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Ele tinha uma teoria.

Acreditava
Caixa de papelão que a lembrança era um marco do fim
da infância. Portanto, a tristeza seria
pela inocência e imaginação perdidas.
Concordei, mas lhe perguntei: por que
Quem lembra da infância sabe o
era tão pungente o sofrimento, e por
valor de uma caixa de papelão grande.
que ele não contou essa cena a
Poucas estruturas são tão plásticas. ninguém, nem ao irmão, seu copiloto
Um bom piloto consegue aterrissar de sempre.
aquela astronave em vários planetas.
Mesmo com pouca experiência Não tinha resposta. Não se sentia
náutica, dá para cruzar os mares como à vontade para comentar. Brota-lhe
um barco pirata perigoso. Submerge uma vergonha maior que o
se for o caso, até mil léguas, é um sofrimento. Por várias sessões o tema
ótimo submarino explorador das rondava. Lembrava da ausências do
fossas abissais. pai e das trapalhadas maternas.
Sempre exausta, criando e
Além disso, uma caixa dessas é um
sustentando os meninos sozinha.
excelente esconderijo contra Tinha pavor de datas comemorativas.
monstros. Suas laterais resistem a A mãe, fragilizada pelo abandono,
qualquer ataque alienígena. Fortaleza
misturava álcool com remédios e fazia
inexpugnável contra bandidos. Segura
um papelão para a família.
também frente aos piores fantasmas.
Nenhum zumbi ameaça quem está Repito a palavra papelão e ele se
dentro. Enfim, é o melhor ferrolho que dá conta. A cena de fato representava
uma criança pode dispor. o fim da infância, mas estava
sobreposta a um sofrimento maior:
Um dia, um paciente contou-me
ver a mãe atrapalhada, fazendo um
suas aventuras com essa caixa mágica.
papelão para seus avós. A caixa
Ele e o irmão não tinham brinquedos arriada, que já não protege ninguém, e
comuns. Ou melhor, tinham, mas eram onde não há espaço para entrar, era a
brinquedos errados. A mãe, pouco
representação plástica da fragilidade
conectada na infância deles, os
materna.
presenteava de forma inadequada. Ou
era um brinquedo para outra idade, ou Nada assusta mais uma criança
para outro tipo de criança, ou para que se ver seus protetores
meninas. Ela nunca acertava. Com a desamparados. Quem sabe a caixa não
idade, os dois já esperavam qual o fora teria servido como um abrigo para
que ela iria dar. acolher também aquela mulher,
deixada para trás, como tantas que
Mas crianças criam seus próprios criaram seus filhos sozinhas. Aquele
brinquedos. Um dia eles conseguiram menino, agora um homem, chora por
uma caixa onde viveram inúmeras
ter sido demasiado pequeno para
peripécias. Mas, depois de um desses
acolher a mãe em sua fortaleza de
dilúvios que só acontecem em Porto papel.
Alegre, ele encontrou a nave espacial
destruída sobre a grama. O papelão
disforme era sua mais triste
(Mário Corso)
lembrança da infância. Tantos anos
depois não conteve as lágrimas.

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