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OPPA, FOI MAL
2ª Edição
 
 
 
N.S. PARK
2023
 
 
 
 
 
Sob Livros
Copyright © 2022 by N.S. Park
Copyright da arte da capa e das demais ilustrações & © 2022 by Nicah Park
Arte da Capa: Bluebble
Design de Capa: Bluebble
Diagramação: April Kroes
Todos os outros elementos ilustrados neste livro: Bluebble
Revisão palavras em Coreano: Luna Vieira
Leitura Sensível: Carolina Miki
Revisão do Livro: Patrini Viero
 
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer
meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou
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PIRATARIA É CRIME!
 
Park, N.S.
Oppa, Foi Mal / N.S. Park. – Romance
2. Ed. — Sob Livros, 2023
 
 
 
 
 
 
 

ATENÇÃO!
 
Este romance faz parte da coleção "Músicas, acordos e outros clichês",
uma colaboração entre N.S. Park, autora de "Oppa, Foi Mal" e, Thaís
Dourado, autora de "Tem Um Idol no Meu Sofá".
Os dois livros retratam histórias diferentes, que não necessariamente
precisam serem lidos em sequência, porém, estão conectados.
Não deixem de ler "Tem Um Idol No Meu Sofá" e acompanhar a
comédia romântica de Maitê e Eric antes da Lena se mudar.
Avalie os livros na Amazon, se puderem.
Deixará duas autoras nacionais muito felizes!
Então... Vamos para a Coreia do Sul?
 

 
SUMÁRIO
 
Prólogo
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Epílogo
Aquele em que Eric conhece o cara do piercing
Aquele da Copa do Mundo
Nota da Autora
Obrigada
Sobre a Autora
 
 
 
 
 
 

ALERTA DE GATILHO
 
Oppa, Foi Mal aborda temas como abuso psicológico,
traumas sexuais, relacionamento tóxico, luto, dentre outros assuntos
que podem causar desconforto e gatilho em alguns leitores.
Mesmo que sejam temas abordados com leveza dentro da história,
podem impactar mais na leitura variando de pessoa para pessoa.
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
 
 

“Não se esqueça: entre a neblina escura,


Você é como uma estrela pintada com a mão esquerda.
Você não percebe como a sua singularidade é linda?
Você é a minha celebridade.”
 
Celebrity — IU
 
Aquilo não estava acontecendo.
Bom, estava.
Céus! Estava.
Ai, Helena. Mas você, hein!
Subi lentamente o olhar da câmera espatifada na calçada,
encontrando, segundos depois, olhos fulminantes me encarando com uma
mistura confusa de terror, surpresa e algo que eu não sabia se queria
realmente identificar. E o cara tinha toda razão de querer me matar naquele
momento: eu não só havia impedido um furo e tanto entre dois K-Idols,
como tinha tomado a câmera da mão dele e a deixado cair no chão com as
minhas habilidades incríveis de falta de jeito no processo.
A máscara preta que cobria parte do seu rosto não me permitiu ver
sua boca ou seu nariz, mas eu conseguia sentir que o desconhecido —
estranhamente familiar — estava com os dentes trincados, se segurando
para não pular no meu pescoço. O boné também preto, que complementava
todo o look de trabalho, sombreava macabramente suas feições, mas eu
sentia que já tinha visto aqueles olhos grandes, arredondados e
incrivelmente escuros antes.
Ah, e eles emanavam fúria.
Pura e genuína.
— Olha... — Meu sorriso provavelmente estava mais estranho do que
eu pensava. — Não fiz por querer, de verdade, eu...
Certo, eu sentia o olhar das pessoas na fila para a boate. Com sorte,
Kian e Aria também assistiam ao que estava acontecendo naquele canto do
beco de entrada para o Havanna[1]. Assim, eu poderia me virar
gloriosamente e pedir o dinheiro para uma nova lente, talvez uma câmera
novinha, com um sorriso orgulhoso no rosto ao dizer: “Foi tudo pelo bem
de vocês, seus descuidados! Como podem se pegar assim, a céu aberto?!”
O paparazzi grunhiu e, pelos resmungos de “Aish[2]” e outros que me
recusava a repetir; eu sabia que estava muito encrencada.
— Eu não queria quebrar, juro! — Me agachei depressa e tentei
recolher os cacos. O nervosismo fez minhas mãos tremerem, cortando a
palma com o vidro da lente no processo. Mas Seul não era romântica ao
vivo e a cores como nos dramas; não havia mocinho lindo com pomada
cicatrizante: existia um paparazzi furioso. Muito. — Olha só... Não é legal
ficar invadindo a privacidade dos outros assim e...
Quando encontrei seu olhar outra vez, calei a boca e deixei a câmera
destroçada no lugar.
— Vai pagar por ela. — Definitivamente não era uma pergunta.
— Certo, er... quanto? — Chutei um valor qualquer. — Acha que
paga? É muito dinheiro, né...
Ele murmurou o valor de forma afiada.
Eu engasguei com a crise de tosse.
O desconhecido bufou, se agachando.
O encarei apavorada.
— Você está brincando, certo? Tem senso de humor e está brincando.
— Deixei escapar um riso que gritava “por favor, diz que é brincadeira”.
— É uma câmera profissional, ahgashi[3]. Esse é apenas o valor da
lente, aproximadamente. — O rapaz ficou de pé, me apontando a câmera (o
que sobrara dela) no chão, a lente na mão. — Tenho senso de humor, olha
só como isso é engraçado!
Engoli em seco, me lembrando da minha professora de coreano: ela
falara uma vez sobre a porcentagem de casos de deportação, de turistas que
facilmente poderiam ser chutados para fora do país por crimes bem
menores.
“Uma doida brasileira apareceu na minha frente, gritou comigo e
roubou a minha câmera, quebrando-a logo em seguida de forma muito
cruel.”
Não foi o que aconteceu, exatamente, mas, se a câmera de vigilância
tivesse filmado bem do ângulo em que estava, a história que o paparazzi
contaria para a polícia poderia soar bem convincente.
Senti os olhos arderem, porque estava nervosa, porque não sabia o
que fazer e porque não queria ser deportada.
— Foi sem querer. — Minha voz saiu trêmula.
— Não venha com beicinhos para mim! Você quebrou, você vai
pagar.
— Ahjeossi[4]...
Ele suspirou enquanto colocava na mochila preta a lente e se abaixava
outra vez para pegar o resto do objeto.
O jovem — pela voz parecia jovem; um jovem familiar... bem
familiar, droga... — começou a falar alguma coisa, mas meu cérebro
interpretou cada ponto e vírgula que saía da boca dele como uma ameaça.
“Vou te levar à polícia, fazer o boletim de ocorrências e você nunca
mais poderá colocar seus pés na Coreia do Sul de novo.”
Adeus, emprego.
Adeus, bolsa de estudo.
Adeus, Song Jun Gi.
Adeus, Ayo.
— ... lugar é a mina para conseguir matérias assim e os famosos
sabem disso, então não tinha por que você pular na minha frente só para...
— O paparazzi continuou falando.
Corra, Helena, corra!
O rapaz, ainda agachado, pegou o celular e procurou... Ah, não, ele
ia mesmo ligar para a polícia.
Ele não tá te olhando. Corra, mulher!
— ... e fazer isso da forma mais...
Se correr agora, pode alcançar o ponto de ônibus há três quadras
daqui, é no centro, na rua principal mais movimentada de Itaewon...
É só correr e não olhar para trás...
Mas ele poderia me alcançar, o que seria pior, porque aí eu estaria
fugindo da cena do crime.
Mas eu não queria ir presa.
Eu nunca fui presa.
Estava a um triz de conseguir uma bolsa aqui, não podia ser detida...
— É só me passar seu núme...
— Mianhaeyo[5]. — Fiz uma careta e o paparazzi ergueu o rosto
para mim. Era agora ou nunca. — Foi mal mesmo.
Os olhos escuros se estreitaram.
Então eu corri.
Corri como nunca antes na vida. Corri até os pulmões arderem e os
joelhos reclamarem. Era uma questão de sobrevivência, não orgulho.
Quando olhei para trás, ele não estava em lugar algum. Não me
seguiu... Pela altura, poderia facilmente vencer minhas pernas curtas e me
alcançar; mas ele não veio atrás de mim.
Foi um ponto de vitória ver o ônibus parar segundos depois, um
alívio me jogar no último banco, um milagre eu sobreviver. Com sorte, o
estranho não me encontraria facilmente. Eu estava de costas para a câmera;
era só cortar o cabelo, pintar de rosa e tudo ficaria bem.
Com sorte.
Mas eu não tinha sorte.
Eu era azarada e estabanada. Pura e completamente.
E não sabia que demoraria menos de quarenta e oito horas para
trombar com o paparazzi outra vez.
 
“Meu coração,
por que eu sou assim?
Eu não sei.”
Why Am I Like This — Lee Da Yeon
 
 
HELENA
 
Minhas provas finais estavam chegando. Meu pai provavelmente
ainda me odiava por ter saído do Brasil sem a sua bênção. Meus pais não
sabiam que eu estava pronta para concorrer a uma bolsa que me faria morar
definitivamente na Coreia do Sul. Minha irmã não me ligava há dias e eu
estava preocupada que algo de ruim tivesse acontecido. O cachorro da sra.
Hwang, do terceiro andar, ainda latia e corria atrás de mim como um
possuído quando me via chegar; e eu assustara meu vizinho — o cara que
me fazia suspirar como uma idiota — na última semana porque pegara
chuva e os meus lindos cachos escuros se transformaram na peruca de
apresentação de um Cheonyeo Gwisin[6].
Son Ho gritara como se eu fosse, de fato, um fantasma virgem das
lendas.
Havia tantas outras coisas que me preocupavam, mas o que mais
preenchia minha cabeça naquele momento era o som do estilhaço e do
desespero. Um cara estranho me encurralando e me cobrando uma quantia
exorbitante de dinheiro. Policiais aparecendo na minha porta para me
expulsar do país...
Eu sequer conseguira me concentrar na aula aquela manhã. Dormira
tão mal na noite passada que, no ônibus a caminho do campus, eu cochilara,
sonhei que estava sendo perseguida pelo paparazzi, gritei e assustei cada
passageiro no veículo.
Recebi olhares reprovadores; um em especial congelara minha alma:
uma senhora coreana que prometera me queimar viva com seus olhos pretos
e estreitos.
— Lena unnie[7]!
Despertei do meu devaneio me lembrando das duas crianças que eu
cuidava na parte da tarde. Era um pacote dois em um. A senhora Jang era
uma cliente fiel da minha amiga, Han Ji Ah, e ia ao salão em que minha
colega de quarto trabalhava pelo menos uma vez por semana. A sra. Jang
tivera dificuldades para encontrar alguém para dar aulas particulares de
Inglês para os gêmeos e havia demitido a antiga babá ao descobrir que a
mesma entupia os filhos de porcaria e TV enquanto ela se preocupava com
as unhas.
Ji Ah falara bem de mim. Com isso, há um ano eu ensinava Inglês
aos gêmeos todas as tardes, cinco dias por semana. Uma babá-professora
muito eficiente que, naquele dia, estava sendo educada pelos próprios
alunos.
Chae Yeong havia me corrigido pelo menos quatro vezes aquela
tarde e Chae Su me dera um peteleco forte na testa quando não respondera
sua pergunta sobre verbos simples.
— Você tá triste? — Chae Su colocou o rostinho diante do meu,
tombando a cabecinha enquanto me observava com atenção. Sua irmã fez o
mesmo ao lado dele. — Tá doente?
— Machucada?
Suspirei, com uma careta terrível de quem fizera bagunça e não
sabia como limpar.
— Ottoke?[8] — perguntei, esticando a mão e apertando de leve a
bochecha lisa do garoto que segurava o caderno. Então, fiz o mesmo com
Chae Yeong. — Fui uma pessoa ruim. O que eu faço?
— Pede desculpas, uai. — A menina de cinco anos deu de ombros,
se virando e voltando para a pequena mesa disposta no canto do quarto de
estudo das crianças.
Sorri orgulhosa.
— Aplicou “uai” direitinho na frase, que lindo — falei, puxando o
irmão dela para perto, pegando o caderno de sua mãozinha. Apesar de
serem bem bagunceiros em quase todos os dias da semana, os dois eram
bem espertos e fofos.
Sempre fui apaixonada por crianças e ansiara por feriados (quando
morava em São Paulo) em que poderia ir para Minas ver os meus sobrinhos.
Sentia falta deles, da minha família no geral. Em alguns meses, iriam se
completar dois anos que estava estudando em Seul e todos esperavam que
eu voltasse para o Natal, mas não sabiam que, no fundo do meu coração, eu
queria mais: planejava passar na prova que me garantiria uma vaga como
professora de Inglês na FIL Seoul University.
Minha mãe surtaria. Meu pai — que já estava magoado — não me
perdoaria. Minhas irmãs... Bem, apenas Helen (minha alma gêmea), a
penúltima de cinco, realmente se importaria o suficiente para chorar.
E tinha a Tetê, minha melhor amiga e irmã de coração, a única que
sabia sobre a prova. Bem, ela estava em NY, de qualquer forma, mas
apoiava minha decisão.
Eu sentia falta de todos eles, mesmo que quisesse ficar em Seul.
Cuidar dos gêmeos sempre fazia a culpa e a saudade apaziguarem
um pouco. Eu tinha planos, planos que me faziam ficar mal e me sentir
egoísta. Quando eu cuidava de Chae Su e Chae Yeong, fingia não ter que
me preocupar com nada daquilo.
Funcionava, quando um deles sorria para mim ao pronunciar uma
frase completa. O sr. Jang me elogiara na última semana após os filhos o
cumprimentarem não só em inglês, mas em português também. Ele os
chamava de pequenos gênios.
Eu amava aquilo, aquela rotina corrida em um país estrangeiro cheio
de cultura e cor, e estivera me corroendo de culpa até dias antes. Antes de
interromper o trabalho de um paparazzi.
Eu cogitara ligar para o meu pai, humilhada, e pedir o dinheiro
emprestado — algo nas minhas entranhas sabia que encontraria o cara outra
vez —, mas fazia semanas desde a minha última ligação. Nela, o Coronel
sequer falara, apenas me escutara tagarelar sobre os meus últimos dias,
como um soldado fazendo relatório ao seu superior. Como pediria a ele, do
nada, dinheiro emprestado? Eu não o fizera nem para pagar a passagem e o
aluguel do apartamento que dividia com Ji Ah, o homem certamente
desconfiaria e me exigiria uma explicação.
Se ele sequer desconfiasse que a filha caçula havia se metido em
confusão do outro lado do mundo...
Meu pai compraria uma passagem para vir me buscar à força, com
certeza. Já estava tentado a fazer isso desde o momento em que eu entrara
no avião.
Balancei a cabeça, percebendo que tinha devaneado de novo. Chae
Yeong girou o indicador ao lado do ouvido para o irmão, que concordou.
Meus alunos me conheciam o suficiente para saber que, de fato, eu não era
uma pessoa comum, mas aquele gesto me deixou em alerta.
Foco, Helena!
— Vamos de ditado hoje — falei, varrendo para longe todos os
problemas e me concentrando nas crianças. — Quem acertar mais ganha
chocolate.
Os dois se entreolharam, despertando a competitividade, mesmo
sabendo que eu ficava com pena e sempre entregava uma barrinha de doce
escondido para o perdedor também.
— Não vai contar para a gente o que você fez de ruim, professora
Lena? — A garotinha piscou inocentemente.
Ela adorava fofoca, aquela espertinha.
— Não. — Baguncei sua franjinha lisa. — Eu vou resolver isso.
Da forma mais adulta e responsável possível.
 

 
Depois de finalizar minha aula de coreano online com meus dez
alunos e ligar para minha mãe, rondei a geladeira em busca de algo para
comer. Han Ji Ah assaltara a cozinha antes e, depois de um banho, acabara
apagando no sofá enquanto assistia nosso drama sul-coreano favorito pela
milésima vez.
Ela trabalhava como maquiadora em um salão bem famoso no
centro de Seul; às vezes, chegava bem tarde em casa e sequer
conversávamos, mas aquilo era compensado pela manhã, quando minha
amiga acordava e tagarelava sobre o dia anterior e o famoso que conhecera
dessa vez.
Dois meses antes, ela atendera a atriz protagonista de um drama de
fantasia da TBN e, quatro semanas antes disso, recebera um dos integrantes
do M.O.N. Eu geralmente me controlava quando Ji Ah me contava essas
coisas, porém, quando ela me convidava para visitar algum set de filmagem
onde estava trabalhando, eu ficava um pouco eufórica. Dá última vez em
que a assistente da Jiji faltara em uma filmagem importante, minha amiga
me ligara apavorada pedindo ajuda.
Eu entendia de maquiagem, era a cobaia da coreana-brasileira nos
tempos livres, então ficara mais do que feliz em poder ir para ajudar.
Só não contara que o ator principal fosse o próprio Ji Chong-Wuk[9].
Precisara contar até dez para não desmaiar, e usar todo meu
autocontrole para não deixar minha mão tremer tanto quando Ji Ah me
pedira para limpar o rosto dele. Acho que nem quando conhecera
pessoalmente Eric Lee — vulgo atual namorado da minha melhor amiga —
ficara tão nervosa.
Ji Chong-Wuk fora o primeiro ator a me conquistar para o mundo
dos dramas asiáticos. Tirar a maquiagem daquele rosto esculpido por
anjos...
Wa[10]... Fora uma experiência mágica.
Deixei um bilhete na geladeira, avisando minha amiga que passaria
na L.O. — a pequena e reconfortante loja de conveniências que havia duas
ruas abaixo — e provavelmente ficaria um pouco no playground em frente
para relaxar, como fazia de vez em quando.
Eu ainda estava mortificada por ter assustado Son Ho, meu amigo e
vizinho de porta, da última vez que nos vimos, então passei silenciosamente
pelo corredor para não denunciar minha presença e segui para o elevador.
Apesar de sermos próximos o bastante para conversas informais e
noites de Soju, ultimamente era difícil dizer algo coerente quando estava
com ele, com a tendência desconcertante de corar sempre que o jovem
sorria para mim. Evitava aquele tipo de sentimento desde que terminara
com Miguel, meu primeiro-maldito-amor. Já não era lá muito confiante
antes dele; depois de sofrer inutilmente pelo meu ex, acabara evitando olhar
diretamente nos olhos de qualquer cara pelo qual eu tinha interesse.
O único que conseguira me tirar boas risadas e aquela timidez fora
Adam, um jornalista que eu conhecera dois anos atrás. Eu o ajudara a entrar
num evento de moda e, quando notara o interesse dele na modelo — que eu
descobrira mais tarde não ser modelo coisa nenhuma —, acabara perdendo
aquela falta de confiança e ganhara um amigo.
Me sentia triste, às vezes, por não ter mantido contato com Adam e
a falsa-modelo-gêmea. Os dois me fizeram rir e agir como eu mesma no
pouco tempo que passamos juntos. A notícia de gêmeas que trocaram de
lugar se espalhara por um tempo nas redes sociais, mas, desde que me
mudara para a Coreia, eu não ouvira mais falar sobre Raven[11].
Mas ainda me sentia patética quando tentava conversar com Son Ho.
Estava tudo indo bem quando Ji Ah nos apresentara, quase dois anos atrás:
ficamos amigos e compartilhamos noites de conversas descontraídas. No
entanto, algo mudara há alguns meses; toda vez que ele sorria para mim
com aquelas bochechas enfeitadas por furinhos e me elogiava... eu entrava
em pânico.
Geralmente, começava uma listagem sobre os tipos de plantas que
eu tinha e os tipos de adubos para cada uma.
Fala sério.
Esperei as portas do elevador se abrirem para descer. Quando
finalmente a caixa de metal chegou ao andar e se abriu, paralisei, encarando
os pequenos olhos matadores do poodle no colo da minha vizinha.
Não pisquei.
Ele também não.
— Ah, vamos, menina, ele não morde.
A senhora, eu quis acrescentar. Não morde a senhora.
Fiz uma curta mesura em cumprimento e ameacei dar o primeiro
passo. O cachorro grunhiu.
Eu gostava de animais, até queria muito um todo pretinho para
chamar de Banguela, em homenagem ao Fúria da Noite do filme; mas o
animal que me encarava naquele momento me fazia repensar se realmente
me daria bem com um cachorro, se eu exalava algum cheiro ou energia
negativa que os irritava.
Mãos largas se apoiaram em meu ombro e eu ergui o rosto,
encontrando o sorriso de covinhas, os olhos castanhos brilhantes e os
cabelos escuros úmidos caindo na testa. Son Ho disse algo para a mulher,
que segurava uma das portas me esperando entrar, então cochichou para
mim em Inglês para que a sra. Hwang não entendesse:
— Ele sente cheiro de medo.
— Se ele não me encarasse assim, seria mais fácil — cochichei de
volta, fazendo-o soltar uma risada baixa.
Meu vizinho sutilmente me empurrou para dentro do elevador e se
manteve entre mim e o cachorro possuído, que continuava grunhindo. Son
Ho comprimia os lábios para evitar sorrir diante da cena: um cachorro de
vinte centímetros encarando e amedrontando uma jovem de um e sessenta,
espremida contra uma parede de espelhos.
— Vão sair? — Sra. Hwang perguntou curiosa. Ela sempre se
questionava sobre a minha proximidade com Park Son Ho, fazendo
comentários insinuativos quando nos via, mas eu fingia que o coreano dela
era difícil demais de entender e não respondia.
— Não — falei.
— Sim — Son Ho respondeu ao mesmo tempo.
Franzi a testa para ele, que sorriu, dando de ombros.
— Vamos comer Lámen, esqueceu?
— Lámen? — A mulher também franziu a testa, interpretando o tom
da frase do que os coreanos chamavam de cantada. — Os dois juntos?
— Huh. — Son Ho assentiu, como se não fosse nada de mais, mas
com os furos nas bochechas ainda à mostra. — Eu e ela.
Ainda mortificada, não escutei o plim suave das portas se abrindo,
sendo novamente direcionada para fora pelo jovem de cabelos castanho-
escuros, que se despediu rapidamente da mulher com o cão assustador.
Talvez Bong-Bong fosse um animal treinado para desconfiar dos inquilinos
naquele prédio. Ele me olhava como se soubesse que eu quebrara a câmera
de um paparazzi no sábado.
Son Ho disse algo sobre estar com fome e querer me acompanhar
até a L.O., alegando que apenas um pouco de Soju com uma amiga poderia
desestressá-lo de um dia exaustivo no trabalho. Tentei contar sobre o meu
dia enquanto descíamos o pequeno morro, ignorando o cheiro de banho e de
perfume que o jovem usava e o quanto Son Ho estava arrumado e cheiroso
demais só para ir a uma loja de conveniências.
Park Son Ho usava calça preta rasgada nos joelhos, uma camisa
cinza lisa e um sobretudo mais escuro, fazendo-o parecer mais velho e alto
e lindo.
Ele facilmente poderia ser confundido como um Idol, mas era, na
realidade, um assistente social exclusivo de uma rede de farmácias bem
famosa em Seul. Son Ho tinha o porte físico de um atleta, a voz de um anjo
e o rosto de um galã de TV. Mas definitivamente não era o que realmente
fazia eu me encantar por ele.
Não. Ele era muito mais do que seu físico.
Tinha um coração lindo também.
Eu descobrira que estava enrascada no dia em que Son Ho levara Ji
Ah e eu para um evento beneficente que a farmácia organizara. Havia tantas
crianças e idosos naquele dia, e ele fora tão maravilhoso com todos eles...
Era o sonho dele: ajudar pessoas, qualquer um, de qualquer idade. E
Son Ho o fazia sempre que podia, de coração aberto; com o projeto de
assistência social das farmácias Seomgigo, ele tinha completa liberdade de
oferecer trabalhos voluntários e eventos beneficentes.
Eu ficara cerca de meia hora abobada, observando Park Son Ho
interagir com aquelas crianças naquele dia, meses antes. Só quando uma
delas me puxara pela mão é que eu percebera que o estava encarando. Eu
desconfiava que ele notara também quando me olhara com os lábios
esticados e covinhas expostas. Eu sentia que Son Ho sabia que era ele quem
eu encarara com um sorriso bobo no rosto.
Ji Ah me encorajou a chamá-lo para sair quando notou o interesse,
mas, mesmo que eu planejasse fazê-lo, travava.
Miguel, meu ex, também sorrira para mim várias vezes, e eu passara
anos acreditando que, além de um amigo, tinha alguém especial, que me
amava e valorizava. Quando ele elogiava um vestido, eu acreditava e
suspirava. Quando me beijava, parecia quente e real. Até eu descobrir que
aquilo era a minha interpretação do romântico, do amor que achava sentir.
Até ser esfaqueada por trás e perceber que aquele era um idiota
querendo se gabar para amigos. Ganhar experiência, ele dissera.
Então, eu paralisava. As palavras se embolavam e pesavam em
minha boca e, sempre que pensava em chamar Son Ho para sair, me
atrapalhava, dizendo algo como Dieffenbachia amoena e os pequenos
cristais tóxicos encontrados nas células dessa planta.
— Vi que vai acontecer uma exposição de arte italiana no GJ Plaza
no sábado — comentou meu vizinho quando viramos a esquina. — É o tipo
de coisa que você gosta, certo? Então me perguntei se gostaria de ir comigo.
Sorri, com um galope errante no coração.
— Eu adoraria. — Girei uma das pulseiras em meu pulso, uma
especial que ganhara do meu pai quando ele revelara sobre o divórcio.
Quando sentir minha falta, pequena. Para se lembrar de que, onde quer
que esteja, ainda sou seu pai. Sempre vou ser.
Vez ou outra, me pegava girando o pingente de flor da única
corrente de ouro que tinha entre os dedos. Era um contraste com as
miçangas e faixas coloridas que usava nos pulsos.
— Mesmo? Não vai furar comigo de novo, vai?
O olhei ofendida.
— A única vez que não pude ir foi porque tive prova, ok? Eu jamais
furaria com você de propósito. — Pigarrei, desviando os olhos para a
pulseira dourada. Por favor, não cora. Não cora, Lena. — Enfim... vou
estar lá.
— Perfeito. — Eu senti o sorriso em sua voz. — Sábado. Às sete.
No corredor do nosso prédio, já que você vai comigo.
Ri, assentindo e me perguntando se ele convidara Ji Ah também.
Provavelmente. Os dois eram amigos de infância.
Senti aquele aperto na boca do estômago. Éramos amigos. Não era
nada demais. Eu não precisava corar porque um amigo me chamou para um
evento de artes, droga!
Evitei soltar um suspiro aliviado quando vi a faixada lilás e verde;
não queria que Son Ho notasse o quanto eu estava exultante pelo convite.
Quando entramos, ele me acompanhou pelo corredor de prateleiras,
pegando duas garrafas de Soju e o Pepero que ele sabia que eu gostava.
Enquanto eu analisava as minhas opções de sabores de Lámen, meu vizinho
ficou do meu lado esperando. Mas o rapaz estava diferente de minutos
atrás: apreensivo, até parecia trocar o peso do corpo nos pés.
— Tá — soltei baixo, um pouco incomodada com isso. — Eu
costumo demorar eras para escolher quando o assunto é comida, escolhe
você. Ou não tá afim de Lámen?
— Não! — Riu ele, me fazendo erguer o rosto para encará-lo. —
Eu...
Son Ho estava sério, até parecia... nervoso e tímido.
Franzi a testa quando ele segurou levemente meu pulso e me virou
para que ficasse frente a frente com ele no corredor, sentindo o toque da
pele dele contra a minha como se fosse a primeira vez, algo com o qual eu
claramente jamais me acostumaria.
— O quê? — perguntei, ciente das malditas bochechas
pigmentando.
— Eu quis te acompanhar hoje porque precisava falar com você —
meu vizinho disse mais baixo. Então recuou, me soltando e levando a mão à
nuca. — Estou ensaiando há meses e não crio coragem, então... queria
aproveitar que a Ji Ah não saiu com você hoje.
Ji Ah? Por que ele iria querer conversar comigo sem ela?
Ah...
Tentei não parecer desapontada e, principalmente não me precipitar,
mas, pela expressão no rosto dele...
— Quer falar sobre ela? — Apontei para a fileira variada de
macarrão. — Vamos comprar algo e conversamos num lugar mais tranquilo.
O que acha de...
— Não é sobre ela, Lena — murmurou Son Ho hesitante. — É sobre
você. Sobre nós dois.
Paralisei.
É o quê?
Pisquei devagar, repassando a fala para ver se ele tinha dito aquilo
mesmo. Até cheguei a abrir a boca para pedir que Son Ho explicasse, já que
não queria antecipar nada, mas o sininho da porta atrás do meu amigo me
chamou atenção.
Uma distração bem-vinda dos olhos castanhos dele.
É sobre nós dois.
Engoli em seco, incapaz de falar, e então o boné preto me fez
congelar de verdade.
Não escutei o que o rapaz à minha frente disse, sua voz era um eco
distante ao mesmo tempo em que eu assistia ao jovem de preto passar pela
porta e parar diante do balcão. Eu passara o dia todo correndo de qualquer
um que me lembrasse o paparazzi e me assustara diversas vezes com
homens de preto e bonés e máscaras. Então, ainda anestesiada pelo que o
cara que eu gostava acabara de implantar no meu coração iludido, apenas
observei o novo cliente se inclinar um pouco no balcão de atendimento para
perguntar algo a Eun Ah, tamborilando descontraidamente os dedos
compridos e tatuados na superfície.
Estava um pouco inerte até aquele momento, segundos antes de
realmente me dar conta do que estava acontecendo.
Primeiro, ele fez a pergunta; depois, a mão da garota se ergueu e
apontou; e, por fim, os olhos negros como obsidiana encontraram os meus.
Não havia máscara ali, então consegui notar o curto sorriso que despontou
na boca do jovem quando me viu.
Encontrei você, era o que ele parecia pensar.
Quando me dei conta de que era para mim que Eun Ah apontava, fiz
a primeira coisa que me veio à cabeça.
 
“Posso parecer um cara péssimo,
Mas meu coração derrete quando te vejo.”
GANADARA — Jay Park feat. IU
 
 
JUN
 
Talvez ela só fosse desatenta mesmo. Ou quem sabe realmente não
lembrasse de mim. Não, não do dia em que a jovem simplesmente pulara na
minha frente e quebrara a lente da minha câmera. Não do dia em que saíra
correndo com a convicção de que nunca me veria outra vez. Não,
definitivamente não daquele dia fatídico.
Mas de outros.
Caramba, tantos outros.
Era cômico ver ela se esforçar tanto para fugir de alguém que
morava a três prédios de distância dela. Na mesma rua.
Ela não se lembrava do dia em que esbarrara comigo, muitos meses
antes, com fones de ouvidos, cantarolando Good Day[12] enquanto fazia
uma curta reverência para se desculpar. Ou da ocasião em que praticamente
furtara a última caixa de Pepero da loja de mim, semanas atrás. Ela batera
as notas na bancada e tomara a caixa que eu iria comprar. Tudo bem, talvez
tivéssemos visto o produto no mesmo segundo e, pelo mesmo segundo, ela
quase conseguira a mercadoria, mas nada mudaria o fato de que aquela
brasileira tomara infantilmente o doce de mim e disparara correndo loja
afora.
Como fizera quando quebrara a minha câmera.
Sorri quando seus olhos claros se arregalaram ao me reconhecer e,
antes que eu pudesse acenar, a jovem se abaixou, como um coelho
assustado voltando para a toca.
Aparentemente, se esconder e correr eram atitudes usuais para ela.
— Valeu, pirralha. — Tamborilei os dedos na madeira, ainda
encarando o lugar onde a cabeleira cacheada desapareceu, divertido. Eu de
fato ficara incrivelmente irritado no sábado, e até deixara palavras não tão
comuns no meu vocabulário escaparem quando segurei a lente estilhaçada
no granito, mas não consegui segurar o riso ao observá-la se arrastar no
chão para se manter “escondida” de mim.
Cômico, a verdadeira definição da vergonha alheia.
Parei no fim do corredor, cruzando os braços e tombando levemente
a cabeça para continuar observando a cena. O cara que a acompanhava
havia se agachado quando a jovem puxou seu braço com força e mandou os
dois saírem urgentemente da loja. Porém, quando ela recomeçou a
engatinhar na direção em que eu estava parado e o seu (provavelmente)
namorado me notou, ele franziu a testa.
No momento em que percebeu o caminho bloqueado, a garota
parou, a poucos centímetros de mim, como se até o momento tudo o que
tivesse reparado era o chão. Por fim, depois de mortalmente encarar os
coturnos pretos em meus pés, os olhos de cor indefinida se ergueram para
mim de forma lenta.
Meu sorriso ampliou, puro e completamente envolto e repuxado
pela diversão de assisti-la fugir. Ou tentar.
— Oi, você. — murmurei. — De novo.
— Helena? — Seu acompanhante se levantou, com duas garrafas de
Soju nas mãos. — O que está acontecendo?
Ela fechou os olhos e mexeu os lábios, sem emitir som;
praguejando, com certeza.
Então sorriu. Um sorriso aberto, profissionalmente encobertando o
pavor em seu rosto.
— Wa... — Ficou de pé, dando batidinhas nos joelhos para tirar
qualquer indício de sujeira do jeans claro da jardineira com bordados de
margaridas. — Olha só quem tá aqui...
Segurei o riso.
O cara continuou com a testa franzida.
— Quem está aqui? — perguntou ele, depois de ver que Helena não
iria completar a sentença.
Os dentes dela pareciam colados, e o peito subia e descia com a
respiração rápida. A garota me olhava com um pedido silencioso brilhando
nas íris castanhas ou verdes, ou uma mistura dos dois.
— É... É um amigo d-do c-curso! — gaguejou.
O outro me encarou, estreitando os olhos escuros.
Fiz um gesto indiferente com os ombros.
— Sou um amigo do curso.
— Já te vi antes. — O jovem continuou me analisando com
suspeita, até porque a namorada, ou seja lá o que fosse dele, tinha se jogado
no chão quando me viu. Era uma cena que não acontecia todo dia.
Pelo menos não com pessoas normais e civilizadas.
— Moro duas ruas acima.
Não pensei que os olhos de Helena pudessem se arregalar mais.
A surpresa não passou despercebida do homem parado ao lado dela.
A moça notou que ele notou.
— Eu... Eu esqueci completamente do nosso... nosso...
— Jantar? — sugeri com provocação.
Ela corou.
— Isso! — E se virou para o jovem. — Eu... tinha combinado de
encontrar com ele e me esqueci. Foi mal, Son Ho...
— Vocês dois estão...
— Tenho que ir!
— Mas, Lena...
— Te vejo mais tarde, ok? Pode ir sem mim! — Helena o
interrompeu apressada e pegou minha mão, me puxando para fora da loja
antes que o amigo ou namorado pudesse protestar.
 

 
Continuei recostado à coluna que sustentava o castelo colorido do
playground enquanto observava Helena ziguezaguear de um lado para o
outro murmurando em outra língua, sempre me olhando: às vezes com
raiva, às vezes com culpa, às vezes com dúvida.
Ela ameaçara quebrar meu nariz caso eu tentasse alguma gracinha
enquanto me arrastava até aquele ponto da praça mais movimentada do
bairro em que morávamos, se gabando de que o pai era militar e ela fazia
aulas de Muay-Thai desde os dezenove. Era cômico me lembrar das
ameaças, já que, desde que chegamos ali, uns dez minutos antes, a jovem
não parava de choramingar sobre eu ter interrompido um momento
importante e ter deixado a impressão para o Son-alguma-coisa de que eu e
ela tivéssemos algo a mais.
— Ok! — Parou de repente, me encarando com o cenho franzido e a
expressão emburrada. Era difícil levar a sério quando uma garota
consideravelmente mais baixa que eu, usando jardineira e miçangas
coloridas nos pulsos, fechava a cara e cruzava os braços. — Vamos resolver
logo isso. Quer falar de números? Vamos falar de números. Quanto te devo?
Uma pequena temperamental, talvez?
Ela parecia um ursinho.
Falei o valor exato dessa vez, e toda a fachada de determinação do
rosto da moça desapareceu como bolha de sabão ao estourar.
Outro choramingo escapou dos lábios pequenos e rosados.
— Por que tanto? Eu só deixei ela cair no chão, caramba! — Abriu
os braços, espalmando as mãos no ar, enfatizando seu descontentamento e
exasperação. — Que câmera ruim é essa que quebrou tanto só com uma
quedinha?
A risada escapou sem eu me dar conta.
Cruzei os braços, me desencostando da pilastra e ficando mais alto
alguns centímetros. Helena recuou, como se também sentisse que encolheu
de tamanho.
— Você literalmente tomou a câmera da minha mão e disse que, se
eu não prometesse deixar o Kian em paz, a quebraria.
— Tá, mas eu só estava te ameaçando, não ia mesmo...
— Você jogou ela no chão, Helena-shi[13]. Não deixou cair, você
realmente a jogou com força no asfalto.
Ela encolheu com uma careta.
— Você avançou para cima de mim!
— Eu avancei para tomar a câmera da sua mão! — grunhi. — Não
para te machucar!
Helena pareceu refletir um pouco. Então, depois de menear com a
cabeça, ainda pressionando os lábios e juntando as sobrancelhas; deixou os
ombros caírem desanimados e suspirou, desviando o olhar para o chão.
— Vamos. — Cruzei os braços, esperando pacientemente. — Peça
desculpas.
A jovem assentiu dramaticamente.
— Eu sinto muito. — Ela levou a mão direita cheia de pulseiras
rosas, amarelas, roxas, verdes e outras cores ao coração sob o moletom
listrado amarelo e branco. Os cachos negros oscilaram quando Helena fez
uma mesura exagerada de desculpas. — Eu não queria realmente te
prejudicar. Geralmente, sou meio atrapalhada mesmo, mas não quis quebrar
a câmera. Fiquei... nervosa por ver você tirando foto do Kian, eu realmente
gosto das músicas dele e... mesmo que estivesse ali para quem quisesse ver;
não queria que fosse exposto à uma manchete de fofoca. Eles só querem um
pouco de normalidade e paz, para variar.
Permaneci em silêncio.
Eu não me orgulhava do trabalho e não fora para aquele fim que
gastara tanto com o equipamento. Contudo, depois da última briga com o
meu pai, o orgulho me fez tomar rumo para a independência, então
precisara do dinheiro, do trabalho indesejado que pagaria razoavelmente
bem e me garantiria o aluguel dos próximos meses.
Não me irritei por perder o furo de Kian e Aria, mas pela câmera
pela qual eu realmente tinha muito apreço.
Helena criou coragem para me olhar.
— Eu não tenho todo esse dinheiro. — Mordeu o lábio de novo,
encolhendo mais um pouco, verdadeiramente remoída pela culpa, a voz um
pouco trêmula. — Tudo o que eu tenho não chega nem perto de comprar
uma lente descente para... Na verdade, minha reserva compra só uma alça
para sua câmera. — Então, a jovem acrescentou, murmurando baixinho: —
O que, se você tivesse, teria evitado o ocorrido no sábado...
Ela parou quando ergui uma sobrancelha.
— Foi mal — finalizou em um muxoxo.
Suspirei, pronto para começar o meu discurso ensaiado, quando um
soluço baixo escapou, me pegando de surpresa. Antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa, a jovem estrangeira começou a chorar na calçada; a cada
palavra eram adicionados um tom mais agudo e um volume mais alto em
sua voz chorosa.
— Eu só queria ajudar alguém, não queria fazer confusão. Na
verdade, eu n-nem sei porque saí da fila aquele dia, eu s-só fui porque
minha amiga me deu o bilhete, eu nem gosto de boate! À-às vezes eu não
penso quando faço alguma coisa e isso acaba... acaba... — Ela enxugou as
bochechas com as costas da mão. Quando me encarou, mais lágrimas
brilharam em seus olhos. As palavras saíam rápido de sua boca. — Por
favor, não me manda para a polícia, moço! Eu juro... Juro que não... Eu não
tenho como te pagar, mas prometo que vou dar um jeito. Trabalhei tanto
para conseguir vir para cá e não quero ser deportada...
Deportada?
Tentei interrompê-la.
— Agashi[14]...
— Até briguei com o meu pai quando vim para cá! Ele não queria
que eu viesse, inclusive me proibiu, mas eu vim mesmo assim e gritei com
ele, falando que não precisava do seu dinheiro. Agora eu preciso do
dinheiro dele e ele vai jogar na minha cara que eu não consigo me virar
sozinha e...
— Helena-shi? — Me aproximei, segurando seus ombros e falando
com calma, mantendo o meio sorriso tranquilo e paciente. Aquela era
mesmo uma pessoinha curiosa. Eu não a entregaria para polícia por causa
de uma câmera, apesar de saber que muitos o fariam por menos.
Fariam pior, talvez.
Mas eu não o faria. Na verdade, Helena não poderia ter aparecido
numa hora melhor.
Há males que vem para o bem. Definitivamente.
— H-huh?
— Respira — orientei. Ela obedeceu. — Muito bem. Agora solte o
ar.
A jovem o fez, ainda soluçando um pouco, mas consideravelmente
mais calma, os cílios mais escuros e alongados por conta do choro.
Olhos grandes e úmidos me encararam, aguardando a sentença
como uma criança esperava o castigo por ter feito bagunça.
— Não vim aqui para te ameaçar como um agiota.
Helena piscou devagar, e eu evitei o olhar atravessado das pessoas
que assistiam à cena com reprovação, como se eu fosse um namorado ruim
que fez a namorada chorar.
— N-não? — fungou a garota.
— Não. — Me afastei, colocando as mãos no bolso da calça. — Eu
sabia que poderia te encontrar na loja, já que sempre te vejo lá. Achei que
seria melhor te abordar em um lugar mais público do que bater diretamente
na porta do seu apartamento.
— Você realmente mora na mesma rua que eu?
Assenti.
— E você conhece o meu colega de quarto. Kang Cha Min.
— Oh? O garoto dos computadores? — Os olhos dela se abriram
surpresos e um peso pareceu deixar seus ombros quando ela relaxou,
apagando o último rastro de choro. — Vocês... são amigos?
Assenti outra vez.
— Então você... Oh! Você é o amigo fotógrafo! Faz... sentido
agora.  — Um sorriso lindo finalmente repuxou os lábios dela. Então, uma
risada baixa escapou. — Ele fala muito de você.
— Estou impressionado que ele tenha comentado sobre mim, aquele
ingrato — resmunguei.
Cha Min me contara um pouco sobre Helena quando eu relatara o
que acontecera no sábado, ele a auxiliara com a compra de um notebook um
ano antes. A jovem dava aulas de coreano online e era Cha Min quem
configurava e fazia a manutenção do site dela de tempo em tempo.
Meu amigo tinha uma queda considerável pela amiga de Helena,
Han Ji Ah, se me lembrava- bem; apesar de ele e Helena não serem tão
próximos, eram o suficiente para que o meu irmão de orfanato soubesse de
algumas coisas.
Estava ciente de que a garota era estudante e não conseguiria me
pagar a quantia, mas ela poderia me ajudar com outra coisa em troca.
— Acha que podemos conversar agora? Com calma? — perguntei.
— Huh. — Assentiu a jovem com um sorriso doce, no mesmo
segundo em que um som engraçado deixou sua barriga. Ela soltou um riso
sem graça. — Eu meio que... estou com fome.
Sorri.
— Vamos comer. — Apontei em direção à loja de conveniências em
que estávamos antes. — E então eu te conto como você vai me compensar
pela câmera.
 
“Eu realmente, realmente quero amar você
Mas não posso dizer a palavra que quero.”
Love U — Monsta X
 
 
HELENA
 
— Dez favores — ele disse por fim.
— Um favor e ficamos quites — rebati, levando a tigela de plástico
aos lábios, bebendo o restante do caldo do macarrão.
Sentia que podia resolver aquele problema de forma mais civilizada
depois de encher a barriga. Fiquei emocionalmente desestabilizada antes
porque estava com fome e com pensamentos demais na cabeça.
— Cinco e não falamos mais nisso.
Estreitei os olhos para o paparazzi, que se apresentara mais tarde
como Kim Jun Woo. Depois de alguns minutos de conversa, o rapaz se
mostrara mais bem-humorado e gentil, e isso fizera com que qualquer
nervosismo fosse embora.
— Três. Afinal, por que trocar o dinheiro por favores? Você não está
pensando em nada pervertido, está? — Ergui a sobrancelha, e Jun Woo
engasgou com o macarrão quando falei isso, iniciando uma crise de tosse.
Ele virou o rosto para verificar se Eun Ah, a garota do caixa, havia
escutado. Para sorte dele, ela continuava indiferente como sempre. Então,
Jun Woo voltou a me olhar com uma careta.
Dei de ombros.
— Não pode me culpar — falei informalmente[15], sorvendo o
restante do meu refrigerante.
— Não, Helena, não é nada que vá te deixar desconfortável. Você só
vai me ajudar com uma coisa.
— Então, um favor basta. — Sorri docemente, e ele devolveu o
gesto de forma mais sarcástica.
— Três. E assunto encerrado — disse o rapaz, estendendo a mão
sobre a bancada nos fundos da loja, o corpo de lado para ficar frente a
frente comigo.
Girei meu corpo na banqueta para fazer o mesmo e selei o acordo.
— Promete que vai perdoar minha dívida depois disso? —
perguntei.
— Huh. Tem a minha palavra.
— Ok. — Suspirei aliviada, eu não precisaria ligar para o meu pai
no fim das contas.
Faria qualquer coisa para não ter que chegar àquele ponto.
Apoiei o rosto no punho, o cotovelo na base lilás da mesa e observei
o rosto de Jun. Ele parecia um artista, mas, diferente de Son Ho, Jun Woo
poderia facilmente passar uma vibe mais sombria. Os cabelos compridos e
lisos, pretos como obsidiana, assim como os olhos arredondados e grandes;
as tatuagens o tornavam diferente de qualquer um que eu já tenha
conhecido — a não ser pelo jornalista que ajudei no desfile, que também
tinha o braço direito ou esquerdo completamente coberto por chamas:
vários desenhos cobriam os braços e mãos do meu mais novo conhecido,
como figurinhas em uma cartela de adesivo; aquele anel prateado fino que
enfeitava o lábio superior no canto direito me atraía o olhar para sua boca
vez ou outra; e ele parecia gostar de roupas pretas e mais largas, argolas
prateada nas orelhas...
— O que foi? — Franziu a testa quando percebeu que o encarava
demais.
— É que... — Estreitei o olhar. — Você me deu um pouco de medo
quando nos conhecemos, todo sério e — apontei para ele — com essa
energia de bad boy e tal.
Jun Woo riu.
— E agora não está mais com medo?
— Você parece ser bem diferente do que a sua primeira impressão
deixa imaginar. Estava com uma expressão assim no sábado. — O imitei,
fechando a cara e cobrindo a boca para representar a máscara que ele usara
no dia.
Sua risada ecoou pelo lugar. Era um som alegre e reconfortante.
— É óbvio que eu estava irritado!
— Tá, mas você tava com essa cara quando andamos de volta para a
loja — insisti. — E você não parece ser emburrado sempre. É bem legal,
até.
Jun Woo contraiu os lábios, como se para evitar que o canto deles
esticasse e denunciasse o bom humor.
— Está me bajulando porque quebrou a minha câmera.
Assenti com um sorriso.
— Estou te bajulando porque quebrei a sua câmera. — Me
endireitei, apoiando ambas as mãos nos joelhos, e o encarei, respirando
fundo. — Okey! Qual é a minha primeira tarefa?
O jovem apoiou o antebraço direito na bancada enquanto falava.
— Minha tia tem uma loja de penhores onde eu fico pela manhã.
Não me importo de trabalhar lá, mas costumo ficar o dia todo no sábado. Já
perdi muitos ensaios fotográficos de casamentos e uma grana boa de alguns
bicos para revistas por causa disso, então...
Fiz uma careta. Meus sábados não... Meus sábados não....
— Você trabalha aos sábados? — perguntou.
— Trabalho. — Uma resposta impulsiva que soou falsa até para
mim.
Jun Woo sorriu.
— Mentirosa. — Estalou os dedos na minha cara. — Sábado. Oito
horas. Esse é o primeiro favor. Você vai ficar lá aos sábados para mim.
— Qual é! Não posso levar seu cachorro para passear ou dar água
para as plantas ou...
O paparazzi começou a tirar o celular do bolso da calça jeans
escura.
— Vai querer me pagar o dinheiro em nota ou quer me fazer uma
transferênc...
— Loja. Sábado. Ok. — O interrompi, contrariada. — E o segundo
favor?
Cruzou os braços, satisfeito.
— Te conto o segundo favor no sábado.
— E onde fica a loja da sua tia? — perguntei meio emburrada. Eu
teria que arranjar algum bico extra para conseguir o dinheiro de qualquer
forma, então era melhor se fosse assim mesmo. Loja de penhores? Não
devia ser tão difícil penhorar coisas.
— Não muito longe. É no bairro vizinho, uns quinze ou vinte
minutos dependendo da rota. — O rapaz levou o refrigerante à boca, meus
olhos seguindo outra vez para o piercing ali; depois, eles desviaram para o
desenho no dorso de sua mão direita.
Era uma borboleta e, acima dela, uma pequena meia-lua negra,
fazendo com que o complemento de espinhos que rodeavam seu braços e
dedos compridos transpassasse certa melancolia na imagem, mas certo
conforto com o BE[16] escrito acima da lua (B no indicador e E no dedo
seguinte). Aquela ilustração era diferente do desenho da mão esquerda, que
parecia ser... uma rosa e uma flor de cerejeira entrelaçadas aos mesmos
espinhos. Eram como figurinhas, várias delas, com frases e desenhos e
rabiscos que poderiam muito bem ter sido tatuados por diversão e
aleatoriedade, ou escolhidos com cuidado, carregando diversos
significados. Pergunta para outra hora.
— Ela não costuma ficar lá, aparece vez ou outra quando quer fugir
de casa — ele continuou. — Recebo uns trocados para cuidar da loja.
— Ela não vai se importar se eu começar a trabalhar no seu lugar?
Jun Woo fez que não com a cabeça.
— Tia Eh Ji é bem-humorada, não costuma fazer alarde por
qualquer coisa.
— Tudo bem. — Suspirei. — Vou ficar lá para você. Me dá o seu
celular, deixa eu salvar o meu número.
Ele deu um sorrisinho humorado de lado, um que parecia usar com
frequência pelo jeito, enquanto me entregava o aparelho prateado fino.
— Nunca pensei que conseguiria o número de uma garota sem
pedir... — murmurou com gracinha.
— Há, há! — Digitei meu número, enviando uma figurinha para ele
para poder salvar o contato do Jun quando chegasse em casa. — Aqui.
Esperei que Jun Woo pegasse o celular da minha mão, mas ele não o
fez nos primeiros segundos. Quando ergui o rosto, encontrei os olhos
escuros me analisando seriamente.
— Está tudo bem para você?
— O quê? — perguntei confusa.
— Isso. Os três favores. Tudo bem para você? — Por fim, o jovem
pegou o celular. — Não precisa fazer se não quiser, não quero que se sinta
desconfortável.
Por algum motivo, foi fácil ler a preocupação nos olhos dele. Talvez
eu tendesse a ser trouxa e achar as pessoas boazinhas demais, mas
realmente vira sinceridade em cada palavra e gesto de Jun Woo desde o
momento em que começamos a conversar, uma hora antes. E ele era amigo
de um conhecido. Não que isso bastasse, mas eu poderia infernizar Cha Min
por algumas informações sobre o fotógrafo quando chegasse em casa, e Jun
Woo jamais desconfiaria, pois eu sabia muito bem como fazer Kang Cha
Min ficar de boca fechada.
Abri um largo e sincero sorriso para o rapaz à minha frente.
— Vou cumprir com o acordo e você com a sua palavra. Eu faço o
que tenho que fazer e você me libera da dívida.
— Não respondeu minha pergunta.
— Não se preocupe, Jun. — Coloquei uma mão em seu ombro antes
de levantar, deixando de lado as formalidades. Ele não pareceu se importar
pela falta de honoríficos. — Vamos fazer isso. Já disse, você me poupou de
ligar para o meu pai no Brasil. Eu posso ser meio tapada às vezes, mas
também sou orgulhosa. Não quero dever nada a você.
— Certo. — O rapaz soltou o ar, ficando de pé. — Vamos ver se vai
dizer o mesmo no segundo favor.
Meu sorriso morreu.
— O quê?
— Vamos embora — cantarolou, andando tranquilamente para o
caixa.
— O que é o segundo favor, Kim Jun Woo?
Eu sentia o sorriso em seus lábios.
— Jun?
Ele apenas virou para dizer com um meio sorriso:
— Vai ser divertido. Eu e você.
 
 
Não me virei depois de me despedir de Jun, apenas segui até o fim
da rua, para o prédio em que eu morava, três depois do fotógrafo.
Jun Woo me contara, enquanto subíamos lentamente o morro para a
nossa rua, que havia morado por quatro anos em Boston. Falou que, apesar
de ganhar alguns trocados com o trabalho, não gostava de ser chamado de
paparazzi e só queria se estabilizar em algo melhor para poder sair da
revista em que ele trabalhava. Eu acabara revelando que trabalhara em uma
revista parecida no Brasil chamada Fofoquei, mas nunca chegara a publicar
alguma matéria lá — com exceção dá que escrevera para Eric Lee, quando
fotos dele e de Maitê vazaram na internet —, e sim quizzes semanais para as
leitoras e leitores descobrirem qual famoso era o par romântico mais
compatível delas através de seus números de calçados.
Ele gargalhou quando lhe contei mais algumas histórias de
vergonhas e perrengues que eu já tinha passado na revista. No fim, quando
paramos em frente ao prédio gêmeo com os outros da rua, porém verde,
aquele em que Jun morava, nós nos despedimos com um sorriso tranquilo e
amigável.
Eu sobreviveria, afinal.
Ainda pensando na sorte repentina que tivera com Jun, apenas
reparei nos tênis amarelos em meus pés e nos passos que davam, até que o
movimento na escada me fez acordar dos pensamentos bagunçados. Na
verdade, me fez lembrar no que estava pensando antes de Jun Woo aparecer
na loja.
Park Son Ho.
— Ei... — Franzi a testa para ele, que estava sentado nos degraus da
escada, ainda com a sacola de Soju nas mãos. Quando falei, Son Ho ergueu
o rosto, os cabelos um pouco mais desgrenhados, como se ele tivesse
passado as mãos ali várias vezes para espairecer.
— Você está bem? — Ele desceu os degraus me estudando de cima
a baixo, como se procurasse algum ferimento ou algo do tipo. — Não te
encontrei depois, e você sumiu com aquele cara.
Havia um desconforto em sua voz, e eu não o culpava. Fora eu
quem o arrastara para o chão da loja para se esconder, e também fora eu
quem sussurrara que precisávamos sair de lá o mais rápido possível antes de
Jun Woo nos ver. Ah, e eu não era boa em mentir, sem contar que saíra
correndo de repente, levando Jun comigo.
— Sobre isso... — Mordi o lábio, mortificada com a vergonha.
Sentia as malditas bochechas esquentarem e ganharem cor de novo. —
Sinto muito. Você deve ter ficado confuso.
— Você realmente conhecia ele? — Havia um pouco mais do que
preocupação nos olhos escuros de Son Ho: decepção também, como se
tivesse perdido algo. Mas eu não consegui identificar. Normalmente,
confundia o olhar e as palavras das pessoas, então evitava a leitura corporal.
— Ele é um amigo. — A frase saiu mais natural do que quando a
pronunciara na loja. — Eu estava... devendo um favor a ele e me esqueci
completamente. — Soltei uma risada sem graça, colocando um cacho atrás
da orelha. — Por isso quis me esconder dele naquela hora. Mas tudo foi
resolvido!
— Ah, certo. — Assentiu o rapaz, desviando os olhos. Engolindo
em seco.
Fechei as mãos em punho dentro dos bolsos laterais da jardineira,
me lembrando do que ele dissera mais cedo, do que fizera meu coração
acelerar um pouco mais rápido em expectativa. Não queria tirar conclusões
precipitadas, não queria me enganar de novo.
Mas...
É sobre nós dois.
— Você... queria falar algo para mim? Parecia... — Engoli em seco,
nervosa. — Parecia ser importante.
— Fiquei pensando sobre isso enquanto te esperava. — Deu um
sorriso tímido, revelando as covinhas que arrancavam suspiros de qualquer
um. — Tem certeza de que você e aquele cara não... Vocês dois são...
próximos?
— Somos amigos — repeti. Claro que não era perto do que eu e Jun
realmente erámos, mas até eu explicar o que levara nós dois a nos
aproximarmos... Bom, longa história. Longa e vergonhosa história.
— Nós também somos amigos — Son Ho disse, os olhos fixos nos
meus.
— Sim! Somos... — Não cora, não cora, não cora... — Ouso dizer
que somos consideravelmente mais próximos do que eu e o Jun Woo. Nem
se compara, na verdade.
O riso nervoso que saiu da minha garganta foi interrompido quando
o brilho nos olhos de Park Son Ho se intensificou e ele se aproximou um
passo.
— Bom. — Os lábios esticaram um pouco. Era impressão minha ou
ele estava aliviado? — Isso é muito bom.
Pisquei confusa.
— Desculpa, Lena... é que... Aqui vai a verdade; — Mais um passo
adiante e eu já conseguia escutar meu coração batendo ensurdecedor contra
o meu ouvido. — Eu não sou bom em esconder o que sinto. Pior ainda, não
sou bom em esconder da pessoa que eu gosto o que eu sinto. Mas a pessoa
que eu gosto é muito boa em não entender os sinais.
Espera...
O quê?
Tentei usar o cérebro, mas...
— Eu... não entendi — balbuciei, um pouco surpresa com a
proximidade, com o tom da voz, com o pequeno sorriso apreensivo e com o
céu brilhante acima de nós dois. Son Ho franziu a testa, com os lábios
repuxados e o olhar travesso de quem dizia “Viu só? Você não entendeu.”
— Son Ho...
— Eu ensaiei e ensaiei e sempre procurava uma boa oportunidade
para te contar, mas, de alguma forma, sempre parecia dar errado. — Son Ho
riu, coçando a nuca, nervoso e até um pouco tímido. — Até pensei que era
um sinal do universo para eu desistir, que não era para ser. Quando saíamos,
a Ji Ah estava junto e me cutucava para te contar logo, mas você nunca
prestava atenção; ou você tinha prova e não podia me ver ou alguém
aparecia... — O mundo começou a girar. Por um segundo, não estávamos na
rua silenciosa e vazia, não havia prédios e carros... apenas ele e eu. Son Ho
ainda parecia nervoso, mas permaneceu impulsionado a dizer tudo o que
guardava. — Eu gosto de você desde o primeiro dia em que saímos juntos.
Você parecia encantada com tudo e sorria para todo mundo, tagarelou horas
porque estava nervosa demais e vivia se desculpando por isso, quando eu só
conseguia pensar em como você era linda e diferente de qualquer pessoa
que eu já conheci. Você é um pouco distraída, por isso não notou.
Pisquei de novo, tentando compreender que aquelas palavras de fato
eram para mim.
Segurei o impulso de levar a mão ao peito, até o coração
dolorosamente agitado.
— Eu sei que esse tipo de coisa é uma provável quebra de amizade,
mas eu queria que soubesse. — Ele afastou uma mecha do meu rosto. —
Gosto de você, Helena. Não só como a minha amiga, mas como um homem
gosta de uma mulher.
Certo. Respira, Lena. Nós treinamos muito para um momento assim,
só... calma.
Fazia tempo que não escutava aquelas três palavras. Gosto de você.
Sinceramente, depois de Miguel, não acreditava mesmo que poderia escutá-
las outra vez. E... de Son Ho.
Um filme preto e branco bem confuso e muito rápido rodou em
minha cabeça, desde momentos felizes com o meu ex a situações em que o
ouvira dizer coisas horríveis. Pensei no dia em que o encontrara no prédio
da revista anos depois e em como ele chorara arrependido pedindo para
voltar; das palavras de Maitê me dizendo para seguir em frente, e agora...
agora isso. Son Ho lindamente parado diante de mim, declarando aquelas
palavras bonitas em alto e bom som.
Uma parte minha estava exultante, outra insistia em duvidar.
— Certo, você está me deixando nervoso. — Son Ho tentou brincar
dizendo baixinho, recuando um passo, perdendo a coragem.
— V-você... — Comecei rouca, sem olhar para ele, encarando a
camisa que o rapaz usava, mas sem vê-la de verdade. — Mas como? Por
quê? Não...
— Não quero que se sinta na obrigação de dizer que sente o mesmo.
Só...
— Eu... — Ergui os olhos para ele, realmente vendo sinceridade ali,
mas... não podia dar o braço a torcer tão facilmente apenas para quebrar a
cara de novo. — Eu...
Eu também gosto de você.
Você pode dizer, Lena. Só diga as palavras. Ele é o seu amigo, não é
o Miguel, nem todo mundo é como o Miguel. Aquele idiota só queria
crédito com os amigos, só queria tirar a virgindade da namorada para se
gabar depois; ele não era tão carinhoso como Son Ho é com você, ele fazia
piadinhas machistas enquanto... enquanto Son Ho é um anjo personificado.
Pode dizer.
Eu gosto de você.
Abri a boca, pronta para declarar em voz alta, mas fui impedida. Eu
quis me convencer de que não disse para Son Ho o que sentia porque Han Ji
Ah saiu das portas de vidro vestida de moletom e tênis esportivos, pronta
para correr em uma maratona; e não porque estava com medo de me
machucar de novo.
Minha amiga quase soltou um choro aliviado quando me viu, e
sequer se importou em nos cumprimentar, me virando e revirando à procura
de algo.
— Você não viu minha mensagem? — Segurou meus ombros e me
sacudiu. — Não comprou o que eu pedi?!
— O q-que você pediu? — Finalmente, desviei o olhar dos olhos de
Son Ho, encarando o rosto mortificado da minha colega de quarto. — Foi
mal, eu... não vi.
Meu cérebro girava na minha cabeça com uma infinidade de
pensamentos e sentimentos confusos, como em um processador, me
deixando enjoada.
Ji Ah choramingou, franzindo a testa ao notar, por fim, a presença
do nosso vizinho e resmungar um “olá”.
— Você vem comigo agora. — Ela se virou para mim outra vez.
— O quê? — Franzi a testa. — Mas eu acabei de voltar...
— Código vermelho, Helena-shi — bradou Han Ji Ah em
português. — Código ver-me-lho.
Son Ho odiava quando conversávamos na minha língua nativa, se
sentindo excluído por não poder entender e fazer parte da conversa, até
mesmo fechou a cara para Ji Ah, mais provável por nossa amiga comum ter
nos interrompido em um momento decisivo; mas eu mantive a voz neutra e
falei em português:
— Estamos sem?
— Huh! — Ji Ah segurou minha mão. — Vamos.
— Mas eu... — Apontei para Son Ho.
— Você fala com ele depois! — Então, ela me puxou pela rua. —
Boa noite, chingu-ya[17]!
Son Ho resmungou algo, mas acenou. Quando me encarou uma
última vez, pude entender que ele esperaria pela minha resposta.
 
“A culpa é minha por não ser boa em me expressar?
Eu sou uma garota calorosa em uma cidade fria.
Não posso simplesmente dizer que gosto de você?
Eu quero ser sincera.”
Some — Bol4
 
 
HELENA
 
Gosto de você, Helena. Não só como a minha amiga, mas como um
homem gosta de uma mulher. Gosto de você, Helena. Gosto de você,
Helena.
Gosto de você, Helena.
Continuei encarando a madeira escura e envernizada da cama de
cima no beliche que dividia com Ji Ah. Minha cabeça estava oca,
reproduzindo a noite toda aquelas palavras, ecoando a voz de Park Son Ho
pela alta madrugada, me fazendo revirar o tempo todo no colchão.
Fingi que estava dormindo quando a madeira acima rangeu e minha
amiga se levantou e desceu, resmungando para fora do quarto, e continuei
deitada quando ela gritou da sala que eu perderia o ônibus se não me
apressasse. Mas eu não consegui me mover, em parte porque a noite mal
dormida começou a cobrar, por fim, o tempo perdido, e minha cabeça não
parava de girar e latejar. Mas principalmente por medo de sair e topar com
Son Ho no corredor.
Não porque eu queria realmente fugir dele, mas porque não
conseguia dizer a resposta que ele esperava e eu achara estar pronta para
dar.
E deveria ser uma boa e pensada resposta. Não só impulsionada pelo
coração, mas analisada com cuidado minucioso.
Eu estava confiante de que passaria na prova e garantiria minha
vaga. Eu teria um emprego fixo como professora de Inglês e poderia
continuar dando aulas online para receber um extra. Me preocupava com a
forma como contaria para minha família que não pretendia voltar, e tinha
certeza de que permaneceria ali em Seul, mas...
Mas eu não podia descartar o “e se” eu não passar? E se eu começar
algo com Son Ho só para ter que me despedir depois?
Bufei, enfiando o rosto no travesseiro.
Quem eu queria enganar? Não eram esses questionamentos que me
faziam hesitar.
E se eu me machucar de novo? E se, em algum momento, eu me
sentir pequena de novo? E se um dia Son Ho perceber que não sou o que
ele esperava? E se um dia eu acabar me decepcionando e voltando para
aquele poço escuro novamente?
Fora difícil demais sair de lá. Fora doloroso demais reerguer aquela
Helena. E, mesmo que eu me convencesse de que estava bem, curada, de
que havia superado... Eu ainda recuava, ainda tinha medo de encarar as
pessoas nos olhos, ainda temia entregar meu coração remendado para
alguém.
Mesmo que o sorriso gentil e cada gesto de Son Ho me provasse que
ele não era aquele tipo de pessoa que me quebraria em pedaços pequenos e
irremediáveis, eu não conseguira dizer as palavras na noite anterior.
Eu gosto de você.
E gostava.
Mas não estava pronta ainda. Perceber isso me deixou naquele
estado deplorável pela manhã.
— Bom di... Aigoo[18]. — Ji Ah franziu a testa. —  Por que hoje é
um dia ruim?
Eu era uma pessoa transparente. Todos sabiam quando eu estava em
um dia bom, mas era ainda mais óbvio quando não estava. Minhas roupas
sempre foram o indicativo. Eu gostava de roupas, gostava de combiná-las e
usá-las alegremente, mas, em dias como aquele, um jeans e um moletom
preto eram tudo o que eu precisava.
Prendi o cabelo em duas tranças embutidas apenas para conter o
volume dos meus longos cachos ao colocar o capuz do agasalho, não me
dando o trabalho de cobrir as sombras arroxeadas debaixo dos olhos. Minha
pele estava ainda mais pálida naquela manhã, e meu rosto era um alerta de
não se aproxime.
— Vou direto da aula para a casa dos gêmeos — declarei rouca,
inexpressiva, sem tocar na xícara com café que Ji Ah colocou para mim
sobre o balcão, como fazia todos os dias. Por viver a maior parte da vida
adulta no Brasil, minha amiga não se adaptara à mesa tradicional de café da
manhã coreana, com arroz e sopa e vários incrementos, então eu e ela
sempre optávamos pelo mais prático: café puro e omelete. Apesar daquela
refeição matinal ser de lei, eu não tinha apetite. — Volto mais tarde. Bom
dia.
Comecei a me arrastar em direção à porta.
— Espera! — Ji Ah gritou, correndo até onde eu estava e me
estendendo algo. Era um envelope e... chocolate. — Son Ho mandou te
entregar antes de ir para o trabalho.
Droga.
— Eu...
— Ele... se declarou ontem, não foi?
Pensei em mentir, mas seria inútil.
— Huh. — Peguei o envelope, colocando-o dentro da mochila. —
Não quero falar sobre isso. Vou conversar com ele... um dia. Fica com o
chocolate.
— Pensei... — Ela hesitou. — Pensei que gostasse dele.
— Eu gosto dele.
— Então... qual é o problema? — Minha amiga franziu a testa,
ajeitando o rolinho rosa que segurava sua franja. Ji Ah parecia preocupada,
mas havia uma hesitação estranha que eu não identificava em sua voz. Na
verdade, há dias achava que havia algo diferente nela.
— Eu só quero me preparar antes de tomar uma decisão grande.
Ji Ah abriu a boca, pronta para dizer o que seria o discurso de
encorajamento de sempre, me orientando a seguir o coração, mas algum
pensamento pareceu a segurar. Então, ela apenas anuiu com a cabeça e
balançou o chocolate.
— É o seu favorito. Não quer mesmo?
— Huh. Pode engordar no meu lugar. Estou indo — murmurei, me
arrastando até a porta, e saí.
Acabei perdendo o ônibus.
 

 
Não fora um dia produtivo. Acabara faltando às aulas e, quando me
viram, os gêmeos entenderam que não era um bom dia para atazanar a
professora Lena. Vê-los propositalmente mais quietos porque não queriam
me incomodar fizera a culpa me corroer. Por isso, eu me forçara a abrir um
sorriso e sugerira que assistíssemos Encanto, em inglês e legendado, para
que eles se acostumassem mais com a pronúncia. Acabara fazendo pipocas
e os deixando na sala enquanto copiava a matéria da próxima prova que
uma colega de classe havia enviado no grupo.
Meu humor piorou quando minha irmã me enviara uma mensagem
falando que a mamãe andava esquisita. Deviam ser aproximadamente três
horas da manhã em São Paulo quando Helen contara que nossa mãe estava
muito calada e inquieta ultimamente. Eu cogitava que as coisas no trabalho
não deveriam estar muito boas, mas duvidava de que esse fosse mesmo o
caso.
Minha mãe era dona de uma empresa de eventos bastante solicitada
em São Paulo. Ela abrira o escritório depois do divórcio, deixando Minas
Gerais para começar uma vida nova comigo e a Sol. Não demorou muito
para o negócio decolar, mamãe era incrível no que fazia. E dona Julieta
nunca dramatizava para nos contar quando tinha problemas. Se ela estava
escondendo algo das filhas mais novas... ou era sobre a família ou talvez
uma decisão grande que deveria tomar e afetaria Helen e eu.
Eu queria acreditar que tudo resolveria, porque em breve meus pais
receberiam uma notícia que os abalaria. Pensara em contar a Sol sobre a
prova em dois meses, sobre querer ficar em Seul, mas ela acabara dormindo
durante a ligação.
Por fim, depois de não atender a uma ligação de Son Ho e outra de
Ji Ah, decidira desligar o celular e focar nas minhas crianças. Elas me
distraíram e até me fizeram rir quando buscaram um dos mantos verdes da
mãe e começaram a imitar o Bruno na TV.
Quando me despedi deles e entrei no ônibus, não senti vontade
alguma de voltar para o apartamento. E talvez eu estivesse fazendo uma
tempestade em copo d’água, mas... eu era bem medrosa quando o assunto
eram relacionamentos. Não amizades, eu jamais dizia não para novos
amigos, mas aquele tipo de laço que deixava o coração mais exposto e
vulnerável...
Fazia cinco anos desde que terminara com Miguel, quase dois desde
que bloqueara ele da minha vida definitivamente, e, desde então, não me
envolvera com mais ninguém. No entanto, às vezes, eu tinha vontade de
arriscar tudo de novo e viver uma aventura romântica e impulsiva.
— Boa noite... — Passei pela porta com sininho, adentrando a
pequena loja de conveniências como um zumbi em busca de tripas para
devorar.
Eun Ah, a adolescente ranzinza de talvez uns dezesseis anos, sequer
ergueu os olhos para mim quando a cumprimentei, mas não me importei.
Apenas segui em direção à seção de doces, enchendo a mão com duas
caixas de Pepero, barras de chocolate e um biscoito de Coala que eu mais
comprava porque achava bonitinho.
Depois de sentir que aquilo era o suficiente, caminhei até o caixa,
mas a luz do corredor de bebidas chamou minha atenção e eu estanquei em
frente à fileira de garrafas verdes.
 
“Eu não conheço você,
mas você me faz perguntar quem você é.
Jeans largos, cabelo solto...
Eu quero conhecer você.”
I Don’t Know You — The Rose
 
 
JUN
 
— Pode comprar arroz para mim quando voltar?
— Pensei que tivesse abastecido o armário no sábado — retruquei,
passando a alça da mochila nas costas, apoiando o celular entre o ombro.
— Huh. — Cha Min respondeu, claramente com a boca cheia. —
Mas tenho que terminar um trabalho importante aqui e precisei de energia.
— Você comeu tudo, seu porco imundo?
— Huh.
Cara de pau.
— A próxima compra é sua. — Bufei, subindo na moto. — E vai
comprar os malditos biscoitos que eu gosto.
— Ahyu... Arasseo![19] Só traz o que eu te pedi. E soju! Ah, e...
Desliguei, guardando o celular no bolso da calça, dando partida logo
em seguida.
Não me importara em aparecer na revista no dia anterior ou naquela
tarde: o idiota do meu chefe não suportava justificativas, e ele certamente
não compreenderia que eu perdera o escândalo de Aria e Kian porque uma
brasileira decidira que seria assim. Não era um emprego fixo, mas que me
rendia uma boa grana. No entanto, depois de todo o chilique de Helena no
sábado, decidira que evitaria atuar como paparazzi por alguns dias.
Ou semanas.
Com sorte, nunca mais.
Era um trabalho, mas ficar de tocaia o dia todo para descobrir boatos
sobre a vida alheia não era realmente o que eu queria quando decidira me
formar em Artes.
Conseguira um trabalho rápido para um jornal naquela tarde. Estava
próximo ao bairro, então não demorei a chegar nas ruas estreitas e elevadas
na volta para casa. Estacionei a moto no outro lado da rua, em frente à
praça, seguindo para a L.O. Conveniência.
A loja ficava na esquina; um pé de cerejeira enfeitava a calçada, mas
não exalava o rosa vivo com a chegada do outono. Porém, sempre trazia cor
àquela rua em dias de primavera. Eun Ah se irritava com a árvore em
qualquer estação que não o inverno, pois precisava se levantar com mais
frequência para limpar as folhas da calçada.
A cumprimentei com um aceno breve ao passar pela porta, decidido
a comer macarrão naquela noite. Contudo, uma figura solitária me chamou
atenção quando entrei. Por isso, ao invés de seguir pelo corredor de comida
instantânea, caminhei para o lado oposto.
Parei ao lado da jovem e cruzei os braços, observando-a com
curiosidade, de cima a baixo.
Todas as vezes que a encontrava ou a via passando pela rua, Helena
usava cores alegres: algum vestido florido, uma jardineira ou camisetas com
estampas criativas. Os braços estavam sempre cheios de pulseiras coloridas
e os tênis combinavam com a cor da roupa. Era sempre... feliz, com o longo
cabelo negro esvoaçando enquanto andava, cachos encorpados caindo nos
olhos brilhantes.
Mas aquela criaturinha parada em frente às bebidas não era a mesma
que quebrara a minha câmera ou comera Lámen comigo na noite passada.
Era uma sombra dela.
Helena não me reparou ali, as mechas do cabelo escuro contidas em
duas tranças, ocultas pelo capuz do moletom preto que escondia seu rosto.
Ela usava coturnos pretos parecidos com os meus e uma calça jeans escura
como todo o resto. Não havia luz alguma naquele rosto sorridente de antes,
os olhos cansados e as olheiras encaravam a fileira de garrafas.
Abri a boca para anunciar a minha presença, mas a brasileira
suspirou, mantendo todos os doces que carregava presos contra o peito em
uma das mãos enquanto abria a porta de vidro e, de lá, retirava três garrafas
de Soju.
Helena pediu desculpas baixinho quando trombou comigo ao se
virar, sem me ver realmente, e caminhou até o caixa inexpressiva.
Franzi a testa e a segui.
— E eu estava assustador ontem? — perguntei ao pé do ouvido dela,
fazendo-a finalmente virar o rosto para mim. Apesar do tom de voz ter
soado descontraído, uma parte minha ficou preocupada por vê-la tão... não
ela. — Oi.
O que tinha acontecido? Será que ela estava assim por que me
devia? Por causa do nosso acordo? Ela alegara antes que estava tudo bem,
até sorrira para enfatizar, então... tinha mentido? Ela estava mesmo
incomodada com o acordo?
A testa da jovem franziu.
— Oh? — Retirou um dos fones de ouvido, que até então eu não
tinha notado. — Jun Woo-ya.
— Você tem uma gêmea ou algo assim? — perguntei, puxando o
capuz dela, liberando o rosto delicado, porém pálido demais, da sombra que
estava antes. — O que aconteceu com a Helena de ontem?
Ela apenas piscou algumas vezes, devagar, como se tivesse me
escutado, mas não entendido de fato.
Completamente aérea.
Eun Ah a interrompeu antes que minha vizinha dissesse alguma
coisa, informando o valor.
Helena fez careta, então ergueu um leque com as poucas notas que
tinha no bolso do agasalho e observou sua compra. Muito chocolate e Soju.
Aquilo era o indício de algo ruim: ela estava deprimida por algum motivo.
Não gostava de me gabar, mas era especialista no assunto.
Minhas amigas de faculdade costumavam se empanturrar daquelas
coisas quando tinham um dia ruim. Snow sempre comprava umas três
barras de chocolate e sorvete, já Raven me fizera comprar para ela torta de
limão uma vez. Uma travessa que comera inteira, sozinha.
Não devia ser diferente com aquele serzinho peculiar ali.
Depois de contar as notas, Helena inclinou a cabeça para trás e me
encarou com os grandes olhos arredondados e opacos.
— Jun. — Uma pausa. — Tem dinheiro aí?
Comprimi o sorriso.
— Está me pedindo dinheiro emprestado, Helena-shi[20]?
Ela pensou um pouco e, sem vergonha alguma, assentiu, o rosto
ainda sério. Sem vida. Como um robô programado.
Deixei a risada incrédula escapar, então balancei a cabeça enquanto
seguia para o último corredor e apanhava duas tigelas de arroz, uma de
macarrão e mais duas de yopokki, voltando para o caixa. Os olhos de
Helena me acompanhavam a cada passo, como uma criança esperando a
mãe para pagar a guloseima que ela escolheu.
Olhei para a garota no caixa e assenti ao estender o cartão.
— O dela também — falei, colocando as coisas de Helena em
sacolas diferentes.
— Coloca na conta — ela murmurou. — De tudo que eu te devo.
Então, com uma curta mesura, dizendo um “gamsahabnida[21]”
sem graça emendado de um suspiro, ela saiu. Logo após, se dirigiu a uma
das mesas de alumínio do lado de fora. Eun Ah e eu observamos de longe,
através do vidro da loja, enquanto a jovem se acomodava na cadeira e
espalhava os doces da sacola na mesa, abrindo uma caixa de Pepero e
organizando as três garrafas de Soju uma ao lado da outra.
— Ela não vai aguentar a primeira — Eun Ah declarou entediada,
voltando a atenção para o celular, mas antes conferiu o meu rosto e
explicou: — Helena sempre fica fora de si na primeira garrafa. Se acha
aquela garota estranha sóbria, espera só para ver ela bêbada. — A
adolescente riu. — É uma comédia.
Desviei o olhar para a jovem lá fora outra vez. Ela abriu um
pequeno sorriso ao levar um palitinho de chocolate e biscoito aos lábios.
Então, sacudiu e abriu a garrafa verde, sem se importar com um copo,
sorvendo uma boa quantidade do líquido direto do recipiente, fazendo uma
careta ao engolir.
Girei o pescoço, cansado, exausto, mas o olhar voltando para a
figura lamentável na mesa na calçada.
Acabei pegando o celular no bolso e digitei:
“O arroz vai demorar. Não me espere, chego mais tarde.”
Depois, saí da loja e arrastei uma cadeira para perto de Helena.
— Três garrafas é muita coisa para você — falei, puxando uma para
mim. — Vou te fazer companhia.
Ela apoiou o rosto em uma das mãos e ergueu o Soju na outra para
mim, o canto dos lábios em forma e cor de cereja se esticou um pouco.
— Eu tenho uma resistência muito boa, sabia?
Apoiei os antebraços na mesa e me inclinei para mais perto dela.
— Não acredito em você — sussurrei.
O sorriso que iluminou um pouco o rosto dela me fez cogitar — e
até me tranquilizar — que talvez Helena não estivesse daquele jeito por
minha causa. Por conta do acordo.
Ela imitou minha postura, se inclinando também, batendo de leve a
ponta da garrafa que segurava na minha. Um brinde.
Então, sussurrou de volta:
— Não devia mesmo.
 
“Não se machuque, não fique triste
Diga; adorável você é
Não acabou, porque estamos juntos.
Diga enquanto estou do seu lado:
Adorável você é.”
Lovely — Minzy
 
 
JUN
 
Ela estava bêbada.
Depois de uma garrafa e meia, Helena se transformara em uma
jovem extremamente tagarela e risonha, misturando as frases de um inglês
perfeito para um coreano não muito compreensível.
Sem querer, e nem um pouco incomodado com isso, acabara
aprendendo mais sobre a jovem à minha frente. Ela tinha medo de andar de
avião e acabara confessando que vomitara duas vezes na viagem de São
Paulo para Incheon, chorando para a senhora no assento ao lado sobre ela
ainda querer conhecer a cantora favorita — Ayo — e vestir Hambok[22].
Helena desabafara sobre o casamento dos pais e como o divórcio deles a
deixara mal; me falara sobre as quatro irmãs mais velhas, destacando a mais
nova entre elas, Sol, até mesmo sobre a amiga que escondera um Idol em
casa, Maitê.
Eu ouvira sobre o caso alguns anos antes, ainda quando estudava em
Boston. Repercutira bastante: o cantor sul-coreano que passara uma
semana no Brasil para ficar com a namorada. Talvez Helena estivesse
bêbada demais ao alegar que não só era amiga daquela brasileira da matéria,
como ela mesma ajudara o cantor a fugir do show.
“O Eric jamais teria sobrevivido e encontrado o amor da vida dele
sem a minha ajuda”, Helena dissera, de forma arrastada, com um sorriso
muito largo e orgulhoso.
Ela misturava muito as palavras e eu acabei não compreendendo boa
parte delas.
Aparentemente, a jovem estava sob muita pressão ultimamente, mas
ainda não parecia ser aquele o motivo para tanto chocolate e álcool
correndo pela garganta.
Deixei que ela falasse.
Vê-la daquele jeito me fez lembrar de Raven, de minha amiga em
Boston: ela com certeza não se comparava à Helena em nada, mas fazia
tanta bagunça quanto. Ambas choramingavam quando estavam bêbadas, e
estar ali, naquele momento, me fez recordar de uma noite infeliz para um
pobre amigo apaixonado, que não só havia se declarado para a pessoa que
gostava, como a havia entregado aos cuidados de outro homem.
Estava feliz, no fim, de vê-la com Adam. Não conhecia um casal tão
perfeito um para o outro. Apesar de, por um tempo, ter sentido o coração
sufocar... mesmo que eu tivesse realmente gostado de Raven, estava feliz
por tê-la como amiga. Depois que meu irmão partiu, depois que eu descobri
sobre o acidente e sobre o que ele tirara de mim, não consegui pensar mais
em declarações e nos meus sentimentos bobos. Só na dor que estava
sentindo. Na dor excruciante e na saudade que sufocava.
Por um tempo, pensei que seria aquela a sentença, que eu não teria
mais vontade de continuar. Mas Adam e Raven foram importantes demais
para mim, e eu jamais poderia me ressentir por minha amiga tê-lo escolhido
no final. Adam era como um irmão mais velho, e tirá-lo do sério era um dos
meus passatempos favoritos.
Sorri, levando mais Soju à boca, sentindo o gosto amargo e doce
queimar.
Sentia falta deles.
Notei os olhos esverdeados em mim, então franzi a testa para a
jovem, que me encarava profundamente. Helena estava séria de novo,
porém pensativa.
— No que está pensando?  — perguntei, inclinando um pouco a
cabeça para o lado.
Ela suspirou, as bochechas levemente pigmentadas e o nariz
igualmente corado, deixando a garrafa verde vazia — que antes ela usara
para assoprar e fazer de flauta — de lado. A moça apoiou o queixo em
ambas as mãos escondidas pela manga do moletom preto extremamente
largo para o seu tamanho, os cotovelos na mesa.
Tão pequena.
— Eu gosto de você — disse concentrada, rouca. Parei de piscar,
surpreso. O quê? — Gosto de passar meu tempo com você. Gosto do som
da sua risada e... gosto de quando o vento passa no seu cabelo e bagunça as
mechas. Adoro o som da sua voz, poderia... passar horas te ouvindo falar. É
isso. Eu gosto de você.
Será que eu também estava bêbado e comecei a ouvir coisas?
Um pouco atordoado com o que ela disse, me inclinei sobre a mesa
e a encarei bem no fundo dos seus olhos, então...
— O quê?! — soltei incrédulo.
Lena fez um biquinho triste.
— Por que é tão difícil dizer isso para ele? — continuou,
extremamente deprimida ao tombar o rosto no alumínio frio, a bochecha
espremida na superfície da mesa. — Eu devia dizer, não devia? Já que é o
que eu tô sentindo...
— Estamos falando do cara que estava aqui com você ontem?
— Huh... — resmungou em afirmação. — Ele... ele se declarou para
mim e eu entrei em pânico.
Soltei uma risada, um tanto aliviado, e então cruzei os braços sobre
o peito enquanto analisava aquele rosto delicado e bêbado.
— Porque entrou em pânico? — perguntei paciente.
— Já que você se disponibilizou para ser meu terapeuta hoje... —
Soltou mais um suspiro, a ponta do dedo indicador tracejando desenhos
invisíveis na mesa. — Eu vou contar. Eu poderia... me sentir culpada por
estar te prendendo aqui numa terça, quando você não tem obrigação
nenhuma de ficar, mas... eu não me sinto. Porque eu tô bêbada.
— Certo. — Ri. — Me conte por que está bêbada.
— Olha só, Kim Jun Woo-shi [23]— virou o rosto para erguer os olhos
sonolentos para mim —, eu tive um namorado bosta uma vez. Vou te
poupar da trágica história, mas... resumindo? Ele foi um babaca desalmado
que queria se divertir e se gabar um pouco.
Meu sorriso morreu com o tom da voz: mesmo alterada pela bebida,
ela falhou ao revelar aquelas coisas.
Meus pensamentos correram para um caminho perigoso quando ela
continuou:
— Ele aproveitou tudo o que podia de mim, então me jogou fora.
— Ele... — engoli em seco — machucou você?
A jovem desviou o olhar para a mão sobre a mesa outra vez.
— Não... do jeito que está pensando. Mas, às vezes, parece que sim.
Não foi grosseiro e nunca... me forçou a nada. Eu era muito apaixonada
para notar, acabei não dizendo não quando deveria. E ele se aproveitou
disso e depois... depois... — Lena fungou. — Depois ele fez piada disso.
Me ridicularizou na frente dos amigos e eu virei motivo de riso.
Fechei as mãos em punho, sentindo o gosto da raiva se misturar ao
sabor do Soju na língua.
Ela não merecia isso. Nenhuma mulher merecia.
— Esse... cara. — Clareei a garganta quando minha voz oscilou. —
Esse cara que se declarou para você... Confia nele?
— Ele sempre foi muito bom, sabe — murmurou a jovem, um
pequeno sorriso preguiçoso nos lábios. — Ele é amigo da Ji Ah há um
tempão, e minha amiga, mesmo quando morava no Brasil, a gente se via no
curso de coreano e ela sempre falava dele. Eu sentia que conhecia o Son Ho
há anos quando a gente finalmente se viu.
— Se ele gosta de você... por que está tão triste?
Por um segundo, Helena pareceu sóbria. Sóbria e vazia e cansada.
— Porque eu estou com medo. Porque, apesar de saber que é
mentira, não me sinto linda o suficiente às vezes. Porque, embora eu goste
mais de quem sou hoje, quando converso com ele, me sinto patética demais.
Porque, por mais que ache Son Ho um cara incrível, tenho medo de
acreditar no que ele disse e acabar me ferindo outra vez. Não acho que vou
suportar sofrer desse jeito de novo. — As palavras saíram rápidas, porque
eu sabia que Helena as guardava por tempo demais. — Porque, mesmo
depois de anos lutando para superar o que Miguel fez comigo, ainda escuto
a risada dele para os amigos enquanto... enquanto contava sobre...
Eu sabia exatamente o fim daquela sentença. Não só pelo tom na
voz dela, mas pela forma como Helena se encolheu ao lembrar. Eu soube o
que o canalha havia dito, o que contara debochadamente para os amigos.
Meu Deus...
Evitei demonstrar o nojo e o desprezo que senti, não dela, jamais
dela; mas do cara a quem Helena decidira entregar o coração inteiramente.
Como podia existir monstros daquele tipo? Como ele pôde tomar a
inocência de alguém tão doce e alegre para ridicularizá-la depois?
Naquele segundo, eu quis fazer algo por Helena, qualquer coisa,
mas não consegui me mexer: o ódio e outros sentimentos conturbados
turvaram minha visão.
Helena se reclinou, voltando as costas para a cadeira, então fechou
os olhos por alguns segundos e inspirou o ar gélido da noite, abrindo um
sorriso melancólico no mesmo instante em que uma lágrima solitária rolou
por sua bochecha.
— Sou mesmo patética, não sou? — Abriu os olhos e me encarou.
— Hoje é terça-feira, tenho prova amanhã cedo e estou bebendo com um
cara que conheci no sábado, depois de ferrar com o trabalho dele.
Me forcei a sorrir.
— Assim você me ofende... — Passei a mão no cabelo, afastando as
mechas compridas da testa. — Pensei que era um amigo do curso.
— Ah, é mesmo. — Helena riu, e eu não a impedi quando ela
sorveu o restante do Soju da segunda garrafa.
— Não deveria se sentir assim — falei, enfiando as mãos geladas
nos bolsos da jaqueta. A jovem franziu a testa, confusa. Continuei, mais
alto e claro, para que ela entendesse: — Sei que é difícil mudar a forma
como pensamos sobre nós mesmos, mas você não deveria se sentir assim.
Você é engraçada e estranhamente peculiar, mas é linda. Muito linda.
Mesmo em seu estado deplorável e alcoolizado, ela corou. Muito.
— Não d-devia sair... — soluçou — sair falando essas coisas...
— Por que não? — Puxei a caixa de Pepero entre nós e peguei um
palitinho de chocolate de dentro. — Eu tenho dois olhos e enxergo muito
bem. As pessoas não deveriam ter tanta dificuldade em elogiar as outras
sem que haja uma segunda intenção. Faz bem, na verdade. Principalmente
para a pessoa que recebe o elogio.
A brasileira fechou a cara.
— Não quero ouvir elogios por pena.
— Não elogio pessoas por pena — declarei, sem jamais desviar o
olhar do dela. — Não tenho dificuldade alguma em dizer o que penso de
verdade. Você é muito linda, Helena-shi, e eu só estou constatando um fato.
Nenhuma palavra, apenas olhos grandes de cor indefinida brilhando
com uma emoção difícil de identificar. Ela piscou devagar, digerindo,
talvez, o que eu disse.
Me inclinei sobre a mesa outra vez.
— Não precisa ter medo de dizer o que pensa. Se está chateada,
diga. Se está feliz, diga. Gosta daquele cara sem graça? Diga para ele. Se
alguém fizer algo que te machuque, fale também. — Ergui o doce de
chocolate e biscoito para ela. — Não guarde o que está sentindo,
principalmente se isso te ferir tanto.
Helena assentiu, pegando o Pepero e mordiscando um pedaço, o
olhar de análise em mim, como se tentasse tomar uma decisão importante
ao meu respeito.
— O que está pensando nesse momento? — Tombei leve e
descontraidamente a cabeça para o lado, esperando que ela finalmente
falasse. — Me conta.
— Hm... — Helena piscou devagar, estreitando os olhos que, àquela
hora, à luz que vinha da loja, pareciam realmente verde-claros, e não
castanhos. Lena se inclinou sobre a mesa, bem perto, o rosto a centímetros
do meu. Esperei. — Estou pensando que você é a cara do Jung Kuk[24].
Comecei a rir.
Ah, ela estava de volta.
Coisinha linda e curiosa.
— Oh... é sério! — Apontou. — Se você cortasse o seu cabelo e seu
nariz fosse um pouquinho maior... vocês seriam gêmeos!
— Primeiro — ergui o indicador —, detesto quando dizem isso. É
mais do que óbvio que sou bem mais bonito que aquele cara. Segundo... —
Levantei mais um dedo, mas fui interrompido pelo arfar dela, pelos olhos
que se abriram mais.
— Já sei! — Segurou minha mão com as suas, me puxando com
força para mais perto. — Vamos fazer uma sessão de fotos e vender!
Imagina a grana que a gente ia ganhar se postasse uma foto do cantor sem
camisa? — Correu os olhos para o meu braço e ergueu uma sobrancelha,
insinuando. — Você parece que malha...
A ideia era tão absurda que eu não consegui não gargalhar.
— Acho que já deu de Soju por hoje.
— Não tô rindo, você tá me vendo rir? — De fato, ela estava
falando sério. Lena se aproximou mais, o bafo de bebida e chocolate na
minha cara. — Imagina só, Jun! A gente tira umas fotos de lado assim ó... e
aí não daria para notar a diferença! Você edita no Photoshop e eu vendo as
fotos, te pago o que eu tô devendo e ainda compro uma câmera profissional
para mim também! Ta-dah!
A empolgação dela era tão genuína e encantadora que era uma pena
acabar com a graça.
— Helena, nae gongjunim... — Apertei sua bochecha fria. — Se
você começar a vender fotos de um Idol que não é ele... bem, e mesmo que
fosse... aí, sim, você seria deportada. E talvez presa.
— Acha que eu ia conhecer ele no julgamento? — A ideia pareceu
tentadora para ela.
Me levantei rindo e a peguei pela mão.
— Vem, vou te levar para casa.
Ela tentou se colocar de pé, cambaleando no processo.
— É sério... Eu seria uma presidiária feliz...
Parei em frente à entrada da loja e me virei para encará-la.
— Fica aqui e não sai, ok? Já volto. — Esperei Helena assentir,
então entrei.
O sino tocou quando passei pela porta e segui para o caixa onde Eun
Ah estava. A garota usava fones quando me aproximei e, mesmo que eu
conseguisse escutar de onde estava a música alta que tocava, a atendente
deu um sorrisinho sem tirar os olhos do celular em mãos.
— Parece que a nossa querida Helena tem mais um pretendente —
cantarolou, erguendo para mim a sacola com a comida que eu comprara
mais cedo.
Deixei as compras sobre o balcão.
— Não quero me envolver nisso de novo — respondi
tranquilamente, enquanto tirava algumas notas da carteira e pegava uma das
cartelas dependuradas ao lado do balcão. — Costumo ser o lado da moeda
que perde.
— Já está cogitando fazer parte da moeda então?
— Um dia, quem sabe, eu finalmente me torne o presidente deste
país? — Eu sabia sobre o que era aquela conversa. Mesmo assim, não me
importei de irritá-la um pouco.
Eun Ah revirou os olhos pretos e tomou as notas que deixei na
superfície.
— Pode ficar de olho na minha moto? — pedi. — Desço depois
para buscar, só vou levar ela para casa.
— Não pode ir de moto? — Franziu a testa para mim.
— Bebi um pouco, não quero ser imprudente.
— Mas você não bebeu nem meia garrafa, Kim Jun Woo, e só vai
subir duas ruas.
— Com Helena bêbada na garupa — enfatizei o detalhe que ela
estava deixando de fora. — Não vou arriscar. Só fica de olho na moto para
mim.
— Shiró[25].
— Você não vai sair daqui de qualquer forma. — Pisquei. — Faça
esse favor para o seu velho amigo.
— Não quero.
— Faço o Cha Min vir buscar comida amanhã — cantarolei. — Vai
poder ver ele...
— Quer que eu dê uma lavadinha também ou só vigiar a moto já é o
suficiente? — retrucou docemente.
Ri, empurrando a porta.
— Volto no máximo em uma hora para buscar as minhas coisas.
Quando saí, não encontrei a jovem no lugar em que a havia deixado.
Até corri para a esquina para verificar se Helena tinha começado a subir a
rua íngreme, mas não havia nenhuma pessoa ali, apenas carros estacionados
e um gato cinzento atravessando para a calçada.
Procurei com os olhos ao redor, localizando uma figura solitária no
playground da praça pública, um borrão preto em um castelo colorido.
Minha visão deixava a desejar no quesito identificar qualquer coisa à
distância, mas eu tinha certeza de que era ela.
Em um segundo, Helena estava escalando o castelo; no outro,
desapareceu pelo enorme tubo escorregador abaixo.
 

 
Deixei que a criança aproveitasse o parque por alguns minutos: ela
ficou algum tempo no balanço ao meu lado, depois escalou o castelo de
novo e de novo, gargalhando sempre que caía com a bunda na areia.
Quando as horas na tela do meu celular deram dez e meia, decidi
que era hora de ir.
— ...Baaaby shark tu-tu-ru-ru-tu-ru — cantarolou Helena,
suspirando a cada pausa de frase enrolada, ainda deitada dentro do
escorregador, apenas as botas pretas para fora, balançando no ritmo da
música. — Baby shark tu-tu-ru-ru-tu-ru... baby shark!
Ri, me agachando para encontrar a figura lá dentro. Ela batucava os
dedos no tubo de plástico que a escondia do resto do mundo.
— Lena...
— Mooommy shark tu-tu-ru-ru-tu-ru...
— Lenaaa... — Balancei o pé dela e a jovem esticou a cabeça para
me olhar lá de dentro. O sorriso que ela me deu foi impagável.
— Não é irritante quando essas músicas idiotas não deixam a cabeça
da gente? — Suspirou, a nuca caindo para trás e batendo no plástico, o
barulho ecoando pelo escorregador. Eu tentava evitar olhar diretamente para
o lugar fechado e para o escuro além: só de me imaginar lá dentro, me
sentia enjoado, e tirar Helena dali era uma prioridade. — Tô até começando
a gostar dessa.
— Você vai ficar aí até cantar a família Shark toda?
— Eu sempre canso na terceira estrofe.
Ri, a ajudando a escorregar para fora. Helena se sentou na beirada,
com o rosto bem perto do meu.
— Por que você é tão legal comigo?
— Eu sou legal com todo mundo. — Afastei o cacho bagunçado que
saíra da trança para o rosto dela, tirando aquela mecha de seu olho
esquerdo.
— É mesmo? — Riu, piscando lentamente, levando a ponta do
indicador até a ponta do meu nariz. — Então quer dizer que você é legal e
bonito com todo mundo... Hm...
Sorri e os olhos dela desceram para minha boca.
— Tsc, tsc... você tem que tirar esse trem[26] daqui. — Cutucou meu
lábio inferior, no piercing, falando aquela única frase em três línguas
diferentes. Helena bêbada era um Google Tradutor estragado.
— Por quê?
— Por quê? — Franziu a testa, ainda tocando a argola ali. — Não
sei. Só tira.
Gargalhei.
— Acho que você bebeu demais — cochichei, ficando de pé e a
forçando a fazer o mesmo. Bom, tentando. Lena sequer se moveu.
— Eu tô bêbada mesmo — admitiu. — Acho que não consigo andar
mais.
— Vamos logo! — Ofereci uma mão para ela. — Está ficando tarde
e eu tenho que trabalhar amanhã.
— Mas eu queria escorregar de novo.
— Não faça beicinho para mim, garota. Vamos embora.
Ergueu o olhar de cachorro pidão para mim.
— Jun-Jun — começou —, eu não quero andar. Me deixa ficar aqui
só mais um pouquinho, vai...
— Eu carrego você, vem.
— Que nem um cavalinho? — A garota me olhou, piscando os
cílios negros sobre íris mais castanhas e escuras agora, um sorriso largo e
genuíno nos lábios.
Ri, me virando de costas e me agachando para que ela subisse.
— Espero muito que se lembre desta noite quando acordar, Helena.
 
“Você me quer?
Como eu só quero conhecer você, garota.
Seu sorriso misterioso
me deixa curioso.”
I Don’t Know You — The Rose
 
 
JUN
 
Minhas horas passadas na academia não foram o suficiente e,
quando finalmente alcancei a nossa rua, senti gotículas de suor escorrerem
por meu rosto. O frio era insignificante depois de subir a rua íngreme com
Helena bêbada nas costas.
A estudante rodeara meus ombros e me abraçara por todo trajeto,
me apertando como se eu fosse, em algum momento, cair com ela para trás.
Contudo, quando por fim chegamos à rua plana, a jovem relaxou às minhas
costas e começou a brincar com o meu cabelo enquanto eu andava,
cantarolando de novo.
Dessa vez, reconheci a melodia. Uma música dos The Rose. Não
deixei de notar, pelo timbre, que Helena certamente deveria cantar muito
bem. Sua voz era naturalmente melodiosa, e não me incomodei nem um
pouco em escutá-la reproduzir I Don’t Know You enquanto eu andava.
— Você fica muito bem de maria-chiquinha — cochichou no meu
ouvido, as mãos dela dividindo o meu cabelo em dois no alto da cabeça. —
Muito sexy.
Ajeitei o peso dela nos braços, e suas pernas curtas rodearam minha
cintura.
— Acha mesmo? — perguntei enquanto subia os degraus para a
recepção do prédio.
— Uh-hu. Você tem um cabelo muito macio... — Senti a cabeça
dela apoiar-se em meu ombro, como fizera diversas vezes durante todo o
caminho. Sua voz parecia cada vez mais arrastada e distante. — Que
condicionador você usa?
— Qualquer um em promoção.
Helena soltou uma risada no meu pescoço, o rosto perto demais do
meu. Os dedos dela ainda brincavam com as mechas do meu cabelo.
— Eu gosto de promoções. Só o nome promoção me deixa animada.
— Conheço um lugar muito bom que está sempre cheio delas. Vou
te levar lá um dia.
Só mais alguns degraus e então... o elevador.
Engoli em seco, procurando a entrada para as escadas de
emergência.
— Oh? — Helena se mexeu. — Tá indo errado, é pra lá.
— Vamos pelas escadas.
— Vamos de elevadooor. — A garota apontou, o braço esticado ao
lado do meu rosto. — Se você for de escada vai me culpar depois, eu moro
no quinto andar, sabia? Não vai demorar nem dez segundos se formos de
elevador.
— Mas... — Senti o suor frio escorrer por minha testa.
— A sra. Hwang tá chegando... — Me cutucou no momento em que
as portas prateadas se abriram para a mulher e o cachorro em seus braços.
— Vai logo, Jun!
Eu deveria simplesmente deixar Helena ali e ir embora? Ela
conseguiria subir até o seu apartamento sozinha.
— Tá... — resmunguei, inspirando fundo, ignorando o incômodo.
Quando entramos, a mulher com o poodle franziu a testa para a
jovem que eu carregava nas costas e depois me observou com curiosidade.
— Boa noite, Ahjuma[27]. — Tentei sorrir para ela. — Estamos indo
para o... Qual andar mesmo?
— Quinto — Lena disse prontamente, ainda bagunçando meu
cabelo, mechas caindo e saindo dos meus olhos. — Pode apertar o quinto
andar para mim, senhora Hwang?
A mulher o fez desconfiada, claramente reprovando a situação em
que a vizinha se encontrava. O poodle no braço dela nos encarava também,
e eu podia jurar que, quando latiu, o cachorro disse meu nome.
Tentei me concentrar na cara feia dele e ignorar as paredes de aço ao
meu redor. Alguns segundos, eu poderia suportar só alguns segundos.
Helena sussurrou no meu ouvido:
— Eu não gosto desse cachorro — Apertou mais o braço em meu
ombro. — Ele é telepata.
Contive o riso, principalmente quando a dona do cachorro grunhiu e
Helena resmungou “você sabe que é verdade”. Então, a minha vizinha de
prédio prosseguiu mais alto: “e o que a senhora está fazendo aqui a essa
hora? É porteira, por acaso? Tá sempre nesse elevador...” Eu cutuquei a
panturrilha de Helena com a esperança de que ela parasse de falar, mas,
antes que o “plim” das portas gêmeas soasse, a jovem remendou com
“omo![28] Será que... a senhora é um fantasma? Jun, você tá vendo ela
também?”
Para nossa sorte — e meu total alívio —, as portas se abriram. Logo,
eu me apressei corredor afora, pedindo desculpas e alegando que ela estava
bêbada e não sabia o que estava dizendo.
— O quê?! — Eu senti o bico emburrado na voz próxima ao meu
pescoço. — Foi você que disse para eu falar o que eu penso e não guardar
nada.
Uma das portas no corredor se abriu, mas Helena garantiu que seu
apartamento era o 503, o último. Então, apenas segui em frente. Tentei
soltar a estudante e colocá-la no chão, mas ela só se agarrou mais a mim.
— Algumas coisas... podem ser mantidas em segredo —
resmunguei, me perguntando se Helena apareceria na porta da mulher no
dia seguinte para se desculpar. Se, é claro, a jovem se lembrasse de alguma
coisa ao acordar.
— Helena? — Uma voz grave chamou quando cheguei à última
porta do largo e comprido corredor. Passos ecoaram no chão, se
aproximando.
O corpo em minhas costas se mexeu, me obrigando a virar também.
Era o cara da noite passada. Son alguma coisa.
— Son Ho-ya! Olha só quem tá aquiii! — Lena riu, apertando
minha bochecha, ainda abraçada a mim, com o queixo apoiado em meu
ombro. Bom, se a intenção era deixar o homem irritado, ela conseguiu. O
olhar dele para mim foi um indicativo. Eu podia sentir o cheiro de ciúmes
irradiar dele. — É o meu cavalinho, Jun Woo.
— Vou te jogar no chão se me chamar assim de novo — anunciei,
tentando soltá-la, mas ela não deixou, as pernas em minha cintura mais
firmes do que nunca. Eu sequer usava as mãos para mantê-la ali. A jovem
era como um casco de tartaruga.
Ou simplesmente um carrapato que não soltava.
Ignorando o olhar fulminante do camarada parado à minha frente,
lancei um sorriso gentil — como se não estivesse com a mulher que ele
gostava agarrada às minhas costas — e comecei tranquilamente:
— Eu estava passando e acabamos bebendo um pouco, então a
trouxe aqui.
— Lena... Você está bêbada? — O rapaz parecia mais incomodado
por ter sido eu o cara que a acompanhara do que com o fato de Helena estar
mesmo bêbada. Me encarou com raiva. — Você a deixou beber?
Aquela cena era um dejàvú em minha mente, e recordar de Adam
me fazendo a mesma pergunta em uma situação parecida, em um passado
agora distante, me fez sorrir.
Na época, eu fizera questão de irritar meu amigo: mesmo que
gostasse de Raven, ligara para o colega de quarto dela, fora... uma noite
difícil e decisiva. Me declarei como uma forma de me libertar daqueles
sentimentos, ciente de que Rav sequer se lembraria das minhas palavras na
manhã seguinte. Mas dessa vez a situação era bem diferente. Eu tinha
certeza de que Helena gostava do vizinho, e ele gostava dela também.
Pela expressão no rosto do cara, não queria que ele tirasse
conclusões erradas.
— Não tenho o costume de mandar nos meus amigos. Ela queria
beber, eu apenas fiz companhia. — Apontei para a porta. — Pode me dar
uma forcinha?
Ele suspirou, então assentiu sério.
— Lena, vou abrir a porta — disse, suavizando o tom de voz ao
falar.
— Huh. Você sabe a senha — a jovem disse com um bocejo, uma
das mãos em minha cabeça, os dedos entrelaçados às mechas, a outra presa
em meu ombro.
Esperei enquanto o vizinho digitava a senha no painel. Não demorou
muito e a porta estava aberta. Pensei em deixar Lena aos cuidados do
amigo, mas, pedindo licença para ninguém em especial, segui para dentro,
tirando os sapatos de qualquer jeito na entrada[29] e caminhando para a sala.
O sofá no centro do cômodo era meu destino, ignorando o resto do
apartamento lilás cheio de plantas e enfeites.
Os olhos do homem atrás me acompanhavam a cada passo.
Me agachei com cuidado ao me posicionar no meio da sala. Então,
quando Lena não se mexeu, a cutuquei na panturrilha outra vez, como
fizera mais cedo.
Ela resmungou.
— Hora de descer do cavalo — falei, me inclinando para trás para
que ela se largasse logo no sofá.
— Mas ele é tão bonzinho... — Passou a mão na minha cabeça de
novo, me fazendo parecer um filhote. Ah, como eu queria que ela se
lembrasse de tudo quando acordasse...
Jogando o peso do meu corpo para trás, levemente prensando o
corpo dela contra o estofado, a jovem chiou e, por fim, depois que a
cutuquei outra vez, me soltou.
— Vai ficar com uma dor de cabeça horrível amanhã — comecei
enquanto a ajudava a se acomodar no sofá, tirando os sapatos da garota
quando ela se deitou, os olhos grandes e brilhantes fixos em mim. — Mas
vai sobreviver.
— Jun-Jun — ela choramingou, com beicinho e tudo. — Uma
fotinho, vai? Huh? Eu posso ganhar tanto dinheiro...
— Não.
— E se for de costas?
— Não. — Puxei o outro coturno. Apesar de toda a composição de
roupas pretas, havia meias coloridas nos pés dela. Os dinossauros rosas
estampados no fundo azul me fizeram sorrir de verdade.
— Sem graça! — Ela bufou, soprando o cacho solitário do rosto. —
Era a sua chance de ficar famoso.
O amigo de Helena permaneceu na porta me vigiando;
sinceramente, eu não o culpava, pois faria o mesmo. Afinal, ele só ouvira
falar de mim na noite anterior. Estava me sondando, confirmando que eu
apenas deixaria Helena ali e seguiria meu caminho.
Observei a jovem estirada no sofá, perdendo a consciência a cada
minuto que passava, mal se dando conta, provavelmente, de onde estava.
Me agachei ao lado dela uma última vez, me lembrando daquela
lágrima solitária que escorrera mais cedo, da memória dolorosa que
compartilhara comigo. Impulsionado pelo aperto no coração por imaginá-la
sofrer ao ser humilhada pelo maldito ex, levei uma mão ao rosto dela.
Sabia que tínhamos plateia, mas dane-se.
— Coloque uma roupa bonita amanhã — sussurrei para ela. O
polegar percorreu a bochecha macia e fria pelo ar gélido da caminhada da
loja até ali. Helena só me olhou atentamente. — Solte o cabelo ou prenda
como quiser. Mas tente se sentir melhor, tudo bem?
Ela assentiu.
Aqueles olhos... Aqueles olhos estavam brilhantes demais, lindos
demais. Sequer piscavam, como se... como se ela temesse que eu
desaparecesse quando o fizesse. Era a emoção que aquelas íris de cor
mágica transmitiam. Helena era transparente, não era difícil ler. Me senti
iniludivelmente atraído por ela, e não consegui desviar o olhar.
— Quando acordar de manhã — aproximei o rosto do dela apenas o
suficiente para o sussurro em minha voz ser mais claro somente para
Helena —, quando se olhar no espelho, quero que diga uma coisa.
— Huh... — sussurrou de volta, sonolenta.
— Não importa quem eu veja — comecei, ainda com os dedos
tracejando caminho em seu rosto. — Repita comigo.
Ela hesitou por um segundo, mas o fez baixinho, rouca pelo volume
que usava na voz. Eu sabia que o vizinho esperava na porta, incrivelmente
dando um espaço para nós dois.
Tentei me sentir mal por ele, mas estava preso aos olhos cintilantes
de Helena. Estrelas poderiam muito bem estar contidas ali dentro.
— Não... importa quem eu veja.
Assenti.
— Ou o que qualquer um diga para mim — prossegui.
— Ou o que qualquer um diga para mim...
— Eu sou mais do que o suficiente — continuei.
— Eu sou mais do que o suficiente.
— Sou divertida... — eu disse, e ela repetiu. — Meio maluca... —
Uma risada, e ela recitou sonolenta. — Única do meu jeito.
— Única do meu jeito.
— E incrivelmente linda — falei, enquanto observava cada detalhe
daquele rosto, a ponta dos dedos no desenho e no contorno do começo da
trança direita em sua cabeça.
Ela sorriu também, sem nunca desviar o olhar.
— E incrivelmente linda — repetiu.
— E é isso que importa.
— É isso que importa.
— Boa garota. — Senti meus lábios se erguerem, desejando
profundamente que Helena não só dissesse aquelas coisas, mas começasse,
um dia, a acreditar em cada palavra ao se olhar no espelho. — Onde está a
sua colega de quarto?
— Ji Ah? — Assenti, e ela olhou para os lados. — Hm...
trabalhando. Ela geralmente chega tarde.
— E está tudo bem eu te deixar sozinha? — Indiquei a porta.
— Pode parecer... — ela cochichou com um olhar travesso —, mas
não sou criança. Tenho vinte e quatro, sabia?
— Tudo isso? Já estava me questionando se tinha mesmo idade para
beber.
Lena soltou uma risada baixa, as pálpebras de seus olhos se
fechando pouco a pouco.
— Não se preocupe comigo, cavalinho. — Ela passou a mão na
minha cabeça uma última vez, bagunçando a franja. — Vou ficar bem.
— Certo. Então eu estou indo. — Reprimi a vontade de depositar
um beijo na testa dela, de simplesmente querer continuar ali com ela, e me
forcei a levantar. — Boa noite, Lena.
— Boa noite...
Fiquei em pé ali por mais alguns segundos, até que ela finalmente
apagou no sofá, então saí. Son-cara-feia aparentava ser o guarda-costas da
amiga, permanecendo parado do lado de fora do apartamento mesmo depois
de fechar a porta atrás de si, como se eu pudesse voltar quando ele saísse.
Enfiei as mãos nos bolsos e comecei a me dirigir até as escadas de
emergência, porém, a voz dele me fez parar.
— Obrigado. — Pigarreou e, quando girei os calcanhares sobre o
piso do corredor para encará-lo, ele desviou o olhar para os próprios pés, as
mãos no bolso da calça. — Por cuidar dela. Por... trazê-la em segurança.
Assenti, pronto para ir dessa vez, mas havia aquele maldito
incômodo que me fazia ficar. Helena realmente gostava dele, e talvez
aquela noite tenha deixado uma impressão errada para o amigo, mas eu
sabia o que ela sentia.
Ele também.
Não era raiva que dominava as feições joviais dele, mas perda.
Como se me ver com Helena fosse o fim do que ele poderia ter com ela. E
não cabia a ele decidir o que seria dos dois no futuro, mas eu disse mesmo
assim:
— Seja paciente com ela, ok? — Procurei qualquer sinal de
falsidade ali, qualquer alerta de que o vizinho dela não se importava
realmente, mas, por mais que eu procurasse... — Sabe, eu sou amigo dela.
— Agora sentia que de fato era. — Então... um conselho? Seja paciente.
Helena vai te procurar quando estiver pronta.
Ele assentiu.
— Não quero ser um babaca, mas preciso saber... — Inspirou fundo.
— Vocês dois...Vocês estão...
— Não — apenas falei, ciente da pergunta.
— Certo. — O homem anuiu com a cabeça outra vez. Porém, nada
convencido com a resposta, talvez porque o meu pequeno momento com
Lena no sofá fosse suspeito, ele insistiu: — Você sente alguma coisa por
ela?
Olhei para a porta atrás dele, a jovem que dormia no sofá ali dentro,
e pensei em dizer o que estava na ponta da língua: que Son Ho não se
preocupasse comigo porque eu não seria um obstáculo. No entanto, nunca
fui o tipo de pessoa que mente para si. Era aquilo e ponto. Não fazia
rodeios, e sabia muito bem o que estava sentindo.
Me lembrei do sorriso doce dela e dos olhos de cores mutáveis à luz
ambiente. Pensei na primeira vez em que vira Helena andando na rua, com
uma jardineira com desenho de margarida no bolso da frente, fones no
ouvido, enquanto cantarolava ao subir a rua para o prédio dela. O pavor no
rosto da jovem ao espatifar minha câmera no chão; o susto ao me ver na
loja e se agachar para fugir...
Sorri para a pessoa que aguardava uma resposta.
— Desculpa, amigo, mas parece que somos dois tolos enfeitiçados.
— Dei de ombros e falei, sincero: — No fim, é ela quem decide.
Não se preocupe, ela vai escolher você, eu quis completar, mas
apenas segui o meu caminho com um sorriso idiota no rosto, mesmo ciente
de que poderia me ferrar depois.
 
“Aqui completamente sozinho...
Vejo você andando de longe.
Parece até uma cena de filme,
No momento no qual tudo para.”
Love Scene — Baekhyun
 
 
HELENA
 
O mundo era um ponto de luz ofuscante e latejante.
Fui para a aula naquela manhã com uma dor de cabeça infernal, me
perguntando o que eu fizera depois do trabalho na noite anterior e como
raios fora parar em casa.
O pior: porque a sra. Hwang me ignorara ao me ver no corredor
quando saí?
O cachorro ainda carregava aquele olhar de quem sabia de todas as
coisas, e talvez ele soubesse o motivo para a dona ter bufado para mim
naquela manhã, mas não era bem isso o que me incomodava.
Os flashes de cena em minha cabeça eram confusos demais. Haviam
rostos demais, incluindo o pet assustador; Jun Woo e caixas de Pepero; Son
Ho com uma expressão triste nos olhos bonitos...
Não o vira quando saíra apressada de casa e me sentia mal por ter
fugido dele no dia anterior, porém algumas coisas precisavam ser ajustadas
nos meus pensamentos para que não fizesse besteira. Me lembrava de ir até
a L.O. para tomar um Soju e colocar em ordem os sentimentos, mas
também de encontrar o fotógrafo e tudo virar um borrão de cenas aleatórias
depois disso.
Durante uma aula sobre a história da Coreia, senti meu celular
vibrar no bolso. Com ele, uma nova mensagem de Jun Woo e outras duas
que eu não tinha lido antes, de Son Ho.
Abri a do primeiro, o coração acelerado ao me dar conta do
segundo.
 
O PAPARAZZI (8:22 a.m.):  Se lembra de alguma coisa, ou precisa de
relatório?
 
Por algum motivo, ler aquilo me fez suspirar de alívio e sorrir ao
digitar:
 
LENA (9:44 a.m.):  Relatório.
 
O PAPARAZZI (9:44 a.m.): Está ocupada agora ou quer que eu ligue
depois?
 
LENA (9:44 a.m.):  Minha aula termina em quinze minutos.
 
O PAPARAZZI (9:44 a.m.):  Certo. Vou esperar. Acho que será mais
divertido narrar ao invés de simplesmente digitar.
 
Fiz uma careta.
 
LENA (9:45 a.m.): Foi tão ruim assim?
 
O PAPARAZZI (9:45 a.m.):  Depende da sua definição de ruim, eu me
diverti bastante.
 
O PAPARAZZI (9:45 a.m.): Preste atenção na aula, te ligo daqui a pouco.
 
Dezenas de pensamentos perigosos rondaram minha mente, me
perguntando o que eu poderia ter feito ou revelado a Jun Woo enquanto
estava bêbada. Ji Ah me dissera que eu era bem engraçada quando saía do
controle, mas que não era escandalosa.
Isso era bom, certo? Significava que eu não tinha feito algo terrível.
Continuei me remoendo nos minutos seguintes, me perguntando
porque Son Ho parecia diferente e tão tristonho nas minhas lembranças
daquela noite. Contudo, tentei me convencer de que poderia ser tudo parte
de um sonho maluco.
Minha amiga estava apagada quando acordara para sair; ela
provavelmente chegara tarde do trabalho de novo e não deveria saber se eu
de fato aprontara. Mas, se por algum acaso, eu tivesse esbarrado com Son
Ho ao voltar para casa e... tivesse dito algo para ele...
Ah, céus...
A aula acabou exatamente quinze minutos depois, e eu estava
recolhendo da mesa os cadernos e colocando livro na mochila quando um
pequeno envelope rosa ali dentro me chamou atenção.
Acabei me esquecendo completamente dele, do chocolate que Son
Ho deixou para mim um dia antes e eu dei para Han Ji Ah, guardando o
envelope na mochila sem coragem alguma para lê-lo.
Inspirando fundo, tirei de dentro da mochila o pequeno objeto
delicado e rosa. Então, fechando os olhos por um segundo para recobrar a
coragem, desenrosquei o barbante fino que envolvia o botãozinho na ponta.
O cartão ali dentro fora escrito à mão em um papel pardo simples, com os
caracteres do Hangul perfeitamente escritos.
 
“Não precisa me falar que sente o mesmo. Não precisa fazer nada que não
tenha vontade. Eu quis esperar até a data da prova se aproximar, você me
disse que tinha noventa por cento de certeza que passaria e ficaria em Seul;
então, arrisquei os outros dez por cento e me declarei para você.
Apenas me diga sim ou não.
Quer sair comigo?”
 
Pisquei, ainda sem realmente acreditar que aquilo estava
acontecendo, o coração tolo batendo com animação e apreensão ao mesmo
tempo. Reli algumas vezes e, mesmo depois que deixei a sala e segui para o
pátio, continuei repassando as palavras.
— Por onde eu começo? — A voz de Jun foi uma distração bem-
vinda da carta de Son Ho. — Me fez pagar o Soju e os chocolates, sem
contar outros serviços que saíram bem caros.
Me sentei no banquinho mais afastado, debaixo de uma árvore
média que, em dias de calor, projetava uma sombra reconfortante. O outono
estava chegando e eu ficava deslumbrada com as tonalidades alaranjadas
que as folhas refletiam em todo lugar.
— Então... Eu estou te devendo uma câmera e Soju. — Tentei sorrir.
— Já colocou na minha conta?
— Carreguei você nas costas ontem e você me chamou de
cavalinho.
Dessa vez, a risada saiu naturalmente.
— Awn... Isso é fofo — falei, puxando um fio do rasgo proposital no
joelho do jeans. — Então... Você me levou até o meu apartamento?
— Huh. Encontramos a sua vizinha. — Ele contou sobre o que
ocorrera no elevador. As coisas que eu dissera para a sra. Hwang
justificavam o mau humor dela ao me ver pela manhã.
Fiz careta, me preparando psicologicamente para encontrá-la mais
tarde para um pedido formal de desculpas. O fotógrafo me contou sobre os
pequenos detalhes, me arrancando risadas e, às vezes, um rosto corado.
Depois, meu amigo disse que encontramos Son Ho no corredor. O que ele
deve ter pensado ao me ver com Jun outra vez...
— Ele... me chamou para sair — confessei baixinho, sentindo,
naquele segundo, que era fácil demais conversar com Jun Woo sobre
qualquer coisa. Parecia uma conversa com um amigo de longa data, não
com o paparazzi do qual eu tentara fugir dias atrás.
Uma pausa e silêncio.
Ele não disse nada por um tempo.
Eu me lembrava um pouco das coisas que Jun dissera; me lembrava
de choramingar no escorregador colorido no playground e de cantarolar; me
recordava de dividir o cabelo do fotógrafo em duas partes e dizer que ele
ficava sexy de maria-chiquinha... Me lembrava de Son Ho abrindo a porta,
de ser colocada no sofá e do que Jun havia me mandado repetir também.
Não sabia exatamente o que o levara a me dizer aquelas coisas, mas as
palavras de encorajamento ecoavam como uma canção.
Não importa o que digam para mim...
Eu sou mais do que o suficiente.
Quanto mais pensava sobre os eventos que aconteceram, mais
confusa ficava. Terrivelmente.
— Você aceitou? — Jun Woo perguntou por fim.
— Não. — Suspirei, encarando alguns alunos seguirem para o ponto
de ônibus além dos portões de barras de ferro. — Não respondi ainda.
— Se lembra do que eu disse para você ontem?
Única do meu jeito e... linda.
Me convenci que algumas partes do que me lembrava eram apenas
fruto da minha imaginação fértil. Não havia motivos para que Jun dissesse
tais coisas, mesmo que ele fosse do tipo sincero, que não faz desvios. Me
achar linda era um pouco... demais para mim.
Irreal.
— Huh. — Apenas concordei.
— Então comece a colocar em prática. Se quer mesmo sair com ele,
apenas vá. Diga a ele o que sente e, se as coisas estiverem rápidas demais,
então fale para o cara que gosta que quer ir devagar.
— Certo... — Passei a mão no rosto, tentando clarear a mente. —
Vou... fazer isso.
— Conselhos amorosos são um pouco caros, mas posso te dar um
desconto.
Isso me fez rir, e eu adorava a facilidade que o rapaz tinha de mudar
a tensão do ambiente com uma única frase. Fazia parte dele, Jun sequer
parecia se dar conta disso.
— Sobre as fotos... — comecei, nem um pouco envergonhada de
sugerir a coisa de sósia. Ele e o cantor eram mesmo parecidos, apesar de as
diferenças serem óbvias também. — Realmente acho que poderíamos fazer
uma boa grana.
Ele riu do outro lado da linha.
— Pensei que recobraria o juízo quando acordasse.
— Meu espírito empreendedor está em mim sempre, bêbada ou não.
— Eu sinto muito — começou Jun. Eu podia sentir o sorriso em sua
voz. — Mas a minha beleza não pode ser compartilhada com todos.
— Convencido.
— Só às vezes.
Pensei que ele se despediria ou diria que estava ocupado, mas,
depois de mais alguns segundos de pausa, Jun voltou a falar em um tom de
voz mais sereno.
— Lena, tem mais uma coisa que você me disse ontem.
— Ah, céus. Eu falei do piercing, não é? — Fechei os olhos com
uma careta, as bochechas começando a esquentar novamente. — Olha, eu
não...
— Miguel.
O nome fez todo o sangue acumulado no meu rosto sumir, me
deixando fria como uma manhã de inverno. Não tinha certeza se respirava
direito ou se sabia exatamente onde estava, foquei apenas na voz de Jun e
no nome que ele disse.
Engoli em seco. Uma, duas vezes antes de ter coragem o suficiente
para perguntar:
— O que eu te contei? — Minha voz saiu baixa, fria até.
— O que ele fez com você. — O pátio girava um pouco; vergonha
pura, humilhação completa. Antes que eu pudesse desligar o celular para
fugir, Jun continuou tranquilamente: — Não me deu detalhes, tudo bem?
Não precisa se esconder só porque me falou o que te machuca. Só... Achei
que devesse saber que me contou o que o desgraçado fez com você, e o
quanto é insegura por causa disso. Apenas queria repetir o que disse para
você ontem, porque não quero que se esqueça.
O que ele me disse... O que ecoava em meu coração como uma
canção triste e linda.
Sei que é difícil mudar a forma como pensamos sobre nós mesmos,
mas você não deveria se sentir assim. Você é engraçada e estranhamente
peculiar, mas é linda. Muito linda.
Jun era aquele tipo de pessoa que não tinha medo de ser sincero. E
eu sabia que não havia segundas intenções naquelas palavras, que o rapaz
de fato sentia que deveria dizer porque era a verdade na qual ele acreditava.
Me senti grata por isso. Incrivelmente grata.
— Obrigada. — Pigarreei, encolhendo a mão sobre o colo. —
Obrigada por...
— Te carregar nas costas? Não me agradeça por isso, meu serviço
de transporte também não é barato.
De novo. Ele fez de novo.
Sorri.
— Certo. Já disse para colocar na minha conta.
— Eu coloquei, acredite.
— Pagarei cada centavo — brinquei, soltando o ar dos pulmões,
sentindo um peso deixar meus ombros.
— Sobre o piercing... — murmurou, e eu congelei de novo. — O
que tem ele?
— Er... E-eu...
— Não gosta de caras com piercing? — continuou Jun. Se eu já não
o conhecesse o suficiente para saber, diria que estava sério, até incomodado;
mas eu sentia a diversão em sua voz.
Aquele convencido.
— Ou será que gosta? — indagou, e eu agradeci aos céus por
estarmos conversando por celular, ou eu facilmente entregaria a verdade. —
O que você pensa sobre o piercing na minha boca, Helena-shi? Fiquei
curioso.
Mesmo corando, perguntei:
— Se eu puxar, rasga?
Ele gargalhou alto, e eu desejei poder ter mais tempo para continuar
conversando distraidamente com o meu novo amigo. Porém, ao fundo,
alguém o chamou.
Jun soltou um suspiro frustrado.
— Preciso ir. Você vai ficar bem?
— Huh.
— Coloquei uma cartela de remédio na sua mochila, para a dor de
cabeça. Vê se toma um e melhora.
Os cantos dos meus lábios se ergueram mais uma vez, já que parecia
sempre fácil conversar com ele.
— Obrigada.
— Sempre que precisar, yeppeuni[30].
— Te vejo sábado.
— Vou esperar.
Então, ele desligou.
Por um tempo, fiquei ali, encarando os cartazes nos vidros das
paredes, meu reflexo, onde se podia ver.
Jun tinha razão: eu poderia fazer o que quisesse, no tempo que
quisesse. Sabia que um namoro ali seria diferente do que era no Brasil, de
que as coisas correriam devagar, sim, de que eu poderia ir com calma;
poderia ter uma conversa franca com Son Ho e fazê-lo entender os meus
limites.
Confiança.
Eu precisava confiar nele.
Inspirei fundo e liguei a tela do celular, abrindo a conversa com Park
Son Ho, as duas mensagens não lidas me impulsionando mais um pouco.
 
SON HO (8:03 a.m.): Espero que a dor de cabeça passe logo.
 
SON HO (8:03 a.m.): E espero não perder minha amiga pelo que disse na
segunda.
 
Apaguei e escrevi diversas vezes, mas no fim apenas enviei:
 
LENA (10:35 a.m.): Sim.
 
Não demorou muito para os três pontinhos começarem a aparecer e
desaparecer e reaparecer. Ele estava digitando, e parava, e voltava, como se
não tivesse certeza do que aquelas três letras significavam.
Conseguia visualizar o rosto tenso e a testa franzida, mechas
castanhas lhe caindo sobre a testa, as covinhas profundas se destacando em
sua bochecha vez ou outra ao comprimir os lábios enquanto pensava no que
me responder.
Eu me lembrava dos primeiros meses em Seul, quando Ji Ah estava
trabalhando em algum sábado e eu ficava sozinha. Son Ho me levava para
conhecer algum lugar legal na cidade, ou simplesmente aparecia para
conversar. Nós já rimos, já discutimos assuntos mais sérios sobre o trabalho
dele e o que ele queria fazer no futuro. Quando comecei a sentir as
borboletas baterem mais rápido, poucos meses atrás, quando percebi que
estava sentindo coisas, que estava realmente atraída por ele... me retraí.
Conversar com o meu vizinho já não era tão fácil porque eu sempre corava,
ou pensava no que ele pensava, e me preocupava demais com o que ele
pensava, e tinha medo do que ele poderia pensar...
Queria aquelas conversas fluidas com ele de novo. Queria meu
amigo dos primeiros meses em Seul de volta.
Mas ele não mudou.
Eu mudei.
Eu me acovardei.
Mas a voz de Jun ressoou na minha mente, me dando mais uma dose
de coragem. Eu deveria ser mais confiante do que acreditava sobre mim, da
jovem incrível e divertida que eu sabia que era sem o meu medo.
 
SON HO (10:37 a.m.): Sim, sua dor de cabeça melhorou ou sim, não vou
perder minha amiga pelo que disse na segunda?
 
Sorri, sentindo meu coração acelerar.
 
LENA (10:37 a.m.): Sim, eu aceito sair com você.
 

 
— Então... Você vai começar a trabalhar na loja aos sábados. — Ji
Ah enterrou a colher na tigela de cereal e leite, falando de boca cheia. —
Não acha que foi fácil demais? Se fosse eu, ia querer o dinheiro.
Continuei concentrada na tarefa de passar o creme no cabelo e
amassar os cachos, mecha por mecha. Eu precisava cortar um pedaço,
chegar até o fim era um trabalho árduo e meus braços queimavam. O
comprimento passava do meu quadril agora.
— Eu fiquei meio receosa no começo, mas... — Coloquei mais um
pouco de creme na colher para, então, passar para a palma da mão aberta.
— Ele é bem legal.
— Hm... não sei, não, Lua. Já conversou com a Maitê sobre isso?
Sabe, eu sou a amiga desmiolada e estou com um pressentimento estranho.
Talvez devesse conversar com a amiga racional.
— Eu contei para a Helen e ela disse que não parece ser nada
demais — retruquei.
— Há! Conversou com alguém tão desmiolada quanto eu? A Sol
vive a vida do jeito que bem entende, é claro que não achou nada demais
um estranho propor um acordo ao invés de uma transferência bancária.
— Primeiro — me virei para ela do banheiro, a encarando na
cozinha minúscula —, engula antes de falar. Tenho vontade de enfiar essa
colher na sua garganta quando conversa de boca cheia comigo. Segundo, o
Jun é um cara legal. Não acho que tenha outras intenções além da que
propôs. Ele até me trouxe em segurança para casa quando bebi demais. Vou
ficar na loja da tia dele para que ele possa trabalhar no que sabe fazer
melhor. Parece uma boa troca para mim.
Certo, no começo eu havia mesmo desconfiado, mas... Eu conhecia
ele agora, obviamente, não o suficiente, mas o bastante para saber que Jun
estava sendo sincero. O fotógrafo conseguira uma sessão de fotos para um
casamento no sábado e parecia bem empolgado, então acreditava que o
acordo era fiel à proposta. Fazer um favor em troca da câmera quebrada era
justo.
— Mas está se esquecendo de um detalhe importante.
— O quê? — Voltei a encarar o espelho, soltando a outra metade do
cabelo para moldar os cachos.
Eu estava de bom humor naquela manhã de sexta. Caso contrário,
passaria o creme e amassaria as pontas de qualquer jeito, e não mecha por
mecha, numa fitagem caprichada.
Queria estar bonita naquele dia, por mim também, mas
principalmente pelo encontro que teria mais tarde com Son Ho.
Combinamos de nos encontrar às oito no restaurante em que fomos pela
primeira vez quando cheguei em Seul, quase dois anos antes.
— Ainda vai faltar mais dois favores. — Ji Ah surgiu no batente da
porta com um sorrisinho insinuativo, os cabelos lisos e curtos oscilando. —
Não se pergunta o que ele pode pedir? Não parou para pensar que talvez
Kim Jun Woo esteja amaciando o território para exigir algo mais... — ela
escolheu bem a palavra — complexo de realizar?
Parei com a mecha, os braços esticados no ar para acompanhar o
comprimento do cabelo escuro.
Pisquei devagar, não querendo duvidar de Jun, mas incapaz de não
pisar atrás.
— O que acha que pode ser? — Franzi a testa.
— Acha que ele te pediria algo estranho?
— Hm... sinceramente? Não.
Minha amiga ponderou, se encostando à madeira do batente para
levar uma mão ao queixo.
— Talvez ele peça para você ser modelo dele para algum trabalho.
Ele tem rede social? Posta as fotos dele?
— Não... Ele disse que acabou perdendo a vontade de expor as fotos
que ele tirava porque achava que ainda precisava melhorar ou algo assim. A
primeira coisa que fiz foi procurar nas redes sociais.
— Certo.
— Mas ele tem uma conta. Acho. Me pareceu ele, mas estava
privada.
— Por que não pediu solicitação? Precisamos investigar ele. — Ji
Ah revirou os olhos quando dei de ombros. — Qual é, Helena!
Bufou.
— Não estou preocupada.
— E se... ele for um filho de gente rica? Um herdeiro milionário? E
talvez queira que você finja...
— Então ele teria dinheiro suficiente para pagar a câmera e morar
em um lugar melhor. Esse bairro é simples demais para um herdeiro
milionário, não acha?
— Verdade — resmungou minha amiga, decepcionada com a
destruição da fanfic que construía naquele momento. — Esqueço que ele é o
nosso vizinho.
Isso me lembrava...
— Não sabe mesmo quem é o Kang Cha Min? — Franzi a testa para
ela, jogando o cabelo para trás, enroscando a tampa no pote de creme para
guardá-lo.
— Claro, não foi ele quem fez a instalação do aquecedor? — disse,
voltando para a cozinha, para o seu cereal.
— Não. — Ri. — Esse é o Lee Ho, você ficou com ele alguns meses
atrás, esqueceu?
— Ah, é... — Bisbilhotei e notei o sorriso em sua voz. — Beija
muito bem, a propósito.
Balancei a cabeça, revirando os olhos enquanto partia para a
maquiagem. Não gostava de muito, apenas um pouco de base e rímel e, vez
ou outra, um batom, mas eu capricharia dessa vez.
— O Cha Min é nosso vizinho, ele é bom com computadores. Foi
ele quem fez o site para mim.
— Ah! Sei, o de óculos e sorriso fofo. Nos esbarramos na L.O. de
vez em quando. — Ji Ah começou a mastigar de novo. — O que tem ele?
— Ele é o colega de quarto do Jun. — Eu já havia contado aquilo
para ela, mas, como minha amiga estava bêbada de sono no dia, não
prestara atenção. — Os dois são melhores amigos de infância.
— Ele te contou sobre o paparazzi?
— Um pouco, nada demais. — Dei algumas batidinhas leves de
base debaixo dos olhos, então pálpebras e testa, por fim bochechas e
queixo. Só um pouco, o bastante para cobrir as poucas sardas e os sinais da
noite mal dormida por conta da ansiedade. — Mas o suficiente para
confirmar o que já conheço do Jun Woo. Então não acho que preciso me
preocupar. De qualquer forma, deixei o endereço da loja da tia do Jun na
geladeira.
— Garota esperta. Já sabe: qualquer sinal de que ele vá tentar algo
com você...
— Um gancho de direita talvez possa resolver. — Sorri.
Meu pai dizia aquilo; na verdade, ele sempre fora um pouco mais
indelicado: “se algum garoto tentar machucar você, um chute no saco com
certeza vai resolver”.
Talvez ele tivesse desejado meninos quando minha mãe engravidara,
mas acabou criando cinco filhas para a guerra. Eu e Helen ainda éramos as
mais dóceis, mas Hosana, Heloísa e Hadassa já fizeram os meninos da
escola suarem frio. Meu pai sequer se incomodou em esperá-los para um
pedido de permissão de namoro; foi mais fácil para os meus cunhados
conquistarem o coronel do que minhas próprias irmãs.
Sentia falta dele, mesmo que meu pai insistisse em dar uma de
emburrado comigo quando eu ligava.
— O que acha da gente assistir um filme de zumbi de noite? — A
voz de Ji Ah, em português, irrompeu em meus pensamentos. — Tô a fim
de cagar de medo hoje.
Sorri, com borboletas agitadas batendo asas no meu estômago.
— Vou sair, não vai dar. — Destampei o rímel.
— Oh? Sério?
— Huh. Vou para um encontro depois que sair do trabalho.
— Um encontro, Helena-shi... — O tom deixava entrever diversão e
cumplicidade, mas algo mais que não consegui captar. — Então você
finalmente vai sair com o seu escolhido?
Assenti para o meu reflexo no espelho e então reparei.
— Acha que é uma má ideia? — perguntei, hesitante diante da
expressão no rosto dela. Havia algo... O que era?
— Claro que não, garota! — Minha amiga soltou uma risada e
enfiou mais cereal na boca. — Vocês dois são... perfeitos juntos. Isso, essa é
a palavra. Aquele babo[31] está ensaiando para te chamar para sair há um
tempão. — Ela sorriu. Ou tentou, a boca cheia. — Óbvio que deveria sair
com ele.
Varri para longe aquela sensação incômoda; talvez eu só estivesse
procurando, de novo, motivos para não me aproximar de Son Ho.
O medo de me relacionar romanticamente com alguém sempre dava
as caras em momentos decisivos.
— Ah! — Ji Ah largou a tigela na bancada e correu para o nosso
quarto, voltando minutos depois com um de seus vestidos favoritos nas
mãos. Balançou a peça para mim. — Por que não usa ele? Com essas suas
curvas, fica mais bonito em você do que em mim.
Não era verdade, mas eu hesitei porque adorava aquele vestido
azulzinho com detalhes de flores rendadas nas mangas e na saia.
— Tem certeza? — Aceitei, passando a mão nos detalhes de folhas e
de rosas.
— Huh. Você vai ficar ainda mais irresistível. — Ji Ah apertou
minha bochecha. — E combina com a sua pele também.
— Certo... — Suspirei. — Eu... vou a um encontro.
— Você consegue. — Minha amiga ergueu os dois punhos no ar
num gesto de encorajamento. — Fighthing!
Sorri.
— Volto tarde.
— Hm... Acho que vou sair para beber com uns amigos, então. —
Ela fez biquinho. — Vai me prometer filme de terror amanhã.
— Serei toda sua... — E lembrei. — Depois de chegar da loja de
penhores.
Ji Ah revirou os olhos.
— Aquele paparazzi vai roubar minha amiga aos sábados.
— Você também trabalha aos sábados.
— Verdade. Mesmo assim! — bufou.
Ri, cuidadosamente dobrando o vestido que usaria à noite e o
colocando na mochila. Depois de pegar uma maçã e conferir o cabelo e a
maquiagem, corri para a porta.
— Te vejo mais tarde! — gritei para minha amiga, que escovava os
dentes.
— Huh! — resmungou de volta. — Divirta-se!
Não consegui ignorar a sensação incômoda de que alguma coisa
poderia dar errado até a hora do encontro chegar. Mesmo assim, tentei.
 

 
Sete e cinquenta e cinco.
Soltei o ar, encarando a calçada de paralelepípedos. O letreiro
dourado do restaurante brilhava, refletindo até o outro lado da rua, onde eu
estava parada. Estava cinco minutos adiantada; dez, se contar os outros
cinco em que eu ficara parada ali.
Pensei no que seria melhor fazer: entrar e esperar Son Ho lá dentro
ou ficar ali fora até ele chegar? Acabei estacando de novo quando o vi
aparecer com um sorriso doce no rosto e tulipas vermelhas nas mãos. Ele
sabia que eu preferia as amarelas, mas também sabia que eu conhecia bem o
significado de cada uma.
A vermelha... Ele a escolhera intencionalmente não pela cor, mas
pelo significado.
Pelo vidro do pequeno restaurante, consegui assisti-lo se sentar e
pedir algo à senhora gentil, a dona. Era um espaço simples, com comidas
tradicionais deliciosas. Apesar de estar animada por um encontro em um
lugar como aquele, com o meu amigo...
Não consegui atravessar a rua.
— Vamos, Lena... — Inspirei, conferindo o cabelo outra vez,
passando a mão no vestido azul em seguida.
Estava usando um colar prateado delicado que a senhora Jang, a
mãe dos gêmeos, me emprestara ao me ver sair. Ela alegara que faltava algo
no look e que, “como a minha menina está crescendo e indo a encontros,
quero que use algo especial”. Eu devolveria, claro, mas segurar o pingente
de gota e pedrinhas brilhantes me deu um pouco de coragem.
Observei o rosto de Son Ho, os fios perfeitamente levados para trás,
a camisa social branca séria demais para um lugar mais informal, as tulipas
sobre a mesa, os dedos compridos batucando sobre a superfície de madeira,
o rosto complementando o gesto, claramente indicando que o meu vizinho
deveria estar tão nervoso quanto eu.
Perceber aquilo fez um sorriso bobo brincar em meus lábios, e
finalmente eu me impulsionei para atravessar até o restaurante.
Mas parei quando meu celular começou a tocar.
Franzi a testa.
— Oh? — Atendi. — Ji Ah?
— Amiga... — choramingou de um jeito estranho e soluçado. Parei
de andar imediatamente, temendo que algo ruim tivesse acontecido.
— Aconteceu alguma coisa? Você está bem?
— Não... — Soluçou de novo. — Não tá tudo bem, Chingu.
Ela estava bêbada.
Meu coração batia rápido e dolorido.
— Onde você está? O que aconteceu, Ji Ah?
Fixei meus olhos no táxi que se aproximava no fim da rua, pronta
para dar o sinal e ir para o lugar que minha amiga dissesse. No entanto,
quando ela falou, com a voz arrastada pelo álcool e rouca pelo choro, eu
congelei.
— Eu sou apaixonada pelo Park Son Ho.
 
“Eu me sinto cansado esta noite.
Palavras inesquecíveis.
Não posso voltar atrás, desculpe.
Sou egoísta, me desculpe.”
Sorry — The Rose
 
 
HELENA
 
Pisquei, anestesiada pela última frase, que fizera tudo ao meu redor
parar e silenciar.
— O quê? — Minha voz era um sussurro quase imperceptível.
— Eu sou horrível, não sou? — continuou minha amiga, bêbada em
algum lugar. Eu não conseguia me mexer. — Achei que ia... superar. —
Riu. — Tô tentando superar há anos, mas... mas... Lena-ya, ottokaji[32]? Eu
amo ele.
— V-você... — Engoli o choque, a... decepção? — Você ama ele?
Encarei o homem do outro lado da rua, dentro do pequeno
restaurante em que nos conhecemos quase dois anos atrás, me esperando
para o nosso encontro. Quando seu rosto se virou para a rua, por reflexo, me
escondi atrás da primeira árvore que encontrei.
— Huh. Eu amo ele. — Outro soluço. — Mas como eu posso te
contar isso? Você gosta do Son Ho, e ele de você. — Uma risada
melancólica, e minha amiga pareceu beber mais um pouco antes de
continuar. — Eu quero que você seja feliz, Lua. E eu sei que o Son Ho não é
um babaca como o Miguel e que vai cuidar bem de você, então...
— Han Ji Ah...
— Fica com ele e seja feliz.
— Ji Ah-ya... — Fechei os olhos, sentindo a consistência das
minhas pernas amolecerem. — Por que não me disse antes? Por que tá... por
que só agora? — Agora que estava pronta para superar minhas
inseguranças e entrar naquele restaurante?
Escutava meu coração sensível rachar pouco a pouco, como se fosse
um vaso vulnerável. E minha amiga estava segurando-o nas mãos, pronta
para soltá-lo no chão. Quebrá-lo.
— Por que não me contou?
— Porque... — Ela riu baixo, soltando um suspiro triste depois. —
Eu fiquei negando a mim mesma, por muito tempo... Você me conhece, eu
não sou... o tipo que namora e se prende a alguém. Fingi que era uma
quedinha boba pelo meu melhor amigo. Mas ficou forte, e mais forte, e
quando... pensei em te contar... eu vi a forma como ele olhou para você.
Son Ho me contou o que sentia e eu perdi a coragem.
Meu estômago revirava de uma forma muito ruim e eu estava grata
por não ter ingerido nada nas últimas horas, ou colocaria para fora.
— Tá... tudo bem você gostar dele. Você não entrega seu
coraçãozinho para qualquer um e... quando faz, entrega por completo. E já
sofreu tanto... — Ela estava chorando. Minha amiga bêbada estava
chorando enquanto eu estava prestes a jantar com o cara que ela... amava.
— e merece tanto ser feliz! Você merece gostar de alguém como ele! Eu
não! Porque... eu sou uma pessoa ruim! Destruidora de corações! Uma
vaca!
Me lembrei de todas as vezes em que falara o que sentia para Ji Ah,
todas as vezes que suspirara como uma idiota, confessando que gostava de
Son Ho para ela. Do dia em que nosso vizinho se declarara e minha amiga
apareceu de repente, procurando por absorventes. O período dela chegava
dias antes do meu, e eu sequer reparei na mentira. Ela escutou naquele dia.
E mais cedo, quando falei sobre o encontro... ela ficou estranha. Eu notei,
mas preferi ignorar.
Tão idiota.
— Lena-yaaa, o que eu faço? Meu coração tá doendo tanto — O
choro intensificou. — Eu amo ele de verdade! Eu sou uma amiga horrível,
não sou
Não conseguia me mexer. Falar.
— Mas eu te amo mais, Lua! Como eu posso fazer isso com você?!
Eu quero tanto te ver feliz, porque... porque você merece! – Ela fez uma
pausa antes de xingar alguém que passou. – Aish[33]! Olha por onde anda,
seu idiota! Lena-yaaa! Eu prometo... Eu prometo que vou dar um jeito
nisso, tudo bem? Eu jamais vou magoar você, porque você é a minha
yeodongsaeng[34]! Minha protegida! Minha Chingu[35]! E se o Son Ho
magoar você... eu o esquartejo e jogo no rio Han!
Inspirei, sem forças para discutir aquele assunto. Ji Ah também não
estava em condições para ter aquela conversa. Ela não queria ter aquela
conversa, por isso estava me ligando bêbada, porque sequer se lembraria
daquilo pela manhã.
— Onde você está? — perguntei baixo, mas ela incrivelmente
escutou.
— Na loja... — Então riu. — Mas não... se preocupa.
— Han Ji Ah-shi? — Outra voz sobressaiu. Uma voz conhecida. —
Está tudo bem?
— Ji Ah, passa para ele — pedi, séria demais. Confusa demais.
— Oh? — Uma risadinha. — Oi, gatinho...
— Ji Ah, passa o celular.
Segundos depois, a voz grave sobressaiu-se à choradeira da minha
amiga.
— Alô?
— Kang Cha Min? — perguntei, já certa de que era ele.
— Com quem eu falo?
— Helena.
— Ah, Lena-shi. A sua amiga, ela...
— Pode levar ela para casa? — pedi, ainda apoiada na árvore,
tentando me recuperar. — Eu... Eu estou voltando para lá. Pode... cuidar
dela para mim?
— Huh. Não se preocupe — concordou, mas, antes que eu
desligasse, o rapaz perguntou hesitante: — Aconteceu alguma coisa? Está
tudo bem?
— Claro. — Engoli em seco. — Ela só extrapolou na bebida.
Pela pausa silenciosa, ele não pareceu acreditar.
— Certo. Vou levar ela para casa. Não demore.
— Huh.
Desliguei, sentindo o mundo silencioso voltar a ganhar cor e som,
mas distorcidamente, confusamente.
Fechei os olhos de novo, encarando a tela do meu celular. Oito em
ponto. Oito horas. Son Ho estava lá dentro, com um buquê lindo de tulipas
vermelhas, me esperando.
Independentemente do que eu sentisse, se meu coração iludido
estivesse estilhaçado naquele momento, eu jamais faria algo para magoar
minha amiga. Eu não entraria naquele restaurante e aproveitaria a noite
ciente dos sentimentos de Ji Ah por Son Ho. Como? Ela era como uma irmã
mais velha, compartilhávamos tudo.
Respirei fundo e abri a conversa, digitando com o coração pesado e
olhos marejados.
 
Lena (8:02 p.m.): Eu sinto muito. Um imprevisto aconteceu e eu não vou
poder ir ao nosso encontro. Me perdoa, Son Ho, mas isso não vai funcionar.
Sinto muito mesmo.
 
Não queria virar e ver a decepção no rosto dele, mas eu não poderia
sair com Son Ho.
Então, fui embora para casa.
 
“Faz um minuto,
Seis segundos,
Agora quero você.”
Love Again — New Hope Club
 
 
JUN
 
Primeiro ela piscou, observando a moto estacionada diante de si. Os
olhos, que naquela manhã de sábado azul e claro tinham cor de alguma
pedra verde e preciosa, percorreram cada centímetro da minha Hyosung GV
300s Bobber preta. Inexpressiva, como se mal tivesse despertado de fato e
apenas tivesse andado até ali.
O encontro não correra bem, era o meu palpite. Cha Min dissera ter
encontrado Ji Ah na noite anterior, que Helena pedira para ele cuidar da
amiga até ela voltar para o apartamento. Falara sobre como os olhos de
Lena estavam vermelhos e inchados quando a jovem apareceu, agradecendo
ao meu amigo por ter cuidado da colega de quarto dela.
Havia uma área arroxeada debaixo dos olhos de Lena, como se não
tivesse dormido à noite. Apesar de usar as costumeiras roupas mais
coloridas — uma calça jeans-clara e um moletom amarelo curto que
revelava uma faixa de pele de sua barriga, com o desenho de um dinossauro
sendo abduzido por uma nave espacial, os tênis em seus pés combinando, o
cabelo de cachos compridos e encorpados caindo sobre os ombros e costas,
como uma cascata negra —, existia uma sombra pior que a de noites atrás
em seu rosto.
Mesmo assim, ela ergueu os olhos para mim e me ofereceu um
sorriso sem graça.
— Não vou subir nessa coisa aí não, foi mal.
Estendi o capacete para ela, mas Helena sequer moveu os braços.
— Você tem medo?
— Primeiro — ela ergueu a mão, o dedo indicador contando e as
pulseiras coloridas e aleatórias escorregando por seu pulso —; eu mal te
conheço. Segundo, você pode ser um péssimo motorista; e terceiro, sim,
essa moto é monstruosa e assustadora.
Ri, pegando sua mão e a trazendo para mais perto, um dos meus pés
no chão e o outro no pedal da moto.
— Primeiro — comecei, virando-a de costas para mim e iniciando
uma trança folgada e desajeitada em seu cabelo. Não era bom com aquelas
coisas, mas meus dias como voluntário no orfanato me renderam algum
aprendizado. Helena não contestou —, nós nos conhecemos e já estamos
bem amigos agora, não acha? Pegar uma carona comigo de moto não é nada
se comparado a subir nas minhas costas bêbada e me chamar de cavalinho.
Não vi seu rosto, mas, pelos ombros que encolheram, eu soube que
ela corava.
Helena ergueu um elástico de cabelo lilás para mim e eu o amarrei
na ponta do penteado, ignorando o perfume de flores e shampoo que as
mechas trançadas tinham, virando-a para mim outra vez.
As bochechas estavam mesmo enrubescidas e a jovem tinha uma
careta.
— Segundo — peguei o capacete apoiado diante de mim e o
coloquei na cabeça dela, ajeitando e afivelando bem embaixo do queixo de
Lena, que cruzou os braços emburrada —, eu sou um ótimo motorista, se
quer mesmo saber. Dirigir dez minutos até o bairro vizinho não será um
problema. Não vou deixar você cair.
Helena apoiou as mãos na lateral do capacete preto em sua cabeça,
se acomodando melhor ali, certificando-se de que estava bem preso. Por
fim, me encarou.
— Terceiro — bati duas vezes no assento inclinado atrás de mim —,
prometo ir devagar.
Helena me analisou por alguns segundos, desconfiada, as bochechas
um pouco comprimidas pelo capacete, me impossibilitando de levar aquele
olhar estreito e crítico a sério. Então, ela girou a alça da pequena bolsa
presa ao corpo e deu o primeiro passo.
— Você vai a vinte por hora? — perguntou séria, me fazendo sorrir
involuntariamente. Os olhos dela correram para a minha boca novamente,
como fizera quando nos conhecemos e outras vezes mais quando estava
bêbada, me recordando da nossa conversa inacabada sobre o que ela
pensava da fina argola prateada em meu lábio inferior.
Pela expressão, às vezes me perguntava se não era só curiosidade
para saber como aquilo funcionava, como se fosse algum tipo de dispositivo
preso em minha boca.
Pensar nisso fez meus lábios se repuxarem mais.
— Sobe logo, Helena.
Ela voltou a atenção para a garupa, então para toda a moto, até
finalmente me encarar desanimada e vencida e bufar.
— Eu poderia ir de ônibus, sabia? — Estudou por alguns segundos
como deveria subir, depois apoiou uma das mãos em meu ombro,
resmungando e chiando ao fazer isso de forma desajeitada e, então, enfim
se ajeitar no assento. As mãos dela continuavam longe, evitando o contato
necessário. — Não precisava ficar me esperando.
Ignorei o comentário, ligando e aquecendo o motor. Ele roncou alto,
fazendo Helena xingar baixinho.
Nada comparada à minha antiga Harley, uma moto com a qual,
muitas vezes, eu aproveitara dias de vento frio no rosto e liberdade.
— Tem certeza de que não vai se segurar em mim, Lena-shi? —
perguntei divertido.
— Costuma usar isso aqui como cantada com outras garotas?
— Normalmente — provoquei o motor outra vez.
— Então não vou abraçar você, Kim Jun Woo — disse,
sobressaindo a todo o barulho. — Vinte por hora, ok? Vamos.
Abaixei o protetor escuro do capacete em minha cabeça, me
inclinando mais um pouco sobre a moto. Avancei e, quando alcançamos a
rua comprida e íngreme, senti mãos envolverem minha cintura; no
momento em que acelerei, senti o corpo de Helena colar ao meu.
Sorri.
 
LENA
 
 
— Wa... — Me inclinei um pouco para observar os detalhes
minuciosos do vaso de cerâmica em exposição na pequena vitrine enquanto
passava os dedos sobre os cachos, desmanchando a trança em meu cabelo.
Não queria ver os estragos e o frizz que o capacete e o vento causaram,
então evitei olhar em qualquer reflexo meu enquanto desembolava os fios,
observando todo o interior da loja. — Isso aqui é de que ano?
Jun Woo estava concentrado atrás do balcão na entrada, procurando
algo.
A cabeleira desarrumada de mechas negras despontou do balcão,
depois os olhos escuros e o nariz. Ele estreitou os olhos para localizar o
objeto do qual eu estava falando e, depois de observar o vaso branco de
pinturas antigas e vermelhas, o fotógrafo sumiu outra vez.
— Não faço a menor ideia. Quando perguntam sobre algum artefato
histórico aqui na loja, eu invento qualquer coisa.
Ri.
— Que decepção. Tsc. Tsc... — Passei para o próximo, um
Hambok[36] azul com ornamentos dourados nas mangas e gola em V.
Havia de tudo ali, desde relógios antigos a mais modernos, vasos,
taças, jarros e muitos livros desgastados. Aquele lugar pequeno era
estranhamente reconfortante. Eu sentia cheiro de flores e páginas velhas,
cores sépia e gosto de saudade. Era como... viajar em um tempo diferente.
Tudo era magicamente velho ali. Por um momento, me perguntei de quem,
um dia, fora o relógio de bolso no expositor ao lado das pilhas e mais pilhas
de livros.
— Sua tia nunca vem aqui? — perguntei, passando o dedo sobre a
camada fina de poeira na prateleira de jarros de cerâmica e barro. Alguns
continham lascas e rachaduras; outros pareciam novos e conservados.
— Apenas nos dias de semana. Ela aparece vez ou outra para
conferir se está tudo ok nos sábados, mas raramente acontece. Sábado é o
dia sagrado de compras dela.
— Poderia ser o meu dia sagrado também — resmunguei.
— O quê?
— Nada. — Mordi o lábio, virando o rosto para a coleção de
pequenos enfeites e estátuas em uma prateleira média, não muito alta.
— Achei! — Jun se ergueu de detrás da bancada e se aproximou de
mim com uma caixa vazia. Então, passou a selecionar alguns itens que
estavam expostos e começou a guardá-los ali. — São os favoritos da minha
tia, não vamos arriscar penhorar eles e levar uma bronca depois. —
Enquanto procurava os objetos específicos pelo lugar abarrotado de coisas
velhas e novas, baratas e caras, ele continuou me dando instruções. — Pode
me ligar caso tenha dúvida, mas eu mesmo costumo chutar os valores das
coisas. Se achar que a troca vale, então faça sem medo.
“Uma senhora de óculos redondos e olhos afiados com cara de mal-
amada costuma aparecer por aqui apenas para bisbilhotar as coisas novas
que entraram: não a leve a sério. Mas fique atenta. Ah! E o senhor Lee vai
passar aqui mais tarde para buscar um relógio, deixei anotado no balcão
para você não esquecer. Ele vai te mostrar qual é. É um homem bom, então
não precisa se preocupar.”
— Hm... Senhora xereta e vovô bonzinho. Ok.
Jun ergueu o olhar para mim e sorriu.
— Você vai se sair bem.
— O que você faz para passar o tempo quando está aqui? —
perguntei, me aproximando dele apenas para ver o que tinha na caixa agora
cheia. Um troféu de taekwondo de primeiro lugar, um leque de penas
exageradas de pavão, alguns livros e outros pequenos objetos misturados no
fundo que não consegui identificar.
— Costumo ler, mas só quando estou no tédio extremo. Alguns
livros são interessantes. Ou jogar conversa fora com quem passa na rua.
— Você gosta de conversar, não é?
— Gosto de pessoas, da singularidade de cada uma.
— É? — Inclinei levemente a cabeça, piscando os olhos para ele. —
Qual é a minha?
Jun apoiou a caixa no quadril. Ele usava uma camisa cinza larga que
revelava mais do seu antebraço. Havia novas figuras que eu não tinha visto
antes, tatuagens que eu sabia que, sim, tinham significados profundos e não
eram algo que ele viu aleatoriamente no Pinterest e quis fazer de repente.
Ele estreitou os olhos escuros por alguns segundos, me olhando com
uma intensidade que quase — quase — me deixou desconcertada, até que
suavizou aquela expressão pensativa em um curto erguer de lábios.
— Você é expressiva, não consegue esconder o que está sentindo.
De propósito ou não, consigo ler você. Gosto de como usa suas roupas para
mostrar que está em um dia bom ou ruim. Ah, e seria legal se parasse de
correr sempre que me vê.
Isso me fez rir, me lembrando da vergonha de me esconder e
engatinhar até a saída na L.O. naquele dia. Minha amiga, Maitê, costumava
chamar aquilo de “dar uma de Lena” e eu nunca entendia na hora, mas me
recordar dos últimos dias com Jun Woo... bem, aquela frase fazia bastante
sentido.
— Você, Helena-shi — Jun se inclinou também, o rosto mais perto
do meu. Me obriguei a não recuar com a proximidade, com o perfume sutil
e delicioso que o embalava —, você é o ser mais curioso que já encontrei
em toda a minha vida. E eu já conheci muitas pessoas incomuns, posso
garantir.
Me senti inquieta por um segundo.
— E isso é bom? — perguntei com uma careta.
O sorriso na boca bonita dele aumentou.
— O mundo seria um lugar melhor se existissem mais Helenas. —
Então, o rapaz saiu andando, me fazendo piscar surpresa, congelada no
lugar.
Ótimo dia para ouvir algo assim. Fez meu coração dolorido pela
noite passada se acalmar um pouco.
— Aqui — ele chamou, parado diante de uma porta que eu não
tinha reparado até então. Jun a abriu e apoiou a caixa nela. — Fique atenta
com essa porta: ela só abre por fora, então precisa escorar algo nela para
não ficar presa lá dentro. Ok?
— Huh — assenti.
— Aqui fica a comida. Tia Eh Ji deixa o lugar sempre abastecido de
bobagens que ela geralmente não pode comer em casa.
— O seu tio proíbe ela?
— Minha tia gosta de manter as aparências para a família, mas
quando fica na loja mata a vontade. Esse lugar é tipo a sua vida secreta, por
isso é tão precioso para ela. — O fotógrafo apontou para o pequeno
cômodo.
Ele não devia ter mais do que três metros quadrados, mas o espaço
parecia ainda menor com toda a bagunça ali dentro. Livros empilhados,
caixotes, uma prateleira abarrotada de biscoitos e mais algumas
guloseimas... Um pequeno frigobar com bebidas e mais caixas.
Jun não ficou muito ali, apenas colocou a caixa que segurava em um
canto e saiu rapidamente, fechando a porta.
Depois de me mostrar tudo e me orientar sobre alguns possíveis
clientes, ele deixou algumas notas comigo para o almoço e saiu, avisando
que voltaria depois do trabalho, às seis. Jun Woo fotografaria um casamento
de um amigo de Cha Min e estava bem empolgado. Não tive coragem de
contar o que acontecera na noite anterior quando ele perguntou se eu estava
bem — já que era óbvio que eu era bem transparente mesmo —, apenas
aleguei ter dormido mal por causa de uma alergia.
Não gostava de mentir, mas não queria conversar sobre Son Ho e Ji
Ah com ele.
Passei a manhã toda limpando e, apesar de não lidar muito bem com
a poeira, foi bem divertido limpar livro por livro para reorganizá-los de
modo que ficasse mais fácil tirá-los caso algum cliente tivesse interesse.
Usara aquilo como uma desculpa para evitar olhar o celular: apenas deixei
minha playlist favorita tocando alto o dia todo sobre o balcão enquanto me
distraía colocando todos os vasos e enfeites em um lado mais visível da
vitrine e levava os livros para o outro canto.
Na hora do almoço, o sr. Lee realmente apareceu para buscar seu
relógio, e eu acabara me esquecendo das coisas que me chateavam. Ele era
viúvo e tinha dois cachorros; reclamara dos filhos que raramente o
visitavam e, quando o faziam, era para pedir dinheiro emprestado.
Harabeoji[37], como ele me pedira para o chamar, passara quase duas horas
me contando casos, vez ou outra limpando os óculos redondos que
deixavam seus olhos maiores, o rosto mais fofinho.
Ele perguntara se eu era namorada do “garoto tatuado” e eu dissera
que não, mas o sr. Lee saíra da loja com um risinho de quem não acreditava.
Foi... melhor do que eu imaginara. Mesmo que não tenha me saído
muito bem como vendedora, sentia um peso mais leve nos ombros, porque
cada pessoa que entrou na loja de penhores naquele dia carregava uma
história. Uma mulher de talvez quarenta anos levara um vaso antigo em
troca de um colar que ganhara do marido, porque o aniversário da mãe
estava chegando e ela queria dar algo especial. Aquele vaso era dela, mas
ela precisara penhorar meses antes, e a mulher estava retornando para pegar
de volta e entregá-lo à mãe de setenta anos.
Um casal jovem apareceu e passou quase uma hora selecionando
alguns livros; a senhora xereta criticou cada item exposto, alegando que
nunca havia novidades realmente interessantes e sofisticadas, mas acabou
levando um conjunto de xícaras com bordas douradas.
Quando o céu começou a ficar mais frio, anunciando o fim do dia,
tive coragem de pegar o celular e encontrar algumas mensagens e chamadas
propositalmente perdidas.
Son Ho queria saber se eu estava bem e me lembrara da exposição
italiana que teria à noite, que queria me ver para conversarmos; Ji Ah
perguntou se estava tudo certo na loja e se eu tinha comido, também queria
saber que horas eu voltaria para casa. Eu não respondi nenhum dos dois,
apenas minha irmã e minha mãe, e troquei algumas mensagens com Jun
Woo também, tirando foto da arrumação que fiz.
Ele respondeu com uma foto da mão tatuada de borboleta e espinhos
formando um OK de aprovação.
Não sabia como me sentir em relação à minha amiga; ela não estava
acordada quando eu saíra pela manhã, apagada na minha cama. Pelas
mensagens, Ji Ah não se lembrava da ligação. Eu pensei se deveria contar,
mas sabia que minha amiga se sentiria culpada e tentaria reverter a situação;
só que não dava mais. Mesmo que Ji Ah dissesse estar tudo bem para ela,
eu não teria coragem de namorar Son Ho.
E Son Ho... Bem, eu estava envergonhada demais por tê-lo deixado
sozinho naquele restaurante, mas seria melhor assim. Não começamos nada,
então não teríamos que terminar. Eu só precisaria evitá-lo por um tempo.
— Cadê você? — perguntei assim que Jun Woo atendeu, havia
muito barulho.
— Desculpa, Lena, foi um casamento bem doido. — Suspirou. —
Estou saindo agora, mas vou demorar um pouco. Tem problema?
Eu estava com fome e ansiando por um banho quente, mas poderia
esperar. Não tinha as chaves para fechar a loja de qualquer forma, mas a
ideia de continuar ali sozinha, em uma rua praticamente deserta e
silenciosa, me deixava nervosa.
— Acha que demora muito?
— Uns trinta a quarenta minutos.
— Certo... Vem logo.
— Huh. Já jantou? — Alguém o gritou ao fundo e ele respondeu
que estava indo para casa.
— Estava esperando você, mas acho que vou comer alguma coisa.
— Passava das sete e meia da noite; Jun prometera voltar as seis em ponto,
mas eu não poderia culpá-lo, imprevistos aconteciam. — Meu celular está
descarregando, não demora muito.
— Não se preocupa, vou correr.
Isso chamou minha atenção.
— Não! — gritei. — Não é para correr. Vinte por hora, esqueceu?
Não é para vir rápido.
Ele riu.
— Quer ou não que eu chegue aí?
— Quero que fique vivo, então pilote com sabedoria e
responsabilidade.
— Claro, claro, querida — zombou.
Fechei a cara.
— Desligando. Cuidado e volte bem.
— Até logo.
Alonguei as costas, sentindo os estalos; então estiquei os braços,
tentando distrair a mente enquanto Jun Woo não chegava. Meu celular
quase morto brilhou com uma nova mensagem.
 
JI AH (7:35 p.m.): Chego bem tarde em casa hoje. Tá tudo bem aí?
 
Franzi a testa.
— Ela vai beber de novo? — Bufei.
 
LENA (7:35 p.m.): Trabalho?
 
JI AH (7:35 p.m.): Vou sair com um cara.
 
LENA (7: 36 p.m.): De repente?
 
JI AH (7:36 p.m.): Não é de repente. Conheci ele na loja de conveniências.
 
Eu estava entre ficar brava com ela por ter arruinado meu encontro
ontem só para sair com outro ou ficar aliviada porque minha amiga estava
tentando superar.
A parte trágica em ser trouxa.
Não guardava rancor por muito tempo, então sabia que logo eu
estaria pedindo um relatório para ela no dia seguinte. Assim como Ji Ah
não queria assumir o que sentia por Son Ho por minha causa, eu não queria
sair com o nosso vizinho de corredor por causa dela.
Minha amiga poderia ser meio desparafusada, mas tinha um coração
bom. Apesar de estar doendo, eu sabia que ela jamais teria a intenção de me
magoar de propósito.
Continuei fingindo que estava tudo bem. Por ela.
 
LENA (7:37 p.m.): Divirta-se. Não se preocupe comigo, está tudo bem
aqui. O Jun já está chegando e vamos voltar para casa. Tenha uma noite
incrível.
 
Ela mandou um emoji apaixonado e outro enviando beijinhos.
 
JI AH (7:38 p.m.): Tenho certeza de que o Son Ho vai estar te esperando,
então aproveite a noite com ele. Quando chegar, quero todos os detalhes do
encontro de vocês.
 
E completou com um emoji de um casal apaixonado.
Eu quis contar. E Son Ho, apesar de amigo da Ji, era discreto e
reservado. Ele queria conversar comigo antes de correr para a minha amiga
para saber o que poderia ter acontecido.
Antes que eu pudesse dar uma última resposta para Han Ji Ah, a tela
do meu celular se apagou.
A bateria havia descarregado.
 

 
Fui até a entrada da loja e virei a plaquinha “Estamos fechados”
para o lado de fora. Apaguei a luz da frente e deixei apenas a dos dois
abajures da bancada acesa, andando de um lado para o outro, um pouco
impaciente.
Meu estômago protestou novamente.
Eu queria maratonar minha série naquela noite — não planejava ir à
exposição italiana com Son Ho, como a covarde que era; também não tinha
como avisar a ele que, de qualquer forma, me atrasaria —, então estava
segurando a fome para saciá-la com pizza mais tarde. Porém, com Jun
demorando tanto, eu não ia aguentar muito.
Eu estava faminta.
Esperei mais quinze minutos e, quando não tive nenhum sinal da
moto dele em frente à loja, fui até a despensa, passando pela porta como um
raio para a prateleiras de alimentos.
Meu erro foi esse: desatenta, não escorei a porta e acabei ficando
presa lá dentro.
— Ah, meleca! — Virei a maçaneta diversas vezes na esperança de
milagrosamente conseguir abrir a porta.
Depois de alguns murros, empurrões e reclamações, acabei
desistindo.
Jun provavelmente abriria para mim, era só eu gritar por ele quando
o escutasse chegar.
Naquele momento, minha preocupação maior era a fome.
Procurei pelos pacotinhos de lámen, mas não encontrei nenhum,
apenas embalagens vazias. Eu precisaria limpar aquele lugar no sábado
seguinte; não conseguia achar nada naquela bagunça. Pediria a Jun que
trocasse aquela maçaneta e também a lâmpada que oscilava, dando sinais de
morte. Em outro contexto, aquele lugar seria macabro, mas evitei pensar
que estava sozinha na loja em uma rua deserta e assustadora, presa em uma
despensa pequena e empoeirada e sombria.
Preferi me distrair vasculhando pelos cantos por algo que poderia
saciar minha fome enquanto Jun não chegava, mas eu só tinha visto, até
então, garrafas de Soju. E eu não ia encher a cara de álcool com o estômago
vazio.
Logo, meus olhos foram atraídos para uma caixa no alto da
prateleira.
Comida.
Busquei por alguma base que pudesse ajudar com a minha pouca
altura e me sustentar para que eu alcançasse a caixa mais próxima; acabei
encontrando um caixote velho e bem grande.
Ele teria de servir, mesmo que caísse aos pedaços.
Tirei as tralhas pesadas que estavam dentro dele, a luz alaranjada do
lugar apagando vez ou outra, como num filme de terror. Virei o caixote para
que ficasse parecido com um banquinho maior e o arrastei para onde eu
precisava. Um dos lados parecia suspeito, mas aparentemente me aguentaria
por alguns segundos.
Subi nele e peguei a caixa de papelão. Ao abri-la, meu sorriso
cresceu: pacotes de sabores variados de Lámen.
Meu estômago também pareceu animado e agradecido, mas, antes
que pudéssemos comemorar, a porta se abriu, revelando uma silhueta alta e
masculina.
— Helena?
Eu tinha me esquecido completamente da maré de azar que tinha
recaído sobre mim recentemente, já que obviamente não foi uma boa ideia
subir naquele caixote velho: com um creck repentino, ele quebrou e me
desequilibrou.
O problema não foi esse. Ah, quem me dera meu problema ser
resumido a um pé torcido, um caixote quebrado e vários pacotes de Lámen
espalhados pelos cantos.
Ah, não! O problema foi que Jun tentou me socorrer, me segurando
para que eu não espatifasse a cara no chão — e falhando —, fazendo com
que eu caísse em cima dele com mais algumas caixas de papelão. Ele
praguejou alguma coisa, mas, como em câmera lenta, a porta começou a
ranger. Paralisados, observamos enquanto ela se fechava.
E nos trancava na pequena despensa.
 
“Eu soube que era você,
E não importa o que eu faça,
Eu nunca vou parar de pensar em você.”
Never Not — Lauv
 
 
JUN
 
As paredes se moviam.
Não. Não literalmente, mas eu conseguia senti-las se aproximar cada
vez mais. Pareciam até mesmo cantarolar que estavam chegando mais e
mais perto.
Me espremendo.
Me sufocando.
Engoli em seco, tentando, com tudo em mim, ignorar a tontura e o
pânico que se apossaram do meu corpo instantaneamente quando o som da
porta batendo e me trancando ali dentro ecoou pelo espaço de menos de três
metros quadrados. As prateleiras ali pareceram ganhar vida também.
Maiores.
Cada vez maiores.
— Eu não... Eu... Desculpa, Jun. — A voz de Helena parecia
distante, como se eu estivesse dentro da água e ela fora. — Eu só queria
pegar a caixa e... eu... Jun?
Inspirei, fechando firmemente os dedos na maçaneta,
impulsionando-a para baixo, puxando e empurrando com a tola esperança
de que aquela maldita porta velha se abrisse com um pouco mais de força.
Não abriria. E estar preso ali, naquela situação, era um riso de
escárnio e ironia na minha cara. Eu podia facilmente escutar a voz de tia Eh
Ji dizendo que eu deveria tê-la ouvido e arrumado a porcaria da fechadura
quando tive a chance.
Eu não o fiz.
Agora estava preso dentro daquela despensa.
— Jun Woo? — Senti uma mão segurar suavemente meu braço e
então me chacoalhar levemente. — Ei, você está bem? Jun?
Tentei assentir, olhar para ela, mas a parede atrás de Helena pareceu
avançar mais um pouco, aquele zumbido irritante mais alto, o coração cada
vez mais dolorido por estar...
Preso. Preso em uma despensa. Trancado. Trancado. Trancado.
— Você está suando! Meu Deus, você...
— Eu... tô legal. — Minha voz era um resmungo estranho e rouco.
Preso. Preso. Preso.
— Não está! — Senti a mão macia e fria tocar minha testa, depois a
lateral do meu rosto e, por fim, o pescoço. Mais alguns minutos de análise e
Helena finalmente pareceu compreender. — Você é claustrofóbico?
Assenti, fechando os olhos de novo. Inspirando.
— Ah não... — murmurou, segurando meus ombros e me virando
completamente para ela. — Olha para mim. Olha só para mim.
Fiz o que a jovem pediu, um pouco mais de foco. Eu me
concentraria mais se tivesse uma distração. Olhos castanhos me
observavam com cautela e preocupação desconcertantes.
— Você está com o seu celular? Podemos ligar para a sua tia e...
— Está... lá fora, na bancada. — Com a minha câmera; a mochila.
A chave da moto e da loja...
— Droga! O meu descarregou... como vamos... — Percebendo que
estava caminhando para questionamentos que me aterrorizariam mais, Lena
forçou um sorriso. — Não vamos nos preocupar, ok? Vamos sair daqui.
Olha só, eu deixei anotado na geladeira o endereço da loja e combinei com
a minha amiga que, se eu não desse notícias, ela viria me procurar.
Olho no olho, Kim Jun Woo. Apenas... se concentre nos olhos lindos
de Helena e ignore o resto.
Mas...
— Ela pode não vir e... — Minha voz falhou.
Só por mais um segundo, fechei os olhos e inspirei.
Minha cabeça girava como há tempos não acontecia. Da última vez
em que me vi numa situação parecida foi na sala de materiais esportivos do
orfanato em que era voluntário no período em que morava em Boston. Era
bom em evitar locais fechados, e sempre o fazia bem, mas fui descuidado
daquela vez, preocupado com o fato de Helena cair e se machucar.
Ignorando completamente o que ia dizer sobre ficarmos ali pelas
próximas horas, percorri os olhos pela jovem a minha frente à procura de
alguma ferida.
— Você está bem?
— Claro. — Lena me ofereceu um sorriso envergonhado quando
meus olhos se fixaram em seu pé esquerdo emaranhado ao caixote
quebrado.
Mentirosa.
Desviei o olhar para Helena outra vez e franzi a testa, esperando.
— Ele ficou preso quando a gente... — apontou o chão — sabe...
caiu. E... Foi mal.
— Você vive dizendo isso — murmurei, me agachando para ajudá-
la com a caixa, mais pela tentativa de concentrar a minha atenção em outra
coisa que não na situação em que estava envolvido, ou no pavor que me
consumiria se eu não tomasse o controle. — Pare de se desculpar. Dói?
Quando ergui os olhos para encará-la, ela negou, mas notei quando
minha vizinha mordeu o lábio com força. Quando girei seu pé, um gemido
de dor deixou sua garganta, e eu me repreendi por não ter sido mais
delicado.
Tirei o tênis amarelo do pé esquerdo de Helena e ordenei que ela se
sentasse. Trincando os dentes para me concentrar, ignorando as paredes
cantantes e o mal-estar que fazia minha cabeça girar, fui até o pequeno
frigobar e procurei por gelo. Tudo que encontrei foi uma lata de
refrigerante.
Voltei a me agachar diante da jovem encolhida contra a parede,
abaixei a meia listrada lilás e amarela e coloquei a lata gelada ali, sobre o
ossinho na lateral.
— Pode ser uma torção — falei, procurando o olhar dela. Helena
tentou segurar o resmungo, mas eu sabia que seu tornozelo doía mais do
que ela deixava transparecer. — Precisamos sair daqui e levar você no...
— Eu vou ficar bem. — Sorriu docemente. — Vamos sair daqui
logo. A Ji Ah vai vir.
— Não tenha tanta certeza.
— Ela vem. Agora pare de encarar as paredes — me repreendeu. —
Olhe para mim.
Engoli em seco, jurando que a parede atrás de mim não estava mais
a poucos metros, e sim a centímetros das minhas costas, me comprimindo
contra a parede paralela.
Duas mãos seguraram meu rosto, então era apenas Helena ali. Ela
me analisou e, pela primeira vez desde que a conheci — na verdade, pela
primeira vez em muito, muito tempo —, me senti um bobo retraído que
sequer sabia o que fazer ou falar diante de uma garota.
Um adolescente de doze anos.
Talvez menor, uma criança de sete.
— Viu? — Comprimiu minhas bochechas em suas mãos pequenas.
— Esqueceu do seu medo.
— Gosta de fazer isso? — Minha boca espremida fez ela rir.
— Olha só como você é fofo. Nem parece aquele emburrado
daquele... — Seus olhos correram para o que eu sabia ser o piercing no
lábio inferior da minha boca. — Daquele... — pigarreou. — ...dia...
Sim, o medo pareceu insignificante com a atenção dela ali. Por um
segundo, o brilho nas íris castanhas não era de curiosidade na argola
prateada, mas interesse genuíno em... outra coisa. Eu reconhecia, o engolir
em seco da jovem foi um indício.
Helena piscou, balançou a cabeça e me soltou abruptamente, como
que despertando de um transe, me empurrando para trás e me fazendo cair
de bunda no chão.
— Pode deixar que eu faço isso — murmurou.
Tirando a lata de refrigerante da minha mão, Helena desviou o olhar
para o pé machucado. De relance, mesmo com a luz inconstante e fraca,
notei suas bochechas adquirirem um rosado intenso.
O rosto pálido da jovem facilmente denunciava quando ela se
envergonhava e corava.
Sorri.
Me acomodei ao seu lado, escorando as costas na parede, sempre
olhando apenas para ela. Ainda sentia o mal-estar, o cômodo girava um
pouco, mas continuei encarando o rosto delicado e corado emoldurado por
cachos negros.
Helena concentrou sua atenção na lata rosa em seu tornozelo.
Por alguns segundos, o silêncio perdurou naquele cômodo apertado,
e eu aproveitei a distração da minha companheira de cela para apoiar a
cabeça na parede, fechar os olhos, inspirar fundo e começar uma contagem
lenta para esquecer do enjoo que queria tomar conta de mim.
Nas últimas crises que tivera, ficara sozinho em um breu apavorante
e paredes opressoras; não havia ninguém. Mas, dessa vez, Lena estava ali,
mesmo que em silêncio. Porém... isso não ajudava a melhorar a ansiedade,
o zumbido e a tontura.
Tentei pensar em outras coisas, concentrar minha energia em algo
idiota e esquecer das paredes e do quanto aquele cômodo era pequeno; no
entanto, vez ou outra meus olhos se abriam e viam as prateleiras dançantes,
o mundo girando.
Fechei os olhos com mais força, detestando me sentir tão
vulnerável, e com plateia dessa vez, mas...
Escutei o movimento do meu lado e, logo depois, um resmungo.
Encarei Helena, que tentava se levantar.
— O que está fazendo? — A voz estranha e rouca saiu da minha
garganta oscilando.
— Estou com fome. — Ela ficou de pé e, mancando, foi até a caixa
jogada no outro lado da despensa. — Se vamos ficar aqui e esperar a Ji Ah
chegar, então pelo menos quero tapar o buraco na minha barriga com
alguma coisa.
Observei os pacotes de Lámen no chão, a caixa que ela tentara pegar
mais cedo.
— Por isso subiu no caixote? — Não gostei do tom crítico na minha
voz, mas estar preso ali por conta daquilo me deixou inquieto. — Porque
estava com fome?
— Não vai me culpar — resmungou. — Você disse que voltaria às
seis e chegou às oito.
— Certo, mas, se tivesse me escutado, teria colocado o peso na
porta e...
Parei de falar quando ela virou o rosto sobre o ombro para me
encarar com uma expressão que eu não tinha visto antes.
— Poderia ter simplesmente me deixado cair e não estaríamos
presos agora — retrucou emburrada. — Eu já pedi desculpas.
— Eu sei, mas estou tentando me distrair, e brigar com você me
pareceu uma boa opção. — Sorri quando os olhos dela me fuzilaram de
novo.
Helena pegou alguns pacotes de Lámen, mais uma latinha de
refrigerante no mini frigobar, e voltou a se sentar do meu lado, deixando
tudo no chão e abrindo uma das embalagens. Quebrou o emaranhado de
macarrão instantâneo, jogou o pó de veneno temperado dentro, sacudiu tudo
e levou um pedaço à boca, mastigando-o como se fosse um biscoito.
Alguns minutos depois, ela suspirou.
— Só te causo problemas, não é? — murmurou baixinho, a mão
segurando mais um pedaço de macarrão seco caindo como um peso morto
sobre o colo. — Desde que me conheceu, só te dou mais trabalho. Como
não me mandou para a polícia ainda?
Ri, voltando a fechar os olhos e apoiar a cabeça. Seria bom apenas
escutar a voz dela por um tempo, acalmar o coração dolorosamente agitado
com a presença de Lena ao meu lado.
— Você é uma inconstância no meu mundo padrão, Helena —
murmurei de volta, conseguindo sentir, de alguma forma, o olhar dela recair
sobre mim. — Estava tudo parado demais antes de você quebrar aquela
câmera e agora... é bom não saber o que vai acontecer a seguir.
— Parece até que tá me cantando — balbuciou.
— Talvez eu esteja. — Lancei uma piscadela.
Lena tentou continuar séria, mas cedeu com um sorriso e uma
revirada de olhos.
— Gosto de conhecer pessoas diferentes — justifiquei, mais sério
—, não me importo se tenho que te carregar nas costas ou até mesmo
machucar a coluna para amortecer sua queda; você é divertida.
O olhar dela correu para o meu pescoço.
— Ai, não... — Ela se mexeu no chão para me encarar. Uma mão na
boca, outra em meu ombro, me virando para uma análise mais apurada. —
Você machucou as costas?
— Um pouco. — Não estava brincando. — Mas vou ficar bem.
— Foi mal, Jun! Eu prometo te comprar remédio e faixas para tratar
a dor, ok?
— Acho que só algumas tiras para dor não vão ser o suficiente. —
Estiquei as pernas no chão, cruzando os tornozelos. Ali, daquele jeito,
encolhida ao meu lado, Helena parecia tão pequena.
— O que mais vai querer?
— Donuts. Uma caixa cheia, recheados de chocolate,
principalmente.
Ela sorriu, me dando um tapinha no ombro.
— Conheço um lugar perfeito, vou te entupir de donuts.
— Ótimo. — Meus lábios se esticaram, mas...
Ainda estávamos presos.
Presos.
Pensar naquela palavra me causava enjoos.
A expressão no rosto de Helena mudou, realmente chateada consigo
mesma. Então, a garota esticou a mão e tocou minha testa sob as mechas da
franja outra vez. Primeiro, bochechas; por fim, o pescoço, sua pele ainda
mais gelada.
Ela não usava agasalho algum e, apesar das mangas compridas, a
barra da peça revelava uma faixa de pele do abdômen dela. De manhã, o dia
estava razoavelmente bom, mas esfriaria mais nas próximas horas.
Antes que eu me movesse para tirar a jaqueta para ela, Helena falou,
ainda com a mão em meu rosto:
— Está só fingindo, né? — perguntou com aquele olhar de pena. —
Você não está nada legal. Desde quando tem medo de lugares fechados?
— Não sei bem. Quando criança, talvez. Costumava ficar preso em
depósitos ou armário na época da escola.
Ela franziu a testa.
— Você sofria bullying?
— Por que parece surpresa?
— É que... eu não sei. Você tem cara de quem foi bem popular na
escola.
— Digamos que Deus foi bom comigo depois que me formei e
voltei do exército. — Dei um sorriso convencido a ela. — Mas eu era meio
metido a nerd, gostava de jogar e era bem franzino e antissocial. Crianças
conseguem ser cruéis, às vezes, e ser o filho adotado em uma escola para
alunos de classe alta parecia ser motivo mais do que suficiente para me
maltratarem.
— Sinto muito. — A voz dela mudou, melancólica. Ela me contara
sobre o ex, sobre as piadinhas dolorosas. Helena sabia bem, melhor do que
qualquer um, o quanto aquilo podia machucar. Minha vizinha não
mencionou nada sobre o que eu acabara de contar, sobre ser um órfão.
Talvez ela quisesse perguntar sobre, eu via em seus olhos; mesmo assim,
preferiu ignorar a curiosidade.
Me senti grato por isso.
Normalmente, eu não tinha dificuldade em conversar sobre os meus
sentimentos, mas aquele era um assunto no qual eu não costumava
mergulhar com frequência. Descobrir sobre os meus pais biológicos me
devastara na adolescência, perder meu irmão anos antes fora outra rasteira
que ainda me mantinha no chão, então evitava falar sobre a minha família.
— Eu não me importei, de verdade. Na época, não gostava, mas eu
cresci decidido a ser melhor do que eles.
— Por isso é tão legal com todo mundo.  — Ela não estava sendo
sarcástica.
— Claro, mas sabe... — Abaixei o tom de voz, arqueando uma das
sobrancelhas. — Não é bom me provocar também.
Lena riu.
— Sorte a minha que sou sua inconstância. Tô começando a achar
que você é incapaz de ficar bravo comigo, Kim Jun Woo-shi. — Ela piscou
os cílios negros com aquela expressão de Gato do Shrek.
De fato.
Era mesmo.
— Me pergunto se alguém consegue realmente brigar com você. —
Sorri, engolindo em seco quando, num relance distraído e inconsciente,
olhei para detrás de Helena, para as paredes e a despensa. Pareciam tão
menores do que minutos atrás.
— É o meu charme. — Lena voltou a se virar para a frente para
escorar as costas contra a madeira atrás de nós. Continuou a devorar o
Lámen seco.
Reiniciei a contagem, resmungando alguma resposta quando Helena
perguntava alguma coisa. Meu coração batia acelerado no peito,
dolorosamente, e eu agradeci por ter companhia, ou tudo seria terrivelmente
pior.
— Estou com frio — Lena disse, me fazendo abrir os olhos e
lembrar da jaqueta que eu pretendia tirar para ela. Porém, antes que eu
pudesse finalmente executar a tarefa, a mão pequena dela envolveu a
minha. — O quê?
— O quê? — Ri, e então ergui nossas mãos unidas.
— Estou me aquecendo, ué. — Ela se aconchegou em mim, uma
mão na minha, outra em meu braço.
Perto demais.
— Não que eu ache ruim a proximidade, mas... O que pensa que
está fazendo, Helena-shi?
Um sorriso lindo e arrebatador emoldurou os lábios dela.
— Estou distraindo você.
— Eu disse que não era bom me provocar. — Rosados, bem
desenhados e pequenos, a parte inferior levemente mais cheia e
aparentemente tão macios...
Eu não faria nada, até porque ela gostava do vizinho e ele dela, mas
ficar tão perto de mim assim era exigir demais do meu juízo.
— Não estou te provocando. — Helena franziu a testa, apertando de
leve minha mão. — Estou te distraindo. É bem diferente para mim. Não
quero que pense nas paredes ou que continue nervoso desse jeito.
— Quer que eu pense em você então?
— Está flertando comigo de novo?
— Talvez. — Sorri.
— Se estiver te ajudando com seu medo, então vá em frente. Sou
bem lerda para flerte, de qualquer forma.
Ri.
— Certo. — Desvencilhei nossas mãos apenas para entrelaçar os
dedos, fazendo a atenção de Helena seguir para eles. Continuei encarando
aquele rosto, me lembrando da pergunta que Son alguma coisa me fez
naquele dia, se eu gostava dela. — Me distraia então.
Olhos esverdeados se voltaram para mim.
Às vezes, pensava no dia em que vira Helena pela primeira vez,
andando distraída com o celular nas mãos, fones nos ouvidos, sorrindo para
a tela. A data em que a vi coincidiu com o aniversário de morte do meu
irmão; não a vi depois disso, não pensei nela após aquele dia.
No entanto, quase um ano depois, ali estávamos, presos em uma
despensa na loja de penhores da minha tia, por causa de um acordo ridículo.
Uma desculpa.
O ar gélido que transpassava a pequena vidraça no alto da parede
paralela a que estávamos entrou. Helena se encolheu para mais perto, não se
importando com a proximidade, com o que ela me causava.
Aproveitando o momento, a deixa, fiz a pergunta que guardava para
mim desde o primeiro dia em que a vi:
— Quem é você?
Ela soltou uma risada.
— Você sabe quem sou eu.
— Me conte sobre Helena — continuei. — O que ela gosta e não
gosta, o que faz ela rir e a faz chorar; o que ama fazer... Disse que me
distrairia, então me fale de você.
Porque eu sabia que Han Ji Ah não apareceria, pelo menos não tão
cedo. Com sorte, pela manhã, quando sentisse falta da amiga. No fundo,
acho que Helena também sabia.
A jovem se acomodou melhor no chão, a mão livre envolvendo meu
braço, o rosto virado para mim, perto o suficiente para que eu sentisse o
perfume de flores do seu cabelo. Depois, sorriu e começou a falar.
 

 
Percebi que a voz de Helena entrara sorrateiramente para a minha
lista de coisas favoritas. Ah, principalmente com aquela risada deliciosa
complementando. Meu medo se tornou insignificante a partir do momento
em que ela começara a falar e me contara mais sobre as coisas que gostava
e o que não gostava; histórias sobre a amiga que ela insistia ser a atual
namorada de Eric Lee, o Idol que dera o que falar dois anos antes; como
fora viver com quatro irmãs e como era a mais sensível de todas elas; até
mesmo a coleção infinita de plantas que tinha no apartamento. Coisas que,
para muitos, seriam consideradas insignificantes, mas que, para ela, eram
tudo.
E eu não reclamei ao ouvir, me sentia fascinado e agradecido.
Sabíamos que horas haviam passado e que a amiga dela não
apareceria àquela altura da madrugada, mas Lena não pareceu realmente se
importar. Apenas se aconchegou mais perto de mim com a jaqueta que eu
lhe entregara e conversou comigo a noite toda, aqueles olhos brilhantes
ainda visíveis mesmo com a inútil lâmpada queimada.
A luz que vinha do lado da rua da pequena vidraçaria no topo da
parede clareava o lugar minúsculo, me lembrando de que estava preso. Mas
Helena sempre apertava minha mão e começava outra história.
Em alguma hora da madrugada fria, ela passou a contornar os
desenhos na minha mão entrelaçada à sua com a ponta do indicador, me
perguntando o significado de cada tatuagem e por que eu as fazia. Expliquei
que a maioria representava cada pessoa importante na minha vida ou algo
que me fizera mudar, coisas que não queria esquecer. Como o pequeno
óculos no braço, mais na altura do bíceps, para me recordar da Irmã Do
San: ela usava grandes óculos redondos e vermelhos e tinha olhos enormes.
Ela costumava guardar biscoitos para mim e Cha Min porque éramos os
seus favoritos no orfanato. Ou o vídeo-game que representava Cha Min,
abandonado por uma mãe diferente, mas que sempre seria meu irmão de
alma.
Diversas outras tatuagens que me lembravam de tantos outros.
Poderia ser um ato idiota para alguns, tatuar coisas assim, mas não para
mim. Pessoas e momentos importantes deixam marcas; gosto de me lembrar
de cada uma.
Observei o dedo de Helena contornar a borboleta suavemente. ela
não deveria me tocar daquela forma, não quando gostava de outro e não
percebia o que eu estava sentindo. Lena não deveria apoiar a cabeça em
meu ombro e entrelaçar braço e mão comigo, aconchegada em mim tão
intimamente, quando seu coração batia por outro.
E eu me sentia um babaca por não conseguir afastá-la.
Por não querer fazê-lo.
— Não foi ao encontro ontem, não é?
Ela parou a ponta do indicador sobre o “E” no meu dedo anelar.
Não me respondeu.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, inclinando a cabeça para
tentar ver seu rosto, mas Helena se encolheu mais. Meu coração parou de
funcionar por alguns segundos, hesitante. — Ele fez alguma coisa com
você?
Ela prontamente negou.
— Só... não é para ser — murmurou.
— Por que está com medo?
— Porque não é para ser. Simples.
Franzi a testa, pensando no que deveria dizer para sondá-la, para
ajudá-la. Não estava nem um pouco confuso sobre o que eu queria. Porém,
acima disso estavam os sentimentos dela, então eu deveria dizer algo para
consolá-la...
— Ji Ah me ligou bêbada ontem — falou por fim, voltando a mover
o dedo sobre minha pele, contornando o “B”, seguindo para a linha de
espinhos que envolvia meus dedos e mãos, descendo para o antebraço. —
Ela ama ele.
Ah...
Então era isso.
— Não fui ao encontro. Quando escutei ela chorar dizendo que o
amava, que não tinha me contado porque não queria me magoar... Foi como
se eu tivesse visto os dois se beijando ou algo do tipo. Um ponto final
irreversível. Sei que parece idiota pensar assim, mas foi como me senti.
Como se tivessem jogado água fria em mim. Eu não posso namorar alguém
que é a paixão da minha melhor amiga. Não posso fazer isso com ela e, cá
entre nós, sabemos que não sou muito confiante quando o assunto é
namoro. Por isso não fui ao encontro, apenas pedi desculpas ao Son Ho por
não aparecer.
— Sinto muito, Lena.
Sim, eu era o pior dos babacas por ouvir aquilo como uma boa
notícia. Um cretino, mas não podia fazer nada em relação a isso.
O que eu poderia fazer, quando Helena me nocauteara no primeiro
round?
Ela virou o rosto, apoiando o queixo em meu ombro para me
encarar. Seus olhos se encolheram quando os estreitou para mim.
— Não parece sentir muito.
Culpado.
— É claro que sinto — tentei, mas não com muito empenho. — Por
ele, que levou um bolo. Por sua amiga, que provavelmente levou um fora e
acordou de ressaca hoje. E por você, obviamente. Gostava dele.
Ela se afastou só para me lançar um olhar crítico.
— Mentiroso.
— Eu? — Ri. — Não estou mentindo, sinto muito pelo cara, mas o
que eu posso fazer se agora o caminho está livre para mim?
Lena tentou não demonstrar, mas o canto de seus lábios se esticou.
— Está me cantando de novo ou só está tentando me distrair?
— Os dois talvez. — Dei de ombros. — Você está sorrindo, acho
que fiz um bom trabalho.
A jovem balançou a cabeça, ainda segurando o sorriso lindo nos
lábios, e voltou a recostar em meu ombro, mãos pequenas e frias
envolvendo a minha.
— Obrigada, então — cochichou. — Por me distrair.
— Ei... Estou flertando com você — acrescentei.
— Eu vou fingir não notar.
 
“Se você quer o meu amor,
Se aproxime um pouco mais.
Vamos tomar algumas decisões ruins.”
Bad Decisions — Benny Blanco, feat. BTS & Snoop Dogg
 
 
JUN
 
Todo o meu corpo doía.
Não dormi naquela noite. Talvez tenha cochilado em algum
momento, mas sempre me pegava despertando assustado com qualquer
ruído, voltando a atenção para as paredes que pareciam se comprimir todas
as vezes em que eu olhava.
Não foi fácil.
Precisei fechar os olhos e respirar fundo diversas vezes; vez ou
outra, Helena despertava também e começava a me contar algum caso
aleatório da vida apenas para manter minha cabeça em outro lugar que não
ali na despensa trancada, sempre segurando a minha mão como se eu fosse
uma criança assustada longe da mãe.
Eu me sentia uma criança assustada longe da mãe.
Girei o pescoço dolorido, a cabeça latejando pela noite mal dormida,
enfim visualizando o emaranhado de cachos negros espalhados em meu
colo. A cabeça de Helena estava apoiada em minha coxa enquanto o resto
do corpo da jovem estava deitado, encolhido no chão frio.
Sorri, afastando os cachos desgrenhados do rosto adormecido dela,
me lembrando do último momento em que a estudante despertara de um
cochilo, mas não conseguira se manter acordada por muito tempo.
 
 
— Eu... tenho que te distrair... — balbuciou, eu me perguntava se
sequer estava consciente ou se falava em sonho. A jovem esfregou os olhos
cansados. — Não posso dormir.
— Não se preocupe comig...
— Já sei. — Ela sorriu sonolenta e escorregou para o lado,
deitando no chão e apoiando a cabeça em meu colo. Pisquei, surpreso e
ainda mais desperto. — Vou cantar para você dormir.
Ri nervoso.
— Não sei se vai funcionar, sinceramente — resmunguei. — Sei que
é ruim dormir sentada, mas você poderi...
— Shhh... — Se encolheu no chão. — Vou começar. Fecha os olhos e
escuta.
— Lena... — Engoli em seco.
— É a minha... — bocejou — música favorita. — Falando cada vez
mais devagar. — Eu... não canto para qualquer um, então precisa... precisa
ficar calado para ouvir...
Desisti, esperando que ela cantasse, mas duvidando que Helena o
fizesse, já que, em alguns segundos de silêncio, ela parecia já estar
dormindo outra vez.
Então, La Vie En Rose começou a ressoar baixinho.
— Hold me close and hold me fast...This magic spell you cast... this
is La vie en rose... (Me mantenha perto e me segure rápido... Essa magia
que você lançou... Esta é a vida em cor de rosa).
A voz dela, mesmo sonolenta e um pouco oscilante, não deixava de
ser angelical. Apesar de já estar ciente do coração apertado não só pelo
medo do lugar fechado, mas pela pessoa ali, tão perto, fingi que não era
nada demais. Levei uma mão ao rosto dela, afastando um cacho escuro de
sua bochecha.
Helena não parou de cantar.
— When you kiss me... heaven sighs... and though I close my eyes...
(Quando você me beija... o céu suspira... e embora eu feche os meus
olhos...) — Ela suspirou, os olhos fechados. Meus dedos enroscaram nas
mechas macias e um sorriso pequeno despontou dos lábios dela. — I see La
vie en roses... (eu vejo a vida cor de rosa...)
Ela queria me distrair, mas... era impossível.
Garota encantadora.
— And when speak angels... sings from above... Everyday words...
seem to turn into love songs (e quando você fala, anjos cantam no céu...
palavras do dia a dia parecem se transformar em músicas de amor). — Ela
continuou, cada vez mais baixo e mais distante, sendo, pouco a pouco,
sugada pela inconsciência. E eu, hipnotizado pela sinceridade que sentia
naquela letra, não desviei o olhar; de fato, me esqueci do medo, e das
paredes, e da tontura. Só existia ela. — Give... your... heart... and soul... to
me... (Dê... seu... coração... e sua alma... para mim...)
Sorri quando Helena não continuou.
Ajeitei as mechas do cabelo dela para que não ficassem caindo em
seu rosto, puxando-as levemente para trás. Então, antes de voltar a me
escorar na parede, sussurrei a parte que Lena não completou da música.
— And life will always be La vie en rose (E a vida será sempre cor
de rosa).
Observei por mais alguns segundos o rosto sereno e angelical, me
perguntando pela milésima vez como Miguel, seu ex, fora capaz de ser tão
estúpido ao ponto de perdê-la. Ela me contara em detalhes aquela noite,
tudo: como eram amigos; como ela amara ele; como se entregara para ele;
como ele a ridicularizara e ferira tão fundo por status e a deixara meses
deprimida e apodrecendo em casa.
Helena era um raio de sol por onde passava, não havia maldade
alguma nela, por mais atrapalhada que fosse; e se eu, no lugar daquele
imbecil, tivesse a chance de tê-la em meus braços, não a deixaria partir.
Não a magoaria, não a faria chorar, porque não havia som melhor do que a
risada dela, ou imagem mais arrebatadora do que o sorriso doce de
Helena.
Suspirei.
— Boa noite, Lena. — Afastei a mão do rosto dela, encolhendo-a no
chão.
 
 
La Vie En Rose permanecera na minha cabeça, e ali estava eu, horas
depois, ainda observando-a dormir. Havia cachos por todos os lados,
embaraçados e espalhados, a boca entreaberta e o fio fino que brilhava no
canto dos lábios dela.
Contive o riso, me amaldiçoando por ter deixado o celular na
mochila, porque ela babando seria uma fonte divertida perfeita para
provocá-la.
Cutuquei sua bochecha macia com a ponta do indicador várias
vezes; ela resmungou com uma careta, passando a mão no rosto e se
virando no chão, a cabeça ainda em minha coxa direita. Peguei uma mecha
de seu cabelo e levei até a ponta do seu nariz, fazendo cócegas ali.
Ela me xingou, reclamando algo em sua língua nativa.
Ri.
— Acorda, princesa adormecida... — Passei a mecha no mesmo
lugar de novo e Lena afastou minha mão com um tapa.
— Só mais cinco minutos...[38]
— Ainda estamos aqui, sabia? — cantarolei, passando a mecha em
meus dedos em sua bochecha, boca e nariz. — E você está deitada no meu
colo.
Ela se sentou imediatamente. Não consegui ver seu rosto, e sim uma
cascata negra de cachos bagunçados que caíam em suas costas. Helena
deveria estar se dando conta, então, do limite que ultrapassara na nossa
amizade repentina no quesito contato físico.
Soltei uma risada baixa, me colocando de pé.
— Sua amiga não veio... — Suspirei, girando e puxando inutilmente
a maçaneta. Helena e eu até gritamos por ajuda em um certo momento, mas
era uma loja localizada em um ponto distante de movimento, pessoas que
moravam ali não nos ouviriam na alta noite. Não era à toa que quase não
tínhamos clientes, mas minha tia insistia em abrir todos os dias, com
exceção de domingo. Mesmo assim... — Será que...
— Ela vai vir... tem que vir... — Helena se encolheu no chão,
abraçando as pernas. — Não vou aguentar muito mais.
Franzi a testa.
— Você...
Helena inclinou o rosto para me encarar.
— Preciso ir no banheiro — cochichou, como se estivesse em uma
sala cheia de gente e não em uma despensa de entulho e Lámen.
— Certo — assenti, circundando o local com os olhos, ignorando o
zumbido. A essa altura, eu deveria estar acostumado com as paredes verdes
de tinta gasta, tão próximas, devia saber que elas não sairiam do lugar. —
Talvez se eu...
Escutei movimento do lado de fora.
Pessoas.
— Essa mochila não é da Lena... — disse a voz feminina.
Meu coração bateu mais rápido, de alívio. Han Ji Ah.
— Será que esse é o endereç...
— Aqui! — gritei contra a porta. — Estamos aqui!
Helena se virou, os olhos mais abertos e surpresos, esperando.
— Ji Ah? — Ela se levantou rapidamente e, no mesmo segundo,
deixou um grito rouco escapar, encolhendo e esticando uma das mãos para
se apoiar na primeira coisa que encontrou: a prateleira.
Corri para ajudar Helena a se manter de pé.
— Seu tornozelo — falei, de olho na porta que se abriu no mesmo
instante.
— Lena?! — A primeira figura entrou, a amiga dela, os olhos
arregalados ao colocar a atenção na jovem apoiada em meu braço. O
espanto e o alívio deram lugar à raiva genuína quando Ji Ah desviou os
olhos negros para mim. — Você.
A coreana atravessou o pequeno espaço, me afastando de Helena
com um empurrão firme e brusco. Então abraçou a colega de quarto,
falando em português o que deveria ser a declaração de uma amiga
preocupada.
— O que aconteceu aqui? — A outra voz masculina interrompeu, e
Son Ho me encarou de cima a baixo, com uma expressão pior do que a da
jovem de cabelos curtos que voltou a me fuzilar.
Aquilo não era um olhar interrogativo, mas sim acusatório. Eles
escutaram o grito de Helena, abriram a porta e logo deduziram...
— Eu estou bem — Lena disse, se afastando da amiga, já
compreendendo os olhares e as deduções, logo explicando tudo. — Que
bom que vocês chegaram. Eu acabei caindo e o Jun veio me ajudar, mas a
porta fechou e nos trancou ontem. Ficamos sem os nossos celulares e
acabamos passando a noite aqui.
Nenhum dos dois recém-chegados pareceu acreditar.
— Por que caiu? — A outra perguntou para a brasileira, me
encarando friamente. Não recuei diante do olhar de nenhum dos dois: a
minha consciência estava limpa e, contanto que Helena soubesse das
minhas intenções, não me importava o resto.
— Eu subi num caixote velho e... — Helena mordeu o lábio e, pela
forma como me olhou e contorceu as pernas, sabia que estava no seu limite.
Mas o vizinho estava ali observando tudo, como um segurança
bloqueando a porta.
Lena corou.
— Podemos discutir isso lá fora? — pedi um tanto impaciente com
o tom de voz que Ji Ah usava, com o olhar que me lançava. — Helena
precisa de um médico. E ir ao banheiro.
— Jun! — Ela ficou mais vermelha.
— O quê? Quer esperar sua amiga terminar de insinuar que tentei
machucar você?
— Eu sabia que tinha alguma coisa estranha nesse acordo de
vocês... ele realmen...
— Oi, Han Ji Ah-shi — a interrompi irritado. — Ajude ela a ir até o
banheiro. Foi uma noite difícil para nós dois e estou com dor de cabeça, se
puder parar de fazer barulho. Eu e ele vamos esperar lá fora.
A jovem piscou com raiva, pronta para abrir a boca e retrucar, mas
Helena puxou a barra da camisa dela, chamando sua atenção. Elas
conversaram em português de novo e, depois de bufar, Ji Ah envolveu o
braço na cintura de Helena, me fulminando com os olhos incandescentes
antes de passar por mim.
— Está fedendo ao perfume desse idiota — comentou para Lena,
que usava minha jaqueta.
— Que bom. — Bufou a outra, resmungando. — Eu gosto do
perfume dele.
 
 
Park Son Ho, ao contrário da amiga temperamental, me perguntou
calmamente o que havia acontecido, como Helena se machucara.
Obviamente a pergunta que realmente importava para ele estava na ponta da
língua, mas o jovem parecia ponderar se deveria fazê-la ou não.
O que aconteceu entre vocês dois lá dentro? Era o que eu via em
seus olhos escuros, mas acreditava que ele não questionava por temer a
resposta.
Eu tentei me sentir mal por ele, pela situação em que estava. Son Ho
gostava de Helena, Helena dele, mas o cara levara um fora sem explicação
na sexta, e então era obrigado a levantar cedo da cama no domingo para ir
buscar a mulher por quem era apaixonado em uma despensa, com outro.
Inspirei, sentindo que devia pelo menos aquilo a ele: dizer que nada
além de conversa havia acontecido. No entanto, nem cinco minutos depois,
enquanto esperávamos na porta da loja, uma voz estridente gritou do
banheiro:
— Vocês o quê?!
Helena saiu da pequena cabine saltitando de um pé só, fugindo da
amiga com uma cara de quem havia visto um fantasma.
— Helena! Espera!
Son Ho e eu nos apressamos para ajudar Lena, mas a jovem passou
direto, para a rua.
Han Ji Ah atrás, com pura expressão de choque e ódio.
Me apressei em pegar minha mochila e os capacetes no balcão —
tudo estava no lugar em que havia deixado. Son Ho as seguiu e eu
rapidamente tranquei a loja, me juntando ao trio logo em seguida. Helena
segurou meu braço quando me aproximei, e sua amiga acompanhou o gesto
com os olhos afiados e incrédulos.
— Você só pode estar brincando — sibilou com escárnio. — Mal
conhece esse cara!
— Sabe o que é... — Helena engoliu em seco, perto demais, o corpo
perto demais do meu. Ela me encarou com súplica nos olhos castanho-
esverdeados. — Aconteceu. Então, é isso.
Franzi a testa, não entendendo o que estava acontecendo. Son Ho
tinha o mesmo ar questionador no rosto. Falar em português parecia um
hábito entre as duas, e eu achei legal no começo, mas agora, com o olhar de
ambas em mim...
— O que foi? — perguntei.
— Vocês estão namorando? — Ji Ah questionou em coreano,
franzindo a testa e cruzando os braços. Os dedos de Helena afundaram mais
em minha pele.
Mantive o rosto neutro.
— Preciso pedir a sua permissão? — indaguei.
— Responda à pergunta, paparazzi.
Silêncio absoluto. Helena parecia segurar o ar ao meu lado. As
esperanças de Son Ho estavam se desmanchando como castelo de cartas de
baralho e a interrogadora... bem, ela só estava me testando, porque era
evidente que não acreditava no que quer que Helena tenha dito no banheiro.
Afastei as mãos de Helena do meu braço e, por um segundo, a
decepção perpassou aquele rosto aflito e pálido; mas foi rápido, já que
entreguei um dos capacetes para ela e logo meu braço rodeou os seus
ombros de forma íntima e despreocupada.
Eu não podia fazer nada em relação ao vizinho, que assistia a tudo
atentamente, decepcionado, como se o seu time de basquete estivesse
perdendo; não precisei de meio segundo para entender o que Helena estava
me pedindo.
Sorri para ela, encurtando os poucos centímetros que restavam.
— Foi amor à primeira vista — falei, afastando o cacho do rosto
dela. Está tudo bem, eu quis dizer para Lena, vamos fazer isso então. — O
que eu posso fazer?
— Mas ela mal conhece você! — exclamou a megera insuportável.
— Ela me conhece por tempo o suficiente. — Suspirei, realmente
cansado e com todo o corpo dolorido pela última noite. — Agora, já que
esclarecemos isso, posso levar minha namorada para ver um médico? Não
quero que o tornozelo dela piore.
— Só... Não encaixa, Lua. Você não me contou nada! — Ji Ah se
aproximou, segurando a mão da amiga. — Contamos tudo uma para a outra.
Você estava animada para sair com o Son Ho na sexta!
Helena encolheu com a última frase sussurrada em português. O
vizinho ficou mais atento ao notar que seu nome foi pronunciado.
— Eu percebi... que estava balanceada — a brasileira respondeu na
mesma língua, me deixando nervoso. Começaria aulas de português em
breve. — Quando conheci o Jun, foi repentino e eu fiquei... na dúvida.
Então não fui ao encontro, e sim... ver o Jun. Quando cheguei em casa
ontem, você estava dormindo e não deu para contar.
— Está mentindo! Você teve o sábado inteirinho para me...
— Ei, em coreano, por favor! — reclamei. — Ou discutam o
assunto depois.
— Aconteceu — Lena repetiu baixinho.
— Mas...
— Eu não inventaria uma coisa dessas de repente. Então... só aceite.
Gosto dele.
Não deveria ser fácil dizer aquelas coisas na frente do cara de quem
ela gostava. Eu me sentia um intruso ali; raramente ficava desconfortável,
situações como aquela não me incomodavam, mas... Helena não parecia ser
do tipo que mentia naturalmente: a voz dela tremia levemente, como se
fosse chorar a qualquer segundo.
Suportar a pressão... não era a cara dela.
— Vou te levar para o hospital — Tirei o braço ao redor dela para
segurar sua mão, mas Ji Ah o fez primeiro.
— Ela vem com a gente.
Helena ergueu o olhar para o vizinho pela primeira vez.
— Não. — Forçou um sorriso. — Quero ficar com o Jun.
— Ele está cansado — disse a outra, e eu contive o riso ácido. Como
se você se importasse. — A gente te leva e então vamos para casa.
Son Ho parecia incapaz de falar.
— Sabe o que é.... — Lena soltou a mão da colega de quarto e a
envolveu em minha cintura, a cabeça apoiada em meu peito ao me abraçar.
Voltei a mão para o ombro dela; em qualquer outra situação, eu a provocaria
pela proximidade, porém, ela estava nervosa. Não parecia se segurar em
mim para atuar, mas para não desmoronar. — Quero passar mais tempo
com ele.
Ji Ah a olhou incrédula: era visível que sentia o cheiro da mentira na
melhor amiga. Já o vizinho parecia acreditar e sofrer por cada segundo de
atuação.
— Você passou a noite inteira na despensa com ele, Helena!
— E-eu sei, Jiji... é que... que...
— Queremos aproveitar cada minuto — falei, então ergui o queixo
da jovem abraçada a mim, desviando o olhar dela da pessoa que insistia em
confrontá-la para o meu rosto. Continuei, sorrindo levemente. — Estou
preocupado com ela, então faço questão de levá-la.
Não era mentira.
Helena sorriu de volta, mas havia tristeza e culpa em seus olhos
claros. Ela sequer conseguia encarar o amigo desde que ele e Han Ji Ah
apareceram, principalmente agora, depois de declarar aquela mentira sobre
estarmos juntos. Não era difícil para mim fingir, mas para ela era
complicado, sim. Sabia que estava magoando Son Ho ao contar aquelas
coisas e interagir comigo daquela forma.
Eu também sabia que Helena só estava inventando tudo aquilo
porque não queria entregar Ji Ah para o vizinho, o motivo de ela não ter
aparecido no encontro deles na sexta. Lena não queria contar para o amigo
que não poderia ter algo romântico com ele porque a melhor amiga dela o
amava. Não queria expor Ji Ah àquele constrangimento.
Obviamente, a coreana não se lembrava da ligação que fizera à
Helena na sexta, já que continuou me encarando daquele jeito estranho, vez
ou outra lançando um olhar interrogatório para a jovem que eu abraçava.
— Helena — Ji Ah a chamou séria —, posso ter uma palavrinha
com você em particular?
— Não — Lena sussurrou. — Eu estou cansada. Vou com o Jun
Woo. Vocês dois podem... podem ir. Juntos.
— Não quero ser rude...
— Claro que não — retruquei a coreana, murmurando.
— Mas... — Ela me ignorou. — Eu não confio nele nem um pouco.
— Justo. Você não me conhece. — Não desviei o olhar. Eu era
muito bom naquele jogo; só perdia para Raven, minha amiga, porque aquela
espertinha era tão durona quanto eu. — O que me importa é o que a Helena
pensa.
— Helena.
A estudante estremeceu contra o meu peito, erguendo o olhar para Ji
Ah mesmo assim.
— Está me dizendo que gosta mesmo dele?
A jovem assentiu.
— Confia nele?
Confirmou sem hesitar.
— Você...
— Jiji — Lena a interrompeu, parecendo ainda mais cansada —, vá
para casa com o Son Ho. Tive uma noite longa e quero ficar sozinha. Com o
Jun. Não se preocupem comigo, e muito obrigada por virem me ajudar.
— Lena... — Dessa vez foi o cara a se pronunciar.
— Me desculpe — ela disse com um sorriso triste, em um tom de
voz dominado pelo arrependimento. Arrependimento por ter dado um bolo
nele na sexta; arrependimento por ter lhe dado falsas esperanças e
despedaçá-las depois, de repente, da pior forma. — Foi mal mesmo.
Son Ho assentiu, como se também compreendesse aquele tom.
— Vai ficar bem? — ele quis saber.
— Huh.
— Certo. — Ele pousou a mão sobre o ombro de Han Ji Ah, que
ainda analisava. — Vamos.
— Vou te esperar em casa.
Helena meneou positivamente a cabeça e se manteve abraçada a
mim até que os dois amigos entrassem no carro e sumissem.
— Vamos? — perguntei, e ela assentiu.
Andamos em silêncio até a moto, que estava no mesmo lugar em
que a deixara na noite passada. Então, ajudei Helena a subir, colocando o
capacete na cabeça dela e afivelando a trava embaixo de seu queixo.
Quando subi e liguei o motor, ela envolveu os braços em minha
cintura, me abraçando com força, e eu sabia que não era pelo medo de
andar no veículo.
 
“Me diga o que gosta, me diga o que não gosta.
Se eu fosse seu namorado, nunca te deixaria ir,
Manteria você em meus braços, garota, você nunca estaria sozinha.
Posso ser um cavalheiro, qualquer coisa que você quiser.
Se eu fosse seu namorado, eu nunca te deixaria ir.”
Boyfriend — Justin Bieber
 
 
HELENA
 
Fora tão terrivelmente difícil encarar os dois que, mesmo depois de
quase uma hora do ocorrido, eu ainda estava pensando na expressão no
rosto de Son Ho quando abracei o Jun.
“Tem certeza de que você e aquele cara não... Vocês dois são...
próximos?”, ele me perguntara, e eu dissera que o que eu tinha com Jun
nem se comparava ao Son Ho, mas...
Estava tudo tão estranho desde a ligação de Ji Ah. Eu tentei me
convencer de que não era nada demais, porém... Eu era assim. Sensível
assim. E não estava tudo bem. Eu não conseguia olhar para Son Ho sem
visualizar a minha amiga, e não conseguia ver minha amiga sem pensar em
Son Ho.
— Dois sanduíches caprichados. — Jun colocou a embalagem verde
e amarela do lanche diante de mim, com um copo grande de suco.
Agradeci, sentindo o peso incômodo no pé. Eu o torcera; pela forma
como caíra na noite anterior, era de se esperar. O médico disse que se Jun
não tivesse me segurado a tempo, poderia ter sido consideravelmente pior.
Eu teria que deixar o pé imobilizado por uma semana e evitar esforço.
— Obrigada, oppa[39]. — Fiz uma careta ao dizer, irônica.
Jun Woo riu.
— Parece que sou seu namorado, no fim das contas. — O rapaz se
recostou na cadeira, analisando meu rosto como o doutor que me atendera
meia hora antes fizera com o meu pé. — Você vai ficar bem?
— Claro que vou. — Ri, encarando o sanduíche, agradecida por um
alimento de verdade. Depois de uma noite inteira comendo macarrão seco,
eu não compraria Lámen tão cedo. — Pareço frangote, mas sou bem forte
quando quero.
— Sei que sim. — Sorriu com carinho, com... pena. — Mas você
gosta dele.
— Não estava apaixonada. — Suspirei, apoiando os antebraços na
mesa amarela. — De verdade, Jun? Não é isso que está me incomodando.
É...
— É o que você fez ele sentir — completou, e eu o olhei surpresa.
— Você está mal porque sabe que magoá-lo é inevitável.
Pisquei incrédula.
— É... isso.
— Bom... — Jun se inclinou, desembalando o sanduíche para mim e
me oferecendo, com uma expressão de quem sabe de todas as coisas. —
Como alguém que já esteve do outro lado da problemática, te prometo que
ele vai superar.
— Aquela sua amiga te deu um chute na bunda, não é? — Assenti,
compreendendo sua dor.
Jun, sem se sentir ofendido de forma alguma, soltou mais uma
risada, se concentrando no próprio lanche.
— Eu sempre soube que ela estava gostando do Adam, então...
Nunca esperei nada dela.
— Mas e se ela tivesse te dado esperanças? Como eu fiz com o Son
Ho?
— Eu teria lutado por ela. Mas eu sempre sei reconhecer uma
batalha perdida. Ela amava ele bem antes de nos conhecermos.
— Já superou? — Me vi curiosa pela pessoa que conquistara o
coração de Jun, me perguntando como ela seria, se de alguma forma sabia o
que o amigo sentira por ela.
— Há um tempo. — Deu de ombros. — Algumas coisas
aconteceram, e acabei... não pensando mais nisso.
Assenti, finalmente abocanhando um pedaço do pão com carne e
molhos.
— Como seu mais novo amigo-namorado — começou bem-
humorado, me fazendo sorrir —, te dou dois conselhos. Se quiser, claro.
— Vá em frente.
— Seja honesta com Han Ji Ah, converse com ela sobre o que sente.
Se, claro, o que sente pelo seu vizinho for forte o suficiente para arriscar.
Independentemente de querer ou não ficar com ele, apenas tenha uma
conversa sincera com os dois.
Senti minhas sobrancelhas franzirem em uma careta.
— Qual o segundo conselho? — perguntei, porque não estava
pronta para aquela conversa, para ver nenhum dos dois.
— Não compre os meus donuts naquela confeitaria em frente à
praça do nosso bairro. A confeiteira lambe os dedos antes de finalizar os
doces.
Gargalhei.
Era sobre isso. Eu realmente gostava de conversar com ele. As
coisas pareciam tão mais fáceis.
Assenti.
— Pode deixar.
— Ótimo. — Voltou a recostar na cadeira, com um sorriso satisfeito
de quem tinha feito um bom trabalho.
— Vou conversar com eles... — murmurei depois de um tempo
encarando a rua. — Mas não quero nada com o Son Ho. Quero seguir em
frente.
— Então faça isso.
O observei por alguns segundos, as mechas do cabelo comprido um
pouco desgrenhadas, as sombras sutis debaixo dos olhos escuros. Vez ou
outra, o pegava aprumando as costas e girando os ombros e o pescoço.
Apesar do humor descontraído, era visível que Jun estava cansado.
Mesmo assim, ele me ajudara mais cedo, fora comigo até o hospital
e ainda estava cuidando de mim.
— Minha dívida com você só aumenta, não é? — Fiz careta, e Jun
me olhou com a testa franzida, confuso. — Te causei mais problemas. Foi
mal, Jun.
— Aish... Jinjja![40] Odeio isso — bufou, me fazendo encolher na
cadeira, mas ele logo acrescentou, se inclinando um pouco sobre a mesa: —
Você vive se desculpando, Helena. Odeio isso.
— Mas é que...
— Aprenda uma coisa sobre mim, nae gongju — me ofereceu um
sorriso gentil. — Não faço nada contra a minha vontade. Se eu não
quisesse, teria desmentido a história da despensa quando sua amiga
perguntou. Nunca mais me peça desculpas por coisas assim, ouviu?
Assenti, mordendo o lábio, ainda indecisa se ele falava sério.
— E eu já disse — Piscou, com um sorriso maroto na boca bonita.
— Sou incapaz de ficar bravo com você.
Sorri.
— Engraçadinho. — Desviei os olhos para o meu lanche.
— O que devo fazer como o seu namorado de mentira, afinal?
Ah, certo.
— Bom... Nada, acho. — Dei de ombros. — Vou só te usar como
desculpa para não ver o Son Ho e, depois que a maré baixar, eu termino
com você.
— Não acredito! — Colocou a mão no peito, fingindo ofensa. Eu
não tinha reparado até então, mas, à luz do dia, era nítido que havia duas
correntes prateadas no pescoço de Jun. Poderia ser o cordão de
identificação de exército, mas não faria sentido ter dois ali. Desci o olhar
para a camisa, o peito dele, o volume sutil de plaquinhas retangulares sob a
malha. — Mal começamos e já quer me dispensar?
Meus lábios se esticaram.
— Eu tenho que focar na minha carreira de artista.
— Sei... — Estreitou o olhar. — Vamos ver, então, se realmente vai
conseguir terminar com essa belezinha aqui.
Um riso natural e espontâneo deixou minha garganta quando ele fez
uma pose galante, passando a mão nas mechas do cabelo escuro como o
próprio ônix.
— Falando sério agora... — Puxei o ar, me dando conta de que, em
alguns minutos, estaria voltando para o apartamento. Ji Ah, eu a conhecia
bem, estaria esperando na sacada. Provavelmente estava lá agora,
observando o movimento na rua para me ver chegar. — Pode me ajudar a
convencer a Ji Ah de que estamos juntos só por algumas semanas? Só até
essa coisa da ligação passar e eu dizer que perdi o interesse no Son Ho?
Ela se sentiria culpada se eu contasse sobre sexta, não se perdoaria.
Mas eu também não me perdoaria se saísse e namorasse o cara do qual
minha amiga gostava. Mesmo que Son Ho não sentisse o mesmo por Han Ji
Ah, eu não comprometeria minha amizade daquela forma. Já sofrera por um
cara uma vez, e a mão que fora estendida para mim quando estava no fundo
do poço fora a de uma amiga. Eu jamais trocaria minha amizade por alguém
que poderia me ferir da mesma forma que Miguel fizera.
Mesmo que Son Ho fosse incrível, eu não arriscaria magoar minha
amiga daquele jeito.
Maitê e Han Ji Ah eram como duas irmãs para mim; eu não as
trocaria por nada naquele mundo. Faria qualquer coisa por elas, assim como
sabia que elas fariam o mesmo por mim.
— Então... temos que fingir para ela acreditar — ele disse pensativo,
e eu assenti. — Te busco para um jantar na quarta.
— Não precisa. — Ri divertida. — Só...
— Não se preocupe. Vai dar tudo certo.
— Vamos fazer isso mesmo? — insisti. — Porque tenho a sensação
de que é uma má ideia.
— O que de ruim pode acontecer em um falso namoro? Tem medo
de não resistir aos meus encantos, Lena-shi? — provocou o rapaz, mas eu
levei a pergunta a sério, controlando o impulso de correr os olhos para
aquele piercing que me despertava a curiosidade.
Na despensa, por exemplo, eu me perdi na boca dele por alguns
segundos. E tinha a terrível sensação de que Jun sabia o que se passou na
minha cabeça naquela hora.
Não me deixei intimidar e, imitando a postura confiante de Jun
Woo, falei brincalhona:
— Acho que você pode acabar não resistindo aos meus. — Sorri. —
Já te contei que falo um pouco de espanhol? Espera só para ouvir meu
sotaque super sexy. Também sei dançar, sabia? Vai ficar caidinho.
Esperei que ele risse ou fizesse piada disso, mas Jun lentamente
desceu os olhos para a minha boca e um preguiçoso, lindo e significativo
sorriso despontou nos lábios dele.
— Acho que não vai ser necessário.
Engoli em seco.
— Sabe, Jun... vou fingir que não está flertando comigo agora. —
Levei o copo de suco à boca e sorvi um grande gole.
Ele fez o mesmo, ainda estampando aquele sorriso insinuativo no
rosto.
 

 
Jun me ajudou a descer da moto e, como apostado, Ji Ah esperava
ao pé da escada de entrada da recepção. Eu a avistei quando o fotógrafo
virou a esquina da nossa rua, mas minha amiga se manteve ali, avaliando
cada movimento nosso.
Jun Woo também reparou, mas, ao contrário de mim, ele mantinha o
ar descontraído, nada incomodado com o urubu que nos observava de
longe. Ji Ah era bons centímetros mais alta do que eu e tinha um ar
intelectual e fofo ao mesmo tempo. No entanto, quando queria, conseguia
assustar qualquer um.
Não culpava Cha Min por não conseguir chamá-la para sair todo
aquele tempo; minha colega de quarto era intimidadora às vezes.
Ainda com as mãos na minha cintura, Jun lançou um olhar rápido
para a pessoa atrás de mim, do outro lado da rua. Eu permaneci de costas,
evitando o inevitável.
— Ela está encarando a gente, não está? — perguntei nervosa.
— Tenho a leve impressão de que ela me odeia.
— Não liga para isso, ela só está desconfiada, e com razão. Eu
sempre conto tudo para ela, e Ji Ah sabe sobre o nosso acordo. Então é justo
que desconfie da gente.
Jun assentiu, encurtando a distância entre nós dois.
— Então é melhor darmos a ela motivo para acreditar, não acha? —
Inclinou levemente a cabeça, se divertindo, aquele sem-vergonha.
— O que tem em mente? — Ergui uma sobrancelha.
— Hm... Talvez abraçar você? Ou talvez... Um beijo de despedida?
Estreitei o olhar.
— Falei para não brincar assim...
— Mas você cora em uma velocidade impressionante — provocou.
— Namorados coreanos não deveriam demonstrar afeto tão
abertamente em público... — retruquei. — Bom, foi o que eu ouvi.
— Fiquei muito tempo em Boston. Acho que me esqueci de como as
coisas funcionam aqui. Se eu fosse mesmo o seu namorado, te daria um
beijo agora.
De novo, meus olhos seguiram para a argola prateada quando ele
umedeceu os lábios com a ponta da língua e... maldição! Como seria ser
beijada por ele? Os lábios rosados pareciam macios e o piercing ali com
certeza traria um equilíbrio interessante...
— Viu? Você está pensando nisso agora. — Ele se aproximou mais
alguns centímetros.
— Já começou a atuação? — questionei, fitando os olhos cor de
jabuticaba. Tão pretos e redondos e brilhantes. — Ji Ah está assistindo,
preciso saber.
— Eu me esqueci daquela megera até você falar. — Revirou os
olhos.
— Me acha fácil, é por isso que diz essas coisas.
— Enquanto me der corda, eu vou continuar dizendo o que me vier
à cabeça. — Ele passou as costas dos dedos suavemente na lateral do meu
rosto. — Você pediu que eu te ajudasse a convencer sua amiga, só estou
levando a sério o meu trabalho.
Uma parte boba minha gostava daquela atenção, e se perguntou
mesmo se ele era sincero com as cantadas e elogios ou realmente só dizia
aquilo facilmente, por dizer; naquelas circunstâncias, para atuar.
Uma parte boba minha queria que não fosse só atuação, então eu
poderia me sentir mais linda e paparicada, como às vezes eu gostaria.
No fim das contas, o fotógrafo estava me ajudando. Desde o
primeiro momento, fora educado, divertido e compreensivo. Kim Jun Woo
era uma boa pessoa, caso contrário não teria me deixado em casa em
segurança quando extrapolei na bebida. Eu me lembrava daquela noite, das
coisas que ele fizera e dissera e, apesar de brincar, Jun jamais deixou de ser
um cavalheiro. Como na despensa: ele respeitara meu espaço e fora gentil
de todas as formas.
Mesmo que nosso acordo acabasse, mesmo que a brincadeira de
namorado de mentira chegasse ao fim, eu sentia tranquilidade e euforia em
saber que, no fim, terei ganhado um bom amigo.
Impulsionada por aquele sentimento, forcei o pé ileso no asfalto.
Com uma mão, me apoiei em seu peito e aproximei o rosto de Jun do meu,
apenas para depositar um beijo em sua bochecha.
Foi satisfatório me afastar e notar que quem corou, dessa vez, foi
ele.
— Obrigada, Jun. — Sorri, fechando a mão na alça da minha bolsa.
— Por cada dia desde que te conheci.
— Você me beijou, é isso? — Franziu a testa, levando a ponta dos
dedos rodeados de desenhos de espinhos e borboleta ao local em que meus
lábios tocaram.
— Em agradecimento pela sua bondade.
— Acho que não é o suficiente. — Apontou a outra bochecha, e eu
ri.
— Por hoje está bom. — Suspirei, ficando mais séria ao voltar o
olhar para a entrada. Ji Ah parecia um pouco chocada também, como se não
acreditasse na demonstração de afeto e na possibilidade de eu ter dito a
verdade a ela na loja. — Preciso ir.
— Quer que eu te ajude a subir até o seu apartamento?
— Consigo andar.... — Mas então brinquei: — A não ser que me
carregue de cavalinho de novo.
Ele fez careta, pegando o capacete e colocando na cabeça. Apenas
os olhos e o nariz ficaram visíveis.
— Outro dia, quem sabe. Estou meio quebrado hoje.
Por minha causa.
— Foi ma... — Preparei uma mesura de desculpas, mas me calei
quando o jovem estreitou os olhos e me encarou em aviso.
— Te vejo na quarta. — Jun já estava na moto ao dizer, o outro
capacete dependurado em um dos antebraços.
Franzi a testa.
— O que tem na quarta?
Os olhos se encolheram em meia-lua quando ele sorriu.
Kim Jun Woo ligou a moto e, antes de acelerar, disse:
— Nosso primeiro encontro. — Então, fez o retorno na rua e seguiu
para o último prédio.
Eu o observei sumir pelo estacionamento subterrâneo, sabia que era
uma provocação, uma brincadeira, e estava sorrindo quando voltei o rosto
para a construção à minha frente. Mas o sorriso desapareceu quando botei
os olhos na minha amiga, que já se aproximava.
 

 
— Você perdeu o juízo, Helena?! — ela berrou assim que
adentramos o nosso apartamento; completamente sem forças para uma
discussão, segui para o quarto aos pulos. — Acha que eu sou idiota?
— Não quero conversar agora, então...
— Então uma ova! — continuou, me seguindo. — O Son Ho me
contou sobre sexta, você estava animada com o encontro! Que merda
aconteceu?
— Aconteceu que eu percebi que gostava do Jun e não fui.
— Que mentira mais idiota!
— É a verdade. — Peguei a toalha e alguns produtos para lavar o
cabelo, voltando a me arrastar para o banheiro, minha amiga em meu
encalço.
— Lena — Ji Ah me parou, segurando o meu braço —, você está
estranha. Eu te conheço, está escondendo alguma coisa de mim. Aquele
paparazzi te ameaçou ou fez alguma coisa com você na...
— Quero que pare de falar dele assim — ralhei baixinho. Estava
irritada. Pela primeira vez desde que conhecera Han Ji Ah, estava realmente
irritada com ela, e tão terrivelmente confusa.
Detestara a forma como ela falara com Jun mais cedo, e não a
culpava por esperar o pior dos outros ou insinuar que algo ruim poderia ter
acontecido, mas estava... com raiva. Eu quis dizer, quis falar que a culpa de
tudo aquilo estar acontecendo era dela, porque me ligara bêbada na sexta
desabafando sobre quem amava e como sofria por não poder ficar com ele e
afins; estava com raiva porque ela não me contara mais cedo, e inclusive
me incentivara a gostar de alguém inalcançável.
— Onde estava com a cabeça de achar que estava tudo bem fingir
que não amava o seu amigo de infância só porque queria me ver feliz?!
Você disse que ama ele há anos, como pôde realmente pensar que ficaria
tudo bem caso eu namorasse o Son Ho algum dia, Han Ji Ah?!
Eu cogitei dizer aquelas coisas, mas estava com sono, cansada e
com dor de cabeça.
Então, o que realmente falei foi:
— Não me importo se não gosta dele, mas eu confio no Jun Woo.
Não ligo se você acredita ou não em mim, foi o que aconteceu. Nos
aproximamos e ficamos presos em uma despensa uma noite inteira,
conversamos e uma coisa levou à outra e... Sinceramente? — Era a primeira
vez que soava realmente convincente ao mentir. — Quero tentar gostar de
alguém sem pensar tanto. Eu e o Jun estamos juntos, então tente tratar ele
melhor quando se virem de novo.
— Mas...
— Vou tomar banho. — Suspirei, me desvencilhando dela. —
Assunto encerrado.
 
“Vamos jogar Nintendo,
Mesmo que eu sempre perca.
Porque você olha pra TV,
Enquanto eu olho pra você.”
Nothing — Bruno Major
 
 
JUN
 
Estava voltando de um trabalho ali perto naquela quarta quando a vi
mancando morro acima. Helena deveria estar chegando da casa dos
gêmeos; usava uma calça clara bordada com ramos de folhas verdes na
lateral do jeans e um suéter lilás, o tênis no pé direito combinando, como
sempre.
Ela não parecia ter dificuldades para andar, mesmo mancando e
seguindo devagar, mas eu me aproximei mesmo assim e rapidamente a
alcancei, a poucos metros para chegarmos à nossa rua.
— Ei, segura aí — Estendi minha mochila para Lena, que inclinou o
rosto para me encarar. O cabelo estava preso em um rabo de cavalo, mas
estrategicamente duas mechas cacheadas caíam, uma em cada lateral de seu
rosto. Ela sempre fazia isso quando prendia as mechas compridas, fosse em
um coque ou em uma trança. — Cuidado, meu equipamento de trabalho
está aí. É bem caro.
A jovem franziu a testa.
— Ótimo jeito de abordar uma pessoa — zombou, levando a
barrinha de cereal que comia à boca. Antes, porém, disse ironicamente: —
Boa noite, Kim Jun Woo-shi. Como tem passado?
Sorri, e ela pegou a mochila mesmo assim.
— Agora coloca ela. — Indiquei as alças pretas.
— Por quê?
Apenas me agachei, de costas para Helena. Mesmo sem ver seu
rosto, senti o sorriso se formar nos lábios dela.
— Não precisa.
— Anda logo. — Movi os dedos, chamando-a, um sinal para que se
apressasse. Meus braços estavam esticados para trás, prontos para segurá-la
e carregá-la.
Escutei o movimento: Helena passando as alças nos ombros e então
se aproximando. Senti o contato, então os braços dela envolveram meus
ombros e meu pescoço. Um segundo após, ela estava nas minhas costas.
Quando comecei a andar, ajeitando o peso dela em meus braços,
senti a respiração quente com cheiro de chocolate.
— Oi, cavalinho — Lena disse divertida.
— Deveria estar em repouso — a repreendi. — Não faz nem dois
dias que se machucou.
— Eu só torci o pé, vou sobreviver.
— Pode demorar a melhorar se ficar subindo e descendo este morro
todos os dias. Pelo menos aproveita a alta que recebeu.
— Já te contei que meu pai é coronel? — retrucou, o queixo em meu
ombro. — Eu fui criada para a guerra.
Sorri, finalmente virando a esquina da rua de prédios gêmeos. O de
Helena ficava no fim direito da rua; o meu, na direção oposta. Segui para a
direita.
— Pelo que me lembro bem, você me disse que era a mais medrosa
das cinco filhas.
Ela fez um estalo engraçado com a língua, meio resmungando,
vencida.
— Ei, qual é o segundo favor? — perguntou mais alguns segundos
depois. — Você disse que tinha a ver com o seu trabalho, mas não me falou
exatamente o que era.
— Hm... Estava pensando se não quer ser minha modelo.
O corpo em minhas costas retesou, e pude jurar que estremeceu
também, mas Lena tentou soltar uma risada — fraca, ansiosa.
— É isso?
— Huh. — Perguntar diretamente sobre sua reação seria demais,
guardei meus pensamentos para mim.
Ela continuou, mas sua voz a denunciava.
— E qual seria o tema?
— Pensei em uma super-heroína do universo Marvel, o que acha?
— Hm... preferiria algo mais princesa da Disney. Ou uma fada, sei
lá.
Ri, reajustando-a em meus braços e costas outra vez.
Ela não gostava de fotos? Isso explicaria o surto perto da boate,
porque impulsionada pela adrenalina do momento quebrou minha câmera
aquela noite. Mas por quê? Não me lembrava de ver muitas fotos no
apartamento de Helena, nenhuma na verdade, apenas das amigas, família e
plantas.
Um arrepio percorreu a minha espinha ao pensar se o ex da jovem
tinha algo a ver com isso. Se não era apenas uma questão de autoestima,
mas algo ainda pior.
— Vai acontecer um evento de dança em Incheon dia 13 e 14 do
próximo mês, preciso de um assistente. Esse é o segundo favor.
Eu quase pude escutar um suspiro de alívio deixar os lábios dela.
— Dia da semana? — perguntou, voltando a relaxar.
— Sábado e domingo.
— Hm... Eu trabalho em uma loja de penhores no sábado — disse
fingindo seriedade, e eu sorri de novo, começando a sentir as gotículas de
suor se formarem em minha testa sob as mechas que caíam em meus olhos.
Helena poderia ser pequena e magra, mas era pesada, aquela garota. — Vou
ter que ver com o meu chefe se ele me libera para você.
— Ele vai, não se preocupe.
Quando pouco mais que vinte metros nos separavam da escadaria
principal do prédio dela, um jovem esguio com roupas sociais saiu pela
porta dupla de vidro escuro. Helena só faltou se jogar detrás do carro
estacionado pelo qual estávamos passando quando se encolheu mais atrás
de mim, forçando meu corpo para trás.
Park Son Ho.
— Esconde.
— Por que temos que nos esconder? Estamos namorando,
esqueceu? — Tentei brincar, mas ela choramingou, se mexendo para sair
das minhas costas.
Lena o fez, desajeitadamente e reclamando ao pisar primeiro com o
pé machucado de mal jeito. Seguiu arrastando para a árvore mais robusta
daquele lado da rua para se esconder até que o amigo passasse.
Não queria dizer a Helena que o cara nos tinha notado no segundo
seguinte em que o avistamos; apenas a segui, parando de frente à jovem
ofegante recostada na árvore.
— O que foi isso?
— Estou fugindo dele — respondeu baixo, envergonhada, uma das
mãos sobre o joelho esquerdo, a dor estampada em seu rosto também.
— Não vai poder fazer isso para sempre.
— Sei disso. — Desviou o olhar do meu. — Só... não tô pronta
ainda.
Pensei em insistir, dizer que seria melhor enfrentar aquela situação o
quanto antes. Contudo, pelo jeito como ela mordia o lábio inferior e fugia
do que achava ser o meu olhar crítico, achei melhor deixar aquele assunto
de lado.
Suspirei.
— O que acha de uma porção de frango frito? — perguntei,
inclinando um pouco a cabeça, buscando o olhar da minha namorada de
mentira.
— Eu gosto de frango frito — murmurou ela num muxoxo.
Sorri, me virando e agachando outra vez.
— Vamos para o meu apartamento então. — A segurei quando ela
abraçou meu pescoço de novo, erguendo-a nas costas e seguindo para a
direção oposta ao prédio dela. — Vamos distrair essa cabecinha cacheada
com frango, Soju e videogame.
— Você gosta de videogame?
— Huh. Sou ótimo, na verdade.
— Eu também sou — disse orgulhosa, mas mais em tom de
brincadeira.
— É? E qual é o seu jogo favorito?
— Mario Bros.
O sorriso foi inevitável, e agradeci por Son Ho ter aparecido na hora
certa.
HELENA
 
— Helena, espera. — Maitê, do outro lado da tela do meu notebook,
massageou a têmpora e suspirou antes de... — Mas o quê?!
Suspirei, encolhendo no sofá, cobrindo metade do rosto com o
cobertor macio e fofo.
Eu não desceria para a L.O. como de costume naquela sexta. Acabei
aproveitando para ligar para casa e por fim, milagrosamente, conseguir uma
vídeo-chamada com minha amiga. Raramente conseguíamos conciliar os
horários para ligações assim; não deixávamos de nos falar, mas eu estava
cada dia mais corrida com o fim das aulas e ela também tinha suas
ocupações como musicista em NY.
Mas eu precisava dela, de conversar com ela.
Ji Ah e eu não estávamos na nossa melhor fase: eu a ignorara nos
últimos dias, já que minha colega de quarto me enchia de perguntas sobre o
meu novo namorado e como as coisas aconteceram, porque claramente não
acreditava em mim. Ela tinha razão quando dissera que não era do meu
feitio começar a namorar alguém tão de repente, mas achava que, com o
tempo, a história acabaria colando e toda aquela confusão passaria.
Eu não menti para ela quando disse que Jun era um cara incrível e
divertido e me fazia rir. Porém, mentira ao afirmar que eu e o fotógrafo
demos alguns amassos na despensa.
Quando contei toda a bagunça para Maitê, ela me encarou incrédula.
— Faz só duas semanas desde a nossa última ligação, Helena! —
Soltou um riso seco. — Duas semanas! Como pode se meter em tanta
confusão em tão pouco tempo?
— Eu sei... — balbuciei, puxando um fio solto do cobertor lilás.
— Então... o cara que você gostava se declarou para você, Ji Ah
confessou amar o mesmo cara e agora você está namorando um paparazzi?
— É só faz de conta.
Ela riu.
— Claro. Porque isso sempre funciona nos livros que você lê.
— Tá fazendo de novo — retruquei emburrada.
— O quê?
— Falando como se fosse a minha mãe.
— Do jeito que a sua mãe é, ia perguntar o nome do namorado de
mentira e pedir uma foto, então exclamaria o quão fofo ele é e como os
netinhos dela seriam lindos.
Ela conhecia bem a senhora Ferreira.
— O Jun é um cara legal e bem racional, não vai acontecer nada.
— Só estou preocupada com você, Lena. — Suspirou, suavizando a
expressão severa. — Não estou aí caso precise chutar a bunda de alguém.
Ri.
— Eu sei cuidar de mim mesma.
— Fez aulas de Muay Thai, mas sequer consegue matar uma
barata.
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
— O que eu estou tentando dizer é que... — Ela hesitou e ponderou
se deveria falar. Não precisava, eu sabia o que era. Por fim, minha melhor
amiga só disse: — Não quero que se machuque de novo.
— Não vou. — Sorri. — É só por mais alguns dias até essa coisa
com o Son Ho passar.
— Já conversou com ele?
Então...
— Não.
Maitê bufou.
— E não pretende contar a Ji Ah sobre a ligação?
— Não.
— Helena! — ela xingou baixinho. Se estivesse ali comigo, sinto
que receberia um tapa de “acorda!” na nuca. — Isso não vai se resolver
enquanto não colocar as cartas na mesa. Acha mesmo que aquela metida
vai acreditar nessa história do fotógrafo? E, quando você parar de ver o
Jun, acha mesmo que ela não vai te questionar?
— Sobre isso... Não acho que vou parar de ver o Jun. — Mordi o
lábio, hesitando um pouco. — Somos amigos agora.
Uma pausa.
Duas.
— Senhor... — Piscou devagar. — Você gosta dele?
— O quê? — Me mexi desconfortável no sofá. — Não! Só estou
dizendo. O Jun é meu amigo agora, passamos um tempo juntos essa semana
e conversamos muito também.
— Parece que superou bem o Sonho.
— Eu não... — Bufei. — Não te liguei para isso.
Ela assentiu, com aquela expressão que me fazia querer bater nela.
A expressão de “eu sei de tudo”. Eu sei o que está acontecendo.
Como esperado, Tetê se inclinou sobre a mesa no quarto onde estava
e entrelaçou as mãos ali, pura neutralidade e sabedoria ao começar:
— Vou te fazer algumas perguntas, Helena Ferreira, me responda
com sinceridade.
Revirei os olhos.
— Vá em frente.
— Qual é a altura dele?
— Eu...
— Responda.
— Eu sei lá! Talvez um e oitenta.
Maitê assentiu.
— Cabelo?
— Comprido, ondulado, meio liso e bem preto. Tem um corte bem
diferente e... — Parei.
— Estado de humor geral?
— Ele é... engraçado, sorridente e gentil, não parece se estressar
com facilidade.
— Nem se quebrar a câmera profissional dele? — Ela arqueou a
sobrancelha, insinuativa.
— Mais alguma pergunta ou posso desligar?
— Não acabei. — Maitê colocou a mecha loira para trás da orelha,
mantendo a pose profissional, me interrogando como se eu fosse uma
suspeita. — Por algum acaso, ele tem tatuagem?
Apenas mantive o rosto neutro ao assentir, como se não fosse nada
demais.
Ela estava fazendo aquelas perguntas porque conhecia o meu tipo.
Aquela garota insuportavelmente inteligente.
— Qual foi a última vez que vocês conversaram?
Hesitei.
— Er...
— Saiu com ele essa semana?
Ela sabia que sim.
— Não foi nada demais, só fui no apartamento dele algumas vezes,
para... finalidades de trabalho. Vou ajudar ele em um evento.
— Mas o que vocês realmente fizeram? — Cruzou os braços.
Não respondi, desviando o olhar.
— O que vocês realmente fizeram, Helena Ferreira?
— Jogamos Nintendo.
— O quê? Não ouvi.
— Jogamos videogame, ok? — Bufei. — Você é uma chata.
— E você está a fim do seu namorado de mentira.
— Sou uma mulher com hormônios, quer o quê? Que eu ache ele
um ogro? Tenho olhos, uai.
Ela riu.
— Claro. Talvez não precise mentir para a Ji Ah, no fim das contas.
Só toma cuidado com esse tal de Jun, ok?
— Sim, senhora. — Revirei os olhos.
— Mas, Lena... — Minha amiga se inclinou de novo, o rosto mais
perto da tela. — Por mais que eu não vá muito com a cara da sua amiga,
acho melhor você ser honesta com ela.
Jun também me dissera aquilo. Várias vezes.
— E com o Son Ho também.
— Se eu contar para ele o que aconteceu, ele pode culpar a Ji Ah,
Tetê. Os dois são amigos há muito tempo, não quero que isso termine por
minha causa.
— Certo, então apenas peça desculpas. Você tinha aceitado sair
com ele, lembra? Isso aí foi o bastante para iludir o Son Ho. Aí você, do
nada, aparece namorando alguém? Você deve uma justificativa para ele.
— Tem razão.
— Quanto a Ji Ah, ela precisa saber o que fez e o que te disse. É
bom para ela aprender a ser mais responsável e parar de ficar bêbada por
aí, estragando o encontro dos outros.
Dei risada.
— Ela não fez por mal.
— Onde está aquela insuportável, afinal?
— Precisou viajar, a equipe dela está na produção de um novo filme
de fantasia em Jeju.
— Bom, pelo menos você ganhou tempo.
— Huh.
Conversamos por mais alguns minutos, Maitê me contou sobre
como as coisas andavam na faculdade, como estava sendo corrido e, ao
mesmo tempo, como ela adorava morar em NY. Me disse que ainda estava
tentando se adaptar com o desafio de namorar um Idol famoso e superar
algumas fãs que ainda não aceitavam os dois...
Uma parte do fandom adorava a Tetê. Eu sempre enviava um ou
outro edit fofinho que algumas meninas faziam dos dois para a minha
amiga na expectativa de apaziguar aquele temor, mas sabia que não era
fácil. Algumas pessoas que se diziam fãs... bem, algumas delas conseguiam
ser bem cruéis. Eu tentava me convencer de que minha melhor amiga era
boa em ignorar aquilo tudo. Porém, no fundo sabia que ela só queria poder
curtir o Eric em paz.
O cantor até disse que trocaria a carreira pela Tetê sem pensar duas
vezes se ela o quisesse, já que ele não poderia viver sem a musa que
inspirava suas canções.
De fato, as novas composições de Eric pareciam mais vivas e
sinceras desde que ele começara a namorar a Tetê. Antes eu amava, mas
agora as músicas dele tinham cores novas e uma energia ainda mais
inspiradora.
Me faziam desejar viver o amor daquelas letras também.
Maitê me pediu cinco minutos para ir buscar a pizza que pedira, e
então me distraí no celular conferindo algumas promoções na loja virtual da
qual eu sempre comprava qualquer coisa quando recebi uma mensagem de
Jun.
Era uma foto de um casal na praça de alimentação, eles usavam
camisas combinando.
Por algum motivo, sabia o que Jun queria dizer com a foto, e sorri
ao confirmar:
 
JUN (8:30 p.m.): Acha que, se usarmos roupas de casais, a Ji Ah acredita
na gente?
 
LENA (8:30 p.m.): Acho que você está se esforçando demais para quem
vai ser dispensado em alguns dias.
 
JUN (8:30 p.m.): Eu aqui, pensando na minha namorada de mentira, e ela
aí, quebrando o meu coração.
 
Ri.
 
LENA (8:31 p.m.): Está trabalhando?
 
JUN (8:31 p.m.): O chefe da revista em que eu faço bico me pediu para
cobrir a chegada de um cantor. Falta meia hora, então vim lanchar.
 
Ele enviou mais uma foto. O rosto de Jun bem próximo e
estrategicamente ocupando boa parte da tela. Sua boca estava repuxando o
queijo e os olhos pareciam pretos como nunca, encarando a câmera com
uma expressão que dizia “estou cansado demais para estar aqui”.
 
LENA (8:32 p.m.): Ótimo, agora quero pizza.
 
Ele enviou outra foto fazendo beiço.
 
JUN (8:32 p.m.): Só a pizza?
 
Mordi o lábio, comprimindo o sorriso idiota. Ele fazia aquilo com
frequência, e eu me convencia de que era o jeito dele, que Jun não tinha
interesse algum em mim e tudo não passava de uma brincadeira para ele.
Mas pensei no que Maitê disse, no que estava sentindo nos últimos dias.
Eu deveria estar pior.
A Helena que eu conhecia estaria tomando sorvete, às lágrimas pelo
que ocorrera, mas.... eu não estava mal. Apesar de sentir a culpa pela forma
como tratara Son Ho, não senti mais nada.
E eu sabia que era porque Jun fizera um ótimo trabalho em me
distrair nos últimas dias. Aquelas mensagens eram frequentes, todos os dias,
o dia todo. E eu me distraí.
Apesar de fugir de Son Ho sempre que o via e de dar respostas
vagas a Ji Ah, não estava sentindo aquele aperto de sábado. Sinceramente?
Naquele momento, não me importaria se a própria Ji Ah aparecesse
anunciando estar namorando o Son Ho.
Dei zoom na foto que Jun enviou: as mechas um pouco onduladas
caindo na testa; as argolas prateadas na orelha; os lábios que brilhavam pelo
queijo derretido; minha kryptonita bem ali, enfeitando a parte superior
daquela boca desenhada por anjos.
Talvez, se Jun Woo não estivesse comigo o tempo todo, eu ainda
estaria mal por Son Ho, me pegando divagando sobre como poderia ter sido
o nosso encontro, fanficando sobre o nosso namoro, mas... não estava. Duas
semanas depois e eu estava no meu apartamento, encolhida no sofá com o
celular na mão, encarando por tempo demais aquela foto e invejando
demais uma fatia de pizza.
Engoli em seco.
— Voltei! — Maitê surgiu na tela. — Não acredito que paguei trinta
dólares por essa merreca. Só o Eric come isso sozinho!
— Tetê... — chamei distraída, passando a ponta do dedo na tela do
celular, no piercing e lábios umedecidos. Um pensamento recorrente
preencheu a minha mente outra vez. Eu não deveria pensar em tais coisas,
mas... —, o André tinha um piercing, não tinha?
Desviei o olhar da foto de Jun para ver minha amiga. Ela fez careta,
ainda abrindo a caixa de pizza.
— Do nada? — Soprou uma mecha de cabelo dos olhos. — Tinha, e
daí?
— E como era beijar ele? Digo... Com aquela coisa na boca? Não
incomodava? Não machucava ele? — Pensei nisso, se hipoteticamente eu,
um dia, beijasse Jun. E se eu rasgasse a boca dele? Céus, isso seria horrível.
Maitê estreitou os olhos azuis para mim, aproximando o rosto da
tela, me estudando. Um sorriso malicioso emoldurou a boca dela.
— Então o seu fakedate tem um piercing. — Arqueou a sobrancelha.
— O cara não te deu nem uma chance, hein? E agora você está se
perguntando como é beijar ele.
Senti meu rosto esquentar, bloqueando a tela do celular como se o
próprio Jun pudesse me ver agora.
— Deixa para lá.
Ela riu.
— Se está tão curiosa, pega uma argola, coloca no dedo e beija. Vai
ter uma base — zombou, destampando a comida.
Hesitei.
Pensei.
Cogitei.
Então, balancei a cabeça em negativa.
— Não coloque ideias idiotas na minha cabeça — retruquei,
passando a mão no rosto. — Cala a boca.
Maitê gargalhou.
— Você vai fazer isso que eu sei.
— Não vou.
— Depois me diz o que achou. — Deu um sorrisinho. — Ou...
Apenas peça ao bonitinho para te mostrar.
— Cala a boca.
Mais risadas, meu rosto possivelmente tão vermelho quanto os
saltos de Ji Ah jogados no canto da sala. Pensei em me justificar, alegando
que não passava de curiosidade, mas alguém bateu na porta.
— Corre, covarde — cantarolou a voz no computador, e eu fiz
careta para Maitê.
— Vou desligar.
— Conversamos depois. — Acenou. — Ah, e vê se me atualiza
todos os dias. Quero saber onde vai dar essa novela.
Fechei a tela do notebook e me apressei quando a pessoa bateu na
porta outra vez. Não me importei em verificar o pijama — um moletom do
Calcifer que minha irmã me dera antes de me mudar para Coreia, uma calça
confortável azul de bolinhas brancas e pantufas do Sullivan, de Monstros
S.A., que eu orgulhosamente comprara em uma liquidação meses antes.
Apenas segui para a porta, esperando que fosse o sushi que pedira mais
cedo.
Mas não era.
— Oi. Está ocupada?
Congelei.
— Son Ho.
 
 
Encolhi no sofá, contorcendo as mãos na barra do moletom
enquanto encarava qualquer ponto da sala que não o meu vizinho.
O que eu diria? Me desculpe por não ter aparecido no encontro? Me
desculpa te fazer acreditar que também queria o mesmo? Como eu me
justificava sem colocar Ji Ah na conversa?
— Você fez a sua escolha — Son Ho começou e, por um segundo, o
ar pareceu parar de circular. Era difícil respirar. Ele me odiava, não é? E
com razão, eu... —, e está tudo bem.
Ergui o rosto para encarar o dele.
Estudei o meio sorriso, o rosto tranquilo. O jovem usava roupas de
corrida, o cabelo castanho úmido, caindo na testa.
— Não está bravo comigo? — perguntei baixo e incerta.
— Por? Você não me deve nada, Helena. Eu me declarei para você,
não o contrário.
— Mas... — Balancei a cabeça. — Mesmo assim...
— Não quero que fuja de mim toda vez que me vê no corredor,
Lena. — Ele suspirou. — Não quero perder uma amiga.
— Me desculpa.
— Pare de se desculpar. — Son Ho apertou levemente minha mão
sobre o estofado cinza. — Só... não me afaste assim, ok? Finja... finja que
eu não disse nada para você naquele dia.
Eu não queria mentir. Não queria... que nada daquilo tivesse
acontecido.
Pensei em me justificar, dizer qualquer coisa para aliviar a tensão,
mas não consegui pensar em nada coerente. Era bem mais fácil na teoria:
inventar desculpas, mentir para ele, falar o que eu ensaiara sobre toda a
coisa com o Jun, mas... na prática, era tão difícil.
Tentei mesmo assim:
— Não queria magoar você. O Jun... ele...
— Não diga. Foi... difícil o suficiente ver vocês naquela despensa.
Já tive tempo para digerir o que pode ter acontecido com vocês dois.
Me encolhi mais, como se tivesse levado — e eu senti realmente
como se fosse — um tapa no rosto.
Não aconteceu nada. Eu quis dizer, mas... não podia.
— Sinto muito.
— Você gosta mesmo dele? — perguntou, a testa franzida, mas a
expressão tranquila.
Assenti.
— E ele gosta mesmo de você?
Não. Porque aquilo era uma mentira. Jun Woo não era apaixonado
por mim ou algo do tipo.
Mas...
— Huh. — Desviei os olhos para as minhas mãos no colo para
facilitar dizer: — Ele é carinhoso e me respeita.
Son Ho suspirou.
— Certo. Que bom. Você... Você merece alguém que te trate bem.
Apenas meneei a cabeça, concordando, sentindo o aperto de antes
voltar, mas era culpa. Aquele interesse... Sempre que via Son Ho, o rosto
cheio de lágrimas de Ji Ah me vinha à mente.
— Você também merece, Son Ho. — Lancei um sorriso triste pra
ele. — Tenho certeza de que vai encontrar alguém incrível um dia.
Ele assentiu. Mesmo que sorrisse, bem, eu sabia que não estava
bem. Mas... eu não complicaria mais as coisas. Deixaria como estava.
— Estamos bem? — perguntei.
— Huh. — Sorriu.
— Amigos? — Estiquei a mão para segurar a dele e Son Ho o fez,
concordando outra vez.
Senti meu peito se apertar com mais força.
Meu vizinho me encarou por um tempo, como se tivesse mais, como
se quisesse falar mais, demorou um pouco para soltar minha mão e eu
esperei, mas ele me soltou e disse:
— Amigos.
 
“Não consigo me conter, perdi meu autocontrole.
Você não pode mais evitar.
Eu sinto no seu tom e seus olhos não mentem,
Assim como não consigo esconder meu coração palpitante.
Amor, você é a única que estou procurando.”
Baby You Are — Exo
 
 
JUN
 
— Então... esse é o seu filme favorito só por causa... — fiz uma
careta — do Howl?
Helena revirou os olhos, levando a mão ao balde de pipoca.
Estávamos no apartamento dela depois que eu deixara a revista e a
encontrara na loja de conveniências. A amiga ainda estava fora viajando e
Lena acabou me convidando para uma noite de filmes com ela.
Cha Min teria que pedir comida de novo, mas não retrucou quando
anunciei que não chegaria cedo.
— Não só por causa dele, ok? Os filmes da Chibli são... mágicos!
Toda arte gráfica, as músicas, os personagens... — Ela se mexeu no sofá,
virando para me encarar. — Pode ser coisa minha, mas a Sophie sempre
ficava mais jovem quando se sentia bem com ela mesma. Ficava... mais
bonita. Para mim, tem uma mensagem sobre se aceitar. Viu a forma como o
Howl olha para ela? Ele sempre a viu como ela realmente é.
— Howl. — Bufei. — O cara é um bebê chorão! Todo deprimido
porque ficou ruivo. Cara, é só pintar!
— Ninguém é perfeito — retrucou a jovem com um bico.
— Confessa que se apaixonou por ele só porque Howl é um mago
bonito.
— Quando você for um mago bonito como ele, eu me apaixono por
você. Ele é tão lindo! — Suspirou. Então, pegou o celular jogado no
estofado cinza ao seu lado. A tela iluminou seu rosto e, depois de alguns
segundos, ela virou o aparelho para mim. — Olha essa fanart. Me diz se
não é lindo.
— Irresistível — debochei, levando um punhado de pipoca à boca.
Helena fez uma careta para mim.
— No meu casamento, quero dançar Merry Go Round of Life com o
meu noivo. Será que eu deveria fazer um casamento com esse tema? —
disse, ainda encarando as fanarts no celular com um sorriso esperançoso.
Eu contive a vontade de pedir que ela permanecesse daquele jeito para que
eu tirasse uma foto.
Helena usava roupas confortáveis, moletom e as meias de
dinossauro que gostava. O cabelo fora preso no alto da cabeça em um
coque, e ela propositalmente deixara dois cachos caindo na lateral do rosto,
um de cada lado.
Linda.
Tão indiscutivelmente linda.
Apoiei o rosto no encosto do sofá, e ela só se deu conta de que eu a
observava minutos depois, quando voltou a atenção para o balde de pipocas
e encontrou o meu olhar.
— O quê? — quis saber.
— Estou pensando.
— Em?
— Parece que te conheço há anos.
Lena sorriu, apoiando a cabeça no sofá ao me encarar.
— Também acho.
— Não, é sério, Lena. Sinto que sei tudo sobre você.
— Sinto que sabe mais de mim do que eu sei sobre você. — Ficou
pensativa. — Já reparou que eu sou quem fala mais?
— Você sabe muito sobre mim também.
— O básico! Você sabe até que perdi um dia inteiro de aula porque
fiz xixi na calça e fiquei escondida chorando de vergonha no banheiro até o
sinal tocar.
Ri, sempre compadecido da pequena Lena de sete anos.
— Já te contei muito sobre mim também.
— Quer me testar? — perguntou, arqueando a sobrancelha.
— Claro. Se acertar a maioria, me deve um donut bem recheado de
chocolate. Vou provar que você me conhece bem.
— E se estiver errado... hm... quero aqueles kimpabs caseiros que
fez para mim naquele dia.
— Fechado. Não erre de propósito. — Abracei a almofada. Helena
estava com os olhos atentos em mim, o rosto a pouco mais de trinta
centímetros do meu. Então comecei: — Minha comida favorita.
— Tteokbokki.
Sorri.
— Mas se eu pudesse passar o resto da vida com apenas um
alimento seria...
— Donut recheado com creme de chocolate.
— Muito bem... — assenti orgulhoso. — Nome do primeiro
cachorro que eu tive.
— Rex.
— O que faço no tempo livre para desestressar?
Helena levantou a guarda e deu alguns socos no ar.
— Você luta boxe.
Assenti, satisfeito por não vê-la hesitar ao responder.
— Desde os...
— Dezesseis anos.
— Meu pior medo?
— Lugares fechados.
— E?
— A Fuga das Galinhas... — Ela revirou os olhos ao dizer.
— Não faça essa cara, esse é um filme horrível. Me sinto mal
porque sempre fico com fome quando vejo.
— Vê se toma jeito, Jun! Você tem vinte e seis! É um filme lindo
sobre liberdade e...
Fiz um gesto de dispensa com a mão e Lena riu alto, levando a mão
cheia de pipocas à boca em seguida.
— Minha cor favorita.
— Preto.
— Tenho uma cicatriz que pouca gente sabe. Onde? — Franzi a
testa, esperando que ela errasse aquela. Era uma bem difícil de lembrar.
Helena me encarou um pouco antes de dizer:
— Na nuca, uma linha fina. Bateu a cabeça em uma pedra quando
escorregou no rio. Não gosta de mar, piscina ou qualquer lugar assim por
causa disso — respondeu com uma expressão orgulhosa, como aluno
tirando a nota total na prova. — Inclusive, não gosta de qualquer lugar que
te exija tirar a camisa.
— Viu? Me conhece bem demais.
— Todas fáceis até agora.
— Certo... Fui para o exército...
— Sete anos atrás.
— Aconteceu uma coisa lá, algo que me causa enjoo até hoje.
— Viu seu superior com diarreia — gargalhou.
— Aquele idiota podia ter fechado a porta. Continuando. O que eu
fui estudar em Boston?
— Administração. Para ajudar o seu pai na empresa.
— Mas eu acabei me formando em...
— Arte e Comunicação. Isso deixou o sr. Kim bem nervoso.
Dei de ombros. Ele acabara me perdoando; depois do que fizera
comigo, não vira motivos para discutir sobre tal coisa.
— Tenho um hobby ultrassecreto, o que é?
Os olhos dela brilharam de empolgação, me fazendo lembrar da
noite em que revelei aquilo para Lena. Pensei que ela zombaria de mim no
começo, mas fora presenteado com um gritinho animado.
Helena se inclinou para mais perto, bem perto, e cobriu a boca com
a mão em concha, apenas por graça. Sussurrou:
— Você é um fanático por dinossauros. E tem fósseis de
colecionador profissional no quarto.
Arqueei a sobrancelha, mostrando que provei meu ponto e que ela
me conhecia bem. Porém, Lena estreitou os olhos para mim, como se
sentisse que eu só revelara aquelas coisas simples sobre a minha vida
porque havia histórias piores e mais sombrias por trás.
Mas ela não perguntou, e estava feliz pela noite tranquila e
descontraída. Não queria arruinar tudo contando o que realmente me feria,
mesmo que Lena o tivesse feito abertamente para mim na despensa.
Meu sorriso convencido morreu aos poucos ao pensar nisso, ao
pensar na data que se aproximava.
— E você? — Arqueou uma sobrancelha, me distraindo do que ela
não sabia, mas entendia que era um assunto delicado. — E o que você sabe
sobre mim, Kim Jun Woo-shi? Deixe-me ver se o eduquei direito.
Talvez Helena não tivesse se dado conta da nossa proximidade, o
suficiente para eu tocar o rosto dela sem precisar esticar a mão caso
quisesse; mas eu estava ciente de cada respiração.
Ainda me lançando aquele olhar desafiador, ela esperou.
— Hm... Deixa eu ver... É apaixonada por plantas. — Apontei para
o apartamento cheio delas, incluindo o quarto da jovem. Ela revirou os
olhos de novo, porque era um fato óbvio. — Perde tempo demais em lojas
virtuais, salvando coisas que quer comprar e não precisa; gosta de assistir
vídeos de bebês fofinhos quando fica triste; é um gatinho assustado com
medo de água...
— Gosto de água e tomo banho todos os dias, senhor Kim, seja mais
específico.
Ri.
— Certo, medo de mar.
— Huh. — Abasteceu-se de mais pipocas. — Minha cor favorita?
— Lilás.
— E?
— Amarelo...
— E?
— Qualquer cor pastel que combine com os seus sentimentos —
falei convencido. — Tem medo de duende e gastura de qualquer
personagem verde demais. Ah, claro: diz que ajudou um Idol a escapar do
próprio show...
— Eu ajudei! — Jogou pipoca em mim, me fazendo rir. — Eu até te
mostrei a foto!
— Tá, tá...
— O que mais?
Pensei um pouco. Eu sentia que já sabia muito sobre ela, então
procurei por informações mais específicas.
— Tinha uma banda com a Sol e sua prima quando era criança.
Helena confirmou com um sorriso melancólico.
— Fez balé quando tinha cinco anos, mas parou quando a Tina foi
embora para os Estados Unidos.
Lena assentiu com um suspiro, ela me dissera o quanto sentia falta
da prima. Fazia anos desde que se viram pela última vez. Valentina, se eu
me recordava bem, até viajara para a Itália e, depois disso, abrira o próprio
estúdio de dança para pessoas especiais em Boston. Tinha a impressão de
que ouvira falar de um lugar assim. Raven fora a uma apresentação de
idosos bailarinos e me falara sobre a bailarina principal ser incrível.
Me arrependia de não ter ido, ou teria uma história para contar para
Helena. Eu gostaria de levá-la a uma apresentação de balé um dia, talvez
assim ela se sentisse mais perto da prima.
— O que mais? Huh? — Helena franziu a testa, bem mais
descontraída e relaxada ao meu lado. Às vezes, me perguntava se não nos
conhecíamos há anos, e não há algumas semanas.
Era fácil estar com ela e passar horas falando sobre qualquer coisa.
Um fato sobre a jovem me veio à mente. Então eu sorri, me
esquecendo dos pensamentos que, eu sabia, me atormentariam em breve,
tentado a provocar Helena mais uma vez.
— Você gosta de caras com piercing.
Helena engasgou com a pipoca, cuspindo um pouco do que tinha
acabado de levar à boca.
Como esperado, as bochechas enfeitadas por algumas sardinhas
começaram a mudar de cor, como tinta aquarela se espalhando em um papel
com água.
— Eu nunca disse isso! — Sua voz saiu mais aguda e envergonhada.
— Algumas coisas não precisam de legenda, é só interpretação. —
Dei de ombros, deliciado com a cor rosada em suas bochechas.
— Tá enganado... — Pigarreou, desviando o olhar. — Acho feio
para caramba. Horroroso!
Mordi o lábio, segurando o riso.
— É mesmo? — Me inclinei um pouco. — Eu deveria tirar então?
— Com certeza — assentiu, muito interessada na bacia de pipocas
que puxou para si.
Me aproximei mais, o que não era exigir muito, já que estávamos
em um sofá minúsculo. Os olhos castanho-esverdeados se voltaram
inconscientemente para os meus lábios, como se houvesse um imã que os
puxasse.
E de fato havia.
Como eu disse, interpretação; naquele segundo, suas íris castanhas
ficaram mais escuras e as pupilas se dilataram.
Sorri.
— Helena... — chamei baixinho, entre divertido a completamente
hipnotizado pela jovem diante de mim no sofá.
Ela estava tão distraída que sequer notou eu me aproximar; estava
tão absorta que não percebeu a mão dela em meu peito, ou a respiração
errante e pesada.
Tão cristalina quanto água.
— Ei... — chamei de novo quando ela não prestou atenção da
primeira vez. Diminuí mais bons centímetros, conseguia sentir a respiração
dela no rosto. — Olhos aqui em cima.
— Huh? — Desviou o olhar para me encarar, completamente aérea.
— Estou errado? — cochichei, levando uma mão ao rosto dela,
afastando aquele cacho teimoso. — Não gosta de caras com piercing?
— É só... — piscou devagar, distraída e rouca — curiosidade.
— É? E sobre o que está curiosa? — Rocei suavemente o nariz no
dela, brincando de pele contra pele, sentindo a dela se arrepiar quando a
toquei de novo.
— Não machuca? — sussurrou, fechando os olhos, permitindo que
eu me inclinasse mais sobre ela.
— Não.
— Não... te incomoda?
— Nenhum pouco — sussurrei de volta, ousando tocar
milimetricamente os lábios dela, roçando levemente a ponta do meu nariz
no dela. — É só isso que quer saber?
Lena não respondeu, e senti meu corpo todo entrar em êxtase
quando a mão apoiada em meu peito subiu para o meu pescoço e, baixinho,
ela deixou escapar o meu nome. Como uma súplica.
Um pedido que eu estava mais do que contente em atender.
Não sabia dizer se o som de coração acelerado partia só do meu ou
também do dela.
Mas eu tinha certeza de que ambos queriam a mesma coisa.
Até que...
Senha... porta destravada e...
— Luaaa, cheguei! — Han Ji Ah.
Não tive tempo de registrar meu descontentamento com a
interrupção. Em um segundo, os meus lábios roçavam os de Helena,
prontos para ela; em outro, a amiga insuportável aparecia. Lena soltou um
grito assustado e me empurrou com toda força para longe, me olhando
surpresa enquanto pipocas voavam para todo lado.
HELENA
 
— Olha só quem tá aqui... — Ji Ah resmungou, jogando as malas
num canto e deixando os sapatos no hall de entrada, colocando suas
pantufas rosas. Talvez ela não se desse conta do que tinha interrompido,
mas meu coração ainda batia fervorosamente no peito. Confuso e ao mesmo
tempo...
Ansioso? Desapontado pela interrupção?
Aquilo... O Jun Woo... ele ia mesmo...
Jun não se deixou intimidar e ficou de pé, colocando sua jaqueta,
que antes estava jogada no tapete. O rapaz não parecia nada afetado pela
proximidade, pelo contato e... Céus! Ele não teria se aproximado tanto se
não tivesse a intenção de...
O frio que eu sentia desapareceu: aquela sala ficou quente demais,
aquele moletom estava me sufocando e com certeza meu rosto pigmentou
com a linha que meus pensamentos seguiram.
Jun sorriu para Han Ji Ah.
— Seja bem-vinda ao lar, Chingu-ya[41]. — Inclinou levemente a
cabeça para o lado. — É sempre bom rever um rosto tão amigável.
O sorriso que minha amiga lançou para ele provavelmente não foi
nada amigável.
— Também adoro ver rato no meu apartamento — disse áspera.
Ele riu.
— Aigoo[42]... Tão adorável nossa Ji Ah. Essa é a minha deixa. — O
fotógrafo se virou para mim, que ainda estava congelada no mesmo lugar, e
se aproximou. Ele se inclinou ao apoiar as duas mãos no encosto do sofá,
cada uma ao lado da minha cabeça. — Te vejo sábado.
— O que está fazendo? — sussurrei.
— Me despedindo de você — Jun sussurrou de volta, e então beijou
minha testa por poucos três segundos.
Três segundos que fizeram meu coração errar no peito e recobrar o
ar oscilante só minutos depois.
— Jalja, nae gongju[43]. — E saiu andando para fora do
apartamento como se não tivesse feito nada demais.
Pisquei atordoada, levando a mão à testa, ainda sentindo o fantasma
do que antes foram lábios macios e uma argola fina de metal.
— Certo. — Ji Ah bufou, ainda parada no mesmo lugar com uma
careta de enjoo. — Agora eu acredito em vocês.
Balancei a cabeça, exasperada.
— Era mentira.
— O quê?
— Eu e ele. A despensa.... — Tentei respirar normalmente, mas meu
coração continuou acelerado e... Eu realmente não fazia ideia do que
aconteceu antes de minha amiga chegar, mas me sentir frustrada pela
interrupção... estava me deixando confusa demais. — O namoro.
Minha pele ainda estava arrepiada, revivendo cada toque e palavras
sussurradas e... o quase beijo. Ele ia mesmo...
Eu queria mesmo...
— O quê?
Encarei Ji Ah, ficando de pé. O ocorrido com o Son Ho e ela parecia
insignificante agora, tudo era insignificante agora. O que eu queria que
tivesse acontecido naquele sofá era bem mais importante do que qualquer
outra coisa.
Comecei a ziguezaguear pelo apartamento enquanto as palavras
transbordavam da minha boca. Contei tudo para minha colega de quarto
parada diante da bancada da cozinha; cada detalhe, incluindo a ligação dela
na sexta, semanas antes, o que eu sentira e como ficara chateada, que a
principio não queria ver ela ou o Son Ho.... Revelei sobre a despensa e a
mentira e o que eu estava sentindo...
Minha amiga estava pálida como um papel, e eu sabia que desataria
a chorar ao pedir desculpas e até se enfiaria no quarto de vergonha, talvez
fugisse de mim por alguns dias. Mas o motivo de eu revelar tudo aquilo não
era fazê-la se sentir mal: eu só precisava dizer.
— Você viu o que quase aconteceu antes de você chegar? —
murmurei mortificada.
Ji Ah ainda estava assombrada com o que eu contei, não se dando
conta do problema maior.
Segurei seus ombros e a chacoalhei.
— Sim, eu deixei de ir no encontro com o Son Ho por sua causa;
sim, eu menti sobre namorar o Jun; e não, a gente não ficou na despensa aos
beijos... — A sacudi de novo. — Entende a confusão em que eu me meti e
que eu... Eu e ele...
— Vocês quase se beijaram agora — ela assentiu, repetindo como
um robô. — Mas o Son Ho...
— Casa com ele se quiser, não é nele que eu estou pensando agora,
Jiji — choraminguei com uma careta enquanto a balançava. — Eu tô
pensando na boca do meu namorado de mentira!
Han Ji Ah, inexpressiva, continuou piscando para o nada;
processando a enxurrada de informação que despejei nela de uma vez só.
Sim, eu fizera drama no começo e o mundo parecera acabar, mas era
insignificante agora...
O que era importante? O sofá, os lábios de Jun encostando nos meus
e toda pipoca que eu teria que limpar do tapete mais tarde.
— O que eu faço?
Ji Ah abriu a boca, lentamente subindo os olhos para os meus, e
então...
Ela desatou a rir.
Rir de verdade.
Rir ao ponto de se agachar no chão e abraçar a barriga, o rosto
vermelho como o batom que usava.
Estava tão desesperada que acabei rindo também.
— Você mentiu para mim. — Ela gargalhou sem ar. — E agora... —
mais risadas — tá fingindo namorar... o cara da câmera!
— Eu tô ferrada. — Ri, porque tudo parecia tão ridículo na minha
cabeça. — Eu...
A risada se transformou em murmúrios preocupados.
— Eu não sei o que tá acontecendo comigo. — Passei a mão no
rosto, prendendo os dedos entre as mechas no alto da cabeça. — O que deu
em mim?
Eu tinha mesmo choramingado o nome de Jun. Choramingado!
Porque ele estava me provocando enquanto eu só queria que... ele me
beijasse logo! E Jun Woo ouvira!
Ji Ah se acalmou, limpando o canto dos olhos.
— Estamos em um livro — assentiu para si mesma. — Caímos em
um livro muito maluco e bom.
A encarei apavorada.
— Ouviu alguma coisa do que eu disse?
— Huh — concordou.
— Entendeu o que está acontecendo?!
— Huh. — Soltou mais uma risada e me lançou um olhar
compadecido. — Você está apaixonada pelo seu namorado de mentira.
 
“E se eu cair no sono eu sei que você será
Aquela que sempre vai me lembrar
De viver o momento.
De viver a minha vida.”
Living In The Moment — Jason Marz
 
 
HELENA
 
Duas coisas que conseguiam me tirar terrivelmente do sério:
1)    Qualquer pessoa gritando comigo por motivo nenhum;
2)    Ser completamente ignorada.
Eu sabia que a razão pela qual minha amiga fugia era porque ela
estava envergonhada e sentia pena de mim e dela mesma, mas sair de casa
mais cedo só para não me ver; fingir que estava dormindo quando me ouvia
chegar; ignorar minhas mensagens e ligações... Ji Ah estava me deixando
maluca.
Que culpa eu tinha, caramba? Aliás, eu não tinha sido a boa amiga
que deu um fora no Son Ho por ela?
Era isso que eu ganhava por ser tão leal?
Tudo bem, ela precisava colocar a cabeça no lugar, um tempo para
espairecer, e eu sabia que as coisas acabariam voltando ao normal. Mas
cinco dias não eram o suficiente?
Mastiguei meu sanduíche com raiva sentada no pátio da faculdade.
Eu até tinha me sujeitado a ir naquele salão de beleza chiquérrimo onde ela
trabalhava e levado Ice Americano para alegrá-la um pouquinho.
Eu nunca colocava os pés naquele lugar!
Só de me lembrar do olhar crítico da recepcionista para mim, como
se eu fosse um alien ou algo do tipo... Tinha cuidadosamente escolhido meu
vestido amarelo com estampas de margaridas e All-Star azul favorito para a
ocasião, toda sorrisos só para melhorar a aura deprimente daquele lugar,
mas a gerente dissera que eu só podia ver Ji Ah com horário marcado.
Observei alguns alunos andando, alguns indo para suas salas, outros
fazendo hora debaixo da árvore. Aumentei o volume da música que tocava
no meu fone, irritada não só com Ji Ah, mas comigo mesma.
Um mês e eu já tinha brigado com um cara na loja de conveniências
por uma caixinha de Pepero — que minha colega de quarto devorara
sozinha — e quebrado a câmera profissional de um paparazzi, vulgo meu
vizinho, vulgo o cara do Pepero. Ficara presa em uma despensa com o
mesmo vizinho/paparazzi, torcera o pé por causa de um Lámen... Agora,
fingira um namoro com esse mesmo cara para afastar o outro.
Passei a mão no rosto, massageando a têmpora.
Tudo tão bagunçado... E ainda tinham... meus sentimentos cada dia
mais conturbados.
E Jun. Ele passara aquela noite assistindo filmes do Studio Chibli
comigo e... fora tão bom. Eu geralmente evitava mostrar aquele lado infantil
meu para qualquer pessoa, me controlava, mas com Jun as coisas pareciam
tão naturais.
Ficamos o sábado passado organizando e limpando a loja da tia dele,
encaixotamos objetos que há anos estavam ali e deixamos à mostra as
coisas novas e mais interessantes que chegaram na última semana... E
rimos. Contamos casos. Nos divertimos.
Eu me divertia tanto com aquele metido sem-vergonha.
E desde de domingo eu não tinha notícias dele.
Jun Woo garantira, em uma mensagem curta e direta, que estava
ocupado com alguns serviços, que sumiria por poucos dias e só.
Eu tentei não me importar: me convenci de que estava tudo bem
com ele e que eu não tinha dito ou feito algo de errado para afastá-lo.
Porém, com o bônus de ser ignorada por Ji Ah, de fugir de Son Ho sempre
que tinha a chance — já que estava claro que ainda havia um clima estranho
entre nós —, fora instintivo querer falar ou ver Jun, mas ele não respondera
na primeira mensagem, dias antes; eu não tentei uma segunda vez.
Fui trabalhar naquela quinta fingindo que não tinha amigos me
evitando. Apenas segui para a casa dos gêmeos, me convencendo de que
estava tudo bem.
Fiz uma prova com eles de tarde e, aproveitando que os pais deles
só chegariam de noite, deixei que eles passassem o resto do dia vendo TV.
Aproveitei para ligar para casa.
Fazia dias desde a última vez que falara com mamãe ou Helen.
Sempre inventava desculpas alegando que estava ocupada demais quando,
na verdade, eu só estava com medo de contar para elas que faria uma prova
em breve e que ela definiria minha estadia permanente em Seul.
Eu precisava dizer logo, mas era uma covarde.
— Mamãe vai ficar muito triste se souber que você ligou no horário
de trabalho dela. — Sol apareceu na tela. Estava no quarto se aprontando
para sair, os cachos compridos caindo nas costas, como raios de sol.
Helen e eu éramos muito parecidas: algumas pessoas até mesmo nos
paravam para perguntar se éramos gêmeas. Apesar da fisionomia quase
idêntica e até mesmo a voz e o corpo semelhantes, minha irmã era um ano
mais velha, os cachos encorpados dela eram loiro-claros; já os meus eram
negros como noite.
Por isso muitos nos chamavam de Sol e Lua.
Éramos almas-gêmeas. Em todos os sentidos possíveis.
Eu sentia falta dela.
— Está tudo bem por aí? — perguntei, sentindo os olhinhos curiosos
dos gêmeos na sala. Eles adoravam me ouvir conversar em português.
— Não. — Ela bufou, parando de abotoar a camisa branca social e se
aproximando da câmera. Aquela safada estava usando o meu sutiã favorito.
Entre outras coisas minhas que escondera antes de eu vir para a Coreia. —
Terminei com o Breno.
— Já não era sem tempo.
— Ai, Lua... ele era um bebê-chorão! Não me deixava em paz por
um segundo e era... Argh! Um mandão ciumento. — Ela esticou o braço e
voltou com ele segurando um dos brincos artesanais que fazíamos como
hobby. Eu não usava, apenas Helen. — Eu sou um pássaro livre, não
adianta. Acredita que ele rasgou meu pôster do The Rose?
— O quê?! — Aquele filho da...
— E o seu do Eric autografado também, foi mal.
— Ele o quê?! — Fiquei de pé, batendo as mãos na mesa,
assustando as crianças na sala. Aquele fora o único pôster que conseguira
salvar das mãos da Tetê! Respirei fundo. — O que você fez com ele?
— O pôster? — Minha irmã olhou para os lados, procurando. — Eu
tentei remendar com fita, mas...
— Com o Breno, aquele idiota?
— Eu dei um tapa na cara dele, porque ele xingou os meus bebês. E
depois falou mal de você também. Entre outras coisas que só botaram mais
fogo na briga. — Suspirou. — Estou cansada disso. De caras idiotas. É
pedir demais um perfeito cavalheiro? Eu tenho tanto amor pra dar, poxa.
— Se for um pouco mais criteriosa com as bocas que vai beijar,
quem sabe?
Ela mostrou a língua para mim.
— E você? Já ficou com aquele gatinho do seu vizinho? Qual é
mesmo o nome dele? Son Woo? Son Go? Son Ho! Não deu em nada?
— Ah — massageei a têmpora de novo, que andava dolorida demais
nos últimos dias —, longa história. História para outro dia. Precisamos
marcar uma reunião de família.
Ela franziu a testa.
— Mamãe disse a mesma coisa ontem.
— Sério?
— Huh. — E um sorrisão iluminou o rosto da minha irmã. — E eu
acho que já sei o que é.
— O quê? — Meu coração começou a bater mais rápido.
Helen encarou as próprias unhas coloridas, cada uma de uma cor.
— Nada é de graça comigo, Luazinha.
— Desembucha, Helen!
Ela fez drama, mas, por estar claramente empolgada demais, não
insistiu no suborno e disse com uma voz eufórica:
— Ela tá namorando! — Cobriu a boca com as mãos.
— Namorando? — Arregalei os olhos. — Com quem?!
— Aí é que está, meu amor... Fiz uma investigação aprofundada dos
fatos, e você não vai acreditar no que eu achei.
— Helen, não estou num dia bom, só fala logo, trem![44]
— Um ano atrás, ela começou a conversar muito com alguém que
só chamava de “o cara das flores”. Ela vivia recebendo flores, de fato, mas
eu não liguei muito para isso porque o pessoal da agência dela vive
mandando mimos para cá. O último cliente trouxe uma caixa enorme
daquele bombom de avelã que você gosta... sabe como esse trem é o olho
da cara...
— Sol, foco.
— Certo. Ela começou a ficar estranha. Sabe que não temos
segredos com ela e nem a mamãe com a gente, mas dessa vez ela escondia
os cartões. E apagava as mensagens para eu não ver nenhuma.
— Suspeito...
— Muito! — O sorriso dela aumentou, e eu temi que a boca da
minha irmã rasgasse. — Mas então as viagens começaram. Eventos em
outro estado.
Outro estado?
— Ela passa o fim de semana fora e nunca posta fotos de evento
nenhum nas redes sociais da agência. Eu perguntei à Carla se ela sabia de
algo, mas ela mentiu na minha cara, aquela megera!
— Por que acha que ela mentiu?
— Disse que eram festas privadas. — Bufou. — Para! A mamãe
sempre faz fofoca para mim dos lugares que ela vai e das pessoas que
conhece. Então eu comecei a verificar a caixa de e-mail dela.
— Para de stalkear a nossa mãe, que feio!
— Feio é ela mentir na minha cara. Não vem ficar do lado dela,
espera eu te contar para onde ela foi nos últimos meses.
Esperei, sentindo o coração escalar um caminho para fora do peito.
— Minas Gerais — cantarolou.
O quê?!
— E não só isso. O papai também veio visitar a gente algumas
vezes. Você sabe que aquele velho preguiçoso detesta sair do sítio,
principalmente pegar um avião.
— Ele foi de avião?
— Huh!
— Você tá dizendo que...
— Os nossos pais estão namorando! — gritou, mas eu notei que
dizer aquilo em voz alta fez sua voz oscilar. E então os olhos verdes da
minha irmã ficaram mais brilhantes. Não demorou para ela começar a
chorar. — Eu tenho certeza, Lua. Eles estão muito estranhos e... o papai tá
usando aquele tom de voz com a mamãe de novo. Ele até fica falando para
mim de vagas de empregos de que sabe em BH. E ontem a mamãe disse que
queria uma reunião familiar. Sabe que só usamos essa expressão em casos
emergenciais.
Como quando anunciei que estudaria na Coreia do Sul.
Senti uma parte do meu mundo celebrar aquela notícia esperada por
tantos anos. A separação dos meus pais me quebrara por muito tempo: ter
que me mudar para São Paulo fora difícil demais. Se não fosse por Maitê e
Sol, as coisas teriam sido piores no começo.
Eu sonhara por tantas vezes com aquele momento, mas...
— Por que não parece feliz? — Sol perguntou.
— Eu... estou feliz.
— Tem alguma coisa nessa voz. Te conheço, Helena.
Eu deveria dizer agora? Para que minha irmã adiantasse para a
minha mãe?
— Quando a mamãe disse que precisávamos fazer uma reunião
familiar... — Engoli em seco — Como ela disse?
— Exultante, Lena. Parecia uma adolescente.
— Acha que ela e o papai...
— Vi fotos de casamento no Pinterest dela... Tudo que ela salvou
parecia mais a cara dela do que de qualquer cliente. Tudo tão rústico,
simples e informal. Tinha até algumas sugestões de mini suculentas com
recadinho fofo para lembrancinha! Se ela não está planejando o casamento
dela, então se prepara que é o seu.
— Eles vão se casar? — Senti meus olhos encherem, finalmente. —
Vão mesmo?
— Nossa mãe adora festas, e eles parecem bem apaixonados.
Sempre pareceram. Nunca... deixaram de se amar.
— Eu sei...
— Helena.
— Oi.
— Por que você quer uma reunião familiar? — A expressão no
rosto dela ficou mais sombria, fazendo Sol parecer mais velha alguns anos,
aquele tom que me fazia parecer uma criança diante da mais adulta.
— Vou fazer uma prova no fim do mês.
— Você sempre se saiu muito bem nessas coisas. É esforçada, vai se
sair...
— E, se eu passar, garanto uma vaga como professora de Inglês na
universidade onde estudo — soltei rouca. Chae Su e Chae Yeong notaram
as lágrimas escorrendo na minha bochecha (se de alegria ou tristeza ainda
não sabia) e se aproximaram sorrateiros, até ficar um de cada lado e
segurarem minhas mãos.
Sorri para eles e falei que estava tudo bem em coreano, mas eles
continuaram ali, na ponta dos pés para ver a responsável por me fazer ficar
daquele jeito.
Helen não se mexeu, ainda absorvendo o que eu tentava dizer.
— Mas não é certo — tentei. — É uma vaga muito concorrida e
uma prova muito difícil. Se eu não passar, vou voltar para casa como
combinado, prometo.
Ela assentiu devagar.
— E se passar...
— Vou ficar.
— Definitivamente?
Hesitei antes de confirmar.
Minha irmã ficou de pé e andou pelo quarto, se distraindo enquanto
terminava de se aprontar para o trabalho. Esperei, porque eu e ela
conhecíamos os nossos limites bem demais. Helen nunca ultrapassava o
meu e eu jamais ultrapassava o dela.
A vi enxugar o rosto algumas vezes, e eu esperei, acariciando as
cabecinhas recostadas em meu colo.
— Noona[45], você tá bem? — o menino perguntou, esticando a
mãozinha para secar minha bochecha.
— Huh. — Sorri. — Essa é a minha unnie[46]. Estou com saudade
dela, por isso estamos chorando.
Falei, ciente da fluência da minha irmã em coreano. Fora ela quem
me apresentara aos doramas e ao K-pop, fora ela quem me arrastara para as
aulas e treinava a pronúncia comigo. Ela me levara para shows e inclusive
conseguira de última hora ingressos para o show do Eric na semana em que
eu almoçara com Miguel. Eu estava tão mal por ter reencontrado com meu
ex, pela confusão que ele me causara e as coisas que ele dissera, então
minha irmã dera um jeitinho de me animar.
Naquela noite, eu não só conhecera o meu cantor favorito como
ajudara Eric a fugir de um tumulto de fãs prontas para puxá-lo pela gola da
camisa se preciso.
Por causa disso, ele encontrara Maitê.
Foram dias incríveis e surreais, e eu sempre agradecia Helen por
isso.
Uma parte minha queria concluir os dois anos e voltar para casa
logo, mas uma maior ainda ansiava a aventura de ficar e aprender mais
sobre a Coreia. Ainda tinha tanto que eu queria saber, lugares que eu queria
visitar, comidas que eu queria experimentar...
— Você está feliz aí? — Helen finalmente apareceu, os olhos
vermelhos, parte dos cachos claros presos no topo da cabeça em um coque
frouxo.
Assenti.
— Sente que... seu sonho está se realizando?
Sorri, fungando em seguida.
— Huh.
— Então eu não vou te fazer se sentir mal por estar vivendo o seu
sonho, Lua. Nem a mamãe, ou até o papai. — Ela se forçou a sorrir quando
me observou por um tempo.
Sol sabia o que se passava na minha cabeça, a culpa que eu estava
sentindo por querer ficar quando os meus pais finalmente decidiram voltar.
Maior do que o sonho de viajar, morar fora, era ver meu pai e minha mãe
juntos de novo. Mesmo assim...
— Lena. Não fica se remoendo, tudo bem? Fica feliz pela notícia,
eles finalmente voltaram. Estão apaixonados de novo. Fique feliz por isso.
— Suspirou minha irmã. — Sobre sua prova; estuda muito e se concentra.
Se for para ser, será. E se você passar, eu vou ficar muito orgulhosa.
Nossos pais também.  Marcamos a reunião para a próxima semana, quando
o papai e a mamãe estiverem aqui. Ok?
— O papai vai me odiar... — choraminguei.
— Não vai. Esses dias ele falou cheio de orgulho para um amigo de
pescaria que a filha estudava no exterior.
— Sério?
— Claro. Mamãe que disse. Ela não mentiria. — Helen puxou o ar,
conferindo o rosto uma última vez. — Vai dar tudo certo, minha Lua. Não
se preocupa. Aproveita cada dia aí. Se tiver que ficar, se você passar, e você
vai, então a gente faz uma vaquinha para você vir para o casamento.
Assenti, relaxando um pouco.
— Obrigada por me apoiar, Sol.
— Tudo por você, Lua. — Tocou a tela. — Amo você hoje e sempre.
— Eu também te amo.
A tela ficou preta e eu precisei de mais alguns minutos para me
recuperar da notícia. Depois de afastar a culpa, como Sol dissera, eu me
permiti visualizar meus pais de noivos, os dois colocando as alianças e
reatando aquela promessa de trinta e cinco anos atrás. Minhas irmãs e seus
maridos ao redor, meus sobrinhos correndo pelo casarão em Minas, sujando
suas roupas de grama e barro, ansiosos pela permissão para entrarem na
piscina.
Ficaria tudo bem. Passando na prova ou não, eu era grata pelo
presente de ver os meus pais juntos de novo.
Pensando nisso, finalmente me permiti abrir um largo sorriso.
 
“Está tudo bem,
conte até três e esqueça.
Apague todas as memórias ruins,
segure minha mão e sorria.”
2! 3! — BTS
 
HELENA
 
JUN [5:20 a.m.]: Você ganhou um dia de folga! Aproveite e descanse ;)
 
Senti aquele aperto incômodo alfinetar meu peito de novo. Havia
alguma coisa errada com o Jun Woo. Ele não... Certo, talvez ele tenha me
acostumado mal, mas, desde o dia em que nos conhecemos oficialmente, o
fotógrafo me mandava mensagem todos os dias, até mesmo me ligava.
Apesar de vez ou outra responder com alguma figurinha e garantir
que só estava ocupado com o trabalho, eu sentia que havia algo errado com
ele nos últimos dias.
Me mexi na cama inquieta.
Deveria estar feliz por ter o sábado de folga, mas não estava. Ele me
fizera gostar de ir à loja de penhores aos sábados: mesmo que Jun Woo
precisasse sair vez ou outra, eu curtia os poucos clientes mais idosos que
apareciam por lá para conversar.
E não era só isso.
 
LENA [6:30 a.m.]: Está tudo bem?
 
Nada. Me levantei e tomei um banho demorado. Ji Ah ainda estava
dormindo.
 
LENA [7:42 a.m.]: Aconteceu alguma coisa? Quer conversar?
 
Mais uma hora se passara.
E outra.
Mais uma.
Nada.
Ele sequer recebera a mensagem.
— Vou atender um elenco que está gravando em Wonju, volto tarde
hoje — Ji Ah disse, já se adiantando para a porta, como fazia sempre desde
que eu contara sobre o Son Ho e a ligação dela. Eu não falei nada.
Não ouvi o som de chaves.
— Você não vai para a loja com o Jun hoje?
— Não.
Passos, então ela estava na frente da TV, bloqueando minha visão do
CEO convencido se declarando apaixonadamente para a secretária Kim.
— Vocês terminaram o namoro de mentira?
Revirei os olhos.
— Já disse que não tínhamos nada, só queria que você acreditasse
em mim para não ficar se culpando pelo Son Ho. — Finalmente, a encarei
com raiva. — Mas não adiantou em nada, né?
— Lua... — Suspirou. — Eu só... Tô com muita vergonha, ok? Eu
pisei na bola.
— Não, não pisou. — Me sentei no sofá. — Eu ia acabar
descobrindo uma hora ou outra, ainda bem que nada chegou a acontecer
entre mim e o Son Ho, ou tudo seria mais difícil. De qualquer forma, agora
eu...
Parei de falar.
— Agora você...?
Não queria pensar no episódio do quase beijo. Ou nas asas de beija-
flor que batiam no meu estômago sempre que lembrava de Jun.
— Eu estou bem. Não sinto mais nada pelo Son Ho.
— Por quê...?
— Porque é minha melhor amiga e eu não faria isso com você. —
Era verdade. Era só isso.
— Não tem nada a ver com um fotógrafo aí... claro que não.
— Isso. Não tem.
Ela se sentia culpada uma ova! Ji Ah se controlava para não sorrir.
— E você não está borocoxô porque foi dispensada pelo Jun. —
Cruzou os braços.
— Não tínhamos nada para ele me dispensar. Ele só... sumiu. Só
estou preocupada com ele.
— Porque gosta dele.
Fechei a cara.
— Você não tinha que ir trabalhar?
— Estou indo, mas... se eu encontrar aquele insuportável na rua... —
ela falou, se afastando em direção à porta outra vez — posso contar para ele
que você colocou um anelzinho no polegar só pra saber como era beijar...
Joguei uma almofada nela, os joelhos no sofá, o rosto quente e
vermelho de vergonha.
— Você disse que não tinha visto!
— Eu digo muitas coisas... — Sorriu maliciosa. — E você está a fim
do Jun.
— Kkeojyeo[47], Han Ji Ah!
Ela gargalhou e fechou a porta atrás de si a tempo de fugir de mais
outra almofadada. Mas então abriu uma fresta suficiente para passar a
cabeça, os cabelos curtos e pretos oscilando.
— Me desculpa — falou apoiada à porta, mais séria. — Por tudo.
Não queria que tivesse sido assim.
— Você não fez por mal. — Suspirei. — Não vamos mais falar
sobre isso.
— Certo.
— Ok.
— Tchau, Chingu-ya[48].
Acenei de volta e ela se foi, me deixando sozinha pelo resto do dia.
Eu não insistira nas mensagens com o Jun, mas, durante toda aquela
tarde, não conseguira não pensar nele. Acabara passando mais tempo do
que deveria revendo as conversas, as fotos idiotas e fofas que ele
mandava... Aquele Jun era tão... alegre.
Poderíamos nos conhecer por poucas semanas, mas eu achava que o
conhecia o suficiente para acreditar na minha intuição de que algo estava
fora do lugar.
Fazia uma semana. Ele estava vago demais e tão... distante.
Não queria me iludir pensando que já tínhamos uma conexão
suficiente para que eu me intrometesse na vida dele assim, mas... Aquela
vozinha insistente na minha cabeça não me deixava em paz.
Olhei o céu escuro lá fora, andando de um lado para o outro na sala,
encarando a sacada como se a resposta fosse estar ali, nas estrelas e na lua
brilhante.
 
LENA [7:42 a.m.]: Aconteceu alguma coisa? Quer conversar?
 
Ele não recebera aquela mensagem... E se alguma coisa de ruim
tivesse acontecido?
Cansada de não ter uma resposta, troquei de roupa e saí.
 

 
Os olhos arredondados se arregalaram quando a porta branca se
abriu, mas não eram eles que eu esperava ver.
— Helena? — Cha Min franziu a testa, mechas descoloridas e
acinzentadas caindo sobre ela. — O Jun Woo não tá aqui.
Eu também havia me aproximado o suficiente de Cha Min nos
últimos dias: ele me derrotara diversas vezes quando jogamos Mortal
Kombat, até decidimos que não usaríamos mais honoríficos um com o
outro, já que não havia necessidade de sermos formais. No entanto, por
algum motivo, ele pareceu nervoso ao me ver.
— Você sabe onde ele está? Não consigo falar com ele.
— Lena... Não acho que é uma boa ideia ver o Jun esses dias.
— Por quê? Ele se transforma a meia-noite ou algo do tipo? —
Tentei brincar, mas Cha Min não riu, ajeitando os óculos na ponte do nariz.
— O que foi?
— Ele não deve ter contado...
— O quê? — Meu coração ficou ainda mais espremido no peito.
— Se ele não disse, então não sou eu que...
— Você vai me contar — ameacei. — Faz uma semana que ele não
aparece e quase não me responde. Estou preocupada.
— Eu sei que está, mas... — Suspirou. — O Jun é bem tranquilo
com muita coisa, Lena, ouso dizer que é o cara mais tranquilo que já
conheci, mas essa é uma semana difícil para ele.
— O que tem?
Cha Min coçou a nuca, incerto sobre me dizer ou não.
— Kang Cha Min!
— Olha... você não pode fazer nada, ok? Só deixa ele em paz por
alguns dias que logo o Jun volta ao normal.
— Está tentando me assustar? Porque está conseguindo.
Nada. Ele não ia me contar.
— Cha Min, jebarl[49]... — Fiquei na ponta dos pés para segurar
seus ombros e sacudi-lo. — Se está preocupado com ele também, não
deveria deixar o Jun sozinho. Só... me diz o que está acontecendo. Por
favor...
Ele suspirou e disse, triste:
— É o aniversário de morte do irmão e da cunhada dele, ok? —
Inspirou. — Ele fica bem ruim quando a data chega, foi... bem feio. Ele não
fala com ninguém, nem comigo e só... some. Então é melhor só deixar o Jun
Woo ficar na dele e...
— Sabe onde ele pode estar? — Meu coração doía, apertado demais.
— Helena...
— Só diz, por favor. — Eu sabia. Sabia que tinha algo errado com o
Jun.
— Ele vai me matar se eu te levar lá.
— Se não me levar, eu te mato primeiro — ameacei. — Eu lido com
o Jun, mas não vou conseguir dormir em paz sem saber se ele está bem.
— Por quê? — Franziu a testa. — Por que se importa tanto com ele?
Abri a boca, então a fechei, repetindo o processo como um peixinho
fora d’água.
Era... confuso. Tudo estava confuso demais.
Mas eu tinha certeza de uma coisa:
— Porque ele é meu amigo. Eu estive no fundo do poço uma vez e
foi uma amiga que me ajudou a sair de lá. — Respirei fundo, visualizando o
sorriso lindo e contagiante de Jun. Visualizando... lágrimas caindo no rosto
dele. Meu coração se comprimia por saber que, onde quer que ele
estivesse... estava sozinho. — Por favor, Min.
O colega de quarto de Jun Woo me encarou por alguns segundos, e
aqueles olhos pretos e levemente repuxados para baixo se estreitaram para
mim, concentrados nos próprios pensamentos. Eu via a preocupação ali
também, via que Cha Min também sentia o mesmo.
Por fim, ele bufou e tirou os headphones vermelhos e pretos do
pescoço, entrando no apartamento apenas para pegar um agasalho e as
chaves.
— Da última vez que me intrometi, ele brigou feio comigo. —
Fechou a porta atrás de si, e eu sorri, apertando de leve o braço dele em
agradecimento. — Vamos ver se ele vai botar você para correr também.
— Não vai.
— Como tem tanta certeza?
— Só tenho. Jun Woo é incapaz de ficar bravo comigo — falei
convicta. — E eu não vou deixar ele sozinho.
 

 
A cidade brilhava distante lá embaixo, como pontos de estrelas no
céu escuro.
Eu não conhecia aquele lugar. Havia muito da cidade que eu não
visitara, na verdade, mas aquele ponto isolado era um esconderijo que
apenas quem morava há muito tempo ali poderia descobrir.
Pegamos um táxi e, vinte minutos depois, descemos em um parque
reservado. Cha Min me acompanhou pela trilha, um caminho de árvores;
percebi que subíamos até o ponto de observação mais alto. Enquanto
andávamos, ele me contou sobre como conhecera o amigo. Os dois eram do
mesmo orfanato. Jun fora adotado pela família Kim aos quatro anos, mas
Cha Min ficara no orfanato até ter idade suficiente para deixar o lugar.
Jun visitara o amigo com o irmão sempre que podia, e os dois
mantiveram contato desde então.
Eu perguntei sobre o acidente do irmão de Jun, mas Cha Min disse
preferir que o próprio Jun Woo me contasse sobre o ocorrido quando
estivesse pronto. Por fim, quando alcançamos o topo, encontramos a figura
solitária em um dos banquinhos de madeira mais afastados.
Vê-lo ali... tão sozinho e pensativo fez meu peito arder. Aquele era
um lado de Jun que eu estava prestes a conhecer e, se ele me deixasse
chegar mais perto, seria um passo considerável na nossa amizade.
Cha Min disse que não ficaria, que queria dar aquele espaço para
nós dois e que esperaria lá embaixo, em uma das barraquinhas pela qual
passamos; qualquer coisa, eu poderia ligar.
Respirei fundo e, depois de um tempo olhando de longe, comecei a
me aproximar devagar, o rosto de Jun ficando cada vez mais nítido.
Ele usava as roupas pretas de sempre, um moletom simples demais
para o frio que fazia ali em cima. Lá embaixo, a cidade brilhava, agitada e
cheia de luz. Ao lado dele, havia duas garrafas de Soju e alguns
bungeopangs intocados.
Quando apertei a sacola de papel da loja de donuts nas mãos, ele
notou minha presença ali, os olhos vermelhos, o cabelo esvoaçando com o
vento que tocava sua pele pálida.
Foi a primeira vez que Jun me olhou daquela forma; nem mesmo
quando quebrei sua câmera ele parecera tão distante, frio e irritado.
Claramente não esperava me ver. Não queria que eu o visse.
— O que está fazendo aqui? — perguntou rouco.
Ergui os donuts, balançando a sacola no ar e forçando um sorriso.
— Eu vim te fazer companhia.
Jun suspirou, voltando o olhar para a cidade abaixo.
— Cha Min está esperando em algum lugar? — perguntou, levando
a garrafa verde em sua mão até os lábios. — Peça a ele para te levar para
casa.
— Não vou a lugar algum.
— Helena... — Fechou os olhos, o maxilar contraindo. — Vá
embora. Não é uma boa hora.
Me aproximei e me sentei na outra ponta do banco, tentando ignorar
a dispensa, o tom seco na voz. Aquele Jun me fazia hesitar.
Mas insisti.
— Vou ficar.
— Helena.
— Não precisa me contar por que está assim, mas vou ficar aqui.
— Não quero que fique. — Jun me encarou sério, os olhos
denunciando o choro e as noites mal dormidas. — Quero que vá embora.
Observei cuidadosamente o rosto dele, iluminado pelo poste atrás de
nós, as sombras que pintavam o lado escondido da luz branca intensificando
aquela seriedade.
Uma fincada aguda despedaçou meu coração ao ver tanta dor ali.
Jun Woo escondia tão bem. Sorria todos os dias para mim e sempre
me fazia rir, mas... era tudo uma máscara. E querer que eu fosse embora
para que eu não visse o quão quebrado ele estava...
— Vai me tirar daqui à força? — desafiei.
— Então fique. — Bufou. — Eu vou.
Se levantou, realmente pronto para ir.
Engoli em seco.
— Vai... me deixar sozinha aqui?
Ele hesitou.
Eu sabia que Jun não fazia por mal e que, se fosse com Cha Min, as
coisas poderiam ser consideravelmente piores. Entendia que ele tentava se
controlar para não ser um babaca, mas eu não podia ir. Não depois de ver o
rosto dele.
Jun Woo ponderou o que fazer por alguns segundos, me encarando
com firmeza, sério, mas eu mantive o mesmo olhar, mostrando que estava
decidida e que não arredaria o pé.
Estiquei o braço e envolvi a mão tatuada por rosas e sakuras com a
minha e a apertei levemente. Como se aquele contato o trouxesse de volta,
ele piscou, tentando inutilmente afastar as lágrimas.
Jun mordeu o lábio, desviando os olhos dos meus.
Doía... doía tanto vê-lo daquele jeito. Eu não imaginava como seria
se um dia perdesse uma de minhas irmãs ou qualquer um da minha família,
mas apenas pensar no assunto me tirava a razão. Eu certamente não
suportaria.
Com cuidado, soltei a mão de Jun e tirei as garrafas do banco.
Depois, guardei os peixinhos de massa dentro da sacola de donuts e
coloquei no chão. Quando o lugar ficou vazio, olhei para ele outra vez: o
fotógrafo se esforçava para se manter no controle.
Dei dois tapinhas no banco e Jun suspirou, sentando ao meu lado.
Não me importava o que estava fazendo ou se alguém veria, o que
pensariam, apenas queria fazer aquilo.
— Put your head on my shoulder[50] — falei para ele, indicando, ao
invés do ombro, o meu colo.
— Lena... — O rapaz soltou um riso fraco, sem graça alguma.
— Deita, Jun. — Indiquei o banco que comportava tranquilamente
nós dois. — Se eu usar a força física e te obrigar, vai ficar estranho. Só...
deita.
Sem energia para retrucar, ele o fez, esticando as pernas compridas
na superfície de madeira, os pés no chão. Então, apoiou a cabeça em meu
colo, encarando meu rosto com aquela seriedade que me deixava inquieta.
Aquele sorriso caloroso, aquele brilho e até mesmo as cantadas idiotas... eu
queria de volta.
Queria o meu amigo de volta.
Sem pedir permissão, afastei as mechas negras do rosto dele, a outra
mão sobre o peito de Jun, tocando as quatro plaquinhas finas e prateadas de
identificação militar — dele e do irmão provavelmente — agora visíveis.
Dei batidinhas constantes, fracas e lentas sobre o coração dele, tentando
acalmá-lo de alguma forma.
— Fiquei preocupada com você — murmurei baixinho, afagando a
cabeça dele. Os olhos de Jun estavam fechados e, vez ou outra, ele engolia
em seco. Engolia a dor. O choro. — Senti sua falta.
Ele não respondeu.
Suspirei.
— Sabe... — comecei, o rosto próximo do dele enquanto passava a
ponta dos dedos nas sobrancelhas escuras, depois seguia para a ponta do
nariz, com carinho. — Não pode ficar flertando comigo o mês todo e me
dar um gelo agora. Está brincando comigo, Kim Jun Woo-shi?
As pálpebras se mexeram, olhos pretos e vazios me encararam.
Jun esticou a mão e tocou a ponta dos dedos na minha bochecha,
afastando um cacho meu que caíra em seu rosto, pousando a mão em meu
antebraço sobre o seu peito.
— O Cha Min te contou sobre o meu irmão? — perguntou tão baixo
que quase não escutei, a voz arranhando, como se não a usasse há dias.
— Huh — assenti, entrelaçando os dedos nas mechas macias de seu
cabelo, afagando sua cabeça. — Não precisa falar se não...
— Foi uma carreta desgovernada — Me interrompeu. Os olhos se
voltaram para o céu acima de nós. — Matou os três na hora.
— Os três...?
Uma lágrima silenciosa escorreu no canto do rosto dele.
— Meu irmão, a esposa... e a filha de três anos.
O mundo se calou por um momento, não consegui reagir enquanto
ele continuava.
— Eu... costumava brincar sozinho no orfanato. Um dia... um dia,
um garoto mais velho apareceu com uma bola nova de basquete e me
desafiou. Eu não conhecia ele, devia ser mais um órfão entrando. Ele era
cinco anos mais velho, eu tinha quatro e ele nove. Mesmo assim, o estranho
não se importou e ficou lá, me ensinando a jogar. Depois de um tempo, um
homem alto e sério chamou ele, e eu percebi que o garoto não era como eu,
aquele era... o pai dele.
— Sr. Kim.
— Huh... — Fungou, os olhos se enchendo. Mas Jun se negou a
derramar outra gota. — Jeong Hwi correu até o adulto de terno preto e disse
com um sorrisão que tinha encontrado o irmão mais novo. Que queria me
levar para casa. Foi o dia mais feliz da minha vida, e o hyung[51] me fazia
sentir em casa, como se eu sempre estivesse lá, como se fôssemos irmãos de
sangue. Ele... — A voz dele embargou, e o rapaz respirou fundo algumas
vezes antes de continuar. Eu permaneci acariciando sua cabeça, ouvindo em
silêncio, me concentrando na respiração de Jun. — Ele sempre me trazia
aqui, uma a duas vezes, toda semana: sempre que saía do trabalho, me
buscava em casa e me trazia aqui e conversávamos. Sobre o nosso pai,
sobre as empresas com as quais ele lideraria um dia, sobre garotas e a
minha maldita puberdade... Tudo. Qualquer coisa. Foi ele e a noona[52] que
me incentivaram a trocar o curso e fazer o que eu realmente queria. Minha
cunhada era apaixonada por fotografia, foi... ela quem me deu aquela
câmera. Foram os meus primeiros clientes — Soltou uma risada triste. —
Eu... fiz uma sessão de fotos com a minha sobrinha para o aniversário de
um ano dela.
Meus próprios olhos ardiam, o coração oscilando no peito, cada vez
mais apertado e dolorido.
— Eu estava em Boston. As coisas estavam muito boas, eu tinha
amigos incríveis, o curso que eu queria... tinha sonhos para a carreira,
planos de viajar e explorar o mundo. — Outra risada sarcástica. — Um
idiota.
Minha mão se fechou em seu moletom.
— Jun...
— Meu pai não me contou — ele me interrompeu, os olhos fixos no
céu, como se vivesse tudo aquilo de novo. — Por meses, Lena. Por meses,
eu fiquei em Boston, vivendo a vida como se tudo estivesse perfeito. Me
divertindo e rindo enquanto meu irmão... Eles estavam mortos.
A lágrima que escorreu em meu rosto encontrou o caminho na
bochecha de Jun, então ele me olhou.
Havia tanta tristeza... e culpa.
— Mentiu para mim porque não queria que eu parasse os estudos.
Porque queria... me poupar. Se não fosse por tia Eh Ji, só Deus sabe quando
o meu pai me contaria. Eu tinha... desconfiado, as mensagens que eu
recebia não pareciam com o hyung. Deveria ter insistido, sentia que havia
algo errado, mas deixei para lá; apenas me convenci de que ele só estava
ocupado demais com as empresas. Eu... me perdi. Quis largar tudo quando
descobri, mas meus amigos me ajudaram, me levantaram. E eu pensei que
estava tudo bem. Voltei para a Coreia e me convenci de que estava tudo
bem... mas não está.
“— Acordo todos os dias me convencendo de que as coisas fazem
sentido, que eu tenho um plano, porém... só fico vagando. Faço serviços
freelancers para revistas de fofoca pensando que é o suficiente, mas... não
era isso o que eu queria. Só acordei para o que estava fazendo quando você
quebrou aquela câmera. Eu perdi parte do mundo que me importava e
acabei me perdendo também e... e... — Fechou os olhos com força. — Não
sei o que fazer. Às vezes, sinto tanta falta deles que fico sem ar, às vezes
subo aqui e fico me perguntando como minha sobrinha estaria agora, com
cinco aninhos, sorrindo para o mundo e iluminando tudo. Só... está doendo.
Muito.”
Prensei os lábios com força, controlando os sentimentos, porque
chorar não o ajudaria, mas... vê-lo assim...
— Eu sinto tanto, Jun... — Envolvi seu peito com o braço,
segurando seu ombro; era o melhor abraço que eu poderia dar a ele naquela
posição. Beijei o topo de sua testa, sentindo o gosto salgado das minhas
próprias lágrimas. — Sinto de verdade.
— Por que está chorando, nae gongju? — meu amigo perguntou
baixinho, com carinho.
— Porque... eu não gosto de ver você assim. — Funguei. Patética,
mas não conseguia evitar. — Queria... poder fazer algo por você.
Foi a primeira vez naquela noite que o vi sorrir. Mesmo que não
mostrasse os dentes e fosse sem vida, era um sorriso.
— Garota teimosa e linda — murmurou. — Já fez o suficiente.
Neguei.
— Você me ajudou, ficou do meu lado e até cuidou de mim, Jun...
Te ver assim...
— Canta para mim.
Resmunguei, limpando o rosto.
— O quê?
— Disse que queria poder fazer algo por mim... — Sua voz falhou
outra vez. — Preciso de um pouco de paz agora e... eu adoro a sua voz.
Então canta para mim como fez na despensa naquele dia.
— E-eu... cantei para você?
Outro sorriso, mais convincente.
— Huh. Cantou.
— Que música?
Ele soltou uma risada fraca.
— La Vie En Rose.
Corei.
— Não acredito que cantei para você. Por que não me disse antes?
— perguntei envergonhada. Quão horrível havia sido? Eu poderia ter feito
qualquer coisa com sono.
— Não achei que fosse fazer diferença.
— É que... eu não canto para qualquer um. — Meus dedos se
fecharam um pouco mais na malha preta sobre o peito de Jun.
— Eu não sou qualquer um. — Fechou os olhos de novo, aquela
sombra de sorriso desaparecendo. — Canta para mim, Helena.
Observei o rosto sereno, a dor que ele escondia, pensei no Jun de
alguns anos atrás, pensei... no momento em que ele soubera a verdade e
quem perdera; as pessoas que mais amava e não teria de volta.
Ele sequer pôde dizer adeus.
Imaginar que Jun poderia estar em um poço mais fundo e mais
escuro do que eu um dia já estivera fez meu peito arder em desespero. Eu
não confessaria em voz alta, mas era fascinada pelo sorriso dele. Não só
porque, no geral, Jun Woo era, sim, muito lindo, mas porque me trazia uma
calma surreal. Porque ele era bom, e gentil, e divertido, e não merecia sofrer
assim.
Ele me apresentara aquele Jun: mesmo que fingisse sorrisos para
ocultar a dor, eu sabia que um dia, antes do acidente do irmão, ele fora
sincero, com aquele brilho genuíno e a alegria que emanava. Não que eu
fosse especial o suficiente, mas, se pudesse ajudá-lo a reconquistar um
pouco da pessoa e dos sonhos que ele fora de alguma forma, bem, eu
tentaria.
Inspirei fundo, recomeçando o carinho na cabeça dele, afastando
mechas, limpando lágrimas silenciosas que escapavam sem que ele
notasse...
Então, cantei.
— When tomorrow comes... I’ll be on my own... Feeling frightened
of the things that I don’t know... When tomorrow comes, when tomorrow
comes...When tomorrow comes...[53] (Quando amanhã chegar eu vou estar
sozinho, sentindo medo das coisas que eu não sei... quando o amanhã
vier....).
Eu não sabia se pessoas tinham chegado no pátio de pedras, se
alguém observava, escutava... Não me importei. Meus olhos estavam presos
no rosto de Jun Woo.
— I got all I need when I got you and I... I look around me and see a
sweet life... I’m stuck in the dark but you’re my flashlight... you’re getting
me, getting me through the night... (Eu tenho tudo que preciso quando tenho
você e eu... Olho ao redor e vejo uma vida doce... Estou preso na escuridão,
mas você é a minha lanterna, me levando, me levando pela noite...).
Ele abriu os olhos e me encarou, porque sabia que não era uma
música aleatória. Eu não estava só cantando. Nesse momento, não ousei
desviar o olhar.
Não quis pensar no que estava sentindo ao cantar, porque aquela
música parecia tão sincera aos olhos de Jun, como se ele sentisse cada
palavra. E o brilho nos olhos dele... Também não quis pensar nisso, no que
estávamos fazendo, no que significávamos um para o outro.
Pela primeira vez em muito tempo, não pensei em nada, apenas
deixei que as palavras fluíssem em forma de melodia para Jun Woo.
Cantei pela noite estrelada, rodeada pela cidade noturna e agitada e
pelas árvores robustas que nos cercavam, nos guardando contra o resto do
mundo.
Nada importou por alguns minutos.
Só os olhos dele fitando os meus.
— I can’t stop my heart when you’re shining in my eyes... Can’t lie,
it’s a sweet life... I’m stuck in the dark but you’re my flashlight.... (Não
consigo parar meu coração quando você está brilhando diante dos meus
olhos... Não posso mentir, é uma vida doce... Estou preso na escuridão, mas
você é minha lanterna...). — Limpei com o polegar as duas lágrimas que
caíram na bochecha de Jun. A mão dele ainda segurava meu outro
antebraço, o polegar acariciando ali também. — Getting me through the
night... (me guiando pela noite...).
Meu coração estava acelerado pela proximidade, mas não me
afastei. Estava beirando o precipício que me apavorava sempre, aquele
mesmo que me deixara assustada quando Son Ho se declarara e eu não
soubera o que fazer... Mas não era o momento para tais questionamentos.
Depois. Eu pensaria sobre o que estava sentindo depois.
— You’re my flashlight... — sussurrei. — Getting me... through the
night... Cause you’re my flashlight...
Estávamos tão perto.
Eu vi tão claro nos olhos dele.
— Está tudo bem — falei baixo, com um meio sorriso. — Não
precisa ficar com vergonha. Você pode chorar, Jun.
E, como se não fizesse aquilo há anos, como se segurasse todo
aquele tempo, a mão em meu braço se contraiu, me segurando mais forte.
Então, Jun Woo finalmente chorou.
 

 
Ficamos ali por horas, e meu peito se contraía a cada soluço. Ele
chorara com tanta dor que temi que desmaiasse em meus braços. Eu jamais
vira um homem como ele chorar tanto, e Jun — ou qualquer outro — nunca
deveria guardar a dor por tanto tempo. Chorar não era para mulheres ou só
para os mais sensíveis e vulneráveis. Era um remédio natural para todos os
submetidos às cargas pesadas da vida.
Trancar as lágrimas no peito é sujeitar o coração a um afogamento
emocional. Meu avô costumava me dizer isso. Ele confessara uma vez que
seu maior arrependimento era ter passado tempo demais da vida tentando
ser durão. Acabara sofrendo mais por isso.
Eu não falei nada, apenas continuei ali, acariciando a cabeça
apoiada em meu colo, permitindo que Jun botasse para fora tudo o que
guardara no coração por um tempo. Permaneci ali, cantarolando baixinho
até que a respiração dele se acalmasse.
Com olhos e nariz vermelhos, pele pálida e um cabelo um pouco
desgrenhado pelo meu carinho e pelo vento da noite, Jun Woo se sentou e,
por fim, ficou de pé. Passou a mão no rosto e tentou recobrar os sentidos
enquanto inspirava o ar que fluía dentre as árvores.
Sei que era avançar um limite, mas eu fiquei de pé também e abracei
sua cintura.
Ele apoiou o queixo na minha cabeça, rodeando os braços em meu
ombro, me abraçando forte.
Ficamos assim por um tempo e eu escutei o coração acelerado no
peito de Jun voltar ao ritmo normal.
— Obrigado — sussurrou, inclinando o rosto para falar em meu
ouvido. — De verdade, Lena.
Sorri, inspirando o cheiro delicioso que emanava da roupa dele.
— Qualquer hora. Sempre.
Ele me apertou um pouco mais, por pouco não me tirando sem
dificuldade do chão. Se eu não estivesse viajando demais; juraria que Jun
não queria me soltar.
Juraria que eu não queria soltá-lo também.
Me dando conta desse sentimento conturbado, me afastei de repente,
recuando um passo e levando as mãos para trás do corpo.
— Sabe... — Pigarreei. — Eu vi uma barraquinha que vende Eomuk
não muito longe daqui — comecei, recobrando a consciência do que fizera
naquela noite, ciente do coração acelerado em meu peito. — Eu nunca comi
sopa de bolo de peixe. Quer vir comigo?
Jun colocou as mãos nos bolsos da calça jeans escura e franziu a
testa.
— Dois anos em Seul e você nunca provou Eomuk?
Dei de ombros.
— Foi tudo muito corrido, não vi ou provei tudo o que queria ainda.
— Percebi que nunca chegara a conversar sobre aquilo com Jun: minha
provável partida da Coreia caso eu não passasse na prova.
Depois.
Eu diria depois.
— Vamos.
— O Cha Min ainda deve estar esperando lá embaixo.
— Ótimo. — Sorriu. — Posso agradecer a ele por me desobedecer,
então.
 
“Eu queria poder
Tirar você da minha mente,
Mas penso em você o tempo todo.”
I Can’t Escape My Mind — Grace VanderWaal
 
 
HELENA
 
Maitê sorriu maliciosamente.
— Então você fez o que eu falei — cantarolou convencida.
— Não.
— Nem tente mentir, Ji Ah me contou.
— O quê?! — Minha voz saiu esganiçada. — Mas vocês duas nem
conversam uma com a outra!
— Quando é para fofocar sobre você, me sacrifico um pouco.
— Sua...
— E então?
Fechei a cara, pronta para retrucar, para desmentir o fato de que me
sujeitara àquela vergonha de ser pega no flagra simulando um beijo com
piercing.
— Eu não sei o que tá acontecendo comigo. — Cobri o rosto com as
duas mãos e choraminguei. — Tudo bem que eu não sou normal, mas... não
sei o que deu em mim, Tetê.
— Tá apaixonada, ué.
Abri uma fresta entre os dedos e encarei a tela do notebook.
— Não estou, não.
— Ah, você está. — Minha amiga balançou a cabeça em afirmação. — Te
conheço, moça.
— Não posso estar apaixonada, Maitê.
— Por quê? — Uma pergunta simples com um leque confuso repleto de
respostas complicadas.
Tentei responder, mas talvez nem eu mesma soubesse explicar. Por que
não? Por que não gostar do Jun? Por que sempre complicar tudo?
Porque eu tinha medo.
Estava com medo de me ferir de novo e, às vezes, me convencia de que
não fora alívio o sentimento experimentado quando encontrei um motivo
para me afastar de Son Ho também.
— Olha só se não é minha fã favorita... — A voz conhecida cantarolou,
e logo o rosto dele apareceu.
Um sorriso se abriu em minha face.
Obrigada, Eric.
— Você já voltou? — perguntei. — Pensei que estivesse em turnê.
— Ganhei alguns dias de folga — respondeu o rapaz, passando os
braços ao redor dos ombros da namorada, abraçando-a por trás e apoiando o
queixo no topo da cabeça dela.
Minha amiga, esperta demais para o próprio bem, estreitou os olhos para
mim. Maitê estava ciente de que eu estava puxando assunto com Eric para
fugir de sua última pergunta. A tentativa foi completamente pelos ares
quando Eric voltou a falar:
— O que está mandando, Lena? Já se declarou para o fotógrafo?
Abri a boca, em choque. Tetê sorriu satisfeita, esticando a mão para o
namorado, que completou o high five com os lábios repuxados também.
— Não acredito que contou pra ele — resmunguei.
— Você sabe que ele é um enxerido. — A jovem deu de ombros. — O
peguei escutando atrás da porta.
— E por que não disse nada? — Minha voz foi afinando, meu rosto
pigmentando e esquentando. Ele ouvira sobre o piercing também? Oh,
céus...
— E perder a novela? Jamais — Eric disse, divertido.
Bufei.
— Vou desligar — retruquei.
— Qual é, vamos conversar! — insistiu o rapaz. — Vai ficar um bom
tempo sem ver esse rostinho lindo de novo.
— Não quero mais ver você. Inclusive, renuncio ao meu cargo do seu fã-
clube.
Ele fingiu mágoa.
— Mas sem você não tem fã-clube, Leninha... — Fez beicinho.
— Eu me esforço tanto pela alegria de vocês... — Bufei. — E, na
primeira oportunidade que têm, vocês tiram onda com a minha cara.
O K-Idol fingiu ofensa.
— Eu jamais faria isso com minha mascote.
— Te amamos, Lena! — Maitê assentiu em concordância.
— Ei, puppy — o cantor virou o rosto da namorada para encarar o dele
—, o que acha de eu colocar um piercing?
Minha amiga sorriu, e eu bufei de novo, completamente aplacada pela
vergonha.
— Agora deu, tchau!
— Não! — Eric riu. — Desculpa, vai.
— Se eu soubesse que você estava escutando, não teria contado nada —
falei, irritada.
— Certo. Me desculpa, Leninha. — Fez bico, mostrando aqueles olhos
de gato de Shrek. — Faz tempo desde a última vez, vamos conversar direito.
Prometo não te irritar mais.
Estreitei os olhos.
— Vamos falar sobre qualquer outra coisa.
— Certo... — relaxei, perdoando-o facilmente porque era meu cantor
favorito.
Mudando o rumo da conversa, mais animada, perguntei:
— Quando vão vir me visitar?
 

 
Quando deixei o prédio naquela manhã, o céu estava feio e cinzento.
Porém, não demorou muito para localizar o motoqueiro parado no lugar de
sempre, esperando naquela moto monstruosa. Mesmo que ele estivesse
usando as roupas pretas, sua figura parecia colorir um pouco o cenário.
O rapaz estava distraído mexendo no celular quando atravessei a rua. Ao
vê-lo erguer o olhar para mim, precisei me esforçar bastante para não deixar
Jun Woo notar o que aquele sorriso em seus lábios fez comigo. Da cabeça
aos pés.
Jun correu os olhos escuros por meu corpo: os coturnos pretos, a calça e
o cropped de mangas compridas da mesma cor, então a máscara preta e o
boné que Ji Ah conseguira para mim.
Ele finalmente me encarou, divertido.
— Estamos indo assaltar um banco? — brincou.
Girei no lugar, apontando o look do dia.
— O quê? — falei, me aproximando mais do rapaz. Ignorei o coração
acelerado, as mãos que ameaçavam suar de nervosismo e o estômago que
revirava. Eu já andara de moto com Jun diversas vezes, abraçava sua
cintura a caminho da loja todos os sábados. Mas... parecia diferente naquele
dia. — Pensei que esse era o uniforme.
Kim Jun Woo, como sempre, segurou minha mão, me puxando para
perto. Então, tirou o boné preto da minha cabeça para colocar o capacete.
Eu podia fazer isso sozinha, mas não contestava porque gostava daquilo.
Gostava quando ele me tocava e me olhava enquanto fechava a fivela do
capacete em meu queixo.
Não me permitia pensar no porquê da sensação. Só fingia que era
normal, que Jun me olhar daquela forma e sempre arrumar uma desculpa
para me tocar era algo comum entre dois amigos.
Ele puxou a máscara preta da minha boca.
— Não vamos espionar ninguém — cochichou, como se fosse um
segredo. — Vamos a um evento de dança, como fotógrafos profissionais.
— Não estraga meu momento. — Me afastei, aceitando a mochila
pesada que o rapaz estendia (os equipamentos dele, provavelmente). A
coloquei nas costas, para só depois subir na garupa e rodear as mãos na
cintura do motoqueiro. — É a primeira vez que visto preto e me sinto
empolgada por isso.
Uma risada antes de o motor ser ligado e aquecido.
— Você é mesmo um hipócrita — resmunguei. — Está de preto também.
— Eu sempre estou de preto, Helena-shi.
— Claro, claro.
Jun virou o rosto sobre o ombro.
— Pronta?
— Huh.
 

 
— Segura aqui — Jun instruiu, os dedos frios tocando os meus, o rosto
perto demais. — Isso. Para dar zoom é aqui, e voltar, aqui. Evite tocar na
lente, já ajustei tudo pra você não precisar se preocupar com isso.
Ele continuou falando, me ensinando o que eu deveria fazer durante o
concurso, quando deveria virar a câmera para o público e quando dar zoom
no palco. Antes não tinha sido problema Jun me mostrar a maneira certa de
montar o suporte. No entanto, no momento em que ele se aproximou para
explicar como aquela câmera funcionava (outro aparelho, um maior e mais
complexo do que aquele que eu quebrara semanas atrás), senti aquelas
coisas estranhas de novo. Não consegui responder nada além de um
resmungo de confirmação enquanto o fotógrafo me explicava tudo.
Eu ficaria responsável pela filmagem. Chegamos duas horas mais cedo
do que o horário no cartaz para que Jun pudesse se organizar e montar o
equipamento no centro do local, onde conseguiríamos ter a visão perfeita do
palco e dos participantes. O rapaz tinha colocado um pequeno palanque
para mim no meio do gramado no qual ficaria a plateia. Já ele andaria pelo
evento registrando as fotos na outra câmera; Jun ficaria mais à frente, com
mais acesso ao palco e a todas as pessoas.
— Não é tão difícil, é?
— Não... — Forcei um sorriso. O público já começava a chegar, os
holofotes já estavam ligados; havia luzes coloridas e conversa por toda
parte. — Eu consigo.
Jun inclinou levemente a cabeça, me observando cuidadosamente.
— Está nervosa?
— Um pouco — confessei, olhando ao redor outra vez, para a distância
do palco até o lugar onde eu estava. — Não pode só... tirar foto daqui?
Perto de mim?
Ele riu, erguendo uma das mãos tatuadas para afastar um cacho do meu
rosto; eram as mechas que não ficaram presas à trança feita antes de sair do
apartamento.
— Se alguém te incomodar, mostre o crachá que te dei. Não vão
implicar. E não se preocupe... — Um dos sorrisos de Jun enfeitou sua boca.
Logo, ele se aproximou, falando em meu ouvido: — Vou ficar de olho em
você a noite toda.
Engoli em seco.
— Certo... — Assenti, desviando o olhar para minha mão na câmera. —
Tá bom.
O canto de seus lábios se esticou mais. Jun buscou no bolso do moletom
o boné simples que eu usava mais cedo e o ajeitou na minha cabeça.
— E se algum cara se aproximar de você... — se agachou para pegar
suas coisas, passando a alça da câmera a ser usada durante o concurso pelo
pescoço, e piscou um olho antes de se afastar — ...diga que estou bem ali, e
que seu namorado pode ser um idiota ciumento quando quer.
Esperei ele se virar e se afastar. Então, antes que eu conseguisse
controlar, sorri.
Devíamos parar com aquela brincadeira, mas meu coração chacoalhava
alegre e bobo quando escutava aquelas duas palavras deixarem a boca de
Jun. E eu estava começando a me acostumar com elas, a esquecer que nosso
namoro era de mentira.
Observei o rapaz caminhar entre as pessoas, ficando cada vez mais longe
até que chegasse ao limite onde as barras de ferro bloqueavam a passagem
de quem não tinha um crachá. Um dos seguranças abriu caminho para o
fotógrafo. Jun agradeceu e foi recebido por um homem que não devia ter
mais de trinta anos. Os dois conversaram animados, e o estranho riu de algo
que Jun Woo disse. Talvez fosse o amigo que conseguira o trabalho para ele
naquele fim de semana.
O desconhecido tinha os cabelos castanhos e usava uma camisa social.
Isso dizia que talvez fosse o coordenador do evento. Quando o homem se
afastou, dando liberdade para que meu amigo fizesse o trabalho dele, Jun
observou a multidão já preenchendo o gramado, procurando. Antes de seus
olhos me localizarem, me voltei para a câmera posicionada à frente,
fingindo estar concentrada demais repassando o que ele me ensinara mais
cedo.
Ignorei as pessoas ao meu redor e o fato de estar um pouco mais alta por
conta do palanque improvisado, no centro de tudo. A atenção não estaria
em mim; eu era só uma moça qualquer que gravaria as apresentações.
Ninguém sequer me notaria ali, não com grupos de K-pop se apresentando e
jovens dançando no palco.
Inspirei fundo, evitando correr os olhos para onde Jun estava outra vez.
Me concentrei na câmera e no evento que já começava. Existiam
pensamentos demais na minha cabeça, mas apenas um era constante: ele.
As mãos tatuadas me tocando, os olhos pretos me observando, os lábios do
rapaz – a parte inferior mais cheia do que a superior – e o piercing nos
meus...
Balancei a cabeça, varrendo as imagens.
Não contaria a Jun que tivera um sonho indecente com ele noite passada,
muito menos diria que vivia imaginando como era ser beijada pelo
fotógrafo. Jun Woo era sempre tão convencido e confiante que, às vezes, eu
pensava como seria: se ele era do tipo carinhoso ou daqueles que te
prensava contra a parede e...
Helena!
Balancei a cabeça de novo. Senti o rosto esquentar.
Encarei o palco, o primeiro grupo da competição de dança. Liguei a
câmera como Jun havia explicado, foquei a lente dela nos rapazes e
dediquei minha atenção à coreografia que eles apresentavam.
Era um grupo de sete meninos, todos novos, na casa dos vinte, talvez.
Não reconhecia a música, mas era boa. A dança era mais complexa de se
executar do que parecia. Um dos jovens, com cabelo azul e camisa aberta,
se soltou mais com os gritos da plateia e sorriu para a câmera.
Acabei sorrindo de volta.
Então o concurso começou, e eu consegui me distrair dos pensamentos
condenatórios por algumas horas, cantar as músicas, me maravilhar com as
coreografias bem executadas... Até localizar o fotógrafo outra vez e me dar
conta de que ele cumpria com sua promessa.
De olho em mim, o tempo todo.
JUN
 
Foi uma tarefa difícil: focar no trabalho. Normalmente, me
considerava bom no que fazia, um profissional, mas foi difícil desviar os
olhos da jovem de preto no centro da plateia. Ela filmava o palco enquanto
estreitava os olhos para a câmera à sua frente e sorria, sempre movendo os
lábios com a música que conhecia.
Em um certo momento, quando o grupo feminino começou a
apresentar uma canção que Lena gostava de cantarolar quando estava
distraída, minha ajudante abriu um sorriso completo e, timidamente, imitou
os gestos simples que sabia. Fiquei preso naquela imagem por minutos
preciosos; seria cobrado mais tarde por não ter capturado o grupo nas fotos,
e sim a moça de boné e roupas pretas que filmava o evento.
Talvez Helena não me xingasse quando percebesse o quão linda
ficara naquelas imagens: ela era o foco, mas havia luzes coloridas e
brilhantes como estrelas a emoldurando por trás.
Os juízes estavam decidindo os cinco grupos finalistas quando senti
alguém cutucar meu braço. Ao me virar, encontrei o sorriso tímido de uma
das staffs que estavam ajudando desde cedo no evento. Me lembrava dela,
tinha olhos grandes e cabelos curtos castanho-avermelhados. Me entregara
uma garrafinha de água uma hora antes.
Sorri quando a jovem não disse nada.
— Alguma coisa errada? — perguntei sob o barulho da plateia.
— Bem... É que eu queria te pedir uma coisa antes de a noite acabar.
— Sou todo ouvidos.
— Você vai estar aqui amanhã? — Franziu a testa com expectativa.
O retorcer das mãos da moça e aquela expressão corada em seu rosto me
diziam o suficiente.
Assenti, erguendo a câmera em minha mão.
— Com certeza.
O sorriso da moça aumentou.
— Acha... que podemos sair? Não sei... — Mordeu o lábio inferior,
nervosa. — Talvez você possa me passar seu número e a gente combina
algo.
Segurei o crachá dependurado no pescoço dela por tempo suficiente
para ler o nome ali.
— Bae Seo Yun... — O canto dos meus lábios se esticou. — É um
nome lindo.
— Ah! — Seo Yun afastou uma mecha do cabelo acobreado do
rosto. — Obrigada.
— E seria uma honra te acompanhar em um tipo de encontro, Seo
Yun-shi. — Apontei para a jovem, que desviou os olhos quando me virei
para a plateia. — Mas não acho que minha namorada vá gostar muito da
ideia.
Seo Yun murchou ao ver Helena, que agora fingia estar interessada
demais no próprio crachá.
Meu sorriso aumentou.
— Você namora, então? — A staff murmurou, sem graça.
Não me sentia nem um pouco culpado. Para mim, a afirmação não
era uma mentira completa.
— Huh. — Confirmei com outro aceno de cabeça, olhando para
Lena outra vez. — E gosto muito dela, então... não posso te passar meu
número.
— Certo... Sinto muito. — A moça se curvou exageradamente, em
um pedido de desculpas.
Eu ri, a impedindo de manter aquilo, apoiando gentilmente a mão
em seu ombro.
— Você não sabia — falei tranquilo. — E está tudo bem.
Seo Yun fez outra reverência, se desculpando antes de sair com as
bochechas pintadas de vermelho pela vergonha. Quando me virei e voltei os
olhos para minha namorada de mentira, a peguei me olhando, demorando
um pouco mais para desviar a atenção para a câmera outra vez.
Eu devia acabar com aquilo.
Não com o que eu sentia por ela, não com a amizade que
construímos nas últimas semanas, mas com o que me fazia manter
escondido o sentimento em meu coração sempre que a via. Sempre que
estava com ela. Não que eu tentasse esconder realmente, mas falar em voz
alta poderia assustá-la, afastá-la de mim.
Eu era um cara paciente, poderia esperar mais um pouco.
Depois de o evento terminar, pessoas se dispersaram para os trailers
de comida do outro lado, nas ruas. Me aproximei de Helena para ajudá-la
com o suporte e as câmeras, guardando tudo cuidadosamente. Ela não disse
nada; apenas mordeu o lábio querendo dizer algo, mas achando que não
deveria.
Lena fazia aquilo com frequência, como se soubesse que poderia se
arrepender de falar no segundo seguinte. Isso também acontecia quando a
jovem mandava séries de áudios e as apagava em seguida, sempre pedindo
desculpas porque se empolgara e, no fim, não era nada demais.
— Apenas diga. — Coloquei a alça da mochila pesada nas costas.
A jovem franziu a testa para mim, então balançou a cabeça.
— Dizer o quê?
— O que está pensando agora.
— Não estou pensando em nada — resmungou Lena, desviando a
atenção para o palco vazio.
— Não mesmo? — Estreitei os olhos.
— Huh. Nadinha.
Contive o sorriso.
— Hum... Parece brava.
— Eu não fico brava — disse, forçando a paciência. — E por que eu
estaria? Foi uma noite ótima.
— É? — Aquilo era... ciúme? — Também gostei. Conheci uma
pessoa, até.
— Que ótimo! — A moça sorriu de um jeito estranho, falso. —
Agora vamos?
— Ela me chamou pra lancharmos agora.
— Que bom. Vai lá. Eu te espero na moto.
Helena nunca agira daquele jeito antes, e eu estava, sim, satisfeito
por vê-la tão irritada.
— Não está com fome? — Tombei levemente a cabeça, não me
dando o trabalho de esconder o divertimento.
A moça, que já começava a andar pelo gramado, parou e inspirou
fundo antes de se virar para mim com outro daqueles sorrisos gentis e
forçados.
— Vamos fazer assim — começou, apontando a fileira de barracas e
trailers mais adiante —: você vai flertar com a garota do staff enquanto eu
fico ali. Quando vocês dois acabarem, me dá um toque e te encontro no
estacionamento.
Coloquei as mãos no bolso da jaqueta, observando o rosto dela.
— Você está com ciúmes, Helena-shi?
Ela riu.
— De você? Claro que não!. — Os olhos castanho se desviaram
para algo atrás de mim, os lábios se esticando outra vez, gentilmente. —
Parece que ela está esperando.
Quando Lena apontou, me virei para trás, surpreso de ver Seo Yun
alguns metros adiante, esperando o momento certo de se aproximar de
novo.
— Bae Seo Yun-shi? — perguntei com a testa franzida.
— Vou estar em uma das barraquinhas — Lena suspirou, indicando
Seo Yun. — Me liga quando acabar.
Quando a chamei, Helena apenas disse que estava tudo bem, com
um sorriso para enfatizar. Então seguiu para a rua movimentada, longe. Foi
quando Seo Yun se aproximou e se desculpou por interromper a conversa.
— O sr. Lim quer falar com você, acredito ser sobre o pagamento.
— Ah. — Lancei um olhar para minha ajudante, gravando sua
localização. — Acha que demora? Posso falar com ele amanhã.
— Ele disse que seria rápido, só alguns minutos.
Suspirei.
Eu mataria aquele idiota se não fosse importante.
Gesticulei com a mão.
— Me mostre o caminho.
 
HELENA
 
Não, eu não estava com ciúmes.
Por que eu estaria? Certo? Éramos apenas amigos. Só porque
fingíamos ser namorados para Ji Ah e Son Ho não significava que Jun não
podia sair com outras pessoas. E obviamente ele sairia, Jun Woo não era do
tipo mocinho recatado que ficava em casa nas sextas à noite.
O próprio Cha Min confessara para mim uma vez que o fotógrafo
era bem festeiro quando morava em Boston, que sabia se divertir muito nos
fins de semana... Conhecer gente nova era uma coisa dele.
Inspirei fundo, sentindo aquele aperto estranho e incômodo no peito
outra vez, aquele capaz de espremer o coração e contorcer a barriga. Não
deveria pensar que era especial só porque ficamos preso em uma despensa
durante uma noite inteira. O fato de Jun me emprestar sua jaqueta e segurar
minha mão não significava que sentia qualquer coisa por mim.
Eu estava ali cumprindo com um acordo, para começo de conversa.
Não porque Jun Woo queria passar mais tempo comigo.
Senti uma mão firme me puxar pelo braço, e então eu estava dentro
da fila de petiscos. Quando ergui o rosto para a pessoa que me tirara do
transe, senti o coração rápido bater um pouco decepcionado.
Não era Jun.
Era o dançarino de cabelo azul-claro que se apresentara primeiro.
Ele sorriu.
— Você ficou parada ali por quase dez minutos — falou,
compreendendo minha expressão confusa. — E parecia perdida. —
Apontou para a barraquinha, para as opções ali. — E com fome. Se importa
se eu pagar algo para você?
— Eu...
O rapaz coçou a nuca, um pouco tímido. O amigo perto dele sorriu
para mim também. O dançarino parecia ser até mais novo do que eu, mas
minha aparência mentia muito também; as pessoas raramente confiavam
que eu tinha mesmo vinte e quatro.
— Você está acompanhada? Não queremos confusão. — Foi o que o
segundo garoto disse.
Não respondi, não depois de me lembrar da staff conversando com
Jun no final do evento, não depois de ele a seguir para os bastidores.
Não, não é ciúme.
— Fotógrafa? — O de cabelo azul balançou a mão em frente ao meu
rosto, chamando atenção. — Você tem nome?
— Helena. — Sorri sem graça. — Me desculpa, estou um pouco
distraída.
— Você estava filmando a gente mais cedo, não estava? — o mais
novo falou, apoiando o braço no ombro do amigo. — O que achou?
— Bem... Foi surpreendente — confessei, dando um passo à frente
quando a fila avançou. — Vocês são muito bons.
— Somos, não somos? — O de covinhas, mais jovem, sorriu
satisfeito. Eles conseguiram avançar para as semifinais; eram belos e
estilosos o suficiente para serem confundidos com os Idols que Ji Ah
atendia no salão. E tinham vozes graves e bonitas também, talvez
cantassem. — A propósito, sou o Lee Tae So.
O outro amigo se apresentou como Jin, e Tae So me perguntou de
qual ano eu era. Balbuciei algo, correndo os olhos pela rua atrás dos dois,
para as pessoas ali, procurando um cara de cabelos pretos compridos com
piercing e tatuagens.
Nada.
— Estamos conversando sozinhos, hyung[54]. — Tae So suspirou,
decepcionado.
— É, parece que sim. — Seong Jin assentiu de forma dramática, e
eu me curvei ao me desculpar.
— Só estou... procurando alguém — murmurei, então apontei para a
senhora de touca branca e máscara que esperava. — É a vez de vocês.
Os dois fizeram o pedido para a senhora, e Jin se virou para mim.
— O que posso pedir pra você, Helena-shi? Cachorro-quente
também?[55] Quer se juntar a nós?
— Seu amigo não está em lugar nenhum — Tae So insistiu. —
Podemos te fazer companhia se qui...
— Aí está você.
Senti duas mãos grandes contornarem minha cintura. O perfume
dele me embalou também e, mesmo que não visse seu rosto, sabia que
esboçava aquele sorriso sem vergonha. Jun falou em meu ouvido, baixo,
mas alto o suficiente para que os dois dançarinos ouvissem:
— Desculpa, me atrasei. Onde você esteve? Te procurei por toda
parte.
Meu coração iniciou uma corrida confusa que beirava a euforia e o
alívio, o nervosismo e a timidez. Tentei ignorar a proximidade, o peito dele
colado às minhas costas, os braços que me rodeavam. Aquele tipo de
demonstração de afeto era comum na América, mas ali, no meio da rua, na
Coreia do Sul...
E ele reproduzira a fala de Howl[56]. De propósito. Para mexer
comigo ou para provocar os dois rapazes que me faziam companhia? Não
importava. Jun Woo sabia o quanto eu adorava aquele filme, aquela cena
principalmente...
Engoli em seco, sem reação.
— Posso ajudar? — Jun perguntou para os dançarinos, que nos
encaravam surpresos e até um tanto desapontados.
Tae So franziu a testa para mim.
— Seu namorado? — quis saber.
Jun inclinou a cabeça, afastando a mecha cacheada do meu rosto
para poder me ver, esperando que eu desse a resposta.
Perto demais. Jun Woo estava perto demais.
A surpresa em meu rosto e a falta de resposta fez uma sobrancelha
de Seong Jin se erguer em dúvida. Ele cruzou os braços sobre o peito.
— Engraçado, ela não disse que tinha namorado.
— Não? — O fotógrafo fingiu ofensa. Ainda atrás de mim, virou
meu rosto sobre o ombro para me encarar. — Como assim não disse que
tinha namorado?
Senti o rosto esquentar ao mesmo tempo do pedaço de pele que Jun
Woo tocava em minha cintura com a outra mão. Tinha me transformado
naquela Helena patética e nervosa de novo, com três caras me encarando. A
senhora da barraca estava irritada e mandava a pessoa de trás passar na
frente, resmungando algo sobre a indecência dos jovens de hoje. Enquanto
isso, o fotógrafo me mantinha presa ao corpo dele.
Jun certamente passara tempo demais em Boston, havia se
esquecido dos limites que não podíamos ultrapassar ali.
Céus...
— E-eu... É que... Bem... — Diga algo, Helena! Meu Deus, apenas
pare de corar!
— Talvez ela tenha cansado de você — Seong Jin supôs,
desconfiado do que aquele showzinho realmente era: uma farsa. — Afinal,
você a deixou sozinha por um tempo.
Jun o ignorou, como se ignora um mosquito zunindo. Então passou
levemente o polegar sobre meu lábio inferior e perguntou:
— Cansou de mim, princesa?
Era difícil respirar. Eu não sentia minhas pernas ou qualquer parte
do corpo.
Foi difícil me obrigar a responder:
— Não...
Os olhos pretos deslizaram para a minha boca, e ele fez aquilo de
umedecer os lábios, parando a pontinha da língua na argola fina em seu
lábio inferior. Jun estava se lixando para a plateia, fazendo tudo para que
vissem.
— Não cansou?
— Huh. — Assenti. Rouca, fraca, perdida naquela boca linda e bem
desenhada por alguns segundos. — Não cansei.
O canto daqueles lábios se esticou e, antes de se virar satisfeito para
os dois rapazes, ele se inclinou e me beijou no rosto, um centímetro muito
perigoso de distância da minha boca.
Então se voltou para os meninos, mais sério.
— Ouviram ela — disse seco, apontando com o queixo para frente,
para a senhora emburrada. — Façam o pedido de vocês.
Quis dizer que eles não estavam me incomodando, que estava tudo
bem, mas continuei encarando o rosto do fotógrafo, tentei decifrar sua
expressão e a voz irritada. Se eu fosse mais ousada perguntaria a Jun se
quem estava com ciúmes era ele, mas apenas guardei o comentário para
mim. A cara fechada dele me dizia o bastante.
Seong Jin me encarou por mais um segundo, ainda desconfiado, mas
assentiu, se despedindo. Tae So fez o mesmo, mais gentil, porque ele
parecia ser esse tipo de cara. Apesar de inapropriado para lugares públicos,
Jun manteve as mãos ao meu redor, na faixa de pele livre de pano. O
polegar deslizava em um carinho distraído vez ou outra, minhas costas
coladas a ele. Quando fez o pedido, falou tranquilamente, ignorando que eu
ainda não sabia como reagir, fazendo o pedido por mim e dizendo que era
para a viagem. Só me soltou quando pegou a sacola de papel pálida, mas
entrelaçou nossas mãos ao me guiar pela rua, até o estacionamento onde sua
moto estava.
— Pensei que estivesse com a moça do staff — consegui dizer,
evitando olhar seu rosto.
— Era Kwang He quem queria falar comigo. — O amigo que o
chamara para trabalhar no evento. — E eu disse à moça do staff que estava
comprometido.
— Por quê? — A pergunta saiu sem querer. — Não estamos juntos
de verdade.
Jun soltou minha mão e me entregou a sacola. Não havia mais
divertimento em seu rosto lindo, parecia ser outra coisa... Poderia ser o
mesmo nervosismo que impulsionava meu coração a bater tão rápido
naquele momento.
A sensação dos lábios de Jun...
Fechei a cara para ele antes que pudesse receber uma resposta.
— Você me beijou.
Aquilo pareceu despertá-lo do que quer que pensasse.
Ele exibiu aquele sorriso malandro enquanto tirava os capacetes
presos à moto.
— Se me recordo bem, você fez isso primeiro. Naquele dia. — Deu
de ombros. — Estamos quites.
— Kim Jun Woo! — chiei, sentindo as bochechas esquentarem de
novo não só com a memória do que acontecera minutos antes, mas com o
pensamento furtivo de onde eu realmente queria que ele tivesse me beijado.
O fotógrafo riu, como se conseguisse ler aquilo em meu rosto. O
rapaz se inclinou, umedecendo os lábios de novo, passando a pontinha da
língua no piercing de um jeito que ele com certeza sabia ser errado e
perturbador enquanto encarava minha boca.
Por fim, falou mais baixo:
— O que foi? Quer mais um? — Jun correu os olhos por mim. E
cada ponto do meu corpo queimou de um jeito que eu não sentia há muito
tempo. — Em outro lugar, talvez?
Meus olhos se abriram, arregalados. Era impossível, mas senti o
rosto esquentar mais.
— Pare com isso!
— Mas é delicioso te ver corar, nae gongju[57].
— Argh! — Desviei os olhos dos dele, tomando o capacete de sua
mão. — Você é um convencido.
— E você muito linda. — Gargalhou divertido. — Vamos, tem um
lugar aqui perto que serve um samgyeopsal[58] perfeito.
Não respondi, emburrada, envergonhada. Minha mente desviava
para pensamentos errados. Confusos.
Maldito Jun.
Ele subiu na moto facilmente e a ligou sem cerimônia.
— Você vem ou não? — quis saber.
— Essa noite foi o último favor, certo? — resmunguei, subindo e
me acomodando atrás dele. A mochila de Jun não estava mais ali, talvez
guardada em algum camarim junto do suporte nos bastidores para ser usada
no dia seguinte. Ou ele simplesmente deixara com o amigo.
Vi o sorriso do rapaz pelo retrovisor.
Jun piscou para mim.
— Ainda resta um.
— Talvez eu pague o restante com dinheiro vivo — provoquei.
— Quer se livrar de mim, Lena-shi?
Minha respiração ainda era pesada, o coração ainda estava
acelerado. Mesmo assim, abracei a cintura dele e apoiei a cabeça em suas
costas.
— Talvez — murmurei baixinho.
— Mentirosa. — Jun aqueceu o motor, e eu não respondi. Porque
sim, era mentira.
Jun avançou, deixando o estacionamento, virando na rua principal.
Já era tarde demais para fugir dele, de qualquer forma.
 
“Eu também não sei desde quando,
Mas passei a querer te contar
Todas as minhas histórias.”
With You – Jimin & Ha Sung Woon
 
 
HELENA
 
— Não.
Jun bufou.
— Qual é, Helena! — insistiu, sem saber como meu coração estava
acelerado e dolorido com a ideia. — Só uma. Se não gostar, apago na sua
frente.
— Não, Jun.
— Por favor.
— Por isso saímos de Seul mais cedo? — Fechei a cara, realmente
irritada. — Porque você queria fazer uma sessão de fotos comigo?
A simples menção àquela frase me causava enjoos.
— Lena...
— Eu disse pra você que não quero. Ponto. Me desculpa se sou uma
chata por isso, mas não consi...
— Por quê? — O rapaz se aproximou com aquela expressão de
quem entendia, sim, e continuaria a insistir apesar disso. Eu não o culpava,
afinal, era o trabalho dele. — Por que odeia tanto tirar fotos?
Abri a boca para responder, mas Jun não entenderia.
Era constrangedor, sinceramente. O trauma por trás da verdade.
— Não gosto. Ponto.
— Não aceito essa resposta. — O fotógrafo cruzou os braços sobre
o peito, a alça preta em seu pescoço sustentando a câmera que eu quebrara
semanas atrás.
— Talvez eu a quebre de novo — grunhi para o objeto, mas com um
nó na garganta, e minhas mãos começaram a tremer. — Ou só jogue no rio.
Não estávamos longe de onde aconteceria o segundo dia do evento,
as finais do concurso de dança. Mas ainda era cedo, duas ou três horas da
tarde; o sol decidira aparecer, e o céu estava azul e limpo, para me
contrariar.
Jun dissera, ao me guiar para Songdo Central Park, que queria
aproveitar o dia bom para fotografar alguns pontos turísticos de Incheon.
Porém, quando descemos da moto e ele tirou a câmera mais simples da case
e sorriu para mim, eu soube.
— Você não ousaria — brincou.
— Não me subestime — murmurei, fechando as mãos em punho.
— Me dê um motivo, então... — Suspirou, me encarando daquele
jeito carinhoso que me fazia desviar o olhar muitas vezes. Mas não hoje. —
Um motivo convincente.
— Me acho feia em todas elas. — Não era uma mentira completa.
O jovem fotógrafo revirou os olhos.
— Talvez eu não tenha sido claro o suficiente sobre isso —
retrucou, gesticulando com a mão de borboleta e espinhos para meu rosto,
meu corpo —, mas você é linda. Os dois idiotas de ontem pensavam o
mesmo. Então, me dê outra desculpa.
Meus olhos arderam.
— Não quero.
— Uma foto, Helena. Só uma e...
 “Só uma, Lena... Não é nada demais, e só eu vou ver. Só quero me
lembrar disso, de você aqui. Assim...”
— Jun, por favor, não ... — Minha voz falhou, então ele hesitou.
— Tem a ver com ele? — perguntou baixinho, se aproximando um
passo. — Ele disse que você não era bonita? Por isso...
Quando ergui os olhos para encará-lo, ele soube. Não precisei
confirmar, o rapaz só... soube. Era sensível e doloroso, e agora Jun entendia
o porquê.
Eu vi a pergunta estampada em seu rosto: “Você deixou? Por quê?”.
Vergonha e raiva eram o que eu sentia quando me olhava em uma foto,
quando tentava erguer um maldito celular para uma self. Sim, eu fora uma
moça ingênua e muito apaixonada por muito tempo, estávamos falando do
meu primeiro amor e namorado. Não sabia o que fazer na época, não sabia
como agir para agradar ao Miguel. Tudo o que conhecia era o desejo pela
atenção dele, pelo amor dele, pelo carinho distorcido que eu achava
merecer.
Uma lágrima caiu por minha bochecha, e não suportei o olhar de
pena de Jun em mim.
Talvez mais do que isso, ele estivesse me julgando.
Jun era o único que sabia agora, nem mesmo minhas amigas
conheciam a história. Pensavam ser apenas um problema de autoestima
comum. Não sabia se a confusão ocorria porque eu não dera sinais
suficientes, mas não ousara contar a ninguém a verdade. Mas Jun conseguiu
ler em meu rosto, de alguma forma.
Talvez conhecesse pessoas que passaram por algo semelhante: um
retrato ilusório de um namorado perfeito usando o tom de voz para ganhar
seu coração e conseguir o que queria com drama. Eu o fizera por medo de
perder a pessoa que pensava ser meu amigo, por amar – ou achar que amava
– aquela relação. Porque, em alguns momentos, ele era, sim, carinhoso;
encobria o errado e o incômodo com beijos, abraços e presentes.
Até eu perceber que estava me machucando para fazê-lo feliz.
E aquilo era errado.
Mas foi tarde demais, certo? O estrago já fora feito.
Foi a vez de Jun me abraçar como eu fizera dias antes, quando ele
me contou sobre o irmão, sobre sua perda.
— Me desculpa — pediu baixinho.
E ficou assim, e eu me recusei a chorar dessa vez, me recusei a ser
tão fraca àquele ponto. Me odiava por lembrar do que deixara Miguel fazer
e evitava pensar naqueles momentos constrangedores. O medo da
exposição, que eu já sabia agora não existir, ainda estava ali.
No dia em que encontrara Miguel no prédio da revista, quando ele
me implorara por perdão e pedira uma segunda chance chorando, o rapaz
também prometeu jamais me ferir daquela forma. Não perguntei se ele
ainda tinha as fotos, só pedi que, se ele realmente me amasse, as deletasse.
Nada aconteceu depois disso, e vez ou outra eu acordava com medo de
alguma notificação embaraçosa, mas nada aconteceu. Dois anos depois e
nada aconteceu.
Mesmo assim...
— Me desculpa, Lena. — Jun suspirou, se afastando para me
encarar. — Eu não devia ter insistido, eu...
— Você sabe agora — falei baixinho, ainda evitando os olhos
pretos. — Só não insista mais.
— Certo, me desculpe.
Assenti.
— Então vamos fazer o seguinte. — Jun ergueu meu rosto para que
eu o encarasse. — Você vai ser a fotógrafa.
— O quê?
Ele sorriu, tirando do pescoço a alça, colocando-a em mim, me
entregando a câmera.
— Você vai ser minha fotógrafa esta tarde. — Piscou um olho, se
afastando para as grades do parapeito. — Vamos ver o que sabe fazer.
Meu coração ainda batia rápido, mas enxuguei o rosto e encarei o
que tinha nas mãos.
Estava desligada.
Voltei os olhos para o rapaz, que agora fazia pose.
— Estou esperando... — cantarolou, passando a mão tatuada nos
cabelos compridos, com um ar exageradamente sedutor. — Tempo é
dinheiro, agashi[59].
Segurei o sorriso, ligando a câmera como Jun me ensinara na noite
anterior. Ajustei o foco ao dar alguns passos para trás, para pegar o máximo
da paisagem que conseguisse.
— Hana... Dul... Set...[60] — Tirei a foto, e a careta que ele esboçou
me fez rir, relaxar um pouco. Olhei a foto, depois franzi a testa para o
jovem mais à frente. — Você não está levando meu trabalho a sério, Kim
Jun Woo-shi. Sem gracinhas, por favor.
Os lábios dele se esticaram, suavizando o rosto lindo.
— Certo, me desculpe. — Então, o rapaz apoiou os cotovelos na
grade branca atrás dele, ficou mais sério. — Mas não se apaixone quando
eu começar a dar uma de modelo.
Sorri.
— Pode deixar. — Ergui a câmera, tirei a foto.
E outra.
E mais uma.
Me aproximei dele, fiz outra foto; uma em que apenas o rosto de Jun
era o foco. A brisa da tarde beijou sua face no exato momento em que
apertei o botão, as mechas negras acompanharam o vento, e os olhos...
Os olhos pretos e profundos estavam me observando.
Inspirei fundo.
— Ficaram boas, acho. — Pigarreei, passando as imagens até então
capturadas. Algumas eram com caretas, para me fazer sorrir, outras
pareciam indiscutivelmente perfeitas. Senti meus lábios se curvarem para
cima em uma específica e a virei para Jun. — Essa aqui está idêntica ao JK,
qual é!
Ele se aproximou para analisar, estreitando os olhos e inclinando um
pouco a cabeça para ver.
— Realmente... — Então me encarou, bem perto. — Mas ainda
acho que sou mais bonito que o cara. Não acha?
Fiz careta.
— Você canta mal e não é rico.
A risada de Jun Woo ecoou pelo lugar, alta, rouca e alegre. Algumas
pessoas que passavam por ali se viraram para ver.
— Interesseira.
— Ele não me quer, de toda forma. — Fingi tristeza, e Jun me olhou
de baixo para cima, até seu olhar encontrar o meu outra vez.
— Eu quero, mas você vive me rejeitando. — Fez biquinho
também.
— Pare com isso. — Coloquei a mão em seu rosto e o afastei. —
Onde quer tirar foto agora?
Ele colocou as mãos na cintura e pensou um pouco.
— Songdo Nuri Park. Já esteve lá?
— Nunca visitei Incheon até ontem. — Dei de ombros.
Jun entrelaçou a mão à minha e seguiu para onde estacionou a moto.
— Nuri Park será, então.
 
 
Em vinte minutos estávamos no parque Nuri, e quando Jun me
guiou por cada um dos lugares, quando sorri para o céu azul e para o lugar
repleto de árvores, pessoas, estátuas, construções clássicas da cultura
coreana... esqueci o que me fizera tremer mais cedo. Tudo que sujava meu
coração e minha consciência.
O rapaz me fez parar para tirar uma foto dele a cada monumento do
espaço. Depois de andarmos por quase uma hora, de me perder
fotografando o céu, as árvores e tudo o que me fazia sorrir, o fotógrafo
sugeriu pararmos para um lanche antes de voltar ao local onde aconteceria o
evento daquela noite. O motivo para estarmos ali.
Estávamos sentados em um dos banquinhos do parque, perto do
corredor de árvores, quando criei coragem para perguntar baixinho:
— Você já fez isso?
Jun levou o refrigerante à boca, a testa franzida, confuso.
Desviei os olhos para minhas mãos, envergonhada, mas com a
curiosidade vencendo. Ele já sabia agora, e era meu amigo. Se eu precisava
compartilhar aquela dor com alguém, não achava de todo ruim ser com ele.
— As fotos... — Minha voz falhou. — Alguma vez, em algum
relacionamento, você já...
— Não! Nunca — ele me interrompeu depressa. O encarei, e Jun
abaixou o copo até o joelho, respirando fundo antes de falar: — Sei que
algumas pessoas gostam de apimentar a relação, gravar e... — Pigarreou e,
visualizando a imagem criada do meu ex, o maxilar do fotógrafo se
contraiu, como se Jun Woo contivesse a própria raiva. — Geralmente, essas
coisas devem ser consentidas por ambos.
A pergunta estava implícita ali.
“Você consentiu?”
Desviei o olhar, cutucando levemente aquela pequena falha no
esmalte lilás na unha do polegar.
— Eu disse não — expliquei, rouca. — Falei que não queria, que...
não gostava daquilo. De muitas coisas. Mas a Helena de dezessete e dezoito
anos era muito apaixonada por ele. Miguel era muito bom em persuadir,
dizia coisas e te convencia facilmente. No entanto, nesse dia, quando neguei
pela primeira vez algo que ele queria muito e eu não, meu ex ficou
chateado. Disse que estava tudo bem, mas não foi mais o mesmo comigo
durante a semana seguinte. Parecia distante. Fiquei com medo de ele
terminar a relação por causa disso, então só... fechei os olhos e disse sim. —
Suspirei. — Às vezes, ignoramos os sinais de alerta porque pensamos que
vamos nos machucar menos assim. Então os ignorei, por muito tempo, até
tudo dar errado e não ter mais volta.
Jun não falou nada, e eu não o encarei para saber o que se passava
em seus olhos. O que pensava de mim. Doeria se ele me olhasse com nojo e
desaprovação.
O silêncio ficou insuportável.
Mordi o lábio, tentando não corar por completo embaraço.
— Sei o que você deve pensar de mim — murmurei, agora
encarando os coturnos; os de Jun, ao lado, aparentavam ser tão grandes e
diferentes se comparados aos meus. — Que fui uma moça tola de ter cedido
por drama. Que não devia ter aceitado. Mas fiz. Quando me dei conta, já
tinha acontecido. Por muito tempo, tive medo de as pessoas da escola
descobrirem e, quando me formei, temi que aquilo chegasse ao ouvido dos
meus pais. Mas Miguel não disse nada; mesmo na roda com os amigos,
quando ficou bêbado, não contou o que tínhamos feito, não aquilo. —
Inspirei fundo, sentindo o coração acelerar não apenas de medo ou
vergonha, mas pela necessidade desesperada de falar para alguém, de me
aliviar da dor e da culpa. — Eu gostava de tirar fotos, sabia? — continuei
baixinho. — Adorava, na verdade. Até cogitei a possibilidade de carreira,
uma vez. — Há muito tempo. — Costumava ter uma parede cheia delas,
como a sua.
“Depois que Miguel e eu terminamos, a ideia de congelar minha
imagem em uma câmera ou celular me apavorou mais do que achei ser
possível. Eu tremia, meu coração apertava e só queria... me esconder.
Quando me reunia com as amigas ou a família, eles não entendiam porque,
de repente, eu não queria mais tirar fotos. Então começavam as perguntas, e
eu me irritava com elas. Era mais fácil, no fim, ceder antes de insistirem,
trincar os dentes e permitir. Porém, não me dou mais o trabalho de conferir
como fiquei ou se as fotos estão boas... Sempre que passava em frente
àquelas imagens no quarto no Brasil eu as evitava como se evita o próprio
reflexo no espelho. A única vez que ergui a câmera espontaneamente foi
quando conheci o Eric[61].”
Sorri um pouco, ousando fitar o rosto de Jun. Podia apostar que o
rapaz se segurava para não me apertar em um abraço. Logo continuei para
não perder a coragem:
— Fiquei muito animada naquele dia no estúdio da Tetê e esqueci
esse trauma idiota por alguns segundos. Tanta coisa aconteceu que não me
importei, mas às vezes preciso controlar a vontade de me cortar da foto.
Afasto o pensamento ao me lembrar da ocasião em que conheci meu cantor
favorito, de como fiquei feliz. Algumas vezes, me forço a sorrir pra uma
câmera porque sei que o momento e as pessoas podem não voltar, mas
mesmo depois de alguns anos... mesmo estando longe da lembrança e do
meu ex, ainda machuca.
Ri sem graça ao tomar fôlego, após soltar em Jun palavras demais,
que ele não precisava ouvir.
— Foi mal — falei sem jeito, sentindo o rosto esquentar com o olhar
preocupado e pensativo do rapaz sobre mim. — Talvez pareça idiota pra
você, pra qualquer um, mas eu só... só achei que devesse saber. Você é um
fotógrafo, afinal. E meu amigo.
— Jamais te criticaria por isso, Lena — ele murmurou, fechando a
mão livre sobre o joelho depois de hesitar algumas vezes para segurar a
minha. Se conteve para não o fazer. Não por não querer ou por ser tímido,
longe disso, mas porque me respeitava àquele ponto. Tinha medo de me
machucar de alguma forma. — Relacionamentos são complicados, e nossos
sentimentos também. Você confiava nele, amava ele; então não, não vou te
julgar. Somos feitos de escolhas, erros e traumas. Todos nós. E ninguém no
mundo pode te criticar por se sentir dessa forma. Sim, talvez eu esteja
pensando em como reverter isso, em como te ajudar a superar o passado,
mas jogar pedras em você? Jamais. Só quero que me prometa uma coisa.
Jun estava sério, realmente sério.
Assenti.
— Me prometa que nunca mais colocará seus valores e princípios de
lado assim de novo. — Os olhos pretos como obsidiana brilhavam. — Me
prometa que... — Ele hesitou. — Se um dia encontrar alguém que ame,
independentemente do que essa pessoa pedir, não vai negligenciar seus
sentimentos. Sei que é complicado, mas acredito que, se alguém te ama de
verdade, vai te respeitar; se souber que algo te machuca, vai evitar. Então,
por favor, gongju, me prometa dizer não quando não quiser algo. Antes de
qualquer cara, antes de amar qualquer pessoa... — Jun finalmente segurou
minha mão e a apertou de leve. — Você deve se amar primeiro. Valorizar
você mesma. Porque aí entenderá que merece ser tratada como uma rainha,
e não aceitará menos do que isso.
Anuí com a cabeça, sorrindo um pouco, os olhos ardendo.
Depois dessas palavras, de ver a reação de Jun Woo, me perguntei
outra vez se deveria me abrir assim para meus pais, minhas amigas; me
perguntei se me olhariam da mesma forma ou me repreenderiam... A ideia
fez meu estômago revirar e, em meio ao pensamento, varri a possibilidade
para longe. Jun saber já era o suficiente. Ao menos agora tinha alguém com
quem conversar sobre isso.
Era o bastante por ora.
— Você é um bom amigo, Jun — falei, com sinceridade. —
Obrigada.
— Qualquer hora, sempre. — Ele me ofereceu um sorriso triste, e
tive a sensação de que o rapaz queria dizer mais alguma coisa, algo
importante. No entanto, Jun se manteve em silêncio nos minutos seguintes,
a mão ainda sobre a minha, o polegar rodeado de espinhos circulando
distraidamente minha pele.
Quando terminou a bebida, ergueu o celular e conferiu as horas.
— Melhor a gente ir — disse, já ficando de pé. Atrás dele, o sol
descia, o céu se diluía em cores rosadas e alaranjadas. — Temos trabalho a
fazer.
— Huh — assenti.
Caminhamos em silêncio, Jun um pouco mais à frente, pensativo, as
mãos nos bolsos. As palavras dele ecoaram em minha mente de novo e de
novo, e não só elas: a noite em que o rapaz chorara como uma criança em
meu colo; as fotos engraçadas dele fazendo careta enviadas quando eu
estava nas aulas; até mesmo o dia em que Jun me deixara na casa da
senhora Jang e me ajudara a cuidar das crianças... Os gêmeos o adoravam, e
o rapaz tatuado era tão bom com elas...
Talvez minhas amigas tivessem razão, quem sabe eu estivesse
apaixonada por Jun, mas afastava aquele pensamento por ter medo.
Medo de perder um amigo.
Medo de não ser real.
Não queria ser assim. Porém, era um sentimento automático.
— Jun! — chamei, parando de repente, o coração acelerando.
Ele parou e se virou, franzindo a testa, esperando.
Sorri ao me aproximar. Não ergui a câmera dependurada em meu
pescoço, mas sim o celular no bolso da calça.
Abri, pela primeira vez em muito tempo, a câmera frontal.
Me coloquei apenas um pouco à frente de Jun, que ainda me olhava
surpreso, então posicionei o aparelho, a tela pegando nós dois.
Bom, em parte.
— Se abaixa um pouco — pedi.
Pela câmera, o vi me encarar.
— Lena, não precisa fazer isso...
— Se abaixa um pouco, você está bloqueando o pôr-do-sol. — Ele
não se mexeu, parecia em dúvida, e eu sabia o que corria em sua mente:
“não quero te forçar a nada”. Mas ele não estava fazendo isso. Ergui o rosto
para encarar o dele. — Quero fazer isso. Me lembrar do dia em que vim
com você neste parque.
Um segundo.
Dois...
Três...
Jun assentiu, fazendo o que pedi. Cuidadosamente, o rapaz apoiou
uma mão em meu ombro, o rosto perto do meu. Atrás, os últimos raios de
sol brilhavam.
Segundos antes de eu apertar o botão, o rapaz fez careta: língua para
fora, apenas um dos olhos abertos.
Gargalhei, encarando a imagem congelada na tela.
Dei uma cotovelada na barriga dele.
— Direito!
— Certo. — Ele riu, o hálito quente perto do meu ouvido. — Outra,
então.
— Sorrindo.
Jun sorriu. Eu tirei a foto.
Observei as duas pessoas na tela, o rosto do rapaz tão próximo do
meu. Meus lábios se esticaram por conta própria, as batidas do coração
rápidas demais, porém... sem medo, sem culpa.
Bem, ainda estava ali. Talvez sempre estivesse. Mas consegui
enterrar aqueles temores daquela vez. Ignorei aquela vozinha de sempre me
pedir para me cortar da foto, afastei a vontade de me excluir de novo.
Foquei na pessoa ao meu lado, no sorriso sincero em meu rosto.
— Uma fazendo careta — Jun me cutucou e fez um bico fofo e
exagerado para a câmera, franzindo o nariz e estreitando os olhos. Dei
risada antes de imitá-lo, com a mesma expressão.
Duas senhoras idosas que passavam sorriram para nós dois, então
pararam.
— Quer que eu tire a próxima foto de vocês? — a idosa de cabelo
curto e encaracolado perguntou, ajeitando os óculos.
Me curvei rapidamente em respeito, cumprimentando as duas da
forma correta. Jun fez o mesmo.
— A senhora se incomodaria? — meu companheiro perguntou,
educado, tirando o celular da minha mão e oferecendo à mulher, que sorriu
para ele.
— Claro que não, menino. — Ela entregou a bolsa para a amiga,
que parou ao lado, também sorrindo para nós de um jeito contemplativo. —
Adoro ver jovens casais apaixonados.
— Ah! — Corei. — Nós não...
— E vocês dois combinam tanto um com o outro. — A outra
senhora assentiu. — Você não é daqui, é, querida?
— Ela é brasileira — Jun woo falou, e eu podia jurar que seus olhos
brilhavam de uma maneira diferente quando me olhou.
— Que lindo vocês dois... — A senhora com meu celular colocou a
mão sobre o peito, emocionada. — Parecem moldados a partir de um livro
de romance.
Ri, pronta para negar, mas Jun segurou minha mão e assentiu para as
duas.
— É o que vivo dizendo para ela — falou, e eu o encarei.
“Para de mentir”, fiz com os lábios para ele. O fotógrafo ignorou e
apontou para frente.
— Sorria para a foto, jagiya[62].
O fiz, meus lábios se esticando naturalmente, porque não consegui
não sorrir.
— Estão muito longe um do outro — nossa fotógrafa improvisada
avisou, estreitando o olhar. — Passe uma mão no ombro dela, rapaz.
A olhamos surpresos.
— Não façam essa cara, sei como os jovens de hoje são — retrucou
a estranha. — Agora, andem logo.
— Sim, senhora. — Jun se aproximou, fazendo de acordo com o
ordenado, e eu não me importei quando sua mão se apoiou em meu ombro.
A outra ainda segurava a minha, o rapaz atrás de mim, quase como se me
abraçasse.
A mulher sorriu satisfeita.
— Ficou perfeita. — A mulher me devolveu o aparelho. Depois, me
observou por mais um segundo e tocou um dos cachos do meu cabelo. —
Você é tão linda, criança.
— O-obrigada. — Me curvei, agradecendo formalmente.
Para Jun, ela disse:
— Cuide bem dela, rapaz — exigiu, séria.
A mão tatuada em meu ombro apertou de leve, não mais com
divertimento nas feições daquele lindo rosto.
— Pode deixar, Halmoni.[63] — Kim Jun Woo sorriu para mim e
prometeu: — Eu vou.
 
“Eu quero fazer o que você quiser.
Se você quisesse, garota, poderíamos cruzar essa linha.
Sei que somos amigos,
E o amor só conhece fins quebrados, sim
Foi o que você disse, mas garota, deixe-me mudar sua mente.”
Feelings — Lauv
 
 
JUN
 
Havia mais estrelas naquela noite do que me lembrava.
Quando visitara aquele lugar, tantos anos atrás, não existiam tantos
pontinhos brilhantes no céu; era um dia quente e estava abafado. No
entanto, naquela noite, o céu era uma cortina extraordinária de estrelas. A
lua brilhava redonda, majestosa e, lá embaixo, como na noite em que
Helena cantara para mim, a cidade enfeitava a paisagem com silhuetas de
prédios e variados pontos de luz.
O evento fora mais agitado do que no dia anterior. Deixei minha
ajudante no mesmo lugar de sempre quando a noite caiu e as pessoas
começaram a encher o gramado. Havia mais público dessa vez, muitos
amigos e familiares dos finalistas daquela noite. Porém, Lena me garantira
que estava tudo bem deixá-la sozinha, ela sabia o que estava fazendo e não
estava nervosa.
Realmente, a jovem parecia mais leve desde que voltamos do Nuri
Park, estava falando e sorrindo mais. Me perguntei se aquilo ocorrera pelo
fato de ter compartilhado aquele segredo comigo durante a tarde. Por
finalmente ter se libertado daquela lembrança dolorosa.
Uma parte egoísta minha se sentia feliz por ser o primeiro em quem
ela confiou. Outra sabia que a jovem só se abrira porque tinha medo do que
eu poderia pensar sobre ela.
Não a julguei.
Quando Helena me olhou naquela hora e pediu para que não
insistisse, eu soube; não por mim, não por uma lembrança minha, mas
porque uma amiga passara por algo semelhante. Snow me contara uma vez
sobre o que o pai forçava a mãe a fazer, sobre como ela odiou assistir à dor
nos olhos da mulher sem poder fazer algo para mudar aquilo.
Outras pessoas passaram por casos semelhantes, ainda mais
dolorosos. A tatuagem de espinhos em minha pele me lembrava dela, da
pessoa que me contara uma breve história de uma rosa triste e despedaçada
e espinhenta.
Jamais culparia ou julgaria Helena.
Muito pelo contrário, a necessidade que tinha de querer cuidar dela
e mostrar o quanto era valiosa apenas triplicara naquela tarde.
Tentara me concentrar no evento nas duas horas seguintes. Um
grupo novo de K-pop se apresentara no fechamento do concurso, e Kwang
He me pedira para registrar tudo, porque era um dos sócios da agência dos
cantores. Coloquei minha atenção naquilo. No meu trabalho. No que sabia
fazer de melhor.
Seo Yun aparecera em certo momento, para me entregar uma
garrafinha de água. No entanto, a moça olhara para trás antes, para a plateia,
à procura de Helena; estava sendo mais cautelosa ao localizar minha
namorada de mentira filmando do pequeno palanque que colocaram para
ela a alguns metros de distância do palco. Aquilo só me fez sorrir mais e
brincar sobre Lena não morder, mesmo que a brasileira tivesse
acompanhado a moça do staff com os olhos de onde estava.
O grupo vencedor, para meu desgosto, foi o dos dois manés que
estavam na fila com Helena na noite anterior. O de cabelo azul,
provavelmente o líder, mandara um beijo no ar para a jovem gravando tudo.
Ela sorrira, tímida. Porém, para crédito dela, não devolvera o gesto. De
cima do palco, o rapaz me olhara como se esperasse que eu estivesse
assistindo a tudo. Ele sorrira antes de sair com a placa do prêmio.
Um ano de estudo na maior academia de dança em Seul.
Entre outras coisas que não me dei o trabalho de prestar atenção.
Quando o evento enfim acabou, juntei meu equipamento na mochila
que usava no trabalho e puxei Lena comigo pelo gramado, a mão
absurdamente gelada dela entrelaçada à minha. Depois de passarmos em um
restaurante de frango frito, a trouxe para meu lugar favorito em Incheon.
Não era glamoroso, muito menos um ponto turístico, mas prometia uma
vista incrível da cidade.
Acabamos conversando até que uma, duas horas tivessem passado.
Helena deixou a curiosidade vencer outra vez e me perguntou sobre minha
infância. Contei a ela histórias sobre meu irmão, sobre as visitas ao
orfanato, sobre lembranças que normalmente não compartilharia com
ninguém. Terminei revelando sobre meus pais biológicos, sobre o desertor
norte-coreano e a mulher que, quando eu procurara, sequer abrira a porta da
casa para mim.
Confessei para Lena que, na época, o Jun Woo de quinze anos ficara
revoltado por um tempo, odiando o mundo por um certo período. Mas então
as histórias retornaram para lembranças felizes, para minha família adotiva
que me tratara como um filho de sangue, para aventuras irresponsáveis com
hyung[64] e Cha Min na adolescência, para as tentativas falhas da tia Eh Ji
de me casar com as filhas de suas amigas (Helena dera boas risadas nessas
partes). E então cheguei em minha ida para Boston, na volta dolorosa para a
Coreia.
Não vimos a hora passar, e eu sugeri a Lena que voltássemos.
Afinal, ela teria de trabalhar na manhã seguinte. Mas a moça negou, pediu
para que ficássemos ali mais um tempo, e eu não relutei muito em atender
seu pedido.
Era sempre difícil deixá-la em casa, de qualquer forma.
Ficar longe dela.
— Você conhece muitos tesouros escondidos, não é? — Helena
brincou, a cabeça escorada em meu ombro. Ela não percebeu quando fizera
aquilo, e eu apenas deixei que se apoiasse em mim, vestisse minha jaqueta e
entrelaçasse a mão à minha dentro de um dos bolsos do agasalho.
Não sabia o que aquilo significava para ela.
O que erámos realmente um para o outro.
Mas não tinha pressa.
— Eu disse... — respondi, observando os pés pequenos perto dos
meus, as pernas dos dois esticadas na grama. — Sou curioso. Gosto de
conhecer lugares que poucos ousam explorar.
— Veio aqui quando?
— Pouco antes de me alistar.
Ela virou o rosto para me encarar, perto demais. Perigosamente
perto.
Me lembrei do quase beijo que dera na moça no dia anterior; não
errara o lugar, me forçara a não beijar os lábios de Lena, mas fora um
esforço notável, digno de prêmio.
— É a primeira vez que volta aqui desde que foi para o exército?
— Huh... — Assenti.
— Bom — ela voltou a se aconchegar em mim, como fizera quando
ficamos presos na despensa —, é uma honra ser a primeira a te fazer
companhia, então.
— Posso te levar a todos os meus lugares secretos se quiser —
murmurei, virando o rosto e roçando levemente os lábios em sua têmpora e
testa com carinho. A beijei ali. — Tenho vários.
A respiração de Lena pesou.
— Está fazendo de novo — sussurrou.
— O quê? — Me dei conta então, do que tinha feito: a proximidade;
o toque.
— Ultrapassando a linha.
— Não devo?
Ela hesitou.
— Não... — Senti a mão presa à minha se fechar um pouco. — Não
quero estragar isso.
— Helena...
— Você tem razão. — Lena se afastou, ficando de pé e tirando
qualquer resquício de sujeira que tivesse na calça. Não me olhou ao falar.
— Está tarde. Até chegarmos em Seul é mais duas horas.
— Não devíamos conversar? — Franzi a testa, o coração acelerado
de repente ao me levantar também. — Falar sobre o que está acontecendo?
— O que está acontecendo? — a jovem rebateu, me encarando por
fim.
Pensei em falar, abrir a boca e deixar claro, já que ela não havia
entendido ainda. Mas me lembrei da noite em que Helena ficara bêbada.
Son Ho também era um amigo, Son Ho também dera sinais a ela e, quando
finalmente se declarou para a vizinha, Lena o afastara. Inventou uma
desculpa para mantê-lo longe. Um namoro falso para não ter um verdadeiro.
Porque tinha medo.
Um medo consumidor de se machucar outra vez.
E se eu me declarasse e a perdesse?
E se ela inventasse mais uma desculpa e virasse as costas para mim
também?
Suspirei.
— Nada — respondi, enfim. — Não está acontecendo nada.
Helena engoliu em seco, e pude jurar que a decepção brilhou nos
olhos esverdeados. Mas eu não queria arriscar; não aquilo, não nós dois.
— Vamos embora — Lena murmurou ao passar por mim.
Caminhamos em silêncio até a moto, e foi estranho. Pela primeira
vez desde que a conheci, foi estranho. Como se tivéssemos discutido, mas
não tínhamos. Como se palavras quisessem jorrar dos lábios de ambos, mas
a consciência nos segurasse.
A viagem de volta para Seul foi silenciosa e incômoda. Uma parte
minha temia que Helena já estivesse tramando uma forma de fugir de mim
como fez com Son Ho. Porque agora já enxergava o que eu não tentava
esconder. No entanto, quando desceu da moto, em frente ao seu prédio, a
jovem sorriu como se nada tivesse acontecido e me desejou boa noite como
nas outras vezes.
Só amigos...
Eu poderia esperar mais um pouco até que ela finalmente
compreendesse.
Eu poderia esperar.
Por ela, eu esperaria.
O tempo que fosse.
 
“Posso ser aquele que você liga
Quando não está pensando em nada?
E posso ser aquele que você procura
Quando não consegue dormir de forma alguma?
Posso ser esse alguém?”
How’m I Doing — Eric Nam
 
 
HELENA
 
Foram as três semanas mais confusas da minha vida. Exteriormente
tranquilas considerando todos os fatores que se sucederam, mas
internamente eu estava uma bagunça. Ji Ah voltara a falar comigo e, apesar
de Son Ho não saber de nada, minha amiga também o evitava quando
podia. Infelizmente, não era algo que pudéssemos controlar; não havia nada
que eu pudesse fazer, pelo menos.
Na última vez em que esperamos o elevador juntos, tentamos
conversar sobre um dos projetos que ele realizaria na ONG naquele fim de
semana, mas parecera tão forçado e estranho que rapidamente o assunto
morrera como uma pequena chama apagada com um balde de água.
Precisávamos de tempo para superar aquilo e voltarmos a... algo.
E havia Kim Jun Woo.
Depois de Incheon as coisas ficaram... estranhas. Aparentemente
normais, mas... estranhas. Ainda ajudava na loja aos sábados, Jun quase não
ficava lá porque era um dia movimentado e cheio de trabalhos, mas
trocávamos mensagens durante a semana, mesmo assim, não era mais tão
natural.
E talvez Jun tivesse notado, já que eu sempre inventava desculpas
para não atender uma ligação ou encontrar com ele na L.O. Quando estava
deixando o prédio duas semanas atrás o vi descendo a rua para a loja e dei
meia volta. Normalmente nos esbarrávamos lá as quartas, mas quando Jun
perguntou, só disse que estava estudando demais e que não poderia
encontrá-lo.
Eu sempre evitava pensar na conversa esquisita que tivemos, dos
nossos momentos naquele fim de semana, no quase beijo na sala no meu
apartamento, aquele outro a centímetros dos meus lábios na fila no sábado;
na minha testa, com tanto carinho e ternura que quase me desmanchei
naquela hora.
Mesmo dias depois, ainda pensava nos lábios dele em minha pele,
ignorava meu coração agitado demais.
Eu me concentrei em estudar para as últimas provas, em não pensar
na reação dos meus pais ao saberem da possibilidade de eu não voltar para
o Brasil e em distrair meus pensamentos da pessoa mais responsável pelas
batidas erradas e confusas em meu peito.
Naquela tarde de sábado eu tentei fazer o mesmo, já que o fotógrafo
ficara na loja a manhã toda, mas naquele dia em especial, Jun Woo parecia
mais sério e pensativo, como alguém ficava ao responder uma prova
importante com questões difíceis.
— Esse é o terceiro favor? — Franzi a testa enquanto seguia Jun
pela escadaria do prédio, uma rua abaixo da que morávamos.
Deixamos a loja mais cedo depois que tia Eh Ji aparecera. A mulher
de conservadíssimos cinquenta anos nos enxotara para fora de sua loja
quando nos vira debruçados sobre o balcão, falando que éramos jovens
demais para desperdiçar o fim de semana em uma loja sem graça.
Ela era divertida e contava piadas engraçadas. Apesar de ser a irmã
mais nova do sr. Kim, não parecia ser de fato parente do sério empresário
que, vez ou outra, ligava para o filho.
Jun cedeu rápido demais, e me chamara para acompanhá-lo em um
treino na academia de artes marciais que frequentava de vez em quando.
Pude jurar ouvir o fotógrafo agradecer a mulher, e também pude jurar ver
um sorriso no rosto de tia Eh Ji como se tudo aquilo estivesse no
combinado.
Pensei em inventar desculpas, mas meu sedentarismo me fez uma
nota de que talvez fosse divertido relembrar a época em que eu perdera peso
batendo em um saco de pancadas. O que poderia acontecer em um treino,
afinal? O próprio Jun alegara que não havia nada acontecendo.
Talvez só fosse um conquistador. Gostava de flertar, mesmo que de
brincadeira. Então qualquer coisa que tenha acontecido entre nós até ali...
Era nada.
— Estou começando a achar que realmente quer se livrar de mim...
— Jun abriu a porta de vidro, me dando passagem para entrar.
— Quero me livrar da minha dívida com você, só isso. — Sorri.
Jun me informara que aquele era um estúdio de treino privado; o
amigo dele dava aulas de noite, mas só para algumas pessoas selecionadas,
e deixava Jun Woo treinar lá sempre que o jovem tivesse vontade. O lugar
era mais limpo e organizado do que eu esperava: quando fazia Muay Thai,
no Brasil, dividíamos o tatame com uma piscina grande para as senhoras de
idade. Era uma bagunça e cheirava a suor.
Ainda eram quatro da tarde e não havia ninguém quando Jun digitou
a senha e abriu a porta. O lugar era enorme e claro, iluminado por uma
sacada espaçosa que dava vista para a cidade lá fora e para o céu, que a
cada hora mudava de cor. Havia equipamentos de treino organizados em um
canto, uma pequena cozinha no outro e todo um espaço aberto para as aulas.
Tirei os sapatos, deixando as meias amarelas.
— Esse não é o último favor. — Jun deixou sua mochila no tapete
emborrachado e se adiantou até a prateleira no canto, pegando um aparador
de chute e um par de luvas de foco. — Chamei uma amiga para treinar
comigo e ela aceitou. Só isso.
Ele voltou para o centro do tatame preto onde eu estava.
Jun usava uma calça de tactel preta e uma camisa larga cinza, os pés
descalços sobre o tapete de borracha. Eu apenas colocara uma legging preta
e uma camisa larga azul com um desenho Kawaii da Chiriro e o dragão
Haku[65] que eu começara a usar para dormir. Talvez por estar
abobadamente atraída por Jun e por vê-lo tão concentrado para o treino
naquele segundo, os cabelos ainda úmidos do banho, acabei evitando olhar
o meu reflexo na parede de espelhos. Senti que poderia ter escolhido uma
camisa menos infantil e talvez prendido o cabelo em um rabo de cavalo,
não em uma trança qualquer.
Depois de fazer uma série de alongamentos — me provando que, de
fato, eu estava mais enferrujada do que parecia —, o fotógrafo se
aproximou de mim.
— Mão. — Jun pediu, e eu estiquei o braço. Ele tirou da mochila a
primeira faixa enrolada. Nova. Parecia bem nova e... lilás. Sem que ele
pedisse, abri a mão, afastando os dedos para que Jun passasse agilmente a
atadura entre eles, o pulso, a palma e, enfim, finalizasse. — A outra.
— Tem certeza de que vai querer treinar comigo? — questionei,
flexionando os dedos da mão enfaixada. Era uma bandagem nova. Ele...
comprara quando? — Pode apanhar.
Um lindo sorriso enfeitou os lábios dele.
— Sei me defender — rebateu, encaixando as luvas nas minhas
mãos. — Vem. Vamos ver o que você sabe fazer.
Me posicionei, colocando um pé um pouco à frente do outro,
separados. Flexionei levemente os joelhos e levantei a guarda. Jun Woo
observando cada gesto com atenção, suas mãos já envolvidas pela luva de
foco erguidas para mim.
Jun deu um sorrisinho.
— Pode vir, gongju.
Avancei. Jab, direto, cruzado. Jab, direto, cruzado, upper, gancho,
mais um jab, sempre deixando uma das mãos diante do queixo, protegendo.
— Oh? — A testa do jovem estava franzida. Os olhos dele
brilharam com surpresa e algo mais. — Isso foi realmente muito bom.
— Por que parece surpreso? Eu disse que fazia Muay Thai quando
morava no Brasil.
— É difícil imaginar você batendo em alguém ou em qualquer coisa
— provocou. — Não pode ver o cachorro da sra. Hwang que sai correndo.
— Em minha defesa... aquilo não é um cachorro.
Gargalhou.
— Certo, certo. — Jun ergueu as luvas de novo. — Mais rápido
agora. Alternando os golpes com chutes. Mas melhore esse bloqueio. — Me
lançou uma piscadela. — Vou atacar dessa vez.
Fiz o que ele pediu e decidi me soltar mais um pouco, colocar um
pouco mais de força nos braços e mover mais as pernas. Fazia meses desde
a última vez que treinara, e era um esforço revigorante.
Estava com saudade daquilo: do movimento, de bater em alguma
coisa.
O sorriso em meu rosto foi involuntário quando Jun avançou e eu
bloqueei. De novo. E de novo. Por minutos suficientes para me cansar, me
fazer ofegar. Ele atacou e eu defendi, depois intensificou os golpes, me
fazendo vacilar. Um erguer de lábios malicioso surgiu quando meu amigo
entendeu como meu corpo funcionava, como minha esquerda era mais
fraca, e então uma das pernas do rapaz deslizou e me jogou no tatame. Em
meio segundo o corpo enorme de Jun Woo estava sobre o meu.
Não foi só a queda que me fez perder completamente o fôlego, mas
o erguer maroto dos lábios próximos demais dos meus, do corpo firme
pressionado contra o meu.
Tentei não reparar em como nos encaixávamos, em como eu queria
esticar a mão e tocar o rosto de Jun, afastar aquela mecha do rosto dele,
tocar aquele piercing lindo e irritante...
— Está me sufocando — menti, desviando rapidamente o olhar para
a prateleira de equipamentos na parede oposta quando os olhos de Jun me
observaram por mais tempo.
Antes, Jun Woo poderia ter me provocado, perguntado sobre o tom
rosado nas minhas bochechas e sobre o que eu estava pensando enquanto
ele estava em cima de mim, mas as coisas estavam um pouco delicadas
entre nós desde Incheon, então o jovem sabiamente se colocou de pé, se
livrou das luvas de foco e me estendeu a mão, me puxando com facilidade.
— Por que parou de treinar? — Jun perguntou, apanhando a
garrafinha de água em um canto e a levando aos lábios.
Recusei quando o fotógrafo me ofereceu a bebida.
— Não tive tempo. Quando cheguei em Seul, tudo ficou tão corrido
e assustador que não me importei em procurar um lugar para treinar.
Deixei que ele se aproximasse, pegasse minha mão e tirasse as
luvas, deixando apenas as ataduras.
— Por que começou Muay Thai? — Jun Woo voltou para a estante
de materiais e começou a organizá-los pelo tatame. Cones enfileirados,
halteres do outro lado, na sequência, cordas logo a seguir...
Enquanto ele preparava o circuito do sofrimento que me faria passar,
falei:
— Eu estava com raiva. — Dei de ombros. — Precisava bater em
algo.
Por um tempo, não consegui sequer chorar, só levantava da cama
para fazer o necessário e voltava para debaixo das cobertas. Foram meses
apodrecendo, fugindo, e não me importando com nada. Até que um dia
Maitê perdeu a paciência e apareceu na minha casa. Ela me obrigou a tomar
um banho e colocar um vestido lindo que Sol e ela haviam comprado. Me
ajudou a me arrumar e minha irmã fez minha maquiagem. Naquele dia,
Maitê estava furiosa; ela me levou até a garagem do meu ex, onde ele e a
banda ensaiavam às quartas. Eu ainda estava machucada naquele momento,
mas me lembrava do violão dela quebrando nas costas do meu ex, de minha
amiga xingando-o com todo tipo de palavrão possível e ameaçando o
músico. Por fim, lembrava de Tetê me levando para comer sushi no meu
restaurante favorito.
Não sabia o que faria sem ela.
Talvez ainda estivesse debaixo das cobertas, me odiando, não me
permitindo sonhar com um futuro em que eu pudesse e merecesse ser feliz.
— Maitê me disse para concentrar minha raiva em algum lugar e me
inscreveu nas aulas de Muay Thai que existiam perto da minha casa. Acabei
gostando.
— Maitê... — Jun voltou para onde eu estava. — Ah! A namorada
do Idol fugitivo.
— Não precisa enfatizar que não acredita em mim. Eu até te mostrei
a foto!
Ele riu.
— Eu acredito que você salvou a vida do Eric Lee. — Não
acreditava, não. — Sobre a sua amiga... gosto dela. A única capaz de brigar
com você e ainda assim te proteger.
— Ela é incrível. — Segurei o pingente da nossa pulseira: um par
que comprara na internet e dera a ela em seu aniversário de quinze anos;
usávamos até hoje. O dela amarelo; o meu, rosa. Um coração de quebra-
cabeça que se completava quando estávamos juntas.
— Vou agradecer a Maitê, então. — Os lábios tentadores se
esticaram, os olhos pretos brilharam quando Jun afastou uma mecha solta
do meu rosto, mantendo os dedos frios em minha pele. — Por cuidar de
você e insistir para que você viajasse e superasse seus medos. Está aqui
agora por causa dela, certo? Serei eternamente grato.
Pisquei devagar, me convencendo de que o calor nas minhas
bochechas se devia ao exercício.
Engoli em seco, me dando conta da proximidade, do que sentia toda
vez que Jun me tocava ou me olhava daquela forma.
Me desvencilhei dele.
— E agora? O que vamos fazer? — perguntei, desviando o olhar
para qualquer outro lugar que não Jun Woo.
— Um circuito de treino que faço quando venho aqui. — Ele
explicou a sequência, parecendo de fato um treinador experiente. — Quatro
vezes cada um.
Fiz careta, encarando a corda estendida no chão. Eu detestava pular
corda.
— Tem certeza de que não está tentando fazer justiça à sua câmera
quebrada?
— Claro que não. — Deu risada, se aproximando da marca onde
começava a série de exercícios. — Só estou inventando desculpas para
passar mais tempo com você.
— Vamos começar — murmurei, ignorando o que ele disse com o
coração bobo acelerando mais.
Precisava concentrar minha energia — e hormônios — em outro
lugar. Uma série de exercícios talvez ajudaria, ou acabaria fazendo mais
uma besteira.
JUN
 
Ela era boa, boa mesmo, e eu me perguntava se era errado estar
impossivelmente mais atraído pela jovem que passara a última hora
treinando comigo.
Quando terminamos o circuito, Lena me pediu um tempo para
respirar e tomar uma água. Então, depois de lavar o rosto e descansar, ficou
sentada no tatame com as pernas cruzadas enquanto me observava colocar a
atadura preta nas mãos e seguir para o saco de pancadas dependurado no
outro canto da sala.
Não nego que tinha feito o meu melhor para impressioná-la, mas
não precisei de muito esforço: na primeira pausa, a peguei me observando
com aquela expressão que a entregava, aquela mesma de quando estávamos
no sofá, onde Lena praticamente suplicara meu nome.
E ela estava fugindo de mim. Toda vez que nos tocávamos, toda vez
que os nossos olhos se encontravam.
Chamá-la para aquele treino fora um teste. Ela poderia ter dito não,
mas fora ao apartamento, colocara roupas mais confortáveis para me fazer
companhia.
— Você pode vir treinar comigo quando quiser — falei, levando a
garrafa de água à boca.
Ela se virou para mim, as mãos nos quadris largos e na cintura
estreita, as mechas que soltaram da trança úmidas depois que ela lavou o
rosto e o pescoço.
— É muito bom me sentir saudável, mas eu não sei se quero sofrer
de novo.
Ri.
— Deixe de ser preguiçosa.
Helena começou a recolher os cones, levando os equipamentos para
a prateleira no canto isolado da sala.
— Na verdade, talvez eu devesse mesmo, ia me sentir menos
culpada quando voltar para casa e pedir uma porção de frango frito. —
Sorriu. — Porque é para isso que eu faço exercício.
— Para comer frango frito sem culpa?
— Exatamente.
Me aproximei dela no tatame e entreguei a garrafa de água para a
jovem segurar enquanto puxava uma de suas mãos e desfazia o emaranhado
de bandagem lilás que a envolvia. Eu comprara uma semana atrás, depois
de me lembrar que Lena falara que treinava antes de se mudar do Brasil. Eu
pretendia chamá-la para passar uma tarde comigo no estúdio de Jeon Gi há
um tempo, mas, com o aniversário de morte do meu irmão se aproximando,
acabei me esquecendo. Depois de nosso momento em Incheon eu decidi
tentar fazer algo, qualquer coisa para passarmos mais tempo juntos.
Helena levou a garrafa aos lábios rosados e sorveu um pouco de
água, observando o lugar.
— Seu amigo não liga de você treinar aqui?
— Ele costuma aparecer mais tarde com outros colegas.
— Hm... você prefere treinar sozinho, então.
— Prefiro treinar com você. — Sorri para ela, mas Helena nunca
levava meus comentários a sério, sempre traduzindo-os como uma
brincadeira.
Pensei que ela reviraria os olhos como sempre fazia, ou mudaria de
assunto, ou brigaria, como fizera da última vez. No entanto, após alguns
segundos me observando trabalhar em sua mão enfaixada e mudar para a
mão seguinte, Lena pediu baixinho:
— Precisa parar de ficar dizendo essas coisas para mim, Jun.
Tirei a outra faixa.
— E por quê? — A encarei em desafio.
Helena ergueu os olhos castanhos-esverdeados para mim, a luz
alaranjada do fim de tarde pintando sua pele, me fitando por um tempo,
séria.
— Porque... — desceu os olhos para a minha boca, engolindo em
seco — estou começando a acreditar nelas.
Talvez eu devesse dizer agora. Fazia mais de um mês desde aquele
não-encontro; tanto tempo desde que ficamos presos em uma despensa e
nos aproximamos. O tempo parecia tão maior para mim, anos, mas nos
conhecíamos há pouco mais de meses apenas.
Eu não queria apressar as coisas; vira como Helena ficara quando
Son Ho se declarara para ela. Em pânico. Como agira em Incheon.
Mas... Eu deveria dizer?
— Jun... — murmurou.
— Huh?
Ela me encarou uma última vez. Havia sentimentos conturbados
naquele rosto lindo, conseguia ler claramente em seus olhos. “Eu devo ou
não devo?”, “isso é o certo ou o errado?”, “o que estamos fazendo?” Mas
havia um sentimento sobressalente à toda confusão que ela sentia a respeito
da nossa relação; um que eu conseguia ver refletir e brilhar naqueles olhos
multicores.
Ela deu o primeiro passo.
— Me beija.
 
“Eu sei que posso te tratar melhor do que ele pode.
E qualquer garota como você merece um cavalheiro.
Me diga por que estamos perdendo tempo
no seu choro desperdiçado
quando você deveria estar comigo em vez disso?”
Treat You Better — Shawn Mendes
 
 
JUN
 
“Quando a pessoa certa está diante de você, você sabe. O seu
mundo se resume a ela, você só consegue pensar nela, e qualquer coisa que
ela diz e faz é importante para você. Saber que pode perdê-la dói, mas vê-la
se aproximar e pedir para ficar é um alívio.”
Adam me dissera aquilo uma vez, quando lhe perguntara o que ele
sentia em relação a Raven. Eu sentia aquilo com Helena, todos os dias. Não
conseguia me concentrar quando ela não me respondia, ficava impaciente
até a hora de vê-la de novo; não colocara tantas esperanças no que eu sentia
porque no começo ela gostava de Son Ho, mas...
Céus... Como explicar o que eu senti quando ela deu o primeiro
passo e envolveu meu pescoço com suas mãos quentes e delicadas? O que
eu senti não cabia em palavras no momento em que aquela garota linda se
esticou e ficou na ponta dos pés para me beijar.
Ela deu o primeiro passo.
E eu não hesitei em dar o segundo.
Deixei as faixas caírem no chão e, sem pensar por um segundo,
enlacei sua cintura, puxando-a para mim.
Eu a queria. Não havia dúvidas antes, eu tinha certeza naquele
momento.
Cada partícula do meu corpo queria e bradava por Helena.
E aquele beijo... Aquele beijo nada sutil era uma prova de que ela
me queria também. Ela correspondeu com a mesma voracidade que eu; me
puxou para si como eu a prensava contra o meu corpo.
E céus... Aquele baixo gemido que escapou dos lábios dela...
Naquele dia na despensa; várias vezes, quando passamos algumas
noites conversando enquanto jogávamos no meu apartamento; no sofá do
apartamento dela... se Ji Ah não tivesse aparecido, eu teria seguido com o
plano. No aniversário de morte do hyung[66], quando Helena cantara para
mim e me abraçara... Centenas de vezes no fim de semana em Incheon,
quando ela tirou fotos minhas...
Eu precisara usar todo o meu autocontrole para não beijá-la
enquanto explicava à Lena como usar a câmera ou montar os equipamentos;
ou nos instantes em que ela se distraía com uma das apresentações e
copiava os movimentos das dançarinas no palco, esquecendo do mundo
enquanto abria um sorriso encantador e se divertia.
Eu a quis todas as vezes, todos os dias. Cada segundo.
Não queria pressioná-la, e gostava de como as coisas entre nós
andavam e como ficávamos próximos a cada dia... Eu esperaria pelo tempo
que ela precisasse, mas jamais pensara que ela seria a pessoa a ultrapassar
aquela linha primeiro.
A ficar na ponta dos pés e me puxar para um beijo.
Tímida, ela abriu espaço, e então aquele beijo simples se
intensificou e eu não me segurei, sentindo o gosto de Helena na boca, a
língua dela brincando timidamente com a minha, os lábios tão macios.
Lena se desmanchando em meus braços...
Não escutamos quando a senha foi desativada e Jeon Gi entrou com
alguns amigos. Só percebemos as presenças no momento em que um deles
soltou uma risada, os outros o acompanhando com algum comentário que
só foi significante quando Helena separou os lábios dos meus.
— Wa, Kim Jun Woo! — Jeon Gi disse, mas eu só escutei sua voz,
não prestei atenção na plateia. — Se eu soubesse que, para ficar com uma
garota bonita, era só trazer ela para o treino, teria feito isso antes.
Daebak[67].
E risos.
Helena se afastou com um empurrão brusco, cambaleando para trás.
Os olhos se arregalaram, muito, como se só então se desse conta do que
tinha feito. Do limite que tínhamos ultrapassado.
E aquilo a apavorou.
— M-me desculpa — balbuciou rouca, trêmula. — Me desculpa,
Jun.
— Lena... — A olhei preocupado, dando o primeiro passo, mas ela
recuou.
— Preciso de ar. — E saiu correndo, abrindo espaço entre o
grupinho parado diante da porta, que continuou sorrindo e exclamando
piadas idiotas.
Passei a mão no rosto, tentando me acalmar, voltar ao normal. Antes
que eu pudesse segui-la, Jeon Gi segurou o meu braço.
— Cara, não acredito que trouxe sua namorada aqui para...
Me afastei com raiva.
— Não foi por isso que a trouxe aqui, seu idiota!
— Ah, qual é, Jun Woo — outro garoto falou, o irmão mais novo de
Jeon Gi. — Vai falar que trouxe ela aqui só para lutar? Museun
geojismal[68].
— Dagchyeo![69] — gritei, o empurrando para longe quando o
mesmo bloqueou meu caminho. E, quando o terceiro usou a boca para dizer
alguma coisa, o encarei com fúria. — Saia da frente ou eu quebro esse seu
rosto, garoto.
Os rapazes abriram espaço para mim e eu saí em disparada pelo
corredor, em direção ao elevador. Se ela tivesse ido embora, seria mais
rápido alcançá-la, mas não precisei ir longe. Helena estava agachada,
abraçando os joelhos e encolhida contra a parede ao lado do vaso de planta.
O choro dela me fez parar.
HELENA
 
Eu não pensei no que estava fazendo até ouvir a voz e as risadas.
Fora mágico e delicioso até eu despertar para o que tinha feito.
Jun correspondeu, mas... Ao me afastar dos lábios macios, ouvi as
risadas que me acompanhavam por um tempo.
Talvez a minha saída tenha parecido dramática e desnecessária,
afinal, eu só tinha beijado um cara e ele correspondido. Mas ninguém
entenderia realmente o que me consumira quando aquele beijo fora
finalizado de forma repentina.
A sensação... estava impregnada em mim. Mesmo que eu me
esforçasse para esquecer, as pessoas ao meu redor jamais saberiam... como
ainda doía. As risadas dos amigos de Miguel naquele dia na roda, todos
segurando uma garrafa de cerveja na mão, bêbados, zombando... de mim.
“...aquelas garotas idiotas dos filmes de Sessão da Tarde que nunca
beijaram ninguém?”
“Cara, foi tão fácil levar ela para a cama. Só falei que amava ela e
então... Já sabem.”
Risadas.
Mais e mais e mais.
“Ela não é muito ousada, mas eu vou ensinar alguns truques com o
tempo.”
“Acho que a Lena faz qualquer coisa que o Miguel mandar, é só
dizer algumas palavras bobas e bum!”
“Ela até que é bem fofa... Se eu for legal com a Lena, ela vem me
divertir também? Fica esperto, Miguel...”
“Está reclamando da sua namorada tem meia hora, cara... Só dá
ela para mim se está tão insatisfeito.”
Senti as lágrimas caírem, o ar pesando e sufocando.
“Já disse, vou ensinar ela a ser melhor, uma mulher de verdade.”
Tentava esquecer de todas as coisas que Miguel e os amigos
disseram sobre mim, da humilhação de saber que me negligenciar para
fazer meu namorado feliz fora em vão, que eu era uma piada para ele...
Tentava esquecer das coisas que me submetera e virara motivo de risos...
Mas... não conseguia.
Risadas.
“Às vezes, ela parece até uma criança, garota ingênua.”
“E porque continua com ela?”
“Experiência, acho. Ela faz o que eu peço e me divirto assim.”
E mais. Ele havia dito tantas outras coisas...
Risadas diabólicas.
Risadas que me travavam quando pensava em gostar de qualquer
um.
As pessoas não entenderiam como eu me sentia às vezes, como era
doloroso olhar para o espelho. Sair daquele poço fundo fora tão difícil! Por
meses, eu me odiara e desejara ser diferente por causa do que escutara
naquela noite, do arrependimento dos últimos anos tentando agradar alguém
como ele. Miguel dissera que só falara aquelas coisas porque queria parecer
descolado para os amigos, que ele realmente me amava e jamais me feriria
daquela forma, mas... Me lembro de vomitar quando meu ex me desejara
boa noite e tentara me beijar ao me deixar em casa, ignorante o fato de que
eu ouvira cada palavra pronunciada naquela roda de amigos; me lembro de
como odiara ele e a mim mesma.
Cada palavra rodeara meu coração como um emaranhado de
espinhos que não soltavam mais.
Até hoje.
Solucei, batendo a mão em punho no coração, tentando acalmá-lo.
— Helena! — Jun me alcançou, se ajoelhando à minha frente e
segurando meus ombros e eu encolhi; não queria que ele me visse assim,
não queria...
Mas aquilo. Aquele beijo...
Ser beijada por Jun foi mágico, mas e se ele...
Não. Ele não era como o Miguel.
— O que foi? — A voz que sobressaía àquelas risadas perguntou
preocupada. Ansiosa. Nervosa.
— Eu só... — Tentei, mas o choro piorou, lágrimas quentes e gordas
turvaram minha visão.
Jun jamais zombaria de mim, ele não... poderia gostar de mim
romanticamente, mas retribuíra o beijo.
E se eu tivesse feito algo errado? E se...
— Olha para mim — pediu, tocando meu rosto, enxugando as
lágrimas que não paravam de jorrar.
— Acho q-que foi a poeira — menti, com a voz fraca e estranha. —
Deve ter entrado no m-meu olho e...
— Olha para mim — insistiu, perto demais. O perfume dele me
embalava, a presença dele sempre foi reconfortante; eu adorava estar com
Jun, mas porque estava com tanto medo? — Por favor.
Suplicou.
— Lena, por favor.
Me forcei a encará-lo, meu peito dolorido pelo passado que ainda se
fazia terrivelmente presente. Aqueles espinhos forjados por palavras
zombeteiras e cruéis espremendo meu coração e cantarolando contra ele.
E se ele só tiver fingido mesmo? E se o beijo tiver sido ruim e
estranho para ele? Jun pode comentar sobre a garota que o agarrara
desavergonhadamente naquela tarde... rir de você para os amigos. Rir de
você para os amigos.
Rir de você...
Eu não suportaria.
Imaginar ele rindo de mim... Rindo como Miguel fizera...
— Helena... — Os olhos negros e angustiados me encaravam com
dor, como se me ver daquele jeito o fizesse sofrer. Mas eu não conseguia
evitar. — Me diz o que está pensando. Porque está chorando? Eu beijo tão
mal assim?
Ele tentou fazer graça, mas aquilo só me fez chorar mais.
— Q-quero ir...
— Para onde? Eu te levo para qualquer lugar, é só me pedir. — Ele
esperou, desorientado, talvez até desesperado. — Helena!
— Quero ir embora. — Fechei as mãos trêmulas em punho.
— Certo... — Engoliu em seco. — Antes me fala por que está
assim.
— Não precisa se preocupar comigo, deve ser a TPM... — Tentei
sorrir. Inutilmente. — Eu fico dramática nesses dias.
— Não ouse mentir para mim. Foi por causa do que aconteceu lá
dentro, não foi? Do que ouviu...
— Não foi. — Me desvencilhei do toque dele e me forcei a ficar de
pé. Jun também o fez. — Só quero ir para casa.
— Jebarl[70]... — Passou as mãos no rosto, levando as mechas
escuras do cabelo liso-ondulado para trás. — Como espera que eu não me
preocupe com você nesse estado? Fui eu? Eu te machuquei? Meu Deus, fiz
alguma coisa que...
— Não! — Limpei o rosto fungando, oferecendo a ele um sorriso
melhor. — Não é você. Sou eu.
Jun Woo bufou, revirando os olhos diante da frase clássica.
— É sério. Estou bem, Jun. Só quero ir para casa, tudo bem?
Ele hesitou, mas, como parecia me conhecer bem e saber que
continuar ali, com os amigos dele não muito longe, só pioraria as coisas,
pediu para que eu esperasse no corredor e voltou para o estúdio para buscar
nossos pertences. Com a mochila nas costas, Jun se agachou e insistiu em
me ajudar com os tênis. Por fim, ficou de pé, segurou a minha mão e me
levou para casa.
 

 
Os poucos minutos até a nossa rua foram... difíceis. Ele não disse
nada, mas jamais soltou a minha mão, acariciando o dorso com o polegar
como se aquele gesto fosse o bastante para me acalmar, e eu tentei. Tentei
dizer a ele o que estava acontecendo. Contudo, apenas abrir a boca para
começar a executar aquela tarefa fazia com que minha garganta se apertasse
e meus olhos se enchessem de lágrimas.
Quando paramos em frente ao meu prédio, Jun quis me acompanhar
até o apartamento, mas eu neguei, agradecendo pela tarde com uma curta
reverência tradicional e formal, algo que nunca fora hábito na nossa relação.
Eu precisava de um tempo para pensar.
Jun Woo não insistiu: se manteve em silêncio mesmo depois que
virei as costas para ir. O que foi pior de alguma forma, porque ele raramente
ficava calado, sempre tinha algo para dizer.
Envolvi meus braços em um auto abraço, me convencendo de que
aqueles calafrios eram devido ao frio da tarde, e não a qualquer que fosse o
sentimento me atormentando. Eu só queria chegar logo no meu
apartamento, tomar um banho demorado, me enfiar debaixo das cobertas e
fingir que nada tinha acontecido.
Suspirei para a placa que anunciava que o elevador estava em
manutenção, virando o corpo em direção às escadas. Longos e tortuosos dez
lances de escadas até o quinto andar.
Comecei, degrau por degrau, sentindo um peso de chumbo em cada
perna, inspirando profundamente enquanto tentava bloquear a confusão de
lembranças guerreando contra os meus sentimentos. Imagens e sons e
gostos e cores lindas e feias. As mãos de Jun rodeando minha cintura, me
colando ao peito dele, os lábios quentes contra os meus...
Por alguns segundos, eu desfrutara da descoberta de sentir aquele
piercing contra a minha boca, a língua dele explorando a minha. Mas aquela
sensação maravilhosa fora rapidamente ofuscada pelas palavras de Miguel e
dos amigos dele.
Um degrau por vez.
Estava... doendo. O silêncio de Jun e o que ele poderia pensar de
mim...
Doía não saber e imaginar o pior.
Na altura do quarto andar, oito lances de escadas depois, escutei
passos corridos e piso e derrapadas; por fim, já no alto da escada, pronta
para começar mais uma fase até o meu andar, vi um Jun ofegante surgir lá
embaixo. Então, os olhos pretos, brilhantes e arredondados encontraram os
meus e... sério ele seguiu subindo de dois a três degraus por vez até
finalmente estar cara a cara comigo na escadaria de emergência.
O rapaz apoiou uma mão na parede, ao lado da minha cabeça,
bloqueando meu caminho. Fechou os olhos por alguns segundos para
recobrar o ar.
— Estou cansado daquele canalha, Aish... Jinjja.[71] — xingou
baixinho, mais sério do que nunca. Então me encarou, decidido. — Vamos
esclarecer as coisas de uma vez por todas. Pensei que tivesse te ferido ou
algo assim, fiquei apavorado, mas... não foi isso. Não eu, mas aquele idiota
de novo. Você me disse naquele dia, quando o Son Ho se declarou: tinha
medo de que ele fosse te machucar da mesma forma que o Miguel fez. Mas
eu não sou o Miguel, Helena.
Desviei o olhar, a essa altura me recostando contra a parede atrás de
mim, cansada de me sentir daquele jeito, de deixar que o meu ex ainda
fizesse parte da minha vida daquela forma.
— Me conta o que ainda perturba você... — Jun pediu baixinho, a
voz ainda ecoando pela escadaria — e vamos resolver isso juntos.
Mordi o lábio, segurando as novas lágrimas e a vergonha.
— Lena... — Senti a mão de Jun tocar minha bochecha, a pele
morna envolver parte daquele ponto do meu rosto e me fazer relaxar um
pouco. Não queria pensar em nada quando ele me tocava daquele jeito,
porque era tão reconfortante e, ao mesmo tempo, conflitante. — Pode me
contar o que quiser, gongju[72].
Minha cabeça se inclinou na direção daquele toque.
Jun já sabia de tudo. Eu contara tudo. Não havia motivos para
inventar desculpas para fugir. Eu estava cansada de fugir.
— Aquele beijo... — murmurei, minha voz rouca e oscilante. Meu
coração pareceu parar de bater, como se para se preparar para a resposta que
receberia. — O que você achou dele?
Ergui o olhar para encontrar o de Jun. Ele franziu a testa, certamente
não esperando por aquela pergunta.
— Você... — Inspirei fundo. — Você gostou?
— É sobre isso, então? — Sua expressão suavizou e ele se
aproximou mais um pouco, o polegar acariciando minha pele. — Quer
saber se eu gostei do beijo?
— Huh. — Engoli em seco. — Quero... saber se gostou. O que
sentiu.
— Ok... — Ele assentiu, inspirou e pensou.
Jun Woo passou a ponta da língua entre os lábios, um hábito
distraído e até imperceptivelmente sutil que ele tinha e que fazia com uma
frequência inquietante. Jun parou ali, na argola prateada, como se para
conferir que o piercing estava no lugar; por fim, suspirou.
Ele estava pensando.
Jun desviou o olhar para a mão apoiada ao lado da minha cabeça na
parede e... pensou. Pensou na pergunta.
Estava pensando em quê? Numa forma de dizer que eu fora horrível
sem ferir os meus sentimentos? Pensando em como me dizer educadamente
que fora o pior beijo de sua vida e que fora pego de surpresa? Que não
queria que eu tivesse feito aquilo porque fora nojento ou...
— Foi como se a minha boca tivesse sido feita apenas para beijar a
sua, Helena.
Pisquei surpresa.
— O q...
— Eu não ia dizer assim e aqui, mas já que perguntou... — Ele
guiou um dos cachos negros em meu rosto para trás da orelha, suavemente,
o toque enviando uma mensagem para todo o resto do meu corpo. — Eu
meio que sou louco por você, Helena-shi.
Eu não consegui falar. Nada. Sequer me mexer; tinha uma
dificuldade enorme de respirar também.
— Esqueça as coisas que aquele babaca disse e fez, só... —
Suspirou. — Me deixe te ajudar a entender que ele estava errado. — E
colou os lábios no meu sem aviso prévio, com uma intensidade diferente
daquele beijo no tatame. Havia... palavras contidas nele. Palavras que ele
não queria só dizer, mas... mostrar. Foi arrebatador no começo, prensando o
meu corpo contra a parede de uma forma definitivamente indecente para se
fazer na escadaria do prédio. Se alguém nos visse... — Você é perfeita,
Helena.  — Interrompeu o beijo, falando baixo e sem ar, o rosto a
centímetros do meu. — Cada parte de você. O que eu tenho que fazer para
que acredite nisso?
Minha mão se fechou na malha da camisa cinza sobre o peito dele,
que subia e descia rapidamente, me mantendo em pé, me mantendo presa a
ele.
Jun Woo se inclinou de novo, bem perto. Enquanto ele murmurava
palavras doces em minha pele, eu sentia uma emoção nova me tomar,
diferente de tudo o que tinha experimentado. Lágrimas escorriam por
minhas bochechas, e o jovem sobre mim as enxugava com seus beijos.
Não era mais tristeza, mas... outra coisa.
— Seu cheiro é incrível... — Depositou um beijo em meu pescoço,
roçando levemente a ponta do nariz e seus os lábios ao subir, sem pressa
alguma. — O suspiro que solta quando beijo você faz minha cabeça girar...
— Mordiscou o lóbulo da minha orelha, aquele piercing deixando sua
marca a cada toque, contrastando a umidade dos lábios macios e quentes
com a compressão suave do metal. — Cada curva do seu corpo...— Jun me
encarou fixamente, olhos pretos que poderiam conter brasas negras,
incandescentes com o desejo e o sentimento que estavam contidos ali, para
quem quisesse ver — me tira o juízo. Tudo em você, Helena, incluindo suas
manias, seu vício descontrolado em plantas e lojas baratas e até os desenhos
animados que já me fez assistir... Eu adoro. Faço o que você quiser, quando
quiser porque te adoro.
Ele enxugou as lágrimas que caíam em meu rosto com tanto carinho
que me fez chorar mais.
— Quando vejo o seu rosto... Não tem nada que eu mudaria, Lena.
E quando você sorri, o mundo todo parece parar para te olhar... Porque
você é incrível do jeito que é.
— Isso aí é Just the way you are — funguei, emocionada mesmo
assim.
Ele deu de ombros.
— Achei que as palavras do sábio Bruno Mars fossem cair bem
agora — falou com os lábios esticados, se aproximando mais, me puxando
para mais perto. — É o que eu sinto. De verdade. Quando escuto essa
música só penso em você. Eu já viajei muito, conheci tanta gente, mas o
que eu sinto com você é realmente inacreditável. Se me contassem como eu
conheceria a pessoa por quem me apaixonaria, eu diria que a história era
roteiro de filme, mas foi real. Cada segundo com você foi real e
inacreditavelmente incrível.
Porque eu era sensível demais e porque a sinceridade que brilhava
nos olhos pretos dele me tocava profundamente, solucei, sentindo minha
visão embaçar de novo com mais lágrimas.
— “Você é insegura e não sei por quê... Não precisa de maquiagem
para cobrir nada, porque é perfeita do jeito que é. Você é linda, mas não
sabe que é linda, acho que isso só te deixa mais linda.”
Soltei uma risada, fungando, apoiando o rosto em seu peito, nossos
corações batendo no mesmo compasso.
— Não sabia que gostava de One Direction.
Ele passou os braços em meus ombros, me abraçando, apoiando o
queixo no topo da minha cabeça.
— Também penso em você quando escuto What makes you
beautiful.
Sorri, meu peito machucado e pesado ganhando cor outra vez, cores
alegres e doces.
Jun Woo suspirou, uma das mãos afagando minha cabeça, a outra
segurando meu ombro, o braço me mantendo presa contra seu peito.
— Fale se quiser que eu pare. Se me mandar embora, eu vou. Se
quiser que eu fique, diga. Estou completamente a sua mercê, Lena.
Inspirei aquele cheiro reconfortante do perfume único dele
condensado ao suor do treino. Não era forte, e tampouco o amadeirado e
chuvoso clichê. Era dele, uma mistura do shampoo que usava com o
perfume que passava, do amaciante que colocava nas roupas... Era a
essência de Jun.
Eu quis dizer também. Eu adorava tudo nele.
Envolvi sua cintura, ainda com lágrimas escorrendo, ainda com o
peito carregado de muito passado e antecipação do futuro e medo.
— Não posso prometer que não vá te decepcionar um dia — ele
continuou baixo, repetindo o gesto de acariciar o topo da minha cabeça até
os dedos alcançarem minha nuca. — Porque eu sei que vou. Sou só um
humano falho, afinal. Sou um pouco esquentadinho às vezes, talvez um
maldito ciumento, um cara de vinte e seis com medo de filme de massinha...
Soltei um riso rouco.
— Mas eu posso prometer uma coisa. — Se afastou, segurando meu
rosto com carinho, me olhando daquele jeito que me fazia sentir a obra de
arte mais linda e preciosa do mundo. — Vou ser o amigo que precisa
quando seu dia estiver ruim. Quando não quiser se arrumar e preferir ficar
de pijama, eu vou fazer o mesmo. Passo aquela gosma preta na cara o dia
que quiser.
Sorri.
— Pode dizer sem medo que está mal; pode me contar quando algo
estiver te incomodando. Se... — Ele engoliu em seco, hesitando. — Se eu
fizer algo que você não gostar... me diz. No mesmo segundo. Tudo bem?
Assenti.
Ele continuou me observando, mechas pretas caindo sobre os olhos
lindos.
— Não estou dizendo essas coisas só porque está chorando... — Me
ofereceu um sorriso gentil. Havia tanto carinho naqueles olhos, como se ele
temesse que eu fosse quebrar, como se eu fosse preciosa demais para Jun e
ele tivesse medo de me ferir. Eu... sentia aquilo. Sentir tão forte aquele
sentimento não falado fez a consistência das minhas pernas amolecer, um
frio bem-vindo agitar meu estômago e meu coração aquecer. Tão forte que
eu não conseguia falar. — Sempre quis você e nunca me dei o trabalho de
fingir. Nunca houve entrelinhas. Sou louco por você, Helena. Perdidamente.
Mas não parece enxergar isso. — Jun se inclinou para me beijar de novo,
lentamente, com ternura e paixão por segundos que poderiam durar eras.
Apoiando a testa a minha, ele sussurrou: — Está claro para você agora?
Sim. Como cristal.
Puxei o ar que dividíamos, encarando-o fixamente, levando uma das
mãos à sua nuca, às mechas compridas de seu cabelo escuro.
— Acho que vai ter que me explicar melhor... eu... ainda não
entendi o que está tentando me dizer.
O canto dos lábios dele se esticaram para o lado, a mão dele na base
da minha coluna me puxando, me prendendo ao seu corpo em um encaixe
perfeito.
— Garota teimosa e linda. — Beijou e mordiscou meu lábio
inferior, tirando mais um pouco de sanidade que ainda me restava.
— Cara lindo e convencido. — Sorri, me sentindo protegida
debaixo daquela cúpula que ele fez, me prendendo entre seus braços e a
parede. Passei a ponta do polegar no lábio inferior dele, tocando aquela
argola incrivelmente perturbadora. — Eu também sou louca por você
todinho.
— É mesmo?
— Huh.
Ele se inclinou para sussurrar em meu ouvido:
— Então me prova.
Meu rosto esquentou, um calor diferente me envolvendo juntamente
com o arrepio que irradiou daquele ponto sensível.
— Já se deu conta de que estamos na escadaria do meu prédio? —
sussurrei em resposta.
— E que a mulher do cachorro possesso provavelmente está
assistindo tudo? — disse Jun de volta, no mesmo tom. — Ela estava atrás
de mim quando subi.
— O quê?! — Meus olhos se arregalaram.
Me desvencilhei dele, verificando o lugar, descendo os degraus para
conferir se havia alguém.
Nada.
Jun gargalhou, se apoiando na parede ao cruzar os braços sobre o
peito e os calcanhares no chão.
Coloquei a mão sobre o coração acelerado.
— Não brinca comigo assim, Kim Jun Woo! — falei emburrada. —
Ela me odeia.
— E o cachorro também.
Estreitei os olhos para ele enquanto marchava escadaria acima.
— Só por causa disso, vai ficar sem eles pelo resto da noite — falei
passando por Jun, indicando com o dedo meus lábios que àquela altura
deveriam estar vermelhos e inchados.
— Você não vai conseguir resistir ao meu charme. — Ele me
abraçou por trás, beijando meu pescoço. — Vai?
Não respondi. Não consegui, não imediatamente.
Fechei os olhos por alguns segundos.
— Você sabe como jogar baixo, Jun Woo-shi.
Ele riu, se afastando, entrelaçando nossas mãos e me puxando pelas
escadas. Não nos incomodamos em verificar se Ji Ah estava no apartamento
quando entramos: Jun me puxou imediatamente de encontro ao seu corpo e
me beijou de novo.
E de novo.
E de novo.
 
“Como podemos não falar sobre família,
Quando a família é tudo o que nós temos?”
See You Again — Wiz Khalifa, feat. Charlie Puth
 
 
HELENA
 
Eu não consegui falar. Quando meus pais sorriram para mim no
outro lado da tela e anunciaram que iriam se casar, não consegui dizer.
Mesmo pela chamada de vídeo, vi o brilho emocionado nos olhos da minha
mãe.
Eu faria qualquer coisa por ela. Sempre.
Não era culpa dela eu me sentir tão mal por querer ficar, sabia que,
independentemente do que eu fizesse, minha mãe me apoiaria, mas...
— Assim que você chegar aqui, vamos marcar a data do casamento
— ela disse, a mão sobre a do papai, apoiada em seu ombro.
Eu segurava as lágrimas que queriam escorrer do meu rosto.
Sonhara com aquele momento por tanto tempo. Vê-los juntos outra vez...
Era tudo o que eu poderia querer.
Sol franziu a testa para mim, e eu conhecia aquele olhar. “Fala para
eles”. Mas eu não podia.
Apenas fiz um gesto negativo com a cabeça.
Era isso o que eu fazia. Eu corria dos meus problemas, os evitava
como uma covarde em vez de bater de frente.
— Sua irmã disse que queria nos contar algo importante — meu pai
falou ansioso. Eram raras as vezes em que falava comigo: desde que eu
viera para a Coreia, ele se mantinha distante, porque eu o desobedecera ao
me mudar. Eu fingia que não, mas aquilo me magoava bastante. — O que é?
— Bem, eu...
Não quero mais voltar para o Brasil? Como eu tirava o sorriso do
rosto da minha mãe daquela forma?
— Só queria marcar a reunião para que me contassem sobre o
casamento... — Forcei o sorriso. — Sol tinha me falado das suspeitas, então
fiquei ansiosa para saber.
Eu faria a prova. Se passasse, contaria a eles. Se não, apenas voltaria
para o Brasil como combinado. Era isso. O destino decidiria. Se eu tivesse
que voltar, voltaria. Se tivesse que ficar, ficaria.
Minha irmã manteve aquela expressão acusatória.
— Sua irmã não consegue guardar segredo. — Minha mãe bufou. —
Mas estamos felizes que agora sabem.
— Vocês não foram lá muito discretos, se querem mesmo saber. —
Minha irmã revirou os olhos, enrolando um cacho loiro na ponta do dedo.
— Claro que fomos. — Meu pai pigarreou, corando.
Isso me fez sorrir de verdade.
— Estou feliz que voltaram — falei.
Ele me olhou, aquele olhar de pai que não me dava há um bom
tempo. Aquele coronel emburrado sempre tivera uma pose durona, mas
tinha um coração molenga debaixo da pedra. As minhas melhores memórias
da infância foram criadas por ele. As noites em que ele chegava do trabalho
com uma sacola de mangas que pegava na volta para casa; os finais de
semana em que nos ensinava a montar fogueiras e a pescar; a casa da árvore
que montamos errado e mantivemos no chão mesmo.
Quando vira a decepção no rosto dele no momento em que eu
teimara em estudar em Seul, meu coração doeu muito; ainda doía. Meu pai
não queria me ter tão longe, eu sabia. Por isso, quando ele me olhou e seus
olhos esverdeados encolheram, fazendo aquele bigode de maestro se mover
ao sorrir para mim, não suportei.
— Estamos com saudade, filha.
Mordi o lábio, segurando o choro. Ou tentando.
Assenti.
— Também estou, pai.
— Volte logo para casa.
Se passar na prova, eu conto. Se não passar, eu volto.
Apenas assenti.
 
“Amor, eu vou deixar você saber,
nem sempre precisa ser rápido.
Talvez possamos ir devagar.
Nem sempre tem que se apressar,
tem que construir essa confiança.
Porque essa é a nossa primeira música.”
Our first song — Joseph Vincent
 
 
HELENA
 
— Aigoo[73]... — Jun fez uma careta enquanto deslizava o polegar
sobre a tela do meu celular. A cada foto ele franzia mais a testa e exclamava
algo diferente. — Mas você é tão jovem... — mais caretas — para só ter
foto de planta nesse celular.
Ri, aconchegada nele na cama do seu quarto, o rosto apoiado em seu
peito enquanto o rapaz passava foto por foto. Ji Ah e ele ainda se
arranhavam, como cão e gato; por isso preferíamos ficar no seu
apartamento na maioria das vezes.
— Eu gosto de ver a evolução de cada uma. Eu me apego mais
quando cuido de uma mudinha que desenvolve do que quando compro uma
planta já crescida.
— Mas... — Ele deu zoom na foto da Raminho, que eu tirara duas
semanas atrás. — Ela parece estar do mesmo jeito que naquela última foto.
— Aquela é uma Zamia, é outra. Essa aí é uma Zamioculca.
A expressão no rosto dele me fez rir.
Expliquei, voltando algumas fotos.
— Essa aqui tem as folhas mais espremidas e juntinhas, acho que
fica melhor na sacada. Olha como ela é mais espaçosa. — Segui para a
outra fotografia. — Essa aqui tem a folha mais separada e é a que eu deixo
na sala. Tá vendo? É mais ajeitada e compridinha. Ganhei a mudinha antes
de vir para cá.
— Wa... — Ele inclinou o rosto para me olhar. — Estou namorando
uma especialista em plantas.
— Você sabia disso antes. — Fiz careta, voltando a deitar a cabeça
em seu peito.
— E eu acho adorável, mas... — Continuou passando as fotos.
Diversas das mesmas plantas em ângulos diferentes, e outras dos meus
cactos e suculentas que tinha no Brasil. Eu não confessaria a Jun que pedia
um relatório semanal da minha mãe e da minha irmã para saber como as
minhas plantinhas estavam.
Não; se ele soubesse talvez terminasse o que mal tínhamos
começado.
— Mas...?
— Tirando aquelas que tiramos em Incheon, não estou vendo
nenhuma foto sua aqui! — resmungou, passando as imagens mais rápido:
algumas eram do parque e de árvores de cerejeiras na primavera, outras, de
pratos que provara... — Jamkkanman[74]... — Jun parou e eu segurei a
respiração. — Fotos de plantas... Árvores... Comida... Nenhuma sua... Mas
isso aqui?
Ele virou a tela e eu me fingi de desentendida.
Jun continuou passando até encontrar outra foto do YG. Depois,
passou e chegou à minha imagem favorita do Mark, do M.O.N, no MV de
Menea para Abajo. Mais um pouco e ele se levantou bruscamente, me
fazendo cair de cara no travesseiro.
— Esse aqui não é o Kian? — Franziu a testa para o celular, as
sobrancelhas escuras franzidas em puro choque e... ciúmes. Ele arregalou os
olhos e apontou o celular para mim. — Ele está sem camisa, Helena!
— O quê? Eu era solteira e desimpedida até alguns dias atrás —
retruquei, me sentando enquanto tirava os cachos do rosto. — Não é como
se ele me mandasse mensagem todos os dias. — Desviei os olhos para a
ponta da mecha que eu segurava e murmurei para provocar: — Só às terças,
que é a folga dele.
Jun me olhou emburrado.
Certo, eu provavelmente teria apagado aquelas fotos antigas se
tivesse lembrado, mas não me dera conta de que elas ainda estavam ali até
que meu namorado visse. Eu era uma K-poper, por favor.
— Tem mais fotos desses idiotas do que das suas plantas!
Segurei o riso.
— O quê? — Mordi o lábio quando ele virou o aparelho de novo.
Uma foto do Jackson Kang [75]no MV de Pretty Place. — Calça jeans,
camisa branca e chuva não tem erro.
— Você tem um namorado agora.
— Oh, Jinjja?[76] — provoquei, ciente que apagaria tudo mais tarde.
Eu jogara meus pôsteres do Eric fora por Maitê, não via problema algum
em limpar minha galeria para acalmar meu namorado. Até porque, agora eu
tinha o Jun ao vivo e a cores, sequer me lembrava que um dia salvara fotos
de Idols no celular.
Ele bufou, resmungando coisas ininteligíveis, e voltou a atenção
para o celular, fuçando o meu smartphone. Eu me recostei na parede,
esticando as pernas na cama, puxando a manga comprida do moletom
quentinho e cheiroso de Jun. Adoravelmente grande demais para mim.
Eram coisas pequenas assim que me faziam sorrir como idiota, e eu
não devolveria o agasalho nunca mais.
— O que está fazendo, Kim Jun Woo-shi?
Jun ergueu a câmera e elevou o símbolo da paz com os dedos
tatuados, então mais outra pose, e sorrisos, e bicos, e caretas, mudando o
ângulo e a distância do celular enquanto vários clicks eram disparados.
Sorri.
— Estou enchendo sua galeria de fotos do seu novo Idol. — Imitou
a foto do Kian, elevando a camisa e exibindo o abdômen definido com
gominhos cheio de desenhos e símbolos aleatórios tatuados.
Tirou a foto.
Meu sorriso morreu e eu engoli em seco.
O canto dos lábios dele se esticou para o lado.
— Limpa a baba, meu amor. — Jogou o celular para mim e piscou,
voltando a camisa para o mesmo lugar, cobrindo a pele à mostra.
— Não tô babando... Só... te admirando com mais atenção. — Abri
a foto e dei zoom. Uma escrita em chinês, no lado esquerdo da costela, uma
pequena no outro lado, que lembrava constelações.... um pássaro em
origami, um desenho de curativo mais embaixo, uma lua mais acima, uma
âncora debaixo do umbigo... — Jun-Jun, vem cá.
— O quê?
— Vamos ter que tirar outra, não deu para ver tudo direito.
Ele riu, voltando para a cama, me encurralando com os braços
tatuados à vista, já que eu roubara seu moletom.
— Espertinha.
— Acha que eu consigo vender cada foto por uns cem mil wons
[77]cada? — cochichei entre um beijo e outro.

— Essas fotos são exclusivas para a minha única fã. — Beijou


minha bochecha, para depois mordiscá-la de leve.
Ele gostava de fazer aquilo: me morder. Às vezes meu braço;
sempre minha bochecha. Não negaria que fazia o mesmo.
— Você não tinha que trabalhar hoje? — Fechei os olhos.
— Não, eu me demiti.
— O quê?! — O encarei. Jun abriu um largo sorriso satisfeito.
— Você me fez lembrar o que realmente quero fazer, Lena...
Continuar correndo atrás de escândalos de famosos não está na lista.
O fitei por alguns segundos.
— Você é um fotógrafo incrível, eu vi o que fez com aquelas fotos
que tiramos no domingo, me senti uma princesa da Disney. É... mágico! E
muito profissional. — Afastei algumas mechas escuras do rosto dele. Eu
tentara prender o cabelo liso em um rabo-de-cavalo mais cedo com o
elástico lilás que sempre tinha no pulso, mas parte da franja lisa-ondulada
deslizara para a testa dele outra vez.
— Acha mesmo?
— Huh. — Uma ideia me ocorreu, me lembrando de uma conversa
que tivera uma vez com Ji Ah. — Por que não criamos uma conta
profissional para você nas redes sociais e divulgamos um pouco do seu
trabalho por lá? Pode conseguir alguns clientes para casamento... ou até
pôsteres comerciais! Eu tenho uma amiga que usa muito fotos manipuladas
para capas dos livros de fantasia dela. Ela paga um rim em cada uma, você
pode se sair bem.
— Acho que é uma boa ideia.
— Mesmo?
— Huh. Vai me ajudar?
Assenti, segurando seu rosto com ambas as mãos e depositando um
beijo estalado em sua boca.
— Deixa comigo. Vou fazer de você um fotógrafo famoso e rico.
Os olhos dele encolheram em meia-lua quando o canto de sua boca
repuxou ao sorrir, com um brilho de orgulho e satisfação.
— Sou todo seu — disse sobre os meus lábios, então recomeçou
com aquilo de beijar e mordiscar, me desestabilizando em poucos segundos.
Jun me empurrou levemente para me deitar na cama e apoiou o antebraço
no colchão para sustentar o seu peso ao ficar sobre mim; a outra mão se
entrelaçou à minha ao lado do meu rosto.
Eu não sabia o que era ser beijada com tanta devoção, carinho e
paixão até Jun invadir meu coração daquele jeito. Minha mente ficava em
branco sempre que os lábios dele encontravam os meus. Eu nunca
contestava ou o impedia de continuar, mas, quando as respirações se
misturavam, mais ofegantes, e o sinal vermelho tocava, o rapaz se afastava.
— Não vamos correr — murmurou sem ar.
— Huh... — Fechei os olhos quando Jun recostou a testa na minha.
— Vamos no seu tempo.
Assenti, engolindo em seco.
— E não vamos mais ficar sozinhos em uma cama — sussurrou, me
fazendo rir.
— Não vamos.
Depositou outro beijo na minha testa antes de se virar e deitar no
colchão, me puxando para perto dele de novo. Minha cabeça permanecia
em seu peito enquanto nós dois estávamos em seu quarto, encarando um
teto de estrelas azuis e brilhantes.
O coração de Jun batia tão rápido quanto o meu.
Ficamos assim por um tempo, conversando sobre coisas aleatórias.
Eu pensei em como abordar o assunto da ligação dos meus pais, sobre o
casamento deles, sobre quererem que eu voltasse, mas continuei fugindo
por mais um pouco.
Jun encarou a tela do seu celular, que vibrou. Ao verificar quem
ligava, pela terceira vez só naquela noite, meu namorado recusou a
chamada e jogou o aparelho no outro lado do colchão.
— Não vai falar com o seu pai nunca? — perguntei, apoiando o
queixo sobre a minha mão em seu peito para observar seu rosto.
Ele contraiu o maxilar, fingindo não ter escutado a pergunta, só
fechando os olhos e continuando o carinho que fazia em meu ombro e
braço. Jun Woo conseguia se abrir sobre muitas coisas, mas sempre parecia
travar quando eu perguntava sobre o seu pai adotivo ou qualquer coisa
relacionada à família.
Jun ainda estava ressentido pelo pai ter escondido por tanto tempo a
morte do irmão. Todas as vezes que o nome do Sr. Kim aparecia na tela, o
fotógrafo recusava as ligações e fingia ser um número desconhecido, algum
spam. Era rara as vezes que o jovem atendia o pai, e quando o fazia, não
pronunciava mais que três frases. “Estou bem”, “não estou afim” e “vou
desligar”.
Jun Woo me dissera que, na infância, o sr. Kim, depois de perder a
esposa e adotá-lo, fizera de tudo para seguir com a vida. Reerguera a
empresa e dava tudo de melhor para os filhos. O empresário nunca agira
como se Jun fosse adotado, sempre o tratava com o mesmo amor que tinha
com o filho mais velho. E Jun o amava também.
Por isso meu peito doía sempre que o via ignorar o pai daquela
forma.
— Eu sei que você não gosta quando toco no assunto — comecei
hesitante; a mão em meu ombro recuou. — Mas não devia afastar o seu pai
assim.
Jun não respondeu.
— Devia encontrar ele pelo menos uma vez...
— Não quero falar sobre isso, Lena.
— Eu sei, mas se desse só uma chance pra ele se desculp...
— Por favor — pediu, me afastando com cuidado para se sentar na
cama. — Não quero falar com ele.
Me sentei também.
Eu deveria contar a Jun sobre a prova em breve, ela seria naquele
fim de semana e o resultado sairia no fim daquele mês. Ainda cogitava a
ideia de revelar só quando o resultado saísse, já que não queria sofrer
antecipadamente. Estudava todos os dias e tinha certeza de que me sairia
bem, mas sentia que, se não contasse logo para Jun, poderia me arrepender
depois.
Ele poderia ficar chateado comigo, então provocar uma discussão
sobre a família dele não era uma boa ideia, mas eu precisava dizer:
— Eu sei que foi errado da parte do senhor Kim esconder a morte
deles de você, mas seu pai só queria te poupar. Já faz quanto tempo que não
fala com ele? Ele só queria t...
— Helena. — Um aviso baixo.
Pare de falar sobre isso, era o que ele queria dizer com aquele tom.
E eu devia mesmo, mas meu coração doía quando o via rejeitar o pai
daquela forma, porque não afetava apenas o sr. Kim, mas feria Jun também.
— Seu pai já perdeu um filho. — Vi os ombros dele retesarem. —
Não acha cruel demais ele perder os dois?
A respiração de Jun Woo parou por alguns segundos. Eu não vi seu
rosto, mas senti que havia tocado na ferida sem permissão. Jun apenas ficou
de pé e saiu, fechando a porta e me deixando sozinha no quarto.
Suspirei.
Deveria ter mantido a boca fechada.
Caí no colchão como um peso morto e encarei o teto, as estrelas
fluorescentes azuis que eu fizera Cha Min colocar para que Jun se
lembrasse de mim quando fosse dormir. No dia, ele sequer notara. Porém,
de madrugada, me mandara mensagem com a foto do teto estrelado falando
que não tinha graça encarar as estrelas sem me ter por perto.
Fazia só algumas três semanas que estávamos juntos oficialmente —
três meses se contasse com o namoro de mentira —, mas meu coração doía
fortemente ao sequer imaginar ter que me despedir de Jun um dia.
Eu planejara contar sobre aquela possibilidade naquela noite, mas,
depois de cutucar a onça com a vara curta, não sabia se falar sobre a prova
seria uma boa ideia.
Talvez eu devesse ir embora.
 
JI AH (8:03 p.m.): Pode não voltar para o apartamento hoje? Estou em um
encontro.
 
Estreitei os olhos para a tela e me sentei no colchão do quarto de
Jun. Não era a primeira vez que ela me mandava uma mensagem como
aquela ou saía para encontros quase todos os dias, sem nunca me dizer com
quem estava. Era a primeira vez, no entanto, que ela me pedia para passar a
noite fora.
Uma vozinha, às vezes, insistia em dizer que minha amiga não
queria me contar com quem estava porque aquela pessoa misteriosa era Son
Ho. Não que eu me importasse; estava com Jun agora. Mas ficava
incomodada com o fato de ela me deixar por trás do que estava acontecendo
em sua vida.
 
LENA (8:04 p.m.): Não vai me dizer quem é o seu namorado?
 
JI AH (8:04 p.m.): Um dia, quem sabe. Ainda não sei o que ele é para
mim. Só não vem para cá essa noite.
 
Suspirei, deixando o celular de lado. O Celular de Jun brilhou. Uma.
Duas vezes. Mensagens.
Só pegava o celular de Jun Woo quando estava entediada e queria
jogar, mas a curiosidade me venceu e eu pensei ser o Sr. Kim. Jun já estava
bravo comigo, não mudaria muito se eu insistisse mais um pouco.
Estiquei a mão e peguei o celular, pronta para levá-lo para o meu
namorado, mas a mensagem ali me fez parar.
 
CHA MIN (8:05 p.m.): Cara, não vou voltar para casa hoje. Aproveita a
noite com a Lena.
 
 
“Conversas idiotas,
Perdemos a noção do tempo.
Eu te contei recentemente que
Sou grato por você ser minha?”
Nothing — Bruno Major
 
 
JUN
 
Ela estava certa.
E eu não deveria agir como um idiota com Helena por ouvi-la dizer
a verdade. Só... ficava irritado ao pensar no dia em que descobrira sobre o
acidente; ao me lembrar de como me sentira quando soubera que não só
havia sido enganado pelo homem que eu chamava de pai, mas também que
perdera o meu irmão.
Eu poderia ter voltado para Seul quando Tia Eh Ji me contara sobre
a morte de Jeong Hwi, minha cunhada e minha sobrinha, mas... do que
adiantaria se há meses já estavam debaixo da terra? Eu não teria mais a
chance de dizer adeus. Então, decidira ficar em Boston e me esquecer da
família que ainda vivia na Coreia do Sul.
Quando retornei para Seul, um ano antes, não avisara ao meu pai. Só
quando encontrei com a minha tia é que ela revelou para o irmão que o
sobrinho adotivo finalmente chegara. Ele me ligava todos os dias desde
aquele dia; eu o ignorava.
E Helena estava certa, mas, naquele ponto, eu ainda era um maldito
orgulhoso: me transformava sempre que pensava no meu pai e no porquê eu
não queria vê-lo.
Me fechei no quarto de Cha Min quando escutei Lena dizer aquelas
coisas, talvez, sim, como uma criança mimada. No entanto, não queria
descontar meu ódio nela, então preferi me trancar em outro lugar até a raiva
passar.
Acabei concentrando minha energia negativa no jogo no
computador, colocando o volume no máximo nos fones para abafar os
sentimentos bagunçados. Estava agindo como um babaca e me sentiria
ainda mais culpado depois, se abrisse a porta e percebesse que Lena já
havia ido para casa sem se despedir. Contudo, quase uma hora depois,
percebi um movimento na porta do quarto de Cha Min: uma fresta aberta
apenas o suficiente para que uma mão pequena, escondida pelo meu
moletom preto, aparecer, balançando uma sacola de papel pardo com a logo
da minha confeitaria favorita.
Tirei os headphones, voltando a escutar o mundo real e o barulho do
papel que Helena balançava no ar, escondida atrás da porta.
Uma oferta de paz.
Aquela garota adorável.
Lena tinha razão: eu era incapaz de ficar bravo com ela por mais do
que alguns instantes.
Deslizei as rodas da cadeira e esperei. Minha namorada colocou a
cabeça para dentro do quarto, cachos negros caindo sobre os olhos grandes
e arredondados, que piscaram, observando meu rosto.
Suspirei. Logo, estiquei a mão para ela, mostrando que poderia se
aproximar.
Lena entrou, com os pés descalços ecoando na madeira. Deveria ser
errado ficar tão linda apenas com aquele short e o moletom que cobria
metade de suas coxas. Ela parecia ainda mais baixa com ele, mas eu
adorava.
— Ainda está bravo comigo? — perguntou, parando de frente para
mim, estendendo os donuts.
— Eu consigo ficar bravo com você? — rebati, deixando a sacola
sobre a mesa e a puxando para o meu colo. Helena permitiu que eu
envolvesse sua cintura quando ela se sentou e apoiou a nuca em meu
ombro. Inspirei o cheiro dela, aquela mistura do meu próprio perfume com
o shampoo que a minha namorada usava.
— Não vou me intrometer de novo — prometeu baixo, acariciando
minhas mãos em sua barriga. — Me desculpa.
— Não... — murmurei, fechando os olhos por um segundo. — Você
tem razão. Não posso continuar com isso. Vou dar um jeito.
Silêncio.
Ela só seguiu com o carinho no dorso da minha mão, encerrando
aquele assunto sabiamente. Fiquei grato por isso, por termos acertado
aquilo e finalizado a discussão. Lena sabia o que eu queria dizer: eu veria o
meu pai em breve, conversaria com ele e tentaria perdoá-lo.
Ponto.
— Ei... — Ficou de pé depois de um minuto e se virou para mim
com um sorriso travesso nos lábios. — Vou dormir aqui hoje.
Franzi a testa.
— Não que eu ache ruim, já dormimos juntos em uma despensa,
mas...
— O Cha Min te mandou mensagem — falou, e algo na expressão
de Helena dizia que ela queria aprontar ou já havia aprontado. — Disse que
não vai voltar para casa hoje.
Estranho... Meu amigo nunca passava a noite fora.
— E advinha quem me mandou mensagem pedindo para que eu não
voltasse para o apartamento?
Não pensei muito.
— Você acha que os dois...
— No começo, achei que poderia ser o Son Ho, mas tem um tempo
que ela está saindo com alguém. — Helena colocou a mão no queixo
pensativa. — Foi o Cha Min que levou ela para casa quando a Ji Ah ficou
bêbada aquela vez... E desde então ela está saindo com mais frequência que
o normal.
— Eu estava ocupado demais com você para prestar atenção no meu
amigo. — Dei de ombros, e Lena sorriu.
— Mandei entregarem frango frito lá agora. — Soltou uma risada,
tamborilando os dedos um no outro em frente ao corpo. — E com um
bilhete escrito “Eu sei de tudo”. Acha que ela vai saber que fui eu?
Ri, ficando de pé para enlaçar a cintura dela.
— Vamos fazer hora com os nossos amigos até eles contarem que
estão namorando? — questionei, me inclinando para beijar o pescoço
exposto da jovem.
— É claro...
— Ótimo, amanhã vamos enviar flores para a Ji Ah no nome do Cha
Min.
— E, quando ela ligar para agradecer, ele vai falar que não mandou
nada. Vamos mandar rosas, minha amiga odeia rosas. — Soltou uma risada
cúmplice. — Isso vai ser divertido.
— Agora vamos parar de falar deles e focar na gente. — Mordisquei
a bochecha macia da minha namorada. — O apartamento é nosso.
— Vamos jogar Super Mario! — sugeriu, fingindo inocência, ou
talvez falando sério. Não me esquecia da promessa que fizera a ela sobre ir
devagar, mas provocá-la era o meu passatempo favorito. — E fazer kimpab.
— Está brincando? — A encarei, franzindo a testa. Não era bem o
que eu tinha em mente.
E ela sabia.
— Vamos distrair essa cabecinha. — Afastou as mechas da minha
franja e abriu um sorriso de tirar o juízo. — Escolhi uns filmes.
— É?
— Wallace e Gromit — disse em suspense. — A batalha dos
vegetais.
Gargalhei. Ela sabia o quanto eu odiava filmes de massinha.
— Se a sua ideia é me distrair com esse filme detestável, falhou,
amor. — Dei a ela um sorriso malicioso. — Vou querer focar a minha
atenção em outra coisa.
— E também peguei A fuga das galinhas, seu filme favorito. — A
jovem me ignorou, fugindo do meu abraço. — É só escolher.
— Não vamos nos divertir, então. — Bufei.
Helena sorriu e segurou minha mão, me puxando para fora do
quarto.
— Teremos a noite toda para isso.
 
“Todos nós queremos ser
O alguém de alguém.
Alguém que não podemos viver sem.”
Someone’s Someone — Monsta X
 
 
HELENA
 
Os braços que me rodeavam naquela manhã me puxaram no
colchão. Jun colou minhas costas em seu peito, me prendendo naquele
abraço. Eu sabia que ele não estava dormindo quando despertei, mas o
jovem continuou de olhos fechados até que eu ameaçasse sair da cama.
Senti a respiração dele em meu pescoço e, mesmo que não dissesse
nada, sabia o que rondava sua cabeça enquanto enroscava braços e pernas
em mim, me prendendo.
Não vá embora.
Depois de jantar e jogarmos um pouco, depois de Jun me emprestar
uma calça moletom dele e uma camisa limpa para eu colocar depois do
banho, as coisas ficaram... diferentes. Não vimos problema em dormir na
mesma cama, mas um beijo de boa noite se tornara algo mais intenso.
 
 
Jun me beijou com delicadeza, devagar, sem nenhuma pressa,
brincando e explorando minha boca com a sua de uma forma quase tão
arrebatadora quanto aquele beijo nas escadas de emergência.
Eu adorava a sensação dos lábios dele contra os meus,
principalmente o roçar sutil da argola metálica contrastando com a maciez
e a umidade. Era... perfeito.
Ele não esperou que recuperássemos o ar para voltar de onde
parou. O rapaz seguiu com beijos demorados por meu queixo; então fez
uma trilha deliciosa pelo pescoço e, por mais maravilhoso que fosse estar
ali, sob ele, beijada e mimada por ele, uma coisa me incomodava.
Não podia continuar escondendo aquilo da pessoa que se tornara
tão importante para mim em tão poucos meses.
— Jun — sussurrei, ainda indecisa se era mesmo um bom momento
para ter aquela conversa.
— Huh? — Continuou com os beijos em meu pescoço. Uma das
mãos estava em minha nuca, enviando uma corrente elétrica fria e
deliciosa por todo meu corpo, os dedos entrelaçados às mechas do meu
cabelo.
Levei a mão até aquele braço estendido em minha direção, não
querendo que Jun Woo parasse, mas sentindo que não conseguiria
aproveitar nem um minuto sequer da presença maravilhosa dele com uma
mentira entre nós.
— Precisamos conversar.
Ele mordiscou o lóbulo da minha orelha, resmungando alguma
coisa.
— Sobre... — Engoli em seco. — Sobre minha estadia permanente
em Seul...
Meu namorado não parecia ouvir; seria mais fácil se os lábios dele
não estivessem percorrendo aquele pedaço de pele que parecia ferver em
cada toque, o piercing acompanhando como gelo em brasa, marcando sua
presença em cada beijo e mordiscada depositados.
— Eu menti.
Jun parou.
Senti a respiração dele contra o meu pescoço por alguns segundos,
como se repassasse o que eu havia dito, como se... perguntasse se tinha
escutado direito.
Ele recuou um pouco, para me encarar nos olhos. Por um segundo,
medo pareceu brilhar nas íris escuras dele. E o sentimento era mútuo.
Antes, eu tinha certeza de que permaneceria na Coreia do Sul. Nada
parecia ser um empecilho: conversar com os meus pais sobre parecera ser
apenas um curativo simples para remover depois, mas...
“Eu e o seu pai vamos nos casar, filha!”
Eu já não tinha mais tanta certeza. Não sabia mais o que
aconteceria dali para frente. Não conseguia pensar em como decepcionaria
os meus pais ao dizer que queria ficar, mas a certeza de passar naquela
prova para uma vaga tão disputada não fazia mais sentido.
E agora havia o Jun.
E eu não conseguia pensar em uma forma de me despedir dele
também.
A pergunta estava clara em seus olhos.
— Eu... — Desviei o olhar para o pedaço de pele em seu peito que a
camisa larga não escondia. — Não sei se vou ficar.
Dessa vez, ele se afastou. Jun estava de joelhos sobre o colchão e eu
ainda sentia a atenção total dele em mim, me exigindo uma explicação.
— Está... — Sua voz rouca falhou. — Está me dizendo que vai
embora?
Me obriguei a sentar na cama, abraçando os joelhos e encolhendo
ali, na esperança de simplesmente sumir após ser tomada pela insegurança
outra vez.
— Eu não sei — sussurrei.
— Você disse que não tinha planos para voltar.
— E não tinha.
— E o que mudou agora? — Havia uma tensão que nunca ouvira
antes na voz dele, um tremor e um medo que lascaram um pouco meu
coração apaixonado e dolorido.
Encarando o lençol, contei baixinho para ele: tudo, sobre os meus
pais; sobre o divórcio que Jun sabia ter me afetado muito quando criança;
como eu passara dias arquitetando planos infantis com a minha irmã para
unir os dois outra vez porque doía muito saber que eles não se amavam
mais. Que eu precisaria me afastar de um e escolher outro. Desabafei outra
vez o quanto sentia falta do meu pai e o quanto me feria não poder ter tido
uma vida com ele e minha mãe perto. Por fim, falei sobre a prova, contei
sobre o quanto minha mãe estava emocionada ao revelar que ela e o meu
pai passaram os últimos meses flertando e namorando como dois
adolescentes e como ela parecia feliz por revelar à filha que ia se casar
outra vez. Feliz de saber que eu voltaria para casa em breve.
— E... você deveria saber — finalizei.
— Se passar na prova, você fica.
Assenti.
— Se não passar, vai voltar.
Outro meneio curto com a cabeça.
— Me desculpa — sussurrei, encolhendo mais, cada centímetro de
pele que ele tocou ainda arrepiado com o fantasma de sua presença. Não
ousei erguer o olhar para Jun, não ousei encará-lo por... medo? Medo de
que ele levantasse da cama e me deixasse sozinha ali, medo de que ele me
olhasse diferente e...
Um movimento no colchão e, em alguns segundos, braços fortes me
envolveram e me pressionaram contra o peito e o coração acelerado. Jun
beijou o topo da minha cabeça.
— Tudo bem. Vamos... dar um jeito. Não significa que vai partir
amanhã, pode... Você pode passar nessa prova e ficar.
— E se eu não passar? Eu sinto falta da minha família, mas...
— Vamos falar sobre isso amanhã... ou na próxima semana. Hoje
não.
 
 
E não falamos. Apenas deitamos e encaramos o teto de estrelas
brilhantes até adormecermos.
Acabei sonhando que estava no avião e Jun terminara comigo
depois de um tempo namorando à distância. Fora tão longe no sonho que
visualizara ele se despedindo uma última vez por celular, dizendo que era
melhor acabarmos com aquilo.
Era inútil sofrer por algo que sequer tinha acontecido, aquilo não era
o fim do mundo, mesmo... mesmo se eu tivesse que voltar para o Brasil.
— Tive um sonho ruim — ele murmurou por fim.
Suspirei, me virando no colchão para abraçar sua cintura.
— Eu também.
— Vamos fingir que não aconteceu? — perguntou, acariciando o
emaranhado de cachos negros em minha cabeça. Não queria imaginar a
bagunça que eu estava.
— Huh. Vamos fingir que nunca aconteceu.
— Ótimo. — Beijou minha testa. — O que acha de tomar um café
comigo?
— Queria tomar um banho primeiro.
— Vamos tomar um banho então, sem problemas.
Sorri, sentindo as malditas bochechas corarem.
— Já disse para parar de dizer coisas assim... E me olhar desse jeito.
— Mas você é a minha namorada... — Fez um biquinho. Depois o
sorriso maroto voltou. — Acostume-se.
Me afastei dele rindo e, antes que os meus pés tocassem o piso de
madeira, o barulho de uma porta batendo com força nos chamou atenção.
— O que foi isso?
Olhei para Jun, que se apressou em sair da cama, um pouco
cambaleante. Ao abrir a porta do quarto, ele franziu a testa para a sala.
O segui.
— O que houve, cara? — meu namorado perguntou e, quando viu
meu rosto, Cha Min soltou um riso seco.
— Pelo menos vocês aproveitaram a noite e estão felizes — disse,
se jogando no sofá.
— O que foi? — Me sentei ao lado dele, ignorando as roupas
amassadas e o cabelo desgrenhado. Se bem que... Cha Min não estava
melhor do que eu.
— Sua amiga.
Franzi a testa.
— O que tem ela?
— Só queria me usar um pouco. — Riu sem graça.
— O quê? — Olhei para Jun, que suspirou, sentando na mesinha de
centro da sala, de frente para o amigo.
— Aquele cara apareceu hoje de manhã — continuou, com a voz
rouca e até magoada. — Son Ho, certo? Ela me expulsou do apartamento
quando o viu.
Ai, Ji Ah...
— Tem certeza que ela só não...
— Ela disse que só queria se divertir um pouco e não pensou que eu
me apaixonaria por ela ou algo do tipo, que éramos adultos e só tivemos
alguns encontros casuais juntos, me pediu para esquecer o que fizemos
ontem... — Cha Min me encarou magoado.
— Sinto muito... — Apertei de leve o ombro dele. Era tudo o que eu
podia dizer, já que minha amiga costumava mesmo “só se divertir”.
Mas era estranho... Ela nunca saía com o mesmo cara por mais de
duas vezes.
— Há quanto tempo vocês dois estão juntos? — Jun perguntou,
como se lesse minha mente. — E porque não me disse nada, seu miserável?
— Desde o dia em que a Lena me pediu para deixar a Ji Ah em casa.
Mas sinceramente? Acho que ela só ficou comigo para esquecer aquele
cara. — Suspirou. — E eu meio que já sabia, sou um idiota mesmo.
— Vou comprar alguma coisa para...
— Vá para casa, Lena — o amigo de Jun pediu. — Vá embora.
— Ya![78] Como você expulsa a minha garota assim, Kang Cha
Min? Quer morrer? — Jun jogou uma almofada nele.
— É só que... Eu disse umas coisas para a Ji Ah antes de sair. — Ele
fechou os olhos, massageando a têmpora. — Só acho que talvez ela esteja
precisando da amiga também.
 

 
Ji Ah continuou fingindo que eu não estava ali. Ela usava um dos
meus pijamas e tinha três barras de chocolate no colo, duas garrafas de Soju
ao lado.
— Pode me contar o que aconteceu? — perguntei, tirando uma barra
de chocolate da mão dela para mim.
— Eu fiz merda.
— Então limpa.
Ela me fuzilou, e foi a primeira vez que quebrou o contato da TV
para o resto do mundo. Depois de alguns segundos me encarando, os lábios
dela tremeram.
— Eu disse para ele que só queria me divertir, Lena. — Os olhos
dela se encheram. — Falei que não queria algo sério.
— E estava mentindo.
— Quando o Son Ho bateu na porta pedindo a panela de arroz
elétrica emprestada, eu não sei o que deu em mim! — A primeira lágrima
escorreu. Então, ela encheu a boca de chocolate antes de continuar. — O
Cha Min tava dormindo e eu fiquei... com medo do Son Ho ver ele...
— Mas o Son Ho sabe que você sai com outros caras.
— Não é só isso! — Minha amiga se sentou sobressaltada. — Ele
nem gosta de mim assim! Sabe do que o Son Ho me chamou antes de ir
embora? Irmã mais nova! Irmã mais nova, Helena!
Suspirei, me recostando no sofá.
— O Min acha que você só estava usando ele para esquecer o Son
Ho.
Silêncio.
Eu sabia que era verdade.
— Eu estava usando o Cha Min para esquecer o Son Ho —
confirmou.
— Mas acabou se apegando.
— Huh.
— E agora afastou ele.
— Huh.
— E ele nunca mais vai querer falar com você de novo.
— Helena! — Ji Ah me bateu ao choramingar.
— É brincadeira. — Ri, a puxando para um abraço. — Não se
preocupa, o Cha Min é apaixonado por você desde o primeiro dia que te
viu. Vai te dar outra chance.
— Como tem certeza?
— Eu sei. Só que é você quem vai ter que correr atrás dele dessa
vez, se quiser tentar.
— Eu deveria, certo? — Enxugou a bochecha. — Ele é tão fofo e
romântico e... argh! Quando ele tira aqueles óculos, vira outra pessoa,
sabia? Tipo o Clark Kent se transformando no Superman.
Ri.
Minha amiga choramingou de novo.
— Ele foi tão carinhoso ontem, Lua... Tão perfeito... — Cobriu o
rosto com as mãos. — E eu arruinei tudo.
— Mostra para ele que não é verdade, que se importa com ele. —
Acariciei suas costas. — Vai ficar tudo bem.
— Vai ficar tudo bem para você, né? Sua vida tá uma maravilha e...
— Ela se virou no sofá. — Ficou sozinha com o Jun ontem.
Revirei os olhos.
— Não aconteceu nada.
— Como não aconteceu? — Minha amiga me olhou incrédula.
Dei de ombros, recostando no sofá e levando mais chocolate à boca.
— Estraguei o clima depois de contar sobre a prova.
— Mas você vai passar.
— Eu sei, mesmo assim...
Minha amiga bufou, deitando a cabeça no meu ombro e enroscando
o braço no meu.
— Sabe o que eu acho? — murmurou depois de um longo suspiro.
— Huh?
— Deveríamos ter um dia de garotas hoje. Esquecer dos caras que
gostamos e focar só na gente. — Os olhos vermelhos de choro me
encararam. — O que acha? Faz tempo que não temos um dia assim.
Pensei em falar que estava cansada e queria ficar quietinha, mas ela
estava certa, e precisava de mim. Desde que acontecera a confusão com Son
Ho e eu conhecera Jun Woo, não saíra mais com Han Ji Ah como fazíamos.
— Só se hidratar meu cabelo. — Pisquei com um biquinho. — Ah!
E fizer minhas unhas.
Ela sorriu.
— O que acha de começarmos a planejar seu último aniversário na
casa dos vintes? — perguntei. — Tá chegando...
O sorriso de Ji Ah morreu.
— Não acredito que me lembrou disso. E ainda falta dois meses!
— Qual é, Jiji! Precisa distrair essa cabecinha... — A sacudi; depois,
fiquei de pé. Ela adorava festas, a distrairia assim. — Vamos fazer um
festão! O que acha de uma festa à fantasia, huh?
— Eu sempre quis uma festa à fantasia — Ji Ah assentiu,
balbuciando infantilmente.
— O que acha? Vamos espairecer hoje e pensamos num plano para
você se desculpar com o Cha Min.
Ela passou a mão no rosto.
— Geurae![79] Vamos!
 
“Mudanças, elas podem deixá-lo meio louco.
Você está pensando nessas mudanças.
Mas algumas coisas você não pode consertar sozinho.”
Changes — Lauv
 
 
JUN
 
Aquele não era um bom dia.
Pior que isso.
Era o dia em que reencontraria meu pai.
Entraria na casa que prometera jamais voltar a colocar os pés de
novo.
Estava tentando me convencer de que aquela era uma boa ideia, que
eu deveria enfrentar aquilo de uma vez por todas e acabar logo com o
ressentimento. Porém, mal dormira a noite pensando em coisas para dizer,
catalogando os melhores xingamentos para quando encontrasse o sr. Kim.
Quando levantara naquela manhã, decidi que o melhor seria não ir; estava
em um mal humor difícil de controlar, e em dias como aquele o pior lado do
meu temperamento tomava forma. Mas Helena insistira, me pedira para
tentar, e decidi fazer aquilo por ela.
Mas já estava terrivelmente arrependido.
Ergui as sobrancelhas quando minha namorada finalmente apareceu
na sala e, apesar de achar que ela ficava linda em qualquer roupa, inclusive
naquela, franzi a testa para o conjuntinho de saia curta, camisa e
casaquinho.
Formal demais.
Sofisticado demais.
Sério demais.
Ela encolheu, deixando um resmungo escapar dos lábios quando
decifrou minha expressão. Minha cara deveria estar pior do que eu pensava.
— Você não gostou. — Os ombros de Lena caíram, desanimados.
As mãos se apoiaram na barriga, como se doesse de alguma forma.
Tentei mentir, mas...
— Por que está usando isso? — Minha voz saiu mais áspera do que
pretendia, e sim, o nervosismo de finalmente encontrar meu pai tinha me
transformado naquele tipo de velho rabugento desprezível. Mesmo que
Lena não tivesse culpa (ou sim, já que insistira incansavelmente para eu ir
ver o empresário), senti minha raiva triplicar ao ver minha namorada tão...
igual às outras.
O tom de azul-claro tinha deixado a pele dela ainda mais pálida, e a
maquiagem que Ji Ah fizera em Lena escondera as sardinhas que eu
adorava. Não fosse pelos olhos esverdeados, a moça facilmente seria
confundida com uma irmã mais nova da maquiadora coreana. Os cantos dos
olhos arredondados repuxados levemente para baixo e esfumados com
sombra acentuaram a semelhança.
Em qualquer outra situação, eu teria me deliciado com as ondas do
cabelo comprido e alisado, com o modo como a jovem ficava linda e
diferente desse jeito. No entanto, toda a composição de roupas e sapatos –
salto! Helena estava usando sapatos com saltos! – mudou completamente a
pessoa colorida e alegre por quem eu tinha me encantado imediatamente.
— Deixa de ser um babaca, Jun — Ji Ah grasnou ainda no quarto,
mas logo saiu e parou, contornando os ombros da amiga com o braço. —
Está na moda. E ela está linda.
Lena tentou sorrir para a amiga, mas os lábios pintados de tons
cereja se comprimiram em uma linha fina quando a jovem voltou a me
olhar insegura.
Suspirei.
— Desculpa. — Fiquei de pé e me aproximei dela, beijando sua
testa. Não tão baixinha mais, até o perfume parecia diferente. — Você está
linda.
E estava. Não era uma mentira. Ela estava indiscutivelmente linda.
Mas aquela não era a minha Helena.
Era uma boneca criada por Ji Ah.
— Vamos — falei, entrelaçando nossas mãos, já sentindo falta das
miçangas coloridas que Lena costumava usar. Percebi só então o quanto
gostava das unhas coloridas, lembrando que sábado era o dia no qual minha
namorada as pintava, sempre erguendo de dois a três vidrinhos de esmalte
para eu escolher a próxima cor. Parecia tão simples, bobo até, mas ver as
unhas pálidas e limpas, apenas brilhando com o que talvez fosse a base, me
irritou também.
Não conseguia controlar aquela mudança radical de humor; não
quando sabia para onde estava indo, onde jantaria. Eu mesmo não me
suportava naquele momento.
Só queria que o dia acabasse.
Estava tão irritado que não me importei muito com o elevador, o
tamanho escasso e as paredes de aço. Apenas entrei, puxando Helena
comigo. Ela observou meu rosto, e eu encarei aquelas roupas, desejando
poder rasgá-las todas. Talvez o fizesse depois do jantar.
— Posso mudar se você quiser — ela murmurou baixinho, inquieta.
— Estamos atrasados — retruquei, desviando os olhos para os
números alterados à medida que descíamos. Torturantemente lento demais.
— Você está linda assim.
Lena bufou, desvencilhando a mão da minha e a apertando ao redor
da alça da bolsinha bege que compunha o look.
— Mentiroso.
Respirei de maneira profunda, passando as mãos no rosto e
bagunçando as mechas do cabelo que, por algum motivo inexplicável,
tentara deixar comportado antes de sair do apartamento.
— Podia ter usado um de seus vestidos — deixei escapar, desejando
não ter falado aquilo, mas sabendo que era tarde demais para consertar. —
Parecer mais com você mesma e não... com a versão morena da Barbie.
Lena me olhou com raiva, raiva de verdade, e percebi ser a primeira
vez que ela me lançava um olhar tão afiado.
— Me desculpa se queria impressionar a família do meu namorado!
— ralhou, fechando com mais força as mãos na alça ao redor do corpo. —
Seu pai é um empresário importante, sua família é rica! Vamos jantar na
casa deles! Queria que me vestisse com um cropped qualquer e uma calça
jeans bordada?
Sequer pisquei.
— Sim.
Helena bufou.
— Ji Ah falou que é assim que as jovens de classe alta se vestem,
então fiz o melhor para não me sentir tão deslocada quando chegarmos na
casa do seu pai.
— Você é de classe alta? — perguntei, cruzando os braços.
Ela não respondeu.
— Não tinha dinheiro para pagar a câmera, mas onde conseguiu
orçamento para comprar essas roupas?
— Estavam na promoção — resmungou, desviando o olhar para as
portas fechadas.
Soltei um riso de escárnio.
— Aposto que pediu dinheiro emprestado a Ji Ah.
Desnecessariamente — continuei, erguendo uma das sobrancelhas e
correndo os olhos pelo corpo da moça novamente. — Tenho certeza de que
não vai usar essa saia outra vez.
Normalmente, Lena não se importava em revelar uma faixa de pele
da barriga ou até mostrar as pernas, mas jamais a vira com uma saia justa
como aquela, as coxas lisas e lindas tão à mostra.
A jovem me fuzilou, o peito subindo e descendo com rapidez.
Nunca esperara algum dia escutar aquela frase deixar sua boca, o
tom seco em sua voz:
— Você está agindo como um completo babaca hoje.
Sorri um pouco, de um jeito nada agradável.
Sim, eu era um cretino por adorar aquela expressão em seu rosto.
Helena geralmente se forçava a guardar qualquer sentimento ruim, qualquer
comentário sobre algo que a aborrecesse. Então, apesar dos pesares, uma
parte minha adorou ver a irritação cintilar de seus olhos.
— Foi você quem atendeu o celular e aceitou o convite do meu pai
por mim — a lembrei. — Então aguente seu namorado babaca pelo resto da
noite, princesa.
As narinas se dilataram levemente quando a moça inspirou, o
maxilar delicado se contraindo ao trincar os dentes. Se não fosse pela
irritação crescente em meu peito e pelo jantar que nos aguardava,
provavelmente eu a teria beijado naquele instante. De uma forma nada
decente, dentro daquele elevador minúsculo.
As portas se abriram, e Helena não me esperou ao sair batendo os
pés com raiva. Eu apenas a acompanhei tranquilamente, colocando as mãos
nos bolsos da calça preta.
Antes de deixarmos o prédio, Son Ho surgiu no começo da escada.
Seus olhos correram pelo corpo de minha namorada, e o engolir em seco
dele deixou bem clara sua opinião sobre o conjuntinho formal que Helena
usava.
Trinquei os dentes, me arrependendo por não ter ido treinar naquela
tarde, relaxar um pouco os músculos e evitar que tanta irritação se
acumulasse em minhas veias.
— Lena... — falou em cumprimento. Rouco, distraído. Sequer me
notou parado logo atrás da amiga. — Você está... — Pigarreou de forma
patética, como se esquecesse de como era falar. — Diferente.
A jovem brasileira hesitou, deixando o temperamento voar para
longe.
— Diferente... como?
— Diferente de como você geralmente se veste. — O cara sorriu um
pouco, acrescentando quando Lena encolheu: — Um diferente linda. Você
está linda, é o que quis dizer. Muito... Muito linda.
Trinquei os dentes e contive o punho fechado.
— Acha mesmo? — Helena virou o rosto sobre o ombro para me
encarar, aquela raiva deliciosa dançando em seus olhos, mais escuros àquela
hora do dia. — Porque o sr. Irritadinho aqui não gostou.
Son Ho franziu a testa, finalmente me notando. Finalmente
lembrando da minha existência. Não sabia e nem me importava com o que
Park Son Ho pensava de mim. Se eu não tivesse me intrometido, se não
tivesse aparecido na vida de Helena, se a jovem não tivesse quebrado
aquela câmera, talvez... ela o teria escolhido. Mesmo com a revelação de Ji
Ah pairando entre os dois... Talvez ambos aprendessem a superar isso e
tivessem ficado juntos em outra história.
Uma pena, no entanto, que eu tenha aparecido em um momento tão
conveniente.
Uma pena para ele, claro.
Son Ho ainda esperava eu me pronunciar.
Dei de ombros e falei simplesmente:
— Eu rasgaria essa saia agora mesmo se pudesse.
Helena arregalou os olhos para mim, suas bochechas coraram de
forma violenta e outro grunhido deixou seus lábios.
— Bom, eu... — O rapaz pigarreou, sem graça, coçando a nuca ao
dizer: — Não quero atrapalhar o encontro de vocês, então...
Quase tive pena dele. Quase. Até porque não fazia muito tempo
desde que Son Ho se arrumara com um sorriso no rosto para um encontro
com a amiga, que esperara por Lena em um restaurante com um buquê de
tulipas nas mãos. Estava perdido em devaneios quando o vizinho finalizou
seu discurso:
— Divirtam-se.
Algo no olhar de Helena pareceu vacilar quando viu o amigo se
afastar, e eu sabia que ela ainda se sentia mal por ter mentido para ele. Ao
mesmo tempo, a moça achava que contar a verdade só tornaria as coisas
entre o vizinho, Ji Ah e ela piores.
Depois de um suspiro melancólico, Lena encarou a rua à frente e
indicou com o queixo.
— Deve ser o motorista da sua família humilde — murmurou, seca.
— Vamos acabar logo com isso.
Dessa vez, a moça esperou que eu fosse na frente, certamente
intimidada pelo homem de terno preto e expressão indecifrável que
aguardava do outro lado. Quando me aproximei, ele abriu a boca para um
cumprimento, já pronto para a típica mesura formal da qual eu rapidamente
me desapegara quando mudara para Boston anos atrás.
— Se me chamar de sr. Kim, pago pra picharem seu carro — adverti
antes que o secretário do meu pai conseguisse falar. Ele parou, suspirando
pesadamente.
Sr. Chae me encarou, observando o piercing em minha boca, as
argolas que enfeitavam minhas orelhas, o cabelo mais comprido e as
tatuagens em minhas mãos.
— Então os boatos são verdadeiros — disse com pesar, e eu franzi a
testa esperando. — Você virou mesmo um rebelde, rapaz.
Sorri, me aproximando dele para um abraço.
Sr. Chae, ou vovô Chae, como meu irmão e eu chamávamos, fora
um tipo de pai para nós também. Nos buscava na escola quando nosso pai
não podia, nos repreendia quando ninguém mais o fazia e cuidava dos
nossos machucados quando aprontávamos. Diversas vezes encobrira meus
atrasos no colégio; nunca comentava sobre os hematomas em meu rosto,
mas me ajudava a tratá-los. Quando me metia em uma briga, o homem
normalmente perguntava quem começara e se deveria intervir, mas jamais
me dedurava, mesmo quando parecia tentado a fazê-lo. Era como um irmão
para meu pai e por pouco não fora meu sogro também. Vê-lo depois de
tanto tempo – quase seis anos – fez aquele aperto dolorido em meu peito
intensificar.
Minha garganta se fechar mais.
— Quanto tempo, secretário Chae.
— Está mais alto desde a última vez que nos vimos, sr. Kim —
comentou o homem, com um aceno curto de cabeça. — Pelo menos parece
saudável.
Eu ri, e então seus olhos escuros e estreitos se fixaram em alguém
atrás de mim.
Helena rapidamente se aproximou e fez uma mesura, deixando de
lado a carranca para oferecer ao homem de cinquenta e mais alguns anos
um sorriso doce.
— Helena Ferreira — disse de maneira formal. — É um prazer
conhecer o senhor.
Outro aceno de cabeça e o que só os conhecidos mais íntimos do
secretário sabiam ser um sorriso receptivo.
— Deve ser a namorada do Jun Woo. — Para mim, disse: — É
encantadora. Fico feliz que não trocou minha filha por qualquer uma.
Helena não me olhou, provavelmente ainda chateada; ela apenas
comprimiu os lábios e encarou o carro preto atrás do secretário Chae. Não
me perguntaria sobre aquilo, assim como jamais ousara me questionar
diretamente sobre as mulheres com quem já estive e minha relação com
qualquer uma delas.
Eu também achava que revelar algo sobre meus antigos
relacionamentos não ajudaria na confiança de Lena. Nunca tivera um
namoro realmente significativo, a não ser por Chae Bora (um namoro que
durara pouco mais de dois meses); jamais me comprometera com alguém
daquela forma.
Mas me divertira. Em Boston. Despreocupadamente. E depois de
Raven... Bem, meio que quis, sim, me distrair. Tentar esquecê-la. Mas então
meu irmão morreu e não pensei mais naquilo. Não quis mais companhia,
alguém em minha cama ou me tocando da maneira mais simples que fosse.
Não quis e não me importei em precisar de outra pessoa.
Até Lena.
— Foi sua filha quem terminou comigo, harabeoji[80]. — Uma meia
mentira. Depois, abri a porta de trás do carro e fiz um sinal para Helena
entrar. — Tenho certeza de que Bora já está em outra.
— Terminaram porque eram terrivelmente bagunceiros e brigavam o
tempo todo. — O homem revirou os olhos sob os óculos e abriu a porta do
motorista, não se dando ao trabalho de fechar a minha porta porque sabia
que eu detestava aquelas frescuras e formalidades.
Antes de ligar o carro e partir, notei o olhar do secretário Chae em
mim pelo retrovisor. Sério.
— Obrigado por aceitar o convite, menino — agradeceu com a voz
grave e rouca, quase trêmula de emoção. — Não sabe o quanto seu pai está
feliz por finalmente ver você.
Pensei em oferecer uma resposta ácida, mas aquela era uma de
muitas que eu reservara para meu pai. Não respondi; apenas fechei as mãos
em punho sobre os joelhos.
Quando o carro finalmente deixou nossa rua, ousei olhar para a
jovem ao meu lado no banco de trás. Lena colocara a bolsa pequena sobre o
colo na esperança de cobrir as coxas, já que a saia subira um palmo
considerável quando ela se sentou. Contudo, provocá-la sobre isso não
melhoraria as coisas.
Pensei em puxar uma de suas mãos e entrelaçá-la à minha, mas
minha namorada apertou as suas firmemente sobre o couro da bolsa como
se soubesse que eu o faria e virou o rosto para a janela.
Uma dispensa.
Não revelei à Lena que preferia motos por um motivo, que detestava
o espaço fechado de um carro, mesmo com a janela aberta. Apenas suspirei,
voltando minha atenção para a rua lá fora, guardando o pedido de desculpas
para mais tarde porque sabia, tinha certeza de que meu humor só pioraria.
 
 
Quase seis anos se passaram, e eu nunca mais tinha colocado os pés
naquela casa. Não havia lembranças ruins naquele lugar, o que tornava tudo
terrivelmente pior. Porque eu sabia que, quando passasse pela porta, as
cenas me sufocariam, os fantasmas de hyung[81] e noona[82] me
atormentariam e a risada alegre da pequena Hari seria um eco vazio de um
tempo que não voltaria mais.
E aquilo me despedaçou de uma maneira tão profunda que sequer
consegui pedir à Lena que fosse paciente comigo naquela noite, me
desculpar por ter agido como um idiota. Por descontar aquela raiva nela.
Só queria que aquilo tudo terminasse, que a dor sufocante passasse,
mas não era só isso: desejava me empolgar por saber que estaria levando
minha namorada para conhecer meu irmão e minha cunhada, que os
encontraria em breve, jantaríamos e contaríamos histórias juntos.
Mas aquilo não ia acontecer.
Meu irmão não estaria lá quando eu chegasse.
Nunca mais.
 

 
Secretário Chae se apressou em abrir a porta para Helena, mas não
fiz menção de sair do carro. Não imediatamente.
A casa não tinha mudado. Em nada. Talvez algo no jardim, mas não
conseguiria identificar na escuridão da noite. Apenas... encarei a entrada da
residência. Do lugar que um dia fora meu lar. As cores esverdeadas das
luzes que saltavam da grama e pintavam as plantas refletiam nas janelas
enormes e escuras do lugar.
Me lembrava da primeira vez em que estivera ali. Fora o melhor dia
da minha vida. Eu segurava uma bola de basquete nova que havia ganhado
do homem que me adotara. Hyung[83] estava ao lado do pai, observando
minha reação. Me recordo de exclamar o quanto a casa era enorme, que
parecia um castelo. Para uma criança de cinco anos que jamais tivera um
lugar para chamar de seu, era mesmo. Enorme. Meu irmão segurara minha
mão e, pacientemente, me mostrara cada cômodo da residência; nosso pai
vinha atrás, nos seguindo em silêncio. Quando hyung disse “este é o seu
quarto”, comecei a chorar. Era três vezes maior que o do orfanato, onde
dividia o dormitório com os outros rapazes. E havia tantos brinquedos...
Naquela época, Cha Min estava em processo de adoção por outra
família. Meu pai dissera aquilo quando perguntei se meu irmão de orfanato
poderia morar comigo, já que claramente havia muito espaço na casa. Cha
Min voltara para o orfanato aos doze anos e não quis aceitar o convite de
morar conosco porque gostava dos biscoitos da irmã Do San, sentia que, de
alguma forma, era um filho para ela. A mulher era a única em quem meu
amigo confiava para cuidar dele e amá-lo.
Como uma cena fantasma, visualizei meu irmão correndo comigo
em torno da pequena fonte que adornava a entrada; hyung chegando da
escola; Jeong Hwi entrelaçando a mão à de Yun Na quando se casaram;
minha cunhada aparecendo em casa com uma barriga enorme; Hari dando
os primeiros passos...
Trinquei os dentes, inspirei fundo e me forcei a engolir a saudade
que queimava e machucava. Vi o olhar preocupado de Lena do outro lado
do vidro escuro; ela não conseguia me ver, mas eu a enxergava
perfeitamente enquanto minha namorada mordia o lábio, franzia o cenho
preocupada e me esperava sair. Helena estava cogitando, talvez, deixar a
mágoa de lado para contornar o veículo e falar comigo.
A poupei da decisão quando vi o homem parado diante da porta,
ansioso para ver o filho depois de tanto tempo. Meu coração doeu de
saudade e raiva, amor e ódio. Coloquei a máscara mais fria que tinha em
meu arsenal e saí do carro.
Helena não me impediu quando segurei sua mão e a guiei escadaria
acima. Meu pai, no entanto, hesitou quando nossos olhos enfim se
encontraram. Pela primeira vez em seis anos. Antes com lágrimas e um
adeus, agora com a frieza de estranhos.
— Kim Jun Woo. — Seus olhos brilharam, mas o homem era tão
bom em esconder os sentimentos quanto eu. Então, sorriu para mim como
se não houvesse um abismo entre nós. Ele não ousou se aproximar, me
abraçar, mas virou o rosto para a jovem ao meu lado. — E você deve ser a
adorável Helena com quem falei na ligação.
De novo, minha namorada acrescentou a formalidade ao vocabulário
quando se curvou como mandava a cultura e falou, mais nervosa dessa vez:
— É um prazer finalmente conhecê-lo, sr. Kim. Obrigada pelo
convite.
O empresário abriu passagem para que entrássemos. Aquela era
prova de que ele estava mesmo ansioso para nossa chegada: esperar na
porta, e não dentro da casa. Não me permiti imaginar quanto tempo o
homem ficara parado ali, contando os minutos.
— Por favor, entrem.
— Obrigada. — Lena esperou que eu desse o primeiro passo.
E, por ela, eu dei. Me obriguei a entrar.
— A mesa já está pronta — avisou meu pai enquanto retirávamos os
sapatos no hall de entrada[84].
Ajudei Lena com as fivelas do salto; em outra ocasião, a teria
provocado por estar de joelhos diante dela daquele jeito, mas não o fiz.
Apenas retirei os sapatos e coloquei os chinelos forrados e confortáveis
diante dos pés dela.
Minha namorada pareceu aliviada por se livrar dos saltos, mas não
disse nada.
— Pedi que preparassem pratos diferentes pra que você provasse,
Helena-shi.
A moça o encarou surpresa, mas logo corou, desviando os olhos
para o chão. Provavelmente tinha se lembrado da nota mental que fizera a si
mesma sobre não encarar pessoas mais velhas diretamente nos olhos.
Se meu pai soubesse que Helena assistira vídeos e mais vídeos sobre
a cultura e as tradições da Coreia apenas para não cometer nenhum erro na
frente dele, o homem teria gargalhado. Ele adorava viajar tanto quanto eu,
já conhecera muito daquele mundo para se importar com formalidades na
tradição de seu próprio país.
— Providenciei uma lista dos pratos que você disse não ter provado
ainda. — A voz de tia Eh Ji irrompeu do corredor, e eu quase suspirei de
alívio ao vê-la parada diante da porta da sala de jantar. A mulher sorriu para
Lena, mas franziu a testa para o figurino de minha namorada,
provavelmente se perguntando se sua filha mais velha vestira a moça com
um de seus estimados modelitos de saias e blazers. Então me encarou: —
Trocou de namorada?
Senti Lena encolher outra vez, provavelmente se arrependendo da
escolha de roupas novamente. E desejei não ter dito nada, desejei ter sorrido
ao vê-la e elogiado sem hesitação no primeiro segundo.
— Ela está tentando impressionar vocês. — Ofereci um sorriso
brincalhão para Helena, que não devolveu o gesto. Ela estava pensando,
possivelmente, na melhor forma de sair correndo daquela casa. Fugir, se
esconder.
Tia Eh Ji soltou uma risada, como se também notasse.
— Deixe disso, garota. — Se aproximou e sorriu de maneira doce
para a jovem. — Não somos tão tradicionais assim; na verdade, somos os
Kim mais esquisitos deste país.
Lena conseguiu sorrir um pouco.
— Você está linda — minha tia completou, e eu sabia que era
sincero. Caso contrário, ela teria dito sem medo de magoar os sentimentos
da minha namorada. Sinceridade bruta era o segundo nome da mulher. —
Se Jun Woo não for esperto, pode perder esse tesouro.
Lena murmurou baixinho:
— Ele está sendo meio burro hoje...
Aquilo me fez querer rir, mas a voz do meu pai derramou água fria
na panela quente outra vez.
— Vamos jantar. — Apontou para a sala no fim do corredor. — Eh
Ji me contou algumas coisas sobre você, Helena. Estou curioso pra saber
mais da moça que conquistou o coração do meu filho.
— Ah... — Lena riu, tímida. — Ficaria entediado, tenho certeza.
As vozes se tornaram um burburinho abafado enquanto andávamos,
como se eu estivesse, pouco a pouco, sendo arrastado para o mais profundo
do mar. Aquele corredor e as paredes adornadas por pinturas em tela me
acertaram com outra enxurrada de lembranças, e precisei controlar a
vontade de seguir para a porta oposta à sala, a que levava para as escadas,
os quartos, a biblioteca. Nos fundos da residência, havia uma quadra que
meu pai, Jeong Hwi e eu costumávamos usar para um jogo de basquete no
final do dia, geralmente nos fins de semana.
Como se estivesse preso em uma despensa outra vez, senti minha
respiração pesar, o peito doer e aquele zunido incômodo me atormentar. Me
sentei à mesa baixa e antiga[85] no automático, sequer prestei atenção no
meu lugar ou no fato de meu pai se acomodar à minha frente. Não reparei
na quantidade de comida à mesa, a sopa e o arroz dispostos para cada um
em cumbucas de cerâmica combinando, mais acompanhamentos do que
daríamos conta.
Tia Eh Ji disse algo, talvez para mim. Meu pai ainda hesitava em
conversar diretamente comigo, sempre direcionando suas perguntas à
Helena. Só despertei da raiva, agonia e saudade quando notei minha
namorada se mexer desconfortável ao meu lado, as pernas dobradas para o
lado, as mãos puxando a barra da saia azul do conjunto que subia ainda
mais.
Rapidamente, tirei a jaqueta jeans escura que usava e a cobri,
sentindo a respiração de Lena em meu rosto quando me inclinei. Ela
agradeceu baixinho, ajeitando melhor a peça sobre as coxas, cobrindo
completamente a perna à mostra.
— Se sabia que Helena viria, devia ter preparado o jantar na outra
mesa — murmurei, seco.
Meu pai pareceu entender a dificuldade da brasileira, então olhou
para ela como quem pedia desculpas.
— Perdoe este homem velho por não ter pensado nisso. Queria...
fazer algo mais simples e tradicional. — Então, meu pai olhou para os
diversos pratos na mesa comprida de madeira. — Podemos levar tudo pra
cozinha se quiser. É mais pequeno, mas você ficará mais confor...
Lena se apressou em dizer:
— Imagina, sr. Kim!
Sua voz oscilou e, por um momento, me perguntei se ela via meu
pai como um daqueles vilões dos dramas que assistia. O empresário tinha
um porte atlético para a idade e, apesar de ser dono de um humor tranquilo
e de piadas ruins, possuía uma voz grave e um rosto muitas vezes usado
para intimidar em reuniões importantes. Talvez por isso a moça estivesse
tão nervosa; se eu não experimentasse um verdadeiro humor ácido naquela
noite, teria brincado com meu pai sobre isso, e ele teria rido. Despertei das
reflexões quando Lena falou novamente:
— Está ótimo assim! E a mesa está tão linda que seria uma pena
mover tudo para outro lugar.
— Vai acabar com uma cãibra se ficar o resto do jantar sentada
assim — retruquei.
Ela me encarou com raiva.
— Jun Woo... — Um aviso. Pare de ser um idiota, seus olhos
pareciam dizer. — Estou bem assim.
Tia Eh Ji, de frente para a jovem, descaradamente abaixou a cabeça
para baixo da mesa e analisou a situação, o que poderia ser feito. Então
empurrou o irmão mais velho para o canto da parede e se moveu também.
— Estique essas pernas, garota — falou, já enfiando uma colher na
tigela de arroz e na sopa em seguida, logo buscando os palitos para pescar
um pouco de japchae[86] na panela à sua frente. — Na próxima vez, faça
como eu e simplesmente venha de calça. Uma bem larga, pra caber mais
comida na barriga.
Meu pai sorriu.
— Ela não tem modos como você, Helena-shi. — O anfitrião
apontou para o arroz diante da minha namorada. — Mas, por favor, sinta-se
em casa.
Lena hesitou, mas fez o que tia Eh Ji mandou, esticando as pernas
debaixo da mesa e ajeitando minha jaqueta sobre elas outra vez para, enfim,
pegar a colher.
— Jal meokkesseubnida...[87] — murmurou baixinho.
Quando vi a mão dela tremer enquanto levava a colher ao arroz,
soube que estava nervosa e pronta para sair correndo.
Eu queria fazer o mesmo.
Comemos em um silêncio tortuoso; ninguém falou por um tempo:
meu pai estudando a melhor forma de puxar conversa; Lena obviamente
nervosa por estar ali – como eu certamente estaria caso estivesse
conhecendo sua família; eu sem me importar; e Tia Eh Ji enchendo o
estômago, algo mais importante do que preencher o silêncio daquele lugar,
que um dia já estivera cheio de risadas e conversas descontraídas.
— Você tem uma pronúncia coreana muito boa, Helena-shi — meu
pai recomeçou depois de alguns minutos de silêncio cortante. — Realmente
muito bom.
Lena abriu a boca, mas eu respondi, áspero:
— Ela estuda coreano desde os doze.
— Hum... — o empresário assentiu, ainda de olho em Helena. Em
nós dois. — Se mudou pra Coreia faz muito tempo?
— Dois anos — resmunguei, finalmente dando atenção para a
comida, sem me dar ao trabalho de encará-lo enquanto respondia.
— Você faz o que da vida, jovem?
Helena tentou de novo, mas apenas vê-la conversando com ele me
tirava do sério.
— É estudante — grunhi, levando um pouco de carne ao meu prato
de arroz com os palitos e fazendo o mesmo na tigela de arroz de Lena. —
Professora de inglês às tardes.
— Interessante... — o homem murmurou. Se eu o conhecia bem,
confirmaria a diversão em seu rosto caso ousasse erguer os olhos. — É de
que estado do Brasil, Lena?
— Eu...
— Minas Gerais — a interrompi, levando a colher cheia à boca. —
E é Helena-shi[88] para você.
Meu pai gargalhou baixinho.
— Sua namorada sabe falar? — indagou, me provocando. Apesar de
saber que aquela não era a ocasião para me desafiar, ousou erguer uma das
sobrancelhas para mim quando o encarei.
Grunhi, me obrigando a ficar em silêncio.
Satisfeito, meu pai voltou o olhar para a visitante, que mal
conseguia engolir a comida.
— Helena-shi — Kim Jeong Su enfatizou, inclinando o corpo mais
para frente ao juntar as mãos e apoiar os cotovelos sobre a mesa. — Estou
curioso: o que fez para conquistar meu filho?
Dessa vez, fiquei em silêncio, porque queria escutar. Deixei o mau
humor de lado apenas para virar o rosto para a jovem e esperar que ela
falasse. O tom de cereja em sua boca pintou as bochechas da moça quando
ela corou violentamente.
Lena lançou um olhar de socorro para mim, e depois para tia Eh Ji.
A mulher me encarava desde o momento em que nos sentamos daquele
jeito, prometendo um puxão de orelha mais tarde. Estava séria, mas desviou
os olhos escuros de mim quando a pergunta incitou curiosidade nela
também.
Eu nunca contara à minha tia os detalhes, apenas que Lena e eu
morávamos na mesma rua, que aconteceu.
— E então? — ela questionou minha namorada. — O que fez Kim
Jun Woo cair de amores por você?
Tentei conter o sorriso quando Helena me olhou de novo.
— Eu... er... — Uma risada sem graça. — É que eu... Bem... er...
Jun?
— Pulou diante de mim em um beco na frente de uma boate em
Itaewon, me ameaçou, tomou a câmera de mim e a jogou no chão.
Meu pai engasgou com uma tosse de risada quando falei. Tia Eh Ji
gargalhou, encarando Lena como quem não acreditava.
— Mas você é tão doce... — a mulher comentou, rindo.
— Por que fez isso? — meu pai quis saber, com um meio-sorriso
divertido.
— Ele... — Lena suspirou. — Ele ia tirar uma foto de um Idol que
eu gosto. Uma foto que daria o que falar. Eu só... impedi. Não sabia bem o
que estava fazendo até sair correndo.
O sorriso do meu pai morreu quando seu olhar encontrou o meu.
A diversão deu lugar à severidade. Uma que eu não via há séculos.
— Paparazzi? — Senti o desgosto em sua voz. — Não te mandei
para Boston para se tornar um paparazzi.
— Não tive muita escolha — respondi inexpressivo, voltando a
comer. Helena encolheu ao meu lado.
— Sempre tem escolha.
Um riso de escárnio deixou meus lábios, e eu o encarei firmemente
ao rebater acidamente:
— Sim, como escolhi não vir ao funeral do meu irmão. — A
expressão firme e dura de meu pai se desfez em segundos, mas não me
importei, nem mesmo quando o vi se retrair. — Escolhi não dizer adeus a
Yun Na e Hari. Espera. Não. — Mais um riso seco. — Você escolheu por
mim. Certo?
— Kim Jun Woo! — Tia Eh Ji me repreendeu.
— O que pensa que vão conseguir enchendo esta mesa de comida?
— a ignorei, assim como ignorei a dor nos olhos do homem que me adotara
e cuidara de mim. — Me fez de idiota, mentiu pra mim por meses e acha
mesmo que pode simplesmente fingir que nada aconteceu?
Meus olhos queimaram, mas me recusei a chorar. Me obriguei a
encará-lo. Naquele momento, com o coração acelerado e queimando de
mágoa e saudade, não me importei se estava agindo como um filho ingrato
e pirracento, se Helena estava ali assistindo a tudo. Não me importava com
nada além de que meu irmão, cunhada e sobrinha não estavam naquela
mesa, compartilhando o jantar conosco. Não, não fora o empresário quem
os matara, mas se esforçar para esconder as mortes de mim enquanto eu
estava do outro lado do mundo me feria como se ele tivesse cometido tal
crime. Isso me fez continuar:
— Pare de tentar ser agradável. Pare de fingir que as coisas estão
bem. Apenas diga logo o que quer e me deixe em paz.
Meu pai sustentou o olhar. Mesmo que o meu o fuzilasse, atirasse
todo ódio que eu sentia, ele me encarou com aquele carinho e
arrependimento de pai.
Mas foi sua voz rouca e falha que me fez hesitar:
— Quero meu filho de volta.
Trinquei os dentes, segurei as lágrimas. Desde pequeno, odiava
chorar em público, odiava que as pessoas me vissem tão vulnerável, fraco.
Principalmente meu pai. Odiava quando ele me via fracassar.
Eu sorrira enquanto a carreta desgovernada batia em um veículo que
conduzia na velocidade certa. Estava em festa enquanto minha família
estava em luto. Me divertira enquanto enterravam os três.
A dor… estava tão viva quanto no dia em que eu soube. Voltar ali,
estar naquela sala, jantando sem eles... trouxera aquele momento odioso de
volta. Estava rindo de algo que Raven disse quando meu celular tocou;
sorrindo quando Bora, a filha do secretário Chae, me perguntou como eu
estava lidando com tudo o que tinha acontecido, se eu ainda estava mal.
Perguntei por que eu estaria mal.
Então ela contou.
E meu mundo desabou bem ali.
Eu não conseguia perdoar aquela mentira. O que ela tirara de mim.
A morte deles fora inevitável. Mas mentir para mim... esconder
aquilo de mim como se eu não fizesse parte daquela família fora uma
escolha.
Por isso não pensei quando fiquei de pé e grunhi antes de sair:
— Pegue os malditos papéis que dizem que é o meu pai e queime.
— Dei a volta na mesa, marchei para o corredor. — Não sou seu filho. E
não me importo mais.
 
“Sempre te achei uma pessoa forte.
Você teve que aguentar tanta coisa sozinho.
Agora sou grande o suficiente para entender isso.”
Dad — D.O
 
 
HELENA
 
Tia Eh Ji ficou de pé antes que eu conseguisse fazê-lo.
— Eu vou — disse, lançando um olhar para mim e me congelando
no lugar. Depois se voltou para o irmão, que encarava o lugar agora vazio
de Jun. — Eu cuido dele.
Apenas assenti; se pudesse, se coubesse, me esconderia debaixo da
mesa quando a mulher seguiu atrás do sobrinho e me deixou sozinha na sala
de jantar com o sr. Kim.
Não soube o que dizer. Uma parte minha queria desobedecer àquela
senhora e ir atrás de Jun Woo mesmo assim, mas um olhar para o homem
sentado do outro lado varreu a ideia para longe. Jun o atingira com mais
força do que imaginava. O suficiente para um grande empresário como Kim
Jeong Su se permitir chorar na frente de uma estudante qualquer como eu.
Talvez o sr. Kim sequer estivesse ciente da minha presença ali. No entanto,
mesmo sabendo que eu o observava, deixou as lágrimas silenciosas
correrem por seu rosto.
Pensei se sair e deixá-lo sozinho seria grosseria. Ou apenas... dizer
algo para tentar consolá-lo. Porém, depois de longos minutos de silêncio,
foi o anfitrião quem falou:
— Devo tê-lo perdido mesmo, não é? — murmurou com a voz
grave ainda mais rouca e despedaçada.
Deixei a colher que eu segurava com força sobre a mesa levei as
mãos ao colo.
— Ele só... — Clareei a garganta, hesitante. — Só está chateado, sr.
Kim. Jun Woo não teria vindo se não estivesse disposto a te dar uma
chance.
Ele sopesou minhas palavras e assentiu. Houve mais alguns minutos
silenciosos e, por fim, um curto e melancólico sorriso enfeitou a boca fina.
— Jun Woo sempre foi um rapaz calmo e controlado. Mesmo
quando descobriu sobre os pais biológicos, não extravasou a raiva como um
adolescente da idade dele teria feito. — Os olhos pretos do homem se
perderam em um ponto da mesa, em um passado distante. — Ele sempre
preferiu se isolar quando ficava chateado para não descontar em alguém.
Dizia que não pensava direito quando estava com raiva e odiaria machucar
alguém que ama sem querer. Ele até tinha uma placa: “Hoje é um dia ruim.
Não se aproxime ou arque com as consequências”.
Sr. Kim sorriu melancólico. Depois, falou novamente:
— Sempre foi um rapaz curioso e carinhoso. Raramente implicava
com o irmão e odiava me causar problemas. Uma vez, no ensino médio, no
último ano, a supervisora pediu uma reunião comigo e me contou o que Jun
Woo passava na escola: diversas vezes sofrera por ser adotado, por...
pensarem que ele não merecia estar ali. Ser meu filho. Mas apenas daquela
vez a escola se deu ao trabalho de notificar o que tinha acontecido, porque
não puderam esconder. Ele precisara de pontos, tinha diversos cortes
profundos e hematomas...
Meu coração já apertado diminuiu dolorosamente de tamanho,
sufocado com o pensamento de um grupo de rapazes chutando as costelas
de Jun, socando o rosto dele... O pouco que comi do jantar tentou encontrar
caminho de volta.
Sr. Kim me olhou; não precisou dizer que amava o filho adotivo,
pois isso estava estampado no rosto do homem que, se Jun não dissesse, eu
pensaria ser seu pai biológico.
— Naquela noite, fiquei esperando o secretário Chae chegar com
ele. Então pedi que Jun Woo fosse ao meu escritório. A mão estava
enfaixada, porque eu sabia que ele tentara se defender, mas acabou piorando
as coisas para si mesmo. E o rosto... Nunca vi meu filho em um estado tão
deplorável e crítico. Mal conseguia abrir um dos olhos. Perguntei o que
tinha acontecido, e aquele pirralho teve a ousadia de mentir
descaradamente. Porque era bom em fingir que estava tudo bem mesmo
quando claramente não estava. — Uma risada baixa e triste ecoou pelo
lugar. — Disse que uma mulher idosa tinha sido roubada na rua. Ele foi
atrás do ladrão para pegar a bolsa de volta e acabou apanhando.
Ah, Jun...
— Insisti, dei espaço para que ele me confessasse estar sofrendo na
escola. Porém, o rapaz manteve a história e sorriu daquele jeito de moleque
ao afirmar que estava bem, até porque tinha sido o herói, no fim das contas.
— Mais lágrimas desceram pelo rosto do empresário. — Desde que o
trouxe para casa, só queria que se sentisse tão parte da família quanto Jeong
Hwi era. E raramente me ocorria, no começo, que Jun era adotado. Depois
de alguns anos, simplesmente esqueci esse detalhe. — A dor perpassou
aqueles olhos escuros, e o homem voltou a encarar o lugar onde meu
namorado estivera antes. — Até hoje.
Minha garganta se fechou mais; não me importei com meus próprios
olhos úmidos. Queria me levantar e correr para onde quer que Jun estivesse
para abraçá-lo.
— Ele não foi sincero — consegui dizer baixinho, encarando a
jaqueta jeans em meu colo, sentindo o cheiro do perfume que eu amava
emanando dela. — Jun ama o senhor. Ama mais do que deixa transparecer.
E apostaria tudo de valor que tenho ao dizer que ele, na maioria das vezes,
também esquece o fato de que o seu sangue não corre nas veias dele. —
Ousei olhar o pai de Jun, ignorando o que aprendera na internet no dia
anterior sobre não encarar diretamente pessoas mais velhas e de classes
mais altas. Apenas... o encarei, para que o sr. Kim visse a sinceridade em
minhas palavras. — O senhor é a família dele. Mentira nenhuma no mundo
vai mudar isso.
Mais lágrimas correram pelo rosto pálido do empresário; as que eu
segurava também escaparam e deslizaram por minha bochecha.
— Você me culpa? — Franzi a testa diante da pergunta, mas o
coreano insistiu: — Como namorada do meu filho, me culpa pelo que fiz?
Abri a boca algumas vezes, surpresa.
— Eu... — Me curvei um pouco. — Não é da minha conta, sr. Kim.
Não tenho o direito de julgá-lo.
— Mas eu quero ouvir. Quero saber o que você pensa. Talvez
entenda como consertar o que fiz.
Mordi o lábio, nervosa, me perguntando se seria mesmo uma boa
ideia, se deveria agir de acordo com o certo e somente insistir em dizer que
não era assunto meu. Talvez Jun me xingasse depois por me intrometer,
mas, se eu não dissesse, ele não o faria. Nunca.
— Ele não conseguiu dizer adeus ao irmão. — Minha voz saiu
rouca, hesitante. — Não só isso. Jun confiava no senhor, o admirava,
então... Penso que não foi só o fato de não estar perto quando aconteceu que
o machuca, mas saber que o pai foi egoísta e preferiu sofrer sozinho.
Meu coração bateu mais rápido. Já era tarde demais para voltar
atrás. Assim, apenas prossegui:
— O acidente foi um fator imutável, mas se o senhor tivesse
contado na mesma hora que soube... Jun Woo ia ficar despedaçado, sim,
mas teria tido a chance de se curar com o pai ao lado. O senhor o isolou,
deixou que ele ficasse na ignorância por meses. Acho que, quando Jun
descobriu, se sentiu culpado por ter vivido todo aquele tempo sorrindo e se
divertindo quando deveria estar de luto. — O rapaz nunca me dissera tudo
aquilo, mas eu via em seus olhos. — Talvez até tenha chegado a acreditar
que, por ter sido adotado, o senhor pensou que ele não tinha o direito de
saber sobre o fato de o irmão, a cunhada e a sobrinha já não estarem mais
respirando. Isso o quebrou.
Eu deveria parar, não era da minha conta. No entanto, não conseguia
deixar de falar:
— Partiu aquela parte dele que sorria com facilidade para o mundo.
Mesmo que hoje ele faça isso parecer natural, sei que é só uma máscara
para esconder o que há de verdade por dentro. Talvez Jun não confie no
senhor como antes, talvez uma parte dele te culpe para sempre, mas... Se for
sincero com ele, se disser por que fez aquilo, de coração, quem sabe Jun o
perdoe um dia.
Estava sem ar quando terminei, porque despejei aquelas palavras
por um impulso da lembrança de Jun chorando em meu colo em uma noite
estrelada. Quando uma das sobrancelhas do sr. Kim se ergueu, surpresa,
meus olhos se arregalaram. Me dei conta, então: fizera o discurso de
maneira informal e até arrogante, e aquela era somente a primeira vez que
encontrava com o pai do meu namorado. Deixei uma primeira impressão
ruim.
— Me desculpe, sr. Kim! — Minha voz tremeu. — Eu não quis...
não deveria... Eu... Me desculpe!
Ele gargalhou baixinho, dispensando meu pedido com um gesto da
mão.
— Um velho como eu precisa ouvir algumas verdades de vez em
quando — falou, bem-humorado. — Nunca se desculpe por ser sincera.
— Sinto muito — disse de novo, e ele abriu a boca para me
interromper, mas eu continuei: — Por sua perda. Sinto muito que tenha
perdido seu filho, sua nora e sua neta dessa forma. Não consigo... Não
consigo imaginar o tamanho da dor que carrega. Eu...
Inspirei fundo, buscando o resto de coragem que tinha. Talvez
movida pelas lágrimas que caíram nos olhos do empresário, confessei:
— Sempre fui a mais apegada com meu pai. Minhas irmãs
aprenderam a ser independentes desde novas, e eu também fui ensinada a
saber me virar, mas... sempre preferi ser aquela que meu pai carregava no
colo quando caía. Quando...
Minha voz falhou, mas me forcei a seguir:
— Quando falei que estudaria na Coreia, ele não levou muito a
sério; eu vivia brincando que sairia de casa e conheceria o mundo um dia,
mas não pareceu real para minha família até que anunciei já estar pronta
para partir. Meu pai ficou... desolado. Não sei, talvez tivesse na cabeça que
eu ficaria ao alcance dele até ser velho demais. Então, quando soube, me
proibiu. Foi a primeira vez que briguei com ele. Que... gritei com ele.
Ficamos os últimos meses antes da minha partida sem nos falar; mesmo
quando papai me abraçou no aeroporto, não foi a mesma coisa. Ele não
queria que eu viesse. Mas fiz isso mesmo assim. Hoje mal nos falamos e...
isso acaba comigo. Por esse motivo, insisto para que Jun fale com o senhor,
por esse motivo quero tanto que se acertem.
Me obriguei a sorrir.
— Meu desejo é que vocês dois se resolvam logo, que superem isso
juntos. Tenho certeza de que Jeong Hwi desejaria o mesmo.
Sr. Kim me observou por alguns segundos antes de assentir, então
abriu um sorriso largo que o fez parecer mais jovem. Mais gentil. Não um
dos vilões de Vincenzo[89].
— Estou feliz que encontrou o caminho dele, querida — falou. —
Obrigado.
Senti as bochechas corarem um pouco e, antes que eu dissesse as
três temidas palavras, antes de ecoá-las em voz alta, antes que o sr. Kim as
escutasse antes de Jun, apenas fiz uma breve mesura com a cabeça.
— Vou estar aqui por Jun sempre que ele quiser.
— Acha que ele se acalmou? — O homem franziu a testa para a
mesa. — Mal jantamos... e sequer provamos a sobremesa.
Dessa vez, consegui ficar de pé, sentindo as pernas fraquejarem um
pouco.
— Vou... procurar por ele. — Um cumprimento antes de deixar a
sala. — Vou pedir que tente falar com o senhor.
— Ficaria grato, Helena.
Me curvei outra vez, como uma despedida. Vesti a jaqueta de Jun
para cobrir o conjuntinho azul que eu comprara para aquele jantar antes de
ir para o corredor, me perguntando se meu namorado seguira para o andar
superior ou fugira para o jardim. Apenas estanquei no lugar quando virei a
esquina, me assustando com o rapaz de braços cruzados escorado contra a
parede.
Tia Eh Ji, no entanto, não estava ali.
— Jun...
O rapaz tombou levemente a cabeça para me olhar. Estava sério e,
apesar do que dissera mais cedo, apesar do que eu sabia que estava
sofrendo, não havia rastro de choro, nada de olhos vermelhos.
— Você... — Me aproximei hesitante. — Você ouviu?
Jun não respondeu, apenas se afastou da parede e acabou com a
distância entre nós devagar. Logo, segurou meu rosto entre as mãos para
depositar um beijo em minha testa.
Ele estava tão frio...
— Seu pai, ele...
— Segunda porta à direita — disse, me interrompendo, baixo e
rouco. — Me espere lá em cima.
Assenti, mas não saí do lugar. Jun também não se mexeu. Apenas
encarou a porta que levava para a sala de jantar atrás de mim.
Fiquei na ponta dos pés e beijei sua bochecha.
— Leve o tempo que precisar. 
— Huh — confirmou com um curto aceno de cabeça. Por fim,
suspirou. — Vou falar com meu pai.
JUN
 
Esperei até que Helena tivesse desaparecido nas escadas para
finalmente respirar fundo e entrar. Meu pai ainda estava no mesmo lugar à
mesa, me esperando. Eu ouvira sua voz rouca e quebrada, escutara o que
confessara à minha namorada mais cedo e sabia que os olhos vermelhos
eram resultado de lágrimas.
Nunca vira meu pai chorar antes.
A única vez em que ele chorara, eu não estava lá.
Pensei estar pronto para o rosto amargurado e o choro, mas não
estava. Sabia que o sr. Kim detestava exibir suas fraquezas tanto quanto eu.
Fiquei parado a um metro da mesa, em pé, as mãos nos bolsos da calça.
Não me importei se só agora o homem se desse ao trabalho de observar as
mudanças dos últimos anos: o cabelo que eu deixava sempre aparado, curto
demais, agora aparecia grande o suficiente para prender; os braços estavam
cheios de desenhos; as argolas prateadas enfeitavam minhas orelhas e
boca... Não, eu definitivamente não era mais o jovem que se despedira dele
no aeroporto.
Um rapaz sorridente e sonhador, cheio de brilho e sorrisos de quem
queria aprontar, e explorar, e viver.
Meu pai fez menção de se levantar, mas falei primeiro.
— Não precisa. — Minha voz ainda era áspera, ainda continha
irritação e acusação. Não conseguia evitar. — Vou falar, já escutei o que
você disse.
— Jun Woo...
— Ainda não consigo. — Minha voz inútil tremeu, mas continuei
firme na decisão de não chorar. Não ser fraco. Não ainda. — No momento,
não suporto te olhar, não agora.
Ele encolheu, e odiei a cena. Odiei ser eu a provocá-la.
Mas não queria mentir.
— Não leve as coisas que eu disse para o coração, não eram sinceras
— continuei, encarando aquele rosto abatido, cheio de remorso. — Mas foi
demais pra mim, pai. Foi... mais difícil do que pensei que seria. Voltar aqui.
Ver você. Não ver eles.
— Eu sinto tanto, meu filho — confessou o homem, e mais lágrimas
rolaram.
Desviei o olhar para a janela atrás dele.
— Sei que sim. — Alguns segundos de silêncio. Fechei os olhos,
cedendo um pouco, tentando amenizar a frieza em minha voz, a dor
impossivelmente sufocante no peito. — Vamos encerrar o jantar hoje. —
Dor perpassou o rosto do meu pai, mas eu continuei: — Amanhã...
tentamos de novo.
Esperança brilhou nos olhos escuros, mesmo sem entender
realmente o que eu quis dizer com aquilo.
Eu não queria. De verdade, meu plano era pegar Helena e voltar
com ela para casa. Mas então Tia Eh Ji me puxou para as escadas que me
levariam ao jardim e grunhiu baixo. Parecia, no entanto, decidida e com
raiva. Me fez pensar e hesitar e tentar.
“Eu sei que ele te feriu! Sei que escondermos a morte de Jeong Hwi
foi errado! Também errei, por que não me odeia? Por que odiar apenas
Jeong Su? Fiz isso pelo meu irmão, porque acreditei que era o melhor pra
você também, mas... foi errado. Porém, ele tinha acabado de perder o filho,
Jun Woo! Você perdeu um irmão, mas ele perdeu um filho! Tem ideia de
como isso dilacera um pai? Todos nós fazemos péssimas escolhas quando
estamos rodeados de desespero. Nunca vi meu irmão tão arrasado, nem
mesmo quando perdeu a esposa. Sei que te magoamos ao esconder isso.
Você tem todos os motivos para se ressentir. Mas, por favor... por favor, Jun,
não seja tão duro com ele. Já o castigou por tempo suficiente, e não sei se
Jeong Su vai suportar perder você também.”
Eu escutei. Então dei as costas a ela e voltei para dentro da casa.
Observei os pratos sobre a mesa.
— Peça para guardarem para o almoço, na outra mesa, por favor.
Helena vai provar todos, e tenho certeza de que vai adorar experimentar
cada um. — Engoli em seco. Não conseguia, era tão difícil respirar que
mais um segundo ali me faria desabar. — Vamos passar a noite aqui, sei que
não vai se importar. Podemos... — Vamos, Jun Woo. Mais algumas palavras
e você pode ir. Você consegue. — Amanhã cedo podemos dar uma volta, só
nós dois. Então conversamos. Então... — Só mais um pouco. — Então
prometo escutar o que você tem para dizer.
A boca do sr. Kim se contraiu em uma linha fina, como se quisesse
falar ali, agora, mas ele me respeitou ao assentir.
Sem desejar boa noite, segui para a cozinha. Helena mal tocara no
jantar; devia estar faminta, mas eu não conseguia ficar ali. Estava doendo
de uma maneira insuportável, e a única que eu permitiria ver a profundidade
daquela ferida estava me esperando no andar superior.
 
“Eu preciso de alguém que
possa me amar no meu pior.
Sei que não sou perfeito,
mas espero que você veja meu valor.”
At my worst — Pink Sweat$
 
 
HELENA
 
Quinze minutos nunca demoraram tanto para passar.
Os primeiros segundos ali naquele quarto absurdamente espaçoso
foram rápidos até; afinal, eu estava no quarto antigo de Jun.
Me distraí com algumas fotografias dele e do irmão, com as
miniaturas da coleção de dinossauros, com alguns brinquedos que ele
possivelmente guardara para não esquecer a infância... O pequeno closet
não continha muito além de moletons e poucas roupas que Jun usara
quando adolescente. Mas depois de explorar o quarto equivalente ao espaço
quadrado do meu apartamento, fiquei inquieta e ansiosa, ziguezagueando
pelo lugar enquanto mordiscava a ponta do dedão. Me perguntava como
estaria a conversa, se deveria me distrair com uma das HQ’s na estante,
porque poderia demorar mais uma hora...
Porém, quando estiquei uma das mãos para um dos volumes de
Jurassic Park, meu namorado adentrou o quarto. Havia um pequeno
fogãozinho elétrico portátil em sua mão; em cima, uma panela pequena.
Uma das mãos dele carregava garrafinhas de água e pacotes de lámen.
Me apressei em ajudá-lo, deduzindo que a conversa não fora tão
boa, já que o rapaz estava trazendo o jantar para o quarto. Além disso, sua
expressão era tão vazia e fria que eu não conseguia lê-la realmente. Deixei
os pacotes de macarrão sobre a escrivaninha e observei Jun apoiar o
pequeno fogão ao lado, na mesma mesa de estudos. Não sabia o que dizer,
se poderia perguntar como fora lá embaixo, o que acontecera, então fiquei
em silêncio.
Jun também, calado demais enquanto seguia para o closet onde eu
estivera minutos atrás. Ele revirou suas coisas por alguns segundos e então,
sem cerimônia alguma, puxou a camisa por cima da cabeça. Meu coração
acelerou; eu já vira aquele tronco nu antes, mas... sempre seria uma
surpresa. Não era momento para admirar o corpo atlético do meu namorado,
contar suas tatuagens, pensar no que significavam para ele. Mas foi difícil
desviar o olhar, principalmente quando o rapaz começou a desabotoar a
calça jeans, quando o elástico cinza da cueca box apareceu. Antes que
pudesse descobrir como ele era por debaixo daquela calça, corri os olhos
para o pequeno aparelho elétrico na mesa, interessada demais nos pacotes
de macarrão.
Engoli em seco, escutando o farfalhar de roupa sendo tirada e
recolocada. O estômago revirava não mais só de fome, mas de sentimentos
conflitantes. Pressionei os lábios, me perguntando por quanto tempo
conseguiria me desafiar a não olhar para Jun.
Não demorou, no entanto, para eu voltar a escutar o ruído seco de
uma gaveta sendo aberta e fechada. O encarei. Meu namorado estava tão
silencioso em tudo que fazia que minha preocupação triplicou.
— Jun... — Está tudo bem? Era uma pergunta estúpida. É claro que
ele não estava bem.
Meu namorado voltou, vestindo uma calça xadrez cinza confortável
para dormir e uma camisa preta sem qualquer estampa. Os pés apareciam
descalços. Ele tinha uma única peça de roupa nas mãos. Sem me olhar, Jun
Woo segurou minha mão e me guiou até a cama espaçosa, sentando no
colchão e me fazendo parar diante dele.
— Olha pra mim — pedi num sussurro, tocando seu rosto pálido. —
Conversa comigo.
Ele não falou nada, estava tão quieto... tão fechado... Pior que na
noite em que ele chorara em meu colo, muito pior. Era como se tivesse
chegado em um ponto profundo demais do poço no qual se encontrava, de
onde nem mesmo eu conseguiria tirá-lo.
Jun delicadamente me puxou para mais perto e, sem pedir
permissão, desabotoou os botões da jaqueta jeans que eu usava, a jogando
em um canto do quarto. Quando seus dedos pararam no blazer azul, no
entanto, ele hesitou, finalmente erguendo aqueles olhos pretos demais para
mim. Meu coração apertado pela ansiedade de vê-lo tão triste e distante se
libertou daquilo por alguns segundos para dar espaço à compreensão que
dominou minha mente, meu peito e todo o resto do corpo. Sabia o que ele
queria, e agora o rapaz me olhava como quem pedia permissão para fazê-lo.
Engoli em seco, assentindo devagar.
Eu o conhecia bem o suficiente para saber que ali não era onde Jun
planejava avançar com nossa relação, ter nossa primeira vez. O jovem me
prometera: seria diferente de tudo que eu poderia esperar e querer. Meu
namorado estava quebrado naquele momento, perdido em algum lugar que
eu não conhecia. Não sabia como fazer para tirá-lo de lá. Apesar de querer,
de nós dois desejarmos isso, fazer amor comigo não era o que se passava
em sua mente agora.
Então deixei que ele tirasse o casaquinho azul e o jogasse na mesma
direção da jaqueta, os olhos pretos apagados acompanhando cada gesto de
suas mãos tatuadas em mim. Agora elas estavam na camiseta branca que eu
usava, até então escondida pelo casaco. Meu coração acelerou quando o
rapaz roçou as costas dos dedos em minha pele ao levantar a bainha da
roupa e puxá-la por cima da minha cabeça, me ajudando a me livrar dela.
Aquela escuridão vazia em seu olhar se dissipou um pouco no
momento em que Jun colocou os olhos na peça simples e lisa, cor de pele.
Não era algo luxuoso, muito menos digno de atenção, mas ele se perdeu por
alguns segundo nas curvas dos meus seios, nas pintinhas castanhas sobre a
pele, no decote simples do sutiã...
Um pequeno e considerável sorriso despontou de seus lábios, seu
peito subindo e descendo mais rápido, na mesma velocidade que o meu.
Os lindos olhos dele acompanharam o movimento de minha
respiração. Suas mãos que seguravam minha cintura me apertaram um
pouco, como se para ficarem ali e dali não sair; o polegar que subia e descia
devagar um pouco acima do cós alto da saia que ele tanto detestara hesitou
por alguns segundos.
— Droga — Jun murmurou rouco, como se travasse uma luta, como
se quisesse descontroladamente me tocar, mas se obrigasse a não fazê-lo.
Então, praguejou outra vez, de uma forma nada decente.
A forma como o rapaz me olhou fez minhas pernas amolecerem um
pouco; quase dei permissão a ele para tirar a saia também, mas meu
namorado buscou a camisa que escolhera para mim sobre o colchão e me
ajudou a vesti-la. Era grande o suficiente para cobrir minhas coxas, mas não
o bastante para esconder a saia.
— Pode tirar ela — começou rouco, apontando para a peça azul
justa. Ele disse isso em um tom gutural, de uma forma que jamais o ouvira
falar antes. — Ou eu rasgo essa coisa, como prometi mais cedo.
Minha garganta secou. Eu até tinha esquecido o fato de estar furiosa
e chateada com Jun pelo que dissera no elevador; sequer me lembrava do
valor que parcelara no conjuntinho. Mal conseguia pensar em um motivo
convincente para me opor àquela ameaça.
Apenas levei minhas mãos para trás, buscando o zíper da saia, os
olhos nos dele o tempo todo. Minha respiração continuava pesada e contida
no peito, o coração dolorosamente acelerado.
Senti a pressão em minha cintura e quadril se desfazer um pouco.
Franzi a testa, esperando que ele puxasse o tecido. Jun o fez,
deslizando a ponta dos dedos em toda a extensão das minhas pernas ao
guiar a saia para o chão. Depois, ele voltou a se inclinar para trás, para me
observar apenas com a camisa de alguma banda que eu não conhecia.
— Quando eu era um adolescente idiota — confessou baixo, com
uma risada fraca e rouca. —, fantasiava um momento assim.
— Um momento assim? — perguntei curiosa.
— Minha namorada só com a minha camisa... No meu quarto.
Ri, dando de ombros.
— Moças também fantasiam usar apenas a camisa do namorado.
— É mesmo? — Um projeto de sorriso, suficiente para me acalmar
um pouco. Pelo menos aquela raiva assustadora não enfeitava mais o rosto
de Jun.
— Huh.
Ele segurou minha mão e me puxou para seu colo, o colchão
afundando mais com meu peso e o de Jun Woo juntos na ponta da cama.
Ignorei o coração desesperado, o desejo que atormentava não só a mim,
mas claramente a Jun também. Por fim, em seu colo, as mãos dele em meu
quadril, contornei os ombros do meu namorado com um dos braços,
levando a mão livre ao rosto do rapaz e afastando as mechas de seu cabelo.
Apenas o observei com carinho.
Com... amor.
Meu namorado. Meu amigo.
Ainda não diria a ele, mas eu sentia, vivo e intenso. Amor.
— Me desculpe — ele sussurrou, me fitando também. — Por hoje.
Você estava linda, não devia ter falado daquele jeito.
Sorri um pouco.
— Vou pensar no seu caso.
Ele riu baixinho, me puxando mais contra o corpo, enfiando o rosto
na curva de meu pescoço, escondendo-o ali.
Inspirando fundo, saboreando meu perfume e se acalmando aos
poucos, murmurou sobre minha pele:
— Adorei seu cabelo assim.
Acariciei sua cabeça, entrelaçando meus dedos às mechas lisas.
— É mesmo? — indaguei baixinho.
— Ainda prefiro os cachos, mas ficou lindo assim também.
Sabia que Jun não estava apenas dizendo da boca para fora; apesar
de me manter em silêncio, afagando seu cabelo macio, me senti grata pelo
pedido de desculpas. Mesmo que tenha esquecido nosso pequeno momento
no elevador assim que o vira hesitar em sair do carro, mesmo que soubesse
que Jun Woo dissera aquelas coisas porque estava nervoso por finalmente
reencontrar o pai... senti um peso deixar meus ombros com aquele pedido
de desculpas simples e sincero.
Mas outra tonelada ficou no lugar, espremendo meu coração com
mais força quando o silêncio fez parte da conversa outra vez.
Estar ali... era mais difícil para Jun do que eu havia imaginado.
Ele se afastou apenas o suficiente para me olhar, uma das mãos
tatuadas seguindo caminho até meu rosto. Os olhos estavam vermelhos,
enfim, e eu me preparei para o som despedaçado de seu choro, as lágrimas
que ele tão insistentemente lutava para segurar.
Mas ainda não. O rapaz se segurou mais alguns minutos quando
começou a desabafar, baixinho, rouco. Quebrado.
— Noona teria adorado você. Era uma mulher espirituosa e
divertida; vocês seriam amigas, tenho certeza. — Pressionei os lábios,
escutando quieta, pensando em como tirar aquela dor dos olhos do meu
namorado. — Nos quarenta minutos de Seul até aqui, fiquei fantasiando
como seria se estivessem conosco, sobre as histórias constrangedoras que
meu irmão contaria e as risadas que você daria em cada uma delas. Fiquei...
Fiquei pensando em como você se apaixonaria por Hari, porque ela era a
criança mais fofa que já existiu no mundo, e você não suportaria tanta
fofura.
Uma risada rouca e melancólica; os olhos de Jun se encheram mais,
mas ele continuou firme na tarefa de conter as lágrimas. E aquilo o estava
sufocando.
— Tenho certeza de que puxaria meu braço e me morderia pra
controlar a vontade de apertar as bochechas da minha sobrinha. — Sorri um
pouco, com o peito abafado, como se sangrasse. — Quando chegamos e eu
não os vi... Isso me quebrou. Foi a primeira vez que pareceu tão real e
inacreditável ao mesmo tempo. E isso está me matando, Lena. Essa dor...
Essa raiva, está me deixando louco. Eu... — Então veio. Eu o puxei para um
abraço apertado quando o soluço cortou o quarto, realmente pior do que na
primeira em que o rapaz se abriu para mim daquela forma. Que chorou. —
Quando penso nisso, quando... penso nos meses felizes e ignorantes que
vivi enquanto eles estavam mortos... sinto tanta raiva. Raiva do meu pai por
não ter contado. Raiva de mim mesmo por não ter percebido. Eu... — Mais
choro. Mais dor. — Eu não pensei direito. Acabei magoando você. Me
perdoa. Eu... Me desculpa, Le...
— Shhh... — o interrompi baixinho, me inclinando um pouco para
trás para afastar as mechas pretas de seu rosto. Por fim, aproximei o rosto e
o beijei devagar, com todo carinho e amor que consegui colocar naquele
gesto. Limpei suas lágrimas. — Eu sei. Sei que não fez de propósito.
O jovem fez um gesto negativo, e uma pergunta passou furtiva em
minha cabeça. Me questionei se Jun achava que eu o comparava com
Miguel. Se ele tinha medo de me ferir inconscientemente como meu ex o
fizera.
— Você é a melhor coisa que me aconteceu, Helena. É minha
família — falou, apoiando a testa na minha. — Você tem razão, agi como
um completo babaca hoje.
— Vou te castigar por isso depois — brinquei, beijando sua
bochecha fria e salgada de lágrimas. O encarei. — Não estou magoada.
Prometo.
— Tem certeza? — insistiu.
— Huh. — Sorri. — É meio difícil ficar brava com você por muito
tempo.
— Que bom. — Finalmente. Finalmente os lábios de meu namorado
se ergueram com aquele repuxar maroto sem o qual eu não conseguia ficar.
— O sentimento é recíproco.
Sabia que não era uma boa ideia, mas arrisquei, hesitante:
— Seu pai...
Jun suspirou, se inclinando um pouco para trás ao passar as mãos no
rosto, afastar as mechas do cabelo comprido para trás, prender os dedos nos
fios por alguns segundos. Ele encarou o colar simples em meu pescoço, se
concentrou naquele ponto de pele exposta.
— Pedi um tempo. Falei para tentarmos de novo amanhã.
Soltei o ar, aliviada.
— Vai ser melhor — assenti.
— Vai ser melhor — repetiu, rouco.
Mais alguns segundos silenciosos se seguiram, então me dei conta
de onde estava, das coxas à mostra rodeando os quadris de Jun. A posição...
íntima demais. Perto demais. Comprometedora demais.
— Er... — Pigarreei. — Vamos dormir aqui, então?
— Você tinha planos pra amanhã? — Jun franziu a testa e, como se
lesse minha mente, como se soubesse o que se passava ali, distraidamente
deslizou as mãos de volta para minhas pernas dobradas ao lado dele.
Passando os dedos pela panturrilha, então percorrendo joelho, coxa e... —
Posso pedir ao secretário Chae para te levar a Seul depois do café.
O carinho continuou, provocando cócegas nos pontos sensíveis, não
acostumados àquele tipo de contato. Só consegui pensar no olhar que o
fotógrafo lançou para mim ao tirar minha camiseta e encarar o sutiã que mal
me escondia do mundo. Ele me olhou como se a peça sequer estivesse ali.
— Helena?
— Huh...? — Eu queria que Jun tivesse me beijado naquela hora...
Queria coisas que, sinceramente, não desejara por muito tempo.
Escutei uma risada, a mão fria e curiosa voltou a contornar minha
panturrilha. Foi muito difícil ficar imóvel no colo de Jun. Quase impossível
não pedir... mais.
Céus... O que ele estava fazendo comigo?
— Gongju-ya[90]...? — cantarolou, aproximando o rosto do meu.
— Eu... — balbuciei depois de engolir em seco. Deixei que Jun
beijasse meu maxilar, depois dei espaço para que tocasse os lábios macios
em meu pescoço.
— No que está pensando?
Minha resposta foi um som arquejado e rouco:
— Lámen.
Jun Woo gargalhou.
— Lámen — repetiu, fechando os dedos compridos em minhas
coxas, traçando tortuosamente e devagar uma trilha de beijos em minha
pele. — Sei...
— Estou com fome — murmurei, fechando os olhos, entrelaçando
meus dedos às mechas em sua nuca. Pensei no nome de Jun, na súplica, mas
mordi os lábios antes que escapasse.
Ou talvez não.
— Adoro quando choraminga meu nome assim. — Ele riu baixinho.
— É como uma música. Tão linda...
— Você está... ouvindo coisas.
— Estou? — Mais um beijo, e outro... E aquelas mãos... Droga, Jun!
— Diga o que você quer e eu alegremente atenderei seu pedido, minha
princesa.
Você.
Quero você.
— Eu quero... — sussurrei, e pude jurar que até mesmo Jun segurou
a respiração para ouvir. Sorri, ainda de olhos fechados, ainda apreciando a
sensação dos lábios e das mãos de Jun em mim. Mas não mais do que isso.
Não ali, na casa do pai dele. Me inclinei para perto do ouvido de Jun e
soprei a palavra: — Macarrão.
Outra risada, e o beijo que recebi foi doce e rápido, com um sorriso.
— Lamén será, então — disse, fingindo (não completamente)
frustração. Mas antes de me soltar, me apertou uma última vez em um
abraço e me encarou ao dizer: — Obrigado.
Franzi a testa.
— Obrigado por ser a pessoa com quem posso me desfazer e chorar
— continuou, os olhos agora vermelhos, mas o rosto lindo seco das
lágrimas que antes escorriam copiosamente ali. — Contar meus segredos
mais obscuros sem medo.
Depositei a palma de minha mão em seu rosto, com um aperto
diferente na garganta. Eu poderia ter dito as três palavras naquele momento,
era a hora perfeita, mas... Ainda não. Tinha medo de não as ouvir de volta.
De ser a única a estar se sentindo profundamente perdida em alguém,
mesmo que percebesse o sentimento no rapaz quando me olhava ou me
tocava.
Eu te amo. Quase disse, mas apenas murmurei com carinho:
— Vamos ser essa pessoa um para o outro. Qualquer hora. Sempre.
— Qualquer hora. — Pegou minha mão em seu rosto e a beijou. —
Sempre.
Antes que um encontrar apaixonado de lábios pudesse acontecer,
antes que pudéssemos selar aquela linda promessa, um som animalesco
reverberou no quarto e eu encolhi, escondendo o rosto no ombro do meu
namorado quando meu estômago roncou. Minha mão se fechou na malha
macia em minha barriga.
Ele riu, dando dois tapinhas em minhas costas.
— Certo, certo — disse. — Vamos alimentar a fera.
 
“Quando eu estava para baixo você me fez rir.
Você nunca me julgou pelo meu passado.
Quando eu estava com medo você me acalmou.
Ficou ao meu lado.”
Together — Us The Duo
 
 
JUN
 
Eu era um canalha.
Era sim. Minha maldita mente me condenava. Mas não era só isso:
quando meus olhos pesados de sono se abriram naquela manhã e eu sorri,
como se aquele sonho indecente para menores de dezoito tivesse sido
verdade, não me senti nem um pouco culpado.
A culpa era de Helena e daquela maldita peça delicada e linda.
Era dela e daquelas carícias lentas que minha namorada fizera em
minha cabeça enquanto conversávamos depois de apagarmos a luz e nos
aninharmos na minha antiga cama até que o sono reclamasse.
E então veio aquele sonho... Aquela continuação do que poderia ter
acontecido entre nós caso não quiséssemos bancar os certinhos na casa do
meu pai.
Em algum momento, me lembro de acordar, de permanecer com os
olhos fechados enquanto minha namorada se mexia para mais perto de mim
e deslizava a ponta dos dedos em meu rosto com carinho. Me obriguei a
manter o teatro, fingindo dormir enquanto a escutava murmurar coisas que
jamais teria coragem de dizer para mim enquanto eu estivesse acordado.
“O mundo é mesmo um lugar injusto. Como pode ser sexy e fofo no
mesmo espaço de tempo? Humph!” e “Aposto que fica treinando como ser
um tremendo gostosão em frente ao espelho antes de dormir” E o que quase
me arrancara uma risada: “Deve peidar fedendo, não é possível alguém ser
tão perfeito”. Depois de alguns segundos reclamando um pouco mais, senti
os lábios dela nos meus, o sorriso em sua voz. “Será que sabe o quanto é
injustamente atraente, Kim Jun Woo-shi?”.
Ainda era muito cedo, e o sonho estava muito vivo na minha cabeça
quando o peso da moça no colchão suavizou e Lena saiu. Me sentia uma
fera pronta para atacar sua presa, então apenas me comportei o suficiente
para não a puxar de volta e prendê-la na cama. Depois de alguns segundos
no quarto vazio esperando que minha namorada voltasse, acabei apagando
de novo, mas os sonhos não foram tão tentadores dessa vez. Foram
melancólicos e cinzas, com risadas fantasmas de Hari e os rostos do meu
irmão e cunhada se dissolvendo no ar aos poucos, até que minha garganta
sangrasse de tanto gritar, de tanto implorar para que não fossem.
Estreitei os olhos para a luz que ultrapassava as grandes janelas do
quarto. Me lembrei de onde estava e que aquilo não era um sonho. Suspirei,
ciente da promessa que fizera ao meu pai e da pouca vontade que tinha de
cumpri-la.
Meu único consolo era ter Helena comigo. Acordar e...
Não a encontrar adormecida ao meu lado na cama.
Não demorei a localizá-la, no entanto; não quando a risada que eu
adorava ecoou pelos corredores, na direção da cozinha. Não me incomodei
em trocar de roupa, apenas deixei os pés descalços me levarem até a dona
daquela voz encantadora.
Porém, ainda no corredor, parei ao reconhecer a voz do meu pai.
— Era meu último dia de viagem na Itália, se me recordo bem —
continuou, narrando qualquer que fosse a história da vez.
O bom humor que me embalara por conta de um sonho delicioso se
dissipou rapidamente, como aço vermelho derretido se arrefecendo. Duro e
inquebrável. Eu não queria ouvir, e a besta dentro de mim quis estragar a
conversa, mas prometi a mim mesmo que tentaria. Por mim, por meu pai e,
principalmente, por meu irmão, eu tentaria. Então permaneci ali, me
escorando na parede do corredor. Escutando. Meu pai ainda falava:
— Consegui me livrar das reuniões e perambulei por Roma. Foi
quando encontrei essa pequena loja de doces. A dona do lugar insistiu para
que eu provasse e, quando o fiz, só consegui pensar nos meus filhos. —
Meu pai riu, e eu senti aquele aperto de novo. Mais forte e doloroso.
Saudade. — A senhora ficou abismada quando pedi que embalasse todos os
doces da loja, até me ameaçou porque pensara ser uma pegadinha de mau
gosto. Mas eu paguei à vista, pedi que preparassem tudo e transportassem.
Nem mesmo o neto dela acreditou, mas... Foram os melhores doces que
provei na vida, e como conhecia bem as formigas que tinha em casa, pensei
que levar doces italianos para meus filhos seria um bom presente. Um
estoque que era para durar um mês, Jun Woo e Jeong Hwi devoraram em
uma semana.
A risada de meu pai foi ecoada pela de Helena, e eu não pude deixar
de sorrir com a lembrança. Realmente, foram os melhores doces que já
provara na vida. Porém, depois de me deliciar com as iguarias, passei mal
um fim de semana inteiro, com uma dor de barriga infernal. Com meu
irmão não fora diferente. Nosso pai nos dera uma bronca por termos
acabado com os doces em tão pouco tempo e disse que a diarreia era o
mínimo que merecíamos.
Tentei afastar o nó sufocante na garganta.
— Acho que Jun aprendeu a lição — Helena comentou, divertida,
depois de ouvir aquela parte vergonhosa da história. — Apesar de exagerar
nos donuts quando está nervoso. Mas não posso culpá-lo, eu mesma não
consigo ignorar um chocolate.
Sorri, recostando a cabeça contra parede, os braços cruzados ao
peito. Me perguntei quando ela havia acordado e se encontrar meu pai na
cozinha fora um acidente que queria ter evitado. Há quanto tempo estavam
conversando?
Alguns segundos de silêncio foram substituídos por um suspiro
pesaroso do empresário.
— Ele não é mais o Jun que eu conhecia — disse, e aquilo tirou o
curto sorriso despontado em meu rosto. — O que você conhece do meu
filho hoje não é nada comparado ao rapaz que ele era antes de se mudar
para Boston.
Engoli em seco. Tive a impressão de que minha namorada fez o
mesmo.
— Como ele era?
— Ah, menina... — Uma risada melancólica. — Ninguém segurava
aquele garoto. Sua curiosidade já me colocou em maus lençóis diversas
vezes, mas já me proporcionou momentos felizes também. Quando era
pequeno, me fazia sair com ele entre as ruelas mais pobres da cidade pra
levar os brinquedos que não queria mais às crianças sem nada. Secretário
Chae o perdia de vista pelo menos três vezes por semana quando o moleque
se aventurava em algum lugar com Cha Min e o irmão. Sempre tinha um
sorriso de quem ia aprontar no rosto e um de quem já o tinha aprontado. Me
perguntei se ele cursaria Direito quando estudasse no exterior; o malandro
sempre tinha um discurso impecável em própria defesa quando se metia em
encrenca.
Lena riu, e eu controlei a vontade de espiar, de ver como ela estava,
como seu rosto reagia àquelas confissões.
— Tive medo dele quando nos conhecemos, sabia? — A voz dela
ecoou, leve, divertida e doce. Mas hesitei um pouco diante daquela verdade,
mesmo que me lembrasse de como Lena chorara quando a interceptei na
loja. — Ele realmente é muito sério quando está andando na rua, e naquela
noite ele usava máscara e... Bem, eu tinha provocado a fera. Fiquei dias
com medo de Jun aparecer na porta do meu apartamento com a polícia
junto. — Outra risadinha. — Mas durou tão pouco... Na primeira vez que
realmente conversamos, senti esse medo ir embora. Talvez ele tenha sido
diferente no passado, mas ainda sabe sorrir genuinamente para as pessoas.
O coração só está mais cauteloso agora, mas ele ainda é gentil. O senhor o
criou muito bem, sr. Kim.
— É um alívio ouvir isso. — Meu pai pareceu mais emocionado, a
voz grave oscilante. — Você conversou com ele ontem depois do jantar? —
Silêncio. Talvez Lena tenha assentido com a cabeça, pois o homem
prosseguiu. — E quais são as minhas chances?
Os olhos castanhos de minha namorada me encontraram antes que
ela pudesse responder, e eu, agora de pé à porta, entrei preguiçosamente na
cozinha enquanto falava tranquilamente:
— Dez por cento. — Inspirei, passando pela mesa onde os dois
estavam e seguindo até os armários nos quais eram guardadas as tigelas e os
talheres. Abri a pequena despensa, procurando algo que não arroz e sopa
para o café da manhã. Meu pai pareceu segurar a respiração atrás de mim.
Helena, pelo contrário, tinha um sorriso lindo nos lábios avermelhados
quando me virei para eles. — Trinta, talvez, se você conseguir mais
daqueles doces italianos.
Os olhos escuros do homem pareceram brilhar, emocionados. No
entanto, como era bom naquele jogo, sr. Kim manteve um sorriso divertido
ao dizer:
— Acho que precisamos rever o acordo, então. — Fez uma
expressão de descontentamento. — A loja não está mais lá.
— Como tem tanta certeza? — rebati, arqueando uma sobrancelha.
— Fiz uma viagem de negócios para Roma alguns meses atrás, e
procurar pelo lugar foi a primeira coisa que fiz.
Aquilo me atingiu com mais força do que eu esperava, mas apenas
dei de ombros e voltei para a despensa.
— Voltamos aos dez por cento, então. — Continuei vasculhando o
lugar, forçando o nó na garganta para que ele se desfizesse. Aquilo foi, sem
sombra de dúvida, o mais perto que meu pai e eu tivemos de uma conversa
decente nos últimos anos. E eu sentia falta disso. — Aish...[91]
— Na prateleira de cima, filho — ele falou.
A contragosto, me levantei e vasculhei o local, encontrando não só
uma, mas várias caixas fechadas do sabor que eu gostava ali.
— Desde quando gosta tanto de cereal? — perguntei, puxando uma
caixa e catando sobre a bancada a tigela e o leite que deixara de molho ali.
Finalmente me voltei para a mesa e me sentei ao lado de Helena, de
frente para meu pai.
Ele deu de ombros. Foi sua única resposta.
Despejei o cereal na tigela, então notei a cumbuca de arroz vazia ao
lado, o café da manhã que minha namorada devorara. Helena também não
se adaptara àquele tipo de café da manhã tipicamente coreano. Geralmente
não comia mais do que alguns biscoitos pela manhã ou ovos mexidos antes
de sair. Mas ela não era do tipo que fazia desfeita, então limpara as duas
tigelas diante dela, e provavelmente não recusara alguns acompanhamentos
também.
Se os dois já haviam terminado o café, então deviam estar ali
papeando há um tempo.
Observei o rosto da moça. Lena o lavara antes de dormir, retirara
toda maquiagem que a amiga passara em sua pele, e eu me senti mais do
que satisfeito ao vê-lo limpo, as sardinhas adoráveis ali. Sem me importar
com meu pai, que assistia a tudo, me inclinei na direção dela e depositei um
beijo em sua boca.
— Bom dia — falei, num tom que eu sabia que a faria corar.
E ela corou. Violentamente.
— B-bom dia.
Meu pai riu.
Voltei minha atenção ao cereal diante de mim, buscando a mão de
Lena por baixo da mesa, a entrelaçando à minha ao apoiá-las sobre a perna.
— Então... — O empresário recostou os antebraços sobre a
superfície da mesa. Daquele jeito, os cabelos grisalhos caindo sobre a testa,
o suéter verde-musgo de ficar em casa, moletom e pantufas exageradas nos
pés, ele parecia tudo, menos o chefe temido em suas empresas. — Vocês
dois estão juntos há quanto tempo?
— Alguns meses. Dois ou três.
— Dois — Lena murmurou, ainda com as faces rosadas.
— E dormiram juntos essa noite.
Antes que a jovem ao meu lado começasse a gaguejar as palavras,
os pedidos de desculpas, encarei meu pai com desdém e falei de boca cheia:
— Não é a primeira vez. Nem será a última. — Helena apertou
minha mão sob a mesa com força para quebrar, então completei por ela, em
um tom exageradamente inocente que minha namorada provavelmente
usaria: — Mas não se preocupe, sr. Kim, não fizemos nada ainda. Somos
dois jovens-adultos muito comportados.
Meu pai riu com deboche, apontando os palitinhos em suas mãos na
direção de Lena.
— Ela é uma jovem comportada. Você...
— Ah, eu... — Sorri um pouco, levando mais cereal à boca. — Sou
isso mesmo que está pensando.
— E-ele me r-respeita muito, sr. Kim! J-juro! — Lena interveio,
pronta para correr ou se esconder debaixo da mesa. Na mesa baixa de
ontem isso não seria possível, mas naquele móvel bastava a moça deslizar
para baixo e se encolher como um coelho assustado. Só então reparei que
ela usava uma calça de moletom minha, as bainhas dobradas até a
panturrilha, e a camisa cinza que eu vestira em minha namorada ontem. —
Não fizemos nada.
A fitei com um sorriso sem-vergonha e ronronei a palavra:
— Ainda.
— Jun! — Pare com isso!, era isso o que ela queria dizer com
aquele olhar apavorado.
Já meu pai parecia se divertir bastante.
— Então, Helena-shi... — começou, parecendo leve, tranquilo. Eu
não estava o afastando, afinal. — Sua estadia aqui na Coreia é permanente?
Isso fez meu sorriso morrer. Fez o cereal em meu estômago pesar.
Aquele era um assunto proibido: a provável volta dela ao Brasil.
Tinha me esquecido daquilo até o momento.
— Bem, er... — Lena hesitou, evitando meu olhar. — Estou
trabalhando para isso.
— Então planeja ficar aqui?
— Huh — assentiu, sorrindo um pouco, apertando levemente sua
mão na minha. — Se as coisas correrem bem... sim.
— E vocês dois planejaram algum futuro juntos?
Lancei um olhar aborrecido para meu pai.
— Deixe de ser um velho intrometido — grunhi, da mesma forma
que reclamava com ele quando meu pai zombava da minha mudança de voz
e das barbas ralas que começavam a surgir no meu rosto quando era um
adolescente.
Ele riu, relaxado.
— O quê? Não posso ficar curioso sobre isso? Me deixe cumprir
com meu papel de pai. — Por um segundo, o homem pareceu se preparar
para uma rebatida ácida, mas eu apenas levei mais cereal à boca. — Você
vai pedir ela em casamento?
Dei de ombros.
— Um dia, com certeza. — Ousei um olhar de esguelha para
Helena, que parecia ter acabado de engolir o caldo de lámen mais
apimentado de sua vida. — Vamos morar em uma casa do campo, ter dois
filhos e um cachorro, não é, docinho?
Ela me encarou embasbacada.
Meu pai gargalhou alto.
— Não seja tímida, Helena-shi. Podemos conversar sobre essas
coisas sem qualquer embaraço. É a ordem natural da vida. Você não tem
planos para o futuro?
— Claro... que tenho — disse, tímida.
— E esse futuro envolve um ogro rabugento cheio de tatuagens? —
A pergunta veio de meu pai; eu, inconscientemente, sorri.
— Sim, senhor.
— Assim parece que está sendo obrigada. — Larguei a colher e
apoiei meu antebraço na mesa, virando o corpo para ela. — Seja mais
convincente, meu cupcake.
Ela me fuzilou.
— Se continuar com esses apelidos ridículos, talvez eu termine com
você agora mesmo.
— Quando nos casarmos, vou te chamar de “meu tesourinho” —
provoquei, recebendo um tapa no braço.
Ri.
— Acho que vou te largar sozinho aqui — falou em português, e eu
já conhecia um pouco da língua para entender a provocação.
Lena ficou de pé.
— Eu vi que o senhor tem uma estufa particular nos fundos da casa.
Posso dar uma olhada?
Meu pai franziu a testa para ela.
— Helena ama plantas — expliquei. A falecida esposa dele também
adorava, por isso o homem era tão cuidadoso com os jardins. Em memória
dela. Para mantê-la viva de alguma forma.
— Ora, é mesmo? — Ele sorriu. — Fique à vontade, querida.
A casa estava vazia; caso contrário, ele mandaria chamar um dos
empregados para guiar Lena até lá. Talvez o sr. Kim também tenha
dispensado o secretário Chae; não tive sinais do homem desde que ele nos
deixara na casa na noite anterior. Nem mesmo de tia Eh Ji: ela ficara tão
alterada ontem que apenas ralhara para mim sobre voltar para casa para não
acabar se intrometendo mais. Fora ela quem sugerira que eu passasse a
noite ali, no fim das contas. Apesar do temperamento variado, minha tia era
uma das pessoas mais racionais e inteligentes que eu conhecia.
A estufa ficava praticamente ao lado da pequena quadra de
basquete, então falei:
— Vou levar você lá. — E antes que pudesse perder a coragem,
fiquei de pé e completei para o homem à mesa: — Vista suas roupas de
esporte, coroa. Vamos ver se ainda sabe fazer uma cesta.
Nenhuma palavra seria capaz de interpretar o sentimento que o olhar
dele transmitiu quando escutou aquilo, mas eu compreendi, e a culpa e a
saudade transbordaram de seus olhos ao assentir.
Lena garantiu a ele que eu o perdoaria um dia. Que meu pai deveria
ser paciente. Eles não sabiam que uma parte minha já começava a se abrir
àquela possibilidade, que talvez eu já o tivesse feito, mas era orgulhoso
demais para admitir.
Meu pai concordou.
— Encontro vocês daqui a dez minutos.
 

 
— Sabe, tive um sonho muito delicioso com você hoje. — Beijei o
pescoço de Lena, os braços apertados na cintura dela. Suas costas estavam
coladas ao meu peito enquanto encarávamos algumas borboletas dançando
em volta das roseiras do lado de fora da estufa.
Meu pai pedira dez minutos, mas não havia decido até então, e
Helena já tinha catalogado todas as espécies de plantas que encontramos lá
dentro. Me perguntou se seria demais pedir uma mudinha de cada uma para
replantar no apartamento.
— Me admira você dizer isso com orgulho — ela respondeu com
um julgamento forçado na voz. — Não me conte os detalhes.
Ri.
— Não se preocupe, prefiro mostrar.
Senti a cotovelada nas costelas.
— Você é um safado sem-vergonha — rebateu, virando o corpo para
me encarar. Havia um sorrisinho no canto dos lábios dela.
— E você adora que eu sei. — Enlacei sua cintura de novo. — Mas
veja bem, como o perfeito cavalheiro safado que sou, esperei você sair da
cama esta manhã para não reproduzir o sonho. Saiba que foi muito difícil
me segurar enquanto você acarinhava meu rosto.
Os olhos dela se abriram surpresos e, como esperado, o tom rosado
estava de volta ao rosto da minha namorada.
Ela pigarreou.
— Então... Quer dizer que você... Não estava dormindo?
— Ah, não mesmo. — Abri um sorriso largo e divertido. — E eu
particularmente acho que meus peidos cheiram à lavanda.
Lena deixou a vergonha de lado para gargalhar.
— E sim, também concordo que sou injustamente atraente —
assenti, recebendo um beliscão no braço dessa vez.
— Convencido.
Fiz um estalo com a língua.
— Tá aí, meu maior defeito.
— Devia ter dito que estava acordado. — Ela bufou, mas sem sair
do aperto dos meus braços. Muito pelo contrário: me abraçou de volta.
Estávamos há alguns segundos assim, apenas aproveitando a companhia um
do outro, quando Lena sussurrou em meu ouvido: — Seu pai está vindo.
Comporte-se.
Me desvencilhei o suficiente para virar o rosto para a casa atrás de
nós, a quadra que nos separava.
Era ele, com uma bola de basquete velha.
Senti aquele aperto familiar, mas dessa vez não foi tão difícil lutar
contra a sensação.
— Você está indo bem. — Lena se inclinou para beijar meu rosto.
— Vai ficar mais fácil com o tempo.
Concordei, engolindo em seco.
Inspirei fundo antes de me afastar e seguir para a quadra, para meu
pai.
— Eu sei que sim.
 
“Eu não sei,
Eu meio que já estava esperando por isso.”
Epilogue — IU
 
 
HELENA
 
SOL (10:31 a.m.): Atualizações: mamãe quer que todas as filhas usem o
mesmo vestido verde no casamento. Repito. VESTIDO. VERDE!
 
Sorri um pouco, sentindo as mãos ainda tremendo e o estômago
revirando.
 
LENA (10:31 a.m.): É o casamento dela. Deixa ela.
 
SOL (10:31 a.m.): Verde, Lua. Sabe como eu fico horrível com verde?
Meu cabelo é loiro. E se eu ficar parecendo a bandeira nacional?
 
Apenas minha irmã para me fazer rir alto em um momento como
aquele. Ela estava fazendo drama à toa: Sol ficava bem até mesmo vestida
com um saco de batatas.  E convencer nossa mãe que verde não era uma cor
muito favorável para um casamento — ao menos não o tom que eu sabia
que a sra. Ferreira escolheria — não seria tão difícil. Era só encontrar
algumas fotos no Pinterest que a convencessem do contrário.
 
LENA (10:32 a.m.): Vamos fazer outra reunião, é só chamar nossas irmãs e
vai ser cinco contra uma.
 
SOL (10:32 a.m.): Sabe que a Heloisa vai ficar do lado da nossa mãe,
aquela xexelenta.
 
Ri.
 
LENA (10:33 a.m.): O mais importante é que os nossos pais vão se casar.
Você pode trocar o vestido para a festa.
 
Minha irmã mandou uma figurinha de uma garotinha chorando
emburrada.
Depois de alguns minutos, ela enfim entrou no assunto pelo qual me
chamou para conversar.
 
SOL (10:35 a.m.): Recebeu o e-mail?
 
LENA (10:35 a.m.): Huh.
 
SOL (10:35 a.m.): E?
 
LENA (10:35 a.m.): Acho que me saí bem. Ainda não abri.
 
SOL (10:36 a.m.): Então já vai falar para os nossos pais?
 
LENA (10:36 a.m.): Se eu passar. Não tô pronta para o resultado ainda.
 
SOL (10:37 a.m.): E se não passar, pq isso te impede de continuar aí?
 
LENA (10:37 a.m.): Porque essa vaga é o que vai me manter aqui, Sol. Se
eu não passar, não vou ter um emprego fixo. Sabe que não é fácil se manter
sozinha. A sra. Jang vai me dispensar em algumas semanas pq vai se mudar
com a família para Busan. Não vou mais cuidar das crianças mesmo se
ficasse.
 
SOL (10:37 a.m.): O papai pode te ajudar.
 
LENA (10:37 a.m.): Sabe que jamais pediria dinheiro para ele.
 
LENA (10:38 a.m.): Vamos esperar e confiar que vai acontecer o que tiver
de acontecer. De qualquer forma, estou morrendo de saudades.
 
SOL (10:38 a.m.): Eu também... Se você ficar aí, vou fazer as malas e ir
morar com você.
 
Sorri, me sentando no banco vazio no ponto de ônibus para ir para a
casa dos gêmeos. Queria aproveitar cada momento com eles, evitava pensar
no dia em que precisaria me despedir dos dois.
O dia estava nublado e meu coração também, mas conversar com
Sol ou com as minhas amigas sempre me animava um pouco. Eu estava
feliz por minha irmã estar acordada e falando comigo.
 
LENA (10:39 a.m.): Vou arranjar um lugar para você dormir na sacada.
 
SOL (10:39 a.m.): Fala pra Ji Ah arrumar um emprego p mim no salão
dela.
 
LENA (10:39 a.m.): kkkkkkk
 
SOL (10:40 a.m.): Não estou brincando.
 
LENA (10:40 a.m.): Sei que não.
 
SOL (10:40 a.m.): Certo, Lua. Deixa de covardia, abre o e-mail. Estou aqui
com você.
 
Respirei fundo e fiz o que ela mandou, sentindo as mãos tremerem
de novo, o coração acelerar. Era um único e-mail que decidiria tudo. Cliquei
no ícone não lido, no nome da universidade, fechei os olhos e contei até três
antes de ler.
O ônibus passou e eu continuei sentada ali.
 
SOL (10:45 a.m.): E então? Você conseguiu a vaga?
 
LENA (10:45 a.m.): Não.
 
“Apenas dance comigo agora.
Tudo o que eu quero é você.”
It Takes Two — Fiji Blue
 
 
JUN
 
As luzes mudavam de cor. A música preenchia o salão. E a pessoa
que eu procurava... não estava em lugar algum.
Talvez o Jun de alguns anos atrás teria aproveitado aquela festa: a
comida parecia boa, as pessoas fantasiadas pareciam divertidas, a música
eletrônica que reverberava das caixas de som nas paredes não era de todo
ruim. Mas, naquele momento, aquele não era bem o lugar onde eu queria
estar.
Mas o que não fazíamos pela pessoa por quem estávamos
apaixonados, certo?
— Wa... Daebak![92] — Ji Ah, a aniversariante, se aproximou e
tocou o brinco de pedras verdes e vermelhas dependurada em minha orelha,
então analisou a roupa, o maior sorriso que aquela irritante já deu para mim
em todo aquele tempo. Talvez ela já estivesse bêbada. Ou só estava feliz em
confirmar que eu vencera meu orgulho para ir à sua festa. — Jun, a Lena
vai pirar quando te ver! Vocês tinham combinado?
Sorri, as mãos para trás do corpo.
— Não — falei satisfeito, alto, para que minha voz sobressaísse à
música. — Queria fazer uma surpresa.
— Essa fantasia está perfeita! — Bateu palmas. — Parece até que
saiu do filme.
— Obrigado. Você também não está nada mal para uma Viúva
Negra. Fica bem de ruivo.
— Nha... — Fez careta, tocando a peruca acobreada. — Eu nem sei
por que me dei ao trabalho de vir assim... — E me lançou um olhar
esperançoso. — Ele... ele veio?
Apesar das nossas diferenças, ver aquele brilho de expectativa dela
me fez ficar com pena de Ji Ah. Queria poder dar a notícia que ela
esperava; era o aniversário dela, afinal.
Não queria dizer, porque não desejava dar falsas esperanças, mas vi
a roupa separada em cima da cama dele e, antes de sair, vi meu amigo travar
uma luta consigo mesmo enquanto encarava uma pequena caixinha de
presente na mesinha de centro da nossa sala.
— Dê um tempo para o Cha Min. — Sorri um pouco. — Você feriu
o orgulho dele.
— Eu já tentei de tudo, Jun! — choramingou. — Não sei o que
fazer. Devo desistir?
Eu não sabia dizer. Cha Min não costumava voltar atrás quando
tomava uma decisão importante. Mas estávamos falando de Ji Ah, o cara
era louco por ela há dois anos.
Ergui o presente que comprara para a amiga da minha namorada.
— Feliz aniversário, insuportável.
Ji Ah sorriu, abraçando a embalagem rosa com fita vermelha. Era
uma caixa com uma pedra, eu entregaria o presente de verdade depois.
— Obrigada, idiota. — Então, a aniversariante apontou para um
canto da festa: a cabine de fotos. — Ela está lá.
— Valeu.
Segui pelo salão, desviando dos convidados que dançavam, cada um
com uma fantasia mais criativa que a outra, as luzes coloridas piscando e
iluminando seus rostos. Não encontrei Helena no local indicado por sua
amiga, na cabine de fotos, mas do lado, sentada em uma das banquetas altas
do minibar, ao lado de um cara de terno preto e óculos escuros.
A principio, não me importei, não quando coloquei os olhos na
figura fantasiada com um vestidinho preto e uma faixa vermelha na cabeça,
segurando uma vassoura de bruxa.
Ela estava indiscutivelmente linda e, apesar de adorar cada cacho
que emoldurava o seu rosto, a como minha namorada ficava encantadora
com os cabelos alisados também. Meias pretas na altura de suas coxas
enfeitavam suas pernas, os pés que balançavam no ar cobertos por sapatos
de boneca. Era uma fantasia simples, mas inconfundível.
Era uma personagem dos filmes Chibli que ela tanto gostava; Lena
até segurava uma pelúcia de gatinho preto, idêntica à do desenho.
E ao lado...
Bem, demorei um pouco para perceber que a pessoa para quem ela
direcionava aquele sorriso lindo era o seu vizinho Son Ho. Eu naturalmente
não me importava: era bem confiante do que Lena sentia por mim e eu por
ela, mas...
Também sabia o que aquele cara sentia pela minha namorada, até
um estranho saberia, estava claro na forma como ele olhava para a vizinha.
Conferindo um dos bolsos do casaco colorido que eu usava,
confirmando que o objeto estava no lugar em que eu pusera, coloquei o
melhor sorriso no rosto e me aproximei de Helena.
LENA
 
Apesar do peso no coração, aquela noite estava perfeita. Eu prometi
a mim mesma que me divertiria e depois pensaria no que fazer. Não hoje ou
amanhã, talvez na próxima semana.
Cheguei bem cedo no salão para ajudar minha amiga e algumas
colegas do trabalho dela a colocar a ornamentação no lugar. Crescer com
uma mãe produtora de eventos teve lá suas vantagens, então dei o meu
melhor para oferecer uma festa de aniversário incrível para minha
companheira de apartamento.
Ji Ah chorara um dia inteiro quando lhe contei sobre a prova. Ainda
não sabia o que esperar; por isso, eu até que estava reagindo bem,
considerando que era uma chorona de carteirinha. Acabei... me
concentrando na festa de Ji Ah e me esqueci daquelas questões.
Minha mãe me enviava fotos de vestidos verdes todos os dias —
não conseguimos convencê-la, no fim das contas —, me perguntando qual
modelo eu gostaria de usar no casamento, porque ela já queria encomendar.
E meus pais estavam tão felizes que me convenci que não ter passado na
prova fora o melhor.
Eu finalmente voltaria para casa e veria minha família.
Fui ao salão chique e fresco onde minha amiga trabalhava e, por ser
a melhor amiga da aniversariante, acabei recebendo um tratamento especial.
Deixei que alisassem o meu cabelo para que eu ficasse mais fiel à
personagem, e Ji Ah conseguira um aplique de franjinha para o toque final.
Pensei em ir de Sophie, mas um cabelo cinza não combinaria muito
comigo.
Então, ali estava eu, fantasiada de Kiki, fingindo que não teria que
contar ao meu namorado que estaria fazendo as malas e voltando para o
Brasil em algumas semanas.
— Já sei! — Me impulsionei na banqueta em frente ao balcão de
madeira do bar ao lado de Son Ho, que estava ali desde o momento em que
chegara. Cumprimentávamo-nos eventualmente, mas não éramos mais
como antes desde o incidente com a despensa. Não via o sorriso de
covinhas há meses, me sentia culpada por isso. — Você veio de segurança.
Ele riu um pouco, então aprumou as costas e tocou os óculos
escuros que me impediam de ver os seus olhos castanhos e o que eles
diziam.
— Qual é, Kiki... — Apontou para o terno preto que usava. Depois,
abriu o paletó, revelando uma arma de brinquedo amarela, laranja e verde.
Por fim, tirou do bolso um dispositivo prateado e retangular com luzinha
vermelha, que mais parecia um controle. — Não sabe mesmo?
Franzi a testa numa careta.
— James Bond...? — tentei.
— Sou o Agente S.
Segurei o riso.
— Agente S?
— MIB? — Tirou a arma de brinquedo e a posicionou sobre o peito
em uma pose galante. Continuei não pegando a referência. Ele bufou. —
Não sabe mesmo?
Encolhi os ombros.
— Foi mal...
Son Ho suspirou e fez um gesto de dispensa.
— Você é uma decepção. Tsc. Tsc.
— Eu sei. — Ri, e aquele silêncio já familiar entre nós se instalou
outra vez; sempre, há meses, como uma pessoa sem graça que entrava no
meio da conversa, interrompendo a piada. Estava cansada disso e, apesar de
estar feliz por ter encontrado Jun, não queria ter que perder um amigo no
processo. — Não podemos voltar a ser como antes?
Os lábios dele se comprimiram.
— Eu sei que as coisas ficaram estranhas entre a gente — continuei,
desviando o olhar para o Jiji de pelúcia em minha mão, a vassoura na outra.
Aqueles dois objetos simples pesaram como chumbo enquanto eu tentava
falar algo que pudesse consertar as coisas entre mim e Son Ho. — Mas não
queria ter que descer as escadas quando te vejo no elevador.
— É você quem foge de mim, Lena, não o contrário.
Bufei.
— Eu sei. Não sei o que fazer... Só me sinto culpada.
Son Ho abriu a boca, e eu esperei ouvir um “por que se sente
culpada?”. Porém, tive a impressão de que o brilho nos olhos do rapaz
diziam que ele já sabia. Da história toda.
— Fico feliz de saber que, no fim das contas, um falso namoro te
fez encontrar a pessoa certa — falou, levando o copo de bebida, que antes
estava no balcão, aos lábios. Ele sorriu quando meus olhos se arregalaram.
Son Ho deu de ombros. — Ji Ah me ligou naquele dia, no encontro.
A música alta pareceu silenciar de uma vez, o suco que eu bebera
mais cedo revirou no meu estômago.
— Você... sabia?
— Huh — assentiu. — Você me mandou aquela mensagem
praticamente uns quinze minutos depois que ela finalizou a ligação.
— E por que não me disse nada?
— Pensei em dizer, no começo, que deveríamos tentar mesmo com
os sentimentos da Ji Ah na mesa. Mas eu me coloquei no lugar dela,
imaginei como seria difícil, e me pus no seu lugar também. Sei o quanto
valoriza suas amizades e tinha certeza de que não magoaria sua amiga
daquele jeito. E... — Um sorriso triste. — Eu vi como me olhou naquele dia
na despensa. Vi como estava se sentindo. Só não imaginei que inventaria
um namorado falso para me afastar.
— Son Ho, eu...
— Está tudo bem. — Riu, sorvendo mais um gole da sua bebida. —
Fiquei preocupado no começo. Não conhecia aquele cara e, do nada, ele era
o seu namorado? Você nunca aceitou sair com ninguém enquanto esteve
aqui; eu sofria sempre que via Ji Ah te apresentar a alguém, mas ficava
aliviado quando você recusava cada pretendente.... Então, achei estranho
você, de repente, começar a namorar o Jun Woo. Mas liguei as peças,
entendi o que tinha acontecido e preferi te dar espaço.
— Sinto muito. — Foi só o que consegui dizer.
— Você vive pedindo desculpas para as pessoas, Helena-shi. — Son
Ho apertou minha bochecha. — Pare com isso.
— Foi mal... — Fiz careta, e ele riu de novo.
Meu amigo suspirou.
— Você sorri muito quando está com ele, sabia?
— Eu faço isso?
— Huh — assentiu. — Dá para ver que escolheu o namorado falso
certo.
Finalmente consegui rir, tentando libertar meus ombros daquela
tensão.
— Foi destino, acho. Eu quebrei a câmera dele na hora certa. — Dei
de ombros, e Son Ho gargalhou.
— Você quebrou a câmera dele? — perguntou incrédulo.
— Huh. — Então contei a história toda, ocultando detalhes da
despensa e outros mais românticos que não convinham dizer ao homem de
quem eu havia gostado e que gostava de mim. No final, meu corpo estava
mais leve e o sorriso em meu rosto também, mas não tão leve quando
pronunciei a última frase: — Não consigo me imaginar longe do Jun.
O barman apareceu com mais duas bebidas. Son Ho estendeu uma
para mim.
— Você merece uma pessoa especial assim, Lena.
Era errado sentir tanta pena de Son Ho ao ponto de o coração doer?
Porque...
— Você também merece, Son Ho-ya. — Ofereci o meu melhor
sorriso. — O seu alguém especial ainda vai aparecer, e vai iluminar todos os
seus dias como o sol faz de manhã.
Ele estendeu o copo com líquido azul. Estendi o meu rosa.
Um brinde.
— Aigoo[93]... — Uma voz diferente disse atrás de Son Ho. — Eu
aqui tentando salvar o mundo com a minha beleza e minha namorada fica
aí, brindando com outro...
Engasguei, por pouco não cuspindo a bebida em Son Ho ao colocar
os olhos em Jun Woo, parado em pé e de braços cruzados, fingindo
indignação em toda sua pose arrogante e gloriosa de...
— Howl!!! — gritei, saltando da banqueta e pulando nos braços do
meu namorado, que não pensou duas vezes antes de me pegar no colo. Não
me importei se as pessoas viam, apenas me permiti surtar com o homem
belíssimo fantasiado do personagem do meu filme favorito. Gritei mais do
que no dia em que encontrara Eric Lee atrás do vidro no estúdio de
gravação onde a Tetê trabalhava. — Você tá de Howl!!!
Ele riu, deixando de lado a careta para receber meus beijos e gritos.
Jun me colocou no chão, passando a mão no cabelo que — agora eu
sabia porque — ele deixara crescer nas últimas semanas. Ele dissera que
não se sentia confortável usando fantasias, dissera que apareceria usando as
roupas pretas de sempre, mas...
Meu sorriso não deixaria meu rosto tão cedo.
— Não acredito que fez isso! — Observei-o de cima a baixo. A
roupa era impecável e o casaco rosa com os losangos lilases e as bordas
amarelas característico tinha as mesmas cores vibrantes do personagem
original. Os coturnos pretos usuais, a calça preta e a camisa fina branca,
quase transparente, não deixavam muito para a imaginação. E as joias!
Céus, Jun era tão lindo que parecia irreal.
Era impressão minha ou ele parecia mais alto também?
Meu namorado podia muito bem ter saído de um livro de fantasia
e...
Segurei seu rosto, espremendo suas bochechas ao puxá-lo para bem
perto e encarar os seus olhos.
— Você colocou lentes! — O beijei. — Vai usar essa fantasia todos
os dias.
Ele riu, se afastando com cuidado, pacientemente esperando os
meus comentários, gritinhos e mais surtos passarem. O cabelo preto, os
olhos azuis, os brincos e o colar de pedrinha cor de safira! Aquele casaco!
Esperava que não fosse alugado, pois eu o roubaria com certeza.
Não era normal o quanto eu estava atraída pelo meu namorado
naquele momento.
Sabia que muitas mulheres naquela festa tentariam flertar com o
Howl, algumas poderiam até ousar pedir o número dele, mas não
conheciam o poder que uma namorada baixinha tinha.
Voltara a treinar com Jun todos os fins de semana.
— Você é meu! — Apontei dois dedos em frente aos meus olhos, e
então para os dele. — Não pode tirar os olhos de mim, ouviu?
Jun abriu um sorriso de tirar o fôlego e pegou a minha mão,
encaixando no meu dedo indicador o mesmo anel prateado com pedrinha
vermelha que Howl dava para Sophie no filme. Tinha um idêntico no dedo
dele também.
Mordi o lábio, emocionada. Não havia ninguém, só eu e ele. Não
estávamos mais na festa, e sim em uma bolha particular.
Não ligava se havia plateia. O meu namorado acabara de colocar um
anel em meu dedo, vestido de Mago Howl.
Jun se aproximou, levando os lábios para bem perto do meu ouvido.
— Disse que, quando eu fosse um mago bonito, se apaixonaria por
mim — falou, a vibração de sua voz grave provocando cócegas e arrepios
em meu corpo.
Sorri, me reclinando um pouco só para beijar seu rosto.
— Já sou apaixonada há um tempo.
Ele abriu a boca para dizer algo, mas alguém atrás de nós pigarreou.
Perceber que nossa plateia era, na verdade, Son Ho fez minhas bochechas
corarem. Me esqueci completamente dele e da nossa conversa quando vi
Jun-Howl aparecer.
— Ah! — Jun enlaçou minha cintura, nada afetado pela interrupção.
— E aí, cara.
Son Ho apenas ergueu o copo em cumprimento.
— Fantasia legal a sua — Howl disse.
Jun o analisou por meio segundo.
— Homens de preto — assentiu para o meu vizinho. — Os filmes
são muito bons.
Son Ho fez um gesto para mim que mais dizia “Obrigado, alguém
pegou a referência!”
— Sei que vocês dois não se falam há um tempo... — Jun Woo
sorriu tranquilo, as mãos fechadas em minha cintura. — Mas se importa se
eu roubar ela de você um pouco?
— Toda sua. — Son Ho bebeu o resto da bebida azul. — Divirtam-
se, pombinhos.
Então saiu, provavelmente procurando outro canto solitário na festa.
Pelo menos, eu sentia que aqueles momentos estranhos e gélidos entre nós
dois não aconteceriam mais quando nos esbarrássemos de novo.
— Você também — Jun disse com aquele sorriso sem-vergonha e
lindo. Ainda bem que ele não tirara aquela argola fina do lábio inferior. Não
era todo dia que se via um Howl na vida real usando piercing e tatuagens.
Era o meu dia de sorte.
— Eu o quê?
— Está linda de morrer. Foi isso que pensou quando me viu, não
foi?
Revirei os olhos, mesmo que fosse verdade.
— Não achei isso tudo. Lindo de morrer é um exagero, convencido.
— Já disseram que você é uma péssima mentirosa, Helena-shi? —
Ele beijou minha mão entrelaçada à sua. — O que quer fazer?
Olhei ao redor e sorri. Queria fazer algo que há tempos não tinha
vontade. Comecei a puxar Jun até a pequena cabine iluminada no canto do
salão.
— Quero tirar uma foto.
 

 
Todos os convidados pararam e o mundo pareceu silenciar quando
Han Ji Ah pegou o microfone e pediu que tocassem a música tema de
Castelo Animado para que somente eu e Jun dançássemos no centro da
pista.
Estava morrendo de vergonha, mas meu namorado, todo orgulhoso e
com um sorriso largo, segurou a minha mão, enlaçou a minha cintura com a
outra e dançou Merry go round of life comigo.
E de novo, fácil assim, entramos naquela bolha silenciosa outra vez.
Só eu e ele.
Parecia um conto de fadas, e eu não queria que acabasse. Porém,
depois de algumas frases da música, o sorriso apaixonado estampado no
meu rosto foi desaparecendo aos poucos.
Meu momento Cinderela teria que terminar alguma hora, mas não
queria esperar até meia-noite para contar a verdade a Jun.
— Eu não passei — murmurei, ciente de que as pessoas escondidas
nas sombras assistiam, com alguns celulares erguidos, filmando e
fotografando o casal fantasiado dançar na pista iluminada.
A expressão no rosto do fotógrafo não mudou.
— Eu sei.
Franzi a testa.
— Sabe?
— Ji Ah me contou no dia em que você viu o resultado. — Ele
brincou: — Alguém precisa deixar aquela fofoqueira longe do Soju.
Definitivamente.
Aquilo me fez relaxar um pouco. Rir.
— Ela não consegue aguentar a pressão. Então bebe e faz besteira.
— E você canta Baby Shark quando fica bêbada. Adorável. — Meu
namorado me puxou para mais perto. Não era uma música lenta, mas,
quando Jun Woo envolveu minha cintura com ambas as mãos, sequer nos
movemos no ritmo certo.
Queria brincar com a mesma facilidade que ele tinha, mas meu peito
ainda estava pesado com aquela pergunta.
— O que vamos fazer?
— Não se preocupe, nae gongju[94]. — Me ofereceu mais um
sorriso que, incrivelmente, me confortava. Todo ele. Não queria ter que me
afastar da pessoa que me fazia rir e cantar com uma frequência incalculável.
— Eu pensei em tudo.
— Pensou?
— Huh.
— E qual é o plano?
— Vou te sequestrar. Você não vai voltar para o Brasil, não vou
deixar. — Mesmo brincando, senti sua voz vacilar um pouco.
— É mesmo? — Deslizei a ponta dos dedos em sua nuca, sob as
mechas negras e compridas em um carinho que, dependendo do ângulo, só
quem estivesse muito perto poderia notar. — Vai ter que me sustentar... Me
dar comida, roupa e um emprego...
— Vou dar um jeito nisso — disse mais sério. — Mesmo se você
for... vamos dar um jeito. Você vai me ligar, vai me contar como foi o seu
dia... Algumas vezes, vai ficar chateada e estressada; em outros, feliz.
Talvez a gente acabe brigando, mas eu vou estar com você em cada
estação... E ficaremos assim, um com saudade do outro, até eu descobrir
uma forma de tê-la do meu lado de novo. Todos os dias.
— Vai mesmo querer um relacionamento à distância?
— Não vamos colocar um ponto final na gente só porque você vai
para o outro lado do mundo.
Soltei uma risada.
A música avançou para o clímax. O quase final.
Não queria soltar Jun Woo, não queria que aquela noite acabasse.
— Claro... — ironizei, estreitando os olhos. — Não vamos fazer
uma tempestade em copo d’água.
Howl colou sua testa à minha. Ele tinha aquele cheiro de shampoo e
loção pós-barba, perfume e cores que me lembravam noites em um quarto
escuro, abraçados em uma cama de casal, encarando o teto de estrelas,
conversando sobre tudo e nada até a madrugada chegar.
Daríamos um jeito.
Assim que a música finalizou, Jun Woo segurou minha mão e fez
uma reverência para a plateia, que bradou com a performance — bem ruim,
eu diria —, arrancando um sorriso de cada um no salão, me puxando para
fora da pista em seguida. Meus pés já estavam latejando e meu corpo queria
uma cama macia e uma longa noite merecida de descanso. Quando meu
namorado e eu caminhamos até a aniversariante para nos despedirmos,
avistamos uma cabeleira prateada se aproximar dela primeiro.
Um sorriso brotou em meus lábios quando os olhos da minha amiga
o notaram também.
Depois da última briga entre ela e Cha Min, Han Ji Ah abrira mão
de algumas regras para tentar reconquistar o rapaz: pedira desculpas — algo
nada comum para a moça — e até mesmo criara uma conta no jogo que ela
odiava só para conseguir uma chance bônus para falar com ele. Minha
companheira de apartamento não quis me revelar o que realmente fizera
para se desculpar com Cha Min na última semana, mas aparentemente
funcionara, já que o jovem estava, naquele instante, erguendo uma caixa de
presente para ela.
Com um lindo sorriso de quem a perdoava.
 
“Me dê um sinal.
Pegue minha mão,
nós ficaremos bem.
Apenas saiba que você não
tem que fazer isso sozinha.
Prometo que eu nunca irei te desapontar.”
Treat You Better — Shawn Mendes
 
 
JUN
 
Encarei o quarto. A cama.
Ji Ah e Cha Min não precisaram pedir: apenas o olhar que nos
lançaram na festa disse que meu amigo não voltaria para casa.
Helena não se importava em passar a noite no meu apartamento,
claro que não, já fizemos aquilo antes, sem... acidentes. Mas ela não parecia
compreender que, a cada dia que passava, era mais difícil para mim manter
o controle.
E aquela noite em particular...
Céus...
Ela estava perfeita.
Mesmo que minha namorada não recuasse quando as coisas ficavam
mais sérias, mais profundas; eu não queria correr; precisava ter certeza de
que ela estava pronta. Quando nos beijamos pela primeira vez Helena
disparara a chorar, o que aconteceria na nossa... primeira vez?
Desviei o olhar do colchão e travesseiros para a jovem distraída com
a minha coleção de fósseis, a ponta dos pés e panturrilhas cobertas pelas
meias que terminavam em sua coxa, a saia do vestido liso oscilando
enquanto ela esticava um dos braços para pegar uma miniatura de dez
centímetros do Stegosaurus. Foi impossível não sorrir ao vê-la se esforçar
para puxar o objeto para si.
— Esse é novo? — Lena franziu a testa, soprando uma mecha lisa
do rosto. Ela ainda usava a tiara vermelha, mas se livrara do aplique de
franja na metade da festa. O casaco rosa do personagem que ela gostava
alcançava o comprimento da saia preta do vestido curto. — Não tô
lembrada de ver ele antes.
— Estava na prateleira de cima — comentei, distraído por ela. —
Fiz uma limpeza no quarto ontem.
— Ah... — Sorriu, girando o esqueleto de acrílico nos dedos,
seguindo para o outro que conseguiu alcançar com seu tamanho. Pensei em
ajudá-la, mas era mais divertido assistir Lena colocar a ponta da língua pra
fora em concentração, com cuidado ao se apoiar na mesa para ver os outros
dinossauros. Ela o fazia todas as vezes, e já nomeara metade da coleção, e
eu não me cansava nunca de testemunhar aquele ritual já tão familiar.
Droga.
E ela iria embora. Por pouco tempo, mas iria. Já sentia uma falta
absurda, mesmo com a jovem bem ali, ao meu alcance.
Com aquele vestido e meias pretas que me faziam esquecer meu
próprio nome.
— Esse é o Brachiossauros, né? — Virou a miniatura para mim. —
Ele é o mais fofo. É aquele que é do bem? O vegetariano?
— Huh... — Acompanhei o caminho das mechas do cabelo dela
caindo como cascata negra em suas costas. Quando meu olhar desceu mais
um pouco para sua cintura balancei a cabeça e desviei a atenção para a
cama de novo. Pigarreei. — Pode pegar na gaveta uma camisa para você
dormir. Sabe onde fica as calças de moletom também.
Helena deixou o esqueleto no lugar e se virou para mim, me olhando
confusa.
— Tá... — Me analisou. — Está tudo bem?
— Huh. — Tentei sorrir. — Vou dormir no sofá hoje.
Ela riu baixinho.
— Depois de tanto tempo, agora vai dormir na sala? — Se
aproximou. — O que foi?
— Só... acho que vai ser melhor. — Segurei seus ombros, beijei sua
testa e por fim, me afastei. — Boa noite.
Minha namorada gargalhou, divertida, e, antes que eu pudesse sair
do quarto, ela pegou minha mão, me impedindo de continuar com o meu
plano de segurança.
— Jun.
— Eu cheguei no limite, Lena. — Inspirei fundo, olhos fechados. —
Você está irresistível demais. Não sou tão forte. Vou acabar perdendo o
controle.
Outra risada. Então a jovem estava de frente para mim, bloqueando
a saída.
— Jun... — Envolveu aquela mão com desenhos de rosas com as
suas e começou a acariciar o dorso com os polegares. — Eu não estou com
medo.
Franzi a testa. O rosto de Helena se voltara para as mãos que
seguravam a minha, vez ou outra tocando aquele anel no meu indicador,
gêmeo ao que enfeitava o dedo dela. Pensara em encomendar um delicado,
com ramos de planta, mas depois de assistir a Castelo Animado pela
milésima vez com minha namorada, cheguei à brilhante ideia de mandar
fazer dois anéis idênticos ao do filme. Dois coelhos com uma cajadada só:
um anel de namoro, porque eu sabia que Lena queria um; e um presente que
a faria lembrar do personagem favorito e de mim sempre que olhasse para a
joia.
— No começo, não sabia o que esperar..., mas há um tempo não me
sinto mais insegura. — A jovem desviou os olhos lindos da minha mão e os
ergueu para mim. Havia um brilho emocionado ali. Existia também algo
mais, algo quente e intenso. — Eu queria ter certeza e esperar, mas não
quero mais. Você é a pessoa que me faz sorrir quando as coisas ficam
escuras e amargas. Não se irrita quando eu tenho minhas crises de choro e
sempre tenta entender o meu lado antes que possamos sequer pensar em
começar uma briga. Compra sushi para mim quando sabe que estou tendo
um dia ruim; me leva a lojas com produtos que não preciso, mas que estão
em promoção, só para me animar; até colocou plantas no seu apartamento
só porque eu gosto...
Clareei a garganta, sentindo o coração apaixonado bater
ensandecido em meu peito. Helena deixava claro que gostava de mim, mas
era a primeira vez naqueles três meses de namoro que realmente se
declarava daquela forma.
— Eu comprei as plantas porque sabia que você viria aqui com mais
frequência para ver se elas estavam bem.
Minha namorada riu.
— Sabe o que acontece com você se deixar qualquer uma delas
morrer. — Piscou os olhos grandes com falsa doçura. Sorri e ela continuou,
mais baixo, séria. — E hoje... Hoje você realizou um sonho idiota usando a
fantasia do Howl e dançando a música tema do filme comigo. Não faz ideia
do quanto me fez feliz essa noite, Jun.
Ela esticou o braço e tocou meu rosto com carinho.
— Tomei tanto cuidado para não me apaixonar porque tinha medo
de me machucar... Estava tão concentrada em afastar o Son Ho que não te
notei invadir meu coração, e quando me assustei... você estava lá, ocupando
o espaço todo.
Sabia para onde aquela conversa seguia, mesmo querendo, mesmo a
desejando profundamente, não queria fazer algo impensado por influência
da magia daquela noite, da festa e das fantasias.
— Lena... — tentei dizer aquilo, mas ela me impediu, levando
minha mão até o seu coração, fazendo o meu bombear ainda mais rápido.
— É seu — murmurou, os olhos castanhos brilhando como estrelas
para mim. Eu nunca vira aquela expressão no rosto de Helena antes. Tão
séria, decidida e... ardentemente apaixonada. — É seu para cuidar e
respeitar. Vai bater por você enquanto você o proteger e zelar —
prosseguiu, colocando a palma da outra mão dela no meu próprio coração.
— E o seu, Jun?
— Bate por você desde a primeira vez que te viu naquela loja, nae
gongju. — Sorri, ousando me aproximar mais um passo. — Mas acredito
que você o ganhou de verdade quando quebrou a câmera.
Uma gargalhada baixinha deixou os lábios dela. Então no mesmo
segundo que me inclinei, Lena aproximou o rosto do meu e me beijou, bem
devagar, sem pressa alguma, como se decorasse cada movimento, a forma
dos meus lábios e como se encaixavam perfeitamente nos dela.
Nos afastamos, minha testa apoiada à dela, a mão de Helena em
meu peito, a outra rodeando meu pescoço. Quando nossos olhares se
encontraram, uma lágrima escorregou pela bochecha dela.
— Saranghae[95].
A frase não tinha hora certa; era cantarolada em meu peito todos os
dias. Não queria assustar minha namorada ao dizê-la, mas parecia um ótimo
momento para declarar em voz alta.
Só não esperava ouvi-la pronunciar também. Ao mesmo tempo, no
mesmo compasso.
— Isso é bom, certo? — brinquei, enxugando seu rosto com
carinho. — Falamos ao mesmo tempo, estava com medo de não ouvir a
resposta quando dissesse.
— Eu também. — Lena fungou e, por fim, riu. — Não acredito que
disse isso.
— Não acredita que eu amo você?
— Não pensei que diria tão cedo, mas porque está sempre tomando
cuidado comigo. — Sorriu. — Estou feliz que disse, porque é verdade. Eu
também te amo, Kim Jun Woo. Muito.
— Estamos em comum acordo então. — Afastei aquela mecha
teimosa de seu olho, sentindo cada parte do meu corpo ansiar pelo de
Helena. A encarei sério, ela também o fez. Sabia o que eu queria perguntar,
mas não pretendia, de forma alguma, repetir os passos do ex-namorado
dela.
Dizer coisas bonitas com a intenção de leva-la para cama? Era por
isso que sempre me afastava quando o sinal vermelho tocava, por isso
estava decidido a dormir no sofá naquela noite.
— Você não é ele — murmurou, recuando um passo apenas para ter
mais acesso a mim. Lena, com cuidado, enquanto falava, se movia,
esticando os braços e levando as duas mãos à barra da minha camisa. Com
calma ela elevou o tecido branco, e eu a ajudei a tirá-lo. — Provou isso
desde o dia em que nos conhecemos. Não é como ele. Confio em você.
Meu peito subia e descia rapidamente enquanto sentia a ponta dos
dedos frios de Helena percorrerem cada desenho tatuado em minha pele.
Primeiro a âncora abaixo do umbigo; seguindo as constelações; subindo a
mão para o pequeno pássaro de origami e a flecha no abdômen; parando,
por fim, nas três estrelas sobre o meu coração. Duas maiores e uma menor.
Meu irmão, minha cunhada e minha sobrinha, marcados em meu peito para
que eu jamais me esquecesse.
Helena também sabia, pois se inclinou e bem devagar e
delicadamente, minha garota beijou aquela tatuagem com carinho.
— Não estou com medo. Eu quero isso. — Me encarou, aqueles
olhos de cores mutáveis à luz ambiente que me impressionavam e me
entorpeciam. E me beijou devagar. Me beijou com doçura e paixão. — Vou
ser sua, e você, meu.
— Está me enlouquecendo, Helena — murmurei rouco, afastando
aquela mecha alisada e negra do rosto dela.
Linda.
Perfeita.
Minha.
A mão que antes contornava as tatuagens agora encontrava caminho
em minha nuca. Segurando a corrente dourada do colar que complementava
a fantasia, minha namorada o tirou, deixando-o de lado, voltando os olhos
incandescentes para mim outra vez.
Engoli em seco.
Ela também.
— Você tem certeza? — perguntei, baixo e ofegante. Apaixonado.
— Não vou conseguir parar dessa vez, nae gongju[96].
A resposta dela foi remover o casaco rosa e lilás que eu colocara
nela ao voltarmos da festa, deixando-o deslizar com um ruído suave até o
chão. Helena deixou que eu a puxasse pela cintura, permitiu que eu a
beijasse outra vez. E foi tão diferente de tudo que já experimentara antes; eu
precisava dela e ela de mim, aquele beijo apressado e faminto era prova
disso.
Caminhei de costas até a cama, trazendo-a comigo, a virando para
que eu pudesse abrir o zíper do vestido. Helena afastou o cabelo comprido,
me dando acesso completo às suas costas, e eu beijei aquele ponto sensível
em seu pescoço enquanto deslizava o zíper. Então, afastei o tecido preto dos
ombros dela e a beijei ali também, deliciado com a pele quente que se
arrepiou sob meus lábios.
Lena soltou um riso fraco e suspirado.
— Seus dedos... — sussurrou. — Você está frio.
Sorri sobre sua pele macia.
— E você, quente demais.
Logo o vestido caiu.
E meu coração acelerou mais um pouco.
Observei cada curva, deslizei a ponta dos dedos tatuados em sua
coluna, contei as pintinhas espalhadas ali, mais embaixo... Perfeita. Minha.
Toquei sua cintura e a virei para mim, correndo os olhos pelo corpo
dela, o peito que subia e descia com velocidade idêntica à minha, a barriga
que acompanhava a respiração ansiosa. Um sorriso largo brincou em meus
lábios quando encostei no tecido da peça íntima de baixo que até então
estivera escondida.
— Eu devia ter escolhido algo mais sexy, não é? — brincou Lena,
mas a rouquidão em sua voz me dizia que tinha ficado tímida. Apreensiva,
de repente. — Uma renda preta, talvez...
Neguei, ainda observando os detalhes da peça lilás, as margaridas da
estampa espalhadas no tecido. O mesmo desenho do sutiã, um lacinho
enfeitando o centro.
— É lindo. — Ergui os olhos para ela. Minha namorada. A pessoa
que eu amava tanto. — Você é linda.
Helena sorriu, fechando os olhos ao sentir minha mão acariciar seu
rosto.
Puxei uma mecha de seu cabelo, deixei que ela caísse sobre o ombro
descoberto da jovem, e então peguei mais uma, que percorreu o caminho
até o umbigo.
— Poderia passar a noite toda apenas te olhando — murmurei,
rouco. — Apenas... admirando cada detalhe perfeito seu.
Os olhos dela se encheram, brilharam forte com as lágrimas.
Conversamos sobre a primeira vez dela em uma noite fria na sacada,
semanas atrás. Helena se encaixara entre minhas pernas, apoiara as costas
em meu peito e nos envolvera com um cobertor enquanto observávamos o
movimento da cidade lá embaixo. Ela me revelara mais detalhes sobre o
relacionamento com Miguel quando ousei perguntar. Todos os pormenores
que ela jamais tivera coragem de contar a qualquer um. As coisas que ele
dizia e fazia. Lena dissera que não se sentia machucada, que em momento
algum fora forçada a ir para a cama com o ex-namorado, mas que ela
dificilmente se sentia completa. Satisfeita. Prazer... Raramente sentia prazer.
Por muito tempo, a moça achava que aquilo era normal, que devia ficar
debaixo do namorado até que ele rapidamente se aliviasse.
E tinha os vídeos, as fotos... Não perguntei mais sobre aquilo, mas
meu estômago se contorcia de ciúme e algo mais sanguinário quando
imaginava se o canalha ainda tinha aquelas coisas gravadas no celular, se
ainda assistia à ex-namorada, ao que um dia foram. Não questionei Helena
sobre aquilo, mas, pela voz trêmula, sabia que ela se perguntava o mesmo.
Que a ideia a apavorava.
O cara algum dia a ameaçara? Alguma vez Miguel usara aquelas
coisas para forçar a moça a voltar com ele? Durante o relacionamento dos
dois... o idiota dissera que, se Lena não fizesse o que ele queria, se não
fosse uma boa e obediente namorada, a exporia?
Não a culparia por não ter notado os sinais, não a julgaria por não
ter percebido o perigo que corria. Às vezes é mais fácil perceber o perigo
quando se está do lado de fora. Lena disse que eles estudaram juntos, que
foram amigos, que acreditara nele e confiara em suas atitudes. Miguel foi
seu primeiro amor, seu primeiro namorado, e ela não sabia o que fazer. Não
queria perdê-lo.
As pessoas dificilmente optavam por aquela opção: compreender.
Sempre seguiam o caminho mais fácil e cômodo: julgar, apontar e diminuir.
Era mais trabalhoso para algumas delas parar e pensar por um minuto,
sentir empatia, compaixão... Acolher.
E Lena tinha medo delas. Medo do que pensariam e diriam. Por isto
não contara a ninguém, desde o começo, desde o primeiro sinal de
problema e dor: porque tinha medo das pedradas invisíveis de acusação, da
ardência dolorosa dos olhares afiados e julgadores. Tinha medo de que a
diminuíssem mais. Por isso não dissera nada à Maitê, Ji Ah ou Sol. Muito
menos aos seus pais.
Mesmo assim... meu estômago e coração se retorciam de ódio, de
nojo, mas não dela. Os piores e mais violentos pensamentos jamais seriam
direcionados à minha namorada, mas a Miguel e tantos outros canalhas
espalhados por esse mundo terrível que faziam o mesmo: chantageavam e
presenteavam ao mesmo tempo; brincavam e manipulavam; feriam e
distorciam o verdadeiro significado do que era amar e se entregar a alguém.
Naquele dia da sacada, Helena notara a mudança do meu humor, a
raiva que entorpecera meus pensamentos. Ela dissera que estava tudo bem,
que havia passado e superado, mas a jovem nunca fora boa em mentir. No
entanto, era notável o quanto se esforçava para fazer daquilo uma verdade.
Naquela noite, minha namorada percebeu que eu seria capaz de comprar a
primeira passagem para o Brasil para encontrar o desgraçado – que até um
ano antes insistira em ligar para a ex, tentar de novo — e até mesmo matá-
lo. Então a brasileira abriu um largo sorriso e disse que estava com vontade
de comer frango frito e assistir a um filme de terror.
Aquilo me despertara dos pensamentos ruins e, quando Lena se
enroscou em mim no sofá nas partes sangrentas do filme, afundando o rosto
em meu pescoço para não ver, me acalmei. Passei os braços ao redor dela e
fiquei o restante da noite assim, me lembrando que, apesar do passado com
Miguel ainda se fazer presente, o babaca não estava mais com ela. Quem
cuidaria, respeitaria e mimaria Lena seria eu. Quem treinaria com ela todos
os sábados e a ensinaria a dar socos e pancadas e se cuidar seria eu, e a
responsabilidade de jamais deixá-la passar por tais constrangimentos outra
vez na vida seria minha.
Naquela noite, eu soube que iria ao fim do mundo por aquela garota.
Ou mais longe. Mais profundo.
E eu provaria para Helena naquela noite. Provaria que ela deveria se
sentir maravilhosa quando estivesse com quem amava, não retraída e
incomodada; que deveria delirar, e sorrir, e desfrutar das melhores
sensações... Faria nossa primeira vez apagar a lembrança de todas as vezes
com Miguel.
— Não vou ser rápido. — A puxei para perto e a coloquei na cama
com cuidado, com carinho. Beijei seus lábios, depois seu queixo, seu
pescoço... — Não estou com pressa. — A encarei bem no fundo de seus
olhos castanho-esverdeados. — Amanhã é domingo, afinal... Meu único
plano é me demorar muito em você, gongju[97]. Ah, e te ensinar o
verdadeiro significado do que é... — ofereci a ela um sorriso preguiçoso, e
então sussurrei: — ...fazer amor.
Uma lágrima escorreu por sua bochecha, não de tristeza, e eu a
enxuguei com outro beijo.
Lena segurou meu rosto com ambas as mãos e me encarou, o choro
silencioso trilhando caminho em sua face.
Ela sorriu. Sorriu de verdade. Livre e alegremente.
— Eu te amo, Jun. — Passou os dedos em meu rosto, afastou
algumas mechas pretas e, agora, mais compridas. — Tanto que acho que
meu coração vai explodir.
Sorri também, deixei que meu corpo pressionasse levemente o dela
no colchão.
— Não sei, não... — murmurei. — Acho que te amo mais.
— Vamos ter que descobrir, então. Quem ama mais quem. — Ela
riu, levando os lábios úmidos e salgados de lágrimas até os meus de novo e
de novo.
Depois de alguns minutos demorados assim, apenas nos beijando,
me afastei, a observando outra vez: aquele rosto, cada detalhe dele.
— Foi uma desculpa — confessei, finalmente.
Lena franziu a testa, confusa.
— O quê?
— O acordo. A câmera. Foi uma desculpa.
Helena ficou calada, sua respiração rápida se misturando à minha.
Contornei as costas dos dedos em seu rosto.
— Quando vi você na loja pela primeira vez, quando me mudei pra
este bairro, quis falar com você, saber seu nome, te conhecer. Mas eu estava
quebrado, Lena. Eu... só pensava na morte do meu irmão e nos sonhos que
eu não viveria mais... Conseguia fingir que estava bem, mas só às vezes. A
primeira vez que sorri de verdade quando voltei pra Coreia foi quando te vi
cantarolando Good Day[98] enquanto subia o morro pra nossa rua. Sempre
que te via, sorrindo e cantando com os fones no ouvido... Talvez...Com
certeza me apaixonei por você bem antes, quando te enxergava na loja ou
voltando da aula.
Sorri, com a lembrança. Pareciam ter se passado anos, mas não
havia mais de alguns meses que estávamos juntos. Continuei:
— Esperava o momento em que seu olhar cruzaria com o meu para
poder me aproximar, mas você sempre mantinha os olhos longe de
estranhos, não encarava ninguém por mais de três segundos antes de
continuar andando. Deixei pra lá, pensei que você era um raio de sol que
merecia mais do que um cara quebrado, que tinha uma vida boa pra ter de
aturar alguém com dores e ressentimentos como eu... Não tinha certeza se
conseguiria ser o antigo Jun quando finalmente falasse com você. — Lena
parecia segurar o ar, mas as lágrimas ainda caíam. — Mas aí você
simplesmente pulou na minha frente naquela noite e me ameaçou, quebrou
minha câmera. A grande defensora de Idols.
O som reverberou pelo meu coração quando ela gargalhou.
— Fiquei surpreso quando te vi lá, não pensei que fosse o tipo de
pessoa que ia a boates. — Sorri. Ainda me lembrava do vestido prateado
que ela usava; não combinava muito com o guarda-roupa de Lena, e eu
sabia agora que era de Ji Ah, mas ficara perfeito nela. Ela estava de
sapatilhas, mesmo numa fila para um clube cinco estrelas, porque Helena
odiava saltos altos. — Fiquei sem reação naquele dia porque era você. A
moça da loja de conveniências finalmente me olhara nos olhos, finalmente
falara comigo, e então você quebrou a câmera e... Bem, correu de mim. Eu
normalmente não teria feito nada, pagaria o conserto e deixaria pra lá. Mas
era você. Você não se lembrava de mim, correu porque não sabia que
morávamos na mesma rua.
— Vou começar a prestar mais atenção nas pessoas a partir de agora
— Lena prometeu, divertida.
Eu ri baixinho.
— Claro, claro. — A beijei devagar, e completei ao me afastar: —
Sabia que não poderia me pagar; mesmo se fizesse isso, me evitaria se me
visse na rua depois. Mas queria te conhecer. Queria passar mais tempo com
você.
— Por isso sugeriu dez favores. — Lena bufou, fingindo
indignação, mas logo os lábios avermelhados se esticaram. — Espertinho.
Ri.
— Estou feliz que quebrou aquela câmera, Helena-shi.
Minha namorada fungou, limpando o rosto antes de passar os braços
por meus ombros.
— Eu também, paparazzi.
— Não tem mais como fugir. Sabe disso, não sabe? — sussurrei ao
inclinar a cabeça para perto de seu ouvido, e então mordisquei o lóbulo
macio ali. — Está comigo agora.
— Eu não quero fugir... — Suspirou, virando o rosto, me dando
mais acesso ao pescoço que eu adorava.
Sorri sobre sua pele.
— Ótimo.
 
“Eu acho que você é único para mim...
Porque fica tão difícil respirar.
Quando você está olhando para mim
Eu nunca me senti tão viva e livre.
Quando você está olhando para mim
Eu nunca me senti tão feliz.”
Dandelions — Ruth B.
 
 
HELENA
 
O apartamento estava silencioso quando me sentei no colchão
devagar e encarei a claridade que o fim da madrugada oferecia ao quarto de
Jun. A porta de vidro da sacada estava fechada, mas as cortinas um pouco
abertas, revelavam um trecho de luz azulada e fria do lado de fora. Meu
namorado morava no último andar e, à noite, aquela pequena sacada nos
presenteava com uma bela vista da cidade lá em baixo.
Minha boca estava seca. Por mais frio que estivesse, por mais
aconchegante que fosse o casulo do corpo quente de Jun, do colchão macio
e do edredom, me obriguei a levantar da cama. Apanhei, no chão, a camisa
branca que meu namorado usara na festa de Ji Ah e a coloquei, sorrindo
levemente ao puxar mangas compridas até revelar minhas mãos. Ao mesmo
tempo, lançava um olhar ao jovem apagado na cama, os ombros largos e
músculos expostos, a extensão da coluna e suas costas lindas. Eu o encheria
de beijos naquele segundo se Jun Woo não parecesse tão fofo e sereno
dormindo. Exausto.
Caminhei na ponta dos pés até a cozinha, abrindo a geladeira e me
servindo de um copo de água antes de seguir para o banheiro, com planos
de voltar logo para o calor da cama depois de lavar as mãos. Foi então que
detive uma delas na maçaneta e virei o rosto para o espelho.
Foi um gesto automático por muito tempo: ignorar meus reflexos ou
me olhar no espelho apenas pelo tempo necessário. Às vezes, me forçava a
encarar a pessoa no espelho por mais segundos que de costume, mas me
sufocava com a culpa e desprezo e vergonha de novo e de novo.
Por muito tempo, passei direto pelos espelhos, mas ergui o olhar
para a jovem desgrenhada que me encarava de volta naquela madrugada.
Dirigi lentamente o olhar para a pele pálida do pescoço e para um dos
ombros expostos. Contei cada marca sutil que começara a criar forma e cor
facilmente em minha pele e me lembrei de quem, exatamente e com prazer,
carimbara cada beijo e mordida em mim. Ergui uma das mãos até uma
mecha negra e encarei meu cabelo alisado bagunçado e desgrenhado,
recordando as mãos tatuadas responsáveis por aquilo. Me perguntei como
ficariam caso estivessem no estado natural, cacheados e bagunçados depois
de uma noite como aquela.
Por fim, sem sentir o coração apertar e doer, observei, escutando
minha respiração calma ecoar pelo banheiro fechado, cada detalhe do meu
rosto. A pele com sardinhas que se destacavam no frio ao amanhecer, por
algum motivo, e as pintinhas destacadas distribuídas em meu maxilar, no
canto da boca e dos olhos e na pontinha do nariz... Me permiti internalizar a
curva arredondada dos meus olhos grandes e castanhos, os cílios que os
contornavam, o resquício do batom vermelho manchado nos cantos de
minha boca, a maquiagem que eu sequer cogitara tirar antes de Jun me
deitar naquela cama... Me deixei, pela primeira vez em muito tempo,
apreciar o formato do nariz arredondado e as bochechas, o queixo;
descobrir que eu realmente gostava do formato dos meus lábios e que , de
fato, eles ficavam mais convidativos quando curvados para cima.
Aquela Helena...
Sorri para ela. Sorri para a jovem que, por tanto tempo, me obriguei
a esconder por vergonha. Sorri de verdade para a estudante que eu
menosprezara e diminuíra nos últimos anos. Pela primeira vez em dias,
semanas, meses e anos, eu a elogiei, toda bagunçada e tudo mais.
Linda.
Me sentia linda.
Por dentro e por fora.
Ousei encostar a ponta dos dedos nos lábios avermelhados, ainda
sentindo o delicioso toque de Jun contra eles, as carícias dos dedos gentis e
tão cheios de cuidado e devoção que me desestruturaram no primeiro
segundo. Me lembrei de como me sentira horas antes, quando meu
namorado me beijara cheio de paixão e fizera amor comigo não só uma,
mas duas, três vezes. E me fizera sentir completa.
Jun cumprira com sua palavra: me mostrara o que eu sequer sabia
que poderia realmente sentir. No fim, quando o sono e o cansaço realmente
nos alcançaram, ele me abraçou contra o peito e sussurrou em meu ouvido
que era apenas o começo de tudo que ainda queria me mostrar. Me fazer
sentir.
Não me permiti pensar em como o rapaz era tão experiente, tão
seguro e cheio de truques, em quantas namoradas tivera e com quem
praticara e aprendera tais coisas. Apenas foquei no sentimento transmitido
naquela noite, na frase literal de “eu te amo” que deixara os lábios do rapaz
de novo e de novo e de novo; da interpretação daquela declaração em outras
formas, gestos, gostos.
Sorri para a jovem linda e extraordinária que Jun fizera eu me sentir
naquela noite. Que fazia eu me sentir todos os dias.
Pela primeira vez, me permiti encarar o fundo daqueles olhos de
Helena Ferreira e amá-la.
Amá-la de verdade.
Criativa, alegre, colorida... Um pouco dramática e sensível, medrosa
e hesitante, mas cheia de ideias e amor para dar. Me permiti enxergar toda
ela, toda a grandiosidade complexa de quem eu era por dentro e por fora.
Engraçada, estranhamente peculiar e linda. Muito linda.
Com um último e largo sorriso, deixei o banheiro.
Quando voltei, Jun não estava mais de bruços no colchão, de costas
para o mundo, o rosto afundado no travesseiro pela exaustão. Agora, se
encontrava deitado de lado, com um dos braços apoiando a cabeça, o peito
largo exposto revelando as silhuetas desenhadas na maior parte de pele –
tronco, abdômen, braços... Me perguntava se o jovem tinha planos de
acrescentar mais tatuagens, até cobrir cada centímetro que pudesse.
Meu namorado ainda parecia sonolento, os cabelos como tinta
nanquim à luz fria e azulada do quarto, tão embaraçados quanto os meus.
Até cogitei que tivesse cochilado de novo, mas, quando me aproximei e
subi no colchão, notei o sorriso preguiçoso esticar lentamente os lábios
perfeitos, o piercing bem ali, como brinde.
— Essa camisa caiu melhor em você do que em mim — murmurou,
rouco. Encolhi os dedos dos pés sobre o colchão quando a mão tatuada livre
se ergueu e tocou o ossinho da minha clavícula, descendo e descendo
lentamente. — Fez jus ao decote.
Corei, porque ainda não estava acostumada à intensidade daqueles
olhos de noite estrelada presos a mim. Aquele brilho lindo e faminto era
direcionado exclusivamente para mim. Talvez jamais me acostumasse.
— Desculpa te acordar — sussurrei, mesmo que apenas nós dois
estivéssemos no apartamento. Antes de me deitar, por fim, falei: — Fiquei
com sede e fui beber água. Quer que eu pegue pra você?
Antes que eu pudesse fazer menção de sair de novo, Jun segurou
meu pulso e me puxou para ele, colando minhas costas em seu peito,
rodeando seu braço em minha cintura, deliciosamente me apertando contra
sua pele morna. Senti a ponta de seu nariz em meu pescoço. Ele inspirou
meu cheiro como algumas pessoas faziam em um jardim, para sentir o
perfume das flores.
— Sempre se desculpando por nada... — disse baixinho sobre minha
pele. Logo, depositou um beijo demorado e carinhoso em minha pele
exposta. Fechei os olhos, me permitindo me aconchegar naquele abraço. —
Mas sim, você me acordou. Sim, tirou meu sono.
Sorri, ainda de olhos fechados.
— Não quer água, então — resmunguei, mas aquela provocação mal
passou de um suspiro.
Meu namorado soltou uma risada rouca antes de continuar de onde
tinha parado.
Outro beijo. Jun afastou facilmente o pano fino da camisa que
cobria meu ombro e me beijou ali, de novo.
E de novo.
— Huh... — grunhiu baixinho sob outro beijo, e mais um. — Estou
com sede de outra coisa agora.
De você. Quero você. Quero você de novo, para sempre. Ele não
precisou dizer, mesmo assim, parecia ter escapado de sua boca.
Girei no colchão para encará-lo. Aquele rosto lindo, emoldurado por
mechas escuras bagunçadas demais.
Desci o olhar para sua boca, para o piercing ali, afastando uma
mecha preta dos olhos de Jun.
— Eu também — sussurrei.
E foi resposta o suficiente.
 
“Como pude ter tanta sorte
Para ter te conhecido?
Eu sinto que você vai
Desaparecer para um lugar distante.
Eu sinto sua falta de novo.”
Through The Night — IU
 
 
JUN
 
Observei as mechas negras espalhadas pelo lençol cinza, o rosto
angelical adormecido, a pele sempre tão pálida pela manhã destacando não
só as poucas pintinhas castanhas que enfeitavam adoravelmente seu nariz e
bochechas, mas também a boca rosada entreaberta. Tão macia e tentadora.
Eu poderia olhar para Helena o dia todo, mas não conseguiria
apenas olhar. Ela era inexplicavelmente linda e eu não tinha forças para
ficar longe. Principalmente agora. Não depois das nossas últimas semanas
juntos.
Mas eu teria, certo? Em algumas horas, teria que observá-la entrar
no avião e partir.
Com o rosto apoiado em uma das mãos, ergui a outra, aquela
enfeitada pelo anel prateado no indicador, e a levei ao rosto de minha
namorada, seguindo com a ponta dos dedos cada detalhe. Primeiro as
sobrancelhas escuras, a pontinha redonda do nariz, os lábios que me tiravam
o juízo...
Eu pretendia acordá-la com um beijo, mas os olhos castanho-
esverdeados se abriram e me encararam.
Sempre me maravilhava quando as pupilas negras neles dilatavam
tão claramente para mim. E como Helena sorria quando acordava ao meu
lado.
— Bom dia, meu amor — enfatizei as duas palavras em português,
um sorriso lindo despontou na boca dela.
— De novo — pediu com a voz rouca, mal conseguindo manter os
olhos abertos.
— O quê?
— Fala de novo...
Sorri, me inclinando mais sobre ela, o polegar acariciando a pele lisa
de sua bochecha.
— Ne sarang? — indaguei entre um beijo e outro. Lena fez careta,
negando, ainda sonolenta. — Hm... Então... My love?
Um vinco aborrecido se formou entre suas sobrancelhas.
— Ah... Aquela palavra? — A beijei, bem devagar, seguindo a linha
do maxilar delicado, afastando as mechas lisas do cabelo dela para abrir
espaço para seu pescoço. — Meu amor?
— Huh. — Contornou meu pescoço com uma das mãos. — É tão
lindo te ouvir falando em português que eu derreto todinha.
Ri sobre sua pele.
— É mesmo?
— Quando você diz, sem querer, “trem e uai” minhas pernas até
tremem.
Gargalhei baixinho, me colocando sobre ela, a prendendo entre os
meus braços.
— Quero impressionar os seus pais quando tiver que conhecê-los
oficialmente. — Afastei uma mecha escura do rosto dela. — Então, faça o
favor de me ensinar português direito.
Aquele sorriso aumentou, e Helena assentiu.
A fitei por longos segundos, a lembrança de cada momento das
últimas semanas vivas em minha mente. Não sentiria falta apenas daquilo,
das nossas noites juntos, de Lena acordando ao meu lado, de seus beijos e
carícias... Sim, eu sentiria uma falta surreal desses momentos, mas
principalmente dela. De segurar sua mão enquanto conversamos sobre
qualquer coisa quando saíamos para algum lugar, de abraçá-la no sofá
enquanto assistíamos seus filmes favoritos... De rir com ela, estar com ela.
Minha melhor amiga.
Sabia que não seria permanente, mas meu peito estava doendo
mesmo assim.
Me arrependia de ter demorado tanto para me aproximar de Lena,
por ter deixado minha perda falar mais alto e me impedir de conhecer
aquela garota incrível. Eu quis conhecer Helena, quando coloquei os olhos
nela pela primeira vez, soube que não tinha mais controle dos meus
pensamentos e sentimentos. Assim que a vi, soube. Devia ter me
aproximado, perguntado seu nome...
Teríamos tido mais tempo, não só aqueles meses.
— No que está pensando? — Lena questionou, sonolenta, se
aconchegando em mim.
Suspirei, observando os lábios de cor de cereja, as marcas em seu
pescoço e os ombros pálidos que delatariam o que fizemos, os beijos que eu
depositara em cada centímetro de pele.
— Não pode ficar? — insisti mais uma vez. O fizera dezenas de
vezes nas últimas semanas. — Pode me ajudar com as fotos, pode morar
comigo. Sabe que podemos dar um jeito.
Helena se mexeu um pouco para me encarar, afastando as mechas de
franja do meu rosto, o cabelo comprido o suficiente para que ficasse preso
atrás das orelhas.
— Já conversamos sobre isso.
— Sim, mas eu ainda não consegui te convencer.
Aquela risada rouca e deliciosa reverberou pelo quarto.
— Jun...
— Só... não vá. Fica comigo.
Helena me olhou com carinho, suavizando o sorriso em seus lábios.
— Quero ver os meus pais casando. Quero matar a saudade da
minha família. Quero abraçar o meu pai e contar sobre o cara incrível que
conheci.
Eu entendia, sim, mas ali, tão linda na minha cama, em meus
braços... Era difícil simplesmente deixá-la ir.
— Preciso ver meu pai — continuou baixinho. — Não vou
conseguir viver bem aqui sem a bênção dele. Quando tiver certeza de que
está tudo bem, que ele me apoia inteiramente e que tenho como me manter
aqui em Seul, eu volto para você. Tudo bem?
— Então... talvez eu deva ir com você? — tentei, e ela fechou a
cara.
— Você tem trabalho para fazer, esqueceu? Vai ficar quietinho aqui,
procurando um emprego pra mim.
— Posso te arranjar um emprego do Brasil. Além do mais, poderia
conhecer os seus pais pessoalmente.
— Você vai ficar. Vai continuar com as fotos incríveis, e vai me
esperar. — O olhar dela suavizou. — E vai passar mais tempo com o seu
pai.
Aquilo de novo...
— Já fizemos as pazes.
— Não. Você tem que continuar vendo ele. Tira um dia da semana
pra almoçar com o sr. Kim... Ele fica sozinho demais naquela casa. Deve
sentir falta de ter você lá.
— Está falando isso porque ele foi com a sua cara — resmunguei.
— Ele é um amor, Jun! — bufou. — Pare com isso, você já perdoou
ele. Então continue de onde parou. Me promete que vai ir vê-lo pelo menos
uma vez por semana?
Não respondi.
— Kim Jun Woo.
Assenti.
— Ótimo — ela disse, abrindo um sorriso doce. — Vai dar certo.
Quando menos perceber: eu vou estar de volta.
— Daqui um mês? — perguntei e Lena riu, negando. — Dois
meses? Então três? Não pode passar de cinco, ou pego um avião e vou para
o Brasil.
A jovem gargalhou, aceitando de bom grado os beijos e mordidas
que eu depositava em suas bochechas, pescoço, ombros...
Parei depois de alguns minutos, refazendo a trilha até a sua boca.
A beijei preguiçosamente. Começando a contagem regressiva, me
recarregando para o momento em que teria de me despedir — Horas. Não
mais semanas antes de sua partida, mas horas —; decorei cada curva e em
como ela se encaixava bem em mim, guardei o som de sua risada e seus
suspiros, o cheiro adocicado e leve do creme que passava na pele, do
shampoo que usava no cabelo...
Cada detalhe de Helena.
— Vou morrer de saudade, meu amor — sussurrei.
O sorriso dela sumiu aos poucos. Lena envolveu os braços em meu
ombro, me abraçando, enterrando o rosto em meu pescoço ao sussurrar:
— Eu também.
 
 
 
 

 
 
“Leve-me de volta, leve-me para casa.
Porque isso é o começo de algo lindo.
Você é o começo de algo novo.”
This — Ed Sheeran
 
 
HELENA
 
Observei meus sobrinhos perturbarem minha tia. Isabela, a mais
sapeca e inteligente das crianças, furtivamente se aproximou da mesa, Tia
Marcia contava um caso para uma das convidadas da mamãe, distraída,
alheia ao grupo de espiões-mirins escondidos atrás da mesa de doces,
observando sua líder inserir na zona de perigo uma cobra de borracha bem
realista ao lado do copo de refrigerante da mulher. O plano era simples: ela
encontraria o animal de mentira quando sorvesse um pouco do líquido.
Pensei em avisar tia Marcia, que tinha um temperamento explosivo,
mas o sorriso nos rostinhos dos meus pequenos era impagável e eu sentia
falta deles. Então, quieta no meu lugar, observei do balanço de pneu Isa
voltar para o grupo, minha tia tocar diretamente na cobra e interromper a
conversa animada com as novas amigas ao berrar, jogando copo e docinhos
pela mesa, a cobra na grama e o refrigerante no vestido.
Fiz uma careta, segurando o riso ao vê-la se levantar para correr
atrás das crianças.
Fora um casamento simples, porém, muito lindo e emocionante.
Minha família se reunira no sítio do meu pai depois da cerimônia na igreja.
O céu estava limpo de qualquer nuvem e havia muita música e comida para
ser aproveitada. Chegamos para o almoço, mas já beirava às nove da noite e
ninguém fazia menção de ir embora. Depois de brincar com meus
sobrinhos, reunir a antiga banda com Valentina e Sol e performarmos três
músicas para os recém-casados, após assistir meu primo mais velho jogar
Tina na piscina e fugir do empurra-empurra que sucedeu, me escondi no
balanço do pé de jaca ao lado do casarão, assistindo à festa desenrolar,
escutando os casos de tio Matt e risadas dos demais.
Eu tinha me esquecido do quanto adorava aquela bagunça. Não nos
reunimos daquela forma desde o divórcio dos meus pais, e ver todos ali,
juntos outra vez, era gratificante.
Eu tinha que voltar para o Brasil, pelo menos para viver aquilo outra
vez.
— O que sua tia colocou naquele vinagrete? — A voz grave se
aproximou. — Ou foi a farofa? Por que todos parecem animados demais?
Não vão para casa?
Ri, me levantando do balanço para me sentar ao lado do meu pai no
banco de madeira que o ajudara a fazer algumas semanas antes.
Construímos cerca de cinco, com os pedaços de tábuas que encontramos
espalhadas pelo terreno, e distribuímos os banquinhos, cada um debaixo de
uma árvore robusta para um momento de descanso em uma sombra.
Era bem quente ali no verão.
— Tio Carlo distribuiu pé-de-moleque pra todo mundo mais cedo.
Ele deve colocar energético na receita — sugeri, enlaçando meu braço no
dele, apoiando a cabeça em seu ombro.
Meu pai suspirou.
— Estou velho demais para essas festas.
— Não precisa fingir que não está feliz, pai. — Revirei os olhos. —
Só estamos nós dois aqui.
Uma risada fraca deixou sua garganta, inclinei o rosto e o peguei
encarando a cena também, aquele brilho emocionado nos olhos
esverdeados.
Minha mãe usava um vestido verde-água florido mais leve agora, os
cabelos loiros presos em um coque não muito elegante do que estava mais
cedo. Ela riu de algo que tia Sabrina disse, e acabou nos avistando de longe.
Acenei de volta.
Meu pai manteve os olhos nela.
— Não sei por que demoramos tanto. — Bufou. — Não sei por qual
motivo nós, adultos, temos que ser tão teimosos.
Sorri, apoiando o queixo em seu braço.
— Não separa dela de novo e vai ficar tudo bem — cochichei e ele
se virou para me observar. Era estranho ver aquele rosto severo sem o
bigode; o coronel parecia uns dez anos mais novo naquele dia.
— Seu pai é um cabeça-dura, não é? — perguntou, estudando meu
rosto.
— Um pouco. — Dei de ombros e ele sorriu.
Quando voltei para casa, um mês antes, fui recebida por um abraço
apertado e choro. Meu pai nunca chorava, era pior que o meu avô nesse
aspecto. Quando o vi chorar de verdade ao me ver no aeroporto, perdi todas
as forças. Fui pega de surpresa.
Ele estava tão feliz por me ter de volta que não tive coragem de
abordar o assunto. Jun. Morar na Coreia...
Sol brigava comigo todas as vezes, mas eu não queria tirar a alegria
dos meus pais, principalmente com poucas semanas nos separando do
casamento deles. Preferi contar sobre meus planos depois que... bem,
tivesse um plano.
Meu pai suspirou, voltando a observar a festa enquanto falava,
tranquilo:
— Sua irmã me contou... do seu namorado na Coreia.
Meus olhos se abriram, surpresos.
— O quê? — Minha voz falhou.
As sobrancelhas grossas e escuras se arquearam para mim.
— Achou mesmo que poderia esconder dos seus pais? — Fechou a
cara. — Sua mãe ficou bem chateada, inclusive, por você não ter contado
para ela. Sei que é difícil me contar as coisas, mas pensei que você não
tivesse segredo com ela.
— Eu... É que... — Se eu contasse do Jun, eles rapidamente
deduziriam que eu tinha planos para voltar.
A mão grande cobriu a minha, então o coronel acariciou o anel no
meu indicador. O anel prateado com pedrinha azul que Jun me dera dois
meses antes.
Os olhos verdes fitaram minha mão minúscula sobre a dele.
— É... difícil, sabia? — Sua voz abaixou alguns tons, rouca. Percebi
que meu pai tentava disfarçar o tremor nela. — Nós ficamos mais velhos,
nossos filhos crescem e a casa de repente fica vazia. Suas irmãs sempre
foram muito independentes: quando se machucavam seguravam o choro e
limpavam a ferida sozinhas. Já você abria o berreiro e esperava alguém te
socorrer. Sempre com os bracinhos curtos esticados para que eu a
carregasse no colo. Sempre a mais carinhosa e preocupada. — Ele riu, os
olhos brilhando com a chegada de lágrimas. Meu coração encolheu,
apertado. Se ele chorasse, eu com certeza o acompanharia. — Lembro que,
todas as vezes que levantava para ir para o trabalho, o céu ainda escuro,
você pulava da cama e corria até a porta; eu a pegava no colo e você dizia...
— “Cuidado, pai”. — Ri, falhando em segurar o choro.
— Mesmo depois de se mudar com sua mãe e a Sol para São Paulo,
você ligava às cinco da manhã, e dizia a mesma coisa. Todos os dias.
Mordi o lábio, Afundando o rosto em seu ombro, a camisa social
encharcando com as lágrimas que brotavam facilmente. Não demorou para
meu pai me envolver em um abraço de lado, prendendo meus ombros em
seu braço.
— Eu peço desculpas, filha. Se te magoei em não te apoiar em sua
viagem. — Riu, melancólico. — Eu sempre soube que um dia teria de abrir
mão das minhas meninas, que teria que erguê-las para o céu para que
voassem alto. Só... Só não esperava que você e a Sol quisessem voar para
tão longe.
Me afastei, confusa, enxugando o rosto, fungando.
— O q-quê?
Meu pai sorriu um pouco, passando o polegar áspero e calejado em
meu rosto molhado.
— Sabe que sua irmã sempre quis morar fora, você só teve coragem
de fazer primeiro. — Riu de novo, balançando a cabeça incrédulo. — Quem
diria que as duas mais choronas e medrosas seriam as duas a me trazer mais
preocupação e dor de cabeça.
— Pai... — choraminguei.
— Não é sempre que falo tanto, querida. Me deixe terminar.
Me calei, me sentindo com sete anos de novo.
— Sua irmã me contou sobre a prova que você fez. Que queria ficar
em Seul.
— Aquela x-9... — murmurei.
— Ela só estava te usando para falar o que ela também queria. Sabe
qual foi a desculpa dela? — questionou retoricamente. — Que ficaria de
olho em você se fosse para lá.
Nós dois rimos, cientes que Sol era a mais bagunceira das irmãs, de
propósito. A que mais tinha ideias malucas e irresponsáveis.
— No caso, eu tomaria conta dela, né?
— Sim. — Ele gargalhou baixinho, afastando um cacho do meu
rosto. — Esse seu namorado, o Junior...
Gargalhei, sentindo mais lágrimas caírem dos meus olhos. De
alegria, de saudade, um misto de sentimentos me tomava naquele momento.
— Jun Woo, pai.
— Uai, o que eu disse? — Fez careta.
Suspirei.
— Chama ele de Jun.
— O Junior — replicou, mais sério, voltando à carranca de sempre.
— Quero uma vídeo-chamada com ele.
Segurei o riso, assentindo.
— Espero que ele te trate bem, ou já sabe...
— Ele me trata bem. Muito bem.
Meu pai resmungou.
— Não quero ver você sofrendo daquele jeito de novo, Lua. — Me
abraçou mais forte. — Quero ter certeza que vai ficar bem, não vou poder
estar do seu lado caso se machuque.
— Credo, pai — retruquei, dando um tapa leve em seu ombro ao me
afastar. — Começa a envelhecer e já fica falando de morr...
— Fique aqui mais um pouco — me interrompeu, ainda sério. —
Você e a Sol, fiquem mais um pouco. Vamos viajar juntos, acampar em
família, construir uma casa da árvore... na árvore... — Sorri, mas um soluço
deixou meus lábios em seguida. Ele estava mesmo me dizendo... — Então
vocês terão minha bênção. Eu pago as passagens, se quiserem. Eu ajudo,
só... fiquem mais um pouco com os seus pais antes de partirem.
Eu me desmanchei. Comecei a chorar de verdade quando aquela
gota solitária escorreu por sua bochecha. Chorei e solucei nos braços do
meu pai.
— Eu sei que fui um velho rabugento quando você foi pela primeira
vez, mas, no coração, sempre senti orgulho de você, Helena. — Beijou
minha testa. — Não queria que seu sonho estivesse no outro lado do
mundo; contudo, se está, não serei eu a pessoa que vai te impedir de voar.
— Obrigada, pai — sussurrei.
— Te amo, filha.
— Eu também. — Ri, tentando não pensar no rosto manchado de
maquiagem.
O coronel ficou de pé, aprumando as costas, os ombros largos, as
mãos para trás do corpo ao se virar para me encarar com aquele olhar
severo de oficial.
— Quero um relatório completo sobre o Jun Woo, amanhã.
Sorri, ao escutá-lo pronunciar corretamente o nome do meu
namorado.
— E marque para a próxima semana uma reunião familiar — exigiu.
Para um estranho, o homem estava falando sério, mas eu conseguia
perceber o divertimento sutil em sua voz grave e autoritária. — Avise o
garoto, vamos ter uma conversinha.
Concordei, sentindo o coração bater mais rápido. Alegre.
Fiquei de pé e bati continência.
— Sim, senhor!
— Dispensada, soldado. — Assentiu, sorrindo abertamente.
Depois de abraçá-lo uma última vez, sentindo o olhar curioso de
minha mãe me acompanhar quando passei por ela, corri até a área da mesa
do bolo, encontrando minha irmã se servindo de um pedaço generoso.
Enlacei meu braço no dela.
— Obrigada — falei para Helen.
— Por...? Já fiz tantas coisas por você, irmãzinha. Especifique.
— Por falar com o papai. — Apoiei meu rosto em seu ombro.
Adorava o cheiro de baunilha que Sol tinha. Não me desgrudaria dela tão
cedo.
Helen passou o polegar no merengue de limão e o levou à boca, se
afastando para me olhar.
— Ele te contou então? — perguntou, como se não se importasse.
Aquela atriz de meia-tigela.
— Que você não suporta viver longe de mim? — provoquei, e Sol
estreitou os olhos verdes como os do nosso pai.
— Eu não falei com ele pensando em você, Lua. — Lambeu o dedo
de novo, mais merengue. — Eu fiz tudo pensando em mim. Afinal, você
roubou minha ideia de ser rica e bem-sucedida em outro país.
Ri, tirando o pratinho de bolo da mão dela.
Sol finalmente deixou de lado a indiferença fingida para abrir um
sorriso largo e eufórico.
— Então...Vamos para a Coreia?
 
Você é o sol que ressurgiu na minha vida.
Uma reencarnação dos meus sonhos de infância.
Eu ainda estou sonhando?
Pegue minha mão agora.
Você é a causa da minha euforia.
Euphoria — Jungkook (BTS)
 
 
JUN
 
Ergui a câmera diante dos olhos e focalizei a figura entre troncos
robustos e nuvens de folhas cor de rosa. A garotinha segurava um balão em
formato de dinossauro que me fez sorrir, e os longos cabelos escuros dela,
em conjunto com a jardineira e galochas amarelas, me fizeram me lembrar
de certo alguém.
Fazia cinco meses, mas uma eternidade parecia ter passado.
Eu sabia o quanto Helena adorava a primavera, e ela insistira que eu
visitasse muitos parques naquela estação e tirasse muitas fotos das árvores
de cerejeiras. Estávamos no último mês da temporada de pétalas rosas e eu
queria poder aproveitá-lo com a minha namorada, principalmente porque
seu aniversário fora semanas antes, mas Helena estava no Brasil.
 
NAE GONGJU (2:02 p.m.): Qual é o parque da vez?
 
Enviei uma foto e a localização, como fizera das últimas vezes.
Ensinara minha namorada a editar o básico, então era ela quem
administrava minha conta nas redes sociais e escolhia algumas fotos mais
simples queria postar. As imagens manipuladas e mais trabalhosas
postávamos uma vez por semana, e assim, aos poucos, mais pessoas
conheciam e procuravam o meu trabalho.
Um dia parecera impossível, mas eu finalmente estava fazendo o
que queria desde o início: tocar as pessoas através da minha arte; colocar
um sorriso em seus rostos.
Helena respondeu com vários emojis e figurinhas. Algumas pessoas
não entendiam a necessidade de se expressar por mensagem daquela forma,
mas poucos acreditariam que, às vezes, eu e Lena nos comunicávamos
apenas por meio delas. Como o nosso próprio código Morse.
 
NAE GONGJU (2:03 p.m.): Que lugar lindo!
 
JUN (2:03 p.m.): Podemos voltar aqui na próxima primavera.
 
Porque ela voltaria.
Son Ho e eu convencemos o meu pai a começar um projeto na ONG
patrocinada pelas farmácias Seomgigo. Abriríamos uma escola para
crianças órfãs e idosos não alfabetizados que precisaram largar a escola
cedo demais. E Helena seria uma das professoras do projeto. Teríamos não
só aulas de Coreano, mas de Inglês e de Espanhol também. Havia, além
disso, algumas outras modalidades que Park Son Ho conseguira, como salas
de artes, músicas e jogos.
Era um projeto que o assistente social estudava há anos, mas não
conseguia verba suficiente para prosseguir com o plano. Eu conversei com
o meu pai, insisti, alegando que não seria apenas bom para os negócios e
para a imagem de sua empresa, mas seria uma forma de prestar honra ao
meu irmão também. Jeong Hwi e a esposa visitavam orfanatos com
frequência e até pensaram em adotar, mas acabaram descobrindo que teriam
Hari e se concentraram nela.
Helena não pensou duas vezes em aceitar a proposta, e eu garanti
que, quando voltasse, ela não só teria um emprego razoável com um
propósito lindo, como também moraria comigo. Eu prometera que daria um
jeito. E seria assim. Um dia de cada vez.
Com ela ao meu lado.
Ela ficara no Brasil para o casamento dos pais e depois voltaria.
E eu esperaria. Mal via a hora de tê-la nos braços de novo; contava
os dias, como uma criança ansiosa para o Natal. Programara um jantar
romântico e até comprara ingressos para o show do cantor do qual ela
gostava, que aconteceria no fim daquele mês.
Nos falávamos todos os dias. Depois de superar minha trágica
primeira reunião com o sr. e a sra. Ferreira — eu até mesmo gaguejara
quando o pai de Helena começara a me fazer perguntas naquele tom severo,
me levando a esquecer tudo que aprendera nas aulas de português —;
minha namorada me incluía nos passeios da família, mesmo que a distância.
Sempre virando a câmera e me fazendo cumprimentar todo mundo, falar
com cada um; praticar minha fluência, ela dissera.
Sentia que fazia progresso com o meu futuro sogro aos poucos. Pelo
menos ele não me chamava mais de Junior. Também não franzia mais o
nariz para as minhas tatuagens e o piercing.
Sol era minha maior cúmplice de crime, sempre me ajudava quando
eu queria mandar algum presente para a minha namorada. A garota era o
completo oposto de Helena, diferente do que os outros falavam, não vira
tanta semelhança. Helen era ainda mais tagarela que a irmã, e lhe faltava
vergonha na cara, com certeza. Ela me dera diversas dicas do que fazer ou
não nas reuniões familiares que aconteciam todos os domingos.
E Julieta, a mãe de Helena, era gentil e sempre me mandava cuidar
da minha saúde e parar de comer “miojo”, me enchendo de perguntas sobre
como foi o meu dia e sempre enfatizava como eu era, de todos, o genro
mais bonito que ela tinha.
Eu concordava, claro.
E eu estava... feliz.
Muito.
Não havia só recebido dos céus a namorada mais incrível, minha
amiga e parceira de crime, mas uma família que por muito tempo queria
fazer parte. Mesmo tão longe.
Depois de me obrigar, Lena me fizera ver com mais frequência o
meu pai, e o empresário até mesmo pedira para participar da próxima
reunião familiar com os Ferreira. No começo eu pensara que ele queria
avaliar e criticar os pais de Helena, mas percebera seu esforço para se
entrosar com o que era importante para mim quando ele recitara as frases
em português que andava praticando.
As coisas estavam indo... bem. Um dia de cada vez, um passo de
cada vez.
 
NAE GONGJU (2:05 p.m.): Mas a próxima primavera vai demorar ☹
 
JUN (2:05 p.m.): Então vamos no verão.
 
NAE GONGJU (2:05 p.m.): No verão vai estar quente demais.
 
JUN (2:05 p.m.): E que tal no outono? Você disse que gostava do outono.
 
NAE GONGJU (2:06 p.m.): ☹☹☹
 
JUN (2:06 p.m.): No inverno, então.
 
NAE GONGJU (2:06 p.m.): No inverno, vamos estar debaixo das
cobertas, abraçadinhos, assistindo A Fuga Das Galinhas 2.
 
Ri, desejando aquilo, mesmo que significasse superar meus medos e
assistir àquele filme de massinha horrível.
Ela não respondeu minhas figurinhas; talvez estivesse ocupada ou
brincando com Banguela, o cachorrinho que o pai dera a ela em seu
aniversário algumas semanas atrás. Apenas guardei o celular no bolso e
continuei procurando cenários para fotografar. Teria que voltar para ajudar
Cha Min com a mudança mais tarde: ele e Ji Ah decidiram morar juntos.
Com isso, eu o ajudaria a levar suas coisas para o outro apartamento.
Registrei um garotinho correndo com seu cachorro, uma senhora em
frente à banca com uma revista sobre plantas nas mãos.
O celular em meu bolso vibrou.
 
NAE GONGJU (2:48 p.m.): Te contei que comecei um curso de fotografia
online? Estou ficando boa, estou usando o celular por enquanto, mas vou
comprar uma câmera profissional.
 
NAE GONGJU (2:48 p.m.): O que acha? Já posso criar uma conta nas
redes sociais? Lena Fotografias?
 
O sorriso enfeitou meus lábios de novo, e não demorou para meu
celular carregar a série de fotos que ela começou a mandar.
Meu sorriso foi morrendo aos poucos.
Meu coração acelerou a cada uma delas.
O terminal do aeroporto; o ponto focal era a mão estendida, as cores
predominantes eram as pulseiras de miçangas coloridas e alegres, o
passaporte que aquela mão segurava. Atrás, o avião monstruosamente
grande desfocado.
Era uma foto perfeita e, se eu não conhecesse bem aquela mão, diria
que Helena pegara a imagem de sua pasta no Pinterest.
A segunda era a mesma mão de pulseiras e unhas delicadamente
enfeitadas por desenhos de margaridas tocando a janela. O céu azul e
nuvens gordas eram o foco dessa vez.
Segurei o ar.
A terceira era a mesma mão erguida diante uma fachada lilás e
verde, segurando um donut de chocolate.
A loja de conveniências L.O. A árvore em frente à entrada recheada
de flores vibrantes.
Pensei em correr, mas a última foto me manteve no lugar.
Uma praça de fileiras de árvores de cerejeira no auge da estação
favorita da minha namorada, um corredor de troncos escuros e desiguais e
flores rosas.
Mas não eram o personagem principal da imagem.
Soltei uma risada rouca, sentindo minha garganta apertar e meu
coração bater dolorosamente mais rápido ao ver a mão dela esticada, como
se segurasse alguém bem pequeno. Um cara de camisa preta e tatuagens nos
braços carregando uma câmera nas mãos. Ele estava distraído enquanto a
fotógrafa o admirava de longe.
 
NAE GONGJU (2:50 p.m.): Que tal sairmos nessa primavera?
 
Finalmente, ergui os olhos da tela do celular e a procurei entre as
pessoas ali. Busquei por algum vestido florido ou camisas estampadas, tênis
coloridos e cachos negros.
Mãos pequenas com cheiro de creme e flores envolveram meu rosto,
cobrindo os meus olhos.
Ah, como eu sentira falta do perfume dela.
— Annyeong, oppa[99].
Me virei, e encontrei olhos encolhidos e um sorriso largo.
Ela.
Helena sabiamente afastou a câmera dependurada em meu pescoço
do meu peito com uma mão, bem a tempo de os meus braços a rodearem e a
tirarem do chão.
Quando a apertei contra o peito e a girei no meio daquela praça
lotada e rosa, o som mais lindo deixou os seus lábios: uma risada alta e
alegre.
— Você voltou. — Inspirei, o rosto contra o seu pescoço. Céus,
como eu sentira falta dela.
— Surpresa!
Quando a coloquei no chão, Helena começou a tagarelar sobre
mentir que voltaria só em três semanas. Revelou que ela e a irmã tinham
chegado na noite anterior e queria fazer um retorno dramático de dorama,
mas não deixei que terminasse de falar, colando os nossos lábios numa ação
desesperada de suprir a necessidade que tinha dela.
Foi como da primeira vez. Sempre teria gosto doce de suspiros e
saudade. Eu a amava. Tanto que não me dera conta das lágrimas caindo no
rosto da jovem.
As minhas lágrimas e as suas.
— Também senti sua falta. — Ela sorriu, enxugando minha
bochecha com a mão livre, tocando meu rosto com carinho e me
observando, absorvendo as mudanças daqueles últimos meses. — Você
cortou o cabelo...
— Huh.
Arfou, afastando a franja dos meus olhos.
— E colocou mais um piercing... — Sua voz saiu baixa, como um
sussurro agudo. — Não faz isso comigo, Jun...
— Desculpa, sei o quanto odeia piercing. — Estava ansioso para ver
a reação dela quando minha namorada descobrisse os ramos de folhas que
tatuara recentemente no braço esquerdo.
— Horrível. — Lena mordeu o lábio inferior, tocando minha
sobrancelha.
Gargalhei, puxando-a para mais perto.
— Cuidado! — A jovem indicou a câmera em sua mão estendida
com uma careta de repreensão, a alça em meu pescoço se movendo.
— Certo, vou guardar.
— É melhor mesmo... — Lena me lançou um olhar insinuativo, o
canto dos lábios se esticando. — Ou vai acabar quebrando.
Sorri, passando mais segundos impensados beijando aquela boca
macia e avermelhada.                          Não me importava se tínhamos ou não
plateia, se havia ou não olhares atravessados em nossa direção.
— Sabe o que eu estava pensando? — Minha namorada contornou a
mão em meu pescoço.
— Huh?
— Combinamos três favores. — Seus lábios se esticaram
maliciosamente. — Lembra? Falta um.
Fechei os olhos, a testa apoiada à sua, desfrutando por mais um
pouco a sensação de tê-la em meus braços de novo, sem acreditar de
verdade que Lena estava mesmo ali.
Não tinha pressa para soltá-la.
— Então? — ela sussurrou. — Qual é o último favor?
A encarei, por fim.
— Fique comigo pra sempre.
Os olhos esverdeados brilharam e se encolheram. Helena ficou na
ponta dos pés para se aproximar e me beijar.
— Huh. — Sorriu. — Com todo prazer.
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
 

Feat. Thaís Dourado


(Para os leitores de “Tem Um Idol No Meu Sofá”)
 
MAITÊ
 
— Eu não gritei com você, Lena! — expliquei calmamente ao
telefone, enquanto minha melhor amiga choramingava do outro lado da
linha!
— Gritou.
— Como é que eu vou gritar com você por mensagem, pelo amor de
Deus?
— Eu sei quando você está gritando, Maitê.
Respirei fundo para não a mandar catar coquinho. Eu amava aquela
pequena encrenqueira, mas às vezes tinha vontade de abrir um buraco no
chão e empurrá-la para dentro.
— Ah, é? — Ela odiava quando eu usava sarcasmo. Ergui uma
sobrancelha e cruzei as pernas de propósito, ainda que ela não pudesse ver.
— E como é que isso funciona?
— Você escreveu “puta sacanagem” em letra maiúscula! — ela
reclamou, mas não era só isso. Eu sabia que não.
Lena não brigava com qualquer um, e eu preferia encarar aquela
exclusividade como prova de que ela se importava comigo e confiava em
mim.
Já vi pessoas dizendo coisas horríveis para ela, e sua reação ao
problema foi apenas sumir. Mas comigo… ah, comigo até um ponto final
em uma mensagem de texto era motivo para uma ligação chorando, dizendo
que eu não a amava mais. Na maior parte do tempo, eu ria e dizia o quanto
ela era boba. Porém, naquele momento, tanto minha melhor amiga como eu
estávamos com os sentimentos à flor da pele.
— Você sabe que isso é um palavrão! — continuou, se alterando
levemente.
— Fala sério, Helena! — gritei de volta desta vez, falhando em
segurar meu temperamento por mais algum tempo. Se eu tivesse escrito
“puta sacanagem” em letra minúscula o estrago seria menor? — Às vezes,
tenho vontade de te amarrar em uma árvore de ponta cabeça!
— Pois me amarre! — murmurou irritada. Eu tinha certeza que, de
perto, minha amiga estaria toda vermelha. Podia ver suas narinas se abrindo
em afronta em minha direção. — Aproveita e bote fogo!
E então desligou.
Respirei fundo, ao passo em que Eric apareceu curioso na porta do
banheiro do quarto. Ele me encarou em silêncio enquanto secava o cabelo
depois do banho.
Baguncei meu cabelo, agora com uma tonalidade desbotada nas
pontas, e o afrontei empinando o queixo como quem dizia “o que é?”.
— Quantas vezes vocês já brigaram essa semana?
Sentada na poltrona do quarto, joguei o telefone no tapete e tombei a
cabeça no encosto da cadeira, cansada. Lena e eu estávamos em situações
estressantes.
— Já perdi as contas. — Suspirei, tentando manter a calma,
contando mentalmente até três. — Eu sei que tem muita coisa acontecendo
na vida dela, mas olha para mim! Estou me matando de estudar, morando
em outro país e falando outra língua, assim como ela. Também estou
estressada! Por que é tão difícil entender?
— Eu não sei como essa amizade funciona quando vocês são tão
opostas. — Ele riu, se jogando em sua cama.
Olhei para Eric dos pés à cabeça, uma das sobrancelhas arqueando
bruscamente.
— Eric, eu namoro você. — Ri — Você é mais do que o meu
oposto, faz a Helena parecer fácil.
Ele se fingiu de ofendido, erguendo o pescoço do travesseiro para
me encarar com aqueles olhos de filhotinho abandonado.
— Puppy, isso foi cruel!
— E eu menti? — Levantei, me arrastando até a cama, e me joguei
ao seu lado. Seu lençol macio cor de areia cheirava a lavanda e sabonete —
A verdade é que relacionamentos em geral precisam ser como um quebra-
cabeça.
Meu namorado se virou em minha direção, me fitando com aquela
expressão curiosa que eu amava. Seus braços longos passaram sobre mim e
me puxaram para mais perto. Era engraçado como o Eric que eu atropelara
alguns anos antes e o que eu conhecia agora já não eram mais os mesmos.
O Idol magricela e pálido dera lugar a um homem muito mais forte e
maduro. Seus braços estavam consideravelmente mais grossos, e seu
abdômen, ainda mais definido. Eric Lee gastava incansáveis horas de sua
semana na academia e também havia assumido um corte de cabelo que dava
a ele uma dualidade incrível.
Quando estava em casa, com os fios bagunçado caindo sobre os
olhos, Eric parecia apenas um garoto do qual a única preocupação da vida
era acabar com um pacote de Doritos antes de mim. No entanto, quando se
preparava para um show e deixava com que seu staff tirasse os fios
artificialmente avermelhados do rosto e os repartisse no meio, meu Puppy
dava lugar ao Idol mundialmente famoso.
Alguém por quem nunca nem cogitei me apaixonar.
— E o que isso quer dizer? — Ele piscou os olhos, com um sorriso
fofo despontando nos lábios, o nariz fino torcendo levemente.
— Que peças iguais não se encaixam. — Sorri — Se fôssemos
iguais, não encaixaríamos tão bem. E isso também serve para você.
Amassei-o em um beijinho e senti seus lábios se esticarem ainda
mais em um sorriso bobo, que me fez sorrir também.
Era bom estar ali com ele. Tão bom que parecia irreal.
Depois de ter ganhado o concurso e me mudado para Nova Iorque,
muita coisa se modificara. Nina já não estava ali para me encher todos os
dias dizendo que estava com fome, e eu já não podia implicar pessoalmente
com Josh. Lena estava ainda mais longe, e a única pessoa em quem eu
confiava de fato naquele país era Eric. Não que eu achasse ruim; sempre fui
boa em me adaptar e, para ser sincera, eu estava gostando, e muito.
Encarei a janela enorme do quarto de Eric e suspirei ao ver uma
nuvem gorda passar em frente ao sol e roubar os raios alaranjados do fim de
tarde. Era bom poder passar mais tempo no apartamento dele do que no
conservatório, afinal.
Diferente do meu dormitório, o apartamento era grande, espaçoso e
tinha fotos dele em todo lugar. Inclusive no banheiro. Às vezes era difícil
me concentrar para fazer o número dois com o pôster dele apontando para
mim com uma garrafa de Soju na mão. Tive que usar minha esperteza e ser
astuta ao resolver aquele problema com um marcador permanente preto,
desenhando um par de óculos escuros no rosto do meu namorado.
E dois chifrinhos, é claro.
Eu sabia que aquele pôster, em especial, havia sido estrategicamente
colado ali para me lembrar de nunca mais beber todas as vezes que eu
estivesse vomitando com a cabeça no vaso depois de um porre.
— Como foi o ensaio hoje? — perguntei, penteando seus cabelos
macios e úmidos com os dedos. Ele tinha cheiro de banho recém-tomado,
sabonete e saudade.
Eric se contorceu como um gato, contente com o carinho. Eu sempre
esperava ansiosamente para encontrá-lo no fim do dia, mal podia acreditar
que havia me tornado o que mais temia: uma boba apaixonada.
— Cansativo. — Suspirou. — A turnê para a Coreia começa na
semana que vem.
Soltei um sorriso fraco.
— Eu sei. — Não era fácil ser a namorada de um astro
mundialmente famoso.
Era ainda mais difícil que eu passasse tanto tempo em seu
apartamento e que ele estivesse quase sempre vazio.
— Então… você vai ter que vir comigo desta vez... — Ele soltou
um meio-sorriso malandro.
— O quê? Tá doido? — Arregalei os olhos — Eu tenho aula, Eric.
Não posso.
— Ah, pode! — Ele esboçou uma cara de sabichão, fitando o teto —
Semana que vem vai ter um festival de música na Juilliard, então as aulas
estão canceladas.
— Eu não recebi nenhuma notificação sobre isso.
— Eles só me ligaram confirmando hoje de manhã.
Franzi o cenho e ergui uma das sobrancelhas.
— E… por que eles te ligariam?
— Porque me pediram para tentar contatar o Rosevelt para fazer um
seminário na semana da música. — Sorriu. — Em troca, pedi que te
liberassem para ir na turnê comigo.
Rosevelt? O maior violinista de Nova Iorque?
— Você é maluco? — Grunhi. — Eric, não gosto que me tratem de
forma especial por ser sua namorada.
— O quê? — Ele riu, incrédulo. — Eles é que me tratam de forma
especial por namorar a ganhadora do concurso, Maitê!
Ri sem graça, tentando não desfazer minha careta de desgosto, mas
falhando miseravelmente.
— Se fosse permitido você teria ganhado o primeiro, segundo e
terceiro lugar, e sabe disso! — continuou. — É até injusto que eles gostem
mais de você do que de mim naquele lugar.
— Para de ser bobo! — Dei um tapinha em seu peito, ele me
abraçou outra vez. — Que seja, não posso ir! Se o Rosevelt vai estar lá,
então eu não quero perder de jeito nenhum.
— Ah, Puppy, qual é? Vem comigo dessa vez, huh? — Me deu um
beijinho no topo da cabeça — É a última turnê antes da minha pausa.
Cara, mas era o Rosevelt…
— Eu não sei… suas fãs são meio malucas. — E aquilo era uma
verdade incontestável. Não todas, mas algumas garotas me davam nos
nervos.
— Não vou deixar ninguém te fazer mal. — Sorriu. — Nunca! E,
além do mais, podemos ir ver a Lena e conhecer o cara do piercing.
Eric estava morrendo de curiosidade para saber que tipo de pessoa
Jun seria para ganhar o coração da Lena, e confesso que eu também.
— Ela não está merecendo uma visita. — Bufei, me fazendo de
difícil. Eu estava, sim, com muita saudade da minha amiga. No entanto,
naquele momento, eu a encheria de tapas se pudesse. Ela havia batido o
recorde de “atentação” naquela semana.
— Até semana que vem, tenho certeza de que vocês se resolvem.
— Ela vai ficar dias sem falar comigo, Eric. — Respirei fundo ao
pensar naquilo. Às vezes, Lena era osso duro de roer. — Anota o que estou
dizendo.
— Então a gente bate na porta dela e a obriga a conversar.
— Não quero.
— Então venha para me fazer companhia, Puppy! — Ele franziu as
sobrancelhas, esboçando um biquinho. — Não vou aguentar de saudade se
tiver que ficar longe de você de novo. Não vou conseguir me concentrar, o
show vai ser um fracasso, e tudo porque você foi teimosa e não quis vir
comigo.
— Você é a maior Drama Queen que eu conheço, Eric! — Dei um
peteleco em sua testa e ele fez manha, me suplicando com os olhos.
— Ah, qual é, Maitê?! Por favor!
Seus olhos escuros e brilhantes como a constelação piscaram
algumas vezes, amolecendo meu coração. Certo, eu podia matar a saudade
da Lena e fazê-lo feliz de uma vez só. Talvez não fosse uma ideia tão ruim.
— Tá legal. — Bufei — Mas, se a Lena não vier falar comigo
primeiro, eu não vou ir até ela.
Menti, afinal eu sabia que meu orgulho não era suficiente para me
impedir de ver a minha pequena depois de tanto tempo.
 

 
Como esperado, Lena não falou comigo depois da nossa briga.
Sempre que eu tentava conversar, ela dizia que não estava pronta ainda e
que me chamaria quando estivesse. Aquilo levaria dias, eu já sabia.
Minha amiga tinha uma mania péssima de se esconder todas as
vezes que alguma coisa acontecia, e eu odiava pressioná-la. Quero dizer, se
dependesse apenas de mim, eu colocaria todas as cartas na mesa e
resolveria tudo de uma vez; mas Lena era diferente, e eu entendia. Tudo o
que podia fazer era esperar e respeitar o seu tempo. Algumas vezes, a
pequena se entocava por quase um mês. Aí, quando eu ficava de saco cheio
de esperar, era obrigada a aparecer na porta do seu quarto com um chinelo
na mão, assim ela não teria para onde fugir.
— Está preocupada? — Eric segurou minha mão no assento ao lado.
— Já vamos pousar.
— Eu não diria preocupada. — Suspirei. — Estou mais para
magoada. Como a Lena consegue ficar tanto tempo sem resolver as coisas?
Meu coração fica ansioso em saber que ela provavelmente está chorando
por conta de algo que podemos resolver em cinco minutos.
— Vai ficar tudo bem, Puppy! — Eric sorriu para mim, acariciando
o dorso da minha mão com ternura. — Quando o show acabar, vamos bater
na porta dela.
— Só queria que ela fosse menos cabeça dura e me entendesse,
sabe? — Meu coração doía fisicamente ao lembrar. — Tudo isso por causa
de uma “puta sacanagem” escrito em letra maiúscula.
Eric riu, apertando o meu cinto e o dele quando anunciaram que
pousaríamos em cinco minutos. Endireitei a inclinação do banco, antes
reclinado, e ele abriu na cabine da primeira classe em que estávamos para
pedir uma garrafa de água para mim. Sorvi um longo gole antes de fechar
com a tampa e jogar a garrafa dentro da minha bolsa de mão. Em poucos
minutos, já estávamos no chão.
Arrastando minha mala — que me recusei a entregar para a equipe
de apoio — andei, não tão confiante, ao lado de Eric dentro da coroa de
seguranças que se formava ao nosso redor.
Eu ainda não estava acostumada com aquela fama toda: mesmo
depois de alguns anos, o barulho, o caos e os flashes incessantes às vezes
me faziam tremer. Ajeitei meus óculos escuros sobre a ponte do nariz antes
de sentir os dedos finos do meu namorado apertarem os meus em apoio.
— Eric, saranghae! — Escutei a mesma frase saindo de vários
cantos, em todos os lados daquela multidão.
— Maitê! — Um grupo um pouquinho mais para a esquerda gritou.
Levei um susto ao escutar meu nome. — Nós te amamos!
 
Arregalei os olhos, surpresa. Em todo aquele tempo, era a primeira
vez que me recebiam com carinho. Eu havia passado por tempos difíceis.
— Obrigada por cuidar do nosso Eric! — uma delas completou,
levantando uma plaquinha com uma foto minha. — Você é a melhor musa
do nosso herói!
Não pude deixar de sorrir. Ao mesmo tempo que alguns fãs me
reprovavam, outra parcela deles me aceitava e apoiava o nosso amor. Ousei
dar um aceno na direção das garotas, que deram gritinhos animados em
resposta. Eric riu.
— Está gostando de ser famosa? — zombou.
— Estou pegando o jeito. — Tombei minha cabeça em seu ombro,
ouvindo um “awn” em coro dos fãs.
Posamos para uma foto rápida e então, finalmente, entramos na van
preta que nos levaria até o hotel. Bem, daquela vez não havia sido tão
difícil. Eu definitivamente estava me saindo bem.
 
 
Hold me back era a música da vez. Eric havia escrito aquela letra
enquanto tomávamos Coca-Cola no terraço do seu apartamento, e agora a
performava sobre o palco iluminado. A música falava sobre não o deixar ir
novamente, como o tempo longe de mim havia feito ele mudar. Na música,
meu namorado cantava que aprendera que o amor não se mede em tempo,
mas em intensidade, e que nunca mais me deixaria para trás. Lembro de ter
dado risada enquanto ele dedilhava a canção deitado sobre minha barriga,
devorando um saco de Doritos, mas vê-lo cantar e dançar com um arranjo
de fundo daquela forma me deixava emotiva. Por mais que o estádio
estivesse completamente lotado, eu estava sentada na frente do palco com
mais alguns convidados especiais que não sabia quem eram; ainda assim,
quando ele dançava e cantava olhando para mim, a multidão parecia sumir.
Restavam apenas Eric e eu.
O ato constante de cantar fitando meus olhos havia gerado em mim
uma habilidade nunca vista antes na história dos Sanchez: eu estava
corando da cabeça aos pés.
Quero dizer, ele não precisava ser tão óbvio.  Todos já sabiam que
estávamos apaixonados, mas se declarar para mim daquela forma sobre o
palco, em frente a milhões de pessoas, me deixava muito sem jeito.
Quando Eric performou Do u mind if I stay? pela primeira vez ao
vivo para encerrar o show, cantei em altos pulmões porque aquela música
significava muito para mim. Lena e eu fomos as primeiras a escutá-la. Me
perguntava se minha melhor amiga estaria no meio daquela multidão.
Eric passou pela beirada do palco, pegando celulares para tirar foto
e tocando na mão dos fãs. Levantei, tropeçando no pé de alguns convidados
no meu caminho até a segurança.
Era hora de esperá-lo no camarim.
 

 
JUN
 
Eu estava terrivelmente arrependido de ter conseguido aqueles
ingressos. Certo, na hora que vira o sorriso de Helena e quando ela se
pendurara em meu pescoço e me beijara apaixonadamente, me agradecendo
pelo presente, eu pensara ter ganhado na loteria. Porém, naquele momento,
assistindo-a perder a voz, pular e ir ao delírio por causa de outro homem...
Sinceramente, eu deveria ter repensado o presente de aniversário.
E quando Eric Lee a viu do palco e lançou uma piscadela — uma
piscadela! —, se aproximando para segurar a mão da minha namorada?
Helena parecia ter esquecido da minha existência!
Humph! Quem aquele cara achava que era? A última Coca-Cola do
deserto?
Relaxa, Jun. É só um show! Você está fazendo isso para ver a sua
namorada feliz...
Encarei a garota de cabelos curtos pintados de verde do meu lado
que, de novo, bateu aquele Lightstick[100] idiota na minha cara.
— Qual é! — Bufei, odiando meu humor de ogro.
Talvez a noite não fosse exatamente perfeita, não para mim, não
como eu planejara. O lugar lotado me sufocava, e não ter uma rota fácil de
fuga só dificultava as coisas. Não contei a Lena que era difícil respirar ali
também, que minhas mãos suavam frio e eu só queria sair dali. Aquilo
estragaria o presente, porque minha namorada estava se divertindo, feliz,
dançando e cantando alto como se não houvesse amanhã. Então contei os
segundos, inspirei o ar denso da noite, tentei não perder a cabeça.
Lancei um olhar para a baixinha de mechas compridas e cacheadas
pulando como pipoca e cantando a plenos pulmões com um sorriso lindo no
rosto.
Seria uma noite especial para ela, era o que importava.
O meu estresse foi compensado quando a mão pequena dela
procurou a minha e a envolveu. O polegar dela subiu e desceu o dorso da
minha mão e, quando Eric começou a cantar uma música mais lenta, Helena
a cantou também, com os olhos cravados nos meus.
Era um ciúme inútil e irritante, porque eu sabia que aquele cantor
tinha a própria musa, Maitê. Eu não seria um babaca só porque minha
namorada tinha surtado quando viu o cara lá em cima cantar. O quê? Ela
queria que eu escrevesse e cantasse uma música para ela? Eu o faria.
Desafinado e tudo mais.
Quando Eric se despediu e sumiu magicamente com cortina, fumaça
e sei lá o quê, o show finalmente pareceu acabar. Então, um homem alto e
parecido com o cantor se aproximou por detrás da barra de proteção, com
alguns seguranças em seu encalço, e apontou para Helena.
— Senhorita Helena Ferreira? — perguntou em inglês sob o grito da
plateia, que choramingava o nome de Eric, pedindo para que ele voltasse e
ficasse mais.
Helena segurou o ar, como se estivesse prestes a ser levada presa
pela segurança ou algo do tipo, a mesma expressão que tinha no rosto
quando deixara minha câmera cair no chão e quebrar.
— É ela — falei, passando a mão sobre os ombros da minha
namorada, a puxando para mais perto de mim.
O homem de talvez trinta e poucos anos me encarou e fez uma curta
mesura em cumprimento.
— Sou o agente do Eric. Ele pediu que acompanhasse vocês até o
camarim.
— O quê?! — Lena soltou um gritinho alegre e inclinou a cabeça
para me olhar. — Você ouviu, amor? Camarim!
Ri, segurando o grunhido irritado ao pensar no jantar e nas flores
que reservara para ela ao deixarmos o estádio. Ok, estava tudo bem dar uma
passadinha no camarim. Era só dar oi, pegar o autógrafo que Lena
provavelmente pediria e seguir com o plano.
— Podem nos acompanhar? — O segurança abriu passagem para
nós dois, puxando aquela barra de ferro, indicando o corredor escondido ao
lado do palanque.
Helena me olhou com expectativa.
Apenas assenti para ela.
Aquele erguer de lábios em um sorriso arrebatador foi o bastante por
ora. Era a noite dela, não a minha.
— Vamos. — Segurei sua mão e a guiei pelo corredor de
seguranças, seguindo o agente de Eric Lee até o camarim do cantor.
Depois de enfrentar algumas caras feias de fãs inconsoladas por nos
assistir sendo escoltados para longe delas, em direção aos bastidores,
Helena apertou minha mão e soltou outra risadinha, me olhando daquele
jeito travesso que vez ou outra me fazia querer mordê-la e enchê-la de
beijos.
— Acredita em mim agora? — quis saber, me cutucando com o
cotovelo.
— Que…?
— Eu sou amiga do Eric! Eu salvei a vida dele!
Soltei uma risada.
— Quando eu disse que não acreditava em você? — Arqueei a
sobrancelha.
— Quando disse que acreditava? — ela rebateu.
— Certo. — Dei risada.
Escutamos o som de conversa lá dentro: o cantor não estava
sozinho. Quando o agente bateu na porta apenas para avisar que estávamos
ali e a abriu, minha namorada soltou um grito eufórico e correu para dentro,
abraçando o cantor, que a recebeu de braços abertos.
— Eric, esse show foi incrível! — começou empolgada, mal se
dando conta da jovem de cabelos curtos, num tom loiro de pontas rosas, que
nos observava no outro canto do cômodo.
Maitê.
Fiz um gesto de cumprimento para ela, que devolveu um meio-
sorriso. No entanto, o rosto da musicista assumiu uma seriedade assustadora
ao encarar Helena, que continuava elogiando o Idol, alheia à aura negativa
que Maitê emanava.
As duas haviam discutido, eu sabia. Ao que parecia, não haviam se
resolvido. Lena era muito sensível e geralmente se magoava quando alguém
perdia a calma com ela. Fora o caso entre ela e a amiga. Eu não tive culpa
dessa vez, foi o que a jovem choramingou, ela que começou a falar
palavrão do nada!
No dia, tentei dizer a ela que o jeito de Maitê se expressar era
consideravelmente diferente do dela, que ambas estavam por muito tempo
longe uma da outra e sob muita pressão, mas Helena começou a protestar,
dizendo que eu estava defendendo a amiga dela. Por fim, achei mais sábio
manter a boca fechada.
Mesmo assim, eu sabia que minha namorada sentia falta da amiga,
talvez tenha sido esse o fator principal que a deixara mais sensível e
desencadeara a briga.
Coloquei as mãos no bolso e esperei.
Maitê permaneceu em silêncio no camarim.
Enfim, Lena a notou.
E quando se entreolharam... bem, minha namorada começou a
chorar.
 
MAITÊ
 
Eu não estava preparada para encontrá-la tão de repente.
Naquele momento, foi como se estivéssemos sozinhas no deserto,
aquela trilha sonora de suspense tocando ao fundo enquanto um punhado de
folhagem seca rolava entre nós. Quase deu para ouvir o famoso gritinho de
águia quando lancei um olhar afiado em sua direção, como quem dizia
“você está ferrada, Helena Ferreira!”.
Devolvi o cumprimento do rapaz, que passou por de trás dela com
uma cara não muito feliz. Pela descrição, aquele só podia ser o cara do
piercing. Jun.
— E aí?! — Cruzei os braços, esperando por uma resposta.
O sorriso de Lena morreu, seus olhos se enterraram nas bochechas
com a careta que ela esboçou. Então, minha amiga abriu o berreiro e correu
até mim.
Segurei sua testa com dois dedos antes que ela me amassasse em um
abraço e a mantive afastada. Eu também estava com saudade, mas, antes de
tudo, ainda tínhamos muito o que resolver.
— Eu falo primeiro ou você fala? — perguntei em inglês e, pela
forma como murchou, Helena já sabia: antes de tudo, o sermão.
— Falar o quê?
— Como assim, “falar o quê”, Helena? — Franzi o cenho. Lena
cruzou os braços e juntou as sobrancelhas. — Você está há dias sem falar
comigo, não tem nada a dizer sobre isso?
— Continuo achando que “puta” é palavrão — resmungou para
ninguém em especial, me lembrando aquelas animações de televisão.
Olhei para Eric com aquela cara de quem estava prestes a matar
alguém. Ele não demorou a correr até nós e a puxar Lena um pouquinho
mais para trás antes que eu voasse no pescoço dela.
— Você está dizendo que está há dias sem falar comigo e não se
sente nem um pouco mal por isso? — ralhei.
— Qual é, Maitê, faz anos que não me vê e essa é a única coisa que
tem para me dizer? — Minha amiga reclamou tombando a cabeça um
pouco para o lado, irritada.
— Helena, faz mais de uma semana que você ignora minhas
mensagens!
— Ela ficou amuada a semana inteira — Jun se intrometeu.
Lena grunhiu para ele, e eu estendi uma mão em sua direção.
— Relaxa aí, cara do piercing, não falei com você ainda —
resmunguei, e Jun deu ombros, encarando as próprias unhas, se divertindo
com a situação.
Eric assistia a tudo calado, se afastando até sumir atrás do namorado
da minha amiga.
— Se ela levantar, todo mundo corre. — Ouvi Eric cochichar para o
rapaz. Então, apertei o nariz em sua direção. — É sério! — acrescentou um
pouco mais baixo.
Jun não pareceu muito feliz com a proximidade de Eric, ainda mais
quando meu namorado se agarrava à barra do moletom do fotógrafo
daquela forma.
— Só achei que você ia estar com mais saudade de mim do que
preocupada com isso — Helena comentou.
— Te conheço o suficiente para saber que, se não resolvermos
agora, você vai fingir que nunca aconteceu.
— O que você quer que eu fale? — choramingou, retorcendo a barra
do agasalho — Você gritou comigo... Eu fiquei magoada...
— Amiga, não tem como gritar por mensagem! — reforcei meu
ponto mais uma vez, na esperança de que ela pelo menos se desse ao
trabalho de tentar entender.
— Que seja, Maitê! Eu fiquei magoada, okay?
Sabia disso, mas eu também ficara.
— Quer que eu finja que está tudo bem? — Abriu os braços ao lado
do corpo, aquele gesto simples que dizia muito. Ela também estava cansada
daquela briga. — Você sabe como eu sou, sabe que interpreto cada ponto e
vírgula. Eu sou assim, droga! Essa sou eu! Sensível desse jeito! — Sua
expressão ficou mais frágil. Sua voz tremeu. — Você escolheu essa pessoa
como amiga, então aguenta. Estamos há anos sem nos ver e eu sei que nós
duas estamos ocupadas demais, mas as coisas que me importam não
parecem valer muito para você. Sempre parece que estou te atrapalhando ou
que você sempre responde qualquer coisa, me senti um estorvo! É assim
que me sinto na maior parte do tempo. Então, quando pensei em dizer isso,
contar o que eu estava sentindo, você me veio com o puta sacanagem!
Brigou comigo!
— Eu não... — Fechei os olhos. Senhor, me ajuda. — Eu não
briguei.
— Não importa. — Lena desviou o olhar para os tênis amarelos em
seus pés. — Queria que eu falasse, tá aí.
— Bem, eu só queria que você tivesse sido sincera desde o começo
e abrisse o jogo, assim a gente não ficaria tanto tempo brigada. — Aquele
era um assunto que me corroía por dentro, era sempre tão difícil resolver as
coisas com ela. Ainda que acontecesse, exigia muito da minha paciência
que, diga-se de passagem, não era das maiores. — Você acha que foi a
única que sofreu? Eu mal dormi nos últimos dias pensando nisso. Pior,
fiquei acordada imaginando se você não estava chorando pelos cantos,
porque eu te conheço, Helena Ferreira! O que mais me machuca é saber que
você não está bem e que a culpada sou eu.
Ouvi o apito que o tênis de Jun emitiu contra o piso ao tentar se
livrar de Eric agarrado aos seus ombros. Pigarreei em repreensão para que
eles ficassem quietos. Era um momento importante.
Lena encolheu, talvez percebendo o outro lado da história e como
aquilo também me afetava.
— O que eu quero que você entenda, Lena, é que precisamos
conversar sempre que algo sair do controle. — Segurei sua mão e sequei
sua bochecha molhada. — Ficar sem falar comigo não vai resolver nada. E
agora estamos longe demais para que eu possa correr até você. Tá bom?
Ela assentiu, fungando o nariz e o limpando na ponta do moletom
lilás.
— Posso te abraçar agora? — murmurou, riscando o chão com a
ponta do pé, sem jeito.
— Vamos começar de novo. — Me levantei, endireitando as costas.
— Dê alguns passos para trás e finja que me viu pela primeira vez.
Lena secou os olhos, fungou novamente e andou até a porta,
esticando os braços para mim.
Eric abriu espaço para nós, puxando Jun com ele. O namorado da
minha amiga parecia travar uma guerra consigo mesmo para decidir se
ficava bravo com Eric lhe segurando o tempo todo ou emocionado pela
cena em sua frente.
Eric, no entanto, já havia desandado a chorar.
Fitei Helena, que enxugava as bochechas coradas com as mangas do
agasalho estampado de margaridas.
Desta vez, fui eu quem corri até ela, aqueles anos sem vê-la pesando
em meu coração. Quando a pequena sumiu dentro do meu abraço,
resmungou baixinho:
— Eu senti tanto a sua falta! — sussurrou com a voz embargada.
Apertei-a ainda mais, feliz por finalmente reencontrá-la, sentindo
que tudo estava no lugar em que deveria estar outra vez.
— Eu também, pequena. — Foi então que a primeira lágrima caiu
— Eu também!
 

 
HELENA
 
— Então... — Maitê começou, depois de ter sido oficialmente
apresentada ao meu namorado. — Você é o cara do piercing.
— É assim que você me descreveu pra ela? — Jun virou o rosto
para mim, sorrindo daquele jeito que, às vezes, me fazia querer brigar com
ele e, em outras oportunidades, me levava a querer fazer... coisas diferentes.
— Ela me fez um questionário sobre você e eu... só disse. — Dei de
ombros, desviando o olhar para minha amiga, a repreendendo por dar início
ao assunto com Eric bem ali.
— Questionário? — O fotógrafo riu divertido, rodeando a mão em
meu ombro no sofá.
— Huh. — Eric sorriu, puxando Maitê para perto também, no outro
assento. — Nossa Leninha não resiste a um piercing.
Arregalei os olhos, sentindo o rosto esquentar.
— Eric! — o repreendi envergonhada.
Enquanto isso, Jun resmungava pelo “nossa Leninha”.
— O quê? — o aclamado Idol sul-coreano sem-vergonha retrucou,
alheio à morte que o aguardava. — Não foi você quem colocou uma argola
no dedo só para...
— Ei! — Joguei uma almofada nele.
Jun Woo deixou a carranca de lado e finalmente se inclinou no sofá,
pela primeira vez parecendo realmente interessado no que o cantor tinha
para dizer.
— Conte-me mais sobre isso, Amigo — pediu.
Amigo?! Revezei um olhar incrédulo entre os dois.
Eric Lee, sentado no outro lado, sorriu abertamente, satisfeito por ter
conquistado a atenção do meu namorado.
— Você vai ficar calado. — Apontei um dedo para o Idol. — Já
salvei sua vida uma vez, não me faça tirá-la.
Maitê gargalhou.
— Qual é, Helena... vai deixar seu namorado curioso agora.
— É, nae gongju[101]... — Jun apertou minha bochecha, mais
relaxado ao meu lado. — Você me conhece, não vou dormir em paz se não
me contar. — Ignorando meus protestos, o jovem virou o rosto para os
outros dois e abriu aquele sorriso de gato astuto. — Então ela colocou uma
argola no dedo... Continuem.
— Talvez eu morra de vergonha — murmurei, afundando no sofá,
cobrindo o rosto quente com as duas mãos.
— Ela só queria saber como era beijar alguém com um piercing...
— comentou minha amiga.
Minha ex-amiga.
— Porque estava interessada em você... — o infeliz ao lado dela
completou, cantarolando.
Jun gargalhou alto, me puxando para mais perto em seguida.
— Aigoo...Isso é tão fofo...
— Cala a boca — retruquei.
Eric, empolgado, tinha aberto a maldita boca para revelar mais
algum vexame meu quando uma batida suave ecoou pelo camarim.
Para o meu alívio.
— Pode entrar — o cantor disse, rindo, me olhando de um jeito que
me fez querer quebrar o nariz dele.
Dele e de Maitê.
O irmão de Eric anunciou a entrevista com o rapaz de um site
conhecido em Seul, lembrando o Idol que eles haviam conversado por
telefone. Por fim, deu passagem para o jovem de talvez uns vinte e oito ou
trinta anos, um pouco mais baixo que os homens ali dentro, com um sorriso
gentil e cabelos loiros meio bagunçados.
— Meu nome é Go Min Kyu. É um prazer conhecer o senhor. — Se
curvou numa reverência formal.
— O prazer é meu, Min Kyu-shi. — Eric se levantou para recebê-lo.
Os dois apertaram as mãos. Maitê ficou de pé quando o rapaz se aproximou
de nós.
Eu e Jun também o fizemos.
— Esses são os meus amigos, Helena e Jun Woo-shi, e minha
namorada, Maitê Sanchez. — Eric apontou para o espaço no sofá ao meu
lado. — Fique à vontade.
O entrevistador pigarreou, um tanto sem graça, nos observando por
um longo minuto antes de começar a falar:
— Vamos... prosseguir a entrevista com eles? — perguntou tímido.
— Claro. — O cantor sorriu, gentil, voltando para o lugar perto de
Maitê. — Por que não? Acredito que não exista segredos entre a gente, não
é, Jun Woo-shi?
Meu namorado assentiu, me lançando mais um de seu arsenal de
sorrisinhos, um que prometia que a conversa sobre o piercing seria
retomada quando estivéssemos a sós.
— Certo... — Min Kyu murmurou, pigarreando outra vez, tirando
do bolso do sobretudo cinza um bloquinho de anotações e um pequeno
gravador preto.
Ele estava nervoso: talvez não fosse só sua primeira entrevista com
alguém famoso, mas um encontro de fã e Idol. Eu jamais julgaria. Quando
Maitê me chamara para ir até o estúdio onde ela trabalhava e revelou o Eric
dentro da sala de gravação, gritei por vários minutos, minutos suficientes
para acabar com minhas cordas vocais. Então, Min Kyu estava se saindo
consideravelmente bem.
— Vamos começar. — Ligou o gravador e o deixou sobre a pequena
mesinha entre nós.
Eric pediu que o rapaz fizesse as perguntas em inglês, se possível,
para que Maitê não ficasse por fora da entrevista, e o jornalista assentiu,
alegando que não era muito fluente, mas que poderia tentar. Por fim, o
rapaz começou elogiando o show daquela noite, dizendo que fora, sem
sombra de dúvidas, uma das performances mais memoráveis de Eric. Algo
com que todos ali — menos Jun Woo — concordavam. Depois de
questionar Eric sobre projetos futuros para a carreira e fazer algumas
perguntas mais pessoais, Min Kyu foi relaxando ao perceber que o cantor
era tranquilo e brincalhão, e acabou se soltando com as perguntas ao longo
da entrevista, me fazendo lembrar da única vez em que entrevistara alguém
— a modelo norte-americana Aidwen Summer. Eu achava; não fora de todo
ruim, me fazendo cogitar, por um momento, o desejo de fazer mais na
revista onde eu trabalhara.
Enquanto assistíamos à entrevista, sentia a ponta dos dedos de Jun
brincarem em minha nuca, me lembrando que ele havia prometido um
jantar romântico depois do show, mas que não aconteceria naquela noite.
Eric pedira para jantarmos com ele e Maitê. Como os dois iriam embora
logo, meu namorado cedeu e aceitou ficar até a hora que eu quisesse.
Apoiei a cabeça no ombro dele, sorrindo vez ou outra quando Eric
respondia algo idiota e Maitê revirava os olhos.
— Sobre Do u mind if I stay? — continuou Min Kyu, quase meia
hora depois —, você disse que inspirou a música em seu período no Brasil.
Quando conheceu a senhorita Sanchez. É a primeira vez que a performa no
palco aqui em Seul, certo?
— Huh. — Eric assentiu. — Os fãs pareceram gostar.
— Claro que eles gostaram. — Maitê se intrometeu pela primeira
vez. — Você escreveu com o coração.
Eu nunca vira, em todos aqueles anos acompanhando a carreira de
Eric Lee, um sorriso tão largo e orgulhoso brincar nos lábios dele.
O cantor passou um dos braços em torno do ombro da namorada e
piscou para ela.
— Eu escrevi com o coração porque você está nele.
Min Kyu e eu fizemos um “own” coletivo, Jun meio resmungou
algo sobre anotar aquela frase para usá-la depois, e Maitê... bem, mesmo
que ela negasse, dava para ver que se derreteu um pouco ao ouvir aquilo.
— É muito bom ver um Idol interagir tão abertamente com a
namorada — o entrevistador comentou. — Não deve ser fácil, não é,
senhorita Sanchez? Namorar um cantor mundialmente conhecido?
— Não é — ela respondeu, os olhos cravados nos de Eric. — Mas
ele faz valer cada segundo. Além do mais, uma parte do fandom dele nos
apoia muito e nos dá muito carinho. Acho que é o bastante.
— Porque entenderam o verdadeiro significado de ser fã. — Sorriu
o jovem jornalista, fechando a caderneta preta e a guardando no bolso
inferior do agasalho. — Eles querem o melhor para o Idol deles,
independentemente de com quem ele fique no final. Querem vê-lo feliz.
Eric me olhou, assentindo em confirmação. Sorri de volta,
agradecida, como fã, por ele estar bem, vivendo o sonho de carreira, com a
mulher que amava do lado.
— Existem fãs assim — ele disse, piscando para mim. — Sou
verdadeiramente grato a eles por isso.
Ergui a mão para ele, juntando o polegar e o indicador, formando o
coração clássico do mundo k-pop.
Min Kyu notou, e seu sorriso aumentou ao observar nós quatro
naquele camarim.
— Acabaram as perguntas, mas... Fiquei curioso sobre uma coisa —
falou o entrevistador, segurando aquele gravador na mão.
Eric fez um gesto com o queixo para que o jovem prosseguisse.
— Vocês quatro... são amigos há muito tempo? Como se
conheceram?
Um sorriso divertido brincou nos lábios do cantor. Como um gato se
espreguiçando, Eric relaxou no lugar em que estava e voltou os olhos
escuros para mim.
— Acho que ela pode responder — disse, com os lábios esticados.
Maitê assentiu. — Começou com Lena me salvando, afinal.
— É mesmo? — Min Kyu se virou para mim e eu me empertiguei
no sofá. Era isso mesmo? Eu estava sendo entrevistada? — Helena-shi,
pode me dizer o que fez com que o destino dos quatro se cruzasse?
Mordi o lábio, pensando numa resposta inteligente. Talvez saísse em
uma revista, tinha que ser bem pensado.
Encarei Maitê, que não me ajudou muito ao dar um sorrisinho e
deitar o rosto no ombro de Eric. Então encarei meu namorado, que franziu a
testa, divertido, provavelmente se lembrando de como nos aproximamos,
quase um ano atrás.
Como eu diria a um jornalista que ajudara Eric Lee a fugir do
próprio show por conta de uma sassaeng[102], distraíra as fãs dele para que
o cantor escapasse e fosse atropelado pela minha amiga, que o escondera na
própria casa? De que maneira eu contaria como surtara com Jun Woo em
frente à boate e quebrara a câmera dele, que ficara presa em uma despensa
com ele e que, num surto impensado, sugerira que ele fingisse ser meu
namorado para que minha colega de quarto e meu vizinho me deixassem
em paz?
Eu estava com fome, cansada, e aquela seria uma história longa e
confusa demais para explicar.
— Bem... Resumindo?
Todos aguardaram.
Sorri, encolhendo os ombros.
— Eu diria que foram músicas, acordos e outros clichês.
 
 
 
 

 
Brasil x Coreia[103]
 
 
JUN

 
A jovem me encarou séria do outro lado do quarto depois de deixar
a tinta sobre a escrivaninha. Os cabelos pretos foram presos em um coque
no alto da cabeça, mas algumas mechas cacheadas caíam adoravelmente na
lateral do rosto dela. Duas faixas de tintas amarela e verde enfeitavam cada
lado de sua bochecha. Talvez fosse a euforia de assistir à Copa com ela pela
primeira vez, àquele jogo, especificamente. No entanto, se não tivéssemos
visita, se Helena não estivesse tão empolgada como se fosse entrar no
campo junto dos jogadores, eu a puxaria para a cama naquele momento. A
deixaria pintar meu rosto e qualquer outra parte que quisesse em meu corpo
com aquelas cores.
Lena inspirou fundo e se aproximou, finalmente pronta. Então,
dramaticamente, pousou a mão em meu peito, fitando o número 7
estampado em minha camisa vermelha.
— Nunca pensei que chegaríamos a esse ponto — disse, me fazendo
conter o sorriso, entrar na brincadeira. A jovem ergueu os olhos lindos para
mim, juntando as sobrancelhas de uma forma que me fez questionar se
minha namorada tinha, em algum momento da vida, cursado teatro. — Mas
aqui estamos.
Contornei as mãos em sua cintura, tentado a borrar as tiras pintadas
em sua pele. Ela estava tão linda e arrumadinha para torcer para o país que
era tentador gritar para Ji Ah e Cha Min irem assistir ao jogo no próprio
apartamento.
— Aqui estamos — assenti.
Outro suspiro teatral, e Helena continuou:
— Quero que saiba que... independentemente do que acontecer
hoje... ainda te amo.
Meus lábios tremeram com mais um sorriso segurado.
— Não vamos levar para o lado pessoal — concordei.
Lena afastou algumas mechas de cabelo dos meus olhos,
suavemente roçando as pontas dos dedos no piercing em minha
sobrancelha. Depois, traçou caminho por meu rosto até que o polegar
brincasse com a argola em meu lábio inferior.
— Você viu nos últimos jogos o quanto posso ficar...
— Violentamente eufórica. — Ri baixinho, colando o corpo dela ao
meu. Helena me fizera assistir a todos os jogos do Brasil. Mas não só do
país que ela vez ou outra choramingava sentir falta: da Coreia do Sul
também. Porque, até então, ela estava torcendo pela vitória dos dois países.
Mas seria diferente naquele dia. — Que o melhor vença.
Minha namorada finalmente sorriu, esticando os lábios de forma
travessa.
— Sabe... Podíamos tirar proveito do jogo e deixar as coisas mais
interessantes... — Ela diminuiu o tom de voz, me olhando daquele jeito que
me fazia pegá-la no colo de repente e jogá-la no colchão do nosso quarto às
vezes. — Vamos apostar.
Sorri também.
— Se a Coreia ganhar... — provoquei, me inclinando para beijar sua
boca preguiçosamente. Depois de pensar, sussurrei em seu ouvido o que
queria.
Helena arregalou os olhos, corando intensamente.
— Seu sem-vergonha!
— Você já fez antes, por que não? E quero comprar a fantasia pra
que use o mês inteiro.
Ela gargalhou, ainda com as bochechas enrubescidas.
— Qual é a de vocês homens e as roupas de enfermeira?
Dei de ombros.
— Qual é a sua e as fantasias de magos metidos e chorões?
Ela gargalhou, mas concordou com um aceno de cabeça.
— Tudo bem. Se a Coreia ganhar, faço isso. — Riu de novo. — E
quando o Brasil ganhar, quero aquele pacote delicioso de massagem nas
pernas e nas costas que só você sabe fazer. Por um mês inteirinho.
— Não “se”, mas “quando”. — Ri com escárnio. — Vocês.
brasileiros... Sempre cantando vitória antes da hora.
— Você vive perdendo pra mim, Jun-Jun... — Lena piscou, cheia de
doçura. — Por que acha que hoje vai ser diferente?
Encarei o teto, falando alto para o céu além dele:
— Deus, tá vendo isso aqui? O Senhor não acha que está na hora de
podar um pouco esse convencimento?
Lena gargalhou de novo, e o som me fez sorrir também.
Ji Ah gritou da sala que o jogo começaria quando meus lábios
encontraram os de Helena. Gritei de volta que já estávamos indo.
Para a minha namorada:
— 3x0.
Ela riu com deboche, se desvencilhando do meu abraço, mas
segurando minha mão para me puxar até a sala, onde nossos amigos
esperavam. Sol ligara mais cedo avisando que assistiria ao jogo em outro
lugar.
Desconfiava de com quem.
— Seu sonho, meu amor. — Lena riu. — 3x1 pra nós, obviamente.
Um pra vocês não ficarem tão tristes quando perderem.
Senti meus lábios se esticarem quando ela se virou para me lançar
uma piscadela.
 

 
Fim do jogo.
Helena se espreguiçou ao ficar de pé, contendo o sorriso satisfeito e
encarando os três coreanos no sofá da sala do nosso apartamento com uma
careta de dor ao levar a mão ao ombro e massagear.
— Sabe — começou, voltando a interpretar aquela pessoinha
dramática e teatral —, estou sentindo muita dor nos ombros hoje. E meus
pés... Céus! Meus pés estão me matando.
4x1.
Nós perdemos para o Brasil de 4x1! Poderia ter sido mais
humilhante? Ji Ah, Cha Min e eu mal piscamos e, nos primeiros minutos do
jogo, Helena já havia berrado dois gols com o narrador!
Ah... Aquela garota manteria o sorriso convencido no rosto por um
bom tempo. Mesmo que, em certo momento do segundo tempo, Lena tenha
insistido para os jogadores – que não a escutavam – para deixar a Coreia
fazer um golzinho porque já estava com dó.
Mas aquele compadecimento evaporou quando o jogo terminou e
ela me olhou com aquele sorriso malicioso e satisfeito de quem ganhara
uma aposta. Minha namorada apontou para a TV. Na tela, os jogadores da
seleção brasileira se reuniam para uma foto em homenagem ao Pelé, um
ícone do futebol.
— Vou esperar os cumprimentos, quero ver o Son abraçar seu ídolo.
— Então apontou para Cha Min e Ji Ah, que ainda estavam emburrados ao
meu lado. — Vocês dois já podem ir.
Ji Ah a olhou incrédula.
— Você fica cruel em dias de jogo. Vai expulsar a gente assim?
Lena me olhou, e eu me reclinei no sofá, esticando os braços e
alongando as mãos. No fim, nós dois sabíamos que eu não teria problema
algum em pagar a aposta. Muito pelo contrário, tinha ideias interessantes de
como fazê-lo.
Minha namorada não se comoveu com o choramingo da amiga, não
quando eu sorri sugestivamente para ela.
— Vão embora, amigos.
Ji Ah se levantou, estreitando os olhos para a ex-companheira de
apartamento de maneira cruel.
Logo, apontou um dedo.
— Espero que o Brasil perca no próximo jogo.
Helena pegou o dedo dela e murmurou:
— Repreendo toda coisa ruim! — Sorriu para Ji Ah. — Agora vaza.
— A gente podia jogar cartas ou sei lá... me fazer esquecer esse jogo
humilhante.
— Min-Min... — Lena girou a antiga colega de quarto pelos ombros
e a empurrou em direção à porta. Para meu irmão, disse: — Faça sua
namorada esquecer esse jogo humilhante.
Cha Min revirou os olhos, levantando do sofá e seguindo para a
porta com o pote de pipoca ainda nas mãos.
— Vamos, tesouro — murmurou para ela. — Não se misture com
essa gentalha.
Ji Ah tentou, mas acabou rindo.
— Se eu fosse solteira — falou como despedida para Helena e eu
—, infernizaria vocês dois pelo resto do dia.
— E você já não faz isso? — rebati, ainda do sofá. A essa altura,
Lena nem a escutava, observando o jogador da camisa 7 abraçar os colegas
brasileiros. — Faça um favor e caia fora, rabugenta.
— Vou voltar pra assombrar você depois, infeliz!
E se foram.
Esperei até que as propagandas começassem e finalmente me
aproximei de Helena por trás, enlaçando sua cintura.
— Sinto muito pelo jogo — ela falou.
— Sente nada. — Beijei a pele exposta.
— Como o jogo foi realmente humilhante, vou comprar a fantasia
que você queria.
Sorri.
— Mesmo?
— Huh — respondeu. — Porque sou misericordiosa, e você tem
sido um bom menino.
Lena soltou um gritinho agudo seguido de uma gargalhada quando
passei o braço por trás de seus joelhos e a outra mão em suas costas, a
erguendo do chão.
— Você, no entanto, se comportou muito mal hoje.
— Oh, não... — Forçou um biquinho, passando o braço em meu
pescoço.
— Vou fazer sua massagem — prometi, a levando para o quarto. —
Mas como, tecnicamente, você não acertou o placar, vamos rever o contrato
da aposta.
Minha namorada abriu um sorriso lindo e insinuativo, um que eu
sabia ser o único a receber.
— Estou aberta a sugestões.
 
 
 
 
 

HELENA E JUN RETORNARÃO


AO NICAHVERSO
 
Dois anos... Dá para imaginar? Estou há dois anos guardando Jun e
Lena para mim e, olha só, eles são de vocês agora. Espero que a leitura
tenha tocado seu coração.
Helena é a personagem que mais tem caraterísticas minhas: ela é
chorona, medrosa, faz coisas impensadas e, na hora do nervosismo, desata a
falar de plantas (emoji do palhaço aqui), além de ser insegura. Eu adoro ler
sobre protagonistas confiantes e empoderadas, mas quis transmitir esse meu
outro lado na Leninha. Ela, posso dizer com certeza, é noventa por cento
Nicole da Silva Park. Acho que isso faz da Lena uma das minhas
personagens favoritas. Quando pedia ao Jun para me contar as coisas que
mais gostava na Helena, aprendia a ver através dos olhos dele como ela (eu)
era incrível. Isso me ensinou a me amar um pouco mais.
O assunto abordado nesse livro não foi uma ficção. Experiências
pessoais e de pessoas muito importantes para mim me deram coragem para
retratar na história algo que infelizmente, é mais comum do que
imaginamos. Pior do que imaginamos. Saber que existem pessoas que
sofreram como a Lena, traumas, às vezes, bem mais profundos e incuráveis,
me quebra o coração. Existem milhares de Migueis por aí, mas não aceite
menos que um Jun. Mais que isso. Entenda que você merece o melhor. Por
favor, não se diminua por ninguém. Não se menospreze por ninguém.
Espero que vocês entendam que são incríveis. Não deixem a
insegurança falar mais alto e impedi-los de conquistar seus sonhos.
Procurarem por um “Felizes para sempre”.  Aprendam a se olhar com
carinho e compreender os seus limites.
Se respeitem. Se amem.
 
Vocês vão conhecer mais sobre o passado do Jun no livro Terceira
Vez Destino, Quarta Vez Amor (Irmãs Morgans 2), que se passa em Boston.
Jun Woo é uma peça importante para o desenvolvimento da Raven, assim
como a Raven é para o dele depois que o nosso fotógrafo perde o irmão.
Então, o aguardem lá e tentem não ter ciúmes, até porque sabemos que o
nosso menino é apaixonado por outra pessoa nesse passado.
E acredito que vocês tenham pegado a dica sobre um possível (bem
provável) spin-off de Oppa, Foi Mal futuramente. Nele, vamos conhecer um
pouco mais do nosso querido Son Ho e outros assuntos que me assombram.
Essa não é uma despedida desses personagens maravilhosos.
Aguardem.
 
O meu muito obrigado para cada leitor que me acompanha nessa
jornada; à você também, que acabou de chegar de paraquedas e me
conheceu recentemente. Vocês estão no meu coração e tudo o que escrevo é
pensando no sorriso — e nas lágrimas — que colocarei em seus rostos. Que
a mensagem de OFM tenha sido clara: a singularidade de vocês é o que os
torna tão únicos e especiais.
Às minhas betas (Ana, Anna, Lyn, Fernanda, Elida, Ana Farias e
Allana) maravilhosas, obrigada por surtarem comigo e me ajudarem a
aperfeiçoar este livro com cada comentário, crítica e figurinhas do Kook.
Sério, eu amo vocês. Espero poder contar com cada uma no próximo “vem
aí”, que será só choro. Hehe.
Minhas queridas safafas, minhas gêmeas incríveis do @park.bookss
(Ana Passarinho Wang e Anna Roux), vocês tornam meus dias mais
coloridos e me fazem sentir uma escritora nota 10! Obrigada por cada
meme e cada edit matador, por todo carinho que me faz sentir que cada hora
criando, escrevendo, revisando e editando vale a pena. Vocês me inspiram.
Minha Maitê. A amizade de Lena e Tetê é real e eu posso provar.
Thaís Dourado, a outra peça do quebra-cabeça, que tem suportado cada
drama e choradeira. A história do palavrão é real, chingus, e eu realmente
fiquei bolada, mas resolvemos isso na terapia MAOC. Obrigada, amiga, por
estar comigo e orar por mim. Que essa amizade apenas se solidifique mais.
Foi incrível fazer esse projeto com você!
Unnie, vulgo Stellinha, obrigada por me animar nos dias ruins. Você
foi uma surpresa linda na minha vida. Acredito que nossos universos ainda
vão se cruzar e coisas boas vão acontecer (ouviu, senhora? Coisas boas. Só
coisas boas).
April. Se me abandonar, a coisa vai ficar feia para o seu lado.
Obrigada por sempre diagramar lindamente os meus livros, não acho que
posso confiar esse trabalho a mais ninguém. Tu que lute.
Patrini, vulgo Lena, a melhor revisora que você respeita! Mulher, só
Deus sabe o quanto sou grata por ter te encontrado. Você não só me
entregou um ótimo trabalho, como abraçou esse livro com muito carinho.
Oppa, foi mal foi apenas a ponta do iceberg hehe. Te prepara que vem aí
Sorry, I’m An Anti-Romantic e você vai ver o que é verdadeiro surto de
autora. Gostou do Jun? Espera só para conhecer Kade, Blake e Jason.
Guarde meu lugar na sua agenda, pois você já tem um enorme no meu
coração (cantadasdeericlee.com).
À rainha que me inspira todos os dias. Sim. Vamos chamá-la de “a
mãe da Nicole Park”. Aquela que gostaria que eu parasse de pensar só em
novos plots de livros, mas que me apoia em cada projeto. Obrigada por
sempre me entender e estar aqui por mim. Tenho passado por momentos
difíceis, mas ela não me deixa nunquinha. Um dia vou ser rica e comprar
um ateliê chiquérrimo para a senhora perto da nossa casa em Seul. Anota.
Vamos comer sushi todos os fins de semana. Te amo, mãe. Hoje e sempre.
E a Deus. Não tenho sido uma filha exemplar, mas Ele ainda me dá
vida para continuar. Talvez esteja me vendo lá de cima e sabe que, apesar de
não falar com Ele com a frequência que deveria, me importo demais com
vocês para sempre colocá-los em oração. Obrigada, Deus, pela capacidade
de criar histórias mirabolantes às duas da manhã. Um dia vou parar de
levantar a essa hora para escrever e passar a falar mais o Senhor.
Nota final para você.
Leitor,
Espero que tudo que eu escreva alcance seu coração com um
propósito maior do que apenas um romance e uma distração. Que te faça
sorrir e te traga esperança.
Estamos vivendo um período caótico e desanimador, às vezes; sei
que, de vez em quando, dá vontade de parar e desistir, que você deve se
sentir inseguro em muitas ocasiões (seja com a aparência, com a saúde, com
o trabalho, etc.), porém...
“Sei que é difícil mudar a forma como pensamos sobre nós mesmos,
mas você não deveria se sentir assim”. Se mime quando tiver um dia ruim,
dê uma pausa e respire fundo quando estiver prestes a explodir, pense em
pequenas alegrias quando a vida parecer pesada demais. Só, por favor, não
desista. Você é mais forte do que pensa.
Só precisa começar a acreditar nisso.
Obrigada, obrigada, obrigada!
Essa não é uma despedida, eu tenho uma gaveta cheia de projetos
para vocês (SIAA, TVNF, QCMC, TDQA, EVDMA, TNSA, BMM, um
com um vizinho fofo e a Sol... talvez?). Apenas aguardem. E se preparem.
Vão precisar de muitos lenços para os próximos.
Beijos no coração, abraços quentinhos e até a nossa próxima
aventura!
Bai, baiii!
N. S. Park, mais conhecida por seus leitores como Nicole da Silva
Park, é amante de bons romances e livros de fantasia, dorameira, ilustradora
e fã de desenhos animados. Passa a maior parte do tempo lendo, escrevendo
e desenhando sobre os livros que lê e escreve.
É mineira, mas pode ser encontrada em Terrasen, Velaris, século
XIX, Nárnia ou em outros variados mundos fantásticos nas horas vagas.
Tem como inspirações os romances quentinhos de Carina Rissi, guerras e
problemáticas dos universos de Sarah J. Mass e lágrimas e dor dos dramas
sul-coreanos.
Tem vinte anos e mais algumas primaveras que decidiu não contar,
trabalha duro ilustrando para pagar suas faturas e os sushis de cada mês,
mas escreve para aliviar as vozes bagunçadas de sua cabeça. Seu maior
sonho é fazer — seja desenhando ou escrevendo — o maior número de
pessoas possíveis sorrir, amar e acreditar que começos, meios e finais
felizes existem.
 
Você pode encontrá-la surtando sobre livros, doramas e animes em:
 
@escreve.park
@_bluebble
 
Aproveita para contar o que achou da história!
[1] Fictício.
[2] Aff!; Que saco!; Droga!
[3] Senhorita.
[4] Senhor.
[5] Me desculpe.
[6] Lenda urbana coreana.
[7] Como uma mulher se refere à sua irmã mais velha.
[8] O que eu faço?
[9] Mudei, mas dorameiras, é ele mesmo.
[10] Expressão fofa que os coreanos usam quando ficam impressionados. Tipo “uau”.
[11] Personagens de “Uma Troca Para o Amor”.
[12] Good Day — IU.
[13] Senhorita Helena.
[14] Senhorita.
[15] Os coreanos costumam usar honoríficos quando conversam com alguém que não tem muita
intimidade. A forma como se dirigem para as outras pessoas depende muito da posição no trabalho,
status social hierárquico, familiares ou da proximidade que tem uns com os outros. Essa diferença é
mais notada quando se escuta a conversa em coreano, aqui, no livro, não veremos tanto esses
honoríficos, mas deixo como curiosidade.
[16] Seja.
[17] Amigo.
[18] Nossa...
[19] Ah... Tá bom!
[20] Senhorita Helena.
[21] Obrigada.
[22] Roupa tradicional coreana.
[23] Senhor Kim Jun Woo.
[24] Mudei aqui, mas vocês sabem de quem eu estou falando.
[25] Não quero.
[26] Gíria mineira para... qualquer coisa hehe.
[27] Senhora; tia.
[28] Expressão de surpresa.
[29] É costume na Coreia do Sul (acredito que no Japão também) a pessoa tirar os sapatos antes de
entrar em casa.
[30] Fofa; bonita.
[31] Bobo; Idiota.
[32] O que eu faço?
[33] Que Droga!
[34] Irmã mais nova.
[35] Amiga.
[36] Roupa tradicional coreana.
[37] Avô.
[38] Falando em Português.
[39] Como mulheres chamam o irmão mais velho, mas coreanas costumam usar “oppa” para chamar
namorados ou amigos mais velhos.
[40] Ah, sinceramente!
[41] Amiga.
[42] Nossa; Meu Deus...
[43] Durma bem, minha princesa.
[44] Expressão mineira.
[45] Como um homem se refere à sua irmã mais velha.
[46] Como uma mulher se refere à sua irmã mais velha.
[47] Cai fora!
[48] Amiga.
[49] Por favor.
[50] Coloque sua cabeça em meu ombro.
[51] Como um homem chama seu irmão mais velho.
[52] Como um homem chama sua irmã mais velha.
[53] Flashlight — Jessie J.
[54] Como um rapaz mais novo chama o irmão/amigo mais velho.
[55] O cachorro-quente ou o “Hot Dog Coreano” é no palito, uma massa crocante que envolve o
queijo e a salsicha, bem diferente do que estamos acostumados.
[56] Howl, do filme Castelo Animado.
[57] Princesa.
[58] Barriga de porco grelhada.
[59] Senhorita.
[60] , , (hana, dul, ses) = Um, dois, três...
[61] Cantor Eric, personagem do livro “Tem Um Idol No Meu Sofá” da autora Thais Dourado.
[62] Querida. Amor.
[63] Como chamam senhoras de idade. “Avó” ou “vovó”.
[64] Irmão mais velho.
[65] Personagens do filme A Viagem de Chiriro, da Chibli.
[66] Irmão mais velho.
[67] Expressão de surpresa.
[68] Que mentira!
[69] Cala a boca!
[70] Por favor.
[71] Sinceramente (de uma forma xingada hehe).
[72] Princesa.
[73] Nossa; Meu Deus...
[74] Espera aí...
[75] Sim, k-popers, ele mesmo. Mudei um cadinho, mas é ele mesmo hehe.
[76] Oh, é sério?
[77] Aproximadamente R$380,00 (segundo o cálculo do Tio Google em maio de 2022).
[78] Ei!
[79] Ok!
[80]  Vovô.
[81] Como um rapaz mais novo chama o irmão mais velho.
[82] Como um rapaz mais novo chama a irmã mais velha (aqui, no caso, a cunhada que era mais
velha do que ele).
[83] Irmão mais velho.
[84] É costume na Coreia do Sul (acredito que em outros países da Ásia também) tirar os sapatos
antes de entrar na casa. Geralmente, na entrada, tem um lugar para deixar os sapatos, e
pantufas/chinelos para calçar no lugar.
[85] Mesas tradicionais que asiáticos usam para comer sentados/ajoelhados no chão.
[86] Macarrão de fécula de batata grelhado com vegetais.
[87] : Uma expressão usada antes de começar a comer. É como um “Obrigado por esta
refeição”, mas literalmente significa “Vou aproveitar esta comida”.
[88] Senhorita Helena.
[89] Drama sul-coreano.
[90] Princesa.
[91] Uma expressão de descontentamento. Ex.: Aff; que saco!; Droga! etc.
[92] Uau... Que incrível!
[93] Nossa...
[94] Minha princesa.
[95] Eu te amo.
[96] Minha princesa.
[97] Princesa.
[98] Good Day – IU.
[99] Oi, oppa.
[100] É um tipo de lanterna personalizada do Idol ou grupo de Kpop que as fãs levam para o show.
Não tenho um, então não sei as funcionalidades, mas queria.
[101] Minha Princesa.
[102] Um fã sasaeng é uma pessoa excessivamente obcecada pelo Idol. [...] Fãs extremos que
perseguem seus ídolos e invadem sua privacidade com métodos questionáveis. — Wikipédia.
[103]  Copa do Mundo (Brasil x Coreia do Sul) — 05/12/2022

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