Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Aqui o começo de outro, o fim de mim. Agora, já mais para lá eu findo, para no
instante seguinte, me ver diminuído em minhas dimensões.
Onde está a borda? Sim, posso vê-la no momento, no quantum. Sua localização
percebida, entretanto, só esconde a quantas ela vai.
A borda, notemos, insuspeitadamente, tem outra função. A borda que faz a troca,
entre o eu e o não eu. A borda que possibilita o que circula entre nós. Ela que permite
nossa comunicação. Graças à borda se dá a interpenetrabilidade. Tudo se liga a tudo,
pela borda. Não separa, pois a borda, ou se isto ela faz, é concomitante a tudo irmanar
em sua onipresença. A isto chamamos de dialética da borda.
“Toda borda é uma boca”, nos diz o artista. E toda boca, sabemos nós, engole,
vomita, fala e se comunica.
Presentes desde muito, estes para quem as bordas se esvaecem ao olhar, para
quem as bordas são nada mais que passagens, ou algo ilusório, ajudam-nos a
compreender a natureza da borda.
São entes que só realizam a essência da borda, por saírem de si mesmos. Não que
os neguem, apenas os limites não os constrangem. Estes conquistaram as bordas.
Ernesto Neto com sua obra Borda-Doce nos leva a reflexão sobre nossos próprios
limites e os limites colocados pelo real sobre nós.
Se maravilhar com sua arte, e deixá-la nos tomar na fruição, ao mesmo tempo
indolente e ativa, de sua contemplação, nos leva a transcendência.
Mas uma transcendência de uma qualidade muito especial: não etérea dos voos do
espírito, mas bastante corpórea e orgânica. Uma transcendência do corpo que só é
possível em função deste próprio corpo que observa, experimenta e sai de si.
Sim, nos fazemos crianças quando deixamos a obra de arte com nossos sentidos
brincar e o único entendimento que procuramos desta extrair é aquele maravilhamento
que nos faz sorrir intrigados. Mas somente sendo adultos para perceber a suspensão
do tempo que esta provoca, a sensação de queda vertiginosa no espaço, com aquele
frio no estômago característico, que a mesma causa.
Se há liberdade em não ter certezas de qualquer ordem, isto não se faz sem o risco
do receio da indeterminação.
Ela canta dança e nos seduz como um velho pajé. Ela desloca as bordas e
chacoalha o ser que, subitamente destituído de seus limites, se refaz numa borda que,
por um momento, tudo abarca, ou que, pelo menos, passa a incluir a Borda-Doce a
partir daí.
Esta nos penetra e nos redefine em novas, mais amplas e maleáveis bordas, antes
insuspeitas. A mesma, igualmente, se deixa penetrar. E assim como o sexo, onde,
geralmente, também há penetração, esta nos transporta para fora de nossos limites
em sua organicidade notável.
Borda-Doce nos transporta ao fundo úmido e escuro de uma floresta penetrada por
ofuscantes raios de luz. Lá bailamos, esquecidos, com as bordas da existência,
celebramos as bordas e expandimos as nossas próprias bordas.
Na verdade transbordamos junto com a Doce Borda. Esta nos aborda docemente
em sua qualidade de arte e subverte os limites auto-impostos entre nós e o resto.