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PARQUE FRANCISCO DE ASSIS

VIVER O AMOR AOS CÃES


ANA REGINA NOGUEIRA

IRDIN

2A EDIÇÃO ATUALIZADA
IRDIN

PARQUE FRANCISCO DE ASSIS

VIVER O AMOR AOS CÃES


ANA REGINA NOGUEIRA

2016
Copyright © 2014 Ana Regina Nogueira da Costa
Irdin é uma editora sem fins lucrativos

Projeto gráfico
Cláudio Rocha
Fotografias
Ana Regina Nogueira e Pedro Crown
Agradecemos fotos gentilmente cedidas:
Adriana Araújo, Andréa Abreu, David Henderson,
Polyana Oliveira, Sílvia Cristina
Revisão e diagramação
Equipe de voluntários da Associação Irdin Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Nogueira da Costa, Ana Regina


Viver o amor aos cães: Parque Francisco de Assis /
Ana Regina Nogueira. Carmo da Cachoeira: Irdin, 2016
222p.
ISBN 978-85-60835-82-9
Índices para catálogo sistemático: 1. Canil.
2. Veterinária. 3. Espiritualidade. 4. Cães

CDD:636

Direitos reservados
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Cx. Postal 2, Carmo da Cachoeira, MG, Brasil, CEP 372225-000
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www.irdin.org.br
Ao Regente Resplandecente do Reino Animal

Agradecemos profundamente ao Universo


e às incomensuráveis ajudas do mundo interno.
Agradecemos a cada animal que fez, faz e fará
a história do Parque Francisco de Assis. Também
aos humanos que, por amor, sustentam,
impulsionam e transformam esse lar para cães.
A Trigueirinho, que considera este livro um desafio aos
corações fechados, a infinita gratidão do grupo.
"Toda a Criação provém de Meu ventre e Eu provenho do Criador
de todas as coisas. O Senhor cria por meio de Mim e Eu Sou para
manifestar a Sua Glória.

O Meu Centro de Serviço em Lavras auxilia Meu Coração, que tem


uma tarefa de resgate não apenas com os corações humanos, mas
também com o coração de todos os reinos.

Convido-os a desvendar o mistério da vida de serviço para que


descubram, através do ato de servir, como encontrar o Meu Coração
e o Coração de Meu Filho, porque Jesus, filhos Meus, é eterno
serviço, sacrifício e entrega ao Santíssimo Coração de Deus. Aqui
deixo as sagradas chaves de oração e serviço para encontrarem
o impulso de seguir adiante."

Mensagem transmitida pela


Mãe Universal à vidente Irmã Lucía de Jesús,
em 2 de abril de 2013
Apresentação, por Trigueirinho

Tomávamos desjejum após uma visita ao canil, quando sussurrei


poucas e decisivas palavras: Por que não escrevem um livro sobre o
Parque Francisco de Assis, com belas fotografias? Treinada na obediência,
minha hospedeira não titubeou. Telefonou para repassar a tarefa
a um membro do grupo, Ana Regina Nogueira, a quem nunca fora
encomendado um texto. Sem pensar, a futura escritora também
respondeu: Sim. A palavra vinha de onde é gerada a utopia.
Há um clamor na alma de quem escreveu este livro. É um apelo
pacífico, sem alardes, mas muito profundo. Quem já colheu o olhar
de certos animais, especialmente o dos cães, deve ter percebido
do que se trata. Este livro faz parte desse discreto apelo. Você está
convidado a lê-lo com o coração e observar o que surge em seu
próprio interior. E se você sentir esse sopro da caridade, a tarefa
desta simples obra estará cumprida.
Agradecemos à alma da autora por tê-la inspirado durante seu
trabalho silencioso, e fazemos votos que a mensagem do livro não
se torne uma voz no deserto. Também fazemos votos que você
se abra e aceite, de coração aberto, o estilo espontâneo com que
Ana Regina transmite a sua mensagem.
Grande é o trabalho do Bem a ser feito em todo o planeta, e os que
assumem prestar um serviço doado, abnegado, como este grupo
que mantém o canil em Lavras, juntamente com a Prefeitura local,
adaptam-se ao cumprimento simultâneo de múltiplas tarefas. Todos
que encontram na cooperação um caminho de crescimento interior,
da alma, que procurem realizar o que parece impossível. E o impossível se
tornará realidade, como acontece em certas vidas refletidas neste livro.

José Trigueirinho Netto


Abril de 2014

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A força do amor

Conheci o local quando já era o Parque Francisco de Assis, isto é,


muito trabalho depois. Uma legião de servidores voluntários
já havia ali dedicado seu amor e suor, transformando física
e energeticamente o que havia sido um lugar de pavor, horror,
dor, em um oásis de acolhimento, cuidados, carinho e renovação
da vida.
Posso ainda ouvir certas palavras do Trigueirinho em uma
partilha: Faça o contrário! Ao se deparar com uma situação muito
negativa, faça o contrário. E foi o que ali fizeram. Quase um milagre!
A troca na renovação de vidas de animais humanos e não
humanos, uns curando os outros. Humanos recebendo amor,
alegria, gratidão, e animais sendo exemplo de superação,
nos ensinando que rapidamente deixam o passado para trás
e resgatam autoestima e confiança.
O trabalho do Parque Francisco de Assis continua, e requer,
diariamente, muita dedicação, iniciativa, paciência, fé, e recursos.
Requer, também, a contribuição de pessoas alinhadas com a
coragem de fazer o bem.

Nina Rosa Jacob


18 de maio de 2014

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ÍNDICE

9 Apresentação, por Trigueirinho 172 Ananda e Hércules, mestres do guerreiro


11 A força do amor, por Nina Rosa Jacob 173 Gil se comunica
174 Manu
14 1ª parte a serviço do amor 176 Antu volta a andar
17 O poder de um Sim 178 Luke Skywalker
23 Adote um cão e viva com mais alegria 179 Santiago, o sociável
33 Nas ruas, na cidade e no Parque 180 Pérola e três irmãos
45 Os reinos interagem 182 Lição de delicadeza
57 História mais íntima do Parque 183 A frágil vida de Dorothy
67 Dia a dia de janeiro a janeiro 184 Ocupante da Arca de Noé
83 Cura do cão, do ser humano e da área 186 Astor, fênix renascido
93 Entrevistas: Uma benção de Deus 187 Lysa e Melissa, bullying entre cadelas
99 A alegria de servir do caos à ordem 189 Pingo, mordido por Feliz
109 Entrevistas: Arregaçar mangas 190 Mônica e Lis, as vizinhas
121 O Parque irradia e atrai 192 Bill
127 O tempero do acolhimento 192 Nicolau
137 Voa, cãozinho, voa 194 Promotor
147 Canais de amor 195 Pitoco
196 Lia e as galinhas
154 2ª parte histórias reais 200 Robinho Fujão
156 A missão canina 202 O resgate de Mirna
157 Ter o amor como única bagagem 204 Maggie, uma cadela-quase-humana
158 Cartinha de um menino 206 Amor
159 Metamorfose 208 Celebração
161 Luz 210 O cão Miguel e outro, este sem nome
162 Visitantes alados louvam a vida 210 Mutirões
163 O chamado da água azul 212 Relato de uma experiência
164 Uriel, ex-Rex, e o primeiro adotante
166 Albergue ou lar para cães 214 últimas histórias
167 Seu Nélson, o parente mais velho 216 Castração de cães sem-teto
168 Docinho redimido 218 Amor de verdade é amor de cachorro
170 Alegria entre cães e gente 220 Parque canino em Londres
1ª PARTE A SERVIÇO DO AMOR
O PODER DE UM SIM

Salta para o outro cume, a voz ordenou. Era uma todavia, já trataram milhares em anos de inten-
noite profunda, azulada por luz onírica. Ela sa e transformadora experiência. Inicialmente
abraçava um pico altíssimo do Himalaia entre concebido para acolher cerca de 300 cães do
neves e montanhas, os pés soltos no ar, sem ter canil municipal em situação precária e assusta-
onde firmá-los para dar o impulso até o cume dora, chegou a aceitar 600.
ao lado. Estava só. Olhou para baixo. A voz: É o
abismo. Ela acordou tomada por um sofrimento Quando as benfeitorias e a infraestrutura do
pungente, sem saber se saltara ou não. abatedouro começaram a ser adaptadas, ainda
exalavam sangue. Pelo chão havia ossadas e
Tudo tem o tempo, a hora certa. Após três me- o terreno e as construções sofriam. Por onde
ses, a vida apresentou o desafio ao grupo espi- começar? Era passada uma vassourinha aqui,
ritual de ação abnegada ao qual ela pertence uma enxada acolá. O grupo recebera a área,
há 25 anos: erguer um centro de resgate e cura nada tinha, sequer um tostão, e em seis meses
para cães sem-teto. A potente resposta dos que os animais chegariam. Surpreendentemente,
assumiram viver a caridade dia a dia foi Sim. tudo passou a jorrar em abundância. Até assus-
Por amor, obediência e consciência do serviço, tava. Este trabalho precisava ser manifestado.
sem remuneração nem compromisso escrito, A beleza é ser construído passinho a passinho,
voluntárias consagram a vida a servir caninos cruzando provas e mais provas. Ao olhar para
excluídos de convívio domiciliar, os chamados trás, sente-se infinita gratidão pelo poder que
cães de rua, vira-latas, cães errantes, cães mes- surgiu no grupo, o poder de decidir, de agir, o
tiços, cães sem raça definida – SRD. poder da fé.

Assim, em 2002, nasceu o canil Parque Francis- Sustentadas por recursos advindos de doa-
co de Assis em área rural de 7.680 m², sobre o ções, as obras tiveram início. Ao mesmo tempo,
ex-matadouro municipal de bovinos e suínos centenas de voluntários de vários estados do
ativo por 27 anos, localizado no km 341, ao Brasil e do exterior se entregaram à purificação
lado da rodovia BR 265, a 10 km do centro da quase impossível: remover, dor a dor, as cruel-
cidade de Lavras, região montanhosa de Mi- dades ali instaladas, vestígios materiais e ener-
nas Gerais, sudeste do Brasil. Cerca de 400 dos géticos do sacrifício de animais abatidos. Além
mais miseráveis entre os miseráveis errantes de marretas alegres rasgarem o ar para demolir
são hoje assistidos por corações maternos, que, o passado, a principal ferramenta era a compai-

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xão. Enquanto em esforço heroico a fantástica ou em paredes e tetos no fundo de cavernas es-
empreitada de oração e limpeza transmutava a curas. Ao longo de 40 mil anos seu drama vem
tortura, um inominável vento celestial desobs- sendo representado por um mar de histórias
truía canais para curas fluírem. orais, escritas e visuais, obras de arte de todas
as culturas. Animais presentes em momentos
O canil conta, atualmente, com 70 baias com sublimes do ocidente e do oriente tornaram-se
solários, oito áreas de recreação cercadas, siste- símbolos sagrados. O boi e o asno aqueceram o
mas de tratamento de dejetos caninos e águas menino Jesus com o hálito. Cães lamberam cha-
residuais, casa de hospedagem e escritório. gas do leproso São Lázaro, que veio a se tornar
Possui uma Casa de Cura com: sala cirúrgica, seu protetor. Com peste, São Roque teria pere-
três enfermarias, farmácia, ambulatório, sala de cido caso seu cão não tivesse lhe levado diaria-
expurgos e de banho e tosa, cozinha para cães, mente na boca o pão roubado da farta mesa de
refeitório para humanos, depósito de ração, al- um aristocrata. Contam budistas sobre Pratea-
moxarifado, lavanderia, rouparia e banheiros. A do, o cão-rei que salvou do massacre os cães da
busca de parceiros, doações e voluntários pros- cidade e do castelo mandados ser mortos pelo
segue, e também campanhas de adoção dos rei de Benares, a quem Prateado acabou por
cães castrados, vermifugados, vacinados. ensinar o respeito a todos os seres vivos. E, as-
sim, o soberano se tornou justo e misericordio-
O belo se instalou, a vida ficou mais leve, to- so. Também afirmam que a natureza canina é a
mou cor. Um mundo novo pulsa em latidos própria natureza de Buda, pois nela estão visí-
contínuos. veis as mais puras qualidades do Zen: lealdade,
devoção, compaixão, honestidade, alegria e a
O amor ardente assiste, protege sem distinção capacidade de viver o momento presente.
nem preferências os grandes, pequenos, médios,
minúsculos, enormes, pretos, brancos, malha- Desde que Deus declarou Adão o mestre e se-
dos, pintados. A recuperação e evolução espi- nhor de todos, o homem vem considerando
ritual de renegados, doentes, violentados, aci- os animais como sua propriedade. Poderia ter
dentados e traumatizados valem todo suor e interpretado o ensinamento divino de outra
lágrimas. forma e, em vez de possuidor, ter se tornado
o protetor e apaziguador, unido a seus cora-
ЖЖЖ ções. Mas o egocentrismo humano acabou por
romper a harmonia da vida ao inventar teorias
Como tema de pintura, a imagem de animais e movimentos filosóficos e materialistas que
está gravada em superfícies rochosas ao ar livre atribuem valor apenas às próprias realizações,

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como o humanismo racionalista nascido do pois pretende dominar os homens de qualquer
desvirtuamento do cristianismo. maneira. Em livros, filmes, sites, aflora uma vi-
são harmoniosa do relacionamento cão-huma-
Novos rumos vêm sendo esboçados nas últimas no, refletida e ampliada ao mundo animal. Essa
décadas, tentativas para retomar o relaciona- releitura da vida tenta parar com sua pavorosa
mento com a natureza e o aviltado equilíbrio ex- exploração em rodeios e eventos similares; com
terno e interno planetário. Um grande processo a indiferença à sua dor no uso como cobaia na
de transição abarca o planeta e alguns começam indústria de cosméticos, em pesquisas e cursos
a compreender o próprio papel como ajudante universitários; com sua aviltante superprodu-
da Mãe Universal para realizar o Plano de Deus ção e extermínio sangrento em granjas e aba-
para o planeta. Uma tomada de consciência ética, tedouros para virarem produtos enlatados ou
moral e espiritual religa o homem a ensinamen- plastificados expostos em supermercados; com
tos profundos, expande sua visão do todo e o faz a superexploração dos oceanos e rios na pesca
perceber a si mesmo como um dos elos entre as comercial mecanizada; com a compra e venda
grandes correntes evolutivas cósmicas criadas de terrestres e aquáticos; com o tráfico de silves-
no ventre da Mãe de tudo o que existe: os reinos tres. Esquecidos do quinto mandamento “Não
mineral, vegetal, animal, humano, espiritual... matarás.” (Êxodo 20:13), a maioria das pessoas
acha normal comer carne e se recusa sequer a
Floresce o interesse crescente pela compreen- pensar na agonia experimentada por animais
são do mundo zoo, constatam-se a inteligência, sacrificados que mastigam.
sensibilidade, capacidade telepática e formação
da alma animal, o que pacifica as relações entre O amor atraiu lobos e humanos há cerca de
humanos e não humanos. Para cada vez mais 20 mil anos. Os homens caçavam, as mu-
pessoas respeitarem os animais e deles se tor- lheres coletavam alimentos e cuidavam dos
narem amigas, cientistas aprendem a escrever filhos. De coração aberto e doado elas cria-
para o homem comum, publicando pesquisas ram os primeiros laços com canídeos, relatam
sobre seu comportamento e linguagem; poetas pesquisas. Ancestrais dos cães de hoje, ma-
e ficcionistas narram experiências próprias com tilhas de lobos selvagens rondavam as habi-
os de estimação; pensadores de áreas distintas tações e os homens as defendiam abatendo
do conhecimento expõem os malefícios da visão adultos. Assim, filhotes órfãos ficavam entre-
antropomorfizante; biólogos se mostram indig- gues ao meio hostil. Imaginemos a primeira
nados com a abordagem adotada por treinado- ligação emocional entre membros das duas
res da moda, convictos da perniciosa ideia de espécies: atraídos por odores produzidos pe-
que um cão deve ser submetido a cada instante, las atividades humanas, três crias cinzas fa-

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mintas, quentes bolinhas peludas de orelhas ramento e, também, realizar tarefas específicas
em pé e olhos expressivos, se aproximam de e desempenhar variadas funções como: guarda,
menininhos brincando perto de mamães. Sol- caça, proteção contra animais selvagens, pas-
tam uma lamúria, um gemido ideal para atrair toreio, localizar pelo faro e capturar escravos
uma espécie vocal como a nossa. Acolhidos fugitivos. Chegaram a se tornar cães de guerra
com alegria pelas crianças e sendo o amor a nos ataques a tribos nativas e, posteriormente,
essência das mães, oferecem-lhes restos de a quilombos, verdadeiras carnificinas. Com fi-
alimentos e, ainda por cima, os amamentam delidade extrema aos guardiões, responsáveis
nos próprios seios da doçura do leite oferta- por sua tendência pacífica ou agressiva, quem
do aos próprios filhos. Enfim, os ancestrais os adestra para serem assassinos ou escravos
recém-chegados são adotados; canídeos e hu- interfere negativamente na evolução, tanto na
manos aceitam o compromisso sagrado de própria quanto na dos caninos.
evoluírem lado a lado. Plantadas as sementes
amorosas do convívio, o processo de domes- ЖЖЖ
ticação tem início. Altamente sociais, como os
homens, os cães são os animais que mais lhes Assim como nas primeiras adoções, o Parque
criaram vínculos, interagem e compreendem Francisco de Assis expande a união com os ca-
sua linguagem verbal, corporal e seu humor. ninos, fundindo valentia com serviço. Quando
uma de suas maiores mantenedoras, a Prefei-
Presentes em todas as regiões do território tura, fez o convite para, juntos, assumirem um
nacional, acompanharam a migração de euro- projeto de castração em massa dos cães de rua
peus para o Brasil como cães de trabalho des- da cidade, sem imaginar a quantidade de tra-
de os tempos do descobrimento, quando era balho a ser atraído, a resposta voltou a ser Sim.
costume viajarem nos navios para controlar a Conforme se marcha, as provas aumentam em
população de ratos. Ajudaram os colonizado- intensidade e os passos têm de ser mais amplos
res na conquista do território protegendo as para a luz em resplendor desvendar rumos a
comitivas dos bandeirantes e a rota de tropei- um mundo melhor. O amor é o remédio: amar
ros que levavam mercadorias. Foram muito e louvar o próximo como a si mesmo, amar o
populares no papel de animais de companhia pequeno como a si mesmo, amar tudo em volta,
entre a corte portuguesa. pois é parte de si mesmo, amar dando o próprio
tempo para quem precisa.
Submetidos a criações seletivas, sofreram in-
tervenções humanas na genética natural para Cães abandonados, os que fogem de casa ou
mudar de aparência, comportamento, tempe- cujo tutor falece, estão sob a guarda mater-

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nal em baias lotadas, mas tão integrados que,
caso escapem para uma corridinha, dentro em
pouco aguardam assentados em frente à pró-
pria morada pedindo para serem colocados de
volta com os amigos. Enquanto sinalizarem es-
tar felizes, o trabalho prosseguirá. Mestres da
alegria e do amor incondicional, por um lado
abrem corações, por outro, representamos para
eles o que Deus representa para nós. Além da
evolução natural, progridem através da devo-
ção dedicada aos homens. Portanto, maus tra-
tos e indiferença os frustram, ao passo que o
bom convívio ajuda-os a domesticar-se, a ele-
var o comportamento instintivo à energia emo-
cional, mais sutil e, casualmente, até mesmo a
interagirem telepaticamente com humanos.

Da voz inusitada no Himalaia chegara a ordem


interna para saltar até outro píncaro. Após al-
gumas das convocadas assumirem seus postos,
o sonho foi compreendido. As voluntárias en-
traram para o que desse e viesse, sem visão, só
uma meta: servir ao planeta, aos seus reinos e
à humanidade. Fecharam os olhos em entrega
e oferta total, sem saber qual assumiria ou não
o desafio, pois cada um tem livre arbítrio. O Sim
foi o salto sobre o abismo escuro. A ânsia sen-
tida ao acordar do sonho refletia o caminho de
espinhos durante o período da manifestação do
Parque. Mas o grupo foi sendo guiado, foi cami-
nhando, o tempo seguindo, as peças se encai-
xando. A verdadeira trajetória foi vislumbrada
quando o futuro se revelou: a beleza da tarefa
cósmica de amor aos reinos da natureza.

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ADOTE UM CÃO E VIVA
COM MAIS ALEGRIA

De mãos dadas, a avó e o netinho entraram na curava um tipo específico de cão, quando uma
praça pública pulsante do burburinho colorido malhadinha saltou em seu colo e ela resolveu
de barraquinhas, gente, pipoca, caldo de cana. levá-la junto.
Pararam um instante sob as copas de árvores
antigas, cerraram os olhos e bateram à porta A mãe-Parque consola corações caninos tris-
invisível com absoluta fé invocando: Fizemos tes, assustados, desenganados; a alquimia de
nossa parte, os cãezinhos estão aqui, ó anjos, os seu ventre os gesta com delicadeza para a vida
próximos passos dependem de vocês: atraiam almas doméstica em um lar. Um fluxo inesgotável de
amorosas para adotá-los. entra e sai é o ritual diário e alimento do canil:
o cão chega, passa por um processo, fica pron-
Animal mais próximo do homem há milênios, to para ser adotado. Nada permanece cristali-
o cão ardentemente almeja ser membro de zado. Os humanos observam o dinamismo, o
uma família humana harmônica para oferta- equilíbrio da aglomeração local sendo regido
lhe o amor incomensurável que transborda de por um Plano Maior, que semanalmente traz
cada átomo de seu coração. A fim de facilitar o quem deve ser acolhido e leva adotados ou
elo ancestral entre as duas espécies, o Parque quem desencarna, abrindo vagas.
Francisco de Assis, chamado apenas Parque
no dia a dia, desde os primórdios recebe ado- Nos meses de férias, o número de adoções cai,
tantes. Aos domingos, também promove ado- mas há períodos fecundos, sobretudo quando
ções na feira de artesanato e culinária da praça a mídia ajuda durante a retomada da campa-
central da cidade. Uma celebração intemporal nha “Adote um cão e viva com mais alegria”,
acontece cada vez que, misteriosamente, cen- com extensa difusão através de rádios, im-
telhas humanas e caninas se conectam para prensa escrita, televisão. Para a praça, levam-se
comungar a mesma jornada de vida. A aliança mais filhotes com no mínimo 60 dias de vida.
interna acende, crepita, faz nascer um projeto Já, do Parque, são sobretudo adotados adul-
de união no qual, com o tempo, reforçará laços tos de grande porte para trabalhar guardando
de amizade e fidelidade. E o coração de Deus propriedades. Cães se alegram em serem úteis.
se alegra. Como cães e humanos se escolhem? Com grande senso de responsabilidade vigiam
Pelo amor. O adotante é tocado por certo jeito sítios, chácaras, fazendas, lojas comerciais,
de olhar do adotado ou pode ser chamado por moradias. Lobo era um cão que fugia para um
uma patinha atrás das grades. Uma jovem pro- açude, nadava, nadava e retornava. Previam

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que só seria levado para onde tivesse água e Mas, apesar de entrarem nos carros em pânico,
foi para o local previsto. Alguns adotantes per- logo se adaptam ao novo lar, pois o medo fora
guntam se certo cão mata galinhas. Nem sem- apenas um comportamento de passagem.
pre se sabe, mas, caso matem, basta avisar que
podem devolvê-lo. Rosinha, uma cadelinha pe- Há os que se recusam a ir embora, preferem
ralta branca com pintas pretas, saiu feliz com estar em multidão a entediados e sozinhos em
o novo tutor mas, toda lampeira, foi devolvida quintais ou residências onde moradores saem
no dia seguinte. O que aconteceu? Comeu vá- para trabalhar. Assim foi com Marlon: o ado-
rias galinhas! Hoje vive feliz em um sítio sem tante o tratou muito bem, fez de tudo, dava
galinhas. carne além de ração, mas Marlon ficou triste,
fez greve de fome até ser trazido de volta. Não
Cada caso é um caso, cães são indivíduos: rea- quis ser um cão doméstico e, quando percebeu
gem, comportam-se e expressam-se de forma estar sendo devolvido, puxava a coleira ansio-
tão diversificada quanto um ser humano. Po- so e correu exultante para a ex-baia, onde logo
dem ser centrados, contidos no carinho, não pu- engordou. Outros, ainda, nunca serão adota-
lar nas pessoas, latir pouco. Podem ficar insegu- dos, ou por serem excessivamente bravos, ou
ros, melancólicos ou eufóricos. Há os que não por questões de saúde, feiura ou velhice. São
convivem bem entre si, ficam quietos em um membros permanentes da grande família-Par-
canto, anseiam viver em um lar, cativam e pe- que, onde realmente estão em casa.
dem a quem chega para serem levados. Seguem
felizes os rastros dos adotantes, entram no carro ЖЖЖ
abanando os rabos, partem com um novo sol a
brilhar pela janela e, de imediato, se integram Domingo na Praça. Por volta das 9 horas, em um
à nova família. Assim foi quando uma senhora mesmo banco, ao lado de uma placa com infor-
estava no Parque adotando uma cadela. Mirtes, mações sobre o Parque, cães e humanos vivem
outra cadelinha que estava em uma baia próxi- o amor interespécie. A bondade e o persistente
ma, passou a ganir para chamar atenção, tanto serviço ali acenderam um ponto-espelho, cuja
e com tal desespero que a senhora perguntou a luz atrai passantes de todas as idades, que se
razão do choro. Ao saber o quanto Mirtes detes- aproximam do cercado de madeira para obser-
tava aqui morar, resolveu levar as duas. Os que var e acarinhar cãezinhos. Em geral, dois volun-
não gostam do canil, nem olham para trás quan- tários trazem do canil alguns filhotes, adotados
do se vão. No entanto, há os arredios com os com mais facilidade e, no máximo, três adultos
adotantes, não querem sair da baia. Vão arras- de pequeno porte. Imediatamente, pernas e per-
tados e assustados pelo destino desconhecido. ninhas, rostos e rostinhos sorridentes se acer-

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cam, agacham ou inclinam-se até eles, como em
reverência; anseiam interagir, tocá-los, eliminar
a distância. Os envolvem e embalam. Os bichi-
nhos farejam e olham o mundo, descansam as
cabecinhas em braços quentes, aconchegam
os focinhos nos seios, dão lambidinhas, mor-
discam. Uma procissão de gente para, observa,
conta casos alegres sobre pets. Uns poucos dei-
xam doações. De um tempo para cá, em torno
desse ponto-espelho gravitam satélites: doado-
res anônimos assentam no beiral do gramado
com caixinhas de papelão repletas de cãozitos
recolhidos da rua ou crias de suas cadelas não
castradas. Como a oferta cresceu, doa-se muito
menos. Contudo, por outro lado, aprendem a
servir, e isso ajuda, já que os abandonados aca-
bam no Parque. Paz, alegria, o fardo do mundo
fica mais leve, a luz reluz.

A jovem que se dedica à adoção dominical diz:


Gosto de cachorro grande, pequeno, calmo, agitado.
Antes de me tornar voluntária, vinha à Praça só para
brincar com os filhotes, e ficava pensando: posso fa-
zer mais... Um dia ofereci meu trabalho e, na hora,
uma voluntária respondeu: “Quer começar agora?
Conversa com quem se aproxima sobre a adoção
consciente: explica que os cães merecem um tutor
responsável, atento e amoroso”. Depois disso, passei
a ajudar todos os domingos, até no Natal e no réveil-
lon; só não venho quando chove. No sábado, selecio-
no e dou banho nos cãezinhos. Trazemos uns sete por
vez, mas houve época de adotarem até 14. Conheço
o jeito de cada um: este é um moleque antenado, este
é reclamão, aquele mais sóbrio. Pelos dentes é possí-

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vel se calcular a idade de um cão adulto. Como falta marido há um mês e que a psicóloga recomen-
espaço nas casas, prever o tamanho é importante. dara adotarem um cãozinho para ajudá-los a
Como nunca sabemos o tamanho do pai, prevemos superar a dor. Como tratamento da depressão,
pelo porte da mãe ou pelo tamanho das patas, se outra psicóloga sugeriu a uma senhora adotar
grandes em relação ao corpo pode virar um adulto um cão. Ela reapareceu para contar quanto a
grande. Dou o exemplo de um dos meus, pego na rua: cadelinha estava levada e ela havia melhorado.
era só cabeça, costelas e barriga de verme, cabia na
mão. Fui cuidando, dando vitamina, ficou enorme. O As perguntas começam: Estão vendendo? A res-
mestiço é uma caixa de surpresas: as personalidades posta repetida para educar e transformar a ve-
e os tamanhos futuros são imprevisíveis. lha consciência: Cães não são propriedades, nem
objetos para serem vendidos; têm emoções, como
O festejo da intensa escola prática de aprendi- nós. Não somos donos, somos tutores, guardiões.
zagem ao ar livre prossegue. Filhotes ingênuos Outra indagação frequente: De que raça são?
trocam impressões olfativas, brincam, tiram É explicado: Aqui só há maravilhosos vira-latas.
uma soneca às 10h30. Os humanos respon- Pela diversidade genética são, em geral, mais
dem. A voluntária prossegue: O lindo na praça é resistentes, saudáveis e incríveis. A luta pelos
a criançada. Que combinação bonita é criança com menos favorecidos, contra a ignorância e in-
cachorro! Não machucam crianças, têm um senso de justiça prossegue. Esclarecem ser intenção dos
que são delicadas, frágeis. Quando as menores têm criadores de cães de “raça”, de aparência idea-
medo, explicamos como tratá-los, abraçá-los, criar lizada, enriquecer e ganhar prêmios em expo-
amizade. Também ensinamos às crianças agressi- sições, o que não traz benefícios para o cão, ao
vas, que chegam batendo, a serem delicadas. Certos contrário. Cruzamentos entre parentes próxi-
pais mostram aos filhos como fazer carinho, outros mos ou indivíduos de genética semelhante tra-
sequer permitem que toquem no pelo. Todos têm de zem sérios problemas, como saúde deteriora-
ser respeitados, apesar de ser importante cada casa da e deformidades. Assim, quando a questão
ter pelo menos um animal. Um pai deu um cãozinho preconcebida e imposta pela mídia é repetida:
de presente adiantado de aniversário para a filhinha, De que raça são? Responde-se: São SRD. As ni-
estavam numa alegria só! nhadas de dois cães de raças diferentes, ou as
de um de raça com um vira-lata, passam a ser
Outra família aguardava na praça desde cedi- consideradas SRD, Sem Raça Definida, deno-
nho. Ansioso, o menino acordara às cinco da minação geralmente usada por veterinários.
manhã. Logo escolheu um marronzinho. De Quem demora a compreender, indaga: Como?
olhos marejados, sua mãe contou, enquan- E a resposta sorridente e brincalhona: São espé-
to preenchia a ficha de adoção, ter perdido o cimes únicas, os Royal Street Dogs.

26
ЖЖЖ

Seja na Praça, seja no Parque, o adotante recebe


toda a atenção; a ele é explicada a importância
de cada cão, que ninguém é capaz de ofere-
cer amor tão desinteressado e sem julgamen-
to como um animal e que merece ser cuidado
como se cuida de um filho. Pergunta-se ao inte-
ressado se será capaz de retribuir tanto amor e
ter uma profunda relação de cumplicidade por
toda a vida. Geralmente optam pelos pequeni-
nos. Explicam-lhe que um filhote dá mais traba-
lho, com saudades da mãe ou dos irmãos pode
choramingar até se acostumar com a nova famí-
lia; pode dar gastos altos com alimento, veteri-
nários, medicamentos, vacinas e vermífugo, ou
ainda destruir coisas da casa, adoecer e falecer.

A maior felicidade é quando adotam um adulto:


sabe-se quando é pacífico, brincalhão, se con-
vive bem com crianças, se é medroso ou arisco.
Logo se adapta ao ambiente e às pessoas, não
chora à noite, aprende a não latir muito e, com
facilidade, a fazer as necessidades no local ensi-
nado. Informam que as fezes devem ser recolhi-
das, as vasilhas precisam ser limpas, a água tro-
cada uma vez ao dia e têm de ficar distante de
onde o cachorro urina. A instrução sobre como
tratá-lo prossegue: precisa de atenção, espaço,
ração, higiene, viver próximo do adotante, de
preferência a seus pés, nunca amarrado, nem ao
relento com frio ou na chuva; caso vá morar no
quintal, precisa de uma casinha, e deve ser leva-
do para caminhar, com cuidado para não fugir.

27
O cão adulto pode ser facilmente reeducado, se forem amados e bem tratados. Quem adota
apesar do tamanho, personalidade e compor- sai em júbilo, com um sorriso estrelado.
tamento definidos. Em geral, aceita com alegria
a mudança de vida e demonstra imensa grati- No passado, com a intenção de aliviar a su-
dão por quem o recebe no lar. Fazendo de tudo perlotação, certos voluntários apressavam as
para agradar, aprende com facilidade e logo se adoções; outros, mais reticentes, analisavam o
torna um companheiro alegre, obediente, que adotante. Finalmente, chegou-se a um consen-
aguarda ordens para agir. A família deve ser so, guiados por uma regra de ouro: protegê-los
paciente até que o recém-chegado se acostume antes de tudo. Por cautela, as adoções são di-
à nova vida; deve observá-lo para entender sua ficultadas, mesmo negadas. Só adota quem é
linguagem, nunca gritar, mas falar com calma e maior de 18 anos.
claramente explicar-lhe com gestos e palavras
o que pode ou não fazer. Inteligente e sensível, Para entrelaçar seu destino a um cão, o adotan-
além de captar os pensamentos claros e obje- te assina duas fichas com seus dados, uma para
tivos do tutor, com o tempo nele se espelha e o controle e arquivo do Parque Francisco de
se liga espiritualmente; ao perceber suas emo- Assis, outra para ele próprio, com nome, ende-
ções e humores, festeja junto e se aproxima reço, RG, CPF e os dados do animal: pelagem,
para consolá-lo quando triste. sexo, idade, vacinas, porte, vermifugação, se
é ou não castrado. É obrigatório trazê-la, caso
No canil, enquanto se leva o interessado para o cão seja devolvido. Se esse contrato de res-
visitar as baias perguntando se preferem um ponsabilidade não for cumprido, pode-se fazer
filhote ou adulto, e de que porte, as questões uma denúncia; mas, infelizmente, as leis de
são respondidas. É momento de ficar alerta proteção animal ainda são raramente exigidas.
para proteger o animal de futuros maus-tratos
e abandono, para identificar se será bem cui- Enquanto as orientações sobre cuidados ini-
dado, se a pessoa realmente ama bichos. Mui- ciais com os cãozitos são entregues, insiste-se
tas vezes o cão adulto surpreende, reconhece que a pessoa passe a ser responsável por aque-
as virtudes de quem chega e ele próprio es- la vida até seu desfecho, e é lembrado que um
colhe o tutor, chamando-o da grade por ges- cão vive em média 14 anos. Abandonar animal
tos, latidos e olhares. Faz-se entender. Logo, de estimação é crime! Merece respeito, digni-
forte afeição nasce entre ambos. Também si- dade. É uma vida, não um objeto, não pode ser
nalizam quando não aceitam o adotante: re- descartado nunca, nem na velhice. Ele ama de-
sistem, freiam, puxam as cordas ao serem le- mais, morre de decepção, perde o chão quando
vados, mas esse comportamento pode mudar fica sem o tutor.

28
Diante de muitas devoluções, por vezes tra-
zendo-os doentes, em certo momento cogi-
tou-se exigir uma taxa mínima do adotante.
Apesar de parecer venda por um lado, por ou-
tro, quem leva um animal por impulso tende
a raciocinar, a pensar duas vezes quando tem
que levar a mão ao bolso. Entretanto, o grupo
optou por não envolver a energia monetária
na questão. Diz uma voluntária: A devolução de
um cachorro é seríssima. Caso alguém adote uma
criança não pode simplesmente dizer “não quero
mais”. Por que fazer isso com um cão? Os casos
mais negativos são de quem se empolga e adota sem
raciocinar, ou de pais que pretendem agradar o filho
e acham serem um objeto de consumo, um “brin-
quedo”; pegam, não cuidam, soltam o bichinho na
rua ou o devolvem. Não compreendo adotar e aban-
donar! Outros castigam; o animal não aprende com
castigo, apenas se torna medroso ou agressivo. Ou-
tros adotantes o deixam sem coisas essenciais como
água e comida, preso por corrente em um espaço
mínimo, no sereno! Quanta maldade!

Um estudante adotou uma cadelinha na Praça,


contudo não a tratava; apesar de malcuidada,
era-lhe extremamente grata. Por compaixão,
os colegas da república onde moravam passa-
ram a zelar por ela, até o negligente espantá-
-la para a rua. Como os outros não aceitaram
sua atitude, trouxeram-na de volta para o ca-
nil. Mesmo recebendo carinho, ficou amua-
da, com saudade do adotante, olho comprido.
Parou de comer. Começou a vomitar. Em vão
foi trocada de baia. Passado um mês, morreu

29
de tristeza, saudade, rejeição. A maioria dis- Cada vez que os portões se abrem, corações
pensada pelos donos entra em depressão. O caninos cheios de esperança também se
mais importante para reconquistá-los é ser abrem, clamam enfaticamente, como tradu-
verdadeiro, demonstrar-lhes que estão rece- ziu um voluntário: Eu, eu, eu, me leva, me leva,
bendo mais amor do que o tutor dava. me leva, eu, eu, eu, leva eu, au, au, au, chega de
tanto mau. Eu, eu, eu, leva eu!
Algo semelhante aconteceu com Bino, um ré-
gio cão amarelo e branco nascido aqui. Ado- Aqui os cães se reciclam, experimentam um
tado aos três meses, foi devolvido aos oito. O grande amor e aguardam praticar o aprendi-
tutor se justificou dizendo que mudava para do com quem os escolha.
um apartamento. Colocado na Área da Alegria,
cavou um buraco próximo ao muro e lá se es- Muitas pessoas vêm ajudar pela primeira vez,
condeu; ninguém conseguia tirá-lo. Deprimi- acham maravilhoso estar com eles, encantam-
do, nem comia, nem tomava água. -se por um, dois, e os adotam. Eventualmente,
chegam crianças com pais para, em família,
O encantador de cães do Parque cuida dos pro- escolherem o companheiro para toda a vida.
blemáticos. Com o dom único de lidar com ca-
sos impossíveis, Bino foi seu caso mais difícil. Depois de procurar por seis meses, um ve-
Por não conhecer o comportamento nem sua lhinho desistiu de achar o cachorrinho que
história pregressa, ele aproximou-se aos poucos, sumira e veio adotar outro. Encontrou-o
explicando de fora da grade: O papai chegou, o aqui, foi a maior felicidade para ambos.
papai está aqui. Entrou levando alguma coisa na Saiu com o bichinho no braço, dava gosto
mão para Bino comer. Nada forçou, pois nessas ver a cena.
situações, sempre se deixa o cão fazer a própria
vontade até que, devagar, adquiriram confiança Noutro caso, por duas vezes, uma cadela de-
um no outro. Qualquer cão se apaixona... o en- monstrou a extraordinária capacidade canina
cantador de cães foi conversando, conversando em perdoar. Chegou com uma terrível sarna
de mansinho até preencher os espaços vazios e, curada, um visitante afirmou: Esta cachorra é
do coração de Bino e sair com ele no colo. Con- minha, tinha sumido. Levou-a. Passado um ano,
tudo, mesmo sabendo ser aqui uma casa de pas- a cadelinha retornou. O tutor veio buscá-la
sagem, o encantador se apega, tem esse ponto outra vez e ela lhe foi entregue sob a adver-
fraco, sente falta quando são adotados. tência: Da próxima vez não devolveremos, isso
é sofrimento demais. Mas ela mesma exultava,
ЖЖЖ seu coração perdoando a negligência repetida.

30
Jovens voluntárias se dedicaram ao pós ado- da cidade, onde era chamada de Tetê. Respondia por
ção, por algum tempo, visitando lares de ado- dois nomes: Cocada e Tetê. Quando voltou para cá,
tantes. Ora contentes, ora indignadas, por fim me seguia e mordia os outros. Tentamos encaixá-la
se indagaram: De que vale o pós adoção? Nada, em várias baias, e só gemia, me chamando. Adotei,
se apenas fizermos um BO, um boletim de ocorrên- mora comigo.
cia contra quem maltrata o adotado. BO e papel
de picolé são a mesma coisa. Quem assina um Famílias iluminadas pelos amigos adotados
BO precisa prosseguir, processar o culpado agradecem sua surpreendente mudança de
e ainda corre o risco do mesmo se inverter. vida, e, algumas vezes, até os levam para visi-
Se a cada cão maltratado iniciarmos um processo, tar o Parque. Pedimos para os adotantes darem
quanto gastaremos de tempo e dinheiro? Quando notícia e trazerem fotos para o Facebook. Uma
ligamos para avisar a polícia sobre o mal que al- senhora até presenteou um porta-retratos com
guém fez a um cão, riem. uma foto de dois recém-adotados. Um senhor
passeia todo domingo na praça com a cadeli-
Um jovem apedrejou um até matá-lo. Cho- nha, a vida dele. Ele olha, brinca com outros
feres de táxi e outros passantes viram a cena pequenininhos, doido para adotar mais um,
chocante, dentre os quais uma veterinária, mas a esposa não deixa...
que fez o BO e assumiu o processo; porém, na
hora do julgamento, as testemunhas deram Certo domingo chega um menino decidido,
para trás e ela foi processada pelo assassino acompanhado da irmã e das tias, todos de
por difamação. Outro caso na cidade foi o de enormes olhos verdes. Para. Dá um relance
um médico, testemunha ocular do assassina- dentro do cercado. Não tem dúvida. Resolu-
to por envenenamento dos próprios gatos por tamente abraça, radiante, um macio branco
uma mulher; ele conseguiu registrá-la em fo- e castanho de olhos verdes. A família exulta
tos. No entanto, ao denunciá-la, os policiais e a tia comenta: Esperou a semana inteira; cedi-
apenas zombaram. nho nos acordou: Vamos, vamos!

Belas ou tristes histórias de encontros, reen- Lá se foi o primeiro filhote do dia. Daí a pou-
contros, desencontros se sucedem, como no co um jovem casal adota outro, um senhor só
relato desta funcionária do Parque: Uma ca- amor leva mais um, outra família, mais outro,
delinha foi abandonada na estrada com um tumor e mais um, e seis e sete. Sete! Aleluia, os ares
enorme e mordia quem a tocasse. Começou a me cintilam, a Praça vibra. Uma brisa murmura
seguir. Inventei um nome: Cocada pra cá, Cocada a resposta dos anjos: Estamos aqui. E a vida
para lá. Ficou três meses em uma clínica veterinária ouro prossegue.

31
NAS RUAS, NA CIDADE
E NO PARQUE

Ninguém, nunca, prendeu o Delegado. O vai- contrado. Escondeu-se para desencarnar, talvez
vém de rua em rua e sua longa vida é relem- em um lote vago de um bairro de periferia.
brada e recontada. Exemplo de sobrevivência,
liderança, inteligência canina, desde pequenini- Tanto o Delegado quanto o pitbull branco e pre-
nho seu focinho negro e seus olhos delineados to Carlito são lembrados pelo povo. O animal
desenharam um mapa mental olfativo-visual de estimação passeava com o tutor ao lado da
de Lavras. Corria de quem precisava correr e linha de trem, quando uma pata ficou agarra-
se aproximava de quem não lhe faria mal, dis- da no trilho. O trem chegava apitando, mais e
tinguia este, daquele. Assim, tornou-se um cão mais rápido. Esquecido de si, o rapaz voltou
comunitário. Convivia bem com os pares e, de rapidamente e soltou-o a tempo de salvá-lo. Li-
norte a sul, de leste a oeste, comandava todos vrou-o, mas perdeu a vida efêmera e frágil du-
os cães sem-teto. Daí o nome ganho dos moto- rante o ato de amor. O pitbull passou a morar
ristas de táxi, com quem tinha grande afinidade. com o melhor amigo do ex-tutor, mas caiu em
Como eles, conhecia cada canto de rua, sabia tristeza profunda. Diariamente visitava o local
onde estar e aonde ir, ou não ir, em tal ou tal do infortúnio no mesmo horário da perda, às
hora, por já ter sido enxotado dali. Só que Dele- 15 horas. Gania, chorava e lamentava por tão
gado entrava na contramão e nunca sofreu um longo tempo que, a fim de ajudá-lo a se esque-
acidente. Grande, bonito, alvo com manchas cer, foi levado para viver em outra cidade.
castanhas e marrons, em alguns pontos da cida-
de ganhava tigelas de água e comida, em outro, Onipresentes e atentos às ondas odoríferas
uma cuidadora levava ração na hora do Angelus, lançadas por sacos de lixo em portas de restau-
quando os sinos badalam 18 horas e a Ave-Maria rantes e residências, desde cedinho vira-latas
é tocada na torre da paróquia de Sant’Ana. Dia- buscam o excedente ou esmolam restos de co-
riamente a aguardava, agradecia, lisonjeava a mida. Sempre juntos, um cavalo e uma cadela
generosa amiga humana. Nunca se soube por- perambulavam rua abaixo e rua acima: o cava-
que escolheu a rua, talvez lhe tenham feito mal lo pegava sacos de lixo no alto e os punha no
dentro de quatro paredes. Como vários colegas, chão para ela se alimentar. Um dia, foi atrope-
optara por viver ali, ambiente por vezes melhor lado. Tentaram acudi-lo, mas a grande mesti-
que o de certas moradias. Idoso, teve câncer e ça pastora não deixou ninguém se aproximar.
desapareceu. O querido foi procurado pela ci- Nunca mais comeu, deitou ao lado de uma por-
dade inteira por duas protetoras, mas nunca en- teira até morrer de tristeza.

33
O serviço dos cães é trazer o amor à Terra.
Assim, patas transitam entre pernas, sacolas
de compras e crianças a caminho da escola.
Percorrem ruas cada vez mais movimentadas,
desviam de carros e ônibus provocando ou
escapando de acidentes. Nem todos são como
Amarelinha, que só atravessa na faixa para pe-
destres, nem como Tila, que aguarda um ser
humano para com ele cruzar a rua sem perigo.

Descem e sobem íngremes ruas laterais. Re-


cebem um afago aqui, outro acolá. Sob calor,
matam a sede na fonte da praça. Em uma es-
quina sossegada ou agitada, deitam em grupi-
nho ou isolados e voltam a vagar ao acordar.
Por vezes, vê-se alguns brincando. Na chuva,
desaparecem. Brigas com congêneres não há
muitas. Acontecem entre alfas competindo
por comida ou na época do cio de uma fêmea,
quando muitos machos passam a segui-la e,
por ciúme, podem bater-se com ela ou surgir
escaramuças com um concorrente; no entanto,
os mais fracos se afastam, cautelosos. O cio é
a forma de preservação da espécie. No início,
a cadela fica em dúvida sobre qual escolher
para ter uma prole mais saudável. Só decide
por instinto, a partir do décimo segundo dia.
Com dois cios ao ano e, em média, sete crias
por vez, em seis anos ela e seus descendentes
podem gerar milhares de cãezinhos.

Sobretudo concentrados em bairros de renda


baixa, difícil saber o número de cães errantes
sem tutor ou destino certo na cidade. Calcula-

34
-se uns dois mil. Uns parecem bem alimenta- Parque divisavam o horizonte e a imensidão
dos, em outros as costelas estão à vista, a sar- das montanhas douradas pelo amanhecer.
na fez cair os pelos e a pele rosácea fica expos- Saíam de um breve retiro espiritual. Durante
ta. Boa parte tem doenças venéreas. Apesar a viagem, a história dos cães de Lavras come-
da falta de carinho, conforto, alimento, alguns çou a vir à tona. Nos anos 50, muitos tinham
vivem felizes por gostar da liberdade. cães em casa, mas por várias razões havia
poucos nas ruas, não era inundada como
Muitos são semidomiciliados, encerrados du- agora. No período do maior êxodo rural bra-
rante a noite e soltos para passarem o dia na sileiro, entre as décadas de 60 e 80, trabalha-
rua enquanto os tutores saem para trabalhar, dores que deixaram o campo em direção aos
ou então presos para vigiar a casa durante o centros urbanos trouxeram seus animais. A
dia e deixados na rua quando retornam do cidade inchou, a pobreza aumentou e quan-
serviço. Tem gente com dez cães semialber- to mais pobre, maior o número de filhos e de
gados. Pessoas de outros municípios os des- cães. Rapidamente, a reprodução canina se
pejam na cidade, moradores rurais deixam descontrolou, gerando problemas de abando-
filhotes em dia de feira. Há quem os expulse no e superlotação.
de suas vidas. Uma funcionária chega para
mais um dia de trabalho contando o que aca- Há quem ache bonito soltar nas ruas suas ca-
bara de vivenciar no ônibus. Em uma parada, delas no cio, depois não toleram suas crias.
entrou um cão aflito, ia e voltava pelo corre- Hoje menos, mas, na época, era normal sacri-
dor. Um passageiro explicou que ele estava ficar cães adultos a tiros, por vezes imprecisos,
procurando a dona que, pela segunda vez, o e atirar filhotes no córrego, como um fazendei-
abandonava no centro da cidade e, em segui- ro que afogou os de sua cadela para ela ama-
da, pegava um ônibus. Empenhado na busca mentar porquinhos que haviam perdido a mãe.
da amada, entrava de um em um, arriscando Quando circos passavam pela cidade, os trata-
a vida ao transitar entre veículos. Chegará o dores de leões e tigres davam gorjetas para me-
momento em que cansará e, deprimido, en- ninos levarem cães e gatos para alimentá-los,
frentará jornadas brutais e exaustivas para sendo jogados vivos nas jaulas.
sobreviver no asfalto.
Nos anos 60, principalmente a Prefeitura tra-
ЖЖЖ vou uma operação contra cães abandonados.
Um furgão passava prendendo-os e levando-
O automóvel corria veloz. Em silêncio, sete -os para matar. Em outra época, jogaram bo-
almas que sustentam o serviço abnegado do las envenenadas na cidade inteira, um veneno

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mascarado na carne ou no pão, até dentro de No início de 1990, um casal fundou a Socieda-
quintais, liquidando inclusive os de estima- de Lavrense de Proteção aos Animais/SLPA,
ção. Alguns chegaram mesmo a adquirir re- primeiro grupo do gênero de que se tem no-
sistência. Por ignorância e falta de recursos tícia na cidade. Sua fundadora relembra: Tudo
recorre-se ao extermínio, causa de grande pa- começou por um ideal. Nasci sentindo um amor in-
decimento. Sistemas bárbaros de eliminação condicional pelos bichos. Ao saber de um canil aber-
são métodos ineficazes a longo prazo e não to em uma cidade vizinha liguei para me informar e
atacam a causa do problema: a livre repro- então reuni pessoas que os amam. Prossegue uma
dução, que acarreta o aumento da população ex-secretária da sociedade: Até então, alguns
canina. A partir dos anos 80, um tenebroso cuidavam de um, dois vira-latas. Eu mesma tinha
canicídio legal passou a se dar no Matadou- um olhar de quem gosta de cachorro, e ponto; não o
ro Municipal. Os cães ficavam aprisionados à olhar de cuidar de todos, como agora. Na SLPA le-
espera da morte em um cercado ao lado do vávamos doentes para veterinários; só um da cidade
curral do gado, onde hoje é a Ala do Carinho nunca nos ajudou. Depois conseguíamos um alpen-
do Parque. Quando sumiram duas cadelas de dre ou um fundo de quintal para ficarem até sarar.
uma vizinha, Dalila e a filha, uma cuidadora Uma cadelinha atropelada três vezes sempre ficou
sonhou lá estarem e foi reavê-las. Um traba- na mesma varanda até curar. A ração era compra-
lhador lhe disse: Estranho, eu ia dar veneno para da com um pouco de ajuda da sociedade e com
todos ontem e não dei por causa desta cachorra. E verbas de multas liberadas pela juíza, mas mui-
permitiu que fossem levadas. to saía dos bolsos das cuidadoras. Uma cozi-
nhava paneladas de arroz com carne, montava
Em 1830, nasceu na Inglaterra a primeira or- saquinhos com porções e distribuía em certos
ganização de defesa animal, iniciando uma pontos da cidade, onde eles aguardavam-na.
campanha para banir o trabalho de cães Com o tempo, três pessoas cederam espaços
como tração na movimentação incessante de no fundo de suas moradias, onde foram cons-
moinhos e outros pesados equipamentos do- truídos um canil em um quintal e cinco em
mésticos, usados por serem mais baratos que outro. Ainda hoje, o terceiro espaço, um canil
mulas e cavalos. A partir de 1855, os Estados comercial desativado, os acolhe.
Unidos e diversos países europeus seguiram
o exemplo britânico. No Brasil, apenas em A partir de 1870, a revolução científico-tecno-
1895 foi fundada, em São Paulo, a primeira lógica transformou cães em cobaias vivas, usa-
organização brasileira de proteção animal, das em milhares de laboratórios e institutos de
cujas ações eram praticamente restritas à de- pesquisa no mundo inteiro. Difícil saber quan-
fesa de cães. tos ainda são aí diariamente maltratados. Nos

36
anos 90, um professor veterinário de pequenos
animais avisou ter feito traqueotomia, abertura
cirúrgica da traqueia, em 20 cães para experi-
mentar algum medicamento, e que os sacri-
ficaria caso não fossem buscados. Indignado
com a covardia, alguém replicou ser aquilo
uma desumanidade estarrecedora. O professor
respondeu que os mataria sem pensar. Logo a
SLPA os recolheu e os canis improvisados lota-
ram, sendo preciso acelerar as adoções.

ЖЖЖ

Sozinho, pouco se ajuda. É preciso poder gru-


pal, unir a sociedade civil, ONGs, as prefeituras
e protetores em um mesmo propósito. Cresce
o número de pessoas preocupadas, mas falta
se aproximarem; põem comidinha e água em
frente de casa ou onde trabalham, mas não é
o suficiente. O ideal é o cão ter um guardião,
ser amado, educado, tratado, vacinado, vermi-
fugado, castrado. Sua imensa capacidade de se
associar e formar laços precisa ser nutrida, se-
não passam a viver na fronteira da sociedade,
regridem quando perdem o contato e a leal-
dade aos homens. Comandados pelo instinto
e não pela domesticação, atualmente no Brasil
e em outros países, bandos de cães selvagens
atacam pessoas. Esquecidos, retornam com ra-
pidez à barbárie, assim como pode acontecer
com um ser humano faminto e sem território.

A maioria não vira as costas. Deixavam um


saco de ração por mês para os taxistas do cen-

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tro os alimentarem, até a veterinária da univer- disputam alimento com urubus. Ela comenta: A
sidade reclamar que, mais alimentados, têm maioria da população é conivente, tem dó mas dei-
mais crias. Uma rede de cuidadores faz um tra- xa pra lá, nem vê, e se vê tem nojo, medo de colocar
balho de resistência, assume alguns vagantes, a mão e pegar doenças. Uma vez, nos ligaram e reli-
dá casinha, alimenta, trata certas doenças, res- garam reclamando de um. Ao chegar, encontramos a
gata maltratados deixando-os em garagens até cadela preta doente deitada em um suporte de ferro
serem adotados. para lixo. Chovia, só haviam colocado um saco preto
em cima dela e ainda acharam ruim quando a resga-
Em certos estabelecimentos, amantes de cães tamos. Respondi: “Se querem cuidar, ao menos levem
suprem necessidades dos que aparecem. Em para dentro de casa! Agora irá para onde recebe ca-
uma firma, uma cadela prenhe cavou uma cova rinho e, se morrer, estará quentinha, não na chuva”.
em um barranco para se resguardar ao parir. Chegou no Parque sem andar e hoje caminha. Outras
Um grupo de funcionários construiu um te- vezes, durante o resgate de um doente, acham que es-
lhado na boca da toca e um cercadinho para a tamos levando para matar, mas quem reclama nem o
ninhada não dispersar e se perder. Mesmo aos toca, nem arranja um cantinho para deixá-lo.
domingos, revezavam para lá ir cuidar da fa-
mília e, depois do desmame, conseguiram doar ЖЖЖ
os bichinhos. Passado um ano, a cadela latia
tanto que os protetores se apressaram para ver: Uma voz do Parque dialoga com a cidade. Na
ela corria atrás de uma caminhonete que parou falta de um postinho ou de um SUS para os
e dela saltou um fazendeiro, abraçando-a: Dia- animais, recebe telefonemas solidários, afli-
na, você aqui! Chorava ele, saltava ela, lacrime- tos ou exigentes relatando histórias e mais
javam os expectadores louvando o reencontro. histórias sobre companheiros domésticos,
Do banco do passageiro, Diana se despediu do cães e gatos, e sobre os abandonados. Sem-
grupo com o olhar e um sorriso grato. Retor- pre é explicado que lá não existe um hospital,
nava para suas terras, uma história com o final nem médico-veterinário diário. Também que,
feliz. Ainda assim, mais pessoas precisam des- conforme as doações monetárias, os cães do
pertar para apoiar os de rua. Parque em estado grave são internados em
veterinárias da cidade que, por vezes, apenas
A veterinária do órgão da Prefeitura, que pro- não cobram procedimentos simples. Inda-
move a vacinação gratuita anual contra a raiva, gam: Você trabalha no Parque? Resposta: Não,
remove doentes e os que representem risco em sou voluntária. Prosseguem: Mas o que faz lá?
via pública. Os recolhe das ruas para castrar, e Resposta: Lavo roupa, ajudo a fazer comida, capi-
também do lixão municipal, onde convivem e no, planto, encomendo caminhão de terra, lido com

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39
a contabilidade, contrato e descontrato funcioná- amada cadelinha idosa com câncer de mama e
rios e prestadores de serviço, entro em fila de ban- tumores, levada a vários veterinários: Não há o
co, converso com políticos, recebo visitantes, dou que fazer, está no fim da vida. Resposta: Faça ainda
entrevista na mídia, se cai uma árvore ou a bomba tudo por ela. Reúna todo o amor que consiga ajuntar
de água quebra arrumo mão de obra, levo cachor- em seu coração e lhe ofereça. Dê água e comidinha
ros para fazer cirurgias, atendo telefonemas e mais na boca. Faça o que gostaria que fizessem por você
umas 30 funções. Replicam: Ah! Agradecem e em uma fase terminal. Dê remédio para aliviar a dor
se aconselham, por exemplo, sobre o que fa- e ore com ela. Cuide de sua companheira de 14 anos
zer com um gato envenenado por vizinhos. A como alguém da família. Só dê amor.
voz incentiva um esforço para pagarem uma
consulta: Talvez uma injeção salve o bichinho. ЖЖЖ

Outros perguntam como fazer eutanásia, pois Desde os primórdios, a atuação do canil é acom-
não têm dinheiro para gastar com um trata- panhada passo a passo pela mídia local, tam-
mento para câncer. Outros ficam bravos, se ir- bém acionada para divulgar as campanhas de
ritam; avisam estar mudando em dois dias da adoção. A comunicação em prol dos caninos
cidade e ameaçam colocar seu cão na rua caso tem um papel fundamental para conscientizar a
não seja recolhido. Como um vendaval, a voz população sobre sua responsabilidade pelo ani-
do Parque varre a maldade e questiona com fir- mal doméstico e estimulá-la a ajudar os de rua.
meza: Como tem coragem de renegar um cão que te
ama? Há quanto tempo sabe que vai se mudar? Por Para manter o Parque vivo no coração dos in-
que liga dois dias antes e não tenta encontrar cui- ternautas, em 2010 foi lançado o primeiro Site
dadores amorosos? Se você acredita em Algo Maior, Oficial, recriado no ano seguinte. Com a meta
esse é um assunto entre sua consciência e Deus. Há de promover adoções de cães, foi também ao ar
quem, após uma conversa e orientação, se des- um blog, espécie de diário on-line para atualizar
culpa e agradece. informações e a situação geral canina, posterior-
mente substituído por uma página institucional
É necessário firmeza para não assumir respon- para usuários do Facebook, hoje seguida por
sabilidades de irresponsáveis, para afirmar ser mais de cinco mil membros. Fornece comentá-
esse um problema de quem se propôs cuidar. rios e notícias através de postagens educativas,
Outros retornam o telefonema interessados em fotos, vídeos, bate-papo, convites a voluntários.
notícias sobre cães internados no Parque. Para
iluminar abismos, a voz acende uma luz sobre Também para dinamizar a interação entre a
desconsolos. Um coração triste ligou sobre sua rede social comunitária, os dedos humanos de

40
uma voluntária digitam como se fossem pa- alargar a consciência, impulsiona humanos a
tinhas para o grupo de seu perfil do Face: aos aprofundar e criar um novo relacionamento
sábados, posta fotos dos disponíveis para a ado- entre espécies.
ção semanal, convidando os contatos a partici-
par e difundir o evento, e aos domingos posta Durante uma adoção dominical na praça, uma
fotos dos adotantes com os adotados nos bra- desconhecida e sua filha adolescente se apro-
ços. Ademais, busca doações para uma lista de ximam para comentar: Depois da abertura do
necessidades, medicamentos e verba para cirur- Parque as pessoas ficaram mais conscientes, defen-
gias urgentes. dem os cães com mais segurança. Se eu e minha fi-
lha vemos alguém maltratar algum, explicamos que
Por décadas, protetores da cidade se comuni- hoje existe uma lei que protege os animais. As pes-
cavam por telefone para, unidos, socorrerem soas ouvem e param. Então, a filha narra uma si-
os necessitados. Criada por jovens, atualmen- tuação que lhe ocorreu. Estava com colegas da
te se expande uma recente e dinâmica rede escola na praça, quando um passante chutou
social sobre os pets de Lavras; pulsa sensibi- um cão que latia para outros. Ela viu e correu
lidade e trocas afetivas, compartilha informa- em defesa do animal: Não admito que encoste
ções e convida guerreiros para o serviço offline nele! O senhor não deve saber, mas infringiu a lei
– melhor dito: para o serviço nas ruas. Assim, que protege os animais! Abraçou o bichinho para
crescente número de usuários se mobiliza consolá-lo, enquanto o transgressor se afasta-
organizando minirredes de ação em bairros va mudo, sem alternativa e com o sentimento
para defender, acompanhar ou resgatar cães de ter agido mal. Nisso, uma senhora com o
em situações brutais. Espalha o Bem, ameni- filhinho que vira a cena a censurou: Moça, não
za a dor. faz nada, é cachorro de rua. Revoltados, seus co-
legas se indignaram e um respondeu de forma
ЖЖЖ incisiva: A senhora está dando um péssimo exem-
plo para o seu filho!
Na remota antiguidade, cães moraram com
homens em cavernas e florestas, depois em Enquanto relatava o ocorrido, a adolescente abai-
casas, palácios e templos. De animal sagrado xou o olhar e acrescentou, penalizada pela in-
em diversas culturas a animal de estimação na diferença e ignorância daquela senhora: O que
atual, representam o amor vivo. Um serviço, mais me doeu foi a senhora inferiorizar o cachorro
como o do Parque, equilibra o carma plane- agredido... E sua mãe concluiu: Fico feliz, minha
tário, marcado por abuso, maus-tratos, explo- filha é uma abençoada, nasceu para defender os
ração, escravização; tem o poderoso efeito de animais. Quem os defende é abençoado.

42
OS REINOS INTERAGEM

Pela primeira vez o grupo se reunia em círculo Avança às apalpadelas, mas conectado a fios de
no Parque. Olharam o deserto avermelhado em luz ininterruptamente transmitidos pela Fonte
torno e cerraram os olhos em oração profunda. O Criadora e em profunda coligação com os cinco
vento batizava o bendito encontro. E um mem- reinos visíveis e invisíveis: o mineral, o vegetal,
bro percebeu uma voz silenciosa, mais alta que o animal, o humano e o espiritual.
a altura celeste do céu, unir-se para soprar todas
as dores em lamento imenso. Nos corações, uma O principal objetivo é cuidar dos cães, o que só
certeza inteira, uma esperança louca: Tudo renas- faz sentido entrelaçado a cuidados com a natu-
cerá louvando a Ti, Senhor. Tudo! A terra, as paredes, o reza. No atribulado dia a dia, com tantos mora-
terror mudo impresso nas raízes e nas águas tingidas dores caninos, é preciso atenção diária à saúde
de sangue do riacho. O vento que vem das estre- ambiental. Desde o início as ações foram priori-
las elevou o círculo, multiplicou-o. Centenas de zadas: primeiro e sempre, a busca de parcerias
pessoas lado a lado levitaram acima dos muros e e apoios; depois e sempre, projetos, construção,
das copas de árvores nas fronteiras que abraçam reformas, manutenção, melhorias da estrutura
o ponto da Terra ofertado para ser o canil. Do ar, física; em seguida e sempre, chegaram e chegam
emergiu Francisco de Assis. Do centro oculto do cães em péssimas condições, necessitando toda
círculo, quatro grandes anjos de asas abertas, ao a atenção, cuidados de saúde e recreação, até se-
leste e a oeste, ao norte e ao sul, traziam a chave. rem castrados e terem um bom convívio mútuo
Sopraram o real sentido da tarefa fraterna: co- com as pessoas para, enfim, viabilizar a rotina
mungar os reinos para transformar, purificar e de adoções. Sempre melhorar a eficiência diária,
transmutar, fazer sutis as ondas densas. provê-la com insumos, mão de obra e equipa-
mentos adequados. Sempre e sempre manter a
Desde aquele primeiro encontro, uma onda de energia humana equilibrada e amorosa. Sempre
vida, maior que as de rádio, televisão e celulares, e eternamente trabalhar ligado à Fonte, de onde
corruptoras da atmosfera, impulsiona beleza provém a essência de vida que anima galáxias,
ao torvelinho terrestre, descanso ao coração de sistemas solares, os reinos do universo.
cães e homens. Sem discriminar, nem direcionar,
o grupo se deixa guiar pela essência. E desbrava, ЖЖЖ
constrói, cura, acolhe, regenera. E aceita a infin-
dável fila de desafios que o dia a dia apresenta Em paisagem rural, o canil nasceu no sul de
durante os esforços repetidos no árduo serviço. Minas Gerais, entre sítios, fazendas e uma ro-

45
dovia. É cercado pela beleza aveludada de coli- parte de várzea, encharcada no período das
nas, um mosaico com múltiplos tons de verde chuvas. Aqui predominam plantas da família
que intercala formações campestres, florestais das gramíneas: bambu, cana-de-açúcar, capim
e de eucaliptos. No inverno, essa cobertura ve- elefante, braquiária, capim gordura, napiê, co-
getal fica salpicada pela floração amarela, roxa lonião, amargoso, grama seda, citronela, capim
e rosa de ipês, alegrando olhos e corações. O cidreira. Precisam de muita luz, só sobrevivem
cerrado original da região ondulada, antes a pleno sol, não na sombra.
coberto por gramíneas, arbustos e arvoretas
esparsas de caules retorcidos e raízes longas, Ao fundo passa um pequeno corpo de água, o
vem sendo destruído há 40 anos pelo descuido ribeirão Santa Cruz, cujo nome reflete o calvá-
humano, pelo uso frequente do fogo e por se rio das águas, das plantas, dos animais e dos
permitir que espécies invasoras, como capins- homens. Na época do sombrio matadouro era
-gordura e braquiária, rapidamente substituam chamado de ribeirão vermelho, por ser via de
a diversidade de plantas nativas. descarte do sangue de abatidos. Em 2010, os
primeiros mutirões de plantio de árvores na-
Bastou definir o local e logo se iniciaram os tivas desse ambiente foram organizados para
primeiros impulsos aos reinos, que interagem proteger o ribeirão, evitando desmoronamen-
com intensidade, um auxiliando o outro a ca- to do barranco. Assim, a área de preservação
minhar em busca do infinito. permanente (APP) ao longo do riacho foi revi-
talizada com o plantio de aroeirinha, capoeira
Uma cerca reta separa o terreno em dois pata- branca, assa-peixe, mamona, além de dezenas
mares. O mais alto, em infinita movimentação, de mudas de espécies como: Paineira, Ipê, Je-
pertence aos cães: os canis, a Casa de Cura e quitibá, Ingá, Cedro, Açoita Cavalo, Tapirira,
cinco áreas de recreação. O mais baixo perten- Palmeira Jerivá, Trema. Além das árvores pri-
ce aos reinos vegetal e mineral, ocupa dois ter- márias, foram plantadas mangueiras, abaca-
ços da área total, em cujo manto verde pulsam teiros e 40 mudas de bananeiras para cães que
miríades de vidas, bactérias, insetos, lagartos, apreciam comer bananas.
aves, plantas e cães que visitam três áreas re-
creativas. Há uma casinha de hospedagem, Trabalhar para as plantas repara parte de nossas
além do tratamento das águas servidas e da faltas com os reinos, adquiridas desde o início
compostagem dos resíduos caninos. A vegeta- da humanidade. As plantas do canil são apoia-
ção é variada em altura e cor, abraçada por eu- das conforme voluntários se apresentem. O dis-
caliptos de um lado e um bambuzal do outro. tanciamento físico entre os reinos do Parque foi
No seio do terreno há uma clareira com uma reduzido com o plantio em áreas desmatadas,

46
igualmente com incursões de cães e voluntários galhos e folhas picadas para manter a umidade
na área verde, segundo um engenheiro florestal e defendê-las do mato.
colaborador. Jovens remanescentes, as árvores
precisavam estar aqui por algum motivo maior. Um professor de agronomia e colaborador do
De forma delicada e imperceptível, parecem es- Parque explica: As plantas purificam o ar ao intera-
ticar os pescoços, abrir os ouvidos para observar girem com a água, a radiação solar visível e a clorofi-
e memorizar o que se passa em torno, que ar- la, que dá a pigmentação verde às folhas. Através do
mazenam por longos períodos. Um latido pode processo de fotossíntese, a clorofila canaliza a energia
ser um impulso para despertar a atenção das es- da luz do sol, transforma dióxido de carbono e água
pécies presentes. O reino vegetal, no qual exis- em carboidratos, absorvidos pela planta, e em oxi-
tem exemplares de árvores com idade superior gênio, que é liberado para a atmosfera. Prossegue:
a mil anos, é aparentemente silencioso. Porém, A base da alimentação está sempre nas substâncias
por trás dessa quietude, possui um grande arca- orgânicas proporcionadas pelas plantas verdes. Esta-
bouço de conhecimento e registros referentes a mos em um verão sem chuva; com a falta de água, o
centenas de anos. Podem nos repassar magní- laboratório de produção de alimento – a fotossíntese
fica quantidade de informações, já registradas das plantas – não funciona adequadamente. A radia-
por contato direto com clariaudientes, que escu- ção está muito forte, em vez de ativar as moléculas
tam sua vida pulsante e afirmam ser necessária de clorofila, está destruindo-as. Veja como os frutos
muita paciência para estabelecer comunicação verdes estão sendo queimados pela irradiação, um
com o reino vegetal, pois as mensagens chegam efeito sério. Pela interferência do homem na nature-
em estilo câmera lenta. za, as intempéries e secas se agravam ano a ano, as
catástrofes serão cada vez mais severas. A solução
Já se plantou a mata ciliar, agora é cuidar e é recompor o estragado: plantar, cultivar, sobretu-
aguardar as copas se tocarem. O espaço é roça- do preservar. O Brasil está entre os países que mais
do, as mudas recebem tratamentos de choque usam água na produção agrícola e de bens de consu-
de amor. E respondem. Fixadas ao solo, não mo. Cada um precisa se reeducar para economizar
têm perninhas para buscar alimentos, preci- os recursos naturais, ser mais cidadão, compartilhar
samos levá-los a elas. Nas épocas da seca ou mais, sobretudo usar essencialmente a água e a eletri-
abafadas pelo capim, que suga seus ingredien- cidade necessárias: vemos pessoas lavando rua com
tes, precisam de capina e adubação, antes fei- água potável, usam sem pensar no futuro.
ta com restos de cozinha, agora com o esterco
dos cães. Em seus pés é criado um ambiente Falta chuva, o córrego está vazio. Também
propício para as bactérias agirem recompondo faltam voluntários, a necessidade de ajuda é
a matéria orgânica: coberturas com coroas de imensa, tanto para o reino vegetal como para

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48
os cães, que não param de chegar, mas há uma seio até a lavanderia e cresceu até chegar ao
inércia nas pessoas, é preciso mostrar-lhes e telhado. Não se entendia o porquê dela ali, até
insistir que têm um compromisso com os rei- florescer e um periquito vir diariamente se ali-
nos. O ser humano é complicado, a mente atra- mentar das sementinhas. Sempre presentes,
palha. Já o animal é simples, direto, inteligível. pássaros trazem e levam sementes, beija-flores
extraem néctar das flores dos caminhos e do
O sonho é transformar o terreno fora da área canteiro de ervas medicinais.
de preservação permanente em um parque
canino com um lago para cães e caminhos na Para os cães, plantam-se flores que perfumam e
sombra para adotantes e adotados passearem. pacificam almas. Também são plantados tufos
Para tal, o homem capina, transpira. Presentes, de citronela em torno dos galpões para limpar o
apesar de não se mostrar, por estarem em ou- etéreo e dificultar a chegada de moscas.
tro nível, os devas incessantemente fazem sua
parte: a partir de símbolos e arquétipos cons- Primeiro foram plantadas roseiras para a Mãe
troem o que é visível. Aqui as plantas tropi- Universal, mas nenhuma sobreviveu. Então,
cais têm um crescimento anormal, que remete muitas outras espécies. E os rosais ficaram es-
ao reino dévico, apenas contatados através de quecidos até chegarem novas mudas, que ago-
percepções internas. Em três meses, um aba- ra nascem por todo lado: brancas, vermelhas,
cateiro cresceu três vezes mais que o normal, rosinhas pequenas, trepadeiras. São fertiliza-
chegou a quatro metros de altura em um ano e das pelo composto orgânico produzido pelo
meio. A amoreira subiu vertiginosamente. Há dejeto canino.
tempos a chuva lavara os ingredientes do bar-
ranco íngreme na frente da cozinha, restando Almejando alegrar os olhos dos homens, ofe-
apenas argila. Impressiona. Hoje ali nascem recer perfumes ao faro delicado e atento dos
flores delicadas e rosas lindas, tão exigentes, focinhos que tremem em busca de aromas,
que expressam o arquétipo perfeito da planta. uma colaboradora adorna o ambiente com
Não usemos a palavra milagre, mas isso sur- a jardinagem ornamental, importante para a
preende. qualidade de vida. Montou um pequeno ate-
lier em casa para pintar pneus coloridos; de-
É preciso estar atento para compreender e dig- pois os empilha pelos caminhos como jardi-
nificar as plantas, cada qual um ser particular. neiras onde planta variadas suculentas, cujas
Uma bela touceira de capim nativo resolveu raízes, talos e folhas armazenam maior volu-
crescer ao lado da casa, tão harmoniosa, era me de água que outras plantas, sobrevivendo
apenas podada para abrir a passagem no pas- durante períodos prolongados de seca. Quem

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sabe dessas jardineiras também brotem guir- a alimentação, os produtos de limpeza, a de-
landas de flores invisíveis em outro plano? sinfecção, os medicamentos, as enfermidades
e os óbitos. A unicidade das características do
ЖЖЖ Parque exigiu adaptação dos modelos de sa-
neamento feitos para animais de abate e para
O Parque é um laboratório. Para ver a terra em humanos. Como o primeiro sistema de trata-
flor, atravessa desertos e despenhadeiros, par- mento de resíduos sólidos e líquidos implanta-
te da iniciação nos mistérios que unem reinos. do era para humanos e inadequado para cães,
Tamanha luta! Diante das grandes questões, a os leitos de secagem borbulhavam, os pelos
meta é amar mais, fazer o melhor, encontrar dos bichinhos entupiam canos, grande era o
soluções simples. Como entregar, ao riacho, gasto. Os problemas impulsionaram melhorias
água tão límpida quanto a ultraprofunda que e a emergência em adequar esse sistema atraiu
do subsolo é conduzida às caixas por bombas as pessoas corretas para encontrar soluções,
elétricas? Eterna servidora, lava baias, serve a cocriadoras da obra de amor.
cozinha, os banheiros, purifica doenças, traz
saúde, lava pelos, lava roupa. Como transfor- Gosto demais de cachorros e iniciei um trabalho vo-
mar fezes de 400 cães, muitos deles doentes, luntário na adoção da praça, antes de trabalhar no
em rico nutriente vegetal para adubar plantas? tratamento de efluentes do Parque Francisco de Assis,
Como reintegrar dejetos líquidos e sólidos ao diz a engenheira florestal especialista em trata-
meio ambiente? mento de esgoto, convidada para solucionar a
questão. Não tendo referências para tratar de-
Sábios são os caminhos divinos para estimular jetos caninos, nem nos projetos nacionais nem
conquistas coletivas. Foram meses de observa- nos internacionais, o Parque leva adiante uma
ção, até dejetos caninos se metamorfosearem pesquisa inédita, monitorada por análises em
em esterco. laboratórios e observações in loco. Ela explica
o projeto inovador em andamento: A geração de
Sem aparecer com destaque, mas com impor- águas residuais domésticas, industriais e agroindus-
tância vital, o sistema de saneamento dos re- triais representam um desafio, no que diz respeito à
síduos sólidos e líquidos recebe a maior carga proteção ambiental e da saúde pública, devido ao
de impurezas a serem transmutadas. As ações comprometimento da qualidade das águas. A tecnolo-
diárias estão encadeadas e interferem na qua- gia das atividades criatórias com fins lucrativos está
lidade do sistema de esgoto: o número de ani- desenvolvida devido ao investimento em pesquisas
mais, visitantes, voluntários, funcionários, a sobre o tratamento de dejetos suínos, caprinos, bovi-
forma de realizar as tarefas, o consumo d’água, nos e da avicultura. Como canis não são para engor-

50
da e abate e nem têm fins lucrativos, faltam recursos
para pesquisa. O desafio é ainda maior pela falta de
registros de características físicas, químicas e de tra-
tamentos e reuso dos dejetos produzidos em canis. Foi
necessário começar do zero para adaptar o processo
humano aqui existente. Atualmente, o Parque Fran-
cisco de Assis dispõe de sistemas simples de tratamen-
to dos dejetos, líquidos e sólidos, de cães que habitam a
área. Para os dejetos líquidos, há um decantador, duas
fossas filtro, lagoas de estabilização e um aerador por
onde passa a água antes de ir para o ribeirão. Para os
dejetos sólidos, emprega-se a prática da compostagem
em mistura com serragem, cujo esterco produzido foi
aprovado em laboratório e já é usado com sucesso,
tanto no local quanto em residências, sítios, fazendas.
Alegra-nos saber que as plantas estercadas estão sen-
tindo a energia amorosa deste trabalho pioneiro.

A fim de garantir a eficiência do processo, as ati-


vidades diárias passam por fases. Antes da lava-
gem das baias, os funcionários e voluntários se
protegem com luva, avental e botas. Seguem os
seguintes passos: recolhem as fezes com uma pá
grande e colocam-na no carrinho de mão; varrem
os pelos, sempre muitos, e raspam os resíduos
para evitar o entupimento do gradil; aproveitam
a água dos bebedouros e esfregam com vassou-
ra para remover o excesso de resíduos do piso
de cimento, que puxam com o rodo; molham
novamente, ensaboam com um mínimo de de-
tergente, esfregam bem, deixando-o agir por 10
minutos; puxam com o rodo; enxáguam abun-
dantemente e, com o rodo, deixam o piso bem
seco. Foi feita a análise do detergente, temendo

52
a contaminação e respeitando exigências legis- mental na criação do rico fertilizante orgânico
lativas. Quando os carrinhos ficam cheios, são a partir de fezes caninas.
levados para o processo de compostagem.
Na composteira, se misturam uma parte de fe-
Uma rede pluvial separada leva a água de chu- zes para três de serragem, cedida por madei-
va ao riacho. Já a parte líquida da lavagem se- reiras. O composto permanece três meses em
gue por canaletas e é filtrado por um sistema seis leiras. No primeiro, é revirado três vezes
de grades, que contém parte do pelo e sempre por semana para aeração, receber oxigênio. No
precisam ser limpas. Muito se experimentou segundo, apenas três. No último não é neces-
para saber a espessura das telas das grades pois, sário revirá-lo. Em 90 dias, o resíduo sólido ma-
se finas, entopem. Depois, o líquido cai em um tura e pode ser utilizado no cultivo de plantas.
decantador onde parte das sobras sólidas fica
depositada ao fundo e prossegue por uma fos- Um ex-residente dedicou-se, por meses, à pes-
sa filtro para o tratamento anaeróbico realiza- quisa empírica. Relata: O trabalho com dejetos
do pelas incansáveis bactérias, protagonistas é pesado, demanda muita mão de obra, há o mau
dessa transformação da matéria. Na fossa filtro cheiro, a dificuldade com os gases e calor gerados.
é gerado o lodo, que é retirado mensalmente. Em uma fase do processo de compostagem, as bac-
Dela, o líquido segue para tanques que servem térias termofílicas elevam a temperatura interna
como lagoas de estabilização. do material até 80 graus centígrados. Uma vez, aí
colocamos uma barra de ferro e não conseguimos
O desempenho dos sistemas de tratamento segurá-la. Como os excrementos têm grande con-
líquido e sólido é monitorado, aperfeiçoado, centração de nitrogênio, é preciso misturar carbono
reajustado. para transformá-lo, assim usamos um percentual
de serragem para equilibrar a relação entre os dois
Para quem inicia um canil, o principal é não elementos químicos, cuja combinação gera e libera
misturar o líquido com o sólido. A fossa filtro é o gás amoníaco. Finalizada essa primeira fase, a
um sistema simples e barato. Outro sistema efi- temperatura abaixa, a coloração muda, cessa o odor
ciente, barato e que exige pouca manutenção é de nitrogênio e amônia, e outras bactérias passam
o reator de manta de lodo de fluxo ascendente. a trabalhar. Certa vez fizemos uma experiência pi-
Ambos não tratam coliformes fecais, para tal é loto, processo denominado vermicompostagem, que
necessário um tratamento terciário, final. durou cinco meses. Colocamos o composto, a massa
gerada na compostagem, em um minhocário expe-
O fogo, transmutador ardente de substâncias rimental para alimentar as irmãs minhocas, cujo
impregnadas de forças involutivas, é funda- excremento é o húmus. As rastejantes de sangue

53
frio, grandes companheiras de transmutação, pro-
duzem esse complexo mineral com cinco vezes e
meia mais nitrogênio, duas vezes mais cálcio, duas
vezes e meia mais magnésio, sete vezes mais fósforo
e onze vezes mais potássio que o solo ou resíduo que
a alimentou. Em gratidão, recolhi e levei um pou-
co do húmus a um morro sagrado. Em reverência,
ajoelhei para adubar e enriquecer o solo dos pés das
roseiras dedicadas à Virgem Maria.

ЖЖЖ

Parecia que o trabalho era resgatar esse pes-


soalzinho peludo com quatro patas almofada-
das correndo solto nas calçadas, ruas, aveni-
das, levantando poeira das trilhas. Acolhidos
com carinho, nos lembraram: Somos todos um,
cada qual com seu papel. Assim impulsionaram
à relação e busca de melhor compreensão de
outros reinos.

Na Terra, uma delicada rede silenciosa e invi-


sível de seres elevados se encarrega da evo-
lução dos reinos. Guia e estimula cada passo,
cada caminho a ser percorrido até se atingir
as metas próprias a cada um. Parte dessa ino-
minável perfeição, um dia fomos animais e
um dia eles serão homens, mas em outro pla-
neta, não na Terra.

Os animais não são superiores, nem infe-


riores aos humanos, apenas estão em outro
momento evolutivo. Somos o elo entre eles e
o reino espiritual. Um dos compromissos do

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reino humano seria cooperar com sua evo- reluzente e deslumbrante. Os campos áuricos
lução, ser como um irmão mais velho para de seres vivos e inanimados liberam luzes e
ajudá-los a elevar seus aspectos instintivos à ondulações multicoloridas, refratam matizes,
emoção, ampliar sua capacidade mental e de- emitem sinais e refletem clamores às vibrações
senvolver um núcleo de alma. Por outro lado, superiores do mundo celestial que, em respos-
esse reino transmuta energias ancoradas em ta, fluem à Terra para reverter rapidamente si-
nosso baixo-ventre, contribuindo para a ele- tuações desordenadas. Magnífica visão!
vação da voltagem energética dos que com
eles lidam. Também a forte luminosidade Pleno de símbolos vivos palpáveis, o Parque é
sutil emitida pelos reinos mineral e vegetal exemplo de poder e compaixão. Quantas his-
ajudam a transmutar forças baixas dos reinos tórias de ajudas entre os reinos para iluminar a
animal e humano. sombria ignorância do mundo!

O Plano que salva, protege e promove o inter- Tratar a grande servidora água permanece sen-
câmbio energético entre tudo e todos, anuncia do o maior desafio. A meta é ir além do que é
com miniclarões os passos a seguir. Convida pedido pela legislação; é um dia retorná-la ao
as consciências a ornarem o espaço, a tecerem ribeirão tão pura quanto a que flui do aquífe-
uma rede de amor. ro do interior da terra. Cientistas afirmam que
a misteriosa água, fonte da vida, chega do es-
Os reinos afetam, conversam e, sem cessar, res- paço à Terra. Fotografam suas moléculas que,
pondem à luz um do outro. Igualmente, irra- quando puras, formam mandalas de belíssi-
diam energia, chamada aura ou halo fluores- mos cristais. A seiva que corre em plantas e o
cente que, conforme evoluem, crescem em sangue que corre em mamíferos são formados
extensão, força e brilho. Durante uma oração de água. Logo, cristais de água em forma de
grupal, quando pessoas se unem a níveis in- mandalas mais ou menos belos também aí es-
ternos da vida, o campo magnético humano tão presentes.
pode se ampliar e intensificar em esplendor
formidável. Leve, a brisa sopra e anima folhas claras e es-
curas, largas e miúdas, encrespa a água dos
Usemos a força da imaginação para vislumbrar tanques, presenteia narinas com fragrâncias,
o que clarividentes veem: diferentes tonalida- refresca a pele dos servidores, traz mensagens
des das irradiações de plantas, animais e do dos anjos, relembra o eterno movimento evo-
grupo devoto orando pelo planeta se somam e lutivo, aponta a contraparte sutil que transcen-
fundem seus halos, assim criando uma beleza de o labor hercúleo.

55
HISTÓRIA MAIS ÍNTIMA
DO PARQUE

Para reacender corações caninos e humanos e sível servir ao Cosmos sem passar pelo ser-
criar uma história de resgate, uma torrente de viço planetário. Em janeiro de 2010, durante
profundo amor convocou um grupo maternal. a implantação da Rede de Serviço Planetária,
Por anos, quem sabe vidas, almas com paren- formada por grupos de diferentes países que
tesco espiritual se atraíram para dar início a um se dedicam ao serviço altruísta, recebeu nova
serviço inusitado: transformar um matadouro instrução de Trigueirinho, através da coor-
em um centro de cura para cães, carinhosa- denadora da Casa Luz da Colina, associação
mente chamado: Vida d’Ouro. sem fins lucrativos de natureza filantrópica
e beneficente: cada grupo de oração deve-
Canil ecumênico sem fins lucrativos, conduzi- ria encontrar em sua cidade um trabalho em
do por voluntários, sua meta é ofertar amor in- nome de Deus. Chegara a hora de levantar
condicional aos reinos animal, vegetal, mine- das cadeiras para viver o aprendido, colocar
ral e humano, para minimizar o sofrimento do o ensinamento em ação, a serviço de algum
planeta. Milhares de seres são transformados, reino, nos moldes da congregação religiosa
tocados por essa rede de luz. católica Missionárias da Caridade, concebida
e fundada por Madre Tereza de Calcutá.
Parte do grupo que o sustenta segue, desde
1987, os ensinamentos de José Trigueirinho Imediatamente, o grupo partiu em busca da
Netto, fundador da Comunidade Figueira, grande aventura espiritual: as principais insti-
na cidade vizinha Carmo da Cachoeira, com tuições da comunidade foram visitadas. Cons-
a qual colaborou semanalmente desde a im- tatou-se que os trabalhos sociais estavam
plantação. Há 16 anos, mantém reuniões se- bem organizados, não havendo muito a fazer
manais de oração e estudo do ensinamento fi- ali. Finalmente, o caminho clareou. Na época,
losófico-espiritual. Grupal ou individualmente, dois atendimentos eram os mais deficitários:
buscou colocar as teorias na prática: assistiu aos mendigos e aos cães errantes. Junto a re-
dependentes químicos, cães sem-teto, pres- presentantes da Comunidade Figueira, foram
tou serviço no asilo e também em comunida- realizadas visitas ao canil municipal, onde en-
des carentes, ora construindo casas, ora distri- contraram uma epidemia, doenças graves, cães
buindo alimento e roupa. O grupo preparou, em situação miserável convivendo com ratos,
sobretudo, suas almas, para colaborar com o instalações extremamente precárias, condi-
Plano Divino para o planeta, pois não é pos- ções higiênicas péssimas. Ainda por cima, o

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proprietário do terreno alugado, onde estavam blicidade com jingle educativo era repetida na
instalados, exigia-o de volta. Como solução, televisão; telefonemas, rifas, bazares, caixinhas
até se cogitava sacrificar quase 300 cães. Era de doação esparramadas pelo comércio. Como
urgente removê-los. encontrar recursos financeiros, profissionais de
diversas áreas, apoio de autoridades e políticos,
Para esse trabalho, o Alto convocou almas mão de obra? Hoje o grupo ri, lembrando certa
guerreiras treinadas na fé e na obediência, visita esperançosa a uma importante empresá-
mas inexperientes no assunto, sem ideia do ria e possível patrocinadora. Ela falou, falou do
que deveria ser realizado. Confiantes, saíram próprio irmão e, no fim, doou cinco reais.
da comodidade dos lares para aliviar um pou-
co do peso do mundo que o titã grego Atlas Estrelas subiam, estrelas desciam, quarto cres-
carrega nas costas. Diante da absoluta neces- cente, quarto minguante. Ó, lua cheia: a pre-
sidade, acenderam a chama interna e, com feita ofereceu três espaços. Após visitados,
frescor no pensamento, reescreveram o rotei- um sino anunciou a decisão final: foi aceito
ro de suas vidas. Vislumbrando tiquinhos do o matadouro municipal por já ter um galpão,
trajeto a ser trilhado, prosseguem guiadas por duas casinhas, uma bomba com poço artesia-
energias sublimes; constatam a chegada, in- no, caixas d’água de 10 mil litros. Membros do
variavelmente na hora H, de imprescindíveis grupo vieram predestinados para a missão-Par-
apoios e voluntários. O necessário se mani- que. Recém-formada, o primeiro local que a
festa, é cumprido, o susto pela imensidão do veterinária da prefeitura precisou inspecionar
desafio se torna maravilhamento. carcaça de bovinos foi o abatedouro munici-

Uma surpreendente mobilização foi desenca-


deada. Para organizar as futuras diretrizes e
convocar o maior número possível de pessoas,
iniciaram reuniões semanais abertas. Participa-
vam membros da SLPA, cidadãos que amam
cães, a imprensa, estudantes. Logo foi lançada
a Campanha Mãos a Obra, com grande partici-
pação da mídia local, para divulgar a proposta
da criação de um novo canil e conseguir verba
para comprar um terreno. Quanta ingenuida-
de! Por dias e noites fizeram acrobacias. Entre-
vistas sopravam o sonho aos quatro cantos; pu-

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pal. Achou o fim do mundo, deprimente. Anos anos, antes das orações e audições de confe-
depois, quando era desativado, ela sugeriu à rências semanais de instrução do grupo, con-
prefeita repassá-lo para a SLPA. Tentara aju- tava surpreendentes histórias caninas. Incons-
dar o antigo canil, que parecia um campo de cientemente o formava para a tarefa futura.
concentração de cães, mas se afastara para não Assim relata seu percurso amoroso: Desde que
ser cúmplice do errado, assim como outros ve- me entendo por gente gostei de bicho, mais de ga-
terinários desanimaram por ali não seguirem tos. Quando criança, escondia filhotes sarnentos e
o recomendado. Então, apareceu o pessoal da machucados debaixo da cama até que minha mãe
Comunidade Figueira com energia de fazer o me deixou ter um. Chamei de Tita, nome da lava-
bem para algo diferente acontecer, e tudo se deira que gostava demais, preta retinta como a gata.
encaixou. No dia 21 de junho de 2010, a Prefei- Eu carregava Tita o dia inteiro debaixo do braço até
tura Municipal de Lavras o cedeu para a Socie- mudarmos de casa, mas ela não quis ir. Tive então
dade Lavrense de Proteção Animal, através de uma collie preto e branco, me levava para a escola,
um contrato de Concessão de Direito Real de esperava de fora e acompanhava de volta. Depois
Uso válido por 30 anos, renovável. chegou um gato amarelo, parecia um tigre. Quando
fiz nove anos, veio Menina, uma angorá branca, o
A presidente da SLPA, hoje responsável pelo xodó da casa: teve 232 crias em 11 anos de vida. Eu
cuidado e saúde canina, conhecia a maioria dava os gatinhos e ia visitá-los para ver se eram bem
dos cães de rua da cidade. Era acordada de tratados, se não fossem, pegava de volta. Continuei
madrugada até pelo Corpo de Bombeiros para cuidando vida afora. Dava comida para cães, levava
pegar um bravo ou socorrer acidentados. Por a veterinários, que nessa época não cobravam dos
de rua. No princípio dos anos 90, conheci o SLPA e,
com membros, procurava alpendres, quintais e lotes
vazios para colocá-los. Em 2005, a prefeita alugou
um sítio para organizar um canil para 150; como no
local se criara porcos, as pocilgas foram reaproveita-
das. Por ser municipal, cresceu demais, alguém re-
clamava de um cão, a Prefeitura enviava para lá. A
ração era péssima! As condições começaram a piorar,
o terreno não tinha permeabilidade, mesmo assim
construíram uma fossa inadequada, que encheu e
começou a vazar em um mês. Afastei-me, mas con-
tinuei a levar doentes para casa, ou para a veteriná-
ria da universidade, que tratava alguns do canil. A

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coordenadora acabou só com três funcionários para
cuidar de 300. Aí, o proprietário do sítio pediu o ter-
reno e aqueles desvalidos não tinham para onde ir.

ЖЖЖ

No domingo da semana em que o espaço foi


recebido, o grupo se reuniu para conhecê-lo e
iniciar a limpeza. A violência impregnava cada
cerca, cada canto, currais metálicos, rampa de
acesso bovino à sala de matança, trilhos aéreos
para movimentação das carcaças, frigorífico.
Não havia tempo a perder. A partir dessa oca-
sião foram organizados grupos de voluntários
da cidade, que chegavam com baldes, vassou-
ras, pás e enxadas para expulsar a amargura
do local queixoso: retiravam montes de lixo,
ferros resistentes, mesa de inspeção de vísce-
ras. Com um mínimo de recursos financeiros,
um mês depois, iniciaram-se as reformas e a
construção das baias, segundo o projeto de
um jovem arquiteto voluntário inspirado em
um canil paulista. Doações passaram a chegar,
pouco a pouco, de diversas partes do mundo.
O único pedreiro fazia, lentissimamente, pa-
redes tortas. Prosseguiu-se. Entre incontáveis
dificuldades, apareceu um anjo da guarda: um
mestre de obras de Carmo da Cachoeira. Ele
trouxe a equipe de pedreiros desbravadores,
almas preciosas que, com precisão e dignidade,
sustentaram a obra sem interromper até o final.

Concomitante ao trabalho dos pedreiros, a in-


tensa limpeza prosseguiu por seis meses. Co-

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nectados ao âmago do reino animal, ao grupo de rua, em um processo irreversível de debi-
local se somaram voluntários vindos semanal- lidade. Primeiro, foi providenciada a troca da
mente da Comunidade Figueira. Esquecidos péssima ração sem nome nem fabricante, que
de si, se subdividiam entre trabalhos práticos não alimentava, mas produzia enorme quanti-
e grupos de oração, que se revezavam de meia dade de fezes, deixando os recintos mais sujos,
em meia hora. Corria-se contra o relógio, o pra- aumentando o trabalho de limpeza, o gasto de
zo para a transferência se esgotava. O proprie- água. Como uma mudança repentina poderia
tário do sítio pressionava. Quanto mais tempo gerar descontrole intestinal, gradualmente se
os cães lá permanecessem, menos chance te- misturou a nova com a antiga, mas, paciente-
riam de sobreviver. Seis meses depois, a espe- mente, catavam grãozinho por grãozinho da
rada hora do traslado chegou. Alguns galpões boa e rejeitavam a ruim. A mudança logo pro-
estavam prontos, mas a construção prossegui- moveu a saúde e diminuiu o volume de fezes,
ria por mais de um ano para finalizar novas alas dando-lhes maior consistência.
com canis, reformar a Casa de Cura, criar o re-
feitório, depósitos, áreas destinadas à recrea- Passadas as obscuras provas iniciais, a cura
ção e os sistemas de saneamento, epopeias que se derramou sobre o espaço sagrado. A dig-
já descrevemos. nidade canídea foi recuperada, as pelagens
brilharam, os olhares vibraram. Ressocializa-
Recebidos em oração e alegria silenciosa, por ram-se. A maioria apagou o passado com uma
vários dias, 300 cães desceram, um a um, de car- borracha, acreditou e entregou a própria vida
ros, caminhonetes, caminhões. Em estado mi- ao grupo, dando-lhe essa oportunidade de
serável, emanavam profunda tristeza, exigiam serviço, essa grande responsabilidade. Além
cuidados emergenciais. Tudo era improvisado! de fisicamente debilitados, outros chegaram
Nenhum comprimido em casa, poucos tostões, com fortes traumas, agressivos como defesa,
muita vontade. Precisavam de exames clínicos, muito medo. Apesar de se darem bem com
curativos, banhos. Naqueles momentos confu- pessoas do canil, ainda ficam arredios em
sos, caíram do céu duas veterinárias que deram relação a desconhecidos, sobretudo não con-
início aos tratamentos. Ademais, voluntários fiam na presença masculina.
amorosos passaram a trazer variados procedi-
mentos a fim de melhorar as condições da saú- ЖЖЖ
de canina. Rapidamente, a maioria respondeu
física e afetivamente, a autoestima cresceu; por Nascido entre raios e trovões, o Parque Fran-
volta de 100 ainda vivem. A despeito dos cui- cisco de Assis zela pela saúde, bem-estar e é
dados, muitos faleceram; estavam pior que os o responsável direto pelos abrigados, além de

61
garantir a manutenção do espaço físico. Qua- colaboradores que se afastaram. Como agir
tro setores mantêm sua vida: Setor de Acolhi- agora? O dinheiro está acabando. Falta gente
mento e Cuidado Animal, Setor de Controle para isso, para aquilo. Daremos conta? Não
Ambiental, Setor de Manutenção, Setor de Di- aguento mais! Por um lapso, são tentadas a re-
vulgação. Nesse canil de consciência espiritual, gressar à antiga vida de estudos, serviços leves.
aqueles que, de mãos fortemente dadas, cru- Os corações intrépidos ordenam que a mente
zaram o período caótico de crises e quedas, in- se aquiete. Prova atrás de prova, não desani-
certezas e conflitos, tornaram-se exemplos co- mam, perdoam-se, clamam ao Alto, tomam a
tidianos na senda do serviço aos reinos da na- cruz em nome da bondade, transcendem senti-
tureza. Não se sabe como o universo pinçou os mentos negativos. Repentinamente, fazem-se
membros do grupo convocado, que aceitou o contentes pelo cálice amargo para beber, pois
desafio, uns já tendo transcendido certas ques- sabem que as verdadeiras necessidades, tanto
tões pessoais, cada qual com sua individuali- as espirituais, quanto as materiais, serão su-
dade, seu potencial. Unidos e dispostos a fazer pridas. Renovam-se, continuam a sustentar a
o melhor, honram a tarefa e, apesar das dificul- chama da matéria: o grande coração maternal
dades, criaram uma irmandade. Como fazem do Parque Francisco de Assis. Absorvem a li-
algo em glória a Deus e aos reinos presentes ção aprendendo a ser mais neutras e, por fim,
no planeta Terra, quando um entra em dese- aprofundam a compreensão do sentido oculto
quilíbrio, o outro compensa, protege como se do caminho de entrega de si.
fossem pais ou filhos.
Aprendizes da vida em permanente exercício
Lar onde se reúnem seres de fé inquebrantável, de amor compassivo, ajudam qualquer situa-
cães e homens percorrem unidos o caminho ção canina. A secretária da SLPA, coordena-
do calvário; entregam-se ao porvir, enquanto dora das construções, manutenção e busca de
transpõem obstáculos de discórdia e incom- recursos, seguiu a voz inspirada que ressoou
preensões. Diante da dolorosa realidade de em seu interior. Explica como descobriu o
cães a mercê da fome e da doença, ora em uma, serviço: Tive tartaruga, periquito, papagaio, coe-
ora em outra mantenedora, surgem passagei- lho, gato, cachorro, mas sou mais encantada pelos
ros arrependimentos por terem assumido tra- felinos. Esse amor se transformou em serviço aos
balho tão árduo. Os corpos fatigados das guer- reinos no Parque; descobri porque nasci, meu ser-
reiras, como o de Atlas, cambaleiam, doem. viço na Terra. Sempre ajudei, talvez nem fosse por
Em momentos de exaustão, agonia grupal ou caridade, mas como trabalho social: dava um di-
individual, pensam inseguras nos desafios, na nheiro aqui, ia ali, fazia isso e aquilo, fui até vo-
decepção por promessas não cumpridas, em luntária no antigo canil, mas aspirava por algo

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maior. Pensava... tenho vontade de deixar um feito gislativa de Minas Gerais, em Belo Horizonte,
no mundo, não um feito horizontal como procriar, apareceu a chave para aliviar dúvidas. Uma ex-
estudar, sustentar a família. Isso é coisa normal. pressão bem mineira resumiu o que traz alen-
É tão fácil trabalhar, criar filhos. Todos nascemos to aos corações: Op céu! Quando a coisa fica
com um propósito a mais, mas tem gente que nem preta se entreolham, sorriem, lançam um olhar
quer saber. É preciso querer, procurar e aceitar o para o céu: Op céu! Aguardam. Em um passe de
verdadeiro serviço. A gente não escolhe, se oferta mágica, soluções se materializam como em um
e aguarda. Nunca pensei que o meu seria com cães. conto de fadas. Mais maduras e com menos
Agora sei. Não é fácil. Após descobrir, começam as ilusões, agora aceitamos com menos angústia,
provas verdadeiras. Enquanto não nos rendemos, entendemos com mais tranquilidade.
só sentimos dores emocionais normais de relacio-
namentos com filho, amigo, marido, vizinho. Nun- Uma voluntária relatou sua intuição sobre as
ca tinha passado por minha cabeça o que teria de quatro consciências que constituem o corpo
rever, pensar, assumir em mim. Neste trabalho, a feminino do Parque, cada qual com seu papel:
gente muda em velocidade exponencial. É preci- uma representa o espírito sutil; outra reflete a
so valentia, em semanas se vive um ano. Quanto mente intelectual observadora, intuitiva; outra
mais serviço, menos tempo para si. Precisa deixar o o emocional vibrante, entusiástico; a quarta
ego de lado? Entra no serviço. Hoje acordei pensan- exprime o físico atuante. A partir delas o servi-
do em comprar frutas. A bomba de água do canil ço é tecido e distribuído.
estourou, o eletricista estava ocupado, um cão ti-
nha de operar. Lá em casa não tem uma fruta, mas Ao entender como o corpo do Parque é configurado,
o eletricista consertou a bomba, o cão foi operado. tudo ficou simples, lindo, poético. É só alegria rece-
Passamos fases e provas que nunca imaginamos ber outros irmãos de caminho aos domingos. A festa
existir, mas não temos dúvida. A vantagem de estar é aqui! Se todos se dessem a oportunidade de servir,
a serviço é parar de questionar, é ter certeza. em que mundo especial viveríamos. Prossegue a
vice-presidente da SLPA e coordenadora geral
Tudo passa, provas fortalecem a fé, mas, por do trabalho: Há anos seguíamos a mesma busca
vezes, tiram o sono, tiram do sério, tiram o espiritual até chegar, para uns poucos, o momento
tapete debaixo dos pés, faz cada um se de- de fazer algo, em grupo, em prol de um bem maior.
frontar com medos e fraquezas que pareciam Unidos pelo coração e pelo amor ao Alto saímos de
superados. Durante a construção e a chegada nossas vidinhas, fomos ao encontro daquilo que nos
dos cães, essas provas eram ainda mais inten- estava designado: o serviço ao reino animal, repre-
sas. Em uma das viagens para buscar recursos, sentado por cães em grande abandono. Era um enor-
saindo de certa reunião na Assembleia Le- me desafio, mas nos ofertamos à criação sagrada de

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Deus e a Lei da Manifestação desceu. Entre erros e neiro, não recebem apenas o alimento físico e
acertos, o Parque se materializou. Agora, em pleno afetivo, mas algo mais poderoso, além do amor
acolhimento, cura, oração, prosseguimos a invocar e da compaixão. O que recebem... é um mistério.
aos céus que nos guie e ilumine. Um grande exército
de luz protege, convoca, atrai quem vive da alegria Tocados pela Graça, chegará o dia em que cada
de servir. Aqui nada fica cristalizado, a cada mo- cão terá a própria alma. A logomarca projetada
mento se descortinam possibilidades indicadas pela para o Parque, com patinhas a galgar em dire-
necessidade. Por vezes, como um clarão, a paz nasce, ção a um pássaro de asas abertas, é um símbo-
a calma, a quietude imutável. Reconciliados com a lo visual da transformação oculta ardentemen-
alma, tentamos cumprir uma ínfima parte do ofer- te almejada pelo Parque Francisco de Assis: a
tado agradecendo profundamente a Deus, ao reino possibilidade de, por amor, conduzir animais
animal, aos que se consagram aos reinos. prisioneiros da conflituosa vida do solo rumo
a voos transcendentes. Tanto simboliza sua as-
Na prática, o Parque resguarda cães rejeitados, censão até o ingresso no reino humano, quan-
escorraçados, machucados. Aparecem desfale- to representa humanos que se deixam guiar
cidos em colos, olhos cerrados em agonia. Pas- pela energia de seres como São Francisco de
sam por um intenso processo de cura durante a Assis. Para os amados cãezinhos trilharem a
inusitada experiência de vida grupal com outros senda do resgate rumo a uma consciência mais
cães e humanos amorosos. Nesse trabalho pio- elevada, o Parque abre seus portões verdes.

65
DIA A DIA,
DE JANEIRO A JANEIRO

Orelhas esvoaçantes, empinadas, longas e cur- pontas dos dedos, esperam ser tratados com
tas saltam em um átimo aos gradis. Patas e fo- meiguice, intimamente conhecidos e respeita-
cinhos aveludados se projetam dos losangos dos. Para tal, tanto desejo de estar com cuida-
metálicos das grades, saúdam em abundante doras amorosas. Escola de unidade e fraterna
comunicação, pedem carinho aos que entram compreensão mútua, tanto os caninos quanto
para a lida diária. Passam a observá-los, dão os humanos passam por intensa socialização,
uma palavrinha, oferecem mãos às narinas amadurecem, aprendem interagindo, obser-
curiosas e, em troca, ganham lambidas de vando-se mutuamente.
boas-vindas. Para a numerosa família canina,
os primeiros raios de sol nascem com a chega- O contínuo movimento traz, uma e outra vez,
da daquelas deusas do alvorecer, que adoram. os resgatados, e leva os recém-adotados. Em-
Passarão horas a tratar os canídeos com desvelo, bora confinados em compartimentos gradea-
alimentá-los, fazer curativos, lavar suas mora- dos, uma experiência variada e multiforme os
das, harmonizar o espaço. Daí a combustão co- reconecta com a dignidade, conduz por um
letiva de alegria cotidiana quando os corações caminho mais suave e profundo que o de cães
caridosos aparecem nos portões. Arrebatados, errantes a vagar sem rumo. Participam ativa-
centenas de rabos abanam. Para a visão descui- mente da vida local, não lhes faltam assistên-
dada e alheia, que passeia pelos pátios e alas do cia à saúde, companheiros humanos e caninos,
canil, essas criaturinhas inflamadas, que atiram odores, visões, sons, mas, além de tudo, há um
duas patas às grades para transpô-las em busca sentido oculto para a estadia temporária ou
de chamegos, assemelham-se. Porém, o olhar permanente dos que se aproximam desta ir-
atento logo percebe o quanto são singulares mandade interespécie.
em corpo, variadas em essência.
Às sete e tal da manhã de mais um dia qual-
A instrução mestra deste lar de cães é tratá-los quer, a equipe toma desjejum no refeitório. A
como seres humanos, jamais subjugá-los. A conversa sobre o trato de cães corre animada
palavra de ordem e maior energia de cura é o quando, entre um gole e outro de café, a cui-
amor. Essa é a visão e o compromisso sagrado dadora é chamada para atender Seu Joaquim.
do Parque Francisco de Assis. Para se eleva- O mendigo, parado a poucos passos da entra-
rem, os quadrúpedes mamíferos carnívoros da, carrega um saco de ráfia branco, em cujo
domésticos, que andam com delicadeza nas fundo há nove filhotinhos amontoados. A pro-

67
tetora de cães que o levara explica indignada o maior instrumento para manter o fogo ima-
que, quando estava deixando seu lixo para ser terial aceso, foi montada uma Sala de Oração
coletado, encontrara o mendigo dizendo que junto à Casa de Cura, no mesmo dia em que
entregaria o saco com um cão para os garis. uma colaboradora sonhara que, nos planos in-
Ela retrucara: Caminhão de lixo não leva cachor- ternos, essa salinha ardia em chamas. À qual-
ro morto, deixa eu ver. E descobriu filhotes vivos, quer hora, ali entra alguém, reverencia, cerra
que teriam sido esmagados no caminhão com- os olhos e se une à voz-guia, conversa com o
pactador, caso ela não interferisse! invisível, invoca a graça divina, evoca a ajuda
dos habitantes do espaço e das entranhas da
Atrasada para o trabalho, os dois se vão e a cui- terra, protege-se com o sinal da cruz e sai para
dadora relembra: Três dias antes de morrer, minha retomar a atividade.
mãe disse: “Você está certinha em ajudar os outros,
mas Seu Joaquim não”. Por 20 anos, eu e um grupo Assim passam o dia. Quem cuida de cão preci-
de pessoas lhe demos uma cesta básica. Morava na sa rezar junto ao doente, ao que falece, antes
rua, almoçava e jantava em minha casa. Descobri- das refeições. Ora baixinho, ora em silêncio,
mos que o pai lhe havia deixado de herança quatro ora cantando. O amor também é oração. Diz
lotes com uma casinha. Um militar pagou seu IPTU, uma coordenadora: Nada melhor que abraçar um
reformou, mobilhou-a e, com uma professora, ainda cão com amor, conversar com amor e ele olhar com
pagou o INSS até aposentá-lo. Seu Joaquim come- a carinha de amor. Isso é oração, faz muito bem para
çou a plantar verdura. Um dia, pedi que tomasse a alma. Concluída a conversa com meu Deus e
conta de um cão de rua e o soltou em seguida. En- meu Tudo, como dizia São Francisco, a equipe
tão, parei de ajudá-lo. Não é certo da cabeça, foi tão se distribui pelo muito a fazer: lavar baias ou
amparado... Talvez merecesse por uma vida passa- limpar a área externa, medicar e tratar na Casa
da. Há muitos casos de cães deixados no lixo. de Cura, ir para a lavanderia. Mantas, cober-
Quando os garis atiram o saco no compacta- tores e toalhas são trocados e lavados diaria-
dor do caminhão não há nada a fazer, pois são mente. Antes, uma voluntária esfregava até os
prensados. Só percebem o sucedido pelo san- braços doerem e passava para outra, iam tro-
gue, ao despejar o conteúdo no lixão. cando até dar conta das infindáveis pilhas de
roupa suja. Mais tarde uma máquina de lavar
Uma gama de vibrações, das mais grosseiras comum logo estragou pelo excesso de trabalho.
às mais sutis aqui interage. Os nove bichinhos Agora usam uma industrial, um alívio.
são enviados para a enfermaria, enquanto as
funcionárias vão se trocar. Algumas rezam an- Um grupo canino é mais ou menos evoluído
tes de iniciar o ritmo diário. Como a oração é pela forma como trata sua morada. Basta ob-

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servá-las antes da lavação diária para detec- contraste, os introvertidos e velhinhos apenas
tar o quanto se diferem. Os mais evoluídos levantam a narina a farejar aromas distantes,
repreendem os recém-chegados e os ensinam além dos emitidos pelos produtos químicos
a manter os alojamentos limpos, a fazer as artificiais de limpeza, que tanto aprazem mu-
necessidades em um só canto do solário; já lheres, mas agridem as sensíveis narinas cani-
os menos evoluídos são bagunceiros, desali- nas. Cães aceitam enjoativos odores artificiais
nhados, atiram ração no piso. Um único cão, por amor e por significarem a proximidade de
tanto pode elevar quanto rebaixar a vibração pessoas. Também banhos agradam mais aos
dos colegas. humanos, pois os peludos não se incomodam
com os fortes odores orgânicos emitidos por
Um bando segue a funcionária preferida como corpos, ao contrário, não lhes dá grande prazer
patinhos atrás da pata. Em frenesi, os confina- a higiene perfumada promovida por pessoas;
dos saltam pedindo afeto dos que entram para sentem perder sua maior identidade: a odorífi-
lavar, trocar a água, completar a ração, que ca. Para voltarem a se sentir cães, logo após la-
devoram fartamente. A vida de tagarelas sa- vados uns deitam, rolam e se esfregam no solo
livantes e extrovertidos ferve, incessante. Em até readquirir cheiros.

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Ao meio-dia badalos ecoam, alguém passa pe- como Jesus carregava o cordeirinho. Há um sig-
los caminhos com um sininho anunciando a nificado interno em todas as ações, de forma
hora do almoço humano. Os cães sabem, in- simples e invisível, os cuidados da casa aproxi-
diferentes. Entorpecidos pelo calor ou embala- mam todos da senda. A luta para expulsar imper-
dos pela chuva miúda, alguns cochilam ao Sol, feições e sujeira faz, da vassoura, uma espada. O
outros se recolhem à sombra. Com parte das Criador sorri. Sobre as cabeças tenazes das faxi-
baias lavadas e os corações arejados por mi- neiras brilha uma coroa de fogo. Terminado o afã,
mos, aquietam-se, espreguiçam-se e se espar- asas descem de outras dimensões, contemplam
ramam pelo chão, de olhos ainda atentos. Um em torno e encantadas dizem: Que beleza!
ou outro latido resiste, sem resposta, até um
mistério os irmanar em uma lembrança ances- ЖЖЖ
tral. No meio do dia e da tarde e no fim da tar-
de, um solitário uivo contagia a comunidade. Hora a hora, tanto nas baias, quanto nas en-
Todos respondem em uma só voz, uma cons- fermarias da Casa de Cura onde os enfermos
ciência única. O eloquente e harmonioso coro são internados, prossegue a ação sintonizada à
de uivos cria uma inexplicável ligação com o oração, para resgatá-los da miséria ora provo-
universo. É belo. Diante da comunhão coletiva, cada por doenças, ora pelo mau humor huma-
os humanos se calam e elevam os pensamentos no, ora por agressões mútuas.
ao infinito. Tendo tocado estrelas, em segundos
o lamento decresce; um potente silêncio se im- Um alimento extra é preparado na cozinha
põe ao ambiente traspassando almas sensíveis. dos cães para os debilitados que não comem
ração. Três quilos semanais de suculenta sopa
Às tardes, o trabalho humano prossegue, vibran- de fígado, arroz e algum legume é batida no
te. Quinzenalmente, na véspera da castração, um liquidificador e armazenada em pequenas por-
turbilhão assola a Casa de Cura: sala cirúrgica, ções, sendo, em seguida, congelada. Até essa
enfermaria, farmácia e entorno são faxinados cozinha ficar pronta, era cozida nas casas de
sem fadiga. Cadeiras, bancos e suportes para voluntárias. O complemento alimentar é dado
soro ficam de pernas para o ar sobre as mesas. lentamente em uma colher ou, mais líquida,
Móveis são arrastados. Espuma nas paredes, es- em uma seringa para os debilitados. Atraídos
puma nas poças brilhantes. Braços fortes atiram pelo fumegante aroma, os mais saudáveis dei-
baldes d’água. Lavam o chão, lavam a alma, la- tam na porta com olhos pedintes.
vam os lábios, lavam a loucura do mundo. Pu-
rificam os corredores por onde, no dia seguinte, Enquanto isso, uma família imensa de pardais,
transitarão humanos aninhando cães no colo, canarinhos e outras aves saltitam, pipilam e

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chocam no telhado da Casa de Cura. Como grande instinto maternal, deu um jeito de ir
sujam demais, a curadora pediu-lhes que se re- roubando aos poucos os da companheira. Am-
tirem. Mas não querem. Uma latição intensa é, bas ficaram felizes, Clarissa não gostava de ser
de repente, disparada por um fujão, que corre mãe. Depois foram castradas.
pela área externa. A comoção não diminui até
ser reintegrado à baia de origem. Antenada a Aqui não é o local ideal. Soluciona parte do
cada movimento, a comunidade canina a tudo problema drástico de superpopulação de vira-
segue e reage taxativa. Parece berrar: Volte para -latas criado pelo homem. Resolve um pouqui-
seu lugar! Você está fora de ordem! Alguns recla- nho da questão da saúde pública.
mam: Também quero correr!
A curadora é reconhecida e reconhece todos,
Alguém entra sorrindo, abraçada a cachorri- pois recebe cada novato. Os abandonados do
nhos minúsculos, acalentando-os e beijando a lado de fora são carregados nos braços ou em
maciez ronronante. Nunca se rejeitam mamães cobertores. Diz com a mão na cabeça: Ah, meu
com crias ou órfãos; chegam em levas, apesar Deus, meu Deuzinho, mais gente trazendo cachorros.
de ali não ser um bom local para ficarem, uma Nossa Senhora, Jesus! Muitos chegam em agonia,
vez que o ar está repleto de vírus, mesmo os olhos esbugalhados tentando erguer a cabeça
adultos sendo vacinados. Filhotes são extrema- em esforço penoso. Outros vacilantes, cabisbai-
mente sensíveis, precisariam de um ambiente xos, os rabos abanando lentamente, a claudicar
climatizado; enquanto mamam na cadela va- sem firmeza nas pernas. Ou ainda assustados,
cinada, ganham resistência, criam anticorpos, descarnados pelo tempo de rua, mordendo a
mas longe dela, quanto antes forem adotados, corda para fugir. Alguns chegam famintos, tris-
melhor. Os nove trazidos por Seu Joaquim es- tes, medrosos. Outros vêm só para morrer. Ou
tão desmamados, têm dentinhos e já comem. estressados e perigosos, como João Grandão.
Os mais saudáveis serão selecionados para a Tentou morder três pessoas, mas acabou por
feirinha dominical de adoção. respeitar uma delas, permitindo-lhe limpar sua
baia. Com certeza, amansa e se molda à vida
A cadela no cio não quer ir para a rua, se lá está comunitária. Podem ser levados diretamente
é porque foi abandonada; aqui só procriam para a mesa da sala cirúrgica ou colocados na
quando chegam prenhes. Garnisé, uma vira- Área da Alegria próxima da entrada. Lá os tem-
-lata cinza de porte médio, chegou na hora de peramentos são analisados, se agitados ou tran-
dar a luz. Por falta de espaço, foi colocada com quilos, antes de inseri-los em um grupo canino.
Clarissa, outra grávida. Deram cria no mesmo Nessa área, começa o processo de cura: familia-
dia, Garnisé seis, Clarissa cinco. Garnisé, de rizam-se com o ambiente, o cotidiano, as pes-

72
soas e os da mesma espécie. Quase sempre as a perder, comentando: Estou fazendo doutorado
condições de saúde emocional e física estão li- em administrar caos. Fim de semana é pior. Tem dia
gadas a um simples chamego, e rápido respon- que brigam, outro desencarna de repente, o emocio-
dem às mãos carinhosas e vozes fraternais. nal do grupo não está bem: água acaba, água jorra,
torneira quebra.
Sem parar de agir, a militante carrega um cão
silencioso, enquanto comenta o penar jubilo- Passam maritacas e passam bem-te-vis. O la-
so: Isso aqui dá trabalho, é cansativo, mas muito bor mantém acesa a fogueira que ilumina os
bom, traz alegria à vida. O mais difícil é lidar com caminhos e são abertas trilhas de mútuo per-
gente brava quando não aceitamos cachorros, que dão nas mentes e corações de cães e humanos.
reclama do mau cheiro e sai irritada. Muitos são to- Ambos se livram de velhos temores arraigados
cados, como a juíza, que se encantou com a ordem e e se abrem para transformações profundas. Hu-
a limpeza. Um sábado, faltou água, faltaram fun- manos se reconciliam com cães de um olho só,
cionários, chovia a cântaros e, ainda por cima, cães de três patas, cães-problema, cães neuró-
chegou um cão atropelado, a desencarnar. Ela ticos, cães felizes. Diariamente, um forte vento
parou um instante, elevou rapidamente o ros- traz uma nuvem de problemas e o próprio ven-
to e os braços aos céus por não haver tempo to sopra contente as soluções encontradas.

73
ЖЖЖ

Em torno da Casa de Cura foram construídos


ou reformados três galpões, além de recintos
individuais, para estruturar a vida grupal dos
caninos. Com um alojamento coberto e um so-
lário, as baias são numeradas: A6, B15... mas,
no dia a dia, são chamadas pelo nome dos mo-
radores antigos: baia do Seu Nélson, baia da
Maggie, baia do Rajado. Poucas permanecem
inalteradas por longo tempo, pois, por adoção,
doença, briga ou morte, o remanejamento é
constante.

A hierarquia de poder em um grupo canino e o


processo de auto-organização dos animais que
se afinam entre si em uma baia é um enigma a
ser pesquisado em um canil. No início do Par-
que, os grupos foram subdivididos e localiza-
dos segundo os tamanhos: porte pequeno, mé-
dio e grande, mas não funcionou: importam-se
mais com a postura, não com a aparência um
do outro. Como faltam fórmulas para a forma-
ção de agrupamentos bem-sucedidos e harmô-
nicos, o método de tentativa e erro passou a
ser utilizado para se alcançar unidade nesse in-
trincado quebra-cabeças. O estudo da sua inte-
ração é permanente, tendo-se em conta o gran-
de problema: a maioria de machos briguentos
só aceita morar com fêmeas.

Nesse exercício de caridade, voluntárias con-


duzidas pela objetividade e simplicidade con-

74
sagram horas em experimentações. Os huma-
nos tentam, mas os próprios cães determinam
com quem ficam. Sendo impossível prever de
qual matilha farão parte, são introduzidos na
nova morada, pela manhã, para serem obser-
vados até o final do expediente. É uma tarefa
difícil, uma decisão também intuitiva. Para
a configuração ter sucesso, a quantidade de
moradores e o porte do cão são analisados;
também as afinidades e o temperamento de
quem será introduzido são observados: sabe
se impor, se garantir, ou é submisso? Há baias
temperamentais e baias sociáveis. Nas tem-
peramentais, disputam o poder, o domínio e
nelas só se tenta colocar um cão forte, que se
defenda. É possível introduzir um cão dócil, no
qual o peso feroz do instinto está sob maior
controle, com os que convivem em harmonia
tanto entre si quanto com outros grupos. Even-
tualmente, quando algum é retirado para um
tratamento prolongado, fica difícil ser aceito
de volta onde vivia.

As lutas são o termômetro da experimentação.


O primeiro encontro é tenso. Cada novato pas-
sa por provas até ser ou não admitido como
membro: permanece assentado, imóvel, hirto,
com o rabo entre as pernas, cabeça baixa, sen-
do minuciosamente farejado, inspecionado pe-
los antigos moradores. Uns emitem opiniões,
ameaçam, rosnam a mostrar dentes furiosos,
outros se afastam indiferentes. Caso o aceitem,
permanece; caso não seja aceito ou cause risco,
é retirado; caso fique muito tempo acuado, é ra-

75
pidamente afastado antes da primeira mordida Agem por instinto de matilha, avançam juntos
causar atrozes agressões. O processo é repetido e, se não forem separados, matam-no. Como
outra e outra vez até o acerto da família adotiva. aqui há tanta luz, as forças negativas atacam
Encontrada no chão com marcas de mordidas, mais. Principalmente, se um líder investe com
Jade passou um tempo na enfermaria; recupe- ímpeto e a vítima permanece assentada sobre
rada, foi para outra morada. Na antiga, tinha as patas traseiras ou deita sem reagir, é cerca-
um comportamento, sempre mal-humorada, da. Em selvageria, atacam-na em uma luta mor-
vivia em um cantinho; não deixava ninguém se tal. Mordem seu pescoço, rasgam a carne com
aproximar. Resgatado o contato com o ser hu- dentes afiados. Os salvos são medicados com
mano, retomou a autoestima e se transformou florais. Sentem demais, sobretudo porque, ge-
inteiramente. Agora pede carinho, corre alegre, ralmente os atacados são os que não criam
sente-se importante e amada. caso, segundo os humanos. Mas, no reino
animal, o débil torna-se vítima do forte. Ser
A maioria compete por afeto, razão de súbi- pacífico não é o ideal.
tas cenas de ciúmes contra um especialmente
acarinhado, em cuja pelagem ficou impresso o Dos 70 agrupamentos, por volta de 20 cães
odor de mãos. Os humanos não aprovam, edu- têm gênio forte. Apesar de terem promovi-
cam: Que feio! A maioria para, quer agradá-los, do cenas pungentes no passado, estão mais
mas há dois cães traiçoeiros, temidos por atacar equilibrados. Certos mandões se renderam
pessoas inesperadamente. Os que mais promo- ao constante entra e sai, outros foram adota-
vem atos de violência ficam em baias menores, dos e inserções mais tranquilas os substituí-
mais isolados; ainda assim se golpeiam através ram. Grupos irritadiços insistem em não se
da tela. Mesmo morando juntos há tempos, re- transformar e se negam a ter novos compa-
pentinamente se confrontam, resmungam de nheiros. Sem dúvida, o pior caso foi o de Da-
cá, resmungam de lá, podem ou não chegar às vid, trazido pela polícia. Era um pastor com
vias de fato. Quando cismam com um, precisa problemas neurológicos e mentais, metia
ser logo remanejado. Não se identifica o por- medo; esperava-se qualquer coisa dele. Mor-
quê da mudança. Talvez, durante o processo dia até o ar. Morava sozinho na única baia até
de elevar a voltagem para transmutar alguma hoje trancada com cadeado, para não colocar
energia pesada, convirjam à batalha para um em risco algum desprevenido. Atacou a en-
determinado ser. Por razões fúteis, repentina- carregada da limpeza, que acreditara tê-lo ca-
mente algum emite um rosnado grave e, sem tivado. Daí em diante, seu recinto era lavado
mais nem menos, ataca um par com mandíbu- de fora ou entravam duas para o prenderem
las fortes, dentes projetados para comer carne. no gradil. Para piorar, David pegou cinomose,

76
e essa doença altamente contagiosa atacou
o cérebro. Tinha reações involuntárias, nin-
guém conseguia lhe dar comida, nem remé-
dio na boca. Para seu alívio, logo desencarnou.

ЖЖЖ

O encontro de uma matilha em algazarra,


uma explosão de instintos: essa é a primeira
impressão ao se entrar no Parque. Atentos à
intensa cacofonia, é possível distinguir uma
gama de tons individualizados, do grito so-
prano a um tenor histérico de um filhote, do
contralto preguiçoso a um grave lançado por
uma mandíbula assustadora. Como os hu-
manos, cada indivíduo-cão tem características
físicas e vozes distintas. Quem lida constante-
mente com eles passa a reconhecer cada voz,
percebe significados e mensagens transmitidos,
distingue qual rosna, qual chora, e por quê. Emi- O que exprime tal diversidade de sons? Na che-
tem uma surpreendente diversidade de sons gada de visitas, suplicam por afago e oferecem
médios e agudos, altos e baixos, dramáticos, cabeças sedutoras. Cumprimentam, pedem: Olá,
profundos e líricos: rosnam, ladram, gemem, me leve, vem cá! Os latidos são para chamar aten-
ululam, choram, lamuriam. Sua expressão vo- ção, participar dos acontecimentos. Também,
cal desenvolve-se para fazerem-se compreen- com certeza, para extravasar a energia acumu-
der, para agradar ao homem. Os domesticados, lada em poucos metros quadrados superpo-
repreendidos ao lançar um grito, aprendem a pulosos. Há quem sinta forte desprazer pelos
se controlar. No entanto, mal ingressam no ca- picos de caóticas trovoadas sonoras dia afora e
nil, se somam à confusão loquaz. Cães falam em momentos do repouso noturno, quando in-
alto e não se incomodam com o próprio alari- fluenciados pelo magnetismo da lua cheia.
do. Ouvem muitíssimo mais e movimentam as
orelhas na direção dos mais leves ruídos, inau- Além da linguagem sonora, a comunicação cor-
díveis para ouvidos humanos, como apitos ul- poral canina é expressiva. Seres sociais, usam
trassônicos tocados a quarteirões de distância. todo o corpo para se comunicar entre si, com

77
outros animais, com os homens: as orelhas, os o olhar, perdem imediatamente o interesse e as
olhos, a cabeça, a postura, os membros, a uri- cabecinhas giram na direção de um ponto de
na, a língua. A lambida é como um beijo, uma vista mais divertido. Comenta uma observado-
expressão de afeto. Em constante prontidão, ra: Antes eu passava para acariciar. Gostavam, mas
reagem a cada estímulo: com a postura ereta, provocava ciúmes e briga. O que fazer? Um dia pa-
enrugam focinhos mostrando dentes em sor- rei à distancia, crivei meus olhos no deles e os fechei,
risos ou ameaças; agacham com orelhas para bem quieta. Inclinei a cabeça a reverenciá-los, orei e,
trás ou barriga para cima para demonstrar sub- aos poucos, fui levantando-a. Estavam assentados
missão; os olhares brilham amorosos ou agres- eretos, imóveis. Olhinhos de quatro baias me fitavam
sivos, enevoam-se tristes ou saudosos. Rabos em silêncio. Estendemos os olhares ao profundo uns
curtos, compridos, finos ou peludos, relaxados dos outros e fios de compreensão acenderam; e desde
ou enrolados balançam excitados, chicoteiam então, reacendem sempre que passo por ali.
alegres o chão, ficam hirtos para um ataque;
segundo o vigor e tipo do abano, expressam Mais que pelo olhar, compreendem o mundo
uma gama de emoções como nervosismo, pelo faro. A acuidade olfativa de um cão é mi-
medo, euforia, intensidade. lhões de vezes maior que a humana. Farejam
até características emocionais, medos, tristezas.
Fazem da vida um constante campo de aprendi- Pelo rastro de odores, deixados por moléculas
zagem. Imaginam, sonham e parecem jamais se de pele desprendidas pelos caminhos, identi-
habituar ao cotidiano. Seus sentidos em alerta ficam onde tocam e por onde passam. Assim
vasculham e acompanham as incessantes idas como seguimos estradas mapeadas, seu GPS
e vindas visuais, olfativas e auditivas do am- olfativo rastreia pistas de animais e huma-
biente. Hábeis antropólogos, avaliam o caráter nos. Apreendem realidades invisíveis para os
e comportamento humanos, desvendam as in- sentidos do homem, como detectar o odor de
tenções através de pequenos indícios: colhem doenças, prever um ataque epilético, identificar
informações de posturas corporais, interpretam doenças. Também pelo faro reconhecem ervas
expressões faciais examinando rostos, veem medicinais para seus males. Sendo o próprio
campos magnéticos. Sensíveis ao contato visual, odor sua identidade pessoal, conversam entre
reagem instantaneamente ao encontro de olha- si, assinando territórios com urina, para enviar
res com um passante, seja de forma desconfia- recados olfativos a vizinhos de ruas ou a com-
da, seja de forma animada, aos saltos ou ficando panheiros de baias: antes de urinarem, esticam
em pé contra a grade. Se um é olhado ou acari- os longos focinhos úmidos, analisam a poça do
nhado, outros se aproximam implorantes, ávi- líquido amarelado deixado por colegas a deci-
dos de afeto; todavia, basta o humano desviar dir se cobrem-na em sinal de autoridade e lide-

78
rança, ou deixam sua marca mais perto ou além
para afirmar submissão. Alguns até arranham
vigorosamente o chão para liberar emanações
das células das patas e firmar a identidade.

ЖЖЖ

Apesar dos maus tratos, do massacre de mi-


lhões de animais e da indiferença recebida,
cães saudáveis mantêm excepcional estima e
devoção por seus benfeitores, expressando-
-lhes amor e humildade e obedecendo-os, pois
são seres puros e sem preconceitos. Escolhem
com quem ficar, onde dormir, qual adulto obe-
decer. Demonstram intenção agressiva apenas
se muito traumatizados, ou se julgam ser guar-
diões de alguma casa ou território, ou adestra-
dos para esse fim. Tendo evoluído por milhares bre outros viventes, além de amado, observa-
de anos lado a lado dos homens, foram domes- do e tratado, tenta-se nomear cada cão, o que
ticados e adquiriram uma inteligência única facilita sua ascensão evolutiva. De pelagens e
no reino animal; segundo pesquisas, têm uma portes semelhantes, muitos parecem idênticos,
inteligência concreta com o potencial de uma sobretudo os pretos e os ruivos, que se diferen-
criança de três anos. Até certo ponto, com- ciam apenas por um detalhe, uma pintinha, a
preendem a linguagem humana. Distinguem forma do rabo. No entanto, o mais importante
um sim de um não. O fato de reconhecerem o é que cada qual tem uma história única e ga-
próprio nome, além de outras palavras, ênfa- nha um nome para ajudar a moldá-la, escolhi-
ses e tons que lhes são dados, demonstram es- do por alguém amoroso que entre em conta-
tar a trilhar o momento evolutivo da formação to com a necessidade vibracional daquele ser.
de um núcleo de alma, razão pela qual necessi- Como? Por exemplo: uma cadela precisava ser
tam ainda maior contato com os homens. nomeada. Quatro mulheres em ação-oração
estavam na cozinha. Foi pedido silêncio, fecha-
O nome é verbo e, como verbo, vibra. No Par- ram os olhos e emergiu o nome mântrico Lis.
que, obra reveladora do poder do homem so- Muitas vezes, há tal afinação e comunicação

79
sem palavras entre os membros do grupo, que
um pensa e o outro faz, um faz e o outro capta
o feito. Assim foi com outro caso: alguém pen-
sou em dar um nome bíblico para estimular o
renascimento de um passado lamentável. Dez
minutos depois, soube que o cão fora denomi-
nado Noé.

Quem nomeia? Quem captar o som correto. To-


dos são convidados a chamá-los pelos nomes
mântricos, históricos, bíblicos: Antu, César,
Noé. Nomes de gente, flores, minerais. Cores:
Maia, Margarida, Jade, Branco. Nomes estran-
geiros: Julie, Bill. De atributos: Alegria, Amor.
De referência mariana ou astrológica: João,
Luna. Jamais são nomeados por sons que en-
fatizem defeitos, como Sotrês, para um cão de
três patas, ou Treme-Treme, se tem mal de Par-
kinson. Na mesa cirúrgica, a veterinária nomeia
alguns para identificá-los nas receitas médicas.
Sempre busca um sentido. Alguns divertidos,
como o de Sô João, que chegou para ser exa-
minado muito sujo e com o histórico de fujão,
de ser um exímio escalador de telas. Uniu sujão
com fujão e ganhou o respeitoso: Sô João.

É sobretudo difícil reconhecer os cães das baias.


Para distinguir quem toma tal anti-inflamató-
rio ou tais gotas, são nomeados na enfermaria
e alguns passam a reconhecer o próprio nome.
No passado, experimentou-se coleiras com nú-
meros, mas um arrancava do pescoço do ou-
tro, machucando-o e entupindo ralos. Aqui, a
individualidade não é dada por um microchip:

80
é a individualidade do amor. No intuito de tra- sobre resgate de cães na Antártida. Janta-se.
tá-los como gente, cada um recebeu um RG em E o dia é encerrado, na Sala de Oração, volta-
crachá de plástico, como o dos humanos, com dos para o templo íntimo. Os cães e as pessoas
nome, número, fotografia, sexo, se era ou não mergulham em um sono profundo, restaura-
castrado, breve histórico, características físicas dor, que os une em outras esferas. Porém, os
e de personalidade. Muito ajudou mas, depen- caninos investigam a escuridão. Mesmo em si-
durados no gradil das baias, se molharam. Uma lêncio são vigilantes noturnos com inimaginá-
terceira experiência vem sendo tentada: colei- veis ouvidos, olfato e olhos panorâmicos que,
ras de cabo de aço fino presas por conectores embora captem mais luz, distinguem menos
elétricos carregam plaquinhas metálicas com cores que os olhos humanos. No quinto sono
seus nomes escritos. Além de colaborar no mo- da madrugada podem se alvoroçar, caso algum
mento de tratamentos e adoções, isso os indivi- colega escape, um gato passe ou um vulto in-
dualiza, destaca-os e salva-os da massa. vada o território. A fase da lua também tem
grande efeito sobre suas emoções. Na lua nova,
Da sombra geométrica projetada pela Casa de dormem. Na lua cheia, uma sinfonia de uivos
Cura aparece uma recém-chegada cor de mel em júbilo louva a nave branca deslizando en-
e olhos tristes, o dorso rebaixado, o rabo des- tre frestas de nuvens.
confiado entre as pernas estampando temor,
as orelhas puxadas para trás, em ansiedade. No amanhecer frio e nevoento do inverno, ou
De longe, explicam que se chama Valentina – banhados pelas esplendorosas primeiras luzes
um nome valente para transformar a medrosa. do outono, passarinhos anunciam o fim da es-
Chamamos: Valentina, Valentina. Nem respon- curidão. Cantam espaçadamente. Vão cantando
de, nem se aproxima, nem olha. Com traços com mais força para as cores da aurora, guia da
emocionais de evitação temerosa a outros cães fé dos que atravessam os gorjeios alados e os es-
e seres humanos, a vibração do novo nome parsos latidos de bom dia, até a Sala de Oração.
a convidará a traspassar horrores. Um nome Ali permanecem com a vela e os corações ace-
pode recriar uma história. sos diante da pureza da Mãe Divina, e da água e
do sangue da imagem do Cristo Misericordioso.
Um dia resplandecente e fresco termina. Todos Dia a dia, de janeiro a janeiro, almas se oferecem
se vão, a tranquilidade se instala. Seres diur- ao serviço cotidiano e ao Universo, que é Deus.
nos, em torno das 19 horas, os cães começam
a relaxar e cochilar. Estrelas distantes salpicam O tempo passa como uma brisa. Em alerta, os
a imensidade. Na casa de hospedagem, o com- cães aguardam a chegada de seus raios do Sol:
portamento canino é estudado em um filme as deusas do amanhecer, a quem adoram.

81
CURA DO CÃO,
DO SER HUMANO, DA ÁREA

Sem juízes ou clubes a oferecer troféus, deter- pirituais e anjos se uniram à ação-oração para
minar valores, defeitos, virtudes ou linhagens espargir graças e implantar um canal puro pelo
de raças, o Parque Francisco de Assis acolhe qual derramam milagres. Com uma campânula
sem preconceito qualquer mistura racial e invisível, protegem esse centro de resgate con-
característica canina: cães pretos, brancos, tinuamente moldado por atos, pensamentos e
louros, pintados, mestiços de pelagem cur- intenções de seres para ele atraídos. Minuto a
ta ou longa, de maior ou menor inteligência, minuto, a cura física está unida à espiritual e
qualquer doença, qualquer deficiência. Seus cósmica; um Poder Superior impulsiona, am-
portões se abrem tanto para os que vivem em para, transforma e a todos orienta.
ostracismo, quanto para os fora-da-lei ou, ain-
da, para os de pelo encaracolado, despreza- Ninguém passa impune. Cães curam humanos
dos após mimos em sofás e colos de senhoras. e humanos curam cães. Reunidos com a meta
Sem dar importância à aparência, igualmente de estender passos para a Luz, ingressam em
respeita cães sem registro de nome, data ou uma irmandade cujo condutor é o amor incon-
local de nascimento. dicional. Pessoas dedicadas abrem os corações
para consolar a dor canina, oferecem a presen-
Ao implantar um matadouro, o homem fez ça amiga para amenizar velhos aviltamentos.
adoecer as construções e a área ambiente cir- Cercados de atenção, vira-latas entregues ao
cundante. Assim sendo, as benfeitorias e o pró- conforto da companhia da grande família-Par-
prio espaço físico foram os primeiros a serem que, reconectam-se com a vida e reconquistam
tratados antes da chegada dos cães. A fim de a a dignidade abalada pela vida cinza, opaca e
cura se instalar, a ordem e a beleza foram busca- obscura das ruas. Quanto mais provas caninas
das por meio da cerimônia de remoção da vio- e humanas são transcendidas, maior harmo-
lência dos assassinatos: voluntários infatigáveis nia se instala, mais o reino animal se integra e
quebraram azulejos e arrancaram ferros, fazen- aprende com o humano. A vida sagrada ama-
do do gesto um símbolo de pedido de perdão durece e almas crescem, ora saltando abismos,
pelas consciências anestesiadas da humanida- ora em situações cotidianas aparentemente
de, que em todo o planeta matam sem compai- simples.
xão e se alimentam sem piedade de animais.
Nada é por acaso. Como o movimento tinha um O Parque é uma dupla vitrine, sem visões de-
Propósito Maior, de outros planos Mestres es- masiado róseas de extraordinárias possibilida-

83
des de cura, nem demasiado negras quando postes e troncos. Ouve a sinfonia de latidos, es-
expõe o mal que humanos infligem a cães. Uns pia de um lado a outro avistando dezenas de
são trazidos com saúde, outros padecem todo olhinhos brilhantes encarando-o dos cercados
tipo de dores. Vítimas de abandono e violência, próximos. Por fim, aquieta-se para receber o
apresentam transtornos físicos, emocionais, aroma de flores, escutar o arrulho das aves, a
mentais. A maioria padeceu demais, sobretudo melodia do farfalhar do vento nas copas das
os rejeitados por tutores que veneravam. Têm árvores, sobretudo atento para distinguir vozes
olhos suplicantes ou medrosos, moralmente humanas tagarelando na cozinha. Conforme o
traumatizados, demonstrando baixa autoes- corpo é nutrido e a sede saciada, as aflições, a
tima, pânico ou depressão. São os que mais melancolia e a angústia são dissolvidas. Mais
precisam de apoio para serem reeducados e seguro pelo ritmo diário, cochila na sombra de
se integrarem a esse oceano desconhecido de árvores, sonha, vai penetrando em chamas re-
resgate e cura. luzentes, enquanto a vida pregressa flutua para
Acolhidos com afeto, passam por um ritual até longe e se dissolve, irreal. Algo se implanta no
serem incorporados a um grupo canino. A de- animal problemático, que acompanha as pes-
pender do estado, são levados diretamente para soas com o olhar, até em pé, na grade, por fim
a Casa de Cura. Caso estejam fisicamente bem, pedir chamegos. Após noites com as estrelas
permanecem em avaliação na Área da Alegria, e dias movimentados, passa a amar o ser hu-
próxima ao refeitório, onde ocorre uma miste- mano, chacoalha o rabo chamando-o. Muda
riosa alquimia comportamental e psíquica. Não o comportamento, diminui a agressividade, o
um, nem dois, todos aí reagem; apesar dos prog- medo e, como resultado, fica mais complicado
nósticos, ficam mais amistosos, brincalhões. encaixá-lo em um grupo estável. Há uma regra:
chega um coitadinho, fica forte e põe as man-
Perplexo diante do novo destino, no recém-che-
guinhas de fora.
gado turbilhonam emoções confusas. Frente à
multiplicidade de impressões, afobadamente,
ЖЖЖ
desvela o mundo em torno; cautelosamente,
investiga o ambiente e outros cães, ali em pro-
cesso de cura: um rejeitado por apanhar ou um Na Casa de Cura, por vezes um cântico acalen-
macho alfa possessivo e brigão, que não se en- ta: Ave Maria, Gratia Plena, Dominus tecum, Be-
caixa em nenhuma baia. Circula, indeciso, pela nedicta Tu. Vem do coração de quem aceitou a
cerca divisora do ar e, minuciosamente, explo- senda do sacrifício. Ao lado da mesa cirúrgica,
ra cada canto, mapeia ora aqui, ora ali, a fuçar deixa o amor fluir para cães com câncer, doen-
o passado na bateria de urinas incrustadas em ça do carrapato, magérrimos, atropelados ou

84
convalescentes de cirurgias. Com simplicidade, é desenrolada, e a lesão limpa recebe uma boa
ameniza pânicos e murmura consolos: Vai pas- camada de pomada de própolis, antes de nova
sar, vai passar rapidinho. Comenta: Doença é falta atadura ser aplicada à parte afetada: Espera aí,
de luz. Por isso, como parte da terapia, nas ma- não fica mexendo, ralha a carinhosa, tocando a
nhãs, os cães das enfermarias são colocados ao própria cabeça à cabecinha peluda. Resignada,
Sol para serem alimentados, curados por seus Vita tudo aceita, mas é preciso usar focinheira
raios. Enquanto uns se exercitam livremente nos que reagem, avançam e podem morder. De
nas áreas externas, os paralíticos são cuidado- um em um, sucessivamente, todos os ferimen-
samente deitados em cobertores, com parte tos são tratados, como o de José, um cão manso
dos corpos na sombra para amenizar o calor. de andarilho trazido da rua com um terrível tu-
Cães cegos se locomovem de forma mais res- mor venéreo transmissível (TVT). Com espíri-
trita, outros perdem uma perna e correm com to de andarilho, após curado, fugiu e retornou
três, outros perdem duas e não se importam, em três dias com um rasgo longo, tão profundo
sequer têm consciência de estarem mutilados. que mostrava o músculo do coração. Uma vete-
Como reagiríamos se isso acontecesse conos- rinária afirmou que ele devia ter recebido uma
co? Podem até achar que têm quatro pernas facada, pois um corte de arame farpado é mais
porque, além do olfato e dos ouvidos muito superficial. Não faleceu por um triz; retornou
mais desenvolvidos que os nossos, enxergam por saber que seria tratado e, a partir de então,
o etérico, dimensão que não enxergamos. O decidiu não mais perambular.
etérico é um corpo sutil especialmente sensí- Ivo, um mestiço basset-lata devolvido há um
vel, um sistema energético bem unido ao cor- ano ao canil em situação lamentável, ganha
po físico, mas de vibração mais rápida. Quando um banho morno. Chegara adulto, fora tratado,
debilitado, é restaurado por devas. Quem sabe em seguida adotado. Tempos depois, o adotan-
os cães percebam anjos e devas a tratá-los? te o deixou na rua por estar sendo consumido
Cotidianamente, dezenas tomam medicamen- por um câncer anal. Seu estado piorou terrivel-
tos e têm os curativos trocados. Há uma en- mente até Ivo reconhecer uma voluntária per-
fermaria especial para os que se arrastam e os to da praça central e pedir-lhe socorro. Ela o
muito doentes, nela tratados entre suspiros e trouxe de volta. Magérrimo, luta contra a mor-
lamúrias. Na hora dos procedimentos, a gran- te. Padece dores constantes, gane fraquinho,
de ferida em carne viva da cadela Vita é pro- resmunga. Como cães consideram uma forma
tegida, pois nem o colar elisabetano a impede de domínio serem tocados no traseiro ou rabo,
de lambê-la, dificultando a cicatrização, pois a uma focinheira é colocada, enquanto o enor-
língua carrega micróbios. A atadura da véspera me tumor negro é tratado.

85
Os desidratados são colocados no soro por Reflete uma acupunturista de humanos e ca-
duas médicas veterinárias voluntárias, que ninos: Disse o amado Francisco: “Somente um
passam meio dia por semana para cuidar dos raio de Sol pode afastar sombras”. Um raio de Sol
casos difíceis. Caso não estejam presentes surgiu no horizonte para iluminar o caos, quando a
nas emergências, os desidratados recebem situação de cães abandonados de Lavras despontou
soro subcutâneo para criar uma bolsa sob a para uma nova realidade: deixar de ser sombra. O
pele, chamada técnica do sapo, absorvida aos grande curador Sol emana vibrações positivas, su-
poucos para hidratação. Comprimidos escon- tis, e se une ao sol que habita cada essência da Ter-
didos em pedaços de salsicha são dados nas ra. Banhado por seus raios, o Parque Francisco de
palmas das mãos para não mordiscarem as Assis transformou um local de terror em um espaço
pontinhas dos dedos. Uma mão se aproxima de harmonia e interação entre os reinos da natureza,
dos lábios negros de Estrela, recém-chegada tornando-se um grande curador em constante alqui-
com sangue nas fezes. Esperta, come a gulo- mia de caridade, humanidade e fraternidade. Enxer-
seima e cospe o medicamento; porém, abrem- ga beleza, mesmo nas carências. Pautados pela bus-
-lhe a boca e rapidamente empurram o remé- ca de oração contínua, adeptos de diversas religiões
dio para o fundo da garganta. Também tratam mantêm acesa a irradiação benéfica para cães, cada
sarnas com banhos, shampoos apropriados e dia mais pacíficos. Como um raio de Sol que dissipa
tratamentos diversos. É um problema de di- sombras, a entidade Parque remove a cegueira de
fícil controle e com alta incidência no local. quem maltrata animais, vitaliza corpos e almas, ofer-
Muitos perdem o pelo e impressionam pela ta vida nova a quem se aproxima.”
feiura causada pela sarna demodécica, provo-
cada por um ácaro. Essa sarna nunca é total- Uma dinâmica diversidade de propostas de
mente eliminada. Fica em latência e retorna cura se aproxima, com o intuito de vivenciar a
quando a imunidade cai. interação cão-humana. Todas as novas terapias
são acolhidas, permitidas e respeitadas, pois
O amor é magnético, quanto mais flui entre as se algo não fluir corretamente, o indevido é
espécies, tanto mais elas se conhecem, enrique- afastado do trabalho. Profissionais capacitados
cem. A interação energética entre quem atende contribuem de forma positiva para a melhoria
e quem é atendido coopera para que cães er- do estado de cães oferecendo consultas, trata-
rantes controlem seus instintos; para se resig- mentos e medicamentos ecléticos: alopáticos,
narem, se aceitarem e se alegrarem por viver no homeopáticos, fitoterápicos, auto-hemoterapia,
Parque. florais, acupuntura, terapia neural, ozoniotera-
pia, radiestesia do pelo, uso de pêndulo, mas-
ЖЖЖ sagens, banhos. Por exemplo, colhe-se o san-

86
gue para diagnosticar doenças hepáticas, dos
rins ou do carrapato, tireoide, anemia e outras,
e o hemograma é realizado em laboratório hu-
mano. Massoterapeutas fazem massagens lin-
fáticas para desinchar quatro perninhas com
acúmulo de líquido, propiciando-lhes alívio.
Voluntárias usam a fitoterapia – o poder tera-
pêutico verde – e colhem tanchagem, lavanda
e outras ervas de uso terapêutico: antibacte-
ricidas, anti-inflamatórias, cicatrizantes, re-
laxantes e calmantes, para aplicar em forma
de compressas. Não esquecem a imperatriz
das plantas medicinais, cuja aura é um arco-
-íris. Chamada planta dos deuses, desde a an-
tiguidade apoia o tratamento de mais de 200
doenças: Aloe vera L., conhecida popularmente
como babosa.

Comenta outra jovem acupunturista: Desde pe-


quena, admiro a vida animal. Em inocência infantil,
montava casinhas para besouros e por horas obser-
vava formigas. A imponência dos cavalos me gerava
a sensação de liberdade e unidade com o Todo. Em
especial, os cães me marcaram como fontes de ale-
gria e me trouxeram o senso de responsabilidade. Fui
tocada pela iniciativa grupal do Parque. Agradeço a
oportunidade de aqui servir. Comecei nas tardes de
domingo, oferecendo atenção individual a alguns:
banhava, tirava carrapatos, levava para passear. De
coração apertado diante de tantos olhares clamando
por cuidados, procurava emanar o meu amor àque-
les seres e àquele lugar; a presença acolhedora e o
carinho são ferramentas de cura. Meses depois, pas-
sei a auxiliá-los através da arte antiga da Medicina

87
Tradicional Chinesa. Começamos a sessão com uma
massagem na coluna, pernas e orelhas, por serem
microssistemas em que todos os órgãos estão repre-
sentados, mas também tonificamos outros pontos do
corpo. Utilizamos principalmente a Craniopuntura
Japonesa para tratar pontos ligados à coluna lombar:
membros, cérebro, cerebelo, rins, fígado, baço. Duas
cadelinhas com problemas de locomoção responde-
ram ao tratamento e voltaram a andar. Também tra-
tei, com Craniopuntura, três vítimas de atropelamen-
to: Bianca, Lucky e Nicolau. Evitei massagear e colo-
car agulhas nas pernas e na coluna lombar de Bianca,
pois ficaram doloridas depois de uma cirurgia; dócil
e receptiva, aceita bem as sessões. Já Nicolau, era um
idoso com pouca energia vital, musculatura das per-
nas atrofiadas, sem nenhum tônus. Orientaram-me
a colocar a mordaça, pois a dor o deixava imprevi-
sível e poderia morder, mas não ofereceu resistência.
Apesar do corpinho cansado, os olhos se tornaram
mais vivos a cada sessão e, após o terceiro encontro,
me olhava de forma penetrante. Sete dias depois fez a
passagem. Os Anjos te acompanhem, Nicolau.

Totalmente aberto a experiências e técnicas res-


tauradoras da qualidade de vida, o canil aplica a
Musicoterapia desde quando os cães brigavam
demais e, até mesmo, agrediam pessoas. Mal
o grupo descobriu a função da música erudita
como processo terapêutico de restauração da
harmonia da vida, alto-falantes foram instalados
nos galpões. Iniciou-se o trabalho com criações
de Mozart e Bach. Em parte por essa razão, fica-
ram muitíssimo mais amistosos. Estudos cientí-
ficos sobre a vibração da música nas águas, nas

88
plantas, nos animais e nos humanos compro- fazer uma medicina veterinária preventiva e apro-
vam quão tremendo é seu poder, tanto para o fundar o estudo de procedimentos para melhorar a
bem como para o mal, pois forma a consciên- saúde canina e, assim, evitar doenças.
cia, influencia a matéria física, as células, os áto-
mos, afeta a respiração, o ritmo cardíaco, relaxa Entrevistada, uma professora da Universidade
ou irrita os nervos, influi na pressão sanguínea. Federal que trabalha com Patologia Animal e
Apesar desse processo de cura ainda não ser cla- necropsia relata: Na minha profissão, eu lidava só
ro, afirma-se: os estímulos de efeito benéfico da com a morte, sem nada fazer pela vida. Meu coração
música refinada organizam células nervosas e estava ficando duro e frio. Como profissional, queria
equalizam ondas cerebrais, como se o som, pe- desistir. Aqui, passei pela mesma transformação que
netrando pelos ouvidos, massageasse tanto o a do Parque, de ser um matadouro, lugar de morte, e
cérebro quanto os órgãos internos dos ouvintes. passar para a vida. Tornei a ser mais humana, me sin-
to veterinária de verdade. Foi uma redescoberta. Foi
Criada por artistas ardentes orientados pelo sa- curador, liberador. Parei de fazer terapia. Uma das
grado para servir e espiritualizar irmãos, a músi- minhas metas era fazer um trabalho voluntário, algo
ca de qualidade abre janelas. Derrama luz e cura mais importante, um trabalho interno. Alguns alunos
através dos ouvidos. Leva a experiências trans- também estavam desistindo do curso de veterinária
cendentes. Pode acender o fogo da essência até por causa do sistema, que é bruto e não os compreen-
em corações duros e gelados. Recentemente, de. Entram com vontade de ajudar, poderiam ser bons
uma massoterapeuta em primeira visita, cruzou profissionais, pessoas do amor mas, na universida-
um galpão em torno das 14h30. Ficou profun- de, há um número reduzido de atendimentos a cães e
damente impressionada pelo quadro inusitado: suas doenças. Aqui, há muito atendimento a ser rea-
dezenas de cães deitados em silêncio a escutar, lizado. Elaborei um projeto para os alunos ajudarem
relaxados, um CD em glória à Mãe Universal. no necessário. Encontraram um estímulo, um sentido,
Paralisada pela postura reverente dos animais, uma aplicabilidade do que aprendem. Em poucos lo-
seus olhos lacrimejaram. cais se consegue tantos animais, livre acesso e uma
relação tão boa com as pessoas.
ЖЖЖ
O propósito é não haver acasalamento. O gru-
Acolhidos com sorrisos, há campo de trabalho po segue uma guiança espiritual. Sabe que no
para todo médico veterinário. Diz uma: Os cães animal castrado, a energia antes direcionada
recebem muitos cuidados mas a visão e conhecimen- para a sexualidade se eleva e ele tende a de-
to profissional são diferentes de quem só tem a práti- senvolver seus núcleos mental e anímico. A
ca. A qualidade do tratamento cresce. É importante agressividade advinda da energia sexual dimi-

89
nui, embora um cão agressivo por personali- tomia, que corresponde à retirada dos pelos da
dade apenas se acalme, não se transforme por área de cirurgia. Em seguida, para identificar os
completo. Após a castração em massa, o com- castrados, na parte interna da orelha esquerda é
portamento geral melhorou, há menos brigas e injetada anilina de coloração verde com agulha
caminhos mais pacíficos que os das ruas. subcutânea, formando uma pinta-tatuagem de
2 cm. Na sala cirúrgica é feita uma antissepsia
Desde os primórdios, um médico-veterinário rigorosa. O anestésico geral injetado na veia
da capital castrou centenas. Ele nos diz: Fran- tem drogas associadas visando um efeito mais
cisco de Assis é o maior símbolo de proteção animal, suave. É usado um instrumental autoclavado
um atributo e movimento femininos, como compro- individual, uma luva estéril por animal, lacre
vamos aqui. O Parque é uma experiência linda, nun- para sutura, em vez de fio de algodão ou sintéti-
ca vi nada igual; seu poder extraordinário de trans- co, e uma braçadeira para ligar o ovário, o útero.
formação toca qualquer um. Emociono-me, sinto-me
privilegiado em participar. Acho necessário, mas Das primeiras veterinárias voluntárias, que fez
poucos veterinários em tempo integral dariam conta castrações químicas em 2011 recorda: Cerca
de assumir um posto tão nobre: não é para qualquer de 200 machos foram quimicamente esterilizados
mortal. Relembra: No início, tivemos a oportuni- de forma segura e rápida. Não mais reproduzem e
dade de fazer castrações em recintos sem nada a ver continuam saudáveis. Ganhamos o produto, mas
com uma sala cirúrgica. Evoluiu muito até a boa es- surgiram polêmicas, opiniões contrárias à castração
trutura do centro cirúrgico atual. química, como se fosse uma técnica inaceitável, pois
provocaria câncer. Sem conhecê-la, afirmavam ser
Todos os veterinários que trabalham no Parque dolorosa e ocasionar lesões futuras. Foi realizada
usam uma técnica de castração antiga, que foi graças à paciência e bom senso das coordenadoras.
rebatizada de técnica da incisão minimamen- Na verdade, a técnica é indolor e não provocou qual-
te invasiva ou técnica do gancho. Foi escolhi- quer lesão em decorrência da aplicação. Aconselho o
da pelo grupo para que os cães sofram menos, método e, também, a castração cirúrgica, que evita
para que o pós-operatório seja mais curto, para problemas de câncer de próstata nos machos. Tendo
lhes ser aplicado um mínimo de medicamen- feito atendimentos clínicos semanais, por vezes cirúr-
tos, para que tenham uma vida normal assim gicos, e aplicado quimioterapia, comenta: No início,
que retornam da anestesia e para que possam meu coração doía, sentia um nó na garganta, ficava
ser soltos em cinco dias. Primeiro, o animal é com lágrimas nos olhos pela impotência diante de
avaliado. Então, a veia é pega e recebe uma pré- tantos necessitados de cuidados veterinários, amor e
-mistura de anestésico com poucas intercorrên- carinho para sobreviver. Por mais que se fizesse, pa-
cias. No pré-cirúrgico, é feita a chamada trico- recia pouco. Durante a árdua e gratificante tarefa de

90
perseverança e fé, observamos o retorno da dedicação fugação em massa acontece a cada seis meses.
e esforço de quem se doa aos cães. Não participei do No início, havia muitos filhotes com cinomose e
processo de construção, mas apoiei separando-os por parvovirose, doenças controladas depois da va-
baias desde o desembarque dos caminhões vindos do cinação em massa, mas ainda chegam com essas
antigo canil. Chegaram com várias doenças, séria de- enfermidades. Anualmente, é dado o reforço das
ficiência nutricional, baixa autoestima, tristes, sofri- vacinas contra viroses. Para imunizá-los com va-
dos. Quem acompanha o processo, nota claramente cinas antirrábicas, os vacinadores desse serviço
a diferença, como o amor transforma. Podemos ofere- na cidade se unem à equipe do Parque. Os dois
cer-lhes um ambiente moderno e comidinha boa, mas grupos se integram e somam esforços com pos-
se não forem amados, não se sentem completos. tura de guerreiros da luz. De forma sincronizada
e rápida passam de baia em baia: a equipe do
Sempre pedi à Luz Divina para me guiar e fazer in- Parque contém cada cão enquanto a da Prefeitu-
tuir. Não sabia como atender a certos casos clínicos, ra vacina e faz o registro da cobertura vacinal. Os
devido à gravidade e debilidade dos cães, à falta de animais fazem festa quando as equipes entram e
recursos materiais e de medicamentos. Fazíamos o se deitam silenciosos quando saem. O trabalho
possível, certos de que não sobreviveriam. Quantas finaliza em uma hora. A constante instrução de
vezes nos surpreendemos com a capacidade de recu- ordem e ritual realizada no decorrer do tempo se
peração de alguns, que se tornaram alegres guardiões imprimiu nas consciências como grandes pega-
de famílias. As curas mais surpreendentes foram as das a serem seguidas. A cada busca de objetivos
de Manu, Antu, Santiago. A de Astor foi a mais mar- comuns, o coração do Parque se expande.
cante: chegou pele e osso, desfalecido pela bicheira.
Dei um soro, sem acreditar em sobrevivência. Sua Ela prossegue: Em 2012, assumi a quimioterapia
garra foi uma lição de superação: ficou belo, forte, tão semanal de fêmeas e machos com TVT, carne espon-
saudável, que hoje, doa sangue. Há lutadores, mas josa sangrante nos genitais, doença sexualmente
não basta: aqui falecem tranquilos, livres da dor, nos transmissível entre caninos. Dos tratados, pouquís-
lembrando o quanto a vida é efêmera, passageira. simos vieram a óbito. Temos certeza de estar no ca-
Sentimos tristeza pela perda de uns, alívio pelo fim minho certo. Obstáculos surgirão para por à prova
do sofrimento de outros, sempre certeza de que o me- nossa força, perseverança e fé ao cuidar de seres tão
lhor foi feito, que mantivemos a esperança até o fim. especiais. Temos muito a fazer e prosseguimos com
a vontade de servir e melhorar. A sensação de ajudar
Os casos clínicos mais frequentes são de vermi- esses animaizinhos é indescritível, um sentimento
noses, fungos, doenças do carrapato e venéreas. sem preço de bem-estar. Somente quem se dedica
Apesar de demorados, os tratamentos contra com amor pode saber. Mas o diferencial da missão
sarnas mostram resultados positivos. A vermi- Parque Francisco de Assis é o olhar de Deus.

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ENTREVISTAS:
UMA BENÇÃO DE DEUS

Conquistas diárias, a ordem e a harmonia fazem corações. Demonstram que uma Sabedoria
parte da cura deste ardente centro de serviço. Sideral conduz o convívio entre os reinos ani-
Para conservá-las, a higienização dos ambien- mal e humano. Sempre afirmam que em outro
tes é das tarefas primordiais. No início, volun- emprego era mais difícil levantar cedo; agora
tários se consagravam à limpeza diária e lava- acordam com alegria para estar em companhia
ção de quilos de roupa. Fizeram o possível para dos cães. Esquecem conflitos ao colocar os pés
aliviar a velha vibração e sujeira encontradas na área. Sentem-se tratadas e curadas por algo
no ambiente do antigo matadouro mas, com o inexplicável.
tempo, a contratação de funcionários tornou-se
imprescindível. Deu-se início a entrevistas e se- Extraída de entrevistas gravadas, segue uma
leções de candidatos por meio de observação. seleção de diálogos com quatro funcionárias:
Surpreendentemente, a maioria chega guiada
por uma Força Maior e tem quase todos os re- Conte experiências vividas no Parque...
quisitos para fazer um bom trabalho: não têm A experiência aqui... faltam palavras, é grandiosa
medo, aversão ou retraimento, mas simpatia e demais para explicar. Cada dia é uma novidade,
amor pelas criaturas caninas, o que os possibili- cada dia a gente aprende a valorizar as pequenas
ta lidar até mesmo com situações perigosas. lições positivas que os cachorros nos passam. O
bicho nos ensina a amar, a ser mais humilde, a
Como laboratório, o Parque testa diversas ex- enxergar de verdade. Todos se transformam, têm
periências em seus múltiplos vieses: ora o fun- uma história bonita para contar. Aqui tem mis-
cionário fica responsável por limpar certo se- térios, chegam morrendo e revivem, curados atra-
tor, ora faz rodízio para conhecer e aprender vés do amor e de Jesus. Olha este jardim lindo.
a lidar com cada grupo canídeo, pois também Mudou! Antes era deserto, agora nascem rosas.
é importante para os animais contatarem com Nenhuma funcionária está aqui por acaso, tem
diversos tipos de seres humanos. um serviço a fazer, um dom; alguma coisa está
acontecendo, está sendo limpa. Não me imagi-
De vez em quando, a coordenação faz reuniões nava trabalhando em um canil, entrei com pouco
tanto para rever e renovar as tarefas, como para conhecimento; tinha um cachorro, cuidava com
conhecer reivindicações e necessidades das amor, mas não sabia lidar como aqui. Achei que
assalariadas. Nessas ocasiões, emergem senti- não ia dar conta e estou há três anos. Fiquei mais
mentos, relatam-se experiências, abrem-se os calma, era estourada, muito nervosa, falava qual-

93
quer coisa, ia explodindo. Também não podia ver
sangue, hoje coloco a mão na massa, pego a pinça,
faço o que for preciso.

Como era o canil no início?


Uma batalha, muito atribulado, mas foi melhoran-
do após muitas preces. Oramos todos os dias para os
que passam por aqui. Saio de casa rezando, rezo no
vestiário, o dia inteiro escuto louvor e canto. Can-
to para eles, às vezes alto. Ficam sentados olhando,
quietinhos, ouvindo. E a gente cantando. Aprendi
a gostar demais deles. Tenho uma moto e corriam
atrás de mim, eu parava e pedia: “Por favor, parem
com isso!” Pararam. Converso e eles entendem. Às
vezes, a gente deixa um bichinho doente... Acordo
pensando nele, durmo rezando por ele. A gente faz o
que pode e o que não pode. Temos família, mas até
nas férias viemos de visita e pomos a mão na massa,
não conseguimos ficar só olhando.

Em que trabalhava antes de vir para cá?


Varria ruas, mas cansei. Soube de uma vaga na enfer-
maria e na hora vim. Minhas colegas diziam que era o
serviço que eu pedira a Deus, pois adoro cuidar de ani-
mais. Na minha rua, sou a enfermeira deles: dou inje-
ção, faço curativos, tenho esse dom. Venho de domin-
go a domingo. Aos domingos, como voluntária: cuido,
dou remédios, faço curativos, brinco um pouquinho e
depois vou para a roça, um pedacinho de terra aqui
perto. Tenho três amores: cachorros, coelhos e gatos. Já
tive até dezoito gatos e quatro cachorros. Recolho da
rua, daqui adotei duas. Quando perguntam quantas
crianças tenho, digo: Tenho 14... e minha única filha
brinca: “Comigo 15, mãe, a senhora esqueceu de mim”.

94
Ela e meu marido são como eu, amam animais. Na levar Bonie, um pitbull que curei de uma bicheira
roça tem quatro gatos, três cachorros, fora os que apa- na orelha, mas não pude. Tenho cinco e um é macho,
recem. Tem porco, galinha, pato. O cavalo, meu mari- não daria certo. Em casa, mal cabem. As fêmeas bri-
do vendeu. Nunca mato! Pego amor pelas criações, só gam por ciúme, faço carinho em uma, vem quatro.
vão na hora que Deus chamar. Se não brigassem, caberia mais um.

E sua relação com os do Parque? E o trabalho de limpeza?


Não sei maltratar, só faço carinho, gosto de pegar no É como limpar nossa casa, dá muito trabalho. Os cães
colo, por isso gostam de mim. Os que curei desde a fazem festa cada vez que entramos na baia e acom-
chegada não me esquecem, andam atrás como filhi- panham atentos. Com uma pá retiramos as fezes, co-
nhos, têm muita gratidão; se colocados em outra ala, locamos em carrinhos de mão e levamos para serem
ficam de lá chorando, chamando. Vou, abraço, solto, processadas no composto. Com mangueira, balde,
mas são bobos: em vez de irem brincar no Sol, me vassoura, sabão líquido lavamos primeiro a urina
seguem o dia inteirinho. Enquanto lavo baias fica das paredes, os paletes, estrados de plástico onde
aquele tantão de fora, deitado, me esperando sair. dormem, para retirar a oleosidade dos corpos. Depois
Dou beijinho e dão beijinho em mim, não estou nem esfregamos bem o chão dos quartos e dos solários, pu-
aí se estão doentes. Brinco, entro nas casinhas de ca- xamos com rodo para ficar bem sequinho. Passamos
chorro; só não caibo, as pernas ficam para fora. O uma bucha com sabão nas vasilhas e fora dos come-
problema é a brigalhada de ciúmes. São amorosos douros. De 15 em 15 dias damos uma faxina ainda
demais, sentem falta de carinho. Prefiro trabalhar mais profunda. Uns chegam indisciplinados, jogam
com eles do que com gente, gente reclama mesmo ração fora dos comedouros, evacuam onde dormem.
quando ajudamos. Eles, até com a maior dor, ras- Chamamos a atenção, uns aprendem e param de des-
gados, latejando e sangrando, balançam a orelha e perdiçar, mantêm o chão limpo. Tem dias que só que-
o rabo nos olhando. Mas têm preferências, escolhem ro limpar, mas pedem carinho e aprendi a dar amor
quem pode fazer os curativos: “Cadê o dodói, vamos para eles. Durante a limpeza, observamos a saúde, as
tratar?” Deitam e ficam quietinhos. Aprendi a fazer necessidades, se têm machucados ou sarna. Quando
curativos em filmes na televisão e treinei nos meus. algum está acuado em um canto e os outros não o dei-
Aqui aplico injeção, dou remédio, soro subcutâneo. xam comer, trocamos de baia. Na nova, todos chegam
Cris, uma cachorrinha de porte médio rajada de ver- para cheirar. Explicamos: “Não podem brigar, vocês
melho, apanhou na baia e ficou com um machucado são iguais, precisam se aceitar”.
grande, fui cuidando, cuidando, mas teve problema
nos rins. Quando estava partindo desta vida para E sobre as brigas e mordidas?
outra, tratei com soro e foi salva. Daí em diante, só É perigoso separar brigas com as mãos, por isso es-
andava atrás de mim, então adotei. Queria também guichamos água nos olhos com uma mangueira ou

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puxamos o rabo ou a perna traseira para desequi- e vai passar esta mensagem para todos”. Pensei: “Não
librarem. Às vezes recebemos uma mordida. Anti- vou. Vão achar que fiquei louca”. Continuei limpan-
gamente, a gente tinha de ser muito forte para estar do. Os cachorros continuaram me olhando. Pensei:
aqui. Chegava para trabalhar e encontrava vários “Vou!” Até larguei o portão aberto e saíram para pas-
mortos, grandes sem cabeça, todo mordido. As mães sear. Para as pessoas escutarem é preciso escolher as
comiam as crias, só deixando o crânio e o rabo. Eu fi- palavras. Encontrei alguém, perguntei: “Você aceita
cava brava: “Por que você fez isso? São seus filhos!” escutar uma mensagem que Deus me passou? Dis-
Elas entendiam. Eu ameaçava: “Vou embora, não se que aqui é um Santuário que Ele enviou para os
aguento ver tanta tristeza”. Através de muita ora- animais. Não é lugar para intrigas, nem desavenças.
ção, muita oração mesmo, isso dissolveu. Há pou- Quem ficar precisa ter paz, senão vai embora para ser
cos meses, os que moram perto da entrada voltaram feita a vontade Dele”. Fui levando a mensagem para
a se matar, talvez por serem os primeiros a captar cada um. Depois peguei os que tinham fugido e con-
quem chega. A energia lá estava pesadíssima, meu tinuei a limpar. Desde esse dia muita coisa mudou.
corpo até arrepiava. Pedimos permissão para rezar Aqui vivemos em um mundo maravilhoso.
lá dentro. Entramos com a Bíblia, água sanitária,
sabão, bucha e limpamos canto por canto, cantando O que diz para quem passa por aqui?
louvores. Eles assentadinhos, olhando, sem dar um Tento passar que tudo depende de nós, depende de
pio. Terminando, fomos para o centro da baia ler o abrirmos o coração e deixar entrar, só isso. É muito
salmo 91. Íamos abrir a Bíblia, quando a cuidadora fácil. E sempre estar com o pensamento ligado em
despontou lá longe: “É para ler o salmo 91”. Depois Deus. Nosso mundo está muito difícil, as pessoas
contou: “Estava na cozinha e um beija-flor entrou, brigam por pequenas coisas mas, se falamos com
deu uma voltinha e foi; então soube que precisavam Deus, Ele dá força e conseguimos captar sabedoria.
ler o salmo 91”. O ruim foi embora. Aqui temos tam-
bém o trabalho de expulsar o mal. Há tantas histórias...
Cada qual é diferente do outro. Falta mais tempo
O ser humano também é falho. Estava havendo para entender cada um, ajudar a resolverem proble-
desavença por pouca coisa, ninguém conseguia se mas que têm conosco. Demonstram se quem os mal-
olhar. O estresse do dia a dia... Cheguei, fiz orações tratou foi homem ou mulher. Márcia era uma cadela
onde trocamos de roupa e fui limpar. Cantava hi- que não gostava de homens, tinha um trauma, al-
nos e, do nada, os cachorros começaram a uivar ao gum judiara dela. Roti apanhou de vassoura, mor-
mesmo tempo me olhando. Pensei: “O que querem de quem passa com uma. Cada um tem um porquê
comunicar?” Colei meu pensamento em Deus. Veio para morder. Tem os que enxergam seres invisíveis...
uma resposta do Alto, de Cima. Nunca tinha sentido a gente fica até meio assim... O Cocker conversa com
aquilo. Recebi uma ordem: “Larga o que está fazendo alguém. Fica observando um canto sem nada, late,

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roda, enxerga o que não vemos. Outro é apaixo- Havia um funcionário que dava mais amor aos bi-
nado por passarinhos, fica assentadinho olhando chos do que limpava. Quando me via com a cara
para o alto; chama Passarinho de tão encantado. ruim, dizia: “Medita, medita que vai curar. Medita!”
É lindo! Chega um, comentamos: “Esse não tem Ensinava sobre a natureza, sobre as coisas. Um dia,
jeito, não vai sobreviver”, como o Jacaré e outros; cortei uma rosa e ficou indignado: “Nossa, você tirou
logo ficam gordos, bonitos, alegres. O Samuel che- a vida dela. Você tirou!” Saiu andando. Não podía-
gou com cinomose, achamos que não ia para frente. mos cortar árvore nenhuma, flor nenhuma. Entendi
Hoje apronta até! É arteiro. O que cura é a forma que a flor tem vida. Conforme a rosa vai abrindo, vai
de dar carinho. Deus também age, principalmente louvando o Senhor, o que tem vida louva. Os cães
aqui. No meio do mato apareceu uma cadela tipo uivam para louvar o Senhor, criam sinfonias como
selvagem, deixamos vasilhinhas com comida para os pássaros.
cativá-la, precisa de tempo para se aproximar. Co-
nheço cada um. Amam estar aqui, não querem ir Um dia, cedo, quando cheguei com outro funcionário,
embora. Uns fogem para nadar, outros para dar vimos uma luz muito forte, imensa e branca. Até ce-
uma voltinha e retornam. A Pachi colocava o rosto gava. Em cima do galpão de entrada, bem na frente
fora da grade para abrir o trinco e saía. No princí- da árvore. Ficamos olhando um tempão, impressio-
pio não entendi, trancava e ela fugia com Garoto nados. Depois, ficamos conversando sobre isso até
para passear. Eu ficava preocupada mas, depois, as 10 horas, sem conseguir trabalhar. Gosto demais
encontrava os dois assentadinhos na frente da baia daqui. A gente aprende tanto, tanto. Isso aqui é uma
aguardando ser aberta. benção de Deus.

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A ALEGRIA DE SERVIR
DO CAOS À ORDEM

Um vai, outro chega para tecer a rede de luz. aos reinos, ao Divino, ao Universo. O amor e
Na maré entra e sai, canina e humana, há um a oração são as chaves, tanto para vencer ba-
planejamento oculto. Um bailado energético talhas quanto para aliviar e curar animais e
conduz, treina, traz, leva centenas. Guiados humanos, porque dissolvem registros profun-
pela beleza do serviço incondicional, ardentes dos de dor. Ora-se a sós, em grupo e nos muti-
corações humanos pulsam: ame, ame, ame, ame, rões; o estado orante incendeia a vida: alto ou
ame. Sós, em pequenos grupos ou em mutirão, mentalmente, muitos repetem orações, cantam
colaboradores e voluntários permanentes ou mantras ao recolher fezes, lavar um ambiente,
temporários, doam-se com entusiasmo, sem cozinhar, zelar por um cão.
querer retorno. Sustentam a tocha e saem mi-
lagrosamente renovados após horas de labuta. No dia 4 de outubro de 2010, apareceu o pri-
Uns retornam, outros não mais, ainda assim meiro mutirão da Comunidade Figueira. Tem-
todos imprimem pegadas de cristal nesta mo- pos depois, soubemos que São Francisco nas-
rada inspirada por vozes audíveis e inaudíveis. ceu nesse dia. Visto não haver coincidências,
Cada gota de suor ofertada com pureza se tor- porém sinais e Providência Divina, o movi-
na sagrada e constrói o alicerce sobre o qual mento coletivo em forma de mutirões partici-
vem sendo erguida a ponte para as estrelas. pa de cada ciclo do trabalho desde o início da
construção. Atualmente, traz, aos domingos à
O Parque vive uma experiência ecumênica, tarde, moradores ou colaboradores da comuni-
seus membros provêm de várias expressões dade, a maioria vegetariana. Cientes do quanto
espirituais: espíritas, pentecostais orientalis- os animais sofrem nas mãos do reino humano,
tas, teosofistas, católicos, evangélicos. Acolhe apoiam conscientemente sua evolução. Che-
colaboradores da cidade que são presbiteria- gam participantes tutores de um ou mais bi-
nos, católicos, espíritas; há funcionárias pente- chos de estimação ou quem cuida de silvestres.
costais, outra começa a se interessar pela es- Outros vêm por curiosidade, para experimen-
piritualidade por influência dessas, outras são tar algo diferente. Poucos vêm para conquistar
católicas. As coordenadoras não seguem uma a si mesmos, transcendendo aspectos pessoais
religião instituída, mas têm visão religiosa e de medo ou aversão por cães.
sagrada da natureza, das pessoas, do outro. To-
dos combinam, trabalham unidos para o bem Quando os animais chegaram com necessi-
dos cães. Cada qual de seu jeito oferta orações dades tremendas, a prioridade era descobrir

99
e negociar uma ração nutritiva. Foi solicitado
a uma colaboradora do Núcleo de São Carlos
no Estado de São Paulo, uma das extensões de
Figueira, um levantamento de preços na região.
Várias pessoas acolheram o singelo pedido e passa-
ram a operar como forma de prestar auxílio aos aco-
lhidos em Lavras, diz ela. Pesquisamos custos nas
fábricas de ração e, como depois solicitado, também
nas que fabricam correntes e placas de identifica-
ção. Na época, resolvemos alugar uma van para nos
dedicar ao trabalho no canil por um fim de sema-
na, mas, como no período se preparava o primeiro
grande mutirão de castração do Parque, surgiu nova
emergência. Era difícil separar dezenas de fê-
meas no cio, ninhadas não paravam de nascer
e surtos de doenças eliminavam a maioria. O
caos estava instalado. Apesar de veterinários
estarem em prontidão para dar início à tarefa,
faltavam recursos e a estrutura básica era pre-
caríssima: não havia mesa, nem o mais simples
material cirúrgico. Algo precisava acontecer!

O grupo paulista prosseguia empenhado: Como


a ajuda premente era a monetária, cancelamos a via-
gem e, logo após uma reunião com os coordenadores,
enviamos e-mails para nossa lista de contatos ex-
pondo a urgência e convidando-os a doar qualquer
quantia. A resposta foi rápida. Ao verificar que o sal-
do da conta corrente para as despesas gerais da sede
era compatível com o montante necessário para se
realizar o trabalho no final de semana, no dia 28 de
março de 2011 transferimos o valor sem mais pen-
sar. Era a única coisa a fazer. Poucas semanas depois,
nossa situação bancária estava resolvida, pois a

100
energia monetária circula ligeira quando a emprega- Vive-se de doações, um desafio e treino vigo-
mos corretamente. Há momentos em que um impulso roso para se criar uma nova visão espiritual da
forte move o grupo, mostrando qual ajuda a prestar. energia monetária. Mas, por momentos, a espe-
O bendito gesto nos curou, abriu caminhos de abne- rança quase se esvai. As mantenedoras entram
gação, prontidão. O grupo de São Carlos ainda em prova de fé, as mentes disparam. E agora?
não pisou no canil, mas fortaleceu a fé de todos. Obscuras noites de sono perdidas em ansie-
Em uma sala escura com paredes descascadas, dade, os céus clamados de joelhos. Invariavel-
ao lado do frigorífico onde cadáveres já haviam mente, no último instante, um sininho bate no
sido congelados, foram instaladas duas mesas âmago de um doador desapegado: quantias são
para atendimento veterinário com tampão em depositadas, os bens fluem livremente, a infi-
inox e suporte para soro com dois lugares, um nita abundância jorra, a consciência do grupo
luxo cor de prata. Pessoas paravam encantadas progride. Surpreende-se a cada chegada da
para observar o brilho metálico, que apontava soma exata e dos bens necessários.
um futuro de beleza e ordem. Ainda hoje, cen-
tenas de histórias caninas são escritas sobre as Assim foi um dia: o caixa zerava. Só daria para
solidárias mesas doadas. pagar mais uma semana de mão de obra, quan-

101
do as mantenedoras foram convidadas a fazer bia o nome nem para que serviam. Participei de mu-
uma palestra sobre o trabalho. Terminada a fala tirões de vermifugação, vacinação, castração. Ajudei
simples, uma nova ordem se estabeleceu: uma a separar brigas, recolhi doentes das ruas... Enfim,
colaboradora presente se dispôs a suprir o res- minha vida tomou um rumo inesperado, ganhou
tante da construção, as castrações, o sistema novo sentido. Trabalho para o Bem, para Deus e luto
de esgoto, a máquina industrial de lavar rou- por uma gota de vida, por uma última esperança de
pa. Ela segreda numa entrevista: Ser um colabo- sobrevivência. Minha consciência estendeu-se, já
rador, entre tantos, não é apenas ser mais um, é ser não enxergo somente os acolhidos, mas todos os re-
o único elo a unir todos. Em um trabalho maior, há presentantes do reino animal. Dos aprendizados ad-
uma tarefa para o jeito de cada pessoa, que comple- quiridos e das mordidas recebidas, um fato abstrato
menta a de outra. Apoio econômico, reforma predial, passou a acontecer ao aproximar-me de qualquer cão.
equipamentos, sistema de tratamento de efluentes e Ao me concentrar, sinto o coração mudando de lugar,
dejetos, manutenção, melhorias, áreas de recreação, vai para o centro do peito, cresce. Cresce tanto, pare-
saúde, castração, campanha de adoção, suprimentos, ce não caber em mim. Suspiro, preciso de mais ar. A
comunicação, parcerias, educação.... Tantas vezes alegria me invade. Os cães em torno reagem como a
vinha aos domingos e durante esse serviço o traba- entender essa forma de comunicação, correspondem,
lho interno atuou em mim, a intuição sussurrou-me seu olhar sereno pede para a conexão prosseguir.
e disse sim aos pedidos de ajuda... como negá-los?
Marcante é o alvoroço dos cães na nossa chegada e o Declara outra integrante do grupo: Quando
sossego deles na saída. Por seus inesquecíveis olha- adolescente uma verdade chamou minha atenção:
res, a resposta só pode ser sim. “O mais importante na vida é ficar, em alguma par-
te, o fruto de nossa bondade”. Como as pessoas se
As tarefas são variadas: passear e limpar recin- reúnem por seus gostos e modo de pensar, há quinze
tos, cuidar de filhotes, banho e tosa, organiza- anos trabalho para o Bem com este grupo. Nos dedi-
ção da farmácia e do centro cirúrgico, enferma- camos a inúmeras ações para pessoas carentes, po-
gem, ajudar no reflorestamento, jardinagem, bres, doentes, até nos depararmos com o canil. Então
plantio de ervas medicinais e árvores frutíferas. passei a participar de mutirões de limpeza, capina,
Uma colaboradora fiel sabe o que é fazer de plantação de árvores, faxinei a Casa de Cura. Por
tudo: Quando aderi ao movimento em prol da cons- meses, lavei pilhas de panos sujos em um pequeno
trução do canil, meu foco eram os carentes de abrigo tanque e uma velha máquina. O mais difícil é limpar
e vida decente. Por eles, deparei-me participando de baias, sinto enjoo, ânsia de vômito, mas prossigo até
ações que jamais, por iniciativa própria, me envol- superar a fraqueza. Gosto mesmo é de cães peque-
veria: vendi rifas em praça pública, quebrei paredes, nos e cheirosos que vivem em casa. Tenho uma Poo-
fiz buracos no chão, usei ferramentas de que não sa- dle Toy de 16 anos. Dorme em meu quarto, já não

102
anda, mas acompanha atenta a vida da casa; usa
fralda e avisa quando precisa se movimentar, mudar
de cômodo ou sente dor. Fala como um bebê, com-
preendo os diferentes tons, uma mãe sabe o que seu
bebê quer. Amo-a de paixão, engulo o choro a seco
e amparo qualquer incômodo! Nos fins de semana,
vou para o Parque. Hoje presto serviço na cozinha.
Enquanto preparo o lanche e as refeições para vo-
luntários e funcionários, peço a Deus para abençoar,
dar força e coragem aos que trabalham diariamente.
Agradeço-Lhe a oportunidade de ser útil, expressar
bondade, oferecer e receber amor e alegria.

Há uma tarefa para o jeito de cada um, uns tra-


zem produtos de limpeza, outros entregam en-
velopes com doações em dinheiro ou deixam
roscas e biscoitos sobre a mesa da cozinha. Uma
estudante universitária dá banhos semanais em
filhotes inválidos e recupera sarnentos com pro-
dutos doados através de pedidos no Facebook.
Nos intervalos, retira bernes de patas, orelhas,
pescoço, não por gosto, por necessidade.

Todos são essenciais. Uma médica-veterinária,


professora e pesquisadora na Federal, ansiava
por um serviço voluntário, um trabalho interno
e mais importante que o labor que a sustenta.
Teve dificuldades em se inserir em outros, até
se aproximar, desconfiada, do Parque. Acolhi-
da com sorrisos, trouxe seus alunos e, em ale-
gria, atendem a pedidos de socorro: Tratem este
cão. Digam o que fazer com aquele. Ela e eles pros-
seguem, apaziguados pelo puro êxtase do en-
contro com as próprias almas, que despertam.

103
Todo fim de semana aparecem laboriosas que Anualmente, quando a chofer entra em férias
têm xodós. Um vulcão de paixão as comemora. do trabalho na Universidade Federal, essas al-
O latido é como o bocejo, contagiante: latem, mas diáfanas promovem a festa Mutirão Banho
latem, latem da primeira à última baia. A do de Verão. Por telefone, através do Facebook e
Manu é a menina dos olhos de uma: lá moram de convites boca a boca, fazem um chamado
Xuxinha, Juca, Antu, Candida, Capitu, Luíza, geral para voluntários se apresentarem nos
Marrom, Princesa. Os privilegiados reconhe- dois dias agendados. Então subdividem-nos
cem o som do motor do carro estacionando e em grupos e, dentro das próprias baias, pas-
seus corações explodem de alegria. Ela chega sam dias a ensaboar, refrescar e purificar 400
distribuindo delícias e pão ajuntado com fer- pelames em águas correntes.
vor durante a semana e eles se deliciam.
Aproxima-se do trabalho quem esteja a desper-
Mais tarde, encosta outro carro lotado de me- tar para a existência imaterial. Vem receber au-
ninas e jovens alegríssimas. Em horas sorri- las dos cães e, conforme passa a neles confiar,
dentes levam dezenas de cães, de três a cin- abre-se a experiências com todos os caninos.
co por vez, para brincar nas seguras e verdes No entanto, poucos compreendem suas lingua-
Áreas da Alegria, enquanto algumas lavam gens, sequer percebem um pedido de socorro.
seus recintos. Conhecem personalidades e Quando alguém entra em um recinto, os cães
afinidades, por isso só misturam os que se
saltam eufóricos abanando os rabos, frenetica-
entendem, pois se soltarem o dito cujo, têm
mente, até se acalmarem aos poucos. Porém,
de prender o cicrano, pois detesta o fulano.
um ferido insiste, mesmo sem conhecer a visi-
É o que os cães preferem: trocar informação
ta: continua a chamar atenção liberando uma
e afeto com seres humanos. Íntimos compa-
enxurrada de pedidos para demonstrar que
nheiros, as jovens magrinhas se ajoelham na
está com um problema. Cem por cento depen-
frente dos peludos enormes, abandonam o
peso nos corpos quentes, envolvem os pesco- dente de nós, sem usar palavras, o necessitado
ços caninos com os braços finos. Levantam e busca expressões de seu mundo de símbolos
disparam a correr, voar pelo mato, nas nuvens. para pedir auxílio.
Conduzem uns em cordas para passear em
trilhas fora dos muros, sentam-se em pedras, Na casa de hospedagem, aberta aos interessa-
tagarelam com eles, a pele e a roupa impreg- dos em passar temporadas no Parque, entrevis-
nadas do odor canino. Tal confiança, união e tamos uma voluntária: Este trabalho é fascinan-
entrega maravilha os adultos, eternos alunos te, indescritível. Estava na Comunidade Figueira
de crianças e animais. quando selecionaram certas pessoas para uma tarefa

104
aqui. Não sei os critérios usados mas, quando soube, Os cães recebem algo inominável, além do amor e da
entrei em êxtase. Foi uma tristeza conhecer um ex- compaixão. O que recebem... não existe em lugar ne-
-matadouro. Fomos subdivididos em grupos de ora- nhum. Visitei muitos canis do Brasil e do exterior. São
ção, que se revezavam de meia em meia hora, mas tão densos. E os cães tão sofridos. Aqui não! Apesar
nasceu tal ímpeto em mim que não consegui parar da doença física exposta aos olhares, mesmo os doen-
de orar. No retorno de ônibus, prosseguimos orando. tes têm uma leveza perceptível. Lugar igual não existe.
Então, ofereceram-nos passar pelo antigo canil para
conhecer os animais que viriam. Meu coração pulou. Prosseguiu falando sobre a afinidade de certos
Mal cheguei, que dor inexprimível! O grupo ficou seres humanos com o reino animal: São coisas de
consternado, muitos choravam acarinhando-os, cho- vidas passadas, não deste mundo. Identifico na hora
ravam com profunda compaixão pelas condições dos quem os ama ou quem os explora por lhes serem
bichinhos, a sujeira na terra, os doentes, os paralisa- úteis. Com sensibilidade milhares de vezes maior
dos. Tempos depois retornei ao Parque em visita com que a nossa, captam tudo, percebem de antemão
o grupo Aura, que trabalha com animais em escala quando lhes daremos algo especial ou se vamos sair.
bem reduzida, no Núcleo de Figueira em Belo Hori- Algumas pessoas até estabelecem uma comunicação
zonte. Quanta mudança e transmutação! Tivemos telepática com eles. Três já vieram se despedir de
um contato grande e o elo se foi firmando. Na tercei- mim no meio da noite. Chequei o horário e, depois,
ra vinda, limpamos um monte de fezes, abraçamos fiquei sabendo que tinham desencarnado naquele
milhões de cães, carregamos filhotinhos doentes no instante. Dizem que são espelhos dos donos e é ver-
colo e passei longo tempo em prece com os terminais, dade. O manejo e o exemplo fazem aflorar sentimen-
entregando-os ao Cristo da Luz. Vim mais uma vez tos positivos ou negativos e uma relação de delica-
com outra voluntária; havia pouquíssimas pessoas, deza pode curar a agressividade.
ficamos horas com eles.
Diante do impacto e choque sentidos por um
Aqui é um exemplo de luz e amor. Irradia até no ex- voluntário ao que chamou lamento dos ani-
terior. Para fazer a ponte entre a Inglaterra e o Par- mais, travou-se um diálogo a quatro vozes na
que foram usadas uma ou duas palavras, porque cozinha: Vejo o lado positivo do Parque, dizia ele,
sua irradiação intensa já atingiu o coração dos in- mas me ponho a questionar o trabalho aqui rea-
gleses. Essa irradiação surge de quem o frequenta e, lizado. A aglomeração gera estresse, sinto os cães
principalmente, das quatro mulheres que formam o privados de algo importante para todo ser vivente:
corpo do Parque, cada qual com uma função espe- a liberdade.
cífica. A união entre as quatro é muito interessante,
têm energias fortíssimas, cada uma atuando em sua Alguém responde: Mas há os que gostam de
área, com seu potencial. Isso é claríssimo. caminhar e saem para uma voltinha: Robinho, o

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Fila e Melissa. Andam, andam, e com claro senso Entre quatro paredes não há mundo lá fora, há todo
de destino retornam. Podiam continuar nas ruas. o tempo do mundo para se ficar dentro, e mais próxi-
A Fulô saiu adotada no porta-malas de um car- mo, e ainda mais perto do dentro, em comunhão com
ro para um sítio. Dias depois, vimos um focinho o espírito. Seguros em baias, entrelaçam sua energia
lustroso debaixo do portão esperando entrar. Com e intensificam o aprendizado de apoio e comunhão
coleira nova, correu para a baia, comeu e foi dor- mútua, de paciência e respeito. São treinados a se-
mir contente. A Marronzinha fez greve de fome até guir o ritmo diário, a se darem bem uns com os ou-
ser trazida de volta; a dona era boa e ficou incon- tros e com os humanos.
formada; tinha feito de tudo, até comprado coisas
para ela. Mas não quis conversa... Só indagações, possíveis respostas. Como deci-
frar o que acontece com os confinados, incom-
A terceira pessoa acrescenta: Com nossa fa- preensível para a mente comum? Não querem
mília moram cinco cães felizes. Os dois da cidade retornar para o canil após uma fujidinha ape-
vivem no quintal. Os três do sítio têm todo o es- nas porque está tudo limpo, têm alimento extra,
paço do mundo, mas só querem ficar aos pés do vitaminas, atenção, companheiros.
meu marido, o seguem para todo lado. Em casas de
família cujos donos saem para ganhar o sustento, Amam conviver com gente, mas, no abrigo, não
não gostam de ficar sós. Nas ruas, acabam magros, têm relação apenas com determinada pessoa
doentes, feridos em brigas. Conhecemo-los bem, ou pessoas, como em geral preferem. Aqui ha-
muitos acabam aqui. bitam em uma comunidade dinâmica, plena de
circunstâncias novas, que os anima; vivenciam
A quarta medita: No início, eu também tinha esse situações sociais para se reconectarem, cons-
ponto de vista angustiante, um pensamento hu- truir e reconstruir a própria identidade. Como
mano sobre a falta de liberdade dos bichinhos en- explicar sua rápida metamorfose, misteriosa
clausurados. Então, observei por meses sua alegria. até para veterinários?
Como não estavam deprimidos, pus-me a refletir
sobre outros aspectos, pois o desconhecimento gera Optam por esta condição porque, quando ama-
preconceitos. Criamos ideias estanques do que é li- dos e respeitados, uma química oculta ativa em
berdade, ideias sobre o que é certo ou errado, ideias seu interior a chave da alegria de viver. A quar-
do que o outro deve ou não fazer. Por que homens se ta voluntária oferece: Toma essa chave de ouro, ir-
tornaram grandes santos em prisões? Por que, en- mão. Você fica aterrado frente a portas de celas? Abre
carcerados, alcançaram a liberdade interna? Por que o portal do coração, conduz essências caninas ao jar-
existe clausura? Alçando voos mais altos e profun- dim da beleza e voe acima das grades para encontrar
dos, alguns atingem a libertação de males profundos. a liberdade do amor.

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ENTREVISTAS:
ARREGAÇAR AS MANGAS

O chamado para assistir à necessidade dos ani- Um dos quatro prossegue. Sete dias e sete noi-
mais é geral, mas pouquíssimos respondem, a tes por semana, guarda a área, paternalmente a
maioria tampa os ouvidos, fecha os olhos. protege. Atento, mantém o fogo imaterial ace-
so, elo entre a vida visível e invisível. Socorre
Minimizar a dor canina foi o convite para o qualquer necessidade, aperfeiçoa o trabalho,
grupo arregaçar mangas e converter um espa- soluciona problemas, ajuda o grupo a dar pas-
ço árido em um canal de luz. Conforme cha- sos, imprime uma nota viva na memória e his-
mas secretas abriram portais para os famintos tória local.
de amor, outros campos de serviço nasceram.
A eterna Lei da Atração passou a trazer cons- Cada buscador expressa algo belo, puxa os ca-
ciências missionárias para se tornarem resi- bos, levanta as velas da nave. Com leveza aérea,
dentes e hóspedes da arca de Noé, que no bojo flui entre o manejo dos irmãos menores, a ma-
todos acolhe. Abertos a vivenciar experiên- nutenção geral, o trabalho com a compostagem,
cias mais ou menos longas, integram-se às o reino vegetal. Firme, aspira se aperfeiçoar no
regras de disciplina e ordem do ritmo cotidia- trabalhoso e no desagradável. Incansável, cruza
no. Não se tem alcance para compreender o duras provas. Com caridade, fé e paciência, en-
que há por trás dessa aproximação, mas tanto frenta a ira, o medo, o violento. Para vencer as
a ajuda concreta, quanto a transcendente são próprias fraquezas e imperfeições, move-se por
imprescindíveis, sem as quais a marcha seria obediência às necessidades prioritárias, não por
mais penosa. gosto, prazer ou escolha. Toca, é tocado. Che-
ga por ter vislumbrado o amor deste centro de
No patamar abaixo do que recebe animais, há resgate ou para restaurar pedaços que faltam no
uma ampla clareira cercada por arvoredos. Jun- próprio coração. Gratos, os cães oferecem um
to ao tapete de folhas, uma simples e aconche- clamor de uivos, uma prece cantada em nome
gante casinha verde, primeira benfeitoria a ser da Grande Senhora.
reformada, acolheu os pedreiros até o término
das obras. Por pouco tempo ficou vazia. Ofer- Seguem trechos de conversas com um residen-
tada como Casa de Hospedagem a corações te, dois ex-residentes e uma jovem hóspede,
puros, nova etapa teve início quando passou a que, sorridente, faz cafuné na cabeça de um
receber eventuais hóspedes e quatro residen- cão de olhos quietamente cerrados enquanto,
tes: dois paulistas, um nordestino e um sulino. atenta, considera sua admiração pelos cães.

109
O que te traz aqui? O primeiro residente reflete e relata experiên-
Um planejamento espiritual, tenho certeza; preci- cias locais com anfíbeos, alados e uma gatinha.
so doar e aprender algo forte com os cães. Conheci
o Parque através de Figueira, durante o ritmo dos O que te mantém unido ao serviço do Parque
domingos e pela segunda vez venho de São Paulo Francisco de Assis?
durante meu recesso de férias. É das mais incríveis O amor. O amor que sinto, mas principalmente o
e intensas semanas do ano; faço um pouco de tudo: que recebo. Quando passamos pelas baias, os olhi-
curativos, limpo baias, cozinho, pinto casinhas. nhos nos grudam, as patinhas chamam querendo
Ajudam a me esquecer de mim. Aqui não sinto pre- ultrapassar a tela para ter contato conosco; mesmo
guiça, indisposição, nunca penso: “Ah, que dia feio”. não podendo chegar perto, irradiam um amor que
Estar com eles é uma aprendizagem única, um estu- me toca profundamente e me chama de volta. Co-
do deles e de nós mesmos: nos deparamos com nos- mecei como voluntário uma vez por semana, mas
sas emoções animalescas, como o medo, a competi- aumentei o ritmo para duas. A possibilidade de sair
ção. Recebo demais em troca ao fazer bem a esses da teoria me movimentou; aqui se consegue colocar
irmãos; têm um amor que só consigo encontrar nos o ensinamento espiritual em prática. Percebi o mes-
animais. Amo-os desde sempre e trabalho para eles mo na África, ao trabalhar junto às Missionárias da
desde os 16 anos em ativismo de rua, explicando aos Caridade. Apesar de não terem o suporte da instru-
passantes como os usamos de forma utilitária. Na ção recebida em Figueira, também vivem a prática
prática, aprendemos um pouquinho do que querem do que aprendemos na teoria: o esquecimento de si,
dizer, como aconteceu com um: levei-o para passear a verdadeira humildade, a entrega ao Alto. No Par-
e comeu tanchagem; seu instinto pedia aquilo, sabia que, isso está manifestado em várias pessoas, cujas
que lhe faria bem; passei a lhe dar a erva medicinal vidas se consagram ao trabalho de equilibrar o car-
enquanto aceitou. Têm várias linguagens, falam co- ma entre a humanidade e o reino animal.
nosco, sempre expressam algo além de nossas ideias
preconcebidas, do tipo "abana rabo porque está fe- Ao chegar, percebi que, através de constante presen-
liz". Basta observar para entender seus sentimentos ça física, o residente deve irradiar a energia guardiã.
e suas necessidades, se querem ou não a gente perto. Meu primeiro foco de trabalho foi fechar portas em-
Latem só porque alguém está chegando ou percebem perradas, consertar fechaduras quebradas, por no-
o que não percebemos? Acessam além do visível? vas trancas em portões. Fechar portas simboliza o
Avisam sobre o que não vemos? Sua percepção é trabalho visível de proteção e guardiania ancorado
mais aguçada, parecem olhar pro nada... Pensamos: pelo residente. Há também o outro lado, invisível;
“É coisa de cachorro”, mas dizem algo além. silenciosamente ele protege este trabalho inspirado.
O guardião-residente passa a conhecer bem o local.
ЖЖЖ Observa bichos habitantes e bichos transeuntes. A

110
área alagadiça e quente é propícia aos anfíbios: la- alimentada com leite especial na seringa, ronronava
gartos rajados com um metro e meio de cauda listra- todo o tempo em gratidão. Já no dia seguinte estava
da comem cobras. Um residente confundiu seu lon- assentada; logo deu um passo caindo para um lado,
go rabo com uma. Esses animais de sangue frio são mais dois caindo para o outro, até caminhar e subir
bons guardiões de cães, pois com instinto farejador, na cadeira. O grupo acompanhava contente a cura
enfiam os focinhos em todos os cantos e, apesar de e Ângela recebia visitas de voluntárias que amam
nunca ter acontecido, podem ser picados. Há relatos felinos. Ganhou brinquedos, se divertia com sinetas
de uma cascavel, mas só temos encontrado cobras e penas. Uma noite dormia na cama de um residen-
não venenosas, como falsas corais. São recolhidas te, depois na cama de outro. Finalmente, conseguiu
e levadas para a mata do outro lado da rodovia. Sa- pular na janela, correr, o que a salvou da cadelona
pos grandes são avistados em canos e próximo ao Melissa, que escapara da baia. Estávamos reunidos
riacho; sobretudo no calor, pequenos calangos ver- antes do jantar, quando Ângela entrou correndo
des enfeitam pedras. com Melissa atrás. Um susto! Gritos de espanto!
Computador no chão, todos a proteger a gatinha.
Aves e borboletas fazem um misterioso trabalho. Bem, Ângela hoje se chama Ângelo, é difícil definir o
Chegam em bando ou sós, sobrevoam os canis, habi- sexo de gatos enquanto são filhotes, e foi viver com
tam a Casa de Cura, comem larvas da compostagem. uma coordenadora.
Apesar da proximidade da estrada, aqui se acorda
com uma sinfonia de piados que trazem a vibração ЖЖЖ
dos anjos. Já vi um casal de pombinhas, tucano, ti-
co-tico, sabiás. Brincamos que há um hotel de uru- O terceiro residente inicia outro diálogo, que
bus atentos do outro lado da estrada É bonito ver a discorrendo sobre o seu papel:
família ensinando os filhotes a planar a grandes al- Os residentes assumem grande responsabilidade.
turas. Com boa visão e olfato apurado, aglomeram- Entregues a qualquer trabalho, suas vidas passam
se com rapidez espantosa sobre carcaças de animais para o segundo plano. Achei que chegava com meus
acidentados por rodas velozes. próprios pés. Mal abri o portão ficou claro que vie-
ra conduzido pelas Hierarquias. Existia algo gran-
Ângela, uma gatinha linda de dois meses, branca dioso a ser feito, como aprendido com Trigueirinho:
com manchas caramelo claro, foi um dia entregue proteger o Plano Evolutivo. Seria um anônimo a
nas mãos de um residente. Parecia ter a coluna que- proteger esse Plano, a proteger o Parque: obser-
brada, só mexia os olhinhos faiscantes. Examinada var se tem um cão necessitado, torneira vazando,
na sala cirúrgica, soube-se ter deslocado a bacia. Ali caixa d’água quebrada, luz acesa. Interessante, se
passou a noite, mas como não ficou bem no ambien- conseguirmos entrar na energia que circula, não
te de latidos, foi trazida para viver na casinha. Era sentimos cansaço e ficamos todo o tempo disponí-

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veis. A prioridade é cuidar do reino animal, mas os Você também cuida da pintura...
residentes fazem de tudo: molham plantas, podam A pintura geral entrou para trazer beleza, limpeza,
galhos fora de lugar, recolhem fezes dos caminhos, conservar a ferragem. Antes de pintar, é necessário
ordenam ferramentas, cozinham, prestam serviços preparar a superfície: lixar, raspar a sujeira, as cascas
na compostagem. Aqui surge em mim maior facili- velhas, o bolor, lavar. Por exemplo: primeiro, o muro
dade para trabalhar com manutenção: tem tal coi- foi lavado para retirar as crostas e o passado velho
sa quebrada, encontra-se uma forma simples de re- também foi levado; em seguida, foi pintado para pro-
solver reutilizando o ferro velho, sobras da reforma mover a cura pelas cores, criar um ambiente saudá-
do matadouro. Temos a sala de manutenção-medi- vel. Pode-se julgar esse trabalho como físico, grossei-
tação. Às vezes, por falta de condições financeiras, ro, pesado. Na verdade, acontece o contrário: quando
improvisamos. Por exemplo, se falta material para se entra no movimento, tudo fica leve, fácil. Ficamos
consertar um carrinho de mão, um sussurro dévico atentos ao lado simbólico de cada serviço. A vivência
sopra: “Pega ali uma peça de ferro, agora um peda- externa se espelha em nosso interior e o pintor se puri-
ço de madeira para tal coisa”. Isso vem acontecendo fica. Ao renovar paredes se renova, traz vida e “ganha
desde o primeiro desbravador. vida”. Não ganha “a” vida, sua parte financeira.

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O que é ser um voluntário? casa com dois quartos, um feminino e um mascu-
É aceitar o desafio de deixar a própria vida, é não lino. Não é uma moradia, é um lugar para descan-
viver mais para si mesmo. Alguns acham uma lou- sar o corpo à noite. Não vim morar, prossigo assim
cura, perguntam como deixo de trabalhar para fazer até quando este ciclo encerrar. Como nos vestimos?
um serviço sem ganhar nada em troca. Aí está um Ao estar disponíveis como voluntários, vivemos a
grande segredo. lei da abundância, ensinada há 2.014 anos: não
precisamos de casa, dinheiro, pois passamos a ter
Há quanto tempo vive como voluntário? muitas casas, não só uma. E chegam casas, roupas,
Cinco anos. Antes, quando trabalhava por conta pró- sapatos, alimentação...
pria, aprendi como proceder, que valeria a pena abrir
mão de ganhar dinheiro e ser bem-sucedido para fa- E o ritmo diário?
zer algo maior. Como voluntários ficamos muito mais Acordamos por volta de 5h30 e nos dirigimos para
bem-sucedidos; não temos carro, mas ganhamos coi- a Sala de Oração. Preparo em seguida o café antes
sas que nem imaginávamos. A Lei da Abundância de seguir para as tarefas. Na época da seca, primei-
me mostrou esse caminho e nunca duvidei. É possí- ro molho as plantas. O trabalho rende de tal ma-
vel viver de maneira mais saudável; a humanidade neira que pelas 13h começo a manutenção.
deveria viver de maneira mais saudável, mas vive
correndo. Antes de ser voluntário tinha resolvido não Os funcionários e voluntários chegam por vol-
correr atrás de nada. Até ao pegar ônibus, me exerci- ta de 8h e se vão às 17h. Já tiveram algum im-
tava para não ter pressa; chegava ao ponto, olhava a previsto após esse período?
multidão, ficava lá no final esperando entrarem. Apenas um. Por volta das 21h de um domingo, a
Polícia Florestal trouxe seis cães de raça americana
Se treinou... caçadora e, na terça, dois senhores vieram visitar
De certa forma sim. As grandes cidades me favorece- comentando sobre eles. Naquela noite, enquan-
ram. Descobri que o grande desafio era ser paciente. to eu lia, ouvi latidos. Não sabemos se aconteceu
Aprendi muito em filas de bancos, quando alguém re- naquele momento ou de madrugada, mas quatro
clamava irritado por ter só um caixa. Nunca entrava foram levados por seu valor econômico. Sabe-se
na briga. Muitos desistiam depois de esperar um tem- quem foi, mas não entramos em contendas.
pão: “Volto amanhã”, diziam. Adiavam experiências
para o dia seguinte! Se tiver de passar por algo, que E sua relação com os cães?
seja já! Fui bem treinado, não posso reclamar. Visito-os, conversamos, ajudo enfermos e filhotinhos
à noite. Com Carlos aconteceu algo especial. Chegou
Como são supridos de roupa, comida, moradia? atropelado, tinha artrose e muita sarna, mas melho-
Para os que querem fazer uma experiência, há uma rou, ficou bonito, brigão. Gostava de gente, de cães

113
não. A alegria nos uniu. Uma manhã, uma funcio- ma força estranha que se infiltra e não deve estar.
nária o encontrou morto. “Como? Ontem brinquei Até se acalmarem, fazemos mantras e orações, so-
com ele”. Fiquei matutando, naquela madrugada bretudo em grupo: a oração traz calma e nos faz su-
acordara com uma pressão no peito sem entender o bir degraus para um estado de consciência mais alto.
porquê. Intimamente ligados, percebi ter sido avisa-
do. Carlos falecia de um ataque cardíaco. No Parque, há um silêncio incomum, um silêncio a
mais, basta captar. Sobretudo quando estou na sala
Cada um se destaca por algo: há os irritados, os tris- de manutenção-meditação, percebo quanto o traba-
tes, os brincalhões, os reflexivos. Mesmo sabendo lho favorece para se chegar à paz. E aqui não temos
morderem por medo, quando algum me agride, re- tempo de ficar parados não!
traio, já não tenho tanta afinidade. De alguns pre-
cisamos nos aproximar aos poucos. A energia aqui ЖЖЖ
é forte, tanto a positiva, quanto a negativa. Quando
começam a se combater, avisam sobre algo fora do Na intimidade da salinha fresca, de cujas portas
lugar, que tanto pode vir do grupo, quanto de algu- e janelas se contata o inspirador manto verde

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esmeralda do entorno, outro residente contava retraído, amarrado a uma comoção provocada pelo
experiências no dia anterior à sua partida. Um passado, mas de maneira relaxada, espontânea. Ao
cão vivaz se esgueirou correndo e deitou a ca- chegar a esse estado, mais tranquilo, me ofertei para
beça em sua coxa para ser acariciada. Afagou-a fazer um trabalho aqui; tanto externo, ajudando a
com naturalidade, deu-lhe tapinhas amorosos manter o canil, quanto interno, buscando minha
nas costas. Recebido o necessário, o cão se foi própria cura, e a deles. Hoje construímos um laço de
radiante enquanto ele comentava: Esse é Pingo, respeito mútuo e nossa relação é bem diferente.
impetuoso e sempre eufórico. Veio buscar atenção.
Quando solto, passa de baia em baia agitando; en- Como decidiu se tornar um voluntário?
tão, ele foi levado para a a Área da Alegria para brin- Há quatro anos, chegando a um estado de caos in-
car com plantas e ficar mais calminho. terno muito forte, iniciei o trabalho voluntário. Não
encontrava mais sentido na vida, abandonei o tra-
Há oito meses, você fez uma audaciosa renún- balho, a faculdade. Ao surgir a oportunidade de ser
cia de si para apoiar a experiência do canil. As- um voluntário em bioconstrução e permacultura,
sim, jovem, poderia preferir os caminhos da aceitei imediatamente e, após três projetos em di-
maioria, buscar remuneração. Como chegou a ferentes estados do Brasil, decidi pelo caminho do
ser residente do Parque? celibato: por sete meses, frequentei um seminário
Existem aprendizados que só o tempo e a convivên- da igreja católica. Sempre achava que cada uma
cia podem ofertar. Desde pirralho não me sentia à dessas experiências continuaria por toda a vida.
vontade com cães, tinha grande medo, talvez por um Aos poucos, percebi que tinham uma intenção e só
trauma desta ou de outra vida. Estava em Figuei- durariam um período.
ra, quando o coordenador do mutirão de voluntá-
rios me convidou para vir. Fiz duas visitas sofridas, Em seguida, tive uma das vivências mais enrique-
pois tinha de entrar em baias cheias. Então, tomei cedoras: em uma ONG voltada para comunidades
a questão como um desafio a vencer e, daí em dian- carentes do nordeste, fui auxiliar de professor no
te, retornei todo domingo por quatro meses, até ficar reforço escolar de crianças de seis a 12 anos. Qua-
mais à vontade. Durante esse convívio, procurava se não tinham o que comer, apenas o sopão diário
manter em mente que as almas caninas são, de certa oferecido pela entidade. O local era miserável, sem
forma, minhas irmãs. Mas, por ainda não conhecer saneamento básico, com forte criminalidade, contra-
bem os cães, acabava dominado pelo pavor de que bando. Aí soube algo da Comunidade-Luz Figueira
poderiam reagir contra mim negativamente. Aos e me interessei pela proposta. Nunca ouvira falar de
poucos, percebi não ser sua intenção primeira me uma comunidade de silêncio, que oferece palestras
atacar ou ferir. Fui me acalmando, abrindo a per- semanais e busca implantar a igualdade e a frater-
cepção para sentir de outra forma: não com medo, nidade de forma madura. Decidi lá viver uns meses.

115
Você fez uma renúncia para estar no Parque. dos sem saber o que eu fazia ali; com a convivência,
Ajudantes de Nossa Senhora das Chaves, os olhavam de forma familiar, calma, serena. Pareciam
cães abriram portas em seu coração? pensar: “Esse cara está limpando nossa baia, pondo
Sem dúvida limparam minha alma. Fui guiado para ração, de vez em quando faz carinho, deve ser ca-
cá por uma consciência superior, um mestre, um marada”. São muito expressivos, observam nossas
anjo. Antes de residir, demonstrava-lhes um carinho rostos pedindo aprovação e, se fazem algo errado,
preso. Ao participar do trabalho grupal, lidando com abaixam a cabeça para se desculpar.
eles diariamente, passei a perceber sua individuali-
dade. Constatei serem seres em evolução, alguns em Hoje sinto uma troca com eles, uma simbiose, estou
processo acelerado de individualização, de formação sendo curado e curando-os, participo de seu proces-
de alma; sobretudo os centrados, introspectivos, que so evolutivo e o do grupo humano de que faço par-
buscam estar a sós. Outros preferem estar em grupo. te. O que se passa com cada um se irradia de forma
Isso me abriu a mente para entender o processo evo- sutil para todos, quando nos curamos, curamos ou-
lutivo da caminhada. Fui cão, fui planta, fui pedra. tros. Aqui o ser humano é uma parte dos cães. Sua
O maior aprendizado dado por um cão a um ser hu- reverência por nós é um fato. Somos fundamentais
mano é demonstrar-lhe que cada um vivencia uma e especiais para eles, pois contribuímos para sua
experiência, está em um ponto, um grau evolutivo a melhora e segurança. São muito sensíveis ao estado
ser respeitado. Quando isso fica claro, facilita perce- emocional das pessoas: silenciam e a calma se ins-
bermos o mesmo nos humanos, fica claro o porquê tala quando o grupo permanente, que trabalha por
das incompreensões mútuas e o quanto precisamos eles há mais tempo, fica harmonioso. O amor frater-
desenvolver a tolerância. Todos precisamos aceitar no cresce entre o grupo e os animais, demonstrando
mais uns aos outros. como leis superiores estão se instalando no Parque.
A mente se abre e a consciência se expande ao nos
Observei seu imenso apego às pessoas, o quanto pre- decidirmos pela vida espiritual. Já não me vejo ape-
cisam de atenção e participação humana em suas vi- nas trabalhando em uma situação prática. O servi-
das. Ao entrar em uma baia, a maioria se amontoa à ço externo precisa ser acompanhado pela atenção ao
nossa volta pedindo carinho; uns poucos ficam afas- mundo interno: “Estou ansioso ou irradio paz, har-
tados, deitados em um canto, sem se envolver, mas monia, amor?”. Dizia o mestre Jesus que a vigilância
sempre atentos. Tem os mais agitados, que saltam precisa ser constante ao se percorrer o caminho.
nas pessoas; não adianta dizer ‘fica quieto’; conti-
nuam, isso é deles, é como expressam alegria. Quan- Qual foi o seu principal trabalho aqui?
do passei a visitar as baias para entender como cada Com o composto, no tratamento das fezes, do mais
um me tocava, começaram a me tratar de forma execrável e difícil pelo cheiro da decomposição quí-
diferente. A princípio lançavam olhares desconfia- mica do material. Nunca trabalhara com isso, mas

116
nada é por acaso: como precisava exercitar a humil- riências mais marcantes e poderosas. Aprendi, cresci
dade, fiz um apelo interno e o universo entendeu e demais e ainda busco entender o que foi transformado
encaminhou-me para trabalhar com dejetos, um em mim. O que mais me marcou foi a intensa presen-
símbolo das coisas sujas precisando ser limpas den- ça do silêncio e da bela vegetação em torno, misteriosa,
tro de mim. Essa lida ajudou a curar meu ser interno, mágica, que me fazia sentir bem durante a tarefa. A
a compreender melhor o que Carl Jung explica sobre entrega foi ficando mais clara, passei a ter um conta-
os arquétipos, a ligação simbólica de cada vivência to especial com o bosque vizinho de eucalipto. Minha
com algo mais profundo. consciência se conectava com outra coisa, a essência
da consciência indígena: sentia-me parte da água, da
Trabalhei diariamente, sem um dia de folga. Não é terra, dos vegetais, de um processo maior, sabia que
qualquer um que consegue revirar o composto, isso não estava só e ganhava força para prosseguir, pois,
mexe com as pessoas. A mente humana tem dificul- muitas vezes, foi difícil. Por falta de preparação psi-
dade de aceitar um trabalho não remunerado que lida cológica, o pior é me ocupar de casos como Noé, a
com resíduos sólidos e líquidos; pode considerar pe- cara deformada solta pus pelos olhos, pelo nariz, pela
noso e sujo, mas, se alinharmos o plano externo ao boca; também ainda não consigo retirar dezenas de
espiritual, fica mais fácil compreender. Foi das expe- vermes asquerosos, que consomem a carne de alguns.

117
A intenção dos últimos quatro anos prossegue: obe- O Parque é permeado pela oração, aqui há uma
decer e respeitar os comandos internos, ousar e fazer consciência de que a vida interna é curada du-
o trabalho da melhor maneira. Há um mês, surgiu o rante o trabalho externo. A oração e a contem-
sinal de que o ciclo no Parque estava se concluindo; plação têm de ser permanentes, constantes.
as provas vividas responderam e, quando entendi, São primordiais para o equilíbrio na relação
surgiu uma paz profunda. Tudo é cíclico, muda rápi- com seres de consciência inferior, que lidam
do, sobretudo neste intenso momento planetário. fortemente com o instinto.

O que é ser residente do canil? Há diversas e fortes provações diárias. Cães


Antes de tudo, um grande desafio! O trabalho cons- se atacam, falecem. Há a labuta com o com-
tante e prolongado aqui dentro requer intensa disci- posto. Quando o ambiente fica pesado, a ora-
plina sobre o físico, a emoção, a mente, no sentido de ção precisa se intensificar para dissipar ten-
não permitir que o ego se sobressaia diante da cura da sões de baias em desequilíbrio. Um trabalho
alma. Não é qualquer um que se adapta ao ambiente orante com essa intenção deixa os cães mais
hostil de latidos a qualquer hora, inclusive no horá- pacíficos. Voluntários, funcionários e, uma
rio da noite e do descanso, nem ao odor forte gerado vez, um grupo de monges oraram para neu-
pelo composto de fezes caninas. Nota-se uma trans- tralizar e reverter desarmonias causadas por
mutação rápida e bem mais intensa do que em outros forças negativas.
campos de atividade durante a lida com um reino,
que tanto possui notável atitude de reverência ao Os desafios devem ser vivenciados, pois as
humano, quanto momentos de agressividade, fortes provas amadurecem, fortalecem, mas a recom-
impulsos sexuais e pesada carga energética. Eles têm pensa interna para quem as vive é grande. Tra-
um certo tipo de experiência conosco, e nós, a grande balhar com animais realmente abre corações
possibilidade de transcender os chacras inferiores. para o amor e a compaixão.

118
O PARQUE
IRRADIA E ATRAI

Centro aberto a visitas, o Parque Francisco de primeiro portal para um novo e vasto experi-
Assis é uma referência no tratamento amoroso mento. Vão embora sem nada aprender, sem
aos cães. Sua irradiação se expande bem além romper véus do velho mundo. Não alcançam
das fronteiras do município e atrai consciên- a graça de vivenciar o amor desmedido mani-
cias em busca de incentivo para reabilitá-los. festado por cães, perdendo a chance de asas
Ponto de encontro e troca, recebe famílias, pro- poderosas secretamente abanarem cinzas acu-
fessores com alunos, representantes de prefei- muladas em seus obscuros esconderijos.
turas de cidades próximas e distantes, além de
grupos e entidades. Por diversas razões, a cam- Espelho para outros municípios, visitas gru-
painha é tocada de surpresa, uma e outra vez, pais são agendadas por telefone e as incansá-
diariamente. Ora motoristas dão uma parada veis coordenadoras abrem braços alegres para
cultural, guiados por placas da rodovia. Ora acolher veterinários, prefeitos, vereadores ou
policiais rodoviários ou uma turista de outro presidentes de ONGs. Conduzem-nos pelos
estado trazem atropelados socorridos na au- pontos de interesse. Enquanto peregrinam,
toestrada. Ora moradores da cidade chegam fornecem explicações e informações práticas,
com vira-latas em estado miserável ou preten- respondem indagações. Ofertam sugestões se-
dem se livrar de um ex-afeto esquecendo-o aos gundo a experiência vivida, como por exemplo,
cuidados alheios. construir baias diretamente interligadas a áreas
de recreação arborizadas, bastando abrir os
Apesar da constante divulgação e de tantas portões para os cães saírem para brincar ao sol
entrevistas dadas à mídia local, muitos sequer e se proteger no sombreado de copas. As guias
imaginam o quanto os cães, apesar de cativos, os nutrem com histórias reais de como extirpar
estão felizes e sadios. E os visitantes, ao pene- males de vidas canídeas. Consternadas, rece-
trar a energia local: Não sabia disso aqui! Quem bem notícias de populações de uma ou outra
é capaz de abrir portas do coração, pode vis- cidade vizinha a assassiná-los com chumbinho
lumbrar algo que jorra da fonte oculta e sair ou empurrá-los vivos cachoeira abaixo. Por ou-
tocado, renovado. Em contraste, nem todos tro lado, os visitantes relatam como os defen-
estão prontos para ingressar na vida pulsan- dem inaugurando canis, iniciando castrações
te. Abrem o portão ao lado do ipê-amarelo e em massa, estimulando a educação nas esco-
param. Titubeiam. Os nervos abalados não las para conscientizar gerações infantojuvenis.
ousam transpor o limiar de alarido e odores, Empenhados em ampliar os esforços, fotogra-

121
fam e, comovendo-se com o próprio nome Par- Terminadas as visitas há uma reunião para res-
que Francisco de Assis, cogitam substituir em ponder perguntas. São repassadas as regras de
suas cidades a palavra canil pela denominação ouro para aprenderem a ser bons tutores: pro-
Parque. Não raro, olhos marejados silenciam ver as necessidades básicas dos cães, castrá-
quietamente antes de prosseguir. Pouco a pou- -los antes dos seis meses, mantê-los seguros
co, percebem que o amor é a referência, a ori- em casa, tratá-los como parte da família. Não
gem, a base dos processos para iluminar vias apenas pegar o bichinho bonito e jogá-lo na
caninas de beleza e esperança. Confirmam ser rua ao surgir um problema, pois fica sujeito a
mais importante que aplicar soluções técnicas ser atropelado, pegar doenças, ameaçar pes-
modernas para recolher, amparar e controlar o soas por guarda de território. Transmissoras
número dos errantes. de conhecimento, crianças ajudam a educar

É urgente conscientizar a população sobre a si-


tuação planetária, ofertando-lhe uma educação
viva, verdadeira, em que o amor pela vida seja
o centro da existência, e não apenas uma edu-
cação que visa adquirir conhecimento, como a
atual. Urge despertá-la da vida fútil, da inércia
e ignorância, para uma vida criativa com lares
coligados aos reinos da natureza. Um novo
trabalho educativo infantil sobre o poder do
coração, o maior dos tesouros, precisa come-
çar, incluindo uma disciplina na grade escolar
sobre a guarda responsável e esterilização de
cães e gatos, além do uso e tratamento da água
e das plantas.

Para colaborar com a nova educação, recebem-


-se grupos escolares com crianças de até 14
anos. As crianças da primeira visita tinham cin-
co anos de idade. Como era a época de cães bra-
vos, foram instruídas a não tocar as grades. Em
fila, seguiram, passo a passo, atrás da professora,
com mãozinhas obedientes cruzadas nas costas.

122
os pais, pois os mais velhos têm dificuldade la experiencial. Examinaram os arredores. Para
em se transformar. São da geração de animais os menores, a algazarra foi um espanto. Diante
amarrados no fundo do quintal. da reação alarmada, foram rapidamente con-
duzidos para a varanda do refeitório, onde lhes
Cães gostam de ritmo, de um padrão cotidia- foi explicado o porquê do comportamento ma-
no. Trasanteontem, anteontem, ontem, hoje e tinal. Formaram uma roda e mãozinhas entre
amanhã, toda manhãzinha centenas de caní- mãos, oraram. Harmonizados, seguiram para
deos clamam pela limpeza: Cuidem de mim! um cercado com cachorrinhos e imediatamen-
te todos se derreteram. Encontros entre crian-
Um sábado cedinho, chegaram dois professo- ças e cãozitos são miraculosos. Bastou acon-
res com alunos de dois a 14 anos de uma esco- chegarem os irresistíveis peludinhos nos colos
para nascer uma empatia à primeira vista. A
ansiedade desapareceu tão instantaneamente
quanto surgira. As pontinhas dos dedos gentis
apalpavam a pelagem aveludada cinza, doura-
da. Os alunos adquiriram confiança, cresceu
o senso de responsabilidade e o cuidado para
não deixá-los cair; tudo tão simples, tão es-
pontâneo. A professora comentou: O animal e
a criança guardam a pureza e a inocência, convivem
com naturalidade e reciclam-se facilmente. Por ve-
zes, precisamos corrigir uma criança, falar de forma
bem direta e séria; terminado aquele momento, sai
e volta totalmente receptiva, como se nada tivesse
acontecido. Assim como os animais, não guarda res-
sentimento, mágoa, sabe que tudo é para o cresci-
mento. Sua alma se manifesta mais, por não ter o
raciocínio, o intelecto, os processos de elaborações e
elucubrações totalmente formados. Em certos aspec-
tos está mais evoluída que nós, adultos.

De um jeito ou do outro, na primeira idade todos


combinam. O grupinho de professores, alunos
e filhotes assentou em roda nos pedregulhos

123
entre os canis. Os cãezinhos tocavam focinho
com focinho, brincavam, se abocanhavam mu-
tuamente treinando a justa medida para não se
ferirem e, quando cansados, cochilavam entre
braços. Interagiram horas a tocar, olhar, cheirar,
ler, estudar sinais transmitidos uns aos outros,
olhinhos espelhando olhinhos. Como parcei-
ros, desenvolviam sensibilidades, observavam
detalhes e delicadezas de comunicações não
verbais: Nos dias em que trabalhamos com cães, as
crianças ficam mais dóceis, seus corações e mentes se
abrem. Para nós, professores, é uma alegria. Ficamos
seguros de esse ser o caminho. O que buscamos de-
senvolver em aprendizados de salas de aula fica gran-
demente alargado durante esses pequenos contatos.

O que há em comum, em que se assemelham


filhotes e crianças? Em que mundo ingressam
ao se desligarem de sons e visões ambientes
para estar um com o outro? Como desvendar o
mistério? Uma comoção cresceu quando os ros-
tinhos infantis quase resvalaram as bochechas
no solo para fitar as sete almofadinhas debai-
xo das patas dos bichanos. Assistida por anjos,
uma chama alada incendiou a rede de vida ex-
pandindo-a para fora e muito além das frontei-
ras do município, do estado, do país. Como um
pedregulho atirado a um lago plácido, círculos
em espiral conduziram o tesouro do encontro
às alturas de um outro tempo.

Pedimos para a professora explicar as etapas


de desenvolvimento de uma criança: Nos sete
primeiros anos de vida sua energia circula pelos ór-

124
gãos físicos como se terminando de esculpi-lo. Nesse troduzida gentilmente ao ambiente humano e
período, a atividade intelectual deve ser minorada. conviva com pessoas antes dos 90 dias. Os que
Se numa fase precoce introduzimos a criança em só se relacionam a partir desse período dificil-
estágios que deveriam acontecer posteriormente, ela mente aprendem a confiar nelas, mesmo após
tende a sofrer certas doenças. Dos sete aos 14 anos meses de contato íntimo.
desenvolve o corpo emocional, passa a discernir as
próprias vontades, a ter um certo alinhamento, já Tanto as características físicas quanto comporta-
não chora por qualquer coisa. Dos 14 em diante co- mentais das mães, do resto da ninhada, dos se-
meça o trabalho de formação do corpo mental: do res humanos e de outros animais são impressos
raciocínio e também da criação, mas para se expres- nos filhotinhos durante as primeiras semanas
sar plenamente, o jovem necessita ter os outros dois de vida. Animais sociais em busca de entrelaçar
corpos bem formados. destinos. Lado a lado, gente e cães se fortificam,
ficam mais completos e felizes. Beneficiados
Assim como as crianças, os cãezinhos nascem pela companhia mútua, se acalmam. Segundo
com os órgãos constituídos, que ainda preci- cientistas, o apoio social e carícias mútuas re-
sam ser moldados à condição ambiental, social duzem o risco e aceleram nossa recuperação de
e familiar onde vivem. Nas primeiras horas de doenças cardiovasculares, pneumonias, diabe-
vida, ingerem o colostro, leite rico em anticor- tes. Abaixam o nível do cortisol, do hormônio
pos e crucial para sua sobrevivência. Não de- de estresse. Elevam os níveis de endorfinas, que
vem ser separados da mãe até a quarta semana nos fazem sentir bem, e os de oxitocina e prolac-
de vida, época do desmame da ninhada. tina, hormônios relacionados a relações sociais.

O Parque recebe muitos recém-nascidos de Ligações positivas estabelecidas com os vi-


olhinhos ainda fechados que, apesar de tra- sitantes podem ser irradiadas para o planeta,
tados com mamadeiras de leite em pó substi- estimulando novas ações em prol dos cani-
tuto, raramente resistem. Sobrevivem quando nos. Enquanto tomava um suco, uma visitante
chegam após o desmame, esses demonstram ofereceu impressões: Não conhecia um trabalho
preferência pelos cuidadores e os seguem ga- com animais desta magnitude, com esta ordem, este
nindo por atenção. amor. A hora em que o portão se abriu senti um im-
pacto no coração. Ao circular por aqui percebi algo
Esta é uma cena comum: pessoas seguidas por além do cuidado físico. As pessoas expressam com-
um bando de cãezinhos e adultos alegres, que paixão e amor em um grau elevado, que se reflete na
as veneram. Experiências científicas demons- construção do ambiente, na atenção de um ao outro
tram ser fundamental que a ninhada seja in- e no olhar dos cães.

125
O TEMPERO
DO ACOLHIMENTO

Iluminavam com lanternas o escuro das cinco Depois passavam ao desjejum: saladas de frutas,
da manhã; sob o maior toró com relâmpagos, bolos, broas de fubá, biscoitos variados, patês
pisavam em tábuas sobre poças: Não enxergo de soja ou molho de tomate para rechear o pão
nada, uma dizia temerosa, ao que outra guerrei- integral ou francês, delícias acompanhadas de
ra replicava: Calma, devagarzinho a gente chega lá. cafezinho fresco e chás. A alegria era geral, con-
Equilibravam guarda-chuvas entre o queixo e o tagiante. Como não havia cadeiras suficientes, a
pescoço para carregar, ao mesmo tempo, gran- maioria se alimentava em pé, bem unida, ainda
des panelas cheias e apetrechos, até a casinha mais em dias de chuvas torrenciais. Um casal
precária onde chovia nas beiradas. Acendiam relembra: Da primeira vez, éramos muitos em dois
a luz para iluminar um fogão velho, pratelei- ônibus. Era dia de réveillon e viemos com dois filhos
ras de tábuas, copos, pratos e talheres doados. pequenos. As baias estavam muito sujas, tinha falta-
As iguarias para 60 pessoas, preparadas no do gente. Um grupo foi lavar a dos perigosos. Choveu
dia anterior em suas casas, eram organizadas a cântaros mais de duas horas, e não parava. A gen-
em bandejas fartas na longa mesa improvisa- te de bota, capa, capuz, encharcado. A chuva lavava
da: duas portas sustentadas por cavaletes. Em baias, lavava as almas. Quando o trabalho acabou,
prontidão, as cozinheiras eram gradativamente entramos na casinha; era de uma limpeza extraordi-
douradas pelo Sol nascendo na janela, enquan- nária, uma benção, uma luz aquela cozinha limpís-
to aguardavam ansiosas os mutirões. De início sima; fiquei impressionada, até me emocionei. Elas,
haviam trazido água e suco, mas, pouco a pou- cuidadosas, servindo bolinhos com carinho, aquele
co, ampliaram a oferta até servirem o almoço, lanche inacreditável. Tudo de uma luz! Tinha baldes
para que voluntários não fossem embora na com goteiras pingando e a gente desviava de um lado
hora das refeições. Assim nasceu a cozinha do para outro, e ficava espremidinho; uma experiência
Parque Francisco Assis, que há quatro anos construtiva, única. Pouco tempo atrás contei para mi-
serve desjejum, almoço e deixa um lanche nha mãe e minha irmã. Surpresas, ficaram inconfor-
para o fim do dia. madas: “Não acreditamos que vocês saíram de férias
de São Paulo para limpar cocô de cachorro!” Tentei
Reverente, o mutirão entrava na área logo for- explicar: “Mas foi incrível!” Voltamos agora ao Par-
mando um círculo de oração para invocar as For- que, nossa, é outro lugar! Impressionante a quantida-
ças da Luz. O grupo ia alma adentro, mais alto, de de animais. Fomos recebidos por um clamor, todos
mais fundo, invocando a ajuda dos céus e, com latiam. É um trabalho que não termina, e funciona,
sinais concretos, o Céu apontava as vias a tomar. as coisas estão superorganizadas.

127
Os canis começaram do zero. Era uma época braçal, dizia. Meses depois percebeu-se que
dura, em que os destemidos vibravam amor, a carne deveria ser definitivamente abolida, e
vontade, poder, entrega de si. O movimento as cozinheiras substituíram-na por saborosos
era forte, pesado: abrir valas para construir pratos à base de soja. Houve questionamentos,
o alicerce, base dos galpões onde entrariam não foi tão fácil. Mas, após um pedido de ajuda
os cordões de concreto e ferro sobre os quais aos céus, os trabalhadores foram aceitando... e
erguem-se as paredes. Cavadeiras, chibancas aceitaram. Não é sincero ofertar amor, cuidar dos
e pás batiam na terra dura como pedra, por animais e comê-los. Os cães sabem que somos ve-
tantos anos pisoteada pelo gado e compacta- getarianos, o que ajuda em sua cura e manejo. A
da por caminhões que o trazia vivo e o levava primeira cozinha foi uma grande escola, uma
em pedaços. iniciação. As corajosas cozinheiras bendizem
os obstáculos, que de fato ensinaram-lhes a
Quando os pedreiros chegaram para trabalhar união, a resistência, a fortalecer o espírito. Co-
durante a semana, embora o grupo fosse vege- mentam: Para colaborar com o Plano de Deus, sem
tariano, o mestre de obras solicitou preparar- pensar no futuro, fomos vivendo no eterno presente.
lhes carne para sustentar melhor o trabalho Quanto superamos, quanto nos fortalecemos!

128
Primeiro os pedreiros fizeram as casas dos ani- randa acolhedora, de onde se contemplam flo-
mais. Depois, os cães chegaram. Então surgi- res mimosas e um pequeno canteiro de ervas
ram as obras da Casa de Cura e sua estrutura, e temperos: mil folhas, menta, sálvia, alecrim,
menos um cômodo: o inóspito ex-frigorífico manjericão, camomila, hortelã, orégano, couve,
de cadáveres. Sem janelas, sem luz, paredes salsinha, cebolinha, poejo, babosa, e um pé de
isolantes grossíssimas com isopor ao meio arruda ganho para socorrer as árduas transmu-
para permanecer gelado, era assustador, arre- tações locais.
piante; de fora era feio, sujo. O grupo precisou
se estruturar, tornar-se mais ousado e cons- Mesmo não sendo um estabelecimento co-
ciente antes de converter aquilo em seu con- mercial, como produz alimentação tanto para
trário, para iluminar a escuridão espantando a funcionários quanto para grupos que prestam
fúria do caos. Orações e a habilidade dos pe- serviço voluntário, a cozinha é fiscalizada e
dreiros em transformar a matéria ajudaram a deve cumprir as normas dos códigos da vigi-
transmutar o cômodo obscuro, grosseiro, infe- lância sanitária municipal, sendo proibida a
rior e bruto em uma cozinha clara, com amplas presença de animais na área por questões de
janelas, portas de vidro e vista para uma va- higiene e saúde.

129
Uma procissão de voluntários chega por um proteínas, vitaminas, sais minerais. Aquecido
caminho entre flores e o mural colorido de por suas vibrações de amor, o maná oferecido
Francisco de Assis. Ondas de amor os aco- através dos anos a milhares de pessoas é um
lhem e nutrem. Verdadeiras mães atentas con- fermento, faz crescer a alegria, a saúde.
cebem receitas vegetarianas mineiras de dar
água na boca, com aromas e sabores tradicio- A culinária mineira teve origem na época do
nais. Bondade, doçura e silêncio as envolvem, ciclo do ouro e pedras preciosas, quando pes-
atributos que são a base essencial dos pratos. soas de diferentes raças e culturas de várias
Entre panelas e ingredientes frescos, atentas regiões do Brasil e também de Portugal ajuda-
aos detalhes, jogam mais um copo de água no ram a formar Minas Gerais. A arte de cozinhar
cozido, remexem com colheres de pau, dão mineira é o resultado de adaptações de re-
uma provinha no arroz fumegante, nos in- ceitas regionais brasileiras e estrangeiras, in-
tervalos passam uma vassoura e um pano no fluenciada pela indígena, africana e europeia.
chão. Os latidos não as distraem. Os cães es- Tornou-se das mais características culinárias
tão sendo tratados por quem necessita se for- do país, com pratos típicos que se multiplica-
talecer com uma refeição nutritiva para levar ram até, por fim, serem adaptados pela cons-
o trabalho adiante. ciência vegetariana de grande parte do grupo
do Parque.
Por 22 anos antes do Parque nascer, esse gru-
po maduro de cozinheiras passou pelo apren- A partir do recebido, é criada a culinária sim-
dizado e crescimento espiritual em idas se- ples, variada, temperada com ingredientes
manais à Comunidade Figueira, onde treinou colhidos no canteirinho de ervas. Não faltam
a elaborar alimento para muitos, passando alimentos doados de roças, sítios e fazendas
a considerar a cozinha um laboratório sutil. da região: grãos, ou os usados por indígenas
Reverenciam cada legume e grão doado, lem- como a batata-doce e a mandioca.
bram quantas mãos os trabalharam e tocaram
antes de ali chegarem. Conhecedoras de sig- Deliciosas frutas tropicais da estação são sa-
nificados internos, além dos expressos em sa- boreadas in natura ou em sucos cítricos ou do-
bores, mantêm-se equilibradas e focadas a fim ces, já que as duas categorias não devem ser
de manipular e servir uma refeição completa. misturadas: caqui, banana, laranja, lima, ace-
Visto que trabalham em glória a Deus, em gló- rola, limão, abacaxi, maracujá, goiaba, jabuti-
ria ao reino animal e em glória a quem o re- caba, uvaia, pêssegos saborosíssimos, abacate,
ceberá, por meio de suas mãos descem graças manga, pera, pitaia, cagaita, pitanga, as mais
do Céu. Uma química oculta abençoa calorias, diversas frutas silvestres.

130
Cedinho, o fogo alegre é aceso no fogão. Para Seguindo o hábito mineiro da mesa posta o
comemorar o novo dia, a chama se une ao fogo dia inteiro, ficam disponíveis uma cesta de
do espírito, o combustível material se soma ao frutas, garrafas térmicas com cafezinho e chá,
imaterial: unidos consagram a rotina da comuni- rodeadas de pães e quitutes. Nos intervalos
dade, que gira em torno de encontros entre cães entre as refeições, um ou outro faz uma pausa
e cães, gente e cães, e gente e gente nas refeições. para saborear um golinho rápido de café, en-
quanto dá notícia de casos caninos.
No desjejum não faltam pães com pastas, ge-
leias, quitutes, frutas da época, chás preto, ver- O ato de cozinhar vai muito além de cortar e
de, mate, guandu, alfavaca ou hortelã e açúcar misturar ingredientes em uma panela. Cozi-
cristal ou mascavo para o eterno cafezinho. nheiras dessa casa de mães semeiam a paz e
fazem de tudo para agradar.
Pouco antes do almoço, alguém anuncia pelos
caminhos, com um sininho, a chegada da hora Acolhem com alegria quem chega sem almoçar,
de convívio, silêncios e trocas no refeitório. Nos mesmo passada a hora da refeição e estando
fins de semana, antes de convidados a se servi- a comida guardada na geladeira. De imediato,
rem, mais de 30 voluntários ofertam o alimen- esquentam sobras do almoço, alisam um pa-
to ao Alto. Agradecem a oportunidade de estar ninho branco sobre a mesa e sem interrupção,
com reino animal, clamam por misericórdia alinham panelas em cima: O almoço celeste está
para este Planeta, entoam doces melodias. En- servido. Em pé ao lado da mesa, em aliança per-
tão, cada qual toma o prato e os talheres e se feita, as alertas e reverentes anfitriãs quieta-
serve à vontade do abundante e variado cardá- mente aguardam os convidados se deliciarem.
pio compatível com o doado: o indispensável Sorriem aos: Hummmm, divino, e acrescentam:
arroz com feijão; sempre legumes e verduras; É o sabor do amor...
farofa ou angu, farinha de milho, polenta; ou
alternativas como refogado de soja com legu- Para levar memórias de apetitosos quitutes,
mes, moqueca de batatas, feijoada de cogumelo com frequência os visitantes pedem e anotam
e salsicha de soja, tutu de feijão, macarrão ou receitas vegetarianas criadas na cozinha do
strogonoff de soja e milho, uma variação do prato Parque, em cujas entrelinhas estão arquivadas
originário da culinária russa que tanto apraz o um pouco da história local.
paladar brasileiro. Para quem gosta, sobremesa
de doce de frutas segundo a estação: goiabada, Na próxima página, eis uma amostra de que
bananada, mangaba ou eventuais deleites trazi- não necessitamos de produtos de origem ani-
dos por voluntários. mal para nos alimentarmos suficientemente.

132
Pasta de soja Refogado de soja

250 ml de leite de soja, 1 inhame médio cozido, 1 pacote de 400 g de proteína texturizada de soja,
picado, 10 azeitonas picadas, 7 rodelas finas 1 pimentão pequeno verde e 1 vermelho picados
de alho-poró, 2 colheres chá de sal, suco de em quadradinhos, 5 colheres de sopa de óleo,
meio limão, óleo ou azeite 1 molho pequeno de cebolinha picada, 10 fatias
da parte branca de alho-poró bem picada, 1 cebola
Colocar todos os ingredientes, menos o azeite de cabeça pequena bem picada, 3 colheres de sopa
e o limão, no liquidificador. Bater no mínimo, de alho e sal socados juntos, 1 colher de sopa de
adicionando um fio de óleo ou azeite, como colorau em pó, 2 litros de água fervente, sal a gosto
se faz maionese, até a consistência ficar bem
firme. Quando o liquidificador não mais girar, Hidratar a soja por 15 minutos em uma bacia
ligar no máximo e acrescentar o suco do limão. com água fervente. Em seguida, escorrer es-
Variações para mudar a pasta de cor e sabor: premendo-a um pouco. Repetir o processo três
substituir o alho-poró por duas cenouras mé- vezes. Na última, acrescentar o suco de três
dias, ou uma beterraba pequena, ou um molho limões ao deixar a soja de molho. Finalmente,
bem grande de salsinha. espremer um pouco da água.

133
Em uma panela grande esquentar o óleo e re-
fogar primeiro os pimentões, em seguida a soja
escorrida e o alho com sal. Mexer bem. Acres-
centar o colorau dissolvido em uma xícara de
água fria, a cebola de cabeça e duas xícaras de
água quente.

Após ferver 20 minutos, acrescentar o alho-po-


ró, a cebolinha, a salsinha, sal a gosto. Após
uma rápida fervura, desligar o fogo.

Nota:
Hidratar e picar caso preferir usar a proteína
texturizada de soja em pedaços maiores.

Moqueca de batata

1 kg de batata, 4 tomates, 1 cebola grande,


1 pimentão vermelho, 1 pimentão amarelo,
1/2 pimentão verde, 4 colheres de sopa
de azeite de dendê, 1 vidro de leite de coco,
1 tablete de caldo de legume, 150 g de molho
de tomate, 3 dentes grandes de alho, 1 colher
de sopa de colorau, 150 g de azeitonas
sem caroço, sal, pimenta e cheiro verde
(salsa, cebolinha, coentro a gosto)

Cortar e reservar os legumes:


as batatas em rodelas grossas, os pimentões
e a cebola em rodelas finas, os tomates sem
sementes picados em cubos. À parte, misturar
o leite de coco, o colorau e o caldo de legu-
mes amassado com um garfo. Em uma panela

134
grossa, preferencialmente de barro, colocar
duas colheres de azeite de dendê com os den-
tes de alho amassados.

Montar sucessivamente as seguintes cama-


das: primeiro as de cebola, em seguida as de
pimentões, batatas, tomates, azeitonas. Fina-
lizada a montagem, regar com a mistura do
leite de coco, o molho de tomates, o restante
do azeite de dendê, o cheiro verde, o sal e a
pimenta a gosto.

Tampar e cozinhar em fogo baixo, sem mexer,


por aproximadamente 45 minutos ou até as ba-
tatas ficarem bem cozidas.

Acrescentar água se necessário.

Bolo de cacau sem ovos

2 xícaras de chá de farinha de trigo,


1½ xícara de chá de açúcar, ½ xícara
de chá de óleo, 2 colheres de sopa
de fermento em pó, 2 xícaras de chá
de leite de soja fervente, 1 xícara de
chá de achocolatado ou cacau em pó

Peneirar todos os ingredientes secos e mistu-


rá-los bem. Levar o leite de soja ao fogo, juntar
o óleo até levantar fervura. Despejar o líquido
quente sobre os ingredientes secos, misturar
rapidamente e assar em forno médio de 20 a
30 minutos.

135
VOA, CÃOZINHO, VOA

Chamada rainha das flores, a rosa foi encontra- de água para evitar escaras, o alento de delica-
da em fósseis de 35 milhões de anos. Dentre dos toques, além de sedativo para o máximo
todas é a de maior simbolismo espiritual. Tam- alívio da dor, pois esta perturba a belíssima
bém representa o coração, o amor, o feminino, experiência de serem guiados de volta para
a beleza, a perfeição. Suas variadas cores ex- sua alma-grupo, que abarca e conduz as essên-
pressam emoções delicadas: paz, pureza, ino- cias caninas. Enquanto os bichinhos seguem
cência. Da rosa desabrochou uma deusa hindu. viagem, cada qual reza de seu jeito, contudo,
Ademais, nas mitologias gregas, era consagra- apenas o plano espiritual sabe o melhor rumo
da a várias divindades femininas. No cristianis- para cada um.
mo passou a simbolizar Maria, mãe de Jesus,
que em suas inúmeras aparições marianas, no Independente da maior ou menor dificuldade
decurso dos últimos 2.000 anos, sempre as de cada pessoa lidar com os momentos finais
relembra. Túmulos são enfeitados com elas da vida material, todas são bem-vindas para
desde a antiguidade. Igualmente a família da apoiar os moribundos. Baixinho ou em silên-
cuidadora homenageava os caninos: Na minha cio, cantam com fervor, entoam mantras, agra-
infância, quando morria, cada cachorro era enter- decem e pedem perdão. Dos que presenciam o
rado no fundo do quintal, depois plantávamos uma processo, uns são permeados por profunda paz.
roseira sobre o local, que era nomeada com o nome Já outros padecem ao vê-los agonizar, têm difi-
dele. Em uma época tínhamos 18 dando flores bran- culdade em conter a aflição ao se perceberem
cas, púrpuras, violetas. impotentes. Mas de tanto vivenciarem a passa-
gem, pouco a pouco se transformam e apren-
Assim como acontece com ser humano, a es- dem a controlar o sentimento de negação e a
sência do cão não morre; transita de um nível considerar a morte como parte do processo na-
de consciência para outro. Quer nos processos tural da vida: A gente pensa estar fazendo bem para
rápidos de desligamento, quer nos demorados, eles, mas que bem nos fazem, como nos ensinam!
a maioria prefere estar próxima a pessoas du-
rante a fase terminal. No Parque, todos zelam Com doçura, voluntárias abraçam sobre o pró-
por esse serviço com grande atenção, confor- prio coração, onde a alma ancora, o corpinho
tando-os no que mais necessitam: a certeza de débil de um filhote que desencarna. Antes se
serem amados, acompanhados até o fim. Rece- apegavam e choravam, agora aceitam, apesar
bem soro caso estejam desidratados, colchões de ficarem ainda tristes. Uma ninhada deixou

137
marcas, separada da mãe que os matava de um
em um, foram morrendo. Por falta de seu leite,
não ganharam resistência, apesar de beberem
leite em pó com mel, vitamina na seringa e me-
dicamentos prescritos.

Cães do velho canil estão ficando idosos e gri-


salhos. Com a barbicha branca, envelhecida e
fatigada, Sophia não mais brincava, marcha-
va lentamente, escalava degraus com esforço,
só lhe aprazia levantar a narina para detectar
odores distantes. Faleceu na baia de um súbi-
to ataque do coração, o que eventualmente se
dá com anciãos. Outros velhinhos são levados
a tempo para a enfermaria da Casa de Cura,
onde ganham um ritual de despedida.

Zé Bob, também do antigo canil, era um líder


pacificador que vivia só com fêmeas, pois, sem
brigar, não aceitava outro macho na baia. Di-
ferente dos cães de matilha, vem se individu-
alizando devagarinho. Um dia Zé Bob estava
alegre, brincando, no outro cambaleante, com
muita dor. Foi acomodado em um cobertor na
enfermaria, tomou um leve calmante e por fim
aquietou. Durante a longa noite e a madrugada,
certamente ainda mais longa, passou a se agitar
aguardando ansioso o retorno do grupo amado:
Sentia dor e teve uma convulsão quando chegamos.
Mediquei, foi acalmando. Era consolado durante a
pós-crise: Sua vida vai continuar, você só está sain-
do do corpo. Seis pessoas foram convocadas para
uma cerimônia simples, um rito de passagem.
Entraram no recinto pé ante pé e o rodearam

138
em silêncio. Orações, mantras e cânticos se
sucederam em tom suave para não o perturba-
rem: Cristo Misericordioso, Mãe Universal. Em
minutos voltou-se para o próprio interior, os
olhinhos expressivos começaram a embaçar e
os cerrou enquanto O Voo da Paz, música do
Parque para quem desencarna, era entoada.
Como uma sacerdotisa a ministrar a extrema-
-unção, a senhora deu-lhe um beijo e instruía
sussurrando nos ouvidos: Vá embora, vá embora
e não olha para trás. Vá para sua alma-grupo. A dor
e a ansiedade cessaram, a vida começava a lhe
escapar, as patas e pernas peludas esfriavam, a
batida cardíaca diminuía. Atraído por esferas
superiores, desprendeu-se aos poucos, levando
velhas cicatrizes de lutas e tanto amor recebido.
A eterna centelha cintilante voava para casa.

Quem lhe dava boas-vindas, onde seria as-


sistido na nova jornada? Via paisagens? Ou-
via melodias celestiais? Caía em sono? Em
quanto tempo sua chispa reencarnará? Quem
sabe? Zé Bob estava cada vez mais vivo, grato
por estar cercado de corações puros em seu
glorioso momento final, grato por ser recebi-
do e conduzido por alguma divindade até a
próxima morada.

Até perder a visão, Branquinho, outro líder si-


lencioso, sem latir também exigia ordem e har-
monia. Por não aceitar a nova experiência, o
rosto entristeceu, a força se esvaiu hora após
hora. Em outra ocasião, o mesmo se deu com
o jovem e brincalhão Scooby; apaixonado por

139
gente, não gostava de cães; tomado por uma de pedregulhos até ferir o rabinho e as patas
paralisia, foi ficando cego e, ainda assim, por traseiras, que passaram a ser protegidas com
instinto, combatia companheiros. Sem emiti- rabeira e botinhas feitas de gaze e esparadra-
rem um som, ao parar de enxergar as belezas po. Viveu feliz e solto após ser retirado da
daqui, tanto Branquinho como Scooby desisti- baia, por ter sido atacado por maiores. Apai-
ram, preferiram renascer em outra vida. A mor- xonado por uma funcionária, passava o dia a
te natural é melhor aceita, mas um caso como segui-la, fazendo festa; para escapar, ela por
Anjinho assusta. Novinha, de repente estava vezes lhe aplicava uma peça: entrava por uma
depauperada por causa de problemas de in- porta e saía do lado oposto do prédio. Floqui-
testino. Imediatamente retirada da baia para nho chegou a levantar, mas de andadura cru-
ser cuidada, não respondeu ao tratamento e zada, passava uma pata na frente da outra e
partiu rápido. tombava. Certo dia, os dentes começaram a
cair e ainda por cima infeccionaram; logo so-
É preciso dar-lhes tempo para estar a sós até o freu duas convulsões e o olhar avisou: Chega!
processo da morte terminar, até a alma cruzar Apoiado por três pessoas, extinguiu provo-
para outro estado. Cobertos por um tecido, o cando um aperto no peito dos que aprende-
corpo de um cão desencarnado precisa aguar- ram a amá-lo.
dar no mínimo 12 horas antes de ser encami-
nhado para sepultamento, cremação ou freezers. Nenhuma vida igual a outra, nenhuma mor-
No Parque, são armazenados no freezer mas, te igual a outra. Alfredo chegou com TVT,
antes, são pesados, segundo as exigências da bicheira e males no fígado; cuidado até ficar
firma terceirizada pela Prefeitura que os reco- bem, uma úlcera eclodiu em um olho; por fim
lhe quinzenalmente. Levados para um municí- enfraqueceu, pegou gripe, pneumonia, cino-
pio vizinho, são incinerados em uma empresa mose e acabou entrando em coma, só dormia.
de soluções ambientais e as cinzas depositadas Sem comer, virou pele e osso, mas ainda com
em uma urna de fundo impermeabilizado, ve- sinais vitais. O grupo o limpava, respeitava,
dada quando preenchida. falava-lhe com amor. Apegado a esses laços
prolongou inutilmente a agonia por um mês.
Para não ser sacrificado na Universidade Fe- Pelo contrário, vira-latas fujões têm morte sú-
deral, pois não mais andaria por causa de um bita na movimentada estrada ao lado e, para
acidente que seccionou sua medula, Floqui- não ficarem expostos no asfalto de forma in-
nho foi trazido por uma estudante de veteri- digna, são retirados da cena trágica para o
nária. O minúsculo e alegre poodle branco se freezer, como aconteceu com a cadela Joana.
arrastava pelos pátios de cimento e caminhos Buscada por uma funcionária, indignada ao

140
vê-la ser devorada por um bando de urubus, a
situação pesou, ficou estranha. O ameaçador
bando de aves negras perseguiu-a, bravíssimo
pelo alimento lhes ter sido tirado.

Cães só esqueleto chegam apenas para resga-


tar a própria dignidade antes de falecer, como
um que foi carregado até a enfermaria: comeu
um tiquinho, bebeu dois goles de água, ajei-
tou a cabeça no cobertor desconhecido, rela-
xou e deu o último suspiro. Perdeu a vida sor-
rindo, aconchegado. Há também os trazidos
em coma. Apesar de semimortos, são tratados
com delicadeza e, ó milagre, recobram-se ale-
grando corações.

A fim de partirem menos atormentados, sobre-


-tudo os brutalizados precisam ser ainda mais
amparados, ter tempo para amenizar o choque
vivenciado em acidentes e espancamentos.
Cães também matam cães. Inesperadamente,
o bando foca um, grunhe implacável e, com
ímpeto, se arremete sobre o pobre, que ante a
situação de perigo se paralisa e contrai como
defesa. Que momento para o condenado! De
apreensão e terror ante a fúria cega armada
para o ataque. Caso não se chegue a tempo
de salvá-lo, tiram-lhe pedaços e baqueia tres-
passado: Meu Deus, meu Deus, parem com isso!
Retirados vivos, demonstram estar em estado
de choque. Profundamente traumatizados, uns
sucumbem e, para amenizar as últimas lem-
branças de vida, a eles se dedica uma especial
atenção, gentilezas, orações.

141
Dizem que, dos sentidos, o ouvido foi o pri- as vivências de cada membro, seja amizade,
meiro a nos ser dado e é o último a apagar. afeto ou maus-tratos. Depois as distribui para
Quando minha gatinha Menina morreu, já todas as essências que a ela pertencem. Assim,
durinha a chamei: Menina! Ela ouviu, levantou cada partícula renasce um pouco mais madura.
a orelha e foi de vez. É preciso muito cuidado e
respeito com o que se fala perto de um cão Cada qual deixa uma saudade. Na mesma
que atravessa o momento derradeiro, ou que época, Pit e Duque pediram, receberam e leva-
já partiu. Nos momentos pós-morte, o ser ram afeto pelos caminhos da luz. Cão bravís-
entra em um estado ampliado de consciên- simo vindo do canil antigo, Pit precisava ir ao
cia, pode ver e ouvir o que se passa em tor- veterinário: Peguei e levei, nem sabia que nunca
no. Invisivelmente, o processo do cão pode deixara ninguém tocá-lo, conta uma voluntária. To-
prosseguir até oito horas: semelhante aos hu- dos se admiraram, e a partir daí era chamada para
manos, após a morte clínica fazem uma sín- levá-lo e trazê-lo de volta, até que fez uma cirurgia
tese da própria vida antes de, aos poucos, se no nariz, pois estava com câncer; não melhorou,
retirarem do corpo etérico – corpo sutil que acabou falecendo. Em contraste, Duque foi um
envolve o corpo físico e leva certo tempo até professor amável, deixou uma lição de vida.
se desfazer. Por fim, as essências retornam O simpático labrador dourado veio machuca-
para a alma-grupo levando uma espécie de do, sem andar. Paparicado por funcionários,
fotografia daquela existência. colaboradores e veterinários, todos sentiam
prazer em ajudá-lo. Apesar do tempo no Par-
A evolução canina e a de todos os animais é que ser curto, serviço demais, para ele sobrava.
coordenada por uma alma grupal, que tanto Ganhou um carrinho ortopédico, parecia um
lança partículas para nascerem e viverem em corredor de Fórmula 1, disparado levantando
um corpo, quanto as recebe ao desencarna- poeira, alegria, esperança. Então, teve hemor-
rem. Ao retornarem, a alma-grupo sintetiza as roidas, sarna, que se agravaram. Inesperada-
múltiplas vivências trazidas da vida material e mente, tombou em uma vala e, com o fêmur
as compartilha com quem a compõe; assim, o fraturado, foi transportado a um veterinário
grupo enriquece e evolui mais rápido. De for- da cidade para a cirurgia, mas não resistiu. Re-
ma mais ou menos inconsciente, a amorosa corda uma funcionária: Quando morreu, Nossa
equipe do Parque a ilumina. A alma-grupo é Senhora… a gente não pode ficar agarrada, se tem
como um copo de água tingido aos poucos por de ir é porque Deus quer. Muitos ficaram desolados,
pingos de cor. Todas as experiências dos ani- outros com raiva. A gente não cuida só de um, cuida
mais levadas de volta para ela são as gotinhas de todos por igual, fazemos o possível por qualquer
que vão colorindo-a. À alma-grupo se somam um. Duque passou como um guerreiro, nos ensinou

142
a perseverar, insistir. Com certeza, as partículas
luminosas de Pit e Duque seguiram viagem ir-
radiando a compaixão recebida.

Com tantos no Parque, falta tempo para se co-


nhecer cada um em profundidade. Nem se con-
segue igual entrosamento ao que é construído
durante o convívio íntimo com um animal do-
méstico, razão pela qual o luto sofrido por uma
família pela ausência de um cão de estimação
seja maior. O companheiro doméstico provoca
risos e sustos, imita o tutor, entende e respon-
de aos chamados com rapidez, vigia os movi-
mentos da casa e provoca lágrimas ao partir.
Entretanto, a história não termina aí. Caso ele
já tenha um núcleo de alma, tais vínculos de
amor fortalecem-na e podem atraí-la de volta
ao lar. Por vezes, a alma-grupo coordenadora
desse movimento, a reenvia à mesma família.
Com um novo corpo, outro nome, o bichinho
alegre retorna aperfeiçoado, com maior cons-
ciência mental e olhos mais luminosos. Vida
após vida, a jovem alma amadurece.

Apesar de nem todos os cães já terem uma


alma em formação, atualmente evoluem ain-
da mais rapidamente. Para a paz, o amor e
outros atributos positivos ficarem impres-
sos nas sementes que crescem em seu inte-
rior, precisam estar certos de que são ama-
dos, seja em ambiente privado, na intimidade
de um grupo familiar harmonioso, seja em
ambiente grupal, na companhia de pessoas
confiáveis. Não raro, as essências de animais

143
maltratados, abandonados e assassinados em Enquanto a humanidade percorria o reino ani-
abatedouros, caça e pesca ficam traumatiza- mal, parte dela deixou tremenda dor e ódio se
das, gravadas pela dor, pelo ódio. Ainda assim, estampar em seu mundo interno. Essa é uma
algumas são tão pacíficas que conseguem per- das causas de haver tanta guerra e maldade na
doar os homens. O Parque contrabalança os Terra. Há, ainda, outra causa para haver tantas
tantos erros cometidos. A atitude espiritual guerras no planeta Terra. A humanidade cria
do grupo e a vontade férrea de alguns tam- uma dívida para com o Universo por derramar
bém ajudam a equilibrar a situação planetária. tanto sangue do reino animal, que é paga ao
Diz uma coordenadora: Eu, por exemplo, não derramar seu próprio sangue. Entretanto, há
parei de comer carne porque não gostava, pelo uma razão, um propósito para isso ser permiti-
contrário, gostava muito. Durante um curso de do: como os espíritos precisam conhecer tudo,
teosofia, entendi que um ser vivo é morto para ser é parte dessa aprendizagem viver experiências
comido. Nunca mais. Parei por amor à vida, não positivas e negativas. Por tudo isso, a Terra é
porque achava o sabor ruim. considerada um “planeta laboratório”. O cami-
nho para a paz é desenvolvermos a intuição,
Estamos em profunda comunicação com os que nos permite compreender a realidade de
animais e somos responsáveis por lhes fa- forma clara, direta e sem a interferência do ra-
zer o bem ou o mal. Nossas ações, palavras e ciocínio. A intuição são informações que fluem
pensamentos positivos ou negativos atingem de nosso mundo abstrato pelos intervalos en-
não apenas a nossa própria evolução, como tre os pensamentos e se imprimem na nossa
também a deles, pois ficam tatuados nas al- mente. Não necessitaremos de experiências
mas e nos espíritos. Podem colaborar mais ou e pesquisas torturantes para o reino animal
menos para sua individualização e vida futu- quando tivermos desenvolvido a intuição.
ra. Segundo ensinamentos de Trigueirinho,
individualizar é o animal desenvolver uma Lado a lado em uma baia pequenina, a cadeli-
alma reencarnante. É esse o momento mais nha Mística e uma jovem voluntária se uniam.
importante na trajetória e experiência do A cadela com cinomose estava à beira da morte,
espírito através dos reinos mineral, vegetal acompanhada pela jovem a embalá-la com cân-
e animal. Quando a alma animal evolui, vai ticos. Intensamente, Mística fitou-a por um eter-
se desenvolver como ser humano em outro no instante, abaixou as pálpebras vagarosas e
planeta, não no mesmo onde foi animal. Essa liberou-se. Silêncio. Uma brisa branca envolveu
transição para outro reino se dá em um pla- o corpo sem vida e levou a memória da ternura
neta diverso daquele onde viveu experiên- ao céu dos cães. Criada por anjos, junto ao cor-
cias como animal. pinho ainda quente, jazia uma rosa etérea.

144
Cântico para a hora da despedida:
O Voo da Paz

Voa, cãozinho voa


Segue a tua luz
Como estrela a brilhar
No infinito amor.
Encontre as melodias
Nas esferas celestes
Para que um dia retornes
Trazendo a Paz do Senhor

145
CANAIS DE AMOR

Cães errantes sobrevivem imersos no que há Uma nova era tem início para todos os habitan-
de mais denso no planeta urbano. Peregri- tes do ambiente terrestre e aquático planetário.
nam em meio à solidão, crueldade, criminali- Como tantas vezes repetido, é hora do mundo
dade, desamor, doenças e fome, consentidos sair da era da escuridão e entrar na era da luz. Por-
pela sociedade da qual fazemos parte. Ali rea- tas do Cosmos brilham e abrem o grande portal
lizam a sua tarefa, ajudando a transformar o a ser transposto, o grande passo para uma nova
mundo doente. É necessário que seres na ter- face da vida se manifestar. Impulsos vindos do
ceira dimensão abram portas para a Energia Criador ajudam os quatro reinos que habitam o
de Amor entrar na vida de crianças, adoles- planeta a evoluírem juntos, sendo a oração parte
centes, adultos e famílias que vivem nas ruas. da regra do jogo evolutivo para cada um chegar à
Assim é com Zé, que há oito anos faz ponto sua máxima expressão, antes de ingressar no se-
junto ao de táxis, recebe e cumprimenta cada guinte. Assim, de forma misteriosa, o espírito do
taxista que estaciona, em seguida entra de- reino mineral faz orações almejando transpor o
baixo do automóvel para se aquecer com o portal que o fará experimentar a vida como reino
motor ainda quente. Já o cão Nailon protege vegetal; o do reino vegetal faz orações almejan-
um casal de alcoólatras e, à noite, dorme vigi- do ascender ao reino animal; o do reino animal
lante a seus pés debaixo da marquise na en- faz orações almejando ascender ao reino huma-
trada de um banco. no e o do reino humano faz orações almejando
ascender ao reino espiritual. Juntos falam um só
Os cães são canais do amor, que o distribuem idioma universal, a sutil linguagem do coração. E
pelas vias dolorosas onde passam. Por isso, tudo isso, mistério dos mistérios, é Deus.
foram escolhidos como instrumentos de cura
dos corações humanos em sofrimento. Seu Para colaborar com a grande transição planetária,
olhar sem preconceitos se dirige a qualquer grupos de diferentes idades e condições, conec-
pessoa, nela vendo algo além. O ser humano tados à nova consciência, respondem ao desafio.
é o sangue e o fôlego do animal que, por não Saem da ingenuidade para carregar a cruz da
ter contato direto com o mundo espiritual, faz matéria, com determinação de fazer o bem. Caso
ligação com o Alto através do homem, seu no dia a dia não se desviem da responsabilidade,
“deus” e elo com Deus. Daí porque o olhar seus movimentos equilibrarão a vida material.
luminoso e puro de um cão se elevando em Diante da desastrosa gravidade dos problemas
direção às pessoas é sua forma de oração. atuais, são poucos em número, mas, em irman-

147
dade, tornam-se baterias potentíssimas, ímãs processo de redenção, aqui são curados. A enti-
que lançam ondas de amor encorajando outras dade Parque é, na verdade, uma base da opera-
ações. Além das forças caóticas presentes no pla- ção resgate encarregada dos cães, base que deve
neta, que o uso da energia nuclear põe em gra- se estender a outros lugares. Sua atividade é um
víssimo risco, essas “ilhas humanas” de serviço prelúdio para o novo mundo, um exemplo a ser
abnegado são luzes que brilham nas trevas, são multiplicado, em que cães sentem o poder do ho-
setas para o futuro. mem e seguem suas pegadas.

Há um plano invisível para o Parque Francisco de Tudo é mágico no Parque, inédito, o que nunca
Assis. O Parque é como um Portal Dimensional, se imagina acontece. Programa-se uma coisa, sai
não um abrigo, não um ponto de chegada, mas outra totalmente diferente. Sem explicação, um
um local de transição entre a vida nas trevas e o muralista espanhol propusera criar um grande
encontro com uma nova Luz, que socorre cães painel alinhado ao propósito do serviço aos rei-
e humanos ofertando-lhes um aperfeiçoamento nos, na parede da Casa de Cura, justo em frente
intensivo e cooperando para transmutarem o ao portão de entrada, visto da estrada que pas-
mal. Seres escolhidos por Deus, para viver um sa ao lado. Vinha com os mutirões dominicais

148
e era apoiado por voluntários. Chovia torren- bres, amando todas as criaturas e chamando-as
cialmente naquele verão. A área estava caótica: de irmãos, no mural tem uma veste de tecido
cães doentes, pedreiros subindo paredes e um marrom tosco e uma auréola amarela em torno
caminhão descarregando uma imensa doação da cabeça; pousa a mão esquerda sobre o cora-
de móveis metálicos de escritório, no pátio em ção e eleva o braço direito concedendo bênçãos
frente àquela parede onde o muralista pintaria o a quem o toca com o olhar. Bem mais alto que as
seu São Francisco de Assis, que ainda está lá, ir- montanhas íngremes e a distante cidade grande
radiando amor. Lembra uma coordenadora: Era às suas costas, está circundado de pássaros e um
um trem de loucos, uma bagunça na minha cabeça que cão alegre lhe faz festa. A seus pés, dezenas de
gosta de tudo muito ordenado! Ai meu Deus isso não espécimes aéreas, aquáticas e terrestres se enca-
vai sair! E ele pedia mais e mais tintas coloridas. Saiu! minham e entram em fila na arca de Noé à sua
O artista manifestou o símbolo sagrado do ca- direita: lobo, pavão, tartaruga, tamanduá, leão,
nil em um tríptico, em cujo centro plasmou um corça, veado, javali, tatu, onça, ovelha, borboleta,
imponente São Francisco de Assis, símbolo da camelo, elefante, girafa, zebra, entre outros. Em
união entre os reinos. O santo que imitou a vida um dos trípticos, o Sol nasce no horizonte de um
de Cristo se dedicando aos mais pobres dos po- oceano azul onde saltam baleias e golfinhos.

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O grande santo patrono dos animais e do meio vores ao lado. Fixou o olhar. Uma auréola doura-
ambiente é hoje ponte entre o Alto e os homens, da, ó visão, rasgava o espaço para acender a fé de
entre os seres humanos e a natureza, entre o ex- seus olhos. O halo circundava a cabeça cada vez
terior e o interior. O mural é um convite para se mais iluminada de um esplêndido, enormíssimo
celebrar as maravilhas do mundo. Trabalha a be- São Francisco. Flashes de cor branca relampeja-
leza do ambiente e, como um escudo, o protege. ram e a auréola permaneceu suspensa no éter
Mãos do Parque ajudam cães, mas o “coração” do por um tempo indefinido. Vagarosamente, o es-
mural abarca todos os viventes, em parte repre- plendor se evanesceu na escuridão. Ela retornou
sentados por esse símbolo de resgate. Observan- ao carro, girou a chave mais uma vez e desta vez
do as fotos deste livro, três monjas franciscanas funcionou. Partiu guiada com segurança pela
foram tocadas. Uma expressou: Ó, Deus criou os contemplação. Tocada pela Graça, entendeu o
homens e bendisse as criaturas. Os cães são criaturas chamado e, instantaneamente, tornou-se outra.
de Deus! E a Irmã Nívia se remeteu ao Gênesis: No dia seguinte, regressou para servir na igreja
Louvado sejas, meu Senhor, pelas Tuas criaturas. que desprezara na adolescência.

Não seguindo leis comuns, por três vezes uma No hall em frente à porta de entrada da Casa de
imprevista luz sutil emanou dessa superfície de Cura, o artista também criou um mural azul da
tintas sobre reboco, e se manifestou para olhos Mãe do Mundo, com uma pomba branca no alto.
bem abertos, despertando um pouco mais os Logo que a pintura ficou pronta, um pedreiro
corações que receberam as partículas sutis do vislumbrou algo nela, um enigma que transcen-
acontecimento invisível: em um relance admi- dia a imagem celeste. Estático, como quem abre
rável, alguém viu o santo reluzir dourado, num a vista à luz depois do sono, o além do ordinário
misterioso esplendor, e jamais esqueceu o mo- se comunicou com ele. O operário estremeceu
mento extraordinário. e se assombrou, as pupilas no inédito, antes de
retomar o trabalho com os blocos de concreto.
Meses depois, algo semelhante se deu com uma
senhora que nunca visitou o canil. Dirigia irre- Como explicar que os olhos, chamados espelhos
quieta pela estrada. O céu cor de fogo alaranjava da alma, irradiam à distância? Como se tivessem
o asfalto, quando o automóvel insistiu em parar. asas, olhares particularmente brilhantes de cães
Conseguiu levá-lo ao acostamento em frente ao sensíveis atraem pessoas. Primeiro elas sentem
Parque. Girou a chave uma, duas vezes, nenhum algo sutil lhes tocar, chamando; viram-se e encon-
sinal. Pegou automaticamente o celular e saiu no tram olhinhos cintilantes. Por instantes, os olhos
lusco-fusco se desfazendo em noite. Sua vista foi humanos e caninos não fazem mais que se olhar.
atraída por um brilho suave entre o perfil das ár- O diálogo silencioso reflete com simplicidade o

150
sol de seus corações. Como saber quanto o olhar
de um cão penetra no íntimo de alguém e quanto
o olhar humano penetra no íntimo de um cão?

Através da plena liberdade da imaginação, dois


olhares voaram para mundos distantes, na hora
dourada do crepúsculo de um domingo silen-
cioso. Nenhum latido. Vindo da varanda, ape-
nas um sussurro grupal, como um coro de anjos
ou ondas de um mar distante, repetia: Tende mi-
sericórdia de nós e do mundo inteiro... Uma jovem
caminhava, vagarosamente, contemplando a
pintura de dezenas de animais circundando
Francisco de Assis. Nenhum cão à vista. Escon-
diam-se do mormaço. Menos um, tão belo, dei-
tado silente ao Sol. O pelo dourado luzia úmido
de calor. Durante breves segundos, ela e o cão
se olharam intensamente. Imersos em uma luz
fora do tempo, seus olhos espelharam o infinito.
Leves, flutuaram levados por uma nave provin-
da do espaço sem fronteiras. Deslizaram livres,
um deslizar aéreo rapidíssimo, e com eles os
animais viventes do mural e mais cães tênues e
penas e cascos e trombas e chifres e serpentes
e cardumes e golfinhos e abelhas e beija-flores
em glória, milhões planando entre galáxias, in-
finitas cores, nenhuma cor, uma espiral vertigi-
nosa, uma explosão majestosa. Deus em tudo.

Unidos, ela e o cão dourado regressaram do alto


voo sublime. Trocaram mais um olhar delicado
de videntes, ampliados, e em paz. Os planos
físico, etérico, astral e mental finalmente pare-
ciam unir-se no olhar interior dos místicos.

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152
Oração aos Animais

Ó Pai Supremo,
Ó Cristo Redentor
Olhai nossos irmãos
Animais com seu amor
Para que sempre unidos
Sejamos redimidos
Misericórdia
Perdão
E compaixão.

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2ª PARTE HISTÓRIAS REAIS
A missão canina
Em tempos remotos, vidas quadrúpedes e bípe-
des se entrelaçaram. Os cães concordaram em
acompanhar os seres humanos em seu longo
e sagrado trajeto evolutivo, com a missão de
servi-los e manter a alegria, o perdão, o amor
incondicional, a lealdade e a devoção vivos
em seus corações. Optaram pela domesticação
para cumprir essa grande tarefa durante um
convívio íntimo e persistente.

Em troca, o compromisso da humanidade é ins- Quem adota um cão assina um termo de


truir, resguardar, vigiar e auxiliar o progresso responsabilidade. Declara-se ciente e apto
dos canídeos, adotando-os como companhei- para assumir os cuidados que exige.
ros de vida e membros da própria família.
Quem adota um cão do Parque assina um ter-
Entretanto, muitos humanos se desumanizaram. mo de responsabilidade. Declara ser ciente e
Parte da humanidade está perdida, esquecida apto para assumir cuidados de guarda, aloja-
de suas virtudes. Por terem se desconectado da mento, alimentação, exercícios físicos, saúde.
alma e do fulgor da bondade, esqueceram o sig- Ainda assim, há os capazes de um ato extre-
nificado do amor. mo de ignorância e crueldade, deixando-os
nas ruas. Foi o caso de Amarelinha, uma ca-
Cães saudáveis se doam por inteiro, pois alme- delinha tão delicada... Saiu saudável, alegre.
jam cumprir o propósito da espécie. Fazem o Retornou atropelada e teve uma pata ampu-
impossível para reverter situações doentias. tada. O adotante afastou-a do canil onde era
Por exemplo, logo após submetidos a maus-tra- tratada com respeito, alimentava-se e dormia
tos, retornam para lamber carinhosamente as protegida da geada e da chuva. Escolheu e re-
mãos de um tutor, dando-lhe a oportunidade jeitou-a, abandonando-a ao deus-dará. Ama-
de aprender sobre o perdão absoluto. Caso não relinha é um ser vivo: sente dor, sente medo,
consigam reacender sua paz e curar o dese- sente estresse, sente frio. Aquele adotante foi
quilíbrio, chegam a adoecer, podem se tornar partícipe da violência de proporções inigua-
medrosos, agressivos, deprimidos, ou mesmo láveis, hoje vigente no planeta, em relação ao
falecer de desgosto. reino animal.

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Tanto há casos de abandono, quanto de cães sassinatos, tais como “sala de abate” e “mata-
tratados como brinquedo, como o adotado por douro”. Então, o local recebeu o batismo em
apenas cinco dias para uma menininha brincar uma cerimônia simples, quando uma faixa foi
e, em seguida, ser devolvido! Os pais preenche- dependurada no topo do galpão com o novo
ram o termo de responsabilidade sem explicar nome: Parque Francisco de Assis e, desde
a malévola intenção. Um cão se acostuma com aquele momento, levou uma vida edificante.
as pessoas, com o ambiente, se enche de es- Em seu caminho entre as estrelas, o Sol estava
perança... trazido de volta, cai em depressão. em Câncer. O signo que impulsiona a ascen-
Além disso, perde a vaga. Remanejá-lo exige são do instinto indicava o papel do canil em
tempo, reincluí-lo a um grupo canino formado relação à consciência animal: através do amor,
é difícil, nem sempre o novo integrante é acei- os seres humanos deveriam colaborar para
to. Nesses casos é preferível não serem adota- elevar o instinto animal dos cães à emoção,
dos, permanecerem onde são amados. capacitando-os a desabrochar uma semente
mental e a capacidade telepática, podendo
mesmo emergir um início de alma em alguns.
Ter o amor como única bagagem Para tal, a instrução há tempos repetida era
clara: Para ajudá-los a evoluir, tratem os animais
Impulsionado pela energia desbravadora de Áries,
o primeiro signo do zodíaco, pioneiros buscado-
res do impalpável decidiram enfrentar uma tarefa
hercúlea: atender qualquer necessidade de cães
de rua, propondo salvar, recuperar e promover
adoções para reduzir o abandono, os maus-tratos
e a crueldade contra caninos.

Na tarde dourada do dia 27 de junho de 2010,


o grupo de serviço ingressou pela primeira
vez no matadouro em ruínas para inspecionar
a terra vermelha desolada, benfeitorias com
telhas quebradas e paredes descascadas exa-
lando sangue. Apesar da vibração ser pesada Conscientes do poder do verbo, a primeira
e triste, os corações pulsavam de esperança. ação do grupo foi pintar as palavras relativas
Conhecendo o poder das palavras, passaram às matanças, dando assim início à transmutação
tintas sobre aquelas referentes aos antigos as- da densa energia do local recém-recebido.

157
como se fossem pessoas. Chegara a hora de por
o ensinamento em prática. O grupo cruzaria
florestas e furacões, mas contava com a pro-
teção segura de um poderoso sol espiritual.
Apagadas as velhas palavras, passaram a
atrair tesouros do céu. Naquele inesquecível
domingo, nasceu o primeiro círculo de oração,
cânticos e mantras para transmutar o padrão
vibratório e físico da área.

Dia 30 de janeiro de 2011, quando o Sol cruza-


va a constelação de Aquário, nove meses de-
pois do contundente Sim ariano, e exatamente
28 anos depois da inauguração do ex-mata-
douro, no dia 30 de janeiro de 1983, centenas
de cães desceram de caminhões, caminhone-
tes, carrocerias de carros. Do Cosmos, o Inomi-
nável derramava uma corrente invisível sobre
a Terra, representada pela figura do homem-
-símbolo de Aquário vertendo, de um vaso, a
água eterna da vida e do amor.

Cartinha de um menino
Tenho 11 anos e comecei a frequentar o Parque no
início da construção. Ajudei um pouco e percebi que
no antigo canil os cachorros eram maltratados. Ven-
do o amor dos voluntários e dos pedreiros, sempre
pensando no melhor para os cachorrinhos, fiquei
encantado. Tratavam os cachorros como irmãos.
Lembro de Antu, que não andava. Tocavam música
para ele, e até chorei. Ah! Lembrei agora que voltou
a andar. Que lindo ver aquilo!

158
Fiquei tão triste ao saber que lá era um matadou-
ro. Coitadinhos dos bois, das vacas e dos porcos que
morreram ali, mas o bom é que agora isso acabou!
Em vez de matar, vamos cuidar.

Das últimas vezes que fui lá, nossa, assustei, es-


tava lindo, perfeito, cada um em seu lugar. Com
que rapidez construíram tudo! Nem imagino como
deve estar, estou doido para voltar. Pensa a impor-
tância de um canil numa cidade em que toda hora
vemos um machucado ou doente na rua. Se não ti-
vesse o canil, seria uma bagunça, um desastre! Só
fico triste porque os que vejo na rua não cabem lá
e porque muitas pessoas não tratam bem, até ma-
tam os coitadinhos que estão na deles, procurando
carinho e comida.

Um dia vou outra vez visitar os cachorrinhos.

Metamorfose
No desabrochar do serviço para os reinos, uma
das metas era preservar o meio ambiente, rege-
dor da vida onde seria implantado o futuro canil.

Logo após receber a notícia da doação do ma-


tadouro municipal, foi realizada a primeira
vistoria na área. Unindo laços para aprender
a difícil arte de ser irmãs, representantes do

Parentes e escolas levam crianças para visitar


e participar da vida de serviço aos cães.
Aprendem a cuidar deles, a amá-los mais,
e espalham a notícia: Não compre, adote.

159
Parque Francisco de Assis acompanharam um examinou o espaço externo. Percorreu vaga-
engenheiro ambiental, funcionário da Prefei- rosamente os arredores. Convidado ao galpão
tura que lidara com a questão de dejetos no onde um dia bovinos, suínos e até cães foram
antigo abatedouro, desativado por poluir com sacrificados, era-lhe apontado: Aqui é a sala de
sangue o córrego, divisa de uma fazenda vi- cirurgia, aqui é a enfermaria, aqui guardamos o
zinha. Lado a lado, pediam-lhe sugestões que material de limpeza, aqui é a farmácia. Defronte
apontassem o rumo correto a ser traçado no dessa porta aberta ele parou muitíssimo quie-
futuro. Ao final do encontro, ele refletiu: Vo- to, a fisionomia alterada. Regressava ao passa-
cês têm um enorme desafio. Acho quase impossível do, tocado pela metamorfose. Confidenciou:
transformar este lugar no que idealizam. Aqui, onde é a farmácia, atiravam as vísceras dos
animais abatidos. Exalava a morte recente. Hoje
Pensativas, pararam de olhar para trás e corre- emana vida.
ram em frente para trilhar a senda das estrelas.
Olhos que um dia aceitaram a insana crueza
Três anos se passaram. O engenheiro voltou a de assassinatos, se transfiguravam diante do
ser convocado. Silencioso, o rosto impassível, amor. Marejaram. Jamais seriam os mesmos.

160
Luz luntárias estrangeiras em visita, a sussurrar em
lamento: Perdón, perdón... Perdón, perdón… Per-
A primeira moradora do canil chegou durante dón, perdón… Luz estava partindo. Em súplica
a árdua batalha de determinação e fé no Altís- reverente, as três se ajoelharam diante dela
simo para transformar um cenário sombrio. A repetindo longamente o profundo murmúrio
cadelinha branca, idosa, cega e doente recebeu mântrico. Luz ouviu e sua alma subiu sem dor.
o nome de Luz. Quanta alegria! Todos sorriam A alma-grupo ouviu e somou compaixão às tri-
e se perguntavam, esmerando em cuidados: Já lhas de seu destino. Por sete sóis e sete luas
deram comidinha para Luz? Vamos fazer uma casi- o pedido de perdão pelas atrocidades impos-
nha para Luz. Luz precisa de caminha e brinquedo... tas ao indefeso reino animal ecoou aos quatro
Primeira estrela do Parque, a faísca acendeu a cantos, ascendendo o planeta.
imensa fogueira futura.
Na página ao lado: cenário do matadouro logo
após repassado para a SLPA. Na outra foto,
Certa manhã, ouviu-se uma melodia da co- à direita: cenário atual ao fundo da Casa de Cura.
zinha. Atraída pelo som suave, de mansinho,
uma senhora foi se aproximando das duas vo- Abaixo: Luz. Todos a visitavam ao chegar.

161
Visitantes alados louvam a vida

Misturado a estrelas, o inaudível canto dos


anjos abre os portões da aurora. Antes do pri-
meiro latido, a luz dissolve a noite. Asas farfa-
lham. Em voo, cortam o firmamento. A beleza
alada vem cantando e vai cantando: anuncia
a primavera, o verão, o outono, o inverno. Os
bem-te-vis são os primeiros a louvar os dias. Sa-
biás gorjeiam. Em certos amanheceres, graças
se espargem em garoa fina. Beija-flores úmidos
saltitam ágeis, de flor em flor, e, no bico, néctar
e pingos prateados de folhas trêmulas. Raios
matinais aquecem bandos de maritacas: ani-
mam o céu ruidoso, despertam latidos tirando
o sossego do mundo. Canários, tico-ticos, ca-
becinhas de fogo, anus-brancos, sanhaços de
plumagem colorida flutuam juntos na esfera
azul em que, vez ou outra, é pintado um ar-
co-íris. Devas e borboletas no ar transparen-
te. Uma seriema ameaça um calango, aguarda
o fim das chuvas para anunciar seu canto. No
bambuzal embalado por ventanias de agosto,
grita o bico grande e oco de um tucano. Pardais
e canarinhos do Reno trazem a cidade para o
campo, montam ninhos cantores sob telhas da
Casa de Cura: pipilam, pipilam, pipilam. O sol,
os ares. Acima, aves orquestram. Em meio às
horas todas, no solo o labor-rumor humano e
auaus eternos. Lua nova, meia-lua, lua cheia:
madrugada afora uivos, grilos e pios inventam
e reinventam sons sem começo nem fim. Apon-
tam o coro, seta lunar, para estrelas remotas.

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O chamado da água azul
Águas subterrâneas fluem abundantes pelas
veias do Parque. Maná de vida para plantas,
animais e homens, limpa e purifica.

Aconteceu um dia, como sempre. Cobertores


que aquecem mães, filhotes e cães doentes
precisavam ser lavados. A água jorrava para
encher o tanque branco da lavanderia, fato fa-
miliar para mulheres. Eis que a própria água
revelou mistérios ao convidar duas senhoras a
apreciar sua beleza. Estáticas e unidas, iam sen-
do atraídas por reflexos mais profundos que o
dos brilhos. Absorvidas pela leveza líquida vin-
da do fundo da terra, seus olhos clarearam ao
serem sutilmente arrebatadas a um estado con-
templativo. Penetraram a cristalinidade e trans-
parência azulada. Enlaçadas pela pureza foram,
aos poucos, sendo conduzidas ao profundo si-
lêncio que permeia latidos e o canto das aves.

Degustam seu sabor ao saciar a sede, mas ali,


tocadas pela dádiva fluida, viveram algo além
da água palpável: seu atributo sagrado, impul-
so na cura de cães. Pelos dias, revivem aquele
momento, buscam a suavidade que as renovou
e irradiam a paz descoberta.

Ao lado: dois meses antes da chegada de 300 cães,


uma voluntária oferece água azul a um cão atropelado.

Na página à esquerda: um tucano de papo


branco e bico oco. Ameaçado de extinção,
alegra corações ao visitar o Parque buscando frutas.

163
Uriel, ex-Rex, Sabendo que nomes têm um significado im-
e o primeiro adotante portante, quis mudar o de Rex para um que
representasse sua nova vida. Ouviu suges-
Antes da chegada dos habitantes do antigo tões, palpites e piadinhas, até escolher Uriel,
canil, cães curiosos da vizinhança apareciam Chama de Deus – nome de Arcanjo – o guar-
para visitar. A maioria passava o dia, outros dião de olhar angelical.
só davam uma voltinha. Um chegou, ficou
e a todos conquistou. Os pedreiros batiza- Como cães elegem o tutor, instrutor ou líder,
ram-no Rex. Era um filhotão alegre, espoleta, a jovem o deixou à vontade para eleger seu
que gostava de brincar e se banhar nas va- humano preferido. Onde mora, sempre os ti-
letas onde águas escoassem. Certo dia, uma veram: amam e acolhem como membros da
voluntária deixou uma rosca de canela da família. Observava. Nunca fora “a escolhida”.
quitanda sobre a mesa da cozinha para ser Não demorou, Uriel decidiu. Foi eleita, o maior
saboreada com café. Virou as costas e o da- presente que já recebera! Afetuoso e fácil de
nadinho abocanhou-a, saindo em disparada lidar, segue vigilante cada passo seu. Obedien-
com o lanche na boca. Flagrado, provocou te, quando ela permite que entre em casa, voa
um corre-corre, mas nada havia a fazer.
como um foguete, corre por todo lado, semean-
do ternura em cada coração, mas quando diz:
Terminavam as obras e a preocupação com
Pro seu lugar, Uriel! lá vai animado para o quarto
Rex crescia. Havia duas opções: inseri-lo em
e deita em uma caminha, ao lado da dela. Acor-
uma baia ou alguém adotá-lo. Pelo risco de
combate com um que escapasse, não poderia dar de manhã é uma festa. Abre os olhos e, que
ficar solto quando os futuros moradores che- susto! Lá está um focinho a milímetros do seu
gassem. Perguntaram se uma jovem, encanta- rosto, queixo no colchão, orelhas em pé, atento
da por ele, o adotaria; mas de pronto ela teve a cada sinal, louvando e sorrindo para a vida.
receio, nunca assumira a responsabilidade
pessoal por um cão. Demandam cuidados… Nos fins de semana, salta no porta-malas do
mas era o Rex e… anulou temores, aceitan- automóvel e segue arfante de alegria para um
do o desafio. E chegou em sua casa: magrelo, longo passeio olfativo na natureza. Sua pela-
agitado, com berne na perna. Levou-o para gem brilha dourada pelo sol, o olhar fulguran-
conhecer a vizinhança e os cômodos da nova te afirma ter ela aprendido a cuidá-lo. Como
moradia, onde logo se ajeitou, aprendendo a não se apaixonar por quem, dia após dia, cura
dividir o espaço com Maná, uma fêmea siste- sua alma, ensinando-lhe a florescer, a ser mais
mática, também adotada. amorosa e alerta?

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165
Albergue ou lar para cães
Em área rural, o Parque Francisco de Assis tem
como proposta o resgate da dignidade de cães
de rua. Com humor chamado Home Park, é um
albergue cinco estrelas para hóspedes temporá-
rios, assim como um reino ou lar para residentes
de longo termo. Com ritmo intenso, perseveran-
te e compassivo, protege cerca de 400 vira-latas.
Home Park oferece hospedagem gratuita em 70
suítes numeradas com dois cômodos para gru-
pos de dois a 10 indivíduos subdivididos por afi-
nidade: um dormitório com cama-tablado e um
solário, usado tanto para banheiro como para
banhos de sol, chuva e arrepiantes geadas. De
lá, contempla-se o céu ora celeste, ora cinzento,
ora nuvens cúmulo-nimbos douradas. No dia a
dia, são disponibilizados serviços de limpeza dos
quartos, lavanderia, fartas e saudáveis refeições.
Em sua ampla Casa de Cura, com enfermarias e
sala cirúrgica, o Home Park fornece atendimen-
tos extras: tratamentos diversificados para flage-
los e lesões. Para grande satisfação dos acolhidos,
oferta eventos ao ar livre em suas Áreas da Ale-
gria, uma ao lado de um riacho, árvores, bambu-
zal e duas junto a um antigo eucaliptal. Promove
constante interação social entre pessoas e cães,
além de serviço de banho e tosa, um luxo jamais
ganho nas ruas. Albergue para uns, lar para ou-
tros. Enquanto mistérios guardados nas estrelas
ininterruptamente trabalham o espírito de cada
criatura, o abrigo renova visões e dissabores pro-
fundos causados através do passado milenar de
convivência cão-humana.

166
Seu Nélson, o parente mais velho
Talvez fora intencionalmente envenenado ou,
por curiosidade, provara veneno de rato, gaso-
lina, o resto de uma barra de chocolate joga-
da ao acaso. O filhote sofria tremores, vômitos,
diarreia e convulsões quando foi resgatado da
rua, quase em coma. Levado ao Dr. Nélson, o
nome pegou: Seu Nélson, uma homenagem ao
veterinário que lhe prestou socorro, seu salva-
dor. Cresceu no antigo canil e chegou ao Parque
de caminhão junto a dúzias de companheiros.
Com ele, estava Alexandre, seu melhor parcei-
ro, adotado tempos depois. Respeitado por hu-
manos e cães, pedia carinho e agrados, entre-
tanto, jamais foi escolhido para viver em um lar,
talvez por ter perdido o olho em uma luta. Seu
Nélson sempre viveu entre grades, por isso é
expert em escapar entre pernas inexperientes
para uma corrida livre. Muito educado, late
pouco. Apesar disso, é dos cães mais alfa do ca-
nil. Seu espírito ermitão busca uma vida sem
turbulências, além da algazarra em torno. Com
sete anos, porte médio, gordo e com pelame
sedoso e perolado, dá as regras, controla sua
morada com pulso forte, apesar de conviver de
forma madura com os amigos, sejam fêmeas ou
machos. É bravo, mandão, nunca brigão, ape-

Chamadas Áreas da Alegria, a do


lado é de construção ideal. Basta
abrir os portões das baias e os cães
disparam pelo espaço cercado em
busca do verde. Para outras áreas
de recreação, são levados em cordas.

167
nas impõe respeito e subjuga facilmente quem Docinho redimido
sai da ordem. Como um parente mais velho,
repreende desordeiros que provocam tumulto, Um velhinho carrancudo marcado por violên-
mantendo a harmonia grupal. Para acalmar ex- cias passadas chegou do antigo canil. Docinho,
plosões de cólera, imobiliza o ruidoso com uma por anos, observou o mundo que há detrás do
pata pressionando a nuca para baixo, sem bater gradil, que lhe trazia segurança. Pelas grades,
nem machucar, enquanto grunhe exigindo paz. dava até, em raros casos, lambidinhas carinho-
Então, solta o arruaceiro e, com surpreendente sas nas mãos de poucos escolhidos. Amigo de
serenidade, deita silencioso ao Sol a farejar no- cães, desconfiava dos seres humanos, sobretu-
vos acontecimentos. do de homens, e resistia até ao encantador de
cães. Não que fosse bravo, porém, detestava
Tanto um quanto o outro chegaram do
ser tocado.
antigo canil. Com diferentes personalidades,
Seu Nélson, abaixo, gosta de gente e
é um lider respeitado pelos colegas. Para ser operado de um câncer externo na
Docinho, na página ao lado, até horas antes de
pata, foi necessária uma manobra raramente
desencarnar, negou se aproximar de humanos. utilizada no Parque. Enquanto a veterinária o
aguardava na sala de cirurgia para retirar o tu-
mor, um pedreiro o imobilizou à distância com
um cambão, um laço na ponta de uma vara. Ele
demorou a ter alta do pós-cirúrgico, já que a
cicatrização foi lenta por não aceitar curativos,
nem injeções e só ingerir comprimidos bem
camuflados em uma salsicha. No início, refu-
giava-se abalado, no canto oposto da enferma-
ria, cada vez que alguém entrava; todavia, va-
garosamente, habituou-se com certas pessoas.
Curada a ferida e com a alma mais receptiva
ao amor, retornou feliz a viver com os antigos
companheiros.

Certo dia, o designer que cria carteiras de iden-


tidade para cada um, entrou alegre pelo por-
tão de sua baia e passou a levar seus compa-
nheiros no colo ou no laço para fotografá-los

168
na natureza, fundo ideal para serem retratados
em um bom ângulo. Desconhecia o histórico
e o caráter de Docinho. Ao tentar pegá-lo, o
velhinho arredio se desviava e mordia a corda,
rosnava, o olhar desconfiado: Não aceito! Foi,
enfim, agilmente enlaçado, porém seguiu com
o coração febril empacando aos trancos e bar-
rancos pelos pedregulhos, meio puxado, meio
freando com as quatro patas.

Ao chegar no verde, embeveceu-se com os


aromas, o frescor da terra, a brisa serena. Ex-
plorava, farejava, comia mato. No final do dia,
enquanto todos eram reconduzidos de volta,
persuadiu Taz, um velho parceiro preto de bar-
bicha grisalha: Fiquemos aqui! Foi impossível
pegá-los. Juntos corriam distantes, camuflan-
do-se atrás de moitas de capim, escondendo-
-se ora aqui, ora acolá. Fugiam de cá para lá, os
olhos fixos em cada gesto do fotógrafo que, fi-
nalmente desanimado, percebeu haverem de-
cidido acampar na Área da Alegria. Úmidos de
orvalho, lá pernoitaram com grilos e estrelas,
a contatar anjos e devas. Naquela madrugada,
um uivo ancestral os reconectou com o sagra-
do e removeu sequelas profundas.

Taz foi levado de volta no outro dia, cedinho.


Docinho se recusou a ser enlaçado. Sua ino-
cência selvagem preferiu perambular um pou-
co mais, explorar, sentir o vento nas orelhas,
ouvir o canto das maritacas. Ao final da tarde,
o designer compassivo tentou um ardil: dei-
xou o portão do espaço cercado entreaberto.

169
Docinho saiu. Caminhou com dignidade até a Alegria entre cães e gente
escada. Escalou arquejante cinco degraus ín-
gremes. Aguardou o segundo portão ser em- Na origem do Cosmos, um Desenhista Uni-
purrado. Passou. Parou na porta de casa. Os versal projetou o destino dos cães de um
colegas foram afastados para um lado. Solene- planetinha da periferia da Via Láctea: que
mente, transpôs a soleira, sentindo-se um livre se tornariam seres sociais, a acompanhar os
aprendiz da vida. também sociais humanos. Em estreito conví-
vio, as duas espécies se alegram mutuamente
Poucos dias depois, se despedia da vida. Ama- há milênios e se entristecem quando em iso-
nheceu sangrando, o feroz câncer retornara. lamento. Progridem unidas a um fio evoluti-
Acomodado em cobertores, amaciou mais e
mais. Sentindo-se amado, deixou-se abraçar, Nas Áreas da Alegria os cães entram
aconchegando a cabeça em um quente ombro em júbilo. Correm, brincam, desco-
brem aromas de plantas. Sobretudo
feminino. Perdoou e aceitou os humanos e, preferem conviver com humanos.
naquela madrugada, entregou ao invisível o E logo pedem para retornar para
coração redimido. as baias e participar da vida local.

170
vo amoroso, o que permite a vida em comum no verde, corpos, cabeças, rabos, membros
de centenas de caninos e humanos no Parque disparam em bando. Pura alegria em ação. Pu-
Francisco de Assis. lam, cavam, rastreiam, remarcam com urina
odores de ex-passantes. Dão voltas e mais vol-
Ao ingressar por seus portões verdes, tanto tas ziguezagueando contentíssimos. Passeiam
as pessoas assíduas quanto os visitantes se em fila por uma estreita trilha criada em torno
animam pelas efusivas boas-vindas expressas da cerca por milhares de patinhas. Os jovens
com generalizada excitação, latidos graves e brincam de rolar um sobre o outro. Samir dá
agudos, saltos desordenados em todas as di- um pinote veloz levando amigos em seu en-
reções: um convite ao relacionamento. Quem calço, Mirna fecha o pique, transpõe todos, faz
se aproxima para dizer Olá! é saudado com uma acrobacia e, de pé sobre as patas traseiras,
cheiradas, lambidas nas mãos, pedidos de ca- atira as dianteiras no ventre de um jovem sor-
rinho, enquanto em baias vizinhas todos cla- ridente. Lindinha decola, em um só impulso
mam por atenção. voa sobre o dorso de Rapaz. E se vão velozes,
com a pelagem cor de cobre banhada pelo sol
Sem tutor exclusivo, com absoluta dependên- esfuziante.
cia dos cuidadores, os animais aprendem a
dividir afeto e treinam a fraternidade. Voluntá- Os mais velhos são os primeiros a apaziguar
rios promovem sua radiante felicidade quando tantas emoções. Localizam tenras relvas me-
levam o grupo de uma baia para se exercitar dicinais, sorvem largos tragos de água luzidia,
nas Áreas da Alegria. repousam devaneando à sombra da goiabeira
com orelhas à escuta e focinhos atentos aos
Oito cães esbeltos, sem relação de parentesco, aromas de ervas nativas viajando ao capricho
compartilham com vivacidade o pequeno espa- do vento. A brisa amenizava o calor. Os grilos
ço confinado entre grades da baia A6, próxima grilam, grilam entre sons de motores da estra-
à entrada. Cinco, de pelagem ruiva e mesmo da ao lado, maritacas atravessam o céu, lago
porte, parecem da mesma ninhada: Lindinha, azul. Um ágil lagarto verde passa.
Vá, Santinha, Samir e Rapaz. Três são multico-
loridos: Black, Carmem e Mirna. Aos poucos, são levados para a baia recenden-
do a sabão. Farejam os quatro cantos. Vizi-
Dois voluntários se aproximam com cordas. nhos latem, enciumados. Em silêncio, os olha-
Eles sabem! Aos trambolhões, amontoam-se res cintilam gratos, gratíssimos e, todos juntos,
no portão, competindo quem será o primeiro abanam os rabos em despedida. Sabem que
a sair. Vão em cordas ou no colo. Mal chegam são amados.

171
Ananda e Hércules,
mestres do guerreiro
A cuidadora passava de carro, encantada pelo
porte vigoroso da enorme cadela negra de
pelo curto. Via-a correr ágil entre o trânsito,
vagar em busca de comida, dormir à noite nas
praças. Por meses seguiu-a com o olhar, de-
pois maternalmente, até constatar as costelas
avultando: emagrecia, emagrecia. Conseguiu
quem a levasse com cuidado para ser tratada
no Parque.

Um guerreiro chegara para ajudar a mantê- Além de curar feridas de corações caninos
-lo mas, sobretudo, em busca da cura interior, e humanos, no Parque treina-se o desapego.
pois desde criança temera a espécie canina. A qualquer hora um cão amado é adotado.
Com valentia, enfrentaria tal desafio para dis-
solver crenças antigas. Determinado a rom- sismos. Enveredando por caminhos mais largos,
per comportas de amor estagnado em seu finalmente ele se entregou por inteiro. Unidos
coração, relaxava limpando recintos repletos por fraterna aliança, tornaram-se companheiros.
de animais, com quem aprendia a linguagem Ela lhe revelava segredos, ele descobria partes
do amor. Até que uma fêmea, recuperando da ilimitadas de si mesmo. Honesta e pura, vibrava
magreza, veio ao seu encontro. No momen- ao vê-lo. Contagiado pela impetuosidade amo-
to em que seus olhos se entrecruzaram, algo rosa, ele penteava a pelagem profusa. Ananda o
misterioso, súbito, emanou daquele olhar, escolhera ou ele escolhera Ananda?
atingindo um ponto obscuro petrificado no
íntimo do guerreiro, onde nunca fora tocado. Seguro de si, mais acostumado à linguagem
O instante foi o divisor de águas. Batizou a ca- canídea, prosseguiu a recuperação almejada.
dela negra de Ananda, que em hindu significa Passou a limpar a mais ameaçadora baia lo-
a bem-aventurança e a alegria espelhada. cal, com a placa de aviso pendurada no por-
tão: Cuidado! Cão bravo. Lá mora Hércules.
Ananda, a criatura canina a se responsabilizar O imenso mestiço-fila, amargo por temor ou
por aquela alma, ouvia seus pensamentos, inter- raiva, rosnava ameaçador, não deixando nin-
pretava seus gestos, desmascarava seus nervo- guém se aproximar. Imperturbável, o manso

172
guerreiro soltava diariamente a fera na Área trabalhar com centenas, ela passou a melhor
da Alegria. Entre a fragrância das folhas e da compreender suas linguagens, reconhecer e
irradiação pacífica do abacateiro, Hércules se lidar com suas personalidades. Farejam nos-
exercitava e gastava a energia acumulada, li- sos odores, monitoram e participam intensa-
berando-se da feroz tirania do passado. mente da vida local, conhecem-nos melhor
do que os conhecemos.
A cada encontro, comunicavam-se um pouco
mais, cautelosamente. Um dia, as pupilas ne- Compreendemos pouquíssimo suas mensa-
gras de Hércules sinalizaram uma nova inten- gens físicas e emocionais, menos ainda sua
ção: abanou o rabo relaxado, adiantou-se uns vida oculta, apenas o ensinado por sensiti-
metros abrindo levemente os dentes em um vos. Daí a alegria da funcionária quando Gil
sorriso, apresentou a cabeça ao toque. Fica- emitiu uma resposta clara aos seus chama-
ram assim um tempo, os corações entremea- dos, mostrando-lhe que começavam a se en-
dos afugentando densas nuvens do âmago de tender, a viver em harmonia.
ambos. O mundo se fez mel e o vínculo cão-
-homem se fortaleceu. Virava e mexia, ele fugia com Carmem, a
companheira de baia, para uma fazenda vizi-

Gil se comunica
É gratificante o quanto aprendemos com os
cães, comenta uma funcionária ao narrar sua
relação com um sistemático velhinho grisa-
lho: Todo mundo avisava: Gil é bravo, é bravo,
é bravo. Um dia, fui escalada para limpar a baia
dele. Sentia aflição, um pouco de medo. Não que
seja bravo, é igual a nós mesmos. A gente só tem
de ficar mais atento para aprender a lidar com o
jeito dele. Fui pegar a vasilha enquanto estava co-
mendo, deu uma arranhada na minha mão, um
aviso. A mão inchou, mas aprendi. É um dos jeitos
de explicarem:“Na hora que eu estiver comendo O bravo e idoso fujão de barbicha grisalha
não chega perto, fico nervoso”. Cães e humanos demonstra com grunhidos o que não gosta,
sempre aprendem uns com os outros. Após e com sorrisos a quem ama.

173
nha. Todos se preocupavam, pois só retorna- Manu
vam no dia seguinte. Ela chegara a perder o
ônibus no final da jornada de trabalho para Tantos milagres no mundo caótico! Cães ras-
correr atrás dos dois, pelo meio do pasto e gam tênues véus e trazem sinais sutis a quem
do eucaliptal. Uma tarde ralhava, chamava consegue ler o livro da vida.
alto e insistia: Gil, Gil. De repente, ele parou
com as orelhas empinadas e retornou corren- Manu tinha cinomose quando foi abandonado
do com a amiga, ofegantes, sorrindo. Foi um dentro de um saco de lixo preto, fora do muro,
momento mágico. Os cães e ela se conecta- à beira da estrada. Estava em choque, triste, fa-
vam numa onda intensa de comunhão. Um tigado, temendo o homem-fera. Morto em vida,
momento triunfante, maravilhoso, de encon- duvidava-se que sobreviveria. Talvez partisse
tro. Gil confiara nela, reconhecera o próprio para a glória, mas o enganoso pensar se esva-
nome, aceitara as regras. Eles falam: Deixe neceu.
passearmos um pouquinho, temos direito. Saem,
vão, mas retornam. Paralítico e grande, tinha o olhar pedinte. Dia
e noite soltava um choroso ganido longo, pro-
Como forma de acolhimento, histórias de suas fundo, um pranto sem consolo. Mal comia. O
vidas são contadas a visitantes. Era uma época grupo de serviço socorria seus apelos tecendo
tórrida, quando uma voluntária de primeira o fio invisível de amor, primordial para a cura.
vez duvidou do caso passado com Gil. Irritada, Cuidar dele era difícil: dar água na boca, re-
acusou a funcionária de inventar lendas sobre médio, por fralda.
o canil, jamais retornariam sozinhos. Insistia:
preferiam a liberdade. Em seguida à conversa, Passo a passo o escuro foi ficando claro. O
inúmeros cães fugiram para nadar no córrego, olhar enevoado, substituído por um brilho
brincaram, se refrescaram. Ninguém correu meigo, descansou das aflições. E o amor vol-
atrás nem chamou de volta. Retornaram em tou a palpitar nele. Alguém o chamou de Manu.
paz, em fila, e pararam em frente ao portão da O nome sânscrito designa uma consciência co-
baia aguardando ser aberto. Entraram. A vo- letiva que, por ter transcendido o individual,
luntária viu, e acreditou. conduz humanos por caminhos cósmicos.

A funcionária conclui: Aqui é um lugar santo, de Uma funcionária devota reza aos bocadinhos,
transformação. Ninguém chega por acaso. Todos em meio à lida, para sossegar o coração. Sua
vêm para dar e receber, Deus quis que aquela moça aura clara se entretecia à de Manu, enquanto
aprendesse algo e saísse com mais sabedoria. o tratava passo a passo. Esquecida de si, ia

174
aliviando o corpo quase inerte, até... um dia, que havia de ruim em meu coração. Foi um milagre,
carregá-lo para tomar Sol e decidir fazer-lhe um milagre de Deus.
companhia. Ria com carinho, divertiam-se,
quando lembrou uma história bíblica de Jesus. Daí em diante, ninado por ondulações mater-
Deu-lhe uma ordem: Levanta e anda, Manu! nais, não se desgrudavam. Onde um estava, lá
Batia palmas para animá-lo e repetia: Levanta o outro. Ela entrava para limpar uma baia, ele
e anda, Manu! E se olhavam firmes, de cabeças atrás, enfurecendo outros cães de ciúmes.
erguidas. E com prontidão Manu começou a
se erguer em esforço enorme, os olhos anco- Hoje, cheio de parceiros, Manu brinca alegre,
rados aos surpresos olhos humanos. E pene- mandão, sem traço de trauma. Ela segreda en-
traram um campo luminoso. E Manu levantou. ternecida: A gente aprende a amar todos, nenhum
E deu um primeiro passo hesitante. E mais um, é melhor que o outro, mas tem os que marcam mais.
caindo para o lado, em direção à cuidadora. Amo todos, mas o Manu…
Andou, determinado. Arrebatada pelo espan- Manu é um lider tão respeitado
to, ela soluçava, ajoelhou-se e abraçou-lhe o que os que moram em sua baia
pescoço negro: A emoção foi tão forte, tirou o são chamados de "turma do Manu".

175
Antu volta a andar se movimentar, ele passava a noite deitado de
um lado só do corpo, até ser virado, no dia se-
Era um por de sol e os latidos começavam a guinte, na chegada de alguém. Era tão novinho,
adormecer. Uma cabecinha mexia lentamen- com tal curiosidade de conhecer e ver as coisas
te na valeta fora do muro, ao lado da estrada. que, enquanto conversava com os pedreiros,
Dois olhos negros de fixidez brilhante, quase ela o carregava no colo até os braços tremerem
encobertos por um saco de ráfia, chamavam. por causa do peso.
Um cãozito aguardava, tremendo o focinho es-
perançoso. Como em vários casos anteriores, Quase estático, o filhote crescia. Recostavam-
fora abandonado na entrada de onde sua vida -no em almofadas para alimentá-lo. Com o
seria tratada com dignidade. Logo foi batizado tempo, começou a levantar a cabeça. Todos fi-
de Antu, o nome da mais poderosa divindade cavam atentos aos sinais que dava para comu-
mapuche indígena do Chile e do sudoeste da nicar necessidades. Ora lhe ofereciam água
Argentina, e que significa o espírito do Sol. ou levavam a vasilha de ração até sua boca,
beliscava, ora trocavam a fralda quando ga-
Antu era tetraplégico. Tinha os músculos ten- nia baixinho pedindo para ser limpo. Tomou
sos, estirados, não movia os membros, apenas medicamentos alopáticos, homeopáticos, re-
os olhos e, um pouquinho, o pescoço. Uma das cebeu acupuntura, mas o amor e a bondade
voluntárias que o acolheu comenta: Fiquei co- foram os melhores remédios. Uma fisiotera-
movida, chorei dias. Não só por ele, mas por tantos peuta veio especialmente ensinar exercícios
que levam uma vida miserável e continuam a ser e, diariamente, suas pernas e seu tronco pas-
torturados; me toca demais o que a humanidade é saram a ser estimulados. Os meses passavam,
capaz de fazer. Custo a digerir a crueldade humana, Antu reagia mais e mais, até ganhar um car-
não param, isso prossegue! Aqui são cuidados, fa- rinho e correr em rodas pelos pedregulhos.
zemos o possível para curar, mas a cada dia chega Feliz. Sempre estimulado por toques e pela
mais um. Oro para aliviar meu coração, perdoar as alegria de quem encontrasse, aos poucos seus
mutilações, os assassinatos. É tão dolorido. É preci- músculos se fortaleceram, até conseguir se
so orar e orar. manter equilibrado sobre os cambitos tesos,
quando retirado do carrinho. Assentado em
Antu chegou na época em que ela acompanha-
va diariamente, antes de ir para o trabalho, as
Um dia paralítico e em tudo dependente
construções dos galpões e da Casa de Cura. dos humanos, Antu se recuperou de
Havia uma carência enorme de ajuda, sobre- tal forma que, hoje, como um integrante
tudo de quem cuidasse dos bichos. Incapaz de da turma do Manu", só brinca correndo.

176
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faixas da cadeira móvel, à chegada do sono Luke Skywalker
cochilava em pé como um cavalinho. Deitado,
esforçava-se para levantar, dar pequenos pas- Chegou trazido por duas pessoas que o haviam
sos. Por fim, readquiriu força para caminhar: atropelado. Um residente o carregou até a en-
cada passada aprofundava os elos de amor, fermaria onde se alojaria com aleijados e doen-
aceitação e paciência entre os seres humanos tes. Mas o recém-chegado era diferente, chama-
e os animais. va-lhe a atenção. Agachou-se a seu lado para
observá-lo sem pressa, estendendo os dedos
Amoroso e amado, Antu fora abandonado no para serem cheirados pelo focinho negro. O cão
lusco-fusco e entrelaçou seu destino à vida do pousou a cabeça delicada em suas mãos. Em um
Parque. Protegido, alimentado, medicado, car- íntimo lampejo, tudo se esvaneceu e ambos se
regado no colo, tornou-se um símbolo de res- ligaram à carência, ao calvário, às chagas terres-
gate. De coluna encurvada, hoje abana o rabo
e, com o latido alegre, brinca e corre desen- Luke, hoje adotado, e Santiago, que já partiu,
gonçado com pernas rígidas. Bravinho, nem são provas de recuperações que espelham o amor
sabe que é diferente. humano a eles dedicado.

178
tres. Súbito, os penetrantes olhos caninos, que Para com ele aprender a ser virtuoso e forte, o
vinham de espelhar o sofrimento passivo, faisca- residente passou a visitá-lo diariamente, admi-
ram para sempre radiantes. Uma amizade nas- rando a beleza interior, o alto grau de brilho tras-
cia entrelaçada pela pureza do raro encontro. Ali passando o corpo deformado. O cão deita a seus
mesmo o sem-raça magro, a cauda pelada e fina, pés, a fitá-lo em devota reverência. Conforme a
o pelo curto amarelado foi batizado de Luke. relação entre ambos se expandia, Luke ganhou
o sobrenome de um dos principais personagens
Acabara de sofrer um dano grave em um aciden- da trilogia de um filme, além de uma declaração:
te de trânsito. Fraturada a vértebra da base da A força te habita Luke Skywalker, caminhante das es-
coluna, não mais andaria. Volvendo o focinho trelas, admirável exemplo para os humanos.
para perscrutar a chegada de cada visitante que
entra na enfermaria, com esforço enorme rasteja
as pernas traseiras, insensíveis e paralíticas para, Santiago, o sociável
animado, saudá-lo. Nunca reclama. Alegríssimo,
apenas deixa o amor à vida inventar seu destino, Enrolado sobre si próprio devido à cinomose,
que trilha em um carrinho ortopédico. foi trazido em uma caixinha no meio de um

179
inverno gélido. Parecia um feto esquálido do- Um dia, quietamente, partiu para a sua morada
brado ao meio, pernas definhadas por falta de sutil, a alma grupo. Com simplicidade e beleza,
andar, com sequelas de doenças, babando. Era Santiago jorrava amor aos passantes, fazendo
feio de ver. O tutor, acompanhado da esposa e de tudo para demonstrar-lhes afeto. De pé em
três filhos, estava desempregado. Muito pobre, duas patas contra a grade, os olhava cumpri-
chegara há pouco da capital e dizia faltar-lhe di- mentando com latidos, abanava o rabo veloz,
nheiro para alimentar os filhos e o cão. Ficaram empinava as orelhas comunicando otimismo
de buscá-lo quando empregado, mas Santiago com todo o corpo. Cheirava e lambia mãos em
sequer foi visitado. Com nome de santo de ori- beijos ternos, mostrando os dentes em sorrisos
gem espanhola, tem cor de terra molhada, mar- quase humanos. De difícil adoção por causa
rom fechado e um losango branco no peito. do defeito físico, infindavelmente esparrama-
va alegria, relembrando o quanto os cães são
O inverno velava o corpo, mas a primavera ancestrais parceiros da evolução e jornada hu-
habitava seu interior. De porte médio, chora- mana através dos tempos. Ninguém, lendo-lhe
mingava para chamar atenção, comia como a alma, o convidara para ser um confidente im-
um gigante. Alopatia, homeopatia, acupuntura: parcial e membro de sua família humana.
o corpo voltava ao normal à medida que nele
crescia uma reverência meiga pelos humanos. Pérola e três irmãos
Restaram apenas pequenas sequelas; anda
com três patas, a quarta é curta, encolhida sob Segreda a voz amiga da cuidadora, acalentan-
o pelame curto e brilhante. Muito querido, for- do ternamente a filhote: Ó meu Deus, amor da
taleceu laços e celebrava o grupo social huma- minha vida, sou muito pititinha, sofrendo desde pi-
no. Contudo, passou a demonstrar impaciência titinha, ó meu Deus. A peludinha branco e preto
com os da própria espécie. Calmo com pessoas, chegara gritando com um rasgão aberto ao lado
estressado na companhia da maioria dos cães. da barriga, de perna a perna. Dias depois, solta
Por não se adaptar a nenhum grupo canino, mo- ainda um ganido crescente, até soluçar duran-
rou um período em uma casinha com corrente, te a troca diária de curativos. Não tô aguentando
para aflição de muitos, até aceitar a companhia mais isso, gente, credo em cruz. Deixa mamãe ver. A
de fêmeas e certos pequenos. ferida está limpinha, cor-de-rosa. Essa pomadinha
com própolis vai ficar uma beleza. Tranquilizada,
Tempos depois, o antigo tutor retornou. Estava apesar da agonia, mexe pouco durante a inter-
empregado, queria adotar outro cão. Negou ver venção. Melhor seria deixar a ferida descoberta
Santiago. Por essa insensibilidade, lhe foi nega- mas, para não infeccionar, é usada uma atadura.
da a guarda de outra vida canina. Estou parecendo uma múmia paralítica enfaixada.

180
Pronto, agora mamãe vai dar injeção, a injeção é o
que mais dói, aiaiaiai. No início do tratamento,
fora necessário ferir ainda mais o local, para
irrigá-lo. Ó Jesus, ó Jesus Cristo. Tô com muita dor,
gente. Após tomar um sedativo, é deitada so-
bre cobertas macias na tampa de uma caixa de
transporte e levada na cama improvisada para
tomar banho de sol em parte do corpo. Perma-
nece silente, imóvel, com ar de súplica, apenas
o focinho trêmulo a registrar odores enquanto
a cuidadora sopra de mansinho: Agora vamos ar-
rumar o papazinho, estou com fome.

A lâmina de um trator em manobra rasgara


a cadelinha. Em pânico, seu motorista logo a
transportou para o Parque, onde foi imedia-
tamente socorrida. Ao saber do risco corrido
por três irmãos da acidentada, fugidos da ca-
dela-mãe que os amamentara próximo ao re-
vés, a cuidadora pediu para serem buscados
do terreno baldio. Chegaram encantando os
olhos pela textura e forma de bichos de pelú-
cia. A perna de um começava a arroxear, co-
mida por vermes cuidadosamente retirados
com o auxílio de agulha e pinça esterilizadas.

O aspecto físico atrai, ajuda a despertar ternu-


ra, por isso os belos são rapidamente adotados.
Uma funcionária presente na chegada da fi-
lhote a amadrinhou de imediato, batizando-a

Três irmãos foram adotados tão logo se


recuperaram. Pérola, pela funcionária
que a recebeu e dela cuidou.

181
de Pérola. Talvez por ser tão bela, tão fraca, o manos. Daí em diante, sempre se esgueirava
amor desabrochara. O que conecta um coração para lá. Rosnou, ameaçadora, na primeira vez
a outro? O que o faz instantaneamente queri- em que se encontrou com Olívia mas, sem de-
do? O que acende a chama ardente do amor? mora, o espírito da leveza venceu e passaram
a se divertir juntas: animadas, cavavam a ter-
Pouco tempo depois, os irmãozinhos igual- ra, rolavam em areias, saltavam tufos de mato.
mente encontraram colos ternos e prossegui- Firmaram o companheirismo e tinham uma
ram a travessia da vida com humanos a se de- vida encantada.
votar. Pouco a pouco, apagarão antigas expe-
riências da memória, enquanto seus imprevi- Em um calmo entardecer, no tempo de silêncio
síveis caminhos forem sendo moldados pelos após a saída dos funcionários. Elas brincavam
guardiões que os acolheram. aos pés do residente que lia, quando a campa-
inha tocou. Diana, uma enorme cadela magérri-
ma, era trazida por um vizinho, que se recusara
Lição de delicadeza alimentá-la quando surgiu no sítio. Chegavam
fora do horário de funcionamento ao público.
A beleza esbelta de Olívia tocou o coração de Antes de encaminhar Diana para algum recinto,
um residente. Ele passou a privilegiar a meio era preciso guardar as duas cadelinhas. Contra-
perdigueira com passeios constantes à casinha riado pela rotina violada, pelo estado da cadela
verde, onde habitava. A filhotona possuía qua- esfaimada e pela insensibilidade do senhor, o
lidades que o encantavam, emanava uma mei- residente apressou-se, chamando-as. Enevoa-
guice alegre. Diferente de Cristal, da mesma do, abriu o portão da baia, e Olívia entrou. Or-
idade, uma peludinha opaca preta amarronza- denou a Cristal entrar, mas era teimosa. Negou,
da, de temperamento insistente, quase huma- se esquivou, fugiu. Ele correu atrás até, assusta-
no. Detrás das grades, Cristal expressava sua díssima, ela se encolher e paralisar, olhando-o
infelicidade em choros incessantes, auauauan- apavorada. Em exasperação, o jovem agarrou-a
do, auauauando estridentemente: Eu não quero chacoalhando: Você tem de obedecer! E atirou-a
ficar aqui, me solta, me solta... até o irritar tanto com brutalidade dentro da baia.
que a liberava para parar de ganir. Ela saía em
carreira às cegas até se acalmar e passear com No dia seguinte, foi visitar as duas e encontrou
deleite por espaços abertos. Cristal profundamente triste, incomunicável.
Nessa época, o vírus da cinomose, uma doença
Um dia, Cristal descobriu seu lugar preferido altamente contagiosa, estava ativo. A agressão
entre árvores e flores: a casinha verde dos hu- recebida abaixou a energia esfuziante, prodigio-

182
sa, da cadelinha; sua imunidade caiu. Deprimi-
da, pegou a doença, e logo perdeu a vida como
uma flor, sem sussurro. Seu parceiro humano
olhou o corpo cristalino inerte. Saiu cabisbai-
xo, despedaçado, sem pressa, rumando ao léu
com Olívia. O Parque ficara vazio, despovoado...
percebia como o universo armara aquele con-
texto para se autoconhecer ao deparar-se com
a própria cegueira e obscuridade, para saber o
quanto ainda era bruto. Ele que, presunçosa-
mente, acreditara viver o amor aos cães. Ele que,
mentalmente, tanto criticara o vizinho. Soube
a razão da possante personalidade de Cristal
escolher viver entre pessoas da casinha verde,
porque dentro de si carregava um brando sopro
divino, uma leve semente de alma.

A frágil vida de Dorothy


Uma poderosa labradora de pelagem lustrosa
foi encontrada na beira da estrada, atropelada.
Dorothy chegou com fratura exposta nas duas
pernas, ossos esmigalhados. As veias cortadas
quase nem sangravam. Com carinho, curativos
e curativos, os ossos soldaram, as veias se reen-
contraram e o sangue voltou a correr. O grupo
de serviço acompanhava a cura, a veterinária
diagnosticou: Foi Deus. Outros afirmavam: Foi
o amor, tudo por causa do amor.

Até a partida de uma, as amigas


Cristal e Olívia ensinaram a arte
da alegria e do companheirismo.

183
caninas. Revigorada, Dorothy se tornara um
clarão radiante, ávida por afeto. Mais que com
adultos, brincava com duas meninas, irmãs de
10 e 12 anos, que conseguiram a permissão da
mãe para levá-la. Foi adotada! Por oito dias
viveu em um lar com festas e mimos, foi fo-
tografada com fantasia da escola, dormiu em
sofás. Derretia de felicidade, quando passou
mal. Nada a fazer. Após uma semana, desen-
carnou de doença do carrapato.

Oferta-se o impossível ao cão que transpõe o


portal verde do Parque. Novas e preciosas his-
tórias são vividas, renovam e nutrem o cotidia-
no; belas e sofridas, são cruz e ressurreição.

Amadíssima e acompanhada até o último Ocupante da Arca de Noé


momento de vida, Dorothy partiu levando
essa experiência para a alma-grupo. Relata a coordenadora: Acordei em prantos. So-
nhava que explodia em lágrimas, tão sentida que,
Aqui é o ponto onde se entra na dimensão no próprio sonho, me indagava: "Por que choro
do inexplicável. As palavras se empobrecem, assim?" Levantei, fui para o Parque. Convidei
se esvaem, a linguagem não foi criada para uma residente para orar comigo na Sala de Ora-
expressar milagres. O encantado desce à Ter- ção. Precisava aliviar a pressão interna. Assenta-
ra e o ininteligível se impõe. Deus, o amor mos bem juntas em frente às imagens de Nossa
e os milagres estão além da fala, irremedia- Senhora das Graças e do Cristo Misericordioso. O
velmente amplos para serem captados. Aqui, céu parecia descer sobre nós. Evocamos que nos-
olhos sorridentes e surpresos se dirigem para so caminho fosse iluminado, para sabermos como
Dorothy e se elevam para o divino, libertos cuidar dos necessitados. Acolhemos o reino ani-
do comum. mal no coração e cantávamos e subíamos e con-
tinuávamos a cantar. Quando a prece terminou,
Só temos o vocabulário humano para descre- ainda chorava. "Não sou chorona… o que está
ver as complexas personalidade e consciência acontecendo comigo?"

184
Ao saírem da salinha, um caminhão de uma Ela compreendeu a grandiosidade do preparo
indústria de tratamento de dejetos estaciona- criado em sua vida interna durante o sono e a
va. Dois jovens se aproximaram, aflitos, con- oração, pelo próprio reino animal, para con-
tando como o cão fora salvo de uma lagoa, seguir receber aquele ser, suportar aquela vi-
onde afogava. Ao vê-lo, chocada pela situa- são. Todos precisam se unir mais e mais com
ção trágica, ela entendeu o pranto… enorme, alegria, tolerância e amor para dar conta da
ruivo, magérrimo, com o focinho imenso de- grandeza da obra. O cão permanecia impas-
formado pelo inchaço. Um olho perfurado e sível, silencioso, em comovente resignação
o nariz, ambos a vazarem pus. Meu Pai, nossa diante da tremenda dor. Para que o terrível
tarefa é resgatar! Sem palavras, sem lágrimas, a sofrimento fosse apaziguado, ele foi sedado,
equipe foi acionada. antes de se debruçarem para tratar o novo ha-
bitante estoico.
Carregado para a mesa cirúrgica, deu-se início
ao trabalho de equilíbrio do mal do mundo. Naquela tarde, quando o lusco-fusco se aden-
sava, foi nomeado Noé, nome hebraico e bí-
blico do escolhido por Deus para resgatar um
casal de animais de cada espécie e repovoar o
mundo após um dilúvio.

No dia seguinte, uma funcionária o chamava:


Vem Noé, vem Noé. Enquanto o acarinhava con-
tou um pouco de sua história. Antes de chegar
ao Parque era chamado de Zoião, nome de
um homem que tem 10 cães em casa e cuida
de mais 40 no lixão, onde trabalha. Foram as-
sim apelidados, o homem e o cão, por ambos
serem cegos de um olho.

Tinha sido dado por morto quando desapare-


cera, antes de ser salvo do tanque da indús-
tria de resíduos. Manso com animais e gente,
Apesar de vindo do lixão, onde apenas convivia
sem lamentos nem protestos, foi encaminha-
com cães, talvez por Noé saber que viveria pouco, do pelo destino para a arca de salvação, cuja
tinha sede de carinhos, afagos e contatos humanos. caridade se derrama sobre a Terra.

185
Astor, fênix renascido Dias e noites vieram e dias e noites se foram,
com ele no soro, sem esperança de sobrevivên-
Dia 31 de dezembro, o grupo acabava de almo- cia. Começava a longa caminhada de curati-
çar. Combinara retornar mais cedo para casa, vos diários até a funda chaga cicatrizar. Como
quando chegou um carro vermelho do Corpo resposta ao imenso cuidado, sem ser espera-
de Bombeiros trazendo um grande corpo es- da, sua reação foi uma surpresa. Do passado,
quálido recém resgatado de um lote vago. Os restou apenas uma cicatriz grossa encravada
bombeiros atiraram-no ao chão da enfermaria, na pelagem caramelo, onde não nasce mais
afirmando ser um inegável caso de eutanásia. pelo. O tempo voou e, saudável, de quando em
quando doa sangue a necessitados.
Embora faltasse lavar a louça, prontamente
as cuidadoras deram início ao serviço. Carre- Astor se tornou um magnífico cão devotado ao
garam o pacote de ossos, cujo único sinal de ser humano, dos mais belos e especiais do Par-
vida era a respiração lenta, para a mesa cirúr- que. O caminhar digno deu origem ao respei-
gica. De olhos cerrados, o cão estava em coma, to, o porte exprime harmonia, o olhar parece
talvez pelo ferimento devorando-lhe o pes- aspirar coisas celestiais, o longo focinho des-
coço e parte das costas. Uma mosca varejeira
deve ter botado ovos na lesão provocada por
briga, que cresceu continuamente. Centenas
de larvas foram sendo suavemente retiradas
da necrose com pinças precisas, uma a uma. A
sala se inundou do mau cheiro podre enquan-
to, baixinho, três mulheres entoavam mantras,
lavavam a ferida com soro, pinçavam as larvas
e cantavam, pinçavam, cantavam, pinçavam e
removiam larvas. Uma voz interna informou
a uma participante que, por meio dela, trata-
ria o cão. Em um lapso, viu um índio ao seu
lado, no campo etérico. Suas mãos passaram
a transpirar abundantemente. Transmitiam in-
tensa corrente de energia fortalecedora e cura-
dora ao semimorto. Continuaram até a bichei-
ra ficar limpa. Só então, se foram, deixando o
cão ainda desacordado.

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venda o inimaginável. Seu nome indica essas seis são unidos e há momentos em que, juntos,
características, pois significa, em latim, ave de se aquietam para ouvir a música das esferas.
rapina, a mestra das grandes altitudes e visão
aguçadíssima. Astor não quer ser adotado. Permanece como
uma coluna de sustentação, um guardião do
Sereno, nem gosta de latir. Provocado por ou- equilíbrio energético da constelação de vidas
tros cães, encara com autoridade e desprezo pulsantes que povoam o canil. Por isso, foi se-
sem lhes dar a mínima confiança. Caso esteja lecionado para representá-lo em uma aparição
com machos briguentos, pode ferir seriamente da Mãe Divina, em Lavras. Seu renascimento,
o desafiante. Aprecia estar com a própria tur- sua história de amor à vida e postura reveren-
minha, cinco fêmeas: Maia, Lilian, Tila, Chu e te e nobre, a todos toca profundamente. Nes-
Melissa, a dominadora que comanda as cole- ta época de grande transformação planetária,
gas e, belicosa, avança em outras fêmeas. Ela cada um afeta a todos: Astor vibra para as es-
chegou a fugir com Robinho, porém logo retor- pécies se unirem em paz.
nou sozinha, com a cara inchada por apanhar
ou ter sido atropelada. Apesar de singulares, os
Lysa e Melissa,
bullying entre cadelas
O coro de latidos se amplia. A cozinheira che-
ga arfante, afobada, pede um socorro aflito e
comunica a violência entre duas cadelas se di-
gladiando na Área da Alegria. Algo aguçara os
instintos selvagens, mas já estavam sendo sepa-
radas. Quatro pessoas correm e encontram uma
funcionária assentada em um degrau da lavan-
deria com Lysa, a vítima, aninhada ao colo. Am-
bas abaladas. Serenamente, a curadora conduz
Lysa a um balde próximo e lhe verte um filete
d’água na cabeça, a fim de amenizar a crueza
do golpe. Durante o gesto refrescante sussurra:
Astor chegou semimorto e
hoje, de porte nobre e altivo,
é o "príncipe" do canil.

187
Já passou, já passou. Pede um anti-inflamatório e em outro grupo, ataca fracos e medrosos. Há
uma garrafinha de água benta, para aspergir nos bullying canino, atos de agressão física ou psi-
rasgos profundos abertos por dentes, no pesco- cológica praticados contra os mais frágeis, so-
ço e próximo às costelas. Para contribuir com o bretudo entre quem já se conhece. O destino
ritual de cura, a mãe de uma voluntária enviara de mansos é apanhar, assim como o de certos
a água santificada, de terra distante. Lysa é man- adolescentes tranquilos assediados por garo-
samente carregada para ser tratada por meios tos agressivos. Cercam o cão, que se submete
alopáticos, maternais e espirituais, em uma en- e deita; abocanham-no selvagemente e podem
fermaria vazia da Casa de Cura. Acabara de ser liquidá-lo, caso um humano não intervenha no
a protagonista de um filme de terror. Corre a tremendo corpo a corpo, razão de ser um risco
esconder-se sob a pia, os olhos arregalados de deixar indivíduos de diferentes baias em áreas
espanto. Precisa estar só, em silêncio, para se re- de recreação sem alguém atento para apazi-
cuperar do choque, antes da sessão de curativos. guar os primeiros sinais de conflito.

Melissa iniciara o ataque; é boa, mas domi- Agredidos por companheiros, Lysa e
nante e apenas se dá com a própria turminha; Pingo foram maternalmente socorridos.

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Pingo, mordido por Feliz vítima de uma facada. Os mendigos passam o
dia no jardim da praça central e, agora, estão
Ferido através da tela por Feliz, seu vizinho, Pin- com uma bela cadela de cores branca e amarela.
go sangrava quando encontrado por uma fun-
cionária que fora limpar a baia. Imediatamente Deitado na mesa cirúrgica, Pingo recebeu uma
encaminhado para a mesa cirúrgica da Casa de sedação leve, enquanto a assistente o abraçava
Cura, pingava sangue da bochecha rasgada. conversando baixinho para acalmar o desampa-
ro. Resistiu contra o efeito da anestesia, come-
Cães de mendigo, Pingo chegou junto com Julie, çou a se agitar, lutar contra o sono, contra a inca-
que estava grávida dele. Ela tinha uma doença pacidade de controlar o corpo, até enfim dormir.
venérea, TVT. Depois de curada, passou a viver O pelo ao redor da ferida foi cortado para preve-
com o cachorro chamado Promotor. Os men- nir contaminações, a ferida foi desinfetada com
dicantes vieram buscar Pingo e Julie, mas eles água oxigenada, foram passados unguento e an-
não foram devolvidos, pois, apesar de, em ge- tisséptico e aplicadas duas injeções. Terminado
ral, cuidarem bem de cães, drogam-se demais, o curativo, ainda sangrava um pouco. O organis-
razão pela qual Pingo ficou cego de um olho, mo tem protrombina, que ajuda a coagulação

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sanguínea, e cada cão tem um tempo de parar Quando a funcionária foi buscar os vizinhos
de sangrar. Aproveitando sua quietude, as ore- de Mônica, esta lhes mostrou os dentes com
lhas foram avaliadas, o corpo inspecionado com uma mordida à flor dos lábios. Logo perdeu o
delicadeza: Pronto Pinguinho, vai passar, você vai controle, enfurecida por ciúme e cólera. Avan-
ficar bom. É coisa à toa. É só parar de brigar, viu? Tá? çou impiedosa na vizinha Lis, uma pitbull enor-
me, preta com o peito branco, recém-chega-
Cogitou-se qual enfermaria seria mais segura da. Tomadas pela natureza instintiva, as duas
para internar o velhinho encrenqueiro. A fim abocanhavam o pescoço uma da outra com
de evitar novos afrontamentos, Preto, outro ódio. Mordiam, selvagens. Assustadíssima, a
implicante já curado do olho atingido em bri- funcionária tomou a mangueira com presteza
ga, foi reencaminhado para Pingo assumir seu e esguichava água nos quatro olhos fuzilantes
lugar. Ainda confuso e meio fora do corpo, foi para esfriar a selvageria. Dava pontapés ten-
aconchegado em cobertores macios. Assistido tando parar a violência. Em vão. Prosseguiam
por gentilezas, a recuperação foi rápida. Cedi- lutando. Em um átimo febril empurrou Môni-
nho tomava banhos de sol, brincava com cães ca com um pé e conseguiu enlaçar o pescoço
em tratamento até ficar curado, decorridos de Lis com uma corda. Puxou-a por um longo
poucos dias. O mal e o sofrimento passaram tempo para separar a briga, com força tão co-
como um sonho, mas a lição recebida ficou lossal que Lis foi desfalecendo até a língua cair
gravada em sua história. de fora, escoando sangue pela boca. Morreu!
Morreu estrangulada pela amorosa humana
que, desconsolada e esmagada pela dor, acu-
Mônica e Lis, as vizinhas sava: Mônica, o que você fez, o que me fez fazer?
Pensava: Não trabalho mais aqui! Como vou che-
Escalada para lavar os recintos da Ala do Cari- gar com a pitbull nos braços e contar que a matei?
nho, setor de cães grandes e enormes, uma fun- Sofria e massageava o peito clamando ao Alto
cionária percebeu que Mônica, uma cadela pe- com fé desmedida: Ressuscita, ressuscita, pelo
luda, idosa, destemida e forte, havia aberto com amor de Deus, volta, volta! Mas Lis não voltava.
os dentes um buraco na grade e se equilibrava Com pavor do mal cometido rogava ajoelhada,
sobre um murinho da baia vizinha. Acreditou massageando mais, mais. Por fim, Lis inspirou
que os cães das duas baias tinham criado ami- de levinho e reviveu, devagar. A funcionária
zade e os conduziu para passear juntos na área guardou cada uma na própria baia, tampou
verde. Desceram fogosos. Lá os deixou, mas bem o buraco e retornou ao trabalho. A cada
logo Mônica estava de volta para aproveitar a cinco minutos, até o final do dia de trabalho,
companhia humana até o término da limpeza. retornava: Lis, minha filha, você está bem mesmo?

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Passaram-se semanas, quando ela viu Lis sen- ça e te encara, olha de volta e lhe afirme que não vai
do adotada. Foi despedir-se sorrindo: Vai com lhe fazer mal, está ali só para cuidar.
Deus, filha; seja muito feliz. E explicou: Deus
tinha um plano para a vida dela, passar por tudo Cães se comunicam, tanto com os humanos,
aquilo e ser adotada. quanto entre si e com outros animais.

A funcionária relata outro episódio com o com-


Bill panheiro: Uma vez Bill escapuliu. Manu estava
atrás de mim, me seguia para todo lado; chegara para-
Ao fundo do terreno, uma rampa leva ao ex-setor lítico ao Parque e, havia pouco, voltara a andar. Logo
de bravos, hoje chamada Ala do Carinho, pois a Manu, sem porte forte e andar vacilante! Pensei: “Vir-
maioria amenizou o comportamento agressivo. gem, o pitbull vai matar”! Manu era muito ciumento,
Encarregada do bloco, quando lá chegou um disputava com os soltos e, se Bill quisesse, teria mesmo
pitbull pelado de tanta sarna e com temível re- matado. Mas aprendera a conter seus instintos: catou
putação, a funcionária decidiu dialogar com ele o Manu, enfiou-lhe no meio das pernas, colocou as
antes de ingressar pela primeira vez no recinto. patas em cima do peito de Manu e olhou-o fixamente,
De fora do portão, lhe repassou instruções claras, como quem diz: "Ó, não me enfrenta, aqui mando eu!".
em alto e bom tom: Estou aqui para limpar, senão Desde então, Manu nunca mais implica com ninguém,
você vai viver na sujeira. Entrou, continuando a Bill ensinou a lição. E eu... quase morri do coração!
clarear: Olha bem dentro dos meus olhos. Não tenho
medo de você! Não me morda! Na verdade, disfar-
çava muito bem o temor, pois conhecia o sexto Nicolau
sentido de cães para avaliar emoções humanas.
Arquejava cansado, as costelas em movimento,
Desde então, a comunicação entre espécies pas- os ossos quase rasgando sua pele seca. Não an-
sou a não mais ser verbal, falavam a linguagem dava. Trazido por seguranças da Universidade
do afeto. Mal chegava, o pitbull saltava contente, Federal, era idoso.
punha as duas patas dianteiras em seu abdome,
pedindo cafuné, e ficava a contemplá-la em silên- O velhinho resmungão, reclamão, ranzinza,
cio, aguardando o presente diário, um passeio ao comunicava-se claramente. Chegou empoei-
término da limpeza. Declara: Dei-lhe o nome de rado, malcheiroso e logo foi banhado para
Bill, a coisa mais linda. Eu o tratava, dava remédio. respirar melhor, um "bainzão" gostoso. Ensa-
Virou fortão e foi adotado para trabalhar como guar- boado com uma buchinha, o corpo surpreso, a
da de um depósito de construção. Se um bicho amea- princípio, ficou imóvel, como que espantado,

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achando bom. Depois sinalizou, prudente e a receber amor e bondade, os melhores antído-
sem malícia, que o banho estava demorando: tos para reacender a bruxuleante chama de es-
Agora chega, estou limpo, tá bom. Ela secou-o bem perança na raça humana, que apagava.
sequinho e o carregou, embrulhado em um co-
bertor, para uma enfermaria, pois fazia frio. É dito que há uma total ausência de cor no ins-
tante da separação entre o corpo e a essência, po-
Todos os dias o levava para tomar sol, deixando rém, colorida foi a lembrança levada por Nico-
água e comida a seu alcance. Ele mal se movia, lau quando cerrou as pálpebras e expirou entre
mas levantava o pescoço e chorava agudinho braços e vozes femininas entoando Voa, cãozinho,
para retornar à enfermaria quando o sol es- voa, e lhe repassando instruções claras: Vá com
quentava. Quando a fralda precisava ser trocada, Deus, não fica agarrado aqui. Vá embora, você já cum-
erguia as orelhas. Da garganta soltava um gru- priu... Algo misterioso o atraíra ao Parque no final
nhido baixinho e os olhos luziam pedindo para da vida e o próprio mistério alçou-o, em paz.
ser limpo. Foi elegantemente tratado e mimado
com acupuntura e massagens meigas para acal- Como tantos, Nicolau chegou para receber mimos
mar seus nervos hirtos. Viveu 10 dias no Parque e tratamentos antes de se despedir da vida.

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Promotor que, por fim, inventou uma história para re-
tirá-lo do bairro: que o promotor de justiça o
Tudo parou. Em um lapso, os olhares fulguraram encaminhava para o canil porque o criminoso
um para o outro firmando um laço recíproco e contrariara a lei. O nome pegou e o cão passou
inquebrantável. Um Canis lupus familiaris e uma a se chamar Promotor.
Homo sapiens secretamente fundiram as almas
conformes. Neles se enraizou a sagrada verdade Dividindo a mesma baia, é o par da bela Julie,
do amor canumano, construída nas profundezas trazida ao Parque doente e de coração partido.
do espírito e da história. Evoluídos e asseados, mantêm sua baia sempre
limpa, na esquina da Ala do Carinho, pois fazem
Pelo instinto ancestral de pastorear vacas e coi- necessidades em um só cantinho do solário.
sas em disparada, o régio cão fora acusado de
perseguir motos em um bairro da cidade. Tam- Aos sábados, um alvoroço de latidos e saltos
bém, grave falta, de ter abocanhado pessoas de boas vindas avisam que se aproxima um
que se aproximavam de seu tutor, um jovem grupo feminino de 10 a 50 anos, pronto a se
viandante. A população tanto reclamou em vão unir à vida local e servir aos cães. Da primeira

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à última baia, uma exclamação alta e entusias- força de vida do vibrante peludo, ela resolveu
mada incendeia o mundo: é hora de afeto, ba- adotar o canzarrão e Julie, levando-os para o
nhos, diversão. Antes mesmo de ultrapassarem seu sítio. Os dois cães reinventaram a vida em
o portão, os cães sabem quem chega. Como? uma nova existência. Vigilantes como anjos
Pelo faro, ouvido, um sexto sentido? Difícil da guarda, correm macio pelo fundo vale, ao
saber. As fiéis voluntárias levam, aos poucos, sopé da montanha em que passarão o resto de
cerca de 60 deles para passear na Área da Ale- seus dias.
gria. Enquanto revezam grupos caninos, lavam
vigorosamente seus recintos.
Pitoco
A enorme cabeça ruiva e negra do Promotor
segue a cintilante luz irradiada por sua huma- O linguicinha ranzinza que chegou seco, estur-
na preferida. Também ela se ligou a ele por ricado, foi nomeado de Pitoco, nome de uma
algo magnético, uma corrente elétrica chama-
da amor. Sorridente, a colaboradora brinca pu- Pitoco encontrou seu lar na cidade. Promotor e Julie,
xando suas bochechas flácidas. Seduzida pela hoje protegem um sítio ao sopé da montanha.

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música sertaneja. A letra canta a história de um pressivo Pitoco. Entreolharam-se, ela acariciou
cão inteligente e adestrado, cujo tutor com- a cabeça macia, encantada por aqueles supli-
preende os uivos, rosnados e com quem conver- cantes olhos achocolatados. Lá se foi Pitoco de
sa ao telefone au au au. Na verdade, o Pitoco carro para o novo destino, sem olhar para trás.
do Parque latia 24 horas. Era um desequilibra- No caminho, a nova dona pensou renomear o
do auauauauauau. Provocava, enfrentava os de vibrante peludinho preto e branco. O vínculo
qualquer porte e sempre apanhava, por ser pe- entre ambos nascia ao perceber quanto o nome
queno. Por um bom tempo viveu preso na cor- combinava: manteria o nome do sapeca.
da em uma casinha, para desgosto de alguns.
Isso, por ter sido quase impossível encontrar Mal chegaram à nova morada, Pitoco foi ba-
onde morar. Finalmente, sossegou com um gru- tizado com um banho morno, enquanto as
po de fêmeas. crianças da rua aguardavam-no, em júbilo, a
fim de levá-lo para brincar, conhecer odores
No primeiro dia de trabalho, esse baixinho te- da vizinhança, que logo remarcou com os pró-
naz e brigão deu uma ardida abocanhada na prios cheiros. Durante a recente transição para
nova funcionária, um sinal de advertência. Ela o mundo social humano, Pitoco passou por
descreve sua reação: Para mim, nossa! Imagina, uma rápida transformação. Esquecido de anti-
no primeiro dia de serviço, mordida… Na hora fi- gos defeitos, trouxe à tona um temperamento
quei nervosa, com raiva dele. Falei: “Meu Deus!”, e brincalhão, tolerante. Como se sempre tivesse
a coordenadora ainda por cima avisou: “Essa é só ali vivido, pula, late, diverte quem encontra.
sua primeira mordida, serão várias”. Passados cin-
co minutinhos entendi o que Pitoco tinha tentado
me dizer, porque mordera. Já queria abraçá-lo, con- Lia e as galinhas
versar com ele, a coisa mais linda e fofa. Começou
a correr atrás de mim no vai e vem, a me passar Há três anos foi decidido, em família, adotar
aquele amor. Foi indo e virou meu companheiro, me mais um cão para o sítio. A filha, voluntária do
apaixonei, me derretia pelo Pitoco. Nosso Deus! Ele Parque Francisco de Assis, achou por bem le-
corria atrás de mim. var o pai para escolher seu preferido in loco. Ele
caminhou observando em torno até ver uma
Meses e meses se passaram antes de uma se- patinha a chamá-lo da tela, sinalizando que se
nhora, que mora sozinha, chegar para adotar aproximasse. É ela! E lá se foi com a cadela.
um cão pequeno. Foi apresentada a dois: Zequi-
nha, um marronzinho que repuxa de uma perna, Extremamente dócil, branca de pintas amare-
e o barulhento, saltitante, ardorosamente ex- las, com uma leve sequela de cinomose, pas-

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sou a ser parte de um time especial junto a deparava com a filha voluntária no Parque, im-
outros dois cães. plorava-lhe para retornar ao sítio. Até a troca-
ram de baia para não avistar a filha… em vão!
Quanto espaço! Lia corria à vontade. Tão à Reconhecia-a pelo olfato e recomeçava seu la-
vontade que não resistiu a um bando de gali- mento e pedido de retornar ao paraíso.
nhas d'angola, residentes há tempos no local,
o xodó materno... Meu Deus! Lia voou atrás das Após debates, questionamentos, exame do ar-
menininhas de mamãe!!! Diante da terrível atitu- gumento de que um animal não adivinha como
de, o pai não hesitou em expulsá-la do paraíso. se comportar caso não seja treinado e educado,
Seu comportamento não fora aprovado e en- a filha recebeu a notícia: Lia teria uma segun-
viou-a de volta para o canil. da chance, porém, a última! Dispostas a rever-
ter a situação, a filha e Lia partiram para o sítio
Desde então, travou-se um drama familiar. De levando essências extraídas de flores prescritas
um lado o pai, inconformado com a atitude da por um terapeuta floral. Na água de Lia passa-
cadelinha, rejeitava qualquer ideia de uma se- ram a acrescentar gotinhas sutis para ajudá-la
gunda oportunidade. De outro, quando Lia se a equilibrar emoções agressivas e ressocializar

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com galos, galinhas, frangos e pintinhos. Por Guardiã impecável e grande companheira do
48 horas a paciente professora e a aluna não se pai, de onde ele tira o pé, ela põe a pata! Duas
desgrudaram: mal as d’angola passavam por vezes sinalizou a presença de cobras em torno
perto, o rosário era desfiado: Não pode, Lia! Não da casa. Com o olhar grato, balbucia sons quase
pode! Uma e outra vez, quando a aluna canina humanos, como a dizer algo importante. Agora
se controlava, era femininamente elogiada em o trio canino do sítio, Lia, Toquinho e Nino, con-
um tom agudo e meigo. vive em harmonia tanto entre si, quanto com os
demais habitantes do reino animal... exceto os
Para um cão se tornar bom membro de uma ratos... esses ainda não têm vez com a persisten-
família cabe ao adotante ensinar limites e pa- te e guerreira cadelinha.
râmetros de comportamento. Lia respondeu
rapidamente, compreendeu o que esperavam
dela, foi moldada. As coisas se acalmaram. Por Adotada, Lia foi expulsa de um sítio por
fim, pretende nem ver as d´angola... Até se atacar galinhas. De volta ao canil,
desvia respeitando o espaço das mocinhas. A implorou para retornar, até ser aceita de
fé e a educação venceram! volta. Aprendeu a observá-las, sem atacar.

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Robinho Fujão escapa na hora da limpeza, transpassa o brejo,
pega a via de fuga da beira do córrego, cruza a
O maior fujão do Parque sempre vai e volta da estrada. Certa noite, uma amiga humana do Par-
cidade e do lixão da periferia. É um andarilho que o viu subindo uma ladeira da cidade: Robi-
itinerante de faro aguçado, que memoriza odo- nho! Fingiu não reconhecê-la: E, ó, sumiu... Ou-
res do trajeto e nunca se perde. Para Robinho, o tra chegou a filmá-lo abanando freneticamente
canil é um hotel onde se fortalece um tempinho o rabo peludo preto e branco, em brincadeiras
e, depois, sai a perambular. Três dias, dezesse- de mordiscar sua saia com os lábios negros. No
te dias, dois meses. É, dessa vez o Robinho morreu, momento da fuga, insiste, mas nunca consegue
comentam alguns. Um sábado, uma terça, uma
madrugada, arranha o portão. O fujão retorna. Seguros a tempo, caso raro, Robinho e uma
Magro, corre direto para a baia. Passa o tempo, amiga não conseguiram escapar desta vez.

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levar Diana, de pelagem chamuscada de preto e O resgate de Mirna
ouro, que apenas o segue até o portão. Contudo,
levou Pink, que morreu atropelada. De outra vez, Uma rede atenta de mulheres observa e ampa-
duas cadelinhas só deram um passeio e regres- ra cães andantes; unem-se ainda mais em ca-
saram em retirada. Por causa de outra, fugiu para sos difíceis.
um motel das redondezas. As amigas passavam
de ônibus e ele lá: Robinho, vai para casa! Dissi- Domingo, na feira de adoção da praça, uma fi-
mulado, desviava o olhar. Em um dia festivo, lhotona chamada Mirna foi adotada por uma
enjoou de lá ficar e retornou contente. Belo cão,
acabou sendo adotado para ser guardião de uma
fazenda. Não tolerou. Orientado pela bússola in- Assim como o caso de Mirna,
muitos cães são resgatados de
terna, seguiu o mapa mental de volta ao ninho e, maltratos por redes de protetores
desta vez, chegou com coleira. Sempre em mo- e se tornam alegres participantes
vimento, só falta se despedir: Tchauzinho, gente. da comunidade canina e humana.

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mendiga mas, em seguida, rejeitada. A rede se Maggie, uma cadela-humana
pôs em ação até descobrir que outro mendigo,
com a má fama de abusar de cadelas por diver- À disposição do Universo, um jovem apareceu
timento, a recolhera. Conseguiram convencê-lo no Parque para dar e receber amor, aprender e
a levar Mirna para ser castrada, com o intuito crescer espiritualmente junto ao grupo canino.
de encaminhá-la em seguida para outro destino. Estava determinado a compartilhar sua vida
Mas o mendigo buscou-a antes da hora com a com os cães, servi-los, alimentá-los e ser por
veterinária, que não conhecia seu caráter. Ao lhe eles alimentado, contatar sua alegria, transcen-
ser entregue, Mirna tremia e gritava com pavor. der o aparente para atingir um estado mais ele-
vado de compreensão interespécie.
A rede foi acionada sem demora.
Sempre conversava com Maggie, uma cade-
Avistada com o mendigo-tutor no centro da la abençoada por um olhar meditativo, quase
cidade, duas protetoras prontamente troca- zen. Sem ser emotiva como os que rogam por
ram telefonemas, encontraram-se e planeja- afagos atirando sem discernimento as patas
ram a estratégia de resgate. dianteiras nos ventres de pessoas, Maggie se
comunica em silêncio com um leve abanar da
Uma se aproximou do alvo, distraindo-o. Em cauda, orelhas para o céu. Com esparsas man-
sorrisos, puxou conversa sobre a cadelinha. chas brancas entre a pelagem caramelo, é qua-
O homem grosseiro assustou-a. Estava feroz. se humana. Evidentemente, já deu passos em
Percebia algo, afirmava com violência que direção à individualidade e está pronta para
ninguém a tiraria dele. Como reclamou não sair da Terra e ser gente em outro planeta. Sua
ter ainda almoçado, tentando pacificá-lo com vibração eleva a energia de onde habita. In-
a voz cada vez mais suave, a protetora engam- fluencia os companheiros, tão grandes e fortes
belou-o com R$ 2,00 para um café, ou o que quanto ela, a viver em harmonia, sem brigas
lhe provesse. Às escondidas, a outra libertou nem turbulências. São todos de tal forma inte-
Mirna com destreza e correu com as pernas ligentes que é difícil, mesmo para funcionários
que Deus lhe deu, escondendo-a furtivamen- e voluntários assíduos, entrar nesta baia sem
te no automóvel. ocasionarem uma fuga.

Lá se foram. Salva da selvageria, a bichinha


Pela inteligência, Maggie encanta e uiva para seus
cambaleava de fome e medo. Airosa e leve, humanos preferidos até ir passear. Abre portas e
hoje brinca de novo no Parque. Esperançosa, deita junto à cozinha canina, aguardando ser servida
saltita, enquanto aguarda um bom guardião. do alimento especial quentinho dos debilitados.

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Passados meses, os ventos mudaram de dire- Amor
ção, o jovem partiria.
Tranquilos, amorosos e felizes, certos cães pas-
Saía do refeitório para embalar as últimas sam pela vida em brancas nuvens. Tão quie-
coisas na mala, quando Maggie disparou em tos, sequer deixam marcas. Sem brigar, o que
sua direção a ladrar-despedir. Interagira te- sempre provoca um corre-corre, um deus nos
lepaticamente com ele? Como soubera que acuda. Sem doença séria exigindo reconfortos,
partia? Com olhos surpresos fixos nas pupi- parecem não fazer história.
las caninas, ajoelhou-se a perguntar: O que
foi, Maggie? Ela repousou o corpo vibrante Uma cadelinha receptiva é um exemplo disso.
contra o peito perplexo, coração com cora- Abanou o rabo amigo para uma funcionária
ção, aconchegando a cabeça em seu ombro. um pouco ansiosa, que ingressava pelo portão
Abraçou-o como um ser humano abraça um para seu primeiro dia de trabalho. Encantada
ser humano. Ele entrelaçou-a com os braços, pela pelagem cor de mel, ela foi imediatamen-
devolvendo-lhe ternamente a amizade, res- te cativada. De todos os cães, foi a primeira
taurado pelo amor. E chorou, banhando o pe- hóspede do Parque a ir saudá-la. Parecia tentar
lame claro da santa paz. apaziguá-la com um cordial acolhimento, afir-
mando: Vem, tenho muito a te ensinar.

Uma passou a zelar pela outra com cuidados


especiais. Da afeição inicial cresceu um senti-
mento cada vez mais profundo, caloroso. Um
meigo vínculo fraternal, uma compreensão fe-
minina entre as espécies inundaram partes en-
rijecidas de ambos os corações.

A cadelinha sequer tinha nome, até, entre mi-


mos e sorrisos, ser aclamada pelo próprio amor:
Amor!

Os anos passam e Amor, talvez por


não aparecer muito, não é adotada.
Sempre de bom humor, tornou-se uma
senhora pacífica, robusta e receptiva.

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Celebração A Fonte oculta jorrava na caixa de biscoitos
apertados ao coração ardente, transmutando
Insondáveis são os caminhos celestiais da ca- petiscos em hóstias, as quais, pousadas em
ridade. Vistos de fora, os passos humildes de línguas pedintes, convertiam-se em pétalas
uma senhora, profundamente dedicada a fa- sutis. Um ponto do canil se uniu a um ponto
zer contato com cães, pareciam gestos triviais. do Cosmos.
Com impressionante zelo transitava, de bloco
em bloco, curvando-se reverente diante dos O inusitado cerimonial de doação a famintos
moradores de cada baia, que lhe estendiam de amor fortalecia a alma do Parque, abria vias
dezenas de lábios entreabertos. Pareciam co- brilhantes, desatava antigos nós cegos da rede
nhecê-la desde sempre, embora ela raramen- de conexão invisível canina-humana-espiritual.
te viesse, porque morava muito longe. Ofe- O ato simples de bondade abrandava o pesa-
recia biscoitinhos a cada cão, os via engolir, do fardo da vida nas ruas. Nem ela mesma sa-
prosseguia pelas alas. bia do mistério, que, em segredo, ministrava
uma sagrada eucaristia.
Súbito, o tênue véu caiu e a cena se revelou
através do espírito: com o milagre nas mãos, a Com reverência e quietude, os cães
sacerdotisa dirigia um ritual sagrado. Através receberam o biscoito dado de lábio em
da inesperada comunhão, unia cães ao Todo. lábio, e as bençãos de uma senhora.

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O cão Miguel tiu ao máximo comparecer ao local do crime hor-
e outro, este sem nome rendo punível por lei, só se apresentando após
ameaçarem linchar o bêbado. Finalmente, a po-
Finalizadas as orações em um domingo de muti- lícia chegou exigindo que ele fosse buscar o cão
rão, um policial se aproximou durante a distribui- que atirara no mato. Trouxe-o nos braços, desa-
ção de tarefas. Pedia permissão para trazer um cordado, sangrando profusamente, talvez morto.
cão espancado pelo tutor. À resposta afirmativa,
os zeladores do reino animal passaram a aguar- Há dois mil anos, representantes da humanidade
dá-lo, apreensivos. torturaram barbaramente um Mestre. Por que a
monstruosidade persiste? Quando a marcha in-
Finalmente chegaram: o policial, o torturador sensata de semear sofrimento terá fim? Quando
embriagado e a vítima, cruel e repetidamente a vida luzirá em paz?
golpeada. Parecia ter perdido um olho. Com o
coração aos saltos, tremia e sangrava com o foci-
nho e queixo rasgados. Sofria sem um murmúrio. Mutirões
Os voluntários se subdividiram: uns ofertaram os
primeiros cuidados, outros formaram um círculo Acolhido com alegria, chega da Comunidade
para orar em torno do paciente. As feridas foram Figueira mais um mutirão com voluntários, as-
limpas, o anti-inflamatório e antibiótico aplica- síduos ou de primeira vez, para apoiar o Parque
dos. Nas mentes pulsavam indagações silencio- nas tardes de domingo. Ônibus, kombis e vans
sas: Por que perdura tal terrível loucura, tal crueldade já trouxeram até 80 participantes de diferentes
além da compreensão? Que lição temos a aprender? E estados do Brasil e de outros países, desde as
o cão recebeu o nome de Miguel, protetor e líder primeiras construções. O encontro é aberto
do exército de Deus contra as forças do mal. No com um círculo de oração a fim de se reunir as
dia seguinte, a veterinária diagnosticou o resulta- energias para servir ao Divino. Então, as tarefas
do da violência: fratura do maxilar. Imobilizado, são distribuídas segundo as necessidades prio-
Miguel não poderia abrir a boca por um mês. ritárias, sobretudo para suprir o trabalho dos
funcionários de folga nesse dia. Em um certo
A vizinhança relatou o pavor vivido na rua de momento, é oferecida uma visita guiada pelas
um bairro da cidade. Cego de ódio, um homem dependências do canil aos de primeira vez. O
descontrolado espancava o cão com um pau. Ni- trabalho é encerrado com uma intensa oração
guém conseguia detê-lo. Abaladas pela desgraça, ofertada aos reinos, em gratidão pela oportuni-
crianças assistiam ao delírio soluçando de dor. dade de servi-los e aos anjos visíveis e invisí-
Ligaram inúmeras vezes para a polícia, que resis- veis. Antes do adeus, é oferecido um lanche.

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As mantenedoras observam a dança da vida. Relato de uma experiência
Atentas e disponíveis, acolhem cada essência,
palavra, sentimento. Não raro, os voluntários Moro na Comunidade Figueira onde, por vezes, os
passam a expressar opiniões, dar sugestões, meus processos internos são instáveis. Sem trans-
partilhar vivências, por vezes opostas, refle- parecer ou compartilhar com alguém, passava por
xos de visões múltiplas da realidade. Ora la- um momento difícil; minha personalidade questio-
crimejam, gratos pelo amor ofertado ao serem nava, bastante contrariada.
acolhidos, ora choram por animais confinados
ou pelos sofridos e doentes, ora narram que, Há meses tentava ir ao canil de Lavras e, por com-
após lavarem baias, uma misteriosa cura fez promissos de trabalho, não conseguia. Um domin-
desaparecer todo cansaço, aflições e dores, go, fui. Mergulhada em mim mesma, estava dispos-
ora declaram quão intoleráveis são os latidos ta a servir ao reino animal. Pela vida, tive pouco
e o odor, ora celebram a alegria, a paz encon- contato com cães, mas começava a perder o medo,
trada, apesar da efervescência canina. Muitos a ampliar essa relação. Insatisfeita comigo, lá che-
sonham com um canil semelhante em suas ci- guei e dediquei-me à necessidade apresentada, lim-
dades, tiram fotografias para mostrar a conhe- par baias com outros companheiros.
cidos. Outros atravessam os portões, olham
em torno, dão dois passos e meia volta, vão Que aprendizado é lidar com os animais, trabalhar
aguardar no carro. Segundo uns, o amor dos em grupo, conviver com aquela realidade em um lo-
cães pelos cuidadores é palpável; segundo cal tão organizado. Ao final, lavamos as ferramen-
outros, são eles os curadores dos humanos. tas, oramos, e fomos tratados com um delicioso lan-
Nesse jogo de contrastes, o ardor prossegue, a che antes de retornar.
energia da área se renova.
Para minha surpresa, as insatisfações, os questio-
Aconteceu que um dia surgiu uma emergên- namentos e os dissabores lá ficaram, não retorna-
cia. Era necessário retirar os pontos de cade- ram comigo. Um trabalho oculto acontecera, esta-
las recém-castradas. Diante da premência, as va leve, outra pessoa. O amor e a alegria dos cães
acolhedoras se uniram para elevar o pedido transmutaram meu velho estado interior. Preenchi-
ao Universo. Em seguida, silenciaram. Preci- da de gratidão e respeito por eles, concluí: pensara
samente neste domingo, chegou uma médica ter ido ajudá-los desinteressadamente, mas quem
com o grupo do mutirão ofertando ajuda para foi mais ajudada fui eu.
qualquer procedimento. Os corações sorriram.
Acenderam um pouco mais, gratos pelo aceno A partir de então, aflorou uma ternura em mim e a
dos céus: Avante! Tudo será suprido. relação com eles se transformou radicalmente.

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3ª PARTE ÚLTIMAS HISTÓRIAS
Castração de cães sem-tetos quinzenal, sempre a acompanho para ensiná-la a
nova prática de contenção animal, que não maltra-
Gestações indesejadas, ninhadas rejeitadas, tu- ta, mas lida com carinho. As capturas no laço eram
tores insensíveis. Como não há bons lares para traumatizantes. Ao ouvirem um ganindo, outros es-
tantos moradores de rua caninos, a esterilização capavam. Atualmente, estacionamos em um bairro,
é a ordem planetária preconizada para reduzir ficamos observando o cachorro, perguntamos no co-
o descontrole populacional. É também indicada mércio e aos passantes se faz parte de alguma famí-
para a prevenção de tumores prostáticos, ma- lia. Devagarzinho, agradamos com um pedacinho
mários e uterinos e para refrear a agressividade. de salsicha até por a cordinha no pescoço. Uns são
ariscos, rejeitam a salsicha e correm, mas a maior
Em resposta ao amadurecimento do serviço, já parte é tranquila, aceita colo. São colocados na caixa
com os moradores do canil esterilizados, a SLPA de transporte e encaminhados para o Parque.
recebeu um convite inusitado do governo muni-
cipal, em meados de 2013: assinar uma parceria Antes de serem castrados, permanecem dias
para um projeto de castração em massa de cães em baias, a fim de se fortificarem com água e
errantes. Para tomar a decisão, o grupo pediu a boa alimentação. A veterinária faz uma rigoro-
confirmação ao Alto em uma consulta ao oráculo sa avaliação clínica, na qual tem detectado tu-
chinês I Ching. O sábio livro instruiu: Promover a mor venéreo transmissível (TVT), leishmanio-
cooperação em um grande empreendimento comunitá- se visceral canina (LVC), anemia, entre outras
rio. E os braços maternais do Parque se abriram doenças. Além disso, vermifuga-os, trata contra
ao trabalho pesado, considerando uma dádiva pulgas, carrapatos e sarna. Finalmente, separa
ajudar a resolver questões da saúde pública. os doentes e depauperados para serem tratados
antes da castração. As gestantes permanecem
Com harmonia, os dois grupos, o da Secretaria até dar a luz e desmamar as crias, que são doa-
Municipal de Saúde e o do Parque, partiram para das na Praça. Em seguida, são castradas.
a ação heroica. Castrados centenas e centenas
de cães, o ex-prefeito comentou: Participar dessa Sábado sim, sábado não, um incêndio de amor
história de amor e respeito à natureza tem sido extre- arde a Casa de Cura. Antes um cirurgião, hoje
mamente gratificante. Espero que o exemplo de La- a cirurgiã convidada para o programa esteriliza
vras sirva para que mais gestores públicos implantem de 30 a 40 cães. Usa a técnica do laço, que tan-
programas semelhantes em outras cidades do Brasil. to permite a redução do custo e da quantidade
de instrumental cirúrgico, quanto do tempo da
Recolher cães andantes é difícil. Diz a veteriná- cirurgia e do pós-cirúrgico. É apoiada por uma
ria da Prefeitura: Coordeno a equipe de apreensão amorosa equipe de voluntários, que trabalha

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em silêncio, com ritmo: alguns buscam o cão, Que sonhos sonham? A temperatura é contro-
cujo olhar temeroso diante do ambiente inusi- lada e, caso os corpinhos esfriem, são aqueci-
tado se transforma ao ser docilmente abraçado dos com bolsas de água quente. Aproveita-se a
para ser pesado. O contato físico com quem o anestesia para cortar as unhas, limpar orelhas,
carrega e os toques de mãos ao ser deitado na dar gotinhas salvíficas, acarinhar. Trazem-nos
mesa onde recebe o pré-anestésico promovem alegria e damos alegria a eles. A vida é paz!
um efeito calmante. É belo, se entregam!
Permanecem no Parque no mínimo mais sete
Antes de serem levados para a sala cirúrgica, dias, quando são retirados os pontos e rece-
são anestesiados, raspa-se o pelo do local da in- bem o reforço de vermífugo, antipulgas, anti-
cisão e têm a orelha tatuada com uma mancha carrapatos e sarnicida.
de anilina, para futura identificação dos castra-
dos. Terminada a intervenção, são carregados e Após o minucioso processo, alguns são adota-
deitados com delicadeza em cobertores da en- dos, os doentes ficam em tratamento, os ido-
fermaria até retornarem da anestesia. Envoltos sos se integram à família-Parque e os demais
por música de Mozart e corações flamejantes, são reencaminhados ao ponto da captura.
permanecem adormecidos na cálida sala-ninho. Mais um Sim em glória ao reino animal.

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Amor de verdade rendo! O astral da casa melhorou, agora é como se
é amor de cachorro fosse uma filha. Eu não tinha consciência, nem a
sensibilidade atual, foi a cadelinha que me fez assu-
Convidado a compartilhar um suco de frutas mir essa bandeira. Existe um caminho para cuidar
com quitutes vegetarianos após visitar todo ca- com mais humanidade desses bichinhos. Se apren-
nil, confessa o Secretário de Infraestrutura de dermos a tratar bem nossos bichos, vamos aprender
uma cidade vizinha, empenhado em construir a tratar bem nossas crianças e os adultos, e todos
um novo canil: Estou surpreso. Estávamos no ca- viverão mais felizes.
minho errado, o caminho é o que está aqui: antes de
encontrar técnicas para controlar o número de cães Com uma lista de canis para selecionar antes da
precisamos lhes dar amor e também nos unir ao tra- visita, foi atraído pelo próprio nome Francisco de
balho voluntário. Disposto a edificar um local Assis, do iluminado santo, e por não se chamar
digno para substituir o atual, a equipe do repre- canil, mas Parque. O político foi trazido por um
sentante oficial pesquisara possibilidades: En- senhor que luta para finalizar uma unidade ve-
contramos soluções modernas, que poderemos aplicar, terinária hospitalar móvel em um ônibus para
mas o que senti aqui hoje é o primeiro passo. atender sete cidades vizinhas. Em sua casa mo-
ram 30 cães e gatos resgatados da rua, sendo um
Comovido, calou-se. Permanecia em silêncio, do Parque, todos renegados por tutores devido
sem conter as lágrimas. Segredou de man- a idade, doença, ou porque, em um ato de insa-
sinho, quase em soluço, a forma inesperada nidade, mordeu alguém. Comenta: Os animais
como fora transformado. Diante do aumento têm a sensibilidade que perdemos, me ensinam a
da população de cães sem-teto de sua cidade, trabalhar com o coração, como recomenda Maria,
chegaram a eliminar 350 ao ano, enviando-os o Ser Maior que nos acompanha e orienta. Sou um
para experiências em laboratórios de uma fa- empresário, mas era tão pequeno quando pensava
culdade de medicina, até ser inaugurado um só como empresário... Hoje procuro fazer tudo com
precário canil, coordenado por duas senhoras, amor, o primeiro passo em qualquer trabalho é ter
dia em que foi presenteado com uma cadela coração e amor.
chamada Lua. Achou que ganhara um proble-
ma, mas... Chego em casa, está na porta me espe- Com vigor, esses dois senhores de visão se de-
rando, vou para o escritório, vai atrás. Deito para dicam a projetos de defesa canina e, assim, aju-
um cochilo, deita ao lado do sofá. É uma companhia dam a construir uma sociedade sadia. Homens
inigualável, amor de verdade é amor de cachorro. e animais têm sede de se liberar de feridas pas-
Tem o lugar onde faz as necessidades, no jornalzi- sadas, de caminhar em paz. A cada reconcilia-
nho, ou segura, e quando abrimos a porta vai cor- ção, novo fluxo de vida penetra a Terra.

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Parque canino em Londres peripécias caninas de Luna e Star, saltando
atrás de bolas em felicidade plena ou se deli-
Cães de todas as formas, tamanhos e cores cor- ciando na fonte. A relação entre as duas toma-
rem soltos na relva e se refrescam à sombra de va direções luminosas. Após alguns encontros
bosques e árvores antigas em parques caninos. e conversas, o profundo coração da senhora
Comuns no exterior, esses espaços públicos, londrina foi sendo tocado à medida que a bra-
urbanos e cercados, são especialmente projeta- sileira relatava experiências do abrigo para vi-
dos para cães domésticos circularem sem colei- ra-latas à míngua, em Lavras. Enfim, decidiram
ra. A falta desses no Brasil faz a própria popu- telefonar para similares marcando uma reu-
lação inventar locais para passear com peludos nião em prol dos cães brasileiros, à qual com-
apelidando-os, com humor, cachorródromos. pareceram sete pessoas unidas pelo amor aos
cães. Cada uma levou o seu. Era um dia de raro
A cadela Luna e um cão alegre chamado Star calor. À medida que avançavam no assunto so-
saciavam a sede em um bebedouro de um par- bre possibilidades futuras de arrecadar verba
que canino de Londres, cidade onde não há e ajudar o Parque, resfriavam com gelinhos os
cães de rua, quando suas tutoras se conhece- corpos peludos habituados ao frio do inverno.
ram. Cães que convivem em harmonia são um Ao final do encontro afirmaram: Nós vamos aju-
bom sinal para aproximar pessoas afins. Assim, dar o canil.
a brasileira que acompanhava Luna conheceu
a tutora inglesa de Star. Em poucos dias, a brasileira avisava: The ball is
rolling (A festa começou). Foram programados dois
Com interesses comuns, foram se ligando por eventos para arrecadar verba para o Parque, no do-
filamentos de afeto, enquanto acompanhavam mingo tal e no domingo x.

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Com coragem e entusiasmo, um pequeno gru- No primeiro domingo fixaram a barraca ao
po de ingleses se ofertou para coordenar a lado de uma longuíssima fila de 26 mil espec-
difusão e atrair aliados, acionando via e-mail tadores se dirigindo a um show de música.
uma rede de indivíduos sintonizados com a
causa canina. Criaram a ONG Brasil Dogs Res- Quinze dias depois, montaram-na em uma
cue, logotipo, audiovisual, convite impresso, longa feira de rua. O público interessado se
mapas para indicar os locais dos eventos. As- aproximava para doar, comprar, oferecer ajuda,
sim impulsionados pela força da esperança e distribuir panfletos. Cães mascotes, levados
da alegria em ser útil, o labor internacional se para representar os irmãos do lado de lá do
organizava. Para arrecadar verba, cozinhei- Atlântico, serenamente fizeram seu trabalho.
ras planejavam brownies, tortas e bolinhos à Atraíram para a causa passantes que se aproxi-
moda inglesa e artesãos confeccionavam bi- mavam sorridentes e interessados, dando uma
juterias para venda. coçadinha no topo de suas cabeças.

Nos dois domingos programados, Londres ama- A repercussão foi inesperada. Magicamente,
nheceu coberta de garoa e neblina fina. Certos o fogo do amor, irradiado pelo trabalho no
que habitantes do mundo sutil escutariam, um Parque, já abrira janelas silenciosas em cons-
clamor grupal foi lançado ao tempo para trans- ciências sintonizadas com a misericórdia.
mutar o cenário indesejável. No céu, um mo- Com o espírito leve, os participantes se sen-
vimento intenso respondeu. Os devas atmos- tiam intensamente gratos pela união de pro-
féricos sopraram as nuvens, colorindo de sol o pósitos, por confirmar que, mesmo espalha-
asfalto, os jardins e as almas, enquanto tendas, dos pelo mundo e falando idiomas diversos,
cartazes, mesas e cadeiras eram montadas. somos todos um.

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Venha nos visitar
e adotar cães
Rodovia BR 265, Km 341
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Cega, sem comida e água, Belinha ficou


amarrada no fundo do quintal de uma
família que mudou de cidade. Resgatada,
adaptou-se à vida do Parque onde, com
cuidado, transitava entre pernas no pátio
da lavanderia. Foi adotada por uma
terapeuta consciente e amorosa que,
como voluntária, oferece a prática budista
de Reiki aos cães necessitados do canil e,
Impresso na Artes Gráficas Formato Ltda.,
também, faz parte da rede de protetores da
em sistema offset, papel couché fosco 150 g/m2 cidade, pagando tratamentos e internações
IMPRESSO NO BRASIL para cães abandonados nas ruas.

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MARIA,
ORA PRO NOBIS
PARQUE FRANCISCO DE ASSIS VIVER O AMOR AOS CÃES
ANA REGINA NOGUEIRA

Com a responsabilidade sagrada de transformar vidas, voluntários ofertaram-se


para o serviço de resgate. Em um ex-matadouro municipal de bovinos e suínos,
erigiu um centro de cura para caninos que um dia vagaram pelas ruas,
e os prepara para viverem em lares harmoniosos. Abriga cerca de 450 cães
e mais de 4.000 ali passaram.
Esta obra corajosamente revela e instrui sobre a riqueza da vida no Parque
Francisco de Assis. O que há nele de especial e diferenciado? Os milagres.
Acontecem ao clamor de latidos: cães voltam a andar, a alegria impera, ajudas
materiais chegam na hora justa. É sustentado por orações que com rapidez
revertem o insolúvel. Na labuta cotidiana, busca-se o Divino através da união
com os Reinos da Natureza. Esse o segredo do Parque.
Nutrido e guiado por circunstâncias vivas sopradas pelo destino, o livro foi
construído a partir da observação direta, de leituras livremente interpretadas,
mas, sobretudo, de conversas gravadas. Reflexões entrelaçadas a ricos diálogos
espelham o amor aos cães, seus personagens.
Como este exemplar chegou às suas mãos, você está convidado a participar
desta obra e a adotar um cão.

Um trabalho em prol da Sociedade Lavrense de Proteção aos Animais ISBN 978-85-60835-82-9

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