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15/05/2023, 17:02 Scholastique Mukasonga: "Me tornei a guardiã da memória do meu povo" - ÉPOCA | Cultura

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CULTURA

Scholastique Mukasonga: "Me tornei a guardiã da memória do meu povo"


A escritora ruandesa conta como o genocídio em seu país liquidou sua família e como a tragédia foi determinante
para que ela decidisse enveredar pela literatura. Scholastique fala na noite desta quinta-feira, 27, na Flip
SCHOLASTIQUE MUKASONGA, EM DEPOIMENTO A RUAN DE SOUSA GABRIEL, COM TRADUÇÃO DE
LEONARDO TONU
27/07/2017 - 17h28 - Atualizado 28/07/2017 22h03

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(Foto: Patrick Kovarik / AFP)

6 de abril de 1994
Caen, França
Quando vi na televisão as imagens do genocídio que ceifou mais de 800 mil
vidas em Ruanda, em 1994, eu vivia havia dois anos na cidade francesa de Caen,
na Normandia, e trabalhava como assistente social. Eu via aquelas imagens e
lembrava que, 20 anos antes, quando fui embora de Ruanda, meus pais me
disseram que eu seria a única testemunha da existência deles, da memória
deles. Eu via aquelas imagens e um medo tomava conta de mim, medo de que
todas as memórias se apagassem, como um computador que queima e perde
todos os seus arquivos. Quando fui escolhida a guardiã das memórias de minha
família, jamais poderia imaginar que minha tarefa fosse conservar a memória
de tamanha brutalidade. Eu perdi 37 familiares no genocídio: meus pais, meus
irmãos, meus sobrinhos. Em Nyamata, a cidadezinha no sul de Ruanda onde eu
cresci, onde os tútsis foram confinados ainda nos anos 1960 pelo governo
controlado pelos hutus, não restou nada. Nem uma casa, nem uma família,
nem uma criança. Todos mortos. Se eu tivesse permanecido em Nyamata,
também teria sido morta a machadadas.
>> Flip promete partir da literatura para discutir as questões que afligem o
país
Para afastar a loucura, comecei a anotar tudo o que me lembrava. Às vezes,
viajando
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azul, como aqueles que as crianças Assine francesas
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primário. Fixar a memória no papel era uma obrigação e uma necessidade.


Anotar tudo, cada nome, cada vida. Não me esquecer de nada.
Os tútsis e os hutus não são inimigos ancestrais. Por séculos, eles falaram a
mesma língua – kinyarwanda –, dividiram a mesma terra e adoraram os
mesmos deuses. Havia, é claro, alguns conflitos políticos e econômicos: os hutus
eram agricultores; os tutsis, criadores de gado. Foram os colonizadores alemães
e belgas que transformaram essa rivalidade econômica em ódio étnico ao
insistir que os tútsis, com sua monarquia, pertenciam a uma “raça” superior.
>> A triste república de Lima Barreto
A retaliação aos tútsis começou logo após os ruandeses conquistarem a
independência dos belgas, em 1962. Aquela época já anunciava o extermínio dos
tútsis. Muitos se refugiaram em países vizinhos, como Uganda e Congo, mas
cerca de três quartos dos tútsis permaneceram em Ruanda. Os tútsis que
ficaram, como minha família, foram condenados a um exílio dentro do
território ruandês, em regiões inóspitas como Bugeresa, onde fica Nyamata.
Os campos cultivados pelos tútsis eram queimados e famílias eram jogadas em
caminhões e desterradas para Bugeresa, uma terra tão hostil que nem animais
havia lá.
Antes do “exílio no interior”, os tútsis viviam em inzus, casebres de palha
trançada no meio dos bananais. Em Bugeresa, os hutus nos colocaram em casas
uma ao lado da outra, com uma estrada no meio para facilitar o trabalho dos
caminhões de deportação. Nessa época, os exilados tútsis começaram a ser
conhecidos como “inyenzi” ou “cafards” – “baratas” –, que, como os insetos,
deveriam ser exterminados. Em Nyamata, jovens tútsis que se atreviam a abrir
um comércio eram jurados de morte, mas ainda não havia se instaurado uma
política do genocídio. O que havia naquele tempo eram políticas de segregação
étnica, como as cotas estudantis que limitavam a 10% as vagas destinadas aos
tútsis.
Em 1972, passei a frequentar o Liceu Notre-Dame de Cîteaux, como estudante
cotista, e conheci a discriminação que sofriam Virgínia e Verônica, as
personagens do meu romance Nossa Senhora do Nilo (Editora Nós, 264 páginas,
R$ 45), inspirado em minha experiência numa escola segregada. Notre-Dame de
Cîteaux (Nossa Senhora de Císter, na tradução do francês) era um colégio para
meninas mantido por freiras italianas e canadenses em Butare, cidade onde fica
a Universidade Nacional de Ruanda. Era um liceu que atendia as filhas das
classes mais abastadas e pretendia formar uma elite política feminina no país.
Em Butare, eu também pude frequentar o curso de assistência social. Escolhi a
assistência social porque queria aprender um ofício que me permitisse voltar
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Em 1973, um novo governo se formou após um golpe e começaram as


campanhas de caça aos tútsis. Todos os cotistas tútsis foram expulsos das
escolas. Os estudantes hutus caçavam seus colegas tútsis para matá-los. Eu
voltei para Nyamata fugindo da perseguição. Todos em Nyamata viam que se
instaurava uma política genocida. “Nós vamos morrer!”, todos diziam. “Todos os
vestígios da nossa existência, todas as nossas memórias e toda a nossa
história devem ser conservados”, diziam. Eu era testemunha daquelas
existências, havia recebido uma educação formal e aprendido francês – a língua
do colonizador foi o passaporte que me permitiu ir embora e conservar a
memória daqueles que ficaram. Cruzei a pé a fronteira com o Burundi, partindo,
então, para um “exílio exterior”. Eu tinha 18 anos.

Refugiados carregam alimentos em Ruanda. Em 1994, um genocídio que durou três meses matou
mais de 800 mil pessoas no país. As principais vítimas foram ruandeses da etnia tútsi (Foto: Ulli
Michel/Reuters)
Muita gente voltou para Ruanda em 1994, após o genocídio. Eu não. Voltar seria
umaNósimprudência: eu tinha medo da loucura e de não ser capaz de guardar as
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utilizar nossos serviços, ano, em Caen, eu

fundei a Associação para os Órfãos do Genocídio Ruandês e comecei a


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trabalhar com as crianças cujos pais haviam sido mortos e ajudá-las a voltar
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aos estudos. Muita gente me repreendeu. Diziam que não devia falar em
“genocídio”, que essa era uma palavra demasiado forte. Mas o que houve em
Ruanda foi, sim, um genocídio, como a própria Organização das Nações Unidas
(ONU) veio a reconhecer. Voltei para Ruanda apenas em 2004, com meu
marido e meus filhos. Cheguei a Kigali, a capital, com muito medo. Mas tinha
ainda mais medo de voltar para Nyamata, onde eu crescera e onde estavam
meu cunhado e minha sobrinha, sobreviventes do genocídio. Eles conseguiram
escapar da fúria dos genocidas porque se esconderam em pântanos de areia
movediça, onde os hutus não se atreviam a entrar. Minha irmã, que estava
grávida, e seus outros cinco filhos não se salvaram.
Em Nyamata não havia mais nada: nem uma casa, nem uma pessoa,
ninguém que pudesse me falar das coisas da minha infância. Só um matagal.
Eu quis voltar para casa, voltar para a França, reencontrar aquele caderno azul
cheio de anotações. A experiência de retornar a Ruanda dez anos após o
genocídio me levou a escrever meu primeiro livro, Inyenzi ou les cafards, um
relato autobiográfico no qual reflito sobre as razões que tornaram aquela
atrocidade possível. Num dos capítulos, eu listo os nomes dos habitantes do
vilarejo onde minha família viveu seu exílio, como se caminhasse por um
cemitério, no meio de seus túmulos – túmulos de papel. Remeti os manuscritos
para três editoras, motivada por um sentimento de urgência, mas sem
nenhuma alegria. Em 2006, Inyenzi ou les cafards foi publicado pela editora
Gallimard, que edita meus livros até hoje.
A mulher dos pés descalços (Editora Nós, 160 páginas, R$ 35), meu segundo
livro, publicado em 2008, foi escrito em memória de minha mãe, Stefania,
assassinada pelos hutus. Seria ingratidão não contar a vida de minha mãe
depois de tudo o que ela fez por mim. Foi ela quem forçou meu exílio em 1973.
Foi ela quem me protegeu. Foi ela quem me elegeu guardiã de memórias. Minha
mãe não sabia ler nem escrever, mas conhecia a nossa tradição e lutava com
todos os seus meios para que a riqueza cultural dos tútsis não desaparecesse. Ela
era uma famosa contadora de histórias. Se eu tenho algum talento como
escritora, devo a ela. Creio que é dever de todo sobrevivente testemunhar em
nome daqueles que tombaram pelo caminho. Assim, podemos nos redimir por
não termos perecido com eles.

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FLIP 2017 SCHOLASTIQUE MUKASONGA RUANDA 997

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