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Referência: MARTINS, ELizabeth Dias ; PONTES, Roberto .

Akpalôs africanos e cantadores nordestinos:


remanescências culturais. In: ARAÚJO, H. H. de; OLIVEIRA, I. T. de. (Org.). Regionalismo, modernização e crítica
social na literatura brasileira. 1ed.São Paulo: Nankin Editorial, 2010, v. 1, p. 243-252.

AKPALÔS AFRICANOS E CANTADORES NORDESTINOS: REMANESCÊNCIAS


CULTURAIS1

Elizabeth Dias Martins2


Roberto Pontes3

DE PROPÓSITOS E CONCEITOS

O presente trabalho tem por fim apontar as remanescências culturais provenientes dos
contadores de história da tradição africana que, ao lado da ibérica, concorreu para a residualização
tanto do modelo de cantador quanto do de cordelista encontráveis na cultura popular do Brasil.
Com Manuel Diégues Júnior e Câmara Cascudo, podemos associar os akpalô africanos aos
contadores de história do medievo português, e também aos cantadores e cordelistas nordestinos.
Mas, atualmente, o conceito de oratura tornou-se o de melhor extração científica para qualificar o
modo de expressão dos narradores populares.
Iniciamos estas considerações partindo da idéia de Bakthine de que todo texto verbal
apresenta dimensão constitutiva de relações dialógicas com outros. Acresceremos, porém, a
seguinte observação: esse dialogismo no campo da oratura se dá, não apenas na superficialidade
do texto, no entrecruzamento discursivo do que se costuma designar como intertextualidade.
Se o referido dialogismo for entendido como encontro de linguagens, para nós, o fenômeno
apontado será o da residualidade, resultante de um processo de hibridismo cultural, tônica do
raciocínio a ser seguido em nosso trabalho, no rastro do mesmo procedimento teórico e
metodológico já empregado por nós noutras ocasiões,
Compreendemos residualidade como toda remanescência de uma cultura em outra,
independente de espaço e tempo; e hibridação cultural como a diversidade de produtos culturais de
naturezas heterogêneas, constitutivas da riqueza criativa de um povo que interage com outros no
curso da história.

1
Texto publicado em MARTINS, ELizabeth Dias ; PONTES, Roberto . Akpalôs africanos e cantadores nordestinos:
remanescências culturais. In: ARAÚJO, Humberto Hermenegildo de; OLIVEIRA, Irenísia Torres de. (Org.).
Regionalismo, modernização e crítica social na literatura brasileira. 1ed.São Paulo: Nankin Editorial, 2010, v. 1, p.
243-252.
2
Professora Adjunta IV do Departamento de Literatura e do Programa de Pós-Graduação em Literatura da
Universidade Federal do Ceará. Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Rio.
3
Professor Associado II do Departamento de Literatura e do Programa de Pós-Graduação em Literatura da
Universidade Federal do Ceará. Doutor em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Rio.
Referência: MARTINS, ELizabeth Dias ; PONTES, Roberto . Akpalôs africanos e cantadores nordestinos:
remanescências culturais. In: ARAÚJO, H. H. de; OLIVEIRA, I. T. de. (Org.). Regionalismo, modernização e crítica
social na literatura brasileira. 1ed.São Paulo: Nankin Editorial, 2010, v. 1, p. 243-252.

O fato residual se dá de maneira profunda e consistente, desde que ocorre no plano das
mentalidades, e não pode ser pensado sem o concurso do conceito de cristalização, que implica na
revivificação de dado resíduo através de um polimento estético. Já a hibridação cultural substitui,
com vantagem, a desgastada lexia sincretismo, ressaltando com clareza a formação das culturas
novas por meio da transmissão de padrões culturais, desde a Antiguidade mais remota até os dias
em curso. E não passa pela nossa mente, ao assim nos posicionarmos, o conceito em voga de
globalização.

ORATURA, GRIOTES, CANTADORES E CORDELISTAS

Sabe-se que a literatura considerada autenticamente africana é aquela provinda da oralidade


nativa, “necessariamente anônima”, e “que a língua escrita da África é, na sua quase totalidade, de
influência árabe ou secundariamente proveniente dos brancos das colônias” (RAMOS, 2007,
p.138).
Não podemos deixar de fazer um reparo ao asseverado por Arthur Ramos, pois suas
palavras datam ainda do período colonial, sendo muito diversa a situação da literatura africana
hoje, especialmente a da produzida em língua portuguesa, que aqui nos interessa de perto.
Outra observação a ser feita é atinente ao conceito de oratura (BROOKSHAW, 1990), que
vem substituir a inadequada expressão „‟literatura oral‟‟, de proveniência francesa, que até mesmo
Câmara Cascudo e Arthur Ramos empregaram largamente. Essa impropriedade ocorre, tendo em
vista que a palavra literatura, etimologicamente, significa conjunto de escritos, enquanto oratura
diz respeito ao conjunto de palavras faladas. Portanto, entenda-se por literatura a produção
artística dos povos através da grafia e, por oratura, o conjunto das manifestações orais que estes
produzem.
David Brookshaw foi quem nos forneceu uma reflexão primeira, a partir do olhar africano
sobre o assunto. Suas palavras estão num artigo publicado na revista Angolê –Artes, letras e idéias,
editada em Angola, país onde talvez a literatura em Língua Portuguesa haja mais se desenvolvido.
As idéias de Brookshaw emergem de um mergulho que ele dialeticamente efetua “da oralidade à
literatura e da literatura à oralidade”, sintagma-título do referido artigo.
Escreve ele no começo de seu texto:

À primeira vista, o conceito de literatura escrita incorporando aspectos de


uma tradição oral pré-existente, não deve aparecer individualmente complexo,
quanto mais se tratar de uma literatura africana, na qual as tradições orais e a própria
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oralidade – isto é, a arte do discurso narrativo vocal, ou simplesmente a arte de


“contar” – andam tão frescas na memória cultural de muitos escritores.
(BROOKSHAW, p.30)

Para Brookkshaw, a incorporação da oralidade pela literatura escrita não parece complexa,
porque entre os africanos a oralidade chega a ser algo tão natural que continua “fresca na memória
cultural de muitos escritores”. A seguir, revela seu intuito de “não reduzir a importância da
tradição oral, expressão da realidade angolana”, que muito contribui com “a definição de sua
identidade nacional”. Observa então que:

Gostaria de adotar uma abordagem mais global e considerar também a ficção


narrativa angolana no contexto da evolução do romance, conto ou novela como
gêneros literários. Posto isto de outra maneira, abordarei o problema de duas
perspectivas diferentes: a da tradição oral africana e a da tradição literária européia
ou ocidental. Neste processo, tentarei demonstrar como a tradição oral foi, e é tão
importante para a literatura européia quanto para a literatura africana.
(BROOKSHAW, p.30)

Portanto, como se pode notar, a compreensão da oratura por Brookshaw parte de uma
situação contextualizada, de uma endoculturação arraigada na arte de contar, de uma cosmovisão
muito própria que valoriza em grau primeiro as “formas simples” tão bem identificadas e fixadas
por André Jolles já em 1930.
Só podemos concordar com Brookshaw quando ressalta com muita propriedade que:

Tal como está acontecendo na literatura da África pós-colonial, a história


literária européia foi marcada por épocas em que o material popular e as técnicas da
narração oral (a oralidade), foram incorporados na literatura escrita, pela mesma
razão que estão agora sendo integrados na literatura escrita do continente africano,
sendo esta razão o desejo de encontrar uma expressão de autenticidade nacional.
Nem é de todo fortuito que a inclusão de material de origem popular na literatura, o
uso do vernáculo no discurso literário (até a ponto de reinventar a própria
linguagem), tenham muitas vezes ocorrido em literaturas européias como tem
acontecido nas literaturas da América Latina e da África, em vésperas de períodos
de mudança política e social. Para ilustrar este fato, basta recordar que o
Romantismo na Europa, movimento que deu valor, dentro das limitações da época,
às culturas populares, e temas de história nacional, coincidiu com o colapso dos
regimes absolutistas e a emergência do liberalismo, ou que o Modernismo, no
Brasil, movimento de nativismo cultural, acompanhou o surgimento da esquerda
política nos anos 20 e 30 do século XX. (BROOKSHAW, p.30)

E Brookshaw prossegue em sua bem centrada análise:


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Quando pensamos no romance ocidental, tendemos a julgar tudo a partir da


narrativa realista do século XIX, como se ela constituísse uma espécie de protótipo.
Nela, o narrador é invisível, sendo a sua função a de observar e registrar
acontecimentos, de servir como intermediário impassível entre a realidade de um
mundo observado e seus leitores. No entanto, o realismo concebido no século XIX,
não passou de uma fase na evolução da ficção em prosa. Há uma tradição muito
mais arraigada de o autor participar da trama de sua obra, como acontece na
narrativa oral, interpretando os acontecimentos desde o interior da ação, e quando
necessário, dirigindo-se diretamente ao seu público. As formas confessionais da
literatura em prosa, começando com o romance picaresco do século XVI, e
chegando até os nossos dias num romance como Manana de Uanhenga Xitu,
exemplificam esta tendência oralizante na literatura. No século XX, especificamente
a partir do Modernismo, houve um empenho mais ou menos forte e consciente de
cultivar a oralidade no romance ocidental, quer em termos lingüísticos
(popularização da linguagem literária), quer em termos da multiplicidade de pontos
de vista e de leituras possíveis de um texto. Esse interesse pela oralidade produz, na
Irlanda, um Joyce, como irá dar mais tarde um Guimarães Rosa no Brasil, um
Luandino Vieira em Angola, voltando novamente para a Europa, talvez por
influência das novas literaturas latino-americanas e africanas, nas obras de escritores
mais recentes como Dinis Machado (O que diz o Molero) e José Saramago
(Memorial do convento). Ao tentar fazer o resumo da vasta influência da oralidade
sobre a literatura escrita na Europa, é importante ter em mente que não se trata de
uma questão de língua ou de forma apenas. A maior contribuição que a tradição
oral, ou a oratura (para empregar um termo em moda), tenha feito à literatura
escrita é a sua capacidade de sabotar princípios literários. (BROOKSHAW, p.30)

As considerações de Brookshaw prosseguem, traçando ele um breve panorama da narrativa


angolana que incorporou a oratura. Os trechos até aqui transcritos, embora extensos, se justificam,
pois são de difícil acesso ao interessado, além de esclarecedores. Prosseguir com os comentários do
autor trazido à colação importaria mergulhar no processo específico da literatura angolana, os quais
não cabem no presente estudo.
É, pois, chegado o momento de perguntar: – De que modo estão relacionados os narradores
populares africanos, portugueses e brasileiros?
Ora, no universo literário do qual nos ocupamos há manifestações orais de cantadores,
repentistas, emboladores de coco, e também a escrita dos cordelistas nordestinos e brasileiros,
êmulos dos contadores de estórias e dos cantores populares africanos, reunidos por Delafosse “sob
a denominação comum de griots”, aos quais se juntam ainda dançarinos, poetas e atores, segundo
informa Arthur Ramos (RAMOS, 2007, p. 139). No contexto ibérico, não podemos esquecer que a
remanescência brasileira provém dos artistas que desempenhavam função similar na Idade Média,
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a saber, os trovadores, segréis, menestréis e jograis. Esta procedência se confirma quando sabemos
que as folhas volantes portuguesas do século XV e XVI, em prosa, originaram a literatura de cordel
brasileira em verso. Como anota Diegues Júnior, a inibição do ato escrever em virtude do
analfabetismo fez da comunicação oral o mais importante instrumento de difusão literária no
Nordeste brasileiro. Graças à ação dos poetas populares e cantadores, aquelas histórias tradicionais
que Câmara Cascudo denominou “cinco livros do povo”, continuam a ser contadas e cantadas, ao
lado das estórias maravilhosas e fantásticas e dos fatos acontecidos na vida real igualmente
poetizados pela lira popular. Sobre o assunto escreve Diegues Júnior:

Tal como ainda hoje encontramos em nossas feiras, cantadores que lêem essa
literatura, constituindo-se um instrumento de comunicação dos fatos ocorridos, e
narrados nesses folhetos, também no Portugal medieval isso era costume. Havia o
hábito da leitura em grupo, em festas públicas, em romarias, em feiras. Este hábito
se encontra registrado na literatura erudita, e pelo menos dois exemplos podemos
recordar no momento. Um, no D. Quixote, onde encontramos duas referências: no
capítulo LXVI, da segunda parte, trata-se do que verá o que ler ou ouvirá o que se
escutar a ler, e no capítulo XXXII, da primeira parte, fala da leitura em uma
estalagem. Outro: em Gonzaga, uma de suas liras, a XVIII, da segunda parte, faz
referência à transmissão oral da história de contos, de cantigas. Esta influência, de
origem lusitana, da cantoria dos fatos acontecidos e da formação do grupo para
ouvir a leitura ou o canto narrado, não foi única; aqui no território brasileiro, e em
particular no Nordeste, se encontrou com uma outra forma cultural muito
semelhante: a de origem africana. Também os escravos vindos para O Brasil tinham
não somente seus trovadores como também o hábito de contar suas histórias,
cantando ou narrando; são os famosos akpalô registrados pelos especialistas em
estudos africanos no Brasil (DIEGUES, p. 10-11).

Essa profícua hibridação de culturas ocorre no espaço compreendido pelos provérbios,


adivinhações, contos populares, estórias tradicionais, exemplos, narrativas históricas, narrativas de
costumes, ditos populares e satíricos, fábulas, entre outras manifestações. No paideuma africano
esses modos artísticos (agora indicados sem corresponder aos recém-referidos) são designados por
misoso ou mi soso, jisabu ou ji-sabu, jinongonongo ou ji- nongonongo, mabunda ou ma-lunda ou
mi-sendu, maka e jiselenjenia (CASCUDO, 2006, p.162-163; RAMOS, 2007, p. 139).
Nas sociedades africanas, os responsáveis pela veiculação dos modos artísticos são os
integrantes de um sistema tradicional institucionalizado, constituintes de uma casta de narradores,
os quais, com funções diferenciadas, são denominados: ologbô (cuja função é a de chefe ou
conselheiro), arokin (espécie de homem-arquivo das tradições), akpalô (que exerce a incumbência
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de contador itinerante de alôs, isto é, contos populares) e akpalôkipatita (contador profissional de


fábulas).
Entre os europeus, a função de conservar a tradição oral cabia aos trovadores e aos demais
artistas referidos, segundo a função de cada um dentro de determinada hierarquia. A ligação desses
artistas com os cantadores, repentistas, emboladores de coco e cordelistas se dá, no contexto
africano, principalmente através da representação dos griots (denominação francófana) ou griotes
(aportugesamento devido a Câmara Cascudo). Estes, segundo informa Geoffrey Gorer constituem:

casta especial, cantando e dançando para o povo e entidades ricas. A profissão é


hereditária e essa capitalização de experiência consegue naturalmente, milagres na
representação mímica e fisionômica, inflexão de voz e posição do corpo na
personalização das figuras evocadas nas estórias. Os griotes podem ser homens ou
mulheres. Tocam o tan-tan, o balafron (espécie de xilofone), a cora (espécie de
violão), etc. Um griote deve saber muitíssimo bem a genealogia dos cidadãos mais
famosos da cidade. No mínimo até sete gerações sob pena de não ter direito ao
pagamento. E também estórias tradicionais e fábulas. [...]. Consolam, animam,
entusiasmam. Dirigem o boato, reinam nas conversações do mercado e das feiras,
consagram, atacam, defendem, felicitam, ridicularizam. (GORER apud CASCUDO,
2006, p. 164).

A descrição acima bem caberia a um repentista nordestino. Sabemos todos que nas
apresentações em feiras, fazendas, festas, congressos, praças públicas, e outros locais e ocasiões,
por meio da palavra cantada e apoiada pela viola, pelo pandeiro, pelo ganzá, pela rabeca, ou, pela
impressão na folha de papel rústico, nossos artistas populares são provocados por um mote inicial
sempre precedido de informações sobre o assunto a ser glosado, procedimento igual ao posto em
prática pelos trovadores da Idade Média européia e pelos griots africanos.
No livro Vaqueiros e cantadores, ao tratar dos antecessores dos nossos poetas populares
Câmara Cascudo os liga aos ancestrais cultores da poesia pastorícia de Grécia e Roma com registro
de improviso, que os romanos designavam amoebeum carmen4, prática não esquecida na Idade
Média européia, e muito cultivada na Provença e na Península Ibérica sob o nome de jeux-partis,
tensons ou tensó (CASCUDO, 2005, p. 185 e 187).
Enquanto na Europa os trovadores desempenhavam a mesma função, nas feiras populares
do Brasil, nas propriedades rurais e outros espaços públicos, têm presença constante e apreciada os
sucedâneos atuais dos griots e trovadores mencionados. Portanto, remanesce culturalmente nos
representantes populares da nossa cultura o mistério ancestral dos intérpretes africanos e ibéricos.

4
Segundo Caldas Aulete, no Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Amebeu quer dizer “o mesmo que
dialogado”.
Referência: MARTINS, ELizabeth Dias ; PONTES, Roberto . Akpalôs africanos e cantadores nordestinos:
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Além do instrumental citado por Geoffrey Gorer, os gestos são também marca própria do
hibridismo ocorrido. Esses recursos expressivos, de cujo universo fazem parte as mãos, os olhos, a
boca e todo o corpo, são chamados “auxiliares da narração” (RAMOS, 2007, p. 142) e se fazem
presentes até hoje na prática dos contadores daqui e d‟além mar. Ao modo dos akpalôs africanos,
as velhas negras ou amas de leite, referidas por Gilberto Freyre, José Lins do Rego (“Velha
Totonha”) e Manuel Bandeira (“Rosa”, do poema “Pasárgada”), também “diziam e agiam” no
momento de contar as histórias. Aliás, falar com todo o corpo em qualquer conversa diária é marca
singular do povo nordestino. Qualquer fato narrado sempre se acompanha de expressiva
gestualidade. Devemos a Diegues Júnior a seguinte observação acerca das negras e dos negros
narradores de história no Nordeste e da incorporação dessa habilidade por cantadores afro-
descendentes brasileiros:

As negras velhas contadoras de estórias, narradoras fecundas de décimas ou


sextilhas, aquelas mesmas de que falaram Bernardim Ribeiro, no século XVI, e
Garrett, no século XIX em Portugal, persistiram no Brasil. José Lins do Rego
recordou-nos em seu primeiro romance regional, velhas negras estranhas que iam de
engenho em engenho narrando seus cantos. E Cascudo registrou as trinta estórias
tais como lhe foram contadas por Bibi. De modo que não foi difícil fundir-se com a
lusitana a tradição africana, no encontro verificado na nova terra americana, no
Brasil. Justamente a presença de negros contadores de estórias, os bantos, foi mais
sensível no Nordeste. E decerto teriam tido eles também influência na difusão desse
hábito. Saliente-se que entre os cantadores mais conhecidos alguns são negros; e de
um negro escravo se guarda a tradição de maior cantador do Nordeste: Inácio da
Catingueira. Não é de estranhar, pois, que, encontrando-se com a tradição lusitana, a
africana a ela se fundisse; absorveram-se, reformularam-se, para dar surgimento aos
nossos cantadores, com suas peculiaridades de formação dos grupos para
comunicação dos versos (DIEGUES JÚNIOR, 1973, p. 12).

As últimas palavras do texto de Diegues confirmam justamente os processos de hibridação


cultural e cristalização que fazem parte do campo residual, tendo em vista a adaptação de padrões
lusitanos e africanos a uma nova forma cultural, a nordestina, bem delineada como uma das raízes
do modo de ser propriamente brasileiro.
Recentemente, Nei Lopes, intelectual negro brasileiro que se ombreia em valor e cultura a
Mário de Andrade, enfatiza:

A arte poética da cantoria nordestina, com seus desafios e pelejas,


sempre refletiu o meio onde se desenvolve e nele se viu refletida: as alegrias e
tristezas, as preferências e idiossincrasias do nordestino se fazem presentes nessa
admirável forma de arte. Assim, as expressões do preconceito antinegro são
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recorrentes em toda essa produção, sobretudo na que remonta ao século XIX e aos
primeiros anos do século XX, bem próximo que estava, ainda dos tempos do
escravismo e do apogeu da ordem patriarcal. Foi nesse contexto que surgiram os
cantadores negros, hoje legendários, de tempos em tempos desafiados a defender,
em versos improvisados, sua ultrajada condição étnica. Pertencem a esse tempo,
entre outros, os seguintes cantores-instrumentistas do repente nordestino: Inácio da
Catingueira; Azulão; Fabião das Queimadas; Romano da Mãe d‟Água e seu irmão
Veríssimo, cantador e cangaceiro; Preto Limão, de Natal, RN; Zé Pretinho; Pedro
Nonato da Cunha, octogenário na década de 1920; Manoel Caetano; Severino
Perigo (1870-1930) de Patos, PB etc. A partir da década de 1970 destacou-se o
cantador baiano Antonio Ribeiro da Conceição, conhecido por Bule-Bule.
Interessante registrar que uma das modalidades da cantoria nordestina é a
“louvação”, por meio da qual o cantador, em festas familiares, saúda os donos da
casa, exaltando-lhes as virtudes. Essa modalidade, em geral remunerada, e na qual
se destaca Fabião das Queimadas, aproxima a função do cantor daquela
desempenhada pelo griot oeste-africano.”(LOPES, 2004, pp. 163-4).

Com relação a griot, acresce Nei Lopes que o termo serve para designar o narrador, cantor,
cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias
importantes das quais, em geral, está a serviço. Eles sempre se fizeram presentes na África, com
preponderância na parte ocidental daquele continente que assistiu ao esplendoroso
desenvolvimento dos grandes impérios medievais negros de Gana, Mali e Songai, entre outros. O
termo griot nem sempre é empregado para designar a espécie de artista a que se refere. Os
Bambaras e Mandingas preferem para tanto usar a lexia dyéli ou diali; os Saracolês, guésséré; os
Peúles, wambabé; os Tucolores, aouloubé; e os Uolofes, guéwel (étimo de proveniência árabe
qawwal) (LOPES, 2004, p. 310).
Cabe ressaltar ainda que do repertório de histórias tradicionais chegadas até nós pela
oralidade, através do contato com a Península Ibérica, desde que aqui aportaram os primeiros
colonizadores, muitas compõem coletâneas de contos populares passados para o Brasil e
encontram correspondentes na África. Narrativas como O Gato de Botas, Gata Borralheira,
Cinderela, O Pequeno Polegar, entre outras, estão nesse caso.
Além dessas correspondências encontradas em estórias africanas, cabe referir que no Brasil
essas narrativas ganharam ainda a feição do rico imaginário mítico indígena, o nosso elemento
autóctone, e próprio, na fusão que gerou um repertório não mais de nenhum dos três povos
particularmente, desde que traz amalgamados os elementos das três culturas. Dizemos então ser
nossa cultura afrobrasilusa, pois se compõe de resíduos culturais africanos, brasileiros e europeus.
No espaço do cordel, mais propriamente, muitas são as variações em torno dos mesmos
temas contados e cantados por europeus e africanos. As “cinderelas” do Nordeste brasileiro são as
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Marias habitantes da caatinga cujo príncipe tão sonhado é um Chico montado em seu jumento.
Nosso Urde Males é João Grilo, ou mesmo João Ninguém, e o “cavaleiro” da saga nordestina não
saltou de nenhum ciclo carolíngio. Tem por nome Lampião, que, segundo contam as lendas,
também costumava tirar dos ricos para dar aos pobres.
De referência obrigatória são as inúmeras narrativas de metamorfose de seres humanos
tornados animais, por castigo ou mágica, que, segundo Câmara Cascudo, caracterizam o fatalismo
negro, sendo tais estórias igualmente típicas dos contos orientais e características da Grécia
Clássica. (CASCUDO, 2006, p. 175-176). No cordel, por exemplo, formam o que Luis Tavares
Júnior designa como mito da maldade castigada (TAVARES JÚNIOR, p.55).

CONCLUINDO E CONTESTANDO
O até aqui exposto nos leva a pensar no caráter fundador desempenhado pela cultura
africana, da qual derivaram, possivelmente, através da valorização do saber ancestral, os modos de
narrar em verso e prosa, assim como foram e são praticados nos quatro cantos do mundo.
Também merece destaque especial a feição imprescindível da cultura oralizada nordestina,
em que a preferência pelo ouvir em detrimento do ato de ler confere público às audiências de
violeiros, tiradores de coco, emboladores, e cordelistas, quando estes últimos lêem suas produções,
ou mesmo terceiros o fazem para um público atento.
O importante é sabermos que nossa formação social tem raízes milenares, e que tanto o
nosso conto quanto o nosso canto se fundam no fazer artístico dos africanos, dos indígenas
brasileiros e dos portugueses do fim do medievo.
Em seus Estudos sobre a poesia popular do Brasil, Sílvio Romero levanta questões para
logo a si mesmo responder:

Será verdade que os Tupis e os africanos [tiveram] uma poesia, que haja passado às
nossas populações atuais? Nós o cremos; mas eis uma grande dificuldade. Fala-se
muito de uma decantada poesia dos índios dos três primeiros séculos da conquista;
poucos são os fragmentos coligidos. Ainda pior é o que se tem dado com os
africanos. Demais, os hinos líricos e épicos, cantados pelo povo brasileiro, são
vazados nos moldes da língua portuguesa pura e estreme. Como marcar o veio negro
e vermelho em canções que afetam uma só forma? As dificuldades abundam.
Incontestavelmente o português é o agente mais robusto de nossa vida espiritual.
Devemos-lhe as crenças religiosas, as instituições civis e políticas, a língua e o
contato com a civilização européia. Na poesia popular a sua superioridade, como
contribuinte, é portanto incontestável. (ROMERO, 1977, pp. 196-7).
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No atual estágio das investigações que têm por objeto a cultura popular brasileira, os
questionamentos suscitados por Romero em 1888 melhor se equacionam. Os antropólogos
brasileiros já mapearam a nossa cultura indígena, quer a material quer a imaterial, e apontaram a
grande marca autóctone presente naquela que hoje identificamos como cultura brasileira. Portanto,
a contribuição indígena para a nossa identidade não é mais uma questão de crença, como supôs
Romero. A boa postura científica não se paralisa diante de uma aporia.
No atinente ao contributo africano, este, assim como o dos índios brasílicos, talvez tenha
sido o melhor que nos haja ocorrido, ao contrário do que pôde pensar Romero. Hoje se tornou
patente não apenas a força fecundante da cultura negra no Brasil, mas noutras partes do mundo,
como em toda a América de fala hispânica, inclusive nos Estados Unidos, onde a cultura negra
parece ser o que há de mais valioso em expressão humana. Não por acaso Eduardo Portella, no
século XX, comentado as potencialidades de colaboração do Brasil com a África escreveu:
“Vamos levar-lhe uma cultura que eles ajudaram a levantar, que é deles também, que se confunde
com eles. Uma cultura com a sua africanidade. Com a sua negritude até”. (PORTELLA, 1961, p.
88). Antes de Portella, Gilberto Freyre, para escândalo de muitos, e contrapondo-se a Sílvio
Romero, sobrepôs o negro ao português e mesmo ao indígena brasileiro “em vários aspectos”, ao
escrever: “idéia extravagante para os meios ortodoxos e oficiais do Brasil, essa do negro superior
ao indígena a até ao português, em vários aspectos de cultura material e moral. Superior em
capacidade técnica e artística.” (FREYRE, 1958, v. II, p. 396).
Não se há de negar que ao português ficamos a dever nosso idioma que, não esqueçamos, se
molda no Latim. Também crenças religiosas, instituições civis e políticas e a adoção do Português
como língua de cultura e civilização. Mas não podemos esquecer que os portugueses,
“residualmente, são o produto dos lusos somados aos celtas, godos, iberos, romanos, árabes,
galegos, provençais, castelhanos, entre outros, pois destes e de tantos mais é que resulta a cultura
portuguesa”. (PONTES, 1999, p. 163).
Desse modo, desfazem-se as inquietações e afirmações do agudo intelectual que foi Sílvio
Romero, com relação à superioridade dos portugueses “como agente mais robusto de nossa vida
espiritual”. Contudo, não discordamos de sua conclusão, pois na poesia popular escrita a
contribuição ibero-portuguesa é incontestável.
Do antes exposto, sobressai a grande importância dos akpalôs ou griotes africanos na
poesia popular oral do Brasil, mormente na do Nordeste brasileiro, onde pontificaram e continuam
a preponderar grandes cantadores e cordelistas negros.
Referência: MARTINS, ELizabeth Dias ; PONTES, Roberto . Akpalôs africanos e cantadores nordestinos:
remanescências culturais. In: ARAÚJO, H. H. de; OLIVEIRA, I. T. de. (Org.). Regionalismo, modernização e crítica
social na literatura brasileira. 1ed.São Paulo: Nankin Editorial, 2010, v. 1, p. 243-252.

Tudo isso se pode compreender, hoje, através dos estudos da Teoria da Residualidade, que
ao lado de outras abordagens, como as proporcionadas pelos estudos de memória coletiva e história
das mentalidades explicam a feição ricamente compósita da cultura que respiramos no Brasil,
longe das peias de um pensamento restritivo.

BIBLIOGRAFIA
BROOKSHAW, David. “Da oralidade à literatura e da literatura à oralidade”. In ANGOLÊ – Artes,
letras e idéias. Ano I, Angola, março, 1999.
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PONTES, Roberto. Poesia insubmissa afrobrasilusa. Rio de Janeiro/Fortaleza: Oficina do
Autor/EUFC, 1999.
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