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AÇORIANIDADE

Este termo inventado por Vitorino Nemésio, representa, ou pretende representar, algo muito
difícil de explicar a um não ilhéu. Na minha modesta e humilde opinião, o termo serve para
identificar uma forma muito peculiar de quem vive ou viveu numa ilha, e muito especialmente
num arquipélago, perdido algures no Atlântico Norte. O isolamento, o clima agreste e por
vezes inclemente, determina uma personalidade rude e batalhadora, que diariamente luta
para vencer todas as adversidades que esta natureza arrebatadora lhe impõe. Esta natureza de
uma beleza estonteante, chega por vezes, a ser “madrasta”e que, requentemente, se
manifesta por uma actividade sísmica e vulcânica, com uma crueldade assustadora. O mar
imenso que nos rodeia, serviu sempre como uma porta de entrada e de saída à nossa imensa
diáspora, mas também por manifestações de uma braveza que nos impõe enormes
dificuldades de isolamento e comunicação, lembrando sempre a nossa infinita insignificância!
Foi também este mar que, em tempos idos, traziam piratas que nos faiam recuar para partes
remotas e escondidas entre montanhas, grotas e penhascos quase inacessíveis, como único
meio de defesa e sobrevivência.

Mas este pedaço de chão que tanto nos amargura, também nos faz despertar um tamanho
sentimento de apego á terra, que mesmo quando estamos longe, ele persiste no mais fundo
dos nossos corações. As razões para tal são desconhecidas, pelo menos para mim. Serão talvez
os usos, costume e tradições distintivas e peculiares, que nos fazem sentir um orgulho
indisfarçável. Será, provavelmente, esta(s) pronúncia(s) tão característica que trazem à
memória uma herança. de muitos séculos de história e de origens muito diversificadas,
misteriosas e mal conhecidas, e a que o isolamento preservou até aos nossos dias.

Por outro lado, o apego e amor á terra é algo que está indelevelmente preso á alma do
açoriano, traduzindo talvez, uma incompreensível dualidade de temer o mar que lhe é adverso
e, esse mesmo mar que lhe dá o sustento e o portal que o liga ao mundo, quando quer ou
necessita sair!. Foi também o mar que tornou o ilhéu em aventureiro, quando o foguete
estoura e indica o chamamento na caça á baleia, ou ainda lhe dá o espírito pioneiro e
destemido de cruzar oceanos, numa frágil casca de noz, em busca de um mundo melhor, como
no caso descrito no “Barco e o Sonho”. Esta dualidade também se vê no amor à terra, por tudo
aquilo que ela lhe dá: o solo fértil onde pode extrair quase tudo, a abundância de água, o clima
temperado, a beleza das paisagens que o rodeiam. A quietude das lagoas e a explosão de cores
das nossas hortências, azáleas, conteira, para falar apenas nas mais exuberantes. A beleza e
calmaria das madrugadas e a observação de um por do sol em direcção ao ocidente, o elevado
teor de humidade, que nos dá a fertilidade dos nossos solos, também nos carrega com o peso
da “mornaça” e nos retira, por vezes, a vontade de continuar a luta. Todos estes contrates
tornam o ilhéu num ser melancólico e contemplativo e sempre grato e reconhecido à Mãe
Natureza, pela graça de aqui ter nascido.

A personalidade do açoriano pode ser definida numa matriz de enorme recato e desconfiança
perante aquilo que é novo e exótico, para logo se transformar numa sincera hospitalidade,
logo que se quebra o gelo inicial. As muitas dificuldades que a vivência na Ilha determina, fez
do açoriano um ser inconformado e que nunca desiste perante as dificuldades. A mais
eloquente prova disto são os ciclos económicos que determinaram a vivência e a subsistência
dos açorianos. Começou primitivamente com o ciclo do pastel durante a idade média, para
quando este acabou se dedicar à produção de cereais. Quando este entrou em declínio. Surgiu
o ciclo da laranja. Concomitantemente com isto, o espírito inovador e empreendedor levou o
açoriano a experiências únicas, como a produção de chá e de frutas exóticas, que ainda
persistem nos dias de hoje. O ciclo da produção leiteira fez dos produtos lácteos açorianos
uma referência quer internamente, quer em mercados externos, particularmente exigentes.
Assistimos agora a um momento de viragem, com o aparecimento e desenvolvimento da
indústria do turismo. Não verga perante a adversidade, como também nunca se conformou,
com a negação aos seus mais profundos e legítimos sentimentos autonomistas. Talvez por isso
o nosso brasão de Armas, tem como legenda. Antes morrer livres que em paz sujeitos.

Eu diria que a personalidade de um açoriano assenta numa matriz de contrastes que lhe
conferem esta vontade de aventura, gratidão, conquista e sobrevivência ás agruras que a ilha
lhe impõe, numa constante vontade de partir, sem nunca esquecer o som do mar que o
rodeia, ou o cheiros, das flores, do salitre do mar, ou da terra molhada. Reflectida
eloquentemente na sua cultura popular com a tristeza da Sapateia e a alegria de uma
Chamarrita.

Foram muitos destes princípios que marcaram a vida e obra dos nossos maiores: Antero de
Quental, Manuel de Arriaga, Francisco de Lacerda, Vitorino de Nemésio, Dias de Melo ou
Natália Correia.

A terminar, gostava de aqui deixar nota de algum constrangimento na abordagem deste tema,
que a intelectualidade açoriana trata de forma muito mais assertiva e cientificamente
sustentada, por um leigo na matéria como eu. Sou um açoriano que deixou a ilha, e que vive e
adora a cidade de Santarém, que o acolheu no seu seio há mais de cinquenta anos. Sinto e vivo
esta cidade, como se aqui tivesse nascido. Mas a ilha nunca deixa de estar presente, na minha
forma de ser e de estar. Alguém referiu um dia que: O ilhéu pode sair da Ilha. Mas a Ilha nunca
sai do Ilhéu! Esta frase reflecte, de forma eloquente, esta coisa de ser e sentir-se açoriano, e
que alguns designam por Açorianidade.

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