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Ensaio | Davi Pontes

“E se nossa imagem de corpo lembrasse rumor em vez de medida?” Coreografado pelo


carioca Davi Pontes e interpretado pelo dançarino soteropolitano Sebastião Abreu, o
ensaio RUMOR encontrou nessa pergunta seu disparador. Ao aceitar o convite para
realizar uma peça em diálogo com a obra de Tomie Ohtake, Pontes deixou-se
apaixonar (palavra dele) pelo processo da artista e encontrou na sua geometria
“incansável e imprecisa” reminiscências das notações dos primórdios da coreografia.

Davi Pontes tinha em mente os estudos do francês Raoul-Auger Feuillet, que cunhou
no início do século XVIII o conceito e a palavra coreografia como forma de
compreensão bidimensional da dança. Feuillet traduzia o corpo e seus movimentos em
linhas e semicírculos, e essas notações permitiam que a dança fosse concebida como
uma projeção geométrica sobre o piso e sobre os corpos. Com isso, o próprio
entendimento de lugar se transformava, recomposto como um sistema de posições e
deslocamentos mensuráveis.

Mesmo quando orientados por tais marcações abstratas, os corpos em deslocamento


não deixam de produzir ruídos, atritos, rumores. Algo extrapola as linhas e setas das
notações coreográficas. Da mesma maneira, quando consideramos a pintura abstrata
de Tomie como combinações de elementos geométricos, essa percepção geral da
forma não elimina a duração das pinceladas que dão corpo a cada trecho da superfície
pintada.

No ensaio de Pontes, Sebastião se desloca pela casa-ateliê emulando poses


encontradas em registros fotográficos de Tomie, combinadas a outras do repertório
cotidiano do coreógrafo e do dançarino. Gestos reconhecíveis e prosaicos, as poses
dão pistas (construídas) de personalidade e identidade, enquadrando por um instante
o corpo em uma imagem. Repetidas, as poses já são matéria-prima de estilos de dança
como o pagode, proveniente de Salvador, e do vogue (voguing), originário do Harlem,
Nova York, e foram absorvidas por Pontes como recurso de provocação que combina
sensualidade e deboche.
Enquanto entra e sai de poses e posições, o bailarino move também as caixas de som
que reverberam a paisagem sonora concebida pela produtora musical Pode. Carregada
de ruídos, essa sonoridade abrange da melodia de um saxofone ao toque com sons de
pássaros brasileiros do relógio de parede que Tomie afetuosamente mantinha em seu
ateliê.

Para Pontes, “a coreografia é um tipo de ética que busca compreender o mundo”.


Nessa ética, a ideia de disputa é fundamental. Da disputa nasce o atrito, e o atrito
multiplica os rumores que garantem que algo se expanda e transborde marcações,
medidas, poses, traços e semicírculos.

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