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— en a ih comeia —mm |E, Shas a Re ABSA a0 DOs ESE poss Ec — Compannia Das Letras MILAN KUNDERA AUTOR DE A INSUSTENTAVEL LEVEZA DO SER Digitalizado com CamScanner Kund adapt Copyright © 1986 by Mi Proibida toda e qualq) io da obra Edigao revista pelo autor Grafia atualizada segundo 0 Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa ° : de 1990, que entrou em vigor no Brasil ent 2009, Titulo original Lart du roman Capa Alceu Chiesorin Nunes Imagem de capa Dominique Corbasson/ www.kokoartagency.com Preparagao Bliana Medeiros Revisao Marcelo Donizete de Brito Riqueti Renato Potenza Rodrigues Luciane Gomide Varda Ras Inernacionais de CatalogagSo na Publiagio (ctr {Cémara Brasileira do Livro, 6%, Brasil) Kundera, Milan A ate do romance 1 Milan Kundera 5 tradugdo Teresa Bulhdes Caso da Fonseca — 1 ed. — S50 Paulos Gan ania das Letras, 2016. ‘art du roman, 2798-6 40 (Literdria, atistica etc, - Romance — Histéria e critica ) 2. Narrativa (Retéica) 1. Titulo, 16-06345 ‘ c00-809,3 Indice pata catélogo datemucor + Romance : Histéia eerftica 409.3 2076] Todos os drei i tos desta edicao reservados a EDITORA. SCHWARCz, S.A, 2 ne Rua Bandei; ‘ira Paulista, 702, cj. 32 T4832-002 — Sao Paulo ee, | Telefone: (11) 3707-3500 I Fax; (11) 3707-3501 d 4 Digitalizado com CamScanner Sumdrio Nota do autor. . PRIMEIRA PARTE: A heranga depreciada de Cervantes... .. SEGUNDA PaRTE: Didlogo sobre a arte ° do romance. 29 TERCEIRA PARTE: AnotagGes inspiradas por Os sonémbulos ........... 53 QUARTA PARTE: Didlogo sobre a arte da composigao ...... ae 75 QUINTA PARTE: Em algum lugar do passado........... 1OL SEXTA PARTE: Sessenta e trés palayras. 121 SETIMA PARTE: Discurso de Jerusalém: Oromance ea Europa......... 155 Sobre o autor 6.2... 0... cece cence cece ees + 166 Digitalizado com CamScanner PRIMEIRA PARTE A heranga depreciada de Cervantes Digitalizado com CamScanner rT Em 1935, trés anos antes de sua morte, Edmund Husserl realizou, em Viena e em Praga, célebres confe- réncias sobre a crise da humanidade europeia. O adjetivo “europeu” designava para ele a identidade espiritual que se estende além da Europa geografica (a América, por exemplo) e que nasceu com a antiga filosofia grega. Esta, segundo ele, pela primeira vez na Histéria, abrangeu 0 mundo (0 mundo em seu conjunto) como uma questao a resolver. Ela o interrogava nao para satisfazer esta ou aquela necessidade pratica, mas porque a “paixdo de co- nhecer se apossou do homem”. Acrise de que Husserl falava lhe parecia tao profun- da que ele se perguntava se a Europa ainda era capaz de sobreviver a ela. Ele localizava as raizes da crise no inicio dos tempos modernos, em Galileu eem Descartes, no ca- rater unilateral das ciéncias europeias, que tinham redu- zido o mundo a um simples objeto de exploracao técnica 11 Digitalizado com CamScanner ematematica, ¢ tinham exclufdo de seu horizonte o mun- do concreto da vida, die Lebenswelt, como ele dizia. O crescimento das ciéncias impulsionou o homem em ditegio aos subterraneos das disciplinas especializa- das. Quanto mais avangava em seu saber, mais perdia de vista 0 conjunto do mundo ea si préprio, sogobrando as- sim no que Heidegger, discipulo de Husserl, chamava, em uma férmula bela e quase magica, “o esquecimento do ser”. Elevado outrora por Descartes a “senhor e dono da natureza”, o homem se torna uma simples coisa Para as forgas (da técnica, da politica, da Histéria) que o ultra- Passam, 0 sobrepassam, © possuem. Para essas Seu ser concreto, seu “mundo da vida” (die Lebenswelt) > nao tem mais nenhum prego nem interesse: esta eclipsa- do, esquecido de antemao, forgas, z Creio, no entanto, que seria ingénuo considerar a se- veridade desse olhar pousado nos tempos modernos como uma simples condenagao, Diria que os dois grandes filéso- fos desvendaram a ambiguidade dessa €poca que é, ao Mesmo tempo, degradaciio e Progresso e, como tudo que é humano, contém © germe de seu fim em seu nascimento. Essa ambiguidade nao diminui, a meus olhos, os quatt? Ultimos séculos Curopeus, aos quais me sinto mais ligade na medida em que nao sou filésofo mas romancista. Na verdade, Para mim, o fundador dos tempos modernos € somente Descartes; mas também Cervantes. . Talvez seja a ele que os dois fenomendlogos «etx ram de levar em consideragdo em. seu julgamento 4°* r2 Digitalizado com CamScanner tempos modernos. Quero dizer com isso que, se é verda- de que a filosofia e as ciéncias esqueceram o ser do ho- mem, parece mais evidente ainda que com Cervantes se formou uma grande arte europeia que é justamente a ex- ploragao desse ser esquecido. Com efeito, todos os grandes temas existenciais que Heidegger analisa em Ser e tempo, julgando-os abando- nados por toda a filosofia europeia anterior, foram des- yendados, mostrados, esclarecidos por quatro séculos de romance. Um por um, o romance descobriu, a sua pré- pria maneira, por sua propria légica, os diferentes aspec- tos da existéncia: com os contempordneos de Cervantes, ele se pergunta o que é a aventura; com Samuel Richard- son, comega a examinar “o que se passa no interior”, a desvendar a vida secreta dos sentimentos; com Balzac, descobre o enraizamento do homem na Histéria; com Flaubert, explora a terra até entao incégnita do cotidia- no; com Tolstdi, inclina-se sobre a intervengao do irra- cional nas decisdes e no comportamento humanos. Ele sonda o tempo: o inapreensivel momento passado com Marcel Proust; o inapreensivel momento presente com James Joyce. Interroga, com Thomas Mann, o papel dos mitos que, vindos do comeco dos tempos, teleguiam nos- SOs passos. Et cetera, et cetera. . O romance acompanha o homem constante ¢ fiel- mente desde o principio dos tempos modernos. A “pai- x40 de conhecer” (aquela que Husserl considera a essén- cia da espiritualidade europeia) se apossou dele entio, Para que ele perscrute a vida concreta do homemea pra teja contra “o esquecimento do ser”; para que ele man nha “o mundo da vida” sob uma iluminagao perpetua: Nesse sentido que compreendo ¢ compartilho a obstin: - So com que Hermann Broch repetia: descobrir 0 que so 13 Digitalizado com CamScanner mente um romance pode descobrir é a tinica razao de ser de um romance. O romance que nao descobre algo até entao desconhecido da existéncia é imoral. O conheci- mento éa tinica moral do romance. Acrescento ainda isto: 0 romance é a obra da Euro- pa; suas descobertas, embora feitas em linguas diferen- tes, pertencem a toda a Europa. A sucessio das desco- bertas (e nao a soma do que foi escrito) faz a histéria do romance europeu. E somente nesse contexto supranacio- nal que o valor de uma obra (isto é, 0 alcance de sua des- coberta) pode ser visto e compreendido plenamente. Quando Deus deixava lentamente o lugar de onde tinha dirigido o universo e sua ordem de valores, separa- ra o bem do mal e dera um sentido a cada coisa, Dom Quixote saiu de sua casa e nao teve mais condicées de re- conhecer o mundo. Este, na auséncia do Juiz supremo, surgiu subitamente numa temivel ambiguidade; a tinica Verdade divina se decompés em centenas de verdades re- lativas que os homens dividiram entre si. Assim, o mun- do dos tempos modernos nasceu e, com ele, o romance, sua imagem e modelo, Compreender com Descartes 0 ego pensante como fundamento de tudo, estar assim sé em face do universo, € uma atitude que Hegel, a justo titulo, julgou heroica. | Compreender com Cervantes 0 mundo como ambi- guidade, ter de enfrentar, em vez de uma s6 verdade ab- Soluta, muitas verdades relativas que se contradizem (verdades incorporadas em egos imagindrios cha mados 14 Digitalizado com CamScanner personagens), ter portanto como tinica certeza a sabedo- ria da incerteza, isso nio cxige menos forga, O que quer dizer o gr Existe vasta literatura a esse respeito, HA os que preten- dem ver nesse romance a critica racionalista do idealis- mo obscuro de Dom Quixote. Outros veem nele a exal- tagio do mesmo idcalismo, Ambas as interpretacées sao erréneas porque pretendem encontrar na base do roman- ce nao uma interrogagao, mas um preconceito moral. O homem deseja um mundo onde o bem ¢ o mal se- jam nitidamente discerniveis, pois existe nele a vontade inata ¢ indomAvel de julgar antes de compreender. Sobre essa vontade est&o fundadas as religides ¢ as ideologias. Elas néo podem se conciliar com 0 romance a nao ser que traduzam sua linguagem de relatividade e de ambi- guidade no préprio discurso apodictico e dogmatico. Elas exigem que alguém tenha raz4o; ou Anna Kariénina évitima de um déspota obtuso, ou entao Karenin é viti- ma de uma mulher imoral; ou K., inocente, é esmagado pelo tribunal injusto, ou entao por tras do tribunal se es- conde a justica divina e K. é culpado. Nesse “ou — ou entdo” esta contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de encarar a auséncia do Juiz supremo. De- vido a essa incapacidade, a sabedoria do romance (a sabe- doria da incerteza) é dificil de aceitar ¢ de compreender. nde romance de Cervantes? 4 1m mundo que se abria dia entrar livremente ¢ Os primeiros roman- Dom Quixote partiu para v amplamente diante dele. Ali po voltar para casa quando quisess¢. ts Digitalizado com CamScanner ces europeus sao viagens através do mundo, que Pe ilimitado. O inicio de Jacques, o fatalista surpreende os dois herdis no meio do caminho; nao se sabe nem de onde eles vem nem para onde vao. Encontram-se em um tempo que ndo tem comego nem fim, em um espaco que nao conhece fronteiras, no meio da Europa para a qual o futuro nao pode acabar nunca. Meio século apés Diderot, em Balzac, o horizonte longinquo desapareceu como uma paisagem atras dos edificios modernos que so as instituigdes sociais: a poli- cia, a justiga, o mundo das finangas e do crime, 0 exérci- to, o Estado. O tempo de Balzac nao conhece mais a ocio- sidade feliz de Cervantes ou de Diderot. Ele embarcou no trem que se denomina Historia. E facil subir nele, dificil descer dele. Contudo, esse trem ainda nao tem nada de apavorante, tem até um encanto; promete, a todos os seus passagciros, aventuras, e com elas toda a gloria. Mais tarde, para Ema Bovary, o horizonte se estreita a tal ponto que parece uma clausura. As aventuras est’io do outro lado e a nostalgia é insuportavel. No tédio do cotidiano, os sonhos e devaneios ganham importancia. o infinito perdido do mundo exterior é substituido pelo infinito da alma. A grande ilusao de unicidade insubsti- tuivel do individuo, uma das mais belas ilusdes euro- peias, desabrocha. : Maso sonho sobre o infinito da alma perde sua ma- 814 no momento em que a Histéria, ou o que dela restou, forca supra-humana de uma sociedade onipotente, s¢ apossa do homem. Ela nao mais lhe promete toda a gl Ha, Promete-lhe apenas um posto de agrimensor. diante do tribunal, K. diante do castelo, que pode f Nao muita coisa. Pelo menos pode sonhar, como outro- ra, Ema Bovary? Nao, a trama da situacio é terrivel de- 16 Digitalizado com CamScanner mais e suga como um aspirador todos os seus pensamen- tos ¢ todos os scus sentimentos: 56 pode pensar em seu processo, em seu posto de agrimensor, O infinito da alma, se existe, tornou-se um apéndice quase intitil do homem. 5 O caminho do romance se esboga como uma hist6- ria paralela dos tempos modernos. Se me volto para abrangé-lo com o olhar, ele me parece estranhamente breve e finito. Nao é 0 préprio Dom Quixote que, apés trés séculos de viagem, regressa a aldeia disfargado de agrimensor? Outrora ele partira para escolher suas aven- turas, e agora, nessa aldeia abaixo do castelo, nao existe mais escolha, a aventura lhe é comandada: um lamenti- vel litigio com a administragio a propésito de um erro em seu dossié. Depois de trés séculos, 0 que se passou com a aventura, esse primeiro grande tema do romance? Tornou-se ela sua propria parédia? O que significa isso? Que o caminho do romance se fecha por um paradoxo? Sim, poderiamos pensar isso. E nao existe apenas um; esses paradoxos sao incontaveis. O bravo soldado Chveik talvez seja o vltimo grande romance popular. Nao surpreende que esse romance cémico seja ao mesmo tempo um romance de guerra cuja ago se desenrola no exército e na frente de batalha? O que aconteceu pols com a guerra e seus horrores, transformaram-se cm obje- to de riso? _ Em Homero, em Tolstdi, a guerra tinha un inteiramente inteligivel: batiam-se pela bel | Helen pela Riissia, Chveik e seus companheiros se dirigem para m sentido ou 17 Digitalizado com CamScanner a frente de batalha sem saber por qué, ¢, 0 que é ainda mais chocante, sem se interessar em saber. Ae Mas qual é entao 0 motor de uma guerra, se nao é nem Helena nem a patria? A simples forga querendo se afirmar como forga? Essa “vontade de vontade de que falara Heidegger mais tarde? Entretanto, nao esta ela desde sempre por tras de todas as guerras? Sim, é claro. Mas dessa vez, em Hasek, esta despida de qualquer ar- gumentacao razoavel. Ninguém acredita no falatério da propaganda, nem mesmo os que a fabricam. A forga é sem sentido, tao sem sentido como nos romances de Kaf- ka. Na verdade, o tribunal nao tirara nenhum proveito da execugao de K., assim como 0 castelo nao achar4 ne- nhum proveito em prender o agrimensor. Por que a Ale- manha ontem, a Russia hoje querem dominar o mun- do?* Para ficarem mais ricas? Mais felizes? Nao. A agressividade da forca é perfeitamente desinteressada; imotivada; quer somente seu querer; é 0 puro irracional. Kafka e Hasek nos poem em imenso paradoxo: durante a época d a razao cartesiana corroia, tes herdados da Idade Méd; tia total da razdo, confronto com este los tempos modernos, um apés outro, todos os valo- ia. Mas, no momento da vit6- € 0 irracional puro (a forca querendo apenas seu querer) que se apossara do cenario do mundo, Porque nao haverd mais nenhum sistema de valores comu- mente admitido que possa lhe fazer obstaculo. Esse Paradoxo, Posto magistralmente em evidéncia em Os sondmbulos, de Hermann Broch, é um dos que et nar terminais, Ha outros. Por exe” 0s tempos modernos cultivavam osonho de uma hu- plo: "A primeira edica | — So de A arte di i ada na Franga ¢ 1986, (N. E) '€ do romance foi publicada na 18 Digitalizado com CamScanner manidade que, dividida em diferentes civilizagdes sepa- radas, encontraria um dia a unidade e, com ela, a paz eterna. Hoje, a histéria do planeta forma, enfim, um todo indivisivel, mas a guerra, ambulante e perpétua, é que realiza e assegura essa unidade da humanidade ha muito tempo sonhada. A unidade da humanidade signi- fica: ninguém pode escapar em nenhum lugar. 6 As conferéncias em que Husserl falou da crise da Eu- ropa e da possibilidade do desaparecimento da humani- dade europeia foram seu testamento filoséfico. Ele as apresentou em duas capitais da Europa Central. Essa coincidéncia tem uma significagdo profunda: na verda- de, nessa mesma Europa Central que, pela primeira vez em sua hist6ria moderna, 0 Ocidente péde ver a morte do Ocidente, ou, mais precisamente, a amputagao de um pedaco de si mesmo, quando Varsévia, Budapeste ¢ Pra- ga foram engolidas pelo império russo. Essa desgraga foi engendrada pela Primeira Guerra Mundial, que, desen- cadeada pelo império dos Habsburgo, conduziu ao fim esse mesmo império e desequilibrou por um longo perio- do a Europa enfraquecida. L Os tiltimos tempos pacfficos em que o homem so t= nha a combater os monstros de sua alma, os tempos de Joyce e de Proust, acabaram. Nos romances de Kafka, de Hasek, de Musil, de Broch, o monstro vem do exterior e © chamam Histéria; ela nao se parece mais com 0 trem dos aventureiros: ela é impessoal, ingovernavel, incalcu- lavel, incompreensivel — ¢ ninguém lhe escapa. Fo mo- mento (o dia seguinte da guerra de 1914) em que a pléia- a9, Digitalizado com CamScanner ro-europeus percebeu, des romancistas cent rop’ aE er terminais dos tempos tocou, apreendeu os paradoxos modernos. Contudo, nao devemos Jer seus romances como uma profecia social e politica, como um Orwell antecipado! O que Orwell nos disse poderia ser dito tao bem (ou an- tes, muito melhor) em um ensaio ou em um panfleto. Em contrapartida, esses romancistas descobrem “o que so- mente um romance pode descobrir”: mostram como, nas condicdes dos “paradoxos terminais”, todas as catego- tias existenciais mudam subitamente de sentido: o que é a aventura se a liberdade de ago de um K. é totalmente ilus6ria? O que é 0 futuro se os intelectuais de O hbomem sem qualidades nao tém a menor suspeita sobre a guerra que, amanhé, ira varrer suas vidas? O que é 0 crime se Huguenau de Broch nao sé nao se arrepende como se es- quece do assassinato que cometeu? E, se o tinico grande romance cémico dessa época, o de Hasek, tem por cena- rio a guerra, 0 que aconteceu entao com o comico? Onde esta a diferenca entre 0 privado e 0 puiblico se K., mesmo em seu leito de amor, nao fica jamais sem dois agentes do castelo? Eo que é, nesse caso, a solidao? Um fardo, uma angiistia, uma maldic&o, como quiseram que acreditas- semos, ou, ao contrario, 0 valor mais precioso, a ponto de ser esmagado pela coletividade onipresente? _ Os periodos da histéria do romance sao muito longos (nao tém nada a ver com as transformac6es continuas dos costumes) e so caracterizados por esse ou aquele aspect do Ser que o romance examina com prioridade. Assim, a8 Possibilidades contidas na descoberta flaubertiana do co” tidiano nao foram desenvolvidas plenamente sendo sete” ta anos mais tarde, na gigantesca obra de James Joyce periodo inaugurado, ha cinquenta anos, pela pleiade «¢ 20 Digitalizado com CamScanner romancistas centro-europeus ( Periodo dos minais) me parece longe de se Paradoxos ter. encerrar, 7 Fala-se bastante, e ha muito tem fim do romance: especialmente os fut listas, quase todas as vanguardas, Eles viam © romance desaparecer na estrada do Progresso, em proveito de um futuro radicalmente NOVO, eM proveito de uma arte que nao se pareceria em nada com 0 que existia antes. O ro- mance seria enterrado em nome da justiga histérica, as- sim como a miséria, as classes dominantes, os velhos modelos de carros ou as cartolas, Ora, se Cervantes é 0 fundador dos tempos moder- nos, o fim de sua heranga deveria significar mais que uma simples etapa na histéria das formas literarias; ela anunciaria 0 fim dos tempos modernos. E por isso que me parece leviano 0 sorriso beatifico com que pronun- ciam necroldgios do romance. Leviano porque ja vie vivi a morte do romance, sua morte violenta (através de proi- bicdes, censura, pressio ideolégica), no mundo ons Passei grande parte de minha vida e que habitualmente chamam de totalitdrio. Entiio, manifestou-se com toda a Clareza que o romance era perecivel; to perecivel a iclo © Ocidente dos tempos modernos. Enquants. ct desse mundo, baseado na relatividade end Le 5 ‘4s coisas humanas, 0 romance é incompative . ne Universo totalitario. Essa incompatibilidade ¢ a "aba funda que aquela que separa un di ee de um Tatchik, um combatente felon dlireinas © slitica ou moral, torturador, porque ela é nao somente politica PO, a respeito do ‘Uristas, Os surrea- 21 Digitalizado com CamScanner mas ontoldgica. Isso significa: 0 mundo baseado numa s6 Verdade ¢ 0 mundo ambiguo ¢ relativo do romance sio moldados, cada um, de uma matéria totalmente di- versa. A Verdade totalitaria exclui a relatividade, a dtvi- da, a interrogacao, € ela jamais pode portanto se conci- liar com o que cu chamaria 0 espirito do romance. Entao, na Russia comunista nao se publicam cente- nas e milhares de romances com enormes tiragens e gran- de sucesso? Sim, mas esses romances nao prolongam a conquista do ser. Nao descobrem nenhuma parcela nova da existéncia; apenas confirmam o que jd se disse; e mais: na confirmacdo do que se diz (do que é preciso dizer) con- sistem sua razio de ser, sua gloria, a utilidade na socieda- de que é a sua. Nao descobrindo nada, nao participam mais da sucesséo de descobertas que denomino histéria do romance; eles se situam fora dessa histéria, ou entao: sao romances depois da historia do romance. Hi mais ou menos meio século a historia do roman- ce parou no império do comunismo russo. £ um extraor- din4rio acontecimento, dada a grandeza do romance russo de Gogol a Biely. A morte do romance nao é, pois, uma ideia fantasiosa. Ela j4 aconteceu. E agora nés sabe- mos como o romance morre: ele nao desaparece; sua his- téria cessa; depois dela resta apenas 0 tempo da repeti- ¢4o no qual o romance reproduz a forma esvaziada de seu espirito. E, pois, uma morte dissimulada que pass* despercebida e nao escandaliza ninguém. 8 ew ante fe ance Te Mas, por sua propria logica interna, o romance i A Juin ‘od: chega ao fim de seu caminho? Ja nao explorou 22 Digitalizado com CamScanner ‘ suas possibilidades, todos os scus conhecimentos ¢ tod as suas formas? Ouvi sua histér + comparada as imi. nas de carviio hi muito esgotadas. Entretanto, ela nao se parece mais com oO cemitério das oportunidades perdi- das, dos apclos nao atendidos? Ha quatro apelos aos ais sou especialmente sensfvel. Apelo da diverséio — Tristram Shandy, de Laurence Sterne, ¢ Jacques, o fatalista, de Denis Diderot, apare- cem hoje para mim como as duas maiores obras roma- nescas do século xvi, dois romances concebidos como uma grandiosa diversao. Sao dois cumes da leveza ja- mais atingidos, nem antes nem depois. O romance ulte- rior se fez encadear pelo imperativo da verossimilhanca, pelo cenirio realista, pelo rigor da cronologia. Abando- nou as possibilidades contidas nessas duas obras-primas, que estavam a ponto de fundar uma evolugao do roman- ce diferente da que se conhece (sim, pode-se imaginar também uma outra histéria do romance europeu...). Apelo do sonho — A imaginagao adormecida do sé- culo xix foi subitamente despertada por Franz Kafka, que conseguiu o que os surrealistas postularam apés ele, sem realmente realizar: a fusaio do sonho e do real. Essa grande descoberta, menos que o remate de uma evolu- Gao, € uma abertura inesperada que revela que 0 roman: ce €0 lugar onde a imaginagiio pode explodir como num sonho ¢ que o romance pode se libertar do imperative aparentemente inelutavel da verossimilhanca Apelo do pensamento — Musil ¢ Broch fi - trar no cenario do romance uma inteligéncia soberana e radiosa, Nao para transformar o romance em floss dy mas para mobilizar sobre a base da narragao TOct o Meios, racionais ¢ irracionais, narrativos © medicarivos, suscetiveis de esclarecer o ser do homem, de fazer do ro am en- 23 Digitalizado com CamScanner . a faganha € 0 re- o convite para fi i electual. Su mance a suprema sint intelectual i mate da histéria do romance ou, antes, a longa viagem? ; ; y are 5 do repo —O perfodo dos paradoxos termi nais incita o romancista a nao limitar mais a nee tempo a0 problema proustiano da memoria pessoal, a estendé-la ao enigma do tempo coletivo, do tempo da Europa, a Europa que se volta para olhar seu passado, para fazer seu balango, para apreender sua histéria, como um velho que apreende com um tinico olhar sua propria vida passada. Dai a vontade de transpor os limi- tes temporais de uma vida individual nos quais 0 roman- ce até entao foi isolado e de fazer entrar em seu espaco varias épocas histéricas (Aragon e Fuentes ja fizeram essa tentativa). Entretanto, nao quero profetizar os caminhos futu- tos do romance, que ignoro totalmente; quero somente dizer que, se 0 romance tem de desaparecer realmente, no € porque esteja no fim de suas forgas, mas porque se encontra em um mundo que nao é mais 0 seu. 9 A unificagao da histéria do planeta, esse sonho hu- ae oe a maldosamente permitiu a realiza- tiginosa, & ae Por um processo de redugio ver~ sempre atacam ‘ade que os cupins da redugio desde se reduzindo a a vida humana: até O maior amor acaba Mas o carter dae esqueleto de lembrangas raquiticas- Samente essa m, shes moderna reforga monstruo” sua funcao | ‘ edo: a vida do homem esta reduzida ig 640 social; a historia de um povo, a alguns aco” 24 Digitalizado com CamScanner tecimentos, que por sua ver sito reduzidos a uma inter- pretacao tendencio 3a vida social esta reduzida a luta politica ¢ esta, 4 confrontagio de apenas duas grandes poténcias planetdrias, O homem se acha num verdadeiro turbilhao da redugao, onde 0 “mundo da vida” de que falava Husserl se obscurece fatalmente ¢ onde o ser cai no esquecimento, Ora, se a razdo de ser do romance é manter 0 “mun- do da vida” sob uma iluminagao perpétua ¢ nos proteger contra “o esquecimento do ser”, a existéncia do romance nao é, hoje, mais necess4ria que nunca? Parece-me que sim. Entretanto, infelizmente, 0 ro- mance também é atacado pelos cupins da redugio, que nao reduzem somente o sentido do mundo mas também o sentido das obras. O romance (como toda cultura) se encontra cada vez mais nas maos da midia; essa, sendo agente de unificagao da histéria mundial, amplifi canaliza 0 processo de reducgao; distribui no mundo in- teiro as mesmas simplificagées ¢ clichés suscetiveis de serem aceitos pelo maior numero, por todos, pela hu- manidade inteira. E pouco importa que os diferentes in- teresses politicos se manifestem em seus diferentes 6r- 840s. Por trés dessa aparente diferenga reina um espirito comum. Basta folhear os semanarios politicos americ Nos ou europeus, tanto os da esquerda como os da di- teita, do Time ao Spiegel: todos cles tem a mesma visto da vida, que se reflete na mesma ordem segundo a qual Seu'sumario é composto, nas mesmas rubricas, nas mes- mas formas jornalisticas, no mesmo VO : Mesmo estilo, nos mesmos gostos artisticos € mesma ierarquia do que cles acham importante © do que acham insignificante. Esse espirito comum I | mi¢ in dissimulado sob a diversidade politica, é 0 espirite © rio ¢ no 25 Digitalizado com CamScanner nosso tempo. Esse espirito me parece contrario ao espi- rito do romance. i O espfrito do romance é 0 espirito de complexidade. Cada romance diz ao leitor: “As coisas sao mais compli- cadas do que vocé pensa”. Essa é a eterna verdade do ro- mance que, entretanto, é ouvida cada vez menos no ala- rido das respostas simples e rapidas que precedem q questao e a excluem. Para o espirito de nosso tempo, é Anna ou entao Karenin que tem razao, e a velha sabedo- tia de Cervantes que nos fala da dificuldade de saber eda intangivel verdade que parece embaracosa e initil. O espirito do romance é 0 espirito de continuidade: cada obra é a resposta as obras precedentes; cada obra contém toda a experiéncia anterior do romance. tanto, 0 espirito de nosso tempo esta fixado sobre lidade, que é tao expansiva, tao ampla, que expulsa o Passado de nosso horizonte e reduz o tempo ao Unico se- gundo presente. Incluido nesse sistema, o romance naoé mais obra (coisa destinada a durar, a unir o Ppassado ao futuro), mas acontecimento da atualidade como outros acontecimentos; um gesto sem amanha. Entre- a atua- To Isso quer dizer que, no mundo “que nao é mais 0 Seu”, 0 romance vai desaparecer? Que ele vai deixar a Europa sogobrar no “esquecimento do ser”? Que nao restara sendo 0 falatério sem fim dos grafémanos, sendo romances apds o fim da histéria do romance? Nada sei sobre isso. Creio apenas saber que o romance nao pode mals viver em paz com o €spirito de nosso tempo: se ain 4 quer continuar a descobrir © que nao foi descoberto, 26 Digitalizado com CamScanner se ainda quer “progredir™ como romance, faré-lo contra 0 progresso do mundo, A vanguarda viu as coisas de outro modo; possuida pela ambigao de estar em harmoni turo. Os artistas de vanguarda criaram obras realmente corajosas, dificeis, provocadoras, vaiadas, mas as cria- ram com a certeza de que “o espirito do tempo” est: com eles e que, amanha, ele lhes daria razao, Outrora, eu também considerei o futuro como tinico juiz competente de nossas obras e de nossos atos. Mais tarde € que compreendi que 0 namoro com o futuro é 0 pior dos conformismos, a covarde adulacdo do mais for- te. Pois o futuro é sempre mais forte que o presente. £ realmente ele, com efeito, que nos julgara. E, certamente, sem nenhuma competéncia. Mas se 0 futuro nio representa um valor a meus olhos, a que estou ligado: a Deus? A Patria? ao povo? ao individuo? cle sé pode eStava a com o fu ava Minha resposta € tao ridicula quanto sincera: nao estou ligado a nada, salvo a heranga depreciada de C vantes, 27 Digitalizado com CamScanner

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