda não decidimos nada, e...
—Já decidimos tudo. Vamos nos casar na próxima terça-feira, às onze
da manhã, na Igreja da Congregação — Jim afirmou antes de sair e
bater a porta.
—Ora! Esse sujeito me deixa realmente furiosa! Já disse mais de mil
vezes que não vou me casar, mas ele se recusa a ouvir! Adoraria
esmurrar aquele nariz empinado.
—E por que não esmurra? — Angie riu.
—Tenho medo que ele revide — mentiu, virando-se para escapar
dos olhares curiosos.
Depois de passar dias recitando todos os defeitos do vizinho, não podia
simplesmente anunciar que mudara de ideia e decidira se casar com
ele. E ninguém esmurrava o nariz do homem amado, certo?
—Se meu pai ousar levantar a mão para você, juro que... chuto a
canela dele!
—Obrigada, Maude. Essa é a maior demonstração de amizade que já
recebi. E então? Vamos assar as salsichas?

Capitulo VIII

Estou tão tensa — Lucy reclamou, virando-se sobre a toalha para


bronzear as costas.
— Vou aproveitar o bronzeador para lhe aplicar uma massagem —
Jim ofereceu, iniciando o trabalho antes que ela pudesse protestar.
As mãos cobertas de creme eram macias, e os dedos estimulavam
os músculos em torno de seu pescoço de maneira relaxante. Lucy
suspirou de satisfação.
—Nada mal para um banqueiro.
—Não fale assim. Talvez não seja um banqueiro para o resto da
vida, sabe? Existem milhões de coisas que gostaria de fazer.
—Vocês dois vão passar a manhã inteira sentados nessa toalha? —
Maude aproximou-se correndo.
—Iremos nadar em alguns minutos — Lucy respondeu, vendo a
pequena virar-se e correr para o mar novamente.
—Deus, que maneira de cortejar uma mulher — Proctor suspirou.
—Ah, então vai insistir na ideia? Pensei que ontem houvesse sido
suficiente.
—De jeito nenhum. E não temos muito tempo, lembra-se?
Vamos nos casar na terça-feira. Sente-se mais relaxada? — Jim
perguntou, deslizando os dedos por suas costas de forma provo-
cante.
—Oh, sim! Mas acho melhor limitar-se aos ombros. Sua filha está
olhando.
—E daí? As pessoas usam bronzeador no corpo todo. Falando
nisso... belas pernas, Lucastra Borden!
—Pare com isso! Não se atreva a me examinar como se eu fizesse
parte de um catálogo de vendas por correspondência!
—Você é mesmo engraçada — ele riu, deslizando as mãos por
suas pernas e espalhando o creme.
—Tem notícias de Eloise, Jim?
—Falei com a mãe dela ontem. Eloise está deprimida, e minha ex-
sogra vai levá-la num longo cruzeiro pelo mundo. Ela queria
saber... se podia contar com a companhia da neta.
—Meu Deus! Não deixou Maude viajar com aquela maluca, não é?
—É claro que não! Disse à avó dela que Maude adoraria
acompanhá-las no cruzeiro, mas infelizmente está com sarampo.
—Sarampo?
—É a única doença que minha ex-sogra ainda não teve.
Os sinos da igreja soaram distantes e, surpresa, Lucy sentou-se na
toalha.
— Dez horas! Vou perder a missa novamente. E essa será a...
—Que bela cristã você é — ele a empurrou de volta. — Quantas
vezes perdeu a missa este ano?
—Não sei. Algumas. Para ser honesta, muitas — e sentou-se
novamente, empurrando-o para obriga-lo a encerrar a massagem.
Não queria realmente ir à missa, mas tinha de atender ao chamado
da consciência. Não podia passar o dia todo deitada na praia,
enquanto um homem massageava seu corpo com aquelas mãos
ansiosas. E em público!
— Já está atrasada. Por que correr? Depois de todos aqueles
problemas que enfrentamos ontem, bem que precisamos de um
dia calmo e ensolarado. Gostaria de levá-la para um passeio de
barco, mas os homens que foram buscá-lo descobriram um enorme
buraco no casco.
Lucy levantou-se e bateu as mãos'no corpo para livrar-se da areia.
Jim também levantou-se, o frasco de bronzeador em uma das
mãos e uma expressão decepcionada no rosto. Num impulso, ela
ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o na face.
—Estou mudando de ideia a seu respeito — disse. — Você é um bom
homem.
—Fico feliz por estar mudando de opinião. O casamento está marcado
para terça-feira, lembra-se?
—Quanto a isso, não sei se mudei de ideia — ela comentou, virando-
se e correndo na direção do oceano.
Jim correu atrás dela como um fanático perseguindo a vítima escolhida
para o próximo sacrifício.
Os Proctor almoçaram com Lucy e Angie. As refeições estavam se
tornando um hábito que as duas moradoras da casa apreciavam
bastante. Por volta das três da tarde, quando Maude começou a piscar
de sono, Jim pediu licença e levou a filha para casa. Angie e Lucy
ficaram no terraço, vendo-o caminhar pela praia com a criança nos
braços.
— Gosta dele, não é?
— Ele é um bom homem. — Uma sombra de dor passou pelo rosto da
sra. Moore. — Conheci toda a família, e sei que eram pessoas de
caráter e bondade indiscutíveis.
Percebendo a rápida mudança em sua expressão, Lucy aproximou-se
da cadeira de rodas e afagou os cabelos brancos.
—Sente-se bem, Angie?
—Sim, estou bem.
—Posso ser jovem e estúpida, mas não sou cega. Qual é o problema?
A mão enrugada e contorcida pousou sobre a dela num gesto de
conforto. Não havia reparado antes, mas a pele de seu rosto era
como um pergaminho transparente. Angie Moore estava definhando
diante de seus olhos, e ela nem notara! Uma onda de culpa a invadiu
com força devastadora.
—As pessoas não vivem eternamente, querida — Angie respondeu. —
Estou ansiosa pela terça-feira.
—Por quê? O que há de tão importante na terça?
—Posso ser velha e tola, mas ainda vejo e escuto muito bem. Sei que
vai se casar com ele na terça-feira.
—Como pode saber, se nem ele mesmo sabe? Apesar de toda aquela
conversa sobre horário e igreja, Jim ainda não sabe se vou aceitar o
pedido de casamento, ou não.
—Ah, mas você vai se casar com ele. E serão felizes para sempre. E
sabe de uma coisa?
—O quê?
—Na terça-feira estarei completando noventa e três anos.
—Na terça? Eu não sabia! Noventa e três?. Uau!
—Uau, realmente — ela riu. — Vivo apenas para ver esse dia, Lucy.
Quero viver esse dia glorioso antes de...
—Ah, não! Não me venha com histórias tristes. Estávamos falando
sobre o seu aniversário, lembra-se? Que tal planejarmos uma
comemoração?
—Oh, sim! Depois do casamento! Não seria maravilhoso?
—Sim, seria. Está cansada?
—Muito. E estranho, Lucy. Desisti de cochilar durante o dia há quase
oitenta e cinco anos, mas estou com muito sono — e afagou a mão da
amiga. — Você é uma boa moça. Uma criatura realmente adorável.
Espero que ele a mereça, querida.
—Ou vice-versa. Venha, já é hora de sair desse vento.
—Por favor, não diga isso. Não quero ser afastada do vento e do mar.
Na verdade, quando morrer...
—Não vamos discutir esse assunto. Ninguém vai morrer, Angie. Ainda
temos anos e anos de convivência pela frente.
—Todo mundo morre, Lucy. A morte faz parte da vida como... Ah, pelo
amor de Deus! Não chore em cima de mim!
—Não estou chorando — Lucy soluçou, contendo as lágrimas com
esforço.
—E já que começamos a falar sobre isso, quero que saiba que deixei
tudo para você. Não tenho mais ninguém no mundo, lembra-se? Falei
com meu advogado na semana passada, e o testamento está
guardado em minha caixa forte, dentro do armário de roupas. E há
mais uma coisa que quero que faça por mim, querida. Quero ser
cremada, e minhas cinzas devem ser jogadas ao mar.
—Já chega dessa conversa triste — Lucy determinou com firmeza,
empurrando a cadeira de rodas até o quarto.
Quando Angie adormeceu, Lucy sentou-se numa poltrona ao lado da
cama e observou o rosto pálido e cansado. Nos últimos dias, a sra.
Moore participara de tudo, acompanhara todas as ati-vidades e dividira
todos os problemas, mas era evidente que estava esgotada. Se não
melhorasse até o dia seguinte, chamaria um médico para examiná-la.
O dia seguinte era uma linda e ensolarada segunda-feira. Angie ainda
dormia quando Lucy levantou-se e subiu a escada na ponta dos pés
para uma ducha rápida. Passara a noite toda naquela poltrona, velando
o sono agitado da amiga. Angie havia sonhado muito, e sorrira, falara e
choramingara, como se estivesse revendo cada cena de sua vida.
Durante todo o tempo, havia segurado a mão de Lucy com força
espantosa, e resmungara nas poucas vezes em que ela tentara
interromper o contato. Ao amanhecer, Angie acalmara-se e
mergulhara num sono profundo. Sua respiração era pesada e difícil,
mas finalmente soltara a mão de Lucy e conseguira acomodar-se numa
posição mais confortável, de costas e com as mãos cruzadas sobre o
peito.
Lucy aproveitou a água morna do banho para aliviar a tensão dos
músculos e voltar à vida. Afinal, hoje era um novo dia!
Sorrindo, examinou o conteúdo do guarda-roupas e escolheu um
vestido alegre, de tecido leve e confortável. Algodão para acariciar sua
pele, amarelo para refletir sua felicidade. Sim, porque hoje ele diria
alguma coisa! Ou ela diria alguma coisa... Um dos dois diria o que
precisava ser dito para que pudessem realmente iniciar uma vida em
comum.
Depois de vestir-se e pentear-se, Lucy voltou para o quarto de Angie.
Ela ainda dormia, mas a respiração ofegante e pesada indicava que seu
estado não havia melhorado.
— Não há nada que eu possa fazer — o Dr. Harper disse ao telefone. —
A sra. Moore já tem uma certa idade, e seu organismo está cansado,
como uma máquina velha e desgastada. Se acha que precisa mesmo
de ajuda, vou mandar uma equipe de paramédicos examiná-la. Eles
mesmos a trarão para o hospital, caso seja necessário.
Era o melhor que podia conseguir. Os médicos já não atendiam às
chamadas dos pacientes em suas casas. Se alguém estava realmente
doente, uma ambulância ia apanhá-lo e o levava para o hospital, onde
aparelhos modernos e toda a alta tecnologia da medicina do século
vinte eram utilizados para diagnosticar e curar as mais diversas
patologias. E quando a conta chegava, o paciente morria fulminado por
um ataque cardíaco!
De qualquer forma, teria de contentar-se com a ambulância e os
paramédicos que logo estariam chegando para examinar Angie e
decidir se deviam levá-la para o hospital.
Assim, Lucy moveu-se pela casa na ponta dos pés, tomando cuidado
para não fazer barulho e indo ao quarto da sra. Moore de dez em dez
minutos. Na cozinha, preparou o próprio café e foi saboreá-lo perto
da janela, de onde podia ver os barcos no porto.
Às oito em ponto Maude entrou na cozinha como um furacão e foi
imediatamente silenciada por uma explicação rápida e clara. Depois
de ir dar uma olhada através da porta do quarto de Angie, a menina
voltou para a cozinha e sentou-se diante de Lucy.
—Já tomou café?
—Não. Papai levantou e cedo e foi pára o banco. A sra. Winters
telefonou dizendo que não viria trabalhar porque está doente. Não, a
sobrinha dela está doente. Então papai sugeriu que eu viesse para cá,
e não pensei duas vezes. Afinal, o café que você faz é muito melhor
que o dele.
—Posso imaginar — ela riu. — O que vai querer? Dois ovos, suco de
laranja, leite...
—Café.
—Desde quando seu pai permite que tome café, especialmente à esta
hora da manhã?
—Ele não permite. Mas você é muito mais compreensiva e generosa,
e certamente vai me deixar ao menos experimentar.
Envolvida pelos elogios, Lucy preparou a refeição e serviu o café numa
pequena xícara de porcelana. Enquanto trabalhava, pensava no dia
glorioso que teria pela frente. A Mãe Natureza proporcionava o cenário
perfeito, e só a aparente doença de Angie ofuscava o brilho do sol.
Talvez estivesse apenas cansada. Haviam enfrentado um período
agitado, e hoje descansariam e relaxariam. No final do dia, Angie
certamente estaria bem melhor.
Toda vez que saía da cozinha, Lucy passava pelo quarto da sra. Moore
para espiá-la. E quando Jim Proctor entrou batendo a porta, as duas
levantaram-se de um salto e levaram o dedo aos lábios para indicar
que não devia fazer barulho.
— Que diabos...? — Seu rosto estava vermelho de raiva. — Preciso
falar com você, sita. Borden!
Era evidente que não estava disposto a falar baixo, e por isso Lucy o
levou até a porta da frente, por onde saíram.
—Angie ainda está dormindo — explicou. — Qual é o problema?
—Sabe muito bem qual é o problema! Os auditores passaram o final de
semana todo examinando os documentos do banco, ou não
conseguiriam cumprir o cronograma apertado que têm seguido
nos últimos meses. Mais um banco de Taunton foi fechado na sexta-
feira. Faliu depois de emprestar enormes quantias em troca de
hipotecas de velhas propriedades. A mesma doença está afetando
todas as instituições da Nova Inglaterra.
Lucy balançou a cabeça, embora não houvesse entendido uma única
palavra do que ouvira.
— Ê como boa parte dos bancos da região corre o risco de falir, os
auditores federais decidiram verificar as condições de todos os
empréstimos. Sabe o que encontraram em meu banco?
E Lucy, que não tinha a menor ideia, balançou a cabeça, assustando-se
ao sentir as mãos que a agarravam pelos ombros e a sacudiam com
violência.
—Não, é claro que não sabe o que encontraram! Um total de
quarenta e dois mil dólares emprestados a Lucastra Borden, e
praticamente sem garantias! De acordo com John Ledderman, a
quantia foi liberada com base em expectativas favoráveis. Pode me
explicar que diabo significa isso?
—Quarenta e dois mil dólares? — ela espantou-se, livrando as mãos
que a sacudiam como se quisessem destrui-la. — Não pensei que
fosse tanto. Depois de algum tempo, achei que não valia a pena ficar
contando.
—Não diga! E para que precisava de tanto dinheiro?
—Para reformar minha casa, é evidente! O teto está cheio de buracos.
—Quarenta e dois mil dólares para reformar essa ratoeira velha?
—Não fale assim!
—Assim como?
—Você fica repetindo quarenta e dois mil dólares como se emprestar
uma quantia elevada fosse imoral. E foi tudo perfeitamente legal,
como pode atestar o sr. Ledderman. E por favor, pare de gritar
comigo desse jeito, porque...
—Porque não tem mesmo a menor intenção de pagar esse
empréstimo, não é?
—É claro que vou pagar. Na verdade, já tenho o valor da primeira
parcela na gaveta da máquina de costura. O que pensa que sou, sr.
Proctor? Uma ladra?
—Você tem o dinheiro para a primeira parcela? E onde o conseguiu?
—Ah, foi fácil. Fui ao banco e pedi emprestado. Não é para isso que
os bancos servem?
—Você voltou ao banco e pediu um novo empréstimo para pagar
parte do primeiro? Que tipo de truque está planejando?
—Escute aqui, se acha que fiz algo ilegal, vá à polícia, registre uma
queixa e peça para me prenderem. Como pode esperar que me case
com você amanhã, se...
—Esqueça! O casamento foi cancelado. Onde está minha filha?
—Na cozinha, comendo o café da manhã que preparei para Lucy
respondeu, antes de apoiar-se na árvore para não ela cair.
Jim afastou-se sem sequer olhar para trás.
E pensar que chegara a acreditar num dia perfeito! Jim praticamente a
acusara de ser desonesta e mentirosa, e não lhe dera nem mesmo o
direito de defender-se!
— Mas não vai me fazer chorar. Mesmo que tudo tenha acabado, ainda
tenho o orgulho dos Borden. Não vou chorar. Ninguém me faz chorar!
Afastando-se da árvore, conteve as lágrimas e voltou para dentro
de casa. Maude havia desaparecido.
— Azar deles! — resmungou furiosa.
Um som no quarto de Angie a fez esquecer os próprios problemas
para socorrer a doente.
—Bom dia — a sra. Moore cumprimentou com olhos brilhantes,
apesar da palidez intensa. — Acho que dormi demais.
—São só nove da manhã, e você precisava descansar. Vou ajudá-
la a levantar-se para tomar seu café. Fiquei preocupada com
você, sabe? Telefonei para o médico, e ele vai mandar uma
equipe de paramédicos para examiná-la ainda hoje. Quer se le-
vantar?
—Acho que não. Posso tomar meu café.na cama?
—É claro que sim! O que vai querer?
Enquanto ouvia os pedidos de Angie, Lucy sentia a inquietação
crescer. Era evidente que sua velha amiga tentava demonstrar
uma força que já não possuía, e a lentidão das respostas e mo-
vimentos indicava que algo deteriorava-se rapidamente em seu
organismo.
—E chá — Angie concluiu. — Quando eu era menina, sempre
tomávamos chá em nossa casa. Papai adorava chá. E vou querer
torradas, também. Ou bolinhos? Por acaso tem alguns bolinhos
prontos?
—Não, mas posso prepará-los em um minuto. Quer tomar um
banho antes do café? Os paramédicos logo estarão aqui para
examiná-la.
—Boa ideia. Pode apanhar minha camisola nova na segunda
gaveta da cómoda, por favor?
As duas horas seguintes foram de trabalho intenso, Quando os
paramédicos chegaram, Angie estava preparada para recebê-los.
A equipe era composta por dois rapazes e uma moça que iden-
tificou-se como enfermeira padrão.
—Mallory Small — ela apresentou-se. — Trabalho com o Doutor
Harper. Podemos ver a paciente?
Depois de um exame detalhado e de uma tonelada de perguntas,
os três pediram licença e foram conversar na cozinha.
—Uma bela profissão — Angie comentou. — Devia ser en-
fermeira, Lucy.
—Enfermeira padrão — ela corrigiu. — E quase tão importante
quanto ser médico. Cheguei a pensar em ser enfermeira quando
era crianças, mas um dia cortei o dedo e desmaiei ao ver o sangue.
—Desmaiou por causa de um corte bobo?
—Acho que...
—Com licença. Srta. Borden, pode vir aqui fora um instante?
—Aposto que essa jovem vai dar péssimas notícias —- Angie
comentou com um sorriso despreocupado.
—Deve ser a conta — Lucy brincou antes de sair.
Os dois rapazes estavam guardando os instrumentos, e a en-
fermeira começou a falar assim que a viu entrar na sala.
—Às vezes temos de ser brutais, srta. Borden. A paciente é
uma pessoa próxima e querida, não?
—Sim, muito querida. Ela não tem parentes, e eu a trouxe
para cá depois que o asilo onde ela morava fechou.
—Bem, antes de vir para cá, tive uma longa conversa com o
Doutor Harper, e os exames confirmaram nossas suspeitas. Para
ser bem clara, srta. Borden, não há nada que possamos fazer pela
sra. Moore. Suas funções estão se esgotando gradualmente, en-
tende? Existem alguns remédios que posso prescrever para pro-
porcionar algum conforto à paciente, e também podemos levá-la
ao hospital e tentar mantê-la viva através de aparelhos e
tratamentos sofisticados. Por outro lado, a viagem de ambulância
até lá implica em riscos enormes.
—Quer dizer que...? — Não ia chorar. Não havia chorado por
Jim, e não choraria por Angie. Seria forte por ela, e reservaria
o pranto para... depois. — Está dizendo que ela pode morrer?
—A qualquer minuto. Só queremos saber se é melhor deixá-la
aqui, cercada pelas coisas que ela ama, ou levá-la para o
hospital e tentar algum gesto heróico, apesar das possibilidades
reduzidas.
—Quais são essas possibilidades, exatamente?
Uma chance em mil.
Há algumas horas, julgara estar despertando para um dia de
felicidade, e em poucas horas a mão do destino destruíra suas
esperanças.
—Angie sempre disse que não queria acabar numa cama de
hospital, cercada por aparelhos. Deixe-a aqui.
—Uma solução sensata. Se ela piorar, não hesite em chamar-nos
novamente.
—Não hesitarei.
—Tomei a liberdade de usar seu telefone para solicitar os
remédios, e o farmacêutico mandará alguém trazê-los dentro de
alguns minutos.
— Obrigada, enfermeira. A equipe partiu e Lucy voltou para o
quarto da doente.
—Más notícias? — Angie quis saber.
—Bem, eles queriam levá-la para o hospital, mas...
—Mas não há nada mais a fazer, certo? Prefiro ficar aqui, cercada
por minhas coisas. Pode me ajudar? Gostaria de me acomodar e
dormir mais um pouco.
Lucy providenciou uma xícara de chá para acalmá-la e sentou-se ao
lado da cama.
— Lembra-se de...? Não, é claro que não pode se lembrar — a sra.
Moore sorriu enquanto saboreava a bebida. — Vovô nos levou a Nova
York para o final de semana. Seis netos. Ficamos hospedados no Ritz e
visitamos todos os museus da cidade. Sentia-me tão sofisticada!
Depois...
A voz fraca foi desaparecendo lentamente até que, cansada, Angie
adormeceu. Lucy mal teve tempo para tirar a xícara de suas mãos
trémulas. Não havia mais nada a fazer senão velar...

Cerca de uma hora mais tarde, alguém bateu na porta e Lucy foi
atender. Era o sr. Henderson, o empreiteiro.
— Ouvi dizer que a sra. Moore não está muito bem, e pensei em
interromper as obras por alguns dias para deixá-la mais sossegada. O
que acha?
—Uma excelente ideia, desde que não esqueça de nós.
—Não vou esquecer. Seus vizinhos estão se mudando?
—O quê? — ela espantou-se, aproximando-se da porta para
observar o movimento na casa ao lado.
Havia um grande caminhão estacionado na estrada, e alguns homens
carregavam móveis para dentro dele. Estava acabado. Perdera a
oportunidade de passar o resto da vida ao lado do homem que
amava por causa de um truque idiota! Ganância! Ambição!
— Lucy!
Lucastra Borden aproximou-se dos degraus inacabados da varanda
para receber a criança que corria ao seu encontro.
—Oh, Lucy! — ela gemeu, atirando em seus braços. — Ele disse que
você não vai mais ser minha mãe!
—Infelizmente não, querida. Seu pai e eu discutimos e... o
casamento foi cancelado.
Percebendo a seriedade do momento, o sr. Henderson partiu em
silêncio, sem sequer despedir-se.
—Brigaram por minha causa? Fiz algo errado?
—É claro que não, meu bem! Ainda amo você, e gostaria muito de
ser sua mãe. Mas seu pai prefere me matar a casar-se comigo.
—Mas eu quero que você seja minha mãe!
Não vou chorar. Nem por Maude, nem por Angie e nem por ele.
Acima de tudo, não choraria por ele!
—Infelizmente seu pai mudou de ideia sobre o casamento, Maude.
Ele é um bom homem, e seria capaz de tudo para fazê-la feliz. Mas
casar-se comigo não faz parte dessa lista, e temos de aceitar sua
decisão. E agora, pare de chorar e volte para casa.
Seria terrível se seu pai viesse buscá-la aqui. Seja corajosa, ouviu bem?
Algum dia nos encontraremos novamente e riremos de tudo isso.
—Não quero ser corajosa, e jamais darei risada de toda essa
tristeza. Meu pai e um ditador e... e... — e correu para sua casa,
onde Jim Proctor a esperava com os braços abertos.
Incapaz de suportar a tortura de vê-lo pela última vez, Lucy
respirou fundo e entrou. Precisava ser forte por Angie, e não
podia chorar. Não ia chorar...

Capitulo IX

Lucy ajeitou-se na cadeira e massageou os pulsos. Passara a noite


sentada ao lado da cama de Angie, segurando sua mão e ouvindo a
velha amiga falar sobre sua juventude. Uma coisa a intrigava. Angie
a incluíra em cada acontecimento como se também os houvesse
vivido, embora a maior parte das ações fosse parte de sua infância
e adolescência.
—Lembra-se de Memphis, Lucy? Quando foi? Antes da Grande
Guerra, em 1917? Tínhamos dezessete anos, e vovô nos levou para
ver o festival de jazz. Não foi maravilhoso? E Peter também estava
lá.
—Peter? —- Lucy perguntara.
—Um belo rapaz... Estávamos interessados um no outro.
—E o que aconteceu com ele?
—Peter foi para a França em 1918. Não se lembra? Esteve em
Château-Thierry e Argonne. Papai e eu fomos à França depois da
Guerra para encontrá-lo. Peter ainda está lá, em Château-Thierry.
—Ele nunca retornou?
—Ele... está esperando por mim.
—Será um belo reencontro, Angie.
—Sim, maravilhoso.
Olhando para o rosto pálido e adormecido, Lucy lembrou quantas
vezes a ouvira repetir essa palavra. Maravilhoso. E agora, aos
noventa e três anos, Angie vasculhava suas recordações e encon-
trava Peter, que teria sido maravilhoso, mas encontrara o descanso
eterno em solo francês. Angie sorria, como se seus sonhos fossem
doces. Seus lábios estavam começando a perder a cor e a respi-
ração tornava-se mais ofegante.
Com muito esforço, Lucy conseguia conter as lágrimas que
insistiam em brotar em seus olhos. Tinha de fazer alguma coisa!
— Espere um instante — a telefonista informou. — Eles já estão
a caminho.
Lucy desligou o telefone e voltou para perto da doente. O medo
e a culpa a dilaceravam. Se houvesse mandado Angie para o
hospital, as coisas poderiam ter sido diferentes. Mais uma de suas
decisões desastrosas, Lucastra Borden!
—Por que está correndo tanto? — Angie sorriu ao vê-la entrar. —
Vai acabar gastando os sapatos.
—Eu estava falando ao telefone. Sabe como as pessoas gostam de
incomodar as outras, não? E por nada.
—Nada é por nada, Lucy. Nessa vida, tudo tem um significado.
Lamento muito, meu bem.
—Lamenta? Do que está falando?
—Vai se casar amanhã, e eu não poderei estar presente. De
qualquer forma, estou feliz por você. Sempre a amei como se
fosse minha filha, e é bom saber que agora Jimbo estará sempre a
seu lado. Jimbo... onde ele está?
—Ele... foi cuidar dos negócios — mentiu. Angie perdera a noção
do tempo. Julgava ser segunda-feira, quando, na verdade, era
terça. Já devia estar casada à esta hora, e no entanto... — Jim
disse que voltará assim que puder.

—Um rapaz trabalhador e honesto. Ele será um excelente


marido, Lucastra.
—Tenho certeza que sim.
A distância, uma sirene anunciava a aproximação da ambulância.
Preocupada, Lucy consultou o relógio de pulso e constatou que
apenas quinze minutos haviam se passado desde que telefonara.
Chegariam a tempo. Sabia que chegariam a tempo!
De repente Angie sorriu e conseguiu sentar-se na cama. Lucastra
a segurou pelos ombros e amparou-a, estranhando o brilho intenso
em seus olhos.
— Oh, Lucy! Lembra-se de quando ficamos na piscina do Ritz,
ouvindo valsas e admirando as estrelas? Foi uma linda noite -— e
fechou os olhos, deitando-se novamente.
Não vou chorar! Não vou chorar!
O toque da campainha a fez correr até a porta. Os dois rapazes
que a examinaram na primeira visita entraram correndo e iniciaram
os procedimentos imediatamente. Mas só por alguns instantes. Os
dois pararam subitamente e, resignados, começaram a guardar a
guardar os instrumentos.
—Oh, Não! — Lucy gritou, passando por eles e atirando-se sobre
a cama. — Meu Deus, não!
—Sinto muito — o mais velho da dupla sussurrou. — Harry,
telefone para o hospital e comunique que a paciente faleceu
durante o atendimento.
Terça-feira, dezoito de agosto. Devia estar se casando, mas
permanecia sentada na varanda dos fundos da casa, olhando para a
praia. Não se casaria. Nem hoje, nem nunca mais. Angie não
poderia partilhar da felicidade eterna que previra. E nem ela.
— Não vou chorar! — censurou-se em voz alta, alisando o
vestido preto.
As ondas iam e vinham em silêncio, e nuvens cinzentas cobriam o
céu até o horizonte. Tudo era triste, sombrio e silencioso. Até as
gaivotas respeitavam seu sofrimento.
Um homem entrou pela lateral da casa e avisou:
— Sou da funerária, senhorita. O serviço religioso já vai começar.
O chamado da realidade a fez compreender que estava perdendo a
noção do tempo. Deveria ter se casado na terça-feira anterior, no
dia em que Angie a deixara para sempre. Uma semana, e ainda
não conseguira superar aquela dor intensa e dilacerante.
— Estou pronta — disse, levantando-se para acompanhá-lo até
o automóvel que a levaria à igreja onde seria celebrada a missa
de sétimo dia.
Encolhida no assento traseiro, continuou lutando contra as lá-
grimas que ameaçavam romper as comportas do controle há uma
semana. Todos esperavam que decidisse alguma coisa. Lucy, de-
vemos fazer isso, ou aquilo? Esse tipo de funeral, ou aquele?
Esse anúncio, ou aquele? E Lucastra Borden não era capaz de decidir.
A mente, normalmente aguçada, mergulhara no vazio. Tudo o que
sabia era que não devia chorar! Por enquanto conseguia controlar-se,
mas quando pusesse os pés na igreja e todas aquelas pessoas a
cercassem novamente pedindo decisões... Não devia chorar.
O automóvel parou e o motorista a ajudou a descer. Havia algumas
pessoas esperando na porta do templo, antigos amigos de Angie e
vizinhos querendo oferecer solidariedade. Depois de cumprimentá-los
com acenos rápidos, Lucy dirigiu-se ao primeiro banco da igreja e
sentou-se.
O organista tocava alguma coisa. O padre dizia alguma coisa. E Lucy
encolhia-se no banco. Não podia chorar, repetia para si mesma, sem
saber por quê.
Alguém sentou-se a seu lado e, registrando a presença, ela
encolheu-se ainda mais. O recém-chegado aproximou-se e pousou a
mão em seu braço, provocando uma espécie de descarga elétrica que a
fez virar-se, assustada.
— Jim! Oh, meu Deus! E você, Jim? — murmurou com tom
incrédulo.
A cabeça, sempre tão independente, inclinou-se como se já não
tivesse mais forças para sustentar-se sobre o pescoço. Um braço
pousou sobre seus ombros e uma mão gentil, porém firme, a fez
recostar-se num peito amplo e sólido que lembrava segurança,
proteção e aconchego.
— Chore, Lucy. Você precisa desabafar.
Lucy respirou fundo para reunir forças... e chorou. Chorou uma
torrente de dores e tristeza, todos os dias de sofrimento e todas as
noites de infinitas preocupações. Ainda estava chorando quando o
padre encerrou a missa e todas as pessoas saíram. E continuou
chorando até sentir-se vazia de toda a aflição, até poder respirar e
fundo e sentir-se novamente em paz com seu mundo.
Quando Lucy acordou, havia barulho e confusão na casa, marteladas
e risos que a faziam pensar numa invasão. Devagar, deixou-se invadir
pelas lembranças e espreguiçou. A figura na cadeira ao lado da cama
também moveu-se, inclinando-se e tomando sua mão com delicadeza.
—O que aconteceu...?
—Pílulas para dormir—Jim respondeu em voz baixa enquanto afagava
sua mão. — O Dr. Harper receitou alguns tranquilizantes, e disse que
deve torná-los por mais alguns dias. Você estava à beira de um
esgotamento, meu amor.
Meu amor?
Devagar, virou a cabeça até conseguir enquadrá-lo em seu campo de
visão.
—Mas... você foi embora.
—Temporariamente. Não está me vendo aqui, Lucy?
—Sim. Um pouco fora de foco, mas posso vê-lo.
—E também pode me ouvir, não é?
—Sim, com clareza absoluta.
—Otimo. Amo você, Lucy Borden.
O que uma garota respondia numa situação como essa? Maravilhoso?
Angie teria escolhido essa resposta. Por alguma razão, podia quase
senti-la a seu lado, afagando seus cabelos e tentando animá-la. Pois
bem, se havia funcionado com Angela Moore, por que não com
Lucastra Borden?
— Isso é maravilhoso, Jim.
Ele riu, levantou-se e foi buscar alguma coisa sobre a cómoda.
Quando voltou, levantou sua cabeça e aproximou um copo de seus
lábios.
— Já falou demais, minha querida. Beba isso, e trate de dormir mais
um pouco. Precisa descansar.
Obediente como uma criança, Lucy sorveu o conteúdo do copo,
deitou-se e adormeceu imediatamente.
Quando acordou novamente, o sol havia desaparecido e a luz do
abajur projetava sombras estranhas nas paredes. Agora a cadeira era
ocupada por outra figura, uma menina cujas pernas ainda eram curtas
demais para alcançar o chão.
—Maude?
—Lucy! — ela exclamou, saltando da cadeira e debruçando-se sobre a
cama. — Eles disseram que você não conseguiria... Sabe quem sou eu?
—É claro que sei. Você é Lucy Alguma Coisa, filha daquele monstro
cujo nome prefiro esquecer. Não vai me dar um beijo?
—Não sei... Disseram que não devo perturbá-la.
—Amo você, Maude Alguma Coisa.
—Pare de me chamar de Maude Alguma Coisa! Sabe muito bem que
meu nome é Maude Proctor. E também amo você, Lucy.
—Então me dê um beijo.
—Mas eles...
—Quem são eles? E como podem saber o que é melhor para mim?
Vamos, me dê um beijo!
Hesitante, Maude beijou-a no rosto e sentou-se ao lado dela na
cama, tomando cuidado para não incomodá-la.
—Acho que papai não vai gostar disso.
—E daí? Estamos sozinhas aqui. E se ele insistir em me aborrecer
com todas aquelas ordens, farei algo terrível para dar uma bela lição
naquele sujeito!
—Vai castigá-lo? — Maude perguntou, séria como se estivessem
planejando o assassinato do Papa.
—Sim, vou castigá-lo. E sabe como? Vou me casar com ele e obrigá-
lo a me aturar até o fim de seus dias. Caramba, estou com fome!
A menina sorriu e beijou-a novamente antes de sair correndo e
gritando.
—Papai! Papai!
—Quieta, Maude! Não podemos perturbar Lucy.
—Ela está acordada. E disse que...
—O que ela disse, minha filha?
—Disse que eu podia beijá-la, e eu a beijei. Avisei que você não ia
gostar nada disso, mas ela ameaçou castigá-lo obrigando-o a se casar
com ela e... Papai?
Mas Jim já havia subido a escada aos saltos.
—O que quer aqui? Veio trazer algum presente de grego? — ela
provocou, deliciando-se com o brilho intenso em seus olhos negros.
—Não entendi.
Por que veio de mãos vazias? Disse que estava com fome Ah, agora
entendi. Vou buscar...
—Não! Quero me levantar dessa cama e descer. Quero ver gente e
ouvir vozes — e empurrou o cobertor, arrependendo-se
imediatamente. — Parece que não estou vestida apropriadamente.
Pode pegar meu robe no armário, por favor?
Jim sorriu com ar malicioso.
—Pensando bem, é melhor descer e pedir para Maude vir me
ajudar.
—Desmancha prazeres.
—Jim Proctor!
—Não precisa ficar nervosa. Já estou indo.
Maude devia estar parada do outro lado da porta, porque entrou
assim que o pai saiu. E Jim também não se afastou do quarto, pois
voltou assim que a filha terminou de ajudar Lucy a vestir o robe e
levantar-se.
— A escada é escorregadia — sorriu, oferecendo um braço. E
depois de todo esse tempo deitada, acho que vai precisar de ajuda.
Pensando bem... — e inclinou-se, erguendo-a nos braços e
carregando-a até a cozinha, onde a fez sentar-se junto à mesa.
—Assim está melhor.

—Sim, melhor para mim, mas você parece prestes a morrer de falta
de ar — ela riu.
—O que esperava? Sou um pobre banqueiro sedentário! Ou melhor,
era um pobre banqueiro sedentário.
—Você... era?
—Exatamente.
—Quer dizer que não é mais?
—O médico disse que deve tomar sopa pelos próximos dois dias.
Como prefere seu caldo de carne?
—Bem longe. Não gosto de sopa, Jim. Prefiro um bom bife com puré
de batatas e salada.
—Vài tomar sopa! Por que gastar tanto dinheiro com um médico,
se não vai seguir suas ordens?
—Como estou falida e não vou pagar essa conta, não preciso seguir
ordem nenhuma. É melhor telefonar para esse médico e avisar que
sou uma paciente inadimplente. Quem sabe ele desiste de me obrigar a
tomar sopa? Voltando à questão do seu trabalho...
—Ei, o que está fazendo? — ela assustou-se, vendo-o aproximar-se
com um brilho estranho nos olhos.
— Alguém já disse que você fala demais? Quero ver se encontro
um botão para desligá-la — e estendeu as mãos.
-Jim Proctor, não se atreva! Sua filha está conosco nesta casa e... e
se insistir nesse tipo de comportamento, não me casarei com você.
—Ah, uma ameaça? Já sei como fazer você quieta — e inclinou-se,
beijando-a com paixão. — E então?
—Então... o quê?
—Não vai protestar, gritar, espernear e me ameaçar de morte?
—Está me confundindo com outra garota, Jim. Se espera que o
ofenda depois desse beijo maravilhoso, esqueça! Que tal outra
amostra do que sabe fazer?
—Lucy, a sopa está esfriando — Maude avisou.
—É claro. Primeiro a obrigação, depois a diversão — ela suspirou.
Assim que terminou de tomar o caldo, Lucy suspirou e olhou para
Maude com ar suplicante.
—O que foi?
—Estou pensando num jeito delicado de dizer que gostaria que
fosse brincar lá fora e me deixasse conversar com seu pai. Tem
alguma ideia?
—Tenho. Diga apenas: Maude, caia fora daqui!
—Vamos ver se entendi. Maude, caia fora daqui!
—Já estou indo — ela riu, saindo como um furacão.
—E agora somos nós, Jim Proctor.
—Está falando como um juiz prestes a dar sua sentença.
—Vamos falar sério, por favor. Tem de admitir que nos despedimos
em circunstâncias bastante... desagradáveis. E de repente você está
aqui novamente, todo carinhoso e sorridente. Gostaria muito de saber
que diabos aconteceu com o mundo enquanto eu me afogava em
sofrimento e preocupações.
—Pois não, Excelência — Jim curvou-se numa reverência. — Foi
mais ou menos assim. Apesar de nunca ter me interessado por
romances e histórias de amor, acabei me apaixonando por uma
garota da vizinhança. Já havia experimentado essa coisa que chamam
de casamento, e a tentativa foi um completo desastre. Assim, era de
se esperar que tivesse medo de tentar novamente.
—Um bom começo. Vamos ao que realmente interessa, sim?
—Como já havia decidido me casar para garantir o bem estar de
minha filha, e não para suprir minhas necessidades físicas e afetivas,
achei que minha cunhada seria perfeita para o papel de sra. Proctor. E
foi por esse mesmo motivo que acabei me aproximando de Lucastra
Borden e pedindo essa encantadora jovem em casamento.
—Por sua filha, é claro.
—Por minha filha, é claro. Mas então comecei a perceber que
podia conciliar as duas coisas; garantir o bem estar de Maude e ser
feliz, também.
—Entendo. Leve dois e pague um.
—Não exatamente, porque logo descobri que estava apaixonado.
Paixão é o que pode acontecer de pior na vida de um banqueiro,
sabe?
—Ah, o banco! Sabia que o vilão acabaria aparecendo em alguma
parte da história. Prossiga.
—Achei que devia esconder esse sentimento sob uma capa de
agressividade, entende?
—Não, mas percebi a agressividade. E já que tocou no assunto, odeio
gritos. E odeio homens dominadores.
—Será que podemos ir para a sala? — ele sugeriu, evidentemente
embaraçado. — Acho que o sofá é mais confortável.
—Como quiser, desde que termine essa explicação de uma vez por
todas.
Na sala, sentaram-se lado a lado no sofá e Jim começou a
tamborilar com os dedos sobre uma das pernas.
—Não precisa ficar nervoso — Lucy sorriu, segurando a mão dele e
colocando-a sobre a perna para acariciá-la.
—Por que está fazendo isso? — ele espantou-se.

—Porque eu quero. Posso fazer o que bem entender — e levou a


mão dele ao seio. — Onde estávamos? Ah, sim! Você me pediu em
casamento pelo bem de sua filha.
—Estúpido, não? Mas foi a única ideia que me ocorreu naquele
momento. Faria qualquer coisa para tê-la a meu lado, e agora... Vai
se casar comigo, não vai?
—Eu... ainda não decidi. Afinal, o que aconteceu nos últimos dias
para mudar seu estilo de vida?
—Alguém anunciou a morte de Angie no Boston Globe. Não imagina
como um homem é capaz de arrumar as malas depressa.
—Está andando em círculos, sr. Proctor. Quero saber...
—Sei o que quer saber, mas preciso fazer algo mais urgente antes
de responder — e beijou-a.
Foi um beijo ardente, intenso, mas breve. Teria sido mais longo, se
alguém não houvesse batido na porta da cozinha e entrado sem
esperar por um convite.
—Ah... Olá, sr. Henderson — Lucy cumprimentou ao vê-lo na sala.
—Olá, srta. Borden. Ouvi dizer que andou enfrentando alguns
problemas, e decidi vir perguntar se quer que eu recomece as obras
na varanda dos fundos. Afinal, aquela escada caindo aos pedaços
pode representar mais um problema, uma vez que alguém pode cair e...
—Sim, sr. Henderson, precisamos dos degraus — ela o in-
terrompeu. — O mais depressa possível. E quanto àquele cheque que
lhe dei...
—Depositei no mesmo dia. Trabalho nesse ramo há vinte e oito
anos, e já aprendi que não se deve iniciar uma obra antes de saber se
o cheque tem fundos. Como diz o velho provérbio, a confiança é a
alma do negócio... especialmente quando o pagamento é adiantado.
—Muito engraçado — Jim interferiu. — Pode começar o trabalho
imediatamente?
—Nesse minuto — ele riu. — Afinal, já recebi pelo serviço,
não? Sabe de uma coisa, srta. Borden? Não acreditava que
pudesse mesmo levantar todo esse dinheiro. Parece que seu amigo
banqueiro caiu como um pato — e saiu sem esperar por uma
resposta.
—É, parece que sim — Jim resmungou com um sorriso enigmático.
—Por favor, Jim, eu não queria... — Lucy gaguejou embaraçada. —
No início, não tinha a intenção de tomar tanto dinheiro emprestado.
Mas depois tudo ficou tão fácil que... bem, não soube como recusar.
Agora veio buscar seu dinheiro e depois irá embora novamente, não
é?
—Sim e não. Onde estávamos?
—Pare com isso, Jim! Não vai mais pôr as mãos em mim enquanto
não explicar que diabos está acontecendo. Está furioso por eu ter feito
empréstimos tão altos em seu banco, e agora...
—Não estou furioso.
—Não? Então...?
—Não estou furioso porque passei a última semana em Boston,
vendendo minhas ações.
—Quer dizer que está falido?
—Não exatamente, mas acho que teremos de viver do seu salário.
—Do meu salário? Você enlouqueceu, Jim? O salário de uma
professora substituta não é suficiente nem para as meias de Maude!
Por que vendeu sua parte no banco?
—Porque sabia que ele estaria sempre entre nós.
—Mas... Ei, espere um minuto. Se não é mais acionista majoritário
do banco, então não preciso mais me preocupar com o empréstimo.
Não devo mais nada!
—Meu Deus! Com gente como você espalhada pelo mundo, nenhum
banco está livre da falência.

—Jim, eu...
—E quanto ao empréstimo, é evidente que não tem de pagar mais
nada. Em Massachusetts, um marido é responsável pelas dívidas de
sua esposa.
—Quer dizer que você...?
—Pare de rir e arregalar os olhos, ou vai acabar enrugada. Sim,
Lucastra Borden, eu paguei o empréstimo.
—Meu Deus! Se todas as esposas souberem disso, os homens...
—Permanecerão solteiros, e acabarão falidos. Agora que já
esclarecemos todas as suas dúvidas... Onde estávamos, mesmo?
—Aqui — e beijou-o com paixão.
Nesse instante a porta da cozinha se abriu com um estrondo e
Maude entrou correndo.
Mamãe! Papai! Encontrei a sra. Winters na praia e disse a ela que
vocês vão se casar. Ela quis saber se precisam de uma governanta, e
então respondi que sim, talvez precisem, e então ela... Mamãe? Por
que está rindo?

CapituloX

No dia de seu casamento Lucastra descobriu que tinha muitos amigos.


A igreja estava lotada, e muitas pessoas aguardavam a chegada do
Cadillac que traria a futura sra. Proctor. Até John Ledderman e sua
recente esposa esperavam do lado de fora, sob o sol brilhante.
A noiva estava vestida de acordo com a tradição. O vestido de seda
branca tinha saia longa e cauda do mesmo tecido, e o corpete justo,
com gola de mandarim, havia sido bordado com pequenas pérolas que
refletiam a luz do sol. O anel de noivado brilhava em sua mão direita,
meio escondido sob o enorme buque de orquídeas, e um véu delicado
ocultava parte de seu rosto maquiado em tons suaves. A tiara que
prendia o véu em sua cabeça havia sido presente de Jim, e Lucy quase
desmaiara ao ser informada de que não era simplesmente dourada,
mas de puro ouro.
Faltavam quatro dias para o final de agosto, pensou, aceitando a
ajuda do sr. Henderson para descer do cairo. Sete dias para o reinicio
das aulas. Como conseguiriam viver com o dinheiro que ganhava?
Tentar discutir o assunto com Jim era inútil.
— Não se preocupe — ele sempre dizia. — Tudo vai dar certo.
E ria. Um homem irritante, esse Jim Proctor! Mas uma mulher
determinada podia fazer alguma coisa por ele, e Lucy era essa garota!
— Cuidado com o degrau — Henderson avisou, orgulhoso em seu
terno novo. — Fique calma, mocinha. Sei o que estou fazendo. Já
conduzi minhas quatro filhas ao altar, sem falar nas sobrinhas.
Sem outra alternativa, Lucastra respirou fundo e sorriu.
-— Preparada? — Maude perguntou ansiosa, as mãos firmes em
torno da alça da cesta que continha as alianças.
— Preparada — a noiva respondeu confiante.
Em resposta ao sinal de Henderson, o padre acenou para o organista
e as primeiras notas da marcha nupcial ecoaram pelo templo decorado
com flores delicadas.
Aos pés do altar, Henderson levantou o véu da noiva, beijou seu
rosto e afastou-se. Jim assumiu seu lugar e subiu os degraus ao lado
da mulher que em breve seria sua esposa.
—Queridos noivos — o religioso começou. Encantada com o brilho
dos olhos de Proctor, Lucy não ouviu uma palavra do serviço
religioso. Só voltou à realidade quando, com voz firme, o ministro
perguntou: — Lucastra Borden, aceita esse homem como seu
legítimo esposo, prometendo amá-lo e respeitá-lo por todos os dias
de sua vida?
—Sim.
—Alexander James Proctor, aceita essa mulher como sua legítima
esposa, prometendo amá-la e respeitá-la por todos os dias de sua
vida?
Alexander? Onde havia ido parar o popular Jimbo?
—Sim.
—Nesse caso, eu os declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva,
Jimbo!
Na porta da igreja, Maude aproximou-se do casal e cochichou:
—Agora?
—Agora — Jim instruiu.
Os dois entraram no carro e Lucy jogou o buque na direção da
enteada, que agarrou-o com firmeza.
—Isso significa que serei a próxima a casar? — ela perguntou ao
entrar no carro.
—É o que dizem. Mas não tenha pressa, filha. Sua mãe e eu
precisamos de uma boa babá por perto.
—Hoje?
—Não tão depressa! — Lucy respondeu embaraçada. — Seu pai quis
dizer que algum dia podemos precisar de sua ajuda com o bebe.
Algum dia. Talvez.
— Dentro de um ano, exatamente — ele corrigiu.
Francamente! Esse sujeito precisava mesmo de uma mulher que o
obrigasse a comportar-se! Mas uma garota não devia impor-se no
primeiro dia de sua vida de casada.
A recepção aconteceu na praia, entre as duas casas, e já era noite
quando o último convidado partiu e os Proctor puderam finalmente
ficar sozinhos. Na varanda, Maude abriu a porta da casa enquanto Jim
erguia a noiva para carregá-la através da soleira, conforme a tradição.
—Bem, agora que a festa acabou... Vou ligar a televisão para assistir
um filme que...
—De jeito nenhum, Maude! — Lucy cortou. — Não quero minha
filha acordada até tarde na frente de um aparelho de tevê. Além do
mais, seu pai e eu estamos cansados e loucos para ir para a cama.
—Mas...
—Não discuta, mocinha. Se sua mãe diz que é hora de dormir, é hora
de dormir.
Resignada, Maude despediu-se e foi para o quarto.
—Agora é nossa vez — Jim sorriu.
—O último a chegar é a mulher do padre! — Lucy o desafiou,
erguendo o vestido de noiva para subir a escada aos saltos.
Mais tarde, exaustos e nus, abraçados e satisfeitos na enorme cama
de casal, os dois ouviram uma delicada batida na porta.
—Ah, não — Jim gemeu. — Agora não!
—Maude? É você, querida?
— Não consigo dormir — a menina queixou-se, abrindo a porta do
quarto sem pedir licença.
Rápida, Lucy puxou o lençol sobre o corpo enquanto o marido vestia
a calça do pijama.
—Posso dormir com vocês, mamãe?
—Se disser que sim, juro que apertarei seu pescoço até ficar viúvo!
— Proctor sussurrou.
—Hoje não, meu bem. Estamos muito cansados, e essa cama é
pequena demais para três. Seu pai a levará de volta ao quarto e
contará uma linda história para ajudá-la a pegar no sono. Não é,
querido?
—Se acha que conseguiu se livrar de mim, está muito enganada.
Voltarei mais depressa do que imagina.
—Espero que sim.
Às seis da manhã, quando Maude bateu na porta do quarto dos
pais, encontrou-a trancada.
—Não sei por que precisam dormir tanto — reclamou com a sra.
Winter, que já havia preparado o café.
—Os recém-casados são assim mesmo. Seja paciente, Maude. Logo
eles estarão aqui.
Mas Jim e Lucy só desceram pouco depois do meio-dia. Usando trajes
de banho, dirigiram-se à praia e pediram que a sra. Winters servisse
uma refeição leve sob o guarda-sol colorido.
—Posso tomar café, mamãe?
—Só meia xícara.
—Não comece a perverter as normas da casa, sra. Lucastra Proctor!
—Uma perversão de vez em quando não faz mal a ninguém.
—Humph! Talvez esteja certa. E falando em normas e coisas
parecidas, temos algumas coisas a discutir. A primeira delas diz
respeito ao banco.
—Oh, não! Não quero mais falar sobre isso!
—Prometo que esta será a última vez. Quando soube sobre aquele
maldito empréstimo, fiquei tão furioso que tive vontade de matá-la.
Por isso me afastei daqui, para poder pensar em tudo com um pouco
de calma. Foi então que compreendi que, para viver bem com você,
teria de desistir de ser um banqueiro. Vendi minhas ações e... bem,
consegui algum dinheiro.
—Quanto?
—Digamos que faltam quinze dólares para sermos milionários.
Também decidi que dentro de algum tempo voltarei a estudar e serei
um advogado. Depois da lua-de-mel, é claro. Nós três faremos uma
linda viagem.
—Nós três? — Maude surpreendeu-se. — Vai me levar em sua lua-
de-mel?
—É claro que sim. Você é minha filha, não?
—Essas duas pobres mulheres podem ao menos saber para onde
serão levadas? — Lucy perguntou com um sorriso radiante.
—Andei examinando o mapa e descobri que gostaria de conhecer
dezenas de lugares. Assim, decidi que a melhor opção seria uma
viagem de navio. Um cruzeiro ao redor do mundo.
—Uma viagem em tomo do mundo? Você enlouqueceu, Jim? Como
vamos pagar por essa aventura?
—Não ouviu o que acabei de dizer? Faltam apenas quinze dólares
para sermos milionários.
—Otimo! Nesse caso, vou passar por um banco qualquer e pedir
um empréstimo de quinze dólares.
—Ah, não vai não! Nunca mais vai pôr os pés num banco sozinha!
Além do mais, está esquecendo o testamento de Angie.
—Aquele amontoado de papéis velhos?
—A esmola da viúva.
—Conhece essa história, Jim?
—Está na Bíblia, não? Uma viúva pobre deu a última moeda que
possuía à igreja, como se estivesse ofertando a própria vida a Deus.
Angie também deixou sua esmola de viúva, mas nesse caso a moeda
vale um pouco mais do que na história original.
Os funcionários do banco terminaram de examinar toda aquela
papelada e concluíram que...
—Fale de uma vez, Jim!
—- Você herdou quatro milhões de dólares.
—Meu Deus! Como se não bastasse todo o amor e todas as lições
que me deu enquanto era viva, Angie ainda me deixou uma fortuna!
Sabe de uma coisa? Ela queria muito que eu me casasse com você,
Alexander.
—Eu também queria. Como vê, não precisamos mais do seu salário.
Na verdade, já informei o diretor da escola sobre sua demissão. E
nunca mais me chame de Alexander em público!
—Só se prometer não interferir mais em meus assuntos. Quem disse
que tinha o direito de falar com o diretor da escola sem me
consultar?
—Sou seu marido, lembra-se?
—É claro que sim. Você é minha filha, não?
—Essas duas pobres mulheres podem ao menos saber para onde
serão levadas? — Lucy perguntou com um sorriso radiante.
—Andei examinando o mapa e descobri que gostaria de conhecer
dezenas de lugares. Assim, decidi que a melhor opção seria uma
viagem de navio. Um cruzeiro ao redor do mundo.
—Uma viagem em tomo do mundo? Você enlouqueceu, Jim? Como
vamos pagar por essa aventura?
—Não ouviu o que acabei de dizer? Faltam apenas quinze dólares
para sermos milionários.
—Otimo! Nesse caso, vou passar por um banco qualquer e pedir
um empréstimo de quinze dólares.
—Ah, não vai não! Nunca mais vai pôr os pés num banco sozinha!
Além do mais, está esquecendo o testamento de Angie.
—Aquele amontoado de papéis velhos?
—A esmola da viúva.
—Conhece essa história, Jim?
—Está na Bíblia, não? Uma viúva pobre deu a última moeda que
possuía à igreja, como se estivesse ofertando a própria vida a Deus.
Angie também deixou sua esmola de viúva, mas nesse caso a moeda
vale um pouco mais do que na história original. Os funcionários do
banco terminaram de examinar toda aquela papelada e concluíram
que...
—Fale de uma vez, Jim!
—- Você herdou quatro milhões de dólares.
—Meu Deus! Como se não bastasse todo o amor e todas as lições
que me deu enquanto era viva, Angie ainda me deixou uma fortuna!
Sabe de uma coisa? Ela queria muito que eu me casasse com você,
Alexander.
—Eu também queria. Como vê, não precisamos mais do seu salário.
Na verdade, já informei o diretor da escola sobre sua demissão. E
nunca mais me chame de Alexander em público!
—Só se prometer não interferir mais em meus assuntos. Quem disse
que tinha o direito de falar com o diretor da escola sem me
consultar?
—Sou seu marido, lembra-se?
—E daí? Isso não quer dizer que...
—Ei, vocês dois! O que acham de darmos um mergulho? —maude
interferiu.
—Não, obrigada — Lucy respondeu. — Seu pai e eu temos algumas
coisas a esclarecer, e depois iremos descansar em nosso quarto. Fique
com a sra. Winters, está bem? Desceremos para o jantar.
—Não entendo — Maude reclamou no dia seguinte. — Vocês dois
passaram a tarde de ontem dormindo, dormiram e noite inteira e ainda
estão cansados! Acho que eles precisam de vitaminas, sra. Winters.
—Tem razão — a governanta riu. — Já foi buscar a urna, sr.
Proctor?

—Sim, e o hidroavião está esperando por nós no porto. Venha


conosco, Maude — e levantou-se, segurando a mão da esposa.
—Para onde?
—Vamos dar um passeio de hidroavião e dizer adeus a Angie.
—Mas Angie... ela já se foi, papai!
—Sim, mas estará lá para despedir-se de nós. E depois, estará
sempre por perto, como um anjo velando por nossa felicidade.
Sobrevoaram o porto por cerca de quinze minutos, até que Jim abriu
a urna e despejou as cinzas de Angela Moore sobre as águas do mar. No
banco traseiro do avião, Lucy e Maude assistiam a tudo emocionadas.
—Adeus, Angie — Lucastra sussurrou. — Descanse em paz — e
virou-se para Maude para oferecer a moral da história. Sim, porque no
mundo de Lucastra Proctor, toda história tinha um significado. — Eu
era um bebé quando minha mãe morreu. Vovó cuidou de mim durante
anos, e quando ela se foi, Angie tornou-se minha segunda mãe. Acho
que vou amá-la para sempre.
—E eu? — Maude retrucou agitada. — Era pouco mais que um bebé
quando minha mãe morreu, e agora tenho uma segunda
. E também vou amá-la para sempre — e virou-se para a janela. —
Adeus, Angie. Voltaremos a nos ver no céu.
— Tomara que esteja certa — Lucy comentou, enxugando uma
lágrima de emoção. — Vamos embora, Jim. Hoje é o primeiro dia do
resto de nossas vidas.

FIM

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