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Scholastique Mukasonga. Me Tornei A Guardiã Da Memória Do Meu Povo
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6 de abril de 1994
Caen, França
Quando vi na televisão as imagens do genocídio que ceifou mais de 800 mil
vidas em Ruanda, em 1994, eu vivia havia dois anos na cidade francesa de Caen,
na Normandia, e trabalhava como assistente social. Eu via aquelas imagens e
lembrava que, 20 anos antes, quando fui embora de Ruanda, meus pais me
disseram que eu seria a única testemunha da existência deles, da memória
deles. Eu via aquelas imagens e um medo tomava conta de mim, medo de que
todas as memórias se apagassem, como um computador que queima e perde
todos os seus arquivos. Quando fui escolhida a guardiã das memórias de minha
família, jamais poderia imaginar que minha tarefa fosse conservar a memória
de tamanha brutalidade. Eu perdi 37 familiares no genocídio: meus pais, meus
irmãos, meus sobrinhos. Em Nyamata, a cidadezinha no sul de Ruanda onde eu
cresci, onde os tútsis foram confinados ainda nos anos 1960 pelo governo
controlado pelos hutus, não restou nada. Nem uma casa, nem uma família,
nem uma criança. Todos mortos. Se eu tivesse permanecido em Nyamata,
também teria sido morta a machadadas.
>> Flip promete partir da literatura para discutir as questões que afligem o
país
Para afastar a loucura, comecei a anotar tudo o que me lembrava. Às vezes,
viajando
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e outras tecnologiasbucólicas da
semelhantes para Normandia,
melhorar a sua experiênciaeu parava o carro, ia para o
em nossos
meio das árvores e anotava tudo aquilo que me vinha à mente de modo tão
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repentino
Privacidade.e brutal. Anotava desorganizadamente, escrevia num caderno de capa
azul, como aqueles que as crianças Assine francesas
Época com ganham 50% OFF quando começam o
https://epoca.oglobo.globo.com/cultura/noticia/2017/07/scholastique-mukasonga-me-tornei-guardia-da-memoria-do-meu-povo.html 2/6
15/05/2023, 17:02 Scholastique Mukasonga: "Me tornei a guardiã da memória do meu povo" - ÉPOCA | Cultura
Refugiados carregam alimentos em Ruanda. Em 1994, um genocídio que durou três meses matou
mais de 800 mil pessoas no país. As principais vítimas foram ruandeses da etnia tútsi (Foto: Ulli
Michel/Reuters)
Muita gente voltou para Ruanda em 1994, após o genocídio. Eu não. Voltar seria
umaNósimprudência: eu tinha medo da loucura e de não ser capaz de guardar as
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conteúdo Em
de seu interesse. Ao julho daquele
utilizar nossos serviços, ano, em Caen, eu
aos estudos. Muita gente me repreendeu. Diziam que não devia falar em
“genocídio”, que essa era uma palavra demasiado forte. Mas o que houve em
Ruanda foi, sim, um genocídio, como a própria Organização das Nações Unidas
(ONU) veio a reconhecer. Voltei para Ruanda apenas em 2004, com meu
marido e meus filhos. Cheguei a Kigali, a capital, com muito medo. Mas tinha
ainda mais medo de voltar para Nyamata, onde eu crescera e onde estavam
meu cunhado e minha sobrinha, sobreviventes do genocídio. Eles conseguiram
escapar da fúria dos genocidas porque se esconderam em pântanos de areia
movediça, onde os hutus não se atreviam a entrar. Minha irmã, que estava
grávida, e seus outros cinco filhos não se salvaram.
Em Nyamata não havia mais nada: nem uma casa, nem uma pessoa,
ninguém que pudesse me falar das coisas da minha infância. Só um matagal.
Eu quis voltar para casa, voltar para a França, reencontrar aquele caderno azul
cheio de anotações. A experiência de retornar a Ruanda dez anos após o
genocídio me levou a escrever meu primeiro livro, Inyenzi ou les cafards, um
relato autobiográfico no qual reflito sobre as razões que tornaram aquela
atrocidade possível. Num dos capítulos, eu listo os nomes dos habitantes do
vilarejo onde minha família viveu seu exílio, como se caminhasse por um
cemitério, no meio de seus túmulos – túmulos de papel. Remeti os manuscritos
para três editoras, motivada por um sentimento de urgência, mas sem
nenhuma alegria. Em 2006, Inyenzi ou les cafards foi publicado pela editora
Gallimard, que edita meus livros até hoje.
A mulher dos pés descalços (Editora Nós, 160 páginas, R$ 35), meu segundo
livro, publicado em 2008, foi escrito em memória de minha mãe, Stefania,
assassinada pelos hutus. Seria ingratidão não contar a vida de minha mãe
depois de tudo o que ela fez por mim. Foi ela quem forçou meu exílio em 1973.
Foi ela quem me protegeu. Foi ela quem me elegeu guardiã de memórias. Minha
mãe não sabia ler nem escrever, mas conhecia a nossa tradição e lutava com
todos os seus meios para que a riqueza cultural dos tútsis não desaparecesse. Ela
era uma famosa contadora de histórias. Se eu tenho algum talento como
escritora, devo a ela. Creio que é dever de todo sobrevivente testemunhar em
nome daqueles que tombaram pelo caminho. Assim, podemos nos redimir por
não termos perecido com eles.
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FLIP 2017 SCHOLASTIQUE MUKASONGA RUANDA 997
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