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NEON VERMELHO

Pedro de Lucena

Andando levemente cabisbaixo, suportando mal o silêncio das vozes, vazias de algo como de
espírito – gado, mugidos de incompreensíveis falares em tom de galhofa –, ele via um
masoquismo de animalia e um sadismo sobre-humano em medida diabólica. Ruas sitiadas de
medo pela escuridão ao meio-dia.

Em plena rua, escondido entre esquinas escuras, esquadrinhamento de qualquer cidade,


coração acuado e medroso, num fim de tarde entre asfalto e concreto, a massa de flores de
ipês amarelos perfuma o ar, cadenciando a dança da saudade. Uma igreja cinzenta, e numa
verde praça multidões furam filas, cosem caminhos paralelos entre as estrelas que estão
escondidas, salpicadas na escuridão das ruas e das almas; e surgem almas, e surgem no ar
misteriosas ondulações, um canto, uma oração de ordem muito branca.

Muitos progressos surgem nas cidades, e aquele coração medroso de menino calado, entre
vozes vazias sem limites, escolhe numa jogada de sorte a estranha melodia, de entre escolhas
de morte e vida.

Ele caminha, salta, por entre os paralelepípedos luzidos, azuis, esbarra, abre caminho à força
entre suor e corpos desatentos, mutilados, aleijões, na mente psicose, estão todos possessos.
Vê-se as muitas faces grotescas de cansaço, duras carantonhas de gárgulas. Ferozes como cães
danados, raivosos, suspirando e publicamente lambendo as partes pudentas.

O jovem se insurge contra essa muralha de carne viva e volátil, escapando dos apertados
tentáculos do povo, miríade do incompreensível, do doentio e áspero gotejamento. Suspira
versos alheios como mantras, esconjurando o mal.

Súbito escapa-lhe o ar, vêm visões, distantes passados, fragmentos de juras amorosas,
perturbações alucinantes. Abre a boca, sente-a seca e espinhenta, diz sonoramente um nome,
um chamado de evocações de mortos.

“Deus seja louvado! Estela!” – disse o homem.

Devorado no círculo de fogo, desapercebido de um mundo objetivo, caiu nos olhos daquela
mulher, sereia encantadora.

Ela balbucia, e sorrindo devolve a resposta à queima roupa:


“Poeta, do meu silencioso coração cuidava que estavas morto.”

“Duro até agora como um teimoso”.

Essa cena de balcão, rosetada e floreada, despercebida ao entorno, estava cheia do onírico dos
desacordos da vida. Olhos cruzando reminiscências, devorando migalhas de lembranças. Suas
lembranças dele e dela, mimetismo de cores impensáveis, vermelho, branco, verde, amarelo.
Estendem os braços num aperto que escapa todo espaço, só havia seu cheiro, seu tato
tatuando sensual idílio urbano, seu gosto era ainda o mesmo.

De repente, tudo vem assim, sorrateiramente, no silencioso reconstituir da realidade.

“Como mudou minha fada diáfana, como está parecida com essas mulheres virtuais
produzidas no artifício de um instante histérico do mercado nas vitrines ...”.

Ele estava entrando muito assustado no espaço dos seus medos e estranhamentos, onde cada
um possui a constituição paralela à sua própria carne, e em cada átomo, seu espelho perdido,
seu rosto nesse labirinto de vidro e reflexos distorcidos, sua face derretida, liquida, metal,
prata e cortante.

A cidade inteira muito aberta, e em cada cubo sólido de concreto e aço muitos cenários
polidos, brilhantes, e a mobília sempre a mesma de vazio e peso. Deveras há o minimalismo
decorativo usual em todos os espaços, de todos os cômodos de todas essas moradas, do
mesmo tom de cinza e branco opaco. Essas são casas do nada, e ele abre suas janelas,
contempla de sacadas flores de plástico mortas, e a cidade, sua perdição de jovem alarmista,
poeta patriota e imberbe.

Apanha poemas esquecidos nas gavetas, os hinos das revoluções, bandeiras sangrentas, cores
fortes, coral e tinto sangue de desfraldar nos céus e agitar sonhos, na negra noite do seu
renascer de fênix engaiolada. Cantou melodiosamente a ária distante e fria do uirapuru
desconsolado: Acabou! Acabou!

E ele reverbera indiferente poema, percorreu quadras e salas desabitadas, tocou corpos vazios
e sorriu sem vontade, e era tudo o mesmo. Cenários, personagens, sala, quarto, praça, rua,
tudo era ele caindo na tediosa vertigem de estar em si.

O jovem vergado em seu espírito de cavaleiro andante, pousado entre o aqui e agora e entre o
longínquo passado do espaço, feito do quase nada, quase esquecido e sepulto pendão dos
frutos do desvario, encantamento dos artistas, cujo nascer e morrer cabem numa caixa de
papel, de telas de computadores, ou na derradeira enquadrada caixa negra de madeira.
Ele estuda suas maneiras, seu pesado semblante, notívago das ruas entrincheiradas; surta, e
deveras embevecido, encantadoramente distraído do caos mundano, para um momento e
abre a boca suave, canta um verso branco e nostálgico como quem balbucia palavras de adeus.

Ele faz tudo novo de imaterialidade e sonho. Está vitimado por não caberem nele tantas
vontades, seus delírios, e provoca com essas palavras, como mago, o fim dele com relação ao
real. Certamente está quebrando selos, quando ainda eram de barro ou lacres cerosos.
Nenhum estrondo se ouviu, anjos não foram lançar maldições apocalípticas, nenhuma
inconstância da experiência de normalidade. Tudo tão óbvio, tão quieto, que beirava a
suspeita de algum crime hediondo. Mas era apenas a morte do encantamento por outro no
lugar. Poeta cruel do inverossímil, de despedidas e adeus. Encantado ficou para sempre e
calou.

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