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Ensaio | Eduardo Fukushima e Beatriz Sano

O desafio de conceber um trabalho a partir da obra de Tomie Ohtake demandou uma


mudança na metodologia dos coreógrafos-dançarinos Eduardo Fukushima e Beatriz
Sano, em geral habituados a terem o improviso como disparador de seus processos de
criação. A imersão da dupla na casa-ateliê e nos trabalhos de Tomie, bem como na sua
fortuna crítica, conduziu a dupla a abordar formas como partituras: arranjos não
figurativos e livres de qualquer carga emocional a priori; marcações de ritmo, união e
separação de volumes, com a singularidade das linhas imperfeitas que conformam
círculos e curvas.

O entendimento de que há distância entre a pintura e conotações emocionais remete


à abordagem do curador Paulo Herkenhoff no ensaio “Tomie Ohtake – a vontade
construtiva num buquê de geometrias”,1 uma análise da forma ímpar como Tomie
conduziu o problema pictórico, da matéria, da forma e da geometria, em seu livre
emprego de questões relativas à ordem no concretismo e ao sensorial do
neoconcretismo.

O ensaio acontece no ateliê e prioriza o chão como ponto de partida, na presença de


alguns dos trabalhos observados com especial atenção pelos coreógrafos: uma pintura
de Tomie que se parece com um sorriso levitando sobre o vermelho, outras com
elementos em duplicidade, mas cujo encaixe nunca é perfeito ou equilibrado. Os
desenlaces que mantêm o dinamismo visual nas obras se multiplicam nas similitudes e
desencaixes nos movimentos de Sano e Fukushima. O piso em que se apoiam os
bailarinos é justamente o elemento que integra todas as etapas de construção da casa-
ateliê de Tomie Ohtake, e é o plano que une o interior do ateliê com o jardim.

Nessa extensão horizontal, os dois corpos procuram formas de manipular o espaço


vazio, sua matéria coreográfica. Ao lado, há um terceiro elemento em cena: o baterista
Chico Leibholz performa uma batida de força e vigor, enquanto os movimentos iniciais
da dança começam atados ao chão, ensaiam tímidas ascensões em um equilíbrio

1
In: PERLINGEIRO, Max (org.). Tomie Ohtake: Construtiva. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2013.
temporário e frágil, até alcançar uma postura bípede que redunda em quedas. Há um
hiato entre o som que ressoa do tambor e dos pratos e os movimentos vacilantes dos
corpos, e esse hiato torna-se ainda mais tangível quando o músico interrompe
temporariamente sua batida, criando intervalos de silêncio ao redor dos bailarinos em
ação – outro modo de tornar o vazio presente.

A própria quebra de expectativas resultante dessa dinâmica é uma característica que


os coreógrafos parecem ter apreendido das obras e dos processos criativos de Tomie
Ohtake, em que a leveza por vezes se alcança com materiais pesados, e a gestualidade
impulsiva convive com longos processos de controle e disciplina. Na dança de
Fukushima e Sano, sempre que se tem a impressão de apreender padrões, algo se
rompe ou irrompe. O tambor quebra o silêncio, os dançarinos se dissociam, se
reencontram, se aproximam e se afastam, surge um assovio ou uma risada mecânica e
calculada. É justamente quando som e movimento parecem finalmente se encontrar e
responder juntos a um mesmo estímulo que emerge euforia de corpos eletrizados,
dispersos, deslizantes como elétrons liberados de seus prótons em uma ligação
metálica: o encontro com o som parece ser a despedida da marcação da coreografia,
em mais uma quebra de expectativas.

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