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Carlos Cardeal de Araújo

O TERRA E MAR

Secretaria de Educação

Camocim-CE
2019
S E RO
T Ã
CULT
O Terra e Mar
Copyright ©1988. Carlos Cardeal de Araújo. 1ª edição. Fundação Dolores Lustosa. 1988.
O Terra e Mar. 2ª edição. 2019. Texto revisto conforme as regras do novo Acordo da Língua Portugue-
sa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995).
Impresso no Brasil/Printed in Brasil.
Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional.

S E RO
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CULT
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Conselho Editorial
Adriana Brandão Nascimento Machado
Carlos Augusto P. dos Santos
Isorlanda Caracristi
Nilson Almino de Freitas
Regina Celi Fonseca Raick
Telma Bessa Sales
Virgínia Célia Cavalcante de Holanda

Coordenação Editorial e Projeto Gráfico


Marco Antonio Machado

Revisão
Antonio Jerfson Lins de Freitas

Foto da capa

Catalogação na publicação
Leolgh Lima da Silva – CRB3/967

Para Rosa e Zé.


Prefácio à 1ª Edição O enredo nos leva a prazerosos passeios pelo Farol Sem Nome, pelas praias
das Barreiras, Canoas e ainda nos apresenta de forma detalhada as riquezas ar-
quitetônicas da nossa Camocim, com ênfase na Igreja Matriz Bom Jesus dos Na-
vegantes e suas relíquias sacras e pontos turísticos importantes da nossa orla ma-
A literatura brasileira está se renovando. Renovando seus costumes. Mostran-
rítima e entorno: Cais do Porto, Pensão Uruoca, Estação Ferroviária, Prefeitura
do novas visões do mundo, novas perspectivas para as relações dos homens na
Municipal, Praça do Coreto, Camocim Clube e Balneário Sport Clube.
terra. Revelando, no cotidiano, o que não se deve repetir e sim transformar. E
nada disso veio do além, da fantasia, de um disco voador, nesta novela muito Valoriza o costume cotidiano dos moradores na espera do trem e dos ônibus,
bem humorada escrita por Cardeal. mesmo sabendo que estes na ocasião não conduziam conhecidos ou parentes;
a participação fervorosa dos fiéis nos novenários, arraiás, quermesses e leilões;
Os personagens de O TERRA E MAR são homens e mulheres reais, vindos
a beleza e tradição da procissão de São Pedro, cuja data é feriado municipal; as
de “outras terras, em grande parte”, para manter o conteúdo ficcional, como o eternas quizilas políticas; um dedinho de prosa e alguns acertos de contas no
próprio Cardeal faz questão de ressaltar. São os personagens desse movimento Mercado Público, onde é apreciado o cardápio regional.
permanente de partida do homem e da mulher que buscam um lugar mais segu-
ro e tranquilo para trabalhar e nem sempre são atendidos. Com muito humor, ironia e algumas gotas de sarcasmo, nos leva ao até en-
tão desconhecido e estigmatizado mundo da prostituição, onde além de bebidas
Nesse contexto, Cardeal denuncia o bairrismo, a traição, mostra a solidarie- para todos os gostos e bolsos, fala das danças de salão e coreografias criadas pe-
dade e o companheirismo. Fala com simplicidade e energia dos dramas vividos las meninas do Terra e Mar, jogos, costumes, truques, crendices, mitos e folclore.
pelos moradores de Camocim, os conflitos com os “visitantes” que chegam para A requintada casa da luz vermelha era frequentada por diversas camadas sociais,
“ficar um pouco e terminam ficando por longo tempo”. Às birras e desentendi- incluindo os homens de branco, porém o público predominante são os pescado-
mentos com o poder local e deste com o de fora. As simpatias, amores e desespe- res e boêmios. Nesse ambiente de boa música, luzes, risos e prazeres é enfatizada
ro de nossa gente. a importância da lei e do respeito e, para o conhecimento de todos no cabaré,
Com todas as dificuldades: o porto que não foi drenado, a obstrução da barra, existia um código de ética que era expresso através da citação latina dura lex sed
as superstições do povo. E com todas as belezas naturais e artificiais: as salinas, lex. Para seguir os rigores da lei são necessários sacrifícios, os lascivos homens
a beira-mar, o rio da Cruz. a praia das Barreiras, as ruas, becos e casas, que hoje frequentadores do bordel que o digam, pois quando se excediam eram imediata-
já não existem mais. mente contidos pelo cáften com a expressão “aportuguesada” “lei dura, porém
lei”. Nesse paradoxo, as mulheres são exploradas, diminuídas e ridicularizadas
Cardeal é um personagem novo dessa safra nova de escritores. O TERRA E pelos rufiões, malandros e falsos moralistas.
MAR é fruto de um longo processo de estudo de personalidades e tipos de com-
portamento dos homens, da literatura de cordel e de sua terra. E a homenagem Cardeal faz uma significante abordagem quando discorre sobre certos nú-
de um cearense ao desenvolvimento do Ceará. Um protesto contra o desentendi- cleos familiares, e através do comportamento dos seus personagens demonstra
mento dos homens e a confissão apaixonada pelas belezas naturais de Camocim. conhecimento sobre a pesca artesanal e suas dificuldades, o caos social das peri-
ferias, a favelização da vila dos pescadores e ainda os conflitos e mazelas sociais
Paulo Lustosa que assolam as comunidades desde sempre. Denuncia com maestria o latifúndio,
oligarquias, traições, crimes, exploração, violência, desequilíbrio social e econô-
mico.

Prefácio à 2ª Edição Para abrilhantar e sacramentar com uma roupagem nova, O Terra e Mar conta
com a brilhante contribuição da historiadora Petrília Paulinni Pereira Sales Fialho
com o título: O Terra e Mar: Uma História do Profano em Camocim Ceará. 1940-1980.

Carlos Cardeal de Araújo, através do romance O Terra e Mar, nos mostra Ca- O trabalho científico desperta doces lembranças e nos reporta a um grupo
mocim de forma desnuda, sem maquiagem, porém com a beleza genuína que remanescente de mulheres residentes na vila do Terra e Mar na década de 1980,
lhe é peculiar. Ressalta a grandiosidade, silêncio, paz e deslumbre do cenário ocasião em que a Igreja Católica desenvolveu um trabalho social intitulado Ni-
que envolve a Pracinha do Amor, a encantadora balaustrada, o brilho do luar nho: a Pastoral da Mulher Marginalizada. As mulheres citadas na entrevista foram
refletido nas águas serenas do Rio da Cruz, o fascínio das dunas e o mistério dos assistidas através das parcerias: Igreja, Prefeitura Municipal e Colônia de Pesca-
manguezais. dores Z1 de Camocim.
Petrília Paulinni Sales Fialho, com profissionalismo contribui para que as pes- O TERRA E MAR.
soas, movimentos históricos e acontecimentos importantes não entrem para o
esquecimento e ainda possibilita agregar o aspecto real à ficção romanesca de
Carlos Cardeal de Araújo. Carlos Cardeal de Araújo
Carlos Augusto Pereira dos Santos, com a bagagem de escritor, historiador e
professor, acredita nos seus ideais e de forma altruísta empreendeu energias e
construiu o projeto: O Terra e Mar. Roteiros Históricos e Sentimentais de Camocim na 1
obra de Carlos Cardeal. O referido trabalho demandou tempo, custos, sensibiliza-
ção dos gestores municipais e outros envolvidos.
A obra literária ora apresentada com certeza contemplará além dos adultos, A noite desce sobre a cidade. Os retardatários boêmios que estavam a ouvir
também as crianças e os adolescentes, pois a proposta didática contribuirá para o canções em casas de jogos e em cabarés, já se tinham ido. A Praça do Amor, como
crescimento e gosto pela literatura. é chamada pelos que amam, está deserta e com as luzes apagadas. É sempre
Carlos Augusto Pereira dos Santos, com grande conhecimento de causa e assim quando chove. Os bancos de cimento que circundam a praça, geralmente
aproximação com a obra de Carlos Cardeal, emociona e revela aspectos da per- quentes, ora pelo calor dos traseiros, ora pelo sol, agora estão gelados pelo sereno
sonalidade do escritor e seu humor escrachado, conforme palavras do próprio, frio que cai desde o início do dia. Os botecos e casas de comidas típicas que com-
e acima de tudo através do roteiro sugerido e playlist contidos no projeto, Carlos põem a vida noturna do lugar fecharam suas portas. A cidade dorme.
Augusto faz a coloração e dá sonoridade à obra. O céu, de nuvens cor de chumbo, ameaça desabar sobre a cidade que parece
Carlos Cardeal nos convida a reflexões permitindo a lembrança do lançamen- desabitada. O mar, calmo, tornou-se mais escuro, nenhuma estrela empresta-lhe
to da primeira edição de O Terra e Mar ocorrido há exatos trinta e um anos. Tempo um pouco do seu brilho; nem a lua veio para fazer seus raios cristalinos penetra-
esse, que se fosse um casamento, chamaríamos de bodas de madrepérolas, onde rem nas águas calmas do Rio da Cruz. Somente - ao longe, do outro lado do rio,
bodas significa promessa e compromisso. Dessa forma, sem sombra de dúvidas, pequenos candeeiros a gás, tremem indiferentes à umidade da noite. Uma grande
fomos agraciados pelos escritores com uma linda, completa e eterna declaração quantidade deles, formando filas, do outro lado do rio, ao pé dos mangues,
de amor a Camocim. facilitam aos pescadores a apanha de pequenos camarões que servirão de isca no
dia seguinte. De toda a orla marítima, a cada anoitecer, os mais diversos tipos de
casais contemplam os candeeiros a tremeluzirem do outro lado do rio da Cruz.
Graça Cardeal Nesta noite, porém, apesar de mais nítidos devido à calmaria do rio e à escuridão
predominante, ninguém os contempla, nenhum corpo rolando na areia da praia,
a ver entre suspiros, a luz minúscula e viva que cada um ostenta aos pés dos
mangues.
Silêncio e solidão predominam entre os mangues sob o céu nublado, nem o
vento, companheiro constante dos pescadores, nem a lua, mais rara, portanto
mais amiga, vieram naquela noite embelezar o panorama É visto apenas pelos
pescadores mais humildes. Sobre o Rio da Cruz, rodeada pelos mangues, desliza
docemente, uma mal trabalhada canoa, e, sobre ela, um ancião de longas e alvas
barbas deixa-se levar pela correnteza. Seu nome, ninguém sabe. De onde veio,
tampouco. Se àquela hora da noite, em passeio pelo Rio da Cruz, alguma pessoa 7
não pertencente à laia dos pescadores o visse, assombrar-se-ia com certeza, e no
dia seguinte amanheceria contando o que viu com uma porção de exageros como
sóe acontecer. No entanto, aquela cena, aos pescadores não mais espanta, pois
já conhecem de há muito aquele estranho homem que nunca dirige a ninguém a
sua palavra. Diariamente, quer venha a lua dourar nas águas do rio, quer venha
a chuva ou o vento quebrar o seu encanto, lá está sempre o velho Eremita das uma noite sem a importunação das águas. Luiz arriou as malas e sentou-se. Rita
Salinas a singrar as águas calmas do Rio da Cruz, até altas horas da noite, como o imitou, sempre a reclamar de tudo. Ele forrou o chão e deitou-se, ela continuou
se estivesse a saldar um compromisso especial com o destino. Sem dificuldade sentada no batente da porta principal da mercearia. Logo, notou que o compa-
alguma, ele volta depois do passeio à sua morada próxima às salinas, onde é vis- nheiro começava a soltar sonoros e ritmados roncos, o que a fez irritar-se mais
to pelos salineiros, diariamente, acocorado em frente a um barracão de madeira ainda.
abandonado, do qual tornara-se posseiro.
Droga! — bradou. — Não vai ser fácil passar a noite aqui nessa merda, ama-
Um vento frio, como que trazendo consigo alguma substância sonífera, varre nheceremos o dia sem nenhum osso inteiro.
toda a Camocim. É cedo ainda, mas o velho agente da empresa de ônibus boceja
— Rita! — disse ele sem bulir-se de onde estava. — Quem falou pra você que
impaciente enquanto espera o último que vem de Fortaleza já com mais de hora
de atraso. Somente o agente e o caixa, um rapazola de quinze anos, asmático e nós vamos passar a noite aqui neste mercado cheio de ratos?
ligeiramente corcunda, de olhos miúdos e curiosos, e que mais tarde se tornaria — E precisa alguém falar? O tempo e o seu comodismo já são suficientes, esta-
marinheiro, ainda se mantêm acordados. mos nesta porcaria o tempo suficiente para estarmos aquecidos numa boa cama,
Chega o latão atrasado, e com exceção dos caboclos que pescam camarão, do e, no entanto, você está aí a roncar feito um porco.
Eremita das Salinas que passeia sobre as águas do Rio da Cruz, do velho agente, — Ora, Rita, vê se não enche! Te quieta aí e me deixa pensar.
que já fechando as portas grita apressando futuro viajante dos mares, apenas
dois entes vagueiam incertos pelas ruas da cidade. Chegaram ali, praticamente, — Pensar! Pensar... Puta-que-pariu! Deitou-se e logo dormiu também.
como únicos passageiros. Um casal de velhos fora seu companheiro de viagem, No dia seguinte, Luiz acordou com a decisão de ir falar ao Prefeito. Já pela
descendo no triângulo formado na entrada da cidade pelas estradas Camocim- madrugada, haviam acordado um bêbado dentre os roliços guabirus, e tirado
-Fortaleza, Camocim-Parnaíba. Estavam mal humorados, sonolentos, famintos dele as informações suficientes para chegarem até um modesto albergue. Pensão
e sujos. O motorista, de cara trancada, negou-se a lhes informar onde encontrar Uruoca, era o seu nome, situava-se entre os entrançados trilhos da estrada de
abrigo e, com o simpático e hospitaleiro agente, eles não falaram. Devido a essa ferro, de frente para a grande gare, não havia um só passageiro que ao passar
falta de comunicação, andavam os dois à mercê do acaso procurando uma pen- não a visse. Era a velha estação cercada de muros e de seculares castanholeiras.
são. Ficava a pensão entre dois grandes cajueiros que lhes davam sombra durante
— É esquisito, Luiz. — disse a moça, irritada. — Disseram pra gente que nesta grande parte do dia. Na rústica parede sem cal, viam-se grandes letras formando
cidade a vida noturna é das mais agitadas do Estado, pelo que tô vendo, aqui não o “Pensão Uruoca” e, ao descer do trem, o passageiro o lia novamente em cima
existe vida de noite. de um trole a serviço da pensão. Caso o passageiro preferisse a Pensão Uruoca,
ia para lá a pé, mas para a bagagem, ali estava um transportador gratuito. Como
— É! — disse como a si próprio, — já estamos nessa porra há mais de uma
Luiz e Rita não chegaram à cidade de trem, tiveram que muito andar para encon-
hora e afora — contando com os dedos — o velho da empresa, aquele magrela
trar onde ficar provisoriamente enquanto arrumassem trabalho, estavam com as
que recebeu as passagens e o motorista, ainda não vimos ninguém. Mas talvez a
economias escassas.
culpa seja do tempo, está muito frio e esse povo não é acostumado a isso.
Uma rajada de vento fez Rita concluir:
— Daqui a pouco vai começar a chover grosso nessa porcaria, acho bom a
gente ir procurar pelo menos uma marquise para se abrigar.
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Andaram rumo ao mercado. Rita reclamava por tudo. Ora eram as pedras
8 soltas do calçamento, ora eram as calçadas enlameadas a ensopar-lhe os pés, Enquanto seguia rumo à Prefeitura, Luiz respirava as exalações deleitosas das 9
mosquitos em grande quantidade pousavam-se-lhe pelo rosto e pelos ombros a
plantas que orlavam as praças. Sentia tocar em sua alma a doce impressão de so-
picarem sem piedade; chegaram ao mercado onde encontraram abrigo da chuva,
pro dos ventos praianos. Depois de andar o suficiente para fazer passar o tempo,
apenas, pois os mosquitos e o frio estavam em todos os lugares naquela noite.
parou em frente à Prefeitura Municipal, que já estava com o grande portão prin-
No mercado, o fatigado casal acomodou-se em frente à mercearia “O Zequi- cipal aberto, mas em seu interior viu apenas um homem magro e mal vestido.
nha”, uma casa de esquina, cercada por amplas marquises que lhes ia garantir Imaginou ser o homem servente ou vigia, depois de pensar um pouco, o moço
saiu a zaranzar pelas ruas adjacentes, como se tivesse ido ali somente para fazer quando criança nas aulas de catecismo ouvira que no tempo em que a maioria
reconhecimento do terreno, Passou em frente ao parque das crianças, do hospital, dos habitantes da terra eram pagãos, havia um soldado do rei que sensibilizado
da delegacia de polícia. Parou um pouco sob a grande caixa d’água. Pensou no com o sofrimento dos cristãos, passou a protegê-los, chegando inclusive a con-
perigo que uma caixa d’água pode trazer a uma cidade. Basta que joguem uma verter-se ao cristianismo. Quando o rei pagão e cruel tomou conhecimento do
gotinha apenas de um forte veneno, e o serviço está feito. O Exército vive ensi- caso, aprontou as maiores judiações ao jovem soldado, matando-o à míngua. Esta
nando a seus soldados como defenderem os pontos sensíveis das cidades desse terceira imagem tirou de Luiz a paz dada pelas duas primeiras. Sob o altar estava
tipo de perigo em caso de guerra, mas defenderem, nunca! Também nem guerra um pequeno cofre de madeira coberto de verniz, com uma inscrição que dizia:
tem! Abanou as mãos num gesto vago e saiu a andar novamente. “Óbolos a São Sebastião”. Jogou no cofre uma moeda e saiu da igreja com uma
sensação de lazeira.
De cor cinza-pérola, grande e majestosa, a igreja de Bom Jesus dos Navegan-
tes, o grande portão principal parcialmente aberto, Luiz entrou. Grosso e felpudo Seriam mais de onze horas quando ele voltou para a pensão sem ter falado
pano verde escuro tapizava o chão do portão principal até o altar do Padroeiro. com o Prefeito. Rita não havia ainda encontrado coragem para retirar-se da gran-
Estátuas sacras espalhadas nas laterais da igreja. Olhos espantados das zelado- de cama que lhes fora destinada, somente ao ver o companheiro entrar cabisbai-
ras cravaram-se-lhe no rosto ligeiramente, identificando-o logo como forasteiro. xo foi que encontrou ânimo para sentar-se ajeitando os cabelos, sem encará-lo.
A imagem do santo protetor dos navegantes também o olhava com seus olhos Sentando-se ao seu lado, o moço puxou-a para si e beijou-lhe o pescoço, com a
azuis, olhava-o fixa e benignamente, diferente dos olhos de víbora das zeladoras, carícia, a moça o encarou rindo e perguntou com o polegar para cima:
que não o fitavam, preferindo observá-lo de perfil ou pelas costas. Os do Santo, — E aí? Começa a trabalhar amanhã?
ao contrário, estavam ali meigos e sorridentes a fitar-lhe sempre. Gostou do San-
to, tentou fazer uma oração, não conseguiu, esquecera todas. Improvisar uma? Espreguiçando-se, deitou-se, beijou-lhe as coxas nuas, rolou na cama como
Não conseguiu também, desistiu, dispôs-se a sair ao lembrar-se do encontro que uma criança o faz e, de costas para ela, contou porque não foi falar com o Prefeito.
deveria ter com o Prefeito, mas foi atraído por uma outra imagem que o olhava Rita o ouviu com atenção, mas em nada compartilhou dos sentimentos do
como que a convidá-lo a dar também uma paradinha diante do seu altar. Não foi amigo, levantando-se bruscamente e quase aos gritos:
possível resistir. Coberta por um manto negro, rosto bonito, faces coradas como
— Que diabo, homem! — disse puxando-o da cama pela gola da camisa — Me
pimentões maduros, lábios descarnados e finos como um traço a lápis, rosto de
diz de uma vez por todas, o que é que tem uma coisa a ver com a outra, tu saiu
criança, porém careca. São Francisco não o prendeu muito. Estava ele com o dedo
daqui atrás de entregar a carta ao homem, chegou por lá atrasado ou adiantado,
em riste, como que a aconselhar a todos que o vissem, inspirava tranquilidade
sei lá! O que eu sei é que tu chega aqui quase ao meio dia contando que viu quase
e fé, coisas de que tanto precisava o jovem visitante. Dirigiu-se à porta de saída,
todo tipo de santo e que devido a isso perdeu o estímulo de falar com o homem,
sendo, já quase na rua, barrado por uma outra imagem em situação contrastante
agora eu tenho certeza de uma coisa: se em vez de entrar nessa igreja tu tivesse
com as duas primeiras, a do santo padroeiro, sorria com os olhos, enquanto suas
pelo menos uma vez pensado na nossa situação de miséria ao pé da porta, tu teria
mãos estendidas pareciam querer abraçar a todos os que ali entrassem. A outra,
entregue essa maldita carta a esse cara.
que tinha o rosto de criança, estava também a sorrir com seus beicinhos finos da
mesma forma da primeira, o dedo direito em riste a aconselhar os infiéis, enquan- Como a criança que é repreendida por alguma traquinice, ele retornou à cama,
to a mão esquerda empunhava um pequeno breviário para tirar alguma dúvida rolou em toda a sua extensão, levantou a cabeça, forçou um sorriso e perguntou:
que eventualmente surgisse na hora do conselho. Esta terceira não! Estava de — Será que já tem comida feita? Tô com uma fome!...
mãos amarradas à uma pequena e desfolhada árvore, minúsculo pano cobria-
-lhe as partes, a cabeça vergada para trás, o queixo imberbe em forma piramidal — Comer, comer, comer! Meu Deus do Céu! Será que tu não pensa no rabo de
apontava para o teto. Seminu e esquelético, a pele cor de osso velho, nas canelas e foguete em que nós estamos metidos, cara?
10 no peito esquerdo, feridas de onde descia um tênue fio de sangue, para Luiz era Rita estava realmente aborrecida. Luiz estava triste e com uma fome!... 11
sufocante ver aquilo. Teria aquele homem realmente morrido naquele estado?
Por que o mataram? Tão magro, indefeso, e, ainda, como se não bastasse, quase
pelado e amarrado. O que teria feito? Coisa boa não foi! Ou será que foi? É claro
que foi! Para estar ali, num lugar tão sério como é uma igreja, deve ter lutado
por alguma causa em favor de uns e contra outros homens. Luiz lembrou-se que
3 Já diante de Edmundo, Luiz não sabia o que dizer, depois de fitarem-se por
instantes, balbuciou um fraco “como vai o Senhor?”.
O velho prefeito nada respondeu. Com a mão direita apontou-lhes a única
O gabinete do Prefeito era todo pintado de branco. Quadros do Presidente da cadeira que estava à sua frente. Luiz sentou, deixando Rita de pé, sem saber onde
República, do Governador do Estado e do Prefeito colocados “no alto da parede pôr as mãos.
às costas da Secretária. Abaixo dos três, viam-se enfileirados quadros de todos os
— Vejo que são forasteiros, o que desejam de mim?
ex-prefeitos da cidade. Em frente à secretária, também no alto da parede, via-se
um quadro grande e antigo da Virgem com o pequeno Jesus ao colo, na mesma Não houve resposta, apenas um gesto de Luiz, tirando do bolso da camisa
altura ao lado, em gesso e madeira, um outro Jesus, bem diferente do constante uma carta aberta e passando-a num instante às mãos já estendidas do prefeito
na gravura. Já crescido, morto e crucificado, com os braços abertos para a hu- que, em vez de retirá-la do envelope, tratou de cuidar de supérfluos detalhes,
manidade e decorando o ambiente. Imenso pano grosso de cor cinza tapizava mas com tanto esmero, com tanto apuro que chegou a espantar os dois visitantes.
o chão. Sobre a secretária ociosa, descansavam instrumentos de trabalho mais Rita roendo a unha do mindinho direito, enquanto Luiz, com as mãos espalma-
ociosos ainda, com exceção de um pente que. de minuto a minuto, passava sobre das sobre as coxas, parecia hipnotizado. Edmundo retirou da gaveta da secretária
a careca do obeso mandatário municipal. Sobre uma cadeira giratória, recostado uma sacolinha luxuosa e de dentro dela os óculos com aros de tartaruga, envolvi-
à secretária, sentava-se o Doutor Edmundo Filgueiras Leal, Prefeito Municipal. do em pano macio, pô-los sobre a mesa. Do bolso retirou um encardido lenço e o
passou com força na papada, na testa e nas faces, colocou as lentes que só usava
Edmundo vestia a roupa típica de quem não se preocupa com a aparência. em momentos que considerava de extrema importância, pegou o pente e com
Um simples conjunto de cor azul, a camisa de mangas curtas, os sapatos não se gosto passeou demoradamente pela cabeça. Após todo esse trabalho, apanhou
viam, pois seus pés estavam encobertos pela madeira lateral da secretária, talvez o envelope, olhou-o de um e outro lado, verificou que estava aberto, atentando
não os estivesse calçando, pois, como costumava dizer, gostava mesmo era dos para os dois com desconfiança. Retirou, enfim, a carta e iniciou a sua leitura.
chinelões de couro cru feitos sob medida pelo sapateiro Aristides. Exagerada-
mente gordo, de uma cor branca avermelhada mesmo sem a ajuda do sol, quase Nada que o prefeito esperava estava escrito, falava-se apenas das promessas
que totalmente careca, apenas alguns fiapos nas laterais da cabeça. Sisudo e intra- feitas a Edmundo pelo remetente, em seu último encontro. Dizia que já as havia
tável, grosso na verdadeira expressão da palavra no dizer de seu irmão e maior levado à Assembleia e até ao conhecimento do Governador, todas vistas com a
inimigo, Eduardo Filgueiras, que ao referir-se ao irmão, para dar maior ênfase maior boa vontade, porém vetadas por falta de verbas, mas não se preocupasse o
à sua grossura, chamava-o de “Elefante Engessado”, isso, quando se referia ao caro prócer, logo fosse possível estaria a solicitar do Governo do Estado a verba
seu aspecto físico, ao falar de seu modo de tratar as pessoas, contentava-se em necessária para pôr em prática as metas administrativas do ilustre amigo. Falou
chamá-lo de “Jararaca parida”, muitos não entendiam por que “jararaca parida”, dos planos para as próximas eleições, indagou sobre a família, não esquecendo
pois entre os ofídios, a jararaca é um dos mais mansos. Ao ser indagado, certa de enviar abraços à ilustríssima e aos pupilhinhos. Já quase a finalizar a leitura, o
vez, sobre o assunto, Eduardo não titubeou: — É mansa, mas é cobra. E cobra velho prefeito transferiu a vista do papel para os rostos impacientes de Luiz e Rita,
venenosa! Imagine quando parida. Pois parida nem sua mãe é mansa!. Depois perguntando-se mentalmente o que tinham eles a ver com a carta, pois até então
de despedir uma pedinte que estava em sua frente, que saíra com cara de quem nenhuma referência a eles havia sido feita. Somente após a leitura, Edmundo deu
não fora atendida como queria, o Prefeito virou a cadeira para sua retaguarda, com os olhos num pequeno “Post Scriptum” que, finalmente, fazia referência
sem parecer ocupar-se da presença dos dois próximos pedintes, encarou os seus a Luiz. Dizia nada mais, nada menos que isto: “O portador desta é digno de
antecessores, deu um sorriso aberto e cínico e disse pluralizando: “Vocês e suas confiança, bom moço, trabalhador, conheço-o bem, posso, então, recomendá-lo.
promessas estúpidas! Grandes idiotas!”—Voltou para a posição anterior, ajeitou Gostaria que o caro amigo o atendesse arrumando-lhe um trabalho. Dê-lhe esse
a gola da camisa, passeou o pente pela cabeça brilhosa e sem olhar para a porta, apoio em meu nome que lhe fico grato mais uma vez”. Edmundo, mais vermelho
12 ordenou: que de costume, fitava a parede à sua frente enquanto amassava o papel, depois 13
de transformá-lo em pequeno e inútil pacote. Baixou, então, a vista lentamente,
— Entrem! brincou com o embrulhinho da ex-epístola de Deputado, jogou-o no cesto,
Luiz sentia tremerem-lhe as penas e Rita não estava menos nervosa, olharam- encarou Luiz e disse:
-se indecisos, quem entraria primeiro? Decidiram. Entraram os dois ao mesmo — Meu jovem, o nosso deputadozinho de meia-tigela, justificou-se, justifi-
tempo. cou-se e deixou você em segundo plano, se bem que isso não tenha nada a ver,
em todo caso, vejamos o que se pode fazer. — Retirou o pente de cima da mesa e — Luiz com “Z”.
passou-o com força na cabeça. — Você não parece ser o homem que eu preciso,
Não achando graça nenhuma na pergunta que fizera, Edmundo continuou.
mas pode ser que eu esteja enganado... O que você sabe fazer?
— Naturalidade?
— De tudo eu faço um pouco, o senhor manda e eu faço.
— Recife.
—É formado em quê?
— Idade?
—Em nada Senhor, apenas concluí o curso ginasial.
—Vinte e Oito Anos.
— Tem prática em que tipo de trabalho?
— Casado?
—Em nenhum, no entanto preciso de emprego e tenho muita facilidade em
aprender as coisas, me dê uma chance e verá. —Sim! Exclamaram os dois mentindo mais uma vez.
— Sinto muito! Eu preciso mesmo é de um cabra bom, que saiba aprontar —Endereço?
mutretas, descascar “abacaxis”, você entende? No momento eu nada posso fazer
— Pensão Uruoca
por você.
Retirando a vista do papel e soltando a caneta, foi a vez de Edmundo rir co-
Rita, melhor observadora que Luiz, há muito notara que o prefeito não lhe
mentando.
daria trabalho. Decidida, puxou-lhe a manga da camisa dirigindo-se à porta de
saída. — Vocês estão maus! Se jogam dos calcanhares do Judas pra cá à procura de
— Um momento! — Como se chama a moça zangada? emprego no lugar onde menos existe que é a Prefeitura, acham pouco e se hos-
pedam na Pensão Uruoca, que fica num terreno da Prefeitura! Essa é muito boa!
— Rita! Respondeu secamente. Não é aquela que fica perto da estação?
Dirigindo-se a Luiz, perguntou franzindo a testa. — Ela mesma! — Falou Rita, sem a timidez de quando entrou no gabinete. —
— E você? Existe outra por acaso?

— Luiz ... Luiz Carlos de Vasconcelos. — Existe sim! — Respondeu ainda rindo. — Não com o mesmo nome, mas
da mesma classe. — E depois de uma pausa. — De terceiríssima! — Adorava os
Apontando para Rita com um movimento de cabeça perguntou:
superlativos.
— É sua esposa?
— Podemos ir? Perguntou Luiz timidamente.
— É sim Senhor. Mentiu Luiz.
— Podem sim, se acaso eu vier a precisar dos seus serviços, já sei onde
Com as mãos espalmadas na mesa o prefeito retrucou: procurá-lo.
— Bem meu caro Luiz, no momento, como já disse, eu nado posso fazer por Retiram-se, mas já da porta, a voz do prefeito os fez voltar.
vocês. Vou ignorar a carta desse deputadozinho de promessas sem realizações,
— Um momentinho só. — Disse com o pente sobre a cabeça. — Não digam
mas vou ficar com seu nome e endereço para logo que apareça alguma coisa eu
nada a ninguém, assim será melhor para vocês mesmos, como amigo eu vos ad-
possa chamá-lo. — Abriu uma das gavetas, após levar o pente à cabeça, retirou
uma folha de papel em branco e perguntou: virto a procurarem trabalho antes que eu venha a ocupá-los, porque logo, logo,
antes de um mês, aquela pensão será fechada. Sabem como é! Trabalhos da pre-
14 — Nome? feitura! 15
— Luiz Carlos de Vasconcelos. — Sim senhor. — Limitou-se a responder o pernambucano. Chegados à praça,
— Esse seu Luiz é com “S” ou com “‘Z”? lado a lado, exclamaram os dois a uma só voz.

O moço achou a pergunta divertida, nunca havia olhado para esse detalhe, riu — Safados!
largamente e disse.
4 foi difícil para os dois descobrirem que a Cimpesca era mais um patrimônio do
Dr. Edmundo Filgueiras Leal. Saíram à toa pela balaustrada, queriam ver o mar
em toda a plenitude, com as ondas lavando a areia e não batendo no balaústre.
Passaram em frente aos clubes sociais localizados na orla marítima, pararam em
Hora de retorno, final de tarde, final de expediente. A essa hora ninguém sai,
frente ao Camocim Club, Rita não resistindo, soltou-se das mãos de Luiz e trepou
pois é hora da chegada geral, comerciantes que saem para cidades vizinhas à pro-
na varanda. Depois os dois sentaram num dos bancos da Praça do Amor, Rita
cura de abastecimento sempre retornam àquela hora, pescadores que saem dia-
gostou mais do Balneário Sport Club, com sua coberta de palha e suas paredes
riamente em pequenas jangadas, também chegam àquela hora, grandes barcos
caiadas sem reboco; ali em frente, o balaústre estava em completa ruína. suas
de pesca que passam até meses inteiros em pleno mar, sempre que retornam com
colunas de cimento e ferro não haviam resistido à pancada das águas e haviam
suas cargas é em final de tarde, os ônibus que fazem linha para Fortaleza chegam
caído, para servir de morada às ostras e siris. Seguiram para a praia das Canoas,
somente à noite, mas fazem parte de uma minoria insignificante, em compensa-
pararam em frente às pequenas casas que davam início à grande favela, seguiram
ção, basta o trem, que também chega para a hora de jantar, do café e do banho.
pela rua onde ficam os cabarés, quase que todas as casas podiam ser identificadas
Quatro da tarde, hora que o vento faz a festa, tornando tudo muito agradável, a
como tais, com suas luzinhas de cor vermelha nas fachadas como se fossem sinais
maré enche com pressa, as ondas batem com força na balaustrada. A água salpica
de perigo, todas numa só vila, como um mercado de produtos diversos, somente
o calçamento tosco tornando-o brilhoso. Minúsculas jangadas surgem ao longe. na esquina depararam-se com o grande Terra e Mar. Ali sim, era um cabaré para
Pedestres apressados seguem rumo à estação ferroviária, uns à espera de algum os melhores gostos. Subiram a alta calçada, dirigiram-se à porta de entrada onde
parente que chegará, outros apenas para ver quem viaja. Esse é um dos mais tra- estava sentada uma mulata a cortar as unhas, a saia curta mostrava as coxas mo-
dicionais divertimentos do lugar e os mais antigos nunca o abandonaram, nunca renas com algumas cicatrizes. Nos braços nus, a marca de pequenos arranhões,
cederam aos mais novos a concorrência. Sempre prestigiam a chegada de todo pararam em sua frente e Luiz não conseguia tirar-lhe os olhos. Aparentava, nada
passageiro, sabem quem retorna, e mais ainda quem chega pela primeira vez. Os mais que trinta anos. Não se vestia bem, mas não poderia ser chamada de feia.
que retornam, até que não são dignos de muita atenção, mas os que chegam pela Luiz, embriagado, contempla suas coxas morenas, enquanto Rita deleita-se em
primeira vez em tudo são observados. Comentários supérfluos, logo esquecidos, observar o interior do cabaré. A mulata, de trinta anos, não percebeu logo qual
mas no momento, de grande necessidade. — Veja só aquele grandalhão, não será a intenção dos dois estranhos, mas, quando o fez, disse levantando os olhos e
filho do antigo maquinista que morreu queimado? — Acho que não, veja só o arredando as pernas.
modo de andar, mais parece gringo! — Mas agora me diga uma coisa, olhe bem e
me responda, aquela loura não será filha da parteira Conceição? — Nem pensar — Se quiserem entrar, a porta está aberta. Não serão obrigados a ficar aí den-
nisso! A Conceição não ia deixar uma filha pintar os cabelos — que besteira! Ela tro.
própria já pinta, duvida? — Olha a mala daquele senhor, é capaz de pesar uns Rita teve que dar um forte beliscão em Luiz, para que ele levantasse a vista
cem quilos! — Pois eu acho que não pesa isso não! Ele não deve levar somente das pernas da mulata. Puxou-o para dentro do salão. Ambos sabiam que nunca
roupa que é bicho pesado, ali dentro vai presente de todo tipo. Sabe! ele tem cara deveriam ter entrado ali. Foi num local desses onde ele a encontrou pela primei-
de gente do Cruzeiro. — Pois eu acho que não, mais parece da Brasília. ra vez. Em Aracaju, há mais de um ano. Nunca mais, nenhum dos dois havia
entrado em lugar semelhante. Luiz relembra o dia em que encontrou Rita no Gar-
Luiz e Rita, depois de boa parte da tarde gasta na espera de conversar com
çonniére, cabaré idêntico àquele situado na periferia de Aracaju. Entrou lá, depois
o Prefeito, estão entre os nativos também tecendo comentários sobre quem che-
de circular o dia inteiro pela cidade. Quando quis sair, tinha Rita ao seu lado. Não
ga. O desembarque é rápido, mais rápido, é a retirada dos que foram esperar o
lembra com exatidão do momento em que a encontrou, mas lembra que passa-
trem, logo a grande gare fica vazia. O casal parte para descobrir novas aventuras,
ram a noite juntos e com sol alto, Luiz ao sair do cabaré já não era um homem só.
cinquenta metros apenas e estão no cais do porto, lá deveriam ancorar navios,
Depois de prometer uma vida melhor e decente, convenceu-a a acompanhá-lo.
mas apenas alguns barcos com inscrições na popa da casa de pesca a que perten-
Lutar, ele tem consciência de tê-lo feito, boa vontade é o que não faltou, mas
16 cem carregam e descarregam mercadorias. Estivadores, pescadores, prostitutas 17
conseguir o que prometeu a Rita, não foi possível até aquela data, nunca, naquele
e curumins de cores e idades diversas, parecem discutir acirradamente. É gran-
período, passaram de hóspedes de miseráveis albergues, isso quando não tinham
de a algazarra em todo o cais. Alguns barcos partem para outros ancoradou-
que tomar como abrigo mercados sujos habitados por ratos.
ros próximos, muitos outros chegam. Um dos barcos de maior porte chamou a
atenção de Rita que, cutucando Luiz, apontou-lhe a popa, onde havia a inscrição Rita parecia num outro mundo, e doces recordações vinham-lhe à cabeça.
‘’CIMPESCA” e, em letras menores, a tradução da sigla: “Camocim Pesca”. Não Sempre sorrindo, ela percorria com os olhos a grande sala de entrada. Postas às
paredes estavam fotografias de mulheres seminuas, retiradas de revistas do gê- É noite e Rita agora é frágil criança, o mar revolta-se, as ondas crescem, o
nero. As bandeirolas multicores que cobrem o teto impedem a visão das telhas. céu de claras estrelas que não veem Rita chorando. Frágil menina, menina fraca,
As mesas e cadeiras espalhadas pelo salão lembram-lhe os cassinos dos romances criança com medo. Tem poucos anos e vê o sítio onde nasceu, a plantação de fumo
policiais que há muito lhe haviam tomado tanto tempo. O bar, sortido apenas circundando a casa, a criação de galinhas, preferência de sua mãe precocemente
com o que é mais consumido: a cachaça, a cerveja, refrigerantes e cigarros, algu- envelhecida, Vê perus, patos, capotes, porcos, seus companheiros de infância.
mas latas de conservas e alguns rótulos de bebidas estrangeiras, embora o seu O barulho do mar é grande e no meio das ondas está sua mãe, não ri, não fala,
conteúdo fosse a mesma aguardente dos outros litros sem rótulos. Acima das nenhum gesto. Rita muda de posição na areia da praia, não se sente bem, desvia
prateleiras, estava gravada na parede branca, com letras pretas a célebre frase um pouco o pensamento e olha em torno. Luiz está absorto, ela não o incomoda,
shakespeariana retirada do monólogo de Hamlet: “To be or not to be, that is the ajeita-se na areia e vê novamente a sua mãe morta e ainda nova, sem ter resistido
question”. Logo abaixo, a tradução em letras não menos legíveis, mas de menor aos maus tratos do marido. Cuspiu em direção a uma grande onda que se apro-
tamanho, “ser ou não ser, eis a questão”. Rita riu largamente dizendo a Luiz sem ximava das rochas ao se lembrar como o pai chorava desesperado, ameaçando
se importar que o homem de detrás do balcão a ouvisse. arrancar os cabelos na hora do enterro da sua mãe. Vê novamente a mãe montada
numa onda negra, tem cara de monstro e de anjo, destruindo-se tão rápido como
— Se Shakespeare soubesse onde veio parar uma de suas frases, sairia do tú- surgiu, abraçando a terra e as rochas da Praia das Barreiras.
mulo. Não tenha dúvidas disso!
O mar produzia sobre os dois um efeito mágico e, inconscientemente, come-
Luiz discordou. çaram a retroceder. Pareciam a sós, um não via e nem percebia o outro. Luiz
— Pois eu acho que este é o lugar onde ela melhor se encaixa. — Disse puxan- revê suas constantes cabeçadas, como já tinha andado sem nunca definir-se. Bons
do-a para fora do cabaré. empregos já haviam surgido, enquanto frequentara colégio, o pai lhe dera o que
precisava e com sobra e a tudo ele renunciou, chutando com os dois pés tudo que
Pequenas canoas faziam filas sobre a areia da praia. Curumins sardentos e
lhe foi entregue. Culpado não se acha, nunca se achou, mas no momento, diante
sujos, de diversos tamanhos, formavam pequenos grupos próximos a elas. O sol,
do mar em polvorosa, arrepende-se dos tropeços que dera, vê com saudades o
após cumprir sua missão diária, extinguia-se no ocaso deslustrando o mar. Do que poderia ser feito e foi deixado de fazer. É amante de todas as mulheres e a
outro lado do rio, nas palhas dos coqueiros, permaneciam ainda seus últimos todas ele ama, por elas, ele a tudo renunciou, e é por causa delas que ele está ago-
raios. Ao longe, onde se via apenas céu e mar, dourados raios repousam sobre as ra, ao anoitecer, sobre um lindo morro, a remoer tudo aquilo. Pensa em Rita com
águas calmas. Bandos de pássaros sobrevoam do outro lado do Rio da Cruz. Ao remorso de arrastá-la consigo, não vê perspectiva de nada de bom lhe oferecer,
longe ainda se vê algumas retardatárias canoas que lentamente se aproximam. é um estranho numa terra estranha. Sente frio, o vento é forte. O mar, agitado e
Desde que saíram do Terra e Mar, Luiz e Rita andam sem proferir nenhuma negro, será que não foi um erro grave ter vindo até aqui? Pensa.
palavra. Rita olha o mar e pensa no seu passado. Esse mar que transmite mis- A noite já desceu de todo enegrecendo o mar. Rita olha para a direita e vê a
teriosamente paz, saudade e talvez medo. Ali, ela descobria a sua infância em grande fila de postes da hidrelétrica que ligam a praia à grande estação ferroviá-
Aracaju, sabendo que jamais voltaria lá, sentia saudades da terra em que nascera, ria. Em frente a ela, erguem-se para o alto duchas de água colorida que jorram da
mas voltar lá pra quê? Começar tudo de novo? Não! Ali, agora perto do mar, era Fonte Luminosa.
a sua terra e tudo faria para que se desse bem, não tinha ninguém que a pren-
desse à terra natal, seus pais haviam morrido, seus dois irmãos estavam casados A lua, grande e vermelha, surge no horizonte infindo, devolvendo ao mar o
— como ouvira dizer — e ricos em São Paulo, deles não gostava nem os queria lustre retirado há pouco pelo sol em despedida. Rita treme lembrando-se mais
ver. Queria sim, apenas viver ao lado de um homem que a tirara de um cabaré, a uma vez do pai mandando-a embora de casa, vê novamente a última surra que
ele dera em sua mãe. O brilho ainda embaciado da lua vinha beijar duas lágrimas
única pessoa que vira nela gente e não uma caixa de gonorreia como praguejava
que rolam por suas faces.
18 o pai antes de morrer jogando-lhe os pés. 19
Luiz não mais pensava, ele agora via. Via a mulata da porta do Terra e Mar,
Sentados sobre o barro vermelho da praia das Barreiras, os dois fitam o mar
sentada na mesma posição em que a vira antes. Entretanto, a luz da lua faz com
hipnotizados, todo ele parecia querer vir ao mesmo tempo abraçar a terra, ondas
que as suas cicatrizes apareçam sob a forma de pequenas estrelas.
monstruosas aproximavam-se tomando a forma da corcova de um camelo, do-
bravam-se em seguida para chocarem-se de encontro às rochas provocando um Rita chorava baixinho, sem chamar a atenção de Luiz, lembrando de sua in-
som ensurdecedor. fância, do pai e da mãe. Seu peito arfava e, de dentro, ela retirou toda a revolta
contida, as lágrimas agora rolavam em abundância. Sentia o peito apertado, que- onde a legatária poderia ser encontrada, exigindo claramente que lhe entregas-
rendo soluçar, no seu rosto iluminado pelos raios da luz, via-se a máscara da an- sem a sua parte e a deixassem onde estava, para fazer uso do que era seu como
gústia. Era a insegurança, talvez o desespero, o mar, como num toque de mágica melhor lhe aprouvesse.
vindo da lua, agora tornou-se calmo, e sobre ele, ao longe, Rita vê a imagem do
Alguns meses após a morte do velho Filgueiras, o mais velho dos irmãos,
pai fitando-a. Não mais aguentando, ela juntou as mãos sobre a cabeça e lançou
também veio a falecer. Edson Filgueiras não deixou herdeiros, o que era seu ficou
um grito rouco, um grito para o infinito inteiro ouvir.
para os irmãos Eduardo e Edmundo. Em anos pretéritos, os dois irmãos Filguei-
— Covarde! ras, após a morte do pai e do irmão mais velho, haviam dividido os seus bens
esquecendo-se propositadamente da pessoa dona de um legado no testamento.
Seu grito ecoou por toda a Praia das Barreiras, e Luiz com o salto do mais
Discutiram em como conservar a herança sem que chegassem a um acordo. Cada
ágil dos felinos, tomou-a nos braços, abafando com o ombro os seus gritos histé-
um então tomou o que lhe tocara e passaram a viver separados, trocando cons-
ricos. Donde estavam, com a água na cintura a pescar camarão, os caboclos não
tantes insultos como verdadeiros inimigos.
levaram a sério o estridente grito que ecoara pela praia. Já estavam acostumados
àquilo. Gritos de dor e de prazer sempre se ouviam nas noites de lua. Algumas Eduardo, com seus sessenta anos, nunca casou, não teve filhos nem amigos.
vezes iam ver de perto a causa, e sempre viam a mesma cena: tímidos e flexíveis Sempre foi chegado a ninharias, sua fama era notória nas casas das raparigas.
corpos rolando sobre a areia, após a conquista do gozo. Um vento brando se- Segundo as próprias, Eduardo nunca saía com uma delas sem que apelasse para
guido de canto mavioso vinha do mar, a noite os envolvia totalmente. A fila de a nobre prática da pechincha. — Abata qualquer coisa, o que me cobra é um
postes, ostentando fracas lâmpadas, indicava-lhes o caminho a seguir, de onde roubo. — Contam que certa vez, já farto das meretrizes conterrâneas, tomou o
estavam viam a velha estação ferroviária, e em sua frente, as águas coloridas da trem e foi à procura de coisa nova em Granja. Como o trem chegou com o raiar
Fonte Luminosa davam-lhes a impressão de estarem dançando. Para lá se diri- do sol, ele passou o dia reconhecendo o terreno, não tinha pressa, visitou alguns
giram, queriam ver de perto o espetáculo que era a Fonte Luminosa, e lá bem conhecidos e almoçou no mercado público, uma vaga pergunta aqui, outra mais
próximo a ela ficava a Pensão Uruoca. ali e a noitinha já sabia onde ficava o único cabaré da cidade, por lá chegou com
ares de turista e foi logo dando de cara com a proprietária, sua ex-quebra-galho,
— Nunca mais faremos isso! — cochichou Luiz. — Não quero mais que você
como costumava dizer. Quando a lendária Carmelita o viu, fez a maior algazarra.
fique pensando besteiras, Vamos dar o fora!
De pé, aplaudindo-o, ela gritava nome. Acomodou Eduardo num dos melhores
Na Fonte Luminosa, Luiz mais uma vez olhou a lua, viu duas, uma no céu, lugares e logo lhe providenciou companhia. — Vou lhe trazer um verdadeiro
outra no mar, e em ambas a mulata estava sensualmente sentada, mostrando quitute! — Disse-lhe ao ouvido e logo retornou com uma magrela, alta e sara-
suas pernas nuas e bordadas de estrelas. rá, vinda das bandas do Parazinho, mas dizendo-se de Salvador, conhecedora
profunda do candomblé, capoeira e vatapá, falava sem parar deixando Eduardo
Já da porta da pensão ele olhou novamente a lua e lá estava a mulata chaman-
babando com suas mentiras. Era conhecida pelo nome de Escopeta e justificava o
do-o.
apelido pela sua grande rapidez, dizia ser um verdadeiro pé de vento numa luta
— Safa! Disse baixinho ao entrar. corpo-a-corpo. O certo é que no início da madrugada chegou a hora da pechin-
cha, a hora do “deixa-por-menos”, Escopeta ofendeu-se. Nunca — dizia entre
soluços — fora tão ofendida em tão dura profissão. Eduardo insistiu no “deixa
disso” e “toma só isso”. Escopeta, irada, partiu para a agressão, não mostrou ne-
5 nhuma destreza antes citada, nenhum golpe de capoeira nem de luta livre, mas
mostrou afiadíssimos dentes, deixando negras manchas no rechonchudo pescoço
de Eduardo. Aos berros, botou para fora todo o estoque de palavrões do seu co-
20 A família mais antiga e mais rica da cidade sempre foi a dos Filgueiras Leal. nhecimento, apagou a lamparina e desapareceu. Quando Eduardo deu conta de 21
O Coronel Leonardo Filgueiras Leal, dono de quase todas as terras que circunda- si, Escopeta havia lhe levado o relógio de algibeira. O grande medo de Eduardo
vam a cidade. Deixou poucos filhos e muitos bens em terra. De filhos legítimos no momento foi que Carmelita — uma língua de trapo — tivesse tomado co-
ficaram três, sendo, portanto, os únicos herdeiros de toda a sua fortuna, não com nhecimento do acontecido. Do quarto vizinho, Carmelita não só tomou conhe-
exclusividade, pois um pequeno legado fora deixado para uma quarta pessoa, cimento de todo o fuzuê, como lembrou-se de algumas pendências deixadas em
coisa irrisória, que em nada afetaria a divisão entre os três, o testamento dizia Camocim, além da saudade de velhas amigas, resolveu que naquele mesmo dia
no final da tarde pegaria o trem com destino a Camocim para um bom banho de Eduardo, usando o cesto da feira como escudo, repetiu e se aproximou.
mar. Eduardo saiu de fininho pensando não ser notado e foi direto para a estação,
Gritos ecoaram por toda a feira. — Briga! Briga! — Corre pra ver— Sai do
esperar o trem para Sobral. Não custava nada arquitetar um álibi. — Resolvendo
meio, diabo!
negócios bancários, um exame de vista, qualquer coisa assim. — Não custa nada
evitar fofocas espalhadas por Carmelita. No dia seguinte, retornando de Sobral, Trocaram poucas bordoadas, pois antes que a multidão se formasse já havia
Eduardo foi companheiro de Carmelita a partir de Granja, fez-se de ofendida por chegado a turma do “deixa disso” e os separado, levando cada um para lado
Eduardo não ter-se despedido, é certo que estava dormindo, mas não custava oposto, ambos tremiam incontrolavelmente, os nervos não estavam mais para
nada que ele a chamasse, só dormiu porque estava com enxaqueca, caiu logo que tais aventuras. A partir desse dia, Eduardo teve que abandonar o hábito da feira,
ele foi para o quarto. Mas isso não se faz, ele a devia ter chamado para um dedo pois, não se atrevendo a lhe perguntar as horas, os moleques, só Deus sabe en-
de prosa antes de ir resolver negócios em Sobral. Tanto reclamou que Eduardo, sinados por quem, gritavam de todos os lados do mercado quando ele aparecia:
penalizado e crente de que o incidente com Escopeta não era do conhecimento de
— Big Ben! Escopeta, Big Ben!
Carmelita, soltou-lhe alguns bons trocados desculpando-se.
Passou o costume para a negra que lhe fazia companhia, e a quem chamava
Em Camocim, ao descer do trem, Carmelita foi logo dando de cara com a mi-
de governanta, mas os mais informados, diziam ser ela sua amante, mas o certo é
núscula Fausta, a quem deixou ciente de todos os acontecimentos, pedindo-lhe
que ninguém nunca teve o atrevimento de afirmar isso em sua frente.
encarecidamente, transmissão imediata em todo o cais.
Edmundo, embora sendo o caçula, o pai via nele o seu legítimo sucessor, en-
— Não sou mulher de roubar, nem tampouco de mentir, se tiver duvidando,
pergunte a ele que hora é e se prepare pra resposta. viando-o ainda cedo para o Rio de Janeiro para somente de lá voltar quando fosse
com cartucho na mão, anel no dedo e um título para o nome. E foi somente nestas
A pequerrucha Fausta não fez a prova dos nove, limitou-se a divulgar o suce- condições que o jovem Edmundo retornou. Embora sem exercer a advocacia, ele
dido com pequenos acréscimos para melhorar a narrativa e a notícia se espalhou ostentava o título, exibia o anel com orgulho enquanto o pai fizera questão de ter
em poucas horas. sempre aos seus cuidados o invólucro de papel contendo dentro o certificado.
Tinha Eduardo um costume infalível, como a maioria dos mais velhos da ci- Chegando à terra natal, recentemente formado em Direito, ele acatou mais um
dade, o de ir à feira diariamente, comprar somente o necessário para o consumo capricho do velho pai: concordou em que escolhesse a sua esposa. Os dois filhos
do dia: um naco de carne, um tomate, um pimentão, algumas bananas e quando mais velhos não aceitaram esse capricho, por isso ficaram sem casar, fecundando
muito um pão, coisas por assim dizer, sem importância, só mesmo para não per- bastardos por onde passavam.
der o costume. Alguns dias após a sua aventura com Escopeta, com as manchas
O experientíssimo Coronel Leonardo amava tudo o que havia em sua terra.
do pescoço já desaparecidas, resolveu reiniciar sua atividade corriqueira, foi à
Camocim satisfazia-lhe os gostos, menos no que dizia respeito às mulheres. Para
feira e lá encontrou o velho Zé Raimundo, gigantesco aposentado da estrada de
ele, fisicamente, elas possuíam os atrativos próprios da mulher, mas só na casca,
ferro e uma das poucas pessoas com quem Eduardo tirava um dedo de prosa.
no âmago, elas não passavam de umas mundanas, perdidas e debochadas. E,
Conversa vai, conversa vem, um puxa daqui, o outro dali. Quando Zé Raimundo,
justificando-se para não ofender alguma paixão que porventura o filho tivesse
grandalhão e católico praticante percebeu que estava ficando tarde, não podia
por alguma conterrânea, dizia: — A culpa não é delas, coitadinhas, é do clima, só
perder a missa das sete horas, apresentou as despedidas e foi perguntando:
Deus ou o Diabo sabem o que traz esse vento danado, vindo por sobre as águas
— Meu caro Leal, me diga que hora está marcando o seu cronômetro? do outro lado do mundo!
Eduardo não hesitou: Depois de preparar Edmundo espiritualmente para o casamento, o velho Co-
— Vosmecê devia fazer essa pergunta à puta que o pariu! ronel partiu para um lugar onde supunha que os ventos do outro lado do mundo
22 não chegavam para deturpar o espírito das mulheres. Viajou numa terça e voltou 23
Zé Raimundo, que já se afastava, parou estarrecido com o insulto, não podia numa sexta-feira, trazendo consigo uma bela mulher de uns vinte e dois anos,
entender o seu motivo, aquela mesma pergunta muitas vezes Já fora feita e res- modos tímidos, vestindo com simplicidade, tinha os olhos vivamente verdes,
pondida de bom grado. Transformando à bengala de cedro em arma de guerra,
dentes grandes e alvos, pele alva e sem sardas, cabelos alourados e compridos.
bradou:
— Se for homem, repita e se aproxime!
Ao descerem da condução, Raquel foi conduzida ao interior da mansão pelo — Corram imbecis! O nosso pai está morrendo! — E com ar de desculpas,
velho Leonardo. Ia a jovem com a cabeça baixa, sabendo que em instantes estaria dirigiu-se a Raquel dizendo bondosamente.
diante do futuro esposo que não conhecia. Muito grande era a sua timidez.
— Vamos querida! O nosso pai quer ver você.
O velho patriarca não podia esconder a sua felicidade. Chegando no centro da
Tomando das mãos da nora, o velho arfando desabafou.
grande sala de entrada, falou ao filho que punha-se de pé, em tom suficiente para
que todo o restante da família ouvisse. — Ela foi mais forte, filha... Pensei que fosse durar um pouco mais. Mas a
bruxa venceu... Eu não queria durar mais muito tempo... Queria apenas o tempo
— Filho, esta é a menina Dona Tereza Raquel. Ela é a mulher certa para que,
suficiente para ver o que eu sempre mais desejei e nunca pude comprar... Um
junto a você, deem continuidade aos Filgueiras Leal. Ela ficará em nossa casa
neto...!
como hóspede até domingo quando os seus pais chegarão para o casamento.
Sem dirigir nenhum gesto ou palavra a Raquel, como se estivesse tratando de Disse a última palavra quase gritando, tornando-se mais cansado ainda. To-
negócios, Edmundo perguntou ao pai: mando mais uma vez a mão de Edmundo disse:

— E por que eles não vieram logo? — Você será o meu continuador... Tome conta de tudo isso e reparta com seus
irmãos... Mas é você que vai continuar o meu trabalho. Nu seja ruim para os po-
— O compadre precisava ir à fazenda buscar a comadre. Em Viçosa estava bres, mas também não seja demasiadamente bom... Agora me deixem sozinho...
somente ele e Raquel. Raquel, como você vê, eu fiz questão de trazer logo comigo
para não correr o risco de perdê-la, finalizou o velho com um riso safado. — O senhor não quer que chamemos um padre? Indagou Raquel, que não co-
nhecia o contrassenso do velho Leonardo, que diante da pergunta empertigou-se
— Fez bem, meu pai. — disse Edmundo, sorrindo forçadamente. na cama parecendo ter uma súbita melhora, olhou pausadamente para todos e
O casamento ocorreu no domingo, conforme a vontade do velho Leonardo, parou a vista em Raquel dizendo.
não houve festa, como pedira a noiva, mesmo que quisesse alguma pompa, não
— Pra quê? O que deixou de ser feito, ficará por fazer e não vai ser um padre
haveria tempo para providenciá-la.
que fará por mim, já na hora da minha morte. Agora saiam todos! Não quero que
Viajaram os recém-casados para a capital, para de lá, decidirem onde passar me vejam morrer, seria ridículo!
os primeiros dias como marido e mulher. Estiveram um mês inteiro só Deus sabe
O silêncio era total dentro do amplo quarto, uma mulher choramingou baixi-
onde. Praticamente, um dia em cada cidade diferente, onde demoravam um pou-
nho, o velho pareceu irritar-se.
co mais, enviavam ao coronel um cartão postal com a estampa de algum ponto
turístico: uma praia, um grande edifício, uma praça e até mesmo deles, sempre — E, por favor! Se alguém quiser chorar a minha morte, que o faça depois que
juntinhos. eu morrer, e que seja bem longe do meu corpo. Saiam todos!
Retornaram com o passar de mês e alguns dias. Ao chegar, Edmundo foi cha- Deixaram o velho sozinho como era o seu desejo, e ao voltarem minutos de-
mado ao quarto do pai, que se encontrava enfermo desde uma semana após o pois, ele já estava morto.
casamento. Ao ver o filho, o velho apoiou-se nos cotovelos tentando sentar-se,
Vinte cinco anos se passaram. Edmundo deu continuidade ao trabalho deixa-
mas logo desistiu, as forças já o traíam há dias. Quando o filho sentou-se ao seu
do pelo pai. Esqueceu totalmente o conselho recebido a respeito dos pobres, au-
lado, o velho Leonardo tomou das mãos entre as suas secas e compridas e disse
mentou a riqueza da família, tornou-se o homem de influência do lugar. Raquel
forçando um riso que mais parecia careta.
muito o ajudou para isso, tiveram dois filhos, puseram-lhes os nomes de Justino
— Filho, ainda bem que o vejo antes de ir-me. Há dias que estou com a morte e Saul.
do pé da cama, mas parece que a bruxa me deu o terno de ver você e minha nora
24 Os dois filhos do casal estudaram em Fortaleza por algum tempo, voltando 25
mais uma vez, onde ela está? Eu quero vê-la.
após a conclusão do segundo grau a chamado do pai após vencer as eleições da
— Um momento, pai, eu chamo a Raquel! cidade. Justino, com vinte três anos, e Saul, com vinte, passaram a administrar os
Edmundo saiu correndo a quase gritar para o resto da família que cercava bens do pai, enquanto este assumia com entusiasmo os interesses do município.
Raquel a exibir fotografias e presentes trazidos do sul do país.
Saul ficou com a direção geral da Cimpesca, embora sem nenhuma prática O vento sopra e assanha os longos cabelos de uma moça. De longe, Justino
empresarial, o jovem tinha espírito de liderança e em curto espaço de tempo pas- a viu e demorou a acreditar nos seus próprios olhos. Pensa ser miragem o que
sou a dirigi-la tão bem quanto o pai o fazia. Justino, que na opinião de Raquel vê. — Deve ter vindo do mar! Não seria este mais um mistério do mar? — Ele
era mais dado a lidar com o povo, ficou como supervisor das fazendas, salinas e aproxima-se como que empurrado pelo vento. A moça que estava entre um ban-
casas comerciais espalhadas pela cidade. Gostava daquele trabalho, muito cedo do de ovelhas havia percebido a aproximação do estranho, mas fingia ignorá-lo
tinha saído da casa dos pais para estudar. Agora gastava o seu tempo de moço mantendo-se de costas. Justino parou à distância e ficou a contemplar aquela
como queria, conhecendo gente simples, em cada canto da terra em que nasce- mulher bela e misteriosa que estava a pastorear ovelhas. Muito estranho tudo
ra. Cada lago, cada morro, cada duna, cada praia eram para o moço motivo de aquilo, nada comum aos olhos do moço, não era tão raro o fato de uma jovem de
encantamento. Sempre desaparecia sozinho, e se alguém o desejasse encontrar, uns vinte e três anos presumíveis cuidar de ovelhas, o que era raro era sua beleza.
bastava procurá-lo onde menos comum fosse o aparecimento de pessoas de sua Era alva, loira de cabelos longos e encrespados. Em seus braços nus apareciam
classe social. pequenas sardas, causadas talvez pelo sol. Aparentava ter um metro e setenta,
a mesma altura de Justino, trajava um vestido de várias cores, de muito bom
gosto. A cintura delgada e ancas a balançarem ao mínimo movimento da moça.
Sobre a cabeça estava uma espécie de boina de crochê. Os pés eram protegidos
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por sandálias de cordas de tucum, não tinham saltos e nem um adorno sequer.
Era seguramente a jovem mais bela de toda a praia. Não sabia ela que o moço
continuava a observá-la encantado. Virou-se pensando ter ele sumido, mas, para
As grandes dunas ameaçadoras, no dizer de alguns pescadores, mais pare-
sua surpresa, ele estava ali, a uns dez metros de distância a contemplá-la boquia-
cem artes do homem e não do vento. Os olhos de Justino passeiam na doce cer-
berto. O vento soprava forte, no mar azul, pequenas canoas aproximavam-se da
cania do panorama. Sentado, no ponto mais alto da escadaria do velho farol,
terra. Os cabelos da moça que escapavam da boina de crochê espalhavam-se ao
ele contempla a imensidade do oceano. Dando a impressão de estarem ligadas
vento por sobre seus ombros. Foi ela quem quebrou o silêncio. E foi quase a gritar
ao céu, minúsculas jangadas desfilam ao longe embelezando aquele espetáculo
para o mar que perguntou irritada.
contagiante. O vento forte balança a já quase em ruínas escadaria do Farol Sem
Nome, o moço vira-se de costas para o mar e passa a contemplar o minideserto — O que quer aqui, moço?
que começa a partir do velho farol. Uma infinita variedade de morros surge à sua
Não houve resposta, Justino continuava impassível a sorrir para a moça.
frente, ao longe, pequenos rebanhos movem-se sem pressa, escondendo-se, de
quando em vez, por trás dos pés de guabirabas e puçás, alguns dos morros pare- — Se veio até aqui com intenção de me atrapalhar, pode seguir o seu caminho,
ciam escamados por grandes laminas ósseas, como se fossem peixes gigantes que pois já conseguiu.
saíram do mar e plantaram-se ali, como que decididos a servirem de pouso a ca-
— Não é nada disso! — Protestou Justino com lisura. — É que não é comum
bras, ovelhas, insetos e até mesmo a pessoas como Justino, que logo estaria sobre
uma moça tão bonita ficar entre ovelhas.
eles. O mar cerúleo continua com seu barulho inebriante. Justino olha em direção
à cidade e vê a mancha verde dos mangues. Lá, entre eles e a cidade ameaçada, — Gosto de ficar entre elas, e o que não é comum é aparecer gente para me
segundo o Capitão Pedro, está o calmo e caudaloso Rio da Cruz. Justino eston- importunar.
teado. Morcegos em polvorosa com sua invasão, tão velhos quanto o Farol Sem
Dizendo isto, a moça voltou as costas sem mais olhar para o desconhecido.
Nome, cortam os ares como jatos. Ele olha em torno ao local que tomou como
palanque para observar todo o panorama, no ponto destinado a observadores Justino procurou ao redor um lugar para sentar-se, indo encontrá-lo um pou-
de navios que se aproximavam há muito tempo atrás, quando a barra ainda era co mais à distância, num tronco de um velho coqueiro, onde calangos e lagartixas
26 barra e não um estreito canal que mal permite a entrada de pequenos barcos de corriam velozes como o vento. Olhou novamente para o velho farol. De lá, há 27
pesca, a entrada dos grandes carregadores de sal não passa agora de um sonho pouco, ele via o morro em que está agora e pareceu-lhe estar coberto por esca-
distante, tudo agora parece estar abandonado, toda a armação que circunda o mas gigantes. A bela menina cantarolava baixinho, querendo não mostrar o seu
tubo de gás está coberto pela ferrugem. O óxido, que se formou na superfície embaraço, com um cipó na mão, ela andava de um lado para outro, tentando
exposta à umidade, dá a Justino uma revolta que o faz descer aos trambolhões e tocar dali as suas magras ovelhas. Por sua cabeça, mil pensamentos passavam.
seguir para os morros das grandes escamas. — “O que será que ele quer?” “De onde terá vindo?”— Sem saber como, a linda
pastora foi parar em frente a Justino, que não havia ainda tirado os olhos dela. Vinha cansado e com a pele bronzeada, a imagem da moça não lhe saía da
Ele era também louro, de olhos negros, diferentes dos dela, que eram azuis. Não cabeça, se algum poeta o visse naquele instante, diria em rimas que o cupido o
aparentava mais que vinte três anos. Pelas roupas finas, pelos sapatos lustrosos, havia flechado. Parou logo nas primeiras canoas que haviam chegado do mar.
pela tez limpa e pelos cabelos tão bem conservados, a moça não teve dúvidas de Os caboclos o cumprimentaram, retirando da cabeça o chapéu de palha. Justino
que se tratava de gente de uma outra cidade, ou de algum filho de gente rica es- não escondia a sua intranquilidade, precisava saber quem era aquela moça, e
tudante na capital. Podia ser que morasse ali mesmo em Camocim, mas ela nunca precisava, mais que tudo, tornar a vê-la. Olhando sobre as cabeças dos pescado-
o vira. Também, raramente ia ao centro da pequena cidade. Sabia, porém, que ele res, procurava alguém. Certificando-se que não encontrava a pessoa procurada,
pertencia a um outro mundo; a um mundo onde não existiam moças a pastorear chamou à parte um moleque.
ovelhas, a um mundo em que as moças não tinham que confeccionar suas pró-
prias roupas, nem tinham que se preocupar com o sustento. Tudo isso ela pensou — Diga, seu Justino! — Gritou o negrinho azoado.
em segundos. E foi com revolta que virando-se ordenou. — Me diz uma coisa, Alcindo, você sempre anda lá pras bandas do Farol Sem
— Moço, vá embora! Nome?

À essas palavras, Justino levantou-se perguntando curioso. — Sempre, sempre, seu Justino! Não é lá que fica o curral do papai?! Ou o
senhor já esqueceu?
— Por quê?
—Bem Alcindo, você viu por lá alguma moça tomando conta de ovelhas?
— Porque aqui o moço nada tem a fazer. Se veio aqui apenas para ver o velho
farol e o mar, acho que já são horas de dar-se por satisfeito e ir embora. — Ora se vi! Eu vou é muito ajudar ela, é a Ricardina, filha do Capitão Pedro.
— Ainda não me fartei de ver como tudo isto aqui é bonito. O moleque não percebeu o susto que pregara no filho do prefeito.
— Bem, — disse ela decidida. — Já que você decidiu estragar o meu dia, eu — Ricardina? Do Capitão Pedro?
vou embora.
— Dele mesmo! Que é que tem?
Assim dizendo, ela, com o auxílio do cipó, saiu a tanger as obedientes ovelhas,
— Nada, nada Alcindo. Muito obrigado!
rumo à cidade.
Justino ficou a observar aquela moça bonita e diferente das outras que conhe- Retirou do bolso uma moeda e jogou-a ao moleque, que saiu a correr pela
cera. Mil pensamentos martelavam-lhe a cabeça. Sentou-se novamente e ficou a praia. Recostou-se a uma canoa e ficou a pensar intrigado. O Capitão Pedro nun-
olhá-la distanciando-se. Como se chamava, — pensava ele: — de onde viera; por ca lhe falara dessa filha. Falava muito, sempre de si, da sua vida, mas sempre
que parecia triste? — Olhou o relógio. Passava das três horas. O sol, há muito omitira o nome da filha, existiria para isso alguma causa? Muito estranho tudo
pendera para o poente. As primeiras jangadas aproximavam-se da praia. Justino, isso! E jurou para os seus botões que descobriria.
como que levado pelo vento, partiu também em direção à cidade.

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Justino gostava de ouvir histórias da terra em que nascera, e cada pescador
Justino, em pouco tempo, já se tornara conhecido entre os homens da praia. tinha uma imensidade de casos para narrar a quem os quisesse ouvir. Gostavam,
28 Sabia ouvir-lhes as queixas, e como para lhes dar provas de que não era diferente, principalmente, de contar como iniciaram suas vidas naquela praia, a maioria 29
muitas vezes, fazia também as suas confidências. Muitos dos homens, de início, nascera ali mesmo, mas muitos vieram de lugares dos mais diversos, alguns de
olhavam-no desconfiados, mas Justino era paciente e queria ser amigo daquele outras praias, muitos outros vieram dos sertões à procura de aventuras, outros
povo. Logo conseguiu. De muitas famílias ele era o conselheiro. Muitos nem sa- tantos de cima das serras sem ao menos saberem nadar e terminavam pescadores
biam quem era ele. Talvez tenha sido esse o motivo de o terem aceitado em pouco em alto mar. De todos eles, nenhum se comparava, na preferência de Justino, ao
tempo. Justino havia conseguido a simpatia do povo pobre da praia. velho Capitão Pedro. Tinha ele um quê de diferente para narrar um caso. Pedro
Alcântara da Paz, esse o seu nome de batismo, lembrado apenas quando muito — Ora, Justino, o seu pai é o prefeito disto aqui, e ninguém a não ser ele para
raramente precisava assinar algum documento. Deram-lhe os pescadores a pa- melhorar sua situação.
tente de capitão e quem em toda a praia atreve-se a tirar-lhe a chefia? Certa vez,
— Que situação Capitão?
Justino quis saber de onde veio o “Capitão”, o velho então coçando o queixo com
o olhar perdido rumo aos mangues explicou-lhe como o conquistara. — Meu Deus do Céu! Será que você é cego e não vê que tudo está para-
do? Toda a balaustrada que separa a cidade do rio está praticamente destruída; a
Há muito tempo, logo que chegara a Camocim, corpulento e brigão, vinha barra não se fala mais, em vez dos grandes cargueiros, agora só entram os barcos
de um cabaré situado na praia dos Coqueiros com uma porção de amigos, todos de pesca da empresa do seu pai.
pescadores como ele, nas proximidades do cais ouviram choro de uma mulher e
se aproximaram calados para não serem notados, avistaram, então, uma mulher — Um prefeito é apenas um homem Capitão! Ele não sabe fazer milagres,
cercada por quatro negros das bandas da Flamenga, despida e prestes a ser vio- além disso, um problema como esse da barra, depende muito da vontade do
lentada. O jovem Pedro disse baixinho para os amigos. — Fiquem aqui espiando, Governador.
não se metam que eu vou dar uma lição nesse magote de cachorros! — Os negros — Não estou dizendo o contrário, mas que ele tem uma parcela de culpa, lá
também estavam despidos, as roupas colocadas num canto de um velho arma- isto tem!
zém. Pedro se aproximou e baixou o pau, cada murro certeiro era uma queda, es-
— E onde Diabo está a culpa dele?
capando apenas o quarto negro, que, quando o fogoso português se dirigiu para
ele, desmanchou-se em mijo e de joelhos implorou: Meu Capitão! Tenha piedade — Independente de ser o prefeito disto aqui, ele tem o seu prestígio na capi-
do pobre negro, minha mulher é tísica e tenho dois negrinhos pra criar. Não me tal, já era tempo de ter feito alguma coisa neste sentido. De que Diabo serve uma
mate meu Capitão! Pedro caiu na gargalhada acompanhado pelos amigos que se pessoa ter prestígio, se dele não faz uso?
aproximavam, entregaram as vestes da mulher, jogaram as dos negros no mar,
Justino gostava da franqueza do velho, mas não gostava daquele assunto en-
dividiram entre os quatro mais algumas porradas e os enxotaram do cais. A mu- volvendo o pai.
lher, que até então tremia incontrolavelmente a um canto, chamou debilmente,
os amigos se voltaram e ela disse: — Se o meu Capitão quiser sair comigo eu não — Sabe o que eu acho Capitão? Falar dos problemas disto aqui só teremos
cobro nada. O novo capitão riu bondosamente, se aproximou, pegou no queixo aporrinhações. Por que não me diz como veio parar em Camocim?
da mulher e agradeceu. — Eu não costumo dispensar um convite desses, mas O velho gargalhou alto com o desvio da conversa que o jovem propunha,
você hoje não está em condições, num outro dia, quem sabe? — Dia seguinte, a lembrando-se da fama que tinha Edmundo em desviar uma conversa quando
praia inteira sabia do acontecido e desde então o pescador passou a chamar-se esta não lhe agradava. Nisso Justino não fica atrás, tem a mesma classe do pai.
Capitão e tudo faz para honrar a patente a ele outorgada por um negro covarde
— Muito Bem! Cheguei aqui em março de 40, vim pelo mar, saí do Rio de
da Flamenga.
Janeiro em 39, sofri o Diabo na viagem e já lhe disse isso mais de uma vez! Satis-
Sempre nas suas conversas, o velho pescador nunca esconde a sua revolta feito?
pelo descuido que os homens fortes do lugar têm para com a cidade. Justino
Justino riu com gosto balançando afirmativamente a cabeça. Gostava do bom
gosta de perceber essa clara forma de ver as coisas. Se as autoridades do lugar
humor do velho.
tivessem aquela visão, muita coisa poderia ser feita para sua recuperação.
— Sabe o que eu pensei quando o vi pela primeira vez Capitão? Pensei que
Estavam a conversar e Capitão Pedro mais uma vez sem rodeios.
fosse filho legitimo disto aqui. Como o senhor se adaptou bem!
— Camocim é uma cidade de beleza rara, basta que lhe diga que não há outra
— Imagine que nem brasileiro sou, quando vi que era aqui a minha nova
mais bela em todo o litoral cearense. — Afirma arfante o velho pescador. — Não
terra, a ela procurei me adaptar de tal forma que pareço o mais autêntico camoci-
30 sou daqui, moço, mas vim pra ficar. Sinto-me um filho desta terra de gente me- 31
nense. Uma coisa eu posso lhe assegurar, ninguém ama isto aqui mais do que eu!
drosa, terra de gente de muito boa vontade, mas sem a devida coragem de lutar
pelo que é seu. Alguns pobres daqui têm coragem sim, e entre eles eu me incluo, — Capitão, e o que foi feito dos seus pais?
mas pobre não pode se meter nesse tipo de briga, pois nem sequer seriam ouvi- — Nascemos todos nos arredores de Coimbra, meus pais vieram para o Brasil
dos e os ricos vivem por aí de braços cruzados. Me desculpe se ofendo o seu pai. com o mesmo propósito meu ao vir para o Ceará. Enricar! O que não aconte-
— Não entendi onde o senhor o ofendeu até aí. ceu nem com eles, nem tampouco comigo, como você vê. – nisto o velho apon-
tou para o interior da casa como que a exibir tudo o que possuía. — Meus pais a areia fina. De vez em quando um corpo surge por trás de uma canoa e segue
morreram na miséria, deixando eu e dois irmãos mais velhos, dos quais nunca rumo à cidade. O moço despede-se do pescador prometendo voltar em breve
tive notícias. Um ano depois da morte dos meus velhos eu saí do Rio de Janeiro para continuarem a conversa. Deu um susto no moleque Alcindo que cochilava a
dentro de um velho cargueiro com destino ao Nordeste, antes de chegar aqui um canto e desapareceu entre as canoas.
eu passei por muitas cidades grandes, mas nenhuma me atraiu, deixei-me ficar
dentro do cargueiro até o dia vinte e nove de março de 40. Me lembro bem que
era um domingo e chovia muito. Moleques de todas as cores, misturados com
putas de todas as idades correram para o cais para nos receber. Daqui do meio 9
do rio. — E apontava com o dedo mostrando o local. — Nós pensávamos que
nos preparavam uma festa de boas-vindas com palmas e foguetes, mas nada!
Eram apenas mendigos atrás de restos de comida ou roupas velhas. Quatro dias Num sábado de fevereiro o povo levantou-se preguiçoso à procura do que co-
depois, o meu cargueiro levantou âncoras e zarpou mar adentro, fiquei como que mer, como se fossem porcos. O tempo continuava nublado, desde o dia anterior.
perdido numa terra estranha, apoiado na balaustrada a mirá-lo até que sumisse — Logo a chuva vai cair com força! - Diziam entre bocejos causados talvez pelo
de todo. Eu não tenho palavras para lhe descrever o estado em que fiquei naquele sono insatisfeito, ou pela fome satisfeita em parte. Feirantes seguem em rumo ao
dia, quando vi o cargueiro que durante meses me serviu de morada partir. So- mercado, às pressas, certos de que não farão bons negócios naquele dia. Os ca-
mente quando ele sumiu de todo foi que percebi que estava sozinho, sem casa, boclos no mercado não ingerem seus copos de cachaça com o mesmo apetite dos
sem dinheiro e não conhecia uma só pessoa na cidade,
outros dias. Sabem que aquele vai ser um dia diferente, pois vai cair muita chuva
— E depois? e a renda vai ser pequena. Reúnem-se os feirantes loquazes, sob o grande alpen-
dre destinado a abrigá-los. Será, sem dúvida, nesta manhã que ouvirão pela pri-
— Depois eu tive que procurar trabalho. Em vez de procurar os homens de
meira vez o baque das águas sobre a coberta de amianto do abrigo Carlos Veras.
posse da cidade, fui procurar a classe de gente que foi sempre a mais pobre nestas
bandas: os pescadores que, sem muita demora, me deram a mão, oferecendo-me — O pau d’água já começou a cair do outro lado do Rio da Cruz!— Bradou
um emprego estranho na época. Eu não sabia pescar, não sabia nadar, nem tam- o moleque Alcindo a pular eufórico entre os amontoados de gêneros diversos.
pouco manejar uma canoa. Mas aceitei, afinal de contas, era tudo o que eu tinha
— Este ano vai ser de grande fartura! — Comentou o Capitão Pedro para
para fazer. Para tal serviço, eram necessários três homens em cada embarcação,
Ricardina, que parecia não entender o motivo de tanta alegria e que aos sábados
Mais um motivo para que eu não hesitasse em ir transportar troncos de mangues
nunca perdia a feira na companhia do pai, que como a maioria dos pescadores,
para serem atirados em alto mar. Só muito tempo depois foi que eu vim entender
nunca ia ao mar nos sábados e domingos.
qual a utilidade dos troncos de mangues em pleno oceano.
Grandes pingos caem em grande quantidade sobre toda a cidade. Um cheiro
— Imagine o senhor que eu nasci aqui e ainda estou por saber para o que eles
de barro molhado penetra pelas narinas dos feirantes.
servem. — Interrompeu Justino.
— Deus tarda, mas não falta. — Suspirou a gorda Zilma do seu armarinho,
— Os homens desta praia, — continuou o velho, — têm o direito de escolher,
dentro do mar, o seu próprio local para pescar. A Capitania dos Portos permi- que como todos os demais feirantes, já viam a evidência de uma seca. Aos gritos,
te-lhes registrar o local que bem quiserem, onde somente eles têm acesso. Lá ela cumprimenta a todos os que passam. Obesa e feliz, a Dona Zizi como é co-
descarregam grandes troncos de mangues que passam a ser engodos a atraírem nhecida na intimidade de suas clientes, é sempre a primeira a abrir e a última a
os mais diversos tipos de peixes. O local é marcado com arinques, com uma ban- fechá-lo. É o único local da cidade onde moças e velhas encontram roupas aos
deirola de cor viva na ponta. Foi aí que vim a entender porque eu tinha que levar seus gostos na hora em que desejam. Lá tem de tudo. É mais ou menos uma mi-
tanto tronco de mangue para o mar. Depois de cinco anos nesse trabalho, dois niatura da feira de Caruaru. Da corda de tucum ao relógio importado. Do lenço
32 dos meus companheiros ficaram nas águas, junto aos troncos de mangue. E se bordado à colcha de renda. Do último lançamento da moda feminina e masculina 33
eu lá não fiquei também é porque já sabia nadar. Depois dessa, eu resolvi pescar às priscas calças de boca larga e coxas apertadas, comumente conhecidas como
e não trabalhar mais para ninguém. Já sabia remar uma canoa pequena. Deste “bocas de sino” e “puxa coxas”.
tempo para cá, já possuí três e nunca mais deixei de pescar. Naquele dia, a cidade inteira, apesar do mau tempo, parecia ter marcado um
Um vento frio corria no alpendre da casa do velho pescador. A lua brilhava no encontro com alguém sob o abrigo. Lá, não deixam de se fazerem presentes os
alto. Justino olha absorto para o mar calmo. Pequenas e alvas ondas brincam com hóspedes da Pensão Uruoca, em companhia da velha proprietária, lá estavam
também Luiz e Rita. Logo ao chegarem à feira, os dois, propositadamente, perde- —Você mal chega e já vai dando das suas, não é?
ram-se dos demais, e logo depois se perderam entre si. Rita não ligou para as palavras de reprovação do companheiro. Apontando-
Luiz fora até ali com um propósito muito especial, queria ver se transava com -lhe a tapioca e o café, piscando-lhe o olho, ela deu um risinho gaiato e perguntou:
alguém um emprego ou pelo menos uma informação para consegui-lo. —Quer um pouco? Estão gostosos!
Rita desfilava pelo grande galpão a receber olhares cobiçosos dos feirantes. —Rita, se você estava com fome, por que não me pediu? Eu pagaria. Falou
Luiz ficara em frente ao armarinho da gorda Zizi, informando-se com um grupo com ódio nos olhos, olhando ao redor e verificando que vários olhos se fixavam
de caboclos onde e como poderia conseguir trabalho. curiosos.
— Pra quem topa tudo, — falou um — existe trabalho de sobra na praia, é só Levantando-se ofendida, mas sem perder o bom humor, ela perguntou sem
falar com seu Justino e partir pra luta, ali está uma pessoa boa! Mas pra quem só evitar que os mais próximos a ouvissem.
é acostumado no bem bom, é melhor falar com o Saul lá na Cimpesca. — Luiz, você está pensando exatamente o quê?
— Não me diga que esse Saul da Cimpesca que você fala é filho do prefeito. —Que você é uma cachorra, e que embora sendo uma cachorra, devia latir
— E o Justino também. O velho entregou a empresa de pesca e as salinas para quando sentisse fome para que eu lhe desse de comer.
os filhos tomarem conta, enquanto ele faz das dele na prefeitura. Sempre conservando o riso nos lábios, Rita aproximou-se de Luiz e quase
encostando o seu rosto no dele, insultou-o também.
— Se quer um conselho, moço, — disse um outro — fale com o Saul, ele é
quem pode lhe dar um emprego melhor, talvez até no escritório da firma. Está — Ah é! E desde quando você me dá de comer? Não é por acaso com o meu
precisando de gente lá, pois foi muito malandro pra rua, que só sabia enrolar. dinheiro que você está vivendo desde que chegamos aqui?

O negro falava, Luiz não mais o ouvia. Ouvia apenas o baque das águas que O grupo de curiosos formou-se repentinamente. Tinham diante dos olhos um
caíam sobre a cobertura de amianto do grande galpão. Após a visita que fizera espetáculo raro, uma briga de casal. Ali, debaixo daquele galpão, de todos os
ao prefeito, o moço havia jurado não mais procurá-lo, nem tampouco aceitar tra- tipos de encrencas já tinham visto, mas aquele que agora tinha início era total-
mente inédito.
balho que, porventura, ele viesse a lhe oferecer. — Alguma coisa há de ser feita,
algum trabalho há de surgir, mas aquele elefante eu não quero mais ver na mi- Sob o efeito das palavras da companheira, Luiz perdeu o controle e, num só
nha frente! — Era o que costumava dizer para Rita, quando esta o aconselhava a gesto, aplicou-lhe um violento tapa, jogando-a ao chão. Rita caiu sobre o solo sujo
insistir para que o Prefeito o ajudasse. Agora, depois de muita resistência, via-se do galpão, a xícara com o resto do café que estava em sua mão direita, voou para
quase obrigado a procurar um de seus dois filhos, o que dava sempre no mesmo. longe espatifando-se. Ao lado direito de sua boca, pequena mancha de sangue
O tempo estava a passar rápido, o dinheiro a evaporar-se, a pensão ameaçada de surgiu misturando-se ao coco da tapioca. Sem perder o riso irritante, Rita sentou
no chão, passou a mão pela boca ardente e, ao constatar que estava manchada de
fechar sem que a proprietária ao menos tomasse conhecimento. — Ah, vida fulei-
sangue, levantou a vista para Luiz e disse.
ragem! — Exclamou baixinho e saiu a procurar Rita entre os feirantes.
— Bastardo, filho de uma puta!
A chuva cai grossa, as ruas largas que ladeiam o galpão servem de passagem
aos enxurros imundos que rumam para o mar. Luiz evita os sacos de feijão para, Luiz avançou para a amante decidido a esbofeteá-la novamente, quando duas
em seguida, desviar-se de pequenos montes de melancias e mangas. mãos negras e fortes o seguraram. Virando-se, ele viu o monstro dono das pos-
santes mãos, que lhe disse calmamente.
Depois de muito circular pelo galpão, Luiz parou de vez, como se tivesse em
— Cuidado, amigo! Aqui ninguém permite que covardes batam em mulheres
sua frente a imagem do próprio Diabo. Rita, comodamente sentada sobre uma
indefesas, muito menos o seu criado aqui, o negro Birata! Vá embora e deixe a
34 pilha de madeira, comia, sem pressa, uma alva tapioca de coco e tomava café. 35
moça ficar para fazer outra refeição, porque esta você já estragou.
Um fato que poderia parecer comum. Mas para Luiz, que a conhecia bem, não! A
companheira havia aceitado a oferta de algum gaiato. — Isto mesmo! Falou um outro, sentado próximo a um amontoado de verdu-
ras. — Ele vai, mas a moça fica. Depois, se quiser, ela vai atrás.
Luiz aproximou-se. Rita, ao avistá-lo, abriu os lábios num amplo sorriso,
como uma criança flagrada numa travessura. Luiz não respondeu ao seu sorriso. Luiz foi levemente empurrado em direção à saída do galpão. Tão rápida como
E foi pausadamente que falou. viera, a chuva cessou. O céu agora estava claro com as nuvens esparsas, prome-
tendo ceder ao sol a vez de secar a terra molhada. O moço saiu do galpão, pisan- cessidade de encontrar guarida que nem tinha reparado. O quarto era separado
do na enxurrada sem escolher lugar. Seguiu sem destino rumo à praia. A garoa do restante da casa por telas de fina madeira, forradas de lona. O teto sujo, quase
fina teimava em cair após a chuva torrencial. Na Praça do Quadro, estudantes invisível por causa das teias de aranhas, mostrava feias cortinas. Lascas de car-
mirins, protegidos por chapéus de chuva, dirigiam-se aos colégios. No Balneário naúba serviam de ripas, caibros tortos e pretos sustentavam as telhas, não menos
Sport Club, crianças fardadas que não tinham guarda-chuva, aguardavam sob pretas pelo sujo. Um maribondo desesperado circulava em torno da lâmpada
sua palhoça o cessar do sereno. Luiz subiu no mais alto balaústre, tentou sentar, embaciada devido a poeira e no alto da parede uma víbora faminta observa to-
não conseguiu. O rio, ao seu lado, parecia tão capiongo quanto ele. Por seu meio, dos os seus movimentos. O piso era de ladrilho grosseiro e sujo, muitos deles já
o cisco trazido pelas enxurradas formava uma longa fileira ao ser empurrado quebrados. Luiz suava, por seu pescoço, o líquido morno escorria para a camisa
pelas águas doces que, indiferentes, abriam caminhos entre a água salgada, rumo umedecendo-a. Várias interrogações martelavam-lhe a cabeça. — Para onde teria
ao mar. Desceu do balaústre de um pulo e seguiu rumo às casas pobres da praia. ido a maluca da Rita? Abandonando-o, sozinho, naquela terra estranha? — Pen-
Em frente a um velho casarão, que servia de almoxarifado a uma casa de pesca, sou em toda a cena da feira. Sentiu medo de reencontrar o brutamontes que o
frondosos e baixos coqueiros caracterizavam um bem tratado pomar. Sem saber havia segurado. Em parte, até que não foi de todo má a intervenção. O que ele
como, foi parar em frente ao Terra e Mar, e sem notar que, desde que saíra do gal- não havia gostado foi do tom com que o sujeito lhe falou. Um pensamento pior o
pão do mercado, era seguido sorrateiramente. Como que impulsionado, entrou fez levantar-se de vez, exclamando.
no cabaré, indo diretamente ao bar.
— Será que ela teve a coragem?
— Alguma bebida? Perguntou um homem baixinho e raquítico por trás do
Decidido, dirigiu-se para a porta do quarto, com o propósito de sair à procura
balcão.
da amante. Quando já pegava a aldrava para abrir a porta, viu, um pouco acima,
— Uma cachaça dupla! — Respondeu secamente, sentando-se a uma mesa um grosso envelope preso à parede no qual, em letras grandes e desenhadas,
mais próxima. se lia: — Ao Luiz de Vasconcelos. Com as pernas a tremerem, ele voltou para a
Já servindo a cachaça, O homenzinho não conteve a curiosidade. cama. Rasgou o envelope, lentamente, e iniciou a leitura da carta, que dizia assim:

— O moço é de fora? Caro Luiz!

— De Pernambuco. A brincadeira foi boa enquanto durou. No entanto, como tudo tem um fim, não pode-
ria ser o contrário. Não lhe peço desculpas pelo que houve na feira esta manhã. Quanto
— Como se chama? a mim, não se preocupe, eu já esqueci tudo. Depois que me refiz do que houve, mandei
— Não é da sua conta! aqueles interventores de meia-tigela à merda e segui você de perto. Em frente ao clube,
quando você ficou em cima do balaústre, a olhar o mar, eu tive vontade de me aproximar,
O homenzinho recebeu a resposta e engoliu em seco. Pouco depois, enxugan-
mas eu achei que não tinha o direito de tomar a sua tristeza, pois ela é só sua, assim como
do as mãos com um pano encardido, disse:
a minha é só minha.
— Pois eu lhe digo que sou o dono disto aqui.
Depois de longo tempo, você desceu do balaústre e eu pensei que você fosse voltar para
—E eu lhe digo que não estou nem um pouco interessado nisto. E vê se para a pensão, mas não, você seguiu em frente e eu segui você. Logo descobri para onde você
de me encher o saco... Porra...! ia, mas não acreditei e continuei seguindo, mais e mais, até que você entrou no Terra e
Com isto, o pequeno homem dirigiu-se para atrás do bar, olhando de soslaio Mar. Fui até a porta de entrada e vi você tomando pinga, mais do que isso não foi preciso
enquanto cochichava para si. “Este pernambucano está com o Diabo!” eu ver. Sei, por experiência própria, que dentro de um cabaré, um homem não toma um
segundo trago desacompanhado. Quando já vinha embora, na janela vizinha, deparei-me
36 Depois de várias duplas, Luiz voltou para a pensão onde teve uma desagradá- com aquela morena que estava sentada na porta do cabaré no dia que chegamos. Ela, que 37
vel surpresa. Dentro do pobre quarto da pensão menos rica, ele não encontrou as o viu entrar e me viu chorando logo atrás de você, entendeu logo que tínhamos brigado.
roupas de Rita. Não foi difícil descobrir, as roupas de Rita viviam sempre jogadas Mandou-me entrar e conversamos muito, muito mesmo, a ponto de decidir que é com
por todos os cantos do pequeno quarto. Deitou-se na cama forrada com algodão e ela que eu vou morar de hoje em diante, lá num dos quartos do Terra e Mar. Se acaso lhe
com as mãos cruzadas por baixo da cabeça, ele ficou a olhar a pobreza do quarto apetecer, procure-a, ela se chama Thania, com “TH”. É produto da terra, nasceu aqui
da Pensão Uruoca, enquanto pensava. No dia em que chegou, tamanha era a ne- mesmo. Quanto a mim, não procure mais, nós fizemos um trato e você o quebrou
botando tudo a perder. Como você vê, não devemos desculpas um ao outro, você Saul, que continuava rindo com o revide de Justino, disse:
quebrou o nosso trato, indo sozinho a um cabaré, e eu aproveitei o ensejo para
nele ir morar. É por isso que se diz: A raposa perde o pelo, mas não perde o vício. — Sinceramente, mestre Edmundo! — Raramente o chamava de pai. — Eu
Verifique que dentro da sua saboneteira haviam vinte cruzeiros e agora estão não consigo entender patavina do que o senhor tá querendo dizer.
faltando. Foi com esse dinheiro que eu paguei o café com tapioca lá na feira. — Está muito claro! Veja bem! A minha vitória prova que eles foram menos
Adeus! idiotas que vocês, se eu não tivesse sido eleito, logo eu não teria uma prefeitura
Não me procure. para tomar de conta, teria então que tomar de conta do que é meu, e, — com o
dedo indicador direito para cima. — Se eu tivesse tomando de conta do que é
Rita Sergipana meu, eles estariam sendo forçados a trabalhar duro sem terem as regalias que
o Justino está lhes proporcionando, diminuindo as taxas que deveriam pagar
por estarem pescando em nossas canoas, dando carta branca nos capatazes das
10 salinas para estipular o salário dos salineiros. Eu soube que as fazendas estão
entregues ao Deus-dará, transformando-se em savanas.
— Isso não é verdade, pai, e o senhor sabe disso! Eu os deixo à vontade, tá
Dia agitado aquele para o prefeito Edmundo Filgueiras, após o jantar na sala certo! Mas tenho o cuidado de não deixar as coisas saírem dos eixos, o senhor
da grande casa, a família conversa descontraidamente. Menos Raquel, que se mesmo comprovou isso, no mês passado, por exemplo, a renda do sal, a taxa
habituara, desde que casou, a ficar timidamente à parte, quando o seu marido e paga pelos pescadores e os produtos vindos das fazendas foram bem maiores
senhor conversava.
que os dos meses anteriores.
— Diga-me, Saul, como vão lá os seus trabalhos na empresa? Perguntou o
velho comodamente sentado com as banhas da barriga aparecendo. —Eu sei, filho! Confesso que exagerei um pouco, mas o que eu acho é que você
não deve abrir muito a mão para esse povo. Logo logo eles tomarão as rédeas da
— Bem, pai, eu despedi uma porção de gente ociosa que tinha lá dentro e... mão e aí puf!
— A empresa é sua! — Cortou o velho. — E esse negócio de demitir ou admi-
— Seu Edmundo! Cortou Saul em defesa do irmão. — O senhor deve lembrar-
tir pessoas não me interessa. O que eu estou querendo saber é o que faz o meu
jovem para melhorar a empresa. -se do que nós combinamos. Ninguém mete o nariz no serviço do outro.

— Eu fiz pedido de dois barcos maiores e menos antiquados que os que res- Ah! — Fez o velho. — Está muito bem! Levam as porcarias de vocês como
tam. Estou pensando seriamente em iniciar a pesca da lagosta, já mandei cons- quiserem.
truir uma boa quantidade de munzuás para logo que os barcos cheguem, no
Abençoando-os, Edmundo e a sempre obediente Raquel dirigiram-se ao inte-
início do próximo mês, a gente já possa iniciar a pesca e exportação da lagosta.
rior da casa, deixando os dois irmãos na sala.
— Mas isso é que é plano, meu menino! Isso sim é um bom plano! — Disse o
velho cheio de orgulho e, virando-se para Justino, resolveu insultá-lo. Retirando da estante um livro de Veríssimo, Saul perguntou.

— Você, meu caro Justino, eu não pergunto como vão as suas atividades, pois — Você não vai sair, Justino?
eu tenho aqui na pontinha da língua — apontou com o indicador uma pontinha
— Não! Disse levantando-se. — Vou ouvir um pouco de música e depois dor-
do órgão carnudo entre os dentes. — Você vai me dizer simplesmente que passa
o dia inteiro a tagarelar com essa arraia-miúda da beira da praia. mir, boa noite!

— É isso aí, papai! Acontece porém que essa arraia-miúda a que o senhor se
38 refere, já me ensinou muita coisa que as grandes arraias não foram capazes de 39
ensinar. E por falar nisso, eu não consigo entender como o senhor conseguiu ele- 11
ger-se prefeito, pois o seu prestígio é bem escasso por toda a praia! — Revidou.
— Ora, menino, não me venha com essa! A maioria desse populacho não
vota, e os que votam sabem perfeitamente como seria pior pra eles se eu fosse Justino, após o dia que viu Ricardina nos morros, tornou mais constantes as
derrotado. suas andanças por lá e com muita classe conquistou a amizade da moça, con-
seguindo desta, a permissão de ir a sua casa quando quisesse, embora já a fre- tino, ganharam mais um pastor, o jovem não mais faltou um encontro sequer nos
quentasse antes. Era a convite do Capitão Pedro que lhe fazia sala conversando morros desertos, próximo do Farol Sem Nome. Certo dia, quando o sol já pendia
sobre assuntos variados até tarde da noite. O velho, agora, tornara-se distante para o poente, os dois jovens sentados sobre a relva conversavam esquecidos
quando o moço chegava à sua casa. Ricardina esperava uma posição do pai sobre das ovelhas. Elas, por sua vez, acostumadas que eram ao pequeno pasto, não
o assunto, no entanto o velho não tocava no nome do rapaz, que outrora, não ousavam penetrar na mata baixa de guabirabas e puçás. Nos dias que se segui-
saía de sua boca. Deixando o velho de lado com suas manhas, Justino continuou ram àquele em que os dois jovens se conheceram, Justino perdera parcialmente
firme em suas visitas a Ricardina. Esta, por sua vez, tinha a consciência tranqui- a sua constante alegria. Aquele jeito que o moço tinha de rir de tudo e que tanto
la de que não estava a desobedecer o pai, pois esse nunca a havia proibido de irritara Ricardina naqueles primeiros dias, acabara-se totalmente. Agora ele vivia
receber o moço. Ricardina morava sozinha com o pai, somente ia ao centro da macambúzio, como se tivesse alguma coisa séria retirando-lhe a paz.
cidade quando o acompanhava para a feira aos sábados ou nos tempos em que
— Sabe, Ricardina, — Disso ele pensativo. — Depois que eu conheci você, não
estudava, e isso já fazia tempo. Enquanto foi possível estudar, ela o fez, indo dia-
vivo mais com a paz que tinha antes. Sei lá!. Essa lá! Essa indiferença do teu pai
riamente ao colégio como se fosse a um culto sagrado. Nunca era acompanhada
me deixa muito preocupado.
por ninguém, nem a ninguém dirigia a sua palavra. Com apenas dezoito anos,
conquistou o curso de pedagogia, mas para sua vida prática, o curso de nada — Ora, Justino. Se ele nada fala, é mais uma prova de que gosta de você e teme
servira, embora tenha aprendido com perfeição tudo sobre o estudo teórico e magoá-lo, ele só tem um pouco de ciúmes de mim e isso é normal, pois você é
prático das questões da educação, e adquirido a prática de ensinar e de educar. meu primeiro namorado, depois não deve ser surpresa de que ele não gosta do
Nada conseguiu, pois para isso necessitava de certo prestígio político, e uma filha seu pai.
de um pescador raramente o tinha, a não ser nos dias que precedem as eleições
— E por que Diabo ele não gosta do meu pai?
municipais. Durante toda a sua juventude, Ricardina foi apenas a duas festas,
uma quando concluiu o curso ginasial e a outra ao terminar o curso pedagógico. — Que eu saiba, existem dois motivos, um deles é infantil demais, o seu pai é
Em ambas, o seu acompanhante sempre foi o seu único amigo, o Capitão Pedro, rico e ele não gosta de ricos. Quanto ao outro, eu desconheço totalmente.
cujo aspecto senhorial nunca permitira que algum cortejador se aproximasse da
— E como você sabe da existência do outro motivo?
concludente. O pescador, em vez de constatar que era empecilho na vida parti-
cular de Ricardina e deixá-la mais livre, orgulhava-se quando verificava que a — Certa vez ele falou que os Figueiras Leal não prestam.
filha era olhada por todos, e o seu maior orgulho vinha exatamente dos olhares — E você concorda com ele?
de grupinhos de rapazes que ficavam de longe observando-a, sem ousarem uma
aproximação. Capitão Pedro, talvez por ter sido sempre um homem pobre, sentia — Como eu poderia?! Só conheço você, e há tão pouco tempo!
pelos ricos uma verdadeira aversão. E por isso, sentia-se o mais feliz dos homens — Sei não, Ricardina, aí tem coisa. Primeiro ele escondeu você de mim e de-
quando percebia sobre Ricardina os olhares invejosos das moças grã-finas que pois que eu a conheci e comecei à ir a sua casa, ele passou a me ignorar.
encontrava nas ruas da cidade.
— Ele não me escondeu de você, apenas nunca em suas conversas apareceu
Ricardina, logo que conheceu Justino, de um modo estranho nas proximida- motivo algum para ele falar de mim.
des do Farol Sem Nome, não quis permitir de início que o moço dela se aproxi-
masse, justificava-se pelo medo que sentia da reação que o pai teria ao saber de — O certo é que seu pai desconhece os meus sentimentos. Eu quero me casar
tudo, no entanto, não conseguiu resistir por muito tempo e achou por bem levar com você.
o moço até sua casa como seu namorado. Antes de ser levado lá por Ricardina, Espantando-se, Ricardina soltou-se dos braços do moço e disse apenas.
Justino já havia ido muitas vezes, mas como amigo do velho pescador e não como
namorado de sua filha. — Justino!
40 41
Capitão Pedro, ao saber do que se tratava, nada disse, mas sua posição era — Verdade! Você não quer?
bem clara, apesar de sua aversão aos ricos e em especial ao prefeito, o velho gos- — Seria precipitação minha responder isso agora.
tava de Justino, talvez fosse esse o motivo de não ter proibido a filha de receber
o moço em sua casa. As ovelhas do Capitão Pedro, em vez de perderem a sua — Você gosta de mim?
pastora, como esperava a própria Ricardina, logo que iniciou o namoro com Jus- — Não tem nada a ver!
— Gosta ou não gosta? Jacinta se foi, deixando-me só com Ricardina. Nessa época, me faltou tudo e foi
quando pela primeira vez eu senti o gosto da miséria. De início, eu muito lamen-
— Eu amo você, Justino, e acho essa ideia de casamento tão fantástica que
tei não ter um filho homem, eu achava que com o futuro ele poderia me ajudar
tenho medo de estar sonhando.
na pescaria, mas quando Ricardina começou a crescer, as coisas melhoraram um
— Não, Ricardina, você não está sonhando, e se me ama realmente, por que pouco e aí eu agradeci a Deus por ser ela uma menina. Sempre foi muito obedien-
hesita tanto em responder? te, aceitou com resignação a educação que eu lhe pude dar, eu mesmo ensinei-lhe
as primeiras letras à luz de lamparina. Depois comi o pão que o Diabo amassou
— É claro que eu quero, Justino.
para mantê-la em colégio pago. Agora que ela está adulta é que eu passo a ver
A essa resposta, Justino a tomou nos braços e um desejo há muito tempo con- que se fosse um homem, eu não teria que estar aqui falando estas besteiras.
tido apoderou-se dele. Pela primeira vez, ele a beijou, sendo logo correspondido — O senhor não está falando besteiras, Capitão, e boa parte do que o senhor
pela filha do pescador, menor não era o seu desejo. Deitados na relva, continua- acaba de me dizer, eu já ouvi mais de uma vez, só que a existência de Ricardina
ram a se beijar quando ouviram alguém próximo a eles bradar. sempre foi omitida, por quê?
— Ricardina! — Espere aí que lhe direi, estou apenas pegando o fio da meada.
De súbito, os dois levantaram os olhos, e sobre seus pés estava Capitão Pedro — Eu quero adiantar ao senhor, que tenha o que tiver para me dizer, em nada
com o rosto rijo contra o sol, a mirá-los nas mãos do velho pescador estava o mudará o meu propósito, que é casar com Ricardina.
grande chapeirão de palha.
O velho encarou-o balançando lentamente a cabeça de um lado para outro
— Eu não pensei que a brincadeira tomasse esse rumo, seu Justino! como que duvidando da segurança com que falava o filho do prefeito.
— Capitão, eu explico. Falou o moço levantando-se pálido. — É talvez esse fio da meada que eu não estava conseguindo pegar. Justino,
me responda uma coisa com toda sinceridade! Será que seu propósito de casar
— Você nada tem a explicar, rapaz, eu não sou cego! — e virando-se para Ri-
com Ricardina vai continuar depois que você souber que ela não é minha filha?
cardina, ordenou. — E você, menina, pegue suas ovelhas mal pastoreadas e vá
pra casa, nós temos visita — O quê, Capitão?
— Visita? —Interrogou ela ficando mais pálida. — Exatamente o que você ouviu! Ricardina não é minha filha.

— Não é ninguém de cerimônia, é o Birata que vai nos convidar para o bati- — É quem é o pai dela, então?
zado de mais um filho. Ou você acha que eu vim aqui vigiá-la? — Foi essa a maldita pergunta que durante todos esses anos eu me fiz.
— E o senhor, por que não vem comigo? — O senhor está me dizendo então que ela é uma...
— Porque eu tenho algo para conversar com esse moço. — Isso mesmo, Justino, uma bastarda! E agora responda a minha pergunta:
— Papai, o senhor não... Mudou ou não mudou o seu propósito?

— Vá embora! — Cortou o velho. — Para responder a sua pergunta, eu terei primeiro que descobrir quem é pai
de Ricardina. Será que dá para o senhor me entender?
Ricardina saiu a tanger as ovelhas enquanto o velho sentava-se na relva, apon-
— Claro que sim, mas será que você vai conseguir isso algum dia?
tando um lugar à sua frente para Justino, que foi logo dizendo:
O velho pescador ao fazer essa pergunta, ficou calado olhando para o mar,
— Capitão, eu...
como que querendo arrancar de lá lembranças de acontecimentos do passado,
42 — Acho bom você me ouvir primeiro. — Disse o velho fazendo uma pausa, para revelar ao pretendente à mão de Ricardina. 43
depois continuou — Justino, eu moro nesta terra há mais de trinta anos, muita
Justino parecia ter perdido toda a sua noção. Mil pensamentos se lhe passa-
coisa aconteceu comigo e eu jamais pensei em contar pra alguém, e, no entanto,
vam pela cabeça. Friccionando as mãos no rosto, ele murmurou:
vejo-me agora obrigado a contar pra você. Aqui eu conheci seu avô ainda bri-
gando pela posse de terras, conheci seu pai e seus tios ainda moços como você, — Meu Deus, não pode ser, tem que haver algum engano. — E olhando para
comecei a viver aqui nessa beira de praia. Casei-me e, dois anos depois, a minha o pescador, perguntou: — Era só isso que o senhor tinha para me dizer?
— Não, Justino, já que chegamos até aqui, é bom que você me ouça mais um do veio descobrir isso, era tarde demais, em seu ventre, uma nova vida tomava
pouco. forma, estava grávida. Disse-me ainda que o pai da criança morava aqui mesmo
em Camocim e que era muito rico. Depois me disse que estava muito cansada e
— Capitão, se faz algum mal ao senhor tendo que remoer o passado, é melhor
que queria ficar só. Na manhã seguinte, decidido a reatar a nossa conversa, eu
que deixemos essa conversa para um outro dia.
fui ao quarto de Jacinta e a encontrei morta. Justino, eu não me oponho ao seu
— Limite-se a me ouvir, Justino, deixar pra depois seria pior. casamento com Ricardina, no entanto eu proponho a você que pense mais um
— Por mim, tudo bem! pouco, pense principalmente se vai poder trazer sempre consigo esse segredo
que eu guardei até hoje, até agora. É um direito seu tentar trazê-lo à tona, mas se
— Eu me casei com Jacinta aqui mesmo nesta beira de praia, casamos na igre- não tiver êxito, eu proponho que o referido fique somente entre nós.
ja de São Pedro e todo o povo da praia compareceu ao casamento, e entre eles
estava uma linda menina que estava começando a andar, ela era a filha da noiva, — É isso mesmo o que eu vou fazer, Capitão, mas asseguro-lhe que o meu
Ricardina! O único sentimento que me levou ao altar foi talvez a piedade que propósito de casar com Ricardina mudou somente no que diz respeito ao tempo.
senti por uma compatriota. Jacinta era também portuguesa de Leiria. Veio parar — Eu me alegro em ouvir isso de você, mas vejo que você ainda não teve tem-
aqui trazida por uma companhia de teatro. Era tão bonita quanto a filha é hoje, po suficiente para pensar em quem poderia ser o pai de Ricardina.
talvez mais ainda. Trazia, no entanto, o rosto sempre com a marca nítida do so-
frimento. Aceitei Ricardina como minha filha, na esperança que Jacinta logo me — Engana-se, Capitão, eu sei que O pai de Ricardina poderá ser um obstáculo
dissesse por que ficara aqui, quem era o pai da menina. Mas não! Tenho certeza para o nosso casamento. Por isso eu juro que vou descobrir a sua identidade. Se
que eu, se pedisse, ela me contaria tudo. Mas isso seria a última coisa que eu não conseguir, casaremos de qualquer modo daqui a um ano no máximo.
faria em minha vida. Exigir uma confissão da mulher que em tão pouco tempo — Combinado, Justino! Agora eu gostaria que pelo menos nesse período,
me ensinara a amá-la. Não, eu não fui capaz disto. E veja bem, por um amor você poupasse Ricardina de saber disso tudo.
que durou tão pouco. Um amor que me ensinou que não vale a pena se amar
como eu amei. Não durou mais que dois anos o meu idílio, pois Jacinta morreu, e — Não se preocupe, Capitão, não é a mim que compete revelar isso pra ela, e
com ela morreu grande parte do meu ser. Depois disso eu jurei nunca mais amar sim o senhor. Até logo! — Disse levantando-se.
ninguém, e por muito tempo eu consegui manter-me nesta posição, mas dizem os — Um momento, Justino! — Chamou o velho ainda sentado.
poetas que é lei da vida, amar, odiar e amar, e foi exatamente isso que aconteceu
comigo. Eu amei Jacinta sobre todas as coisas deste mundo, depois que ela se foi, — Sim?
eu passei a odiar tudo que estava a minha volta, exceto uma criaturinha desse — Jure que guardará segredo de tudo que acaba de saber!
tamanhinho, — mostrou o indicador sobre o polegar indicando o tamanho da
— É necessário isso, Capitão?
criaturinha — que estava sempre às voltas comigo, como se fizesse parte do meu
ser. E foi esta criaturinha que me devolveu o gosto de viver. Ricardina tinha três — Jure!
anos quando Jacinta foi acometida por um câncer, que tão rápido como viera,
— Pois bem, eu juro!
tratou logo de comer-lhe as cames dos seios, levando-a para o túmulo em poucos
meses. Uma noite, fui chamado ao quarto de Jacinta, que piorara repentinamente, — Ótimo, agora me deixe sozinho! — E ficou sentado sobre a relva pensando
de sua cama exalava um cheiro podre que nunca mais me saiu do nariz. Ela, em em tudo que dissera.
sua luta contra a morte, estava muito cansada, mas mesmo assim conversamos
muito e, pela primeira vez, nós contamos um ao outro boa parte de nossas vidas.
As nossas venturas e desventuras, sendo as desventuras, bem mais numerosas
44 de ambas as partes. Nesta noite, ela me contou como veio parar aqui com a tal 12 45
companhia de teatro. Logo ao chegar, apaixonou-se por um rapaz que também
dizia-se apaixonado. Com muitas juras de um amor eterno, ele implorou que
ficasse aqui e com ele casasse. Ela deixou-se levar pela conversa e aqui ficou com A notícia de que o Terra e Mar havia recebido gente nova, abalou toda a malta
o moço. Somente depois de entregar-se de corpo e alma ao aventureiro, foi que da beira da praia, tudo ocorrera muito rápido. Pela manhã, acontecera a briga na
descobriu tardiamente que ele jamais pensara em casar-se com ela. Mas quan- feira, e ao meio dia, Rita já estava no cabaré. Pela tarde os pescadores já haviam
tomado conhecimento, todas as bocas já pronunciavam o seu nome intimamente. — Adeus moço, se precisar de alguma coisa, procure a pensão Uruoca, você
Os homens da praia contavam por certo uma noite ao lado de uma mulher dife- tem três dias pagos.
rente, de uma mulher que não era da terra,
Rindo da bondade e integridade da velha, Luiz retirou-se. Era o moço o tipo
— Quem me disse foi a Thania! — Bradava o moleque Alcindo para todos que não se pode descrever como alto nem tampouco como baixo, era assim, di-
os homens. — O nome dela é Rita Sergipana, veio das bandas de um tal Sergipe gamos, do tipo mediano. Era um pouco gordo, mas as banhas não chegavam a
com um tal Luiz, aí hoje eles brigaram lá na feira feito cachorro e gato, eu vi até a ser-lhe de todo desproporcionais. Os cabelos curtos e castanhos realçavam com
briga, ele deu um tapa nela chega ela rolou pelo cimento, aí ela não queria mais a barba há dias por fazer, tornando assim menores os seus olhos levemente ver-
saber dele, por isso foi morar no cabaré. À noite até eu vou lá no Terra e Mar pra des. A pele trigueira parecia mais escura pela grande quantidade de pelos que a
ver como é a danada dentro do salão, cobriam.

— Êta, curumim danado pra saber de tudo! Gritou o negro Birata, jogando-lhe De mochila às costas, ele caminhava decidido rumo à Cimpesca. As casas al-
uma cuia cheia de água salgada. tas da orla marítima davam a sombra que, acompanhada do vento, tornavam-no
preguiçoso. Caminhava sem pressa de chegar. Dirigia-se para um lugar onde
nunca tinha ido, ia falar com um homem com quem nunca havia falado antes,
dele sabia apenas o nome Saul e que era filho do prefeito e nada mais, imaginava
13 as perguntas que ia ter de responder ao homem com quem ia falar à procura de
trabalho.
Chegando à empresa de pesca, foi logo atendido pelo porteiro, que pronta-
Sentindo-se perdido, Luiz releu, por muitas vezes, a carta de Rita. A sua Rita, mente o encaminhou ao diretor.
agora transformada em Rita Sergipana. Aquele adjetivo a seguir-lhe o verdadeiro
— Pode sentar! Ordenou o moço sem levantar a vista.
nome magoara profundamente o moço, e ele sentia grande necessidade de dizer-
-lhe isso na cara, mas era suficientemente orgulhoso para não fazer o que ela teve — Obrigado! Disse Luiz sentando-se esperançoso.
o cuidado de pedir-lhe na carta.
Depois de pequeno intervalo, que para Luiz pareceu um século, Saul olhou
— Fique tranquila, Rita, eu vou atender ao seu pedido. Nunca mais eu procu- para ele e perguntou:
rarei você. — Pensou ele relendo a carta para em seguida rasgá-la. Rita Sergipana,
— Você não é o tal Luiz de Vasconcelos?
a mulher que o fizera seguir um caminho tão diferente daquele que ele próprio
traçara. Que o forçara a parar numa cidade em que as pessoas que lhe poderiam — Sim senhor, como sabe?
dar mão, o olhavam por cima dos ombros. Deixara-o mal haviam chegado, indo — Meu pai me falou de você.
direto para um cabaré pior do que o de onde a tirara em Aracajú, o Garconniére,
um reles cabaré fora da cidade e frequentado pela pior espécie de gente. — Pois é, já estive na prefeitura atrás de trabalho.

Decidido, arrumou as roupas que o acompanhavam. Saiu do quarto que ocu- — E por que não o conseguiu?
para. Chamou a velha proprietária e pediu a conta. — Ainda estou por saber.
— Aqui o moço ainda tem três dias, a moça que o acompanhava deixou tudo — Porque ele não lhe deu trabalho eu sei, e suponho que você esteja interes-
pago. Contou a negra bondosamente. sado em saber.
— É, mas eu não vou mais passar três dias aqui. Adeus! — Disse ele tristemen- — Pode dizer.
46 te saindo, quando a velha o chamou. 47
— Você quis lograr o meu pai. Ele ia lhe dar trabalho, mas primeiro resolveu
— Ela deixou um recado para o moço, disse que é pra você não a procurar. verificar quem era você, e antes que ele tomasse a iniciativa de entrar em contato
— Ela não devia ter se preocupado com isso, seria a última coisa que eu faria com o Deputado que a ele lhe recomendou, a verdade veio à tona nesta manhã.
em minha vida. — Não entendi nada!
— É fácil! Você já vai entender. Você andou por toda a cidade? — Tu vai ver, fuleiragem! Não te apressa!
— Não! Nunca, nem Thania, nem as outras mulheres do Terra e Mar viram tanta gente
lá dentro. Notava-se a presença de pessoas nunca presentes ali que também que-
— Então não a conhece para caber como ela é pequena, Como você vê, seu
Luiz Carlos de Vasconcelos, essas briguinhas de casais desocupados numa cida- riam ver a tão falada Sergipana.
de pequena, dentro de pouco tempo, andam de boca em boca. — Te prepara para uma estreia e tanto, garota! — Disse Thania entrando
— O que houve pela manhã na feira não prova que eu logrei seu pai. no quarto de Rita como um furacão. — Aí hoje tem homem que eu nunca vi.

— Engana-se, meu caro, pois foi por causa dela que a cidade inteira está sa- — Algum motivo especial? — Perguntou Rita mostrando indiferença, en-
bendo que a tal Rita Sergipana é uma puta retirada de um cabaré em Aracaju, e quanto aplicava um negro cosmético em redor dos olhos.
não a sua esposa, como vocês disseram ao meu pai. — Tu, mulher! Tu é o motivo! Tu mal chegou na cidade e o teu nome já anda
— Você não tem o direito de... em todas as bocas dos homens da praia e até mesmo da cidade, pois até carro tem
parado na porta.
— Baixe o tom! Aqui quem fala alto sou eu, você ofendeu o meu pai enganan-
do-o. — Tem muito velho?

Luiz estava nitidamente pálido, não se sabe se de humilhação ou de raiva. — Tu sabe que sim, em todo lugar é a mesma coisa.
Tinha ido ali para pedir trabalho, mas diante do que ouvira de Saul Filgueiras, — Então vamos ter problemas, porque eu não gosto de velhos, a começar pelo
não era mais possuidor da coragem necessária, ao ouvir as últimas e debochantes meu pai, zangou-se Rita.
palavras do mais novo e bem vestido menino que estava à sua frente provocan-
do-o. Separado pela luxuosa secretária, levantou-se, juntou a mochila do chão Minutos depois, as duas mulheres apareceram no salão do Terra e Mar, todos
lustroso e tratou de sair sem dizer nenhuma palavra, pois um nódulo, tapava-lhe os olhos pararam na novata, até mesmo os poucos casais que dançavam. Thania
a garganta. Já na porta, a voz de Saul o reteve sem fazê-lo virar-se. e Rita sentaram-se sozinhas numa mesa que parecia reservada para as duas, pois
as demais estavam lotadas, com exceção de uma que era ocupada por apenas
— Um momento! Você não disse para que veio até aqui.
uma pessoa que as fitava desde que entraram no salão.
— Vim procurar emprego, mas desisti. Você precisa crescer muito para poder
Quase a gritar, para vencer o som estridente do conjunto, Thania falou para
ser meu patrão.
Rita apontando com o queixo.
Saiu de vez, batendo a porta com força e deixando Saul de boca aberta.
— Não é por acaso aquele o seu Luiz de Vasconcelos?
— Era! — Disse Rita, virando a cara. — Agora vá e fique com ele, e lhe diga
que faça o favor de não se aproximar porque senão em revide ao tapa que ele me
14 deu pela manhã, eu quebro-lhe os dentes.
Thania não esperou muito, levantou-se e saiu a circular pelas mesas, encom-
pridando propositadamente o percurso para a mesa que Luiz ocupava. Era a
Desde as primeiras horas da noite, o Terra e Mar estava lotado. Thania pas-
mais alta de todas as mulheres que compunham o cabaré, e só não era a mais
seava pelo grande salão, entre as mesas lotadas recebendo beliscões no traseiro,
bonita porque chegara Rita a lhe deixar para trás. Trajava um aparente vestido
sorrindo e sem perder a naturalidade, pois estava acostumada àquele tipo de
caro de cor branca que realçava com sua tez negra-acinzentada. Os cabelos ne-
48 galanteio. Alguns a puxavam pelos ombros, chegando a seus ouvidos, a boca de gros e lisos formavam uma rodilha no alto de sua cabeça. Em volta do pescoço 49
bafo fedorento para perguntarem por Rita. comprido, luzia um grosso colar de bijuteria, ornamentado por contas de vidro
— Me disseram que a novata é de Sergipe? de vários tamanhos. Ostentando a beleza de uma rainha negra, ela displicente-
mente se aproximava da mesa do distante Luiz, a sorver em pequenos goles a
— É sim, de Aracajú, mulher vivida — Respondia prontamente.
sua cerveja. Exibindo a sua esbelteza, ela excitava os pescadores a lhe beliscarem
— É boa? Perguntava um outro. as ancas flexíveis. Mal sentou-se à mesa do surpreso Luiz, já era seguida pelo
garçom, a curvar-se respeitosamente como manda a profissão, perguntando com a pessoa mais bonita naquela noite dentro do cabaré, mas numa cidade pequena,
a voz arrastada. qualquer pessoa estranha atrai os olhares de todos. Para isso, não é preciso que a
pessoa seja bonita, basta ser estranha, e Luiz era o tipo que não podia ser chama-
— Mais alguma coisa, senhor?
do de feio. Todas as mulheres o olhavam com olhos de cobiça e todos os homens
— Pergunta pra moça, ora! o olhavam com olhos de inveja. Inveja e incompreensão por ter sido ele capaz de
esbofetear uma mulher tão bonita como Rita.
Sem parar de sorrir e sem olhar para o garçom, Thania ordenou:
Aos olhos do cáften do Terra e Mar, o grande forasteiro também não passou
— Eu quero uma vodca com soda.
despercebido, logo que este entrou no salão de dança e começou a dançar, pas-
O garçom saiu com passos rápidos, enquanto Thania explicava-se para Luiz. sou a atrair todos os olhares, que até então eram dirigidos a Rita. Costumavam
— É que eu não tomo bebida barata! os frequentadores do Terra e Mar chegarem cedo para conseguirem a mulher que
estava em vista. Porque a mulher que se fizesse acompanhar por um homem
— Nota-se! — Disse ele rindo — Vamos dançar? dentro do Terra e Mar, somente a ele pertencia dentro do Terra e Mar. Não podia a
No Terra e Mar conservava-se a rara tradição de se respeitar a mulher acom- mulher recusar o homem que primeiro a procurasse, nem podia o homem exigir
panhada, coisa rara em outros lugares de diversão. De vez em quando, a cidade a presença em sua mesa, da mulher que já estivesse acompanhada. Não valia,
amanhecia cochichando às escondidas, falava-se que na noite anterior, o filho do portanto, para a mulher o direito da opção, e, para o homem, não valia a tomadia.
doutor fulano de tal, a um descuido, sumira-lhe das mãos a namorada, indo en- Naquela noite, Thania transgrediu a lei da opção, mas a transgressão não chegou
contrá-la, coisa de hora depois, quando o rapto ou a fuga já era do conhecimento ao conhecimento do justiceiro cáften, do contrário, a mulata seria punida.
de todos, a esfregar-se desavergonhadamente ocupando um só tijolo no meio do — Aqui é uma casa de negócios. — Dizia o cáften. — Enrabichamento, só
salão com o filho do doutor beltrano de tal. Coisa como essa e muitas outras eram daquela porta pra fora. — E apontava para a porta de entrada com movimento
triviais na mais alta escala da sociedade em todo o mundo. Não se pode, contudo, brusco. Essa e muitas outras exigências foram citadas para Rita na tarde em que
defender a média e a baixa escala social. Nas gafieiras e arrasta-pés de subúrbios entrou para o Terra e Mar.
é tão comum esse tipo de bolinação que não há mais necessidade de comentários. Thania sorria feliz enquanto se dirigia ao dancing ladeada por Luiz. Agora os
A turma da ralé, que é a turma dos forrós de beira de estrada, é também acostu- homens olhavam-na babosos, mas não mais beliscavam o seu traseiro. Ao entra-
mada a prensar-se com o auxílio de troncos de cajueiros e mangueiras. Afinal de rem no salão, o som estridente de um samba do Nelson Gonçalves desinquietava
contas, esse é um direito deles que não têm os luzidios mosaicos de um clube, a todos. Estimulado, Luiz tomou-a pela cintura delgada e saíram a rodopiar exi-
para que sobre eles, escondidos entre outros casais, possam praticar as suas safa- bindo uma destreza rara, enquanto cantavam acompanhando o rouco cantar do
dezas. Enfim, todas as classes sociais têm o direito de praticar onde e como bem conjunto.
quiserem as suas sacanagens. Menos no Terra e Mar, onde dançar é uma arte e
não uma traquinagem. Se porventura algum casal, desconhecedor dos estatutos “Você vai ser minha,
lá existentes, começava a diminuir o ritmo da dança e passava a balançar o corpo,
se Deus quiser,
ocupando um mínimo espaço de chão, logo era incomodado pelo cáften que,
cinicamente, dizia ao dançarino. a não ser que Deus castigue

— Em pé não vale, meu caro! Se está afim, eu tenho quarto para alugar. e eu deixe de ser homem

Mesmo dentro de um cabaré, sob os olhos divertidos dos que permaneciam e você de ser mulher.”
sentados, o casal repreendido ficava sem jeito, e ou sentava, ou dançava como
50 Os homens bêbados de cachaça, tornavam-se logo embriagados também da 51
mandava o som, ou alugava o quarto sugerido. Antes que optassem por uma das
alegria provinda do som contagiante do samba. A grande quantidade do álcool
três alternativas, o cáften já se retirava dizendo com um sorrisinho sarcástico.
tornava-os alegres e o ritmo do samba a falar diretamente dos almejos de cada
— Dura lex, sed lex! um.

Era realmente muito dura a lei, mas a todos era aplicada e por todos tinha de Somente o efeito de alguns copos de cachaça, a presença de muitas mulheres,
ser observada, mesmo que isso custasse grandes sacrifícios. É certo que Rita era a alegra do som do conjunto eram capazes de expulsar de dentro do Terra e Mar a
personalidade contida dos pescadores, dando lugar a uma outra sem a costumei- — Isso que você, aliás, vocês dois estavam a praticar há pouco no salão, esse
ra casmurrice própria daqueles homens de pele e alma calejados pelos dissabores esfrega-esfrega,
de suas vidas. Miraculosamente, a nova e em boa hora assumida personalidade, — Mas isso aqui não é um cabaré?
fazia-os cantarem com vozes pastranas, enquanto batiam com os copos vazios
nas mesas. — Exatamente por ser um cabaré é que não se permite aqui esse tipo de coisa,
já que temos quartos para aluguel. Lá você poderá fazer tudo quanto quiser, des-
“Pra lhe conquistar de que ela tope! Você entende, não é? Tática de trabalho.
você vai ver, — Claro! Claro! Muito inteligente a sua tática. — Disse voltando a dançar,
feitiço eu vou fazer...” como se nada tivesse acontecido. Só que, desta vez, com o cuidado de não agarrar
muito a parceira.
Rita dançava sozinha em volta de uma mesa sem que nenhum homem fosse Já da margem do salão, o cáften de volta para o bar, gritou para Luiz.
fazer-lhe companhia. Contentavam-se apenas em vê-la dançando e rebolando as
ancas. Medo ou respeito pela Rita Sergipana? — Dura lex, sed lex!

Mal começaram a dançar, Thania e Luiz passaram a atrair todas as atenções, Este deu uma gargalhada, provando que entendera o que dizia o latinizador.
agora ninguém mais olhava para a Sergipana e sim para à dupla que transgredia Depois de um bom tempo, Luiz e Thania, cansados da dança acelerada, resol-
os rígidos estatutos do cabaré. Luiz era um pouco menos alto que a parceira, mas veram parar, o suor lhes saía dos poros penetrando em suas roupas, deixando
isso não tinha nenhuma influência para atrapalhar no tipo de dança que estavam uma mancha escura no vestido branco de Thania e na camisa vermelha de Luiz.
a executar. Ela ria divertida, por saber que era o palco das atenções dentro do
Tomaram lugar à mesa e Thania voltou a tomar a sua vodca com soda, bebida
cabaré. de primeira, enquanto Luiz, com menos classe, engolia a sua já quente cerveja.
Todos os que conheciam a pronta eficiência do cáften, olhavam para a dupla — Como é mesmo o seu nome, pernambucano? — Perguntou a mulata, que-
e depois para ele, que por trás do balcão já se preparava para o ataque. Luiz, to- rendo puxar uma conversa.
talmente desconhecedor das normas exigidas pelo cáften, esfrega-se nas coxas de
Thania, enquanto ela soltava suspiros de felicidade e de diversão. — Luiz com Z — Disse tomando mais um gole, e embora já soubesse também
o nome da mulata. E o seu?
Subitamente, uma inesperada mão bateu nas costas de Luiz fazendo-o parar
de dançar sem desgrudar-se de todo da cintura de Thania. — Thania com “TH”!

— O que é que há, chefe? — Perguntou ela rindo. — Alguma coisa errada? E riram debochadamente atraindo os olhares dos homens do mar, alguns du-
ros e sem a companhia de uma mulher ao menos para conversarem dentro do
— Há sim, do contrário eu não estaria a incomodá-lo. cabaré.
— E o que é, então? Rita divertia-se, solitária, dentro do Terra e Mar, enquanto todos, com exceção
— Você está desrespeitando a casa. de Luiz, a desejavam. Mas quem se atrevia a se aproximar daquela mulher tão
diferente, vinda de tão longe parar nesse fim de mundo? Os homens do mar
A esta palavra, Luiz não pode deixar de rir, imitando a Thania que não havia não tinham nos bolsos muito dinheiro para oferecer a Rita uma noite à altura.
deixado de mostrar os dentes por um instante sequer desde que entraram no E os que não eram pescadores e o tinham em grande quantidade, já passavam
salão. Num gesto de polidez, o moço soltou-se de Thania e repetiu numa interro- dos sessenta e pelo tempo já haviam notado que a sergipana não lhes dava
gação a palavra que o fizera rir. preferência, pois nem sequer os havia fitado, enquanto que aos homens do mar,
52 — Desrespeitando? ela sorria, provocando-os, como é próprio de uma mulher bonita dentro de um 53
cabaré. A falta de dinheiro e a suspeita de impotência era o que dominava os pre-
— Isto mesmo! Você tem toda razão de estranhar essa repreensão, pois como
tendentes que sonhavam passar a noite com Rita no Terra e Mar. Já madrugada,
você já me disse uma vez que era de Pernambuco, eu o entendo, pois lá certamen-
Luiz saiu em companhia da Thania de TH, com o dinheiro escasso, mas tendo
te, esse tipo de sacanagem deve ser totalmente normal.
onde dormir por aquela e por muitas outras noites. Rita que se danasse para ar-
— Mas que tipo de sacanagem? ranjar um outro quarto.
15 dos pecadores. Na proa e na popa foram fincadas as bandeiras do sindicato dos
Estivadores e da Colônia dos Pescadores. Após a missa, seguiram-se os discursos
ao microfone, em primeiro lugar o do Bispo vindo de Tianguá para dar as últimas
instruções ao novo cura e entregar-lhe publicamente as chaves da igreja. O velho
Junho chegou com ares de festa em toda a cidade, o período das chuvas cessou
vigário da Paróquia de Bom Jesus do Navegantes, com vez rouca e embargada,
deixando um lastro de fartura pela praia. De tudo o que se plantou teve-se uma
agradeceu ao reverendíssimo Bispo pela santa bondade de, em tão boa hora, en-
boa safra. Não havia uma só casa em toda a beira de praia que não tivesse grande
viar àquela cidade tão carente da palavra de Deus, o jovem colaborador.
quantidade de peixes de todos os tamanhos a secar com velhas e crianças a pas-
toreá-las contra cães e gatos ladrões. Aproxima-se o período das festas juninas, e Impaciente, mal acabou o velho pároco de falar, o prefeito Edmundo Filguei-
nada melhor que um bom naco de peixe assado na brasa da fogueira com farinha ras tomou-lhe das mãos o microfone, desejou as boas-vindas ao jovem padre e
d’água e um trago de cachaça. Os pescadores, em junho, não tinham outra coisa deitou a prometer coisas a mais coisas. Segurava o microfone com a mão direita
com que se preocuparem a não ser com festas. Bom mês esse de junho para tal e, com a esquerda, passava o pente pela brilhosa careca. Depois de falar o tempo
preocupação, pois em nenhum outro se realizam tantas festas como nele. Os pes- suficiente para cansar a todos os que o ouviam, o prefeito recebeu das mãos de
cadores dividem-se em grupos por toda a praia ao encontro dos mais diversos uma jovem uma grande chave simbólica, esmaltada de vermelho, não da igreja,
tipos de diversões. No início do mês, o que mais os atrai é o Bumba-meu-boi, mas mas da cidade inteira, passando-a no mesmo instante às mãos do espantado sa-
logo em seu meado, voltavam-se inteiramente para a folia das quadrilhas e das cerdote enquanto finalizava.
fogueiras e, principalmente, para as novenas de São Pedro. A festa de São Pedro,
— Estarei sempre às suas ordens, padre João José, sempre que precisar dos
diversão preferencial de todos os pescadores, que juntamente com toda a cidade
serviços da prefeitura e desse seu criado, pode dispor!
voltavam suas atenções para a grande procissão do dia vinte e nove, o dia do
santo protetor dos pescadores. — Bajulador! — Cochichavam os pescadores entre a multidão.
Justino, depois que começou a namorar a filha de Capitão Pedro, passou a O prefeito Edmundo, após a noite de recepção ao padre João José, nunca mais
frequentar com mais assiduidade a praia em sua companhia, e isso contribuiu apareceu sobre a alta calçada da igreja de São Pedro. Nem o humilde padre o
em muito para que o moço logo se tornasse amigos de todos, até mesmo dos que procurou. Não foi preciso!
sabiam ser ele filho do prefeito e que dele não gostavam. Em constante par com
Ricardina, Justino misturava-se aos pescadores, transformando-se ele e ela em
líderes na organização da festa de São Pedro. Uma procissão somente deles, pes-
cadores, como afirmava eufórico o velho Capitão Pedro. — Uma procissão que 16
somente eles arrumavam, uma procissão em que as filhas de Maria não metiam
o bedelho.
Dos três filhos do velho Leonardo Filgueiras, o mais estranho sempre foi o
— Duvido que o seu prefeito se atreva a remar a minha Estrela d’Alva, que
do meio em número de anos, o obeso Eduardo. Pouco tempo após a morte do
vai levar o meu xará no dia da procissão. — Bradava o velho pescador por toda
pai, deixara de lado os poucos parentes restantes e vivia sorumbático, como que
a praia.
a carregar pesada a consciência. Mantinha-se sempre calado, e quem outrora o
O padre João José, recentemente chegado à cidade, fora designado para tomar conheceu comentava a sua tagarelice. Tornou-se o mais assíduo frequentador
conta do curato de São Pedro. A igreja, situada no centro da grande favela, em ter- de todos os cabarés da cidade. Parando mais tempo sempre no Terra e Mar, que
reno alto e amplo, cercado por cabarés e terreiros de macumba, dava frente para sempre foi o melhor em matéria de cabaré. Na noite de estreia de Rita, lá estava
o mar, em seus fundos, atrás do altar mor, estava o pequeno cubículo que servia ele entre os indecisos de a conquistarem. Viera a saber naquela mesma ocasião
54 de morada ao vigário. Seus altos calçadões de pedra, costumam servir de duros que a bela sergipana não era chegada a velhos. Nem mesmo aos carregados de 55
colchões aos frequentadores do Terra e Mar e aos batuqueiros dos terreiros de dinheiro como ele. Mas o orgulho dos Filgueiras Leal, anexado ao costume de
macumba. O padre ordenou-se em janeiro e, em fevereiro, já rezava a sua segun- conseguir sempre o que desejavam, o incentivaram a cortejar a sergipana. Tor-
da missa na presença de toda a cidade. Pescadores de todos os credos fizeram-se nou-se mais assíduo ainda. Podia faltar o cáften, podia faltarem os garçons, mas
presentes em frente à igreja. No alto calçadão, em frente ao portão principal, foi ele não! Quer chovesse ou caísse raio, sempre lá estava o bojudo Eduardo a mas-
instalado um altar em forma de canoa, tendo ao centro a imagem do santo amigo tigar pontas de cigarro, enquanto perseguia Rita com seus olhinhos miúdos. Era
o velho Eduardo, no momento, um dos temas que Thania e Rita bisbilhotavam porem as mais aviltadas. Essa e todas as outras noites de novena que precediam
no grande salão do cabaré, enquanto bolavam uma nova decoração para a festa o dia de São Pedro, começariam mais tarde, após o cumprimento da devoção e
da noite seguinte, festas que ocorriam todos os dias, excluindo-se apenas o dia de obrigação, depois é que viria a diversão e a profissão. O cáften que se danasse!
São Pedro e os da semana santa. Enquanto pontilhava uma cortina, sem levantar
Luiz, há mais de três meses, desde a noite da estreia de Rita, não abandonou
a vista, Rita comentou.
Thania, obrigando Rita a arrumar um outro quarto para ficar. Logo nos primeiros
— Sabe, Thania? Eu só já não mandei esse tal Eduardo Filgueiras pra puta- dias, o seu dinheiro escasso evaporara-se das mãos como fumaça, não pensou
-que-pariu porque ele é um bom cliente desta espelunca, e mais ainda porque ele duas vezes o moço enrabichado, ganhou a beira da praia, procurando quem com-
é irmão do prefeito e eu não quero criar caso com esse tipo de gente. prasse parte dos seus pertences, o que não lhe foi difícil. Logo apareceu quem
— Ah, minha cara! Se os problemas são apenas esses dois, pode mandar. Pri- lhe oferecesse um bom dinheiro pelo relógio japonês, valeu-lhe mais que dois
meiro, cabaré mais sortido que o Terra e Mar em matéria de mulher, não existe pacotes de cigarros a surrada mochila de couro cru, as calças de pano grosso e as
nem na capital, e putanheiro como ele é... Segundo, ele nem fala com o irmão, excessivas camisas da moda, também lhe deram alguns cruzeiros. — Duas calças,
são inimigos, acho até que se você der um bom fora no sujeito, o irmão vai dar o duas camisas e um par de sapatos são mais do que suficientes e ‘tamos conversa-
maior valor, disso eu não tenho a menor dúvida. dos. — Disse, pondo fim aos protestos de Thania.

Thania, enquanto falava, ria muito cerzindo uma toalha. Por toda a cidade ouviam-se os estalidos dos fogos de artifício, a fumaça das
fogueiras tomava de conta do ar tornando-o sufocante. Em frente à igreja de São
— Deixa ele comigo! Deixa estar que num dia desses, o cão sai da garrafa! Mu-
Pedro, aglutinava-se a multidão de gente pobre do mar. As mulheres do Terra e
lher escrota, taqui uma, ó! — E batia nos peitos, arrancando da amiga gostosas
Mar formavam grupos separados. Nada de olhar para os homens agora. As suas
gargalhadas.
funções ali eram outras. Tinham apenas que pedir a São Pedro que protegesse os
— Sabe, Rita! A festa de hoje vai ser uma grande oportunidade, vai ter tanta seus homens, que lhes desse paz e saúde.
gente como no dia que você entrou aqui, e o velho vai estar como sempre ali, na
Já passava das onze horas da noite e o grande salão do Terra e Mar estava
mesinha de todos os dias.
lotado. Foi com espanto que Thania verificou isso através das cortinas. Decidida-
— Não, Thania, espera aí! Bulir eu não vou não! Agora, se ele vier frescar mente, havia mais gente que no dia da estreia de Rita.
comigo como já fez duas vezes, aí vai ter esculhambação! Disso você pode ter
certeza! — Incrível, pessoal! Até o Capitão Pedro está lá. Gritou a mulata para as co-
legas.
— Eu vou pagar pra ver! Vai ser um tremendo show!
— E o que há de mal nisso? Ele não é de pedra, ora! — Comentou Rita, diver-
— Não vai dar corda não, deixa a coisa acontecer. tida.
Sob o menor pretexto, as mulheres do Terra e Mar promoviam uma festa espe- A mesa sempre ocupada apenas por Eduardo, nesta noite de São João, teve de
cial. Para que essa festa cheirasse a especial era necessário apenas que o aspecto ser ocupada totalmente Não sobrava uma cadeira sequer em todo o cabaré. En-
físico da casa fosse modificado. Mudavam a posição das mesas, trocavam as en- quanto bebiam, os clientes impacientavam-se com a demora das mulheres, que
cardidas toalhas e as desbotadas cortinas. Mudavam, enfim, todo o cenário. Para atrasassem um pouco, está certo, mas até onze, era demais! Eles também tinham
essa então, todas as mulheres empenhavam-se de corpo e alma na decoração ido à novena, ora!
do salão, pois não era somente um pretexto vulgar que as fazia estar ali, sem ao
menos comer direito, Ocupadas na preparação de bandeirolas e balões para a De repente, o conjunto começou a tocar uma animada música junina, e tão de
grande festa de São João, não tinham pressa em concluir o serviço, já que a festa repente como viera o som, surgiu por trás de uma cortina uma enfieira de mu-
56 começaria mais tarde que nos outros dias, pois no horário de sempre, haveria a lheres, Rita puxando pela mão de Thania e era, por sua vez, puxando uma outra 57
novena de São Pedro, onde todas elas estariam em peso, contritas, rogando ao formando um longo cordão. Seguras pela mão uma da outra elas formavam no
santo por seus homens. Depois da novena, aconteceria o leilão, depois desse a pe- meio do salão unia larga roda e dançavam sozinhas, gritando vivas a São João, fa-
quena procissão da imagem para a casa do noitário que, honrado com a visita do zendo com que os pescadores se levantassem de suas mesas e aplaudissem dan-
seu santo, gastava boa parte do dinheiro ganho na pescaria com fogos de artifício. do gostosas gargalhadas com o saracoteio das bundas que se mexiam de acordo
Após tudo isso, ainda iriam jantar e retirar do corpo as roupas menos profanas e com ritmo executado.
Aquela apresentação inusitada só de mulheres, não havia dúvidas, era uma A aversão de Rita aos velhos era do conhecimento geral, e sua posição nunca
criação de Rita, bem como a roupa igual de todas elas. Trajavam-se de ingênuas omitira ninguém, nem mesmo o cáften do Terra e Mar. E quem já a conhecia de
caipiras, os broches de miçanga, que comumente pesavam sobre seus cabelos outras datas, como Luiz, e a via agora a conversar cortesmente com Eduardo,
oxigenados, foram substituídos por leves laços de fita vermelha. Nas faces acos- sabia que algum plano lhe passava pela cabeça, que Rita estava tramando alguma
tumadas ao exagero de cosméticos, haviam apenas sinais escritos a lápis, uns de coisa com o velho. Thania, perto de Luiz a bebericar vodca com soda, também já
interrogações e outros de exclamações. Nada de óleos para endurecer os cílios. tomara conhecimento da situação, beijando-o com carinho, disse-lhe ao ouvido.
A apresentação da dança em grupo entre elas não demorou muito, e, após a exe- — Vamos nos aproximar do salão, porque a Rita vai nos patrocinar um show.
cução da música, as ingênuas caipiras seguiram cada uma para lados diferentes,
atendendo aos chamados dos homens já meio bêbados. Aos que sobraram, azar, — Menina! Como você descobriu? Perguntou ele levantando-se.
e entre os fregueses estava o obeso Eduardo Filgueiras. — Ora Luiz, todo mundo sabe que a Rita não dá valor a velhos e a esse menos
Rita não atendeu a nenhum chamado, surdeando aos coiós vindos de todos os ainda, nunca o miserável lhe fez nada, talvez seja por isso mesmo que ela não vai
com a cara dele.
cantos, está claro que ela não ia ficar só naquela noite quando todos já lhes eram
familiares, queria apenas ficar só por um instante, depois, atenderia ao primeiro No salão, poucos pares dançavam maxixe sob o som apressado do conjunto.
que surgisse. Achegou-se ao galpão e, batendo com força na madeira simulando Em pé, recostada ao balcão, Rita virava mais outra dose de cachaça da serra, ago-
uma imitação, pediu ao miúdo cáften: ra acompanhada por Eduardo, que assumira o comando da despesa e que, uma
vez por outra, gostava de saborear uma dose de cachaça serrana. Rita, ao som da
— Uma cachaça dupla, baixinho!
música em voga no cabaré, rebolava-se diante de Eduardo, provocando-o.
— Baixinho é cu de cobra e o seu passado! — Disse ele sorrindo, enquanto
Com um sorriso safado, o velho segurou delicadamente o queixo de Rita e
servia a cachaça que Rita engoliu de um só gole.
convidou-a.
Rita continuava a trocar piadas com Leocádio, quando teve uma desagradável
— Vamos dançar?
surpresa. Uma grande e pesada mão a pegou com força pelo braço esquerdo.
Virando-se espantada, ela disfarçou logo a surpresa e exclamou simpaticamente. Era no salão que ela o queria, prontamente perguntou.

— Olá, senhor Eduardo! Não dá pra notar que está machucando o meu braço? — O que você dança?

Soltando bruscamente o braço de Rita, ele falou irritado: — O que se toca ora! Respondeu gaiato.

— Escuta aqui, menina, pra que é exatamente que você pensa que veio parar — É assim que eu gosto, vamos lá então! Disse Rita puxando Eduardo pela
aqui? mão em direção ao salão. Deixando-o na entrada, pediu-lhe:

Conservando consigo o humor de sempre, respondeu: — Um instantinho só enquanto eu vou pedir ao conjunto que continue com
esse ritmo só pra nós dois.
— Pra fazer o que o senhor está vendo, me divertindo, enquanto divirto os
outros. Chegando ao palco sem dificuldade, Rita falou ao ouvido do cantor.

— Pois não parece, quando você chegou aqui, há muito tempo eu frequentava — Continua cantando essa mesma, só que em ritmo mais apressado, eu hoje
esse cabaré, e você nunca me dirigiu a palavra. E eu só estranho isso porque todas vou mostrar àquele baiacu com quantos passos se dança uma cuada.
as outras meninas são muito simpáticas comigo. E foi realmente em ritmo mais acelerado que o cantor deu continuidade à
58 — Se é isso que o deixa irritado, eu prometo que de hoje em diante serei mais música. 59
atenciosa. Dando a mão ao velho, dirigiram-se ao meio do salão de dança. Rita gru-
— Ótimo! Vejo que você além de bonita é também inteligente. Mas não é só dou-se do pescoço de Eduardo e saíram os dois a maxixar. Os poucos pares que
isso que eu quero, eu gostaria que você ficasse esta noite comigo. dançavam, desistiram e foram juntar-se aos outros que orlavam o salão. Thania,
que era clássica em bisbilhotices, em poucos minutos deixara todos sabendo do
— E por que não? Eu estou aqui pra isso. que provavelmente iria acontecer.
Depois de fazer o velho suar, Rita desgrudou-se-lhe do pescoço e saiu a cas- Advertiu Thania, aterrorizada, no momento em que o velho atirou-se com
tanholar rodopiando pelo salão. Vendo o velho que riam dele e sentindo-se ri- fúria para agredi-la. Esta, por sua vez mantinha-se impassível até o momento em
dículo, fez menção de retirar-se, mas Rita puxou-o pelo traseiro para o meio do que o furioso Eduardo, já a um passo apenas de distância, jogou-lhe ao rosto a
salão, obrigando-o a fazer o que ela faria. Começou Eduardo a girar em torno de mão que empunhava o perigoso caco de vidro. Com uma rapidez indescritível,
si mesmo, enquanto Rita dava início a um novo passo. Habilmente, aproximou- Rita em vez de recuar, avançou para Eduardo, e foi com destreza que lhe agarrou
-se do velho batendo com a bunda em suas coxas. Sentiu-se perdido, Eduardo o braço que empunhava o gargalo enquanto, ao mesmo tempo, acertava-lhe nos
Filgueiras viu que não podia parar, tinha que aguentar até o fim, se é que ia ter bagos de touro velho uma forte joelhada, fazendo-o cair ao chão contorcendo-se
um fim aquele inferno. Fora ele quem desafiara Rita, por isso se encontrava numa de dores. A perigosa arma usada por Eduardo foi atirada ao solo, por sorte, um
situação difícil. O jeito era mesmo continuar fazendo o que ela bem quisesse e pouco antes do velho, indo parar nos pés dos que orlavam o salão agora trans-
entendesse. formado em arena.

Thania, que a tudo assistia e com tudo se divertia, fez um sinal para o con- Rita mantinha-se em guarda, esperando pelo segundo ataque enquanto o ve-
junto, que logo mudou para uma música mais apressada. Rita dava bundadas e lho levantava-se ainda surriando pirraças. Todos esperavam por um segundo
mais bundadas nas coxas do arfante Eduardo que, tentando mostrar-se ajustado ataque, mas agora sem medo, pois sabiam que Rita sabia defender-se até melhor
à dança, abaixara-se um pouco e trocavam abundadas, arrancando gargalhadas que muitos deles.
de todos os que os cercavam. De pé, com as mãos caídas como se fossem de grande peso, o corpo pendido
Sem graça, Eduardo rebolava as ancas largas, enquanto Rita ocupava-se em para a frente, e para decepcionante surpresa de todos quanto estavam presentes,
levá-lo do meio para a orla do salão, onde estavam os assistentes. Eduardo agora o velho não mais tentou revidar a humilhação recebida. Fitando Rita com fúria,
jogou ao chão uma grande cusparada dizendo.
parecia divertir-se trocando cuadas com Rita. Aproximando-se do local onde es-
tavam Luiz e Thania, Rita fez com que seu parceiro permanecesse de frente aos — Cachorra!
assistentes balançando as ancas gigantescas. Com perspicácia, ela permaneceu
— Cachorra é a tua mãe! — Disse ela com asco, arrancando aplausos e garga-
ali excitando o parceiro a jogar-lhe as ancas. Quando o velho já se divertia de
lhadas de todo o magote de frequentadores do Terra e Mar.
verdade, ela reuniu todas as suas forças e aproveitando o momento em que ele
se encontrava com as mãos para cima e o corpo sobre a ponta dos pés deu-lhe Sentindo-se o palco das atenções dentro do cabaré, o velho Eduardo saiu qua-
uma forte cuada, jogando-o de encontro aos assistentes que como se tivessem se correndo, dando safanões em tudo e em todos que se lhe atravessavam pela
sido ensaiados, saíram do meio num só salto, deixando que o velho com todo frente. Já da rua, parou bruscamente e ficou um instante pensando como se esti-
o seu peso desabasse na mesa cheia de garrafas. O baque no chão, seguido pelo vesse procurando na mente alguma coisa esquecida, encontrando-a, ele voltou e
som de vidros quebrados e de estridentes gargalhadas, provocou um barulho foi até onde estava Rita, com dedo apontado, a mão a tremer ele ameaçou.
nunca visto dentro do Terra e Mar. Homens e mulheres curvaram-se segurando
— Escuta aqui, ó mulher, eu voltei somente pra te dizer que tu ainda vai ser
o ventre dolorido pelas gargalhadas, enquanto Rita, com as mãos apoiadas nos
minha, nem que seja só por uma noite e nem que para conseguir isso eu tenha
quadris, do meio do salão, aguardava Eduardo com o revide. De repente, as gar-
que te matar.
galhadas cessaram, e as expressões dos rostos divertidos foram substituídas por
expressões de terror. O velho levantara-se de sobre as tábuas quebradas da mesa, Com essa ameaça, a sergipana ficou séria, e a ninguém ela escondeu o seu
empunhando na mão direita um gargalo de garrafa. Com a boca aberta, os olhos temor, pois já conhecia, através de comentários, a fama que os Filgueiras Leal
arregalados, mais parecia um cão raivoso caminhando em sua direção. tinham de tudo fazerem para conseguir alcançar um objetivo. O velho se retirou
— Você agora me pagará, sua puta fuleira. e Rita ficou a olhar para a porta do cabaré com ar de preocupação.

60 Rita, tranquila, aguardava a aproximação do velho irado. Nenhum dos ho- E foi naquela memorável noite de São João, que o mais gordo e mais exigente 61
mens presentes se atreveu a intervir na briga que ia começar, sabiam todos eles de todos os frequentadores do Terra e Mar, cruzou a porta estreita de entrada pela
que a sergipana estava perdida, era pequerrucha e estava desarmada. Enquanto última vez. E ninguém gostou mais do que aconteceu do que Capitão Pedro, que
o seu rival, além de um tamanho gigantesco, tinha consigo o gargalo de uma aproximando-se de Rita falou:
garrafa.
— Parabéns, menina! Eu não sabia que nos cabarés de Aracaju se dançasse
— Cuidado, Rita! cuadas tão bem.
— E não se dança mesmo. — Falou ela com sua voz cantante. — Essa eu in- 17
ventei hoje para o seu Eduardo Filgueiras, e o senhor Capitão Pedro leva sorte
porque é o único velho com quem eu vou com a cara.
O velho pescador soltou uma gargalhada dizendo: Na manhã de vinte quatro de junho, ao se aproximarem das salinas, de suas
canoas os salineiros se intrigaram ao verificar que o estranho Eremita das Sali-
— Velho é o seu avô! Aceita um trago?
nas não estava em frente ao barracão de madeira, onde toda manhã àquela hora
— Só se for dupla! tomava os primeiros raios do sol. Sua canoa estava em frente ao barracão ainda
molhada, provando que naquela noite, como em todas as outras, o Eremita das
Neste momento, chegou Thania, e eufórica abraçou Rita dando-lhe beijinhos
Salinas estivera navegando.
na face.
Em vez de seguirem para seus destinos nas salinas, os salineiros retiveram
— Puxa, querida! Você foi divina, mas porque você nunca me falou que em
suas canoas em frente ao barracão e se olharam como se se perguntassem quem
Aracaju as mulheres recebiam aulas de luta nos cabarés?
primeiro desceria. De uma das canoas, decidido, um negro saltou nas águas que
— Não foi em cabarés que eu aprendi a dar esses golpes, e sim na rua, nos lhe banhavam as canelas, as pequenas ondas causadas pelo baque do seu corpo
meus tempos de moleca. espalharam-se em círculos agitando as águas calmas do Rio da Cruz. Não de-
morou a ser seguido pelos demais companheiros. Da porta aberta do barracão,
Acostados ao balcão, Capitão Pedro mandou servir quatro cachaças, mas ape-
três grandes e espichados cachorros latiam furiosos como a protestarem contra
nas três foram tomadas. A dele, a de Rita e a de Luiz, a de Thania ficou sobre o
invasão. A fim de darem sinal de que se aproximavam emitiram em coro, vários
balcão, pois ela não bebia bebidas baratas, e Capitão Pedro não pagava bebida
gritos com as mãos em concha em volta da boca. O eco repetia-se por todo o ter-
cara pra ninguém. Luiz ficou sem graça diante da recusa de Thania, onde já se
reno pantanoso de mangue, servindo apenas para aumentar o alarido dos cães
viu uma pessoa recusar uma oferta de tão bom grado como a do Capitão Pedro?
em polvorosa. Vendo que os cães não os temiam, resolveram espancá-los caso
Uma só que fosse, não custava nada fazer um esforçozinho. Thania precisava ou-
reagissem, e, de remos e porretes em punho, os salineiros saíram das águas e
vir umas verdades, aquilo já era um abuso, como é que pode um negócio desses?
avançaram rumo ao barracão. Com ameaças de pancadaria, forçaram as desistên-
Uma mulher de cabaré rejeitar cachaça de um homem? É não ter mesmo medo
cias dos cães, que fugiram para longe do barracão, pondo por sua vez em fuga os
de levar mão na cara. Sorte dela ser o Capitão Pedro um homem de paz, pois do
pequenos crustáceos habitantes da lama.
contrário, o bafafá estava feito.
Os menos temerosos dos salineiros foram logo entrando no barracão de solo
Thania, notando o desconserto do amante, tratou logo de mudar a tensão do
úmido e de apenas dois compartimentos. No primeiro, permaneceram silencio-
ambiente. Puxando Luiz pelo braço, dirigiu-se ao conjunto, que desde o primeiro
sos verificando se no segundo havia algum movimento. Mas nada, tudo era silên-
lance da briga de Rita e Eduardo, cessara de tocar, e com sagacidade, gritou agi-
cio. Ouviam apenas ao longe a lamúria dos cães. Depois de alguns segundos de
tando os braços para cima.
indecisão, num só ímpeto, invadiram o segundo compartimento.
— Vamos, cambada de babaquaras! Porque pararam? Vamos, toca aí qualquer
Todo o pelo negro que cobria a pele bronzeada dos salineiros mantinha-se
coisa, porque agora eu e o Luiz vamos dançar uma cuada.
ouriçado desde que notaram a ausência do Eremita das Salinas à porta do barra-
Não foi só Thania e Luiz que dançaram a cuada. Muitos outros entraram na cão, quando ainda estavam dentro das canoas. Uma mistura de medo e náusea
dança recentemente lançada por Rita, e daquela noite em diante nunca mais se tomava conta dos até então destemidos operários das salinas. Um forte odor de
dançou um maxixe, samba ou baião sem antes se dançar uma cuada, a dança que coisa podre, rescendia do solo úmido, indo direto às suas narinas. Ao chegarem à
bate com o cu no cu. porta do segundo compartimento, pararam e gritaram a um só tempo.
62 — Rita, você é um cão! O que você não inventar... — Dizia Capitão Pedro, rin- 63
Minha Nossa Senhora!
do e olhando para os pares no salão, enquanto virava mais um copo de cachaça.
No chão preto de lama jazia o corpo do velho Eremita das Salinas com um
E foi nessa memorável noite de São João que uma sergipana de Aracaju ensi- punhal enterrado no coração. Era cheiro de sangue fresco que agora predomina-
nou a Eduardo Filgueiras com quantos passos se dança uma cuada. va no segundo compartimento em total desalinho. Livros velhos e encardidos,
restos de comida, retalhos velhos de panos sujos tapizavam o chão ensanguen-
tado, retirando dúvida de que ali houvera luta. Sendo o grande número de anos — O covarde tinha duas armas, e foi com a de fogo que encontrou a forma
do Eremita o perdedor. Irrefletidamente, um dos homens retirou do peito sevo de espantar os cachorros matando um dos companheiros — Lamentou Justino,
do ancião, o punhal, retirando assim alguma impressão digital que certamente pesaroso.
seria encontrada pela polícia. Com esse gesto, foi logo repreendido pelos com-
Ao longe, os cães ganiam como que asseverando as palavras do filho do pre-
panheiros. feito.
— Você não devia ter feito isto, isso é serviço lá dos homens da PM. Disse um. — E aí, sargento, o que o senhor vai fazer? — Quis saber um salineiro.
— Ora, que besteira essa, homem, a polícia lá vai ligar pra isso! Eles nunca se — A polícia vai proceder como em todos os casos desse tipo, mas posso lhe
importam quando o morto é um pobre. adiantar que com uma certa morosidade, pois existem dezenas de casos mais
— De qualquer maneira, eu acho bom a gente ir chamar eles. importantes que esse para serem resolvidos.

— É nossa obrigação fazer isso, só que não vai dar em nada, eles vão vir aqui, Como previu um dos salineiros, naquele dia foi realmente feriado nas salinas
olham, chutam e fazem que nem viram. Filgueiras Leal & Cia. Ltda., não que o verdadeiro proprietário decretasse, mas
sim o seu filho Justino.
— É bom que vá um de nós chamar o seu Justino. — Falou um outro. — Que
hoje vai ser feriado. Durante a manhã inteira, os salineiros navegaram das salinas à Praia da Ca-
noas. No final da tarde, realizou-se mesmo próximo às salinas, o enterro do Ere-
Riram. mita ao lado do seu cão. O criminoso ficou na obscuridade como muitos outros.
Pouco tempo depois era grande e número de salineiros em volta ao barracão, A polícia tinha outras coisas mais importantes para tratar, como afirmou o sar-
que durante muitos anos fora morada do estranho Eremita das Salinas. Sob o gento, um sujeitinho baixo, ruivo e de cara trancada.
olhar curioso dos operários, chegou Justino, na companhia de um soldado e de No enterro do Eremita das Salinas, estavam presentes além de Justino e dos
um sargento da Policia Militar. Enquanto Justino se dirigiu aos salineiros a fim caboclos das salinas, o Padre João José, Capitão Pedro, o negro Birata e o moleque
de saber de tudo com detalhes, os dois militares entraram no barracão fazendo Alcindo, e para espanto geral, já no momento que o padre iniciava suas orações,
caretas, depois de conversar com pescadores e salineiros. Justino também entrou chegava Dr. Edmundo Filgueiras, juntando-se ao grupo. Chapéus nas mãos e
no barracão sendo seguido pelos homens, lá dentro estava o sargento a rabiscar cabeças baixas, eles ouviam a homilia que o padre nunca dispensava, e, motivo
anotações sobre uma pequena prancheta, enquanto o soldado raquítico dispu- melhor que aquele não havia. Padre João José, logo que chegou àquela freguesia
nha-se a admirar a paisagem indiferente. Com um suspiro de alívio, o sargento conquistou logo todos os que dela faziam parte, em vez de tentar adaptá-los a si,
virou-se simpaticamente para Justino e disse: tratou logo adaptar-se a eles, falando a sua linguagem, aceitando as suas supers-
— É, seu Justino, foi realmente um assassinato. tições e falando até as suas gírias a enxotar o diabo com salpicos de água benta,
mandando-o às quintas do inferno. Maldito!
— Disso não existe a menor dúvida, sargento, agora, quem o praticou?
Numa dupla sepultura, na lezíria do rio da Cruz, o corpo do Eremita das Sa-
— Posso lhe garantir que a polícia vai tomar todas as providências que tiver linas foi jogado. Num buraco raso e estreito, ao lado, o do seu cão. Naquele local,
ao seu alcance para chegar ao assassino. — E virando-se para o companheiro. — a cada lua cheia a maré lavava tudo.
Vamos em frente, soldado!
— Precisa ser um buraco muito fundo, senão a maré leva o corpo do homem
— Um momento, sargento, veja! — Disse o soldado apontando para pequenas para as ondas do mar sem fim. — Advertiu o negro Birata.
moitas de mangue, próximas ao barraco.
Justino, quando viu Edmundo chegar, imaginou que ele vinha com o único
64 Curioso, o grupo inteiro seguiu para as moitas de mangues e lá encontraram objetivo de dar o contra por ter ele facultado os operários naquele dia, mas o 65
o corpo ensanguentado de um cachorro, constatando um dos salineiros que uma velho, para seu espanto, mostrou-se solidário à atitude do filho, e espantou-se
bala atingira-lhe a cabeça. O sargento ordenou então que abrissem a cabeça do mais ainda o seu interesse pelo acontecido. Quis saber o que achava a polícia, se
cão para localizar a bala, mas isso não foi preciso, pois logo verificaram um gran- o filho exigira total desempenho para que descobrissem o assassino, ordenando
de furo por baixo da orelha direita, mostrando que a bala havia atravessado a a Justino que procurasse verificar se o Eremita tinha família e a ajudasse em seu
cabeça indo perder-se na lama. nome se acaso a encontrasse. Aos salineiros ele ordenou, no dia seguinte, que
tratassem de limpar o velho barracão e o deixassem pronto para armazenagem — Eu vou me casar!
de sal. Justino achou tudo aquilo muito estranho, o pai não costumava intervir
A essas palavras, Edmundo soltou das mãos a caneta dourada e levantou-se
nas salinas, de todos os seus bens, era às salinas que ele dava menor importância,
da cadeira giratória curvando-se sobre a secretária. Interrogou em voz alta.
e condoer-se das desgraças alheias, como fazia agora, não era do seu feitio.
— Casar? Você ficou doido?
Ao meio dia seguinte, através de um correspondente local, um jornal da capi-
tal trazia num canto de página uma pequena matéria sobre o caso sem dar muita —É, papai! É isso aí! — Disse rindo. Ou o senhor pensa que eu ia esperar que
importância. — O que há de mais curioso, — finalizava a gazeta. — É que gene- fosse o senhor a me escolher a noiva como fez o meu avô?
ticamente nada se pode esclarecer sobre o homem, pois em toda a cidade, não se — Claro que não! Mas o diabo é que eu já posso imaginar com quem você está
sabe de onde veio nem tampouco como se chama. Alcunharam-no de Eremita pensando que vai casar, não poderá deixar de ser uma dessas peixeiras da beira
das Salinas. Mas a polícia está investigando o caso. — Mentiu o jornal. da praia.
Enquanto um por cem dos habitantes da cidade liam à resumida notícia em Justino sabia que a reação do pai seria daí pra pior, por isso, desde que entrara
um obscuro canto de página, lá às margens do Rio da Cruz, jazia numa cova fun- no gabinete do prefeito, tentava medir as palavras para mantê-lo calmo, mas do
da e lamacenta, o corpo do Eremita das Salinas para que em sua plenitude, fosse jeito que o pai se referia ao povo da praia, já era ele, Justino, quem começava a
aos poucos, enquanto dormia o eterno sono, banqueteado por nédios tapurus, perder a calma.
ficando, com o passar dos anos na inorgânica terra, apenas os seus ossos duros
— Espera aí, papai, é melhor o senhor sentar e me ouvir.
de roer e os seus indigeríveis cabelos.
— Ora, ora, Justino! O que você tem para me dizer além dessa barbaridade?
Disse sentando-se e procurando por sobre a mesa o pente perdido.
— Porra! — Bradou enquanto procurava o pente. — Mal se resolve um pro-
18 blema e aparece um outro mais grave ainda?
Foi Justino quem encontrou o pente e logo o passou às mãos de Edmundo,
Por trás da secretária, encontrava-se comodamente sentado o Dr. Edmundo que o atirou sobre a cabeça sem piedade, não podia ficar nervoso, o prefeito.
Filgueiras, quando Justino entrou. — Papai eu não sei qual é o problema que o senhor tem diante de si no mo-
— Se não me falha a memória, essa é a primeira vez que o vejo dentro do meu mento.
gabinete. — Como não sabe qual é o problema? Você chega aqui com essa cara de pau e
— Sua memória está perfeita papai, eu realmente nunca estive aqui antes. me diz que vai casar, e em seguida me diz que não sabe qual é o problema. Ora,
Justino, você tem hora que parece que tem a cabeça só para separar uma orelha
— E por que foi exatamente hoje o dia que você escolheu para vir aqui? Al- da outra.
gum problema?
— Casamento para o senhor é uma coisa assim tão grave?
— Não, não chega a ser um problema, digamos que seja um assunto sério que
— É! Quando se trata de um casamento como o que você pretende fazer, com
eu tenho para conversar com o senhor.
uma dessas criaturinhas sem origem da beira da praia.
— E você não podia deixar para gente conversar à noite em casa?
— Papai, é um direito meu exigir que o senhor não fale desse modo.
— Não, papai! Por enquanto eu não quero que outras pessoas saibam do que
— E quem você pensa que é para exigir que eu fale como você quer ouvir?
eu tenho para lhe dizer.
66 — Papai, por favor, será que não dá pra gente conversar numa boa? Será que 67
— Então desembucha, menino! — Disse o velho sem parecer muito interes-
o senhor não percebe que os Filgueiras Leal estão em extinção? Resta de tudo
sado.
apenas o senhor, a mamãe, eu, o Saul e o tio Eduardo.
Justino remexia-se na cadeira sem saber como dizer o que pretendia. O pai,
— Olha aqui, menino, não me fala do Eduardo. Aquele badernista de cabaré.
indiferente, rascunhava papéis sem olhar para o filho nervoso. Depois de alguns
instantes de indecisão o moço levantou a cabeça, encarou o velho e disse. — Ele é seu irmão, papai.
— Não precisa me lembrar isso, porque eu sei muito mais, sei que ele é meu 19
inimigo também, ou você não viu como se comportou nas últimas eleições? Fa-
zendo tudo para me derrubar juntamente com aquela cambada de cafajestes da
oposição?
Com a aproximação do dia de São Pedro, aumentava o número de fiéis às
— Eu não vi isso, papai, eu não estava aqui. — Lembrou Justino. — E não foi novenas, e foi numa das últimas noites que foi dada a Capitão Pedro a honra de
pra falar de sua campanha eleitoral que eu vim até aqui, eu... hospedar em sua casa a imagem do santo. Era obrigado, por tradição da festa, a
comparecerem à novena, o noitário com toda a sua família, e como já se tem co-
O velho prefeito, além de muitas outras habilidades, tinha a de sempre mudar
nhecimento, a família do Capitão Pedro compunha-se apenas por ele e Ricardina.
de assunto, quando o que estava em discussão não era do seu agrado, e foi sem
Mas, nessa noite, sobre o alto calçadão da igreja, transformado em altar, a família
entusiasmo que cortou a frase de Justino.
estava formada por três pessoas. — Justino era o excesso ou o complemento? — O
— E pra que foi então? Se o que quer é permissão para cometer loucuras, de certo é que lá estava ele contrito a auxiliar o padre João José nos ritos religiosos
mim você não a terá. juntamente com o velho pescador e Ricardina. Para muitos dos fiéis, Justino era
— Eu não vim aqui pedir-lhe permissão para nada, pois dela eu não preciso, um intruso ali, mas para a grande maioria, composta por homens e mulheres da
eu vim somente lhe avisar que logo após a festa de São Pedro eu me casarei. praia, ele já era membro da família do pescador. Entre a multidão ocupada em
julgar a presença do filho do prefeito no altar, estava a própria mãe de Justino,
— Justino, eu não vou permitir que você faça isso; ou não me chamo mais dona Tereza Raquel, cujo espanto estampado em seu rosto pálido, ao ver o filho
Edmundo Filgueiras. sobre o alto calçadão a auxiliar o padre, era impossível descrever.
— Pois pode adotar um outro nome, meu pai. — Falou Justino levantando- Pela primeira vez em sua vida, a primeira Dama do município, teve a surpresa
-se. — Por que o meu casamento, logo se encerre a festa de São Pedro, é coisa de verificar que o seu filho era, se não muito querido, pelo menos muito conheci-
decidida. do de todo aquele povo, pois ao seu redor todos cochichavam o seu nome. Ao seu
— Você não pode fazer uma desgraça dessa. lado direito, Thania e Rita, ignorando a sua presença, de terços em punho, teciam
também os seus fuxicos sobre o rapaz.
— O senhor não quer nem saber quem ela é?
— Quem diria, Thania. —Dizia a outra. — Um moço rico como esse,
— Se é da praia, eu já sei quem é, elas são todas iguais, basta saber quem é podendo sair aí por esse mundão afora, curtir a vida, fica aqui neste cu-de-mun-
uma e pronto. do, caído por uma filha de pescador. Parece até com umas certas historiazinhas
— Ela é diferente! safadas que a minha avó inventava para me fazer dormir.

— Duvido! A voz cantante de Rita e o modo debochado como falava fizeram Thania es-
quecer que assistia a uma novena e cair na gargalhada. Caindo em si, a mulata
Justino retirou-se sem mais nada dizer, mas logo parou, retido por um chama- tapou a boca com as mãos, impedindo assim que suas gargalhadas se fizessem
do do velho que disse apontando-lhe o dedo. ouvir por toda a multidão.
— Se você vai ou não casar com essa fulaninha é o que veremos, e tem mais, — Ela é filha de pescador, isso é verdade, mas eu sou mais ela do que muitas
quando você quiser frisar a alguém a próxima extinção dos Filgueiras Leal, me dessas cus-doces que andam por aí.
exclua do rol dos impotentes, sua mãe que o diga.
Dessa vez foi Rita quem teve de controlar-se para não rir alto com as palavras
Justino saiu irritado, batendo a porta, tinha ainda o pai o cuidado de deixar da amiga.
sem vontade de voltar todos quanto ali fossem com assuntos que não o agradas-
— Eu também sou mais ela, ora! Mas esse lance dela ser filha de um pescador
68 sem. 69
é que suja tudo
— Pois eu não acho! Um tá a fim do outro, o resto não interessa.
— É aí que tu te engana, Thania! É por estar um a fim do outro que a coisa se
complica, o resultado disso vai ser ele fazer um filho nela, depois o pai dá um
jeito dele dar o fora daqui e aí ela termina no Terra e Mar como a gente.
— Ih, Rita! Deixa de ser agourenta! Justino, agora mais à vontade, riu e disse.
Raquel não mais ouvia o que dizia o padre em sua homilia, ouvia apenas as — Nota-se que o senhor é um péssimo observador, o senhor não viu, por aca-
bisbilhotices dos que a cercavam. Mal terminou a novena, sentindo a necessidade so, que hoje eu me fiz membro da família do Capitão Pedro?
de pedir explicações a alguém do que presenciara, e não podendo fazê-lo direta-
— O quê? Você ficou maluco, cara? Os seus pais não vão permitir que você
mente ao filho, que era o mais indicado para satisfazer-lhe a curiosidade, saiu às
case com uma filha de pescador, nem que ele pesque peixes de ouro.
pressas rumo a sua casa, talvez Edmundo ou Saul pudessem lhes dizer alguma
coisa sobre o recente comportamento de Justino. Justino sentou-se diante do apavorado padre, que lentamente o imitou.

Os fogos pipocavam no espaço negro do céu. Hinos de aclamação a São Pedro Lá fora, os traques estalavam, no ar, pequenas manchas de fumaça que eram
eram entoados; A concorrência entre os pescadores era grande, cada um queria expelidas dos fogos de artifícios deixavam-se levar pelo vento como pequenas
pegar no andor. Grande também era o percurso da igreja para a casa do Capitão nuvens passageiras. De onde estavam, o padre e Justino ainda ouviam ao longe o
Pedro, mas o número de gente que queria transportar a imagem era bem maior. sussurrar dos hinos que louvavam São Pedro.
Concorriam os demais pescadores, somente a três dos quatro paus do andor, — Padre, — disse o moço passando a mão pelo rosto enquanto ajeitava o cor-
porque um deles era seguro pelas firmes mãos de Capitão Pedro. po sobre a cadeira. — se meus pais permitem ou não o meu casamento, não será
Poucos minutos antes de terminar a novena, Ricardina retirou-se do altar e problema, eu não estou nem um pouco preocupado com isso. O que me preocu-
perdeu-se no meio da multidão. Procurou algumas vizinhas, e com elas partiu pa é exatamente porque Ricardina não é filha do Capitão Pedro.
para a praia, precisava chegar em casa primeiro que as demais para deixá-la aber- — Você só pode estar ficando maluco! Disso eu não tenho mais dúvidas. Mas
ta ao grande número de gente que viria com a imagem do santo. como você chegou a saber disso?
Justino não acompanhou Ricardina, nem tampouco o santo, precisava falar — O Capitão Pedro me contou tudo, ou pelo menos uma parte do que sabe.
ao padre, e para isso, enquanto a multidão se dispersava, uns em rumo às suas Ele me disse que o pai dela é um homem rico e eu não conheço nenhum pescador
casas, outros seguindo a pequena procissão, teve o moço de submeter-se a retirar rico. Pelo menos nessa praia...
do altar, em companhia do padre, as muitas toalhas que o cobriam. Foi o padre
quem iniciou o diálogo logo que ficaram sozinhos. — E a mãe?

— Bem, Justino. — Disse ele. — Não é preciso ser muito inteligente para des- — Foi abandonada pelo irresponsável logo que engravidou, vindo a morrer
cobrir que você está querendo levar um papo comigo. de câncer cerca de dois anos depois, quando já era casada com o Capitão Pedro.
Era portuguesa também.
— Por que essa certeza toda, padre João?
— Coitados! — Lamentou o padre. — E pra quando você deseja casar?
— Ora menino! Você nunca foi de fazer o que fez hoje, comportou-se como o
mais eficiente dos coroinhas. — Logo que eu descubra quem é o pai de Ricardina.
— E verdade, padre, eu tenho realmente algo sério para lhe falar. — E você espera descobrir isso algum dia?
— Pois desembucha, rapaz! — Disse o padre, concluindo a mudança da rou- — Claro que espero, já descobri muito!
pa. — Tu sabes que comigo não é preciso esse negócio de rodeios. — Eu não seria tão otimista assim.
Ficando entre amigos, o padre nunca dispensava uma gíria.
— Ora, padre, isso não é impossível, eu tenho certeza que qualquer dia desses
— Padre, eu... esse canalha vai aparecer.
70 — Fala, cara! — Aí o padre simulou uma irritação. — Eu sei que não é impossível, Justino, mas que é difícil, lá isso é! Suponhamos 71
que o sujeito tenha morrido.
— Eu vou me casar.
— É, padre, aí a coisa se complica, droga!
— Espera, Justino! — Falou o padre acendendo um cigarro e oferecendo um
outro ao moço nervoso. — Eu não me lembro de tê-lo visto com nenhuma namo- — Calma, rapaz, você precisa ter muita cabeça fria nesta sua nova função de
rada desde que moro aqui. detetive.
— É por isso que eu vim aqui dividir esse problema com o senhor, padre, eu — Amigo, São Pedro jurou negando conhecer o Cristo, três vezes numa noite
não aguentava mais. só, mas pode ficar tranquilo, você fez muito bem me contando tudo. Eu lhe pro-
meto que logo que termine a festa de São Pedro, seremos eu e você, dois Sherlock
Neste momento, alguém bateu à porta do pequeno apartamento, era uma ne-
Holmes.
gra que tinha a obrigação de preparar a comida do sacerdote quando este mesmo
não a podia fazer. Com gesto rápido de quem não queria ser interrompido, o — Muito obrigado, padre! Boa noite!
padre disse, — Pra você também, Justino! E lembre-se: qualquer novidade, me procure, eu
— Obrigado, Alzira, pela manhã você pega a marmita. agora faço parte dessa história!

Chegando-se à pequena mesa de jantar que servia também de secretária, o Quando o moço se retirou, o padre seguiu para um armário à procura do que
vigário falou: comer, a marmita dividida não lhe satisfizera a fome.

— É bom você estar comigo, pois eu não sinto fome e assim racharemos esse
bagulho.
— Bom apetite, padre João, eu não sinto fome. 20
— Deixa de onda, cara! Aqui dentro não existe recusa, você vai comer sim!
Retirando a tampa da marmita, tirou do seu interior metade da comida, co- Para o cáften do Terra e Mar, esse negócio de novenas era de gravidade imen-
locando dentro da tampa que passou a servir de prato. Tinha um jeitinho para sa, ainda bem que eram poucas durante o ano, Apenas dez dias incluindo o dia
tudo o padre João José. Observou Justino, recebendo de suas mãos a panela com da procissão. Se durassem o ano Inteiro, as mulheres do cabaré se transforma-
metade da comida mal feita. O padre, que ficara com a tampa, iniciou a refeição riam em verdadeiras filhas de Maria. Isso era o que reclamava no momento, so-
perguntando: bre a calçada do Terra e Mar, o cáften Leocádio. De volta da novena, os assíduos
— Você sabe mais alguma coisa sobre a mãe de Ricardina? frequentadores do cabaré esticavam o pescoço para o interior do salão e pergun-
— Quase nada, apenas que ela é também portuguesa de Leiria. Chamava-se tavam ao cáften nervoso:
Jacinta. Veio parar aqui através de um pequeno circo. Iludida por um sujeito, — Onde estão as mulheres Vinte-nove-trinta?
abandonou tudo e entregou-se ao safado, sendo por ele abandonada em segui-
da. Após o nascimento da criança, conheceu Capitão Pedro, com quem se casou. — Andam por aí feito umas éguas, esquipando atrás de São Pedro. E que an-
Morreu dois anos depois com câncer nos seios. O resto, o senhor já sabe. tes que eu esqueça, Vinte-nove-trinta é a puta-que-os-pariu!

— Me diz uma coisa, Justino, por que diabo esse pescador não exigiu que Ja- Os caboclos do mar gargalhavam e advertiam:
cinta lhe falasse sobre o pai de Ricardina logo que resolveu casar com ela?
— Pois a gente vai em casa passar a hora da janta e, se daqui a pouquinho,
— Capitão Pedro é uma alma santa, padre, além disso ele amava Jacinta de- quando a gente voltar, não tiver mulher, nós vamos buscar a tua mãe.
mais, por isso, evitando feri-la, ele a recebeu sem querer saber do seu passado.
Danava-se o cáften raquítico a gritar palavrões a todos os que insultavam.
— É incrível como ainda existem pessoas que se amem assim, eu acho até que
o amor do Romeu perde longe para o desse pescador. Era o gerente do Terra e Mar um tipo excêntrico devido a feiura em abundân-
cia que sobre ele se acomodou. Surgiu na cidade não se sabe como nem tampou-
— Bom, padre, eu já tomei muito do seu pouco tempo, além disso, eu ainda co de onde. Sua perna esquerda era ligeiramente mais curta que a direita. Devido
vou falar com Ricardina.
a isso, ao andar, o seu corpo balançava-se num movimento de vaivém. Por esse
72 73
— Ela não sabe de nada disso não é? — Perguntou o padre levantando-se motivo teve o pobre que aceitar com resignação o apelido desde o dia que se tor-
também. nou conhecido dos pescadores, verdadeiros mestres em lançarem apelidos aos
— Claro que não! É bom que a poupemos disso pelo menos por enquanto. E que na praia apareciam e não faziam parte da casta.
por falar nisso, eu jurei ao Capitão Pedro que não revelaria isso a ninguém. Sobre o defeito físico de Leocádio, até uma lenda foi criada pela praia. Nunca
O padre saiu mais uma vez do sério e soltou uma gargalhada dizendo. numa noite de serão sob a lua, na beira alva da praia, enquanto desembaraçavam
tarrafas ou cerziam as velas das canoas, a lenda do Vinte-nove-trinta deixava de da ilha com uma canoa cheia de melancias, notaram que de repente o vento mu-
sair. Bastava que alguém entrasse no assunto da preferência de todos, ou seja, o dara o rumo de seu barco, acostumados que eram a pobre mulher e a criança
assunto contagiante de seres sobrenaturais e de almas penadas, logo falavam do naquela travessia, estranharam logo a repentina mudança do vento. A mulher
Vinte-nove-trinta e, quando dele falavam, sempre acrescentavam alguma coisa. chamou a si o infante, que estava de cócoras sobre o amontoado de melancias.
Podiam falar de morcegos coloridos que habitavam o Farol Sem Nome, de dunas Quando já estava ao alcance da mãe, o vento atirou a criança nas águas. Vendo a
movediças, da besta fera, do dragão de sete cabeças, cada uma com sete bocas desesperada mãe que seu filho fora lançado fora, não pensou duas vezes e jogou-
e em cada boca sete dentes. Mas, no fim, sempre saía a lenda do terrível cavalo -se à sua procura. Se ela o encontrou, ninguém sabe, sabe-se apenas que nenhum
marinho gigante que era o mesmo Vinte-nove-trinta, que andava numa noite só dos dois retornou mais para vender as suas melancias. Quanto à canoa com as
em sete mares, esquipava sobre as águas como se essas fossem sólidas aos seus frutas, ficou a boiar sobre as pacíficas águas do Rio da Cruz. O cavalo marinho
pés. Naufragava quantas embarcações quisesse. Era sempre o mais poderoso e não as quis.
mais odiado de todos os habitantes do mar. Os mares de Camocim foram sempre Enquanto o monstro marinho ficava somente fora da barra, tudo bem! Mas
os mais castigados pelas desgraças trazidas pelo cavalo marinho gigante. Pesca- agora, quando ele já tinha tomado de conta do Rio da Cruz, não dava mais para
dores já haviam sumido em pleno mar. De suas canoas foram encontrados ape- aguentar. Reuniram-se todos os pescadores com suas mulheres e resolveram en-
nas os destroços nas praias de Bitupitá, de Parnaíba e até em Fortaleza. Muitos xotar de suas águas o cavalo marinho. Durante três dias, os rudes homens do mar
homens ficaram sem suas mulheres e muitas mulheres ficaram sem seus homens, abstiveram-se de ir ao cabaré e de entrarem no mar. Fizeram na Igreja de São Pe-
sem terem sequer um padre que as casasse novamente, porque delas, eles exi- dro um tríduo para as almas vítimas do cavalo marinho gigante. Após o terceiro
giam a apresentação do burocrático papel que comprovava serem elas realmente dia, pequena parte dos pescadores empunhava um litro de água benta, consegui-
viúvas. Não tendo o papel obituário, elas não casavam no padre nem tampouco da a duras penas com o velho vigário da Paróquia de Bom Jesus dos Navegantes,
no juiz, e não conseguindo casar novamente pela falta de um papel que provasse que não era muito afeito às superstições dos pescadores, um verdadeiro contraste
que os seus mortos estavam realmente mortos, elas, por necessidade, termina- do padre João José. Estivesse ele morando ali naquela época, seria, sem dúvida,
vam vendendo-se em cabarés, e era isso que o cavalo marinho gigante queria, o líder da expurgação do cavalo marinho gigante, o padre, de cima da mais alta
que todas as mulheres pobres da beira da praia viessem, com o passar dos tem- coluna da balaustrada, benzeria toda água quanto fosse necessária. E ao atirar a
pos, a se prostituírem. água benta sobre a salgada e profana, ordenaria com as palavras que os pesca-
dores tanto gostariam de ouvir: — Para as ondas do mar sem fim, maldito! — E
Nenhum dos pescadores esquecera o caso do navio grego que ancorou na foi nesse dia, após a concentração dos pescadores na praia, onde juntos rezaram
entrada da barra no início de uma tarde, e antes do anoitecer teve a tripulação as suas rezas e atiraram ao mar as suas parcas garrafas de água benta que, mal
atacada pelo monstro, que ateou fogo em grande parte do navio, matando alguns chegaram às suas casas, grande tempestade desabou não só sobre o largo rio, mas
tripulantes e deixando noutros a marca de grandes queimaduras. Caso esse que por toda a cidade. De dentro de suas cabanas os pescadores aterrorizados olha-
não abalou somente os pescadores, mas a todos que dele tomaram conhecimen- vam para o rio à sua frente e viram de perto o cavalo marinho gigante a correr
to. Logo que souberam da catástrofe, as autoridades da Capitania dos Portos sobre as águas agitadas do Rio da Cruz. O mar gemia com desespero, as águas
verificaram, juntamente com o restante da tripulação, que se tratava apenas de caíam com fúria, o cavalo marinho corria sobre as águas em redemoinho. Sabiam
uma explosão na caldeira, mas para os pescadores essa justificativa entrou num os pescadores que no meio daquele tufão gigante, estava o aterrorizante monstro
ouvido e saiu no outro, pois eles estavam certos que aquela era mais uma obra marinho, pois quando ele corria rumo ao cais, ouvia-se a pancada da queda do
satânica do cavalo marinho gigante, Nas noites de serão, os pescadores lembra- balaústre. Horas depois, a tempestade cessou, e daquele dia em diante todos os
vam dos saudosos apitos do grande Rio Piancó, que tantas e tantas vezes cruzou males diminuíram aos pescadores, mas somente a eles, pois no dia seguinte, os
aquela barra e, num certo dia, partiu com um carregamento de sal e mais um bom homens do mar constataram que a balaustrada estava parcialmente destruída e
74 estoque de contrabando para nunca mais voltar. Dele receberam apenas a notícia a barra quase que totalmente tapada, o suficiente para impedir que grandes na- 75
de naufrágio nos mares do sul, nunca mais nenhuma embarcação com mais de vios entrassem. Apenas barcos de médio porte conseguiam com muito sacrifício
treze pés cruzou aquela barra. E o pior é que nunca nenhuma providência foi cruzá-la.
tomada para combater as desgraças causadas pelo cavalo marinho gigante.
— A reza foi fraca! — Lamentava-se o Capitão Pedro. O filho da puta apenas
Outro caso memorável para os pescadores e motivo de muito comentário na saiu do mar, mas continua na terra impedindo que os homens daqui resolvam
praia foi o desaparecimento de uma mulher e uma criança, que vindas certa vez recavar a barra e reconstruir a balaustrada.
Acreditavam ainda os pescadores que antes de expungir-se das águas, o ca- — Senhor Edmundo — disse ela — poderia o senhor me explicar o que está
valo marinho passara também pelo Farol Sem Nome e tentara destruí-lo, não o acontecendo com o nosso filho Justino, que de repente resolve fazer-se publica-
conseguindo de todo, deixou por lá a sua marca, tornando as suas escadarias sem mente membro da família de um pescador?
oferecerem nenhuma segurança para quem nelas resolvesse subir. Edmundo não queria falar sobre aquele assunto, por isso, como sempre agia
Coincidentemente, alguns dias após a grande tempestade, surgiu na praia em caso dessa natureza, fez-se logo de mal entendido.
um raquítico e feio homem dizendo-se chamar Leocádio, dizia-se possuidor de — O que é isso, Raquel? Será que o padre estumou-lhe os cachorros? — Saul,
dinheiro e estava disposto a empregá-lo na compra de um imóvel ali mesmo que nunca vira a mãe dirigir-se ao marido com modos tão bruscos e decisivos,
na praia para transformá-lo em casa de negócio. Não demorou muito tempo, o notou logo que alguma coisa de grave a impelira a fazer aquilo. Decidido, correu
homenzinho encontrou o que procurava. Numa esquina, bem situado, um ve- em sua direção. Raquel, já tendo se livrado do véu negro e das fitas e medalhas
lho casarão foi logo remodelado e dividido em quartos e em dois salões. Até aí, sagradas, sentara-se diante do marido. Agachando-se e ficando semi-acocorado,
Saul tomou-lhe as mãos e disse:
não sabiam os pescadores que tipo de negócio ia o homem instalar ali, somente
vieram a saber no dia em que já estando totalmente remodelado, viram ser des- — Calma, mamãe! A senhora não tá legal, eu vou lhe buscar um pouco de
carregado grande estoque de bebidas. Na grande e alta fachada, letras grandes e água.
bem desenhadas formavam o nome “Terra e Mar”. Notaram então, com alegria, Edmundo, indiferente, ficou a folhear um livro. Raquel, após tomar a água em
que em matéria de cabaré, estavam muito bem servidos; quanto a mulheres para pequeninos goles, devolveu o copo ao filho, que pediu:
dar vida ao cabaré não seria problema, pois andavam por aí às trempes, tomando
— Mamãe, agora me diga o que aconteceu!
como coito pequenos e sujos cubículos de aluguel, ou mesmo a própria areia suja
da praia. Espalhavam-se da praia dos Coqueiros até as proximidades da praia — O Justino, filho, eu também não sei exatamente o que aconteceu, o que sei
das Barreiras. De início, alguns não foram com a cara de Leocádio. Onde já se é que ele estava lá próximo ao altar ajudando o padre João José.
viu um homem tomar como meio de vida a exploração de mulheres da vida?
— E o que tem isso? A senhora está querendo me dizer que não gostou de ver
Quando o enxergavam na rua, atiravam-lhe alcunhas diversas e viravam-lhe as
o Justino ajudando o padre na novena? Juro como não entendi!
costas. Mas, com o tempo, adaptaram-se à presença do homem e depois que veri-
ficaram o requinte de cabaré que ele lhes oferecia, deixaram de olhá-lo com olhos — Ora, Saul, não é nada disso. Você sabe que eu sempre quis que vocês fos-
virados, e foi até com um pouco de gratidão por lhes ter o homem dado o “Terra sem mais amigos de Deus.
e Mar”, que lhes deram o mais delicado de todos os apelidos que para ele haviam — Se não foi isso, o que foi então que te abalou tanto, mamãe? — Saul parecia
inventado. Do dia da inauguração do cabaré até o final da sua existência, o cáften agora realmente preocupado com Raquel.
Leocádio passou a ser chamado de Vinte-nove-trinta, e foi com certa gratidão que
o aceitou, pois horríveis eram os da preferência do negro Birata e do moleque — Durante as novenas — explicou Raquel — a imagem de São Pedro é levada
Alcindo, que na rua o insultavam de “Bico-de-Pão” ou ““Cu-Torto”. cada noite para a casa de um pescador diferente, e na noite que o santo vai para a
casa de um deles, é a ele e à família dele que compete auxiliar o padre na novena.
Edmundo, que até aí parecia não ouvir as palavras da mulher soltou o livro
e perguntou:
21
— Sim, Raquel! E daí!?
— E daí, Edmundo, é que hoje o noitário foi um tal Capitão Pedro, cuja família
Saul contava ao pai os últimos acontecimentos na empresa de pesca. Havia é composta apenas por ele e uma filha e o Justino estava lá, fazendo o terceiro
recebido dois barcos modernos e com eles iniciara a pesca da lagosta com muito membro da família do tal pescador.
76 êxito. Estavam a conversar há longo tempo, Os sucessos da empresa narrados 77
— Tá explicado, então, mamãe. O Justino é amigo do padre João e mais ainda
por Saul arrancavam do velho prefeito estridentes gargalhadas. Quando a con- desse pescador, eu acho isso motivo mais que suficiente para ele fazer o que fez.
versa já tomava outro rumo, entrou na sala de sopetão, a até pouco tempo atrás,
tímida Raquel, que dirigindo-se ao marido, enquanto retirava do pescoço as co- — Eu também achei muito normal o gesto de Justino, até me alegrei com isso,
loridas fitas e medalhas religiosas, foi logo interrogando-o sem os respeitosos acontece, porém, que todas as pessoas que me cercavam na novena, logo que o
rodeios de costume: viram no altar, começaram a comentar que ele é noivo da filha do pescador.
A essa declaração de Raquel, Saul virou-se para Edmundo e perguntou rindo, 22
não podia o jovem deixar de se divertir com a atitude de indiferença do velho.
— Seu Edmundo, algo me diz que o senhor está sabendo dessa história toda.
Não seria legal contar tudo pra gente? Enquanto era tema de discussão na casa dos pais, Justino chegava à casa de
Ricardina. A situação lentamente agravou-se para os dois, ele era, com o passar
— Ora, Saul! O maluco do teu irmão esteve realmente essa tarde lá na Pre-
do tempo, tentado a revelar à Ricardina o segredo a ele transmitido pelo Capitão
feitura me azucrinando a cabeça com essa conversa, mas eu não lhe dei muita
Pedro. Já não aguentando mais, quebrara a jura feita ao velho pescador, contando
importância. Nunca imaginei que o Justino fosse capaz de uma asneira dessas,
imaginem só, um filho de Edmundo Filgueiras Leal se envolvendo com uma des- tudo ao padre João José. Tornara-se ultimamente muito distante quando estava
sas bichinhas de beira de praia! com Ricardina, que vivia a perguntar-lhe o motivo de tanta frieza.

Ao dizer isso, Edmundo levantara-se ziguezagueando pela grande sala, en- Após a descontraída conversa com o padre, Justino chegou à casa da noiva
quanto procurava nos bolsos o seu amigo inseparável: O pente. com melhor disposição de espírito. Na acolhedora morada do pescador ainda se
encontravam algumas pessoas em volta do pequeno altar de São Pedro. Capitão
— E o que foi exatamente que ele lhe disse? Pedro, sentado no alpendre, conversava com alguns amigos. Ricardina, no auge
— Apenas que se casaria logo após a festa de São Pedro. Ah, ele disse ainda da alegria, corria de um canto para o outro, colocando no altar ou nas paredes
que por enquanto não queria que outras pessoas ficassem sabendo da sua deci- da sala pequenos atavios que, devido à dupla agitação do dia, foram esquecidos
são. E como eu disse que não permitiria que isso acontecesse ou não me chamaria na mesa da sala de jantar. Ao verem Justino chegar, as pessoas que ajudavam a
Edmundo Filgueiras Leal, ele me aconselhou a adotar um outro nome, pois isso filha do pescador nos últimos retoques de arrumação da casa despediram-se,
já era coisa decidida. Aquele atrevido... deixando-os sozinhos.

Ao ouvir o marido, Raquel começou a chorar baixinho, enquanto Saul, sem Sentia-se reanimado o filho do prefeito. Vivia sempre a mendigar por um mi-
proferir nenhuma palavra, passeava as mãos pelos seus dourados cabelos. Ven- nuto sequer para ficar ao lado de Ricardina. Finalmente, depois de um dia esta-
fante, ele podia olhar de perto a mulher que amava. Nunca ela esteve tão alegre
do Edmundo que suas últimas palavras feriram Raquel, dirigiu-se bruscamente
e bonita.
para Saul e acrescentou:
— Vamos sair um pouco por aí, precisamos ficar a sós.
— Tem mais um detalhe que eu esqueci: o malcriado ainda teve a petulância
de me atirar ao rosto que os Filgueiras Leal estão ameaçados de extinção. Aquele De braços dados, os dois se dirigiram ao Capitão Pedro e foi Justino quem
safado! falou:

— E não é verdade? — Insultou Saul. — Enquanto o Capitão conversa, eu e Ricardina vamos dar um passeio.

— Até você, Saul? Olha aqui, moleque! Eu não admito esse tipo de descon- — Não demorem! — Advertiu o velho pescador sem encará-los.
fiança, hein! Se a nossa família vier a se acabar, a culpa será sua e de seu irmão. Não andaram muito os enamorados. Chegando à praia, muitas canoas forma-
Quanto a mim... Bem, a sua mãe é testemunha do que eu ainda sou capaz. vam fila, todas de popa voltadas para o mar sereno. Justino ajudou Ricardina a
Logo que a conversa entre o marido e o filho mudara de rumo, Raquel parou sentar-se na proa de uma delas e instalou-se por sua vez em sua frente. A canoa
de chorar, e com as últimas palavras de Edmundo ficou ligeiramente corada e não era grande e eles estavam sentados muito próximos um do outro, seus olha-
res, ao se encontrarem, tornaram-se sérios. Era sempre Ricardina quem primei-
levantou-se dizendo:
ro baixava os olhos, e, se Justino estivesse menos apaixonado, notaria o carinho
— O que você devia era ter mais respeitos para comigo. — E, virando-se para daquele rápido e tímido olhar. Próximo a eles. em frente à casa do pescador, o
78 o filho: — Vou mandar servir o jantar. moleque Alcindo atirava ao ar os últimos foguetes que expressavam a alegria 79
e júbilo pela visita de São Pedro. O arremesso aos céus produzia um clarão que
precedia ao grande estampido, semelhante ao clarão do relâmpago que antecede
o ribombar do trovão. O silêncio era quebrado apenas pelo murmúrio longínquo
do mar e pelas explosões dos fogos de artificio. A serenidade das águas contagia-
va os dois jovens, impedindo-os de falarem. Desde que ali chegaram que perma-
neciam em silêncio. Intimidados, talvez, por estarem tão próximos um do outro Justino tentou protestar, mas a moça já corria em direção à sua casa. Geral-
Do outro lado do Rio da Cruz, as tochas dos candeeiros crepitavam mostrando as mente o moço se sentia culpado pela frieza que existia entre eles, e agora odiava-
pequenas faíscas que eles desprendiam, tão grande era a calmaria do rio. Final- -se por não ter sequer esboçado um gesto para impedi-la de sair correndo. Acha-
mente, após um interminável silêncio, Ricardina o quebrou perguntando. va-se covarde por não saber dizer que a amava. Podia procurar o moço todos
— Justino, o que se passa com a gente? os meios para negar essa verdade, mas ele amava. Uma porção de pensamentos
estranhos lhe vieram à cabeça naquele momento, havia retornado à proa da ca-
Sua voz saiu num murmúrio, Justino sentiu o quanto estava sendo injusto,
noa e nela permanecia em pé recebendo o vento frio da noite enluarada. Por um
mas nada disse. Dizer o quê? — Pensava. — Magoá-la mais ainda? — Tinha von-
lado, ele pensava que sua vida não tivera nenhum sentido antes de conhecer
tade de falar alguma coisa, mas a garganta parecia-lhe tapada. Sabia que no mo-
mento, qualquer palavra sua poderia ser como uma flecha a penetrar em seu Ricardina; por outro, ele concluía ser como um fardo para a filha do pescador.
corpo. Não, era impossível falar alguma coisa. Seus dedos se tocavam, mas eram Via, contudo, que Ricardina ocupava um lugar importante demais em sua vida,
incapazes de irem avante. Juntos, os dois viviam as incertezas, as emoções, as mas, mesmo assim, teria sido melhor tê-la deixado lá onde a conheceu sobre os
hesitações, os terrores e temores do primeiro amor. morros, nas proximidades do Farol Sem Nome a cuidar de ovelhas. Após todos
esses pensamentos, ele se envergonhou por tais lhe passarem pela cabeça, saltou
— Não há de ser nada! — Disse ela. — Eu tenho fé de que não há de ser nada
da canoa pronto parar protestar contra o que imaginara, pronto para pedir per-
o que o torna assim tão calado.
dão a Ricardina como se ela os tivesse adivinhado.
Mais uma vez, Justino sentiu-se engasgado, mas uma vez ele nada respondeu.
De onde se encontrava, ele ouvia nitidamente o som musical vindo do Terra
Apenas um vago sorriso desenhou-lhe nos lábios. Seus olhares se encontraram
e Mar. Dirigiu-se à cidade. A claridade da lua tornava fraca a das lâmpadas da
novamente e desta vez não mais se deixaram, olhavam-se nos olhos e neles en-
hidrelétrica de Paulo Afonso.
contraram a certeza do que tudo daria certo. Depois de um silêncio secular, o
moço conseguiu dizer num suspiro:
— Ricardina!
23
Ela entreabriu os lábios como se fosse falar mais alguma coisa, mas nada lhe
veio para dizer. A emoção era muito forte, era alguma coisa de indefinido crescer
em seu peito. Crescer, crescer até quase ao ponto de explodir. Ela tinha vontade Os rudes homens do mar lotavam o Terra e Mar. O salão de dança não era
de rir e de chorar ao mesmo tempo. Mas não saiu nada. suficientemente grande para comportar os muitos pares que nele dançavam.
Lentamente, Ricardina levantou-se e ficou de pé na proa, sendo logo imitada Ocupando a mesa de sempre, Luiz e Thania bebiam cerveja e vodca enquanto
por Justino. Sentiam-se irresistivelmente atraídos um pelo o outro, e estavam conversavam animadamente. O cáften Vinte-Nove-Trinta corria de um lado ao
muito próximos. A lua beijava o rosto alvo da moça. Uma aragem fria em duas outro agitando os braços. Naquela noite, nem todas as mulheres do cabaré ha-
finas lágrimas como se as quisesse sorver. Se do outro lado do Rio da Cruz os viam-se feito presentes, e por isso o cáften não conseguia esconder a sua irritação.
pescadores noturnos não estivessem tão embevecidos em suas pescarias, nota- O conjunto executava um samba e isto fazia aumentar o número de pares dentro
riam claramente a imagem encantadora de dois jovens em pé sobre o barco, pois do salão. Luiz e Thania também foram dançar sob o som animado. Dentro do
a claridade da lua e a calmaria do Rio da Cruz davam aos corpos uma grande Terra e Mar tudo era festa e alegria, os homens do mar vibravam com o estridente
som do conjunto. A mesa, outrora sempre ocupada por Eduardo Filgueiras, con-
nitescência.
tinuava desocupada como se a sua vinda fosse certa naquela noite. Rita rebolava
Como que impulsionados por uma força estranha, seus corpos se aproxima- as ancas atracada ao pescoço de um pescador.
80 81
ram e logo uniram-se num longo beijo. Sentiram-se tremer, eles tinham a maravi-
Justino parou em frente ao cabaré e ficou a olhar para o seu interior, poucas
lhosa impressão de ser a primeira vez. Desceram num ímpeto da proa e ficaram
caras que lotavam o salão de entrada lhe eram totalmente estranhas. Dos que
sobre a areia entre a popa e as águas. Após o impulso, os dois jovens permanece-
ali estavam, menos ainda eram os que o ignoravam, e logo a presença do filho
ram abraçados, depois de um bom tempo, Ricardina acabou decidindo.
do prefeito foi notada por todos. Simpaticíssimas mulheres chegaram à calçada
— Vamos! Já são horas, amanhã é novo dia e estamos cansados. em que o moço se encontrava e o convidaram para entrar, mas para todas ele
encontrou uma desculpa e continuou onde estava a observar tudo o que lá dentro cimento do incidente. Sem saber o motivo do grito da mulata, o conjunto parara
se passava. O cáften, também, ao ver Justino saiu para a calçada e depois de de tocar. O miúdo cáften, que até então se encontrava entre as mesas, correu
muito insistir fez com que aceitasse pequena oferta. para dentro do bar, de onde esticava o curto pescoço tentando entender o que se
passava.
— Se não quer me dar a honra de entrar, aceite pelo menos um refrigerante.
Luiz levantou-se exibindo o copo com o resto do líquido, e como que não
Justino aceitou, mas permaneceu na calçada. De onde estava, o moço diver-
crendo no que descobrira, provou-o novamente. Thania, com o medo estampado
tia-se com uma bela mulher que do fundo do salão piscava-lhe insistentemente
no rosto, encarava-o sem saber o que dizer. Sentindo-se alvo de todos os olhares,
o olho esquerdo. Ele nunca a tinha visto e imaginava-se nunca visto por ela. No
entanto, ela como se o conhecesse, sorria-lhe e o chamava para o interior do caba- a mulata não sabia onde pôr as mãos, deixando-as caírem em direção aos largos
ré, lembrou-se de Ricardina e aquietou-se. quadris. A expressão do seu rosto moreno era indescritível, não se sabia se era
de vergonha ou de medo. O amásio, levantando o copo cristalino até à altura do
Após a música, a maioria dos casais procuraram suas mesas e entre eles Luiz rosto, gritou para que todos o ouvissem.
e Thania, que também se sentaram. Enquanto Luiz ingeria o restante da sua cer-
veja, Thania o imitava, tomando em pequenos goles a sua vodca. Mal esvaziaram — Mas isso é água, sua cachorra!
seus copos, o mesmo garçom de sempre já estava ali para servi-los, ao qual, Tha- Por todo o salão, até então em silêncio, ouviu-se o sussurrar de vozes surpre-
nia dizia sem se virar: sas, principalmente dos homens, que se sentiam traídos, como se todas as suas
— O de sempre! companheiras fossem também consumidoras de vodca ou alguma outra bebida
semelhante no preço. Além disso, qual deles não havia ainda gasto suas parcas
Curvou-se o garçom e logo voltou com o de sempre. economias com a mulata de TH?
Justino, até aquele dia, nunca tinha se aproximado de um cabaré, e se naquele Luiz continuava fitando Thania, controlando a muito custo os seus nervos.
dia o fez, deve-se ao fato de ter passado ali por acaso, no entanto, recostada à Lembrou que desde que conhecera aquela mulher já lhe pagara muitas doses
parede dos fundos estava uma mulher que não o deixava arrepender-se de ter de água. Todos os presentes mantinham-se em silêncio aguardando a reação do
ido até ali. moço irado. Colocavam-se no seu lugar e pensavam no que fariam numa situa-
Luiz estranhava há muito tempo a presteza com que o garçom os atendia. Nos ção daquelas. Somente Rita, do lugar onde estava, vendo o nervosismo do cáften,
primeiros dias, ele achou muito normal a simpatia do garçom, podia ser até que sorria divertida. Depois de um longo tempo, Luiz quebrou o silêncio, virando-se
isso não passasse de uma tática de trabalho, mas com o passar dos dias ele notou para os homens expectativos, disse:
que aquela cordialidade somente lhe era dispensada e também ao ex-frequenta- — Vejam, meus amigos, o que contém teste copo, nada mais é do que água
dor Eduardo e a uns poucos outros que frequentavam o cabaré. pura. Tanto eu como vocês, estamos enriquecendo este porco que é o Vinte-No-
Justino sentia-se irresistivelmente atraído pela mulher que o olhava rindo, ve-Trinta através dessas cadelas, ladras e imundas.
mas de sua cabeça não saía a imagem de Ricardina, em todas as mulheres que De dentro do bar, o miúdo cáften ao ouvir falar de si, fez uma careta, mas não
lotavam o Terra e Mar, ele via a filha do pescador, e isso o enchia de remorsos por ousou sair de onde estava. Rita, que a tudo assistia, tapava a boca com as mãos
estar ali. Depois de um momento de indecisão, pôs a garrafa vazia sobre uma para que a gargalhada não explodisse. Thania sentia que tudo estava perdido, ti-
janela, acenou em despedida para a mulher que flertava e foi embora. nha que fazer alguma coisa, não aguentava mais ver aquele homem a devorar-lhe
Quando o eficiente garçom chegou com “o de sempre”, Luiz em vez de pe- com os olhos cheios de ódio. Aprendera naqueles últimos dias até a gostar dele,
gar a sua cerveja, pegou o copo com a vodca de Thania. A alta mulata, ao ver o é verdade que nunca demonstrara isso, mas fazer o quê? Aquele era, antes de
82 amante esboçar tal gesto, soltou um grito, levantando-se de um salto como se tudo, o seu trabalho, e assim era o seu modo de gostar. Com esforço, conseguiu 83
estivesse ferida. abrir a boca e dizer.

— Não, Luiz! — Luiz, eu...

A esse grito, Luiz já havia provado o líquido, suas faces se contraíram dando- — Cale-se! — Bradou enfurecido.
-lhe uma expressão de ódio. Ao grito de Thania, todos já haviam tomado conhe- — Luiz, eu explico.
Um forte murro atirou a alta e esbelta mulata ao chão. Uma algazarra se fez — Eu quero levar você numa farmácia, está sangrando muito.
ouvir dentro do salão. Todos queriam ver de perto a briga iniciada. Rita, vendo
—Eu vou sozinho, se manda!
a amiga ao chão, parou de rir. O miúdo Vinte-Nove-Trinta parou de esticar o
pescoço, pois agora já estava de pé sobre o balcão. Era difícil dizer de qual lado Rita o conhecia bem, ele jamais aceitaria ajuda de alguém, muito menos dela.
estavam os rudes homens do mar.
Thania, tão rápida como caíra, levantou-se sacando de entre os dois graúdos
peitos, um minúsculo canivete já aberto e avançou para Luiz dizendo com um 24
ranger de dentes, enquanto seu olho direito tomava uma cor violácea.
— Porco covarde! — Disse a mulata. — Pelas cicatrizes que tu tá vendo no
meu corpo, dá pra notar que muitos homens já me feriram, mas eu posso te jurar Com exceção dos cabarés e botequins, a cidade inteira já dormia quando Justi-
que nenhum deles saiu impune, e tu não vai ser o primeiro. no chegou em casa. Lá talvez fosse a única casa que excedia às demais, pois, para
seu espanto, todos estavam acordados à sua espera.
Luiz, como sempre, encontrava-se desarmado, e por isso, foi com prudência
que tentou segurar o braço de Thania que se aproximava do seu rosto, mas a — Ué! Aconteceu alguma coisa? — Interrogou o moço ao ver os olhos de Ra-
precaução do jovem foi tardia demais, do lado direito do seu rosto, sobre ruiva e quel, Edmundo e Saul crivarem-se-lhe nos seus.
espessa barba, o sangue jorrou em abundância. Da garganta de todas as mulhe- — Ufa! Suspirou Edmundo levantando-se. — Não aconteceu nada, Justino,
res do Terra e Mar, um grito histérico ecoou. Dois homens já seguravam Thania, mas vai acontecer se você não nos disser quem são as pessoas com quem você se
que ainda de canivete em punho, esperneava feito uma endemoniada. Agora se fez acompanhar hoje na novena.
sabia de qual lado estavam os homens incultos do mar. Luiz fora vítima durante
meses da ladroagem de Thania. Vendera tudo, ou quase tudo o que possuía para — Eu me fiz acompanhar por tanta gente que é impossível relacionar. — Jus-
sustentá-la com doses de água a preço de vodca. Não fosse Thania uma mulher, e tino, que parecia esperar pela pergunta, não titubeou na resposta.
não fosse tachado de covarde todo aquele que numa mulher batesse sem que essa
— Justino, não se faça de mal entendido! — Disse o velho já com o pente em
pudesse defender-se, ela hoje, ali mesmo no Terra e Mar, levaria a troca do talho
ação. — Nós queremos saber é quem são as pessoas de quem você se fez passar
que abrira no rosto do Pernambuco.
por parente.
Agora, mais calma, Thania era assistida por algumas companheiras. Luiz,
com a mão direita sobre o rosto ferido, que não aparentava grande gravidade, — Ah! Já entendi e vou lhes explicar. Aquela moça que estava comigo é a
já da porta que dava acesso para a rua, virou-se e com os olhos procurou Thania pessoa de quem eu fui falar hoje à tarde lá na prefeitura e você não me deixou,
entre as mulheres espantadas; não a encontrando, disse entredentes. aquele velho é o pai dela. Satisfeito?

— Cachorras! — Por mim, tudo bem, quanto a eles, — disse apontando para Raquel e Saul.
— Juro como não estão entendendo patavina!
E foi embora com o propósito de nunca mais voltar ao Terra e Mar. Rita, vendo
que Thania era assistida por muita gente e vendo o seu antigo companheiro sair à Justino olhou para a mãe que, sentada, fixava-lhe os olhos no rosto, apesar
toa pelas ruas escuras que circundavam o cabaré, resolveu segui-lo e oferecer-lhe da hora tardia ao sono eles não mostravam cansaço, e sim muita curiosidade. O
ajuda. moço sentiu que a mãe lhe pedia uma explicação, e foi com devotamento filial
Luiz, sem saber qual rumo tomar, dirigiu-se em direção à cidade erma e já se que se achegou à sua cadeira dizendo:
distanciara muito quando Rita o alcançou, sem notar que também era seguida. — Mamãe, só me resta pedir desculpas por não ter sido à você que eu disse
84 Depois de muito chamá-lo, ela conseguiu fazer com que o moço parasse, ao vê-la, por primeiro a última decisão que tomei. 85
ele perguntou secamente.
Edmundo, prevendo o meloso diálogo que se iniciava entre Raquel e Justino,
— O que é que você quer?
sentou-se numa cômoda poltrona cruzando as pernas e tapando o rosto com uma
— Luiz, eu vim te oferecer ajuda. revista, enquanto Saul, grilado, tentava ligar-se ao que falavam o irmão e a mãe.
— Vá-se à porra! — E qual foi então essa sua última decisão, Justino?
— Eu vou me casar, mamãe, logo após a festa de São Pedro. Justino, e sem dúvida, estava à sua procura, Não pensou muito a mulher e para
lá se dirigiu decidida a travar conversa com o filho do prefeito logo que chegasse.
— É coisa decidida? — Perguntou mostrando uma pequena resignação.
Mas, ao dar os primeiros passos, um forte braço a rodeou pelo pescoço, enquanto
— É sim mamãe, é coisa decidida! a mão do outro braço tapava a sua boca, impedindo-a de gritar. Logo, o gigan-
— Então permita à sua mãe que ao menos conheça antes essa peixeira. — tesco corpo que a dominava arrastou-a em direção à praia. De onde estavam, os
Gritou de sua poltrona o velho prefeito, mostrando que a revista cobrindo-lhe o homens, na calçada do Terra e Mar poderiam ver claramente o que se passava a
rosto não fora empecilho para desligar-se da conversa. uns metros, no entanto, nenhum deles se fixou no incidente.

— Claro, papai. — Falou o moço sem deixar de olhar para a face de Raquel — Chegando à praia, por trás de uma grande canoa, o gigantesco sequestrador
Mamãe vai ter tempo de sobra para ver a maravilha de pessoa que é Ricardina. jogou Rita bruscamente na areia que caiu com o rosto de encontro ao chão. Virou-
-se, limpou o rosto e viu e homem que estava em sua frente empunhando uma
— Eu não vou concordar nunca com uma safadeza dessas. Disse o prefeito, pequena pistola, Com surpresa, ela murmurou.
pegando o pente e encaminhando-se para o quarto de dormir.
—Senhor Eduardo?
— Vai ser pior, seu Edmundo! Disse rindo e pausadamente o sagaz Saul.
— Em carne e osso! Vejo que você é dotada de uma boa memória.
Edmundo parou de vez empertigando-se.
— Pessoas engraçadas como o senhor a gente não esquece nunca, basta ver
— Pior por que, seu moleque? uma vez.
Sempre rindo, Saul deu o seu ponto de vista: — Eu não entendo como você se atreve a brincar com um homem que está
— Quando eu resolver casar, qualquer tipo de oposição que o mestre Edmun- com uma arma apontada para você e que está decidido a lhe matar.
do fizer, só irá me servir de incentivo. — Juro que não estou nem um pouco preocupada com isso, mas se você quer
— Raquel, você está vendo que tipo de malcriação deu a esses dois? realmente me matar, eu poderia ao menos saber a razão?

— Eu não dei, Edmundo, nós a demos! E pra falar a verdade, eu acho até que — Naquela noite que você fez aquela putaria comigo lá no Terra e Mar eu ju-
eles estão muito bem assim. rei que você ainda ia ser minha, nem que para isso eu tivesse que te matar. Como
você vê, eu não mude de ideia.
— Esse trio forma uma verdadeira corja! Disse o prefeito retirando-se brusca-
mente da sala, deixando os três rindo descontraidamente. — Mas vai ter que mudar! Ou me possui ou me mata! Sabe? — Rita queria
ganhar tempo. — Eu jamais imaginaria que o senhor fosse tão apressado assim,
— Agora eu estou mais tranquila, filho, espero conhecer essa menina o quanto faz tão pouco tempo, a bem dizer ontem.
antes, embora eu ache você muito novo ainda, dou-lhe todo meu apoio.
— Pois é, eu esperei muito por esse momento, agora você não tem nenhuma
— Pode contar comigo também, Justino, — Disse o sorridente Saul, batendo- saída.
-lhe nas costas. — Eu vou dormir, até amanhã!
—Tudo bem, eu topo o seu jogo, agora tem um negócio, sem essa arma apon-
Os dois filhos do prefeito beijaram a mãe e foram para seus cômodos, deixan- tada pra mim. Primeiro, eu não tenho nem um pouco de medo dela. Segundo,
do-a sozinha na sala de estar, mas apenas Saul foi realmente dormir, pois Justino você não pode fazer uma coisa pretendendo fazer uma outra, se você quer me
tinha na cabeça o provocante sorriso da mulher que vira no Terra e Mar. Esperou matar que mate logo, e se você quer me possuir, terá que jogar fora essa arma, a
que a mãe se retirasse da sala e sorrateiramente saiu de casa com destino ao ca- não ser que eu esteja diante de um tarado que só gosta de defuntas fresquinhas.
86 baré. 87
— O que você disse?
Rita, depois que Luiz rejeitou a sua ajuda, resolveu voltar para o Terra e Mar.
— Você entendeu muito bem! Joga fora a arma que eu topo tudo.
Retomou por um beco mais escuro ainda, talvez por ser ele o mais rápido a fazê-
-la chegar ao cabaré. Em sua cabeça, não desfilavam as cenas da briga de Thania Rita continuava deitada sobre a areia. A sua tranquilidade incomodava por
com Luiz, e sim o sorriso que o filho do prefeito lhe dirigira. Ao avistar o cabaré, demais o velho Eduardo. Depois de suas últimas palavras, ele ainda teve uns
Rita parou subitamente e seu coração disparou. Na alta calçada do cabaré, estava minutos de hesitação, mas terminou por aceitar a sugestão da mulher. Colocou
a pequena arma sobre o banco de uma canoa mais próxima e com uma rapidez — Mas isto não está direito, Justino. — Dizia o pescador a agitar os braços. —
desesperada, começou a retirar a roupa que cobria o seu corpo. Sempre foi a minha canoa que conduziu o santo, agora me vem esse padre JJ com
ares de bajulador, querendo que seja o Filgueiras III que carregue o Santo.
Rita, mesmo tendo uma arma apontada em sua direção, não perdeu a calma
por nenhum momento, agora que a via longe de si, em vez de apavorar-se com — Não é nada disso, Capitão, o padre João José não é de bajular ninguém, ele
a nova ameaça, apenas divertia-se. O velho Eduardo, ao retirar do corpo toda a quer apenas dar mais beleza à procissão, deixando São Pedro mais exposto aos
roupa que o cobria, aproximou-se de Rita e a agarrou, levantando-a da areia para olhos dos que vão em canoas e aos que vão por terra, e para isso não há lugar
acomodá-la por trás de uma outra canoa mais a seu gosto. mais adequado do que a proa do Filgueiras III.
Não demorou muito a submissão de Rita ao velho Filgueiras, quando este a — Que nada, menino! Eu conheço essas manhas, esse padre JJ, além de bajula-
depositou na areia atrás da outra canoa, não teve tempo suficiente para iniciar o dor, é medroso também. É por isso que ele trocou a fragilidade da minha Estrela
seu intento, pois a experiente sergipana, a um pequeno descuido do velho quan- d’Alva pela segurança do Filgueiras III.
do sobre ela se acomodava, aplicou-lhe os dois pés no baixo ventre. Eduardo caiu — Espera aí, Capitão! — gritou Birata entrando na teima. — Todo mundo
de costas na areia molhada da praia, enquanto Rita tomava posse da arma e de aqui conhece o padre João e sabe que ele não é medroso e nem é de bater fofo, pu-
toda a sua roupa e corria para o Terra e Mar, deixando atrás de si o velho a gritar xa-saco, pode até ser que ele seja, mas medroso ele não é não, e nisso eu aposto.
pedindo-lhe as roupas, mas não teve ele a coragem de segui-la até ao cabaré, pois
encontrava-se despido como nascera. Os homens do mar não perdiam uma oportunidade para fazer uma aposta.
Capitão Pedro topou.
No Terra e Mar, Rita contou o que acontecera, mostrando a todos a prova da
sua façanha. De onde estava, o velho continuava a gritar pedindo que Rita lhe — Tu pode apostar o que, Birata?
devolvesse as vestes e a pistola. O negro Birata juntamente com outros caboclos, — Um dia de mar, Capitão.
se encarregou de fazer a entrega dos pertences a Eduardo, mas antes tiveram o
— Não tô te entendendo.
cuidado de descarregar a pequena pistola, o que não foi preciso, pois o velho
andava com a arma descarregada só para intimidar a Sergipana. — Se eu perder, a lavra de um dia de pescaria será do senhor, se eu ganhar, a
lavra de um dia de pescaria sua será minha.
Nunca os homens do mar gargalharam tanto.
Justino logo entendeu as regras da aposta e interveio para melhor explicar ao
pescador.

25 — Capitão, é o seguinte, se o padre João José for realmente um medroso como


o senhor afirma, ele irá no Filgueiras III, aí o senhor ganha a aposta, mas se ele
não tiver nenhum receio, a um convite seu ele irá na Estrela d’Alva, nesse caso o
senhor perderá.
O dia vinte nove aconteceu numa sexta feira. Muitos pescadores na praia e
nenhuma canoa no mar, nem mesmo os possantes barcos da Cimpesca foram Capitão Pedro, entendendo a condição da aposta, soltou uma gargalhada,
levados ao mar naquele dia para a pesca do pargo e da lagosta. Os pescadores e apertou a mão do negro desafiante e gritou com ares de vitória.
suas famílias trabalhavam na decoração da frente das casas, na pintura das ca-
— Combinado, menino!
noas e até mesmo na limpeza das ruas onde passaria o cortejo. Nenhuma loja de
comércio aberta. Era feriado municipal. Logo a notícia da aposta ganhou toda a praia e os pescadores escolhiam de
qual lado ficar para daí fazerem também as suas.
O velho Capitão Pedro, desconsolado, discutia com Justino sobre as últimas
88 modificações na programação da procissão. Há muitos anos, era em sua canoa Enquanto a cidade inteira preparava-se para a grande procissão, o pernam- 89
que se colocava o andor de São Pedro para a procissão marítima após o percurso bucano Luiz Carlos de Vasconcelos andava à toa pelas ruas da cidade. Chamou-
de carros pelas ruas da cidade. Esse ano, porém, o padre João José achou que -lhe a atenção a rua Vinte Quatro de Maio, onde faixas, bandeirolas e palhas
para dar maior suntuosidade da procissão, deveria ser o andor conduzido pela de coqueiros encobriam os postes da hidrelétrica. Passavam-se três dias do seu
mais bela embarcação, sendo no caso o moderno e bem equipado Filgueiras III, incidente com Thania no Terra e Mar, todavia parecia um ano que o moço estava
da Cimpesca, e não a mirrada Estrela d’Alva. naquela situação, seus pés atrapalhavam-se nos movimentos do andar. Tanto sua
barba fechada como seus cabelos ruivos, outrora sempre bem cuidados, toma- — Estamos sim! — Bradou o velho. — Estamos esperando o rei seu pai, e é por
ram uma expressão tétrica. Como único pertence, acompanhava-o apenas uma isso que estamos retirando as sujeiras da rua, e é por isso também que é bom você
grossa, escura, — talvez de sujo, — e folgada camisa, uma calça azul e os sapatos tratar de sumir daqui, pois você é um grande pedaço de sujo.
já furados, mostrando os dedos sem meia. Lembrava-se o desventurado Luiz,
Luiz continuava a rir, e foi rindo que mais uma vez curvou a cabeça dizendo:
logo após a briga que tivera com Thania, que a simpática proprietária da Pensão
Uruoca prometera-lhe para quando quisesse as três diárias que ficaram pagas — Obrigado, senhor, pela informação! E se aceita um conselho, não fique aí a
quando sete meses atrás juntara-se com Thania. Sem pensar duas vezes, o moço trepar em escadas com os pés descalços! Até mais ver!
para lá se dirigiu, mas em vez de topar-se com o bondoso sorriso da proprietária
— Vai embora imundo! Gritou o velho com ódio.
teve uma desagradável surpresa. Sobre o nome Pensão Uruoca, estava apenas
uma alva mancha de cal. Diante das duas portas de entrada, lascas de madeiras, Luiz já se distanciara a tombar, as crianças gargalhavam como que aplau-
em forma de X travavam-lhe a entrada, entre as portas, uma placa quadrilátera dindo-o, o velho enxotou-os exclamando palavrões e recomeçou o seu trabalho,
dizia: “Propriedade privada da Prefeitura Municipal”. Mais abaixo tinha: “Ad- desta vez com os pés calçados.
ministração Edmundo Filgueiras Leal”. Lendo aquilo, Luiz disse interrogando-se Tombando, Luiz seguiu rumo à praia, ia para a calçada do Balneário Sport,
numa careta:
onde costumava, todos os dias, fazer a sua sesta sem almoço. Alguns dos meni-
— Será essa a única obra realizada por aquele paquiderme! nos o seguiam.
Após esse novo desengano, Luiz saiu a zaranzar pela cidade, enchendo-se de — Moço! — Disse um deles — Quem vai passar aqui é São Pedro.
cachaça barata por onde passava. Nos três dias que passaram, o jovem ainda não
Seriam doze horas, o sol estava a pino lançando sobre a cidade os seus ar-
conseguira dormir nem tampouco comer direito, o seu corpo não era acostuma-
dentes raios. Sobre o rio, pequenas e luxuosas lanchas cortavam as águas azuis
do aos improvisados colchões de papelão ao ar livre, isso raramente acontecia
e agitadas pelo vento oceânico. Carros particulares vindos de outras cidades e
quando em tempos idos, excursionava com Rita. Quanto à alimentação, com ex-
ceção de alguns nacos de pão, o seu infeliz intestino há muito não via outro tipo ônibus fretados por estudantes também de outras localidades eram estacionados
de comida. em frente aos restaurantes, para dali serem retirados somente após a procissão.
A casa do Capitão Pedro, situada entre a praia das Canoas com a das Barreiras,
Perambulava o moço pela rua Vinte Quatro de Maio, era essa a rua da cidade ficava fora do percurso da procissão, daí a não necessidade de ornatos na frente
mais conhecida para Luiz, pois é ela quem liga o centro ao Terra e Mar, embora da casa do pescador. Logo, muito cedo os proprietários da casa abandonaram-na.
ficando o cabaré situado numa rua transversal à Vinte Quatro de Maio, era por Ricardina mudara-se para o local onde passaria a procissão, para auxiliar na de-
ela que Luiz preferia andar.
coração da rua e da frente das casas. Capitão Pedro questionava por tudo na beira
Luiz observou que em todos os quarteirões, homens, mulheres e crianças da praia. A zelar pela segurança da casa, ficara o moleque Alcindo no alpendre
ornavam a rua com palhas de coqueiros, bandeirinhas de papel e até mesmo com a cerzir o pano de um mastro, quando de repente, para sua surpresa, entra no
flores silvestres, como se esperassem por ali a passagem de algum rei. humilde recinto uma bela senhora ostentando uns bem cuidados cinquenta e
Não veio à mente do pernambucano que aquele era o dia de São Pedro e, che- poucos anos, roupas caras e muita segurança. Resoluta, ela se dirigiu a Alcindo
gando-se a uma escada, cutucou o pé descalço de um velho que ocupava-se em dizendo:
atar ao alto de uma janela uma larga e alva faixa com letras azuis. Com a cócega — Desejo falar com Ricardina!
produzida no pé esquerdo, o velho foi ao mesmo tempo acometido por um gran-
de susto e saltou do meio da escada, indo com o corpo inteiro ao chão. Moleques, Como é comum a todos os que habitam a praia, embora espantado com a
que varriam a rua, correram ao local soltando zuadentas gargalhadas. Quando inesperada e estranha visita, Alcindo parecia não dar a menor importância à pes-
chegaram próximo ao velho, este já estava de pé com as mãos fechadas os braços soa que estava em sua frente. Sem levantar a vista de grosso pano do mastro, o
90 91
retesados em posição de guarda. Luiz, vendo o esquelético velho em sua frente, moleque disse:
não pôde deixar de soltar um sorriso com naturalidade, tão sem malícia quanto o — Ricardina saiu!
das crianças que os cercavam. Após uma pequena pausa, curvou respeitosamen-
te a cabeça e perguntou: —Pois vai chamá-la, menino! — Disse asperamente.

— Perdão, senhor! Se me permite a curiosidade, estão esperando algum rei? Levantando-se, Alcindo encarou a mulher e perguntou com aspereza igual:
— E quem toma de conta da casa? — Existe uma dúvida, padre, todos os outros padres que já organizaram essa
procissão seguiram por terra, com medo das águas como se fossem bodes. O
A mulher começava a não sentir-se à vontade, mas forçando um riso, respon-
senhor fará o mesmo?
deu.
A essa pergunta, os pescadores notaram que Capitão Pedro queria apenas
— Fique tranquilo menino, eu cuidarei da casa!
apressar o resultado da aposta, quanto ao padre, esse foi rápido com a resposta:
Alcindo saiu a correr desconfiado olhando sempre para trás.
— É claro que não, Capitão! Numa procissão, o lugar mais indicado para o
Os pescadores, formados em grupo na praia, conversavam enquanto trabalha- padre é próximo ao andor.
vam. Discutiam sobre a aposta do Capitão Pedro com Justino sobre a preferência
— Quer dizer então que o nosso padre JJ vai na proa do Filgueiras III?
do padre João José pelo Filgueiras III. Ricardina, ao lado de Justino, ocupava-se
na picotagem de papel, enquanto escutava a conversa dos homens. De repente, — Não, Capitão! — Disse o padre com lisura. — Embora sabendo que meu
surge das bandas da Cimpesca o padre João José trazendo nas mãos uma grande lugar na procissão é na proa do Filgueiras, eu levei em consideração o fato de ser
folha de cartolina branca e riscada a lápis. Achegando-se ao grupo, o padre olhou a jangada do senhor que há muito tempo transporta a imagem de São Pedro, por
para o relógio e sempre rindo disse: isso, tão somente por isso! — Rindo. — Eu resolvi seguir de perto o Filgueiras
dentro da sua Estrela d’Alva, e ainda por cima eu faço questão de ir segurando
—Bom dia ou boa tarde para todos! Eu procurava por vocês!
a cana do leme.
—Boa tarde! — Responderam em coro os homens e mulheres da praia.
O grupo de pescadores crescera desde que o padre chegara à praia, e todos
—Eu trouxe aqui o roteiro de toda a procissão. — Disse o padre exibindo um os que antes especulavam sobre a aposta de Birata e Capitão Pedro, vendo que o
mapa. — Sairá o santo da igreja às três horas da tarde, seguindo pela rua Vinte resultado viera à tona tão cedo, caíram em grande alarido, enquanto abraçavam
Quatro de Maio até o início do bairro da Brasília, de lá, seguirá para a praia dos o negro Birata e lançavam achincalhes ao Capitão Pedro, que parecia tão contente
Coqueiros onde terá início a procissão marítima. Essa primeira parte da procissão com a decisão do padre, quanto Birata com a sua vitória.
será de carro, pois o percurso é muito grande. — O padre tinha sempre o cuidado
de ir acompanhando com o indicador os riscos da cartolina, que os pescadores O padre, aturdido com repentina gritaria dos pescadores, gesticulava os bra-
olhavam, maioria, sem entender patavina. — Quanto ao itinerário da procissão ços pedindo explicações a Justino. O moço puxou o sacerdote pelo braço afas-
marítima, — continuava o padre. — ficará por conta do piloto do Filgueiras III, tando-o da algazarra enquanto iniciava a explicação da aposta. Ricardina ficou
que formando caracóis, irá até próximo às margens da ilha, vindo a lançar ânco- sozinha próxima ao motim dos pescadores, quando de repente chegou Alcindo
ras próximo à Pedra do Melro, onde terá início a procissão à pé, seguiremos até a pondo os bofes pela boca.
Colônia dos Pescadores, e lá, entraremos na rua do... — com o dedo apontado, o — Alcindo, aconteceu alguma coisa? Por que você deixou a casa só? — Inter-
padre indicava a rua do Terra e Mar, como que querendo dar-lhe um outro nome, rogou a moça assustada.
mas terminou dizendo: — Terra e Mar. Não adiantava mesmo alguém tentar dar
à rua um outro nome. Muitos padres já passaram pela igreja de São Pedro e todos — Tem lá uma mulherzona rica procurando por tu, disse que tomava de conta
eles tentaram inutilmente dar um outro nome à rua do Terra e Mar, mas nenhum da casa.
dos muitos escolhidos pegou. Deram o nome de Rua das Flores, da Alegria, da Ricardina não mais ouvia o que dizia o moleque. Suas pernas tremiam. Aper-
Harmonia, da Paz e até mesmo dos Prazeres, um nome que tinha bons e sugesti- tava contra o peito a tesoura e o saco de papéis picotados. A muito custo conse-
vos motivos para pegar, mas de nada adiantou, o povo não quis e assunto encer- guiu sair do lugar, suas pernas queriam ceder ao peso leve do seu corpo. Alcindo
rado. Frustrados, os padres terminavam também por chamá-la com naturalidade não parava de falar ao seu lado, mas ela nada ouvia do chinfrim feito pelo mole-
92 de rua do Terra e Mar. — Depois entraremos novamente na rua Vinte Quatro de que, ouvia apenas ao mais forte, feito pelo grupo de pescadores que ficava para 93
Maio e seguiremos para a igreja, onde o nosso vigário dará a festa por encerrada. trás. Ladeada pelo moleque, a moça seguia pela margem das águas, passando
E aí então, até o próximo ano! — Finalizou o padre João José rindo, coisa que pela Pedra do Melro, ainda mantinha-se totalmente apática ao que dizia Alcindo.
raramente deixava de fazer. Passando em frente a um dos restaurantes, ladinos banhistas jogaram pequeni-
Após uma pequena pausa, Capitão Pedro aproximou-se do padre, e passando nas pedras que lhe atingiram as pernas sem o êxito de despertarem-lhe a atenção.
a mão sobre os alvos cabelos disse: Somente Alcindo, atento a tudo, atirou-lhes caretas e cotocos de reproche ao mes-
mo tempo em que exibia-lhes o sexo protegido pelo calção surrado. Na medida — Justino tem falado muito de você desde a novena em que apareceram jun-
em que se aproximava de casa, Ricardina sentia-se menos à vontade. tos, na praia todos conhecem você e seu pai, não foi difícil descobri-la.
— Alcindo, me diga como é essa mulher, você já a viu antes? — Ele sabe que a senhora veio aqui?
— Eu não! Nunca vi ela não. Ela é alta, da sua altura, é muita bonita, mas só — Nem deve, pelo menos por enquanto! Vamos fazer uma surpresa a ele,
sabe mandar, é uma chata! quando resolver lhe levar em nossa casa, nós diremos que já somos boas amigas.
Ao pisar no alpendre da casa, Ricardina deparou-se com uma mulher diferen- Raquel, em poucos minutos conseguira deixar Ricardina à vontade. Agora,
te da descrita por Alcindo. Não parecia abusada, nem tampouco chata como fri- conversavam como velhas amigas.
sara o moleque, a estranha de pé sorria para a moça espantada. Simpaticamente
aproximou-se da recém-chegada, que sem proferir palavra nem corresponder ao — A senhora vai para a procissão?
sorriso, talvez devido ao susto, ficou parada na porta de entrada. Sempre sorrin- — Claro que sim! E só não lhe convido para ir comigo por não querer que o
do, a mulher estendeu-lhe a mão dizendo: Justino nos veja juntas por enquanto.
— Como vai, menina? Meu nome é Raquel, sou a mãe de Justino. — Eu muito lhe agradeceria, mas não ia ser possível, pois eu devo estar logo
A tesoura e o papel caíram das mãos de Ricardina, tamanho era o seu ner- mais na praia com o meu pai para enfeitar a Estrela d’Alva. O padre João vai se-
vosismo. Ao mesmo tempo, as duas mulheres curvaram-se para apanharem a guir a procissão com a gente na mesma canoa.
tesoura e o saco cheio de papel picotado. Foi Raquel quem os juntou pondo-os — Bem, Ricardina. — Disse Raquel levantando-se — Eu tenho que ir, e se não
em seguida sobre uma pequena mesa a um canto. Novamente, de frente uma fosse o meu grande medo das águas e o nosso segredo para com o Justino, eu iria
para outra, Raquel sorria, enquanto Ricardina imaginava-se sonhando. Depois junto com vocês.
de uma pausa, conseguiu balbuciar um “muito prazer”, ao que Raquel disse:
Alcindo, sentado na janela que separava o alpendre da sala de visitas, ouvira
— Vamos, menina! Para que essa cara? A minha visita é de paz, você não me toda a conversa da futura sogra e futura nora, verificando isso, Raquel falou já
oferece uma cadeira? Há um tempão que eu estou aqui de pé. levantando-se:
— Ah! Que cabeça a minha! Sente-se! — Foi uma alegria, para mim, conhecer você, mas eu gostaria que por enquan-
to a minha visita fosse mantida em sigilo. — E virando-se para Alcindo, sentado
Acomodaram-se, as duas mulheres pareciam menos formais.
sobre a janela — Tranque a boca desse moleque. Ricardina riu ao constatar que
— Meu nome a senhora já sabe, deseja alguma coisa de mim? Alcindo tinha razão em não ir com a cara de Raquel. Ela certamente não gostava
— O que eu desejava, acabo de fazer, era apenas conhecer você, Justino me dos sujos meninos da beira da praia.
prometeu que a levaria à minha casa após a festa de São Pedro, mas eu não aguen- — Não se preocupe, dona Raquel, Alcindo é um bom menino. Raquel desa-
tei esperar e vim assim de surpresa conhecer a minha futura nora. pareceu num estreito beco, não querendo ser vista na praia. Alcindo saltou da
janela dizendo:
— A senhora não tem nada contra?
— Chata!
— E como deveria ter? Você é uma moça muito bonita, parece-me ser ainda
muito bem educada, se Justino a escolheu, com certeza você é possuidora de Ricardina ria feliz, e passando a mão sobre os encaracolados cabelos de Al-
todas as qualidades necessárias para ser digna dele, você não me parece ser bra- cindo, pediu:
sileira. — Olhe, Alcindo, não por ela, mas por mim, dê o visto por não visto.
— Sou sim, meus pais é que são portugueses, eu nasci aqui mesmo. — O que é isso?
94 95
— O que é feito da sua mãe? — Não precisa saber, basta que você não diga nada a ninguém.
— Eu não a conheci, ela morreu dois anos depois que eu nasci. — Se não fosse por você, essa peste ia ver só!
— Sinto muito. — Se você falar alguma coisa, eu digo ao Justino que você chamou a mãe dele
— Como a senhora acertou com a casa? de peste.
Alcindo saiu à praia soltando palavrões próprios de todos os malcriados guem em rumo ao cais. Cerca de dois quilômetros separam a Praia dos Coqueiros
curumins da praia. Enquanto Ricardina, pensativa, escorava-se na umbreira da da Praia das Canoas. A multidão dispersa-se com a pressa de chegar ao local do
porta sem simular o seu contentamento. desembarque da imagem. Raquel caminha sem pressa de chegar ladeada por
amigas. Todos se dirigem à Praia das Canoas, sem ao menos assistirem ao espe-
Poucos minutos depois a favela inteira sabia do encontro de Ricardina com a
táculo mavioso que se desenrola no Rio da Cruz.
mãe de Justino, mas não deram muita importância à notícia de Alcindo, coisas
mais importantes eles tinham para tagarelar. Aquilo era assunto para depois da Sob a sombra do Balneário Sport Clube, um bêbado jaz sentado sobre o ás-
procissão. pero calçamento, obrigando os peregrinos a desviarem-se mudando de rota. Ele
é talvez o único que a tudo assiste, sempre foi muito curioso e bom observador
de tudo. E foi ele quem viu primeiro o desenrolar de uma suposta catástrofe que
se iniciava no rio, e foi a um grito seu de alerta que os mais próximos pararam a
26 marcha e viram que no meio do rio uma canoa desgovernara-se e girava como
uma carrapeta distanciando-se das demais. Aos dotados de melhor visão, era
possível ler o “Estrela d’Alva” gravado nas laterais de sua proa.
A procissão de São Pedro começa por terra e termina por terra, mas grande Devido aos incessantes esforços do Capitão Pedro, em seguir de perto o Fil-
parte do seu percurso é feito por água. No Rio da Cruz, os mais diversos tipos gueiras III, a cana do leme segura pelo novato padre, quebrara-se, sendo a causa
de embarcações cruzam-se cortando as águas. Enfeitadas com flores silvestres, do incidente. O piloto do Filgueiras III, a mando de Saul, cessou as suas pirue-
papel colorido e folhas de coqueiros, elas mais parecem jarros gigantes boiando tagens e tratou de recolher os tripulantes da Estrela d’Alva, deixando somente o
sobre as águas. velho pescador que se recusou a abandonar o seu posto. Auxiliados pelos funcio-
Duas da tarde, sob sol ardente, o cortejo sai da igreja de São de Pedro. Gran- nários da Cimpesca, Ricardina, Justino e o apavorado padre — que, nascido na
de fila de carros segue o andor instalado provisoriamente sobre a capota de um Serra da Ibiapaba, ainda não tivera tempo para aprender a nadar — se fizeram
deles. Na Rua Vinte Quatro de Maio, os moradores perfilam-se nas calçadas. Mo- tripulantes do Filgueiras III. Uma vez sozinho, Capitão Pedro não teve dificulda-
leques travessos grudam-se nas carrocerias dos caminhões. Após a rápida pas- de em governar a sua Estrela d’Alva.
sagem do cortejo, a multidão segue para a praia dos Coqueiros. Lá, grande é a Vendo os novos tripulantes, o ilustre prefeito sorriu abertamente saudando
concorrência dos mais afoitos por um lugar nas embarcações. Sem muita pressa,
em especial ao padre João José.
o andor é retirado da capota do carro e transportado para o pomposo Filgueiras
III, onde se encontram apenas Edmundo Filgueiras, Saul e alguns funcionários — Cáspite! Vejam só onde veio parar o nosso orgulhoso sacerdote!
da empresa de pesca. Para receber o andor com a imagem, curvam-se todos os — Pois é, senhor prefeito, para o senhor ver a que duras provas o pai nos
tripulantes do Filgueiras. Edmundo estende a mão para auxiliar o padre João submete.
José na escalada ao barco, mas é rejeitado pelo sacerdote, que aponta para a em-
barcação do Capitão Pedro à sua espera. Desapontado, o orgulhoso prefeito olha — Nesse caso, para quem foi a dura prova de hoje?
para a Estrela d’Alva e surpreende-se ao ver Justino na companhia de uma linda — Para mim, sem dúvidas, que por uma vaidade me neguei a vir no lugar
mulher e do velho pescador vestido de branco, que de remo em punho, sentado que devia, próximo a São Pedro, embora tendo que ficar perto de quem eu não
no centro da insignificante embarcação, agitava as mãos chamando pelo padre.
queria, tenho que admitir que é aqui o meu lugar na procissão.
O Filgueiras III lança um longo e estridente apito dando sinal de partida. Al-
Edmundo ignorou o insulto com uma gargalhada e para mudar de assunto,
cindo grita da popa da canoa do Negro Birata um rouco Viva São Pedro!
virou-se para Justino com o fim de insultá-lo também.
96 Os cabelos de Ricardina voam ao sabor do vento morno. Todos os tripulan- 97
— Ah! E você, Justino? Como se sente após nascer outra vez?
tes das embarcações comovem-se com a partida e com os apitos lamurientos do
Filgueiras III. Edmundo, dentro de um temo cinza, retira do bolso o inseparável —Muito bem, papai! Mas não creio que fosse uma grande perda para o se-
pente e o passa pela cabeça com um ar de hipócrita misticismo. nhor.
Tem início a procissão marítima. Pela terra frouxa da praia, segue a multidão O padre, após a breve conversa com o prefeito, tomou lugar ao lado de Saul,
não cabível nas embarcações. Desviam-se dos destroços do velho trapiche e se- próximo ao andor.
Retirando do bolso o seu pente, Edmundo tomou um ar sério e, olhando para Com as últimas palavras de Luiz, Edmundo pareceu lembrar-se de quando
Ricardina, perguntou: ele estivera na prefeitura, ficou a observá-lo por longo tempo, mas não mostrou
nenhum sentimento de remorso por ser ele também um pouco responsável pela
— Essa é a tal?
desgraça do pernambucano.
— Não há tal nenhuma, papai! Essa é Ricardina, a minha noiva.
Após a procissão, teve início, já noite fechada, a missa de encerramento, pre-
Com timidez, Ricardina estirou a mão a Edmundo, dizendo: sidida pelo velho vigário da Paróquia do Bom Jesus dos Navegantes. No meio
— Como vai o senhor? da arfante multidão, estava a contrita Raquel a rezar, quando, para seu espanto,
surge, só Deus sabe de onde, o obeso Eduardo Filgueiras a sorrir-lhe.
Sua mão ficou suspensa no ar, pois o prefeito virou-se exclamando:
— Boa noite, cara cunhada! Há quanto tempo, hein!
— Puxa! Que grande multidão!
— O que quer você, Eduardo? Sabe que Edmundo não quer que você se apro-
A multidão aglomerava-se na Praia das Canoas, o Filgueiras III já se aproxi- xime nem de mim nem dos meninos.
mava da Pedro do Melro. No cais balaustrado, apenas uma pessoa assistia a apro-
ximação das canoas e barcos lotados de fiéis e de profanos. Era o bêbado sujo, — Não se preocupe, cara cunhada, você sabe que o seu marido só está onde
boêmio e bom observador. Não obstante, os inconvenientes e dificuldades sur- ele é o palco das atenções, por isso ele ainda deve estar na praia em cima do Fil-
gidos durante a procissão foram a tempo aplainados, não impedindo o seu bom gueiras, pois ele sabe que aqui a vez é de São Pedro.
andamento. Na Pedra do Melro desembarca-se a imagem de São Pedro, fogos de — Não debocha e diz logo o que quer, depois me deixa em paz!
artifício explodem no ar num barulho ensurdecedor. Toma início a terceira etapa
da procissão, essa a parte em que todo o povo participa, pois são excluídos carros — Não é ainda com você que eu quero nada Raquel, o meu caso é com o seu
e canoas, somente a multidão enche as ruas entoando cânticos de louvor. filho, o Justino.

Comerciantes, industriais, autoridades, pescadores, prostitutas e carcaças de — Alguma coisa séria? — Perguntou Raquel começando a preocupar-se.
prostitutas misturam-se num rito de igualdade. A rua do Terra e Mar é toda um — Não, eu quero apenas que você diga que me procure, eu tenho um certo
jardim de flores selváticas, em frente no cabaré, todas as mulheres lideradas por assunto a tratar com ele.
Rita e Thania empunham ramalhetes que atiram ao cortejo. A praia aos poucos
torna-se deserta, apenas Edmundo permanece na proa do Filgueiras III a assistir A multidão iniciou a cantar hinos de louvor ao santo, as últimas palavras de
o afastamento moroso da grande multidão. De onde estava, Edmundo não pode Eduardo não soaram claras, mal dando para que Raquel as ouvisse. Já se perdia
deixar de ver um bêbado escorado à balaustrada. Sem muito custo, desce de onde Eduardo entre a multidão quando Raquel o puxou pelo braço.
estava, e pra lá se dirige. Achegando-se do sujo homem, deu-lhe um cutucão com — O que você quer conversar com Justino tem alguma coisa a ver com Ricar-
a perna e perguntou: dina?
— Como é o seu nome, trapo? — Não se preocupe, Raquel! O que eu quero conversar com o seu filho é as-
— Luiz, seu prefeito de pensões! sunto da família e você será uma das primeiras a saber. Até mais ver, cara cunha-
da!
— O que você disse?
Desde que Eduardo aparecera, conservara no rosto um riso que muito inco-
— Que o senhor não presta!
modou a Raquel, e suas últimas palavras deixaram-na mais intrigada ainda.
— Olha aqui, rapaz, você está ofendendo a uma autoridade, e além disso eu
98 não gosto de ver marginais nas ruas de minha cidade, cuidado, hein! Senão eu As vozes roucas dos pescadores fizeram-na esquecer Eduardo e seu risinho 99
mando trancafiá-lo na cadeia para o resto da tua vida. imprudente. O hino de São Pedro embalava a boa esposa do prefeito, a multidão
entoava o hino com empolgação e Raquel os ajudava.
— Vá-se à merda, seu porteiro de pensão.
Disse o moço soltando um escarro na direção do prefeito e saiu tombando em “São Pedro, pastor da igreja,
direção à Praia das Barreiras. foi Jesus quem te mandou,
anunciar a toda gente, não custa nada um ataquezinho diretamente a São Pedro. Diz baixinho ao reti-
rar-se.
o evangelho do seu amor”.
— Cambada de idiotas, ficam a cantar para uma estátua de gesso que nada
Eduardo Filgueiras, após retirar a paz de Raquel, tomou à distância, posição pode fazer por eles!
de sentido, cantando do hino somente o seu estribilho. Saul, na companhia dos
funcionários da Cimpesca, vira quando o velho ali chegou, mas ignoraram-no. “São Pedro pastor da igreja,
De súbito, apareceram Rita e Thania rasgando caminho entre a multidão em dire-
Foi Jesus quem te mandou...’
ção ao alto calçadão. Ao passarem pelo gordo Eduardo, sorriram-lhe e dirigiram-
-lhe cumprimentos gaiatos, enquanto agitavam as mãos em adeusinhos. Eduardo
recebeu os cumprimentos como um insulto, contraindo o rosto numa expressão
de ódio, deu um safanão e retirou-se de onde estava. O lance não passou desper-
cebido a Saul e a seus companheiros, que não puderam deixar de rir, embora não
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fosse hora oportuna.

“Tu és Pedro, tu és pedra Enquanto duraram as novenas de São Pedro, durou a beatice dos homens do
mar. Ocuparam-se apenas em aproveitar ao máximo os seus sabores. Ao retira-
da igreja do Senhor,
rem-se da igreja ou da casa do noitário, sentiam-se de alma leve, e, se não davam
os poderes do inferno, uma passadinha no Terra e Mar, para matarem o bicho, como costumavam dizer,
iam direto para casa onde falariam somente de coisas sacrossantas, citando os
nada podem com teu amor”.
milagres de São Pedro, que embora resumidamente divulgados pelo padre João
Saul cochichou ao ouvido de um dos companheiros: José eram por eles exageradamente acrescentados. Não era por acaso ali mesmo
na praia onde citavam os sucessivos milagres de São Francisco em Canindé? Os
— Lamentarei pelo resto da vida por ter deixado de ver a sacanagem que essa de Nossa Senhora do Livramento em Parazinho? Não era dali mesmo da praia
sergipana aprontou com o meu tio. que dezenas de pessoas saíam todos os anos em romaria ao Padre Cícero em
— Eu vi tudo, cara. E te asseguro que foi uma cena muito digna de um bis. Juazeiro do Norte? E chegaram contando que viram com os próprios olhos os
Só foi! cegos verem? Os caxingós pararem de caxingar? Por que então São Pedro não
poderia ter também os seus louvadores? Um milagre a mais ou a menos era sem
“Eu te dou as minhas chaves, importância para um santo que fora em vida amigo íntimo do filho do homem.
chaves que são de poder, Muita coisa aconteceu durante as novenas para dar aos pescadores muitos
dias de comentários. Duas grandes brigas surgiram no Terra e Mar, numa delas,
do poder de ensinar,
registrou-se até derramamento de sangue, além da morte do Eremita das Salinas.
santificar e de reger”. Morte misteriosa e de modo inédito em toda a praia. Não seria a morte do inde-
feso ancião, mais uma arte do Cavalo Marinho Gigante? Teria ele mesmo saído
De longe, Edmundo contempla a grande multidão, e na sua megalomania das águas para bem longe como alguns acreditavam? Ou teria ficado em suas
imagina-a toda formada por seus fiéis eleitores e sente ciúmes de São Pedro. margens a praticar crimes contra velhos indefesos? Muitas e muitas interroga-
“Pedro apóstolo do Senhor, ções tinham eles, somente a poucas delas eles encontravam uma justa resposta.
com Tiago e João, Afora Capitão Pedro, o negro Birata era o mais forte líder na beira da praia. e
100 o mais supersticioso também. Birata passou a liderar os homens desde a última 101
desde que se tez apóstolo,
confusão armada no Terra e Mar, quando ele tomou as dores de Luiz, achando
consagrou seu coração”. o negro que este precisava de algum gesto de desagravo. Não punindo Thania
e sim ao cáften que a instigara a tomar água em vez de vodca, sugando do per-
Já havia insultado muita gente naquela tarde o prefeito municipal, olha em nambucano até o último vintém. Não podia o negro reunir-se com os pescadores,
torno e não avista ninguém a quem possa atacar, resolve ir embora. Mas antes, que não tocasse no assunto, frisando sempre ser o último acontecimento desagra-
dável, mais uma obra do Cavalo Marinho Gigante. Não acreditava que o mons- 28
tro tivesse se expungido para longe, tinha certeza que ele estava ali mesmo na
praia entre eles. Capitão Pedro, porém, não era supersticioso como o restante dos
pescadores, mas desde que chegou àquelas bandas, caiu no erro de predizer as
Eduardo Filgueiras, desde o dia em que falara com Raquel, no encerramento
coisas. Pequenas catástrofes que na proporção, de uma forma ou de outra, iam
da festa de São Pedro, que não mais se aquietara em casa. Não entendia o motivo
acontecendo, mais faziam com que todos os incultos homens do mar acreditas-
do não aparecimento de Justino; culpava-se por ter mandado o recado logo pela
sem nele. A primeira e mais terrível das previsões do Capitão Pedro, tivera início
cunhada. — Idiota como é Raquel, é bem capaz dela ter dado com a língua nos
com êxito total desde o inverno de 64. Por coincidência, exatamente na época em
dentes logo para o Edmundo, que não perdeu tempo em fazê-la calar o bico. —
que os pescadores expulsaram o Cavalo Marinho do mar, com suas rezas fortes,
Pensava Eduardo, em parte acertadamente, pois Raquel, depois de muito pensar,
ele havia previsto logo ao chegar em Camocim que, com o passar dos tempos, o
resolveu procurar ao marido, e não Justino, e conversar sobre o incomodante
canal que liga o Rio da Cruz ao mar seria invadido pela areia da ponta da ilha e
encontro que tivera com Eduardo na noite do dia de São Pedro.
da Praia das Barreiras. Confirmada parcialmente a profecia do velho pescador,
mas os pescadores não sabiam de que lado ficasse. Se ficavam com a lógica pro- A sala de visitas da prefeitura estava repleta de gente, na maioria, pedintes.
fecia do Capitão ou com Raquel raramente entrava ali, a não ser em alguma rara solenidade em que era
indispensável a presença da primeira dama do município. Edmundo, logo que
a superstição de que aquilo era mais uma artimanha do Cavalo Marinho. Mas
lhe foi anunciada a inesperada visita da esposa, despachou a todos os que o cer-
o fato é que a barra está aí para quem quiser ver, só que coberta por uma rasa
cavam e mandou que Raquel entrasse, já exclamando de pente em punho.
camada de água. Navio que é bom pra cruzá-la, nem sinal.
— Sei de antemão que maus ventos a trouxeram, se sente!
Nos constantes serões que costumavam fazer, arrepiavam-se os pescadores ao
ouvir as vaticinações do velho companheiro. Raquel obedeceu e algo dizia ao prefeito que não era mais a mesma a sua
esposa, em seu rosto via-se a mudança nítida, talvez pela decisão que tomara
— Coisas piores estão por vir! — Dizia Capitão Pedro. — Nem eu, nem vocês nessa manhã. Falar sobre Eduardo Filgueiras, para Edmundo, já era uma intrépi-
verão, mas os nossos filhos e netos serão testemunhas de que esta cidade deixará da decisão. Mas não foi só isso que a ex-tímida obediente Raquel resolvera fazer
de existir. — Apontava com o indicador para o outro lado do rio claro de luar — naquela manhã.
Vejam aquelas dunas lá na ilha. Pois bem! Quando aqui cheguei, nenhuma delas
— Edmundo, — disse a mulher retesando o corpo na cadeira. — que tipo de
existia, e agora como veem, elas se aproximam. Essas que ficam do outro lado
segredo existe entre você e o seu irmão Eduardo?
do rio não são de maiores perigo, mas tem as que vêm das bandas do Farol sem
Nome. Essas sim! Essas oferecem perigo, pois são elas que se não houver enérgi- Edmundo empalideceu, mas logo disfarçou e foi sutil na resposta.
cas providências, soterrarão a nossa cidade. E aí, meus amigos, era uma vez uma — Bem, você sabe que desde a morte do meu pai e a do Edson que o meu
cidade. Isso aqui será uma Pompéia. relacionamento com o Eduardo é zero, mas que diabo de dúvida é essa agora,
Arrepiavam-se os pescadores, gostavam de ouvir o velho companheiro falar mulher?
sempre carregando os “rr”. Boquiabertos, eles perguntavam: — Ouça bem o que eu tenho para lhe dizer! Após a procissão de São Pedro,
— E que enérgicas providências são essas, Capitão? antes de ter início a missa, eu fui abordada pelo seu irmão que...

— Ora, meus amigos, impedindo que o vento as retire de onde estão, e para — Aquele cretino sabe que eu não...
isso é necessário que sejam feitas muitas plantações em suas encostas. De salsa, — Um momento, Edmundo. Depois você pode esbravejar o quanto quiser,
sununga, sei lá! Qualquer ramagem que as transformem em morros sólidos. mas agora me ouça! Ele me procurou dizendo que queria apenas mandar um
recado ao Justino.
102 E assim iam os rudes homens do mar vivendo a comprovarem as previsões do 103
Capitão Pedro e a conectá-las às suas crenças. Raquel parou um pouco como que procurando a palavra seguinte, Edmundo
pálido e impaciente, passando a mão pela careca, disse:
— Vamos, Raquel, que recado é esse? Desembucha!
— Pediu-me para dizer ao Justino que o procurasse, que ele queria tratar de
um certo assunto com o nosso filho.
— E daí? Não vejo nada demais nisso. — Mentiu o prefeito. águas, teria ido até lá, afinal de contas, não era de se espantar pelo que já tinha
feito a recatada primeira dama do município.
— Mas eu vejo, e como mostrei a minha preocupação, ele me disse que era um
assunto da família e que eu seria uma das primeiras a saber. Enquanto Raquel espritava-se atrás de saber o que Eduardo tinha para con-
— E por que você não deu o recado? versar com Justino, o padre João José recebia em seu cubículo o segredo que
Eduardo trazia consigo lá longos anos.
— Muito me culpo por isso, mas o fato é que tenho medo desse tal assunto. Sei
lá! Vocês são inimigos e eu temo que boa coisa o Eduardo não tenha para dizer Eduardo Filgueiras, o pai, seus irmãos, enfim, os masculinos da família, com
ao Justino. exceção de Justino, não eram lá muito chegados a padres, nem tampouco a igre-
jas. — As rezas, novenas e missas. — Como dizia o patriarca Leonardo. — É coisa
— Ora, Raquel! — Disse ele fingindo calma. — O Eduardo é inimigo meu, só
das fêmeas, elas fazem por elas e por a gente. E, se fizerem só por elas, danem-se
meu! Ou você pensa que eu não sei que quando ele encontra um de vocês por aí
no céu sem a nossa companhia! — Talvez tenha sido unicamente o estreito laço
se desmancha todo em cortesias? Talvez ele esteja apenas querendo sugar algum
de amizade que ligava Justino ao padre João José que o fizera procurar. Depois
dinheiro do Justino.
de tentar inutilmente conversar com o sobrinho.
— Você sabe perfeitamente que ele não precisa disso, Edmundo, mas seja lá
o que for, logo saberemos, isso eu juro! Vou agora mesmo procurar o Justino e — Senhor Eduardo. — Disse o padre inquieto. — Permita-me perguntar-lhe
contar tudo. — Levantando-se decidida, acrescentou: — E não tente me impedir, se isso que acabo de saber foi uma confissão?
aquela Raquel submissa e obediente morreu. — Não, padre! Segundo me consta, a confissão é uma declaração da própria
Saiu batendo a porta enquanto o velho prefeito, espantado com a sua mudan- culpa ao confessor, e eu não estou confessando culpa minha, já que ela não exis-
ça, ficou a esgaravatar as gavetas da secretária donde, depois de muito mexer, te. Vamos dizer, assim, que é uma participação secreta de um segredo. É, diga-
retirou um fino rolo de papel que passou à desenrola-lo sem pressa e com ar de mos! Uma confidenciazinha!
preocupado. — Dá no mesmo, homem! E muito me admira o senhor ainda ter a insolência
Raquel ao sair da Prefeitura seguiu em direção à praia, era lá o lugar mais de chamar tudo isso que acaba de me contar, de confidenciazinha.
indicado para encontrar Justino. Não conseguindo localizá-lo, dirigiu-se então — Meu caro sacerdote, eu não vim aqui brigar com o senhor! Vim com a alma
para a casa de Ricardina, encontrando-a sozinha no alpendre. cheia de boa vontade somente para pedir a sua ajuda. E se fôssemos falar de cul-
— Como vai, menina? Estou à procura do Justino, você sabe onde posso en- pa, eu diria que fui apenas uma espécie de bode expiatório do meu irmão.
contrá-lo? — Que bode expiatório que nada, homem. Você foi cúmplice, o que vocês
— Não tenho a menor ideia, dona Raquel, aconteceu alguma coisa? fizeram nessa história toda foi pintar o bode. Isso sim! O que quer que eu faça?
— Não, nada. Eu apenas preciso ter uma conversa com ele. Aquele moleque — Apenas um favorzinho que, a meu ver, para um padre não é nada. Tudo
que lhe faz companhia não está em casa? Mande-o procurá-lo! eu já fiz para falar com o Justino, mas não foi possível, mandei até recado pela
Raquel, mas burra como ela é, certamente, em vez de falar com o filho, falou ao
— O Alcindo está próximo ao farol cuidando das ovelhas do meu pai, mas se
marido, e ele a fez calar o bico, por isso eu queria que o senhor contasse tudo o
a senhora quiser eu mesma vou.
que acabou de saber a Justino.
— Deixa pra lá! Muito obrigada! Eu vou dar uma passadinha na Cimpesca, lá
— Essa não, senhor Eduardo! Nessa eu não entro nem a pau e corda! O mais
talvez o Saul me dê notícias do paradeiro dele.
que eu posso fazer pelo senhor é preparar o espírito do Justino e ir depois com ele
— É alguma coisa grave? — Perguntou Ricardina mais uma vez preocupada. até sua casa, onde iniciaremos a colocação dos pontos em seus respectivos “is”. E
104 — Não, fique tranquila. Depois eu ou o Justino contamos tudo a você. Até agora, me deixe sozinho! O senhor me trouxe muito em que pensar. 105
logo! — Muito obrigado, padre! Eu aguardo a visita do senhor. Sabe onde moro,
— Até! não é?

Na empresa de pesca, depois de dar um baita susto em Saul com o seu euforis- —E quem não sabe? Até logo!
mo, Raquel soube que Justino estava nas salinas, e, não fosse a sua aversão pelas E Eduardo saiu da casa do padre, leve como se tivesse deixado a barriga.
29 30

O Terra e Mar, como é de se esperar, perdeu muitos frequentadores desde a Raquel, depois de se agitar a manhã inteira à procura de Justino, teve o des-
noite em que Thania foi desmascarada. Mas foi exatamente o mais revoltado de contentamento de não contar com a sua presença para o almoço. Edmundo tam-
todos eles que os incentivou a se fazerem novamente presentes a partir daque- bém não apareceu ao meio-dia. Teve como companhia para a refeição somente
la noite de início de julho. O bom negro Birata, vingativo e supersticioso, não Saul, que lhe atazanava a paciência com um disparate de perguntas.
via Thania como culpada única pelo que aconteceu, culpava por tudo o cáften
— Mamãe, o porteiro da empresa me disse que quando a senhora chegou lá
Leocádio, que certamente a obrigara a tomar água em vez de vodca para maior
vinha das bandas da praia, vamos! Abra-se comigo e diga logo o que aconteceu!
aumento do seu lucro. Encheu-se o negro de piedade pelo pernambucano, que
de acordo com suas conclusões, destruíra-se dentro do Terra e Mar sob as artima- — Não aconteceu nada! Me deu vontade de ver o Justino, só isso.
nhas do Vinte-Nove-Trinta. Muito esforço custou ao negro para conter-se naque- — E a senhora Raquel acha que o seu filho mais novo é um idiota para engolir
la noite, mas cauteloso como era, resolveu dar tempo ao tempo e esperar para essa? A senhora no dia que vai a primeira vez onde eu trabalho é fazendo uma
fazer justiça a seu modo. Sua revolta aumentou ao saber a que se reduzira o per- zoada danada procurando pelo Justino, e agora quer que eu acredite que queria
nambucano Luiz. Numa tarde, após a sua chegada do mar, o moleque Alcindo apenas ver uma pessoa vista pela última vez há apenas algumas horas atrás? Essa
o esperava com a notícia de que próximo à sua casa encontrava-se um homem
não, mamãe! Eu tenho certeza que a senhora está me escondendo alguma coisa.
quase morto caído sobre a terra frouxa. Ao chegar próximo ao corpo quase sem
vida, Birata sentiu como era fraco por dentro, constatou a fraqueza do seu corpo — Está bem, Saul, eu vou te dizer. Mas calma que não é nada grave.
negro, musculoso e áspero. E foi sem hipocrisia que o bom negro fraquejou na Raquel contou tudo o que a afligia desde o dia de São Pedro, finalizando disse:
frente de Alcindo e muitos outros moleques, e antes que se determinasse a tomar
alguma iniciativa, de seus grandes olhos, tão ásperos quanto ele próprio, se lhe — Mas eu estou rezando para que esteja havendo um mal-entendido. Prouve-
escorregaram grossas lágrimas pelo rosto negro, jamais umedecido por aquele ra Deus que o Eduardo esteja apenas querendo uma aproximação com a gente.
tipo de líquido tão próprio de pessoas boas como ele. Passado o momento de
— Não, mamãe, não está havendo mal-entendido nenhum. Agora eu entendo
compassividade, Birata tomou Luiz em seus braços e o levou para o interior da
o constante aparecimento do tio Eduardo na praia e também porque o seu Ed-
casa, onde o tratou como se este fosse um irmão há muito tempo desaparecido.
mundo não veio almoçar em casa. Nessa história tem areia da grossa!
Luiz logo que saiu do seu desfalecimento, reconheceu o negro Birata e apontando
o dedo numa acusação disse com a voz entrecortada: — Seu pai não tem nada a ver com isso, ele até ficou muito calmo quando
contei o meu encontro com o Eduardo. O fato dele não ter vindo almoçar deve-se
— Eu nunca vou esquecer que foi você quem me impediu de quebrar a cara
a algum problema de última hora.
da Rita lá na feira. Ela bem o merecia.
— Esquece isso agora, rapaz! Tu tá precisando é descansar. — Exatamente, minha ingênua mãe! Ou a senhora não acha isso um pro-
blema de última hora?
Luiz dormiu e Birata saiu à casa do Capitão Pedro a procura de leite, e ao
voltar, não o encontrou em casa. — Julgar agora se é ou não, é impossível, depende muito do que tem o Eduar-
do para dizer ao Justino
Concluiu Birata, sabiamente, que não adiantava procurar Luiz, era muito or-
gulhoso e o seu destino estava traçado. Viveria o resto da vida a vaguear pelas — É isso aí! Não seja tão cândida a ponto de pensar que o tio Eduardo, depois
ruas da cidade. Depois de muito pensar, o negro chegou à conclusão de que seria de tantos anos de rixa, tenha resolvido agora a andar com segredinhos exatamen-
106 melhor deixar o pernambucano seguir o seu destino. Refletiu: — Sina é coisa que te com um dos filhos do maior inimigo dele. 107
ninguém muda. — Em todo caso, se o pernambucano não se recuperasse dessa — Lembre-se que o Eduardo é irmão de seu pai, algum sentimento fraterno
e morresse, o negro já sabia quem deveria pagar pela sua morte. E afirmava isto
pode existir.
a todos na praia.
— Ora, mamãe, aqueles dois lá sabem que tipo de sentimento é esse!
— Saul, eu te proíbo de falar assim do teu pai!
— Tá bom! Não está mais aqui quem falou! Eu vou descansar um pouco e Raquel, preocupada, voltou para casa. Mil pensamentos ruins lhe passavam
depois vou tentar trabalhar, o que acho muito difícil, e se for possível, eu gostaria pela cabeça. Mas, como prometera ao padre, não tomou mais nenhuma decisão e
muito de ficar por fora dessa embrulhada toda. com todos evitou falar sobre o tal encontro que tivera com o cunhado.
A conversa com Saul só serviu para aumentar a curiosidade de Raquel, que Havia pessoas tão preocupadas com o caso quanto Raquel. Era Saul, que re-
não podendo controlar-se durante as longas horas da tarde, foi consultar o atual tornando ao segundo expediente na empresa, não conseguira concentrar-se no
melhor amigo de Justino, o padre João José. trabalho. Estranhava ter Eduardo procurado Raquel em vez de procurar direta-
mente a Justino, no seu entender, o velho a procurou com o intuito de que todos
O jovem padre João, novato, mas inteligente, já esperava pela visita de Ra-
da família viessem a saber do tal encontro, o que na realidade ocorreu. Sentia o
quel. Ao vê-la foi tranquilizando-a dizendo.
moço que fosse lá o que fosse que Eduardo queria conversar com Justino, relacio-
— Calma, dona Raquel, já estou sabendo de tudo! nava-se com Edmundo e que não era assunto de pouca conversa, pois, do contrá-
rio, ele o teria procurado em vez de Raquel, afinal de contas ele também estava
— De tudo o que, padre João? — perguntou espantada a primeira dama.
na procissão. Com a vivacidade típica dos seus ancestrais, Saul conhecia a fundo
— Do recado que o seu cunhado mandou ao Justino pela senhora. alguns casos passados do seu pai, que imaginava o único conhecedor. Com exce-
ção dos anos que Edmundo passara no Rio de Janeiro, quando estudante, o jovem
— E quem lhe falou isso?
sabia tudo ou quase tudo que o velho aprontara, antes de tornar-se estudante e
—O próprio mandante que, inclusive, colocou-me a par de tudo que queria até mesmo depois de casado. Isso sem falar nas vezes que o estudante cansado da
conversar com o Justino. agitação da grande cidade, vinha gozar férias na casa dos pais. Era nesse tempo
que as mocinhas virgens da beira da praia e da cidade também deviam tratar de
— É grave?
segurar com unhas e dentes as suas frágeis castidades, pois aquela que passasse
Ao fazer essa pergunta, Raquel empalideceu e suas mãos tremiam. pelas mãos do fogoso estudante de Direito era tiro e queda. Saul não ignorava
também a existência de incontáveis meios-irmãos espalhados por toda a praia.
— Por favor, dona Raquel, seja qual for a gravidade do problema, a senhora
saberá quando chegar a hora. Eu lhe peço que procure não exceder-se emocional- Sentado atrás de sua secretária, o jovem Saul remoía todo o passado do pai e
mente, pois assim a senhora só vai complicar as coisas. comparava-o a si, e concluía que nem ele, nem Justino puxaram nada do pai e sim
da mãe, a recatada Tereza Raquel Pedreiras Leal.
— Então é grave, se não fosse o senhor não me vinha com advertências. Por
que não me conta?
— Dona Raquel, digamos que a coisa seja grave, mas a senhora vai ter que
convir comigo que se eu contar o segredo do senhor Eduardo, ela vai agravar-se 31
mais ainda, vá para casa e aquiete-se que em poucas horas a senhora saberá de
tudo.
Espantou-se o cáften Leocádio quando viu chegarem os pescadores. A maio-
— Me diga só uma coisa, padre! ria deles, desde o dia que Luiz brigara com Thania, não havia ainda dado as caras
— O que é? e agora as mostravam trancadas.

— É grave? Entraram e sentaram como faziam sempre. De início, comportaram-se como


se estivessem em lugar estranho para terem algum encontro desagradável. Esse
— É! — disse o padre irritado, coçando a cabeça. — Mas, por favor, Dona Ra- comportamento não passou despercebido aos pequeninos olhos do cáften que
108 quel, se o seu intento é ajudar, cale essa boca pelo amor de Deus! Não fale nada os conhecia tão bem. Ao notar a tensão reinante dentro do cabaré, uma brilhante 109
nem para o próprio Justino! Deixe que o barco navegue por minha conta. ideia passou por sua chata cabeça e logo tratou de pô-la em ação. Agilmente,
— Fique tranquilo, padre! Confesso, contudo, que não será fácil. dirigiu-se ao conjunto que executava um arrastado samba e o fez calar. De volta
ao bar, trepou-se no balcão e chamou a atenção de todos que lotavam o cabaré.
— Será fácil sim, basta que a senhora ponha na cabeça que o Justino só deverá Quando notou que todos eles o fitavam, o cáften anunciou a mentira programa-
procurar o seu Eduardo depois de falar comigo. da:
— Bem, meus amigos, é-me constrangedor vê-los tão capiongos nessa casa tão A esse tempo, Luiz ingeria uma dose servida por Birata. O miúdo cáften
alegre. Por isso resolvi anunciar a vocês que hoje é dia do meu aniversário e, para continuava a resmungar palavrões, enquanto o pernambucano concluía a
comemorar o acontecimento, eu faço questão de patrocinar a todos uma rodada introdução do ardente álcool difícil de tragar.
de cachaça dupla.
Após essa operação, Luiz pareceu readquirir parte de suas forças, e dando
A essas palavras do cáften, os pescadores aplaudiram e a cachaça foi servida. um estalo com a língua no beiço seco, levantou-se com certa dificuldade e, segu-
E, logo o seu efeito os estimulava a pedirem uma segunda dose e mais outra e rando-se nas grades da cadeira, forçou um riso já desacostumado e perguntou:
logo aqueles homens com a fadiga acumulada durante um longo dia de pescaria
— Pra que essa raiva toda, seu porco? Estará com medo que eu diga a esses
eram excitados pelo álcool que os punha alegres e zoadentos.
homens o que eu penso?
Reinava novamente a alegria própria de todas as noites. Os homens do con-
— Essa é muito boa! Uma pessoa em suas condições há muito tempo já não
junto, que também ingeriram cachaça, deram mais acelerado ritmo aos seus
tem mais o que pensar. — Disse rindo o cáften Leocádio.
instrumentos, e a festa continuou com a alegria própria de todas as noites. As
mulheres se fizeram acompanhar, poucos homens ficaram naquela noite desa- Todos os que olhavam para Luiz não entendiam a sua repentina lucidez, vi-
companhados. Thania, desde a noite do seu desentendimento com Luiz, que a ram-no chegar ali aos tombos sem conseguir sequer andar sem um apoio, e agora
contragosto se tornara companheira do negro Birata, obrigava-a a tornar quantas apresentava-se como o mais lúcido de todos eles. E foi com a mais espontânea
doses de cachaça ele pedisse por noite. O negro tinha sempre o cuidado de an- das atenções que o ouviram dizer após encará-los um a um:
tes de tragar a sua dose, provar a de Thania para certificar-se que não era água.
— Pois então ouçam-me!
Lá pelas tantas horas da noite, quando todos os homens e algumas mulheres já
haviam bebido muito, apareceu na estreita porta um homem jamais esperado — Eu o proíbo, trapo! — bradou o Vinte-Nove-Trinta. — Ninguém está aqui
ali. Era Luiz de Vasconcelos quem chegava, e não mais podendo com o peso para ouvir palavreado oco de um bêbado sujo.
do corpo, escorava-se no umbral da porta. Curiosos, os primeiros que o viram,
— Espera aí, Vinte-Nove-Trinta! — interviu Birata, levantando-se.
passavam a notícia ao vizinho através de cutucões, e logo todos os que lotavam
o Terra e Mar estavam de frente virada para o sujo visitante. Thania, logo que — Se tu não quer ouvir o que o pernambucano tem a dizer, azar o teu, pois
reconheceu Luiz, tentou livrar-se dos braços de Birata e fugir da grande sala. Tal aqui tá todo mundo querendo ouvir ele falar.
gesto foi logo impedido pelo negro, que a advertiu:
Um burburinho de apoio às palavras de Birata se fez ouvir dentro do salão.
— Tu te aquieta, mulher! Ele não pode mais fazer mal a ninguém e tu vai ficar Nos lábios de Luiz de Vasconcelos, o riso se ampliou, agora sem dificuldades,
aqui enquanto eu vou buscar ele pra cá. E escuta bem o que tô te dizendo! Se tu fixou por segundos o olhar no rosto do cáften, retirando-o em seguida para pas-
sair daqui, eu vou te buscar onde tu te meter. seá-lo pelo vasto salão, indo fixá-lo em Thania e Rita, que logo fugiram daquele
O conjunto, contratado por tempo indeterminado pelo cáften Leocádio, tinha olhar que exprimia dor e revolta.
o costume de parar a sua execução a qualquer sinal de anormalidade que surgis- Passando a mão sobre a densa cabeleira, Luiz temperou a garganta e iniciou
se dentro do salão, o que não era muito difícil de acontecer. E o que Birata falou a sua verborreia:
para Thania a quase ninguém passou despercebido, pois há muito o conjunto
silenciara. Rita, que estava a pôr em prática as suas destrezas amorosas com um — Aqui têm vocês, meus amigos, um homem que com os poucos meses de
outro negro, correu para o lado de Thania. A esse tempo, Birata voltava amparan- vida nesta cidade, descobriu não serem vocês dignos da terra que têm. Não sou
do Luiz, sentando-o numa cadeira à parte separada da mesa. filósofo, mas também não sou doido, sou apenas uma criatura que pensa e que
agora diz pra vocês o que pensa. Sofro também, ou vocês pensam que eu levo
Luiz não emagrecera muito e suas feições continuavam as mesmas, com a
110 essa vida por gostar? Não, meus amigos, eu vivo assim por ter vivido com in- 111
espessa barba a cobrir-lhe o pequeno talho feito por Thania e a dar-lhe maior
tensidade o que vocês estão vivendo hoje, agora. — Fez uma pausa para inge-
aparência de sujeira. Ao vê-lo sentado sem controlar a cabeça sobre o corpo, o
rir mais uma dupla servida por Birata. Depois, retemperando a garganta, conti-
cáften saiu de detrás do balcão e repreendeu Birata.
nuou: — Não se zanguem comigo, mas vocês estão aos poucos se transformando
— Não entendo como você se atreve a introduzir dentro desta casa esse trapo em homens como eu, que me deixei levar e explorar por esse homem que vive de
humano. alugar mulheres. Não sabem elas que com o passar dos tempos se transformarão
em meras carcaças, sem terem ao menos onde caírem na hora derradeira. É isso moço, levantando-se, continuou a atirar impropérios contra o cáften que, indig-
mesmo! Vocês podem achar absurdo, mas essa mesma mulher que durante me- nado praguejou:
ses me tomou até o último tostão, continua juntamente com as outras a fazerem o
— Vai morrer longe daqui, trapo! Onde o teu cheiro de coisa podre não che-
mesmo com vocês. Eu não estou zangado com ela, há muito eu já a perdoei, pois
gue às nossas narinas.
eu sei que nem ela nem as demais fazem isso por querer ou para lucro pessoal,
mas a mando desse homem nojento que as tem como propriedade. Sei que estão
tranquilos com a mulher que tem ao lado, pois essa talvez não tome água em vez
de vodca. Mas se ela não o faz, é que vocês mesmos estão fazendo, tomando-a
32
adicionada à cachaça que bebem. Quando eu disse que vocês são indignos da
terra que têm, eu tive um justo motivo para tal afirmação, vocês são homens que
abraçaram a mais árdua missão que Deus destinou aos seus filhos, levam uma
vida inteira retirando de dentro do mar o sustento para vossas carnes e para as Após um dia exaustivo, Raquel, em companhia de Saul e Edmundo, aguarda-
cames de vossas famílias, e agora dividem todo esse sacrifício com esse homem vam a chegada de Justino até aquela hora sumido. Os três sentiam necessidade de
surgido não se sabe donde para explorá-los, e que mal chega aqui já é recebendo conversar alguma coisa sobre os acontecimentos do dia. Saul e Edmundo não en-
de todos vocês o apoio para tal. Isso é um crime! Vocês não têm o direito de faze- tendiam por que Raquel, que se agitara tanto naquela manhã e no início da tarde,
rem um mal desses consigo mesmo. O que vocês estão fazendo é acumular para a estava agora tão quieta. Edmundo, intranquilo, fingia concentrar-se na leitura do
velhice incontáveis tipos de doenças venéreas e preparando o corpo para abrigar jornal, desviando de quando em vez a vista para o rosto de Raquel, que do sofá
em pouco tempo o chato, que depois de tomar posse de vossos pentelhos, passa- fitava o grande lustre pendurado no alvo forro da luxuosa sala de estar. — O que
rá a povoar os vossos cílios, sobrancelhas e cabelos da cabeça, trazendo enfim a diabo passa pela cabeça dessa mulher? Terá descoberto alguma coisa? — Pensava
psoríase como troféu. o prefeito.

Calou-se, estava cansado, encontrando dificuldade para respirar. Apoiou-se Saul, não mais tranquilo que o pai, tentava inutilmente concentrar-se nas pá-
com as duas mãos nas grades da cadeira e ficou olhando para todos os que o ginas de um Veríssimo, quando Justino cruzou a porta como um furacão em di-
ouviam. Birata estava de boca aberta, impressionado com o que ouvira, não ima- reção a Raquel.
ginava que o pernambucano tivesse a coragem de dizer tudo aquilo que eles — Mamãe, venha comigo, eu preciso lhe falar.
tanto precisavam ouvir, tinha vontade de perguntar alguma coisa só para poder
— Não, Justino! — Respondeu ela exibindo calma para espanto de todos. —
dar algum motivo para Luiz continuar falando. Depois de pensar muito em qual
Esses dois aí estão sabendo de tudo o que eu sei, pode dizer o que quiser.
pergunta fazer, ele apelou para a primeira que lhe veio à mente:
— Eu não estou querendo dizer nada, estou mais é querendo saber o que tem
— Você crê em Deus?
a senhora para me dizer. Eu acabei de sair da casa de Ricardina e ela me disse que
— Claro que sim! Não é por me encontrar num estado tétrico como esse que pela manhã a senhora muito aflita passou por lá à minha procura.
vou negar a sua existência, se eu estou assim, a culpa é minha. Deus não colocou
Ouvindo o que Justino dissera, Edmundo, sem retirar a vista do jornal, disse
ninguém na terra para sofrer, pelo menos nós que aqui estamos, somos os culpa-
fingindo indiferença:
dos se somos sujos, doentes e pobres.
— Pelo que ouço, a nossa Raquel colocou um assunto que diz respeito somen-
A essas últimas palavras, Luiz se retirou em direção à saída do cabaré aos
te à família na boca de toda a praia.
tombos, esvaíra-se novamente a sua lucidez. Chegando à porta, segurou-se em
sua umbreira e virando-se para os homens e mulheres boquiabertos, advertiu: — Me digam de uma vez por todas que assunto que diz respeito somente à
família é esse, que tenha logo que ser eu o depósito das confidências! — Falou
112 — Ouçam mais o que eu tenho para lhes dizer: vocês são pobres e por serem 113
alto Justino espantando Saul que parecia de todo concentrado em seu “Clarissa”.
pobres adoecerão e se manterão pobres por serem doentes. Riu com escárnio
para acrescentar: — E nesse abismo, todos vocês estão metidos, arrastados por — Calma, Justino! — Falou Raquel levantando-se. — É disso que você vai
esse verme Vinte-Nove-Trinta. muito precisar, se sente aí e me ouça!
Sentindo-se alvo dos olhares acusadores, o cáften correu em direção a Luiz Justino sentou-se desabotoando a camisa, enquanto Raquel iniciava mais uma
e, antes que fosse impedido, deu-lhe um forte empurrão atirando-o na rua. O vez a narrar seu encontro com Eduardo. Finalizando, ela disse:
— Depois, eu fui ter com o padre João José, que me tranquilizou dizendo que ra o versátil Saul ao afirmar ser aquela a hora do sono de todas as pessoas que
o Eduardo já o procurara e dissera tudo o que tinha para lhe dizer. não possuem segredinhos do passado; talvez fosse por ser o dono de um baita
segredo dos Filgueiras Leal que o bondoso padre João José estava àquela hora a
— Mamãe, e por que a senhora não deu esse recado no dia seguinte ao seu
ouvir palavras obscenas de bêbados e macumbeiros que pousavam sobre a alta
encontro com o tio Eduardo?
calçada da igreja de São Pedro. Existem, não obstante, as pessoas que não pos-
— É que pelo ar com que Eduardo falou, eu imaginei ser alguma coisa grave. suem segredos e que não dormem naquela hora. Esse caso é o do já conhecido
— Ora, que Diabo mamãe! Será que essa sua demora vai diminuir a gravidade Luiz Carlos de Vasconcelos, que já quase sem vida, vagueia pela beira do mar. No
da coisa? Terra e Mar, após empurrar Luiz para a rua, o cáften foi seguro pelo negro Birata
que o advertiu:
Justino alterou a voz diante da desculpa de Raquel, ela ofendeu-se e se defen-
deu com voz chorosa. — Nunca mais tu faz o que fez agora, filho de uma puta! Porque de hoje em
diante se acontecer alguma coisa de ruim a esse homem, eu te mato.
— Desculpe, mamãe, eu também tenho nervos. E depois desse suspense todo
Dizendo isso o negro empurrou o cáften em direção a uma mesa e saiu cor-
eu só posso é estar com eles à flor da pele. Só vou ter calma quando souber o que
rendo à procura do seu protegido, depois de procurá-lo baldadamente por mais
quer o tio Eduardo.
de uma hora, o negro desistiu e foi para casa enfrentar também a sua insônia. A
— Não vá tomar nenhuma decisão precipitada, o padre João advertiu que lua não aparecera nas primeiras horas daquela noite, as nuvens negras torna-
você só deve procurar seu tio depois de encontrar-se com ele. ram-na baça, enegrecendo-a totalmente depois, Agora quando os galos com seus
— Nesse caso eu vou procurá-lo agora mesmo — Disse o moço levantando-se. cânticos maviosos anunciam o romper do dia, as nuvens tornaram-se esparsas,
desembaciando-a permitindo que lance sobre a terra os seus tímidos raios como
— Não, Justino! — Falou Saul calmamente para não ficar fora da discussão. — se fossem beijá-la, e por sobre o mar, dando-lhe o brilho que encanta os olhos até
A essa hora todas as pessoas que não têm segredinhos do passado devem estar da mais rígida insensibilidade humana.
dormindo, falta pouco para a meia noite. Você já jantou?
Suas cames tremem, seus músculos se contraem, em suas pernas, a partir das
— Nem quero! — Respondeu rispidamente abanando-se com a camisa. coxas, as contorções espasmódicas e dolorosas dos músculos imovem-no; era a
— E quem lhe disse que se trata de um segredinho do passado? Você está câimbra. Seu abdômen é atacado por cólicas intensas, o roncar das tripas em
sabendo de alguma coisa? polvorosa faz-se ouvir. Deitado sobre a mais alta elevação da Praia das Barreiras,
Luiz sofre o seu delirium-tremens. Fortes dores atacam seu corpo, acumulam-se
— Besteira minha, falei por falar! Não sei de nada! em sua cabeça, mas dela não retiram os seus pensamentos lúcidos e coordena-
Edmundo, desistindo de esconder-se atrás do jornal, fechou-o, enquanto le- dos. De papo para o ar ele vê a lua a beijar-lhe o rosto. Ainda sente o cheiro forte
vantava-se dizendo: vindo do mar e escuta o seu barulho, estava furioso o mar naquele início de dia.
Lembrou de Rita, de Thania e da Pensão Uruoca, viu em sua frente a negra e
— Eu não sei que diabo a Raquel tem que envolver a igreja em um assunto proprietária da pensão a sorrir-lhe. Ouviu o cantar dos galos na cidade erma,
que não tem nada de sacrossanto. escutou o forte apito do trem partindo e pensou — Já é quase dia. — Resolve ver
— O senhor tem alguma coisa para nos dizer, seu Edmundo? o mar e com todas as forças ainda existentes, apoia-se nos cotovelos e consegue
avistá-lo apenas por segundos. Depois não mais aguenta e arreia-se para trás
— Claro que não, Saul! Desse assunto besta, eu sei tão bem quanto vocês, ou exclamando baixinho:
menos ainda. E quer saber de uma coisa? Eu estou é peidando para essa lorota
de vocês. — Deus quis assim! O que eu posso fazer?
114 115
Os Filgueiras Leal foram para as suas camas, mas de todos eles, o único que E adormeceu na hora que o trem partiu.
conseguiu conciliar o sono naquela noite foi o obeso Eduardo, que depois de Com o romper do dia, o vento mudou de rumo e o mar serenou como que
esperar inutilmente nas primeiras horas da noite a visita de Justino e João José, fazendo a Luiz a sua última homenagem.
foi para a cama onde o peso excessivo das banhas favoreceu-lhe o mais pesado
dos sonos, como se fosse ele o mais inocente dos filhos de Deus. Não se engana-
33 paterna com pouco mais de vinte anos e desde então tornara-se o mais perfeito
dos boêmios, vindo a morrer alguns anos depois, separado dos seus por centenas
de quilômetros, sem eira nem beira, depois de ter andado por onde bem quis e
após ter possuído boa quantidade de mulheres.
Capitão Pedro, desde que Ricardina tornou-se noiva de Justino, achou por
bem procurar uma pessoa mais indicada para pastorear as suas ovelhas. Sem que Tivera de berço uma educação digna de apreço, tão invejável que com ela
procurasse muito, encontrou o moleque Alcindo, que sem impor nenhuma con- revoltou-se muito cedo, mandando-a às favas juntamente com os que lhe deram.
dição, abraçou com entusiasmo a profissão de pastor. Naquela manhã, apenas Herdou do pai a paixão pelos livros, dando preferência de início, aos de caráter
os primeiros raios do sol haviam surgido, ia o moleque a cantar na direção dos romanesco, e em pouco tempo já que este não lhe faltava, devorou as incontáveis
morros da praia das Barreiras, quando de repente perdeu a voz, em sua frente páginas de clássicos portugueses, prendendo-se mais em Camilo e em Eça. Era,
jazia o corpo de um homem. Refazendo-se do susto, Alcindo riu ao reconhecer portanto, no dizer de Rita, uma caixa ambulante de cachaça e cultura. Botando
Luiz, aproximou-se ainda com certa cisma e o chamou quase a gritar. um pouquinho da segunda para fora somente naquela noite lá no Terra e Mar,
— Acorda, pernambucano safado! Já tem bodega aberta! que sem saber ele, seria esse o motivo suficiente para ganhar a total amizade
dos pescadores e a antipatia do cáften Leocádio. Que, deixando-a bem clara, em-
Como Luiz não acordou depois de muitos gritos, o moleque tornou-se sério e
purrou-o para a rua, mandando-o morrer bem longe onde o seu cheiro de coisa
se afastou um pouco, com uma vara, cutucou as costela de Luiz, não foi preciso
podre não chegasse às suas narinas. Saberia o cáften que a hora da extinção de
muitas cutucadas para que o sagaz moleque descobrisse que Luiz estava morto.
Luiz era chegada? Ou o destino apenas executou uma ordem sua? Seria o cáften
Ao concluir isso, Alcindo assombrado, soltou a vara e esqueceu a existência das
um homem comum? Ou seria um ser sobre-humano? Do incontável número de
ovelhas, saindo em desabalada carreira em direção às casas. Seus gritos ecoaram
seres humanos existidos e existentes sobre a terra, nenhum sequer ainda encon-
por toda a praia.
trou uma definição concreta para o sobrenatural, mas os incultos homens do mar
— O pernambucano está morto! Morreu o pernambucano! a têm em relação ao dono do Terra e Mar, eles que o digam.
Quando o moleque chegou à casa do Capitão Pedro, uma enfieira de outros Dez da manhã e nenhuma providência ainda havia sido tomada em relação
e até mesmo gente grande o seguiram. E logo, uma multidão de homens nus da ao corpo de um homem morto sobre os morros de uma praia deserta. Tudo é
cintura para cima acumulava-se na Praia das Barreiras. agitação, o povo pobre habitante do litoral concentra-se nas Barreiras. Prostitutas
Capitão Pedro, ao receber a notícia, saiu à procura do Negro Birata e juntos ressaqueadas misturam-se ao povo em geral na direção da praia. Thania e Rita,
foram ao local onde decidiram que ninguém tocaria no corpo ainda decúbito de ambas com ares de viúvas desconsoladas, embora com os rostos ainda borrados
Luiz até que a polícia verificasse a causa da morte. de cosméticos, juntam-se às demais.
Dia difícil aquele para a organização de um enterro, principalmente quando Capitão Pedro e Negro Birata, já cansados de tanto baterem na porta do padre
se trata de estranho à cidade e sem ter deixado um tostão sequer. Sabiam os pes- João José, procuravam agora os Filgueiras Leal, que tendo conquistado o sono já
cadores que se resolvessem fazer o enterro de Luiz ali mesmo na praia, os proble- depois que o trem partira, não davam sinais de vida.
mas não seriam de maior gravidade. Poderiam simplesmente transportar o corpo
Foram, enfim, depois de muito baterem, atendidos por uma criada mal hu-
para a ilha e sepultá-lo ao lado do Eremita das Salinas. Mas, não! Os pescadores
morada.
queriam para o pernambucano Luiz, tudo de melhor, um enterro à altura de um
homem culto e corajoso, de um homem que já quase sem vida tivera a coragem — Serão cegos? Não vêm que acima dessas trombas tem uma campainha?
de enfrentá-los dentro de um cabaré e tivera ainda a coragem de dizer-lhes as
— Desculpe, moça, — disse Birata calmamente. — Mas tromba, quem tinha,
verdades que cada um deles dizia diariamente a si mesmo, mas sem a devida
era a finada sua vó!
coragem de expô-las a um companheiro sequer.
116 — O que vocês querem? 117
De Luiz, os pescadores sabiam apenas ser ele um pernambucano e nada mais
que um grande cachaceiro. Na sua última noite de vida, porém, ele revelou-se — Nós precisamos muito falar com o Justino, moça. Disse Capitão Pedro, pro-
um filósofo dentro do Terra e Mar, citando frases difíceis até mesmo de se ouvir. curando ser simpático.
Era Luiz Carlos de Vasconcelos, filho de pais abastados e exigentes. Revelara- — O seu Justino está dormindo e eu não vou acordar ninguém a essa hora
-se desde o início da puberdade, contrário a seus ensinamentos. Fugira da casa nem a pau!
Com o desengano dado pela criada, o negro Birata a afastou de sua frente e mento proclamado em alto e bom tom de suma necessidade para excluir o nome
entrou na grande sala dizendo com a mesma calma. do pernambucano do mundo dos vivos. O que queriam era apenas um simples
— Pois então, se a moça não vai fazer o que a gente tá pedindo, eu mesmo vou documento que autorizasse o coveiro a cavar a sepultura, esta foi a tarefa do
acordar o seu Justino a berros! E olhe que eu berro alto! Capitão Pedro, que fugindo de um encontro com o Prefeito, pediu para Justino
substituí-lo.
Vendo a moça que o negro cumpria a ameaça, resolveu ceder e saiu a resmun-
gar para o quarto de Justino, deixando os dois homens rindo. Já era quase meio-dia quando chegou à casa do negro Birata o jovem Justino
com resultado negativo. Birata e Capitão Pedro vendo-o chegar, correram ao seu
Após darem a notícia a Justino e ao padre, os dois pescadores foram à polícia encontro perguntando em uníssono:
onde, por coincidência, quem os atendeu foi o mesmo sargento que há dias atrás
— Tudo certo?
estivera também a seus chamados próximo às salinas para o mesmo serviço, só
que com caso bem mais estranho, o assassinato do Eremita das Salinas. — Não! — respondeu Justino balançando negativamente a cabeça.
Diante dos pescadores, o sargento virou várias vezes o corpo de Luiz, depois — Como não, rapaz? — Quis saber Capitão Pedro.
encarou Birata e disse como se este fosse o dono exclusivo do finado.
— O meu pai nega-se de permitir que o pernambucano seja sepultado no
— Morte natural! cemitério público.
Rita chorava, Thania não podia esconder o medo que sentia de Luiz, mesmo — Ora que Diabo! E existe outro, por acaso? — indagou Birata irritado.
inofensivo como estava. Com a retirada do policial, os pescadores transportaram — Mas isto está direito, menino? O seu pai pode fazer uma coisa destas?
o corpo sem vida de Luiz para uma rede e o levaram para a casa de Birata. Para
a realização do enterro de Luiz, muita coisa precisava ser feita com urgência, — Não, Capitão! Não é direito nem o meu pai pode fazer isso. Todo argumen-
por isso os homens dividiram-se, recebendo cada um, uma missão a cumprir. to eu usei para convencê-lo disso, mas de nada adiantou. Ele cismou e pronto.
Queriam por força os homens do mar que o enterro de Luiz fosse um enterro Às últimas palavras de Justino, o Negro Birata não mais parecia ouvir, com os
de primeira, e isso tornava-se praticamente impossível. Principalmente por ser olhos fixos num ponto qualquer, o negro parecia lembrar-se de alguma coisa que
o defunto de uma classe inferior. Complicava muito também o dia que Luiz es- acabaria com aquela situação. Com a mão direita fechada, o negro a segurou com
colhera para morrer. Um domingo! Dia em que o tabelião quer muita distância a esquerda e, com decisão, falou para Justino.
do seu cartório, muito embora sendo os burocráticos atestados de óbitos uma
— Seu Justino, me desculpe se vou lhe ofender. O seu pai não presta! Eu estou
coisa supérflua para os desburocratizados homens do mar, não deixava, contu-
dizendo isto porque tenho provas, e vai ser com elas que eu vou fazer o seu pai
do, de ser um problema a mais para o bom andamento do enterro. Mas não era
mudar de ideia. Se vou!
da desenfreada burocracia de um cartório que os pescadores precisavam para
organizarem o enterro, pois para eles, um enterro não se faz com atestados de Saiu o negro com passos firmes em direção ao centro da cidade, deixando o
que o defunto está realmente morto. — O coveiro que o diga!— E era dele que velho pescador e Justino sem entenderem o que ouviram.
os pescadores precisavam no momento, isso somente por exigirem coisa de pri- — Bem, Capitão. — disse Justino. — Eu preciso falar com o padre João.
meira. Bastava uma ordem da pessoa competente e o problema estava sanado.
Queriam os pescadores falar direto ao Prefeito sobre o problema. Capitão Pedro, — Está bem, eu vou ficar torcendo para que o Birata não vá fazer besteiras.
ignorando a ausência do tabelião, tentava debalde convencê-los da necessidade Birata agora acertou com a campainha da luxuosa casa do Prefeito, o que faci-
do atestado de óbito, pois o morto não pertencia à cidade e de documento, en- litou para um mais rápido atendimento.
contraram em seus bolsos apenas a certidão de nascimento. — Temos que ter em
118 Ao ver o negro em sua frente, Edmundo não pôde camuflar o susto que to- 119
mão esse documento, pois só assim teremos a certeza de que estamos certos de
mou.
que esse nome deixará de constar no mundo dos vivos. — Argumentava o velho
pescador de posse da enxovalhada certidão de nascimento. — Você? O que quer aqui?

Não se encontrava na cidade o tabelião, nem os pescadores sentiram sua falta. — Conversar um pouco. — respondeu o negro rindo, para maior perturbação
Capitão Pedro, na sua correção que se danasse depois para adquirir o tal docu- de Edmundo.
— Sinto muito, eu não atendo pedintes em minha casa. — A autorização por escrito para eu fazer o enterro de um homem.
— Eu não vim pedir! — disse o negro tomando uma expressão de ódio. — Eu — Será esse o homem que Justino me falou há pouco?
vim buscar! Ou o seu Prefeito prefere que eu abra o bocão?
— É ele mesmo, o pernambucano.
— Está bem! — disse o Prefeito, baixando o tom da voz. — Pode seguir para a — Disseste bem. O pernambucano! Esse é o principal motivo para que eu diga
Prefeitura que eu vou atendê-lo já. não. Esse homem veio parar aqui sem eira nem beira nem documento sequer. Eu
— Eu lembro ao senhor que o meu tempo é muito pouco. creio que ele tinha vindo das bandas de Fortaleza, se dizendo de Recife. Logo,
não é um munícipe e se não é um munícipe, não pode ter direito a nada da Pre-
— Me espere na Prefeitura, já disse! feitura. Enterrem-no nas dunas ou nos mangues como costumam fazer.
Se dependesse de Justino, desde as primeiras horas do dia teria ido conversar O negro pescador não era de muita conversa quando queria conseguir algo,
com o padre. Mas tendo cochilado pela manhã, teve que levantar-se com o sol diante da lengalenga do Prefeito, ele levantou-se irritado e disse em voz alterada.
no alto. Havia estado com o padre na casa de Birata, mas lá não podiam tocar no — Olha aqui, seu Prefeito, eu vim aqui buscar uma autorização escrita para
assunto, e Justino teve a impressão de que o padre o evitava. Agora ao vê-lo, tirou fazer o enterro do homem e se o senhor não me der, eu vou agora mesmo na po-
essa conclusão. lícia contar o que vi o senhor fazendo naquela noite lá nas salinas.
— Justino, — disse o padre — você é a última pessoa que eu queria ver hoje. Impassível, o velho Prefeito retirou de uma das gavetas uma pequena pistola
Isso por saber qual o motivo que o fez vir até aqui e eu não estou dispondo do e a apontou em direção ao rosto do negro, que sem mostrar nem medo nem sur-
tempo necessário para conversar com você. presa, sentou-se lentamente perguntando:
— O que tem o senhor para fazer no resto do dia, padre? — Foi com essa bichinha que o seu Prefeito matou o cachorro do Eremita?

— Ora, que pergunta, cara! Eu sou um padre e hoje é um domingo, você es- — Cala essa boca ou eu te mato agora!
queceu isso? Eu tenho duas missas para celebrar, e como se não bastasse, ainda — Não tenho medo, não! — falou Birata tranquilo. — Tá todo mundo saben-
me aparece a encomendação de um corpo para fazer. do que eu vim falar com o seu Prefeito.
— Será que não dá para o senhor entender a minha ansiedade? Edmundo, vendo que não intimidava o negro, resolveu substituir a arma pelo
pente. Fingindo-se de calmo, perguntou:
— Dá sim, Justino! Eu a entendo bem melhor do que você possa imaginar,
agora eu não posso é deixar de lado os meus mais sérios compromissos para — Está bem, pescador. O que você ainda quer além da canoa que já lhe dei
conversar com você. É isso aí! Conversar! para calar a boca?

Era evidente o mau humor que tomava conta do padre e Justino não entendia — Só quero mesmo fazer o enterro do homem.
o seu motivo, ignorava que o padre também passara a noite em claro. Ignorava — Pois bem, pescador, pode fazer o enterro, agora sem a minha permissão
também que a segunda encomendação de um defunto incomodava profunda- escrita. Pode enterrá-lo onde bem quiser, mas sem um papel meu autorizando.
mente o novato João José. — Não tô entendendo nada, Prefeito.
— Do que lhe contou o meu tio, o senhor não pode me adiantar nada? — Veja bem, pescador. Você, juntamente com seus companheiros, fará o en-
— É melhor que não, Justino. Esteja aqui ao anoitecer que eu vou com você lá terro do homem, farão tudo, até mesmo a cova será feita por vocês, em qualquer
canto do cemitério. Só que tudo isso deverá ser feito como se eu de nada soubes-
nesse seu tio.
se. Posso lhe garantir que ninguém intervirá para impedir.
120 — Combinado, padre! Até as seis, então. 121
— O senhor tá querendo dizer que o enterro deve ser feito como se fosse na
Edmundo abriu a porta do seu gabinete e entrou chamando Birata. Já senta- marra?
dos, os dois homens se encaravam sem pestanejarem. Resolvendo dar início ao — Exatamente, pescador. Na marra!
diálogo, o Prefeito falou, já procurando o pente.
— Tá bem, seu Prefeito. — disse o negro, levantando-se. — O enterro será
— Bem, pescador! O que é desta vez? feito assim do jeito que o senhor tá dizendo. Agora, se aparecer alguém para
impedir, hoje mesmo a cidade inteira vai ficar sabendo que o senhor matou o sair do quarto fechando-o por fora e foi direto ao pequeno bar de onde retirou
Eremita das Salinas. uma garrafa de uísque e preparou duas doses e retornou ao quarto.
Quando Birata cruzou a estreita porta do gabinete teve uma surpresa nunca Justino tomou o líquido alcoólico e logo pôde falar, já que os soluços foram
imaginada por ele, nem tampouco pelo Prefeito. Justino após sair da casa do interrompidos.
padre, em vez de ir se juntar com os pescadores, resolveu ir ver de perto o que
— O nosso pai, Saul! Ele é um bandido! Foi ele quem matou o Eremita das
iria fazer Birata para que o seu pai mudasse de ideia. E o que o moço ouviu dei-
Salinas.
xou-o sem ação colado à parede. Sem permitir que Edmundo notasse a presença
do filho no corredor, o negro refez-se logo do susto e o arrastou dali antes que o — Justino, você ficou maluco! Quem falou isso?
Prefeito resolvesse parar de coçar a careca é saísse do gabinete.
— Ele mesmo, eu ouvi toda a conversa dele com o pescador que presenciou
Já na rua, o negro perguntou sem encarar Justino. o crime.
— Você ouviu toda a nossa conversa? Após narrar para Saul o que sabia, Justino teve outra crise de choro, conta-
— Apenas o suficiente para saber que o meu pai matou o Eremita das Salinas, giando a Saul que, abraçando-se a ele, expeliram juntos copiosas lágrimas, que
e que você viu tudo, mas vendeu o seu silêncio por uma miserável canoa. por sua abundância, ensoparam-lhes os ombros direitos.

— E agora o que o senhor vai fazer? Os suspiros abafados e cúmplices, as lágrimas jorradas, os soluços abafados
a intervalos para não chamar a atenção dos que reuniam-se por fora das paredes
— Pensar, pensar, pensar muito! Deus do céu! O que ainda falta para o meu do quarto, comprovaram a união de Saul e Justino. Passado aquele momento de
pai aprontar? desespero, os dois filhos do Prefeito silenciaram e ficaram a olharem-se como
— O senhor não ficou com raiva de mim, ficou? duas estátuas.

— Birata, eu sou filho de um criminoso, por isso eu não sei se devo ficar zan- Passados seculares minutos, o silêncio do quarto foi quebrado por gargalha-
gado ou agradecido com você, já que você o escondeu. das do velho Prefeito que entrara em casa, em apreço à visita de suas correli-
gionárias e amigas de Raquel. Ao ouvirem as estridentes gargalhadas do pai, os
Dizendo isso, Justino separou-se do pescador e dirigiu-se para casa, deixando
dois homens agitaram-se no quarto calorento, mas de lá não saíram. Não sentiam
que o negro pensativo seguisse o seu caminho para a praia.
coragem de encarar o homem que tinham como pai.
Ao chegar em casa, Justino teve de esconder o seu desespero para Raquel, que
na grande sala, também escondia a sua preocupação para um grupo de amigas
em visita. Após cumprimentá-las a custo, ele dirigiu-se ao quarto de Saul, que de
lá saíra apenas para o almoço, voltando em seguida para a conclusão da leitura 34
do seu “Clarissa”.
Mal abriu a porta, Saul assustou-se ao ver o irmão — que, pálido como o
Dia de completa agitação na praia. Para quem de nada sabia e de longe assis-
gengibre, atirou-se-lhe nos braços a chorar, soluçando alto. Passado o primeiro
momento de transe, Saul fez o irmão sentar na cama e teve o cuidado de fechar a tia o movimento do grupo de gente em frente à casa de Birata, era difícil definir o
porta, perguntando em seguida: que ali estava acontecendo; mais parecia o início de uma manifestação de agravo
ou desagravo a alguém, em vez de um enterro.
— Justino, que diabo aconteceu, cara?
122 Com tábuas de cedro e lascas de mangue, os pescadores concluíam mesmo em 123
Justino era impedido de falar pelas lágrimas que jorravam, dizia apenas algu- frente à casa de Birata, os seus trabalhos de carpintaria. Pequenas tachas uniam o
mas palavras soltas que davam a Saul, a impressão de que o irmão enlouquecera. pano preto ao caixão que serviria de eterna morada ao corpo de Luiz. Sobre uma
Debruçado sobre a cama, com os cabelos assanhados, Justino soluçava em tábua estreita, o corpo jazia indiferente a tudo. Sem a repugnante sujeira dos últi-
desespero. Saul, que nunca vira um quadro semelhante, agitava-se dentro do mos dias, ele não parecia o mesmo. Deram-lhe banho os pescadores, fizeram-lhe
quarto sem saber o que fazer, depois de alguns minutos de indecisão, resolveu a barba ruiva, cortaram e descamaram-lhe as unhas, vestiram-no em um roupão
folgado e de cor marrom e de uma peça só, não lhe deram calçados, mas Rita lhe Seriam quatro horas da tarde, quando o enterro chegou ao cemitério. Depois
presenteou meias novas e limpas. Pronto o caixão, Capitão Pedro levantou-se de tentar impor inúteis resistências, o coveiro resolveu retirar do portão o gran-
juntando as últimas ferramentas. de cadeado que o travava. Birata, primeiro que todos, entrou no campo santo e
correu a vista procurando o melhor lugar para sepultar o seu protegido, indo
— Tenham pressa que já são horas! Muito terão ainda que fazer no cemitério.
encontrá-lo bem no centro, ao lado da capela, lugar de preferência dos defuntos
— O senhor não vai, Capitão? — quis saber Birata. mais abastados. O pedaço de chão ainda vazio era cercado por altos e luxuosos
túmulos. Deixando o caixão sobre a calçada da capela, os homens serviram-se de
— Não! Eu tenho pavor a enterros, além disso, vocês não mais precisam de
alguns tragos de cachaça, sendo logo imitados por algumas mulheres que, após
mim, já vai gente demais.
esquentarem o estômago vazio, sentaram-se macambúzias sobre as lajes de már-
Com rapidez, o corpo de Luiz foi transferido para o caixão e, sem nenhum gri- more dos ricos túmulos. Os homens lançaram no solo seco as suas primeiras pi-
to histérico, o féretro foi levado para a igreja de São Pedro, onde era aguardado caretadas, e já era quase noite quando deram o trabalho por concluído. Cavaram
pelo nervoso padre João. um buraco não de sete palmos, como é o costume, mas de dez, para que se um
dia surgisse o proprietário do terreno. — O que é evidente. — Ficaria enterrado
Três horas da tarde, padre João José, não acostumado de todo ainda aos
sobre Luiz, separados pelos três palmos de sobra.
costumes dos homens do mar, espantou-se ao vê-los invadir a igreja, e antes de
cobrir-se com os negros paramentos adequados para a cerimônia, correu os olhos Após a conclusão do de mais difícil, os homens pararam para em conjunto
a todos os que lotavam a igreja. tomarem mais uma boa parte da cachaça restante. Thania, sentada sobre a laje de
um túmulo, chorava apoiada no ombro de Rita. Por que, não sabia o negro Birata,
Mulheres com cara de ressaca e aspecto desnutrido vestiam-se profanamente que tomando de uma garrafa, levou-a para Thania dizendo:
e empunhavam coroas de flores silvestres. Homens expressando o mesmo as-
pecto das mulheres, em vez de flores, empunhavam pás, Picaretas, alavancas e — Toma, mulher! É dessa bichinha que tu tá precisando, enquanto tu podia
garrafas de cachaça. tomar dela, ficou tomando só água dizendo que era lá aquela bebida de gente rica
só para enrolar o pernambucano.
Não teve o assustado padre, naquele dia, coragem para fazer um sermão, que-
ria logo ver-se livre daquela desagradável obrigação. Contentou-se apenas em Thania prontamente recebeu a garrafa e sorveu dois grandes goles da aguar-
pronunciar algumas palavras em latim, salpicando gotas de água benta sobre o dente, passando-a a Rita, que também deu a sua virada. Depois, limpando a boca
caixão, onde poucas caíram, devido aos muitos braços que sobre ele se estende- com o reverso da mão, Thania continuou a chorar baixinho.
ram para serem molhados pela sagrada água, que os pescadores e as mulheres As palavras do negro Birata arrancaram gargalhada dos pescadores, quando
levaram em seguida ao rosto em sinal de contritos “Glória ao Pai”. silenciaram, uma voz de moleque gritou:
Finda a cerimônia, os homens ergueram o caixão e se retiraram da igreja. O — Tu tá é beba, égua!
padre chamou a si o negro Birata, que se fazia de comandante, e perguntou:
Era o moleque Alcindo sentado à beira do túmulo vazio, arrancando novas
— Me diga, para que vocês levam todas essas ferramentas? gargalhadas.
— Para cavar a sepultura do homem, padre João, pois o prefeito não deu nem Após ingerir toda a cachaça que levaram, os homens já totalmente embria-
coveiro. Nós vamos cavar um buraco bem grande que é pra ver se ele aparecer gados, transportaram o caixão com o pernambucano para a cova; quando iam
por lá abusando a gente jogar ele dentro também. introduzi-lo, um pescador perguntou como se já fosse acostumado àquele tipo
de coisa.
Disse e saiu correndo atrás dos demais, deixando o padre preocupado. Não
se sentira bem o padre diante do corpo que encomendara. Pela manhã, não o vira — Não vai ter discurso?
124 quando esteve na casa de Birata, mas haviam lhe contado como o homem viera 125
— Vai sim! — Falou Birata, resolvendo na hora.
a morrer, e dele, o padre tinha uma imagem totalmente diferente da que vira
agora. Imaginava-o com um péssimo aspecto, magro e desnutrido. No entanto, o Os homens bêbados assentaram o caixão sobre a areia ainda morna e, compe-
moço não era franzino e tinha ótima figura. E o que é pior, parecia vivo a fitá-lo netrados, ouviram a verborragia de Birata.
pedindo ajuda. Aquele, decididamente, não era um bom dia para o bom padre — “Meus amigos, esse homem não morreu de morte morrida, como disse
João José. aquele safado da polícia hoje de manhã, ele morreu foi por causa da praga do
Vinte-Nove-Trinta, aquele peste nunca me enganou, nunca me saiu da cabeça Uma força estranha, cuja capacidade não tenho para descrevê-la, apoderou-se
que ele é o Cavalo Marinho Gigante encarnado em gente. Foi só ele dizer para o de Rita naquele momento, dizendo que Thania não mentia e nem se enganara
pernambucano ir morrer bem longe e o homem saiu obedecendo sem querer e foi com o que afirmava. Já estava o magote de pescadores e mulheres em frente ao
morrer na Praia das Barreiras. Esse pernambucano era homem bom, isso ele deu Tiro de Guerra quando Rita, num ímpeto de desespero soltou com toda a força
prova ontem à noite, quando disse aquelas coisas e esculhambou com o safado existente em seu peito um estridente grito de dor.
do Vinte-Nove-Trinta. Foi esse maldito Vinte-Nove-Trinta quem matou ele com
— Catalepsia!
uma praga, tanto prova que ele tem culpa no cartório é que ele nem deu as caras
hoje. Era pra ele tá aqui, ele que diz que é amigo da gente, por isso, meus amigos, E seu corpo bonito caiu para trás no duro calçamento da rua Independência.
em homenagem ao pernambucano ninguém vai hoje ao Terra e Mar e amanhã, Aos incultos homens do mar, o grito de Rita nada disse. Nunca tinham ouvido
quando a gente for, eu vou dar uma lição naquele filho da puta...” palavra mais estranha. Estava louca, decerto, a sergipana.
Birata foi interrompido por um grito que surgiu entre os pescadores.
— Foi o Vinte-Nove-Trinta quem matou o Eremita das Salinas!
A essa afirmação, as palavras que o negro ainda tinha para dizer esvaíram-se. 35
Ele sabia que aquela afirmativa era falsa, mas para que desmenti-la ou asseve-
rá-la? Primeiro, foi ele quem sempre acusou o Cavalo Marinho de tudo quanto
acontecia de ruim por toda a praia, segundo, era ele quem agora afirmava ser o Quase noite, Capitão Pedro sentado no alpendre, toma um café servido por
Vinte-Nova-Trinta o próprio Cavalo Marinho. Sem jeito, o negro agitou as mãos Ricardina que sentada à sua frente observa-o. O velho não podia esconder a sua
procurando alguma coisa para dizer, não a encontrando disse apenas. preocupação com os homens que foram para o enterro, a noite já caíra sobre a
— Adeus meu amigo Luiz! Você nunca vai ser esquecido em toda a praia. É só cidade e ninguém ainda aparecera na praia. — Terá o Edmundo se metido nessa
isso que eu tenho para dizer. história? — Perguntava-se mentalmente o velho pescador quando chegou Alzira
a mando do padre João José.
O álcool, que tem a eficácia de tornar o homem versátil e alegre, torna-o tam-
bém macambúzio e chorão, e foi chorando que alguns homens e todas as mulhe- — Boa noite, Capitão! — Disse a negra parando em frente. — Vim aqui a
res se despediram de Luiz, com a exceção de Rita, que abandonou o cemitério pedido do padre, ele disse que precisa ter uma conversa com o senhor. Pede que
logo após as palavras de Birata. vá logo.

O caixão foi aberto pela última vez, os pescadores fitam o corpo de Luiz e co- — Ainda mais essa agora! O que terá o padre para me dizer?
mentam que em nada mudou. Quando iam fechando o caixão, Thania soltou um — Eu não sei, Capitão. Até logo! Disse a negra já fora do alpendre.
grito caindo para trás, sendo amparada a tempo por companheiras. As mulheres
socorriam Thania com sua síncope enquanto a terra era jogada sobre Luiz. Vol- Costumavam os pescadores receberem o frescor do vento, nus da cintura para
tando a si, Thania foi conduzida para fora do cemitério. Os homens também já se cima, e assim, encontrava-se o velho Pedro, que dirigindo-se para o interior da
retiravam com suas ferramentas. A noite havia descido totalmente sobre a cidade casa para pôr a camisa, falou em voz alta advertindo Ricardina.
e no cemitério ficava o Luiz Carlos de Vasconcelos, o Luiz com “Z”, o boêmio, o — Você trave essas portas, menina! A essa hora anda tudo quanto é pescador
pernambucano, numa cova funda demais de um cemitério público. cheio de cachaça.
Reuniram-se novamente na Rua da Independência todos os que haviam esta- — Não se preocupe, papai, eu me cuido!
do há pouco no cemitério, e foi já próximo ao Tiro de Guerra que acompanharam
126 Rita, que sendo macaca velha em tomar cachaça, se mantinha lúcida. Thania, ao Disse a moça para o velho que já saia para a casa do padre. 127
ver Rita, correu ao seu encontro e segurando-a pelo braço, disse para que todos Justino e Saul passaram a tarde inteira trancados a ouvir as gaitadas do pai na
a ouvissem. sala de visitas. Somente ao anoitecer, depois que as amigas de Raquel se despedi-
— Rita, eu desmaiei... Mas não foi de beba nem de fraca não. Foi por causa ram, foi que o velho abandonou a sala, permitindo assim, aos filhos que não que-
dele... Ele tava olhando pra mim, ele se buliu, Rita... Eu juro! Ele tava vivo... Eles riam vê-lo, saírem do quarto. Saul sentia necessidade de contar para a mãe tudo
enterrarem o nosso Luiz vivo... Eu juro, eu juro! que soubera do pai, pois sabia que mais cedo ou mais tarde ela viria a saber de
tudo e de modo mais brusco ainda. Gente demais já estava sabendo. Ele, Justino — Vamos deixar isso pra lá, pois eu creio que não foi para falar de Edmundo
e um pescador, um pescador que a qualquer hora sob o efeito de cachaça abriria que nos reunimos aqui. - Disse calmamente o velho Pedro passeando a mão
a boca para toda a praia, e aí o escândalo com o nome do pai estaria formado. direita pela alva e grande barba.
— Aconteça o que acontecer, Justino. — Disse Saul saindo do quarto. — Mas — Claro que não, Capitão! - Disse o padre levantando-se. – Eu os chamei aqui
essa noite o seu Edmundo vai nos explicar por que motivo matou aquele homem. para conversarmos sobre um assunto bem mais sério do que esse. Trata-se do
verdadeiro pai de Ricardina.
— Não conte comigo, Saul! — Disse o outro. — Eu vou agora mesmo me en-
contrar com o padre João, para com ele irmos à casa do tio Eduardo e creio que — O quê? Perguntaram os dois homens levantando-se ao mesmo tempo.
boa coisa eles não tenham para me dizer. — Sentem-se e me ouçam! Disse o padre João fazendo uma pausa. Capitão
— Será que é alguma coisa relacionada com a morte do Eremita? Pedro, é necessário que de início eu diga ao senhor que o Justino, sentindo-se
carente de um apoio moral, colocou-me aos ombros o segredo a ele revelado pelo
— Sinceramente, Saul, eu queria mesmo que fosse isso, pelo menos se esclare-
senhor.
cia logo tudo. Eu tenho medo é que seja outra embrulhada.
— Eu já notei, padre, mas não faz mal, eu mesmo ia fazer isso mais cedo ou
— Eu posso ir junto?
mais tarde. Pode continuar!
— Nem a pau, cara! Você deve ficar com a nossa mãe, quando eu chegar, con-
Enquanto Justino e Pedro permaneciam sentados, o padre circulava pela mi-
to tudo, seja lá o que for.
núscula sala.
— Está bem, Justino. Te cuida!
— Eu vou tentar ser muito claro, evitando os rodeios...
Aquele era decididamente o dia das surpresas para os Filgueiras Leal, e era
— Acho bom! — Cortou o velho pescador nervoso.
Justino quem as primeiro recebia. Ao chegar à casa do o padre, espantou-se o
moço ao vê-lo conversar com o Capitão Pedro. Vendo Justino parar à porta, o — Como eu disse, o Justino contou-me tudo...
padre levantou-se dizendo: — Disso eu já sei! — Cortou novamente o pescador.
— Entra, Justino! Falávamos de ti. — Capitão Pedro, quer fazer o favor de me deixar falar? Se o senhor continuar
Os dois homens notaram alguma mudança no filho do prefeito, mas fingiram me interrompendo em tudo que eu vou dizer, nós vamos passar a noite aqui
nada notar. Estava pálido e abatido, eles que sempre o viam rindo, notaram logo discutindo e não vai sair nada, e eu lhe digo ainda que estou tenso, com sono e
que estava muito triste e não apreensivo como era de se esperar. Ao entrar, o ra- muito cansado.
paz não demonstrou surpresa que sentira ao ver ali o velho pescador. — Me desculpe!
— Olá, Capitão! O senhor não foi ao enterro? — Não sabíamos nós que a revelação de Justino era para mim de dupla neces-
— Não, e é por não ter ido que estou muito preocupado. Até há meia hora sidade, pois somente assim eu estaria preparado para receber a visita do dono do
atrás, quando saí de casa, ninguém ainda havia aparecido por lá. segredo, ou seja, do senhor Eduardo Filgueiras.

— Não vejo motivo para preocupação, Capitão. O meu pai permitiu que o en- Novo susto para os dois homens. Justino, muito pálido, retorceu-se na cadeira
terro se realizasse, mas exigiu do Birata que fingisse o contrário, enterrando Luiz e cobriu o rosto com as mãos enquanto Capitão Pedro levantou-se com os punhos
onde bem quisesse, até mesmo em terrenos já há muito reservados. estendidos exclamando.

— Eu sabia! Eu sentia aqui dentro que o teu pai tinha se metido nessa. — Afir- — Aquele canalha!
mou o velho pescador. O padre não sabia o que fazer diante daquela situação. Andava de um lado
128 129
— Mas isso me parece coisa de criança, meu Deus. Disse o padre.— Seria mais para o outro da pequena sala, sabia que mais comedido que fosse com suas pala-
lógico seu pai ter deixado que o enterro fosse legal, Justino O que será que ele vras, arrancaria dos dois reações daquele tipo. Passado o momento de surpresa,
está pretendendo? o padre disse.

— Não sei, padre, nunca se sabe o que passa pela cabeça do meu pai, isso deve — É bom que vocês se acalmem, o pai de Ricardina está morto, mas eu não
ser apenas mais uma sujeira política que ele está aprontando. vou mais me adiantar nesse assunto. Tem uma pessoa que a essa hora nos espera
para contar toda a história, essa pessoa é o senhor Eduardo, o tio do nosso amigo — Isso é o que eles dizem, eu não sei de nada.
Justino. Eu vou lá com vocês e só faço isso por serem vocês quem são.
Ia o cáften dizer alguma coisa quando novo alarido se fez ouvir bem mais
próximo.
— São eles! — Gritou o Vinte-Nove-Trinta, esfregando as mãos freneticamen-
36 te ao entrar no cabaré. — São eles que retornam, eu sabia que eles não faltariam,
estão muito bem acostumados! — Dirigindo-se aos seus auxiliares, ordenou: —
Vamos! Aos seus postos! E vocês idiotas do conjunto, por quem estão esperando?
Sabia o cáften do Terra e Mar que sempre fora visto com maus olhos pelos Subam já e toquem alguma coisa!
frequentadores do cabaré. E olhos mais atravessados ainda foram postos nele Após dar as suas ordens, o cáften sentou-se atrás do balcão como se não es-
desde o dia em que Thania se desentendeu com o já excluído Luiz de Vasconce- perasse ninguém.
los. Depois de refletir um dia inteiro, o cáften concluiu que as coisas piorariam
para ele enquanto os pescadores se lembrassem da morte de Luiz. Mas como Tudo vazio, nunca o cabaré estivera naquela situação. Quase nove da noite
homem hábil que era, resolveu que de forma alguma abandonaria o seu posto, e nenhum pescador ocupava nenhuma cadeira do Terra e Mar, apenas aos pés
ou seja, a direção do Terra e Mar. Vendo Leocádio, ao anoitecer, que não pintava das paredes, algumas mulheres aguardavam a chegada de algum homem que as
ninguém no cabaré, valeu-se da presteza de alguns moleques e os mandou cha- convidasse para sentar, se é que eles chegariam naquela noite.
mar os componentes do conjunto e os garçons. E logo, com um pequeno atraso,
porém dispostos, os funcionários do Terra e Mar se fizeram presentes.
— Mas é que a gente pensou que hoje não fosse abrir. — Desculpou-se um 37
deles.
— E por que não? — Quis saber o cáften aborrecido.
Vendo os pescadores que o local onde Rita caíra exigia silêncio devido ao
— Por causa da morte do pernambucano. quartel, trataram logo de retirá-la do solo e seguiram para a praia. Chegando
— Ora que diabo! Agora pronto! Se toda vez que morrer um bêbado sujo nes- ao Balneário Sport Club os pescadores deitaram-na sobre a calçada e logo com a
ta cidade eu tiver que fechar o cabaré... perícia que tinham em darem tapas, Rita recobrou os sentidos e ergueu-se excla-
mando:
Parou repentinamente de falar e dirigiu-se à porta de saída para melhor veri-
ficar o local exato da gritaria que fazia-se ouvir lá para as bandas da Cimpesca. — O Luiz está vivo! A Thania não mentiu não. Ele teve só um ataque.
Já na calçada, o cáften e o garçom constataram que apenas o silêncio reinava na Alguns pescadores se olharam espantados com aquela insistência das duas
praia. Retomando o fio da meada, o garçom disse: mulheres, primeiro uma desmaiou no cemitério e quando recobrou os sentidos
— Seu Leocádio, eu ouvi dizer que os pescadores estão zangados com o se- foi dizendo que Luiz estava vivo, a outra, parcialmente lúcida, teve também o seu
nhor por ter enxotado daqui o pernambucano. chilique em plena rua, arriando o corpo sobre o rígido paralelepípedo. Depois
que recobrou os sentidos, afirmara convictamente que o homem estava vivo e
— Também, quem mandou aquele peste me insultar dentro da minha casa?
isso tudo era terrível demais para ser verdade. Eles estavam bêbados e tinham
Duvido como para isso ninguém prestou atenção.
duas opções a fazer, uma delas seria voltar ao cemitério e desenterrar o pernam-
— Não é nem tanto por isso que eles estão zangados, a raiva deles é por ter o bucano para colocar as coisas a limpo, a outra era dar continuidade às suas bebe-
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senhor mandado o homem ir morrer longe daqui e deu certo. deiras, pois um daqueles homens, quando estava bêbado, o seu instinto só pedia
uma coisa, que ele bebesse mais e mais, e foi à solicitação do instinto que eles
— Essa é boa! Eu não sou nenhum Deus.
resolveram atender. O Negro Birata, que era o mais indeciso de todos, resolveu
— Mas é um Diabo! pôr um fim a tudo dizendo para Rita:
— O quê?
— Tu tá é beba, mulher! — Repetindo a frase de Alcindo substituindo o “égua” um pai como o Edmundo e um tio como eu. Edson namorou a uma boa quanti-
por um delicado “mulher”. dade das mulheres desta terra.
É. — disse ela. — Eu acho que vocês têm razão. Vamos ao Terra e Mar? — Tio Eduardo, por favor, eu acho que tudo isso que o senhor está falando
não tem nada a ver com o que o senhor pretende nos revelar. Não daria para ser
Todos concordaram com Rita aos gritos. Thania já não tinha mais segurança
mais claro?
sobre o que vira no cemitério.
— Engana-se, meu caro. Esses detalhes são de suma importância na minha
— Espera aí, pessoal! — Gritou Birata subindo na alta calçada para que todos
narração, e se você continuar me interrompendo, aí sim, mais demorarei a dizer-
o vissem. — Ainda há pouco a gente combinou que não ia hoje ao Terra e Mar,
-lhe o principal. Como eu ia dizendo, o Edson namorou muitas mulheres desta
mas como a gente não tem outro lugar para ir, vamos pra lá mesmo e lá a gente
terra. Não é de hoje que esta cidade recebe com grande frequência, gente de ou-
vai pedir o que comer e o que beber, e a despesa vocês deixem que quando a
tras terras, umas vêm para ficar, outros vêm a passeio, aí gostam do lugar, resol-
gente for sair eu me ajeito com o Vinte-Nove-Trinta.
vem demorar um pouco e terminam ficando. Não foi todavia nenhum desses
Nova gritaria se fez ouvir por toda a praia. itens que aconteceu com uma das muitas namoradas do Edson, ela veio aqui a
trabalho. Pertencia a pobre mulher a uma companhia de teatro. Eu mesmo não
a conheci, mas pelo que pude ver em sua filha há poucos dias na novena de São
Pedro, eu concluí que ela deveria ser uma mulher de muita beleza.
38
O velho Eduardo falava como se estivesse vendo apenas Justino. O Capitão
Pedro ouvia a narrativa petrificado. Padre João, com sua pouca idade, tragava pa-
lavra por palavra com os olhos fitos em Eduardo, como que a perguntar-se o que
Seriam oito da noite quando os três homens chegaram à casa que fora do pa- ainda lhe faltava para ver, principalmente naqueles poucos meses de sacerdócio.
triarca dos Filgueiras Leal, agora ocupada apenas por Eduardo e uma negra sua
governanta, que uma vez por outra lhe servia de amante também. Conversa não — Como já lhes disse — continuou o velho — a mãe de Ricardina veio aqui
digna de muito crédito, talvez apenas mera fofoca dos olhos de secar pimenteira a trabalho, coisa de dia apenas, a sua demora entre nós. Mas logo que o Edson
que empestam a cidade. a viu, tratou de conquistá-la, o que, como sempre, conseguiu. A pedido dele, a
moça desligou-se rápido da tal companhia e passou a morar numa pensão que
Vendo os três homens invadirem-lhe a sala, o velho Eduardo espantou-se. ele fez questão de pagar-lhe uns meses adiantados. Não demorou muito para que
— Não me lembro de ter convidado três pessoas. a bela mulher percebesse o caminho que esse destino padrasto lhe traçara. Estava
grávida, e uma vez percebendo que a pobre mulher engravidara, Edson covar-
— Eu tomei a liberdade de trazer esse homem comigo por achar a presença demente a abandonou como costumava sempre fazer. — Erguendo os olhos para
dele aqui tão importante quanto a de Justino. — Disse o padre, acrescentando: — o alto, Eduardo orou: ‘’Que Deus o tenha”! — e profanou: — “O que eu duvido
Ele se chama Pedro. muito”! Era portuguesa, e foi talvez por isso que teve a coragem de aceitar o feto
Ah! — exclamou Eduardo — Suponho ser ele o homem que criou Ricardina. que se formava em seu ventre. Logo após dar à luz, a nova mãe enviou a meu pai
uma comovente carta contando todo o caso e todas as promessas de Edson ainda
— Não, senhor Eduardo, eu sou o pai que Ricardina conheceu.
por pagar. Era uma carta simples, mas carregada de muito sentimento e pesar,
— Pois muito bem! Me desculpe, não é meu intento ofendê-lo! Se sente aí que foi talvez por isso que o tão áspero Leonardo Filgueiras curvou-se diante da carta
eu tenho ótimas notícias para o senhor. Quanto ao Justino, eu não creio que vá e, pelo mesmo portador, redigiu uma outra prometendo à mãe o sustento para
gostar muito do que eu tenho para dizer. Antes de tudo, Justino, eu quero dizer- ela e o bebê. Não se sabe até hoje se a tal carta enviada por meu pai foi entregue à
132 -lhe que muito me alegra tê-lo aqui dentro da minha casa, que não deixa de ser destinatária, o que se sabe é que até o dia em que ele morreu, nunca foi procurado 133
sua também, pois foi aqui onde você nasceu. Era aqui que o meu pai queria que por ela. Vendo então meu pai que o seu último dia se aproximava, chamou os três
todos estivéssemos reunidos, mas vamos deixar de lado esses contudos e vamos filhos e nos deu a notícia que em seu testamento, já preparado, tinha colocado
logo ao que interessa. Os filhos do velho Leonardo foram apenas três, isto é, os Ricardina como legatária. Quem conhece a unha de fome que é o Edmundo, pode
legitimados, pois bastardos, existem por aí às trempes, o Edson, o Edmundo e eu, ter uma ideia do seu protesto com aquela atitude do meu pai. Não nego que eu
sendo o Edson, o mais sagaz de todos. Sei que é difícil acreditar para quem tem e o Edson também demos o nosso contra, mas firme como era o velho Leonardo
em suas decisões, de nada adiantou os nossos protestos. Alguns dias depois da — O que você pretende fazer?
morte do meu pai, nós soubemos que a mãe de Ricardina também falecera e foi
— Eu sei que ao chegar em casa, mamãe e Saul estarão à minha espera para
somente quando viemos a saber que ao morrer, era uma mulher casada. Tinha,
saberem o que tinha o meu tio para conversar. E mentir, eu não vou!
portanto, dado a Ricardina o pai substituto ao que covardemente fugira da raia
na época precisa. — E em relação ao seu pai? — Quis saber Capitão Pedro.

— Por qual motivo o senhor não fez essa confissão há alguns anos atrás? — — Apenas apressá-lo a entregar o que o meu avô deixou para Ricardina.
interviu o padre. — Afinal de contas, uma parte do que os Filgueiras Leal têm — Por mim, ficava tudo no que está. Disse o velho pescador.
em mão, pertence a Ricardina.
— Cuidado, Justino, nada de precipitações! — Advertiu o padre.
— Logo que eu soube da morte da mãe de Ricardina, chamei Edmundo e falei
do meu propósito de procurar o pai adotivo da criança e dar-lhe o que era seu. De onde se encontrava, Justino, após separar-se dos amigos, ouviu o som do
Então ele fez a maior algazarra dizendo que se eu fizesse isso ele me mataria, e conjunto no Terra e Mar. Balançou à cabeça em desaprovação à atitude dos pesca-
se não conseguisse matar-me, matar-se-ia ele. Certo de que Edmundo cumpriria dores. Eles deviam respeitar a memória de Luiz ao menos naquela noite.
a primeira ameaça, e vendo que a criança já estava amparada, eu até hoje me
mantive calado, como veem.
O velho Eduardo silenciou e fitou os olhos em Justino, atraindo assim os olhos 39
do velho pescador e do padre para o jovem, que não mais se contendo, deixou
que as lágrimas retidas a custo rebentassem enfim dos seus olhos e rolassem pelo
rosto abaixo, não era imprópria a comoção naquele momento e não foi só o jovem Tudo corria normal quando os pescadores entraram no Terra e Mar. Como
Justino quem a sentiu, tanto os dois outros ouvintes como o narrador ficaram ca- todas as outras noites, o conjunto executava o seu repertório, os garçons se espa-
lados e cabisbaixos sem ousarem contradizer a dor que sentia o filho do prefeito. lhavam pelo salão e o cáften ocupava o seu lugar de proprietário atrás do balcão.
Outra coisa não podia acontecer naquele momento. A revolta e a vergonha pelo
que o pai e o tio passaram tomavam conta do moço. Depois de um curto tempo, Foi para espanto dos garçons, que logo ao entrarem no cabaré, os homens e
foi o velho pescador quem quebrou o silêncio perguntando: mulheres foram logo pedindo de tudo que avistavam nas prateleiras. É que eram
eles acostumados a lidar com aqueles homens dentro do Terra e Mar, e eram mais
— Senhor Eduardo, para rematar tudo o que o senhor acaba de nos revelar, acostumados ainda a ficarem noites inteiras sem que nenhum deles pedisse além
existe alguma prova que não seja apenas a sua palavra? da primeira dose, deixando-a para pagar somente quando já pela madrugada
— Minha palavra só não bastaria, senhor Pedro? Pois muito bem! O que o resolviam ir embora. Deixar de ir ao Terra e Mar era coisa que os pescadores ra-
senhor exige além da minha palavra está até hoje comigo. Além da cópia da cláu- ramente faziam, mas despesas, não era sempre que as faziam, sentiam-se donos
sula testamentária, deixada por meu pai reconhecendo Ricardina como legatária, exclusivos do cabaré, e, uma vez donos, sentiam-se com o direito de ali ficarem
eu tenho em mãos ainda a carta enviada pela mãe de Ricardina. durante o tempo que bem quisessem; e assim o faziam sempre. Se acaso o dinhei-
ro enchia-lhes os bolsos, era ali que o deixavam, também se lhes faltasse a grana,
Indo ao armário embutido na parede da grande sala, o velho Eduardo retirou era ali que lamentariam a sua escassez, para irritação dos garçons e também do
de uma de suas gavetas um velho envelope, em seguida sacou do seu interior cáften Leocádio, que embora não gostando das maçadas, nunca apresentou ne-
uma folha de papel já amarelecida pelo tempo e entregou-a a Justino, dizendo: nhuma objeção.
— De tudo que lhes falei, aqui está a prova. Não é lá muito concreta, mas é su- Sabiam os garçons e o Vinte-Nove-Trinta também, que naquela noite os pes-
ficiente para que Edmundo, diante dela, confesse o resto. Quanto ao original da cadores não possuíam dinheiro para gastar. Não obstante, nenhuma restrição
134 cláusula testamentária, deve encontrar-se com ele, que foi a pessoa encarregada foi apresentada diante dos absurdos pedidos de muita bebida e muita comida. 135
por meu pai como testamenteiro. Coisa nunca vista pelos que lotavam o Terra e Mar. Não demorou muito para
Despediram-se os três homens de Eduardo quando a noite já havia imergido que se dessem por satisfeitos e cessassem os pedidos. Dirigiram-se ao salão de
em total silêncio. Justino acompanhou o padre e o Capitão Pedro até próximo à dança onde pela primeira vez a cuada da sergipana Rita foi dançada em massa,
casa do primeiro. Ao fazer menção de despedir -se, o padre o reteve perguntan- com participação até de novatos, como o moleque Alcindo, que não teve muita
do: dificuldade em aprender.
Desde que os pescadores entraram no Terra e Mar, o cáften com a sua expe- depois de cicatrizado viesse a servir de obra-prima entre os muitos cortes exis-
riência, notou que qualquer coisa de anormal eles estavam planejando. Ao vê-los tentes em seu corpo moreno.
apossarem-se do salão de dança, retirou de um pequeno estojo, até então guar-
O corte no braço de Thania encheu o negro Birata de gratidão pela mulher e
dado nas prateleiras, um pequeno punhal pondo-o no cós da calça, dirigiu-se de ódio pelo cáften, lembrou que aquele corte poderia ser em seu peito, pois era o
para o salão das mesas, agora totalmente vazio. Quando se deram por satisfeitos, propósito de Leocádio aplicá-lo com gosto, com os olhos brilhando raivosamen-
os homens e as mulheres dirigiram-se para o local onde o cáften se encontrava. te, Birata dirigiu-se para o cáften gritando.
Vendo o negro que o minúsculo homem o olhava com ódio, decidiu insultá-lo
diretamente. Com muito custo, o negro conseguiu trepar-se em uma das mesas — Excomungado! Filho de uma puta!
e fazer sinal para que o conjunto silenciasse. Uma vez calado o conjunto, todos Como era de se esperar, mesmo armado, o cáften correu, aumentando a ira do
aguardavam o que queria dizer o pescador que, totalmente sob o efeito do álcool, pescador. Não o encontrando em seu caminho, desferiu o golpe a ele destinado
não encontrava a palavra certa para começar: na primeira mesa que apareceu ao alcance de seu braço. A mesa virou caindo ao
— Essa casa é nossa. — gritou o pescador finalmente. — Por isso, para mostrar solo, as garrafas vazias, logo o gesto do negro foi imitado por outro pescador e
logo um verdadeiro quebra-quebra se formou dentro do cabaré. Thania não deu
que aqui dentro ninguém tem medo de ninguém, não vamos deixar que filho da
nenhuma importância ao seu ferimento, mas foi socorrida por Rita e por outras
puta nenhum abuse com a gente, nessa casa ninguém tem o direito de botar a
mulheres. Vendo o zunzum formado dentro do Terra e Mar, Thania as dispensou
gente pra fora como foi feito com o pernambucano, e pra provar que ninguém
entrando também na baderna, no que foi logo imitada pelas demais.
tem medo de ninguém, é que tudo que foi comido e bebido nós não vamos pagar
a ninguém. Palavra do negro Birata! Cadeiras, mesas e garrafas voavam pelos ares. Cortinas eram arrancadas das
portas e transformadas em retalhos. Eram muitos os pescadores furiosos, e maior
Ao dizer essas palavras, o negro bateu no peito e saltou de sobre a mesa ar-
que o número de pescadores era o espirito de destruição existente em cada um.
rancando aplausos de todos, mas logo os aplausos foram substituídos por um
Após a destruição total das mesas e cadeiras, passaram a saquear o bar e depois
sussurro de espanto. Mal firmou os pés trôpegos sobre o ladrilho, o negro foi
a destruir também as prateleiras vazias. Na cozinha, o som estridente de utensí-
imobilizado pelo cáften, que se lhe atracou no pescoço, colocou-lhe sobre o peito
lios culinários sendo amassados. Ao concluírem o trabalho, resolveram procurar
esquerdo o pequeno punhal, enquanto o advertia:
minuciosamente o cáften, surpreenderam-se ao constatar que nem ele e nem os
— Se não aparecer dinheiro para essa despesa, tu vai pagar com a vida, negro seus auxiliares se encontravam mais no cabaré, tampouco, em suas proximida-
miserável. des. Resolveram então eles mesmos dar continuidade à festa. Alguns foram ao
conjunto, mas não conseguindo executar uma nota sequer, resolveram destrui-lo
Thania, ao ver o pescador ameaçado de perder a vida, sentiu renascer dentro
também. Uma vez destruído o conjunto, era impossível dar continuidade à festa,
de si a dor de ter perdido para sempre o pernambucano. Sob o efeito do álcool,
resolveram então ir para suas casas, deixando o Terra e Mar em completa ruína
um outro sentimento apoderou-se do seu ser, substituindo a dor da perda, to-
com as portas às escâncaras para quem ali passasse.
mando-se uno e dominador. Era o ódio. Um ódio tirânico, feroz, implacável. E
foi com o ódio e com a agilidade de uma tigresa ferida que a mulata agarrou por O cáften sumiu para não mais aparecer. De nada adiantaria querer refazer o
trás o cáften do Terra e Mar, livrando assim o negro Birata da ameaça do punhal. Terra e Mar, pois os pescadores resolveram naquela noite de vandalismo que não
mais o queriam liderado por aquele homem que, embora sendo o mais perfeito
Thania estava bêbada e o cáften não. E não demorou muito para que todos empresário de alcouces já existente naquela praia, era suspeito de ser um ente
vissem o resultado da interferência da mulata. Sem que houvesse tempo para sobre-humano. Queriam sim, mas um novo Terra e Mar, um Terra e Mar liderado
uma intervenção da parte dos homens, Thania e o cáften já rolavam pelo chão por outro cáften ou até mesmo por uma cafetina. Mas será que apareceria algum
numa luta corporal jamais vista dentro do Terra e Mar. Sabiam todos eles que à homem ou mulher que tivesse a devida coragem de tomar sobre os ombros o peso
136 mulata de TH no nome levaria vantagem na luta, todavia não haviam esqueci- de tão árdua responsabilidade? Teria porventura o Terra e Mar algum substituto 137
do que o cáften estava armado, mas antes que tentassem separá-los, o grito de para dirigi-lo com a mesma garra? Fosse qual fosse o homem ou mulher, será
Thania fez-se ouvir por todos. Um chute certeiro do negro Birata jogou longe o que continuaria a conservar os invejáveis mandamentos criados pelo tampinha
cáften, que estava sobre o corpo da mulata. Finda a briga, os pescadores verifica- Leocádio? Uma coisa é certa, poderiam surgir muitos sucessores do Vinte-No-
ram que o braço direito de Thania sangrava. Olhando de perto tranquilizaram-se ve-Trinta, mas nenhum seria tão bom arrotador de cultura quanto ele, ninguém
ao verificarem que o corte era sem maior gravidade, logo estaria sarado para que melhor que ele latinizaria sábias expressões ao deparar-se com algum casal no
meio do salão a prensar-se desavergonhosamente. Coisa não admissível dentro O prefeito nada respondeu à ironia de Raquel. Vendo o rolo de papel na mão
do cabaré, pois segundo o experientíssimo cáften, era isso o de mais prejudicial de Justino, logo descobriu do que se tratava e foi com autoridade que gritou já
ao bom andamento comercial do Terra e Mar, pois se fosse permitida a libidina- procurando o pente.
gem, dariam-se por satisfeitos e nenhum quarto seria alugado naquela noite.
— Justino, eu proíbo de...
Outro mandamento a ser cumprido dentro do Terra e Mar era a nulidade da
Suas palavras foram cortadas pelas do moço que, desenrolando o papel, falou
tomadia, coisa vulgar em outro cabaré onde a lei é do mais vivo. Não valendo
com voz pacata.
a tomadia entre os frequentadores, que é mesmo que exigir exclusividade sobre
a mulher, aumentava o desejo do pescador e assegurava assim a sua presença — Papai, eu acho que o senhor não está mais para proibir e sim para reunir-se.
na noite seguinte; mandamento este que parece ter excluído Thania e Luiz, pois
A essas palavras do filho, o velho levantou-se e dele se aproximou perguntan-
sempre estiveram juntos, dentro do cabaré, mas isto só ocorria por já chagarem
do, enquanto Justino também se erguera.
ali acompanhados. Se acaso Luiz faltasse uma noite e Thania ali entrasse, o que
fosse mais rápido passaria a noite com a mulata. Eram, portanto, as leis a serem —O que você está querendo dizer?
cumpridas dentro do Terra e Mar, rígidas e absurdas. Mas que eram sábias, lá
—Que o senhor é um crápula! Que o senhor...
isso eram!
Até aí o velho prefeito não encontrara ainda o seu pente, foi por isso talvez
Dura lex, sed lex! Era realmente dura, mas a todas era aplicada e observada
que um forte tapa troou na face de Justino. Com o rosto em fogo, o moço afagou-o
mesmo à custa de sacrifícios.
com a mão direita enquanto dizia:
Para dirigir um cabaré, lugar frequentado pelos mais diversos tipos de pes-
soas, sendo dos piores o mais comum, com rigorosas exigências a se fazerem — Se esse tapa desmentisse o que eu acabei de saber hoje, eu pediria ao senhor
cumprir é preciso ter muita coragem e topete para tal empreitada. As duas quali- que me desse outros.
dades primordiais não tenho eu, se as tiver o caro leitor, aí fica a sugestão. Edmundo voltou a sentar-se e Justino, forçando um sorriso, o imitou já com a
folha de papel aberta.
— Papai, eu não sei se o senhor percebeu, mas isto que o senhor está vendo
40 em minhas mãos é uma carta endereçada ao meu avô um pouco antes que ele
morresse.
— Desconheço totalmente.
Da grande e luxuosa casa dos Filgueiras Leal, daria para se ouvir a algazarra
— Tudo bem! Conversando a gente se entende melhor. Agora o senhor nega
formada no Terra e Mar. Não obstante uma outra tinha início na, até então, reca-
que o meu avô deixou uma cláusula testamentária reconhecendo como neta uma
tada residência do prefeito. Sem quebra-quebra, evidentemente, pelo menos por
enquanto. menina pobre?

Seria quase meia noite quando Justino entrou na espaçosa sala com uma folha — Não! Eu não nego, e se não lhe dei o que era seu, foi por não a ter encon-
de papel na mão ainda enrolada em forma de canudo. Aguardavam a sua chega- trado.
da: Edmundo, Raquel e Saul. Nenhum deles conseguiu esconder a sua curiosida- — Sem mentiras, papai!
de ao ver o moço. Saul estava nervoso, Raquel temerosa, Edmundo espantado.
— Eu não estou mentindo, afinal de contas, existem centenas da mesma es-
Levantaram-se os três ao mesmo tempo quando o moço cruzou a porta. O seu pécie por aí.
138 semblante tranquilo os fez tomaram a antiga posição. 139
— Da mesma espécie, não! Essa menina a que eu me refiro foi um caso
— Mamãe. — Disse o moço sentando-se. — Eu não creio que a senhora esteja diferente, embora tenha sido fruto da irresponsabilidade do cafajeste do seu
preparada para ouvir o que eu tenho para revelar. irmão Edson.
— Engana-se, meu filho! Eu estou tão bem preparada quanto os outros, ou — Não bula com os mortos, meu filho! Entrou Raquel na conversa benzen-
melhor ainda! Não é Edmundo? do-se.
— Mamãe, por favor, fique caladinha, sim? Todos notaram o abalo de Edmundo, que lentamente deixou-se cair numa
— Não fala assim com a tua mãe, malcriado! cadeira choramingando.

— E o senhor vê se não desvia a conversa e me responda, por qual motivo o — Ah, minha Nossa Senhora, mais essa agora? Na hora que eu saio de uma
senhor não quer que eu me case com Ricardina? esparrela, caio numa pior? Raquel, saia daqui, na sua frente eu não falo.

— Ora! É muito simples! Eu não criei você para vê-lo misturado a essa genti- — Saia, mamãe. — Disse Saul para a espantada Raquel. — Será terrível
nha da beira da praia. para a senhora ouvir o que ele vai nos dizer agora.
— Será isso mesmo, papai? Ou não será por estar sabendo que ela é exatamen- Raquel saiu para retomar o seu lugar na sala de visitas, enquanto Edmundo
te a pessoa legatária? travava a porta com cuidado. Voltando à secretaria, ele sentou-se, e não mais
O espanto de Raquel foi grande, e é impossível descrever o que ela sentiu ao fingindo tranquilidade, perguntou a Justino:
exclamar.
— Você falou para alguém sobre o que ouviu?
— Ricardina?
— Apenas para o Saul, mas creio que o pescador já deve ter aberto a boca e
Edmundo remexia-se no sofá à procura do pente. contado para todos os companheiros dele.
— O senhor nega isso também, papai? — Você acha mesmo?
— O meu pente! Cadê o meu pente? — Claro, pois no início da noite eles voltavam do enterro às quedas de bêba-
— Negue! dos.
— Não! Isso seria impossível agora. — E com o tal pescador, você conversou alguma coisa?
— O senhor está com o testamento deixado pelo meu avô em mão? — Não foi preciso, ele descobriu que eu ouvi toda a conversa.
— Claro que sim! — Será que ele abriu a boca para alguém?
— Traga-o aqui, eu quero vê-lo! — Suponho que sim, papai! Pois com o enterro que o senhor o aconselhou a
— Venha comigo! fazer, apenas serviu para motivá-lo a liderar uma grande baderna dentro do ce-
Não só Justino, mas Raquel e Saul levantando em rumo ao escritório. Lá che- mitério, devorando juntamente com os companheiros, muitas garrafas de cacha-
gando, diante de todos, o velho prefeito, com as mãos trêmulas, destrancou a ça, e depois de bêbados não há mais quem segure a língua de um desses homens,
gaveta de um móvel retirando desta uma pasta de cor preta, de onde retirou um eu conheço a todos muito bem.
rolo de papel e o entregou a Justino. — Que idiota eu fui. — Disse a si próprio. — Devia ter completado o serviço!
— Tome-o, e faça dele o uso que bem quiser, eu estou pra tudo... Leve-o ao
O velho prefeito, passado o susto, falava agora como fosse de um outro as-
Juiz, repartam tudo o que temos com essa menina, se quiser casar eu não me in-
sunto comum, e isso irritou Saul, que não se contendo, repreendeu o pai quase
comodo mais, mas pelo amor de Deus, desapareçam da minha frente! Me deixem
em paz! gritando.

Ao dizer essas palavras, o velho prefeito apalpava sobre a secretaria à procura — Pai, vê se para com essa comicidade e nos diz logo qual o motivo a matar
do pente, desenganando-se, gritou como um louco. aquele pobre homem!
140 — Cadê o meu pente! Bando de pestes! — Está bem, Saul, eu vou satisfazer o seu gosto. Eu não queria matar aquele 141
homem, eu queria apenas persuadi-lo a abandonar aquele barracão que é nosso,
Ninguém lhe deu ouvidos. Estavam todos muito chocados para saírem a pro-
mas o estúpido reagiu me agredindo, por isso, fui obrigado a matá-lo.
curar pentes.
— Ninguém é obrigado a matar um semelhante seu, papai.
— Tem mais uma coisa, papai. — Disse Justino. — O pior vem agora, eu hoje
pela manhã ouvi toda a sua conversa com aquele pescador lá na prefeitura. — Mas eu fui, ora...
— Seu Edmundo! Quer fazer o favor de parar de enrolar e nos contar logo dido, retirei da lama o pesado corpo do cão e o joguei próximo a umas moitas de
tudo? E você, Justino, vê se cala esse bico! mangue, entrando em seguida pela porta dos fundos. De lá eu vi o velho eremita
na porta que fica de frente para o Rio da Cruz a chamar os cães que cercavam
— Claro, Saul. — Disse o velho. — Diante da faca que me põem aos peitos,
o corpo do companheiro baleado. Chamei eu, então, o eremita. Virando-se para
não vejo como não contar tudo.
mim, apoderou-se de uma tranca de porta e atacou-me querendo vingar o cão.
— Então começa, homem! Depois de defender-me de alguns golpes, saquei o punhal e o encostei ao peito
— Arre! Que pressa! Disse o prefeito desistindo de procurar o pente e acomo- do velho. Não era o meu propósito feri-lo. Eu juro! Queria apenas intimidá-lo,
dando-se novamente na poltrona. — Já se vão muitos anos que a minha rixa com mas como que inconscientemente o velho avançou querendo agarrar-se ao meu
o Eremita das Salinas teve início, não era bem minha, a briga. Era do Edson e eu pescoço, e de repente eu o vi parar com os olhos vidrados em meu rosto. Depois
a herdei. Poucos anos depois que meu pai morreu, surgiu lá naquele mesmo bar- de alguns segundos, ele curvou o corpo e caiu para trás. Essa lembrança horrível
racão, um estranho homem que, com ares de dono, tomou o dito barracão como nunca mais saiu da minha cabeça; toda hora eu o vejo em minha frente. Depois
sua morada. Era na época Edson quem tomava de conta das salinas. Ou seja, era disso eu não tinha mais o que fazer ali. Saí correndo para o bote, os cães, como
ele que fazia o que o Justino faz hoje, só que com maior interesse, é claro! Pois o que sentindo o cheiro do sangue, aumentaram o alarido e ainda me perseguiram,
Justino apenas faz que toma de conta. mas eu já estava dentro do bote. Pouco depois, já no meio do Rio da Cruz, eu ouvi
uns gritos que nada tinham de humanos, pareciam gritos do demônio. Por todo
Era Edmundo tão perito em desviar assuntos desagradáveis que até incons- o pantanal em breu, ecoavam arrepiantes gritos de: “Assassino”, “covarde”, “eu
cientemente fazia isto, para irritação dos seus ouvintes, que a um só tempo grita- vi tudo”. Esses gritos entraram nos meus ouvidos e não mais saíram da minha
ram, espantando Raquel lá na sala de visitas. cabeça, agora mesmo eu os ouço como naquela maldita noite.
— Continua! Os dois filhos de prefeito fitavam-no petrificados, seria impossível dizer o que
— Logo que o Edson descobriu as pretensões do intruso, colocou-me a par pensavam no momento, mais lícito seria dizer que em nada pensavam, e se em
dos acontecimentos e juntos fomos ao barracão ter uma franca conversa com o alguma coisa pensavam, era em como se enganaram por toda as suas vidas como
homem. Lá chegando, ele nos recebeu com muita simpatia até, com partes de siri aquele homem que tinham à sua frente.
sem unhas. Mas quando eu falei que aquele barracão era nosso e que o quería- Foi de incontáveis minutos o silêncio dentro do escritório da casa dos Filguei-
mos desocupado para o armazenamento do sal, o homem danou-se e de lá nos ras Leal. Foi Saul quem o quebrou. E sua voz saiu apenas num gemido.
expulsou, açulando-nos os cachorros. Bem, depois dessa, eu lá não mais voltei,
mas o Edson fez de tudo para expulsar o posseiro, vindo, sem obter nenhum — Os gritos que o senhor ouviu naquela noite eram do mesmo pescador que
êxito, a falecer poucos anos depois para felicidade do tal Eremita das Salinas, que o procurou depois?
não a deixou de expressar, dando pulos e urros em frente ao barracão para quem — Exatamente! No dia seguinte, após o enterro do eremita, eu fui procurado
quisesse ver. Passaram-se os anos e lá ficou o maldito eremita de dono de tudo. por um homem negro. Ao vê-lo entrar no meu gabinete, o meu sexto sentido me
Esqueceram que ali era um terreno dos Filgueiras Leal, até mesmo eu já havia es- disse que era ele o dono daquela maldita voz, e não me enganei. Não me enganei
quecido em parte. Mas o que é da gente, faz parte da gente, e quando o Justino as- ainda ao identificá-lo como um tipo subornável. Mal entrou, foi logo me dizendo
sumiu a frente nos trabalhos das salinas, renasceu a minha esperança de que ele que se dirigia à polícia, perguntei-lhe então porque já não o tinha feito, ele res-
faria o que o Edson não conseguira fazer. Mas qual nada! O boboca nunca nem pondeu que queria ter antes um conversa comigo. Perguntei-lhe, no ato, quanto
olhou para o Eremita das Salinas pensando em enxotá-lo de lá. Então naquele queria para silenciar, ele respondeu que queria uma canoa apenas. Dei-lhe o di-
maldito dia, eu tomei uma decisão: — Edmundo, você hoje, custe o que custar vai nheiro correspondente ao valor da canoa, e ele foi embora, voltando a aparecer
limpar o seu barracão. — Então, quando a noite desceu, eu me armei decidido, e hoje ao meio-dia, e hoje eu vi que ele, além de corrupto, é ainda um chantagista.
142 para lá me dirigi no bote a motor que eu peguei na Cimpesca sem que ninguém 143
Findando a narração, o velho prefeito levantou-se perguntando:
percebesse. Nunca me passou pela cabeça que naquela hora da noite, houvesse
alguém por aquelas bandas além do velho eremita, e por isso eu fui direto ao — Deu para me entenderem?
barracão sem nenhuma precaução. Logo que saltei do bote, cães furiosos como
— Não! Responderam os dois ouvintes em coro.
se tivessem saído do inferno, jogaram-se em minha direção, mas um tiro certeiro
na cabeça de um deles espantou os demais, que de longe ficaram a ganir. Deci- — Pelo que ouviram, vocês não são capazes de me perdoar?
— De que adiantaria, mestre? — Perguntou Saul acrescentando. — Isso em Raquel levantou-se perceptivelmente mais pálida. Não obstante, continuava-
nada diminuiria a sua culpa, além do mais, o que o senhor fez foi um ato vil, -lhe firme e decidida a voz.
vergonhoso, foi um crime, seu Edmundo, e para mim, os crimes como esse que
— Você está querendo dizer que...
o senhor cometeu são imperdoáveis. Eu sinto muito ter que falar assim, mas é o
que eu penso. Perdão, não! — Isso mesmo, mamãe! — Interferiu Saul. — Foi ele quem matou o Eremita
— E você, Justino, o que me diz? das Salinas.

Até aí Justino parecia desligado de tudo, e aquela insistência infantil do seu Raquel parecia já há muito preparada para uma notícia desagradável. Com
pai o irritou. Levantando-se, o moço respondeu aos gritos: firmeza, olhou para os filhos e disse, espantando-os:

— Papai, o senhor em vez de ficar exigindo perdão meu e do Saul, devia era —Levem-me daqui para qualquer lugar! Eu não fico mais um minuto sequer
procurar a polícia e pagar pelo seu crime como manda a lei. Eu mesmo não vou nesta casa.
conseguir nunca perdoar uma loucura como essa.
— Mamãe!
Raquel, incomodada pela grande demora e pelos gritos de Justino, bateu na
Falaram os dois no mesmo tempo.
porta do escritório sendo logo atendida por Saul, que ao abri-la, foi quase derru-
bado pela mãe, que entrou apavorada perguntando: — É, meus filhos. É isso mesmo, e se vocês não me levarem para algum lugar,
eu saio agora mesmo sozinha.
— Mas pelo amor de Deus, o que se passa aqui?
Ninguém respondeu à sua pergunta, mas as palavras que Edmundo dirigiu — Sendo assim. — Disse Justino. — Eu a levarei para a casa de Ricardina. Ela
a Justino, satisfizeram em parte a sua curiosidade. e o pai são as únicas pessoas em quem eu posso confiar nesse momento.

— Pois muito bem, se os meus dois filhos não são capazes de me perdoar, que Raquel já abria a porta de saída para a rua, Justino a acompanhou quando
me denunciem à polícia ou deixem que aquele pescador o faça. Eu mesmo não Saul gritou lá de dentro aflito:
farei isso nunca. — Eh! Eu vou também, se eu ficar aqui é capaz dele me matar para que eu o
Disse isso e saiu a correr em direção ao seu quarto de dormir, enquanto Ra- perdoe. Ele faz qualquer negócio para conseguir o que quer.
quel, aterrorizada com o que ouvira, arriou-se numa cadeira com o sangue a
E partiram os três para a casa do velho pescador, deixando Edmundo sozinho
fugir-lhe do rosto. Justino, vendo-a assim, ordenou para Saul:
na grande casa com o seu desespero. Através de uma fresta, Edmundo viu os
— Vá buscar um copo com água. três abandonarem a casa e sentiu-se perdido. Sabia ele que nem os filhos nem a
— O que você vai fazer? mulher o denunciariam à polícia, mas sabia também que nenhum deles o olharia
mais de frente, não o perdoariam nunca, e isso era a pior coisa que ele escolhe-
— Dar pra ela beber, ora! E depois contar-lhe tudo. Ela sempre vai saber disso! ria como castigo. Abandonou o quarto e penetrou em outros procurando o pen-
Que seja agora!
te. Ouviu latidos de cães, sentiu o vento frio vindo dos mangues, ouviu roucos
Saul trouxe a água que Raquel engoliu em grandes e apressados goles. gritos chamando-o de assassino. Viu o Eremita das Salinas dando gargalhadas
em sua frente. Estava vestido de Diabo, tinha chifres, rabo e uma flecha na mão
— Pronto! — Disse ela — Estou preparada, se água ajuda, podem soltar a
direita, com a esquerda chamava-o a acompanhá-lo. Viu Birata rindo e dizendo-
bomba!
-lhe que agora queria um barco grande. Tornou a aparecer o Eremita das Salinas
— Mamãe, a senhora lembra daquele velho encontrado morto lá nas salinas chamando-o de companheiro. Andou por toda a casa, revirou estantes, gavetas,
antes das novenas de São Pedro? — Perguntou Justino. camas e sofás à procura do pente.
144 145
— Lembro sim, por quê?
— A senhora ouviu falar como ele foi encontrado?
— Claro que ouvi, não foi com um punhal enfiado no peito?
— Exatamente mamãe, e aquele punhal pertencia ao papai.
41 sol já esquentava toda a cidade quando Justino tomou uma decisão e levantou-se
com rapidez, dizendo:
— Eu também não vou trabalhar, não estou me sentido bem, eu vou falar com
A casa do Capitão Pedro não possuía de imediato cômodos para mais de o Negro Birata.
duas pessoas, todavia, após o susto, verificou-se com gracejos até, que lugar para
— Falar o que, Justino? Quiz saber Saul, levantando-se.
se dormir existia para mais de dez, o que não existia mesmo eram camas e redes.
Mas para quem nada exige, o pouco já é bastante. — Birata nunca gostou do nosso pai, aliás, de ninguém que tenha uma vida
melhor que a dele, por isso eu sei que ele não terá escrúpulo em, de uma hora
Para Raquel, arrumou-se o quarto de Ricardina, que se mudou para o quarto
do pai, este, por sua vez, desistira de dormir; ficou no alpendre conversando para outra, deixar todo mundo sabendo desse crime.
com os dois filhos do prefeito, que também não sentiam sono. Nesse dia, poucas — E você acha que falando com ele amenizará a coisa? — Perguntou o velho
canoas saíram para o mar. A maioria dos pescadores ainda estava sob o efeito pescador, que permanecia sentado.
do álcool, e já que não tinham compromissos com nenhum patrão, para que se
— Não tenho a menor dúvida. — Disse o jovem. — Ele já provou ser um tipo
preocuparem com trabalho num dia de ressaca?
corrupto e eu estou decidido a qualquer negócio para ter a certeza de que ele
Bocejantes feirantes dirigiam-se ao mercado público. Saul e Justino contaram manterá silêncio.
tudo o que se passou naquela noite ao velho pescador. Nada omitiram, conversa-
ram também sobre o testamento deixado pelo velho Leonardo Filgueiras. Capi- — Engraçado. – Disse Saul forçando um riso sem gosto. – Há pouco lá em
tão Pedro confessou ter contado para Ricardina apenas o segredo do seu pai, mas casa você aconselhava o nosso pai a contar na polícia, e agora vem com essa de
nada falou sobre a cláusula testamentária, e propôs, na oportunidade, a Justino e silêncio!
Saul que dessem o caso por esquecido, se é que isso traria algum desentendimen- — Eu não estou querendo encobrir isso para sempre, estou querendo apenas
to entre eles e o pai. Justino tranquilizou o pescador dizendo que os transtornaria que se alguém além de nós venha a saber, que seja confessado pelo meu pai. Esse
se acaso o velho não aceitasse o que era seu e de Ricardina. Pediu ao velho ainda é um direito que ele não tem, mas eu o dou.
que contasse tudo a Ricardina, pois de nada adiantaria esconder fatos agora.
Apesar do sol já arder sobre a terra, o dia parecia frio para Justino, que se
O dia surgiu de todo. Sobre os morros mais elevados viam-se os raios do sol dirigia para a cara do negro Birata. Com os nervos em pandarecos, o jovem filho
a dourar as suas lombadas e debruçarem-se sobre o mar transparentando-o. Jus- do prefeito tentava pôr em ordem os seus pensamentos. Condenava as atitudes
tino e Saul, após passarem uma noite inteira em claro, vítimas de insônia na an- desonestas do pai, mas não podia deixar de admitir que o amava muito, pensava
terior, não sentiam a necessidade de dormir. Saul, ao ser indagado pelo irmão em Ricardina e em como ela ia receber tudo aquilo e em como recebera o que lhe
se não ia trabalhar, confessou não sentir-se em condições, ficaria por todo o dia fora contado por Capitão Pedro. Absorto ainda em seus pensamentos, o moço
em companhia da mãe. Enquanto Justino, sentia-se inquieto e preocupado com o parou em frente à casa do pescador, a porta estava aparentemente fechada, mas
pai, temia por ele o desfecho de um escândalo. Constatou do alpendre da casa do com a primeira batida que o moço aplicou, a baixa porta se abriu e Justino teve a
velho pescador que a canoa de Birata permanecia sobre a areia da praia.
surpresa ao verificar que Birata cedera a casa a alguém naquela noite. Na sala de
Na sua discussão com o pai, Justino o aconselhou a ir à Polícia e contar tudo, entrada da pequena casa, que servia também de camarinha, duas redes estavam
agora aquilo lhe doía muito, sentia que havia sido duro demais. Sabia no en- armadas e ocupadas. Não foi difícil para Justino descobrir quem eram as duas
tanto que essa decisão o pai jamais tomaria. Imaginava-se num beco sem saída pessoas hóspedes do pescador, apesar de quase não conhecê-las, Justino ficou a
sem saber qual decisão deveria tomar, sabia apenas que alguma coisa deveria ser observar as duas pessoas que dormiam a sono solto, enquanto tentava divisar
feita com urgência, pois muita gente já sabia do crime que o pai cometera. Com a presença do pescador no interior da casa. Apoiado no umbral da porta, temia
146 Capitão Pedro, Raquel e Saul, o moço estava tranquilo, pois eles nada contariam fazer algum barulho para não acordar as duas mulheres que estavam muito pró- 147
a ninguém, mas existia uma outra pessoa que na hora que quisesse poderia dei- ximas. Tentava debalde localizar a presença de Birata, quando subitamente, para
xar a cidade inteira sabendo de tudo, e essa pessoa, pela sua índole, não tinha seu espanto, a voz do pescador se fez soar às suas costas.
nenhum motivo para permanecer calada, e isso preocupava muito o jovem filho
— Quer falar comigo, seu Justino?
do prefeito. Justino não mais sentia revolta pelo que fizera o pai, apenas uma
tristeza só própria dos bons filhos o abatia, deixando-o sem saber o que fazer. O — Ah! Você estava em casa? — Perguntou o moço, virando-se espantado.
— Não, eu estava aqui em frente esperando que elas acordassem. — Não foi minha intenção ofendê-lo, Birata, você que também é filho, deve
entender a minha necessidade de ouvir essa garantia que me acaba de dar. Até
— E quem são elas?
logo!
— Thania e Rita.
— Até, seu Justino! E não faça mais isso! Isso poderá um dia lhe fazer muito
— Por que elas não ficaram lá no cabaré delas? mal.
— Porque nós quebramos tudo por lá. Justino conseguiu o que desejava. Retirou-se da frente do pescador tranquilo.
— E por que? Sentia urgência de pôr em ordem tudo o que se desordenara na noite passada.
Resolveu então ir falar ao pai sobre a visita que fizera ao pescador, depois tenta-
— Para vingar a morte do pernambucano.
ria levar sua mãe e Saul de volta para casa. Pensava o filho no que estava sentindo
— E o que tem o cabaré a ver com a morte do pernambucano? o pai, e sentia-se como que entalado por dentro. Uma vontade imensa de chegar
— O cabaré, nada, mas foi o Vinte-Nove-Trinta quem mandou ele para a mor- ao pai em forma de desculpa e tranquilizá-lo apoderou-se do moço. Passando
te. em frente ao Terra e Mar, parou e contemplou o estado em que o deixaram os
pescadores. Ao ver a total destruição do cabaré, o sentimento de piedade que
— E quem prova isso? até então sentira pelo pai, desapareceu um pouco, pois considerou o moço que,
— Quem viu ele mandando o homem ir morrer longe para não feder perto embora despropositadamente, o pai era o responsável indireto pela destruição
dele. do Terra e Mar.
— E o que foi feito do dono do cabaré? Ao chegar à casa, Justino sentiu-se pela primeira vez um estranho. O prédio
estava deserto e com uma aparência de abandono, por todo o seu interior um
— O Vinte-Nove-Trinta? Sabe que eu não sei? Na hora que nós começamos a
grande silêncio reinava. Dirigiu-se à cozinha e lá encontrou a caseira, que não
quebrar tudo ele sumiu.
escondia o seu espanto. Ao vê-lo, a negra foi logo interrogando-o:
— Eu sabia que esse enterro não ia acabar bem.
— Seu Justino, o que se passa nesta casa? Todo dia, a essa hora todo mundo
— O que você disse? tem acordado, se alimentado e saído para o trabalho.
— Nada! E não foi sobre isso que eu vim falar com você. — Só está o papai em casa, eu vou falar com ele.
— Então diga logo para que veio, homem! Justino saiu deixando a caseira confusa e seguiu para o quarto do pai, em seu
— Eu vim falar sobre o meu pai, Birata. coração apenas um único sentimento reinava, era a vontade de chegar ao pai e
tranquilizá-lo, era o desejo de jogar-se a seus pés e dizer-lhe que o perdoava, e
— Pra dizer o quê?
que lutaria para que Saul e Raquel o perdoassem também, embora achando a
— Eu vim pedir a você a certeza de que manterá silêncio sobre o que meu pai ideia absurda, era o seu propósito dizer isso ao pai. Sentia vontade de dizer que,
andou fazendo lá nas salinas. apesar de tudo, estava do seu lado. Falar-lhe e convencê-lo a levantar a cabeça, e,
— Você está falando da morte do Eremita das Salinas? sobretudo, fazê-lo voltar a dar as suas gostosas gargalhadas.

— Isso mesmo. O moço parou ao pé da porta do quarto de Edmundo e lembrou-se das gar-
galhadas que o pai soltara na tarde anterior na sala de visitas e como elas o inco-
— Ora, seu Justino, um segredo comigo é pedra que cai em poço, ou o senhor modaram, mas mesmo assim sentiu saudades e, mais uma vez, as sentiu penetrar
duvida da palavra de um negro? em seus ouvidos. Lentamente empurrou a porta e entrou no quarto do pai, mas
148 149
— Não é isso, Birata. O que eu quero apenas é a certeza de que você nada dirá tudo o que o esperava detrás daquela porta era um quadro jamais aguardado
a ninguém sobre o que sabe. pelo moço. O que viu causou-lhe um forte choque. Decepcionado, constatou que
chegara tarde demais, e que o pai não podia mais escutá-lo.
— Para isso o seu pai já me pagou, seu Justino. O senhor pode ficar calmo. E
quero que o senhor fique sabendo que eu não gostei nem um pouco dessa sua O velho prefeito estava estendido sobre a cama, morto, e um pequeno frasco
desconfiança. vazio explicava tudo entre seus dedos crispados e frios.
Justino, petrificado diante do que via, mal conseguiu balbuciar. De todas as bocas presentes, soaram exclamações de espanto, menos da de
Raquel, que mais uma vez parecia aguardar a notícia, pois apesar de extrema-
— Papai, para que o senhor fez isso? Ia dar tudo certo! Eu estava do seu lado,
mente triste, comportava-se como ex-primeira dama do município, um tanto in-
eu juro que não ia lhe deixar sozinho. — E começou a chorar.
diferente. Entretanto, sentia corroer-se por dentro o seu espírito, a posição que
Depois, após refazer-se do susto, passou a observar a desordem em que se en- tomara em relação ao marido a impedira de mostrar-se ao menos consternada
contrava o quarto, Notou que o pai, antes de beber o líquido fatal, tentara encon- como devia. Saul, ao saber da morte do pai, mostrava-se inquieto, andando de
trar alguma coisa dentro do quarto. Olhou mais uma vez para o corpo e tratou de um lado para outro do alpendre. Capitão Pedro perdera a voz e permanecia sen-
retirar-se dizendo baixinho: tado a olhar para o infindo horizonte. Recardina ,de pé às costas de Justino, mas-
sageava-lhe os ombros, enquanto fitava os olhos em todos como que tentando
— Só podia ser o pente...
encontrar uma explicação para o desesperado gesto do prefeito. Saul, depois de
Ao sair, Justino topou com a caseira, que pressentira alguma anormalidade. muito andar pelo alpendre, resolveu tomar uma decisão e dizer apenas já saindo.
Trazia para o quarto a refeição de Edmundo.
— Eu vou até lá.
— Pode voltar com a refeição! — Disse o moço. — Ele já não come mais, está
Justino ao ver o irmão dirigir-se ao carro decidiu segui-lo, conseguindo a cus-
morto.
to acompanhá-lo.
A bandeja caiu das mãos da caseira e um grito histérico troou de suas entra-
Capitão Pedro ordenou a Ricardina que tivesse com Raquel os cuidados ne-
nhas.
cessários e saiu alegando ter que resolver alguns problemas pessoais.
— Limpe o chão e não deixe que ninguém entre nesta casa, a não ser nós,
Ao se aproximarem da casa onde moravam os dois filhos do prefeito, viram
os Filgueiras. Eu volto logo.
a multidão que lá se formava. Ao chegarem à porta perceberam como as coisas
Justino, enquanto falava, as lágrimas entravam-lhe pela boca adentro, deses- foram providenciadas com rapidez; como porteiros, dois guardas da polícia im-
perado saiu de casa quase a correr. Passou pela casa de Eduardo e sem rodeios pediam a entrada de qualquer pessoa estranha à casa. Entraram os dois irmãos e
deu-lhe a notícia do suicídio de Edmundo, mas lá não demorou, deixando o tio a Justino espantou-se ao ver como Eduardo refizera-se ligeiro do choque recebido
passar mal com o abalo causado pela notícia. Enquanto seguia para a praia, pas- há pouco. Assumira totalmente a liderança da organização para o enterro do ir-
sou pelo hospital e pediu que um médico atendesse a Eduardo que não passava mão. Preveniu os dois sobrinhos para que não saíssem de casa e que deixassem
bem. tudo por sua conta. Ao partir, Eduardo dispensou os militares que guardavam a
casa e esta foi invadida por todos os que em sua frente se plantaram desde cedo.
Ao chegar à casa de Capitão Pedro, Justino não pôde esconder de ninguém
o seu desespero. Estavam todos no alpendre e olharam uns para os outros sem A primeira providência de Eduardo ao sair da casa de Edmundo foi procurar
nada falarem. Ricardina, ao ver Justino chegar, levantou-se e cedeu-lhe a sua ca- o serviço de som da cidade. Era costume acompanhar os mortos com música clás-
deira. Ao sentar, olhos curiosos crivaram-se-lhe no rosto e ele chorava novamen- sica, bastava morrer uma pessoa influente e essa pessoa era levada ao cemitério
te. Saul, tomado de repentino desespero, quebrou silêncio perguntando: com intermináveis horas de música clássica, transformada em marcha fúnebre.
Quando a voz rouca do locutor, aposentado da estrada de ferro, fazia-se ouvir,
— Aconteceu alguma coisa?
anunciando enterro ou missa de sétimo dia, muitos ouvidos, por mais curiosos
O moço nada respondeu, nem esboçou um gesto sequer. que fossem, eram logo tapados, pois música clássica na cidade significava perda
lastimável de algum influente. Perdia, portanto, a população, boa oportunidade
— O Birata fez alguma coisa? — Quis saber Capitão Pedro.
para aprimorar os seus gostos no que diz respeito a uma boa música. Todo pa-
150 — Não foi preciso. — Respondeu o moço dispondo-se a falar. — O meu pai já rente de algum falecido temia ouvir outra vez uma “Patética” ou uma “Pastoral” 151
deu um fim a tudo. de Beethoven, pois o dia da morte do seu parente já fora suficiente para fazê-
Saul, não contendo o susto, perguntou levantando-se: -lo abusar a música. Uma vez que foi obrigado a ouvi-la várias vezes seguidas
durante os massacrantes intervalos feitos pelo locutor. Digo obrigados, pois cada
— Ele foi à polícia? intervalo feito pelo velho locutor, um verdadeiro disparate de elogios às boas
— Não, Saul, o nosso pai está morto. qualidades do falecido era citado, e qual o enlutado que não gosta de ouvir boas
referências sobre o seu morto? Para todo tipo de programação, tinha o eficiente O velho agente, que também presenciara o desembarque do estranho, via-o
locutor e proprietário do Sonoros Pinto Martins a música adequada para prefixo. agora novamente quando já fechava as portas da agência de ônibus.
Sendo anúncio de festas, tertúlias ou bingos dançantes, o prefixo seria sempre
— Está perdido, senhor? — Brincou o agente.
qualquer música que estivesse nas paradas de sucesso. Sendo anúncio de uma
partida de futebol, o prefixo seria sempre o popularíssimo “Pra Frente Brasil”. — Sim senhor. — Disse o homem sorrindo e explicando-se em seguida.
Mas sendo um convite de enterro ou missa de sétimo dia, o prefixo escolhido era
— Estou à procura de uma pessoa, talvez o senhor possa ajudar-me a encon-
sempre “A Cavalgada das Valquírias”, de Wagner, ou “Contos dos Bosques de
trá-lo.
Viena”, de Strauss; ambos em vida jamais imaginaram que dezenas de anos de-
pois suas mais lindas composições viessem a servir a uma cidade inteira apenas — Pode contar com a minha ajuda, senhor! Como se chama a pessoa que
para anúncio de enterros. procura?
A cidade nunca sofrera a perda de um prefeito em pleno exercício de suas — Luiz Carlos de Vasconcelos, é meu filho.
funções, por isso ninguém mais digno do que ele para maior espaço de tempo — Há quanto tempo ele está aqui na cidade?
ocupar do locutor do Sonoros Pinto Martins e profundo conhecedor de trilhos,
troles e dormentes. E foi talvez por ser o falecido homem dotado de grande ver- — Eu não sei com exatidão, mas tenho certeza que não faz ainda um ano.
satilidade e de uma alegria sempre estampada no rosto, que o locutor escolheu — Acho que ele nunca apareceu aqui pela empresa.
para nota fúnebre, naquela ensolarada manhã de julho, a inesquecível: “Vinho,
mulheres e canção”, que a velha radiadora também apelidada pelos moleques de O velho agente lembrou-se que no dia anterior viu passar um enterro de um
“cachorra”, fazia troar por toda a cidade, ligada no último volume. homem chamado Luiz, mas não acreditou que uma pessoa chegada recentemen-
te à cidade fosse capaz de atrair tanta gente para segui-lo em seu último passeio
sobre a terra. Foi por não acreditar que aquele enterro fosse do procurado, que
disse ao velho:
42 — Esse nome me é totalmente estranho, mas o senhor fique descansado que se
o seu filho estiver na cidade eu o localizarei em poucos minutos.

Meio dia, a maioria dos habitantes no centro da cidade. O Sonoros Pinto Mar- — O senhor é muito gentil. Poderia me indicar um hotel?
tins, instalado de frente para a agência de ônibus, continuava a funcionar desde — Pois não, siga por esta mesma rua que à sua esquerda, antes de chegar ao
o início da manhã. Eduardo ordenara que naquele dia e nos sete seguintes, o balaústre, o senhor encontrará o “Praia Hotel”. Pode ficar lá e me aguardar que
serviço de som da cidade ficaria exclusivo dos Filgueiras Leal. logo trarei notícias do seu filho.
Diariamente chegam à cidade três ônibus vindos da capital. O primeiro ao — Desde já eu lhe sou muito grato senhor! Não sei como vou pagar-lhe esse
meio-dia, e os demais à noite. Um pequeno grupo espera a chegada do de meio- favor.
-dia que, para não fugir à regra, já está atrasado. A velha amplificadora fazia troar
o som arrastado enquanto o locutor dava uma saída para devorar uma geladi- — Não me deve nada! Vá almoçar e pode me aguardar.
nha. O sol queima o chão sujo do centro da cidade. Tudo está parado, o comércio O forasteiro dirigiu-se para o hotel enquanto o velho agente retirava uma ca-
fechado, é luto municipal. O ônibus chega às doze e meia, apenas uma parte derneta de notas do bolso e escrevia o nome: Luiz Carlos de Vasconcelos, depois,
dos passageiros desce, o restante segue para Chaval. Dentre os passageiros, salta repôs a caderneta no bolso e seguiu para a praia, tinha quase certeza o agente de
um velho homem nunca visto na cidade. Portando uma pequena valise e ves- tratar-se da mesma pessoa. Chegando à praia, o visitante entrou logo em ação
tindo-se formalmente, fica parado na calçada a observar tudo como se estivesse perguntando ao primeiro pescador que encontrou.
152 procurando alguém. Eram bem visíveis os seus sessenta, apesar de muito bem 153
conservados. Observando-o melhor, notava-se logo não ser um motivo comum — Diga-me uma coisa, pescador, como era o nome do homem que morreu
o que o trouxera ali, o seu ar era de um homem sofrido e ansioso de falar com ontem na Praia das Barreiras?
alguém. O ônibus seguiu viagem, e a calçada da agência ficou ocupada apenas — Eu não sei não! — Disse o homem — Aqui na praia, a gente chamava ele de
pelo desconhecido, que trajava um impecável terno azul e segurava uma luxuosa pernambucano, agora eu conheço uma pessoa que foi amigo dele, é o Birata. O
valise de couro cru. senhor quer ir lá? Eu lhe levo.
Chegando à casa de Birata, o velho agente comprovou as suas suspeitas. Os — Não pode ser. — Disse enfim o velho. — O meu Luiz não pode ter morri-
nomes eram exatamente os mesmos, apenas uma letra não encaixava, pois o ve- do... Eu não creio nisso, houve algum engano.
lho escrevera Luiz com S e o pescador fez questão de frisar que era com Z.
— Se o senhor quiser ver o corpo do seu filho, a gente pode desenterrar ele. —
O agente contou o que estava acontecendo e pediu ajuda aos pescadores para Prontificou-se o negro. — Ele ainda não tá podre não!
juntos darem ao velho pai a notícia do trágico fim que levara o seu filho.
— Claro que quero! Pode arranjar mais uns homens fortes e vamos para o
Rita ainda dormia a sono solto. Thania, sentada a um canto da sala, não foi cemitério, eu pago o trabalho de vocês e ainda fico eternamente grato.
vista pelos homens. Apenas Birata sabia de sua permanência ali. Thania ouviu
— Um trabalho desses ninguém faz por dinheiro, seu Antônio, pode me espe-
toda a narrativa do velho agente, não podendo conter a curiosidade, a mulata
rar aqui, que eu vou buscar mais braços.
seguiu os homens e deixou Rita sozinha curtindo a sua ressaca.
O grupo parou diante da porta de entrada do Praia Hotel e de lá viu o homem
almoçando e conversando com um dos empregados. Não parecia mais o mesmo
o simpático homem, agora ria e agitava os braços descrevendo a sua viagem 43
de Pernambuco até Camocim. Ao ver o grupo diante da porta e reconhecendo
o agente da empresa de ônibus, o velho levantou-se e dirigiu-se para o grupo
exclamando: Lá de onde estava, na praia, Raquel foi quem mais se incomodou com as mú-
sicas do Sonoros Pinto Martins. Ela, com exceção dos que são parentes, não que-
— Que boas notícias me traz o tão bom cavalheiro?
ria ouvir nenhum elogio sobre o marido, pelo contrário, de todos os que não gos-
O grupo estava muito sério, e sua seriedade fez logo o simpático homem tavam do fúnebre som, não apelou para o algodão nos ouvidos, permanecendo
abandonar o riso dos lábios. Olharam-se por instantes os dois homens, a tensão indiferente ao que ouvia.
foi quebrada pelo agente.
Na casa dos Filgueiras, tudo corria sem nenhuma alteração. Acontecia apenas
— Esses homens e essa mulher foram amigos do seu filho. o que é de acontecer antes de um enterro sofisticado. Coube a Justino, a Saul e a
O velho olhou para os dois homens de cima abaixo, parou a vista em Thania Eduardo receberem as incontáveis condolências de amigos, e, a todos ou quase
e depois disse. todos, tinham que dar a mesma resposta sobre Raquel. — Ela passou mal, por
isso tivemos de mandá-la para a casa de um amigo fora da cidade, está sob cuida-
— Muito prazer! Meu nome é Antônio de Vasconcelos. Mas como foram ami- dos médicos. — Essa mentira ficava mais a cargo de Eduardo, que de certa forma
gos? Não são mais? Por qual motivo? imaginava ser isso verdade.
Birata não conhecia rodeios. Aquele trágico dia foi para Raquel e Ricardina o dia da aproximação. Raquel
— Porque o seu filho já morreu, seu Antônio, nós enterramos ele ontem à contou para a futura nora a sua vida, prendendo-se mais na segunda parte, ou
tarde. seja, depois que casou com Edmundo. Afirmou a viúva para a nora que depois
de saber do assassinato cometido pelo marido e de ter-se negado por tanto tem-
O velho Antônio ao ouvir essas palavras, sentou-se na cadeira postada às
po a entregar a parte da herança a quem de direito, ela decidira não mais voltar
suas costas, enquanto seu rosto tomava uma expressão de sofrimento. Passava
a morar juntamente com ele. Disse enfim — pedindo segredo. — Que achava o
as mãos no rosto como que dele tentando retirar uma má ideia. Olhava ao grupo
suicídio do marido a saída mais lógica e mais inteligente para a situação.
com olhos muito abertos como a perguntar como tinha acontecido. O negro Bira-
ta, depois de uma pausa, continuou. Capitão Pedro, naquele dia, quase não falou com Ricardina. Contou-lhe ape-
154 nas o que Justino lhe pedira para contar sobre o testamento. E, com Raquel, ape- 155
— Ele foi encontrado morto na Praia das Barreiras, ele era gente muito boa, a
nas trocou vagas palavras. Passou a manhã inteira sentado no alpendre a olhar
gente fez um enterro decente pra ele, com igreja, água benta e tudo, até discurso
o mar. Pela manhã, logo no início do dia, Capitão Pedro inventara um pretexto
teve.
e saiu de casa, saiu por sair, somente para ficar sozinho em algum lugar. Depois
O velho pasmado ouvia o que dizia o negro, que somente silenciou quando de andar até as proximidades do velho farol, o pescador voltou para casa e ficou
grossas lágrimas banhavam o rosto do velho pai. sentado no alpendre, mais sombrio do que nunca.
O sol já pendia para o ocaso quando Birata, outros dois pescadores e Thania — Pois faça da fraqueza a força e vá ao enterro do seu marido, pense no sofri-
chegaram à porta do alpendre procurando pelo Capitão. O pescador, ao vê-los, mento dos seus filhos e receba-o numa divisão. Eles devem estar desesperados e
levantou-se e foi ao seu encontro, em vez de mandá-los entrar, fê-los afastarem essa sua atitude só vai fazê-los sofrer mais ainda. Está certo que a senhora sinta-
até à praia. Lá chegando, o velho justificou-se dizendo: -se revoltada com o que andou aprontando o seu marido; mas agora chega, Dona
Raquel! Ele está morto e a senhora nunca vai poder negar que ele foi um bom pai
— Estou com visita de cerimônia.
e melhor marido ainda.
— Quem? — Quis saber Birata.
Raquel, ao ouvir as palavras do velho pescador, retomou o seu antigo ar de
— A viúva do prefeito. submissão. De cabeça baixa a mulher chorava enquanto o velho pescador dava
Birata apressou-se em mudar de assunto. continuidade às suas palavras.

— Capitão, o pai do pernambucano está na terra. — Quanto a você, Ricardina, trate de se arrumar adequadamente e vá ficar do
lado de Justino, pois ele deve estar precisando muito de apoio. Pelo Saul, eu la-
— E o que tem isso? mento que na hora do último adeus ele não tenha nenhum ombro para apoiar-se.
— Ele e quer ver o filho. Eu não vou ao enterro, mas se lá não vou é que coisa de maior carência eu tenho
para fazer.
— E vocês não disseram a ele que isso não é mais possível?
Ricardina, vendo o pai de posse da enxada, perguntou:
— Ele quer que a gente desenterre o corpo.
— Para onde o senhor vai com essa enxada, papai?
— A gente não, vocês! Não contem comigo.
— Vou para o cemitério desenterrar o homem que morreu ontem nas Barrei-
— É que a gente precisa de ajuda e pensou que o Capitão nos ajudasse, o ho-
ras. O pai dele, que eu nem conheço ainda, está aqui e quer vê-lo.
mem lá no hotel tão triste, com vontade de ver o filho mesmo morto, falou até em
pagamento, mas a gente não quer nada. — Coitado!
— Está bem, Birata, eu vou com vocês. Me esperem aqui mesmo! O velho pescador saiu sem olhar para Raquel, enquanto Ricardina tratava de
preparar-se para sair também,
O velho pescador mostrara-se naquele dia sempre irritado, não concordava
com a atitude de Raquel, não entendia como podia uma mulher viver trinta anos Ao mesmo tempo que Capitão Pedro saía para o alpendre, um carro parou
na companhia de um homem e num belo dia joga-lhe os pés daquele jeito. Sem em sua frente e dele desceram Justino e a caseira Matilde, ela trazia nos braços
querer vê-lo, nem mesmo sabendo que seria pela última vez. Ele sim, sentia-se um negro vestido para Raquel. Os dois passaram pelo velho pescador e segui-
cheio de razões para não querer ir ao enterro do prefeito, mas ela não, afinal de ram direto para o interior da casa. Lá chegando, Raquel, ainda desfeita em lágri-
contas, Edmundo sempre fora um bom marido e ela precisava se conscientizar mas, abraçou o filho chorando em grande pranto. O moço, não querendo soluçar,
dessa verdade. Agora que ele tinha um bom pretexto para se livrar daquele ato apartou-se dos braços da mãe e disse limpando os olhos:
de piedade cristã, no dizer do velho locutor, ia dizer-lhe umas boas verdades.
— Mãe, a hora se aproxima, logo mais será a missa e depois a separação. Va-
Entrando em casa, o velho pescador foi direto ao armador onde estava sua mos lá?
camisa, retirou-a e vestiu-a, depois pegou uma enxada e foi até a sala onde as
— Vamos, meu filho! Eu e Ricardina já estávamos de saída. — Mentiu.
duas mulheres conversavam.
O pescador seguira Justino e a criada, e do lado da filha assistia a todo o de-
— Dona Raquel. — Disse com voz áspera. — A senhora não vai para o enterro
senrolar da cena entre a viúva e o filho.
156 do seu marido? 157
—Você não vai, Capitão?
— Para que, Senhor Pedro?
— Não, Justino. Eu tenho um trabalho muito duro para esta tarde.
— Para mostrar a ele, aos seus filhos e a si própria que esses vinte e tantos
anos de vida em comum não foram inúteis. — Esse trabalho não pode ser adiado?
— Eu estou me sentindo muita fraca e indisposta. — Não.
— E por quê? — Psiu! — Fez o velho Pedro. — Você não vê o estado do homem? Está aí a
—Trata-se daquele homem que foi encontrado morto ontem nas Barreiras, chorar roendo as unhas e você me vem falar em cachaça! Se não aguentar, sente-
o pai dele chegou por acaso exatamente hoje, e ao saber que o filho está morto, -se aí ou vá embora, aqui ninguém vai beber cachaça hoje, as de ontem já foram
resolveu vê-lo, e eu juntamente com outros homens vamos desenterrá-lo. suficientes.

— Negócio estranho! — Disse o moço se retirando na companhia das três Birata resignou-se com a falta da cachaça e deu continuidade ao trabalho. Es-
mulheres. forço maior que no dia anterior não estavam fazendo os pescadores, pois a terra
estava frouxa, tinham apenas que retirá-la de sobre o corpo.
O grupo saiu em direção do carro e Capitão Pedro os seguiu sem entender
se Raquel ia para ver o marido morto ou ia apenas para assistir mais uma missa. De nada adiantaram os esforços do Capitão Pedro em agilizar o serviço. Em
Após passarem pelo hotel e fazerem-se acompanhar pelo pai de Luiz, os vão, o velho pescador tentou descobrir logo o caixão e satisfazer o desejo do ve-
pescadores seguram para o cemitério. Ao passarem próximo à casa do prefeito, lho pai de Luiz antes que o enterro do prefeito entrasse no cemitério. Foi grande
grande multidão amontoava-se por toda a rua. Carros estacionavam por ruas o seu susto ao constatar que as coisas começavam a acontecer exatamente como
adjacentes à dos Filgueiras Leal. ele temia. A multidão apinhava-se sobre os túmulos vizinhos ao de Luiz e de
Edmundo para a tudo assistir.
Thania não pôde esconder a curiosidade ao ver pequenos grupos de homens
vestidos de ternos pretos. Do fundo buraco, mal feito e morno, o caixão com o corpo de Luiz foi retirado
e posto sobre o amontoado de areia úmida, enquanto ao seu lado, homens de
— Birata! — Chamou ela. — Quem são esses homens que se vestem do mes-
caras trancadas e vestidos em ternos pretos, colocavam um outro caixão bem
mo jeito?
diferente pelo luxo com o corpo do prefeito, sobre a alta caixa do túmulo dos
— É que eles pertencem a uma tal sociedade secreta da qual o prefeito tam- Filgueiras Leal.
bém fazia parte. Mas eu não lembro o nome não.
O velho Antônio de Vasconcelos era a única pessoa no cemitério que parecia
— São certamente maçons. — Disse Antônio de Vasconcelos, passando o len-
não ver outra coisa a não ser o caixão onde o filho estava depositado. Mal os
ço nos olhos.
pescadores o puseram sobre a areia, o velho homem correu a abrir-lhe os ilhós, e
quando os abriu, o que lá dentro estava arrancou exclamações de todos os pesca-
dores, e um grito histérico e um gemido seguidos de soluços fizeram-se ouvir das
44 bocas de Thania e do velho Antônio de Vasconcelos. Lá estava dentro do caixão
de cedro e mangue, para quem quisesse ver, o corpo de Luiz. A posição estranha
em que se encontrava e os soluços de Thania e do velho pai chamaram a atenção
Os pescadores e o velho Antônio de Vasconcelos chegaram ao cemitério e di- de boa parte dos que seguiram o enterro do prefeito. De bruços, com o folgado
rigiram-se à sepultura de Luiz. Próximo a ela, exatamente no mesmo túmulo roupão de uma peça só e de cor marrom totalmente rasgado, jazia dentro do
onde Thania e Rita sentaram-se na tarde anterior, não um só, mas vários homens amplo caixão o corpo de Luiz. O velho Pedro estava trêmulo, de suas faces, duas
retiravam a sua grande laje de pedra onde se lia à inscrição: “Leonardo Filgueiras silenciosas lágrimas desciam para misturarem-se ao suor e perderem-se entre os
e Família”. alvos cabelos de sua barba. Sentia-se tonto e por todo o seu corpo o suor escorria.
O velho Antônio de Vasconcelos mostrava-se visivelmente nervoso quando os Birata, ao ver aquilo, livrou-se de Thania, que soluçava apoiada em seu om-
pescadores iniciaram a escavação da cova de Luiz. O suor em grande quantidade bro, e dirigiu-se para o caixão e tratou de desemborcar o corpo de Luiz. De início,
escorria pelo corpo negro de Birata. o negro apenas tocou o corpo com os dedos, pensando estar ele a decompor-se,
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O negro, inquieto e apressado, não por concluir o trabalho de escavação, mas depois, com menos receio, passou levemente a mão sobre a costa nua de Luiz e
por outro motivo, sentia-se tão impaciente a ponto de não aguentar sem falar ao afastou-se de um salto. A costa estava morna e ensopada de suor. Com os olhos
Capitão Pedro: como a querer sair das órbitas, as pernas abertas e as mãos pendidas para a frente
em direção ao solo, o negro olhou para Thania e disse:
— Capitão, eu não aguento mais! Fazer um serviço ordinário desses sem ca-
chaça, não tem quem aguente. — Thania, você ontem a noite disse a verdade.
Com exceção dos pescadores que foram ao enterro no dia anterior, ninguém Pedro. Saul e Justino passaram todo o dia ao lado do corpo do pai, no entanto pa-
entendeu outro grito de dor que a mulata soltou como se tivesse recebido em seu reciam não acreditar naquela trágica realidade. Raquel, depois de ouvir o que lhe
seio um talho de gilete. Depois de alguns instantes de indecisão, o negro resol- disse o velho pescador, não mais parou de chorar. Foi como se o velho tivesse lhe
veu desemborcar o corpo de Luiz. Na primeira investida, Birata teve a impressão aberto os olhos para a verdadeira gravidade da coisa. Estavam todos no alpendre
de estar o corpo colado à madeira, mas com um só puxão, colocou-o na posição da casa do pescador, quando silenciosamente o negro Birata entrou, retirando o
normal. chapéu da cabeça falou para Pedro como se somente a ele estivesse vendo.
O sofrido Antônio de Vasconcelos, ao ver o rosto do filho, achegou-se para o — Boa noite, Capitão! Eu vim aqui lhe pedir um favor.
caixão, ajoelhou-se sobre a areia, deixou o corpo pender em direção ao morto,
apoiou-se na beira do caixão e deixou que as lágrimas ensopassem o tórax cabe- — O que é desta vez, Birata?
ludo do filho. A comoção não ficou somente com o pai de Luiz, e sim com todos — Eu queria que o senhor me emprestasse à Estrela d’Alva. Eu tô querendo
os que presenciavam o desenrolar da cena. dar um passeio e ela é mais fácil de governar que à minha.
Os dedos de Luiz, principalmente os polegares e os indicadores, estavam su- — Tá bem, Birata! Ela está lá no ponto, agora eu quero lhe lembrar que ama-
jos de sangue, e, entre todas as unhas, pequenas ferpas de madeira estavam en- nhã é dia de pescaria e eu vou sair muito cedo para o mar.
cravadas.
— Não se preocupe, Capitão, é só um passeio!
Os homens de ternos pretos, sinceramente consternados, excedendo-se, tal-
vez o vice-prefeito, por nenhum momento interromperam a cerimônia do enterro O negro pegou os remos que estavam a um canto e seguiu para a praia. Saiu
do prefeito, e ao concluírem, saíram todos, deixando no cemitério a maioria do sem uma palavra e deixou todos mergulhados no mesmo silêncio de minutos
povo, ou seja, a chamada “arraia miúda”, no constante dizer do extinto Edmun- antes. Justino sentiu-se terrivelmente mal ao ver o negro pescador que fora seu
do. amigo. Agora, sentia que nem ele, nem Birata, tinham mais coragem de se olha-
rem cara a cara depois do que acontecera. Era cedo da noite, mas a praia estava
O velho Antônio de Vasconcelos chorava aos prantos e falava como se o filho quase deserta. De onde estava, Justino via apenas alguns vultos se moverem uma
o estivesse ouvindo. vez por outra entre a enfieira de canoas próxima às águas. Pouco tempo depois
— Você não podia ter feito isto, Luiz.... Você não podia ter saído por esse que Birata saiu, o silêncio foi quebrado pelo moleque Alcindo, vindo da praia a
mundo sozinho. Se você estivesse em casa na companhia do seu pai, nada disso gritar para o velho pescador.
teria acontecido... Eu sabia que longe de mim você terminaria assim. Eu sabia...
— Capitão Pedro! Capitão Pedro! O Birata saiu na Estrela d’Alva, e depois que
Eu sabia de tudo... Eu sempre soube desse seu maldito destino.
ele saiu, eu vi o Vinte-Nove-Trinta sair atrás dele noutra canoa.
A maioria dos que foram ao enterro do prefeito já haviam se retirado do ce-
— Deixa de conversa, menino! Esse homem a essa hora está muito longe da-
mitério. Apenas a família e alguns amigos mais chegados cercavam o túmulo
qui.
quando Ricardina viu o pai próximo à cova aberta de Luiz. Ao notar que o pai
não passava bem, a moça largou-se da mão de Justino e foi ao seu encontro. — Eu juro, Capitão! Era o Vinte-Nove-Trinta, tinha muita gente na praia, tal-
vez outras pessoas tenham visto também.
— Papai, o senhor não está bem, o que se passa aqui?
— Vai procurar dormir, menino! Ralhou o pescador.
— Esse homem, minha filha! Ele foi enterrado vivo, mas agora acabou tudo.
— E abraçou a Ricardina soluçando. O velho pescador não deu crédito ao que dissera Alcindo, mas mesmo assim
olhou para o mar tentando divisar alguma coisa sobre suas águas, mas nada viu,
tudo era escuridão naquela noite, nem sequer candeeiros a tremeluzir do outro
160 lado do Rio da Cruz. 161
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O moleque saiu correndo pela beira da praia escura deixando o velho confuso.
Por pouco tempo ainda permaneciam todos no alpendre. Quando Justino
Enquanto Thania, na casa de Birata, relatava a Rita tudo o que presenciara no decidiu que todos deveriam ir dormir em casa, nenhuma objeção foi apresenta-
cemitério, os Filgueiras Leal choravam a morte de Edmundo na casa do Capitão da; Raquel, decididamente, retomara o seu antigo comportamento de submis-
são. Logo que os Filgueiras Leal partiram, Ricardina seguiu para o seu quarto, realmente não mais existia. A Estrela d’Alva, totalmente destruída, estava sobre
deixando Capitão Pedro sozinho no alpendre a esperar a volta do negro Birata. as negras pedras em frente ao farol. Capitão Pedro pegava tábua por tábua de sua
O velho pescador ficou no alpendre até a meia-noite. O vento frio vindo do mar canoa e em algumas delas descobriu a presença de manchas de sangue.
assanhava-lhe os cabelos brancos e arrepiava-lhe os pelos do corpo. Tinha o ve-
Os pescadores, ao verem as manchas de sangue nas tábuas da canoa, ficaram
lho pescador a certeza de que alguma coisa havia acontecido com Birata, pois há em silêncio a se olharem aterrorizados. Foi o Capitão Pedro quem quebrou o
muito se conheciam e nunca Birata falhara ao que prometia. Se ele disse que ia silêncio dizendo:
somente dar um passeio, é que só ia dar um passeio. Dizia, de si para si, o velho
pescador. A lembrança de Luiz agitando-se dentro do caixão coberto de areia, a — Eu me lembro bem do dia que o Cavalo Marinho saiu do mar, foi o Birata
morte de Edmundo tão repentina e escolhida por si próprio e agora aquela demo- quem mais trabalhou para expulsar o bicho, não sabia o coitado que seria exata-
ra do Birata, trouxeram ao velho um sentimento até então nunca sentido. Era o mente ele a levá-lo de volta para o mar.
medo. Um medo grande de ficar exposto ali naquele alpendre fez o velho entrar e — O Capitão agora acredita? — Perguntou um dos homens.
deitar-se, embora não lhe viesse o sono. Depois de muito retorcer-se no leito, Ca-
— Eu sempre acreditei, apenas tentei negar a mim mesmo esse absurdo, mas
pitão Pedro seguiu para a praia onde muitos pescadores já se preparavam para
agora eu já não tenho mais motivo para isso.
entrar no mar. A maioria deles ao saberem da longa demora de Birata, desistira
de sair para a pesca, mas não desistira de ir ao mar. Alguns sentiam a grande — O Birata era um negro bom! — Gemeu o moleque Alcindo.
necessidade de encontrar o companheiro desaparecido, outros sentiam apenas
— Eu espero que Deus tenha piedade da alma do mais valente de todos os
a curiosidade de saber o que realmente estava acontecendo. Mas o certo é que
pescadores que já apareceram nesta praia!
todos os pessimistas homens do mar esperavam o pior. Nunca na praia se ouviu
falar que um pescador houvesse saído para um passeio e não tivesse voltado, Era a prece de um pescador anônimo.
mas os casos de pescadores que saíram para o trabalho e não mais voltaram com
o resultado de suas pescarias eram incontáveis, sendo encontrados muito tempo
depois em praias longínquas apenas os destroços de suas frágeis embarcações.
Alguns pescadores, fingindo indiferença, seguiram para suas pescarias no alto 46
mar, mas eles também estavam curiosos e receosos com o que estava aconte-
cendo e de suas canoas ficavam sempre alertas tentando divisar pelos arredores
algum sinal da Estrela d’Alva do Capitão Pedro. Rita, desde a morte de Luiz e a destruição do Terra e Mar, resolveu ir embo-
ra da cidade. Não tinha nenhum destino certo, mas também não tinha nenhum
Por todo o dia, alguns pescadores navegaram por todos os estreitos e cauda- motivo para ficar ali. Vendo a sergipana a cegueira moral existente na cidade
losos braços do Rio da Cruz, mas nada encontraram. À noite, em toda a praia já contra as mulheres de vida igual à sua, descobriu que ali não havia nenhuma
se sabia do desaparecimento de Birata e do aparecimento do Vinte-Nove-Trinta. condição de sobrevivência. Não era mulher para acoitar-se entre destroços de
Quando a conversa do aparecimento do cáften surgiu, ninguém lhe deu crédito, trapiches como faziam todas as outras antes de existir o Terra e Mar, agora que
talvez por ser ela contada por quem foi, um reles moleque de beira de praia, mas ele já é somente ruínas, elas teriam que fazer o que Rita estava decidida a fazer
com a demora apareceram os asseveradores para a conversa espalhada por Al- ou teriam de aceitar a ideia de voltar a acoitarem-se nas noites escuras e miste-
cindo. De tudo fizeram para localizar Birata, todas as suas crendices foram postas riosas pela orla marítima atrás das popas das canoas. No dia seguinte, quando
em prática, alguns recorreram a terreiros de macumba, outros ao padre João José. se comprovou o misterioso desaparecimento de Birata, Rita contou para Thania
Pediram-lhe rezas e muita água benta e nada lhes foi negado pelo padre. Durante a sua decisão.
quatro dias, todo o povo da praia voltou suas mentes para o desaparecimento de
Birata. Procuraram-no por todos os arredores, e na tarde do quarto dia foi Al- — E quando você pretende dar o fora? — Perguntou Thania de cabeça baixa.
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cindo quem chegou na praia aos berros dizendo ter visto os destroços da Estrela — Amanhã, antes do sol sair, eu vou de trem.
d’Alva em frente ao Farol Sem Nome.
— Rita, eu tava pensando num negócio.
Ao ouvirem a narrativa de Alcindo, que empolgado com a nova descoberta e
— Que negócio?
com a vitória de não sair mentiroso, exagerava nos detalhes. Grande número de
pescadores se dirigiu para o velho farol, lá chegando, comprovaram que Birata — Eu só ainda não tinha te dito por causa dessas coisas que aconteceram.
— Vamos, Thania, diz logo que negócio é esse que tu tem na cabeça! trabalhar, eu e dois filhos dele teria morrido de fome, agora a única coisa que ele
deixou eu não vou deixar égua nenhuma tomar.
— Eu tinha pensado que a gente podia mudar de vida e levantar o Terra e Mar
e fazer dele uma casa familiar. A mulher tinha razão, e as duas não encontraram mais argumentos para da-
rem continuidade à discussão. Depois de um curto tempo, Rita curvou-se para
— Pensamento bobo esse teu, Thania. — Cortou a sergipana. — Tu sabe que juntar suas roupas em um canto da sala. Após a apanha das roupas, olhou para a
sem ajuda de alguém, nós nunca poderíamos fazer um negócio destes. mulher e disse em tom delicado:
— Se você não quer, que que eu posso fazer? Eu sei que consigo, você vai ter — A gente já estava de saída, eu vou embora amanhã, e ela — apontou para
notícia do que vai ser o Terra e Mar. Thania — vai arrumar algum logo para ficar, as coisas dela podem ficar aqui até
— Eu acho isso uma ideia maluca, principalmente quando é ideia de uma pes- amanhã?
soa que não sabe quase nem assinar o nome e não tem nem um tostão no bolso. Não! Foi a resposta da negra viúva.
Thania chorava de cabeça baixa, ela sabia que a amiga tinha razão, tentava Thania nada disse, apanhou suas coisas e na companhia de Rita saiu direto
apenas arranjar um motivo para que Rita ficasse. Depois de um pequeno interva- para a estação ferroviária.
lo, a mulata resolveu perguntar: Passaram em frente do Terra e Mar e, sem nenhum comentário, pararam em
— Você já sabe para onde vai? sua porta escancarada. Tudo permanecia do mesmo jeito desde o dia do que-
bra-quebra. Cadeiras quebradas, cacos de garrafa, retalhos de cortinas e toalhas
— Para ser franca, eu não sei não! O mais certo é que eu vá mesmo para Sergi- cobriam todo o chão do cabaré.
pe, exatamente para o mesmo lugar de onde eu saí com o Luiz.
Depois de uma noite inteira sentadas na sala de entrada da gare, as duas mu-
— Você é à única pessoa que ainda me resta. lheres levantaram-se e seguiram em direção ao trem. Chegando diante da porta
— Então te arruma e vamos juntas! do carro, de primeira, Rita entrou sem despedir-se de Thania.

— Não, o meu lugar é aqui mesmo, eu nunca saí daqui, eu acho que nem ia Por alguns minutos a mulata ainda esperou que a cabeça de Rita surgisse na
saber entrar no trem. Sina é coisa que ninguém muda, o Birata me disse isso mui- janela do vagão, mas terminou por desistir e saiu da estação sem saber para onde
ir.
tas vezes, eu vou me acabar aqui mesmo nesta beira de praia.
O trem partiu, Rita nunca viajara desacompanhada e sentiu vontade de con-
A noite escureceu toda a praia. Na sala da pequena casa, as duas mulheres
versar com alguém, olhou para o lado e o lugar estava vazio. Somente em sua
conversavam quando uma negra tão alta quanto Birata entrou de uma vez na
frente, numa poltrona de forro vermelho e estragado, estava sentado um velho
sala perguntando.
homem que, apesar do ar triste estampado no rosto, não deixava de parecer sim-
— Quem são vocês? pático. Trajava um temo azul e sobre as pernas segurava uma valise de couro cru.
Em seu bolso direito, na altura do peito, uma pequena escumilha de pano preto
Rita, assustada, levantou-se dizendo: estava pregada em sinal de luto. Chamava-se ele Antônio de Vasconcelos.
— Somos amigas de Birata. Foi ele quem nos trouxe pra cá. Os primeiros raios do dia já raiavam no nascente. Thania sentada na calçada
— Eu perguntei quem são vocês! do Terra e Mar ainda ouviu um longínquo apito do trem que levava Rita. As lágri-
mas lhe banhavam o rosto.
— E eu já respondi! Não espere outra resposta,
O dia já raiara de todo, e com o novo dia o velho locutor do Sonoro Pinto Mar-
— Vocês estão é com medo de dizer que são umas putas e que estavam aman- tins deu início às suas fúnebres atividades.
164 cebadas com ele. 165
Thania era filha da terra, e por isso não ignorava aquele som. Sabia que era
— Olha aqui, sua macaca preta, — Disse Thania levantando-se ofendida. — um convite para a missa de sétimo dia. Não sabia, porém, a mulata, se essa missa,
Você não tem o direito de falar assim com a gente. era pela alma do prefeito ou pela do pernambucano, pois ambos morreram no
mesmo dia, embora um deles tenha sido enterrado vinte quatro horas antes.
— Vão embora dessa casa! O Birata era meu homem de papel passado no
padre e no juiz. Me largou passando fome por causa de vocês, se eu não soubesse Nada mais falta acontecer sobre a terra.
Figura 1 - Estação Ferroviária de Camocim. Posfácio da editora

Foto: Domínio Público.

Figura 2 - Igreja da Matriz e Prefeitura Municipal ao fundo.

Fonte: Arquivo Francisco Olivar.

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