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v.1, n. 2, p. 142-161.

Novembro/2020

Dor Psíquica e Luto Materno Diante da Perda Gestacional


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Débora Damacena de Andrade ¹
Flávia Maria Soares Pereira da Silva ²
Susie Amâncio Gonçalves de Roure ³

Resumo
O presente artigo tem como objetivo analisar a construção da maternidade de mulheres que vivenciaram a
perda gestacional e as especificidades da elaboração do luto materno nesses casos. A investigação será
fundamentada na perspectiva psicanalítica para orientar a análise e discussão dos resultados. Baseado no
método de pesquisa qualitativa, os dados foram coletados a partir das histórias presentes no livro Maternidade
Interrompida: o drama da perda gestacional (2009), organizado pela autora Maria Manuela Pontes, a fim de
utilizar as narrativas de vida como via de acesso à subjetividade dessas mulheres. Dessa forma, buscou-se
enfatizar o olhar da mulher sobre a própria experiência de maternidade e subsequente perda gestacional. A
singularidade na maneira como cada mulher vivenciou e enfrentou a sua perda reafirmou que o tempo de luto
é diferente para cada mãe, sendo que implica o tempo de conceber que a vida do filho existiu e deixou de
existir. Assim, ficou explícito que não há apenas um caminho possível diante da perda gestacional,
especialmente, considerando as especificidades do trabalho de luto nesses casos.

Palavras-chave: Psicanálise; Maternidade; Perda gestacional; Luto; Narrativas de vida.

Abstract
This article aims to analyze the construction of motherhood for women who experienced pregnancy loss and
the specificities of the elaboration of maternal mourning in these cases. The investigation will be based on the
psychoanalytic perspective to guide the analysis and discussion of the results. Based on the qualitative research
method, data were collected from the stories present in the book Interrupted Motherhood: the drama of
pregnancy loss (2009), organized by author Maria Manuela Pontes, in order to use life narratives as a way of
access to subjectivity of these women. Thus, we sought to emphasize the woman's view of her own motherhood
experience and subsequent pregnancy loss. The singularity in the way each woman experienced and faced her
loss reaffirmed that the time of mourning is different for each mother, as it implies the time to conceive that
the child's life existed and ceased to exist. Thus, it was clear that there is not only one possible path in the face
of pregnancy loss, especially considering the specifics of mourning in these cases.

Keywords: Psychoanalysis; Maternity; Gestational loss; Mourning; Life narratives.

_________________________________________
¹ Psicóloga Especialista em Psicologia Perinatal e da Parentalidade, mestranda em Psicologia na Universidade Federal de Goiás (UFG).
E-mail: deborandrade.psi@gmail.com
² Psicóloga Doutora em Psicologia Social, professora do curso de Psicologia na Faculdade de Educação da UFG. E-mail:
flaviamsps@gmail.com
³ Psicóloga Doutora em Educação, professora do curso de Psicologia e do programa de pós-graduação em Psicologia da Faculdade de
Educação da UFG. E-mail: susieroure@gmail.com

Ao longo dos séculos, as demandando novas adaptações a cada contexto


representações e significados atribuídos à social até culminar no sentimento moderno do
maternidade passaram por transformações, amor materno. Como propõe Badinter (1985),

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a maternidade se constitui pela história da mãe importância de dar espaço para as mulheres
e pela própria História da humanidade. Diante expressarem sua dor diante dessa experiência.
disso, uma das intercorrências que rompe com Reitera-se a importância de estudos como este
esse ideal são as situações que levam à perda para a formação de profissionais, visto que são
gestacional, as quais resultam em conflitos raras as instituições hospitalares que
psíquicos significativos para a mulher. possibilitam a livre expressão e vivência dos
Independente do período gestacional, sentimentos de luto da (Kennell & Klaus,
essa vivência produz um impacto psíquico que 1992; Muza, Sousa, Arrais, Iaconelli, 2013;
necessita de elaboração. Além disso, existe a Aguiar & Zornig, 2016).
tendência do entorno de negar tanto a perda
A Construção da Maternidade
como a própria existência do bebê. Por isso, o
enfrentamento da mulher que perde seu filho Iaconelli (2012) evidencia a
nessas circunstâncias possui características perspectiva da reprodução como elemento
singulares que o tornam incompreensível e básico em qualquer grupo social, visto que ela
irreconhecível pelo entorno (Iaconelli, 2007). carrega consigo o imperativo de sobrevivência.
Nesse sentido, como se dá a construção da Historicamente, a capacidade e o controle
maternidade dessa mulher que perdeu seu filho sobre o corpo das mulheres foram a maneira de
ainda no ventre e como seu aparelho psíquico dominar o fenômeno da reprodução, de modo
elabora essa experiência? que a fertilidade feminina comparece como
Diante desse questionamento, o estudo requisito para valorização da mulher e
tem como principal objetivo analisar a pertencimento ao grupo social.
construção da maternidade de mulheres que Segundo Badinter (1985), por cerca de
vivenciaram a perda gestacional e as dois séculos, as atitudes maternas oscilaram
especificidades da elaboração do luto materno entre a rejeição, a indiferença e a exaltação. As
nesses casos. A investigação será transformações no decorrer da história foram
fundamentada na perspectiva psicanalítica determinando o deslocamento do foco
para orientar a análise e discussão dos ideológico da autoridade paterna para o amor
resultados. Com a finalidade de dar voz ao materno. A identidade feminina e a
sujeito, foram utilizadas as narrativas de vida maternidade foram se constituindo
como via de acesso à subjetividade dessas concomitantemente, à medida em que se
mulheres. Baseado no método de pesquisa construía o sentimento moderno de que a
narrativa, os dados foram coletados a partir das maternidade implica cuidado intensivo e amor
histórias presentes no livro Maternidade incondicional. Esse contexto inaugura uma
Interrompida: o drama da perda gestacional nova perspectiva em relação ao papel social
(2009), organizado pela autora Maria Manuela materno, visto que destaca a dedicação,
Pontes. cuidado e atenção das mães aos filhos como
Destaca-se que muitas pesquisas têm garantia da sobrevivência dos indivíduos.
sido realizadas sobre gravidez e perdas fetais. Então, é possível compreender o amor
No entanto, a maior parte delas se dá na materno, não como instinto natural e inerente,
perspectiva das instituições, como hospitais e mas como algo construído e passível de
universidades. Poucos estudos são feitos imperfeições, oscilações e modificações
considerando o olhar da mãe sobre sua (Àries, 1981; Badinter, 1985; Iaconelli, 2012;
gestação e seus sentimentos em relação à Maldonado, 2017).
maternidade e à perda gestacional (Freire & Dessa forma, entende-se que o ciclo
Chaterlard, 2009). Portanto, a presente gravídico puerperal abarca uma profunda
investigação pode contribuir socialmente por relação entre as questões emocionais e sociais.
possibilitar a fundamentação acerca da Bortoletti (2007) ressalta que as alterações da

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gravidez desencadeiam inseguranças e disso, nesse momento começa o processo de


angústias à gestante, trazendo grande impacto atribuir características pessoais a partir da
ao seu processo identitário. Maldonado (2017) interpretação dos movimentos fetais. No
salienta que a gravidez se constitui como um entanto, através desse mecanismo, a
dos períodos críticos de transição no ciclo vital ambivalência afetiva se manifesta de diversas
da mulher, que desencadeia uma crise formas: “pelo alívio de sentir os movimentos,
entendida como “uma encruzilhada no sinal de que o feto está vivo; e ansiedade
caminho da saúde mental” (p. 28). A fim de quando não consegue perceber os movimentos,
resolver a crise, existem dois caminhos: surgindo o temor de que algo não esteja bem”
superação saudável ou doentia. Por isso, o (p. 45). No terceiro trimestre se inscreve a
momento de crise pode ser considerado risco ansiedade, devido à aproximação do parto e da
e, ao mesmo tempo, oportunidade, pois a alteração de rotina que virá com a chegada do
pessoa que está vivenciando isso encontra-se filho. A principal manifestação da
mais vulnerável e acessível à ajuda. ambivalência afetiva nesse momento é o
Na gestação, um sentimento emergente desejo do bebê nascer para terminar logo a
é a ambivalência afetiva que, como coloca gravidez e ao mesmo tempo o desejo de
Bortoletti (2007), está presente desde o prolongar a gestação como mecanismo de se
momento da descoberta da gravidez, quando afastar das novas transformações irreversíveis.
afloram questionamentos em relação a Diante desse contexto, a Psicanálise
capacidade de conseguir gestar e ser mãe. pode contribuir no aprofundamento das
Acrescido a isso está a impossibilidade de a questões psíquicas em torno da maternidade.
gestante possuir qualquer certeza referente à Desde os primórdios do seu percurso teórico,
gravidez. Muitos medos emergem nesse Freud se interessou em estudar a mulher e a
período em relação a permanência do feto no sexualidade feminina. A respeito da relação
útero, ao parto, à amamentação, aos cuidados entre feminilidade e maternidade na sociedade,
dispensados ao recém-nascido, ao desempenho Kehl (1998) considera que a primeira aparece
do papel de mãe, entre outros. Os temores como “conjunto de atributos próprios a todas
podem expressar características de as mulheres, em função das particularidades de
autopunição e culpa relacionados à idealização seus corpos e de sua capacidade procriadora”
da maternidade. (p.58). A psicanálise, nesse sentido, insere-se
Vale ressaltar a construção do vínculo nesse imperativo social ao colocar a
materno-fetal, que começa antes do bebê maternidade como único caminho possível
nascer (Schimidt & Argimon, 2009). Freud para recuperar o falo ausente.
(1926/2014) afirmou que “há bem mais Freud (1924/2011, 1925/2011) adentra
continuidade entre vida intrauterina e primeira na realidade sexual feminina, afirmando que o
infância do que nos faz crer a notável ruptura complexo de castração evidencia para a
do ato do nascimento” (p. 59). Bortoletti criança a necessidade de ressignificar as
(2007) alega que a forma como a grávida experiências de perda vivenciadas. Como
percebe e relata os movimentos fetais traduz destaca Kehl (2008, p. 195), “Freud é explícito
como é a relação que ela está desenvolvendo e claro: é porque a descoberta da falta no corpo
com o feto. feminino coincide com o primado do falo que
Maldonado (2017) descreve as ela faz ressignificar todas as perdas anteriores
especificidades de cada trimestre da gestação. sob o signo da castração”. A questão posta por
O primeiro trimestre se caracteriza pela Freud consiste na diferença entre a passagem
manifestação mais intensa da ambivalência do Complexo de Édipo pelo menino e pela
afetiva. O segundo trimestre é considerado o menina. No caso da menina, a partir da
mais estável na perspectiva emocional. Além consumação de sua castração, ela retorna seu

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amor ao pai, dono do falo, o que a lança à entrelaçadas em todo o transcorrer do


segunda fase do Édipo. Também é nesse desenvolvimento vital do ser humano.
momento que ela fará empreendimentos para Existem diversas variáveis implicadas
tentar se identificar com o único atributo que na maneira de encarar a morte. A negação,
lhe interessa na figura materna, a evitação e temor associados ao assunto podem
feminilidade. Kehl (2008) ressalta que a culminar no distanciamento, assim como os
principal problemática da saída da menina do avanços da medicina, os elementos culturais e
Édipo não comparece apenas no campo das os lutos experienciados no decorrer do
identificações, mas na formação da sua desenvolvimento. Para Wahl (1959, citado por
identidade sexual, introjetada, também, pela Kovács, 1992), o medo da morte se relaciona
cultura. com o temor da castração que surge após o
Analisando a constituição subjetiva em período edipiano, ligado à culpa, aos desejos
torno da maternidade, Nunes (2011) ressalta a destrutivos, à raiva e à frustração.
uma ampliação do lugar social da mulher, que Na psicanálise, abordar o tema da
está além do espaço doméstico, emergindo morte pressupõe a compreensão da pulsão de
novas formas de subjetivação e outras morte, termo cunhado por Freud. Freud
expectativas de vida. Ainda assim, esse lugar (1938/2018) presumiu a existência de duas
não deixou de trazer conflitos e enigmas pulsões básicas, pulsão de vida e pulsão de
sociais, que emerge a partir desse fenômeno morte, das quais a primeira tem como objetivo
um mal-estar. As consequências aparecem sob unir e a segunda, destruir. Ao operar
a forma de pânico, angústia e depressões internamente, a pulsão de morte permanece
relacionadas ao conflito entre o desejo ou silenciosa, chamando a atenção apenas quando
ausência dele de experienciar a própria se desvia para fora, por isso, para que o
maternidade. Nunes (2011) pondera a indivíduo seja preservado é importante que
semelhança da função do sintoma das esse desvio ocorra. Ancorando-se nessa
histéricas e da mulher contemporânea, posto teorização, Campos (2013) salienta a pulsão de
que em ambos os casos denunciam um morte como potencialidade traumática para o
sofrimento social. Os sintomas femininos da aparelho psíquico, precisando ser ligada e
atualidade, como os transtornos psicológicos representada.
gravídicos puerperais (depressão pós-parto, A discussão sobre luto materno nos
blues puerperal, psicose puerperal etc.), por casos de perda gestacional implica aprofundar
exemplo, representam o mal-estar e as nos aspectos referentes à perda do objeto
contradições do papel da mulher. amado. Para tanto, destacam-se três conceitos
centrais: dor, luto e melancolia, explanados a
A Perda do Objeto: Subjetividade Materna
partir das elaborações freudianas e
Após Perda Gestacional
correlacionados à noção de dor psíquica
Deparar-se com a morte de um filho apresentada por Nasio (2007). De acordo com
antes do seu nascimento provoca a esse autor, a dor é um fenômeno limite, seja
descontinuidade de sonhos, esperanças e entre o corpo e a psique; entre o eu e o outro;
expectativas, por isso, é essencial compreender ou entre o funcionamento regulado do
os significados atribuídos à morte pelos psiquismo e seu desregulamento. Ele explicita
sujeitos que vivenciaram a perda (Muza et al., que a dor é um afeto anterior a loucura e a
2013; Torloni, 2007). Defrontar-se com a morte, assim como é sintoma, manifestação de
morte é um desafio que perpassa o humano uma pulsão inconsciente e recalcada. O autor
desde os primórdios da civilização. Kóvacs subdivide o processo da dor em três tempos:
(1992) salienta que a morte e a vida estão ruptura, comoção e reação; aparecem
sucessivamente a dor da ruptura, depois a dor

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do estado de comoção e, por fim, a dor amado perdido. Com o esvaziamento do Eu, a
suscitada pela defesa do Eu em resposta à defesa contra o trauma provoca dor. Em
comoção. contrapartida, o trabalho de luto configura-se a
Perder o objeto de amor é uma ruptura partir do desinvestimento progressivo da
brutal, de forma que o princípio de prazer representação do objeto perdido.
perde sua funcionalidade e as tensões se De acordo com Freud (1917/2010), o
desencadeiam sem regulação. O eu, ao se luto é uma resposta à perda de uma pessoa
voltar para seu interior, percebe o transtorno amada ou algo que ocupe esse lugar, não
das tensões incontroláveis, ou seja, sente a assumindo a forma de um estado patológico,
dor. Sendo assim, a dor psíquica é pois espera-se a superação dele após certo
desencadeada pela ruptura violenta e súbita do tempo. Em alguns casos pode ser observada a
laço entre o sujeito que ama e seu objeto de melancolia em vez do luto, dizendo de um
amor, caracterizando-se como dor de amar. indicativo patológico. A melancolia, por sua
Além disso, a dor de amar é da ordem do vez, caracteriza-se pelo
trauma, uma vez que seu afeto é percebido pela
consciência do próprio eu como estado de “abatimento doloroso, uma cessação do
comoção pulsional engendrado pela interesse pelo mundo exterior, perda da
descontinuidade do laço amoroso. A dor capacidade de amar, inibição de toda
traumática é traduzida na consciência como atividade e diminuição da autoestima,
afeto a partir da reação defensiva do eu lutando que se expressa em recriminações e
para se reencontrar (Nasio, 2007). ofensas à própria pessoa e pode chegar
Em Além do princípio do prazer a uma delirante expectativa de
(1920/2010), Freud refere-se ao rompimento punição” (p. 128).
do escudo protetor diante de situações
traumáticas. Com o excesso de excitação, o Pensando na possível comparação com
psiquismo precisa se defender, tentando fazer o luto, é possível afirmar que este assume os
a ligação da energia desligada por meio de mesmos traços que a melancolia, exceto pela
representações e simbolizações. Os traumas redução da autoestima.
provocam a desestruturação no funcionamento O trabalho do luto reside na
psíquico, de forma que para se defender o Eu inexistência do objeto amado, restando à libido
retira a ação do princípio de prazer. O Eu retirar-se das suas conexões com este. A partir
assume a incumbência de dominar e ligar disso, emerge a oposição na qual o sujeito não
psiquicamente o excesso de energia que o suporta deixar uma posição libidinal, ainda que
irrompem e rompem, a fim de poder tenha um possível substituto. A intensidade de
desvencilhar-se dele. Ainda, na obra O mal- tal oposição pode ocasionar o afastamento da
estar na civilização (1930/2010), Freud propõe realidade, bem como o apego ao objeto por
a expressão “perda do ser amado”, postulando meio de uma psicose de desejo alucinatório.
que nunca estamos tão mal protegidos contra o Quando o trabalho de luto se consuma, o Eu
sofrimento como quando amamos e nunca volta a ficar desimpedido. No que diz respeito
estamos tão irremediavelmente infelizes como à melancolia, ela também pode se constituir a
quando perdemos a pessoa amada ou o seu partir da perda de um objeto amado, mas essa
amor. perda concerne mais frequentemente na
Diante da perda, o sujeito reage natureza de um ideal. Freud anuncia a
defensivamente a partir de dois movimentos: possibilidade de relacionar a melancolia “a
desinvestimento e superinvestimento. Nasio uma perda do objeto subtraída à consciência;
(2007, p. 40) salienta que o Eu desinveste para diferentemente do luto, em que nada é
superinvestir na representação do objeto

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inconsciente na perda” (Freud, 1917/2010, p. Freud (1914/2010) elabora considerações a


130). respeito da relação dos pais com seus filhos. O
Na melancolia, há uma identificação narcisismo dos pais se reatualiza no próprio
com o objeto, de modo que “A sombra do filho, o colocado na posição de objeto de amor
objeto caiu sobre o Eu” (Freud, 1917/2010, p. livre de imperfeições. “Vossa majestade, o
133) e a perda do objeto tornou-se a perda do bebê” se torna o único objeto suficiente para
Eu. Isso pode ocorrer devido a uma forte realizar os sonhos obstaculizados,
fixação no objeto amoroso e, remodelando as falhas parentais. Bartilotti
contraditoriamente, uma pequena resistência (2007) define a perda do filho como “uma
do investimento objetal. Supõe-se a ocorrência ferida narcísica difícil de ser cicatrizada” (p.
de uma escolha objetal sobre base narcísica, de 67).
modo que o investimento objetal possa Independente do período gestacional, a
regressar ao narcisismo e a identificação perda produz restos psíquicos que necessitam
narcísica com o objeto substitui o investimento de elaboração. A vivência da perda é carregada
amoroso. Assim, a melancolia apresenta-se a de um efeito traumático, principalmente, por se
partir de algumas características do luto somar à passagem por um terrível momento de
somada a regressão ao narcisismo. O crise e de perturbação da identidade. Sendo
investimento amoroso do melancólico possui assim, o luto da mulher que perdeu seu bebê é
dois destinos, sendo o primeiro a identificação considerado como insólito, posto que possui
e o outro devido à influência do conflito da características com aspectos incomum, o
ambivalência. tornando incompreensível e irreconhecível
Na melancolia, a relação com o objeto pelo entorno. Além disso, existe uma negação
tem a especificidade de uma ambivalência, que social do sofrimento materno nesses casos,
pode ser constitucional ou ocasionada através desencadeando o desmentido da perda e
das vivências de ameaça da perda do objeto. A obstruindo as possibilidades de representação,
melancolia implica, como salienta Freud o que potencializa a experiência como
(1917/2010), “inúmeras batalhas em torno do traumática (Iaconelli, 2007; Curi, 2016;
objeto, nas quais ódio e amor lutam entre si, Aguiar & Zornig; 2016).
um para desligar a libido do objeto, o outro, De acordo com Iaconelli (2007) o
para manter essa posição da libido contra o obstáculo social acaba impedindo o desejo dos
ataque” (p. 141). Essa batalha efetua-se no pais em realizar os procedimentos ritualísticos,
inconsciente, onde ocorrem, também, as e quando ocorrem geram estranheza e
tentativas de desligamento do luto. No entanto, constrangimento. Tal contexto impossibilita a
há um bloqueio para o trabalho da melancolia. atribuição do status de filho morto ao bebê
Aquilo que envolve a ambivalência é da ordem perdido. Kennell e Klaus (1992) enfatizam que
do reprimido, até que se desenrole, a morte do bebê vem acompanhada da
abandonando o objeto, mas apenas volta-se ao eliminação rápida e abrupta das evidências de
Eu. sua morte, tornando sua materialidade ainda
Considerando a dinâmica da dor mais. Dessa forma, a retirada da libido das
psíquica, do luto e da melancolia e como esses ligações com o objeto perdido entra em estado
aspectos se articulam no episódio da perda de confusão, sendo complicado abandonar a
gestacional, destaca-se que esta desestrutura a posição libidinal.
interpretação do papel feminino, passando a Quando a mãe não inicia o trabalho de
ser associado ao desprezo, inadequação e luto, se torna quase impossível a recuperação
ineficiência. Tais reações representam uma da libido investida no objeto bebê perdido e o
ferida narcísica difícil de ser reparada. Na sua redirecionamento do interesse ao mundo
escrita Sobre o narcisismo: uma introdução, externo (Aguiar & Zornig, 2016). Depois da

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expulsão ou parto do feto morto, a mulher Delgado (2003) acrescenta que,


vivencia um senso duplo de perda: o vazio é independentemente de ser sob a forma oral ou
interno e externo, instaurando um processo no escrita, as narrativas são caracterizadas “pelo
qual o narcisismo da mãe é convocado à cena. movimento peculiar à arte de contar, de
A reação materna é singular, pois é difícil traduzir em palavras as reminiscências da
representar a perda de um objeto tão concreto memória e a consciência da memória no
e internalizado para a mulher e ao mesmo tempo” (p. 22).
tempo imaterial. Nesses casos ocorre um Especificamente sobre o ato de
enlutamento melancólico (Freire & Chatelard, escrever, Lima e Fortim (2015) afirmam que
2009). essa ferramenta deve ser olhada sob um novo
Para Freud (1917/2010), a melancolia ponto de vista pela Psicologia que tem como
envolve uma perda desconhecida, recurso principal o discurso falado. Enquanto
característica semelhante à perda gestacional. a fala é impossível de ser retomada depois de
A mãe é tomada pelo vazio da perda e a não emitida, a escrita tem um caráter reflexivo,
elaboração desse vazio oferece subsídios para uma vez que seu registro permite a releitura.
que a experiência de morte retorne em outro Além disso, a escrita pode ser um recurso
lugar. Um dos caminhos possíveis é a auxiliar na ausência da fala.
melancolia, pois vivenciam um trabalho Considerar a temporalidade presente
semelhante ao luto, mas o Eu não é liberado nas narrativas implica analisar a concepção de
para reinvestir em outros objetos. A libido se tempo para o sujeito que narra. Na perspectiva
volta ao eu, promovendo a identificação deste psicanalítica, o conceito de tempo não
com o objeto perdido. O movimento de não comparece diretamente, mas sob diversas
reconhecer a própria perda conduz a mãe à formas, como a noção de trauma. Segundo
incorporação do objeto perdido ao eu como Freud (1915b/2010) o que interessa é o tempo
uma sombra, assim como a descrição de Freud em sua relação com o sujeito. Ao descrever o
sobre a identificação melancólica. inconsciente, o autor entende que seus
A melancolia também se coloca como processos são intemporais, havendo a
saída possível diante da perda gestacional substituição da realidade externa pela psíquica.
devido à ambivalência na relação materno- Nesse sentido, ressignificar não é trazer algo
fetal, visto que própria gestação faz emergir para o campo representacional pela primeira
diversos sentimentos ambivalentes. Aguiar e vez, mas dar um novo sentido ao que já estava
Zornig (2016) enfatizam que na perda fetal é presente lá. Os novos sentidos trazidos
necessário que a mãe se identifique com o possibilitam a ampliação das redes de
objeto interno virtual, em lugar do objeto significação, repercutindo no trabalho de
externo morto. Aos poucos ela precisará deixar nomeação daquilo que, outrora, era impossível
morrer parte de si e, por esse motivo, existe a ser dito.
ameaça melancólica. Ao analisar narrativas, também é
preciso considerar o conceito de memória, que
Narrativas de Vida e Rememorações
ocupa um lugar de destaque com a teoria do
Jovchelovitch e Bauer (2002, p. 91) recalque, na qual os conteúdos considerados
afirmam que “não há experiência humana que traumáticos são afastados para o inconsciente,
não possa ser expressa na forma de uma passando a ser operados pelos mecanismos da
narrativa”. Por meio da narrativa é possível resistência. Nesse sentido, a cura se daria pela
rememorar acontecimentos, sequenciando a tomada de consciência das recordações
própria experiência de maneira a encontrar psíquicas precoces recalcadas. Em Lembrar,
explicações, bem como aliviar sofrimentos por repetir e perlaborar (1914/2017), Freud
relacionar sentimentos aos acontecimentos. afirma que o lembrado não é o acontecimento

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em si, mas seu processamento psíquico e estavas dentro de mim e que crescerias
transformação em realidade psíquica. Assim, a lindo; sussurrou-me com tanta certeza
recordação é recordação dos processos e clareza que nunca mais duvidei.
psíquicos e não a reprodução fiel da verdade Lembro-me de tanta coisa desse dia…
dos fatos objetivos. ficou marcado na memória como se já
As recordações traumáticas possuem soubesse que daquela tarde de amor
uma dinâmica própria, por não serem passíveis virias tu, meu príncipe. Natal… a
de adaptação através de ligações associativas primeira vez que desconfiei que podias
com base em novas experiências ou pelo existir… que a avó desconfiou também,
recalque. Existe uma regressão a um que o mundo desconfiava e me oferecia
pensamento onipotente como defesa diante de a oportunidade de te descobrir. Não
um desamparo insuportável, de modo que a conseguia comer as ostras cruas, que
pessoa traumatizada se culpa pelo trauma que tanto adoro (In: Pontes, 2009, p. 47).
aconteceu e que vivenciou (Bohleber, 2007).
Bobbio (1997) destaca que o ato de rememorar Pode-se considerar que Ana captou
permite o reencontro de si mesmo e da própria inconsciente os sinais bioquímicos e corporais
identidade, independente dos anos referentes ao seu novo corpo, assim como
transcorridos e dos fatos vividos. Assim como salienta Maldonado (2017). O que se torna
o futuro se abre para a imaginação, através das evidente na fala:
lembranças é possível recorrer ao passado para
buscar refúgio e nele reconstruir o eu perdido. Eu sabia, no fundo eu já sabia, e
delirava com a ideia. A tua vinda a este
Método
mundo como meu filho já era uma
O estudo foi realizado a partir de três coisa garantida, eu sentia que estavas
relatos presentes no livro Maternidade dentro de mim, eu sabia com uma
Interrompida: o drama da perda gestacional certeza que nunca tive antes (In:
(2009), organizado pela autora Maria Manuela Pontes, 2009, p. 48, grifo nosso).
Pontes. Para a investigação foram analisadas
as narrativas de mães que relatam sua Para Carla e Liliana, por sua vez, a
experiência diante da perda gestacional. Foi percepção da gestação ocorreu de maneira
escolhida a Pesquisa Narrativa como método mais concreta a partir dos exames, assim como
de coleta e análise de dados e a análise temática narram. É possível que elas tenham sentido as
como técnica de análise dos dados alterações em seus corpos, mas devido às suas
(Jovchelovitch & Bauer, 2002). histórias e seus contextos, tiveram a
Resultados e Discussão necessidade da prova concreta para
materializar a própria gravidez. Carla confirma
Primeiramente, foi analisado o isso quando relata sua dificuldade para
contexto em que se deu a construção da engravidar, necessitando realizar o
maternidade de Ana, Carla e Liliana desde a acompanhamento da ovulação: “Fiz
descoberta da gravidez até a notícia da perda acompanhamento da ovulação com ecografia
dos seus bebês. Na história de Ana, a porque tinha dificuldade em engravidar, apesar
percepção da gestação se deu por ela mesma do processo repetitivo e monocórdico que isso
ainda nas primeiras semanas: implicava, e a natureza mimoseou-me com o
devaneio da maternidade mais cedo do que o
Foste feito dia 16 de dezembro. esperado” (In: Pontes, 2009, p. 63).
Lembro-me de que, no meio dos beijos Já Liliana conta que trabalha em um
e abraços, o teu pai me disse que tu já serviço de obstetrícia e apesar do resultado do

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teste de farmácia, o sentimento de certeza veio também antecipa o pior, racionaliza, se


apenas com o exame de ultrassonografia: “No defende previamente do que possa vir a
entanto, só no dia seguinte acreditei que um acontecer. Em Liliana, a ambivalência grita em
bebê estava a caminho, quando o encontrei um misto de alegria e medo em tamanha
numa ecografia que não deixava dúvida acerca intensidade a ponto de desacreditar no que
da sua existência” (In: Pontes, 2009, p. 183). estava visível, sem saber se reagiria com riso
Ainda concernente a percepção da ou choro.
gestação, as três narrativas abordam a questão Em relação às alterações provocadas
da ambivalência afetiva diante da descoberta: pela gestação, Ana narra que: “Os dias
passavam e cada vez mais as diferenças no
Por momentos neguei que pudesse ser corpo eram evidentes, o peito doía-me…
verdade; desculpa filho, compreende dores verdadeiramente maternais” (in: Pontes,
que a mãe já tinha tentado muitos anos p. 48, grifo nosso). Liliana, por sua vez, relata
e nunca tinha conseguido” (Ana, in: que: “Desde o início foi uma gravidez difícil
Pontes, 2009, p. 48, grifo nosso). para mim; os enjoos estavam sempre
presentes, cheguei a pensar que não
A felicidade encheu-me a vida de mil conseguiria trabalhar daquele jeito. Eu
cores e toda a família distribuía o meu maldizia a minha vida, aqueles vômitos que
estado de graça por todos que nos não paravam” (in: Pontes, 2009, p.183, grifo
rodeavam. Fui à primeira ecografia nosso). Bortoletti (2007) ressalta que as
com muita ansiedade e muito receio, alterações no esquema corporal associadas às
conheço alguns casos em que as coisas transformações emocionais desencadeiam
não correram bem e para mim a inseguranças e angústias à gestante, trazendo
realidade menos afortunada estava grande impacto ao seu processo identitário.
patente, não só na imaginação como na Além disso, Liliana também aborda
veracidade de fatos (Carla, in: Pontes, outras mudanças na sua rotina que trouxeram
2009, p. 63, grifo nosso). um grande impacto na sua gravidez, como a
Surgiu um grito de alegria e de medo. mudança do marido para trabalhar em outra
O teste deu positivo! Não podia cidade e, com isso, a solidão. Acrescido a esse
acreditar! Não sabia se havia de rir ou fator, vieram as contrações antes da hora e a
chorar (Liliana, in: Pontes, 2009, p. consequente necessidade do repouso, bem
183, grifo nosso). como a cobrança do entorno por ela trabalhar
na área da obstetrícia:
Como ressalta Maldonado (2017), esse
momento é quando a ambivalência possui Em outubro o meu marido foi trabalhar
maior intensidade por ser o primeiro contato da fora do país, foi muito difícil para
mulher com o “estar grávida” e as mim. Eu e meu filho ficamos sozinhos
consequências disso, tanto positivas quanto quando tanto precisávamos do pai. Mas
negativas. Nesse instante, as perdas e os não havia nada a fazer. Já havia
ganhos da maternidade emergem algumas semanas que sentia
conjuntamente, dando lugar à coexistência de contrações, mas eu não queria chatear a
sentimentos opostos. Ana tem certeza da sua minha médica. Como alguém que
gravidez, mas também a nega, talvez como trabalha num serviço de obstetrícia,
mecanismo de autopreservação, considerando acho que todos esperam que saiba
as tentativas pregressas de insucesso. Carla, no como agir e que não me queixe por tudo
mesmo movimento, se enche de felicidade por e por nada. Esperam que, como
finalmente realizar seu desejo de ser mãe, mas grávida, seja diferente de todas as

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outras grávidas que não têm formação mulheres anseiam desde o dia em que
nessa área. [...] Mas eu era apenas se descobrem fêmeas; soube que
mais uma grávida, com dúvidas, estava grávida no dia 17 de março. A
como qualquer uma. O fato de trabalhar felicidade encheu-me a vida de mil
ali não me fazia ser diferente (in: cores e toda a família distribuía o meu
Pontes, 2009, p. 184, grifo nosso). estado de graça por todos que nos
rodeavam (CARLA, in: PONTES,
Sobre o processo de construção da 2009, p. 63, grifo nosso).
maternidade, primeiramente, destaca-se a
narrativa de Carla: “Conseguia o meu sonho, Pensando após a percepção da
aquele por que todas as mulheres anseiam gravidez, as três narrativas abordam a primeira
desde o dia em que se descobrem fêmeas” (in: ultrassonografia como parte importante da
Pontes, 2009, p. 63). Além de se referir ao seu constituição da sua maternidade:
desejo, ela o generaliza como um desejo de
todas as mulheres. O seu relato expressa o Primeira consulta e lá estavas tu - ou
imperativo social da maternidade para a o que eu julguei seres tu - com um
mulher alcançar sua feminilidade (Badinter, pisca-pisca brilhante” (Ana, in: Pontes,
1985; Iaconelli, 2007; Kehl, 2008). É 2009, p. 48, grifo nosso).
importante ressaltar que, devido a influência
social sobre a maternidade na formação da Pela primeira vez, pude ouvir o
identidade da mulher, o próprio processo de coração do meu pequenino, a bombear
construção da maternidade nos três casos teve energicamente a sua vitalidade para
início antes mesmo da descoberta da gravidez, todas as minhas células” (Carla, in:
o que fica evidente na fala de Carla. Pontes, 2009, p. 63, grifo nosso).
Em relação ao lugar psíquico que o
filho ocupa na subjetividade dessas mulheres, Nunca vou esquecer aquele dia, o dia
percebe-se que ele é colocado como objeto de em que vi pela primeira vez o meu
completude, capaz de tamponar a falta. Ao se bebê! Era um pontinho minúsculo que
confrontar com a castração, um dos destinos pulsava sem parar. Era um coração
que a mulher encontra, segundo Freud cheio de vida que estava ali para
(1932/2018), é a maternidade, na qual o filho encher a minha existência de alegria
substitui o lugar do falo, objeto desejado. Isso (Liliana, in: Pontes, 2009, p. 183, grifo
aparece, especialmente, no discurso de Ana e nosso).
Carla, que dão ênfase ao seu desejo por um
filho. Elas se utilizam, inclusive, de adjetivos O vínculo da mãe com o seu filho já
que indicam uma completude advinda da começa a se estabelecer intra-útero e a
gravidez: ultrassonografia permite um maior
estreitamento desse laço afetivo, uma vez que
Dia 3, um teste de urina permitia-me o imaginário aparece projetado e materializado
viver a sensação da maternidade na através da imagem (Schimidt & Argimon,
sua plenitude” (Ana, in: Pontes, 2009, 2009). A gestação é um episódio no qual a
p. 48, grifo nosso). discriminação entre real e imaginário torna-se
tênue, uma vez que o objeto vai sendo
(...) a natureza mimoseou-me com o investido libidinalmente a partir do lugar de
devaneio da maternidade mais cedo projeções e identificações da mãe. Apenas com
do que o esperado. Conseguia o meu a chegada do bebê que a mulher poderá fazer o
sonho, aquele porquê todas as luto da fantasia, na qual seu narcisismo

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englobou o objeto de desejo. As fantasias que sete semanas e meia comecei a ter a
a gestante constrói são essenciais no impressão de que alguma coisa não estava
fortalecimento da vinculação mãe-feto, pois bem… Mesmo sem nunca ter te sentido
permitem também a formação do bebê fisicamente, não te sentia mais… eu sabia que
imaginário, parte essencial da elaboração algo tinha mudado” (In: Pontes, 2009, p. 49,
psíquica da gestação (Bortoletti, 2007). grifo nosso). De forma menos evidente, Liliana
Além disso, a percepção dos também demonstra a sua percepção quando
movimentos fetais ajuda a grávida a relata: “Tinha tanto medo de que alguma coisa
personificar o filho, pois ela começa o corresse mal!” (p. 184). E ao ir até a
processo de atribuir características pessoais a maternidade por não estar sentindo o bebê
partir da interpretação dos movimentos mexer:
(Maldonado, 2017). Liliana relata como foi
quando começou a sentir os movimentos do No dia 9 de fevereiro de 2008, acordei
seu bebê: muito gripada. Não sentia o Miguel
mexer desde o dia anterior. Decidi ir
O meu menino começou a crescer, a ao hospital. Fiz uma cardiotocografia
minha barriga rapidamente tornou-se (CTG): a frequência cardíaca estava
visível e eu era a mãe mais orgulhosa normal, mas apresentava pouca
do mundo! Comecei a sentir o Miguel, variabilidade. Por sorte naquele dia
que sensação maravilhosa a de sentir estava lá a minha médica. Fizemos uma
o nosso filho a mexer dentro de nós! ecografia e segundo ela estava tudo
(In: Pontes, 2009, p. 184, grifo nosso). bem. O colo já tinha 80% de
apagamento, estava com contrações,
A segunda parte da análise considerou tudo indicava que o meu menino
o impacto psíquico da perda gestacional para nasceria em breve (In: PONTES, 2009,
as três mulheres a partir de suas narrativas. O p.184-185, grifo nosso).
percurso desde a percepção de algo estava
errado, passando pela notícia dos médicos e Carla não explicita essa percepção, mas
pela concretização da perda até o expressa culpa por não a ter sentido: “O meu
enfrentamento posterior é relatado com bebê tinha parado de se desenvolver perto da
sofrimento, dor e culpa. Assim como afirma nona semana. Como é que não dei conta,
Torloni (2007), “a morte de um feto é a morte tinha doze semanas!” (In: Pontes, 2009, p. 64,
de um sonho” (p. 297): grifo nosso).
Os sentimentos descritos antes da perda
Chamem-me louca, idiota, masoquista, condizem com a descrição de Freud
mas são raros os dias em que não sinta (1926/2014) sobre a angústia, que consiste na
a tua falta dentro de mim… mesmo sem reação à ameaça da possibilidade da perda.
nunca ter tido o prazer de te sentir. Nasio (2007) acrescenta, ainda, que “a
Partiste e deixaste um vazio ainda angústia é o pressentimento de uma dor futura”
maior, ninguém sabe ao certo porque é (p.35). Especificamente no contexto da
que não pudeste ficar, e essa incerteza gestação, Bortoletti (2007) salienta que a
devora-me por dentro (Ana, in: Pontes, mulher possui uma hipersensibilidade
2009, p. 47). marcante, de forma que muitos medos
emergem nesse período em relação a
Em relação à percepção de que algo permanência do feto no útero, entre outros
estava errado, as três narrativas trazem isso de tantos temores.
alguma forma. Ana, literalmente, afirma: “Às

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O impacto da notícia da perda fetal é que estava fazendo aborto retido e narra o
descrito da seguinte forma por Carla: impacto da notícia da perda:

Aquela expressão, ainda hoje a encubro Saí de lá com lágrimas silenciosas a


com outros pensamentos! Aquela correrem pela cara; passar no meio das
fisionomia, o olhar da médica, o grávidas felizes sabendo que estavas
monitor que se afastava para o não dentro de mim sem vida, saber que
ver… E a frase “não tenho boas afinal nunca te conheceria… como as
notícias para vocês” ecoa na memória invejei, como desejei estar no lugar
de forma tão sonora ainda. Gelei, sim delas.
gelei, porque uma implacabilidade Queria gritar ao mundo a minha
contra tudo quanto me rodeava revolta… Eu tinha feito tudo
culminou numa dor atroz, não direitinho, não engravidei à toa, fui
conseguia sentir e ao mesmo tempo fazer todos os exames e mais alguns…
detonava em sensações (In: Pontes, Por que eu?
2009, p. 63-64, grifo nosso). Por que comigo?
Eu não merecia sofrer assim.
Com Ana, o choque da notícia foi tão É uma dor tão grande, um sofrimento
intenso que ela não pode acreditar, precisando monstruoso (In: Pontes, 2009, p. 50,
recorrer a outro médico, que não lhe grifo nosso).
confirmasse sua perda:
Liliana relata ter retornado à
A médica de serviço era a minha… maternidade devido ao aumento das
fiquei feliz mal a vi, mas a felicidade contrações e ao chegar foi realizar a
terminou logo ai. Ela já não te via, não ultrassonografia:
via o embrião.
[...] Num rompante de esperança, fui a Quando me fizeram a eco percebi-me
outro hospital… outras urgências; de que algo não estava bem; eu
estava mais calma e cheia de esperança perguntava se o bebê estava bem e
que estivesse tudo bem. “Não lhe vou ninguém me respondia. Os olhares
mentir, o coração está muito fraquinho revelaram aquilo que eu não queria
e vejo uma hemorragia. Se tem certeza saber: “o bebê não tem batimentos
do tempo como diz ter, também está cardíacos”. O meu mundo desabou.
pouco desenvolvido”. Foi um choque tão grande que a
Não me caiu uma lágrima nesse minha vontade foi morrer naquele
momento. Estava seca de sentimentos. momento. Como foi possível
Árida de vida. acontecer aquilo em menos de 24
Senti só um grande medo. horas?! Um vírus fatal, em menos de 24
Agarrei-me com sofreguidão à horas, atingiu a placenta, acabou com
possibilidade de conseguires ficar a vida do meu menino e com os meus
comigo; por mais fraquinho que sonhos! (In: Pontes, 2009, p. 185, grifo
estivesse, ainda estavas lá e nem tudo nosso).
estava perdido (In: Pontes, 2009, p.
49-50, grifo nosso). A maneira como as três narrativas
expressam o impacto da notícia de suas
Ana adiou por uma semana e ao respectivas perdas representam a afirmação de
retornar ao hospital, relata a fala do médico de Bartilotti (2007) de que a morte de uma criança

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é o próprio símbolo da frustração de sonhos, Ao perder o objeto de amor, essas mães


desejos e fantasias, pois interrompe qualquer descrevem sensações compatíveis com uma
possibilidade de exercício da maternidade. Nos ruptura brutal, de forma que o princípio de
três casos, o período anterior à perda veio prazer perdeu sua funcionalidade e as tensões
acompanhado de muitas expectativas e se desencadearam sem regulação. Assim, o eu,
idealizações e de forma abrupta, toda a ao se voltar para seu interior, percebeu o
possibilidade de eternidade dessas mães foi transtorno das tensões incontroláveis, ou seja,
impedida. Como afirma Curi (2016), a morte sentiu a dor psíquica.
do objeto provocou a desconstrução da Segundo Iaconelli (2007), a principal
identidade dessas mulheres que já se singularidade do luto materno diante da perda
constituíam como mães. gestacional é a negação social, que
A afirmação de Liliana “foi um choque desencadeia o desmentido da perda e
tão grande que a minha vontade foi morrer obstaculiza as possibilidades de representação.
naquele momento” explicita a afirmação de Dessa forma, a mãe é impedida de atribuir o
Bortoletti (2007) sobre a perda gestacional status de filho morto ao bebê perdido. Esse
representar uma sobreposição de perdas, na silenciamento comparece nas três narrativas:
qual “criança morta” é também “mãe morta”.
Os sentimentos evocados dessa equação são “Vá para casa e repouse uma semana.
intenso fracasso, incapacidade e inferioridade Depois volte que vamos ver se ainda se
pela impossibilidade de gestar o próprio filho. pode fazer mais alguma coisa. Você é
Estes ficam evidentes nos questionamentos de nova, faz outro… foi melhor assim”
Ana: “Por que eu? Por que comigo?” e quando Foi melhor assim?
ela expressa sua inveja pelas grávidas. Odeio essa frase!
Pode-se considerar que Ana, Carla e Melhor era teres nascido hoje.
Liliana sentiram a dor de amar descrita por Melhor seria eu estar agora contigo nos
Nasio (2007). Alcançaram o limite entre meus braços e poder beijar-te vezes
psíquico e somático, entre o eu e o outro e entre sem fim...Isso sim teria sido melhor
o funcionamento regulado do seu psiquismo e (Ana, in: Pontes, 2009, p. 49, grifo
seu desregulamento. Sentiram a perda de parte nosso).
de si mesmas, do objeto de amor a elas Percebi que ainda não digo “eu perdi
incorporado: o meu filho” em voz alta (Carla, p. 65,
grifo nosso).
É uma dor tão grande, um sofrimento Inesperadamente, sem aviso prévio, o
monstruoso (Ana, in: Pontes, 2009, meu filho foi arrancado de dentro de
p.50, grifo nosso). mim, dos meus braços, do meu colo!
Nunca o ouvi chorar.
Gelei, sim gelei, porque uma [...] Submergiram-me com uma
implacabilidade contra tudo quanto me medicação que me roubou as forças
rodeava culminou numa dor atroz, não para atuar, que me reprimia as palavras
conseguia sentir e ao mesmo tempo e, aos poucos, tiraram-me aquele
detonava em sensações (Carla, in: momento, o único em que poderia
Pontes, 2009, p. 64, grifo nosso). estar com meu filho. Nunca perdoarei a
anestesista que me fez isso. Eu estava
Por vezes sinto uma dor tão grande calma, simplesmente comecei a chorar!
que me sufoca (Liliana, in: Pontes, Será que eu não tinha direito de o fazer?
2009, p. 187, grifo nosso). O meu filho estava morto! É claro que
eu tinha de chorar. Mas ela achou que

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o melhor era pôr-me a dormir e gestacional, diferentemente da morte de um


roubou-me aquele momento. Em outro externo, envolve a perda de um objeto
apenas um segundo passei a dormir introjetado. Essa especificidade se assemelha a
profundamente (Liliana, in: Pontes, melancolia descrita por Freud (1917/2010), a
2009, p. 186-187, grifo nosso). qual implica uma perda desconhecida. O
Muitas vezes as pessoas abordam-me e sentimento de vazio descrito nas três narrativas
dizem: “se calhar foi melhor assim!” explicita isso. A não elaboração desse vazio
Como podem dizer que foi melhor oferece subsídios para que a experiência de
assim? (Liliana, in: Pontes, 2009, p. morte retorne em outro lugar. Um dos
187, grifo nosso). caminhos possíveis é a melancolia, pois
vivenciam um trabalho semelhante ao luto,
Como demonstram as falas das mães, a mas o Eu não é liberado para reinvestir em
tentativa de silenciar sua dor e aniquilar suas outros objetos. A libido se volta ao eu,
perdas produziu forte impacto no seu promovendo a identificação deste com o objeto
psiquismo. A escassez de recordações do filho perdido.
desencadeou sensações de irrealidade e vazio, No que concerne ao processo de
bem como temor de que as poucas marcas que elaboração, a narrativa de Ana evidencia
o bebê deixou pudessem ser usurpadas: aspectos que corroboram com a explicação de
Nasio (2007) do momento de desinvestimento
Partiste e deixaste um vazio ainda e superinvestimento diante da perda:
maior, ninguém sabe ao certo porque é
que não pudeste ficar, e essa incerteza Passaram-se já dias, semanas, e é árduo
devora-me por dentro (Ana, in: começar a esquecer. Trinta semanas
Pontes, 2009, p. 47, grifo nosso). nos separam e ainda me custa muito
Regressei à casa abarrotada de acreditar que te perdi. [...] Um beijo
comprimidos. O processo começou eterno da tua mãe, que te amou por todo
rapidamente, a força química é o tempo que estiveste presente na
irremissível, o nosso corpo passa a minha vida, hoje esvaziada… e que te
obedecer cegamente a um espectro de amará para todo o sempre (Ana, in:
morte iminente, como num puzzle. Pontes, 2009, p. 50).
Naquela noite o meu filho abandonou o
meu corpo que o cerrava em cativeiro, O seu Eu desinvestiu subitamente a
sem deixar vestígio da sua fugaz quase todas as suas representações para
existência. No entanto, há um vestígio superinvestir maciçamente em uma única
significativo: o vazio que eu sinto; representação, a do amado que não existe mais.
possuo uma cova, cheia de nada, Ao contrário, o relato de Carla demonstra o
dentro de mim (Carla, in: Pontes, trabalho de luto, com o desinvestimento
2009, p. 64, grifo nosso). progressivo da representação do objeto
Não é fácil ver aquelas mulheres saírem perdido. Seu discurso “aos poucos estou a
de lá com o filho nos braços sendo que fazer as pazes comigo”, mostra que não houve
eu saí de lá completamente vazia um empobrecimento do eu.
(Liliana, in: Pontes, 2009, p. 187-188, O trabalho do luto reside na
grifo nosso). inexistência do objeto amado, restando à libido
retirar-se das suas conexões com este e
Além da experiência traumática de predominando a realidade. A narrativa de
silenciamento da sua dor e impossibilidade de Carla explicita esse mecanismo: “Consegui
representá-la, o luto nos casos de perda arrumar as prendinhas, roupinhas e lembranças

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que já tinha. Esforço-me por imaginar que, se Há pouco tempo fui colocada no palco
tudo correr bem, daqui a algum tempo vão da vida, quando precisamos realmente
saltar da prateleira e serão usadas pelo (a) improvisar: fui fazer análises ao
futuro (a) mano (a)” (In: Pontes, 2009, p. 64). mesmo local onde tinha ido quando
Além disso, Carla evidencia em sua fala a estava grávida. A funcionária indagou
característica do trabalho de luto descrita por o porquê de estar isenta da taxa e eu
Freud (1917/2010) quando afirma que o que se tive de assumir, a uma pessoa
torna pobre e vazio é o mundo externo e não o estranha em voz alta: “eu perdi o
próprio eu. Ela conta estar, aos poucos, meu filho”. Descontrolei-me,
aprendendo a lidar com a sua perda e explicita emaranhei-me num sentimento de total
que o maior sofrimento advém do seu revolta e fugi dali o mais depressa que
ambiente externo: pude. Julgava-me mais forte, mas não!
Estou fraca! (In: Pontes, 2009, p. 65,
Ao longo desse tempo tenho grifo nosso).
aprendido a lidar com o que me
aconteceu. É muito complicado, mas o Nesse episódio descrito por Carla, ao
tempo tem o seu papel de curandeiro dizer em voz alta, sua perda pode ser
e vai ajudando como pode e sabe. A representada ao nível de consciência. Ainda
minha mãe e irmã ainda sofre bastante que tenha se sentido fraca, foi parte importante
com o que se passou, a ponto de eu não do processo de trabalho do seu luto. O
conseguir falar com elas sobre o reconhecimento da perda do filho é necessário
assunto; gostava muito de o poder para permitir o reinvestimento libidinal e a
fazer, mas sinto que elas não elaboração psíquica da vivência traumática
conseguem. É complicado tentar experienciada.
explicar-lhes que me agoniza pensar no De maneira diferente de Carla, o
bebê que eu nunca vou saber como era, enfrentamento posterior a perda em Liliana se
se era menina ou menino… será sempre deu com algumas particularidades. Como
o meu primeiro filho, que não nasceu. mencionado, a melancolia se coloca como
Não quero nem posso reduzir o meu saída possível diante da perda gestacional. A
bebê a qualquer coisa que ainda não narrativa de Liliana explicita diversos
era, para mim ele já era tudo. Tento elementos que se assemelham a esse processo.
apenas aceitar que não nasceu. A principal especificidade desse estado é o
A minha experiência tem tido empobrecimento do eu, perceptível no relato:
diferentes momentos; há fases em que “Olho para mim e não me reconheço, a alegria
eu própria brinco com o assunto para desapareceu da minha vida” (In: Pontes, 2009,
que adquira a leveza do ar e me p. 187).
oxigene, preciso desse gás para No caso de Liliana, ela teve um breve
conseguir falar com as pessoas que me contato com o seu bebê, mas não houve tempo
rodeiam (In: Pontes, 2009, p. 64-65, de reconhecer sua perda. Tiraram-lhe a
grifo nosso). possibilidade de se despedir e realizar os
rituais, importantes para o trabalho de luto. O
Outra característica primordial movimento de não reconhecer a própria a
postulada por Freud (1917/2010) do trabalho conduziu à incorporação do objeto perdido
de luto é que nele há uma representação como uma sombra, assim como a descrição de
consciente da perda: Freud (1917/2010) sobre a identificação
melancólica. Com isso, a perda do objeto se
tornou a perda do Eu.

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Uma das explicações de Freud 141). Essa luta fica explícita no discurso de
(1917/2010) para a forma como ocorreria tal Liliana, quando traz expressões de uma
processo envolve uma forte fixação no objeto possível elaboração do luto seguido de
amoroso e, contraditoriamente, uma pequena autodepreciação:
resistência do investimento objetal. Supõe-se a
ocorrência de uma escolha objetal sobre base Hoje consigo olhar para a frente e
narcísica, de tal modo que o investimento pensar que aconteceu porque tinha de
objetal regressou ao narcisismo e a acontecer, porque o destino reservou-
identificação narcísica com o objeto substituiu me esse final tão cruel e nada poderia
o investimento amoroso. O mecanismo fazer para o ter evitado.
descrito aparece nas últimas linhas da narrativa Mas nos dias em que a tristeza me
de Liliana: invade, volto a indagar: “será que não
poderia ter sido feita alguma coisa para
Acredito que o meu anjo está no céu, salvar o Miguel? Será?” São dúvidas
que está a olhar por mim e pelo pai. que tento colocar de lado, mas quando
Que está numa nuvem linda a brincar estou em baixo elas regressam em
com todos os outros anjinhos. No força!
fundo, paira a esperança de um dia Por vezes ponho-me a pensar naquele
reencontrar o meu filho. Eu sei que um dia e imagino-me de forma diferente,
dia vou voltar a abraçá-lo… com um final feliz. Como era bom
Miguel, a ti, meu anjo, eu dedico a poder mudar o final desta história!
minha vida, o meu sorriso, a minha De regresso ao trabalho, enfrento todos
alegria. Por ti, meu anjo, choro e vou os dias grávidas e bebês a nascerem;
chorar… tem sido muito complicado esse
Por ti eu sinto amor, ternura, saudade. regresso. Não é fácil ver aquelas
Saudade que dói e vai doer para mulheres saírem de lá com o filho nos
sempre. braços sendo que eu saí de lá
Neste palco que é a vida tu és e serás completamente vazia. Por vezes
sempre a minha estrela (in: Pontes, penso que não vou conseguir continuar
2009, p. 188). a trabalhar ali. Hoje vivo na esperança
de engravidar e poder dar um irmão ao
Devido ao fato de a própria gestação Miguel, para que ele, lá do céu, possa
fazer emergir diversos sentimentos de tomar conta do mano, como diz uma
ambivalência, diante da perda, a mulher pode querida amiga. Não há um dia em que
vivenciar a melancolia, que tem como eu não chore de saudade (In: Pontes,
característica a relação ambivalente entre 2009, p.187-188, grifo nosso).
sujeito e objeto perdido. Assim, o ódio pelo
objeto perdido acaba sendo redirecionado ao Nas três narrativas apresentadas, a
próprio eu. Liliana, em sua narrativa, aborda vivência da perda gestacional veio
sentimentos ambivalentes durante todo o acompanhada da impossibilidade de
período desde a descoberta da gravidez até o comprovar a realidade da perda e a própria
enfrentamento da perda do seu filho. Freud existência do bebê, assim como afirmam
(1917/2010) salienta que a melancolia implica Aguiar e Zornig (2016). Por não se fazer
“inúmeras batalhas em torno do objeto, nas presente após seu nascimento, o teste de
quais ódio e amor lutam entre si, um para realidade ficou comprometido, uma vez que
desligar a libido do objeto, o outro, para manter não houve revelação da realidade da existência
essa posição da libido contra o ataque” (p. do objeto de amor. Com isso, a realidade, em

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vez de exigir a retirada da libido das ligações Por outro lado, comparando as três narrativas,
com o objeto perdido, a lançou em um estado a singularidade na maneira como cada mulher
de confusão, tornando penoso o abandono sua vivenciou e enfrentou a sua perda reafirma que
posição libidinal. Os casos de Ana e Liliana, o tempo de luto é diferente para cada mãe,
nos quais ainda não estava evidente o início do sendo que implica o tempo de compreender
trabalho de luto, pode-se considerar que que a vida do filho existiu e deixou de existir.
também não foi possível a recuperação da Como ficou explícito, não há apenas um
libido investida no objeto bebê perdido e o caminho possível diante da perda gestacional.
redirecionamento do interesse ao mundo A elaboração do luto é completamente viável,
externo. apesar de se constituir sempre como um
Por meio da análise das narrativas de processo carregado de intenso sofrimento.
vida foi possível compreender como se dá o Além disso, é possível a vivência da
impacto psíquico da perda gestacional para a melancolia por um tempo e depois evoluir para
constituição subjetiva das mulheres que o trabalho de luto.
passaram por essa experiência. Percebeu-se A investigação confirmou os dados da
que essa perda representa um acontecimento literatura que apontam a dificuldade dos
muito doloroso para a mãe, associado aos profissionais de saúde e dos próprios
sentimentos de vazio, dor e frustração, familiares em acolher o sofrimento da mãe
implicando a necessidade de uma reconstrução diante da perda do filho. As narrativas
da sua identidade. explicitaram que esse silenciamento e o
Diante do estudo realizado, ficou impedimento de poderem vivenciar e
evidente que o trabalho de luto nesses casos expressar sua dor provocaram um sofrimento
apresenta características muito específicas e ainda maior, tornando a elaboração do luto
individuais, mas ao mesmo tempo, aspectos mais dolorosa e devagar.
que os tornam semelhantes, evidenciando as Sendo assim, ficou evidente a
contradições próprias dos processos que importância de uma rede de apoio para
envolvem o ser humano. Como descrito, o mulheres que passam por essa vivência. Um
trabalho de luto exige algumas condições espaço de acolhimento após a perda é essencial
psíquicas, como o superinvestimento e para as experiências subsequentes, que
posterior desinvestimento de lembranças envolvem as tentativas de elaboração da dor
concernentes ao objeto perdido, a psíquica, identificação e respeito aos desejos
comprovação da realidade sobre a ausência, o maternos, bem como a necessidade de a mãe
reconhecimento social da dor e a elaboração da viver e representar seu sofrimento para
ambivalência. No caso da perda gestacional, as posteriormente reinvestir energia em outros
lembranças são poucas e o teste de realidade objetos. Entende-se que esta perda deixa um
fica comprometido, uma vez que a tendência vazio que é sentido, que deve ser percebido na
do entorno é negar quaisquer vestígios da consciência e representado, para que haja um
existência do bebê. processo de elaboração da dor pela morte do
Nos três casos observou-se a fala social filho.
de que os bebês, por morrerem antes do Nesse contexto, percebeu-se que as
nascimento, seriam substituíveis, provocando narrativas podem comparecer como recurso
uma pressão para acelerar o trabalho de luto ou organizador de uma vivência temporal
mesmo não o reconhecendo. Foi possível complexa, contribuindo para a elaboração
perceber que a impossibilidade de desse passado que não passa e do qual é quase
compreender o lugar psíquico do filho para as impossível falar verbalmente. A escrita pode
mães leva à desconsideração das mínimas auxiliar a representação do episódio
condições para a elaboração desse tipo de luto. traumático, além de poder manter viva a

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memória do filho, do qual as recordações e Campos, E. B. V. (2013). Considerações sobre


lembranças são escassas. Sabe-se que o a morte e o luto na psicanálise. Revista de
processo de luto é complicado, variando Psicologia da UNESP, 12(1), 13-24.
significativamente em cada caso, de forma que Curi, P. L. (2016). Da curetagem aos restos
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suficiente para atender às necessidades dessas SPCRJ, 32(1), 52-59.
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