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Ulflasmsequeira TM
Ulflasmsequeira TM
2021
– Nego-me a admitir que com esta viagem se acabe a vida – disse.
– As vidas não acabam só com a morte – disse o general – Há outras formas, inclusive
algumas mais dignas.
(Gabriel García Márquez, O General no seu Labirinto, 2.ª Edição, Lisboa, Dom Quixote,
2003, p. 96)
1
Resumo
Numa segunda fase, será analisada cada uma das religiões e as suas respetivas crenças,
rituais e práticas mortuárias. Como tal, abordar-se-á a religião em si, as suas visões do que
acontece no pós-morte de um indivíduo e tudo o que deveria ser levado a cabo para garantir
seu bem-estar. É importante reter que se irá recorrer a estudos/ escavações arqueológicas,
quando for possível e pertinente de forma a completar e/ou confirmar a informação histórica
apresentada. Por fim, apresentaremos as nossas conclusões.
2
Abstract
The aim of this dissertation is to study of Death from the 2nd to the 10th century on the
Western part of the Iberian Peninsula, that corresponds to the present territory of Portugal.
Consequently, we will analyse the religions that dominated during those centuries – the Roman
religion, Christianity and Islam – in terms of their practices, rituals and beliefs in regard to
death. In this topic, the religions are: Roman religion, Christianity and Islamic.
Firstly, the approach will concern the occupation of the Iberian Peninsula during the
centuries under study. In this way, it will be possible to understand how these religions came
to the territory and how their development occurred.
Secondly, we will analyse each religion and its funerary rituals, beliefs and practices.
Thus, it will be possible to understand what, according to the beforementioned religions, ought
to be done to guarantee that the deceased would reach the afterlife and well-being. It is
important to mention that, whenever possible, we will use studies and excavations from
archaeologists to confirm or/and complete the historic information. Finally, we will present our
conclusions.
3
Agradecimentos
4
Índice
Introdução .................................................................................................................................. 7
Conclusão ................................................................................................................................. 79
Índice de Figuras
5
Figura 3. Um exemplo da representação epigráfica de um javali. Este encontra-se numa
peanha, sob uma árvore, na face lateral do monumento. ......................................................... 30
Figura 4. Um exemplo da representação epigráfica de uma coroa de flores. ......................... 30
Figura 5. Exemplo de mesas de sepultura rectangulares em Tróia. ........................................ 34
Figura 6. Fotografia da mensae em sigma entre outras sepulturas de mesa em Tróia............ 35
Figura 7. Exemplo de uma das sepulturas encontradas em Silveirona em que o cadáver tem os
braços sobre o peito. ................................................................................................................ 37
Figura 8. Exemplo de uma das sepulturas encontradas em Silveirona em que o cadáver tem os
braços sobre a bacia. ................................................................................................................ 38
Figura 9. Exemplo de uma das sepulturas encontradas em Silveirona em que o cadáver tem os
braços ao longo do corpo. ........................................................................................................ 39
Figura 10. Exemplo de um indivíduo enterrado seguindo a crença da Ressurreição. Neste caso,
as mãos encontram-se sobre a anca. ........................................................................................ 58
Figura 11. Exemplo de inumações encontradas no cemitério de islâmico de Mértola. .......... 78
6
Introdução
A morte é uma temática que se revela de extrema importância para o estudo das
mentalidades das populações de qualquer período histórico. Desta forma, a presente
Dissertação visa abordar o período que intercala os séculos II e o X, com uma incidência no
território que é hoje Portugal. Pretende-se analisar o modo como era vista a morte e o
tratamento que seria dado aos defuntos, desenvolvendo, por sua vez, os rituais, as práticas e
consequentemente as crenças que levavam os vivos a tratar os seus mortos de forma cuidadosa,
sendo de grande relevância a análise de vestígios arqueológicos para este fim. Com isto, as
religiões abordadas serão: a romana (ou “pagã”, como pode ser referida), a cristã e a islâmica.
Note-se que apesar de existir a presença da religião judaica no território em estudo, não foi
possível encontrar os dados necessários para incluí-la neste trabalho.
Deste modo, como o território peninsular sofreu várias ocupações por parte de diversos
povos, numa primeira fase, é importante abordar estas. Como tal, pretende-se entender as
fragilidades que levaram às várias invasões e a relevância que cada uma dessas teve para o
desenvolvimento das práticas e rituais fúnebres. Ademais, é dessa forma que se pode entender
quer as divergências, quer as influências que cada religião teve na outra.
A religião romana será a primeira a ser tratada. Nesta, a morte é retratada como um
culto familiar em que a família é a guardiã dos seus respetivos defuntos. As designadas honras
fúnebres ou funus seriam um conjunto de práticas e rituais de extrema importância, cuja
execução seria imprescindível pois, caso fosse omitido ou executado de modo errado
significaria que o defunto não alcançaria o repouso necessário1. Além disso, ainda estaria em
causa o regresso dos mortos e, consequentemente, a possibilidade de estes perturbarem os
vivos. A ideia de que a morte contamina os vivos é algo presente na realidade religiosa romana,
por isso existiam ainda rituais a realizar após estar em contacto com o defunto; ademais, o
respeito pelos defuntos seria imenso, garantir o seu bem-estar e evitar que estes pudessem
voltar levava à existência de celebrações em honra dos mortos.
1
José Luís de Matos, “O culto funerário no mundo antigo” in A Necrópole e a Ermida da Achada de S. Sebastião.
Coordenação de Joaquim Boiça e Virgílio Lopes, [s.l], Edição Escola Profissional Bento de Jesus Caraça e Campo
Arqueológico de Mértola, 1999, p. 70.
7
foi abandonado, tendo ainda havido fortes entraves culturais a esta nova religião no século IV2.
Aliás, nas primeiras comunidades cristãs perduraram algumas crenças romanas, como será
posteriormente analisado, apesar de existir vontade de as combater. No entanto, foi nesta nova
realidade religiosa que a visão da morte se modificou; assim, as crenças na Ressurreição, nos
mártires e no seu culto alteraram não só a mentalidade existente, mas também as estruturas
respeitantes às práticas funerárias3. Neste campo pode dar-se o exemplo de que, apesar de numa
primeira fase haver um distanciamento das necrópoles devido ao medo que o defunto
regressasse para atormentar os vivos, passou-se a sepultar os defuntos nas zonas urbanas.
Por último, a morte é um processo que todos os indivíduos sabem que inevitavelmente,
vão ter de enfrentar, através dos seus entes queridos primeiro e de si mesmos depois. Por esta
razão, todos os processos para o tratamento e cuidados a ter com defunto são de extrema
relevância para garantir quer o seu bem estar, quer o seu alcance do além. Deste modo, será
sempre pertinente observar as práticas, rituais e crenças funerárias para uma maior
compreensão da mentalidade da época.
2
Adriaan De Man, Conimbriga. Do Baixo Império à Idade Média, 1a Edição, Lisboa, Edições Sílabo, 2006, p. 53.
3
Maria do Rosário Bastos, “Testemunhos hispânicos sobre o mundo dos mortos nos séculos IV a VIII” in O reino
dos Mortos na Idade Média Peninsular. Direcção de José Mattoso, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1996, p. 47.
8
I. A Ocupação da Península Ibérica, Lugar de Cruzamento de Povos
e Religiões
A conquista da Península Ibérica pelos romanos começou no ano 218 a.C., data que
marca também o início da II Guerra Púnica. Esta opôs Roma a Cartago; os cartagineses eram
quem dominava a Hispânia – nome dado à Península Ibérica pelos romanos –, tendo sido
derrotados pelos romanos em 206 a.C., com a tomada de Cádiz pelo exército romano4.
Contudo, sabe-se que a Hispânia apenas ficou submetida definitivamente ao poder romano com
a dominação dos povos asturo-cantábricos em 19 a.C., ou seja, no início do Império5. Este
longo período de praticamente duzentos anos pode ser relacionado com a forte oposição dos
povos ibéricos, destacando-se os Lusitanos e, um dos seus chefes militares, Viriato.
4
Ana Margarida Arruda, "Os primeiros contactos" in História de Portugal: Dos Tempos Pré-Históricos aos
Nossos Dias. Direção de João Medina, Vol. II, Lisboa, Ediclube, [s.d], p. 161.
5
Idem, ibidem.
6
Carlos Fabião, “O Passado Proto-Histórico e Romano” in História de Portugal. Direção de José Mattoso, Vol.
I, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 229.
7
Fonte: Carlos Fabião, “O Passado Proto-Histórico e Romano” in História de Portugal. Direção de José Mattoso,
Vol. I, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 229.
8
Frederico Viera, O Mundo Rural e o Território de Évora durante a Antiguidade Tardia. Dissertação de Mestrado
em Arqueologia apresentada à Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, Évora, 2016,p. 9.
9
Idem, ibidem, p.9.
10
Carlos Fabião, “O Passado Proto-Histórico e Romano” in História de Portugal, p. 229.
9
Júpiter11. Porém, é de notar que o panteão romano no território "português" é diversificado,
encontrando-se cultos a Juno, Esculápio, Apolo, Mercúrio, Vénus, Minerva, Neptuno,
Proserpina, Marte, entre outros12.
O término do domínio romano na Península não resultou apenas das invasões dos
“bárbaros”, pois estes já coabitavam com os romanos há um período prolongado, sendo que
muitos deles estavam fixados dentro das fronteiras imperais13; resultou também da própria
dissolução e instabilidade sentida dentro do Império. Por conseguinte, eram visíveis os sinais
de rutura.
11
Amílcar Guerra, "A religião" in História de Portugal: Dos Tempos Pré-Históricos aos Nossos Dias. Direção
de João Medina, Vol. II, Lisboa, Ediclube, [s.d], p. 252.
12
Idem, ibidem, pp. 252-253.
13
Carlos Fabião, “A Antiguidade tardia e a desagregação do Império” in História de Portugal: Dos Tempos Pré-
Históricos aos Nossos Dias. Direção de João Medina, Vol. III, Lisboa, Ediclube, [s.d], p. 14.
10
e o Império do Oriente encontrava-se numa irremediável divisão. Nesta altura, são enviados
para a Hispânia Constante e os seus dois generais Gerôncio e Apolinário, pois esse território,
na sua maioria, mantinha-se fiel a Honório (filho do imperador Teodósio, imperador do
Oriente). Com a oposição hispânica derrotada, Gerôncio promoveu uma nova sublevação, por
razão desconhecida, “proclamando imperador um obscuro Máximo”14. Vencendo Constante e
partindo para Arles, o referido general deixou a Hispânia franqueada a diversos grupos
“bárbaros” que se encontravam no sul da Gália15. Como tal, por volta de 409, penetraram na
Hispânia os alanos, os suevos e os vândalos asdingos e silingos. Uma vez vencido Gerôncio,
Honório pactua com os “bárbaros” que entraram na Hispânia, dividindo as diferentes
províncias pelos grupos: os alanos ficaram distribuídos pela Lusitânia e pela Cartaginense
ocidental, os vândalos asdingos no interior da Galécia, onde foram instalados no litoral os
suevos, e os vândalos silingos na Bética16. De notar que a província de Tarraconense se
manteve no Império17.
No entanto, a solução de Honório para a situação da Hispânia, pode ter sido transitória,
indicativa de uma incapacidade de tomar atitudes mais firmes. Em 415 foram levadas a cabo
pilhagens e depredações pelos alanos e pelos silingos, nas regiões mais romanizadas18. Deste
modo, os romanos com o objetivo de controlar esta situação recorreram a um grupo “bárbaro”,
que se encontrava instalado dentro das fronteiras do Império havia um longo período, para
solucionar o problema19. Com isto, o Império estabelece um pacto de federação (feoderati)
com os visigodos, que resultava na atribuição de um reino na Gália do Sul, caso conseguissem
tomar os territórios hispânicos20. Deste modo, em 415 a Península Ibérica é invadida pelos
visigodos que, como aliados dos romanos, submetem os vândalos e os alanos21. De notar que,
por razões não muito claras, os visigodos regressaram à Gália sem terem entrado em confronto
com os suevos. Mais tarde, os visigodos instalaram-se na zona da Lusitânia, ocupando o centro
e o sul da Península. Os suevos continuaram na região noroeste.
14
Idem, ibidem, p.16.
15
Idem, ibidem.
16
Idem, ibidem, p. 18.
17
Carlos Fabião, “O Passado Proto-Histórico e Romano” in História de Portugal – Antes de Portugal. Direção
de José Mattoso, Vol. I, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 293.
18
José Mattoso, “A Época Sueva e Visigótica” in História de Portugal – Antes de Portugal. Direção de José
Mattoso, Vol. I, Lisboa, Editorial Estampa, 1997, p. 305.
19
Carlos Fabião, “A Antiguidade tardia e a desagregação do Império” in História de Portugal, p. 18.
20
Idem, ibidem.
21
Armando Soares Vilaça, O Reino dos Suevos perante alguns estudos recentes. Dissertação de Licenciatura em
Ciências Históricas e Filosóficas apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, 1955, p. 14.
11
Quando suevos se instalaram na Galécia viram-se perante uma população dividida, em
que o cristianismo estava em maioria face ao paganismo. Os suevos converteram-se ao
catolicismo, contudo, mais tarde, por influência dos visigodos e devido à morte de Requiário22,
a corte sueva caiu no arianismo23. O arianismo difundiu-se no Império Romano do Ocidente
entre o século IV e meados do século VI; embora tendo sido minoritária, foi uma doutrina que
se estabeleceu na Península Ibérica até à conversão dos suevos e dos visigodos ao
catolicismo24. Com o surgimento da figura de S. Martinho de Dume, no período de Carrarico,
os suevos são convertidos de novo ao catolicismo25. No caso dos visigodos, o arianismo foi
abandonado em 589, no tempo de Recaredo, devido à ação evangelizadora de São Leandro de
Sevilha26. Como tal, pode compreender-se que o território "português" desde dos inícios do
século III teria como religião dominante o cristianismo, apesar da existência de uma
divergência entre as correntes cristãs (entenda-se o arianismo e o catolicismo).
Após a morte de Requiário, o reino suevo entrou numa instabilidade interna, pois a
população aclamava dois reis diferentes: numa primeira fase uns aclamavam Frantano e outros
Maldras; numa segunda fase uns aclamavam Remismundo e outros Frumário27. Perante esta
situação, os visigodos levaram a cabo um ataque aos suevos, reduzindo a zona onde estes se
estabeleciam à região a norte do Douro; em 585, os suevos sofreram a sua grande derrota
perante os visigodos de Leovigildo28.
A Península Ibérica, em 711, sofre uma nova invasão. Desta vez, por parte dos
muçulmanos. A facilidade e a rapidez com que estes conquistaram a Península Ibérica resultou
da debilidade e da própria fragilidade do reino visigodo em termos políticos e sociais. Os seus
últimos monarcas teriam consciência da ameaça interna existente que, por si, pressupunha uma
desintegração da sua autoridade numa sociedade progressivamente feudalizada29. A
aristocracia laica e eclesiástica teria beneficiado de uma generalização dos vínculos de
22
O primeiro príncipe “bárbaro” que se converteu ao catolicismo. Derrotado em 456, por tropas visigodas,
Requiário fugiu para Portucale (atualmente o Porto), tendo sido neste local preso e morto nesse mesmo ano.
23
Os visigodos, quando invadiram a Península Ibérica já seriam arianos. Isto, pois o arianismo visigótico “tinha
tido a sua origem no Concílio de Constantinopla em 360” – Maria José Ferro Tavares, "Heterodoxia" in
Dicionário de História Religiosa de Portugal. Direção de Carlos Moreira Azevedo, Vol. II, Lisboa, Círculo de
Leitores, 2000, p. 364.
24
Maria José Ferro Tavares, "Heterodoxia", p. 363.
25
Armando Soares Vilaça O Reino dos Suevos perante alguns estudos recente, p. 25.
26
Maria José Ferro Tavares, “Heterodoxia”, p. 364.
27
Jorge Alarcão, Portugal Romano, Lisboa, Editorial Verbo, 1974, p. 63.
28
Idem, ibidem, p. 63.
29
Eduardo Manzano Moreno, Conquistadores, Emires y Califas. Los Omeyas y la formación de Al-Andalus,
Barcelona, Critica, 2006, p. 32.
12
dependência pessoal, tendo adquirido um poder que competia com o dos próprios monarcas;
estes, por sua vez, tentavam sacralizar a sua autoridade e anular laços de fidelidade com essa
aristocracia, o que, no entanto, nem sempre funcionou30. No que toca às crises sociais existentes
no reino visigodo que permitiram a intervenção muçulmana na Península, estas resultaram dos
seguintes fatores: a deposição do rei Vamba em 680, a conspiração para destronar Egica em
693, as lutas entre os filhos do falecido rei Vitiza e o usurpador Rodrigo31.
Por último, no campo religioso, a Península Ibérica assistiu a uma divisão em estatutos
jurídicos: os que se converteram ao islamismo, passando a ingressar na Umma e a usufruir,
pelo menos teoricamente, dos direitos e prerrogativas de um crente islâmico, seriam designados
de musalima ou muladî-s35; os que não se converteram ao islamismo e, consequentemente, não
assinaram o pacto de rendição, foram privados dos seus bens e tornaram-se arrendatários das
30
Idem, ibidem.
31
Idem, ibidem.
32
Idem, ibidem, p. 52.
33
Idem, ibidem, p. 53.
34
Eduardo Manzano Moreno, ibidem, p. 53.
35
Joaquim Chorão Lavajo, “Islão e cristianismo: entre a tolerância e a guerra santa” in História Religiosa de
Portugal. Direção de Carlos Moreira Azevedo e Coordenação de Ana Maria C. M. Jorge e Ana Maria S. A.
Rodrigues, Vol. I – Formação e Limites da Cristandade, Círculo de Leitores, p. 94.
13
terras, havendo a possibilidade de serem expulsos36; os que voluntariamente ou devido a certas
circunstâncias se sujeitaram ao islamismo, negociando “a liberdade com um pacto individual
(sulh) ou colectivo (‘ahd)”37, ficaram detentores quer de uma certa autonomia jurídica e
religiosa (dependendo do grau de submissão), quer dos seus bens, sendo conhecidos pela
designação de moçárabes38. De notar ainda que os muçulmanos demonstraram tolerância para
com os judeus e os cristãos, chegando a entregar as tais cidades dependentes a estes grupos
religiosos na qualidade de aliados39.
36
Idem, ibidem, p. 94.
37
Idem, ibidem.
38
Idem, ibidem.
39
Helena Catarino, “A ocupação islâmica” in História de Portugal dos Tempos Pré-Históricos aos Nossos Dias.
Direção de João Medina, Vol. III, Lisboa, Ediclube, 2004, p. 51.
14
II. A Religião Romana: Crenças e Rituais Fúnebres
Na religião romana verifica-se uma forte preocupação com a morte. Para um romano
era de extrema importância o cumprimento da funus ou honras fúnebres. Estas eram um
conjunto de práticas rituais para garantir o bem-estar do defunto. A morte era encarada como
uma separação física do defunto, em que a alma deste continuaria a viver na sepultura, sob a
forma de uma sombra40.
Para um romano seria importante morrer com dignidade e, em certas ocasiões, ter
vivido com dignidade41. Ainda mais importante seria o acesso ao ritual funerário, sendo que
este permitiria que a viagem do mundo dos vivos para o mundo dos mortos fosse o menos
traumática possível. Outra preocupação seria ainda o local de destino do corpo42, independente
da prática ou ritual fúnebre (entenda-se inumação ou incineração).
A prestação das honras fúnebres podia ser realizada por particulares ou por autoridades
públicas. Existiam casos em que a família não dispunha de meios para garantir os requisitos
mínimos do ritual funerário romano. Isto é, não teria meios de comprar um terreno para sepultar
o defunto ou uma cavidade onde depositar a urna com os restos mortais cremados43 . Como tal,
muitos poderiam prosseguir com a usurpação do sepulcro de outra pessoa, mesmo que fosse
considerado um crime; outros integrar-se-iam nos Collegia, pagando uma cota anual ou
mensal, pois esses garantiam os requisitos mínimos do ritual funerário dos seus “associados”,
algo que nem sempre foi cumprido44. A importância de garantir um local de “descanso” devia-
se à crença de que os defuntos poderiam voltar ao mundo dos vivos e, por sua vez, atormentá-
los. Há diferentes tipos de funus de acordo com o que foi o defunto em vida: funus translaticum,
que inclui cidadãos pobres a ordinários moderados ou com meios consideráveis; funus militare,
que se destina a militares como o nome em latim indica; funus publicum que engloba os
indivíduos que se destacaram num serviço prestado ao Império; e, por último, funus
40
José Luís de Negreiros Monteiro, Necrópole romana de Porto dos Cacos (Alcochete-Portugal). Dissertação de
Mestrado em Arqueologia apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2012, p. 9.
41
Desiderio Vaqueirzo Gil, Necrópolis urbanas en Baetica, Tarragona, Universidade de Sevilha, 2010, p. 15.
42
Idem, ibidem.
43
Idem, ibidem, p. 17.
44
Idem, ibidem.
15
imperatorium que se destina a imperadores e seus familiares45.
Constata-se assim que era de extrema importância que execução da funus fosse perfeita
de modo a garantir que o defunto atravessaria o rio Aqueronte46; se tal não sucedesse ou se
chegasse a ocorrer a omissão do ritual, o defunto iria sofrer, não encontrando o repouso de que
necessitava. Desta forma, entende-se que ato do sepultamento dos cadáveres e todos os seus
rituais seriam fundamentais para a religião romana. Segundo a Eneida, os insepultos ficariam
a vaguear e a volitar durante 100 anos junto das margens do rio Aqueronte e, após o fim desse
período é que seriam admitidos na barca de Caronte, o barqueiro encarregado de transportar as
almas pelo rio Aqueronte47. No entanto, existiam exceções: a realização da funus não seria
levada a cabo nos casos em que o defunto fosse considerado um criminoso ou um traidor, sendo
esta omissão do ritual uma forma de castigo em que os corpos destes seriam expostos
publicamente ou comidos por animais. Por outro lado, nos casos em que o corpo do defunto
não fosse encontrado (devido a guerra, naufrágio, entre outras situações), o funeral seria
prestado através de uma sepultura com o objetivo de o defunto ter uma morada depois da morte
– estas sepulturas designavam-se de cenotáfios48.
No momento em que fosse alcançando o Hades pelo defunto, este deveria aguardar a
decisão do tribunal dos mortos composto por três juízes (Éaco, Radamanto e Minos) de modo
a saber qual o caminho que seguiria: o da esquerda, direcionado para o Tártaro, local onde os
culpados seriam punidos; ou o da direita, que conduzia ao Campos Elísios, local maravilhoso
onde iriam os que dele seriam merecedores e dignos49. Note-se que a entrada do Hades estaria
guardada por Cérbero, um cão de três cabeças e três caudas de serpente, o qual impedia as
almas de escapar.
Até meados do século V, devido à crença de que a alma do defunto habitava junto da
sepultura ou próximo dela, as famílias enterravam, quase exclusivamente após incineração, o
defunto próximo do local onde viviam50. Ademais, segundo Santo Isidoro de Sevilha, na sua
45
J.M.C. Toynbee, Death and Burial in the Roman World, Estados Unidos da América, The Johns Hopkins
University Press, 1996, p. 43.
46
Por norma, os poetas descrevem o Hades “como um território cercado por ribeiros, um vasto pântano
atravessado por rios”, sendo esses: Aqueronte, Cocito, Estige, Flegetonte e Letes. Pierre Grimal, Mitologia
Clássica. Mitos, deuses e heróis, Lisboa, Edições Texto & Grafia, 2015, pp. 86-87.
47
Virgílio, Eneida, vv. 314-331.
48
Helena Frade e José Carlos Caetano, “Ritos fúnebres romanos” in História de Portugal: Dos Tempos Pré-
Históricos aos Nossos Dias. Direção de João Medina, Vol. II, Lisboa, Ediclube, 2004, p. 331.
49
Pierre Grimal, Mitologia Clássica. Mitos, deuses e heróis, Lisboa, Edições Texto & Grafia, 2015, p. 88.
50
José Luís de Negreiros Monteiro, Necrópole romana de Porto dos Cacos (Alcochete-Portugal) , p. 10.
16
obra Etymologiarum, essa realidade é reforçada através da afirmação de que, no princípio, cada
defunto seria enterrado na sua própria casa51 e que essa prática foi sendo proibida ao longo do
tempo através das leis que foram sendo impostas para que o odor dos cadáveres não
contaminasse os vivos52. Desta forma, com o tempo, os enterramentos dos defuntos passaram
a ser levados a cabo em locais destinados para este efeito, ou seja, nas necrópoles. De notar
que a prática da incineração veio a tornar-se a mais comum, pois, segundo Plínio, com a
instabilidade política e as guerras que se sucediam não havia como garantir a segurança e a
preservação dos túmulos53. Contudo, essa realidade alterar-se-á por volta do século III d.C. não
unicamente devido ao advento e expansão da religião cristã (e, consequentemente das crenças
que esta religião tem na vida pós-morte), mas também à ascendência continuada dos cultos
orientais54.
Quando o indivíduo estivesse prestes a morrer seria rodeado pelos amigos e familiares
de modo a que estes o confortassem. O familiar mais próximo encarregar-se-ia de dar um
último beijo ao moribundo quando este “exalasse o último suspiro” (extremvm spiritvm ore
svscipere) de forma a assegurar que a alma saía do corpo – por norma seria a mulher que dava
o beijo55. Em seguida, esse mesmo familiar fecharia os lábios e os olhos do defunto, sendo que
depois todos os familiares aclamavam o nome do defunto três vezes em voz alta (conclamatio).
Após estes processos, o corpo seria retirado do leito, colocado no chão (deponere) e preparado
para a sua exposição: seria lavado em banho de água quente e perfumado56, e vestido com uma
toga (no caso do sexo masculino) ou um vestido (no caso do sexo feminino), ambos adequados
ao procedimento (a veste fúnebre). Após este procedimento, seria ainda colocado sobre o leito
fúnebre, estando desta forma pronto para a exposição. No entanto, há que ressaltar que nos
casos das famílias mais pobres, a sua vestimenta poderia consistir no envolvimento do seu
corpo numa mortalha de tecido negro ou no vestir roupas velhas57.
A exposição do defunto seria feita no átrio da casa, com os pés virados para a porta –
51
San Isidoro de Sevilla, Etimologías, XV, 11, 1.
52
Idem, ibidem.
53
Seomara da Veiga Ferreira, “Roma Antiga: Morte e Suicídio” in Arte, História e Arqueologia – Pretérito
(Sempre) Presente. Coordenador Pedro Gomes Barbosa, Lisboa, Ésquilo, 2006, p. 72.
54
Andreia Arezes, O Mundo funerário na Antiguidade Tardia em Portugal: as necrópoles dos séculos V a VIII,
Coleção Teses Universitárias, n.o9, Vol. I, Porto. Co-edição: CITCEM e Edições Afrontamento Lda., 2017, p.158.
55
Valerie M. Hope, Roman Death: Dying and the Dead in Ancient Rome, Londres, Continuum, 2009, p. 126.
56
Este ato que podia ser feito por dois grupos: as mulheres da família ou as preficae e os libitinarii, o pessoal das
pompas fúnebres. – José Luís de Matos, “O culto funerário no mundo antigo”, p. 71.
57
Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, “Morrer para além da vida” in Mudar de Vida. Coord. António Manuel
Lima, Porto, Catálogo da exposição permanente do Centro Interpretativo de Tongobriga, 2016, p. 139.
17
lectvs fvnebris no atrivm. O período da exposição variava consoante a importância do defunto.
Por norma, demoraria três dias, sendo que no caso dos imperadores prolongar-se-ia até aos sete
dias. Seria ainda possível encontrar ramos de cipreste às portas das casas58, vistos com um sinal
de luto (podia-se encontrar também ramos de pinheiro). Relativamente ao processo do luto e
como este seria vivido, tal seria determinado pela aprendizagem, a cultura e o género59. Isto é,
a mulher teria um papel especial no próprio ritual funerário, assim como no luto público. As
mulheres podiam lamentar-se alto, chorar e “cantar” lamentos60; ademais, expressavam a dor
de modo violento, ou seja, batiam no peito, arranhavam o pescoço, puxavam e sujavam os seus
cabelos61. Deste modo, entende-se que, no que toca ao luto, as mulheres deveriam demonstrar
as suas emoções, enquanto os homens as deveriam suprimir62.
O término das honras fúnebres seria fora da cidade, ou seja, os defuntos seriam
sepultados e cremados fora de muros, dado que na organização religiosa romana o espaço
fúnebre refletia uma separação do mundo dos vivos65. Como tal, a cidade seria vista como um
58
Pliny, Natural History: in ten volumes, Vol. IV, Londres, William Heinemann Ltd., 1960, livro XVI, LX.
59
Valerie M. Hope, Roman Death: Dying and the Dead in Ancient Rome, p. 125.
60
Idem, ibidem.
61
Idem, ibidem.
62
Idem, ibidem, p. 127.
63
Helena Frade e José Carlos Caetano, “Ritos fúnebres romanos”, p. 332.
64
J.M.C. Toynbee, Death and Burial in the Roman World, p. 46.
65
Seomara da Veiga Ferreira, Roma Antiga: Morte e Suicídio, p. 71.
18
solo sagrado (isto é, teria os recintos sagrados) que não deveria ser contaminado pelo “sopro
pútrido da morte”66. Na Lei das XII Tábuas (datada de meados do século V a.C.) encontra-se
legislação que se refere à proibição de se sepultar defuntos dentro dos muros da cidade: que
“não seja sepultado nem queimado, dentro da cidade, qualquer cadáver humano”67 (Tábua X,
respeitante ao Direito Sagrado). O cumprimento desta legislação seria observado normalmente
até ao Império tardio, no entanto, poderiam ser realizadas exceções nos casos em que o defunto
seria uma pessoa especial ou um imperador68. De notar que os espaços fúnebres eram
integrados na vida quotidiana romana, ou seja, eram também ocupados por vias e caminhos de
acesso a outras cidades, edifícios de espetáculos, aquedutos e até zonas “industriais”69.
66
Idem, ibidem.
67
Fernanda Carrilho, A Lei das XII Tábuas, Lisboa, Almedina, 2008, p. 97.
68
J.M.C. Toynbee, Death and Burial in the Roman World, p. 48. A autora refere nas suas notas exemplos destas
situações, mencionando que o fundador da biblioteca de Ephesus foi enterrado nesta, num sarcófago de mármore
e aludindo a Trajano, cujas cinzas foram colocadas numa câmara funerária na base da sua coluna, perto do centro
de Roma (Idem, ibidem, p. 29)
69
Carlos Samuel Pires Pereira, As necrópoles romanas do Algarve: acerca dos espaços da morte no extremo sul
da Lusitânia. Tese de Doutoramento em História, especialidade em Arqueologia apresentada à Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, 2014, p. 2.
70
J.M.C. Toynbee, Death and Burial in the Roman World, p. 54.
71
Quando se refere que uma cremação é em bustum significa que o local da cremação e de sepultura são
coincidentes; nos casos em ustrinum refere-se aos locais de cremação, os quais podem ser coletivos ou individuais.
– Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação. Análise
antropológica de amostras alto-imperiais da Lusitania. Tese de Doutoramento em Antropologia Biológica
apresentada à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2018, p. 20.
72
Seomara da Veiga Ferreira, Roma Antiga: Morte e Suicídio, p. 73.
73
José Luís de Matos, “O culto funerário no mundo antigo”, p. 73.
19
durante o dia, sendo a pira acesa de manhã74, apesar de existirem fontes antigas que constatam
a cremação de indivíduos pobres e crianças durante a noite (prática que seria também levada a
cabo para todos os casos de cremação antes da era de Cristo)75. A realização desta prática
pressupunha que o corpo do defunto fosse colocado numa pira funerária, que poderia ser
elaborada segundo o estatuto social deste e a sua riqueza, contudo teria de se considerar
também o seu tamanho76. Seria nessa pira que se procederia ao processo de combustão, sendo
que esta prática simbolizava a purificação através do fogo77; estavam encarregados de acender
a pira os familiares do defunto (por norma, os esposos ou os filhos) ou outros indivíduos que
tivessem uma ligação emocional ao falecido78. Antes do processo de incineração começar seria
habitual abrir os olhos ao defunto, procedendo-se, por sua vez, a uma última conclamatio79.
Uma vez acesa, a pira designava-se de rogus80. De notar que, durante ou antes do processo da
incineração, poder-se-ia colocar na pira funerária oferendas para o defunto.
O fogo da incineração era apagado com água ou vinho. Após este momento, pelo menos
existiam três opções relativamente aos restos ósseos: ou permaneciam in situ; ou uma parte
seria recolhida da pira funerária e depositada em terra ou dentro de urnas funerárias (no geral,
de cerâmica); ou ao serem recolhidos da pira funerária, os restos ósseos seriam enterrados
noutro lugar81. Esta recolha cabia aos membros da família do defunto ou a profissionais82.
74
Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação, p. 52.
75
Idem, ibidem.
76
Idem, ibidem, p. 57.
77
José Luís de Negreiros Monteiro, Necrópole romana de Porto dos Cacos (Alcochete-Portugal), p. 11.
78
Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação, p. 62.
79
Idem, ibidem, p. 63.
80
Idem, ibidem.
81
Idem, ibidem, pp. 64-65.
82
Idem, ibidem, p. 65.
83
José Luís de Negreiros Monteiro, Necrópole romana de Porto dos Cacos (Alcochete-Portugal), p. 11.
84
Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação, pp.7-8.
20
Junto das sepulturas dos seus defuntos, família e amigos juntavam-se para honrar a sua
memória e “partilhar” uma refeição com estes – o banquete fúnebre (cilicernium). Acreditava-
se que os defuntos, de certa forma, poderiam alimentar-se das ofertas desse banquete, sendo
que algumas sepulturas tinham buracos e canículas através dos quais a comida e a bebida
podiam chegar ao defunto85. Um outro banquete realizar-se-ia após nove dias junto da sepultura
– a inovemdial sacrificium ou cena novemdialis – e era encarado com um banquete de
purificação86. De notar que os nove dias eram um período em que a família se encontrava de
luto, sendo dispensada de funções civis e militares87.
Uma vez que o defunto era encarado como algo impuro (assim como a morte era
considerada uma fonte de poluição88) e com uma capacidade elevada de contaminar o seu
redor89, um aspeto que pode estar associado a esta questão é o processo de luto. Uma família
romana, preferencialmente, vestia preto e podia deixar transparecer um aspeto descuidado, com
o cabelo solto e sujo90; podia ainda levar a cabo jejuns e abster-se de tomar banho. Como tal,
o processo do luto seria caracterizado como o contrário da normalidade, isto é, por exemplo,
sujo ao invés de lavado, roupa escura ao invés de roupa clara, entre outros91. É necessário notar,
assim, que sendo o defunto considerado um agente “poluente”, a própria família mantinha-se
“suja”. Por esta razão, com o término das honras fúnebres, a família do defunto não se
encontrava em condições de contactar com a sociedade92. Os rituais levados a cabo em vista à
purificação seriam: a execução de um sacrifício de um cordeiro ou de uma porca (o mais
comum) a Ceres; a casa, como local de exposição do corpo, teria de ser varrida com uma
vassoura de verbena (feriae denicales); o suffitio, isto é, a limpeza com água e fogo de todos
os que teriam assistido às obséquias com um ramo de louro após terem passado pelo fogo93; e,
por fim, realizavam-se sacrifícios aos Lares (as divindades domésticas).
Note-se que a família romana era vista como a guardiã dos seus defuntos. Como será
analisado em seguida, estavam previstas, no calendário romano festividades de forma a honrar
85
Regina Maria da Cunha Bustamante, “Lemuria: apaziguando os mortos malfazejos na Roma antiga”. Phoînix,
2014, Vol. 20, No. 2, Rio de Janeiro, julho - 05, p. 113.
86
Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação, p. 41.
87
De notar que o período de luto apenas se extinguia na sua totalidade ao fim de um ano para adultos e alguns
meses para as crianças.
88
Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação, p. 41.
89
José Luís de Negreiros Monteiro, Necrópole romana de Porto dos Cacos (Alcochete-Portugal), p. 10.
90
Valerie M. Hope, Roman Death, p. 122.
91
Idem, ibidem.
92
José Luís de Matos, “O culto funerário no mundo antigo”, p. 71.
93
Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação, p. 41.
21
os mortos. Efetivamente, pode-se considerar essa responsabilidade e essas festividades como
uma forma de preservar a memória dos antepassados. O conceito mos mairum94 revela um
enorme peso na vida espiritual romana95. Uma família que dispusesse de meios poderia
construir um sepulcro “grandioso” como modo de mostrar o estatuto social do defunto e como
forma de homenagem96. Havia ainda casos em que um indivíduo, antes de morrer, construía
sua própria sepultura97.
Os rituais relativamente aos defuntos não se prendiam apenas com a sua morte. Ao
longo do ano, os familiares e amigos comemoravam os seus defuntos com festins sobre a sua
sepultura, isto é, no aniversário do defunto e nos festivais anuais previstos no calendário
romano98. O objetivo destes últimos seria assegurar o bem-estar dos defuntos e prevenir que os
espíritos malignos aterrorizassem os vivos. Tais festivais seriam as Parentalia e as Lemuria
que se festejavam em meses diferentes, sendo as Parentalia nos dias 13, 21 e 22 de fevereiro
e as Lemuria nos dias 9, 11 e 13 de maio.
94
Significa a tradição, os costumes dos antepassados, sendo nestes fatores que se apoia a sociedade romana.
95
Seomara da Veiga Ferreira, Roma Antiga: Morte e Suicídio, p. 70.
96
Desiderio Vaqueirzo Gil, Necrópolis urbanas en Baetica, p. 16.
97
Idem, ibidem.
98
Regina Maria da Cunha Bustamante, “Lemuria: apaziguando os mortos malfazejos na Roma antiga”, p. 113.
99
De acordo com a mitologia romana, os Manes correspondem aos espíritos dos antepassados, a deuses familiares
e domésticos, vistos como protetores das famílias.
100
A Grande Vestal pertence às Vestais, um dos colégios sacerdotais romanos. Eram as “guardiãs” do fogo da
Deusa Vestal e realizavam sacrifícios ligados à fertilidade agrícola, animal e humana.
101
Ovídio, Fasti, II. vv. 537-539
102
Ovídio, Fasti, II. vv. 535-536.
103
Valerie M. Hope, Roman Death, pp. 100-101.
22
As Lemuria eram consideradas um ritual privado para apaziguar quer os lemures,
entenda-se estes como os espíritos malignos em que se incluíam os insepultos, destituídos de
ritual fúnebre, mortos prematuros, parturientes, crianças e mulheres grávidas; quer as larvae,
constituídas pelos indivíduos mortos violentamente, assim como criminosos, suicidas,
indivíduos privados de uma sepultura ritual, entre outros. As larvae eram “consideradas ainda
mais maléficas”104, pois, não só atormentavam os vivos, como torturavam os outros mortos no
mundo subterrâneo e eram representadas como “esqueletos capazes das mais horríveis
contorções e como espectros pálidos fazendo caretas”105. Durante as Lemuria os templos
seriam fechados106. A sua celebração estaria a cargo do Pater Familias. Desta forma, este
levantar-se-ia descalço e fazendo figas em vista a “espantar uma sombra ligeira” 107. Este gesto
consistia “em inserir o polegar entre o indicador e o médio da mão direita”108 com o fim de
afugentar o mal. No início do ritual seria necessário lavar as mãos em água de nascente, sendo
que quem acompanhasse o ritual deveria lavar-se ou banhar-se previamente. Em seguida, o
Pater Familias dava uma volta pela casa em que lançava para trás das costas favas negras como
oferendas aos lemures e dizia ainda nove esconjuros “haec ego mitto, his redimo meque
meosque fabis”109. A sombra recolhia as favas sem que fosse vista. Após isto, o Pater Familias
teria de bater em objetos de bronze pois tal barulho espantava os espíritos; enquanto levava a
cabo essa ação dizia nove vezes “Manes exite paterni”110, ou seja, pedia-lhes que
abandonassem a casa. O ritual era dado como terminado quando o oficiante se virava.
Assim, o culto dos mortos seria um ponto muito importante na vida religiosa romana.
Como eram “objeto” de culto, os defuntos inseriam-se numa camada intermédia entre os
homens e os deuses111. Contudo, como verificável anteriormente, não seriam cultuados como
indivíduos, mas como grupos generalizados.
104
Regina Maria da Cunha Bustamante, “Lemuria: apaziguando os mortos malfazejos na Roma antiga”, p. 114.
105
Idem, ibidem.
106
Ovídio, Fasti, V. vv. 485-486.
107
Regina Maria da Cunha Bustamante, “Lemuria: apaziguando os mortos malfazejos na Roma antiga”, p. 120.
108
Idem, ibidem.
109
Ovídio, Fasti, V. v. 438.
Tradução: Estes eu lanço; com estes feijões eu redimo-me e aos meus.
110
Ovídio, Fasti, V. v. 443.
Tradução: Saiam manes.
111
Regina Maria da Cunha Bustamante, “Lemuria: apaziguando os mortos malfazejos na Roma antiga”, p. 113.
23
I.2. As Necrópoles e os Rituais Fúnebres Romanos em Território “Português”
112
José Luís de Negreiros Monteiro, Necrópole romana de Porto dos Cacos (Alcochete-Portugal), p. 11.
113
Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação, p. 62.
114
Cristina Maria Vilas Boas Braga, Rituais funerários em Bracara Augusta: o novo núcleo de necrópole da Via
XVII. Relatório de Mestrado em Arqueologia, apresentado ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade do
Minho, Braga, 2010, p. 74.
115
Idem, ibidem, p. 45.
116
Idem, ibidem, p. 46.
24
efeito, os corpos foram depositados em fossas especialmente abertas, já que nesta zona, ainda
durante a Idade do Ferro, possivelmente a partir do século IV, formou-se “uma espessa camada
arenosa, que cobriu, por completo, os níveis sidéricos”117. Como tal, foi nessas areias que, por
sua vez, se abriram fossas destinadas a receber inumações (oito) e a urna que continha restos
cremados, “e foi sobre elas que decorreram as cremações, como atestam os contextos de cinzas
escavados, um dos quais certamente correspondente a um ustrinum”118. A orientação das
sepulturas não seria regular, verificando-se a posição da cabeça quer a norte (3), quer a sul (4),
quer a poente (1)119. Outro local onde foram encontrados ambos rituais fúnebres foi na
necrópole romana do Monte Novo do Castelinho (Almodôvar); no caso da orientação das
sepulturas, nesta necrópole encontravam-se todas orientadas do mesmo modo noroeste-
sudoeste, o que “reforça a ideia de que pertenceriam a uma mesma fase da utilização do
espaço fúnebre”120.
117
Jacinta Bugalhão, Ana Margarida Arruda, Elisa de Sousa, Cidália Duarte, “Uma necrópole na praia: o cemitério
romano do Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (Lisboa)”. Revista Portuguesa de Arqueologia, no16,
Lisboa, 2013, p. 244.
118
Idem, ibidem.
119
Idem, ibidem, p. 248.
120
Carlos Fabião, Amílcar Guerra, Teresa Laço, Samuel Melro, Ana Cristina Ramos, “Necrópole romana do
Monte Novo do Castelinho”. Revista Portuguesa de Arqueologia, Vol. 1, no1. Lisboa, 1998, p. 208.
121
Virgílio Lopes, “As necrópoles de Mértola. Do mundo romano até à antiguidade tardia” in Morir en el
Mediterráneo Medieval: actas del III Congreso Internacional de Arqueología, Arte e Historia de la Antigüedad
Tardía y Alta Edad Media peninsular celebrado en la Universidad Autónoma de Madrid (UAM) y en el Museo
de los Orígenes de Madrid (Casa de San Isidro) - 17 y 18 de diciembre de 2007, Série S2011. Edits. Jorge López
Quiroga e Artemio Manuel Martínez Tejera, British Archaeological Reports, 2009, p. 32.
122
Idem, ibidem.
123
Idem, ibidem, p. 33.
124
Idem, ibidem, p. 39.
25
localização seria junto à via e é necessário atender que esta zona cemiterial antecede a futura
basílica.
No caso da necrópole romana de Silveirona I125, esta pressupõe o uso regular da área
durante relativamente pouco tempo, devido ao facto de as sepulturas estarem todas
relativamente ordenadas e paralelas126. Neste caso, a orientação não é fixa, sendo que a maioria
(46) possuí orientação noroeste-sudeste ou de oeste noroeste a este sudeste127; algumas tinham
uma orientação este-oeste e somente duas sepulturas tinham uma orientação nordeste e
sudoeste. Relativamente aos rituais de enterramento, foi possível identificar inumações certas
para seis sepulturas, contudo “não subsistiram os esqueletos completos”128. Todavia, em
dezassete casos, os arqueólogos acharam provável a inumação, mas não segura já que os
fragmentos ósseos foram raros. Nesta necrópole, o rito da incineração notabiliza-se como
minoritário, havendo três casos seguros e dois incertos. No espólio funerário de Silveirona I
foi ainda possível encontrar conjuntos de oferendas dadas aos defuntos para a sua passagem
para a outra vida, onde se podem constatar objetos ligados ao defunto129. A maior parte do
espólio é datado do século II até ao século III; contudo, há espólio mais tardio, cuja datação
pode ir até ao século V (máximo)130.
125
Silveirona I é a designação que a autora decidiu utilizar para distinguir dois conjuntos funerários encontrados
em Silveirona, no concelho de Estremoz. Deste modo, Silveirona I corresponde ao conjunto funerário romano e
Silveirona II corresponde ao conjunto paleocristão.
126
Mélanie Wolfram Espanha da Cunha, Silveirona: do mundo funerário romano à antiguidade tardia. Sete
décadas depois. Tese de Mestrado em Pré-História e Arqueologia apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, 2004, p. 29.
127
Idem, ibidem,, p. 30.
128
Idem, ibidem, p. 33.
129
Idem, ibidem.
130
Idem, ibidem, p. 44.
131
Helena Frade e José Carlos Caetano, “Ritos fúnebres romanos”, p. 338.
132
Carlos Pereira, António M. Monge Soares, Rui Monge Soares, “Os mausoléus da villa romana de Pisões: a
morte no mundo rural romano” in Revista Portuguesa de Arqueologia, no16, Lisboa, 2013, p. 312.
26
membros do collegia ou de uma família e respetivos trabalhadores133; seriam constituídos por
vários nichos onde se colocariam as urnas e divididos em três categorias: os subterrâneos, os
semi-subterrâneos e os de superfície134. Por outro lado, os mausoléus seriam edifícios que
poderiam albergar diferentes gerações, sendo que poderiam acabar também por ser marcos na
paisagem, prolongando-se no tempo, devido à importância que tinham como pontos
referenciais135. Deduz-se que os mausoléus estivessem associados às famílias com um maior
poder económico e um estatuto social alto136.
Pode-se encontrar mausoléus em Pisões (Beja). Apesar do índice de destruição dos seus
interiores ser considerável, foi possível constatar que nem todos os edifícios eram iguais,
apresentando diferenças consideráveis entre si137. O Mausoléu 2 apresentava nichos que
poderiam quer receber uma urna cinerária, quer ser destinados a receber lucernas138. No caso
do Mausoléu 1, foi no seu exterior que se pôde encontrar evidências de rituais praticados,
provavelmente, em honra do defunto. Isto, pois, “no espaço localizado entre a piscina e o
edifício foram registados níveis de cinzas, carvões e faunas que facilmente se poderão
relacionar com banquetes funerários”139. Porém, existe a possibilidade de também ser o
ustrinum, contudo como não foi possível identificar níveis de rubefacto, esta possibilidade
inviabiliza-se140. No Mausoléu 3, os arqueólogos encontraram uma urna no interior da câmara
funerária e a totalidade dos materiais141.
133
Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação, p. 67.
134
Idem, ibidem.
135
Carlos Pereira, António M. Monge Soares, Rui Monge Soares, “Os mausoléus da villa romana de Pisões: a
morte no mundo rural romano”, p. 312.
136
Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação, pp. 68-69.
137
Carlos Pereira, António M. Monge Soares, Rui Monge Soares, “Os mausoléus da villa romana de Pisões: a
morte no mundo rural romano”, p. 305.
138
Idem, ibidem,, p. 306-307.
139
Idem, ibidem,, p. 307.
140
Idem, ibidem.
141
Idem, ibidem, p. 310.
142
Carlos Pereira, “O mundo funerário romano no território de Loulé” in Loulé: Territórios, Memórias e
Identidades. Coordenação de António Carvalho, Dália Paulo e Rui Roberto de Almeida, Organização de Museu
Nacional de Arqueologia e Museu Municipal de Loulé, [s.l], 2017, p. 303.
27
aos membros da gens proprietária da villa143.
143
Idem, ibidem, p. 304.
144
José D’ Encarnação, Inscrições Romanas do Conventus Pacensis: subsídios para o estudo da romanização.
Dissertação de Doutoramento em Pré-História e Arqueologia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, 1984, p. 812.
145
Idem, ibidem,, p. 814.
146
Fonte: Filipa Alexandra Vaz Cortesão e Silva, Mundo funerário romano sob o prisma da cremação. Análise
antropológica de amostras alto-imperiais da Lusitania. Tese de Doutoramento em Antropologia Biológica
apresentada à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, 2018, p. 40.
147
Desiderio Vaqueirzo Gil, Necrópolis urbanas en Baetica, p. 16.
148
José D’ Encarnação, Inscrições Romanas do Conventus Pacensis: subsídios para o estudo da romanização, p.
814.
149
Idem, ibidem, p. 815.
150
Idem, ibidem.
151
Fonte: José D’Encarnação, Inscrições Romanas do Conventus Pacensis: subsídios para o estudo da
romanização. Tese de Doutoramento em Pré-História e Arqueologia apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 1984, no448 do álbum fotográfica completo. Disponível em:
https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/578
152
Idem, ibidem, pp. 815-816.
153
Fonte: José D’Encarnação, Inscrições Romanas do Conventus Pacensis: subsídios para o estudo da
romanização. Tese de Doutoramento em Pré-História e Arqueologia apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 1984, no 71 do álbum fotográfica completo. Disponível em:
https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/578
154
Idem, ibidem, p. 816.
28
também incluídas as sepulturas coroadas com edículas abertas, os altares monumentais e até
grandes estelas funerárias ricas em ornamentações.
Figura 2. Inscrição aos Deuses Manes, monumento funerário do século II d.C., descoberto na Herdade
da Defesa de Barros (Avis, Portalegre). A parte dedicada aos Manes apenas apresenta a inscrição
“Consagrado aos Deuses Manes”.
29
Figura 3. Um exemplo da representação epigráfica de um javali. Este encontra-se numa
peanha, sob uma árvore, na face lateral do monumento.
30
III. O Cristianismo e a Morte
155
Adriaan De Man, Conimbriga. Do Baixo Império à Idade Média, p. 53.
156
José Mattoso, “Os rituais da morte na liturgia hispânica (séculos VI a XI)” in O reino dos Mortos na Idade
Média Peninsular. Direcção de José Mattoso, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1996, p. 57.
157
Idem, ibidem.
31
Os romanos ao realizarem a funus, refletiam o respeito pelos defuntos, implicando um
modo de piedade para com estes, concedendo-lhes uma sepultura158. No entanto, segundo
Santo Agostinho, não era obrigatório enterrar um defunto, apesar de tal não significar que não
se deveria proceder a tal rito, pois não se devia desprezar um morto com o qual se teve mais
familiaridade e/ou intimidade159. Portanto, seguindo este pensamento de Santo Agostinho, a
ausência de um funeral não seria prejudicial; por exemplo: os corpos dos cristãos que não
obtiveram um funeral no ataque a Roma, não o tiveram pela incapacidade dos vivos de o
realizarem e tal não provocou dor nestes porque eram incapazes de senti-la160. Contudo, apesar
de o corpo do defunto não ter qualquer tipo de sensibilidade, a Providência Divina agradecia
esses gestos piedosos, sendo que o cuidado com o defunto demonstrava uma afirmação da fé
e, por sua vez, da crença na Ressurreição161. O sepultamento de um corpo seria como um
“direito comum” a todos os fiéis, mesmo que fosse uma sepultura simples/ ordinária162. Os
únicos que não teriam direito a uma sepultura seriam os judeus, os não batizados, os que
cometiam sacrilégio e os que violavam ou usurpavam as sepulturas163; os infiéis e os suicidas
seriam enterrados, mas em terras não cristãs, ou seja, fora do cemitério dos fiéis164.
Desta forma, o sepultamento de um defunto seria uma forma de conforto para os vivos.
Os cuidados fúnebres (solenidade da sepultura, a sua própria nobreza e grandiosidade) eram
aspetos que constituíam um alívio mais para aqueles que estavam vivos do que propriamente
para os falecidos165. Os gastos a ter com o enterro em nada ajudavam à salvação do defunto166.
Por esta razão, não importava a composição de uma sepultura ou como esta se caracterizava,
fosse de um rico ou de um pobre. Segundo Santo Agostinho, até os filósofos mostravam
desprezo pela sepultura e os próprios exércitos não demonstravam preocupação em relação às
158
Santo Agostinho, A Cidade de Deus, I-XII.
159
Idem ibidem.
160
Santo Agostinho, A Cidade de Deus, I-XIII.
161
Santo Agostinho, Sulla Cura Dovuta Ai Morti, ponto 2.3.
162
Jorge López Quiroga e Artemio M. Martínez Tejera, “Corporibus Defunctorum: Lectura e interpretación
histórico-arqueológica del canon XVIII del primer Concilio de Braga (A.561) y su repercusión en la Arquitectura
Hispana de la Antigüedad Tardía” in Morir en el Mediterráneo Medieval: actas del III Congreso Internacional
de Arqueología, Arte e Historia de la Antigüedad Tardía y Alta Edad Media peninsular celebrado en la
Universidad Autónoma de Madrid (UAM) y en el Museo de los Orígenes de Madrid (Casa de San Isidro) - 17 y
18 de Diciembre de 2007, Série S2011. Edits. Jorge López Quiroga e Artemio Manuel Martínez Tejera, British
Archaeological Reports, 2009, p. 152.
163
Idem, ibidem.
164
Idem, ibidem.
165
Santo Agostinho, Sulla Cura Dovuta Ai Morti, ponto 2.4.
166
Santo Agostinho, Sulla Cura Dovuta Ai Morti, ponto 18.22.
32
suas, levando os poetas, aplaudidos pelos seus leitores, a dizerem: “Quem não tem uma é
coberto pelo céu”167.
Pode-se encontrar, na questão dos sepultamentos, atitudes dos cristãos que revelam a
presença das formas romanas de lidar com a morte: os enterramentos mantiveram-se fora dos
muros das cidades, pois, partilhavam o receio de que os defuntos voltassem e viessem perturbar
a vida dos vivos. Aliás, era persistente um sentimento “de repulsa dos Antigos ao contato dos
mortos”168. A ideia de que o defunto poderia “regressar” ao mundo dos vivos associava-se à
crença que os defuntos eram “almas em trânsito”169, logo poderiam reaparecer aos vivos e
aterrorizar a sua vivência. Como tal, acreditava-se que haveria uma viagem a realizar pelo
defunto170 com o objetivo de encontrar o seu destino eterno. Por esta razão, desde do século
IV que seria dada uma comunhão aos moribundos designada de viaticum que se considerava
um alimento para a viagem171. Existem também várias menções a esta viagem em orações pelos
defuntos em missas; ademais, sabe-se que as orações que seriam dirigidas ao defunto seriam
designadas de commendatio animae. Por outro lado, numa das orações que se dizia aquando
do sepultamento de um defunto, o sacerdote abordava esta viagem difícil que o morto teria de
fazer para alcançar o reino eterno172. Era ainda importante para o cristão rezar em prol dos
defuntos, celebrando por eles a eucaristia173. Como existia esta noção de uma viagem
considerada perigosa e cheia de vicissitudes, os cristãos invocavam os anjos para ajudar o
defunto174.
167
Santo Agostinho, A Cidade de Deus, I-XII.
168
Philippe Ariès, O Homem Perante a Morte, Vol. I, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1988, pp. 41-
42.
169
Ana Cristina Araújo, “Morte”, Dicionário de História Religiosa em Portugal”. Coordenação de Carlos Moreira
de Azevedo, Vol. III, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, p. 267.
170
De notar que esta crença revela uma influência pagã (romana), pois os romanos acreditavam que o defunto
fazia uma viagem (como o atravessar o rio Aqueronte para atingir o Hades).
171
José Mattoso, “Os rituais da morte na liturgia hispânica (séculos VI a XI)”, p. 59.
172
Idem, ibidem, p. 60.
173
Idem, ibidem.
174
Idem, ibidem, p. 61.
175
Jorge Alarcão, “Sobre um tipo de monumento sepulcral romano: as mensae” in Arqueologia. Direção de Vítor
Oliveira Jorge, N.9, Porto, Grupo de Estudos Arqueológicos do Porto, 1984, p.92.
33
quadrado ou em forma sigma e que poderia ser forrada de opus signinum, mosaico ou levar
uma pedra (por vezes epigrafada, sendo a lápide do defunto)176. As mensae podiam-se situar
em dois locais: junto de sepulturas ou por cima destas. Este monumento funerário teria como
objetivo a realização de banquetes rituais, tendo sido esta prática verificável em "algumas
sepulturas de necrópole paleocristãs peninsulares"177 datadas entre os séculos III e V. Um
exemplo de mensae no território português é o caso de Tróia, onde foram encontradas na
basílica paleocristã, caracterizada como o edifício mais emblemático desta localidade para o
período de estudo, trinta e seis sepulturas de mensae lisas rectangulares nos compartimentos a
sul e a sudoeste da basílica uma mensae em sigma (Ver as Figuras 5 e 6)178. Do mesmo modo,
na necrópole a sul da Ermida de Nossa Senhora de Tróia encontrou-se mais dezesseis
sepulturas de mensae rectangulares e mais dez em sigma179. No entanto, na necrópole da
Caldeira, onde foram encontrados cerca de cento e cinquenta enterramentos, datados de entre
o século I a meados do século V, cuja orientação seria noroeste-sudeste (característica cristã),
não se verificou nenhuma mensae180. Isto poderia refletir uma tendência para as necrópoles
cristãs se poderem destacar das necrópoles pagãs181.
176
Idem, ibidem.
177
Ana Cristina Araújo, “Morte”, p. 267.
178
Inês Vaz Pinto, Ana Patrícia Gamalhães e Patrícia Santiago Brum, “Tróia na Antiguidade Tardia” in A
Lusitânia entre Romanos e Bárbaros. Coord. José D’ Encarnação, M. Conceição Lopes e Pedro C. Carvalho,
Coimbra, Instituto de Arqueologia da Universidade de Coimbra, 2016, p. 320. Esta referência bibliográfica é ainda
fonte de onde foram retiradas as figuras 5 e 6.
179
Idem, ibidem.
180
Idem, ibidem, p. 323.
181
Idem, ibidem, p. 324.
34
Figura 6. Fotografia da mensae em sigma entre outras sepulturas de mesa
em Tróia.
182
Santiago Macias, “A Basílica Paleocristã e as Necrópoles Paleocristã e Islâmica de Mértola: Aspectos e
Problemas” in XXXIX Corso di Cultura Sull’Arte Ravennate e Bizantina, Ravenna, Edizioni Del Girasole, 6-12
aprile, 1992, p. 423.
183
Bíblia, Coríntios, 15:20.
184
Mélanie Wolfram Espanha da Cunha, Silveirona: do mundo funerário romano à antiguidade tardia, p. 55.
35
corpo (Ver Figura 9)185; e o enterramento coletivo, no qual a disposição dos corpos é variada186.
A orientação seria igualmente variada, mas diferenciada da orientação da necrópole romana;
isto poderia relacionar-se com a época do ano em que o defunto tivesse sido sepultado,
consoante o caminho do sol187, já que a cabeça teria de ficar na direção do sol nascente no Dia
do Juízo Final. No que toca ao material encontrado aquando da escavação arqueológica, este
aparenta estar dividido em dois, isto é, uma parte parece pertencer ao período de ocupação
romana e outra parte ao espólio funerário paleocristão. O tipo de espólio pode referir-se,
maioritariamente, a objetos de adorno, sendo estes brincos e uma fivela de cinturão,
possivelmente datáveis nos séculos V e os princípios do século VIII, no entanto, segundo a
data registada nas placas funerárias pode supor-se que são da primeira metade do século VI188.
Ademais, estes objetos de, características visigodas, não são muito numerosos e “fazem parte
de uma cultura material com influências germânicas, mais do que uma de uma cultura material
visigótica propriamente dita”189. Efetivamente, este espólio e a sua caracterização confirmam
a presença dos visigodos na Península e a sua instalação irregular.
185
Idem, ibidem, p. 56. Esta referência bibliográfica é ainda fonte de onde foram retiradas as figuras: 7, p. 166; 8,
p. 176; e 9, p. 165.
186
Idem, ibidem, p. 57.
187
Idem, ibidem, p. 52.
188
Idem, ibidem, p. 63.
189
Idem, ibidem, pp.63-64. – A necrópole de Silveirona II é datável do século VI segundo a epigrafia, contudo,
insere-se no período em que a cultura material é designada de hispano-cristã em oposição à arte hispano-visigótica
que surge com a unificação demográfica e religiosa promovidas por Leovigildo e Recaredo, sendo esta uma das
razões pelas quais esta necrópole privilegia o epíteto de paleocristão.
36
Figura 7. Exemplo de uma das sepulturas encontradas em Silveirona em que o cadáver tem os
braços sobre o peito.
37
.
38
Figura 9. Exemplo de uma das sepulturas encontradas em Silveirona em que o cadáver tem os braços
ao longo do corpo.
190
Santiago Macias, “A Basílica Paleocristã de Mértola” in IV Reunião de Arqueologia Cristã Hispânica: Lisboa,
28-30 Setembro. Barcelona, Instituit d’Estudis Catalans, 1995, p. 284.
191
Idem, ibidem, pp. 292-293.
192
Idem, ibidem, p. 293.
39
É necessário notar que a basílica manteve as suas funções quer litúrgicas, quer funerárias até
ao início do século VIII193.
Relativamente à produção epigráfica, neste período seria bastante elevada. Isto, pois,
segundo a mentalidade da época, o memorizar o nome e a data de falecimento de um indivíduo
seria imprescindível para a vida pós-morte198. Deste modo, a regularidade com que se encontra
referências ao dia, mês e ano de falecimento, em conjunto com a identidade do falecido, pode
significar que neste período dever-se-ia proceder a comemorações de aniversário com uma
certa regularidade199. Devido à violação de sepulturas, havia lápides funerárias cristãs que
mencionam os vivos de forma a impedir que estes perturbassem o descanso do defunto. Mais
tardiamente, o conteúdo epigráfico evoluiu e os pedidos são substituídos por ameaças e
palavras capazes de intimidar quem ousasse profanar a sepultura200.
193
Idem, ibidem, p. 294.
194
Guilherme Cardoso e João Luís Cardoso, “A Necrópole Tardo-Romana e Medieval de Talaíde (Cascais).
Estudo Preliminar” in IV Reunião de Arqueologia Cristã Hispânica: Lisboa, 28-30 Setembro. Barcelona, Instituit
d’Estudis Catalans, 1995, p. 408.
195
Idem, ibidem, p. 413.
196
Idem, ibidem, p. 410.
197
Idem, ibidem, p. 414.
198
Mário Jorge Barroca, Epigrafia Medieval Portuguesa: 863-1422, Vol. I, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2000, p. 264.
199
Idem, ibidem.
200
Andreia Arezes, O Mundo funerário na Antiguidade Tardia em Portugal: as necrópoles dos séculos V a VIII,
p.198.
40
Por último, pode-se afirmar que houve principalmente dois aspetos que vieram a
modificar a visão da morte para os cristãos: a crença na Ressurreição e o surgimento do culto
dos mártires. A primeira implicou que a morte passasse a ser encarada como um sono até ao
Dia do Juízo Final, logo, era essencial a preservação do corpo do defunto; o segundo aspeto
será abordado de seguida.
201
Candida R. Moss, The other christs, imitating Jesus in ancient Christian ideologies of martyrdom, Nova Iorque,
Oxford University Press, 2010, p. 19.
202
Robin Fox Lane, Pagans and Christians in the Mediterranean world from the second century AD to the
conversion of Constantine, Londres, Penguin, 1986, p. 420.
203
G.W. Bowesock, Martydom and Rome, Grã-Bretanha, Cambridge University Press, 1995, p. 3.
41
constante de prestação das honras divinas ao Imperador, mesmo perante ameaças de morte204.
Por outro lado, esta ação voluntária que acompanhava a condição de um mártir (de chegar a
morrer para salvaguardar as suas crenças) surpreendia os pagãos, como no caso de Marco
Aurélio que contemplou estas ações205.
A morte elevaria um mártir acima dos outros cristãos que morriam por causas
“normais”207. Por esta razão, os mártires ascendiam imediatamente ao Paraíso para junto de
Deus, ao contrário dos outros cristãos que teriam de aguardar pelo Dia do Juízo Final208. Os
cristãos consideravam o martírio como um verdadeiro (e novo) batismo, um nascimento para
a vida, sendo por esta razão que o martírio seria celebrado como um dies natalis209. Desta
forma, o termo mártir ganhou a conotação de uma morte com honra, aquele que morria devido
a uma causa210. Como tal, um mártir seria visto como um herói para a Igreja211.
Em torno das mortes dos mártires desenvolveu-se um culto no século III. A sua origem
foi no Norte de África, expandindo-se para a Hispânia e para Roma, tendo prosseguido para o
resto da Europa, onde se espalhou por toda a Igreja, estando nos dois séculos seguintes presente
na realidade religiosa da época212. Peter Brown apresenta um caso que demonstra a influência
dos povos helenísticos e dos romanos no culto dos mártires: a relação entre este culto e o culto
dos heróis por parte dos povos pagãos. Ou seja, no caso dos mártires a ideia é de prestação de
um culto (privado ou público) a determinado defunto excecional, sendo que a diferença neste
204
Maureen A. Tilley, “North Africa” in The Cambridge History of Christianity – Origins to Constantine, Vol. I.
Editado por Margaret M. Mitchell e Frances M. Young, Nova Iorque, Cambridge University Press, 2014, p.388.
205
G.W. Bowersock, Martyrdom and Rome, p. 3.
206
Everett Ferguson, “Martyr, Martyrdom” in Encyclopedia of Early Christianity. Editor Everett Ferguson,
Londres, St. James Press, 1990, p. 576.
207
Candida R. Moss, The other christs, imitating Jesus in ancient Christian ideologies of martyrdom, p. 111.
208
Idem, ibidem, p. 118.
209
Santo Agostinho, Sermões 51-65A, 64.1.
210
Anteriormente, mártir significaria uma testemunha – do grego μάρτυς.
211
Everett Ferguson, “Martyr, Martyrdom”, p. 576.
212
Idem, ibidem, p. 576-77.
42
caso seria a relação com Deus: um mártir seria um “amigo de Deus”, seria um intercessor de
um modo que nenhum herói poderia ter sido213.
Deste modo, o culto dos mártires seria celebrado com costumes similares às práticas
romanas de honrar os defuntos216. Os romanos, como mencionado anteriormente, não se
restringiam a prestar honras fúnebres aos seus defuntos, o seu calendário religioso previa a
realização de rituais em sua honra visando assegurar o seu bem-estar– como a Parentalia. Os
cristãos dos séculos IV e V continuaram a celebrar este ritual de forma adaptada, ou seja, no
aniversário da morte de um mártir juntavam-se no cemitério para cantar, comer e derramar
libações para os mortos através de tubos para os túmulos217. O dia da morte de um mártir seria
referenciado como dies natalis e, nesta data, celebravam-se os Atos levados a cabo pelos
mártires. Estas seriam práticas que causavam transtornos e seriam muito criticadas pelos bispos
como, por exemplo, Santo Agostinho.
213
Peter Brown, The cult of the saints: its rise and function in the late Christianity, Londres, SCM Press, 1982, p.
6.
214
The Oxford Dictionary of Saints, Direção: David Hugh Farmer, Oxford, Oxford University Press, 1978, p. XV.
215
Idem, ibidem.
216
Maureen A. Tilley, “North Africa”, p. 391.
217
Idem, ibidem, p. 390.
218
Éric Rebillard, The Care of the Dead in Late Antiquity, Nova Iorque, Cornell University Press, 2009, p. xi.
219
Os mártires seriam considerados criminosos pois não seguiam a lei romana de prestar culto quer fosse ao
imperador, quer fosse aos Deuses romanos.
220
Éric Rebillard, The Care of the Dead in Late Antiquity, p.95.
43
Os túmulos dos mártires começaram a ser procurados pelos cristãos para serem
sepultados junto destes – os designados enterramentos ad sanctos. O primeiro exemplo de um
enterramento deste tipo aconteceu em África, em que duas sepulturas surgiram junto da
sepultura de Cipriano221. Seguidamente, criou-se uma area martyrum que seriam zonas
delimitadas nos cemitérios em que seriam agrupadas ou reagrupadas várias sepulturas de
mártires que atraíam os fiéis222. Deste modo, estes espaços foram monumentalizados, sendo
convertidos em pequenos edifícios (à imagem de capelas) que, por sua vez, se podiam localizar
acima ou abaixo da sepultura – designam-se de martyria – e nos casos em que o túmulo se
encontrasse numa catacumba podiam também ser designados de memoriae223. Existem casos,
durante os séculos IV a VIII, de mártires que eram sepultados em igrejas já construídas, sendo
este caso mais comum durante o período das perseguições imperiais romanas224. Os
enterramentos ad sanctos foram-se multiplicando pelo Oriente e o Ocidente, desde meados do
século IV. Seriam muitos os túmulos de mártires alvos de peregrinação, sendo um dos costumes
dos peregrinos deixar inscrições ou pedidos junto da sepultura do mártir, em vista a que este
último rezasse por si225. É de ressaltar que esta atração se devia ao papel de proteção que os
crentes atribuíam aos mártires devido ao seu status de acederem diretamente ao Paraíso226.
Os cristãos procuravam sepultar os seus defuntos próximo dos mártires por acreditarem
que o mártir velaria o corpo e expulsaria profanadores227. Esta crença devia-se à opinião
popular, onde ainda subsistia uma crença que eles partilhavam com os “Antigos”228: a violação
de uma sepultura poderia impedir ou comprometer o despertar do defunto para a vida eterna229.
Além disso, os cristãos acreditavam ainda que o enterramento junto dos mártires lhes
providenciaria a partilha do poder destes no momento da Ressurreição230. Assume-se que esta
partilha seria assente numa lógica de solidariedade entre mundos, em que os mártires sendo
221
Jorge López Quiroga e Artemio M. Martinéz Tejera, “Corporibus Defunctorum: Lectura e interpretación
histórico-arqueológica del canon XVIII del primer Concilio de Braga (A.561) y su repercusión en la Arquitectura
Hispana de la Antigüedad Tardía”, p. 153.
222
Idem, ibidem.
223
Peter Murray e Linda Murray, “Cella memoriae, trichora, coemeterialis” in The Oxford Dictionary of Christian
Art and Architecture, Oxford University Press, Reino Unido, 2013, p.108.
224
Rafael Puertas Tricas, Iglesas hispánicas (siglos IV al VIII): testimonios literarios, Espanha, Industriais
Gráficas, 1975, p. 153.
225
Everett Ferguson, “Martyr, Martyrdom”, p. 579.
226
Eric Johnson, “Burial Ad Sanctos” in The Encyclopedia of Medieval Pilgrimage. Ed. Larissa J. Taylor e outros,
Leiden, Brill, 2010, p. 69.
227
Philippe Ariès, O Homem Perante a Morte, Vol. I, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1988, p. 45.
228
Termo utilizado por Philippe Ariès na obra O Homem Perante a Morte, página 45, para designar os povos
anteriores aos cristãos, entenda-se, os gregos e os romanos.
229
Philippe Ariès, O Homem Perante a Morte, p. 44.
230
Everett Ferguson, “Martyr, Martyrdom”, p. 579.
44
venerados e privilegiados no acesso ao Paraíso, poderiam ajudar os cristãos que neles
procuravam benefícios, os quais lhes favoreciam a salvação231. Deste modo, pressupõe-se que
esta procura de proximidade dotava o defunto de uma exclusividade, plena de simbolismo232.
As explicações e razões para a prática dos enterramentos ad sanctos dividem autores religiosos:
por um lado Máximo de Turim explica que os mártires guardam os indivíduos enquanto estão
vivos e tomam conta destes quando abandonam os seus corpos233; por outro lado, Santo
Agostinho acreditava que os enterros ad sanctos poderiam ser benéficos no sentido em que,
como o defunto estava enterrado junto de um mártir, poderia haver um maior estímulo e afeto
na oração234. Santo Agostinho afirma ainda que os enterros junto aos mártires seriam um
vínculo significativamente belo a ter com um ente querido235. Numa perspetiva mais tardia, o
historiador Philippe Ariès, afirma que o verdadeiro motivo para estes enterros seria “assegurar
a proteção do mártir”236.
Uma questão colocada por Santo Agostinho era se os mártires poderiam intervir na vida
dos vivos e de que maneira poderiam ajudar aqueles que os invocavam. Esta questão envolve-
se com a problemática do sonho e das visões tratada por Santo Agostinho no Tratado De Cura
Pro Mortuis Gerenda, onde aborda a participação dos mortos no mundo dos vivos. Os mortos
importar-se-iam com os vivos237, tal como os vivos se importam com os defuntos sem saber a
sua condição: se não estivessem preocupados, não rezavam a Deus por eles como era prática
corrente. Portanto, os defuntos não estariam conscientes do que se passava na vida terrena, mas
havia três vias pelas quais poderiam saber: através de indivíduos que morressem
posteriormente e os informassem; pela via do Espírito Divino; pela via dos Anjos. Ademais,
em casos excecionais, Santo Agostinho admite que era permitido aos mártires comunicarem
com os vivos, dando o exemplo da aparição do confessor Félix aquando dos ataques dos
bárbaros a Nola. Esta concessão aos mártires seria entendida como um milagre do poder de
Deus238 e/ou do poder divino que lhes está atribuído (ou seja, os defuntos “normais” não podem
231
Andreia Arezes, O Mundo funerário na Antiguidade Tardia em Portugal: as necrópoles dos séculos V a VIII,
p.152.
232
Idem, ibidem, p. 185.
233
Philippe Ariès, O Homem Perante a Morte, p. 45.
234
Santo Agostinho, Sulla Cura Dovuta Ai Morti, ponto 4.6.
235
Santo Agostinho, Sulla Cura Dovuta Ai Morti, ponto 4.6.
236
Philippe Ariès, O Homem Perante a Morte, p. 45.
237
Como exemplo da preocupação dos mortos pelos vivos existe o episódio do homem rico, que foi atormentado
no inferno, pedindo a Abraão, para enviar Lázaro aos seus cinco irmãos que ainda não tinham morrido para os
avisar que teriam de ter precauções com vista a não irem parar aquele sítio de tormentos; poderia isto significar
que ele saberia o que os irmãos estavam a fazer? – Podemos encontrar esta parábola na Bíblia, Evangelho de S.
Lucas, 16: 19-31.
238
Santo Agostinho, Sulla Cura Dovuta Ai Morti, ponto 15.20.
45
intervir na vida terrena)239. Seguidamente, Santo Agostinho, no Tratado, refletiu sobre as
seguintes questões: de que forma os mártires ajudaram aqueles que realmente foram ajudados
por eles240; se eles estariam ao mesmo tempo em vários locais ou estariam em paz no local
apropriado aos seus méritos em que rezavam pelas necessidades que lhes apelavam, sendo, por
sua vez, Deus quem responde às orações dos mártires241. As respostas para a estas questões
estavam fora do alcance de Santo Agostinho, como o próprio admitiu242.
No entanto, é importante realçar que nem todos podiam ser sepultados junto dos
mártires, nomeadamente por razões de cariz económico. Os mais abastados da sociedade ou os
indivíduos que teriam uma maior influência na sociedade eram os que o conseguiriam. Por esta
razão, os enterramentos ad sanctos refletiam igualmente o lugar que o defunto e os seus
descendentes ocupavam na sociedade. Os túmulos dos defuntos estariam localizados “no coro
ou na cave – ou, no exterior, à sombra das paredes, ou ainda no cemitério em lugares
privilegiados, os mais próximos do santuário: perto da entrada das capelas sepulcrais, das
estátuas, cruzes de pedra, estações para procissões”243.
O culto dos mártires podia suscitar a adoração de objetos (que começara na era de
Cipriano). Esta adoração é também designada como culto de relíquias. Estas seriam detentoras
de um grande poder, pois continham preservados em si traços da própria santidade do mártir244;
as relíquias seriam ainda um objeto “imediato” para os fiéis que os ajudaria e lhes daria
proteção na vida presente245.
239
Santo Agostinho, Sulla Cura Dovuta Ai, Ponto 16.19.
240
Santo Agostinho, Sulla Cura Dovuta Ai, Ponto 16.20.
241
Idem, ibidem.
242
Idem, ibidem.
243
Jacques Heers, Festas de loucos e carnavais, Lisboa, Dom Quixote, 1987, p. 40.
244
Pedro Castillo Maldonado, “Angelorum Participes: The cult of saints in Late Antique Spain” in Hispania in
Late Antiquity. Current Perspectives. Ed. Kim Bowes e Michael Kulikowski, Leiden, Brill, 2005, p. 183.
245
Idem, ibidem, p. 182.
46
de um mártir. Desta forma, o culto dos mártires e os enterramentos ad sanctos contribuíram
para o desenvolvimento de uma urbanização da morte.
Deste modo, proibiu-se a concessão de sepultura aos defuntos no interior das basílicas,
apesar de, ao mesmo tempo, se ter ordenado que os enterramentos ocorressem no exterior das
igrejas, sendo que este tipo de inumação (extra ecclesia) não estava proibido247. O objetivo
principal desta normativa seria impedir a “invasão” funerária no interior das basílicas
urbanas248. As zonas que seriam afetadas por esta proibição seriam maioritariamente as igrejas
situadas na Gallaecia, mais concretamente, as que estariam dependentes da sede episcopal
bracarense249.
A prática de inumar dentro das basílicas funerárias ou mesmo ao redor destas (junto
aos seus muros) seria uma prática que advinha do período romano e paleocristão, em que uma
muralha urbana separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos em virtude de proteger os
vivos das trevas e do caos do exterior250. Por esta razão, na Alta Idade Média, apesar de não
existir exceções ou privilégios na normativa imposta pelo I Concílio de Braga, vão perdurar os
enterramentos juntos dos muros das basílicas funerárias, sendo os dignatários religiosos e os
246
José Vives, Concilios Visigóticos e Hispano-Romanos. Colaboração com Tomás Marín Martínez e Gonzalo
Martínez Díez, Vol. I – Textos, Barcelona, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1963, I Concílio de
Braga, Cânone XVIII, p. 75.
247
Jorge López Quiroga e Artemio M. Martinéz Tejera, “Corporibus Defunctorum: Lectura e interpretación
histórico-arqueológica del canon XVIII del primer Concilio de Braga (A.561) y su repercusión en la Arquitectura
Hispana de la Antigüedad Tardía”, p. 155.
248
Idem, ibidem, p.156.
249
Idem, ibidem.
250
Santiago Macias e Maria da Conceição Lopes, “O território de Beja entre a Antiguidade Tardia e a Islamização”
in Visigodos y Omeyas el Territorio. Eds. Luis Caballero Zoreda, Pedro Mateos Cruz, Tomás Cordero Cruz.
Instituto de Arqueología – Mérida, Mérida, 2012, p. 320.
47
indivíduos com poder que se faziam sepultar dentro do espaço protegido e perto do altar251; a
intenção destas inumações poderia significar uma procura por um espaço privilegiado, longe
do mal. Desta forma, as inumações no interior das basílicas permaneceram ao longo dos séculos
V, VI e VII252 o que implica que a proibição conciliar não teve efeitos práticos; numa época
tardia, verificou-se em Mértola uma continuação desta prática através das inumações in situ
encontradas no interior da basílica que datavam da primeira metade do século VI253. Além
disso, no século VII, Julião de Toledo fala nesta persistência do costume de enterramento
dentro das igrejas ou basílicas ao afirmar “o desejo dos fiéis em fazer-se sepultar apud
memorias martyrum”254.
Deste modo, foi verificada a presença do culto dos mártires na Península Ibérica. Desse
culto pode destacar-se o dos mártires de Lisboa – Veríssimo, Máxima e Júlia – , de Évora –
São Manços – e daqueles a quem em Alcácer do Sal se encontra uma lápide dedicada – Justo
e Pastor255. Relativamente aos mártires de Lisboa deve-se ressaltar que as primeiras
informações sobre o seu culto datam do princípio da identidade portuguesa256. Contudo, desde
o século IX que era possível encontrar em território “português” igrejas e mosteiros dedicados
aos três mártires257; por outro lado, o seu culto no século X estaria representado nos calendários
moçárabes, sendo celebrado no dia 1 de outubro (datação que persiste até à atualidade). No que
toca a São Manços, o seu culto encontra-se presente na liturgia Hispânica dos séculos VII a XI.
O seu martírio ter-se-á realizado no século VI e os seus restos mortais terão sido encontrados
por um homem de família ilustre que os transferiu para um sarcófago mais digno, tendo
construindo junto da sepultura uma pequena igreja que logo se tornou um local de veneração258.
Como tal, a edificação desta igreja junto do sepulcro do mártir é um exemplo de martyria
(conceito abordado anteriormente). Por conseguinte, pode-se relacionar esta descrição com o
que se encontra nas igrejas martyria, ou seja, as igrejas edificadas em torno do sepulcro de um
mártir.
251
Idem, ibidem.
252
Cláudio Torres e Santiago Macias, “Rituais funerários paleocristãos e islâmicos nas necrópoles de Mértola”,
p. 33.
253
Idem, ibidem.
254
Santiago Macias e Maria da Conceição Lopes, “O território de Beja entre a Antiguidade Tardia e a
Islamização”, p. 323.
255
Frederico Viera, O Mundo Rural e o Território de Évora durante a Antiguidade Tardia, pp. 10-11.
256
Maria João Toscano Rico, Santos e Milagres na Idade Média em Portugal. São Veríssimo e São Cristóvão,
Vol. 11. Dir. Paulo Farmhouse Alberto, Traduvárius, Lisboa, 2015, p. 15.
257
Idem, ibidem, p. 13.
258
Paulo Farmhouse Alberto, Santos e Milagres na Idade Média em Portugal. Santo Adrião e Santa Natália. São
Manços, Vol. 8. Dir. Paulo Farmhouse Alberto, Traduvárius, Lisboa, 2014, p. 62.
48
Por último, nos séculos posteriores, VIII a X, permaneceu a crença de que um mártir
ou um santo poderiam ser intercessores eficazes para protegerem os defuntos, sendo que as
suas relíquias poderiam ter a mesma eficácia. Como tal, um devoto para requerer este tipo de
proteção ou patrocínio para a remissão dos pecados, teria de oferecer um bem ao respetivo
santo ou mártir ou às relíquias pertencentes a estes, as quais estariam no altar de uma igreja ou
de um mosteiro259. Como exemplo excecional no território leonês, podem-se encontrar os
seguintes casos presentes na Coleção Documental da Catedral de León: o presbítero Seovano
que doou terras, casas e outros bens que pudesse vir a adquirir ao longo da sua vida à basílica
de Santa Maria e Santa Marina260; Eulalia, uma enferma doou ao abade Severo e aos monges
de São Cosme e São Damião [<<de Abeliar>>], depois da sua morte, “una corte en la ciudad
de León”261, onde se encontravam os seus filhos, já falecidos, tendo feito esta doação pela
almas dos mesmos e pela sua própria alma262.
Nos Concílios Hispânicos que decorreram durante este período são escassas as
referências ao culto dos mortos, sendo que as menções, por norma, seriam interdições de
comportamentos considerados demasiado próximos do paganismo263. Por sua vez, essas
interdições denunciam a existência de cerimónias em honra dos mortos que poderiam consistir
na deslocação das famílias ao local do sepulcro264. Estas cerimónias não resultavam de
injunções por parte da Igreja, mas sobretudo da iniciativa de particulares265 já que, durante um
longo período, os domínios da morte estiveram reservados à decisão individual, tendo a Igreja
se remetido para um papel (voluntariamente) secundário266.
Deste modo, ao longo dos séculos VIII e IX, os cristãos aprenderam a encarar a morte
de uma forma diferente comparando aos períodos anteriores. Por exemplo, a produção de
259
José Mattoso, “Os rituais da morte na liturgia hispânica (séculos VI a XI)” in O reino dos Mortos na Idade
Média Peninsular. Direcção de José Mattoso, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1996, p. 64.
260
Emilio Saez e outros, eds., Colección documental del Archivo de la Catedral e León, Vol. I, Centro de Estudos
e Investigação “Sán Isidoro”, Léon, 1987, p. 19.
261
Idem, ibidem, p. 320.
262
Idem, ibidem.
263
Mário Jorge Barroca, Epigrafia Medieval Portuguesa: 863-1422, p. 264.
264
Idem, ibidem.
265
Idem, ibidem.
266
Idem, ibidem.
49
epitáfios (como mencionado anteriormente, seria bastante elevada no paleocristianismo)
assistiu a uma enorme quebra no século VIII (e perdurou até ao século IX)267. Porventura, isto
leva a crer que o ritual poderá ter abandonado certas práticas que decorriam nas comemorações
quer de aniversário, quer litúrgicas junto das sepulturas, assim como outras práticas em que a
influência pagã estaria presente como, por exemplo, os banquetes funerários268. Como tal, o
abandono desta última prática vai ao encontro do que foi estabelecido no II Concílio de Braga,
em 572, no cânone LXIX, em que foi proibido levar oferendas de alimentos às sepulturas269.
267
Idem, ibidem.
268
Idem, ibidem.
269
José Vives, Concilios Visigóticos e Hispano-Romanos, II Concílio de Braga, Cânone, LXVIII, p. 102.
270
O termo “Reconquista” encontra-se entre aspas, pois, nos últimos anos tem sido contestado, sendo que
historicamente está longe de ser um termo inequívoco como aborda Maria Ângela Beirante em “A <<Reconquista
>>” Cristã in Nova História de Portugal. Direção de Joel Serrão e A.H. de Oliveira Marques, Vol. II, Lisboa,
Editorial Presença, 1993, p. 253. O termo abrange não só uma ofensiva militar por parte dos cristãos, como
também abrange uma variedade de transformações que ocorreram na Península em que a “Reconquista” teve um
papel direto ou indireto (Idem, ibidem, pp. 254-255).
50
a zona da Lusitânia, não entrando em conflito com os suevos numa primeira fase, como
abordado anteriormente.
De forma a garantir que o defunto não voltasse a perturbar o quotidiano dos vivos, seria
necessário seguir um conjunto de rituais que envolviam o próprio crente. Estes consistiam em
que, em certos momentos, fosse rezada uma oração pelo sacerdote (por exemplo, quando
vestiam o defunto e o colocavam no féretro277) ou fosse pronunciado um salmo enquanto
decorria o cortejo fúnebre278. Seria importante a continuação de orações em prol dos defuntos
e a celebração da eucaristia. Estas práticas teriam em vista atenuar os efeitos e ajudar o defunto
na sua viagem além-túmulo, tendo sido alvo de interpretações contraditórias devido à
problemática de se saber até que ponto poderiam ser eficazes, isto é, poder-se-ia obter o perdão
do pecado através da sua prática?279 Santo Isidoro acreditava que a Igreja não oferecia esmolas
271
Maria do Rosário Bastos, “Testemunhos hispânicos sobre o mundo dos mortos nos séculos IV a VIII”, p. 46.
272
Idem, ibidem, p. 47.
273
Andreia Arezes, O Mundo funerário na Antiguidade Tardia em Portugal: as necrópoles dos séculos V a VIII,
p. 154.
274
Por esta razão, por volta do século VI, a inumação praticamente afirma-se como única prática de enterramento
admitida.
275
José Vives, Concilios Visigóticos e Hispano-Romanos, III Concílio de Toledo, Cânone XIV, p. 496.
276
Idem, ibidem.Tradução: “substância da verdadeira carne na qual agora somos e vivemos”.
277
Maria do Rosário Bastos, “Testemunhos hispânicos sobre o mundo dos mortos nos séculos IV a VIII”, p. 48.
278
Idem, ibidem.
279
José Mattoso, “Os rituais da morte na liturgia hispânica (séculos VI a XI)”, p. 61.
51
e sacrifícios pelos defuntos “se não acreditasse que se podiam perdoar os pecados dos
mortos”280, logo, os pecadores eram protegidos contra os perigos da viagem além-túmulo e
poderiam “escapar a penas merecidas depois de terem caído nelas por suas culpas”281. Santo
Agostinho, assim como outros padres da Igreja, acreditavam que os pecados menores poderiam
ser remidos por um fogo purificador.
280
Idem, ibidem.
281
Idem, ibidem, p. 62.
282
Idem, ibidem, p. 65.
283
O Liber Ordinum seria utilizado pelas igrejas visigóticas e moçárabes.
284
José Mattoso, “Os rituais da morte na liturgia hispânica (séculos VI a XI)”, p. 65.
285
Idem, ibidem.
286
Idem, ibidem, pp. 62-63.
287
Idem, ibidem, p. 63.
288
José Vives, Concilios Visigóticos e Hispano-Romanos, II Concílio de Braga, Cânone, LXVIII, p.102.
289
José Mattoso, “Os rituais da morte na liturgia hispânica (séculos VI a XI)”, p.58.
290
José Vives, Concilios Visigóticos e Hispano-Romanos, III Concílio de Toledo, Cânone, XXII, p.135.
52
lamentações fossem substituídas pelo canto dos salmos e, apesar de no Liber Ordinum, haver
referências a esses, as lamentações foram acolhidas, sendo mencionadas após a imediata oração
do sacerdote após o passamento do indivíduo, depois do vestir o defunto e sua colocação no
féretro291. Estas lamentações diferenciavam-se do que se podia encontrar na realidade romana,
pois, outrora seriam uma forma de luto que se caracterizava pela incapacidade de manter o
defunto no mundo dos vivos ou pela impossibilidade de este defunto regressar à vida292; e
vieram-se a tornar numa forma de se dirigir a Deus, através de preces, cuja eficácia se podia
medir “na interpretação popular dos participantes, pela intensidade do ruído com que se pedia
para o morto o perdão dos pecados”293.
Em termos de espólio, alguns autores afirmam que a partir do século VI houve uma
tendência para a sua redução, assim como uma mudança nos depósitos294, a qual poderia
depender do género do defunto (tal como em vida, na morte o tratamento entre homens e
mulheres poderia ser dissemelhante)295. No entanto, em território peninsular, nesse mesmo
período, principalmente no meio rural, determinou-se a existência de “incontornáveis mesclas
artefactuais”, ligadas a uma provável aculturação entre hispano-romanos e descendentes de
visigodos, que, em parte, poderia decorrer da união matrimonial entre os dois grupos296. Por
conseguinte, no reinado de Leovigildo, foi implantada a derrogação da proibição dos
casamentos mistos; logo, isto veio abrir ainda mais o caminho de aproximação entre
populações, que se veio a refletir não só no quotidiano, como no meio fúnebre297.
291
José Mattoso, “Os rituais da morte na liturgia hispânica (séculos VI a XI)”, p.58.
292
Idem, ibidem.
293
Idem, ibidem.
294
Andreia Arezes, O Mundo funerário na Antiguidade Tardia em Portugal: as necrópoles dos séculos V a VIII,
p.159.
295
Idem, ibidem, p.162.
296
Idem, ibidem, p.166.
297
Idem, ibidem, pp.166-167.
298
Idem, ibidem, p.167.
53
indumentárias envergadas, onde, por sua vez, se torna difícil distinguir através do espólio os
vestígios de uma filiação299.
Por último, uma prática que se verifica que permaneceu ao longo dos séculos foi a
inumação vestida. Por um lado, no período do Baixo Império Romano constatou-se uma
presença minoritária desta prática, que, muitas vezes, se associava às mensae e, por sua vez, à
funus, onde a deposição de objetos funerários (por exemplo, os vasos funerários) teria a
preferência. Por outro lado, com a penetração dos povos de origem germânica, a prática ganhou
tração, pois estes privilegiavam os elementos de adorno (como poderá ser verificado pela
análise realizada)300. Como tal, esta prática acabou por ser incorporada no Liber Ordinum, onde
se afirma que o defunto deve ser lavado e preparado com indumentária que vestiu em vida301.
O ritual funerário seguido desde o século V até ao século VII seria o mesmo, na maioria
dos casos: praticava-se a inumação, sendo os túmulos constituídos por blocos de pedra, onde
se colocaria o corpo (transportado para este local através de um esquife)302. Por norma, a
orientação seria oeste e a posição do corpo em decúbito dorsal, com os braços ao longo do
tronco303.
Em Poço dos Mouros, junto a Silves, foi encontrada uma necrópole visigoda, datável
do século VII, apesar de este povo ter passado um curto tempo na região do Algarve. Esta
necrópole seria constituída por sepulturas escavadas em rocha304. O ritual detetado pelos
arqueólogos foi a inumação e a posição dos corpos seria em decúbito dorsal305. É notório o
facto de os corpos repousarem vestidos e, possivelmente, em sudários306. A orientação das
sepulturas seria maioritariamente sudoeste-nordeste (apenas duas se encontravam com
299
Idem, ibidem.
300
Idem, ibidem, p.165.
301
Idem, ibidem, p.171.
302
Cláudio Torres e Santiago Macias, “Rituais funerários paleocristãos e islâmicos nas necrópoles de Mértola”
in O reino dos Mortos na Idade Média Peninsular. Direcção de José Mattoso, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1996,
p. 34.
303
Idem, ibidem, p. 34.
304
Mário Varela Gomes, “A necrópole visigótica do Poço dos Mouros (Silves). Revista Portuguesa de
Arqueologia, Vol. V, no2, 2002, p. 341.
305
Idem, ibidem, p. 374.
306
Idem, ibidem.
54
orientação este-oeste). Esta orientação era comum em outros cemitérios visigodos, o que
demonstra a crença de que o corpo do defunto deveria ser disposto de forma a poder observar
o sol nascente, sendo que no solstício do verão, a ampliação do sol é maior. Como tal, esta
prática relaciona-se com a ideia da Ressurreição, da vida eterna307. Através do espólio
encontrado foi possível encontrar alguns contributos da cultura romana, mas são “prestações
continentais que preponderam, nomeadamente nas raras cerâmicas ali exumadas”308.
307
Idem, ibidem, p.373.
308
Idem, ibidem, p.386.
309
Jorge António e Marta Pinto Reis, Hispania Romana – Actas do IV Congresso de Arqueologia Peninsular.
Editor João Pedro Bernardes, Faro, 2004, pp. 354-355.
310
Idem, ibidem, p. 358.
311
Idem, ibidem, p. 359.
55
Em Castro de Avelãs, no distrito de Bragança, foi descoberto um espaço funerário do
período Alto Medieval, com enterramentos que se inserem entre os séculos VI a XII, tendo
sido possível obter esta datação através de análises radiocarbónicas aos restos ósseos já que se
verificou a ausência de espólio312. Por conseguinte, é do período de ocupação dos suevos e dos
visigodos. De acordo com os arqueólogos que procederam à exploração do espaço, foram
escavadas dezanove sepulturas, sendo que a maioria denuncia a crença na Ressurreição (Ver
Figura 10313), com a cabeça orientada para oeste (para a nascente) e os pés para este; à exceção
de dois indivíduos que apresentaram uma ligeira inclinação para nordeste, a qual pode dever-
se à estação do ano em que foram sepultados. Além destas, há uma terceira sepultura de um
não-adulto que apresentava outra orientação. Todos os indivíduos encontravam-se em decúbito
dorsal, com os seus membros ligeiramente fletidos e com os braços fletidos sobre o peito ou
com as mãos sobre a anca. À exceção de uma sepultura em que o defunto se encontrava com
os pés cruzados, os restantes encontravam-se com os membros inferiores paralelos. Desta
forma, estes enterramentos demonstram a prática cristã, incluindo o facto de não haver espólio
associado às sepulturas, pois demonstra de modo claro o despojamento cristão314.
312
Sofia Tereso, André Brito, Cláudia Umbelino, Miguel Cipriano, Clara André e Pedro C. Carvalho, “O espaço
funerário Alto-Medieval da Torre Velha (Castro de Avelãs, Bragança)” in Arqueologia em Transição: O Mundo
Funerário – Actas do II Congresso Internacional Sobre Arqueologia de Transição, Ed. Gertrudes Branco, Leonor
Rocha, Cidália Duarte, Jorge de Oliveira e Primitiva Bueno Ramírez, Chaia, 2015, p. 298. Disponível em:
http://www.chaia.uevora.pt/pt/books.html
313
Fonte: Sofia Tereso, André Brito, Cláudia Umbelino, Miguel Cipriano, Clara André e Pedro C. Carvalho, “O
espaço funerário Alto-Medieval da Torre Velha (Castro de Avelãs, Bragança)” in Arqueologia em Transição: O
Mundo Funerário – Actas do II Congresso Internacional Sobre Arqueologia de Transição, Ed. Gertrudes Branco,
Leonor Rocha, Cidália Duarte, Jorge de Oliveira e Primitiva Bueno Ramírez, Chaia, 2015, p. 299. Disponível em:
http://www.chaia.uevora.pt/pt/books.html
314
Idem, ibidem, p. 305.
315
Andreia Arezes, “O mundo funerário visigótico no território louletano: sítios, práticas e materiais” in Loulé:
Territórios, Memórias e Identidades. Coordenação de António Carvalho, Dália Paulo e Rui Roberto de Almeida,
Organização de Museu Nacional de Arqueologia e Museu Municipal de Loulé, [s.l], 2017, p. 418.
316
Idem, ibidem.
56
prata) foram produzidos em liga de cobre317 e igualmente datáveis do século VI-VII. No
terceiro local, Cerro da Vila, a necrópole que lhe está associada revelou formas de inumação e
práticas funerárias diferenciadas318. Das treze que foram intervencionadas, pôde constatar-se
que divergiam em materiais utilizados (xisto, tijolos ou tegulae) e na orientação, os
enterramentos demostravam alinhamentos distintos, apesar de se destacar uma preponderância
para a cabeça estar orientada a poente e os pés a nascente319. Em termos de deposição do corpo,
foi possível detetar um maior predomínio do decúbito dorsal. A exceção a esta deposição foi
uma sepultura, onde o corpo se encontrava em decúbito lateral direito. Nas treze sepulturas
foram exumados restos pertencentes a dezoito indivíduos, logo, estava presente o costume da
reutilização320. Numa sepultura dupla, foi encontrado conservado na boca de um dos defuntos,
o óbolo a Caronte, datável do século IV demonstrando que esta prática continuava; num outro
defunto encontrou-se no pulso esquerdo dez contas vítreas, procedentes de uma pulseira, sendo
este um adorno recorrente em necrópoles de filiação visigótica321. Por último, no local da
Retorta, uma grande parte das sepulturas de inumação estavam arrasadas devido ao plantio de
árvores, havendo outras que permaneceram resguardadas, como que ocultas no terreno322. De
enaltecer nesta necrópole é o conjunto de adornos de corpo que foram encontrados, os quais,
no geral, são datáveis dos séculos VI a VII. Por exemplo, dentro desses adornos, pode-se
destacar o achamento de uma placa de cinturão rígida, um brinco anelar de liga de cobre, um
anel de liga de fita de cobre, entre outros.
317
Idem, ibidem, p. 419.
318
Idem, ibidem, p. 420.
319
Idem, ibidem.
320
Idem, ibidem.
321
Idem, ibidem.
322
Idem, ibidem, p. 421.
323
Sílvia Casimiro, Sara Prata, Rodrigo Banha da Silva, “Enterramentos infantis em contexto não funerário na
Alta Idade Média” in Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes. Coords. João Luís Inglês Fontes, Luís Filipe
Oliveira, Catarina Tente, Mário Farelo e Miguel Gomes Martins, Coleção Estudos 15, Instituto de Estudos
Medievais, 2016, Lisboa, pp. 48-49.
57
a dormir, esta seria a mais comum e a recomendada para a época), sobre o lado esquerdo e
seguindo uma orientação oeste-este, e segundo os arqueólogos foi este enterramento o que
demonstrou vestígios mais evidentes de que houve algum cuidado com a deposição do corpo;
os restantes quatro foram dispostos em decúbito supino, com orientações diferentes (um
seguindo norte-sul, outro noroeste-sudeste e sudeste-noroeste)324. De notar que a maioria dos
não adultos não seriam sepultados nos espaços indicados para tal, surgindo normalmente em
contextos habitacionais (ou em associados), em silos, fossas, depósitos, poços ou espalhados
pela paisagem325.
Figura 10. Exemplo de um indivíduo enterrado seguindo a crença da Ressurreição. Neste caso, as mãos
encontram-se sobre a anca.
324
Idem, ibidem, pp. 50-52, 54.
325
Idem, ibidem, p. 40.
58
III.3.2. Os Cristãos dos Séculos VIII a X: os Moçárabes
É importante realçar que alguns dos cristãos que não se converteram ao Islão e não se
tornaram moçárabes moveram-se para o Norte da Península Ibérica, para o reino das Astúrias
e o reino da Vascónia, que resistiram às conquistas islâmicas, onde se preparou a chamada
“Reconquista”. No entanto, é notório que as migrações dos moçárabes para o norte cristão
foram frequentes a partir do século VIII, tendo este fator contribuído para enfraquecer a
cristandade meridional e para atenuar a oposição Norte/Sul que se caracterizava como grave
nesse mesmo século328.
Os moçárabes possuíam a sua Igreja a nível peninsular, a qual impôs práticas mortuárias
como, por exemplo, a regra de se desnudar completamente o corpo do defunto e, em seguida,
de o lavar da cabeça aos pés329. Esta lavagem seguia as normas do Islão, a água teria de ser
fresca ou tépida, entre outras características, em vista a restituir a pureza ao corpo do defunto
de modo a que este pudesse alcançar o Além. O defunto seria vestido com roupas brancas e à
medida que se procedia ao seu vestimento, colocava-se cânfora na boca, olhos, ouvidos, nariz,
326
Joaquim Chorão Lavajo, “Islão e cristianismo: entre a tolerância e a guerra santa”, p. 94.
327
José Pedro Machado “Moçárabes” in Dicionário de História de Portugal. Direcção de Joel Serrão, Vol. III,
Iniciativas Editoriais, 1971, p. 87.
328
José Mattoso, “Os Moçárabes” in Revista Lusitana, Nova Série, No6, Fundada por José Leite de Vasconcelos,
Lisboa, Instituto Nacional de Investigação, 1985, p. 11.
329
Cláudio Torres e Santiago Macias, “Rituais funerários paleocristãos e islâmicos nas necrópoles de Mértola”
p. 27.
59
ânus e no caso feminino, na vagina também. Isto seria uma forma de impedir que o espírito
regressasse ao corpo do defunto e instalasse a desordem no mundo dos vivos330.
É necessário ter em atenção que os cristãos deste período deveriam cumprir os preceitos
estabelecidos pelo Liber Ordinum, que seria indicativo para as igrejas quer visigóticas, quer
moçárabes335.
Em último lugar, à data do presente estudo, apenas foi possível encontrar uma
necrópole que evidencia a presença de uma comunidade moçárabe. Deste modo, na necrópole
visigótica do Padrão, em Raposeira, Vila do Bispo, foi determinado um período de ocupação
humana datável da Alta Idade Média que envolve a presença de visigodos e moçárabes336.
Nesta escavação foram encontradas dez sepultura, no entanto, segundo os arqueólogos, a área
explorada foi restrita o que impossibilitou o conhecimento da sua verdadeira extensão;
ademais, informam ainda que por falta de verbas e logística indicada não se escavou todas as
sepulturas identificadas337. Do que se verificou, a orientação das sepulturas seria
maioritariamente poente-nascente e os corpos depostos em decúbito dorsal, embora numa das
sepulturas (identificada como a terceira), o defunto foi deposto no sentido noroeste-sudeste e
330
Idem, ibidem, p. 28.
331
Idem, ibidem.
332
Idem, ibidem, p. 32.
333
Idem, ibidem, pp. 32-33.
334
Idem, ibidem, p. 32.
335
Santiago Macias, “A Basílica Paleocristã e as Necrópoles Paleocristã e Islâmica de Mértola: Aspectos e
Problemas”, p. 417.
336
Mário Varela Gomes e Luís Campos Paulo, “A necrópole visigótica do Padrão (Raposeira, Vila do Bispo)” in
o Arqueólogo Português, Série V, Vol. 1, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia e Imprensa Nacional da Casa
da Moeda, 2011, p.591.
337
Idem, ibidem, p. 598.
60
o seu corpo estaria em decúbito lateral338. Através de datações por radiocarbono de duas
sepulturas determinou-se que os enterramentos no Padrão apontam para duas fases, isto, pois
a sepultura três abrangia o último quarto do século VII, alcançando ainda o século IX, o que
coincidia com o espólio encontrado (contas de vidro e um brinco que indicavam uma população
visigoda); enquanto a sepultura quatro abrangia os séculos VIII a X, que coincide com o
período de ocupação islâmica e que se associou à comunidade moçárabe que ali estaria ativa
no século VIII ou IX339. Assim, como determinam os arqueólogos que estudaram esta
necrópole, pelos fatores arquitetónicos e em termos de espólio e ritual, as sepulturas indicam a
fusão entre os povos romano-cristãos e os visigodos, ao mesmo tempo que as datações obtidas
demonstram a continuação dessa comunidade e a sua integração na realidade moçárabe340.
338
Idem, ibidem, p. 650.
339
Idem, ibidem, pp. 635-636.
340
Idem, ibidem, p. 653.
61
IV. O Islão e a sua Visão sobre a Morte
A dinastia islâmica que perdurou no espaço peninsular foi a Omíada pois, apesar de em
750, os Omíadas terem sido derrotados pelos Abássidas e todos membros da família Omíada
terem sido executados, um elemento conseguiu escapar ‘Abd al-Rahmān b.Mu’awiya. Deste
modo, fugiu para o extremo mais ocidental do império muçulmano – o Al-Andaluz342. Os seus
sucessores mantiveram-se no poder quase três séculos, sendo caracterizados como uma dinastia
estável e, na sua última etapa, tendo assumido o título de califado343.
341
Joaquim Chorão Lavajo, “Islão e cristianismo: entre a tolerância e a guerra santa”, p. 92.
342
Eduardo Manzano Moreno, Conquistadores, Emires y Califas. Los Omeyas y la formación de Al-Andulus,
Barcelona, p. 10.
343
Idem, ibidem.
344
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registros
funerários, p. 10.
345
Idem, ibidem.
62
peninsular, os que permaneceram sob autoridade islâmica, mas mantendo a sua religião – os
moçárabes – e aqueles que se converteram ao Islão, os quais seriam designados de muladî-s.
Assim, com este ponto de situação entende-se que as práticas e os rituais fúnebres
seguidos na Península Ibérica terão sido diversificados. Deste modo, pretende-se neste capítulo
abordar as questões fúnebres na ótica da religião islâmica, analisando primeiro como o Corão
as apresenta e se lhes refere, quais as práticas e rituais vistos como tradicionais e, por último,
a realidade no ocidente peninsular.
346
André Miquel, O Islame e a sua civilização séculos VII-XX, Lisboa, Edições Cosmos, 1971, p. 179.
347
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registos funerários.
Dissertação de Mestrado em Arqueologia Medieval e Moderna apresentada à Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, 2018, p. 10.
348
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus” in Anales de Prehistoria y Arqueología, Vol. 22, 2006, p. 151. Disponível em:
https://revistas.um.es/apa/article/view/93201
63
IV.1. O Corão e as Referências às Práticas Fúnebres
O Islão tem por base o livro de Maomé, o Corão. Neste podem-se encontrar algumas
referências à morte e ao que a sua temática engloba, como, por exemplo, o facto de que todas
as almas vão sentir a morte349. Isto é, a alma e o corpo são tratados como duas componentes
que na morte se separam, sendo que quando se mata o corpo, a alma sente esta separação350. É
neste aspeto que se revela a influência mística persa e, nomeadamente, indiana “em que a alma-
espírito, completamente descorporizada do seu invólucro terrestre, se dilui numa entidade
metafísica abstrata”351.
O Jardim e o Fogo contêm cada um sete andares e, segundo o que diz o Corão, enquanto
o corpo permanecia na sepultura, o seu espírito encontrava-se na al-barzakh, sendo que esta,
em suma, se refere a uma provável forma de barreira escatológica de modo a prevenir que os
defuntos retornem à terra, o que indica que os mortos estariam separados dos vivos em termos
de espaço e tempo até ao encontro na Ressurreição355. No entanto, é necessário mencionar que,
posteriormente, acredita-se que o espírito se separa do corpo logo no momento da morte, sendo
transportado, como num sonho, para contemplar os sete céus e os sete infernos e depois
349
Alcorão, III: 182.
350
Alcorão, Trad. de Prof. Samir El Hayek, Oeiras, As Astra Et Ultra AS, 2010, p. 510.
351
Cláudio Torres, “O Gharb-Al-Andaluz” in História de Portugal. Dir. José Mattoso, Vol. I – Antes de Portugal,
[s.l], Editorial Estampa, [s.d], p. 413.
352
Leor Halevi, “Death and Dying”, Medieval Islamic Civilization. An Encyclopedia. Edit. Josef W. Meri, Vol. I,
Nova Iorque, Routledge, 2006, p. 196.
353
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus”, p. 151.
354
Idem, ibidem.
355
Leor Halevi, Muhammad’s Grave – Death Rites and the Making of Islamic Society, Nova Iorque, Columbia
University Press, 2007, pp. 204, 226.
64
regressava ao corpo até ao momento da Ressurreição (havia, porém, a possibilidade de ser
libertado pelo poder das orações ou pela misericórdia de Deus)356. Todos os defuntos faziam
esta viagem de regresso ao seu corpo, à exceção dos mártires que assim que abandonavam o
seu corpo iam para o Jardim, onde lhes seria atribuído um novo corpo357.
356
Idem, ibidem, pp. 207-208.
357
Idem, ibidem, p. 208.
358
Alcorão, V: 31. Quando Caim assassinou Abel, Alá enviou um corvo que começou a escavar a terra
demonstrando como se ocultaria o cadáver. Pode-se ver esta demonstração como um ensinamento que se deveria
enterrar os defuntos.
359
Leor Halevi, “Funerary Practices, Muslim”, Medieval Islamic Civilization. An Encyclopedia. Editor: Josef W.
Meri, Vol. I, Nova Iorque, Routledge, 2006, pp. 270-271.
360
Alcorão, II: 150.
361
Leor Halevi, “Funerary Practices”, p. 271.
362
Alcorão, IX: 85.
363
Leor Halevi, “Funerary Practices, Muslim”, p. 270.
364
El-Bokhari, Tradições Muçulmanas, versão portuguesa baseada na tradução francesa de G. H. Bousquet; com
uma introdução por Fernando Amaro Monteiro, Revista de Ciências do Homem, Série B, N.1, Vol. III, 1971, p.
VII.
365
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus” p. 151.
366
Leor Halevi, Muhammad’s Grave – Death Rites and the Making of Islamic Society, p. 2. Neste caso, as aspas
utilizadas não são transcrições, mas sim uma aproximação da tradução.
65
IV.2. As Práticas Tradicionais: as Crenças e Rituais Fúnebres
Nos epitáfios islâmicos começaram a ser inscritas frases que se relacionavam com uma
linguagem litúrgica como, por exemplo, “tornem a sua sepultura mais espaçosa” ou “que a sua
sepultura se encha de luz”371. Este tipo de frases surgia também na tradição oral para determinar
que frases litúrgicas os “pietistas” deviam usar durante as cerimónias fúnebres, sendo que, de
certa forma, frases do Corão que surgissem nestes epitáfios poderiam servir como mediação
entre os vivos e os mortos372. Desta forma, no final do século VIII desenvolveu-se uma liturgia
do Corão nos cemitérios, a qual não seria apenas uma leitura durante a oração funerária, mas
também uma recitação do Livro373. No entanto, de acordo com Leor Halevi, esta oração
pronunciada uma vez e imediatamente antes do enterro, não deve ser confundida com a oração
enraizada na leitura dos epitáfios e proferida imediatamente depois do enterro; ambas
demonstrariam uma preocupação com o bem-estar do defunto, mas a partir do final século VIII,
foram sujeitas a pressão social para darem um lugar de maior destaque no Corão374. Contudo,
367
Idem, “Funerary Practices, Muslim”, p. 270.
368
As aspas neste caso devem-se à tradução literal do termo pietists utilizado pelo autor, Leor Halevi, no seu livro
Muhammad’s Grave – Death Rites and the Making of Islamic Society, encontrando-se a sua primeira utilização
na página 3. O autor indica ainda que estes “pietistas” poderiam ser referidos como ideólogos.
369
Idem, Muhammad’s Grave – Death Rites and the Making of Islamic Society, , p. 3.
370
Idem, ibidem, p. 3.
371
Idem, ibidem, p. 28. Nesta página da obra encontram-se ambos os exemplos citados, que são traduzidos do
inglês: “fill his grave with more light” e “make his grave more spacious”.
372
Idem, ibidem.
373
Idem, ibidem.
374
Idem, ibidem.
66
é necessário notar que, por exemplo, ‘Abdullāh Ibn ‘Umar375 não costumava recitar o Corão
aquando da oração/reza por um defunto376.
Em seguida, o corpo do defunto deveria de ser tratado. Em primeiro lugar, deveria ser
lavado, apesar de não haver uma forma reconhecida ou tradicional de o fazer; por exemplo, no
século VIII, em Medina, foram registadas várias formas de lavar o corpo. A lavagem seria
importante pois, teria em vista a restituição da pureza ao corpo, sendo que sem esta não seria
possível alcançar o Além379. Por norma, a sua realização requeria a utilização de água com flor
de lótus, que poderia ser substituída por uma solução de água com trigo sarraceno, ou folhas
de uva ou folhas de nêspera; também haveria a possibilidade de a água utilizada para a lavagem
ter de ser fresca ou tépida, “pura ou misturada com malvaísco ou aromatizada com cânfora e
almíscar”380. A sua repetição deveria ser em número ímpar, até sete e começando sempre do
lado direito do corpo381, começando pelas mãos e os pés a serem lavados procedendo-se em
seguida às restantes partes do corpo382. O indivíduo que lavava o corpo, no Islão tradicional,
no caso de um homem seria a comunidade do mesmo sexo, procedendo-se da mesma forma no
caso de uma mulher. Contudo, existia a possibilidade de o defunto ser lavado pelo sexo oposto
caso não existisse um grau parentesco que o proibisse e desde que não houvesse pessoas do
mesmo sexo que o defunto383.
375
Um dos filhos de Umar, o segundo califa do Islão. Foi também um dos Companheiros do Profeta.
376
Imam Malik Ibn Anas, Al-Muwatta, Reino Unido, Diwan Press Ltd, 2014, 16:16.6.19.
377
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registros
funerários, p. 12.
378
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus”, p. 154.
379
Cláudio Torres e Santiago Macias, “Rituais funerários paleocristãos e islâmicos nas necrópoles de Mértola”,
p. 28.
380
Idem, ibidem.
381
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus”, p. 154.
382
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registros
funerários, p. 13.
383
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus”, p. 154.
67
No entanto, há exceções ao ritual da lavagem. Os indivíduos que seriam considerados
mártires não passavam por esse processo como, por exemplo, os defuntos fiéis que morriam
em confrontos em defesa do Islão que seriam enterrados tal como encontrados, ou seja, com as
feridas e com os restos de sangue que estariam no corpo384. Isto, pois, acreditava-se que o ato
o livraria dos “pecados”, logo, não seria necessária a lavagem do corpo385.
O ritual do luto (niyal;a) era visto como um modo dramático de expressar a dor387; as
mulheres gritavam “wa rajulah, wa jabalah, wa ‘nqita’a : μihra” o que significaria “Oh, o
homem! Oh, a montanha! Oh, a separação da sua casa!”388. Esta seria uma forma poética de
lamentar a separação de um indivíduo do seu ambiente. O luto poderia ser realizado de duas
formas: oral (nadb) ou fisiológico, ou seja, envolvia arrancar/puxar os cabelos e sangrar389; e
o luto era um ato “dominado” pelas mulheres390, pois por parte dos homens era mais contido391.
Porventura, existiam locais em que era expectável que as mulheres demonstrassem as suas
emoções em público, enquanto os homens teriam de se autocontrolar392. Contudo, na nova
ordem islâmica, os atos tradicionais de luto, tais como gritar alto, atirar areia para a cabeça ou
arrancar cabelos surgiam como horríveis e eram proibidos393. Por um lado, isto devia-se aos
“pietistas” muçulmanos encararem esses atos como uma forma de a mulher expor a casa dos
muçulmanos ao mal394. Por outro lado, os “pietistas” islâmicos primitivos consideravam o luto
um ato ofensivo, pois, segundo a sua forma de pensar, o luto seria um modo de contestar o
384
Idem, ibidem, p. 154.
385
The Oxford Dictionary of Islam, Ed. John L. Esposito, Nova Iorque, Oxford University Press, 2003, p. 193.
386
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus”, p. 155.
387
Leor Halevi, Muhammad’s Grave – Death Rites and the Making of Islamic Society, p. 116.
388
Idem, ibidem. A transcrição árabe encontra-se na obra Muhammad’s Grave – Death Rites and the Making of
Islamic Society de Leor Halevi (p.116) e a tradução para português é a tradução do inglês que o autor apresenta –
“Oh, the man! Oh, the mountain! Oh, the severance from his household!” (p. 116).
389
Idem, Muhammad’s Grave – Death Rites and the Making of Islamic Society, p. 116.
390
Idem, ibidem, p. 115.
391
Idem, ibidem, p. 117.
392
Idem, ibidem.
393
Idem, ibidem, p. 119.
394
Idem, ibidem.
68
juízo de Deus, um modo de rebeldia contra o Seu decreto395. Como tal, a lei islâmica primitiva
relativamente ao luto/ lamentação concentrava-se na repressão das emoções violentas396. Deste
modo, pode observar-se como os atos tradicionais de lamentações seriam condenados através
da seguinte citação presente no conjunto de hadiths: “(o defunto) sobre o qual se fazem
lamentações será castigado em função delas”397.
Durante o processo civilizacional, a lei islâmica não impunha tabus aos familiares
masculinos do defunto, mas impunha um conjunto mínimo aos familiares femininos398.
Segundo a lei sunita, as mulheres seriam desencorajadas de demonstrar sinais de luto por um
irmão ou uma criança por mais de três dias após o momento da morte; nessa altura usariam um
perfume amarelo (sufra) para marcar que estavam a retomar à normalidade – aplicavam o
perfume nas bochechas e nos antebraços399. No caso de viúvas, estas teriam de esperar quatro
meses e dez dias – período conhecido como ‘idda – antes de utilizarem o perfume mencionado
anteriormente, tendo em vista a marcar a sua disponibilidade para voltar a casar400. No sexo
masculino não seria necessário por lei alterar o seu comportamento após a morte de pais,
esposas ou crianças401.
395
Idem, ibidem, p. 120.
396
Idem, ibidem.
397
El-Bokhari, Tradições Muçulmanas, Capítulo VI, ponto 40.
398
Leor Halevi, Muhammad’s Grave – Death Rites and the Making of Islamic Society, p. 120.
399
Idem, ibidem.
400
Idem, ibidem.
401
Idem, ibidem.
402
Idem, ibidem, p. 146.
403
Idem, ibidem, p. 149.
404
Idem, ibidem.
405
Idem, ibidem.
69
consideravam que as preces funerárias entrariam em conflito com os tempos definidos para a
oração da manhã ou do fim de tarde406.
406
Idem, ibidem.
407
Idem, ibidem, p. 144.
408
Idem, ibidem.
409
Idem, ibidem.
410
Idem, ibidem.
411
Idem, ibidem, p. 146.
412
Idem, ibidem.
413
Idem, ibidem.
414
Idem, “Funerary Practices, Muslim”, p. 270.
415
Leor Halevi, Muhammad’s Grave – Death Rites and the Making of Islamic Society, p. 186.
416
Idem, ibidem.
417
Idem, ibidem, pp. 187-188.
70
voltados para Meca418. Isto promovia um sentido de pertença a uma única comunidade419. Após
o enterramento, os vizinhos ofereciam aos familiares do defunto comida e consolação420.
O processo da islamização da zona ocidental não foi algo repentino ou que se deveu à
entrada de vários militares berberes e árabes, como consequência da conquista da Península421;
o início deste processo deu-se com a abertura de novos mercados que causou a entrada de novas
gentes, ideias e produtos422. Em Mértola foi possível encontrar vestígios que comprovavam a
presença de comerciantes, artesãos e camponeses. A atual cidade de Beja, um importante centro
de difusão de conhecimento desde a época romana, vai assim perdurar na época islâmica graças
a uma elite religiosa de ulemas que assegurará esse mesmo centro423. Contudo, o processo de
islamização e arabização será mais afirmado, mesmo que seja de forma lenta, a partir dos
séculos IX e X424. Neste último, a escola malikita estabelece-se como doutrina oficial do Al-
Andaluz425, sendo que os rituais e práticas nesta diferem em alguns aspetos do que foi abordado
anteriormente, ademais, em certos casos encontrou-se uma maior especificidade de certos
rituais em contrapartida ao que foi analisado anteriormente.
Quando a morte se avizinhava, seria este o momento de dar início aos rituais fúnebres.
No que toca a estes últimos, as divergências que se presume que decorriam no Al-Andaluz têm
por base a fonte Al-Muwatta, que foi redigida pelo Imã Mālik Ibn Anas426, tendo sido essa obra
o primeiro corpus jurídico a penetrar no território.
418
Idem, ibidem, p. 188.
419
Idem, ibidem, p. 189.
420
Idem, “Funerary Practices, Muslim”, p. 270.
421
Cláudio Torres, “O Islão no Ocidente Ibérico”, Separata de Minorias étnicas e religiosas em Portugal História
e Atualidade, Actas do Curso de Inverno de 2002, Coimbra, 2003, p. 92.
422
Idem, ibidem.
423
Santiago Macias e Maria da Conceição Lopes, “O território de Beja entre a Antiguidade Tardia e a
Islamização”, p. 307.
424
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registros
funerários, p. 10.
425
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus”, p. 156.
426
Imã Mālik Ibn Anas (711 d.C.-795 d.C.), conhecido por Imã de Medina e fundador da escola maliki, foi quem
escreveu o Muwaṭṭa’ – o primeiro tratado escrito da lei islâmica – em que nos fornece informação acerca da
comunidade desta época, os seus rituais, costumes e leis. É preciso ter em atenção que a obra em questão é uma
71
Deste modo, Mālik, concordava com o que foi mencionado antes para as práticas
tradicionais, não havendo uma forma particular ou que fosse reconhecida para lavar o corpo, o
necessário era garantir que fosse purificado427. Contudo, segundo o que o mesmo relata através
dos relatos de outras pessoas, o Profeta, aquando da morte da sua filha, lhes transmitiu que a
lavassem três, cinco ou as vezes que fossem necessárias, com água e com folhas de lótus e no
fim se colocasse alguma (ou pouca) cânfora428 (o que vai ao encontro do que foi mencionado
anteriormente).
No entanto, existia uma exceção ao ritual da lavagem, sendo a mesma que se encontra
nos rituais tradicionais: os mártires. Segundo um relato presente na Al-Muwatta, o Profeta
referiu que existem sete tipos de mártires, sem contar com os que morrem em nome de Alá: as
mulheres que morriam enquanto davam à luz, os que seriam mortos por uma peste, que se
afogavam, os que morriam devido a doenças da barriga, os que morriam pelo fogo ou pela
queda de um edifício433.
composição de hadiths muito usados pelos sunitas, sendo, por isso, que são importantes os seus relatos neste
subcapítulo.
427
Imam Malik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.1.4.
428
Imam Malik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.1.23.
429
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registros
funerários, p. 13.
430
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus”, p. 157.
431
Imam Malik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.1.4.
432
The Oxford Dictionary of Islam, p. 341.
433
Imam Malik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.12.36.
72
Em seguida, procedia-se à prática do amortalhamento do corpo, em que o defunto seria
envolto num sudário de algodão de cor branca ou, em casos excecionais, amarela434. Dever-se-
ia amortalhar em número ímpar, sendo recomendado cinco para os homens e sete para as
mulheres435. Conforme se vestia o corpo, colocava-se cânfora nas seguintes zonas: nariz, olhos,
boca, ouvidos, ânus e, no caso feminino, vagina436. Como tal, fechavam-se as partes abertas do
corpo para evitar que o espírito do defunto regressasse ao seu corpo e pudesse causar desordem
no mundo dos vivos437. Recomenda-se ainda perfumar o defunto438.
Por último, dava-se lugar ao funeral, o qual deveria ser “modesto e trivial, praticado
em monotonia pelos entes mais próximos e, por acréscimo, pelo Imam, que realizava a
cerimónia religiosa”439. O enterramento deveria ocorrer com a maior brevidade possível pois,
segundo Abū Hurayra440, havia apenas benefícios para os defuntos com essa pressa, pois “é
somente bom que estejas a avançar em direção a ele, de modo a libertar o mal que paira sobre
vós”441. Era condenável a violação das sepulturas, sendo que segundo relatos da Al-Muwatta,
o Profeta amaldiçoava quem desenterrava corpos, fosse homem ou mulher442.
Desta forma, o corpo seria transportado numa padiola para o cortejo fúnebre que seria
acompanhado pelo Imã, o qual recitava orações na musalla (caracterizado com um oratório ao
ar livre) e no cemitério e, embora não fosse aconselhado, muitas vezes, as orações seriam
acompanhadas por cânticos e lamentos e, por sua vez, segundo os preceitos, os acompanhantes
repetiam quatro vezes com a cara virada para Meca que “Deus é Grande”, finalizando as
orações do Imã com “ámen”443. Por último, os familiares do defunto, em luto, recebiam os
434
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registros
funerários, p. 13.
435
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus”, p. 158.
436
Cláudio Torres e Santiago Macias, “Rituais funerários paleocristãos e islâmicos nas necrópoles de Mértola”,
p. 28.
437
Idem, ibidem.
438
María Chávet Lozoya, Rubén Sánchez Gallego e Jorge Padial Pérez, “Ensayo de rituales de enterramiento
islámicos en Al-Andalus”, p. 158.
439
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registros
funerários, p. 13.
440
Um dos Companheiros do Profeta.
441
Imam Malik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.16.58. Tradução do inglês: “it is only good that you are advancing
him towards, or evil that you are taking off your necks”.
442
Imam Malik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.15.44.
443
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registros
funerários, p. 13.
73
pêsames dos amigos e conhecidos, em casa do defunto, onde seria preparado um pequeno e
modesto banquete e distribuía-se esmola e comida por quem passava444.
No que toca ao luto, entende-se que não há divergências, era um ato visto com
conotação negativa. Por exemplo, segundo os relatos do Imã Mālik Ibn Anas, quando o
Mensageiro de Alá passou por uma família judaica que estava a chorar a perda de uma mulher
da família, disse que ao chorarem por ela, ela estaria a ser atormentada no seu túmulo445.
Ademais, segundo um outro relato, de ‘Abdullāh ibn ‘Umar, o Profeta disse que quando
morriam, o sítio para onde iriam lhes seria apresentado de manhã ou de tarde. Se fossem uma
pessoa de Jardim, então ficariam com as pessoas do Jardim, e se fossem uma pessoa de Fogo,
ficariam com as pessoas do Fogo, sendo que lhes será dito que aquele é o local de espera, até
ao dia em que Alá irá erguê-los446. Tal como já foi dito, esta distinção entre Jardim e Fogo
pode-se relacionar com o “Paraíso” e o “Inferno”.
Segundo o que o Imã Mālik Ibn Anas teve conhecimento através de outros relatos, havia
Imãs em Medina que costumavam rezar pelos mortos. Contudo, sabe-se que durante esses
momentos quer mulheres, quer homens estariam separados: as primeiras junto da qibla e os
segundos perto do Imã447. Através de um desses relatos sabe-se que ‘Abdullāh Ibn ‘Umar
costumava dizer que “ninguém deveria orar por um defunto a não ser que ele estivesse
wudū”448, ou seja, sem que ele tivesse levado a cabo o ritual de purificação antes da oração.
Sobre como rezar pelos mortos foi questionado Abū Hurayra, o qual respondeu que seguia a
família do defunto e quando o corpo deste era depositado dizia “Alá é grande” e louvava-O e
pedia as suas bênçãos; após isto dizia ainda “Ó Alá, ele é Teu escravo e o filho do Teu escravo
masculino e da Tua escrava feminina. Ele costumava testemunhar que não há nenhum Deus
senão Tu e que Muhammad é Teu escravo e Teu Mensageiro, e Tu sabes isso melhor. Ó Alá!
Se ele tiver agido bem, então aumenta em nome dele as suas boas ações, e se ele agiu de forma
errada, desconsidera os seus erros. Ó Alá! Não nos prives da sua recompensa, e não nos testes
através dele”449.
444
Idem, ibidem, p. 14.
445
Imam Malik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.12.37.
446
Imam Malik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.16.48.
447
Imam Mālik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.9.24.
448
Imam Mālik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.9.26. Wudū, uma prática ritual islâmica que consiste na lavagem da
cara da boca, das mãos até aos cotovelos e dos pés; é conhecida em português por abdesto ou ablução.
449
Imam Mālik Ibn Anas, Al-Muwatta, 16:16.6.17. Tradução do inglês: “O Allah, he is Your slave and the son of
Your male slave and Your female slave. He used to testify that there is no god but YOU and that Muhammad is
Your slave and Your Messenger, and You know that best. O Allah! If he acted well, then increase for him his good
74
Contrariamente ao que acontece na religião cristã, os muçulmanos não podiam enterrar
os seus defuntos dentro ou ao redor de uma mesquita, assim como não podiam construir uma
no interior das necrópoles de modo a manter certas regras higiénicas e facilitar o acesso a ela450.
Por conseguinte, as necrópoles muçulmanas encontravam-se fora dos muros das cidades, nas
imediações dos caminhos que levavam às portas daquelas. Deste modo, localizavam-se junto
a uma das portas, onde ainda poderiam existir oratórios451. Estes locais designavam-se de
almocávares ou almacaves (al-maqbara)452 e devido à sua proximidade das portas, era comum
que os cemitérios muçulmanos adotassem o nome dessas portas453. Contudo, no caso
“português”, encontra-se o contrário, o nome da porta da cidade é que adota o nome do
cemitério, principalmente em Lisboa a bab al-maqábir454. Além disso, o facto de as necrópoles
encontrarem-se no exterior das cidades implicava que quando um indivíduo entrasse e saísse
da cidade em questão fosse obrigado a encarar a “cidade dos mortos”, sendo esta uma forma
de relembrar que todos nascem e morrem iguais para o Islão455.
No Al-Andaluz, pode também encontrar-se casos que foram contra as normas impostas.
Por exemplo, quando o defunto era uma pessoa importante chegava-se a erguer luxuosos
mausoléus456. Além disso, violando claramente a interdição de enterrar defuntos no interior das
cidades, as famílias andaluzas (e não só) estabeleceram um hábito de no interior dos recintos
palatinos guardar os seus antepassados457. Pode-se ainda verificar neste território uma procura
por enterrar os defuntos junto de qubbas ou rawabit, túmulos de santos e ascetas458 o que se
pode relacionar com os enterramentos ad sanctos da religião cristã.
action, and if he acted wrongly, then overlook his wrong actions. O Allah! Do not deprive us of his reward, and
do not try us after him”.
450
Ana Echevarría, Enterramientos y Ritos funerários islâmicos: de lo andalusí a lo mudéjar a través del caso
toledano, Studia Historica: Historia Medieval, Vol. 38, N.1, Ediciones Universidad de Salamanca, 2020, p. 83.
451
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Quotidianos, Lisboa, Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico – Trabalhos de
Arqueologia 53, 2011, p. 350.
452
A. H. de Oliveira Marques, “O <<Portugal>> Islâmico” in Nova História de Portugal. Direção de Joel Serrão
e A.H. de Oliveira Marques, Vol. II, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 243.
453
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registros
funerários, p. 14.
454
Idem, ibidem.
455
Alexandra Pires e Isabel Luzia, “As necrópoles islâmicas de Loulé” in Loulé: Territórios, Memórias e
Identidades. Coordenação de António Carvalho, Dália Paulo e Rui Roberto de Almeida, Organização de Museu
Nacional de Arqueologia e Museu Municipal de Loulé, [s.l], 2017, p. 494.
456
Cláudio Torres, “O Gharb-Al-Andaluz” in História de Portugal, pp. 413-414.
457
Idem, ibidem.
458
Santiago Macias, “A Basílica Paleocristã e as Necrópoles Paleocristã e Islâmica de Mértola: Aspectos e
Problemas”, p. 429.
75
No que toca à composição dos jazigos, estes seriam regidos pelas prescrições islâmicas,
ou seja, incentivava-se a austeridade, a simplicidade e a igualdade na morte459. O espólio seria
inexistente, pois segundo as diretrizes do Islão essa prática era proibida. De modo a evitar uma
sobreposição de inumações, as sepulturas eram sinalizadas à superfície460.
459
Ana Raquel Gonzaga, Arqueologia da Morte no Gharb “português”: almocavares e outros registros
funerários, p. 14.
460
Idem, ibidem, p. 15.
461
Idem, ibidem, p. 14.
462
Santiago Macias, “A Basílica Paleocristã e as Necrópoles Paleocristã e Islâmica de Mértola: Aspectos e
Problemas”, p. 421.
463
Idem, ibidem, p. 423.
464
Idem, ibidem.
465
Esta seria a necrópole da Basílica Paleocristã do Rossio do Carmo, porém, na altura em que a população
islamizada começou a enterrar os seus defuntos a Basílica já se encontrava destruída e abandonada. – Alicia
Candón Morales, “La colección antropológica del campo arqueológico de Mértola (s. II-XVI): reconstruir la
sociedad y los modos de vida a partir del registro funerario”. Arqueologia Medieval, No.6, Porto, Edições
Afrontamento, 1999, p. 287.
466
Santiago Macias, “A Basílica Paleocristã e as Necrópoles Paleocristã e Islâmica de Mértola: Aspectos e
Problemas”, p. 423.
467
Idem, ibidem, p. 428.
468
Idem, ibidem, p. 426.
469
Idem, ibidem. Esta referência bibliográfica é ainda fonte de onde foi retirada a figura 11, p. 428.
470
Idem, ibidem, p. 429.
76
necrópole continuou com a prática de enterramentos fora dos muros da cidade, sendo que neste
caso, a via em que se encontrava ligava à atual cidade de Beja471.
471
Alicia Candón Morales, “La colección antropológica del campo arqueológico de Mértola (s. II-XVI):
reconstruir la sociedad y los modos de vida a partir del registro funerario”. Arqueologia Medieval, No.6, Porto,
Edições Afrontamento, 1999, p. 288.
472
Miguel António Paixão Serra, “Necrópole Islâmica de Beja – Notícia preliminar da sua identificação” in Xelb
9 – Actas do 6º Encontro de Arqueologia do Algarve. O Gharb no al-Andaluz: síntese e perspetivas de estudo,
Silves, Câmara Municipal de Silves, 2008, p. 679.
473
Idem, ibidem, p. 680.
474
Idem, ibidem, p. 682.
475
Idem, “Análise Arqueológica da Necrópole Islâmica de Beja” in Arqueologia Medieval, No.12, Porto, Edições
Afrontamento, 2012, p. 241.
476
Idem, “Necrópole Islâmica de Beja – Notícia preliminar da sua identificação” in Xelb 9 – Actas do 6º Encontro
de Arqueologia do Algarve. O Gharb no al-Andaluz: síntese e perspetivas de estudo, Silves, Câmara Municipal
de Silves, 2008.
477
Idem, ibidem, p. 681.
478
Chamamos a atenção para o facto de, segundo os arqueólogos que escavaram a necrópole, os corpos dos
defuntos terem sido encontrados em decúbito dorsal, tendo esta posição sido provocada pelo movimento post
mortem do corpo devido à sua decomposição, ao que acresceu a ação destrutiva das raízes das árvores que se
encontram no local. - Alexandra Pires e Isabel Luzia, “As necrópoles islâmicas de Loulé” in Loulé: Territórios,
Memórias e Identidades, p. 496.
77
nada foi encontrado, contudo, foram encontrados pregos que poderiam estar relacionados com
a existência de uma cobertura de madeira ou restos de uma padiola usada para transportar os
defuntos para a sua sepultura479; sendo que ainda foram encontradas cinco pontas de bestas e
uma ponta de faca, possivelmente associadas à causa da morte dos indivíduos, junto dos quais
os objetos foram encontrados480. Igualmente em Loulé, foi encontrada outra necrópole
islâmica, na designada de zona oriental da cidade. Nesta, verificaram-se as mesmas práticas
descritas anteriormente na Quinta da Boavista. A datação destas necrópoles, segundo as
análises radiocarbónicas realizadas a alguns restos ósseos, aponta para os anos de 905 a
1277481.
479
Idem, ibidem.
480
Idem, ibidem.
481
Apesar de se verificar uma datação fora do período de estudo da presente Dissertação, não deixa de ser
importante ressaltar estas duas necrópoles.
78
Conclusão
Numa primeira fase é verificável que todas as religiões abordadas enterravam os seus
defuntos fora dos muros da cidade, sendo que o que pode variar são as razões para tal, apesar
de ser possível estabelecer algumas ligações entre si. Ora, veja-se o caso do cristianismo que,
apesar de ter sido apenas numa fase inicial, continuou com esta prática por continuar a crer que
os mortos poderiam regressar e aterrorizar os vivos, tal como os romanos que acreditavam que
os defuntos habitavam junto das sepulturas. Por esta razão, a prática das mensae, oferendas aos
mortos junto das sepulturas, perdurou ainda no cristianismo nos séculos IV e V, tendo sido
encontrados vestígios destas nas necrópoles peninsulares. Entre os romanos e os islâmicos pode
pensar-se que realizavam esta prática por questões também de higiene: para os romanos a morte
seria vista como algo impuro, que contaminava dos vivos.
482
Lactantius, Divine Institutes. Tradução de Anthony Bowen e Peter Garnsey, Vol. 40 – Translated Texts for
Historians, Liverpool, Liverpool University Press, 2003, p. 358.
79
de Santo Agostinho, o sepultamento seria visto como um maior conforto para os vivos do que
para os mortos, os gastos com ele em nada ajudavam na salvação do defunto.
O conjunto de rituais que fazem parte da funus podem ser ligados aos rituais que os
islâmicos levam a cabo com os seus defuntos, sendo que o mesmo pode ainda ser verificado
na vivência moçárabe e visigoda (Liber Ordinum). Desta forma, seria importante a lavagem do
corpo do defunto de modo a restituir-lhe a pureza, o vestir o corpo, a sua exposição (no caso
romano) e, por fim, o luto. Contudo, de notar que antes da execução destes rituais, há um que,
apesar de divergir, seria igualmente praticado pelo romanos e os islâmicos: o familiar mais
próximo de um defunto romano teria como cargo dar um último beijo ao moribundo quando
este “exalasse o último suspiro”, e no caso islâmico, caso o moribundo não conseguisse
pronunciar a shaada, a pessoa que lhe estivesse mais próxima devia pronuncia-la ao seu
ouvido. Os romanos realizavam um banquete fúnebre (ciclicernium) junto das sepulturas dos
seus defuntos, onde se juntava a família e amigos para honrar a memória do defunto e
“partilhar” uma refeição com esses (havia ainda outro banquete que realizar-se-ia após nove
dias junto da sepultura também); no caso do Islão, os familiares recebiam na casa do defunto
amigos e conhecidos e seria preparado um banquete.
483
Leor Halevi, Muhammad’s Grave – Death Rites and the Making of Islamic Society, p. 120.
80
como uma prece dirigida a Deus.
É necessário notar que os rituais não se prendiam apenas com o momento da morte. Os
romanos celebravam e honravam os seus mortos nos dias do seu aniversário e com a realização
da Parentalia e da Lemuria. Os cristãos celebravam também os seus defuntos no dia do seu
aniversário, podendo-se associar a isto a prática das mensae ou banquetes fúnebres. Apesar de,
no II Concílio de Braga, em 572, no cânone LXIX, estar estabelecida a proibição de levar
oferendas de alimentos às sepulturas486, esta prática continuou como verificável através de
achados arqueológicos (por exemplo, em Alter do Chão). Segundo o Liber Ordinum, eram
ainda celebradas em honra dos mortos missas proclamadas em seu nome e no dia do seu
aniversário. No entanto, as celebrações dos cristãos pelos defuntos prendiam-se ainda com
outro fator: o culto dos mártires, cuja celebração implicava costumes semelhantes às práticas
romanas de honrar os defuntos. Quando um mártir falecia, o dia da sua morte seria referenciado
como dies natalis e celebrava-se os Atos levados a cabo pelos mártires nesta data. Ademais, a
Parentalia seria comemorada pelos cristãos em prol dos mártires, embora de forma adaptada.
Aliás, há ainda uma certa relação entre este culto e o culto dos heróis, sendo que a diferença
seria a relação do mártir com Deus, tornando-se um intercessor que nenhum herói poderia ter
484
Ana Cristina Araújo, “Morte”, Dicionário de História Religiosa em Portugal”. Coordenação de Carlos Moreira
de Azevedo, Vol. III, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, p. 267.
485
José Mattoso, “Os rituais da morte na liturgia hispânica (séculos VI a XI)”, p.61.
486
José Vives, Concilios Visigóticos e Hispano-Romanos, II Concílio de Braga, Cânone, LXVIII, p. 102.
81
sido487. Este culto ainda resultou numa outra prática: os enterramentos ad sanctos, através dos
quais os cristãos acreditavam que esses santos os poderiam ajudar na salvação e na proteção
das suas sepulturas.
A prática da incineração foi a escolhida pelos romanos, pelo menos até cerca do século
III d.C., quando começou a ganhar dominância a inumação. Uma das razões para tal, pode-se
associar à influência por parte do cristianismo, que ao tornar-se a religião oficial do Império
no século IV, mais precisamente, em 392, estabeleceu a preservação do corpo como algo
necessário para quando chegasse o Dia do Juízo Final (a crença na Ressurreição). Além disso,
os romanos também colocavam os seus defuntos em mausoléus. Para os islâmicos a
preservação do corpo também era importante, sendo que optavam também pela inumação dos
seus defuntos.
A orientação mais comum que um defunto romano seguia seria norte-sul, apesar de ter
sido observável outras ao longo desta Dissertação, como, por exemplo, noroeste-sudoeste,
oeste-este, nordeste-sudeste. A posição do corpo seria em decúbito dorsal/ supino. Um defunto
cristão seguiria uma orientação sudoeste-nordeste, sendo que poderia haver variações pois, a
ideia era que a cabeça ficasse na direção do sol nascente no Dia do Juízo Final e a posição do
corpo seria em decúbito dorsal. Para um islâmico, o defunto seria colocado em decúbito dorsal
direito com a sua a face na direção de Meca e, segundo o rito malikita (adotado na Península
Ibérica), o corpo deveria ser sepultado em contacto com a terra.
Em suma, através deste trabalho podem ser entendidas e verificadas, pelas comparações
487
Peter Brown, The cult of the saints: its rise and function in the late Christianity, Londres, SCM Press, 1982, p.
6.
82
acima mencionadas, as ligações, as divergências e as influências que foram sendo exercidas de
uma religião para as outras ao longo dos séculos. Ao longo da Dissertação foram apresentados
dados arqueológicos em território “português” não só como complementação da informação
histórica adquirida e redigida, mas também como um de modo a apresentar o estabelecimento
destas religiões e das suas respetivas visões sobre a morte neste território. Assim, pode-se
afirmar que a principal crença que todas as religiões têm é a vida pós-morte, ou seja, entende-
se a morte como um fim apenas da vida terrestre. Por esta razão, torna-se importante levar a
cabo todos os rituais e práticas que determinem que o defunto obtenha o seu descanso final.
83
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