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Entre seu corpo dançarino e a casa-ateliê de Tomie, Allyson estendeu um círculo de sal
grosso. Deslocar-se nesse círculo implicava transformação. Mãos e rosto, parcelas da pele
que não estão protegidas pela roupa espessa, doam sua umidade para o sal numa intensa e
contínua osmose. Enquanto isso, a substância branca se move com cada passo, cada giro,
cada pulsação da coreografia do corpo-metrônomo.
Há polaridades em jogo nesse processo – como o céu e o mar, o preto e o branco, o cheio e
o vazio, a construção e o apagamento. Não obstante, elas não se apresentam como
dicotomias fixas. A luz por vezes funde o corpo ao material, noutras ela destaca nitidamente
a silhueta do performer. O mesmo gesto que faz a forma também a desfaz. A temporalidade
espiralar de que fala Leda Maria Martins se faz presente na medida em que a sucessão de
momentos transparece que não há um objetivo final determinado para a ação e que o
movimento poderá se desdobrar em sua conversa salina até a exaustão do corpo.
Nas tramas das diásporas estão tecidas as mais diferentes histórias. A força de vida de
quem migra passa pela capacidade de recombinar temporalidades, praticar trocas de
perspectiva, viver durações espiraladas, reelaborar rituais e promover cura. Essa força
alimenta o descarrego que, afinal, o ensaio de Allyson oferece à casa-ateliê de Tomie. Em
uma repetição de gestos carregados dos rastros de seus antepassados, ele projeta um
futuro de regeneração no coração da morada de uma artista que considerava sua própria
migração um movimento essencial para que ela tenha conseguido viver como artista
experimental, ou seja, como uma artista liberta de paradigmas estanques, ideais de pureza
e verdades pré-fabricadas.