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TRÊS POETAS ALAGOANOS

1. CARLOS MOLITERNO (1912-1998)

Poeta, jornalista, crítico literário, foi presidente da Academia Alagoana de Letras por seis mandatos
consecutivos, autor dos livros Desencontro, Notas sobre poesia moderna em Alagoas e do festejado A
Ilha, considerado um clássico da poesia alagoana. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de
Alagoas, autor da letra do Hino de Maceió, faleceu no dia 19 de maio de 1998, aos 86 anos.

TEXTOS: sonetos de A Ilha

Invento a Ilha numa tarde clara,


numa tarde de sol, de luz, de sal,
e das águas retiro espuma e algas,
para formar seus vales e enseadas
E invento a Estrela numa noite escura,
de céu espesso e nuvens de granito.
Recolho do meu rosto sombra e datas
e recomponho assim meu calendário.

No céu desta Ilha as asas espalmadas


de um branco e enorme pássaro flutuam,
no rumo de suas dunas insulares.

Meu ser então divido e multiplico,


em várias partes que derramo e espalho,
nas praias desta ilha em que naufrago

II

Entre o mar e a ilha há sol e água


se há o sal que os meus dedos pulverizam.
E em suas praias rosas e lembranças,
areias virgens de presença e fuga.

No seu chão insular rios e pétalas


povoam de alvoradas seus recantos.
E raízes se enterram pelos vales,
onde auroras e raios se conjugam.

E na fonte imprecisa desta tarde


desabo sobre a Ilha. E no silêncio
revivo as suas dunas nos meus olhos.

Dunas de curvas vivas ancoradas,


no mistério do sonho e no mistério
do meu ser que são dois, são três, são quatro.

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III

A neblina da tarde cobre a Ilha


e enche o meu olhar de cinza e espantosa,
e o espelho não recria a minha face
na areia exausta onde repousam búzios.

Na água do mar meu rosto não se afoga,


e há passos sem memórias nos caminhos.
As conchas são saudades nas areias,
da Ilha sem penhasco e sem rochedos.

Reinvento um sol cada manhã. E bebo


a aurora do silêncio em que desabo,
do silêncio nascido de água e espuma.

E as areias sugerem geografias,


onde, sozinho, entre o azul e o verde,
recrio estas lembranças insulares.

IV

Era uma rosa que boiava aflita


na luz azul-queimado do nascente,
rosa feita de sal no chão da Ilha,
flor de concha e de sol, de areia e água.

Ora rosa, ora peixe, a flor boiava


nas ondas imantadas no meu rosto.
E se era rosa no centro das auroras,
era peixe imaturo no crepúsculo.

Boiava assim a rosa que era peixe,


bem no meio das águas azuladas,
de um golfo manso que fendia a praia.

Se o sol luzia, a flor se abria ao sol,


porém à noite o peixe cintilava,
na alternação de escamas e de pétalas.

No mapa a Ilha e em minhas mãos o mapa


e o ventos empós, um vento que se adensa
e enxuga no meu rosto a água e o tempo
e põe meu signo em quadro de aquarela.

Folhas rebentam no meu corpo impuro,


embora já lavado nas marés;
e raízes e algas também brotam
e dunas e enseadas me recobrem.
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E os peixes nos meus dedos distendidos
são vestígios de águas ancestrais
diluídas no fundo das vazantes.

E no cento do mapa a Ilha é um ponto


que vem do fundo de remotas águas
onde lavo e mergulho o corpo impuro.

VI

Os dias se desfolham nos meus dedos


e os peixes zodiacais não proliferam,
nem as algas cambiantes se aprofundam,
no aquário suspenso do meu rosto.

Nos meus olhos retenho a Ilha e as águas


e o renovo das folhas e dos frutos.
Retenho em minhas mãos de sol e luas
a linha geométrica do espaço.

Há uma rosa caindo no meu corpo,


rosa de areia e cal, rosa de abismo,
emergindo das ondas espumosas.

Rosa da Ilha presa no horizonte


rosa de sal, de brumas e de espanto
roas das cordilheiras intocadas.

VII

Estes frutos, ao sol, coagulados,


frutos à minha Ilha pertencidos,
eu os vejo na vida ultrapassada,
eu os sinto tão longe quando perto

Frutos em cujo sumo a minha boca


não se refresca e nem se purifica.
Frutos de fogo e sal, de água e vento,
por onde me conduzo ao verbo e ao nada.

Frutos por onde bebo o meu orvalho,


inodoro e incolor. E a minha sede
mais aprofunda e estala em sonho e febre.

Há um céu nestes frutos inventados,


de uma astronomia compassiva
que começa no fundo dos meus olhos.

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SONETO N.° 37

A Ilha se dilui pelo meu corpo


e em minhas mãos retenho a sucessão
dos litorais que nascem nos meus olhos,
das angras que confinam nas marés.

Ondas intermitentes se deslocam,


projetando uma azul geografia
de águas que são águas e não são,
porque no horizonte se esvaziam.

Água e céu se confundem em cores várias,


em cores que retenho nos meus dedos,
entre o verde e o azul e o ouro e o chumbo.

Olhos procuradores se inquietam


e se perdem num mapa de água e céu,
um mapa que eu tracei para meu uso.

2. CLÉA MARSIGLIA (1929-2005)

Nasceu em Maceió (Alagoas) em 14.7.1929 e faleceu no Rio de Janeiro em 11.5.2005. Filha de


Antônio Marsiglia e Maria Fazio Marsiglia. Fez curso primário no Colégio São José; secundário, no
Colégio Santíssimo Sacramento. Diplomada em Direito pela Faculdade de Direito de Alagoas. Prêmios
Esso e Academia Alagoana de Letras. Advogada na Procuradoria do IAA. Membro da AAL, onde
ocupou a cadeira 9. Com Francisco Valois editou a revista Acaieme, que ficou no primeiro número.
Publicou: Sarabanda, Maceió, Editora Caeté, 1951, (poema em prosa); Difícil reino amar, Maceió,
SENAC/DAC, 196- (poesia); Jarro de porcelana, ilustrações de Roberto Lopes, Maceió, SERGASA, [s.d.]
(poesia): Luminária, Maceió, DAC/SENEC, SERGASA, 1974 (poesia); Quarteto do tempo, Maceió,
1968, (poesia); Cânticos da terra, São Paulo, 1956, prêmio no concurso feminino de poesia, em 1956,
de A Gazeta, de São Paulo; Poemas e baladas, Rio de Janeiro, Edições Leitura, 196- (poesia); Espelhos
embaciados, Maceió, Ed. Acaiême, 1953, (contos); O Deus e a Terra, [Rio de Janeiro,Ed Leitura] ,
1961, (poesias); Forte San Davis, Maceió, SENEC/DAC [s.d ]; Sussura, Astrolábio, Maceió, Secretaria
de Cultura e Esportes, 1989; Alumbramento, Maceió, SERGASA, 19[?] ; Cristais, Maceió, SERGASA,
1983; Quatro poetas - Maria V. Soares Filha, Charles Cooper, Cléa Marsiglia e Maria Tereza Vieira,
Maceió, ASPLAN. Estes dados bibliográficos foram coletados no ABC das Alagoas (versão virtual).

Cléa Marsiglia é um poeta de rara leveza, retirando a poesia da pura sensação. É uma pena conhecer
uma poeta tão sutil com tanto atraso e mesmo que ela vindo da terra de dois outros dois grandes

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poetas (Jorge de Lima e Lêdo Ivo), não seja festejada nacionalmente. Basta ver que Fábio Lucas a cita,
em entrevista que consta em livro de estudos sobre a Literatura Brasileira, de autoria de Douglas
Tufano, entre as grandes poetas do Brasil:

“A sensibilidade feminina, sem violências extremas na área da mera aparência formal, tem
contribuído fortemente para fixar um campo original de inquietação poética, de apreensão
deslumbrada de novos mundos, de afirmação superior da mulher na sociedade contemporânea.
Dentre os muitos nomes, em todo o Brasil, que mereceriam citação, lembro Laís Corrêa de Araújo,
Celina Ferreira, Renata Pallottini, Ana Elisa Gregori, Hilda Hilst, Zila Mamede, Olga Savary, Clea
Marsiglia, Myriam Fraga, Sônia Queirós, Elza Beatriz, Adélia Prado, Yone Giannetti, Dora Ferreira da
Silva, Lara de Lemos. A enumeração é apenas ilustrativa. Considere que, no momento, a figura da
mulher se expande no contexto cultural brasileiro. As universidades, as faculdades de Letras, os
veículos de comunicação de massa, a própria produção literária estão gradualmente passando da
hegemonia masculina para a predominância feminina.”

TEXTOS

ORA CHEGA TEU SER CANTANDO

Ora chega teu ser cantando


ao som das horas.
Ora vai com o escurecer
como se a noite
não fosse tempo
nem eu mais pudesse chorar
de tanto querer.
Se o vento corre na paisagem
e desmancha o pensar escrito
é bem teu vulto
que se transforma em brisa
e apaga o sofrer.

CANTA A AUSÊNCIA
Canta a ausência
nos ramos de tília.
Falta a lembrança
pelo macio das rosas.
Sussurra a voz
pela brisa dos campos.
Maior é meu silêncio
quando chegas
e fazes presença
deste amar.

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FELIZMENTE O INVERNO NÃO VEM

Felizmente o inverno não vem,


ao mesmo tempo,
para toda parte do mundo.
Há sempre um lugar
onde se pode receber a primavera
e olhar para o céu
em luz.
Por isso quando o frio do sentir
vai surgindo com o vento,
sábio é andar
em direção ao sol que está chegando
na outra parte do íntimo.

Som de lauta.
Rebanho quieto
com olhar longo de paz.
Encostas floridas
se debruçam de beleza
para o aroma do espaço.
Sorriso do outono
cai triste e profundo
na tarde molhada
de chuva.
Ar manso do primeiro frio
enrola dores e lembranças
no manto do sentir.
O íntimo passou às pressas
para o silêncio do sempre.
A flauta parou agora
bem no meio do amar.
Não soube mais tocar
o que já era do eterno.

Bem de leve caminhar e lembrar


sem entristecer o presente
nem esconder a beleza do passar.
Não fala do ontem
nem foge do hoje.
Sabe que tudo está sempre andando
para outros lugares
até chegar ao perfeito não ser.

Bem de leve passa a ternura


pelo imenso do amar
até se desmanchar no eterno.

Queria que todas as coisas


fossem leves de bondade
e andassem no tempo,
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como a brisa,
que está sempre cantando
uma ária de ternura
para tudo de viver.
Que todo o sentir
caminhasse descalço no íntimo
e falasse em surdina
como a chegada do entardecer
nos olhos.
E quando as coisas tivessem
que partir
fossem como a rosa
que se desmancha em silêncio,
pétala a pétala
de beleza.

3. JORGE COOPER

O poeta Jorge Cooper é um alagoano da capital que nasceu em 1911. Além de Maceió, morou duas
décadas no Rio de Janeiro. Morou um tempo no Maranhão, em São Luiz, onde inclusive publicou o
livro Poemas quando em São Luiz, que era o seu preferido. Filho de pai inglês e mãe alagoana de
ascendência portuguesa, o poeta começou sua vida literária no final da Segunda Guerra Mundial. Os
poemas que apresentaremos aqui fazem parte da antologia Noite Nova: Vigília, que foi organizada
pelo poeta Sidney Wanderley e por Fernando Sérgio Lyra. A publicação é de 1991 e faz parte da
coleção “Viventes das Alagoas”.

TEXTOS

ENQUANTO EXISTE
Tenho que certa feita Cristo disse
A carne é fraca
E Mallarmé
que leu todos os livros
e como homem soube
o vício
— dizem que Mallarmé disse
A carne é triste
Fraca ou triste
triste ou fraca
certo é que na carne é que a alma é
Enquanto existe

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ANTES MESMO
Talvez o fim se dê
antes mesmo de voltar o sol
ou esteja ainda longe
para além de muitos dias
Que nem os raios de uma roda
à disparada
o fim avança
como se recuasse
— E recuando
me recusasse.

POEMA
Não ter pai
nem mãe
e tampouco irmãos
Ser como Adão
quando até a maçã
lhe foi imposta
— é não viver sob o peso
de saudades
remorsos
e lembranças
sempre à mão
Assim seria melhor
A vida teria sido imposta

POEMA DÉCIMO
A idade me diz
ser tempo de
passar a vida a limpo
— (Não custa passar a vida a limpo
Não lhe tenho é o rascunho)

POEMA
Minha vida
foi um mar sem porto
onde à noite
nem ao menos o olho de um farol
piscou
E quando era dia
o tempo vadio
só lhe mostrou
o azul vazio
de quem vem de ir
de onde não chegou

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VIGÍLIA
Na noite
relâmpagos lembram que tudo é sombra
O silêncio exterior perturba-me
Faz frio
Sensual como um tuberculoso
maldigo a falta que me faz teu corpo

POEMA VIGÉSIMO-NONO
Para que falar das coisas que não fiz
por esquecimento
e das que deixei de fazer
por serem lembradas
se as coisas que faço
logo que as faço
metem-se sob o véu
das lembranças inventadas

ESQUECIMENTO

Morto
o homem é de pronto
relegado ao esquecimento

Comigo
dá-se o contrário
É que me antecipo ao esquecimento
alheio

— Que minha memória se esvazia


de momento a momento
E eu próprio estou a me fechar
a porta
Antes do tempo

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