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– e eu não conseguia parar de olhar para ela, e soube tão claramente como sei agora, que estou prestes a morrer, que a amava
mais que tudo que já vi ou imaginei na Terra, ou esperei descobrir em qualquer outro lugar. Ela era só um eco de aroma tênue
violeta e folhas mortas da ninfeta sobre quem eu rolara no passado com tantos gritos; um eco à beira de uma ravina rubra, com
um arvoredo esparso sob um céu branco, folhas castanhas entupindo o leito do riacho, e um último grilo perdido em meio à relva
ressecada... mas graças a Deus não era só esse eco que eu adorava.” Nabokov

Acho que a palavra é “intenso”. Algumas pessoas andam pelo mundo com
cicatrizes na alma como crianças que passam pela infância alternando os
ralados no joelho, testa e cotovelo. Como a criança travessa, este lote da
humanidade bem que gostaria de se controlar, mas a missão é impossível.
É uma vontade de sacudir o mundo e mostrar o araçá maduro na casa
vazia com muro alto, de convencer do porteiro ao rabino de que naquele
mês todo mundo deveria ser obrigado a comprar a TRIP e a TPM, ainda
que as duas falem do mesmo assunto e tenham algumas matérias em
comum. São ganas de jogar a educação e o politicamente correto para o
alto e chamar a mulher de Higienópolis que xingou a candidata de bugra
de “gorda miserável”. É dar surra com vara de marmelo no outro, que não
percebe que o araçá está lá, pedindo para ser mordidinho.
Ou não. A missão de controlar-se é impossível, e aí o intenso já fez.
Comeu o araçá, mandou o vendedor de algodão doce entrar no trabalho
do namorado com aquela nuvem colorida e entregar um bilhete feijão
com arroz – porque intenso não entrega bilhete feijão com arroz assim,
sem algodão-doce. Pediu demissão pelo telefone, comprou passagem
para Manágua, fez serenata para a vizinha de óculos fundo-de-garrafa,
jogou as coisas do marido pela janela do sétimo andar, tomou uísque com
café para continuar escrevendo, cozinhou aquele arroz com manga com
tanta paixão que até pensaram que ela soubesse fritar ovo.
Mas isto é outra história.
A história desta confraria de sonhadores é intensa, e desde a primeira
infância. Você deve ter um primo, uma irmã ou uma vizinha assim: a
primeira paixão entre os três e o cinco. O gosto precoce por qualquer
coisa que transitasse entre Antônio Marcos, Cauby Peixoto, Leonard
Cohen e Billie Holiday. A vítima era com certeza um vizinho da frente, uma
coleguinha da escola. Três anos de diferença, e, como tantos que viriam
mais tarde, nem aí para o araçá.
Pode perguntar para a mãe dela: parecia coisa de filme, deitada no chão
da sala, aquele pedacinho de gente, ouvindo Cartola. Brincando no recreio
com cigarrinhos de chocolate, porque já era meio Maysa no jardim de
infância. E aí chega o verão dos treze, quando as meninas têm a idade da
Julieta e ao menino que dispensou o araçá só resta esperar com
resignação o momento exato em que Julieta vai vingar-se do mau amante
(nesta fase ainda em potencial). Mas intenso que é intenso não se vinga,
se esquece.
Os intensos amam facilmente, não porque topam facilmente com pessoas
para amar, mas porque não fazem resistência: abandonam-se,
mergulham. Aos treze, o vizinho finalmente encosta ela no muro e pede
para namorar, mas aí ela já está intensamente interessada por um o-u-t-r-
o. Aos 19, ela adora Miles Davis: indiossincrático, inquieto, passional e
contraditório. Decidiu que não quer mais ser intensa, quer ser
“indecifrável”. Aos 21, quer ser o amor da sua vida e tem ciúme retroativo
do Vinícius de Moraes porque ele escreveu “Minha Namorada” e “Para
uma menina com uma flor” para ela, mas Soneto de Fidelidade não. Quer
que você atravesse o mundo num veleiro para busca-la. Aos 35, quer
namorar o Chico, arranjar um amante ou comprar um vibrador. Aos 40, se
dá conta que Cartola tinha razão. O mundo é um moinho.
Acho que a palavra é “humano”. E às vezes é difícil explicar, mesmo que
para outro intenso, que a nuvenzinha que ele carrega nem sempre é de
algodão doce. Que o que difere o Davi de Michelangelo dos nus de
Polykleitos – o intenso do inerte - é a completa falta de passividade
clássica. A beleza do intenso é uma beleza CAR-RE-GA-DA de emoções.
Viver com este “humano” é saber que, se fizer amor com a moça, ela vai
continuar sentindo seu carinho cada vez que o tecido do vestido lhe tocar
a coxa. É nunca saber quem vai abrir a porta, se o menino que mora em
uma nuvem e quer saber tudo sobre as mulheres de leão ou o intelectual
racional e inflexível que pensa tanto na morte. Que mesmo que fosse
possível, e que dinheiro não fosse problema, ela nunca teria forças para
viver com um Goya na parede. É esconder os Dostoyevsky sempre que a
maré dos olhos dele estiver mais alta que baixa. É perceber que o araçá
está lá, pedindo para ser mordidinho, e pelo menos uma vez na vida, pular
o muro e ralar o joelho.

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