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O viajante do silêncio

Autor: Pedro de Lucena

Uma praia onde o mar chega devagar, e se vê estranhos passantes, entre sombras e
luares descobertos de nuvens. Águas mortas, descoradas, e na penumbra uma casa encara
o mar. Pede ao silêncio noturno uma esperança. Arvoredos inquietos, e entre eles a
presença admirável de um menino que surge como luz em trevas, entre espantos de uma
noite medonha, e caminha sozinho, cercado pelo vento e pela noite, esperando uma
estrada que possa levá-lo.

Era um menino triste e calado, trancado em seu mundo, onde muito do que acontece
seria envolvido em uma atmosfera de sonho. Poderia ser chamado de prisioneiro dos
sonhos e bastante senhor de si no experimentar do irreal.

O olhar de soslaio, de sempre perguntar ao mundo o que há para hoje. Um olhar de


escuridão, de mistério, como o olhar de um felino. Arguto e assustadoramente revelador de
tudo que está encoberto. Desmistificador do mundo. Do seu mundo feito de silêncios e dor.
Deve reter o olhar diante do inesperado susto e incômodo que causa aos outros.

No rosto tem a marca do eterno silêncio e dos olhos negros de carvão. Pode-se
enxergar que haverá muitas possibilidades de encontros e conflitos. Com trato de ser
delicado na aparência, diz ao mundo que pode ser tudo, menos um fraco, “não há espaço
para isso aqui”.

Nunca desce de suas alturas, de sua realidade desconstruída e feita de


elementos e fragmentos da poesia e tristeza. Pode-se ver e sentir, através de seu rosto
magro, essa magnífica sensação do juvenil prazer da criação, surpresa de alguém ser
apanhado pela emoção das palavras, artificialismo do homem feito Deus, obra excelsa dos
seres escolhidos e iluminados para glória dos céus.
Ele é um poeta e um emissário de um rei. Seus dedos escrevem dentro das páginas
negras e voam na paisagem fantasmagórica. Ele segura o lume das palavras de encanto e
vaga-lumes delicadamente pousados na sua fronte.

Chamam a ele pelo nome e esse nome deve ser o mais doce nome. O chamariam de
deus. Ele não é Deus, mas um anjo assim com essas confusões. Deve ser solitário no céu.
Nunca desceu um anjo aqui assim tão triste.

Perdido entre sombras o menino procura uma estrada, e entre espectros e sussurros
acha uma mão que o guia. Essa busca começa agora e a estrada o levará a si mesmo. Ele
está olhando e a sombra também espera por sua mão, e ambos devem esquecer seus
velhos nomes.

O menino parte e fica como as estátuas caiadas nas praças, com o mundo nas mãos,
suspende a respiração e diz seu nome entre olhares, e seu nome é de pedra e cal, brilha ao
sol. Ele sussurra e diz:

– Pedro!

E desce às sombras no porão e altares desses pés imobilizados. Sombras de um


mesmo nome que falam entre destroços de sonhos. Elas são parecidas e olham para o
menino:

– Nós nos chamamos Eco. Repetição de lamentos seus.

O menino diz que estará de viagem:

– Estou de partida para conhecer o mundo, poder desvendá-lo e retirar o véu que
cobre meus olhos.

Aquela companheira de solidão e tristeza está aflita com a separação e simplesmente


diz uma palavra, através das mãos que agora lhe cobrem os olhos:

– Vá e volte em breve para contar tudo que verá, as novidades. Apenas não me
esqueça.

Uma festa de despedida. Um memorial para ninguém, só para as sombras.


– Eu quero os sons de livros de poetas, sorrisos felizes, e como alimento esse pão de
lágrimas que são minhas tristes lembranças.

– Vamos dançar e sentir essa saudade nos aproximar e dizer o quanto nos queremos
bem.

Então a música, essa melodia da natureza, do mar e da noite, tocou solene. De cheia
a lua minguou e negra nova espreitou o casal. Luzes de longe...

Na casa vazia, em que o mar penetra pelos sentidos, um cheiro de brisa marinha
envolvia as paredes nuas, era de sal e saudade. Ele prepara malas e com elas o espírito de
partida, rompendo com o passado evoca o futuro, delicioso panorama de um novo mundo.
Xícaras e cafés, sabores de doces e bocas e esperança de novos horizontes.

Malas repletas e que nunca ficam todas de pronto alinhadas frente ao nervosismo.
Olha para o relógio na parede da sala, e o olhar no chão lambe a poeira do passado.
Debalde à reza implora. O mundo está inquieto e aperta o novo viajante nos seus braços.

O mundo trouxe motivos para colorir e traçar figuras no vazio. Uma praça que o sol
ilumina, cheiros de exóticas paragens e um sorriso que paralisa o tempo deixa povoado o
coração do menino. Ela era como pássaro, fada azul diáfana segurando o corpo esguio no ar,
etérea e como pluma branca, sua altivez translúcida e enigmática, olhando azul com olhos
de pedra rara.

Saltando no esverdeado da grama, veio, de tantas histórias, contar com boca rosada
que agora faziam parte de um mesmo enredo. Na curva suave dos seus cabelos, asas negras,
capturou os dedos e atou o coração do menino. De hipnotizar, com voz de maré cheia.
Como sempre esteve nos seus sonhos, devorando seu pensamento e acordando a alma do
sono. Demência suave dos nervos, assustadoramente viva.

Agora ele, que o nome guardava o amargor dos ecos, se vê num deslizar de uma boca
chamando seu nome:

– Pedro! Eu amo você!


Para sempre essa frase sonora e linda paira no céu, um vaporoso profundamente
azul. E no silêncio de uma tarde dadivosa seus nomes de par em par num beijo de
namorados. Era para isso que a fuga foi inevitável, e o lar prisão de um coração alado caiu
na força de um beijo que calou a tarde, o mundo, e o seu eco reverbera no poeta, no
menino e na moça daquela praça.

Nunca mais voltou e nunca mais se soube dele, apenas que era feliz e para sempre
desencantado pela bela menina da praça.

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