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PEQUENA HISTÓRIA DA MENINICE

Arriéte Vilela Costa

Eu teria muitas histórias para te contar sobre minha meninice numa cidadezinha de interior.
Não fosse essa pressa de viver. De hoje estar aqui contigo. De amanhã ter que partir. Cigana. Como
sempre me soube. Um nomadismo que, às vezes, me assusta. Mas sempre me encanta.

Eu te poderia falar, por exemplo, da vez em que fui, com minha mãe, olhar um baile na
Sociedade Santa Clara. Meu pai havia saído já há algum tempo. Minha mãe me mandou vestir o
vestidinho amarelo, novo, todo bordado a mão. Lindinho para os meus olhos de menina. Fiquei
muito alegre de poder vestir aquele vestido bonito, pois quase nunca havia uma festa onde eu
pudesse ir tão arrumada. Minha mãe estava particularmente bela naquela noite. Seus olhos
faiscavam, denotando uma estranha alegria ou alguma outra coisa que eu não podia entender. Eu
era, então, muito menininha. Entendia pouca coisa das pessoas grandes. Naquela noite, eu entendia,
por exemplo, que a gente se aprontava para ir ver pessoas dançando, contentes, numa festa.
Entendia que eu devia estar bonitinha, pois me olhei várias vezes no espelho e me sorri, vaidosa de
mim mesma, da minha faceirice. Entendia que minha mãe estava também bonita naquele seu
vestido azul-escuro, presente do meu tio marinheiro, quando de uma de suas visitas a minha avó.
Entendia, ainda, que meu pai, saído antes da gente, tinha a cara meio zangada, como sempre, aliás,
mas que estava bonito como um daqueles artistas que, às vezes, eu ia ver no Cine Alvorada, de
propriedade do velho Cícero.

Mas havia alguma coisa que eu não entendia. No olhar de minha mãe. Na saída antecipada
de meu pai, carrancudo e grosseiro. E na admiração de minha tia quando nos viu prontas, de
perfume passado no corpo todo. Ela disse para minha mãe: “tome cuidado”, mas eu não sabia por
que nós teríamos de tomar cuidado, se íamos a uma festa num lugar de tanto respeito como era a
Sociedade Santa Clara.

Eu já estava, de certa forma, impaciente. Receava amarrotar o meu vestido novo. Queria
chegar ao baile antes que desaparecesse o perfume que eu passara tão caprichosamente nos cabelos
e nos braços magrinhos. Minha mãe conversava em voz baixa com minha tia. Eu não entendia sobre
que elas falavam, pois minha atenção era toda e unicamente para mim mesma que, diante do
espelho, atentava para este ou aquele detalhe como, por exemplo, a meia do pé esquerdo, que
teimava em escorregar. Eu me virava e revirava, olhava-me contente, achando-me bonita, faceira,
encantadora, embora estivesse indo para uma festa exclusivamente de adultos. Talvez, quem sabe,

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Julo também fosse, acompanhando os pais, e, aí, nós nos olharíamos com a mesma doçura e a
mesma cumplicidade com que nos olhávamos e nos sorríamos quando eu descia a ladeira da
pracinha, montada na bicicleta alugada, e ele me jogava caroços de milho nas costas morenas.

‒ Anda, menina.

Assustei-me. A voz de minha tia pareceu-me irritada e nervosa. Não sei o que elas se
disseram baixinho, mas creio, hoje, que minha tia não botava muito gosto na ida de minha mãe
àquele baile. Flagrei um ar de preocupação e aborrecimento no seu rosto magro e grave, enquanto
ela me empurrava indelicada e distraída, para a porta da rua, ao mesmo tempo em que repetia:
“anda, menina, anda”. Tive raiva dela naquela hora. Uma raiva trôpega, de vaidade magoada. Suas
mãos, nos meus ombros, me pareceram pesadas; amarrotavam as mangas curtas e fofas, tipo coco,
do meu vestidinho amarelo e novo.

‒ Já ‘tou indo, tia. Precisa empurrar não.

Ela então me olhou. Mas tão ligeira e distraidamente, que sequer me disse um elogio, um
tolo e opaco elogio, nem esboçou um sorriso que atestasse a sua aprovação da minha brejeirice. Ela
não percebera a minha boniteza, o meu vestidinho bordadinho, o esmero com que eu me aprontara
para aquela festa antecipada e sonhadoramente vivida.

Fomos a pé, minha mãe e eu. Numa cidadezinha de interior, as distâncias são curtas.
Subimos a ladeira que contornava a praça, rumamos pela rua do Carmo e avistamos a Sociedade
Santa Clara. Vi um aglomerado de gente à porta. Meu coração saltitou, flutuante de contentamento.
Ajeitei a saia do vestido. Levantei as meias, enquanto minha mãe, disfarçadamente, retirava da bolsa
um pequeno pente com que alinhou os cabelos. Senti vontade de perdir-lho. Todavia, contive-me,
acanhada de me mostrar tão vaidosa.

À porta da Sociedade, que era uma velha casa pintada de azul e grená, com um vasto salão
iluminado, as pessoas se comprimiam para entrar ou para conseguir um lugar junto às janelas. Minha
mãe abriu caminho entre aqueles homens rudes que, de má vontade, lhe facilitavam a passagem. Eu
ia atrás dela, segurando-lhe fortemente a mão. Ninguém ligava para mim. Assim que minha mãe
passava, as pessoas voltavam a se apertar, a se comprimir, pressurosas por não perderem o lugar, e
eu me sentia sufocada entre aquelas pessoas grandes que, em momento algum, repararam em mim.
O meu vestidinho amarelo, novo, bordado a mão, ia-se amarrotando tristemente. A custo eu
conseguia acompanhar a minha mãe e, só após um dezena de pisões e empurrões, vi-me afinal no
salão. Olhei-me. No empurra-empurra, a faixa de cetim que laçava a minha cintura e fazia-se num
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vistoso laço, tinha suas pontas caídas e sujas, pois o laço se desmanchara e, por ser ela grande,
haviam-na pisado com inescrupulosos sapatos ou sandálias de couro. Cutuquei a minha mãe, para
que ela novamente desse o laço do meu vestido. Mas ela, inquieta, buscava meu pai com uma
sofreguidão dilacerante nos olhos. Tentei me ajeitar. Não podia dar o laço, pois que era na parte das
costas. Fiquei sem jeito, com aquelas duas tiras de fita larga na mão. Olhei os pés, tímida e
desconsolada. Os sapatos de verniz haviam perdido aquele brilho que eu conseguira à custa de tanto
esfregar, à tardinha, um pedaço de flanela sobre eles, num elogiável trabalho paciente. E então me
senti feia, desarrumada, insignificante. Minha mãe catava meu pai que, afinal, apareceu, sorridente e
galanteador, conduzindo uma jovem mulher ao som frouxo da música, quando a orquestra trouxe
para o salão os primeiros pares dançantes. Abraçadinhos, num enleio admirável, pareciam muito
contentes de estar um com o outro. Volteavam para lá e para cá, ora perdendo-se entre os casais ora
reaparecendo, esquecidos de tudo o mais. Minha mãe estava lívida de cólera. De pé, acompanhava a
dança e quando perdia o meu pai de vista, ficava numa aflição comovente. Naqueles momentos, eu
me esqueci de mim mesma e, agora, olhava minha mãe que, por sua vez, olhava ferozmente para o
meu pai. Quando ele passou por perto de nós, ela não se conteve:

‒ Largue essa rapariga!

A orquestra abafou a ira das palavras com que minha mãe abordou o marido. Ele, no
entanto, cínico, fez-se de ouvido de mercador e, ligeiro como um gato, conduziu sua parceira para o
meio do salão. Tive medo ‒ uma constante da minha vida de menina sofrida. Eu sabia das crises de
raiva e de ciúme de minha mãe, aquela mulher desesperadamente apaixonada pelo marido, o meu
pai, um sujeito namorador, mulherengo, safado ‒ um verdadeiro Don Juan de cidadezinha de
interior. Ao perceber que o meu pai se escondia entre os casais, ela se meteu entre os pares,
iniciando uma patética caça ao marido. Se eu ficasse parada, perder-me-ia dela, porque, embora hoje
a Sociedade Santa Clara me pareça um pouco maior do que uma sala de aula, na época da minha
meninice, para o meu tamanhinho de criança franzina, aquele salão assumia proporções deveras
grandes. Então, segurando desajeitadamente as pontas da faixa do vestido, a espiar com tristeza o
desalinho da minha roupa e das minhas meias, lá fui eu, salão afora (ou adentro?) atrás de minha
mãe. Os casais que dançavam davam encontrões terríveis em mim. Alguns se irritavam e cheguei
mesmo a ouvir alguns xingamentos censuráveis. Senti uma tristeza mortal. Uma decepção amarga e
profunda. Aquela festa brincara na minha fantasia por dias inteiros. Aprontara-me cuidadosa e
minuciosamente e, assim tão de repente, o encanto desmoronara. Vieram-me lágrimas aos olhos
entristecidos por tantas coisas outras. Parada, idiotamente parada no meio do salão, permiti-me
chorar, posto que fosse um choro cortado, inibido, receoso de chamar a atenção das pessoas.

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‒ Anda, menina, deixa de ser lerda.

Minha mãe me arrancou daquele alheamento. Rapidamente me levou para a rua, ao fresco
da noite.

‒ Já vamos? E a festa?

Silêncio. O caminho apressadamente percorrido. Eu segurando as pontas da faixa de cetim.


Na alma, uma sensação opressiva de fracasso, de injustiça, de desilusão.

A casa. A chave rodando agoniada. Silêncio danado zumbindo dentro de mim. Tristeza
doendo na mão a desafivelar o sapato. Minha mãe interrompida no gesto de tirar a blusa. Um grito.
O meu susto. Meu pai saindo de detrás da porta do quarto e, traiçoeiro, a bater no rosto de minha
mãe. Aquele lance de traição e de agressão me desconcertava o entendimento. Como meu pai
chegara antes de nós? Por que tudo aquilo? Eu olhava os dois a se baterem, a se maltratarem tão
estupidamente como dois animais famintos. Atracavam-se, separavam-se, enfurecidos como
inimigos terríveis. Minha mãe se defendia da melhor maneira que lhe era possível. Vi que ele levava
uma grande vantagem. Eu tinha o meu sapato na mão. Instintiva, lancei-me sobre o meu pai e meti-
lhe o sapato nas costas, uma, duas, dez, cem vezes. Descontrolada, numa histeria provocada pela
danosa surpresa do acontecimento, eu batia e batia, sentindo-me miúda e forte. Puxei-lhe os
cabelos. Mordi-lhe os braços. Chutei-lhe as pernas. Pasmo com a minha atitude, ele largou a minha
mãe e se voltou para mim, a princípio apenas espantado, mas logo depois raivoso, mau, ofendido.
Tinha um olhar diabólico. Empurrou-me violentamente para um canto do quarto. Mas eu investi
outra vez, possuída não sei de que força. E aí ele me bateu como se eu fora um miserável animal.
Tapas, solavancos, empurrões. Possesso, enlouquecido, ele me desconhecia. Esquecia-se de que eu
era a filha mais dedicada e carinhosa, a que o consolava quando ele e minha mãe se separavam, após
discussões acaloradas que sempre resultavam em brigas e troca de alguns safanões. Esquecia-se de
que era eu quem lhe levava a comida e conversava com ele nos seus momentos de dolorosa solidão
e arrependimento (porque meu pai, embora agressivo sob o efeito do álcool, era visceralmente um
homem bom). Esquecia-se, sobretudo, de que eu era uma menina doentinha, magra e assustada. E
me batia, a descontar um revoltante ódio em cima de mim. Minha mãe gritava, alucinada, para que
me largasse. Acorreram alguns vizinhos, apesar do adiantado da hora. Eu vi o rosto de dona Flora e
de seu Inocêncio, ambos contendo uma expressão arregalada de horror e de piedade. Mas o sangue
me fechava os olhos e eu me sentia morrer. Agarraram meu pai, tiraram-me de suas garras. E então
desmaiei de tanta pancada e de tanto maltrato.

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Sofri amargamente por muitos e muitos dias. O corpo era uma ferida só, porque todo ele me
doía desesperadamente. Inchações, hematomas, dores e dores. Uma manhã, quando consegui falar,
perguntei ao meu avô, um pobre velho que não deixara um só instante a cabeceira da minha cama:

‒ Vô, cadê meu pai?

Ele me tomou as mãos, carinhoso e humilde. Estaria chorando o meu avô? Tentei virar-me
para ver seus olhos, mas as dores eram tantas que permaneci quieta.

‒ Vô...

Meu avô era um homem muito bom. Gostava de mim, gostava muito, embora fosse seco nas
demonstrações de afeto. Presenteava-me sempre com bonecos e animais feitos de sabugo de milho.
Às vezes, quando chupávamos melancia, ele passava um tempão à mesa, logo após o almoço,
recortando figuras na casca da fruta. Nós ríamos, cúmplices e felizes. Inventávamos historinhas ‒ até
que minha avó nos expulsava da mesa.

‒ Vô...

‒ Tem uma amiguinha sua aqui. Quer ver?

Meu avô se levantou e foi chamar a minha amiga de escola. Era uma menina muito inquieta,
muito viva, inteligente e de língua solta. Eu gostava dela porque, onde estivéssemos, eu nunca
precisava falar e me escorava na sua tagarelice. Eu fechava, assim, cada vez mais o cerco da minha
timidez.

‒ Tá melhor?

‒ Assim...

‒ Quando vai voltar para a escola?

‒ Sei não.

E ficávamos a nos olhar. Ela era um ano mais velha do que eu. Tinha um jeito alegre e
descontraído de moleque. Gostava de brincar com os meninos da rua. Quando brigava com eles,
chamavam-na de “maria-homem”. Usava o cabelo sempre muito curtinho e tinha feições andróginas.
Era uma menina bonita. Eu gostava dela, sobretudo porque era carinhosa e paciente comigo.
Compreendia e respeitava o meu mutismo, o meu jeito desconfiado e triste. Dava-me santinhos de

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papel que eu colecionava gravemente, e figurinhas para o meu álbum. Protegia-me na escola,
quando as meninas zombavam de mim por causa do meu isolamento. Aquela menina era leal na sua
amizade e eu gostava sinceramente dela.

‒ Trouxe isto para você.

Ela colocou, junto ao travesseiro, uma boneca de pano, uma dessas bruxinhas que as pessoas
compram nas feiras.

Eu senti uma ternura soberana pela minha amiga. Olhei para o meu avô. Ele nos sorriu.
Percebi-me muito feliz naquele momento.

E os dias iam-se acabando. Vinham outros, nem sempre melhores. Todos os dias, por várias e
várias vezes, eu perguntava às pessoas pelo meu pai. Eu não o havia mais visto, desde aquela noite
infeliz. Minha pergunta ora ficava sem resposta, ora recebia respostas evasivas.

‒ Vô, eu queria tanto saber do meu pai. Fala, vô...

‒ Ele vai bem, sossegue. Ele vai bem.

Foi só quando fiquei curada que soube do meu pai. Arrependido e desesperado, ele havia
dado um tiro no coração.

(Conto premiado pela Academia Alagoana de Letras ‒ 1980)

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