Bruna de Oliveira Bortolini - Walter Benjamin e A Categoria de Experiência (Erfahrung)

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BRUNA DE OLIVEIRA BORTOLIN

À
WALTER
BENJAMIN
CATEGORIA E A
A
DE EXPERIÊNCIA
(ERFAHRUNG)
É
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bortolini, Bruna de Oliveira


Walter Benjamin : e a categoria de Experiência (Erfahrung) / Bruna de
Oliveira Bortolini. — 1. ed. — Passo Fundo, RS Daniel Confortin, 2020.
:

Bibliografia
ISBN 978-65-00-10091-4

1. Benjamin, Walter, 1892-1940 - Filosofia 2. Filosofia 1. Título.

20-45944 CDD-193

Índices para catálogo sistemático:


1. Benjamin Filosofia alemã 193
:

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

A experiência é carente de sentido


e espírito apenas para aquele já
desprovido de espírito. Talvez a
experiência possa ser dolorosa para a
pessoa que aspira por ela, mas
dificilmente a levará ao desespero.

Walter Benjamin, Experiência.


PREFÁCIO se mostra eloquente em textos fundamentais do autor, como o
clássico “Experiência e pobreza”.
Na presente obra, Bruna de Oliveira Bortolini revisita,
À categoria “Experiência”, sempre de algum modo com olhos completamente contemporâneos, essa central
catego-
pressuposta na tradição filosófica desde a tradição clássica até a ria do pensamento benjaminiano, reavaliando sua atualidade
no
contemporaneidade, assume a partir dos inícios do século XX, arco secular desde as obras de Benjamin onde a sofisticação filo-
especialmente no universo filosófico de tradição alemã, uma sófica da Experiência é desenvolvida, marcando definitivamente
configuração especialmente relevante. Tal se deve, em boa par- à Filosofia do século XX, até esses
poucos anos já decorridos do
te, tanto ao advento e crescente presença das ciências experi- século XXI, no qual a questão da Experiência e sua reproposição
mentais, que impactarão o corpus da Filosofia com suas pos- como categoria central do pensamento urge ser incisivamente
tulações e descobertas, quanto ao retorno, por parte de certos reproposta, sob pena da capitulação do pensamento a modelos
pensadores, à trilha que a própria palavra “Erfahrung” designa. lautológicos de estilo positivista, anti-filosóficos em sua essência,
Pois tal conceito é sobremaneira próximo do verbo “fahren”, e hoje ameaçadores urbi et orbi.
umtal “por-se a caminho”, ínsito a “fahren”, já entaizado num Nesse sentido, nesse momento de crescentemente
qua-
modelo mental maduro, remontando ao Romantismo alemão lificada “redescoberta” de Benjamin no Brasil, temos aqui mais
e suas construções vitais e pedagógicas (um “Bildungsroman” - uma importante obra que contribuirá para o consequente apro-
romance de formação — é, essencialmente, a narrativa de uma fundamento daquilo que, muitas vezes parecendo incorporado à
caminhada ao longo das surpresas e desencontros da vida, do tradição erudita e nada mais, na verdade está mais vivo do
que
universo histórico, material e espiritual, por parte daquele que nunca, hoje como nas primeiras décadas do século XX, e sempre.
“experimenta” essa viagem), assume agora novas configurações.
Franz Rosenzweig foi o pensador de grande calibre que reorien-
tou sua especulação, especialmente a partir do contato com seu Ricardo Timm de Souza.
mestre Hermann Cohen, no sentido de um “erfahrendes Den-
ken” - pensamento experiencial — como o postula explicitamente
em muitas de suas obras e, muito especialmente, no conhecido
texto “Das neue Denken" - “O novo pensamento” e na sua obra
magna Der Stern der Erlósung - Estrela
À da Redenção.
Ora, não é de se admirar o fato de que Walter Benja-
min, em 1929 — ano do falecimento de Rosenzweig — em um
pequeno texto normalmente traduzido como “Livros que ainda
valem a pena ser lidos” elenca, em seu curto rol, À Estrela da Re-
denção. Parece-nos evidente que Benjamin encontrara ali, nessa
obra publicada em 1921, uma configuração intelectual conver-
gente à sua, no que tange ao espaço fundante e fundamental da
experiência no pensamento. De fato, desde suas primeiras obras,
não é indiferente a Benjamin a questão da Experiência, e tal
dn
ata
SUMÁRIO 3 TERCEIRA PARTE
TEMPO, EXPERIÊNCIA E

Ea dose
POTÊNCIA DA LINGUAGEM
....660uciiici 89
INTRODUÇÃO
ade
usas sa 8
3.1 Teoria da linguagem benjaminiana
.ccccco = 94

cce
1 PRIMEIRA PARTE 3,2 Um novo itinerário filosófico...
ao pensamento
WALTER BENJAMIN, ... 100
-
CONTEXTO E REFERÊNCIAS 15 3.3 Modelo ideal de exposição filosófica:

1.1 Benjamin pelo viés da Modernidade ...ivicoscoiieieiiáín—2— 19


O tratado esco| ASTON suesmeSESSEEN

3.4 Entre fenômenos e ideias:


ASSAR 105

1.2 A

1.3 À
cidade moderna e suas ContradiçõeS....únciciieii
estética do vidro e a
es 23 o papel mediador do COnCeIto.....scnssanas

3.5 Experiência, linguagem e temporalidade


108
112

cc ienes
...isuicnncacs,

despersonalização dos Indivíduos ...iiiicniieiiieiee 28


3.6 Atualidade de Walter Benjamin. n7

FINAIS...
1.4 À influência de Franz Rosenzweig no pensamento de
WalKeT BERTA E 34 CONSIDERAÇÕES 119
1.5 À
FPrsha ROSSNSWEIO
aaa Er
origem do conceito de Experiência (Erfahrung) em
TANDO SETTE 44
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
.coo 122

sas
2?
SEGUNDA PARTE
EXPERIÊNCIA dadunésaetsedasso
Eve 49
2.1 À categoria de Experiência nos primeiros
escritos de Walter Benjamin. .iciiiilisinnas.

iii
2.2 Experiência como matéria de tradição...
2.3 À arte de narrar EXperiências. .uiiiiii 59
24 Experiência e MemMÓras.cceesieee
sas ss SRT: 6468
2:5. Experiência E LIMI ue
isca ane
2.6 Modernidade e o declínio da EXperiência.
Rec
...scsiiinnas 72
2.7 Narrativa, romance e Infor Mação, ..úiiiiiiiiienenanno: 75
2.8 Da Experiência ao experimento.......
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

INTRODUÇÃO car ao estudo da categoria de Experiência em suas obras. O que


inclui realizar uma análise do contexto vivido
por Walter Benja-
min, suas influências e principais referências, em destaque a do
O presente trabalho investiga a categoria! de Experiên- filósofo Franz Rosenzweig. À pesquisa observa ainda a
postura
cia (Erfahrung)º no pensamento do filósofo alemão Walter Ben- do autor em relação a alguns acontecimentos de 'sua época, a
jamin, bem como sua origem, características e determinações saber, o advento da modernidade e suas inovações tecnológicas, a
filosóficas. Para tanto, parte do pressuposto de Primeira Guerra Mundial, a crise econômica, ascensão do Nazis-
que tal categoria
na visão do autor não se limita a uma concepção metodológica mo e, somando-se a essas questões, o alcance de seu pensamento
e científica, comum ao pensamento moderno e no qual ele pró- tanto para aqueles que lhe eram contemporâneos, quanto para a
prio se insere. À categoria de Experiência para Benjamin, além atualidade. Razão pela qual as perguntas que norteiam o traba-
de poder ser considerada um instrumento lho se dão da seguinte forma: O que Walter Benjamin pretende
para experimentação
científica, é também entendida como uma espécie de “sabedo- ao enunciar a categoria de Experiência em seus estudos? Quais
ria de vida”, composta por um conjunto de referências e valores os elementos que caracterizam tal
categoria e a que se referem?
comuns capazes de serem transmitidos de geração em geração. Qual a diferença entre Experiência (Erfahrung) e Vivência (Er-
É, portanto, um saber arcaico vinculado a um estilo de vida pré- lebnis) no pensamento do autor? Qual a importância de pensar
“industrial em que o principal modo de comunicação entre os in- a Experiência, no sentido proposto
por Walter Benjamin, para o
divíduos se constitui pela narrativa oral. Aspecto pensamento contemporâneo? Qual a influência da extrema ra-
que amplia suas
possibilidades interpretativas e revela sua importância na medida cionalidade moderna no processo de perda da Experiência? E de
em que não se restringe a uma compreensão instrumental dos fe- que modo o empobrecimento da Experiência afeta a compreen-
nômenos do mundo e das vivências individuais e coletivas, mas, são sensível dos indivíduos acerca do real?
ao contrário, se constitui num pensamento consciente da tempo- Para responder tais questões, se parte do princípio
que
ralidade e da mutabilidade do real. Benjamin, ao trabalhar a categoria de Experiência em sua filoso-
Posto isto, para uma melhor exposição e compreensão fia, opõe-se a uma forma de pensamento fundamentado na ideia
das ideias aqui trabalhadas, o estudo tem também como objetivo de verdade como sistema fechado, isto é,
que concebe a totali-
investigar as possíveis motivações que levaram o autor a se dedi- dade através de um princípio de identidade determinado pela
primazia do sujeito. À filosofia de Benjamin, ao trabalhar com a
noção de temporalidade, implícita na categoria de Experiência,
1. ÀExperiência em Benjamin
já que na visão do filósofo a
é tratada nessa obra, de modo irônico, como “categoria”,
Experiência enquanto Erfahrung não pertence à ordem das
provoca uma ruptura nesse sistema, pois considera que os fenô-
categorias em razão de seu caráter temporal extrapolar definições conceituais. menos do mundo, por estarem em constante processo de muta-
2. À palavra Erfahrung,
que em Alemão quer dizer Experiência, será utilizada no trabalho ção, não podem ser aprisionados num conceito. Motivo pelo qual
para designar a categoria de Experiência no sentido proposto por Benjamin e também não limita a ideia de Experiência à experimentação científica,
como forma de diferenciá-la da palavra Erlebnis que em alemão significa Vivência e
que, sendo seu processo de conhecimento marcado por frequentes in-
por vezes, é entendida erroneamente como sinônimo da primeira, Especificações que
podem ser mais bem acompanhadas no segundo capítulo desse trabalho, intitulado, em lerrupções na intenção de atualizar o contato com os objetos em
conformidade com o termo, de Experiência. É ainda importante salientar que a catego- suas recorrentes transformações. Questionando com isso relações
ria de Experiência, por ser ponto central do trabalho e nele apresentado como terminus
históricas concebidas a partir de uma visão concreta de mundo e
tecnicus benjaminiano, irá aparecer sempre na tradução em português, quando se tratar
dessa Experiência, com letra inicial maiúscula.
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

as particularidades dos conteúdos materiais. Pois, para Benjamin, Deste modo, a pesquisa parte da seleção de bibliogra-
o método do conhecimento deve implicar num exercício de pen- de autoria de Walter Benjamin. Nesse trabalho são utilizadas
fias

samento que, incansável, em maior destaque as obras Magia e técnica, arte e política: en-
sadios sobre literatura e história da cultura', Charles Baudelaire
[-..] começa sempre de novo, e volta sempre, minun-
um lírico no auge do capitalismo”, O Prefácio da obra Origem do
ciosamente, às próprias coisas. Esse fôlego infatigável
é a mais autêntica forma de ser da contemplação. Pois drama barroco alemão, o ensaio Sobre o Programa da Filosofia
ao considerar um mesmo objeto nos vários estratos de I'uturaó, e Passagens”. Sendo paralelamente a estas, também uti-
sua significação, ela recebe um estímulo para o reco- lizados textos (referências) que oferecem auxílio a uma melhor
meço perpétuo e uma justificação para a intermitên- compreensão das ideias desenvolvidas no estudo, fazendo-se ne-
cia do seu ritmo?.
cessário ainda ressaltar que todas as referências em língua estran-
Posicionamento que se constitui ainda numa crítica ao geira utilizadas na pesquisa possuem traduções nossas.
modelo de pensamento de sua época, a saber, o iluminismo (Au- Para favorecer o entendimento a respeito das ideias in-
fRárung), principalmente a partir de leituras das obras de Imma- vestigadas, o trabalho se divide em três seções. À primeira seção,
nuel Kant e dos neo-kantianos e que surge com a constatação de intitulada Walter Benjamin: contexto e referências, aborda ques-
que a filosofia nesse período se encontra muito mais voltada à tões em torno da vida do autor, seu contexto histórico e influên-
fundamentação do conhecimento científico do que à sua tarefa cias. Tem como principal objetivo mostrar de onde surgiram as
primordial de apresentação da verdade. Fato que leva o autor a ideias do autor em relação a categoria de Experiência, visto
que
não somente empreender uma crítica a esse modelo, mas propor Benjamin foi um dos maiores e mais importantes estudiosos do
uma solução que consiste em, por meio da valorização da catego- tema de sua época. Destaca-se nesse capítulo a era moderna e
ria de Experiência em seu sentido pleno e não apenas instrumen- suas transformações em relação às sociedades arcaicas, bem
tal, provocar uma reformulação na própria concepção de filosofia como mudanças radicais na percepção e no comportamento dos
da época, Uma reformulação que devolva à filosofia seu caráter indivíduos a respeito de tais transformações. Também terão des-
expositivo de trazer à expressão elementos que perante o sistema taque, na presente seção, as ideias do filósofo Franz Rosenzweig,
representativo tendem a ficar de fora do discurso convencional, as quais foram de inegável importância para o desenvolvimento
E isso porque a Experiência, quando limitada a usos instrumen- do pensamento de Walter Benjamin, principalmente sua
per-
tais, revela uma forma também instrumental de os indivíduos
pensarem e se relacionarem com o mundo. Valorizar suas outras
qualidades é exigir uma mudança nesse cenário. É recuperar cer-
tas questões também relevantes ao conhecimento e que foram 4. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e história da
outrora relegadas ao esquecimento por não se encaixarem nas cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin — 8º Ed. revista —

São Paulo: Brasiliense, 2012 — (Obras escolhidas, v. 1).


habituais formas de apreensão e compreensão da realidade. 5. BENJAMIN, W. Charles Baudelaire um lírico no
auge do capitalismo. Trad. José Mar-
tins Barbosa, Hemerson Alves Batista — led. — São Paulo: Brasiliense, 1994 — (Obras
Escolhidas, v. 3).
6. BENJAMIN, W. Sobre el Programa de la Filosofia Futura. In: BENJAMIN, W. Sobre
el Programa de la Filosofia Futura. Trad. Roberto J. Vernengo. Barcelona: Editorial Pla-
3. BENJAMIN, W, Prólogo epistemológico-crítico. In: BENJAMIN, W. Origem
do dra- neta-De Agostini, S. A, 1986.
ma trágico alemão. Trad. João Barrento. — 2. ed. — Belo Horizonte: Autêntica Editora,
7. BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
2013. p. 16.

10 n
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

cepção a respeito da categoria de Experiência como pensamento por meio da análise de sua estrutura, coloca em evidência a be-
permeado pela temporalidade. leza de um pensamento sempre atual: um pensar sensível à mul-
À segunda seção, Experiência, aborda a categoria de liplicidade dos fenômenos da vida vivida. Em que sua riqueza
Experiência no pensamento do autor, suas origens e principais não está num novo modo de fundamentar o conhecimento, ou
características, bem como a constelação de elementos que a ela de dizer àquilo que as coisas são. Mas, por meio da narrativa, de-
estão vinculados de forma indissociável, como é o caso da tem- dicar-se a mostrar o quão importante é o tempo para
compreen-
poralidade, da narrativa, da memória, das situações limiares, da são das vivências e das conexões que se podem fazer entre os
tradição e da linguagem. O capítulo também mostra os fatores saberes adquiridos. Uma posição contrária à extrema valorização
cruciais para o declínio da Experiência (Erfahrung) e sua subs- do domínio teórico da razão em quase todos os âmbitos da vida
tituição pela ideia de Vivência (Erlebenis) na modernidade, re- humana. Que defende a necessidade de constantes exercícios de
velando as consequências desta substituição, as quais incluem a reelaboração do pensamento para mantê-lo distante da sedutora
segmentação e desorientação dos indivíduos em relação à própria postura positivista de crer em verdades absolutas e segregadoras.
vida e o domínio da técnica sobre o “minúsculo e frágil corpo hu-
mano”* — apontando os desafios para a filosofia frente a uma con-
cepção científica de mundo que tem como proposta a instrumen-
talização da ideia de Experiência e do próprio fazer filosófico.
No último e terceiro
capítulo, Tempo, Experiência e Po-
tência da Linguagem, será abordada a questão da nova proposta
filosófica de Walter Benjamin. Será visto de que forma o autor
concebe a situação da filosofia frente ao progresso científico e
tecnológico e as alternativas que propõe para que possa continuar
em seu processo fundamental de busca e exposição da verdade.
Para tanto, se inclui a essa proposta de recuperar o momento ex-
pressivo da própria filosofia, um reconhecimento da pobreza de
experiências que o indivíduo moderno se encontra. Tal reconhe-
cimento surge em função de um novo e ampliado entendimento
acerca da categoria de Experiência após o seu declínio, em espe-
cífico através da valorização de seu caráter linguístico, o qual im-
plica numa crítica à noção de Experiência em Kant, apontando
suas limitações e possibilidades de reformulação.
À obra mostra-se relevante na medida em que ao conce-
ber a categoria de Experiência (Erfahrung) de Walter Benjamin,

8. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e


política: ensaio sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, São
Paulo: Brasiliense, 2012 — (Obras Escolhidas, v. 1). p.124,

12 3
PRIMEIRA
PARTE
WALTER BENJAMIN,
CONTEXTO E
REFERENCIAS
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

pensar 2 cultura em suas contradições, o deslocamento do “Eu”


Walter Benjamin (1892-1940) é um filósofo conhecido para fora do centro de todo processo reflexivo, entendendo a pró-
nas mais diversas áreas do pensamento humano. No Brasil, sua pria reflexão como fenômeno. Motivo pelo qual, hoje, o autor
presença no meio acadêmico tem crescido amplamente e vários é reconhecido, segundo afirma Seligmann-Silva,
como um dos
são os estudos realizados em torno de suas obras. Fato que oferece primeiros filósofos modernos a realizar a desconstrução do “mo-
uma rica gama de documentos que analisam e discutem seu traba- delo de teoria do conhecimento monológico, baseado na simples
lho sob os mais diferentes pontos de vista. Esse crescente interesse cadeia de causas e efeitos, e, portanto, de crítica também a uma
pelo autor se deve, em boa parte, por Benjamin estar entre um concepção linear tanto do desenvolvimento do conhecimento
dos maiores e mais importantes críticos e historiadores modernos. como também do desenrolar da própria história”!º, Isso por Ben-
Muito embora o reconhecimento que hoje se atribui às obras do jamin entender que a filosofia ao impor uma metodologia especí-
autor, em sua época, tenha se limitado a um círculo muito restrito fica aos processos de construção de conhecimento, fundamenta
de pensadores, vindo a se consolidar ao grande público apenas em grande parte em imposições do sujeito sobre o objeto, acaba
anos depois de sua morte. Motivo que o levou em vida a uma série tendo por resultado o próprio método previamente determinado
de dificuldades, inclusive econômicas, mas que ao mesmo tempo e não o ideal daquilo que investiga, obtém como resposta
ape-
foram responsáveis por sua enorme e variada produção intelec- nas aquilo que de antemão já projetava sobre o objeto e não a
tual, a qual não se restringiu apenas à crítica literária. sua “verdade”. Razão pela qual, segundo o autor, é preciso que
Benjamin, assim como outros grandes nomes da histó- se investigue o teor filosófico de outras formas de expressão, tais
ria da filosofia, perpassou por diversos temas ao longo de sua vida. como
as artísticas, explorando as possibilidades da linguagem e
suas limitações para que no processo crítico o objeto acabe se
Suas obras englobam desde críticas em torno das convencionais
teorias do conhecimento e da linguagem à aspectos políticos e so- revelando a partir de suas próprias determinações. Assim, as obras
ciais de sua época, bem como arte, cultura e história. Influencia- do autor, constituídas em maior parte sob a forma de ensaio, são
do pela tradição judaica e por análises marxistas, o autor também conhecidas por colocar em diálogo literatura, história, filosofia,
teceu críticas à modernidade capitalista e suas desiguais relações
de produção, rejeitando a ideologia do progresso de uma crença
no futuro rumo ao sempre melhor, fundamentada na ideia de a
espiritual e também essência das coisas desde que estas sejam comunicáveis. Aspecto
tempo vazio e homogêneo. Porém, é a proximidade de Benjamin que leva, então, a crer que Medium-de-reflexão, presente em sua tese Sobre o conceito de
crítica da arte no romantismo alemão, de 1919, tem a ver com o “espaço” absoluto da
com o romantismo que irá marcar de forma determinante sua fi- reflexão, a qual, enquanto manifestação humana, é sempre linguística. Afirmação
que
losofia, principalmente por lhe emprestar conceitos que são con- aponta também para o fato de que apesar da reflexão ser médium, meio para o próprio
siderados atualmente chaves para a compreensão de suas obras, pensamento reflexivo, ela também se move nele, desenvolvendo-se aí infinitamente. Po-
rém, nunca de forma progressiva, contínua, num
como é o caso da própria ideia de crítica como médium-de- refle- percurso infindável e vazio, mas numa
infinidade de conexões, “que pode ser compreendida mediatamente a partir de níveis
xão”. O que em Benjamin significa, além de uma forma de infinitamente numerosos da reflexão, na medida em que gradualmente o conjunto das
demais reflexões seja percorrido
por todos os lados”. (BENJAMIN, W. O conceito de crí-
tica de arte no romantismo alemão. Trad. Márcio Seligmann-Silva. — 3. ed. [4.
Reimpr.].
9. No ensaio Sobre São Paulo: Iluminuras, 2011. p. 36).
a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem, de 1916, Benja-
10. SELIGMANN-SILVA, M. A Redescoberta do Idealismo Mágico. In: BENJAMIN,
min desenvolve a noção de Medium para designar o ambiente da comunicação, o espaço
W. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. Márcio Seligmann-Silva. —
em
que a linguagem se desenvolve sem necessitar de um destinatário. Remete a um 3. ed. [4. Reimpr.]. São Paulo:
Iluminuras, 2011. p. 11.
aspecto metafísico da linguagem no qual é possível o ser humano expressar sua essência

16 FÃ
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

entre outras artes. Seduzindo o leitor


por seu estilo desprendido
e fragmentário, avesso à lógica linear do discurso,
nunca deixar de lado o rigor teórico.
porém, sem Te]
|
Nesse ponto vale destacar
que o afastamento de Benja- BENJAMIN PELO VIÉS
min em relação à ideia de sistema, de forma alguma deve
tomado como estímulo à incoerência ou ao relativismo.
ser DA MODERNIDADE
Pelo
contrário, o que pretende é a defesa da existência de
outras di-
mensões do pensamento filosófico as quais não deixam de ser À modernidade foi decisiva para Benjamin. Ele soube
sistemáticas, porém atuam de forma diferente da convencional. compreender suas tendências como ninguém. Ao partir de uma
Ou seja, aquilo que posteriormente ele irá chamar de crítica da percepção e de uma profunda consciência do tempo, o
“apresen-
tação da verdade” e que será exposto de forma mais contundente filósofo a analisa sob os mais diversos estratos de sua significação.
no terceiro capítulo desse estudo. Para Seu trabalho inacabado das Passagens e seus ensaios sobre a mo-
tanto, antes de dedicar-se
à investigação da temática da
Experiência e da reflexão que essa dernidade e a poesia urbana de Baudelaire, em especial aqueles
pressupõe entre pensamento e linguagem, faz-se mister ressaltar presentes no livro Charles Baudelaire, um lírico no auge do ca-
alguns aspectos do pensamento benjaminiano relevantes pitalismo, entre outros, são exemplos disso. Entretanto, ao ler os
o desenvolvimento do trabalho, sobretudo
para
aqueles aspectos re- escritos do filósofo a respeito deste tema é preciso ter em mente,
lacionados às percepções do autor sobre a modernidade — indo ao encontro do que afirma Gagnebin!!, que o autor não se
visto
que Benjamin soube compreender a modernidade como limita a compreender a modernidade simplesmente de um pon-
poucos,
pois a viveu profundamente, retirando dela o fundamento lo de vista acusativo. Ou seja, apenas como momento histórico
que
sustenta sua filosofia. envolto pela crueldade do capitalismo, como comentam alguns
de seus intérpretes. O que, aliás, tende a dar a impressão de um
saudosismo exacerbado em relação a uma época perdida em que
“memórias, palavras e práticas sociais eram compartilhadas por
todos”"?, Na verdade, o que ocorre é que, na perspectiva do filó-
sofo, a modernidade se mostra de forma muito mais ambígua e
não somente naquilo que ela tem de negativo. Para ele o período
moderno oscila entre extremos que vão do triunfante ao frágil
e, embora ao final de seus escritos ocupe-se desta fragilidade de
forma ainda mais contundente, não tem a pretensão de alimen-
tar uma visão puramente melancólica da época. Sua alçada vai
além. Mas no que consiste?

11. GAGNEBIN, J. M, Alegoria, Morte e Modernidade, In: GAGNEBIN, J. M. História


e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 49.
12, LÔWY, M. apud GAGNEBIN, J. M. Não contar mais?. In: GAGNEBIN, J. M. His-
tória e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 56.

18 19
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

Ainda que a percepção do autor sobre Com isso, chega perto de afirmar que
a modernidade o processo de tecnização,
como lugar do transitório, do efêmero e do ao mesmo tempo em que é o produtor de alienação e
movente, da “luta perigosas
contra o curso inexorável e natural' do tempo”"
pretada como denúncia da época, ela não se
possa ser inter , lensões e patologias da mente, também pode vir a ser utilizado
restringe somente como dispositivo de cura. Visto que, o cinema:
a este aspecto. É compreensível
que o caráter fugidio da moder- Através dos seus grandes planos, de sua ênfase sobre os
nidade seja interpretado como
ameaça de perda ou destruição, pormenores ocultos dos objetos que nos são familiares,
pressentimento que, em realidade, não pode ser negado. e de sua investigação dos ambientes mais vulgares sob a
Porém,
devemos considerar
que o moderno ao mesmo tempo em que direção genial da objetiva, [...] faz-nos vislumbrar, por
nos desperta para a consciência de uma atualidade um lado, os mil condicionamentos que determinam
“passageira e
dominadora [...] que sempre nos escapa”!"*, e nossa existência, e por outro assegura-nos um grande
que por vezes nos as- e insuspeitado espaço de liberdade. Nossos cafés e nos-
susta, é também, neste período, promessa de futuro. Daí
o mérito sas ruas, nossos escritórios e nossos quartos alugados,
da interpretação benjaminiana, ainda
ao encontro do que afirma nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionar-
Gagnebin, pois, esta postura do autor permite -nos inapelavelmente. Veio então o cinema, que fez
uma lúcida descri-
ção a respeito das contradições da época. À modernidade
ção de seu caráter instável, de interesse constante
em fun-
explodir esse universo carcerário com
a
dinamite dos
seus décimos de segundo. [...] Se levarmos em con-
pelo novo, nos ta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as
possibilitou avanços na área do conhecimento
técnico, trazendo suas consequências, engendrou nas massas — tensões
grandes benefícios à vida das pessoas. Ou,
na visão de Benjamin, que em estágios críticos assumem um caráter psicóti-
ao próprio campo da arte, visto
que ao artista foi possível “mer- co —, percebemos que essa mesma tecnização abriu a
gulhar na multidão, ser seu “espelho”, seu “caleidoscópio possibilidade de uma imunização contra tais psicoses
dotado
de consciência”, em de massa através de certos filmes, capazes de impedir,
suma, ser um “eu insaciável do não eu, um
verdadeiro homem do mundo”" aberto à pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadoma-
consciência radical da soquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. À
temporalidade e da morte, livre das concepções acadêmicas tra-
dicionais a respeito do
que é arte e de sua relação com a questão
e hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e sau-
dável dessa psicose de massa. Os filmes grotescos dos
do belo a partir de uma “forma
eterna e absoluta”, Percepção Estados Unidos [...] produzem uma explosão terapêu-
positiva da modernidade também exposta em tica do inconsciente",
seu ensaio À obra
de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica", escrito em 1935, Postura que o tornará alvo de críticas na época, inclu-
Nesse ensaio, Benjamin ressalta o sive as de seu amigo e correspondente Theodor W. Adorno. Para
possível caráter imunizador
da técnica, em específico do
cinema, em contraposição às pró- Adorno, a ideia de Benjamin de uma racionalidade técnica que
prias consequências negativas engendradas
por ela na sociedade. também implicasse na liberdade do homem e não somente em
sua dominação, não se mostra possível. Na visão de Adorno, a
13. GAGNEBIN, J. M. Alegoria, Morte e Modernidade, técnica estaria mais aberta a usos comerciais e de manipulação
p. 48.
14. Idem.
social, do que a uma revolução em prol das minoridades. Para
15. Idem.
16. Idem.
17. BENJAMIN, W, A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica. In: BENJA-
MIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura 18. BENJAMIN, W. À obra de arte na era de sua reprodutibilidade
e história da cultura Trad. técnica, p. 204-205.
Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012 —
(Obras Escolhidas, v. 1). p. 179-212.

20 21
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

ele, ao invés da técnica servir ao verdadeiro


esclarecimento, ela
apresenta-se muito mais como uma regressão à barbárie. Em 1.2
sua
carta de 19/03/1936", ele pede a Benjamin
tico em relação a tais questões e não tão
que seja mais dialé- A CIDADE MODERNA E
ingênuo, pois para ele
aquilo que Benjamin vê no cinema como possibilidade
para ali-
SUAS CONTRADIÇÕES
viar tensões, não passa “do pior sadismo
burguês”?,
Contudo, conforme o exposto acima, apesar das inves- “Aforma de uma cidade
tidas entusiasmadas de Benjamin Muda mais rápido, ah!
em relação a alguns temas da à de :
modernidade, ele não se deixa seduzir pela ideia de Que o coração um mortal”,
progresso
como a princípio pode dar a entender. O que pretende é mostrar
ambos os lados de uma mesma situação. Razão Charles Baudelaire
pela qual, em
suas análises, não deixa de observar as mudanças radicais ocorri-
das no espaço coletivo e a
consequente desorientação dos indiví- Ao falar em suas obras sobre as grandes metrópoles do
duos em função de condições sociais e
econômicas criadas pela século XIX, Benjamin toma as cidades como médium-de-refle-
crescente industrialização e organização capitalista do trabalho.
Mas em que consistem tais mudanças? À
xão”?, Isso significa que o autor,
por meio das revoluções urbanas
princípio pode-se falar ocorridas no período em questão, procura realizar um estudo so-
de tudo aquilo que acompanha o desenvolvimento bre os novos modos de pensar e viver nas sociedades modernas.
industrial e
técnico nas grandes metrópoles modernas. Sem contar radicais Para tanto, ocupa-se em mostrar o impacto que a vida
as urbana,
alterações perceptivas originadas a partir de então e
que afetam em suas novas configurações, exerce sobre a percepção dos indi-
os indivíduos e reconfiguram seus modos de
compreender e se víduos, expondo a partir de narrativas sobre as cidades, as profun-
relacionar com o contexto a sua volta. Sendo necessário das discrepâncias, como diria Bolle “entre
ainda progresso tecnológico
questionar: o que exatamente atrai a atenção do autor e qualidade de vida social”*. Um dos aspectos valorizados por
nas cida-
des modernas, para ele torne objeto de reflexão? O que as
que as Benjamin em relação a essa questão são as transformações ar-
metrópoles dizem ao filósofo? quitetônicas que se constituem em excelente recurso para com-
preensão do cenário moderno em seus diversos condicionamen-
los perceptivos.

21. “la forme d'une ville change plus vite, hélas! Que le coeur d'um mortel”
(BAUDE-
LAIRE, C. Le Cygne. In: BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du Mal. Paris, França: Le Livre
de Poche, 1964. p. 101).
22, Para o autor, as grandes metrópoles como médium-de-reflexão correspondem
aum
ambiente que favorece o pensamento, a expressão e a própria reflexão sobre acontecimen-
19. ADORNO, T. W,
Correspondências 1928-1940: Theodor W, Adorno, Walter los de uma determinada época em seus múltiplos sentidos.
Benja-
min. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: 23. BOLLE, W. A metrópole como médium-de-reflexão. In: SELIGMANN-SILVA, M.
Editora Unesp, 2012. p. 206-214,
20. Ibidem, p. 210. Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999. p. 91.

22 23
Bruna de Oliveira Bortolini
Walter Benjaminea Categoria da Experiência (Erfahrung)

No texto, Paris, a
capital do século XIX”, o autor mercadorias produzidas pela crescente industrialização. Haven-
o narra
movimento de expansão das cidades modernas, do ainda em seus interiores
de Paris. em específico, espaços para socialização e venda de
Segundo ele, esse Processo se deve, em boa serviços como cafés, bares, restaurantes, alfaiatarias,
desenvolvimento das forças produtivas parte, ao sapatarias,
na época que aceleram o enbelereiros, etc. Entretanto, ao mesmo tempo em
crescimento populacional e reivindicam a que servem
necessidade de eman- to comércio, as passagens são uma espécie de refúgio para os
cipação das próprias cidades, tanto
em relação a postos de traba- desprevenidos da chuva e para aqueles que buscam fugir dos
lho, como lugares para habitação pe-
e frequentação. O crescimento igos da rua e do trânsito, garantindo a eles um passeio
do comércio têxtil, seguro
por exemplo, é um dos primeiros aconteci- “porém restrito, do qual também os comerciantes tiram
mentos da sociedade moderna a suas van-
impulsionar a transformação das lugens”*, Ambientes de transição que possuem caráter
cidades. Isso ambíguo
porque com o elevado número de mercadorias e alegórico por sintetizarem no mesmo
vender, surge também a necessidade de para lugar, ruas e residências,
se aumentar os meios de visto que em algumas delas “acima do entablamento das
exposição de tais mercadorias, de forma pilastras
um que possam ser vistas
grande número de pessoas. O que fomenta modificações por
dóricas, que dividem as
lojas, [erguiam-se] dois andares de
tamentos”**, Por essas e outras razões, as
apar-
arquitetura principalmente a partir da criação de na passagens, além do Flá-
visibilidade desses produtos. espaços para a neur”, atraiam também uma multidão de pessoas, a qual é,
Que segundo Benjamin, deixa para
rastros “em mil configurações da seus Benjamim, a representação estética da modernidade capitalista
vida, das construções duradou- por excelência e pode ser observada ainda hoje.
ras, até as modas passageiras””, Tais
espaços, chamados de pas- Contudo, para Benjamin, as passagens representam
Sdgens, precursores das lojas de
departamento, são construções muito mais do que apenas galerias. São na verdade símbolo
erguidas em bases de ferro, material de
de construção artificial uma nova reconfiguração social fundamentada na transitorieda-
destaque na Época, mas também em
de e no movimento — características
[...] cobertas de vidro e
típicas de uma sociedade
com paredes revestidas de már-
more, que atravessam quarteirões inteiros, cujos
Prietários se uniram para esse tipo de pro-
capitalista. Mas não são somente as passagens
que alteram
nomia das cidades. Segundo Benjamin, a cidade de Paris
fisio-
ingres-
a
especulação. Em sou no século XIX sob a forma que lhe foi dada
ambos os lados dessas
galerias, que recebem a luz do por Haussmann:
alto, alinham-se as lojas mais “Ile realizou sua transformação da cidade com os meios mais
elegantes, de modo
í
tal passagem é uma que modestos que se possa pensar: pás, enxadas, alavancas
cidade, um mundo em miniatura”, e coisas
As passagens parisienses semelhantes”?º, Ou seja, as reformas urbanísticas iniciadas
"a são,
portanto, lugares de expo- 1859 pelo Barão de Haussmann?! modificam
em
sição. Nelas, os passantes, além dos drasticamente a ci-
artigos de luxo, encontram
também uma variedade de outros
produtos como roupas, joias,
objetos de decoração e beleza,
livros, tecidos e até
dutos alimentícios. São mesmo
ambientes perfeitos para a exibiçãopro-
BENJAMIN, W. Paris, a capital do século XIX,
p. 78.
de 25. Ibidem, p. 79.
29. Personagem da poesia lítica de
Baudelaire, eleito por Walter Benjamin como arqué-
lipo símbolo da experiência das cidades modernas. Sujeito observador
que vagueia pelas
24. BENJAMIN, W. Paris, a capital do tuas, o verdadeiro “homem da multidão”,
século XIX, In: Pass
assagens. Belo Hori Edi 30. BENJAMIN, W. A modernidade.
ra UEMG, 2007 130.06 Belo Horizonte: : Edito- In: BENJAMIN, W. Charles Baudelaire,
um lírico
25. Ibidem, p. 41. no auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa, Hemerson Alves
Batista — led. - São
Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras Escolhidas
26. Ibidem,
p. 77-78. - TI. p.84
31. Conhecido
amplamente como
o “artista demolidor”, Barão de Haussmann
foi no-

24
25
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

dade. E isso não


apenas em busca de um maior “embelezamen- Wjas e tortuosas, nas quais ficavam encurraladas, pois não viam
to”, mas também como estratégia militar mída””, Sem falar que Paris, no início do século XIX, era uma
na tentativa de reforçar
a ditadura de Napoleão III. À cidade que convivia com a pobreza, com as mazelas da cólera,
destruição de bairros e ruas inteiras
para abrir espaço às grandes e largas avenidas (boulevards) tinha com movimentos operários em função de condições inadequadas
como objetivo impedir a construção de barricadas pelos de trabalho e, em razão do desprezo da burguesia,
rebeldes, também a ex-
“proteger a cidade contra a guerra civil””, purgação dos pobres e miseráveis da via pública. Acontecimentos
propiciando melhor
deslocamento das tropas militares. Conforme que não se dão de forma separada do processo de reurbanização,
comenta Benja-
min, “a largura das ruas deve impossibilitar Mas concomitantemente.
que sejam erguidas
barricadas, e novas ruas devem estabelecer Assim, o avanço da técnica e sua influência em todos
o caminho mais curto
entre os quartéis e os bairros operários””, os setores da vida humana conferiram ao espaço, que outrora era
Entretanto essa Paris que surgia, regida compartilhado por todos os sujeitos de uma comunidade, sinto-
pela ideia de
progresso e sob o signo da transitoriedade, deixava rastros. À jima- mas de esvaziamento e funcionalidade. Na vida pública parecia
gem dos novos edifícios e das grandes avenidas não haver mais lugar para os “excessos”. Arquiteturas, objetos, mo-
contrastava direta-
mente com a antiga arquitetura, a qual só fazia lembrar efeme-
ridade dessas construções que mal
a
dos de vestir e também de viver tinham de
ser úteis e práticos já
eram erguidas e já começam que as metrópoles possuíam um funcionamento diverso daquele
a se deteriorar. À ideia do
progresso vendida mundo afora através
dessas cidades era visivelmente
comum às cidades “artesanais”. O que irá levar os indivíduos a um
contraditória. Ao mesmo tempo processo de despersonalização e perda de referências às quais ten-
em que enfeitiçava devido às constantes
promessas de novidade e
reformulações urbanísticas que alteravam a paisagem da
cidade,
dem
a serem reconstruídas sob um novo prisma que não o cole-
livo. Esse plano, segundo Benjamin, será, portanto, o individual.
expunha a fragilidade e a violência de tal empreendimento. Um
cartão postal em contradição com a realidade de
seus habitantes.
Isso porque a cidade torna-se alheia
a eles. “Haussmann faz de
Paris uma cidade projetada e artificial
[...] Eis o primeiro aspecto
que choca em sua obra: o desprezo da experiência histórica”,
Experiência essa construída a partir da relação dos indivíduos
com a própria cidade em que viviam, mas
que com a reforma
urbana foi se perdendo até se consolidar
em puro estranhamento,
visto que nessa época muitas
pessoas eram destituídas de suas mo-
radias e impelidas a aglomerarem-se
em “antigas ruelas estreitas,

meado prefeito de Paris por Napoleão Il entre 1853


e 1970. Ele foi responsável pela
reforma urbana de Paris, a qual é
marcada, principalmente, por suas jargas avenidas e
edifícios públicos e modernos
como L'Opera.
32. BENJAMIN, W. Paris,
a capital do século XIX, p. 50.
33. Ibidem, p. 50.
34. Ibidem,
p. 172. 5. BENJAMIN, W. À modernidade, p. 85.

26 27
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

1.3 poltronas, as cortinas transparentes atrás das janelas, o


guarda-fogo diante da lareira. [Com a modernidade]
ESTÉTICA DO VIDRO E
[...]

A tudo isso foi eliminado. [...] O novo ambiente de vidro


transformará completamente os homens”.
A
DESPERSONALIZAÇÃO Mas de que forma essa cultura de vidro transformará
DOS INDIVÍDUOS à homens? O que elarepresenta em termos de percepção? Esta
lIsionomiafria, transparente e desprovida de personalidade que
“l...] o vento esbofeteia o vidro possui corresponde exatamente ao anonimato provoca-
a chama e atormenta o vidro” 3, do pela nova organização da vida nas cidades. De certa forma,
pode-se dizer que ele é símbolo material deste comportamen-
Charles Baudelaire lo, Representa a realidade cada vez mais “desprovida do caráter
humano”, as relações superficiais e a falta de sensibilidade de
ver no outro mais do que apenas um número ou um “meio para
Movida pelo ritmo veloz do mercado de
trabalho, das determinados fins”, se quisermos utilizar uma expressão tipica-
produções industriais com suas mercadorias produzidas inente kantiana. Na modernidade faltam às relações humanas,
de escala, a vida nas grandes cidades em gran-
se modifica, bem como a per- issim como falta ao vidro, em função dos novos estilos de vida, “a
cepção dos indivíduos. E é, portanto, nesse contexto
de vidro consolida uma nova estética que a cultura dimensão da profundidade””, que implica, consequentemente,
que contrasta diretamente mm “insuportabilidade do vazio
que está em jogo”*º. "Tal insupor-
com asreferências do passado. Ela é marca
registrada do capitalis- lubilidade, porém, se torna viável na medida em que se criam
mo, pois diferentemente de outras mobílias e estruturas, o vidro é artifícios para preencher esse espaço que deveria ser o dos afetos,
de natureza limpa e neutra, não deixa
marcas. Ele sequer se deixa como é o caso do dinheiro e das mercadorias possíveis de serem
ser envolto por “memórias afetivas”. Como afirma
Benjamin: adquiridas através dele. A maioria das relações na modernidade
Não é por acaso que o vidro é
um material tão duro e liso, capitalista, são portanto, intercambiadas pela moeda. Pessoas são
no qual nada se fixa. É também um material frio só-
e vistas como meios para o lucro e por essa mesma razão trocam
brio. Às coisas de vidro não têm nenhuma
aura. O vidro seu tempo de vida, no trabalho, por dinheiro, o qual também é
é em geral o inimigo do mistério. É; também
o inimigo utilizado para mediar relações. Conforme Benjamin, “o dinheiro
da propriedade. [...] Se entrarmos
num quarto burguês está, de modo devastador, no centro de todos os interesses vitais
dos anos 1880, apesar de todo o
“aconchego” que possa
irradiar, talvez a impressão mais forte e, por outro, é exatamente este o limite diante do qual quase toda
que ele produz seja
a de que “não tens nada a fazer aqui”. Não
temos nada relação humana fracassa”*!. Assim, para que a singularidade de
a fazer ali porque não há nesse
espaço um único ponto
em
que seu habitante não tenha deixado seus vestígios:
os bibelôs sobre as prateleiras, as mantinhas sobre 37. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 126-127.
as
38. MATUELLA, L. Uma época sem nome: sobre a tautologia do tempo perdido. In:
SOHNGEN, C. B. C; PANDOLFO, A. C. Encontros entre Direito e Literatura II: ética,
estética e política. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. p. 91.
36. Tel le vent bat la flamme et
tourmente le verre” (BAUDELAIRE, C. Le Vin des
Chiffonniers. In: BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du Mal.
39, Idem.
40. Ibidem, p. 91-92.
Paris, França: Le Livre de Poche.
1964 p. 124). ' 41. BENJAMIN, W. Rua de mão única. Trad. — 6º ed. — Rubens Rodrigues Torres Filho;

28 29
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

um indivíduo seja reconhecida, isto é, para que se enxergue o ou- Banalização do particular na esfera coletiva que des-
tro como outro e não apenas como instrumento para se alcançar perta nos indivíduos cada vez mais a necessidade de individua-
determinados interesses,
restringindo-se
é preciso de tempo,
e
isso, então, acaba
esfera do particular. Atitude que revela, segundo
a
lização, de valorização do interior, do desejo de destacar-se da
multidão. À perda das referências coletivas surgida com a moder-
Benjamin, o quanto a humanidade está imersa numa cultura mi- nidade provoca uma espécie de despersonalização, e para tentar
serável que tem na arquitetura de hoje, pobre e despersonalizada, remediá-la os indivíduos tentam recriar o aconchego e o calor
o seu fiel reflexo. Apesar de que, conforme Missac*, nesse
caso, a que lhes foi retirado, muitas vezes, por meio da compra de ob-
própria arquitetura ser a vítima e não a pecadora. jetos diversificados que possam marcar sua personalidade, pois
Assim, as mudanças paisagísticas da época, acabam por veem “na propriedade a expressão da dilatação do ser coextensivo
fomentar um sentimento de não pertença e isolamento nos su- da
suas aquisições”*”, Desta forma, tudo o que é subjetivo, íntimo e
jeitos, pois estes não conseguem mais se reconhecer na ideia de pessoal, é acrescido de um valor inestimável. À casa, a decoração,
coletividade. Como muito bem exposto por Friedrich Engels em móveis e objetos em geral, tendem a guardar os vestígios de seu
seu livro À Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, citado proprietário. Conforme salienta Gagnebin,
por Benjamin no decorrer de seus estudos sobre a modernidade, Despossuídos do sentido da sua vida, o indivíduo ten-
Estas centenas de milhares de pessoas, de todos os esta- ta, desesperadamente, deixar a marca de sua possessão
dos e de todas as classes e posições, que se apressam e se nos objetos pessoais: iniciais bordadas num lenço, es-
tojos, bolsinhos, caixinhas, tantas tentativas de repetir
empurram, não serão todas seres humanos possuindo
no mundo dos objetos o ideal da moradia. Benjamin
as mesmas qualidades e capacidades, e com o mesmo
observa com humor que o veludo não é por acaso um
interesse na procura da felicidade? [...] E, contudo, es-
dos materiais preferidos desta época: os dedos do pro-
sas pessoas cruzam-se a correr, como se nada tivessem
em comum, nada a realizar juntas; e, no entanto, a prietário deixam nele, facilmente, seu rastro”.
única convenção que existe entre elas é o acordo tácito Fato que irá influenciar diretamente na produção inten-
pelo qual cada um ocupa a sua direita no passeio, afim cional de mercadorias que possam preencher este esvaziamento.
de que as duas correntes da multidão que se cruzam
não se constituam mutuamente obstáculos; e, contudo,
O que abre novas possibilidades no campo das experimentações,
fazendo surgir materiais inéditos para o consumo, ainda que a
não vem ao espírito de ninguém conceber a outrem um
olhar sequer. Esta indiferença brutal, este isolamento aceleração do tempo, devido à enorme demanda pelo novo, tor-
insensível de cada indivíduo no seio de seus interesses nasse o prazo de validade das coisas muito menor do que em épo-
particulares, são tanto mais repugnantes e chocantes, cas anteriores. O novo, na modernidade, é sempre antigo, cada
quanto e maior o número destes indivíduos confinados
neste reduzido espaço”.
segundo já é suficiente para torná-lo caduco. Edifícios construí-
dos sobre as ruínas do passado não levam muito tempo para vira-
rem escombros e a promessa da novidade revela, então, sua efe-
José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 2011 - (Obras Escolhidas, v. 2). p. 19. meridade através da temporalidade que a toca, uma vez que, para
42. MISSAC, P. O ponto de vista filosófico: a arquitetura de vidro e a orientação do
pensamento de Benjamin. In: MISSAC, P. Passagens de Walter Benjamin. Trad. Lilian
Escorel. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda, 1998. p. 186.
43. ENGELS, F. À Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Trad. Analia C. Tor- 45, MOLES, À. A. O Kitsch: a arte da felicidade. Trad. Sérgio Miceli. São Paulo: Perspec-
tiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1972. p. 35.
tes. Porto, Portugal: Edições Afrontamento, 1975.
44. Ibidem, p. 56. 46. GAGNEBIN, J. M. Alegoria, Morte e Modernidade, p. 59.

31
30
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

as sociedades modernas, “o derretimento dos sólidos”, segundo As transformações técnicas que pouco a pouco atin-
o que já expunha Bauman, sempre foi o seu maior passatempo.
Nesse contexto, mercadorias, valores e relações tornam-se cada
glama
em suas
vida nas cidades, provocando o isolamento dos indivíduos
tarefas cotidianas, vieram a concretizar-se, então, com a
vez mais imediatas e passageiras, fato que confere aos indivíduos puerra de forma rápida e total. Tão rápida que as mudanças ocor-
de forma contraditória, se é possível dizer, maior e menor tidas não foram possíveis de serem assimiladas de uma só vez e ao
grau
de liberdade. Maior porque podem
sempre se renovar, aliviando Inesmo tempo pela palavra que se tornou insuficiente perante aos
o peso da tradição sobre seus ombros e tornando-se mais flexíveis ncontecimentos. Não somente pela quantidade dos fatos, mas por
às situações que lhe aparecem. E menor porque ficam prisionei- sua força cruel e esmagadora impossível de ser compreendida,
ros desta busca ninda hoje, em plenitude.
por renovação constante e da insegurança e im-
paciência perante aquilo que demanda tempo para ser alterado. Nesse sentido, é possível afirmar que a modernidade,
Razão pela qual a tentativa desesperada de reconstrução do
que enquanto momento histórico gestor de grandiosos feitos como
foi perdido não passa de mera ilusão, embora inconcebíveis catástrofes provocadas pela ideologia do progresso,
compreensível. De-
sejar algo sólido em meio à liquidez da modernidade, na qual [oi um dos temas chaves da filosofia de Benjamin. Sob diversos
tudo se dissolve de forma muito rápida, é um empreendimento uspectos ela foi analisada pelo filósofo tanto pelo viés da crítica
ousado. Assim, para o indivíduo alienado torna-se cada vez mais inarxista ao fetichismo da mercadoria, quanto das relações so-
difícil compreender tal separação ocorrida entre particular e co- ciais no capitalismo, da nova organização econômica e da trans-
letivo, ficando impossível reconstruir as experiências como eram lormação das pequenas cidades em metrópoles. Mudanças que
antes, principalmente em um mundo completamente diverso, causaram forte impacto na percepção dos indivíduos em relação
transitório e com demandas diferentes. uno plano individual e coletivo que habitam, produzindo conse-

O imperialismo da técnica e a industrialização das cida- quências estéticas radicais, as quais oferecem a este trabalho, um
des terá impacto ainda maior e extremamente negativo ao sujeitar marco delineador em seu processo de investigação e análise.
os indivíduos à sua força no contexto da Primeira Guerra. O filó- Porém, antes de nos lançarmos no estudo destas ques-
sofo em seus textos comenta: lões perceptivas que circundam o pensamento de Walter Benja-
min e a relação que mantém com a categoria de Experiência, é
Na época, já se podia notar que os combatentes volta-
vam silenciosos do
indispensável fazermos referência ao filósofo Franz Rosenzweig
campo de batalha. Mais pobres em
já que muito de sua obra marca fortemente a trajetória benjami-
experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros
de guerra que inundaram o mercado literário dez anos niana, contribuindo imensamente para os conceitos que serão
depois continham tudo menos experiências transmissí- trabalhados, como a própria categoria de Experiência e a noção
veis de boca em boca. [...] Uma forma completamen- de temporalidade, entre outros elementos.
te nova de miséria recaiu sobre os homens com esse
monstruoso desenvolvimento da técnica”!.

47. BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2001. p. 09.
48. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 124,

33
3e
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

1.4 parte de uma família de judeus assimilados. Foi soldado na Pri-


meira Guerra Mundial, fato que para muitos na época revelou-
A INFLUÊNCIA DE se como o estopim de uma vida promissora, mas que para ele,
converteu-se em muito estudo e crescimento intelectual, além
FRANZ ROSENZWEIG das atividades militares, que o preparavam para uma futura vida
NO PENSAMENTO DE docente. Seus escritos posteriores, como o livro Estrela da Re-
denção”, confirmam seu percurso que só será interrompido anos
WALTER BENJAMIN Inais tarde por uma esclerose que o conduz a total paralisia. En-
lretanto, mesmo sob todas as adversidades da doença que o im-
A influência de Franz Rosenzweig
no pensamento de
pedem até mesmo de falar, com a ajuda de sua esposa e amigos
Walter Benjamin é inegável. Ela se dá em muitos próximos, ele retorna a atividade literária até anos antes de sua
aspectos nos
textos benjaminianos muito embora o filósofo não lhe faça cons- morte em 10 de dezembro de 1929. Rosenzweig deixou um le-
tantes citações. Aliás, citações em geral nos escritos de Benjamin, gado à filosofia, sem o qual muitas abordagens poderiam ainda
quando presentes, ocorrem quase sempre de forma indireta, em hoje estar soterradas nos escombros de uma época pouco genero-
su para muitos escritores. Mas o que afinal diz sua filosofia?
função de seu método ensaístico. Porém, apesar de conhecida,
tal influência é ainda hoje As obras de Rosenzweig são marco e referência pro-
pouco explorada. Fato que não dei-
xaremos de abordar visto que as leituras benjaminianas das obras pulsora de um pensamento que se opõe à concepção de Ser en-
de Rosenzweig foram de singular importância quanto Unidade, em sentido totalizante. Em suas obras o filó-
para o desenvol- sofo ocupa-se de reconsiderar um conceito que para a filosofia
vimento de seu próprio pensamento. Principalmente no que se
refere às questões da temporalidade, da finitude humana e da ocidental é determinante, a saber: o conceito de essência. Para
crítica à racionalidade idealista, bem como ao historicismo lógi- ele “toda filosofia perguntou pela “essência”, É esta pergunta que
à separa do pensamento não-filosófico do senso comum”*!. Na
co. Assim, para compreendermos alguns dos conceitos centrais
da filosofia benjaminiana que nos Iradição, a ideia de essência corresponde à suposta existência de
propomos estudar, em especial
a categoria de Experiência enquanto Erfahrung, se faz necessário uma realidade única e imutável considerada como via fecunda

apresentar, mesmo que de forma breve, ideias chaves do pensa- para a busca da verdade. Uma unidade capaz de dizer “o que é”,
de abarcar a totalidade dos fenômenos e de possibilitar a transfor-
mento de Rozensweig. Para tanto, em primeiro lugar, pretende-
-se dar atenção a quem foi esse autor e a importância de sua filo- mação do mundo em algo “pensável”. Pois o mundo em seu as-
pecto sensível se apresenta por meio de uma inegável pluralidade
sofia no âmbito da tradição,
de Benjamin com seu pensamento.
para posteriormente expor relação a de elementos, os quais, em suas contradições e ambiguidades,
De acordo com as notas de Ricardo Timm de Souza”, sempre preocuparam os homens, que por sua vez, na luta por
Franz Rosenzweig foi um filósofo e historiador moderno e tal
como Benjamin, era filho de um comerciante bem sucedido e
30), ROSENZWEIG, F. La Estrella de la Redención. Trad. Miguel García-Baró. Salaman-
ea: Síngueme, 1997.
|. “Toda filosofía preguntó por la esencia. Es la pregunta por medio de la cual la filosoffa
49. SOUZA, R. T. Existência em decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Ro- e separa del pensar no-filosófico del sano entendimiento humano” (ROSENZWEIG, F.

senzweig, São Paulo: EDITORA PERSPECTIVA S.A,, 1999, |! nuevo pensamiento. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora S.A, 2005. p. 19).

34 35
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

sobrevivência, precisaram encontrar meios de controlar lo, alternando de um para o outro, no posto de primeiro princí-
o desco-
nhecido e torná-lo objeto de seu conhecimento. A pio. Porém, em meio às inconstâncias e incertezas da vida, cada
filosofia desde
seu nascimento procura, então, ordenar, identificar vez mais o desejo por uma unidade que pudesse oferecer maior
e classificar a
multiplicidade existente, encerrando-a em um sistema acessível estabilidade aos indivíduos e condições de vencer os medos da
razão para que desde aí algo sólido
à
existência, conduziu estas diferentes concepções submissão de
possa surgir e orientar a a
presença dos indivíduos no próprio mundo. “1 Yaquela primeira uma só. Para Souza, isto se dá, pois “[...] de todo o modo, é mais
proposição filosófica, “tudo é água”, está fácil indagar “o que é o Todo?' (Was ist Alles?) do
presente a condição de que o que são
pensabilidade do mundo, ainda que os Muitos?' (Was ist Vieles?)”*. Ou seja, conceber várias formas
apenas Parmênides tivesse
afirmado a unidade entre ser e pensar”*?, Mas de significação do real é muito mais difícil do
não é somente a que apelar paraum
teoria do Ser, “daquilo que é”, irá fundamentar este modelo princípio único, visto que a primeira forma, ao lidar com possibi-
que
de pensamento. À
presença do domínio lógico-gramatical no dis- lidades, pressupõe a insegurança de trabalhar com ideias e uma
curso, por meio do princípio da identidade e da constante de perguntas e respostas, diferentemente da segunda,
não-contradição,
será base de toda e qualquer ideia
que tenha como pretensão a que se deixa circunscrever mais facilmente.
verdade. Assim, desde os pré-socráticos Este processo de redução de variados pontos de vista |

aos idealistas alemães, ao


afirmar a perenidade e imutabilidade do numa unidade criou uma ideia de falsa totalidade, pois deve se
Ser, estamos de fato afir-
mando que a realidade, em sua verdade, não é acessível considerar que para dizer o todo é preciso que a pluralidade exis-
a nós por
meio da “experiência”, mas, sim, do la e seja valorizada e não suprimida e apagada
“puro” pensar. por um conceito
A contingência do mundo, de acordo determinante. Como aponta Souza”, tal pensamento, portanto,
com Souza” é
então, a partir deste sistema, concebida como algo a ser esconde atrás de si um grande paradoxo, ou seja, a tendência em
neutra-
lizado, pois somente com a neutralização conceber o mundo como lugar infinito, estático e de recursos
ou petrificação da rea-
lidade e de seus fenômenos é duráveis, quando na realidade, ele se mostra completamente o
que o pensamento pode operar
de forma mais assertiva sem cair
em desvios. Tal exercício, na oposto desta crença. Nesse sentido qualquer semelhança com a
cultura ocidental, foi o responsável pela noção desviante do pensamento de Benjamin não é mera coin-
origem de três grandes
princípios estruturantes do pensamento humano, a saber, “a cidência. Rosenzweig, ao invés de adotar o método convencio-
an-
tiguidade cosmológica, a idade média teológica e a moderni- nal à tradição filosófica, em busca por uma essência que possa
dade antropológica”**, ou em outras justificar todas as coisas, desloca sua percepção exatamente
palavras, Mundo, Deus e para
Homem. Que segundo Perius”, são aquilo que foi preciso excluir para construir uma noção unif-
princípios que por muito
tempo funcionaram de certa forma em correlação ou cada do real. Segundo ele, é a reflexão sobre
revezamen- a Morte que irá
romper com todo o otimismo filosófico de totalidade até então
sustentado. À Morte enquanto experiência radical do humano,

-
52. “En aquella primera proposición filosófica,
que << todo es agua>>, ya se encierra el a qual diz respeito a cada um no mais Íntimo de seu
presupuesto de la pensabilidad del mundo, aunque fue Parménides
quien primero procla-
existir,
mó identidad del ser y el pensar”
(ROSENZWEIG, F. La Estrella de la Redención,
p. 52).
capa ao pensador, pois é uma categoria que embora conceituá-
53. SOUZA, R.T. Existência
em decisão: uma introdução ao
pensamento de Franz Ro-
senzweig, p. 106.
54. “L.] la cosmológica antigua, la teológica medieval, la
antropológica moderna”
56. SOUZA, R.T. Existência em decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Ro-
(ROSENZWEIG, F. El nuevo pensamiento, senzweig, p. 106.
p. 20)
55. PERIUS, O. Walter 57, Ibidem, p. 22.
Benjamin: a filosofia como exercício. Passo Fundo:
IFIBE, 2013. p. 33.

36 37
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

vel, revela-se inesgotável. Ela não é vazia de sentido, ela é algo, É pela angústia da morte que o ser humano inicia seu
permeada de multiplicidade, de infinitas interpretações, como processo de busca e transformação do mundo em algo compreen-
afirma o autor, sível, 15 o temor pelo diferente, pelo desconhecido que o fará criar

[...] a morte verdadeiramente não é o que


im sistema capaz de, por meio da razão, superá-lo, torná-lo inte-
parece, não é
nada, mas Algo inexorável e insuprimível. [...] O nada ligível. Mas é também por meio da própria experiência da morte
não é nada: é algo. No fundo obscuro do mundo, como ue o ser humano irá deparar-se com a insuficiência de tal siste-
inesgotável pressuposto seu, há mil mortes; em vez de 1a, Justamente porque a Morte, enquanto relação única de cada
um nada único — que realmente seria nada — mil nadas, indivíduo com.seu próprio habitar no mundo, relação imprevi-
que justamente porque são múltiplos, são algo. À plura- sível até o momento de sua realização, escapa a toda e qualquer
lidade do nada que pressupõe a filosofía, a realidade da
morte que não admite ser exilada do mundo e se anun- pretensão reducionista do pensamento. Não por ser vazia ou um
cia no grito — impossível de se calar — de suas vítimas, Nada que não nos permita enunciar qualquer coisa sobre, mas
convertem em mentira, inclusive antes que seja pen- exatamente por ser Algo que independente dos sentidos atribuí-
sado, o pensamento fundamental da filosofía: o pen- dos, permanecerá sempre incompleto à compreensão humana,
samento do conhecimento uno e universal do Todo”. À filosofia que em seu início buscava verdades que pu-
À morte, em vista disso, é a contradição total de dessem significar a realidade, passou a submeter a realidade a
uma
lógica que julga poder por via do pensamento ter a posse defini- uma única Verdade que se caracteriza pela representação sim-
tiva dos objetos que submete ao seu juízo, ou seja, do Todo. Pois, bólica do particular no universal. Com Rosenzweig, portanto, o
“neste Todo faltaria ao menos “algo”, este Algo em multiplicidade que irá ocorrer é a ruptura do modelo idealizado entre o ser e o
em que a morte multiplicadamente experienciada, real, verda- pensar. Para isso o filósofo inicia com a constatação de que antes
deiramente se constitui” *º, Assim, Rosenzweig convida a mesmo de se adotar um sistema dominante, todas as tentativas
repen-
sar a filosofia e o sistema metodológico que a compõe, sem a de abarcar o contingente e explicar a essências das coisas, par-
pretensão de criar categorias ontológicas únicas e imutáveis, pois liram de uma pluralidade de origem. Nas afirmações Mundo,
para ele, nas palavras de Souza, “o ser humano é indemonstrável, Deus e Homem, temos uma diversidade de interpretações a res-
tanto quanto o Mundo e Deus o são. Se o conhecimento procura peito do real que foram constituindo-se com o passar do tempo,
ou seja, a própria história evidencia
provar algum destes três, perde-se necessariamente no Nada”, que apesar das tentativas de
unificação dos fenômenos num princípio totalizante, cada época
adotou para si um modelo que julgava ser o mais adequado. Tais
58. “la muerte verdaderamente no es lo que
parece, no es nada, sino Algo inexorable e insu- modelos, antes mesmo de se estabelecerem como princípios lógi-
primible, [...] La nada no es nada: es algo. En el fondo oscuro del mundo, como inagotable
presupuesto suyo, hay mil muertes; en vez de la nada única — que realmente sería nada — mil cos do pensamento, surgiram das relações estabelecidas entre os
nadas, que, justamente porque son múltiples, son algo. La pluralidade de la nada
que presu- sujeitos e o próprio mundo. Relações estas infinitamente variadas
pone la filosofia, la realidad de la muerte que no admite ser desterrada del mundo se anun-
Yy
e imprevisíveis, as quais a filosofia, para Rosenzweig, deveria se
cia en el grito — imposible de acallar — de sus víctimas, convierten en mentira incluso antes
que sea pensado al pensamiento fundamental de la filosofía: al pensamiento del conocimien- preocupar. Isto mostra que ao seguirmos o raciocínio do filósofo
to uno y universal del Todo” (ROSENZWEIG, F. La Estrella de la Redención,
p. 44-45).
iremos chegar à conclusão de que não existe apenas uma verda-
59. SOUZA, R.T. Existência em decisão:
uma introdução ao pensamento de Franz Rosen- de totalizante do que seja a realidade. Mas que a partir das mais
zweig, p. 105.
distintas relações que o ser humano estabelece com o
60. SOUZA, R.T. Existência em decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Rosen- que esta ao
Zweig, p.78.

38 39
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

seu redor, múltiplas verdades podem emergir, nunca esgotáveis do outro. Isso, porém, somente se sairmos de nossa posição egoís-
em si, devido à própria temporalidade da realidade ln e fechada, acolhendo o diferente, quer dizer, não de forma
que as com-
põe. Pois, por mais ideal que seja um sistema de pensamento, ele possesiva, fazendo daquele objeto do meu conhecimento, mas
é impossível sem a própria vida, sem o de forma passiva, em que no encontro com o outro ele se mostra
próprio habitar do homem
no mundo porque depende de um sujeito que à mim e eu o recebo sem reduzi-lo à força judicativa do meu
pensa e não pode
desconsiderar que este sujeito que pensa, também pensamento. Por esta razão, o encontro verdadeiro com o outro,
experimenta o
mundo de forma direta e sensível. por não ser algo determinado ou prescrito, jamais corresponderia
Assim, mesmo que tentemos operar no mundo a 4 uma relação de “necessidade”, mas de profunda liberdade, de
par-
tir de tendências unificantes do infinitas possibilidades. Contudo, este processo de Redenção, só
pensamento, temos de levar em
consideração que estas nascem em resposta a algo de perturbador é possível por meio de outra categoria, a saber, a da Revelação, a
dado pela própria realidade qual corresponde exatamente ao instante de decisão, de aconte-
que é irredutível a qualquer tentativa
de “atemporalização”. Ao criarmos conceitos cimento, em que para nós se torna clara a importância de romper
ou noções ideali-
zadas do mundo é preciso não com a ideia de causalidade natural e por meio do ato intencional
esquecer que aquilo que eles pre-
tendem fundamentar é suscetível a mutações e justamente úbrir-se para o nascimento de algo novo. Este algo seria a rela-
por
este caráter efêmero é que toda percepção
que fazemos do real ção de resistência, de oposição ao automatismo das ações a uma
deve de tempos em tempos suposta eternidade estática capaz de oferecer ao pensamento o
passar por ajustes. O que também
nos leva a colocar em questão o fato de que ao mesmo tempo em outro lado daquilo que se dá como positivo.
que a realidade passa por transformações, as relações que temos Este instante de decisão, de ruptura, presente no pensa-
com o mundo nunca são as mesmas, variam de indivíduo mento de Rozensweig, que ao lidar com os fatos procura apoiar-se
para
indivíduo e também do indivíduo para si. Na medida em numa dinâmica inversa daquela dada pela tradição do pensamen-
que
estas transformações acontecem é que se dá, então, a verdadeira lo ocidental, em Benjamin irá apresentar-se como Ursprung”!,
relação entre Homem e Mundo. Razão pela qual não faz sentido que em alemão quer dizer origem. Categoria fundamental para o
buscar essências fixas que justifiquem Homem ou Mundo, desenvolvimento de sua teoria e crítica da história. Porém, a ideia
pois
estes ao modificarem-se mutuamente no momento de de origem em Benjamin, exatamente por receber influências de
encontro,
evidenciam sua incompletude. Acontecimento Rozensweig, não corresponde ao sentido de início cronológico,
que Rosenzweig
denominará como momento de Redenção. direto e global, de onde tudo se cria e se desenvolve, semelhante à
Redenção, para o filósofo, marca exatamente este ins- ideia de Gênese (Entstehung). Mas, sim, trata-se de momento de-
tante de abertura do Eu ao Outro, em que se tem a consciência cisivo, de intensidade temporal, muito mais próxima da ideia de
da impossibilidade de uma suposta criação definitiva, de forma Kairós presente na filosofia grega, definido como instante privile-
atemporal, na origem. Ambos, Homem e Mundo, ao se saberem giado e oportuno para a ação, do que Chrónos, o tempo comensu-
incompletos e ainda em processo de criação, anulam a ideia de rável dos relógios. Em seu método historiográfico, Ursprung terá
essência, de sua constituição fora do curso do tempo. Pois se as sentido de quebra com o continuum da história, ruptura messiâ-
relações são temporais e nos afetam, assim como nos deixamos nica, emersão, salto para fora de um conjunto de acontecimentos,
afetar por aquilo que é externo,
quer dizer que somos responsá-
veis pela nossa própria constituição e também
pela constituição
61, BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 34.

40 47
Bruna de Oliveira Bortolini
Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

que traz consigo a possibilidade de transformação, de


mudança, lenômenos contrapõe-se à tradicional condição estática das essên-
favorecendo a compreensão de
passado e presente como momen- vias abalando sua estabilidade, o que evidencia o nascimento de
tos de iluminação recíproca,
em que situações do agora fazem um Novo Pensamento, o qual se guia pela intensidade dos fatos,
ressurgir momentos esquecidos do passado, assim
como momen- entendendo que a verdadeira realidade não é algo se
que possa
tos passados são capazes de reavivar
esperanças futuras. conter em totalidade. O Novo Pensamento sabe que não há uma
Revelação e Redenção, nessa "ideia fixa” e que somente com o tempo, com o
Perspectiva, poderiam a
princípio dar a impressão de estarmos trabalhando desenrolar-se da
com questões realidade, que a verdade apresenta-se. Percepção
é
temporal que
religiosas. Porém é importante ressaltar
que Rozensweig, ao tra- irá também fundamentar seu entendimento a respeito da catego-
balhar estes conceitos, está realizando
um sistema teleológico de pensamento
um convite a questionar
que coloca o ser humano
ria de Experiência como uma forma de
compreensão do
ivessa a sistematizações e limitações temporais e, que de forma
nda
na posição de “um “fantoche”, nas mãos de
algo superior” &, Po- determinante, irá marcar a própria filosofia de Walter Benjamin
sicionamento que posteriormente irá 4 respeito do tema, como veremos a seguir.
clara nos escritos benjaminianos, aparecer de forma muito
principalmente no que diz res-
peito à sua filosofia da linguagem. Esta
crítica, enquanto desafia-
dora dos limites colocados
pela tradição, mais uma vez chama
a atenção para a impossibilidade
de um sistema totalitário de
pensamento, Pois,
“A
L...] verdade” não é, segundo [...]
[Rosenzweig],
uma essência, um determinado ponto focal da “reali-
dade” ao qual justamente esta
“realidade”, ao fim e ao
termo, fosse, por uma conjunção intelectual de
pensa-
mento e ser, finalmente reduzida, fora do
tempo e do
espaço; antes, constitui-se em pluralidade
original em
desdobramento, em verdades originariamente
plurais,
às quais o
pensamento não chega simultaneamente, ou
seja, não despe, por alguma artimanha
intelectual, de
sua mútua diferença e irredutibilidade”,
À questão da
temporalidade que Rosenzweig traz para
seu sistema de pensamento é determinante
para sua crítica ao
idealismo clássico. Aqui, a consciência do
tempo é fundamental
para à compreensão e investigação dos fatos, da
real. Este momento de experiência do
inserção do tempo na dos
compreensão

62. PERIUS, O. Walter Benjamin:


a filosofia como exercício,
63. SOUZA, R.T. Existência p. 37.
em decisão: uma introdução ao de Franz Rosen-
zweig, p. 114.
pensamento

42 43
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

15 nos organizar no mundo se não pela dominação do externo e


Iransformação deste em objeto manipulável pelo pensamento?
A ORIGEM DA CATEGORIA Para Rosenzweig, a questão toda circula em torno do
próprio “dizer”, ou seja, o pensamento para poder ser efetivo ne-
DE EXPERIÊNCIA cessita isolar os conteúdos dos quais se ocupa do tempo, isto é,
(ERFAHRUNG) EM precisa elevá-los a uma dimensão de análise na qual eles pos-
sum ser pensados de forma “supostamente estável”. Contudo,
FRANZ ROZENSWEIG nenhum pensamento pode ser sabido como pensamento (talvez
apenas pelo seu próprio pensador), se não se pronuncia, se não
À categoria de Experiência em Rosenzweig, advinda do se expõe em argumentos. Ao enunciar-se, então, o pensamento

caráter temporal da relação entre homem e mundo, constitui-se, lorna-se temporal. Pois, para o autor, o dizer é temporal; a pala-
vra dita é nutrida pelo tempo e por ser assim, nem ao certo se é
portanto, segundo afirma Souza, em “pensamento contamina-
do pela temporalidade” “*, O que implica em entender que todo possível saber se aquilo que se pensa será dito do modo como
se pensa, nem ao menos se sequer será dito. Isto é, após o pen-
processo de conhecimento por estar intimamente vinculado ao
samento ser enunciado, ele tem que lidar com o que irá surgir
pensamento e também as experiências que o indivíduo faz ao
longo da vida, não se dá fora do tempo. Razão pela qual aquilo em decorrência do dizer, deixando, desse modo, seu estado de
paralisia. Segundo Souza, “exatamente aí se diferencia o Novo
que fazemos de objeto do conhecimento não pode ser tomado
do Antigo pensamento [...] o novo necessita do Outro” %. O dizer
apenas como “[mero conceito] da intelecção”* enquanto expres-
é sempre um dizer ao Outro, não um outro que simplesmente
são isolada e verdadeira da realidade, pois aquilo que tomamos
como objeto do conhecimento não se dá de forma desconexa e ouve, de forma passiva e sob o qual se deposita um amontoado
de conceitos e formas que julgamos lhe serem adequadas, mas
estática no mundo. Os fenômenos no mundo se dão em relação,
implicam-se mutuamente, acontecem no decorrer do tempo e aquele que também enuncia e pode discordar do que lhe foi dito.
não deixam de se transformar apenas porque o pensador em seu Porém não necessariamente em palavras. Isto retira a condição
de verdade absoluta que costumamos dar às significações e des-
pensamento fez uma imagem daquilo que conseguiu capturar
da realidade, paralisando-a de modo a poder analisá-la. Pois, se crições que fazemos do mundo, pois é próprio de cada sujeito
as coisas do mundo apenas se encaixam na percepção que temos uma percepção diferenciada do que é o real. Assim, estas mes-
sobre elas, então seriam somente aquilo que projetamos sobre a mas significações e descrições realizadas, ainda que passíveis de
realidade e nada mais, excluindo-se assim toda a possibilidade verdade, correspondem apenas a uma parte daquilo que é ou que
de Alteridade, do Outro e de diferentes maneiras de percepção ocorre de fato com os fenômenos no mundo, visto que ao serem
sobre aspectos do mundo. Mas de que forma então poderíamos permeados pela temporalidade, estão sujeitos a transformações,
inclusive nas múltiplas relações que estabelecem com que está o
64. SOUZA, R.T. Existência em decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Rosen-
66. SOUZA, R.T. Existência em decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Ro-
zweig, p. 113.
65. Ibidem, p. 121, senzweig, p. 122.

44 45
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

à sua volta. Frente a isto, Rosenzweig propõe um novo modo de interiormente visto. Incluindo a categoria de Experiência, que
exposição filosófica, ou seja, a narrativa. há tratada a seguir e que revela uma forte consciência crítica a
No lugar do método de pensar estabelecido por toda Iespeito da temporalidade, do tradicional modo de compreensão
dos fatos históricos e da “multiplicidade irredutível das ideias””º,
a filosofia anterior, se põe o método de falar. O
pensar
é atemporal e pretende sê-lo; de um só golpe
preten-
de abrir mil associações; o último, a meta, é
para ele
o primeiro. O falar é algo ligado ao tempo e alimen-
tado por ele; não pode e não quer abandonar este solo
que o nutre º,
O Novo Pensamento, nesse sentido, muito mais “expe-
riencial” do que “experimental”, não pretende ser a descrição de
essências e sua classificação dentro de um sistema, mas a narração
de encontros advindos desta multiplicidade de relações existentes.
Aspecto que revela não apenas uma forma de exposição de ideias
entre outras disponíveis, mas um “traço fundamental da experiên-
cia humana: sua constituição temporal” º. Inconclusa e
sempre
aberta a novas relações, acordos e trocas. Concepção que irá pro-
vocar um profundo abalo às bases da filosofia tradicional com seus
conceitos de “essência”, “totalidade”, “unidade” e “identidade”.
Desta forma, a influência recebida por Benjamin de Rosenzweig
vai muito além da construção de novos conceitos
para a filosofia.
Ela se refere a uma mudança na própria compreensão do sentido
de fazer filosofia que, segundo Souza, é “um sentido de “movi-
mento', muito mais do que a intuição intelectual ou apreensão
súbita de uma realidade em sua completude”, seja de forma
escrita ou simbólica. Desdobramento de uma postura filosófica
muito peculiar que Benjamin nos permite acompanhar em seus
escritos a partir de noções como o próprio conceito de origem

67. “En lugar del método del pensar, tal cual ha sido estabelecido
por toda la filosofía
anterior, hace su aparición el método del hablar. El pensamiento es atemporal y quiere
serlo; quiere anudar mil vínculos de un golpe; lo ultimo, la meta, es para é lo primero. El
hablar está ligado con el tiempo, se nutre del tiempo, no quiere ni puede abandoner su
suelo nutricio” (ROSENZWEIG, F. El nuevo pensamiento, p. 33)
68. PERIUS, O. Walter Benjamin: a filosofia como exercício,
Ad.
69. SOUZA, R.T. Existência em decisão: uma introdução ao
pensamento de Franz Ro- 70.
senzweig, p. 68. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 223.

46 47
SEGUNDA
PARTE
EXPERIÊNCIA
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

À categoria de Experiência em Walter Benjamin,


desig Porém, antes de avançarmos em torno da questão da
nada como Erfahrung em alemão, tem origem no verbo fahren, I'xperiência e dos demais elementos que a ela estão vinculados, é
que significa dirigir, conduzir, ir, andar. É uma categoria intima- |neciso que a distingamos da palavra Erlebnis, também originária
(lo nlemão, com raiz no verbo leben (viver),
mente ligada ao movimento e sua tradução para a palavra Expe- que significa “Vivên-
riência nem sempre é capaz de expressar com precisão o signifi- nin”, Erlebnis costuma, em sua tradução, ser confundido como
cado na língua original. Aliás, situação inônimo da palavra Experiência. Contudo está longe disso. Vi-
que o próprio Benjamin,
em seu texto sobre a Tarefa do Tradutor"), problematiza. Ou seja, vYíncia significa uma experiência de vida privada e não coletiva,
a correspondência do nome com
a
própria coisa, muitas vezes no
processo de tradução, se perde na tentativa do tradutor de encon-
vomo Erfahrung. Ela é própria do indivíduo moderno isolado
vn suas atividades diárias, corriqueiras e, portanto, segundo Gag-
trar sinônimos que melhor a expressem. Conforme Benjamin, “a nebin, “difícil de ser transmitida a outros, somente acessível por
fidelidade na tradução de cada palavra isolada
quase nunca é ca- ima “identificação afetiva” (Einfihlung) ou “empatia””*. Essa
paz de reproduzir plenamente o sentido que ela possui no origi- ililerenciação dos termos é necessária, pois, posteriormente eles
nal””, Assim, a categoria de Experiência em Benjamin, do ponto irão utilizados para caracterizar relações diversas dos indivíduos
de vista de sua língua original relacionada à ideia de movimento, tom o seu contexto social, econômico, político e histórico. Razão
revela seu caráter temporal, muito mais do pela qual também se mostra relevante, antes de qualquer estudo
que uma apreensão
da realidade em sua completude de forma direta e pelo viés in- Inuis aprofundado em torno dessas questões, compreendermos
telectual. Tal noção se dá sob a influência das ideias de Franz po sentido filosófico que Walter Benjamin atribui à categoria de
Rosenzweig como visto no capítulo anterior. Contudo, se anali- I'xperiência em suas obras e seus vários níveis de desdobramento.
sarmos bem a tradução da palavra Erfahrung para a palavra Expe-
riência, ela não é de todo desviante de seu sentido original, Pois
Experiência em Walter Benjamin designa uma categoria comum,
compartilhada entre indivíduos e, por esta razão, comunicável,
capaz de oferecer, segundo Gagnebin, “uma mediação linguísti-
ca entre os homens a partir de suas vidas diversas. Ela [...] pode
ser transmitida de geração em geração e oferece a matéria-prima
das histórias que a humanidade se conta a si mesma”. O
que de
forma incontestável também guarda em si uma forte consciência
do tempo e da importância que este tem
para a constituição de tal
Experiência e para sua transmissão a diferentes gerações.

71. BENJAMIN, W. A Tarefa do Tradutor. In: BENJAMIN, W. Escritos sobre mito lin-
e
guagem, Trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,
2011.
72. Ibidem, p. 114.
73. GAGNEBIN, J. M. Benjamin. In: PECORARO, P. (Org.) Os Filósofos Clássicos da
"t, GAGNEBIN, J. M. Benjamin, p. 49.
p.,
Filosofia — Vol. II. Rio de Janeiro: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009.

s1
50
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

! mentalidade “adulta” de utilizar a experiência como uma más-


2.1 vma. “Uma máscara imóvel, fria e incapaz de expressar qualquer
A CATEGORIA DE euiriosidade sobre o mundo””? como se tudo já houvesse sido ex-
perimentado. Entretanto, de acordo com Benjamin, os adultos ao
EXPERIÊNCIA NOS he pronunciarem desta forma, cometem um terrível
engano, pois,
PRIMEIROS ESCRITOS [pura o autor, essa autoridade a respeito dos saberes do mundo,
ndvinda da “experiência”, não passa de mera ilusão. Afinal, como
DE WALTER BENJAMIN 6 possível
comparar experiências? Como saber que a experiência
vivida por um indivíduo será a mesma experimentada por outros?
“Num de meus primeiros ensaios mobilizei todas as Na esteira de Rosenzweig, Benjamin afirma que a rea-
forças rebeldes da juventude contra a palavra “experiên- lidade, por ser inevitavelmente temporal, determina as relações
cia”. E eis que agora essa palavra tornou-se um elemen- de diferentes formas e de incontáveis múltiplos sentidos. Isso
quer
to de sustentação em muitas de minhas coisas. Apesar dizer que toda experiência é sempre nova e única por maior seme-
disso, permaneci fiel a mim mesmo. Pois o meu ataque lhança que possa ter com a dos outros. O uso da experiência como
cindiu a palavra sem a aniquilar”. impedimento à descoberta do novo, sob a ideia de já se ter vivido
ludo e descoberto “a falta de sentido da vida”, serve apenas para in-
Walter Benjamin limidar os mais novos. Revelando ainda uma pobreza intelectual,
lima carência de entusiasmo com a vida e uma falta de espírito
Inicialmente Benjamin parte de uma crítica à noção que faz o autor questionar: “[...] para que [depois de tudo] quere-
de Experiência como um saber opressor, utilizado como recurso nos a experiência?””*, Para entender essa crítica, Benjamin mostra
pelos mais velhos para oporem-se ou descreditarem as ideias e o que o problema da experiência enquanto saber intimidador não
está propriamente na experiência em si, mas na falta de capaci-
ímpeto revolucionário dos mais jovens. Em seu texto Experiên-
dade dos adultos em percebê-la como caminho de transposição
cia, de 1913, publicado na revista Der Anfang (“O começo”), o
autor, tomado pelo desejo de renovação da cultura alemã”ó, acusa para algo que está além dela, ou seja, a verdade. Os mais velhos
limitam-se à experiência enquanto fenômeno empírico, “[...] que
só mantem relações internas com o rotineiro, com o eternamente
75. BENJAMIN, W,. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Trad. Marcus
Vinicius Mazzari; posfácio de Flávio Di Giorgi. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34,
2009. p. 21.
76. Walter Benjamin, em seus escritos de juventude, mostra-se muito envolvido com a
ideia de renovação da cultura alemã. Segundo ele, essa renovação deveria se dar, em
lurcfa consistia, portanto, na difusão e reflexão de valores éticos e morais, fundamentados
primeiro plano, pela reforma escolar, a qual surge a partir de um descontentamento do
próprio autor em relação aos modelos tradicionais de ensino da época. Visto que tais mo- numa ideia de liberdade e valorização do espírito jovem, alegre e investigativo, o qual
delos além de desvalorizarem a curiosidade dos estudantes e, frente aos erros, agirem de
maneira punitiva como forma de correção e sob o pretexto de fazerem isso pelo bem dos
dleveria se “converter em um modo de
pensar comum a todos” (BENJAMIN, W. La refor-
ma escolar: un movimiento cultural. In: BENJAMIN, W. La Metafísica de la juventud.
Barcelona: Ediciones Altaya, S. À, 1994. p. 52).
próprios estudantes, também possuíam uma visão extremamente cientificista do ensino.
Assim, de acordo com o autor, para evitar essa educação repressiva e instrumental, a re-
"7. “Uma máscara inexpressiva, impenetrável, sempre igual a si mesma”. Una máscara
forma deveria, então, partir de uma reflexão sobre o papel da educação e dos educadores inexpressiva, impenetrable, siempre igual a sí misma” (BENJAMIN, W. Experiência, p. 93).
no desenvolvimento dos estudantes, compreendendo-os como portadores de cultura. À
78. “[...] para qué queremos laexperiencia?” Ibidem, p. 94.

52 53
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

volto ao passado”? porque essa atitude se mostra obviamente mui- pada com a questão da verdade em suas várias manifestações.
to mais cômoda do que frente aos erros ter de recomeçar. Uma experiência que aceita o erro e o utiliza como caminho
Em contraposição a isso, Benjamin, fortemente influen- para o aprendizado, para novas tentativas e descobertas. Pois “[...]
ciado pela obra Assim falou Zaratustra” de Nietzsche, propõe ou- para o que busca a verdade o erro não é mais que uma ajuda para
tro tipo de experiência, isto é, o indivíduo, motivado por um ethos, encontrá-la”*, Diferentemente do sermão caduco daqueles
que
deveria opor-se ao espírito “adulto”, mantendo-se jovem mesmo desistiram de tentar.
com a chegada da idade. Para que com isso venha a alcançar uma Apesar das críticas realizadas à categoria de Experiên-
cia, Benjamin não deixa de considerá-la um saber útil. Porém,
qualidade de experiência diferente daquela tida, por Benjamin,
ressalta ao final de seu texto que a Experiência para assumir este
como “constrangedora”. Conforme expõe:
caráter benéfico de utilidade para vida, precisa ser compreendi-
Por outro lado, nós conhecemos outra experiência que
da de maneira diversa da forma como era até então concebida.
pode chegar a ser hostil ao espírito e aniquilar muitos
sonhos em florescimento. Não obstante, é a mais bela, Acredita-se que isso levará o autor, anos depois, a elaborar uma
inatingível e imediata, que jamais chega a perder o es- nova crítica à categoria de Experiência, mas desta vez de forma
pírito com o qual nos mantemos jovens. Como dizia mais profunda por meio de uma crítica epistemológica esboçada
Zaratustra ao final de sua peregrinação, um só experi- inicialmente em seu texto O programa de uma filosofia futura*,
mentou a si mesmo. O filisteu constrói sua <<experiên- de 1918. Mas, por ora, ainda não entraremos neste assunto. O
cia>> e se converte em pura inespiritualidade. O jovem
viverá o espírito e quanto maior for o esforço com que que interessa no momento é desenvolver um pouco mais essa
alcança a grandeza, tanto mais encontrará o espírito noção de Experiência, enquanto Erfahrung, a qual Benjamin em
ao longo de sua peregrinação por entre os homens. O seus jovens estudos acusa de “falsa autoridade”. Veremos que a
jovem será, sem dúvida, um homem indulgente. O fi- partir de textos posteriores ao publicado na revista Der Anfang,
listeu é intolerante”. Benjamin começa a introduzir a categoria de Experiência em
Por mais que Benjamin não defina em seu texto exa- sua filosofia de forma menos agressiva. Ele a transforma numa
tamente que experiência diferente seria esta, se pode pressupor, categoria filosófica que não carrega mais o peso de um caráter
dada a citação acima, uma experiência inconformada e preocu- prepotente, o qual lhe era atribuído anteriormente, mas incor-
pora certos elementos que julga serem essenciais a ela e que a
lornam fonte de conhecimento e verdade. Desta forma, questio-
79. “[...] qué sólo mantienen relaciones internas com lo rutinario, con lo eternamente na-se: que elementos são estes que atrelados à categoria de Expe-
vuelto al passado” (BENJAMIN, W. Experiência, p. 94) riência lhe conferem validade e teor filosófico? E de
80. NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Ber- que forma
à noção de Experiência irá contribuir para a compreensão do
trand Brasil, 1989.
81. “Por otro lado, nosotros conocemos otra experiencia que puede llegar a ser hostil al contexto vivido por Walter Benjamin e suas transformações? Para
espíritu y aniquilar muchos sueõos en flor. No obstante, es la más bella, intangible e in- responder essas questões parece inevitável a compreensão inicial
mediata, ya que jamás llega a perder el espíritu con tal de que nos mantengamos jóvenes. da Experiência em sua relação com a ideia de tradição.
Como decía Zaratustra al final de su peregrinación, uno sólo se experimenta a sí mismo,
El filisteo construye su «experiencia» y se convierte en pura inespiritualidad, El joven
vivirá el espíritu, y cuanto mayor sea el esfuerzo con que alcanza la grandeza, tanto mas
encontrará el espíritu a lo largo de su peregrinación por entre los hombres. El joven será,
52.
el
“[..] para el que busca la verdad error no es más que una ayuda para encontrarla
(Spinoza)”, (BENJAMIN, W, Experiência, p. 95).
sin duda, un hombre indulgente. El filisteo es intolerante”. (BENJAMIN, W. Experiên-
53. BENJAMIN, W, Sobre el Programa de la Filosofia
cia, p. 96). Futura, 1986.

55
54
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

2.2 dos. Bastava desenterrá-lo. Os filhos cavam, mas não


descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a che-

EXPERIÊNCIA gada do outono, porém, as vinhas produzem mais que


qualquer outra na região. Só então compreenderam
COMO MATÉRIA que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência:
a felicidade não está no ouro, mas no trabalho duro”.
DE TRADIÇÃO À Experiência se apresenta, então, como um saber que
de modo benevolente ou ameaçador era comunicado pelos mais
O termo Tradição, na filosofia de Walter Benjamin, velhos aos mais jovens, na medida em que eles cresciam. E por
pode ser entendido como tudo aquilo que ao ser transmitido de esta razão, é considerada, por vezes, algo característico da velhi-
geração em geração conserva as mesmas características desde ce, daquele que viveu e experimentou muito. Ou também da-
sua origem, tanto por “sua duração material até o seu testemu- quele que estava distante e voltou para casa, que viu coisas jamais
nho histórico”**, Ele aparece nas obras do autor designado pela e
imaginadas pelos que ficaram tem, ao retornar, autoridade para
falar a respeito do que vivenciou, pois é sabido que “quem viaja
palavra Úberlieferung, que no português costuma ser traduzi-
da como Tradição, mas que também pode ser entendida como tem muito que contar”*?, A Experiência é concebida, portanto,
“Transmissão”. À tradição associa-se à tarefa de um guardião, que como uma espécie de sabedoria, uma verdade comunicável atra-
vés do tempo, “um conselho tecido na substância da vida vivi-
ao passar determinados “conteúdos” às gerações futuras, tem a
função de preservar certa unicidade de valores, lutas e desistên- da”, O que se refere a uma prática comum, a um conselho que
cias de “um processo histórico concreto”, como diria Gagnebin, não deveria ser apenas ouvido, mas também seguido, adotado
“que transmite ou não um acontecimento ou uma obra do passa- pelo sujeito como parte de sua formação, de sua maturação. Pois,
do até o nosso traz consigo uma utilidade que “pode consistir por vezes num
presente”,
ensinamento moral, ou numa sugestão prática, ou também num
Experiência (Erfahrung), segundo Walter Benjamin,
A
é “matéria da tradição, tanto na vida privada como na coletiva”, provérbio ou norma de vida”*º. Porém, esse conselho não era
pois representa esse “conteúdo” que deve ser passado adiante. apenas individual, mas também coletivo. Ao ser transmitido de
Isso porque, no sentido exposto pelo autor, traz consigo uma geração em geração, era entendido pelos indivíduos como uma
ideia de “sabedoria de vida”. Como aquela transmitida de pai orientação para a vida, própria das sociedades artesanais.
Assim, dizer que alguém é sábio é afirmá-lo como ex-
para filho no leito de morte, conforme narra Benjamin em seu
texto Experiência e Pobreza: periente. E, como antes afirmado, ser experiente não significa
somente ter vivido o bastante e aprendido com isso, mas tam-
[...] um velho que, no leito da morte, revela a seus f-
lhos a existência de um tesouro oculto em seus vinhe-

87. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 123.


58. BENJAMIN, W. O Narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jean-
84. BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p.182.
85. GAGNEBIN, J. M. Benjamin, p. 41. ne Marie Gagnebin — 8º Ed. revista — São Paulo: Brasiliense, 2012 — (Obras Escolhidas,
v. 1). p. 214.
86. BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: BENJAMIN, W. Charles
Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa, Hemerson Alves
89, Ibidem, p. 217.
90. Ibidem, p. 216.
Batista — led. — São Paulo: Brasiliense, 1994 — (Obras Escolhidas, v. 3). p 105.

56 5
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

bém saber como transmitir esses conhecimentos adquiridos aos


outros. Conforme Tiburi, a sabedoria, não é somente “um con-
2.3
teúdo subjetivo ou objetivo, mas também uma forma de relação AARTE DE
com o mundo, inimiga da pressa e do imediatismo. Por isso ela é
o elemento presente da narração, a qual envolve a
NARRAR
compreensão
das camadas mais escondidas do existir”*!. Isso
quer dizer que a EXPERIÊNCIAS
Experiência enquanto matéria da tradição só pode ser assim con-
cebida quando intimamente vinculada a uma narrativa, ou seja,
a arte de contar histórias.
A figura do narrador (Erzáhler) é, portanto, para Benja-
À Experiência, em princípio, é um saber passado de min, a figura do narrador épico, isto é, aquele indivíduo descen-
boca em boca, como as antigas parábolas ou provérbios. Sua co- dente de uma tradição narrativa oral e popular, de experiências
que são contadas a partir de uma linguagem acessível e passíveis
de
municação oral é “a fonte que recorreram todos os narradores.
serem compartilhadas por muitos indivíduos. Suas histórias, cha-
E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se
distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narra- madas narrativas épicas, possuem uma estrutura simples e híbrida
Elas tam-
dores anônimos””?, Motivo pelo qual, o autor, em seu texto O que permitem agregar diálogos e falas na terceira pessoa.
Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov — para ele bém se caracterizam por sua forma
de
ilimitada no tempo e no espa-
“um dos maiores contadores de histórias”? — , se dedica a inves- ço, razão pela qual se diferem outros gêneros como a tragédia
e o romance. Um de seus exemplos mais conhecidos é a Odisseia
tigar essa relação da Experiência com a arte de narrar histórias. E
mostra também, a partir desse estudo, elementos imprescindíveis de Homero, que traz a figura do personagem Ulisses, o qual deseja
retornar à sua casa, Ítaca, depois de uma grande viagem e relatar os
para posterior compreensão dos motivos pelos quais a Experiên-
cia, ou sua narratividade, foi aos poucos, no decorrer do tempo, acontecimentos vividos para aqueles que lhe esperam. Essa carac-
terística do retorno e da narração, segundo Benjamin, é uma ca-
desaparecendo dos espaços coletivos e também privados.
racterística forte de tal modelo narrativo e só pode ser compreen-
dida a partir de dois tipos arcaicos: pelos camponeses sedentários
e, como na Odisseia, pelos viajantes ou marinheiros comerciantes
— aqueles
que vêm de longe e que percorreram muitos lugares e
aqueles que ganharam honestamente suas vidas “sem sair do seu
país e que [conhecem] suas histórias e tradições”*, Segundo Ben-
jamin, esses dois grupos estão intimamente entrelaçados e nesse
sistema de interpenetração associa-se “o conhecimento de terras
distantes, trazido para casa pelo homem viajado, ao conhecimento
do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário”, Esses saberes
91. TIBURI, M. Reflexões do tempo: sobre Walter Benjamin e a estrela cadente. Estudos
narrados estão sempre a serviço de um senso prático.
Leopoldenses, v. 36, n. 157, 2000. p. 90.
92. BENJAMIN, W. O Narrador, p. 214.
93. BENJAMIN, W. SCHOLEM, G. Correspondências 1933-1940, Trad. Neusa Soliz, 94, BENJAMIN, W. O Narrador, p. 214.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. p. 240. 95. Ibidem, p. 215.

58 5º
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

O narrador narra histórias a partir de suas próprias ex- vel quando existe tempo tanto para compor quanto para narrar
periências, ou também daquelas relatadas pelos outros e com isso e escutar. Não somente uma única vez, mas várias, até o mo-
tem a capacidade de incorporar às coisas narradas a experiência mento em que o próprio indivíduo que ouve também adquira
de seus ouvintes. Algo que valha a
pena ser passado adiante. À “espontaneamente o dom de narrá-las”** e assim por diante. Pois
narrativa, ao comunicar uma história, não está interessada em conforme Benjamin, “contar uma história sempre foi a arte de
explicá-la. Ela não força a nada o seu leitor ou ouvinte, deixando contá-las de novo””, Nesse sentido, a narrativa é composta quase
a interpretação da história contada livre, podendo-se atribuir a que artesanalmente, remete à ideia de um trabalho manual, des-
ela o sentido que bem entender. Desta forma, de a coleta dos dados até o momento de sua interpretação e expo-
atinge uma ampli-
tude incomensurável e pode permanecer no tempo sem sição, seja de forma oral ou escrita. Motivo pelo qual a narrativa
prazo
determinado. E, justamente por isso, não necessariamente tem “não está interessada em transmitir o puro em si
da coisa narrada,
de ser nova, uma de suas características é nunca
esgotar-se. Pois como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na
de acordo com Benjamin, “ela conserva suas forças e depois de vida do narrador para em seguida retirá-la dele", Isto significa
muito tempo ainda é capaz de desdobramentos”*. Aqui de for- que aquele que narra, mesmo que não seja o autor original da
ma bastante clara, pelo viés da narrativa, vemos novamente a história, deixa, inevitavelmente, sua marca nas coisas narradas,
relação de Benjamin com a filosofia de Rosenzweig, ao nos lem- “como a mão de oleiro na argila do vaso”"º!, Desta forma, a his-
brar do caráter temporal da realidade que não se deixa abarcar tória que hoje se conta sobre a humanidade é a mesma história
em sua plenitude por meio de conceitos e explicações totalizan- de nossos antepassados, que já foi e continua sendo tecida por
tes, uma vez que o dizer acontece sempre no tempo e não fora muitas mãos. Esse tecer coletivo é o que atribui à história caráter
dele, do mesmo modo que o próprio viver. Assim, a Experiência plural, retirando dela toda a ideia de neutralidade. Pois a história
humana para constituir-se depende da temporalidade e muitas não é um amontoado de coisas, de produtos prontos empilhados
vezes do estar distraído, dado que o processo de assimilação dos em prateleiras, mas a conexão entre todos os fios, a costura que
acontecimentos vividos liga uma parte à outra. Pensamento materialista que Benjamin,
[...] se dá em camadas muito profundas e exige um es-
posteriormente, irá desenvolver também em suas teses Sobre o
tado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o conceito de história”.
sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o Contudo, investigar a narrativa em Benjamin é também
ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é pássa- realizar um estudo a respeito de como os indivíduos constroem
ro onírico que choca os ovos da experiência. O menor sua identidade. Pois a identidade, segundo Gagnebin, não deixa
sussurro nas folhagens o assusta. [...] Quanto mais o de ser “a construção de uma narrativa sobre si mesmo — como
ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente
se agrava nele o que é ouvido”. conseguem, portanto, se lembrar de sua(s) história(s) e transmi-
Aqui se pode perceber outra característica que torna
a comunicabilidade de experiências um objeto da tradição, isto 98. BENJAMIN, W. O Narrador, p. 221.
é, a disposição para ouvir uma história. À narrativa só é possí- 99, Idem.
100. Idem.
101. Idem.
96. BENJAMIN, W. O Narrador, p. 220. 102. BENJAMIN, W,. Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, W. O anjo da histó-
97. Ibidem, p. 221. ria. — 2º ed. — Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

61
60
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

ti-las aos outros e a seus descendentes”!%, Quando


o indivíduo inteligente, semelhante ao personagem de Jorge Luis Borges em
narra algo sobre si, mesmo que mentalmente, ele “reconstrói” Funes, o memorioso. Isto é, um sujeito que possuía um talento
fatos. Tal atitude serve, muitas
vezes, como forma de organi- enorme para guardar dados, “recordava de cada folha de cada
zar mental e emocionalmente conteúdos vividos, colocando-os árvore de cada morro, mas ainda de cada uma das vezes que a
numa rede de relações que possam vir a orientar o próprio indiví- tinha percebido ou imaginado” 108, só que apesar da complexa
duo no mundo. Isso é possível pelo fato de as narrativas estarem memória da qual dispunha e da brilhante capacidade de arma-
intimamente vinculadas à rememoração,
quer dizer, o lembrar, zenar uma quantidade enorme de dados, já não era muito capaz
pela palavra, de um passado que sem ela cairia no esquecimento. de pensar. Memória e esquecimento são, portanto, as duas faces
Uma vez que, como afirma Gagnebin “em redor do continente de uma mesma moeda e é somente por meio dessa dialética que
da memória, as ilhas e as penínsulas do
esquecimento sempre algo de vivo e livre de qualquer insanidade pode vir a se erguer.
existiram”!*, Assim, o lembrar se apresenta como O que possibilita ainda perguntar, qual a relação que Benjamin
uma luta cons-
tante contra o esquecimento, seja para reavivar algo do passado faz da memória com a categoria de Experiência em seus estudos?
ou para “resguardar alguma coisa da morte”!%, À inscrição do
indivíduo no tempo pela narrativa é uma forma de
garantir que
algo de sua existência sobreviva à sua finitude, à sua ausência — à
inevitável presença da morte. Entretanto, essa narrativa,
mesmo
que se coloque como garantia de permanência da presença, está
longe de ser estável e sem falhas, como bem coloca Ricouer em
Tempo e Narrativa: Tomo III. Segundo o autor, é possível tramar
sobre a própria vida intrigas diferentes, ou até
mesmo opostas,
porém, é por essa mesma razão que “a identidade narrativa não
cessa de se fazer e de se desfazer”"* no tempo.
Por isso, lembrar e esquecer são categorias
que se ali-
mentam mutuamente. Segundo Seligmann-Silva 107, uma é o
fundo sobre a qual se inscreve a outra. Para
que possamos lembrar,
€ até mesmo pensar, é importante
que possamos também esque-
cer, caso contrário ficaríamos presos às lembranças e à constante
tarefa de memorizar, Tornaríamo-nos incapazes de
agir de forma

103. GAGNEBIN, J. M. Benjamin,


p. 42.
104. GAGNEBIN,J. M. Alegoria, Morte e Modernidade,
DA
105. GIDE apud GAGNEBIN, J. M.
Alegoria, Morte e Modernidade, p. 03.
106. RICOUER, P. Tempo e Narrativa: Tomo III. Trad. Roberto Leal
Ferreira, Campinas,
SP: Papirus, 1997. p, 428.
107. SELIGMANN-SILVA, M. Reflexões sobre à memória, a história e o
esquecimento. J. L. Ficções. São Paulo:
In: SELIGMANN-SILVA, M. (Org.). História, Memória, Literatura: O 108.BORGES, J. L. Funes, o memorioso. In: BORGES,
testemunho na
Era das Catástrofes. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2003. p. 53. Companhia das Letras, 2007. p. 106-107.

62 63

Bruna de Oliveira Bortolini
Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

2.4 de Bergson, chama de memória involuntária no primeiro volume


de sua obra Em Busca do Tempo Perdido'!!. Para Proust, a memó-
EXPERIÊNCIA ria involuntária é aquela que está por conta do acaso, ou seja,
E MEMÓRIA não é propositalmente resgatável a partir de uma vontade, visto
que o intelecto não se relaciona diretamente com as experiências
“um acontecimento vivido é vividas no passado. Assim, esse lembrar é sempre uma interpreta-
fínito, ou pelo menos encer-
rado na esfera do vivido, ao ção dos “fatos” passados a partir de um momento presente. Um
passo que o acontecimento
rememorado é sem limites, pois é exemplo é quando o sujeito ao se deparar, no presente, com algo
apenas uma chave
para tudo o que veio antes e depois”!
, aparentemente sem sentido, é subitamente lançado ao passado
por meio de uma imagem que lhe irrompe a memória, permitin-
do-o acessar de forma renovada uma experiência da qual havia se
Walter Benjamin
esquecido. Como comenta Benjamin, a respeito de Proust:
[...] Proust fala da forma precária como se apresentou
Segundo Benjamin, ato de “lembrar” que funda a
é o em sua lembrança, durante muitos anos, a cidade de
cadeia da tradição e evoca a

narrativa, a qual é capaz de transmitir Combray, onde, afinal, havia transcorrido uma parte
experiências ou acontecimentos de geração em de sua infância. Até aquela tarde, em que o sabor da
geração, Entre-
tanto, é importante ressaltar que esse “lembrar” madeleine (espécie de bolo pequeno) o houvesse trans-
benjaminiano portado de volta aos velhos tempos".
não se refere simplesmente a uma categoria dada
por via da cons-
ciência, sujeita à tutela do intelecto. Esse remernorar é À memória, no sentido trabalhado tanto por Benjamin
está muito mais vinculado a outro e
uma noção de imagens mnêmicas quanto por Proust, possui, então, um caráter que é também tem-
Isto é, que não dependem de
um esforço mental para serem aces! poral e acima de tudo ocioso. Portanto, a concepção de memória
sadas que vêm à involuntária nasce em oposição à noção de memória voluntária,
e memória, muitas vezes, até contra a vontade
do sujeito, o qual se pudesse da mesma forma como o lembrar espontâneo se opõe ao lembrar
optar, escolheria talvez nunca lem-
brar-se delas ou ser afetado aprendido em Bergson. A memória voluntária é aquela evocada
por elas. Esta forma de “lembrar”
em Benjamin, está muito próxima daquilo que Proust influen- pelo sujeito consciente através de rigorosos métodos e esquemati-
ciado pelos conceitos de lembrar zações. É uma atividade de lembrar diferente da primeira, pois en-
espontâneo!" ou memória pura
volve o intelecto, quer dizer, é uma ação controlada na maior par-

o
109. BENJAMIN, W., À imagem de Proust. In: BENJAMIN, W,
À

ensaios sobre literatura e história da cultura, Trad,


Magia e
técnica, arte e
Sérgio Paulo Rouanet; pre à qual se faz um esforço para lembrar e quando este “objeto” do lembrar está inteiramente
ácio Jeanne Marie Gagnebin — 8º Ed. Obras
Escolhidas
É
á :
v, 1). p. 38-39,
revista — Sã Paulo: Brasiliense,
bh

Em Matéria e Memória, Bergson afirma


São ili
' 2012 —
12 re integrado a ação, ela passa a ser cada vez mais impessoal e mecânica. Segundo Bergson,
sc ela “merece ainda o nome de memória, já não é porque conserve imagens antigas, mas
10.
guida duas formas: o lembrar espontâneo
de
que a atividade do
lembrar pode ser distin-
e o lembrar aprendido. O primeiro refere-se
o
porque prolonga seu efeito útil até momento presente” (BERGSON, H. Matéria e Me-
mória: ensaios sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. — 2º. ed. São

à
uma atividade natural de lembrar, a capacidade da memória de Tegistrar todos Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 88-89).
tecimentos da vida cotidiana, e os acon-
que sem a “intenção de utilidade ou aplicação prática, 111. PROUST, M. No caminho de Swann. In: PROUST, M. Em busca do
tempo perdi-
armazenaria o passado pelo mero efeito de uma necessidade natural”, seria
á
K Ê:

do. Rio de Janeiro: Globo, 1957.


perfeita. À segunda, em uma memória
contraposição, é uma lembrança ligada à ação, de sentido 112. BENJAMIN, W, À modernidade,
p. 106.
prático

64 65
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

te das vezes. Muito valorizada


no âmbito do conhecimento, das

e
Tais energias apontadas por Freud podem ser eneudis
ciências e na própria filosofia. O
sujeito lembra das como choques. Esses choques advindos de estímulos
para
para explicar, apontar e determinar conteúdos, fatos,
poder falar,
situações, são, então, barrados pelo consciente, o que previne o indivíduo
“e

e
etc. Portanto, essas duas categorias do lembrar de acidentes traumáticos. O trauma, segundo a teoria
se diferenciam na psicant-
medida em que são
capazes de proporcionar sensações diferentes lítica de Freud!"6, seria exatamente o rompimento da proteção
e também pelo modo
como são acionadas. Enquanto uma de- contra o estímulo: Porém, com o consciente desperto, o choque é
pende do hábito, de atividades rotineiras, exercícios recebido e amortecido. O evento ocorrido
constantes de seria então

oO
memorização, a outra depende única e exclusivamente do
embora ambas possam vir a se entrecruzar
ções. Como, por exemplo, quando o sujeito
acaso,
em determinadas situa-
do “ao acervo das lembranças conscientes”"", adquirindo
de utilidade prática, pois passa por uma reflexão.

SS
ao buscar se lembrar xão, provavelmente o incidente ocorrido, ao e se &
de algo específico, depara-se
com recordações que não foram ini-
cialmente desejadas, o que revela também
um conteúdo controlado, tornar-se-ia um sobressalto “agra. áve -
certa contradição. ou na maioria das vezes desagradável”, uma lembrança
pon
Contudo, segundo Benjamin, na busca
ção mais concreta do conceito de memória voluntária
por uma defini- nea despertada por um acontecimento não programado, que
a
ae
o
Eo o
desenhado la o sujeito e que não pode ser controlada, Portanto, a
por Proust, com base nas teorias de Bergson, “é aconselhável voluntária é essa suscetível à consciência do sujeito e ainvo

a
se
reportar a Freud”"""?, De acordo com Benjamin, Freud ria é aquela sujeita a fatores externos e
ensaio Além do Princípio do
em seu PRADO
Prazer"!, estabelece uma correla- a possibilidade disto ocorrer ou não ao longo da vida,
ção entre memória (memória involuntária) e
como exposto anteriormente, da sorte. Daí o fato da
-
o consciente. Deste
modo, para que algo possa chegar a se tornar lidade da experiência, em muitos casos, dar-se em situações
um componente
da memória involuntária, é =.
preciso que não tenha passado pelo
consciente, que não tenha sido “vivenciado” conscientemente.
tes como a morte, pois são essas situações que despertam mas
temente à memória as lembranças e a necessidade de narrá-las. o
Pois, segundo Freud, o consciente não teria
a tarefa de registrar
traços mnemônicos. Na verdade, sua função é
outra. À ele cabe
agir como proteção contra estímulos, Conforme
Freud:
A proteção contra os estímulos
é, Para os organismos vi-
vos, uma função quase mais importante do
que a recep-
ção deles. O escudo protetor é suprido com
seu próprio
estoque de energia e deve, acima de tudo, esforçar-se
por preservar os modos especiais de transformação de
energia que nele operam, contra os efeitos ameaçado-
res das enormes energias em ação no mundo
externo,
efeitos que tendem
para o nivelamento deles e, assim,
para a destruição",

113, BENJAMIN, W. À modernidade,


p. 108.
114. FREUD, S. Além do princípio de prazer. Rio de Janeiro:
Imago, 1998, 116. FREUD, S. Além do princípio de prazer, p. 43.
o
115. Ibidem, p. 41.
117. BENJAMIN, W. A modernidade, p. 110.

66 67
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

2.5 em outros contextos, uma forma de delimitação territorial a qual


não pode ser transposta impunemente. O conceito de limiar, por
EXPERIÊNCIA sua vez, apesar de também servir para uma delimitação espacial
E LIMIAR e, principalmente, temporal, implica movimento. Isto é, no pró-
prio ato de transbordar, de ultrapassar os limites, é um registro de
“passagem” (Ubergang). O limiar é aquilo que possibilita a transi-
De acordo com Benjamin, é
no moribundo que não ção de um lugar ao outro, seja ele físico, intelectual ou espiritual.
apenas o saber e a sabedoria, mas também sua vida vivida, De acordo com Gagnebin,
da
qual são feitas as histórias, “assumem
pela primeira vez numa for! [...] na arquitetura, o limiar tem a função de “permitir
ma transmissível”!!?, Porque é no leito de andarilho ou ao morador que transite, sem maior
morte que o indivíduo ao
mergulha em visões de si mesmo, encontra-se com suas experiên- dificuldade, de um lugar determinado a outro lugar
cias “conferindo a tudo o distinto, às vezes oposto. Seja ele simples rampa, solei-
que lhe dizia respeito aquela autoridade
que mesmo um pobre-diabo possui, ao ra, porta, vestíbulo, corredor, escadaria, sala de espera
morrer, Para os vivos em num consultório, de recepção num palácio, pórtico,
seu redor"!”, E, portanto, em
momentos como esse que os sabe- portão, ou mártex numa catedral gótica, o limiar não
res são comunicados e
por não serem conscientemente evocados faz só separar dois territórios (como a fronteira), mas
guardam uma força e uma veracidade capazes de perdurar permite a transição, de duração variável, entre esses
por
muito tempo. Para tais momentos, Benjamin atribui o nome de dois territórios!”!,

Ritos de Passagens” ou “Limiar”, os quais se dão O limiar, portanto, apesar de corresponder à separação,
geralmente em
cerimônias ligadas não somente à morte, mas também também significa transpasso, ou seja, possibilidade de transpor
ao nasci-
mento, ao casamento, à puberdade e ao sonho. Todos barreiras e não apenas de estabelecer um limite. Assemelha-se
estes rituais
possuem elementos em comum como a mudança, a trausição, muito à função de uma ponte, aquele lugar entre duas possibili-
a
passagem de um lugar ao outro, o fluxo. No entanto Rena dades que ao invés de apenas conter-nos, também nos incentiva
para
min, antes de qualquer reflexão a respeito dos sentidos
que = ao movimento. Em A comunidade que vem!”?º, Agamben aborda
samos atribuir a esse conceito de limiar (Schwelle), é interesante essa questão através da ideia de fora (no original italiano, fuori,
|
distingui-lo da ideia de fronteira (Grenze).
algo exterior que também pode ser compreendido como soleira
TFronteira segundo Gagnebin, no vocabulário ou porta), e assim como em Benjamin, e certamente influencia-
— também filosófico
clássico correspondente à palavra limite. Significa esta- do por ele, afirma que o “fora não é outro lugar situado para além

STE RR ERR
aoao
de um espaço determinado, mas é a passagem, a exterioridade
um “traço” em torno de algo
us espaços, delimitar seu
campo que lhe dá acesso”,
e evitar
que esse algo, por assim dizer, se derrame sobre Outra característica da palavra limiar está em seu termo
ção

suas bordas em direção a um infinito alemão Schwelle que, conforme Gagnebin corresponde
onipotente”!?º, É também , original

118. BENJAMIN, W. O Narrador,


p. 224. 121. GAGNEBIN, J. M. Limiar: entre vida e morte, p. 36.
119. Idem. 122. AGAMBEN, G. A comunidade que vem. Trad. Antônio Guerreiro. Lisboa: Editorial
12: GAGNEBIN, J. M. Limiar: entre vida e morte. In: GAGNEBIN, J. M. Limiar, Presença, 1993,
tememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. — ed. — São aura e
1
Paulo: Editora 34, 2014. 123. Ibidem, p. 54.
p.35

68 69
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

E
ao verbo sclnwellen, o qual pode ser traduzido
como “inchar, dila- para que se possa realizar a “passagem” de forma veloz,
tar, inflar, intumescer, crescer”!?, Para a quae qe
jamin, de uma etimologia fantasiosa, mas
do interessante, quando
autora trata-se, em Ben-
que assume um senti-
num piscar de olhos — da mesma forma “como
programa de televisão ao outro com um mero toque na tecla =
exposta no caderno benjaminiano sobre “controle remoto”, Sendo essa uma das mais importantes pro o
a prostituição e o jogo, sendo
associada ao processo de excitação blemáticas levantadas por Benjamin a respeito da modernidade.

Aa
sexual. Ali o termo corresponde a A pobreza de experiências enquanto Erfahrung e seus
uma Zona, nem sempre bem
definida, que lembra “fluxos e contra fluxos, no modo como os indivíduos passam a perceber e se relacionar
viagens e desejos”!%,
Conforme o que expõe Benjamin,
com o mundo após o seu declínio, como exposto a seguir.
[-..] as variações das figuras do
sonho, oscilam também
em torno de limiares os altos e baixos da
conversação
e as mudanças sexuais do
amor. “Como agrada ao ho-
mem, diz Aragon, manter-se na soleira da imaginação”
(no limiar das portas da imaginação)
[Paysan de Paris,
1926, Paris, Pp. 74]. Não é
apenas dos limiares destas
portas fantásticas, mas dos limiares em geral
que os
amantes, os amigos, adoram sugar as forças. Às prosti-
tutas, porém, amam os limiares das
portas do sonho!%,
Esses “momentos limiares”
são, para Benjamin, deter-
minantes à transmissão de
experiências, pois estão intimamente
ligados a uma categoria temporal
que permite o processo de re-
memoração e sua comunicação. Entretanto, com o advento da
modernidade, em particular com a era capitalista,
o tempo pa-
rece ter encolhido, se abreviado, isto conforme a famosa
frase de Benjamin Franklin, porque,
“tempo é dinheiro”. Gastar
com atividades que não visam o lucro é agir contra todo tempo
do capital. Motivo pelo qual um ethos
Benjamin afirma que na vida mo-
derna, as transições tornaram-se “cada vez mais
irreconhecíveis
e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos
muito pobres em experiên-
cias limiares. O adormecer seja talvez
a única delas que nos res-
tou”!””, Nesse período, o ideal é
que os momentos de transição
sejam abreviados ao máximo ou, se possível, até
mesmo anulados

124. GAGNEBIN, J. M. Limiar:


entre vida e morte, p. 36.
125, Idem.
126. BENJAMIN, W. Passagens, p. 535.
127. Ibidem, p. 535. 128. GAGNEBIN, J. M. Limiar: entre vida e morte, p. 38.

70 7
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

2.6 que exigem respostas imediatas, não havendo tempo para con-
templação ou reflexão dos acontecimentos, conforme ocorria nas
MODERNIDADE sociedades artesanais. Neste contexto, as ações se tornam cada vez
E O DECLÍNIO DA mais mecânicas em função de obrigações da vida diária e o indi-
víduo é levado a uma espécie de amortecimento ou conformismo
EXPERIÊNCIA acerca dos fatos da vida em função de seu constante agir comba-
tivo. Num conto de Edgar Allan Poe, O Homem da Multidão”,
Benjamin irá identificar esse comportamento como aquele em
À
modernidade, portanto, com suas revoluções indus-
m e técnicas,
triais que todos parecem agir por força do hábito, submersos em suas
que afetam em vários âmbitos a vida cotidiana vivências particulares. Condicionamento que se deve não somen-
faz a ideia de tradição e todo o contexto vital
para comunicação te, mas em boa parte, ao desenvolvimento da técnica. Com os
de experiências perderem sua autoridade, vindo
posteriormente sofisticados desenvolvimentos técnicos, muitos benefícios foram
a atrofiarem-se, inclusive a narrativa,
as “experiências limiares” proporcionados ao homem, inclusive melhorias na aparelhagem
e até mesmo o valor das memórias
involuntárias, por fazer com de trabalho, como exposto no primeiro capítulo. Porém, de outro
que esses elementos pareçam desatualizados e sem utilidade para lado o individuo, principalmente o trabalhador industrial, foi re-
a vida prática. Um verdadeiro peso em relação à promessa de baixado a ocupações estritamente mecânicas, a um trabalho auto-
liberdade” que o período moderno fomenta sob o véu da matizado. E, assim, como se já não bastasse o ritmo acelerado da
novi-
dade. O resultado dessa
contração é, segundo Gagnebin, “um vida nas grandes cidades que uniformiza as ações dos indivíduos,
embotamento drástico da percepção dos ritmos diferenciados de há também o seu adestramento no interior das fábricas. Fator que
transição, tanto do ponto de vista sensorial como no que diz res- faz com que os homens não busquem mais fazer experiências
peito à experiência espiritual e intelectual”!?, Situação
ba concedendo espaço a outras formas de vivenciar
os
que aca-
fatos com-
em seu sentido originário, na verdade, o que querem é
libertar-se
delas, pois já se encontram fatigados pelas infinitas complicações
preender e contar uma história ou relatar um acontecimento.
que tem de enfrentar no seu dia a dia, tomando o objetivo da vida

e das primeiras consequências apontadas por Ben-


Uma
[...] apenas como o mais remoto ponto de fuga numa
jamin, em relação à revolução moderna, é a
substituição da Ex- interminável perspectiva de meios, surge uma experiên-
periência (Erfahrung) pela Vivência (Erlebnis). A vivência, como cia que se basta a si
mesma, em cada episódio, do modo
visto
no início do capítulo, é caracterizada por um alto grau de mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel
conscientização das atividades humanas e, ao contrário da Er não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta
fahrung, é responsável por levar os indivíduos a um plano de ex- na árvore se arredonda como a gôndola de um balão”
perimentação considerado superficial. Isto ocorre em razão dos Porém, essa renuncia às experiências não significa igno-
choques (estímulos) que a consciência tem que filtrar e ordenar rância ou imaturidade. O homem moderno é um dos que mais
para suprir exigências da vida cotidiana. O que faz com que as tem acesso e consome cultura, razão pela qual não é possível
informações sejam assimiladas às pressas na mesma medida
em

130. À. apud BENJAMIN, W,. Sobre Alguns Temas em Baudelaire, p. 119.


POE, E.
129. GAGNEBIN, J. M. Limiar: entre vida 131. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 128.
e morte, p. 38.

72 73
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

dizer que se encontra nessa situação


verdade, ele rejeita a Experiência
por pura ingenuidade. Na
porque já está cansado, porque
2.7
dedicou todas as suas energias a um plano
cioso que o deixou sem forças
extremamente ambi- NARRATIVA,
para continuar, isto é: o sonho do
progresso. Que agora só pode ser realizado durante o sono, onde ROMANCE E
a existência é cheia de milagres,
salva da realidade. Ou seja,
mas que mesmo assim não o INFORMAÇÃO
na modernidade já não se consegue
distinguir o valor de uma experiência em seu sentido
originário, “Quando falo na guerra, não sou capaz de dizer mui-
elas permanecem
apenas como vagas recordações em meio às ta coisa. Imagino o que deve ter sido esta última para
vivências cotidianas e infinitamente
pessoais. A
memória-hábito quem a viveu. E calo-me. Se aquela foi a Grande Guer-
passa, então, a configurar boa parte das impressões do indivíduo
ra, que nome se há de dar a esta? E que nome se dará à
a respeito da vida, tornando a
participação do consciente cada próxima?”
vez mais constante. Assim, segundo Benjamin, “quanto
maior
for o êxito com que ele
operar, tanto menos essas impressões José Saramago
serão incorporadas à experiência, e tanto mais
corresponderão
ao conceito de vivência”"”?, Essa incapacidade
para constituição
de Experiências enquanto Segundo Walter Benjamin, “são cada vez mais raras as
Erfahrung e, consequentemente, para
sua transmissão, irá tornar-se mais evidente com o
surgimento da pessoas que sabem narrar devidamente. E cada vez mais frequen-
imprensa. À imprensa, enquanto um dos instrumentos mais im- te que, quando o desejo de ouvir uma história é manifestado, o
portantes do capitalismo, revela uma nova realidade à comunica- embaraço se generalize”!"*, Pois é evidente que as ações da expe-
bilidade dos indivíduos: a informação, a qual riência estejam em baixa. “E tudo indica que continuarão cain-
nasce, obviamente,
em razão dos novos e mais velozes ritmos de vida e da crescente do em um buraco sem fundo”!”, Para o autor, este processo de
falta de tempo para a narrativa convencional. empobrecimento de experiências se dá de forma clara como um
reflexo da vida dos indivíduos nas grandes cidades, que atinge seu
ápice com a Primeira Guerra Mundial e “desde então segue inin-
terrupto”!6, “Não se notou ao final da guerra que os combatentes
voltavam mudos do campo de batalha; não mais ricos, e sim mais
pobres em experiência comunicável?”!” Isso ocorre não neces-
sariamente porque não tiveram experiências suficientes ou por-
que essas não possuíam importância histórica, mas porque tais

133. SARAMAGO, J.Claraboia. São Paulo: Companhia, 2011. p. 203.


134. BENJAMIN, W. O narrador, p. 213.
135. Ibidem, p. 214.
136. Idem.
132. BENJAMIN, W, À modernidade, 137. Idem.
p. 111.

74 75
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

experiências, diferentemente do que ocorria antes, não podiam de decadência tem seu primeiro indício, que irá culminar no de-
ser contadas na forma de relatos, isto é, relatos que contivessem saparecimento da narrativa, com o surgimento da imprensa.
alguma orientação prática, alguma sabedoria que pudesse ser À imprensa, além de caracterizar-se pelo aperfeiçoa-
transmitida de geração em geração. Porque, conforme Benjamin, mento de estratégias midiáticas, é também umdos sintomas que
[...] nunca houve experiências mais radicalmente des- confirmam e antecedem a posterior dominação do indivíduo
mentidas que a experiência estratégica pela
guerra das
pela máquina. Ela é indício das primeiras transformações que
trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a ex-
periência do corpo pela fome, a experiência moral pelos
ocorrem com a revolução da indústria e da técnica. Isto porque
permite o nascimento de novas formas de comunicação entre
governantes. Uma geração que ainda fora à escola num indivíduos que irão substituir a narrativa, como é o caso do ro-
bonde puxado por cavalos viu-se sem teto, numa paisa-
gem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo
mance e de forma mais contundente, da informação jornalística.
centro, num campo de forças de correntes e explosões Que segundo o que afirma Castro, “além de ser um fenômeno
destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo huma- de grande importância cultural e histórica, caracteriza a predo-
no. minância de um determinado tipo de abordagem dos aconteci-
ÀPrimeira Guerra Mundial não contém nenhum mentos”!*!, ou seja, “noticiar os fatos em primeira mão, de modo
aprendizado que possa ser narrado como eram narradas as his- direto e eficiente, para um público cada vez mais numeroso [...]
tórias de antigamente, até mesmo aquelas sobre as propósito [que] realiza-se seguindo a tendência a acompanhar
guerras antes notícias “ao vivo”, imediatamente enquanto estão ocorrendo”
ocorridas e que fazem parte da cultura
!*,

humana, pois não há um


sentido épico nela. Isso ocorre, pois, ao encontro dos estudos fei- Já o romance, em oposição à narrativa, corresponde ao
tos por Castro!”, a técnica com sua poderosa força de indivíduo isolado. Ele está essencialmente vinculado ao livro,
destruição
por essa razão, também à introspecção, visto que o livro não
é
aniquilou e tornou invisíveis as ações heroicas individuais que
um objeto coletivo, quer dizer, sua leitura é privada. Mesmo que
pudessem estar vinculadas à guerra. O fenômeno de massifica-
ção da morte na Primeira Guerra, na maioria dos Casos, sem a seja uma leitura para os outros, o livro por suas características de
possibilidade de defesa, anula qualquer espécie de atitude nobre manuseio não é feito para ser lido por várias pessoas ao mesmo
que se possa a ela atribuir. De acordo com Gagnebin, “a Primeira tempo, a não ser que cada pessoa possua seu próprio exemplar,
Guerra manifesta, com efeito, a sujeição do indivíduo às forças mas do mesmo modo a leitura realizada será particular. Razão
impessoais e todo poderosas da técnica, que só faz crescer e trans- pela qual, a invenção da impressa é determinante para sua difu-
forma cada vez mais nossas vidas de maneira tão total e tão rápida são, mesmo que na antiguidade ele já existisse, pois, de acordo
que não conseguimos assimilar essas mudanças pela palavra”!*, com Benjamin, foi na burguesia ascendente que ele encontrou
À guerra é o ponto máximo de um desenvolvimento “os elementos favoráveis a seu florescimento”"*. Porém a infor-
técnico,
criado por uma sociedade que é ao mesmo mação, “é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mas
tempo incapaz de ameaçadora do que ele, e, de resto provoca uma crise no próprio
obter total controle sobre ele. Segundo Benjamin, esse sintoma

138.
139.
BENJAMIN, W. O narrador,
CASTRO, P. S. V.
pp 2l
Caminho principal e caminhos secundários: sobre o pensamento
141. CASTRO, P. S. V. Caminho principal
estético de Walter Benjamin, p. 51.
e caminhos secundários: sobre o pensamento

estético de Walter Benjamin. ed. — São Paulo: Grupo Editorial Cone Sul, 2001.
1 142, Idem.
p. 51.

140. GAGNEBIN, J. M. Não contar mais?,


Pp. 59,
143. BENJAMIN, W. O narrador, p. 218.

76 TI
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

romance"!“, A informação baseada no princípio da novidade e permite sequer que as experiências se constituam enquanto tal,
da concisão é o material perfeito
para uma época onde o tem- muito menos favorece a sua transmissão. Ficamos pobres de ex-
po tornou-se escasso. Sua diferença em relação à narrativa e ao periências, afirma Benjamin. “Uma forma completamente nova
romance é que ela aspira essa tal “verificabilidade imediata”!*, de miséria recaiu sobre os homens” "** dado que os fatos recebidos
Quer dizer, nem sempre aquilo que a notícia informa pode ser
considerado mais exato do que aquilo que narravam os antigos
pela notícia jornalística, numa velocidade que impedem
de reflexão, são impossíveis de serem incorporados a uma
esfor-
rede
o
ço
viajantes ou os camponeses sedentários. Porém, ela funciona de referências válidas que favoreça descobertas pessoais ou a uma
pelo simples fato de soar plausível, o que por si só já é incompa- nova compreensão de mundo.
tível com o espírito da narrativa, a qual na maior
parte das vezes Desta maneira, em meio à constante modernização so-
tende a recorrer ao miraculoso. Fato que no alto do capitalismo cial e racionalização das atividades humanas, o aspecto cognitivo
terá importância enorme, pois gera uma economia de da percepção, na modernidade, parece ganhar ênfase. O indiví-
tempo que
será direcionada para o trabalho. E assim, segundo o autor, duo em constante estado de alerta, pronto para o próximo co-
[.-.] a cada manhã recebemos notícias de todo mundo.
mando, tem sua percepção disciplinada através de exercícios me-
E, no entanto, somos pobres em histórias surpreenden- cânicos. Acostumando-se “cada vez mais a ver estrategicamente o
tes. À razão para tal é que todos os fatos já nos chegam mundo como conexão calculável de causas e efeitos”!*, À única
impregnados de explicações. Em outras palavras: quase experiência, agora possível, parece ser o experimento científico,
nada do que acontece é favorável à narrativa, e o qual, sob uma rigorosa série de procedimentos, é capaz de ofe-
quase
tudo beneficia informação".
a
recer ao indivíduo moderno elementos que permitam ordenar e
Porém, é interessante observar que a informação só é classificar tudo aquilo que lhe é externo e que sob a ótica do pro-
relevante enquanto for nova. Daí outra característica gresso deve ser controlado, identificado e determinado.
que a dife-
rencia das narrativas, uma vez que as narrativas alimentavam-se
de conteúdos duráveis, da experiência da vida vivida agregada a
acontecimentos externos e experiências alheias. À informação,
por sua vez, padece com o
passar do tempo, pois ela só vive no
momento presente, “ela precisa entregar-se inteiramente a ele e
sem perda de tempo tem que se explicar nele”"*”, Isso porque não
estabelece nenhum tipo de comunicabilidade com informação
que virá no momento seguinte. As notícias são sempre isoladas e
a
velozes, assim como os indivíduos e a correria da vida nas
gran-
des cidades. Por esta razão, é possível afirmar
que a informação
é contrária à formação de experiências na medida em que não

144. BENJAMIN, W. O narrador, p. 218.


145, Ibidem, 148. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 124.
p. 219.
PALHARES, T. H. P. Aura: a crise da arte em Walter Benjamin. São Paulo: Editora
:

146. Idem. 149.

147. Ibidem, p. 220. Barracuda, 2006. p. 54.

78 7
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

2.8 umanova tarefa à filosofia, exposta em seus escritos posteriores e

DA EXPERIÊNCIA
que inclui também
O ensaio
a
retomada da categoria de Experiência.
sobre O programa de uma filosofia futura, não
publicado em vida pelo filósofo, expõe a crítica de Walter Benja-
AO EXPERIMENTO min à filosofia de Kant e aos neo-kantianos. Este ensaio é origina-
do a partir de diálogos com o amigo Gershon Scholem, como é
A categoria de Experiência no pensamento de Benja- possível constatar a partir da própria afirmação feita por Scholem:
min, desde a publicação do autor sobre o respectivo tema na re- Uma carta de Dora, endereçada a mim em 7 de dezem-
vista Der Anfang, passa, como visto, por uma evolução. Deixa de bro, revelou que Benjamin escreveu seu trabalho Uber
ser concebido como saber amargurado e intimidador e torna-se das Programm der kommenden Philosophie [“Do Pro-
grama da Filosofia do Futuro”], em novembro de 1917,
uma categoria filosófica vinculada a uma forma de conhecimen-
to que não opera de maneira causal. Isso inevitavelmente opõe o
seguindo as ideias contidas numa carta (publicada) que
me enviara a 22 de outubro“,
autor à tradição filosófica moderna em sua vertente mais decisiva,
a de fundamentação do conhecimento científico. Porém, Aborda, além de estudos judaicos, o modo como os neo-
como -kantianos compreendiam a categoria de Experiência. E sabido
é sua característica fazer filosofia
por desvios, Benjamin não irá que Walter Benjamin, na construção de seu pensamento, foi for-
desanimar quando a categoria de Experiência (no seu sentido tra-
dicional), frente à poderosa crença moderna na ideia de progres- temente influenciado pelas ideias kantianas, as quais nem sem-
so, encontrar o seu declínio. Em sua tese sobre o drama barroco pre eram concebidas de modo positivo pelo autor, em específico
alemão, o autor parece retomar uma antiga discussão levantada aquelas apreendidas na escola de Marburg e vinculadas à concep-
anos antes em seus escritos de juventude a respeito dos usos ins- ção de seu líder Hermann Cohen, a respeito da experiência ao
trumentais da experiência pelo pensamento filosófico iluminista. modelo positivista, ou seja, fundamentada no padrão matemático
€ nas ciências naturais. Porém, mesmo que Benjamin entrasse em
Essa discussão que Benjamin irá trazer à tona sob um novo con-
discordância com o pensamento de Kant, possuía grande respeito
texto, tem como ponto central a crítica ao gesto dominador do
sujeito que acredita poder conhecer a realidade apenas segundo pelo mesmo, nunca desconsiderando em si suas ideias, mas ten-
tando a partir delas buscar novas perspectivas à própria filosofia.
suas categorias subjetivas, ao mesmo tempo em que propõe uma
Assim, a partir de leituras realizadas em torno das obras
nova e desafiadora tarefa à filosofia e aos próprios filósofos se estes
de Kant, Benjamin faz um estudo sobre a teoria do conhecimento
quiserem continuar ainda existindo. Pois, segundo Walter Benja-
e sobre a categoria de Experiência em seu sentido epistemológi-
min, a crença filosófica positivista de uma razão soberana capaz
de determinar as coisas do mundo apresenta alguns problemas, os co, apontando suas limitações e a necessidade de reformulações.
quais, se não observados, levam ao risco de a filosofia encerrar-se Porque segundo ele, para Kant, a única experiência considerada
válida parece ser aquela atrelada a uma concepção lógica e instru-
emsi mesma. Assim, para melhor entender esta crítica, faz-se ne-
mental, vinculada ao conhecimento científico. Uma “experiência
cessário voltar aos estudos de juventude de Benjamin, em especí-
fico ao texto O programa de uma filosofia futura,
para daí coletar
elementos que possam esclarecer a ideia do autor a respeito de
150. SCHOLEM, G. Walter Benjamin: história de uma amizade, p, 57.

81
80
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

singular temporalmente limitada”"*! que na visão de Benjamin, Dúvida não há de que todo o nosso conhecimento
apesar de não estar incorreta, aborda a categoria de Experiência principia pela experiência. Sem dúvida, que outro
de forma superficial, desconsiderando outras motivo poderia despertar e pôr em ação a nossa ca-
possibilidades de pacidade de conhecer senão as coisas que afetam os
entendimento que estão vinculadas a ela, que não seu mero uso sentidos e que, de um lado, por si mesmas dão origens
como meio para aquisição de saberes. Porém, antes de investigar- a representações e, de outro lado, movimentam nossa
mos essa crítica de Benjamin à teoria kantiana e faculdade intelectual e levam-na a compará-las, liga-las
suas reformula-
ções, é necessário oferecer um maior esclarecimento, mesmo ou separá-las, transformando então a ideia bruta das
que impressões sensíveis num conhecimento que se deno-
breve, a respeito das próprias ideias de Kant sobre o tema.
mina experiência? Dessa forma, na ordem do tempo,
Kant, na Crítica da Razão Pura"? e especialmente nos nenhum conhecimento precede em nós a experiência
Prolegômenos!*, que surgem como solução para algumas obscu- e é com esta que todo o conhecimento se principia"*,
ridades presentes na própria Crítica da Razão Pura, realiza
um Porém, para Kant essas experiências só são possíveis
estudo a respeito daquilo que considera serem as “condições de
possibilidades do conhecimento”. O autor, em resposta a estudos a
quando colocadas em duas formas priori: espaço e tempo. Para
ele nada pode ser conhecido fora dessas duas esferas. Na teoria de
que lhe são anteriores, realiza uma abordagem que considera ra-
zão e experiência como dois elementos chaves Kant, tais esferas são anteriores às faculdades do sujeito cognos-
para a construção cente e só se dão para o sujeito. Elas não podem ser concebidas
do conhecimento. Isto
quer dizer que ele não acredita que so-
mente a razão ou a experiência isoladas em suas particularidades sem a percepção do sujeito, pois é ele que ao realizar o esforço
de conhecer algo, determina a experiência colocando o objeto
possam nos oferecer a verdade sobre os objetos e fenômenos do
mundo. Pelo contrário, Kant é um filósofo que se de seu saber numa estrutura de espaço (local do objeto) e tempo
preocupa com (percepção interna do sujeito em relação ao objeto).
a questão da justificação de um conhecimento
que possa integrar Nesse ponto é importante ressaltar que ao dizer que
:

essas duas formas de conhecer, de maneira


que exista um equi- todo conhecimento inicia na experiência, Kant não está, neces-
líbrio entre elas. Em vista disso, Kant busca determinar certas
condições para que o conhecimento ocorra levando em conside- sariamente, afirmando que seja a experiência a única responsável
ração tanto as experiências como a razão. O que implica também por prover o conhecimento. Conforme o autor: “se todo o conhe-
estabelecer limites para aquilo que pode ou não ser conhecido. cimento se principia com a experiência, isso não prova que todo
Esses limites correspondem em princípio a duas fontes ele derive da experiência. [...] Se poderá haver um conhecimen-
principais to tal, independente da experiência e de todas as impressões e
de conhécimento, ou seja, a sensibilidade e o entendimento. À
sentidos. Denomina-se a priori esse conhecimento [...]””. Em
primeira refere-se aos objetos que são dados na intuição, aquilo
outras palavras, esse conhecimento pode ser entendido como um
que se pode perceber por via dos sentidos, e a segunda refere-se
aos objetos que são pensados nos conceitos. Desta forma, o autor
juízo de verdade que opera segundo conceitos construídos sem a
necessária dependência da comprovação real. São conceitos uni-
a
inicia a Crítica da Razão Pura com seguinte afirmação:
versais que se encontram presentes na razão humana. Ou seja,
o sujeito, mesmo sem acesso direto à realidade, pode construir

151. BENJAMIN, W. Sobre el Programa de la Filosofia


Futura, p.8.
152. KANT, 1. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Editora Martin
Claret, 2002.
154. KANT, 1. Crítica da Razão Pura, p. 44.
153. KANT, L. Prolegómenos
a toda metafísica futura. Lisboa: Edições 70, Ltda, 1988. 155. Idem.

82 83

Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

raciocínios válidos e produzir conhecimentos


verdadeiros. Isto recurso científico, ou seja, um método para validação de teorias,
porque a faculdade da razão lhe permite realizar juízos através do que um saber coletivo transmitido de geração em geração. Isto
de um sistema de categorias fundamentadas nos convencionais é, Kant, ao trabalhar o conceito de experiência está, na verdade,
princípios da lógica, a saber: identidade, não contradição e tes concentrado em usá-lo como método para estabelecer critérios
ceiro excluído, desde que suas condições sejam bem delimitadas, confiáveis à construção de conhecimentos, pois tal postura era
Ássim, a experiência, em Kant, se constitui num acontecimen- típica da época do autor, o iluminismo. Uma “experiência nua,
to físico, provocado de forma intencional e
que pode oferecer primitiva e auto compreensível [...] parecia a única possível”"*,
elementos para um saber verdadeiro, o qual para ser assim de- De acordo com Benjamin, tal noção, ainda que válida,
nominado terá de passar primeiramente pelo crivo da razão. À possui limitações e clama por uma forma ampliada de compreen-
experiência em Kant é, portanto, uma experiência atrelada à ex- são. Em sua percepção, estabelecer um método para a experiên-
perimentação científica, passível de ser metodologicamente de- cia, como o sistema kantiano almeja, é um empreendimento
terminada pelo sujeito e, segundo ele, frustrado. Uma vez que a experiência, como já dito, não é sem
capaz de ser aplicada até
mesmo em questões de cunho não científico. tempo e plenamente manipulável, ela também depende de um

Outro aspecto da teoria do conhecimento de Kant que contexto histórico e não apenas de um momento. Se não fosse as-
Benjamin procura distanciar-se é em relação à questão das ex- sim, não teríamos como validar experiências passadas, nem aque-
periências particulares, as quais mesmo sendo passíveis de co- las que ainda estão por vir. E as tais “condições de possibilidade
municação, não são para Kant formas válidas à concretização de do conhecimento” elaboradas por Kant, não funcionariam para
conhecimentos. Pois, segundo ele, todo conhecimento de um verificação da verdade em outros campos do conhecimento que
objeto deve ser regulado pelas formas transcendentais do não o científico. Deste modo, ousar adequar o método kantiano
sujeito.
Sendo assim, as determinações do objeto que possibilitam a ex- à filosofia é uma tarefa que não se mostra possível para Benja-
períência e a construção de um conhecimento verdadeiro estão min, pois de acordo com ele, a filosofia é de natureza diversa das
no objeto, mas não pertencem
a
ele. Isto é, pertencem ao sujeito
são, conforme afirma Olgária Matos", “leis”
que o sujeito inserA
ciências. Para Benjamin, a ciência é responsável por organizar
“o mundo comvista à sua dispersão no domínio das ideias, sub-
ve no objeto de antemão por via da consciência na intenção de dividindo esse domínio em conceitos, a partir de dentro”, Isto
criar condições que o possibilitem conhecer algo. São caracterís- é, dedica-se a compreender o mundo a partir de suas próprias
ticas que o sujeito impõe a todos os objetos e estruturas conceituais. Já a filosofia ocupa-se de se “exercitar no
que aparecem neles
toda esboço descritivo do mundo”"”, dedicando-se à construção de
vez que o sujeito realiza um esforço de entendimento a seu
respeito. O que nos leva a pensar que o conteúdo, isto é, a essên- ideias a partir daquilo que permitem os fenômenos, segundo sua
cia aí encontrada possa não ser necessariamente a do ôbjeto, “lógica interna”.
Portanto, o conceito de Experiência na filosofia de Kant, Por conseguinte, Benjamin afirma ser de “maior im-
em seus esct
mostra-se diverso daquele que Benjamin trabalha portância para a filosofia vindoura reconhecer e distinguir que
tos. Para Kant, a experiência
apresenta-se muito mais como um
157. “[..] nuda experiencia primitiva y comprensible de suyo [...] parecía la única
156.
OS,
» Paulo: Editora
São
O. V

Brasiliense, 1999, p. 131, A lar pecar


MATOS, C. F. O. O iluminismo visionário: : Benjamin
Benjamin
lei

leitor d
cartes Ka posible” (BENJAMIN, W. Sobre el Programa de la Filosofia Futura, p. 8).
158. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 20.
159, Ibidem, p. 20.

84 85
Bruna de Oliveira Bortolini

elementos do pensamento kantiano tem que ser assimilados e


desenvolvidos, quais tem de ser modificados e quais devem ser
rechaçados”!%, Desenvolvendo, a partir de então, uma nova teo-
ria do conhecimento, a qual não concebe a Experiência
apenas
como experimento para aquisição de novos conhecimentos, mas
como uma forma diferente de compreensão do mundo. Sua pro-
posta é não limitar a ideia de experiência, mas ampliá-la, fazen-
do com que as mais diversas experiências
possam ser validadas e
não somente aquelas matematicamente determinadas. Porém, ao
contrário do que fez em seu primeiro ensaio sobre a Experiência,
isto é, não apresentar argumentos claros a respeito do
que gos-
taria de opor à concepção tradicional, Benjamin irá, no ensaio
sobre a filosofia futura, expor seu raciocínio a respeito daquilo
que julga ser o elemento “diferente”, de forma mais concreta,
Desta forma, algumas questões obviamente ganham
destaque, ou seja: o que na filosofia kantiana deve ser modifi-
cado, segundo Benjamin, para uma filosofia futura? E de
que
forma essa mudança é possível? Em
que se constitui a proposta
benjaminiana de filosofia, levando em consideração as objeções
feitas pelo autor ao sistema filosófico de Kant? Qual o papel da
Experiência nessa nova proposta filosófica de Benjamin? E sobre
o que a categoria de Experiência, no modo como Benjamin a
concebe, faz refletir?

160. BENJAMIN, W, Sobre el Programa de la Filosofia Futura,


1
86
TERCEIRA
PARTE
TEMPO,
EXPERIÊNCIA
E POTÊNCIA
DA LINGUAGEM
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

A perda da Experiência relaciona-se, como visto nos do indivíduo, temporal e múltipla, que também carrega em si
capítulos anteriores, diretamente às mudanças ocorridas no fi- orientações para a vida prática, as quais podem ser
transmitidas
nal do século XIX. Nesse contexto, o advento da modernidade de geração em geração sob a afirmação de que tais experiências
e a preponderância de uma visão científica do mundo seriam
os por serem subjetivas e, portanto, de menor valor à ciência, não
principais responsáveis por sua destruição se juntamente a eles poderiam contribuir para a construção de conhecimentos. As-
não estivesse vinculada a guerra. Pois foi a guerra que fez com pecto que demarca, então, a principal discordância de Benjamin
que os combatentes voltassem “silenciosos do campo de batalha. em relação à filosofia de Kant, pois essa postura de pensamento
Mais pobres em experiências comunicáveis e não mais ricos”!ó!, que reduz a Experiência ao experimento, apesar de admirável
Porém, hoje se sabe que “para a destruição da experiência, uma pela vontade de oferecer à humanidade bases seguras para fundar
catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica exis- conhecimentos, desconsidera aspectos preciosíssimos à reflexão
tência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeita- filosófica. Um deles é o fato de que a própria experiência religio-
mente suficiente”!º, Em nosso dia-a-dia tornou-se impossível rea- sa, segundo afirma Mate!%, foi por muito tempo guardiã de um
lizar experiências no sentido tradicional do termo e a autoridade conjunto de experiências humanas, “tanto as cotidianas quanto
para a elaboração de novos conhecimentos, antes nelas apoiadas, as extrernas”!*, e desconsiderá-la dessa maneira, como se não ti-
restringiu-se ao universo das ciências. Experiência tornou-se ex- vesse mais nada a oferecer, significa ignorar boa parte da vida do
perimento e, por mais que ainda se fale numa tal “experiência de homem no mundo que é posta em linguagem.
vida”, pertencente principalmente aos mais velhos, muito pouco Contudo, é indispensável frisar que essa crença de uma
ou nenhuma autoridade a ela se atribui, pois também se perdeu experiência legítima apenas enquanto experimento científico
a habilidade de interpretá-la. não se restringiu a Kant, mas, como exposto ainda no segundo
Essa visão científica de mundo que reduz Experiência capítulo, era própria da consciência iluminista predominante na
ao experimento, Walter Benjamin, como exposto no final do se- época do autor e que ganhou tal
caráter pelas interpretações rea-
gundo capítulo, já criticava em seu texto não publicado em vida lizadas de sua filosofia pela escola de Marburg. Deste modo, por
sobre a filosofia futura. Pode-se dizer que o autor, mesmo sem mais que a redução de toda Experiência ao campo do experimen-
saber dos eventos que acarretariam na total destruição da to científico em alguns aspectos tenha sido um desenvolvimento
expe-
riência, questionava anos antes os usos limitados que a ela eram das ideias de Kant, segundo Benjamin, ela “nunca foi desejada
atribuídos. E para isso, nesse texto, toma Kant como seu prin- por esse com semelhante exclusividade”!º, embora Kant não es-
cipal interlocutor, afirmando que ao priorizar uma experiência tivesse atento ao fato de que “todo conhecimento filosófico tem
empírica, sensível, limitada no tempo e no espaço, Kant descon- sua única expressão na linguagem”'é,
siderou o caráter linguístico da própria experiência. Atitude que
para o nosso autor empobrece o discurso filosófico, pois elimina
toda e qualquer experiência espiritual, histórica e até mesmo re-
ligiosa. Exclui do âmbito do conhecimento a experiência plena
163. MATE, R. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “Sobre
o Conceito de História”. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2011.
164. Ibidem, p. 67.
161. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 124
165. BENJAMIN, W. La Metafísica de la juventud, p. 13.
162. AGABEN, G. Infância e História: destruição da experiência e origem
Trad, Henrique Burigo. Minas Gerais: Editora UFMG, 2005.
da história.
166. Ibidem, p. 16
p. 21.

Ss
90
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

Nessa linha de pensamento, então, a experiência é de forma breve e para o seu melhor entendimento, alguns pontos
reduzida “ao ponto zero, a um mínimo de significado”, Toda importantes a respeito da filosofia da linguagem benjaminiana
experiência que não pudesse ser traduzida em termos científicos presente no ensaio Sobre a linguagem em geral e sobre a lingua
era excluída do campo da razão, logo, da própria filosofia. O
que gem humana, de 1916. Texto que, como foi apontado no primeiro
leva Benjamin a propor uma compreensão da categoria de
Expe- capítulo, recebeu influência direta da filosofia de Franz Rosezn-
riência em termos transcendentais, isto é, afirmar weig, principalmente por tratar a questão do humano não como
que somente
“um conceito de experiência, alcançado na reflexão sobre um fantoche nas mãos de algo que lhe é superior, mas como ser
sua es-
sência linguística, permitirá elaborar um conceito de
experiência que participa do ato divino da criação de forma complementar.
[...], [capaz de] abarcar regiões cuja sistematização efetiva Kant
não alcançou”", pois, para o filósofo, é na linguagem
que se dá
o encontro do homem com o mundo e, portanto, a constituição
da própria noção de experiência. Reduzi-la ao
campo do experi-
mento significaria eliminar outras qualidades da experiência tão
importantes quanto aquela para a construção de conhecimentos.
Razão pela qual, o interesse do autor
por uma forma ampliada
da concepção do termo está em validar uma vasta diversidade
de experiências, todas igualmente verdadeiras, e
que nada mais
nada menos representam a “uniforme e contínua multiplicidade
do conhecimento”!
Assim, a proposta de Benjamin para recuperar essa di-
versidade de experiências mostrando o quanto elas são importan-
tes ao fazer filosófico depende, desse modo, de uma reformula-
ção da própria ideia de filosofia. Para que a experiência possa em
seu sentido pleno tornar-se uma categoria filosófica, a filosofia é
quem deve primeiro se repensar. Ao invés de dedicar-se apenas à
busca de métodos ou modelos de demonstração conceitual
capa-
zes de orientar o conhecimento acerca da realidade, deve voltar-
se ao exercício de apresentação da verdade, redefinindo o objeto
de sua reflexão. Atitude que acaba
por ampliar o campo de acesso
da filosofia a determinadas realidades
que pela via conceitual ela
não conseguiria chegar. Entretanto, antes de adentrarmos nessa
questão da “apresentação”, é necessário investigar, mesmo que

167. BENJAMIN, W. La Metafísica de la juventud, p.8.


168. Ibidem, p. 16.
169. Idem.

92 93
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

3.1 a língua em Benjamin não é apenas uma ferramenta para co-


municação de conteúdos, mas a própria manifestação de uma
TEORIA DA essência, a qual não é apenas humana. Mas quando aplicada ao
ser humano, pode-se dizer que essa comunicação melhor se de-
LINGUAGEM senvolve no ato de nomear, sendo esse aspecto também o que
BENJAMINIANA difere a linguagem humana da linguagem em geral. Isso porque,
ao nomear, o ser humano além de comunicar sua essência espi-
“E não há dúvida de que a expressão só deve ser enten- ritual, transpõe em linguagem sonora a essência das coisas, na
dida, de acordo com sua inteira e mais íntima essência medida em que elas são linguísticas e se comunicam a ele. O que
como linguagem”! nos leva a indagar sobre a possibilidade dessa comunicação e a
maneira como se concretiza.
Walter Benjamin Diferentemente do pensamento filosófico de sua época
em
que essa comunicação nãodosseria considerada como tal, mas
apenas representação mental objetos, os quais ganhariam a
Walter Benjamin, no ensaio acima citado, esboça então partir daí uma essência, um nome, Benjamin pressupõe, assim
sua teoria da linguagem que de maneira decisiva irá marcar toda como Rosenzweig, o movimento de revelação. Para ele, o ato de
a sua filosofia posterior. Nele, afirma que linguagem a “comu-
nicação de conteúdos espirituais”!”, os quais pertencem a tudo o
é nomear não é impositivo, ou seja, não é que depositemos um
sentido nas coisas quando as nomeamos, mas, sim, procuramos
que existe e podem ser também entendidos como a essência das comunicar o que as coisas à sua maneira nos dizem a respeito
coisas, aquilo que de mais íntimo lhes representa. Todavia, para daquilo que são quando se revelam a nós por meio da relação que
que essa essência seja comunicada na linguagem deve, segundo com elas estabelecemos, sem a necessidade de simbolizações ou
o filósofo, possuir também um caráter linguístico. Sendo impor- representações através de signos linguísticos. Pois se operássemos
tante destacar que de modo algum tal
comunicação se reduz à apenas através de simbolizações e códigos linguísticos estaríamos
palavra, pois ela é “apenas um caso particular” !”? nos limitando apenas a uma visão burguesa da linguagem e não
No entanto, independente da natureza da linguagem, a uma compreensão da linguagem enquanto infinito expressivo.
toda comunicação de conteúdos espirituais deve ter algo em co- Uma vez que a primeira é característica daquela posição que o
mum, isto é, ser expressão na língua e não através dela. Pois a autor critica inicialmente, isto é, a redução da linguagem a uma
linguagem para Benjamin é “no sentido mais puro, o meio [Mé- esfera meramente instrumental que tem por objetivo apenas a
dium] da comunicação”!?, A língua é expressão imediata daquilo comunicação de “alguma coisa” entre os homens. Já a segun-
que se comunica “dentro” dela e diferente de concepções usuais, da, “[...] não conhece nem meio, nem objeto, nem destinatário
da comunicação”"”!, pois ela própria é ambiente em que se dá a
170. BENJAMIN, W. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In:
expressão. E para Benjamin, é somente por meio dessa possibili-
BENJAMIN, W. Escritos sobre mito e linguagem. Trad. Susana Kampff Lages e Ernani
Chaves. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011. p. 51.
171. Ibidem, p. 51.
172. Idem.
174. BENJAMIN, W. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem, p. 55.
173. Ibidem, p. 53.

95
94
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

dade de expressão na linguagem lacionar-se com elas, saber interpretá-las, tentar dizê-las, expressá-
que se alcança algum conheci-
mento sobre as coisas. las, mesmo ciente de que elas não se dão totalmente à expressão.
Na relação, portanto, as coisas aos Por isso, para o filósofo, a linguagem humana participa
poucos vão revelan-
do o seu sentido, o que permite conhecê-las e simbolicamente do ato divino da criação de forma complemen-
comunicá-las, po-
rém nunca em plenitude. Motivo pelo qual, tar, justamente por ser capaz de traduzir e dar voz à linguagem
segundo o autor,
“no interior de toda configuração linguística reina muda das coisas por meio da relação que estabelece com elas. No
o conflito do
expresso e do exprimível com o inexprimível e o inexpresso”!”, entanto, apesar de Benjamin dar a entender em alguns momen-
Processo que implica ato contínuo de tentar trazer à tos a possibilidade de uma tradução integral de uma língua para
expressão
aquilo que sozinho não conseguiria expressar-se. Para tornar essa outra, isto é, da linguagem das coisas para a linguagem humana,
ideia um pouco mais clara, Benjamin em seu ensaio A tarefa do Tradutor, afirma o contrário. O autor
sugere uma aproximação
com o mito bíblico da criação que de forma metafórica explica destaca que toda tradução, por ser posterior ao original, assinala
essa situação de tentarmos dizer as coisas sem o acesso direto o estágio de sua previvência. Na tradução, “a vida do original
ao
seu sentido original. alcança, de maneira constantemente renovada, seu mais tardio
Conforme o autor, na criação a linguagem era lugar e mais abrangente desdobramento. [...] Na sua previvência (que
de absoluta convergência entre nomes e coisas e isso não mereceria tal nome, se não fosse transformação e renovação
porque no
“mundo do conhecimento perfeito”, ou se se quiser chamar de de tudo o que vive), o original se modifica”"”º. Isso quer dizer
:

paraíso, todas as coisas correspondiam exatamente ao nome que o homem caído e destituído de seu conhecimento perfeito
que
lhes foi dado por Deus. “Deus tornou as coisas sobre as coisas tem agora de dedicar-se a traduzi-las, procurando
cognoscíveis ao
lhe dar nomes”!”, Mas não criou o ser humano a constantemente seusentido primeiro, sua verdade, a qual nunca
partir da pala-
vra, não lhe deu um nome. “Deus não quis submetê-lo à lingua- se mostra em plenitude, visto que, segundo o próprio filósofo, “há
gem, contudo liberou nele a linguagem que Ihe havia servido, a tantas traduções quanto línguas desde que o homem caiu do esta-
ele, como meio da Criação. Deus descansou do paradisíaco, que conhecia uma só língua”!º, Motivo que torna
após depositar no
homem seu poder criador”"””, O homem, portanto, compartilha a tradução sempre infinita, sempre um exercício que ocorre nas
dessa linguagem divina e criadora no ato de mais diversas línguas e formas, aderindo aos mais diferentes sig-
nomear, que é essen-
cialmente humano. Porém, no momento da “queda”,
perde esta intimidade com Deus. E por mais que essa perda não
homem o nificados. O que revela, ainda, uma maneira de conhecer criar
e
que se dá a partir de uma receptividade ativa, quer dizer, todo
altere a estrutura da própria linguagem, retira do ato de conhecimento e de nomeação só é possível quando deixa
homem o acesso
direto ao nome criador, ao verdadeiro sentido das coisas. “Privado de ser realizado de forma mecânica e instrumental, quando se
de sua atualidade divina esse poder criador se percebe que a crença em um homem dotado de “poder criador”,
converteu em co-
nhecimento”"”S, Assim, o ser humano só pode nomear na medida capaz de codificar e disciplinar o mundo, atribuindo a ele sentido
em que conhece as coisas e através da linguagem, é falsa. Pois, na verdade, as coisas em si
para conhecê-las precisa, além de re-
já são possuidoras de um sentido e de uma linguagem própria,

175. BENJAMIN, W. Sobre


a linguagem em Beral e sobre a linguagem do homem, p. 59.
176. Ibidem, p. 61.
177. Ibidem, p. 62. 179. BENJAMIN, W. Tarefa do Tradutor,
p. 105-107.
178. Idem. 180. Ibidem, p. 66.

96 “
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

a qual se verbaliza ao homem na medida em abstrato: [...] a consciência”'*, Entretanto, a filosofia, diferente-
que ele, de forma
passiva e não autoritária, é capaz de percebê-la. Por esta razão o mente da ciência, é inteiramente linguística e interpretativa, tem
ato da criação e significação é um processo
que acontece na re-
naturalmente de lidar com incertezas e não pode negar esse as-
lação do sujeito com o que está à sua volta e não, ao contrário do pecto sob o risco de distanciar-se de sua própria essência. O que
que se pensa, pela dominação daquele sobre este, numa postura nos remete à proposta filosófica de Benjamin de “apresentação
reducionista e antropocêntrica. Postura que, segundo Benjamin, da verdade”, exposta no Prefácio!** de sua tese de livre docência
a partir das leituras que faz de Rudolf Pannwitz!?!, implica sobre o drama barroco alemão, de 1918. Texto que visivelmente
num
“deixar-se abalar violentamente pela língua estrangeira”, Quer assegura a continuidade das ideias já explanadas no próprio en-
dizer, na medida em que se deixa de tentar compreender as coisas saio sobre a teoria da linguagem e naquele sobre a filosofia futura,
apenas pela força do pensamento, assentindo que elas mostrem
a partir de suas múltiplas conexões parte daquilo
a
como veremos seguir. Para tanto se alternará entre duas versões
do Prefácio por questões de melhor tradução, a saber: Questões
que elas são,
permite-se, então, ser afetado por sua condição de estrangeiro. introdutórias de crítica do conhecimento, de 1984, com tradução
No sentido de não ser aquilo com que é possível identificar-se, de Sergio Paulo Rouanet, publicado pela Editora Brasiliense e
ou
enxergar-se, mas de ser um outro diferente do Eu, que por mais Prólogo epistemológico-crítico, de 2013, com tradução de João
que se queria atribuir significados, apenas se saberá o que ele é na Barrento, publicado pela Autêntica Editora.
medida em que ele se revelar na relação.
Para a ciência moderna que nasce em busca de certe-
zas faz sentido, então, expropriar da experiência sua dimensão
linguística, visto que tal caráter linguístico, da maneira como é
exposto por Benjamin, mostra-se sempre aberto à interpretações.
Aspecto que acaba gerando insegurança e a necessidade de com-
provação científica da experiência por meio do experimento. O
experimento nasce como objetivo de responder a falta de certeza
da experiência em seu sentido tradicional e o faz transformando-a
“o mais completamente possível
para fora do homem: aos instru-
mentos e aos números”!,
Assim, nessa busca pela certeza, a ciência moderna
elimina a separação entre a experiência da vida vivida e o co-
nhecimento, transformando a experiência em método e caminho
para o saber. E o faz eliminando os vários sujeitos da experiência
coletiva, “colocando em seu lugar um único novo sujeito, que
nada mais é que a sua coincidência em um ponto arquimediano

182. BENJAMIN, W. Sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem, 184. AGABEN, G. Infância e História: destruição da experiência e origem da história, p. 28.
p. 118. 185. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, 2013.
183. Ibidem, p. 26.

98 99
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

3.2 chado, “a sinais que se ordenam mediante regras rigorosas e lógi-


cas e obrigatoriamente precisam provar um enunciado”'!*,
UM NOVO ITINERÁRIO Nesse ponto, a filosofia passa a ser entendida como fun-
damento das ciências e orientadora dos processos de produção
AO PENSAMENTO de conhecimento, o que para Benjamin representa um perigo
FILOSÓFICO à própria filosofia, pois ela “corre o risco de se acomodar num
sincretismo que tenta capturar a verdade numa teia de aranha
estendida entre várias formas de conhecimento, como se ela
No Prefácio, Benjamin retoma discussões já iniciadas voasse de fora para cair aí"!*, Isso porque na visão do autor, se-
em obras anteriores. E mesmo que nesse texto ele não cite a guindo os passos de Rozensweig, a verdade é algo que jamais se
pa-
lavra experiência, é possível deduzir a partir das ideias aí desen- dá à plena compreensão, justamente por seu caráter obscuro,
volvidas a continuidade de seu pensamento a respeito do misterioso, que não permite ser exposto da mesma forma como
tema,
principalmente quando se refere aos usos instrumentais da lin- se desenvolve o argumento lógico-matemático, ou seja, linear e
guagem eda própria noção de filosofia
na
modernidade. O autor
comenta que a filosofia, quando reduzida aos modelos científicos
initerruptamente. Reflexão que se colocou a todas as épocas que
tiveram consciência do caráter indefinível da verdade. Até mes-
de pensamento comuns à modernidade e transformada
em “guia mo
porque a filosofia em seu sentido original não significa posse
para o conhecimento”, perde sua característica fundamental que da verdade ou método para sua aquisição. “À verdade, presente
é aquela de “apresentação da verdade”. Isto é,
para Benjamin, a no bailado das ideias apresentadas, esquiva-se a qualquer tipo de
filosofia possui uma tarefa primordial é de “confrontar-se, projeção no reino do saber”!*º, À posse é uma crença moderna no
que a
sempre de novo, com a questão da [apresentação]!%6”!8”, Porém, pensamento filosófico. É a crença de que o sujeito pode por via
no momento em que ela passa a apoiar-se em sistemas construí- da consciência apropriar-se do objeto de seu estudo, e, de acordo
dos lógica e dedutivamente, em consonância com procedimen- com Benjamin, há nesse pensamento um problema, pois se a
tos matemáticos próprios do pensamento moderno, relega essa filosofia fosse posse da verdade e se a única experiência possível
atividade da “apresentação” que se dá no âmbito da linguagem a ela fosse o experimento, conquistado o seu objetivo, então, ela
ao segundo plano, limitando-se, conforme aquilo que expõe Ma- se autodestruíria. À posse, na visão do autor, se dá somente ao
saber, “O saber é posse”"”!, O saber refere-se àquilo que podemos
conhecer do objeto. Mas aquilo que conhecemos de um objeto
186. Substituiu-se a palavra
não é toda a sua verdade. A verdade é furtiva, temporal, ela nos
representação, conforme tradução de João Barrento do Prefá-
cio da tese sobre o drama barroco de Walter Benjamin,
por apresentação, de acordo com escapa a todo o instante, está sempre um passo a frente e se re-
as observações de Jeanne Marie Gagnebin em seu
artigo “Do conceito de Darstellung em
Walter Benjamin (ou verdade e beleza)”,
presente no livro Limiar, aura e rememoração,
também de sua autoria. Tal alteração ocorre em vista de que o primeiro termo pode dar 188. MACHADO, F. À. P. Imanência e História: À crítica do conhecimento em Walter
a entender, segundo a autora, uma proximidade de Benjamin com a Benjamin. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p. 48.
corrente filosófica
iluminista, o que não é o caso, pois é exatamente desta corrente que Benjamin busca 189. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 16.

se distanciar ao realizar sua crítica à teoria do conhecimento de Kant, Desta forma, a 190. BENJAMIN, W. Questões introdutórias de crítica do conhecimento. In: BENJAMIN,
W., Origem do drama barroco alemão. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
palavra representação, quando presente em citações diretas, será trocada no trabalho
por 1984. p. 51.
apresentação.
187. BENJAMIN, W. Prólogo 191. Idem.
epistemológico-crítico, Pelo,

101
100
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

vela sempre incompleta no próprio processo de sua exposição, Platão; enquanto esse afirma que a Beleza representa a Verdade,
ou melhor, auto exposição. Pois “o método, que para o saber é pois é um reflexo do Bom e do Verdadeiro em si,
Benjamin sus-
uma via para a aquisição do objeto (mesmo que através de sua tenta que a Verdade é o “conteúdo essencial da beleza”"”. Para
produção na consciência) é para a verdade [apresentação] de si ele, a Beleza não é apenas reflexo, mera aparência, mas critério
mesma e, portanto, como forma, dado juntamente com ela””º*, E determinante à constituição e apresentação da verdade.
isso só ocorre porque a verdade possui caráter ontológico, isto é, Seu brilho, que seduz, desde que não queria ser mais
ela existe como ser e não como produto da consciência, e assim que brilho, provoca a inteligência, que a persegue, e só
“como unidade no Ser, e não como unidade no Conceito, a ver- quando se refugia no altar da verdade revela sua ino-
dade resiste a qualquer interrogação”"”. Aspecto que de acordo cência. [...] À beleza foge da inteligência por terror, e
com o autor revela o caráter não intencional da verdade, pois por medo, do amante. E somente este pode testemu-
nhar que a verdade não é desnudamento, que aniquila
não há uma relação sujeito-objeto na qual o sujeito no processo o segredo, mas revelação, que lhe faz justiça”.
do conhecimento tenta apreender o objeto. “A verdade é uma
essência não intencional, formada por ideias. [...] À verdade é a Desta forma, em oposição à concepção de que o “apa-
morte da intenção””*, recer” é superficial e de menor relevância à busca da verdade,
Com isso, Benjamin retoma no Prefácio algumas das Benjamin sustenta que a verdade precisa da beleza, da aparência,
ideias apresentadas no texto Sobre a Filosofia Futura e no ensaio para legitimar-se. Isto é, ela precisa se apresentar, se deixar vis-
sobre a linguagem, procurando realizar uma correção no con- lumbrar, não pode, conforme o que afirma Gagnebin, “ser uma
ceito kantiano de Experiência, o que implica também numa crí- abstração inteligível em si, sob pena de desaparecer, de perder
tica à concepção de conhecimento desse mesmo autor. Crítica sua [...] realidade efetiva”!”. Relação que para o autor é impor-
que busca distanciar a filosofia da ideia de método atribuída a tante, pois evidencia “mais claramente que qualquer outra a dife-
ela e, consequentemente, atinge nesse processo também a Des- rença entre a verdade e o objeto do saber”,
cartes, em razão de seu sistema de pensamento more geométrico. Assim, na visão de Benjamin, uma filosofia que se de-
No entanto, é importante realçar que Benjamin não rejeita por dique mais ao exercício de exposição de ideias na busca pela ver-
dade do que com sua representação e classificação num sistema
completo esse sistema, mas atenta para outra dimensão do pensar
filosófico, que como vimos relaciona-se à questão da “apresen- pré-definido de conceitos, é por excelência o trabalho do filósofo.
Pois, nesta busca, ele é impelido também a repensar seus méto-
tação da verdade”. Processo que na percepção do filósofo pode
ser associado a obra O Banquete" de Platão, assumindo “impor- dos, bem como o resultado de seu próprio pensar, o qual se dá
tância capital [...] para a própria determinação do conceito de continuamente de forma intermitente, ainda que ao final não se
verdade”, Porém, Benjamin, ao ler O Banquete, vai além de obtenha uma posição definitiva daquilo que se pretende expor. À
verdade, portanto, se dá no âmbito das ideias e não dos conceitos

192. BENJAMIN, W. Questões introdutórias de crítica do conhecimento, p. 52.


193. Idem. 197. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 18.
194. Ibidem, p. 58. 198. BENJAMIN, W. Questões introdutórias de crítica do conhecimento, p. 53.
195. PLATÃO, O Banquete. In: PLATÃO. Diálogos. Trad. José Cavalcante de Souza. 199. GAGNEBIN, J. M. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. — 1

- 2.
ed, — São Paulo: Abril Cultural, 1979, ed. — São Paulo: Editora 34, 2014. p. 72.
196. BENJAMIN, W. Questões introdutórias de crítica do conhecimento, 200. Ibidem, p. 54.
p. 53.

102 103
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

€ por essa razão não pode ser abarcada conceitualmente, mas


somente contemplada.
3.3
Ao propor essa questão da
apresentação, Benjamin, à MODELO DE EXPOSIÇÃO
vista disso, retoma a discussão filosófica e retórica entre método
de pesquisa e método de exposição, realçando a importância de-
FILOSÓFICA:O TRATADO
cisiva da exposição à filosofia, pois ainda segundo Gagnebin, a ESCOLÁSTICO
respeito do tema da apresentação, “é na exposição/ordenação do
material pesquisado que, geralmente, se manifesta a contribuição “Método é caminho não direto. À [apresentação] como
singular do autor, Em suas escolhas narrativas e argumentativas, o caráter metodológico do
caminho não direto: é esse
o autor pode reinterpretar a profusão do material pesquisado e tratado”**?
lançar nova luz sobre ele”?º!, Mas qual é a forma dessa exposição?
Walter Benjamin

Para Benjamin, existem determinados tipos de argu-


mentação que devem ser considerados para a escrita filosófica
se esta quiser dedicar-se também à compreensão daqueles temas
excluídos ao âmbito do conhecimento. Ou seja, experiências não
circunscritas pelos procedimentos científicos e que são entendi-
das como de menor relevância por pertencerem ao âmbito da
linguagem e, principalmente, por possuírem caráter temporal
que não as deixa serem apreendidas facilmente. Aspecto que tor-
na significativo ressaltar que as reflexões de Benjamin a respei-
to da forma de exposição filosófica, além de retomarem antigas
discussões sobre a questão do método, saem em defesa de um
novo itinerário ao pensamento filosófico, nesse caso muito mais
especulativo e experiencial. Dado que diferentemente daqueles
que desacreditam que a forma da escrita possa afetar a compreen-
são de determinados conteúdos, Benjamin defende que o modo
como abordamos às ideias que queremos trabalhar possuí, sim,
implicações em seu resultado. Pois para ele, conforme o que afir-
ma Kothe, é “a própria possibilidade de conhecimento [...]”*P, o

202. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 16.


203, KOTHE, F. Para ler Benjamin, Rio de Janeiro: Editora F. Alves, 1976. p. 23.
201. GAGNEBIN, J. M. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin,
p. 65.

104 105
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

“centro vivo da reflexão”?*, O que fará com


que Benjamin aponte Composição que se assemelha à tarefa de criação de
o tratado escolástico como a melhor forma de exposição de ideias. um mosaico. O mosaico surgido na Idade Média, bem como o
A alternativa de trabalhar com o modelo do tratado jus- Tratado, é característico por seus fragmentos. Isto faz com que
tifica-se na medida em que esta forma de exposição de ideias, aquele que o compõe ou o interpreta renuncie ao percurso inin-
diversamente dos sistemas representativos característicos pelo terrupto da intenção, fazendo com que o pensamento regresse
rigor didático, possibilita maior liberdade de composição e in- de forma contínua às coisas mesmas, observando-as em seus vá-
terpretação dos textos e fenômenos investigados. Segundo Ben- tios níveis de sentido. Ou como diria Adorno, em suas famosas
jamin, “na sua forma canônica, eles [os tratados] aceitam um reflexões muito próximas às de Benjamin, sobre O ensaio como
único elemento doutrinal — de intenção, aliás, mais educativa forma”, virando e revirando o seu objeto, apalpando, questiona-
do que doutrinária —, a citação da auctoritas” ?*, O do e o submetendo à reflexão, atacando-o de diversos lados. O
que não quer
dizer que tal modelo seja composto de maneira aleatória, como mosaico exige um trabalho microscópico em relação à grandeza
melhor aprouver o escritor. Na verdade, o tratado opera de forma do todo plástico, ou seja, os menores fragmentos devem ob- ser
quase que artesanal, tende a conceber os objetos dos quais se servados, pois somente assim a totalidade da imagem fará sentido.
ocupa em seus mais diversos aspectos e sentidos. Pois não parte Cada peça é fundamental para a compreensão do todo e o todo
de um princípio único já postulado, mas de uma multiplicida- não pode ser compreendido sem que primeiro se entenda suas
de de “elementos singulares e diferentes” 2%, O mais ínfimas conexões particulares. Demonstrando assim que “o
que demanda
tempo e, principalmente, concentração. Sua liberdade está em conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt) se deixa aprender apenas
desviar-se do caminho quando necessário, tomando atalhos não através da mais exata descida ao nível dos pormenores de um
para chegar mais rápido ao destino desejado, mas contrariando a conteúdo material (Sachgehalt)”*º,
ideia de linearidade para não deixar
escapar determinados aspec-
tos que venham a incorporar significativamente o próprio traba-
lho. É extremamente cuidadoso em seu processo de exposição
da verdade, desdobrando em várias partes o material do qual se
ocupa e ao final de cada fragmento, parando para recomeçar.
Pois, de acordo com
oautor,
À [apresentação] contemplativa deve, mais do que
qualquer outra, seguir este princípio. O seu objetivo de
nenhum modo é o de arrastar o ouvinte e de o entu-
siasmar. Ela só está segura de si quando obriga o leitor
a deter-se em “estações” para refletir. Quanto maior for
o seu objeto, tanto mais distanciada será a reflexão?”

204. KOTHE, F. Para ler Benjamin, p. 23.


205. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 16. 208. ADORNO, T. W. O ensaio como forma. In; ADORNO, T, W, Notas de literatura.
206. Ibidem, p. 17. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: editora 34, 2003. p. 15-45.
207. Idem. 209. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 17.

107
106
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

3.4 ordenamento de elementos materiais no conceito, de


uma configuração desses elementos?"
ENTRE FENÔMENOS O conceito, então, posiciona-se entre ideia e fenôme-
E IDEIAS: O PAPEL nos, razão pela qual a filosofia não pode deixar de incorporá-los.
Porém, aqui o conceito não se apropria dos fenômenos destruin-
MEDIADOR DO CONCEITO do suas particularidades em função de uma unidade, “do mesmo
modo que o gênero inclui as espécies”?!", mas exercita-se entre
Com
a forma de exposição do tratado, Benjamin nos
mostra como se dá o processo de exposição de sua
proposta filo-
os extremos de um conteúdo material, destacando dele caracte-
rísticas que o permita ser salvo no reino das ideias. “O conceito
sófica. Contudo, isso nos leva a outros
questionamentos antes de parte dos extremos”*!? e no agrupamento desses extremos as ideias
abordarmos a questão da Experiência nesse adquirem vida. “As ideias — ou ideais, na terminologia de Goe-
processo, quer dizer,
se o método de exposição da filosofia dedica-se à the — são a mãe fáustica. Elas permanecem escuras, até que os
apresentação
das ideias, por enxergar aí uma via de acesso à verdade, fenômenos as reconheçam e circundem”*!, Aspecto que retoma
como fica
a questão do fenômeno? Como é possível
nesse modo de pensa- uma das características principais da estrutura de pensamento do
mento relacionar fenômeno, ideia e verdade? autor que é a relação em contraposição à imposição de sentido. À
Para responder essas questões, deve-se levar em consi- exigência não a respeito de um procedimento definidor, mas da
deração o novo papel que Benjamin atribui aos conceitos. Os “interação recíproca de seus conceitos no processo da experiência
conceitos, comumente entendidos como totalidades abarcadoras intelectual”?!!, em que o sentido só pode ser percebido quando os
da realidade, se tornam, para o autor, mediadores fenômenos encontrarem-se num processo de adição. Motivo pelo
entre fenôme-
nos empíricos e ideias. Os fenômenos “não entram integralmen- qual o papel do conceito como mediador é fundamental para que
te no reino das ideias em sua existência bruta, a relação entre fenômenos exista e assim a ideia apareça.
empírica, e parcial-
mente ilusória, mas apenas em seus elementos, que se salvam” e Por isso, os fenômenos apenas determinam, em sua
de
para isso tem ser divididos de sua falsa unidade e subordinados diversidade, o conteúdo do conceito e as ideias determinam o
aos conceitos. Entretanto, essa subordinação não significa conteúdo da relação que o conceito consegue realizar a partir dos
que os
conceitos detenham a verdade do fenômeno, pois devem acom- fenômenos. “As ideias são constelações intemporais, e na medida
panhar a temporalidade própria de tais fenômenos, atualizando- em que os elementos são aprendidos como pontos nessas conste-
-se sempre que necessário. E assim, lações, os fenômenos são ao mesmo tempo divididos e salvos”*”.,
[...] Graças a seu papel mediador, os conceitos permi- Assim, cada fenômeno é semelhante a uma estrela, que quando
tem aos fenômenos participarem do Ser das ideias. Esse conectada com outra, forma uma constelação-ideia. Ou como
mesmo papel mediador torna-os aptos para a outra tare-
fa da filosofia, igualmente primordial; a
[apresentação]
das ideias. A redenção dos fenômenos
por meio das 210. BENJAMIN, W. Questões introdutórias de crítica do conhecimento, p. 56.
ideias se efetua ao mesmo tempo
que a [apresentação] 211. Idem.
das ideias por meio da empiria. Pois elas não se 212. Ibidem,
apre- p. 57.
sentam em si mesmas, mas unicamente através de um 213. Idem.
214. ADORNO, T. W. O ensaio como forma, p. 29.
215. Ibidem, p. 57.

108 109
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

Adorno coloca na Dialética Negativa, claramente influenciado Valendo ainda destacar que Benjamin ao dedicar-se
por Benjamin, que o pensamento que se dá de forma constelacio- à construção de ideias a partir da estrutura dada pelos próprios
nal, “circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando objetos ou fenômenos, conforme o decorrer de seu tempo e se-
que ele salte, mais ou menos como os cadeados de cofres-fortes gundo sua “lógica interna”, está ao mesmo tempo realizado uma
bem guardados: não apenas por meio de uma única chave ou inversão da teoria platônica das ideias até então remanescente
de um único número, mas uma combinação numérica”?'6, Isto no pensamento de grandes filósofos. Pois, ao defender a liberda-
é, não pela força do sujeito, mas pela própria lógica interna do de dos fenômenos afirmando que elementos mais particulares e
objeto. Ponto que, segundo Fianco, coloca o conceito como res- mutáveis compõe a essência das ideias, desmonta a concepção
ponsável pelo “equilíbrio entre a universalidade das ideias e a contrária de que as ideias é que constituem a essência dos fenô-
concretude particular das coisas e dos fenômenos”", menos.
Desta maneira, Benjamin revela-se um dos primeiros
filósofos modernos a inverter a lógica da primazia do sujeito, pela
primazia do objeto. Evidenciando assim a diferença de sua pro-
posta de exposição filosófica em relação ao modelo científico de
pensamento, o qual, segundo o que reitera Casto, é “marcado
pela intenção de consolidar um modo de conhecer que pode ser
definido como apropriação e posse dos objetos, pela consciência,
por meio de um método rigoroso de demonstração conceitual,
baseado no modelo matemático”?!?, Porém, apesar de na filosofia
de Benjamin, a crença num sujeito de conhecimento
capaz de
desvendar o conteúdo portrás da aparência sensível dos objetos,
não ser possível em sua completude, para o autor o sujeito ainda
tem papel determinante no processo de exposição da verdade.
Ele fica responsável por narrar a relação dos objetos em suas múl-
tiplas conexões com aquilo que lhe é externo, destacando dessas
relações determinadas pela materialidade do próprio objeto, ca-
racterísticas passíveis de serem abstraídas no conceito e integra-
das ao âmbito das ideias. Lembrando-se
sempre que “a verdade é
uma essência não intencional, formada por ideias” e, portanto, só
se deixa contemplar quando não há intenção.

216. ADORNO, T. W. O ensaio como forma, p. 57.


217. FIANCO, F. Eu é o nome do vazio: Walter Benjamin e a melancolia no Drama
Barroco. Passo Fundo: IMED, 2010. p. 41.
218. CASTRO, P. S. V. de. Caminho principal e caminhos secundários: sobre o
pensa-
mento estético de Walter Benjamin, p. 23.

no m
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

3.5 Pois é sabido que a experiência no sentido que aqui é trabalhada,


ou seja, enquanto Erfahrung, possui ligação direta com o real em
EXPERIÊNCIA, toda sua complexidade, amplitude e temporalidade.
O pensamento ser contaminado pela temporalidade faz
LINGUAGEM E da filosofia um pensar que não se reduz à mera representação
TEMPORALIDADE conceitual, que não se limita à procedimentos científicos e cál-
culos matemáticos, mas que é capaz de se relacionar de forma
“O tempo é o maior tesouro de que um homem pode receptiva com a própria vida, com a história e com acontecimen-
dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor tos que, em sua multiplicidade, fogem ao universo das sistemati-
alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contu- zações e imposições de sentido. Pensamento que entende, vide a
do nosso bem de maior grandeza: não tem teoria da linguagem benjaminiana, que os conceitos são incapa-
começo, não
tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, zes de circunscrever a totalidade do real e que a realidade ao ser
podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; irredutível impulsiona o discurso a um movimento infinito, ou
onipresente, o tempo está em tudo”?!º como afirma Konder, a “uma permanente abertura para a inesgo-
tabilidade do campo daquilo que em princípio pode ser dito””*,
Raduan Nassar Ponto que nos leva a compreender que tudo aquilo que se conhe-
ce, mesmo que seja por via do experimento, está intrinsicamen-
te vinculado ao tempo, e isso justamente pela possibilidade de
A proposta filosófica de Walter Benjamin,
para recuperar ser colocado em relação com o seu passado, presente e futuro.
a diversidade de experiências que com as mudanças ocorridas
no Razão pela qual a urgência de um modelo filosófico capaz de
final do século XIX foram subtraídas do indivíduo e reduzidas
ao renunciar ao ideal da certeza, tornando-se verdadeiro, conforme
experimento parte, portanto, dessa busca filosófica pelo ideal ex- o que já afirmava Adorno, “pela marcha de seu pensamento, que
pressivo da linguagem. Pois, conforme Konder, “a linguagem [...] o leva para além de si mesmo, e não pela obsessão em buscar
é, por sua própria natureza, o nível da nossa existência onde fala-
seus fundamentos como se fossem tesouros enterrados””, é im-
mos das nossas experiências, dos nossos problemas”?2º, sendo tam- prescindível, Pois a filosofia, principalmente aquela a que Benja-
bém “um pré-requisito para que cada indivíduo tome consciência
de si, de sua personalidade.” No entanto, ao desejar retomar a
min se refere, ao pretender ser sem tempo, julgando-se capaz de
determinar toda a realidade através da subordinação de objetos
categoria de Experiência em seu sentido pleno, Benjamin, seguin- concretos a conceitos gerais ou a experimentos, falha ao ignorar
do os passos de Rozensweig, procura, além de se permitir
expressar o fato de que tais objetos estão sujeitos a mutações e imprevistos.
determinados conteúdos tidos pelos sistemas representativos como Fato que em muitos casos ocorre pela própria vontade do “sujei-
intransponíveis, trazer à filosofia a capacidade de pensar no tempo. to do conhecimento” de transformar a
diferença constituinte das
coisas em identidade, pois acredita que assim poderá ter maior

à 54.
NASSAR, R. Lavoura Arcaica. 3º ed, São Paulo: Companhia das Letras, 1989,

220. KONDER, L. A questão da ideologia. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
p. 156.
Pp

222. KONDER, L. À questão da ideologia, p. 161.


221, Ibidem, p. 156, 162. 223. ADORNO, T. W. O ensaio como forma, p. 30.

ma na
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

controle sobre ela, recorrendo à negação daqueles elementos


que
— pelo menos no âmbito filosófico. Sem o elemento temporal,
não se deixam ser capturados. real e concreto da experiência, a filosofia se transforma em mera
Ao trazer a característica da temporalidade,
presente na retórica, num pensamento fechado em si mesmo, incapaz de dis-
categoria de Experiência à escrita filosófica, Benjamin se coloca, cutir sobre problemas reais da vida cotidiana e dar a eles uma
então, num constante processo criativo, nunca exclusivamente possibilidade de resolução. Benjamin, nesse aspecto, mostra-se
a partir de si
mesmo, mas sempre a partir da relação com o seu um anti-idealista que se dedica a pensar a verdade a partir de uma
objeto de conhecimento. E denomina-se criativo relação dialética com o mundo, num estado de movimento cons-
porque o au-
tor acredita que para conhecer se tem que realizar constante- tante sem qualquer pretensão de síntese com viés para o uno.
mente o processo de interpretação e nomeação das coisas, que Verdade em Benjamin tem a ver com pluralidade. Motivo pelo
vai além da integração do real num princípio unificador. Mas qual o autor também entende que estabelecer um método seguro
principalmente por manter a tensão fundamental ao processo de para a experimentação é limitador e sempre insuficiente, pois
exposição da verdade. O que implica, frente às contradições e condiciona a percepção a apenas uma forma de compreensão da
conflitos, não necessariamente impor uma ordem, uma vez que realidade e impede o surgimento de outras experiências.
o ordenamento intencional muitas vezes é o próprio responsável Assim, ao trabalhar com a questão da Experiência des-
pelo esgotamento das possibilidades de exposição. Nesse senti- de seus escritos iniciais, o autor sempre colocou como reflexão
do, a filosofia é o lugar onde as contradições são bem vindas, de fundo a questão das estruturas fundantes do conhecimento
pois elas representam um pensar lúcido e ciente de suas próprias
carências, capaz de reconhecer que a compreensão das coisas
e da linguagem e,
juntamente a isso, a reflexão sobre o caráter
temporal que lhes é próprio. Mesmo que seus escritos sobre a
só acontece por meio de uma contemplação sem violência ao filosofia futura não tenham sido publicados em vida, percebe-
objeto. Perspectiva que leva o humano a conhecer
e
ultrapassar
seus próprios limites, a lidar com ambiguidades e a buscar nelas
mos que Benjamin desde ali procurava questionar a concepção
limitada de Experiência presente no pensamento iluminista e,
uma forma mais esclarecida de se relacionar com a própria vida, desse modo, a filosofia que a partir daí se constituía. O que nos

a
objetivando na linguagem sua liberdade, a qual consiste, ainda
de acordo com o que afirma Adorno, na “capacidade de dar voz
mostra que o empobrecimento da experiência na modernidade
nada mais é do que o reflexo da predominância de um pensa-
à sua não-liberdade”***, Pois, quando ocorre o seu
contrário, ou mento científico da época, para o qual se encaminhava a sua
seja, quando “a filosofia se abstém do momento expressivo e do crítica. Sendo necessário, segundo Benjamin, que hoje “[possa-

a
compromisso com apresentação, ela é assimilada à ciência”,
Integrar a categoria de Experiência, ou ao menos
mos] ostentar tão pura e tão claramente [nossa] pobreza, externa
e também interna, que algo de decente possa resultar disso”, E
aquilo que ela representa, isto é, a temporalidade no processo preciso que saibamos reconhecer nossas falhas, que a própria filo-
de reflexão filosófica, significa mostrar que sofia seja capaz de se expor ao seu fracasso — aquele de tentar em
por mais que hoje a
experiência tenha se tornado insuportável em função dos atuais vão se reconciliar com o objeto de seu estudo. Isso porque desde
modos de vida, ela ainda é possível e extremamente necessária o momento em que se pensa a presença latente do tempo em
todo e qualquer processo de interação do sujeito com a realidade,

224. ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janei-
to: Jorge Zahar Ed, 2009. p. 24.
225. Idem. 226. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 127.

mna4 ns
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

a reconciliação é algo que já de antemão se apresenta cindida,


pois envolve uma série de outros fatores que não se reduzem a
3.6
métodos e esquematizações do pensamento. ATUALIDADE
DE BENJAMIN

A filosofia de Walter Benjamin, apesar de referir-se a


aspectos de sua época, não deixa de ser extremamente atual. Se-
gundo Seligmann-Silva, é capaz ainda hoje de mobilizar com
suas ideias o pensamento de modo inteligente e ativo a respei-
to de nosso próprio “contexto de habitantes do início do século
XXI”, Suas reflexões em torno da categoria de Experiência,
principalmente a respeito de seu empobrecimento, chamam a
atenção para um fato revelador de nosso cenário cotidiano: a in-
capacidade de nos relacionarmos com
possibilidades, tecendo entre
a
vida em suas múltiplas
aquilo que experienciado um vín-
é
cúlo com nossa subjetividade. O que revela, conforme afirma Ti-
buri, um claro conflito “entre cultura e barbárie, mas que a pró-
pria cultura é que se tornou bárbara”?*, E assim se tornou porque
a crença que se cultiva desde o século passado, de um progresso
1Tumo ao sempre melhor, fez com que se investisse muito em no-
vas técnicas, habilidades e conhecimentos, e pouco na própria
noção de desenvolvimento humano, fundamentada na luta pelo
respeito às diferenças e igualdade de direitos. Fazendo com que
Benjamin afirme que hoje a tarefa é “preparar-se para, se neces-
sário for, sobreviver à cultura”???, O que significa resistir a todos
os meios violentos que impedem a constituição de experiências e
lembrar de que o fato de “olharmos para frente” de nada adianta
se não pudermos aprender com o próprio passado. Pois, para que
esse presente que carrega em si
tantas esperanças seja realmente

227. SELIGMANN-SILVA, A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W, Ador-


no. — 2. ed. — Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 11.
228. TIBURI, M. Filosofia Prática: ética, vida cotidiana, vida virtual, -2º ed. — Rio de
Janeiro: Record, 2014. p. 77.
229. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 90.

mm
n6
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

possível, é preciso estar atento não somente ao que de extraor-


dinário ele pode nos oferecer, mas também ao caminho que foi
CONSIDERAÇÕES
percorrido para que determinadas promessas viessem a se con- FINAIS
cretizar. É preciso que sejamos críticos em relação à leitura
que
se faz da cultura, de seus documentos e registros, para que se A intenção desse trabalho, mediante a leitura das prin-
possam eliminar as contradições que lhes são intrínsecas. Isto é, cipais obras de Walter Benjamin, foi mostrar de que forma a ca-
a crença de que a noção de progresso científico e tecnológico é
tegoria de Experiência se desenvolve no pensamento desse au-
boa em si, pelo simples e puro fato de nos projetar
para frente, tor. Como para ele é possível pensar a Experiência para além
mesmo que para isso utilize-se da violência como meio, não so- dos moldes de sua época, isto é, não apenas como experimento
mente a física, mas aquela, que ainda conforme Tiburi, também científico, mas como pensamento consciente da temporalidade e
coisifica e aliena e não melhora o olhar sobre o mundo. Visto
que multiplicidade do real. Aspecto que colocou também em questão
o fim da experiência promove justamente “o esquecimento do
o papel da filosofia frente a sistemas de pensamento que tendem
mal [...] e o abandono da verdade”, a reduzir os objetos de seu interesse a representações mentais,
eliminando a partir daí qualquer elemento que possa vir a inter-
ferir em seus processos de apreensão — como é o próprio caso do
caráter linguístico da experiência.
Para tanto, o trabalho ocupou-se, primeiramente, em
mostrar o contexto no qual essa concepção de Experiência, en-
quanto experimento, se originou, isto é, o período moderno,
centrado numa preponderante visão científica de mundo e de
progresso tecnológico. Para, num segundo momerito, contrapor
a esse cenário da modernidade, aquele que, segundo Benjamin,
era responsável por sustentar toda uma noção de Experiência no
sentido pleno de sua compreensão, ou seja, as sociedades arcai-
cas. Tendo, nesse ponto, o cuidado de destacar apenas aqueles
elementos considerados aqui de maior relevância à compreensão
de tal categoria, como, por exemplo, a questão de sua transmis-
sibilidade, das narrativas, da memória e das “situações limiares”.
Processo reconstrutivo que nos levou a entender que um dos prin-
cipais causadores da perda de Experiências, além da guerra com
sua força cruel e esmagadora que veio para consumá-la, foram os
novos modos de vida surgidos com o advento da modernidade,
que impulsionaram uma drástica abreviação do tempo destinado
para se viver e constituir tais Experiências. Situação que acabou
por facilitar a sua redução ao experimento e apropriação pelas
230. TIBURI, M. Filosofia Prática: ética, vida cotidiana, vida virtual,
p. 77.

18 19
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

áreas do saber científico, saberes estes, em boa parte, fundamen- todos os fatos são apreensíveis pelo conceito, sendo a maioria mu-
tados pela própria filosofia que foi transformada em guia tável e flexível a alterações temporais. A filosofia que pretende ser
para o
conhecimento. Questão essa que impulsionou, então, num ter- expressiva deve levar isso em consideração. Permitindo, a partir
ceiro momento, o estudo sobre a categoria de Experiência como daí, também uma reflexão mais aprofundada sobre os conteúdos

a trabalhar
e
experimento o porquê de Benjamin se dedicar em sua filosofia
uma forma de pensamento capaz de abarcá-la em seu
que expressa, fazendo pensar sobre a noção de tempo que os en-
volve e a necessidade de revisitá-los em seu contínuo movimento,
sentido original. Atitude que se apresentou numa dupla estra- sempre que preciso, para atualizar-se. À medida que ajuda tam-
tégia, quer dizer, alémde recuperar a Experiência como uma bém na compreensão do momento presente em relação ao seu
forma de conhecimento não apenas ligado à comprovação em- passado, bem como o seu contrário, justamente porque o entendi-
pírica, mas de um saber sedimentado na vida vivida, também re- mento de uma experiência em razão de sua temporalidade é dife-
tomar o caráter expressivo da própria filosofia, que nesse período rente do sistema que pensa a partir do princípio da identidade, da
de transformações ficou relegado ao esquecimento. Pois a Expe- apreensão dos objetos por via da consciência. Isto é, não depende
riência, assim como a filosofia, ao se manifestar na linguagem, apenas da vontade do sujeito, mas de uma série de outros elemen-
necessita ser interpretada para ser compreendida. Precisa tos que irão agregar-se ao acontecimento em questão no decorrer
que se
exponha a parcela de verdade que ela carrega consigo sobre a de seu tempo, permitindo a sua compreensão. À experiência, as-
vida humana e isso, nesse contexto, segundo o autor, somente a sim sendo, depende do Outro, que é um “outro tempo”, diferente
filosofia seria capaz de fazer. do tempo uno do sujeito fechado em sua interioridade.
Desta forma, retomar a noção de filosofia como exercí- Abordar a categoria de Experiência no pensamento de
cio de apresentação e não como fundamentação de conhecimen- Benjamin se trata, portanto, de trabalhar com um tema que, ape-
tos, é uma das propostas benjamianas que, como vimos, envolve a sar de não ser uma novidade no âmbito das discussões filosóficas
categoria de Experiência. Pois a filosofia, diferentemente das ciên- atuais, é importante pelo fato de que quando retomado desaco-
cias, tem a capacidade de trabalhar com temas que muitas vezes moda o pensamento e o coloca em movimento, fazendo-o refletir
não se encaixam nos sistemas representativos do pensamento. Ra- sobre si mesmo, sobre suas tendências e limitações, quer dizer: o
zão pela qual, ao renunciar o seu momento expressivo, tema da relação do sujeito com o objeto de seu conhecimento.
nega, por-
tanto, sua própria essência, correndo o risco de desaparecer. Fato Situação que quando retomada é capaz de impulsionar o pensa-
que Benjamin procura através de seus estudos, evitar. Porém, em mento a ir além das projeções que faz sobre o objeto do saber,
meio ao processo de pesquisa, surgiu-nos um outro elemento permitindo-se pôr em uma nova relação com ele. Uma relação
que
vale a pena aqui destacar. À categoria de Experiência, além de que frente ao ideal científico, contrapõe àquilo que não pode ser
despertar a necessidade de uma mudança na própria concepção tematizado por ele, isto é, aquilo que lhe escapa. Forçando-o, des-
de filosofia no período em questão, exige, concomitante a esse sa forma, a abrir-se para novas e diferentes maneiras de abarcar
processo, a capacidade de a filosofia pensar na temporalidade. o objeto, sem se deixar cair na sedutora postura positivista de, ao
À Experiência, portanto, no sentido defendido invés de enfrentar filosoficamente a diferença, excluí-la ou igno-
por Wal-
ter Benjamin, traz de volta o elemento temporal, abolido pelos rá-la por ela não se acomodar em seus sistemas.
métodos científicos, ao fazer filosófico. Pois entende que o caráter
expressivo necessita também da temporalidade, visto que nem

qa]
120
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)

REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora


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