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Bruna de Oliveira Bortolini - Walter Benjamin e A Categoria de Experiência (Erfahrung)
Bruna de Oliveira Bortolini - Walter Benjamin e A Categoria de Experiência (Erfahrung)
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BRUNA DE OLIVEIRA BORTOLIN
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WALTER
BENJAMIN
CATEGORIA E A
A
DE EXPERIÊNCIA
(ERFAHRUNG)
É
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bibliografia
ISBN 978-65-00-10091-4
20-45944 CDD-193
Ea dose
POTÊNCIA DA LINGUAGEM
....660uciiici 89
INTRODUÇÃO
ade
usas sa 8
3.1 Teoria da linguagem benjaminiana
.ccccco = 94
cce
1 PRIMEIRA PARTE 3,2 Um novo itinerário filosófico...
ao pensamento
WALTER BENJAMIN, ... 100
-
CONTEXTO E REFERÊNCIAS 15 3.3 Modelo ideal de exposição filosófica:
1.2 A
1.3 À
cidade moderna e suas ContradiçõeS....únciciieii
estética do vidro e a
es 23 o papel mediador do COnCeIto.....scnssanas
cc ienes
...isuicnncacs,
FINAIS...
1.4 À influência de Franz Rosenzweig no pensamento de
WalKeT BERTA E 34 CONSIDERAÇÕES 119
1.5 À
FPrsha ROSSNSWEIO
aaa Er
origem do conceito de Experiência (Erfahrung) em
TANDO SETTE 44
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
.coo 122
sas
2?
SEGUNDA PARTE
EXPERIÊNCIA dadunésaetsedasso
Eve 49
2.1 À categoria de Experiência nos primeiros
escritos de Walter Benjamin. .iciiiilisinnas.
iii
2.2 Experiência como matéria de tradição...
2.3 À arte de narrar EXperiências. .uiiiiii 59
24 Experiência e MemMÓras.cceesieee
sas ss SRT: 6468
2:5. Experiência E LIMI ue
isca ane
2.6 Modernidade e o declínio da EXperiência.
Rec
...scsiiinnas 72
2.7 Narrativa, romance e Infor Mação, ..úiiiiiiiiienenanno: 75
2.8 Da Experiência ao experimento.......
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
as particularidades dos conteúdos materiais. Pois, para Benjamin, Deste modo, a pesquisa parte da seleção de bibliogra-
o método do conhecimento deve implicar num exercício de pen- de autoria de Walter Benjamin. Nesse trabalho são utilizadas
fias
samento que, incansável, em maior destaque as obras Magia e técnica, arte e política: en-
sadios sobre literatura e história da cultura', Charles Baudelaire
[-..] começa sempre de novo, e volta sempre, minun-
um lírico no auge do capitalismo”, O Prefácio da obra Origem do
ciosamente, às próprias coisas. Esse fôlego infatigável
é a mais autêntica forma de ser da contemplação. Pois drama barroco alemão, o ensaio Sobre o Programa da Filosofia
ao considerar um mesmo objeto nos vários estratos de I'uturaó, e Passagens”. Sendo paralelamente a estas, também uti-
sua significação, ela recebe um estímulo para o reco- lizados textos (referências) que oferecem auxílio a uma melhor
meço perpétuo e uma justificação para a intermitên- compreensão das ideias desenvolvidas no estudo, fazendo-se ne-
cia do seu ritmo?.
cessário ainda ressaltar que todas as referências em língua estran-
Posicionamento que se constitui ainda numa crítica ao geira utilizadas na pesquisa possuem traduções nossas.
modelo de pensamento de sua época, a saber, o iluminismo (Au- Para favorecer o entendimento a respeito das ideias in-
fRárung), principalmente a partir de leituras das obras de Imma- vestigadas, o trabalho se divide em três seções. À primeira seção,
nuel Kant e dos neo-kantianos e que surge com a constatação de intitulada Walter Benjamin: contexto e referências, aborda ques-
que a filosofia nesse período se encontra muito mais voltada à tões em torno da vida do autor, seu contexto histórico e influên-
fundamentação do conhecimento científico do que à sua tarefa cias. Tem como principal objetivo mostrar de onde surgiram as
primordial de apresentação da verdade. Fato que leva o autor a ideias do autor em relação a categoria de Experiência, visto
que
não somente empreender uma crítica a esse modelo, mas propor Benjamin foi um dos maiores e mais importantes estudiosos do
uma solução que consiste em, por meio da valorização da catego- tema de sua época. Destaca-se nesse capítulo a era moderna e
ria de Experiência em seu sentido pleno e não apenas instrumen- suas transformações em relação às sociedades arcaicas, bem
tal, provocar uma reformulação na própria concepção de filosofia como mudanças radicais na percepção e no comportamento dos
da época, Uma reformulação que devolva à filosofia seu caráter indivíduos a respeito de tais transformações. Também terão des-
expositivo de trazer à expressão elementos que perante o sistema taque, na presente seção, as ideias do filósofo Franz Rosenzweig,
representativo tendem a ficar de fora do discurso convencional, as quais foram de inegável importância para o desenvolvimento
E isso porque a Experiência, quando limitada a usos instrumen- do pensamento de Walter Benjamin, principalmente sua
per-
tais, revela uma forma também instrumental de os indivíduos
pensarem e se relacionarem com o mundo. Valorizar suas outras
qualidades é exigir uma mudança nesse cenário. É recuperar cer-
tas questões também relevantes ao conhecimento e que foram 4. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e história da
outrora relegadas ao esquecimento por não se encaixarem nas cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin — 8º Ed. revista —
10 n
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
cepção a respeito da categoria de Experiência como pensamento por meio da análise de sua estrutura, coloca em evidência a be-
permeado pela temporalidade. leza de um pensamento sempre atual: um pensar sensível à mul-
À segunda seção, Experiência, aborda a categoria de liplicidade dos fenômenos da vida vivida. Em que sua riqueza
Experiência no pensamento do autor, suas origens e principais não está num novo modo de fundamentar o conhecimento, ou
características, bem como a constelação de elementos que a ela de dizer àquilo que as coisas são. Mas, por meio da narrativa, de-
estão vinculados de forma indissociável, como é o caso da tem- dicar-se a mostrar o quão importante é o tempo para
compreen-
poralidade, da narrativa, da memória, das situações limiares, da são das vivências e das conexões que se podem fazer entre os
tradição e da linguagem. O capítulo também mostra os fatores saberes adquiridos. Uma posição contrária à extrema valorização
cruciais para o declínio da Experiência (Erfahrung) e sua subs- do domínio teórico da razão em quase todos os âmbitos da vida
tituição pela ideia de Vivência (Erlebenis) na modernidade, re- humana. Que defende a necessidade de constantes exercícios de
velando as consequências desta substituição, as quais incluem a reelaboração do pensamento para mantê-lo distante da sedutora
segmentação e desorientação dos indivíduos em relação à própria postura positivista de crer em verdades absolutas e segregadoras.
vida e o domínio da técnica sobre o “minúsculo e frágil corpo hu-
mano”* — apontando os desafios para a filosofia frente a uma con-
cepção científica de mundo que tem como proposta a instrumen-
talização da ideia de Experiência e do próprio fazer filosófico.
No último e terceiro
capítulo, Tempo, Experiência e Po-
tência da Linguagem, será abordada a questão da nova proposta
filosófica de Walter Benjamin. Será visto de que forma o autor
concebe a situação da filosofia frente ao progresso científico e
tecnológico e as alternativas que propõe para que possa continuar
em seu processo fundamental de busca e exposição da verdade.
Para tanto, se inclui a essa proposta de recuperar o momento ex-
pressivo da própria filosofia, um reconhecimento da pobreza de
experiências que o indivíduo moderno se encontra. Tal reconhe-
cimento surge em função de um novo e ampliado entendimento
acerca da categoria de Experiência após o seu declínio, em espe-
cífico através da valorização de seu caráter linguístico, o qual im-
plica numa crítica à noção de Experiência em Kant, apontando
suas limitações e possibilidades de reformulação.
À obra mostra-se relevante na medida em que ao conce-
ber a categoria de Experiência (Erfahrung) de Walter Benjamin,
12 3
PRIMEIRA
PARTE
WALTER BENJAMIN,
CONTEXTO E
REFERENCIAS
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
16 FÃ
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
18 19
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
Ainda que a percepção do autor sobre Com isso, chega perto de afirmar que
a modernidade o processo de tecnização,
como lugar do transitório, do efêmero e do ao mesmo tempo em que é o produtor de alienação e
movente, da “luta perigosas
contra o curso inexorável e natural' do tempo”"
pretada como denúncia da época, ela não se
possa ser inter , lensões e patologias da mente, também pode vir a ser utilizado
restringe somente como dispositivo de cura. Visto que, o cinema:
a este aspecto. É compreensível
que o caráter fugidio da moder- Através dos seus grandes planos, de sua ênfase sobre os
nidade seja interpretado como
ameaça de perda ou destruição, pormenores ocultos dos objetos que nos são familiares,
pressentimento que, em realidade, não pode ser negado. e de sua investigação dos ambientes mais vulgares sob a
Porém,
devemos considerar
que o moderno ao mesmo tempo em que direção genial da objetiva, [...] faz-nos vislumbrar, por
nos desperta para a consciência de uma atualidade um lado, os mil condicionamentos que determinam
“passageira e
dominadora [...] que sempre nos escapa”!"*, e nossa existência, e por outro assegura-nos um grande
que por vezes nos as- e insuspeitado espaço de liberdade. Nossos cafés e nos-
susta, é também, neste período, promessa de futuro. Daí
o mérito sas ruas, nossos escritórios e nossos quartos alugados,
da interpretação benjaminiana, ainda
ao encontro do que afirma nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionar-
Gagnebin, pois, esta postura do autor permite -nos inapelavelmente. Veio então o cinema, que fez
uma lúcida descri-
ção a respeito das contradições da época. À modernidade
ção de seu caráter instável, de interesse constante
em fun-
explodir esse universo carcerário com
a
dinamite dos
seus décimos de segundo. [...] Se levarmos em con-
pelo novo, nos ta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as
possibilitou avanços na área do conhecimento
técnico, trazendo suas consequências, engendrou nas massas — tensões
grandes benefícios à vida das pessoas. Ou,
na visão de Benjamin, que em estágios críticos assumem um caráter psicóti-
ao próprio campo da arte, visto
que ao artista foi possível “mer- co —, percebemos que essa mesma tecnização abriu a
gulhar na multidão, ser seu “espelho”, seu “caleidoscópio possibilidade de uma imunização contra tais psicoses
dotado
de consciência”, em de massa através de certos filmes, capazes de impedir,
suma, ser um “eu insaciável do não eu, um
verdadeiro homem do mundo”" aberto à pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadoma-
consciência radical da soquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. À
temporalidade e da morte, livre das concepções acadêmicas tra-
dicionais a respeito do
que é arte e de sua relação com a questão
e hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e sau-
dável dessa psicose de massa. Os filmes grotescos dos
do belo a partir de uma “forma
eterna e absoluta”, Percepção Estados Unidos [...] produzem uma explosão terapêu-
positiva da modernidade também exposta em tica do inconsciente",
seu ensaio À obra
de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica", escrito em 1935, Postura que o tornará alvo de críticas na época, inclu-
Nesse ensaio, Benjamin ressalta o sive as de seu amigo e correspondente Theodor W. Adorno. Para
possível caráter imunizador
da técnica, em específico do
cinema, em contraposição às pró- Adorno, a ideia de Benjamin de uma racionalidade técnica que
prias consequências negativas engendradas
por ela na sociedade. também implicasse na liberdade do homem e não somente em
sua dominação, não se mostra possível. Na visão de Adorno, a
13. GAGNEBIN, J. M. Alegoria, Morte e Modernidade, técnica estaria mais aberta a usos comerciais e de manipulação
p. 48.
14. Idem.
social, do que a uma revolução em prol das minoridades. Para
15. Idem.
16. Idem.
17. BENJAMIN, W, A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica. In: BENJA-
MIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura 18. BENJAMIN, W. À obra de arte na era de sua reprodutibilidade
e história da cultura Trad. técnica, p. 204-205.
Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012 —
(Obras Escolhidas, v. 1). p. 179-212.
20 21
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
21. “la forme d'une ville change plus vite, hélas! Que le coeur d'um mortel”
(BAUDE-
LAIRE, C. Le Cygne. In: BAUDELAIRE, C. Les Fleurs du Mal. Paris, França: Le Livre
de Poche, 1964. p. 101).
22, Para o autor, as grandes metrópoles como médium-de-reflexão correspondem
aum
ambiente que favorece o pensamento, a expressão e a própria reflexão sobre acontecimen-
19. ADORNO, T. W,
Correspondências 1928-1940: Theodor W, Adorno, Walter los de uma determinada época em seus múltiplos sentidos.
Benja-
min. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: 23. BOLLE, W. A metrópole como médium-de-reflexão. In: SELIGMANN-SILVA, M.
Editora Unesp, 2012. p. 206-214,
20. Ibidem, p. 210. Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999. p. 91.
22 23
Bruna de Oliveira Bortolini
Walter Benjaminea Categoria da Experiência (Erfahrung)
No texto, Paris, a
capital do século XIX”, o autor mercadorias produzidas pela crescente industrialização. Haven-
o narra
movimento de expansão das cidades modernas, do ainda em seus interiores
de Paris. em específico, espaços para socialização e venda de
Segundo ele, esse Processo se deve, em boa serviços como cafés, bares, restaurantes, alfaiatarias,
desenvolvimento das forças produtivas parte, ao sapatarias,
na época que aceleram o enbelereiros, etc. Entretanto, ao mesmo tempo em
crescimento populacional e reivindicam a que servem
necessidade de eman- to comércio, as passagens são uma espécie de refúgio para os
cipação das próprias cidades, tanto
em relação a postos de traba- desprevenidos da chuva e para aqueles que buscam fugir dos
lho, como lugares para habitação pe-
e frequentação. O crescimento igos da rua e do trânsito, garantindo a eles um passeio
do comércio têxtil, seguro
por exemplo, é um dos primeiros aconteci- “porém restrito, do qual também os comerciantes tiram
mentos da sociedade moderna a suas van-
impulsionar a transformação das lugens”*, Ambientes de transição que possuem caráter
cidades. Isso ambíguo
porque com o elevado número de mercadorias e alegórico por sintetizarem no mesmo
vender, surge também a necessidade de para lugar, ruas e residências,
se aumentar os meios de visto que em algumas delas “acima do entablamento das
exposição de tais mercadorias, de forma pilastras
um que possam ser vistas
grande número de pessoas. O que fomenta modificações por
dóricas, que dividem as
lojas, [erguiam-se] dois andares de
tamentos”**, Por essas e outras razões, as
apar-
arquitetura principalmente a partir da criação de na passagens, além do Flá-
visibilidade desses produtos. espaços para a neur”, atraiam também uma multidão de pessoas, a qual é,
Que segundo Benjamin, deixa para
rastros “em mil configurações da seus Benjamim, a representação estética da modernidade capitalista
vida, das construções duradou- por excelência e pode ser observada ainda hoje.
ras, até as modas passageiras””, Tais
espaços, chamados de pas- Contudo, para Benjamin, as passagens representam
Sdgens, precursores das lojas de
departamento, são construções muito mais do que apenas galerias. São na verdade símbolo
erguidas em bases de ferro, material de
de construção artificial uma nova reconfiguração social fundamentada na transitorieda-
destaque na Época, mas também em
de e no movimento — características
[...] cobertas de vidro e
típicas de uma sociedade
com paredes revestidas de már-
more, que atravessam quarteirões inteiros, cujos
Prietários se uniram para esse tipo de pro-
capitalista. Mas não são somente as passagens
que alteram
nomia das cidades. Segundo Benjamin, a cidade de Paris
fisio-
ingres-
a
especulação. Em sou no século XIX sob a forma que lhe foi dada
ambos os lados dessas
galerias, que recebem a luz do por Haussmann:
alto, alinham-se as lojas mais “Ile realizou sua transformação da cidade com os meios mais
elegantes, de modo
í
tal passagem é uma que modestos que se possa pensar: pás, enxadas, alavancas
cidade, um mundo em miniatura”, e coisas
As passagens parisienses semelhantes”?º, Ou seja, as reformas urbanísticas iniciadas
"a são,
portanto, lugares de expo- 1859 pelo Barão de Haussmann?! modificam
em
sição. Nelas, os passantes, além dos drasticamente a ci-
artigos de luxo, encontram
também uma variedade de outros
produtos como roupas, joias,
objetos de decoração e beleza,
livros, tecidos e até
dutos alimentícios. São mesmo
ambientes perfeitos para a exibiçãopro-
BENJAMIN, W. Paris, a capital do século XIX,
p. 78.
de 25. Ibidem, p. 79.
29. Personagem da poesia lítica de
Baudelaire, eleito por Walter Benjamin como arqué-
lipo símbolo da experiência das cidades modernas. Sujeito observador
que vagueia pelas
24. BENJAMIN, W. Paris, a capital do tuas, o verdadeiro “homem da multidão”,
século XIX, In: Pass
assagens. Belo Hori Edi 30. BENJAMIN, W. A modernidade.
ra UEMG, 2007 130.06 Belo Horizonte: : Edito- In: BENJAMIN, W. Charles Baudelaire,
um lírico
25. Ibidem, p. 41. no auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa, Hemerson Alves
Batista — led. - São
Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras Escolhidas
26. Ibidem,
p. 77-78. - TI. p.84
31. Conhecido
amplamente como
o “artista demolidor”, Barão de Haussmann
foi no-
24
25
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
26 27
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
28 29
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um indivíduo seja reconhecida, isto é, para que se enxergue o ou- Banalização do particular na esfera coletiva que des-
tro como outro e não apenas como instrumento para se alcançar perta nos indivíduos cada vez mais a necessidade de individua-
determinados interesses,
restringindo-se
é preciso de tempo,
e
isso, então, acaba
esfera do particular. Atitude que revela, segundo
a
lização, de valorização do interior, do desejo de destacar-se da
multidão. À perda das referências coletivas surgida com a moder-
Benjamin, o quanto a humanidade está imersa numa cultura mi- nidade provoca uma espécie de despersonalização, e para tentar
serável que tem na arquitetura de hoje, pobre e despersonalizada, remediá-la os indivíduos tentam recriar o aconchego e o calor
o seu fiel reflexo. Apesar de que, conforme Missac*, nesse
caso, a que lhes foi retirado, muitas vezes, por meio da compra de ob-
própria arquitetura ser a vítima e não a pecadora. jetos diversificados que possam marcar sua personalidade, pois
Assim, as mudanças paisagísticas da época, acabam por veem “na propriedade a expressão da dilatação do ser coextensivo
fomentar um sentimento de não pertença e isolamento nos su- da
suas aquisições”*”, Desta forma, tudo o que é subjetivo, íntimo e
jeitos, pois estes não conseguem mais se reconhecer na ideia de pessoal, é acrescido de um valor inestimável. À casa, a decoração,
coletividade. Como muito bem exposto por Friedrich Engels em móveis e objetos em geral, tendem a guardar os vestígios de seu
seu livro À Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, citado proprietário. Conforme salienta Gagnebin,
por Benjamin no decorrer de seus estudos sobre a modernidade, Despossuídos do sentido da sua vida, o indivíduo ten-
Estas centenas de milhares de pessoas, de todos os esta- ta, desesperadamente, deixar a marca de sua possessão
dos e de todas as classes e posições, que se apressam e se nos objetos pessoais: iniciais bordadas num lenço, es-
tojos, bolsinhos, caixinhas, tantas tentativas de repetir
empurram, não serão todas seres humanos possuindo
no mundo dos objetos o ideal da moradia. Benjamin
as mesmas qualidades e capacidades, e com o mesmo
observa com humor que o veludo não é por acaso um
interesse na procura da felicidade? [...] E, contudo, es-
dos materiais preferidos desta época: os dedos do pro-
sas pessoas cruzam-se a correr, como se nada tivessem
em comum, nada a realizar juntas; e, no entanto, a prietário deixam nele, facilmente, seu rastro”.
única convenção que existe entre elas é o acordo tácito Fato que irá influenciar diretamente na produção inten-
pelo qual cada um ocupa a sua direita no passeio, afim cional de mercadorias que possam preencher este esvaziamento.
de que as duas correntes da multidão que se cruzam
não se constituam mutuamente obstáculos; e, contudo,
O que abre novas possibilidades no campo das experimentações,
fazendo surgir materiais inéditos para o consumo, ainda que a
não vem ao espírito de ninguém conceber a outrem um
olhar sequer. Esta indiferença brutal, este isolamento aceleração do tempo, devido à enorme demanda pelo novo, tor-
insensível de cada indivíduo no seio de seus interesses nasse o prazo de validade das coisas muito menor do que em épo-
particulares, são tanto mais repugnantes e chocantes, cas anteriores. O novo, na modernidade, é sempre antigo, cada
quanto e maior o número destes indivíduos confinados
neste reduzido espaço”.
segundo já é suficiente para torná-lo caduco. Edifícios construí-
dos sobre as ruínas do passado não levam muito tempo para vira-
rem escombros e a promessa da novidade revela, então, sua efe-
José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 2011 - (Obras Escolhidas, v. 2). p. 19. meridade através da temporalidade que a toca, uma vez que, para
42. MISSAC, P. O ponto de vista filosófico: a arquitetura de vidro e a orientação do
pensamento de Benjamin. In: MISSAC, P. Passagens de Walter Benjamin. Trad. Lilian
Escorel. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda, 1998. p. 186.
43. ENGELS, F. À Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Trad. Analia C. Tor- 45, MOLES, À. A. O Kitsch: a arte da felicidade. Trad. Sérgio Miceli. São Paulo: Perspec-
tiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1972. p. 35.
tes. Porto, Portugal: Edições Afrontamento, 1975.
44. Ibidem, p. 56. 46. GAGNEBIN, J. M. Alegoria, Morte e Modernidade, p. 59.
31
30
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
as sociedades modernas, “o derretimento dos sólidos”, segundo As transformações técnicas que pouco a pouco atin-
o que já expunha Bauman, sempre foi o seu maior passatempo.
Nesse contexto, mercadorias, valores e relações tornam-se cada
glama
em suas
vida nas cidades, provocando o isolamento dos indivíduos
tarefas cotidianas, vieram a concretizar-se, então, com a
vez mais imediatas e passageiras, fato que confere aos indivíduos puerra de forma rápida e total. Tão rápida que as mudanças ocor-
de forma contraditória, se é possível dizer, maior e menor tidas não foram possíveis de serem assimiladas de uma só vez e ao
grau
de liberdade. Maior porque podem
sempre se renovar, aliviando Inesmo tempo pela palavra que se tornou insuficiente perante aos
o peso da tradição sobre seus ombros e tornando-se mais flexíveis ncontecimentos. Não somente pela quantidade dos fatos, mas por
às situações que lhe aparecem. E menor porque ficam prisionei- sua força cruel e esmagadora impossível de ser compreendida,
ros desta busca ninda hoje, em plenitude.
por renovação constante e da insegurança e im-
paciência perante aquilo que demanda tempo para ser alterado. Nesse sentido, é possível afirmar que a modernidade,
Razão pela qual a tentativa desesperada de reconstrução do
que enquanto momento histórico gestor de grandiosos feitos como
foi perdido não passa de mera ilusão, embora inconcebíveis catástrofes provocadas pela ideologia do progresso,
compreensível. De-
sejar algo sólido em meio à liquidez da modernidade, na qual [oi um dos temas chaves da filosofia de Benjamin. Sob diversos
tudo se dissolve de forma muito rápida, é um empreendimento uspectos ela foi analisada pelo filósofo tanto pelo viés da crítica
ousado. Assim, para o indivíduo alienado torna-se cada vez mais inarxista ao fetichismo da mercadoria, quanto das relações so-
difícil compreender tal separação ocorrida entre particular e co- ciais no capitalismo, da nova organização econômica e da trans-
letivo, ficando impossível reconstruir as experiências como eram lormação das pequenas cidades em metrópoles. Mudanças que
antes, principalmente em um mundo completamente diverso, causaram forte impacto na percepção dos indivíduos em relação
transitório e com demandas diferentes. uno plano individual e coletivo que habitam, produzindo conse-
O imperialismo da técnica e a industrialização das cida- quências estéticas radicais, as quais oferecem a este trabalho, um
des terá impacto ainda maior e extremamente negativo ao sujeitar marco delineador em seu processo de investigação e análise.
os indivíduos à sua força no contexto da Primeira Guerra. O filó- Porém, antes de nos lançarmos no estudo destas ques-
sofo em seus textos comenta: lões perceptivas que circundam o pensamento de Walter Benja-
min e a relação que mantém com a categoria de Experiência, é
Na época, já se podia notar que os combatentes volta-
vam silenciosos do
indispensável fazermos referência ao filósofo Franz Rosenzweig
campo de batalha. Mais pobres em
já que muito de sua obra marca fortemente a trajetória benjami-
experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros
de guerra que inundaram o mercado literário dez anos niana, contribuindo imensamente para os conceitos que serão
depois continham tudo menos experiências transmissí- trabalhados, como a própria categoria de Experiência e a noção
veis de boca em boca. [...] Uma forma completamen- de temporalidade, entre outros elementos.
te nova de miséria recaiu sobre os homens com esse
monstruoso desenvolvimento da técnica”!.
47. BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2001. p. 09.
48. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 124,
33
3e
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
apresentar, mesmo que de forma breve, ideias chaves do pensa- para a busca da verdade. Uma unidade capaz de dizer “o que é”,
de abarcar a totalidade dos fenômenos e de possibilitar a transfor-
mento de Rozensweig. Para tanto, em primeiro lugar, pretende-
-se dar atenção a quem foi esse autor e a importância de sua filo- mação do mundo em algo “pensável”. Pois o mundo em seu as-
pecto sensível se apresenta por meio de uma inegável pluralidade
sofia no âmbito da tradição,
de Benjamin com seu pensamento.
para posteriormente expor relação a de elementos, os quais, em suas contradições e ambiguidades,
De acordo com as notas de Ricardo Timm de Souza”, sempre preocuparam os homens, que por sua vez, na luta por
Franz Rosenzweig foi um filósofo e historiador moderno e tal
como Benjamin, era filho de um comerciante bem sucedido e
30), ROSENZWEIG, F. La Estrella de la Redención. Trad. Miguel García-Baró. Salaman-
ea: Síngueme, 1997.
|. “Toda filosofía preguntó por la esencia. Es la pregunta por medio de la cual la filosoffa
49. SOUZA, R. T. Existência em decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Ro- e separa del pensar no-filosófico del sano entendimiento humano” (ROSENZWEIG, F.
senzweig, São Paulo: EDITORA PERSPECTIVA S.A,, 1999, |! nuevo pensamiento. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora S.A, 2005. p. 19).
34 35
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
sobrevivência, precisaram encontrar meios de controlar lo, alternando de um para o outro, no posto de primeiro princí-
o desco-
nhecido e torná-lo objeto de seu conhecimento. A pio. Porém, em meio às inconstâncias e incertezas da vida, cada
filosofia desde
seu nascimento procura, então, ordenar, identificar vez mais o desejo por uma unidade que pudesse oferecer maior
e classificar a
multiplicidade existente, encerrando-a em um sistema acessível estabilidade aos indivíduos e condições de vencer os medos da
razão para que desde aí algo sólido
à
existência, conduziu estas diferentes concepções submissão de
possa surgir e orientar a a
presença dos indivíduos no próprio mundo. “1 Yaquela primeira uma só. Para Souza, isto se dá, pois “[...] de todo o modo, é mais
proposição filosófica, “tudo é água”, está fácil indagar “o que é o Todo?' (Was ist Alles?) do
presente a condição de que o que são
pensabilidade do mundo, ainda que os Muitos?' (Was ist Vieles?)”*. Ou seja, conceber várias formas
apenas Parmênides tivesse
afirmado a unidade entre ser e pensar”*?, Mas de significação do real é muito mais difícil do
não é somente a que apelar paraum
teoria do Ser, “daquilo que é”, irá fundamentar este modelo princípio único, visto que a primeira forma, ao lidar com possibi-
que
de pensamento. À
presença do domínio lógico-gramatical no dis- lidades, pressupõe a insegurança de trabalhar com ideias e uma
curso, por meio do princípio da identidade e da constante de perguntas e respostas, diferentemente da segunda,
não-contradição,
será base de toda e qualquer ideia
que tenha como pretensão a que se deixa circunscrever mais facilmente.
verdade. Assim, desde os pré-socráticos Este processo de redução de variados pontos de vista |
-
52. “En aquella primera proposición filosófica,
que << todo es agua>>, ya se encierra el a qual diz respeito a cada um no mais Íntimo de seu
presupuesto de la pensabilidad del mundo, aunque fue Parménides
quien primero procla-
existir,
mó identidad del ser y el pensar”
(ROSENZWEIG, F. La Estrella de la Redención,
p. 52).
capa ao pensador, pois é uma categoria que embora conceituá-
53. SOUZA, R.T. Existência
em decisão: uma introdução ao
pensamento de Franz Ro-
senzweig, p. 106.
54. “L.] la cosmológica antigua, la teológica medieval, la
antropológica moderna”
56. SOUZA, R.T. Existência em decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Ro-
(ROSENZWEIG, F. El nuevo pensamiento, senzweig, p. 106.
p. 20)
55. PERIUS, O. Walter 57, Ibidem, p. 22.
Benjamin: a filosofia como exercício. Passo Fundo:
IFIBE, 2013. p. 33.
36 37
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
vel, revela-se inesgotável. Ela não é vazia de sentido, ela é algo, É pela angústia da morte que o ser humano inicia seu
permeada de multiplicidade, de infinitas interpretações, como processo de busca e transformação do mundo em algo compreen-
afirma o autor, sível, 15 o temor pelo diferente, pelo desconhecido que o fará criar
38 39
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
seu redor, múltiplas verdades podem emergir, nunca esgotáveis do outro. Isso, porém, somente se sairmos de nossa posição egoís-
em si, devido à própria temporalidade da realidade ln e fechada, acolhendo o diferente, quer dizer, não de forma
que as com-
põe. Pois, por mais ideal que seja um sistema de pensamento, ele possesiva, fazendo daquele objeto do meu conhecimento, mas
é impossível sem a própria vida, sem o de forma passiva, em que no encontro com o outro ele se mostra
próprio habitar do homem
no mundo porque depende de um sujeito que à mim e eu o recebo sem reduzi-lo à força judicativa do meu
pensa e não pode
desconsiderar que este sujeito que pensa, também pensamento. Por esta razão, o encontro verdadeiro com o outro,
experimenta o
mundo de forma direta e sensível. por não ser algo determinado ou prescrito, jamais corresponderia
Assim, mesmo que tentemos operar no mundo a 4 uma relação de “necessidade”, mas de profunda liberdade, de
par-
tir de tendências unificantes do infinitas possibilidades. Contudo, este processo de Redenção, só
pensamento, temos de levar em
consideração que estas nascem em resposta a algo de perturbador é possível por meio de outra categoria, a saber, a da Revelação, a
dado pela própria realidade qual corresponde exatamente ao instante de decisão, de aconte-
que é irredutível a qualquer tentativa
de “atemporalização”. Ao criarmos conceitos cimento, em que para nós se torna clara a importância de romper
ou noções ideali-
zadas do mundo é preciso não com a ideia de causalidade natural e por meio do ato intencional
esquecer que aquilo que eles pre-
tendem fundamentar é suscetível a mutações e justamente úbrir-se para o nascimento de algo novo. Este algo seria a rela-
por
este caráter efêmero é que toda percepção
que fazemos do real ção de resistência, de oposição ao automatismo das ações a uma
deve de tempos em tempos suposta eternidade estática capaz de oferecer ao pensamento o
passar por ajustes. O que também
nos leva a colocar em questão o fato de que ao mesmo tempo em outro lado daquilo que se dá como positivo.
que a realidade passa por transformações, as relações que temos Este instante de decisão, de ruptura, presente no pensa-
com o mundo nunca são as mesmas, variam de indivíduo mento de Rozensweig, que ao lidar com os fatos procura apoiar-se
para
indivíduo e também do indivíduo para si. Na medida em numa dinâmica inversa daquela dada pela tradição do pensamen-
que
estas transformações acontecem é que se dá, então, a verdadeira lo ocidental, em Benjamin irá apresentar-se como Ursprung”!,
relação entre Homem e Mundo. Razão pela qual não faz sentido que em alemão quer dizer origem. Categoria fundamental para o
buscar essências fixas que justifiquem Homem ou Mundo, desenvolvimento de sua teoria e crítica da história. Porém, a ideia
pois
estes ao modificarem-se mutuamente no momento de de origem em Benjamin, exatamente por receber influências de
encontro,
evidenciam sua incompletude. Acontecimento Rozensweig, não corresponde ao sentido de início cronológico,
que Rosenzweig
denominará como momento de Redenção. direto e global, de onde tudo se cria e se desenvolve, semelhante à
Redenção, para o filósofo, marca exatamente este ins- ideia de Gênese (Entstehung). Mas, sim, trata-se de momento de-
tante de abertura do Eu ao Outro, em que se tem a consciência cisivo, de intensidade temporal, muito mais próxima da ideia de
da impossibilidade de uma suposta criação definitiva, de forma Kairós presente na filosofia grega, definido como instante privile-
atemporal, na origem. Ambos, Homem e Mundo, ao se saberem giado e oportuno para a ação, do que Chrónos, o tempo comensu-
incompletos e ainda em processo de criação, anulam a ideia de rável dos relógios. Em seu método historiográfico, Ursprung terá
essência, de sua constituição fora do curso do tempo. Pois se as sentido de quebra com o continuum da história, ruptura messiâ-
relações são temporais e nos afetam, assim como nos deixamos nica, emersão, salto para fora de um conjunto de acontecimentos,
afetar por aquilo que é externo,
quer dizer que somos responsá-
veis pela nossa própria constituição e também
pela constituição
61, BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 34.
40 47
Bruna de Oliveira Bortolini
Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
42 43
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
caráter temporal da relação entre homem e mundo, constitui-se, lorna-se temporal. Pois, para o autor, o dizer é temporal; a pala-
vra dita é nutrida pelo tempo e por ser assim, nem ao certo se é
portanto, segundo afirma Souza, em “pensamento contamina-
do pela temporalidade” “*, O que implica em entender que todo possível saber se aquilo que se pensa será dito do modo como
se pensa, nem ao menos se sequer será dito. Isto é, após o pen-
processo de conhecimento por estar intimamente vinculado ao
samento ser enunciado, ele tem que lidar com o que irá surgir
pensamento e também as experiências que o indivíduo faz ao
longo da vida, não se dá fora do tempo. Razão pela qual aquilo em decorrência do dizer, deixando, desse modo, seu estado de
paralisia. Segundo Souza, “exatamente aí se diferencia o Novo
que fazemos de objeto do conhecimento não pode ser tomado
do Antigo pensamento [...] o novo necessita do Outro” %. O dizer
apenas como “[mero conceito] da intelecção”* enquanto expres-
é sempre um dizer ao Outro, não um outro que simplesmente
são isolada e verdadeira da realidade, pois aquilo que tomamos
como objeto do conhecimento não se dá de forma desconexa e ouve, de forma passiva e sob o qual se deposita um amontoado
de conceitos e formas que julgamos lhe serem adequadas, mas
estática no mundo. Os fenômenos no mundo se dão em relação,
implicam-se mutuamente, acontecem no decorrer do tempo e aquele que também enuncia e pode discordar do que lhe foi dito.
não deixam de se transformar apenas porque o pensador em seu Porém não necessariamente em palavras. Isto retira a condição
de verdade absoluta que costumamos dar às significações e des-
pensamento fez uma imagem daquilo que conseguiu capturar
da realidade, paralisando-a de modo a poder analisá-la. Pois, se crições que fazemos do mundo, pois é próprio de cada sujeito
as coisas do mundo apenas se encaixam na percepção que temos uma percepção diferenciada do que é o real. Assim, estas mes-
sobre elas, então seriam somente aquilo que projetamos sobre a mas significações e descrições realizadas, ainda que passíveis de
realidade e nada mais, excluindo-se assim toda a possibilidade verdade, correspondem apenas a uma parte daquilo que é ou que
de Alteridade, do Outro e de diferentes maneiras de percepção ocorre de fato com os fenômenos no mundo, visto que ao serem
sobre aspectos do mundo. Mas de que forma então poderíamos permeados pela temporalidade, estão sujeitos a transformações,
inclusive nas múltiplas relações que estabelecem com que está o
64. SOUZA, R.T. Existência em decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Rosen-
66. SOUZA, R.T. Existência em decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Ro-
zweig, p. 113.
65. Ibidem, p. 121, senzweig, p. 122.
44 45
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
à sua volta. Frente a isto, Rosenzweig propõe um novo modo de interiormente visto. Incluindo a categoria de Experiência, que
exposição filosófica, ou seja, a narrativa. há tratada a seguir e que revela uma forte consciência crítica a
No lugar do método de pensar estabelecido por toda Iespeito da temporalidade, do tradicional modo de compreensão
dos fatos históricos e da “multiplicidade irredutível das ideias””º,
a filosofia anterior, se põe o método de falar. O
pensar
é atemporal e pretende sê-lo; de um só golpe
preten-
de abrir mil associações; o último, a meta, é
para ele
o primeiro. O falar é algo ligado ao tempo e alimen-
tado por ele; não pode e não quer abandonar este solo
que o nutre º,
O Novo Pensamento, nesse sentido, muito mais “expe-
riencial” do que “experimental”, não pretende ser a descrição de
essências e sua classificação dentro de um sistema, mas a narração
de encontros advindos desta multiplicidade de relações existentes.
Aspecto que revela não apenas uma forma de exposição de ideias
entre outras disponíveis, mas um “traço fundamental da experiên-
cia humana: sua constituição temporal” º. Inconclusa e
sempre
aberta a novas relações, acordos e trocas. Concepção que irá pro-
vocar um profundo abalo às bases da filosofia tradicional com seus
conceitos de “essência”, “totalidade”, “unidade” e “identidade”.
Desta forma, a influência recebida por Benjamin de Rosenzweig
vai muito além da construção de novos conceitos
para a filosofia.
Ela se refere a uma mudança na própria compreensão do sentido
de fazer filosofia que, segundo Souza, é “um sentido de “movi-
mento', muito mais do que a intuição intelectual ou apreensão
súbita de uma realidade em sua completude”, seja de forma
escrita ou simbólica. Desdobramento de uma postura filosófica
muito peculiar que Benjamin nos permite acompanhar em seus
escritos a partir de noções como o próprio conceito de origem
67. “En lugar del método del pensar, tal cual ha sido estabelecido
por toda la filosofía
anterior, hace su aparición el método del hablar. El pensamiento es atemporal y quiere
serlo; quiere anudar mil vínculos de un golpe; lo ultimo, la meta, es para é lo primero. El
hablar está ligado con el tiempo, se nutre del tiempo, no quiere ni puede abandoner su
suelo nutricio” (ROSENZWEIG, F. El nuevo pensamiento, p. 33)
68. PERIUS, O. Walter Benjamin: a filosofia como exercício,
Ad.
69. SOUZA, R.T. Existência em decisão: uma introdução ao
pensamento de Franz Ro- 70.
senzweig, p. 68. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 223.
46 47
SEGUNDA
PARTE
EXPERIÊNCIA
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
71. BENJAMIN, W. A Tarefa do Tradutor. In: BENJAMIN, W. Escritos sobre mito lin-
e
guagem, Trad. Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,
2011.
72. Ibidem, p. 114.
73. GAGNEBIN, J. M. Benjamin. In: PECORARO, P. (Org.) Os Filósofos Clássicos da
"t, GAGNEBIN, J. M. Benjamin, p. 49.
p.,
Filosofia — Vol. II. Rio de Janeiro: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009.
s1
50
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
52 53
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
volto ao passado”? porque essa atitude se mostra obviamente mui- pada com a questão da verdade em suas várias manifestações.
to mais cômoda do que frente aos erros ter de recomeçar. Uma experiência que aceita o erro e o utiliza como caminho
Em contraposição a isso, Benjamin, fortemente influen- para o aprendizado, para novas tentativas e descobertas. Pois “[...]
ciado pela obra Assim falou Zaratustra” de Nietzsche, propõe ou- para o que busca a verdade o erro não é mais que uma ajuda para
tro tipo de experiência, isto é, o indivíduo, motivado por um ethos, encontrá-la”*, Diferentemente do sermão caduco daqueles
que
deveria opor-se ao espírito “adulto”, mantendo-se jovem mesmo desistiram de tentar.
com a chegada da idade. Para que com isso venha a alcançar uma Apesar das críticas realizadas à categoria de Experiên-
cia, Benjamin não deixa de considerá-la um saber útil. Porém,
qualidade de experiência diferente daquela tida, por Benjamin,
ressalta ao final de seu texto que a Experiência para assumir este
como “constrangedora”. Conforme expõe:
caráter benéfico de utilidade para vida, precisa ser compreendi-
Por outro lado, nós conhecemos outra experiência que
da de maneira diversa da forma como era até então concebida.
pode chegar a ser hostil ao espírito e aniquilar muitos
sonhos em florescimento. Não obstante, é a mais bela, Acredita-se que isso levará o autor, anos depois, a elaborar uma
inatingível e imediata, que jamais chega a perder o es- nova crítica à categoria de Experiência, mas desta vez de forma
pírito com o qual nos mantemos jovens. Como dizia mais profunda por meio de uma crítica epistemológica esboçada
Zaratustra ao final de sua peregrinação, um só experi- inicialmente em seu texto O programa de uma filosofia futura*,
mentou a si mesmo. O filisteu constrói sua <<experiên- de 1918. Mas, por ora, ainda não entraremos neste assunto. O
cia>> e se converte em pura inespiritualidade. O jovem
viverá o espírito e quanto maior for o esforço com que que interessa no momento é desenvolver um pouco mais essa
alcança a grandeza, tanto mais encontrará o espírito noção de Experiência, enquanto Erfahrung, a qual Benjamin em
ao longo de sua peregrinação por entre os homens. O seus jovens estudos acusa de “falsa autoridade”. Veremos que a
jovem será, sem dúvida, um homem indulgente. O fi- partir de textos posteriores ao publicado na revista Der Anfang,
listeu é intolerante”. Benjamin começa a introduzir a categoria de Experiência em
Por mais que Benjamin não defina em seu texto exa- sua filosofia de forma menos agressiva. Ele a transforma numa
tamente que experiência diferente seria esta, se pode pressupor, categoria filosófica que não carrega mais o peso de um caráter
dada a citação acima, uma experiência inconformada e preocu- prepotente, o qual lhe era atribuído anteriormente, mas incor-
pora certos elementos que julga serem essenciais a ela e que a
lornam fonte de conhecimento e verdade. Desta forma, questio-
79. “[...] qué sólo mantienen relaciones internas com lo rutinario, con lo eternamente na-se: que elementos são estes que atrelados à categoria de Expe-
vuelto al passado” (BENJAMIN, W. Experiência, p. 94) riência lhe conferem validade e teor filosófico? E de
80. NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Ber- que forma
à noção de Experiência irá contribuir para a compreensão do
trand Brasil, 1989.
81. “Por otro lado, nosotros conocemos otra experiencia que puede llegar a ser hostil al contexto vivido por Walter Benjamin e suas transformações? Para
espíritu y aniquilar muchos sueõos en flor. No obstante, es la más bella, intangible e in- responder essas questões parece inevitável a compreensão inicial
mediata, ya que jamás llega a perder el espíritu con tal de que nos mantengamos jóvenes. da Experiência em sua relação com a ideia de tradição.
Como decía Zaratustra al final de su peregrinación, uno sólo se experimenta a sí mismo,
El filisteo construye su «experiencia» y se convierte en pura inespiritualidad, El joven
vivirá el espíritu, y cuanto mayor sea el esfuerzo con que alcanza la grandeza, tanto mas
encontrará el espíritu a lo largo de su peregrinación por entre los hombres. El joven será,
52.
el
“[..] para el que busca la verdad error no es más que una ayuda para encontrarla
(Spinoza)”, (BENJAMIN, W, Experiência, p. 95).
sin duda, un hombre indulgente. El filisteo es intolerante”. (BENJAMIN, W. Experiên-
53. BENJAMIN, W, Sobre el Programa de la Filosofia
cia, p. 96). Futura, 1986.
55
54
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
56 5
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
58 5º
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
O narrador narra histórias a partir de suas próprias ex- vel quando existe tempo tanto para compor quanto para narrar
periências, ou também daquelas relatadas pelos outros e com isso e escutar. Não somente uma única vez, mas várias, até o mo-
tem a capacidade de incorporar às coisas narradas a experiência mento em que o próprio indivíduo que ouve também adquira
de seus ouvintes. Algo que valha a
pena ser passado adiante. À “espontaneamente o dom de narrá-las”** e assim por diante. Pois
narrativa, ao comunicar uma história, não está interessada em conforme Benjamin, “contar uma história sempre foi a arte de
explicá-la. Ela não força a nada o seu leitor ou ouvinte, deixando contá-las de novo””, Nesse sentido, a narrativa é composta quase
a interpretação da história contada livre, podendo-se atribuir a que artesanalmente, remete à ideia de um trabalho manual, des-
ela o sentido que bem entender. Desta forma, de a coleta dos dados até o momento de sua interpretação e expo-
atinge uma ampli-
tude incomensurável e pode permanecer no tempo sem sição, seja de forma oral ou escrita. Motivo pelo qual a narrativa
prazo
determinado. E, justamente por isso, não necessariamente tem “não está interessada em transmitir o puro em si
da coisa narrada,
de ser nova, uma de suas características é nunca
esgotar-se. Pois como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na
de acordo com Benjamin, “ela conserva suas forças e depois de vida do narrador para em seguida retirá-la dele", Isto significa
muito tempo ainda é capaz de desdobramentos”*. Aqui de for- que aquele que narra, mesmo que não seja o autor original da
ma bastante clara, pelo viés da narrativa, vemos novamente a história, deixa, inevitavelmente, sua marca nas coisas narradas,
relação de Benjamin com a filosofia de Rosenzweig, ao nos lem- “como a mão de oleiro na argila do vaso”"º!, Desta forma, a his-
brar do caráter temporal da realidade que não se deixa abarcar tória que hoje se conta sobre a humanidade é a mesma história
em sua plenitude por meio de conceitos e explicações totalizan- de nossos antepassados, que já foi e continua sendo tecida por
tes, uma vez que o dizer acontece sempre no tempo e não fora muitas mãos. Esse tecer coletivo é o que atribui à história caráter
dele, do mesmo modo que o próprio viver. Assim, a Experiência plural, retirando dela toda a ideia de neutralidade. Pois a história
humana para constituir-se depende da temporalidade e muitas não é um amontoado de coisas, de produtos prontos empilhados
vezes do estar distraído, dado que o processo de assimilação dos em prateleiras, mas a conexão entre todos os fios, a costura que
acontecimentos vividos liga uma parte à outra. Pensamento materialista que Benjamin,
[...] se dá em camadas muito profundas e exige um es-
posteriormente, irá desenvolver também em suas teses Sobre o
tado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o conceito de história”.
sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o Contudo, investigar a narrativa em Benjamin é também
ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é pássa- realizar um estudo a respeito de como os indivíduos constroem
ro onírico que choca os ovos da experiência. O menor sua identidade. Pois a identidade, segundo Gagnebin, não deixa
sussurro nas folhagens o assusta. [...] Quanto mais o de ser “a construção de uma narrativa sobre si mesmo — como
ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente
se agrava nele o que é ouvido”. conseguem, portanto, se lembrar de sua(s) história(s) e transmi-
Aqui se pode perceber outra característica que torna
a comunicabilidade de experiências um objeto da tradição, isto 98. BENJAMIN, W. O Narrador, p. 221.
é, a disposição para ouvir uma história. À narrativa só é possí- 99, Idem.
100. Idem.
101. Idem.
96. BENJAMIN, W. O Narrador, p. 220. 102. BENJAMIN, W,. Sobre o conceito da história. In: BENJAMIN, W. O anjo da histó-
97. Ibidem, p. 221. ria. — 2º ed. — Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
61
60
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
62 63
—
Bruna de Oliveira Bortolini
Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
narrativa, a qual é capaz de transmitir Combray, onde, afinal, havia transcorrido uma parte
experiências ou acontecimentos de geração em de sua infância. Até aquela tarde, em que o sabor da
geração, Entre-
tanto, é importante ressaltar que esse “lembrar” madeleine (espécie de bolo pequeno) o houvesse trans-
benjaminiano portado de volta aos velhos tempos".
não se refere simplesmente a uma categoria dada
por via da cons-
ciência, sujeita à tutela do intelecto. Esse remernorar é À memória, no sentido trabalhado tanto por Benjamin
está muito mais vinculado a outro e
uma noção de imagens mnêmicas quanto por Proust, possui, então, um caráter que é também tem-
Isto é, que não dependem de
um esforço mental para serem aces! poral e acima de tudo ocioso. Portanto, a concepção de memória
sadas que vêm à involuntária nasce em oposição à noção de memória voluntária,
e memória, muitas vezes, até contra a vontade
do sujeito, o qual se pudesse da mesma forma como o lembrar espontâneo se opõe ao lembrar
optar, escolheria talvez nunca lem-
brar-se delas ou ser afetado aprendido em Bergson. A memória voluntária é aquela evocada
por elas. Esta forma de “lembrar”
em Benjamin, está muito próxima daquilo que Proust influen- pelo sujeito consciente através de rigorosos métodos e esquemati-
ciado pelos conceitos de lembrar zações. É uma atividade de lembrar diferente da primeira, pois en-
espontâneo!" ou memória pura
volve o intelecto, quer dizer, é uma ação controlada na maior par-
o
109. BENJAMIN, W., À imagem de Proust. In: BENJAMIN, W,
À
64 65
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
e
Tais energias apontadas por Freud podem ser eneudis
ciências e na própria filosofia. O
sujeito lembra das como choques. Esses choques advindos de estímulos
para
para explicar, apontar e determinar conteúdos, fatos,
poder falar,
situações, são, então, barrados pelo consciente, o que previne o indivíduo
“e
e
etc. Portanto, essas duas categorias do lembrar de acidentes traumáticos. O trauma, segundo a teoria
se diferenciam na psicant-
medida em que são
capazes de proporcionar sensações diferentes lítica de Freud!"6, seria exatamente o rompimento da proteção
e também pelo modo
como são acionadas. Enquanto uma de- contra o estímulo: Porém, com o consciente desperto, o choque é
pende do hábito, de atividades rotineiras, exercícios recebido e amortecido. O evento ocorrido
constantes de seria então
oO
memorização, a outra depende única e exclusivamente do
embora ambas possam vir a se entrecruzar
ções. Como, por exemplo, quando o sujeito
acaso,
em determinadas situa-
do “ao acervo das lembranças conscientes”"", adquirindo
de utilidade prática, pois passa por uma reflexão.
—
SS
ao buscar se lembrar xão, provavelmente o incidente ocorrido, ao e se &
de algo específico, depara-se
com recordações que não foram ini-
cialmente desejadas, o que revela também
um conteúdo controlado, tornar-se-ia um sobressalto “agra. áve -
certa contradição. ou na maioria das vezes desagradável”, uma lembrança
pon
Contudo, segundo Benjamin, na busca
ção mais concreta do conceito de memória voluntária
por uma defini- nea despertada por um acontecimento não programado, que
a
ae
o
Eo o
desenhado la o sujeito e que não pode ser controlada, Portanto, a
por Proust, com base nas teorias de Bergson, “é aconselhável voluntária é essa suscetível à consciência do sujeito e ainvo
a
se
reportar a Freud”"""?, De acordo com Benjamin, Freud ria é aquela sujeita a fatores externos e
ensaio Além do Princípio do
em seu PRADO
Prazer"!, estabelece uma correla- a possibilidade disto ocorrer ou não ao longo da vida,
ção entre memória (memória involuntária) e
como exposto anteriormente, da sorte. Daí o fato da
-
o consciente. Deste
modo, para que algo possa chegar a se tornar lidade da experiência, em muitos casos, dar-se em situações
um componente
da memória involuntária, é =.
preciso que não tenha passado pelo
consciente, que não tenha sido “vivenciado” conscientemente.
tes como a morte, pois são essas situações que despertam mas
temente à memória as lembranças e a necessidade de narrá-las. o
Pois, segundo Freud, o consciente não teria
a tarefa de registrar
traços mnemônicos. Na verdade, sua função é
outra. À ele cabe
agir como proteção contra estímulos, Conforme
Freud:
A proteção contra os estímulos
é, Para os organismos vi-
vos, uma função quase mais importante do
que a recep-
ção deles. O escudo protetor é suprido com
seu próprio
estoque de energia e deve, acima de tudo, esforçar-se
por preservar os modos especiais de transformação de
energia que nele operam, contra os efeitos ameaçado-
res das enormes energias em ação no mundo
externo,
efeitos que tendem
para o nivelamento deles e, assim,
para a destruição",
66 67
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
Ritos de Passagens” ou “Limiar”, os quais se dão O limiar, portanto, apesar de corresponder à separação,
geralmente em
cerimônias ligadas não somente à morte, mas também também significa transpasso, ou seja, possibilidade de transpor
ao nasci-
mento, ao casamento, à puberdade e ao sonho. Todos barreiras e não apenas de estabelecer um limite. Assemelha-se
estes rituais
possuem elementos em comum como a mudança, a trausição, muito à função de uma ponte, aquele lugar entre duas possibili-
a
passagem de um lugar ao outro, o fluxo. No entanto Rena dades que ao invés de apenas conter-nos, também nos incentiva
para
min, antes de qualquer reflexão a respeito dos sentidos
que = ao movimento. Em A comunidade que vem!”?º, Agamben aborda
samos atribuir a esse conceito de limiar (Schwelle), é interesante essa questão através da ideia de fora (no original italiano, fuori,
|
distingui-lo da ideia de fronteira (Grenze).
algo exterior que também pode ser compreendido como soleira
TFronteira segundo Gagnebin, no vocabulário ou porta), e assim como em Benjamin, e certamente influencia-
— também filosófico
clássico correspondente à palavra limite. Significa esta- do por ele, afirma que o “fora não é outro lugar situado para além
STE RR ERR
aoao
de um espaço determinado, mas é a passagem, a exterioridade
um “traço” em torno de algo
us espaços, delimitar seu
campo que lhe dá acesso”,
e evitar
que esse algo, por assim dizer, se derrame sobre Outra característica da palavra limiar está em seu termo
ção
suas bordas em direção a um infinito alemão Schwelle que, conforme Gagnebin corresponde
onipotente”!?º, É também , original
68 69
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
E
ao verbo sclnwellen, o qual pode ser traduzido
como “inchar, dila- para que se possa realizar a “passagem” de forma veloz,
tar, inflar, intumescer, crescer”!?, Para a quae qe
jamin, de uma etimologia fantasiosa, mas
do interessante, quando
autora trata-se, em Ben-
que assume um senti-
num piscar de olhos — da mesma forma “como
programa de televisão ao outro com um mero toque na tecla =
exposta no caderno benjaminiano sobre “controle remoto”, Sendo essa uma das mais importantes pro o
a prostituição e o jogo, sendo
associada ao processo de excitação blemáticas levantadas por Benjamin a respeito da modernidade.
Aa
sexual. Ali o termo corresponde a A pobreza de experiências enquanto Erfahrung e seus
uma Zona, nem sempre bem
definida, que lembra “fluxos e contra fluxos, no modo como os indivíduos passam a perceber e se relacionar
viagens e desejos”!%,
Conforme o que expõe Benjamin,
com o mundo após o seu declínio, como exposto a seguir.
[-..] as variações das figuras do
sonho, oscilam também
em torno de limiares os altos e baixos da
conversação
e as mudanças sexuais do
amor. “Como agrada ao ho-
mem, diz Aragon, manter-se na soleira da imaginação”
(no limiar das portas da imaginação)
[Paysan de Paris,
1926, Paris, Pp. 74]. Não é
apenas dos limiares destas
portas fantásticas, mas dos limiares em geral
que os
amantes, os amigos, adoram sugar as forças. Às prosti-
tutas, porém, amam os limiares das
portas do sonho!%,
Esses “momentos limiares”
são, para Benjamin, deter-
minantes à transmissão de
experiências, pois estão intimamente
ligados a uma categoria temporal
que permite o processo de re-
memoração e sua comunicação. Entretanto, com o advento da
modernidade, em particular com a era capitalista,
o tempo pa-
rece ter encolhido, se abreviado, isto conforme a famosa
frase de Benjamin Franklin, porque,
“tempo é dinheiro”. Gastar
com atividades que não visam o lucro é agir contra todo tempo
do capital. Motivo pelo qual um ethos
Benjamin afirma que na vida mo-
derna, as transições tornaram-se “cada vez mais
irreconhecíveis
e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos
muito pobres em experiên-
cias limiares. O adormecer seja talvez
a única delas que nos res-
tou”!””, Nesse período, o ideal é
que os momentos de transição
sejam abreviados ao máximo ou, se possível, até
mesmo anulados
70 7
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
2.6 que exigem respostas imediatas, não havendo tempo para con-
templação ou reflexão dos acontecimentos, conforme ocorria nas
MODERNIDADE sociedades artesanais. Neste contexto, as ações se tornam cada vez
E O DECLÍNIO DA mais mecânicas em função de obrigações da vida diária e o indi-
víduo é levado a uma espécie de amortecimento ou conformismo
EXPERIÊNCIA acerca dos fatos da vida em função de seu constante agir comba-
tivo. Num conto de Edgar Allan Poe, O Homem da Multidão”,
Benjamin irá identificar esse comportamento como aquele em
À
modernidade, portanto, com suas revoluções indus-
m e técnicas,
triais que todos parecem agir por força do hábito, submersos em suas
que afetam em vários âmbitos a vida cotidiana vivências particulares. Condicionamento que se deve não somen-
faz a ideia de tradição e todo o contexto vital
para comunicação te, mas em boa parte, ao desenvolvimento da técnica. Com os
de experiências perderem sua autoridade, vindo
posteriormente sofisticados desenvolvimentos técnicos, muitos benefícios foram
a atrofiarem-se, inclusive a narrativa,
as “experiências limiares” proporcionados ao homem, inclusive melhorias na aparelhagem
e até mesmo o valor das memórias
involuntárias, por fazer com de trabalho, como exposto no primeiro capítulo. Porém, de outro
que esses elementos pareçam desatualizados e sem utilidade para lado o individuo, principalmente o trabalhador industrial, foi re-
a vida prática. Um verdadeiro peso em relação à promessa de baixado a ocupações estritamente mecânicas, a um trabalho auto-
liberdade” que o período moderno fomenta sob o véu da matizado. E, assim, como se já não bastasse o ritmo acelerado da
novi-
dade. O resultado dessa
contração é, segundo Gagnebin, “um vida nas grandes cidades que uniformiza as ações dos indivíduos,
embotamento drástico da percepção dos ritmos diferenciados de há também o seu adestramento no interior das fábricas. Fator que
transição, tanto do ponto de vista sensorial como no que diz res- faz com que os homens não busquem mais fazer experiências
peito à experiência espiritual e intelectual”!?, Situação
ba concedendo espaço a outras formas de vivenciar
os
que aca-
fatos com-
em seu sentido originário, na verdade, o que querem é
libertar-se
delas, pois já se encontram fatigados pelas infinitas complicações
preender e contar uma história ou relatar um acontecimento.
que tem de enfrentar no seu dia a dia, tomando o objetivo da vida
72 73
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
74 75
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
experiências, diferentemente do que ocorria antes, não podiam de decadência tem seu primeiro indício, que irá culminar no de-
ser contadas na forma de relatos, isto é, relatos que contivessem saparecimento da narrativa, com o surgimento da imprensa.
alguma orientação prática, alguma sabedoria que pudesse ser À imprensa, além de caracterizar-se pelo aperfeiçoa-
transmitida de geração em geração. Porque, conforme Benjamin, mento de estratégias midiáticas, é também umdos sintomas que
[...] nunca houve experiências mais radicalmente des- confirmam e antecedem a posterior dominação do indivíduo
mentidas que a experiência estratégica pela
guerra das
pela máquina. Ela é indício das primeiras transformações que
trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a ex-
periência do corpo pela fome, a experiência moral pelos
ocorrem com a revolução da indústria e da técnica. Isto porque
permite o nascimento de novas formas de comunicação entre
governantes. Uma geração que ainda fora à escola num indivíduos que irão substituir a narrativa, como é o caso do ro-
bonde puxado por cavalos viu-se sem teto, numa paisa-
gem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo
mance e de forma mais contundente, da informação jornalística.
centro, num campo de forças de correntes e explosões Que segundo o que afirma Castro, “além de ser um fenômeno
destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo huma- de grande importância cultural e histórica, caracteriza a predo-
no. minância de um determinado tipo de abordagem dos aconteci-
ÀPrimeira Guerra Mundial não contém nenhum mentos”!*!, ou seja, “noticiar os fatos em primeira mão, de modo
aprendizado que possa ser narrado como eram narradas as his- direto e eficiente, para um público cada vez mais numeroso [...]
tórias de antigamente, até mesmo aquelas sobre as propósito [que] realiza-se seguindo a tendência a acompanhar
guerras antes notícias “ao vivo”, imediatamente enquanto estão ocorrendo”
ocorridas e que fazem parte da cultura
!*,
138.
139.
BENJAMIN, W. O narrador,
CASTRO, P. S. V.
pp 2l
Caminho principal e caminhos secundários: sobre o pensamento
141. CASTRO, P. S. V. Caminho principal
estético de Walter Benjamin, p. 51.
e caminhos secundários: sobre o pensamento
estético de Walter Benjamin. ed. — São Paulo: Grupo Editorial Cone Sul, 2001.
1 142, Idem.
p. 51.
—
76 TI
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
romance"!“, A informação baseada no princípio da novidade e permite sequer que as experiências se constituam enquanto tal,
da concisão é o material perfeito
para uma época onde o tem- muito menos favorece a sua transmissão. Ficamos pobres de ex-
po tornou-se escasso. Sua diferença em relação à narrativa e ao periências, afirma Benjamin. “Uma forma completamente nova
romance é que ela aspira essa tal “verificabilidade imediata”!*, de miséria recaiu sobre os homens” "** dado que os fatos recebidos
Quer dizer, nem sempre aquilo que a notícia informa pode ser
considerado mais exato do que aquilo que narravam os antigos
pela notícia jornalística, numa velocidade que impedem
de reflexão, são impossíveis de serem incorporados a uma
esfor-
rede
o
ço
viajantes ou os camponeses sedentários. Porém, ela funciona de referências válidas que favoreça descobertas pessoais ou a uma
pelo simples fato de soar plausível, o que por si só já é incompa- nova compreensão de mundo.
tível com o espírito da narrativa, a qual na maior
parte das vezes Desta maneira, em meio à constante modernização so-
tende a recorrer ao miraculoso. Fato que no alto do capitalismo cial e racionalização das atividades humanas, o aspecto cognitivo
terá importância enorme, pois gera uma economia de da percepção, na modernidade, parece ganhar ênfase. O indiví-
tempo que
será direcionada para o trabalho. E assim, segundo o autor, duo em constante estado de alerta, pronto para o próximo co-
[.-.] a cada manhã recebemos notícias de todo mundo.
mando, tem sua percepção disciplinada através de exercícios me-
E, no entanto, somos pobres em histórias surpreenden- cânicos. Acostumando-se “cada vez mais a ver estrategicamente o
tes. À razão para tal é que todos os fatos já nos chegam mundo como conexão calculável de causas e efeitos”!*, À única
impregnados de explicações. Em outras palavras: quase experiência, agora possível, parece ser o experimento científico,
nada do que acontece é favorável à narrativa, e o qual, sob uma rigorosa série de procedimentos, é capaz de ofe-
quase
tudo beneficia informação".
a
recer ao indivíduo moderno elementos que permitam ordenar e
Porém, é interessante observar que a informação só é classificar tudo aquilo que lhe é externo e que sob a ótica do pro-
relevante enquanto for nova. Daí outra característica gresso deve ser controlado, identificado e determinado.
que a dife-
rencia das narrativas, uma vez que as narrativas alimentavam-se
de conteúdos duráveis, da experiência da vida vivida agregada a
acontecimentos externos e experiências alheias. À informação,
por sua vez, padece com o
passar do tempo, pois ela só vive no
momento presente, “ela precisa entregar-se inteiramente a ele e
sem perda de tempo tem que se explicar nele”"*”, Isso porque não
estabelece nenhum tipo de comunicabilidade com informação
que virá no momento seguinte. As notícias são sempre isoladas e
a
velozes, assim como os indivíduos e a correria da vida nas
gran-
des cidades. Por esta razão, é possível afirmar
que a informação
é contrária à formação de experiências na medida em que não
78 7
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
DA EXPERIÊNCIA
que inclui também
O ensaio
a
retomada da categoria de Experiência.
sobre O programa de uma filosofia futura, não
publicado em vida pelo filósofo, expõe a crítica de Walter Benja-
AO EXPERIMENTO min à filosofia de Kant e aos neo-kantianos. Este ensaio é origina-
do a partir de diálogos com o amigo Gershon Scholem, como é
A categoria de Experiência no pensamento de Benja- possível constatar a partir da própria afirmação feita por Scholem:
min, desde a publicação do autor sobre o respectivo tema na re- Uma carta de Dora, endereçada a mim em 7 de dezem-
vista Der Anfang, passa, como visto, por uma evolução. Deixa de bro, revelou que Benjamin escreveu seu trabalho Uber
ser concebido como saber amargurado e intimidador e torna-se das Programm der kommenden Philosophie [“Do Pro-
grama da Filosofia do Futuro”], em novembro de 1917,
uma categoria filosófica vinculada a uma forma de conhecimen-
to que não opera de maneira causal. Isso inevitavelmente opõe o
seguindo as ideias contidas numa carta (publicada) que
me enviara a 22 de outubro“,
autor à tradição filosófica moderna em sua vertente mais decisiva,
a de fundamentação do conhecimento científico. Porém, Aborda, além de estudos judaicos, o modo como os neo-
como -kantianos compreendiam a categoria de Experiência. E sabido
é sua característica fazer filosofia
por desvios, Benjamin não irá que Walter Benjamin, na construção de seu pensamento, foi for-
desanimar quando a categoria de Experiência (no seu sentido tra-
dicional), frente à poderosa crença moderna na ideia de progres- temente influenciado pelas ideias kantianas, as quais nem sem-
so, encontrar o seu declínio. Em sua tese sobre o drama barroco pre eram concebidas de modo positivo pelo autor, em específico
alemão, o autor parece retomar uma antiga discussão levantada aquelas apreendidas na escola de Marburg e vinculadas à concep-
anos antes em seus escritos de juventude a respeito dos usos ins- ção de seu líder Hermann Cohen, a respeito da experiência ao
trumentais da experiência pelo pensamento filosófico iluminista. modelo positivista, ou seja, fundamentada no padrão matemático
€ nas ciências naturais. Porém, mesmo que Benjamin entrasse em
Essa discussão que Benjamin irá trazer à tona sob um novo con-
discordância com o pensamento de Kant, possuía grande respeito
texto, tem como ponto central a crítica ao gesto dominador do
sujeito que acredita poder conhecer a realidade apenas segundo pelo mesmo, nunca desconsiderando em si suas ideias, mas ten-
tando a partir delas buscar novas perspectivas à própria filosofia.
suas categorias subjetivas, ao mesmo tempo em que propõe uma
Assim, a partir de leituras realizadas em torno das obras
nova e desafiadora tarefa à filosofia e aos próprios filósofos se estes
de Kant, Benjamin faz um estudo sobre a teoria do conhecimento
quiserem continuar ainda existindo. Pois, segundo Walter Benja-
e sobre a categoria de Experiência em seu sentido epistemológi-
min, a crença filosófica positivista de uma razão soberana capaz
de determinar as coisas do mundo apresenta alguns problemas, os co, apontando suas limitações e a necessidade de reformulações.
quais, se não observados, levam ao risco de a filosofia encerrar-se Porque segundo ele, para Kant, a única experiência considerada
válida parece ser aquela atrelada a uma concepção lógica e instru-
emsi mesma. Assim, para melhor entender esta crítica, faz-se ne-
mental, vinculada ao conhecimento científico. Uma “experiência
cessário voltar aos estudos de juventude de Benjamin, em especí-
fico ao texto O programa de uma filosofia futura,
para daí coletar
elementos que possam esclarecer a ideia do autor a respeito de
150. SCHOLEM, G. Walter Benjamin: história de uma amizade, p, 57.
81
80
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
singular temporalmente limitada”"*! que na visão de Benjamin, Dúvida não há de que todo o nosso conhecimento
apesar de não estar incorreta, aborda a categoria de Experiência principia pela experiência. Sem dúvida, que outro
de forma superficial, desconsiderando outras motivo poderia despertar e pôr em ação a nossa ca-
possibilidades de pacidade de conhecer senão as coisas que afetam os
entendimento que estão vinculadas a ela, que não seu mero uso sentidos e que, de um lado, por si mesmas dão origens
como meio para aquisição de saberes. Porém, antes de investigar- a representações e, de outro lado, movimentam nossa
mos essa crítica de Benjamin à teoria kantiana e faculdade intelectual e levam-na a compará-las, liga-las
suas reformula-
ções, é necessário oferecer um maior esclarecimento, mesmo ou separá-las, transformando então a ideia bruta das
que impressões sensíveis num conhecimento que se deno-
breve, a respeito das próprias ideias de Kant sobre o tema.
mina experiência? Dessa forma, na ordem do tempo,
Kant, na Crítica da Razão Pura"? e especialmente nos nenhum conhecimento precede em nós a experiência
Prolegômenos!*, que surgem como solução para algumas obscu- e é com esta que todo o conhecimento se principia"*,
ridades presentes na própria Crítica da Razão Pura, realiza
um Porém, para Kant essas experiências só são possíveis
estudo a respeito daquilo que considera serem as “condições de
possibilidades do conhecimento”. O autor, em resposta a estudos a
quando colocadas em duas formas priori: espaço e tempo. Para
ele nada pode ser conhecido fora dessas duas esferas. Na teoria de
que lhe são anteriores, realiza uma abordagem que considera ra-
zão e experiência como dois elementos chaves Kant, tais esferas são anteriores às faculdades do sujeito cognos-
para a construção cente e só se dão para o sujeito. Elas não podem ser concebidas
do conhecimento. Isto
quer dizer que ele não acredita que so-
mente a razão ou a experiência isoladas em suas particularidades sem a percepção do sujeito, pois é ele que ao realizar o esforço
de conhecer algo, determina a experiência colocando o objeto
possam nos oferecer a verdade sobre os objetos e fenômenos do
mundo. Pelo contrário, Kant é um filósofo que se de seu saber numa estrutura de espaço (local do objeto) e tempo
preocupa com (percepção interna do sujeito em relação ao objeto).
a questão da justificação de um conhecimento
que possa integrar Nesse ponto é importante ressaltar que ao dizer que
:
82 83
—
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
leitor d
cartes Ka posible” (BENJAMIN, W. Sobre el Programa de la Filosofia Futura, p. 8).
158. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, p. 20.
159, Ibidem, p. 20.
84 85
Bruna de Oliveira Bortolini
A perda da Experiência relaciona-se, como visto nos do indivíduo, temporal e múltipla, que também carrega em si
capítulos anteriores, diretamente às mudanças ocorridas no fi- orientações para a vida prática, as quais podem ser
transmitidas
nal do século XIX. Nesse contexto, o advento da modernidade de geração em geração sob a afirmação de que tais experiências
e a preponderância de uma visão científica do mundo seriam
os por serem subjetivas e, portanto, de menor valor à ciência, não
principais responsáveis por sua destruição se juntamente a eles poderiam contribuir para a construção de conhecimentos. As-
não estivesse vinculada a guerra. Pois foi a guerra que fez com pecto que demarca, então, a principal discordância de Benjamin
que os combatentes voltassem “silenciosos do campo de batalha. em relação à filosofia de Kant, pois essa postura de pensamento
Mais pobres em experiências comunicáveis e não mais ricos”!ó!, que reduz a Experiência ao experimento, apesar de admirável
Porém, hoje se sabe que “para a destruição da experiência, uma pela vontade de oferecer à humanidade bases seguras para fundar
catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica exis- conhecimentos, desconsidera aspectos preciosíssimos à reflexão
tência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeita- filosófica. Um deles é o fato de que a própria experiência religio-
mente suficiente”!º, Em nosso dia-a-dia tornou-se impossível rea- sa, segundo afirma Mate!%, foi por muito tempo guardiã de um
lizar experiências no sentido tradicional do termo e a autoridade conjunto de experiências humanas, “tanto as cotidianas quanto
para a elaboração de novos conhecimentos, antes nelas apoiadas, as extrernas”!*, e desconsiderá-la dessa maneira, como se não ti-
restringiu-se ao universo das ciências. Experiência tornou-se ex- vesse mais nada a oferecer, significa ignorar boa parte da vida do
perimento e, por mais que ainda se fale numa tal “experiência de homem no mundo que é posta em linguagem.
vida”, pertencente principalmente aos mais velhos, muito pouco Contudo, é indispensável frisar que essa crença de uma
ou nenhuma autoridade a ela se atribui, pois também se perdeu experiência legítima apenas enquanto experimento científico
a habilidade de interpretá-la. não se restringiu a Kant, mas, como exposto ainda no segundo
Essa visão científica de mundo que reduz Experiência capítulo, era própria da consciência iluminista predominante na
ao experimento, Walter Benjamin, como exposto no final do se- época do autor e que ganhou tal
caráter pelas interpretações rea-
gundo capítulo, já criticava em seu texto não publicado em vida lizadas de sua filosofia pela escola de Marburg. Deste modo, por
sobre a filosofia futura. Pode-se dizer que o autor, mesmo sem mais que a redução de toda Experiência ao campo do experimen-
saber dos eventos que acarretariam na total destruição da to científico em alguns aspectos tenha sido um desenvolvimento
expe-
riência, questionava anos antes os usos limitados que a ela eram das ideias de Kant, segundo Benjamin, ela “nunca foi desejada
atribuídos. E para isso, nesse texto, toma Kant como seu prin- por esse com semelhante exclusividade”!º, embora Kant não es-
cipal interlocutor, afirmando que ao priorizar uma experiência tivesse atento ao fato de que “todo conhecimento filosófico tem
empírica, sensível, limitada no tempo e no espaço, Kant descon- sua única expressão na linguagem”'é,
siderou o caráter linguístico da própria experiência. Atitude que
para o nosso autor empobrece o discurso filosófico, pois elimina
toda e qualquer experiência espiritual, histórica e até mesmo re-
ligiosa. Exclui do âmbito do conhecimento a experiência plena
163. MATE, R. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “Sobre
o Conceito de História”. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2011.
164. Ibidem, p. 67.
161. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 124
165. BENJAMIN, W. La Metafísica de la juventud, p. 13.
162. AGABEN, G. Infância e História: destruição da experiência e origem
Trad, Henrique Burigo. Minas Gerais: Editora UFMG, 2005.
da história.
166. Ibidem, p. 16
p. 21.
Ss
90
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
Nessa linha de pensamento, então, a experiência é de forma breve e para o seu melhor entendimento, alguns pontos
reduzida “ao ponto zero, a um mínimo de significado”, Toda importantes a respeito da filosofia da linguagem benjaminiana
experiência que não pudesse ser traduzida em termos científicos presente no ensaio Sobre a linguagem em geral e sobre a lingua
era excluída do campo da razão, logo, da própria filosofia. O
que gem humana, de 1916. Texto que, como foi apontado no primeiro
leva Benjamin a propor uma compreensão da categoria de
Expe- capítulo, recebeu influência direta da filosofia de Franz Rosezn-
riência em termos transcendentais, isto é, afirmar weig, principalmente por tratar a questão do humano não como
que somente
“um conceito de experiência, alcançado na reflexão sobre um fantoche nas mãos de algo que lhe é superior, mas como ser
sua es-
sência linguística, permitirá elaborar um conceito de
experiência que participa do ato divino da criação de forma complementar.
[...], [capaz de] abarcar regiões cuja sistematização efetiva Kant
não alcançou”", pois, para o filósofo, é na linguagem
que se dá
o encontro do homem com o mundo e, portanto, a constituição
da própria noção de experiência. Reduzi-la ao
campo do experi-
mento significaria eliminar outras qualidades da experiência tão
importantes quanto aquela para a construção de conhecimentos.
Razão pela qual, o interesse do autor
por uma forma ampliada
da concepção do termo está em validar uma vasta diversidade
de experiências, todas igualmente verdadeiras, e
que nada mais
nada menos representam a “uniforme e contínua multiplicidade
do conhecimento”!
Assim, a proposta de Benjamin para recuperar essa di-
versidade de experiências mostrando o quanto elas são importan-
tes ao fazer filosófico depende, desse modo, de uma reformula-
ção da própria ideia de filosofia. Para que a experiência possa em
seu sentido pleno tornar-se uma categoria filosófica, a filosofia é
quem deve primeiro se repensar. Ao invés de dedicar-se apenas à
busca de métodos ou modelos de demonstração conceitual
capa-
zes de orientar o conhecimento acerca da realidade, deve voltar-
se ao exercício de apresentação da verdade, redefinindo o objeto
de sua reflexão. Atitude que acaba
por ampliar o campo de acesso
da filosofia a determinadas realidades
que pela via conceitual ela
não conseguiria chegar. Entretanto, antes de adentrarmos nessa
questão da “apresentação”, é necessário investigar, mesmo que
92 93
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
95
94
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
dade de expressão na linguagem lacionar-se com elas, saber interpretá-las, tentar dizê-las, expressá-
que se alcança algum conheci-
mento sobre as coisas. las, mesmo ciente de que elas não se dão totalmente à expressão.
Na relação, portanto, as coisas aos Por isso, para o filósofo, a linguagem humana participa
poucos vão revelan-
do o seu sentido, o que permite conhecê-las e simbolicamente do ato divino da criação de forma complemen-
comunicá-las, po-
rém nunca em plenitude. Motivo pelo qual, tar, justamente por ser capaz de traduzir e dar voz à linguagem
segundo o autor,
“no interior de toda configuração linguística reina muda das coisas por meio da relação que estabelece com elas. No
o conflito do
expresso e do exprimível com o inexprimível e o inexpresso”!”, entanto, apesar de Benjamin dar a entender em alguns momen-
Processo que implica ato contínuo de tentar trazer à tos a possibilidade de uma tradução integral de uma língua para
expressão
aquilo que sozinho não conseguiria expressar-se. Para tornar essa outra, isto é, da linguagem das coisas para a linguagem humana,
ideia um pouco mais clara, Benjamin em seu ensaio A tarefa do Tradutor, afirma o contrário. O autor
sugere uma aproximação
com o mito bíblico da criação que de forma metafórica explica destaca que toda tradução, por ser posterior ao original, assinala
essa situação de tentarmos dizer as coisas sem o acesso direto o estágio de sua previvência. Na tradução, “a vida do original
ao
seu sentido original. alcança, de maneira constantemente renovada, seu mais tardio
Conforme o autor, na criação a linguagem era lugar e mais abrangente desdobramento. [...] Na sua previvência (que
de absoluta convergência entre nomes e coisas e isso não mereceria tal nome, se não fosse transformação e renovação
porque no
“mundo do conhecimento perfeito”, ou se se quiser chamar de de tudo o que vive), o original se modifica”"”º. Isso quer dizer
:
paraíso, todas as coisas correspondiam exatamente ao nome que o homem caído e destituído de seu conhecimento perfeito
que
lhes foi dado por Deus. “Deus tornou as coisas sobre as coisas tem agora de dedicar-se a traduzi-las, procurando
cognoscíveis ao
lhe dar nomes”!”, Mas não criou o ser humano a constantemente seusentido primeiro, sua verdade, a qual nunca
partir da pala-
vra, não lhe deu um nome. “Deus não quis submetê-lo à lingua- se mostra em plenitude, visto que, segundo o próprio filósofo, “há
gem, contudo liberou nele a linguagem que Ihe havia servido, a tantas traduções quanto línguas desde que o homem caiu do esta-
ele, como meio da Criação. Deus descansou do paradisíaco, que conhecia uma só língua”!º, Motivo que torna
após depositar no
homem seu poder criador”"””, O homem, portanto, compartilha a tradução sempre infinita, sempre um exercício que ocorre nas
dessa linguagem divina e criadora no ato de mais diversas línguas e formas, aderindo aos mais diferentes sig-
nomear, que é essen-
cialmente humano. Porém, no momento da “queda”,
perde esta intimidade com Deus. E por mais que essa perda não
homem o nificados. O que revela, ainda, uma maneira de conhecer criar
e
que se dá a partir de uma receptividade ativa, quer dizer, todo
altere a estrutura da própria linguagem, retira do ato de conhecimento e de nomeação só é possível quando deixa
homem o acesso
direto ao nome criador, ao verdadeiro sentido das coisas. “Privado de ser realizado de forma mecânica e instrumental, quando se
de sua atualidade divina esse poder criador se percebe que a crença em um homem dotado de “poder criador”,
converteu em co-
nhecimento”"”S, Assim, o ser humano só pode nomear na medida capaz de codificar e disciplinar o mundo, atribuindo a ele sentido
em que conhece as coisas e através da linguagem, é falsa. Pois, na verdade, as coisas em si
para conhecê-las precisa, além de re-
já são possuidoras de um sentido e de uma linguagem própria,
96 “
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
a qual se verbaliza ao homem na medida em abstrato: [...] a consciência”'*, Entretanto, a filosofia, diferente-
que ele, de forma
passiva e não autoritária, é capaz de percebê-la. Por esta razão o mente da ciência, é inteiramente linguística e interpretativa, tem
ato da criação e significação é um processo
que acontece na re-
naturalmente de lidar com incertezas e não pode negar esse as-
lação do sujeito com o que está à sua volta e não, ao contrário do pecto sob o risco de distanciar-se de sua própria essência. O que
que se pensa, pela dominação daquele sobre este, numa postura nos remete à proposta filosófica de Benjamin de “apresentação
reducionista e antropocêntrica. Postura que, segundo Benjamin, da verdade”, exposta no Prefácio!** de sua tese de livre docência
a partir das leituras que faz de Rudolf Pannwitz!?!, implica sobre o drama barroco alemão, de 1918. Texto que visivelmente
num
“deixar-se abalar violentamente pela língua estrangeira”, Quer assegura a continuidade das ideias já explanadas no próprio en-
dizer, na medida em que se deixa de tentar compreender as coisas saio sobre a teoria da linguagem e naquele sobre a filosofia futura,
apenas pela força do pensamento, assentindo que elas mostrem
a partir de suas múltiplas conexões parte daquilo
a
como veremos seguir. Para tanto se alternará entre duas versões
do Prefácio por questões de melhor tradução, a saber: Questões
que elas são,
permite-se, então, ser afetado por sua condição de estrangeiro. introdutórias de crítica do conhecimento, de 1984, com tradução
No sentido de não ser aquilo com que é possível identificar-se, de Sergio Paulo Rouanet, publicado pela Editora Brasiliense e
ou
enxergar-se, mas de ser um outro diferente do Eu, que por mais Prólogo epistemológico-crítico, de 2013, com tradução de João
que se queria atribuir significados, apenas se saberá o que ele é na Barrento, publicado pela Autêntica Editora.
medida em que ele se revelar na relação.
Para a ciência moderna que nasce em busca de certe-
zas faz sentido, então, expropriar da experiência sua dimensão
linguística, visto que tal caráter linguístico, da maneira como é
exposto por Benjamin, mostra-se sempre aberto à interpretações.
Aspecto que acaba gerando insegurança e a necessidade de com-
provação científica da experiência por meio do experimento. O
experimento nasce como objetivo de responder a falta de certeza
da experiência em seu sentido tradicional e o faz transformando-a
“o mais completamente possível
para fora do homem: aos instru-
mentos e aos números”!,
Assim, nessa busca pela certeza, a ciência moderna
elimina a separação entre a experiência da vida vivida e o co-
nhecimento, transformando a experiência em método e caminho
para o saber. E o faz eliminando os vários sujeitos da experiência
coletiva, “colocando em seu lugar um único novo sujeito, que
nada mais é que a sua coincidência em um ponto arquimediano
182. BENJAMIN, W. Sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem, 184. AGABEN, G. Infância e História: destruição da experiência e origem da história, p. 28.
p. 118. 185. BENJAMIN, W. Prólogo epistemológico-crítico, 2013.
183. Ibidem, p. 26.
98 99
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
se distanciar ao realizar sua crítica à teoria do conhecimento de Kant, Desta forma, a 190. BENJAMIN, W. Questões introdutórias de crítica do conhecimento. In: BENJAMIN,
W., Origem do drama barroco alemão. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
palavra representação, quando presente em citações diretas, será trocada no trabalho
por 1984. p. 51.
apresentação.
187. BENJAMIN, W. Prólogo 191. Idem.
epistemológico-crítico, Pelo,
101
100
Bruna de Oliveira Bortolini Walter Benjamin e a Categoria da Experiência (Erfahrung)
vela sempre incompleta no próprio processo de sua exposição, Platão; enquanto esse afirma que a Beleza representa a Verdade,
ou melhor, auto exposição. Pois “o método, que para o saber é pois é um reflexo do Bom e do Verdadeiro em si,
Benjamin sus-
uma via para a aquisição do objeto (mesmo que através de sua tenta que a Verdade é o “conteúdo essencial da beleza”"”. Para
produção na consciência) é para a verdade [apresentação] de si ele, a Beleza não é apenas reflexo, mera aparência, mas critério
mesma e, portanto, como forma, dado juntamente com ela””º*, E determinante à constituição e apresentação da verdade.
isso só ocorre porque a verdade possui caráter ontológico, isto é, Seu brilho, que seduz, desde que não queria ser mais
ela existe como ser e não como produto da consciência, e assim que brilho, provoca a inteligência, que a persegue, e só
“como unidade no Ser, e não como unidade no Conceito, a ver- quando se refugia no altar da verdade revela sua ino-
dade resiste a qualquer interrogação”"”. Aspecto que de acordo cência. [...] À beleza foge da inteligência por terror, e
com o autor revela o caráter não intencional da verdade, pois por medo, do amante. E somente este pode testemu-
nhar que a verdade não é desnudamento, que aniquila
não há uma relação sujeito-objeto na qual o sujeito no processo o segredo, mas revelação, que lhe faz justiça”.
do conhecimento tenta apreender o objeto. “A verdade é uma
essência não intencional, formada por ideias. [...] À verdade é a Desta forma, em oposição à concepção de que o “apa-
morte da intenção””*, recer” é superficial e de menor relevância à busca da verdade,
Com isso, Benjamin retoma no Prefácio algumas das Benjamin sustenta que a verdade precisa da beleza, da aparência,
ideias apresentadas no texto Sobre a Filosofia Futura e no ensaio para legitimar-se. Isto é, ela precisa se apresentar, se deixar vis-
sobre a linguagem, procurando realizar uma correção no con- lumbrar, não pode, conforme o que afirma Gagnebin, “ser uma
ceito kantiano de Experiência, o que implica também numa crí- abstração inteligível em si, sob pena de desaparecer, de perder
tica à concepção de conhecimento desse mesmo autor. Crítica sua [...] realidade efetiva”!”. Relação que para o autor é impor-
que busca distanciar a filosofia da ideia de método atribuída a tante, pois evidencia “mais claramente que qualquer outra a dife-
ela e, consequentemente, atinge nesse processo também a Des- rença entre a verdade e o objeto do saber”,
cartes, em razão de seu sistema de pensamento more geométrico. Assim, na visão de Benjamin, uma filosofia que se de-
No entanto, é importante realçar que Benjamin não rejeita por dique mais ao exercício de exposição de ideias na busca pela ver-
dade do que com sua representação e classificação num sistema
completo esse sistema, mas atenta para outra dimensão do pensar
filosófico, que como vimos relaciona-se à questão da “apresen- pré-definido de conceitos, é por excelência o trabalho do filósofo.
Pois, nesta busca, ele é impelido também a repensar seus méto-
tação da verdade”. Processo que na percepção do filósofo pode
ser associado a obra O Banquete" de Platão, assumindo “impor- dos, bem como o resultado de seu próprio pensar, o qual se dá
tância capital [...] para a própria determinação do conceito de continuamente de forma intermitente, ainda que ao final não se
verdade”, Porém, Benjamin, ao ler O Banquete, vai além de obtenha uma posição definitiva daquilo que se pretende expor. À
verdade, portanto, se dá no âmbito das ideias e não dos conceitos
- 2.
ed, — São Paulo: Abril Cultural, 1979, ed. — São Paulo: Editora 34, 2014. p. 72.
196. BENJAMIN, W. Questões introdutórias de crítica do conhecimento, 200. Ibidem, p. 54.
p. 53.
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Adorno coloca na Dialética Negativa, claramente influenciado Valendo ainda destacar que Benjamin ao dedicar-se
por Benjamin, que o pensamento que se dá de forma constelacio- à construção de ideias a partir da estrutura dada pelos próprios
nal, “circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando objetos ou fenômenos, conforme o decorrer de seu tempo e se-
que ele salte, mais ou menos como os cadeados de cofres-fortes gundo sua “lógica interna”, está ao mesmo tempo realizado uma
bem guardados: não apenas por meio de uma única chave ou inversão da teoria platônica das ideias até então remanescente
de um único número, mas uma combinação numérica”?'6, Isto no pensamento de grandes filósofos. Pois, ao defender a liberda-
é, não pela força do sujeito, mas pela própria lógica interna do de dos fenômenos afirmando que elementos mais particulares e
objeto. Ponto que, segundo Fianco, coloca o conceito como res- mutáveis compõe a essência das ideias, desmonta a concepção
ponsável pelo “equilíbrio entre a universalidade das ideias e a contrária de que as ideias é que constituem a essência dos fenô-
concretude particular das coisas e dos fenômenos”", menos.
Desta maneira, Benjamin revela-se um dos primeiros
filósofos modernos a inverter a lógica da primazia do sujeito, pela
primazia do objeto. Evidenciando assim a diferença de sua pro-
posta de exposição filosófica em relação ao modelo científico de
pensamento, o qual, segundo o que reitera Casto, é “marcado
pela intenção de consolidar um modo de conhecer que pode ser
definido como apropriação e posse dos objetos, pela consciência,
por meio de um método rigoroso de demonstração conceitual,
baseado no modelo matemático”?!?, Porém, apesar de na filosofia
de Benjamin, a crença num sujeito de conhecimento
capaz de
desvendar o conteúdo portrás da aparência sensível dos objetos,
não ser possível em sua completude, para o autor o sujeito ainda
tem papel determinante no processo de exposição da verdade.
Ele fica responsável por narrar a relação dos objetos em suas múl-
tiplas conexões com aquilo que lhe é externo, destacando dessas
relações determinadas pela materialidade do próprio objeto, ca-
racterísticas passíveis de serem abstraídas no conceito e integra-
das ao âmbito das ideias. Lembrando-se
sempre que “a verdade é
uma essência não intencional, formada por ideias” e, portanto, só
se deixa contemplar quando não há intenção.
no m
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à 54.
NASSAR, R. Lavoura Arcaica. 3º ed, São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
220. KONDER, L. A questão da ideologia. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
p. 156.
Pp
ma na
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a
objetivando na linguagem sua liberdade, a qual consiste, ainda
de acordo com o que afirma Adorno, na “capacidade de dar voz
mostra que o empobrecimento da experiência na modernidade
nada mais é do que o reflexo da predominância de um pensa-
à sua não-liberdade”***, Pois, quando ocorre o seu
contrário, ou mento científico da época, para o qual se encaminhava a sua
seja, quando “a filosofia se abstém do momento expressivo e do crítica. Sendo necessário, segundo Benjamin, que hoje “[possa-
a
compromisso com apresentação, ela é assimilada à ciência”,
Integrar a categoria de Experiência, ou ao menos
mos] ostentar tão pura e tão claramente [nossa] pobreza, externa
e também interna, que algo de decente possa resultar disso”, E
aquilo que ela representa, isto é, a temporalidade no processo preciso que saibamos reconhecer nossas falhas, que a própria filo-
de reflexão filosófica, significa mostrar que sofia seja capaz de se expor ao seu fracasso — aquele de tentar em
por mais que hoje a
experiência tenha se tornado insuportável em função dos atuais vão se reconciliar com o objeto de seu estudo. Isso porque desde
modos de vida, ela ainda é possível e extremamente necessária o momento em que se pensa a presença latente do tempo em
todo e qualquer processo de interação do sujeito com a realidade,
224. ADORNO, T. W. Dialética Negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janei-
to: Jorge Zahar Ed, 2009. p. 24.
225. Idem. 226. BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza, p. 127.
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áreas do saber científico, saberes estes, em boa parte, fundamen- todos os fatos são apreensíveis pelo conceito, sendo a maioria mu-
tados pela própria filosofia que foi transformada em guia tável e flexível a alterações temporais. A filosofia que pretende ser
para o
conhecimento. Questão essa que impulsionou, então, num ter- expressiva deve levar isso em consideração. Permitindo, a partir
ceiro momento, o estudo sobre a categoria de Experiência como daí, também uma reflexão mais aprofundada sobre os conteúdos
a trabalhar
e
experimento o porquê de Benjamin se dedicar em sua filosofia
uma forma de pensamento capaz de abarcá-la em seu
que expressa, fazendo pensar sobre a noção de tempo que os en-
volve e a necessidade de revisitá-los em seu contínuo movimento,
sentido original. Atitude que se apresentou numa dupla estra- sempre que preciso, para atualizar-se. À medida que ajuda tam-
tégia, quer dizer, alémde recuperar a Experiência como uma bém na compreensão do momento presente em relação ao seu
forma de conhecimento não apenas ligado à comprovação em- passado, bem como o seu contrário, justamente porque o entendi-
pírica, mas de um saber sedimentado na vida vivida, também re- mento de uma experiência em razão de sua temporalidade é dife-
tomar o caráter expressivo da própria filosofia, que nesse período rente do sistema que pensa a partir do princípio da identidade, da
de transformações ficou relegado ao esquecimento. Pois a Expe- apreensão dos objetos por via da consciência. Isto é, não depende
riência, assim como a filosofia, ao se manifestar na linguagem, apenas da vontade do sujeito, mas de uma série de outros elemen-
necessita ser interpretada para ser compreendida. Precisa tos que irão agregar-se ao acontecimento em questão no decorrer
que se
exponha a parcela de verdade que ela carrega consigo sobre a de seu tempo, permitindo a sua compreensão. À experiência, as-
vida humana e isso, nesse contexto, segundo o autor, somente a sim sendo, depende do Outro, que é um “outro tempo”, diferente
filosofia seria capaz de fazer. do tempo uno do sujeito fechado em sua interioridade.
Desta forma, retomar a noção de filosofia como exercí- Abordar a categoria de Experiência no pensamento de
cio de apresentação e não como fundamentação de conhecimen- Benjamin se trata, portanto, de trabalhar com um tema que, ape-
tos, é uma das propostas benjamianas que, como vimos, envolve a sar de não ser uma novidade no âmbito das discussões filosóficas
categoria de Experiência. Pois a filosofia, diferentemente das ciên- atuais, é importante pelo fato de que quando retomado desaco-
cias, tem a capacidade de trabalhar com temas que muitas vezes moda o pensamento e o coloca em movimento, fazendo-o refletir
não se encaixam nos sistemas representativos do pensamento. Ra- sobre si mesmo, sobre suas tendências e limitações, quer dizer: o
zão pela qual, ao renunciar o seu momento expressivo, tema da relação do sujeito com o objeto de seu conhecimento.
nega, por-
tanto, sua própria essência, correndo o risco de desaparecer. Fato Situação que quando retomada é capaz de impulsionar o pensa-
que Benjamin procura através de seus estudos, evitar. Porém, em mento a ir além das projeções que faz sobre o objeto do saber,
meio ao processo de pesquisa, surgiu-nos um outro elemento permitindo-se pôr em uma nova relação com ele. Uma relação
que
vale a pena aqui destacar. À categoria de Experiência, além de que frente ao ideal científico, contrapõe àquilo que não pode ser
despertar a necessidade de uma mudança na própria concepção tematizado por ele, isto é, aquilo que lhe escapa. Forçando-o, des-
de filosofia no período em questão, exige, concomitante a esse sa forma, a abrir-se para novas e diferentes maneiras de abarcar
processo, a capacidade de a filosofia pensar na temporalidade. o objeto, sem se deixar cair na sedutora postura positivista de, ao
À Experiência, portanto, no sentido defendido invés de enfrentar filosoficamente a diferença, excluí-la ou igno-
por Wal-
ter Benjamin, traz de volta o elemento temporal, abolido pelos rá-la por ela não se acomodar em seus sistemas.
métodos científicos, ao fazer filosófico. Pois entende que o caráter
expressivo necessita também da temporalidade, visto que nem
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