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BORDA DOCE – O TEXTO

Ali, onde se impõem a diferença, a descontinuidade, onde os seres se tornam


únicos aos sentidos, separando-nos do mundo, está o limite, a borda.

Porém, seria só isso?

Talvez ao olhar desavisado a borda seja a quebra, a negação do todo, pela


afirmação das partes.

Atentemos, entretanto, a vida, a organicidade dos corpos, ao mágico balé da


natureza, na explosão dos átomos.

Sim, a borda se move.

Serpenteia sinuosa a borda, testando os limites, indecisa de onde estar,


continuamente.

Aqui o começo de outro, o fim de mim. Agora, já mais para lá eu findo, para no
instante seguinte, me ver diminuído em minhas dimensões.

Onde está a borda? Sim, posso vê-la no momento, no quantum. Sua localização
percebida, entretanto, só esconde a quantas ela vai.

A borda, notemos, insuspeitadamente, tem outra função. A borda que faz a troca,
entre o eu e o não eu. A borda que possibilita o que circula entre nós. Ela que permite
nossa comunicação. Graças à borda se dá a interpenetrabilidade. Tudo se liga a tudo,
pela borda. Não separa, pois a borda, ou se isto ela faz, é concomitante a tudo irmanar
em sua onipresença. A isto chamamos de dialética da borda.

“Toda borda é uma boca”, nos diz o artista. E toda boca, sabemos nós, engole,
vomita, fala e se comunica.

Mas a borda também delimita o ser, isso é inerente à borda.

Todavia há certos seres que “trans”bordam. Estes prescindem da própria


porosidade das bordas para transpô-las. “Tudo é um”, eles dizem. E já não existem
bordas, ou tudo é borda. A isso chamamos dialética negativa da borda.

Presentes desde muito, estes para quem as bordas se esvaecem ao olhar, para
quem as bordas são nada mais que passagens, ou algo ilusório, ajudam-nos a
compreender a natureza da borda.
São entes que só realizam a essência da borda, por saírem de si mesmos. Não que
os neguem, apenas os limites não os constrangem. Estes conquistaram as bordas.

Entre a miríade de fenômenos delimitados por suas próprias bordas, percebem a


unidade e já não vêem bordas entre eles e o resto.

No fundo da floresta, onde tudo é verde em diversos tons e as bordas quase se


confundem na explosão de luz e sombra por entre as copas das árvores, fumando seu
cigarro e a rodar lentamente seu maracá, encontramos um destes seres.

Em meditação profunda este se irmana as bordas imanentes.

Com os olhos semicerrados, exala a fumaça e transpõem as bordas do tempo e do


espaço. Com velocidade, a ponto de sentir o vento em sua face, atravessa eras e
universos. As bordas tonteiam e se confundem com aquele que as atravessa com tal
celeridade.

Artista da performance por excelência o xamã procura levar sua audiência ao


transbordo através e para além da borda.

Para tal se vale do canto, da dança, uivos, gritos e murmúrios, corcoveios e


esgares. Apela antes de tudo aos sentidos e procura (co)mover pelo impacto estético
de seus atos, tanto quanto por estes expressarem e apelarem para crenças que se
atualizam sempre na ação.

Muito já se disse acerca das figuras do pajé, do artista e do louco, três


personagens emblemáticos na subversão das bordas. Aqui não se trata de reafirmar a
obviedade dos paralelos possíveis, mas sim partir do pressuposto.

Ernesto Neto com sua obra Borda-Doce nos leva a reflexão sobre nossos próprios
limites e os limites colocados pelo real sobre nós.

Se maravilhar com sua arte, e deixá-la nos tomar na fruição, ao mesmo tempo
indolente e ativa, de sua contemplação, nos leva a transcendência.

Mas uma transcendência de uma qualidade muito especial: não etérea dos voos do
espírito, mas bastante corpórea e orgânica. Uma transcendência do corpo que só é
possível em função deste próprio corpo que observa, experimenta e sai de si.

Borda-Doce transborda em nós.


Se entregar ludicamente a Borda-Doce nos cessa o pensamento naquele transe
que emudece as considerações de qualquer ordem.

Esta entrega se apresenta análoga à vida, quando a mesma é apreendida


desinteressada e despreocupadamente, numa infância que é atemporal e tão somente
perspectiva existencial.

Sim, nos fazemos crianças quando deixamos a obra de arte com nossos sentidos
brincar e o único entendimento que procuramos desta extrair é aquele maravilhamento
que nos faz sorrir intrigados. Mas somente sendo adultos para perceber a suspensão
do tempo que esta provoca, a sensação de queda vertiginosa no espaço, com aquele
frio no estômago característico, que a mesma causa.

Se há liberdade em não ter certezas de qualquer ordem, isto não se faz sem o risco
do receio da indeterminação.

A Borda(-Doce) quebra as bordas, as borra e as confunde.

Ela canta dança e nos seduz como um velho pajé. Ela desloca as bordas e
chacoalha o ser que, subitamente destituído de seus limites, se refaz numa borda que,
por um momento, tudo abarca, ou que, pelo menos, passa a incluir a Borda-Doce a
partir daí.

Esta nos penetra e nos redefine em novas, mais amplas e maleáveis bordas, antes
insuspeitas. A mesma, igualmente, se deixa penetrar. E assim como o sexo, onde,
geralmente, também há penetração, esta nos transporta para fora de nossos limites
em sua organicidade notável.

Tudo em Borda-Doce remete a vida, a corpos e entendimento de corpos,


corpúsculos, partes de corpos, organelas, excreções corpóreas, decaimento,
brotamento, movimento contínuo do que é vivo.

Borda-Doce nos transporta ao fundo úmido e escuro de uma floresta penetrada por
ofuscantes raios de luz. Lá bailamos, esquecidos, com as bordas da existência,
celebramos as bordas e expandimos as nossas próprias bordas.

Na verdade transbordamos junto com a Doce Borda. Esta nos aborda docemente
em sua qualidade de arte e subverte os limites auto-impostos entre nós e o resto.

Deixemos, pois, a Borda-Doce puxar, esgarçar e romper nossas bordas em seu


tremendo impacto sobre nossos sentidos. Adquiramos, portanto, graças a ela, este
novos limites que nos redefinem.
Desfrutemos da Borda-Doce com aquele abandono próprio daqueles para quem as
bordas já não mais importam. Intrigados, estupefatos e atônitos por esta, que a
mesma no deslumbre com sua capacidade de nos mover pelas bordas, tal qual o
xamã.

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