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ADRIANA ZIERER

ANA LIVIA BOMFIM VIEIRA


ELIZABETH SOUSA ABRANTES

ORGANIZADORAS

NAS TRILHAS DA ANTIGUIDADE


E IDADE MÉDIA

São Luís
2014
ADRIANA ZIERER
ANA LIVIA BOMFIM VIEIRA
ELIZABETH SOUSA ABRANTES

ORGANIZADORAS

NAS TRILHAS DA ANTIGUIDADE


E IDADE MÉDIA

COLABORADORES

Alex Silva Costa


Alexandro Almeida Lima Araujo
Bianca Trindade Messias
Josena Nascimento Lima Ribeiro
Neila M. de Souza
Polyana Muniz
Solange Pereira Oliveira

São Luís
2014
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO

Roseana Sarney
Governadora

Washington Luiz
Vice-Governador

SECRETARIA DE ESTADO DA CIÊNCIA,


TECNOLOGIA, ENSINO SUPERIOR
E DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO
José Ferreira Costa
Secretário

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO


José Augusto Silva Oliveira
Reitor

Gustavo Pereira da Costa


Vice-Reitor

Porfírio Candanedo Guerra


Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

Walter Canales Sant’Ana


Pró-Reitor de Administração

Antônio Pereira e Silva


Pró-Reitor de Planejamento

Vânia Lourdes Martins Ferreira


Pró-Reitora de Extensão e Assuntos Estudantis

Maria Auxiliadora Gonçalves Cunha


Pró-Reitora de Graduação

Andrea Araújo
Diretora do Centro de Educação, Ciências Exatas e Naturais (CECEN)
NAS TRILHAS DA ANTIGUIDADE
E IDADE MÉDIA

São Luís

2014
© copyright 2014 by UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA UEMA.

NAS TRILHAS DA ANTIGUIDADE E IDADE MÉDIA


DIVISÃO DE EDITORAÇÃO
Iran de Jesus Rodrigues dos Passos

EDITOR RESPONSÁVEL
Iran de Jesus Rodrigues dos Passos

CONSELHO EDITORIAL

Porfírio Candanedo Guerra - PRESIDENTE


Iran de Jesus Rodrigues dos Passos - EDUEMA
Joel Manuel Alves Filho - CCT/UEMA Nordman Wall B. de Carvalho Filho-CCA/UEMA
José Bello Salgado Neto - CCT/UEMA Sebastiana Sousa Reis Fernandes- CECEN/UEMA
Ricardo Macedo Chaves - CCA/UEMA Rita de Maria S. N. de Candanedo Guerra - CCA/UEMA
Ilmar Polary Pereira - CCSA/UEMA José Mílton Barbosa - CCA/UEMA
Evandro Ferreira das Chagas - CECEN /UEMA Marcelo Cheche Galvês - CECEN/UEMA
Lincoln Sales Serejo - CECEN/UEMA Protásio César dos Santos - CCSA/UEMA
José Carlos de Castro Dantas - CECEN /UEMA Rosirene Martins Lima - CCSA/UEMA
Gílson Soares da Silva - CCA/UEMA Zafira Silva de Almeida – CECEN/UEMA
Rossane Cardoso Carvalho - CCT/UEMA
ASSISTENTE DE EDITORAÇÃO
Antonia de Fátima de Farias
DIAGRAMAÇÃO/PROJETO GRÁFICO
Luiz Carlos Pereira Guedes

CAPA
Henry J.G. Lisbôa

IMPRESSÃO
Gráfica e Editora JK

INDEXADO POR / INDEXAD BY


Bibliografia Brasileira

Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média / organizadoras, Adriana Zierer,


Ana Lívia Bomfim Vieira, Elizabeth Sousa Abrantes. – São Luís: Editora
UEMA, 2014.
463 p.

ISBN: 978-85-8227-044-8

1.Antiguidade. 2.Idade Média. 3.História. 4.Cultura. I.Zierer, Adriana.


II.Vieira, Ana Lívia Bomfim. III.Abrantes, Elizabeth Sousa. IV.Título

CDU: 94(100)”05/...”

A revisão ortográfica dos textos é de inteira responsabilidade dos autores.

EDITORA UEMA
Cidade Universitária Paulo VI - CP 09 Tirirical
CEP - 65055-970 São Luís - MA
www.uema.br - editorauema@gmail.com
sumário

PREFÁCIO 13 Alexandre Carneiro Cerqueira Lima

APRESENTAÇÃO 15 Júlia Constança Pereira Camêlo

INTRODUÇÃO 17 Ana Livia Bomfim Vieira


Adriana Zierer
Elizabeth Sousa Abrantes

ENTRE EVA E MARIA:


A ambiguidade das imagens femininas
21 Adriana Maria de Souza Zierer
Elizabeth Sousa Abrantes
n’A Demanda do Santo Graal - século XIII

GEOGRAFIA, MEMÓRIA E IDENTIDADE SOCIAL


DOS THETAI NA ATENAS CLÁSSICA
31 Alair Figueiredo Duarte
Maria Regina Cândido

O “ESPELHO DE CRISTO”:
A representação cristológica da estigmatização
35 Alex Silva Costa
Adriana Zierer
de Francisco de Assis nas Hagiografias Franciscanas

GLADIADORES NAS ARENAS:


Seres excluídos da sociedade?
45 Alexandro Almeida Lima Araujo
Ana Livia Bomfim Vieira

O PODER IMPERIAL ROMANO REPRESENTADO


NAS MÃOS DOS CÉSARES E O OFERECIMENTO
51 Alexandro Almeida Lima Araujo
Ana Livia Bomfim Vieira
DE DIVERTIMENTOS PÚBLICOS:
Uma análise sobre as interpretações classicistas
concernentes aos jogos de gladiadores

A HISTÓRIA DO AMOR DE FERNANDO E ISAURA:


Um recorte da residualidade medieval
59 Aline Leitão Moreira

OS MUÇULMANOS
E O QUATTROCENTO DE GIOVANNI BOCCACCIO
65 Ana Carolina Lima Almeida

EÇA DE QUEIRÓS ENTRE O MEDIEVO E O SÉCULO XIX 73 Ana Marcia Alves Siqueira
Sayuri Grigório Matsuoka

O TRONO LUDOVISI
COMO LUGAR DE MEMÓRIA DOS GREGOS
79 Andréa Magalhães da Silva Leal
Maria Regina Cândido

A IGREJA MEDIEVAL
E O CAMINHO PARA A SALVAÇÃO NA VISÃO DE TÚNDALO
87 Bianca Trindade Messias

O HERÓI DA DINASTIA DE BORGONHA:


As maravilhas realizadas pelo Rei Afonso III
93 Bianca Trindade Messias
Adriana Zierer
na Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal

DEPÓSITOS DE SACRIFÍCIOS HUMANOS


E “TERRENOS DE ENTERRAMENTOS FORMAIS”:
99 Bianca Miranda Cardoso

O caso de Gordion e a população gálata

RELIGIOSIDADE ROMANO-BRETÃ
E OS TEXTOS MEDIEVAIS NAS ILHAS BRITÂNICAS:
107 Brunno Oliveira Araujo

Diálogos, problemas e desafios

A RETÓRICA DA ALTERIDADE
NA RIHLA DE IBN BATTUTA (1304- 1377)
113 Bruno Rafael Véras de Morais e Silva
José Maria Gomes de Souza Neto
ALEXANDRE, DOS TEXTOS ÀS TELAS:
Dialogando com o passado e interagindo no presente
119 Calil Felipe Zacarias Abrão
Pedro Pio Fontineles Filho

O CULTO MARIANO
NO SÉCULO XIV EM PORTUGAL
125 Camila Rabelo Pereira
Adriana Zierer

MÉTIS E ATHENÁ:
Uma leitura de Teogonia de Hesíodo
131 Camila Alves Jourdan
Alexandre Carneiro Lima.

RESIDUALIDADES EM TRÊS PRINCESAS


PERDERAM O ENCANTO NA BOCA DA NOITE
137 Cintya Kelly Barroso Oliveira

MULHERES EM CENA:
Uma análise sobre as mulheres da Grécia Clássica
143 Clara Manuella de Souza Guerra

a partir das peças de Aristófanes

VÍCIOS, VIRTUDES E A REPRESENTAÇÃO


DO BOM CRISTÃO PARA A ORDEM DOS CISTERCIENSES:
149 Darlan Pinheiro de Lima
José Rivair Macedo
O exemplo de Alcobaça

TEMPO E NARRATIVA NA EDUCAÇÃO EM RAMON LLULL:


DOUTRINA PARA CRIANÇAS (1274 – 1276)
155 Dayse Marinho Martins

ASPECTOS GERAIS DA RELIGIÃO EM CARTAGO:


Rituais e formas de organização
161 Fabrício Nascimento de Moura

VIDA COLETÂNEA (1311):


Ramon Llull e o ideal de bom cristão
167 Flávia Santos Gomes
Adriana Zierer

AS LENDAS DO EL-REI TOURO D. SEBASTIÃO


E O MILAGRE DE GUAXENDUBA:
173 Flávio P. Costa Júnior
José Henrique de Paula Borralho
Narrativas de origens medievais
na formação da identidade cultural maranhense

A REPRESENTAÇÃO DO DIABO NO TEATRO MEDIEVAL


E SEUS ASPECTOS RESIDUAIS NA OBRA
181 Francisco Wellington Rodrigues Lima

AUTO DE JOÃO DA CRUZ, DE ARIANO SUASSUNA

A IRONIA COMO SUBVERSÃO DA HISTÓRIA:


A IDADE MÉDIA NO CONTO
189 Gladson Fabiano de Andrade Sousa
Márcia Manir Miguel Feitosa
“TEOREMA” DE HERBERTO HELDER

UMA ANÁLISE HISTÓRICA DO MITO DE PROMETEU


E SUAS RELAÇÕES COM O SACRIFÍCIO:
199 Igo Castro Carreiro
Paulo Ângelo de Meneses Sousa
Demarcador da condição humana

REELABORAÇÃO DO MEDIEVO:
O ESTIGMA DA HANSENÍASE EM SÃO LUÍS
205 Jacklady Dutra Nascimento

NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

UM OLHAR SOBRE A RELIGIÃO ROMANA


NA OBRA METAMORFOSES DE APULEIO (SÉC II D.C)
211 João Marcos Alves Marques
Sílvia Márcia Alves Siqueira

O PAPEL DOS JOGOS E DA LITERATURA TÉCNICA


NA CONSTRUÇÃO DO PODER RÉGIO AVISINO
217 Jonathan Mendes Gomes

(PORTUGAL, SÉC. XIV/XV)

TESSITURAS SOBRE O CONHECIMENTO MÍTICO


NA FORMAÇÃO DE IDENTIDADES
223 José de Moraes Sousa
Francisca Derlange Soares de Sousa
OS GREGOS ANTIGOS Márcia de Fatima de Moraes Sousa Bastos
A TIRANIA DOS PISISTRATIDAS
E O DIONISISMO ÁTICO
229 José Roberto de Paiva Gomes
Maria Regina Candido

“ARRAIAL! ARRAIAL! PELO MESTRE D’AVIZ,


REGEDOR E DEFENSOR DOS REINOS DE PORTUGAL”:
237 Josena Nascimento Lima Ribeiro
Adriana Zierer
Memória e identidade na Crónica
de D. João I, de Fernão Lopes

OS CAVALEIROS DO APOCALIPSE:
As influências agostinianas
245 Joyce Oliveira Pereira

no discurso de Antônio Vieira (1624-1641)

UMA LOUCA VIAGEM:


Representações da loucura
251 Kamilla Dantas Matias
Rita de Cássia Mendes Pereira
na Stultifera Navis de Bosch

A AVENTURA NO “MAR OCEANO”


E AS NOVAS REPRESENTAÇÕES
259 Katiuscia Quirino Barbosa

DO MUNDO NO SÉCULO XV

HISTÓRIA E NARRATIVA NA BAIXA IDADE MÉDIA:


A ESCRITA DO PODER AFONSINO
265 Leonardo Augusto Silva Fontes

A FIGURA DE GUILHERME, O CONQUISTADOR,


NA CRÔNICA DE GUILHERME DE POITIERS
271 Lúcio Carlos Ferrarese
Jaime Estevão dos Reis

A RELIGIÃO IMPERIAL ROMANA


E SUA INFLUÊNCIA NO CRISTIANISMO
277 Luís Carlos Mendes Santiago

HOMOEROTISMO E HOMOAFETIVIDADE
NO IMAGINÁRIO ÁTICO:
283 Luiz H. Bonifacio Cordeiro
José Maria Gomes de Souza Neto
Uma análise da relação entre a comédia de Aristófanes
e o pensamento popular em Atenas (séc. v a. c.)

O BÁRBARO É O OUTRO:
Germânia, de Publius Cornélio Tácito
291 Mailson Gusmão Melo

CIDADES, FORTALEZAS, E PODER:


A expansão da fronteira Castelhana
297 Marcio Felipe Almeida da Silva
Renata Vereza

O BRASIL MEDIEVAL EM OS SERTÕES 303 Marcos Edilson Clemente

A VOZ DIVINA DOS POETAS:


Uma reflexão sobre aedos
311 Marília da Rocha Marques
Sílvia Márcia Alves Siqueira
e a tradição oral na Grécia Arcaica
a partir dos Hinos Homéricos

O IMAGINÁRIO SOBRE O MAR


E O ESTATUTO SOCIAL DOS “HOMENS DO MAR”
317 Marla Rafaela Lima de Assunção
Ana Lívia Bomfim Vieira
NA ATENAS CLÁSSICA

TENSÕES EXISTENCIAIS DE UM SONHO:


O caráter pedagógico-moral de Lo Somni (1399),
323 Matheus Corassa da Silva
Ricardo Luiz Silveira da Costa
de Bernat Metge (1340-1413)

A IMPORTÂNCIA DA SALVAÇÃO PARA O HOMEM MEDIEVAL:


Paraíso versus inferno na obra Felix,
329 Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus
Adriana Zierer
O Livro das Maravilhas (1287-1288)

ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL NO CONTEXTO ESCOLAR:


O livro didático, oficinas e desafios iniciais do projeto PIBID
335 Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus
Júlia Constança Pereira Camêlo
-
SOBRE O ESTUDO DA NOBREZA MEDIEVAL PORTUGUESA:
Algumas considerações
343 Neila M. de Souza

IDENTIDADE UNIFICADA?
OS CRISTÃOS NO IMPÉRIO ROMANO
349 Neles Maia da Silva
Thiago de Azevedo Porto

O USO DAS NARRATIVAS MÍTICAS


PARA O ESTUDO DA HISTÓRIA ANTIGA
355 Ofélia Maria de Barros
Kyara Maria de Almeida Vieira

O TRABALHO E OS MESES
NO PÓRTICO DE SANTA MARIA DE RIPOLL (SÉC. XII)
361 Paula de Souza Santos Graciolli Silva
Ricardo Luiz Silveira da Costa

A DAMA DO PÉ DE CABRA E O MITO DE MELUSINA


NO LIVRO DE LINHAGENS DO CONDE D. PEDRO (SÉC XIV)
367 Polyana Muniz
Adriana Zierer

ENTRE IMAGENS E LEITURAS:


Representações medievais da mulher
375 Priscila de Moura Souza
Pedro Pio Fontineles Filho
no filme “Em Nome de Deus”

O SIMBOLISMO DOS ANIMAIS E MONSTROS NO


IMAGINÁRIO MEDIEVAL
381 Ramsés Magno da Costa Sousa
Nácia Lopes Noleto Sousa

LITERATURA COMO FONTE EM LA CITÉ ANTIQUE 385 Roberto Pontes

A MULHER N’A DEMANDA DO SANTO GRAAL:


Pecadora e diabólica
393 Rosário de Maria Carvalho Silveira
Elizabeth Sousa Abrantes

MEMÓRIA E RELIGIOSIDADE NA VISÃO DE TÚNDALO 399 Solange Pereira Oliveira

O IMAGINÁRIO CRISTÃO DO ALÉM MEDIEVAL


NA VISÃO DE TÚNDALO
405 Solange Pereira Oliveira
Adriana Zierer

A LEGENDA ÁUREA E O EXEMPLUM


NO CONTEXTO DA PREGAÇÃO DOMINICANA (SÉC. XIII)
411 Tereza Renata Silva Rocha

A HYBRIS DO PESCADOR:
Experiência democrática na Atenas Clássica
417 Talysson Benilson Gonçalves Bastos
Ana Livia Bomfim Vieira

PRIVILEGIUM PAUPERTATIS:
Apontamentos sobre a Sicut Manifestum Est
425 Veronica Aparecida Silveira Aguiar

de 1228 de Gregório IX

O NOBRE FILÓSOFO EM DANTE ALIGHIERI 433 Viviane de Oliveira


Terezinha Oliveira

O SÉTIMO SELO:
As representações do medievo
439 Wendell Emmanuel Brito de Sousa
José Henrique de Paula Borralho
na película de Ingmar Bergman

OS CRISTIANISMOS E OS DISCURSOS
DE AUTORIDADE NO SÉCULO I
445 William Braga Nascimento
Ana Lívia Bomfim Vieira

FICHA TÉCNICA 451


PrEFáCio
O Laboratório Mnemosyne do Depar- história ‘antes de Cabral’. Devemos ressaltar
tamento de História da Universidade Estadual também o papel importante dos minicursos mi-
do Maranhão (UEMA) desde a sua criação, no nistrados nesses Encontros, voltados para alunos
ano de 2006, tem atuado em diversas atividades universitários e professores da rede pública de
de ensino, pesquisa e extensão. O Mnemosyne ensino de todas as regiões do Brasil. Essas ativi-
é composto por professores e pesquisadores in- dades promovem uma circulação de ideias e de
teressados em estudar sociedades e culturas da informações fundamentais para a renovação dos
Antiguidade e do Medievo. Liderado pelas Pro- conteúdos ministrados nas salas de aula das es-
fessoras Doutoras Ana Livia Bomfim Vieira e colas brasileiras e nos bancos das universidades.
Adriana Zierer, o Laboratório conta com o apoio
e colaboração de pesquisadores do Brasil intei- Em todos esses eventos promovidos pelo
ro, de diversas áreas do conhecimento, dedicados Mnemosyne, testemunhamos o empenho de Adria-
ao ensino e pesquisa da Antiguidade e da Idade na Zierer e de Ana Livia Bomfim Vieira em formar
Média. Além de agregar docentes de várias uni- seus pesquisadores. Pudemos acompanhar a orien-
versidades brasileiras, o Mnemosyne atualmente tação de vários alunos bolsistas nas apresentações
possui vinte e quatro membros, entre professores, dos seus trabalhos, explicitando o compromisso
bolsistas de iniciação científica e monitores das com a pesquisa. Nas várias temáticas orientadas
duas áreas de pesquisa em História. pelas referidas professoras, fica patente a preocu-
pação com o uso e o domínio de documentos, bem
Desde o ano de 2005 ocorre na UEMA o como uma bibliografia atualizada.
Encontro Internacional bienal, reunindo profes-
sores que investigam a Antiguidade e Idade Mé- A presente obra divulga os trabalhos dos
dia. Em todos os eventos, temáticas transversais pesquisadores do Mnemosyne, do NEREIDA,
foram escolhidas para justamente proporcionar do Brathair e de vários outros grupos de pes-
o diálogo e o debate entre os profissionais das quisa, reforçando o fortalecimento dos estudos
duas áreas. Temas envolvendo cultura, imagi- de História Antiga e Medieval no nordeste em
nário e memória proporcionaram momentos particular e no Brasil como um todo.
importantes de reflexão entre pesquisadores bra-
sileiros e estrangeiros, além de estimular um in- Alexandre Carneiro Cerqueira Lima
teresse dos alunos de vários estados do país pela (PPGH/ NEREIDA/ UFF)
APrEsENTAÇÃo
A obra Nas Trilhas da Antiguidade e mitos são contextualizados e as permanências/
Idade Média além de ser um livro que espelha o rupturas podem ser percebidas pelos alunos do
crescimento da produção sobre História Antiga e ensino médio e superior.
Medieval no Brasil, também traz os estudos que O livro valoriza a coautoria entre orien-
despontam no Maranhão e em outros centros de tados e bolsistas que enveredam não só pelas tri-
investigação. Novos pesquisadores, cujas pesqui- lhas das Idades Antiga e Média, mas também pela
sas enveredam pela Antiguidade e Medievo com aventura do trabalho em parceria, tão enriquecedor
o frescor que as novas abordagens do pensamen- e gratificante. São novos enredos cujo resultado é
to fazem brotar, inundando o meio acadêmico de o fortalecimento das pesquisas e da divulgação de
boas narrativas e análises. uma fecunda área em expansão no nosso país.
O Medievo e a Antiguidade também ins-
piram trabalhos que pensam metodologias para o
Prof. Drª Júlia Constança Pereira Camêlo
ensino através do livro didático de História, au-
(DHG/PPGHEN/UEMA)
xiliando professores e alunos ao acesso a novas Coordenadora da área de História do PIBID/UEMA
abordagens sobre o tempo histórico. Imagens e Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência
iNTroDuÇÃo
e Medieval, centrado na Universidade Estadual
É com imensa alegria que publicamos do Maranhão (UEMA), que conta com o apoio
esta obra, fruto principalmente dos Encontros e participação de vários destes parceiros. Além
internacionais de História Antiga e medieval deste há também outro laboratório sediado no
do maranhão, que realizamos a cada dois anos, Maranhão, o Brathair - Grupo de Estudos
desde 2005, e já vai para sua sexta edição no ano Celtas e Germânicos, que também busca enfa-
de 2015. Está presente aqui uma amostra da exce- tizar o fortalecimento da Antiguidade e do Me-
lência em pesquisa nas áreas de Antiga e Medieval, dievo.
representando todo o Brasil. São trabalhos de do-
Esses dois grupos têm relação com outros
centes, doutorandos, mestrandos e de jovens pes-
laboratórios de pesquisa consolidados no Brasil,
quisadores de graduação, todos apaixonadamente
cujos artigos aparecem ao longo deste livro. Os
vinculados às investigações nestes domínios.
temas dos trabalhos, que seguem as temáticas dos
O Encontro Internacional de Histó- eventos estão sempre preocupados em refletir so-
ria Antiga e Medieval do Maranhão tem como bre questões relativas ao mundo Antigo e Medieval
principal objetivo fortalecer estas áreas no eixo estritamente falando, mas possuem também, como
Norte-Nordeste do país, incentivando a criação “pano de fundo”, a preocupação em demonstrar
de grupos de pesquisa, o intercâmbio entre uni- como a Antiguidade e o Medievo estão ainda “pre-
versidades brasileiras e estrangeiras, a troca de sentes”. Sempre foi a preocupação de todos nós
experiências entre profissionais de diversos ra- percebermos as permanências que podem ser iden-
mos do conhecimento e o diálogo com pesquisa- tificadas entre o “passado” e o nosso “presente”,
dores de áreas afins, como Letras, Arqueologia, além do fato de buscarmos compreender os usos
Educação, Antropologia, Filosofia, entre outras. e as representações que o mundo Contemporâneo
Além disso, muito nos orgulhamos de que faz do mundo Antigo e Medieval.
nosso evento tenha também a participação de pro- Pensar a Antiguidade e o Medievo é se
fessores e alunos do ensino médio e fundamental, debruçar sobre o outro, mas é também tentar com-
que vêm em busca de conhecer um pouco mais do preender como estas sociedades resolveram pro-
que está sendo produzido sobre a Antiguidade e o blemas que, muitas vezes, ainda nos atordoam. Os
Medievo, ampliando os seus conhecimentos e as questionamentos ao passado estão com seus pés
suas abordagens. Temos a certeza de que nosso ob- no presente. Desta forma, fazer história não é olhar
jetivo está, pouco a pouco, sendo alcançado. para o passado, mas, sobretudo, olhar para o lado.
Destes encontros, tecemos vários con-
tatos e construímos inúmeras amizades. Todas
Ana Livia Bomfim Vieira
estas pessoas são responsáveis pela criação do Adriana Zierer
mnemosyne – Laboratório de História Antiga Elizabeth Abrantes
NAS TRILHAS DA ANTIGUIDADE
E IDADE MÉDIA
ENTrE EVA E mAriA:
A ambiguidade das imagens femininas n’A Demanda
do Santo Graal - Século XIII1
Adriana Maria de Souza Zierer2 (UEMA)
Elizabeth Sousa Abrantes3 (UEMA)

iNTroDuÇÃo

A
Idade Média Central representa um ou pecadoras, apontam para a complexidade da
momento importante na proliferação das sociedade medieval e das construções discursi-
vozes sobre o feminino, com o aumento vas que pretendiam significar as relações entre o
dos discursos para e sobre as mulheres, especial- feminino e o masculino no período.
mente por meio das vozes dos clérigos. A litera- A ambiguidade está presente n’A Demanda
tura produzida constitui um corpus documental do Santo Graal, uma novela de cavalaria composta
marcado especialmente pela misoginia, com o já num período de cristianização e prosificação da
objetivo de garantir a ordem social e combater o Matéria da Bretanha. Essa “Matéria” contém em seu
que consideravam o “perigo que vem das mulhe- interior textos em verso e em prosa do ciclo bretão
res” (DUBY, 2001, p. 12). e arturiano, de fundo céltico, que circularam na
A maioria desses discursos era dirigido às mu- Europa Ocidental, principalmente durante a Idade
lheres que ocupavam o estrato social mais elevado Média4. O texto da Demanda, de autoria anônima,
da sociedade medieval, as damas e donzelas da foi produzido na França no século XIII e traduzido
nobreza, em suas funções de mães, esposas e irmãs para o português ainda em meados desse século pelo
dos cavaleiros, e cuja posição social as deixavam frei Bivas ou Vivas, a pedido do futuro rei Afonso
mais observadas e imitadas como modelo. Esse III (CASTRO, 1983).
momento também foi marcado por uma maior in- O eixo central da obra é a busca do Santo
terferência da Igreja nas relações conjugais, quando Graal (cálice utilizado por Cristo na Última Ceia
decide “colocar a sexualidade sob seu estrito con- com o sangue vertido por Ele na cruz e recolhido
trole” (DUBY, 2001, p. 36), com modificações nas por José de Arimatéia) pelo cavaleiro eleito Ga-
relações entre o masculino e o feminino. laaz, virgem e sem pecadows, acompanhado de
A forte presença das imagens femininas dois outros eleitos, Persival e Boorz.
nas novelas de cavalaria, com traços negativos e Um elemento primordial com a cristianiza-
positivos que colocavam as mulheres como santas ção é que o cavaleiro puro é aquele que domina os
1 Este texto, embora seja diferente, dialoga com as ideias expostas por Zierer em ar- desejos da carne, em especial a sexualidade. As
tigo publicado em 2011, também enfocando a temática da mulher n’A Demanda do mulheres, de forma geral, são vistas na narrativa
Santo Graal. Uma primeira versão do artigo que disponibilizamos aqui foi apresen-
tada no XXIII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Professores de
Literatura Portuguesa (ABRALIP) na UFMA, em 2012. Esta é a versão revisada 4 A Demanda do Santo Graal constitui-se num texto em prosa com acentuada
do texto apresentado em 2012, contando com novas reflexões e com contribuições influência cristã, que compõe um ciclo de cinco livros, a chamada de Vulgata
da Prof. Elizabeth Abrantes, que trabalha com questões relativas ao feminino. da Matéria da Bretanha (1215-1230). A versão que chegou a Portugal por volta
2 Doutora em História Medieval (UFF). Docente do Departamento de História de 1250 é a segunda prosificação do ciclo da chamada Post –Vulgata (1230-
e Geografia da UEMA e Docente Permanente do Mestrado em História, Ensino, 1240), inspirada na Vulgata, mas com algumas diferenças, e que contém tam-
Narrativas da UEMA. Email: adrianazierer@gmail.com bém elementos de outros ciclos, como o do Tristan en Prose. A Post –Vulgata é
3 Doutora em História Social (UFF). Docente do Departamento de História e composta por três livros, inclusive com a fusão de A Demanda do Santo Graal e
Geografia da UEMA e Docente Permanente do Mestrado em História, Ensino e a Morte do Rei Artur, versão utilizada neste trabalho. Alguns autores defendem
Narrativas da UEMA. Email: bethabrantes@yahoo.com.br que a Vulgata também circulou na Península Ibérica.

21
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

de forma misógina, associadas ao demoníaco tudo para agradar a sua dama, que estava social-
e muitas vezes afastando os guerreiros do seu mente em nível superior ao do amado.
propósito central de (re) encontrar o Santo Vaso.
A melhoria da alimentação possibilitou
Por infringir os mais diversos pecados capitais,
um aumento no número de anos vividos pelas
dos 150 cavaleiros que iniciam essa busca, so-
mulheres, que antes morriam cedo, devido à
mente 12, em analogia aos apóstolos de Cristo,
alimentação deficitária e as várias gravidezes.
conseguem ver outra vez o Graal.
Houve também nesse período um incremento ao
Embora o feminino esteja muitas vezes numa culto mariano. Segundo Le Goff (2008, p. 128),
posição negativa, há também mulheres com imagens no século XIII Maria se torna quase que a quarta
positivas no relato, associadas à imagem da Virgem pessoa na Santíssima Trindade, a “advogada”
Maria, exemplos a quem as mulheres medievais dos humanos, preocupada com a sua salvação
deveriam seguir. Um terceiro modelo na Demanda, Foram dedicadas a ela várias catedrais, como
entre a mulher-pecadora, associada ao diabo e a Eva, a catedral de Notre Dame (Nossa Senhora), em
e a mulher-santa, ligada à Virgem Maria, é a persona- Paris. Também na mesma época foi composta a
gem com traços ambíguos, às vezes aparecendo com oração Ave Maria e obras em seu louvor, como as
traços negativos e depois positivos, o que está muitas Cantigas de Santa Maria, produzidas por Afonso
vezes associado ao fundo celta do texto5. X, o Sábio, rei de Castela. Cresceu também em
importância o culto a Maria Madalena, patrona
Vejamos, pois, as três imagens femininas n’ A
das pecadoras arrependidas que teve também
Demanda do Santo Graal, descortinando parte do
várias hagiografias dedicadas a ela.
imaginário medieval, que é muito mais complexo
do que pode parecer à primeira vista, revelando Neste contexto, passa a ser obrigatório que a
uma maior heterogeneidade dessa sociedade. mulher desse o seu consentimento no casamento,
desde o Concílio de Latrão, em 1215, o que mostra
o aumento da sua importância na sociedade. É certo
A AmBiGuiDADE FEmiNiNA que nas famílias abastadas o matrimônio continuou
NAs imAGENs DE GuiNEVErE como um arranjo entre as famílias, mas o consenti-
mento abriu a perspectiva para que muito mais tarde a
E morGANA mulher efetivamente pudesse escolher o seu parceiro.

Antes de falar dessas personagens é neces- Uma das temáticas importantes nas obras li-
sário contextualizar a Europa Ocidental entre os terárias é o amor cortês. De um lado temos o amor
séculos XI a XIII, época da Idade Média Central. idealizado no qual a paixão nunca se realiza de forma
Esse período é marcado por um grande cresci- carnal, caracterizada pelo amor platônico, em que
mento agrícola, possibilitado por novas técnicas um jovem solteiro cobiça a esposa do seu senhor e a
de cultivo e pela drenagem dos pântanos. O au- ama à distância, prestando a ela obediência e espe-
mento da produção proporcionou um incremento rando como recompensa um olhar, um sorriso, um
do comércio e das cidades, o desenvolvimento de pequeno presente, como o lenço ou a fita da dama.
atividades bancárias, das escolas urbanas e da Um elemento interessante é que o amante se presta
literatura, com a retomada de temas da chamada a satisfazer todos os desejos da amada, servindo de
Matéria da Bretanha no século XII através da marionete aos seus desejos (MARTIN, 1999).
produção de poemas em verso. A poesia se de- De outro lado, no romance cortês o amor
senvolveu de maneira geral e surgiu o chamado adúltero é efetivado. Os amantes mais famosos
“amor cortês”, modelo no qual um jovem fazia são Tristão e Isolda, personagens inspirados nas
figuras de Diarmaid e Grainné6 (VARANDAS,
5 Em relatos dessa origem, como os galeses e irlandeses, as personagens
femininas tem papel de destaque e estão muitas vezes relacionadas às divin-
dades ou às fadas, seres sobrenaturais que possuem pontos de contato com 6 A grafia dos nomes muda. Às vezes aparece como Diarmuid (com u) e a
este mundo e o mundo invisível. acentuação diferente no nome da jovem, Gráinne.

22
Adriana Maria de Souza Zierer / Elizabeth Sousa Abrantes

2006, p. 227-228), descritos num relato anônimo A obra ficou inacabada. Podemos afirmar
de origem irlandesa, onde o amor termina de que os duplos Tristão-Isolda, Lancelot-Guine-
forma infeliz com a morte dos jovens. vere são os personagens da Matéria da Bretanha
que melhor explicitam o ideal do amor cortês.
Tristão e Isolda é uma obra redigida original-
Ambos os pares são personagens analisados na
mente na Inglaterra e França cujos textos originais
nossa narrativa.
se perderam, só restando um quarto da versão de
Thomas (1170-1173) e alguns fragmentos da versão Em A Demanda do Santo Graal, que visa
de Béroul (c. 1180) (LE GOFF, 2009, p. 271). A partir (re) direcionar as ações dos cavaleiros à defesa
dessas versões várias outras foram produzidas em do cristianismo e à obediência aos preceitos cleri-
diversos idiomas europeus, como por exemplo, o cais, no entanto, a relação adúltera é criticada. Por
ciclo do Tristan en Prose (século XIII) que se fundiu tal razão, as atitudes da personagem de Guinevere
com a nossa versão da Demanda. O mito continuou (Genevra) são reprovadas, em especial o seu amor
a ser recontado até o século XIX (cf. LE GOFF, por Lancelot (PEREIRA, 2003, p. 217). Há um so-
2009, p. 271-272 e p. 276-277) e nesse período Bé- nho do cavaleiro que a vê no Inferno com a língua
dier, por exemplo, fundiu os fragmentos da história tirada para fora da boca. Ele também encontra ali
numa única obra, O Romance de Tristão e Isolda. e sua mãe, a rainha Helena, retratada no sonho
como estando num jardim florido (o Paraíso) e
Tristão e Isolda se apaixonam, mas a jovem
lhe pede para abandonar a relação pecaminosa
é prometida ao tio do rapaz, Marcos, rei da Cor-
para que a sua alma não se perdesse.
nualha. Os jovens efetivam a paixão, se separam
e, por fim, ambos morrem por não poderem estar Também no mesmo local Lancelot vê outra
juntos. É interessante notar que o adultério não rainha adúltera, Isolda (Iseu), que na Demanda se
é criticado no relato. abrigava na corte arturiana e por esse motivo seu
marido, Marcos, é inimigo do rei Artur. Ao final do
Outro casal famoso é Guinevere e Lancelot,
relato, o primeiro leva ao fim do reino, destruindo
cuja paixão foi descrita por Chrétien de Troyes
a távola redonda, símbolo da corte arturiana.
em Le Chevalier de la Charrete (O Cavaleiro da
Carreta). No caso desta obra, Guinevere é raptada A traição da Genevra é descoberta ao longo
por um cavaleiro e só pode ser resgatada pelo mais da narrativa. Porém, há uma passagem, após todos
perfeito de todos, Lancelot, apresentado como o saberem a verdade e a rainha ser condenada à fo-
“melhor cavaleiro do mundo”. No início do relato gueira pelos conselheiros de Artur, quando o povo
aparece um anão que promete revelar o paradeiro se apieda da rainha, mostrando neste ponto um
da dama caso ele entrasse na “carroça da infâmia”, forte traço de ambiguidade na reprovação aos seus
onde os condenados eram exibidos à população. atos. Pois como seria possível num contexto cristão
Após hesitar por “dois passos”, ele concorda, sendo uma adúltera ser valorizada como “boa mulher,
depois punido na narrativa pela dama, em virtude cortês, em quem os pobres encontrariam conselho
desta pequena “falta”. Após salvá-la, é recompen- e piedade”? (DSG, 1988, p. 479). Além disso, outro
sado com uma noite de amor com a rainha, sem elemento estranho é que um religioso, o arcebispo
que igualmente a narrativa critique tal desenlace. Dubrício, depois exige que Artur receba Genevra
de volta, caso contrário excomungaria o reino.
Mais tarde Lancelot é punido pela dama que
envia recado para que perdesse várias batalhas du- Percebemos assim, na Demanda, que em
rante um torneio, numa atitude de humilhação aos muitos casos a obra dialoga com duas represen-
desejos dela, no que ele consente e a obedece outra tações diferentes de um mesmo personagem. No
vez quando envia a contra-ordem para que vencesse caso de Guinevere, em outros relatos de origem
todos os combates seguintes. Essa atitude de ambos céltica sempre aparece como a esposa de Artur e
explica a lógica perversa do amor cortês onde o ca- está associada às divindades femininas. Porém,
valeiro deve satisfazer todos os caprichos da dama. numa narrativa moralizante como a Demanda
23
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

o adultério representa um grave pecado, daí a e gerasse nela o cavaleiro mais perfeito do mundo,
reprovação ao comportamento da rainha. Os dois Galaaz. Amina, conhecida como Elaine em outros
posicionamentos representam as duas visões sobre relatos, faz parte da Linhagem dos Guardiões do
a mesma personagem feminina, positiva e negati- Graal, e embora tenha feito uma má ação – encantar
va, de fundo celta e cristão, respectivamente, que um cavaleiro da távola redonda – , permite que essa
convivem juntas no interior da mesma narrativa7. linhagem tenha continuidade através da figura de
seu filho, Galaaz, que por sua vez era filho de um
Com Morgana (Morgaim) também ocorre o
cavaleiro considerado até então como o “melhor
mesmo processo. Em princípio é vista de forma
do mundo”. Pecado, na medida que, por sua causa
extremamente negativa. A dama se encontra no
foi engendrado um filho fora do casamento, e por-
sonho tido por Lancelot sobre o Inferno, como
tanto, bastardo, e ainda, contra a vontade do pai da
estando num local cheio de fogo, nua, com uma
criança que era fiel ao seu amor pela rainha. Além
pele de lobo, gemendo, o que prefigura qual seria
disso, a ação que ela realiza, através de um feitiço
o seu destino após a morte: também o ambiente
é condenada pela Igreja Católica. Mas, ao mesmo
das trevas (DSG, 1995, p. 159)
tempo, de acordo com a narrativa, Amina auxilia a
No entanto, ao fim do relato, Morgana é aquela preservação da linhagem do Graal e dos guardiões
que, juntamente a outras donas, leva Artur para ilha do Graal, o que faz o seu papel ser relevante e am-
de Avalon, para curá-lo de seus ferimentos mortais bíguo, ao mesmo tempo positivo e negativo.
(DSG, 1995, p. 493-494), causados por seu filho ile-
Vejamos agora a segunda e mais conhecida
gítimo, Mordred. Aqui a imagem se transforma em
imagem da mulher na Demanda: a Eva-Pecadora.
sobrenatural benéfico e a figura de Morgana nesse
momento está associada às fadas que partiram para
Avalon, a sede do Outro Mundo Céltico. Numa obra
de Geoffrey de Monmouth intitulada Vita Merlini
(Vida de Merlin), Avalon, a terra das maçãs, é des- A EVA-PECADorA:
crita como o lugar onde em vez de grama, o solo era o feminino e o diabólico
coberto por aquele fruto e onde moravam Morgana
e suas nove irmãs (ZIERER, 2001).
A imagem que vamos tratar agora é aquela
Portanto, Morgana possui duas imagens. que normalmente esperamos sobre as mulheres na
Associada às fadas nos relatos da Matéria da Bre- DSG: pecadoras, associadas à Eva, que levou Adão
tanha, conhecida como Morgan, le Fay e versada
a comer o fruto proibido e por esse motivo condenou
nas “artes mágicas” e no controle do sobrenatu-
toda a humanidade a uma vida de sofrimento.
ral; na Demanda Morgana estaria destinada ao
Inferno. Porém, a própria narrativa recupera a sua A visão sobre Eva, comum a vários artistas
identidade “boa” devido à intertextualidade com dos períodos medieval e moderno, mostra-a sem-
outros textos, como o de Geoffrey, e sua magia pre muito bela fisicamente, com os cabelos anela-
é voltada para algo positivo no final do relato, dos e próxima da maçã e da serpente (que também
quando leva o rei Artur para se curar. lembra o seu cabelo), portanto, diretamente rela-
Ainda outra mulher com traços contraditórios cionada ao pecado original. Adão aparece como
é Amina, a filha do rei Pelles, mãe de Galaaz. Nada mais inocente e, quase que encantado, seduzido,
sabemos sobre ela nessa narrativa, apenas que en- pela beleza da jovem, ingere o fruto, como nas
feitiçou Lancelot para que este “traísse” Genevra8 pinturas de Lucas Cranach, o velho (ZIERER,
2001; ZIERER, 2011, p. 250-252), entre outras,
7 A figura de Isolda n’A Demanda do Santo Graal também é ambígua. Ela
e Genevra são fieis ao amor cortês e não possuem controle sobre os seus a exemplo da imagem de Dürer em destaque.
sentimentos, daí o fato de traírem os seus maridos. Isolda trai Marcus com
Tristão e Genvevra trai Artur com Lancelot. A sociedade medieval era dinâmica e temos
8 Pela sua fidelidade ao amor cortês, Lancelot só “cede” a outra mulher
devido ao encantamento. a convivência, ao mesmo tempo, de várias con-
24
Adriana Maria de Souza Zierer / Elizabeth Sousa Abrantes

(DUBY, 2001, p. 57). Daí a forte representação


do feminino negativo numa obra com acentuada
influência dos oratores, como é a DSG. Seguem
abaixo três exemplos que consideramos emble-
máticos da mulher-Eva na narrativa.

A FiLHA Do rEi BruTus

Trata-se de uma bela jovem, de 15 anos,


que se apaixona perdidamente por Galaaz, o
cavaleiro eleito, quando o vê pela primeira
vez. Ele e Boorz haviam pedido albergagem
no castelo do pai da donzela, o rei Brutus, cujo
nome já lembra “brutalidade”, e certo aspecto
violento, irracional. A moça, ainda que acon-
selhada pela ama do contrário, passa a desejar
ardentemente o rapaz e se dirige ao quarto dele
no meio da noite. Galaaz a rechaça, por honra
da linhagem dela e porque deveria se manter
Imagem 1. Adão e Eva (1507), de Albert Dürer. Museu do
Prado. Madrid. casto. A jovem argumenta com ele, mas diante
http://en.wikipedia.org, acesso em 02/11/2013. da negativa taxativa “mas devo dultar perigo de
minha alma, ca fazer a vossa vontade” (DSG,
1995, p. 93) ameaça se matar. O cavaleiro então,
numa atitude cristã que visava salvar a vida da
donzela, concorda em fazer sua vontade, mas é
cepções sobre o feminino tanto naquela sociedade tarde demais: ela se mata.
como na Demanda.
O jovem cavaleiro mostra assim sua vitó-
É importante perceber que a mulher tem ria ante as tentações da carne e confirma o seu
papel de destaque na narrativa e desde o princí- merecimento em encontrar o Santo Graal. Após
pio é chamada para tomar parte nos principais a morte da donzela, todos os homens do castelo
acontecimentos. atacam Galaaz e Boorz. O primeiro fica numa
Os exemplos de Eva são inúmeros, relacio- atitude passiva, mas Boorz defende os dois contra
nados à concepção clerical de que “tentavam” os todos, e ao vencer os combates mostra que ambos
homens e estariam, devido a sua fragilidade, mais eram inocentes, seguindo a concepção de que
próximas da luxúria e do irracional. Acreditavam no Deus havia dado a vitória àqueles que tiveram o
seu papel passivo, pois deveriam agir apenas como comportamento correto.
receptáculo na procriação, segundo Santo Tomás de
Aquino (KAPLISCH-ZUBER, 2002, p. 141-142).
Vários filósofos e clérigos defendiam a ideia A DoNZELA “GrEGA”
de que o mal era causado pela mulher, e que por
isso deveria ser controlada. Pedro Abelardo, Persival, um dos eleitos, está um dia na flo-
por exemplo, chegou a dizer no século XII que resta e lhe aparece uma donzela “grega” muito
Adão comeu a maçã não por motivo de ter sido bonita, uma alusão ao paganismo, de quem ele fica
seduzido, mas por afeição, para não desgostar Eva enamorado. Antes que aconteça algo mais íntimo
25
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

entre os dois, aparece uma voz vinda do Céu como O motivo de nascimento da besta foi o in-
um trovão, como manifestação divina. O cavaleiro tercurso entre o Diabo e uma mulher, devido a
desmaia. Ao acordar temos a completa transfigu- um grave pecado, relacionado a um tema recor-
ração feminina no Diabo, pois quando ele abriu os rente na Demanda, o incesto. A moça, versada
olhos a viu rir (riso como sinônimo do diabólico) na necromancia (arte reprovada pela Igreja), era
e entendeu que era o Demônio para enganá-lo e o apaixonada pelo irmão, que se chamava Galaaz
fazer cair em pecado mortal (DSG, 1995, p. 202). e que recusou o seu amor. Quando esta pensava
Neste último exemplo, o feminino não representa em se matar na floresta, local das tentações e do
apenas o mal, mas é o próprio duplo de Satã. sobrenatural, o Diabo apareceu e prometeu dar a
ela o que quisesse, caso fizesse com ele o pacto
Comparando os exemplos de Galaaz e Persival,
demoníaco, representado na cópula carnal.
percebemos que enquanto o primeiro foi fiel a sua
castidade e rejeitou a luxúria, Persival só se manteve Aqui temos a forte concepção medieval de que
puro devido à interferência divina, que o fez perceber a salvação está relacionada ao livre-arbítrio e que o
que a mulher era na verdade o ente maléfico. Por este ser humano poderia “vender” a sua alma ao demo
motivo fica provada na narrativa a superioridade de para obter graças terrenas, como no relato muito
Galaaz frente ao companheiro, motivo pelo qual este conhecido chamado A Lenda de Teófilo sobre um
último é o principal cavaleiro a encontrar o Santo pacto feito entre um religioso e o Diabo, depois anu-
Vaso9. Quanto a Boorz, o terceiro dos eleitos, havia lado pela Virgem Maria (ZIERER, 2010, p. 91-92).
prometido se manter virgem, mas uma única vez na
Após o contato sexual com o Diabo, a jovem
vida sucumbiu a um feitiço e teve relação sexual, ato
se esquece do amor pelo irmão. Mais tarde, grávida,
do qual se penitenciou o resto da vida.
acusa-o de tê-la violentado. O pai acredita e pede
que ela escolha a morte do irmão, que foi a seguinte:
ser comido por cães em jejum por sete dias. Antes
A BEsTA LADrADorA de morrer de forma tão terrível, o inocente diz que
viria proximamente outro Galaaz para fazer grandes
É um animal demoníaco feminino: uma coisas e que com o nascimento do filho da irmã
besta. Do seu ventre eram ouvidos os mais ter- todos veriam a sua inocência. A besta, associada ao
ríveis ladridos do mundo e havia matado muitos feminino e símbolo do Diabo, só é morta quando
cavaleiros, dentre os quais os onze irmãos do Palamades, o bom cavaleiro pagão, se converte ao
muçulmano Palamades, que vivia, sem sucesso, final da narrativa ao cristianismo. É pelo fato deste
perseguindo esse ser havia muitos anos. A aven- muçulmano mais tarde aderir à religião cristã, ao ser
tura da besta desvia vários cavaleiros do propó- vencido por Galaaz num combate, que ele consegue
sito de encontrar o Santo Vaso, mostrando mais matar o animal diabólico que havia assassinado os
um traço daqueles que eram pecadores. seus onze irmãos.
A imagem do cachorro, ao lado do bode, da
serpente e do dragão está muitas vezes associado
ao demoníaco, e é também um psicopompo10, As imAGENs FEmiNiNAs
condutor das almas ao outro mundo, como, por PosiTiVAs
exemplo, Cérbero, o cão de muitas cabeças na E suA AssoCiAÇÃo
mitologia grega, guardião do Hades (CHEVA-
LIER; GEERBRANT, 1995, p. 176)
À VirGEm E Às FADAs

9 Sobre o fato de Persival ser um dos cavaleiros eleitos e para a discussão Um elemento que nos chama a atenção é a
mais aprofundada acerca da hierarquia dos três eleitos frente ao Graal, cf
ZIERER, 2011, p. 255-256.
presença feminina ao longo de toda a narrativa da
10 Os psicompompos são figuras capazes de conduzir as almas ao Além DSG. Já na primeira cena aparece uma abadessa
(LURKER, 1997, p. 576), tendo uma ligação entre este mundo e o mundo
invisível. Alguns exemplos são animais, como o cão e o cavalo. que chama Lancelot para conhecer o seu filho
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Adriana Maria de Souza Zierer / Elizabeth Sousa Abrantes

Galaaz, principal herói da narrativa, e fazer dele como escravas e concubinas no episódio do
um cavaleiro. A presença feminina é uma cons- Castelo Felão. Uma delas antes de morrer faz a
tante e serve muitas vezes para identificar se um previsão de que Galaaz iria salvá-las e fazer jus-
cavaleiro era realmente puro ou pecador e se era tiça contra os seus aprisionadores, o que também
merecedor de encontrar o Santo Vaso. se confirma (ZIERER, 2011, p. 259-260).
Vejamos as diversas imagens femininas Outro elemento na narrativa são os pares de
positivas na Demanda. mulheres boas e más. As más, além de tentar levar os
cavaleiros a praticar más ações, também sacrificam
as boas donzelas, como veremos a seguir, no caso
muLHErEs VÍTimAs da irmã de Erec e da irmã de Persival. É interessante
notar que muitas dessas personagens são anônimas,
não conhecemos os seus nomes e somente alguns de
Há várias mulheres que são representadas
seus traços, como “feia” ou o parentesco com alguém
como vítimas na narrativa. Algumas são vítimas
importante, como a tia de Persival, a irmã de Ivã,
de incesto de tios ou violentadas por poderosos,
entre outras, mais uma vez procurando valorizar o
como no caso da sobrinha do rei Marcos, marido
feminino na sua relação com o masculino.
de Isolda, que depois mandou matar a parente,
Ladiana, ou do rei Artur, que fez um filho à força
na mãe de Artur, o Pequeno.
A irmà DE ErEC
Há também casos de mulheres que são
mortas injustamente pelo fato de os maridos des-
Erec, até então considerado bom cavaleiro,
confiarem delas. É o caso do episódio chamado
encontra uma donzela lhe pede um dom. Ele
“A Mulher da Tenda”, quando pelo simples fato
concorda sem saber do que se tratava. Mais tarde
de o marido ver a mulher conversando com um
quando estava numa celebração com a irmã, que
cavaleiro, cortou a cabeça dela.
não via há algum tempo, a donzela má explicita o
pedido: “eu quero a cabeça da donzela que senta
perto de ti” (DSG, 1988, p. 240).
muLHErEs ProFETiZAs:
O que Erec deveria (ou poderia) fazer? A
a donzela feia primeira ação de um bom cavaleiro é dizer sem-
pre a verdade, e se jurou que daria qualquer coisa
Há também mulheres com o papel de destaque que alguém pedisse, teria de cumprir. Embora o
no relato que exercem o papel de profetizas. É o cavaleiro amasse a irmã e não desejasse cometer
caso da donzela feia que chega à corte e afirma que um pecado mortal, ele não consegue se desvenci-
um dos cavaleiros seguraria a espada que ela trazia lhar das regras da cavalaria, aqui completamente
e que esta ficaria rubra de sangue. Este cavaleiro distorcidas, pois dizer a verdade significava agir
traria desgraças à Demanda. Interessante o fato de com justiça e não prejudicar o próximo. Mas
que esta donzela, ao contrário das pecadoras, não preso às regras feudais, Erec cumpre o prometido
ser bela, portanto, não possuía o atrativo que fazia e mata a irmã. Por esse motivo perde a salvação
os homens serem levados ao pecado. Todos segu- da sua alma, mata uma inocente injustamente e
ram a arma e ao fim ela fica rubra ao ser tocada por satisfaz um desejo fútil.
Galvam. O rei Artur acredita na jovem e proíbe o
Tal atitude mostra que não era um dos cava-
sobrinho de ir à demanda, mas este sai escondido
leiros eleitos a encontrar o Santo Graal. A donzela
e as previsões da donzela se concretizam.
má, por sua vez, sai carregando a cabeça cortada
Outras mulheres agem como profetizas como da boa donzela, o que parece ser uma reminiscên-
no caso das donzelas que ficaram aprisionadas cia da cultura celta, quando se cortava a cabeça
27
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

dos inimigos e as colecionava como troféus, de Na época, as mulheres solteiras deixavam os


onde se acreditava estar a força vital do inimigo. cabelos à mostra na forma de uma longa trança e
Mas, logo é punida por Deus, que a mata com depois de casadas cobriam a cabeleira (MACE-
um fogo vindo do Céu. DO, 2002, p. 21). O corte do cabelo, portanto,
representa o sacrifício de um atributo feminino
muito valorizado e na narrativa é dito explicita-
muLHErEs mente pela jovem que as correias da espada eram
feitas “da coisa que eu mais em mim mais amava”
QuE EXiGEm JusTiÇA
(DSG, 1988, p. 323).
Além de entregar a espada da estranha cinta
Mostrando que o feminino na Demanda estava
a Galaaz, único dos três eleitos a conseguir re-
longe de se conformar com as injustiças sofridas, ci-
tirá-la da bainha, a donzela conhecia o caminho
tamos dois casos. Em primeiro lugar, a donzela que
onde estava o Santo Graal no Oriente. O Graal
quando ia ser atacada pelo irmão, em outro exemplo
tem analogia com o Paraíso Terrestre e a donzela
de incesto, pede a proteção de Deus, que vem em
os conduz numa barca ao local onde deveriam ir,
seu auxílio e por esse motivo o irmão cai morto.
numa clara analogia às fadas dos relatos irlande-
Naquele local surge a “Fonte da Virgem”, onde
ses, que atraíam os heróis e os conduziam a um
todos os homens que não fossem virgens ficariam
mundo de felicidade, onde o tempo não existia,
paralisados. Erec, cujo episódio acompanhamos,
no Outro Mundo Céltico11.
cai ali, depois da morte da irmã e só consegue sair
com a ajuda das donzelas da fonte. Além de conduzir os jovens ao caminho do
Graal, representando uma proximidade com as
Outro caso é quando a irmã de Ivã de Cenel fadas e também com a santidade, por ser escolhi-
fica sabendo que injustamente Galvam matou da por Deus para conduzir os cavaleiros ao Santo
o seu irmão. Ela insiste que Deus a vingaria e Vaso, a jovem, irmã de Persival, era filha de rei e
afirma a este cavaleiro que estava se dirigindo à tal como os eleitos também passa por uma prova
corte arturiana onde esperava que a justiça fosse para mostrar a sua pureza, como fizeram antes os
feita (DSG, 1995, p. 109-110). cavaleiros escolhidos para dar cabo da demanda.
Ao chegarem a um castelo, é pedido o seu
sangue, pois a senhora dali era leprosa e exigia o
A irmà DE PErsiVAL sangue de todas as donzelas que ali passassem para
que ficasse curada. A lepra no período medieval
Aqui temos mais um caso de donzela boa era associada com impureza e ao sexo exercido nos
versus donzela má. A irmã de Persival é a con- dias interditos pela Igreja (dias santos e também
traparte feminina de Galaaz. Tal como este, é um durante o período menstrual feminino). Por isso
exemplo modelar feminino, disposto a qualquer se acreditava que o sangue puro levaria à cura.
sacrifício pelos outros, conforme veremos a se-
Os três cavaleiros eleitos recusam e come-
guir. Em primeiro lugar, corta aquilo que possuía
çam a lutar contra todos os homens do castelo.
de mais precioso, os seus cabelos, para fazer a
Num determinado momento, porém, para impe-
bainha da espada da estranha cinta, que deveria
dir a continuidade da matança, a irmã de Persival
ser desembainhada somente pelo cavaleiro eleito.
11 Alguns relatos com fundo céltico podem ser citados, como por exemplo,
Conla e a Donzela Encantada quando um jovem é atraído por um ser feérico e
O cabelo é o aspecto feminino mais atrativo vai para a Terra dos Vivos. Outro exemplo é A Viagem de Bran quando um herói
da mulher e tanto as representações imagéticas de deixa a Irlanda para seguir outra mulher sobrenatural, que canta uma estranha
canção e lhe joga um ramo de maça de prata dourada, símbolo do Outro Mundo.
Eva como as de Maria Madalena, principalmente Ele fica como num período de um ano neste local e ao voltar para casa, ninguém
o conhece, apenas ouviram falar de uma antiga história sobre um guerreiro com
nos períodos medieval e moderno, mostram-nas seu nome. No relato de Bran, milhares de anos haviam se passado, pois o tempo
com um cabelo abundante, solto e comprido. das fadas é diferente do tempo humano (ZIERER, 2001).

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Adriana Maria de Souza Zierer / Elizabeth Sousa Abrantes

consente em entregar uma tigela com o seu san- depois se mata. Persival é igualmente tentado, mas
gue. A ação é realizada e a boa donzela morre. Deus impede que cometa uma má ação e depois a
Imediatamente, a leprosa se banha e fica curada. donzela se transforma no próprio Diabo. Por fim,
Mas Deus a pune e envia o fogo, matando todos a Besta Ladradora é o fruto de uma relação entre
os habitantes do castelo. um ser já pecaminoso por excelência segundo
o pensamento clerical, uma mulher, versada na
Quanto à boa donzela, que está associada em
santidade à Virgem Maria e que no seu papel de mãe necromancia, causadora da morte do irmão, e o
impediu várias mortes, pede para ser enterrada no Diabo, engendrando o filho do Demo, uma besta,
Paço Espiritual, onde estava o Graal, e uma carta é animal igualmente feminino.
escrita contando a sua História. A irmã de Persival No lado positivo temos mulheres vítimas,
está associada tanto à Virgem Maria, mãe da Hu- violentadas ou mortas por cavaleiros maus, mas
manidade, e como também a Cristo, aquele que se também mulheres que clamam a Deus por justiça,
sacrificou para que os humanos fossem salvos do como a irmã de Ivã que busca vingança pela morte
pecado original, cometido por Adão e Eva. injusta do irmão por Galvão, ou a donzela da fonte
Como Galaaz, que havia feito milagres e que pede auxílio a Deus, o qual impede que o irmão
realizado curas, ela também realiza o milagre de a violentasse.
cura da leprosa com o seu sangue. Cristo derrama Também temos as mulheres boas associadas à
o seu sangue na Cruz pela salvação dos homens Virgem Maria como a irmã de Erec, que morre sem
e a irmã de Persival para que mortes fossem evi- culpa, e a irmã de Persival, a própria representação
tadas e para a salvação de uma pecadora. feminina de Galaaz, que morre para salvar uma
pecadora e para evitar que mais mortes ocorram,
assim como Cristo se sacrificou para livrar a hu-
CoNCLusÃo manidade do pecado.

Apesar da imagem difundida sobre uma visão Interessante observar nessa mulher perfeita
unicamente misógina na Demanda, ao nos determos as reminiscências das narrativas irlandesas, os
com mais cuidado, observamos múltiplas faces so- imrama, quando um ser sobrenatural atraía um
bre o feminino na narrativa. A mulher pode ser boa herói ao Outro Mundo Celta e este se dirigia para
e má ao mesmo tempo, como, por exemplo, Gene- lá através de uma viagem marítima. A irmã de
vra, a mulher que trai o rei, mas que também é fiel Persival, em analogia com os seres feéricos, é a
ao amor cortês e considerada boa pelo povo, uma única a conhecer o caminho para a manifestação
reminiscência do seu papel nos relatos irlandeses do Paraíso Terrestre, isto é, o caminho do Santo
e galeses. O mesmo ocorre com Morgana, que de Graal, e leva os eleitos para lá numa barca, tal como
pecadora devido à magia considerada má, é “res- ocorria nos relatos celtas.
gatada” no final da narrativa, quando, juntamente O papel feminino em A Demanda do Santo
com outras fadas, leva Artur para Avalon, a ilha das Graal nos mostra que a sociedade medieval é
maçãs. Que dizer então de Amina, mãe de Galaaz, muito mais complexa do que convencionalmente
que realiza um feitiço para que Lancelot “traia” acreditamos. Longe de uma coletividade totalmente
Genevra, mas, ao mesmo tempo, é aquela que dá “controlada” pela Igreja Católica, o que se vê são
a luz ao “melhor dos melhores” entre os cavaleiros várias concepções sobre o feminino que convivem
da távola redonda, o eleito para encontrar o Santo juntas, mostrando a mescla entre traços cristãos
Graal e membro da linhagem dos Seus guardiões? e elementos pagãos de origem celta. Outro ponto
Também temos a imagem da mulher relaciona- interessante é observar que através da conduta dos
da à luxúria, pronta a levar os eleitos a pecar, como homens em relação ao feminino, podemos saber se
a filha do rei Brutus, que sem sucesso tenta Galaaz e são eleitos ou não para encontrar o Santo Graal.
29
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Além dos exemplos já mencionados asso- capitais: a ira. Por esse motivo, depois de salvo,
ciados aos cavaleiros pecadores, como Erec, mata um religioso e um cavaleiro que queriam
que mata a irmã por haver prometido um dom, impedi-lo de lutar contra o irmão, pois não se
podemos também citar Leonel, o irmão de Boorz, conformou de Boorz não ter ido em seu auxílio.
que perde o controle das suas emoções e comete O elemento a determinar a condição de Leonel
homicídios. Numa determinada situação Boorz como bom cavaleiro ou não foi, mais uma vez,
tem que optar entre salvar o irmão, ameaçado por a participação feminina, ainda que indireta. As-
cavaleiros que queriam matá-lo e uma donzela sim, nos mais variados exemplos, vemos que a
prestes a ser violentada. Boorz salva a donzela e mulher tem papel preponderante nas ações dos
ao mesmo tempo reza a Deus para que salvasse bons e maus cavaleiros, indicando a “eleição” dos
o seu irmão, o que realmente acontece. mesmos quanto à visão do Santo Graal.
Aqui podemos invocar as leis da cavala- Portanto, através da Demanda é possível
ria que nos mostram que o primeiro dever do observar que longe de um caráter secundário o
cavaleiro era proteger os fracos, daí a atitude papel da mulher na obra em questão é de destaque
em relação à donzela de Boorz ter sido correta. e contribui para compreender a sua importância
Leonel é tomado então por um dos sete pecados na sociedade medieval.

REFERÊNCIAS
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30
GEoGrAFiA, mEmóriA E iDENTiDADE soCiAL
Dos THETAi NA ATENAs CLássiCA

Alair Figueiredo Duarte1


Maria Regina Cândido2

S
e nos propomos a analisar o quadro social e distritos encontravam-se inseridos em divisões de
político da polis dos atenienses no século V espaços geográficos.
a.C. e seus fatores de memória, não podemos
Para entendermos o que é um espaço geográfi-
prescindir de sua localização geográfica. A polis dos
co, há necessidade de definir as diferenciações entre
Atenienses encontrava-se situada na Ática - região
espaço e território. Segundo Haesbaert (1997, p.42),
rica em argila e minérios - formando um triangulo
o conceito de território é constituído de elementos
geográfico. Ao sul, Atenas era banhada pelo Mar
simbólicos, sendo, portanto, um espaço dominado
Egeu e a noroeste, fazia fronteira com a Beócia que
por determinadas técnicas que se constituem através
separava a cidade da região central da Grécia (GAR-
de práticas sociais (LEFEBVRE, 200, pp.191-192),
LAND, R. The Piraeus.1987, p.07). Ao sul do Oeste
inseridos sob a análise da relação binária: espaço/
estavam localizados seu principais portos: Falrion,
poder (HAESBAERT, 1999, p.39). Nas concepções
que era o antigo acesso à cidade e o Pireu que pos-
de Raffestin (1993, p.143), a concepção de espaço,
sibilitou no cenário interpolíade, projeção política a
antecede a de território. Sendo esse ultimo a ação
Atenas e no quadro intrapolíade, identidade política
programada de um sujeito que se apropria do es-
aos cidadãos thetai que serviam como remadores.
paço, o qual existe anteriormente a qualquer fator
Foi através do Porto do Pireu que Atenas antropológico, simbólico ou físico.
manteve hegemonia sobre o Mar Egeu. Através de
Noutra perspectiva, território se trata de uma
cinco distritos estabelecidos pela Liga Délio Ática,
espacialidade dividida em fronteiras ratificadas
a polis patrulhava militarmente e mantinha ativo
pela ritualidades, entendidas como ação de civili-
comércio na região supracitada. As embarcações
dade e política. Marcel Detienne (2004, p.49), ao
mercantes atenienses singravam as águas do Mar
destacar os traçados de fundação aponta que os
Egeu lotadas de pithós e escoltadas por naus do tipo
ritos de renovação servem a reorganizar espaços
trirremes prontas para a guerra. Os distritos navais
em processos de mudança, nessa especificidade
atenienses demarcavam territorialidade dividiam-se
“são os limites que geram as aldeias e não as
em: Distrito Jônico compreendendo as cidades da
aldeias que geram os limites”. Destacamos na
Ásia Menor; Distrito Cário: ilhas de Cós, Rodes
abordagem a tensão existente quanto a delimita-
e cidades costeiras entre Fasélis e Halicarnasso; o
ções de fronteiras, a fundação de territórios não
terceiro distrito era composto pelas ilhas Cíclades
se encontra condicionada exclusivamente a ação
Lemnos e Esquira; o quarto distrito composto pelas
de um herói ou deus fundador, pois como men-
cidades da costa trácia; e por ultimo, o Distrito do
ciona M. Deitenne há sociedades que seus deuses
Helesponto que compunham as cidades de Bós-
fundadores não são estrangeiros, estão lá desde a
foro e Pronpôtida (MOSSÉ, 2004, pp.82-83). Tais
criação dos espaços (Ibidem).
1 Graduado em Filosofia e Mestre em História Comparada na Universidade O território, o qual já vimos, trata-se de
Federal do Rio de Janeiro. Doutorando no PPGHC-UFRJ, sob a orientação
da Prof. Drª Maria Regina Cândido. Vice-Coordenador do NEA/UERJ. um fenômeno mais complexo que a conceitua-
Email: araltodapaz@ig.com.br ção de espaço e mostra-se como o resultado de
2 Doutora em História. Coordenadora do Núcleo de Estudos de Antiguidade
(NEA/UERJ). forças que se cruzam e entre cruzam em varia-
31
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

das intensidades e ritmos, permitindo emergir, e Espaço Geográfico Marítimo. Todos definidos
variações de territorializações. Tal perspectiva segundo a memória coletiva e subdivididos, se-
nos demonstra e permite inferir que a territoria- gundo os grupos políticos que os regem.
lidade e seus fenômenos identitários, encontra-se
Nas concepções de Marcel Detienne, memória
submetido aos processos imaginários. Portanto,
é definida como função do passado individual,
torna-se possível admitir que o discurso referente
sendo um elemento indispensável para o surgi-
a fundação de um território tangencia elementos
mento de uma memória coletiva (DETIENNE,
políticos, os quais exigem legitimação quanto ao
2004, p.75). Ela não se encontra submetida a um
uso e a posse dos espaços com a finalidade de
estoque de informações, mas constitui um passado
perpetuação da memória.
presente no qual o indivíduo vive suas origens e
Segundo M. Pollak, a memória é um fator reconhece sua identidade, se permitindo apreender
de identidade e permite emergir o sentimento de o tempo como uma distancia de si, em relação a si
continuidade diante de um grupo político, por tal mesmo (Ibidem: 74). Nessas perspectivas, a divisão
razão, não se encontra na esfera da individualida- dos espaços na polis dos atenienses, tratavam-se
de e sim na existência coletiva (POLLAK, 1992, de lugares sagrados que interagiam diretamente
p.204). Neste sentido, quando Tucidides no livro com as relações políticas. Sob essa análise, a Bahia
I, da sua História da Guerra do Peloponeso, faz de Falerion como porta de acesso da polis, teria
uma arqueologia menemônica da importância de sido substituída pelo Porto do Pireu segundo a:
domínio sobre os mares para o êxito e prosperidade identidade, memória e civilidade que circulava no
política (TUCIDIDES, I: Passim); percebemos que imaginário social ateniense do período Clássico.
o estratego-historiador busca legitimar na memória
Por lugares sagrados, como nos aponta Ma-
a hegemonia ateniense sobre a espacialidade que
ria do Céu Fialho, são os lugares de memória no
denominamos de espaço territorial marítimo. No
qual são cultuados: deuses, heróis e ancestrais
qual o território encontra-se permeado de lugares
(FIALHO. Paisagens Marinhas no Hipólito de
com traços culturais demarcados e legitimados por
Eurípedes, In: OLIVEIRA; TEIXEIRA e DIAS,
ritos, tal qual mencionamos anteriormente.
2009, p.23). Portanto Falerion estaria inserido como
Vemos os rituais como demarcadores de ter- lugar sagrado na memória e identidade das famílias
ritórios e de lugares cuja ocupação e uso podem aristocráticas atenienses que em conformidade com
transformá-los em sagrados, ou não. Como nos as narrativas míticas, teriam sido os fundadores do
ratifica Maria do Céu Fialho (Paisagens Mari- lugar progenitor do espaço territorial ateniense.
nhas no Hipólito de Eurípedes, In: OLIVEIRA; Pois Falérion representaria a partida de Menelau
TEIXEIRA e DIAS, 2009, p.23). Daí, a geografia para conquistar Tróia e o embarque de Teseu à
se transformar em espaços socializados segundo Creta (The Pireus, 1987, pp.11-13).
as culturas e relações políticas. Tal inferência
Por outro lado, o Porto do Pireu seria um
torna-se pertinente diante dos apontamentos de
lugar adequado a nova ordem política ateniense
Nilton Santos que define geografia como natu-
do século V a.C., no qual novas memórias e iden-
reza socializada (SANTOS. Por uma Geografia
tidades se encontravam em construção. Pseudo
Nova, 1978: passim), permitindo-nos destacar
Xenofonte, na sua Constituição de Atenas, tece
que os lugares são demarcados segundo as iden-
severas críticas ao sistema democrático atenien-
tidades e as memórias.
se, o qual na visão do velho oligarga – como era
Portanto, ao analisarmos a polis dos atenien- conhecido Pseudo Xenofonte – privilegiava os me-
ses no período Clássico, vemos que os espaços nos abastados em detrimentos dos cidadãos mais
se dividem em lugares que se complementam abastados, vejamos: “...os ricos organizam as
através de três esferas, as quais denominamos: competições desportivas e equipam os trirremes.
Espaço Geográfico, Espaço Geográfico Terrestre O povo entende que deve ser pago para cantar,
32
Alair Figueiredo Duarte / Maria Regina Cândido

dançar e tripular os navios de forma a enriquecer encontravam nas práticas comerciais, possibili-
cada vez mais, e os ricos a ficarem cada vez mais dades de ascensão social.
pobres” (P. XENOF. Const. Atenien.: I.13).
Muitos dos cidadãos thetai, encontravam traba-
Barry Straus (The athenian trireme, school lho como remadores na esquadra ateniense. Dessa
of democracy. In: OBER, HENDRICK, 1996: 313- maneira, dava início a construção de uma identidade
325) destaca que no período Clássico, a polis dos e permitiam demarcar o Pireu como lugar de memó-
atenienses necessitava se reeducar a nova ordem ria, o qual será consolidado com o assentamento do
do período. Nesse contexto, o Pireu encontrava-se túmulo de Temístocles – o grande herói da vitória
melhor adaptado. O novo porto ateniense possuía ateniense em Salamina – no qual jaz o seguinte epi-
três ancoradouros: Cântaro a oeste, ancoradouro táfio: “ Tua tumba, alevantada num formoso sítio,
principal e entreposto comercial; além de Zea e servirá de sinal a todos os viajantes que dela avistar
Muniquia a leste, nos quais ficavam localizados os transitando pelo porto e as naus que ali competirem
navios de guerra. Todos os três eram famosos pelo (PLUTARCO. Temístocles: 32).
alto padrão de seus estaleiros. A região em que se
Na construção do novo imaginário social atenien-
localizava o porto tratava-se de uma rocha calcária
se do século V a.C., o Pireu será um lugar fundamental,
peninsular, de aproximadamente três quilômetros e
visto que permite a projeção do seu espaço geográfico
meio, inserido no Golfo Sarcônico (GARLAND,
marítimo. Este ultimo, embora seja originário das
Robert. The Pireus:1987, pp.7-8), e ficava a apro-
relações políticas com o espaço geográfico terrestre
ximadamente 7 km de distância do Ágora.
e a este se interligue de maneira complementar; o
No Porto do Pireu, circulavam cidadãos espaço geográfico marítimo possui propriedade como
pobres e abastados, escravos, metécos, além de a peculiaridade de ser um lugar de ação política dos
estrangeiros que estavam de passagem pela polis. thetai – segmento social que a polis dos ateniense se
A nova ordem social, no qual estava inserido a via dependente ao final do século V a.C. Tal inferência
expansão das atividades mercantis criava um pode ser ratificada através de fatos históricos nos quais
ambiente que divergia do imaginário social de dez strategos são condenados a pena capital por não
identidade e memória das famílias aristocráticas, recolher as vítimas de uma naufrágio na Batalha de
que possuíam uma postura acentuadamente et- Arginusa em 406 a.C. A essa especificidade, Aristóteles
nocêntrica. O Pireu, por ser um lugar afastado do destaca o fato de entre os acusado constarem entre as
Ágora – centro gravitacional do espaço geográfico vítimas (ARISTÓTELES. Const. dos Aten. XXXIV: I).
político da polis – mostrava-se totalmente adequa-
Portanto, concluímos com a observação qua
do. No entanto, por se tratar de um lugar novo para
as críticas de Pseudo Xenofonte não se incidirem
atividades políticas e comerciais, havia necessidade
necessariamente ao sistema democrático, no qual
de legitimar o espaço através de novos ritos.
constaria a participação isonômica, aquela que cabe
Robert Garland destaca os diversos cultos aos iguais. Na particularidade ateniense, o fator de
que eram praticados no lugar: Agathe Tyche, identidade seria a liberdade, portanto, abarcaria a
Afrodite, Artemis, Baal (ou Bel), Men, Nergal participação de todos os cidadãos (OBER. A sig-
Serapis e Zeus (GARLAND, 1997, p.110). Por- nificação original de Democracia, 1988: Passim).
tanto, tratava-se de um espaço com identidade Vemos que a crítica do de Pseudo Xenofonte, foca-se
a se definir. Entre suas práticas cotidianas era a oclokracia uma degeneração do modelo democrá-
possível encontrar em larga escala, o comércio tico (Ibidem), no qual as massas ao tomarem seu
e proximidade com estrangeiros e culto as suas lugar de identidade estaria transformando a antiga
divindades, que paulatinamente se fundiam ao memória da polis. Tal evidência pode ser melhor
cotidiano e práticas sociais atenienses. Esse tipo visualizada através do espaço geográfico marítimo
de atividade encontraria menor resistência junto ateniense que no apogeu político de Atenas, repre-
aos cidadãos thetai que por viverem de jornada sentou a identidade da polis.
33
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

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34
o “EsPELHo DE CrisTo”:
A representação cristológica da estigmatização
de Francisco de Assis nas Hagiografias Franciscanas

Alex Silva Costa1


Adriana Zierer2

iNTroDuÇÃo

Um grande pequeno homem veio ao mundo no olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros
ano de 1181 ou 1182 para mudar pelo seu exemplo membros (1C, 1997, p.263).
vida e representação humana a sociedade em que A pesquisa analisa os discursos das “fontes”
vivia. Foi a partir da construção de uma personali- Hagiográficas Franciscanas primitivas, entre elas,
dade emblemática e intrigante, pautada em Cristo e a Vita Prima (1C) de Tomás de Celano escrita em
seu Evangelho que Francisco de Assis se tornou um 1228, a Legenda Maior (LM) de São Boaventura es-
divisor de águas na história da humanidade. crita em 1263, A Legenda dos Três Companheiros
Assis, uma cidade localizada na região da Úm- (3S) atribuída aos Freis Leão, Rufino e Ângelo, den-
bria, foi seu local de nascimento. Giovanni di Pietro tre outras. Ao analisar os discursos hagiográficos
de Bernardone era chamado de Francisco, com o encontramos semelhanças na hipótese de ter Fran-
passar dos tempos gloriosos e difíceis de sua vida cisco de Assis se transformado na representação
terrena teve sua santidade oficialmente reconhecida terrena de Jesus Cristo após ter recebido os santos
em 1228 com sua canonização, embora não deixas- estigmas em 1224 na solidão montanhosa do Monte
se dúvidas que era um santo em vida, desde então Alverne, na Itália Central.
o poverelo3 de Deus passou a ser chamado de São
Francisco viveu numa época de muitas guer-
Francisco de Assis.
ras, epidemias e desvirtuamentos cristãos. A Igreja
Um homem que em vida encheu-se do divi- Católica estava em crise, com muitos conflitos in-
no para tornar-se mais humano, e que cuidando ternos e externos. Foi imerso nesse contexto sócio
do humano tornou-se mais divino. As considera- -religioso do final do século XII e início do XIII que
ções são baseadas no pensamento de Santo Agos- o santo italiano assumiu um estilo de vida cristã que
tinho, do qual podemos dizer ainda, que fora tão modificou profudadmente não só a sua figura, mas
grande e profunda a força do amor de Francisco o pensamento e a estrutura religiosa medieval.
por Cristo, que o amante transformou-se na ima-
Francisco de Assis era um jovem rico,
gem do seu amado, pois Francisco “possuía Jesus
alegre, que cantarolava com seus amigos pela
de muitos modos: levava sempre Jesus no cora-
cidade, onde se divertiam em festas noturnas.
ção, Jesus na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos
Seus pais eram Mônica (Pica) uma senhora
1 Graduado em História na Universidade Estadual do Maranhão e Mes-
trando em História da Universidade Estadual de Londrina (UEL), atual- muito piedosa de origem nobre e Pietro Ber-
mente sob orientação da Professora Doutora Angelita Marques Visalli
(UEL). Email: alexandrecosta03@hotmail.com
nardone um rico mercador que trabalhava com
2 Doutora em História e Docente da Universidade Estadual do Maranhão tecidos. Francisco foi tentado pela vida cava-
(UEMA) e orientadora da pesquisa.
3 Apelido italiano do santo, significa pobrezinho. lheiresca, e muito de sua personalidade está
35
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

pautada no ideal da Cavalaria. Queria ser um questão. É quando Francisco despoja-se de toda
nobre cavaleiro, homem de armas, por pouco sua roupa em local público, para em seguida ser
não realizou este sonho, já que desde a juven- coberto pelo Bispo, acompanhe o relato:
tude “sua imaginação, misteriosamente tocada, Despiu-se imediatamente, jogou ao chão suas
já sonhava em imitar as façanhas dos cavalei- roupas e as devolveu ao pai. Não guardou ne-
ros de França” (SABATIER, 2006, pp. 96-97). nhuma peça de roupa, ficou completamente nu
diante de todos. O Bispo, compreendendo sua
Participou da guerra entre Assis e Perusa em atitude e admirando seu fervor e sua constân-
1202, sua cidade foi derrotada e ficou durante um cia, levantou-se e o acolheu em seus braços,
ano preso em Perusa como refém; na ocasião Fran- envolvendo-o na capa que vestia. Compreen-
cisco teria sido recluso junto aos nobres revolta- deu claramente que era uma disposição divina
e percebeu que os atos do homem de Deus que
dos e não com a massa popular em específico. Em
estava presenciando encerravam algum misté-
1205 parte para a guerra na Apúlia, no meio do rio (1C, 1997, p.189).
caminho teria recebido uma visão que lhe indicava
o caminha de volta, e ao chegar em Espoleto uma O mistério para Tomás de Celano é a con-
febre tomou conta de seu corpo e não restou outra firmação definitiva da conversão de Francisco,
alternativa a não ser o seio familiar. agora tudo estava consumado, desde 1205 o
Ao chegar em casa decide mudar a trajetória santo recebia sinais e visões espirituais, além
de sua vida; mantém-se reflexivo e caridoso para disso, encontrava-se confuso sobre qual atitude
com os pobres, isola-se um pouco de seus compa- deveria tomar. O despojamento significaria sua
nheiros, as visitas e a contemplação aos campos de renúncia para a riqueza e o nascimento para a
sua terra natal aumentam. É nesse momento que pobreza; quando a autoridade eclesiástica o ves-
começa a inquietação de sua conexão com o divi- te, representaria o acolhimento da Santa Igreja
no, ele procurava uma resposta e um novo sentido pelo seu novo estilo vida. É notório destacar que
à vida. Não demorou, e em 1205 encontrou o que estás observações só fazem sentido se levarmos
procurava, ao passar pelas ruínas da antiga igreja de em consideração as posições e obras dos fran-
São Damião recebe a mensagem de um crucifixo de ciscanos moderados.
estilo românico (o crucifixo de São Damião) onde Depois deste episódio, começa a cuidar dos
o Cristo é representado glorificado e ressuscitado. leprosos, veste-se de eremita e inicia a restauração
Em 1206 acontece de fato sua conversão, já da capela São Damião, depois São Pedro e Santa
que resolveu renunciar de maneira espetacular Maria dos Anjos (Porciúncula). Passa a ser um res-
ao sonho de ser cavaleiro. Francisco seria daí taurador da igreja física para mais tarde tornar-se
por diante um “cavaleiro para Cristo”, sua ar- um restaurador da igreja espiritual. Junto com al-
madura será uma túnica de eremita e sua espada guns de seus concidadãos começa a experimentar a
o evangelho. Nessa data Francisco põe fim ao pobreza e a servir a Cristo e seu Evangelho, torna-se
sonho de sucessão de seu pai que desejava vê um penitente. Com eles forma um grupo itinerante
-lo triunfar em seu lugar. O grande rompimento que tem como lugares de referência duas modestas
aconteceu quando o poverello decidiu vender Igrejas nos arredores de Assis, São Damião e Por-
alguns tecidos do estabelecimento comercial da ciúncula. Mas ao começar o seu novo estilo de vida,
família para distribuir o dinheiro entre os po- o peregrino é tido como louco porque ninguém en-
bres por um lado, e por outro para doar à Igreja tendia suas atitudes e como Cristo se manifestava
de São Damião para tentar reconstruí-la. Fez na sua figura. No entanto, o mendigo de Deus não
tudo isso na ausência do pai. O mesmo, ao saber se rendeu aos desafios e conseguiu novos adeptos.
do ocorrido ficara transtornado, causando gran- Seu grupo itinerante possuia preceitos como a
de escândalo popular ao levar o filho até o Bispo prática literal do Evangelho, a penitência e a pobre-
de Assis, Dom Guido II, para tentar resolver a za, o cuidado aos leprosos e doentes morimbun-
36
Alex Silva Costa / Adriana Zierer

dos, esses modelos de vida não agradavam a todas As HAGioGrAFiAs


às pessoas da época, o que gerou muitos conflitos
FrANCisCANAs
entre os nobres e os comerciantes que viam seus
filhos deixarem suas casas para irem ao encontro
de Francisco. As autoridades eclesiásticas temiam Segundo Le Goff todas as fontes biográficas
o grande sucesso do empreendimento francisca- escritas pelo grupo moderado do franciscanismo
no, o que resultou em ataques contra os frades e primitivo têm com principal referência as obras de
Tomás de Celano, que as compôs a pedido de altas
até mortes, isto entristeceu Francisco e o levou até
personalidades eclesiásticas, ressalta isso porque
Roma em 1210 para pedir a bênção e autorização
Tomás de Celano além da Vita Prima escreveu a
do Sumo Pontífice. Teve a benção e o reconheci-
Vita Secunda, e vários outros escritos sobre São
mento de sua fraternidade após um diálogo difícil
Francisco, a respeito da primeira enfatiza que:
com o papa Inocêncio III.
Essa vida, muito bem informada, silencia
Ele queria ter a aprovação do papa, ou seja, todo traço de dissensão dentro da Ordem,
queria ser obediente e não um contestador da au- seja entre a Ordem e a cúria romana, faz o
toridade máxima da Igreja, Inocêncio III, no mo- elogio de Frei Elias, então muito poderoso, e
mento. Francisco “está convencido do primado se inspira nos modelos historiográficos tradi-
cionais (LE GOFF, 2007, p.55).
do poder espiritual sobre o temporal, mais ainda,
está convencido de que o vigário de cristo possui
Já para André Vauchez os problemas internos
as duas forças, os dois poderes” (LE GOFF, 2007,
da ordem colocaram variações nos textos porque
p.72). Este fato é característico no santo e o distin-
os autores testemunhavam a partir de seus interes-
gue claramente dos reformadores de então.
ses e visões formativas, ou mesmo pela situação
Em 1223 Francisco redige uma nova regra, conflituosa do tempo vivido, enfoca a parcialida-
aprovada pelo papa Honório III (Regula Bulla- de de quem escreve e de seus encomendadores,
ta). A Ordem ficou composta de clérigos e leigos exemplifica dizendo que essa situação:
divididos em torno dos princípios do “francisca- É bem visível nas variações que apresentam
nismo primitivo”. Essa nova regra além ser com- as duas primeiras biografias oficiais, obras do
posta por Francisco, teve que ser reescrita por franciscano Tomás de Celano. Enquanto na
exigência do papa, sendo definitivamente apro- primeira, o irmão Elias de Cortona (comandi-
vada na data citada acima, depois que Francisco tário da obra com o papa Gregório IX) ocupa
um certo lugar e é apresentado sob uma luz
suprimiu as passagens mais provocativas sobre a
favorável, a sua ação e as suas relações com S.
pobreza e a vida comunitária, sobre os cuidados Francisco são evocadas em termos nitidamen-
que se tinha que ter com os pobres, leprosos e te mais discretos na segunda. É que entretanto
mendigos, ou seja, com os menores. esta personagem contestada fora obrigada a
abandonar a direção da ordem e reunira-se ao
Um ano depois, em 1224, experimentará o imperador Frederico II em luta contra o papa-
poder divino em seu corpo, os estigmas da cru- do (VAUCHEZ, 1994, pp. 246-247).
cificação o acompanharão até a morte, por isso
terá a alcunha de ser considerado pelos hagió- Atentemos agora a outra fonte utilizada, a Le-
grafos como a representação terrena de Cristo, e genda Maior (LM) de São Boaventura, a mesma fora
se tornará o primeiro estigmatizado da História. aprovada pelo capítulo geral de 1263, e o de 1266 to-
Por isso comparamos os discursos das “fontes” mou a decisão de proibir aos frades qualquer outra
Hagiográficas Franciscanas escritas a partir do leitura sobre a vida do santo. Além disso, ordenou
século XIII para analisarmos as representações que os frades destruíssem todos os escritos anterio-
do imaginário medieval cristão sobre a estigma- res relativos ao santo. O objetivo dessa medida era
tização e personificação de Francisco de Assis impedir que os frades tivessem outra referência que
na figura do Cristo cruficado. não fosse a de São Boaventura, que na época era o
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Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Ministro-Geral da Ordem. Ao impor esta medida a exigências da ciência histórica moderna, por ser
obra tinha que ser tida como única vida canônica. Le tendenciosa e fantasista (LE GOFF, 2007, p.53).
Goff critica essa decisão e expõe:
A polêmica em torno dos discursos
Ao tomar essa medida a Ordem contrariava os
das “fontes” Hagiograficas Franciscanas é tão
desejos do próprio santo que em seu testamento
pedia que zelassem pela autenticidade de sua grande que fora necessário aguardar alguns sé-
vida, dos documentos. E ainda obrigou-lhes culos segundo André Vauchez para que:
a ter obediência com relação as suas palavras Se redescobrisse o texto da Lenda de Perúsia,
para que nada se acrescentasse e nem nada cor- assim como outras biografias de S. Francisco
tassem, basta ver o que declarou em seu Tes- compostas no início do século XV pelos fran-
tamento: “O Ministro-Geral e todos os outros ciscanos ‘espirituais’- istó é hostis ao relaxa-
ministros e os custódios estão obrigados, por mento e às atenuações das exigências da regra
obediência, a não acrescentar nada nem nada em matéria de pobreza- como é o caso do Es-
cortar destas palavras. Antes, tenham este texto pelho de Perfeição (VAUCHEZ, 1994, p.246).
sempre consigo junto com a Regra, leiam tam-
bém estas palavras” (LE GOFF, 2007, p.52).
Para Le Goff as exigências da crítica histórica
moderna levaram no fim do século XIX a uma revi-
Para André Vauchez a intenção de São Boa-
são do São Francisco tradicional. Poder-se-ia conside-
ventura ao escrever a Legenda Maior era a de res-
rar a celebração do sétimo centenário do nascimento
tabelecer a unidade e a concórdia no seio da ordem.
do santo em 1882 como prefácio dessa revisão, além
Pois observa que o mesmo era Ministro-Geral da
da edição, na mesma ocasião da encíclica Auspica-
Ordem (1257-1274) quando da publicação da obra.
tum concessun, de Leão XIII. Mas para o autor o “au-
Ainda para o mesmo autor, devemos dar atenção às têntico ponto de partida da busca do verdadeiro São
recordações de Frei Leão, Frei Rufino e Frei Ânge- Francisco é a obra fundamental do prostetante Paul
lo que teriam relatado por escrito, após 1224, por Sabatier, em 1894” (LE GOFF, 2007, p.54).
medo de ver caída no esquecimento a verdadeira
imagem daquele a quem tinham amado e seguido: Para André Vauchez, Paul Sabatier pôs em cau-
sa a autenticidade até então incontestada das biogra-
Inquietos com a evolução da ordem sublinha-
fias oficiais (I e II Celano, Legenda Major) e suscitou
vam sobretudo o espírito de pobreza do funda-
dor, a desconfiança de que tinha dado testemu- um grande escândalo ao escrever uma vida de S.
nho face aos estudos e o seu apego apaixonado Francisco inspirada no Espelho de Perfeição, no qual
aos valores evangélicos. Ignora-se qual foi a julgava ter encontrado a vida mais antiga do Poverel-
forma exata desta preciosa recolha a que se cha- lo. Para ele a “hipótese de Sabatier era falsa, mas teve
ma o Florilégio de Greccio e os especialistas o mérito de suscitar pesquisas que permitem hoje aos
ainda hoje discutem o seu conteúdo e a sua or- historiadores avançar sobre um terreno menos mina-
ganização interna. Mais o essencial foi transmi-
do” (VAUCHEZ, 1994, p.247).
tido em dois textos compostos em meados do
séc. XIII: A Legenda dos Três Companheiros e
a Lenda (denominada) de Perúsia, que se reves-
tem efetivamente de uma importância particu- A PErsoNiFiCAÇÃo
lar (VAUCHEZ, 1994, p. 246).
DE FrANCisCo
Para Le Goff a Legenda escrita por São Boa- NA FiGurA DE CrisTo
ventura é quase inútil como fonte da vida de São
Francisco, e de um modo ou de outro, deve ser con- São Boaventura descreve na Legenda Maior
trolada por documentos mais seguros, já que: (LM), escrita em 1263, que por volta de 1205, Fran-
cisco ao passar pelas ruínas da antiga igreja de São
Em rigor, com todo o seu trabalho de pacificador,
São Boaventura, apesar de sua profunda venera- Damião que estava prestes a ruir de tão velha colo-
ção a São Francisco e de se basear em fontes ante- ca-se de joelho diante do crucifixo de estilo româ-
riores autênticas, realizou uma obra que ignora as nico (Crucifixo de São Damião) quando:
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De joelhos diante do Crucificado, sentiu-se não pregado na mesma. Apresenta-se com os


confortado imensamente em seu espírito e olhos abertos observando o que acontece a sua
seus olhos se encheram de lágrimas ao con- frente, referência àquele que tudo enxerga e de
templar a cruz. Subitamente, ouviu uma voz
que vinha da cruz e lhe falou por três vezes:
quem nada se esconde. Além disso, o Crucifixo
‘Francisco vai e restaura a minha casa. Vês possui uma interpretação Joanina bastante pre-
que ela está em ruínas’ (LM, 1997, p.469). sente em sua simbologia, por exemplo, o Cristo
na cruz representando a luz do mundo.
Esta mensagem é tida como a gênese da ad-
O ano era 1224, e faltavam apenas dois anos
miração de Francisco de Assis pelo Senhor Cru-
para a passagem de Francisco de Assis do plano
cificado, pode ser considerado um dos marcos
terrestre para o celeste, nesse período iniciou um
iniciais da busca do jovem Francisco pela sua
retiro de quaresma em honra a São Miguel Arcanjo
identificação com o filho de Deus. Por isso Van
no monte Alverne, na Itália Central. Segundo Paul
Optato Asseldonk, na obra O Crucifixo de São
Sabatier, no Alverne, Francisco encontrava-se ainda
Damião visto e vivido por São Francisco desta-
mais absorto que costumeiramente através de seu
ca que é muito importante notar que:
desejo de sofrer por Jesus e com ele, e esclarece que:
[...] o primeiro contato pessoal com o crucifi-
Seus dias se passavam divididos, entre os exer-
cado de São Damião, para Francisco chama-
cícios de piedade, no humilde santuário cons-
do pelo nome Cristo ‘vivo’ (que fala!), foi ao
truído no alto da montanha e a meditação no
mesmo tempo um contato cheio de consolação
meio da floresta. Acontecia até de esquecer a
ou alegria divina e de compaixão, isto é, uma
Igreja e permanecer vários dias sozinhos, em
perfeita e íntima alegria no Crucificado, uma
algum esconderijo da rocha, para repassar, em
verdadeira ferida ou êxtase de amor doloroso
seu coração, às lembraças do Gólgota. Outras
e jubiloso; um amor que faz chorar e cantar ao
vezes permanecia longas horas aos pés do al-
mesmo tempo. Este é um aspecto pouco lem-
tar, lendo e relendo o Evangelho e suplicando
brado por aqueles que insistem na compaixão
a Deus o caminho que devia seguir (1 Cel 91-
dolorosa de Francisco ao Crucificado. O mes-
94;LM 13-1-2). O livro quase sempre se abria
mo êxtase de sofrimento e de alegria ao mesmo
no relato da Paixão e essa simples coincidência,
tempo, o Santo o viverá por ocasião da estigma-
aliás, bem compreensível, bastava para pertubá
tização (ASSELDONK, 1989, p.19).
-lo. A Visão do Crucificado penetrava sempre
mais em suas faculdades com a aproximação
Tomás de Celano na sua Vita Secunda (2C) da Exaltação da santa cruz (14 de setembro).
descreve o encontro de Francisco de Assis com Francisco completamente transformado em
o Crucifixo de São Damião como um momento Jesus pelo amor e pela compaixão, intensifica-
de conexão divina, pois teria se comunicado com va seus jejuns e suas orações segundo uma das
Deus; além disso, destaca que a imagem do cru- legendas. Passou a noite que precedia a festa,
sozinho, em oração, não longe do eremitério.
cificado teria marcado para sempre a vida apos-
Ao amanhecer teve uma visão ( SABATIER,
tólica do santo, pois: 2006, pp 311-312).
A tremer, Francisco espantou-se não pouco e
ficou de fora de si com o que ouviu. Tratou de Frncisco de assis encontrava-se mergulhado
obedecer e se entregou todo à obra [...] Des- em profundo êxtase pedia, estava em momento
de essa época, domina-o enorme compaixão
conturbado por causa das dissenções dentro da
pelo Crucificado, e podemos julgar piedosa-
mente que os estigmas da paixão desde então sua ordem religiosa, enquanto sua vida se mes-
lhe foram gravados não no corpo, mas no clava entre a tristeza dos problemas e sua entrega
coração (2C, 1997, p.294, grifo nosso). a reflexão espiritual. O santo italiano na sua in-
cansável contemplação a Cristo recebe de Deus
No Crucifixo de São Damião o Cristo é re- de maneira milagrosa e familiar, possivelmente
presentado de maneira glorificada porque já está no dia 14 de setembro, uma visão que legitimaria
ressuscitado, com o corpo ereto sobre a cruz e corporalmente sua identificacão cristológica:
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Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Dois anos antes de entregar sua alma ao céu, teve Os discursos hagiográficos apontam que o san-
uma visão de Deus em que viu um homem, com to italiano chegou ao extremo de sua identificação e
aparência de Serafim de seis asas, que pairou aci- busca por Cristo e seu evangelho, por essa razão é
ma dele com os braços abertos e os pés juntos
pregado numa cruz. Duas asas elevaram-se so-
tido como o grande imitador do “cordeiro de Deus”.
bre a cabeça, duas estendiam-se para voar e duas Nas hagiografias estudadas é apontado como o Al-
cobriam o corpo inteiro (1C, 1997, p.246). ter Cristus, ou seja, o Outro Cristo, o “segundo”,
pois Francisco “possuía Jesus de muitos modos: le-
Francisco ficara admirado e confuso, ainda vava sempre Jesus no coração, Jesus na boca, Jesus
não tinha entendido o significado da visão. O nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus
fato do Serafim está crucificado o deixara em em todos os outros membros” (1C, 1997, p.263).
estado de inquietude e contemplação, o que es- Segundo Santo Agostinho a força do amor é
tava prestes a acontecer naquele momento, não tão grande que transforma o amante na imagem
só confirmaria sua busca pela “perfeição evan- do amado, desta mesma forma, em O Espelho da
gélica” quanto atingia o apogeu de sua identifi- Perfeição (Sp) Francisco é descrito como grande
cação e personificação em Cristo. amante do filho de Deus, fiel servidor e perfeito
Seu coração estava inteiramente dominado por imitador de Cristo, pois “sentia que estava com-
está visão, quando, em suas mãos e pés come- pletamente transformado em Cristo pela virtu-
çaram a aparecer, assim como as vira pouco an-
de da santa humildade e desejava que esta mesma
tes no homem crucificado, as marcas de quatro
cravos. Suas mãos e pés pareciam atravessados virtude resplandecesse em seus frades acima de
bem no meio pelos cravos, aparecendo as cabe- todas as demais” (Sp, 1997, p.927, grifo nosso).
ças no interior das mãos e em cima dos pés, com Hilário Franco Júnior analisando a relação mode-
as pontas saindo do outro lado. Os sinais eram re- lo e imagem no pensamento analógico medieval,
dondos no interior das mãos e longos no lado de destaca a importância da estigmatização de Fran-
fora, deixando ver um pedaço de carne como se
cisco de Assis e os desdobramentos dessa simili-
fossem pontas de cravos entortadas e rebatidas,
saindo para fora da carne. Também nos pés esta- tude com o Cristo crucificado:
vam marcados os sinais dos cravos, sobressain- No caso mais destacado, o Modelo imprimiu
do da carne, o lado direito parecia atravessado sua imagem viva (os estigmas) em outra ima-
por uma lança, como uma cicatriz fechada que gem viva (Francisco de Assis), quando a força
muitas vezes soltava sangue, de maneira que sua emotiva da imagem do crucifixo da igreja de
túnica e suas calças estavam muitas vezes banha- São Damiano imprimiu-se no coração do santo
das no sagrado sangue (1C, 1997, p.246-247). e fez, anos depois, com que as feridas modela-
res do Senhor fossem representadas no corpo
Essa narração descrita como milagrosa foi do seu fiel . O Modelo (Deus), fez-se imagem
relatada em 1228 por Tomás de Celano na obra (o Filho) da sua própria imagem (o homem em
geral), tornando-se um novo Modelo (Deus
Vita Prima (1C), e por essa ser a primeira fonte
encarnado) que assumiu uma nova imagem de
hagiográfica escrita sobre o santo, é tida como si mesmo (o serafim) e projetou-se em outra
exemplo e referência para as obras posteriores. imagem – um homem específico, Francisco –
O peregrino de Assis se transformaria naquele que acabaria por se tornar outro modelo – São
momento no exemplo vivo de Cristo, por meios Francisco, o alter Christus. Ou seja, desde que o
dos sinais corporais Francisco se tornaria a ima- Crucificado daquela pequena igreja rural falou
a Francisco, desencadeou-se complexo jogo de
gem do Cristo, ao vê-lo teria-se a evocação do
espelhos no qual Modelo e Imagem acabaram
outro, os estigmas presentificavam fisicamente por se confundir, por se fundir, por se tornar um
a sua busca pelo cruficificado, foi essa realidade só (FRANCO JÚNIOR, 2008, p.09).
visível que legitimou a fundamentamentação da
analogia discursiva hagiográfica de que Francis- Por isso é notório destacar que o episódio
co e o Cristo eram um só, que um estava alma- da estigmatização seria um elemento legitima-
gamado no outro. dor dessa transformação, essa noção é altamente
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explorada nos discursos hagiográficos, observe o importante para o sucesso da sua Ordem Men-
relato de Tomás de Celano que tenta justificar a dicante e do Franciscanismo, pois atingiu o nível
autenticidade do milagre, “brilhava nele uma re- das representações sociais do imaginário cristão
presentação da cruz e da paixão do Cordeiro ima- medieval, já que:
culado, que lavou os crimes do mundo, parecendo A conexão entre o franciscanismo e o evange-
que tinha sido tirado havia a pouco tempo da cruz, lismo que caracteriza os movimentos religio-
tendo as mãos e os pés atravessados pelos cravos e sos do período é evidente. O próprio Francisco
o lado por uma lança” (1C, 1997, p.260). O filho de foi o primeiro a receber a impressão das mar-
cas da crucificação em seu corpo, tornando-
Deus se tornaria concreto na pessoa de Francisco
se não somente um religioso que se inspira,
de Assis com os estigmas, ele seria a representa- mas aquele que imita e presentifica o Cristo.
ção humana do Cristo crucificado, o Espelho de Desse modo, a experiência franciscana tem
Cristo. Seria aquele que definitivamente mudaria sido alvo da reflexão de estudiosos da imagem
o percurso da igreja não só pelas suas ações, mas que percebem a importância do aparecimen-
também agora por aquilo que representava. to e proliferação das imagens do crucificado
aliadas àquelas do geral das imagens religiosas
É relatado na fonte Dos Sacrossantos Es- (VISALLI, 2013, p. 86, grifo nosso).
tigmas de S. Francisco e de suas Considerações
(Csd) mais uma evidência de que para o imagi- Por isso os estudos iconográficos do perío-
nário cristão medieval Francisco de Assis após do medieval sobre a representação da estigmati-
a estigmatização teria se tornado imagem e se- zação de Francisco de Assis são cruciais para a
melhança do Cristo crucificado: compreensão da personificação do santo italiano
E estando nessa admiração, foi-lhe revelado, no filho de Deus, uma vez que as imagens refor-
por aquele que lhe aparecia, que por divina çam a presentificação de sua identificação cor-
providência aquela visão lhe era mostrada em poral (física) com o Cristo, reforçando assim, o
tal forma, para que ele compreendesse que, discurso das hagiografias franciscanas, se consi-
não por martírio corporal mas por incêndio derarmos que:
mental, devia ser todo transformado na ex-
presssa similitude do Cristo crucificado (Csd, Se a Igreja medieval conferiu um papel às
1997, p. 1210-1211). imagens no culto e na devoção, foi porque as
imagens, mas do que a palavra dos pregado-
res (a leitura dos livros não sendo acessível
Paul Sabatier esclarece que Francisco se liga senão a uma pequena minoria), exercia sobre
a tradição apostólica durante os “últimos anos de a imaginação dos fiéis uma ação decisiva con-
sua vida, em que renova em seu corpo a paixão siderada benéfica (SCHMITT, 2007, p.355).
de Cristo. Há no paroxismo do amor divino inef-
fabilia (coisa inefáveis) que longe de poder contar Esses níveis de representação aliados à
ou fazer compreender, só se pode lembrá-las a si materialização dos discursos hagiográficos refor-
mesmo” (SABATIER, 2006, p. 311). çaram o ideal cristológico de imitação de Francis-
co de Assis, uma vez que é necessário “observar
Segundo Le Goff é quando “Francisco ter-
imagens dos primeiros séculos franciscanos e
mina sua caminhada à imitação de Cristo, é o
refletir sobre o tratamento dado por ilustradores,
‘servo crucificado do Senhor Crucificado’, sen-
pintores e hagiógrafos à relação dos frades meno-
ti-se confirmado em sua missão pelos estigmas”
res com a figuração” (VISALLI, 2013, p.85). Até
(LE GOFF, 2007, p.89). Francisco de Assis imita-
porque após o discurso ser consolidado:
va o Cristo e suas atitudes, queria tanto se apro-
[...] todo o sistema dos crivos que analisa a
ximar do filho de Deus que acabou tornando-se a
sequência das representações para fazê-la os-
própria representação do Cristo crucificado com cilar, para detê-la, desenvolvê-la, e reparti-la
os sagrados estigmas que possuía em seu santo num quadro permanente, todas essas querelas
corpo. Isto se constitui em mais um elemento constituídas pelas palavras e pelo discurso, pe-
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Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

los caracteres e pela classificação, pelas equi- era tão grande “que todo ele se transformara em
valências são agora abolidas a ponto de ser di- Jesus pelo amor e pela compaixão” (Csd, 1997,
fícil reencontrar a maneira como esse conjunto
p.1210). E ainda é enfatizado na Quarta consi-
pôde funcionar (FOUCAULT, 2007. p. 418).
deração dos sacrossantos estigmas que fora “o
verdadeiro amor de Cristo que transformou per-
Pensando nessa perspectiva, percebemos
que as análises prévias sobre um discurso podem feitamente S. Francisco em Deus e na vera ima-
ratificar ou negar uma posição quando, na verda- gem de Cristo crucificado” (Csd, 1997, p.1214).
de, deveriam refletir a fundo sobre suas verdadei- São Boaventura na Legenda Maior (LM),
ras intencionalidades. Não fora por acaso que os relata que Francisco prefigura o anjo que sobe
seguidores do santo ao logo do tempo utilizaram do oriente carregando o selo do Deus vivo, con-
a estigmatização como um elemento singular, forme a predicação verídica do outro amigo do
uma graça única e como um grande exemplo de esposo, o apóstolo e evangelista São João: “Ao
transcendência humana, e em alguns casos, como abrir-se o sexto selo, vi outro anjo subindo ao
doutrinação na sua ordem religiosa, pois entende- nascente carregando o selo do Deus vivo” (Ap
mos que “a iconografia era importante na época 7,12). E acrescenta ainda que:
porque imagens era uma forma de ‘doutrinação’
[...] considerando a perfeição de sua extraor-
no sentido original do termo, a comunicação de
dinária santidade, chegaremos sem dúvida
doutrinas religiosas” (BURKE, 2004, p.59). algum dia a convicção de que esse mensagei-
Na Legenda dos Três Companheiros (3S), é ro de Deus era o seu servo Francisco, que foi
descrito de forma particular que o próprio Deus achado digno de ser amado por Cristo, imita-
do por nós, e admirado pelo mundo inteiro.
“querendo mostrar ao mundo inteiro o fervor do
Pois enquanto viveu entre os homens, imitou
amor e a perene memória da paixão de Cristo que a pureza dos anjos, tornado-se um exemplo
Francisco trazia em seu coração, honrou-o magni- para os seguidores de Cristo. Mas o que nos
ficamente, ainda em vida, com a admirável prerro- confirma nesses sentimentos é a prova irre-
gativa de um singular privilégio” (3S, 1997, p. 694). futável de sua verdade: o selo que fez dele a
imagem do Deus vivo, isto é, do Cristo cru-
Na mesma fonte temos como condicionamento cificado, o selo impresso em seu corpo, não
da verdade dos sagrados estigmas a grande quan- por uma força natural nem por algum recurso
tidade de milagres que o santo realizara tanto em humano, mas pelo poder admirável do Espíri-
vida como após sua morte, os sinais do crucificado to do Deus vivo (LM, 1997, p.462).
seriam elementos legitimadores de sua santidade:
No entanto, para André Vauchez o fenôme-
A verdade inegável desses estigmas manifestou
no dos estigmas seriam “vestígios de uma iden-
-a Deus claramente não só na vida e na morte,
pelo que deles se podia ver e palpar, mas tam- tificação física de São Francisco com o Cristo
bém depois de sua morte pelos muitos milagres crucificado” (VAUCHEZ, 1995, p. 132). Coloca
em várias partes do mundo. Por causa desses ainda em discussão a interpretação mística e es-
milagres, muitos que não haviam julgado re- catológica que São Boaventura teria dado a esse
tamente acerca do homem de Deus, pondo em fenômeno sobrenatural, pois:
dúvida seus estigmas, chegaram a tanta certeza,
que, se antes haviam sido seus detratores, pela Demonstram uma vontade de apresentar o Po-
bondade atuante de Deus e compelidos pela bre de Assis como um “segundo Cristo” (alter
verdade, tornaram-se dele fidelíssimos devotos Christus), cuja santidade e conformidade com
e defensores (3S, 1997, p. 695). o seu divino mestre eram comprovadas por
essas chagas de origem divina. É difícil, se-
não impossível, saber o que realmente ocorreu
Temos ainda em Dos Sacrossantos Estig-
quando da estigmatização. Os relatos- confu-
mas de S. Francisco e de suas Considerações sos e contraditórios- das raras testemunhas e
(Csd) a descrição que o amor devotíssimo de dos mais antigos textos hagiográficos, e tam-
Francisco na pessoa de Cristo e na sua paixão bém a iconografia primitiva da cena, ressaltam
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a sua dimensão teofânica, a saber, o apareci- Seu corpo fora vigiado por guardas de Assis
mento a Francisco de um serafim portador de na capela de Santa Maria dos Anjos (Porciúncula)
uma revelação impressionante, centrada na para preservá-lo tanto de uma possível investida
infinita grandeza de Deus-Trindade, no seu
próprio destino espiritual e no da sua ordem
inimiga dos Infiéis quanto do avanço populacio-
(VAUCHEZ, 1995, p.132). nal, tudo isso era controlado pelo tão contestado
Frei Elias, na época na direção da Ordem dos Fra-
No entanto, Francisco de Assis ao ser des Menores. Na capela o poverello italiano des-
estigmatizado em 1224 teve a experiência do pede-se em semelhança a Cristo, para até na morte
contato das sagradas chagas do crucificado em evocar a memória das últimas realizações do sal-
seu corpo. Por meios dos discursos hagiográ- vador. É nesse momento que segundo Le Goff:
ficos franciscanos ele recebe a alcunha de ser Francisco alcança os últimos gestos da imitação
a representação terrena de Cristo, e se tornou de Cristo dos quais, antecipadamente, recebeu,
o primeiro estigmatizado da História. Francis- através dos estigmas, a marca final. A 2 de ou-
tubro, reproduz a ceia. Benze e parte o pão e o
co por meio dos estigmas constitui-se em um
distribui a seus irmãos. No dia seguinte, 3 de
exemplo vivo do Cristo por ter presentificado outubro de 1226, recita o Cântico do irmão sol,
em seu corpo as chagas do crucificado. lê a paixão no Evangelho de João e pede que o
depositem na terra sobre um cilício coberto de
Este fato impulsionou e fundamentou a re-
cinzas. Nesse momento um dos seus irmãos vê
presentação cristológica de Francisco nas fon- de repente sua alma, como uma estrela, subir
tes hagiográficas ao longo do tempo, tanto que direto ao céu (LE GOFF, 2007, p.91).
o Padre Antônio Vieira em seu sermão sobre
as chagas de São Francisco enfatiza: se queres Foi no anoitecer do dia 03 de outubro de
conhecer o santo, então, “vesti Cristo e tereis 1226 em Porciúncula que Francisco de Assis
Francisco”, da mesma forma, faça-se o contrário adormeceu para a eternidade. Ao morrer, um
“desvesti Francisco e tereis Cristo”. frade que era seu discípulo teria visto a alma do
santo subindo diretamente para o céu, acima das
águas. Era como uma estrela, tendo de alguma
CoNsiDErAÇÕEs FiNAis:
forma o tamanho da lua, retinha toda a claridade
O segundo verbo que habitou entre nós do sol e levava embaixo uma nuvenzinha bran-
ca. Este episódio descrito tanto na Vita Secunda
Acorriam os frades seus, chorando, beijavam de Tomás de Celano quanto na Legenda Maior
as mãos e os pés do piedoso pai que os dei-
de São Boaventura, e também por Le Goff sim-
xava e também o lado, cuja chaga era uma
lembrança preclara daquele que também der- boliza a legitimação da idéia de que Francisco
ramou sangue e água desse mesmo lugar e no seu Trânsito já estava santificado.
assim nos reconciliou com o Pai. Para as pes- O bem-aventurado pai Francisco fez tudo isso
soas do povo era o maior favor serem admiti- com perfeição, e até reteve a figura e a forma do
das não só para beijar, mas até só para ver os Serafim, porque preservou na cruz e mereceu
sagrados estigmas de Jesus Cristo, que Fran- voar para a altura dos espíritos sublimes. Esteve
cisco trazia em seu corpo (1C, 1997, p.261). sempre crucificado porque nunca fugiu de traba-
lho ou dor só para cumprir em si mesma e con-
A citação acima se refere ao Trânsito (passa- sigo mesmo a vontade de Deus [...] Apresenta, ó
gem do plano terrestre para o celeste) de Francisco Pai, a Jesus Cristo, Filho do sumo Pai, os seus
e relata de maneira emblemática a movimentação sagrados estigmas, e mostra os sinais da cruz no
lado, nos pés e nas mãos, para que ele se digne ter
das pessoas da época para tocarem nas sagradas
a misericórdia de mostrar suas próprias chagas
relíquias carnais do santo, não é a toa que há a cria- ao Pai, que, na verdade, por causa disso, sempre
ção de um grande sistema de proteção em volta se deixará aplacar por nós, pobres. Amém! As-
dos últimos momentos de sua vida. sim seja! Assim seja! (1C, 1997, pp.263-266).
43
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

No dia 04 de Outubro, Francisco já havia alcan- multidão, disseram ao frade: “ó frade, será que
çado a glória celeste, quando foi sepultado na Igreja esse é o Cristo”? Ele respondia: “É ele mes-
de São Jorge em Assis. Sendo interessante ressaltar mo”. Mas outros também perguntavam: “Mas
não é São Francisco?” O frade também dizia
que o cortejo fúnebre passa antes pelo mosteiro de que era ele mesmo. E de fato, tanto para o fra-
São Damião para a despedida de Clara e suas irmãs. de como para todo aquele povo, dava a impres-
Além do mais, não restavam dúvidas que o pere- são de que Cristo e são Francisco eram uma
grino de Deus era um santo em vida, como prova só pessoa. Os verdadeiros inteligentes não vão
possuía a autenticação, ou o Carimbo de Deus, que achar temerária essa afirmação, porque aquele
que adere a Deus torna-se um só espírito com
era os seus sagrados estigmas:
ele, e o próprio Deus vai ser um só em todos no
Se o testemunho não fosse tão evidente, mal futuro (2C, 1997, p.443, grifo nosso).
poderiam acreditar. Brilhava nele uma re-
presentação da cruz e da paixão do Cordei-
Foi exatamente isso que tentou-se demons-
ro imaculado, que lavou os crimes do mun-
do, parecendo que tinha sido tirado havia a
trar nessa pesquisa, que Francisco de Assis era
pouco tempo da cruz, tendo as mãos e os pés no medievo a representação do próprio Messias.
atravessados pelos cravos e o lado como que Através das “fontes” Hagiográficas Franciscanas
ferido por uma lança (1C, 1997, p.260). percebe-se isso claramente na construção dos dis-
cursos, que o Santo personificou-se na figura de
Na Vita Secunda de Tomás de Celano é des- Cristo, que estavam amalgamados um no outro.
crita uma visão interessante que nos adverte para Francisco de Assis consolidou na Idade Média
a “aparição do santo pai a um frade, depois de sua Central um novo estilo de vida e espiritualidade
morte”, na ocasião um frade de vida louvável, esta- cristã. O “peregrino de Assis” teria sido o segun-
va suspenso em oração naquela noite e hora quando: do verbo que se fez carne e habitou entre nós. E
O glorioso pai apareceu vestido com uma dal- contemplou-se sua glória: glória de ser imagem
mática cor de púrpura, acompanhado por uma (chagas) e semelhança (estilo de vida evangélica)
multidão de pessoas. Muitos, que saiam dessa de Cristo, cheio de amor e fidelidade.

REFERÊNCIAS
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visto e vivido por São Francisco. Tradução: Danilo Biasi, O.F.M. de Estudos da Imagem (12, 13 e 14 de maio) Londrina-PR, 2009 (anais).
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GLADiADorEs NAs ArENAs:
Seres excluídos da sociedade?

Alexandro Almeida Lima Araújo1


Ana Lívia Bomfim Vieira

A
posição de gladiador não se restringia do gladiador ou da gladiadora, mas os homens
somente aos escravos, condenados da e mulheres que se faziam presentes na plateia
justiça, ou prisioneiros de guerra, como também despertavam desejos sexuais uns aos
bem apontam as historiadoras Renata Garraffo- outros, já que havia uma procura impetuosa de
ni e Claudia Costa. É importante salientar que seduções promíscuas em meio ao próprio público.
havia uma categoria que não lutavam nas arenas
No entanto, percebemos que a paixão que
por obrigação e sim por vontade própria, se ven-
um gladiador despertava a uma mulher presente
dendo como gladiador e nessas circunstâncias
dentro do anfiteatro era maior que qualquer outra
notabilizemos o aspecto ligado à cidadania e a
que se possa imaginar, como afirma Jean-Noel
aposentadoria do gladiador.
Robert (1995, p. 108):
Os aspectos sexuais estavam intrínsecos aos
Mais surpreendente ainda é a paixão de certas
gladiadores e também ao público que assistiam aos matronas de boa família pelos gladiadores con-
espetáculos. Antes de adentrar efetivamente nos pra- denados. Não são jovenzinhas ou moças pobres
zeres sexuais que norteavam homens e mulheres da que se deixam assim arrebatar pela paixão, mas
Roma antiga, especificamente, no que dizem respeito muitas mulheres maduras e em geral também
aos jogos gladiatórios, a historiadora Renata Senna da boa sociedade, como a Épia de quem zom-
bou Juvenal, moça de família, que, ‘desde sua
Garraffoni (2004, p. 271) faz a seguinte asserção:
infância, dormira em meio à opulência paterna,
[...] milhares de homens, mulheres, crianças e ido- na pluma de um berço forrado de ouro’. Casada
sos das mais diferentes etnias, condições sociais com um senador, não hesita em abandonar casa,
e status jurídico subiram as mesmas escadas e se marido, crianças em prantos e até sua pátria
acomodaram em seus respectivos lugares para para embarcar num barco miserável atrás de
assistir a um bom combate, a uma inesquecível Sergíolo. Ela, que dificilmente acompanharia o
caçada, a uma impressionante naumáquia, a marido num barco luxuoso, enfrenta com alegria
execução de criminosos ou simplesmente para o odor do incômodo porão do barco, ‘onde se
encontrar amigos e, até mesmo com um pouco sente tudo rodar em torno de si’. Sergíolo seria
de sorte, flertar... tão belo assim? Qual o quê: o braço ferido, o
rosto machucado, uma corcova no nariz, ‘um
Portanto, os locais que eram postos para humor azedo exalando o tempo todo de um de
realização dos combates, tornavam-se lugares seus olhos’. É verdade, mas era um gladiador!
para conhecer novas pessoas devido a um número
vasto de indivíduos que formavam a plateia. A Na realidade, o gladiador estava tão intrinse-
figura feminina era, possivelmente, almejada camente ligado ao aspecto sexual que sua figura
para que se tornasse uma possível amante e/ou estava associada à virilidade, aos desejos, ao “apetite”
concubina. Por conseguinte, entendemos que a sexual, a atração, encanto, fascínio e sagacidade.
sexualidade não era somente expressa na figura Esta complexa representação da figura do gladiador
de estar ligada a um encantamento sexual fascinava
1 Graduando em História - Mnemosyne/PIBIC-CNPq/UEMA, sob a orien-
tação da Prof. Drª Ana Livia Bonfim Vieira. Email: alexandroalaraujo@
as matronas independentemente de sua aparência, o
hotmail.com. que importava era o ofício que exercia – a gladiatura
45
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

romana. As autoras Renata S. Garraffoni e Lorena P. breza. Essa mulher viera em segredo visitar
Silva (p. 70) enfatizam a representatividade da figura o amante e não desconfiava que as cinzas do
do gladiador para com a matrona no que diz respeito Vesúvio revelariam seu crime à posteridade.
Muitas inscrições, como a seguinte em Pompéia,
à descrição física desse gladiador, pois, “embora Ju-
evocam, aliás, o sucesso dos gladiadores com
venal apresente o amante com nome próprio, Sérgio, as mulheres: “o reciário Caladus, o ídolo das
este relacionado à Épia como um estereótipo, ou seja, bonecas”! Não se dizia que o filho do imperador
ela se apaixona não pelo homem, mas pela profissão Marco Aurélio, o futuro imperador Cômodo, era
deste, tanto que chega a afirmar na narrativa que, ao de fato o bastardo que sua mãe tivera com um gla-
perder a profissão, não interessaria mais a matrona, diador? (ROBERT, 1995, p. 108-109, grifo nosso).
pois sua busca é o gládio”.
Diante da afirmação do autor J-N Robert
A passagem de Juvenal (Sátira VI), ao ao se referir da suposta “fuga” cometida por
enfatizar o caso de Eppia com um gladiador, é essa mulher, que tudo indica pertencer a um alto
apresentada pela pesquisadora Claudia Costa da “patamar” social e ser parte de uma nobreza, a
seguinte forma:
mesma visitara seu amante, um gladiador, o que
Como é duro ter de embarcar, (v. 97) significa que esta mulher que estava coberta de
quando é um esposo que ordena!” (v.98) joias possuía um marido e vivia em concubinato,
“Mas quando se trata de um glalanteador, o pois inferimos que era legalmente casada pela
estômago fica bom. (v.100) proposição do autor em afirmar que visitara um
Um marido, vomita-se sobre ele; com um amante, lugar “não freqüentável” pela nobreza e neste
se come em meio aos marujos, circulam sobre a lugar ir de encontro ao seu amante e estar ali em
popa, se divertem em manejar rudes cordas.” (v. 101)
segredo. O pesquisador Paul Veyne apresenta
Quais são os encantos que inflamam Eppia desta
uma proposição próxima do autor J-N Robert ao
forma?” (v.103)
se referir sobre os locais em que se encontravam
“...era um gladiador! Isto era suficiente para que
se transformasse em Jacinto. (v.110)
gladiadores e estes lugares não eram bem vistos
pela tradição moral da sociedade romana:
e isto está acima de suas crianças, de sua pátria,
de sua irmã, de seu marido.” (v.111) [...] os gladiadores eram admirados, mas não
(JUVENAL apud COSTA, 2005, p. 34-35, grifo era de bom-tom frequentá-los: “o gladiador
nosso). e a cortesã” formavam uma dupla de palavras
consagrada, assim como o “cáften e o lanista”,
quer dizer o empresário de gladiadores. Todo
Percebemos que Eppia faz parte de uma
mundo ia ver os gladiadores no anfiteatro: em
conjuntura social elevada por ser esposa de um compensação, para falar de alguém que passa-
senador e pertencia a uma família que dera a ela va a vida frequentando os chamados maus
tudo de opulento para ostentar seu status social lugares, dizia-se que ele corria “os bordéis e
dentro da sociedade romana a qual pertencia. os alojamentos de gladiadores”, lupanaria
Esta Sátira VI de Juvenal, citada anteriormente, et ludos. (VEYNE, 2008, p. 160, grifo nosso).
nos permite salientar que havia uma relação
entrelaçada dos gladiadores com estas mulheres A pergunta que nos cabe fazer é por qual(is)
que pertenciam a uma alta “escala” da sociedade motivo(s) a mulher que Jean-Noël Robert se refe-
romana, ou melhor dizendo, uma elite romana. re, que fora encontrada nas escavações de Pom-
Inclusive, não era um ato tão obstante manter péia, em uma caserna de gladiadores, cometera
relações íntimas com um gladiador, como, por um crime? Ela cometera um adultério, mas por
exemplo, J-N Robert nos apresenta: que isto pressupõe um crime? Para Pierre Grimal
a mulher não deveria cometer adultério, pois:
[...] as escavações de Pompéia encontraram o
esqueleto de uma mulher recoberta de joias Os Romanos consideravam que o maior cri-
na caserna dos gladiadores, situada num me que uma mulher podia cometer era o
bairro em geral pouco frequentado pela no- adultério e puniam-no com a morte. A falta da
46
Alexandro Almeida Lima Araújo / Ana Lívia Bonfim Vieira

mulher não era de caráter moral – os homens consequências. De acordo com uma antiga lei,
podiam, sem vergonha, procurar a companhia atribuída a Rômulo, o marido poderia, circundado
de outras mulheres, de baixa condição, escravas por um tribunal doméstico, condená-la à morte,
ou prostitutas –, mas sim de caráter religioso. O pois o adultério feminino consistia, nas palavras
adultério é, com efeito, uma fraude para com de Cantarella (1999:43), ‘[...] uma ofensa a honra
os deuses domésticos. (...) É um crime contra militar do marido [...]’. Havia ainda uma regra se-
a ordem social, que põe em perigo a própria gundo a qual o marido traído poderia assassinar
existência da cidade, separando-a dos seus sua esposa. Cantarella (1995:45) cita Catão ‘se você
deuses e deturpando o jogo normal da religião. surpreende sua mulher cometendo o adultério,
É por isso que as mulheres que não estão legal- pode assassiná-la impunemente, mas se ela o
mente integradas num círculo religioso, escravas, surpreende, não pode tocar-te nem com um
libertas não casadas, podem livremente dispor dedo’. (CAVICCHIOLI, 2011, p. 140, grifo nosso).
de si próprias. Nada lhes será reprovado. Mas as
matronas, as filhas das gentes, não o podem No entanto, a historiografia do século XIX e XX
fazer. (GRIMAL, 1981, p. 35, grifo nosso).
está permeada de valores que consagram a sociedade
Sem tardança, entendemos que as matronas elitista, já que as fontes utilizadas por estes autores
não poderiam fugir com gladiadores porque ao “tradicionalistas” são fontes eruditas, isto é, textos
pôr-se em fuga com esses combatentes, estariam literários de membros que faziam parte do seio da
cometendo adultério. Às vezes, nem chegavam ao elite romana. É o caso das Sátiras de Juvenal que
ponto de fugir, tendo-os somente como amante, mas utiliza um estilo de literatura erudito e a retórica para
da mesma forma, implica em infidelidade conjugal. menosprezar a “classe marginalizada” da sociedade
Estas mulheres se encontravam sob o jugo de uma de Roma, uma vez que, no caso de Épia, por exem-
sociedade de cunho familiar sagrado e patriarcal, plo, o mesmo usa esta matrona para designar que ela
porém, como vimos há alguns episódios de “ma- fugira com um gladiador de baixo estrato social e
tronas que abandonam suas famílias em busca de tal atitude não era bem vista pelos costumes morais
prazer e aventuras ao lado de gladiadores famosos” vigentes, pois ela trocou um membro senatorial por
(GARRAFFONI, 2005, p. 178). um indivíduo cuja posição social era “inferior” a do
senador. Essa troca põe em evidencia uma ridicula-
A historiadora Marina Regis Cavicchioli, em rização do senador em meio à sociedade que estava
artigo intitulado “Sexualidades antigas e preocupa- inserido. Juvenal enfatiza os valores masculinos
ções modernas: a moral e as Leis sobre a conduta sobrepujando a “classe” feminina.
sexual feminina”, expõe uma asserção semelhante
à descrita por Grimal ao citar Eva Cantarella e esta Pierre Grimal também seria outro autor que
última fazer referência a Catão: incorpora em sua obra os valores tradicionalistas
colocando à margem de seu estudo a população
[...] o marido esperava que a mulher lhe desse her-
menosprezada pelo eruditismo academicista do
deiros e lhe fosse sexualmente fiel, que educasse
os filhos, obedecesse-o e o respeitasse e lhe fosse século XX trazendo consigo proposições que se
submissa em todas as manifestações de sua aproximam do século XIX, abordando de modo
vida. A esposa, sendo a única mulher com quem simplista o “mundo feminino” que circunda a
ele poderia ter filhos legítimos, espera gozar do Roma antiga colocando-as como inferiores e
status social do marido. Diferentemente dela, o subservientes em sua totalidade em relação ao
marido não tinha obrigação de fidelidade con-
“mundo masculino” dando destaque ao pater
jugal. Este poderia ter amantes ou ainda manter
concubinas. No entanto, essas relações não teriam famílias, o patriarcado. Grimal enfatiza a elite
reconhecimento legal e não constituiriam uma romana e marginaliza a população humilde que
família, ainda que houvesse filhos. Estes, como formava o vasto território da Roma antiga.
ilegítimos, não receberiam seu nome ou herança
e não seriam reconhecidos como filhos perante a Contrastando a historiografia tradicional
lei. Já o descumprimento da fidelidade sexual (historiografia do século XIX e XX) com a his-
por parte da mulher poderia lhe trazer sérias toriografia mais recente (historiografia do século
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Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

XXI) percebemos uma notória relativização de uma gladiatura romana não era representada somente
submissão e inferiorização feminina no cotidiano por homens. É essencial enfatizarmos que não
da sociedade romana, como, por exemplo, a histo- desciam somente gladiadores às arenas, gladiado-
riadora Lourdes Conde Feitosa almeja em sua obra, ras também faziam parte dos ludi concretizando a
“Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em presença feminina nestes espaços. Em Satiricon
grafites de Pompéia”, analisar a condição femini- de Petronio é revelado que “[...] uma mulher gla-
na mediante materiais não elitistas – os grafites –, diadora, que correrá no carro”. (PETRONIO apud
oriundos de pessoas de uma posição social renegada VEYNE, 2008, p. 158). Renata Garraffoni (2005,
por muitos classicistas. p. 181) explicita que “o termo ‘gladiador’, mesmo
quando usado no plural, acaba por aprisionar as
Grimal (1981, p. 34) afirma que “(...) à senhora,
atitudes e as relações sociais destes combatentes
ela fia e tece. Era uma espécie de convenção social,
formando uma imagem única que não conside-
que a lenda fazia ascender ao rapto das Sabinas.
ra suas particularidades como, por exemplo, a
As jovens sabinas raptadas pelos Romanos tinham
origem étnica ou sexo, pois mulheres também
aceitado a sua sorte sob condição de serem honra-
lutavam nas arenas romanas”.
das no lar dos seus maridos e de não terem outro
trabalho, a não ser fiar a lã”. Porém, Lourdes Feitosa Jean-Noël Robert (1995, p. 109) evidencia um
potencializa as atividades que as mulheres se desta- interesse gladiatório presente na vida de muitas mu-
cavam, haja vista que “a atuação feminina também lheres que faziam parte do Império romano:
pode ser observada em outra esfera que, até alguns
Mais, ainda, algumas mulheres que transpira-
anos atrás, era considerada como essencialmente
vam sob o vestido de noite mais leve não hesitavam
masculina: campanhas políticas. Em Pompéia, fo-
em treinar como verdadeiros gladiadores e em mar-
ram encontrados cartazes de propagandas eleitorais,
tirizar com suas espadas os mastros de exercício.
denominados programmata, que indicam a presen-
‘Quem sabe até se alguma ambição mais elevada
ça feminina no apoio e indicação de candidatos”
não se agita em seu coração e se ela não se destina
(FEITOSA, 2005, p. 35).
à verdadeira arena?’ Enquanto isso, ‘vê com que
Diante do exposto, temos duas proposições de ardor emocionado ela dispara os golpes que lhe
análise que suscitam compreendermos o cotidiano são ensinados, como o capacete lhe pesa e como
feminino. Tendenciamos a seguir a vertente postu- permanece firme sobre suas pernas [...]’.
lada por Feitosa, pois Grimal coloca as mulheres
Logo, percebemos que a prática da gladiatura
como destinadas ao lar, mas as mesmas tinham
romana é bem diversificada. Por exemplo, “é sabido
uma participação na vida pública em âmbito local
que gladiadoras da Britânia utilizavam indumentá-
e pesquisas recentes abordam um cenário feminino
rias que mantinham suas costas descobertas, o que
não excludente de atividades tidas como “tradicio-
permitia que a platéia as tocasse após os combates –
nalmente do homem”. Lourdes C. Feitosa (2005,
este gesto pode ser compreendido como uma busca
p. 34) assegura, “quanto à ideia do confinamento
por fertilidade [...]”. (FERREIRA, 2006, p. 26). Por-
feminino ao lar, dedicada a fiar a lã e administrar
tanto, os ludi gladiatorii (combates de gladiadores)
a casa e, portanto, distante da vida pública e do
não se resumia somente ao combatente homem,
centro das decisões políticas e de poder, pesquisas
mas a gladiadora que com seus trajes despertava
recentes ajudam a repensar a questão”. Ora, “dentro
o interesse de cunho sexual perante o público
das casas romanas se discutiam assuntos políticos
masculino e feminino que prestigiavam os eventos
e relações de clientelismo com indivíduos de dife-
gladiatórios. O “tocar” nas costas descobertas
rentes camadas sociais o que punha a mulher bem
dessas combatentes nos colocam frente ao aspecto
próxima dessas conjunturas de relações”.
da “obscenidade” e virilidade empregada no fator
Concernente ao mundo feminino e sua ideológico de uma busca de fertilidade, ou seja, ter
intensa ligação com o gládio, ressaltamos que a uma disposição para fecundação. Inclusive, os jogos
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Alexandro Almeida Lima Araújo / Ana Lívia Bonfim Vieira

gladiatórios eram caracterizados como viris e enér- novos valores simbólicos. Além disso, sua loca-
gicos, pois segundo Paul Veyne (2008, p. 234-235) lização próxima às muralhas facilitou o acesso
“[...] o Estado romano proibiu muitas repetições de das pessoas, inclusive a chegada de torcedores de
cidades vizinhas, aumentando o fluxo, a interação
espetáculos de ópera (chamados “pantominas”) por ou conflitos entre diferentes populações. (GAR-
considerá-los desfibrados e pouco viris, ao contrário RAFFONI, 2005, p. 113).
dos combates de gladiadores”.
A partir de todo o conteúdo exposto até aqui, Dessa maneira, diante da postura que a autora
referente às relações que os gladiadores gozavam Garraffoni apresenta acima, acerca de interação e
com matronas, isso nos abre um leque de caminhos conflitos de diferentes populações que formavam o
para pensarmos a posição do gladiador dentro da Império romano através dos jogos gladiatórios, que
sociedade romana como um ser excluído ou não. Se reuniam uma parcela da população de diferentes
o mesmo era excluso porque vivia somente para os etnias e culturas que assistiam aos espetáculos, o
combates nas arenas, a pergunta que nos cabe fazer historiador Norberto Luiz Guarinello nos lembra da
é onde ficariam suas múltiplas relações de convívio? heterogeneidade das culturas que formavam a com-
Havia uma manutenção de relações somente dentro plexa sociedade romana ao afirmar que o Império foi
das linhas tênues das arenas? A prerrogativa de es- o resultado de um lento processo de conquista militar
tabelecer vínculos com mulheres fora e dentro das e centralização política, primeiro da cidade de Roma
escolas de gladiadores, viver uma intensa relação de sobre a Itália, depois da própria península sobre as de-
“fuga” com a matrona que a deseja nos possibilita mais regiões que margeiam o Mediterrâneo. [...] Visto
afastarmos de afirmações que apontam o gladiador em seus próprios termos o Império Romano não
como excluso e viver somente para combater. circunscrevia uma organização social homogênea e
singular, mas agrupava “sociedades” completamente
A imagem mais intensa que nos vêm à mente, distintas (GUARINELLO, 2009, p. 149).
quando falamos nas arenas em que ocorreram os
espetáculos gladiatoriais, é a do Anphitheatrum Essa pluralidade de “sociedades” dentro da
Flavium, mais conhecido como Coliseu. No entanto, própria sociedade romana é percebida quando a
ressaltamos que o Anphitheatrum Flavium, só fora pesquisadora R. S. Garraffoni (2005, p. 112) nos diz:
inaugurado em 80 d.C., em Roma, sob o olhar de Tito, A Campânia, por se situar bem ao sul da penínsu-
e antes da construção dessa arquitetura em pedra os la itálica, acabou se tornando uma região em que
ludi gladiatori aconteciam em estruturas de madei- povos das mais distintas origens se relacionavam.
As cidades que se desenvolveram na área tinham
ra. Se, compararmos os anfiteatros de pedra com um comércio marítimo intenso, o que tornara a
as estruturas de madeira, pode-se, verificar, que os região próspera e culturalmente diversificada:
edifícios de pedra têm uma durabilidade muito maior oscos, gregos, etruscos, romanos, samnitas, entre
que o segundo. Para reforçar esta ideia, a historiadora vários outros, circularam pelas ruas de Pompéia
Renata Senna Garraffoni, nos lembra que: e das cidades próximas como, por exemplo,
Nucéria, Herculano, Estábia, Cápua.
Se por um lado o século I d.C. ainda convive
com estruturas provisórias, por outro, a partir da
segunda metade o desenvolvimento dos edifícios
Essas múltiplas culturas intrínsecas no Império
de pedra é intensa: constroem-se os primeiros an- Romano, se levarmos em consideração os combates
fiteatros fora da península itálica e em 80 d.C. Tito de gladiadores, nos faz imaginar na diversidade de
inaugura, em Roma, o Anphitheatrum Flavium. interações de identidades que se estabeleciam no
A especialização das técnicas empregadas e a interior das diversas arenas espalhadas pelo territó-
experiência de construí-los e adaptá-los a diversos rio, ocasionando conflitos, já que também não havia
tipos de terrenos ampliou as possibilidades da
uma camada homogênea que assistia aos jogos gla-
realização dos combates, propiciando novos tipos
de interação entre público e gladiadores. A efeme- diatoriais. Um exemplo dessa não homogeneização
ridade da madeira, contrastada a longevidade das é uma rixa de torcedores na cidade de Pompéia.2 A
pedras pode ter propiciado, assim, a produção de 2 Sobre a rixa de torcedores na cidade de Pompéia, ver: GARRAFFONI,

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Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

respeito dessa cidade, a pesquisadora Cavicchioli uma elite, tais edifícios e os combates ali realizados
afirma que “Pompéia foi formada por vários povos expressam a pluralidade desta cultura, construída e
e várias culturas – assim como a própria Roma, por resignificada a partir de uma constante interação com
uma fusão e mescla de identidades, provavelmente as populações indígenas, que nem sempre foram pa-
fluidas, ainda que sob uma idéia de romanização” cíficas, mas, pelo contrário, muitas vezes permeadas
(CAVICCHIOLI, 2009, p. 61). por conflitos (GARRAFFONI, 2005, p. 120).

Por conseguinte, utilizando a fala da historiado- Logo, não vemos o gladiador e o público que
ra Garraffoni, mais que simbolizar uma identidade compunham a plateia nos anfiteatros como seres
romana fechada, única, baseada nos valores de apáticos, inferiores e que nada tinham a contri-
R. S. Rixa no Anfiteatro de Pompéia: o Relato de Tácito e os Grafites Pa- buir na formação do Império, pelo contrário,
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50
o PoDEr imPEriAL romANo rEPrEsENTADo
NAs mÃos Dos CÉsArEs E o oFErECimENTo
DE DiVErTimENTos PÚBLiCos:
Uma análise sobre as interpretações classicistas
concernentes aos jogos de gladiadores

Alexandro Almeida Lima Araujo1


Ana Livia Bonfim Vieira2

CoNsiDErAÇÕEs iNiCiAis
No entanto, a historiadora Luciane Munhoz de

A
ntes de adentrarmos nas questões que
envolvem a política do Pão e Circo, Omena que foca sua pesquisa para os setores su-
devemos salientar que o lugar social balternos da cidade de Roma, afirma, por exemplo,
do gladiador restrito somente as arenas dos an- que, segundo a ótica de Sêneca, a plebe é retratada
fiteatros deve ser relativizado. Nós temos uma pelo anonimato e, por vezes, adjetivada como sor-
historiografia do século XIX e ainda do século dida plebs, imperita multitudo e credulum uulgus.
XX que coloca o gladiador romano em segun- Termos, por excelência, pejorativos, que contém,
do plano. Tal historiografia é baseada a partir da de forma explícita, um valor moral. Essa projeção
elite e a aristocracia romana é posta em evidên- negativa pode aparecer em expressões: turba, po-
cia nessa configuração da sociedade romana. Os pulus, multitudo, humillis, ignobilis, uulgus e plebs,
valores levados em consideração são elitistas e, cujo sentido é, principalmente, vista como uma
desta forma, contextualizam a classe detentora de massa sediciosa, predisposta à violência e geradora
poder e “inferiorizam” a classe tida comumente de conflitos (OMENA, 2009, p. 85).
como plebs.
Por conseguinte, notamos que há uma pro-
A respeito da própria expressão plebs, deve- jeção negativa no termo plebs difundido princi-
mos ter o cuidado ao usá-la. Montesquieu a utiliza palmente por documentações produzidas pelas
em um sentido que subjuga a população romana elites, inclusive ao remetermos às documenta-
sob o seio elitista, ou seja, não os consideram como ções de cunho elitista, o pesquisador Pedro Pau-
seres atuantes dentro da sociedade, sendo ociosos lo Funari destaca o poeta satírico latino Juvenal
ao trabalho, uma vez que as distribuições de trigo e a expressão cunhada pelo mesmo a respeito da
que recebiam faziam-nos negligenciar o cultivo da política que ficou conhecida como “pão e circo”
terra e os jogos e espetáculos, caracterizados como e servia basicamente para manter a população
fúteis pelo autor, se tornavam necessários a plebe
pobre da cidade sob controle, submissa, através
romana (MONTESQUIEU, 2002, p. 117).
do fornecimento de trigo gratuitamente e diver-
1 Graduando em História Licenciatura pela Universidade Estadual do Ma- sões públicas (FUNARI, 2011, p. 114).
ranhão (UEMA). Mnemosyne/BIC-UEMA. Email: alexandroalaraujo@
hotmail.com Seguindo esse viés de análise, na obra de
2 Departamento de História e Geografia da Universidade Estadual do Maranhão/
Mnemosyne. Email: analiviabv@gmail.com. Jérome Carcopino que sustenta a ideia de pão e
51
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

circo – panem et circenses –, este autor afirma NoVos PosiCioNAmENTos


que a plebe formava uma massa perigosa e para
ACErCA Dos ComBATEs
que houvesse um controle social efetivo por par-
te do Estado, era necessário cercear a popula- DE GLADiADorEs
ção pobre romana. Tal cerceamento ocorria por QuE CoNTrAPÕEm
meio da distração e distribuição de alimentos: A HisTorioGrAFiA
Com efeito os Césares encarregavam-se ao “TrADiCioNAL”
mesmo tempo de o alimentar e de o distrair.
[...] Com as representações que lhe ofere-
ciam nos diversos recintos religiosos ou pro- Podemos refutar a idéia do pesquisador
fanos, no Fórum, nos teatros, no estádio, nas Jérôme Carcopino, ao contrapormos a mesma
naumaquias, enchiam-lhe e disciplinavam- com a do autor Norbert Rouland (1997), em sua
lhe os ócios (CARCOPINO apud COSTA, obra Roma, democracia impossível? os agentes
2005, p. 16). do poder na urbe romana, publicada original-
mente em 1981, com o título Rome, democratie
J. Carcopino expõe outra asseveração no que impossible?. Nessa obra o referido pesquisador
diz respeito à plebe romana tornarem-se simples faz indagações bastante consistentes acerca de
objetos nas mãos dos Césares: como a tradição literária influenciou diversas
Um povo que boceja está maduro para a re- pesquisas que disseminaram e “rotularam” a
volta. Os césares romanos não deixaram a plebe como ociosa, principalmente através da
plebe bocejar, nem de fome nem de tédio.
distribuição de alimentos:
Os espetáculos foram à grande diversão
para a ociosidade dos súditos e, por conse- Afora alguns pequenos presentes, é sobretudo
guinte, o instrumento seguro de seu absolu- pela concessão da espórtula que se manifesta a
tismo (CARCOPINO apud GARRAFFONI, assistência econômica do patrono. Esta revestia-
2005, p. 73). se de duas formas: in natura, compreendendo
alimentos, e em espécie, na maioria das vezes.
Diante da visão que este autor defende, O seu montante irrisório, em geral equivalente a
10 sestércios ao dia [...], não podia absolutamente
a “plebe”, segundo sua interpretação, era ociosa.
cobrir todas as despesas correntes do seu reci-
Logo, era uma massa que tinha um tempo livre, piendário. Marcial, a propósito, qualifica-a como
pois era ociosa para o trabalho e para preencher “óbolo de fome” (insta fames), uma esmola. Essa
o tempo livre destes, a solução encontrada pela exigüidade coloca um problema essencial. Toda
elite, especificamente os Césares, seria a distri- uma tradição literária nos habituou a discernir na
buição de jogos públicos responsáveis por diver- plebe urbana da época imperial nada mais do que
a massa de ociosos, anestesiados politicamente
ti-los. Entre esses jogos estavam os combates de
pelo “pão e circo”, vivendo como parasitas junto
gladiadores, as naumáchias (batalhas navais) e aos pórticos dos poderosos, graças à sua condi-
as uenationes (caçadas). Tais divertimentos se- ção de clientes, muito embora continuassem a
riam um modo seguro para que a plebs não ori- ser assistidos pelo Estado, percebendo as suas
ginassem revoltas e, desta forma, o imperador distribuições de alimento. Ora, apenas os recur-
manteria a ordem e permaneceria no poder, sem sos obtidos por um plebeu na freqüência à casa
dos nobres, mesmo que acrescidos das distribui-
questionamentos da população, já que estaria
ções públicas, são insuficientes para permitir-lhe
ocupada demais com espetáculos e, portanto, viver sem trabalhar, por pouco que fosse. Com
afastadas das decisões políticas. efeito, de que dispõe ele em concreto? A quota
Segundo a visão do próprio autor, como média das distribuições, no primeiro século d.
C., era de 43 litros de trigo ao mês. Isso não pode
se trata de uma ociosidade por parte da popula-
de forma alguma satisfazer as necessidades de
ção pobre de Roma, os mesmos não laboravam duas pessoas, e, a fortiori, de uma família inteira,
e, por conseguinte, os Césares distribuiriam ali- composta de filhos; e isso, tanto mais, levando-se
mentos para que não oscitassem de fome. em consideração que as despesas com alimentos
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Alexandro Almeida Lima Araújo / Ana Lívia Bonfim Vieira

não são as únicas, e que, em particular, o aluguel tro e fora dos anfiteatros através de inscrições
pesa gravemente no orçamento do plebeu. Pode- tumulares feitas pelos próprios populares, nor-
ria a espórtula (10 sestércios por dia) cobrir esse malmente pessoas que conviviam com o gla-
déficit? Embora não seja muito fácil avaliar o seu
poder aquisitivo, tal soma se afigura muito baixa
diador, em outras palavras, pessoas próximas
(ROULAND, 1997, p. 376, grifo nosso). ao gladiador, como, por exemplo, esposas ou
companheiras. Possuíam laços de parentesco,
Em contraposição a idéia de Carcopino e relações extraconjugais, vínculos de amizade e
Montesquieu, seguimos a perspectiva da historia- eram genitores (GARRAFFONI, 2005).
dora Renata Senna Garraffoni, como demonstra a O lugar social do gladiador não necessa-
historiadora Maria Aparecida de Oliveira Silva: riamente se restringia ao espaço físico do anfi-
[...] no disseminar da visão panis et circenses teatro, ultrapassava os limites das arenas e dos
em suas exegeses sobre a gladiatura [...] o gla- combates e não sendo seres passivos e tampou-
diador perde sua humanidade e sua agência co simples objetos do poder imperial romano
no processo histórico atuando como um obje-
para distração do povo romano.
to a ser manipulado pelas elites aristocráticas.
A recente publicação da professora Renata O gladiador, inclusive era visto como um
Senna Garraffoni, intitulada Gladiadores na “fetiche” sexual, sua virilidade encantava as mu-
Roma Antiga: dos combates às paixões coti-
lheres e as mesmas tinham desejos promíscuos
dianas, surge como alternativa para o distan-
ciamento desses topoi exegéticos (OLIVEI-
com o seu gladiador favorito. Este acontecimento
RA SILVA, 2007, p. 203). nos permite pensar sobre as intricadas relações do
gladiador com o público, principalmente com o
Nas palavras da pesquisadora Lourdes público feminino, uma vez que, muitas matronas
Conde Feitosa a respeito da abordagem proposta fugiam com seu gladiador escolhido.
pela R. S. Garraffoni: A posição de gladiador não se restringia so-
Inquieta com as interpretações que, em sua mente aos escravos, condenados da justiça, ou
imensa maioria, apresentam os combates como prisioneiros de guerra. É importante salientar
um fenômeno único e homogêneo, relaciona- que havia uma categoria que não lutavam nas
dos ora a uma “política do pão e do circo”, ora
arenas por obrigação e sim por vontade própria,
ao processo de “romanização”, propõe-se a
analisar as complexas redes de relações que se se vendendo como gladiador – vendendo tempo-
estabeleciam para que os espetáculos pudes- rariamente sua liberdade – e nessas circunstân-
sem acontecer, bem como os vínculos cotidia- cias notabilizemos a aposentadoria do gladiador,
nos dos gladiadores com os espetáculos e a sua a economia e redes administrativas que permea-
receptividade nas camadas populares romanas vam os espetáculos, focalizando os profissionais
(FEITOSA, 2006, p. 213-214).
que sustentavam as realizações dos combates.
Como dissemos há autores que seguem Concernente ao mundo feminino e sua in-
uma perspectiva embasada em textos oriundos tensa ligação com o gládio, ressaltamos que a
pela elite, a pesquisadora Garraffoni se debruça gladiatura romana não era representada somente
em epitáfios e grafites parietais originários da por homens. É essencial enfatizarmos que não
própria camada popular. Diante disso, a mesma desciam somente gladiadores às arenas, gladia-
aborda o cotidiano dos gladiadores segundo a doras também faziam parte dos ludi concretizan-
visão que a população humilde tinha destes lu- do a presença feminina nestes espaços. Em Sati-
tadores e não a visão elitista e deturpadora da ricon de Petronio é revelado que “[...] uma mulher
aristocracia que subjugavam esses indivíduos gladiadora, que correrá no carro”. (PETRONIO
colocando-os como degredados sociais. Por apud VEYNE, 2008, p. 158). Renata Garraffo-
exemplo, Renata Garraffoni explora as múlti- ni (2005, p. 181) explicita que “o termo ‘gladia-
plas relações que os gladiadores possuíam den- dor’, mesmo quando usado no plural, acaba por
53
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

aprisionar as atitudes e as relações sociais destes zavam com matronas, isso nos abre um leque de
combatentes formando uma imagem única que caminhos para pensarmos a posição do gladiador
não considera suas particularidades como, por dentro da sociedade romana como um ser excluí-
exemplo, a origem étnica ou sexo, pois mulheres do ou não. Se o mesmo era excluso porque vivia
também lutavam nas arenas romanas”. somente para os combates nas arenas, a pergunta
que nos cabe fazer é onde ficariam suas múltiplas
Jean-Noël Robert evidencia um interesse
relações de convívio? Havia uma manutenção de
gladiatório presente na vida de muitas mulheres
relações somente dentro das linhas tênues das
que faziam parte do Império romano:
arenas? A prerrogativa de estabelecer vínculos
[...] algumas mulheres que transpiravam sob o com mulheres fora e dentro das escolas de gladia-
vestido de noite mais leve não hesitavam em
dores e viver uma intensa relação de “fuga” com
treinar como verdadeiros gladiadores e em mar-
tirizar com suas espadas os mastros de exercí- a matrona que a deseja nos possibilita afastarmos
cio. ‘Quem sabe até se alguma ambição mais de afirmações que apontam o gladiador como ex-
elevada não se agita em seu coração e se ela não cluso e viver somente para combater.
se destina à verdadeira arena? ’ Enquanto isso,
‘vê com que ardor emocionado ela dispara os Os gladiadores ultrapassavam os limites da
golpes que lhe são ensinados, como o capace- arena e faziam parte das múltiplas relações cul-
te lhe pesa e como permanece firme sobre suas turais e sociais do Império romano. A atividade
pernas [...]’ (ROBERT, 1995, p. 109). desenvolvida pelo gladiador dentro do anfiteatro
– os combates – era apenas uma parte de sua
Logo, percebemos que a prática da gladia- vida cotidiana, como bem aponta a historiado-
tura romana é bem diversificada. Por exemplo, ra Garraffoni (2005, p. 149). Lembramos que
“é sabido que gladiadoras da Britânia utilizavam antes de um gladiador pisar em uma arena era
indumentárias que mantinham suas costas desco- necessário se aperfeiçoar em uma categoria de
bertas, o que permitia que a platéia as tocasse após gladiador, seja uma retiário, mirmilião, trácio,
os combates – este gesto pode ser compreendido entre outros. Esse aperfeiçoamento da prática da
como uma busca por fertilidade” (FERREIRA, gladiatura romana era obtido através das escolas
2006, p. 26). Portanto, os ludi gladiatorii (com- de gladiadores e essa tarefa era desempenhada
bates de gladiadores) não se resumia somente ao por algum gladiador aposentado especialista em
combatente homem, mas a gladiadora que com uma determinada categoria. “Havia verdadeiras
seus trajes despertava o interesse de cunho sexual ‘escolas de gladiadores’, que eram a um tempo
perante o público masculino e feminino que pres- o lugar onde eles moravam e onde aprendiam as
tigiavam os eventos gladiatórios. lutas e treinavam” (VEYNE, 2008, p. 176).
O “tocar” nas costas descobertas dessas com- Se a profissionalização da gladiatura era
batentes nos colocam frente ao aspecto da “obsce- uma atividade exclusa socialmente, por que
nidade” e virilidade empregada no fator ideológico gladiadores aposentados continuariam nessa
de uma busca de fertilidade, ou seja, ter uma dis- exclusão? Não seria mais conveniente ao apo-
posição para fecundação. Inclusive, os jogos gladia- sentar-se, o gladiador se retirar deste meio que
tórios eram caracterizados como viris e enérgicos, o excluía? Bom, percebemos diante dessas in-
pois segundo Paul Veyne “[...] o Estado romano dagações que fazer parte da gladiatura romana
proibiu muitas repetições de espetáculos de ópera não necessariamente o excluía das múltiplas re-
(chamados “pantominas”) por considerá-los desfi- lações de convívio da sociedade.
brados e pouco viris, ao contrário dos combates de
A respeito desta indagação, notabilizemos
gladiadores” (VEYNE, 2008, p. 234-235).
a figura do auctoratus, ou seja, gladiadores que
A partir de todo o conteúdo expresso até não lutavam nas arenas por obrigação, e sim
aqui, referente às relações que os gladiadores go- de maneira voluntária, se vendendo como um
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Alexandro Almeida Lima Araújo / Ana Lívia Bonfim Vieira

gladiador. Segundo Renata Senna Garraffoni e Britânia, necessitando de uma ampla rede de
(2005, p. 186) “tornava-se um auctoratus a pes- comércio responsável por manter a interação de
soa que vendia, temporariamente, sua liberdade mercadorias entre Roma e as demais províncias
(FERREIRA, 2006, p. 33).
a um lanista ou editor por meio de um processo
elaborado diante de um tribuno da plebs”. Nor-
Esses espetáculos movimentavam uma série
berto Guarinello (2007, p. 111) reforça ao dizer
de profissionais, desde àqueles que trabalhavam na
que “eram os auctorati, alguns deles de origem
construção de anfiteatros de pedra, aos que com-
nobre, como cavaleiros ou mesmo senadores,
pravam/vendiam gladiadores; dos atravessadores
que se ofereciam como gladiadores, colocando-
ligados ao “fornecimento” de gladiadores e das fe-
se sob o poder de seu mestre (lanista), ao qual
ras utilizadas nas caçadas que aconteciam nas are-
prestavam um juramento sagrado”.
nas. Os doctores que faziam parte das escolas de
J-N Robert (1995, p. 107) é mais enfático ao gladiadores, responsáveis por treinar as diferentes
afirmar que “[...] é verdade que os gladiadores categorias dos mesmos que combateriam nos jogos.
faziam mais de um perder a cabeça. Por ocasião
A pesquisadora Garraffoni (2005, p. 116)
dos jogos oferecidos por César, dois senadores,
assevera que “para realizar uma caçada monta-
que não conseguiam mais se conter, precipita-
vam-se florestas, feras eram transportadas ao seu
ram-se na arena para combater com os gladia-
interior. Já para os combates de gladiadores e exe-
dores... E esse fato não era raro”. Além do que,
cuções públicas, cenários com motivos mitológi-
“todo mundo se interessava pelos combates,
cos ou de grandes batalhas históricas poderiam
sem exceção da alta sociedade, o que inclui os
ser montados, o que indica o trabalho de uma sé-
letrados” (VEYNE, 2008, p. 178).
rie de pessoas nos ‘bastidores’ para preparar cada
Ao se vender como gladiador, Veyne afirma evento ou retirar corpos dos que ali pereceram”.
que, dependendo de seu desempenho na arena, o Salientamos que “os espetáculos com animais di-
auctorati poderia ganhar fama, status, e dinheiro. fundiram-se nos anfiteatros a partir do século III a.
Portanto, se as arenas dos anfiteatros sempre foram C., também associados à expansão territorial que
vistas apenas como meros locais de manipulação permitiu a obtenção de uma maior variedade de
de espectadores apáticos, nós preferimos enxer- espécimes animais” (ALMEIDA, 1994, p. 66).
gá-las como meios de relações sociais e culturais
mútuas entre todos aqueles que as compunham – A respeito de batalhas que seriam encena-
imperador, senadores, cidadãos, gladiadores, gla- das no anfiteatro, salientamos as naumachias,
diadoras –, e também as vemos como importantes isto é, as batalhas navais que ocorriam dentro
“centros” econômicos, visto que movimentavam das arenas em que estas eram inundadas até
um sistema produtivo de comércio, em âmbito lo- certo ponto para que os barcos “navegassem” e
cal e nas demais províncias. confrontassem. No que dizem respeito aos com-
bates entre feras e homens, animais contra ani-
Percebemos que havia toda uma profissio- mais e as batalhas navais, o pesquisador Indro
nalização voltada para os ludi gladiatori e, con- Montanelli (2010) expõe que:
seqüentemente, havia um lugar especial destes
[...] os números mais esperados eram as lutas
jogos na economia, pois: gladiatórias: entre animal e animal, entre ani-
Aliado a todas essas profissões o comércio se mal e homem, e entre homem e homem. No
mostra imprescindível para este desenvolvimen- dia em que Tito inaugurou o Coliseu, Roma
to. Como sabemos a cidade de Roma, capital do arregalou os olhos de espanto. A arena podia
Império, necessitava de produtos provenientes ser abaixada e inundada como um lago, ou
das províncias para a produção de muitas das reemergir ataviada de maneira diferente, como
materialidades exigidas para a organização dos um pedaço de deserto ou um tufo de selva [...]
combates: os metais são provenientes das pro- O primeiro número foi a apresentação de ani-
víncias da Hispânia, os animais da África, Ásia mais exóticos, muitos dos quais os Romanos
55
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

nunca tinham visto. Entre elefantes, tigres, profundos” (FERREIRA, 2006, p. 32). A pesqui-
leões, leopardos, panteras, ursos, lobos, croco- sadora Thais Bassi Soares e o Laboratório de Es-
dilos, hipopótamos, girafas, linces, etc., desfi- tudos Antigos e Medievais (LEAM) demonstra-
laram dez mil, e muitos estavam ataviados ca-
ram que, através de uma tradução realizada pela
ricaturalmente, para parodiar personagens da
história ou da lenda. Depois, a arena foi rebai- referida historiadora, concernente à pesquisa de
xada e reemergiu adaptada ao combate: leões Andrew Curry, sob o título Gladiadores e seus
contra tigres, tigres contra ursos, leopardos bastidores: “a dieta do gladiador”:
contra lobos (MONTANELLI, 2010, p. 283).
“[...] a maior revelação saída do cemitério de
Éfeso [cemitério de gladiadores, localizada,
A historiadora Regina Bustamante segue a hoje, no território da Turquia Ocidental] é
mesma linha de interpretação: aquela que nos revela como o gladiador se
mantinha vivo: uma dieta vegetariana, rica
Existiam diversos tipos de caçada: enfrenta-
em carboidratos e ocasionalmente comple-
mento direto com fera de grande porte para
mentada em cálcio. Consumir uma grande
deleite aristocrático [...] expedições visando ob-
quantidade de carboidratos simples, como a
ter grande quantidade e variedade de animais
cevada, e leguminosas, como o feijão, era o
para o anfiteatro; e combates na própria arena
indicado para sobreviver na arena. Embala-
do anfiteatro (venationes) para fazer o público
dos em carboidratos e, portanto, embalados
compartilhar das emoções da caçada [...] Os ro-
nos quilos a mais... Uma capa estratégica de
manos recriaram, nos anfiteatros, as condições
gordura protege de cortes, e também protege
de uma caçada real (intervenção de caçadores
os nervos e vasos sanguíneos numa luta”.3
orientais ou africanos, colocados em um cená-
rio imitando o ambiente natural): o anfiteatro
transformou-se em um parque de caça. Os ve- O artigo, portanto, de suma importância,
natores eram, geralmente, armados com armas nos desmistifica a ideia de seres inferiores e de
de projeção à distância, como lanças, dados, ar- carreira “ingrata” ou “infame”, já que a pesquisa
pões ou com armas de lâmina cortante (espadas mostra que possuíam uma alimentação adequada
ou adagas). O apogeu das caçadas se situou sob
para a profissão que exerciam. As evidências ma-
o Império. Fazia-se vir de regiões longínquas
as espécies mais raras. Em teoria, a caçada de teriais encontradas no cemitério de gladiadores,
grandes animais era um monopólio imperial, que passaram por análises técnicas para saberem
mas, de fato, era levada a cabo pelo exército quais tipos de substâncias químicas seriam “diag-
romano. As feras de porte eram capturadas ge- nosticadas” nas estruturas ósseas dos gladiadores
ralmente fora do limes da África Romana, onde mortos, comprovaram tal afirmação.
viviam animais selvagens, acessíveis em núme-
ro suficiente, para os jogos (BUSTAMANTE, Logo, possuíam um bom tratamento e eram
2005, p. 171, grifo nosso). bem cuidados, além do mais, se torna crucial
enfatizarmos “a constituição de um aparato
Havia pessoas responsáveis por cuidar da responsável pela manutenção da saúde e trei-
saúde desses gladiadores, principalmente ao des- namento destes homens e mulheres, já que a
ferir um golpe de espada ou qualquer outro tipo importância financeira obtida por um bom com-
de armamento no seu adversário, um gladiador batente podia chegar ao equivalente a quinze
poderia feri-lo gravemente ou não. Destacamos vezes o salário de um legionário”. (BALIL apud
também a questão da alimentação, aspecto de FERREIRA, 2006, p. 31).
suma importância no seu cotidiano. 3 A pesquisa técnica realizada por Karl Grossschimidt e seu colaborador, Fa-
bian Kanz, notabilizada por Andrew Curry, e traduzida por Thais Bassi com
Desta forma, os gladiadores não tinham uma a divulgação realizada pelo LEAM, torna-se uma fonte para historiadores
brasileiros e estrangeiros que debruçam suas pesquisas para a Antiguidade
vida “marginal” no cotidiano romano, uma vez Clássica. O artigo e o estudo detalhado, sobre os ossos dos profissionais da
gladiatura que pereceram, são aliados dos pesquisadores, para não cairmos
que “os gladiadores eram homens fortes e corpu- em generalizações sobre a vida e quotidiano dos gladiadores que são embasa-
lentos, que se alimentavam muito para aumentar dos em relatos de textos literários providos da aristocracia romana. A íntegra
da pesquisa pode ser consultada em http://www.dhi.uem.br/leam/index.php/
sua massa corporal e para protegê-los dos golpes noticias/122-gladiadores-e-seus-bastidores-a-dieta-do-gladiador

56
Alexandro Almeida Lima Araújo / Ana Lívia Bonfim Vieira

CoNsiDErAÇÕEs FiNAis de combates que perdurou frente à constituição


do Império Romano para serem indivíduos tão
inativos e simples marionetes do Princeps.
Diante do exposto, reforçamos que as lutas
de gladiadores que ocorreram durante e por todo Além do mais, interferiam no cotidiano da
o Império romano, mais especificamente em 264 sociedade de Roma estabelecendo múltiplas re-
a.C até 438 d.C., apesar de nos parecer tão longín- lações de convívio que norteavam dentro e fora
quo, ainda perpassam no imaginário das pessoas da arena. Eram seres ativos dentro da socieda-
em pleno século XXI, haja vista que o período de e, também, consideramo-nos como sujeitos
de extinção dos combates gladiatoriais ocorre históricos, nos distanciando da historiografia
por volta do século V d.C.. (COSTA; GARRAF- do século XIX que retrata o gladiador como um
FONI, 2005). Outros estudiosos afirmam que os instrumento na manipulação da plebs utilizado
gladiadores surgem nos jogos públicos, a partir pelo imperador para se manter no poder e, desta
de 105 a. C.. (GRIMAL, 1981). Há ainda quem forma, cercear a população desprovida de poder.
afirme que o gladiador desaparecerá lentamente
Logo, a política do “pão e circo” é encarada
no decorrer do século IV de nossa era (VEYNE,
por nós como uma construção elitista que dá ênfa-
2008). O distanciamento linear não nos impede
se aos valores aristocráticos romanos e inferioriza
de imaginarmos como seriam os combates de
a população humilde de Roma, não os consideran-
gladiadores, as naumachias (batalhas navais), as
do como seres participantes e ativos da formação
uenationes (caçadas) ocorridas nas arenas.
do Império. Esta política coloca a plateia como
O relevante de se apontar aqui, indepen- “apática”, sem vontade própria, “ociosa” e “peri-
dentemente de que ano se tenha começado os gosa”. Entretanto, os espectadores interagiam com
combates, é repensarmos a figura do gladiador os combatentes evidenciando a complexa partici-
como passivo durante o longo período que se pação da “plebs” na formação da sociedade roma-
estenderam os jogos de gladiadores. Considera- na, especialmente como sujeitos atuantes dentro
mos um tempo muito longínquo de realizações das praxes políticas do Império de Roma.

57
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58
A HISTÓRIA DO AMOR DE FERNANDO E ISAURA:
Um recorte da residualidade medieval
Aline Leitão Moreira1

“Perfeita sincronização de dois seres que,


pátria um do outro, respiram, vivem e morrem
em uníssono”
(Jacqueline Schaefer)

riano Suassuna é hoje considerado um dos O modus vivendi retomado por Suassuna

A autores mais expressivos de nossa literatu-


ra devido à natureza popular de sua obra, o
que se dá através da forma artística da linguagem.
para ilustrar o romance A História do Amor
de Fernando e isaura, literalmente falando,
diz respeito ao modo de vida. Contudo, consi-
Tem sido reconhecido, sobretudo, pela obra teatral deremos enfaticamente a estrutura mental das
Auto da Compadecida e, mais recentemente, pelo personagens, caracterizadas pelo pertencimento
Romance d’A Pedra do Reino. Mas Ariano, com de valores recorrentes na medievalidade.
pouco mais de oitenta anos, não é um autor a quem A fim de compreendermos o ambiente de ori-
devemos apenas duas grandes obras. A lista biblio- gem que circunda a obra medieval inspiradora do
gráfica de Suassuna é vasta, mas o reconhecimento romance de Ariano Suassuna, faz-se necessário re-
de sua obra não se dá apenas pela quantidade, mas, corrermos ao modo de expressão da literatura na me-
preponderantemente pela qualidade de seus textos. dievalidade. A literatura, segundo Franco Jr. (2006,
Tanto assim que optamos por trabalhar uma de suas p. 105-109), autor de A idade média – Nascimento
obras não alardeada pela crítica ou pela mídia. do ocidente, está estruturada em, basicamente, três
A História do Amor de Fernando e isaura grandes ciclos, dos quais a lenda Tristão e isolda faz
(SUASSUNA, 1994) é um romance de Ariano escri- parte, como podemos ver a seguir:
to com o intuito de rememorar a triste e bela lenda Deixando de lado uma série de problemas so-
medieval Tristão e isolda2. Ao elaborar uma versão bre as fontes e as modalidades da transmissão
nordestina do mito de Tristão e Isolda, Ariano Suas- e literalização da tradição oral celta, citemos
apenas seus três grandes ciclos. O primeiro
suna não só respeita o texto original, mas retoma o
desenvolveu-se em torno da figura (histórica?
modus vivendi do medievo através da caracterização Lendária?) do rei Artur e seus cavaleiros da
das personagens, da concepção do amor, da honra Távola Redonda, nos romances de Chrétien de
e da traição. O intuito deste trabalho é demonstrar Troyes (1135-1183). Mais tarde, no século XIII,
o caráter residual3 nesta história trágica do casal ocorreu certa clericalização desse tema, deslo-
cando-se o eixo da narrativa do rei para o Graal,
nordestino Fernando e Isaura. vaso mágico da mitologia celta transformado no
1 Mestre em Letras na Universidade Federal do Ceará (UFC), sob orientação cálice que recolhera o sangue de Cristo na cruz.
do Prof. Dr. Roberto Pontes. Email: alineleitaomoreira@yahoo.com.br O segundo ciclo tratava do amor – adúltero para
2 Os muitos estudos históricos discordam das origens reais de Tristão e
isolda, tornando impossível identificar uma origem comum para a lenda. a igreja, puro para os leigos – de Tristão e Isolda.
Porém há ecos de sua narrativa em diverss culturas. As origens da lenda O terceiro reunia, através de Maria de França,
remetem ao início do século XII, e envolvem muitas fontes e versões. Dois em 1175, vários lais bretões, quer dizer, peque-
autores detêm os primeiros textos mais conhecidos, Thomas of Britain
e Béroul, e, apesar de pequenas diferenças, ambos possuem a essência da nas narrativas rimadas, musicadas, de origem
história. Acredita-se que a narrativa é a versão escrita de uma lenda celta folclórica (FRANCO JÚNIOR, 2006, p. 114).
cujas origens remontam ao século IX. Aqui utilizaremos a seguinte tradução:
FIGUEIREDO, Maria do Anjo Braamcamp. Tristão e isolda. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves, 1997.
3 Roberto Pontes cunhou o termo residualidade, referente a resíduo, como
Além disso, para Hilário Franco a literatura na
aquilo que resta, que remanesce de um tempo em outro e ao longo dos medievalidade pode ser visualizada sob duas verten-
tempos, atualizando-se continuamente com força vigorante. In: PONTES,
Roberto. Poesia insubmissa afrobrasilusa. Fortaleza: ABC Editora, 2001. tes: o latim clássico plasma uma literatura clerical e
59
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

elitista, compreendida como literatura erudita porque Foi longa a citação, mas de extrema importân-
documentadora dos valores e ideais da classe mais cia para compreendermos que a literatura popular
favorecida, bem como efetiva a literatura escrita; já o está para a tradição oral, assim como a literatura
latim vulgar é a modalidade que representa as cama- erudita está para a tradição escrita. Basta compreen-
das populares e tem maior expressão na oratura4. Esta dermos o que diz Elizabeth Dias Martins (2003, p.
surge da necessidade que o homem tem de contar 304-311)6 a respeito da literatura de origem popular.
histórias5, narrar suas venturas e desventuras. Tal Para a autora, neste tipo de literatura, encontramos
prática se justifica na consideração de que o homem, não só recriações das lendas mitológicas, mas este
em busca de si próprio, usa as narrativas como um material possibilitado pela tradição oral é guardado
resíduo constante, através dos tempos, de si mesmo, sob a forma de sedimentos mentais, herança dos
de sua origem e de sua história. Antônio Henrique jograis, trovadores, segréis e menestréis medievais
Weitzel (1995), em Folclore Literário e Lingüístico ibéricos a quem devemos residualmente este legado
assim caracteriza as literaturas Popular e Erudita: que ajuda a compor nossa cultura.
A tradição oral, evoluída natural e espontaneamen- Segundo o Dicionário Temático do oci-
te, deu origem à literatura. E a primeira manifesta- dente medieval (2002), de Jacques Le Goff e
ção da ciência literária foi a literatura tradicional, Jean-Claude Schmitt:
ou seja, literatura oral, porque transmitida de boca
em boca, de geração em geração, e levada a todos O esforço, na virada do século XVIII e XIX, para
os recantos da terra. Essa literatura folclórica ou conhecer os primórdios medievais das literaturas
européias inscrevia-se em uma forma peculiar de
popular, porque nascida do povo e por ele conser-
pensamento. Tratava-se de definir a identidade
vada pelos séculos em fora, sofre modificações de
nacional dos povos através das primeiras manifes-
tempo e lugar, na medida em que se vai divulgando
tações, consideradas coletivas e espontâneas, de
entre diferentes povos, assimilando inovações pecu- sua cultura e arte. Daí a associação, desde o início,
liares e tomando material uns dos outros. Retrata, dos estudos de literatura medieval e dos estudos de
porém, sempre a cultura popular, nas narrativas, nas folclore (LE GOFF; SCHMITT, 2002, pp. 91-92).
canções, modismos, costumes, retida na memória
coletiva, no anonimato, na simplicidade de suas
formas e na desvinculação de qualquer convenção
Considerando que Tristão e isolda7 é uma
literária, atingindo a todos invariavelmente, letrados obra sem a qual perderíamos muito do que podia
e iletrados. Já a literatura culta, erudita, oficial, bem ser concebido como modus vivendi medieval, com-
mais nova que sua outra irmã, a literatura popular, preendemos que precisamos considerá-la enquanto
subordinando-se a escolas e a estilos dominantes detentora de valores da época e, mais do que isso,
em cada época, fortemente compromissada com a detentora de valores universais como amor, paixão,
gramática e a estética, é, muita vez, atingida apenas
respeito, honra, traição. Não fosse assim, não mais
por uma elite intelectual. Ambas essas literaturas,
entretanto, tão fecundas, quão profundas, tão ficti- buscaríamos nos dias atuais a leitura de tal obra.
ciamente independentes, quão sabidamente inter- A literatura pode ser percebida, portanto, como
dependentes, formam uma só literatura, que revela força expressiva das palavras inventariadas nas várias
e mantém toda a criação do homem e perpetua a
culturas e tradições. Assim sendo, o caráter residual
sua herança cultural (WEITZEL, 1995, pp. 18-19).
plasmador de Tristão e isolda, bem como A His-
4 Roberto Pontes não emprega mais a expressão Literatura Oral, por ser
paradoxal. Hoje emprega o termo oratura, que a substitui corretamente. tória do Amor de Fernando e isaura, enquanto
5 Embora o início do contar estória seja impossível de se localizar e permaneça
como hipótese que nos leva aos tempos remotíssimos, ainda não marcados atualização da obra medieval, é incontestável.
pela tradição escrita, há fases de evolução dos modos de se contarem estórias.
Para alguns, os contos egípcios – os contos dos mágicos- são os mais antigos: A residualidade pode ser percebida no modo
devem ter aparecido por volta de 4000 anos antes de Cristo. Enumerar as
fases da evolução do conto seria percorrer a nossa própria história, a história como a literatura foi instaurada fonte cultural dos
de nossa cultura, detectando os momentos da escrita que a representam. O povos através dos tempos, e também pela recor-
da estória de Caim e Abel, da Bíblia, por exemplo. Ou os textos literários do
mundo clássico greco-latino: as várias estórias que existem na ilíada e na 6 MARTINS, Elizabeth Dias. “Sanção e metamorfose no cordel nordestino
odisséia, de Homero. E chegam os contos do oriente: Pantchatantra (VI (resíduos do imaginário cristão medieval ibero-português)” In: Anais do XiX
a.C), em sânscrito, ganha tradução árabe (VII d. C) e inglesa (XVI d. C); e Encontro Brasileiro dos Professores de Literatura Portuguesa. Curitiba:
as mil e uma noites circulam da Pérsia (século X) para o Egito (século XII) 2003. p. 304-311.
e para toda a Europa (séculoXVIII). In: GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do 7 É uma obra que, inicialmente, foi transmitida numa modalidade oral e só
conto. São Paulo: Ática, 2003. posteriormente foi atualizada enquanto versões escritas

60
Aline Leitão Moreira

rência desta, perpetuada nas narrativas essenciais modo a justificar as atitudes pecadoras dos apaixo-
vigorantes até os dias de hoje, a título do ocorrido nados. Uma fórmula mágica ou uma antiga gratidão
com Tristão e isolda, pois segundo Roberto Pontes são elementos que diminuem a culpa dos amantes
a residualidade se instaura quando reconhecemos a e, portanto, aproximam-nos deles. Isso porque
efetivação no presente de um elemento do passado. acima da condição de pecadores, os amantes são
apresentados enquanto figuras humanas, dotadas
Ao retomarmos Tristão e isolda, percebemos
de fraquezas comuns a todos nós, seres humanos.
que a residualidade pode ser detectada em vários
resíduos perdurantes até os dias de hoje enquanto Apesar da forte dose de humanidade das perso-
memória coletiva e que se desdobram com força nagens e, por conseguinte, do pecado, não podemos
vigorante, transformando-se continuamente. A deixar de perceber uma boa dose de culpabilidade
obra medieval que remonta a um período de em- que se dá através do conflito entre razão e emoção,
bate entre cristianismo e paganismo, atualiza-se fé e desobediência, sem, contudo, incorrermos na
de tal modo que Ariano Suassuna empreende uma “ajuda” ou mesmo “proteção” do Divino enquanto
valoração do texto original escrevendo o que po- ser maior. Segundo Brunel (2006), em Dicionário
demos denominar “a versão nordestina da lenda” de mitos Literários comprovamos a seguir que
outrora passada no medievo. Uma leitura atenta das versões antigas já revela,
O pecado, enquanto índice de residualidade, nessa história reputadamente pagã e erótica, a
presença imanente de Deus. Os amantes tomam
foi e pode ser reconhecido como proveniente de constantemente o Senhor como testemunha e
atitudes condenadas pela Igreja, embate entre rogam a ele, raramente em vão. Ele “se abre”
cristãos e pagãos que perdura ainda hoje. Mais que para esses adúlteros nos momentos em que eles
isso: Enquanto tema universal, o pecado foi sempre menos parecem merecedores. O autor de La
uma caracterização comum aos personagens na Folie Tristan de Berne, com relação ao episódio
da descoberta pelo rei dos amantes adormecidos
literatura medieval. Segundo Le Goff e Schimitt:
na floresta mas separados pela espada desem-
Os homens e as mulheres da Idade Média aparecem bainhada de Tristão, declara com segurança que
dominados pelo pecado. A concepção do tempo, a “Deus fazia o que era de sua vontade”. [...] Assim,
organização do espaço, a antropologia, a noção de Tristão e Isolda, como Adão e Eva, encarnam a
saber, a idéia de trabalho, as ligações com Deus, humanidade decaída, mas consciente. Sua pri-
a construção das relações sociais, a instituição de mitiva inocência será reconquistada à custa da
práticas rituais, toda a vida e visão de mundo do dor e no Além [...] A multiplicidade das versões
homem medieval gira em torno da presença do modernas atesta a vitalidade do mito. Ainda nos
pecado. O tempo histórico é um tempo pontuado dias de hoje, a conjunção Tristão e Isolda conti-
pelo pecado: antes e depois da Queda, antes e depois nua a exercer a sua estranha magia. Ao homem
da vinda de Cristo, antes e depois do Juízo Final. de argila apegado à mesmice e ao isolamento, o
As fases da história da humanidade sucedem-se de mito de Tristão oferece a tentação derradeira da
acordo com os acontecimentos cruciais da história exaltação compartilhada com uma outra subje-
do pecado; o ato de desobediência a Deus de Adão tividade (BRUNEL, 2005, pp. 896–897).
e Eva assinala a passagem de um estado original
de perfeição para uma condição dominada pela Além de demonstrar a presença das súplicas
presença do pecado; a Encarnação desencadeia
dos amantes pela proteção de Deus diante do pe-
um processo de salvação, de libertação do pecado;
o fim dos tempos assinala a coordenação definitiva cado, percebemos aqui, segundo Brunel, o fator
dos pecadores e a glória eterna dos não-pecadores. maior da relação que nos propomos observar.
(LE GOFF; SCHMITT, 2002, p. 337) Brunel nos fala da “multiplicidade das versões
modernas” a respeito das personagens Tristão
Le Goff e Schimitt nos mostram que é o pecado e Isolda. Assim sendo, A história do amor de
um tema recorrente na história. Por conseguinte, Fernando e isaura pode ser compreendida so-
Tristão e isolda instaura essa noção de pecado bretudo como atualização das múltiplas versões
enquanto movimentação da narrativa, mas o faz de da tão difundida narrativa medieval.
61
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Em Ariano Suassuna, a principal ambien- Ele (Tristão) disse-lhe em voz baixa: “Isolda,
tação do romance é a fazenda de Marcos, tio de só vós e o amor me perturbaram e me fizeram
perder o senso. Deixei a estrada e eis-me de tal
Fernando, de nome São Joaquim, que “estendia-se modo perdido que jamais a voltarei a encontrar.
entre Penedo e Piassabussu, por uma vasta região, Tudo o que os meus olhos vêem parece-me sem
coberta de coqueiros na faixa da praia e na foz do preço. Em todo o mundo, nada é querido ao meu
Rio São Francisco” (SUASSUNA, 1994, p. 13). coração excetuando vós.” Isolda respondeu:
“Senhor, tal sois vós para mim.” Nos seus belos
Marcos era um homem de posses e criara Fer-
corpos vibravam a juventude e a vida. Quando
nando. De certo modo, a Fazenda São Joaquim, fogos de alegria se acendiam na ilha e os mari-
retoma a fortaleza de Tintagel, costa ocidental da nheiros dançavam cantando à volta das chamas
Cornualha, onde Marcos, tio de Tristão, é rei. avermelhadas, os dois enfeitiçados, renunciando
a lutar contra o desejo, abandonaram-se ao amor
Ariano, como podemos perceber, recorre a (FIGUEIREDO, 1997, p. 49).
vários pontos de encontro para assemelhar as duas
narrativas. Já agora, podemos elencar três elemen- Os amantes, porém, no decorrer de toda a
tos: a ambientação das narrativas, o nome do tio e o narrativa martirizam-se pela infâmia que reali-
nome de Fernando, a guardar, na essência, o mesmo zam contra Marcos:
significado que Tristão8. Suassuna, no entanto, com -Não vá, não me deixe agora! Implorou ela
relação ao nome de Isolda, retoma apenas o que po- (Isaura). Entenda, Fernando: estou vivendo num
demos visualizar na forma escrita ou através do som inferno desde nossa despedida, no Povoado, e já
da palavra. Isaura, é assim, um nome parecido com estou exausta! Não poderia mais suportar tudo
Isolda, sem, contudo, assemelhar-se na significação. isto sozinha!
-Isaura, meu amor, eu também sofro muito,
Também, e principalmente recorrentes, serão mas não podemos ficar juntos [...] (SUASSU-
os valores morais das personagens. Fernando é NA, 1994, p. 66).
apaixonado por Isaura, apesar do respeito e do
amor que sente pelo tio. Já Isaura, apesar da admi- A traição e o sofrimento do casal Fer-
ração sentida pelo esposo, não consegue resistir à nando e Isaura são resíduos da narrativa Tristão
paixão. E ambos passam a ter encontros furtivos e isolda, os quais, também no auge da paixão
de amor à revelia das convenções sociais impos- martirizam-se por seus sentimentos e, mais ainda,
tas pelo casamento, à revelia dos sentimentos de por seus atos:
Marcos, como podemos ver a seguir: Quando Tristão sentiu o amor apossar-se do
seu coração, recordou-se imediatamente do
-Vá para seu camarote! (disse Isaura) Você deve
juramento feito ao rei Marcos, seu tio e seu
ter visto que existe uma porta cravada entre o
suserano, e quis recuar: “Não – dizia consigo
meu e o seu. Vá lá, e arranque os pregos com
mesmo sem cessar - deixa disso, Tristão, volta
cuidado, para que ninguém ouça. Vou me en-
contrar com você em seu [...] Cheio de gratidão, a ti, não acolhas em ti um desígnio tão desleal
Fernando envolveu a moça num olhar ardente (FIGUEIREDO, 1997, p. 48).
e entrou em seu camarote. [...] Longe dos olha-
res dos outros, a primeira coisa que ele fez foi É o próprio Ariano Suassuna quem explica
abraçá-la e beijá-la, o que deixou Isaura mais em “Advertência”9, na primeira parte do livro A
uma vez incapaz de qualquer resistência a seu história do amor de Fernando e isaura, que as
desejo. Abrançando a ela, ele tombou na cama,
arrastando-a (SUASSUNA, 1994, pp. 66-67). personagens passam por conflitos decorrentes da
paixão que os atormenta referentes ao amor, à honra
Assim também sucede em Tristão e isolda. e à beleza, valores morais destas. Além disso, apesar
Na narrativa medieval os amantes se perdem da retidão de seus caráteres, agem contra a moral,
sem deixarem de demonstrar a delicadeza do amor e
no desejo:
sem incorrer na vulgarização dos atos dos amantes.
8 Segundo a onomástica, tanto Tristão, como Fernando são nomes que dizem
respeito à inteligência e força. In:SUASSUNA, Ariano. “Nota Introdutória” A 9 SUASSUNA, Ariano. “Advertência” A História do Amor de Fernando e
História do Amor de Fernando e isaura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. isaura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

62
Aline Leitão Moreira

Sendo assim, é mister observarmos que a idéia de monarquia, pois, embora não existindo
abordamos apenas alguns dos resíduos medievais a figura do rei, Marcos de Suassuna, possui certo
presentes da obra de Suassuna. Muitos ainda poderão caráter soberano, pois, de certa forma, possui seus
ser apreciados, mas não nos convém fazê-lo aqui. Po- vassalos e súditos; forte menção a Deus e às coisas
demos, no entanto, citá-los a fim de não passarem em divinas, a ser percebida pelas súplicas que os amantes
branco: a honra cavaleiresca (embora transgredida) fazem a Deus, bem como, referência ao sexo sendo
pode ser percebida pelo pretenso teor de lealdade a fonte de pecado; apego à castidade como marca de
que se propõe Fernando; o amor cortês, caracterizado honra (Isaura, em sua noite de núpcias com Marcos,
pelo amor não correspondido a uma mulher casada, finge ainda ser virgem); casamento como pressuposto
inatingível (embora, neste caso, seja correspondido); para relações sexuais.

63
REFERÊNCIAS (resíduos do imaginário cristão medieval ibero-português)” In: Anais do
BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos Literários. Rio de Jan XIX Encontro Brasileiro dos Professores de Literatura Portuguesa.
eiro: José Olympio, 2006. Curitiba: 2003. p. 304-311.

FIGUEIREDO, Maria do Anjo Braamcamp. Tristão e Isolda. Rio de PONTES, Roberto. Poesia insubmissa afrobrasilusa. Fortaleza: ABC
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1997. Editora, 2001.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média - Nascimento do Ocidente. SUASSUNA, Ariano. A História do Amor de Fernando e Isaura. Recife:
São Paulo: Brasiliense, 2006, 105-109 Bagaço,1994.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2003. SUASSUNA, Ariano. A História do Amor de Fernando e Isaura. Rio
LE GOFF, Jacques, SCHMIT, Jean-Claude. Dicionário Temático do de Janeiro: José Olympio, 2006.
Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002. WEITZEL, Antônio Henrique. Folclore Literário literário e lingüístico.
MARTINS, Elizabeth Dias. “Sanção e metamorfose no cordel nordestino Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, 1995.

64
os muÇuLmANos
E o QUATROCENTONA DE GioVANNi BoCCACCio

Ana Carolina Lima Almeida1

o século XIV, Florença viveu um dos mais a brigata, público fictício, e os leitores e ouvintes

N expressivos períodos de renovação cultu-


ral. Boccaccio, poeta e prosador, está co-
locado no centro desse movimento. Participou do
da “realidade”. Dentre as cem novelas, sete contêm
personagens explicitamente muçulmanos, que
constituem o objeto deste texto.
sucesso florentino das primeiras décadas do XIV,
A novela 3 da jornada I conta que Saladi-
mas, foi uma das testemunhas das desgraças tra-
no – “[...] il valore del quale fu tanto, che non
zidas pela peste. Diz, no proêmio do Decamerão,
solamente di piccolo uomo il fé di Babillonia
elaborado entre 1349 e 1351, que Florença havia
soldano ma ancora molte vittorie sopra li re
abandonado seus cidadãos. Assim, justificava o
saracini e cristiani gli fece avere [...]” (BOC-
convite à retirada da cidade para o topos amenos,
CACCIO, 1980a, p. 79) – precisou de dinheiro e
com o intuito de novelar.
recordou-se de um judeu. Para fazê-lo emprestar
No proêmio do Decamerão expõe o motivo o montante que necessitava, Saladino chamou-o
que o levou a escrever e demonstra o caráter “peda- e perguntou qual das três religiões – o judaísmo,
gógico” do seu livro para as mulheres. Seguem-se o cristianismo e o islamismo – era a verdadeira.
10 jornadas, cada qual com 10 novelas, que são, Compreendendo que Saladino queria apanhá-lo
respectivamente, contadas por cada um dos dez por suas palavras, contou a história dos três anéis
membros da brigata. Na conclusão, agradece e e concluiu que cada povo considera a sua religião
dialoga com seus leitores, em especial, com as como a verdadeira, portanto, não se sabe quem
mulheres, que constituem o seu “público-alvo”. está com a verdade. Como o judeu não caiu na
A estrutura do Decamerão consiste em armadilha, Saladino explicou suas necessidades
uma visão de narrativa que, até então, nenhum e informou o que faria se ele não tivesse dado
outro escritor tinha concebido. Sua narrativa se uma resposta tão inteligente quanto dera. Ele
fundamenta na estrutura de “framestory”2 que emprestou a Saladino. Depois, o sultão devolveu
pode ser percebida como uma forma de ordenar o montante que pegou com o judeu e “[...] gli
as várias histórias presentes no livro. Composto donò grandissimi doni e sempre per suo amico
de “molduras” que se distanciam: há um narrador l’ebbe e in grande e onorevole stato apresso di sé
externo, Boccaccio, que apresenta a história dos il mantenne” (BOCCACCIO, 1980a, p. 82).
dez membros da brigata e os narradores internos, A novela 7 da jornada II trata de uma sarra-
os membros da brigata, que contam histórias inde- cena bela que, por causa da sua beleza, foi obri-
pendentes uma das outras. Nas novelas contadas gada a se casar por nove vezes em um período
há ainda personagens que narram histórias. A de, talvez, quatro anos. O sultão Beminedab da
narrativa tem uma dupla função: a de causar pra- Babilônia tinha uma filha chamada Alatiel, que
zer e instruir. O público é, no Decamerão, duplo: era considerada a mulher mais bonita do mundo.
1 Doutora em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisa- Atendendo o pedido do rei do Garbo que o tinha
dora do LEPEM/UFRRJ. Email: anacarolina_la@hotmail.com ajudado em uma guerra, o sultão deu-lhe sua filha
2 http://www.brown.edu/Departments/Italian_Studies/dweb/literature/
theory/ framing.shtml. em casamento, enviando-a com uma rica comitiva.
65
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Durante a viagem, o navio enfrentou três o príncipe. Ele a tratava como sua própria mulher
dias de tempestades. A embarcação de Alatiel e sua beleza era assunto em toda Romênia.
foi jogada contra uma praia da ilha Maiorca. Um
Ouvindo os comentários, o duque de Atenas
gentil-homem, Pericone da Visalgo, e grande par-
quis vê-la. Partiu para Clarença e se apaixonou
te de seus familiares passavam por ali. Pericone
por ela. Resolveu tê-la para si e matou o príncipe
viu o barco e mandou um dos seus entrar e ver o e o seu camareiro. Deitou-se com ela, em seguida,
que tinha acontecido. Ao saber do que se tratava, partiu para Atenas. Como seu crime foi descoberto,
ordenou que as mulheres e seus pertences mais buscou de todas as formas mostrar que era inocente.
preciosos fossem resgatados. O gentil-homem O imperador de Constantinopla mandou seu filho,
levou-as para seu castelo e inferiu que Alatiel era Constanzio, e seu sobrinho para ajudarem o duque,
uma dama nobre. Mesmo estando fisicamente que era marido de sua filha. A duquesa contou toda
mal tratada, ela despertou o desejo de Pericone. a verdade para os enviados. Eles pediram ao duque
Apaixonado pela mulher, tentou de várias formas para ver Alatiel e Constanzio apaixonou-se por ela.
levá-la a satisfazê-lo, mas não conseguiu. A mu- Com apoio de sua irmã, roubou Alatiel afirmando
lher percebeu que teria que ceder. Assim, “[...] con que fazia isso por causa da duquesa. A filha do
altezza d’animo propose di calcare la miseria della sultão desolada foi levada por Constanzio a Quios
sua fortuna” (BOCCACCIO, 1980a, p. 231). Bus-
e foi bem consolada por ele.
cando conseguir o que desejava, Pericone notou
que ela gostava de vinho, porém não sabia beber O rei dos turcos, Osbech, soube que Constanzio
porque tinha sido proibida por sua religião. Então, ficava sem nenhuma proteção em Quios com uma
deu uma festa e mandou o servidor fazer com que mulher. Osbech foi para Quios e sequestrou a filha do
ela bebesse vários tipos de vinhos. Quando a festa sultão. Levou-a para Ismirna, onde fez de Alatiel sua
terminou, ele atingiu seu objetivo. Desde então, ela legítima esposa. Sendo informado que seria atacado,
passou outras noites com ele. por um lado, pelo imperador de Constantinopla e, por
outro, pelo rei da Capadócia, Osbeque foi com seu
Pericone tinha um irmão chamado Marato
exército contra este rei e deixou sua mulher com um
que, quando viu Alatiel, passou a desejá-la. Para
familiar muito fiel. Esse, apesar de velho, apaixonou-
conseguir ficar com ela, Marato matou o irmão
se. Ele sabia a língua de Alatiel e passou a ter uma
e levou-a para um navio de dois genoveses que
grande intimidade com ela. Da amizade, passaram
iam para Clarença na Romênia. “La donna ama-
à prática amorosa. Quando souberam da morte de
ramente e della sua prima sciagura e di questa
Osbech, o velho e a nobre foram para Rodes. Aí, o
seconda si dolfe molto; ma Marato [...] la cominciò
velho ficou doente e encontrou um amigo seu, um
per sí fatta maniera a consolare, che ella, già con
comerciante de Chipre. Como estava para morrer,
lui dimesticatasi, Pericone dimenticato aveva [...]”
deixou sua mulher e seus pertences para o amigo e
(BOCCACCIO, 1980a, p. 235). Durante a viagem,
pediu que eles não se esquecessem dele. O mercador
os genoveses se apaixonaram por ela e resolveram
teve que voltar para Chipre e a mulher decidiu ir com
tê-la. Um dia, Marato estava distraído à popa e os
ele desde que ele a respeitasse como uma irmã. Mas,
dois genoveses, aproveitando a situação, jogaram-
na viagem para Bafa, esqueceram a promessa que
no no mar. Alatiel passou a se lamentar por sua
tinham feito ao velho.
má sorte. Depois de ela ter se acalmado, os dois
começaram a disputar quem seria o primeiro a Em Bafa, havia um homem que se chamava Anti-
ficar com ela e lutaram com uma faca. Um morreu gono. Um dia, passou pela casa em que Alatiel morava
e o outro ficou ferido. Chegando a Clarença, ela e ela, logo que viu Antigono, recordou que ele tinha
passou a cuidar deste e a fama da sua beleza se servido a seu pai. Assim, pensou que poderia voltar
espalhou. O príncipe da Moréia, que estava na- ao estado de realeza se seguisse os conselhos daquele
quela cidade, decidiu vê-la e apaixonou-se. Então, homem. Antigono disse-lhe que todo o Egito tinha
os parentes do genovês ferido mandaram-na para certeza de que ela tinha morrido afogada.
66
Ana Carolina Lima Almeida

Após ter contado a história, Antigono disse agradaram ao sultão e ele pediu ao catalão que
que, como ela nunca revelara a identidade, podia deixasse Sicurano como criado.
fazer com que voltasse para casa e se casasse com
Em Acre, que estava sob o governo do sultão,
o rei do Garbo. Chegando ao Egito, Alatiel foi havia, todos os anos, uma reunião de mercadores
inquirida por seu pai e disse tudo o que Antigono cristãos e sarracenos. O sultão mandava muitos
tinha mandado dizer. Afirmou que foi levada por dos seus homens cuidarem e guardarem a reunião.
dois homens a um convento. Ao ser perguntada Em Acre, Sicurano viu uma bolsa e uma cinta que
sobre quem era e da onde vinha, com medo, falou eram suas e chegou até o seu proprietário. Pergun-
que era filha de um nobre de Chipre e que tinha tado sobre como tinha conseguido os objetos, Am-
sido mandada a Creta para se casar. Disse ao pai bruogiuolo confessou o que tinha feito. Sicurano
que, por temer que acontecesse algo pior, seguiu o compreendeu o motivo de seu marido ter mandado
cristianismo. Como alguns franceses iam com suas matá-la, tornou-se íntima de Ambruogiuolo e fez
mulheres para Jerusalém e a abadessa era parente com que ele ficasse em Alexandria.
de algumas delas, a religiosa pediu que levassem
Alatiel até o seu pai no Chipre. Aí chegando, a nobre Querendo provar sua inocência, Sicurano
viu Antigono, que fingiu ser seu pai e, logo, a levou conseguiu que Barnabò viajasse para Alexandria
para casa paterna. Antigono confirmou as palavras e fosse recebido na casa de um amigo. Assim que
de Alatiel e acrescentou que quando entregaram-na, soube que Barnabò estava na cidade, Sicurano
as mulheres louvaram a sua honestidade e as suas fez com que Ambruogiuolo e Barnabò fossem à
virtudes. O sultão fez uma festa, recompensou presença do sultão, que já conhecia toda a história.
Antigono e casou a filha com o rei do Garbo. Sicurano pediu ao sultão que Ambruogiuolo falas-
se na frente de Barnabò o que tinha feito com sua
Na novela 9 da jornada II, um comerciante a mulher. Achando que teria apenas que devolver o
genovês, Barnabò Lomellin, conversando com dois dinheiro da aposta, Ambruogiuolo contou a verda-
comerciantes, afirmou que sua mulher era a mulher de. Sicurano perguntou a Barnabò o que ele tinha
mais virtuosa da Itália. Um mercador que ali estava, feito com sua mulher e ele disse que tinha mandado
Ambruogiuolo de Piacenza, começou a rir. Barnabò matá-la. O sultão ouviu tudo e Sicurano pediu
não gostou e passou a discutir com Ambruogiuolo, a ele que castigasse Ambruogiuolo e perdoasse
que apostou com Barnabò que, dentro de três meses, Barnabé. O sultão concordou e Sicurano, aos pés
faria a mulher dele ceder aos seus desejos. do Sultão, revelou sua verdadeira identidade.
Em Gênova, percebendo que não conseguiria O sultão não acreditou que Sicurano fosse mu-
nada com a esposa de Barnabò, Ambruogiuolo entrou lher, mas foi convencido pelas evidências, o Sultão:
escondido na casa dele e conseguiu elementos para
[...] con somma laude la vita e la constanzia e i
provar que tivera relações com sua mulher. Tomado
costumi e la virtú della Ginevra, infino allora
pelo ódio, Barnabò mandou que um criado a matasse. stata Sicuran chiamata, commendò. E fattile ve-
Ao perceber que iria ser morta, a mulher pediu nire onorevolissimi vestimenti feminili e donne
che compagnia le tenessero, secondo la dimanda
piedade e disse que, se o criado não a matasse,
fatta da lei a Bernabò perdonò la meritata morte.”
iria para longe e ninguém saberia seu destino. O (BOCCACCIO, 1980a, p. 301). O sultão mandou
criado aquiesceu. A mulher, à noite, foi a uma vila que Ambruogiuolo fosse untado de mel, amarrado
vizinha e lá uma velha transformou sua aparência. em um poste e ficasse sob o sol. Fez com que seus
Ficou com o aspecto de um marujo e partiu rumo bens fossem dado à mulher [...] e egli, fatta appres-
ao mar. Encontrou um gentil-homem da Catalunha tare una bellissima festa, in quella Bernabò come
marito di madonna Zinevra e madonna Zinevra sí
e colocou-se a seu serviço com o nome de Sicurano
come valorosissima donna onorò, e donolle che in
da Finale. O gentil-homem foi para Alexandria e gioie e che in vasellamenti d’oro e d’ariento e che in
sempre era convidado pelo sultão para fazer as denari, quello che valse meglio d’altre diecemilia
refeições na sua companhia. Os modos de Sicurano dobbre (BOCCACCIO, 1980a, p. 301).
67
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

A novela 10 da jornada III conta que na para o inferno. Assim, a energia de Rustico foi con-
Berbéria, na cidade de Capsa, havia um homem sumida. Como ele quase não a chamava mais para
bastante rico que, dentre outros filhos, tinha “[...] servir a Deus, a jovem reclamava que não servia a
una figlioletta bella e gentilesca, il cui nome fu Deus como deveria.
Alibech” (BOCCACCIO, 1980a, p. 444). Ela não
Enquanto isso, ocorreu um incêndio em Capsa.
era cristã, mas sempre escutava os cristãos de sua
Toda família de Alibech morreu e ela se tornou a
cidade exaltando o cristianismo. Um dia perguntou
única herdeira. Um jovem, Neerbale, que tinha
como se podia melhor servir a Deus e obteve como
acabado com todos os seus bens passou a procurar
resposta que os que deixavam o mundo e iam para
Alibech. Neerbale conseguiu levá-la de volta e
a região desértica da Tebaida eram os melhores
casou-se com ela. Alibech reclamou com algumas
servos de Deus. A menina que, “[...] semplicissima
mulheres que Neerbale pecara por tê-la tirado do
era e d’età forse di quattordici anni, non da ordinato
serviço divino. Então, as mulheres perguntaram
disidero ma da un cotal fanciullesco appetito [...]”
como era enviar o diabo para o inferno. Após ouvi-
(BOCCACCIO, 1980a, p. 444), foi, sem falar com
rem a resposta, as mulheres, rindo, afirmaram que
ninguém, para o deserto.
ela e Neerbale serviriam muito bem a Deus.
Depois de ter andado durante muitos dias,
Na novela 4 da jornada IV, Gerbino, neto do
chegou ao deserto. Logo viu uma pequena casa e
rei da Sicília Guiglielmo II, foi criado por seu avô
foi para lá. Encontrou um homem que perguntou o
e era um jovem muito belo, famoso por ser cortês e
que ela fazia. Ela respondeu que, seguindo a inspi-
por seu heroísmo. Tal fama se espalhou por várias
ração divina, queria servir bem a Deus e procurava
regiões do mundo. A filha do rei de Túnis tinha
uma pessoa que pudesse ensiná-la. O homem, com
ouvido da fama de Gerbino. Ela, “[...] secondo che
medo de pecar, ordenou que procurasse um outro
ciascun che veduta l’aveva ragionava, era una delle
homem, que não morava longe, para ajudá-la. Lá
piú belle creature che mai dalla natura fosse stata
chegando, o outro homem falou o mesmo. Alibech
formata, e la piú costumata e con nobile e grande
encontrou, então, a cela de um jovem e devoto
animo” (BOCCACCIO, 1980a, p. 518). A partir
eremita. Ele se chamava Rustico e, querendo pro-
dos atos de Gerbino, imaginou como ele deveria
var que superaria seus impulsos, aceitou a jovem.
ser e apaixonou-se por ele. “D’altra parte era, sí
À noite, foi tentado e sucumbiu. Passou a pensar
come altrove, in Cicilia pervenuta la grandissima
como levá-la a satisfazer seus desejos sem que
fama della bellezza parimente e del valor di lei [...]”
fosse considerado dissoluto. Perguntou se ela já
(BOCCACCIO, 1980a, p. 518). Gerbino, ao ouvir a
havia estado com algum homem e confirmou a
fama da princesa, apaixonou-se por ela. Como não
grande ingenuidade de Alibech. Então, pensou em
podia ir a Túnis sem ter alguma justificação, pedia
uma fórmula para ela fazer o que ele queria e, ao
para os amigos que iam àquela cidade dizer que ele
mesmo tempo, achar que estava servindo a Deus.
amava a princesa e trazer notícias dela.
Passou a falar de como o diabo era inimigo de
Um desses amigos contou à princesa que Ger-
Deus e que ele deveria ser enviado ao inferno. Ela
bino a amava, por isso, enviou-lhe uma joia. Por
perguntou como faria isso e Rustico mandou que ela
meio de um amigo, Gerbino e a princesa mantinham
seguisse as suas ordens. Ele tirou as roupas e ficou
contato. Contudo, o rei de Túnis prometeu sua filha
ajoelhado. Ela fez o mesmo e ficou de frente para
em casamento ao rei de Granada. Isso entristeceu
ele. Rustico sentiu o auge do desejo e ela perguntou
muito a princesa que, se conseguisse, deixaria o
o que era aquilo que ele tinha, mas ela não. Respon-
seu lar para se ligar a Gerbino. Ele ficou desolado e
deu que era o diabo que deveria ser reenviado para
achava que, se ela fosse enviada ao rei de Granada
o inferno, que ela possuía. Querendo servir a Deus,
pelo mar, seria capaz de sequestrá-la.
ela aceitou que ele fizesse o necessário. Apesar de
ter reclamado no início, Alibech passou a gostar de Quando chegou o tempo de mandá-la para Gra-
servir a Deus e pedia para que o diabo fosse enviado nada, o rei de Túnis, tendo conhecimento do amor
68
Ana Carolina Lima Almeida

dos dois e dos planos de Gerbino, comunicou ao rei Como não tinha coragem para se suicidar, certa
Guiglielmo II o que faria desde que este rei garantisse noite, saiu de casa e foi ao porto. Achou um barco
que ninguém, inclusive Gerbino, impediria a realiza- de pescadores, entrou nele e deixou-se levar pelo
ção do seu projeto. Não sabendo que o neto amava vento. Acreditava que, ou o vento viraria o barco
a princesa de Túnis, o rei da Sicília, ao mandar para ao contrário, ou o barco iria se chocar contra algum
aquele rei sua luva, deu-lhe sua garantia. Então o rei escolho. De qualquer forma, não sobreviveria por-
de Túnis mandou que fosse preparado um grande e que seria afogada. No entanto, Gonstanza chegou a
bonito navio para enviar sua filha. uma praia acima de Túnis, perto da cidade de Susa.
A princesa mandou um criado a Palermo para Uma “povera feminetta” (BOCCACCIO,
contar a Gerbino que, em alguns dias, iria para 1980b, p. 612) estava na praia quando o barco esta-
Granada. Ouvindo tais notícias e sabendo que o va encostando na areia. Ela foi ver quem estava no
seu avô tinha dado sua garantia ao rei de Túnis, barco e encontrou Gonstanza dormindo. Por suas
Gerbino não sabia como agir. Guiou-se pelo amor roupas, a mulher percebeu que Gonstanza era cristã
e esperou nas costas da Sardenha pelo navio dela. e perguntou como tinha chegado ali. Como ouvia
Ao se aproximarem, Gerbino mandou que, se não latim, Gonstanza achou que tinha voltado a Lípari.
desejassem combater, os patrões do navio deveriam Levantou-se e olhou ao redor, mas não reconheceu
descer para as galeras. Os sarracenos viram que, onde estava e perguntou o nome do local em que
apesar da garantia do rei da Sicília, estavam sendo estava. Gonstanza começou a chorar porque Deus
atacados e disseram que, a não ser que fossem der- não permitiu que ela morresse. “La buona femina,
rotados, nunca dariam nada que estivesse no navio. questo vedendo, ne le prese pietà e tanto la pregò,
che in una sua capannetta la menò, e quivi tanto la
Então, começou o combate. Ficando em uma
lusingò, che ella le disse come quivi arrivata fosse
situação em que deveriam optar por se render ou
[...]” (BOCCACCIO, 1980b, p. 613). Gonstanza
morrer, os sarracenos, diante de Gerbino, cortaram
perguntou quem a mulher era e esta disse que se
as veias da princesa e jogaram-na ao mar. Apesar
chamava Carapresa, que era de Trípani e que estava
da extrema tristeza e de querer morrer, Gerbino
a serviço de certos pescadores cristãos. Gonstanza
matou muitos muçulmanos. Ordenou que o navio
pediu que Carapresa desse-lhe um conselho para
fosse pilhado e que o corpo da princesa fosse tirado
que impedir que fizessem alguma vilania contra
do mar. Tendo sido informado do que ocorrera,
ela. Carapresa, então, foi com Gonstança para Susa
o rei de Túnis mandou embaixadores à corte do
e disse que a levaria “[...] in casa d’una bonissima
rei da Sicília para cobrarem a palavra dada. O rei
donna saracina, alla quale io fo molto spesso ser-
Guiglielmo II mandou prender Gerbino e decretou
vigio di sue bisogne, e ella è donna antica e mise-
que o neto deveria ser decapitado.
ricordiosa; io le ti raccomanderò quanto io potrò il
Na novela 2 da jornada V, o pai de Gonstanza piú e certissima sono che ella ti riceverà volentieri e
negou a Martuccio Gomito a mão de sua filha em come figliuola ti tratterà [...]” (BOCCACCIO, 1980b,
casamento porque o rapaz era pobre. Com raiva p. 614). Carapresa levou Gonstanza à senhora, que
do ocorrido, Martuccio jurou que sairia de Lípari teve piedade da jovem e levou-a para sua casa, onde
e só retornaria quando enriquecesse. Tornou-se morava com outras mulheres, que faziam trabalhos
corsário e ficou rico. Contudo, barcos sarracenos manuais. Gonstanza aprendeu os serviços e passou
roubaram-no e prenderam-no. Martuccio foi le- a trabalhar com elas.
vado para Túnis e ficou preso permanecendo na
Um jovem que tinha muito poder se levantou
miséria por um muito tempo. Houve, em Lípari,
contra o rei de Túnis. Ele se proclamava rei e marchou
a notícia que Martuccio tinha morrido afogado.
contra o verdadeiro rei para expulsá-lo. Martuccio
Gonstanza, que tinha ficado muito triste Gomito ouviu o que acontecia e, sabendo falar a língua
quando Martuccio partiu, ao ouvir que ele morre- bérbere, comentou com os homens que vigiavam os
ra, chorou muito e decidiu não querer mais viver. prisioneiros que, se conseguisse falar com o rei, diria
69
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

a ele como vencer a guerra. O rei foi informado do Saladino perguntou a um dos criados do se-
que Martuccio dissera e mandou que fosse conduzido nhor Torello se eles conseguiriam chegar a Pavia
a sua presença. Martuccio disse ao rei que, se conse- a tempo de entrar na cidade. O próprio senhor
guisse fazer com que os inimigos não tivessem setas Torello respondeu negativamente. Saladino per-
e suprisse o seu próprio exército com uma grande guntou onde eles poderiam se hospedar e o senhor
quantidade de setas, seria o vencedor. O rei seguiu mandou que seguissem um dos seus criados. O
o conselho, venceu e tornou Martuccio um homem gentil-homem ordenou que outro criado fosse a
rico e de elevada posição social. Todos souberam do sua propriedade e preparasse tudo para hospedar
que acontecera, inclusive Gonstanza, que achava que os forasteiros. Quando os estrangeiros chegaram,
Martuccio estava morto. Assim, o amor que nutria o proprietário esperava-os e tratou-os muito bem.
por ele reavivou e cresceu. Como tinha esperança, Saladino e seus homens conversaram em latim
Gonstanza falou tudo para a senhora que a acolhera e com o gentil-homem que perguntou quem eles
disse que queria ir a Túnis para ver Martuccio. eram. Eles responderam que eram mercadores
de Chipre que iam para Paris.
A senhora concordou e, junto com Carapresa,
levou Gonstanza a Túnis. A senhora foi conversar com O senhor Torello mandou que um criado
Martuccio e falou que tinha um servidor que desejava dissesse a sua mulher, que estava em Pavia, que
falar com ele. Martuccio foi à casa onde a senhora preparasse uma recepção. Ao chegaram a Pavia, o
estava hospedada com Gonstanza. Esta, logo que o gentil-homem levou os forasteiros para sua casa.
viu, correu a seu encontro. Abraçaram-se e Martuccio Não podendo negar uma tão grande cortesia,
disse que soube que ela estava desaparecida. Gonstan- Saladino e os seus foram muito bem recebidos.
za contou tudo a ele que falou com o rei o que tinha E quantunque il Saladino e’ compagni fossero
acontecido e disse que, com a permissão dele, queria gran signori e usi di veder grandissime cose, non-
casar com Gonstanza de acordo com o cristianismo. dimeno si maravigliarono essi molto di questa, e
“Il re si maravigliò di queste cose [...]. E fatti venire lor pareva delle maggiori, avendo rispetto alla qua-
lità del cavaliere il qual sapevano che era cittadino
grandissimi e nobili doni, parte a lei ne diede e parte
e non signore (BOCCACCIO, 1980b, p. 1212).
a Martuccio, dando loro licenzia di fare intra sé quello
che piú fossi a grado a ciascheduno” (BOCCACCIO,
O senhor Torello ficou a sós com os hóspedes
1980b, p. 618). Gonstanza e Martuccio foram com
em seu quarto e ordenou que sua mulher viesse
Carapresa para Lípari, onde se casaram.
para junto deles. Saladino ficou admirado com a
A novela 9 da jornada X trata de “[...] una delle nobreza e a cortesia daquele cavaleiro, que não
magnificenzie del Saladino [...]” (BOCCACCIO, acreditava que eles fossem apenas mercadores.
1980b, p. 1206). Na época do Imperador Federigo I, Durante a viagem de volta para Alexandria, o
houve uma cruzada para que os cristãos retomassem sultão fez muitos elogios ao senhor Torello.
a Terra Santa. “[...] Saladino, valentissimo signore
Quando a cruzada começou, o senhor Torello
e allora soldano di Babilonia [...]” (BOCCACCIO,
resolveu partir e disse a sua mulher que, se ela não
1980b, p. 1207) soube do empreendimento e decidiu
tivesse informações dele, deveria esperar um ano,
ir pessoalmente ver os preparativos dos cristãos para
um mês e um dia a partir de sua saída. Se ele não
a expedição a fim de enfrentá-los da melhor forma.
retornasse, poderia casar novamente. Em Acre,
Saladino, vestido de mercador, partiu do Egito com
o gentil-homem foi preso pelos muçulmanos e,
dois de seus homens mais sábios e três criados.
levado a uma prisão em Alexandria, passou ao
Indo de Milão a Pavia, ele e seus homens en- amestramento de pássaros. Sabendo da existência
contraram com um gentil-homem que se chamava de de um amestrador de pássaros, Saladino mandou
senhor Torello. Este, logo que viu o grupo de homens que fosse tirado da prisão e fez dele seu falcoeiro,
de Saladino, notou que era um grupo de nobres es- mas não se reconheceram. Um dia, ao conversar
trangeiros. Assim, desejou prestar homenagens a eles. com seu falcoeiro, percebeu que o cristão fazia um
70
Ana Carolina Lima Almeida

movimento de boca igual ao do senhor Torello. através de um mensageiro, informou a Saladino


Assim, interrogou-o e confirmou a sua suspeita. que havia voltado bem para sua terra.
Saladino, então, honrou-o de diversas maneiras.
Segundo a perspectiva de Régnier-Bohler
Um cavaleiro de pouca expressão chamado (1990), as obras de ficção são consideradas não
Torello de Dignes tinha morrido. Como o senhor como realidade em si, mas histórias, nas quais
Torello de Ístria era muito conhecido, surgiu a se encontram aspectos da realidade social. Isso
notícia, que se chegou até à mulher deste cavalei- porque a maneira pela qual uma sociedade se vê
ro, que seu marido tinha morrido. Seus irmãos e ou a forma que gostaria de ter seus problemas
parentes aconselhavam-na a casar novamente. Ela resolvidos são transpostos para a literatura. Tal
não concordava com a ideia, mas foi obrigada a fato revela a importância da sua imagem para si
consentir. Impôs, então, a condição de que só teria mesma e das questões colocadas que, em alguns
efetivamente um novo marido quando expirasse o casos, foram, na ficção, resolvidas. Contudo,
prazo estipulado pelo senhor Torello. Tendo apenas as soluções dadas não necessariamente foram
oito dias para o término do prazo, o senhor Torello empregadas pela sociedade para solucionar suas
viu um homem que estava junto dos embaixadores questões. Apontando os conflitos existentes na
genoveses quando ele pediu que eles entregas- sociedade da época, as novelas do Decamerão
sem a sua mulher uma carta que tinha escrito. O contêm aspectos da sociedade.
gentil-homem perguntou ao homem como tinha
Na realidade, devido à retomada comercial a
sido a viagem e ele respondeu que todos haviam
partir do século XI, a Europa e, em especial a Itália,
morrido, exceto ele, que tinha desembarcado antes
passou a ter um maior contato com os árabes. O
em Creta. Acreditando que sua mulher já estava
Mediterrâneo, com o domínio muçulmano, e o Norte
casada e que não conseguiria chegar a Pavia em
da Europa, com o domínio eslavo-escandinavo,
oito dias, o senhor Torello sentiu uma profunda
continham as “[...] duas franjas de poderosas cidades
dor e resolveu morrer. Saladino tentou convencer
comerciais: na Itália e, em menor grau, na Provença
o gentil-homem que só se resignou quando o sultão
e na Espanha; e na Alemanha do Norte.” (LE GOFF,
falou poderia fazer com que ele chegasse a Pavia
1991, p. 8). Contudo, “nem todo o comércio estava
antes do término do prazo.
nas mãos de mercadores muçulmanos. O comércio
Saladino procurou um nigromante que conhe- no Mediterrâneo era controlado em grande parte por
cia e lhe pediu que transportasse o senhor Torello navios e mercadores europeus, primeiro os de Amal-
para Pavia. Um dia antes do prazo expirar, a magia fi, depois os de Gênova e Veneza [...].” (HOURANI,
foi realizada. Antes, porém, Saladino, quase cho- 2001, p. 126). Desta forma, muçulmanos e cristãos,
rando, pediu para o seu amigo voltar a visitá-lo. além dos encontros ocorridos por navegarem no
“Per che il Saladino, teneramente abbracciatolo Mediterrâneo, tinham contato por meio do comércio
e basciatolo, con molte lagrime gli disse ‘Andate que se desenvolvia nas cidades. Tal contato possibi-
con Dio’ [...]” (BOCCACCIO, 1980b, p. 1225). litou que o “infiel” fosse visto com menor alteridade
Depois do senhor Torello ter adormecido, Saladino naquelas regiões do que em outras partes da Europa.
colocou junto ao seu corpo vários presentes. O O caráter produtivo e comercial de Florença, prova-
gentil-homem pousou com todos os presentes que velmente, propiciou mais contatos entre sarracenos
recebera em uma igreja de Pavia e assustou a todos. e cristãos, o que deve ter influenciado a forma que
Então, viu os objetos que estavam ao seu lado e os islâmicos foram representados no Decamerão.
“[...] quantunque prima avesse la magnificenzia del Percebe-se claramente que os árabes não são vistos
Saladin conosciuta, ora gli parve maggiore e piú de forma negativa nas histórias acima resumidas. Os
la conobbe.” (BOCCACCIO, 1980b, p. 1227). No muçulmanos são corteses, convivem com diferentes
dia seguinte, seria realizado o casamento de sua religiões, sofrem, choram, têm desejos, amam, são
mulher. Ao ver que ela não estava contente com liberais, são justos, têm gratidão, enfim, como seres
o casamento, revelou sua verdadeira identidade e, humanos, são bastante semelhantes aos cristãos.
71
REFERÊNCIAS: LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros da Idade Média. São
Paulo: Martins Fontes, 1991.
BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Torino: Einaudi, 1980. 2 vols. A
cura di Vittore Branca. RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Ficções. In: DUBY, Georges (org). História
BRANCA, Vittore. Boccaccio: the man and his work. EUA: The Harvester da vida privada: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Cia. das
Press, 1976. Letras, 1990. p. 311-391.

CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. TODOROV, Tzvetan. A gramática do Decameron. São Paulo: Perspec-
São Paulo: Edusp, 1996. tiva, 1982.

HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Cia. das Site Consultado: <http://www.brown.edu/Departments/Italian_Studies/
Letras, 2001. dweb/dweb.shtml> Acesso em: 16 outubro 2008.

72
EÇA DE QuEirós
ENTrE o mEDiEVo E o sÉCuLo XiX

Ana Marcia Alves Siqueira1


Sayuri Grigório Matsuoka2

ara finalidades metodológicas, costuma-se Obedecendo a esse objetivo crítico, a reto-

P dividir a obra de Eça de Queirós em três fa-


ses. Os primeiros escritos estão inseridos em
uma perspectiva romântica, sobretudo a que obe-
mada do período medieval opera-se de diferentes
formas na produção tardia do escritor: ora de
modo mais evocativo e fantasioso, em consonân-
cia com o influxo romântico, ora funcionando
dece a vertente alemã; os escritos seguintes organi-
zam-se sob as diretrizes do realismo-naturalismo, e como ponto de partida para uma crítica demoli-
os últimos atendem a um direcionamento próprio, dora, realizada por meio da paródia e da sátira,
em que história, fantasia e ironia encabeçam uma ou então, como elogio do passado saudosista.
lista infindável de elementos que apontam os novos O gosto de Eça pela história acentua-se nessa
processos de transfiguração do real. Neste último última fase, e a Idade Média parece ser o período
momento, apresentam-se modificações no estilo, mais apreciado para a ambientação desses relatos.
no modo de narrar e nas formas de expressão que Aqui, encontram-se, por exemplo, as narrativas ha-
muito trabalho tem dado à crítica. A complexidade giográficas em que a trilogia sobre a vida dos santos,
narrativa de obras como A ilustre Casa de Rami- S. Cristovão, Santo Onofre e S. Frei Gil se destaca;
res, inserida nesse contexto, deve-se, dentre outros os contos “A aia”, “Frei Genebro”, “O tesouro” e
fatores, ao entrelaçamento que o autor faz de dois “O defunto” também assumem como temática do
períodos históricos, sobrepondo, através de aspec- medievo. A ilustre Casa de Ramires, igualmente,
tos ideológicos e estéticos, características da Idade constitui obra de inspiração medieval que compõe o
Média e do século XIX. Observamos aqui algumas grupo dos últimos escritos. Publicado inicialmente
questões relacionadas essa estratégia de composição em 1897, na Revista Moderna, esse romance foi
e suas implicações para a interpretação desse texto. retomado pelo autor posteriormente e sua segunda
A revisitação da Idade Média não constitui publicação se deu em 1900, depois de sua morte.
uma incoerência na proposta de análise da so- No enredo, Gonçalo Ramires, personagem
ciedade portuguesa efetuada pelo escritor, antes central, remanesce de uma família nobre mais
revela uma percepção clara de que somente po- antiga que a linhagem real lusitana, constituída
demos criticar construtivamente, isto é, buscar de cavaleiros que primeiro defenderam o país e,
a transformação da sociedade e do país a partir posteriormente, ao lado das dinastias de Borgonha
de um profundo conhecimento de sua história. e de Avis, construíram Portugal. A narração de
O enfoque, portanto, é dirigido à conformação sua trajetória remete o leitor a uma intensa reflexão
de Portugal em seus vários aspectos: humano, sobre a história de Portugal, sobretudo por meio de
histórico, político, social e, principalmente, nos uma singular interlocução entre passado e presente,
aspectos relacionados à sensibilidade da “alma ou seja, entre a Idade Média e o século XIX.
portuguesa” e seu imaginário.
1 Doutora em Letras, docente do Departamento de Literatura e do Programa Por meio da escrita de uma novela – gênero
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará. medieval por excelência – sobre os feitos de um
2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Ceará. antepassado, Gonçalo estreitará o vínculo com
73
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

a insígnia de sua Casa e resgatará os grandes Casa de Ramires, uma das formas de manifestação
feitos dos heróis mortos de sua família. Trata-se dessa atitude é observada justamente pelo confronto
de uma narrativa encaixada, a partir da qual a entre as constituições dos valores do medievo e dos
história de sua dinastia é contada. É através da valores do século XIX. Para ressaltar tais diferenças,
escrita dessa novela, A torre de Dom Ramires, a visão da Idade Média, recobrada na obra, é a fil-
que os feitos de um avô de Gonçalo, Tructesin- trada pela estética romântica, na qual as qualidades
do Ramires, Alferes-mor de Sancho I no século cavaleirescas, sobretudo as cristãs, surgem como
XII, serão rememorados. Por este artifício, Eça modelo de honra e retidão de caráter.
entrelaça o século XIX e a Idade Média, e restitui
O Romantismo, com sua busca de totalidade,
os valores cavaleirescos medievais, largamente
“mitificou a Idade Média e o poder espiritual da
propalados pelas novelas de cavalaria, a partir
Igreja nessa fase” (NUNES, 2002, p. 70). A visão
da ligação de Gonçalo com seus antepassados,
romântica considerava o medievo como um pe-
em uma sociedade carente de diretrizes morais.
ríodo de unidade, de harmonia entre o homem e
Tais formas representativas remetem, por a cristandade, de valores absolutos e íntegros: de
exemplo, aos valores cavaleirescos que Gonçalo honra, bravura, cortesia e dignidade. Por outro
tenta despertar em seu comportamento, mas lado, os pensadores oitocentistas, diferentemente
ressaltam também a incompatibilidade de seu dos iluministas que buscaram relegar o período
caráter com a desses modelos. As imagens do ao esquecimento, consideravam que era preciso
passado insurgem em sua mente, confirmando a estudar a Idade Média porque esta representava a
glória e a estatura heróica desses antepassados: identidade e a tradição de uma dada nacionalidade.
“Como sombras levadas num vento transcen- Era preciso pesquisar o período para se conhecer
dente todos os avós formidáveis perpassavam - e as origens da nação, das classes sociais e do povo:
arrebatadamente lhe estendiam as suas armas, de seus costumes, crenças, línguas e cultura, as-
rijas e provadas armas, todas, através de toda pectos fundadores da nacionalidade.
a História, enobrecidas nas arrancadas contra
Ao explicar a natureza do grotesco e a natureza
a Moirama, [...]” (QUEIRÓS, 1997, p. 412).
da poesia moderna, Victor Hugo (2007), no prefá-
Gonçalo é conclamado pelos avós a assumir o
cio a Cromwell, releva a importância dos valores
espírito guerreiro da família, e é justamente nesse
cristãos absorvidos pela arte na Idade Média e dos
contato que percebe o distanciamento entre eles:
moldes de moralidade por ela estabelecidos para as
“E todos soberbamente gritavam: - “Oh neto,
concepções de epopeia no romantismo. Não have-
toma as nossas armas e vence a Sorte inimiga!
ria como perceber o grotesco sem os parâmetros
Mas Gonçalo, espalhando os olhos tristes pelas
do sublime, tal como Longino o caracteriza, por
sombras ondeantes, volveu: - “Oh avós, de que
exemplo. Nesta polarização residirá grande parte
me servem as vossas armas – se me falta a vossa
das temáticas românticas, cuja essência é a valo-
alma?...” (QUEIRÓS, 1997, p. 412).
rização do bem a partir do confronto com o mal,
O confronto entre os dois momentos históri- representadas, segundo Hugo (2007), pelo sublime
cos perpassa todo o texto e reflete diretamente na e pelo grotesco, em que o primeiro tipo simboliza
constituição moral de Ramires que, por um lado, a pureza e os encantos tradicionalmente relaciona-
deseja incorporar o caráter heróico dos avós e, por dos ao belo, ao passo que o segundo representa os
outro, sente-se compelido a declinar de quaisquer sentimentos sórdidos da humanidade.
ações bravias, e até mesmo dos atos de defesa de
Com esta visão, o século XIX, sob a égide
sua honra, por encarnar as instabilidades dos
dos movimentos nacionalistas e do Romantismo,
valores morais de sua época.
reabilita a Idade Média, ressaltando sobretudo
A crítica à decadência moral de seu tempo está a cultura cristã e todas as suas heranças ideoló-
em toda a obra de Eça de Queirós. Em A Ilustre gicas para as gerações posteriores. Esse legado,
74
Ana Marcia Alves Siqueira / Sayuri Grigório Matsuoka

subestimado entre os séculos XVII e XVIII, em o sentimentalismo português, tanto quanto sua
decorrência da visão iluminista de que todo o pe- inclinação ao sonho e à fantasia, o escritor de-
ríodo estaria imerso no obscurantismo, é resgatado nuncia os descuidos com a moral, sempre pondo
pelos movimentos românticos ao retomarem seus em relevo o incômodo com o mau desempenho
mitos e lendas. Esta atitude se dá principalmente dos papéis sociais e as consequências disso para
sob a influência de Herder, que propôs aos intelec- rumos da civilização.
tuais alemães a pesquisa das tradições populares,
Essa disposição tem como causa as imposi-
guardiãs da autêntica cultura nacional, escritores
ções materialistas dos meios de produção e das
românticos de diferentes países buscaram inspi-
novas formas de relação dos indivíduos com o con-
ração nos tempos de origem do país e na tradição
sumo, preocupações manifestadas principalmente
do povo, como forma de valorização e resgate da
no auge da sua expressão realista e testemunhada,
alma nacional (ORTIZ, s.d.).
de forma documental, em suas contribuições para
A literatura destaca-se nesse contexto de reto- o periódico “As Farpas”, revista cujo subtítulo
mada, e as representações das chamadas epopeias Crônica mensal da política, das letras e dos cos-
românticas, em que se destacam Ivanhoe, Cantar tumes denunciava a disposição para a análise dos
de mio Cid e tantas outras narrativas situadas no rumos das sociedades europeias. Esse apego à
medievo, adotam como fundamento ideológico os polarização, às delimitações nítidas entre o bem
valores morais atribuídos àquele período, especial- e o mal, entre o certo e o errado, é uma herança
mente os valores apregoados pela idealização da romântica que certamente não fraqueja na expres-
cavalaria andante. Os românticos viram na Idade são literária do escritor.
Média a inspiração para a constituição de persona-
É a avaliação contrastiva daqueles preceitos
gens como o corcunda de Notre-Dame de Paris, por
cristãos que, retomados à Idade Média, persistem
exemplo, e de heróis cujo comportamento exemplar
no século XIX e se salientam em romances como
remete aos ideais cavaleirescos.
A ilustre Casa de Ramires. Como forma de ressal-
Em Portugal, a referência ao medievo entre tar a impossibilidade da manutenção de valores
os românticos tem seu principal representante como honra e valentia no século XIX, Eça mostra
em Alexandre Herculano que, em Lendas e os conflitos de Gonçalo ao reconhecer em sua
Narrativas, retoma os principais relatos popula- constituição moral tendências comportamentais
res oriundos da tradição oral nas quais o cunho das duas épocas. Nessa exposição, os cavaleiros
moralizante cristão se destaca. Dentre as muitas medievais surgem como modelos exemplares de
formas de expressão romântica, nota-se mais em bravura e de moralidade, ao passo que o homem
Eça a dicção tomada à vertente alemã, sobretu- dos oitocentos oscila entre a obrigação de honrar
do àquela pautada no gosto pelo fantástico e na a tradição de sua família e suas falhas de caráter.
crítica social, sendo Heine, Goethe e Hoffmann
O cavaleiro medieval equipara-se, em muitas
as leituras nas quais podemos identificar a raiz
situações, ao herói, ou ao sujeito corajoso, va-
desse gosto, conforme lembra Batalha Reis
lente. Segundo Jacques Le Goff (2009), o termo
(REIS, 1945, p. XXX).
associa-se por via etimológica, ao termo francês
Por outra via e de modo mais duradouro, no prouesse (proeza) que na maior “parte das vezes
entanto, permanece nos escritos do autor a crítica designava um homem destemido, um bom cava-
aos comportamentos perniciosos, demonstran- leiro” (LE GOFF, 2009, p. 16). Do século XII ao
do que as diretrizes ético-estéticas tomadas ao século XIII, o termo assume o sentido de cortês,
Romantismo são constantes em sua prosa. Em gentil, belo, franco. Há também na constituição
virtude da adesão ao modo realista-naturalista, dessa figura, a valorização da sua posição social,
Eça transforma o modelo romântico e o adapta às já que a maioria dos heróis reconhecidos possui
diretrizes da nova corrente. Mais do que admitir uma ascendência ligada à nobreza.
75
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Em torno de 1150, relata Duby (1989, p. 8), militares proporcionadoras da formação do país
alguns componentes de ordens militares começam tal como o conhecemos hoje. Segundo Oliveira
a exibir o título de cavaleiro e consequentemente Martins (1908, p. 26), Sancho I reinou em um pe-
a ocupar o status de herói. A aproximação do ríodo de inúmeras investidas mulçumanas contra
príncipe provocou sua natural ascensão social: o território português. Coube a este rei, que na
“Estes milites constituem uma aristocracia que se narrativa queirosiana nutre amizade pelo avô de
reforça, mantendo-se sempre muito abaixo da elite Gonçalo, Tructesindo Ramires, a organização in-
das famílias ‘nobres’ que a proliferação natural das terna do então recente Estado. Conforme Oliveira
linhagens tornou na mesma época um pouco mais Martins (1908, p. 80), Sancho I preocupou-se
numerosas, portanto menos ricas” (DUBY, 1989, em restaurar fortalezas e castelos alvejados nas
p.8). A participação nas batalhas decisivas para a batalhas contra os mouros e povoar terras de-
conquista de territórios, assim como nas cruzadas socupadas a fim de evitar invasões inimigas. A
em nome da fé, garantiu sua entrada no imaginário sua inserção na narrativa queirosiana serve como
europeu como paladinos da justiça e da honra. recapitulação de um momento em que Portugal
fortalecia-se e afirmava-se como nação.
A visão que o século XIX tem do medievo
releva, portanto, o estatuto do personagem, promo- Por seu turno, a última década dos oito-
vendo-o a herói, quando empenhado na defesa do centos inicia-se de forma desgostosa para os por-
estado a que pertence ou de alguma dama em peri- tugueses, que têm no episódio do Ultimato inglês
go. Essa perspectiva não é gratuita, para Le Goff, a de 1890 um duro golpe para o ânimo popular.
“Idade Média criou heróis e maravilhas destinadas Possivelmente as reações a esse acontecimento
a alimentar sonhos a longo termo na maior parte das repercutiram ainda por muito tempo, influen-
vezes através da sublimação das realidades sociais ciando comportamentos em todos os âmbitos das
e materiais daquela época” (LE GOFF, 2009, p. 9). sociedades lusitanas. As artes não permaneceram
incólumes, e o tratamento dado por Eça de Queirós
Essa idealização e a supervalorização à questão da nacionalidade em A ilustre Casa de
desses indivíduos não escaparam a Eça que, já Ramires parece refletir as consequências desse
na observação de Gonçalo, faz despontar a des- golpe. E o restabelecimento da grandeza do país
confiança no leitor sobre a natureza cruel dos figura-se no texto queirosiano pelo viés medieval,
antepassados que, em meio a todos os modos de pela retomada de um tempo em que, a despeito
consagração dos heróis medievais e a toda adoração das idealizações românticas, a glória e a grandeza
por seus parentes, revela: “Mas também ele, entre da nação eram reconhecidas, juntamente com a
tantos avós até os Suevos ferozes, descortinaria bravura de seus governantes.
algum avô carniceiro; e a ocupação dos Ramires,
Há, em A ilustre Casa de Ramires, a tra-
através dos séculos heróicos, consistira realmente
dução de um sentimento que reflete o ânimo de
em assassinar” (QUEIROZ, 1997, pp. 396 -397). O
Portugal em fins do século XIX, entendido aqui
personagem, nesse momento, questiona uma ordem
como um misto de saudosismo de um passado
estabelecida e alcança, assim, uma compreensão
glorioso e o ímpeto de realizar novas conquistas.
ética do que estaria por trás dos atos, bons ou maus,
Talvez seja por esse motivo que, ao final da nar-
de seus antepassados. Gonçalo parece reconhecer
rativa, Gonçalo assuma a personificação de seu
aí um traço realista na vivência dos cavaleiros e
país. Na realidade, vemos aí uma forma de mani-
das guerras, a crueldade é também uma forma de
festação de um sentimento nacionalista inédita na
valentia, sem ela, a formação do Estado português
prosa eciana. Esta expressão, no entanto, confor-
não teria acontecido.
me assinala Carmela Nuzzi (1979), não obedeceu
E é justamente dessa mentalidade medie- às diretrizes patriotas que assolaram Portugal
val bélica que surge a nação portuguesa, consti- no período posterior ao episódio do ultimato.
tuída geograficamente em torno das organizações Elena Soler (1999), entretanto, na edição crítica
76
Ana Marcia Alves Siqueira / Sayuri Grigório Matsuoka

de A ilustre Casa de Ramires, faz referência às sem responder com uma retaliação. O episódio
pesquisas feitas por Eça para elaborar a saga de do avô Tructesindo, contado por Gonçalo em sua
Ramires, ressaltando seu rigor em relação aos novela, ilustra essa questão. Para defender a hon-
termos retomados do medievo, período em que a ra da filha Violante e livrá-la de um pretendente
grandeza política do país era incontestável, o que indesejado, Tructesindo Ramires e o filho, Lou-
pode constituir mais um elemento da narrativa renço Mendes Ramires, empreendem perseguição
voltado para a questão nacional. a Lopo Baião, o Bastardo. Nessa empreitada,
A escrita da trama paralela só fortalece Lourenço perde a vida, e Tructesindo dedica-se
o sentimento de inferioridade moral de Gonçalo a vingar a morte do filho, manifestando todas as
em relação aos antepassados. É na reconstituição qualidades cavaleirescas mencionadas aqui. Bem
dos atos de bravura dos avós que ele verá o dis- contrária a esta atitude é a de Gonçalo que, por
tanciamento entre esse passado de glória e o seu interesses políticos, desiste da vingança contra
presente de decadência. A trama organizada por o pretendente que abandonara sua irmã. Os dois
Eça, nesse sentido, mostra o declínio da aristocracia episódios ilustram as incompatibilidades morais
rural portuguesa no século XIX e o sentimento de entre Gonçalo e Tructesindo, evidenciando as pers-
desesperança que aflige toda a nação às voltas com pectivas temporais e ideológicas dos dois períodos
as consequências dos problemas políticos. A angús- históricos retratados no romance.
tia de Gonçalo decorre, em parte, da sua falta de Gonçalo não possui a bravura e a honra-
identificação com os parentes mortos, mas remete dez dos avós. Sua constituição moral não se mol-
também à sua dificuldade em manter seus padrões da pelo complexo: proeza, bravura, generosidade
econômicos em uma época em que os meios de e lealdade que, segundo Jacques Le Goff (2009),
sustento de classes como a sua já não se davam por rege as convenções cavaleirescas. A inconstância
títulos nobiliárquicos, como ocorria na Idade Média.
de seu caráter revela-se continuamente nos rela-
Essa realidade, como salienta Berrini tivismos. Em suas frequentes inquietações, Gon-
(2000), revela a imperícia da aristocracia em çalo entrega-se à convicção da sua fraqueza, o
adaptar-se ao trabalho: “O aristocrata português que o incomoda profundamente: as humilhações
percebia o fosso que separava o seu nome da sua sofridas que, para os outros resultam de simples
situação social e econômica” (BERRINI, 2000, objetivos, para ele, são causa de dor e vergonha
p. 49). Essa situação ocasionava a procura por (QUEIROZ, 1997, p. 409).
novas formas de subsistência:
O confronto permanente no romance entre
Para sobreviver, arrendava ou vendia as terras, medievo e século XIX, entretanto, mostra ainda
pois não aceitava um cotidiano fora da largueza
e luxo a que estava habituado. [...] Gonçalo acena outro aspecto: Gonçalo, como será sugerido ao final
para sua peca e desinteressante vida prisioneira do romance, encarna uma espécie de deus Jano, vi-
do seu buraco rural. E dela quer escapar a qual- vendo com uma face voltada para o passado e outra
quer preço, desde que a saída seja fácil e cômoda, para o futuro, encerrando, pois, uma personalidade
sem esforço maior (BERRINI, 2000, p. 49).
ambivalente. Possui em si todo o peso da tradição e
de uma história política, econômica e culturalmente
Imerso nessa condição, Gonçalo não con-
determinante no cenário europeu. Sua identifica-
segue sustentar os princípios tão caros aos seus
ção com Portugal revela, em vários níveis, não a
antepassados. Como no romance os modelos me-
visão de que o passado deva ser suplantado, mas a
dievais de comportamento revelam-se a Ramires
valorização medida desse passado para definir os
por meio da lembrança dos atos heróicos dos avós,
novos rumos de uma nação desnorteada como é a
da sua bravura, da sua honra e principalmente da
portuguesa em fins do século XIX.
sua fama, o contraste com as debilidades presentes
são diametralmente opostas. Nos áureos tempos As características morais de Gonçalo se cons-
medievais, jamais um Ramires fora confrontado tituem a partir dessas duas perspectivas. Ele é um
77
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

cavaleiro anacrônico cujos valores caducaram, por completa, tendo em vista que contrariamente aos
não conseguir corresponder à coragem, valentia e cavaleiros de A Demanda do Santo Graal – versão
dignidades exigidas pelo código cavalheiresco, a portuguesa de uma das novelas de cavalaria mais
despeito de desejar possui-las. Entretanto, a cons- conhecidas do ciclo arturiano em Portugal – os
ciência preservada desses valores revela o modo antepassados de Gonçalo Ramires não estão a
como a decadência moral de seu tempo reflete-se em serviço de Cristo, mas de seus próprios interes-
seu caráter. Por outro lado, ele é também a persona- ses, orgulho e ira. Daí a constatação crítica do
lidade repleta de civilização que se estarrece ao per- protagonista, a despeito de invejar a coragem e
ceber as possibilidades das truculências cometidas bravura destes antepassados, de que sua linhagem
pelos antepassados. Aqui a crítica irônica de Eça, atravessou os séculos a assassinar.
ancorada na realidade, delineia-se mais fortemente,
Por outro lado, algumas atitudes de Gonçalo,
visto que essa violência exacerbada não se coaduna
reveladoras de seu bom coração, de sua caridade
com a imagem idealizada do cavaleiro medieval
para com os mais desfavorecidos: a compaixão de-
capaz de gestos de misericórdia; ao contrário, está
monstrada pelo filho doente do Casco, seu inimigo,
em consonância com as Ordenanças Afonsinas,
pela viúva convalescente a quem envia o próprio
do século XV, que decretavam a necessidade de o
jantar e por um lavrador gravemente ferido a quem
cavaleiro ser cruel e impiedoso com os inimigos,
cede seu cavalo e o conduz a casa, juntamente
ferindo, matando e saqueando sem compaixão
com o sofrimento e arrependimento causados por
(MARQUES, 1985, v. 2, p.26).
sua consciência diante de sua falta de escrúpulos,
A violência, dessa forma, insurge reveladora acabam por, de certa forma, redimi-lo.
de um traço de valentia que a Gonçalo é negado por
Assim, a ironia queirosiana faz conviver em
força do momento histórico em que vive. Ramires,
Gonçalo a aparente contradição da coragem e da
assim como o Jacinto de A cidade e as serras, é um
covardia, do egoísmo e da caridade, do tradicional
supercivilizado, e mostra, por meio de suas atitudes,
e do novo, do moral e do imoral, do passado e do
o lado positivo e o lado negativo dessa condição.
presente. Tal conclusão reforça a ideia de que as
Dessa forma, a estratégia de escrita de uma últimas produções de Eça de Queirós revelam a
novela de cavalaria possibilita que os dois períodos compreensão das fraquezas do homem e de sua
juntamente com seus valores sejam vistos de forma falta de controle sobre si. As idiossincrasias hu-
mais complexa e abrangente. De um lado, a novela manas continuam a ser criticadas, mas sob um
de Gonçalo subverte a premissa de exemplaridade olhar mais compreensivo e solidário.

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78
o TroNo LuDoVisi
Como LuGAr DE mEmóriA Dos GrEGos

Andréa Magalhães da Silva Leal1


Maria Regina Cândido2

or volta do século XIX, nos Jardins de deusa ao executar suas funções específicas. E,

P Salústio, em Villa Ludovisi, em Roma, foi


encontrada uma estrutura de mármore em
formato de trono com desenhos em alto relevo,
por fim, ao tratar da face central, que liga estas
representações, percebemos que a imagem nos
remete ao nascimento de Afrodite, atestado por
levando em seu nome a família papal proprietária Hesíodo, como podemos verificar abaixo:
desta Villa, o Trono Ludovisi (470-450 a.C.). An- O pênis, tão logo cortando-o com o aço
tes de pertencer aos Ludovisi, esta escultura fazia atirou do continente no undoso mar,
parte do Santuário de Marasá, na apoikia3 de aí muito boiou na planície, ao redor branca
espuma da imortal carne ejaculava-se, dela
Lócris Epizefiri – uma cidade litorânea, banhada uma virgem criou-se primeiro Citera divina
pelo Mar Jônico, na Calábria, ao sul da Itália. atingiu, depois foi à circunf luída Chipre
e saiu veneranda bela deusa, ao redor relva
Esta estrutura é composta por três faces,
crescia sob esbeltos pés. A ela. Afrodite
aparecendo nas duas faces extremas uma figura deusa nascida de espuma e bem-coroada Citeréia
feminina e na face central três figuras femininas. apelidam homens e deuses, porque da espuma
Na face esquerda, identificamos uma hierodu- criou-se e Citeréia porque tocou Citera,
la que toca aulos (representação de Afrodite Cípria porque nasceu na undosa Chipre
e Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz
Pandêmia que supervisiona os prazeres além (HESÍODO, Teogonia, pp. 188-200).
dos interesses da família e da comunidade); na
face direita, identificamos uma matrona que Estas imagens representadas e a localização do
queima incenso em um thymiaterion (represen- Trono Ludovisi aludem a um tempo passado e a um
tação de Afrodite Urânia no legítimo exercício grupo social específico que as usava para um propó-
da sexualidade dentro do casamento). Diante sito. Diante disso, nos indagamos qual grupo social
dessas imagens, verificamos que se tratam de poderia ter produzido este monumento e para qual
dois arquétipos da deusa Afrodite, em situações propósito. Ao analisarmos as interações do Homem
opostas: uma representada na esfera dos prazeres com a materialidade podemos conhecer os modos de
para além do casamento e a outra nos prazeres vida da sociedade em que ele a habitava, conhecendo
dentro do casamento. Entretanto, esta oposição sua importância econômica, suas práticas sociais,
nas representações desta deusa não significa que religiosas, comerciais. A Cultura Material, como
uma seja melhor ou mais importante do que a lugares de memória, evoca o passado e, ao mesmo
outra, pelo contrário, estas duas representações tempo, reforça identidades. Dessa forma, percebemos
são complementares, pois cada uma agrada a a importância dos vestígios culturais e da arqueologia
1 Graduada em História na Universidade Veiga de Almeida. Possui Especiali- para o estudo do passado. Ao passo que as práticas
zação em Pós Graduação em História Antiga e Medieval (NEA/UERJ). Email:
andreamslleal@gmail.com sociais referem-se a um tempo e espaço, a memória
2 Doutora em História. Coordenadora do Núcleo de Estudos de Antiguidade
(NEA/UERJ). Docente da UERJ. é uma construção de grupos sociais e, assim, apesar
3 Cidade fundada por grupo de imigrantes gregos, sobretudo a partir do século dos indivíduos terem a sua própria memória, certos
VIII a.C. As apoikias mantinham relação religiosa e moral com as cidades que
as haviam fundado. Entretanto, mantinham independência política e econômica. grupos determinam o que é memorável e as formas
79
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

pelas quais será lembrado. Diante desta linha de ideia, seu lado leste, era representado pela deusa Gaia
verificamos que os documentos materiais foram e são dando à luz a Erechthonius, antepassado mítico
produzidos para perpetuar/legitimar um certo tipo da família Licômidas; a oeste é representado
de pensamento/prática, seja ele social, econômico, pela deusa Demeter sentada à esquerda; a deusa
religioso. Nesta via, o monumento Trono Ludovisi Perséfone sentada à direita; e, Eros em pé entre
aparece como um documento material religioso e estas duas deusas. O lado norte do monumento
intencional, uma vez que o Homem interveio e deu é representado por duas mulheres sentadas,
forma a elementos do meio físico, segundo seus olhando uma a outra. No lado esquerdo há a
propósitos e suas normas culturais. Assim, o Trono representação da sacerdotisa ou hierofantes, que
Ludovisi foi produzido com uma intencionalidade e é chamada de Telete (rito de iniciação), e do lado
direcionado a um meio social específico. direito representação de uma idosa ministrante,
O Trono Ludovisi foi construído em Phl- segurando em sua mão um chifre místico e outros
ya, um demo de terra fértil a cerca de 8 km de emblemas místicos em seus pés. Neste lado do
Atenas, para o santuário da família Licômidas, monumento, a autora nomeia-o como Mistérios
tendo como seu principal personagem Temís- da Terra, que era chamado na Phlya como “as
tocles, general grego que derrotou os persas na grandes deusas”. No lado sul, há duas figuras nuas
Batalha de Salamina. Nesta localidade, este trono sentadas, frente a frente, que representa os mis-
fazia parte da extremidade de um monumento, térios do amor. À esquerda um jovem da família
sendo completado, na outra extremidade, com Licômidas que toca sua lira, símbolo dos hinos
o Relevo de Boston – estrutura de mármore de Orfeu, à direita uma mulher toca sua flauta,
que se assemelha com o Trono Ludovisi. O que pode ser representando como chamando os
monumento, que agrupava o Trono Ludovisi e o ritos de Eros (HAWES, 1922, pp. 304-305). Para
Relevo de Boston, demarcava a importância da melhor compreender a visão deste monumento,
família dos Licômidas no mundo helênico. Em verifiquemos o quadro abaixo:

Mistérios da Terra ou das “grandes Mistérios da Terra ou das “grandes


deusas” deusas”
Demeter Trono Boston Trono Ludovisi Deusa Terra
Eros dando lua a
Perséfone Erechthonius

Mistérios do Amor Mistérios do Amor

Figura 1. Posicionamento das representações do monumento em Phlya, por HAWES.

Figura 2. Monumento em
Phlya. (HAWES)

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Andréa Magalhães da Silva Leal / Maria Regina Cândido

Figura 3. Relevo de Boston

Figura 4. Trono Ludovisi

Passado a incerteza dos períodos das Os estudos históricos e geográficos de uma


Guerras Médicas, o Trono Ludovisi foi sepa- região nos permitem uma maior amplitude de co-
rado do Relevo de Boston e enviado à Locris nhecimento para entendermos a sociedade a qual
Epizefiri para compor o santuário de Marasá, está inserida em um espaço. Dessa forma, nos
sendo parapeito de um bóthros4 onde um novo apropriamos da geografia para melhor compreender
culto é relacionado a esta escultura. O motivo a identidade de Lócris Epizefiri, pois são os signifi-
deste deslocamento permanece em aberto, mas cados, sentidos e valores atribuídos ao seu espaço
evidências arqueológicas confirmam que a es- que constituirão a sua identidade, que por sua vez
cultura encontrada na Itália no século XIX é a é inventado e reinventado a cada momento.
metade que compunha o Relevo de Boston em
Phlya. Há dois pontos unânimes que confirmam Ao longo do tempo o espaço físico transfor-
essa hipótese: primeiro, os dois tronos datam de ma-se, através das práticas sociais e das técnicas,
480-450 a.c., período da transição da arte grega; o que leva a formação do território que por sua vez
segundo, são produtos da escola de arte ático constitui-se de elementos simbólicos que formam
-iônico, onde Phlya se sobressaía como o lugar a cultura. O território é o conjunto de experiências
onde mostra grande influência iônica em sua arte ou, em outras palavras, de relações de domínio,
ática; e em terceiro, por ser uma escultura e não de uso e apropriação do espaço. (Haesbaert, apud,
peças isoladas é forte a hipótese de que foi um BORGES). Assim sendo, percebemos que espaço e
único artista que a fez (HAWES, 1922, p 279). território são distintos, no qual o espaço antecede o
4 Cavidade na terra para libações e oferenda de sacrifícios. território. Para o território existir é necessário uma
81
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

ação antrópica5, simbólica ou física, em um deter- fundação de um assentamento grego era feita entre os
minado espaço concreto. Assim, ao se apropriar de integrantes da pólis que podia ser realizada por vias
um espaço, concreta ou abstratamente, o ator “ter- de negociação, decisão coletiva ou expulsão. O oikista
ritorializa” esse espaço. O sujeito transformador do tinha como função estabelecer o local e a direção dos
espaço em território é fator antrópico e essa trans- santuários para os deuses na nova terra (POMEROY,
formação dá-se através das relações de poder e de 2009, p. 75). O oikista de Lócris Epizefiri era chamado
dominação (Raffestin, apud, BORGES). Nenhum pelo nome de Evanthes (ESTRABÃO, GEOGRAFIA,
indivíduo ou grupo social pode escapar ao princípio Livro 6, Capítulo 1, seção 8).
da territorialização, pois se não fosse assim não
Lócris Epizefiri7 está localizada ao sul da
haveria grupos coerentes, nem etnia, nem cultura.
Península Itálica, na região da Calábria, banha-
À vista disso, é possível analisar o território da pelo mar Jônico. Segundo Estrabão, em seu
de Lócris Epizefiri em virtude da ocorrência de livro Geografia, sem indicar uma data precisa,
ações antrópicas, que possibilitaram a identidade menciona que a cidade, situada no topo de uma
territorial a partir do processo de apropriação colina chamada Epopis, foi fundada logo após
do homem pelo espaço, estabelecendo relação a organização de Siracusa (733 a.C.) e Crotone
de identificação e pertencimento tanto concreta (709 a.C.), então no final do século VIII a.C.,
quanto subjetivamente. princípio do século VII a.C. Como podemos
As ações antrópicas ocorridas na apoikia de atestar na citação:
Lócris Epizefiri só foram possíveis em virtude “... Então é o estado do Locri Epizephyrii, uma
da expansão grega ao Mediterrâneo, ou seja, colônia de Locrians transportados por Evanthes
após a migração de helenos da Grécia Central, do Golfo Crissaeana, logo após a fundação de
Crotona e Syracuse.”
mais especificamente de Lócrida, para a Magna
Grécia. A fundação desta apoikia foi resultado (ESTRABÃO, Geografia, Livro VI, seção VII)
da expansão da cidade-estado de origem, Lócris
Ozolian, localizada na Grécia Central. O éthnos6 Costamagna e Sabbione, em Una Citta In
de Lócris Central, ou Lócrida, era composto por Magna Grecia Lócris Epizefiri (1990, p. 32),
três regiões: na área oriental, as cidades de Epic- afirmam que os colonos gregos, inicialmente,
nemedian Lócris e Opuntia Lócris permeavam a estabeleceram-se em Cabo Zefirio e, provavel-
região das Termópilas e Beócia, limitadas pelo mente, acordaram um pacto de paz com os povos
Golfo de Eubea e pelo sistema montanhoso do Ca- autóctones, porém, não demorou muito para ser
lídromo; na parte ocidental, a cidade de Ozolian desfeito. Por fim, a localização definitiva da apoi-
Lócris ocupava uma área do Golfo de Corinto, kia estabeleceu-se mais ao norte do Cabo Zefirio,
limitando-se, na parte oeste a partir da zona de próxima a cidade autóctone de Janchina, na costa
Antirrío até Golfo de Itea, e os montes Giona e do Mar Jônico, pois era mais fértil e rica de água
Parnaso que impedia o acesso para o norte. do que a colina argilosa em torno do Cabo Zefirio.

O processo de migração dos locrienses rumo As narrativas de fundação de uma cidade sur-
ao mediterrâneo, objetivando a fundação de Locris gem para legitimar o uso de determinado território.
Epizefiri, ocorreu em fins do século VIII a.C. início do Sobre a fundação de Locris Epizefiri, Aristóteles
século VII a.C. Este processo integrava uma atividade afirma que durante a primeira Guerra Messenica
ritualizada e dependia da aprovação divina, seguida 7 Localizada à frente do mar Jônico, a sua extensão de terra percorre a planície
costeira até o Valle de Abbadessa, a oeste; e entre os rios Portigliola, ao sul,
pelo planejamento estratégico para a instalação que e o rio Gerace, ao norte. O seu limite territorial é definindo pela muralha
da cidade. Na planície situam-se os distritos de Stranghilò, Centocamere,
contava com a ativa participação do responsável Saletta, Marasa, S. Cono, Petraro e Parapezza. Na região montanhosa, os
pela empreitada, o oikista. A escolha do lugar para a distritos de Spano, Saetta, Caruso, Cusemi, Mannella, Castellace e Grottelle.
As terras dessa região fornecem os principais materiais para construção:
5 Ações realizadas pelo homem. arenito, chamado “ammollis” (“pedra de areia”), argila (extraído na serra),
6 Formação social cujos membros se reconheciam como etnicamente pedras de granito (coletado no leito de rios), e madeira fornecida da montanha
aparentados. Aspromonte - usado para calafetar navios.

82
Andréa Magalhães da Silva Leal / Maria Regina Cândido

(entre Messênia e Esparta), enquanto os homens de formação de apoikias, além da necessidade de afir-
Lócrida lutavam como aliados de Esparta suas mu- mar a identidade helênica nos novos assentamentos,
lheres tiveram relações amorosas com seus escravos as paisagens, em torno do mediterrâneo, modifica-
e, quando seus maridos retornaram da guerra, suas ram-se. Diante desta rede, que se estabelece entre
esposas e amantes fugiram para a Magna Grécia e gregos e não-gregos, formam-se comunidades de
fundaram a apoikia de Locris Epizefiri. (SOURVI- identidades8 específicas.
NOU-INWOOD, 1974, p. 188) A construção da identidade de Lócris Epize-
É notório aos pesquisadores da Antiguidade firi surge a partir do sentimento de pertencimento
que a formação de uma póleis é concomitante e do indivíduo em relação ao território, porém este
indissociável com a criação de santuários, sendo sentimento só existirá quando do uso do elemento
o culto a prática religiosa que dava coesão social legitimador da identidade – a memória. Ou seja, a
e promovia laços de identidade entre os cidadãos. memória é o “referencial norteador na construção de
Dessa forma, o posicionamento dos santuários em identidades” (BORGES, 2010, p.5). História e memó-
uma pólis pode ser entendido como um marcador de ria são elementos fundamentais para esta construção.
posse e elemento de unificação identitária. No caso A memória deve ser entendida como um fenômeno
do assentamento de Locris Epizefiri a paisagem social e coletivo, ou seja, um fenômeno construído
da apoikia apresentava inúmeros santuários tanto em conjunto e, em constante, transformações e mu-
urbanos quanto extra-urbanos, e, em sua maior danças. (HALBWACHS, apud, BORGES).
parte dedicados às divindades femininas. Ao norte A memória é constituída de memória indivi-
da cidade encontramos o santuário de Perséfone, de dual e coletiva. Em primeiro lugar, são os aconte-
Atena; ao centro, santuário de Zeus e das Ninfas; cimentos vividos pessoalmente; em segundo lugar,
e ao sul, santuário de Demeter e Afrodite. Diante são aqueles acontecimentos vividos pelo grupo
disso, percebemos que nesta região há uma grande ou pela coletividade em que o indivíduo se sente
importância a santuários dedicados às divindades pertencer. Tanto uma quanto a outra são fatores
femininas pela sua quantidade superior a daqueles importante do sentimento de continuidade e de coe-
dedicados às divindades masculinas. rência de uma pessoa ou de um grupo. A construção
O território da cidade de Lócris Epizefiri deve da identidade é um fenômeno que se produz tendo
ser visto como um conjunto de várias formas de como referencial o outro, ou seja, esta construção
vivência, várias condições econômicas, técnicas não é isenta de mudança, de negociação, de trans-
etc; é resultado de relações econômicas, políticas, formação em função dos outros. Logo, a identidade
culturais, religiosas entre os helenos que passaram a locriense é fruto das memórias coletiva e individual.
habitar a região, e que nele abrangem continuidades A memória coletiva contribui para manter a coesão
ou mudanças, pois esteve em constante modificações. dos grupos que compõe uma sociedade, para definir
Nesta corrente, entendemos que as práticas sociais seu lugar respectivo. Nesta intenção pela busca da
transformam-se com o tempo por estarem ligadas coesão, pelo passado comum e sentimento de per-
às interações dos homens devido a miscigenação, a tença, com vista a uma trajetória comum, a cidade
pode até escrever e reescrever seu passado, como
inclusão/exclusão de determinados hábitos; e também
salienta Sandra Pesavento:
são transformadas no espaço, uma vez que espaço é
uma construção inventada ao longo do tempo. Assim, ... uma cidade inventa seu passado, construin-
do um mito das origens, descobre pais ances-
os significados, os sentidos e os valores atribuídos a
trais, elege seus heróis fundadores, identifica
esta apoikia constituem a sua identidade. um patrimônio, cataloga monumentos, trans-
O processo de formação da identidade e ex- forma espaços em lugares com significados.
8 Segundo Michel Pollak, em Memórias e Identidades Sociais, identidade
pansão grega ocorreram concomitantemente em social é o sentido da imagem que um indivíduo/grupo tem de si, para si e para os
várias localidades do mediterrâneo. A partir da rede outros, ou seja, é a imagem que uma pessoa ou grupo constrói e apresenta aos
outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também
de contatos com os não-gregos e da necessidade da para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros.

83
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Mais do que isso, tal processo imaginário os santuários dedicados a ela datam a partir do século
de invenção da cidade é capaz de construir VII a.C, o que vai ao encontro da data aproximada da
utopias, regressivas ou progressivas, através
fundação desta cidade. Como já mencionado neste
das quais a urbs sonha a sai mesma (PESA-
VENTO, apud, TOMAZ). trabalho, os documentos materiais são produzidos
pelo Homem para perpetuar/legitimar um certo tipo
Dessa forma, a história comum passa a de pensamento ou prática social/religiosa/econômica.
pertencer a cada geração futura, que sentem-se Dessa forma, o culto e a construção dos santuários
pertencer a um passado comum. Em Lócris Epi- dedicados a estas duas deusas tem intencionalidade.
zefiri, os indivíduos sentiam-se pertencer àquele Ao seguir esta linha de raciocínio, afirmamos que
território, pois é impossível preservar a memória o Trono Ludovisi, localizado acima de um bóthros,
de um povo sem, ao mesmo tempo, preservar os dentro do santuário de Marasá, que é um santuário
espaços por ele utilizados e as práticas do dia dedicado à deusa Afrodite, é uma materialidade
a dia. A identidade locriense foi resultado da importante à sociedade locriense, pois o Homem ao
riqueza e da complexidade do culto de Afrodite colocá-lo como parte integrante deste santuário, tem
em Lócris Epizefiri. (SCHINDLER, 1997, p. 120) a intencionalidade de perpetuar um certo tipo de pen-
samento direcionado a um determinado grupo social.
A partir da cultura material Trono Ludovisi
podemos verificar traços da vida dos locrienses, Novamente nos apropriamos da arqueologia
pois o que tende a ser conversado é considerado para aperfeiçoar o entendimento acerca do espaço
como valioso, seja pelo valor do material que é físico e sua interação com a sociedade. Obtemos da
composto ou pela herança histórica. Jacques Le arqueologia que o bairro de Centocamere, localizado
Goff, sobre o termo monumento explica que: a noroeste do santuário de Marasá, em Lócris Epize-
... o monumentum é um sinal do passado. Aten- firi, foi um território de uso residencial e comercial.
dendo suas origens filosóficas, o monumento é Vestígios de fornos para produção de cerâmica foram
tudo aquilo que pode evocar o passado, perpe- encontrados. Além, de inúmeros materiais votivos –
tuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. as pinakes -, vasos e telhas. O solo desta apoikia não
[...] o monumento tem como características o
era fértil para agricultura, mas rico em minerais o
ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária
ou involuntária, das sociedades histórias ‘é um que propiciava uma boa qualidade para as cerâmicas
legado a memória coletiva’ e o reenviar a tes- produzidas nesta localidade. Próximo a este bairro
temunhos que só numa parcela mínima são tes- encontrava-se o porto de Lócris Epizefiri, o que su-
temunhos escritos (LE GOFF, apud, TOMAZ). gere que esta apoikia fazia parte de rotas comerciais
no Mediterrâneo. Assim, percebemos que comércio e
Assim, percebemos que a perpetuação da produção de cerâmica foram as principais atividades
memória dos locrienses foi preservada através da econômicas. Diante disso, verificamos duas confra-
conservação do Trono Ludovisi e a preservação rias profissionais a dos comerciantes e dos artesãos.
deste patrimônio histórico é consequência da sua
importância para àquela sociedade. Na Antiguidade a religião é algo indissociável
a qualquer atividade, seja no âmbito econômico,
No território locriense percebemos que, com social, político. Dessa forma, em toda atividade
a chegada do oikista Evanthes, objetos sagrados da profissional havia a divindade protetora dos traba-
metrópole foram enviados à apoikia com intuito de lhadores, com o intuito de prosperidade e, de não
perpetuação dos cultos da cidade de origem na nova obter a cólera dos deuses, os helenos praticavam
localidade e, novos cultos surgiram a partir das novas
cultos, faziam oferendas e sacrifícios. Dessa forma,
interações entre os gregos imigrantes e gregos e não-
em Locris Epizefiri, a tíase9 dos artesãos cultuava a
gregos. Em todo o território locriense há santuários
divindade responsável pela fertilidade do solo que
dedicados às divindades femininas, principalmente
dava a matéria prima para produção de cerâmica.
as deusas Afrodite e Perséfone. O culto a deusa
9 Confraria profissional dedicada à celebração da divindade protetora da
Afrodite é um dos mais antigos desta apoikia, pois atividade comercial.

84
Andréa Magalhães da Silva Leal / Maria Regina Cândido

Através das representações nas pinakes, podemos Ao verificarmos a exata localização do Trono
verificar que esta divindade trata-se da deusa Per- Ludovisi - acima de um bóthros e dentro do santuário
séfone, pois nas representações aparecem imagens de Marasá -, percebemos que esta posição reflete uma
atribuídas a ela: o galo e/ou romã. A deusa ctônica intencionalidade específica da sociedade locriense que
Perséfone, divindade do subterrâneo, também muito busca reforçar suas principais atividades comerciais
cultuada em Lócris Epizefiri, habita uma parte do através do culto à Afrodite e à Perséfone, divindades
ano o mundo dos mortos, fato este que nos remete a protetoras das tíases dos artesãos e dos comerciantes.
produtividade da terra e nos mostra o valor da agri- Percebemos que essas duas atividades são de extrema
cultura nesta sociedade grega. Morte e ressurreição; importância para os locrienses, uma vez que as duas
semeio e colheita são características desta deusa, deusas estão sendo cultuadas em conjunto, ou seja,
que juntamente com sua mãe Demeter configuram no mesmo momento. O bóthros, localizado abaixo
a essência dos rituais nos Mistérios de Elêusis ao do Trono Ludovisi, serve como meio para cultuar à
celebrar o ciclo da vida e da morte. A deusa Afro- deusa ctônica Perséfone, que fornece uma boa matéria
dite, como já mencionada, é outra divindade muito -prima para uma cerâmica de excelência, protegendo,
cultuada em Locris Epizefiri. Ao estudarmos esta assim, os artesãos em sua atividade; o Trono Ludovisi
deusa percebemos que suas atribuições vão além de com suas representações dos arquétipos de Afrodite,
ser apenas a deusa do Amor, que celebra a fecun- fornece proteção aos comerciantes locrienses que
didade e inspira os amores vulgares e etéreos, ela utilizam as cerâmicas produzidas pelos artesãos para
também tem um papel importante ao ser protetora exportação pelo mar. Diante disso, percebemos o
das atividades comerciais mercantis. Aqueles que a quanto estas duas atividades foram importantes para
cultuavam buscavam fecundidade próspera para sua a sociedade locriense, sendo perpetuadas através do
família, fertilidade para suas terras, prosperidade culto entre as divindades Afrodite e Perséfone no
em seus contatos comerciais. santuário de Marasá.

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86
A iGrEJA mEDiEVAL
E o CAmiNHo PArA A sALVAÇÃo
NA VISÃO DE TÚNDALO

Bianca Trindade Messias1

iNTroDuÇÃo
Depois da morte para onde será que vão as A Visão de Túndalo é um dos exemplos das
almas, para o Inferno ou Paraíso? Esta pergunta narrativas sobre as viagens imaginárias da Idade
sempre esteve presente no pensamento, princi- Média. A narrativa foi escrita por volta de 1149
palmente dos medievos, pois seu cotidiano era por um monge irlandês. Esse apenas limitou-se
ligado aos ensinamentos dos clérigos. em transcrever em latim um escrito irlandês,
sendo que na narração ele fez referência àquele
A sociedade medieval sempre esteve preocu-
que lhe tinha contado as coisas vistas.
pada com a sua salvação, os indivíduos levavam
uma vida baseada no cristianismo. Em A vida na O manuscrito se espalhou por toda Europa
Idade Média, de Genevieve D’Haucourt, se obser- e deu lugar as versões nas línguas vulgares que
va a presença constante da Igreja no dia a dia das remontam o século XII a XVI, assim trabalhamos
pessoas e em todas as suas atividades, começando com a versão portuguesa que foi traduzida no
ao acordar e depois de se vestir e ainda em jejum século XV por um monge cisterciense, sendo que
tinham que se fazer as preces, sendo que duas eram existem dois manuscritos portugueses provenien-
dirigidas a Deus e duas à Virgem. tes do mosteiro de Alcobaça, uma no códice 244,
atualmente depositado na Biblioteca Nacional
Para não caírem em tentações, os medievos iam de Lisboa e outro no códice 266 localizado no
às missas, rezavam, davam esmolas como todos os Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
bons cristãos. Segundo Le Goff, no Dicionário temá-
Pretende-se compreender como a Visão de Tún-
tico do Ocidente medieval (2002, p.22): “a vida aqui
dalo influenciou no imaginário tanto individual como
em embaixo é um combate pela salvação. O mundo é
coletivo dessa sociedade e de como a Igreja Medieval
um campo de batalha, onde o homem se bate contra
lança mão dos seus discursos ideológicos, interferin-
o diabo, pois é herdeiro do pecado original.”
do na maneira de pesar e agir da cada cristão.
As visões que se tinha sobre Além-túmulo
eram conhecidas principalmente através de
narrativas de viagens imaginárias; trata-se de ViAGEm Ao ALÉm
relatos feitos por homens a quem Deus deu a
graça de visitar o Inferno e o Paraíso. Estas
narrativas eram transmitidas oralmente pelos O manuscrito narra à história de um cavaleiro
clérigos a uma audiência, geralmente num ser- chamado Túndalo, esse era de boa linhagem, porém
mão com o objetivo de convencer através de uma não cuidava de sua alma e não seguia os preceitos
lição moral. As narrativas eram consideradas da Igreja, como de ir à Igreja, fazer orações, dar
verídicas e são chamadas de exempla. esmolas aos pobres entre outros. É justamente ele
1 Graduada em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
a quem Deus escolheu e deu a graça de fazer a via-
e Cursando o Mestrado em História, Ensino e Narrativas (UEMA/ gem ao Além, a fim de serem mostrados as penas
Mnemosyne) sob a orientação da Prof. Dra. Adriana Zierer. Docente do
Programa Darcy Ribeiro, da UEMA. Email: bia-tm@hotmail.com do Inferno e do Purgatório e os gozos do Paraíso.
87
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Segundo a fonte, Túndalo após se sentir mal foi A sua figura era esta. s.El era negro assi como
considerado como morto por três dias, não sendo caruon e auvia figura dhomem des os pees
ataa cabeça e auia boca en que auia muitos
enterrado devido a um pouco de calor no seu peito males e tynha hunn rabo assy grande que
esquerdo. Nesse período a sua alma foi levada a fazer era cousa muito spnatauil. No qual rabo auia
uma viagem ao Além, sempre conduzida e protegida mil massons e en cada maan auia en ancho cem
por um anjo. Este se constitui em um anjo-guia, pois palmos e as suas massns e as hunhas delas e as
hunnas dos pees eeram tam anchas como lan-
está ligado com a salvação pessoal do cavaleiro.
ças e todo aquel rabo era cheo de agulhas muy
A narrativa tem um caráter descritivo desses agudas pera atormentas as almas (V.T, 1895, p.
110, grifo nosso).
reinos do Além: Inferno, Purgatório e Paraíso.
Desta forma, influenciava o imaginário dos me-
Os relatos medievais estão cheios de manifes-
dievos a partir do momento em que eles ouviam
tações do diabo em forma animal, porém percebe-
os relatos, pois nesse momento o ouvir e o dizer
se no fragmento acima que Lúcifer, o príncipe das
eram mais importantes do que o ler, pois a maio-
trevas, apresenta características tanto humanas e
ria da população não era letrada.
animais, como a presença de mãos e rabo respec-
O Inferno foi o primeiro espaço do além tivamente, temos assim as diversas representações
para onde a alma do cavaleiro foi levada, des- do diabo seja na literatura ou na iconografia.
crito como um lugar escuro, cheio de trevas e
O Purgatório é o terceiro lugar do Além,
de demônios. Nesse lugar Túndalo passará por
intermediário entre o Paraíso e o Inferno, é lugar
vários sofrimentos e punições, de acordo com os
para onde as almas vão de acordo com as quan-
pecados cometidos, como por exemplo, passar por
tidades de pecados cometidos, sofrendo apenas
uma ponte cheia de pregos carregando uma vaca
punições leves e podendo ascender para o Paraíso.
que no passado havia roubado de seu compadre.
Na narrativa esse terceiro lugar não apare-
Durante a travessia pelo Inferno, Túndalo in- ce muito bem delimitado, pois a narrativa é do
daga o anjo querendo saber o mal que ele fez para século XII e a idéia do Purgatório surge melhor
estar sofrendo naquele lugar, o anjo respondeu: delimitada no século XIII, porém é explicito na
“sempre eu fuy contigo des o dia en que nacisti fonte o termo purgatório: “[...] foron mostradas ui-
e hya contego hu quer tu hyas. Mais tu nunca sibilmente e non per outra reueleçon todas as pe-
quiseste creer meus conselhos nen fazer a minha nas do inferno e do purgatorio.” (V.T, 1895,p.101)
uontade.” (V.T, 1895, p. 102).
Passados os suplícios do Inferno e Purga-
Apesar de Túndalo não ter seguido os tório, Túndalo foi levado para desfrutar da paz
conselhos dos clérigos, o anjo nunca o deixou de eterna no Paraíso, esse lugar é circundado por
protegê-lo como está exposta na citação acima. três muros, cada espaço mais iluminado que o
Os anjos “são os mensageiros da vontade divina, anterior, mais perfumado e saboroso são eles:
os reveladores dos segredos celestes, os guias e Prata, Ouro e Pedras preciosas, para onde as
os companheiros do homem” (FAURE, 2002, p. almas eram destinadas de acordo com os seus
74), e nos momentos de maior aflição no Inferno méritos realizados na terra.
o anjo sempre esteve pronto para socorrê-lo e
O muro de Prata é destinado para os castos
guiá-lo no Além.
no casamento; no muro de Ouro encontravam os
Depois de sofrer algumas punições, chega o monges e monjas construtores da Igreja; no muro
momento em que o cavaleiro vai às profundezas de Pedras Preciosas estavam as nove ordens dos
do Inferno até o ponto em que ele vê Lúcifer, o anjos: Serafins, Querubins, Dominações, Tronos,
príncipe das trevas, este sempre querendo ficar Principados, Potestades, Virtudes, Anjos e Arcan-
com a alma de Túndalo, a sua característica está jos, além dos anjos temos os patriarcas, os profetas
explícita no fragmento a seguir: da Bíblia, os apóstolos de Jesus e as virgens.
88
Bianca Trindade Messias

Após percorrer os três reinos eternos, no Além disso, é uma maneira de a Igreja manter
terceiro dia a alma do cavaleiro volta ao seu cor- o seu poder e contribuir com a estrutura da socie-
po, e ele relata a todos que estavam ao seu redor, dade vigente, dividida em oratores, bellatores e
clérigos e leigos, sobre os espaços percorridos por laboratores, na qual os laboratores sustentam os
ele, arrependendo-se de todos os seus pecados outros grupos com o seu trabalho. Assim é possível
anteriores e passando a buscar a sua salvação. dizer que a Igreja “assenta a sua dominação sobre
os cristãos e justificando a ordem do mundo pelo
qual ela vela” (LE GOFF, 2002, p. 30).
os DisCursos DA iGrEJA A construção do Inferno está interligada com
a figura do diabo, mais especificamente Lúcifer,
esse era um anjo de Deus, mas devido ao seu
A versão portuguesa da Visão de Túndalo foi orgulho e ganância ficou aprisionado nas profun-
traduzida por um monge cisterciense, seguidor dezas do Inferno marcando assim, o ingresso do
dos preceitos Ordem de São Bento. Os monges mal no universo.
são considerados os mais puros na sociedade
medieval devido a sua vida de reclusão e con- Apesar da Paixão e Encarnação de Cristo
templação a Deus. ter quebrado e nos salvado do poder do diabo, a
Igreja não deixa de sustentar a tese de que ele não
Segundo a fonte “esta uison aconteceo no esteja totalmente vencido “se assim o fosse, não
anno da encarnaçon de nosso senhor da Era de haveria razão para a continuidade da existência
mil e xl annos.” (V.T, 1895, p. 120). Na narrativa da Igreja” (NOGUEIRA, 2002, p 41).
a alma do cavaleiro volta no terceiro dia ao seu
corpo, no mesmo dia em que Jesus ressuscitou O diabo é associado a determinados lugares
conforme a Paixão de Cristo, observando assim, e horas do dia, responsável pelas catástrofes na
a intenção da narrativa de fazer com que os terra e suas duas armas favoritas são a tentação
medievos busquem a salvação tendo o cavaleiro e a trapaça, a fim de fazer com que os homens
como prova do milagre eucarístico. saiam do caminho da luz e seguem o mal.

O cavaleiro Túndalo, após o seu arrependimen- Segundo os textos bíblicos a mulher está
to, é um modelo a ser seguido pelos cristãos, mas mais predestinada ao mal do que o homem, devi-
acima de tudo pelo seu próprio grupo, os bellatores, do ao pecado original de Adão e Eva, argumento
membros da nobreza. Muitas das ações deste grupo esse que Lúcifer a todo o momento expõe durante
eram mal vistas pela Igreja, na medida em que prati- o Julgamento final para ficar com as almas.
cavam os torneios. Esta atividade para os cavaleiros Observamos na fonte as passagens da Santa
significava um esporte coletivo, que os preparava Escritura: “ay mesquinha eu son por que non qui-
para a guerra, mas os clérigos os viam como: “uma ge creer as scripturas sanctas e os conselhos dos
exibição de glória vã em afrontamentos que às vezes homeens boos e amey mais os uiços do mundo”?
provocam a morte dos homens” (FLORI, 2005, (V.T, 1895, p.110). Percebemos neste fragmento que
p. 104). Além disso, de acordo com a visão dos a Igreja faz um alerta para que os homens creiam
eclesiásticos, muitos nobres eram envolvidos nas nas santas escrituras e seguissem os ensinamentos
pilhagens e nos pecados mundanos. ditos pelos clérigos, para que após a morte as suas
A Visão de Túndalo é considerada um almas não viessem a sofrer no Inferno como ocorreu
manual pedagógico no qual a Igreja se apropria com o cavaleiro Túndalo.
desse Além nos seus discursos, enfatizando mais Os eclesiásticos possuem a função de pro-
o Inferno a fim de causar a sensação de medo nas fessar a ressurreição dos corpos, a exemplo de
pessoas e fazer com que elas busquem a salvação Jesus, difundir os seus ensinamentos para todos
a partir dos ensinamentos dos clérigos. na sociedade medieval, para que as almas possam
89
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

alcançar e desfrutarem das glórias do paraíso. qual os combatentes deveriam respeitar os campo-
Sobre este local, ali havia a fonte da vida: “esta neses, os clérigos, mercadores e os seus bens; e a
fonte que aqui he chamada uida e todo aquel que Trégua de Deus (século XI) se comprometendo em
dela beuer uiuera para senpre e nunca iamais não lutar entre a quinta a tarde e a segunda-feira
auera sede” (V.T, 1895, p.112). Assim, o paraíso é pela manhã. Assim os oratores pretendiam limitar
marcado pela alegria, a paz eterna e nesse lugar. a guerra e disciplinar os cavaleiros.
Ali as almas não sentirão fome e nem sede. Diante dessas duas proposições que a Igreja
Os discursos da Igreja são criados e recriados estabelece, a “paz de Deus” e a “trégua de Deus”, ela
ao longo da Idade Média, adaptando conforme as intenta alcançar o seu objetivo de limitar a guerra e
circunstâncias, desta forma os eclesiásticos aten- disciplinar os cavaleiros, dizendo o que é certo e er-
dem os seus interesses e ideologias ao converter rado na arte de fazer guerra. Este é um exemplo das
os fiéis a aderirem à fé cristã. ações clericais que visam colocar os bellatores sob a
esfera de dominação dos eclesiásticos, seguindo as
Georges Duby, em História social e
suas crenças para não caírem nos pecados terrenos.
ideologia das sociedades (1995), entende por
O relato sobre o cavaleiro Túndalo igualmente uma
ideologia um sistema de representação que são
tentativa dos oratores em estabelecer as corretas
construídos a partir de um sistema de valores de
normas de comportamento aos nobres e outros
um determinado grupo social que são impostos
fieis no medievo, bem como a um comportamento
e transmitidos de uma geração a outra.
adequado dos próprios da Igreja.
As ideologias dos clérigos são sempre vivas
Os clérigos tinham o dom da retórica em
para manter um bom funcionamento da sociedade,
transmitir os ensinamentos e da própria missão
controlando todas as funções dos grupos sociais,
que Jesus tinha na terra, assim, eles assumem o
principalmente dos camponeses para que esse
papel de ideólogos da sociedade, em que vão se
estamento não venha a contestar a ordem vigente.
adaptando e se transformando de acordo com as
circunstâncias.
CoNsiDErAÇÕEs FiNAis O cristianismo é uma religião de salvação,
os clérigos pregam os ensinamentos de Jesus para
Pode-se dizer que a maior parte dos cristãos que os homens alcancem a salvação, entretanto
tinha tanta certeza da imortalidade da alma e da o destino dos homens e mulheres não depende
existência do outro mundo. Hilário Franco Júnior apenas de Deus, mas também das formas como
em A Idade Média nascimento do Ocidente nos eles se comportam durante a sua vida terrena,
diz que os medievos não tinham medo da morte, assim os eclesiásticos indicam as regras de
mas sim de morrer sem se confessar e receber os comportamento a fim de manter a “ordem” na
sacramentos; o cristianismo ensina que a morte é sociedade medieval.
apenas uma passagem para a vida eterna.
A Visão de Túndalo é uma forma de a Igreja
A Visão de Túndalo faz parte dos sermões dos buscar legitimar o seu poder de dominação so-
clérigos, com o objetivo de converter os medievos, bre a sociedade medieval, mostrando aos seres
principalmente os cavaleiros que estavam ligados humanos o caminho para a salvação e a forma
com os pecados mundanos, como o caso do cavalei- de como devem seguir suas vidas na terra, para
ro Túndalo. A fim de disciplinar essa ordem a Igreja que após a morte as suas almas desfrutem da paz
instituiu Paz de Deus (fins do século X), através da eterna no Paraíso.

90
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(coord). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Trad. de Hilário Fran-
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DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Universitat Autònoma de Barcelona, v.2, 2003, p. 137-162. Disponível na
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91
o HErói DA DiNAsTiA DE BorGoNHA:
As maravilhas realizadas pelo Rei Afonso III
na Crônica dos Sete Primeiros Reis de Portugal

Bianca Trindade Messias1


Adriana Zierer

iNTroDuÇÃo

O
rei na Idade Média é um ser complexo exercidos por ele nas Idades Média e Moderna.
que incorpora um conjunto de poderes,
A Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portu-
sagrado, simbólico e temporal, que o
gal (século XV) apresenta um herói da História de
tornam um representante de seus domínios, com
Portugal, o rei Afonso III (1248-1279), quinto rei
o objetivo de estabelecer a paz, a harmonia e a
de Portugal, da Dinastia de Borgonha. Descrito
justiça para o bom ordenamento da sociedade.
como um rei cristão, guerreiro e conquistador
Vários monarcas deixaram seus rastros na cristalizou-se a imagem de um modelo de bom
história da civilização europeia, cada um com governante na História de Portugal e tornou-se
sua singularidade, o que faz deles personagens uma referência para a Dinastia de Avis, em que
frequentes na literatura medieval, na iconografia e são glorificadas as atitudes heroicas estabelecidas
nas crônicas. A maior parte dessas fontes históricas pelo soberano no século XIII.
enfatizam as aventuras desempenhadas por eles,
os aspectos cristãos, guerreiros, heroicos, míticos A produção da Crónica dos Sete Primeiros
e lendários que contribuem para a difusão da ima- Reis de Portugal, também conhecida como Cró-
gem de um rei forte que governa o seu reinado. nica de 1419, foi inspirada na Crónica Geral de
Espanha de 1344, esse manuscrito foi publicado
Em relação às crônicas estas possuem o com a colaboração do conde D. Pedro de Barce-
objetivo de descrever a trajetória de vida dos
los. Inspirou-se na Crónica Geral de España de
monarcas, iniciando a narração com o ano em
Afonso X (1270). Este não se limitou em traduzi
que o rei assumiu o poder, relatando as ações e
-la, mas prolongou a narrativa até o reinado de
dificuldades como governante e finalizando com
Afonso IV (bisneto de Afonso X).
a forma de suas mortes. Essa documentação atra-
vessa gerações e faz parte da construção histórica A Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portu-
das monarquias europeias, vistas como símbolos gal é de autoria anônima, sendo atribuída por mui-
da identidade nacional. tos, ao cronista Fernão Lopes por, em seu prólogo,
constar que foi feita a pedido de um infante e de
Através dos vestígios encontrados nas crô-
nicas sobre o soberano podemos compreender as ser fato conhecido que, D. Duarte, segundo rei da
suas funções exercidas na sociedade, as formas de Dinastia de Avis, incumbiu oficialmente, no ano
governança, as relações sociais estabelecidas, o seu de 1434, Fernão Lopes de escrever as crônicas de
modo de vida, os valores simbólicos e ideológicos todos os reis de Portugal até a sua época. Outro
1 Graduada em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
fator seria que a crônica contém citações de fontes
e Cursando o Mestrado em História, Ensino e Narrativas (UEMA/Mnemosy- documentais que este cronista poderia ter tido
ne) sob a orientação da Prof. Dra. Adriana Zierer. Docente do Programa
Darcy Ribeiro, da UEMA. Email: bia-tm@hotmail.com acesso na Torre do Tombo.
93
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

As crônicas foram produzidas posteriormen- Inserido na hierarquia social que estava or-
te ao seu governo e construíram uma imagem ganizada em três ordens: oratores, bellatores e
positiva e perfeita desse soberano que gira em laboratores, ou seja, clero, nobreza e camponeses.
torno de aspectos positivos que o caracterizam Membro da nobreza a sua principal função consiste
como justiçoso, bondoso, expansionista e guerrei- em ser um guerreiro, por meio das armas o monarca
ro. Segundo Le Goff “as imagens que interessam comanda a sua ordem de cavalaria, mantêm a segu-
aos historiadores são imagens coletivas, amassa- rança, a justiça e a paz em seu território.
das pelas vicissitudes da história, e formam-se,
Os bellatores são um grupo móvel estão inter-
e modificam-se, transformam-se, exprimem-se
ligados com os demais grupos sociais ao necessitar
em palavras e termos” (LE GOFF, 1994, p. 16).
dos conselhos e orações dos clérigos para aplicar
Palavras e termos presentes nas crônicas re- as suas ações, de acordo com a vontade divina, e,
presentam as qualidades e atitudes dos monarcas na dependentes dos trabalhos realizados pelos campo-
Europa, carregadas de valores simbólicos e ideoló- neses para o abastecimento e manutenção da corte.
gicos. Para Chartier os discursos são frutos de uma
Concebemos a sociedade medieval de
representação coletiva, forjados nos campos de lutas,
forma dinâmica em que uma ordem necessita
impostos pelos grupos que os construíram, atenden-
do aos seus interesses e estabelecendo determinados da outra para o pleno desenvolvimento de suas
significados no meio social em que estão inseridos. atividades. Segundo Barros, o rei é o responsá-
vel pela movimentação da estrutura social. Ao
Através das leituras dos discursos que foram ingressar no campo religioso, é visto como um
produzidos sobre Afonso III, pretendemos com- dos representantes de Deus ao praticar o poder
preender as ações realizadas pelo soberano a partir temporal, exerce sua função de guerreiro, além
da Crónica Os Sete Primeiros Reis de Portugal disso, “garante a ordem econômica e assegura a
que o tornaram um símbolo heroico da Dinastia de prosperidade material” (BARROS, 2012, p. 129).
Borgonha e da historiografia portuguesa.
Membro da nobreza, o rei é um leigo, mas
encontra-se numa posição elevada ao participar
A CoNsTruÇÃo de uma cerimônia realizada pelos bispos: a
sagração. Esse ritual foi bastante frequente na
DA imAGEm rÉGiA França, consistia na ligação direta do soberano
com Deus, por meio da unção, momento em que
Afonso III era vassalo do rei Luís IX, da França
os arcebispos abençoavam com o óleo santo as
e através do casamento com D. Matilde tornou-se
principais partes do corpo do novo rei que eram:
Conde de Bolonha. A construção da sua imagem
a cabeça, o peito, os ombros e as mãos.
real iniciou-se durante o reinado de seu irmão San-
cho III(1223-1247), visto com um rei fraco, em que Segundo Le Goff, após o rito da unção
a sua conduta e medidas geraram insatisfação dos “confiam-se ao rei, em três tempos, as insígnias
clérigos, pois, segundo Moreira “a queixa dos bispos simbólicas do novo poder de que ele acaba de ser
resume-se a um único, mas grave defeito do rei, o investido” (LE GOFF, 2008, p. 195). A primeira
de não fazer justiça” (MOREIRA, 2012, p. 162). fase é o adoubement real, o monarca recebe os
sapatos e os armamentos de guerra, a segunda
Com o não cumprimento de “fazer justiça” em
fase é a entrega das insígnias propriamente ditas,
Portugal, importante atributo régio, a Igreja depôs
como as vestimentas e o anel, simbolizando a
Sancho II e apoiou Afonso III para assumir o cargo
ligação com a fé católica, a terceira fase consiste
de Procurador e Regedor do reino. Os eclesiásti-
na coroação, símbolo da realeza.
cos esperavam “um rei que lhe garantisse as suas
liberdades e privilégios que dele fosse respeitado, O ritual de sagração está envolvido com os
e até submisso” (MARQUES, 2010, p. 207). significados divino e simbólico. O soberano é in-
94
Bianca Trindade Messias / Adriana Zierer

corporado por poderes sobrenaturais e torna-se um O estudo do imaginário não se restringe


intermediário sagrado entre Deus e o seu povo, ao apenas as imagens mentais, mas envolve as pro-
mesmo tempo, ele é representado simbolicamente duções dos discursos que expressam os hábitos,
pelas insígnias reais como o anel e a coroa, demons- os valores simbólicos e ideológicos dos grupos
trando o seu poder e posição social que ocupa na sua sociais que os constroem, atribuindo significados
ordem. Somente após a unção e a benção dos bispos o para a realidade social em que vivem.
rei manifesta o seu poder sobre o seu povo, mas deve Segundo Mário Jorge da Motta Bastos, em O
obedecer as regras e os limites estabelecidos pelos poder nos tempos da peste (Portugal- séculos XIV/
eclesiásticos, para não romper com a organização XVI) (2009), “o discurso é uma forma de engen-
social e provocar a desordem na civilização feudal. dramento de sentido, e todo sentido social, qual-
Afonso III ascendeu à posição de rei após a mor- quer discurso, como qualquer fenômeno social, é
te de Sancho II e declarado o quinto rei de Portugal. passível, de ser “lido” em relação ao ideológico e
Antes de assumir o poder real ele fez o juramento ao poder, que são, portanto, dimensões especificas
diante das sagradas escrituras e dos membros da de análise entre tantas que perfazem o universo
Igreja, comprometendo-se com seus direitos e deve- social de sentido” (BASTOS, 2009, p. 19).
res que consistiam em honrar a sua ordem, proteger Os discursos produzidos sobre Afonso III en-
os indefesos e ouvir os eclesiásticos. fatizam um “boom Rey e justiçosso” (CRÓNICA
A Crónica dos Sete Primeiros Reis de Por- DOS SETE PRIMEIROS REIS DE PORTUGAL,
tugal relata a forma de governo de Afonso III, 1952, p. 247), que recebeu o apoio da Igreja para
enfatizando as suas atitudes heroicas ao finalizar ordenar os domínios de Portugal e garantir a paz
a guerra de Reconquista, centralizar o poder régio e a segurança. O poder real esta em pleno equilí-
e a expansão de seus domínios na Dinastia de brio com o poder episcopal, pois os oratores são
Borgonha no Ocidente Cristão do século XIII. considerados os intelectuais da Idade Média e por
meio da retórica transmitiam a ideologia cristã.
Georges Duby, em História social e ideologia
ATiTuDEs HEroiCAs das sociedades (1995), entende por ideologia um
DE AFoNso iii sistema de representações que são construídas a
partir de um sistema de valores de um determinado
A crônica Os sete primeiros reis de Portugal grupo social, e são construção dos valores da socie-
enfatizam as características positivas de Afonso III dade medieval, aconselhava os reis a governarem
como bom governante, apresentando seu caráter os seus territórios de acordo com a vontade divina
cristão, guerreiro e conquistador, essas represen- e estabelecia os deveres e limites que eles tinham
tações do monarca se prolongaram no imaginário que possuir com o corpo eclesiástico.
das dinastias posteriores que o glorificam com um
Georges Duby, em As três Ordens ou o Imagi-
soberano perfeito da história de Portugal.
nário do Feudalismo (1982), fez uma discussão sobre
Assim, a imagem do rei Afonso III influen- a teoria da trifuncionalidade, com o objetivo de com-
ciou o imaginário daqueles que vivenciaram, ou preender as suas origens e funções que cada grupo
ouviram as maravilhas de sua ações. Para Sandra social desempenhava na civilização feudal. Duby ao
Pesavento, em seu artigo Em busca de uma outra explicar a trifuncionalidade estabelece os espaços e
História: imaginando o imaginário, publicado limites das ordens sociais, porém, em relação aos ora-
na Revista Brasileira de História (1995), “o ima- tores e bellatores verifica-se a dependência de ajuda
ginário faz parte de um campo de representação mútua entre ambos, “em que os imperadores precisam
e discursos que pretendam dar uma definição da dos bispos para a sua salvação, os bispos esperam dos
realidade” (PESAVENTO, 1995, p. 15). imperadores a paz na terra” (DUBY, 1982, p. 98).
95
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

O clero e a nobreza estão unidos no processo processo de expansão territorial do reino Luso está
de bom ordenamento da sociedade. Os clérigos atrelado com o fortalecimento do poder.
por meio da pregação difundem os seus valores Michel Foucault, em Microfísica do Poder
e regras, a nobreza através das armas aplica-as (1979), ao analisar a genealogia do poder presente
para que todos possam seguir a conduta cristã. em diferentes sociedades e exercidas por variados
Entretanto, caso o rei descumpra com o seu ju- grupos humanos nos diz que,
ramento e dever é punido com a excomunhão.
...o poder deve ser analisado como algo que cir-
Observamos que o rei Afonso III começou cula, ou melhor, como algo que só funciona em
a governar Portugal com o consentimento da cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca
Igreja, realizando ações que a agradaram como está nas mãos de alguns, nunca é apropriado
a construção do “mosteiro de São Domjngos de como uma riqueza ou um bem. O poder funciona
e se exerce em rede (FOUCAULT, 1979, p. 103).
Lixboa, e foy feita a maior parte dele em sua vida.
E mamdou fazer o moesteiro das Freyras de Santa
Na Idade Média o rei é o detentor do poder
Clara de Samtarem”, (CRÓNICA DOS SETE PRI-
político, ou melhor, a “cabeça” da sua ordem, mas
MEIROS REIS DE PORTUGAL, 1952, p. 248).
ele compartilha, delega o seu poder para homens
Os mosteiros significam a expansão da fé cristã
de sua confiança, ou seja, os membros do seu corpo
no território português e a aproximação com os
cristãos ao ensiná-los os ensinamentos de Jesus social, os nobres, que irão exercê-lo a fim de garan-
na terra. Assim, o soberano, em seus primeiros tir as conquistas, os privilégios de um determinado
anos de governo, cumpriu com o seu juramento grupo social em prol de uma coletividade.
realizado diante do corpo eclesiástico de obedecer Ao compartilhar o poder Afonso III cria
as sagradas escrituras e como expressão máxima órgãos administrativos como a Cúria, as Cortes,
dessa obediência temos a finalização da guerra o concelho entre outros que tinha como objetivo
de Reconquista. melhorar o ordenamento social e administrativo
A finalização da guerra de Reconquista foi de Portugal. Entretanto, no processo de consoli-
uma grande vitória do Ocidente Cristão, princi- dação das estruturas administrativas o rei inter-
palmente da Península Ibérica, que conseguiram feriu no poder dos clérigos como na “intervenção
expulsar os mouros, do reino português. Após a na nomeação de eclesiásticos e na obtenção de
expulsão desses povos infiéis houve o alargamento benefícios” (MARQUES, p.230).
das fronteiras e a ocupação dos territórios, concre- Diante de tal postura assumida por Afonso
tizados com a construção de Igrejas simbolizando III o clérigo descumhou o rei, porém a crónica
o estabelecimento e expansão da fé cristã. não descreve com detalhes sobre esse episódio de
Ser guerreiro é a principal característica de desentendimentos entre os oratores e o rei, mais
um rei, segundo Jean Flori o soberano deve co- narra que durante o seu leito de morte Afonso III
mandar a sua Ordem de Cavalaria, guiar os seus “entregou uma serie bens à Igreja e se submeteu
cavaleiros durante as guerras para combater o a Santa Sé, por medo do inferno ou por querer
inimigo, assim, como os cavaleiros devem prestar garantir a legitimidade de seu herdeiro no poder,
honra, fidelidade e obediência ao seu senhor. o infante D. Dinis” (ZIERER, 1999, p. 162).
A Crônica enfatiza a relação do Rei com os ca- As crônicas enfatizam as características posi-
valeiros fiéis, com a ajuda e apoio da cavalaria o rei tivas de Afonso III como bom governante, apresen-
fortalece o seu poder, garante a paz em seus domínios tando seu caráter cristão, guerreiro e conquistador,
e expande o reio luso. A grande conquista territorial essas representações do monarca se prolongaram
da Dinastia de Borgonha foi a região do Algarve, no imaginário das dinastias posteriores, como a
graças ao segundo casamento de Afonso III com D. Dinastia de Avis, que o glorificam com um sobe-
Beatriz, de Castela, filha bastarda de Afonso X. O rano perfeito da história de Portugal.
96
Bianca Trindade Messias / Adriana Zierer

CoNsiDErAÇÕEs FiNAis os seus domínios a paz, o poder, a expansão


territorial e o ordenamento social.
A construção heroica de Afonso III está as- O conflito com a Igreja não é descrito na
sociada à imagem ao do rei Artur, durante o seu crônica, pois o poder real repousa sobre uma
reinado as narrativas arturianas foram traduzidas adequação às normas ideológicas definidas pela
para o português e tiveram uma grande repercus- Igreja, através de um jogo de negociação o sobe-
são em Portugal. Os atributos positivos de Artur rano consegue se articular com todos os que estão
foram apropriados nas crônicas portuguesas, como ao seu redor, se compromete a executar todos os
os seus aspectos guerreiros, de rei bom e justiçoso, desejos do clero, na medida em que esse legitima
sendo resignificados para a consolidação de um rei simbolicamente o poder exercido pelo rei.
forte, poderoso que combateu os males deixados
Portanto, através das leituras dos discur-
por Sancho Il e estabeleceu a justiça, a paz e o
sos que foram produzidos sobre Afonso III, as
poder em Portugal (ZIERER, 2013)
crônicas atribuem significados e sentidos ao rei
Afonso III deixou sua marca na história de dando-lhe aspectos de um verdadeiro herói que
Portugal em que a Crónica dos Sete Primeiros soube com sabedoria articular-se com a nobreza
Reis de Portugal o qualificaram como um rei e a Igreja para o exercício do poder. Essa imagem
bom, justiçoso, guerreiro, elevando-o como um do rei perfeito se perpetuou na historiografia e na
rei ideal que governou Portugal e garantiu para história de Portugal.

97
REFERÊNCIAS (1978). Tradução portuguesa. Lisboa: Estampa 1982.
FONTES PRIMÁRIAS LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civili-
Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal. Ed. crítica de Carlos zação Brasileira, 2008.
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Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. MATTOSO, José (org). História de Portugal. A Monarquia Feudal
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BARROS, José D’ Assunção. Papas, imperadores e hereges na a imagem do rei guerreiro na construção cronística de Sancho II
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da América. São Paulo: Globo, 2006. _. Da ilha dos bem aventurados à busca do Santo Graal: uma outra
DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo viagem pela Idade Média. São Luís: Ed. UEMA, 2013.

98
DEPósiTos DE sACriFÍCios HumANos
E “TErrENos DE ENTErrAmENTos FormAis”:
O caso de Gordion e a população gálata

Bianca Miranda Cardoso1

A
o consultar manuais sobre o tema da doutora Adriene Baron Tacla. Pretende-se aqui
antiguidade, é perceptível uma clara apresentar a proposta e resultados parciais da
ênfase às civilizações grega e romana, pesquisa a título de divulgação e busca de críticas
como uma tentativa de criação de continuidade construtivas à produção do trabalho final.
com um passado eurocêntrico que legitima a ideia A proposta central da pesquisa é estudar da
de uma origem ocidental “civilizada”. A partir da mudança no uso de parte do sítio arqueológico de
modernidade, o movimento que ficou conhecido Gordion estudado por uma equipe de arqueólo-
como Celtic Revival demonstra o interesse tam- gos da Universidade da Pensilvânia. Esta região,
bém no passado provincial, percebe-se assim a localizada no centro da Península da Anatólia,
invenção de novas tradições (HOBSBAWN, 2008 hoje Turquia, é identificada por Selinsky (2005)
passim) possibilitada pelo desenvolvimento da ar- como o local onde ocorriam rituais de sacrifí-
queologia e recuperação de um espectro variado cios humanos durante o período helenístico que
de cultura material2 destes povos. deram lugar a práticas funerárias convencionais
O surgimento de religiões neo-pagãs torna de enterramentos e cremações3.
clara a importância da problematização dessas Acredita-se aqui que o modo através do qual as
idealizações. Por isso a análise da hibridização entre tribos celtas se relacionaram com as demais culturas
povos celtas, autóctones e greco-romanos numa locais e greco-romana é parte de um constante pro-
região provincial tem muito a contribuir tanto para o cesso de hibridização (BHABHA, 1998 passim) que
ambiente acadêmico quanto para a responsabilidade ocasionou a mudança de práticas religiosas na região4.
social do trabalho historiográfico. Entende-se também que o processo de “pacificação”
O texto abaixo é fruto de uma pesquisa de 3 A cronologia da ocupação do sítio arqueológico de Gordion é estabelecida
por Voigt (cf. http://sites.museum.upenn.edu/gordion/history/chronology)
mestrado em andamento através do Programa 4 Originando-se nas discussões da literatura pós-colonial, o estudo do hibridismo
cultural ainda é pouco explorado apesar de oferecer contribuições ao meio histo-
de Pós Graduação em História da Universidade riográfico e arqueológico igualmente. Esta contribuição se dá em sua mudança de
Federal Fluminense sob orientação da professora perspectiva na observação de encontros culturais de forma a tentar compensar o
papel eurocêntrico que a historiografia tradicional carrega e o carácter etnocên-
1 Mestranda do PPGH-UFF sob a orientação da Prof. Dra. Adriene Baron trico que por muito tempo serviu de base para o desenvolvimento da pesquisa
Tacla (UFF/NEREIDA). Email: kanuae@hotmail.com arqueológica. O conceito de hibridização cultural é de caráter multiculturalista
2 Entende-se aqui os vestígios arqueológicos como produções humanas passadas e propõe a existência de um “entre lugar” no qual culturas variadas convivem e
e que, porque humanas, carregam toda uma bagagem cognitiva e simbólica pró- dialogam de forma criativa formando-se um híbrido de ambas. Se por um lado o
pria da sociedade além de concepções pelas quais aqueles indivíduos são cerca- aspecto violento que acompanha o contato não deve ser ignorado, por outro, ao
dos e se cercam simultaneamente (HODDER, 2001, passim). A cultura material lançar mão desse termo, Bhabha (1998) ocasionou uma mudança de perspectiva
não poderia ser analisada em sua completude sem a descrição pormenorizada do nos trabalhos acadêmicos na medida em que demonstrou como as identidades
contexto dos vestígios, tendo em vista a importância dos conjuntos e seu posicio- precisam se reinventar constantemente para que sejam mantidas em situações de
namento. Neste aspecto a arqueologia contextual indica dois pontos de extrema conflito aberto, mas também em momentos de pós-conflito e de normalização. É
importância: (a) a importância do contexto em que o trabalho de interpretação é importante salientar, no entanto que esses momentos de normalização não podem
produzido, não somente o do vestígio e (b) a concepção de que a própria noção ainda ser caracterizados como “não conflito”. Isso porque mesmo em contextos
de grupo étnico largamente utilizada por arqueólogos é historicamente construída não coloniais percebe-se a existência de grupos identitários e relação de poder e
e precisa ser problematizada (JONES, 2007). Esta questão da etnicidade não será força entre os mesmos. Sendo assim, em situações de conflito aberto e em mo-
aprofundada neste texto, para uma obra introdutória em português ver JONES, mentos de normalização, as práticas podem ser mantidas havendo uma releitura
S. Categorias Históricas e a Práxis da Identidade IN: FUNARI, P. et. al. (org.) constante da tradição; e também pode ocorrer o inverso, a alteração das práticas
Identidades, Discurso e Poder, Annablume: São Paulo, 2005. mantendo-se a leitura tradicional.

99
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

romano na região da Galácia entre os séculos II a.e.c. de elementos provenientes da cultura material da
e I e.c. foi um fator especial para tais mudanças. população gálata, frequentemente negligenciada
O diálogo interdisciplinar entre arqueologia e nos estudos sobre populações celtas6.
história tem muito a oferecer ao meio acadêmico Algumas motivações fundamentais foram res-
e análise da cultura material do sítio de Gordion ponsáveis pela identificação do período helenístico
especificamente possibilita novas interpretações da tardio como momento de assentamento de três tribos
historiografia da região e até mesmo das fontes es- celtas, nomeadamente Trocmi, Tolistobogii e Tectosa-
critas exploradas por autores anteriores aos achados. ges. Por um lado há uma análise crítica e comparação
Este trabalho também propõe estudos relacio- da evidência literária antiga disponível sobre o tema
nados à prática religiosa e ritual já que as fontes levada a cabo por Stephen Mitchell (1993) indicando
de cultura material aqui exploradas consistem em um reconhecimento da presença celta na região por
esqueletos humanos totais ou parciais selecionados parte dos autores antigos. Por outro, a análise osteológi-
e dispostos metodicamente, interpretados, portanto, ca dos esqueletos mencionados anteriormente também
como resultantes de sacrifícios humanos em con- demonstra terem sofrido traumas característicos de
texto religioso e cultural das tribos migrantes5 ou sacrifícios humanos de populações celtas similares
resultantes de práticas funerárias de enterramentos. às residentes da Europa e Ilhas Britânicas.

Górdion

Estudado por arqueólogos e historiadores des-


de o início do século XX até os dias atuais, o sitio 6 Embora seja vasto o debate sobre os pressupostos segundo os quais uma co-
arqueológico de Gordion tem muito a oferecer no munidade pode ou não ser denominada celta ou descendente de celtas por conta
da recuperação e das releituras desta cultura no período moderno, entende-se
que diz respeito à análise de um espectro variado aqui como tal aquelas comunidades residentes na região central do continente
Europeu que se desenvolveram e deixaram vestígios identificados arqueologi-
camente como provenientes dos períodos hallsattiano e lateniano - e que a partir
5 Se a religiosidade não deixa traços físicos claros, sua prática ritual pode ser do IV século a.e.c. se dividiram em ondas de migrações. Com a popularização
analisada através da cultura material (FOGELIN, 2007). Em outras palavras, deste termo étnico torna-se necessário salientar que estas comunidades não pos-
enquanto o sentimento religioso individual interior tem um caráter praticamen- suíam uma unidade tratando-se de tribos independentes e extremamente hete-
te inacessível porque interiorizado, a ritualização é um fenômeno passível de rogêneas que precisam ser estudadas e compreendidas em suas especificidades
observação e estudo. locais e contextuais.

100
Bianca Miranda Cardoso

Em contraste, no período romano, entre o I e o Através desta região passa o curso médio do rio
III século e.c. é verificado outro tipo de tratamento Hális (em turco: Kızılırmak) e a parte superior
aos esqueletos encontrados na mesma região. do Sangário (Sakarya), que desembocam no mar
O contraste entre as amostras de esqueletos do Negro. O território é dotado de alta amplitude térmi-
período helenístico tardio e romano demonstra ca devido a sua proximidade a uma região quase não
indícios distintos de costumes mortuários e arborizada no sudeste que torna cada estação do ano
religiosos diferentes, sugerindo uma mudança mais rigorosa. Por isso, mesmo que em pouca escala
dramática nas práticas dos grupos que habita-
vam Gordion entre estas duas fases da história e apesar da ausência de um sistema de irrigação, a
do sítio (SELINSKY, 2005 p.123). atividade pastoril de ovelhas era apreciada devido
à importância da lã na província8.
Goldman (2005) divide o período romano em A região seria habitada por frígios desde
quatro fases principais de acordo com as construções o X séc. a.e.c. e, pouco antes do começo do perío-
encontradas e cruzando os achados com os registros do helenístico, encontravam-se eles sob domínio
literários existentes7. As duas primeiras somam do persa. A economia local, como inferida através de
ano 0 a 75 e.c., mas, segundo o autor, a análise destas vestígios arqueológicos e literários, era baseada
fases ainda está em andamento. na pecuária de pequenos rebanhos, viticultura e
A região onde se localiza o sítio arqueológico agricultura de cereais denotando um estilo de vida
caracterizava-se como rota de passagem e contato agrícola e rural (MITCHELL, 1993, v. 1, p. 146).
com o Oriente desde o III século a.e.c. até a ane-
A Frígia havia sido um reino situado na
xação ao Império Romano, o que pode ser inferido
parte central oeste da Anatólia. A população frígia
pela existência de estradas (MITCHELL, 1993, p.
teria se assentado na região por volta do século X
124). Tal implica dizer que nela residiam diversas
a.e.c. estabelecendo um reino no século VIII a.e.c.
populações e que grupos de diferentes culturas
Ele foi devastado por invasores cimérios em 690
atravessavam a região, o que teria impacto direto
a.e.c., brevemente conquistado pela Lídia, território
na vida das sociedades lá assentadas.
vizinho, passando também pelo domínio político
O plateau central da península, situa-se do império de Ciro II da Pérsia. Após contato com
num planalto entre os Montes Tauro, ao sul, e os o império de Alexandre e seus sucessores, o terri-
Montes da Paflagônia, ao Norte. Na sua parte norte- tório foi tomado pelo rei de Pérgamo, e posterior-
central, destacam-se as cidades de Ancira, a atual mente tornou-se parte do império romano. A língua
Ancara, capital da Turquia, Pessinus e Tavium. frígia sobreviveu até o século VI d.C.
7 Recentemente passou-se a explorar melhor os períodos Helenístico e Romano
abordados neste trabalho, o que Andrew Goldman julga fruto dos estudos a A partir do século III a.e.c., houve muitas
respeito da dinâmica provincial romana e dos impactos da Romanização na re-
gião da Galácia rural, além de padrões e rotas de comércio (GOLDMAN, 2005
mudanças nas fronteiras e nas afiliações políticas
passim).Os períodos helenístico e romano são fases ainda pouco exploradas desta região estratégica. Por volta de 278, um grande
pela historiografia e arqueologia na região da Anatólia. Isso acontece por conta
do baixo número e variedade de fontes existentes sobre estes até o século XIX. número de celtas, denominados nas fontes antigas
Anteriormente os estudiosos se utilizavam prioritariamente de textos antigos
sendo para tal necessário problematizar sua produção posterior e exterior às
pelos autores gregos como Galatai atravessaram
sociedades estudadas. Os estudos sobre a epigrafia da região também foram de o Estreito do Bósforo e se estabeleceram nesta
extrema importância para que trabalhos como os de Ramsay (1922) que ana-
lisa os registros de nomes de pessoas e lugares. Também há levantamentos de região, dando origem ao seu nome, Galácia.
cultura material da região como Mellink (1980, 1991). Strobel (2009) e Mitchell
(1993) tiveram um papel central ao reunir e sintetizar o material produzido. As tribos Tolistobogii, Trocmi e Tectosages
Para o período romano também pode-se destacar Anderson (1910). No entanto
estes trabalhos não tinham como dar conta do que seria encontrado em Gordion receberam a proposta de atuar como mercenários na
pelo projeto do Penn Museum e trabalhado por Selinsky (2004) e Goldman
(2000). Nos relatórios de escavação disponíveis sobre o sítio são classificados região. Sabe-se que acompanhando os guerreiros,
um primeiro ciclo de escavações no qual havia um interesse principal nos ves- migraram também suas esposas e filhos, pois esta
tígios provenientes do período alexandrino e um segundo ciclo de escavações,
iniciado em 1993, dando ênfase às mudanças ocorridas em Gordion por se tra- 8 Todo o cenário físico é de extrema importância para a compreensão de
tar de um estabelecimento humano de longa duração. Por ter uma ocupação de como as populações locais se comportavam, como dito anteriormente. O
longa data, a exploração do sítio de Gordion permite observar mudanças desde rio Sangário, por exemplo é mencionado por Pausanias em Description of
a Era do Bronze até a Idade Média provendo evidências materiais ao que ante- Greece (book 1, chapter 1), autor que viveu durante o I século e.c., e Poly-
riormente só poderia ser provado por registros literários de caráter usualmente bius em Histories (book 21, chapter 37), I século a.e.c.; o que demonstra o
central, e não periférico (KEALHOFER, 2005). conhecimento greco-romano sobre a região neste período.

101
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

é uma característica da prática mercenária dessas Em 168 há uma insurgência contra o domínio
populações anteriormente residentes da Europa Atálida no qual se recorre mais uma vez à ajuda
central e que encontravam-se em movimento de romana. Simultaneamente, Prusias da Bitínia se
dispersão por toda a Europa desde o século IV a.e.c. voltou a Roma para reclamar o território Gálata.
(RANKIN, 1996). Posteriormente, acabaram por Embora as fontes forneçam apenas informações
se fixar no território entre a Bitínia e os territórios sucintas, é possível perceber o caráter conflituoso
de Antíoco I servindo como barreira de proteção dos diversos reinos independentes na região, sua
(CUNLIFFE, 1997, p.178). submissão a Roma e o interesse desta última na
manutenção do status quo.
Segundo Mitchell (1993), bibliografia mais
citada nos trabalhos sobre a Anatólia, o início do Em 131 a.e.c. ocorre a revolução que trans-
assentamento celta se deu na região central da pe- forma a República romana em um Império. O
nínsula a partir de uma aliança formada entre a tribo comércio, a busca por escravos e as guerras endê-
dos Tolistobogii e Ziaelas para que este segundo, micas já faziam parte do cotidiano de Roma nesta
em exílio na Armênia até a morte de Nicomedes I, época e continuariam fazendo no período seguin-
assumisse a sucessão do reino de Bitínia e Pontus, te (MENDES, 2002). Sendo assim, o diálogo
regiões localizadas ao norte e leste. Ao fim do entre romanos e povos tidos como bárbaros não
conflito, não havendo recebido o que lhe havia sido causa surpresa, e a relação de ambos como con-
prometido por conta da interferência da população correntes e vizinhos continua não só na forma de
de Heracleia Pontica acabou por invadir e saquear conflitos bélicos, mas também através de trocas
o território. Tribos celtas teriam ainda lutado ao comerciais que interligavam o mar Mediterrâneo
lado de Mitrídates, de Pontus, e Ariobarzanes, da ao atlântico por uma variedade de rotas terrestres
Capadócia, para repelis forças ptolomaicas no Mar e fluviais (CUNLIFFE, 1994) e de trocas de bens
Negro, recebendo a região ao redor de Ancyra de prestígio (FRANKENSTEIN, 1997). Além de
como recompensa pelo sucesso. Eventualmente essa estimular a produção local, estas formas iniciais
aliança expirou com o saque da região de Pontus, e de interação também apresentavam uma cultura
novamente a Heracleia, por ocasião da ascensão de à outra, sendo fruto destes encontros os relatos
Mitridates II ao trono ainda criança. sobre estas tribos como Outro, bárbaro.
É preciso ter em mente que a região em Ao pacificar a região, tornando as tribos celtas
questão tratava-se de um conjunto de territórios suas aliadas, Vulso transforma suas terras em ager
independentes frente ao Império Helenístico publicus, o que vai iniciar um gradativo aumento da
em um momento no qual os diversos reinos se população romana na região. Em 25 a.e.c. Otaviano
encontravam em concorrência. O conflito entre Augusto cria a Provintia Galatia Romana, unindo
Seleucidas e Ptolomeus ao que se seguiu a “guerra as três tribos que haviam migrado no III século:
dos irmãos”, entre Antíoco Hierax e Seleuco II, Trocmi, Tectosages e Tollistobogii. Apesar disso, em
também ocasionou uma aliança entre Mitridates, 21 a.e.c. Augusto divide a província em três regiões
de Pontus, Antíoco Hierax, e mercenários gálatas administrativas principais: Pessino, Ancira e Távio.
contra Seleuco II, que possibilitou a expulsão dos Mitchell (1993) apresenta que havia uma interação
selêucidas da Anatólia. político administrativa entre as três, mas cada tribo
teria ocupado fisicamente uma região e sobre ela teria
A “pacificação” romana iniciada pelas batalhas
um determinado grau de autonomia política.
de Manlius Vulso contra Antíoco III em 190 a.e.c.
parece ter sido motivada por propósitos expansionis- Já na primeira metade do I século é obser-
tas romanos, mas também por uma certa ambição vada uma intervenção na região por meio da
com relação ao botim celta. Após as batalhas iniciais criação de cidades centrais, de caráter romano. A
firmou-se um acordo de paz entre Eumenes II, de Galácia continuou sob o controle romano mesmo
Pérgamo, reino aliado a Roma, e as tribos celtas. depois da divisão do império em 395 e.c. e, até
102
Bianca Miranda Cardoso

certo ponto, depois do século VII, quando os ára- critas elaboradas por eles próprios apresenta. Assim,
bes conquistaram vastas regiões de Bizâncio. os achados do período helenístico-gálata de Gordion
são interpretados a partir de uma comparação com
Segundo Estrabão (12. 5. I, 567 Loeb), a
dados de outros povos celtas, e como o enfoque da
Galácia, que possuía soberanos celtas desde o III
pesquisa em questão gira em torno de ritualística
séc. a.e.c., seria dotada de uma federação “koinon
sacrificial e práticas funerárias, faz-se necessário
galaton”, segundo a qual cada povo vivia sob uma
um estudo destes povos e suas estruturas.
tetrarquia, mas a unificação foi incentivada pelos
romanos posteriormente. Assim, sobre o sistema Embora seja possível tecer linhas gerais sobe
administrativo comercial, a documentação antiga uma religiosidade que perpasse as diversas tribos
afirma ser próprio havendo proeminência das celtas, é preciso ter em mente que estas socieda-
estruturas tribais. No topo da hierarquia política des não eram politicamente, administrativamente
estariam o tetrarca, um juiz (dikastes), um chefe ou socialmente unificadas. Para Kruta o conhe-
militar e dois assistentes (hypostratophylax). cimento sobre a religiosidade celta é baseado em
inferências a partir do que se tem de iconografia
Esta federação era governada por um con-
e uma análise comparativa com os registros das
selho de 12 tetrarcas e uma assembléia de 300
religiões indo-europeias:
pessoas que se reuniam em lugares sagrados.
Houve, na Galácia, como com os celtas da Gália, Ao contrário a maioria das religiões antigas, a
religião celta não pode ter constituído um con-
um conselho que reuniu representantes das doze
junto consistente e imutável de crenças. Deve
tetrarquias, 300 homens, em Drunemetom. Sabe- ter sido um panteão composto de deuses tri-
se que nestes lugares, discutiam-se questões de bais, deuses locais (muitas vezes pré-celticos),
cunho judiciário (SZABÓ, 1991, p. 320 a 329) e cultos pertencentes a classes sociais especí-
(MITCHELL, 1993, p.27-30). No entanto, além ficas, todos juntos em um sistema flexível, or-
de não existir ainda, como no mundo moderno, ganizado em torno de um punhado de grandes
deuses pan-celtas de um ‘poço’ mitológico co-
uma distinção entre campos político, jurídico e mum (KRUTA, 1999, p.533).
religioso; quando se leva em conta que nemetom é
uma palavra celta para um lugar sagrado, o nome O registro histórico afirma que a população
deste lugar pode denotar o controle deste conselho frígia teria sido absorvida por alianças e casamentos
por autoridades de caráter também religioso9. entre membros de ambas as comunidades10 e pela
Há dúvidas sobre se esta organização teria adoção por parte das populações celtas da estrutura
sido fruto de uma influência helênica ou herança ritual e deuses frígios a ponto de a elite religiosa
celta. O fato de se reunirem em um lugar sagrado local no período romano ser quase totalmente de
parece demonstrar que estes gálatas se asseme- origem celta segundo acusam evidências de nomes
lham mais aos celtas da Gália descritos por César familiares. O estudo de nomes feito por Mitchell
do que às cidades helenizadas. Portanto, admite- (1993 passim) demonstra a união das famílias celtas
se aqui a segunda hipótese. com as frígias por meio de casamento, como tam-
bém o predomínio de nomes celtas ligados à elite
No período romano, o sistema de administra-
religiosa não só no platô central da Anatólia, mas
ção estatal teria suas similaridades com o romano.
em diversas cidades com as quais eles entraram
Por outro lado, os soberanos encarregados da ad-
em conflito (FREEMAN, 2002 p.35, 43 e 44, 48;
ministração estatal da região eram gálatas, o que
MITCHELL, 1993 passim).
denota certa autonomia com relação ao Império.
Para Cunliffe os celtas que migraram para a
O trabalho de inferência e comparação com ou-
região da Galácia não teriam sentido necessidade de
tras tribos é comum aos estudos celtas como forma
fundamentar seu predomínio por meio de elementos
de superar a dificuldade que a ausência de fontes es-
10 Segundo S. Mitchell, as famílias desta região podiam apresentar nomes
9 Para mais sobre nemeton ver GREEN, Miranda (1996). The Celtic World, celtas, gregos, romanos ou frígios simultaneamente demonstrando a intera-
Routledge. ção entre membros destas comunidades (MITCHELL, 1993, p.48 passim).

103
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

simbólicos como a religião, já que esta dominância Há, portanto, um consenso geral de que o
já era sentida política e culturalmente por eles e pelas processo de assentamento das tribos celtas na
demais populações da época, a exemplo da escolha Galácia trata-se de um período relativamente lon-
do nome da região relativo aos celtas, não aos frígios go e conturbado. Este trabalho pretende destacar
(CUNLIFFE, 1997: 172, 178). as mudanças culturais desenvolvidas a partir do
contato com as populações autóctones mais do
Entretanto, segundo Mitchell, distinguem-
que declarar suas continuidades garantindo assim
se duas vertentes: uma que afirmaria a união
o direito de fala e iniciativa de ambas as popu-
das elites sacerdotais celta e frígia por conta das
lações e sua interação numa mesma sociedade.
similaridades entre ambas as religiões, apesar de
não haver registros dessa união até o II séc. e.c. E Para tal foi produzido um catálogo que con-
uma segunda, que entenderia a entrada celta na templasse vestígios de sacrifícios humanos e en-
elite sacerdotal frígia como uma manobra polí- terramentos tendo em vista que a hipótese central
tica para aquisição de poder por parte dos celtas é de que o abandono dos primeiros e adoção dos
(MITCHELL, 1993: 48). últimos estão relacionados a mudanças culturais
e rituais ocasionadas pela hibridização constante
No que diz respeito a sacrifícios humanos ocorrida na região, primeiramente entre as cul-
em comunidades celtas, os vestígios mais es- turas celta e frígia, e em seguida com a grega e
tudados e divulgados são referentes à cultura romana. A permanência de rituais de caráter celta
material proveniente da Inglaterra11. Trata-se primeiramente e a posterior adoção de rituais
predominantemente de corpos que apresentam romanos, ainda que os primeiros não tenham o
sinais de violência pouco anterior e, por vezes caráter funeral dos últimos parece indicar que o
após o falecimento do indivíduo. No caso inglês, impacto destas populações, celta e romana, teria
o estímulo governamental e social atua de forma sido sentido mais profundamente na região.
importante no estudo de tais vestígios.
De fato nem todas as ossadas do período
A presença de práticas rituais similares em helenístico de Gordion apresentam sinais claros
uma localização tão distante como a Galácia en- de violência interpessoal perimortem. O que é
volvendo povos etnicamente definidos como de constantemente usado para indicar que a área em
origem comum indica a existência do que Cunliffe questão teria sido depósito de sacrifícios humanos
denomina uma cultura compartilhada (CUNLIF- é a forma segundo a qual determinados ossos hu-
FE, 1997). Embora os sacrifícios humanos de manos e animais são cuidadosamente escolhidos,
Gordion não tenham sido largamente estudados em tratados e metodicamente posicionados em con-
sua importância e contexto histórico específicos, juntos restritos. Isso caracterizaria que a sociedade
as semelhanças verificadas nas práticas em ambas estaria claramente diferenciando a formação destes
as regiões é ressaltada por Selinsky (2005) que aglomerados de um simples descarte12.
identifica o período onde são encontradas como Os enterramentos romanos de Gordion, da
conturbado por conta da invasão celta. mesma maneira, obedecem a um tradicionalismo e
Assim, a presença de sacrifícios huma- formalismo estáticos que assim como o posiciona-
nos até o I século e.c., os indícios de nomes mento metódico dos sacrifícios humanos do período
familiares, a ruralização do sítio e os relatos helenístico são reproduzidos através da mimese.
de autores antigos indicam a permanência de Estes mecanismos teriam a função de estabelecer e
práticas semelhantes àquelas das populações 12 O ritual poderia ser definido como forma de ação humana que diferen-
cia o seu contexto dos demais. Também apresenta papéis secundários como
celtas originárias da Europa, apontando para a promover ordem social e ideologias de dominância ou resistência, ou seja,
o desenvolvimento de relacionamentos de poder; além de expor significa-
permanência desta cultura um século depois da dos simbólicos para a comunidade como um todo. Bell (1992 p. 6) revela a
chegada dessas populações à Anatólia. problemática etnocêntrica dos trabalhos neste campo transparente na própria
modificação terminológica: “…ritual substituiu termos como ‘liturgia’ em
11 Cf. BROTHWELL, The Bog Man and the Archaeology of People. Lon- oposição a ‘magia’, que eram usados para distinguir alta religião de supersti-
don: British Museum Pess, 1992. ção primitiva ou nosso ritual do deles.” Grifo da autora.

104
Bianca Miranda Cardoso

exercer autoridade através da construção de algo a tir também nesses espaços, o que é indicado
ser reconhecido de forma parcialmente equivocada pela incorporação de nomes celtas à liderança
como consenso, ausência de conflito. Para ambas as religiosa (MITCHELL, 1993). Além de buscar
práticas ritualizadas haveria um corpo de regras que inserção nestes espaços a cultura material de
comandariam a performance (BELL, 1992). Gordion parece indicar que a população celta re-
cém assentada também dava continuidade a ritos
Assim torna-se possível comparar sacrifícios
próprios em paralelo, o que pode ser interpretado
humanos e enterramentos, no caso dos vestígios
como recurso de autoridade e intimidação frente
escolhidos em Gordion, por estarem inseridos na
às populações autóctones, ou devoção frente a
alçada cultural ritualística de uma sociedade. Enten-
dificuldades extremas (VOIGT, 2012).
de-se que o caráter simbólico e transcendental das
ações ritualizadas no contexto sagrado se mescla No período romano, com a presença mais ex-
a um tradicionalismo inovador porque as práticas pressiva da autoridade romana e de sua população
devem atender às necessidades da época, sendo, na região, surge a necessidade de novos recursos
portanto, modificadas de tempos em tempos. de autoridade e devoções, sendo assim, após o con-
flito direto e “pacificação” de 189 a.e.c. tornam-se
A conclusão a que se chega deste processo
necessárias novas formas culturais e religiosas que
de hibridização cultural é que no período hele-
desloquem o referencial local para Roma. Desta for-
nístico havia uma proeminência das tribos celtas
ma, a ritualização constrói, cria e modifica crenças
na região, ainda que a ritualística existente não
religiosas (Bell, 1992, 1997; Humphrey & Laidlaw
fosse completamente abandonada, o que pode
1994 apud FOGELIN 2007), adquirindo um caráter
ser observado pela continuidade dos templos e
atemporal e autônomo e posteriormente à prática
registros sobre a religião frígia.
cabe à elite sacerdotal criar regras e explicações
No entanto, a presença celta passa a exis- míticas para legitimar este processo.

105
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106
rELiGiosiDADE romANo-BrETÃ
E os TEXTos mEDiEVAis NAs iLHAs BriTÂNiCAs:
Diálogos, problemas e desafios

Brunno Oliveira Araujo1

esde sua origem no século XVIII entre a

D
como o Eisteddfod, na literatura, folclore e costumes
linguística e uma comunidade acadêmica das regiões que hoje reivindicam a ligação com este
que ainda procurava encaixar o surgimento passado: Irlanda, Escócia, País de Gales, Galícia e
dos povos antigos no esquema bíblico, passando Bretanha Francesa. Seguindo tal lógica, a produção
pelos trabalhos linguísticos de Edward Lhuyd, as vernacular medieval configuraria para alguns o pri-
contribuições da arqueologia e literatura até os meiro exemplo de registro da cultura oral celta.
questionamentos e debates atuais sobre a validade Para estudos recentes2, por outro lado, há um exa-
ou não dos usos do termo “celta” para as populações gero por parte daqueles que advogam continuidades,
europeias da Idade do Ferro, a disciplina de Estudos devendo ser tais textos esmiuçados baseado em seu
Célticos tem como marca fundamental o diálogo próprio contexto, e uma visão de continuidade seria
entre antiguidade e contemporaneidade. Mais do uma invenção da contemporaneidade. De fato, nos
que o puro interesse acadêmico pelo passado, sua últimos anos diversos paradigmas dentro da área tor-
força motriz de justificação social passa pela grande naram-se alvo de críticas e debates, onde a associação
“comunidade imaginada” que é “ser celta” no mun- clássica entre cultura material, língua e identidade celta
do atual, que passa por uma identidade linguística, são questionadas por diversos autores, chegando-se
geográfica ou cultural, expressa através da arte, ao ponto de negar a existência de “celtas” nas Ilhas
poesia, literatura, atos políticos e religiões que se Britânicas. A tradição clássica de uma continuidade,
inspiram em projeções no passado para construir entretanto, não desapareceu. Pelo contrário, esta ainda
seus sistemas de crenças e ritos. encontra defensores entre historiadores, arqueólogos
Neste contexto, não é surpresa que a produção e linguistas que, partindo de argumentações diversas
literária irlandesa e galesa no período medieval rece- (como é próprio de um momento onde o debate encon-
bam grande atenção acadêmica e leiga como possíveis tra-se em aberto), advogam não só que o termo “celta”
representantes de um passado celta. A imagem cons- é aplicável as populações da Idade do Ferro como
truída ao longo dos anos pela literatura romântica, identificam um caráter celta (celticidade) na literatura
pelas lutas políticas e tantas outras manifestações é a vernacular medieval das Ilhas Britânicas.
de que existiu uma cultura própria destas populações As abordagens clássicas sobre o assunto estão
da Idade do Ferro europeias que possuidoras de um normalmente ligadas ao ramo da literatura e da lin-
caráter de resiliência inerente, resistindo ao domínio guística. Podemos destacar nesta uma tradição que
romano, anglo-saxão, escandinavo, normando, e prin- entende diversos personagens e temas presentes nos
cipalmente ao cristianismo. A prova deste caráter de manuscritos medievais irlandeses e galeses como
resistência para alguns estaria nas línguas, em festivais sobrevivências de uma cultura céltica anterior ao cris-
1 Graduado e Mestrando em História na Universidade Federal Flumi- 2 O debate sobre as construções contemporâneas sobre a identidade e nomen-
nense. Trabalho desenvolvido durante Mestrado em História Social no clatura das populações da Idade do Ferro e uma possível etnogênese celta é
PPGH-UFF, sob orientação da Prof. Drª Adriene Baron Tacla, com apoio extenso e ainda está em aberto. Para uma visão geral sobre o atual estado do de-
de bolsa do CNPq. Email: brunno.o.araujo@gmail.com bate, ver James (1999), Collis (2003), Megaw (2005) e Cunliffe & Koch (2012).

107
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

tianismo. Autores de referência presentes em estudos pesquisadores que trabalham nesta perspectiva é
diversos os nomes como os de Proninsas MacCanna Raimund Karl (2008), que em um trabalho sobre
(1990) e James MacKillop (2005). Estes autores con- os hillforts de Wessex (sul da Inglaterra), analisa o
cordam com análises intratextuais semelhante às de modelo proposto por JD. Hill (1995) para o estilo de
Kenney (1929) que atestariam a existência de versões vida das populações das Ilhas Britânicas da Idade do
mais antigas das histórias presentes nos manuscritos Ferro e PRIA3 de Wessex. Para Hill, três característi-
medievais, das quais só teríamos acesso a versões cas seriam fundamentais: (1) A deliberada construção
copiadas, e que teriam se proliferado a partir do séc. das casas redondas com suas entradas viradas para
XVII na Irlanda e em Gales. Para ambos, existiria leste, e com uma separação entre norte/sul bem de-
uma única “cultura” ou “mitologia” celta, que mesmo finida, motivada pela cosmovisão destas populações;
possuindo variações locais, respeita a temas gerais (2) a demarcação bem definida e ritualizada das
provenientes de uma suposta cultura indo-europeia, propriedades individuais e (3) o papel central da casa
preservadas através da oralidade e da qual heróis, enquanto local de produção econômica (agricultura,
temas, objetos, práticas e leis teriam sobrevivido na metalurgia), procurando ao máximo torná-la autos-
literatura medieval. A introdução do Cristianismo nas suficiente e autogestora.
Ilhas Britânicas, por volta do ano 400, representaria
Karl aponta então nos textos medievais ir-
para estes a mudança fundamental do lugar que a
landeses e galeses, a ocorrência de características
“cultura celta” teria nestas sociedades. Ela perderia
identificadas por Hill, como: o mau agouro causado
seu caráter central, sendo reinterpretada e perdendo
pelo fato de Cuchulainn chegar a um forte com a face
em especial seu caráter religioso. Tais características
esquerda de sua carruagem voltada para a entrada,
levam ao aparecimento nos textos dos autores a equi-
ou a atribuição dos significados “leste” e “frente,
valência entre “cultura céltica” e “cultura pré-cristã”.
à frente” à palavra airther (em Irlandês Antigo).
(MACCANA 1970, p. 17; MACKILLOP 2005, p. XI).
Outros exemplos são dados, como a relação entre a
Autores como Keneth Jackson (1964) foram demarcação da propriedade individual e a nawadd,
além em suas interpretações. Em seu trabalho inti- proteção legal que poderia ser dada pelo dono de
tulado “The oldest Irish tradition: a window on the uma propriedade a um estrangeiro por um período
Iron Age” sobre o Ciclo de Ulster irlandês, o autor de tempo (qualquer ato contra o protegido, seria
advoga que as histórias dos heróis irlandeses seriam um ato contra o dono da propriedade); seu poder de
descrições fiéis dos celtas antigos preservadas pela árbitro de disputas, entre outros. Já no caso da pro-
oralidade, de modo que os textos medievais fossem dução econômica, um dos exemplos apontados é a
verdadeiras “janelas” para o mundo céltico da Idade existência da comar (na Irlanda) e cyfar (em Gales),
do Ferro. Esta teoria ao longo dos anos foi duramente prática atestada no medievo onde casas uniam-se,
criticada no meio acadêmico. Cunliffe (1997), por em tempos de necessidade, para agricultura coletiva.
exemplo, aponta as disparidades entre a documen- A especificidade do ato indicaria, para Karl, que a
tação arqueológica (em especial no que toca ao estilo prática comum seria justamente a oposta: o foco da
e materiais utilizados na fabricação de carruagens e produção seria doméstico. (KARL, 2008, p. 71-73)
joias) da Irlanda da Idade do Ferro e as descrições do
Para Karl, estas similaridades não seriam coinci-
Ciclo de Ulster (CUNLIFFE 1997, p. 26). Ainda que
dências randômicas, dadas pelo acaso e probabilidade.
o trabalho de Jackson tenha perdido espaço no meio
Para ele, a sociedade medieval ainda é, de forma geral,
acadêmico, sua visão ainda é parte importante nos
celta. Ele recorre à teoria do caos para exemplificar seu
discursos leigos sobre um passado celta.
ponto. A previsão do tempo, por exemplo, (que não por
Alguns arqueólogos, por outro lado, procuraram acaso é a “mãe” da teoria do caos) não é uma ciência
fazer a via inversa: utilizar-se dos textos medievais que segue o estilo próprio do método científico (ou
como fonte comparativa à cultura material a fim de 3 Pre-Roman Iron Age – Termo que faz parte da periodização da cultura ma-
procura informações que pudessem ser úteis para terial das Ilhas Britânicas (Hill 1995, p. 47-48), e que designa o período que
se estende de 800 a.C-100 d.C. Uma tabela com esta periodização detalhada
entender as populações da Idade do Ferro. Um dos está disponível no ANEXO I.

108
Brunno Oliveira Araújo

seja, reproduzível). Para prever o tempo, os meteoro- tência de uma forte cultura eclesiástica diferenciam
logistas utilizam-se de dados históricos, comparando as interpretações dadas pelos homens medievais
as variáveis de eventos passados anteriores a um dia aos temas presentes na Idade do Ferro. O foco deste
ensolarado, ou de chuva, com os de hoje. Quanto mais trabalho é outro. Caso reconheçamos que os temas
próxima a data que se deseja calcular, mais assertiva presentes na literatura medieval são ressignificações
é a previsão, pois utiliza-se de dados mais recentes. de um passado, podemos considerar estes elementos
Para estes teóricos, dois sistemas complexos que com- como oriundos de uma cultura compartilhada por
partilhem variáveis semelhantes, tendem a produzir todas as populações que identificamos como celtas?
sistemas semelhantes. Karl utiliza-se desta lógica para É realmente o cristianismo o ponto de ruptura entre
advogar que, vista a semelhança de variáveis sociais este passado proto-histórico e a sociedade medieval?
entre o modelo de Idade do Ferro de Hill e o sistema Aqui, encontramos alguns problemas. O con-
social apresentado nas fontes medievais, é possível ceito de continuidade é aplicado por estes autores
esperar resultados semelhantes, tornando os textos sem levar em consideração o universo de contatos
medievais não uma “janela para a Idade do Ferro”, mas e mudanças próprias destas populações: suas redes
uma ferramenta útil para análises comparativas, que de contato econômico, mudanças políticas, sus
podem ser utilizadas inclusive para preencher lacunas contatos com o mundo grego, o projeto de roma-
resultantes da falta de fontes escritas no passado proto nização no período da conquista, entre outros. As
-histórico. Neste trabalho, por exemplo, Karl defende populações da Idade do Ferro que identificamos
que as relações de parentesco, que tem lugar de desta- hoje como Celtas estendiam-se por grande parte
que nas sociedades medievais irlandesa e galesa, tem da costa atlântica da Europa e de seu interior, en-
grande probabilidade de serem também aplicáveis ao globando regiões que hoje comportam países como
modelo de Hill. Não é apenas a semelhança de situa- Portugal, Espanha, Bélgica, França, Alemanha,
ções, mas a sequência cronológica, que aumentaria as para citar apenas algumas. Ainda que uma etno-
probabilidades desta semelhança. Importante salientar gênse céltica seja hoje ponto de debate acalorado
que Karl reconhece que sua proposta, baseada na mo- no mundo acadêmico, caso consideremos apenas o
delização, atende a uma proposta generalizante, e que tronco linguístico como ponto de coesão como faz
os dois contextos, a PRIA e o medievo galês, devem ser Cunliffe (2012), tais propostas sugeririam que em
analisados com base em sua dinâmica histórica, sem um espaço de milhares de anos essas sociedades
esquecer de suas especificidades políticas e históricas de chefia, de uma cultura oral e sem centralização
(KARL 2008, p. 76). política teriam vivido com poucas mudanças signifi-
Não me prolongarei aqui em uma discussão cativas. Quando adicionamos ao problema a questão
sobre a extensão e peso entre uma ligação (ou sua dos contatos com o mediterrâneo o a conquista
ausência) de uma cultura proto-histórica e a literatura romana, a questão se torna mais complicada ainda.
medieval irlandesa e galesa. Basta dizer que aqui que Como bem definem Haeussler & King:
alguns elementos dessas sociedades, como a grande Uma visão popular sobre os Celtas vê nestes
importância da cultura popular oral e a existência de heroicos guerreiros gloriosamente derrotados por
uma classe de prestígio social como a dos bardos e a Roma mas possuidores de uma forte cultura que
nunca foi subjulgada pelos romanos e foi capaz de
relação de ressignificação entre essas populações e a reorganizar-se no período pós-romano. Em grande
paisagem monumentalizada construída no passado medida, autores sobre mitologia e religião Celtas
possa preservar um certo repertório simbólico com- seguiram o mesmo caminho. Uma sofisticada e
partilhado e a construção de uma memória sobre o complexa religião teria sido atacada por Roma,
passado. É importante frisar, entretanto, que esta so- mas sobrevivido a sua ocupação; sobrevivendo
também a submersão ao Cristianismo, fazendo
ciedade medieval não possui a mesma cultura da Idade
assim que elementos dessa religião possam ainda
do Ferro. Não só as mudanças políticas provenientes ser encontrados nos costumes e folclore atuais [...].
das ocupações anglo-saxãs, vikings e normandas, o Acadêmicos sobre a religião Celta são mais caute-
caráter de mutabilidade próprio da oralidade e a exis- losos, mas ainda é possível detectar uma agenda
109
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

em que espera extirpar as camadas do mundo os seus, mas logo o dono dos cães brancos, Annwfn,
romano à fim de revelar abaixo uma religião dos senhor de Arawn, (Outro Mundo) aparece, e informa
Celtas antigos. A maioria usa as evidências [do Pwyll que este adentrou os seus domínios e lhe roubou
período] romano como o pilar de suas interpre-
a caça, ofendendo-o. Pwyll desculpa-se com Annwfn,
tações (mesmo porque não há muito mais ao que
se recorrer); no âmago de seus textos existem e os dois fazem um trato: Pwyll trocaria de lugar e
reconhecimentos da contribuição romana para o aparência com Annwfn por um ano, e deveria desafiar
entendimento da religião céltica. (HAEUSSLER para o rei de Arawn um de seus inimigos, Hafgan. Na
& KING 2007, p. 7 – tradução livre) estadia de Pwyll no reino de Arawn, este é descrito
Um caso no qual venho trabalhando que acredi- com uma terra de belezas, abundância e divertimento
to exemplificar o problema das generalizações sobre sem igual (FORD 2008, p. 37-38). Aqui encontramos
uma “cultura celta” homogênea é a noção da tradição diversos temas recorrentes nos echtrai: os animais so-
literária do Outro Mundo céltico. Em histórias como brenaturais brancos de orelhas vermelhas, o encontro
“A viagem de Bran” ou o Mabinogi, encontramos do herói com o Outro Mundo através da caça ou via-
referências a histórias de homens que viajam para gem, com a transição feita através das brumas, água,
terras onde o tempo passaria devagar e de forma subterrâneo ou florestas; o encontro de uma terra de
aprazível, onde não se envelhece. Nessas regiões há abundância e prazerer, onde o tempo parece não passar
sempre abundância de alimentos, com banquetes entre música e banquetes. Ford (2008) e MacKillop
faustosos e o divertimento através de músicas, jogos e (2005) argumentam que estes elementos seriam parte
histórias. Segundo Patrick Sims-Willians (1990), por da cultura “pré-cristã” da Idade do Ferro. Não conse-
ser um fenômeno manifesto em contexto teológico guem, entretanto, traçar claros paralelos entre a cultura
cristão, com a ideia de “este” e do “outro” mundo material e os textos medievais. As comparações são
bem definidos, o Outro Mundo aparece nos textos feitas de forma generalizante, onde os argumentos são
construídos em cima de suposições sobre um material
não como um mundo em separado, mas como uma
“original” preservado pela oralidade.
região no plano terrestre governada por outras leis.
A lógica seria mais próxima da ideia de reinos ou Há, entretanto, um caso no oeste da província da
regiões invisíveis ou longínquas, em especial ilhas, Bretanha Romana, entre os séculos III-V, a qual me
cujo acesso só seria possível através de lugares/pontos dediquei em trabalhos anteriores (ARAUJO, 2011) que
específicos e em alguns casos apenas em algumas possui um sistema simbólico semelhante. Na região
épocas do ano. mineradora próxima ao o estuário do Rio Severn, neste
período funcionava um templo monumentalizado ao
Existem duas denominações principais na
estilo romano, onde uma divindade local de caráter
literatura irlandesa, extensíveis à do País de Gales:
curativo identificada como Nodens era cultuada.
os echtrai, aventuras em regiões distantes no Outro
Alguns pontos sobre o culto são interessantes. Em
Mundo, focados nas aventuras de heróis, e os imram-
primeiro lugar, não existem representações antropo-
ma, que relatam geralmente viagens pelo mar a uma
mórficas da divindade. Entretanto, tabletes votivos e
ou mais ilhas, geralmente além dos limites do mundo
estatuetas de cães de caça nativos (wolfhounds) foram
conhecido (MACKILLOP 2005, p.109)
encontrados pelo sítio, alguns deles associados ao
Utilizemos os echtrai como exemplo. Certas nome de Nodens. Este nome, aliás, é interpretado por
passagens presentes no conjunto de histórias galesas Tolkien (1932) como associado ao sentido de “caça”
do séc. XIV-XV conhecidas como “Os Quatro Ramos e “abundância”. Outros fatores que destaco sobre o
do Mabinogi” são identificadas como pertencentes a templo é sua relação com a paisagem local: construí-
essa tradição. Em uma destas passagens, por exemplo, do no topo de uma colina, sua localização fica entre
o personagem Pwyll encontra-se em caça de um cervo a Floresta de Dean e próximo ao mar, que parece ter
em uma floresta. Quando este alcança o cervo, vê que grande importância no culto devido a recorrência de
outros cães, brancos de orelhas vermelhas (uma carac- representações de animais, criaturas e cenas marinhas
terística ligada ao sobrenatural) haviam dominado a (BATHURST 1879; WHEELER & WHEELER 1932;
presa. Ele se enxota os cães a fim de dar espaço para CASEY & HOFFMANN 1999).
110
Brunno Oliveira Araújo

Figura 1: Exemplo de mosaico encontrado no templo de Nodens, em Lydney Park, Gloucestershire. Neste mosaico, encontramos animais híbridos de peixe,
com um rabo serpenteante que termina na cabeça de um cão de caça da família dos wolfhounds. (WHEELER & WHEELER 1932, plate XIX)

Figura 2: Estátua de bronze encontrada no templo de


Nodens, em Lydney Park, Gloucestershire. Representa
um cão da raça wolfhound, largamente utilizado para a
caça. Encontramos no culto de Nodens diversas esta-
tuetas representando cães, algumas delas associadas
ao nome de Nodens, o que sugere para Wheeler que
esta seria a representação local da divindade. (WHEE-
LER & WHEELER 1932, p. 88, plate XXV)

Figura 3. Mapa da região de Glou-


cestershire. Podemos identificar
a região da Floresta de Dean e o
estuário do rio Severn (área negra
no mapa), onde as suas margens
o templo de Nodens foi construído
no topo de uma pequena colina
na atual região de Lydney Park. É
interessante notar como a paisa-
gem consagrada para a construção
do templo se assemelha a visão
literária do Outro Mundo. (YEATES
2008, p. 10)

111
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

O exemplo é didático em demonstrar que o Romana e que são compartilhados e ressignifi-


rótulo de “cultura pré-cristã” encobre uma gama cados no medievo.
de experiências culturais e inovações ao longo Encontramos os elementos característicos
do tempo, Ao mesmo tempo, não significa que o do Outro Mundo apresentados de forma esparça na
Outro Mundo é uma “janela” para o passado. Po- iconografia e cultura material de diversos sítios da
demos concordar com Karl que sua recorrência idade do Ferro, entretanto é só com o surgimento
não é acidental, mas é necessária certa cautela da sociedade romano-bretã, fruto de contatos por
ao comparar tais signos sem considerar seus séculos entre a cultura nativa e o projeto de roma-
contextos. Um bom exemplo é a relação com o nização, que um sistema integrado de símbolos
sagrado: No caso romano-bretão, os cães de caça aparece. Não podemos dizer que este é um passado
existem enquanto símbolo de uma divindade simplesmente “celta”, e que seus elementos são
politeísta, enquanto no Mabinogi, compilado no compartilhados por uma cultura pan-céltica. A
seio da cristandade, os cães sobrenaturais estão cultura romano-bretã não é celta ou romana, mas
associados a uma figura que mesmo portadora uma nova sociedade repleta de ressignificações e
de um caráter mágico, é apresentada como um inovações, que produz uma série de elementos ino-
ser mundano. Talvez o caminho mais viável para vadores. O desafio que se apresenta é o do diálogo
expandir as pesquisas sobre esta relação seja entre essas sociedades tão diferentes, e entender
o de considerar que ambas compartilham um quais processos sociais criam no medievo essas
repertório de elementos surgidos na Bretanha projeções e ressignificações do passado.

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112
A rETóriCA DA ALTEriDADE
NA riHLA DE iBN BATTuTA (1304- 1377)

Bruno Rafael Véras de Morais e Silva1


José Maria Gomes de Souza Neto2

Chartier, citando Erwin Panofsky, define a

E
ste trabalho dedica-se a um exame Histórico/
literário (WHITE, 1992) ao que se refere função simbólica (dita de simbolização ou de repre-
às descrições do “outro” explicitadas pelo sentação) como uma “função mediadora que informa
cronista e viajante islâmico Shams ad-Din Abu Abd as diferentes modalidades de apreensão do real, quer
Allah Muhammad ibn Muhammad ibn Ibrahim opere por meio de signos lingüísticos, das figuras
al-Luwati at-Tanyi, mais conhecido por Ibn Battuta. mitológicas e da religião” (CHARTIER, 2002, p. 19).
A partir das estratégias literárias utilizadas pelo Aponta ainda que a “tradição do idealismo crítico de-
cronista/etnólogo (CERTEAU, 2007) para tornar signa assim por ‘forma simbólica’ todas as categorias
inteligível o “outro”, em um processo de “tradução” e todos os processos que constroem ‘o mundo como
para a sua cultura, Ibn Battuta, como em um “espe- representação’” (CHARTIER, 2002, p. 19). Isto é o
lho” (HARTOG, 1998), através de suas descrições, que faz um cronista: constrói um mundo, através de
se reflete. Nesta pesquisa as estratégias retóricas e estratégias literárias, através de suas reapresentações
injuntivas que constroem a verossimilhança de sua culturais compartilhadas pelo seu grupo receptor.
narrativa serão analisadas a partir de uma ponderação
A partir da necessidade da tradução, o cronista
histórica com base nos conceitos de “Representação”
abre mão de certas estratégias para construir signi-
de Roger Chartier e “Alteridade” de François Hartog.
ficado para o diferente. “Desde quando a diferença
A grande questão presente na mais diver- é dita ou transcrita, torna-se significativa, já que é
sas crônicas de viagens produzidas pelos mais captada nos sistemas da língua e da escrita. Começa
diversos – culturalmente e cronologicamente – então esse trabalho, incessante e indefinido como
viajantes – na grande maioria das sociedades que o das ondas quebrando na praia, que consiste em
este gênero literário produziu –, é a problemática levar do outro ao próprio” (HARTOG, 1998, p. 229).
da “tradução”. Conceito este problematizado O objetivo essencial desta pesquisa é justamente o
por teóricos tais quais Michel de Certeau, Roger de precisar quais são as estratégias utilizados por
Chartier e François Hartog, refere-se à possibi- Ibn Battuta para levar o “outro” – o chinês confu-
lidade de transferência de sentido – carregado cionista, o Hindu, mandem animista, os turcos da
de função simbólica – de elementos, conceitos e Anatólia – ao próprio, ou seja à sua cultura recep-
categorias sociais de uma, ou sobre uma cultura tora islâmica sunita do Magreb. Uma história da
para uma outra. Através de operações e estraté- construção de sentidos. “Os ‘caminhos da escrita’
gias literárias o cronista é capaz de representar combinam o plural dos itinerários e o singular de
os outros os quais ouviu e viu para seus iguais, um lugar de produção” (CERTEAU, 2007, p. 219).
leitores e receptores, contemporâneos culturais Assim considera De Certeau. Reflexão esta que
de suas crônicas. guiará muitas das considerações a seguir.
1 Graduado em História na Universidade de Pernambuco (UPE).
Mestrando em História na Universidade Federal da Bahia. Email: A partir da relação fundamental que a diferença
profbrunov@hotmail.com significativa instaura entre os dois conjuntos,
2 Doutor em História. Docente do Depto de História da Universidade
de Pernambuco e coordenador do Grupo de Pesquisa Leitorado Antigo.
pode-se desenvolver uma retórica da alteridade
zemariat@uol.com.br própria das narrativas que falam sobretudo do
113
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

outro, especificamente as narrativas de viagem, realidade, bem como julgar em nome de um saber
em sentido amplo (HARTOG, 1998: p. 229). (CERTEAU in HARTOG, 1998, p. 45).

Parte essencial da pesquisa, o embasamento E, finalmente, François Hartog. Em sua obra O


teórico deve-se a autores como Joseph Ki-Zerbo, Espelho de Heródoto (1998) propõe um novo olhar
Jan Vansina, Fernand Braudel, Roger Chartier, sobre as fontes literárias. O conceito do “outro”
Michel de Certeau e principalmente François citado por De Certeau é trabalhado no decorrer da
Hartog, sem os quais o pensar temático, crítico obra de Hartog, tendo como foco o reflexo, ou o
e teórico desta pesquisa não poderiam existir. “espelho” daquele que o descreve. François Hartog
Joseph Ki-Zerbo em sua Metodologia na obra define sua obra como “uma experiência de leitura”
História Geral da África (1972), juntamente a Jan (HARTOG, 1998, p. 57), muito mais trata-se de
Vansina expõe tópicos essenciais no trabalho do um alvitre teórico e metodológico, onde a partir de
historiador debruçado sobre a história da África, “historiadores-etnográfos” e cronistas, dentre eles
como as Fontes e Técnicas específicas na Histó- Heródoto, Jean de Léry e Marco Pólo e, no caso, Ibn
ria da África, vinculação História e Lingüística, Battuta, propõe um novo olhar sobre seus escritos,
além de métodos e teorias interdisciplinares a “polindo seus vestígios” revelando a face de seus
estes estudos. Fernand Braudel traz como contri- autores e as respectivas épocas de suas obras.
buição teórica para tal pesquisa a reflexão sobre Este trabalho historiográfico inclui-se na li-
os tempos históricos e a utilização dos mesmos nha historiográfica da chamada História Cultural,
em uma narrativa histórica (BRAUDEL, 2004). entendida por Roger Chartier como:
A longa duração será o tempo utilizado na análise
A análise do trabalho de representação, isto é, das
histórica a ser pensada as fontes e o método deste
classificações e das exclusões que constituem, na
trabalho, visando uma melhor compreensão aos sua diferença radical, as configurações sociais e
estudos de mentalidades a ser focada. conceituais próprias de um tempo ou de um es-
Outro importante autor traz alguns conceitos paço [...] esta história deve ser entendida como o
estudo dos processos com os quais se constrói um
específicos a teoria utilizada na pesquisa e nos sentido[...] dirigi-se às práticas que, pluralmente,
estudos aqui planejados. Roger Chartier trabalha contraditoriamente, dão significado ao mundo
em sua obra “A História Cultural: entre práticas (CHARTIER, 2002, p. 27).
e representações” a história sob dois conceitos
chaves em suas análises, gerados a partir de uma É a estas tentavas de se construir representa-
análise epistemológica do próprio conhecimento ções, pelo cronista viajante, no caso Ibn Battuta, que
histórico e historiográfico: o primeiro, a história se destinam as reflexões teóricas expostas a seguir.
como representação “entendida, desse modo, Ibn Battuta, africano, berbere, tornara-se o
como relacionamentos de uma imagem presente
maior viajante que o islã de todos os tempos co-
e de um objeto ausente, valendo aquela por este
nhecera. Logrou-nos ao final de suas “extensas e
por lhe estar conforme” (CHARTIER, 2004: p.
dilatadas viagens” (ESPINOSA, 1972), uma compi-
21); e a importância da recepção dos conteúdos,
lação de suas descritivas crônicas de viagens (Rihla
tanto em sentido mais amplo quanto na análise
– crônicas de viajantes), fonte esta de estimável valor
crítica da própria crônica e de seus leitores con-
historiográfico. O “Rihlat” é uma compilação feita
temporâneos ao cronista. Citaria De Certeau em
por Ibn Juzayy – escrivão do sultanato marroquino
sua obra A Escrita da História:
– na segunda metade do século XIV das histórias
Apresenta-se como historiográfico o discurso ditadas oralmente pelo viajante após percorre e
que “compreende” seu outro (...), isto é, que se
viver por alguns anos, em lugares como o Magreb,
organiza como texto folheado (...). Ele constrói-
se de acordo com uma problemática de processo o Egito, Meca, Kurdistão, Constantinopla, Mom-
ou citação, capaz, ao mesmo tempo, de “fazer bassa, Kiwa, sul da Rússia, Índia, Sumatra, China,
vir” uma linguagem referencial que atua como o Mali, Gao, Timbuctu, Djené entre várias outras
114
Bruno Rafael Véras de Morais e Silva / José Maria Gomes de Souza Neto

regiões da África e do mundo. Nela Ibn Battuta cidos, antecipadamente, às operações da escrita, se
descreve a geografia, a história e as populações esboçam os itinerários dos viajantes” (CERTEAU,
medievais destas diversas localidades, dando es- 2007, p. 212). As operações de escrita, como re-
pecial destaque aos aspectos jurídicos, políticos e presentações culturais, interessam mais do que os
religiosos das diferentes paragens que percorreu. oceanos, as geografias e as sociedades descritas
por Ibn Battuta, visto que a as estratégias de es-
Citando Ibn Khaldun, importante historiador
crita às prefigura e às representa. Para o viajante
tunisiano contemporâneo de Ibn Battuta: “transmi-
cronista “o pensamento permanece cativo do modo
tir coisas que se observam com os próprios olhos é
lingüístico no qual procura apreender o contorno
mais abrangente e completo do que transmitir in-
dos objetos que povoam seu campo de percepção”
formações e coisas sobre as quais se aprendeu. Um
(WHITE, 1995, p. 14).
hábito que é resultado da observação pessoal é mais
perfeito e firmemente enraizado” (KHALDUN, Ibn Battuta escreve – culturalmente – a partir
1958, p. 238). E foi este o método utilizado por Ibn de um lugar a. Este lugar a seria o Magreb, com seus
Battuta para construir suas crônicas. Descrever o símbolos e mecanismos sociais e culturais específi-
que vivenciou e o que ouviu dos cádis, dos sábios e cos. Contudo, em suas viagens depara-se com cultura
dos soberanos (Sultões como ele preferia se referir) b, com seus códigos diversos e cultura dispare. Como
das regiões que visitou. o cronista faz para mostrar e significar b, ou melhor,
b, c, d e muitas outras culturas que Ibn Battuta co-
Sobre os etnógrafos, historiadores, geógrafos,
nheceu para os seus conterrâneos de a? Tomemos
cronistas islâmicos – ou mesmo todos estes simul-
como estas diversas outras letras os egípcios descritos
taneamente – aponta Albert Hourani:
minuciosamente por Ibn Battuta, ou os persas, turcos,
Os que escreviam sobre geografia combinavam indianos, chineses, songais e mandens.
conhecimento obtido da literatura grega, iraniana
e indiana como as observações de soldados e via- Um narrador, pertencente ao grupo a, contará b
jantes. Alguns deles interessavam-se sobretudo às pessoas de a: há o mundo em que se conta e o
em contar as histórias de suas próprias viagens mundo que se conta. Como, de modo persuasivo,
e o que tinham observado; as de Ibn Battuta inscrever o mundo que se conta no mundo em
(m. 1377) eram as mais extensas, e transmitiam que se conta? Esse é o problema do narrador.
uma sensação da extensão do mundo do Islã e da Ele confronta-se com um problema de tradução
variedade de sociedades humanas nele contida. (HARTOG, 1998, p. 229).
Outros dispunham-se a estudar sistematicamente
os países do mundo em suas relações uns com os Ibn Battua em sua Rihla procura representar
outros, a registrar as variedades de suas proprie- as culturas que vê e que ouve usando de conceitos
dades naturais, povos e costumes, e estabelecer
e categorias de sua cultura além de estratégia lite-
também as rotas que os ligavam e as distâncias
entre eles (HOURANI, 2006, p. 270). rárias pelas quais é possível traduzir o outro para si
mesmo, para sua cultura, para os que compartilham
Ibn Battuta em suas longas viagens, como da identidade comum do cronista. Estas estratégias
exemplo, mostrou que “todos esses viajantes es- literárias são chamadas Injunções Narrativas.
tabelecem, em cada exemplo escolhido entre mil, O fato de que certos enunciados remetem a outros
que nenhuma fronteira cultural é fechada, imper- enunciados do mesmo contexto é um indício do
meável” (BRAUDEL, 2004, p. 36). Sendo possível que se poderia chamar de injunções narrativas.
apontar na Rihla analisada influências, similitudes Injunções não exteriores e impostas, mas inte-
riores e produzidas pela própria narrativa no pro-
e trocas culturais históricas entre as diferentes
cesso de sua elaboração (HARTOG, 1999, p. 48).
sociedades dissecadas por nosso cronista, sejam
elas de religião e culturas islâmicas, ou não.
O trabalho essencial do cronista é possibili-
Contudo, como assinala Michel de Certeau, tar a transferência de sentido entre os já referidos
“sobre este espaço de continentes e oceanos ofere- a e b. A possibilidade dessa confrontação repousa
115
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

sobre a idéia de que um texto não é uma coisa 247-248; M’BOKOLO, 2009: p. 149). Referindo-
inerte, mas inscreve-se entre um narrador e um se aos manden ao sul do Saara no ano de 1453, o
destinatário. Entre o narrador e o destinatário cronista explana uma diferença cultural a partir
existe, como condição para tornar possível a co- da adjetivação “singulares”, implicitando uma
municação, um conjunto de saberes semânticos, discreta inversão de em que as estruturas culturais
enciclopédico e simbólico que lhes é comum. Na dos cronistas representam-se como universais e a
confrontação destes saberes quatro diferentes dos “outros”, quando fundamentalmente diferen-
possibilitadas são utilizadas por Ibn Battuta e tes, são singulares e exóticas. Mais do que isso,
qualquer outro cronista de viagem para fazer de nesta passagem, caracteriza-se as diferenças entre
sua narrativa inteligível. São elas a Diferença/ In- relacionamentos entre gêneros em que o cronista
versão, Comparação/ Analogia (HARTOG, 1999). implicitamente gera uma descrição por diferença,
a partir do espanto e a necessidade de descrever.
Para traduzir a diferença, o viajante tem à sua
disposição a figura cômoda da inversão, em que Este povo tem costumes muito singulares. Assim
os homens não se mostram nada ciumentos das
a alteridade se transcreve como um antipróprio.
suas mulheres. Quanto a estas, elas não se mos-
Entende-se que as narrativas de viagens recorra tram embaraçadas em presença dos homens e,
abundantemente a isso, já que essa figura constrói se bem que muito assíduas na oração, aparecem
uma alteridade “transparente” para o ouvinte ou com o rosto descoberto. Escolhem amigos e
leitor. Não há mais a e b, mas simplesmente a e o companheiros entre os homens, e os homens, por
inverso de a. É o caso, nas crônicas referentes a sua sua vez, possuem amigas entre as mulheres que
não lhes pertencem pelo casamento (BATTUTA,
viagem para Al-Andaluz no ano de 1352, por exem-
2004, pp. 247-248; M’BOKOLO, 2009, p. 149).
plo, dos cristão Ibéricos. Através destes é construída
a imagem do infiel e inimigo com base em conceitos
Para representar o outro, o viajante dispõe
e adjetivações religiosas islâmicas como os “cristãos
também da comparação/ analogia como ferra-
idólatras” (BATTUTA, 1981, p. 759) ou adoradores
menta literária.
de cruzes em detrimento da ojeriza a adoração de
imagens pregadas no valor muçulmano: Com efeito, ela é uma maneira de reunir o mundo
que se conta e o mundo em que se conta, passando
Oxalá Deus é Altissimo concedendo a vitoria de um ao outro. É uma rede que joga o narrador
ao Islã na Pensinsula Ocidetal por meio de nas águas da alteridade: o tamanho das malhas e a
nosso soberano, cumprindo suas esperanças montagem da trama determinam o tipo de peixe e
de ganhar as terras dos infiéis e de dispensar a qualidade das presas, constituindo o próprio ato
definitivamente aos adoradores da cruz (BAT- de puxar a rede um modo de reconduzir o outro
TUTA,2004, pp. 256-257). ao mesmo (HARTOG, 1998, p. 240).

Não há mais a e b, mas sim a e o anti-a, inva- Assim, a comparação tem lugar numa retó-
sor e corruptor das terras islâmicas na Península rica da alteridade, em que intervém na qualidade
Ibérica. “Estas representações como as matrizes de procedimento da tradução.
de discursos e prática diferenciadas – mesmo as
Tal elemento é utilizado, por exemplo,
representações coletivas mais elevadas têm por
quando Ibn Battuta espanta-se no momento em
objetivo a construção do mundo social, e como tal
que vê a mulher de seu colega manden que lhe
a definição contraditória das identidades – tanto a
dava hospitalidade quando o cronista visitara o já
dos outros como a sua” (CHATIER, 2002: p. 18). As
referido império do Mali. A mulher manden con-
identidades constroem-se sempre em detrimento do
versava livremente com um colega sentados em
outro. É isso que demonstra as crônicas de viagem.
um sofá. Isto chocara o viajante que prontamente
Em outra passagem, Ibn Battuta constrói questionou seu colega: “vocês permitem que suas
essa diferença a partir da citação: “Este povo tem mulheres conversem com amigos homens livre-
costumes muito singulares” (BATTUTA, 2004: p. mente” (BATTUTA, 2006, pp. 858-859). Narra
116
Bruno Rafael Véras de Morais e Silva / José Maria Gomes de Souza Neto

Ibn Battuta que seu colega espontaneamente marroquina islâmica malaquita do século XIV.
respodera: “nossas mulheres são diferente da de Revelando desta forma preconceitos, ânsias e prá-
vocês” (BATTUTA, 1981, p. 853). ticas sociais, tudo isso a partir da representação
Situação demonstrativa de clara analogia é que faz dos outros que descreve em seu Rihlat.
quando Ibn Battuta tenta descrever um inhame. “Significado por uma concepção da escrita, o tra-
Um simples “caule amidoso”, exige uma elabora balho de reconduzir a pluralidade dos percursos
construção literária para ser descrito pelo cronista. à unicidade do núcleo produtor é exatamente o
Citando uma cidade na região do Sahel, o cronista que o relato” (CERTEAU, 2007, p. 219), no caso
aponta os diferentes produtos agrícolas alí cultivado, as crônicas de Ibn Battuta efetuam.
inclusive o inhame: “[...] ali se encontram arroz em Mas é pelo efeito de sua organização que a”
abundância, leite, galinhas e peixe; ali se encontram Rihlat “relata. Na verdade, a operação literária
também melões chamados inhame que não se conhe- de trazer de volta para o mesmo produtor o
ce igual” (BATTUTA, 2004, p. 249; M’BOKOLO, lucro dos signos, enviados à distância, tem uma
condição, a diferença estrutural (...). O relato
2009, p. 127). Percebe-se que para representar tal
joga com a relação entre a estrutura – que pro-
tubérculo para a sua cultura receptora da Rihla, põe a separação – e a operação – que a supera
Ibn Battuta o descreve “analogicamente” como um criando assim efeitos de sentido. O corte é
melão, fruto comum nas regiões mediterrânicas e de, que o texto supõe por toda parte, trabalho de
forçosamente semelhante formato, pois, tal produto costura (CERTEAU, 2007, p. 219).
“não se conhece igual” (BATTUTA, 2004, p. 249;
M’BOKOLO, 2009, p. 127) dentro de sua fronteira Mesmo que sejam produto do ver, do ouvir
conceitual. As mesmas estratégias analógicas utili- e de práticas, estes textos permanecem relatos
zadas para descrever o inhame são usadas idem nas pelos quais um meio se conta. E é através deste
diversas descrições das pessoas e costumes sociais. espelho que pode ser percebida e analisada não
Outro importante elemento percebido nas as culturas e sociedades descritas por Ibn Battu-
crônicas de Ibn Battuta é o seu reflexo presente ta, mas sim, através de suas representações, sua
em suas descrições do outro. Como em um “Es- própria cultura e sociedade magrebina medieval
pelho” (HARTOG, 1998) o cronista se mostra do século XIV.
quando trata dos outros através destas estratégias No Rihla “o maravilhoso, marca invisível da
literárias. Como explicita Michel de Certeau: alteridade, não serve para propor outras verdades
“o relato produz um retorno, de si para si, pela ou um outro discurso, mas pelo contrário, serve
mediação do outro” (CERTEAU, 2007, p. 215). para fundar uma linguagem sobre a capacidade
Ibn Battuta ao descrever o “outro” utiliza-se operatória de dirigir a exterioridade para o mes-
de conceitos e categorias próprias de sua cultura mo” (CERTEAU, 2007, p. 227).

117
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118
ALEXANDRE, Dos TEXTos Às TELAs:
Dialogando com o passado e interagindo no presente.

Calil Felipe Zacarias Abrão1


Pedro Pio Fontineles Filho2

iNTroDuÇÃo

s produções fílmicas, dentre uma infinita

A
dos guerreiros da época; e os norte-americanos os
gama de funções artísticas, políticas, eco- chamam de “sword-and-sandal”, filmes de espada
nômicas e culturais, possui uma dimen- -e-sandália. A primeira leva de filmes conheceu o
são filosófica e histórica ao passo que (re) criam seu apogeu nas décadas de 50/60 do último século
realidades e produzem memórias. É importante e a atual teve seu início na virada do século, com
ressaltar que os dois filmes produzidos sobre Ale- O Gladiador, e segue firme e forte, apesar dos
xandre assim como qualquer produto ou vestígio fracassos pontuais, como o de Conan, O Bárbaro.
da ação criadora do homem, devem ser pensados O Épico mais recente é Os Imortais, que revisitou
a partir de suas localizações espaço-temporais. O o mito de Perseu e levou vários espectadores aos
primeiro filme foi produzido em 1955 nos Estados cinemas, arrecadando milhares de dólares.
Unidos, sendo denominado Alexandre, O Grande
Cinquenta anos separam as duas mega pro-
(Alexander the Great); já o segundo filme foi de
duções “Hollywoodianas” sobre Alexandre. Esse
produção “euro-americana” e data do ano de 2005,
fato nos inquietou, nos levando a questionar: Com
intitulado Alexandre (Alexander). Nossa análise
qual realidade dialogava os produtores dos filmes
centra-se no Alexandre do século XX, usando
da primeira leva de filmes épicos? O que justifica-
o Alexandre mais recente como contraponto do
ria a retomada a todo vapor pela grande indústria
primeiro, destacando aproximações e distancia-
cinematográfica norte-americana e europeia, de um
mentos das abordagens de cada produção. As
gênero praticamente adormecido, frequentado ape-
duas películas são longas-metragens dramáticos,
nas ocasionalmente, por grandes superproduções
que continuam sendo, há quase cem anos, as mais
isoladas? Essas questões são os norteamentos das
vistas e influentes formas de história audiovisual.
reflexões desenvolvidas ao longo desse artigo, no
Os filmes não foram superproduções isoladas, ao
intuito de apreender, também, os movimentos do
contrário, fizeram e fazem parte de uma configu-
pensar historiográfico em suas interconexões com
ração histórico-social, constituindo um tipo de gê-
a arte, sobretudo com o cinema.
nero, que os europeus, hoje, apelidaram de “pelos”,
palavra grega que designava as saias usadas pelos Este trabalho originalmente é parte de um
guerreiros, fazendo menção às vestimentas típicas projeto de pesquisa realizado com os alunos de his-
1 Especialista em História Sociocultural – UESPI/CPTN. Especialista em tória da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) de
História e Historiografia do Brasil – UESPI/CCM. Graduado em História
– UnB. Professor Auxiliar de História – UESPI. E-mail: felipecalilabrao@ Oeiras, campus Posidônio Queiros. Contou com a
gmail.com
2 Doutorando em História Social – UFC. Mestre e Especialista em His-
participação dos alunos do primeiro e sexto blocos,
tória do Brasil – UFPI. Graduado em História – UESPI. Graduado em ao longo do segundo semestre de 2011. As discussões
Letras-Inglês – UFPI. Professor Assistente de História – UESPI/CCM.
E-mail: ppio26@hotmail.com foram encaminhadas durante a Disciplina de História
119
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Antiga e na Disciplina de Prática Pedagógica, que tra- tações contemporâneas que impulsionam os ventos
balha com o uso de imagens pela História e o diálogo da historiografia. Mais que isso, sem as reflexões do
com outras linguagens. O trabalho também faz parte presente o passado fica muito obscuro. É importante
do grupo de estudos sobre linguagem do Núcleo de frisar que as representações que são feitas pelo
Pesquisas em História e Educação – NUPEHED, da presente acerca do passado, especialmente por meio
Universidade Estadual do Piauí - UESPI. Para anali- das imagens, particularmente pelos filmes, se dão
sar os condicionantes sócio-históricos da produção no constante ato de friccionar duas dimensões: a
do filme, foram feitas pesquisas sobre os principais do olhar e a da coisa observada. Daí quando o his-
acontecimentos dos anos de 1954 e 1955, dando um toriador se dedica a estudar uma produção fílmica
panorama da época em que o filme foi concebido. O ele não pode se furtar da obrigação de compreender
destaque fica para o conflito entre os EUA e a URSS. os diversos olhares que impulsionam a produção e
O que fica evidente é o forte impacto da Guerra Fria, o consumo de um dado filme.
informando culturalmente e politicamente seus “par-
Costuma-se pensar que a retomada do cinema
tidários” e exigindo o posicionamento ideológico da
épico está associada aos acontecimentos do pós
comunidade internacional. E nessa conjuntura que
11 de setembro nos Estados Unidos da América.
Alexandre foi feito e consumido.
Mesmo que um filme de sucesso como O Gladiador,
preceda o ataque verdadeiramente cinematográfico
às torres gêmeas, o clima crescente de tensão entre
as potências ocidentais, em especial Estados Uni-
ProJEÇÕEs DA HisTóriA: dos da América (EUA) e o Estado Judeu (Israel),
os limiares entre o Cinema contra o “Islamismo radical”, já colocava na ordem
e a História do dia, o velho e atualizado conflito leste – oeste.
Uma enxurrada de livros, programas televisivos e
Para analisar a idade média através do cine- filmes debruçaram sobre o tema, mobilizando pra-
ma, Macedo (2009) afirma que quando se trata de ticamente o conjunto da nação americana e de boa
avaliar os elementos de historicidade presentes em parte do planeta, na tentativa de conhecer, entender
um filme conviria levar em conta pelo menos três e controlar o outro, o “Árabe,” o Islâmico, o eterno,
níveis intercambiáveis de análise: primeiramente, perigoso e desconhecido oriente. Toda uma nova
sobre o contexto a que o filme se refere; em segundo produção cultural, da qual o cinema épico dialoga,
lugar, sobre o contexto em que o próprio filme foi ofereceu novas possibilidades de sub-leituras a
produzido; e terceiro lugar, sobre o contexto de seu temas contemporâneos, como o “choque de civili-
lançamento e de sua exibição. zações entre o oriente e o ocidente”.
Eric Hobsbawn, é quem nos dá uma impor- O Alexandre, o Grande da década de 1950 foi
tante chave de leitura. Em um de seus livros, elaborado no apogeu da Guerra Fria e do Macarthis-
retomando Benedetto Croce, ele diz: mo. Foi lançado na mesma época que Spartacus, que
foi analisado por Natalie Zemon Davis (2000) no seu
[...] já se disse que toda a história é história
contemporânea disfarçada. Como todos nós livro Slaves on Screen, onde a historiadora norte-a-
sabemos, existe algo de verdade nisso. O grande mericana demonstrou seus vínculos com a Guerra
Theodor Mommsen escrevia sobre o império Fria, e com o tipo de história que era produzido nas
Romano, como um liberal alemão da safra de 48, universidades americanas de então, que estudavam
refletia também, sobre o novo império alemão. a personalidade dos escravos.
Por traz de Júlio César, discernimos a sombra de
Bismark (HOBSBAWN, 1998, p. 243). Nos Estados Unidos de viajantes sem valises,
a história serviu apenas muito raramente para exal-
O olhar sobre o passado é condicionado pelas tar a grandeza nacional ou a primazia americana,
perspectivas do presente, visto que são as inquie- diferentemente das outras ciências sociais (JULIA,
120
Calil Felipe Zacarias Abrão / Pedro Pio Fontineles Filho

BOUTIER, 1998). Isso é outro ponto inquietante e seus aliados, Tebas em especial.
que nos leva a refletir. A quem coube esse papel?
As inscrições trabalhadas pelos epigráficos
A produção desse tipo de conhecimento histórico
contribuíram para um melhor conhecimento das
ficou a cargo da história produzida pelo cinema
instituições, fazendo desaparecer a visão simplista
Yankee? Que papel teve o épico norte-americano
de um reino submisso à autoridade absoluta do
na formação do então estudante de História, Jorge
soberano. Felipe II, vitorioso sobre as tendências
W. Bush? Quem era o público alvo da indústria
de autonomia cívica, é quem conseguiu estruturar
cinematográfica das décadas de 1950 e 1960?
o novo estado, transformando-o em um fundamento
Quase o conjunto do país, em especial o de sua política dinâmica no exterior. No filme, o
público médio norte-americano, que era formado exército, mesmo na capital Macedônia, é a grande
e informado culturalmente pelas leituras dos jor- assembleia de soldados que escolhe o novo sobera-
nais da grande imprensa, pelas seções de cinema, no, privando os idosos do exercício de seus direitos
dedicado aos espectadores das grandes produções de cidadãos. Entre os Historiadores e Helenistas
cinematográficas realizadas por grandes grupos, atualmente a questão segue em aberto, pelo menos
conglomerados, cada vez mais concentrado, num quando a assembleia era realizada dentro do terri-
processo intensificado desde as décadas de 20/30; tório Macedônio (CABANES, 2009).
pelo advento do cinema falado; e pela nascente
e crescente influência da televisão, em meio aos
preparativos da segunda guerra mundial.
Os inimigos de então, eram a URSS, a China, o LuZEs, CÂmErA, AÇÃo:
socialismo, o oriente, em suma, o outro. As relações A reconstituição
entre o oriente e o socialismo ficaram mais evidencia-
e interpretações do filme
das com a queda do muro de Berlim e as análises de
muitos historiadores, mesmos os considerados mais
Os créditos de Alexandre, o Grande começam
à esquerda, que usaram e abusaram da longa dura-
e terminam fazendo uso da numismática, utilizan-
ção para associar o atraso soviético ao autoritarismo
do-se de uma moeda sem inscrição com a esfinge
herdado da sua história oriental. É evidente que o
de Alexandre Magno. Sabe-se que a prática do
filme, apesar de ser uma ficção, utiliza-se de inúme-
retrato nas moedas já era conhecida nos Dáricos
ras fontes históricas e literárias, como por exemplo,
Persas e que ela se tornou corrente nos Diádocos do
as Fiípicas de Demóstenes, Alexandre e Cesar de
Helenismo, entre os Selêucidas, Lágidas, na Trá-
Plutarco, pela produção da comunidade acadêmica
cia, no Épiro, na Macedônia, e em todos os reinos
norte-americana, informada pela Guerra Fria. Como
da Ásia Menor e mesmo em Esparta. Moedas que
o filme foi concebido no início da década de cinquen-
continham inscrições e geralmente eram lançadas
ta, o que existe de pesquisa histórica é anterior ao
para comemorar alguma vitória militar. Símbolos
impacto que a renovação dos estudos históricos sobre
da soberania e da vitória (CABANES, 2009).
a antiguidade, mais precisamente sobre a Macedônia,
a Grécia e os vários centros de poder do Helenismo O filme tem início com uma legenda que nos
tiveram, via trabalho dos arqueólogos e epigráficos ao informa que no ano de 356 a.C. a Grécia estava
longo da segunda metade do século XX (BRIANT, dividida e era sangrenta. A imagem começa com
2010). A história da Macedônia do Rei Felipe, que um debate entre Demosthenes e Aeschenes sobre a
governou de 359, com a morte do Rei Pérdicas até 336 atitude que Atenas deveria tomar frente ao expan-
a.C. era conhecida quase exclusivamente por fontes sionismo do rei Felipe. Na plateia da Assembleia
da tradição literária que relatavam as disputas entre homens e mulheres ativas, à sua maneira interferem
Demóstenes e seu adversário, Esquines, em Atenas, nos debates. Em seguida um corte cinematográfico
e que se referiam diretamente às relações entre a Ma- nos leva ao acampamento Macedônio, onde um
cedônia e as cidades gregas, principalmente Atenas mensageiro leva a notícia ao rei Felipe do nasci-
121
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

mento do seu filho, Alexandre. O rei abandona o pedindo mais um ano para concluir a educação
acampamento e volta para sua capital Pella, para ver do herdeiro e Felipe não concorda. É uma tônica
seu o filho primogênito com Olímpia, princesa do do filme. Felipe escuta, só por escutar, parece não
Épiro. Marido e mulher são de regiões que fazem levar em conta as opiniões mesmo dos que lhe são
fronteiras sutis entre o Mundo de Ulisses e o que mais próximos, como o seu general Parmênides.
se chamava de domínios de Bárbaros (CABANES, O filme nos mostra um rei que escuta seus
2009). Com o filho no colo, Felipe o denomina de pares, tradição Macedônica, mas que toma decisões
Alexandre da Macedônia e de Alexandre da Grécia. sempre sozinho. Felipe, mesmo com uma grave feri-
O diretor do filme parece querer demarcar da no joelho, deve retornar aos campos de batalha e
a carreira dos dois reis mostrando o horizonte escolhe Alexandre como seu Regente, o qual passa a
menor dos sonhos de conquista de Felipe II, que controlar toda a Macedônia, e os vizinhos limítrofes
no máximo queria saquear a costa Persa do mar do norte, procurando não ser um joguete nem do
Egeu. Fica evidente em todo o filme que uma das pai e nem da mãe. Alexandre segue para Atenas e
fontes principais utilizadas pelos roteiristas foi é decisivo na vitória de Felipe sobre os Atenienses e
o Alexandre, de Plutarco (PLUTARCO, 2005) e seus aliados Tebanos. Entra em Atenas e comporta-
assim também o segundo filme. Os dois diretores, se como um estadista e grande sedutor.
roteiristas e a assessoria histórica beberam em Em “Alexandre, o Grande”, o roteiro, a produ-
Plutarco, Arriano. Plutarco, já nos falava que os ção e a direção são assinados por Robert Rossen,
gregos acreditavam que os Persas eram um adver- norte-americano de Nova York, descendente de
sário fácil de ser batido, e que só mesmo a desunião imigrantes pobres Judeus/Russos, filho de Rabino,
Helénica impedia a consumação desse fato. que começou a carreira escrevendo e dirigindo
Depois de mostrar o filho para o povo, as peças na Broadway. Em 1936, foi contratado por
imagens saltam 20 anos e nos mostram a edu- Warner e foi para Hollywood. Quando dirigiu o seu
cação principesca de Alexandre. Em meio a Alexandre, estava com 48 anos de idade. Cinco anos
exercícios físicos e livros, Aristóteles é a figura antes foi bombardeado pelo Comitê de Investigação
dominante. Um Alexandre fascinado ao lado de de Atividades Antiamericanas do Senado. Entrou
seus futuros generais é doutrinado pelo mestre na lista negra de Hollywood, por fazer parte por dez
Aristóteles. O filósofo prega que o modo de vida anos do Partido Comunista dos Estados Unidos e
persa é sensual, perverso e merece ser destruído. não delatar os colegas de esquerda. Doente, desem-
O adestramento político segue mostrando que pregado e abusando da bebida, voltou atrás e cedeu
Felipe pode conquistar a Grécia, mas que só ele, até a alma para o Congresso americano, e entregan-
Alexandre, poderia governá-la se tivesse paciên- do uma lista de 57 comunistas. Justificou dizendo
cia para concluir sua formação. que estava preocupado com os destinos da Nação.
Parece ter se regenerado ao fazer de Alexandre um
Longe do mestre, mas sempre perto de seus
precursor dos ideais norte-americanos e propagan-
camaradas, Alexandre lê a Ilíada, de Homero em
dista da Guerra Fria. “A Academia que o havia pre-
voz alta, atendo-se às glórias de Aquiles. Na hora
senteado com um Prêmio Oscar de melhor diretor
dos exercícios, o filósofo aproveita para ler. Ao invés
em 1950 com “All the King”s Men”, mesmo assim
de um rolo, o “livro” é um autêntico exemplar de
desconfiada, não lhe deu mais nenhuma Estatueta
capa dura encadernada. Só não dá para ler o título
significativa, mesmo tendo dirigido mais 4 longas,
e verificar se era uma edição norte-americana da
antes de falecer em 1966. O longa-metragem teve no
década de 1950 do próprio Aristóteles. Quem sabe a
elenco Richard Burton (Alexandre), Fredric March
sua “Política”, ou o “Banquete” de seu mestre Platão?
(Felipe II), Claire Bloom e Barry Jones (Aristóteles).
Nesse entremeio, seu pai, Felipe, retorna à Milhares de atores participaram do filme. O filme
Macedônia, para deter uma revolta palaciana e épico então já era uma realidade, que teve início
quer a ajuda de Alexandre. Aristóteles se opõe, com as inovações técnicas constantes em ALE-
122
Calil Felipe Zacarias Abrão / Pedro Pio Fontineles Filho

XANDRE NEVKY de Sergei Eisenstein (1898- O filme não esconde a Homossexualidade de


1948): tomadas das câmaras e ângulos de filmagem, Alexandre, o que se tornou, para o grande público,
grandiosidade expressa no número de figurantes, uma das chaves de leitura mais marcantes nessa
etc. Na contracapa do DVD, somos informados que versão. O estudo sobre a sexualidade de Alexan-
o filme exaltou de forma definitiva o rei Alexandre. dre baseia-se principalmente nas pesquisas de Fox
Não podemos acusar o texto de anacronismo. Ele (FOX, 1980). O seu Alexandre é diferente do amante
parece sintonizado com o tipo de História feita nos platônico que a historiografia criou no século XIX.
anos de 1950, pretenciosa em afirmar a realidade Em entrevista ao jornalista L. A. Giron (GIRON,
definitiva de seus textos. A contracapa ainda nos 2005) o diretor reafirmou o comportamento liber-
afirma que o filme nos mostra um Alexandre per- tino e pansexual dos aristocratas, incentivados pela
turbado pelo conflito entre a sabedoria de seu mestre filosofia de Platão e Aristóteles.
Aristóteles, a lealdade de seu pai Felipe II, e o seu
O filme é tributário da evolução da sociedade
próprio grandioso desígnio de dominar o mundo,
norte-americana no pós-68 de conquistas dos direitos
ignorando o papel de Olímpia retratado no filme.
civis. Ao ressaltar a homo-afetividade de Alexandre no
A contracapa quer ser politicamente correta? Fica
filme estaria polemizando também com o oriente islâ-
feio falar hoje em dia na apresentação do DVD, de
mico que condena a homossexualidade? Nos anos 50
uma mulher na forma que foi retratada no filme,
nem a palavra homo-afetividade havia sido inventada.
quase uma megera planejando o assassinato do
O que existia era o termo homossexualismo, que nos
marido Bailéu? O DVD lançado em 2004 pegou
remete desde o final do século XIX à ideia de doença.
carona com o novo “Alexandre” que estava sendo
A relação afetiva entre Homens, não era um objeto de
produzido, em uma produção Francesa, distribuída
estudo dos historiadores. Só restou ao primeiro Ale-
pela concorrente, o também gigante Warner Bros
xandre esconder à homo afetividade do protagonista
Pictures. A contracapa do primeiro assinala que
embaixo de um tapete Persa, da corte de Dario. Pena,
Alexandre ergue-se acima de todos os conflitos, a
porque a decoração tanto do acampamento, quanto
fim de juntar os continentes da Europa e da Ásia.
do palácio de Dario era Hefestion. O mesmo foi feito
A direção e produção são assinadas por Robert
por historiadores da época. Alexandre é quase um
Rossen, e leva o selo da Metro-Goldwyn-Mayer.
sedutor. A viúva de Mennom - nobre Ateniense que
“Alexandre” de 2005 foi dirigido por Oliver exilado passou a servir os Persas- mesmo na presença
Stone. A consultoria histórica ficou a cargo de do marido, deixa Alexandre enamorado e passa a ser
Robin Lane Fox, professor de História Antiga a figura mais influente na segunda metade do filme.
da Universidade de Oxford, com livro publica- Plutarco nos afirma que ela foi a primeira mulher na
do sobre Alexandre (FOX, 1980), jornalista que vida sexual de Alexandre. Na segunda parte do filme,
assina uma coluna no “Financial Times”, e agora Aristóteles só aparece mais uma vez, redigindo uma
também, duble de filmes Épicos. A escolha desse carta desaforada ditada por Alexandre para Dario. O
filme justifica-se, em grande medida, pela traje- certo é que o filósofo foi fundar o seu Liceu em Atenas.
tória do diretor, um crítico da política externa Aristóteles e bem mais complexo politicamente. Mes-
americana, que o levou inclusive a conseguir a mo que seja uma espécie de ideólogo do imperialismo
cidadania europeia na França, para poder con- Macedônio-Grego e descambar para o racismo contra
tinuar exercendo sua profissão, já que este fora os Persas, ele nos alerta que o oriente sempre engole
banido de Hollywood, depois de filmar dois do- os homens e seus sonhos. Como historiador- cineasta,
cumentários positivos a Fidel Castro, censurados ele é mais livre que a academia para alertar a comu-
nos Estados Unidos. As diferenças entre os dois nidade americana, e fazer prognósticos ancorados na
filmes são marcantes. A começar pelo título que história. E na América de hoje, o primeiro governo
nos remete a uma visão mais realista e humana democrata depois da era Bush, procura uma maneira
do personagem. Stones, há pelo menos 30 anos, de abandonar sua aventura oriental, resguardando seus
pensou na realização do filme. interesses. Um novo Vietnan? Pelo menos o cineasta
123
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

ainda é o mesmo. Mas os tempos são diferentes. Para outras e o que antes podia ser violento hoje não o é.
o diretor, hoje seria impossível filmar Platoon em Com relação à sexualidade, as diferenças também
Hollyood, pois em 80, o pacifismo remanescente dos são significativas. Principalmente nas séries tele-
anos de 1960 ainda vigorava. (GIRON, 2005) Bush visivas essa característica se acentua. O roteirista
tinha 10 anos na época do primeiro Alexandre. Viu o de série Roma parece zombar do público ao tornar
filme quando criança? Viu como estudante de gradua- viúvo um de seus protagonistas, Pois, para agradar
ção em história? Que peso teve o cinema americano o público, arrumou uma mulher mais sensual para
na formação política de Bush? o musculoso protagonista. A série tentou ser mais
Um achado do DVD é o trailer recuperado violenta na segunda temporada, e até mesmo no
do filme de 55. Através dele podemos ver como o final da primeira, para agregar audiência e para
filme foi recebido e lançado. Nele não há lugar para sobreviver, mas já era tarde, e a opinião do públi-
o politicamente correto para Olímpia, que aparece co sobre a série já estava formada. Rolava pouco
quase como uma víbora. São claras as dívidas do sangue para um filme sobre a Roma antiga e a série
cine épico americano com o Western (MACEDO). faliu. Já Spartacus, bem mais violento que Roma,
tem sobrevivido mesmo à morte real do ator que
Alexandre foi o maior orçamento até então na
fazia o papel do protagonista. Esse passeio cons-
carreira do diretor esquerdista. Se o orçamento foi
tante ao qual História e Cinema se aventuram é a
grande, a receita não. O povo americano envolvido
nas guerras de Bush desconsiderou o filme. Além busca de aproximação com realidades que, a priori,
disso, o filme usa de poucos efeitos especiais, são de uma temporalidade e de uma espacialidade
quase que somente nas batalhas. Foi rodado no diferentes do mundo contemporâneo, mas que pos-
Marrocos, Grã-Bretanha e na Tailândia. O diretor sui suas reminiscências, seja em algumas práticas,
já havia namorado o gênero épico ao co-escrever seja no imaginário e na memória.
as sequências de Conan, O Bárbaro em 1982, com Alexandre Magno, como os indivíduos que
Arnold Schwarzenegger. compuseram os cenários da História, em especial
da antiguidade, é um enigma. Sejam os livros,
sejam os filmes e documentários que tratam sobre
CoNsiDErAÇÕEs FiNAis sua vida e sua atuação como governante, o que
está em jogo é um trabalho incansável de (re)
Para muitos, os filmes da década de 1950 visitação ao passado e à memória de uma figura
são bem menos violentos que os atuais. Contudo, indubitavelmente importante para a compreensão
deve-se considerar que as formas de percepção são da vida da antiguidade clássica.

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124
o CuLTo mAriANo
No sÉCuLo XiV Em PorTuGAL

Camila Rabelo Pereira1


Adriana Zierer

Os estudos de gênero, ao empregarem tal

O
tema aqui discutido é objeto de pesquisa paradigma, rejeitam o determinismo biológico e
realizada no interior da Universidade a ideia de que a distinção sexual é natural, uni-
Estadual do Maranhão, através do gru- versal ou invariante, a despeito das diferenças
po de discussão de História Antiga e Medieval anatômicas entre machos e fêmeas na espécie
intitulado Mnemosyne. A pesquisa desenvolve-se humana. Como destaca Scott (1994, p.13), “gê-
por demanda dos textos trabalhados no grupo de nero é o saber que estabelece significados para
estudo já citado. Metodologicamente trabalhamos as diferenças corporais”. Nesse sentido, não só
com referenciais da História de Gênero, através o gênero é visto como uma construção cultural,
de autoras como Andréia Cristina Lopes Frazão mas também o sexo (SILVA, 2009, p. 99).
da Silva, Joan Scott e Rachel Soihet. Essas pes-
quisadoras discutem a aplicação da categoria Assim, o gênero e o sexo não são verdades
de gênero para os estudos das experiências fe- infalíveis e neutras, mas sim saberes que ganham
mininas em sociedade, pois os papéis próprios sentidos dentro do contexto da luta por poderes.
de homens e mulheres não são estabelecidos Esta pesquisa visa analisar e explicar os sistemas
biologicamente, mas sim de acordo com o tempo de significação das diferenças sexuais através do
e o espaço histórico, sendo legitimados pelas ins- discurso presente na hagiografia mariana Mila-
tituições e normas vigentes em cada sociedade. gres Medievais, numa coletânea mariana alco-
bacense, ou seja, analisar o discurso institucional
Os estudos de gênero partem de concepções que tentava nortear as ações femininas tendo
pós-modernas, e surgem na década de 80, a par- como modelo de representação cultural Maria.
tir de questionamentos epistemológicos alçados
pela história das mulheres. Em busca de legiti- Os processos de significação da diferença
sexual implicam portanto, em relações de
mação os pesquisadores pautaram as pesquisas
dominação, que estão presentes e são legiti-
de gênero no paradigma pós-moderno, que foi madas no âmbito das instituições, nas normas,
constituído durante o século XX. nas práticas, na adoção de papéis sociais, na
construção das identidades subjetivas e cole-
Na teoria histórica o paradigma pós-moder-
tivas, pelos símbolos e pelas representações.
no renuncia à busca por leis causais e gerais para Assim, o gênero está em todos os aspectos da
explicação dos fenômenos, frisando o estudo experiência humana, constituindo-os, ainda que
do particular e dos processos de significação, parcialmente (SILVA, 2009, pág. 100).
relegando as origens a uma explicação única e
coerente e negando a imparcialidade cientifica. O gênero como categoria de análise não ado-
Essas investigações são centralizadas em técnicas ta definições fechadas sobre o que é ser homem
de análise retórica e do discurso. ou mulher, ou o que caracteriza o masculino e
1 Graduanda da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA/Mnemosy- o feminino, mas sim como estes elementos são
ne). Este trabalho é fruto da iniciação científica (BIC-UEMA) sob a orienta-
ção da Prof. Dra. Adriana Zierer. discursivamente produzidos em meios sociais
125
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

específicos, gerando e ganhando significados. lo feminino mariano. Estudioso da fonte, Aires


Pois, são de acordo com a demanda social alte- Augusto Nascimento ressalta a importância e a
rados, ressignificados, eliminados, negados ou circularidade dos milagres marianos no medievo.
reafirmados, portanto a pesquisa deve trabalhar Nascimento aponta que 7 das 12 composições das
na incoerência, descontinuidades, conflitos, e Cantigas de Santa Maria compostas por Afonso
contradições das significações de gênero, anali- X, O Sábio, tiveram como fonte os milagres pre-
sando como as relações entre homens e mulheres sentes na coleção latina utilizada nesta pesquisa.
se constituem e se perpetuam no tempo. Utilizamos a categoria de gênero para anali-
Através da fonte primária Milagres Medievais, sar o ideal de virgindade proposto pelo discurso
numa coletânea mariana alcobacense, analisamos normativo que foi significado e ressignificado
a representação mariana em Portugal no século pelas mulheres que o receberam como uma possí-
XIV. A hagiografia é uma coletânea de 22 (vinte vel forma de controle da sua própria sexualidade.
e dois) milagres latinos atribuídos à intercessão da Na fonte primária a construção simbólica da
Santíssima Virgem, encontrados na biblioteca do Virgem Maria como representação do feminino,
mosteiro de Alcobaça em Portugal, e traduzidos e modelo exemplar a ser seguido, a virgindade é
por Aires Augusto Nascimento em 2004. a característica mais valorizada, a castidade de
Maria significa a pureza do corpo e o repúdio à
A fonte primária Milagres Medievais, numa luxúria, pecado combatido pela Igreja.
colectânea mariana alcobacense possui 22 mila-
gres divididos em 2 (dois) grupos de acordo com a Maria – Mãe de Misericórdia nos é apresen-
ocorrência: o primeiro grupo contém 15 (quinze) tada como um dos modelos propostos pela Igreja
milagres que ocorreram em espaços e tempos Católica com o intuito de ordenar e coordenar
diversos, porém os milagres 11 e 12 possuem 2 as ações femininas. Maria está em uma posição
(dois) submilagres. O segundo grupo contém 7 privilegiada e única, nesse plano mediador, sua
(sete) milagres que ocorreram no santuário do figura está vinculada à maternidade de Cristo e
Rocamador na França. à compaixão para com os seres humanos.

Percebemos a circularidade e a importância da A construção da imagem feminina era em


Virgem Maria na Europa Ocidental Medieval, pois a maior parte responsabilidade de homens religio-
sos, que destacavam as fraquezas físicas e o pe-
fonte primária utilizada foi encontrada no mosteiro
rigo que elas representavam no desvio da conduta
de Alcobaça em Portugal, sendo que a transcrição
masculina. Os escritos legitimavam a submissão
desses milagres não possui autor definido, prova-
aos homens para que as mesmas pudessem ser
velmente é uma fonte escrita por um clérigo.
controladas. Na Idade Média as mulheres eram
O autor da fonte, no Prólogo resume os mo- retratadas muitas vezes nas fontes como cortesãs
tivos que o levaram a escrever sobre os milagres volúveis, santas ou rainhas cruéis, estabelecendo
marianos: milagres escritos para a honra da Virgem assim uma dicotomia reducionista da existência
Maria e de seu filho. Porém, o autor esclarece que da mulher como ser social, pois para existirem
os milagres descritos por ele não se comparam aos eram piedosas, malvadas ou escandalosas.
milagres realizados por Deus em favor da Virgem,
Repensar a historiografia dominada pelo
e dessa em favor de Deus, e ressalta que a perma-
pensamento masculino, que priorizava as ações
nência dos laços entre Deus e Maria é mantido pela
de “grandes homens”, a política e a guerra, é
sua permanente condição de Virgem mesmo após
uma ação árdua, mas a partir da Nova História,
o parto (Virgem Perpétua/Imaculada).
intensificou-se o debate intelectual sobre os
Os milagres possuem a intenção de promover ‘excluídos” da história, que se tornaram obje-
a celebração dos sábados em honra de Maria, a tos privilegiados, e é nessa valorização que se
peregrinação a santuários particulares e o mode- inserem as mulheres como objeto de estudos. A
126
Camila Rabelo Pereira

partir dessa perspectiva, são encaradas não como participativa e laica. Considerado o século dos
santas ou malvadas, mas sim como mulheres santos por excelência, percebemos que é a partir
que viviam e existiam como seres sociais de do século XIII, que a representação mariana é
acordo com a sua sociedade, tempo e espaço. As valorizada com a intensificação na construção de
mulheres medievais tinham seus papéis sociais igrejas em honra da Virgem, e com o aumento de
determinados e legitimados principalmente nos milagres atribuídos a Ela. As abadias e dioceses
escritos produzidos pelos clérigos. travaram embates contra a intromissão das auto-
A imagem do elemento feminino na Idade média ridades monásticas, que tentavam em Portugal de
nos é trazida por textos, em geral, escritos por todas as formas interferir, tentando inibir o poder
homens religiosos, notadamente até o século crescente da Igreja em solo português, pois era
XIII, quando assistimos a um revigoramento da preciso legitimar o poder da monarquia que por
literatura de origem laica. Levando isso em conta,
não podemos nos esquecer de que a perfeição vezes entrava em litígio com os interesses clericais.
religiosa estava no modelo monástico e a tradição Na tentativa de manter o poder pontifício
monacal vinculava a mulher ao pecado. Ainda que
destacam-se as determinações do IV Concílio de
consideremos a experiência monástica feminina,
não há dúvida de que foi o veio masculino aquele Latrão, que tinha como metas fundamentais a
que caracterizou mais profundamente o universo homogeneização da liturgia, a uniformização das
religioso regular, particularmente o beneditino. O práticas religiosas a partir da proibição da criação
conteúdo das fontes traz, assim, a mulher associa- de novas Ordens, a questão das heresias e como
da à fragilidade, ao desejo, à maior propensão ao
pecado, quando não é definida como “instrumento
combatê-las, são medidas tomadas pela Igreja na
do diabo” (VISALLI, 2009, p. 101). tentativa de conter a expansão de movimentos
religiosos considerados heréticos, e para a manu-
As relações no século XIV ficaram mais tenção do poder pontifício. O reinado de Afonso II
complexas, devido às mudanças sociais: economia (1211-1223) marcou efetivamente a centralização do
mercantil e monetária, crescimento urbano e novas regime monárquico, o que ocasionou intervenções
formas de cultura se desenvolviam juntamente com dos monarcas em assuntos internos das abadias.
as já existentes relações feudais. Os séculos XII Portugal desde o século XIII passava por
e XIII configuram-se como um período marcado uma disputa política que colocava em novos ter-
pelo crescimento econômico, pelas modificações mos as relações de poder na região, disputa esta
na composição social e nas relações de produção, que envolveu inicialmente a dinastia de Borgo-
e o surgimento de novas necessidades espirituais nha e depois a dinastia de Avis, que procuravam
resultado da efervescência religiosa herdeira da formas de legitimar os anseios por poder. Em
Reforma monástica e do ideal cisterciense. Portugal como nos reinos vizinhos, a grande crise
As várias formas de religiosidade que emergiram do século XIV, levou a nobreza senhorial a se
em fins da Idade Média devem ser entendidas, em posicionar frente ao fortalecimento dos poderes
parte, como subproduto do seu meio social- mar-
monárquicos, por sua vez a monarquia tentava
cado pela desagregação dos laços feudais, pela
emergência das economias de base familiar e pelo frear o domínio social do clero, partilhando com
próprio fenômeno do florescimento das cidades- as- novas categorias sociais urbanas e a nobreza os
sociado à profunda herança religiosa deixada pelos espaços de sociabilidade.
ideais propalados a partir da Reforma monástica,
tendo como seu principal baluarte São Bernardo de A ‘insurreição nacional e popular’, é demar-
Claraval (MAGALHÃES, 2009, p. 67-68). cado em Portugal, como uma nova fase da história
da monarquia portuguesa com a dinastia de Avis,
Essas mudanças, como ressalta Magalhães, nesse ensejo há uma valorização das crônicas que
são o resultado direto da co-presença de elementos narravam as ações dos reis, os elementos que de-
feudais e o desenvolvimento urbano, que resulta- veriam ser fixados na memória dos reis e de toda
ram em uma busca por uma religiosidade mais a sociedade são selecionados. Durante o século
127
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

XIV, em Portugal os poderes reais empenham-se na No decorrer da pesquisa percebemos que o


promoção dos reis, os colocando como regedores e culto mariano em Portugal possui suas especi-
defensores do reino, em busca de novas alianças e ficidades, a representação mariana foi utilizada
manutenção de velhas alianças, integrando novos como discurso na luta de credos (Maomé contra
grupos sociais e velhos grupos sociais (fidalgos, Cristo), antes mesmo da valorização da Virgem
clérigos, letrados e mercadores), forjados principal- Maria em todo o ocidente cristão. Ao analisarmos
mente a partir do movimento de expansão econô- a história de Portugal percebemos que na luta de
mica que culminou nas Grandes Navegações. Os credos os cristãos utilizaram diversas estratégias
grupos sociais mais beneficiados pela aproximação na tarefa de evangelização.
da realeza e da corte são os dirigentes urbanos,
O discurso religioso na fonte primária apre-
mercadores e senhores dos castelos.
sentou-se de maneiras distintas, os milagres são
A autoridade do rei é construída através de adaptados de acordo com as necessidades do mo-
suas viagens aos recantos do reino, na condução de mento. E o culto à Virgem Maria cresceu na mesma
guerras externas que afirmam a independência de medida em que crescia a necessidade de combater o
Portugal, guerras internas e a divulgação da autorida- Islã no território português principalmente a partir
de do rei. Nesse processo percebemos a valorização do século V. Maria foi a protetora fiel dos cristãos
de símbolos culturais, como Maria, que possui em em sua luta contra os muçulmanos, percebemos
Portugal uma representação de guerreira. isso nos diversos relatos de batalhas e nos milagres
Portugal havia desenvolvido uma “cultura de 2,4 e 9 na hagiografia Milagres Medievais, numa
guerra” peninsular quase permanente. E ainda mais colectânea mariana alcobacense em que Maria
no século XIV, em que a acentuação da violência aparece diante dos fiéis demonstrando que a vitória
aristocrática gerou um século de guerras quase
constantes. Sejam as guerras com Castela ou com era uma certeza. Maria em Portugal se torna uma
os mulçumanos, sejam as guerras internas de D. santa padroeira da guerra defensora dos cristãos.
Dinis e de Afonso IV (NOGUEIRA, 2010, p. 45).
Na sociedade portuguesa, cuja realidade
histórica está marcada pela intensa relação com
Assim, o rei é um chefe das guerras que tenta
a diferença religiosa, e com as necessidades da
ordenar a ação dos seus súditos, para impor sua
luta de um credo contra outro, a Virgem ocupa um
soberania era preciso afirmar seu poder interna-
lugar de destaque no sistema simbólico. Ao ana-
mente, por isso, os reis promoviam ações associadas
lisarmos a fonte constatamos que na construção
ao exercício da justiça, pois era preciso afirmar a
simbólica da Virgem Maria como representação
importância dos reis na garantia da paz e da pros-
do feminino, e modelo exemplar a ser seguido, a
peridade do reino, era preciso ser justo com todos
virgindade é a característica mais valorizada, pois
aqueles que ajudavam na construção da riqueza
a castidade de Maria significa a pureza do corpo
do reino, era o discurso propagado internamente,o
e o repúdio a luxúria pecado combatido pela
discurso é ordenador e moralizador, sinalizando a
Igreja. Pois, a mulher como ser inferior possuiria
constituição do Estado: aparecimento de funções
a tendência a cometer a luxúria.
político-institucionais especializadas; reconheci-
mento da necessidade de uma autoridade suprema, Analisamos como o ideal cristão de virginda-
que servi-se de suporte para a estrutura organiza- de foi acolhido pelas mulheres medievais, e quais
cional e que primasse pela moral; existência de foram os significados que elas deram ao discurso
fronteiras mais ou menos permanentes; e a projeção normativo da virgindade, concluimos que homens e
das cidades como locais em que a monarquia e os mulheres interpretam cada qual a seu modo, o ideal
grupos senhoriais pudessem constituir o seu poder de conduta sexual, por isso cada grupo dar distintos
político, as cidades se mostram múltiplas, dinâmi- significados a experiência religiosa. Enquanto os
cas, abrangentes, que confronta em seu espaço os homens viam a virgindade e o casamento como
diferentes grupos sociais. formas de controle das mulheres e manutenção dos
128
Camila Rabelo Pereira

seus poderes, as mulheres utilizavam o discurso luxuriosos; d) a insensatez de Eva, que teria ensinado
da virgindade como uma outra possibilidade de apenas uma vez ao homem, e como consequência
experiência social e mecanismo de defesa. desvio Adão, e subverteu o mundo. A pregação fe-
minina começou a ser discutida principalmente com
A virgindade poderia ser uma saída para
o advento das heresias, que muitas vezes permitiam
aquelas que optavam por uma vida para além do
a pregação feminina.
casamento e da maternidade. Com a valorização
feminina e a multiplicação de mosteiros dedicados Os locais próprios das mulheres determina-
as mulheres, estas podiam optar entre o casamento dos culturalmente no século XIV em Portugal,
ou a vida religiosa. Com a caracterização dos mila- reafirmam características consideradas inerentes
gres constatamos que a virgindade é a característica ao comportamento feminino: a sobreposição do
mais recorrente nos 22 (vinte e dois) milagres, sendo instinto a razão, o descontrole sexual, a tendência
mencionada em 15 (quinze) milagres, demonstran- a luxuria, fraqueza de espírito, fracas fisicamente,
do que as mulheres medievais que optavam pela frágeis moralmente entre outros, apontam para
vida religiosa eram valorizadas por serem puras e as contradições do discurso, pois por mais que
castas se tornando assim esposas de Cristo. as mulheres conseguissem algum tipo de reco-
nhecimento social, seja ele por seu celibato, elas
O clausto as mulheres religiosas permitiam
continuavam sendo representadas com imagens
uma “livre” tutela direta de um pai ou esposo, e
negativas, e suas ditas fraquezas legitimavam a
até mesmo reconhecimento social pela prática
educação como uma das formas de controle da
de vida pautada na castidade, pois nas biografias
mulher, especialmente as mulheres religiosas, que
das santas muitas vezes o casamento é colocado
tinham como modelo ideal Maria.
como um fardo do qual elas se livraram através da
castidade. Maria apesar de ser um modelo impos- As mulheres representavam muitas vezes
sível de imitação, se constitui como um ideal a ser um perigo, pois sua sexualidade e corpo traziam
alcançado pelas mulheres, pois o enaltecimento perigo aos homens, já que eram vistas como cul-
de Maria na hagiografia é principalmente através padas pela queda de Adão. Na Baixa Idade Média
da sua virgindade, a sua virgindade permanente há uma preocupação recorrente com as vozes
é evidenciada por todo o texto. Percebemos que o femininas, que, como já mencionamos, começam
modelo mariano para as mulheres religiosas está a ganhar espaço principalmente através das he-
pautado principalmente na castidade que as mulhe- resias. Assim muitos textos clericais condenam
res deveriam manter, o discurso está presente nos a tagarelice, característica tipicamente feminina,
15 milagres analisados. E mesmo sendo um modelo que precisava ser contida.
impossível de ser alcançado em sua totalidade,
Percebemos na fonte primária é que Maria é
Maria é caracterizada pela sua espiritualidade que
um ideal inatingível, mas um modelo necessário
permitiu a humanização da relação com o divino.
para controlar e legitimar os locais próprios dos
Mesmo tendo o reconhecimento social através homens e das mulheres. Ressaltamos que a va-
da castidade, as mulheres tinham seus espaços e lorização mariana não significou uma mudança
suas atividades determinados pela Igreja, a pregação sobre aquilo que se pensava sobre as mulheres.
feminina discutida entre os mendicantes, era proibida Maria é um fenômeno contraditório, represen-
nos manuais dos pregadores, restava as mulheres tante de um ideal instucionalizador da Igreja
na maioria das vezes exercer atividades dentro dos Católica, que permitiu às mulheres religiosas
mosteiros. De maneira geral a proibição das mulhe- outra possibilidade de experiência social, além
res de pregarem era pautada em quatro argumentos: do casamento e da maternidade, mas ao mesmo
a) falta razão as mulheres; b) as mulheres ficariam tempo ela perpetua o local e as relações de poder
constrangidas pela sua condição de sujeição; c)a pre- desiguais entre o gênero, pois a tutela feminina
gação feminina poderia ocasiona desejos mundanos/ passa do pai ou do esposo, para a Igreja.
129
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130
mÉTis E ATHENá:
Uma leitura de Teogonia de Hesíodo

Camila Alves Jourdan1


Alexandre Carneiro Lima2

N
este artigo buscamos nos inserir em uma No que concerne ao helenista Jean-Pierre
abordagem cultural acerca da sociedade Vernant, seus trabalhos apresentam-se em uma
ateniense. Visto que, seguindo uma organização de uma “estrutura dos mitos” como
historiografia da escola francesa, analisaremos um sistema de classificação que, de certa manei-
uma obra de caráter divino/mítico para elucidar o ra, é um meio de apreensão da realidade através
valor da noção métis, ou seja, através da narrativa de expressão simbólica, ou seja, através de uma
mítica poderemos vislumbrar a concretude da linguagem que é conatural da religião há o “des-
“realidade” da sociedade ateniense. Desta forma vendar” particular de uma concretude real dos
apresentaremos, resumidamente, a linha teórica fenômenos. Entretanto, o homem não possuiria,
que utilizamos neste presente. segundo Vernant, a consciência de ter inventado
essa linguagem que representa o mito; teria a
Foi durante a década de 1960 que a escola
própria compreensão que o mundo falaria desta
francesa despontou como ícone para uma his-
forma/língua. Sendo assim, “O universo lhe pa-
toriografia de amplitude mundial, referindo-se
rece como a expressão de potências sagradas que,
“acima de tudo, a J-P. Vernant, P. Vidal Naquet e
revestidas de formas diversas, constituem a trama
M. Detienne” (DOWDEN, 1994, p. 55). Através
verdadeira do real” (VERNANT, 1999, p.91).
do Centre de Reacherches Comparées sur lês
Sociétés Anciennes, as pesquisas desenvolvidas Tomando os documentos textuais que estão
visavam uma abordagem do mito através da mul- disponíveis à contemporaneidade e que podem
tidisciplinaridade com outras disciplinas, como nos esclarecer sobre o modo de vida dos gregos da
a Arqueologia, Sociologia, mas principalmente a antiguidade, compete-nos compreender que esta
Antropologia, tratando-o “como a expressão da literatura grega, como explicita Claude Mossé, “é
maneira como a sociedade grega pensava sobre uma das mais ricas e variadas que existem.” (MOS-
si mesma, mas também dos diversos aspectos do SÉ, 2004, p.191). Empregaremos para a construção
imaginário desta sociedade” (MOSSÉ, 2004, p. desta análise o texto de Hesíodo, “Teogonia”, que
170). Tais pesquisas estavam sendo apoiadas na se centra no relato acerca das origens dos deuses.
semântica dos documentos textuais e imagéticos, Apontando a genealogia, as tramas e artifícios
interligando-se às perspectivas antropológicas. feitos, até a afirmação de um panteão divino. Inci-
Se há algo que tais “pesquisadores [da escola diremos nossa análise a partir dos acontecimentos
francesa] têm em comum, afora serem france- poéticos, demonstrando a atuação da noção métis
ses, talvez seja uma grande sensibilidade pelas na constituição dos atos dos deuses. Sendo esta
questões, ambientes e tensões expressos no mito noção assumida pela divindade Palas Athená, e
e pela capacidade de construir gradualmente uma evidenciada nos rituais Panatenáicos.
representação” (DOWDEN, 1994, p. 56). Segundo Jean-Pierre Vernant, o indivíduo
1 Graduada em História na Universidade Federal Fluminense. Mestranda era, desde o berço, apresentado ao mundo dos
do PPGH/UFF/Nereida.
2 Doutor em História. Docente do PPGH da UFF/Nereida. deuses através de fábulas e contos, segundo uma
131
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

tradição oral. Entretanto, era através dos poemas e nar- intelectuais” (DETIENNE; VERNANT. 2008 p. 11).
rativas que o divino, suas estranhezas e distância lhe
A combinação do “faro, a sagacidade, a previsão,
eram familiarizados de modo “acessível à inteligên-
a sutileza de espírito, o fingimento, o desembaraço,
cia”. Eram nos banquetes, nos concursos, jogos ou em
a atenção vigilante, o senso de oportunidade” (DE-
festas oficiais que ocorria a transmissão de valores, no TIENNE; VERNANT. 2008, p. 11) são componentes
que tange ao caráter divino, a partir do canto dos poetas onde se pode vislumbrar a métis. A ação do indivíduo
(aedos), com o auxílio de recurso instrumental. Neste possuidor da métis é a do tempo de um relâmpago,
sentido, “A atividade literária, que prolonga e modifica, sempre pronto a agir. Entretanto, não é um impulso
pelo recurso à escrita, uma tradição antiqüíssima de qualquer, é um planejamento rápido e, ao mesmo
poesia oral, ocupa um lugar central na vida social e tempo, complexo e profundo, até mesmo paciente para
espiritual da Grécia” (VERNANT, 2006, pp.15-16). a espera da hora certa de ação. Desta forma, a métis
Esta literatura se constituiu como uma verdadeira é rápida para a prática do imediato e um pensamento
instituição que serviu como meio de conservar e co- denso para um pedaço espesso do futuro. Como mos-
municar o saber, construindo uma “memória social”, trou Ana Lívia Bomfim, “ Um homem possuidor da
e que possui um papel proeminente para este fim. métis tem uma sabedoria que é variada e que lhe per-
É necessário ressaltar que Hesíodo, bem como mite um grande leque de recursos, de desembaraços
Homero, exerceu uma função privilegiada. Suas para as situações críticas ou para o melhor exercício
narrativas, a propósito dos seres divinos, assumiram de um ofício” (Bonfim, 2008).
um valor quase canônico, servindo como modelos O que propomos é perceber essa métis no texto de
referenciais para os autores que lhe sucederam, como Hesíodo, “Teogonia”, nos atos que foram concretizados
também, para o público ouvinte e leitores. Cabe-nos pelos deuses, a partir disto, ressaltamos trechos onde
notar os valores que “inundam” esses excertos, como tal métis pode ser vislumbrada.
meio para compreender a estrutura mental que se
[Gaîa] “Disse com ousadia, ofendida no coração:
fazia presente na sociedade políade Ática nos período ‘ Filhos meus e do pai estólido [Céu], se quiserdes
arcaico e clássico. Como destacou Vernant, “a ativida- ter-me fé, puniremos o maligno ultraje de vosso
de poética continuou a exercer esse papel de espelho pai, pois ele tramou antes obras indignas”
(vv. 163-166).
que devolvia ao grupo humano sua própria imagem,
Neste sentido tem-se o ardil de Gaîa para arti-
permitindo-lhe apreender-se em sua dependência em
cular/tramar a queda de Céu, inflamando seus filhos,
relação ao sagrado” (VERNANT, 2006, pp.16-17).
entretanto o único a responder a este chamado é
Como diz Mossé, a poesia Hesiódica, tanto deus-titã Crono.
“Teogonia”, quanto “Os trabalhos e os dias”, se carac- “Ousado o grande Crono de curvo pensar
terizava como parte da poesia épica, presente entre os devolveu logo as palavras à mãe cuidadosa:
séculos VIII e VII a.C. Em que seus temas eram vários, ‘Mãe, isto eu prometo e cumprirei a obra, porque
nefando não me importa o nosso pai, pois
e esta poesia eram cantadas com acompanhamento de ele tramou antes obras indignas” (vv. 168- 172).
música, como já citado.
O vocábulo métis, em seu caráter semântico, Com isto, Crono se abrasou contra o Céu e, jun-
manteve uma coerência e estabilidade ao longo do tamente com Gaîa, tramou uma ação: “e inculcou-lhe
período helênico, indica um modo singular de inte- todo o ardil” (v.175). A ação no qual “destituiu” Céu
ligência, uma prudência avisada. O seu campo de de sua supremacia divina ocorreu da seguinte forma,
atuação é amplo e relevante para os sistemas de valores segundo Hesíodo:
dos atenienses. Porém, não se manifesta claramente Veio com a noite o grande Céu, ao redor da Terra
pelo que é. Ela se apresenta nas “fendas” do cotidiano, [Gaîa] desejando amor sobrepairou e estendeu-se
a tudo. Da tocaia o filho alcançou com a mão
não se explicitando abertamente. A métis é um con-
esquerda, com a destra pegou a prodigiosa foice
junto complexo, em que se articula, com expôs Marcel longa e dentada. E do pai o penis ceifou com ím-
Detienne e Vernant, “um jogo de práticas sociais e peto e laçou-o a esmo para trás (vv.176- 182).
132
Camila Alves Jourdan / Alexandre Carneiro Lima

Além de completar com sucesso a ação contra o


Este ato está repleto da noção métis. Nesta ação, deus-titã ao destroná-lo e assumir a soberania sobre
deuses e homens. Na luta rápida de Zeus pôs em seu
o ardil, tanto de Gaîa quanto de Crono, se faz presente;
favor os irmãos, que outrora haviam sido engolidos
não somente pela citação semântica que se encontra por Crono, e os tios paternos, que lhe presentearam.
no verso, mas por toda a estrutura do embate divinal. No que se segue nos versos que estão entre a batalha
Tem-se a conjugação da prática com a inteligência, a e o começo do reinado de Zeus é a noção métis, que
passa da ação prática – o combate em si – à inteligência
ação rápida com o pensar ardiloso e profundo. Além
astuta – a conquista de aliados.
da citação em que mostra Crono como possuidor da
Um dos grandes embates, em que a métis está no
métis, a saber: “curvo pensar”. Neste sentido, podemos concerne do desenvolvimento do ato, é a questão de
destacar outra articulação em que nota-se a métis. Prometeu e o fogo sagrado. Tal trajeto nos versos é tão
longo que nos basta traçar a história e apontar alguns
E engolia-os o grande Crono tão logo cada um
fragmentos textuais. Zeus, primeiramente mantém
do ventre da mãe descia aos joelhos, traman-
aprisionado Prometeu, este, quando escapa, ardilosa-
do-o para que outro dos magníficos Uranidas
mente faz uma oferenda a Zeus, no qual esconde, nas
não tivesse entre os imortais a honra de rei [...]
entranhas da oblação, males ao deus-olímpico. Irado
Mas quando a Zeus pai dos deuses e dos homens ela
com a grave ofensa, Zeus nega o fogo à humanidade.
deveria parir, suplicou-lhe então aos pais queri-
Prometeu rouba este fogo, concedendo-o aos homens,
dos, aos seus, à Terra e ao Céu constelado, compo-
enraivecendo Zeus. Este, como meio de “punição
rem um ardil para que oculta parisse o filho,
benéfica”, cria Atena e apresenta suas características
e fosse punido pelas Erínias do pai e filhos en-
“negativas” de ser mulher, mostrando a parte “mal”
golidos o g rande Crono de cu r vo pen-
das mulheres na sociedade. Com isto, a métis de Zeus
sar. Eles escutaram e atenderam à filha querida”
se faz superior a de Prometeu. Neste embate de métis
(vv. 459-462 e vv. 468-474).
contra métis, Zeus é o vitorioso. Destacamos os se-
guintes versos que representam este confronto, onde
Na prática da ação, Crono engole os filhos, usan- a métis é fundamental.
do-se da astúcia para não ser destronado. Desta forma,
[Prometeu fala] “Filho de Jápeto, insigne dentre
a métis se apresenta na peleja do deus-titã de manter todos os reis, ó doce, dividiste as partes zeloso de
um só!’. Assim falou a zombar Zeus de imperecíveis
sua soberania aos outros imortais e mortais. No mesmo
desígnios. [...] ‘Zeus, o de maior glória e poder dos
sentido, Réia usa do seu ardil para convencer aos pais Deuses perenes, toma qual dos dois nas estranhas te
exorta o ânimo’. Falou por astúcia. Zeus de imperecíveis
de auxiliá-la em um ato que poderá findar o reinado designos soube, não ignorou a astúcia” (vv. 543-545;
de Crono. Após o nascimento e o fortalecimento de vv. 548-551).
Zeus, Terra (Gaîa) incita este contra Crono, para que Prometeu busca agradar Zeus através de pala-
vras e oferenda, entretanto, Zeus percebe as suas
aja e destrone-o. Assim, vê-se em Teogonia a seguinte
más intenções.
passagem:
“Porém o enganou o bravo filho de Jápeto: fur-
[...] “E com o girar do ano, enganado por repeti- tou o brilho longevisível do infatigável fogo [...]
Não se pode furtar nem superar o espírito de
das instigações da Terra, soltou a prole o grande Zeus pois nem o filho de Jápeto o benéfico
Crono de curvo pensar, vencido pelas artes e vio- Prometeu escapou-l he à pesada cólera.”
lência do filho. [...] E livrou das perdidas prisões (vv.565-566; vv. 613-616).
os tios paternos Trovão, Relâmpago e Arges [...] A construção desta ação, como intitulamos
deram-l he o t rovão e o raio f lamante” “métis contra métis”, é o ardil de cada deus con-
(vv.493 - 496; vv.501-501a; v. 504). tra o ardil do outro. A tentativa de se sobrepor,
133
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

através da inteligência e da prática, ao outro. Em como apresenta Walter Burkert, a deusa Métis é
uma nova citação : mãe da divindade Athena. Nesta versão, Métis
Mas quando àqueles ofereceu todo o sustento, seria a primeira esposa de Zeus; este foi avisado
néctar e ambrosia que só os deuses comem por Gaîa e Céu, de que um filho seu poderia des-
no peito de todos cresceu o ânimo viril. troná-lo. Receoso com o que poderia acontecer-lhe,
Após sorverem o néctar e a amável ambrosia
disse-lhes o pai dos homens e dos Deuses: tratou de engolir Métis, evitando assim o nasci-
‘Ouvi-me, filhos magníficos da Terra e do mento deste filho. No entanto, sentindo fortes dores
Céu” [...] (vv. 639-644). na cabeça, Zeus ordenou que Hefestos a abrisse.
Quando este lhe desferiu um golpe de machado,
E Zeus segue a incitar os deuses olímpicos
nasceu completamente adulta e armada a deusa
contra os deuses-titãs. Ardilosamente, o deus dos
Athena, apropriando-se da métis “maternal”. Se-
deuses alimenta seus irmãos deuses com algo
gundo outra versão, Atena teria sido gerada por
maravilhoso, fazendo com que estes se sentissem
Zeus, sozinho, sem qualquer intervenção maternal,
com as forças e a vontade renovados, estando
e dele próprio absorvido a métis.
prontos a lutar. Ao fazer isto, Zeus inicia um
discurso no qual convoca os deuses olímpicos Palas Athená possui diversas potências onde
a guerrear e findar com os deuses-titãs. A métis atua a métis. Tais como a deusa que usa o frio e
se constitui porque Zeus usa de um estratagema domestica o cavalo (Atena hippía), a deusa que
para inflamar os outros deuses a seu favor e isto orienta o navegador no mas (Atena aíthya), a deu-
resultará na longa luta entre estes e os deuses sa que auxilia o condutor de carros nos jogos de
titânicos. competição (Atena keleútheia), ou ainda por sua
características mais explcíta, a deusa da guerra de
Em outra passagem, diretamente vinculada
estratégia, da guerra como último fim de resolução
ao nascimento da divindade Athená, a métis se
de disputas, uma guerra”justa” (Atena khalíoikos).
arquiteta na atuação de Zeus.
Em todas essas “Atenas” a métis se faz evidente.
Zeus rei dos deuses primeiro desposou Astú-
cia [Métis] mais sábia que os deuses e os ho A métis em Atena hippía se delineia a partir
mens mortais. Mas quando ia parir a Deusa de do conflito entre Atena e Posídon. Este deus cria
olhos glaucos Atena, ele enganou suas entranhas
com ardil, com palavras sedutoras, e engoliu-a ventre o cavalo, porém é a deusa que, através da criação
abaixo [...] Mas Zeus engoliu-a antes ventre do freio (objeto que prende o animal à carroça),
abaixo para que a Deusa lhe indicasse o bem e o mal” domestica o animal, tornando-o útil aos homens.
(vv. 886-890; vv.899-900).
Neste caso, a inteligência de Atenas se sobrepõe
à força de Posídon. Outra característica desta
O ato de Zeus por si só é o uso da métis. A
Atena é sobre o condutor, que necessita da métis
posteriori irei melhor me referir a este fato.É
como uma reação imediata, atenção a todas as
válido ressaltar que na obra hesiódica apresentada
circunstâncias que possam se desenvolver, um
há outros versos em que a noção métis é explíci-
bom reflexo, no qual utiliza o veículo da melhor
ta, entretanto, não convém a esta comunicação
forma, segundo seus interesses.
apresentá-lo, pois seria demasiadamente longo.
Nas diversas problemáticas que se constroem
A métis pode ser compreendida como um
para um navegador no mar, a divindade Atena
tipo de artifício, uma astúcia com prudência.
aíthya atua em sua orientação, seja como um
Como mencionou Bonfim, tal inteligência é ne-
animal que orienta o navegador, a gralha mari-
cessária, “justamente quando a força física não
nha, ou por intervenção direta, como ocorre na
pode ou não deve ser empregada para o sucesso
viagem de Telêmaco na Odisséia. Em ambos os
de uma atividade”. (VIEIRA, 2008).
casos, a métis do navegador se faz necessário para
Esta noção de métis encontra-se intrinseca- se aperceber das inúmeras situações que lhe são
mente ligada ao mito de Palas Atena. Dado que, configuradas.
134
Camila Alves Jourdan / Alexandre Carneiro Lima

Para os condutores de carros de uma compe- não ocorria o funcionamento da Ekklésia ou da


tição, Atena keleútheia põe sua métis na figura do Boulé, o que nos denota a relevância e o caráter
condutor, constituindo-se na habilidade deste de cívico do festival, não era puramente religioso.
controlar o cavalo e intuir estratégias para a vitória.
As mulheres possuíam proeminência na orga-
No que tange a relação entre Atena e Ares nização dos festivais. Entretanto, este festival não
(deus da guerra de carnificina, uma de suas fa- estava restrito ao feminino, ao contrário, como bem
cetas), a métis na guerra se arquiteta de maneiras explicita Fábio Lessa, nas panatenéias ocorria a
distintas. Configurada como Atena khalíoikos, integração de toda a pólis, de atenienses e não-ate-
sua métis incide na habilidade do guerreiro de nienses, homens e mulheres, uma representação da
utilizar as armas, da rapidez e da tática adota- celebração da unidade territorial cívica ateniense.
das, enquanto que Ares se expõe na violência da Nos festivais panatenáicos eram realizadas diversas
luta. A divindade nesta configuração também se atividades, como jogos, disputas de cantos. Todavia,
entrelaça com Hefestos, este fabrica as armas de o ponto aqui ressaltado é a pompé. Nesta procissão,
guerra e Athena as usa com agilidade (DÈTIEN- as Kanephóroi percorriam o Caminho Panatenáico,
NE; VERNANT, 2008, pp.159- 228). levando um péplos à Athena e vasos, nos quais havia
oferendas. Tal caminho sagrado percorria a ásty,
Na divindade Athená, a métis revela-se de
partindo do Dipylon até o Partenón, que se encon-
maneiras inúmeras, segundo a potência na qual a
trava na Acrópole da cidade. Nestes vasos votivos
deusa é apresentada. Entre muitas facetas, como
são representadas diversas cenas imagéticas acerca
acima apresentado, a deusa Palas Atena recebe
da divindade cultuada, apresentando seu mito e suas
culto. Na pólis dos Atenienses há um grande
atribuições, como a métis.
festival de culto em sua homenagem, as Panate-
néias. Estes cultos tiveram início cerca do VIIº Em suma, no transcorrer do mito de Athená,
século a.C, tornando-se mais popular no século esta divindade adquire para si a métis. Sendo esta
VIº a.C. Estas ocorriam no primeiro mês Ático, noção plausível de notoriedade na Teogonia de
o Hecatombaion, e duravam três dias, a começar Hesíodo. Além da representatividade da métis
do vigésimo oitavo dia do mês. Nestas ocasiões para os Atenienses.

135
REFERÊNCIAS MOSÉ, Claude. Dicionário da Civilização Grega. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.
BURKERT, Walter. Os deuses configurados. IN: Religião Grega na
Época Clássica e Arcaica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, PARKE, H. W. Festivals in the Calendar – Hecatombaion. IN: Festivals
1993. of the Athenians: Aspects of Greek and Roman life. New York: Cornell
.Ritual e Santuário. IN: Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. University press, 1994.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. HESÍODO. Teogonia: A origem dos deuses [TRAD.] TORRANO, Jaa.
DETIENNE, Marcel; VERNANT, Jean-Pierre. Métis: as astúcias da Teogonia: A origem dos deuses. 7 ed. São Paulo: Iluminuras, 2009.
inteligência. São Paulo: Odysseus, 2008. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. São Paulo:
DOWDEN, Ken. Os Usos da Mitologia Grega. [Trad.] MOREIRA, C.K. Martins Fontes, 2006.
Campinas: Papirus, 1994.
VIEIRA, Ana Lívia Bomfim. Entre a ‘métis’ da pesca e a honra da caça.
LESSA, Fábio de Souza. O feminino em Atenas. Rio de Janeiro: IN: PHOÎNIX – Laboratório de História Antiga / UFRJ. Ano XIV. Rio
Mauad, 2004. de Janeiro: Mauad, 2008.

136
rEsiDuALiDADEs Em TRÊS PRINCESAS
PERDERAM O ENCANTO NA BOCA DA NOITE

Cintya Kelly Barroso Oliveira1

O
maranhense Nagib Jorge Neto é um autor O termo foi criado por Paul Sébillot(1846-1918) no
que prima pelas narrativas encantatórias de seu Lütérature Orale De la Haute Bretagne, 1881,
e reúne o conto, a lenda, o mito, as adivinhações,
tom oral, provenientes de sua experiência
provérbios, parlendas, cantos, orações, frases-
como ouvinte de estórias de Trancoso e da Carochi- feitas tornadas tradicionais ou denunciando uma
nha do interior do Nordeste. É jornalista e escritor de estória, enfim, todas as manifestações culturais,
contos ensaios e novelas. Sua primeira publicação de fundo literário, transmitidas por processos
na ficção já apresentava a temática do popular oral não gráficos. (CASCUDO, 2000, pp. 438 - 439).
com o Presidente de Esporas em 1972. A narrativa
em ritmo de cordel As três princesas perderam Partindo da oralidade, primeira vertente
o encanto na boca da noite de 1976, título desse de aparição de um dado cultural novo e depois
trabalho, é seu segundo livro e reúne 14 contos de documentado através da literatura escrita, atri-
caráter maravilhoso e erotizante, que propõem a buímos ser por meio desta o documento dos usos,
denúncia de tabus ainda vigentes relacionados ao costumes e a moral de uma época próxima ou
imaginário acerca do feminino. Em 1972 publica distanciada. Dessa forma, o quadro etnográfico
o cordeiro zomba do lobo e em 2002 A fantasia que compõe a literatura oral, faz dela um processo
da redenção pelas edições Bagaço. de representação infinitamente fecundo, já que
O enredo de Três princesas perderam o sempre nos foi delicioso amenizar a narrativa e
encanto na boca da noite versa a respeito do herói deixar fluir a fala a fim de criar imaginativamente.
Hermes, sugerindo uma associação à narrativa de Durante a Idade Média a diferenciação entre
Cervantes, que em estado de delírio, à moda de o registro escrito e oral, para Jean Batany, se ma-
Quixote, busca em suas aventuras maravilhosas nifestava da seguinte forma: “As regularidades
uma princesa pura para casar. Ocorre que o per- que aparecem nas ocorrências da “fala” só podem
sonagem se depara com musas “desencantadas” efetivamente se tornar normas de uma “língua” se
que perderam o encanto na boca da noite. O conto se apoiarem em subplanos de uma identidade cul-
possui um ritmo próprio de literatura de cordel que tural mais ou menos precisa” (BATANY, 2002, p.
dá o modo avassalador e ininterrupto ao relato. 383). A categoria de expressividade oral ou escrita
A partir dessa caracterização colocamos em aparece associada ao conceito de cultura e de iden-
relevo a literatura como uma das formas de “repasse tidade, ambos remetendo ao social. Se a narrativa
cultural”, seja como escrita, ou como resgate oral. O oral é a essência da erudita, sendo primeiramente
fato é que o processo vivificador da cultura ocorre um aspecto de sabedoria que vem do imaginário
também pelo veio literário, reafirmando a expressão do Todo, então a oralidade é participante do qua-
da psicologia coletiva no quadro da oralidade de um dro etnográfico de uma comunidade, e constitui a
país. Referendando o conceito de literatura oral e expressão de uma mentalidade. O etnológico para
popular citamos o etnógrafo Câmara Cascudo: Câmara Cascudo é: “a cultura do popular tornada
1 Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará (UFC), sob
normativa pela tradição” (CASCUDO, 2000 p. 334)
orientação do Prof. Dr. Roberto Pontes. Email: ckletras@yahoo.com.br assim sendo, a literatura, que é uma das inúmeras
137
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

manifestações culturais, também cumpre o mesmo não é a ética da ação, da vida real e sim se ele obe-
papel. Partindo dessa premissa de “transmissão dece à ética do acontecimento. Em outras palavras, a
cultural” nada mais justo, associar a teoria da resi- atmosfera do maravilhoso dá ao conto um caráter de
dualidade para justificar esse processo. permissividade de valores que uma forma inspirada
em contar um episódio cotidiano jamais admitiria.
Como ponto de partida definiremos a referida
No conto maravilhoso, os acontecimentos ocorrem
teoria, desenvolvida pelo crítico Roberto Pontes,
como deveriam acontecer, sendo este transmitido
por suas palavras “em literatura e cultura nada é
oralmente ou escrito através dos séculos, sendo, por
original, tudo é residual”. Ora, se o residual para
assim proceder, produto residual de um comporta-
Pontes “é aquilo que resta, que remanesce de um
mento que estará sempre em repetição.
tempo em outro, podendo significar a presença de
atitudes mentais arraigadas no passado próximo Ocorre que tal repetição exemplificada pelo
ou distante” (MARTINS. 2000, p. 517). Então, as recontar com as próprias palavras dá ao conto um
manifestações literárias provenientes do campo et- caráter de mobilidade e fluidez, com a possibilida-
nográfico também são residuais, remanescentes e se de de ser entendido e renovado, que Jolles destaca
cristalizam ao longo dos tempos. Faz-se necessário como suas principais caracterizações: “o Conto
também a conceituação de cristalização, que consiste enfrenta abertamente o universo e o absorve, o
na apropriação do material gerado pelas camadas universo conserva, pelo contrário, apesar dessa
populares, ressurgindo, a partir daí, no nível culto, transformação, sua mobilidade, sua generalidade,
construindo um repertório com raízes na memória e – o que lhe dá a característica de ser novo de cada
coletiva nacional (PONTES.1991, pp. 149 – 150). vez – sua pluralidade (JOLLES. 1976. p.195). André
Jolles, demonstrando as peculiaridades do conto
O conto As três princesas perderam o diz: “é costume atribuir-se a uma produção literá-
encanto na boca da noite demonstra, por seu ria a qualidade de Conto sempre que ela concorda
caráter de oralidade, ser uma expressão de cultu- mais ou menos com o que se pode encontrar nos
ra, residual e popular. Apresenta também o tom contos de Grimm” (Idem. p. 182). Para os Grimm
maravilhoso de narrativa semelhante aos contos os contos são um exemplo de poesia popular, saída
de fadas dos irmãos Grimm. Vejamos como a do coração do Todo através de criação espontânea.
narrativa tem início: O poeta, por sua vez, desempenha o papel de es-
Houve um tempo só de trotar pala colina, de crever partindo do povo para levar ao povo o que
voltar os olhos para a várzea e a menina, mas escreve. Assumindo essa caracterização do conto
um dia o cavaleiro parou junto ao portão e de de fadas maravilhoso André Jolles entende-o como
repente sentiu aquele baticum no coração. Então
uma “Forma Simples” que permanece através dos
a casinha virou um castelo encantado, tornou
o cavaleiro mudo e amedrontado, e a menina tempos sendo recontada por vários narradores, sem
baixou a vista espantada e foi saindo também perder a forma. Se para Grimm e Jolles o conto tem
sem dizer nada (JORGE NETO. 1980, 14)2. de instigar o contar de novo, então esta forma adqui-
re um caráter que remanesce, pressuposto primeiro
O tempo no conto não pertence ao histórico, da teoria da residualidade, cuja tese original é o
fica a cargo do maravilhoso e remete ao “Era uma que fica de um tempo em outro assume um valor
vez”. Se a forma simples do conto maravilhoso é vigorante de resíduo de uma época antiga.
definida pela presença do fantástico, dessa forma os A estrutura de cordel no conto também refor-
personagens, o tempo e o espaço não podem estar ça os valores residuais do medievo. Analisando as
arraigados historicamente. O conto para André Jolles metamorfoses presentes nesse tipo de narrativa
obedece a uma “moral ingênua” que se diferencia do Elisabeth Dias Martins escreve:
“trágico real”. Nesse tipo de narrativa é importante
[...] A temática em apreço veio para o cordel
2 Todas as citações da obra em análise têm a referência: JORGE NETO,
Nagib. As três princesas perderam o encanto na boca da noite. São
nordestino e nos folhetos encontramos não só
Paulo: José Olímpio, 1980. A menção se dará apenas por página. recriações de lendas mitológicas, mas também
138
Cintya Kelly Barroso Oliveira

das nacionais e regionais, material possibilitado fantasia Hermes inventa o seu mundo. Em Cervantes
pela tradição oral que guardamos em nossa litera- processo análogo acontece:
tura sob a forma de sedimentos mentais, herança
dos jograis, trovadores, segréis, contadores e Já fraco da razão, ocorreu-lhe o mais estranho
cantadores medievais ibéricos a quem devemos pensamento que jamais nutrira outro louco
residualmente este legado que ajuda a compor a deste mundo: pareceu-lhe conveniente e ne-
nossa cultura (MARTINS. 2003, p. 304). cessário, tanto para acréscimo da sua honra
como para serviço da república, fazer-se ca-
valeiro andante, ir-se por todo o mundo com
A mentalidade do medieval é corrente nas
suas armas e cavalo, em busca de aventuras e
narrações em cordel, e seus autores remetem aos a exercitar-se em tudo o que havia lido sobre
antigos trovadores, sendo o processo de narrar os cavaleiros andantes, desfazendo todo gênero
por meio dele, originado da remanescência e do de agravos, enfrentando as oportunidades e
resíduo. Sobre a origem da forma escrita do cordel perigos, onde, vencedor, pudesse granjear fama
e nome eternos (CERVANTES. 1998, p. 35.)
citamos Câmara Cascudo:
Denominação dada em Portugal e difundida
Em proporções menores Hermes também sonha
no Brasil depois de 1960, referente aos folhetos
impressos, compostos pelo Nordeste e presente- e inventa uma realidade própria, para fugir do que, no
mente divulgados e correntes em todo o Brasil (...) mundo real, lhe causa sofrimento: “a falta de encanto”
A maioria desses folhetos emigrou para o Brasil, nas princesas. Por outro lado a figura de Hermes
ingressando no patrimônio oral (CASCUDO. remonta ao caráter mítico. Para os latinos, Hermes
2000, pp. 437 – 438).
é Mercúrio e carrega consigo a simbologia de deus
dotado de função de guia, com extrema mobilidade
Em relação às personagens do conto, sobre o
e o domínio do discurso e da interpretação. Antoine
protagonista Hermes, destacamos dois aspectos:
Faivre caracteriza a versão grega de Hermes: “ele
sua semelhança com D. Quixote e a simbologia
parece relacionar-se com o discurso (logos); as carac-
em torno do mito de Hermes. Para revalidar o
primeiro aspecto vejamos em As três princesas terísticas de intérprete (hermeneus), de mensageiro,
perderam o encanto na boca da noite alguns de desenvolto no furto, de enganador com palavras e
episódios de delírio de Hermes semelhante ao de hábil comerciante, todas essas atividades relacio-
personagem de Cervantes: nam-se com o poder do discurso” (FAIVRE. 2002,
p. 449). No conto de Nagib não aparecem todos os
O mundo era mal, feio e carrancudo, o homem na
terra tinha de enfrentar tudo, por isso Hermes ani- aspectos do mito. Por exemplo, a arte do furto e o
mou-se no seu reino e sentiu-se de novo um grande caráter enganador, pois a narrativa é de cordel e uma
cavaleiro. Aí não viu mais a terra inchando de recriação do mito, ou seja, um processo atualizador
traição, nem um mundo arrasado e sem princesa, de passado, que sob forma vigorante, assume um
pois fora do sonho, do encanto e da incerteza, uma
novo sentido. Os resíduos, de forma consciente ou
ruma delas habitava todo o chão (p. 18.).
inconsciente, são responsáveis pela atualização do
Numa outra passagem ao fim do conto o mito. Bernadete Bricout assume que:
desvelar da realidade imaginativa cessa: “Assim
O fato de os mitos, primeiramente os da Grécia
Hermes ficou vivendo e brigando, vez por outra ves- antiga – terem chegado até nós sob a forma de
tindo-se de encanto, cavalgando fantasia e verdade, e testos escritos, não ocultaria seu caráter oral e
apagando a poeira da realidade” (p. 30). Percebe-se até mesmo encantatório. Não basta conhecer
claramente que Hermes está em estado de delírio, os mitos para entendê-los bem á preciso saber
cria um reino imaginário e procura uma princesa recitá-los. Este termo recitação usado por Micea
Eliade não encobre uma repetição ociosa, mas a
pura para casar. O herói se depara com quatro damas
inscrição ritualizada na voz e no corpo de uma
ao longo do relato: Ana, Socorro, Margarida e Ma- narrativa retirada da memória coletiva, mas que
dalena, porém, sem conseguir o seu objetivo devido na hora da narração encontra-se regenerada
à perda “do encanto” das donzelas, corrompido de (BRICOUT. 2002, p. 192).
139
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

a castidade: quem já havia pecado podia em parte


Caracterizando o mito em seus aspectos compensar essa abstendo-se de sexo pelo restante
mais gerais temos nesse tipo de narrativa um da vida. Aos relatos hagiográficos de toda a Idade
Média, sobretudo de suas duas primeiras fases,
caráter retrospectivo, vinculado ao passado e não
abundam em exemplos de sentas que morreram
pertencente à história.Com base na tradição e na para defender sua virgindade e de santos e santas
memória coletiva, assevera Bricout: que ao se converter ao cristianismo abandonaram
O narrador não é prisioneiro fixado pela tradição a vida conjugal. No entanto, esse desprendimento
oral; ele apodera-se dele. Da mesma forma que o não podia ser adotado pela maioria das pessoas.
músico, embora fiel a uma partitura, pode chagar Era mesmo perigoso que gente sem o suficiente au-
com sua interpretação a um instante ímpar, o tocontrole tentasse levar uma vida de abstinência
narrador é uma caixa de ressonância atravessada sexual. São Paulo já definira a questão no século
por uma palavra anônima, vinda de algum lugar I: “É melhor casar do que abrasar” (1 Coríntios
longínquo, sepultada em nossa memória, já que 7,9). A vida sexual era possível para o cristão
aflora no instante da narração como uma palavra médio, desde que ocorresse nos quadros de uma
nova (BRICOUT, p. 192). relação definida e supervisionada pela Igreja, o
matrimônio (FRANCO JÚNIOR. 2006. P. 127).
Mesmo sem usar a denominação resíduo,
Bricout descreve sua dimâmica ao falar do pro- A prosa nagibiana procura denunciar a forma
cesso atualizador do mito, pautado na memória machista de tratar a mulher e seu corpo, ao mes-
coletiva recriado a partir de uma palavra nova. mo tempo, de forma consciente ou não, regatando
por meio do residual um aspecto da Idade Média.
As mulheres de Hermes na narrativa
O ritual do casamento também obedecia a normas
nagibiana compõem o quadro de mentalidade
rígidas como testemunha Hilário Franco:
medieval acerca da figura feminina e de seus
comportamentos. São elas Ana, a primeira mu- A cerimônia que selava o casamento dava-se no
lher que tenta mascarar “o desencanto” usando pórtico da igreja, com os noivos quase sempre
vestidos de vermelho, coroado de flores, a moça
uma pedra ume para “tapar o buraco fundo”.
com os cabelos soltos em sinal de virgindade
Durante a relação sexual Hermes toca a princesa ou com um véu ligeiro. Novamente se troca-
para constatar a existência da virgindade através vam juramentos – prática presente em todos os
do sangue, a fim de “sentir a alegria de todo ca- aspectos da vida social medieval -, seguia-se a
valeiro” e percebe que “ela não era princesa, não bênção do casal e a troca de anéis. Entrava-se
era donzela, não era mais nada”: depois na igreja para a para a bênção nupcial e
missa, a que os esposos assistiam cobertos por
A desgraçada sem sangue tudo confessou, contou um mesmo véu. Iam depois até o altar da Virgem,
chorando que um dia errou e pecou, mas pra não ao qual ofereciam uma vela e onde, em algumas
vagar sem fim como um vaga-lume, naquele dia regiões a noiva ficava por alguns instantes. Tudo
pôs no furo uma pedra-ume. Então como a pedra
era acompanhado por muitos padrinhos e ma-
o furo apertava, arrochando o caminho de passar
drinhas, testemunhos indispensáveis para uma
e gozar, ela tentou ver se a Hermes enganava, pois
época pouco ou nada acostumada ao registro
sua verdade temia contar (p. 17).
escrito e oficial de atos importantes da vida social
(FRANCO JÚNIOR. 2006. p. 130).
Vimos no excerto a visão preconceituosa
acerca do tabu da virgindade alegorizado por Em As Três princesas perderam o
Nagib Jorge Neto. Tal mentalidade deve ao encanto na boca da noite o ritual do casamento
imaginário decorrente do medievo. Ao falar das aparece em tom de humor quando casa com a se-
estruturas cotidianas do medieval Hilário Franco gunda princesa, Socorro, de mão gorda e corada:
Júnior esclarece:
Então quando chegou o grande dia, quando
A vida sexual ideal passou a ser inexistente. A gente dizia que ela tinha e não tinha, Hermes
virgindade tornou-se um grande valor, seguindo tombou cedo na sua alegria, pois não sabia rezar
os modelos de Cristo e de sua mãe. Vinha depois a salve-rainha. Aí o padre abriu o bico e a asa,
140
Cintya Kelly Barroso Oliveira

meu filho assim você não casa, tem de aprender caráter de perfeição da dama, elevando-a numa pers-
a rezar como cristão, pois vive cego e na escu- pectiva quase sagrada e mariana, sendo inacessível ao
ridão. O padre deu as costas todo pretão, andou amante, já que todas as damas apontadas na narrativa
para o altar calmo como estava, mas Hermes
não atingem esse perfil. “A mulher na sua essência
gritou que ou na missa se casava ou matava o
vigário e esfolava o sacristão. inclina-se para a invisibilidade da virgindade absolu-
ta, a primeira a ser condenada é aquela que rompe o
Os padrinhos ficaram com medo de um castigo,
levaram Hermes para um canto sossegado,
voto de virgindade” (KLAPISCH-ZUBER, p. 139).
calma, calma, que o padre era um santo, e um Os castigos praticados por Hermes às damas impuras
amigo, e não ia atrapalhar assim o seu noivado. vão do abandono do matrimônio contraído, no caso
Eles ajeitaram as coisas lá na sacristia, Era só da princesa Ana, até a devolução como ocorre com
Hermes rezar uma ave-maria, mas na hora o Margarida, a terceira princesa:
cavaleiro esqueceu um pedaço, e o padre – não,
não, casamento desse jeito eu não faço! (p. 20). Logo-logo ele levou Margarida pra cidade, lá o
médico disse que ela era diferente, tinha um tal
de hímen complacente, era virgem e até muito
O fragmento revela o quanto poderosa e dog- decente. Mas Hermes não esperou o velho voltar,
mática era a igreja. Apesar de lúdica, a narrativa partiu sem demora e sem ninguém notar, deixou
demonstra a rigidez dos rituais cristãos. Virginda- sua serra triste e acabado, era um príncipe morto
de e casamento eram normas com valor irrefutável, e sepultado. Um príncipe um cavaleiro, um bravo
“o sexo deveria apenas ser vaginal, visando à pro- guerreiro, com uma dama nunca é grosseiro,
nunca faz uma asneira daquela, nem se mancha
criação, a mulher colocada debaixo do homem e no com uma falsa donzela (p. 27).
escuro, para se evitar a visão da nudez” (FRANCO
JÚNIOR. 2006. p. 130). Na Idade Média, a mulher Abandonando Margarida, por vergonha ou por
submissa ao homem deveria estar pronta para ser- recusa, o cavaleiro parte em seu sonho quixotesco
vi-lo, e assumia uma hierarquia inferior, dando ao à procura de falsos encantos e chega a um “reino
homem uma posição superior. Sobre a polaridade verde e enfeitado de serras” para encontrar a última
masculino/feminino e a submissão da mulher ao princesa, Madalena, pobre, sozinha e sem guarida.
homem como modus vivendi do medieval assevera Esta era livre, sem ninguém e de todos os estranhos.
Christiane Klapisch-Zuber: Por ironia, ela tem a conotação que carrega desde a
Na Idade Média não se concebe a ordem sem Antigüidade o peso da impureza da prostituta, que
hierarquia. A construção do masculino/femini- ao ser apedrejada em público, é salva por Jesus. O
no respeita esta noção e se esforça em articular final da estória recria e atualiza esse mito feminino:
entre eles os dois princípios da polaridade e da
superposição hierarquizada, quer dizer, uma Assim em pequenos montes ou de magote, os
classificação binária e horizontal, fundamenta- homens ficaram rindo dos pobres casados, lem-
da na oposição, e uma interdependência vertical brando que a noiva só tinha um bom dote, o de
entre categorias desta difícil combinação resulta coisar com os sujeitos mais safados.
uma imagem negativa e inferior do feminino Então muitos mostraram madalena nua - era Ma-
(KLAPISCH-ZUBER, p. 139). dalena frouxa e apertada, era Madalena rebolando
e parada, era Madalena uma mulher da rua (p. 30).
Os defeitos do feminino no conto de Nagib estão
associados ao corpo e à pureza que dele se exige. O A Madalena do conto sofre as mesmas ofen-
padrão de virgindade como símbolo de honra, a fim sas da personagem bíblica. A desmoralização
de que a princesa seja digna do herói, representa o pública, prática comum do medievo, é ressaltada
resíduo medieval que ainda hoje, em determinados nos dois casos. A visão do pecado girava em torno
ambientes, é exigido. Se a perda da virgindade da da vida e da visão de mundo do homem medieval,
princesa tem o poder de violar o estado perfeito e a todas as relações sociais e rituais carregavam essa
ordem narrativa, também representa a conseqüência concepção. Carla Casagrande e Silvana Vecchio
do delírio de Hermes, a projetar sua obsessão no comentam o pecado na Idade Média:
141
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

O pecado está na origem de uma série de práti- Havia a rua, a gente, a gandaia. Havia a má
cas rituais, individuais e coletivas – o batismo, a língua, os ferinos, os invejosos. Havia os falsos,
confissão, o jejum, a punição corporal, a oração, os fuxiqueiros, os maldosos. Tudo havia no vale
a peregrinação – instituídas com o claro intuito enfeitado, tudo queria acabar o bem conquis-
de limitar o poder e a extensão dos pecados do tado, mas Madalena e Hermes pouco ligavam,
mundo. Além disso, o pecado domina toda a pois só com eles se incomodavam (p. 30).
rede de relações nas quais o homem medieval
se move e se representa: o Deus ao qual esse
Ao final, porém, os fantasmas de Hermes
homem se dirige é um deus que se lhe manifesta
para proibir, perdoar todos os pecados (CASA-
voltam a apavorá-lo e ele novamente sonha com
GRANDE &VECCHIO, 337 – 338). as princesas de “purezas perdidas” e com sua
Madalena possuída por todos:
O início dessa concepção parte da noção E agitado e suando Hermes acordava, caçava
de pecado original, no qual os mitos de Adão e o tudo e o nada em cada canto, escondia o
Eva sofrem o episódio da Queda. Decorre daí a choro que na alma rolava e a Madalena cobria
mentalidade do feminino que desvirtua o mascu- com seu manto. Assim Hermes ficou vivendo e
brigando, vez por outra vestindo-se de encanto,
lino, atribuindo-se a este último o primeiro erro,
cavalgando fantasia e verdade, e apagando a
desencadeador de conseqüências em relação ao poeira da realidade (p, 30).
afastamento do sagrado. A noção de pecado em
As três princesas perderam o encanto na boca A realidade, para Hermes, nunca deixa de ser
da noite, percorre todo o conto, associando o tabu sentenciosa. O herói sempre irá se punir, sua alma é
da virgindade à mulher que desobedece, sendo um constructo de comportamentos repetidos, estão
esta castigada pelo herói. em seu imaginário e ele não tem culpa de sentir.
A Madalena do conto foi sentenciada pela Antes de ser herói é um homem; seu modo de ver
sociedade. Porém, seu herói, provisoriamente o real na verdade não é próprio dele, provém de as-
acordado do sonho de Cervantes, não mais exigia pectos antepassados, colhidos ao longo das gerações
dela a perfeição da alma imaculada: e cristalizados sob a forma de disposição mental.

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142
muLHErEs Em CENA:
Uma análise sobre as mulheres da Grécia Clássica
a partir das peças de Aristófanes

Clara Manuella de Souza Guerra1

A
palavra teatro (theatron) é derivada do gre- As festas em homenagem à Dionísio apare-
go, está ligada a raiz thea (visão) e designa ceram no Período Arcaico, entre os séculos VIII
o lugar de onde se vê. Lugar destinado – VI, mas obtiveram seu auge na época Clássica.
as mais diversas encenações. Para os atenienses, ir Geralmente, eram seguidas em número de quatro
ao teatro significava ir a uma celebração religiosa, comemorações: as Dionisíacas Rurais (ou Dionísias
uma vez ao ano. Assistir as tragédias e comédias Rurais), as Lenéias, as Antestérias e as Grandes
era uma experiência que estava conectada com o Dionisíacas (ou Grandes Dionísias). Todas ocorrem
sagrado. O teatro passou a ter forças na Atenas de- num curto período de tempo do ano, que iria de
mocrática, onde era o espaço do tudo ver e do tudo Dezembro à Março, e tinham competições teatrais.
dizer. Era o local preferido para se discutir os temas Eram festas para comemorar o inverno e o início da
referentes à polis. Os últimos 70 anos do século V primavera, ou seja, festas do ciclo vegetal, da morte
a. C. eram o período de produção das peças, e este e do renascimento. A religião grega era muito ligada
estava estritamente ligado ao auge da democracia. com a vida no campo, principalmente com a fertilida-
O que acabou por gerar, uma instituição com grande de deste. Durante os séculos V – IV a.C. ocorreu um
inovação cultural, possibilitando assim, que esse grande processo de urbanização ateniense, devido a
período fosse um grande divulgador de idéias. Guerra do Peloponeso, mas em relatos de Tucídides é
A sociedade helênica era uma sociedade que se possível perceber que a grande maioria dos atenienses
revisitava, buscava sempre olhar pra si, e o teatro viva no campo. Nessas festas ocorriam procissões e
poderia ser uma dessas reflexões tão procuradas por representações dramáticas (CODEÇO, 2011. p. 115).
ela (CODEÇO, 2011. p. 113). As comédias eram voltadas para o contempo-
O teatro grego sempre teve um caráter dual, râneo da época, alguns as consideravam inferior em
pois aborda vida e morte, auge e declínio, guerra e relação às tragédias, por esse fato de tratar assuntos
paz. Essa dualidade está ligada com a religião, mais atuais, com personagens satirizados, que poderiam
precisamente com o deus do teatro grego, Dionísio. ser políticos, poetas, filósofos, etc. Elas possuíam
Filho de Zeus e Sêmele, uma mortal. Desde seu nas- uma conexão maior com a platéia, por falar desses
cimento ele está ligado à vida e a morte. Nas obras assuntos atuais, e fazer todos refletirem sobre, mes-
literárias, Dionísio ganha feições ora libertárias, ora mo de uma maneira engraçada. Em outras, o enredo
assustadoras. A sua aparição poderia trazer um alívio ficava centrado na batalha entre os sexos, como em
dos sofrimentos cotidianos, seu culto era aberto até Lisístrata e A Revolta das Mulheres. As tragédias
para aqueles de classes mais baixas. Entretanto, ele traziam temas elevados, as comédias não. Era assim
que muitos pensavam principalmente Aristóteles,
poderia provocar a loucura e a desagregação social,
dos 26 capítulos da Arte Poética, 17 são voltados
virando uma ameaça (LACERDA, 2003, p. 3).
para o estudo da tragédia (CODEÇO, 2011. p. 117).
1 Graduada em História (Bacharelado) pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN), Campus Caicó. Email: claramanuella@hotmail.com Para ele, a tragédia era a imitação de uma ação de
143
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

caráter elevado, completa e de certa extensão, em (chefe do coro). Aristófanes fez várias inovações
uma linguagem ornamentada, não pela sua narra- significantes para o teatro, como a inovação da
tiva, mas pelos seus atores que provocando o terror estrutura do texto. Geralmente, as peças eram
e a piedade, trazem a purificação dessas emoções escritas e representadas em forma de poesia.
(MACHADO, 2011, p. 125) Entretanto ele se baseava no imabo, verso cuja
métrica tinha sido estabelecida pelo poeta Arquí-
O teatrólogo Aristófanes nasceu em Atena,
loco, no século VII a.C. Ele deu preferência a esse
aproximadamente 455 a.C., faleceu em 375 a.C.,
tipo de verso pelo fato de ter um caráter satírico,
na mesma cidade (ARISTÓFANES, 2002, p. 9).
ligado á troça, à piada contra uma pessoa, e fez
Na época que ele escrevia e apresentava suas
o uso disso na maioria das suas obras. Embora
peças o teatro já se encontrava bem estruturado,
que o teatrólogo focasse mais no tom sarcástico,
quando se trata do local das encenações e do es-
não se prendia muito ao seu formato.
paço físico. Pois algum tempo atrás, antes dele,
os tablados eram improvisados em carroças, e Aristófanes sempre procurou colocar em suas
na época de Aristófanes, já se presenciava os peças uma análise crítica sobre a sociedade da
tablados de madeira, ao ar livre. A platéia tinha o Atenas Clássica, a que ele vivia. Nesse período,
seu lugar na arquibancada. Só depois que o teatro ocorreram muitas transformações que desenvolve-
passaria a ser construído nas pedras e teriam uma ram a cidade de Atenas em várias direções, seja o
acústica admirável. Sabe-se que das 44 comédias econômico, o político, o intelectual, e o militar. Es-
que ele escreveu apenas 11 chegaram ao nosso sas modificações serviram como inspiração para
tempo (OLIVEIRA, 1991, p. 4). as suas peças, que geralmente seguiam a comédia.
Dentre essas, ele escreveu três peças femini- A primeira peça tem a personagem feminina,
nas (KATZ, 2009, p. 181), onde as principais per- chamada Lisístrata, que não concorda com a ida
sonagens eram mulheres, e elas que direcionavam dos homens para a guerra, sendo que eles tinham
toda a história a ser apresentada. A primeira foi acabado de chegar de uma outra longa guerra. Uma
Lisístrata, peça que fala de uma greve de sexo que maneira que ela encontra de fazer com que eles
as mulheres realizaram, em prol do fim da Guerra desistam da batalha é a da greve de sexo por parte
do Peloponeso. Ela foi representada nas Lenéias, das mulheres. Ela convoca todas as mulheres, e pede
com o nome de Calístrato: as mulheres fazem para não oferecerem nenhum tipo de carinho para
greve ao amor pela causa da paz, no ano de 411 seus maridos, muito menos sexo, com o intuito de
a.C. (OLIVEIRA, 191, p. 3). A segunda, As Mulhe- que, sem o afago delas, os homens cederiam às suas
res na Tesmofórias, narra as mulheres fazendo o vontades. A guerra abordada é a Guerra do Pelopo-
festival das Tesmofórias e encontrando um intruso neso, que já vinha durando vinte anos e teve muitas
curioso para descobrir o que se passa durante os baixas gregas. As mulheres das peças Lisístrata
três dias de festa, ela foi apresentada no mesmo e A Revolta das Mulheres são de Atena, Esparta,
ano de Lisítrata, mas nas Grandes Dionisías. A Beócia e Corinto. O teatrólogo escolheu justamente
última das três é A Revolução das Mulheres, com a aquelas que foram mais atingidas durante a guerra,
história das mulheres que controlam a Assembléia, possivelmente, com o intuito de mostrar o desespero
ela teve sua apresentação no ano de 392 a.C. delas, que estavam carentes pelos seus maridos e
receosas pelo futuro dos filhos.
Suas peças eram bastante populares pelo fato
dele procurar sempre colocar elementos que es- Essa guerra é um dos acontecimentos
tão presentes nas Festas Dionisíacas (CODEÇO, históricos mais documentando da antiguidade.
2011, p. 115). Dos elementos dessas festas, ele Tucídides narrou-a em suas obras, fazendo a
mantinha presente; o coro, as palavras populares versão mais oficial dos fatos. Aristófanes tratou
(palavrões e gírias) e piadas dirigidas especial- -a em suas peças, mostrando, através do teatro,
mente para os espectadores, através do corifeu as reações da opinião pública, revivendo com a
144
Clara Manuella de Souza Guerra

platéia ateniense o que estava acontecendo na- barreiras maiores para consegui-los. Se fossem
quele tempo decisivo. Além deles, outras fontes acusadas de alguma coisa, elas precisariam de
também contam mais detalhes dela. um homem para defendê-las (marido, pai, tio,
etc.). Apenas nos três dias de Tesmofórias (fes-
Na segunda peça trabalhada, A Revolução das
tival feminino celebrado por toda a Grécia), é
Mulheres, mostra Valentina, como líder do grupo
que a mulher cidadã assumia a assembléia, elas
feminino, que também exige algo. Nesse caso, ela
acampavam em Pnix, local utilizado para a rea-
deseja que as mulheres tenham o poder de liderar
lização das assembléias. E dentre elas, escolhiam
a Assembléia e assim, tornar algumas leis mais
suas representantes para o festival, realizando
justas, depois das modificações que elas fariam
procedimentos, que normalmente, eram restritos
nelas. Através desta última, Aristófanes toma a
à esfera política (KATZ, 2009, p. 176).
liberdade para criticar as reuniões das assembléias
do seu tempo, colocando leis muito supérfluas que As mulheres que não eram cidadãs desempe-
só visam o bem estar deles, como férias para quem nhavam funções na antiga pólis, principalmente
trabalha na assembléia com mais de 300 dias. E no meio religioso e econômico. Vale ressaltar que
as mulheres acham tamanhas decisões absurdas, a imagem da mulher grega, no espaço privado, e
através do pensamento desse grupo feminino, Aris- do homem grego, ocupando o espaço público, era
tófanes deixa escapar um pouco da sua inquietação apenas um ideal. O qual estava presente em gran-
com o resultado das Assembléias da sua realidade e de parte da arte e da literatura grega. Sobre esse
passa isso para as personagens femininas da peça. assunto não temos testemunhos diretos que foram
escritos pelas mulheres. Temos apenas homens,
Assim, a líder das mulheres elabora um plano daquele tempo, falando sobre como as mulheres
para que todas as esposas daqueles que trabalhas- deveriam ser, o modelo que se esperava ser seguido.
sem na assembléia dessem algo para que dopas- De acordo com o ideal grego, e bem difundido nas
sem os seus maridos e na assembléia iriam elas, antigas fontes sobre História Antiga, as mulheres
mas com as vestimentas deles e disfarçadas com atenienses deveriam passar boa parte da vida no
barbas. Na assembléia comandada pelas mulheres espaço privado, dentro do lar, cuidando dos afaze-
o poder de resolver tudo é passado para elas, os rem da casa, supervisionando os escravos do lar,
homens relutam um pouco, mas, depois de umas guardar as provisões da casa, controlar os gastos e
justificativas satisfatórias para eles, os homens zelar pelos pertences do lar. Mas, essa realidade só
concordam com isso. Tem-se o conhecimento de acontecia com a minoria das mulheres, seja para as
que apenas os homens constituíam a assembléia cidadãs ou metecas (KATZ, 2009, p. 164).
de cidadãos e tomavam as decisões que afetavam
Sobre a mulher que se voltava para o espaço
toda a comunidade, eram eles que juravam nos
privado da casa, temos Xenofonte (431 a.C. –
tribunais decidiam o destino da polis. Não é de
355 a.C) afirmando o quanto era funcional essa
se espantar quando caracterizam essa polis como
divisão de tarefas dos homens e das mulheres.
um clube masculino (KATZ, 2009, p. 164), afinal
Para ele, a divindade fez algo sábio, digno de
os homens exerciam boa parte dos trabalhos da
divindades, para cada sexo deu funções que
antiga cidade-estado, as mulheres por sua vez,
serviriam para um bem comum (ANDRADE,
eram praticamente excluídas dos direitos políticos.
2002, p. 186). Os homens tinham os trabalhos do
As mulheres atenienses, de pai e mãe ate- ar livre, prover o alimento e defender os seus. As
nienses, poderiam ser chamadas de cidadãs. mulheres cuidavam do interior, da conservação
Entretanto, não poderiam ser consideradas ci- e preservação do alimento, cuidavam da casa e
dadãs no sentido estritamente político do termo. das crianças. Sua missão também era de prote-
Legalmente, as mulheres tinham poucos direitos ger, os alimentos e os filhos. Ambos com essas
políticos, entre metecos (estrangeiros), escravos, atividades definidas a comunidade tinha muita
e crianças, as mulheres eram as que possuíam chance de prevalecer, com todo esse controle e
145
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

equilíbrio, todos estavam bem, executando as por vezes as metáforas utilizadas por Lisístrata
funções desejadas pela divindade, segundo ele. são referentes ao tear, para explicar a situação da
guerra e a sua possível solução.
Marta Andrade até questiona se esse modelo,
veementemente apresentado, não significaria um A mulher está totalmente presente nas ações
conselho para a alta sociedade da época, que por dessa peça, seja na proposta da greve, seja na luta
ventura não se comportava assim no privado. A (na obra A Revolução das Mulheres, quando as
partir dessa sugestão dele, a sociedade poderia se mulheres tomam a Acrópole para as suas mãos,
espelhar em tal, e chegar num padrão de comporta- elas desafiam os homens para confrontos físicos
mento efetivamente. Xenofonte propõe que a casa é e eles se recusam por medo da valentia e da
o espaço da mulher casada de elite, por natureza e grande proporção de mulheres dispostas a lutar
convenção. Ela deve administrar tudo que acontece pelo domínio do lugar.), seja na conquista da paz,
lá dentro. Ela não decide como organizar o espaço, através da personagem Conciliação. Já a figura do
tem controle dos eventos, não das estruturas. A homem está ligada a do soldado de guerra, então
esposa que era mestra no espaço da casa, apenas a ele sempre se mostra receoso com as coisas que
mulher casada tinha esse direito. As concubinas, as venham das outras cidades que estão no conflito,
filhas e as escravas não o tinham. Nas duas peças principalmente de Esparta. Como mostra a fala
analisadas podemos observar esses elementos, seguinte: “2° Velho – Se há alguma espartana
através das falas das personagens femininas. nisso, na certa ela está conspirando com as outras
mulheres para pôr a mão em nosso dinheiro! ”
Para analisarmos, um pouco, o discurso de (ARISTÓFANES, 2006, p. 101).
Aristófanes em Lisístrata, é de suma importância
Vários outros elementos podem ser analisados
que possamos entender inicialmente qual o con-
nessas duas peças que mostram essas sátiras uti-
ceito de identidade entre os próprios gregos que
lizadas por Aristófanes. A crítica pode ser encon-
o autor trabalha em sua obra:
trada em várias partes das peças, principalmente
Primeiro quero fazer uma censura que serve para nos nomes das personagens, na peça A Revolução
ambos os lados em disputa. Em Olímpia, em
das Mulheres tem como personagem principal
Delfos, nas Termópilas e numa porção de outros
locais, vocês celebram cerimônias, fazem oferen- uma mulher chamada Valentina, não por acaso
das aos deuses. As oferendas e as cerimônias são ela possui esse nome. Eis um trecho da peça que
comuns a todos os helenos. A terra que pisamos mostra a líder do grupo, Valentina, treinando o seu
também é posse comum de todos os helenos. E, discurso que será dado na Assembléia, discurso
no entanto vocês vivem se massacrando uns aos esse que procura justificar o porquê das mulheres
outros e saqueando as cidades que deveriam pro- terem o domínio político:
teger dos bárbaros. Porque, enquanto brigamos,
os estrangeiros se organizam, nos ameaçam, a Valentina – (continuando o discurso) “Vou
qualquer momento podem nos destruir (ARIS- demonstrar agora que os costumes delas são
TÓFANES, 2003, p. 105). melhores que os dos homens. Primeiro, elas são
conservadoras: fazem tudo hoje como sempre
fizeram (e os nossos governantes acham que
Sabemos que Lisístrata é uma criação do
só nos salvam com reformas e inconstância).
autor, não se tem relatos de ter ocorrido algo Elas cozinham hoje como antigamente; fazem
parecido. Ainda mais pelo fato da atitude da bolos como antigamente; amolam os maridos
personagem central não ser considerada uma como antigamente; tem amantes como antiga-
ação típica do modelo de mulher ateniense da mente; comem pouquinho como antigamente;
época. Tirando essa atitude fora do comum, das bebem pouquinho como antigamente; como
antigamente trocam beijinhos! Homens aqui
mulheres gregas, o autor nos apresenta todas as
presentes! Confiemos o Governo às mulheres
imagens tradicionalistas desse tipo de mulher, sem maiores discussões. Nem perguntemos o
ao decorrer da peça. Através de suas falas elas que elas irão fazer, mas deixemo-las governar
se mostram fiéis aos seus maridos, à sua casa, e logo e bem! Pensemos um pouco: sendo mães,
146
Clara Manuella de Souza Guerra

elas pouparão de cuidar da vida de seus filhos, para aquela época, o que por si já poderia causar
de nossos soldados, evitando as guerras; para o riso dos espectadores.
arranjar dinheiro, as mulheres são muito mais
hábeis; nos cargos que ocuparão, ninguém as Então, o autor pode ter escolhido as mulheres,
enganará, pois elas que vivem enganando os seres considerados inferiores, para trazer de uma
homens conhecem todos os truques e saberão forma cômica, uma discussão séria, a de união das
defender-se. Quanto ao resto, nem vou falar. Se cidades em prol do fim da guerra. Mas é importan-
vocês acreditarem em mim e serão felizes para
te lembrar que, nas peças, elas possuíam poderes
o resto da vida! (ARISTÓFANES, 2006, p. 92).
para interferir na cidadania democrática, uma
cidadania de homens, todavia, seus objetivos não
Em relação aos nomes dos personagens da
denotavam um interesse em termos de igualdade,
peça Lisístrata o dramaturgo segue a mesma
requisitando participação em um estatuto sobre as
linha de A Revolução das Mulheres, ele apenas
quais estavam excluídas, ou seja, não almejavam o
nomeia as mulheres envolvidas na greve: Lisís-
poder no contexto em que se desenvolveu o sistema
trata; Cleonice; Mirrina, todas essas mulheres
democrático na polis.
atenienses; Lampito é a única espartana, e a
mais “máscula” de todas; Cinésias, marido de Como as mulheres tinham poucos direitos
Lisístrata; e Manes, criado de Lisítrata, os dois políticos, e tinham pouco acesso á política, em
homens também são atenienses. Provavelmente, o A Revolta das Mulheres, Aristófanes se justifica
nome Lisístrata veio de uma sacerdotisa de Atena, do fato de Valentina conhecer tanto as leis devido
chamada Lisimáquia (ZAIDMAN, 2010, p. 195). a convivência com o seu marido nas encostas da
colina de Pnix, local onde se realizam as assem-
Suas personagens femininas abrem espa-
bléias (ARISTÓFANES, 2006, p. 90). No final das
ço para discussão das fronteiras da cidadania
duas peças apenas Lisístrata encontra sucesso,
democrática ateniense. Através do teatro de
conseguindo com que os homens cedessem à paz,
Aristófanes emerge a possibilidade de um estudo
já que os homens não agüentam mais as dores em
da relação entre a cidadania e as mulheres. Em
certo lugares. Aristófanes usa esse artifício para
Lisístrata encontramos mulheres de outras cida-
provocar o cômico, em várias partes da peça.
des, como Esparta, Corinto e Beócia. E dentre
elas não existe insultos nem depreciações, isso A greve era um sacrifício para as mulheres e
tudo para reavivar a mensagem de união entre os uma tortura para os homens, mas percebe-se que
povos que estavam em conflito. algumas estavam dispostas a desistir da tormenta
por que já não agüentavam mais ficar longe de
É comum a comédia fazer uso do ridículo
seus maridos e sem o ato sexual. Lisístrata e ou-
para que assim se chegue ao cômico. Essa graça
tras mulheres que ficam na função de vigiá-las,
é obtida através de uma desarmonia quantitativa,
para que nenhuma consiga escapar e quebrar
que gera surpresa, dando um efeito de imprevisto
o acordo da greve. Mesmo assim, as mulheres
o que acaba por ser desagradável para aquele que
conseguem o seu objetivo no final.
está em cena, mas cômico para aquele que assiste.
Como um palhaço que leva torta na cara e agita Em A Revolução das Mulheres o final é
a platéia (CARVALHO, 1996, p. 337). Aristófa- diferente, depois de elas conseguirem o controle
nes usou e abusou disso em suas peças. Nessas da Assembléia, as mulheres se perdem em suas
duas analisadas encontram-se várias cenas que leis, fazendo com que o poder suba a cabeça, e
expõem os personagens ao ridículo, mas que se acabem por tirar proveitos das leis em prol delas
tornam engraçadas. Mas nas peças podemos mesmas. Uma das primeiras leis criadas por elas,
encontrar algo que seria bastante incomum para buscava a igualdade de todos. Certamente não
aquela época, uma mulher fazendo estratégias, agradou muito aos mais ricos, mas foi recebida
planos, enfim, ter uma mulher no controle dessas com elogios pelos mais pobres. Para se ter uma
ações era algo considerado bastante inusitado, noção dessas leis, trago esse trecho da peça:
147
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Valentina – Que ninguém me contradiga nem me que estava paquerando um rapaz, o mais velho
aparteie antes de conhecer minhas idéias todas e dos dois teria o direito de se deitar com a jovem.
ouvir minhas explicações. Para começar, todos
Essa lei agradou muito aos mais velhos, mas
terão de entregar seus bens ao governo, para que
todos tenham partes iguais desses bens e vivam desagradou os jovens e adolescentes, que não
deles; não é inevitável que uns sejam ricos e poderiam paquerar livremente. No final da peça
outros miseráveis; que uns possuam terras sem temos essa lei sendo praticada, mulheres de mais
fim e outros não tenham onde cair mortos; que idade ficam brigando para conseguir algo com o
uns tenham a seu sérvio uma porção de escravos rapaz bonito e jovem, chegando até a obrigá-lo
e outros não sejam sequer donos de si próprios!
Instituiremos uma só maneira de viver, igual para
a entrar em suas casas. Até que Lisístrata chega
todos! (ARISTÓFANES, 2006, p. 109). para resolver a confusão, mas com o abuso de sua
autoridade, ela leva o rapaz para que ela possa
Com essa busca pela igualdade de todos, usufruir dele, mesmo que ela não seja a mulher
Valentina faz uma lei que busca agradar a todos, mais velha que estava no local (ARISTÓFANES,
tanto mulheres quanto homens, mais velhos. Essa 2006, p. 132). Essa cena traz o cômico, mas
lei sugeria que para uma jovem se deitar com um também mostra que as mulheres, uma vez com
homem jovem, ela teria que se deitar primeiro o poder nas mãos, poderiam usar as leis para seu
com um homem mais velho, e vice-versa. Se próprio benefício, assim como os homens faziam
passassem dois velhos e cortejassem uma moça antes delas controlarem a Assembléia.

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148
VÍCios, VirTuDEs
E A rEPrEsENTAÇÃo Do Bom CrisTÃo
PArA A orDEm Dos CisTErCiENsEs:
O exemplo de Alcobaça

Darlan Pinheiro de Lima1


José Rivair Macedo2

iNTroDuÇÃo

urante a Dinastia de Avis foram produzidos

D
como o Catecismo de Doutrina Cristã, Tractado
em Portugal uma grande quantidade de das meditações e pensamentos de S. Bernardo, e
textos que tinham como objetivo divulgar Visão de Tundalo ou Estória de huum cavaleiro
a prática de comportamentos de acordo com o que a que chamavão Tungulu, com letra gótica do
considerava-se o bom cristão, ou talvez ainda o bom século XV, assim citado por A. F. de Ataíde e
cristão português. Foram textos voltados para a tare- Melo no Inventário dos Códices Alcobacenses3,
fa de divulgação dos preceitos divinos e morais, de e pertence ao códice alcobacense CCXLIV/211.
cunho doutrinários e disciplinares, abarcando uma É sempre um problema identificar a autoria
diversidade de conteúdos e exemplos que abrangiam destes tratados alcobacenses, pois na maioria das
a totalidade da vida de um ser humano. vezes não são assinados e, quando são, a assina-
A maioria dos tratados doutrinários produzidos tura nem sempre corresponde ao autor, mas sim
expressa uma filosofia de doutrinação moral, que ao monge copista. António Joaquim Anselmo4
remete ao leitor para um aprendizado alicerçado em limita-se a definir o autor da obra, assim como
uma concepção cristão-medieval. Esta concepção Álvaro J. da Costa Pimpão, que nos diz: “Outro
pode ou não utilizar a doutrina dos sete pecados manuscrito ainda não impresso é o Virgeu de
capitais como meio de persuadir seu público-alvo, Consolaçon, que Fr. Fortunato de S. Boa Ven-
dependendo da importância que esta representava tura supõe (depois de Nicolau António e Joseph
para as ordens em que tais textos foram produzidos. Rodriguez de Castro) ser tradução portuguesa
(por Fr. Zacarias de Papoyelle) do Veridarium
Apresento neste trabalho o tratado chama- Consolations de S. Pedro Pascoal.”
do Virgeu de Consolaçon, texto que ainda não
recebeu a merecida atenção dos historiadores, A informação mais precisa que temos sobre a
autoria e o histórico do Virgeu de Consolaçon, vem
produzido ou copiado na abadia de Alcobaça, em
do estudo feito pelo erudito Mário Martins, no seu
fins da baixa Idade Média portuguesa.
trabalho chamado O Vergel de Consolação5. Neste
texto, Mário Martins nos informa que diversas
obras tinham títulos semelhantes do nosso códice
HisTóriCo E AuToriA
alcobacense, citando exemplos como Lê livre du
3 Inventário dos códices alcobacenses / [ed. lit.] Biblioteca Nacional de Lis-
O Virgeu de Consolaçon é parte de uma boa / [apresentação de A. Botelho da Costa Veiga; introdução de A. F. de
coleção que ainda compreende outros textos, Ataide e Melo]. Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa, 1930-1932.
4 António Anselmo. “Os códices alcobacenses da Biblioteca Nacional”.
1 Mestrando pelo PPG de História da UFRGS. Lisboa, 1926.
2 Professor do Departamento de História e do PPG de História da UFRGS; 5 Separata da Revista Brotéria, 1949, Reeditado em: Estudos de Literatura
Pesquisador do CNPQ; Sócio da Academia Portuguesa da História. Medieval. Braga, 1956.

149
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

vergier6, um dos livros de Henrique II de Navarra. os sETE PECADos CAPiTAis


No século XVI Guilherme Branteghen redigiu
Pomarium mysticum, mais tarde traduzido para o O conceito de pecado sempre esteve arrai-
francês como Vergier spirituel et mystique. E ainda gado nas principais discussões religiosas durante
o Vergier de solas (Vergel de Consolação), em um o período medieval, estando presente em todos
francês arcaico entre os séculos XIII ou XIV7. os aspectos da vida do homem da Idade Média.
Mário Martins compara o nosso códice alcoba- Desde o início da era cristã, quando os alicerces
cense com o incunábulo castelhano chamado Vergel do cristianismo estão sendo lapidados, as teorias
de Consolación do frade dominicano Jacobo de Bena- para definição do pecado percorrem e se defrontam
vente, impresso na cidade de Sevilha em 1497, e com nas estruturas cristãs e fora delas. Desta forma,
outro códice escurialense chamado Vergel de grand criam-se diversas visões e conceitos em relação
consolacion em castelhano. Conclui em sua análise ao pecado, e com isso surge a necessidade de
que se tratam de três obras com a mesma linguagem, defini-los, classificá-los e conceituá-los9.
mesmo título e mesma época. Cita ainda que algumas
As discussões entre o bem e o mal já eram pre-
diferenças em termos estruturais existem, mas que
sentes nos correntes debates dos mestres escolásticos,
nada interfere na conclusão de que as três são uma
que buscaram também na filosofia antiga definições
obra única. O nosso códice alcobacense O Virgeu de
que pudessem contribuir para uma melhor e mais
consolaçon, é a tradução do incunábulo castelhano
aceita definição de ato pecaminoso. A noção que todo
chamado O Viridario ou Vergel de consolación, obra
ser humano já nasce dominado pelo pecado original
do frade dominicano Jacobo Benavente. Chega-se a
foi o ponto de partida para a definição do próprio
esta conclusão comparando diversas partes dos três
conceito de pecado na Idade Média10.
textos rigorosamente, que nos revela uma mesma
estrutura, um mesmo conteúdo e, na essência, uma E estando o pecado presente em todos os
mesma obra. Ainda sugere em seu estudo que “não espaços terrestres, foi preciso fugir dele e criar um
se trata de passagens plagiadas, são obras idênticas, lugar protegido contra a mal, o mosteiro. Os pri-
uma posta em letra de forma, num incunábulo, outra meiros ascetas são anacoretas que buscam fugir dos
copiada a mão, num códice da Biblioteca do Escurial prazeres mundanos, esperançosos em obter a paz
e a terceira vertida para o português medieval no espiritual nos desertos do Oriente. Um dos pioneiros
códice alcobacense CCXLIV/2118. desta prática foi Santo Antonio (251-356), que por
quase toda sua vida isolou-se no deserto do Egito11.
O monge grego Evágrio Pôntico (345-399), que
CoNTEÚDo
teve grande influência anacoreta, buscou a comunica-
ção com Deus, através de manifestações e renúncias
O Virgeu de Consolaçon trata dos pecados
dos prazeres mundanos. Desta forma surgem as
e das virtudes e é composto de cinco partes. As
tentações, que são, naturalmente, as condições para
duas primeiras partes falam sobre os pecados e os
o nascimento do pecado. Evágrio Pôntico listou os
vícios e as três últimas baseiam-se nas virtudes, to-
oito maiores males ou necessidades que os monges
talizando setenta e oito capítulos. Quase totalidade
sofriam no deserto, e desta forma nasce o que futura-
da obra é composta por citações de uma diversidade
mente será a mais importante doutrina sobre pecados
de moralistas que o autor coloca com o objetivo de
sustentar os seus argumentos. Com a leitura o leitor do período medieval, os sete pecados capitais.
9 Para ter uma noção geral, o conceito, e a evolução do conceito de pecado
conheceria os males, os vícios e as virtudes da vida, no período medieval ver Carla CASAGRANDE & Silvana VECCHIO. “Pe-
e consequentemente o caminho para a salvação. cado”. In: Jacques LE GOFF & Jean-Claude SCHMITT. Dicionário temá-
tico do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2002, vol. 2, pp. 337-351.
6 Ver Invetaire des livres de Henri II. roi de Navarre, em Romania 10 Outra consulta importante é a obra de Jean DELUMEAU. O pecado e
7 Ver Notice du manuscrit français de la bibliothèque Nationale, em Roma- o medo: a culpabilização no Ocidente. São Paulo: EDUSC, 2003, 2 vols.
nia, de Arthur Langfors, citado em MARTINS, MÁRIO. Estudos de Litera- 11 Para ver sobre a história do monasticismo ler Lester K. LITTLE. “Monges
tura Medieval. Braga, 1956 e Religiosos”. In: Jacques LE GOFF & Jean-Claude SCHMITT. Dicionário te-
8 MARTINS, MÁRIO. Estudos de Literatura Medieval. Braga, 1956. pág.72. mático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC, 2002, vol. 2, pp.225-241.

150
Darlan Pinheiro de Lima / José Rivair Macedo

Sendo a doutrina dos sete pecados capitais, “Segundo diz sancto Agostinho, peccado
ou setenário, nascida em ambiente monástico, he desamparar home o bem de Deos que nunca
e tendo os monges o importantíssimo papel se perde, e fazer muito pelos bees do mundo que
de dispersar o cristianismo na Europa, é de se continuadamente falece. E diz esse meesmo:
entender que a doutrina, a partir das primeiras Peccado he dizer ou fazer ou cuidar ou cubijçar
décadas do período medieval, foi bastante usada contra a ley de Deos”.
como meio de entender o que é o pecado, quais Na primeira parte do códice o autor faz uma
os pecados mais graves, e outras particularidades recapitulação rigorosa dos diversos pecados, já
que formam a essência do cristianismo. nos mostrando a forte influência da doutrina
João Cassiano (370-435) fez diversas viagens dos sete pecados capitais, que muito lembra a
pelo oriente, tendo contato com os pioneiros da forma como Tomás de Aquino os classificou13.
prática monacal, e com isso divulgou-a pelo Remetendo-nos ao conteúdo, o autor define que
próprio oriente e principalmente ocidente. Contri- são sete os pecados principais, gerados exclu-
buiu para que aos poucos o trabalho dos primeiros sivamente por um “super pecado”, chamado de
monges fosse conhecido, respeitado e copiado, soberba, lembrando muito o alto valor dado à
para ser usado como mais uma ferramenta na soberba também por Gregório Magno. O pecado
dispersão da religião cristã. da soberba é caracterizado ainda como o mal
cometido por Lúcifer que o fez ser expulso do
A doutrina dos sete pecados capitais12 foi
céu, transformando-se em tudo o que é.
com certeza a mais importante forma de classi-
ficação criada durante o período medieval. Isto Além de definir a soberba como geradora de
é notório com a readaptação da doutrina pelo todo pecado, o autor cita os sete pecados gerados
Papa Gregório Magno (590-604) logo no início por ela: vanglória, inveja, sanha ou ira, tristeza,
do período medieval, e também com a agregação avareza, gula e luxúria. Na sequência define, atra-
da doutrina à da Igreja Católica, onde será uti- vés de conclusões de diversos moralistas, cada
lizada principalmente nos rituais de confissão e um dos pecados, citando ainda as características
nos sermões. Gregório Magno construiu a idéia fisiológicas dos seres acometidos por eles.
que a alma humana é testada e assediada por um A representação da inveja definida como
exército de vícios, liderados pela soberba, e que desejar algo do seu companheiro ou semelhante,
portanto exerce a função de comandante deste ganha intensidade quando o autor cita uma breve
exército, alicerçado ainda pela vaidade, inveja, conclusão de São Gregório, a qual os orienta a ter
ira, avareza, acídia, luxúria e gula. mais cuidado com a inveja dos amigos do que com
o mal dos seus inimigos. Ainda sugere que a inveja
é a grande destruidora das coisas bem feitas.
os sETE PECADos CAPiTAis A sanha ou ira é definida como uma ação
No VIRGEU DE CONSOLAÇON tomada sem razão, sem pensar, o que nos mostra
como o autor caracteriza o sujeito possuído pela ira,
No primeiro capítulo da segunda parte, o fora de si. Com suas próprias palavras “é tempestade
autor define o que é pecado, e sua concepção no coração”, o corpo treme, a língua enrola, faz
apresenta-se da forma como Santo Agostinho ruído, fala coisas que não entende, não sabe o que
define o pecado. O autor usa uma citação do diz, e fica avermelhado. Física e psicologicamente
próprio para sustentar seu argumento: o sujeito deixa por alguns momentos de ser o que
12 Para ver os primeiros estudos sobre a evolução da doutrina dos sete peca-
dos capitais: Morton BLOOMFIELD. The seven deadly sins. A introduction ele realmente é agindo de uma forma diferente e
to the history of a religious concept, with special reference to medieval En- principalmente contra as leis divinas.
glish literature. Michigan: East Lansin, 1952. E ainda o estudo das historia-
doras Carla CASAGRANDE, e Silvana VECCHIO. Histoire des péchés 13 TOMÁS DE AQUINO. Sobre o ensino. Os sete pecados capitais. Trad.
capitaux au Moyen Age. Paris: Aubier, 2003. Luiz Jean LAUAND. 2ed São Paulo: Martins Fontes, 2004.

151
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

A atenção dada à acídia nota-se quando há sobre a luxúria fosse mais intensa que o normal,
diretamente direcionado a ela, a geração de pecados levando em consideração que a mesma foi uma
considerados secundários, como a malícia, o rancor, a das principais causas da reforma cisterciense, na
desesperança e a preguiça. De um modo geral acídia busca pela humildade de São Bento. Às vezes, a
e preguiça confundem-se. A doutrina dos sete peca- definição do autor se confunde com a sua própria
dos capitais tem sua própria historicidade. Ao longo representação da soberba, sugerindo que a luxúria
do tempo houve mudanças, uma delas relacionada torna a alma e o corpo do homem, que era para ser
à acídia e preguiça. A acídia era definida como “ter a morada de Deus, na morada do diabo.
preguiça” nos mandamentos de Deus, é esta a defi-
Entre os sistemas produzidos para classifi-
nição contida no Virgeu, um pecado mais monacal.
car os pecados ao longo do tempo, sem dúvida
Já a preguiça, que veio substituir a acídia, nos remete
o setenário desperta curiosidade do público em
não só às práticas relacionadas à religiosidade, mas
geral. Foi a doutrina que através de diversos
também na vida, de uma maneira geral.
meios de comunicação e entretenimento chegou
A gula, definida como gargantuice, é o dese- até nossa sociedade contemporânea. Muito se
jo de comer acima do que considerava-se normal. deve ao trabalho realizado durante séculos nos
Evágrio Pôntico a considerava como o principal mosteiros medievais em nome da fé, que aos
pecado, e o autor do nosso códice alcobacense não poucos revelaremos com novos estudos, e acima
deixa de caracterizá-la também como um pecado de tudo, novas dúvidas.
grave. O autor cita diversos exemplos de quem
É notório a presença da doutrina do setenário
se deixou tomar pela vontade descontrolada de
já a partir do simples fichamento das fontes, às
comer, como Adão, Jonatas, e os filhos de Israel
vezes coesa e outras diluída, nota-se o impor-
no deserto. Intensifica a representação do pecado,
tante significado para a ordem cisterciense. A
dizendo “a grande fartura mereceu a morte”.
representação e diferenciação da doutrina nos
Tendo conhecimento da história da ordem dos textos doutrinários, disciplinares e fundacionais
cistercienses, era de se esperar que a visão monacal nortearão os próximos passos do nosso trabalho.

152
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153
TEmPo E NArrATiVA NA EDuCAÇÃo
Em rAmoN LLuLL:
Doutrina para crianças (1274 – 1276)

Dayse Marinho Martins1

iNTroDuÇÃo

O
processo educativo não deve ser compreen- Média. E no que concerne ao processo educativo
dido de maneira restrita sendo situado medieval, este trabalho centra-se na análise da
exclusivamente no âmbito da escola en- educação preconizada por Ramon Llull. O filósofo
quanto prática de ensino centrada em um currículo catalão em sua obra Doutrina para Crianças dis-
pré-determinado. A educação constitui antes de pensa várias considerações acerca do tema.
tudo, um fenômeno global em termos de socieda-
Especificamente, este artigo objetiva analisar
de e carrega em sua caracterização um currículo
o papel da narrativa no processo educacional llul-
oculto permeado pela mentalidade dos indivíduos
liano situando-o no contexto medieval permeado
que participam do processo.
pela mentalidade religiosa. E assim, identificar pos-
Isso significa que a ação educacional caracte- síveis reminiscências desse processo na educação
riza a formação do sujeito para a participação na formal contemporânea numa sociedade que prega
vida social por meio de experiências culturais que a laicidade como ponto de partida de seu sistema
potencializem suas capacidades. Estas, por sua educacional, mas que não deixa de ser fundamen-
vez, estão diretamente relacionadas aos objetivos tada em valores cristãos.
da sociedade sofrendo, portanto, interferências da
Durante o século XX, a aproximação da
mentalidade de um grupo ou de uma época.
História com as novas Ciências Sociais culminou
Historicamente, o processo educativo encon- com uma renovação na forma de produção histo-
tra-se aliado à prática da narrativa. Diversos grupos riográfica. Anteriormente, destacava-se a tendência
sociais instrumentalizam tal elemento como me- historiográfica rankeana cujos fundamentos se
canismo de repasse cultural. Sendo caracterizada baseavam na singularidade do fato histórico.
por um cunho coletivo, a educação relacionada à A História pode ser concebida como uma narrativa
narrativa pode ser analisada com base nos estudos de fatos passados. Conhecer o passado dos ho-
desenvolvidos pela Escola dos Annalles levando mens é, por princípio, uma definição de História,
em conta o aspecto da mentalidade. Este movi- e aos historiadores cabe escolher, por intermédio
mento durante o século XX promoveu mudanças de uma variedade de documentos, os fatos mais
no estudo histórico evidenciando o interesse em importantes, ordená-los cronologicamente e nar-
rá-los (BITTENCOURT, 2004 p. 140).
novas temáticas e dentre elas as estruturas mentais.
Em decorrência disso, os estudos mentais in- Com o movimento dos Annalles conhecido
tensificaram a atenção ao período referente à Idade como Nova História, os estudos passaram a congregar
1 * Licenciada em História na UEMA. Especialista em Educação Infantil. uma diversidade de owwbjetos entendendo toda e
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade/UFMA.
Email: daysemarinho@yahoo.com.br qualquer atividade humana como História. No âmbito
155
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

dessas reformulações, o interesse em novas temá- apresenta em suas obras abordagens acerca de
ticas incorporou a análise das estruturas mentais. temas diversificados. Em relação à Pedagogia,
Surgiu, portanto, a preocupação com os compor- Llull elabora um modelo educacional baseado
tamentos, modos de vida e tradições pertencentes na ética e moral religiosa.
a determinados grupos humanos.
Através destes dois princípios, o conhecimen-
Nesse sentido, destacam-se os estudos me- to culminaria na elevação espiritual do indivíduo.
dievais. Estes se apropriam da idéia de imaginário Tal pressuposto pode ser creditado à concepção de
para possibilitar a análise de fatores simbólicos e mundo construída pelo filósofo no decorrer de sua
ideológicos que exercem influência na compreen- vida marcada pela revelação divina.
são das estruturas mentais no Período Medieval.
Ramon Llull nasceu na ilha de Maiorca
A História do Imaginário permite a análise das em 1332. Sua atuação intelectual iniciou-se em
estruturas religiosas como ponto formativo do coti- meados do século XIII quando servia ao Rei
diano na Idade Média. O homem medieval vivia em Jaime I. Llull era um jovem galante dedicado
constante estado de tensão diante da escolha: desfru- à poesia trovadoresca voltada para o cortejo de
tar dos benefícios do paraíso ou enfrentar os castigos damas da alta nobreza. Durante esse período, o
do abismo infernal. A ida para o além dependeria do filósofo elaborou ensaios literários de existência
conteúdo de sua decisão: seguir o caminho dos justos não conservada, porém, comprovada na obra Vita
ou se dedicar aos prazeres mundanos. Coetanea, uma autobiografia ditada por Llull a
um monge cartuxo de Valverde perto de Paris.
O caráter religioso trazia consigo dois outros
elementos constituintes da mentalidade medieval. Segundo este mesmo documento, numa noite
O contratualismo que previa a reciprocidade de do ano 1263, enquanto compunha em seu quarto um
direitos e obrigações entre os homens e conse- destes cantos amorosos, o Cristo crucificado apare-
qüentemente entre estes e Deus. E a belicosidade ceu-lhe. O fenômeno voltou a se repetir nas noites
caracterizada pelo enfrentamento constante dos seguintes até que Llull se decidiu pela conversão.
homens com as forças do mal. Por sua vez, a
A educação em Ramon Llull consiste numa
concretização da religiosidade medieval era re-
formação ética cujo principal objetivo era o
presentada no conjunto de obrigações do homem
despertar do amor a Deus. A abordagem edu-
para com Deus (FRANCO JR, 1981, p. 31).
cacional llulliana está contida na obra Doutrina
Baseado nesse pressuposto, o modelo de homem para Crianças. Nela, o autor dispõe os aspectos
daquele período era definido pela religião. Numa rela- importantes para a formação religiosa, moral e
ção contratual com Deus, o homem deveria defender prática de seu filho Domingos.
sua alma buscando uma vida de santidade. Por isso,
Os capítulos da obra contêm os pontos que
representava papel preponderante, a educação.
devem ser trabalhados na educação das crianças.
Este aspecto pode ser deduzido da afirmação De acordo com Llull, “convém que o homem
de que “o estudo era utilizado principalmente faça seu filho aprender os 14 artigos da santa fé
para o desenvolvimento da vida do espírito, católica, os 10 mandamentos que Nosso Senhor
para a elevação espiritual” (COSTA, 2002, p. Deus deu a Moisés, os 7 sacramentos da Igreja e
07). Como se pode notar, a educação medieval os outros capítulos seguintes” (LLULL, 1274, I).
estava fortemente direcionada a uma formação
Desse modo, observa-se que a perspectiva
ética e moral das crianças tomando como base,
educacional de Llull tem sua construção direcionada
a transmissão de princípios cristãos.
pelos fundamentos da fé cristã. Em associação a eles,
No processo de compreensão da educação seriam considerados os aspectos aos quais Llull se
medieval, um dos pensadores atualmente ana- refere como “capítulos seguintes”. Estes trazem
lisados é o filósofo catalão Ramon Llull que consigo referência direta à fé cristã e caracterizam:
156
Dayse Marinho Martins

Os 7 dons que o espírito dá, as 8 bem-aven- Assim sendo, Llull divide a trajetória mun-
turanças, os 7 gozos de Nossa Senhora, as 7 dial em Sete Idades:
virtudes que são o caminho da salvação, os 7
pecados mortais que levam o homem à danação A primeira idade foi de Adão a Noé [...] a se-
perdurável, as 3 Leis, as 7 artes e matérias gunda idade foi de Noé a Abraão [...] a terceira
idade foi de Abraão a Moisés[...]a quarta idade
diversas” (LLULL, 1274, I).
foi de Moisés a Davi[...] a quinta idade foi de
Davi á transmigração da Babilônia [...]) a sexta
No transcorrer da obra fica clara em todos os idade foi da transmigração da Babilônia até Je-
tópicos, a utilização de uma abordagem construída sus Cristo [...] a sétima idade foi de Jesus Cristo
a partir das narrativas bíblicas que justificam a ade- até o fim do mundo” (LLULL, 1274, XCVII).
quação de cada temática à educação do homem em Durante a caracterização de cada uma das
consonância com a busca da santidade que conduz idades, o autor realiza uma narrativa centrada em
à salvação. Em relação a isso, Llull afirma: questões bíblicas. Com isso, ele relaciona perso-
É conveniente que o homem mostre a seu filho a nagens e fatos como suportes para a marcação
forma de cogitar a glória do Paraíso, as penas da época concernente.
infernais e os capítulos que estão contidos neste
livro, pois através de tais cogitações, a criança Ao apresentar a sétima idade, o religioso
se acostumará a amar e temer a Deus conforme a situa em sua época colocando-a até o fim dos
os bons ensinamentos” (LLULL, 1274, I). tempos. Logo após, Llull relaciona uma última
idade: a oitava com duração infinita e surgimento
Nessa perspectiva, a educação deveria após o fim do mundo. Percebe-se na abordagem
despertar o conhecimento existente no indivíduo. llulliana, a concepção temporal presente na men-
Este durante o processo de ensino teria como talidade do homem medieval.
função primordial refletir sobre a condução
da trajetória de sua vida, tomando por base os “O tempo é uma vivência concreta e se
princípios cristãos para que amando e temendo apresenta como categoria central da dinâmica
a Deus, pudesse alcançar a glória. da História” (DELGADO, 2003, p. 09). Portanto,
é através dele que se percebem as relações exis-
A educação llulliana insere no indivíduo
tentes no âmbito de uma sociedade.
a concepção da crença no Cristianismo enquanto
caminho para o encontro com Deus. A partir dessa Nesse caso, ao analisar a concepção temporal
perspectiva, surge a necessidade do estabelecimento preconizada por Llull pode-se inferir acerca das
de normativas de vigência universal, isto é, de uma relações deste com o mundo.
consciência moral que norteie as ações humanas
O olhar do homem no tempo e através do
tomando por base os princípios cristãos. tempo traz em si a marca da historicidade.
Na obra Doutrina para Crianças, Llull rea- São os homens que constroem suas visões e
representações das diferentes temporalidades
liza uma genuína abordagem catequética centrada
e acontecimentos que marcaram sua própria
nas categorias de narrativa e temporalidade. Um história (DELGADO, 2003, p. 10).
dos capítulos da obra que mais demonstra tal ação
é o capítulo referente às Sete Idades nas quais o Isso nos mostra como se torna imprescin-
mundo está dividido.
dível considerar a marca do imaginário cristão
Esse ponto esclarece inicialmente o conceito presente na mentalidade medieval ao se tentar
de idade contemplado pelo autor: “idade é o tempo compreender as escolhas de Llull na definição
mensurado e o espaço de vida das coisas viventes dos marcos temporais para as sete idades do
durante sua vida.” (LLULL, 1274, XCVII). Dife- mundo. “O substrato da marca de um tempo é
rentemente do que se pode supor, a idade aqui ana- definido pelas ações humanas e pelos valores e
lisada por Llull faz referência à marcação temporal imaginário que conformam esse tempo” (DEL-
coletiva e não apenas de um indivíduo. GADO, 2003, p.12).
157
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Em razão desse aspecto é que se deve con- CoNCLusÃo


siderar a atuação do Cristianismo na formação
da concepção medieval de temporalidade. “O Diante do exposto, constata-se que o modelo
Cristianismo impôs uma concepção linear de educação para a salvação, fundado em raízes
do devir humano. A história humana começa cristãs, preconizado por Llull no período medieval
com a criação, comporta um momento central, apresenta suas reminiscências na contemporanei-
está orientada para um fim” (BOURDÉ, 1990 dade. Tal aspecto pode ser visualizado claramente
p. 13). A mentalidade medieval fundada em na preparação catequética de crianças em idade
pressupostos cristãos situa a história humana escolar. Mas não está restrito à atuação da igreja.
sob a égide dos desígnios divinos e linearmente Pode ser observado dentro das escolas de nível
estabelecida. fundamental constituintes da rede pública de ensino.
O capítulo da obra llulliana acerca das sete A Lei de Diretrizes e Bases da Educação
idades do mundo demonstra significativamente a Nacional (LDB) em seu artigo 33 explicita que
mentalidade medieval referente ao tempo. Situa- o ensino religioso nas escolas de Ensino Funda-
das com marcos ligados a personagens bíblicos, mental é parte integrante da formação básica do
as idades possuem intervalos caracterizados por cidadão, tendo matrícula facultativa e devendo ser
tentativas de aproximação do homem com Deus. multiconfessional, vedadas quaisquer formas de
Ilustram a necessidade de uma vida marcada proselitismo, o que significa que todas as religiões
pela santidade enquanto garantia de ingresso devem ter as mesmas oportunidades de estudo. Há
no paraíso. os que defendem que os estabelecimentos públi-
cos não podem servir de espaço para a pregação
Outra categoria de análise importante no religiosa e os que argumentam que a escola tem a
entendimento da obra educacional llulliana ca- obrigação de oferecer tal ensino.
racteriza a narrativa. “As narrativas são instru-
mentos importantes de preservação e transmis- Como diz Berkenbrock: “É importante que
são das heranças identitárias e das tradições” o diálogo inter-religioso seja impulsionado pelo
(DELGADO, 2003, p. 21-22). São importantes desejo de um melhor entendimento humano (…) que
como estilo de transmissão das experiências mais contribua para uma melhor convivialidade huma-
simples da vida cotidiana e dos grandes eventos. na” (BERKENBROCK, 1996, p. 327). Assim, o
ensino religioso, sem nenhum propósito doutrinante
Em sua essência, a narrativa constitui elemento
de uma determinada visão religiosa, deve incentivar
participante do ato educativo.
no aluno um processo de conhecimento e vivência
Nessa perspectiva, Llull se fundamenta na de sua própria religião, mas também um interesse
narrativa ao desenvolver a ação educativa insti- por outras formas de religiosidade.
tuída na obra Doutrina para Crianças. É através
Por questões éticas e religiosas e pela própria
desse elemento que o religioso, como forma de natureza da escola, não é função dela propor
ilustrar as ações adequadas aos princípios cris- aos educandos a adesão e vivência desses co-
tãos, caracteriza aspectos necessários ao desen- nhecimentos enquanto princípios de conduta
volvimento de uma vida marcada pela santidade. religiosa e confessional, já que esses são sem-
pre propriedade de uma determinada religião
Assim, a educação llulliana se relaciona (FONAPER, 1998, p. 22).
diretamente à perspectiva temporal linear e à
prática de narrativas. Fundamentados na men- Apesar da laicidade preconizada pela Lei e
talidade cristã, estes elementos contribuem para documentos norteadores, o Ensino religioso no
o alcance de normativas que orientem a vida do Brasil, desenvolvido no âmbito do cotidiano esco-
indivíduo rumo a contemplação do paraíso como lar é marcado por práticas ainda centradas em nar-
recompensa por uma vida santa. rativas bíblicas principalmente nas séries inciais do
158
Dayse Marinho Martins

fundamental. A indefinição de parâmetros para a Se para Llull a narrativa bíblica era proveniente
formação do profissional desta área de ensino bem da concepção de mundo cristã, para nossas professo-
como da implementação das orientações didáticas ras contemporâneas a tradição cristã de desenvolver
estabelecidas em lei acaba culminando com uma valores através das lições bíblicas acaba sendo válvu-
prática educativa de cunho catequético. la de escape no trabalho com o ensino religioso em
sala de aula. Diante da ausência de referenciais e de
Em vez de trabalhar uma disciplina centrada
uma formação que contemple o carater antropológico
na antropologia religiosa como cita os parâmetros
da disciplina explicitado em lei, o uso da narrativa
curriculares, muitos roteiros didáticos e planos de bíblica torna-se uma alternativa para o estímulo ao
ensino trabalham o ensino religioso com base na desenvolvimento de valores.
narrativa bíblica de forma a construir na cognição in-
fantil modelos de conduta no meio social. É por meio Ao mesmo tempo, isso confirma a força da
das lições extraídas ao final das narrativas que são mentalidade cristã e seu caráter de longa duração.
moldadas as relações da criança no que concerne ao Apesar de não estar voltada para uma visão de
confronto entre bem e mal em suas atitudes sociais. mundo temporal linear em busca da salvação, a
sociedade brasileira contemporânea apresenta
Desse modo, pode-se falar na ocorrência de fortes resquícios da tradição cristã medieval em
traços reminiscentes da educação llulliana para a sua mentalidade. O sistema educacional em sua
salvação, em práticas educativas contemporâneas. É descontinuidade ao não oferecer suporte adequado
óbvio que se deve fugir ao anacronismo e considerar ao desenvolvimento do ensino religioso antropoló-
as nuances e concepções diferenciadas em ambos os gico por ele preconizado, acaba contribuindo para a
processos bem como os motivos que levam ao desen- permanência de práticas que priviligiam a tradição
volvimento de tal prática nos dois períodos históricos. cristã arraigada na formação cultural do país.

159
REFERÊNCIAS CARDOSO, Ciro F. e VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História: ensaios
FONTE PRIMÁRIA de teoria e metodologia. 5.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997

LULL, Ramon. Doutrina para as Crianças (c. 1274-1316). Tradução de COSTA, Ricardo. Reordenando o conhecimento: a educação na
Idade Média e o conceito de ciência expresso na obra Doutrina para
Ricardo da Costa e grupo de Pesquisas Medievais da UFES III. Instituto
Crianças (c. 1274-1276) Disponível em 2002. Publicado na INTERNET:
Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio (Ramon Llull). Dispo-
www.ricardocosta.com (artigos) acesso em 15 mar 2013.
nível em: http: //www.ricardodacosta.com Acesso em 20/09/2013
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História oral e narrativa: tempo,
ESTUDOS memória e identidades. In: HISTÓRIA ORAL. Revista da Associação
BERKENBROCK, Volney J. A atitude franciscana no diálogo inter-re- brasileira de historia oral. n 6, jun 2003. São Paulo: Associação
ligioso. in: MOREIRA, Alberto da Silva (org.) Herança Franciscana. Brasileira de História Oral.
Petrópolis, Vozes, 1996. FONAPER. Parâmetros curriculares nacionais. Ensino Religioso.
BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As escolas históricas. Trad. Ana. São Paulo, Ed. Ave-Maria, 1998.
Rabaça. Mem Martins (Portugal): Publicações Europa-América, 1990. FRANCO JR, Hilário. A Idade Média, nascimento do Ocidente. Nova
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB 9394/96. ed. rev. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 2004.
Brasília: MEC/SEF, 2001. NÉRICI, Imídeo G. O homem e a educação. São Paulo: Atlas, 1976.

160
AsPECTos GErAis DA rELiGiÃo Em CArTAGo:
Rituais e formas de organização

Fabrício Nascimento de Moura1

A
partir da formação cultural fenícia da quela cidade, um dos seus principais elementos de
cidade-estado de Cartago, os historiado- identidade cultural, uma vez que esta fora bastante
res Corine Bonnet e P. Xella questionam influenciada pelo Helenismo e pela civilidade
sobre a possibilidade de se falar regularmente em egípcia, a partir da introdução de divindades e da
uma religião fenícia ou púnica. A fenícia jamais organização sacerdotal. Entre os cartagineses a
foi uma organização política unificada e o “mundo atividade ritual era regulamentada pelos poderes
púnico” é uma constelação de situações históricas e públicos e os santuários eram construídos pelos
culturais diferentes. Constituídos de grupos geopo- governantes (LANCEL, 1992, p. 213). Outra
líticos autônomos, os cultos exerceram uma função questão que merece destaque é que, em Cartago, o
de diferenciação cultural nestas regiões. Era através benefício da divindade não era conquistado a par-
da identidade específica de seus deuses e deusas tir de uma conduta moral estabelecida, mas pelo
políades e de seu panteão que as comunidades se rigor das práticas rituais. Para Gilbert e Collete
distinguiam entre si. No Mediterrâneo ocidental, Charles-Picard, os cartagineses regulamentavam
Cartago exerceu hegemonia sobre as demais colô- suas relações com os deuses de maneira bem se-
nias fenícias, com uma influência cultural que pene- melhante àquela que utilizavam nas transações
trou o conjunto de crenças de uma maneira original, comerciais e vangloriavam-se quando conseguiam
se a compararmos com a Fenícia no Oriente. Sobre enganá-los. Além disso, a própria divindade não
o conjunto das práticas religiosas entre os fenícios, podia ser considerada representante de uma moral
cerca de ¾ das fontes são epigráficas e provenientes absoluta e mais perfeita do que a comunidade de
de Cartago, contendo, geralmente, fórmulas estereo- cidadãos (CHARLES-PICARD, G.; CHARLES
tipadas, lacônicas e muitas vezes incompreensíveis -PICARD, C., 1964, p. 69).
(BONNET; XELLA, 1995, p. 317).
Corine Bonnet acrescenta que, do ponto de
De acordo com o historiador Werner Huss, vista religioso, os cartagineses possuíam diversas
muitas vezes não é possível fazer análises suficien- maneiras de estabelecer contato com as divindades,
temente detalhadas acerca do panteão cartaginês, a saber: a criação de espaços sagrados, os festivais,
de suas ideias e comportamentos religiosos e sobre os símbolos religiosos e as práticas sacrificiais.
a organização dos seus ritos sagrados, uma vez que As práticas religiosas unificavam a comunidade e
a documentação textual é rara e os testemunhos mostravam, ao mesmo tempo, sua diversidade com
epigráficos pouco nos ajudam em termos de con- a introdução de elementos gregos, africanos e itáli-
teúdo a ser estudado (HUSS, 1990, p. 339). cos (BONNET, 2011, p. 376). Werner Huss destaca
O arqueólogo e historiador Serge Lancel, que a finalidade do comportamento religioso car-
ao analisar o conjunto de crenças em Cartago, taginês era a de conquistar o apoio das divindades
afirma que, de maneira geral, a religião foi, na- mediante a entrega de oferendas, o cumprimento
1 Mestre em História Comparada (UFRJ), sob a orientação da Prof. Drª das prescrições rituais, a celebração das festas, a
Maria Regina Cândido. Professor Substituto de História Antiga e Medieval construção de templos e a realização de atitudes
da UEMA, Campus de Imperatriz. Coordenador do Grupo de Estudos Mul-
tidisciplinares de História Antiga e Medieval (GEMHAM/UEMA). moralmente éticas (HUSS, 1990, p. 340).
161
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Serge Lancel afirma que divindades estran- da Comunhão. Estas categorias são descritas no
geiras foram introduzidas de forma oficial em Tarif Sacrificial de Mareseille, uma plaqueta
Cartago a partir do IV século a. C. Os cultos às de bronze contendo as taxas a serem pagas aos
deusas helênicas Deméter e Koré passam a ser sacerdotes e as tipologias das vítimas expiatórias
regulamentados pelos poderes públicos que detêm em cada uma delas. Assim, o sacrifício, para os
ainda a prerrogativa da construção e manutenção cartagineses, renovava a energia divina e estava
dos templos (LANCEL, 1992, p. 213). Entretanto, bastante presente no seu cotidiano religioso
para Gilbert e Collete Charles-Picard, a influência (CHARLES-PICARD, G.; CHARLES-PICARD,
helênica em Cartago teria se iniciado em mea- C., 1964, p. 69 e 80). Uma parte do conteúdo do
dos do século VI a. C. A partir desta data, teria Tarif Sacrificial pode ser observada abaixo:
ocorrido uma reforma religiosa na cidade fenícia, O templo de Baal. Taxas fixadas sobre os
demonstrada pela liderança ocupada pela deusa pagamentos, no tempo de nossos senhores,
Tanit em seu panteão. Esta divindade era a personi- Halats-Baal, o Suffeta, filho de Abd-Tanith, filho
ficação da cidade, da mesma maneira que Palas era de Abd-Esmun, e de Halats-Baal, os Suffetas,
representada em Atenas. Os autores acrescentam filho de Abd-Esmun, filho de Halats-Baal, e de
seus colegas: para um boi, seja como holocausto,
ainda que os cartagineses atribuíam aos deuses as
ou oferta expiatória, ou oferta de gratidão, aos
causas de suas desgraças, doenças, guerras e ani- sacerdotes [deve ser dado] [10 dinheiros] de prata
mosidades e para restaurar a pax deorum, rompida para cada um, e, se for um holocausto, eles terão,
por eventuais desvios rituais, chegavam a praticar além deste pagamento 300 medidas da carne, e se
o sacrifício humano (CHARLES-PICARD, G.; o sacrifício for expiatório, [eles receberão] a gordura
CHARLES-PICARD, C., 1964, p. 68). e as adições e o ofertante do sacrifício receberá a
pele, e as entranhas, e os pés, e o resto da carne. [...]
Para Corine Bonnet, o Tophet, local onde eram Cada sacerdote que receber um pagamento além do
realizados sacrifícios infantis, é uma das maiores montante estabelecido neste tablete será multado.
inovações da religião cartaginesa. Outra inovação E cada ofertante de um sacrifício não deve pagar
[o montante] prescrito, além do pagamento, que [é
aparece na esfera do culto através da presença
aqui fixado] (Tarif Sacrificial de Marseille Apud
das divindades Tanit e Baal Hammon, também RAWLLINSON, 1990, p. 193).
cultuadas no Oriente Próximo, mas muito mais
importantes em Cartago e suas colônias. A presença Um dos grupos sociais mais importantes
massiva destas divindades em santuários ocidentais, em Cartago era aquele formado pelos sacerdotes.
especialmente nas áreas do Tophet, é motivada pro- Gilbert e Collete Charles-Picard revelam que o
vavelmente pelo fato de que desempenhavam uma conjunto sacerdotal cartaginês era composto, ao
função na vida social das comunidades e, mesmo mesmo tempo, por membros submetidos à mais
tendo origem oriental, apareciam como deuses pú- rigorosa disciplina religiosa, aos quais estavam
nicos tradicionais (BONNET, 2011, p. 378). interditados muitos aspectos da vida profana e os
Por outro lado, Gilbert e Collete Charles-Pi- dignatários oriundos da aristocracia política, isentos
card revelam que a originalidade da religião em das limitações impostas pelo conjunto da religiosi-
Cartago residia na sua perspectiva em relação à dade da cidade. Em seu interior, este grupo social
natureza a qual consideravam incompreensível também era organizado a partir de uma hierarquia
ao homem, em que as origens de todas as coisas bem definida. Cada templo estava submetido à
encontravam explicações no mundo dos deuses. autoridade de um chefe dos sacerdotes, chamado
O mundo, nesse caso, era um encadeamento de Rab Kohanim. A seguir vinham os assistentes das
forças sobrenaturais onde o homem dispunha de celebrações, responsáveis pela atividade sacrificial
poucos meios de ação dos quais podemos destacar ou pela tonsura dos sacerdotes ou daqueles que
as práticas sacrificiais. Estas práticas eram orga- desejassem se tornar iniciados nos ritos religiosos.
nizadas segundo seus objetivos, a saber: havia o Para o autor, sua atividade principal era a organiza-
Holocausto, o Sacrifício Expiatório e o Sacrifício ção dos sacrifícios, elemento essencial da religião
162
Fabrício Nascimento de Moura

cartaginesa (CHARLES-PICARD, G.; CHARLES mentadas e contraditórias. Entretanto sabemos que


-PICARD, C., 1964, p. 79-80). a religião púnica era politeísta, caracterizada pela
adoração a um grande número de divindades que
Entretanto, para Werner Huss, a administração da
controlavam a totalidade das necessidades humanas
religião em Cartago não estava sob a responsabilidade
e sociais. Segundo o autor, cada cidade-estado fení-
dos sacerdotes. Havia, naquela cidade, uma instituição
cia desenvolveu uma diversidade de interpretações
central de controle formada por dez componentes,
religiosas. Estas cidades organizavam a sua forma
provavelmente eleita pelo senado, chamada ‘srt h’sm
de adoração, criando tradições individuais, agre-
’s‘l hmqdsm ou “os dez homens que estão postos à
gando preeminência a certas divindades cuidadosa-
frente das questões sagradas”. Os membros desta
mente escolhidas, criando seus próprios costumes.
comissão deveriam supervisionar toda a construção
Assim, a partir do século V a. C. Cartago começou
e restauração de templos e monumentos. Havia ainda
a adotar uma Teologia e liturgia independente dos
outra comissão, chamada de h’s ’s ‘l hms’tt ou “Os
fenícios do Oriente. Quando as relações com Tiro,
trinta varões que estão à frente dos tribunais”, que se
sua cidade de origem se romperam, a adoração a
ocupava de todas as questões materiais dos templos,
Melkart, senhor da cidade, foi substituída por Baal
como as quantidades que deveriam ser retidas a partir
Hammon, e a deusa Astarte recebeu o nome de Tanit
da concessão de oferendas, sem levar em conta a
(BAGNAL, 2002, p. 12-13).
opinião dos sacerdotes. Ainda de acordo com o autor,
havia também as mrzh’lm, ou “irmandades” que eram David Wright acrescenta que, entre os fení-
responsáveis pelas festas anuais e pelos banquetes cios, os sacrifícios e festivais eram oferecidos às
rituais (HUSS, 1990, p. 355-356). divindades em benefício da comunidade. Além
destas, a comunidade cívica possuía outras ma-
No campo da atividade religiosa os cartagineses neiras de estabelecer contato com as divindades,
não se diferenciavam muito dos seus vizinhos, gregos como as orações por exemplo. A liturgia fenícia,
e romanos. Dexter Hoyos afirma que o panteão carta- que previa sacrifícios a Baal Hammon e outros
ginês era composto por um grande número de deuses deuses, recomendava que se reproduzisse um
e deusas, a maior parte deles oriundos da Fenícia, sua conjunto de palavras e fórmulas rituais após a
terra natal. O autor acrescenta ainda que a origem da celebração. Por outro lado, os deuses poderiam
deusa Tanit é incerta, pois sua representação apresenta se comunicar com as pessoas através de sonhos,
traços possivelmente oriundos da fenícia, agregando da adivinhação, do exame das vísceras de ani-
aspectos talvez assimilados das culturas presentes na mais, do nascimento de crianças mal formadas
região norte do continente africano. Esta divindade fisicamente e dos fenômenos astrológicos. Em
aparece em estelas votivas em Cartago datadas pela Cartago, outro traço religioso característico era
Arqueologia entre o final do século V e início do IV que a religião integrava a ideologia que justificava
a. C., geralmente acompanhada de outra divindade o poder dos reis. Estes eram legitimados através de
conhecida pelo nome de Baal. Em algumas ocasiões sua descrição como “sagrados diante dos deuses”.
as inscrições mencionam Tanit Pene Baal, ou Tanit Os deuses faziam dos reis governantes. E alguns
face de Baal. Ainda de acordo com Dexter Hoyos, esta destes governantes chegavam a acumular a função
divindade possui uma simbologia bem característica de sacerdotes (WRIGHT, 2004, p. 175-177).
composta geralmente por um triângulo com um cír-
De acordo com George Rawlinson, os Fení-
culo no seu ápice e uma linha traçada horizontalmente
cios adoravam seus deuses através de festivais,
entre os dois, de modo que o “signo de Tanit” sugere
orações, ofertas votivas e sacrifícios. Não sabe-
um contorno geométrico de uma mulher com uma lon-
mos ao certo de que maneira se organizava seu
ga túnica e com os braços estendidos, acompanhado
calendário litúrgico, mas cada templo possuía
de uma meia-lua (HOYOS, 2010, p. 95).
seus festivais que atraíam muitas pessoas, onde
Nigel Bagnall revela que as referências docu- os deuses eram homenageados a partir de práticas
mentais acerca da religião cartaginesa são frag- sacrificiais que poderiam durar dias. Os grandes
163
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

festivais eram uma responsabilidade dos sacerdo- reflete a fidelidade de parte da população de Carta-
tes da cidade, mas no âmbito doméstico, as pessoas go às práticas mais recorrentes na Fenícia. O autor
também faziam suas celebrações, sobretudo no adverte, no entanto, que as escavações arqueoló-
que se refere ao sacrifício. Nestas celebrações as gicas demonstram que a cremação tornou-se mais
vítimas expiatórias eram animais, principalmente frequente em Cartago a partir do século VI a. C. No
o gado, as cabras, as ovelhas e os cordeiros. Os período helenístico (séculos IV ao II a. C.) a sepultura
sacerdotes se organizavam em colégios e vestiam se generalizou na forma de pequenos túmulos de
normalmente uma túnica branca e um lenço que pedra calcária cobertos com uma tampa, possuindo
deveria cobrir toda a sua cabeça. Nas celebrações duas câmaras, sendo uma delas destinada aos restos
sacrificais, os sacerdotes se dividiam em funções mortais incinerados (LANCEL, 1992, p. 241).
bem definidas, a saber: uns matavam a vítima
Ainda de acordo com Serge Lancel as práticas
sacrifical, um segundo grupo fazia as libações,
funerárias não estão desvinculadas do desenvol-
outros preparavam o incenso e um quarto gru-
vimento urbano. Nas grandes cidades-estados do
po prestava assistência ao ritual nos altares. No
mundo antigo, o crescimento urbano se realiza
início da Primavera um sacrifício era realizado
em detrimento das necrópoles, abandonadas na
com a presença da comunidade. Grandes árvores
eram arrancadas pela raiz e lavadas para a porta medida em que as vilas crescem. Cartago também
do templo onde as vítimas eram suspensas em praticou essa reconquista do território dos mortos
seus galhos e queimadas juntamente com objetos em proveito dos vivos. A coexistência parcial dos
de ouro e prata, após uma solene procissão com vivos e dos mortos limita a ocupação do solo, o que
imagens dos deuses. Esta celebração demonstrava era problemático para Cartago que atravessara um
o agradecimento dos homens pela bondade divina longo período de crescimento da sua densidade po-
manifesta pela renovação dos campos e pela pros- pulacional desde sua fundação em 814 a. C. Neste
peridade da produção agrícola (RAWLINSON, sentido, para o autor, o crescimento demográfico
1990, p. 147-150). levou os cartagineses a abandonar a inumação e
a adotar a cremação em meados do século IV a.
Outra questão que merece destaque se refere C (LANCEL, 1992, p. 242).
às abordagens acerca das práticas funerárias dos
cartagineses. Dialogando com a Arqueologia, o A historiadora Glen Markoe também analisa
pesquisador Donald Harden revela que o principal as características da celebração dos ritos fúnebres
rito funerário dos fenícios era a inumação, mas é entre os fenícios. Segundo a autora, a iconografia
possível encontrar também vestígios que demons- funerária fenícia revela que havia entre eles a
tram a prática da cremação. Para o autor, é possível crença na ideia de vida após a morte. A adoção
definir os períodos em que a cremação ritual esteve de símbolos egípcios sugere esta hipótese, como o
mais presente na civilidade cartaginesa: esta prática Ankh (símbolo da vida) e a Flor de Lótus, símbolo
teria sido introduzida naquela região por volta do da regeneração. A Flor de Lótus aparece em uma
século VII a. C., tendo sido abandonada no século variedade de contextos religiosos, associada à
VI a. C. e reintroduzida em meados do século III a. proteção e renovação do morto. A proximidade do
C. Entretanto, ainda assim, a inumação manteve-se vale do Nilo justifica a influência dos ritos fune-
predominante em Cartago até a invasão romana em rários egípcios sobre os fenícios. A Arqueologia
146 a. C. A presença concomitante destes ritos pode tem tido relativo sucesso em reconstruir tais ritos,
ser o resultado da origem heterogênea da população uma vez que a documentação textual pouco nos
cartaginesa (HARDEN, 1971, p. 104-105). revela a respeito (MARKOE, 2000, p. 137-140).
O historiador e arqueólogo Serge Lancel As evidências arqueológicas encontradas em
concorda com a hipótese da coexistência entre a Cartago sugerem que um banquete ou refeição
inumação e a cremação ritual nas práticas funerárias cerimonial era encenado sobre a sepultura, por oca-
dos cartagineses. Para o autor, o recurso à cremação sião de seu fechamento. A conclusão da cerimônia
164
Fabrício Nascimento de Moura

de sepultamento era acompanhada por libações e Em suma, grande parte das descrições
pela queima de incensos. O ritual de preparação contemporâneas acerca da religião cartaginesa
do morto era realizado de acordo com o segmento advém dos relatos de historiadores gregos e ro-
social a que pertencia. O corpo era lavado, recebia manos da Antiguidade. É sabido que estas civili-
óleos aromáticos e depois era envolto por bandagens dades mantiveram relações de hostilidade com a
de tecido. Os mortos eram sepultados com vários cidade-estado púnica por muitos séculos. Cabe ao
utensílios, como potes de óleo, pratos, taças e etc. As historiador contemporâneo, portanto, a tarefa de
cerimônias de cremação foram introduzidas pelos recorrer a outros suportes de informação, como os
fenícios no Mediterrâneo Central e Ocidental por dados oriundos das escavações arqueológicas do
volta do século VIII a. C. Esta prática foi predomi- sítio cartaginês que muito têm avançado desde as
nante naquela região durante três séculos, sendo primeiras décadas do século passado. Acreditamos
substituída gradualmente pelo sepultamento. Em que reconstruir a história de Cartago não é das
Cartago, o sepultamento era o método mais comum, tarefas mais simples. Entretanto trata-se de uma
especialmente entre os grupos sociais predominan- atividade instigante por sua natureza e recompen-
tes (MARKOE, 2000, p. 140). sadora pelas potencialidades dos seus resultados.

165
REFERÊNCIAS HOYOS, D. The Carthaginians. New York: Routledge, 2010.
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166
VIDA COETÂNEA (1311):
Ramon Llull e o ideal de bom cristão

Flávia Santos Gomes1


Adriana Zierer

3) Fazer construir e edificar diversos mosteiros,

R
amon Llull nasceu em Maiorca em 1232,
membro de uma família que gozava de um onde homens sábios e literatos estudassem e
aprendessem a língua árabe e de todos os outros
considerável status e que possuía ligações
infiéis para que pudessem predicar e manifestar
com a corte de Jaime I, por ter participado da reto-
entre eles a verdade da santa fé católica.
mada da ilha em 1229, que até então se encontrava
sob domínio mulçumano, por tal feito a família de Ramon considerava como infiéis todos os que
Llull recebeu concessões territoriais, integrando a professavam uma fé diferente da cristã. Mas em sua
nobreza maiorquina. missão dedicou especial atenção aos muçulmanos,
fato que se explica pela ligação que Llull tinha com
Pouco se sabe da vida de Llull até a idade de
eles, uma vez que mesmo após a reconquista de
30 anos, quando se deu sua conversão. Em sua
Maiorca, muitos muçulmanos continuaram vivendo
autobiografia, Vida Coetânea (1311), ela fala muito
em Maiorca, num total de 50 mil habitantes, cerca de
brevemente desta fase de sua vida, dizendo somente
40% da população da ilha era islâmica e havia em
que ocupava função de senescal e majordano do
média 3 mil judeus (JAULENT, 2001, p.10).
rei de Maiorca e que se dedicava à arte de trovar
(LLULL, 1311, p. 6).
No entanto sabe-se que Llull casou-se com mArTÍrio E PErEGriNAÇÃo:
Blanca Picany em 1257 e teve dois filhos, Madalena A busca da purificação
e Domingos. Por volta de 1263, Ramon que se de-
signava um pecador, após ter visto por cinco vezes Após ter definido suas finalidades, Llull, inspi-
consecutivas a imagem de Cristo crucificado em rado pela vida de São Francisco, vendeu seus bens,
seu quarto enquanto compunha uma ‘canção vã’ a deixando apenas o suficiente para o sustento de sua
uma dama por quem estava enamorado ‘com amor família e pôs-se a um período de peregrinação ao
vil e feiticeiro’, entendeu que tal visão tratava-se santuário mariano de Rocamador, no sul da França,
de um chamado divino. e a Santiago de Compostela.
A descrição mais detalhada de sua vida dar-se-á A peregrinação na Idade Média era tida como
a partir das tais visões que o levaram a uma vida dedi- uma forma de martírio, que tinha função de extir-
cada à causa cristã, para qual formulou três propósitos: par o pecado do corpo através do sacrifício levando
1) Colocar sua vida para honra e glória de Jesus a alma à purificação.
Cristo.
A caminhada aos locais santificados pela presença
2) Fazer livros, uns bons e outros melhores, suces- de Cristo, dos apóstolos ou dos santos podia levar se-
sivamente, contra os erros dos infiéis.
manas ou meses e as rotas não ofereciam seguranças
1 Graduada em História na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA/
Mnemosyne). Docente do Progama Darcy Ribeiro da UEMA. Este artigo aos fiéis, uma vez que estavam repletas de provações,
é resultado de pesquisa orientada pela Prof. Drª Adriana Zierer. E-mail:
flavia_hst@hotmail.com
obstáculos e dificuldades. (LE GOFF, 2005, p. 127-131)
167
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

O perigo de morte oferecido pelas viagens Llull encerra a narração do seu período de
dos peregrinos, configurava-se como um bem, formação descrevendo o atentado que sofrera por
uma vez que morrer a caminho ou nos lugares parte do seu escravo mouro, por quem teria sido
santos era uma forma de alcançar um lugar no alvejado com um golpe de faca.
paraíso. (SOT, 2002, p. 353-366)
Nesta passagem fica clara a compaixão e gra-
O martírio significou para Ramon um mo- tidão de Llull para com o escravo por tê-lo servido
mento de mudanças de hábitos, de total abandono como mestre, mesmo após atentar contra sua vida
da vida anterior, marcada pelo pecado. No início Llull impede que o matem e o manda para o cárcere
de boa parte de as suas obras Llull se declara até que decida a punição adequada que destinaria
um pecador, em Vida Coetânea, fica claro que ao mouro, como podemos perceber no fragmento
ele cometia adultério na passagem que afirma abaixo, no qual Ramon pede inspiração a Deus
“compor canções vãs a uma dama a quem amava sobre a forma como deveria agir com o mouro:
com amor vil e feiticeiro”, não fazendo nenhuma Partiu à Nossa Dona de Real para pregar a
alusão à sua esposa. Nosso Senhor Deus que Lhe inspirasse o que
faria com o dito mouro. E como houvesse feito
ali orações por três dias, e estivesse muito
o iNTELECTuAL: maravilhado que seu espírito não descansava
em dar-lhe morte ou vida, antes estava naquela
Formação e composição da arte mesma perplexidade, com grande tristeza retor-
nou à sua casa; e, quando passou pelo cárcere
onde o cativo estava, descobriu que o dito cativo
Passado o período inicial de peregrinação estava pendurado com a corda com que estava
que se prolongou até por volta de 1265 (GAYA, preso. Deu então graças a Nosso Senhor o dito
Biografía de Ramon Llull), Llull passou a dedi- reverendo mestre, que Lhe havia tirado daquela
car-se aos estudos, uma vez que, segundo suas grande perplexidade, pelo qual tanto Lhe havia
suplicado (LLULL, 1311, p. 12).
palavras, era iletrado, pois teve na juventude uma
educação deficitária, tendo aprendido apenas um
pouco de gramática. Para trabalhar no propósito Após o incidente com o mouro, Ramon retira-
da conversão dos infiéis comprou um escravo se ao Monte Randa, com a intenção de “pregar e ser-
mouro para ensiná-lo a língua árabe. vir” a Deus, é quando em estado de contemplação
recebe a iluminação divina, “dando-lhe a ordem e
Este período de formação durou em média
a forma de fazer os ditos livros contra os erros dos
nove anos, nos quais também se dedicou à formula-
infiéis”(LLULL, 1311, p. 12).
ção de seu método lógico que provasse a existência
de Deus e da Trindade e da verdade da fé cristã. A partir de então Llull inicia sua grande pro-
dução literária, cerca de 300 obras das quais 280
Como os demais intelectuais do período,
foram preservados. Ao conjunto de obras escritas
Ramon buscou fundamentação de sua Arte, prin-
por inspiração divina Llull chama de Arte:
cipalmente na Bíblia, nos Padres, Platão e Aris-
tóteles, sem, no entanto, negligenciar os estudos A Arte é um sistema argumentativo baseado nas
dos árabes, influência regularmente encontrada relações necessárias que se dão entre os princí-
pios que constituem a realidade, que, na opinião
em suas obras. do maiorquino, são os mesmos — embora em
Em Vida Coetânea Ramon deixa clara sua combinações e imensidades diferentes — para
preocupação com a educação, que será um dos tudo o que existe, desde Deus, suprema Reali-
dade, até a realidade mais ínfima. Estas relações
principais temas bordado em sua vasta obra,
obedecem a certas leis ou razões necessárias que
principalmente no que gere a importância dada permitem fundamentar um modo de argumentar
ao seu período de formação, que seria a base para que se apoia na realidade tal como ela é e não nas
o cumprimento de seus propósitos. consistências mentais que a realidade pensada
168
Fabrício Nascimento de Moura

pode oferecer. Uma breve explicação sobre os 2. Unir-se às virtudes e odiar os vícios;
pressupostos em que se baseiam estas razões
3. Confrontar opiniões errôneas dos infiéis por
necessárias sintetizará de alguma maneira a
meio das razões convincentes.
original Teoria de conhecimento do Doutor
Iluminado(JAULENT, 2001, p. 17). 4. Formular e resolver questões e;
5. Poder adquirir outras ciências em breve es-
Não há na vida de Ramon um período es- paço de tempo e tirar conclusões necessárias
pecífico de dedicação à composição da Arte, segundo as exigências da matéria.
ela se dá desde o período de formação e não
finda com a sua pregação e peregrinação ao
mundo islâmico. A DiVuLGAÇÃo DA ArTE
As primeiras composições datam de 1271-
NA uNiVErsiDADE DE PAris
1274, sendo elas a Lógica de Gatzel, em versão
metrificada e o Livro da Contemplação de Deus, Em 1287 Ramon vai à corte papal solicitar
que foram escritos primeiro em árabe e posterior- que sejam construídos mosteiros onde seja ensi-
mente em latim. nada a língua moura aos clérigos para que estes,
mais eficazmente, trabalhem na conversão dos
A produção literária de Llull, de acordo com infiéis e na expansão da fé cristã. No entanto, a
Gayá, passa por mudanças no decorrer de sua chegada de Llull coincide com a morte do Papa
elaboração, podemos destacar entre elas: Honório IV. É a partir de então que se dá a entrada
1. Ars Abreujada d’atrobar veritat – Primeira de Llull no cenário político europeu que até então
designação dada à Arte Luliana, busca provar se restringia à Maiorca.
a verdade da existência de Deus.
Na mesma ocasião Llull dirige-se à França
2. Ars Universalis – Puramente aristotélica de-
onde visita à corte de Felipe IV, O Belo e lê pu-
dicada aos princípios da Teologia, Filosofia,
Direito e Medicina.
blicamente sua Arte, na Universidade de Paris,
recebe críticas pela complexidade do seu método.
3. Ars Notatoria – Busca um sistema para re-
duzir simbolicamente o processo discursivo. Este episódio frustra o filósofo, uma vez que
4. Ars Demonstrativae – Que servem de comen-
Paris é tida como cidade centro de desenvolvi-
tário. Pautada na teoria dos quatro elementos, mento intelectual, por esse motivo promoveu
baseada na física aristotélica e medieval. então uma vasta revisão de sua obra em Montpel-
lier, encerrando a primeira fase de construção da
5. Art Inventiva – Baseada no sistema combi-
natório de três elementos. Caracterizada pela Arte, chamada Arte Demonstrativa, e iniciando
tentativa de facilitar a compreensão de sua Arte. a produção da Arte Inventiva.
6. Ars Generalis Ultima – preocupação com a
lógica e com problemas como as Cruzadas,
filosoficamente as obras aderem uma cono- rAmoN LLuLL
tação anti-averroítas. E o muNDo isLÂmiCo
Llull também elabora obras nas quais aborda Após o período inicial de composição de suas
as temáticas de crítica e reformulação social (O Li- obras Llull pôs-se à missão de viajar o mundo
vro da Ordem de Cavalaria), pedagogia (Doutrina islâmico a fim de divulgar sua Arte e trabalhar na
para Crianças) e política (O Livro das Bestas), que conversão dos infiéis. Inspirado pela concepção
em geral possuem forte caráter catequético. de santo que se tinha neste momento.
Segundo Ricardo da Costa, a Arte luliana No século XIII, o ideal de santidade deixou
possui cinco usos (COSTA, 2000, p. XXIV-XXV): de ser o homem que se isolava nos mosteiros
1. Conhecer e amar a Deus; parar orar por sua salvação e pela dos demais, o
169
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

monge, passando a ser do apóstolo, do “pregador ouviriam claramente não tão somente as coi-
itinerante” como é o caso de São Francisco e São sas ditas acima, mas ainda como a segunda
Domingos (VAUCHEZ, 1994, p. 219). pessoa está unida de uma maneira razoável
na natureza humana, e como na humanidade
Sua primeira viagem foi a Túnis, em dezembro muito razoavelmente há paixão sustentada
de 1293, onde Llull busca por um literato islâmico pela Sua grande misericórdia, pelos pecado-
com finalidade de travar um debate para provar res entre nós, pelo pecado de nosso primeiro
pai, e para trazer-nos à Sua glória e beatitude,
qual fé possuía verdade, a de Maomé ou a Cristã.
pela qual ultimamente temos estado criados.
Em Vida Coetânea Ramon Llull narra como E, como finalmente o dito reverendo mes-
se deu o debate: tre com as ditas razões começou a ilustrar
Acomodaram-se todos os mouros conhece- os pensamentos e entendimentos dos ditos
dores que se encontravam diante da cidade infiéis, seguiu-se que um dos ditos infiéis,
de Túnis, alegando as mais fortes razões pensando que se aquelas razões tão altas, tão
que sabiam e podiam em sua seita; e como o maravilhosas e tão necessárias fossem ma-
dito reverendo mestre facilmente respondeu nifestadas, a sua seita viria a ser totalmente
e satisfez a eles, todos estavam espantados e exterminada e destruída, denunciou as coisas
maravilhados, e por isso ele começou a falar acima ditas ao seu rei, requerendo que o dito
e dizer assim: “- Convém manter aquela fé e cristão morresse uma morte cruel. E, sobre
crença (a cristã) a qualquer homem sábio e as coisas ditas acima, o dito rei convocou seu
letrado, qual majestade divina, a qual cada conselho, que determinou aqui, pela maioria,
um de vocês crê e outorga, atribuindo maior que o dito reverendo mestre devesse morrer
honra, bondade, poder, glória e perfeição, e (LLULL, 1311, p. 22).
todas estas coisas em maior igualdade e con-
cordância; e assim mesmo aquela fé e crença Os debates, minunciosamente respaldado
(a cristã) deve ser mais exaltada e mantida a pela lógica, eram um acontecimento frequente na
qual entre Nosso Senhor Deus e o seu efeito Idade Média, uma vez que através deste era pos-
possua maior concordância e conveniência.
sível provar a veracidade dos seus argumentos.
E, como eu entendo, pelas coisas propostas Ao final do estudo de uma determinada ciência
a mim por vocês, que todos vocês que têm era o debate que provava que o aluno dominava
a seita de Maomé não entenderam que nas
tal conhecimento.
dignidades divinas existem atos próprios
intrínsecos e eternos, sem os quais as dig- Neste fragmento Llull denomina que seu
nidades divinas são ou seriam ociosas ab discurso tem mais veracidade que o dos sábios
aeterno (assim como na bondade de Deus islâmicos, que temerosos com a possibilidade de
podemos dizer bonificativo, bonificável e
que Llull possa provar para mais pessoas a supe-
bonificar, e em magnificência, magnificativo,
magnificável e magnificar, e assim das outras rioridade de verdade da fé católica ante a moura,
dignidades semelhantes; e, por conseguinte, para evitar este feito ordenam que o maiorquino
seria colocar ab aeterno ociosidade em Deus, seja morto, fato que não se concretiza devido à
a qual coisa seria blasfêmia, e contra a igual- intervenção de um sábio mouro.
dade e concordância a qual realmente existe
em Nosso Senhor Deus); e por isso, por esta Em breve passagem por Nápoles, Ramon lê
razão, os cristãos provam que a trindade de publicamente sua Arte, passando ainda por Gênova,
pessoas existem na essência divina. Paris, Chipre, onde fora envenenado, e Famagusta,
A qual coisa provo necessariamente: outro dia enquanto esperava a eleição do Papa.
ouvi dizer que foi revelado a um certo ermi- É necessário frisar que nas viagens de Llull a
tão, ao qual divinalmente foi inspirada certa
terras mouras há uma forte busca pelo martírio, e que
Arte para demonstrar por vivas razões como
na simplicíssima essência divina há trindade ele se coloca por várias vezes em perigo de morte,
de pessoas. As quais razões e Arte, se com uma vez que na mentalidade medieval, morrer nessas
pensamento repousado quisessem escutar, condições era garantia de salvação.
170
Fabrício Nascimento de Moura

A sEGuNDA VisiTA Nesta altura da vida Llull com a idade já avan-


À CorTE romANA çada, principalmente se levarmos em conta a pers-
E PArisiENsE pectiva de vida do período, utiliza uma narrativa com
um certo tom de lamentação, pelo não cumprimento
Dá-se então a segunda visita de Llull à corte de seus intuitos, alguns delimitados desde conversão
romana, após a eleição do Papa Clemente V (5 de e outros adquiridos no decorrer de sua missão, como
julho de 1294), no entanto os pedidos do maior- é o caso da luta contra o averroísmo e a retomada da
quino não são recebidos com atenção. terra santa através do movimento cruzadístico.

Insatisfeito com o não acolhimento de seus As passagens aqui registradas são só algu-
pedidos por parte do Papa e dos reis, especial- mas das tantas realizadas por Ramon ao longo
mente Felipe IV, Llull escreve em 1295 o Des- dos mais de cinquenta anos de sua vida dedicados
consolo, na qual Llull narra seu encontro com à defesa veemente do cristianismo.
um eremita para quem chora o fato dos ‘homens Mesmo com a constante busca pelo martírio
de poder’ não se disponibilizarem a atender ao é provável que a morte de Llull tenha se dado no
seu pedido de construir mosteiros onde fosse Mosteiro de Miramar, único que Llull conseguira
ensinada a língua moura para que os clérigos fundar para servir ao propósito de ensinar aos
trabalhem na conversão dos infiéis. clérigos a língua moura, para trabalharem na con-
versão dos infiéis para Maiorca, antes de março
de 1316. Seu corpo fora enterrado no convento
CoNsiDErAÇÕEs FiNAis franciscano da cidade de Maiorca.
Mesmo com as constantes viagens, Llull Vida Coetânea configura-se como um manual
não deixou de produzir suas obras, que acre- que deveria servir de inspiração à cristandade da
ditava ser o meio de conversão dos infiéis e forma como, por sua vida em virtude da primeira
salvação dos homens. Para tanto, na passagem intenção, Llull pretendia, com seu exemplo, levar os
por centros de compilação Ramon mandava fa- homens a viverem em conformidade com as práticas
zer cópias de suas obras para que estas fossem cristãs, contribuindo assim para que tivessem uma
mais divulgadas e servissem para o propósito vivência social harmônica e consequentemente, no
salvação dos homens. pós morte, poder gozar das glórias do Paraíso.

171
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172
As LENDAs Do EL-rEi Touro D. sEBAsTiÃo
E o miLAGrE DE GuAXENDuBA:
Narrativas de origens medievais
na formação da identidade cultural maranhense

Flávio P. Costa Júnior1


José Henrique de Paula Borralho2

o Touro ENCANTADo
NA iLHA Dos LENÇóis

E
m algures do mundo lusófono, ou seja, onde um touro negro, deitando fogo pelas narinas e
um dia se fez parte do Império Português, há com uma estrela alvinitente à testa. É D. Sebas-
tião encantado, o “dono da praia”, como é vez
diversas vertentes da lenda de D. Sebastião3.
o dizerem os embarcadiços que transitam por
No Maranhão sua manifestação está presente na Ilha aquela região (BRAGA, s.d, p. 51, grifo nosso).
dos Lençóis pertencente ao município de Cururupu.
Segunda as narrativas populares as aparições do rei Há uma razão importante, como aponta o so-
são em formas de um cavaleiro (montando um cava- ciólogo português para que o imagético popular
lo) em um navio (MONTELLO, 1981). Mas é bem atribua a Ilha dos Lençóis como lugar de escolha
mais conhecida em sua forma de touro. Pedro Braga para as aparições deste rei:
(s/d), sociólogo português avaliou algumas caracte-
Os primeiros portugueses que se instalaram
rísticas desta narrativa em solo maranhense.
naquela região, provavelmente escolheram as
O sebastianismo no Maranhão adquiriu carac- praias dos Lençóis para habitat do Rei pelo fato
terísticas de conto maravilhoso. Conta-se que de suas dunas sugerirem alguma semelhança
no dia 24 de junho, dia de São João, à meia com a paisagem com o Norte da África, onde
noite, aparece nas praias da Ilha dos Lençóis desaparecera D. Sebastião (p. 52).
1 Graduado em História na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e
Mestrando em História na Universidade Federal do Maranhão. Esta pesqui-
sa é resultado de bolsa de iniciação científica com a orientação do prof. Dr. Elemento importantíssimo nesta narrativa
José Henrique Borralho. E-mail: flaviopoeta@hotmail.com
2 Doutor em História. Docente de História da Graduação e do Mestrado
e que o perspicaz pesquisador observou, e é bem
em História, Ensino e Narrativas na Universidade Estadual do Maranhão característico do sebastianismo em suas narrativas
(UEMA).
3 D. Sebastião I de Portugal, o Desejado, como era conhecido, foi o último lendárias é seu aspecto messiânico. O autor destaca
representante da família de Avis na monarquia. Filho de D. João Manuel e
de Joana de Áustria nasceu depois de ter passado dezoito dias após a morte
a estrela na testa do El-rei Touro.
de seu pai, em 1554. No momento de sua menoridade, o trono foi assegurado
para manter a continuidade da família de Avis pela regência da avó do rei, Na narrativa, a estrela que o touro traz à testa
Catarina de Áustria e mais tarde pelo tio-avô, o Cardeal Henrique de Évora. também é revestida de significado, relacionado
Assume o trono com 14 anos de idade em 1568. Teve uma educação jesuí-
tica, o que muitos teóricos apontam seu caráter profundamente religioso.
com a essência messiânica da lenda. Símbolo
Na famosa batalha de Alcácer-Quibir, o rei D. Sebastião tinha o intuito de judaico, a estrela está ligada à ideia da vinda do
manter o controle do Marrocos, mas seu exército foi derrotado. O que oca-
sionou o desaparecimento do próprio monarca que tinha ido pessoalmente
Messias. Tanto no Antigo como no Novo Tes-
acompanhar a guerra. Isso ocorreu quando o rei tinha 24 anos de idade. A tamento encontramos referências à estrela como
maior consequência disto, já que o mesmo não possuía herdeiros foi à perda prenúncio messiânico (p. 63).
da independência de Portugal para Espanha, no processo que ficou conhe-
cido como União Ibérica ou União Filipina. Parte da sociedade lusitana não
aceitou esta perda de soberania, o que fez com que surgisse entre estes a
ideia de que D. Sebastião continuaria vivo, e que só havia desaparecido e a Também é importante destacar o aspecto ani-
qualquer momento voltaria e restauraria a independência portuguesa. malesco desta narrativa, pois é carregada de sim-
173
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

bolismo. “Em contraste com o touro selvagem, o José Ribamar Reis também faz comparação
boi é um símbolo de paciência, de sofrimento e entre a lenda e o folguedo, destacando a origina-
de passividade” (LURKER, 2003, p. 91). Tanto lidade maranhense.
o boi como o touro (e às vezes se confundem) O batizado do Bumba-boi maranhense é vin-
tem significados importantes para as socieda- culado, também, à intercessão deste folguedo
des tradicionais. No caso do Maranhão, o boi com o Sebastianismo ou a miNA. Assim, o
(passivo) está simbolizado no folguedo do bum- Bumba-Boi inicia sua dramaturgia conforme
a LENDA Do rEi sEBAsTiÃo, na qual
ba-meu-boi e há uma ligação entre a vida e a
se diz que no dia 23 de junho, véspera de São
morte. Pedro Braga faz análise desta caracte- João, Rei Sebastião se transforma em luzen-
rística também na lenda do touro (selvagem) D. te touro negro encantado, com uma estrela de
Sebastião. O trecho descreve a história principal ouro na testa na Praia dos Lençóis, no municí-
que é encenada no folguedo do bumba-meu-boi, pio maranhense de Cururupu. Com estas ca-
quando Catarina (Catirina), criada (ou escrava) racterísticas especificamente nossas é o Bum-
ba-boi do Maranhão totalmente diferente dos
de uma fazenda, grávida deseja comer a língua
demais que se apresentam em outras partes do
do boi mais bonito da fazenda, e seu marido (pai Brasil (REIS, 2005, pp. 8-9, grifo do autor).
Francisco) com receio de que caso não realizas-
se o desejo de sua mulher poderia perder o filho, O touro rei diferente do boi passivo do fol-
mata o boi de seu amo. Quando é descoberto guedo tem que ser de certo modo domado por
tal “crime” é chamado um pajé ou doutor que alguém. Para tanto, é imposto um desafio de co-
ressuscitará o animal (VIEIRA FILHO, 1976;)4. ragem para quem deseja desencantar o rei. No
Esta narrativa é cara para o sociólogo português caso da lenda de D. Sebastião a prova de cora-
para se entender a lenda de D. Sebastião: gem é atingir o símbolo que o animal traz na
Mãe Catarina, mulher de pai Francisco ou testa. Ao ser desencantado some a forma ani-
Cazumbá, de idade já avançada, engravida. malesca e volta a ser rei. E logo redime a socie-
Grávida deseja comer a língua do bezerro mais dade local trazendo fortuna. Existe uma lenda
bonito da fazenda. Pai Francisco, instigado por
análoga contada no município de São José de
ela e temeroso de que a mulher venha a perder
o filho, mata o boi. [...] seguindo-se todas as pe- Ribamar que é conhecida como Touro da praia
ripécias e críticas sociais e de costume culmi- do Caúra. Quem dominar este touro, que possui
nado com a ressurreição apoteótica do animal. uma coleira dourada, tornar-se-á bastante rico5.
[...]
No caso da lenda do el-rei touro, o desen-
Esse é, aliás, o eixo da analogia estrutural entre cantamento do mesmo terá como consequência
a narrativa mítica da Ilha dos Lençóis e a dança
o surgimento da corte de Queluz e a destruição
dramática do Bumba-meu-boi. O touro, resultado
da transformação de D. Sebastião, precisa morrer
de São Luís.
a fim de ressurgir o Rei com sua Corte. Na cren- O sortilégio, entretanto, pode ser quebrado,
ça, mata-se o touro para que viva o Rei; no auto bastando para isso que alguém se disponha a
mata-se o boi para que viva o filho de Catarina e deferir um golpe na estrela que o touro traz a
pai Francisco. Em ambos os casos, a liquidação do testa. Caso D. Sebastião desencante, São Luís
animal — por paradoxal que possa parecer — sig- afundará e, das praias dos lençóis, emergirá a
nifica o triunfo da vida sobre a morte, a redução da corte de Queluz (BRAGA, s.d., p. 55).6
incerteza e a posse do novo equilíbrio. [...] O nasci-
mento do novo surge das estranhas da morte, que A característica de desencantamento e re-
fecunda a vida. Esse sentimento universal dado
compensa deve ser a questão que levou Pedro
pela cultura popular cujos traços encontramos no
mito do touro encantado e no auto do Bumba-meu Braga a descrever na primeira citação como
-boi. (pp. 58-59). 5 Narrativa de domínio popular, desconheço divulgação acadêmico ou da
mídia sobre a mesma,
4 Curiosamente, em um manuscrito egípcio de 3200 anos, conta a história 6 Esta não é a única lenda que tem como fim trágico a destruição de São
dos “[...] caprichos da mulher que pede ao marido o fígado (ou língua) de um Luís, mas existe outra narrativa que conta que há uma serpente enorme
boi estimado, para ela comer, e ele cede” (COELHO, 2008, p. 36). debaixo da cidade e que quando tal despertar São Luís será afundada.

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Flávio P. Costa Júnior / José Henrique de Paula Borralho

“conto maravilhoso”. Pois são diversos os casos possa vir a ser verdadeira” (são narrações que se
de contos de fada em que o herói tem que destruir põe em dúvida se aconteceu ou não).9
o monstro ou animal para que surja a sua recom-
A narrativa do Rei touro D. Sebastião é en-
pensa (GRIMM, 2005; BETTELHEIM, 1980),
carado como lenda por muitos escritores (RA-
mas para tanto deve haver uma prova de coragem
POSO, 1950; FREITAS, 1979; MORAES, 1980;
do mesmo. Uma narrativa apresentada por Mun-
REIS, 2008), mas para muitos seguidores de re-
dicarmo Ferretti (2000) também mostra este dile-
ligião afro-maranhense é inteiramente verídico,
ma, em que um estivador desejoso em casar com
no que fica caracterizado também como mito.
uma linda princesa teria que desencantá-la, pois a
(FERRETTI 1991; 2000).
mesma estava metamorfoseada em serpente.
O rapaz ficou interessado, pois ela era uma
Na lenda de João de Una há uma das versões
princesa muito bonita, e indagou o que deveria que também o apresenta como encantado em touro:
fazer. Antes de responder, ela perguntou se Narram que um navegador europeu de nome
ele era corajoso, para saber se não iria desistir João de Una, ao se aproximar dos mares ma-
no meio, quando visse o que irar ver. Ele disse ranhenses, apaixonou-se por uma divindade do
que era corajoso e, talvez, também por curio- mar gigante, o que acabou lhe rendendo um en-
sidade, aceitou o desafio. Deveria cortá-la de cantamento eterno, jamais retornando ao porto
um golpe só, separando-a em duas partes de origem. Afirmam, ainda, que a sua embarca-
para que ela pudesse sair do encanto [...] ção estava à deriva, que sua esposa faleceu em
Quando ele olhou a cobra teve um medo tão virtude da paixão provocada pelo não regresso
grande, que saiu correndo, pisando por cima da esposa. Alguns pescadores das praias Olho
de tudo, e quase desmaiando7 (2000, p. 31-32, de Porco, Araçaji e Raposa da Ilha de São Luís
grifo nosso). afirmam já terem visto o belo navio de João de
Uma, bem como contam de seu aparecimento
em noite de lua-cheia transformado em um
Porém as narrativas descritas pela autora cita-
lindo touro negro, que ronda aquelas praias
da anteriormente não se tratam de contos feéricos, (BIANA EM REVISTA, 2007, p. 53).
como é o caso dos Contos dos irmãos Grimm, ain-
da que tenha algumas características que se asse- Na religião de mina, como bem lembra José
melham. Pois para ser deste gênero tem que ser Ribamar Reis (2008), João Una é filho de D. Sebas-
entendido como ficcional, mas nesse caso são tidas tião, por isso não é de admirar que o mesmo possa
por verdadeiras estas experiências que estão pre- adquirir esta característica metamorfoseante.
sente no livro Maranhão Encantado. “As histórias
contadas nesse livro não me foram passadas como A lenda de D. Sebastião tem como cerne
ficção. Elas foram vividas por pessoas de São Luís, a própria formação política e social do mundo
Ribamar, Cururupu e Codó, que têm ligação com lusófono e tem suas características próprias no
terreiros ou aproximação com encantados” (FER- que se refere ao Maranhão. Desta maneira a vin-
RETTI, 2000, p. 116). da do messias, ou melhor, de um salvador que
possa melhorar as condições de vida da popula-
Em síntese o mito é uma “narrativa real”,
ção local é significativa. As relações econômi-
pois adeptos de uma determinada religião creem
cas locais estão presentes nesta narrativa:
em sua veracidade. Os contos de encantamen-
9 Conceito de lendas desenvolvido por mim: narrativa inverossímil, majori-
to, fábulas e parábolas são considerados como tariamente de origem oral — a despeito da origem etimológica da palavra,
que vem de legenda, aquilo que deve ser lido, referindo-se a história dos
“histórias falsas” (todos sabem que não aconte- santos católicos na idade média —, que apresenta aspectos históricos e so-
ceram)8. E por fim a lenda é uma “história que ciais de uma comunidade e que está pautada na dúvida se ocorreu ou ocorre
no tempo profano, ainda que em sua maioria não especifique a sua for-
7 É comum este tipo de narrativo no conto de fada, do herói ser desafiado mação e nem indique explicitamente o tempo que está representando, não
para obter a sua recompensa, exp: “o rei da montanha de ouro”; “o rapaz havendo necessidade de sua ritualização. Tem duas formas de ser conforme
que não sentia calafrio”; “o pequeno polegar”. In. GRIMM, 2005, p. 99, o seu modelo de narração: a de enredo (com princípio, meio e desfeche –
109, 291, respectivamente. como o é o Milagre de Guaxenduba) e a de “fenômeno” (inserida em um
8 ELIADE, 2002. Além do mais o mito é característico pela realização de cíclico, repetindo-se em um determinado lugar – como o é a lenda de D.
sua ‘práxis’ que é o rito. Sebastião encantado em touro).

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Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

A ideia de um monarca de magnificência e Em suma a lenda de D. Sebastião tem em


riqueza também aqui se faz presente. Aquela seu cerne um complexo de significados sociais.
população praiana submetida à extrema misé- 11
Tendo uma simbologia religiosa, política, so-
ria sonha o sonho cotidiano da possibilidade
cial e econômica.
de melhoria econômica. À vinda de D. Sebas-
tião está ligado o advento de bens materiais,
de melhora de vida (BRAGA, s.d., p.56).
o miLAGrE DE GuAXENDuBA
Este fator econômico é importante, pois há
um anseio de uma vida melhor dos indivíduos A colonização do Maranhão foi feito de
do local que estão na extrema pobreza. E curio- modo tardio em relação às outras regiões em que
samente é na Ilha dos Lençóis, no momento do Portugal se afirmava como “dono”. Somente no
desencantamento de D. Sebastião, que emerge a século XVII, no momento histórico conhecido
Corte de Queluz. Lugar este que está submerso como União Felipina12 (1580-1640), época em
no mar, e ao emergir tornará a região rica e prós- que a colonização pôde começar de fato. Desde
pera e a cidade de São Luís, que é a mais rica do 1554 estava estabelecida como Capitania Here-
estado e a capital irá afundar (ser destruída). A ditária do Maranhão, mas a região só seria ocu-
glória da Ilha dos Lençóis destruirá a glória da pada por lusitanos efetivamente no século XVII.
cidade-ilha ludovicense.10 Em Pernambuco uma Isso preocupava a corte ibérica, já que na
comunidade pobre no século XIX também creu região onde atualmente está localizado a cidade
que com o retorno de D. Sebastião o local seria de São Luís, era constantemente visitada por cor-
rico e feliz. Ele “ [João Antônio dos Santos] fala- sários franceses. As expedições luso-espanholas
va das riquezas de um reino encantado prestes a não lograram adentrar a região. Tanto por terra
ser desencantado com o surgimento do rei ima- como por mar foram tentativas fracassadas. Al-
ginário [D. Sebastião], momento em que os que gumas das razões estariam relacionadas ao di-
nele cressem ficariam ricos e teriam felicidade fícil acesso a localidade, aos indígenas aliados
plena” (CABRAL, 2009, p. 152). aos franceses que lutavam contra os perós (como
Este aspecto de um rei encantado que trará eram conhecidos os portugueses pelos nativos)
riqueza e felicidade é presente na cultura política (GODÓIS, 2008; MEIRELES, 2001).
brasileira de governante que “salvará a pátria” e Entretanto os franceses já estavam se esta-
tem em parte sua origem nas lendas sebásticas. belecendo no Maranhão, constituindo um rela-
Historiadores, sociólogos e antropólogos de- cionamento de cumplicidade com os nativos:
bruçaram-se muitas vezes sobre o tema, iden- Jacques Riffault, estabelecia a feitoria da
tificando a colonização portuguesa e católica Upaon-Açu em 1594, quando aqui arribara
como a principal responsável pela presença do desarvorado com duas das três naus com que
componente messiânico no imaginário políti- demandara o Potiiú de Ibirapive, cedo voltou à
co brasileiro. Desde os primeiros tempos da França, dizem uns que desgostoso com aque-
conquista esta terra, assim como todo o cha- le desastre e com a insatisfação reinante entre
mado Novo Mundo, chegou a ser identificada seus homens, ou, pretendem outros, na ex-
com o paraíso terrestre – terra de abundância e pectativa de mobilizar maiores recursos com
prosperidade (MEGIANI, 2003, p. 19). que estabilizar sua conquista. Nunca voltou,
porém; e Charles des Vaux, que ele deixara
10 A capital maranhense é apresentada por sua glória do passado (as vezes em seu lugar no Maranhão e que, durante sua
até para contrapor com a “decadência” atual), em uma verdadeira tauto-
logia da elite intelectual ludovicense. Em parte a cidade conserva o seu
ausência, se afeiçoara aos indígenas e domina-
centro histórico como registro dessa glória do passado. Fazem parte desta ra-lhes perfeitamente a língua, resolveu, após
tautologia ludovicense certas atribuições e epítetos: “Atenas brasileira” dois anos de vã espera, ir também à França
(devido a grande proporção de literatos na cidade, mas isto é bem ques-
tionável), Manchester brasileira (por ser uma cidade com bastantes indús- 11 O jornal A Cruzada de 1892 tem diversos antigos se referindo de manei-
trias no século XIX e por ser a quarta maior do império), “onde melhor se ra pejorativa aos partidários da restauração monárquica como sebastianistas.
fala português” (são divergentes as razões dessa atribuição, mas não se é 12 A União Filipina ou União Ibérica é o momento histórico em que o rei-
justificável que haja um dialeto melhor que outro dentro de um idioma!). no de Portugal e Espanha estão sendo governadas por uma mesma coroa.

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Flávio P. Costa Júnior / José Henrique de Paula Borralho

para demonstrar a vantagem e conveniência, nagem a Luis XIII.13 Estava-se engendrando uma
se não necessariamente, de se apossarem da colônia francesa na região.
região, mesmo porque os portugueses estavam
insistindo no propósito de chegar até lá (MEI- Como a União Ibérica acreditava ser a
RELES, 2001, p. 39-40). “dona” legítima desta região, a corte castelhana
mandou uma expedição para expulsar os france-
Des Vaux acreditava na possibilidade de ses, comandada por Diogo Campos e Jerônimo
que uma colônia francesa nesta região pudesse de Albuquerque com indígenas aliados. Em 1614
dar lucros, e com a ajuda de alguns corsários de ocorrem já as primeiras batalhas entre franceses
sua mesma nacionalidade, que sempre estavam e lusitanos. Estes estavam sediados num lugar
pelos mares do Maranhão, partiu para a Europa conhecido como Guaxenduba. No discorrer do
para tentar convencer o rei de tal empresa. conflito os soldados do lado português começa-
ram a descrer na possibilidade de se vencer. “Em
A descrição [do des Vaux] que fez da terra em
sete navios e 46 canoas, capitaneados pela Re-
que os franceses se haviam estabelecido pare-
ceu ao monarca lisonja demais para correspon- gente, apresentavam-se à luta, certos da vitória,
der à realidade. Todavia, não querendo Hen- mais 300 franceses e cerca de dois mil selvagens,
rique IV proceder levianamente, decidiu-se a sob a direção suprema do próprio La Ravardière”
mandar ao Maranhão, colher informações fide- (MEIRELES, 2001, p.54). Mas mesmo que em
dignas, o fidalgo e oficial da marinha francesa menor número, com menos armamento e com o
Daniel de La Touche, Senhor de La Ravardière, rival dominando a região, os portugueses se sa-
prometendo fundar a colônia sugerida, no caso
graram vitoriosos (1614, e no ano seguinte a ex-
de confirmação daquelas notícias. Chegando ao
Maranhão, com Vaux, pouco tempo depois se pulsão dos franceses por completa).
convencia o comissário real da veracidade das Por causa deste fato surgiu uma das lendas
informações prestadas ao soberano e, passados mais antigas, que se manteve viva no imaginário
seis meses de residência no lugar, embarcava
popular maranhense, o Milagre de Guaxenduba:
para França com aquele seu companheiro, para
dar ao rei o resultado da sua observação e estu- Apesar de lutarem com bravura, iam-se ar-
dos (GODÓIS, 2008, p. 94). refecendo os ânimos dos soldados de Jerôni-
mo de Albuquerque eis que surde, surde entre
eles, uma formosa mulher envolta em auréola
Entretanto o rei Henrique IV morre antes da
resplandecente. Ao contato de suas mãos mila-
chegada de La Touche. A empreitada de colonizar grosas, transformam-se a areia em pólvora e os
a região do Maranhão não foi fácil, já que a situa- seixos em projéteis. Revigorados moralmente
ção política na França não estava favorável. Luis e provido das munições que lhes estavam fal-
XIII era menor de idade e sua mãe Maria de Mé- tando, os portugueses impõem severas derrotas
aos invasores, a cujos sobreviventes só restou o
dici estava na regência, alarmada com a conjuntu-
recurso da rendição (MORAES, 1995, p. 141).
ra da época. Para iniciar a colonização La Touche
“associou-se com Francisco, Senhor de Rasilly e
O relato mais antigo que se tem desta lenda
Aunelles, e Nicolau de Harlai, Senhor de Sancy e
é feita no século XVIII, como mostra este tre-
Barão de Molle e Gros Bois” (GODÓIS, 2008, p.
cho de um livro datado de 1759:
95), com o consentimento da Regente. Também
Foi fama constante (e ainda hoje se conserva
foram nesta empresa padres capuchinhos, entre
por tradição) que a Virgem fora vista entre
estes Ivo d’Évreux, Claude d’Abbeville. Estes re- os nossos batalhões animando os soldados
ligiosos no Maranhão estavam estabelecendo rela- em todo o tempo do combate, retardando-
ções com os indígenas e os ensinavam os preceitos 13 A comemoração da fundação de São Luís é a partir deste marco. Entre-
tanto isso é bastante polêmico. O livro a Fundação do maranhão de Ribeiro
católicos. Em 8 de setembro de 1612 foi realizado do Amaral (2008) defende a fundação francesa da cidade. Para ver a visão
uma missa e Rasilly nomeia de São Luís o forte contrária deste autor e a mais aceita pelos atuais historiadores, ainda que com
suas ressalvas, o livro A fundação francesa de são Luis e os seus mitos de
que havia sido erguido na localidade, em home- Maria Lurdes Lacroix (2008).

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Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

se milagrosamente a enchente da maré para porque a santa vem em auxílio dos lusitanos?
complemento da vitória; e por esta coisa lhe A lenda é uma fonte legitimadora do direito de
dedicaram depois os portugueses o primeiro Portugal sobre a colonização da região. E legi-
templo na cidade de São Luis, que é hoje sé
timidade, neste sentido, estaria relacionado ao
episcopal, com título de Nossa Senhora da
Vitória, pela que alcançaram as nossas armas que é entendido por certo, justo e por direito.
neste dia, de que se faz solene memória todos A vitória, no amago desta narrativa, seria
os anos aos 21 de novembro, como singular a resposta de qual lado estava correto: se os por-
padroeira daquela cidade (MORAES, 1987).
tugueses que tinham assinado o Tratado de Tor-
desilhas em conjunto com a Espanha aprovado e
Ademais lendas sobre Nossa Senhora da Vi-
abençoado pelo papa Júlio II, ou os franceses que
tória são bastante vivas no imaginário ibérico.
contestavam se havia um testamento de Adão con-
Na lendária batalha de Sacavém, entre o primei-
cedendo o “Novo Mundo” aos ibéricos. Assim se-
ro rei português, D. Afonso Henrique contra os
gunda esta lenda os céus respondeu dando vitória
mouros em junho de 1147 há algo semelhante. A
aos portugueses na batalha de Guaxenduba.
vitória dos cristãos seria praticamente impossí-
vel, pois estavam em menor número. Porém os
cristãos venceram e atribuíram à conquista pela CoNCLusÃo
intervenção de uma santa que apareceu no campo
de batalha, identificada como Nossa Senhora da As lendas maranhenses têm suas origens
Vitória. Esta santa sempre reaparece em relatos no saber popular e apresentam diversos elemen-
de batalhas em que um exército numericamente tos histórico-culturais. De forma que uma elite
inferior vence o outro que está em vantagem. letrada se apropriou do uso destas narrativas
Outros exemplos seriam a batalha de Al- para formar uma identidade cultural maranhen-
jubarrota de 1385 (triunfo dos portugueses em se, através de livros e artigos. É o caso da lenda
desvantagem sobre os castelhanos), e no Brasil de D. Sebastião que está ligada diretamente ao
colonial o relato do milagre em Ilhéus em que aspecto do imaginário luso-brasileiro de política
houve um conflito entre os colonizadores em da salvação, ou seja, um dia haverá um rei (ou
menor número contra os Aimorés em 1530, e político) que salvará a nação de seus diversos
estes foram derrotados depois de aparecer uma percalços. No caso do Milagre de Guaxenduba
linda donzela montada num cavalo branco. Após tem por núcleo o aspecto da legitimação da co-
a conquista foi construída uma igreja dedicada a lonização do Maranhão pelos lusitanos, através
Nossa Senhora da Vitória. da intervenção de Nossa Senhora da Vitória, que
miraculosamente concede a vitória aos portugue-
O cerne da lenda do Milagre de Guaxen- ses (que detinham um exército menor) em detri-
duba se revela em algumas perguntas: A santa mento dos “invasores” franceses. Há diversos
é partidária? Os franceses também eram cató- elementos desta narrativa que se assemelha as
licos14 e tinham missões evangelizadoras, então lendas do medievo da Península Ibérica, como as
14 De fato La Touche era protestante, mas não era a maioria dos que esta- que se referem à vitória lusitana nas Batalhas de
vam com ele. E a missão religiosa era feita por capuchinhos católicos e não
por evangélicos Sacavém (1147) e Aljubarrota (1385).

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179
A rEPrEsENTAÇÃo Do DiABo
No TEATro mEDiEVAL E sEus AsPECTos ESIDUAIS
NA oBrA AUTO DE JOÃO DA CRUZ,
DE AriANo suAssuNA

Francisco Wellington Rodrigues Lima1

manas mundanas e más após a morte: o Senhor

D
urante toda a Idade Média, a representação
do Diabo fez surgir uma série de reflexões das Terras Infernais.
sobre o mundo em que vivemos, o homem, De acordo com a tradição do povo cristão me-
o circunstancial e o Criador. Teólogos cristãos ela-
dieval, o Diabo tornou-se o grande adversário de
boraram teorias acerca da origem do Mal, dentre
Deus e inimigo implacável de Jesus Cristo e de seus
eles, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino,
discípulos, tendo por missão combater o Bem, e fa-
considerados os pais da teologia cristã. Eis que sur-
zer reinar o Mal sobre a terra e os homens.
giram, então, questionamentos em torno do pecado,
da tentação sofrida pelo primeiro homem e pela pri- Tomando grandes proporções nas representa-
meira mulher; discussões sobre Deus e o Diabo, o ções artísticas, o Diabo apareceu, do século XIII ao
Céu e o Inferno, Anjos e Demônios. XV, adornado com insígnias de um poder soberano;
representando sempre uma ânsia de subversão que
Ninguém jamais recebeu tantas denomina-
se expressava no registro de seu poder; Satã, Lúci-
ções como a figura representante do Mal, o Diabo.
fer, Satanás ou Diabo tornou-se a sombra aterroriza-
Ele ficou conhecido como Satã, Lúcifer, Diabo,
dora da mentalidade cristã medieval. Nesse período,
Satanás, Demônio, Maldito, Belial etc. Assumiu
nomes populares como Pai da Mentira, Anjo Mal, a popularização do Diabo foi incontestável. No Tea-
Capiroto, Cão, Coisa Ruim, Espírito do Mal etc. tro Medieval, por exemplo, seu conceito, surgimen-
Constituiu-se de inúmeras formas híbridas, den- to e aparência, voltaram-se para algo extremamente
tre elas a de serpente, lobo, bode, corvo. emblemático, variável, contestador, inquietante; e ao
mesmo tempo símbolo de medo e, para alívio dos
Sobre sua origem, conforme apontam teólo- fiéis cristãos, símbolo de derrisão.
gos e pesquisadores diversos, ainda há uma série
de incertezas. Segundo relatos bíblicos, teria sido Diante do exposto, o objetivo da nossa pes-
ele um Anjo de Luz que, ao se revoltar contra quisa é averiguar esse pluralismo diabólico que
a figura divina, foi expulso do Reino Celestial. se projetou na sociedade cristã medieval através
Era ele um Anjo Serafim, em outras versões, um do fazer teatral, bem como investigar a sua proje-
Anjo Querubim, de linda forma áurea, mas, após ção residual na América do Sul, através do teatro
sua queda, diante do pecado da soberba, assumiu contemporâneo de Ariano Suassuna que, em pleno
formas representativas deformadas, pavorosas, século XX/XXI se constitui de substratos mentais
que provocaram medo na mentalidade do povo (valores e pensamentos culturais), advindos da tra-
cristão durante quase toda a Idade Média, sendo dição medieval, que hoje, encontra-se cristalizado
ele, o Diabo, possuidor e tentador das almas hu- e atualizado na obra Auto de João da Cruz.
1 Mestre em Literatura Comparada na Universidade Federal do Ceará
(UFC). Doutorando em Literatura Comparada na UFC, sob a orientação da
Para o desenvolvimento da pesquisa, tomou-
Prof. Dra. Elizabeth Dias Martins. Professor Substituto do Curso de Licen- se como ponto de partida a Teoria da Residua-
ciatura em Teatro na Universidade do Regional do Cariri (URCA). Email:
wellrodrigues2012@yahoo.com.br lidade Cultural e Literária, defendida, elaborada
181
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

e sistematizada por Roberto Pontes; o elo entre cultura brasileira e, assim, justificam a presença
o Diabo medieval e seus aspectos residuais no forte de traços do imaginário cristão medieval no
teatro contemporâneo de Ariano Suassuna, sen- teatro de Ariano Suassuna aqui ressaltado.
do esse o objeto do nosso trabalho dissertativo.
Sendo esta pesquisa do tipo exploratória, a
Para melhor entender essa sistematização, ve- pesquisa procedeu-se com suporte bibliográfico de
jamos algumas informações precisas sobre a pes- autores renomados sobre teatro, Idade Média, re-
quisa do autor: Roberto Pontes empregou o termo presentatividade, cristianismo, imaginário (como
residualidade inicialmente em sua dissertação de vimos acima); Após, seguiu-se às análises de apre-
mestrado, atualmente publicada em livro, cujo títu- ciação crítica articuladas com as formulações teó-
lo é Poesia insubmissa afrobrasilusa (1999), tendo ricas pertinentes, envolvendo sempre o confronto
por objetivo demonstrar a presença de resquícios do de informações, textos e situações encontradas ao
passado que, ao longo do tempo, acumularam-se na longo do trabalho, a fim de constituir reflexões sig-
mente humana e que são refletidos em textos de for- nificativas sobre o tema proposto, propiciando, as-
ma involuntária através de estruturas atualizadas2. sim, a redação do trabalho que se segue, de acordo
Contudo, além da teoria exposta acima ne- com os requisitos metodológicos expostos.
cessária para o desenvolvimento da nossa pes- Dando continuidade ao nosso trabalho inves-
quisa, buscamos leituras em autores que se apro- tigativo, passemos agora a um breve histórico so-
fundaram na Idade Média como Jacques Le Goff, bre Ariano Suassuna. Diante de uma produção tão
Jean Lauand, Mikhail Bakhtin, Johan Huizinga, vasta, com temas variados, sobretudo os teatrais,
Hilário Franco Júnior, José Rivair Macedo e ou- podemos perceber que é marcante a presença de
tros; em autores que pesquisaram a história do Ariano Suassuna (1927) na história da cultura e
Diabo como Alberto Cousté, Robert Muchemb- da literatura brasileiras, principalmente, no que se
led, Giovanni Papini, Jeffrey Russell, Elizabeth refere à literatura popular nordestina. Seu trabalho
Clare Prophet, Jean-Michel Sallmann, Carlos Ro- literário e cultural, marcado intensamente por uma
berto Nogueira, Alfredo dos Santos Oliva, Elaine junção de valores populares e clássicos herdados
Pagels e outros; em autores que pesquisaram a da Península Ibérica que aqui se enraizaram nas
história do teatro medieval como Margot Bertold, mentes do povo do sertão Nordestino, conduziu o
Ligia Vassalo; em autores que pesquisaram a his- poeta a um processo de criação, legitimando a re-
tória do teatro brasileiro como Sábato Magaldi, presentação da identidade do homem do Nordeste,
Décio de Almeida Prado, Ariano Suassuna. com histórias que passaram de geração para gera-
Para captar o medievalismo no teatro bra- ção, em uma espiritualidade superior, levando-o a
sileiro contemporâneo e, consequentemente no encontrar soluções dramáticas nos mais variados
Nordeste do Brasil, tomamos informações de temas existentes na mente daqueles que fizeram
textos que confirmam essa presença medieval no reviver histórias incorporadas ao Romanceiro.
Brasil. São obras como Origens árabes no folclo- Ariano Suassuna sempre tentou valorizar a cultu-
re brasileiro, de Luis Soler; A herança medieval ra do povo, pois esta era a sua fonte primária de
do Brasil, de Luis Weckmann; Literatura oral inspiração, uma vez que nossa tradição é bastante
no Brasil e Lendas brasileiras, de Câmara Cas- peculiar: é hibrida, repleta de histórias e de seres
cudo, O sertão medieval: origens europeias do que nos reportam a culturas bem distantes. Sobre
teatro de Ariano Suassuna, de Lígia Vassalo. Tais a cultura e o povo brasileiro, Ariano Suassuna
obras confirmam a presença da medievalidade na (2000, p. 71), ressalta o seguinte:
2 Hoje, a Teoria da Residualidade é registrada junto à Pró-Reitoria de Aqui, da mesma maneira que acontece com as
Pesquisa e de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará e ao Con-
selho Nacional de Pesquisa – CNPq -, e sua propagação pelo universo outras artes, a tradição do espetáculo popular,
da pesquisa ganha, a cada dia, mais espaço e notoriedade entre alunos e ao mesmo tempo que nos indica o caminho na-
professores pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Ceará e outras IES que reconhecem a impor-
cional de um teatro brasileiro peculiar, religa os
tância do termo no estudo da tradição cultural e literária de nosso País. dramaturgos, encenadores e atores à corrente do
182
Francisco Wellington Rodrigues Lima

sangue tradicional mediterrâneo, da qual somos ra peça diretamente ligada ao Romanceiro Popular.
herdeiros, na qualidade de povo ibérico, negro, Trata-se de um texto teatral cujo tema central é o ser
judeu, vermelho e mourisco. Para falar como um humano e suas eternas contradições. Na obra, João
europeu: o povo brasileiro é bastante “exótico”
para possuir um teatro de dragões, máscaras,
da Cruz é movido por duas forças contrárias ao seu
almirantes, serpentes da terra e do mar, mitos, ser: o Bem e o Mal. João é um homem humilde,
crimes sangrentos e risos escarninhos, de reis ne- filho de pessoas simples do sertão. Um dia, cansado
gros e brancos, de fidalgos mestiços, de padres e da miséria em que vivia, sentindo-se movido pela
cangaceiros, de animais demoníacos e sagrados; ambição e pela gana de poder, faz uma espécie de
e, ao mesmo tempo, é bastante ibérico para se pacto com as forças do mal, representado pelo Cego
deslumbrar com isso e descobrir que um teatro
ligado a todo esse mundo, um teatro do mons-
e pelo Guia. Ele busca superar a pobreza e, para tal
truoso e do sagrado, vem liga-lo às fontes do tea- intuito, afasta-se por livre vontade da proteção divi-
tro ocidental – o teatro grego, o latino, o italiano na. Troca de nome e passa a se chamar de João Sem
do Renascimento, o espanhol e o vicentino; sem Medo. A ambição o comanda e o torna cego diante
falar em que nosso teatro é por isso mesmo pa- das circunstâncias que vão ocorrendo no desenvol-
rente do chinês, do hindu, do japonês, do baliano,
ver do auto como a morte da mãe e a do pai. Ao lon-
do de seus irmãos latino-americanos.
go da peça, ganha fama e poderes malignos; desce
ao Inferno e passa a viver no reino da escuridão. O
Ariano Suassuna escreveu peças teatrais3,
Anjo da Guarda e o Anjo Cantador tentam ajudá-lo
romances4, poemas em revistas e jornais, ensaios,
de todas as formas a conseguir o caminho da Salva-
autobiografia e outras produções literárias de
ção. Nesse contexto, aparecem Regina, o Cangacei-
grande importância para o legado cultural do povo
ro Silvério e outros personagens que tentam trazer
brasileiro. Entretanto, referente ao conjunto das
João da Cruz para a sua realidade. Depois de muitas
peças teatrais do autor, o que nos chama atenção,
reviravoltas, João da Cruz finalmente, na velhice, é
nesse momento, é aquela em que a representação
dominado novamente pelas forças do bem.
do Diabo, objeto que faz parte do nosso corpus
de pesquisa, é representado de modo enriquecido Segundo Maria Ignez Moura Novais, o
pelo folclore do povo nordestino, acarretado de Auto de João da Cruz é uma obra carregada de
tradições medievais, aproximando-se intensamen- valores sociais, religiosos e morais; de elemen-
te dos “milagres” mais antigos ou dos autos vicen- tos vivos do Romanceiro que permaneceram na
tinos, como é o caso do Auto de João da Cruz. mente popular e foram unidos às inspirações
e criações de Ariano Suassuna, intensificados
Comecemos nossa análise do Auto de João
e apresentados de maneira simples, porém de
da Cruz5, cuja importância se dá por ser a primei-
forma expressiva e eloqüente, de acordo com a
3 São obras teatrais de Ariano Suassuna: Uma Mulher Vestida de Sol (1947),
Cantam as Harpas de Sião (inédita – 1948), Homens de Barro (inédita crença e a mentalidade do povo do Nordeste do
– 1949), Auto de João da Cruz (1950 - Segundo Sábato Magaldi, na obra
Panorama do Teatro Brasileiro, p. 237, trata-se de um “drama sacramental” Brasil. Assim afirma a autora:
na qual “assemelha-se à aventura faustiana, na história do jovem carpinteiro
que faz um acordo com o demônio para possuir bens terrenos”), Torturas Há um corpo de valores morais na cultura rús-
de Um Coração ou Em Boca Fechada Não Entra Mosquito (Entremez para tica que se apresenta como padrão de referência
mamulengo - 1951), O Arco Desolado (inédita – 1952), O Castigo da Soberba
(1953), O Rico Avarento (Entremez em um ato – 1954), o Auto da Compadeci- ao comportamento e também como meio regu-
da (1955), O Processo do Cristo Negro (reescrita sob o título Auto da Virtude lador e controlador da ação. Desta maneira, as
da Esperança, terceiro ato de A Pena e a Lei – 1959), O Casamento Suspei-
tuoso (1957), O Santo e a Porca (1957), O Desertor de Princesa (reescritura
virtudes e os personagens podem se apresentar
de Cantam as Harpas de Sião – 1948/1958), O Homem da Vaca e o Poder da como um quadro de referência daquilo que deve
Fortuna (Entremez – 1958), A Pena e a Lei (1959), A Caseira e a Catarina
(inédita – terceiro ato de As Conchambranças de Quaderna – 1962), O Segu-
e não deve ser feito pelas pessoas. (...) João da
ro (Entremez – 1964 – inédita), As Conchambranças de Quaderna (inédita Cruz comete, portanto, muitas faltas, todas elas
– 1987), A História de Amor de Romeu e Julieta (1996). muito graves. Porém tem alguns momentos de
4 Dentre os romences produzidos pelo autor destacam-se: A História do Amor
de Fernando e Isaura (1956), O Sedutor do Sertão (1966), Romance d’A Pedra lada Nas Trilhas da Cultura Popular: o teatro de Ariano Suassuna. Segundo
do Reino e o Príncipe do Sangue Vai-e-Volta (1948-1970), História d’O Rei a pesquisadora “embora o texto não se encontre em sua versão definitiva, foi
Degolado nas Caatingas do Sertão: Ao Sol da Onça Caetana (1975-1976). cedido pelo autor para que se tenha idéia da evolução de sua obra” (NOVAIS,
5 Para análise desse espetáculo, teremos como base de pesquisa e leitura o Maria Ignez Moura. Nas Trilhas da Cultura Popular: o teatro de Ariano
texto inédito fornecido por Ariano Suassuna à pesquisadora Maria Ignez Suassuna. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
Moura Novais, que segue como apêndice da dissertação de mestrado intitu- cias Humanas – Universidade de São Paulo, 1976, p. 157).

183
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

virtude: salva o amigo Silvério da morte dando- Mediante a leitura desse fragmento, podemos
lhe o cavalo; sente remorso pelo que fez de mal detectar algumas caracterizações importantes do
às pessoas; tem consciência dos erros e quer
Diabo. Na passagem, ele surge representado nas
voltar à casa e trabalhar humildemente; arre-
pendido, renuncia ao mundo e começa a amar personagens do Cego e do Guia. São cautelosos,
Deus; aprende a viver humildemente e a esperar perversos, astuciosos, tentadores e soberbos; repre-
pela morte, pela vida eterna. (NOVAI, p. 15). sentados como a força maléfica que tenta conduzir
a espécie humana ao caminho do Mal; que cega o
Como nosso corpus de pesquisa gira em torno homem por suas paixões, fazendo-o cometer os pe-
da representação do Diabo medieval e suas residua- cados capitais, guiando-o pelo caminho das trevas
lidades na obra de Ariano Suassuna, vejamos, nesse e afastando-o do caminho da luz e de Deus. Ainda
momento, alguns fragmentos do Auto de João da sobre o fragmento, observa-se a referência ao livre
Cruz em que se faz presente o representante do Mal: -arbítrio - “Mas é preciso esperar que João da Cruz
CEGO (numa encruzilhada) se entregue por si mesmo em nossas mãos”, o que
Onde está o rapaz? É preciso tentá-lo, levá-lo a nos remete às palavras de Santo Agostinho (2008, p.
danação. 189), quando afirmava: “que essa criatura abstém-
Vamos lá, vamos lá, vamos lá. se de pecar por sua livre vontade, e isso sem ser for-
GUIA
çada por necessidade alguma, mas por si mesma”
Calma, é aqui. Temos que esperar um pouco. - e ao seguinte trecho do Auto da História de Deus,
de Gil Vicente, quando Lúcifer diz: “Onde há for-
CEGO ça perdemos direito; que o fino pecado há-de-ser de
Não posso, não posso nem quero. A ele , a ele, vontade, formando desprezo contra a Majestade”.
a ele!
Além disso, podemos ainda perceber uma referên-
GUIA cia ao Inferno como sendo o reino do Mal, lugar
Estou tão impaciente quanto você. Mas é pre- de tormento, das trevas. Leiamos outra passagem
ciso esperar que João da Cruz se entregue por do Auto de João da Cruz acerca dos sonhos e dos
si mesmo em nossas mãos. Fique descansado, desejos mundanos de João da Cruz e do pacto com
pois sua vitória também será a minha. Hei de
o Diabo, que nos reporta à história de Fausto:
lutar por ela enquanto puder.
Para mim, é a terra antes de tudo. CEGO
Quero que o céu se curve para as árvores E então? Fala-se muito por aqui na sua cora-
e do mundo se torne semelhante. gem. Você conquistará o mundo, João da Cruz.
Que não brilhe outra luz que não terrena
que a danação é turva e chamejante. JOÃO
(...) Está é minha esperança mais secreta. Hei de
conquistar o mundo e tudo o que ele pode dar.
CEGO
(...) CEGO
Pois quando o céu ao mundo se curvar Acredito, mas a conquista do mundo é uma coi-
ficará muito próximo do Inferno, sa tão estranha, João! Que fará você para rea-
meu trono de vigília e de lamento. lizá-lo?
O mundo, a carne e logo a luz do Inferno
onde jazem meu reino e meu tormento. JOÃO
Sonho com barcos, balas, tempestades,
CEGO com a prata das raízes do luar,
(...) com pedras e florestas incendiadas
É preciso esperar. brilhando com seu fogo sobre as águas.
Eu o tentarei de dentro da cegueira E sonho sobretudo com esse fogo
que cobre meus dois olhos e que nasce que se despenha do alto das estrelas
da cegueira interior, bem mais profunda. sobre meu corpo e dentro do meu sangue.

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Francisco Wellington Rodrigues Lima

CEGO Renuncie a seu nome e em troca dele eu lhe da-


É um belo sonho, um sonho grandioso, um so- rei a chave do poder. Renuncie com seu sangue
nho à altura daquele que você há de ser um dia. e com sua alma. E receba essa chave se puder.
Mas para realizá-lo é preciso muita coisa. Nem todos podem.
(...)
JOÃO
Eu tenho a mocidade e a coragem. CEGO
(...) Eu quero o maior bem que possa retirar dele. O
dom supremo, o dom de sua alma. De sua alma,
CEGO de sua alma. Mas convém ir aos poucos para
O que vou lhe dizer é segredo, é coisa que fica não assustar o nosso príncipe.
entre nós dois.
(...) Como podemos observar, o Diabo, represen-
Eu tenho a chave. tado aqui pelo Cego e pelo Guia, tenta a vida de
(...) João da Cruz, oferecendo-lhe, conforme o texto,
A chave que abre a porta. poder e riqueza. João vê-se tentado por uma nova
A porta atrás da qual está o barco. vida, de renúncia e escuridão, voltada para os de-
sejos da carne; uma vida cega pela ambição. Nesse
JOÃO
Obarco? momento do pacto demoníaco e da renúncia da
alma humana em troca de poder e luxúria, o en-
CEGO redo se aproxima da lenda antiga de Fausto. Outro
Sim, o barco de seu sonho. O barco de cujo elemento importante referente à figura do Diabo
mastro feito de diamante você verá o mundo. medieval na obra de Suassuna é o ritual demonía-
Dentro dele existem riquezas, ssobre as quais co, ou seja, o ritual de invocação das coisas malé-
você poderia construir seu templo de vitória e
ficas, conforme é apresentado na passagem ante-
de poder.
(...) rior. Nesse caso, temos a chave como elemento de
partida para a condenação de João da Cruz, que
JOÃO vislumbra nela sua riqueza e seu poder.
Me diga então o que é que você quer em troca
O autor também faz uma alusão ao Inferno (a
da chave.
(...) gruta) e, assim como Homero e Vígilio, Suassuna
conduz seu personagem, João da Cruz, ao mundo
CEGO infernal, conforme aconteceu com Orfeu, Pólux,
Vou falar, escute: Teseu, Alcides, Ulisses, Enéias, que subitamente
existe um reino, duro para os olhos, desceram ao Hades e contemplaram os mortos.
a que os homens repelem por instinto. Suassuna também utiliza o sono como meio de
Somente lá a chave ser-lhe-á dada.
levar João da Cruz ao reino infernal, semelhante
Tem coragem de ver a chama escura
ao que acontece com Enéias na obra de Virgílio.
penetrar no seu sangue, no seu corpo
até chegar às últimas moradas Vejamos um trecho da Eneida, canto VI, que res-
onde o diamante guarda a fonte e as águas? salta o assunto em questão:
(...) Compadece-te do pai e do filho, eu te peço, ó
Lá, João da Cruz, você terá tesouros, benfazeja Sibila (porque podes fazer tudo isto,
tesouros com que nem você sonhou nem baldadamente Hécate te encarregou dos
(...) bosques infernais); se Orfeu pôde reconduzir os
Manes da esposa, graças à cítara trácia e a suas
JOÃO cordas harmoniosas; se Pólux redimiu o irmão
Qual é a dádiva que preciso fazer em troca dela? com morte alternada e tantas vezes torna e re-
torna por este mesmo caminho; e que direi do
CEGO grande Teseu? Por que lembrarei Alcides? Tam-
(...) bém eu descendo do supremo Júpiter. (...)
185
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Depois que Anquises conduziu seu filho a todos ALMA


os lugares e lhe acendeu o ânimo com o amor Vós não me desempareis,
da fama que há de vir, falar-lhe então das guer- Senhor meu Anjo Custódio.
ras que terá de sustentar, fazer-lhe conhecer os Ó increos
povos laurentes e a cidade de Latino e como inimigos, que me quereis,
poderá evitar ou suportar cada uma das provas. que já sou fora do ódio
de meu Deus?
Há duas portas do Sono: uma, diz-se, é de
Leixai-me já, tentadores,
chifre, pela qual as Sombras verdadeiras en-
neste convite prezado
contram saída fácil; a outra, brilhante, feita de
do Senhor,
marfim refulgente de brancura, mas pela qual
guisado aos pecadores
os Manes enviam para o céu os sonhos falsos.
com as dores
Anquises, sempre falando, acompanha seu filho
de Cristo crucificado,
assim como a Sibila e os faz sair pela porta de
Redentor.
marfim. (VÍRGÍLIO, pp.113-114; 130-131.)

Da mesma forma, ocorre no auto de Ariano


Leiamos também uma passagem da obra de
Suassuna. Depois de deixar-se cegar pelas rique-
Homero, Odisséia (2002, p. 192), que ressalta a
zas ilusórias do Mal, de perder quase totalmente
descida de Ulisses ao Hades:
a essência do ser e da vida, na hora do julgamen-
A alma chegou, afinal, do tebano adinho Tirésias, to final, João da Cruz consegue a salvação com a
com cetro de ouro na mão; conheceu-me e me disse ajuda do Anjo da Guarda, do Anjo Cantador, do
o seguinte:
Peregrino e de Regina. E, ainda no momento final
“Filho de Laertes, de origem divina, Odisseu engenhoso,
por que motivo, infeliz, a luz clara do sol desprezaste do Auto de João da Cruz, depois do combate entre
e vieste aqui ver os mortos e a triste região em que as forças do Bem e as do Mal, os diabos são derro-
habitam? tados e, de modo risível, são humilhados e voltam
Mas, para o lado do fosso retira-te e a espada recolhe, à condição destinada por Deus: viver na escuridão.
para que eu possa do sangue provar e dizer-te a verdade.” O texto a seguir ilustra o assunto:
Disse; afastando-me, a espada de cravos de prata de novo
pus na bainha. GUIA
Você foi derrotado. Sua presa está ali de joe-
lhos, rezando com remorso.
Podemos ainda verificar, no trecho anterior
de Suassuna, a eterna luta do Diabo pela con- CEGO
quista das almas humanas. O autor reporta-nos E você acaso está menos derrotado do que eu?
De quem foi o plano do Jardim?
também ao Auto da Alma, de Gil Vicente (1963),
no qual o Diabo tenta perssuadir, enganar e lu- GUIA
dibriar a alma de uma jovem donzela oferecen- Meu, mas ainda tenho esperanças. Para a terra,
do-lhe luxo e riqueza. Entretanto, como a jovem João não está perdido. Hei de voltar ao ataque
era seguida pelo Anjo da Guarda, encontrou o e vencerei. Adeus cego. Pode voltar a suas cha-
mas. Boa sorte de outra vez.
caminho da salvação:
(...)
DIABO
Não digo eu, irmão, assi: CEGO
mas a esta tornarei, Será que estou perdido? Tenho braços
e veremos. que fazer? Vou matá-lo, pelo menos
Toná-la-ei a afagar, eu hei de me vingar: hei de matá-lo.
depois que ela sair fora Dê-me vista, meu rei, dê-me meus olhos!
da Igreja Venham, forças do mal, baixem meu braço,
e começar de caminhar; e que o sangue de João ensope a terra,
hei-de apalpar como um parto da sombra e da maldade,
se venceram ainda agora engendrado por mim no seu cavalo!
esta peleja. (...)
186
Francisco Wellington Rodrigues Lima

JOÃO CEGO
Tenho medo. Sou tão fraco diante da tentação! Tenho direito a João que se vendeu
e a quem meu sangue agora amaldiçoa!
ANJO DA GUARDA Tenho direito a João que se vendeu
Agora você já tem mais experiência. Feche-se em troca desse sangue e da coroa!
bem nos muros que Deus fez na sua igreja. Ali
você estará seguro contra tudo. Verifiquemos, portanto, no Auto de João da
(...)
CEGO
Cruz, vários vestígios residuais do imaginário
Minha ora chegou. Mortos ajudem-me! diabólico oriundos da tradição pagã greco-romana
Todos aqueles a quem João pisou, e da tradição medieval européia, sendo estes ele-
ressentidos, sedentos e danados! mentos vivos que se caracterizam como resíduos
Não se chega ao poder daquele modo culturais e literários encontrados com vigor, per-
sem que o sangue goteje na coroa.
manência e atualização na obra de Suassuna e na
Eu os conjuro, ó mortos condenados!
mentalidade do povo nordestino. São substratos
JOÃO mentais que perduraram em nossa cultura através
Que visão pavorosa! Estou perdido! da literatura e da dramaturgia do povo brasileiro.

187
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188
A iroNiA Como suBVErsÃo DA HisTóriA:
A iDADE mÉDiA No CoNTo “TEorEmA”
DE HERBERTO HELDER

Gladson Fabiano de Andrade Sousa1


Márcia Manir Miguel Feitosa2

1. iNTroDuÇÃo

que a tradição atualiza-se com o tempo, mas mantém

N
a história da literatura tornou-se recorrente
o retorno ao tema do amor entre Inês de perene a sua substância mítica principal. Como pres-
Castro e o rei D. Pedro I, configurando-se a supostos teóricos utilizam-se conceitos das teorias
chamada tradição inesiana. A história de amor entre do conto de Edgar Allan Poe, como a “unidade de
o Rei português e sua galega castelhana, atravessa os efeito” e a teoria de Ricardo Piglia que diz que “um
séculos em inúmeras expressões, desde das artes plás- conto sempre conta duas histórias.” Além das perti-
tica, óperas e até filmes, demonstrando que ainda hoje nentes considerações da professora Márcia Valéria
mantém seu poder enquanto inspiração artística. Este Zamboni Gobbi sobre as relações entre tradição e
mesmo tema é retomado pelo escritor contemporâneo inovação, e sobre a mítica inesiana em si. Partimos
Herberto Helder, no conto “Teorema” lançado no como o próprio movimento do mito, que advém da
livro Os passos em Volta (1963). Helder, porém, não história e fixa-se no imaginário universal.
apenas retorna ao tema, mas também lança uma nova
luz sobre o entendimento do mesmo, através da fina
ironia que perpassa todo o conto. Este trabalho tem 2. As PErsoNAGENs
como foco principal elucidar a ironia como meio de HisTóriCAs
subversão da história, elucidando os motivos os quais
levaram a perpetuação, por séculos de tal tradição em
A fim de compor um paralelo para com as
todo o mundo. Primeiramente, traçaremos os perfis
personagens apresentadas no conto Teorema, se
das personagens históricas envolvidas neste tema, os
faz necessário, sumariamente, termos em mente o
quais aparecem na Crônica de D. Pedro I de Fernão
perfil das personagens históricas apresentada no
Lopes. Para este fim, analisaremos os elementos da
mesmo. A principal fonte que temos hoje a respeito
narrativa que convergem para ampliar a tensão entre
destas encontra-se na Chronica de el-Rei d. Pedro
tempos, espaços e figuras históricas, tais como Pedro
I de Portugal, Pero Coelho, Inês de Castro, e, por I, escrita por Fernão Lopes, publicada pela primeira
conseguinte o próprio povo português. vez em Lisboa em 1735.

O valor moral da história e de suas personagens Pouco se conhece da biografia de Fernão Lo-
será profundamente revisitado, fazendo com que se pes; notário de profissão, sabe-se que nascera em
mantenha viva a tradição inesiana, demonstrando Lisboa entre 1380 e 1390, e morrera cerca de 1460,
1 Graduando do curso de Letras da Universidade Federal do Maranhão.
também na capital do reino. Em 1418, D. Duarte,
gladdking@hotmail.com décimo primeiro rei de Portugal, nomeia-o Guarda
2 Doutora em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo.
Atualmente é Professora Associada nível IV da Universidade Federal do Maranhão. mor da Torre do Tempo, e em 1434 dá-lhe o encargo
189
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

de escrever as crônicas dos reis da primeira dinas- O artifício narrativo adotado na crônica
tia (Borgonha). Exercera tal atividade até 1454, perscruta não somente os acontecimentos, mas
quando fora aposentado no reinado de Afonso V. também a face psicológica. O visualismo ao mes-
De suas obras, somente três chegaram a nossos mo tempo é cenográfico e psicológico (MOISÉS,
tempos: Crônica d’El-Rei D. Pedro I, Crônica 2005, p.49)
d’El-Rei D. Fernando e Crônica d’El-Rei D João “Jazia el-rei em Lisboa uma noite na cama, e não
I, está última incompleta. lhe vinha somno para dormir, e fez levantar os
mocos e quantos dormiam no paço, e mandou
A atividade historiográfica, graças a Fernão
chamar João Matheus e Lourenço Palos, que
Lopes, inicia sua fase de maturidade. Tendo em trouxessem as trombas de prata, e fez accender
mãos a documentação do reino, enquanto Guar- tochas, e metteu-se pela villa em dança com
da-mor, mais os inúmeros relatos de narrativas o os outros. As gentes que dormiam, saiam ás
qual investigava, confere às suas crônicas larga janellas, a vêr que festa era aquella, ou por que
fidelidade e precisão histórica. Mas não se encon- se fazia, e quando viram d’aquella guisa el-rei,
tomaram prazer de o vêr assim lêdo. E andou
tra apenas neste ponto o prestígio deste guardião
el-rei assim grão parte da noite, e tornou-se ao
dos documentos reais; este, não se atém somente paço em dança, e pediu vinho e fructa, e lancou-
a relatar os acontecimentos, mas muitas vezes, se a dormir.” (LOPES, 2005, p. 153)
também a julgá-lo. A sua consciência crítica é
tamanha que não poupa nem as figuras dos reis. Relata-se na crônica que D. Pedro desprendia
Se D. Pedro é descrito como impassível justiceiro a maior parte do seu tempo em três principais ati-
com largas matizes de crueldade; D. João I, por vidades: fazer justiça, caçar e fazer festas. Notemos
sua vez, é um rei hesitante e medroso. no fragmento que o rei sofria de insônias e descon-
A historiografia evolui principalmente pelo troladas manifestações de alegrias, assim tais festas
estilo com que Fernão Lopes cunhou a história dos o entretinha. Vemos que Fernão Lopes concede
reis, que podemos afirmar mais precisamente, a tamanha humanidade à cena, nem por se tratar de
história do reino de Portugal. Pois vemos que ainda um monarca o cronista foge de encará-lo antes de
que notavelmente a visão de História seja regio- tudo como homem (MOISÉS, 2005, p.49)
centrica (centradas no rei), o povo surge nas cenas, Em vários capítulos da Crônica encontramos
lado a lado com o rei, conferindo, assim, uma visão exemplos do porquê D. Pedro veio a adquirir o epíte-
política dos acontecimentos, pois este aparece como to de O Justiceiro ou O Cruel, basta vermos os títulos
um personagem coletivo, sempre a julgar as ações de alguns capítulos para notarmos tal gana: Como
do rei. Essa dinâmica emerge com plena coerência e el-rei mandou degolar dois seus criados, porque
sendo pertinente a certa visão de conjunto dos fatos e roubaram um judeu e o mataram (Capítulo VI);
suas consequências, atribuindo tamanha veracidade Como el-rei quizera metter um bispo a tormento,
e fluente narrativa de um verdadeiro ficcionista, que porque dormia com uma mulher casada (Capítulo
ainda não se via nem nas novelas de cavalaria; somos VII); Como el-rei mandou capar um seu escudeiro,
inseridos nas cenas como se estivéssemos viven- porque dormiu com uma mulher casada (Capítulo
do-as; através da linguagem atravessamos paços e VIII); ou ainda, Como el-rei mandou queimar a
castelos com a naturalidade que muitas vezes beira o mulher de Affonso André, e de outras justiças que
coloquialismo; o que torna a narrativa viva e espon- mandou fazer (Capítulo IX). Assim, D. Pedro é
tânea, tal técnica consagra Fernão Lopes primoroso considerado O Justiceiro pela acuidade com que não
dentre os demais cronistas da Idade Média. Sobre a deixava escapar os crimes, e ao mesmo tempo cruel
questão da linguagem, atentemos para o fato de que pela impassividade com que julgava, não fazendo
muitas vezes as crônicas eram lidas diante do público, distinção entre quem cometia o crime.
então a linguagem tende a oralidade, faz este contato “...tão zeloso de fazer justiça, especialmente dos
direto com o leitor/ouvinte, por isso o uso dos verbos que travessos eram, que perante si os mandava
“ouvir” e “ver” são frequentes. metter a tormento, e se confessar não queriam,
190
Gladson Fabiano de Andrade Sousa / Márcia Manir Miguel Feitosa

elle se desvestia de seus reaes pannos, e por que os Castros conspiravam assassinar o primogê-
sua mão açoutava os malfeitores; e pelo que nito D. Fernando I. Aconselhado pelos nobres fidal-
d’ello muito pasmavam seus conselheiros e
gos Pero Coelho, Álvaro Gonçalves, Diogo Lopes
outros alguns, annojava-se de os ouvir, e não
o podiam, quitar d’ello por nenhuma guisa. Pacheco e outros da corte, em 7 de janeiro de 1355,
(LOPES, 2005, p. 65) aproveitando que D Pedro, saíra a caçar, mandara
executar Inês de Castro, em Santa Clara. Inicia-se
Tão tenaz se apresenta, como vemos no então a desavença entre D. Pedro e o seu pai. Meses
fragmento, que por vezes, punia os malfeitores de conflitos entres esses, graças à intervenção da
com as próprias mãos. Se por um lado o rei “era Rainha D. Beatriz, entram em acordo de paz.
muito amado de seu povo, pelo manter em direito
Com a morte do rei, D. Pedro sobe ao trono e
e justiça [...]e boa governança que em seu reino
legitima os filhos ao afirmar junto com seu tabelião
tinha (LOPES, 2005, p.69), por outro era também
que tinha se casado secretamente com Inês.
temido, chegando a perder parte de sua boa fama,
ao mandar executar os assassinos de Inês de Castro, ...fez el-rei chamar um tabellião, e presentes
todos, jurou aos Evangelhos, por elle corporal-
Pero Coelho e Álvaro Gonçalves, ainda que tivesse
mente tangidos, que sendo elle infante, vivendo
jurado a seu pai, D. Afonso IV, perdoá-los. ainda el-rei seu padre, que estando elle em Bra-
D. Inês de Castro, que depois de ser morta foi gança, podia haver uns sete annos, pouco mais ou
menos, não se accordando do dia e mez, que elle
Rainha, como fora exaltada em Os Lusíadas, por
recebera por sua mulher lidima, por palavras de
Camões, não era apenas a dama de companhia da presente, como manda a santa igreja, Dona Ignez
rainha D. Constança Manuel e a galega por quem de Castro, filha que foi de D. Pedro Fernandez
D. Pedro apaixonou-se, como muito figura na his- de Castro, e que essa Dona Ignez recebera a elle
tória. Inês, dotada de grande beleza, descrita como por seu marido, por semelhaveis palavras, e que
loura e elegante, e por isso chamada “colo de gar- depois do dito recebimento a tivera sempre por
sua mulher... (LOPES, 2005, p. 263)
ça”, pertencia à nobreza de Castela, era filha de D.
Pedro Fernandes de Castro, mordomo-mor (cargo
Logo após, investiu na caça dos responsáveis
análogas às de um moderno primeiro-ministro) do
pela morte de sua amada, os quais refugiaram-se
rei D. Afonso XI de Castela. O romance adultero
entre Pedro e Inês não fora visto com bons olhos no Reino de Castela. D. Pedro e o Rei de Castela
pelo rei nem pelo povo; então, D Afonso IV, sobre acordam em trocar refugiados em seus reinos,
o pretexto de moralidade, em 1344, exila Inês de assim sendo capturados Pero Coelho e Álvaro
Castro no Castelo de Albuquerque. Todavia, mesmo Gonçalves - Diogo Lopes Pacheco conseguira
em distância os amantes continuam a se corres- escapar, porém antes da morte do monarca fora
ponder. Sabe-se que o real motivo do temor do rei perdoado. Notemos mais uma vez como Fernão
e de seus conselheiros a respeito do romance fora a Lopes, com sua percepção das reações do povo
amizade estreita que o Infante nutria pelos irmãos português, não poupa os reis de críticas:
de Inês, D. Fernando de Castro e D. Álvaro Perez Porque o fructo principal da alma, que é a ver-
de Castro, que poderiam influenciar as decisões do dade, pela qual todas as cousas estão em sua
rei e ameaçar a independência do reino português. firmeza,—e ella ha de ser clara, e não fingida,
mórmente nos reis e senhores, [...]— houveram
Após a morte de D. Constância - morre ao dar as gentes por mui grão mal, um muito de abor-
à luz ao primogênito D. Fernando I - Pedro manda recer escambo que este anno entre os reis de
Inês regressar do exílio e passam a viver juntos, para Portugal e Castella foi feito: em tanto que, posto
que escripto achemos, de el-rei de Portugal,
o total descontentamento do rei e escândalo na corte.
que a toda a gente era mantenedor de verdade,
Nesta altura Pedro e Inês já tinham três filhos; D. nossa tenção é não o louvar mais, pois contra
Afonso IV temia que a sucessão do trono passasse seu juramento foi consentidor em tão feia cousa
para um dos filhos bastados, pois havia boatos de como esta. (LOPES, 2005, p. 263)
191
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Julga que a verdade é uma virtude e não há de tudo feito ante os paços onde elle pousava, de
ser fingida, como demonstra D. Pedro ao não manter guisa que comendo olhava quanto mandava
sua palavra, assim, este não é mais digno de louvores. fazer. (Ibid.)

Além de “o assassino” de Inês de Castro, Os fatos que se seguem relativos ao perpétuo


como ficou conhecido, Pero Coelho era per- amor do Rei: a ordenação da feitura dos monu-
tencente a uma abastada família portuguesa, e mentais túmulos em Alcobaça e a transladação
cumpria o cargo de um dos principais conselhei- do corpo do mosteiro de Santa Clara de Coimbra
ros do rei, possuía fortes inclinações políticas, para este, que fora acompanhado por grandes
sobretudo, defendia a independência lusitana cavalleiros, acompanhadas de grandes fidalgos,
em face a influência castelhana. A fim de es- e muita outra gente, e donas, e donzellas e muita
tabelecermos cotejo com Teorema, foquemos o clerezia, (LOPES, 2005, p. 295). É dito que por
Capítulo XXXIII da Crônica de D. Pedro I, o todo o caminho o corpo de Inês fora acompanha-
qual narra a execução dos assassinos de Inês de do por velas acesas. E foi esta a mais honrada
Castro, exatamente o mesmo momento relatado, trasladação que até áquelle tempo em Portugal
pelo viés literário, no conto de Herberto Helder. fôra vista (Ibid.).
A Portugal foram trazidos Alvaro Gonçalves
e Pero Coelho, e chegaram a Santarem, onde Notemos que o material histórico, no decor-
el-rei era. El-rei [...] os saiu fóra a receber, e, rer da gênese da tradição, ou ficcionalização da
sanha cruel, sem piedade os fez por sua mão história, vai se misturando de maneira profunda
metter a tormento, querendo que lhe confes- a uma fabulação, em que os aspectos mais pro-
sassem quaes foram na morte de Dona Ignez fundos e perenes dos anseios universais vão se
culpado [..] E nenhum d’elles respondeu a
expressando. A destemida expressão de justiça
taes perguntas cousa que a el-rei prouvesse.
(LOPES, 2005, p. 295) pela perda da amada e sobretudo a saudade que
se arrasta pelas ações de D. Pedro, - como a
É exemplar no fragmento a demonstração de declaração do tão questionado matrimônio com
severidade de Pedro, o Cruel; a justiça, como já Inês, ou, ainda a fabricação dos túmulos e o pos-
demonstrado, torna-se uma obsessão. Também terior translado do corpo da amada, guardam em
podemos notar a resistência e convicção dos si a energia vital que vão se consubstanciando
condenados em não apontar os outros envolvidos em mito. A tradição se encarrega de fazer com
na morte de Inês. O fragmento a seguir é, de que o mito cresça e se perpetue, assim, vemos
forma singular, retomado e ressignificado por a fabulação da coroação do cadáver exumado,
Herberto Helder, como veremos na análise no o famoso beija mão, a Quinta das Lágrimas e
próximo tópico: suas algas vermelhas que seriam o sangue de
Inês, ou as missivas trocados por seus canos, a
E el-rei, com queixume, dizem que deu
um açoute no rosto a Pero Coelho, e elle se ordem do monarca para posicionar os túmulos
soltou então contra el-rei em deshonestas e não lado a lado, mas pés contra pés, para que
feias palavras, chamando-lhe traidor, á fé no Juízo Final, ambos pudessem, mais uma vez
perjuro, algoz e carniceiro dos homens. E perderem-se um no olhar do outro. Logo o vimos
el-rei, dizendo que lhe trouxessem cebola, como verdade histórica se dilui e se fortalece no
vinagre, e azeite para o coelho, enfadou-se
campo do mito.
d’elles, e mandou-os matar. A maneira de
sua morte, sendo dita pelo miudo, seria mui Até aqui tratamos dos fatos históricos rela-
estranha e crua de contar, cá mandou tirar o tivos às figuras de D. Pedro, Inês de Castro, Pero
coração pelos peitos a Pero Coelho, e a Alvaro
Coelho, e do próprio povo português do Século
Gonçalves pelas espaduas. E quaes palavras
houve e aquelle que lh’o tirava, que tal officio XIV. Traçando suas principais características,
havia pouco em costume, seria bem dorida que adiante serão retomadas em paralelo com a
cousa de ouvir. Emfim, mandou-os queimar. E subversão irônica destas que ocorre em Teorema.
192
Gladson Fabiano de Andrade Sousa / Márcia Manir Miguel Feitosa

3. soBrE A miTiFiCAÇÃo esses temas universais que permeiam a mente


DE um TEmA do ser humano pelos séculos de sua existência
como arquétipos. Seriam estruturas inatas, for-
mas imateriais, informações alojadas na psique
Em entrevista a Bill Moyers para a série O
humana, as quais se manifestariam em formas
poder do Mito (1988), que depois foi transformada
de sonhos ou até mesmo em narrativas. Então, a
em livro homônimo, o mitólogo, Joseph Campbell
narrativa do amor de Pedro e Inês representa um
fora questionado sobre a necessidade de mitos para
a vida do ser humano, e afirmara que o mito não é símbolo, uma expressão de nosso inconsciente
simplesmente o buscar de sentido para a vida, ou em busca do arquétipo do amor eterno, que em
origem das coisas, mas, primordialmente, a busca Herberto Helder, de forma perversa, manipula-
da “experiência de estarmos vivos” (CAMPBELL, se a manifestação desta imagem primordial de
1991, p.17). Nesta experiência de estarmos vivos forma a compor um maquiavélico Teorema. Pois
o ser tenciona seu mundo interior em direção à cumpre o papel de demonstrar os princípios (no
realidade imediata, assim formulando, em um sentido como origem e natureza) desta história
diálogo de ressignificações, o seu conceito de que, se compôs em tradição, como perversamente
verdade. Nesta construção, os mitos calculados, desabando as possíveis explicações
românticas de tal expressão de amor eterno. Assim,
...são histórias de nossa busca da verdade, de
“o amor do amor” que Pero Coelho com orgulho
sentido, de significação, através dos tempos.
Todos nós precisamos contar nossa história, com- expressa ser o salvador e guardião, transcenderia
preender nossa história. Todos nós precisamos o Amor - com inicial maiúscula - e repousaria em
compreender a morte e enfrentar a morte, e todos o “amor ao eterno”. Pois este seria o plano maior
nós precisamos de ajuda em nossa passagem do da trindade Pedro, Inês, e Pero Coelho, ambos
nascimento à vida e depois à morte. Precisamos compartilham o mesmo amor à eternidade. Uma
que a vida tenha significação, precisamos tocar
vez sendo consciente do Modus Operandi do Mito
o eterno, compreender o misterioso, descobrir o
que somos. (MOYERS, 1991, p.17, grifo nosso) do amor eterno, o executam.

O ponto primordial consubstanciado em todo


o conto Teorema encontra-se no citado precisamos 4. TEorEmA:
tocar o eterno. Desde os primórdios da humani- suBVErsÃo DA HisTóriA
dade, a consciência de sua própria finitude, tem
impulsionado o homem as mais diferentes formas O método escolhido para a presente análise
de religiões e filosofias. Entramos então nos temas do conto Teorema, perpassa primeiramente a es-
universais, os quais repercutem nas mais variadas trutura e natureza da própria expressão escolhida
expressões culturais, desde de arquitetura, artes pelo escritor: o conto. Faz-se pertinente a adoção
plásticas, literaturas, cinema... Esses temas uni- de determinada visão crítica que privilegie tal na-
versais estão de forma indissociada, se não são tureza artística, posto que a carga dos significantes
os próprios, a figura dos mitos. Segundo Mircea contida nesta expressão, caminha em direção um
Eliade (1993, p 13): “O mito só fala daquilo que entendimento maior, neste caso, o olhar enviesado
realmente aconteceu, daquilo que se manifestou da literatura sobre a história. Estas condições de pro-
plenamente. O mito é considerado como uma his- dução estão sujeitadas a natureza de tal narrativa.
tória sagrada, e portanto uma história verdadeira, Edgar Alan Poe, no seu ensaio Filosofia da
porque se refere sempre a realidades.” ou seja, o Composição (2000), - demonstra passo a passo
mito é uma realidade cultural, a expressão das
dos seus procedimentos técnicos na feitura de
marcas indeléveis de um povo.
sua obra O corvo. Poe caracteriza como efeito
Uma leitura pertinente fora feita pelo psi- único o objetivo pela qual um contista deve nor-
canalista Carl Jung (2000), o qual classifica tear seu ofício. Tomemos que Herberto Helder,
193
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

enquanto escritor de conto de ficção, escolheu Alguém quis defender-me, alegando que eu era
previamente um efeito único que fora a criação um patriota. Que desejava salvar o Reino da
de um mito, o efeito plasmado na mitologização influência castelhana. Tolice. Não me interessa
o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D
da história, ou ainda, a sensação catártica de sair
Pedro sabe-o. (HELDER, 1975, p.117)
de um momento histórico e entrar na eternidade
de um mito ou ainda, nas palavras do narrador de
Vemos que Coelho narra com consciência
Teorema, Pero Coelho, um efeito que “Liberta-se
profunda da tradição inesiana, posto que ajoelha-
do casulo carnal, transformando-se em luz, em
do, iminente a sua execução, profere: “E ofereço-
labareda, em nascente viva”, então
te a morte de D. Inês, Isso era preciso para que
...não afeiçoou os seus pensamentos para aco- o teu amor se salvasse.” Agradecimento este em
modar os seus incidentes, mas, tendo concebido
nome de algo maior, que é a formação do mito.
com zelo deliberado um certo efeito único ou
singular para manifestá-lo, ele inventará inci- O diálogo entre a tradição inesiana e a versão
dentes tais e combinará eventos tais que melhor herbertiana se faz de forma conflituosa. A palavra
o ajudem a estabelecer esse efeito preconcebido.
tradição, muitas vezes é tida como a perpetuação
[...] Na composição toda, não deve estar escrita
nenhuma palavra cuja tendência, direta ou in- imutável de um evento, o qual não se ousa tocar,
direta, não se ponha em função de um desígnio sagrado. Se a tradição for sagrada, Helder se mos-
preestabelecido. (POE, 1985, p.409) tra como profanador da tradição, pois desacraliza
as motivações da pureza e o caráter fatídico da
Elucidemos então os eventos tais que melhor tragédia do amor entre Inês e Pedro. Porém,
ajudou a estabelecer esse efeito único preconcebi- A sobrevivência de uma tradição requer manipu-
do, que desemboca em nosso objetivo maior que lação subjetivas nas quais está implicada, mesmo
é a subversão da história. que “sem querer”, a liberdade de recriação. A tra-
dição intocada está fadada a cair no esquecimento
A condição que logo chama a atenção em e a perder o seu traço primeiro: a sobrevivência
Teorema é a adoção do foco narrativo em primei- através das gerações. (GOBBI, 2005, p.303)
ra pessoa: Pero Coelho é narrador-personagem e
descreve sua própria execução. Enquanto narrador A cada nova retomada desta história, uma
ele faz a intermediação das falas das personagens, pedra é colocada sobre o tijolo desta tradição, que
e da percepção do cenário - físico e psicológico - atravessou os séculos em todo o mundo, como
ao seu redor. Logo a manipulação fica a critério em Portugal Camões o fez em Os Lusíadas em
do narrador. É pertinente a suspensão moral, ou 1556, na França Victor Hugo, em seu melodra-
ainda a dúvida a respeito deste foco narrativo. O ma Inez de Castro de 1818,ou mesmo no Brasil,
estatuto irônico irrompe: as posições das persona- com maranhense João Mohana, em sua peça Por
gens na trama de Herberto Helder são subvertidas causa de Inês de 1971.
em comparação ao que ficou na história fixada
na Crônica de Fernão Lopes. Pero Coelho de um Em primeira vista, a nova luz que se lança
conselheiro e assassino frio, ordenado pelo rei D. sobre a gênese do mito inesiano - origem mani-
João, pai de Pedro I, passa a “herói”, protagonis- pulada - conflita o mito contra ele mesmo, porém
ta em Teorema, com tanto valor e importância este resgate da tradição a fim de sua posterior
quanto o próprio D. Pedro, pois exclama “O que subversão faz do conto vítima de si mesmo,
este homem trabalhou pela nossa obra” (grifo uma vez que revela a motivada e manipulada
nosso) e “Esta noite foi feita para nós, para o rei e formação de um mito, mas também dialogica-
para mim”. Qualquer tentativa elucidativa da visão mente, é mais um representante que recebera
histórica que se tem do caráter do fidalgo defensor este alimento. Ao mesmo tempo em que o conto
da independência do reino é rebatida pelo próprio desmitifica o amor de Pedro e Inês, se faz mais
Pero Coelho, pois adverte: uma vítima do mito que o motiva.
194
Gladson Fabiano de Andrade Sousa / Márcia Manir Miguel Feitosa

Pero Coelho fixa seu olhar sobre o monarca, e dizer concordar ou aceitar; estar em comum acor-
perscruta seu exterior e interior. Surge uma relação do com outrem; possuir as mesmas convicções,
inesperada entre ambos que desestrutura a tradição pensamentos ou juízos; além da espetaculari-
algoz-criminoso, eles são comparsas - entende-se zação da execução, que cumpre a sede de um
aí o apreço de Pero pelo Rei - Gosto deste rei lou- povo insano e bárbaro, também é a afirmação
co, inocente e brutal, - e do Rei para com o Pero do discurso irônico e desarticulador de Pero
Coelho - O Rei olha-me com simpatia. Matar pelo Coelho: “Eu também irei crescendo na minha
amor do amor, representa transcender à imortali- morte, irei crescendo dentro do rei que comeu
dade, a eternidade, significa o sucesso do “plano” meu coração”(HELDER,1975,p.121). Por con-
de transformá-los em eternos, ou seja, libertando-os seguinte, como aponta Márcia Valéria Zamboni
“do casulo carnal”, transformando-os “em luz, em Gobbi (2005), “os dogmas sacrificial e salvífico,
labareda, em nascente viva”, mitificando-os. invertidos em sua função, constituem o álibi de
Ressalta-se aqui o entendimento do título do um assassino”. O personagem-narrador, através
conto, posto que Teorema significa “afirmação que desse discurso, consegue inverter o julgamento
pode ser provada”. Originalmente do Grego, tem moral da história. De assassino passa a mártir, e
sentido de “Espetáculo” ou “Festa”. Então no conto se vangloria disto.
toda a tradição que para o leitor já está consumada, é Notemos, enfim que os mesmos fatos ocorri-
provada, demonstrada, posta em evidência. Dentro dos na crônica de Fernão Lopes são apresentados,
do espetáculo que promove o mito, cada um cumpre porém perversamente explicados pela voz do
seu papel. Pero Coelho assassina a amante do rei, D. narrador-personagem com outras motivações.
Pedro mostra-se cruel e justiceiro perante o povo, Se em Lopes, podemos entender que D. Pedro
e Inês morre, consumando a presença da eterna translada o corpo de Inês de Santa Clara para
saudade no rei, e no povo português, que por sua Alcobaça, como expressão genuína de amor
vez se apresenta como “gente bárbara e pura”, um e justiça, já que este declara que casara com a
povo que tem “fé na guerra, na justiça, na crueldade, galega as escondidas quando ainda era vivo D.
no amor na eternidade”. Toda essa caracterização Afonso, seu pai, e esta deveria ser sepultada como
vai de encontro com os perfis traçados pela história, rainha; em Helder, o mesmo procedimento toma
em expressa ironia desestruturadora. caráter calculado de espetáculo que ajudaria na
A sociedade apresenta uma fé hipócrita, obra de perpetuação das personagens em mitos.
amante das atrocidades promovidas pelo rei, que Elemento primordial no entendimento desta
a conhece muito bem e dá alimento a tal barbari- subversão da história, que está plasmado em toda
dade. “Ele (Pedro) diz um gracejo. Toda gente ri, a composição do conto, é seu artefato espaço-
Preparem-me esse coelho, que tenho fome.” e mais temporal. Para o entendimento deste adotaremos
adiante arremata: “Muito bem - responde o rei - ar- a tese do escritor e teórico do argentino Ricardo
ranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-mo”. Piglia na qual “um conto sempre conta duas
O ápice do espetáculo, que se configura assim, num histórias”, a primeira contada em primeiro plano
ritual quando o rei devora o coração de Pero: (história aparente), ocultando em seu interior
Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. a segunda (história cifrada). A história visível
Pedro, os maxilares movem-se devagar. O rei esconde uma história secreta, narrada de forma
come o meu coração. O Barbeiro [...] vendo D. elíptica e fragmentária.
Pedro comer o meu coração cheio da inteligência
do amor e da eternidade (HELDER, 1975,p.120) Trabalhar com duas histórias significa tra-
balhar com dois sistemas diversos de causa-
lidade. Os mesmos acontecimentos entram
Helder apresenta um diálogo com o texto simultaneamente em duas lógicas narrativas
bíblico. Pedro comunga nesta santa ceia funesta antagônicas. Os elementos essenciais de um
do/com corpo de Pero Coelho. Comungar, quer conto têm dupla função e são utilizados de
195
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

maneira diferente em cada uma das duas his- CoNsiDErAÇÕEs FiNAis


tórias. Os pontos de cruzamento são a base da
construção. Conta-se uma história enquanto se Há em Teorema, um extenso uso de símbo-
está contanto outra, e a maneira como as duas los, ou uso de elementos que alcançam o estatuto
se articulam encerra os problemas técnicos simbólico, como os espaço-temporais já apresen-
do gênero. (PIGLIA, 2004, p.40, grifo nosso) tados. Vemos mais um:
“O marquês de Sá da Bandeira é que ignora
Em Teorema, quais seriam essas duas
tudo, verde e colonialista no alto do plinto de
histórias contadas? Em primeiro plano, a his- granito. As pombas voam em redor, pousam-
tória aparente é simplesmente os fatos em si, a lhe na cabeça, e nos ombros, e cagam-lhe em
execução de um assassino; a história cifrada é cima.” (HELDER, 1975,p.120)
toda a manipulação das motivações pelo viés da
ironia, em que o mito é deflagrado. Os pontos de A pomba aparece diversas vezes no conto,
cruzamento das duas histórias são os elementos neste fragmento encontramos esta demonstrando
explicitados até aqui, os elementos que, de forma a já citada zombaria para com os monumentos
irônica, perpassam o fio narrativo aparente; Pero temporais, mas se aprofundarmos na simbologia
Coelho em “silêncio”, ou melhor, dando sutis e da pomba elucidaremos pertinentes considera-
zombeteiras pincelas no plano aparente, arquiteta ções. Em primeira acepção “...a pomba representa
e denuncia o modus operandi do mito e prenuncia muitas vezes aquilo que o homem tem em si
seu eco futuro na tradição; tradição essa que já mesmo de imorredouro, quer dizer, o princípio
se confirmou para o leitor. É justamente nesta vital, a alma.”(CHEVALIER e GHEERBRANT,
dinâmica de intercruzamento que emerge os 1993,p.728). Logo a expressão da pomba excretando
elementos espaço-temporais. No primeiro plano, sob a estátua do marquês, aprofunda a dualidade
o mito está sendo produzido; no segundo, ele já temporal-atemporal. Porém é possível irmos mais
se confirmara. No primeiro plano há o presente longe, nessa compreensão simbólica.
do mito, no segundo, há o futuro.
...da beleza e da graça desse pássaro, de alvura
El-rei D. Pedro,o Cruel, está à janela, sobre a imaculada, e da doçura do seu arrulho. O que
praça onde sobressai a estátua municipal do explica que, tanto na língua mais trivial quanto
marquês de sá da Bandeira [...] Por baixo da na mais fina, da gíria parisiense ao Cântico dos
janela aonde assomou há uma outra, em estilo Cânticos, o termo ‘pomba’ figura entre as me-
manuelino. [...] Contempla um momento a táforas mais universais que celebram a mulher.
monstruosa igreja do seminário, retórica (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1993, p.728)
de vidraças e nichos, as pombas pousadas na
cabeça e nos braços do marques3... (HELDER,
Nesta acepção, pomba como simbolizando
1975,p.117, grifo nosso)
a mulher, o estatuto irônico se expande, pois
O narrador Pero Coelho se mostra consciente representaria Inês de Castro que vence o tempo
da mitificação da história, e ironiza a temporalida- e perpetua-se em um tradição. Por conseguinte o
de, zomba do momento e dos elementos históricos. pombo é tido como símbolo do amor, - a doçura
Já tombado, e sem o coração no peito, continua de seus costumes contribui para explicar essa
a narrar; seu olhar vagueia no céu e adentra os interpretação. O simbolismo do amor se explica
tempos modernos simbolizado por “o Claxón de através do casal de pombinhos.
um automóvel expande-se liricamente no ar”. Notamos que Inês de Castro vence todas os
planos dos fidalgos e da própria corte, que temiam
3 Os elementos em destaque remetem à épocas que não a do contexto de D.Pedro que um castelhano subisse ao poder, pois o pes-
I de Portugal (1320 - 1367). O primeiro marquês de Sá da Bandeira (Bernardo de
Sá Nogueira de Figueiredo) data 1854. A Igreja do Seminário foi construída entre
quisador Jorge de Sena constatou, que na virada
1672 e 1711, em estilo maneirista. O estilo manuelino ou gótico português tardio, do século XI para XVI, a maior parte da Europa
se desenvolveu durante o reinado de D. Manuel (1495 - 1521). (fonte: Portugal -
Dicionário histórico - http://www.arqnet.pt/, acesso em Março de 2011) coroada descendia de Inês.
196
Gladson Fabiano de Andrade Sousa / Márcia Manir Miguel Feitosa

Os descendentes de Pedro e Inês se espa- em Portugal durante as descobertas marítimas.4


lharam pelas casas reais europeias. A princesa
Assim, vemos que a tradição revistada e
Beatriz, casou com um filho bastardo de rei de
desestabilizada por Herberto Helder, em suas
Castela. Uma das filhas do romance, a princesa
bases mais primitivas, que representa o mito do
Beatriz (1347-1381), casou com um filho bastardo
amor eterno e o anseio universal pela eternidade,
do rei de Castela, chamado Sancho de Albuquer-
encontrou condições ideais na história de Inês e
que (1339- 1374). Leonor Urraca (1374-1435),
Pedro, tornado-a representante exemplar desta
filha do casal e neta de Inês, virou esposa de d.
aspiração humana. Então, Inês não é morta, nem
Fernando (1380-1416), o poderoso rei de Aragão,
seu assassino, martirizado por Helder, nem seu
Sicília, Nápoles, Valência e Maiorca. A partir daí,
amante, D. Pedro, este que serviram de alimento
a lista de descendentes de Inês de Castro se torna
para Helder, atravessam e atravessam gerações.
mais impressionante. Por volta de 1500, passa a
incluir o imperador da Germânia Maximiliano I
4 Revista História Viva. Disponível em http://www2.uol.com.br/historiaviva/re-
(1459-1519) e d. Manuel I (1469-1521), que reinou portagens/ines_de_castro -_a_rainha_morta.html. Acessado em Março de 2011.

197
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PIGLIA, Ricardo, “Teses sobre o conto”, in: Formas Breves, São
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MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa : através dos textos. Paulo: Companhia das Letras, 1999.

198
umA ANáLisE HisTóriCA Do miTo DE PromETEu
E suAs rELAÇÕEs Com o sACriFÍCio:
Demarcador da condição humana

Igor Castro Carreiro1


Paulo Ângelo de Meneses Sousa2

O
presente artigo, apoiado na obra de Hesío- Ligação posta aqui como derivação do sacrifício
do focado tanto no relato de Os trabalhos aos deuses, em que “a homenagem em que o fiel
e os dias (v. 45-105) quanto em Teogonia não exprime mais qualquer esperança de retorno”,
(v. 535-616) visa uma análise histórica do mito de havendo uma abnegação/renúncia ao pertencimen-
Prometeu para compreensão, na reflexão hesíodi- to ao mundo do divino; ao mesmo tempo que se
ca, de uma mentalidade grega em torno do que é estabelece essa comunicação perdida3.
ser humano (mortal), deus ou animal, com suas
Em uma análise dos quatros atos que se se-
diversas atribuições, este pensamento, seguido
guem nos versos de Hesíodo o DAR refletido no en-
de diversas implicações ao mundo dos homens, e
godo; o NÃO DAR ou RETIRAR através da figura
por sua vez a criação da primeira mulher mortal,
deus que não concede o fogo; o DAR FORÇADO;
episódio que mais afeta-os, marcado pela insti-
quando Prometeu rouba o fogo e finaliza pelo DAR
tuição da refeição sacrifical. O elemento central
o belo mal na figura de Pandora. Nessa mesma
é uma disputa entre a métis de Zeus e a astúcia
linha fixam-se termos de separação e ligação dos
de Prometeu que culmina com os elementos do
papéis de deuses, homens e mesmo, animais; estes
sacrifício, do trabalho e da união homem-mulher
últimos caracterizados por não partilharem (cons-
(casamento) /nascimento/morte e com o apareci-
cientemente) de deveres com nenhum dos grupos.
mento da primeira mulher: Pandora.
No primeiro ato Prometeu cria um engodo
Hesíodo racionaliza o tempo em que deuses e alimentar a Zeus, provocando-o a dar-lhe uma
homens ainda estavam reunidos, busca (e oferece) lição, esse momento caracteriza-se pelo “dar” /
uma resposta do que é, e como se tornou pós-sepa- “oferecer”. Visto tanto pela ótica de Prometeu a
ração, o ser homem. O mito prometéico segue, em quem oferece as ‘belas partes’, quanto Zeus que vê
linhas interpretativas, formas narrativas que levam nessa atitude astuciosa do titã uma oportunidade
a um próximo passo ou ação a ser dada, por Zeus de dar-lhe uma lição, e reforçar sua posição hierár-
ou Prometeu até que chegue ao enlace final, a chave quica do mesmo modo que o sacrifício sanciona e
desse processo que se dará com Pandora (presente/ legitima as hierarquias sociais.
castigo dos deuses) e a aplicação de todos os bens
e os males aos “comedores de pão”. Anterior ao primeiro ato tem-se Prometeu e
seu irmão Epimeteu (aquele que têm a compreen-
Pode-se pensar o mito em termos de uma se- são dos fatos após terem acontecido), estes encar-
paração, que ocorre entre deuses e homens, até o regados de dar “dons” aos animais e aos homens
momento final de tal acontecimento e vindo por se (feito de barro por Prometeu), contudo Epimeteu
concretizar a ligação, que será o rito do sacrifício. concede dons a todos os animais e este se esquece
1 Graduando da Universidade Federal do Piauí (UFPI).
2 Doutor em História e docente do Departamento de História da Universidade
dos homens, que ficam desprovidos de dons divi-
Federal do Piauí (UFPI). 3 Ver: MAUSS, Marcell; HUMBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. Cosac Naify. 2005.

199
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

nos. Prometeu, através de sua astúcia busca um Astúcia e Métis4 são as entidades que confi-
modo de dotá-los de algo, e vê na repartição em guram uma centralidade nesse mito, através dos
torno do sacrifício o modo pelo qual ele presen- ditos personagens centrais: o Cronida e o Titã;
tearia com este dom, o que este não previra era caráter de inteligência de ambos. Entretanto a
que a métis superior de Zeus daria aos mortais inteligência do deus supremo está ligado a um
não somente dons, mas também todos os males princípio de justiça (témis), sendo uma visão su-
que não habitavam o mundo divino. perior e não ardilosa (métis), pode tanto prever as
ações de uma astúcia ardilosa, como dar-lhe uma
Quando, ainda reunidos, deuses e homens já
lição e fazer com que essa logradora arte volte-se
se discerniam e estes já delimitavam seus espaços
contra quem a lançou e deixar este sem possibi-
até mesmo no âmbito do sacrifício, este mostrou
lidade de réplica. Já a do titã é uma inteligência
ser o primeiro passo para o desenrolar do que
enganadora, de ‘astúcia ardilosa’, corruptível,
viria ser a divisão definitiva das honras e fatali-
como as dos homens a quem protegera.
dades de deuses e mortais, todavia o sacrifício,
depois de instituído, seria o elo de comunicação O segundo ato é caracterizado pela réplica
dos homens para com os deuses. A reafirmação do dar, em que Zeus aplica a fórmula básica para
de um ser que não é divino, tampouco animal, punir quem o deu algo que não lhe é de bom
mas um transeunte, um meio, podendo vir a se grado. A ideia contrária ao oferecer – o retirar.
aproximar de um dos lados, dependia somente de Zeus retira a dádiva do fogo divino ao mundo,
quais caminhos decidira tomar, e Hesíodo mostra tornando impossível o rito do sacrifício e pondo-
qual o caminho os deuses mais valorizam. lhes absoluta separação, sem opção de ligação.
Não obstante a isso é imposto aos mortais o
Este primeiro ato é marcado por Prometeu, advento do trabalho, consequência desse retirar,
sempre ao lado dos homens, esperando os favore- tal trabalho é visto como castigo constante, assim
cer-lhes por ainda não haver ganhado dom algum. como o castigo diário é dado ao titã (uma águia
Organizou aos deuses as partes de um boi a ser devorar o seu fígado diariamente, enquanto o ór-
ofertado aos deuses e mortais, este para favorecer gão se reconstituía a noite). O trabalho (cansaço)
os últimos separou as melhores partes das carnes é a fadiga deixa aos mortais e a noite (descanso)
do sacrifício de forma não agradável, para que seria o período de recuperação que tanto Prome-
assim Zeus escolhesse a outra, mais apetitosa, teu quanto os mortais necessitam.
sendo somente banha e ossos, logrando-o com
sua “dolorosa arte”. Zeus não ignorou tal astúcia Zeus por sentir-se enganado (já que este
sentimento faz parte de seu consentimento em
(logro consentido) de Prometeu, mas aceitou o
dar-lhes uma lição) ao ficar com ossos e banha,
engodo que lhe foram oferecidos para, através de
retira o fogo divino aos mortais – “o fogo celeste”
sua métis superior e sua témis este dar uma lição
(relâmpago), “ocultou o vital para os homens” (v.
em Prometeu e nos homens.
42). Não só o fogo que pode cozer os alimentos,
Assim é delineada a primeira cisão entre mas também o fogo da terra, já que antes os
deuses e mortais, estes comedores agora de carne, cereais cresciam abundantemente sobre a terra
enquanto os ossos banhados de gordura e incenso e agora não mais, e os homens teriam que plantá
são as partes divinas, e cabe aos mortais ofere- -los, e estes só conseguiriam através de outro mal
cer-lhes, para que sejam abençoados – cada um necessário imposto por Zeus; o trabalho.
tem seu papel estabelecido. O primeiro ato dos
Nesse sentido há outra forma de divisão, os
versos hesíodicos é composto por uma dupla ação
deuses não precisam comer pão, “vegetais crus”
do dar/doar; em que Zeus e Prometeu oferecem e
ou carne, consequentemente não precisam traba-
aceitam as regras de um jogo, uma disputa divina.
lhar para consegui-lo; e os animais selvagens não
Já ver-se delineada a diferença entre a métis que
4 Na mitologia grega a primeira esposa de Zeus, mãe de Athena, filha de
tem Prometeu e a de Zeus. Tétis e Oceano, personificação da prudência.

200
Igo Castro Carreiro / Paulo Ângelo de Meneses Sousa

discernem os vegetais “crus” ou “cozidos” – não arte” e prova que a métis divina é inigualável, em
fazendo-lhes diferença. Ambos não precisam uma análise estruturalista estaria reafirmando os
trabalhar diferente dos homens, que precisam de lugares sociais de Zeus perante outros imortais
vegetais cozidos e que não o conseguem sem o e perante o homem. Tanto Prometeu quanto os
advento do trabalho, isto o marca como homem. homens se caracterizam como sendo dubiamente
Estabeleceu-se a ruptura, formas para diferencias indissolúveis portadores de uma astúcia “prome-
deuses, animais e homens foram estabelecidas téicos e epimetéicos” (astuciosos e irreflexíveis)
mediante Zeus nega o fogo. e decide por fim ao que começou com “um belo
Antes do Cronida retira-lhes o fogo “os homens sacrifício”. Zeus contrapõe-se também com um
brotavam e viviam a parte dos males e da dura “belo” no modelo de Pandora, que finaliza as
fadiga” (v. 91). Faz-se relembrar nesses versos um disputas sacrificiais e separa definitivamente
tempo paradisíaco, podendo ser comparado à Idade deuses e mortais.
de Ouro, período livre de males e moléstias. Pandora (presente de todos os deuses) é des-
Tal desenrolar dos fatos faz surgir o terceiro tinada exclusivamente aos homens, é “a marca de
ato, Prometeu não aceita a réplica de Zeus e rouba sua condição desgraçada”. Tida como a parceira
o fogo. Roubar está vinculado com outra parti- perfeita aos homens logradores de Prometeu,
cularidade do dar, mas no sentido de não ser um esta com dons específicos dados pelos deuses:
‘dar consentido’. O vínculo foi restabelecido entre “espírito de cão” e “dissimulada conduta”, fará
deuses e homens sob uma forma desafiadora, frente aos homens uma presença (lembrança)
possível de ligação com o divino, mas também constante do que foi Prometeu a Zeus, e agora aos
de uma tréplica, já que a mente prometéica não é homens. Mesmo pertencendo à espécie humana,
capaz de encerar o que antes foi começado. esta funda a raça das mulheres, pois mesmo
podendo dialogar com os homens esta “não lhe
O fogo que é dado aos homens não é como serve para dizer o que é”, em um aspecto dúbio
antes, este precisa ser constantemente alimen- de “língua dos homens” e “língua das bestas”,
tado. Este será o dom mais forte dos mortais, o transmitindo verdades e falsidades: “para dar
fogo lhes dá a ferramenta do trabalho cultural, o existência, na forma das palavras, ao que não
homem pensa e reelabora as coisas ao seu redor existe, para melhor enganar o espírito de seus
com o fogo que o foi ofertado: “os homens têm parceiros masculinos” (v. 78).5
então em mãos todas as técnicas”. A arte e o dom
de se tornar um animal cultural lhes foi dado, o Põe-se outro marco com essa separação no
homem passou a ser um ser pensante, passando quarto ato. Epimeteu une-se pelo casamento com
a unir a mentalidade de Prometeu e Epimeteu, Pandora e assim traz todos os males que vem com
passível de ser astuto/irreflexível, ou quaisquer ela para os homens, pois, na instituição que se
qualidade, mais tarde ganha-as doadas por Zeus, firma como casamento seu sentido passou a ser
como a noção de política, honra e justiça. que ‘tudo que lhe pertencia passou a ser do ma-
rido’, trazendo consigo todos os bens e os males.
O quarto ato está posto na mesma linha de sig-
nificação do ‘dar’ que Prometeu usou inicialmente Assim que é caracterizada a Idade de Ferro,
para com Zeus, este faz do ‘dar’ um enlace final sem para Hesíodo e o pensamento da Grécia Arcaica,
possibilidade de retorno. Nesse aspecto o presente é mostrado que o bem e o mal são indissolúveis.
dado por Zeus se iguala ao engodo oferecido por Pandora é o marco final da separação, haja vista
Prometeu e finaliza o que viria a ser ao mesmo que os homens não mais brotaram da terra, como
tempo separação definitiva e castigo dos mortais. faziam os imortais por seu desejo, cabendo agora
ao homem e sua parceira, somente aos mortais
Tem-se o desenrolar dos fatos e a confir- se perpetuar partindo agora de uma instituição
mação dos lugares de cada um. Zeus percebe 5 Ver: HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Tradução de Mary de Camargo
que Prometeu “ainda não esqueceste a dolorosa Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1991.

201
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

social – o casamento, “para que desde cedo ao daria a esperança/força para continuar mediante
bem contrapesa o mal constante”. Nesse âmbito qualquer mal. Mary Lafer utiliza o termo elpís
o fogo e a separação dos papéis divino, humano como próximo à “expectação”, ligada a uma
e animal marcam a ligação, o homem tem o aval previsão dos males, ao qual inútil aos imortais
para sacrificar os animais, visto serem seres ‘sem e de caráter dúbio aos homens, pois “equilibra a
consciência’ e assim fazerem parte da ligação consciência de sua mortalidade pela ignorância
sacrifício – sendo o meio. do quando e como a morte virá para ele”; podendo
agir como um temor ou como confiança/seguran-
Nos versos de “Os trabalhos e os dias” é dei-
ça, segundo a mesma: “a ambiguidade reside no
xado claro que antes os homens não conheciam
fato de os homens poderem não acertar no que
o mal e viviam no ócio, depois do desfecho final
esperam” (LAFER, 1996, p. 75).
de Prometeu e a criação de Pandora os males
seriam parte indissociável do mundo, e que es- Assim deuses e homens são tirados quase
tes deveriam trabalhar para serem “valiosos aos por completo um do convívio direto com o outro,
deuses”. O posterior sustento que é imposto, já restando o sacrifício e oferendas como meio de
que Zeus ocultou o bios aos homens e estes agora comunicação. O emprego do fogo, os ritos de
terão que trabalhar (na terra) para conseguir o casamento e as práticas agrícolas aparecerem li-
cozido da mesma (cereais), este também pode gadas de múltiplas maneiras na sociedade grega6.
vir a ser “caro aos imortais” se seguir e aceitar o Hesíodo põe-se a pensar a diferenciação entre
labor do trabalho. Torna-se elemento dignificador deuses, homens e animais, e o homem como par-
do homem e adquire uma conotação religiosa ticipador da natureza dos dois, mas não na mesma
quando: “por seu lado, os deuses garantem, aos linguagem. Contudo revela uma hierarquia social,
que trabalham, a riqueza em rebanhos e em ouro” posto que os homens sejam superiores aos ani-
há um valor acima do esperado, pois “os que mais, mas inferiores aos deuses, possuidores de
trabalham tornam-se mil vezes mais caros aos uma métis superior, enquanto os homens lhe são
imortais” (VERNANT, 2002, p. 210). Este labor dado o duplo ser de Prometeu e Epimeteu, não
está cabível ao homem, posto que as mulheres se comparando aos deuses.
agissem como zangões, designadas a ficar no Mediantes esses atos são apresentados temas
luxo (vida doméstica) quanto aos homens cabe o que diferenciam deuses e homens quanto as suas
labor do trabalho dignificador. relações. Três relações são mantidas: sacrificiais;
Aos mortais ficou incumbido a parte comes- humana e de trabalho. Nelas encontram-se uma
tível do sacrifício, e o fogo que pode cozer e assar; diferenciação alimentar que não só forma o elo
como também a mulher e todos os males que hão de ligação entre deuses e homens como também
de vir com sua presença. Pandora traz consigo o põe os mortais como seres dotados de cultura,
jarro que libertou todos os males sobre os homens uma diferencial quanto aos animais. Na relação
o devir da vida e da morte, pois agora que há o humana temos a cisão da dependência divina na
nascimento provindo das duas partes separadas proliferação da raça dos homens, estes, através
há males que se abatem sobre os mortais, pois de Pandora procriam ‘por si só’ (separação de
Zeus designa os funestos filhos de Nix (Noite) ao gênero). Em último temos a separação nas rela-
mundo dos humanos e ainda retira-lhes o som, ções de trabalho; o homem agora possuí o fogo
para que estes cheguem em silêncio e abatam-se e com ele técnicas e os ensinamentos (contrários
sobre os homens. ao natural), mas estes também carregam essa re-
lação como ‘castigo’ pois estão obrigatoriamente
Em contrapartida tem-se a presença da elpís
atrelado a ela para sobreviver, se não no trabalho
(esperança), entidade que ficou no jarro e que será
com a terra o trabalho com o fogo artístico.
a salvação para os homens, estes acometido de
6 Ver: VERNANT, Jean Pierre. Mito e Sociedade na Grécia Antiga. Trad.
males terão um ponto de apoio, pois a elpís lhe Myriam Campello. RJ: José Olympio, 1999.

202
Igo Castro Carreiro / Paulo Ângelo de Meneses Sousa

No plano social o homem está aí demarcado “tentar obter mais do que se espera”7; se inscreve
tanto dos deuses como dos animais, contrapondo- assim a tentativa da astúcia de Prometeu sobre
se aos últimos como se liga na maneira que se Zeus, este último reafirma sua soberania e colo-
alimenta e serve (sacrifícios) aos deuses, selecio- ca a significação da frase acima como o castigo
nando as partes a serem digerias e estas cozidas perfeito para o titã. O sacrifício é desequilíbrio
pelo fogo, e também a maneira como este se une a mediante Prometeu não divide em partes iguais
mulher (através do casamento); já que os animais a refeição sacrificial, o próprio Zeus não achou
não partilham dessa ciência e põe se a comer uns justo a partilha, essa pseudo generosidade é
aos outros ou vegetais crus, como também não mal vista, pois oferece mais do que pode dar. É
tem qualquer distinção na maneira como dispõe marcado assim o ideal do pensamento grego pela
seus cruzamentos. O rito sacrificial marca o ato
medida, quando a desmedida logrosa se torna
do sacrifício como uma morte consentida pelos
mal vista, assim como Prometeu propôs uma
deuses, institucionalizada.
desmedida entra as partes do sacrifício, insti-
O mito de Prometeu é pensado para discer- gando a Zeus a fazer justiça, já que tal ato não é
nir homens/ deuses como ao mesmo tempo dos tolerável, mesmo que tal desmedida favorecesse
animais, mesmo sendo citado nas entre linhas, os a Zeus, não seria justo.
animais não dispõe de ordem ou deveres sociais e
estes desconhecem o poder dos deuses, vivendo O mito constitui-se em si um ensinamento
na mais completa ignorância. de um pensamento grego mais largo, que mais
tarde será à base do pensamento ocidental. Trata-
Em linhas gerais o sacrifício tem caráter
se na essência que todas as coisas têm seu lado
ambíguo, por um lado restabelece laços entre
bom e ruim (até mesmo a esperança), ambos são
homens e deuses, quando se instala a refeição
indissolúveis e cabe ao homem social ter meios
sacrificial e nesse âmbito a ligação, ocorrendo
que ‘tragam’ os deuses a interceder por ele,
subjetivamente o banquete divino. Mas por outro
afastando assim as consequências ruins (para o
lado faz reviver o momento da separação em
homem grego esse meio se dava pelo sacrifício).
relação à divindade, consiste numa consciência
de uma afronta. O fogo é tido como sagrado, Retraduzido o pensamento grego para algo mais
presente divino, mesmo sendo uma doação não maniqueísta, este presente mais na sociedade
consentida, é através dele que o homem se ali- atual, as vertentes do pensamento arcaico viriam
menta e proporciona um banquete aos deuses. a buscar o equilíbrio como terceiro meio aos ca-
racteres bons e ruins presentes no mundo.
A história hesiódica de Prometeu e Pandora
7 Ver: VERNANT, Jean Pierre. O Homem Grego. Editorial Presença.
pressupõe uma força dos deuses (pleomexia), Edição/reimpressão: 1994.

203
REFERÊNCIAS: MAUSS, Marcell; HUMBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. Cosac Naify. 2005.
HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Tradução de Mary de Camargo VERNANT, Jean Pierre. Mito e Pensamento entre os Gregos. Tradu-
Neves Lafer. São ção de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
Paulo: Iluminuras, 1991. ___. Mito e Sociedade na Grécia Antiga. Trad. Myriam Campello.
___. Teogonia. Tradução de JAA Torrano. São Paulo: Editora Ilu- RJ: José Olympio, 1999.
minuras, 2003. ___. O Homem Grego. Editorial Presença. Edição/reimpressão: 1994.

204
rEELABorAÇÃo Do mEDiEVo:
o EsTiGmA DA HANsENÍAsE Em sÃo LuÍs
NA PrimEirA mETADE Do sÉCuLo XX

Jacklady Dutra Nascimento1

escolha do estudo da hanseníase em São

A
lhentas... Os símbolos de exclusão açambarcavam
Luis, como tema presente nasceu da mi- formas de conduta social que o leproso deveria
nha inquietação sobre grupos socialmen- seguir: andar despenteado, com roupas rasgadas
te estigmatizados, excluídos da sociedade, aqueles gritando ser impuro. (MONTEIRO, 1995, p. 12.).
cujas angústias não foram escritas e analisadas. Um
A igreja era a grande articuladora das ce-
outro fator relevante para desenvolver esta temática
rimônias de exclusão dos leprosos, envolvendo
foi constatar a mentalidade milenar preconceituosa
toda a população. Era cerimônia fúnebre em que
herdeira do medievo em relação aos leprosos.
o doente era coberto de um véu negro e depois se
A seleção de São Luis na primeira metade do séc. lançava terra sobre sua cabeça simbolizando a sua
XX para análise da hanseníase deveu-se ao fato da morte. O doente sempre de joelhos recebia roupas
capital possuir uma colônia para leprosos bem estru- e objetos de uso obrigatório e era esclarecido sobre
turada, correspondendo aos modelos profiláticos con- os castigos que lhe seriam impostos em caso de
siderados exemplos nacionais (Estado de São Paulo). desobediência. (MONTEIRO, p. 30-31, 1995.)
O corte temporal estabelecido respeitou a época cuja
Em alguns locais havia ainda uma simulação do
documentação era rica e qualitativa bem como enca- enterro: ao término da missa os participantes saiam
rava a política eugenista do Serviço Oficial da Saúde. em procissão até o cemitério, onde o ritual marcava
Compreender a dinâmica da hanseníase ou a morte simbólica do doente, após o que este seria
acompanhado até fora da cidade, ao local onde
“lepra” no tempo e no espaço de forma precisa
passaria a habitar. Próximo a esse era fincada uma
sugeriu-nos muitas controvérsias, pois ao lado cruz ou madeira e pendurada uma caixa para esmo-
do discurso cientifico do Serviço Médico Oficial las, para que as pessoas que passarem pela região
constatamos as permanências do medievo na men- pudessem contribuir. (MONTEIRO, 1995, P. 31).
talidade coletiva. Percebemos, portanto na Idade
Média a configuração exata do preconceito aos le- Quanto à relação, estabelecida entre a doença e o
prosos resignificada no Brasil durante a década de pecado, permanente em nossa pesquisa em São Luis
30 e 40 pela política eugenista do governo Vargas. no séc. XX, encontramos referências na própria Bíblia
Na análise de uma vasta bibliografia as crô- que a justifica. O Levítico, inclusive revela a repulsa
nicas medievais revelam cruéis procedimentos de aos leprosos e defende profilaticamente o isolamento
denuncias, diagnósticos, sepultamentos simulados, do doente, do impuro, configurando-se como um
reenquadramento de doentes em novas realidades, verdadeiro manual contra a “lepra”, de caráter pre-
quer seja em leprosário, quer seja de itinerantes conceituoso e segregacionista. RIBEIRO, p. 20, 2003.
esmoleiros pré-anunciados por matracas baru- Os textos bíblicos estruturaram toda uma
1 Graduada em História. Mestre em Ciências Sociais na UFMA sob a orientação concepção onde dor, penas físicas, doenças, e por
de Sandra Maria Nascimento Sousa. Docente do IFMA (Instituto Federal do
Maranhão). Professora da Especialização em Diversidade e Educação no IFMA. vezes a morte aparecem como decorrência da prá-
205
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

tica de uma ação incorreta, ou seja, do pecado. • Isolamentos domiciliar aos que sujeitassem à vi-
Por outro lado, estabelece-se uma estreita relação gilância médica e tivessem recursos suficientes
para eficaz aplicação dos preceitos de higiene;
entre santidade e, sabedoria e saúde. A “lepra”,
em especial, é uma doença cujos relatos bíblicos • Vigilância sanitária dos comunicantes e casos
é merecedor de uma abordagem específica, objeto suspeitos.
de descrição pormenorizada e de leis próprias que • Isolamento pronto dos recém-nascidos, filhos
normalizavam desde o momento do diagnóstico de leprosos, para local convenientemente
e a consequente exclusão, até a eventual reinte- adaptado e onde seriam criados livres das
fontes de contágios;
gração do doente. (Levítico. Bíblia Sagrada.).
• Notificação de mudanças de residências de
Essas considerações sobre o tratamento cedido leprosos e sua família;
aos leprosos demonstram o grande preconceito
• Desinfecção pessoal dos doentes de seus cô-
existente na antiguidade e no medievo, servindo de modos, roupas e de todos os objetos de uso.
referência para analisarmos São Luís na primeira As suas excreções deveriam ser recebidas em
metade do século XX, além disso, revela que o iso- vasos cobertos, contendo solução desinfectan-
lamento era necessário e imprescindível não apenas te e levadas ao esgoto.
como medida profilática, mas e, sobretudo, como • Rigoroso asseio das casas ocupadas por doen-
instrumento para afastar “aquilo” que chocava os tes e suas dependências.
olhos, o horrendo, o que constrange. O indivíduo • Proibição ao doente de “lepra” de exercer profis-
leproso assume uma forma asquerosa, impura física sões ou atividades que pudessem ser perigosas á
e moralmente. Sobre o leproso pesava todo o estig- coletividade ou exercer qualquer profissão que
ma da insegurança que incandesceu o imaginário colocasse em contato direto com pessoas; como
também ser ama-de-leite, freqüentar igrejas, tea-
coletivo na sociedade medieval a ponto de garantir tros, casas de divertimentos ou lugares públicos
resistências até o séc. XX e quiça o século XXI. como jardins e viajar em veículos sem prévio
Dito isto, analisando especificamente a consentimento da autoridade competente.
problemática da hanseníase em São Luís, nos
deparamos com uma intensa lentidão das prá- Diante do exposto, observamos que a política
cedida ao leproso era atribuível a um criminoso,
ticas governamentais eficazes ao tratamento,
não cidadão, a ele era delegado a morte social, im-
bem como a intensificação e disseminação do
pedido de qualquer laço familiar, toda e qualquer
preconceito através de leis e decretos municipais,
atividade que promovia uma vida normal era-lhe
estaduais e federais.
tolhida, similar ao medievo. Justificou-se o isola-
A partir de 1910, medidas legais foram mento, a quebra de laços afetivos, a incapacidade
elaboradas para implementar o isolamento com- do leproso em tomar decisões, enfim, a vigília
pulsório dos doentes. As ações de controle de constante para preservar a segurança dos sadios.
então priorizavam a construção de leprosários, o
Contraditoriamente, o tratamento e a eficácia
censo, o isolamento compulsório e o tratamento
terapêutica eram nulos, além disso, as dificulda-
pelo óleo de Chaulmoogra.
des da implementação das medidas profiláticas
Em 15 de setembro de 1920, com a criação contra a “lepra” foram consideráveis: limitações
do Departamento Nacional de Saúde Pública pelo de recursos, diagnósticos imprecisos da doença,
decreto nº. 14 foi instituída a inspetoria de Profi- cujos sintomas podem ser facilmente camuflados
laxia da lepra e doenças venéreas. As seguintes por um longo período da manifestação da doença
medidas foram implementadas pela lei: (QUEIROZ; PUNTEL, 1997, p. 10).
• Notificação compulsória e censo de leprosos; As condições hospitalares e de tratamento
• Fundação de asilos-colônias, nos quais seriam ainda eram piores, dispondo do Hospital de
confinados leprosos pobres; Isolamento e o Desinfectório para o tratamento
206
Jacklady Dutra Nascimento

dos “pestilentos” sob a administração da Santa dicamentos suficientes e os que eram usados
Casa de Misericórdia. eram insuficientes e dolorosos, como o óleo de
O tratamento à base do isolamento era o Chaulmoogra, cujo uso interno e externo pro-
único aceito durante a Primeira República, no vocava efeitos colaterais como diarréia, vômito,
entanto, medicações, condições de higiene e náuseas, danificando mais ainda o corpo doente
habitação nestes hospitais eram inexistentes. e o sistema imunológico.
(PALHANO, p. 145, 1988). Um outro problema diz respeito à condição
Os leprosos eram relegados ao ostracismo social dos habitantes dos asilos e dos arredores:
social amparados apenas pela Santa Casa da todos precisavam mendigar para obter alimen-
Misericórdia. A gafaria localizada ao sul do tos e roupas. Os próprios habitantes sadios,
Cemitério dos Gaviões, encontrava-se em per- miseráveis das redondezas entravam no asilo
manente estado de deploração. para tentar arranjar alguma comida quando a
esmola não a garantia.
De acordo com o relatório do provedor da
Santa Casa da Misericórdia (COSTA, 1903, p.2 A população sadia aterrorizava-se diante do
Arquivo Público), nem mesmo o isolamento dos estado deplorável do depósito humano em pleno
enfermos estava assegurado, contribuindo para centro da cidade:
a propagação do mal. As ruas da cidade vivem cheias de mendigos
O asylo está inteiramente aberto, pois a cerca muitos deles faziam suas refeições com comida
da madeira muitas vezes reconstruída, que enviada para os leprosos, quando não os res-
cercava o edifício, desapareceu a muito, e nem tos aos mesmos, tendo a política estabelecido
convém levanta-la de novo, porque os mesmos vigilância especial, a fim de coibir essa situa-
leprosos a destruíram de prompto, para que ção, não obstante as dificuldades, visto ser o
nem esse fraco obstáculo embarace a própria depósitos, dos leprosos no centro da cidade.
liberdade de locomoção, e o acesso do asylo (COSTA, 1903, p. 3 Arquivo Público)
aos estranhos, que com elles mantêm relações
freqüentes, senão diários. Percebemos que tornava inadiável a cons-
trução de uma colônia para os leprosos, diante
Como vimos, nas primeiras décadas do do aumento do índice de doentes, a urbanização
séc. XX, as medidas adotadas aos doentes de intensa, o modelo profilático de isolamento com-
“lepra” não visavam nem o bem estar, nem o pulsório, o estado em ruínas que encontrava-se o
tratamento, nem mesmo o seu “eficiente” iso- depósito de leprosos, tudo isso forçava o governo
lamento negando os interesses considerados para deslocar urgente os morféticos.
da saúde pública. O asilo não tinha serviço de
higiene, nem luz, nem ventilação. O doente não Assim, o governo estadual, observando a
tinha o menor conforto, não possuía água em necessidade de criar um local apropriado para
abundância para banhos, nem arborização que o portador de um mal tão perigoso, determinou
garantisse sombra e ventilação. que os doentes de “lepra” deveriam ser remo-
vidos para um lugar afastado do centro urbano
A multiplicação e a participação de irman-
de São Luis.
dades para o tratamento de doentes, arcando
com a dívida social, revela o primitivismo da O governo numa prova de grande zelo pela
cidade, do Estado e do Brasil em políticas pú- solução do caso da profilaxia da lepra, nes-
te Estado, não tem medido esforços para
blicas até o séc. XX. realizar a conclusão das obras da colônia
As irmandades, portanto, exerciam poderes de leprosos na Ponta do Bonfim, iniciada
e funções da alçada do Estado. em 1932, na administração Serôa da Mota.
(Relatório do Inspetor Federal Antônio de
Quanto ao tratamento, não existiam me- Almeida, 1935. p. 67)
207
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

2 - o LEProsário Do BoNFim seus direitos de cidadão terminavam, sua vida


era rígida por normas e legislações específicas.
Para a viabilização política de isolamento O doente transformava-se em leproso e seus fa-
compulsório foi necessário a criação de um verda- miliares comunicantes. Ao doente era posto uma
deiro mundo a parte, uma cidade dentro da cidade nova identidade:
de São Luís. A presença do doente no meio social “[...] eles dizia a quantia de doente, eles dizia:
significava risco de contágio e, portanto, ele deveria sua ficha?
ser excluído. - eu dizia: 1999, até hoje me lembro, esse era
meu nome[...]”
Assim, São Luís construiu uma micro-socie- Domingas Lima; 2004, ex-interna do Bonfim.
dade, formada por aqueles que deveriam ser extir-
pados em nome do bem-estar coletivo à semelhança O portador era identificado pelo diagnóstico,
do medievo. O mundo do leprosário era impedido de apresentação voluntária e denúncia esta última práti-
comunicar-se com o mundo exterior e qualquer ten- ca muito estimulada através da imprensa e da cartilha
tativa de negar esta premissa, era tido como crime. (catecismo contra a lepra) que acabou promovendo
A escolha do local para o leprosário tinha que um pânico e preconceito maior em relação à doença,
corresponder as premissas de acesso controlado, reforçando o estigma em relação ao doente.
local arejado longe da cidade, no qual aos doentes A internação colocava em prática o plano
encontrariam dificuldades para fugir. Assim, es- político da construção de uma sociedade sadia,
colheu-se a Ponta do Bonfim, local em que a única no espaço da exclusão era necessário que se pro-
forma de acesso era através das embarcações. jetasse os recortes da disciplina, era necessário
As instalações constavam as seguintes aco- individualizar o doente para melhor vigia-lo. Para
modações: 14 grupos de duas casas geminadas; o doente, isto significava sua “morte civil”, posto
2 grupos de três casas; 5 grupos de quatro casas; que era despojado de seus direitos de cidadão
3 grupos de seis casas, ou seja, 24 grupos com 72 com a ruptura de todos os seus vínculos sociais,
casas. As casas comportavam cerca de trezentos familiares, maternos.
doentes, além de uma enfermaria com lotação “[...] Eu tenho 53 anos aqui. Vim com 11 pra cá,
para quarenta doentes. A colônia possuía rede meus patrões me jogaram e pronto, acabou-se.
de abastecimento de água própria, as águas resi- Mas, pequena eu fui me acostumando tinha
duárias passariam por tratamento de depuração muita criança aqui também, eu me acostumei,
e me dei bem né, isso era uma cidade mesmo,
biológica e esterilização por cloro, antes de serem
tinha filme (cinema), tinha casamento [...]”.
lançadas ao mar. A colônia também possuía cozi- Domingas Lima. 2003, ex-interna do Bonfim.
nha, lavanderia geral a vapor, refeitório, cadeia,
igreja, posto policial, casa de administração, pos- O casamento era uma concessão, não um
to médico, tudo isso distribuídos em três zonas direito, qualquer tentativa de fuga, desacato
com função e características claramente defini- ou qualquer outro ato poderia ser considerado
das: Zona Sã; Zona Doente; Zona Neutra com o insubordinação e a conseqüente negação do
objetivo de não proporcionar a contaminação. pedido para casar. Quanto às crianças doentes e
A separação entre as zonas doente e sã, era abandonadas, havia uma prática de adoção pelos
claramente demarcada, apenas algumas pessoas residentes, autorizadas pelo prefeito da colônia.
eram autorizadas a cruzar a demarcação, e raros Caso houvesse gravidez na colônia os
eram os casos em que o doente recebia autoriza- procedimentos adotados eram da separação
ção para ultrapassar esses limites. imediata dos filhos sadios após o seu nascimento
A vida do doente estava sobre controle, a ele e posterior encaminhamento para educandários
cabia assumir uma nova identidade, ingressar em ou proventórios. Nestes locais, as crianças eram
um novo mundo e sofria uma série expropriações: educadas e criadas por religiosos (geralmente)
208
Jacklady Dutra Nascimento

em regime de internato até os 17 anos. O contato igreja, administrada pelas freiras da Irmandade
dessas crianças com seus pais eram feitos rara- São Vicente de Paula. Às irmãs cabia a formação
mente. Uma vez por ano, muitos dessas crianças moral e religiosa, bem como a concretização da
nem chegava a conhecer seus pais. passividade entre os doentes nas questões de
O mundo criado dentro dos asilos-colônia horários, respeito e disciplina.
foi estruturado de tal forma que praticamente Assim, percebemos os grandes obstáculos
cessavam os contatos com o exterior, e os poucos sociais e econômicos enfrentados pelos hanse-
canais disponíveis eram rigorosamente normali- nianos, cuja origem está na reelaboração dos
zado através do regimento interno. preconceitos surgidos no medievo pela população
As visitas, por outro lado eram escassas brasileira e ludovicense, bem como a falta de co-
seja por preconceito de contrair a doença, ou por nhecimento adequado para ultrapassar as barrei-
medo de serem abordados pelo Serviço Oficial ras do preconceito segregacionista e vislumbrar
de Saúde e submetidos ao isolamento, pelo fato os novos parâmetros científicos e profiláticos de
de terem convivido com o doente e suspeito de combate à doença. A racionalidade cedeu espaço
sê-lo também, era a chamada busca dos suspeitos à ignorância reforçada pela obscuridade religiosa
que rompeu de forma brusca os laços familiares. divulgada pela igreja através das irmandades e
arraigada à mentalidade medieval. Além disso,
A eficácia do isolamento promovia várias vale ressaltar o quanto qualquer doença que pro-
tentativas de fuga que acabavam por ser em vão, mova degenerescência da carne torna o indivíduo
pois a prefeitura acionava a delegacia da colônia molestado inadequado à sociedade, pois o padrão
capturando e punindo o fugitivo que ficava preso social eregido ao indivíduo e ao coletivo é o da
por no máximo 72 horas. sanidade da saúde, do belo e é por causa deste
Um outro instrumento de vital importância padrão hedonista, que acometido por “lepra”
para garantir a disciplina na cidade, asilar era a constrange e precisa ser isolado.

209
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Arquivo público do estado do maranhão. Setor de códices. ção em São Luis Maranhão na primeira metade do séc. XX. 2001. Tese
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DECRETO nº.448, datado de 13 de junho de 1933. MONTEIRO, Iara Nogueira. Da maldição divina a exclusão social: um
DECRETO nº.98, datado de 16 de outubro de 1937. estudo da hanseníase em São Paulo. 1995. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
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São Paulo, 1995.
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PALHANO, R. A coisa pública: serviços públicos e cidadania. São Luis:
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(Mestrado). _ Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002. em História) – Universidade Federal do Maranhão, São Luis, 2003.

210
um oLHAr soBrE A rELiGiÃo romANA
NA oBrA METAMORFOSES DE APuLEio (sÉC ii D.C)

João Marcos Alves Marques1


Sílvia Márcia Alves Siqueira2

s reflexões presentes neste artigo são fruto sua jornada até que finalmente acaba parando em

A da análise da obra Metamorfoses, escrita


por Apuleio, no segundo século d.C, esse
autor provavelmente nasceu por volta 114 e 125 d.C
uma praia na região de Cencreia, arrependido Lú-
cio pede ajuda aos deuses para que lhe livrem des-
sa condição humilhante então a deusa Ísis aparece
na África do Norte, nesse período os imperadores para ele e lhe concede a redenção, com a condição
que governavam Roma eram Adriano(114-138), de que ele seja seu sacerdote e propagandista, fi-
Antonio Pio (138-161) e Marco Aurélio (161-180), e nalmente ele volta a sua forma humana, é iniciado
a cidade natal de Apuleio é indicada pela historio- em cultos de mistérios e promete o que foi com-
grafia oficial como sendo Madaura, colônia agrária binado se tornando assim sacerdote da deusa Ísis.
romana, que foi fundada na Numídia região loca-
O presente artigo tem por objetivo analisar
lizada na África Proconsularis, e além de literato,
a obra Metamorfoses no sentido de compreender
Apuleio foi filosofo, sacerdote, advogado e mem-
e problematizar as passagens referentes às repre-
bro da ordem senatorial romana na província de
Madaura (NETO,2011, p.42). sentações feitas pelo autor Apuleio sobre a religião
romana, sendo assim, será exposto inicialmente
A obra Metamorfoses narra à história de um algumas considerações relativas ao estudo sobre a
jovem chamado Lúcio, que curioso por conhecer religião romana, buscando caracterizar essa prática
mais sobre as artes mágicas viaja para a região da e compreender que elementos e fatos contribuíram
Tessália, na Grécia, e nesse local acaba se deparan- para uma maior heterogeneidade da mesma, como
do com diversos relatos de viajantes que contam já também será exposto brevemente sobre o que se
terem tido experiências desagradáveis com algumas convencionou chamar de “cultos orientais”.
feiticeiras, posteriormente Lúcio se instala na casa
de um conhecido de seu amigo, um homem chama- Posteriormente serão analisadas três repre-
do Milão, que era casado com uma mulher de nome sentações de cerimônias religiosas presentes na
Panfilia, bastante conhecida na região por ser uma obra Metamorfoses, a primeira é uma festa de-
poderosa feiticeira, o protagonista se interessa cada dicada ao deus riso, depois será analisada a des-
vez mais por Panfilia, até o dia em que flagra a mes- crição e caracterização dos adoradores da deusa
ma se transformando em um pássaro, e desejoso por Síria e por fim será estudada a representação do
ter uma experiência com as práticas mágicas se uti- culto a deusa Isis tanto em sua esfera pública
liza de um unguento mágico que o acaba transfor- como também seu aspecto iniciatico.
mando-o em um asno ao invés de uma ave. Antes de adentrar no estudo propriamente
A partir do momento em que Lúcio é trans- da obra Metamorfoses é de extrema importância
formado em asno, o mesmo passa por diversas que se compreenda quais são as características do
vicissitudes e situações humilhantes ao longo de que se convencionou chamar de religião romana
1 Graduando em História na Universidade Estadual do Ceará/ARCHEA. e também é válido refletir como a mesma foi re-
2 Doutora em História Antiga e Docente da Universidade Estadual do Ceará/
ARCHEA. cebendo influências de outros povos e culturas ao
211
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

longo do tempo e como essas influências vieram para com novos deuses e divindades, porém é
a dar maior pluralidade e profundidade às práti- necessário ter em mente que essa atitude aco-
cas religiosas na vida romana. lhedora deve ser aceita com algumas ressalvas,
levando em consideração as possíveis recusas e
A utilização do termo religião romana é utili-
proibições para com determinadas divindades,
zado não no intuito de reduzir as diversas práticas
como por exemplo, no ano 21 a.C, houve a proi-
religiosas romanas, que são marcadas pela hetero-
bição, por parte de Augusto, da permanência
geneidade e multiplicidade, a um único sentido e
dos cultos egípcios no interior do pomenorium,
sim ser entendido como um termo que aglomere as
recinto sagrado da cidade (SILVA,2001, p.28) .
mais diversas formas de religiosidades presentes
em Roma, como também a utilização desse termo E com relação aos cultos orientais é impor-
se faz necessário para que não seja utilizado o ter- tante refletir que as influências desses cultos em
mo pagão para caracterizar as expressões religio- Roma são encontradas ao longo de diversos pe-
sas em Roma (SANZI, 2006, p.17). ríodos da história romana, às vezes de forma mais
branda, outras vezes de forma mais intensa como
Não há uma definição única para o que se
no caso do Período Imperial, que era constituído
convencionou denominar de religião romana,
por um território extenso e bastante diversificado,
porém através de fontes arqueológicos, literárias,
que se torna até difícil definir toda a riqueza socio-
dentre outras, pode-se perceber um conjunto de
cultural presente nesse período em decorrência da
características comuns que ajudam a vislumbrar
fusão de valores, integração de costumes e insti-
o que seria a vida religiosa romana, algo bastante
tuições entre as regiões do Oriente e o Ocidente do
característico seria que a religião em Roma estava
Mundo Antigo (MENDES, 2002, p.85). Os cultos
intimamente ligada ao sentido de comunidade, e
orientais são caracterizados como:
não ao individuo especificamente, sendo assim o
individuo se via apenas como membro de uma de- Algumas manifestações religiosas voltadas
terminada comunidade, e o aspecto comunitário para divindades específicas originárias do Egi-
to e do Oriente Próximo Antigo disseminadas
era bastante presente para os romanos, e pode-se
em momentos diversos e com êxito desigual nas
compreender também que se tratava de uma reli- diversas regiões do Império de Roma, de modo
gião cívica na qual o ato comunitário iria se reves- especial durante o segundo helenismo; em seu
tir de um ato religioso e o culto público também conjunto estas constituem um fenômeno espe-
agregaria dentro de sua dinâmica aspectos políti- cifico (SANZI, 2006, p.37).
cos (SCHEID, 1988, p.20).
No período Imperial, entre o governo de Au-
Outro aspecto bastante importante da vida gusto até o de Antonino Pio foi uma época que
religiosa romana seria que a mesma era uma po- além da extensão geográfica de Roma ter atingido
liteísta, bastante ritualizada e tradicionalista, po- seu auge, também foi um período considerado de
rém isso não irá impedir a adesão de novos cultos certa forma pacifico, tanto a nível interno como
e adoração de novos deuses em solo romano: em relação às fronteiras romanas, essa relativa paz
Se por um lado, os romanos assimilavam ele- foi de extrema importância para que houvesse uma
mentos religiosos dos povos conquistados, por maior expansão e afirmação das religiões orientais
outro, não interferiam sistematicamente nessa no Império, pois o deslocamento de pessoas pela
esfera, permitindo-lhes manter suas próprias
vasta região romana favoreceu a difusão dos cul-
crenças, o que não impedia que houvesse por
parte do Estado romano, em determinadas si- tos orientais, como também as relações comerciais
tuações, intolerância a despeito da abertura aos travadas na bacia do Mediterrâneo tiveram impor-
deuses e aos cultos novos (SANZI, 2006, p.18). tante papel para entradas das divindades orientais;
É importante frisar que a recepção desses cultos
Pode-se pensar então que de fato existiu sim foi um processo heterogêneo, havendo posturas e
uma grande abrangência por parte dos romanos reações diferentes entre determinadas regiões para
212
João Marcos Alves Marques / Sílvia Márcia Alves Siqueira

com as divindades que estavam sendo dissemina- tua alma prove algum infortúnio, mas sem cessar
das, podendo haver uma maior aceitação de deter- iluminará tua fronte de serena graça e de alegria.
minada divindade em um local enquanto que ou- Em reconhecimento pelo que te deve, a cidade
inteira te prestará honras extraordinárias. Ela te
tra divindade poderia também se mostrar presente, nomeará seu patrono e decidiu te elevar uma es-
mas com menor êxito (SOARES, 2011, p-51). tátua de bronze (Met.III. 48-49).
Ao longo de toda a narrativa da obra Meta-
morfoses é notória a presença de representações Com relação ao culto e ao deus riso não se
relativas à esfera religiosa romana, por mais que sabe se realmente existiu esse culto3, porém o que
a obra em questão seja uma criação literária de se faz válido é refletir sobre essa representação
Apuleio e retrate uma sociedade de modo cari- afim de que perceba os elementos presentes em
caturado, existem elementos que merecem ser um culto público romano, que vão desde a partici-
observados a fim de que se percebam aspectos da pação coletiva dos cidadãos, como também o pró-
sociedade romana a partir da visão pessoal do au- prio sentido ritualístico que as cerimônias irão ter,
tor, como é o caso das passagens relativas ao cul- e também observar o sentimento de subserviência
to ao deus riso, cerimônia essa que está retratada que os homens terão para com os deuses, já que
no livro III de Metamorfoses e que consiste em Lúcio só alcança as graças do deus depois que é
eleger um cidadão estrangeiro e criar situações feito algo para homenagear aquele deus, dito isso
para que o mesmo passe por momentos desespe- pode-se especular que a representação desse culto
ro e escárnio, afim de que os participantes desse seja um reflexo das comemorações e rituais sagra-
culto possam homenagear o deus riso através de dos presentes no cotidiano de Apuleio.
gargalhadas e do riso ritualístico. Outra representação religiosa presente na
Observa-se que a festa ao deus riso segue obra Metamorfoses é relacionada ao culto itine-
toda uma lógica ritual, que vai desde a prisão de rante realizado pelos sacerdotes da deusa Siria,
Lúcio, o seu julgamento e por fim ao êxtase do e no caso dessa representação nota-se por parte
riso, porém especificamente no caso de Lúcio do autor certa visão preconceituosa para com os
a experiência no culto tem um caráter pessoal, praticantes desse culto e durante todas as cenas
pois ele será o instrumento pelo qual a popula- nas quais os sacerdotes da deusa Siria são repre-
ção da Tessália irá poder expressar o sorriso, e sentados é notório um teor depreciativo e amo-
essa experiência inicialmente não terá um senti- ral, como é visto no trecho abaixo:
do cômico, pelo contrário será necessário levar o Tendo este, então, tomando posse de seu novo
protagonista até um estado de grande desespero e fâmulo, foi para casa, puxando-me atrás de si.
sofrimento para que posteriormente seja recebido Mal transpôs a soleira, gritou de longe: “Meni-
nas, eis aqui o gentil criado que trouxe do mer-
as graças e favores do deus, e o sentido regenera-
cado.” Mas as meninas eram, na realidade, um
dor presente nessa cerimônia é bastante forte, que coro de invertidos que exultantes, soltaram gritos
vai da extrema tristeza até uma exultante alegria, desafinados, com voz de mulher quebrada e rou-
como é exposto no trecho abaixo: ca, crendo que era um pequeno escravo que lhes
Não ignoramos senhor Lúcio, nem tua classe, haviam trazido para lhes prestar serviços. Mas
nem teu nascimento, nem o renome da ilustre quando viram um burro em lugar de um homem,
família que é a tua e que se estende por toda a fizeram caretas e escarneceram de seu dirigen-
província. O que te aflige tão fortemente, não foi te. Não, não era um servo, mas um marido para
para te ofender que to fizemos suportar. Espan- 3 Apenas PLUTARCO, em sua Vida de Licurgo. Trad. Aristides da Silva Lobo.
SP: Ed. das Américas, s/d. Vol. 1, cap. LIV, p. 244, afirma, apoiando-se em
ta do coração a tristeza e expulsa a amargura da Sosíbio, que o legislador espartano, Licurgo, teria doado aos lacedemônios uma
alma, pois os divertimentos periódicos aos quais pequena estátua de Gêlos (deus do riso grego), esperando promover a diversão
nos locais de convívio. Para a discussão do problema, cf. Silvia MILANEZI.
nossa cidade se entrega todo ano, em honra do Art. cit., p 131-133. BEAUJEU. “Les dieux d’Apulée”. Revue de l’Histoire
Deus Riso [...] Foste tu a fonte e instrumento do dês Religions, CC-4, 1983, p. 385-406, não inclui Risus na lista de di-
Riso. O favor e a amizade do deus te acompanha- vindades reconhecidas entre os antigos. Ambos os estudiosos admitem que
a hipótese mais plausível seja a de que a evocação tenha constituído recurso
rá por toda parte. Ele não permitirá jamais que a literário na construção da narrativa (MACEDO, 1997, p.96).

213
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

ele, certamente. E depois, disseram, não o comas ça de voltar à forma humana, sendo que em outros
sozinho. Partilha-o algumas vezes conosco que momentos posteriores o protagonista pede o auxilio
somos tuas pombinhas (Met.VIII. 134). de todos os deuses para lhe tirar de sua condição e
em várias situações em que o mesmo se encontra tão
Essa visão negativa e estigmatizada do culto próximo da estátua da deusa, ele age como se ela não
a deusa Siria pode ser em decorrência do descré- pudesse interferir em sua condição, o que pode ser
dito que essa divindade oriental poderia ter aos
em decorrência de que o autor Apuleio possa respei-
olhos de Apuleio, ou como expõe Hariadne da
tar a deusa, porém não crer de fato em seus poderes.
Penha Soares (2011, p.145) poderia corresponder
a um culto que não está inserido na cidade de Por fim a redenção de Lúcio transformado em
acordo com os cânones da religião oficial roma- asno se dá pelo seu encontro com a deusa Ísis, que lhe
na, podendo situar-se no rol das superstições. concede o direito de voltar à condição humana, e a
partir desse encontro Lúcio se inicia nos cultos a deu-
Com relação à representação afeminada dos
sa Isis, aprofundando o seu contato e relacionamento
sacerdotes a deusa Siria é importante ressaltar que
com a deusa, é importante ressaltar que Isis é uma di-
no mundo Greco-romano os sacerdotes dessa deusa
vindade egípcia e o seu culto tem origem ás margens
eram nomeados de galii, “que seriam sacerdotes eu-
do rio Nilo, o mito de Isis é de extrema importância
nucos, que haviam executado o ritual de autocastra-
para o povo egípcio, transmitido de forma oral, trata
ção em honra a divindade. Após o ritual, vestiam-se
da história de quatro irmãos, Isis, Osiris, Seth e Néf-
de mulher e dedicavam-se integralmente ás ativida-
tis; Isis é par de Osiris e Seth par de Néftis (FANTA-
des em homenagem à divindade” (SOARES,2011,
p-138). Essa prática se de autocastração simboliza a CUSSI, 2005, p.135; SANZI, 2006, p.39-40).
necessidade do homem em buscar uma maior proxi- A difusão do culto a Isis em Roma ocorreu por
midade e afinidade com a divindade retirando de si o volta do ano 100 a.C, e inicialmente enfrentou cer-
símbolo de sua masculinidade(Idem, Ibidem, p.140). ta resistência por parte da sociedade romana, em
Porém no mundo Greco-romano as atitudes decorrência do próprio corpo sacerdotal que tinha
relativas a inversões da verdadeira hierarquia, um sistema especifico de autoridade e possuía uma
como no caso da autocastração em que homem significativa participação feminina, as mulheres de-
após o ritual passa a se vestir e a exercer atitudes sempenhavam papeis na área litúrgica do culto como
tipicamente femininas são bastante reprovadas e também tinha parte nos rituais secretos, vale lembrar
consideradas como uma forma de degradação so- que a religião tradicional excluía a participação de es-
cial (VEYNE, 2009, p.219), e talvez a crítica de cravos, os libertos e as mulheres da hierarquia orga-
Apuleio recaia sobre essa prática no sentido não nizacional do culto público (SOARES, 2011 p -104).
de condenar a homossexualidade, mas no fato de Tanto o senado, como Augusto e Tibério bus-
se submeterem físico e moralmente a se tornarem caram expulsar os cultos egípcios da região roma-
um ser inferior (Idem, Ibidem, p.141). na, porém Calígula, que era adorador da deusa Isis,
A representação feita por Apuleio para com os provavelmente inseriu no calendário oficial as festi-
sacerdotes da deusa Siria é a pior possível, pois em vidades isíaca e Caracala promoveu Isis a divindade
todas as situações relatadas pelo autor sempre estão oficial do império, pode-se perceber por parte dos
presentes as características vis e deploráveis dos sa- imperadores uma atitude mais pacifica com relação
cerdotes, porém vale lembrar que em nenhum mo- aos cultos egípcios, e por todo Mediterrâneo Isis
mento Apuleio denigre a imagem da deusa Siria, teve boa aceitação entre as várias camadas popula-
apenas de seus adoradores, isso decorre do fato de os res, o seu culto atraia principalmente as mulheres,
romanos considerarem os deuses como seres supe- em decorrência das características da deusa que ha-
riores que mereciam homenagens (VEYNE, 2009, via sido mãe e esposa, nota-se que a difusão de Isis
p.190), mas também em nenhum momento Lúcio durante o império foi bastante forte e presente na
faz uma prece a deusa para que lhe conceda a gra- vida dos romanos.( Idem, Ibidem, p.105 -106).
214
João Marcos Alves Marques / Sílvia Márcia Alves Siqueira

Ao aparecer para Lúcio, à deusa Ísis o fala A obra Metamorfoses descreve o festival Navi-
da seguinte forma: gium Isidis, que ocorre como uma forma de procis-
Venho a ti, Lúcio, comovida por tuas preces, eu, são em que os devotos caminhavam até o mar para
mãe da natureza inteira, dirigente de todos os uma grande celebração, nota-se ao analisar as pas-
elementos, origem e principio dos séculos, divin- sagens referentes ao festival Navigium Isidis, que
dade suprema, rainha dos Manes [...] o mundo in- segundo Apuleio, se tratava de uma cerimônia, que
teiro me venera sob formas numerosas, com ritos agregava grande número de participantes, e a pre-
diversos, sob múltiplos nomes [...] uns chamam-
sença feminina é bastante marcante, já que, na obra,
me Juno, outros Belona, estes Hécate, aqueles
Ramnúsia. Mas os que o sol ilumina com seus as mulheres estão representadas tanto na figura das
raios nascentes, quando se levanta, e com os seus sacerdotisas, que tomavam de conta da estátua de
últimos raios, quando se inclina para o horizonte, Ísis, como também é relatada a presença femini-
os povos das duas Etiópias e os egípcios podero- na junto aos iniciados nos mistérios, vale ressaltar
sos por seu antigo saber honram-me com o culto também, o sentido de organização e diligencia que
que me é próprio, chamando-me pelo meu verda-
Apuleio expressa ao se referir a procissão e a rela-
deiro nome: Rainha Ísis (Met. XI. 182).
ção de respeito existente entre os sacerdotes de Ísis
e o poder imperial e os cidadãos romanos.
É importante analisar o trecho acima para
que se perceba que por mais que a deusa Isis Ao observar a obra Metamorfoses é válido per-
esteja sendo adorada em solo romano, e como ceber que a finalização da jornada escrita por Apu-
ela mesma expõe adorada sobre vários nomes leio possui um caráter de aprendizado, pois em de-
e em várias regiões, ela não perde sua identida- corrência de sua grande curiosidade o protagonista
de egípcia, sendo assim, pode-se pensar através experimenta diversas situações traumáticas e perigo-
desse trecho a permanência das raízes orientais sas, mas além do aspecto negativo dessa experiência
dos deuses em solo romano. de se transformar em asno e conviver com os estratos
mais baixos da sociedade, Lúcio repensa em suas
A deusa Ísis decide agir em favor em Lúcio,
ações e modifica sua personalidade ao longo da his-
e se propõe a lhe dar novamente sua forma hu- tória, e sua transformação é concedida, como já foi
mana, com a condição de que o mesmo se tor- exposto anteriormente, pela deusa Ísis; É válido aten-
ne seu sacerdote e propagandista e se inicie em tar para a figura do asno dentro da mitologia egípcia,
seus cultos, Lúcio aceita as condições da deusa, pois o asno geralmente é associado ao deus Seth, que
e a primeira instrução dada por Isis é que o pro- esquartejou Osiris,marido de Ísis e consequentemen-
tagonista, ainda em forma de asno, participe do te é inimigo da deusa, sendo assim, pode-se especu-
festival Navigium Isidis e procure comer uma lar que a figura do asno possa não ter sido por acaso e
flor que estará na mão de um sacerdote, após sim ter o sentido de ser escolhido um animal odiado
as instruções a deusa desaparece e no outro dia pela deusa para sofrer as diversas vicissitudes enfren-
Lúcio participa do festival. tadas por Lúcio (FANTACUSSI,2004). Também é
O festival Navigium Isidis era realizado em importante explicitar que a transformação de Lúcio
homenagem a deusa Ísis, e correspondia a abertura não se dá apenas no âmbito físico, ou seja a mudança
do ciclo anual de navegação, e era comemorado no de asno para homem, mas também ocorre uma rege-
dia cinco de março (TURCAN, 2001, p.115). O po- neração espiritual através da iniciação de Lúcio nos
der da deusa Ísis se estendia aos mares, e a mesma mistérios da deusa Ísis:
garantia à boa navegação; A origem do protetora- Ei-lo, aí está, livre das antigas atribulações, pela
do de Isis em relação ao mar e as navegações foi providência, da grande deusa Ísis, eis ai Lúcio, que
triunfa alegremente da fortuna. Entretanto, para
no Egito, na cidade de Alexandria, a deusa egípcia,
estar mais seguro e garantido, engaja-te na santa
devido ao próspero porto da cidade, foi celebrada milícia; foste para prestar juramento. Consagra-te
como protetora dos navegantes (AROYO DE LA desde já ás observâncias da nossa religião e sub-
FUENTE, 2002, p.229). mete-te voluntariamente ao julgo do nosso minis-
215
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

tério. Quando entrares ao serviço da deusa, verás lhes da iniciação não podem ser contados, deven-
e sentirás, então, verdadeiramente, que começas a do-se manter segredo sobre o ritual.
desfrutar de tua liberdade (Met. XI. 188).
Após a análise da obra, é perceptível sua im-
Nota-se pelo trecho acima que a total liberta- portância no estudo relativo à religião romana, pois
ção Lúcio só se dará verdadeiramente a partir do é exposto de forma bastante descritiva elementos
como cultos públicos a divindades, como também
momento em que ele travar um maior contato com
é notória a forte influencia da religião oriental den-
a religião isíaca, corre uma espécie de troca entre
tro de solo romano, através das representações dos
Lúcio e a deusa Ísis, caracterizando-se como uma
cultos a deus Siria e a deusa Ísis, e isso pode ser
prática votiva e no caso de Metamorfoses o prota-
em decorrência do próprio período em que Apuleio
gonista abdica de viver como antigamente para se
viveu, segundo século d.C, época em que os cultos
tornar um propagandista da deusa Ísis, como pode
orientais tiveram grande visibilidade, e a vivencia
ser observada no trecho abaixo:
do autor pode ter influenciado de forma direta na
O próprio ato da iniciação representa uma mor- composição de sua obra, já que a cidade natal do
te voluntária e uma salvação obtida pela graça. personagem Lúcio, Madaura é a mesma de Apuleio,
O poder da deusa atrai para si os mortais que,
como também uma das ocupações desempenhadas
chegados ao fim da existência, pisam a soleira
onde se acaba a luz; devem eles, porém, saber
pelo protagonista da obra ao fim de sua jornada
aguardar, os augustos segredos da religião [...] além de ser sacerdote de Ísis é a de advogado, ocu-
era de minha obrigação abster-me de alimentos pação essa que foi exercida por Apuleio como é ex-
profanos e proibidos, a fim de mais seguramen- posto em outra obra do autor chamada Apologia,
te obter o acesso aos mistérios da mais pura de vale ressaltar que nessa obra é revelado o contato de
todas as religiões (Met. XI. 191). Apuleio com diversos cultos mistérios (Apol., LV,
8), e ao analisar o último capitulo de Metamorfo-
O excerto acima expõe características im- ses, que retrata a iniciação de Lúcio, é exposto de
portantes relacionadas aos cultos de mistério que forma bastante descritiva determinados momentos
seriam a ideia de renascimento, como também a importantes nos cultos de mistério, o que pode ser
busca de salvação através de um maior contato em decorrência de uma experiência prévia de Apu-
com determinada divindade; A iniciação de Lú- leio, sendo assim a obra Metamorfoses é bastante
cio nos mistérios a deusa Ísis não é relatada na relevante no sentido de caracterizar e enriquecer o
obra Metamorfoses, o autor explica que os deta- estudo das práticas religiosas no império romano.

REFERÊNCIAS NETO, Belchior M. Bandidos e elites citadinas na África romana: um


Fontes Documentais estudo sobre a formação de estigmas com base nas Metamorphoses de
Apuleio de Madaura (século II). Dissertação de Mestrado, Universidade
APULEIO. O asno de ouro. Tradução de Ruth Guimarães. São Paulo:
Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais, 2011.
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SANZI, E. Cultos orientais e magia no mundo helenístico-romano:
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modelos e perspectivas metodológicas. Fortaleza: Ed: UECE, 2006.
ARROYO DE LA FUENTE, M. A. El culto isiaco em el Imperio romano.
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la Associación Española de Egiptologia, Madrid, n.12, 2002, p. 207-232. SILVA, G. V. da. Política, Ideologia e Arte poética em Roma: Horácio e
FANTACUSSI, Vanessa Auxiliadora. O Culto da deusa Ísis entre a criação do Principado. Revista Politéia. Vitória da Conquista, v.1, n.1,
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Apuleio. Assis: UNESP, 2006. SOARES. Hariadne da Penha. Os cultos de Ísis e Atargátis no alto Impé-
MENDES, N. M.; SILVA, G. V. da (Org.). Repensando o Império rio Romano: conflito religioso e formação de identidades nas Metamor-
Romano; perspectiva phosese De Dea Syria.Dissertação de Mestrado, Universidade Federal
do Espírito Santo,Centro de Ciências Humanas e Naturais, 2011.
socioeconômica, política e cultural. 1. ed. Rio de Janeiro / Vitória:
Mauad / Edufes, 2006. VEYNE, P. O Império Greco-romano. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

216
o PAPEL Dos JoGos E DA LiTErATurA TÉCNiCA
NA CoNsTruÇÃo Do PoDEr rÉGio AVisiNo
(PorTuGAL, sÉC. XiV/XV)

Jonathan Mendes Gomes1

D.
João I subiu ao trono após a resolução via forçada a se adaptar ao contexto. Este movimen-
da crise dinástica que principiou com to se enquadra no que Norbert Elias (1994) deno-
a morte de D. Fernando. Sua ascensão, minou de processo civilizador, o qual, em território
dando início à Dinastia de Avis, representou a português seguiu as diretrizes do que Vânia Fróes
vitória das novas estruturas, vinculadas às cida- (1995) denominou de Discurso do Paço: a matriz
des, ao comércio e à corte, que ganhavam espa- ideológica que fomentava esta moralização da so-
ço em detrimento das antigas estruturas feudais. ciedade, reordenada em diversos âmbitos.
Isto explica o fato de ter alcançado o apoio das
Por ter a corte como foco de divulgação, o
mais importantes cidades do Reino, e da nobreza
ambiente literário cultivado pelos monarcas não
de segunda, representada por cavaleiros armados
escapou a seu moralismo. Definidos por muitos au-
e secundogênitos que aspiravam ascender social-
tores como a Ínclita Geração, a Dinastia de Avis
mente (MATTOSO, 1987, p. 15).
foi marcada por representantes, como D. João I,
Entretanto, muitos foram os que questionaram D.Duarte e D.Pedro, preocupados com a promoção
a legitimidade da decisão das cortes, o que tornou da cultura e o mecenato, e manifestando um gos-
este período inicial marcado por relações ainda to especial pela reflexão e pela justificação de seus
instáveis (MATTOSO, 1993, p. 497). Esta conjun- atos e funções (SARAIVA, 1994, p. 30).
tura justificou a necessidade da nova dinastia bus-
Mattoso caracterizou os reis da Dinastia de
car formas de se legitimar aos olhos de seus súditos
Avis como devotados a ensinar, e emitindo juízo
e também dos estrangeiros. Junto com a propagan-
moral a respeito de tudo que liam e que presen-
da dinástica, e num claro processo de centralização
ciavam em seu cotidiano. E não se contentavam
do poder régio, também carecia a nova dinastia de
mecanismos que impusessem a autoridade monár- apenas em ler os famosos textos bíblicos ou os
quica sobre os concelhos, o clero e a nobreza. tratados herdados da antiguidade, puseram-se
também a escrever: conselhos, tratados, cartas e
Assim, o processo de centralização monárquica livros (MATTOSO, 1993, p. 542).
e a conseqüente monopolização dos poderes foram
“... screvo alguas cousas per que seran ajudados
acompanhados não apenas da estruturação de uma
pera a melhor percalçar os que as leerem com boa
identidade portuguesa, cuja imagem civilizada se voontade e quiserem fazer o que per mym em esto
opunha à “selvageria” castelhana. Trouxe também lhes for declarado” (D. DUARTE, 1986, p. 1).
consigo a constituição de uma corte capaz de difun-
dir novos modelos de sociabilidade, e controlar os Há que se lembrar que no século XV, se apro-
sentimentos e comportamentos tanto dessa nova no- funda a transição da figura régia como predomi-
breza que ascendia, quanto da velha nobreza, que se nantemente guerreira, o antigo rei dos campos de
1 Mestre em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). batalha, para as figuras tanto de um rei ministe-
Doutorando do PPGH–UFF, sob a orientação do Prof. Dr. Roberto
Godofredo Fabri Ferreira (UFF). Email: jonnykathca@yahoo.com.br rial, ou seja, associado a múltiplas tarefas gover-
217
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

nativas, quanto de um rei sábio, que se dedica a senom aquelles que sem torvamento dos outros
exercícios intelectuais de forma a se aprimorar. grandes feitos de que som encarregado posso
O rei encontra na escrita, sobre as virtudes e bem aver...” (D. DUARTE, 1986, p. 127).
proveitos dos jogos que não possui mais tanto “Ca por certo grande embargo na vontade de
tempo para praticar, uma forma produtiva de ter vergonha devia ter o rei, que seu tempo nun-
ca despendesse noutra coisa, senão em andar
aproveitar seus momentos de folga do governo,
por matos em como o fazem as alimarias; ca
desviando-o do enfadamento das tarefas quoti- como quer que o monte seja dado aos reis de
dianas, e não um ócio negativo que o desviaria andar a ele, pero todavia o mais de seu tem-
das funções administrativas principais que pas- po deviam a pôr nas grandes coisas, que tem
sou a acumular (SARAIVA, 2000, pp. 113-115). de fazer, que a seu estado cumprem (...); e deve
trabalhar que faça sempre direito e justiça com
“E veendo que meu coraçom nom pode sem-
temor de Deus” (D. JOÃO I, 2003, p. 28).
pre cuidar no que segundo meu estado seria
melhor e mais proveitoso (...) achey por boo
e proveitoso remédio alguas vezes penssar e Neste ato de escrever, os soberanos avisi-
de mynha maão screver em esto por requiry- nos valorizaram a prosa como instrumento mais
mento da voontade e de folgança que em ello apropriado que a lírica para ensinamentos sobre
sento” (D. DUARTE, 1986, pp. 2-3). moral e virtude, necessários a uma sociedade
“E quando o corresse por esta intenção, em que se transformava, e que precisava constan-
parando mentes, em como Deus lhe deu a re- temente do enquadramento de suas condutas.
ger tanta muita gente e como lhe tem dado Assim vemos surgir um conjunto de textos cha-
tão grande encarrego para o bem reger e se
achasse o entendimento tão enfadado e tão
mados de Prosa Moralística da Dinastia de Avis
cansado, que por tal enfadamento não pudes- que engloba livros como o Leal Conselheiro, a
se chegar a fazer os desembargos, que teúdo Virtuosa Benfeitoria, o Livro dos Ofícios entre
é fazer, então por perder aquele enfadamen- outros, os quais possuem descendência em gêne-
to, com vontade de fazer aquela coisa melhor ros já conhecidos, como a Literatura de Proveito
que lhe Deus mandou fazer, sobre tal inten-
e Exemplaridade, e os Espelhos de Príncipes.
ção indo ao monte, em tal correr do monte
força seria que ele ante Deus mandou mere- Estes manuais de conduta régias eram desti-
cesse” (D. JOÃO I, 2003, p. 24). nados a educar os futuros príncipes no ofício régio.
Afinal, o sangue assegurava a ascensão dos prínci-
Isto indica que, ao contrário do que mui- pes, mas não trazia consigo a garantia de que estes
tos pensavam, as atividades intelectuais são seriam bons reis. Daí a compreensão da necessida-
bastante compatíveis com as administrativas, de do oficio régio ser ensinado desde cedo aos fu-
isto é, uma forma de o rei se entreter, de forma turos governantes. Com forte conteúdo teológico
que esteja sempre disposto e não sobrecarrega- e moralizante, estes manuais atrelavam as princi-
do quando houvesse de cumprir seus deveres. pais funções do monarca às valiosas virtudes do
Tanto que expõem em suas obras os benefícios mundo cristão: o rei ideal tinha como prioridades
não só das atividades físicas, mas também do a obediência a Deus e à Igreja, a promoção da paz
hábito de escrever, para a aquisição das virtudes e justiça em seu território, e atender às demandas
necessárias ao bom governo. O alerta é que es- de seu povo (FRÓES, 1995, p. 20).
tas atividades não devem atrapalhar o exercício
das funções régias, e precisam ser realizadas Contudo, esta literatura uniu-se também ao
seguindo os princípios de Deus, que deu ao mo- gosto pela experiência, à observação empírica
narca a tarefa de reger os homens. da natureza, e ao uso dos sentidos físicos, como
o faziam os caçadores que se entregavam dia-
“Ca por os grandes cuydados que se me recre-
cerom depois que pella graça de deos fuy feito riamente na atividade da montaria (MARTINS,
Rey, poucos tempos me ficam pêra poder so- 1975, pp. 99-100), dentre os quais se incluem os
br’ello cuydar nem screver; ca outros nom filho príncipes de Avis. E assim surgiu a Literatura
218
Jonathan Mendes Gomes

Técnica da Dinastia de Avis. Dentre estas obras, a vivência religiosa constituía a base do modelo
também são de grande precedência as obras comportamental. Isto porque no período conheci-
de cetraria e alveitaria, principalmente aquelas do como Baixa Idade Média, a virtude se conso-
produzidas nas cortes da dinastia borgonhesa. lidou como signo fundamental de legitimação do
poder real, pois o autocontrole sobre os vícios era
Assim, é envolvido nesse quadro que si-
inerente às responsabilidades do ministério régio.
tuo o Livro de Montaria e a Arte de Bem Cavalgar
Representando a justificação máxima das exigên-
Toda Sela, escritos respectivamente por D. João I
cias de virtude, o monarca devia ser o mais virtuo-
e por D. Duarte. Consistem em tratados técnicos
so do reino, fato que fundamentava sua distinção
a respeito de atividades ao mesmo tempo lúdicas
e superioridade (SORIA, 1988, p. 84). Ou seja, se
e militares bastante apreciadas pelos cavaleiros
apresentava a priori como um personagem ético, e
da época. O universo dos jogos, como a caça, os
depois político, de tal forma que seus atos de poder
torneios e a falcoaria, já estava bem enraizado na
deveriam se submeter aos ideais éticos.
cultura cavaleiresca, como necessários à prepa-
ração do cavaleiro para a guerra, além de canali- “Mas do exempro dos senhores e dos princi-
paaes, como dito he, toda casa ou reyno filham
zador da violência em tempos de paz (ACCORSI, grande exempro em semelhante. E esso medes
1997, pp. 131-132). E por isso, eram considerados, emno seguymento das virtudes, de que vejo ao
mais do que os livros de histórias e os fabulários, presente (...) que sempre vyrom emno muy vir-
propícios a serem utilizados como mecanismos tuoso e de grandes virtudes elrrey meu senhor
pedagógicos no cerne da nobreza. e padre, ena muyto virtuosa Raynha, minha
senhora e madre, os principaaes de sua casa
“Ca se o leerem ryjo e muyto juntamente como e todollos outros do reyno per graça que lhe
livro destorias, logo desprazerá e se enfada- foy outorgada fezerom gram melhoramento em
róm del, por o nom poderem tam bem enten- leixarem maaos custumes e acrecentarem em
der nem renembrar; por que rera geeral he virtudes” (D. DUARTE, 1986, p. 119).
que desta guisa se devem leer todollos livros
dalgua sciencia ou enssynança” (D. DUAR-
TE, 1986, p. 3).
O autor cita a literatura política da época
como veiculadora das virtudes esperadas do rei,
No entanto, as práticas destes jogos foram que se conjugam visando formar um modelo que
bem mais além do que os objetivos puramente bé- pudesse alcançar o máximo de aceitação. Muitas
licos do período feudal anterior (PIMPÃO, 1947, coincidem com as virtudes teologais e cardinais:
p. 231). A consciência da necessidade de civilizar temperança, justiça, prudência, fortaleza, e fé, es-
perança, caridade. A estas costumam juntar-se ou-
os homens que mais de perto o rodeava, justifica
tros dons do Espírito Santo como piedade, temor
a preocupação de D. Duarte e D. João I em unir a
a Deus, sabedoria, entre outros. Porém, no século
tradição moralística e política o gosto pelas ativi-
XV, tais virtudes de inspiração religiosa passam a
dades físicas, criando uma rica literatura técnica
dividir espaço com as de caráter laico, que enal-
que não só ensina a arte das atividades preferidas
tecem graciosidade, lindo gesto, formosura, cor-
como a caça e a montaria, como elucidam sobre o
tesia, entre outros como clemência, misericórdia,
exercício do governo e sobre a arte de ser são tanto
e sinceridade (SORIA, 1988, pp. 85-86). O que
em corpo quanto em mente (alma sem vícios).
se exigia era sua capacidade de se auto-governar,
Afinal, se aos cortesãos cabia o polimento da tema incluído não apenas na literatura política,
conduta para conviver o mais próximo do círculo mas também nas mais variadas obras que consti-
régio, ao rei, o mais nobre de todos os seus pares e tuem a Prosa Moralística de Avis.
representante de Deus em seu reino, cabia a função
“... e assim, quanto se a virtude mais achega a
de fornecer o exemplo desta conduta. Nieto Soria conhecer o seu Deus, tanto é a virtude mais per-
(1988, p. 78) trabalhou com a vigência da propos- feita, assim como estas coisas que os homens
ta de um paradigma moral do monarca, no qual têm para conhecerem seu Deus, não as podem
219
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

alcançar senão pelo conhecimento. Ainda mais, nerosidade divina em seu reino. O rei generoso
como a alma dura por sempre, assim esta vir- conseguia conquistar e sustentar a fidelidade de
tude de conhecer dura com a alma por sem- seus súditos, quase sempre dispostos a acatar
pre”; “... ca ao homem cumpre primeiramente,
depois do conhecimento de Deus, conhecer si
suas ordens (Idem, p. 121).
mesmo, quem é e o que é e que poder tem; e Completando este quadro que relaciona a
depois se o tem de si ou de outrem e conhecer se liberalidade régia com o fortalecimento da ima-
o tem de outrem e porque lho quis dar, se pelos
seus merecimentos, se por sua própria graça”
gem e ação política do monarca, não se deve es-
(D. JOÃO I, 2003, p. 49). quecer a importância atribuída à Magnificência.
Esta se definiria como a capacidade de realizar
As especificidades portuguesas referentes à despesas em benefício do bem comum, e cuja
figura régia foram construídas, mediante esta reor- grandeza estivesse de acordo com o status de
denação das imagens existentes no mundo cristão, quem realiza. Acabou se tornando uma virtude
visto a necessidade de legitimação da dinastia avi- ligada intimamente à figura régia, como mostra
sina que se impunha no país. Uma das represen- tanto os diversos exemplos de gastos em ceri-
tações mais importantes deste quadro, de caráter mônias públicas, quanto nos temas literários
teológico, é a do governante com características onde a liberalidade manifesta sua grandeza atra-
messiânicas e evangélicas, que liga o rei, eleito por vés da magnificência. Assim, esta fortalece, sob
Deus, e o reino ao propósito divino de salvar a fé a égide do rei, ainda mais os vínculos sociais ba-
e a cristandade. E toda esta fusão de imagens sa- seados nas dádivas (MELLO, 2007, pp. 46-47).
cralizadas culminou na exaltação da moralidade Estas obras corroboram ideologicamente com
da ação do governante como fundamento da “boa a manutenção e legitimidade do poderio único e
governança do Reino” (FRÓES, 1995, p. 118). centralizado nas mãos do monarca. Sendo o go-
Visto a importância do franciscanismo como verno do reino concedido ao rei diretamente por
um dos substratos desta imagem régia avisina, a Deus, e tornando-se aquele representante deste na
caridade aparece como uma das virtudes mais terra, a fidelidade dos cristãos à sua religião é as-
rigorosamente cultivadas. O pobre é o objeto de sim transposta para a relação rei/súdito. Ou seja, os
piedade e compaixão, aquele que pela ajuda e mi- nobres jogos descritos por esta literatura mostram
sericórdia eleva o cristão à salvação. Esta função aos leitores que uma das grandes virtudes que se
foi assimilada pelo poder real avisino. deve possuir e demonstrar são a lealdade e serviço
ao senhor. Como o rei é o senhor máximo em sua
A virtude da generosidade também era bem
terra, esta afirmação torna-se fundamental para
valorizada pelos medievais. A liberalidade apa-
submeter todo o reino, em especial os audaciosos
rece com maior importância quando se trata da
figura régia. E isto não apenas pelo dever real de cavaleiros de sua corte, a seu comando.
representar o exemplo de conduta para seus sú- “E ssomariamente de homem a que convem
ditos, mas também pela necessidade de manter a teer boas bestas, e as saber bem cavalgar, se
sseguem estas seis avantagees: A primeira, seer
obediência e lealdade destes. A origem do poder
mais prestes pêra servir seu senhor, honrra e
régio é tratada pelas tradições políticas medie- proveito (...) boas vontades de fazer todallas
vais tanto pela via da escolha de Deus, quanto cousas virtuosamente e lealmente a deos e aos
pela via de um pacto entre governante e súditos. homees” (D. DUARTE, 1986, pp. 8-9).
Desta forma, a prática da generosidade através
da distribuição de mercês pelos monarcas torna- Mais do que isto, sugere também um senti-
va-se tão importante para justificar sua posição, mento nacionalista principiante, que se utiliza
quanto a manutenção de sua imagem enquanto justamente dessa capacidade da imagem régia de
sagrada e virtuosa. Enquanto representante de aglutinar uma diversidade de pessoas dentro de
Deus na terra, o rei deveria corresponder à ge- um território, segundo costumes próprios. Cos-
220
Jonathan Mendes Gomes

tumes estes que são difundidos pelo monarca, o “Porque nom há despesa pêra que mais sem
grande educador de seu povo, tendo em vista que empacho requeiram mercees aos senhores
os talentos e virtudes de seus súditos são os res- que pêra se comprarem bestas e as gover-
narem, nem os senhores mais geeralmente
ponsáveis pela manutenção de sua honra. acustumem fazer” (D. DUARTE, 1986, p. 11).
“Esto escrevo segundo meu custume geeral-
mente fallando, por que sey que alguus mouros, Além disso, a autoridade com a qual passa
por muy curto cavalgarem (...); e os Irlandeses,
seus ensinamentos, e cobra obediência, não vem
por nom trazerem strebeiras (...). E assy cada
naçom tem seu jeito, do qual nom me embargo, apenas de sua legítima imagem de espelho das vir-
porque eu screvo principalmente para ensynar tudes, mas também de toda a experiência prática
meus suditos, antre os quaaes esta declaro me que obteve ao longo de seu preparo para exercício
parece mais aprovada maneira” (Idem, p. 131). do governo, e de sua competência pedagógica.
“E porque o estado e honra dos reis não esta “E el crea o que lhe disserem, e lhe obedeça,
senão nos bons de sua terra, porem muito se por que necessario he ao que aprende creer e
devem de guardar, que por nenhum sabor do obedeecer a aquel que o ensyna” (Idem, p. 73).
mundo não perdessem os bons talentes deles”
(D. JOÃO I, 2003, p. 27).
Entendendo a autoridade como um elemen-
to que não coage fisicamente, apenas moralmen-
A lealdade ao rei vinha assim acompanha-
te, na busca de se consagrar perante a opinião
da da recompensa de inúmeras mercês e honras
pública, alcançamos a importância persuasiva
dadas aos cavaleiros, devendo ser gastas com-
das imagens criadas em torno da figura régia, as
prando material para se fazer sempre melhor
quais funcionaram perfeitamente na imposição
cavaleiro para sempre bem servir ao monarca.
de valores e comportamentos segundo critérios
“E com tudo isto, todavia, trabalharem-se diversificados de sociabilização. E a Literatu-
sempre de bem servir àquele com que anda- ra Técnica e Moralística foi fundamental neste
rem nas coisas de seu senhor, em que cumpre
processo de transformar a coação num elemento
de servir, por as quais coisas seu senhor pre-
suma dele que é bom e que de vontade lhe dê sutil e seguindo uma matriz psicopedagógica
encarrego dos seus feitos, que a sua fazenda que discernia os bons valores sociais a que se
e honra cumpre” (Idem, p. 29). devia adaptar (MATTOSO, 1993, p. 510).

221
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222
TEssiTurAs soBrE o CoNHECimENTo mÍTiCo
NA FormAÇÃo DE iDENTiDADEs
Dos GrEGos ANTiGos

José de Moraes Sousa 1


Francisca Derlange Soares de Sousa 2
Fátima de Moraes Sousa Bastos3

iNTroDuÇÃo

A origem da palavra mito vem do grego mythos


e traz o sentido de fábula, o que nos remete às Sendo assim, este artigo expressa uma pesqui-
sa de cunho bibliográfico que visa contribuir paras
narrativas dos tempos considerados fabulosos
reflexões a respeito do conhecimento mítico como
povoados por seres imaginários que simbolizavam
elemento educativo no processo de formação de iden-
elementos da natureza e da própria vida humana
tidades dos gregos antigos. O artigo apresenta uma
(FARIAS, 2006, p 27). Mas o mito compreendido
configuração com a seguinte arquitetura: pensamento
em seus contextos próprios de criação traz em si
introdutório; compreensões sobre o pensamento
uma riqueza de significados que não se esvazia em
mítico; dimensão pedagógica do mito no processo
nossa compreensão racional e na redução positi-
de formação dos gregos antigo por meio dos poemas
vista dominante na modernidade.
Ilíada e Odisseia; a presença do mito na atualidade e
Na Grécia antiga antes do surgimento de outros em seguidas as considerações finais.
conhecimentos tais como filosofia, ciência, o mito
constituía a abordagem através da qual o ser humano
pensava o mundo, a natureza e a si mesmo. Isso nos ComPrEENsÕEs soBrE
possibilita refletir sobre a necessidade de superar a o CoNHECimENTo mÍTiCo
ideia preconceituosa de que o mito é algo inferior
e sem nenhuma indicação de confiabilidade, como Quando vemos o mito pelos valores modernos,
concebe o positivismo que concebe como verdade encontramos apenas um pensamento fantasioso, que
apenas o que provém de observação e mensuração não traduz confiabilidade. Isso acontece porque a
(ARANHA E MARTINS, 1993, p.58). partir da modernidade, especificamente da matriz
Entre os aspectos importantes do mito para os filosófica do positivismo, todo conhecimento que
gregos antigos, estava o de transmitir valores para a não seja pautado na cientificidade não tem status de
formação das novas gerações, o que nos mostra que o conhecimento verdadeiro. Por isso para evitar tais
pensamento mítico tinha uma dimensão pedagógica. reduções é necessário que os saberes míticos sejam
Mas acreditamos ser importante refletir que a con- considerados a partir de sua própria configuração.
cepção de educação para os gregos antigos não era a Na Grécia antiga o pensamento mítico alcan-
mesma para a atualidade, pois acontecia nas próprias çava um valor destacado, uma vez que constituía
relações sociais desenvolvidas nas dinâmicas da vida, antes do aparecimento da filosofia e da ciência o
sem a existência de instituições escolares. único modo de interpretar o mundo e de situar-se
1 Mestre em Educação em Ciências e Matemática; msjunho@yahoo.com.br. na natureza e na vida cultural. E mesmo a partir
2 Especialista em Psicopedagogia Clínica; derlangesousa@gmail.com.
3 Licenciada Plena em Pedagogia; marciamoraessousa@bol.com.br. do surgimento do pensamento filosófico, continua
223
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

coexistindo entre outros conhecimentos. Por isso de formação dos gregos do período homérico, con-
com base em Leite (2001, p.8) se torna necessário tribuindo para a manutenção de sua cultura, que
pensá-lo a partir de sua própria ótica, pois não por sua vez segundo Morin (2002, p. 64) faz com
podemos percebê-lo via inteligência lógica, mas que as identidades tanto individuais como sociais
por meio da inteligência intuituiva. mantenham suas especificidades. Sendo assim, ao
Na verdade o mito se pauta nos critérios pro- considerarmos a identidade do grego antigo que
venientes da subjetividade, intuição, fé e da própria tinha como base os poemas homéricos e sua relação
experiência cotidiana. E assim como a ciência hoje cultural podemos dizer que havia uma interação
tem sua importância, o mito também foi fundamen- dialética, pois ao mesmo tempo em que a cultura
tal para os povos que o tinham como referência. era criada pelo pensamento da época também criava
Sobre isso Farias (2002, p.29) expressa que: “essas identidades com suas características, uma vez é
narrativas dão sentido ao mundo e às sociedades produção humana, mas também produtora de novos
ao longo da sua trajetória histórica, devido à força sujeitos (HALL, 2003, p. 43).
explicativa e metafórica que possuem”. Embora haja alguns questionamentos
Considerando que ainda predomina atualmente sobre a autoria de Homero em relação Ilíada e
uma visão científica fragmentada e sujeita unica- Odisséia, até mesmo pelo o fato de retratarem
mente a lógica da razão é perigoso entender o mito momentos históricos diferentes, não almejamos
a partir dos parâmetros dessa racionalidade, o que nos prender nessa questão, pois nosso propósito
pode reduzir os significados que emanam das nar- se volta para a dimensão pedagógica dos referidos
rativas míticas e perder as possibilidades holísticas poemas e sua importância na formação dos gre-
presentes nesse pensamento, uma vez que “[...] como gos antigos. Com esse objetivo Aranha e Martins
afirmavam os gregos, o mito permite que se capte, (2003, p.63) expressam que:
no interstício do fenômeno, a grandeza do todo. De De qualquer forma, as epopeia tiveram função
outro modo, é a revelação de uma totalidade que didática importante na vida dos gregos porque
não pretende se – prostituir com uma consciência descrevem o período da civilização micênica e
redutora” (LEITE, 2001, p.9). transmitem os valores da cultura por meio das
histórias dos deuses e antepassados, expres-
Portanto, compreendemos que o mito teve uma sando uma determinada concepção de vida.
importância fundamental para os gregos antigos, Por isso desde cedo as crianças decoravam
constituindo sua forma de interpretar o mundo e a passagens dos poemas de Homero.
vida. Com tal asserção refletimos que cada conheci-
mento tem suas especificidades e para que possamos Mas ao afirmarmos o valor educativo de
evitar compreensões exclusivistas se faz necessário Ilíada e Odisséia não podemos esquecer que o
pensá-los a partir de suas próprias perspectivas, sen- sentido de educação para os gregos nos tempos
do assim, é possível enxergarmos a riqueza do mito. homéricos não tinha o mesmo da escolar atual,
pois as práticas de aprendizagem aconteciam nas
próprias vivências sociais e não em instituições
o miTo formais. Segundo Jaeger (1986, p17) esse modo de
E suA DimENsÃo EDuCATiVA educação vivenciada pelos antigos gregos estava
EXPrEssA NA iLÍADA tão associada com a vida cotidiana que parecia
E oDissEiA como algo natural.
Finley (1998, p.17), expressa que “por detrás
Entre as funções do mito na Grécia Antiga, da Ilíada e da Odisseia há séculos de poesia oral,
estava a de indicar modelos de formação do homem composta, recitada e transmitida por bardos
grego. Nesse sentido a Ilíada e Odisséia se desta- profissionais, sem o auxílio de uma só palavra
caram como instrumentos educativos no processo escrita.” Com isso os poemas transmitiam a
224
José de Moraes Sousa / Francisca Derlange Soares de Sousa / Márcia de Fatima de Moraes Sousa Bastos

concepção de mundo que os gregos desse perío- saberes para os mais novos. Enquanto que os aspec-
do concebiam e os valores que moldavam seus tos éticos eram ensinados por meio dos exemplos
comportamentos. dos heróis apresentados na Ilíada e Odisseia com
suas virtudes modelares tais como honra, bondade,
Ao adentrarmos nessas obras, vemos que na
nobreza, coragem assim como também as formas
Ilíada é retratado um momento histórico caracte-
de se portarem em relação aos deuses, estrangeiros,
rizado pelas guerras e é notável a importância do
antepassados e a pátria (MURARI, AMARAL;
herói guerreiro que figura em suas tramas, nos
PERERA MELO, 2009, p. 9860).
dando propriedade para afirmarmos que,
Os heróis da Ilíada, que se revelam no seu gosto Já a Odisseia reflete um período de tempo pos-
pela guerra e na sua aspiração à honra como terior ao focalizado na Ilíada e narra as dificuldades
autênticos representantes da sua classe, são, do herói Odisseu que após a guerra de Tróia retorna
todavia, quanto ao resto da sua conduta, acima a sua casa em Itaca onde se encontra sua esposa
de tudo grandes senhores, com todas as suas Penélope que sofre assédios de pretendentes ambi-
excelências, mas também com todas as suas
ciosos em casar com a rainha e ocuparem o trono.
imprescindíveis debilidades. É impossível ima-
giná-los vivendo em paz: pertencem ao campo Nesse retorno o herói encontra-se com diversos seres
de batalha. Fora dele só os vemos nas pausas míticos tais como feiticeiros, sereias, ciclopes e vive
do combate, nas suas refeições, nos seus sacrifí- grandes aventuras, mas não deixou de cumprir seu
cios, nos seus conselhos (JAEGER, 1986, p. 41). destino final de voltar para sua cidade e sua família
com o auxílio da deusa Atenas e com o apoio de seu
A Ilíada ao tratar sobre um estado absoluto de filho mata os que buscam tomar seu lugar e reassume
guerra traz a figura do ideal de herói próprio desse o reino (MURARI, 2001, p.48).
contexto e apresenta os valores coerentes com a
Na verdade a odisséia diferente da Ilíada, mos-
formação da aristocracia, cujo verdadeiro ideal era
tra um contexto em que já se percebe os adjetivos da
o espírito heroico da areté (TABASA, 2011, pp.160-
civilidade grega, em que as regras, os costumes e
161). Esse conceito de areté é indissociável do ideal de
os interesses refletem uma organização social mais
formação dos gregos antigos e mesmo que na língua
complexa e, portanto exige um tipo de ideal de for-
portuguesa seja traduzido como virtude, segundo
mação diferente da Ilíada (MURARI, AMARAL;
Jaezer (1986, p.18) não há no referido idioma uma
PERERA MELO, 2009, p. 9858). Com base nessa
palavra que expresse na íntegra seus significados,
nova base social apresentada na Odisseia, caracte-
sendo que a palavra que mais se aproximaria seria
rizada pela civilidade, os modelos de formação se
excelência, a qual seria vista nos aspectos: morais,
enquadram muito mais no ideal de um homem que
práticos, físicos ou intelectuais, indicando também
precisa aprender a conviver com os outros não mais
grau de superioridade, assim como valorosas habi-
a partir dos parâmetros da guerra, mas da vivência
lidades militares (MURARI, 2011. p.95).
em sociedade. Quanto a essa outra configuração
Outro pensamento que não podemos perder de social Jaeger (1986, p.43) faz a seguinte asserção:
vista é que a educação homérica era em suas origens A nobreza da Odisséia é uma classe fechada, com
privilégio de uma aristocracia de guerreiros e que o intensa consciência dos seus privilégios, do seu
ideal homérico de formação abrangia tanto aspectos domínio e dos seus costumes e modos de vida
técnicos como éticos, sendo ambos constituintes refinados. Em vez das grandiosas paixões das
dessa educação (MARROU, 1998, pp. 20-25). figuras sobre-humanas e dos trágicos destinos
da Ilíada deparamos no novo poema com grande
Os aspectos técnicos podem ser vistos nas apti- número de figuras de estatura mais humana.
dões físicas como manejo das armas, jogos, esportes,
oratória, dança e canto incluindo habilidades com Com o proposito de refletirmos sobre os modelos
instrumentos musicais. Nesse contexto se destacava educativos presentes nos dois poemas, reiteramos que
a participação dos mais velhos na transmissão desses o ideal de formação da Odisséia difere do encontrado
225
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

na Iliada. Relacionamos essas diferenças ao fato hoje não existisse mais ou pelo menos não tivesse
de que o contexto histórico da Odisseia é posterior a nenhum lugar em nossa sociedade.
Ilíada e apresenta características históricas e culturais
Mas o interessante é que apesar de vivermos
próprias. Nesse sentido Murari (2011, p.60) diz que:
um contexto em que a ciência e a tecnologia são
[...] Os modelos sociais na Ilíada e na Odisseia indissociáveis da vida humana, percebemos também
diferem, e por isso também são diferentes os que o mito ainda encontra guarida em nosso meio,
modelos de heróis apresentados. Cada um
coexistindo com o conhecimento científico, filosófico
deles corresponde aos exemplos educativos de
homem e cidadão. Em um momento precisa-se e outros. Por isso embora não seja mais o único o
criar guerreiros, o homem deve ser excelente conhecimento existente, o mito consegue garantir sua
na guerra, em outro precisa-se formar cidadãos presença na história humana, com esse olhar Aranha
socialmente responsáveis e dedicados a sua e Martins (1993 p.59) expressam que,
família e a sua comunidade. Em decorrência
disso, na primeira obra, narrada em tempos de A função fabuladora persiste não só nos contos
guerra, tem-se Aquiles como homem ideal, já na populares, no folclore, como também na vida
segunda o homem ideal é Odisseu. diária do homem ao proferir certas palavras ricas
de não esgota os significados subjacentes que ul-
trapassam os limites da ressonância míticas: casa,
Com isso pensamos que a constatação dessas lar, amor, pai, mãe, paz, liberdade, morte, cuja
diferenças, nos possibilita reflexões a respeito da definição objetiva própria subjetividade. Essas
importância de vermos a educação como um pro- palavras nos remetem a valores arquetípicos, isto
cesso social e histórico, sempre em transformações. é, valores que são modelos universais, existentes
Sendo assim cada época tem suas peculiaridades e na natureza inconsciente e primitiva de todos nós.
seus valores, e mesmo que haja uma relação dialé-
tica entre passado, presente e futuro não se pode A própria concepção dominante de ciência
esquecer das marcas que cada período histórico moderna ao negar a importância do mito, prio-
deixa em seus modelos de educação. rizando apenas a racionalidade, fez da ciência
também um mito expresso na forma exacerbada
Portanto, podemos dizer que a as obras de de exaltar o conhecimento científico como a única
Homero não podem ser ignoradas em sua impor- forma verdadeira de conhecimento, daí o mito da
tância pedagógica, pois serviram como elemento de neutralidade e objetividade científica, da ciência
formação para os gregos antigos num período em como panacéia para todos os problemas humanos.
que o mito ditava os valores e os padrões comporta-
mentais para a formação de identidades compatíveis Curioso também como o mito é refletido até
com realidade cultural vigente, o que nos faz refletir mesmo na forma como o mercado se relacionar
sobre a importância do pensamento mítico como com seus consumidores, quando traz para essas
expressão dos gregos antigos sobre o mundo. relações características que nos remontam aos
sentimentos provocados pelo o mito, que se
misturam com nossas ânsias contemporâneas
o miTo E suAs e nossas necessidades estimuladas pelo campo
de marketing. Isso pode ser visto em situações
mANiFEsTAÇÕEs ATuAis
como a que mostra Eliade (2002, p.160), ao
mencionar que:
Falar sobre mito na antiguidade parece algo
peculiar a esse período histórico, uma vez que [...] basta visitar o salão anual do automóvel
geralmente se associa antiguidade com uma época para nele reconhecer uma manifestação reli-
giosa profundamente ritualizada. As cores, as
em que as pessoa eram guiadas pelas crenças e
luzes, a música, a reverência dos adoradores, a
como se isso fosse inferior as conquistas científicas presença das sacerdotisas do templo (as mane-
que marcam nosso tempo. Nessa ótica, nada mais quins), a pompa e o esplendor, o esbanjamento
adequado que ligar o mito ao passado, como se de dinheiro, a multidão compacta tudo isso
226
José de Moraes Sousa / Francisca Derlange Soares de Sousa / Márcia de Fatima de Moraes Sousa Bastos

representaria, em qualquer outra cultura, um da a primeira expressão do ser humano sobre o


ofício nitidamente litúrgico. O culto do carro mundo, pois quando não havia outras formas
sagrado tem os seus adeptos e iniciados. de conhecimento, como a ciência e a filosofia, o
mito era a única forma do ser humano interpretar
Mencionamos os ídolos que os meios de comu- a vida e se situar no desconhecido. Nessa pers-
nicação consagram e se incubem de nos apresentar pectiva, consideramos preconceituoso e redutor
como objetos de culto como artistas, políticos, todo pensamento que deprecia o mito e atribui a
jogadores etc., personalidades essas que são pos-
ciência o status de único conhecimento válido, o
tas para nós como modelos a serem seguidos, que
que empobrece a capacidade do ser humano de
representam o que buscamos em nossos ideais de
atribuir significados ao mundo.
beleza, poder, sucesso e fama. Enfim, percebemos
nessas figuras exemplares, aquilo que muitas vezes Com essa lógica percebemos que o mito foi
admiramos e ambicionamos conquistar, mesmo que um importante elemento que contribuiu para a
tais objetivos sejam mais próximos de nossas ideali- formação do grego antigo como os poemas Ilía-
zações do que das possibilidades de concretização. da e Odisséia que representaram instrumentos
didáticos que continham em si, as concepções e
Vemos também o mito nas relações idealiza-
os valores que convergiam para a formação do
das e maniqueístas presentes em filmes, desenhos,
homem guerreiro, com suas virtudes modelares
novelas, revistas em quadrinhos, em que a luta pelo
no caso da Ilíada e do homem voltado para a vida
bem e o mal é materializada nas ações de perso-
social e familiar em uma realidade em que se
nagens que invadem nosso imaginário com suas
percebe o desenvolvimento da civilidade como
características lineares, tendo de um lado pessoas
retrata a Odisséia.
boas sem defeito algum e do outro lado pessoas com
apenas características ruins. Enfim, personagens Mas o mito não é apenas um pensamento da
com quem nos identificamos em nossos desejos de antiguidade ele consegue assegurar seu lugar na
superar as realidades indesejadas que nos oprimem atualidade, mesmo quando se valoriza a ciência
(ARANHA, MARTINS, 1997, p.59). e a tecnologia de forma exacerbada. Com isso
é possível vermos seus traços em diferentes
Apresentamos acima algumas situações em
espaços como na mídia, na política, na arte, na
que podemos refletir sobre a presença do mito na
atualidade e que nos auxiliam em nossas consi- própria ciência e implícitos em eventos como
derações de que o conhecimento mítico não é aniversários, casamentos assim como em outras
algo superado ou incompatível com a razão. Mas situações que fazem parte vida humana.
ao contrário disso continua ao lado da ciência e Em face dessas reflexões podemos com pro-
de outros conhecimentos contribuindo com o ser priedade afirmar o mito como um conhecimento
humano em suas relações como o mundo, o que que tem sua especificidade, e que não pode ser
nos sinaliza sobre a importância de superarmos o visto a partir dos valores de outro conhecimento
exclusivismo científico e exercitarmos o diálogo como a ciência, mas por meio de seus próprios
com os diferentes tipos de conhecimentos que se critérios de verdades. Sendo assim, acreditamos
apresentam nos contextos hodiernos. que a valorização do pensamento mitológico pode
contribuir para que evitemos atitudes reducionis-
tas e cientificistas que limitam as possiblidades
CoNsiDErAÇÕEs FiNAis do ser humano diante dos desafios de interpretar
a natureza a sociedades e de se posicionar com
O conhecimento mítico representa uma agentes criadores de diferentes formas de atribuir
importante construção que pode ser considera- significados ao mundo e a existência.

227
REFERÊNCIAS do Estado da Bahia (Selo Editorial Letras da Bahia), 2001.
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228
A TirANiA Dos PisisTrATiDAs
E o DioNisismo áTiCo

José Roberto de Paiva Gomes1


Maria Regina Candido2

como Teseu, Heracles e Erechtheus, filho adotivo

O
s Pisistratidas empreenderam um pro-
grama de obras públicas em torno da da deusa Atena.
Acrópole e da Ágora, favorecidas pelas
A invenção do teatro e da tragédia estava
práticas mercantis e comerciais. Comparado com
vinculada aos rituais dionisíacos e ao culto dos
as construções realizadas na Democracia, como o
mortos conforme as hipóteses elaboradas por Gerald
Parthenon, observa-se um modelo de propaganda
Else (1965). De acordo com os estudos de Nellhaus
cultural que aproximou o demós (a comunidade
(1989: 53), a formulação das apresentações teatrais
políade) dos tiranos.
foi atribuída a dois poetas, a Thespis4 e a Esquilo.
Os estudos de J. P. Vernant e de Trabulsi A emergência da tragédia parece indicar algum tipo
(2004) apresentam a mesma hipótese da emergên- de mudança social. Como resultado do processo da
cia da tirania de Atenas e de Corinto. Os autores emergência da tirania (e mais tarde, da democracia),
denominam os Pisistratidas (Pisistrato e seus e do processo da transição da cultura oral para a
filhos, Hiparco e Hipias) como uma aristocracia escrita5. Desta forma, o teatro emergiu como uma
“liberal” e “revolucionário” em favor dos interesses inovação cultural promovida pelos tiranos.6 Em
do demós ateniense que combate uma aristocracia Atenas, o tirano induziu os concursos trágicos a
“tradicional” ligada aos interesses fundiários. Pi- se adquirem aos objetivos políticos, e mais tarde,
sístrato instituiu o culto de Dioniso e os primeiros 4 Os primeiros concursos oficiais tiveram seu desempenho no demós rural da Icaria,
concursos trágicos3. Os Pisistratidas transforma- cujo vencedor foi Thespis por volta de 534-33 durante a 61a olimpíada. Podlecki
(1987) descreve que Thespis teria vencido durante o governo de Sólon, como uma
riam Atenas em um grande centro intelectual e confusão de Plutarco que o confundiu com Pisístrato. Burnett (2003: 173), inicia a
festividade em 501 como uma segunda linha de argumentação que busca a matriz
artístico demonstrado por intermédio dos grandes da tragédia bem antes de Clístenes. Théspis seria considerado como o fundador da
festivais, pela recitação dos poemas órficos e pela tragédia e teria levado algum tempo para formar outros trágicos, a fim de competir.
Thespis atuando sozinho contraria a idéia de que a sociedade pisistratida estava
edição escrita dos poemas homéricos. Observamos, estruturada na política do agon (na disputa). Sugestiona-se também Ésquilo como
primeiro vencedor cuja vitória é datada em 484 a. C (BURNETT: 2003).
este período, a glorificação do tirano e de seus 5 O primeiro aspecto abordaria a emergência de estrutura política, enquanto o segundo,
ancestrais, principalmente na figura dos heróis caracteriza a necessidade de uma estrutura econômica que prescindia da cultura escrita.
Antes do VI século, a Hélade era uma sociedade agrícola. Os problemas econômicos
unificadores e promotores da identidade ática, tais e sociais desestabilizaram o domínio aristocrático, tendo como resultado a instalação
da tirania. Os tiranos acabaram por serem depostos e substituídos por oligarquias ou
1 Mestre em História. Doutorando em História Comparada na UFRJ e professor- ocasionalmente, como em Atenas, pelo regime democrático (NELLHAUS, 1989: 54).
colaborador do Curso de Especialização em História Comparada (CEHAM/ 6 Para Havelock (1990: 261-62) quando os atenienses se afastaram da agricultura,
NEA/UERJ). Email: alcaeusappho@gmail.com também se afastar em parte da cultura oral. Durante os séculos VII e VI, a maioria
2 Professora Associada de História Antiga da UERJ/NEA, do PPGH e das póleis estava atravessando conflitos sociais, decorrentes das demandas de
professora colaboradora do PPGHC/UFRJ. redistribuição de terras. Esses conflitos eram o resultado da superpopulação
3 As escavações realizadas pela Escola Americana de Estudos Clássicos em Atenas, relativa, sobretudo, advinda da população sem recursos. Entretanto, o aumento
com base nos documentos textuais antigos explicitam em dizer que os concursos do grupo de comerciantes e dos ceramistas, cada vez mais enriquecidos, também
dionisíacos tiveram lugar na Agora, antes de ir para o espaço atual do teatro, por parece perturbar a base tradicional agrária do poder. Os tiranos derrubaram
ocasião do colapso da produção de madeira ocorreu a necessidade dos assentos as velhas oligarquias aristocráticas, para realizar as demandas dos grupos de
em pedra. Moretti (2000, 378-380) diz que a área da encosta sul da Acrópole era menos recursos, com o propósito de garantir a estabilidade política (Tuc. Guerra
sagrada para Dionísio, pelo menos, desde a segunda metade do século VI, como do Peloponeso., 43; HAMMOND, 1986: 145-46; LINTOTT, 1982: 34-37,). Na
revelam os exames estratigráficos do relevo de Atenas. Scullion (2002, 125) supõe abordagem de diversos especialistas essa transição culmina com a formação da
que as apresentações dramáticas estavam conectadas com Dioniso no espaço do pólis sob o domínio dos eupatridas, mas, revela a sua desagregação, de um processo
santuário em Atenas. Para o pesquisador se encontrou um espaço disponível e de transferência da agricultura para o comércio, combinando a produção agrícola
permanente na proximidade do templo para uma estrutura teatral. com um centro urbano comercial (HAMMOND, 1986: 97-98).

229
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

serviu aos propósitos do imperialismo ateniense. espaço urbano)9. O objetivo era conquistar e man-
A tragédia encenada em um espaço público, faz ter o apoio popular (do demós), como um aspecto
com que o espetáculo assuma a função de explicar crucial para afasta os aristocratas atenienses rivais
e de explicitar a conduta cívica para a sociedade da supremacia e do controle político10.
políade. Os grupos sociais emergentes precisavam Richard Sewell11 liga o drama dionisíaco
da divulgação da escrita, bem como da formulação ao campesinato ático a partir de Barr Stringfel-
discursiva para gerirem seus negócios. low12. Barr caracteriza Pisistrato como fundador
Embora, não realizando grandes mudan- das Grandes Dionísiacas, a fim de apelar para
ças nas instituições políticas, Pisístrato (como o apoio dos camponeses. Barr descreve que
Sólon) auxiliou os interesses de artesãos e de Dionísio representava a união do homem com
comerciantes, aumentando sua participação tan- a divindade, com a morte e a ressurreição.
to econômica como política quando realizaram Favorecendo Dionísio, Pisistrato na realidade,
diversas obras públicas. O tirano atraiu artistas promoveria o deus da população de poucos re-
e poetas jônicos, após a primeira invasão persa cursos. Na perspectiva de Jacqueline de Romilly
a Ásia Menor, patrocinando suas ações culturais (1973: 15) em certo sentido, Pisístrato é Dioniso.13
nos festivais e utilizando-os em sua política. Isto O tirano teria atingido a base das crenças e do
significa que a tirania dos Pisistratidas ancorou seu temor religioso mais profundas da população de
poucos recursos. Em contraposição aos aristo-
poder no controle das instituições poliades e na
cratas favorecidos pelas divindades olímpicos, os
obtenção de um apoio popular. O tirano “inventa”
agricultores não compartilhavam da esperança e
ou reorganiza a tragédia e os espetáculos musicais,
da glória de serem lembrados. O passado heróico
por intermédio do festival das Grandes Dionisíacas
e a ancestralidade criavam um imaginário social
(Aristóteles, A. P. 56-59; HAMMOND, 1986: 150-
da eternidade, configurados pela chegada aos
183; LINTOTT, 1982: 48-50)7.
campos Elíseos. Os mistérios divulgados, nos
Em meados do século VI, o tirano Pisistrato cultos dionisíacos, prometiam a vida eterna a
incentivou o florescimento de muitos festivais em todos, sem distinção, até mesmo aos escravos.
Atenas, incluindo as Grandes Dionisiacas (DEUB- Portanto, sendo Dioniso, a única divindade que
NER, 1968: 139). Simon (1983, 101) afirma que a maioria da população de poucos recursos ou
Pisistrato acrescentada às competições dramáticas. marginalizada em Atenas teria empatia.
Mesmo, depois da morte do tirano e da deposição A ligação de Dioniso com o submundo pode
de Hípias, os concursos trágicos permaneceram ser atestada pelas viagens em navios do deus
populares, bem como as competições de desempe- na cultura material têm atestado. Outro artefato
nho artístico e musical8. O teatro foi patrocinado, material, as tabuinhas de ouro dos seguidores
ao lado de uma multiplicidade de outros projetos 9 De acordo com Sealey (1976: 8-9), a palavra “tirano” não é grega, mas
pelo tirano (como templos e as fontes de água no significa rei lídio. Durante este período de tempo a palavra foi associado a
riqueza oriental ou a regra estabelecida por um homem e ainda não realiza
7 As Grandes Dionisíacas, sob a autoridade de Pisístrato, criaram um espaço quaisquer conotações negativas.
social controlado e manipulado politicamente com o intuito de desenvolver 10 Pisistrato aparece como um homem novo, seguindo a abordagem de Hignett
a coesão social. Diferentemente, da maioria dos outros festivais helênicos, as (1952: 103), como detentor de privilégios pela glória militar após a guerra contra
Grandes Dionisíacas foram abertas aos estrangeiros. Muitos visitantes eram Megara, a conquista da região de Eleusis e de Salamina e por se aliar a um novo
prováveis convidados para participar dos jogos que acompanhavam os festivais, grupo social, os Philaides, formando um novo grupo social urbano, a partir das
facilitando a construção de uma reputação regional da Ática sob o comando novas terras anexadas. Com o apoio destes oligois, o tirano desenvolve uma
dos tiranos (PARKE, 1977: 128-156; HAMMOND, 1986: 182; ELSE, 1965: 48- política que de acordo com Sealey (1976: 168) será denominada de paz relativa,
50). As inovações de Pisístrato serviram para atender as necessidades políticas, na qual rompendo com a política aristocrática tradicional, confiscando bens,
tanto a nível local quanto aos interesses externos, favorecendo, sobretudo, a redistribuindo terras e, por conseguinte, diminuindo o poder das famílias dos
oligarquia comercial emergente. O tirano proporcionou, a partir do mecenariato Cimonides e dos Alcmeonidas (Her. Hist., 6.103).
de artistas, um diferencial único, a partir da ostentação dos “talentos de Atenas” 11 Sewell extrapola ainda mais essa tese, enfatizando a relação entre Dionísio
nos festivais. E, ao mesmo tempo, ao invocar um deus Dionísio popular, como e os grupos sociais inferiores, não necessariamente, os camponeses. Em
patrono, divulgou rituais que envolviam diferentes grupos sociais, rivalizando-se sua opinião, Dionísio seria um deus “partidário” das pessoas em sua luta
com os rituais aristocráticos de caráter privado. pelo poder político. Contudo, Sewell descreve que dificilmente pensa em
8 No governo democrático emergente, sob a magistratura de Clístenes Dionísio contra a aristocracia grega.
foram adicionados os concursos ditirâmbicos, por volta de 509, e, mais 12 Barr assume que Dionísio era uma adição tardia ao panteão olímpico.
tarde, a execução da comédia, em 486 (PARKE, 1977: 129-135; PICKARD- 13 Sendo esta perspectiva acompanhada por MARTIN, 1995: 15; SHAPIRO,
CAMBRIDGE, 1968: 72-78). 1989: 84 e FROST, 1990: 3-5.

230
José Roberto de Paiva Gomes / Maria Regina Candido

do orfismo14 demonstram que Dioniso teria um tais eventos, tornando Atenas uma cidade-estado
domínio no mundo dos mortos. Os templos em poderosa pela instituição de rituais religiosos e
diversas póleis do mundo helênico indicariam o pela transformação do espaço urbano dentro de
local de sepultamento do deus, tais como Delfos e um conceito Pan-helênico (ANDERSON: 2003).
Tebas. Referindo-se a um contexto mais político, o
A tragédia pode ser discutida como reflexo
dionisismo pode ser considerado como o promotor
da economia e da urbanização adotados pela
das relações comerciais tendo em vista que o re-
tirania de Pisístrato. Acredita-se que o tirano,
pertório dionisíaco expressado por taças, ânforas,
lécitos e tabuinhas de ouro estão espalhadas pelo provavelmente, patrocinava os concursos trági-
norte da Grécia, da Magna Grécia e da Sicília. cos sem usar os recursos da pólis. Essa hipótese
Desta maneira, Dionísio adquiria o epíteto de será aventada pelo estabelecimento de dez por
poluènume (como o deus de muitos chamados) e cento de imposto sobre produtos importados e
o relacionando com os mistérios ctônicos (mundo exportados. Os sucessores, Hiparco e Hipias,
subterrâneo) ao lado de Deméter e Perséfone. teriam cortaram esta taxa para cinco por cento,
em virtude do nível de riqueza alcançado pelo
Boardman argumentou que as atividades
desenvolvimento comercial, pela exploração de
de Pisistrato procuravam resgatar festivais que
minérios e pelo controle de colônias ao longo do
contassem com a presença popular em Atenas, e
mar Egeu (HAMMOND: 1986: 180-182)17.
os pintores-oleiros parecem que corresponderam
a essa tendência de demonstrar tanto a vida rural Os recursos pagos pelo tirano (Qeitour-
como a vida citadina. Este foco na promoção das giai, “liturgias”) ou pelos aristocratas de Atenas,
festas em Atenas foi traduzido em espetáculos mais como cidadão ou estrangeiro, financiavam os coros
extravagantes (os festivais anacreônticos) e associa- trágicos (de caráter religioso e competitivo) como
dos com cultos e rituais, por exemplo. O governo um dos serviços públicos que deveriam promover
Pisistratida salientou o significado lúdico da cele- o bem estar social. Finley (1985: 150-2), Austin
bração de Dioniso, por intermédio da divulgação e Vidal-Naquet (1977: 100-21) e Else (1965: 56)
de um aprendizado cultural pelas apresentações destacam que os cidadãos bem-nascidos pode-
musicais e teatrais para uma oligarquia emergente. riam ostentar suas riquezas e sua ancestralidade
Entre os meados dos anos 80 e 90, os estu- por intermédio dos festivais políades. Os autores
dos de R. Parker (1996: 342-43), sobre a religião destacam que durante a realização da “liturgia”,
ateniense, atribuíram a construção de edificações possivelmente, os recursos empregados na sua pro-
públicas aos tiranos e se constituindo como um moção equipariam um navio de guerra. Pickard-
novo paradigma. Mais recentemente se relativiza Cambridge (1968: 266-68) destaca que as entradas,
a tese de que Pisístrato estabeleceu um modelo para os festivais trágicos, tinham um preço elevado
oportunista de governo, de auto promoção, ao e que os coregos eram dotados de um “fundo”
patrocinar a construção de edifícios como o templo para subsidiar as entradas aos mais necessitados
de Atena na Acrópole e o Telesterion em Eleusis15 (supostamente, mesmo os ricos ocasionalmente
para desenvolver os cultos de mistérios16 (BLOK, usavam)18. Essa atitude, evidencia um dos prin-
1990; PALEOTHODOROS, 1999). Em vez disso, cipais atributos da democracia já sendo gestado
os estudiosos tornaram mais atrativo, vincular na tirania arcaica, por intermédio da isonomia, o
essa idéia a democracia como patrocinadora de critério político que em tese todos os cidadãos são
14 Dionísio prometia aos seus seguidores uma passagem segura para a vida iguais e detem os mesmos direitos.
após a morte e garantia a sua existência como bem-aventurado no mundo
dos mortos (SEGAL, 1990: 411-19; COLE, 2003). 17 Austin e Vidal Naquet (1977, 122-24) descrevem que, depois da tirania, os
15 Sobre Eleusis ver: Miles, Margaret M. The Athenian Agora. American impostos sobre o comércio continuaram no período democrático.
School of Classical Studies Publications, 1998. Mylonas, George E. Eleusis 18 O uso dos recursos de fundo será utilizado por Péricles, entre 450 e 425,
and the Eleusinian Mysteries. Princeton University Press, 1961. sugerido a importância do teatro para a democracia. Os pesquisadores
16 O Telesterion ou casa da iniciação foi construída pelos Pisistratidas em descrevem que os pagamentos desse tributo, também teria sido, requeridos para
Eleusis como um grande recinto fechado aos moldes orientais, o edifício os espetáculos teatrais no início das Grandes Dionísiacas (AUSTIN E VIDAL-
servia para os iniciados de reunirem e escutar os mistérios. NAQUET: 1977, 125-28; PICKARD-CABRIDGE: 1968: 58-59).

231
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Os festivais teatrais19 tornaram-se um sím- sobretudo em Atenas, Eleusis e Delos21. Apesar


bolo de Atenas e da demonstração de riqueza, da tese de Connor ter sido bastante aceita alguns
de poder e de vitalidade da vida políade. Dessa críticos, Sourvinou-Inwood (2003) argumenta que
maneira, podemos dizer os concursos trágicos fo- o festival das Grandes Dionisíacas pode ser consi-
ram instituídos para ajudar a construir um apoio derado como um festival de xenismos relacionado
popular para a tirania. No advento da democracia, com a introdução de um deus estrangeiro e do pró-
o teatro assumiu o seu caráter popular mais direi- prio estrangeiro dentro da pólis e que não tem nada
to, tendo em vista que demós passa a gerenciar os a ver com a anexação da região de Eleutherai22.
festivais como uma instituição política.
Em estudos sobre o politeísmo, Hirata (1995,
J.W. Cole (1975, 42) sugere que a partir da 398) analisa os festivais cívicos e religiosos de
estada de Pisístrato, durante seu exílio no vale caráter coletivo como meio de comunicação que
Strymon na Trácia, ter conhecido o culto de Dio- diminui a distância entre o governante e seus
nísio, conseguido o apoio dos trácios e, como for- apoiantes. Os Pisistratidas foram os responsáveis
ma de retribuição, introduzido o culto em Atenas. por reformular e reorganizar os contextos dramá-
W. R. Connor (1996) desconstrói a argumentação
ticos23. Os habitantes de Atenas tornaram-se parte
de Cole. O autor estabelece que a data de 534 é
integrante dos komós (banquetes) nas Grandes
uma indicação imprecisa para a fixação dos con-
Dionísiacas, experimentando a embriaguez. Ou-
textos dramáticos, sendo o festival das grandes
tra festividade ligada a Dioniso, as Antesterias24
Dionisiacas estabelecido entre 507/506. O festival
21 Pisístrato no campo religioso purificou a ilha sagrada de Delos, todas
teria sido instituído para celebrar a anexação da as sepulturas dentro do perímetro do templo de Apolo foram abertas e os
região da Beocia Eleutherai e da caracterização mortos removidos para outra parte da ilha. Ainda no campo econômico,
o tirano incentivou a agricultura, emprestando aos camponeses pobres,
do deus como símbolo de libertação20. mediante cobrança posterior de juros, gado e semente, dando uma especial
atenção ao cultivo da oliveira. O tirano decretado ou executado uma lei
contra a ociosidade, e exigiu que a pólis devesse manter seus soldados com
De encontro com esta perspectiva Connor deficiência (Colburn: 1829).
(1984) destacamos as relações entre política e 22 Ver também Versnel (1995: 377-378), Noel (1997: 71) e Kolb (1999). Contra
o conceito de Dionísio Eleuthereus como um “libertador”, ver: Raaflaub (2000:
religião, refletida nos rituais como uma propagan- 255-260). Anderson (2003: 182-183) não aceita o conceito de Dionísio como
libertador, mas ao invés acredita que o festival teve origem no fato memorável da
da política cuja mensagem pode ser divulgada e anexação de Eleutherai. Nas abordagens de Shapiro (1995, 19), Osborne (1996:
observado pela construção dos edifícios públicos, 308-311), Parker (1996, 92), Cartledge (1997, 23-24), Paleothodoros (1999)
e Spineto 2005, 212, essa hipótese apresenta-se inconclusiva. Apesar do culto
19 Os estudos arqueológicos sobre o templo de Dioniso em Atenas no período de Dioniso Eleuthereus e do desenvolvimento das Grandes Dionisíacas (city
dos Pisistratidas foram realizado por Wilhelm Dörpfeld e George Despinis. Dionisia) ser um culto recente, a festividade da Antesterias não, correspondendo
Seguindo as indicações de Pausanias (I, 20,3) e analisando os detritos escavados a um culto do deus Dioniso velho ou antigo, como é descrito em Tucídides
armazenados no Museu Nacional de Atenas, os pesquisadores dataram a (2.15.4). Aristóteles (Ath. Pol. 57,1) sublinha o fato de que os antigos festivais
construção em 540. Os vestígios tratam-se de um frontão que reconstrói eram de responsabilidade dos arcontes basileus, enquanto a Dionisíacas urbanas
a Gigantomaquia. De acordo Paleothodoros (2007) na Gigantomaquia foram conduzidas pelo arconte epónimo.
dionisíaca, os sátiros aparecem. A Gigantomaquia incluindo Dioniso também Hamilton (1992: 38-42) e Pickard-Cambridge (1968: 15-16 seguindo Plutarco
foi um tema apropriado no frontão oeste do templo arcaico de Apolo, em nas Oratórias (841f), sustentam que Licurgo, no século IV, introduzido os concursos
Delfos, um monumento erguido pelos Alcmeonidas, de acordo com a obra de textos para as celebrações no dia das Antesterias, conhecido como Chytroi,
Ion de Eurípedes (vv. 205-218). Outra narrativa sugere que o dorso pertence à estes concursos eram conforme Pickard-Cambridge compostos por competições
outra narrativa mitológica, ainda mais relevante, para a decoração do templo entre atores cômicos. O vencedor do agon iria realizá-lo nas Grandes Dionísias.
de Dioniso Eleuthereus, descrevendo o duelo entre rei beocio Melanthios e o Enquanto Hamilton, por outro lado observa essas performances como muito
herói ateniense Xanthos. Dionysos Melanaigis realiza uma aparição ajudando importantes para o Chytroi tendo em vista que seria uma forma de desvencilhar o
o campeão ateniense a superar seu oponente e derrotando-o. Este relato mundo dos vivos do mundo dos mortos. Ao contrário Pickard-Cambridge sugere
mitológico estaria relacionado à conquista da região de Eleutherios, fronteira que os concursos cômicos foram colocados simplesmente por uma conveniência. As
com a Beócia que garantia definitivamente o controle da região de Eleusis e Dionísiacas Rurais, de acordo com Pickard-Cambridge, foram baseadas na política
das regiões montanhosas do Noroeste da Ática na época da tirania. A partir de do desempenho, provavelmente baseado nas disputas agônicas. Pickard-Cambridge
estudos arqueológicos, realizados por Jean-Marc Moretti (2002: 284-286), os (1968: 44) descreve que a pratica do komós está relacionada com as Grandes
restos de um teatro foram encontrados a baixo do templo com uma orquestra. Dionísiacas, mas não com as Dionísiacas rurais.
A estrutura foi restaurada como trapezoidal / retangular, e a koilon na forma da 23 Ver os estudos de F.E. Capps (1943: 10).
letra Π, consistentemente com um outros dos primeiros teatros, muito similar 24 O festival do ‘desabrochar’, conhecido como o Antesterias, realizada em Atenas
com outras partes do Ática (Thorikos, Ikarion, Euonymon) e do noroeste e na Jônia, acontece no mês da primavera. De fato, Tucídides chama o festival de
do Peloponeso (Argos, Corinto, Isthmia). Os assentos de pedra retilíneos a mais antiga Dionísiacas (2.15.4). O autor sugere que o festival era recorrente nas
mostram que deveria haver três bancos de assentos de pedra, combinado com colônias gregas até o domínio persa da Ásia Menor (OTTO, 1965: 53). As flores
os bancos de madeira (ikria) e mencionados pelos antigos autores, tais como emprestaram o nome ao festival referiu-se ao florescimento das videiras, e do beber
Eurípides (LECH: 2009). o vinho novo fermentado a partir da colheita da uva no outono anterior. Apesar da
20 Martin (1995: 24-25), aceita as datas tradicionais para a fundação do abundância relativa de testimonias detalhando as atividades, tanto sobre a natureza
concurso dramático, acredita que a tragédia cresceu como uma iniciativa e a sua finalidade, o festival permanece controverso, como salienta Parke (2005:
Alcmeonida, mas no quadro cronológico do regime dos Pisistratidas. 291) relacionado aos problemas de reconstrução. Sobre a sua duração, Hamilton
Curiosamente as teorias de Connor foram completamente ignoradas pelos (1992: 42-50) condensa as atividades em um único dia, embora a visão tradicional
trabalhos de Angiollilo (1997) e Zatta (2010). seja de uma festa de três dias.

232
José Roberto de Paiva Gomes / Maria Regina Candido

incentiva o ato de beber e de zombar dos convi- alegórico é apresentado em outros quatro vasos. Na
vas. Ao que parece a apresentação da comédia cena retratada o mastro é inexistente, com rodas,
como parte dos festivais dionisíacos foram reali- a proa assume a forma de uma cabeça de animal
zados nesta festa, complementando as apresenta- (javali ou cão) e uma vela entrecruzada visível na
ções trágicas25. No entanto, Pickard-Cambridge popa. A vela é também representada na famosa
(1968: 45-6) caracteriza que as apresentações ânfora de Tarquinia que exibe Dioniso navegando
dramáticas não foram apresentadas em todos em companhia de sátiros e bacantes dançando,
os demós26, mais provável as execuções foram fazendo música, enquanto comanda o navio29.
colocadas apenas nos demós maiores, como o
Outro conjunto de vasos que narram a
Pireu. O pesquisador por exemplo, descreve que
chegada de Dioniso configuram a encenação
Sócrates foi ao Pireu apreciar peças de Eurípides
ritual da chegada da divindade na região da
(Ael. V. H. 2,13).
Ática (Nilsson: 1908: 399-402; Deubner: 1932,
Sobre as primeiras encenações temos poucas 102-103; Guarducci: 1983: 107; Simon: 1983).
referencias. Dioniso como temática nos vasos Supõe-se que a figura aparecendo no carro
se tornou muito mais popular na metade do VI alegórico é uma estátua, ou uma pessoa disfar-
século (MACKAY, 2010: 234). A evidência ico- çada. Os especialistas dividem opiniões sobre
nográfica sobre a estrutura do carro-navio (usado esse ritual ser realizado durante nas Antestérias
para celebrar a procissão), um das primeiras ou nas Grandes Dionisiacas (ROBERTSON,
matrizes do dionisismo nos vasos atenienses tem 1993: 218; HUMPHREYS, 2004: 230; FRIT-
sido um importante veiculo de informações. Lud- ZILAS, 2006: 17)30.
wig Deubner (1932, 93-151) descreve os festivais
Notavelmente, a iconografia da procissão
atenienses, dedicada uma grande seção a Dionísio
desapareceu por volta de 500, podendo fazer
e descreve que os vasos pintados ilustram os
uma alusão à memória coletiva criada pelos Pi-
rituais que ocorriam nos festivais dionisíacos
sistratidas. A partir do advento da democracia,
patrocinados pelas famílias aristocráticas ou da
essa formulação ritual tenha sido apagada por
própria tirania dos Pisistratidas. Infelizmente,
fazer alusão direta aos reis (basileus) do passado
existem poucas imagens informando sobre o
ou estar relacionada com a entrada de Pisístrato
patrocínio dos festivais, aparecendo no fim do
na Ática. Alguns autores acreditam que os pin-
sexto século apenas, e reaparecendo alguns anos
tores perderam o interesse em retratar o ritual
mais tarde sendo ligado às Grandes Dionísiacas
(BORGERS, 2004: 92; PARKER, 2005: 302).
no período clássico.
Posteriormente, o ritual será descartado, por
Existem quatro vasos de figuradas negras razão das competições dramáticas terem tomado
que mostram uma procissão de Dionísio a bordo o seu lugar. Matthias Steinhart (1995: 98-100),
de uma carroça, na forma de um navio27. O deus argumenta pela existência de três de mármores
é ladeado por dois sátiros e o grupo é às vezes, datados do V século retratando navios com olhos
emoldurado por uma procissão que também inclui gorgônicos, descobertos no Ágora de Atenas,
outros sátiros, seres humanos acompanhado de sejam referências à procissão que passou a ter um
sacrifício de animais28. O mesmo tipo de navio caráter de memória ao passado dos ancestrais.
25 Certamente, alguma forma de espetáculo parece ter sido apresentada. se transforma em um sátiro.
O espaço mais antigo como forma de “teatro” no demós está localizado em 29 Tarquinia, Museu Arqueológico Nacional 678, proveniente de Tarquinia, datada
Thorikos por volta de 550, o que indica que o público se reunia para assistir a de cerca de 510 a. C. (Kerényi 1976, fig. 49-50)
algum tipo de desempenho artístico (Pickard-Cambridge, 1968: 52-3). Para 30 Outra explicação para o desaparecimento da procissão-navio faz parte
Pickard-Cambridge (1968: 43-48) e Simon (1983: 101) haveria evidências de um festival dionisíaco na maioria das vezes identificado com o Katagogia
de que, no final do século V, Aristófanes e Sófocles foram a Eleusis para que identifica um acordo da Ática com várias cidades gregas do Oriente -
apresentar suas peças. Smyrna, Priene, Éfeso (Tassignon: 2003). De acordo Boardman (1958, 7) a
26 Deubner (1966: 136-37) discute a importância dessas performances partir da imagem de uma ânfora grega do século VI observamos a procissão
rurais para comédia e coros. demonstrando Dioniso como um deus oriental, como parte do fenômeno
27 Londres, Museu Britânico. 1836, 2-24,62 (B 79), proveniente de Acrai na do orientalismo. Na cena apresentam-se quatro homens vestidos com trajes
Sicília (Kerényi: 1976, fig. 58-59; Guarducci: 1983, 109, pl. I). egípcios carregando um navio sobre os seus ombros e a figura de um sátiro
28 Isler-Kerényi (2007: 59-63) discute os rituais associados com a bebida, na proa ostentando dois falos. Assim, os rituais dionisíacos realizadas no
sugere ser o symposion no processo de beber e de festejar o homem mortal período arcaico, talvez se assemelham uma prática egípcia.

233
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

CoNsiDErAÇÕEs PArCiAis lizar a influencia social dos aristocratas, os tiranos


promovem novas deidades políades ou ctônicas,
O crescimento econômico levou ao esta- como é o caso de Atena e de Dioniso. As reformas
belecimento da tirania que por sua vez, elevou institucionais de Pisístrato, por intermédio das Gran-
o aumento da riqueza e, eventualmente, para des Dionísiacas, caracterizam a divindade “estran-
a transição democrática, com a participação geira”, mas como um dispositivo social e identitário
da comunidade local (ANDREWES: 1956, 8; “domesticado”. O dionisismo no contexto da tirania
RAAFLAUB E WALLACE: 2007, 43). arcaica evidencia as tensões sociais existentes entre
uma oligarquia mercantil emergente e uma velha
Como outros tiranos, Pisistrato enfrentava
oligarquia fundiária.
uma aristocracia tradicional cujo poder reside no
controle da terra, da justiça e da religião, organizado
o comércio e os ofícios artesanais foram valorizados no tempo da tirania.
em frátrias e nos cultos dos ancestrais31. Para neutra- Isto acabou gerando uma tensão social entre os aristocratas e as pessoas
de poucos recursos, sobretudo no que se refere aos assuntos agrícolas.
31 Claude Mossé (1969: 3-8) em «o tirano demagogo», revela a construção Claude Mosse (1984: 134) descreve a emergência da tirania dos Pisistratidas
da tirania a partir das tendências antiaristocráticas. A autora aponta que (Pisistrato e seus filhos, Hiparco e Hipias) como um conflito entre os genós.

234
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236
“ArrAiAL! ArrAiAL! PELo mEsTrE D’AViZ,
rEGEDor E DEFENsor Dos rEiNos DE PorTuGAL”:
Memória e identidade na Crónica de D. João I, de Fernão Lopes

Josena Nascimento Lima Ribeiro1


Adriana Zierer

oseph Strayer, ao teorizar sobre as estruturas digna de “renembrança” (CDJ, 1967, p.5). Uma carta

J em construção do Estado moderno nos fins


da Idade Média, aponta que o período final
do século XIII e o início do século XIV (época
régia de 1434 do reinado de D. Duarte (1433-1438)
denuncia a tarefa do guarda-mor da Torre do Tom-
bo, Fernão Lopes, de escrever as crônicas dos anti-
em que segundo o mesmo teria surgido o conceito gos reis de Portugal e dos feitos de D. João I. Lopes
de soberania) é o momento em que o “sentimento assim receberia por ser trabalho uma tença anual de
de lealdade em relação à Igreja, à comunidade 14.000 reais. Assim, é de nosso interesse neste tra-
e à família foi definitivamente ultrapassado pelo balho analisar sua terceira crônica, a Crônica de D.
sentimento de lealdade a um estado que começa João I – Primeira e Segunda Parte.
a surgir”. Na Baixa Idade Média, as convulsões
As obras escritas por Lopes apresentam-se
sociais que passam a ocorrer na Europa levaram
como um elogio à figura monárquica. A necessidade
a mesma a tornar-se mais do que a Cristandade.
da existência de uma escrita legitimadora e propa-
Até então, tal território não possuía uma unidade
gandística evidencia o seu contra-discurso ou seja, a
política (STRAYER, s.d.).
relativa fragilidade do período inicial da Dinastia de
O reino do Portugal medievo encaixa-se nes- Avis. O cronista apelou então, para apresentar a le-
se processo a partir de um conflito conhecido gitimidade do poder do Mestre, o acumular de sinais
como “Revolução de Avis, momento marcado pela prodigiosos e um discurso profético messiânico que
ascensão ao poder de um monarca que não pos- o apontavam como rei, tanto por Deus como pelo
suía carisma de sangue, D. João I. Após a vitória povo. Em Coimbra, em Cortes, as populações do
em conflitos bélicos enfrentados contra o reino de reino passam a possuir um poder que somente Deus
Castela, o novo rei que apresentava motivos que emana quando escolhem D. João I por seu soberano.
o colocavam fora da disputa pelo trono, (como o
A partir das obras de Fernão Lopes passa a ser
fato de ser Mestre da Ordem de Avis) passou a
construído em sua volta aquilo que é discutido pela
empreender um discurso em que o mesmo é ele-
historiadora Vânia Leite Fróes por “discurso do
vado ao mito de um Messias, aquele se esperava
paço”, também presente em toda a Dinastia de Avis.
como redentor e salvador da crise enfrentada por
Miriam Coser ao comentar as ideias de Vânia Fróes,
tal reino ibérico (COELHO, 2010).
aponta que o discurso intencionado e propagado
A propaganda empreendida por D. João I, fun- pela nova dinastia, além da legitimação régia, obje-
dador da Dinastia de Avis, e por seus familiares ga- tivava promover o rei a um soberano verdadeiro no
rantia a sucessão ao trono de seus herdeiros e deno- reino português. E o rei como legítimo seria assim
tava a sua legitimidade. Assim, o Mestre, por meio capaz de combinar todos os segmentos sociais, jus-
de seu filho D. Duarte apoia-se na ação e celebração tamente por estar acima deles, formando um reino
para que a memória de seus “grandes feitos” fosse reconhecido por todos os habitantes e que apresen-
1 Graduada em História Licenciatura pela Universidade Estadual do Maranhão
(UEMA/Mnemosyne) sob a orientação da Profª Drª Adriana Zierer. Email: jo-
taria aspectos de uma “nação portuguesa” (FRÓES
senanlribeiro@gmail.com apud COSER, 2007, p.708-709).
237
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Na primeira parte de sua dupla de crônicas, Enquanto que os bons e verdadeiros portu-
Lopes relata os feitos do futuro rei de Avis até gueses são caracterizados como mártires, apósto-
o momento de sua ascensão enquanto que a se- los de discípulos que deram suas vidas pela causa
gunda parte dedica-se a descrever as lutas entre que acreditavam ser a correta e que, segundo a
Portugal e Castela em cenas de cercos e bata- construção e o discurso de Fernão Lopes, era sa-
lhas. Fernão Lopes apresenta principalmente na grada. Na comparação do Mestre de Avis a Jesus
parte primeira um D. João que cresce ao lon- Cristo e Nuno Álvares a S. Pedro, a arraia-miúda,
go de sua narrativa e é apresentado com sinais os homes de mester e a parcela da nobreza secun-
providenciais e messiânicos como as profecias dôgenita passaram a ser considerados homens de
de clérigos denotando o apoio de Deus à causa virtudes. Ser da “boa e mansa oliveira portugue-
portuguesa, apresentações de milagres, compa-
sa” representa cultivo e domesticação. São homens
ração com episódios bíblicos e entre outros.
que geram bons frutos e agem de acordo com o
Os escritos de Fernão Lopes também tencionam que o discurso de Fernão Lopes define como cor-
demonstrar o Portugal que se unia ao entorno do reto e honroso. (ACCORSI, 1997, p. 61)
Mestre de Avis como um reino escolhido pela Pro-
Levando em consideração tais analogias, ana-
vidência Divina. D. João estaria levando à salvação
lisa-se que a principal questão presente na obra de
todos os seus súditos, os tirando das garras daquele
que é apresentado na crônica como o Anticristo, D. Fernão Lopes é a tentativa de forjar-se uma identi-
Juan de Castela. Porém, as análises de Lopes não se dade portuguesa que tem no rei o seu centro e que
findam com o discurso messiânico e milenarista. O acaba por estar presente em toda a narrativa do cro-
objeto de análise deste trabalho é a tentativa de Lopes nista. De modo que vale reforçar que a Crônica de
de apresentar um sentimento de pertença nacional D. João I é escrita com um intento: a legitimação da
aos portugueses do final do século XIV. Assim, Lo- dinastia de Avis. Assim, é preciso ter em conta que
pes apresenta os relatos de como a sociedade portu- uma alegoria presente no discurso é posta em prática.
guesa estava dividida em relação a quem relegar as Discordamos da proposição de um latente sentimen-
suas lealdades e homenagens. Fernão Lopes apresen- to de identidade nacional no Portugal do século XV.
ta-nos então a dicotomia do “azambujeiro bravo” e Aqueles considerados por Lopes como “verdadeiros
da “mansa oliveira portuguesa”. portugueses” lutam em busca de riquezas e nobilita-
A nobreza natural – que não havia lutado ao ção, na intenção de ser recompensados por seus feitos
lado do de D. João I e sim do rei de Castela, D. Juan bélicos ao apoiar o Mestre de Avis.
– é considerada uma traidora da causa. São “falsos Ainda, a monarquia portuguesa, assim
portugueses”, “vergôneas direitas, cuja naçença como os reinos vizinhos, lançou-se na tentativa
trove seu amtiigo começa da boa e mansa oliveira de demonstrar latente sentimento de pertença
portuguees, esforçaremsse de cortar a arvor que através da diferenciação com o outro estrangei-
os criou, e mudar seu doço fruito em amargoso ro. Segundo Accorsi Júnior
liquor, isto he doer e pera chorar!” (CDJ, I, cap.
no discurso cronístico, o Paço Real de Avis
CLX, p. 343-344). Fernão Lopes leva em conside-
opôs o “natural” ao “estrangeiro”, o “castelha-
ração o princípio da naturalidade para caracterizar no ao português”. Entretanto, o Eu e o Outro
os portugueses. A nobreza que ficou ao lado dos não se definiram prioritariamente, por uma
castelhanos, hereges cismáticos, era considerada geografia de nascimento. Tornava-se necessá-
parte de um “azambujeiro bravo”, porém eram fi- rio agir e sentir como um “verdadeiro”,”lim-
lhos da “boa e mansa oliveira portuguesa”. Ser do do” ou “bom” português: “bons” castelhanos
também foram adjuvantes da causa do Mestre
azambujeiro bravo denota uma natureza indômita,
de Avis, “falsos portugueses” conjuraram con-
não cultivada. Natureza que não se coadunou com a tra ela. O que define identidade e alteridade no
vontade das populações subalternas e com o futuro texto cronístico são sentimentos e comporta-
rei de Portugal. (ACCORSI, 1997, pp. 60-61) mentos. (ACCORSI JÚNIOR, 1997, p.191)
238
Josena Nascimento Lima Ribeiro / Adriana Zierer

Porém, o mesmo autor posteriormente rei- latente sentimento de pertença que seja um fator
teira que outro aspecto que deve ser observado identitário de um grupo” (VIEIRA, 2010, p.81).
a partir da prosa construída pela casa de Avis é O que mais está presente é a imagem de Portu-
que a mesma refere-s-e à construção de identi- gal e de seus naturais unidos em um sentimento
dade nacional na sociedade portuguesa dos fi- comum que se fortalece ao longo de sua escrita.
nais da Idade Média. Trata-se de forjá-la para Lutam por riquezas, pelas suas posses, por no-
que se revelem os caracteres típicos dos atores bilitação, pelo apoio ao Mestre de Avis, não por
como indivíduos. O português tem, na escrita Portugal. Existe um forte sentimento de perten-
do cronista, sua lealdade definida a partir da fi- ça, não necessariamente identidade.
delidade à terra, ao reino e ao Mestre de Avis. A recordação de um passado glorioso e de
Trata-se também de legitimar a nova nobreza grandes conquistas por muito tempo, até mesmo
enquanto um grupo social, de moldar a imagem após o fim do Estado Nacional, esteve presen-
do “natural”, do “verdadeiro português” (AC- te na historiografia portuguesa. Estudos mais
CORSI JÚNIOR, 1997, p.139). recentes levados a cabo por historiadores tanto
A historiadora Margarida Garcez Ventura portugueses como brasileiros de uma nova ge-
também segue a mesma linha de pensamen- ração passaram a repensar tais premissas. Con-
to de Paulo Accorsi Júnior. Tal pesquisadora tinua-se a perceber o reino de Portugal como
portuguesa demonstra que a escrita de Lopes um pioneiro no processo de expansão marítima
também funciona como uma forma de denúncia e construção daquilo que pode ser caracteriza-
da “cupidez dos “meudos” que perseguiam os do como Estado Nacional. O que se coloca em
bons e honrados para lhe ficarem com os bens, discussão é a ideia de “revolução” em 1383 e de
aliás com o aval do Mestre” (VENTURA, latente identidade nacional.
1992, p.53). Ventura aponta que muitas vezes a José Mattoso foi um dos primeiros a come-
revolta das camadas populares e da burguesia çar a repensar tais premissas. Em sua publicação,
foi levada pela inveja, ódio e despeito. “Afinal, Fragmentos de uma composição medieval (1987),
Fernão Lopes critica os meios pelos quais parte reconhece que 1383 não modificou de forma defi-
da nobreza e da burguesia contemporâneas das nitiva as estruturas da sociedade portuguesa, mas
crônicas alcançaram esses status” (VENTU- acredita que a utilização do termo “revolução” não
RA, 1992, p.53). Diante de tais aspectos, é grandemente problemático para que seja usado
toda a questão do “sentimento de nacionalida- sem demasiados anacronismos. 1383 teria trazido
de” associado ao povo deve ser vista como uma suficientes mudanças e perturbações para permitir
estratégia política utilizada por Fernão Lopes a utilização do termo (MATTOSO, 1987, p. 278).
para garantir a legitimidade do novo monarca.
Este será um dos elementos do “discurso do pa- Anos depois, Mattoso juntamente com Ar-
ço”2. É certo que a nova dinastia estimulou o mindo de Sousa em História de Portugal: A Mo-
sentimento de pertença a uma unidade maior, narquia Feudal (1096-1480) questiona a memó-
o que seria um embrião do sentimento de na- ria sobre o reinado de D. João I. Apontam que a
cionalidade (no sentido da passagem do vassalo
vida da população portuguesa em tal momento
ao súdito), capaz de garantir mais tarde, a cons-
tituição do Estado, no sentido dado ao Estado
não foi fácil. Citam que
Moderno (ZIERER, 2004, p.30). até 1411 andou-se praticamente em guerra; a
inflação monetária atingiu níveis que nunca
Logo, acreditamos que “no tempo do cronis- foram igualados em nenhum outro governo
até hoje; as tradicionais queixas do povo con-
ta Fernão Lopes, ainda não temos uma imagem
tra os privilegiados persistiram, tendo mesmo
concreta do que é ser português naquele momen- recrudescido, conforme se lê nos textos par-
to, uma vez que não conseguimos localizar um lamentares; os impostos extraordinários, os
2 Conceito já discutido no artigo e desenvolvido pela historiadora Vânia Leite Fróes. pedidos, não só se tornaram crônicas, como
239
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

até foram lançados à rebelia das cortes e para Mattoso defende a ideia de que o Estado
finalidades diferentes da defesa nacional; e, Português não emerge de nenhuma formação
finalmente, coisa extremamente censurada e
étnica preponderante, mas sim da gradativa mu-
qualificada de roubo, as “sisas”, imposto indi-
recto municipal, só em situações muito graves dança de respeito e obediência ao rei e não mais
concedidas a reinantes, foram apropriadas à aos senhores feudais. Porém, este processo não
coroa como se tratasse de direitos reais. De é levado a cabo de maneira forte e rápida com
modo que é grandemente equívoca a “boa a ascensão de D. João I ao poder, mas sim de
memória” desse rei que a tem por cognome forma gradual, ao longo das dinastias de Avis
(MATTOSO; SOUSA, 1997, p. 417).
e Bragança. Se realmente houvesse já um poder
real de fato verdadeiro que combinasse em co-
Felizmente, a produção de José Mattoso vai
munidade todos os habitantes do reino não ha-
além. Na obra A Identidade Nacional (1998),
veria necessidade de encomendar uma obra que
toma por base as construções de Erik Erikson,
legitima a nova família real através de atributos
para elencar as condições necessárias à percep-
messiânicos e milenaristas.
ção da identidade de qualquer objeto, individual
ou coletivo. Assim, denota que a identidade na- O momento deixado em crônica por Fer-
cional pode ser notada a partir da percepção da não Lopes representava o surgimento de um
coletividade de formarem uma sociedade huma- novo direito contrário ao direito tradicional ou
na e a existência de uma história e língua em co- dinástico que correspondia ao direito de um se-
mum. Completa que a noção que se tem de iden- nhor suceder o outro na posse do patrimônio e
tidade nacional hoje é diferente das anteriores e do título. Tal novo direito era o direito natural
que os grupos humanos e sociais a percebem de da população da terra de renegar um senhor
formas diversas (MATTOSO, 1998, s/p). que não é o seu, um senhor de outra nacionali-
O livro trata da construção da identidade ao dade ou etnia e de optarem por um senhor “na-
longo dos séculos da história de Portugal. Ao tratar tural”. Era o direito dos homens sujeitos ao do-
da Idade Média aponta que é pela obediência ao rei, mínio e à subalternidade. É este complexo que
por serem seus vassalos do monarca português que Fernão Lopes chama de “mundanal afeiçom” e
se diferenciam de outros homens. Porém, ao mesmo relacionava-se não só ao embate entre Portugal
tempo, denota que “a compartimentação das socie- e Castela, mas também à oposição entre domi-
dades medievais fazia prevalecer sobre qualquer nados e dominadores, à cadeia de vassalagem
outra espécie de vínculos a ligação com o senhor (SARAIVA, 1998, pp.168-169).
da terra e com a comunidade da aldeia” e que esta Assim, a necessidade de escrita de uma crô-
situação faz-se presente durante toda a Idade Média nica que enaltece a origem providencial e os ele-
e grande parte da Moderna (MATTOSO, 1998, s/p). mentos messiânicos de um monarca já revela o
Ao falar de casos específicos como a formação seu contradiscurso: a relativa fragilidade e con-
do reino português com Afonso Henriques e em testação que poderia haver ao poder de D. João
1383 com a relativa representatividade popular em I e seus herdeiros. Tal ameaça pode ser identifi-
cortes e conselhos, denota que, apesar de Portugal cada principalmente nos primeiros anos de seu
ser o primeiro país da Europa, “estes antecedentes reinado já que com a conquista de Ceuta D. João
da democracia ocidental não podem ser invoca- muda sua divisa “em que se figurava um roche-
dos como uma precoce manifestação favorável à do penetrada por uma espada, que uma mão,
consciência da identidade nacional” (MATTO- saída de uma nuvem, empunhava, e apresenta-
SO, 1998, s/p). Seguindo Bernard Guenée, aponta va como alma a frase “Acuit ut penetret” (Para
que para um monge a “pátria” era o seu mosteiro, vencer, agucei minha espada), na demonstração
para um camponês, a sua aldeia, para um burguês da sua agudeza em enfrentar difíceis empresas”
a sua cidade (MATTOSO, 1998, s/p). (COELHO, 2008, p.340).
240
Josena Nascimento Lima Ribeiro / Adriana Zierer

Já no momento de morte de D. João I e da su- nastia de Avis ficasse presente na história e na


cessão ao trono de D. Duarte não pairavam mais memória. Nesse sentido, insere-se aquilo os his-
dúvidas sobre a legitimidade da nova casa real toriadores denominaram de prosa moralística.
portuguesa. A realeza de Avis foi continuamente Foi um momento de grande produção de obras
aclamada e proclamada e a partir das ações da de cunho pedagógico à sociedade cortesã do iní-
mesma. Portugal afirmara seu poderio frente aos cio do século XV. Este século foi um século mo-
demais reinos cristãos e ganha a admiração por ralista em que os príncipes davam-se a ensinar.
conta das sucessivas vitórias contra os mouros, A emitir juízos morais a respeito de tudo: do
inimigos da fé cristã, adquirindo grande poder quotidiano, de leituras, de doutrinas, virtudes e
peninsular (COELHO, 2008, p.385). vícios, doenças e prazeres (MATTOSO, 1997, p.
As tentativas de apagar o caráter bastardo 455). O próprio do D. João I escreveu entre 1415
de D. João apresentam-se até mesmo na Crônica e 1433 o Livro da Montaria onde o monarca
de D. João I, escrita por Fernão Lopes. O Mes- apresenta os aspectos da caça e a denota grande
tre de Avis é sempre caracterizado como filho importância. Para tal rei, tal atividade era uma
de rei, sem denotar que o mesmo é um bastardo verdadeira arte, “pois adestrava e disciplina os
e colocando em pé de igualdade aos demais her- homens, preparando-os física e espiritualmente
deiros legítimos. Tal fato se revela na descrição para a guerra” (COELHO, 2008, p.348).
da estratégia de Álvaro Pais, “homem honrado Seu filho e herdeiro, D. Duarte pôs-se a es-
e de boa fazenda, que fora chanceler-mor de el crever dois tratados morais. O primeiro Livro
-rei D. Pedro e depois de el-rei D. Fernando”, da Ensinança do Bem Cavalgar e o segundo e
(Crónica de D. João I, Primeira Parte, p. 147) de bem mais expressivo o Leal Conselheiro que
matar o Conde Andeiro, João Fernandes, aman- funciona como um tratado moral para fidalgos e
te da rainha regente aleivosa. A partir da con- senhores (MATTOSO, 1997, p.455). Neste, o se-
cordância e afirmação da presença de D. João na gundo monarca de Avis ensina razão, lealdade,
ação, já que era uma desonra ao senhor falecido disciplina e moralidade, demonstrando a prática
rei e seu irmão, Pais afirma: das virtudes e a condenação dos pecados caso
- Agora vejo eu, filho, senhor, a diferença que a moralidade e os preceitos cristãos não fossem
há dos filhos dos reis aos outros homens! colocados em prática (COELHO, 2008, p. 351).
(Crónica de D. João I, Primeira Parte, p. 150)
Ainda, o infante D. Pedro escreve o Tratado
Ou até mesmo em outro trecho em que Ál- da Virtuosa Benfeitoria e o Livro dos Ofícios.
varo Pais sai pela cidade convocando as gentes Vale ressaltar que em tal época os livros eram
para a insurreição popular, já que estavam ten- ditados aos escrivães e assim eram repletos de
tando “matar” o Mestre de Avis. Segue o trecho. um latente discurso oral. Por meio da escritu-
ra de livros, de traduções e da encomenda de
Álvaro Pais, que estava prestes e armado com
crônicas o rei e os infantes de Avis tornaram-se
uma coifa na cabeça, segundo o uso daque-
le tempo, cavalgou à pressa em cima de um modelos de cultura e de virtude pelos seus hábi-
cavalo, apesar de que anos havia que não tos em vida e pelo conhecimento, saber e precei-
cavalgara, e todos os seus aliados com ele, tos que deixaram como legado para as gerações
dizendo em brados a quaisquer que achava: seguintes (COELHO, 2008, p. 353).
- Acudamos ao Mestre, amigos, acudamos ao
Mestre, que é filho de el-rei D. Pedro! (Cró- Por fim, consideramos que hoje em dia para
nica de D. João I, Primeira Parte, p. 160) D. João existem duas memórias. A primeira é
a de que o monarca em questão melhorou em
D. João I, por possuir uma mácula em sua muito o reino de Portugal a partir de sua ges-
origem efetiva um grande número de esforços tão. Que com sua ascensão ao trono tem-se uma
para que uma imagem positiva do início da Di- melhora das condições político-sociais do reino;
241
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

com D. João I iniciou-se uma nova era portu- estudos sobre o Portugal medievo. Para que antes
guesa que desemboca na conquista da Ceuta, de tudo sejam desconstruídas as noções de um país
em 1415. E uma nova memória, que passa a ser que foi o pioneiro na expansão marítima e conquis-
construída tanto por pesquisadores portugueses tas do ultramar, na intenção de dar continuidade aos
quanto brasileiros de que esta imagem deve ser mitos de um grande Portugal que não corresponde
repensada. Deve se analisar mais a fundo o Por- mais à realidade contemporânea. Estudar o Portu-
tugal pós 1385 e as conjunturas do reinado de gal dos tempos medievais também é importante
D. João para que a imagem messiânica seja des- para o reconhecimento de nossos próprios mitos e
construída. A partir das ideias lançadas por José crenças. Conhecer este lado da história é aprender
Mattoso, aqui citadas anteriormente, passaram sobre as nossas raízes coloniais e costumes; muitos
a nascer novos problemas e novas abordagens. dos quais ainda são encontrados atualmente.
A cultura messiânica de Portugal, que teve
como primeiro expoente o caso do rei guerreiro
CoNsiDErAÇÕEs FiNAis Afonso Henriques, não se apresenta como um caso
isolado. Aqui analisamos o caso de D. João I na in-
A monarquia portuguesa e os homens de le- tenção de encaixá-lo na construção dos mitos po-
tras que as circundavam tiveram a clarividência líticos portugueses que até hoje ainda fazem parte
de perceber o quanto o mito político com inter- da história e da memória do povo português. Tais
cambiações religiosas era uma poderosa arma mitos engrenam sentimentos de pertença que fa-
do fortalecimento da figura régia. Assim, foi zem parte da população deste país hoje. Acreditam
natural a propagação por parte da historiografia e contribuem para a representação de um passado
de que a Crónica de D. João I apresenta já, em glorioso para Portugal. Os habitantes consideram
pleno século XIV e início do XV, latentes senti- que fazem parte dessa história, são herdeiros dela.
mentos de identidade nacional.
À guisa de conclusão, deve-se ter a percepção
Discordamos dessa proposição. Por conta de de que a cultura messiânica dos portugueses atra-
renovações nas pesquisas históricas e o intuito de vessa as águas do oceano Atlântico. A contribuição
desconstruir uma imagem de um grande Portu- de Marc Bloch ao definir a História como a ciência
gal já na contemporaneidade, pesquisadores tanto dos homens no tempo permitiu aos pesquisadores
portugueses quanto brasileiros passaram a enxer- não encarar mais os casos isolados como perten-
gar no movimento de 1383 sentimentos de perten- centes a uma estrutura somente local. Elevou-nos
ça. A identidade nacional, segundo os mesmos, a uma contribuição mais global da história. A cul-
não pode ser considerada já que os habitantes de
tura messiânica de Portugal acaba sendo também
Portugal enfrentaram e apoiaram os conflitos de
a nossa a partir do momento em que ainda encon-
forma diferenciada. Nos modelos monárquicos, a
tramos evidências do sebastianismo no Brasil ou
identidade constrói-se a partir do reconhecimento
quando enxergamos na história do Maranhão as
de todos como vassalos do rei. Na Idade Média,
lendas do milagre da Batalha de Guaxenduba, em
porém, os sentimentos de pertença e vassalidade
que Nossa Senhora da Vitória vem ao auxílio dos
para com o senhor, a vila e/ou o mosteiro ainda
lusitanos contra os franceses. O imaginário lançou
exercem mais importância do que a figura do mo-
suas garras no ultramar e demonstrou como as
narca (MATTOSO, 1998).
crenças humanas, sejam messiânicas, milenaristas
É a partir dessa conotação de identidade na- ou somente políticas passam a fazer parte da reali-
cional que podemos entender a importância dos dade efetiva (BARROS, 2004, p. 92).

242
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243
os CAVALEiros Do APoCALiPsE:
As influências agostinianas no discurso de Antônio Vieira
(1624-1641) 1

Joyce Oliveira Pereira2

A guerra é precondição para a paz. Todo cris-


tão deve estar preparado para a primeira se
quiser alcançar a segunda.
Hilário Franco Júnior

iNTroDuÇÃo

No início do século XVII, o medo da propaga- modelo de Usselincx, defendendo apenas o cor-
ção calvinista pelos católicos que habitavam a cida- so contra o Império Espanhol para manter o
de de Salvador, na Bahia, não era infundado: a WIC crescimento econômico e não defenderam a colo-
(Companhia das Índias Ocidentais) foi criada como nização e a propagação do calvinismo. Em 1619,
um projeto de propagação da fé frente ao papismo, Johan Van Olderbanevelt foi executado, acusado de
como era denominado o catolicismo pelos protestan- traição, marcando, assim, o fim da trégua com a
tes na Época Moderna. Esta idéia veio de Willen Us- Espanha; o que era de interesse do Príncipe Maurí-
selincx, o neerlandês fundador da companhia, um cio de Nassau e dos calvinistas militantes do Parti-
fervoroso “calvinista que defendeu a gradual emigra- do da Guerra (MAGALHÃES, 2010, p. 14).
ção das famílias do norte da Alemanha e do Báltico Essa vitória obtida pelo Partido da Guerra
para áreas não habitadas do continente americano, ao culminou com a defesa das idéias de Usselincx,
invés de estimular as práticas de corso contra o Impé- mas decidindo colonizar os principais cen-
rio Espanhol” (MAGALHÃES, 2010, p. 14). tros políticos econômicos europeus. Dessa ma-
O projeto pensado por Usselincx foi tomado neira, o sucesso da WIC seria a ruína das ações
em partes: primeiramente, a companhia foi fun- da Igreja católica no Novo Mundo. Desse modo,
dada baseada no principio de odium theologicum Salvador deixaria de ser uma das maiores sedes
contra os espanhóis; mas Johan Van Olderbanevelt3 apostólicas portuguesas no Ultramar e sede da
(1547-1619) e outros estadistas fizeram oposição ao única diocese portuguesa nas Américas.
1 Este artigo é um dos tópicos discutidos em minha monografia de conclusão
do Curso de História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), intitu-
lada “Em nome do deus dos exércitos: a teologia política de Antônio Vieira
no contexto das invasões neerlandesas na Bahia (1624-1641)”, defendida em
2012. Este trabalho de conclusão de curso foi vencedor único do III Prêmio
PECADos CAPiTAis,
Geia de Monografia em 2013.
2 Professora da Disciplina de Maranhão Colonial no Programa Darcy Ribeiro
CAsTiGo DiViNo
da Universidade Estadual do Maranhão. Cursa Especialização em Filosofia
(área de concentração em lógica e Ciências Cognitivas) pela UFMA. Email:
invasoesholandesas@gmail.com. De acordo com João Adolfo Hansen, as repre-
3 Político e diplomata holandês muito importante por ter ajudado no movi-
mento de emancipação da Holanda e foi administrador de Roterdã entre os
sentações produzidas no século XVII tomam Deus
anos de 1576-1586. como razão total de todas as coisas que se manifes-
245
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

tam na natureza e na história dos homens. Assim, que foram dados sinais pelo próprio Cristo que um
o que acontecia era considerado pelos habitantes grande castigo à Bahia estaria próximo:
de Salvador como sendo o Senhor escrevendo se- Alguns dias antes da chegada do inimi-
cretamente a Sua vontade (HANSEN, 2000, p.75). go, estando no coro em oração dois dos nos-
Em fins do ano de 1618, um cometa foi avistado na sos padres, viu um deles a Cristo Senhor Nos-
Baía. Não só este, mas outros sinais traziam maus so, com uma espada desembainhada contra
agouros, na concepção de Antônio Vieira, na Car- a cidade da Bahia, como quem ameaça-
va. Ao outro dia apareceu o Senhor com três
ta Ânua, redigida em 1626. Neste ano findou-se a
lanças, com que parecia atirava para o corpo
trégua entre a República das Províncias Unidas e a da Igreja. Bem entenderam os que isto vi-
Espanha e os céus já assinalavam o fim dos tempos: ram que prognosticava algum castigo grande
No fim do ano de 1618, apareceu um cometa (VIEIRA in PÉCORA, 1995, p. 153).
na Baía [...] o cometa, que direito e levantado se
mostrava no Brasil como palma, na Europa, in- Privilegiados no contato com Deus naquele
clinado e atravessado representava uma figura de momento histórico, os padres jesuítas „viram‟ e
alfange de fogo. E tudo era porque, debaixo das
transmitiram esses avisos. Estas advertências da-
neves do e gelo da Holanda como na entranhas e
fornalhas do Etna, se estava ao mesmo tempo das por Deus, segundo eles, seriam para prevenir
se acendendo e forjando um vulcão, que havia de os habitantes do perigo, mas, além disso, para que os
abrasar a Bahia e o Brasil [...] à imitação da Com- homens percebessem que as suas más condutas em
panhia Oriental, se ordenou levantou no Banco relação à vivência religiosa e cotidiana teriam graves
de Amesterdão outra com nome de Ocidental, consequências. Podemos inferir que a concretização
e com intento de conquistar primeiro a Baía e,
da invasão neerlandesa e a ocupação até 1625 pelos
depois o resto do Brasil, tanto que acabasse o
tempo de trégua. Esta se acabou no fim de 1618, hereges‟ pode ter sido considerada pelos habitantes
e no mesmo fim, pontualmente, apareceu o fatal da Bahia do período como um castigo divino.
e enigmático cometa. O primeiro golpe da cabe-
Na concepção de Antônio Vieira, esta puni-
ça do alfange descarregou sobre a Baía, como
cabeça do Estado, com uma poderosa armada, ção estava ligada aos pecados cometidos pelos ha-
e a conquistou sem armas, porque não as tinha bitantes da cidade de Salvador. Pois ele descreve
[...] Isto é que prognosticavao cometa da Baía, e que, durante as confissões realizadas no meio das
todos estes horrores tão medonhos, os que enco- fugas, muitos pecados foram descobertos:
briam a sombra daquela palma (MAGALHÃES
apud VIEIRA, 2010, p. 247). Aqui tiveram fim ódios muito antigos, desco-
briram-se pecados encobertos com o silêncio
de muitos anos, e, na verdade, foi tal a mu-
No trecho acima, podemos notar como o co- dança presente, que, só por razão dela, pare-
meta que é um fenômeno natural acabou sendo lido ceu muito conveniente dar Deus este castigo
por Antônio Vieira como um dos sinais da chegada (VIEIRA in PÉCORA, 1995, p. 154).
próxima dos neerlandeses. O jesuíta se utilizou bas-
tante da palma para explicar os desígnios divinos. Mesmo logrando sucesso a Jornada dos Vas-
No Sermão da Visitação de Nossa Senhora a Santa salos44 em 1625, que levou os neerlandeses a se re-
Isabel, pronunciado no ano 1638, a explicação do tirar da Baía, o jesuíta ainda afirma que, mesmo
mistério “cada folha dos ramos da palma é uma es- com todas as provações e penitências sofridas, a
pada” (VIEIRA in CIDADE, 1940, p. 57), significa, Baía iria tornar a ser um antro de pecado:
para Antônio Vieira, que o Brasil tornar-se-ia uma Contudo, ainda esta cidade padece muito, e
espada de luta contra os neerlandeses. tarde tornará ao antigo, por falta de navios e
Na Carta Ânua, escrita em latim por Antô- não acaba de vir o novo governador. Tudo por
causa do pecado, que agora são mais que nun-
nio Vieira em 1626, quando ainda tinha dezoito
ca (VIEIRA in PÉCORA, 1995, p. 189).
anos, que foi enviada nesse mesmo ano ao Geral
4 Jornada organizada por luso-espanhóis cuja maioria dos integrantes em no-
da Companhia de Jesus no Brasil, o jesuíta afirma bres que tinha como objetivo expulsar os neerlandeses da Bahia em 1625.

246
Joyce Oliveira Pereira

Esta idéia mostra a influência de Santo Para explicar o quanto o pecado é mortal aos
Agostinho sobre Antônio Vieira, pois, segundo olhos de Deus, no Sermão de Santa Cruz, de 1638,
o primeiro, quando Adão pecou todos pecaram Antônio Vieira retoma a Bíblia no episódio em
e por isso todos os homens já nascem com uma que Josué tenta conquistar Jericó e não consegue
culpabilidade herdada pelo nascimento que me- devido ao soldado Acam que furta em vez de quei-
rece castigo mesmo antes de qualquer outra per- mar toda a cidade como é mandado. O jesuíta de-
versão. Este punição é determinada por quem monstra que, por causa deste único soldado, Deus
Deus acha que deve ser castigado: fez com que todos os soldados fugissem:
Todos os homens formam como que [uma] Pois, por um só pecado, e de um só homem, e
massa de pecado tendo uma dívida de expiação em matéria quási leve, permite Deus que fujam
para com a divina e soberana justiça. Esta dívi- três mil soldados e afirma que do mesmo modo
da, Deus pode exigi-la ou perdoá-la (supplicium havia de fugir todo o exército que constava de
debens divinae summaeque justicie qod sive seiscentos mil: - Sim. Para que vejamos todos se
exigatur, sive donetur, nulla est iniquias) sem temos razão de tremer,e quão mal fundadas são
cometer injustiça. É acto de orgulho dos deve- as esperanças, com que nos prometeram gran-
dores decidir a quem é necessário exigir e a des vitórias, onde há tantos pecados e tão pouca
quem é necessário perdoar a dívida (AGOSTI- emenda (VIEIRA, in CIDADE, 1940 p. 90).
NHO in RICOUER, 2006, p. 16).

Para Santo Agostinho, Deus fazer anuência Conforme observa Hansen, a história provi-
à dívida é uma graça, mas cobrá-la é um direito. dencialista advém de pensar que a identidade de
Assim, podemos interpretar que, na com- Deus se reflete tanto na experiência passada como
preensão de Antônio Vieira, partindo do pres- na expectativa do futuro. Por isso, o passado e futuro
suposto da culpabilidade hereditária do homem, tornam-se análogos e semelhantes em todos os mo-
os inúmeros pecados dos habitantes da Bahia mentos. “A identidade divina no tempo é um evento
levou Deus a „cobrar‟ a dívida que já tinha des- que faz previsível o intervalo entre a experiência do
de o nascimento com as muitas outras que se passado e a expectativa do futuro”. O que está no
acumularam durante o tempo. Velho Testamento como tipo, no Novo Testamento
As injustiças, mentiras e falta de misericórdia está como protótipo e esta lógica também podia ser
são apontados por Antônio Vieira, no Sermão ao aplicada aos eventos passados e aos contemporâ-
Enterro dos ossos dos enforcados, proferido no ano neos da História Portuguesa. Daí a constante li-
de 1637, como vícios que os ibero-portugueses cul- gação dos eventos bíblicos aos acontecimentos
tivam e por isso não são ajudados por Deus em decorridos nas invasões neerlandesas (HANSEN,
suas conquistas: “por falta de justiça, de misericór- 2000, pp. 75-77). É possível perceber que o pensa-
dia e de verdade, se vêem tão destruídas e assoladas mento teológico-político de Antônio Vieira está em
nossas conquistas, e que só pode defender, conser- concordância com esta concepção providencialista
var e manter em pé sobre três colunas, com verda- da história, dominante em seu tempo.
de, com misericórdia e com justiça”. (VIEIRA in Já podemos notar em 1640 a interferência na
MINISTÉRIO DA CULTURA, [s.d]) Para ele, coisa pública como uma das principais caracterís-
o mundo conhecido pelos ibero-portugueses é ticas do jesuíta. Em sinal de protesto, ele salienta, no
mentiroso e só a graça de Deus é verdadeira: Sermão de Visitação de Nossa Senhora, pronuncia-
Tudo o que não é graça de Deus é vaidade e do em 1641, que os interesses, a cobiça de uns são
mentira: mentira e vaidade as riquezas; men- a causa da desgraça do “Brasil”5: os ministros de
tira e vaidade as honras; mentira e vaidade as
sua majestade, foram acusados de fazer tudo pela
que tão falsamente chamam delícias; enfim,
tudo que este mundo preza, ama, busca, men- metade das ordens do rei, só sugavam as riquezas
tira e vaidade (VIEIRA in MINISTÉRIO DA da Bahia para depois levar para outros lugares:
CULTURA [s.d]). 5 Antônio Vieira usa essa nomenclatura.

247
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Partem de Portugal estas nuvens, passam as cal- buco da mesma maneira. Tantas cartas de el-rei
mas da linha, onde se diz que também refer- antecedentes; tantas notícias de Holanda, que
vem as consciências, e em chegando, verbi havia, de vir e nomeadamente que haviam de
gratia, a esta Baía, não fazem mais que chupar, entrar por tal parte. Depois de partida a armada,
adquirir, ajuntar, encher-se (por meios ocultos, avisos de Portugal, avisos de Cabo Verde, que já
mas sabidos), e ao cabo de três ou quatro anos, vinham, que já chegavam; e nós a cortar canas, a
em vez de fertilizar nossa terra com a água que moer engenhos, e como de fôra nova de alguma
era nossa, abrem as asas ao vento, e vão chover grande frota que vinha a carregar açúcar; e assim
a Lisboa, esperdiçar a Madrid (VIEIRA in CI- o mesmo foi desembarcar, que serem senhores
DADE, 1940, p. 213). da terra. (VIEIRA in CIDADE, 1940, p. 231).

Esses interesses particulares foram asso- E para convencer os ibero-portugueses da


ciados por Antônio Vieira ao pecado original de culpa que possuíam pelo castigo, o jesuíta profe-
Adão que, em vez de trabalhar como ordenou o riu, no Sermão da Visitação de Nossa Senhora,
Senhor, resolveu guardar e, com isso, tomou o pregado 1641: “Quando o castigo é do céu, como
fruto proibido, decaiu, dando origem ao pecado hão de resistir os braços humanos? ” (VIEIRA
original (VIEIRA in CIDADE, 1940, p. 208). in CIDADE, 1940, p. 194). Para ele, só basta
Quando o jesuíta pregou o Sermão Pelo Bom Su- apelar ao próprio Deus e combater o inimigo.
cesso das Armas de Portugal contra as de Holan-
da, em 1638, ainda notava-se a questão do pecado
quando utilizou a passagem do livro de Jó para
GuErrA JusTA
pedir clemência: “Por que não tolera o meu peca-
do e não apaga minha culpa? Eis que vou logo me Para Le Goff, as Cruzadas6 durante a Idade
deitar por terra; tu me procurarás, e já não existi- Média tiveram como objetivo principal reconquis-
rei” (VIEIRA in CIDADE, 1940, p. 172). tar territórios sagrados para os cristãos que esta-
vam ocupados pelos infiéis, nesse caso os mouros.
Em seu entendimento, no Sermão do Dia A Guerra da Reconquista Cristã (711-1492), em-
de Reis, do ano 1641, a ganância ibero-portu- preendida por portugueses e espanhóis nos territó-
guesa por fazer e vender açúcar foi tão grande rios ibéricos para se rechaçar os mouriscos, tinha o
que, apesar dos avisos mandados pelo rei, das mesmo princípio. Esse dois movimentos religiosos
notícias da República das Províncias Unidas, de grande importância para forjar a identidade do
de Portugal, de Cabo Verde em 1624, havia se Ocidente estavam baseados em Santo Agostinho e
perdido a Bahia em 1624 e depois Pernambuco. na sua doutrina da guerra justa. Para ele, a guer-
E em 1641, o ano em que este sermão já tinha ra é justa quando serve para restabelecer a paz e
sido proferido, boa parte do Nordeste Brasilei- não quando se guerreia por guerrear (LE GOFF,
ro já tinha sido (ou) atacado, (ou) invadido (ou) 2008, p. 96). A guerra justa deve impedir barbari-
ocupado pelos neerlandeses: dades, dentre elas, a profanação de igrejas, sendo
Sempre avisados, mas nunca prevenidos. Lançai legítima para reparar erros, recuperar territórios
os olhos por tôdas as praças que temos perdido tomados injustamente de seus legítimos donos e
desde 1624 até o presente, e nenhuma achareis aplacar a fúria herética. As guerras de conquista
a que não precedesse avisos e muitos avisos.
Antes de se tomar a Baía, duas barcas de pescar
são condenadas. A guerra para ser justa tinha que
com cartas de el-rei, que pela novidade da em- ser declarada por uma pessoa dotada por Deus de
barcação fizeram o caso mais misterioso, e o avi- autoridade (LE GOFF, 2008, p. 107).
so mais notório; um mês antes a mesma capitania
da armada holandesa sôbre o morro, que mandou
Na Carta Ânua, Antônio Vieira observa
avisar pelos prisioneiros de Angola,; e nós com que, quando o bispo da Bahia, D. Marcos Tei-
a praça aberta, sem fortificação, sem trincheira, 6 Movimentos militares que iniciaram no século XI até o século XII de inspi-
ração cristã que partiram da Europa Ocidental em direção à Terra Santa com
como se nos preparáramos para entregarmos a o intuito de retirar os infiéis do local conquistando, ocupando e mantendo
cidade e não para defender; e assim foi. Pernam- sob domínio cristão.

248
Joyce Oliveira Pereira

xeira de Mendonça, assumiu a chefia das tropas no pensamento do autor da Carta Ânua, quando
portuguesas, em 1624, iniciou-se a resistência. ele considera que as mortes de ibero-portugueses
Ele, sendo uma autoridade eclesiástica e coman- só eram reparadas pela morte de inimigos neer-
dando a luta, foi considerado pelos habitantes de landeses: “Mas não se passaram muitos dias sem
Salvador como o iniciador da guerra justa contra que pagassem as vidas destes três com morte de
os neerlandeses. O bispo foi bem recebido pela quatro” (VIEIRA in PÉCORA, 1995, p. 170).
população, apesar de eclesiástico serem proibi-
No ponto de vista do jesuíta, no Sermão de
dos de pegar em armas e lutar como soldados:
Santo Antônio, restabelecer a ordem e reconquistar
O que vendo o povo, e reconhecendo nele, ago- territórios perdidos, que foram tomados dos
ra mais que nunca, um extremado zelo, não ibero-portugueses pelos neerlandeses, era uma
só para as coisas da honra do seu Deus mas
questão de vingança, porque eles foram injuriados:
também para as do serviço do seu rei, todos a
uma voz o aclamaram por capitão-mor, e que a Não diz que venceu, senão que se vingou,
ele seguiriam e obedeciam tudo. Eleito que foi porque a vitória responde à guerra, e a vin-
nesta forma, mandou logo sob pena de vida que gança à injúria. E porque os herejes lha fa-
ninguém trate com o inimigo, antes se ajunte ziam grande, atrevendo-se aos que pelejavam
toda a gente e preparem armas contra ele; e, à sombra da sua casa, como descomedidos
tanto, que teve moderado número de soldados, profanadores daquele sagrado, não os trata
assinalou capitães e repartiu companhias, com como vencedor, mas como vingativo; e não
ânimo de tornar a entrar e cobrar a cidade aos com o decoro de vencidos, mas com a afronta
treze de junho. E parece que se punha o céu as de sacrílegios e castigados: Quia ultus sum
nossa parte, porque no mesmo tempo viu Sua in eos (VIEIRA in CIDADE, 1940, p. 30).
Senhoria no ar uma bandeira de Cristo crucifi-
cado de uma parte, e da outra Santo Antônio, De acordo com Pérnoud, a injúria deu origem
cuja festa naquele dia celebrava a igreja (VIEI-
na Idade Média ao direito privado de guerrear,
RA in PÉCORA, 1995, pp. 164-165).
esta primeira idéia tinha como principio defender
territórios, assim como defender os direitos viola-
Como lembra Le Goff, na Idade Média os
dos de um membro da família (PÉRNOUD, 1997,
eclesiásticos eram proibidos de guerrear devido
p. 07). Segundo Hilário Franco Junior, a injúria foi
a guerra ser considerada uma atividade ligada
adaptada para as Guerras Santas que tinham como
ao pecado, porque fazia derramar sangue e esse
objetivos defender os territórios conquistados por
é impuro, por isso a guerra era um triste pri-
hereges, assim como proteger a família cristã‟ das
vilégio dos leigos (LE GOFF, 2008, p. 108). É
heresias. Na Guerra Santa levaram-se a cabo as
possível notar que esta idéia ainda perdura no
palavras de Cristo, “quem não é por mim é contra
século de Antônio Vieira.
mim” e assim “toda arvore que não produzir bons
Na compreensão de Antônio Vieira, na frutos será cortada e lançada ao fogo” (FRANCO
Carta Ânua, o bispo D. Marcos Teixeira de JÚNIOR, 2006, p. 149).
Mendonça, agora investido do poder temporal Na visão de Antônio Vieira, no Sermão do
e espiritual, era perfeito para a defesa nos dois Rosário, pregado em 1639, esta guerra foi for-
campos, porque essa guerra não era só política, çada para conservar a paz e não por ambicionar
era também religiosa. Um bispo representante a vitória. Só tem como objetivo reconquistar o
da Igreja Católica Romana, combatendo à fren- que foi dado de direito aos portugueses e se es-
te de um exército de resistência significava luta tes tomaram as armas foi para se defender de
aberta contra a WIC e a Igreja de Conquista, a outras armas. Antônio Vieira declara:
calvinista, que se instalaria, caso a invasão se
Sendo pois tão justificada, tão racional, tão
tornasse ocupação, a exemplo do que aconteceu inocente a nossa guerra, e sendo a paz filha
em Pernambuco posteriormente. O conceito de legítima da guerra, só quando a guerra é le-
guerra justa de Santo Agostinho está presente gítima, como foram as de David, muita razão
249
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

temos de esperar, que dela, como a de Salo- Deus e “daquele nome português, que ainda em
mão, nascesse também a nossa paz. A guerra nosso tempo fez tremer e fugir exércitos intei-
a nove anos há já que a padecemos, tempo e
ros” (VIEIRA in CIDADE, 1940, p. 156). No
número bastante para que dela nascesse êste
suspirado parto, do qual porém até agora não
Sermão de Santo Antônio, os exércitos portu-
temos outros sinais mais que as dores (VIEI- gueses foram comandados por duas mãos: visi-
RA in CIDADE, 1940, p. 111). velmente pelos soldados e invisíveis pelos san-
tos dos céus (VIEIRA in CIDADE, 1940, p. 14).
Na Carta Ânua, as grandes batalhas portu- A proteção divina era tão grande que, apesar
guesas são lembradas pelo jesuíta a fim de dar dos tiros, ninguém da parte católica foi morto
ânimo aos combatentes que, sem armamento, ou ferido, enquanto os neerlandeses pereceram
muitas vezes munidos somente na confiança em (VIEIRA in CIDADE, 1940, p. 18).

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HANSEN, João Adolfo. Ler e Ver: pressupostos da representação nível em <http://www.lusosofia.net/textos/ricoeur_paul_pecado_ori-
colonial. Veredas, Porto, v. 3-I, 2000, p. 75-90. ginal_estudo_de_significacao .pdf> Acesso em 03/07/2012 às 17:52.

250
Joyce Oliveira Pereira

umA LouCA ViAGEm:


Representações da loucura na Stultifera Navis de Bosch

Kamilla Dantas Matias1


Rita de Cássia Mendes Pereira2

s historiadores, nas últimas décadas, têm

O
Por outro lado, a realidade do observador e a
renovado seus interesses e o foco das sua intervenção, por exemplo ao escolher determi-
pesquisas deixou de ser apenas a politica, nado documento em detrimento de outro, revelam
a economia e as estruturas sociais para agregar a uma manipulação, consciente ou inconsciente, da
cultura material, a vida cotidiana, as mentalidades. evidência textual ou visual. Não existem interpreta-
Essa considerável ampliação de objetos não teria ções “neutras”. A leitura dos documentos é efetivada
sido possível sem o desenvolvimento da pesquisa em conformidade com o contexto social, cultural,
em outras fontes. Neste sentido, como salienta Le ideológico que regem o sujeito da interpretação.
Goff, a palavra ‘documento’ deixa de estar restrita Historiadores como Jacob Burckhardt (1818-
ao documento escrito, para tomar um aspecto mais 1897) e Johan Huizinga (1872-1945), que desen-
amplo, englobando também o documento “ilustra- volveram seus estudos, respectivamente, sobre
do, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer o Renascimento e o “outono” da Idade Média,
outra maneira” (LE GOFF, J, 2010.p.99). utilizaram-se de quadros de artistas como Raphael
Cabe ao historiador/pesquisador, com o uso de e Van Eyeck para descrever e interpretar a cultura
uma metodologia específica, analisar seus conteúdos. da Itália e a da Holanda. Philippe Ariés (1914-1982),
Entretanto, há uma tendência, entre os historiadores, o “historiador domingueiro”, em seus estudos de
história da infância e da morte, se baseou em evi-
a se utilizar as imagens como meras ilustrações, com
dencias visuais e as colocou no mesmo patamar que
a finalidade de ilustrar uma conclusão já obtida ante-
a literatura e os documentos de arquivos.
riormente a partir do uso de outras fontes.
Furor, mania, loucura, alienação, demência,
A imagem, tal qual o documento escrito, é
insanidade, o comportamento dito anormal tem
fruto da sociedade que a produziu e a sua utiliza-
inúmeras designações. A loucura é considerada
ção suscita alguns cuidados, como salienta Burke:
o oposto da razão. Perda do juízo, domínio das
a “crítica da fonte” de documentos escritos há paixões, desordem do pensamento, devaneio do
muito tempo tornou-se uma parte essencial da espírito, múltiplas são as imagens dessa doença
qualificação dos historiadores. Em comparação,
que atinge o homem desde tempos imemoriais.
a crítica de evidência visual permanece pouco
desenvolvida, embora o testemunho de imagens, Sem dúvida, tanto para os indivíduos como
como o dos textos, suscite problemas de contexto, para as sociedades, a doença é algo maléfico, que
função, retórica, recordação (se exercida pouco, deve ser evitado, enquanto a saúde é benéfica e
ou muito, tempo depois do acontecimento), tes-
objeto de desejo. O sociólogo Émile Durkheim,
temunho de segunda mão, etc. Daí porque certas
imagens oferecem mais evidencia confiável que em As Regras do Método Sociológico, se propõe a
outras (BURKE, 2004. p.18). formular regras que possibilitem a distinção entre
1 Doutoranda em Altos Estudos em História pela Universidade de Coimbra. normal e anormal. Para Durkheim (2007), o estado
E-mail: dantas765@gmail.com. de saúde só pode ser estabelecido a partir de uma
2 Doutorado em História Social pela USP. Professora Titular de História Medieval
da Uesb. E-mail: ricamepe@hotmail.com relação com as circunstâncias mais comuns de uma
251
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

sociedade, e, em contrapartida, o afastamento cópia e desvio em relação à sociedade que lhe dá


dessas circunstâncias poderia ser a indicação de origem. [...] cópia ao nível da estrutura da doença
um comportamento patológico. e desvio ao nível do comportamento do doente”.
Com efeito, as máximas sociológicas não são (PELBART, 1989, p.201)
válidas para todos as sociedades. Pela perspectiva Tais perspectivas, no entanto, negligenciam
durkheimiana, uma doença só tem valor e reali- o que a doença tem de positivo e real, da manei-
dade em um meio que a reconhece como tal. E, ra como ela se apresenta na sociedade. Existem
“as condições da saúde e da doença não podem doenças que são reconhecidas, e que, mesmo
ser definidas in abstracto e de maneira absoluta” assim, adquirem status e função social, conferi-
(DURKHEIM, 2007, p. 59). A doença é marginal dos pelo grupo que a revela. A patologia não é
por natureza e, os doentes mentais, são, por con- um desvio de um tipo cultural, mas sim um dos
seguinte, seres que não estão em conformidade elementos constitutivos e uma das manifestações
com as normas de uma determinada sociedade. desse tipo. Para Michel Foucault,
Para Roger Bastide, contudo, definir a loucu- na realidade, uma sociedade se exprime positiva-
ra como um modelo desviante de uma média geral mente nas doenças mentais que manifestam seus
exclui inúmeras outras variantes. A adaptação membros; isto, qualquer que seja o status que ela
dá a estas formas mórbidas: que os coloca no cen-
social não é critério de saúde e, tampouco, ser um
tro de sua vida religiosa como é frequentemente o
desviante social significa ser um doente mental. caso dos primitivos, ou que procura expatriá-los
Quando os sociólogos franceses estudavam fatos situando-os no exterior da vida social, como faz
de “marginalismo”, termo que entre nós corres- nossa cultura (FOUCAULT, 2000, p.74).
ponde grosso modo ao anglo saxão desviance, eles
classificam entre os marginais os migrados ainda Para entender essa assertiva de Foucault é
não enraizados, os criminosos, as prostitutas, os preciso, antes de tudo, levar em consideração que
vagabundos, assim como os doentes mentais.
nem sempre a loucura foi o oposto da razão e nem
Ainda aqui, certamente, o vagabundo pode ser um
fraco de espirito, o criminoso um paranoico, como sempre foi considerada maléfica. As sociedades
o imigrante pode passar, em certa etapa da sua parecem individualizar os seus “doentes mentais”,
vida, por uma crise de neurose; o marginalismo atribuem-lhes funções distintas e criam modos
não se confunde, entretanto, com a anormalidade específicos de ser louco. Mas a chamada loucura
psiquiátrica (BASTIDE, 1967, pp.80-81). nem sempre foi uma doença. Um retorno às bases
da filosofia ocidental permite encontrar reflexões
O termo normal, como sinônimo de saúde, sobre a loucura que sustentam tal pensamento.
parece, então, ser utilizado de forma equivocada
– estar dentro da “norma” não é sinônimo de ser A filosofia platônica em relação à loucura é
“normal”. Georges Canguilhem (2010) afirma complexa. Platão faz elogios a certos tipos de lou-
que o ajustamento ao meio não pode servir de cura – especialmente àquelas que têm sua origem
único critério de normalidade e que o homem em um favorecimento divino. Platão entendia que
são é aquele que sabe se portar independente das alguns tipos de loucura poderiam ser legitimas e
coações ou direcionamentos nos quais se insere. vizinhas à razão. As alusões platônicas à loucura
revelam uma atitude que não a desqualificava; pelo
Ter um tipo de comportamento desviante não
contrário, a valorizava na medida em que estava
é suficiente para que uma pessoa seja reconhecida
associada ao divino:
socialmente como louco. Conforme a cultura,
isto pode ser interpretado como rebeldia, heresia Numa etimologia considerada hoje infundada,
Platão associa delírio ou loucura (mania) à arte
ou crime. Para ter acesso ao palco da loucura o
divinatória (mantikê). Segundo ele, os antigos
sujeito deve manifestar sua demência de acordo (provavelmente refere-se à Grécia arcaica) viam-
com o modelo desviante tradicional na cultura se no delirante (manikê) um adivinho, enquanto
que a originou. “A loucura seria ao mesmo tempo os modernos (seus contemporâneos) teriam
252
Kamilla Dantas Matias / Rita de Cássia Mendes Pereira

introduzido um t no manikê, forjando o termo Dionísio. Paradoxalmente, a arte, o engenho, a


mantikê para designar divinatório, diferenciando inteligência e a razão estão a serviço do selva-
-o do delirante. Ou seja, na origem, “divinatório” gem, do monstruoso e do irracional. A palavra,
e “delirante” eram nomeados por uma mesma que deveria salvar o homem da selvageria, o sa-
palavra porque eram uma única coisa. Donde crifica ao deus silvestre (PELBART, 1989, p.30).
a conclusão, mais geral, de que é preferível o
delírio que vem de um deus ao bom senso de Esta hipótese questiona a afirmação de que
origem humana (PELBART, 1989, p.25).
pensamento e loucura são incompatíveis e exclu-
dentes. Não há contradição entre Apolo e Dionísio,
Sócrates em Fedro, de Platão, distingue a
sabedoria e delírio, mania e logos. Havia saber
loucura humana e a loucura divina. A primeira
inserido na mania grega. A dimensão do saber
seria produzida pelo desequilíbrio do corpo, o
inerente à profecia mântica não era desqualifica-
que provoca o desequilíbrio do espírito; a outra, da pelos gregos, tinha um efeito de verdade. Não
que tem por origem um “impulso” divino, afasta havia contrário para o logos grego. A desrazão
o ser dos seus hábitos cotidianos. Essa última, não entrava em conflito com a razão, Apolo e Dio-
Sócrates, esmiúça com maior interesse. Para o nísio eram elementos constitutivos um do outro.
filósofo, existem quatro espécies de loucura divi-
na, correspondentes, cada uma, a uma divindade: Entre as funções do culto dionisíaco, Corí-
a profética (Apolo), a ritual (Dionísio), a poética bantes a partir do século V, estava a “cura” da
(as musas) e a erótica (Afrodite). A mais graciosa loucura através da dança orgiástica, ao som de
seria a última, pois conduz à filosofia3. timbales e flautas. Em um processo de catarse co-
letiva, a loucura era “exorcizada” 4. O louco grego
Não existe conflito entre Apolo e Dionísio, está possuído por um Daimon, uma força divina.
pelo contrário, existe a mania como origem A mania foi provocada por uma relação confli-
comum. As sacerdotisas dionisíacas chegavam tuosa com um deus e a “cura” consistiria numa
a uma verdade profética através de uma ritua- reconciliação com a divindade que o molesta. O
lística que as faziam entrar em delírio. Era a deus deve permanecer em seu campo sagrado e
porção de vários sentimentos constituindo um a perturbação não pode ser totalmente excluída.
conhecimento: o dionisíaco levando ao apolíneo.
A Pítia tornou-se entheos , plena do Deus: o
A partir do delírio e da loucura pode-se chegar, Deus entrou nela e se serviu dos seus órgãos
pois, ao “conhecimento”. Em suma, a sabedoria vocais como se fossem seus, exatamente como
nasce do delírio. é feito “o controle” nos médiuns espiritas
modernos. Isto por que, o discurso délfico de
Por outro lado, Apolo também poderia servir Apolo são sempre feitos na primeira pessoa,
a Dionísio. O Labirinto do Minotauro pode servir jamais na terceira (DODDS, 1992, p.196).
como ilustração mitológica para essa estranha
afirmação, como salienta Pelbart: Para Dodds, não há dúvidas que, ao longo da
O Labirinto era o símbolo do logos em seu antiguidade, os dons da Pítia foram atribuídos à
deslize para o semainein, isto é, da palavra que possessão, inclusive os pais da Igreja não questio-
afirma para aquela outra palavra, ambígua, naram essa ideia. E, na antiguidade tardia, vê-se
polivalente, tortuosa e imbricada, que seduz um processo de transformação desse fenômeno.
e desnorteia aqueles que nela se embrenham,
entregando-os à desrazão do qual o Minotauro
Atributos essenciais à filosofia grega, Daimon e
é o símbolo maior. No interior da palavra la- energei (energia) ganharam novos significados
biríntica os homens sempre acabam nas mãos no mundo cristão.
do monstro insensato. O monumento do logos,
Ek-stasis, em grego, amentia, em latim, os
obra- prima apolínea, não serve a Apolo, mas a
dois termos referem-se a noção de espirito er-
3 A possessão amorosa abre esta dimensão [o invisível] que se desenvolve
na interioridade, é por isso, essencialmente, que Fedro é dedicado à alma, 4 Não se pode confundir esse ritual com o exorcismo da Idade Média,
à convivência enstreita que existe entre o amor e a procura da verdade e da exorcismo este que tinha por objetivo retirar por completo espirito maléfico
transcendência (POIRIER,1992, p.15). do individuo, a fim de restabelecer a integridade da vitima.

253
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

rante, de alucinação, desvario, encontrados nos A LouCurA No FiNAL DA


tratados médicos do século II, traduzidos por iDADE mÉDiA
Caelius Aurelianus. O diagnostico era a consta-
tação da falsitas, do espirito da ilusão. “Caelius Nos séculos finais da Idade Média, a sociedade
Aurelianus diz que ela pode afetar qualquer dos europeia assistiu a difusão de duas interessantes
sentidos: atinge, não só, a vista e a audição, como correntes de pensamento de orientação escatológica:
também o julgamento. Os doentes são ‘possuídos
uma otimista, que acreditava na proximidade
pela falsidade’”(Rousselle, s/d, 142). do advento de uma idade de paz e felicidade,
Os energúmenos seriam vitimas dos espíri- depois das atribulações da grande peste e do
tos da mentira e do pai maior do engano, o diabo. grande cisma e de algumas provações finais,
em especial uma batalha decisiva contra os tur-
Mirando-se em seu grande mestre, os demônios,
cos; outra, pessimista, que pregava a iminência
ludibriam essas pobres almas. do castigo e o fim do mundo, não deixando
O concilio de Orange de 441, em seu canon escolha, além de um urgente arrependimento
12(13) permitiu aqueles que perderam o espi- (LE GOFF, 2010, p.350).
rito(amentibus) de receber todas as obras de
caridade, entretanto os dois canos seguintes É esse o contexto, segundo Foucault, que vai
excluíram os energúmenos catequizados do favorecer a expansão dos fenômenos de loucura. A
batismo e os energúmenos batizados da co-
loucura indica que o fim dos tempos e do mundo
munhão (ROUSSELLE, s/d, p.142).
está próximo, que a humanidade está próxima do
seu último ato: “É a demência dos homens que a in-
Os pais da Igreja consideravam os adeptos
voca e a torna necessária” (FOUCAULT, 2008, 17).
do paganismo loucos. Segundo Rousselle, os
cristãos, entre os séculos III e V, qualificavam A Idade Média ocidental parece conservar,
os homens pagãos como insanos, pois estes me- sobretudo, a ideia de que a doença física ou men-
nosprezavam os que não compartilhavam de sua tal, bem como a moral, é resultante de perturba-
“ilusão”, além de acharem “graça da impotência ções exteriores, provocada por agentes - muitas
de seus ídolos”. A associação entre loucura, pa- vezes até sob formas materiais – pertencentes ao
ganismo e ação demoníaca, de acordo com Aline mundo sobrenatural que podem ser benéficos ou
Rousselle, são frequentes nos textos dos autores maléficos. Segundo Phillippe Ménard, o louco é
cristãos, de Orígenes à Agostinho. um ser que vive à margem da sociedade medieval,
Na costa da Gália, Martin acompanhou de
a sua alienação se configura em um ruptura, uma
longe um cortejo funerário no campo. ‘Cortejo separação dos outros homens.
cheio de supertições’, escreveu Sulpice. E ele Mas quatro ou cinco representações dife-
adicionou que a ‘demência’ dos pagãos os faziam rentes coexistem na mesma época [séculos XII
habitualmente caminhar com seus ídolos em e XIII] e aparecem nos mesmos textos: a ideia
torno dos campos (ROUSSELLE, s/d, p. 147). religiosa do louco possuído pelo demônio, a ideia
do louco culpado, marcado, amaldiçoado por
Os pagãos são loucos, pois perderam seu Deus, a ideia consoladora do louco inspirado por
espirito, e, esta mesma linha de pensamento, uti- Deus, detentor da verdade, lembrando todos da
sua verdade, e mesmo a ideia moderna do doente
lizada para os adeptos do paganismo, serve para
mental. Talvez, deva ser adicionada a ideia que o
os que se desviaram da doutrina cristã. Um dis- louco é um bufão, um brincalhão, à quem tudo
cípulo de São Cipriano, no século III, relata que é permitido, que tem licença de dizer e fazer
encontrou uma mulher que, tomada pelo delírio qualquer coisa (MÉNARD, 1977, p.459).
(ek-stasis), fez profecias e batismos influenciada
pelo demônio. “A passagem inteira é dominada O doente mental é, por muitas vezes, objeto de
pelas expressões ‘ilusão e engano demoníaco’ ações que parecem contraditórias. O corpo social
(ROUSSELLE, s/d, p.148). exprime “repulsa, pavor, curiosidade e diverti-
254
Kamilla Dantas Matias / Rita de Cássia Mendes Pereira

mento, compaixão ou, também, respeito pelo ente de e o castigo supremo, o todo poder sobre a terra
marcado por um sinal sobrenatural” (HEERS, 1987, e a queda infernal” (FOUCAULT, 2008, p. 21).
P.110). Através de um conceito mágico de loucura, São segredos que a humanidade ainda não tem
o insano assume a queda do homem, suporta o a possibilidade de entender e suportar, se deixa
castigo aplicado a todos e, possuído por um espírito esse fardo para os pobres de espírito.
maligno, seria ele uma espécie de bode expiatório. A sabedoria dos homens sensatos, por ve-
No ocidente cristão, o demente pode ser um “poe- zes, tem vista curta, enquanto que, a dos loucos,
ta clarividente”, escolhido de Deus, que enxerga vê mais alto e mais longe [...]. Aparentemente
além do que os outros podem ver, conhecedor dos estranho ao mundo dos homens, o louco está em
mistérios da humanidade e que sabe previamente o contato com as grandes forças da natureza, com
o mundo invisível, com os seres de cima. Ele en-
destino dos homens. Ou, ainda, um ser desregrado
trever as coisas escondidas. Participa dos grandes
dos sentidos e dos costumes: mistérios do universo (MÉNARD, 1977, p.458).
Vitima do momento, entrega-se à “gloutonie”,
à “luxure”, ao “orgoel”, à “felonie”. Ignora a lei, Em geral, os loucos tinham uma existência
tanto a divina como a social. Essa atitude[a loucu- errante. As cidades os escorraçavam para além de
ra] pode ir da rebelião aberta contra a sociedade
seus muros, para que vivessem nos campos distan-
à falta de decência, ou até ao senso das conve-
niências. À longa linhagem de loucos naturais tes. Porém, há registros na contabilidade de cidades
começa a acrescentar-se o essencial dos pecados e medievais que revelam a preocupação que se tinha
dos vícios que ela disfarça com que chamaríamos com os dementes, principalmente os considerados
hoje o associal, o rebelde, o desequilibrado, seja perigosos. É possível encontrar registros de donati-
o louco um idiota, um cretino, um “crédulo”, um vos oferecidos para os insanos. As municipalidades
“endemoninhado”, um “desregrado” ou um louco
construíam casas ou cabanas para os seus doidos,
penitente (BLUM, 1996, p. 286-287).
lugares erguidos fora das muralhas. Havia, ainda,
despesas com alimentação, vestuário e com ferros,
A loucura fascina o homem medieval. O ser
fechaduras e jaulas. O doente poderia ser encerrado,
que sofre da doença mental libera a animalidade
também, no “espaço sagrado do milagre”, assim, as
que foi domesticada pelos valores e símbolos hu-
questões da exclusão e da cura se uniam em uma
manos e enfeitiça “o homem com sua desordem,
só. É possível distinguir dois movimentos distintos,
seu furor, sua riqueza de monstruosas impossibi-
todavia análogos, na sociedade medieval. O primei-
lidades, é ela quem desvenda a raiva obscura, a
ro de exclusão no exterior, para além dos muros; e,
loucura estéril que reside no coração dos homens”
o segundo, de exclusão no interior, além fortaleza,
(FOUCAULT, 2008, p.20). A liberdade sem limi-
mas fechado em um recinto.
tes, sem as amarras dos costumes e das leis morais,
o louco vive em um mundo que só é reconhecido Para Ménard, os próprios loucos procura-
por outros marcados como seu igual. vam, por vezes, se refugiar da convivência social.
Uma das características mais marcantes do louco
Por outro lado, a loucura é um saber. Um
medieval é a do vagar incessante. Os alienados
saber difícil, fechado, esotérico, confiado àquele
costumavam andar, solitários, pelos campos.
que pode a deter em sua inocência. Enquanto o
homem sábio apenas reconhece partes de saber, A insanidade não está em contato com o
o louco o carrega por inteiro. O demente detém o mundo real e suas formas. O louco pertence a
conhecimento maravilhoso como que encerrado uma geografia semirreal e semi-imaginária, um
em uma bola de cristal, invisível aos comuns, en- lugar de passagem, entre este e um mundo pa-
tretanto, de inúmeros significados para aquele que ralelo; essa é a posição que ocupa a loucura nas
a guarda. Mas, qual é o saber do louco? “uma vez preocupações da sociedade medieval,
que é o saber proibido, prediz ao mesmo tempo o situação simbólica e realizada ao mesmo tem-
reino de Satã e o fim do mundo; a última felicida- po pelo privilégio que se dá ao louco de ser
255
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

fechado às portas da cidade: sua exclusão deve


encerrá-lo; se ele não pode e não deve ter outra
prisão que o próprio limiar, seguram-no no
lugar de passagem. Ele é colocado no interior
do exterior, e inversamente. Postura altamente
simbólica e que permanecerá sem dúvida até
os nossos dias, se admitirmos que aquilo que
outrora foi fortaleza visível da ordem tornou-
se agora castelo da nossa consciência (FOU-
CAULT, 2008, p.12, grifo do autor).

O período medieval também atribuiu um


lugar especial à loucura na hierarquia dos ví-
cios. Ela impera sobre tudo que existe de mal
no homem, se apresenta no “medíocre ridículo
dos homens”. Externa as fraquezas, os sonhos
e as ilusões. É um “espelho que, nada refletindo
de real, refletiria secretamente, para aquele que
nele se contempla, o sonho de sua presunção”
(FOUCAULT, 2008, p. 24).
Estas diferentes concepções e experiências
com a loucura foram reproduzidas, desde o final
da Idade Média, em diferentes obras de lite-
ratura e em pinturas, entre as quais se destaca
o quadro da Nave dos Loucos de Hieronymos
Bosch. Bosh nasceu Hieronymos Van aken, de Figura 1. Stultifera navis.de Hieronymus Bosch (Óleo
uma família tradicional de pintores, na cidade de sobre madeira. 55 X 31,5 cm).
‘sHertogenbosch, na região do Flandres, região Fonte: Museu do Louvre - Paris.
predominantemente urbana e dedicada ao comér-
cio e à produção têxtil. Bosh não deixou cartas
ou diários. As informações sobre sua vida podem Para Foucault, a árvore que substitui o mas-
ser encontradas nos arquivos municipais e nos tro remete à árvore do saber, da imortalidade,
livros de contas da confraria de Nossa Senhora, do pecado, que “outrora plantada no coração do
com a qual manteve estreitas relações e para a paraíso terrestre, foi arrancada e constitui agora o
qual realizou diversos trabalhos, devidamente mastro do navio dos loucos” (FOUCAULT, 2008,
registrados nos livros de finanças. Com base nes- 21). Para Bosing, trata-se de uma alusão às festas
ses registros pode-se datar a morte do pintor: no e rituais de primavera, durante os quais campone-
dia 9 de agosto de 1516 foi realizada uma missa ses e clérigos “se juntavam para se divertirem e se
pela sua alma. dedicarem a devassidões” (BOSING,2006, p. 30).

Produzido, provavelmente, entre 1485 e Um bandeira rosa, que flamula no “mastro”


1500, o quadro da Nau dos Loucos apresenta da embarcação, ostenta a figura do quarto cres-
como figuras centrais três religiosos (duas freiras cente, com a qual se representava os povos islâmi-
e um frade), que se divertem com um grupo de cos. Estabelece-se aí, na opinião de Bosing, uma
camponeses em um estranho barco. O barco tem clara vinculação entre loucura e distanciamento
por mastro uma arvore e um galho lhe serve de da vida cristã. “Os turcos e os seguidores do
leme. À direita, visualiza-se um louco, sentado falso profeta Maomé que dominavam a maioria
no cordame. dos santuários da cristandade eram, para os con-
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Kamilla Dantas Matias / Rita de Cássia Mendes Pereira

temporâneos de Bosch, o símbolo dos inimigos tenta tirar um pato assado amarrado ao mastro;
de Cristo” (BOSING,2006, p. 18). no homem que parece passar mal ao fundo, e nas
atitudes dos dois homens nus que aparecem ao
Empoleirada na árvore se encontra uma
lado do barco, um deles a pedir que encham com
coruja. Símbolo da morte e do saber, a coruja é a
ave de Atena, deusa grega da sabedoria, “símbolo vinho a sua malga vazia.
do conhecimento racional – percepção da luz (lu- Finalmente, sentado no cordame de sustenta-
nar) por reflexo – em oposição ao conhecimento ção do mastro, está o louco, um bufão que brinca
intuitivo – percepção direta da luz (solar)” (CHE- com as coisas sérias. Com seu barrete de bobo,
VALIER, 2002, p. 293). Ela espreita os corações enfeitado com orelhas de burro, ele é, na opinião
pecaminosos dos condenados. de Heers, o eixo moralizador da obra, pois ironiza
Em a Nau dos Loucos, as freiras e o frade ne- e revela a estupidez humana:
gligenciam as obrigações religiosas e se entregam Na proa, empoleirado na árvore, um homem
aos prazeres mundanos. A critica às freiras e aos vestido com o fato dos possessos e enfarpelado
frades imorais eram frequentes na obra do pintor com todos os seus atributos, bebe e come de
sua tigela, com a maior tranquilidade: é ele de
e os vícios típicos dos conventos – como luxuria
facto o único com juízo naquele caixão que só
e gula – foram por ele amplamente denunciados. transporta loucos (HEERS, 1987, p.117).
No quadro, o frade e uma das freiras cantam,
enquanto a outra feira toca um instrumento que Bosch expõe o homem em sua inteireza, traz
parece ser um pequeno alaúde, instrumento am- à luz a sua natureza secreta, sua “loucura estéril”.
plamente utilizado, durante a Idade Média, para Com seus passageiros imersos no pecado e distan-
acompanhar as danças folclóricas. Vislumbra-se tes das leis de Deus, a Nau dos Loucos se dirige
aí uma associação entre o paganismo, com suas ao Juízo final. Tributário de uma visão religiosa e
atividades consideradas insanas ou fora do normal, moralizadora, o pintor propõe, com seus quadros,
e loucura. Por outro lado, casais fazendo música a associação entre loucura, fraquezas e ilusões
juntos aludem, aos jogos amorosos medievais e, humanas. Interpretar suas pinturas a partir de uma
portanto, ao pecado da luxúria. perspectiva psicanalítica é uma atitude no mínimo
Já as imagens do prato de cerejas sobre a anacrônica. Somente uma abordagem histórica e
mesa, do tonel no fundo do barco e do jarro que antropológica poderão dar conta de esclarecer o
voa sobre a embarcação, são representativas do significado dessas obras para o autor – orientado
vício da gula. Do mesmo modo, pode-se visualizar pelo desejo de divulgação de conteúdos ético-re-
a presença do pecado da gula no camponês que ligiosos – e para a sociedade da época.

257
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BASTIDE, R. Sociologia das doenças mantais. São Paulo: Companhia Fontes, 2007.
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258
A AVENTurA No “mAr oCEANo”
E As NoVAs rEPrEsENTAÇÕEs
Do muNDo No sÉCuLo XV

Katiuscia Quirino Barbosa1

iNTroDuÇÃo

cristianização com o aumento dos fluxos comer-

A
era das grandes navegações portugue-
sas inicia uma nova forma de apreen- ciais a partir do século XII. A civilização Medie-
são no Mar, notadamente, do Oceano val constituiu-se como uma civilização terrestre
Atlântico e do espaço. A aventura no Atlântico e nessa perspectiva José Mattoso assinala que:
revelou aos europeus quatrocentistas um univer- A grande maioria dos europeus tem medo
so bem distinto daquele que habitava o imaginá- d’água e mais ainda da sua grande extensão,
rio tardo-medieval. Nesse sentido, a conquista ou seja, o mar. [...] os pescadores e navegantes
de territórios e a dominação de outros povos, fazem novamente vida à parte, formam co-
munidades distintas e só muito lentamente os
pertencentes a etnias e com padrões culturais seus conhecimentos começam a tornar-se ha-
muito distantes da realidade europeia, represen- bitual. As suas informações sobre outras terras
tam o início da construção de uma nova con- e outras gentes e sobre técnicas da navegação
cepção de mundo que engloba, além de outras influenciaram o que se diz acerca da periferia
formas de sociabilidade, uma reestruturação do da Cristandade nas descrições geográficas e na
conhecimento geográfico, que irá finalmente se cartografia (MATTOSO, 1998).
distanciar da Geografia Clássica.
O oceano figura como um lugar perturbador
Tal mudança de perspectiva pode ser obser- que, isolado dos demais elementos que compõem
vada nas expressões literárias e cartográficas do a natureza, apresenta perigos infindáveis e ini-
período. Diante disso, nosso trabalho propõe a magináveis. Está distante da realidade da maio-
análise das novas representações geográfico-es- ria dos europeus, constituindo-se como um dos
paciais e paisagísticas do mundo durante a Bai- espaços do maravilhoso medieval, habitado por
xa Idade Média, notadamente do recém-explo- monstros e por outras criaturas estranhas, sendo
rado mundo atlântico. portanto, contrário a existência humana. Do lado
ocidental assistia-se ao pôr do Sol com a certeza
de que aquele lugar era o reino da morte.
o mAr Por isso a navegação para o Ocidente era
No imAGiNário mEDiEVAL tão assustadora e perigosa na perspectiva dos
homens medievais, pois, viajar em sua direção
Tema relegado a marginalidade por pratica- equivalia viajar para o fim do mundo, para o
mente toda a Idade Média, o mar, especificamen- Além, arriscar-se a penetrar o mundo dos mor-
te o Oceano Atlântico, vai sofrer uma espécie de tos e de lá nunca mais regressar. Ao contrário
1 Mestre em História na Universidade Federal Fluminense. Doutoranda do que ocorria a oriente, onde o Sol nascia lugar
do PPGH-UFF sob a orientação da Prof. Drª Vânia Leite Fróes (UFF/
Scriptorium). Email: Kqb_rj@hotmail.com pra o qual se deveria ir para recuperar a pureza e
259
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

o viço juvenil. A viagem para o sul, pelas costas tal imagem de um mundo Índico repleto de mara-
da África, também não estava isenta de especu- vilhas perpetuou-se nos registros escritos da Idade
lações míticas e lendas aterrorizantes. Acredi- Média. O completo desconhecimento da geografia
tava-se que ao ingressar na chamada “zona tór- da região foi superado somente com as viagens
rida”, a água fervia, dando lugar às chamas. O portuguesas já no crepúsculo do século XV.
Atlântico figurou no imaginário medieval como Para além de monstros marinhos e serpentes
o espaço do incógnito e do medo em chamas, o imaginário medieval sobre o mar
Acerca do Oceano Índico as especulações contém também o misticismo na relação que os
míticas eram ainda maiores e remontavam a an- navegadores estabelecem com ele. Uma série de
tiguidade. Ao longo da Idade Média relatos de rituais, muito mais laicos do que cristãos, são cria-
viajantes corroboraram com as lendas e mitos dos por marinheiros na esperança de livrarem-se
difundidos há muito sobre o Índico. O relato de dos perigos que habita o mar. Nesse sentido, Hen-
viagens de Marco Polo ilustra bem esse quadro, ri Bresc assinala que o piloto “corta” a cauda do
pois mesmo ele, que aparentemente teve um con- dragão da tempestade com uma faca; as mulhe-
tato mais intensificado com o referido Oceano, res impuras são mantidas longe do leme; água
ao descrever o que encontrou na região o fez não e relíquias, ossos de mortos são jogados ao Mar
com base naquilo que de fato viu, mas naquilo (BRESC, 2003: p. 102). Existem também seres
que ouviu. Trata-se de mais um desdobramento benéficos que habitam o mar, como é o caso dos
da mentalidade e do imaginário medieval. golfinhos, que não podem ser atacados por ma-
rinhos, sob pena de estes tornarem-se cavaleiros
O homem medieval possui uma apreensão do marinhos, obrigados a cuidar do animal ferido.
real muito menos pragmática do que a observada
na Sociedade Ocidental a partir do renascimento. Outra forma de representar o mar é como
Nesse sentido, Jacques Le Goff, aponta que: um reflexo da imagem da terra, como um mun-
do próprio dotado de uma hierarquia singular.
Ao contrário das pessoas do Renascimento, as Desse modo, imagina-se que no fundo do ocea-
da Idade Média não sabem olhar, mas estão
sempre prontas a escutar e acreditar tudo que se
no existissem paisagens similares as encontrada
lhes dizem. Ora, durante as suas viagens, em- em terras firmes e habitantes inteligentes que
bebedam-nos com relatos maravilhosos, e eles seguem suas próprias regras.
creem ter visto o que sem dúvida souberam no
local, mas por ouvir dizer. Sobretudo trazem
consigo as miragens e a sua imaginação crédula A APrEENsÃo
materializa-lhes os sonhos, em ambientes que
os desenraizam o suficiente para que mais ainda EsPAÇo oCEÂNiCo
que em suas terras, eles se tornem os sonhado- DurANTE A iDADE mÉDiA
res acordados que foram os homens da Idade
Média (LE GOFF, 1980: 266).
Durante grande parte do período medieval
o Oceano fora apresentado como elemento pe-
Durante a Idade Média, os ocidentais pouco riférico, visto que de fato pouco fazia parte do
navegaram nas águas do Índico, corroborando
cotidiano da maioria dos homens medievais. O
para a manutenção das lendas que habitavam o
processo de ruralização, iniciado nos escombros
imaginário medieval. Acreditava-se na existên-
do Império Romano, tornará o Ocidente Cristão
cia de suntuosas riquezas, de seres monstruo-
uma civilização rural, continental, margeada
sos, de homens com cabeça de cachorro, ciclo-
por ameaças a sua integridade, notadamente os
pes, dentre outras tantas fantasias que viviam
muçulmanos que dominam a saída para o Medi-
nos sonhos do homem medieval.
terrâneo e a saída para o Atlântico. Tal visão de
Não havia uma delimitação entre textos uma cristandade isolada e compartimentada há
“científicos” e textos de ficção e também por isso muito vem sendo relativizada.
260
Katiuscia Quirino Barbosa

Não havia um isolamento completo dos tico vai penetrando o universo cristão, o que
cristãos em relação aos demais povos, contudo a se dá a partir da sacralização desse espaço e
integração da Europa ao resto do mundo foi um das viagens empreendidas por homens santos,
processo lento que só se consolida no final do sé- como São Brandão.
culo XV. De fato o homem medieval, até o século
Em a viagem de S. Brandão conta-se a
XIII, pouco se aventurou no Oceano. A produção
trajetória de São Brandão para o Atlântico em
escrita dos meios eclesiásticos, de onde irrompiam
busca do Paraíso. Partindo da Irlanda com ca-
a maioria dos escritos sobre geografia e cosmogra-
torze homens, Brandão se aventura no Oceano
fia da época, corroborou por séculos com a visão
Atlântico, passando por uma série de percalços
do Oceano como última barreira da Cristandade,
até finalmente alcançar o seu objetivo. A viagem
como elemento instransponível, situado na peri- de S. Brandão é o ponto de partida para a mu-
feria no mundo cristão. Tal concepção gráfica do dança de perspectiva acerca do Oceano, tornan-
Oceano pode ser vislumbrado em mapas da alta do-o um espaço de penitência e purificação. A
Idade Média como o do Beato de Liebana: viagem de Brandão o purifica, o Oceano, então
passa a ser o espaço do encontro do homem com
ele próprio (FONSECA, s.d).
Embora a narrativa de S. Brandão remon-
te ao século V, sua difusão se dá a partir da
primeira versão escrita que data do século XI.
Doravante, a Vita Sanct Brandani ganhará inú-
meras versões e uma grande voga na europa
medieval sobretudo a partir da tradução fran-
cesa do século XII. Obviamente que a grande
voga da viagem de S. Brandão situa-se a partir
do século XII em decorrência das transforma-
ções observadas na sociedade neste período.
Mapa do beato de Liébana. Século XI
Destaca-se nesse contexto o retomar da vida
urbana e a consolidação da expansão territo-
No mapa, que fora baseado na obra de Isi- rial europeia em direção ao Mediterrâneo e o
doro de Sevilha, observa-se a representação do movimento cruzadístico.
mundo de acordo com a perspectiva teológica
vigente: acima o continente asiático; do lado A Europa expande-se para além das frontei-
esquerdo a Europa; do Lado direito a África, ras continentais e passa aventurar-se no mar, seja
separa da Europa pelo Mediterrâneo, o mar in- o mediterrâneo ou o Atlântico norte, que juntos
terior; circundando a terra, está Oceano atlân- correspondem a importantes rotas comerciais
tico, adornado no mapa com as criaturas que o que se desenvolvem no período. Os impulsos
habitavam, demonstrando os perigos da nave- quer ideológicos quer comerciais lançam os ho-
gação neste Oceano. Trata-se de uma fonte da mens ao mar e este vai ganhar novos contornos
Alta Idade Média que teve grande influência na na representação coeva, deixando de ser um es-
produção cartográfica do período. paço marginal e tornando-se um espaço vivido,
experimentado. Acerca dessas mudanças o histo-
Se o espaço cristão medieval é o espaço do riador português Luís Krus aponta que:
vivido, o Oceano atlântico é relegado a margi-
De uma forma simbólica, tal mutação ex-
nalidade na maioria das produções cartográfi-
pressa-se nas representações cartográficas do
cas do período, em consequência da parca ex- universo que se difundem a partir do século
periência que os homens que constroem estas XII. Antes dessa época, o Oceano visto como
representações possuem. Aos poucos o Atlân- o grande mar exterior que se supunha rodear
261
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

a massa terrestre formada pela justaposição PorTuGAL


dos três continentes conhecidos, Europa,
África e Ásia, era pouco representado quan-
E A CoNsTruÇÃo
do não omitido. Ora a partir dos séculos XII Do oCEANo ATLÂNTiCo
e XIII, ao mesmo tempo que progridem as
configurações geográficas representadas no Por séculos o Oceano Atlântico figurou na
litoral mediterrânico dos países e que neles periferia do mundo cristão, quer por razões de
se cartografa um cada vez maior número de
ordem mentais, o que viemos explorando até
cidades, sejam reais ou míticas, também co-
meça a ser frequente localizar por cima dos agora, quer por razões de ordem técnica. O fato
ondulados e circulares traços que identificam é que no século XV há uma mudança significa-
o mar exterior toda uma série de ilhas [...] O tiva na forma de encarar o espaço oceânico. Na
Oceano surge então cristianizado, lembrado verdade ocorre uma construção desse espaço,
pelos eleitos que seguiram as suas rotas e que que em muitos aspectos deixa de lado o sim-
nele chegaram a procurar e a encontrar o pa- bolismo característico de sua representação ao
raíso. De uma forma geral, a cartografia que
longo da Idade Média. Os protagonistas dessa
acolhe todas estas histórias testemunhatórias
do desejo da vontade de reintegrar o mar no mudança serão os portugueses que, em 1415,
universo cristão, não faz mais do que acolher, com a tomada da Praça marroquina de Ceuta
reformular ou recompor memórias com ori- deram início ao movimento que ficou conheci-
gem nas margens atlântica e mediterrânica da do como expansão marítima.
Cristandade (KRUS, 1998: 99).
Tal movimento só pode ser realizado devi-
do aos avanços tecnológicos observados a época.
Gradativamente há uma integração da prá-
Destacamos, primeiramente, a grande contribui-
tica marítima ao universo cristão. Todavia, o
ção que a redescoberta dos estudos de Ptolomeu
mar, notadamente o Oceano Atlântico continua
sobre cosmografia e geografia representou para
a ser temido, o que não impede que ele seja
os horizontes geográficos do Ocidente. De acor-
explorado. Há de se considerar que o imaginá-
do com Armando Cortesão, o século XIII foi re-
rio do mar não excluiu sua exploração duran-
volucionário, pois além da introdução da bússola
te toda a Idade Média pelos povos litorâneos,
no Ocidente e da Carta portulano, houve um es-
como os normandos, os vikings e por último
tímulo à observação da natureza e ao estudo dos
os portugueses. Nesses casos a referência ao
fenômenos naturais, sobretudo, por parte de S.
Atlântico apresentava-se dotada de um caráter
Francisco de Assis e dos seus seguidores.
mais concreto que só o vivido poderia conferir.
Nesse sentido José Mattoso ressalta que na li- Esta nova postura frente à natureza e o seu
teratura portuguesa baixo medieval o Mar foi funcionamento teve reflexos importantes nos
retratado sem alusões negativas em vinte uma, estudos geográficos e cartográficos do período
de um total de quinhentas e doze, cantigas de (CORTESÃO,1994, XIII). Doravante, as cartas
amigo galego-portuguesa. O número pode pa- náuticas tornam-se mais precisas e as navegações
recer pequeno, mas quando comparado a do- mais seguras. Gradativamente vários instrumen-
cumentos franceses do mesmo período, possui tos náuticos, a maioria de inspiração oriental, vão
uma incidência muito maior. Nas cantigas de sendo introduzidos no mundo ocidental. Desta-
amigo o mar muitas vezes aparece como o lu- cando-se dentre eles o astrolábio e a balhestilha.
gar de onde virá o homem amado, denotando Contudo, a navegação ainda teria de su-
uma integração do Mar a vida cotidiana. O perar muitos obstáculos tecnológicos para o
Mar não feito só de mitos e horrores, mas da seu aprimoramento. Ainda no século XV a na-
experiência, mesmo daqueles que não nave- vegação era feita por estima. A utilização da
gam, como as donzelas que se põem a esperar bússola não considerava a variação magnética
o regresso do amigo (MATTOSO, 1998: 16). e a aplicação da matemática para resolver pro-
262
Katiuscia Quirino Barbosa

blemas relacionados a localização no mar não permitiu o desenvolvimento de uma cartografia


era ainda um método que garantisse precisão. mais refinada e precisa como é possível verificar
A experiência do capitão era ainda o elemento a partir da observação da carta de Modena.
decisivo para saber se um barco conseguiria ou
não chegar a salvo em um porto.
Para navegar no Atlântico muitas barreiras
técnicas teriam de ser rompidas. Todavia, antes que
isso ocorresse, muitos foram os desastres transo-
ceânicos, ocorrido, sobretudo, antes do século XV
quando alguns poucos mareantes, em sua maioria
de origem italiana, arriscavam-se no “Mar-Ocea-
no”. De acordo com Luís de Albuquerque, eram
três os obstáculos a serem ultrapassados para que
o sonho de desbravar o Atlântico se concretizasse:
Em primeiro lugar os navios, porque não era
nas galés mediterrânicas que se poderia sin-
grar continuadamente no mar alto. Depois era
imprescindível conhecer os regimes de ventos
e correntes do Atlântico, praticamente ignora-
dos nos princípios do século XV, sem o que
não se poderiam usar navios de pano redondo.
Finalmente, tornava-se necessário encontrar
maneira de determinar a posição de uma em- Carta de Modena, c.. 1471. Biblioteca Estense Universitaria, Modena.
barcação no mar alto, pois que não era raro
que passasse um e por vezes dois meses sem
avistar terra (ALBUQUERQUE, 1994: 89).
A cartografia portuguesa quatrocentista
possuía um caráter muito pragmático, pois se
Os portugueses quatrocentistas irão, não sem
erigiu a partir da experiência vivida pelos pilo-
muitos esforços e desventuras, conseguir, aos pou-
tos, ultrapassando crenças clássicas, algumas das
cos e penosamente, superar os obstáculos técni-
quais defendiam a existência de uma zona tórrida
cos. As primeiras embarcações a lançarem-se para
intransponível (ALEGRIA, 1998: 38). No final
além do Cabo do Bojador foram as barcas. Por
do século XV a navegação astronômica estava
possuírem o casco pequeno eram ideais, visto que
amplamente difundida entre os pilotos lusitanos.
nada se sabia sobre a geografia marítima da região
O seu desenvolvimento e implantação se deu pro-
e a utilização de navios maiores poderia acarretar
gressivamente devido à necessidade de localizar-
em encalhes no caso de existirem baixios que ca-
se em alto mar e a falta de conhecimento de pon-
pazes de impedir o fluxo da embarcação.
tos costeiros da parte dos mareantes, obviamente
Ao retornar para Portugal o autor do feito, por conta do ineditismo de suas navegações. Os
Gil Eanes, divulga a informação de que não ha- portugueses findaram o século XV com a com-
via impedimentos a navegação e as demais em- pleta dominação da costa ocidental africana, al-
presas ultramarinas far-se-ão em embarcações cançando o “maravilhoso” Índico e as riquezas
maiores. Primeiramente o batel e finalmente a do Oriente e construindo um novo espaço oceâ-
caravela latina. Ao longo do século XV, os por- nico e um “mundo-Atlântico”. A proeza lusa não
tugueses reuniram conhecimentos concretos se deu ao acaso, sendo fomentada por questões de
acerca da geografia da costa africana, dos ventos ordem política, econômica e ideológica, inseridas
da região, bem como das correntes marítimas em um contexto de transformações do reino por-
que por ali passavam. Conhecimento este que tuguês no final do século XIV.
263
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

CoNCLusÃo associa, para o bem e para o mal, a Europa, a


África e a América. Tal construção do Atlân-
O Oceano constituiu um tema repleto de tico, que deixa o limbo do imaginário e integra
simbolismo. Sua apreensão como espaço do o campo das práticas e experiências humanas,
vivido dar-se-á somente a partir do século XV deve ser analisado a partir da perspectiva do es-
com o início das navegações portuguesas e o paço e das relações que os homens nele estabe-
desenvolvimento de técnicas navais mais apri- lecem. Trata-se de uma tarefa de grande fôlego,
moradas. Os portugueses serão protagonistas na sobre a qual pretendemos nos debruçar ao longo
história da construção do espaço Atlântico que desta recém iniciada pesquisa.

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264
HisTóriA E NArrATiVA NA BAiXA iDADE mÉDiA:
A EsCriTA Do PoDEr AFoNsiNo

Leonardo Augusto Silva Fontes1

oficina régia de Afonso X (rei de Castela

A
língua (castellano drecho) para a escrita de quase
e Leão de 1252 a 1284), se comparada a toda sua obra, exceto para a poética (galego-por-
outras contemporâneas, é bastante pró- tuguês), buscando com isso mitigar (ou combinar)
diga em fontes. “A obra cultural de Afonso X, o a influência tanto do árabe quanto do latim. Isto
Sábio, cobre todos os domínios do conhecimento: se deu não só no campo cultural, mas também no
o direito e a filosofia do direito, a história, as ciên- econômico, com a moeda única (maravedi); no
cias, os jogos [...] e o longo poema das Cantigas político, com o modo de governo (monarquia);
de Santa Maria” (RUCQUOI, 1995, p. 269). No no fiscal, através da centralização tributária; e no
que tange à sua atuação interna, portanto, a corte legislativo, com as grandes compilações jurídico-
afonsina produziu vasto material textual, de cunho normativas, tendo todas estas iniciativas impacto
poético, normativo, histórico, científico, narrativo, direto na vida cotidiana dos seus súditos.
filológico, religioso e até místico. Sua dedicação à
justiça e à cultura, associada à sabedoria dos reis Julio Valdeón, de forma bastante entusiasma-
bíblicos Salomão e Davi, o levou a ficar conhecido da, defende em sua premiada biografia do rei sábio
pelo epíteto de rei sábio – alcunha que o diferen- que este epíteto é oriundo de sua atuação cultural,
ciava de seus contemporâneos. Sua relação com as pois o Afonso X se destacou “en muchos y muy
minorias étnico-religiosas, quer dizer, os mouros e variados terrenos, pero el campo en el que alcanzó
os judeus, também marcou seu reinado. mayor relieve es, sin duda alguna, el de la cultura,
lo que justifica el calificativo de ‘sabio’ con que se le
Maravall defende que, em meados do século
conoce habitualmente” (VALDEÓN, 2011, p. 167).
XIII, a monarquia castelhana transformava-se
Este renomado historiador espanhol vai além na
progressivamente em um sistema de poder mais
elegia do patronato afonsino das artes e do saber:
unitário e concentrado, cuja marca era um crescente
“así las cosas, es imprescindible que analicemos [...]
programa político e ideológico de fortalecimento da
la espetacular labor desplegada por el rey Sabio en
autoridade real. Nas relações étnico-religiosas entre
el âmbito de la cultura” (VALDEÓN, 2011, p. 167).
cristãos, muçulmanos e judeus na España baixo-me-
O saber era, sobretudo, dado por Deus.
dieval, a alteridade passava por grandes modulações.
Não podemos descuidar, contudo, que estes grupos Francisco Márquez Villanueva afirma que
estavam envolvidos em uma guerra, cujo estado vista como conjunto, a obra afonsina “es única no
crônico deixou marcas profundas nas instituições sólo por su volumen (como siempre se ha dicho),
sociais e nas trocas comerciais e culturais. sino por su carácter fundacional de una cultura de
Alguns dados revelam o modus operandi de valor permanente y universal” (VILLANUEVA,
Afonso X: a busca pela uniformização social se 1994, p. 11). Seu projeto político-cultural não teve,
demonstra, por exemplo, pela escolha de uma única segundo este autor, paralelos no ocidente cristão e
1 Mestre em História na Universidade Federal Fluminense (UFF).
deve ser visto como uma aposta consciente visan-
Doutorando em PPG-UFF/Scriptorium, sob a orientação da Prof. Dra. do a posteridade, que sofreu, como projetos deste
Vânia Leite Fróes. Bolsista CNPq, Técnico da Coordenação de Documentos
Escritos do Arquivo Nacional. Email: leonardo.fontes@ymail.com . vulto, resistências e avanços. De forma também
265
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

elogiosa, Villanueva diz que buscou integrar que tradicionalmente había llevado a cabo, en los
como historiador, em seu trabalho: siglos anteriores, la Iglesia” (VILLANUEVA,
el concepto cultural del rey Sabio en el hecho 1994, p. 168). Essas mudanças culturais tiveram
unitário de una experiencia interdisciplinar, um papel fundamental na laicização do conhe-
que sin fosos ni tabiques subsume a lo político, cimento e a médio e longo prazo.
lo intelectual y lo literário. La labor creadora
de don Alfonso representa la reacción con que Afonso X deu atenção especial ao estudo
un hombre, excepcional en ser a la vez un gran de disciplinas ligadas ao cotidiano dos homens
realista y un gran visionario, acepta con todas e mulheres de seu tempo, como a astrologia, a
sus consecuencias la crisis de un largo pasado y
história, o direito, a fé e a medicina. Muitos des-
elabora un proyecto innovador enfocado hacia
el futuro (VILLANUEVA, 1994, p. 12). ses saberes provinham do impressionante legado
muçulmano, do qual o rei sábio não abriu mão,
Para este autor a obra de Afonso X possuiu ao contrário. Além disso, se valeu enormemente
tamanha envergadura, que não obteve paralelo da língua vernácula no campo da cultura, antes
no Ocidente cristão. Villanueva integra em sua monopolizado pelo latim, transformando Tole-
análise o que ele demonina de “conceito cultural do num grande centro de tradutores, médicos e
afonsino”, que dá título à sua já mencionada obra, estudiosos da natureza em geral: “Toledo, que
e que seria um feito unitário de uma experiência tenia uma cierta fama de ciudad oriental, era, por
interdisciplinar, que interrelaciona o político, o supuesto, un lugar en el que abundaban los libros
intelectual e o literário. Este historiador espanhol y la sabiduría” (VILLANUEVA, 1994, p. 170).
defende ainda o caráter inovador deste projeto, Entretanto, não foi apenas em terras tole-
afirmando que suas soluções pareceram um tanto danas que Afonso X afirmou a importância da
incompreensíveis à época e que o são até hoje e cultura escrita e dos outros saberes:
cuja chave-mestra desse projeto foi a opção pelo
Si bien toda su labor cultural se podría simboli-
vernáculo castelhano frente ao latim, possibili-
zar en la actividad intelectual llevada a cabo en
tando que o alcance de sua escrita tivesse uma Toledo, no podemos olvidar otros importantes
repercussão inédita e perene. Villanueva repele focos como Sevilla, Palencia, Salamanca o
a idéia clássica de Afonso X como político inep- Murcia, ni que la fama de su sabiduría, libe-
to, pois “el avance de los conocimientos socava ralidad, mecenazgo y de sus empresas cultu-
cada día la vieja imagen de don Alfonso como rales se extendió por toda Europa (CARRIÓN
GUTIÉRREZ, 1997, p. 30).
un intelectual pateticamente ineficaz en asuntos
prácticos o de gobierno” (VILLANUEVA, 1994,
p. 13). Seu projeto mostra justamente o contrá- Esta atividade conjugada a uma flexibilidade
rio, pois ele se utilizou de forma estratégica de que se estendeu ao campo idiomático, fez com
diferentes campos do saber para legitimar a si que Castela se tornasse um dos fatores de atração
mesmo, sua linhagem e seus projetos políticos. para numerosos estudiosos de toda Europa.
Esta composición étnica particularmente
O reinado afonsino se destaca, assim, de variada implicaba sin duda un pluralismo
seus contemporâneos, pois o monarca se en- linguístico interesante. Las lenguas presentes
volveu diretamente na produção e difusão de en la Península Ibérica en el siglo XI eran
suas obras, sendo um verdadeiro profissional el árabe, el romance y el hebreo [...]. Solo a
das letras, plenamente interessado nos saberes finales del siglo XIII [en Toledo, por ejemplo],
que sua corte patrocinava, em um momento de el árabe sería desplazado por el romance, en
la época que, gracias a la política linguística
intensa ebulição cultural e de mudança da relação
de Alfonso X, la lengua vernácula se elevó al
dos medievais com a escrita e o saber. Há que se rango de lengua nacional: el castellano (El
sublinhar que “la cultura que se desarrolló en nuestro lenguaje de Castilla’, según palabras
entorno alfonsino diferia de forma notoria de la del mismo rey) (BARROSO, 2003, p. 5).
266
Leonardo Augusto Silva Fontes

Tal política linguística se coadunava com a dário em relação à memória, às falas, aos cantos,
pretensão de aglutinação social e superioridade aos gestos, aos objetos simbólicos. Nas escolas,
régia, postuladas por Afonso, o que configuraria o mestre “lia”, o aluno “escutava”. Assim, Paul
seu reino como único no seu tempo. O próprio Zumthor procurou demonstrar, para a Idade Média,
monarca reforça em várias de suas obras sua au- a predominância fundamental da “voz” sobre a
toria e seu domínio político – que ele era rei de “letra”, mas lembrando que a “vocalidade” – que ele
um extenso conjunto geopolítico, que viria poste- prefere à “oralidade” – dos textos não se reduz ao
riormente a ser consolidado como España, como emprego de fórmulas estereotipadas e anacrônicas,
aparece em várias introduções de suas obras. pois a vocalidade é historicizada, por seu uso:
Este “florecimiento” linguístico alfonsíno A civilização do ocidente medieval foi
puede desligarse de un hecho material: la necesi- aquela das populações [que] consagraram o
dad de una lengua de gobierno motivada por las essencial de suas energias para interiorizar
suas contradições. É nestes limites e neste
tareas burocráticas, administrativas, políticas,
sentido que evocaremos a oralidade natural
en fin, a las que tuvo que atender la corte alfonsí de suas culturas: como um conjunto complexo
en su época” (LODARES, 2003, p. 116). Cabe e heterogêneo de condutas e de modalidades
destacar que, para Juan Ramón Lodares, durante discursivas comuns, determinando um sistema
a Idade Média e na corte de Afonso X “late una de representações e uma faculdade de todos os
concepción de la lengua como motor simbólico membros do corpo social de produzir certos
signos, de identificá-los e interpretá-los da
universal – el mundo está hecho y expreso en las
mesma maneira: como – por isso mesmo – um
palabras – muy alejada de la nuestra más instru- fator entre outros de unificação das atividades
mental y práctica” (LODARES, 2003, p. 117). individuais (ZUMTHOR, 2001, pp. 22-23).
As diferentes obras do rei sábio integram uma
tradição e fizeram parte de um mesmo projeto políti- Pelo que se percebe do extrato acima, Zum-
co-cultural e até mesmo pedagógico, através do qual thor atribui à característica discursiva do medievo
ele “pretendeu orientar os que freqüentaram sua corte uma capacidade de aglutinação social e consoli-
e povoaram suas terras” (SODRÉ, 2009, p. 153). O dação identitária através da compreensão coletiva
objetivo maior da cronística afonsina foi consolidar dos signos, significados e significantes1. E é neste
uma escrita própria e chancelar suas práticas de go- ponto que sua tese se conjuga ao estudo sobre a
verno a partir de uma associação com um passado marginalização dos mouros na escrita afonsina.
gótico e um presente guerreiro que reabilitariam Deve-se acrescentar que, atualmente, na teo-
Castela, quiçá a España, diante da cristandade. ria literária e mesmo na semiótica, as noções de
No que tange à atividade trovadoresca, a ofi- enunciado e de texto se sobrepõem. A definição de
cina de Afonso X se insere nesse mundo cortesão literatura deve se fundamentar na relação emissor-
que ganha preeminência no século XIII, com o texto-receptor, além da historicidade do ambiente de
gradual desenvolvimento da nobreza castelhana criação da obra, ou seja, a recuperação do circuito
– daí a difusão das canções de gesta, das cantigas de produção-circulação-recepção dos textos.
profanas e marianas. Na lírica provençal intensi- A partir da Escola dos Annales diferentes ex-
ficava-se o importante movimento, na Península pressões culturais e estéticas adquiriram estatuto
Ibérica e sul da França, da lírica de corte – em que de fonte histórica. A análise dos textos literários
a língua vulgar era fundamental. Estabelece-se por esses estudiosos dava-se por meio da história
uma sociedade trovadoresca, que atinge o auge da literatura ou da relação entre história e litera-
com o rei-trovador por excelência, Afonso X – tura. Entretanto, a história da literatura é muitas
grande promotor da cultura escrita em Castela. vezes utilizada em estudos de obras literárias
O uso crescente de documentos escritos, dos com um viés internalista, descolado do contexto
séculos XII ao XIV, não tira deles seu valor secun- social que as circundava.
267
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

No entanto, a relação entre literatura e his- a medieval – constrói o poder, mas é igualmente
tória, perspectiva bastante empregada atualmente construída por ele. O canto seria a realização plena
pelos historiadores, busca a historicidade da da linguagem (medieval), enquanto o discurso
escrita, recuperando a rede de relações sociais e seria a unidade linguística máxima. E o rei sábio
materiais na esfera da produção textual e, assim, pretendeu discursar através de suas narrativas his-
aponta para a necessidade da relação existente tóricas e do seu trovadorismo mariano, conjugando
entre enunciador, mensagem e receptor. em sua obra lírica: pecado e redenção, letra e voz,
Convém ressaltar, ainda, o caráter estruturan- diversidade e unidade, poesia e discurso, tempora-
te das narrativas – principalmente as medievais, e lidade e eternidade, cristãos e não-cristãos. Como
sua relação com a História, pois conforme afirma trovador, este monarca teria buscado construir,
Roger Chartier: mas paradoxalmente, mitigar as fronteiras entre
os povos sob seu jugo.
Existem várias formas de transição que reme-
tem as estruturas do conhecimento histórico Em um certo sentido, o sinal escrito era
para o trabalho de configuração narrativa e que pouco mais que auxílio e apoio para a memória,
aparentam num e noutro discurso a concepção ganhando vida apenas quando vocalizado – es-
da casualidade, a caracterização dos sujeitos da pírito um tanto platônico:
acção, a construção da temporalidade. Em virtu-
de deste facto, a história é sempre relato, mesmo O uso da escrita, Fedro, tem um inconveniente
quando pretende desfazer-se da narrativa, e o que se assemelha à pintura. Também as figuras
seu modo de compreensão permanece tributário pintadas têm a atitude de pessoas vivas, mas se
dos procedimentos e operações que asseguram a alguém as interrogar conservar-se-ão gravemente
encenação em forma de intriga [trama] das acções caladas. O mesmo sucede com os discursos. Falam
representadas (CHARTIER,1990, p. 82). das coisas como se as conhecessem, mas quando
alguém quer informar-se sobre qualquer ponto do
assunto exposto, eles se limitam a repetir sempre
Neste sentido, o autor defende que a com-
a mesma coisa. uma vez escrito, o discurso sai
preensão histórica se constrói no próprio relato e a vagar por toda parte, não só entre os conhece-
por ele mesmo, seus ordenamentos e suas compo- dores, mas também entre os que não entendem, e
sições. O caso de Afonso X é um expoente desta nunca se pode dizer para quem serve e para quem
dialética no mundo medieval, pois o “rei fez o não serve (PLATÃO, 2001, p.120).
livro” e se fez através dele; ou seja, sua história e
de seu reino foram construídas em grande parte A voz poética nesse universo é marcada pela
no âmbito narrativo. Porém, toda criação “literá- ubiqüidade, pois a leitura pública é “menos tea-
ria” é também um “produto” histórico, inserida tral, qualquer que seja a actio do leitor a presença
em espaço e tempo delimitados, que devem ser do livro, elemento fixo, freia o movimento dramá-
contemplados na análise do historiador. tico, introduzindo nele as conotações originais.
Essas expressões textuais não são, contudo, Ela não pode, contudo, eliminar a predominância
mera cópia da sociedade. Ao contrário, elas represen- do efeito vocal” (ZUMTHOR, 2001, p. 19).
tam e orientam o vivido, ao mesmo tempo em que Não se pode, assim, negar o caráter estru-
são influenciadas por ele. Por isso, está cada vez mais turante de sua escrita, ainda que a vocalidade
em voga o uso do termo mediação pelos estudiosos mantivesse sempre sua importância. Afonso X
de história e literatura. Ele aponta para o fato de que não descuidou disso, pois reivindicara não só a lei
a realidade social não está refletida diretamente na ( fueros, Siete Partidas, por exemplo) como base
produção cultural, mesmo a oficial, pois aquela “pas- de seu poder, como também a narração histórica
sa por um processo que altera seu conteúdo original” (Crónica General, General Estória) e a poética,
(FACINA, 2004, p. 24), numa espécie de filtragem. com as Cantigas de Santa Maria (CSM). O retrato
Convém considerar, ao utilizar narrativas en- ideal do rei medieval estabelecido pelos Espelhos
quanto fontes históricas, que a escrita – ainda mais de príncipes postula que ele não deve ser:
268
Leonardo Augusto Silva Fontes

apenas valente e corajoso na guerra, para de- Nestas, Afonso X faz questão de reiterar não só
fender a paz e o bem comum, mas igualmente seu domínio sobre uma região bastante extensa, mas
justo, humilde, caridoso e magnânimo. Além que grande parte dela foi inclusive reconquistada
do mais, quer-se que ele seja sábio, quer dizer,
cuidadoso com as verdades divinas e bem
junto aos mouros. Nesse sentido, Maravall aponta
instruído em numerosas disciplinas, como que até o século XIII o termo español era utilizado
foi mais do que qualquer outro Afonso X de muito mais como nome pessoal e que:
Castela; e repete-se, seguindo o Policraticus como étnico, aparece al empezar el siglo XIII
de João de Salisbury o adágio segundo o qual en Castilla (Libro de Alexandre), más o menos
‘um rei iletrado é como um asno coroado’ en coincidencia con el área del provenzal,
(BASCHET, 2006, p. 158). difundiéndose por Castilla y Cataluña en la
segunda mitad del XIII (Crônicas alfonsinas,
Fez parte do projeto político afonsino valo- Crônica de Desclot, Poema de Fernán Gonza-
rizar línguas vulgares hispânicas, concorrendo lez, etc.) y expandiéndose después por otras
assim para a valorização de si e de seu reino – e tierras (MARAVALL, 1983, p. 29).
para a conformação de identidades particulares
e uma mais geral, em face, por exemplo, do latim Com o tempo a flexibilidade linguística
erudito já em desuso na fala. Há que se relembrar castelhana dá lugar a uma uniformidade – após
as incorporações árabes e hebraicas em sua escri- a assimilação de termos de outros idiomas –,
ta, uma das características específicas e ambíguas através da tentativa de se estabelecer o castellano
de seu reinado, concorrendo para sua integração como o idioma oficial de Castela e Leão, à exce-
social pelo viés cultural. ção do galego para a linguagem poética das CSM,
e pela construção de uma imagem diferenciada,
Esta foi, inclusive, a principal interseção de refúgio para os sábios não-cristãos.
entre os mundos cristão e muçulmano em seu
Convém lembrar que o campo cultural só
reinado. Esta flexibilidade se estendeu ao campo
se autonomiza plenamente diante do político
idiomático, fazendo com que Castela se tornasse
na modernidade. A significação das obras me-
um dos fatores de atração para numerosos estu-
dievais, incluindo as afonsinas, passava pelo
diosos de toda Europa.
caráter estruturante de suas narrativas e pela
Esta composición étnica particularmente recriação receptiva e sensorial do súdito-espec-
variada implicaba sin duda un pluralismo
tador. É nítida a preocupação de Afonso X com
linguístico interesante. Las lenguas presentes
en la Península Ibérica en el siglo XI eran el a elaboração e destinação de sua obra, inserida
árabe, el romance y el hebreo. [...]. Solo a fi- plenamente numa estratégia política, inclusive de
nales del siglo XIII [en Toledo, por ejemplo], marginalização e alteridade, através de diferentes
el árabe sería desplazado por el romance, en mecanismos de representação e repressão.
la época que, gracias a la política linguística
de Alfonso X, la lengua vernácula se elevó Além disso, durante boa parte da Idade
al rango de lengua nacional: el castellano (El Média, a performance ajuda a tornar presente ao
nuestro lenguaje de Castilla’, según palabras leitor/receptor aquilo que não está explícito na
del mismo rey) (BARROSO, 2003, p. 5). escrita. “Na civilização que denominamos medie-
val, a poesia (qualquer que seja seu status textual)
Tal política linguística se coadunava com a assume as funções que a voz preenche nas cul-
pretensão de aglutinação social e superioridade turas de oralidade primária” (ZUMTHOR, 2001,
régia, postuladas por Afonso, o que configuraria p. 216). Outrossim, ela é narrativa neste período,
seu reino como único no seu tempo. O próprio unificando aparências múltiplas, perpassando
monarca reforça em várias de suas obras que ele era diferentes fronteiras. É no baixo-medievo, espe-
rei de um extenso conjunto geopolítico, que viria cificamente o século XIII, em que o monopólio
posteriormente a ser consolidado como España, monacal do binômio escrita/leitura é quebrado,
como aparece em várias introduções de suas obras. ainda que maior parte da população medieval
269
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

permanecesse analfabeta e rural. Afonso X se Esse trecho pode ser tido como paradigmá-
utilizou, mais do que qualquer outro monarca, da tico acerca do lugar e da importância do livro na
escrita do poder em favor de um projeto político corte afonsina. E pode ser até mesmo entendido
maior, de envergadura continental. de modo metafórico, no qual o rei é o próprio
livro, portador da verdade. O reinado de Afonso
Por fim, convém lembrar que a suspeita acerca
X, conhecido como rei sábio e que governou
da autoria das obras e das traduções de Afonso X
Castela e Leão de 1252 a 1284, foi fortemente
interessa menos que a noção afonsina de que o “rei
marcado pelo uso da escrita enquanto construtora
faz o livro”, presente em sua obra:
de identidade e instrumento de poder.
O rei faz um livro não porque ele escreva com
suas mãos, mas por que compõe as razões dele Escrever é dominar. Assim, a escrita afon-
e as emenda e ajusta e endereça e mostra a ma- sina se revestia de grande caráter político e se
neira de como se devem fazer e de si escrevê-las vinculava diretamente ao exercício do poder.
que ele manda. Mas dizemos por esta razão que Por isso, era bastante interessante e pragmático
o rei faz o livro2. o investimento do monarca neste universo, sendo
2 AFONSO X, O SÁBIO, General estoria I, 477 b. “El rey faze un libro non
por quel él escriva con sus manos mas porque compone las razones d’él e las
frequente a aparição de Afonso X em miniaturas
emienda et yegua e endereça e muestra la manera de cómo se deven fazer, e desí rodeado de profissionais do mundo da cultura
escrívelas qui él manda. Peró dezimos por esta razón que el rey faze el libro”.
1 Cf. SEGRE, C. Discurso. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 17, Literatura- como copistas, tradutores e músicos. As narra-
texto. Porto: Imprensa Nacional Casa Moeda, 1989, p. 20: “O ato
lingüístico não pode [...] prescindir da dimensão temporal. A compreensão tivas afonsinas atingiram grande eficácia nesse
das unidades discursivas dá-se, ao invés, em momentos distintos e com intuito, devido à sua diversidade e divulgação.
diferente temporalidade. Quer se trate de audição ou de leitura, cada frase
é assimilada nos elementos que nela se sucedem (amoldando-se, assim, global da frase, agora e finalmente arrancado à linearidade (na verdade,
o destinatário, à linearidade do discurso); a compreensão constitui um línguas diferentes representam o mesmo significado com uma diferente
segundo momento, no qual se realiza, conceptualmente, o significado ordem das palavras)”.

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voces)”. In: Cahiers de linguistique hispanique médiévale. N°21, 1996 Companhia das Letras, 2001.
270
A FiGurA DE GuiLHErmE, o CoNQuisTADor,
NA CrÔNiCA DE GuiLHErmE DE PoiTiErs

Lúcio Carlos Ferrarese1


Jaime Estevão dos Reis2

trono inglês, apenas indo para a Inglaterra após

N
este artigo temos por objetivo analisar a
figura de Guilherme, o Conquistador na a conquista. Na segunda metade do século XI,
Crônica de Guilherme de Poitiers. Redi- Guilherme de Poitiers escreveu a Gesta Guillelmi
gida entre o ano de 1073 e 1074, a crônica relata Ducis Normannorum et Regis Anglorum, ou Histó-
a conquista da Inglaterra pelas mãos desse Duque ria de Guilherme, Duque dos Normandos e Rei dos
normando, estrangeiro àquela terra, no ano de 1066. Ingleses, ainda na contemporaneidade da batalha,
Guilherme da Normandia, alcunhado o Conquista- com acesso ao relato de muitos dos participantes
dor graças a esse feito, foi o último poder estrangeiro da Batalha de Hastings e do próprio Guilherme, o
a efetivamente chegar às ilhas britânicas até os Conquistador (POITIERS, 1973, p. 32). Como um
dias de hoje, feito tal que não ocorreu nem mesmo vassalo do Duque normando, é possível estabelecer
durante quaisquer outras guerras que o Império que a construção de sua narrativa seja favorável a
Britânico e a Inglaterra participaram. A vitória de seu suserano, o qual ele procura demonstrar como
Guilherme, o Conquistador, trouxe uma mudança um líder exemplar, um herói, para a inspiração das
tal à sociedade inglesa do início do século XI ao gerações futuras. Em especial, trataremos dos ca-
centralizar a posse das terras (BRIGGS, 1998, p. pítulos 1.41 a 1.46 e 2.1 a 2.25 dessa crônica. Para
64), que o reino inglês foi influenciado por suas leis a melhor compreensão dessa fonte, é necessário
e regulamentos por gerações, afetando a história resgatarmos o contexto histórico da vitória de
deste reino que acabaria por se tornar um império, Guilherme, e apresentar os principais personagens
e que influenciaria o mundo. Diante dessa figura, que compõem tal história.
Guilherme de Poitiers decidiu escrever uma crônica Entre os anos de 1042 e 1066, a Inglaterra
para registrar os feitos dos antepassados do Duque tinha como rei Eduardo, alcunhado o Confessor
da Normandia, bem como os feitos do próprio. por sua grande religiosidade. Eduardo era filho
Guilherme de Poitiers, normando nascido em do rei deposto Ethelred, tendo subido ao poder
Préaux, viveu parte de sua vida como guerreiro após vários conflitos de pretendentes ao trono,
a serviço do Duque Guilherme da Normandia. e sua criação havia ocorrido com seus parentes
Entretanto, começou a estudar em Poitiers, onde na Normandia, juntamente com seu sobrinho em
professou seus votos e tornou-se capelão também segundo grau, Guilherme da Normandia. Embora
em favor do Duque (THORPE, 1973, p. 32), acom- fosse considerado um homem santo, teve que arcar
panhando-o na maioria de suas batalhas. Entre- com as consequências dos atos de seu progenitor,
tanto, ele não se encontrava presente à Batalha de que fora considerado injusto, inepto e tirânico
Hastings, que assegurou a vitória e conquista do pelos nobres ingleses, e suas estreitas relações
1 Mestrando do Programa de Pós-Gradução em História da Universidade Es- com a Normandia eram tais que muitos ingleses
tadual de Maringá. Membro do LEAM – Laboratório de Estudos Antigos e
Medievais. E-mail: luciocarlosferrarese@hotmail.com o consideravam quase um estrangeiro em seu
2 Doutor em História. Docente do Departamento de História e do Programa de reino. Durante seu reinado, houve um aumento
Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá. Coordena-
dor do LEAM – Laboratório de Estudos Antigos e Medievais. da participação normanda na administração da
271
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

ilha britânica, o que causou certas dificuldades me desde cedo participou da política e da guerra
entre ele e seus súditos, em especial o Haroldo no ducado da Normandia e em obediência a seu
Godwinson, Conde de Wessex. suserano, o rei francês.
Haroldo Godwinson era o filho mais influen- Guilherme e Haroldo tornaram-se posterior-
te e poderoso do Conde Godwin, o nobre mais mente rivais pela coroa do reino inglês, porém essa
poderoso da Inglaterra nessa época, possuindo relação nem sempre foi completamente inamistosa.
grandes terras, vários vassalos, bem como era Entre os anos de 1063 e 1064, Haroldo Godwinson
considerado como um inglês autêntico em termos pediu permissão ao rei Eduardo para velejar pelo
de ascendência. Sua irmã Edith estava casada com Canal da Mancha, e possivelmente atracar na
o próprio Eduardo o Confessor, estreitando suas Normandia. Existem discordâncias em relação
relações com o trono inglês. Em 1051, ele chegou aos motivos de Haroldo para essa viagem: a visão
mesmo a contestar o poder de Eduardo junta- normanda afirma que o conde Haroldo levava uma
mente com seu pai Godwin e com seus irmãos, o mensagem de Eduardo para Guilherme, reafir-
que levou ao exílio dele e de sua família do reino mando o seu direito ao trono inglês, enquanto que
inglês, com a subsequente perda do seu condado a visão inglesa era de que Haroldo tinha pedido
(GRAVETT, 1994, p. 7). No ano de 1052, através permissão a seu rei para visitar seu irmão e seu
do uso de armas, Haroldo e sua família retornaram sobrinho, que se encontravam como reféns na corte
à Inglaterra e exigiram a restituição do condado normanda desde a desobediência do pai de Haroldo
perdido, no qual sucedem, abalando a autoridade em 1051 (GRAVETT, 1994, p. 9).
do rei Eduardo. Esse conflito de poder, embora
Em qualquer das narrativas, a viagem não
não tenha evoluído para um confronto direto após
terminou bem para o conde. Ele naufragou na
esse episódio, continuaria até a morte de Eduardo,
costa de Ponthieu, na Normandia, e foi aprisio-
e levaria à contestação do trono inglês.
nado pelo conde local de nome Guy, um vassalo
Em um curto adendo, devemos falar do ir- de Guilherme, para ser usado como um refém de
mão de Haroldo, Tostig. Tostig Godwinson, que resgate. O Duque normando, no entanto, ordena
controlava as terras da Northumbria, fora consi- que Haroldo seja libertado, e este conviveu com
derado tirânico pela população, que se revoltou Guilherme como hóspede, embora conhecesse
contra ele no ano de 1065. Haroldo, ouvindo as muito bem que a qualquer momento poderia ser
reclamações dos nobres da Northumbria, concor- considerado como um prisioneiro.
dou pelo exílio do seu irmão, que buscou refú-
Enquanto permaneceu com Guilherme, Ha-
gio com o rei Haroldo III da Noruega, também
roldo participou da campanha do Duque contra
chamado Haroldo Hardrada. Ali, planejaria sua
os Bretões localizados ao leste da Normandia, e
vingança contra seu irmão, que não o apoiara, e
recebeu armas típicas da cavalaria conforme a
sua atuação seria importante para a futura justi-
tradição normanda. Não apenas isso, ao fim da
ficação da vitória de Guilherme.
campanha, Haroldo participou de uma cerimônia
Enquanto estes eventos ocorriam na Ingla- de juramento, onde prometia ajudar o Duque
terra, além do Canal da Mancha, no Ducado da normando a garantir o seu trono inglês, e se
Normandia estava Guilherme, cognominado o submetia a ele como um vassalo nessa ocasião,
Bastardo por ser o fruto do amor do duque Ri- juramento este feito sobre relíquias sagradas
cardo II da Normandia e a filha de um artesão de possuídas por Guilherme. Com a promessa feita,
couro. Tendo convivido muito próximo a Eduardo o Conde inglês recebeu permissão e provisões
o Confessor, este o considerou como herdeiro do para retornar à Inglaterra, junto com seu jovem
trono inglês quando falecesse, já que não possuía sobrinho Hacune, enquanto o irmão de Haroldo,
herdeiros. Reconhecido como único herdeiro e Ulnoth, permaneceria e seria libertado quando
criado desde cedo para suceder a seu pai, Guilher- Guilherme fosse coroado rei.
272
Lúcio Carlos Ferrarese / Jaime Estevão dos Reis

Em Janeiro de 1066, Eduardo o Confessor O impasse não foi solucionado através da diplo-
faleceu sem descendentes. Sua saúde já estava macia. Portanto, Guilherme logo começou a pleitear
frágil desde o final do ano de 1065, o que fazia a obtenção da coroa através do uso de armas. Ele en-
com que seu suplício fosse de conhecimento tanto viou emissários para explicar sua posição para o Papa
na Inglaterra quanto na Normandia. Enquanto Alexandre II, demonstrando os seus argumentos de
passava seus últimos momentos em sua cama, as- que estaria cumprindo uma guerra justa.
sistenciado por sua esposa e por seus súditos mais A questão religiosa merece um adendo neste
próximos, Eduardo proferiu seus últimos desejos. ponto. A Igreja Católica na Inglaterra possuía
Neste ponto novamente existem divergências. Em um Arcebispo chamado Stigand, que havia sido
uma visão pró-normanda, Eduardo teria “confia- excomungado por vários papas por ter adquirido
do” a Haroldo seu reino e de sua rainha, para que sua posição através das mãos do rei, e não das leis
fossem mantidos seguros enquanto Guilherme não canônicas. Com a vitória de Guilherme, a Igreja
fosse oficialmente coroado. A visão pró-inglesa Católica via a oportunidade de retirar a influência
argumenta que o último desejo do rei Eduardo era de Stigand da Inglaterra e reaproximá-la de sua
de que Haroldo tinha sido confiado o reino para se influência. Os motivos de Guilherme, que tinha
tornar, sim, o seu governante. Ademais, logo após uma maior ligação com o papado do que os reis
o falecimento de Eduardo, o conselho dos nobres ingleses, juntamente com esse motivo, foram razões
ingleses, conhecido como witenagemot ou witan, suficientes para que o Papa concordasse com o pe-
se reuniu e resolveu eleger Haroldo como líder dido do Duque normando, e até mesmo enviasse a
real, em oposição a escolher um normando, um ele um estandarte abençoado e um anel com uma
estrangeiro, como seu senhor. Haroldo foi então relíquia sagrada, um fio de cabelo de São Pedro. Isso
coroado, completamente ciente de que deveria proporcionou grande prestígio e maior capacidade
enfrentar muitos opositores desejosos do seu trono. propagandística à empreitada (THORPE, 1973, p.
Guilherme logo tomou conhecimento desses 8-9). Com o aval papal, o futuro Conquistador logo
acontecimentos, e rapidamente contestou a co- começou suas preparações, convencendo os seus
roação de Haroldo. Em vários momentos enviou vassalos um a um de que a luta pela Inglaterra era
emissários para transmitir seu descontentamento, digna e de que traria grandes ganhos aos vencedo-
e demonstrar suas razões. Primeiramente, ele re- res, prometendo aos seus cavaleiros porções justas
lembrava as declarações anteriormente feitas por das terras inglesas em caso de vitória, bem como
Eduardo publicamente, de que o havia escolhido eles não estariam entrando em uma luta injusta da
como seu herdeiro. Após, ele afirmava a validade qual teriam de se penitenciar depois.
do juramento prestado por Haroldo em sua casa, Enquanto isso ocorria, Tostig Godwinson,
feito sobre as relíquias sagradas, de que ele seria o irmão exilado de Haroldo, conquistou o apoio
seu vassalo. Por fim, o fato de ser o sobrinho em de Haroldo III da Noruega para que ambos inva-
segundo grau de Eduardo, e o mais velho e mais dissem a Inglaterra. Haroldo Godwinson estava
próximo parente consanguíneo masculino, con- ciente, neste momento, de que Guilherme logo
firmava sua linhagem como sucessor. Haroldo atacaria, e esperava ser atacado pelo sul primeiro,
contra-argumentaria que, na tradição inglesa, os porém seu irmão foi mais rápido. Haroldo III da
desejos finais do rei eram o seu último juízo de Noruega e Tostig invadiram pela região da Nor-
valor, e, portanto, com validade superior às outras thumbria, e o rei inglês Haroldo Godwinson é
declarações anteriores. Ademais, embora Haroldo forçado a mobilizar as tropas que se encontravam
não o mencionasse, ele também apoiava a autori- no sul para o norte, contra esses novos inimigos.
dade do witan, que o havia apontado como rei. Por Ambas as forças se encontraram na Batalha da
fim, referente ao juramento prestado a Guilherme, Ponte de Stamford. Tostig e Haroldo Godwinson
ele afirmava que o havia feito sob coação, mesmo ainda tentam entrar em um acordo, porém nos ter-
que implícita, e que era um juramento inválido. mos do acordo Haroldo III da Noruega não seria
273
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

poupado, o que acarretou a impossibilidade de que apresenta uma temática referente à justiça, à
paz pela diplomacia. A batalha ocorre, e Haroldo ordem do mundo, à lealdade e verdade, e a feitos
surge como vencedor, matando Haroldo III, mas em armas que ora exaltam o valor guerreiro de
ao custo da vida de Tostig e de muitos ingleses. seus participantes, ora amargamente condenam
A vitória do rei inglês não durou muito tempo. os danos causados à vida de tantos.
Pouco depois, o Duque normando conseguiu cru- A relação de Eduardo e Guilherme é uma
zar o Canal da Mancha com suas forças, e através relação de familiaridade e de sucessão, tal qual
da marcha forçada Haroldo alcançou o exército a crônica relata “Eduardo, Rei dos Ingleses,
invasor próximo à região de Hastings. Uma última amou Guilherme [da Normandia] tanto quanto
tentativa diplomática foi feita, porém infrutífera, e como se o duque tivesse sido seu irmão ou seu
a Batalha de Hastings iniciou-se em 14 de Outubro filho, e a muito ele havia apontado ele como seu
de 1066. As forças de Haroldo posicionaram-se em herdeiro” (POITIERS, 1973, p. 33). Guilherme,
terreno elevado, colina acima, em uma muralha por sucessão, deve receber o trono da Inglaterra,
de escudos, sendo que seu exército era composto já que Eduardo não possui descendentes. Eduar-
majoritariamente de combatentes a pé, enquanto do, por sua vida santa, é considerado sábio, e
que as forças de Guilherme tinham divisões de sua decisão, portanto, acertada. Para informar
infantaria, arquearia e cavalaria. A batalha foi di- sua decisão, Haroldo, o mais poderoso dos seus
fícil para ambos os lados, que apresentava apenas
vassalos, é escolhido, pois ele seria capaz de
uma pequena vantagem numérica para Haroldo,
comandar os outros nobres ingleses a obedecer
porém o uso da arquearia e de táticas avançadas
Guilherme. Como já apontado pelo contexto
de cavalaria contra os ingleses que não detinham
histórico acima, no entanto, Haroldo não irá
essas mesmas capacidades conquistaram a vitória
promover essa coroação, mas antes a tomará
de Guilherme (BRIGGS, 1998, p. 59). O Duque
para si: dessa forma ele quebrará a ordem dada
normando derrotou o único homem com força o
por seu senhor, de que ele deveria obedecer
bastante para contestar seu trono, e com suas forças
Guilherme quando sua hora chegasse.
ele continuou a combater quaisquer nobres ingle-
ses que se opuseram a seu reinado. Guilherme foi Ao enviar Haroldo, e este ser aprisionado por
coroado em Londres no Natal de 1066 e a atuação Guy na Normandia, Guilherme entra na história
normanda mudaria os destinos da Inglaterra. já com um ato de magnanimidade, a de resgatar
Esse contexto histórico também se encontra Haroldo (POITIERS, 1973, p. 34). Esse ato, bem
na crônica de Guilherme de Poitiers, a História como aceitá-lo como um hóspede, em benefício
de Guilherme, Duque dos Normandos e Rei dos daquele que será o futuro traidor, apenas reforça a
Ingleses. Entretanto, a maneira como o autor ideia da quão mais profunda será a traição e a de-
constrói a figura de Guilherme, o Conquistador, sobediência futuras do conde inglês, da quebra do
procurando exaltar sua figura, demonstra seu juramento que ele faz de que ajudará Guilherme
interesse em retratá-lo heroicamente, e todas as a se tornar o rei da Inglaterra (POITIERS, 1973,
outras personagens da crônica tem sua constru- p. 34). A campanha da qual Guilherme e Harol-
ção apenas em relação a Guilherme. Eduardo, o do participam contra os Bretões apresenta-se
Confessor, é o benevolente ancião que representa como uma série de acontecimentos onde o duque
a tradição, a ordem estabelecida universalmente normando demonstra sua sagacidade diante do
por Deus, a qual será retornada pelo herói após a inimigo e sua justeza no trato com seus aliados
intervenção de Haroldo. Este, opositor a Guilher- (POITIERS, 1973, p. 36-37), incluindo Haroldo, a
me, é o vilão, embora não seja um inimigo que quem viria a estimar. O tempo que Haroldo passa
possa ser considerado explicitamente maligno, e com Guilherme, o juramento que faz sobre as
possua certa dignidade que o autor lhe confere. relíquias sagradas, é considerado essencial para
A construção da narrativa favorece uma história explicar o quão triste seria a traição:
274
Lúcio Carlos Ferrarese / Jaime Estevão dos Reis

Estas, então, são as reprimendas feitas contra disso quando lembrou-se que seu dever não
ti, Haroldo. Depois de todas essas gentilezas, era o de aumentar sua própria fama e fortuna,
como pôde se atrever a privar Duque Guilher- mas para corrigir mais uma vez a prática da
me de sua herança e fazer guerra contra ele, religião Cristã naquelas terras estrangeiras
você que, por um juramento tão sacrossanto, (POITIERS, 1973, p. 41)
atou a si e a todo o seu povo a ele, colocando
suas mãos nas dele e jurando lealdade? Cabia Enquanto Guilherme move suas tropas
a ti manter os Ingleses em obediência. Ao con-
trário muito perniciosamente tu os encorajaste
através do Canal da Mancha, Haroldo enfrenta
em sua revolta. Os ventos seguintes que infla- seu irmão Tostig ao norte, e com a morte deste
ram suas velas negras como carvão conforme mais um motivo se adiciona à lista da sua injus-
viajavas de volta para casa trouxeram nada tiça: não apenas Haroldo estava injustamente no
mais do que tristeza. Homem horrível! As trono, quer por eleição de seus subordinados,
calmas águas do mar que lhe permitiram que
quer por não possuir o sangue real; não apenas
retornasse a tua costa nativa devem ser eter-
namente amaldiçoadas. O calmo porto onde tinha quebrado sua palavra dada em juramento
aportaste deve carregar seu fardo de vergonha, sagrado, tornando-o um mentiroso, um perjuro;
pois contigo veio o mais desastroso naufrágio mas também, agora, era um fratricida, e que
que tua terra natal já sofreu...” (POITIERS, necessita ser castigado o mais depressa possível
1973, p. 37).
(POITIERS, 1973, p. 43). Já para Guilherme, a
crônica dispensa a ele novamente a sagacidade,
A figura do traidor é essencial para a temá-
ao lidar de maneira astuta com o emissário de
tica heroica medieval, influenciada pelo traidor
Haroldo, sua coragem, ao confiar na justeza de
original da cosmogonia cristã: Lúcifer. Conforme
sua causa e colocar-se inabalável diante do peri-
Deus estabelece o sentido, e a ordem do Universo,
go, e sua fé ao mencionar sua piedade religiosa
aquele que se volta contra a ordem estabelecida é
(POITIERS, 1973, p. 44-45; 47).
seu anjo mais glorioso e que mais bênçãos havia
recebido, cuja arrogância, traição, e desejo de Quando as forças de ambos finalmente se
almejar por mais do que lhe cabe o fazem almejar encontram no campo de batalha, o exército de
uma posição divina que não lhe pertence. Dessa Haroldo é descrito como números exagerada-
forma, a figura do traidor que Haroldo incorpora, mente maiores (POITIERS, 1973, p. 48), pois isto
embora com ressalvas, é ainda mais chocante para glorificaria ainda mais a Vitório de Guilherme.
o leitor, ainda mais vilã. Quando Haroldo sobe Seus feitos em batalha, suas táticas adotadas e
ao poder, ele o faz “sem uma eleição pública”, e mesmo seus rápidos discursos motivacionais são
com o apoio de “assassinos” e do excomungado descritos, e todos estes levam à vitória normanda
Stigand (POITIERS, 1973, p. 38). Diante de tal sobre os ingleses. Entretanto, a relação com o
perspectiva, o herói Guilherme busca o oposto, vilão derrotado, morto em batalha, não é uma
o mais justificado dos homens, que se apresenta relação de ódio ou escárnio sobre sua morte:
na figura do Papa Alexandre II, e dos seus vas- Nós Normandos não lhe oferecemos qualquer
salos fiéis, os quais ele convence um a um com insulto, Haroldo: ao contrário nos apiedamos de
sua sagacidade e seu carisma (POITIERS, 1973, ti e choramos ao ver teu destino, nós e o piedoso
p. 39-40). Sua causa é justa, e mesmo quando Conquistador, que se entristeceu com tua queda.
captura espiões de Haroldo ele os liberta para Tu conquistaste tal medida de sucesso conforme
dizer que está realmente indo à Inglaterra para merecestes, e após, novamente como tu mere-
cestes, tu encontraste tua morte, banhado no
reconquistar aquilo que lhe é de direito: sangue de teu próprio coração. Agora tu jazes
Este inabalável e perspicaz líder Cristão ali, em teu tumulo perto do mar: por gerações
não tinha dúvida alguma que Deus Todo de ingleses e normandos ainda não nascidos tu
Poderoso, que corrige todas as injustiças, serás amaldiçoado. Assim devem cair aqueles
não permitiria que sua causa falhasse, pois que procuram seu próprio bem supremo no
era justa. Ele estava ainda mais convencido grande poder terreno, que se rejubilam apenas
275
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

quando o usurpam, aqueles que, assim que o Haroldo, então, morre graças às injustiças
agarram, lutam para mantê-lo pela força das cometidas por sua cupidez, e a ordem é novamente
armas. Mais do que isso, tu estava manchado
restaurada com a ascensão de Guilherme ao trono.
com o sangue de teu irmão, com teu temor de
que na grandeza dele ele faria a tua própria Toda a narrativa de Guilherme de Poitiers no
[grandeza] menor. Então em louca fúria tu remete a uma história onde as relações entre se-
correstes em direção a esta segunda luta, de nhores e vassalos, entre cavaleiros líderes e subor-
forma que, enquanto tal levava à queda de tua
dinados são norteadores da existência humana.
terra natal, tu pudesses manter teu poder régio.
O cataclismo que causastes o arrastou para as Haroldo Godwinson morre pois é um cavaleiro
profundezas junto com ele. Tu não brilhas mais perjuro, um guerreiro vassalo que não cumpriu
sob a coroa que tão injustamente usurpou; não sua palavra, sendo castigado por Deus pelas mãos
te sentas mais no trono que tão orgulhosamente de Guilherme, aquele que é abençoado através de
ascendeu. Teus últimos momentos provaram
se estavas certo ou errado para te exaltar com
suas ações. Guilherme, o Conquistador, se torna
este presente dado pelo Rei Eduardo quando ele então o herói de uma história exemplar de como
morreu (POITIERS, 1973, p. 54-55) um cavaleiro deve e não deve agir.

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276
A rELiGiÃo imPEriAL romANA
E suA iNFLuÊNCiA No CrisTiANismo

Luís Carlos Mendes Santiago1

1968, p. 143). O imperium do imperador, porém,

A
religião imperial romana é um desdobra-
mento da religião que era praticada na ia muito além do dos ditadores da república ro-
Roma republicana, que, por sua vez, esta- mana, era vitalício e não por tempo pré-determi-
va vinculada ao grande grupo das religiões indo-eu- nado, e agora acrescido de poderes divinos, pois
ropeias baseadas nas três funções sociais: a do rei, os imperadores, se ainda não eram deuses, eram
a do guerreiro e a do agricultor, representadas pela diretamente favorecidos pelos deuses e se torna-
tríade arcaica da religião romana: Júpiter, Marte e vam, eles mesmos, deuses, após a morte com a
Quirino, e também pela tríade capitolina (adorada apoteose (CARCOPINO, op. cit., p. 152).
no grande templo sobre a colina do Capitólio): Júpi- Isso de um governante atribuir-se a divindade
ter, função real, Minerva, função guerreira, e Juno, ou favor especial junto à divindade é de todos os
função agrária. A eminência de Júpiter, que ganha tempos, mas adquiriu uma tonalidade toda especial
o epíteto de Optimus Maximus, vai acentuando- com os delírios de grandeza de Alexandre Mag-
se cada vez mais ao longo da república romana; o no, que se considerava filho e protegido do deus
primitivo deus austero da função real é substituído Zeus Amôn (DIODORE, 1912, t. III, p. 353-354),
pelo fantasioso Zeus dos gregos, personagem antes noção que seus sucessores, sobretudo os selêuci-
literário que religioso, dotado, entre outras coisas, das, levaram ainda mais longe, considerando-se
de certo poder sobre os destinos. Esse Júpiter mais eles mesmos deuses (BRIGHT, 1980, p. 571). Em
helênico que itálico será a divindade máxima nos Roma, o primeiro a adotar essa política de auto-en-
textos que podemos chamar canônicos da religião deusamento deliberado foi Silas, que ganhou, na
imperial romana, que são os de Virgílio, Ovídio, década de 80 a.C., o epíteto de Epaphroditos, entre
Tito Lívio e de outros escritores do período augusta- os soldados de origem grega, e Felix, entre os de
no (DUMÉZIL, 1968, p. 166-167, 201 e 283). origem latina, ou seja, bem-aventurado, auxiliado
pelos deuses e, sobretudo, pela deusa Vênus (CAR-
Da velha religião romana, além do vasto pan-
COPINO, 1940, p. 109). A divindade, inspiração
teão e da mitologia, a nova religião imperial deu
e auxílio divinos, ligação direta com os deuses,
especial ênfase à noção de imperium, poder dado
servia para legitimar a dominação de Silas, que se
aos governantes (cônsules, pró-cônsules, ditado- atribuía poderes extraordinários, rompendo com os
res e mesmo generais em campanha) e estendido, preceitos mantidos ao longo de quatro séculos pela
em menor escala, aos demais representantes da república. A mesma tática política foi adotada, de
nação (senadores, censores, questores, pretores, forma discreta, por Pompeu e depois, abertamente,
lictores e mesmo aos paterfamilias no âmbito de por Júlio César (CARCOPINO, 1968, p. 148).
suas residências); o imperium também é conceito
de origem indo-europeia, relacionando-se dire- Júlio César usou deliberadamente a religião
como forma de ascender ao poder político. Um dos
tamente à consulta de auspícios (CARCOPINO,
degraus em sua lenta, controvertida, mas irreversí-
1 Mestre em História Social pela Universidade Estadual de Montes Claros
(UNIMONTES), Email: luiscmsantiago@gmail.com vel ascensão foi o cargo de sumo-pontífice, eletivo
277
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

na Roma daquele tempo, para o qual foi escolhi- tiram detratores da religião imperial e, depois
do, em 63 a.C., à custa de comprar votos (SUE- que o cristianismo se tornou religião oficial,
TÔNIO, s.d., p. 25; DUMÉZIL, 1968, p. 521). detratores da forma de dominação imperial.
César foi ainda mais longe que Silas e Pompeu, Toda religião ou forma de dominação terá sem-
ao erigir um templo e instituir um sacerdócio de- pre seus opositores. A morte “matada” de todos
dicados à sua pessoa, ou melhor, à sua Clemência os integrantes da família júlia, culminando na
(DUMÉZIL, op. cit., p. 524). Todos esses atos morte de Nero, deu vazão à maledicência até en-
provocavam, entretanto, reações no meio político tão reprimida; essa maledicência contra os im-
romano e ele foi morto e seus assassinos se sen- peradores é um dos traços principais dos textos
tiram, e foram por muitos considerados, heróis de Suetônio e de Tácito. O imperador de deus
defensores dos direitos do povo. passa a demônio, pessoa cruel e execrável. Essa
demonização precoce dos ídolos da religião im-
Para não ter o mesmo destino do seu prede-
perial, tão caracteristicamente maledicente, vai
cessor, Augusto iniciou um processo de institucio-
tornar-se tradição entre alguns escritores da pa-
nalização da política autoritária e da religião per-
trística e mesmo entre escritores posteriores à
sonalista do seu pai adotivo (na verdade tio-avô),
reforma e ao iluminismo.
sempre procurado não provocar maiores reações
seja no exército, no meio político (senado) ou no Contudo, a religião cristã adotou, ao lado
povo; as etapas foram sendo implementadas de desses elementos nitidamente anti-imperiais,
forma paulatina, uma dessas etapas foi a adoção muitos elementos da religião imperial romana,
do nome Augusto, com o significado de “aquele adotados já antes de se tornar a religião oficial do
que aumenta” em vez de Otaviano, que era seu império. Jesus não era cristão e sim judeu, pois
nome “de batismo”; o senado romano, onde Júlio guardava o sábado (mas não de forma intransi-
César foi morto, foi rebaixado a instituição sim- gente), exigia a circuncisão de seus seguidores e
plesmente simbólica (GIBBON, s.d., p. 54). A re- proibia a ingestão de alimentos imundos (sobre-
ligião imperial é uma criação de Júlio César, mas tudo carne de porco). Porém, à medida que seus
foi Augusto que a transformou em instituição está- sucessores foram convertendo mais e mais novos
vel; ainda hoje guardamos, por exemplo, os nomes seguidores entre as populações gregas e latinas,
de mês julho e agosto, referentes aos dois primei- que compunham o império romano, foi abando-
ros imperadores romanos; nas dinastias subse- nando os tabus (proibições religiosas) da religião
quentes, o imperador recebia o título de augusto, hebraica; o sábado consagrado, a circuncisão e
os sucessores eram os césares e a mãe, esposa ou a abstenção de carne suína foram bem depressa
irmã do imperador, dependendo do seu poder pes- abolidos, pouco tempo após a crucificação, po-
soal, muitas vezes sendo mesmo a regente, recebia rém não relacionam-se necessariamente à reli-
o título de augusta (GIBBON, op. cit., p. 63). A gião imperial (SANTIAGO, 2009, p. 516-517).
existência da religião imperial romana teria sido
A mitologia criada em torno da figura his-
ainda mais curta se Vespasiano e seus filhos Tito
tórica de Júlio César tem muitos aspectos em
e Domiciano (família flávia), sobretudo este últi-
comum com as narrativas acerca da vida de
mo, não tivessem dado novo alento a essa forma
Jesus Cristo. A maioria das similaridades con-
devocional, criando novos templos (SUETÔNIO,
centração no processo em torno da morte, se-
op. cit., p. 385-389). Durante o período dos anto-
guida da apoteose para o primeiro imperador,
ninos, a função do imperador ganhou contornos
que passa a integrar o número dos deuses, e da
antes filosóficos que propriamente devocionais,
ressurreição e ascensão de Jesus, quando retor-
que vão ajudar a uma assimilação do cristianismo
na ao Pai. A estrela que aparece poucos meses
(GIBBON, op. cit., p. 51-52).
após a morte de César (DUMÉZIL, op. cit., p.
Ao longo do império, desde Catão e Cícero 525-526), aparece em contraposição anunciando
até a oficialização do cristianismo, sempre exis- o nascimento de Jesus (COLUNGA-TURRA-
278
Luís Carlos Mendes Santiago

DO, 1999, p. 964). A morte de César é anuncia- mental, afinal, o cristianismo tornara-se a religião
da pelo adivinho em Suetônio (op. cit., p. 66-67) dos reis. Embora o próprio Constantino só tenha
e a de Jesus pelo próprio salvador a seus dis- recebido o batismo no fim da vida, sua esposa,
cípulos atônitos (COLUNGA TURRADO, op. a imperatriz Helena (santa Helena na hagiografia
cit., p. 978). Ambos são reis (César que de fato católica) resgatou a cruz, a coroa de espinhos e
o era estava impedido por um tabu de utilizar outras relíquias de Jesus. Em Jerusalém, após a
esse nome) e ambos descendentes de grandes demolição de um templo de Vênus, descobriu-se
reis, César de Rômulo e Jesus de Davi e de Salo- o local onde Jesus fora sepultado e acontecera a
mão. E foram, eles mesmos, mais que reis, pois ressurreição; um novo templo ali erigido e novos
representaram um elo entre a humanidade e a templos foram também levantados, em Belém,
divindade. Ambos foram mortos devido à ação onde Jesus nasceu, no monte das Oliveiras e ao
de traidores, que estavam, em ambos os casos, lado do carvalho de Mambre, locais que tinham
entre os mais próximos seguidores; ação direta sido esquecidos pelos cristãos de então (GIB-
de um grupo de conjurados no caso de César e BON, op. cit., p. 776-777).
delação de Judas Iscariotes, no de Jesus.
Embora tenha sido o centro da cristandade
As semelhanças não param aí, o cristia- por três séculos, com a expansão do islã, Cons-
nismo teve também sua augusta, Maria, que tatinopla perdeu terreno paulatinamente até tor-
também alcançou a apoteose após a morte (a nar-se predominantemente islâmica, o mesmo,
assunção); teve seus sucessores, ou césares, em de forma bem mais imediata, aconteceu com
número maior é verdade, os doze apóstolos, que Alexandria. Com isso, o bispo de Roma, apesar
repartiram, segundo as lendas medievais e mo- da decadência em que a cidade se encontrava,
dernas, o mundo, entre si; o Brasil e a Índia, por passou a ser o principal patriarca do cristianis-
exemplo, couberam a Tomás, ou Tomé, assimila- mo ocidental. Tal como a religião imperial, a
do ao deus tupi-guarani Sumé (VIEIRA, 1990, religião católica é também romana e tem tam-
p. 130-133). Até aqui restringimo-nos ao Novo bém o seu centro na mesma Roma, onde Júlio
Testamento, mas os evangelhos e demais textos César erigiu um templo dedicado a sua própria
foram escritos quando o processo de assimilação Clemência. Ainda hoje, o papa não é apenas um
de elementos da religião imperial romana pelo líder religioso, mas também é governante, ainda
cristianismo encontrava ainda muito incipiente. que restrito ao bairro do Vaticano e, mais que
Nas muitas lendas, tanto cultas quanto populares, governante ou líder religioso, é um intermediá-
os discípulos e os inúmeros santos, que surgiram rio entre a humanidade e a divindade, herdei-
depois, tanto no catolicismo, quanto nas religiões ro direto das chaves de são Pedro, que abrem e
ortodoxas e em outras denominações cristãs, re- fecham, tanto no céu como na terra, agraciado
cebem a graça da apoteose, para posicionar-se ao ainda com a controversa “infalibilidade papal”.
lado do Criador, antes mesmo do Juízo Final, de
Roma não é a sede natural da cristandade
onde intercedem pelos seus devotos mais fervo-
e muitos são os cristãos que não aceitam a su-
rosos, à maneira dos deuses gregos, pedindo, em
perioridade da igreja romana sobre as demais,
troca, orações, sacrifícios (que deixaram de ser
assim temos os patriarcados de Istambul (antiga
cruentos) e ex-votos.
Constatinopla) e de Alexandria e as religiões da
Com a adoção do cristianismo como religião reforma (muitas das quais consideram que o papa
oficial do império romano, os vínculos entre as é o próprio anticristo) que recusam-se a prestar
duas formas devocionais tornam-se ainda mais vassalagem espiritual ao Vaticano. O próprio ca-
estreitos. Quando a religião imperial foi extinta, tolicismo, no fim da Idade Média, tentou transfe-
vários de seus elementos passaram ao cristianis- rir o papado para Avinhão. De qualquer, com a
mo. A pompa, por exemplo, se já existia no cris- predominância de Roma sobre as demais igrejas
tianismo primitivo, passou a ser elemento funda- católicas, o idioma da religião romana passou a
279
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

ser o mesmo latim do império romano e cânone longos comentários foram consideravelmente
cristão, a Bíblia Sagrada foi vertida para a língua aumentados (THILO, 1881, p. III-V). Porém é
do lácio, primeiro através de são Jerônimo, de- com Dante Alighieri que o poeta mantuano vai
pois consolidada pelo papa Clemente VIII, atra- ser definitivamente assimilado ao cristianismo.
vés de decreto de oito de abril 1546 (COLUNGA; Virgílio é um dos personagens centrais da Di-
TURRADO, op. cit., p. XI). vina Comédia, ao lado de Beatriz e do próprio
Dante. Os pagãos, por não terem sido batizados
Ao longo da Idade Média, os cânones da re-
não têm direito de avançar no além-túmulo de
ligião imperial romana (Ovídio, Tito Lívio, Ho-
Dante, há, porém, exceções, entre as quais, Vir-
rácio, Tibulo e, sobretudo, Virgílio) foram sendo
gílio, que pode ir até o Paraíso Terrestre, que
assimilados pelo imaginário popular e muitos
fica no alto da montanha do Purgatório, mas não
dos seus elementos foram sendo assimilados ao
pode adentrar no Paraíso. Outro poeta período
cristianismo ocidental. Virgílio tornou-se, nas
clássico latino chega além do Limbo, a que estão
mitologias medievais, uma mistura de cristão
restritos os sábios da antiguidade, que não che-
avant la lèttre e mago poderoso, situado além do
garam a conhecer o cristianismo, é Estácio (au-
bem e do mal. A popularidade da obra virgiliana
tor das Silvas, da Tebaida e da Aquileida, esta
parece ter atingido um apogeu no fim da Idade,
última incompleta). Estácio teria adotado secre-
mas a supremacia de Virgílio sobre os outros au-
tamente a religião cristã e Dante vai encontrá-lo
tores é um dos conceitos da Antiguidade impe-
no Purgatório, mas ele terá direito a ingressar no
rial, nas Saturnálias, por exemplo, de Macróbio,
Paraíso (DANTE, 1991, p. 494-496).
onde o mantuano é considerado “ominium disci-
plinarum peritus” (“perito em todas as discipli- Porém, onde a religião cristã parece ter se-
nas”, MACROBE, 1937, p. 154-155). A vida de guido mais de perto o modelo virgiliano é no
Virgílio atribuída a Donato parece reunir textos conceito de inferno. Tal conceito certamente
bastante heterodoxos, muitos deles francamen- não está entre as heranças hebraicas do cristia-
te pejorativos, outros favoráveis (VIRGILIUS, nismo; no Antigo Testamento não existe essa no-
1844, v. 1, p. 13-24). Várias lendas em torno de ção de punição após a morte, mas em Virgílio
Virgílio foram também reunidas nas Anecdota há pelo menos duas descrições do além-túmulo,
de Virgilio, do controvertido inglês Alexander uma mais resumida no livro IV das Geórgicas,
Neckam, onde o mantuano é dono de poderes outra mais pormenorizada, ocupando a maior
extraordinários, que, entre muitas outras coi- parte do livro VI da Eneida. A geografia do
sas, serviram para a proteção de Nápolis, tor- além foi retomada e consideravelmente amplia-
nada inexpugnável através de um ovo de grifo, da por Dante no século XIV e, através dele, ofi-
consagrado pelo próprio Virgílio (NECKAM, cializada no âmbito do cristianismo ocidental. O
1996). Sem entrar em questões biográficas, são purgatório, entretanto, parece ser noção mais re-
Jerônimo comparou o estilo das profecias de Je- cente, embora tenha raízes no ideário virgiliano,
remias à poética virgiliana. Acreditava-se ainda na noção própria das religiões de mistérios, de
que Virgílio tenha profetizado o nascimento de vencer provas e provações para alcançar a divin-
Jesus no quarto poema das Bucólicas e a ascen- dade. O paraíso terrestre é inspirado no livro no
são do Salvador na apoteose do pastor Dafne, VI da Eneida, mas o paraíso propriamente dito,
descrita no sexto poema do mesmo livro (SAN- de Dante, parece beber em raízes diretamente
TIAGO, op. cit., p. 516). em raízes platônicas, através dos neo-platônicos
e da patrística (SANTIAGO, op. cit., p. 518).
A popularidade da obra virgiliana parece
ter atingido um apogeu no fim da Idade Média, A influência de Virgílio no mundo cristão
é o que indica a quantidade de manuscritos dos ocidental continua sendo muito grande, ele ainda
extensos comentários de Sérvio a partir do sé- é muitíssimo apreciado ao longo da renascença e
culo IX; em alguns desses manuscritos, os já da idade moderna. Pode-se dizer que é o principal
280
Luís Carlos Mendes Santiago

modelo da poesia barroca espanhola e não é a toa tado, como foi até meados do século passado, o
que um trecho da primeira écloga das Bucólicas character indelebilis dos sacerdotes cristãos é um
figura na bandeira de Minas Gerais. Recentemen- resquício do imperium (poder de vida e de morte
te Augusto de Campos recenseou o que chama de e de poder cometer atrocidades sem ter culpa), as-
“onomatopeias virgilianas” nos Sertões de Eucli- sim também a infalibilidade papal, que continua
des da Cunha (CAMPOS, 1996, p. 4-6) e várias sendo tema dos mais discutidos nos dias de hoje.
edições da Eneida encontram-se permanentemen- Não é a toa que o papa tem o título de pontífice,
te em catálogo no mercado livreiro do Brasil. o mesmo título do sumo sacerdote da Roma pagã,
Mas as influências da religião imperial ro- cargo avidamente almejando por Júlio César e,
mana e mesmo da religião arcaica romana no uma vez alcançado, sabiamente utilizado para
catolicismo romano de hoje não restringem-se a aplanar seu caminho para o poder supremo e para
Virgílio. O catolicismo já não é a religião do es- a instituição do império romano.

281
REFERÊNCIAS MACROBE. Les Saturnales. Paris: Garnier, 1937, 2 v.
BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Paulus, 1980, 2. ed. NECKAM, Alexander. Anecdota de Virgilio – The secret history of
CAMPOS, Augusto de. Transertões. In Mais! Suplemento da Folha Virgil. Trad. Joannes Opsopoens Brettanus (1996). In www.cs.utk.
de São Paulo, 3nov1996, p. 4-6. edu, acesso em 15jun2008.
CARCOPINO, Jérôme. Las etapas del imperialismo romano. Bue- SANTIAGO, Luís. As Roçarianas – Releitura das Geórgicas de Vir-
nos Aires: Paidós, 1968. gílio. Pedra Azul: ed. do autor, 2009.
__. Sylla ou la monarquie manquée. Paris: L’ Artisan du Livre,
SUETÔNIO. A Vida dos Doze Césares. Rio de Janeiro: Edições de
1940, 9. ed.
Ouro, s. d.
COLUNGA, Alberto; TURRADO, Laurentio. Bíblia Sacra iuxta Vul-
gatam Clementinam. Madri: BAC, 1999, 10. ed. THILO, Georgius; HAGEN, Hermannus. Servii Grammatici qui
feruntur in Vergilii Carmina. Leipzig: B. G. Teubner, 1881, v. 1.
DANTE Alighieri. La Divina Commedia. Milão: Hoepli, 1991, 21. ed.
DIODORE de Sicile. Bibliothéque Historique. Trad. Ferdinand Hoe- VIEIRA, Padre Antônio. Sermão do Espírito Santo. In VIEIRA, Padre
fer. Paris: Hachette, 1912, 3. ed., 4 v. Antônio. Sermões – Problemas sociais e políticos do Brasil. São
DUMÉZIL, Georges. La religion romaine archaïque suivi d’ un Paulo: Cultrix, 1990, p. 125-153.
appendice sur la religion des etrusques. Paris: Payot, 1968. VIRGILIUS. P. Virgilii Maronis opera interpretatione et notis illus-
GIBBON, Edward. The Decline and Fall of the Roman Empire. Nova travit Carolus Ruaeus jussu Christianissimi Regis ad usum Sere-
Iorque: The Modern Library, s.d., 2 v. nissimi Delphini. Paris: Aillaud, 1844, 3 v.

282
HomoEroTismo E HomoAFETiViDADE
No imAGiNário áTiCo:
Uma análise da relação entre a comédia de Aristófanes
e o pensamento popular em Atenas (séc. v a. c.).

Luiz H. Bonifacio Cordeiro1


José Maria Gomes de Souza Neto2

A
ristófanes, comediógrafo conservador de um aceitação ao menos de parte dos interlocutores.
pensamento filosófico e de uma formação Aristófanes foi um crítico social que se aproveitou
educacional tradicionais em Atenas no sé- de questões populares presentes em seu contexto
culo V a. C., escreveu comédias nas quais considerou
para forjar os argumentos de suas peças. Segundo
a homoafetividade, o homoerotismo presentes nas
Charles Murphy (1972, p. 189), toda comédia é
práticas de pederastia problemas de sua sociedade.
formulada com ideias que devem ser apreensíveis
Seus jogos cômicos funcionaram como denuncia-
pelo interlocutor num simples comentário e foi
dores de práticas que para ele deveriam ser extintas.
isto o que fez Aristófanes ao caracterizar suas
Aristófanes, nesse sentido, representava aquilo que
cenas cômicas com performances bem conhecidas
considerava como ações “banalizantes”, apontando
pelos atenienses do século V a. C. Alinhado ao
estas práticas como opostas à tradição da qual pro-
pensamento de Murphy está o estudo de Nikoletta
vinha e era propagador. É importante salientar que
Kanavou (2011), que salienta a importância dos
as comédias das quais temos conhecimento, além de
nomes dos personagens das comédias aristofâni-
documentos produzidos por outros autores, a exemplo
cas para a formulação dos agentes presentes em
de Xenofonte e Platão3, dão conta de que Aristófanes
cena; esta autora afirma que os personagens de
era um indivíduo que partilhava de ideais presentes
Aristófanes têm “nomes falantes” 5 e, por isso,
no segmento social da aristocracia tradicional; logo,
suas comédias obtiveram grande aceitação popular.
práticas que degradavam ideais desse grupo foram
Outro autor que partilha da ideia de argumentos
objetos correntes de críticas em suas peças4.
populares nas peças de Aristófanes é Andreas Willi
Uma vez que a comédia era apresentada para (2003), quando afirma que o vocabulário técnico
um grande público, o enredo, as motivações de mobilizado por aquele comediógrafo para forjar
riso e a caracterização dos personagens tinham os diferentes personagens e representar grupos
1 Graduado em História na Universidade de Pernambuco (UPE). Mestran- sociais e políticos era relacionado a grupos reais
do no PPGH/UERJ. Participa do Leitorado Antiguo/UPE e do NEA/UERJ.
E-mail: luizhenrique_bc@hotmail.com mas apresentado de forma caricatural. Com base
2 Doutor em História. Professor Adjunto da UPE/Leitorado Antigo. Email:
zemariat@uol.com.br nestes autores, afirmamos que a atualidade das
3 Xenofonte. Banquete. Apologia de Sócrates. Tradução de Ana Elias Pin- comédias de Aristófanes serviu fortemente ao tom
heiro. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2008; Memoráveis. Tradução de
Ana Elias Pinheiro. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2009. Platão. Êutifon. político de seus argumentos.
A defesa de Sócrates. Críton. Tradução de José Trindade dos Santos. Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1993; O banquete. Tradução de Donaldo Compreendemos, portanto, que as avaliações
Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2010.
4 As opiniões desse autor cômico sobre a Guerra do Peloponeso, que foi um elemen- 5 “Nomes ‘falantes’ [speaking names] obtém seus significados a partir de suposições
to desencadeador de várias das 11 peças de Aristófanes preservadas ao longo do tem- sobre o significado de suas raízes. Todos os nomes pessoais gregos são etimologica-
po, é um exemplo de seu posicionamento social e político relacionado ao segmento mente significativos e, apesar de sua importância muitas vezes ser pouco notada no
dos aristocratas, uma vez que ele fazia relações binárias de oposição, apresentando cotidiano, eles poderiam vir claramente na literatura e, em geral, no caso dos princi-
comerciantes como indivíduos degradantes ao desenvolvimento da pólis, enquanto pais heróis, estabelecer uma ligação mais profunda entre um nome e a característica
que os proprietários de terras seriam mais adequados para gerir a pólis e a guerra. essencial da uma pessoa” (KANAVOU, 2011, p. 2-3, tradução livre).

283
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

negativas de Aristófanes sobre certas práticas riografia e não pretendemos trazer este debate no
pederastas e homoafetivas não eram argumentos presente ensaio, devido à complexidade maior do
isolados em sua sociedade, pois eram motivo de tema. No entanto, consideramos que é necessário
risos6. Contudo, a rigidez desse autor em aceitar nomear as práticas eróticas entre os gregos, mas
práticas inovadoras é uma mostra de que, como com o cuidado de não cometer anacronismos.
afirma Maria de Fátima Souza e Silva (1987, p. Embora haja autores que usem indistintamente
90), ele tentou “servir aos gostos dos seus admi- o termo “homossexualidade” para retratar os
radores: lugares-comuns condimentados com o contatos eróticos entre indivíduos do mesmo sexo
sal da crítica. [...] aproveitar os dados da tradi- na antiguidade grega, ressaltamos que a distin-
ção, por muito desgastados que eles estejam”. ção que os gregos faziam era das práticas; não
Observamos, assim, que sua quase cega defesa de havia uma distinção clara entre heterossexuais e
valores tradicionais é evidência de que as práticas homossexuais, como nas sociedades modernas.
que ele critica não eram ações isoladas. Com isso, nos resguardamos à feitura dos termos
homoerotismo e homoafetividade para identificar
Algumas observações iniciais, contudo, são
práticas presentes nas relações de pederastia entre
relevantes. A pederastia estava presente entre os
os gregos que são apresentadas nas comédias de
gregos desde os períodos mais recuados de sua or-
Aristófanes. Nesse sentido, consideramos que o
ganização social. Como afirma Thomas J. Figueira
impulso erótico emerge como desejo fisiológico
(1986, p. 427), desde a iniciação através do rapto
imediato. Tomamos por base as interpretações o
na civilização cretense, passando pelas práticas
eros grego feitas por outros autores.
iniciatórias dos dórios até a prática pedagógica
ritualizada na Atenas clássica, o contato erótico Segundo Lucia Castelo Branco (2004, p. 9), a
entre indivíduos do mesmo sexo existiu entre partir do mito de Eros pode-se ver o erotismo como
os gregos e teve significados mais que sexuais. um impulso de aproximação, reunião e completude
Este autor salienta a importância das práticas de que visa a gerar satisfação não só com conotação
pederastia entre os gregos, ao lembrar a presença sexual, mas provocando um bem-estar geral do ser.
dela tanto na mitologia (Poseidon e Pelops; Zeus Para George Bataille (1987, p. 11), o erotismo é um
e Ganimedes; Apolo como patrono dos jovens, só desejo pela vida até mesmo na morte, no sentido
para citar alguns casos), quanto na literatura (com de provocar uma continuidade. Ao interpretar o
a clássica philía entre Aquiles e Pátroclo, na obra mito de Eros, Junito de Souza Brandão (1987, p.
homérica). Todavia, foi em Atenas onde a pede- 209) parte do princípio que, entre os gregos, a
rastia teve maior destaque. Além disso, no período palavra eros significava a personificação do amor
clássico ateniense, como afirma Luana Neres de (erasthai, “desejar ardentemente”) e afirma que
Souza (2008), a exploração filosófica do tema foi eros era o “desejo dos sentidos” ou “comprazer-se,
mais aflorada. Juntamente com a abordagem de deleitar-se”, “ter prazer em estar em um lugar”.
filósofos, como Platão, e de obras de legislação, Portanto, para os três autores o erotismo relaciona
como a de Ésquines, a documentação literária das desejo, prazer e imediatismo e consideramos que
comédias de Aristófanes nos dá uma clareza sobre o homoerotismo tem estas características. Já a
as questões relativas à pederastia, ao homoerotis- homoafetividade tem a ver com o desejo pela alma
mo e à homoafetividade entre os atenienses. (psikhás), a admiração pelo outro ser.
Partimos da concepção de que a noção de ho- A comicidade presente na caracterização
mossexualidade não existia entre os gregos; esta de práticas pederastas homoeróticas e afetivas é
é uma questão já largamente abordada pela histo- entendida como crítica aos costumes luxuriosos
6 Para Keith Sidwell (2009, p. 45), os elementos que compunham as de indivíduos que para o comediógrafo não de-
caricaturas aristofânicas e que provocavam riso por estarem relacionados
à realidade, eram “elementos do enredo, o caráter, motivos visuais e veriam ser responsáveis pela defesa da pólis, pois
linguagem”. Este autor afirma que Aristófanes fazia uma paródia da não protegiam sua própria virilidade. As práticas
realidade e deveria ter um conhecimento muito detalhado daquilo que
retratava. que o autor transforma em argumentos para o
284
Luiz H. Bonifácio Cordeiro / José Maria Gomes de Souza Neto

riso cômico são apontadas como degradantes por A virilidade, então, foi um símbolo crucial para
serem relacionadas à passividade sexual e afetiva, representar o poder masculino em Atenas.
que ele representa com conotação política.
A divisão social era bastante clara na Atenas
Sabemos que o corpo foi, para os gregos an- Clássica (o período em que viveu Aristófanes).
tigos, um elemento de ostentação. Mais que isso, A democracia, apesar de ser um regime político
o corpo evidenciava a força do cidadão ateniense, de dimensões mais amplas ao compararmos a
com virilidade e perfeição. Esta euforização do Atenas do século V a. C. com épocas anterio-
corpo viril está mais ligada a valores antropológi- res, ainda assim não congregava toda a massa
cos do que biológicos. Como afirma Richard Senett ateniense em seus círculos sociais. Havia, em
(2003, p. 30), o corpo e seus atos deveriam parecer grande quantidade, opressão e exclusão social.
em sintonia para o cidadão na cidade antiga. Segundo Souza (2008, p. 45), “a cidade era
Entre os antigos gregos o corpo desnudado mos- sustentada pela exploração da mão-de-obra es-
trava quem era civilizado, permitindo também crava e a custo das cidades por ela dominadas.
que se distinguisse os fortes dos vulneráveis. Nem escravos, nem metecos e nem as mulheres
[...] Para o antigo habitante de Atenas, o ato de possuíam representatividade política no regime
exibir-se confirmava a sua dignidade de cida-
dão. A democracia ateniense dava à liberdade
democrático ateniense”8.
de pensamento a mesma ênfase atribuída à Além disso, a relação entre os homens no
nudez. O desnudamento coletivo a que se im- espaço público evidenciava os poderes a que eles
punham — algo que hoje poderíamos chamar
de “compromisso másculo” — reforçava os
estavam submetidos. Uns tinham mais poder do
laços de cidadania. Os atenienses tomavam que outros e isto tem a ver com o status social e
essa convenção tão ao pé da letra que, na Grécia com o comportamento que tinham. Assim é que
antiga, a paixão erótica e o apego à cidade eram a aristocracia expunha sua virilidade pública na
designados pelas mesmas palavras. Um político comunidade políade ateniense.
ansiava por se destacar como amante ou como
guerreiro (SENETT, 2003, p. 30). Tal como afirma Daniel Barbo (2008), há
uma complexa estruturação articulando o poder
Fábio Lessa (2003), fazendo uma análise que e a força erótica na Atenas clássica, que ele deno-
se aproxima da Antropologia, afirma que a mascu- mina de “falocentrismo”. Os jovens, por exemplo,
linidade, na Grécia Antiga, está associada menos mesmo dos segmentos sociais mais abastados, não
ao aspecto sexual/físico do que ao aspecto social. O eram admitidos na vida pública e política devido à
autor afirma que o surgimento dos esportes compe- ausência de maturidade na “atividade fálica”, que
titivos são substitutos às atividades guerreiras de pe- descendia da cultura creto-micênica, que valorizou muito o aspecto
guerreiro, valorizando, todavia, o papel da mulher em seu seio social.
ríodos remotos, que eram atividades exclusivamente Esse caráter guerreiro dos micênicos colaborou para que os atenienses da
masculinas; surgem, assim, as diferenças entre os época clássica tivessem como valorativo que apenas o homem frequentasse
o espaço público, pois na guerra, que é pública, o homem é o agente
gêneros; e dentro do próprio gênero masculino há participativo. Assim, toda prática pública que demonstrasse característica
também relações de poder (Lessa, 2009). A prática feminina ou falta de virilidade, sem impor a força da pólis, deveria ser
abolida. Afinal, uma pólis derrotada em batalha poderia ser entendida como
de esportes está ligada ao ideal de virilidade que uma pólis passiva e sem virilidade nas ações bélicas (REFERÊNCIAS).
8 O termo democracia é, segundo Claude Mossé (2004), tardio. Todavia, autores
estava associado à preparação militar. clássicos como Heródoto falam em isonomia com o intuito de exprimir uma
forma de governo na qual as decisões políticas eram tomadas em conjunto com
Para os gregos, a virilidade com a qual se o povo. “Nas Suplicantes de Ésquilo, entretanto, representadas por volta de 468
a. C., são encontradas pela primeira vez as duas palavras que formaram o termo
comportava um cidadão expressaria a virilidade democracia, isto é, demos, o povo, e kratos, o poder, para evocar a decisão,
tomada na peça pelo povo de Argos, de se acolher as Danaides que vinham em
de sua própria pólis (REFERÊNCIA). A mulher, busca de asilo. No fim do século V, com Tucídides e Andócides, o termo torna-se
ao contrário do homem, era um ser doméstico, não de uso corrente na designação do regime ateniense” (MOSSÉ, 2004, p. 87-88). O
período democrático ateniense é caracterizado basicamente pelos séculos V e IV
possuía valor nem poder no âmbito público; além a. C.. Neste período, quando as decisões políticas estavam ligadas aos conselhos
populares, apenas era admitido nestes conselhos aqueles que pertenciam a um
disso, a mulher era vista como um ser inferior, demos, que podiam dedicar-se às atividades cívicas da política. Um meteco, que
pois não tinha a virilidade que possuía o homem7. era um indivíduo estrangeiro (ou de origem estrangeira), não participava das
atividades políticas pois não poderia ser filiado a um demos, uma vez que esta
7 Deve-se salientar que a sociedade ateniense, assim como toda a Grécia, filiação era hereditária, sendo permitida apenas a filhos de atenienses.

285
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

era concentrada por um pequeno grupo de cidadãos. ao ideal de formação do cidadão ateniense de seg-
Para Barbo, todos os outros setores da sociedade mentos mais favorecidos socialmente, uma vez que
ateniense que não se incluíam nessa maturidade da exigia o ócio nobre para as atividades pedagógicas.
atividade fálica estavam submissos ao poder do falo Não defendemos aqui que não havia relação erótica
através da passividade, que ele denomina “papel entre o jovem e seu tutor, no entanto, não negligen-
erótico receptivo”, todavia, temos que observar que ciamos a possibilidade de contatos deste tipo.
nem todos (p. ex., estrangeiros/metecos, escravos) Era por volta dos 13 até os 18 anos de idade
eram via de regra submetidos sexualmente, o que que o erómenos (jovem postulante à cidadania)
nos faz impor uma ressalva a esse total papel erótico começava a ser iniciado na prática da pederastia
receptivo; eles podem ser submetidos politicamente ritualizada. Deve-se compreender que havia ci-
pelo poder do falo como representante público de dadãos ricos e pobres, com e sem poder político,
dominação, mas não encontramos nesse poder fa- além daqueles que tinham e os que não tinham
locêntrico uma dominação erótica plena, mas sim ascendência nobre. Uma vez que, como um ritual
uma imposição política. idealizado para a formação pedagógica, a pederastia
Barbo é um revisor da concepção cons- era um conjunto de práticas inserido no estilo de
trutivista da sexualidade grega antiga estudada vida9 aristocrático, era comum que um defensor da
e defendida por David Halperin (1990), e afirma cultura política aristocrática se posicionasse contra
que no mundo grego clássico as categorias se- aqueles que procuravam executar as mesmas prá-
xuais não são esferas ideologizantes autônomas, ticas e não se importavam com os ideais. E isso foi
mas se relacionam com questões sociais e políti- o que Aristófanes fez ao observar a ascensão dos
cas; assim, “as categorias eróticas (ativo e pas- comerciantes, que já tinham tantas riquezas quanto
sivo) são articuladas pelas relações de poder e os antigos aristocratas e que passaram a buscar
não podem ser entendidas sem referência a essas jovens para o prazer erótico sem a preocupação de
relações” (BARBO, 2012, p. 4). Este autor defen- lhes formar como cidadãos.
de ainda que existem “categorias socioeróticas”, Enquanto um rito de formação aristocrático, a
interligadas a uma “hierarquia sociopolítica”. pederastia não era apenas uma relação homoerótica
Halperin (op. cit.) defende que o estudo da entre dois homens. Era possível acontecer contato
vida sexual dos antigos gregos é importante por sexual entre o erastés e o erómenos, mas enquanto
imprimir uma reinterpretação das características costume instituído entre os aristocratas, ele tinha
culturais da sexualidade nas nossas próprias so- função pedagógica. O tutor, antes de começar os
ensinamentos ao jovem, era informado pelo pai
ciedades, mostrando o caráter específico de cada
do referido erómenos que deveria interceder em
cultura, sendo a sexualidade um aspecto relativo
sua formação cidadã. Em seguida, começavam
em cada tempo e lugar. Para esse autor, de acordo
as investidas desse tutor sobre o jovem, que, em
com a concepção antropológica do construtivismo,
geral, não sabia do acordo feito entre seu pai e
as experiências sexuais e as formas eróticas são
aquele. Filhos de importantes cidadãos podiam
características formuladas e desenvolvidas cultu-
ser disputados por mais de um erastés, pois seria
ralmente. Ele afirma que, com relação às práticas
sinônimo de status social para este se conseguisse
eróticas em si, a pederastia é não um fator isolado,
formar um cidadão de maior destaque público. Nos
mas um fio envolvido em uma teia de práticas eró-
primeiros contatos, o erastés demonstrava suas
ticas e sociais muito maior na Grécia Antiga, desde
melhores habilidades, demonstrando sua areté.
a camaradagem heroica até o sexo comercial.
Assim, conquistava a confiança do jovem aprendiz.
Como uma relação idealizada, a pederastia, 9 Segundo Maria Regina Candido (2012), o que compõe um estilo de vida
entre os antigos atenienses é a expressão de um comportamento ético em
na Atenas democrática, consistia em uma prática conformidade com o universo social em que vivem. Nas palavras da autora:
que visava à formação educacional de jovens. As “seria um conjunto de preceitos que definem uma maneira específica de agir
e elaborados a partir de valores éticos” (Ibid., p. 42); isto é, são os costumes
práticas da formação pederástica estavam ligadas (no grego, ethos) específicos distintivos de um grupo.

286
Luiz H. Bonifácio Cordeiro / José Maria Gomes de Souza Neto

Via de regra, esta primeira etapa da relação era lizada e isto fazia dela um conjunto de práticas
caracterizada como um ‘jogo de sedução’ feito mais ou menos variáveis. Para Skinner (apud
pelo mais velho, para deixar o jovem preso aos seus CANTARELLA, 2010, p. 235), as convenções
encantos. Em O Banquete, Platão faz referência a serviam mais como fomento à iconografia do que
Sócrates como um grande tutor (erastés), pois ha- como força inibidora; este autor afirma que os pa-
via, no banquete, um cidadão já formado que teria drões poderiam ser quebrados deliberadamente, o
sido rejeitado por Sócrates em seus ensinamentos, que mostra uma variedade de opiniões e práticas.
o que o teria marcado profundamente.
Tal como afirma Eva Cantarella (2010), as
No decorrer do tempo em que o tutor e seu evidências textuais atestam que no segmento dos
aluno passavam juntos, fazia-se estudos dos mais aristocratas a pederastia estava inserida em um
variados, visando à formação da areté (virtude) contexto socialmente codificado que a relacionava
daquele futuro cidadão. Toda essa fase de ensi- com padrões de conduta estabelecidos. Esses padrões
namentos, como afirma Codeço (2008, p. 47), era dizem respeito à assimetria que caracterizava a inte-
composta de “gramática (grámmata), ginástica ração entre tutor e aprendiz, o que não quer dizer uma
(gymastikén), música (mousikén) e desenho (gra- diferença estritamente sexual, mas de outras esferas,
phikén)”. O erastés estava sempre em constante no que concerne à formação do jovem postulante
contato com seu erómenos, o que faria florescer à cidadania. Essa assimetria foi o que rendeu uma
um sentimento afetivo entre ambos e que poderia sociabilidade aceitável das práticas pedagógicas da
gerar uma relação homoerótica que era ampla- pederastia entre a aristocracia: “longe de ser uma
mente aceita pelos parceiros como normal neste expressão de liberdade sexual, o par pederástico
contexto de reciprocidade (philía) em que eles foi aceito apenas quando foi respeitado um código
estavam inseridos. Segundo Souza (2008), esta social que, a partir dos textos, pode ser delineado em
relação não é caracterizada como possuidora de um sentido que é bastante claro em seus contornos
aspectos homonormativos 10, pois tem finalidade mais amplos” (Ibid., p. 2, tradução livre).
pedagógica, estabelecida metodicamente visando à
As observações da comédia aristofânica
formação daquele futuro cidadão: “havia todo um
funcionaram em favor de algumas práticas
controle moral acerca da metodologia utilizada
e como repressão de outras, servindo ao que
para o cumprimento da relação, tais como o de-
Cantarella denominou de código socialmente
lineamento das faixas etárias envolvidas, o status
estabelecido e relacionado aos padrões aristo-
social, os ritos de cortejo, o envolvimento erótico,
cráticos. A relação de oposição ativo-passivo,
o ensino filosófico, dentre outros” (Ibid., p. 22).
viril-efeminado, justo-injusto que Aristófanes
No entanto, como afirma Souza (2008), ato impôs foi baseada em estilos de vida que ele
erótico entre o erastés e o erómenos na pederas- mobilizou de forma caricatural em seus jogos
tia idealizada pelos aristocratas não provocava cômicos e na distinção dos elementos físicos que
interferência na vida social dos partícipes dessa compunham estes personagens. É com base nes-
relação. Esta relação, segundo o imaginário aris- te cruzamento de informações que observamos a
tocrático, fazia parte dos ensinamentos a que o impiedade desse autor quanto a comportamentos
erómenos deveria ser iniciado. homoeróticos e homoafetivos.
É importante ressaltar que a pederastia, ape- Observamos as críticas do comediógrafo
sar de ter caráter normativo, não era instituciona- Aristófanes à banalização da pederastia como uma
10 Com base na concepção antropológica de Ángel M. Sánchez e José I. P. Galán seleção específica do autor que estava inserida no
(2006), entendemos que uma relação homonormativa é composta por anseios
eróticos envolvidos por símbolos do mesmo gênero, mas sem se desvincular conjunto maior de opiniões acerca dos comportamen-
do contato com o gênero oposto. Para estes autores, a homonormatividade
contribui para a hierarquia das sexualidades por se basear em fenômenos tos sexuais dos atenienses. Assim, o posicionamento
heteronormativos. Ela é uma construção cultural que considera o gênero como desse autor não foi uma crítica generalista que visava
elemento gerador de relações, práticas e identidades sexuais, mas complementa
a heteronormatividade, apesar de colocá-la em questão. a reprimir qualquer prática pederasta. As suas sátiras
287
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

foram uma forma de acusar a emergente oligarquia homens a passividade era vista como submissão;
comercial e mercantil de desvirtuar os valores da pó- ele, porém, deixa transparecer que a passividade
lis de Atenas no decorrer da democracia, na segunda contribuía negativamente para o comportamento
metade do século V a.C.. Tendo em Aristófanes um social e político. Esta prática sexual, para Aristó-
sujeito que corriqueiramente se posicionava com fanes, influenciava no momento cultural e político
ideais e vocabulário aristocráticos, lidamos com um ateniense, bastante turbulento12. No imaginário
discurso inserido na cultura política aristocrática. ático, a comunidade políade deveria estar em
As formações imaginárias11 do discurso aristofâ- conformidade com o desenvolvimento da cidade
nico demonstram que ele não é fechado em si, está em todos os aspectos da vida pública. Isto é: era
inserido em um conjunto de relações. Nesse sentido, preciso o cidadão se dedicar bem ao espaço públi-
o comediógrafo, no jogo cômico, tem o propósito de co para que sua pólis mantivesse uma hegemonia
fazer sua palavra se contrapor a outra(s). sobre outras e levar uma vida comedida, com uma
É importante ressaltar que o jogo cômico de boa administração de seu oîkos (espaço privado/
Aristófanes não se contrapôs à pederastia como casa). Souza, todavia, afirma que:
um fenômeno de dimensões culturais mais amplas. É importante salientar que a conduta do rapaz
Ele deteve-se em algumas práticas específicas que de Atenas e de outras cidades gregas em nada
fazem parte do conjunto que compõe a pederastia e tinha a ver com o seu casamento. Ele poderia
muito bem manter relações extraconjugais
relacionou estas práticas a personagens relacionados
com hetairas ou com belos rapazes, sem que
a grupos específicos. Em As Nuvens (v. 1087), ele isso afetasse sua imagem. O que realmente
apresentava um sofista como alguém que tem “ânus importava era a manutenção de seu status e a
largo” (euryproktos), reprovando-o por isto. Em outras participação na vida pública como um cidadão
passagens da mesma comédia, há a caracterização ativo (Souza, 2008, p. 25).
de comerciantes e sofistas como pederastas passivos,
indivíduos que têm a pele pálida (v. 120), que não pro- As práticas homoeróticas entre iguais na Gré-
tegem seu traseiro (v. 193), que não possuem coragem cia Antiga, em especial na Atenas clássica, existiam,
e se parecem como mulheres (v. 355). A objetividade sobretudo na pederastia, mas não só nesta relação.
de seus argumentos é apontar que aqueles indivíduos Havia banquetes em que era comum uma carnava-
não possuem a virilidade necessária à vida pública e lização, com sexo entre homens; melhor dizendo:
por isso sua crítica é mais política do que sexual. entre um homem (cidadão) e um rapaz imberbe. O
Aristófanes caracterizava qualquer prática pe- grande problema da relação sexual, como afirma
derástica que não estivesse empenhada na formação Michel Foucault (1984), não era sua prática com
de um pais (jovem/criança) como carnavalização da alguém em especial, mas esta prática em demasia,
ordem políade, pois estaria o cidadão desvirtuando que demonstrava a fragilidade física do indivíduo
sua característica de modelo social, fazendo o que quanto ao sexo. Esta fragilidade relaciona-se à críti-
não seria o comum. As práticas pederásticas ape- ca de Aristófanes de que os efeminados não tinham
nas com fim erótico físico eram associadas pelo controle sobre seus impulsos, quando lhes chama
comediógrafo ao desejo desses agentes de terem de agitados, em As Nuvens (v. 1104). Nessa crítica,
lucro imediato, de serem agitados e não controla- o comediógrafo distingue o que ele considera como
rem seus impulsos, não preservando a sophrosyne bons (kaloi) e maus (kakoi) indivíduos, identificados
(moderação) que a tradição lhes indicava. 12 A produção das comédias aristofânicas está delimitada entre 425 e 388 a.
C. No entanto, as obras que estudamos se delimitam ao período anterior à Paz
de Nícias (421 a. C.), compreendendo cinco comédias (Acarnenses - 425 a.
Para Aristófanes, assim como para grande C.; Cavaleiros - 424 a. C.; As Nuvens - 423 a. C.; As Vespas - 422 a. C.; e
parte da sociedade ateniense, no coito entre dois A Paz - 421 a. C.). A década de 420 foi marcada em Atenas por campanhas
desastrosas na Guerra do Peloponeso, como apresenta Tucídides (I, 99-103), e
11 A partir de princípios da análise do discurso, Eni Orlandi afirma que os estratégias militares precipitadas. Estes acontecimentos relacionados à ascensão
elementos constituintes das formações imaginárias de um discurso têm a de novos segmentos sociais, que desde o início do século se enriqueciam com o
ver com concepções políticas e exprimem relações de força dele para com comércio e passavam a frequentar os mesmos espaços que os aristocratas, foram
outros. ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. elementos desencadeadores dos enredos e da comicidade presente nas peças de
Campinas: Pontes Editores, 2012. Aristófanes que citamos acima.

288
Luiz H. Bonifácio Cordeiro / José Maria Gomes de Souza Neto

pela sua virilidade ou falta desta. com as transformações de sua sociedade.


Segundo Pierre Bourdieu (2002, p. 93), “as divi- Em texto sobre Aristófanes, Mossé (op. cit., p.
sões instituídas estruturam a percepção dos próprios 42) afirma que ele nos oferece “o testemunho mais
corpos e dos usos, sobretudo sexuais, que deles se vivo do que era a democracia ateniense no último
fazem, isto é, ao mesmo tempo, a divisão sexual do terço do século V” (ele viveu durante toda a segunda
trabalho e a divisão do trabalho sexual”. Assim, as metade do século V). Aristófanes, assim, produzia
divisões sexuais em uma cultura são estruturadas não crítica social sobre o cotidiano em que vivia sob a
diretamente em signos sexuais visíveis, mas no poder forma de sátiras. A acessível linguagem da comé-
dominante de uns sobre outros. Assim, a apropriação dia, a preocupação com a estabilidade da pólis e
do corpo para exprimir poder é o princípio do que as críticas personalizadas a indivíduos de grande
este autor chama de “tabu da feminilização” e “sacri- destaque público foram elementos que fizeram de
légio do masculino”. Sabemos que costumeiramente Aristófanes um dramaturgo popular. Para Willi (op.
ocorria o coito entre os agentes pederásticos, mas não cit.), Aristófanes forneceu testemunhos da atmosfe-
era uma prática institucionalizada. O ato sexual é um ra social ateniense por meio da linguagem técnica
fator distintivo dos agentes e demonstra o poder não dos grupos que eram caracterizados em nos jogos
apenas sexual, mas simbólico que um impõe sobre cômicos de sua comédia. Embora estivesse presente
o outro, como observamos a partir da concepção o caráter ilusório da arte dramática, a relação com
sociológica de Bourdieu, que relaciona-se à teoria an- o mundo real era evidente na forma comunicativa
tropológica construtivista de David Halperin (op. cit.). utilizada, nos temas e nos personagens.
Com relação ao modo como o grego se observava A base das críticas satíricas de Aristófanes era
(como ele via sua ‘virilidade’), a pederastia está asso- sempre o social. Assim, ele criticou, caracterizando
ciada à formação da unidade masculina na pólis grega. como um grupo excluído, aqueles que estavam en-
Por isso, o tom crítico de Aristófanes e do segmento volvidos em práticas de pederastia apenas com o fim
social e político do qual ele emerge e que o faz ser de ter o prazer erótico e que não seguiam a tradição
um propagador da cultura política aristocrática é uma aristocrática. Segundo Kenneth Dover (2007), a
busca dos próprios valores culturais de uma tradição já comédia de Aristófanes possui muitas informações
ultrapassada. No entanto, as questões que ele concen- acerca das relações eróticas, mas do ponto de vista
trava em sua comédia eram semelhantes ao que ocorria heteronormativo, fazendo com que a apresentação
em seu momento histórico, permitindo-nos observar das práticas homoeróticas seja feita de maneira a
as práticas de pederastia e sua discussão como temas representá-las apenas como desejos fisiológicos de
presentes no imaginário ático durante o século V a.C.. penetração anal. Assim, Aristófanes adota um ponto
Ao abordar o lugar da História na sociedade de vista conservador que se ressente das práticas
e o papel do historiador nesta, Michel de Certeau homoeróticas por sua efemeridade.
(1976) afirma que não se pode isolar os pensadores Como afirmado anteriormente, Aristófanes fez
da sociedade em que vivem; eles devem imiscuir-se
várias críticas no âmbito social, mas foram escolhidas
ao meio social para, assim, observar as preocupações
para a abordagem neste trabalho as críticas sobre a
sociais e posicionar-se mediante elas, produzindo
pederastia, pois suscitam o homoerotismo e a ho-
trabalhos que valorizem a sociedade em que estão
moafetividade, que tanto estão em pauta atualmente.
inseridos. Aristófanes é considerado o maior escritor
Embora os argumentos da comédia aristofânica se-
de comédias de seu tempo, mas só conseguimos ob-
jam referências à pederastia ritualizada e às práticas
servar a riqueza cultural de suas obras se levarmos
eróticas de pederastia entre os gregos, há autores que
em consideração a conjuntura, o segmento social
apontam a relação homoerótica da pederastia grega
de referência e as concepções políticas desse autor.
como princípio da homossexualidade moderna.
Com atenção a isso, podemos observar Aristófanes
imiscuindo-se com seu contexto social, dialogando Foucault (op. cit.), por exemplo, afirma que
289
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

já se observa marcas de exclusão aos indivíduos O domínio dos amores masculinos pôde muito
que expressassem desejo pelo mesmo sexo na bem ser “livre” na Antiguidade grega, em todo
caso muito mais do que do que o foi nas socie-
Grécia Antiga, sendo caracterizados como “efe- dades europeias modernas; não resta dúvida
minados”, pois ameaçavam o papel de imposição entretanto, que bem cedo se vê marcas intensas
da virilidade masculina. Se compartilharmos da de reações negativas e formas de desqualificação
que se prolongarão por muito tempo. (Ibid., p. 27)
teoria de Foucault, há que se inserir Aristófanes
no conjunto de opiniões que buscaram cercear
Como afirma Spencer (1999), o debate sobre
o desejo erótico homonormativo em Atenas. A
os diferentes papeis sociais é questão central das
conclusão de Foucault acerca deste debate ratifica relações humanas da sociedade como um todo. Vi-
a existência de opiniões distintas com relação ao vemos, afinal, em tempos de extremos, com relação
que ele chamou de “amores masculinos”, além a políticas de inclusão e opiniões sobre exclusão.
da imposição de poder a que estes “amores” Assim, este trabalho se mostra bastante atual, com
estiveram e estão até hoje submetidos: relação aos anseios históricos e antropológicos.

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290
o BárBAro É o ouTro:
Germânia, de Publius Cornélio Tácito

Mailson Gusmão Melo 1

Os pobres estão despossuídos, as viúvas gemem, e triste, imagem que os humanistas e os iluminis-
os órfãos são pisoteados, a tal ponto que muitos tas quiseram propagar. É preciso considerá-la no
dentre eles, inclusive gente de bom nascimento seu conjunto (GOFF, 2007, p. 18).
que recebeu uma boa educação, refugiam-se en-
tre os inimigos. Para não perecer sob a opressão
pública, procuram entre os bárbaros a humanida- A versão que analisamos é adaptada para
de dos Romanos porque não podem mais suportar e-books, com tradução de João Penteado Erskine
entre os Romanos a desumanidade dos Bárbaros. Stevenson, Edições e Publicações Brasil S.A. Obra
São diferentes dos povos junto aos quais buscam
refúgio, não partilhando suas maneiras, sua lin- com quarenta e seis capítulos e cento e trinta e
guagem, seja-me permitido dizer, nem mesmo o quatro páginas, é uma obra com muitos capítulos,
cheiro fétido dos corpos e vestimentas dos Bárba-
ros; mas preferem sujeitar-se à diferença de costu-
porém extremamente concisa. A obra encontra-se
mes a sofrer junto aos Romanos com a injustiça e dividida em três eixos principais, no primeiro rela-
a crueldade. Emigram deste modo para junto dos ta a situação da Germânia (origem da população e
Godos e dos Bagaudas, ou junto de outros Bárba-
ros que dominam em toda a parte. Não se arre- a natureza do solo), no segundo descreve os costu-
pendem deste exílio, porque preferem viver livres mes, no terceiro tratou de alguns povos e de suas
sob aparente escravidão a viver escravizados sob características de forma particular. Deu-se maior
aparente liberdade (GOFF, 2005, p. 24).
ênfase as duas primeiras partes por se tratar de ca-
racterísticas gerais dos germânicos.

A
quilo que se convencionou chamar de Idade
Média chega até os dias atuais sob dois ei- Cornélio Tácito, nasceu em 55 d.C. na Gália
xos de representações muito distintos entre e morreu em 120 d.C.. Historiador, orador, filoso-
si. De um lado temos a uma visão “boa” com tona- fo e político; ocupou as funções de Questor, Pre-
lidades “rosa”, os cavaleiros, fortificações e as cate- tor, Cônsul e Procônsul da Ásia. É autor de obras
drais; visão predominantemente dos românticos. E como Histórias, Anais, Diálogo sobre os orado-
a “má”, marcada pela escuridão e pela inatividade res, Agrícola e Germânia.
da razão diante da religião, caracterizada principal- Quem os romanos chamavam de bárbaros eram
mente pelos renascentistas (GOFF, 2007, pp. 13-21). os povos que estavam fora da conquista do seu Impé-
As temáticas predominantes na chamada Ida- rio, eram aqueles que não conheciam nem a língua
de Média “má” são: a peste, a bruxaria, a fome, a – latim – e nem as leis do Império Romano. Os ger-
guerra e os bárbaros. Neste estudo trabalhamos mânicos habitavam as fronteiras romanas há muitos
séculos, o rio Reno e o Danúbio separavam germâni-
com os chamados “bárbaros” na obra Germânia,
cos e romanos, porém os contatos entre esses povos
de Publius Cornélio Tácito. Sobre essa dualidade
eram constantes, até mesmo pela troca de produtos,
da Idade Média, escreveu Le Goff,
os povos da Germânia entravam nos territórios ro-
Eu diria que a Idade Média não é o período doura- manos, só que o faziam em pequeno número e não
do que certos românticos quiseram imaginar, mas
chegavam a ameaçar Roma. A relação entre romanos
também não é, apesar das fraquezas e aspectos
dos quais não gostamos, uma época obscurantista
e bárbaros que mais conhecemos são as chamadas
“grandes invasões bárbaras” do século V, aconteci-
1 Mestre em História Social-UFMA, sob a orientação do Prof. Dr. João Bittencourt.
Email: mgmelo_historia@hotmail.com. mento que mudou a Europa e estabeleceu o fim da
291
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Idade Antiga com o colapso romano no ocidente, se aproximavam e se afastavam o tempo todo, que
os povos invasores se aproveitaram da instabilidade viviam segundo suas próprias tradições, costumes
política e social oferecida pela crise imperial. e religiosidades. Os próprios francos a princípio
não estavam organizados de forma centralizada,
Tácito analisa os usos e costumes dos germâni-
formam vários reinos francos cada um com seu
cos de forma minuciosa: fala dos limites territoriais,
líder, que com o passar do tempo no governo de
das características físicas, da guerra, das armas, dos
Clóvis passou a existir uma unidade mais forte.
tipos sociais, da religião, da lei, das habitações, do
vestuário, do matrimônio, da criação dos filhos, dos O culto germânico estava ligado à natureza,
inimigos, da alimentação, dos jogos, da agricultura, sendo comuns os presságios, augúrios e orácu-
do clima e dos funerais. O interessante é pensar que los, a fim de tirar a sorte daquele povo em várias
a obra foi escrita no ano de 98 da nossa era, no tem- atividades. Segundo Tácito,
po de Trajano, ou seja, em plena guerra. E aqui também se observa (o sistema) de in-
terrogar as vozes e os voos das aves. É próprio
desse povo experimentar também os presságios
A rELiGiÃo e as mensagens (avisos) dos cavalos. Sustentam
eles nos mesmos bosques à expensa pública dois
cavalos brancos e sem contacto com o trabalho
A primeira vista a religião germânica é muito profano (dos mortais); os quais atrelados ao carro
frágil, uma vez, que muitos desses povos abando- sagrado, o sacerdote e o rei, os principais cida-
naram sua antiga religião para se converter ao cris- dãos acompanham e observam seus relinchos e
tianismo, a exemplo de alguns líderes francos. Não bramidos (estremecimentos).
podemos negar que muitas convenções foram pela Nenhum auspicio inspira maior fé, não só ao
constante busca por um deus poderoso que ajudas- povo como aos maiorais; os sacerdotes, que se
sem nas batalhas, esses povos buscavam um “deus da julgam ministros dos deuses, fazem-nos seus
guerra”. Porém essa aproximação com o cristianis- confidentes. Há ainda outra maneira de consultar
os augúrios, com o qual auscultam as eventuali-
mo dava-se principalmente pela conveniência, pois o
dades da guerra ao indivíduo do povo com que se
mesmo poderia garantir a legitimidade tão almejada está em guerra, aprisionando de qualquer forma,
para a organização de Estados bárbaros centralizados fazem lutar com um eleito de sua nação, cada
qual com suas armas pátrias (nacionais): a vitória
As trocas culturais entre os povos são cons-
desse ou daquele é tida (aceita) como prejulga-
tantes, as fronteiras naturais ou artificiais deli- mento (presságio) (TÁCITO, pp. 34-35).
mitam o espaço de cada um, contudo mantém
uma zona de contato entre as culturas com as-
similações de ambos os lados, ou nos termos de O uso dos presságios durante a guerra é utili-
Hilário Franco Jr, uma “cultura intermediária” zado para decidir o destino de uma batalha, na qual
(FRANCO JÚNIOR, 1996, pp. 31-44). dois soldados travam um duelo cada um represen-
tando sua nação, a vitória do guerreiro é a vitória da
Os germânicos teriam como muitos povos nação a qual pertence. Acreditamos que o comba-
origem divina, segundo Tácito, o deus Mano teria te homem a homem era uma maneira de se evitar
dado inicio e também era o condutor desses povos, mortes desnecessárias no combate generalizado.
já os cuidados da terra ficava a cargo do deus Tris-
A questão religiosa é tão presente que até
tão, pai do primeiro. Além desses dois deuses pode-
mesmo as assembleias dos germânicos, que pela
mos citar: Veleda, Aurínia, Mercúrio, Marte e Isis.
lógica seria um momento mais laico, se é que
Mercúrio seria o deus mais venerado de to- podemos utilizar esse termo, ocorre mais uma
dos, que em certas ocasiões aconteciam até mesmo demonstração de religiosidade, uma vez que se
sacrifícios humanos. O culto não era direcionado reúnem quando não há imprevistos em noites de
unicamente a um deus, até porque os germânicos lua nova ou lua cheia, pois julgam esses momen-
não formavam um povo, mais se vários povos que tos mais favoráveis aos negócios.
292
Mailson Gusmão Melo

os rECursos DA GErmÂNiA A ArTE DA GuErrA

Tácito nos fala que os germânicos eram As armas fazem parte dos acessórios diá-
nativos da região. A região seria fértil em rios dos germânicos, porém para usá-las qual-
grãos, porém imprópria para árvores frutífe- quer pessoa deve ter a permissão da sociedade,
ras, devido à presença de florestas densas e que capacita o sujeito a tal uso. Declarado ca-
pântanos. Os alimentos são simples, maçã sil- paz, uma assembleia é realizada, na qual um
vestre, a caça abatida e leite coalhado. O gado príncipe ou o pai arma o jovem com o escudo e
é abundante apesar de pequeno, os cavalos a frâmea, essa é a primeira honra para os jovens,
germânicos não são famosos nem pela beleza, acreditamos marcar a passagem da adolescência
nem pela velocidade. para a idade adulta. As armas possuem um ca-
ráter nobre entre esses povos, quando estão em
Os germânicos conheciam a cerveja, be-
assembleia deliberando sobre qualquer assunto
bida a base de cevada e trigo. A cerveja era
e se a decisão agradou, agitam as frâmeas, pois
mais popular entre aqueles povos do que o
essa é a forma mais honrada de aprovação, o
vinho, uma vez que o último era comprado à
louvar com as armas.
margem do Reno e a cerveja por sua vez era
produzida pelos próprios. Relata Tácito, que Os germânicos formam sociedades guer-
não é vergonhoso para os germânicos passar reiras, na qual o carisma é um meio de alcançar
todo o dia e toda a noite bebendo. Os campos prestigio e destaque social, que muitas vezes
pertencem a todos os moradores de uma cida- ultrapassa as fronteiras de um povo, chegando
de, o que caracteriza uma sociedade comunal; até as sociedades vizinhas. É um guerreiro res-
mudam de campos todo ano e ainda sobra ter- peitado aquele que consegue reunir a sua volta o
ra. Segundo o autor, mesmo com toda a am- maior o maior número de homens.
plidão dos campos esses povos não procuram Tácito escreve que devido à falta de ferro
aumenta a riqueza da terra plantando pomares nos territórios da Germânia, raros são os guer-
e regando hortas. reiros que se utilizam de gládios3 ou de lanças
Para Tácito o ouro e a prata eram bastante maiores. Como dito no tópico anterior a prin-
raros entre os bárbaros, fato que se deve à ira cipal arma de que se serviam os bárbaros era
dos deuses, ainda assim preferiam a prata ao a frâmea, arma de fácil uso que servia para o
ouro por ser mais fácil seu emprego no co- combate de perto e de longe. Mas uma vez o
mércio. Nem mesmo o ferro eles possuem em autor procura elementos romanos entre os ger-
abundância, uma vez que suas armas seriam mânicos, ao colocar que o não uso do gládio se
feitas de finos e curtos ferros, principalmente deve a pobreza de ferro na região, porém mesmo
a frâmea 2. com todos os contatos entre esses povos o gládio
era uma arma utilizada pelas legiões romanas,
Na visão do autor a Germânia era formada
não sendo obrigatório o uso entre os outros. Tra-
por povos com recursos limitados, porém deve-
ta também da não utilização de lanças maiores,
mos salientar que o mesmo analisa os bárbaros
mas se a frâmea por ser menor permite maior
comparando com os costumes dos romanos,
mobilidade no combate, de forma lógica não
sobre os cavalos salienta que “não são ames-
adotaram as maiores, típicas dos romanos.
trados a fazer várias voltas, como é do nosso
costume: dirigem-nos (reto) direito para frente Os membros da cavalaria vêm para o com-
ou em curva para a direita, em um apertado bate equipados com escudo e frâmea, a infantaria
conjunto (esquadrão) de maneira que não fique se utiliza ainda de flechas, segundo descrição de
ninguém na retaguarda” (TÁCITO, p. 29). 3 O gládio era a espada utilizada pelas legiões romanas. Era uma espada curta,
de dois gumes, de mais ou menos 60 cm. Era muito mais uma arma de perfu-
2 Espécie de lança curta utilizada principalmente pelos Francos. ração do que de corte, era utilizada no combate corpo-a-corpo.

293
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Tácito os bárbaros andam nus ou vestidos com da sociedade. Existem também os crimes que
um saiote, parece certo exagero e algo impensá- não são corrigidos com a morte, aqueles deno-
vel se levarmos em conta a temperatura baixa em minados leves, onde os infratores pagam apenas
certas épocas do ano, Tácito em outro capítulo multas que podem ser feitas com certa quantida-
assume postura diferente, ao afirmar que “lavam- de de cavalo ou gado. A multa é repartida entre
se (os bárbaros) primeiro a maioria das vezes com o rei (ou a cidade) e o próprio ofendido.
água quente, porque é quase sempre inverno nes-
sa terra (Germânia)” (TÁCITO, p. 52). Não de-
monstram ostentação já que só o escudo recebe As muLHErEs BárBArAs
enfeites e são pintados em várias cores. Porém
acreditamos que o símbolo de ostentação e de Quando as hordas bárbaras começaram a
honra esteja no fato de carregar o escudo de seu romper a fronteira militar romana, a presença das
povo, daí ser essa parte do armamento a levar os mulheres entre os guerreiros causava grande medo
enfeites, para se ter uma ideia é considerado in- entre os romanos, pois eles sabiam que a presença
fame aquele que abandona seu escudo diante da feminina não representava simplesmente pilha-
batalha. O retorno para seu povo é humilhante, gem, mas sim a ocupação de um novo território.
uma vez, que não pode fazer parte dos sacrifícios
As mulheres devem ser fortes para acompa-
e das assembleias, considerado um infame tira a
nhar seus maridos, logo na celebração do matrimô-
vida pelo uso da forca. Poucos usam couraças, os
nio ela é instruída a ser companheira de trabalho e
capacetes de metal ou couro são muito raros.
aventuras do marido. As mulheres são as principais
No combate o exército germânico formava testemunhas dos guerreiros trazendo estímulos e
um misto entre a cavalaria e a infantaria, dessa alimentos. Além disso, curam-lhe os ferimentos.
forma aproveita experiência e o poder de luta dos
Entre esses povos o dote é oferecido pelo ho-
cavaleiros, e a velocidade e o vigor físico da in-
mem, os parentes da mulher verificam-nos afim
fantaria, que geralmente era formada por jovens
de que a futura esposa possa aceitar, porém os
guerreiros. No campo de batalha o exército é dis-
presentes não são utilizados para ela. Os presen-
posto em forma de cunha, fato que ajuda a repelir
tes comuns são: um cavalo, bois, um escudo, a
os ataques dos inimigos. Os bárbaros podem re-
frâmea e o gládio; com esses presentes ela aceita.
cuar em meio a uma batalha, desde que essa seja
E por seu lado a esposa oferece algumas armas ao
uma tática para vencer o inimigo, o recuo é uma
marido. As armas se apresentam com destaque
forma de prudência e estratégia jamais de temor.
até mesmo na ocasião do matrimônio. Em muitas
Ao contrário do que se falou durante mui- cidades só as virgens podem casar. Em caso de
to tempo sobre esses povos, quase sempre visto adultério o marido tem o direito de puni-la. Nas
sem organização políticas e selvagens que vi- palavras de Tácito,
viam em florestas, já não cabe mais, uma vez De cabelos cortados, desnuda na presença
que esses povos possuíram inúmeros chefes ta- dos parentes, o marido a expulsa de casa e
lentosos e um sistema judiciário bem organiza- a persegue, de açoite por toda a (povoado)
do. O sistema penal define a pena de acordo com aldeia; não há na verdade perdão, não encon-
o delito, os traidores e os desertores são enfor- trará marido, nem tendo beleza, nem tendo
riqueza (TÁCITO, p. 48).
cados em árvores, os corruptos são afogados em
charcos. A variedade de penas tem por fim coi-
bir as infâmias e demonstrar os crimes durante A mulher só tem importância quando vin-
a punição. De certa forma a punição não tem culada ao marido, aos olhos da sociedade os
apenas a função de fazer o delator pagar por seu dois formam apenas uma vida, há uma tentativa
crime, mas também coibir novos, de forma geral de controle sobre o desejo feminino, que impõe
o sentenciado serve de exemplo para o restante que a mesma deva amar apenas o marido.
294
Mailson Gusmão Melo

Em relação aos cuidados dos filhos, Tácito herdeiros e sucessores dos pais. Os filhos dos Ger-
nos relata que entre as mulheres bárbaras cada mânicos são inimigos dos inimigos do pai ou dos
mãe amamenta e cria seus filhos, diferente das parentes, demonstrando assim a unidade familiar.
mulheres romanas que deixam a criação aos cui- As inimizades não duram muito, sendo até mesmo
dados das amas de leite. Limitar o número de fi- o homicídio compensado com certo número de
lhos ou matar algum pequeno é considerado infâ- ovelhas, e toda família recebe a indenização.
mia, uma vez que rompe com os bons costumes.
Esses povos demonstram grande hospitali-
dade, para eles era nefasto negar casa a alguém.
Quando nada tem a oferecer ao hospede, entram
A ViDA PriVADA na casa do vizinho mesmo sem convite, e pelos
costumes os dois são tratados dignamente, não
Os germânicos não habitavam cidades, há distinção entre o conhecido e o estranho.
construíam suas casas de forma isolada não per-
mitiam que as habitações se agrupassem como
ocorre entre outros povos. Segundo nos conta CoNsiDErAÇÕEs FiNAis
Cornélio de Tácito,
Moram isolados e esparsos conforme lhe tenha Com o advento dos estudos culturais, pro-
agradado uma fonte, um campo, um bosque. piciado pela renovação dos paradigmas nas
Não instalam as aldeias à maneira nossa com edi- ciências sociais, os estudos sobre a questão do
fícios contíguos ou juntos (ligados, juntamente): “outro” se mostram cada vez mais presentes en-
cada um cerca a sua casa de um espaço (interva- tre os historiadores. É inegável que o estranho é
lo), ou seja, remédio (prevenção) contra casos de
quase sempre representado sob a ótica de este-
incêndio ou por incompetência em edificar. Nem
(não) fazem uso de alvenaria (cimento) ou de te- reótipos predominantemente negativos.
lhas: empregam material completamente rústico Como já falamos anteriormente Cornélio
e sem beleza e aparência (TÁCITO, p. 44).
Tácito, em inúmeros momentos comenta os cos-
tumes dos germânicos, tendo por referência a
Mas uma vez o autor, estudou aspectos da cul- cultura romana, quando se trabalha dessa forma
tura Germânica tendo como referência sua própria tentando entender o outro a partir si, a cultura es-
cultura. No vestuário a peça básica é o saiote, sendo tudada geralmente aparecerá como inferior. Táci-
o mesmo preso por uma fivela ou por um espinho. to em referência aos filhos dos bárbaros comenta
Porém aqueles com mais recursos usam roupas di- “vivem no lar nus e sujos, e assim crescem com
ferentes, as peles de animais também são muito co- esses membros e corpos de que nos espantamos”
muns. O vestuário feminino é similar ao masculino, (TÁCITO, p. 49). É a partir desse estranhamento
com exceção daquelas que fazem uso do linho. exacerbado que surgem “as raças monstruosas”.
O autor relata de forma espantosa o fato O encontro entre culturas geram imagens
de a maioria dos germânicos serem os poucos estereotipadas uma da outra. Segundo Peter
bárbaros a ter só uma mulher, além disso, eles Burke, o estereótipo nem sempre é totalmente
conhecem as mulheres tarde, fato que prolonga inverídico, porém supervaloriza traços da reali-
a adolescência. Casam com mulheres fortes, a dade em detrimentos de outros. Afirma Burke,
fim de gerarem filhos também fortes. Os estereótipos mais grosseiros estão baseados
Entre esses povos impera a ideia da família na simples pressuposição de que “nós” somos
humanos ou civilizados, ao passo que “eles”
expandida, os filhos das irmãs são tratados na casa
são pouco diferentes de animais como cães
do tio da mesma forma que na casa do pai, ou me- e porcos, aos quais eles são frequentemente
lhor, os primos, filhos das irmãs, são irmãos entre comparados, não apenas em línguas europeias,
si. O testamento não existe, porém os filhos são mas também em árabe ou chinês. Dessa forma,
295
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

os outros são transformados no “Outro”. Eles preender com a impostura dos Hunos e dos Gé-
são transformados em exóticos e distanciados pidas, que ignoram ser a impostura uma falta?
do eu. E podem mesmo ser transformados em O perjúrio do Franco será reprovável, mesmo
monstros (BURKE, 2004, p. 157). que ele pense ser apenas uma maneira vulgar
de falar, e não um crime? (GOFF, 2005, p. 24).

Toda vez que utilizarmos nossa própria cul-


tura para compreender os outros, a cultura estu- Poucos escritores do período da derrocada
dada terá um caráter exótico. do Império Romano do Ocidente, a exemplo
de Santo Agostinho e Salviano, se referem aos
Le Goff explicita que Santo Ambrósio via
bárbaros como pessoas nem melhores e nem
os bárbaros como inimigos desprovidos de hu-
piores em relação aos romanos. A crueldade,
manidade, convocando os cristãos a pegarem
a devastação, as pilhagens, os massacres e os
em armas contra os mesmos. Já o bispo Sinésio
maus tratos contra a população dominada; ge-
de Cirene, tinham os bárbaros como símbolo
ralmente atribuídos aos bárbaros, também era
maior da barbárie, “cães malditos trazidos pelo comum na conquista romana, no período de
destino” (GOFF, 2005, p. 23). expansão de sua fronteira.
Le Goff, citando Salviano: A obra de Tácito nos abre inúmeras possi-
O povo saxão é cruel, os Francos são pérfidos, bilidades para se trabalhar os povos chamados
os Gépidas desumanos, os Hunos impudicos. genericamente de Germânicos, os pontos que
Mas seus vícios são tão carregados de culpa apresentamos neste artigo representam apenas
quanto os nossos? A impudicícia dos Hunos
alguns dos possíveis, uma vez, que o autor des-
será tão criminosa quanto a nossa? A perfídia
dos Francos será tão reprovável quanto a nossa? creve detalhes quase que impossíveis para um
Um Alamano bêbado é tão digno de repreensão cidadão romano, principalmente se termos em
quanto um cristão bêbado? Devemos nos sur- mente que a obra é concebida em plena guerra.

REFERÊNCIAS LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Bauru, SP:


Fonte Edusc, 2005.

TÁCITO, Cornélio. Germânia. São Paulo: Brasil Editora S.A. __. As raízes medievais da Europa. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2007.

Estudos __. Uma breve história da Europa. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2008.

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. São Paulo: __. A Idade Média explicada a meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
Edusc, 2004. GOMBRICH, Ernest. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da repre-
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2ª ed. Rio de Janeiro: sentação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Forense Universitária, 2008. Http://www.infoescola.com/biografias/Tacito
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva barbada: ensaios de mitologia me- SILVA, Rogério Forastieri da. História da Historiografia: capítulos para
dieval. São Paulo: Edusp, 1996. uma história das histórias da historiografia. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
296
CiDADEs, ForTALEZAs, E PoDEr:
A expansão da fronteira Castelhana

Marcio Felipe Almeida da Silva1


Renata Vereza2

T
endo em vista que, hoje compreendemos as Compreender o espaço castelhano constitui
fronteiras como uma linha ou extremidade um desafio cauteloso ao historiador, certamente
que define os limites entre regiões distintas, a observação de um território ocupado por mou-
nos propomos neste trabalho analisar o conceito que ros difere da observação do espaço ocupado por
tinha tal palavra quando aplicada ao reino de Castela cristãos. Por isso, Garcia de Cortazar insiste em
no século XIII, bem como a evolução do termo uma análise territorial em três hierarquias que
fronteira a partir da expansão territorial castelhana. podemos aplicar ao nosso estudo.
Sabemos que durante este período os limites terri- A primeira hierarquia é meramente física e em
toriais exerceram seu papel na mentalidade social, função dela calculamos o espaço como factor
permitindo a oportunidade de enriquecimento e a de estabelecimento humano, quer dizer, a sua
execução dos feitos de armas em um campo pronto capacidade de estímulo ou atraso em provocar
para batalhas, cavalgadas e escaramuças, onde cas- aquele e, por consequência, uma vez conseguida
telos e praças-fortes assinalam a paisagem. Por esta a ocupação, o dos custos sociais para a manter
historicamente. [...] A segunda hierarquia é
razão, buscaremos também entender como atuaram
econômica, e em função dela avaliamos o es-
as Ordens militares e as fortificações nos limites
paço com factor de produção, quer dizer como
expandidos durante o século XIII, principalmente terra. [...] A terceira hierarquia é a relacional,
nos reinados de Fernando III e Afonso X. em função dela avaliamos o espaço, o nosso
Levando em consideração que o tema espaço concreto, como sujeito activo ou passivo
das relações e contactos, sejam os desenvolvi-
fronteira esta ainda longe de suscitar as in-
dos internamente, isto é, entre o espaço rural
vestigações que merece (RUCQUOI,1995), e os seus pontos de polarização (GÁRCIA DE
devemos, a partir deste ponto, tentar conceituar CORTAZAR, 1983, p.84).
os limites físicos dos reinos Ibéricos. Afinal é
durante a Idade Média que seus contornos físi- Durante a Alta Idade Média, como bem
co-politicos começam a ser estabelecidos. Em destacou Thomas F. Glick (1993), a fronteira
Fragmentos de Uma Composição Medieval, entre cristãos e muçulmanos possuía uma caráter
José Mattoso (1987) afirma que as constantes ideológico, necessitando de ajustes à medida que
disputas por castelos e terras fronteiriças nos procediam os lentos avanços e assentamentos per-
impede de conceber a fronteira entre os séculos manentes. Embora o autor insista em classificar os
XIII e XIV como uma linha cortante e limita- limites territoriais como estáveis, acreditamos que
dora de áreas de poder. Desta forma, seguindo as fronteiras constituíam um local de insegurança
as análises procedidas pelo autor, entendemos (locus-desertus), devido as constantes ameaças de
os limites castelhanos como um espaço e não incursões. Tanto que os castelhanos percebiam a
como uma linha, um local de confronto e atua- fronteira a partir da escassez de sua própria po-
ção das elites de poder. pulação em comparação com o grande numero de
1 Professor do Uniabeu-Centro Universitário, mestre em História Medieval muçulmanos adversários. Esta percepção foi alte-
pela Universidade Federal Fluminense.
2 Docente da PPGH na Universidade Federal Fluminense (UFF/Translatio Studii) rada de acordo com seu deslocamento para o sul no
297
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

fim do século XI. Os avanços cristãos, incentiva- zação militar e política as ordens se beneficiaram
dos pelas concessões de fueros e cartas-pueblas, da entrega de terras e castelos pela coroa nas
contribuíram para o modelamento da fronteira a zonas fronteiriças, sua implantação nas áreas de
seu favor. Finalmente, foi com as conquistas do conflito permitiram que escapassem muitas vezes
século XIII que o termo fronteira associou-se aos da autoridade régia gozando certa autonomia,
lugares que estavam posicionados nos limites com mas não podemos esquecer que diferentemente
Andaluzia, como Jerez, Aquilar e Vejer. das missões cristãs oriente, na Península o con-
O autor espanhol Flocel Sabaté (2005), levan- trole da reconquista dependia dos poderes reais.
tou um relevante questionamento ao insistir na Américo Castro (2001) afirmou que embora a
associação das fronteiras ao feudalismo. Propondo documentação seja extensa, necessitamos de uma
que a senhorização do território surge a partir da história adequada da vida e significação das or-
evolução social, Sabaté acredita que o submeti- dens militares. Como Castro escreve sua obra nos
mento da nobreza à coroa em troca do controle anos finais da década de cinquenta, acreditamos
de castelos leva a aristocracia a manter um pacto que ele se surpreenderia com a quantidade de
de lealdade com o monarca, se comprometendo trabalhos publicados e com o fascínio que hoje
a manter as fortalezas em condições favoráveis e os historiadores têm pelas ordens militares.
ao serviço com cavaleiros armados, característico Antes da criação das ordens locais, o espírito
do sistema feudal. O importante neste ponto é de combate ao adversário islâmico aproximou seus
compreender que a coroa não possuía um exército partidários daqueles que lutavam em Jerusalém
profissional permanente em numero suficiente para
O paralelismo entre a cruzada do Oriente e a
garantir a defesa dos territórios conquistados, des- guerra santa da Espanha (a Reconquista) pare-
sa maneira a aristocracia e as ordens militares se ceu evidente aos olhos dos contemporâneos e a
tornavam atraentes para a política real, tendo em Espanha tornou-se assim um terreno de implan-
vista que se dedicavam as atividades militares e tação e de experimentação de ordens militares
possuíam recursos para garantir a defesa do local. (DEMURGER, 2002, p.41).

Entendemos que desde enraizada a recon-


quista houve um limite espacial fundamental Não podemos esquecer que falar de Recon-
para a divisão dos reinos cristãos e dos territó- quista não é o mesmo que falar de Cruzada. A
rios sujeitos a autoridade islâmica. Esta frontei- Cruzada propriamente dita é travada a partir de
ra, permeável e móvel, sofreu alterações com 1095 para a recuperação da herança de Cristo (Je-
a evolução dos conflitos. O esfacelamento do rusalém e Terra Santa) e a defesa dos cristãos contra
califado de Córdoba em diversas taifas no ano o avanço muçulmano (LOYN, 1997). A guerra de
de 1031 acabou com a unidade numérica van- Reconquista se situa tradicionalmente da revolta de
tajosa dos mouros, permitindo maior execução Pelágio em 718 até 1492 na conquista de Granada
do poderio militar por parte dos reinos ibéricos, pelos reis católicos. Todavia, os objetivos dos ata-
principalmente Castela, que na sequência con- ques efetuados pelos cristãos antes do século XII
quistaria Toledo (1085) e Valência (1094-1099). na península tinham como objetivo o saque e não a
“A partir do século XI, o avanço cristão para o ocupação como ocorria na Terra Santa. O conceito
Sul, embora sem ser linear, nunca mais se inter- de reconquista, tal como explorou Ricardo da Costa
rompeu” (RUCQUOI, 1995, p.128), todavia, as (1998), reconquistar, conquistar de novo, recuperar
invasões islâmicas dos Almorávidas e Almôadas por conquista, só poderá ser aplicado com precisão
vindos da África forçaram os cristãos a uma quando abordamos a guerra e não a ocupação, ou
nova organização para o combate. seja, entendemos como ocupação quando os obje-
Entre os séculos XII e XIV o reino de Castela tivos das ofensivas se invertem de pilhagens para
assistiu a entrada triunfal das ordens militares a tomada de uma determinada localidade. Além
locais no cenário da reconquista. Por sua organi- disso, precisamos deixar claro que a ocupação nem
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Marcio Felipe Almeida da Silva / Renata Vereza

sempre é feita mediante a guerra. Com a chegada Calatrava. Reunindo monges cistercienses e
das ordens militares no conflito, durante o século cavaleiros sobre a Regra de São Bento e uma dis-
XII, gradativamente se encerrou o horizonte de tole- ciplina militar semelhante a dos Templários, essa
rância com os mouros. A guerra ganhou um caráter união permitiu a criação da ordem de Calatrava,
ideológico contra um inimigo da fé, tanto por parte reconhecida pelo papa Alaxandre III em 1164. A
dos cristãos como por parte das hordas Almorávidas ordem esteve engajada nas empresas da recon-
e Almôadas, que chegaram à península imbuídos quista, participando ativamente de Las Navas de
do conceito de Jihad. Sendo assim, a expansão Tolosa e recebendo como recompensa a fortaleza
das fronteiras cristãs recebeu um caráter sagrado de Salvatierra pelas mãos do rei castelhano.
sendo legitimadas pelas autoridades eclesiásticas
Na mesma época outras duas ordens partici-
como um combate justo. Devemos atentar para o
param das conquistas procedidas pela coroa, as de
que Thomas F. Glick classificou como um dos erros
Alcântara e de Santiago. A primeira foi fundada
básicos da historiografia, o fato de pesquisarmos
por cavaleiros em Salamanca próxima a igreja de
uma sociedade em pleno conflito não quer dizer que
San Julián Del Pereiro, recebendo o mesmo nome
não havia tolerância, e mesmo dentro desta esfera
da igreja. Passou a ser conhecida como ordem de
de tolerância pode também haver conflitos. Para o
Alcântara depois que ordem de Calatrava dou-lhe
autor guerra e tolerância são fatores que andavam
a convento-fortaleza de Alcântara por ordem do
de mãos dadas na Península.
monarca de Castela anos após a vitória de Las
Ainda no século XII, Templários e Hospitalá- Navas de Tolosa (1212).
rios se instalaram em Castela recebendo fortalezas
A segunda, de início modesta em Leão, fun-
e recursos financeiros dos monarcas. Dentre os
dada como confraria dos irmãos de Cárceres, se
benfeitores se destaca o rei Afonso VII, doador
comprometeu com o arcebispo de Compostela a
do castelo de Olmos para a ordem do hospital em
defender as possessões do episcopado na região
1144 e da fortaleza conquistada de Calatrava para
em 1171. Assim passaram a se chamar Cavaleiros
os Templários três anos depois. Entretanto elas não
de Santiago da Espada, rendendo homenagem ao
corresponderam à expectativa dos monarcas caste-
arcebispo e contando com a sua proteção. Logo
lhanos frente à ofensiva Almôada, “a esse fracasso
caíram nas graças do rei de Castela, recebendo o
relativo às ordens da Terra Santa, e sobretudo da
território de Uclés nas fronteiras do reino, posse
mais militar das duas, Castela respondeu de maneira
que os Hospitalários não conseguiram preservar.
original: criando suas próprias ordens”(DEMUR-
O papa Alexandre III havia legitimado a criação
GER, 2002, p.45). Não conseguindo suportar os
das ordens e imposto seu principal objetivo:
constantes ataques na fortaleza de Calatrava, os
garantir a defesa da Cristandade face aos infiéis
cavaleiros Templários solicitaram a Sancho III
(DEMURGER, 2002).
(sucessor de Afonso VII) que os dispensassem do
compromisso de defender a região. Em 1217 Fernando III, ascendeu ao trono
de Castela, e aproveitando o acentuado declínio
Non podríen ellos ir contral grand poder de los
aláraves, ...ca non avíen guisado de lo que era dos Almôadas soube retirar proveito das tensões
mestre por que contra ellos se parassem; demás ocorridas na Andaluzia Islâmica. Com a derruba-
que el rey mismo non fallara ninguno de los da do soberano muçulmano no Magreb, um novo
grandes omnes de Castiella que al peligro de comando centralizado em Sevilha começou a se
aguel logar se atroviessem a parar (CRONICA impor a partir da proclamação do Califa Abu-Ula,
GENERAL In: CASTRO, 2001. p.188).
porém o constante temor de uma nova invasão
proveniente da África o levou a estabelecer uma
Com a saída dos cavaleiros do templo, Rai- trégua com Castela, onde o califa concordou
mundo Serra, abade do convento cisterciense em ceder dez fortalezas fronteiriças em troca de
de Fitero, ofereceu seus serviços para defender ajuda militar cristã. A intervenção ambiciosa de
299
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Fernando III em Andaluzia resultou na conquista p.339). Dessa forma os castelhanos encontraram
de alguns povoados como Iznatoraf, Santisteban, locais de arquitetura, traçados e construções
Trujillo e Úbeda, ambos com fortificações que diferentes das cidades cristãs do norte.
possibilitaram o avanço cristão a cidade de Cór-
Após a conquista o monarca buscou utilizar
doba em 1235. Apoiado pelas ordens militares e
algumas estratégias para manter o povoamento
sabendo aproveitar as desavenças internas entre
das cidades conquistadas. Uma destas manobras
os andaluzes, Fernando III capturou a cidade após
foi a conservação, em determinadas regiões, de
cinco meses de sitio. Após ter conseguido unir população islâmica já residente no local desde que
definitivamente os reinos de Castela e Leão, com a reconheceçem a autoridade da coroa castelhana.
renuncia das filhas de Afonso IX de Leão, Fernan- Outra saída foi à concessão de tenencias, insti-
do III conseguiu obter maiores poderes e recursos tuições feudo-vassálicas cedidas pelo governo a
financeiros para empreender grandes conquistas, pequena e média nobreza, as ordens militares e
como o cerco e a invasão a cidade de Jaén (1245). aos concejos. Responsáveis pela administração
Na sequência, o reino de Múrcia, ainda sobre destas tenencias, os alcaides, como eram deno-
domínio islâmico, enviou uma embaixada ao infan- minados, exerceriam a função militar na defesa
te Afonso, futuro Afonso X, para negociar a entrega do território recém conquistado. A eles se atribuía
da cidade como protetorado de Castela. Diferente ainda a conservação das fortalezas, a garantia de
da tomada de Córdoba, onde a cidade foi entregue efetivos em numero suficiente para proteger a
intacta e vazia, Fernando III autorizou Múrcia a região e o requisito de prestar juramento ao rei.
manter guarnições em determinados pontos e a Com o falecimento de Fernando III em 1254,
conservar a população islâmica. O tratado Alcaraz seu filho Afonso X se encarregou de continuar a
(1243), estabelecido entre representantes da cidade obra de expansão e repovoamento das fronteiras.
e o infante firmou o compromisso de Múrcia no Podemos dizer que a Fernando III coube o papel
pagamento de parias a Castela e a aceitação de de conquistar e a Afonso X de manter as conquis-
tropas cristãs dentro da cidade. tas. A participação do poder régio nas cidades se
Depois de conquistadas Córdova e Jaén, Se- refletiu com maior intensidade na gestão deste
vilha se tornou o objetivo imediato do monarca. ultimo. Afonso por reconhecer que as tenencias
Porém o elevado aparato de defesa existente na eram uma perigosa arma de controle territorial
cidade e a proximidade com o rio Guadalquivir e militar em poder da nobreza, efetuou mais
obrigaram Fernando III a planejar com cautela cautelosamente as doações, afinal, a posse das
sua ofensiva. Ocupando os principais pontos de tenencias acelerava o processo de senhorização
acesso a Sevilha por terra e domando o rio com a das terras e favoreciam a autoridade local. Por
frota castelhana, o rei forçou os sitiados a se ren- esta razão, podemos observar nas Siete Partidas
derem sobre a condição de abandonarem no prazo a preocupação do rei com a concessão territorial:
de um mês toda a cidade despovoada e intacta. Tener castillo de señor según fuero antiguo de
España es cosa en la que existe muy gran peli-
Quando pensamos nestas regiões ocupadas
gro, puesto que ha de caer el que lo tuviere, si lo
por Fernando III precisamos compreender que a perdiere por su culpa, en traición, que es puesta
reconquista não devolveu cidades cristãs a Cas- como en igual de muerte del señor; mucho deben
tela, mas sim zonas desertas que precisavam ser todos los que los tuvieren ser apercibidos en
repovoadas ou núcleos de população islâmica que guardarlos, de manera que no caigan en ella. Y
gradativamente se impuseram sobre o passado para esta guarda ser hecha cumplidamente, deben
allí considerarse cinco cosas: la primera, que sean
romano-visigótico das cidades. “Fernando III
los alcaides tales como conviene para guarda del
reocupó el lugar en donde estuvo la antigua His- castillo, la segunda, que hagan ellos mismos lo que
palis, y en donde en 1248 había una ciudad que deben en guarda de ellos; la tercera, que tengan allí
nada tênia que ver con la de 711 (CASTRO, 2001, cumplimiento de hombres; la cuarta, de vianda;
300
Marcio Felipe Almeida da Silva / Renata Vereza

la quinta, de armas: Y de cada una de estas que- quadro de emergente, a maioria deles construída
remos mostrar cómo se deben hacer; y por ello nas ultimas décadas de Afonso X por seu irmão
decimos que todo alcaide que tuviere castillo de dom Fadrique, como a Torre Mocha e a Torre del
señor debe ser de buen linaje de padre y madre,
pues si lo fuere, siempre habrá vergüenza de hacer
Infante don Fadrique.
del castillo cosa que le esté mal, ni por la que sea A ampla anexação de terras a Castela exigia
denostado él ni los que de él descendieren; otrosí estruturas de organização política que o reino
debe ser leal porque siempre sepa guardar que el
ainda não possuía, administrar as novas posses
rey ni el reino no sean desheredados del castillo
era o mesmo que garantir por meio da força que
que tuviere;(2º Partida, Titulo 18, Ley 8)
elas não caíssem novamente nas mãos dos mu-
çulmanos. Como já relatamos a coroa não possuía
Para melhor compreender a atuação do exércitos permanentes e recursos financeiros
poder régio na fronteira castelhana, procedemos em numero suficiente para efetuar sozinha esta
um intenso trabalho de pesquisa a partir das tarefa. Embora Afonso X tenha reservado caste-
fortificações catalogadas no site Castillos de Es- los capturados para a coroa, prosseguiu com as
paña. Esta pesquisa nos permitiu observar como doações em forma de adelantamentos, senhorios
estavam distribuídas a as fortalezas na fronteira onde o rei implantava um Adelantado para exer-
que Fernando III e Afonso X se esforçaram para cer o poder de comando militar e de justiça em
expandir. Nesta observação foram listadas 506 seu nome. Além dos nobres a Igreja também exer-
construções militares, entretanto apenas 103 ceu esta função, como é o caso do adelantamento
nos interessam neste ponto por que tiveram par- de Carzola, que sobre a jurisdição do arcebispo
ticipação permanente no século XIII. Incluímos de Toledo possuía uma vasta extensão. Porem,
no levantamento castelos, torres, recintos amu- iminente perigo de uma invasão islâmica pela
ralhados etc, todos distribuídas entre as cidades tensa fronteira, fato concretizado depois com as
de Múrcia, Jaén, Córdova e Sevilha. Todavia se hostes benimerides vindas do Marrocos, levou
faz necessário explicar que foram encontrados o rei a prosseguir com a dependência das ordens
castelos sem registro, sendo assim somente uma militares para garantir a defesa.
analise ampla e efetuada no próprio solo ibérico
Com o objetivo de controlar o estreito de
poderia ser precisa. Exatidões a parte, o que nos
Gibraltar e impedir o apoio do Magreb aos mu-
interessa neste ponto é compreender a quem
çulmanos de Granada, Afonso X criou em 1272
pertencia o controle das fortificações no tempo
a Ordem de Santa Maria de Espana. Dedicada
de Afonso X. Durante a pesquisa notamos que
ao combate pelo mar, a ordem recebeu das mãos
o solo castelhano, coberto por obstáculos natu-
monarca portos no Atlântico, no Mediterrâneo e
rais como rios, rochedos e aclives influenciou o
no estreito. Mas por fim a instituição se constitui
desenvolvimento dos castelos, muitas vezes em
em mais um dos fracassos do rei sábio, após ser
lugares que já haviam sido ocupados pelos visi-
derrotada a frota castelhana em Algeciras em
godos ou mesmo por povos da antiguidade como
1279, não restou a este nenhuma solução além
cartagineses, gregos e romanos.
de por fim aos anseios no controle marítimo.
Devemos conceber as fortificações caste- No ano seguinte as tropas da ordem de Santiago
lhanas de duas formas diferentes, as reutilizadas foram dizimadas frente aos granadinos. “Para
e as emergentes. No primeiro caso os cristãos compensar as perdas, o rei de Castela decidiu
se apropriam de uma estrutura defensiva árabe incorporar a ordem de Santa Maria à Ordem de
promovendo reparos ou ampliações, esse modelo Santiago” (DEMURGER, 2002, p.53). A ousada
é característico do século XIII. Encontramos em criação da Ordem de Santa Maria constituiu uma
terreno castelhano 81 castelos árabes conquista- tentativa de cessar a dependência militar da coroa
dos nas cidades que mencionamos anteriormente. para com as ordens, uma vez que ela se reportava
Em contrapartida apenas 13 se enquadram no diretamente ao rei.
301
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Para finalizar entendemos que em meados do quista, como destacou Adeline Rucquoi, sendo mito
século XIII, o reino castelo-leones se encontrava ou realidade, fundou um conceito de poder e uma
como um mundo salpicado de cidades no qual a pratica deste, uma vez que procurou hierarquizar a
coroa tentava impor suas vontades através da força sociedade e organizar seu espaço a partir progressão
e da concessão de privilégio, valendo-se destas sobre as fronteiras. Os limites territoriais que por
artimanhas como ferramentas de controle da vida volta de 1200 terminavam próximos as margens do
urbana (JIMENÉZ, 1999). Os reinados de Fernando rio Guadiana, nos tempos do rei sábio se encontraram
III e Afonso X lançaram as bases da hegemonia que estendidos ao sul além do rio Guadalquivir, incor-
Castela alcançou até o fim da Idade Média. A recon- porando grandes centros como Córdoba e Sevilha.

REFERENCIAS Maomé a Reforma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.


Fronteiras Ibéricas dos séculos XI ao XIV GÁRCIA DE CORTAZAR, José Angel. História Rural Medieval. Lisboa:
Editorial Estampa, 1983.
RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa:
GLICK, Thomas F. Cristianos y Musulmanos en la España Medieval
Estampa, 1995. p.170. (711-1250). Madrid: Alianza Editorial. 1993.
REFERÊNCIAS HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo:
Companhia da Letras, 2006.
ALFONSO X. Las Siete Partidas del rey don Alfonso el Sabio. Madrid:
Imprensa Real. 1807. 3 Tomos. JIMENEZ, Manuel Gonzalez. Alfonso X (1252-1284). Burgos: Editorial
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CASTRO, Américo. Espana en su Historia: Cristianos, Moros y
Judios. Barcelona: Editorial Crítica, 2001. MATTOSO, José. Fragmentos de Uma Composição Medieval.
COSTA, Ricardo da. A Guerra na Idade Média: Um Estudo da Men- Lisboa: Estampa, 1987.
talidade de Cruzada na Península Ibérica. Rio de Janeiro: Edições RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa:
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DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo. Rio de Janeiro: Jorge SABATÉ, Flocel. Frontera Peninsular e Identidad (siglos IX-XII). In:
Zahar Editor, 2002. Estudis Medievals Espai. Lyon. 2005-2006.
FLETCHER, Richard. A Cruz e o Crescente: Cristianismo e Islã, de VALDEÓN, Julio. Alfonso X, el Sábio. Madrid: Ediciones Temas de Hoy, 2003.
302
Marcio Felipe Almeida da Silva / Renata Vereza

o BrAsiL mEDiEVAL Em OS SERTÕES

Marcos Edilson Clemente1

O
objetivo deste trabalho é revisitar algumas O livro segue o esquema determinista adotado
passagens d’ Os Sertões, obra consagrada por Euclides. Divide-se em três partes, a saber: parte
de Euclides da Cunha, publicada em 1902. I, a terra; parte II, o homem; parte III, a luta. Central-
O livro é um relato comovente da Guerra de Ca- mente, analisaremos a parte dois – o homem – em que
nudos, entre 1896 e 1897, na cidadela de Canudos, Euclides escreve sobre as origens raciais do Brasil, a
sertão da Bahia. O conflito armado mobilizou mais formação brasileira no Norte (Nordeste), o jagunço, o
de oito mil soldados em quatro expedições milita- sertanejo, a religisiosidade, Antonio Vicente Mendes
res, envolvendo as forças republicanas do Marechal Maciel e o Arraial de Canudos.
Deodoro da Fonseca, então presidente da República
Nesta parte, Euclides utiliza transposições
do Brasil, e os sertanejos liderados por Antônio
(deslocamentos) do imaginário medieval para ex-
Vicente Mendes Maciel, conhecido por “Antônio
plicar o Sertão do Nordeste. Tentaremos identificar
Conselheiro”. A cinco de outubro de 1897, caía o
e compreender na narrativa euclidiana as diferentes
reduto do Conselheiro. Este havia morrido um mês
imagens e comparações entre o universo sertanejo
antes e, no entanto, o ânimo dos defensores não
e o medieval, as dicotomias entre o popular e o
arrefecera. Ao entardecer, sucumbiram os últimos
erudito, o litoral e o sertão, o catolicismo oficial e
conselheiristas, que todos morreram. “Eram quatro
o catolicismo popular, a república e a monarquia,
apenas: um velho, dois homens feitos e uma crian-
enfim, civilização e barbárie.
ça, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco
mil soldados” (CUNHA: 1985, p.571). Da análise de tais narrativas, vemos surgir em
vivas cores imagens do feudo como unidade produtora
Euclides da Cunha participou do teatro das ope-
e fortaleza inexpugnável reencontrando-se na estrutura
rações como correspondente de guerra, enviado pelo
fundiária sertaneja, tendo ao centro as fazendas de
jornal O Estado de São Paulo e nessa condição teste-
gado; imagens do cavaleiro medieval e do seu código
munhou parte dos acontecimentos. Sua Caderneta
de honra, transposta para o vaqueiro e o jagunço ser-
de Campo (ANDRADE: 1975) é importante fonte
tanejos; imagens das tradições sertanejas com suas
para a compreensão da obra e do evento histórico.
matrizes medievais; imagens de uma religiosidade
Republicano ativista, autor de vários artigos messiânica e sebastianista, como no mito Português.
sobre as vantagens do regime que se instalara no
Utilizamos a noção de imagem circunscrita
Brasil, Euclides parte para Canudos convicto de
ao domínio do imaginário. Este conceito aqui
que ali havia uma conspiração contra a jovem Re-
significa “um conjunto de representações que ul-
pública. Convicção abalada aos primeiros contatos
trapassam os limites dos fatos comprováveis pela
com os sertanejos - para ele, enigmáticos - quando
experimentação e pelos encadeamentos dedutivos
Euclides passa a desmentir informações correntes
que esta autoriza, o que equivale a que cada cultura
nos meios oficiais de que a insurreição em Canudos
e, portanto, cada sociedade, logo cada nível de
era parte de uma conspiração monarquista.
uma sociedade complexa tenha o seu imaginário”.
1 Doutor em História. Docente da Universidade Federal do Tocantins (UFT),
campus de Araguaína. (PATLAGEAN:1978. p 292)
303
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Foi a literatura quem primeiramente forneceu E ao fazê-lo, identifica logo a indiferença


os referenciais para a compreensão d’Os Sertões. A metropolitana ante a separação dos eixos Norte
crítica literária, mais exatamente. Assim, Afrânio e Sul. Separação ou “insulamento”, fatores de-
Coutinho define este livro vinculando-o ao universo terminados pela abusiva concessão de sesmarias
medieval, pois seria “uma obra de ficção, uma nar- “definidoras do nosso feudalismo tacanho”. A
rativa heróica, uma epopéia em prosa, da família de referência, neste caso, é a Carta Régia de 7 de
Guerra e paz, da canção de Rolando e cujo antepas- fevereiro de 1701 que “Proibira, cominando
sado mais ilustre é a Ilíada” (COUTINHO: 1959). severas penas aos infratores, quaisquer comuni-
Outro crítico literário, Antônio Cândido, afirma que cações daquela parte dos Sertões com o Sul, com
Os Sertões é um livro precursor, posto na raiz do as minas de São Paulo”(CUNHA, 1985, p.172).
desenvolvimento das ciências sociais brasileiras nos
Feudalismo tacanho capitaneado por “donatá-
anos 30 e 40 (CANDIDO, p.1965) Afirma este autor
rios felizes”, senhores de dilatados latifúndios. Nas
que neste período, surgem interpretações do Brasil
terras do Norte, Euclides menciona as donatarias
que apontam para a existência de dois países – um
de Garcia D’Ávila, Antonio Guedes de Brito e Do-
litorâneo, adiantado, o outro interiorano e atrasado.
mingos Sertão como modelos clássicos. Particular-
Por seu turno, Gilberto Freyre vê em Euclides um
mente, o opulento Garcia D’Ávila, poderoso senhor
revelador da realidade brasileira. Um escritor “capaz
da Casa da Torre, a maior do Brasil, sobre o qual
de revelar de uma paisagem ou de uma época, de
Euclides informa que na segunda metade do século
uma sociedade ou de uma personalidade complexa,
XVII, na região de Maçacará, próximo de Canu-
os seus característicos profundos e os seus traços
dos, mantinha uma companhia do seu regimento.
decisivos.” (FREYRE, 1995, p. 20).
Quanto a Domingos Sertão, Euclides reclama não
Assim é que, aos olhos de Euclides, revela-se ter tido o relevo que merece, pois:
um Brasil em profundo contraste. Como bom adepto Quase na confluência das capitanias setentrio-
daquilo que Marc Bloch classificou como o “ídolo nais, próximas ao mesmo tempo do Piauí, do
da tribo dos historiadores” (BLOCH, 2001, p. 56) Ceará, de Pernambuco e da Bahia, o rústico
Euclides volta-se primeiramente para gênese, para as landlord aplicou no trato de suas cinqüenta
nossas origens, tentando situar as causas remotas da fazendas de criação a índole aventurosa e
irrequieta dos curibocas. Ostentando como
formação histórica do Brasil. Dessa forma, analisa a
outros dominadores do solo um feudalismo
colonização portuguesa a partir dos seus traços fun- achamboado – que os levava a transmudar em
damentais, o tripé latifúndio, monocultura e escravi- vassalos os foreiros humildes e em servos os
dão. O caldeamento entre o Português colonizador, tapuias mansos (CUNHA: 1985, p.170).
o ameríndio e o negro africano. As conseqüentes
A alusão é direta. Senhores de terras, vassalos e
relações sociais que daí se estabelecem, desdobran-
servos. Elementos suficientes ao “patrimonialismo”
do-se em um modelo social aristocrático, com poder
e ao “contratualismo”, intrusões arcaicas da penín-
de mando absoluto do senhor, branco, proprietário
sula. O primeiro, refere-se à propriedade senhorial
de grandes extensões de terras, submetendo ao seu
dotada de milícia própria (VASSALO,1993, p.58);
controle o nativo e o escravo negro.
o segundo significa uma dada “estrutura mental
De fato, a metrópole portuguesa transpõe que via o homem ligado, com os correspondentes
para a colônia da América o sistema de exploração direitos e deveres, a uma ou outra daquelas forças
que vinha praticando nos continentes africano e universais em luta” (FRANCO JÚNIOR, 2004,
asiático. Euclides interpreta a transposição como p. 150) Em outro trecho, vem o complemento da
uma feudalização territorial: “Enfeudado o terri- informação, onde podemos deduzir que exista um
tório, [...] e iniciando-se o povoamento do país com tipo de contrato feudo - vassálico:
idênticos elementos, sob a mesma indiferença da ...o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe
metrópole, [...] abriu-se separação radical entre o dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes
Sul e o Norte” (CUNHA, 1985, pp. 153-154) herdaram velho vício histórico. Como opulentos
304
Marcos Edilson Clemente

sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamen- Portanto, o vaqueiro envolto no que alguns


te, as rendas de suas terras, sem divisas fixas. autores, a exemplo de Capistrano de Abreu Roger
Os vaqueiros são-lhes servos submissos. [...] Bastide (1959) a Maria Isaura Pereira de Queiroz
Graças a um contrato pelo qual percebem certa
percentagem dos produtos, ali ficam anônimos.
(1986), conceituam como “civilização do couro”,
[...] o verdadeiro dono, ausente, conhece-lhes a lembraria um campeador medieval. Esta imagem
fidelidade sem par [...] e entregam-se, abnegados, à tem dupla face porque o vaqueiro é realmente um
servidão que não avaliam (CUNHA: 1985, p.185). guerreiro, tanto na sua faina diária, nos tempos
de paz, quanto nos momentos de luta em que se
Desprovido dos rituais de investidura que transforma no jagunço em pronta defesa de uma
caracterizam o contrato feudo – vassálico no oci- “boa causa”. Como observa Lins: “Não é preciso
dente medieval, nem por isso, no entanto, devemos tirar carta de valente para ser jagunço. Jagunço
desconhecer que entre senhores e vaqueiros dos todo mundo é, pois, no sertão, os covardes nas-
trópicos instaura-se um contrato de compromissos cem mortos”. (LINS: 1983, p.98)
mútuos em que um dos aspectos principais é a Porém, não passou desconhecida a Euclides
permuta da fidelidade. Wilson Lins observa que “o a funcionalidade da cultura material da qual se
regime de servidão, no tempo da colônia, era uma serve o vaqueiro. Gilberto Freyre afirma a esse
só, tanto para vaqueiros como para fazendeiros” respeito que no Nordeste pastoril, diferentemente
(LINS, 1983, p.37). Duas conclusões de Le Goff do Nordeste agrário, o vaqueiro criou um trajo
sobre a vassalagem no medievo ocidental podem verdadeiramente regional. Ao que se acrescentou
nos ser úteis: primeiro, que seria demasiado estrei- mais tarde o trajo do cangaceiro, igualmente
to compreender essa relação pessoal como uma válido como símbolo, pois:
relação unicamente jurídica; a segunda, sendo seja do ponto de vista de uma estética do canga-
uma relação de laços pessoais é possível explicá-la ço, seja do ponto de vista da funcionalidade do
segundo um conjunto de hipóteses, seja no nível trajo para o ambiente da caatinga, a indumentária
econômico, seja no nível mental. O próprio Le do cangaceiro também é associada ao universo
Goff conclui: “não são fiéis ou vassalos. São fiéis medieval, [...] e alguns autores afirmam que os
elementos exteriores compostos na vestimenta do
e vassalos” (LE GOFF, 1980, p. 385)
cangaceiro foram de autoria de Lampião a partir
Uma análise da imagem do vaqueiro pode de leituras populares do sertão, entre os quais
alargar essa compreensão. Euclides nos lembra em Carlos Magno e os 12 pares de França e O im-
perador Napoleão” (CLEMENTE: 2003, p. 149).
sua Caderneta de Campo a importância desse tipo
coletivo: “não há sertanejo que não seja vaqueiro”.
Porém, dos registros de campo vivamente marca- Mas, seria pouco vincular o vaqueiro ao uni-
dos por um tom impressionista, anteparo de um verso medieval apenas pelo trajo típico da cultura
autor precavido contra as traições da memória, ao pastoril sertaneja. Um ponto a mais que os une e
esboço d’Os Sertões, pouco a pouco surgem ima- Euclides identifica-o com facilidade, é o apego a um
gens do vaqueiro associadas ao cavaleiro medieval. código honra: “e ali estão (...) os seus hábitos antigos,
A descrição euclidiana é, ainda hoje, clássica: o seu estranho aferro às tradições mais remotas, e
Atravessou a mocidade numa intercadência o seu exagerado ponto de honra.” (CUNHA:1985,
de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter p.168). Como num confronto cósmico hierofânico,
sido criança. [...] Fez forte, esperto, resignado fundidos entre o bem e o mal, expressam valores
e prático. Aprestou-se cedo para a luta. O seu vindos dos velhos romances portugueses traduzi-
aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, dos do castelhano, aportados aqui durante o século
o de guerreiro antigo exausto da refrega. As
XVIII. Consta em precioso trabalho de Márcia
vestes são uma armadura. Envolto no gibão de
couro curtido [...] é como a forma grosseira de Abreu que havia no Arquivo Nacional da Torre
um campeador medieval desgarrado em nosso do Tombo, Portugal, um “Catálogo para Exame
tempo (CUNHA, 1985, p.182). dos Livros para Saírem do Reino com Destino ao
305
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Brasil”, cujos pedidos seriam objeto de criteriosa ver com elas. E são muitas as tradições enumeradas
análise por parte da Real Mesa Censória, órgão n’Os Sertões: festas de cavalhadas e mouramas; a
encarregado de controlar a produção e a circulação encamisada, esta originada das lutas contra os árabes
de impressos. Consta, ainda, um documento de quando, em assalto noturno, as tropas vestiam cami-
1712 com requisição de folhetos diversos, entre os sões por disfarce, portavam lanternas, vestiam-se
quais a História de Carlos Magno e os 12 Pares de de branco, ou à maneira de muçulmanos, a pé ou a
França. (ABREU:1999, p. 53) cavalos, e simulavam escaramuças. As pelejas e os
desafios entre cantadores rudes que se enfrentam por
Este livro, juntamente com Donzela Teodora,
meios de rimas complicadas até o embaraço de um
Roberto do Diabo, Princesa Magalona, Imperatriz
dos contendores. Euclides referencia, em estilo pleno
Porcina e João de Calais, textos da Literatura de
de adjetivos, as origens dessas festas: “divertimen-
Cordel, tiveram grande influência entre o povo sim-
tos anacrônicos”, “velhissímas cópias”, “inusitado
ples do sertão, a ponto de serem considerados por
arcaísmo” (CUNHA, 1985, p. 191-192).
Câmara Cascudo como livros da “Ciência Popular.”
Leitura corrente no sertão, os cordéis do ciclo ca- E, ao passar em revista o ritual de festas, não
rolíngeo relatavam, segundo Cascudo, “as façanhas o separa do universo das mentalidades típicas do
dos Pares e a imponência do Imperador de Barba sertanejo. Lendas e crenças passam a ser com-
Florida”. (CASCUDO: 1953, p. 441) Nele espelhava- preendidas em função da seca ou da chuva e, a
se a velha cavalaria andante com os seus lances de iminência ou a materialização destas, alimenta
heroísmo incrível e de audácia sobre-humana. Os os sinais, os rituais, a fé, a religiosidade, as mais
cantadores aproveitavam-se abundantemente do antigas tradições.
repositório de andanças inverossímeis e de guerras Atento aos sinais da natureza, o sertanejo
inacabáveis. Carlos Magno, Roldão, Oliveiras, os aprendeu a interpretar ao seu modo as vicissitudes
duques, mouros, bárbaros, corriam e correm de do tempo. “Aparelha-se” para melhor bservar a
memória em memória numa continuidade de ad- sucessão dos dias, o comportamento dos animais,
miradores (CASCUDO, 1984,pp.129-131). as modificações da paisagem:
Todo esse acervo mnemônico foi moldado Passam-se as chuvas do caju, em outubro, rápidas
com mais firmeza na imagem impressionante- [...] abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas.
mente filtrada que a memória coletiva construiu Nota [...] que os dias transcorrem abrasantes e as
noites vão se tornando cada vez mais frias. [...] a
sobre os cangaceiros, pois conforme conclusão
armadura de couro [...] lhe endurece aos ombros,
a que chegamos em trabalho recente rígida, feito uma couraça de bronze. [...] E ao descer
os cangaceiros - vaqueiros, variantes do ja- das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos,
gunço, passaram para o ciclo épico - popular considera, entristecido, nos ares, em bandos, as
, glorificados, honrados, nobres, justiceiros, primeiras aves emigrantes, transvoando a outros
vingadores, moralizadores, invencíveis e, climas (CUNHA, 1985, p.194).
ainda, detentores de poderes sobre-naturais,
como o envultamento e o fechamento do corpo
(CLEMENTE, 2003, pp.164-165). Das observações passa às primeiras experiên-
cias que aprendera com lastro em ensinamentos
práticos e crenças adquiridas pela tradição oral.
Código de honra, código de festas, comple- Religiosamente, entre rezas e benditos, a 13 de de-
mentam-se entre os sertanejos “com os mesmos zembro, dia de Santa Luzia, inicia as adivinhações,
programas de há três séculos”. Mas, o ritual de festas põe-se em ação, tentando sondar o futuro:
dá-se nos momentos de comemoração pela colheita
É experiência tradicional da Santa Luzia. No dia 12,
farta, nos momentos em que a seca não foi implacá-
ao anoitecer expõe ao relento, em linha, seis pedri-
vel. Então, desponta, no dizer de Leonardo Mota, o nhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da
“sertão alegre”, porque, o sertanejo não se queda às esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de
intempéries do tempo, ao contrário, aprende a convi- janeiro a junho. Ao alvorecer do dia 13 observa-as:
306
Marcos Edilson Clemente

se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira, sentimento seguem os passos do profeta a espera
apenas, se deliu, transmudada em aljôfar límpido, é da salvação, ou de um milagre, ou de uma cura
certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; para os enfermos, paralíticos e lázaros, “de um
se a maioria ou toda, é inevitável o inverno benfazejo
(CUNHA, 1985, p.194).
simples gesto do taumaturgo venerado”:
Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas,
andores erguidos, bandeiras do divino ruflando, lá
Enfim, como último recurso, apela para o dia 19 se vão, descampados em fora, famílias inteiras –
de março, tradicionalmente consagrado a São José: não já os fortes e sadios senão os próprios velhos
Aquele dia é para ele o índice dos meses sub- combalidos e enfermos claudicantes, carregando
seqüentes. Retrata-lhe, abreviadas em 12 horas, nos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos,
todas as alternativas climáticas vindouras. Se mudando os santos de uns para outros lugares [...]
durante ele chove, será chuvoso o inverno; se, por onde passam as lentas procissões propiciató-
ao contrário, o sol atravessa abrasadoramente rias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites
os firmamentos claros, estão por terra todas as nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes
esperanças (CUNHA, 1985, p.195). (CUNHA: 1985, p. 195).

As esperanças que se renovam, portanto, com A Idade Média, segundo Maria Isaura Pereira
o renovar-se da natureza. Ou, esperanças que min- de Queiroz, ficou marcada por intensa espera mes-
guam temporariamente, mas não desaparecem. Até siânica. O contexto histórico é o da formação das
porque dias melhores virão, não importa se aqui na nacionalidades e os exemplos são muitos. Em Por-
terra, ou no céu. Desse modo, liga-se o sertanejo à tugal, a crença no retorno do messias alastrou-se
terra em que vive e a forças sobrenaturais. Manifesta sobremaneira após a morte do rei Dom Sebastião,
uma religiosidade que não é puramente católica, na batalha de Alcácer – Quibir, em 1578, quando
mas, segundo Euclides, fora transplantada para o Portugal passou para o domínio da Espanha. Pas-
Brasil colonial em uma época de decadência por- sou-se a acreditar que o rei Dom Sebastião voltaria
tuguesa, “quando todos os terrores da Idade Média com a missão de libertar Portugal e restituir-lhe o
tinham cristalizado no catolicismo peninsular.” predomínio entre as nações.

Partindo desse pressuposto, caracteriza a A conclusão a que chega Euclides é que houve
religião dos sertanejos como “monoteísmo incom- uma “justaposição histórica” e afirma que o misti-
preendido”, “misticismo extravagante”, “mestiça”, cismo político do sebastianismo persiste nos sertões
pois composta pelo antropismo do selvagem, o ani- do Norte. Volta ao sebastianismo, dessa vez para
mismo do africano e a influência dos portugueses. mostrar as agitações correntes do Maranhão à Bah-
ia. O exemplo dado é o episódio de Pedra Bonita,
Juntas, tais características explicariam as na região do Pageú pernambucano, assim descrito:
“lendas arrepiadoras”:
Em 1837, [...] um iluminado, anunciava, convicto,
A do caapora travesso e maldoso, os sacis o próximo advento do reino encantado do rei Dom
diabólicos, os lobisomens e mulas - sem ca- Sebastião. Quebrada a pedra, pela ação miracu-
beça, [...] todas mal – assombramentos, todas losa do sangue das crianças. Esparzido sobre ela
tentações do maldito ou do diabo – esse trágico em holocausto, o grande rei irromperia envolto
emissário dos rancores celestes em comissão de sua guarda fulgurante,castigando, inexorável, a
na terra”. [...] benzeduras cabalísticas para humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas
curar os animais, [...] todas as visualidades, os que houvessem contribuído para o desencanto
todas as aparições fantásticas, todas as pro- [...] (CUNHA: 1985, p.201).
fecias esdrúxulas de messias insanos; e as
romarias piedosas; e as missões; as penitências Completa o quadro comparativo, analisando
(CUNHA, 1985, p. 198).
o milenarismo, a crença no Juízo Final, o pavor do
Explicariam, ainda, o fenômeno das pro- Anti – Cristo, ambiente mental que resultaria nas
cissões em que os fiéis agregados por um único profecias do Conselheiro. São os trechos principais:
307
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Em 1896 há de rebanhos mil correr da praia para Finalmente, a que esboço de conclusão che-
o certão; então o certão virará praia e a praia virará gamos? Porque, para um trabalho de tão reduzida
certão”. Em 1899 ficarão as águas em sangue e o pretensão poderíamos, quando muito, acenar para
planeta há de aparecer no nascente com o raio de
sol que o ramo se confrontará na terra e a terra em
contornos, linhas gerais, ainda que abrindo pos-
algum lugar se confrontará no céu”. “Há de chover sibilidades de novos estudos. Assim, acreditamos
uma chuva de estrelas e ahi será o fim do mundo” ter respondido às indagações iniciais sobre quais
“... Das ondas do mar D. Sebastião sahirá com as imagens construídas por Euclides da Cunha
todo o seu exército. Desde o princípio do mundo em Os Sertões e como tais imagens transitam do
que encantou com todo o seu exército e o restituiu sertão para o medievo e vice-versa.
em guerra. (...) Neste dia quando sahir com seu
exército tira a todos no fio da espada deste papel Jacques Le Goff em excelente artigo intitu-
da República...” (CUNHA, 1985, 223). lado As Idades Médias de Michelet analisa como
este historiador francês passeia sobre o medievo, a
Para Euclides, que o repete sempre, trata-se de princípio para reabilitá-la e depois, em intervalo de
uma visão “tumultuária”. Nem por isso, entretanto, uma década, para condená-la. Da “Bela Idade Mé-
deixa de registrar uma atitude mental dos sertanejos dia – 1833-1844” à “sombria Idade Média - 1855”,
postos diante da morte, ou melhor, na prática do portanto, Michelet transita sobre diferentes Idades
culto aos mortos que se traduz na crença da vida Médias. Neste ponto, talvez seja conveniente fe-
após a morte, da morte como libertação e salvação. charmos este trabalho indicando comparativamente
E o vaqueiro [...] estaca o cavalo, ante o humil- algumas semelhanças entre Michelet e Euclides
de monumento – uma cruz sobre pedras arru- da Cunha, pelo que apresentam de semelhança e
madas – e a cabeça descoberta, passa vagaroso, diferenças no esforço de compreender, por meio
rezando pela salvação de quem ele nunca viu de métodos retrospectivos, problemas contemporâ-
talvez, talvez de um inimigo. A terra é o exílio neos. Michelet, assim como Euclides, às voltas com
insuportável, o morto um bem aventurado
sempre (CUNHA, 1985, p. 201).
o desafio da construção nacional, da consolidação
da república, das origens identitárias.
E continua com exemplo marcante de atitude A Idade Média com a qual se deparam é
diante da morte de uma criança, de como a vida profunda e compreendê-la requer abordagens dos
continua na morte, de como a morte é uma festa: hábitos cotidianos, nas suas crenças, nos seus com-
O falecimento de uma criança é um dia de festa. portamentos, nas suas mentalidades. Conforme Le
Ressoam as violas na cabana dos pobres pais, Goff, na sua “longa duração [...] é o passado primor-
jubilosos entre lágrimas; [...] enquanto, uma dial onde a nossa identidade coletiva, busca angus-
banda, entre duas velas de carnaúba, coroado
tiada das sociedades atuais, adquiriu determinadas
de flores, o anjinho exposto espelha, no último
sorriso paralisado, a felicidade suprema de volta características essenciais” (LE GOFF, 1980, p.13).
para os céus, para a felicidade eterna – que é a Michelet constrói uma imagem maternal, pois
preocupação dominadora das almas ingênuas e
acredita que o retorno à Idade Média é o retorno
primitivas (CUNHA: 1985, p. 201).
ao ventre. Euclides segue caminhos diferentes
e sem ligações diretas com Michelet. Descobre
Observamos, portanto, que são textos cri-
uma Idade Média deslocada no espaço, perma-
vados de julgamentos de quem escreve debaixo
nente na sua longa duração, maternal do mesmo
de uma perspectiva cientificista dominante no
modo, tanto romântica, quanto arrepiadora. Deles,
século XIX. Por trás dos escritos há uma crença
afirmaram seus contemporâneos ser Michelet um
de que tais realidades possam ser modificadas
“ressuscitador” e Euclides um “revelador”.
pelo progresso civilizador. Mas são por outro lado,
descrições preciosas cuja importância se já foi Euclides propõe a princípio um esquema
bem aquilatada por outros segmentos das ciências interpretativo determinista – a terra, o homem ,
sociais, requer ainda olhares de historiador. a luta. Para além do esquema, porém, articula a
308
Marcos Edilson Clemente

trama sem cair na temporalidade linear porque artigo publicado em 1978, na enciclopédia a Nova
investiga, como o faz com as diferentes camadas História. Aqui a utilizaremos como uma espécie de
geológicas, as diferentes camadas do tempo, desde epílogo para demonstrar comparativamente que,
o tempo curto do acontecimento imediato suscetível dotado de semelhante sentimento e paixão, Euclides
a tremores visíveis, passando pelo tempo médio das revela os sertões ao litoral, ao mundo: “Michelet
conjunturas políticas, até o tempo longo com o qual fez o pensamento com o seu coração; fez pensar o
se reencontra com a Idade Média. seu coração sobre todos os assuntos, a história dos
Enfim, se não for demais, fechamos com uma homens, da natureza, a moral, a religião. [...] Juiz
apreciação que Pierre Nora faz de Michelet, em único da verdade. Imaginação e paixão”.

309
REFERÊNCIAS FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos sobre a influência da cana sobre a
AGUIAR, Durval Vieira de. Descrições práticas da Província da Bahia: vida e a paisagem do Nordeste do Brasil. São Paulo: Global, 2004.
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2003 (Dissertação de mestrado) ___. História e memória. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP,
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Paulo: Brasiliense, 2004. Suassuna. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

310
A VoZ DiViNA Dos PoETAs:
Uma reflexão sobre aedos e a tradição oral
na Grécia Arcaica a partir dos Hinos Homéricos

Marília da Rocha Marques1


Sílvia Márcia Alves Siqueira2

E
m uma sociedade cuja tradição oral era a prin- estado passa a ter formas mais coletivas, e princi-
cipal forma de conservação de saberes, como palmente a crença do indivíduo grego se estabelece
pensar o acesso a informações relacionadas a nesse sentido coletivo (VERNANT, 2011: 24).
seus costumes, modos de vida, práticas, organização?
A oralidade será o principal modo de estrutura-
No mundo grego, em alguns períodos, a oralidade era
ção de toda uma sociedade, cuja solidificação toma
o único, ou o principal meio de educação e conserva-
a palavra como instrumento que legitima seu modo
ção da memória. Isto se evidencia devido a escassez
de vida. Uma sociedade que crescerá em um espaço
de fontes materiais de determinadas épocas, e entre
administrado por homens, deixa os moldes palacianos
os principais vestígios deixados estão as grandes
de ser centralizada em um único chefe detentor do
obras literárias que hoje conhecemos, já que, numa
poder, e que tem sua religião incorporada aos moldes
sociedade até então ágrafa, a tradição oral era o meio
da cidade (polis). A religião será palco de toda a vida
pelo qual a cultura grega se constituiu.
do homem grego, e é pela poesia oral que a cultura
De acordo com Jean Pierre Vernant em sua helênica se estabelecerá. Isto porque a oralidade é
obra “Mito e Religião na Grécia Antiga”, a chega- uma característica de todas as sociedades antigas,
da do período arcaico (séc. VIII- VI a.C.) marca inclusive a Grécia homérica. Assim sendo, como
uma verdadeira revolução estrutural, fase em que praticamente toda sociedade é analfabeta, surge como
a estabilização começa a ser definida em relação figura fundamental o aedo, que através de sua poesia
a todas as mudanças que ocorrem na transição da transmitirá saberes, constituindo os moldes dessa
era palaciana micênica à fase homérica. Mas a nova Grécia. É dado a ele a possibilidade de constituir
mudança foi lenta, visto que toda uma estrutura valores, normas, que colocarão em suas narrativas,
estava sendo modificada, em relação a religião, tramas associadas ao divino, a heróis, construindo
pensamento, modo de vida, organização da casa, um tipo de manifestação religiosa, que o indivíduo
da esfera pública e da privada, etc. grego adotava desde seu nascimento.
É então que essa ‘revolução estrutural’ se soli- É necessário então conhecermos esse anunciador
difica, dando origens a novos espaços sociais, como do mundo grego. Os aedos, aoidoi da língua grega,
a Ágora, templos, e surge então o grande centro des- que significa cantores. O aedo era o cantor profissio-
sa organização, a polis que constituirá a nova forma nal, sua figura era considerada sagrada e profética,
de vida do homem grego. O privado dará lugar ao e através destes que a poesia e o mundo divino vem
público em diversas esferas, principalmente no es- até o público, movida de inúmeras representações.
paço do sagrado e do estado. O homem grego passa Acompanhadas de instrumentos, sempre eram
a gerir sua vida juntamente com a comunidade, o apresentadas no período arcaico em festivais, jogos,
1 Graduanda em História pela Universidade Estadual do Ceará/ARCHEA. festas, e essa tradição já é herança desde os tempos
2 Doutora em História Antiga e Docente da Universidade Estadual do Ceará/
ARCHEA. mais passados, na sociedade aristocrática.
311
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Mas o que realmente caracteriza um aedo e podemos relacioná-las como “aedos divinos”.
no mundo grego? Suas características são fun-
O canto dos aedos geralmente era intermedia-
damentais para se compreender suas funções. Os
do pelas musas, deusas que garantiam a veracidade
retratos mais comuns apresentam essa figura como
das narrativas desses poetas, na medida em que
uma pessoa cega, o que na Grécia antiga era uma
representavam a palavra divina, de modo que ao
qualidade importante porque não havia possibi-
intercederem por elas no início do seu canto, o aedo
lidade de não ser distraído por nada e ninguém,
se colocava como um interlocutor do mundo divino
possibilitando o aperfeiçoamento da sensibilidade,
o que garantia sua autenticidade de narrar sobre os
que era bastante desenvolvida o que permitia o
deuses e ao mesmo tempo, garantiam seu prestígio
contato direto com as divindades por meio dos
social por se acreditar que tinham essa influência di-
“olhos da alma”. Dito em outras palavras, confor-
vina. De acordo com o poeta Hesíodo, em Teogonia,
me Alexandre Rosa, os aedos, protagonistas do
as musas eram as praticantes do fazer poético no
processo educacional por meio da oralidade can-
tada, possuíam prestígio social, já que usufruíam âmbito divino, as que “alegravam o grande espírito
de prerrogativas naturais, concedidas aos nobres no Olimpo dizendo o presente, passado e o futuro
e aos deuses (ROSA, 2008, p. 16). Um aspecto vozes aliando” (Teogonia, v. 37-39).
interessante, sobre a aceitação da ausência de vi- Elas próprias eram representantes dessa
são merece reflexão pois, os gregos não julgavam poesia no mundo divino. Os aedos, nesse senti-
a cegueira como um defeito, ou obra do acaso, na do, seriam então estes representantes no mundo
verdade, consideravam um dom, concedido pelas mortal, recebendo diretamente essa ‘inspiração’
divindades, que retiravam a visão natural, para pelas Musas, como Hesíodo descreve,
colocar uma visão sobrenatural, possibilitando-os
Pelas Musas e pelo golpeante Apolo
assim, de cantarem com riquezas de detalhes sobre há cantores e citaristas sobre a terra, e por
os acontecimentos divinos (ROSA, 2008, p. 6), daí Zeus, reis.
deriva-se o elevado status especialmente pelo fato Feliz é quem as Musas
de os gregos acreditarem nesse contato íntimo que amam, doce de sua boca flui a voz (Teogonia,
eles tinham com as divindades. v. 99-102).

É importante se questionar que esses aedos ti- No hino homérico às Musas, o poeta coloca
nham para si o poder de criação e de estabelecimento que é graças a elas, a sua existência, e percebe-se
de normas, conceitos, que definiram a sociedade assim, a necessidade de sua aproximação com
grega, e temos que partir do pressuposto que é de essas divindades para a veracidade do seu canto:
fundamental importância, levar em consideração que
Começarei pelas Musas, por Apolo e por Zeus,
é uma criação fruto de uma época, de um determina-
pois graças às Musas e a Apolo, que fere de
do autor, e que nessas obras, está inserido toda uma longe, existem sobre a terra homens que can-
intencionalidade enquanto objeto histórico. tam e tocam a cítara e graças a Zeus, reis (Hino
Essa comunicação se alia a esta ideia, na qual homérico às Musas, v. 1- 4).
busca compreender este universo constituído por
aedos, e a partir disto entender primeiramente o É notável essa inspiração divina pelas Musas
que gerou a tradição oral, juntamente com o nas- da qual afirmavam serem portadores os aedos.
cimento da pólis e, logo depois, estabeleceu plena- Justamente por este fato, as Musas seriam então re-
mente a prática da poesia. Como os próprios aedos presentantes deste passado, sendo atemporal, ligando
referiram inúmeras vezes, eram interlocutores das os aedos então à memória, questão de fundamental
Musas, filhas de Zeus com Mnemosýne (memória), importância para os gregos. As musas seriam assim
deusas gregas que eram personificações das artes3, lírica com dança, especialmente a coral; Melpômene, da tragédia; Tália,
da comédia; Polímnia, dos hinos dedicados aos deuses e da pantomima;
3 As Musas eram a personificação das artes, nas quais os poetas se diziam e Urânia, da astronomia.
inspirados. Calíope era considerada a musa da poesia épica; Clio, da his- Ver: RIBEIRO JR., W.A. As musas. Portal Graecia Antiqua, São Carlos. Dispo-
tória; Euterpe, da música; Erato, da poesia lírica; Terpsícore, da poesia nível em www.greciantiga.org/arquivo.asp?num=0192. Consulta: 28/09/2013.

312
Marília da Rocha Marques / Sílvia Márcia Alves Siqueira

as guardiãs dessa memória social, como assinala Eric Mas então, como esse conjunto de crenças se
Havelock, o que elas dizem se resume adequadamen- estabelecia tão fortemente dentro da polis? Como
te como as coisas do presente e do passado, assim ele afetou fortemente essa formação do homem
como as do futuro, no qual nesse contexto, junto aos grego a ponto de ser um dos principais fundamen-
outros participantes, não se refere a novidades que se tos dessa nova civilização grega? A oralidade era
profetizarão, mas sim a uma tradição que continuará o maior modo de difusão de toda a cultura em
e permanecerá prescindível (HAVELOCK, 1986, comum da sociedade helênica. A Grécia ainda
p. 114), e essa tradição se permeava e se perpetuava estava consolidando gradativamente o uso da
por meio destes aedos, tornando-se assim também escrita e do alfabeto, que já existiam desde antes
legitimadores desta tradição. do tempo homérico, ainda na época micênica,
A memória representava esta imortalização descobertas arqueológicas comprovaram que,
dos acontecimentos passados de heróis, guerrei- mesmo na Estrutura Palaciana (1550-1100 a.C.),
ros, pois, para um grego, o que os aproximava uma escrita silábica comumente chamada Linear
do divino na questão da imortalidade era a me- B, da qual o grego teria surgido, era amplamente
mória, conforme Alexandre Moraes a memória utilizada (MORAES, 2011, p. 35).
dos gregos não correspondem de modo algum, A escrita se dava principalmente para fins
aos mesmos fins que a nossa; ela não visa, em administrativos e comerciais, e não tinha impor-
absoluto, reconstruir o passado segundo uma tância com relação a poesia e outros meios. Mas
perspectiva temporal (MORAES, 2011, p. 91), a
ela só retorna efetivamente por volta do século
memória buscava fazer valer os feitos do indiví-
VIII a.C., ainda relacionada somente ao uso ad-
duo mesmo depois de sua morte, imortalizando
ministrativo e apenas gradualmente a escrita vai
assim sua figura, aproximando-o do divino.
passando a fazer mais parte da cultura helênica
Os grandes deuses olímpicos então, tiveram e permeando os espaços da oralidade. Moraes
suas histórias narradas através principalmente ainda afirma que, a despeito da consolidação do
destes poemas homéricos, cuja importância ul- uso da escrita, a poesia – representante mais no-
trapassa sua figura principal. Mas Homero sem bre da tradição de oralidade helênica – manteve
dúvida, teve uma influência participativa muito seu estatuto e prestígio praticamente inalterados
além de seu tempo, sua poesia oral foi palco (MORAES, 2011, p. 37).
central até o final do século VI a.C., pois, logo
depois quando tem início o período clássico, a O aprendizado oral se fazia presente na
escrita já está consolidada e a prática oral vai sociedade, juntamente com a memória, que
exercer somente valor de apresentação. constituía o método com que os aedos transmi-
tiam sua narrativa. Vimos que na consolidação
É preciso se pensar que a religião, com seus da nova estrutura grega no período arcaico, o
deuses imortais, e o mundo mortal, de certa forma público ganha espaço no lugar do privado e isso
estão interligados, pois os acontecimentos segundo se deu também à poesia. Enquanto que na época
a literatura épica eram regidos pelas vontades divi- provinciana as récitas eram feitas nos palácios,
nas. Isso significa dizer que para a sociedade grega
chegando a ter caráter excludente, sendo apenas
o mundo imortal interferia diretamente no mortal,
para a aristocracia, com a emergência da polis a
pois até mesmo as características divinas que se
poesia também passa a ser de condição pública,
atribuíam aos deuses eram comuns com caracte-
onde o acesso a ela se torna mais fácil, indo aos
rísticas dos próprios mortais, pois quando se pensa
lugares públicos da pólis, aumentando mais ainda
em divindades gregas, sabe-se que no geral, os
sua condição de meio ‘educador’.
deuses tinham comportamentos, vontades, desejos
humanos, diferenciando-se pela sua imortalidade, Como Vernant afirma, no que concerne a
conforme Walter Burkert afirma, que a ação divina linguagem no Mundo Grego, a conservação da
e humana influenciam-se reciprocamente. massa de saberes “tradicionais”, veiculados por
313
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

certas narrativas, é instituída essencialmente de tabelecidas. Vernant considera então, que basta
duas maneiras: mediante uma tradição puramente dar margem a narrativas conhecidas desde a
oral e pela voz dos poetas. infância, em várias versões, e possível a várias
interpretações. Na verdade, estabelecer formas
Essa tradição oral era exercida de boca a
determinadas e fixas de um deus, por exemplo,
boca, nos lares, se ouvia desde criança, ao longo
não parece ser uma tarefa fácil, visto que estes
do tempo que se aprendia a falar, e contribuía para
possuíam diversos atributos, nomes, funções,
moldar o quadro mental em que os gregos são
e isso variava muito de seu local de culto, suas
muito naturalmente levados a imaginar o divino,
atribuições, suas determinadas funções. Aos
a situá-lo, a pensá-lo (VERNANT, 2006, p.15),
gregos não era determinado o culto de um deus
assim como por meio dos poetas que cantavam
exclusivo, ou um culto de cunho obrigatório que
nos espaços públicos, e que em suas narrativas
envolvesse dogmas (VERNANT, 2006, p.14).
enunciavam o mundo divino, acompanhados
por instrumentos ou outros meios de auxílio à A religião grega constituiu-se com cultos
fácil memorização. Esses espaços públicos onde a vários deuses, dentre os mais destacados
se passavam festivais, jogos, banquetes, festas, estão doze, na fase Olimpiana, que são Zeus,
tornavam-se verdadeiros palcos de uma atuação Poseidon, Hera, Deméter, Afrodite, Hermes,
que incitava a memória e promovia toda uma Ares, Hefesto, Dioniso, Atena, Apolo, e Ár-
dinâmica social. temis, contando ainda com Hades, visto que
este não habitava o Olimpo, mas sim o mundo
Fazer parte dessa cultura oral, crescer ou-
dos ínferos. Deuses estes, que tiveram papéis
vindo as narrativas épicas de deuses e heróis,
principais ou senão, mediadores das maiores
participando dos festivais religiosos onde eram
sagas épicas da Antiguidade. São deles que se
cantados hinos em referências aos deuses, tudo
derivam os 33 Hinos Homéricos. Definir a re-
isso era o modo de vida helênico. Negar isso
ligião grega talvez seja uma tarefa árdua, seja
significaria negar sua própria identidade, suas
por sua singularidade e histórias diversas, ou
raízes, seus ancestrais, e os gregos se preocupa-
principalmente por toda uma herança literária
ram muito com isso. A oralidade iniciou então
deixada a nós, principalmente a poesia grega,
um verdadeiro legado que nos fascina até hoje,
que foi a fonte documental mais importante para
as lendárias narrativas, mitos, e através disso os
que se conhecesse a religião.
fantásticos aedos e dentre eles, Homero. E mais
ainda, o exercício dessa oralidade criava e man- Inserido nesse contexto, a atividade poética
tinha o imaginário grego repleto de vida. serviu a esse “papel de espelho que devolvia ao
grupo humano sua própria imagem, permitindo-
A religião grega então dará forma a um
lhe apreender-se em sua dependência em relação
tipo específico de propagação que será seu
ao sagrado” (VERNANT, 2006, p. 17), colocando
palco central, as narrativas surgidas na época
para a comunidade a constituição de seus valo-
homérica, se desenvolvem, e dão lugar então, a
res, estabelecendo sua identidade própria. Isso
uma literatura épica desligada de raízes locais,
permite que o grupo seja fixo em uma tradição e
constituindo assim, o reconhecimento por toda a
uma cultura se forme e ultrapasse gerações por
Hélade (VERNANT, 2006, p. 42), elas abrange-
meio da oralidade. Vernant lança um questiona-
rão enorme quantidade de assuntos envolvendo
mento que nos cabe colocar aqui para reflexão: a
questões divinas, constituindo assim o conjunto
poesia então, sendo uma importante fonte, uma
de crenças que darão base a religião grega.
das principais relacionadas ao mundo grego, uma
Numa religião politeísta, não poderia ser literatura épica, poderia então ser considerada
diferente a enormidade de mitos e suas versões, objeto literário, ou ligada a religião, seria defi-
visto que a tradição religiosa não conhecia livro nidora de ritos, anunciadora do mundo divino,
sagrado, nem qualquer tipo de crenças fixas es- considerada como um objeto religioso?
314
Marília da Rocha Marques / Sílvia Márcia Alves Siqueira

Essa questão é respondida da seguinte maneira: Os hinos homéricos também fazem parte
o principal que se pode ter com relação ao antigos é desse modo estrutural do hexâmetro: divididos
que de qualquer forma, as narrativas eram conside- em 33 hinos dedicados a 22 divindades, estes
radas um caminho ao mundo divino, nos quais eles, Hinos não eram tão famosos quanto as sagas
continuam a reconhecer nelas o papel intelectual que épicas da Ilíada e Odisséia, e costumavam ser
lhes era comumente atribuído, na Grécia das cida- apresentados em festivais, jogos, espaços e even-
des-Estado, como instrumento de informação sobre tos públicos. Interessante destacar também que
o mundo do além. (VERNANT, 2006, p. 20). Deste essas festas, se constituíam como cenário muito
modo, cabe ao aedo organizar esses mitos, legitimar importante dentro da polis grega, pois sempre ce-
a cultura helênica, o definidor das tradições culturais, lebravam uma divindade, e isto sempre reforçava
não havia outro meio de colocar certa ‘ordem’ a quan- sua identidade coletiva (RIBEIRO, 2010, p. 41).
tidade variante de mitos e crenças. A figura do poeta Os hinos então, no geral, significavam colo-
vem estabelecer então esta ordem, definir o que se car o deus na presença do ritual. O aedo então,
passa no mundo dos imortais, cantar narrativas que, cantando o hino estabelece a presença da divinda-
estabelecem tanto a relação do mundo divino com o de mediado pelas Musas, fazendo assim o contato
mundano, assim como também colocar esse mesmo direto com o divino. Levando em consideração
mundo divino como o regente da vida do indivíduo. que os hinos foram compostos de acordo com a
Diante desse quadro poético do mundo grego, longa tradição oral, devem ter seu processo de
entre esses aedos, uma figura se destaca como sendo formação durante várias gerações de poetas. Des-
o referencial desta prática, Homero. Este poeta, que tes 33 hinos, seus aspectos são muito variados, e
segundo alguns debates é proveniente de Quios, e também porque além dos deuses olimpianos, são
se inclui na categoria geral que se supõe dos aedos, compostos de mais dez deuses, sendo no total 33
que era cego. Marcou tão profundamente a literatura hinos para 22 divindades. Eram cantados desde a
grega, que desde o período já chamado “homérico” época homérica, em festivais e foram manuscritos
o vasto repertório oral de narrativas não se fez sem por volta de 600 a.C. (RIBEIRO, 2010, p. 47).
a influência direta ou indireta de algum modo a Estes poemas, além de serem cantados nas
Homero. Mas a sua figura suscita um debate que festas públicas também podiam ser prelúdio de
sempre está em discussão quando a questão é levada narrativas mais longas, ou de rituais privados,
a saber a autoria de suas obras. não tendo exclusividade para os locais públicos.
Além dos grandes poemas épicos Ilíada e Odis- O h. Hom. 2 a Deméter era ligado a celebração
séia, Homero ainda leva a atribuição de autoria dos dos Mistérios de Elêusis, culto de Mistério cujos
Hinos Homéricos, mas é somente por estes terem a ritos não eram abertos ao público e somente aos
mesma estrutura dos poemas ditos ‘homéricos’ de que participavam da celebração.
versos em hexâmetro dactílico, estilo característico Segundo os estudos da edição organizada por
na poesia épica. Sem dúvida, sendo atribuído ao Wilson Ribeiro, os hinos assim, são divididos em
poeta de Quios ou não, essas narrativas possuem uma estrutura básica comum, isso é notável em to-
traços muito próximos e mostram principalmente dos os hinos: começa com uma introdução chamada
que independente do autor, tratam de um período comumente de inuocatio, onde o poeta invocava a
marcado profundamente pela tradição oral, e as divindade, por meio das Musas, e significava pri-
tentativas de descobrir a personalidade dos poetas meiramente colocar o deus na presença do espaço.
que compuseram as epopeias, bem como as manei- Este exemplo podemos ver no Hino Homérico a
ras pelas quais se deram suas composições, fizeram Afrodite, que se inicia “Conta-me, Musa, os trabalhos
surgir uma tradição de estudos chamada “questão de Afrodite de ouro” (Hino homérico a Afrodite, v.
homérica”, que se refere a investigação da autoria 1) ou seja, evoca a Musa para intermediar o canto,
relacionada a traços muito precisos em questão de ou simplesmente no Hino Homérico a Deméter,
contextualização, linguística e poética. onde apenas começa evocando a própria deusa, “A
315
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Deméter de belos cabelos, deusa augusta, começo a Tu, Deo, soberana de esplêndidos dons, senhora
entoar” (Hino homérico a Deméter, v. 1) trazedora das estações, e tua saúda o deus, é
o que acontece por exemplo filha, belíssima
Há também uma segunda parte do hino, que Perséfone – de boa vontade, em troca do meu
pode ser considerada como o argumento, seria a canto, dai-me vida aprazível. Depois me lem-
parte em que os atributos do deus são descritos, brarei de ti em outro canto. (Hino homérico a
Deméter, v. 492 – 495)
podendo contar seus mitos, algum feito, algum
episódio, ou algo que ligasse o deus à comuni-
Esse aviso no último verso do hino do qual
dade na qual estava acontecendo a récita. No
o poeta faz no h. Hom. 2 a Deméter, é para que
caso do Hino Homérico à Deméter, esta parte é
se inicie o h. Hom. 13: a Deméter, outro hino
importantíssima, pois, o hino era cantado nas ce-
oferecido a deusa, do qual consta apenas uma
rimônias dos mistérios de Elêusis, e a história do
entoação a deusa, e pede proteção a cidade, isso
mito fazia parte da celebração. A segunda parte distribuído em apenas três versos.
é chamada também de pars épica. É importante
destacar que nem todos os hinos possuem essa Nesse sentido, essas narrativas divinas es-
parte, podendo ser apenas pequenos versos com tavam intrinsecamente ligadas ao mundo grego
uma introdução e preces. Nesta parte, é relatado na medida em que correspondiam aos anseios do
algum feito do deus, acontecimento divino ou modo de vida dos indivíduos. Presentes no âmbito
publico, davam a possibilidade de aproximação
relacionado a um mito, como o de Deméter e o
do mortal com o imortal, questão de extrema im-
rapto de sua filha por Hades.
portância, pois, a religião representava os moldes
Na última parte, vemos o precatio, uma de interpretação e justificação da vida terrena,
espécie de preces, onde o poeta pede que o deus colocando o homem grego no centro do debate,
lhe abençoe pela tarefa de cantar cumprida, ou pois seus deuses foram feitos por eles próprios e
oferece um próximo canto, visível também no cantados e representados por uma figura central
Hino Homérico a Deméter, que afirma a força desta tradição oral, o aedo.

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Documentação Textual eletrônica de críticas e teorias de literatura. PPG-LET-UFRGS – Porto
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Tradução, Notas e Estudo. São Paulo: UNESP, 2010.
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MORAES, A. S. O Ofício de Homero. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012. Janeiro: Difel, 2003.
316
o imAGiNário soBrE o mAr
E o EsTATuTo soCiAL Dos “HomENs Do mAr”
NA ATENAs CLássiCA 1

Marla Rafaela Lima de Assunção2


Ana Lívia Bomfim Vieira

CoNsiDErAÇÕEs iNiCiAis

Tentaremos com este artigo, portanto, com-

O
s povos da antiguidade sempre desenvolveram
uma intensa, e por vezes, conflituosa relação preender como as sociedades antigas associaram
com o mar. Ao mesmo tempo que represen- um imaginário ambivalente ligado ao mar com
tava um caminho para a conquista de novas terras e os profissionais ligados a este espaço. Para tal,
comunicação com outros povos, este viabilizava o olharemos mais especificamente para a Atenas
desenvolvimento do comércio e dos mercados. Por dos séculos V e IV a.C e analisaremos como esta
isso, o domínio do mar era estritamente necessário sociedade valorou os homens do mar.
para a garantia do sustento de Atenas – cuja produção Primeiro, é preciso lembrar que a sociedade
era fragilizada pelas condições do solo, pobre e árido ateniense era bastante hierarquizada, com grupos
– e para a concretização dos seus planos de expansão. sociais que apresentavam lugar e identidade bem
O mar, então, representava força, poder, se- definidos, sem espaço para ambivalências. O modo
gurança, dominação, coragem e honra. (VIEIRA, de assegurar essa constituição seria pela aceitação
2005). Homero o apontava como lugar de heróis, de da alteridade, fortalecendo um ideal democrático de
coragem e astúcia, não havendo lugar para medo. que todos os cidadãos são iguais e livres.
Apesar disso, não descartava o elemento do perigo Dessa forma, os pescadores vão buscar construir
ao retratar as dificuldades enfrentadas por Ulysses, uma identidade de grupo por meio, principalmente,
as tempestades e o seu naufrágio. do divino. Observa-se a defesa de ritos próprios e de
Em relação às práticas econômicas associadas deuses (Poseidon, Afrodite, Ártemis, Hermes entre
ao mar, a pesca se diferenciava por apresentar-se outros) associados à atividade marinha como forma
como base da alimentação ateniense, principalmen- de adaptação aos ditames culturais e sociais da pólis.
te da população mais pobre. Apesar de apresentar Mas, ainda podemos indagar se essa marginali-
um lugar específico na economia, os pescadores zação não perpassaria a defesa de uma prática e vida
dispunham de uma imagem controversa a ponto aristocrática. Pois, mesmo sob um regime democrático,
de serem considerados cidadãos menores3. Eles observa-se a permanência de valores aristocráticos no
constituíam um grupo social que ficava associado centro urbano. Esse é um motivo bastante razoável para
a homens fracos e sem coragem4. a existência de pouquíssimos fragmentos textuais e
1 Este trabalho se insere no projeto “As relações entre o imaginário sobre o imagéticos sobre o ofício do pescador.
mar e as ambivalências sociais dos ‘homens do mar’ nas sociedades antigas”
sob orientação da Prof. Dra. Ana Livia Bomfim Vieira.
2 Graduanda em História na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA/ No que diz respeito ao percurso metodológico da
Mnenosyne). Email: maah_rafaela@hotmail.com
3 Platão condena a prática da pesca, considerando-a um trabalho indigno para
pesquisa, realizou-se no primeiro momento a seleção e
um cidadão. Não se observa nenhuma vinculação dos pescadores a uma condi- análise de obras específicas à atividade de caça e pesca
ção de escravo ou meteco – estrangeiro domiciliado − pelos autores estudados.
4 A defesa de um ideal hoplita (cidadão-guerreiro) que contrapõem caça terres- tre e marítima vai assimilar o pescador enquanto um caçador inferior.

317
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

no contexto da Grécia Antiga − em especial a pólis abastados da sociedade ateniense, estando mais
ateniense. Além das obras específicas procedeu-se a limitado à população empobrecida. Homero, por
leitura de obras teóricas que pudessem dar sustenção exemplo, já apresentava os produtos do mar como
aos conceitos de: sociedade de honra e vergonha, gêneros a serem consumidos apenas em caso de
identidade e ambivalência. Por último foi realizado necessidade (ODISSÉIA, IV, 368-369).
o levantamento e a análise de documentação arqueo-
É claro, que nesse primeiro momento ainda
lógica e textual − Homero, Platão e Hesíodo. temos uma sociedade baseada em uma economia
A análise dessa documentação textual é basea- agro-pastoril, em que os rebanhos são signos de sta-
da no método lexical de Françoise Frontisi-Ducroux tus e a carne bovina um alimento dos setores nobres.
(1975) − no significado e no valor atribuído ao Somente a partir do século Vº a.C., em de-
termo alieus, pescador. Em relação à documen- corrência do desenvolvimento dos ‘mercados’
tação arqueológica, apontamos os trabalhos de de peixe, em especial o caso de Pireu − centro
Claude Bérard (1983) e Claude Calame (1986) que comercial de produtos estrangeiros e grande mer-
apresentam a imagem enquanto sistema de signos cado local (PANAGOS, 1997) – o peixe vai passar
criadores de significados (código de leitura). Ambas a dominar as mesas dos atenienses em geral.
as abordagens favorecem a percepção e construção
do cotidiano do pescador, apreendendo seus valores Contrariando a noção de economia antiga
e o espaço em que se inseriam nesta sociedade. adotada por Finley e ainda em voga, a economia
grega baseava-se na interligação das atividades
No geral, podemos perceber uma desvalo- agrícola, comercial e artesanal. O modelo de Moses
rização do pescador em vista do imaginário de I. Finley credita que o mundo antigo conheceu um
medo atribuído ao mar e o estatuto econômico da modelo único de economia (agricultura), no qual
pesca. Apesar disso, é importante discutir seu lugar os aspectos ligados ao trabalho, produção, trocas e
social/político e o porquê deste transitar na rela- riquezas permaneceram inalterados no período VIII
ção selvageria/civilização para compreendermos séc. a.C – IV séc d. C. (FINLEY, 1986).
o porquê da defesa de uma identidade enquanto
grupo social e ativo na pólis ateniense. Por ser uma discussão recente, o estudo da rele-
vância da pesca na economia grega ainda é pautada
por diversas contradições e negações. E, embora
A MÉTIS DA AmBiVALÊNCiA não possamos falar em uma “indústria de pesca”, é
Dos HomENs Do mAr impossível sustentar que a pesca era uma atividade
simplesmente subordinada, ignorando a sua impor-
A questão da ambivalência dos homens do tância para o equilíbrio da economia ateniense.
mar na Atenas Clássica baseia-se na relação exis- De fato, a grande ironia se concentra na im-
tente entre a significância econômica da pesca portância da pesca enquanto atividade de sustento
para a pólis e no status atribuído aos pescadores. (nunca representando um ideal econômico – como
Diante disso, destacaremos os motivos para essa a agricultura –, somente uma necessidade) em
marginalização e o processo de construção de sig- detrimento dos homens que a exerciam. Tal fato,
nos identitários – defesa de ritos e deuses próprios explicado principalmente pelo imaginário de medo
– como forma de integração e definição social e repulsa atribuído aos aspectos marítimos, acabava
por parte desses pescadores na pólis ateniense. se estendendo à todos que apresentassem ligações
Durante toda a antiguidade a pesca foi uma com o mar (homens e deuses). Isso nos leva a crer
atividade bastante significativa, apesar do peixe na existência de um estatuto ambivalente tanto do
não ser considerado um alimento nobre. Até o pescador como da pesca no cenário ateniense.
início do século VI a.C., o peixe não apresenta- Entre os demais fatores que explicam o status
va lugar de destaque na mesa dos setores mais ambivalente dos homens do mar, destacam-se:
318
Marla Rafaela Lima de Assunção / Ana Lívia Bonfim Vieira

• a métis do pescador − caracterizada pela agilidade, Os pratos áticos de figuras vermelhas também
o talento de dissimulação e a vigilância. (OPPIEN, são ótimas fontes para pensarmos os rituais, princi-
Halieutica, III, 41-43). Todas essas qualidades garan- palmente, quando levamos em conta que a maioria
tiriam ao bom pescador resultados satisfatórios, pois
é “preciso ao pescador um espírito pleno de sutilezas
foi encontrada em cemitérios e templos. Provavel-
(polupaípalos) e de prudência (noémon) porque os mente, foram oferendas ou suportes para a oferta
peixes, pegos de repente em uma armadilha, ima- de peixes e outros animais marinhos em honra
ginam mil astúcias para escapar”. (OPPIEN, Op.Cit. dos deuses, já que a decoração dos vasos e pratos
III, 41-43; 45-46). Contudo, essa inteligência maleá- normalmente estava associada ao uso do objeto.
vel com capacidade de camuflar-se e adaptar-se, seria
similar à inteligência dos políticos ou dos sofistas.
Por isso, Platão depreciava a pesca e o pescador.
• condições de trabalho – longas e extenuantes
jornadas aliadas ao odor desagradável invibiali-
zavam tempos de ócio ou uma participação ativa
na vida política ateniense;
• aspecto físico – os corpos musculosos e bronzea-
dos fugiam ao estereótipo do belo grego;
Todos esses fatores acabaram corroborando para
a marginalização dos pescadores. Dessa forma, a
construção de uma identidade de grupo por meio do
divino foi um mecanismo de representação e inclusão
nessa sociedade hierárquica. Por meio da análise de
uma documentação arqueológica, podemos observar
a apropriação de ritos e divindades que eram-lhes
particulares e significativas.
Fonte: Prato ático de figuras vermelhas
Em relação aos ritos, nota-se a presença de – 375-350ª. C. Bern Museum
sacrifícios animais e de alguns signos ritualísticos
– a presença de um altar em honra dos deuses, a
faca sacrificial e a coroa de louro (Folhagem re-
lacionada a Apolo e Ártemis, deuses ligados aos o SAGRADO:
animais e ao sentido de purificação). Divindades marítimas
e o panteão dos pescadores
Como já foi dito, os atenienses apresentavam
uma relação conflituosa com o mar. Ao mesmo
tempo, que este representava uma saída econô-
mica e estratégico-militar para Atenas havia um
sentimento de temor e receio pelo desconhecido.
Essa imagem contraditória contribuiu para um
olhar de desconfiaça sobre as pessoas que tinham
proximidade com o mar.
O temor de que essa ambivalência pudesse
contaminar os cidadãos, transformando-os em
pessoas ardilosas, leva alguns autores a con-
Fonte: Kylix Ática de figuras negras
siderarem regulamentações que limitassem as
Fim do VI séc aC. The J. Paul Getty Museum interações entre os habitantes do porto e do litoral
319
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

(ARISTÓTELES, Política, VII,1327b). Isso nos c) Triton - Filho de Poseidon e Anfitrite, Triton re-
leva a crer que o isolamento dos homens do mar presenta o líquido na sua forma mais assustadora.
esteja associado a própria dificuldade de integra- Dotado de sabedoria divina e considerado um pro-
tetor dos piedosos, tem sua imagem relacionada a
ção às normas e regras sociais impostas. Tendo
instabilidade e as mudanças bruscas. Sua própria
isso em mente, podemos desmistificar algumas aparência, metade homem e metade monstro
noções aristocrásticas que sobrepuseram a ima- marinho, reforça a ambivalência e a flexibilidade
gem do pescador nas fontes analisadas. das divindades marítimas.

Em relação às divindades marinhas, destaca- d) Ártemis - Filha de Zeus e Leto, irmã gêmea de
vam-se Nereu, Proteu, Poseidon e Triton. Apesar de Apolo, Ártemis também é conhecida como a
deusa da caça. É considerada a protetora e guar-
essas divindades serem as mais populares, o panteão
diã de todas as espécies de animais e do próprio
dos pescadores era composto, principalmente, por caçador. Seus domínios estendem-se dos bosques
Ártemis, Hermes e os selvagens Pan e Príapo5. e florestas até o mar.
a) Nereu e Proteu − Deuses opostos que repre- Ártemis era considerada uma guia para os
sentavam as diversas facetas e humores do mar,
pescadores, mas, também era uma deusa contra-
encontrados já na poesia homérica. Nereu é a perso-
nificação da bondade por excelência. Representa o ditória que protegia ou punia. Por essa razão, seria
mar calmo e tranquilo, um aliado com grande senso uma reguladora da fronteira entre a cultura e o
de justiça. Proteu, ao contrário, é mais desconfiado selvagem. Além disso, representava a reclusão,
e destaca-se pela capacidade de profetizar. Suas outra característica que a ligava aos pescadores
previsões são antecididas por mudanças de forma e sua invisibilidade social.
assustadoras, o que lhe confere uma imagem ne-
gativa e inconstante. Apesar disso, é considerado Um vermelho grelhado sobre o carvão e um
um deus sábio e benfeitor para com os justos. pequeno muge pescado no porto, eis, Ártemis,
o presente que eu te trago, eu, Ménis o pescador
b) Poseidon − Poseidon é geralmente associado a [...] É bem pobre a oferenda; mas, em troca, faça
um rei marítimo, exercendo sobre o mar o mesmo com que minhas redes sejam sempre cheias de
poder soberano que Zeus sobre o Olimpo. Assim produtos; porque é a você, deusa, que perten-
como as divindades Nereu e Proteu, Poseidon cem todas as redes (APOLONIDAS, Antologia
carrega em si as ambivalências do mar. Quando Palatina. VI, p.105).
representado calmo e pacífico, é associado aos
golfinhos; o seu oposto, colérico e perigoso, é
visto sempre na companhia de cavalos. e) Hermes - Hermes, flho de Zeus e Maia, é a divindade
das fronteiras e dos limites. Deus das passagens,
É considerado um deus dos pescadores. dos caminhos e das viagens, é honrado pelos co-
Sendo honrado com cultos públicos, sacrifícios merciantes e viajantes. Também vai ser cultuado
ou instrumentos de trabalho quando estes aban- pelos pescadores, em busca de proteção no espaço
donavam a atividade: marinho – espaço limite ao terrestre – e na passagem
O velho pescador Aminticus, renunciando aos tranquila para a nova fase de vida (velhice e morte).
trabalhos do mar, prende ao seu tridente uma
rede com chumbo nas franjas, e os olhos voltados Na Ilíada, Homero ainda aponta o caráter
para a praia ele disse à Poseidon enxugando suas astuto e enganador de Hermes. Essas qualidades
lágrimas: ‘Deus potente, eu muito trabalhei, você ligadas a métis da pesca, diferenciariam o bom e
sabe; mais eis que estou velho, e à velhice se junta
o mal pescador. Essas definições contraditórias,
a pobreza teimosa e devoradora. Alimente o que
resta ainda do velho, mas alimenta-o de bens a desconfiança e mais a alcunha de ‘deus dos
de terra, tu que reina à bom grado sobre a terra ladrões’, torna Hermes um ‘deus dos pequenos’.
e sobre as ondas. (MACEDONIOS, Antologia f) Pan e Príapo - Supostamente filhos de Hermes,
Palatina, VI, p.30). também são considerados ‘deuses dos pequenos’.
5 O panteão dos pescadores era composto, principalmente, por ‘deuses
pequenos’ ou marginalizados − com exceção de Poseidon e Ártemis. Seus Pan é representado com uma forma meio
cultos e oferendas derivavam do temor, da identificação ou desejos do pescador.
humana e meio animal – de rosto barbudo, com
320
Marla Rafaela Lima de Assunção / Ana Lívia Bonfim Vieira

dois cornos, o corpo peludo e patas de cabra. Deus voluntário rende ao Glauco de Antédon uma ima-
dos pastores e dos rebanhos, circula pelos bosques gem de benfeitor e a capacidade de profetizar. Ao
e montanhas. Sua relação com os pescadores se contrário do Glauco de Corinto, cuja imortalidade
dá por diversos fatores: a circulação em ambientes imposta por um juízo divino o transforma em um
limítrofes (passagem mar-terra), isolamento social deus taciturno, rancoroso e temido pelos homens
e distanciamento da vida urbana, o aspecto físico ligados ao mar.
(ambos transitam entre o selvagem e o civilizado)
Podemos perceber que a escolha de um Glau-
e qualitativas (características como a agilidade e
co em detrimento do outro caberá ao contexto
rapidez, essenciais na pesca). Também se exaltava o
em que for empregado. No caso dos pescadores,
Pan caçador por meio dos instrumentos de trabalho,
ironicamente, prevalece uma imagem similar ao
em troca de proteção e abundância na pesca.
Glauco de Corinto − o Glauco rancoroso e temido
Príapo é conhecido principalmente pelo por predizer catástrofes. Por isso, é honrado com
pênis de dimensões sobre-humanas − signo de preces e sacrifícios para que permaneça longe.
potência fecundadora e amuleto contra os ma-
Essa imagem negativa e incompleta acaba
les. Por isso, é considerado um deus rústico e,
perseguindo os pescadores, supostos portadores
como Pan, assegura a fertilidade dos campos e a
de desgraças e problemas. E, apesar de serem
fecundidade dos rebanhos. Relacionado com os
cidadãos livres e economicamente vitais para a
pescadores pela condição física – ambos fora do
alimentação ateniense, apresentam um estatuto
ideal de belo aceito socialmente – e também pelo
baixo que os fazem transitar entre espaços de
isolamento social, imposto por uma não adequa-
honra e vergonha na pólis ateniense.
ção ao espaço urbano e suas regras de conduta.
A identificação com divindades polêmicas e
contraditórias contribuiu para acentuar esse caráter CoNsiDErAÇÕEs FiNAis
ambivalente do pescador, colocando-o permanente-
mente em um estado de trânsito entre o selvagem e A análise dos documentos arqueológicos e das
civilizado. Este fato é mais notável quando analisa- obras literárias específicas nos permitiu discutir o
mos Glauco, literalmente, um deus pescador. funcionamento da sociedade ateniense e suas con-
tradições internas. Privilegiando o contexto dos
Existem duas supostas versões sobre a sua
pescadores e suas ambivalências sociais é possível
divindade:
demonstrar como os lugares sociais construídos
• Glauco de Antédon - Filho de Antédon (fundador da não eram estáticos.
cidade) e Alcione ou Poseidon e uma Naiade (ninfa
aquática com o dom da cura e da profecia), Glauco Os poucos documentos arqueológicos refe-
percebe que alguns dos peixes capturados ganhavam rentes à atividade da pesca, reforçam a ausência/
vida ao entrar em contato com certa erva. Ele decide ocultamento do pescador enquanto sujeito políti-
comer essa erva mágica e se torna imortal. Porém, co e público ateniense. Homens que estão sempre
não se liberta da sua velhice e, furioso, se joga do alto
sobre um julgamento desfavorável, em vista das
de um rochedo no mar. Quando volta do mergulho,
se vê transformado em uma divindade marinha. suas práticas, ritos ou divindades.

• Glauco de Corinto - Herdeiro do trono de Éfira Essa pesquisa analisou o estatuto do pescador
(futura Corinto), Glauco se joga na fonte da sem ignorar sua atuação na definição de uma iden-
imortalidade, mas, não consegue convencer os tidade de grupo. Dessa forma, pudemos concluir
outros de sua imortalidade. É jogado no mar e que a ambivalência desses homens esteve sempre
se transforma em uma divindade marinha.
relacionada ao fato de serem essenciais e ao mesmo
Em ambos os relatos, Glauco é um mortal que tempo temidos, ignorados; fato notável para com-
se torna imortal, não liberto de sua velhice e que preendermos como a atividade da pesca continua
tem sua mudança marcada pelo salto no mar. O ato sendo desfavorecida até os dias atuais.
321
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322
TENsÕEs EXisTENCiAis DE um soNHo:
O caráter pedagógico moral de Lo Somni (1399),
de Bernat Metge (1340-1413)

Matheus Corassa da Silva1


Ricardo Luiz Silveira da Costa2

iNTroDuÇÃo

Tothom de sana pensa pot conèxer que la amor ao sentido iluminista da História, que só enxer-
que m’havets portada no era simulada ne ficta, ga um linear e eterno progresso. Uma vez que é
ans partia de pits censer e clar; e que no era fun- fundamentada no estudo temporal do homem e de
dada em sperança de fer sos fets de mi, sinó em suas relações, a História é reflexo de nossos “altos
sola caritat (BERNAT METGE, 2007, p. 152). e baixos”, de nossas dúvidas, de nossos erros, de
Qualquer um que esteja em são juízo pode entender nossos acertos, enfim, do que é próprio de nossa
que o amor que me haveis tido não era simulado, existência. O mundo atual é, sem dúvida, espelho
nem fictício, mas brotava de um peito sincero e de um paradoxo que coloca, de um lado, a tão so-
transparente, e não era fundado na esperança de
nhada felicidade proporcionada pela avançadíssima
se aproveitar de mim, mas na caridade.3
tecnologia e, do outro, as depressões e insatisfações
osso mundo parece sucumbir. Semelhante crônicas das quais somos vítimas. Um quadro

N a um inseto que, envolto pelas fortes teias


de uma aranha, dá seu último suspiro.
Esse emaranhado que sufoca o mundo é formado
triste, mas real.
Qual a razão desse lamento introdutório? O
contexto histórico que analisaremos neste trabalho
pelo que há de mais nefando, de mais cruel: a se assemelha bastante, salvaguardadas as devidas
violência, a corrupção, o individualismo/egoísmo. proporções, ao que vivenciamos hoje. O século
Uma verdadeira crise de valores éticos e morais. XIV foi também palco de diversas mudanças,
Em que pese nosso pessimismo, o fato é que a não só socioeconômicas, mas políticas, culturais
Humanidade trilha sua trajetória por um caminho e ético-morais. Tempo da antítese crise versus
que parece não ter volta. Explico: embrutecidos prosperidade, como o nosso, refletida na produção
que estamos em tempos de pós-modernidade, não literária, filosófica e artística da época. Lo Somni
parece mais haver espaço para sentimentos puros e (1399), obra-prima do catalão Bernat Metge (1340-
elevados. O ódio, e tudo o que vem dele, tornou-se 1413) é um bom exemplo disso. Escrito entre 1396
cotidiano e seu antônimo, o amor, como belamente e 1399, o texto metgiano proporciona ao leitor
apresentado na epígrafe acima, foi desvanecido, uma enlevação tal que, inicialmente, parece-nos
esquecido, ignorado. Essa decadência que relata- uma fuga literária de um tempo dito tão terrível.
mos aqui, brevemente, faz parte, de fato, de uma Tenhamos, pois, cautela.
construção histórica, totalmente oposta, é claro, Em primeiro lugar, faz-se necessário historicizar
1 Graduado em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Email:
matheuscorassa@hotmail.com. Orientador: Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES). a época que circunda o centro de nossa pesquisa, Lo
2 Doutor em História. Docente do Departamento de Artes da UFES. Somni. Precisamos compreender o século XIV não só
3 Todas as traduções de extratos da fonte primária utilizadas nesse trabalho
foram, gentilmente, cedidas por Ricardo da Costa. em seus aspectos materiais, mas os valores mentais
323
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

e comportamentais projetados nesta centúria. Feito Um mundo novo se anunciava (COSTA, 2011).
isso, analisaremos um possível caráter pedagógico- Bem diferente daquele vivenciado até o século XIII.
moral da obra, uma vez que ela introjeta e manifesta Em meio ao período de recuperação pós-crises, sur-
literariamente as tensões existenciais íntimas de seu giam sociedades mais abastadas, mais opulentas e
autor, filho desses tempos de dissolução do que se esbanjadoras. Não nos interessa, aqui, saber o porquê
chamou, a posteriori, de um sistema unitário de disso, mas o fato é que, a partir do século XIV, tem-se
valores (BUTIÑÁ, 2002, 433). uma progressiva concentração monetária nas mãos de
determinadas famílias. A ascensão de “novos-ricos”.
Paulatinamente, o dinheiro começa a valer tanto
um muNDo NoVo quanto, ou mais, que a linhagem nobre. Ao mesmo
tempo, assistiu-se a um também progressivo forta-
Motivo de atenção especial por parte dos lecimento do Estado, sobretudo em aspectos fiscais.
medievalistas, o século XIV nos é apresentado, Essa atmosfera de prosperidade justifica, por exemplo,
ainda, de forma controversa. Se por um lado só se como a produção artístico-cultural não entrou em
viu crise, por outro, opulência, esbanjamento. Nem decadência no terrível século XIV (TUCHMAN,
oito, nem oitenta. Nem preto, nem branco. Cautela. 1989).4 Pelo contrário, as Artes não só não decaem
Ao estudar esse século, percebemos que as várias como se transformam: assumem tons profanos, sem,
interpretações historiográficas do período foram contudo, perder suas nuances de sagrado, o que revela
algo simplistas para um tempo tão complexo. As um processo de laicização naquele Outono da Idade
crises de fato existiram, mas não foram capazes, por Média (HUIZINGA, 2010).
si só, de determinarem toda a extensão do período. Desde fins do século XIII há uma linha divisória
O século XIV ficou famoso por uma sequência entre o mundo celeste e o terrestre. Filósofos como
de tragédias: a Grande Fome de 1315-1317 (e as Duns Escoto (1265-1308) e Guilherme de Ockham
diversas crises alimentícias mais regionalmente lo- (1285-1347), na contramão de Tomás de Aquino (1225-
calizadas), a disseminação da Peste Negra por toda 1274), separam os campos pertencentes, de um lado,
a Europa a partir de 1348, a Guerra dos Cem Anos à fé e à devoção individual e, de outro, ao perceptível,
(1337-1453) – além dos diversos conflitos que estou- ao mundo material. Aliada a isso estava uma acen-
raram por todo o continente, da Península Ibérica à tuação, paulatina, de interiorização do Cristianismo.
Planície Russa – e, não menos importante, o Grande Ressalte-se aqui que não há a menor preocupação com
Cisma do Ocidente (1378-1417) (PERROY, 1958; TU- o sobrenatural ou uma desvalorização vigorosa da
CHMAN, 1989; LE GOFF, 1995; BASCHET, 2009). Igreja como instituição, mas uma introjeção da práxis
Esse panorama catastrófico, contudo, não reflete o pa- cristã, processo lento que levava os fiéis a preferirem
norama geral europeu. É preciso nuançá-lo. Enquanto orações e mortificações voluntárias às liturgias coleti-
os reinos da França e da Inglaterra se dilaceravam em vas (DUBY; LACLOTTE, 2002, p. 102-104).
batalhas altamente destrutivas, por exemplo, o reino A concentração de renda, no aspecto mate-
de Portugal se lançava ao Atlântico e construía um rial, e a interiorização da fé, no aspecto trans-
verdadeiro império ultramarino. Gênova e Veneza cendental, revelam que, já naqueles tempos,
firmavam laços comerciais cada vez mais estreitos trilhavam-se os primeiros passos para o indivi-
com o Oriente e, a cada dia mais, as cidades italianas dualismo. Tal noção era uma grande novidade
esbanjavam suas riquezas e requintadas produções para um mundo acostumado à coletividade, ao
artísticas, entrementes, as regiões a norte da França comunitário. Isso se refletia nas mais variadas
sofriam com a falta de provisões e com os efeitos da esferas do cotidiano. A religiosidade e o dinheiro
peste. “Se a convulsão geral de meados do século 4 Um dos Estados que tinha seus cofres mais bem alimentados era a
própria Igreja. Com sua sede transferida para Avignon desde 1309, os
interrompeu o crescimento momentaneamente, este recursos financeiros foram utilizados para exibir, cada vez mais, o poder
recomeçou logo a seguir, aqui e acolá, ainda com temporal do papado. Data, pois, desta época, uma belíssima produção
artística que ornou o Palais des Papes. Em meio a essa atmosfera de
mais vigor” (DUBY; LACLOTTE, 2002, p. 101). grande arrecadação, a corrupção era deliberada.

324
Matheus Corassa da Silva / Ricardo Luiz Silveira da Costa

tornaram-se “objetos” da particularidade.5 A vida e O Sonho de Cipião, de Cícero (106-43 a.C.), A


citadina voltou a ser pujante e cada família tinha Consolação da Filosofia, de Boécio (480-525), além
um lar somente, e tão somente, para si. A ideia de obras dos renascentistas florentinos, como Pe-
político-espiritual de uma Cristandade ocidental trarca (1304-1374), Dante (1265-1321) e Boccaccio
unificada deu lugar, gradativamente, às “cristan- (1313-1375), o que justifica seu pioneirismo huma-
dades locais” que, mais tarde, seriam conhecidas nista. Os escritos mais conhecidos do autor são o
como nações. Individualismo esse que, em suas Livro da Fortuna e da Prudência (c. 1381), Ovídio
últimas consequências, evoluiria para o orgulho enamorado, Valter e Griselda (c. 1388) além, é claro,
e para o egoísmo, ambos diametralmente opostos de O Sonho (Lo Somni), sua obra prima.
à caridade e à humildade cristãs. Desconsolo. Solidão. É nessa atmosfera que
O século XIV parecia prenunciar um relativismo se inicia a narrativa, na melhor influência de Boé-
tal que permitia, por exemplo, que um indivíduo sepa- cio quando, sozinho no cárcere, é consolado pela
rasse a devoção das ações virtuosas, a teoria da prática. Filosofia. Preso também estava Metge e o consolo
Um sistema unitário de valores formado, inicialmente, pelo qual ansiava veio por seu antigo senhor e
pela tradição filosófica clássica, reafirmado e consoli- amigo, o recém-defunto D. João I, o Caçador.
dado pela doutrina católica, lentamente, dissolvia-se. Em esplêndidas vestes, apresentou-se ladeado
Esse rompimento com os valores, com os ideais e com por Orfeu e por Tirésias, notáveis personagens da
Mitologia greco-romana.6 A aparição do rei fizera
o senso das virtudes dava lugar, gradativamente, a
Metge recobrar o ânimo e o impelira a ouvir, uma
uma ética prática, voltada para o indivíduo, incapaz
vez mais, as admoestações de seu amo. A atmos-
de impor limites às ações humanas, muito menos de
fera mórbida é, assim, pouco a pouco substituída
medir a validez ou a invalidez desses atos. Valores e
pela alegria emocionada do reencontro.
interesses apresentavam-se, pois, cada vez mais relati-
vos e contraditórios (HELLER, 1980, apud BUTIÑÁ, Todo o debate entre o monarca e o autor-per-
2002, 433). Processo lento, mas profundo e brutal. sonagem, no Livro I, é direcionado para temas
elevados, como a iminência da morte e a imortali-
dade da alma. Esse primeiro momento da narrati-
Lo somNi E sEu CAráTEr va, por si só, revela um belíssimo diálogo ao estilo
PEDAGóGiCo morAL platônico no qual são discutidas e revisitadas a
grande maioria das considerações clássicas e
contemporâneas acerca da alma (COSTA, 2012).
Foi em meio a esse controverso contexto que
Uma erudição inebriante que se coloca, a todo o
viveu Bernat Metge, precursor do Humanismo em
momento, no sentindo de convencer nosso cético
terras ibéricas e um dos mais destacados funcionários
autor-personagem da excelsitude da vida eterna.
da Chancelaria do Reino de Aragão. Graças à inter-
cessão de seu padrasto, Ferrer Sayol, Metge chegou O autor projetou sobre si mesmo um per-
à corte e serviu, primeiramente, à rainha Leonor de sonagem que exacerba os principais desvios do
Sicília (1325-1375) e ao rei Pedro IV de Aragão, o espírito humanista daqueles tempos (o ceticismo,
Cerimonioso (1319-1387). Em 1375, passou a servir a laicidade, o hedonismo). Seja como for, Metge,
o futuro rei João I (1350-1396), o Caçador, e sua 6 Na Mitologia grega, Orfeu foi um herói, lembrado pelas belas melodias
que compunha com sua lira. Ficou famoso por adentrar ao Hades, após
esposa, Violante de Bar (1365-1431). adormecer Cérbero com o toque de seu instrumento, para resgatar Eurídice,
sua amada. Tirésias, famoso profeta, viveu sete anos como mulher. Após
retornar à sua forma original, foi escolhido por Zeus e Hera como árbitro
Na Chancelaria de João I, Metge teve contato num debate sobre o amor. Ao declarar que era a mulher quem sentia
com textos clássicos, como as Disputas Tusculanas maior prazer na prática sexual, desgostou a Hera que, por isso, cegou-o.
Em compensação, Zeus fez com que fosse capaz de predizer o futuro. A
5 Note-se aqui a progressiva afirmação do que se chamou, a posteriori, de presença dos dois junto ao espírito de D. João faz parte de sua pena no
devotio moderna (devoção moderna). Marcante nas doutrinas protestantes Além: como o rei se deleitava muito com a música dos menestréis, Orfeu
do século XVI em diante, já no século XIV a devoção moderna penetrava no foi designado para tocar com sua lira sons dissonantes e extremamente
catolicismo. A partir de tal concepção religiosa, a experiência com o sagrado desagradáveis; além disso, o monarca investigava o futuro, muitas vezes,
é algo tão íntimo que assume contornos de misticismo e de erotismo, isto é, por meio de adivinhações e, por isso, Tirésias fica em sua companhia e o
“um tête-à-tête amoroso com Deus” (DUBY; LACLOTTE, 2002, 108). recorda, incessantemente, dos dissabores que teve em vida.

325
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

ao mesmo tempo em que semeia o Humanismo Senhor, compadecido com a alma, inicialmente
no pensamento ibérico, critica o modelo ético- predisposta à perdição eterna, do autor-persona-
moral e intelectual imperante e o contradiz ao gem. O Caçador acrescentou, ainda, que logo o
apresentar-se como um expoente da renovação protagonista estaria livre de seu sofrimento, já
espiritual desse momento (BUTIÑÁ, 2002, 432). que era inocente. Num dos mais belos momentos
É no Livro II, contudo, que a narrativa atinge de todo o texto, Metge disse o que está descrito
um de seus pontos altos, quando D. João revela na epígrafe que principia este trabalho, quando
seu destino post mortem, o Purgatório. Questio- demonstra o profundo amor nutrido por seu
nado por seu fiel servo a respeito de tal sorte no senhor, essência das relações feudais. O rei reco-
Além, o Caçador narrou o seu calvário: tão logo mendou, por fim, que suas palavras não fossem
abandonou seu corpo, foi colocado diante de Jesus ocultadas, pois muitos ignorantes se certificariam
Cristo e do diabo para ser julgado. Acusado de daquilo que duvidavam, isto é, da Eternidade e
diversos pecados, como os deleites com a caça e da Benevolência divina.
com a música, dentre outros, fora imputado pelo O tratamento do tema do Cisma do Ocidente
maior deles: instigar o Cisma que fragmentou a por D. João evidencia a preocupação que nutria
Igreja entre o final do século XIV e o início do pelo seu amigo e servo. Mais que relatar o motivo
XV.7 Seu destino era o Inferno mas, graças à de estar no Purgatório, o rei prezava pela salvação
intercessão da Virgem Maria, foi conduzido ao da alma de Metge, para que sua fé não se abalasse
Purgatório. Mesmo favorecido pela Mãe de Deus, em meio a esse conflito. Inatingível, inquebrantável
o rei estava privado da glória celeste enquanto o fé daquela verdadeira religião, Una, Santa, Católica
Cisma não fosse superado. e Apostólica: era essa atitude devocional que con-
E per tal com res de assò no has fet, pertanys a duziria Metge ao Paraíso, lugar no qual a milícia
mi per justícia, axí com a amador del scisma, del celeste cantaria em uníssono as maravilhas de Deus.
qual tu e los altres princeps den món sós stats
nodridors. Carl os uns, per vostre propi interès e O Livro III principia com o discurso de Orfeu,
affecció desordonada, havets feta parta ab papa breve relato de sua vida e, sobretudo, de seus dissa-
Clement, e los altres ab Urbà; e ab tant, lo dit bores. A contragosto, mas atendendo ao pedido de
scisma há mesas raels que no seran arranchades
Metge, o herói descreveu minuciosamente o mundo
de gran temps (BERNAT METGE, 2007, p. 142).
inferior, lugar sombrio onde fora resgatar sua amada.
Mas como tu não fizesses nada disso, pertences a Numa clara manifestação humanista do autor, o local
mim [o diabo] por justiça, como amante do cisma
do qual tu e os outros príncipes do mundo foram descrito por Orfeu é um misto do Inferno cristão e
os fomentadores. Uns, pelo próprio interesse, do Hades pagão. Figuras mitológicas como Minos,
além de uma afeição desordenada, em apoio ao Radamanto, Éaco, as Parcas, as Fúrias, as Górgonas
papa Clemente; outros, a Urbano. Entrementes, o e, é claro, Plutão e Prosérpina, são marcantes na
cisma foi de tal modo arraigado que suas raízes narrativa. Contudo, o local construído imagetica-
não serão arrancadas por muito tempo.
mente pelo texto não é apenas aquele em que jazem
os mortos. Ao contrário, é onde padecem e sofrem
Ao final do Livro II, o rei revelou a Metge o os pecadores. Vejamos as penas destinadas, por
real motivo de sua aparição: D. João fora usado exemplo, aos cometedores dos sete pecados capitais:
por Deus como um verdadeiro pedagogo. Ao [...] Los ergullosos són gitats e turmentats em lo
revelar tais coisas a seu servo, o monarca ad- pus pregon loch que y és, entre molt gel e sutzura
moestava-o por seu Epicurismo e o educava na que∙ls cobre tots, exceptat lurs cares, de les quals
verdadeira fé, de modo a cumprir as ordens do hixen espessas flames de foch. Los luxuriosos són
7 Sobre a relação entre o Grande Cisma do Ocidente e Lo Somni, ver SILVA, turmentats per voltors qui incesantment mengen
Matheus Corassa da. O Grande Cisma do Ocidente (1378-1417) em O lurs fetges inmortals, los quals, aprés que són
Sonho (1399) de Bernat Metge. revista medievalis. vol. 2. Rio de Janeiro:
Nielim-UFRJ, 2013. p. 71-82. Disponível em: http://nielim.com/medievalis/
quaix menjats e destruïts, tornen renéxer; e molts
revista/02/06.pdf. Acesso em: 20 set 2013. porchs, sutzes e fort pudents, stan-los entorn, le-
326
Matheus Corassa da Silva / Ricardo Luiz Silveira da Costa

pant lurs boques e cuxes. Los avariciosos e aquells enorme fogueira que faz com que se movam con-
qui han maltractat lurs pares, frares e servidors, tinuamente, enquanto são açoitados nos rostos por
e qui de lurs riqueses no han volgut fer part a lus neve e por uma tempestade de vento e água gelada.
parentes e amichs, e han seguit guerres injustes e
enganat lurs senyors, tenen davant viandes reyal-
ment e meravellosa aparellades, e Megera, seent en Assim, a narrativa do Cisma e a descrição do
um lit sol∙lempnament parat, veda als dessús dits Inferno anunciam o caráter pedagógico-moral do
ab gran rigor prendre de la dita vianda, de la qual texto metgiano. As aparições do rei, de Orfeu e de
se desigen molt sadollar; puys done’ls a beure, ab Tirésias ao autor-personagem desvelam o que deveria
grans vaxells, aur fus bullent, qui∙ls hix enconti-
nent per la pus jusana part del cors. Los golosos ser o verdadeiro e legítimo direcionamento moral da
mengen lurs membres fort glotament; puys giten vida terrena: a busca incessante das coisas divinas,
per la bocha ço que han menjat e, encontinent, eternas, em detrimento das mundanas, fugazes. Mais
tornen-ho menjar. Los irosos corren amunt e aval que saber, por mera curiosidade, o que Metge deveria
com a rabiosos, e baten cruelmente si mateys e esperar do Inferno (ou do Purgatório), o conhecimento
aquells qui entorn los estan. Los invejosos giten
prévio de tais regiões do Além por parte das persona-
verí fort pudent per la bocha, puys tornen-lo beure;
e stan fort magres e descolorits, ab los ulls grochs gens doutrinaram nosso protagonista pelo temor, pavor
e plorosos. Los peresosos seen em cadires clavades de não se salvar, de perder, por toda a Eternidade, a
de claus fort larchs e spessos, e entorn d’aquells há glória divina, como apregoava a tradição cristã. Esse
gran foch, qui∙ls fa moure continuamente, e done’ls aspecto paradoxal do texto de Metge aponta as tensões
per la cara neu e gran tempesta de vent e d’aygua existenciais íntimas de que padecia nosso escritor, fato
gelada (BERNAT METGE, 2007, p. 176/178).
já apontado por Julia Butiñá (2002).
[...] Os orgulhosos são lançados e atormentados no
lugar mais profundo que ali existe, em meio a muito
gelo e imundícies que os cobrem inteiramente,
exceto seus rostos, dos quais saem espessas cha- CoNCLusÃo
mas de fogo. Os luxuriosos são atormentados por
abutres que incessantemente comem seus fígados, O tempo de Lo Somni foi o da lenta, porém
que são imortais, pois renascem após serem comi-
dos e destruídos. Além disso, há muitos porcos, progressiva, dissolução do sistema unitário de
imundos e malcheirosos, que lambem suas bocas valores nascido na Grécia Antiga e herdado pela
e suas coxas. Os avarentos e os que maltrataram Idade Média. Essa decadência da moral é uma
seus pais, irmãos e servidores, os que não quiseram solitária angústia que o escritor vivencia em
compartilhar suas riquezas com os parentes e ami- seu mundo interior, situação também destacada
gos, participaram de guerras injustas e enganaram
seus senhores, têm diante de si iguarias preparadas
por Butiñá (2002), em que pese seu otimismo
régia e maravilhosamente, enquanto Mégara, sen- analítico ao anunciar o literato catalão como
tada em um leito solenemente decorado, proíbe um pioneiro viajante na estrada que o Ocidente
rigorosamente a eles que comam dos alimentos percorreria nas centúrias seguintes.
com os desejam muito se saciar. Depois, dá-lhes
de beber, em grandes vasilhas, ouro fundido, fer- De fato, Metge foi mais uma vez pioneiro ao
vendo, que imediatamente lhes sai pela parte mais padecer dessas tensões e solucioná-las, aparente-
baixa do corpo. Os gulosos devoram seus membros mente, em seu íntimo. Contudo, esse conflito, ao
mui vorazmente; depois, expelem pela boca o que que parece, projetou-se em seu texto sem causar
comeram e, imediatamente, recomeçam a comer.
o devido impacto nos círculos humanistas do pe-
Os irados correm para cima e para baixo, como
se estivessem raivosos, e batem cruelmente em ríodo. O tempo ofuscou o brilho ético-moral de
si mesmos e naqueles que estão ao seu redor. Os Lo Somni. Nossa proposta, portanto, foi fazê-lo
invejosos expulsam um fétido veneno pela boca, cintilar uma vez mais e revelá-lo como um ver-
e depois tornam a bebê-lo; estão muito magros e dadeiro clarão na noite (LE GOFF, 1995, p. 149)
pálidos, com os olhos amarelos e lacrimejantes. Os
escura e fria do relativismo.
preguiçosos estão sentados em cadeiras cravadas
com pregos muito grossos, e ao seu redor há uma
327
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328
A imPorTÂNCiA DA sALVAÇÃo
PArA o HomEm mEDiEVAL:
Paraíso versus inferno
na obra Felix, O Livro das Maravilhas (1287-1288)

Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus1


Adriana Zierer

iNTroDuÇÃo

Segundo o historiador Le Goff, o imaginário

O
homem nunca conseguiu desvendar os
grandes mistérios da vida. Em todos os medieval é marcado fortemente pelo cristianismo
períodos e séculos os questionamentos e os elementos que dele fazem parte: “[...] o imagi-
sobre a vida pós-morte sempre fizeram parte da nário daquela época manifestava-se pela visão que
humanidade, assim a Igreja Católica considerada os homens tinham da própria divindade, objeto de
a intermediadora entre Deus e o homem pregava sua crença, de suas preces, de sua admiração” (LE
uma mensagem evangélica, tentando mostrar que GOFF, 2003, p. 63). O cristianismo é a religião da
a vida terrena é apenas uma passagem, algo mo- Salvação, a vida era apenas momentânea, era uma
mentâneo. O que de fato valeria a pena era levar passagem para a eternidade.
uma vida com bons comportamentos, para assim
poder alcançar um bom lugar na outra vida. Os cristãos tinham sua fé voltada incansa-
velmente para salvação da alma, e queriam se
Na Idade Média havia uma grande preocupação livrar dos tormentos do inferno, das penas, do
com a salvação da alma, o homem medieval tinha ele medo das coisas que não poderiam contemplar a
como um objetivo a ser alcançado. Cada fiel era respon- não ser depois da morte. Por isso eles viviam em
sável pela sua própria vida, existia as normas corretas
um constante combate lutando contra os prazeres
a serem seguidas, e o imaginário daquela sociedade
carnais, estavam cientes que a vida terrena era
estava diretamente ligado com Deus e o invisível.
simplesmente uma passagem para a glória ou para
Tratar sobre o imaginário cristão do homem o fogo eterno. Acreditavam que aqueles ainda que
medieval, significa muitas vezes escapar da nossa tivessem pecados teriam uma chance de redimi-los
capacidade de compreensão, já que “O imaginário no Purgatório, por onde passariam por tormentos
é tão significativo nas sociedades que é encarado temporários antes de atingir o Paraíso.
como uma realidade efetiva” (BARROS, 2004, p.
A própria Escritura define embora de forma
92). Não deve ser vista com preconceito, acredi-
insuficiente a ideia de um lugar bom e outro
tando que homem medieval seria um alienado, que
não compreendia os fenômenos da existência, toda ruim. Este último seria para aqueles que foram
e qualquer sociedade deve ser vista e compreendida infiéis, incrédulos e se voltaram contra a vontade
pelos elementos que dela fazem parte. divina e sofreriam o castigo eterno, aquele para
1 Graduanda em História Licenciatura pela Universidade Estadual do Mara-
os que buscaram cumprir a verdade e no final se
nhão/Mnemosyne. Este trabalho é resultado de bolsa de iniciação científica encontrariam com o criador, para desfrutarem do
(BIC-UEMA) desenvolvido em 2012-2013 sob orientação da Prof. Adriana
Zierer. Email: natasha_alhadef@hotmail.com Paraíso eternamente.
329
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Mas apesar desses relatos bíblicos eles são ensinamentos cristãos faziam parte da vida de
bastante insuficientes para conhecer verdadeira- cada indivíduo. Dessa forma a Salvação estava
mente o Paraíso e o Inferno, sendo possível saber ligada aos ensinos da igreja católica para poder
apenas algumas de suas características. Por isso alcançá-la, essa era preocupação constante do
era muito comum os relatos de viagens ao Além homem medieval, isso dependeria do comporta-
que “[...] apresentam-se sob a forma de ‘visões’ mento que teve enquanto a vida terrena, ou seja,
as quais beneficiavam sobretudo os monges uma o que o homem fez para agradar a Deus, que daria
vez que o mosteiro era considerado um lugar in- no Paraíso o amor eterno.·.
termediário entre a terra e o Além, entre a terra Ramon Llull (1232-1316), como muitos ou-
e o Paraíso” (LE GOFF, 2002, p. 27). Com isso tros homens tinha uma vida totalmente distante
queremos chamar atenção para a importância dos padrões cristãos. Llull diz que estava muito
das literaturas, ou seja, o valor imprescindível envolvido nas loucuras do mundo, em uma vida
de estudá-las sendo fontes importantes para totalmente mundana, seu coração estava voltado
compreensão do pensamento medieval. para uma amante que a amava com um amor
Segundo Le Goff “[...] as fontes literárias e adúltero. Ele conta que foi quando teve uma vi-
artísticas são privilegiadas no estudo do imagi- são do Cristo ressuscitado que o levou a ser um
nário medieval” (LE GOFF apud ZIERER, 2013, apologista do cristianismo
p. 130). São nas fontes literárias que também ocupado em ditar aquela vã canção, mirando
podemos nos debruçar como aquele homem se com insistência a parte direita viu Nosso Se-
via, se imaginava e pensava no seu tempo. nhor Deus Jesus Cristo suspenso com os braços
em cruz, muito dolorido e apaixonado. O qual
A obra Félix foi produzida por Ramon Llull visto, tendo grande temor em si mesmo, e dei-
(1288-1289), quando o mesmo fez sua primeira viagem xando todas aquelas coisas que tinha entre suas
para París. Tem como principal objetivo mostrar ao mãos, partiu, meteu-se em seu leito e cobriu-se
homem como seguir um bom caminho, ou seja, aquele ( LLULL, 1311, p.6).
que leva a salvação. Para chegar ao Paraíso o homem
deveria ter uma vida de renúncias, caso contrário Essas visões o fizeram repensar sobre sua vida
viveria eternamente no Inferno e seus tormentos. fútil que até aquele momento tinha vivido. Com
isso foi despertado nele uma paixão “[...] cogitou
qual serviço ele poderia fazer que fosse aceitável e
plausível a sua paixão” (LLULL, 1311, p. 8). Sentiu
um forte desejo de anunciar a verdade. O anseio de
FÉLiX, Ramon Llull nesse momento, após as visões, foi
o LiVro DAs mArAViLHAs: exatamente de expandir a fé Católica, aos infiéis
Paraíso versus inferno e incrédulos para que compreendesse o sentido da
vida e como poderiam alcançar a salvação.
Na Idade Média havia a constante preocupação Ao analisarmos a obra Félix, não se trata
com o destino após a morte. Influenciados apenas de uma narrativa comum, mas sua pro-
pela doutrina da Igreja, o principal objetivo da posta vai muito além. Ramon escreveu essa obra
população era aproximar-se do Reino Celeste,
no intuito de que o leitor, sendo esse tanto os fiéis
sendo o mundo terrestre considerado uma có-
pia imperfeita daquele. O alto, representado, como os infiéis fossem completamente tocados a
representado pelo Céu era associado a Deus fazerem uma análise de sua vida. É interessante
e ao macrocosmos, local onde habitavam o como autor usa de diversos exemplos, cada um
Criador e os Anjos (ZIERER, 2013, p.31). com uma lição moral, com objetivo central fa-
zer com que o homem alcance a salvação, com
O Além sem dúvida foi um dos temas que mudanças de hábitos mantendo uma vida santa.
a Igreja mas difundiu para aquela sociedade, os Para Llull o mundo só poderia ser reformado se
330
Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus / Adriana Zierer

os fiéis fossem educados na religião e os infiéis homem medieval (SCHMITT, 2002, p. 30) e também
fossem convertidos através do diálogo pela razão seria uma espécie de auxílio, porque “O homem nada
(BONNER apud COSTA, 2009, p. 15). pode contra a morte, mas-com a ajuda de Deus-lhe é
Para Ramon Llull, o princípio da busca do possível evitar penas eternas” (DELUMEAU, 2002,
conhecimento deve ser livre de julgamento pré- p. 51), pois “[...] os justos permanecerão na glória que
vios. A verdade é encontrada somente quando se não terá fim após a ressurreição” (LÚLIO, 2009,
inicia a investigação com uma razão que admita p.36). Diante disso o autor chama atenção para uma
todas as possibilidades podem ser verdadeiras. vida pós-morte, a qual somente os justos e bons
Portanto, o entender é superior ao crer. Para se
permaneceriam na glória eterna. “[...] que Deus é
conseguir isso, há ferramentas filosóficas- Ra-
mon afirma que há três espécies de “se”: que quem ressuscitará os bons e maus dará a glória por
a duvida (que ele chama de duvidativa), a que todos os tempos aos homens bons e penas aos maus,
afirma (“afirmativa”) e a que nega (“negativa”). e Deus é aquela coisa que faz chover, florescer, e
O entendimento do investigador deve supor que frutificar, o que dá a vida e sustenta tudo quanto
ambas (afirmativa e negativa) são possíveis, “... existe”. (LÚLIO, 2009, p. 41).
e que não se ligue com o crer, que não é seu
ato, mas com o entender”. Por esse motivo, os Havia um plano terreno e espiritual para o
argumentos lógicos nunca podem ser baseados homem medieval (SCHMITT, 2002, p. 304). Ele
em citações de autoridades, mas somente pela deveria seguir os padrões cristãos que o levariam
razão. (COSTA, 2006, grifo do autor).
a ter uma vida de acordo com aquilo que a Igreja
pregava, a ter uma boa doutrina. Dessa forma a
Assim, Ramon Llull deseja que os homens vida terrena deveria ser vista como algo passagei-
do seu tempo ao lerem a obra busquem alcançar ro, o homem deveria está ligado à vontade divina.
a salvação, ele estava preocupado em provar as
verdades do cristianismo e converter os infiéis, A decisão estava sobre cada indivíduo, ele
pois à medida que fossem lendo e acompanhando seria o responsável por qual conduta de vida es-
os passos do protagonista havia uma espécie de colher através do seu livre-arbítrio. Aqueles que
convite ao leitor para também conhecer a Deus, se purificassem dia após dia, santificassem o seu
seu poder e pensar, sobretudo sobre a vida e as corpo, honrassem a Deus e a Santa Igreja Católica
faltas que estivessem cometendo, caso não esti- alcançariam um lugar especial na eternidade segun-
vessem agradando a vontade divina. Por isso o do o pensamento cristão. Caso contrário, arderiam
termo Maravilhar-se quer dizer pura admiração, eternamente nas profundezas do inferno: “O destino
pois o protagonista fica todo tempo admirado com da humanidade ressuscitada não depende apenas da
uma sociedade longe dos padrões cristãos, busca vontade de Deus todo-poderoso, pois este respeita
entender mais sobre Deus. O jovem Félix contem- as regras que fixou, fazendo a situação dos homens
pla, pergunta, observa, medita, se surpreende e se e mulheres no Além depender de como se compor-
maravilha (BONNER apud COSTA, 2013, p.2). taram durante sua vida terrena” (LE GOFF, 2002
p. 21.). A luta era constante, mas:
O eremita que estava separado para aprender
Sobre esse campo de batalha de vida ou morte
mais de Deus faz essa declaração, após Félix se ver
que é o mundo o homem tem por aliados Deus,
duvidoso da existência de Deus. O eremita tenta a virgem, os santos, os anjos e a igreja e sobre
mostrar que Deus existe, assim como também o tudo, a sua fé e suas virtudes; mas tem também
diabo estava pronto a tentá-lo, ou seja, desviá-lo do inimigos: Satã, os demônios, os heréticos e, so-
propósito para o qual foi designado. Diante disso bretudo, seus vícios e a vulnerabilidade advinda
nos deparamos com essas duas figuras essenciais do Pecado Original. A presença do Além deve
ser sempre consciente e viva para o cristão, pois
para a compreensão de mundo do homem Medieval,
arriscar a salvação a cada instante de sua exis-
Deus e o diabo, enquanto esse seria responsável pela tência, e mesmo se ele não está consciente, esse
maldade, aquele seria o criador de todas as coisas, combate por sua alma é travado sem trégua aqui
sendo um resumo de toda a concepção de mundo do embaixo (LE GOFF, 2002, p. 22, Grifo nosso).
331
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

A Igreja pregava uma mensagem evangélica, Assim Llull destaca que a primeira intenção
fundamentada em uma crença que era o além dual. para a qual todos foram criados, foi para amar e
A humanidade tinha um destino no Além que era conhecer Deus. Durante toda a viagem de Félix
consequência do comportamento aqui embaixo percebemos que ele buscou compreender mais
(BASCHET, 2006.p. 387). Llull destaca que dentro de Deus, por isso ele se questionava, buscava e
da sociedade muitos cometiam pecados em detri- entendia quanto poder existia no todo poderoso,
mento das vaidades mundanas, indo de encontro assim queria que todos fossem conhecedores
com a vontade divina. A vida terrena oferecia desse poder para alcançar a glória, a salvação,
muitos prazeres imediatos, dessa forma muitos se caso contrário receberiam penas eternas, por
desviavam do propósito para qual foi criado. terem se entregado ao pecado.
O pecado estabelece a dinâmica das relações
Diante do contexto que Ramon Llull viveu,
entre alma e corpo, que constituem a ‘ pessoa
estando no meio de um grande número de mul- medieval’ [...] a alma e o corpo vivem juntos
çumanos e judeus ele afirma “[...] as almas dos no indivíduo em estado de contínua tensão,
infiéis estão escorrendo noite e dia do mundo que por sua vez gera o pecado: aqui a carne
para o fogo perdurável” (LÚLIO, 2006. p. 66). concupiscente, fonte de impulsos dificilmen-
te refreáveis; ali um espírito enfraquecido,
Os infiéis segundo Llull já tinham a conde- assolado pelas paixões incapaz de governar
nação eterna, para ele Maomé foi um “[...] um sozinho o corpo que habita e tolhido em seu
homem enganador que fez um livro chamado Al- desejo de se voltar para o bem (CASAGRAN-
DE; VECCHIO, 2002, p. 337).
corão, e disse que lhe foi dado por Deus ao povo
dos sarracenos, dos quais sarracenos Maomé foi
Tratar desse tema, o pecado, é lembrar que
o iniciador”. (LLUL, 2010, p. 56). E os gentios
o homem vivia constantemente em luta contra o
seriam aqueles que não tinham leis, não tinham
mesmo. O pecado já brotava no homem desde o
Deus, estavam em grandes erros e opiniões e
nascimento, devido ao Pecado Original que tirou
Judeus não acreditavam na trindade, tudo isso
o homem do seu estado de perfeição para uma
para Ramon Llull significava uma extrema neces-
condição de dominação do pecado, quando Adão
sidade que aquela sociedade tinha de conhecer,
e Eva pecaram no Paraíso terrestre. A desobe-
amar e servir a Deus.
diência a Deus proporcionou ao homem viver
O inferno era caracterizado como um lugar assim, nesse constante combate. Dessa forma
de tormentas eternas. Lúcifer seria aquele que acreditar no filho de Deus, ou seja, na Encarna-
aplacaria os castigos a alma, cada pecador teria ção é o que poderia tirar o homem desse estado
um tipo de pena específica de acordo com seus de condenação “A Encarnação desencadeia um
pecados cometidos na terra. processo de salvação, de libertação do pecado; o
fim dos tempos assinala a condenação definitiva
A vontade de Deus foi ao criar o mundo ser
dos pecadores e a glória eterna dos não-peca-
amado e conhecido pelo homem, mas esse muitas
dores” (CASAGRANDE;VECCHIO, 2009, p.
vezes se desviava do propósito para o qual foi
337), se o homem não fosse salvo não poderia ser
criado, pondo muitas vezes a Salvação em risco,
cumprido a ordenação de Deus queria que todos
[...] pelo pecado as gentes se desviam da inten- pudessem alcançar o caminho da salvação, mas
ção para a qual foram criadas que é conhecer só aconteceria com a aqueles que “[...] estivessem
e amar a Deus. Mas mesmo que os homens
no verdadeiro caminho, os homens que tivessem
pecadores se desviem da finalidade para a
qual existem, Deus não desvia sua obra da-
se conservado no amor a Deus e as virtudes, e
quela finalidade para qual criou o homem Ele desamado os vícios” (LÚLIO, 2009, p. 77).
perdoa e dá glória e a outros dá pena pois O Nesse universo entendido como um imenso en-
desconhecem e O desamam (LÚLIO, 2009, p. trelaçamento de planos superpostos, o homem
63, grifo nosso). ocupava uma posição fundamental, pois por ter
332
Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus / Adriana Zierer

alma, pertencia ao mundo espiritual (mundo para um bom lugar. Félix ao se encontrar com um
dos anjos e das almas), e por ter um corpo ao pastor, esse faz a Deus tais declarações, reconhecen-
mundo material (das plantas, dos animais, do como será aquele bom lugar onde estarão aqueles
etc.) Daí o destaque dado à antropologia pelo
que tiveram uma vida pura e santa:
humanismo cristão do século XII, corrente da
qual Ramon pode ser incluído. (COSTA, 2006, [...] Vós sois luz e fonte de vida. Por isso, penso
Grifo do autor). que aquele lugar onde Vós vos representais aos
santos da glória seja iluminado de luz, luz que
Llull tenta mostrar repetitivamente que o criador aprece nas estrelas que estão no firmamento e
nos planetas. Naquela luz, Senhor, estarão os
fez todas as coisas e qual razão disso tudo “A princi-
corpos glorificados que serão iluminados pela
pal razão para Deus ter criado o mundo foi para ser luz do céu empíreo, e aqueles corpos, por sua
amado e conhecido pelo homem” (LÚLIO, 2009, p. vez, iluminarão ainda mais aquele céu que já
63), e no momento certo Deus levará todos os justos é luminoso (LÚLIO, 2006, p. 116).

Quadro 1 - Ensinamentos para a Salvação segundo Llull na obra Félix2


Elementos Félix, ou Livro das Maravilhas.
Crer na
Não se pode duvidar da Santa Trindade, já que sem crer nisso, o homem estaria em estado de danação (LÚLIO, 2009. p. 51).
trindade
[...]o homem pecador deseja viver por muito tempo para cometer delitos neste mundo e não ter a pena infernal. P. 46
Homem [...] o homem justo deseja viver por muito tempo neste mundo para poder servir muito a Deus e ter grande
glória no Paraíso” p.46
“É nesta vil condição, destinada á condenação, que se encontra em todo homem não batizado, pois pela ausên-
Batismo
cia do batismo ele está condenado à danação.”. p 86

[...]o pecado é a mudança da intenção e o desvio que o homem comete contra isso para o qual foi criado, e como o
O pecado
homem pode fazer esse desvio, pode pecar sem que o pecado seja nada enquanto criação ou intenção final.
[...] grande pena a alma terá no inferno, da glória que perdeu, pois a alma lembrará que, se tivesse sido salva, toda
a Vontade de Deus a amaria, toda a Bondade de Deus lhe daria bem, toda a Glória de Deus a glorificaria, e toda a
Inferno
Grandeza de Deus a magnificaria. Mas como está danada, perdeu todas as coisas e, pelo contrário, toda a Vontade de
Deus magnífica a pena que a alma suportará. (LÚLIO, 2006, p.339)
Paraíso “Os homens permanecerão na glória que não terá fim”. P.36

CoNCLusÃo

Diante disso vimos que Ramon Llull foi um Assim a obra mostra esse objetivo fundamen-
homem do seu tempo que, como muito outros, tal que seria levar o homem a reconhecer a primei-
acreditava que a vida era muito que um momento ra intenção pela qual foi criado, que seria amar e
terrestre, mas difundia uma mensagem evange- Honrar a Deus. Para que assim o homem trilhasse
lizadora sobre o Além. Dessa forma podemos um caminho perfeito para obter a salvação, caso
analisar que a Salvação era um objetivo do homem contrário iria para o inferno. Na atualidade muitos
medieval, visto que para alcançar o Paraíso o ho- seres humanos se preocupam com a sua salvação,
mem deveria cumprir regras que eram determina- o mesmo ocorria no período medieval, o que se
das pela igreja, mantendo um bom comportamento torna importante para refletirmos sobre o passado
através dos ensinamentos cristãos. para compreender o nosso presente.

2 Segundo Llull no Félix, “pela fé os homens estão no caminho da salvação”.

333
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334
ENsiNo DE HisTóriA mEDiEVAL
No CoNTEXTo EsCoLAr:
O livro didático, oficinas e desafios iniciais do projeto PIBID

Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus1


Júlia Constança Pereira Camêlo2

vemos um novo desafio na sala de aula: a melhor

O
texto tem como objetivo apresentar os
primeiros resultados que o trabalho da utilização dos livros e, em particular, o didático,
equipe do subprojeto do PIBID (Programa como importante ferramenta quando aliado a uma
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) de planejada estratégia de ação.
História/UEMA/São Luís na Escola Estadual de
Não podemos negligenciar as mudanças que
Ensino Médio “Bernardo Coelho Almeida” com o
ocorrem na sociedade. Muito pelo contrário, é
tema “Livro didático nosso de cada dia”. O projeto
preciso buscar as diversas formas e estratégias
tem como objetivo potencializar a utilização do livro
para o ensino, pois não podemos apenas fingir que
didático, por entendermos que ele tem sido há muito
os alunos estão aprendendo, mas devemos ter um
tempo uma ferramenta utilizada pelos professores das
compromisso com a aprendizagem deles. Assim,
mais diversas disciplinas. Percebendo a necessidade
não podemos acreditar que o uso da tecnologia será
de levar os alunos a interagirem e participarem de
a solução para os desafios; também não é lúcido
uma forma mais dinâmica das temáticas discutidas
nos limitarmos somente às formas tradicionais de
nos livros, planejamos uma oficina sobre imagens e
ensino, já que devemos aproveitar e acompanhar
a desenvolvemos. Reconhecendo as limitações que
as mudanças e transformações da sociedade, para
há nos livros, entendemos a necessidade de realizar
produzir formas de interação.
atividades fora da sala de aula, com capacidade para
agregar outros saberes e vivências dos alunos. Foi partindo dessa questão que nós, docente
e futura docente, na área de História, buscamos
Em um mundo cada vez mais tecnológico,
construir o conhecimento, juntamente com os
recursos tradicionais de ensino como (livro didá-
alunos do ensino médio, utilizando formas mais
tico e o quadro) se tornaram um desafio para os
dinâmicas, tirando-os da sala de aula, mostrando
profissionais na área da licenciatura, pois os alu-
que há conhecimento no livro didático e para além
nos estão tendo contato com as tecnologias cada
dele. Eles também contêm informações que podem
vez mais cedo. É preciso termos em mente que a
ser aperfeiçoadas e utilizadas nas atividades do
popularização da internet fez com que os alunos
cotidiano escolar. Dispusemo-nos a explorar outros
mudassem a sua forma de ver o mundo. Aqueles
recursos, dentre eles, data show, filmes, etc. por
que já têm o contado com “o mundo tecnológico”,
serem recursos fundamentais na construção do
em sua grande maioria, distanciam-se muitas ve-
conhecimento tanto para discentes como docentes
zes do mundo real, para um virtual. Diante disso,
engajados na tarefa do aprendizado.
1 Graduanda do Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão,
bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID/ Muitas vezes o livro didático é a única referência
UEMA. Email: natasha_alhadef@hotmail.com
2 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará. Atualmente para o trabalho do professor, passando a assumir
é professora Adjunta da Universidade Estadual do Maranhão, coordenadora da até mesmo o papel de currículo e de definidor das
área de História do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência –
PIBID/UEMA, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura popular,
estratégias de ensino. O livro torna-se assim um
bumba-meu boi, ensino, pesquisa. importante suporte de conhecimentos e de mé-
335
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

todos para o ensino, servindo como orientação didático distribuído gratuitamente, na rede pública
para as atividades de produção e reprodução de de ensino. Além disso, tem aperfeiçoado significa-
conhecimento (PAVÃO, 2014, p. 03, grifo nosso). tivamente, não só a distribuição como a produção
dos livros, e muitas visões têm sido alteradas.
É importante notarmos que o livro didático pre-
cisa ser considerado como mais um recurso do qual Acreditamos que falta, além de recursos,
os professores podem dispor e não como uma única uma maior motivação por parte dos professores
ferramenta de ensino. Em alguns casos, ele pode ser que se limitam simplesmente ao que está no
considerado a mais acessível, além do quadro. Assim material didático, o que acaba empobrecendo
é necessário que cada professor sempre se mantenha as aulas, as discussões e o próprio aprendizado
atento aos livros, pois “os livros didáticos não podem do aluno. Dessa forma, entendemos o quanto é
veicular preconceitos e estereótipos, e nem conter importante que cada professor tenha autonomia
informações erradas ou desatualizadas”. na escolha do livro, e esteja preparado para fazer
essas escolhas. Entendemos que o livro, por ser
Para facilitar o trabalho profissional do profes- um investimento público, precisa mais do que
sor, é importante ter um livro que passe por análises nunca ser explorado, ao máximo.
precisas, para que informações equivocadas e postu-
ras impróprias possam ser abandonadas, pois, afinal, Outro ponto relevante a ser pensado é a
acabarão sendo reproduzidas pelos alunos, que mui- transmissão de valores ideológicos que os próprios
autores dos livros estão interassados em transmitir.
tas vezes só acabam memorizando e reproduzindo o
Por isso, é importante que o docente procure desfa-
que diz o livro didático.
zer esses mitos e concepções que comprometem a
Não podemos dar continuidade a equívocos, formação de um cidadão reprodutor de distorções
que permanecem nas muitas demandas da educação e enganos. O conhecimento não deve ser reprodu-
e do ensino. O principal objetivo que precisamos ter zido, mas construído, razão por que a intervenção
em mente é o de formar cidadãos críticos e partíci- dos alunos e posicionamento dos mesmos fará toda
pes dessa criticidade, para que elas não se tornem a diferença nos momentos de debates.
inócuas. Por isso, é fundamental, primeiramente,
Foi com essa preocupação que a equipe
que o livro adotado passe por uma seleção baseada
do projeto PIBID tem mantido a motivação de
em critérios que qualifiquem padrões de conteúdo,
encontrar no livro subsídios para uma prática
gramática, correntes de pensamento comprometidas
pedagógica que potencializa, enquanto recurso,
com a formação para a vida e para a preservação dela.
os livros didáticos de História. No Centro de En-
As pesquisadoras Sonia Regina Miranda e Tâ- sino Médio “Bernardo Coelho Almeida” (BCA),
nia Regina de Luca (2004) destacam que a censura o projeto possui 05 (cinco) alunos de Licenciatura
de assuntos no período militar nos livros permite que do Curso de História da Universidade Estadual
nos dias atuais ainda soframos consequências no que do Maranhão – UEMA, 01 (um) (supervisor de
diz respeito à formulação do livro didático, já que há área) e 01 (uma) Coordenadora da área. Aqui,
interesses por trás da organização do material. As relatamos nossa primeira atividade realizada fora
autoras ressaltam que havia uma preocupação em da sala de aula, antes de realizarmos as oficinas
não permitir que as pessoas se tornassem críticas. Imagens da Antiguidade e do Medievo.
Por isso, seria mais confortável somente assuntos
Sabemos da importância das imagens, e
nacionalistas, e não temáticas ou discussões que
como nossa cultura é muito visual, as imagens
desenvolvessem o senso crítico do aluno.
sempre chamam atenção, “por serem criadas
O PNLD (Programa Nacional do Livro Didá- como parte do ato de pensar” (LAPLANTINE,
tico), 2011, com o estabelecimento de critérios e a 1997, p 84.). Pode ser um veículo fundamental
participação dos professores na seleção dos livros para a construção do conhecimento, pois as ima-
está contribuindo com a qualidade do material gens, que possibilitam a construção de narrativas
336
Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus / Júlia Constança Pereira Camêlo

e são documentos de uma época, também figuram apresentamos aos alunos, o que possibilitou uma
como opções metodológicas (PAIVA, 2002). maior familiarização com o ambiente escolar. Era
É importante ressaltar que o projeto tem o momento em que a teoria estudada na academia,
como objetivo criar novas possibilidades de apren- com os professores de História (os textos lidos, as
dizagem, assim como estimular os alunos, tanto discussões) seria colocada em prática.
os graduandos como os da escola, a serem mais A nossa missão começava, e o trabalho tam-
participativos na construção do conhecimento prin- bém. Tivemos logo de imediato acesso ao material
cipalmente, o que é desenvolvido no âmbito escolar. didático, gostamos muito do livro, dos autores que
A equipe optou por apresentar imagens de faziam parte da organização dele, e foi muito bom
deuses gregos, por meio de um mural, para atender perceber que esses organizadores do livro didático
a curiosidade dos alunos, conversando com eles, ao escolhido pelo nosso supervisor fizeram parte das
mesmo tempo em que exibia imagens de um filme discussões dentro da academia. Assim, notamos a
que traz uma dança da Idade Média. Uma parte importância desse material, que é o livro e com-
dos alunos foi convidada para aprender os passos preendemos o suporte que ele pode dar, tanto ao
da dança e deixou outro grupo assistindo ao filme. professor como para o aluno.
Já outro grupo foi observar o painel montado com A autora Kátia Montavani faz o seguinte
imagens. Criou-se uma dinâmica de simultaneida- questionamento: “Já sabendo da importância do
de. Vimos nessa atividade o quanto o aluno percebe livro didático na formação cultural do povo de
a sua realidade e faz as relações com o passado forma geral, poderíamos nos perguntar: como
mediado pelo recurso que utilizamos. formar um cidadão sem oferecer ao aluno in-
Diante dos resultados e discussões, a partir formação que o farão refletir sobre seu papel
do desenvolvimento didático das atividades, ob- na sociedade?” (MONTANANI, 2009, p.39).
serva-se que quanto mais cedo uma aproximação Aqui, percebemos um dos pontos centrais que
com o ambiente escolar, maior o aperfeiçoando da nos inquieta bastante,quando o assunto é, prin-
trajetória acadêmica e profissional dos futuros do- cipalmente, o ensino da História, pois fará pouco
centes, levando em consideração a deficiência dessa sentido se não for levar o aluno a refletir sobre
prática na academia. A experiência vivida na escola seu papel na sociedade.
“Bernardo Coelho de Almeida” tem ampliado nossa
Um dos importantes cuidados é analisar o que
visão no que diz respeito à educação, mostrando as
descreve o livro, para não repetirmos propostas que
angústias e desafios na área da licenciatura.
podem estar presentes nos conteúdos que o livro di-
Mas também, conseguimos construir pro- dático oferece e carregam concepções que dificultam
postas e vislumbrar abordagens que contemplem a vida do estudante em sua realidade. É interessante
mais as percepções dos alunos, onde eles possam quando a autora Kátia Montanavi alerta para isso:
fazer relações, descobertas e criarem novas pos-
O livro didático de História tem cumprido a
sibilidades de compreensão, do tempo, do meio e função de veicular ideologia das classes do-
refletir sobre as informações que recebem. minantes e possibilitar a reprodução da ordem
burguesa. Muitos manuais apresentam conteúdo
“factual”, fragmentado, sem considerar a ideia
CoNHECENDo A EsCoLA E o de processo, estrutura e temporalidades. Dessa
forma, os livros didáticos de História podem
LiVro DiDáTiCo ser vistos como um instrumento de degradação
do ensino de História (DAVIES, 2005, p.1 apud
No principio do projeto, na escola, fomos MONTANAVI, p. 40).
primeiramente ter um contato com a parte física
da escola. Visitamos as salas, a diretoria, a sala É dessa forma que nos preocupamos em
dos professores, a biblioteca e, posteriormente, nos desenvolver um projeto que saísse de uma vi-
337
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

são tradicional da História, visto que por muito rELATos DA oFiCiNA


tempo foram ensinados somente fatos e exigido soBrE As imAGENs
que os alunos decorassem e pronto. Por isso,
“ANTiGAs E mEDiEVAis”:
concordamos com a autora Kátia Montanavi,
que ressalta em sua tese uma preocupação com
Pontos relevantes e vivência
os livros didáticos, e de que forma a História é na escola
passada. Não podemos mais aceitar os conteúdos
factuais, mas deixar que os alunos sejam mais Quando saiu o edital do projeto PIBID, ficamos
críticos e entendam seu papel e contribuição empolgadas, por se tratar de uma proposta já voltada
para a sociedade. para a área da docência. Entendemos que, para futu-
ros professores, quanto mais rápido for o contato com
Por outro lado também e fato que toda produ- a realidade da escola, da sala de aula, melhor. Nunca
ção e construção de conhecimento traz em si uma foi fácil manter a atenção de alunos, ainda mais com
concepção ideológica. Assim nossa preocupação tantos “atrativos” que a sociedade atual partilha. Não
é promover ensino, estratégias de ensino em que podemos nos focar somente nas metodologias já
a percepção, a ideologia do estudante seja ex- consideradas “ultrapassadas” por parte dos jovens,
pressa, para em seguida dialogar com ela. Porque ou confiar que o livro tenha condições de cumprir
entendemos que o conhecimento libertador se sozinho o desafio do ensino.
constrói nesse contato e no entendimento do que
o outro tem a expressar. Na verdade pensamos A partir dessas perspectivas, é possível perceber
em trabalhar formas que também promovam a o tamanho do desafio, no que diz respeito a área da
educação. Acreditamos que o papel do professor,
fala do estudante.
como mentor para o desenvolvimento do aluno,
Destarte que esta definição, fantástica, re- continua sendo de extrema importância.
sume muito bem uma das importantes funções
Percebendo a necessidade de levar os alunos
da História:
a interagirem e participarem de uma forma mais
a História não é a busca de um tempo homogê- dinâmica das temáticas discutidas nos livros e
neo e vazio, preenchido pelo historiador com
transformar positivamente o ensino de História nas
a sua visão dos acontecimentos, mas é muito
mais uma busca de repostas para ‘os agoras’. posteriores aulas, foi planejada uma oficina sobre
A História é um imenso campo de possibili- imagens, Oficinas: mitos e lendas na antiguidade
dades onde inúmeros ‘agoras’ irão questionar e medievo, separando dois importantes períodos da
momentos, trabalhar perspectivas, investigar história, a Idade Média e a Antiguidade.
pressupostos (BENJAMIN, 1986, p.222 APUD
RIBEIRO; BOVO, 2013. p.331). A princípio, enfrentamos alguns desafios na
confecção da oficina, devido à greve de ônibus,
Por isso, para uma melhor analise da História que nos levou a suspender a data prevista para a
é necessário ter-se em mente as diversas possibi- realização da oficina, o que atrasou um pouco nosso
lidades de compreendê-la. Assim, Benjamin des- calendário. Por outro lado, foi proveitoso selecionar
taca que o ponto central é a busca pelos “agoras”, imagens e organizar o ambiente onde seriam reali-
ou melhor, as respostas para os questionamentos, zadas as atividades.
que exigem percepção, análise e investigação. É O planejamento de uma oficina foi a primeira
nessa questão que nos preocupamos com o ensino atividade desenvolvida pelo grupo de alunos do curso
de História, para que ele passe a ter sentido, que de História da UEMA, participantes do projeto PI-
o conhecimento por trás do fato histórico tenho BID, no BCA. A princípio, foi bastante desafiador ter
significado e não se delimite em um espaço vazio que sair da posição de estudante para enfrentar a sala
e sem sentido, mas tenha um significado, sobre- de aula. O fato de sermos um grupo ajuda, mas não
tudo, quando se trata da aprendizagem. nos exime da responsabilidade de tomar a iniciativa,
338
Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus / Júlia Constança Pereira Camêlo

de pensar em uma estratégia que envolvesse os alu- ciência sobre o que tornou uma determinada
nos. Foi assim que surgiu a ideia de montarmos algo sociedade singular em comparação a outras
que pudesse retirá-los da sala de aula, para que eles (RIBEIRO; BOVO, 2013, p.331).
pudessem participar e ampliar seus conhecimentos.
Pensar na sociedade, nas transformações,
Por entendermos que muito dos alunos acabam
no passado, no presente, no futuro e no tempo
tendo certa aversão à disciplina História, chegando a
são alguns dos olhares que o ensino de Histó-
considera-la uma matéria maçante e repetitiva, que
ria proporciona para quem quer entender suas
não passa de meras decorebas, compreendemos as-
dimensões. Foi partindo dessa motivação que
sim o grande desafio de não nos tornamos repetitivos,
nos preocupamos em trabalhar com as imagens
mas tentar passar para eles o outro lado do saber his-
presentes nos livros deles, para estimular a
tórico, de uma forma mais dinâmica. Não queremos
percepção dos alunos, assim como para notar
aqui dizer que o livro didático não seja importante,
os questionamentos, as dúvidas e contribuições
mas acreditamos que o uso dele e outras atividades
deles para as temáticas discutidas.
possam junto aperfeiçoar a compreensão do aluno.
Quando tratamos sobre os deuses, queríamos
Trabalhamos com duas turmas do Ensino Médio
expressar como o homem sempre esteve em busca
juntas, num total de mais de setenta alunos, sabíamos
de conhecer-se e na mesma proporção o mundo.
do desafio que era manter a atenção deles voltada
Dessa forma, fizemos uma exposição de imagens
para o que estávamos apresentando, mas foi além do
para instigar neles a percepção, imaginação, e a
esperado, pois conseguimos a atenção deles. Como
compreensão do conhecimento. Perguntamos o
sempre, existem aqueles que optam por não participar,
que eles entendiam sobre o mito, e como isso era
por vergonha, timidez, etc. Dividimos em duas equi-
tão forte no início das primeiras sociedades e quais
pes e distribuímos uma fitinha para colocar no braço.
relações com os nossos dias, já que a história não
Queríamos nos aproximar mais e ganhar a “confiança”
pode ser entendida como “coisa do passado”, mas
deles, já que isso também faz parte do processo entre
está tão presente no que chamamos de “presente”.
aluno e professor, sendo nossa futura profissão.
Iniciamos a oficina falando sobre os deuses da Para nossa surpresa, muitos alunos ainda
Antiguidade, apresentando um vídeo que mostrava o estavam cheio de concepções erradas acerca do
que cada “deus” representava para aquele homem dos período medieval, ou nem mesmo sabiam nada
primeiros séculos, tentando primeiramente ouvi-los sobre essa época. Alguns ainda achavam que se
e aproveitar muito do conhecimento que os alunos tratava de “um período das trevas”, mas logo fa-
já tinham. Foi, na verdade, uma troca, pois muitos lamos que, muito pelo contrário, foi um momento
estavam atentos e disponíveis para aprender. da história, com muitos avanços e transformações
sociais. Além disso, foi cheio de particularidades
O que realmente queríamos era chamá-los á uma e legados que trazemos até os dias atuais.
discussão sobre as diferentes épocas da sociedade.
Tentar fazer com que eles percebessem que cada A discussão feita sobre a Idade Média teve
momento histórico teve e tem suas particularidades, o objetivo de instigar os alunos a perceberem al-
mas que algumas características ainda permanecem gumas continuidades no nosso tempo. A respeito
vivas na nossa sociedade, ou seja, é sempre impor- disso, temos a religião, ou melhor, as religiões que
tante tratar das rupturas e continuidades. têm crescido a cada dia, tentando suprir os ques-
tionamentos humanos sobre a vida, a morte e a
Pensar de forma histórica é se relacionar com vida pós-morte. Foi assim que destacamos o forte
o tempo e suas três dimensões: passado, presente
e futuro. Contextualizar o seu presente e estabe-
pensamento religioso para o homem medieval.
lecer relações de ruptura e de continuidade com Na Idade Média a religião era, com efeito, a mola
aquilo que já ocorreu. É constituir um domínio propulsora de toda a atividade pedagógica; o estu-
sobre a temporalidade, estabelecendo uma cons- do e a investigação não tinham finalidades em si
339
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

mesmas, mas endereçavam a busca da perfeição Na simples apresentação do passado, explicando


cristã; enfim, como diz Willmann, o elemento como era e como é. É importante criar situações
religioso ocupava a posição central da vida interior nas quais o sujeito seja impelido a compreender
da Idade média (BASCHET, 2002, p. 143). o porquê, as causas e as consequências, dos pro-
cessos de transformação e permanência entre o
Era isso que afligia o imaginário daquela so- passado e o presente e, principalmente, levá-lo
a compreender que são as indagações do presente
ciedade, pelo medo de não conseguir a tão desejada
que nos incitam a indagar o presente (OLIVEIRA,
salvação, já que tinha um lugar determinado para 2011, p.6 APUD RIBEIRO; BOVO, 2013. p.329).
cada um diante da sua conduta aqui na terra, ou
seja, os bons iriam para Paraíso, os maus para o Tratar sobre essas permanências é mais um
Inferno. Os espaços do Além podem ser atestados ponto da relevância do ensino da História, e como
nas escrituras “Nos três evangelhos ditos ‘sinóticos’, isso pode ser um estímulo para o aluno sempre tentar
a versão de Mateus (25, 31-46) diz que depois do relacionar o passado com o presente, e compreender
Juízo Final, no fim do mundo Cristo fará os bons que a história às vezes tem mais continuidades do
(os ‘justos’) sentarem-se a sua direita e os maus à que rupturas. Assim, por meio da exposição das
esquerda [...]” (LE GOFF, 2002, p. 23). imagens, dos debates, das perguntas e da dança,
As imagens que separamos para o período me- cumprimos nossa primeira etapa do projeto.
dieval retratavam sobre as questões principalmente
do imaginário medieval, que rompe com os limites
do real “O imaginário é tão significativo nas socie- CoNsiDErAÇÕEs
dades, que é encarado como uma realidade efetiva”
(Barros, 2004, p. 92). Outro aspecto que chamou Por meio do convívio, da oficina realizada,
atenção dos alunos foi o fato de a exposição das acreditamos que foi importante para ambos os
imagens em um painel ter possibilitado uma con- lados, pois se abriu um leque de ideias futuras, já
versa daqueles alunos interessados, curiosos com o que o projeto prossegue. A experiência que temos
grupo do PIBID. Separamos as imagens de forma vivido na escola só tem trazido benefícios, pelo fato
sequencial. Primeiro, falamos do paraíso, purgatório de se tratar de uma aproximação que todo estudante
e inferno, e deixamos a imagem do Juízo Final como de licenciatura precisa ter com o futuro ambiente de
a última, para que os alunos compreendessem me- trabalho. Assim, não só reconhecemos a importân-
lhor a lógica da Salvação para o homem Medieval. cia do livro didático, mas também entendemos as
limitações que há nele. É pensando nisso que con-
Outro ponto que nos chamou atenção foi no
tinuamos com esse objetivo de desenvolver outras
final da oficina, quando desafiamos as equipes a
atividades com os alunos. O livro foi nosso ponto de
fazerem uma dança Medieval. Levamos um vídeo
partida para que ocorressem ideias e a ação criativa.
que mostrava a dança, e foi um momento bastante
descontraído para os alunos e para nós, pois quebra- No final da oficina, montamos um mural para
mos um pouco da rotina deles, o que proporcionou cada aluno registrar o que tinha entendido, aprendido,
um resultado muito proveitoso, bem além das nossas e também para avaliar o que foi realizado, para que
expectativas, Mas o que nos causou impacto foi possam trazer contribuições ao nosso projeto. Muitos
ouvir uma aluna fazer menção à dança, comparan- escreveram que acharam a oficina divertida, que
do-a com a quadrilha, bastante comum nas festas aprenderam bastante, e que deveríamos continuar
juninas do nordeste brasileiro, particularmente no com mais atividades com eles. Isso nos deixou felizes,
Maranhão. Com isso, o simples ato de a menina ter e motivadas para pensarmos em outras propostas que
essa percepção, deixou clara a compreensão dela venham contribuir ainda mais com o desenvolvi-
acerca das continuidades, das permanências, mento dos alunos e a utilização dos livros didáticos.

340
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341
soBrE o EsTuDo DA NoBrEZA
mEDiEVAL PorTuGuEsA:
Algumas considerações

Neila M. de Souza1

N
ão parece intrigante que uma classe social cer e garantir a manutenção do seu poder, nesse
como a nobreza medieval do século XIII, caso através da força física. Suas relações com o
especialmente para nós a portuguesa, me- monarca, a Igreja, o campesinato e dentro do seu
reça tão poucos questionamentos pelo menos no que próprio meio aparecem como fundamentais para
diz respeito a sua relação com o poder? De fato, não entender como e de que forma esse grupo social
é que não haja qualquer tentativa nesse sentido, mas constitui e mantem seu poder naquela sociedade.
a maioria dirige-se ao seu estatuto simbólico e con- Para isso, penso ser necessário ir além da ideia de
sequentemente isso explicaria seu poder adquirido. nobreza como criadora de intrigas na corte. Sua
atuação política perpassa todos esses outros grupos
A mim, essa pergunta apareceu há pouco elencados e é muita clara no sentido de manter sua
tempo. Na verdade, ela vinha se formando desde o posição social, garantindo para isso a posse da ter-
término da dissertação de mestrado quando o tema ra, de cargos palacianos e de posições eclesiásticas.
com o qual trabalhava, a cavalaria, já não mais O status quo não pode, portanto, como muitos
satisfazia os meus anseios enquanto pesquisadora. tendem a proclamar, ser mantido unicamente por
Contudo, obviamente foi a partir dessa experiência um “brilho”, o sangue herdado de antepassados
que pude tomar um contato inicial com a temática longínquos, muitos heroicos ou até mesmo divinos.
tendo em vista as nítidas relações entre aquela
Os estudos dedicados à nobreza tratam majori-
instituição militar e a nobreza. Mesmo sendo per-
tariamente da sua relação direta na corte. Ou seja,
ceptível essa vinculação entre ambas, o foco ao
é sempre a nobreza em função da realeza, muitas
qual me dediquei sempre recaiu sobre a atividade
vezes como se fizessem parte de classes sociais
guerreira enquanto primazia da atribuição de ser
opostas. E a realidade não é assim tão dicotômica.
nobre. Atualmente, embora esse não seja meu in-
É preciso ter em vista sempre que nobreza e realeza
tuito e interesse de pesquisa, parece-me exatamente
fazem parte do mesmo grupo social, portanto de-
que não é possível admitir uma preponderância de
fendem interesses comuns. E ora ou outra preten-
uma sobre a outra, como alguns especialistas insis-
derão sobrepor seus planos individuais de acordo
tem em afirmar. Entendo muito mais uma interação com a conjuntura que se apresenta.
entre esses grupos, resultando numa fusão, mas
sem homogeneidade, sobressaindo-se um ou outro Em Portugal há um interessante movimento
em virtude do que então estava em jogo. de dinamização da classe nobre, pois as antigas
famílias senhoriais perderam a partir do século XI
A nobreza, portanto, abarca relações que cada vez mais espaço para os infanções, famílias da
vão muito além de sua atividade guerreira, essa pequena nobreza. Esse processo não é rápido e de
é apenas uma das formas possíveis de estabele- via única. Ao mesmo tempo que os magnates per-
1 Mestre em História na Universidade Federal Fluminense. Doutoranda do dem poder, os pequenos nobres conseguem, com o
PPGH-UFF sob a orientação do Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos (UFF/
Translatio Studii). Email:medievalneila@gmail.com apoio de monarcas vizinhos e conquista de novas
343
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

terras, adquirir posições e conquistar riquezas. analisar a realeza, seus fundamentos, simbologias,
As antigas famílias, portanto, não conseguem estruturação de seu poder e etc. Assim o campo po-
se manter no poder absolutamente irretocáveis lítico da classe nobre restringia-se ao efetivo uso do
ao longo dos séculos. A sua estrutura interna é poder institucional, ou seja, o exercício do poder real.
frágil, seja por seus casamentos internos, pela
Concomitantemente a importância que pos-
multiplicação da herança ou pela morte de seus
sui os livros de linhagens, especialmente o Livro
membros mais proeminentes.
de Linhagens do Conde D. Pedro, outras fontes
A nobreza portuguesa pode ser conhecida são fundamentais para a compreensão de como
através de um tipo de fonte bastante peculiar, pois a nobreza se estruturou, identificando-se como
mais completa e única em toda a Europa, são os uma classe social e reivindicando para si poderes
livros de linhagens. Segundo José Mattoso, as que acreditava serem-lhe competentes. Portanto,
fontes genealógicas portuguesas são um caso em que pese a facilidade dos livros de linhagem
singular em todo o continente, não possuindo terem sido publicados, a exemplo da edição crítica
congêneres à altura de sua riqueza de informação. feita por José Mattoso2, muitas outras fontes ain-
Quanto a fontes, podemos dizer, para contrastar da essenciais esperam a oportunidade de chegar
com as lamentações dos investigadores de outros a público sem muitos entraves, especialmente
campos históricos, onde se procuram antes de tudo para nós brasileiros; é o caso das Inquirições de
os dados quantitativos (como na história econômi-
D. Dinis e Afonso IV. Já em 1980, quando José
ca e na demográfica), que o nosso país possui uma
riqueza excepcional (MATTOSO, 1980, p. 16). Mattoso lançou uma obra pioneira sobre o estudo
daquela fatia da sociedade medieval portuguesa,
Elas foram reunidas inicialmente por Alexan- ele advertia para a necessidade de se terem divul-
dre Herculano no primeiro volume dos Scriptores gadas mais amplamente as fontes sobre a nobreza
e constituem a sua maior parte. Os nobres portu- e a necessidade de publicações críticas. As fontes
gueses desempenharam um papel fundamental na linhagísticas, a saber, os Livros de Linhagens,
estruturação do reino e na reconfiguração social, Ora elas foram até agora utilizadas quase só
visto que essa classe mostra-se dinâmica e cheia por genealogistas que nem sequer pretendiam
de pressões internas que fazem com que deter- fazer história, ou por historiadores que se pro-
minados grupos por aumento de suas riquezas e punham examinar (muito superficialmente, de
resto) as narrativas a elas associadas. Não ti-
bases de influência cheguem ao poder e exerçam
nham sido, portanto, até agora, estudadas como
crescentemente suas prerrogativas senhoriais. Esse um gênero literário específico nem publicadas
processo de afirmação da nobreza e consciência em edições corretas (MATTOSO,1980,p.16).
de classe caminha lado a lado com a constituição
mais efetiva da realeza. Ora tanto o rei quanto os Continuam até hoje sem vir à tona aos pes-
nobres precisavam garantir e reafirmar suas posi- quisadores. Foram publicadas somente as Inqui-
ções para terem seus privilégios sempre avalizados. rições de Afonso III. Claro é que essas não são
Assim, parece que o período de meados do século as únicas documentações existentes e possíveis
XI até a crise de 1383 é um momento decisivo na para executar esse tipo de trabalho. As listas de
história da nobreza. De antigas famílias detentoras patronos de mosteiros também aparecem como
do poder temos a ascensão de famílias até então fundamentais, bem como as cortes, as legislações
menos importantes que ganham seu lugar entre civis e eclesiásticas.
os poderosos e conseguem estruturar-se em torno 2 Trata-se da edição crítica em dois volumes realizada pelo autor português
de seus interesses de grupo, garantindo assim sua em que ele faz um vigoroso estudo sobre os três livros de linhagens então
existentes (Livro Velho; Livro do Deão; Livro de Linhagens do Conde D.
manutenção e reprodução social. Pedro), explicando as repetições de informação sobre as famílias, as várias
transcrições e refundições que sofreram ao longo dos séculos. Livro de Li-
O estudo sobre a nobreza durante muito tempo nhagens do Conde D. Pedro. Portugaliae Monumenta Historica. Edição
Crítica por José Mattoso, v. II/1. Publicações do II Centenário da Academia
foi negligenciado pela preferência historiográfica para das Ciências. Lisboa: 1980.

344
Neila M. de Souza

Quando Mattoso redigiu A Nobreza Medieval Pedro I (1986) e de Fernando I (1990-1993), o


Portuguesa: a família e o poder ele abriu um fe- que permite cobrir a época que neste momento
cundo caminho para entender uma das partes que nos interessa (MATTOSO, 1997, p. 10).
compunha a sociedade medieval. À época seu livro
trazia sugestões ambiciosas e esperançosas, como a Mas ainda assim, avançou-se em alguns pon-
elaboração de um portal com análises dessa docu- tos em especial nos estudos de Leontina Ventura,
Luis Krus e José Augusto Pizarro. A primeira
mentação, algo que nunca se efetivou. No entanto,
mostrou as vicissitudes do jogo de poderes entre o
como pioneira abordagem, o estudo de Mattoso
rei e os senhores ao longo dos séculos XIII e XIV,
trouxe significativa contribuição para o estudo da
mas isso ainda precisa ser feito para os outros mo-
aristocracia, seja porque mostrou horizontes possíveis
narcas. Ventura concentrou-se especialmente em
de análise, ou evidenciar por isso mesmo algumas
Afonso III e tem realizado estudos sobre a nobreza
fragilidades de suas perspectivas. O autor, por
de diversas regiões, o que poderão resultar em um
exemplo, não está preocupado em discutir conceitos,
conjunto de análises interessantes tendo em conta
classe é usado diversas vezes sem explicitar de qual
as especificidades locais. Já Luis Krus estudou a
definição ele faz uso, além de admitir expressamente
família dos Sousas, a herança adquirida e como
que não está preocupado com o problema da origem
ocorreu a implantação da propriedade nobre e o
da aristocracia. O capítulo em que Mattoso toma uma
poder advindo de seus direitos. Observou aten-
posição mais analítica é “A Nobreza do Entre Douro
tamente a mudança referencial de poder quanto
e Minho na História Medieval Portuguesa”; nele o
ao espaço. Assim, processos similares tinham
autor consegue expressar os motivos pelos quais a
significados diferentes quer no campo quer na ci-
nobreza dessa região amplia e reestrutura seu poder,
dade, em lugares sagrados e lugares profanos, nas
significativamente pela reconfiguração da família.
cortes régias e em cortes senhoriais, na fronteira
Quando as antigas cepas tornam-se linhagens advin-
em estreita relação com os mouros e longe dela.
das de uma única linha sucessória, a nobreza define
No entanto, é preciso ainda especificar qual a base
mais claramente seu poder e formas de atuação.
material e qual a constituição da riqueza entre a
No entanto, grande parte da obra gira em torno da
alta nobreza e a baixa. Pizarro também trabalhou
montagem de genealogias, esclarecendo os diversos
com as Inquirições e propôs que a divisão em
parentescos existentes e como eles se cruzam, sem
“Ricos-homens, Infanções e Cavaleiros” não mais
empreender de fato uma interpretação acurada dessas comportava a nobreza a partir do século XIII. Para
formações linhagística. isso, o autor propõe a divisão daquele grupo social
Passados quase vinte anos de sua primeira entre Nobreza de Corte e Nobreza Regional3.
incursão e abertura temática, José Mattos revisita como creio ter demonstrado, falar de uma
o tema com um balanço sobre o que tem sido feito a estruturacao da nobreza em “ricos-homens,
respeito em número dedicado especialmente a isso infancoes e cavaleiros” faz pouco sentido a
pela Revista de História das Ideias. Para o autor, a partir do seculo XIII, mais especialmente
depois do final do reinado de D. Sancho II.
maior urgência é a necessidade de mais publicações
Com efeito, Leontina Ventura revelou de uma
impressas de fontes que contemplem de alguma forma cabal como com D. Afonso III a “Corte
maneira a nobreza, como as já citadas Inquirições Regia” assumiu um papel fundamental na
essenciais para o conhecimento da aristocracia, os estruturacao do Reino34, com reflexos tam-
necrológios, um tanto quanto difícil pela demanda bem, como e natural, no grupo dos senhores,
de conhecimento paleográfico, latim e litúrgico, o que me levou a propor uma divisao daquele
3 Essa é a ideia desenvolvida por Pizarro em sua tese de doutoramento: SOT-
as listas de patronos de mosteiros e tantos outros. TOMAYOR-PIZARRO, Jose Augusto de. Linhagens MedievaisPortuguesas.
Genealogias e Estratégias (1279-132). Porto, Centro de Estudos de Genealogia,
Em compensação avançou-se bastante no Heraldica e Historia da Familia – Universidade Moderna (Porto): 1999.
domínio da publicação das atas das cortes me- O autor também já havia trabalhado com a temática da nobreza e as listas
de patronos de mosteiros, o que resultou em sua dissertação de mestrado:
dievais [...]. Com efeito, dispomos já dos textos SOTTOMAYOR-PIZARRO, Jose Augusto de. Os Patronos do Mosteiro de
das cortes dos reinados de Afonso IV (1982), de Grijó: evolução e estrutura da família nobre – séculos XI a XIV. Porto: 1987.

345
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

grupo social entre Nobreza de Corte e Nobre- poder material capaz de alavancar os interesses
za Regional, tendo em conta a analise de um políticos da burguesia; e um novo poder material
conjunto diversificado de linhagens e a sua
apropriado para garantir bases econômicas para
evolucao durante um periodo de cerca de um
seculo, sensivelmente entre os reinados de antigas famílias em decadência.
D. Afonso III e de D. Afonso IV, mas mais Algumas temáticas preponderantes têm en-
detidamente em torno do reinado de D. Dinis
volvido o estuda da nobreza. São pesquisas que
(SOTTOMAYOR-PIZARRO, 2013, p. 279).
levam em conta principalmente aspectos culturais
da aristocracia e resumindo o poder nobre ao seu
A Nobreza de Corte dividia-se ainda em
aspecto simbólico. Nesse tipo de abordagem a docu-
Alta e Média. A alta nobreza exercia altos cargos
mentação mais utilizada são as canções trovadores-
junto ao rei, concentrando poder político, militar
cas e a heráldica. As temáticas giram em torno dos
e senhorial, localizava-se na região nomeada por
signos que representam a nobreza, como os paços,
Mattoso como “Norte Senhorial”, a área entre os
vales dos rios Minho e Douro. Da média nobre- os nomes da família, a arte tumular. A análise das
za faziam parte linhagens que haviam saído da torres, ou casas-torres, como símbolo do processo
segmentação das mais antigas, também exerciam de afirmação local de uma nobreza secundária, e a
funções próximas ao monarca e detinham patri- tumularia foi feita por Mário Barroca, que também
mônios com dimensões razoáveis. A Nobreza desenvolveu um vigoroso estudo sobre epigrafia4.
Regional não possuía elementos junto ao monarca “Procuramos salientar como a nobreza medieval
e detinha uma implantação patrimonial mais es- europeia encontrou na Domus Fortis um meio de
tável, ou seja, localizados na área de origem. Essa afirmação social, adotando essa nova forma arquite-
nobreza regional também era formada por uma tônica como símbolo dos seus poderes emergentes”.
camada inferior, que se restringia ao âmbito local. (BARROCA, 1997, p. 40).

Por mais surpresa que isto possa causar, Os estudos em torno da documentação das
ainda é pouco estudada a relação entre a nobreza canções trovadorescas envolvem especialmente
e o clero. Quais são de fato as relações familiares a mulher, suas representações e possibilidades
entre clero e nobreza? São atributos de poucas de poder evidenciadas nesses poemas. Antonio
famílias? Mais ainda: quando se começa a lançar Resende de Oliveira trabalhou com as cantigas
os filhos segundos para a carreira monástica ou de amigo, escárnio e mal-dizer, mas para ele es-
clerical e evitar assim a erosão de sucessivas sas fontes dizem respeito a um mundo situado à
partilhas hereditárias? É claro que essa relação é margem das preocupações familiares e políticas
crescentemente valorizada, especialmente entre os anteriores. Essas abordagens evocam a manifes-
principais mosteiros, seja pelas doações a fim de tação da escrita então propagada pela nobreza,
garantir um bom post mortem, seja por abrigarem como uma forma de afirmação social.
as mulheres, então excluídas da herança ou viúvas. [...] com destaque para a produção genealógica e
Merece também mais atenção a ligação entre trovadoresca, que nos dão conta de uma das solu-
ções encontradas pelos meios nobiliárquicos para
nobreza e burguesia. Parece ser também um vín-
fazerem frente não só às ameaças do poder régio,
culo marcado pela espacialidade, visto a relação mas também às fraturas internas resultantes da
entre campo e cidade, e pelas divisões dentro da constituição das linhagens (OLIVEIRA, 2007, p. 4).
própria nobreza, uma vez que as famílias mais
antigas guardam uma consciência de superiori- Daí as crônicas, gestas e demais produções
dade bastante expressa em relação às gentes do literárias serem um meio privilegiado para esse
comércio. Nesse caso é preciso contextualizar campo. Para o autor, outros temas ainda merecem
com o surgimento e importância que as cidades 4 Trata-se de sua tese de doutoramento, uma obra bastante completa pu-
adquirem, assim como o uso e crescimento do uso blicada em quatro volumes: BARROCA, Mário Jorge. Epigrafia Medieval
Portuguesa: 862-1422 (4 v.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian : Fun-
do dinheiro. Envolvendo um duplo movimento: o dação para a Ciência e Tecnologia, 2000.

346
Neila M. de Souza

atenção dos historiadores para o conhecimento vam-se em detrimento dos primeiros e acabavam
da história cultural da nobreza, como aspectos por formar linhagens importantes. Mattoso já
gestuais e cerimoniais da vida nobiliárquica, a havia afirmado na década de oitenta do século
evolução do vestuário como marca de diferen- passado que nobreza significava capacidade para
ciação e distinção social, ou as atitudes e com- o exercício efetivo de poderes senhoriais, ou seja,
portamento religioso. Esse tipo de enfoque, em o poder de julgar, cobrar impostos e comandar por
termos culturais, no entanto, não nos interessa. armas. Para o autor, o sangue, as armas e o poder
Podemos observar, portanto, que mesmo (?) são os pilares fundamentais para a condição
com alguns trabalhos dedicados ao estudo da de ser nobre. É preciso problematizar que esse
nobreza e sua configuração política, muito ainda poder de julgar, cobrar impostos e usar armas só
há a ser feito. As questões em torno da configura- se efetiva com uma base material sólida. Caso
ção familiar e seu enraizamento local aparecem não fosse assim, antigas famílias senhoriais que
como fundamentais para explicar o processo continuam esbanjando o nome da linhagem a que
de afirmação da nobreza, especialmente aquela pertencem, mas já sem riquezas, não teriam per-
que não estava ligada à corte, mas que mantinha dido o poder e lugar dentro daquela sociedade. É
mesmo assim um forte poder senhorial expresso preciso averiguar também qual é a base de apoio
nas exações e violências cometidas em diversas material dos distintos níveis da nobreza, isto é, se
regiões. Cabe aqui ressaltar que a linha sucessó- a nobreza média e inferior atua essencialmente
ria masculina, nem mesmo uma única linha, foi na produção e comercialização dos rendimentos
preponderante na estrutura da família nobre em e a nobreza superior sobretudo na exploração e
Portugal. Assim, alguns filhos segundos destaca- valorização das exações senhoriais.

347
REFERÊNCIAS sa”. In: Revista de História das Ideias. Coimbra. Vol. 19 (1997), pp. 7-37.
Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Portugaliae Monumenta OLIVEIRA, Antonio Resende. “A Cultura da Nobreza (sécs. XII-XIV): balanço
Historica. Edição Crítica por José Mattoso, v. II/1. Publicações do II sem perspectivas”. In: Revista Medievalista. Ano 3, número 3, 2007.
Centenário da Academia das Ciências. Lisboa: 1980. SOTTOMAYOR-PIZARRO, Jose Augusto de. “As Inquirições Medievais
BARROCA, Mário Jorge. “Torres, Casas-Torres ou Casas-Fortes. A Portuguesas (séculos XIII-XIV): fontes para o estudo da nobreza e me-
concepção do espaço de habitação da pequena e média nobreza na mória arqueológica – breves apontamentos”. In: Revista da Faculdade
Baixa Idade Média (sécs. XII-XV)”. In: Revista de História das Ideias. de Letras CIÊNCIAS E TÉCNICAS DO PATRIMÔNIO, Porto 2013 – Vol.
Coimbra. Vol. 19 (1997), pp.39-103. XII, pp. 275-292.
BARROCA, Mário Jorge. Epigrafia Medieval Portuguesa: 862-1422 SOTTOMAYOR-PIZARRO, Jose Augusto de Linhagens Medievais
(4 v.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian : Fundação para a Portuguesas. Genealogias e Estratégias (1279-132). Porto, Centro de
Ciência e Tecnologia, 2000. Estudos de Genealogia, Heraldica e Historia da Familia – Universidade
MATTOSO, José. A Nobreza Medieval Portuguesa: a família e o Moderna (Porto): 1999.
poder. Lisboa: Editorial Estampa, 1980. SOTTOMAYOR-PIZARRO, Jose Augusto de. Os Patronos do Mosteiro de
MATTOSO, José. “Perspectivas Atuais sobre a Nobreza Medieval Portugue- Grijó: evolução e estrutura da família nobre – séculos XI a XIV. Porto: 1987.

348
iDENTiDADE uNiFiCADA?
os CrisTÃos No imPÉrio romANo

Neles Maia da Silva1


Thiago de Azevedo Porto2

iNTroDuÇÃo

Q uando se trata do conceito de identidade na


Antiguidade não podemos deixar de relacio-
ná-lo aos processos de culturas simbióticas
que caracterizam esse período. Se havia identidade
dar respostas estanques a estas questões, pois em se
tratando de identidades não se pode simplesmente
definir e fechar os debates, mas propomos pensar
nessas problemáticas para que compreendamos os
que almejava ser superior a outra dentro do vasto discursos envolvidos nas relações de poder dentro
Império Romano, com certeza este desejo esbarrava do Império Romano.
nas questões de múltiplas relações culturais e étnicas
que apresentavam uma espécie de teias de identidades
fluídas. Da Palestina a Bretanha, da Gália ao Norte PrEssuPosTos DE ANáLisE
da África, essas diferentes identidades e relações
Para tratar desse problema proposto queremos
culturais estavam nos domínios do Império Romano
partir de alguns pressupostos fundamentais para
e eram, portanto, perpassadas pelos processos de
entendermos por que chegamos ao mesmo. Em pri-
romanização3, imprimido pelas temidas legiões e
meiro lugar, partimos do consenso historiográfico
pelo discurso de alteridade de que a cultura romana
da multiplicidade de cristianismos que se formaram
era superior às demais. O século IV foi, por isso,
na Palestina e fora dela posteriormente. Nesse sen-
marcado por intensas divergências internas, pois o
tido, André Leonardo Chevitarese afirma:
Império estava dividido entre quatro co-imperadores,
e externas, já que não cessavam as lutas nas fronteiras De fato o movimento cristão, desde os seus pri-
mórdios, seguindo bem de perto a matriz judai-
com os povos “bárbaros”4.
ca, caracterizou-se por ser um imenso mosaico
Para início de nossa análise lançamos as de percepções. Daí melhor entendê-lo como
questões que norteiam nosso problema: Será que um movimento plural, do que singular. Assim,
torna-se mais interessante em cristianismos do
a liberdade de culto concedida pelos imperadores que cristianismo (CHEVITARESE, 2011, p. 22).
Constantino e Licínio através do Edito de Milão
representou a unificação desses grupos cristãos tão As diversidades culturais romana, helenística,
dissidentes antes desse contexto? E essa concessão judaica, samaritana, etc., todas com suas ramificações
foi o bastante para criar uma instituição organizada internas, que faziam parte do contexto no qual se en-
que abrangesse esses grupos? Nossa intenção não é tende que nasce o cristianismo (quanto ao nascimento
1 Graduando em História na Universidade Federal do Pará. Email: neles-
maia@hotmail.com.
do cristianismo temos divergências, mas não é nosso
2 Mestre em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro e docente foco)5, demonstram quão múltiplas eram as faces
da UFPA, campus Bragança.
3 Romanização é o processo de expansão da cultura romana por diversas 5 Os debates sobre o nascimento do cristianismo são bastante amplos, pois
partes do mundo que se tornaram parte de seus domínios. Tal qual o proces- abrangem uma gama de bibliografias que divergem em muitos pontos. Ver para
so de “helenização” implementado por Alexandre, O Grande. tais debates, por exemplo: CROSSAN, John Dominic. El nascimiento del cris-
4Vale ressaltar que a nomenclatura,“bárbaros” é uma denominação romana tianismo. Qué sucedió en los años inmediatemente posteriores a la ejecución
aos povos que viviam fora de seus domínios e que, portanto, não eram con- de Jesús. Miliaño (Catanbria): Editorial Sal Terrae, 2002 e KAUTSKY, Karl.
siderados cidadãos romanos. A origem do cristianismo. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira, 2010.

349
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

desses movimentos que se desenvolveram dentro O segundo pressuposto é que esses múltiplos
do Império Romano. Um exemplo claro é o caso da movimentos estão em constante contato com cul-
congregação cristã instituída por Paulo na cidade turas específicas dentro dos domínios romanos.
de Corinto ainda no final do século I. A fonte diz: E em decorrência desses contatos que vai desde
Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso o macro, ou seja, da cultura que supostamente
Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mes- domina as demais – a romana, aos micros – cul-
ma coisa, e que não haja entre vós dissensões; turas locais em vários lugares. Partindo desse
antes sejais unidos em um mesmo pensamento pressuposto que vai do mais abrangente ao mais
e em um mesmo parecer. [I Co (1:10)] específico podemos compreender os discursos
“Quero dizer com isto, que cada um de vós diz: e os interesses de elites locais em choque com
Eu sou de Paulo, e eu de Apolo, e eu de Cefas, outros interesses dos altos escalões do Império.
e eu de Cristo. Está Cristo dividido? foi Paulo Podemos tomar como exemplo a própria Palesti-
crucificado por vós? ou fostes vós batizados na. Um território com uma elite política e religio-
em nome de Paulo? [I Co (1:12,13)
sa que divergem em seus interesses e que estão
sob o domínio de uma monarquia de identidade
As cartas de Paulo, escritas na segunda metade
judaica, mas subordinada a um romano.
do século I, indicam que os movimentos chamados
cristãos não eram unificados. Por isso, ele pede para
que os irmãos tenham um mesmo pensamento, HisTorioGrAFiA
sem dissensões partidárias entre a preferência por
E DEFEsA DE CAmPo
determinados lideres. Tal preferência certamente
se dava por concordâncias com uns e divergências DE ATuAÇÃo
com outros de acordo com os interesses de deter-
minados grupos. Ao fazer o cruzamento de uma Tratar das questões relacionadas à religião
fonte canônica com uma apócrifa 6, a III carta de dos cristãos dentro do Império Romano pelo viés
Paulo aos coríntios, confirmamos a informação de teológico é nos dizeres de Edward Gibbon: “tarefa
que as discordâncias e as dissensões de fato estavam de descrever a religião descendo do céu revestida
presentes nesta comunidade. A fonte afirma: de pureza natural” (GIBBON, 2005, p. 236). Po-
rém ao trazermos para o campo das humanidades,
Não devemos recorrer aos profetas. Deus não
sobretudo da História, trataremos de aspectos não
é todo poderoso. Não há ressurreição da carne.
A criação não é obra de Deus. O Senhor não espirituais e delimitando nosso objeto de estudo nos
veio em carne. O senhor não nasceu de Maria. parâmetros de praxe do trabalho historiográfico. O
O mundo não é de Deus, mas dos anjos (III quadro teórico-metodológico, portanto, cabe aqui
Coríntios in PROENÇA, 2012, p. 315-318). ser apresentado. Nossa problemática já fora lançada.
Nosso recorte temporal é o século IV, com incursões
Essas sentenças são as acusações de alguns dos a outros períodos que entendemos serem propícios
líderes da comunidade cristã de Corinto contra dois à reflexão da referida problemática. Nosso recorte
membros que divergiam dos ensinos de Paulo. Esses espacial é amplo, pois se trata do Império Romano,
líderes escrevem uma carta a Paulo informando porém focaremos mais na cidade de Roma e nos
tais acusações e receberam a resposta do apóstolo domínios da Palestina.
combatendo esses “falsos ensinos”. Portanto, as
Nas bibliografias que tratam dessa questão
divergências entre esses movimentos caracterizam
tentaremos dialogar com alguns autores, desde
heterogeneidades e multiplicidade de várias facetas
alguns clássicos como Edward Gibbon a outros
na vivência do cristianismo deste período.
mais recentes como Paul Veyne, André Leonardo
6 Essa metodologia de cruzar fontes canônicas com fontes que não foram inse-
ridas no cânon bíblico é importante, pois nos possibilitam verificar as tenden- Chevitarese e Franco Hilário Junior. Este primei-
ciosidades do documento. Se o canônico for tendencioso em uma informação o ro, por exemplo, em sua obra clássica, Declínio e
cruzamento de informações poderá confirmar a mesma havendo concordância,
ou contestar demonstrando que há discursos em torno de tal informação. Queda do Império Romano, busca na curiosidade
350
Neles Maia da Silva / Thiago de Azevedo Porto

do pesquisador entender como a religião cristã Quando Gibbon passa a analisar o triunfo do
trinfou sobre as demais (GIBBON, 2009, p. 236). cristianismo sobre as demais religiões em um contex-
Tal problemática lançada por Gibbon nos interes- to em que as verdades da fé e da teologia ainda eram
sa, pois a abordagem que este autor faz procura alvos incontestáveis a serem analisados e discutidos,
sair do âmbito da teologia militante e passa ao pois algo vindo da própria Providência não seria
campo dos questionamentos, das problematiza- passível de erros ou de falhas, entendemos que os
ções e das dúvidas. Esse movimento de mudança princípios norteadores de sua pesquisa estão em sua
de abordagem e de perspectiva, aliás, tem nos própria conjuntura, em sua temporalidade. Tal como
possibilitado quebrar alguns tabus, como as este autor, nossa conjuntura e nosso próprio tempo,
impossibilidades de estudar os períodos antigo e dentro de nosso próprio campo de abordagem his-
medieval e o próprio uso da documentação, quase toriográfica que classificamos de história-problema
sempre questionada por ter um caráter religioso. (BURKE, 1991 p.18), permitem-nos problematizar
Os equívocos de muitos historiadores estão as questões de identidades desses cristãos através de
justamente em suas próprias ações e até mentali- uma construção historiográfica no assim denomina-
dades anacrônicas. Tanto se criticou os marxistas do de “início do período medieval”, ou seja, século IV.
por tentarem a todo custo impor uma teoria em
contextos diferenciados, com especificidades e
peculiaridades que não caberiam em outra tempo-
A FiGurA
ralidade, e alguns “donos da teoria” querem forçar DE CoNsTANTiNo
um mesmo método, uma mesma abordagem, uma E os CrisTÃos
mesma problemática de um período a outro. Por
exemplo, podemos analisar documentos da Idade Na obra de Paul Veyne, Quando nosso mundo
Moderna da mesma forma que da Idade Média? se tornou cristão, o autor elege o papel do Imperador
Podemos usar os mesmos recursos, as mesmas Constantino como figura principal e essencial para
metodologias, os mesmo problemas? Se pensar- o triunfo dos cristãos. No primeiro capítulo, quando
mos um pouco veremos que a eficácia do método debate com outros autores sobre a referida conversão
utilizado para estudo da Idade Moderna não se ser de fato sincera ou somente uma jogada politica,
aplica com tanta eficácia ao contexto Medieval e Veyne se posiciona a favor a conversão do símbolo
vice-versa. São problemas, contextos, situações, máximo do poder romano em seu contexto. Ele
documentações, mentalidades, espaços, singula- argumenta que o fato de alguns estudiosos defen-
ridades que não se encaixam. E não há demérito derem a conversão do imperador como uma jogada
nisso. Não significa que um período é mais im- politica é uma compreensão reducionista e até mes-
portante ou mais digno do que outro, e sim que mo anacrônica, pois como se trata de uma questão
nosso senso de tempo, de história, de historicidade de mentalidade não se deve fazer juízos de valor e
mudam e não se faz viável uma aplicação forçada. impor um pensamento que dificilmente se adequaria
ao contexto em questão (VEYNE, 2009, p.10-11)
Acaso algum historiador de nosso tempo
possui uma fórmula ou “método mágico” que se Veyne afirma que Constantino se converteu
apliquem as diversas temporalidades ou realidades? de fato, no mínimo por dois motivos. Primeiro
Como exigir documentos políticos (tão valorizados que a instabilidade característica do paganismo,
pelos maiores críticos dos estudos antigos e medie- ou seja, sua tendência à mudança repentina de
vais) em contextos que a mentalidade religiosa se um deus para outro, era muito comum. As insa-
fazia presente nos direcionamentos da vida? Como tisfações com determinados deuses acabavam por
exigir ações politicas separadas do mundo espiritual gerar uma contestação, uma descrença e por fim
ou eclesial em um contexto em que as doutrinas e uma mudança para um deus considerado melhor
as normas da Igreja eram os chamados documentos (VEYNE, 2009, p. 25). Segundo, porque de fato
oficiais? Onde a referencia a fé era a lei? os imperadores se consideravam deuses propria-
351
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

mente ditos 7 ou representantes dos mesmos para promulgado no Edito? As discrepâncias entre a
guiar o povo. Segundo Veyne ao analisar a obra religião oficial até então, ou seja, o paganismo 8e
de Eusébio de Cesarea, Vita Contantine, Cons- o cristianismo de Paulo nos instigam a verificar
tantino se considerava um guia para a salvação mais a fundo as ações do “herói dos cristãos”
da humanidade (VEYNE, 2009, p. 10). nos dizeres de Paul Veyne (Op. cit. p. 9), em
conceder tal liberdade. Para tanto tentaremos
Essa discussão sobre a conversão de Cons-
verificar alguns discursos sobre as identidades
tantino é colocada em grande medida por uma
de ambos os lados.
atitude do Imperador que, a priori, trouxe alguma
surpresa: a promulgação do Edito de Milão em
313.
iDENTiDADE PAGÃ E CrisTÃ
Assim, pois, num salutar e retíssimo propósito,
decidimos que a nossa vontade é que não seja
recusada absolutamente a ninguém a liberdade Na obra El nascimiento del Cristianismo,
de seguir e de escolher a prática ou a religião de John Dominic Crossan, o autor propõe uma
dos cristãos, e que a cada um seja concedida discussão sobre fontes não cristãs a respeito dos
a liberdade de dar a sua convicta adesão à re- cristãos. E enumera três autores que mencionam
ligião que considere útil para si, de tal forma os cristãos em seus escritos: Plinio, o moço,
que a divindade possa conceder-nos em todas
Tácito e Suetônio. Estes três autores latinos em
as ocasiões a sua habitual providência e a sua
benevolência [Constantino e Licínio Augustus: locais, situações, espaços e até tempos diferentes
Edito de Milão, 311 d. C.]. (mas todos dentro do século II), escreveram infor-
mações diferentes sobre estes, porém todos têm
O edito não especifica um grupo de cristãos um ponto em comum – se referem aos cristãos
a exercerem tal liberdade. As identidades dos como uma superstição e seus adjetivos próprios:
cristãos ainda não eram bem definidas. O alas- Una depravada superstición llevada hasta el
tramento do cristianismo paulino sobre inúmeras exceso (superstitioprava, tmmodtca)”. “el con-
províncias iam se adequando as realidades, as tagio de semejante superstición (superstitiois-
crenças e aos interesses já existentes. Ser cristão tius contagio) (Cayo Plinio Cecilio Segundo,
Cartas 10, 96 in CROSSAN, 2002, p. 3)
em Cesarea não era o mesmo que ser cristão na
Bretanha e vice-versa. Para fundamentar esta execrablesuperstición (exitiabilissuperstitio)
afirmação, podemos exemplificar a própria saída (Publio Corneho Tácito, Anales 15, 44, 3 in
CROSSAN, 2002, p. 3)
de um movimento cristão dos apóstolos (que,
diga-se de passagem, já possuíam inúmeras una superstición nueva y perniciosa [o: mágica]
(superstitio nova e’t maléfica) (Gayo Suetonio
divergências e diferenças entre si) de dentro da
Tranquilo, Vidas de los doce Césares: Nerón
Palestina para o mundo “gentílico”, como se re- 16,2 in CROSSAN, 2002, p. 3)
fere Paulo aos de fora do mundo judaico. Quando
houve divergência entre Pedro, defendendo que Os cristãos eram tidos como uma superstição
tais gentios deveriam se circuncidar para obterem diante do paganismo. Sua identidade era pautada
a salvação pregada por Jesus, enquanto Paulo de- no conceito de marginalidade dentro do império
fendia que tais leis judaicas haviam sido abolidas até o contexto do Edito em 313. Veyne afirma que
pela “graça de Cristo”. somente em 392 d.C. essa situação é invertida.
Era intenção do Edito dar liberdade a todos Tais grupos haviam sofrido perseguições desde
os cristãos? Esta ação iria unificar os grupos? Se sua gênese ainda na Palestina tanto por parte
tais cristãos foram tão perseguidos por impera- dos judeus quanto dos romanos, sobretudo com
dores anteriores porque o discurso de liberdade alguns imperadores como Nero e Diocleciano.
8 A palavra “pagão” vem de paganus, do latim, camponês e fora uma
7 Exemplo do culto ao imperador, que gerou tantas divergências dentro denominação dos cristãos a todos que não seguiam a Cristandade e é
das províncias mais zelosas em termos religiosos como a Judéia. posterior a este contexto.

352
Neles Maia da Silva / Thiago de Azevedo Porto

O paganismo tal qual o cristianismo não cristãos, mas também dos pagãos. Compreender
possuía um caráter homogêneo, pois tinha por minimamente tais relações, que variam de lugar
característica principal um panteão com dezenas para lugar dentro dos domínios romanos, repre-
e até centenas de deuses, o que permitia uma senta o entendimento de uma gama de identidades
infinidade de mentalidades, modos de vida, cul- diversas e plurais.
tura e identidades em seu seio. A questão é que
de religião única no império (em tese), o edito de
Tolerância promulgado por Galério, em 311, e o DisCuTiNDo
edito de Milão, em 313, trazem mudanças signi- A ProBLEmáTiCA CENTrAL
ficativas para as identidades tanto dos cristãos
quanto dos pagãos. Se pensarmos nos supostos benefícios e
Veyne, no capítulo dois da obra aqui citada, favores trazidos por Constantino, veremos uma
ao tratar do cristianismo como uma obra-prima, mudança bastante significativa nos moldes do
faz uma relação entre a superioridade do cristia- tratamento de cristãos pelos pagãos e vice-versa.
nismo sobre o paganismo sob a égide do conceito A liberdade de culto, a restituição de locais de
de monoteísmo. O autor elenca alguns aspectos adoração, são benesses advindas no ato de con-
que respondem a mesma problemática de Gibbon, versão e ações politicas “do salvador da huma-
pois para que o mesmo se sobressaísse perante a nidade” para com estes grupos de cristãos. Mas
religião pagã seria necessário algumas qualida- para tais ações serem de proveito ao imperador
des que não apenas distinguisse, mas também a não se podia admitir que essa nova religião fosse
superasse em muitos sentidos. Nessas relações fragmentada e esfacelada. Porém havia uma ra-
com seus deuses, tanto cristãos quanto pagãos mificação do cristianismo que já se tinha sobres-
tinham características diferentes: os primeiros saído sobre os demais – o cristianismo de Paulo de
são vistos como apaixonados e possuem uma Tarso. Prosélito, não baseado a um nacionalismo
relação muito próxima com seu deus a ponto de limitador, com doutrinas que já tinham algumas
Paulo argumentar: “Sede, pois meus imitadores bases fortes, livros que possuíam um caráter de
como eu sou de Cristo”. Querer parecer com o “guia” não apenas religioso, mas que tendiam a
seu mestre era uma característica de proximidade reger a própria moralidade e sentimentos de seus
afetiva. Os segundos tem uma ação pragmática seguidores, essas são algumas das características
de “dar para receber”, uma relação de clientela que fizeram deste movimento o mais elegível den-
e patronato. Veyne mostra um exemplo sobre tre outros. Tal eleição propôs a criação da Igreja
essa questão: enquanto instituição organizada. Não como um
templo, mas como uma entidade.
A oração mais frequente atiçava o amor-pró-
prio dos deuses quanto a seu poder: ‘Júpiter, Porém não é nem mesmo necessário analisar
acode-me, pois tu podes’; se o deus não aten- um documento ou documentos específicos para
dia, arriscava-se a levantar suspeitas de que responder minimamente essa problemática da
não era tão poderoso como se acreditava. [...]
“unificação” como resultado a “liberdade”. Tal li-
A desenvoltura liberal, a serenidade ingênua
do paganismo resultavam, assim, do fato de ter berdade e benefícios foram elementos unificado-
concebido as relações com os deuses segundo res? Basta analisarmos os discursos da Igreja em
o modelo das relações politicas e sociais; ca- seus concílios e sínodos sempre combatendo as
beria ao cristianismo concebê-las segundo o dezenas de ideias classificadas como heréticas em
modelo das relações familiares e paternalistas vista da ortodoxia oficial. Para citarmos algumas
[...] (VEYNE, 2009, p. 192)
a título de exemplos: arianismo, nestorianismo,
pelagismo, donatismo entre outras. Ou seja, nem
O foco nas relações com seus deuses dizem
a liberdade e nem os benefícios unificaram as
muito a respeito das identidades, não apenas dos
identidades cristãs dentro dos domínios romanos.

353
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Muitos na verdade se distanciavam das doutrinas e único, pois a abrangência do macro, ou seja, os
aceitas por esta Igreja oficial. domínios do processo chamado pela historiografia de
“romanização” até as centenas de locais específicos
subordinados, mas que não anulavam sua cultura e
CoNCLusÃo sua identidade, nos apontam para identidades múl-
tiplas e heterogêneas capazes de perdurar da mesma
Em suma as identidades cristãs no contexto do forma que a Igreja oficial. Às vezes nos cenários
século IV, dentro do Império Romano, não podem em embates de frente, outras vezes nas sombras,
ser compreendidas de um ponto de vista homogêneo perdurando e perpassando o longo período medieval.

REFERÊNCIAS JUNIOR, Franco Hilário. Idade Média: Nascimento do Ocidente. São


CHEVITARESE, André Leonardo. Cristianismos. Questões e Debates Paulo: Brasiliense, 2006.
Metodológicos. Rio de Janeiro: Editora Kline 2011. VEYNE, Paul. Quando nosso mundo se tornou cristão. Lisboa:
CROSSAN, John Dominic. El nascimiento del cristianismo. Qué Edições Texto & Grafia, 2009.
sucedió en los años inmediatemente posteriores a la ejecución de VEYNE, Paul. História da Vida Privada. São Paulo: Companhia das
Jesús. Miliaño (Catanbria): Editorial Sal Terrae, 2002. Letras, 2009.
GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. São Paulo: PROENÇA, de Eduardo. Apócrifos e Pseudo-epígrafos da Bíblia.
Companhia das Letras, 2005. Vol. II São Paulo: Fonte Editorial, 2012.
354
o uso DAs NArrATiVAs mÍTiCAs
PArA o EsTuDo DA HisTóriA ANTiGA

Ofélia Maria de Barros1


Kyara Maria de Almeida Vieira2

“A história humana sobre o planeta não é mais


teleguiada por Deus, pela Ciência, pela Razão ou
pelas leis da História. Ela nos faz reencontrar o
sentido grego da palavra “planeta”: astro errante”.
Liszt Vieira

O
estudo da história Antiga e Medieval no È nessa perspectiva que propomos o estudo dessas
Brasil, ou mais especificamente no Nor- sociedades a partir das visões de mundo míticas:
deste brasileiro, encontra sérios limites O mito, quando estudado ao vivo, não é uma ex-
entre outras coisas devido ao relativamente peque- plicação destinada a satisfazer uma curiosidade
no número de pesquisas e produções acadêmicas científica, mas uma narrativa que faz reviver uma
nessa área, uma vez que, a própria historicidade realidade primeva, que satisfaz a profundas neces-
do Brasil não se enquadraria na periodicidade sidades religiosas, aspirações morais, a pressões
da História Antiga e da História Medieval, con- e imperativos de ordem social e mesmo exigências
práticas. Nas civilizações primitivas, o mito de-
siderando a predominância nas análises do viés sempenha uma função indispensável [...] O mito é
político e econômico. um ingrediente vital da civilização humana ;longe
A partir das abordagens pós-estruturalistas de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário, uma
realidade viva, à qual se recorre incessantemente
nas quais os cânones são implodidos torna-se a
; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma
nosso ver mais instigante e atraente o estudo da fantasia artística, mas uma verdadeira codificação
história, principalmente da História Antiga e da religião primitiva e da sabedoria prática.3
Medieval, que pelo seu distanciamento tempo-
ral e espacial de nossa experiência, pouco nos O estudo do mito e o uso das narrativas míticas
interessava. para conhecer sociedades hoje inexistentes, permite
O alargamento das fronteiras disciplinares, a ao historiador um mergulho por universos subjeti-
mudança na noção de sujeito, a relativização das vos de homens e mulheres cujas experiências nos
certezas históricas, e a ampliação na noção de do- mostraram como pensavam, viviam e articulavam
cumento permitiram ao historiador contemporâneo respostas para suas inquietações, de onde podere-
revisitar o passado, com novos olhares e novas mos nos inspirar para inventar e reinventar novas
questões. Procurar pensar a experiência desses possibilidades de dar sentido a nossa existência.
sujeitos históricos a partir de visões de mundo Ao propor o uso do mito para o estudo da
próprias, sem a angústia de estabelecer compara- história também estamos propondo uma revisão
ções ou paralelos com a história atual, despir-se da da epistemologia ocidental, e nos inserindo nas
noção evolucionista na qual o ‘outro’ era sempre correntes revisionistas da história.
julgado tomando como parâmetro valores internos.
O conhecimento científico que se define a partir
1 Doutora em Ciências Sociais na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Docente do Depto. de História da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). 3 ELIADE, Mircea. mito e realidade. Tradução de Póla Civelli. São Paulo:
2 Doutora em História na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Perspectiva. 1972. p. 19.

355
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

da razão, mente, lógica, objetividade, método, da terminadas – forjou-se em um processo histórico,


comprovação, do alto, da clareza, do céu, do mas- fundando instrumentos conceituais considerados
culino (Apolo) em oposição a emoção, ao corpo, a preceitos universais e inquestionáveis.
imprevisibilidade, ao baixo, a escuridão, a terra, ao Estamos num momento de indeterminações
feminino (a grande Mãe), produziu o discurso cien- científicas. A existência de uma imprevisibilidade
tífico e como tal se ergueu como a verdade revelada4. tornou-se matéria intrínseca do conhecimento
A matriz desse pensamento vem dos gregos. É na científico e sob este signo nós estamos inseridos.
Grécia que a mitologia sofre sua primeira grande
derrota, através da poesia, da arte figurativa e da A ciência e o saber moderno/científico que
literatura: a mitologia foi profanada. Em nome do pretendem se construir a partir dos intricados
logos e da razão os pré-socráticos a dessacralizaram: relacionamentos entre o “homem” e seu ambiente,
está imerso nos turbilhões da interdependência;
Em nenhuma outra parte vemos, como na Grécia,
sugere-se a superação das fronteiras disciplinares
o mito inspirar e guiar não só a poesia épica, a
tragédia e a comédia, mas também as artes plás-
e as trincheiras de especificidades que impedem
ticas; por outro lado, a cultura grega foi a única a uma visão horizontal dos relacionamentos contidos
submeter o mito a uma longa e penetrante análise, na frágil teia da vida.
da qual ela saiu radicalmente “desmitizada”.5
Estamos falando aqui da ciência, e de seu discur-
A ciência ocidental é produto da mente apolínea: so de verdade que vem se impondo e nos inserindo
(que) espera que, pela dominação e classificação, nas correntes de pensamentos que nos três últimos
pela fria luz do intelecto a noite arcaica seja
séculos tem se colocado como a única e racional
repelida e derrotada.6 O prenúncio do investi-
mento que posteriormente viria culminar com o
possibilidade de pensar o mundo e as relações que
predomínio da ciência e da racionalidade ocidental aí se engendram. Partimos do princípio que embora
tem seu início com o domínio de Creta Minóica não seja ela que atribui primazia ao Homem, mas é
pelos micênicos e dórios que viriam a formar a com a racionalidade moderna que esse pensamento
Atenas apolínea. Segundo Paglia, de acordo com se torna dominante, principalmente no Ocidente, e
esta lógica, seria Creta a última grande sociedade que a partir de então deriva todo o distanciamento
ocidental a adorar os poderes femininos, associa-
entre o “humano” e a “natureza”, resultando e che-
dos à natureza, força ctônica, subterrânea, trevas,
lama, derramamento de sangue, magia, princípio gando ao seu mais aprimorado auge quando a ciência
fertilidade, criadora e destruidora.
política coloca a natureza apenas como um recurso a
ser explorado pela sociedade humana, mais especifi-
Na natureza a força bruta é a lei, associadas camente pelo homem e pela a sociedade industrial.
ao feminino e as religiões pagãs. O sexo seria o
A ciência moderna realiza uma ruptura na rela-
ponto de contato entre o homem e a natureza, ção homem –natureza, “desantropormofizando”
onde a moralidade e as boas intenções caem a natureza e concomitantemente “desnaturali-
diante dos impulsos primitivos. As divindades zando” o homem. A partir de um movimento uní-
primevas incorporam todas as dimensões pre- voco, a ciência cinde em elementos dicotômicos
sentes na natureza; nelas não estão divididos nem e constrói a partir disso um gigantesco aparato
intelectual, resultando em um controle e numa ins-
hierarquizados os valores, nem as noções de bem trumentalização da natureza objetivando auferir
e mal, cruciais para o cristianismo. benefícios determinados pelo próprio homem. 7
A produção do conhecimento científico
enquanto sistema racional submetido a leis – de- Desde as suas origens, o pensamento ocidental
4 WILSHIRE, Donna. Os usos dos Mitos, da Imagem e do Corpo da Mulher colocou a natureza à disposição do homem8 para
na reinvenção do Conhecimento. In. Gênero, corpo e conhecimento.
Alisson M. Jaggar, Susan R. Bordo (Editores). Trad. Britta Lemos de 7 ALMEIDA, Jozimar Paes de. Ciência e meio ambiente: a interdisciplinari-
Freitas. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1997. dade na constituição do pensamento ocidental. Revista de História Regional.
5 ELIADE, Mircea. APUD Junito de Souza Brandão. In. mitologia Grega. Vol. 2, n. 2. 1997. p. 3.
7 ed. v. 1. Petrópolis: Vozes, 1991. p.27 8 Quando mencionamos o termo homem é importante deixar claro que não
6 PAGLIA, Camile. Personas Sexuais: arte e decadência de Nefertite a estamos nos referindo a este enquanto categoria universal e essencial para
Emily Dikson. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 19. significar o humano, antes estamos nos referindo ao gênero masculino da

356
Ofélia Maria de Barros / Kyara Maria de Almeida Vieira

que ele a subjugasse, segundo Vieira9 com raras ex- mar a natureza como se domina uma mulher. Nesta
ceções, é assim que ela aparece no Antigo e no Novo concepção a natureza passa a ser vista como um
Testamentos, no Corão, nos filósofos medievais e nos elemento feminino, subjugado, e o poder do homem
pensadores racionalistas dos séculos XVII e XVIII. exercido sobre ela, masculino.
Está noção vai está implícita nos princípios A partir desses postulados veremos o que pode-
norteadores da cultura ocidental seja no campo ríamos chamar de dicotomização e hierarquização do
religioso, seja no campo científico. Porém, é com as conhecimento, elementos presentes na epistemologia
sociedades fundadas a partir da revolução industrial ocidental, que resultará na formulação de um siste-
que o antagonismo homem-natureza se aprofunda. ma padrão com validade científica que colocará em
A concepção pré-socrática, que é tida como colunas opostas aquilo que vai de um lado significar
uma visão de mundo mítica para a ciência histórica, o saber-verdade-razão-ciência, e de outro, a ignorân-
entendia que os deuses estão presentes em todas as cia-senso-comum-sentimento-mito11.
coisas. Para a mitologia grega, os deuses e os huma- Retomando a questão colocada anteriormente
nos tinham a mesma origem, o que os diferenciava e que é um dos pontos centrais do nosso trabalho,
era o destino, por serem os primeiros imortais, e os convém refletir sobre a idéia de natureza. O que
segundo mortais. Nessa visão de mundo, os deuses tomamos por natureza resulta de uma conceituação
são formados à imagem e semelhança dos humanos, formulada a partir de princípios valorativos, culturais
com sentimentos e paixões, qualidades e defeitos. Os e históricos. A natureza não é um dado e sim uma
deuses gregos não são entidades sobrenaturais, pois construção, conforme Vieira:
são compreendidos como parte integrante da natu-
A natureza se define, em nossa sociedade, por
reza. A natureza aqui é entendida como um universo aquilo que se opõe à cultura. A cultura é tomada
do qual faz parte o mundo material (as coisas visíveis) como algo superior que conseguiu controlar e
e o mundo sobrenatural (o mundo das idéias, do dominar a natureza. Com a agricultura, o ho-
pensamento, que necessariamente não são é visíveis). mem domestica a natureza e se torna sedentário,
considerando primitivos os nômades. Dominar
Dessa forma, não existia, como na tradição ju- a natureza é dominar a inconstância, o instinto,
daico-cristã, um deus incriado que por sua vez criou as pulsões, as paixões. O Estado, a lei e a ordem
o Universo e todas as coisas que nele há. Na con- tornam-se necessários para evitar o primado
cepção grega os deuses e os homens coexistiam na da natureza, onde reina o caos e a lei da selva.
natureza e isso levava evidentemente a uma especial Tal conceito de natureza justifica a existência
do Estado e considera primitivos os povos que
relação entre estes, há um equilíbrio. Havia inclusi-
não têm Estado.12
ve a palavra “physis”, que englobava o significado
homem-natureza, o sujeito humano e a natureza. A No pensamento ocidental ou concebemos a
inexistência de um termo equivalente ao de natureza natureza como algo hostil, lugar de luta onde reina
reforça inclusive essa indissociação. a busca pela sobrevivência na qual predomina o
poder do mais forte; ou vemos a natureza como
Nas línguas modernas o termo physis não só
lugar onde reina a harmonia, a pureza e a inocên-
desaparece e perde o seu significado, como os ter-
cia. No primeiro momento, justifica-se a presença
mos natureza e humanidade surgem como conceitos
do Estado para impor a lei e a ordem e impedir
dicotômicos e hierárquicos. Dessa forma, a natureza
o caos e a volta ao “Estado da Natureza” onde
passa a ser pensada como um elemento exterior ao
reina a animalidade. No segundo caso, critica-se
homem e pelo qual deve ser domada, como diria
o homem que destrói a natureza, mantendo-se a
Francis Bacon segundo Vieira10 o homem deve do-
dicotomia homem-natureza. A primeira vertente
espécie humana. Sobre tal discussão, ver PEDRO, Joana Maria. identidade
e diferenciação: o gênero enquanto questão. ANPUH. XVIII Simpósio 11 Cf. WILSHIRE, Donna. Os usos dos Mitos, da Imagem e do Corpo
Nacional de História. Recife, 1995. da Mulher na reinvenção do Conhecimento. In. Gênero, corpo e
9 VIEIRA, Liszt. Fragmentos de um discurso ecológico. São Paulo: conhecimento. Alisson M. Jaggar, Susan R. Bordo (Editores). Trad. Britta
Editora Gaia, 1990, p. 21. Lemos de Freitas. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1997.
10 VIEIRA. Liszt. Op. Cit., p. 22. 12 Cf. VIEIRA, Liszt. Op. cit. p. 23.

357
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

é a do antropocentrismo, a segunda do naturalis- A razão clássica se encerra nos limites do


mo. Homem e natureza caem um fora do outro13. princípio da identidade e da não contradição
e o pensamento diferencial torna-se marginal
Para o marxista Rudolf Bahro, segundo Viei- ao longo dos séculos, ao negar o mundo das
ra, em um quadro de ruptura homem-natureza e essências onde se localiza a verdade, o mun-
de falência ideológica, a crise ecológica coloca-se do verdadeiro baseado na estabilidade, na
como um grande desafio para a humanidade. E a identidade. (...) Fundado na semelhança e na
razão clássica baseada no repouso, e na ordem, no identidade baseada na ordem e no repouso.
divórcio natureza e sociedade, é impotente para A Razão Clássica tem horror ao movimento.
dar conta desse grande desafio. Não pode, portanto dar conta da diversidade
na natureza e da desordem da vida15.
Como diríamos, na atual conjuntura a pró-
pria ciência curva-se diante da percepção de seus A incapacidade da ciência, ou melhor, da
limites, o que não seria muito difícil para um
razão instrumental de pensar a ecologia reside
marxista, uma vez que atualmente seu pressu-
exatamente no fato de que na natureza e na vida
posto, mesmo partindo do paradigma cartesiano,
reina a diversidade e a desordem, enquanto que
embasa toda a sua crítica a sociedade capitalis-
na Razão Clássica busca-se a unidade e a ordem.
ta, modelo sobre o qual recai o mais ardoroso
protesto dos ecologistas, no que diz respeito à Na natureza o caos, na ciência a ordem.
degradação da natureza e do meio ambiente. O conceito de verdade que embasa a ciência
Ainda segundo Vieira, a ciência herdeira do ocidental pressupõe uma explicação transcenden-
racionalismo encarrega-se de apressar sua deca- tal do mundo e do homem, e daí temos essa inca-
dência. A teoria da relatividade e a física quântica pacidade da ciência em dar conta da diversidade.
no século XX mostram que a ciência não produz Para além da denúncia feita pela ecologia, algu-
mais certezas, mas apenas probabilidades. E des- mas propostas epistemológicas16 irão apontar que
sa forma, segundo esse pensamento, o Ocidente esta fragilidade cientifica nos possibilita outros
abre-se para novas possibilidades tornando-se vôos na produção e dinâmica do conhecimento.
mais sensível às concepções holísticas que se Por isso acreditamos que o estudo da História
norteiam nas filosofias orientais. Antiga através das narrativas míticas é um desses
... cultural, como todo conceito, a noção de na- outros vôos, que nos permite não apenas dialogar
tureza como “algo em si” separado do homem com outras falas menos arrogantes e autoritárias
e suas relações sociais, econômicas e políticas, da academia. Mas, além disso, permite-nos vis-
só será esvaziada a partir de transformações
no embasamento filosófico que alicerça o pen- lumbrar paisagens com outras cores, outros sons,
samento a linguagem, a cultura. Cultura com- outras imagens, outros sujeitos, outras práticas e
preendida como a própria natureza humana.14 formas de sentir a vida, o mundo e a si. Permite-
nos questionando as idéias sacralizadas a partir
A superação da Razão Clássica e da Razão da idéia moderna e européia sobre conhecimen-
Dialética é hoje um consenso entre aqueles que to, cultura, relação homem-natureza e religião
visualizam a chamada crise ecológica. Esses monoteísta. A academia se tornaria assim, um
modelos por sua vez teriam que dar lugar a uma espaço para a construção do conhecimento e
nova Razão, a uma via alternativa; estruturando- não apenas de reprodução do que se circunscreve
se a partir daí uma nova concepção de mundo, enquanto conhecimento verdadeiro.
de natureza e de universo, de sujeito, homem
e mulher. Nesse sentido, seria necessária uma
15 Cf. VIEIRA, Liszt. Op. Cit. p. 27.
nova instrumentalização do saber, uma nova 16 Nos referimos as propostas ligadas ao chamados Estudos Culturais.
epistemologia. Sobre esta discussão, cf. SILVA, Tomaz Tadeu (org e trad). O que é, afinal,
Estudos Culturais. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004; MATTELART,
13 Cf. VIEIRA, Liszt. Op. cit. p. 23-24. Armand & NEVEU, Erik. introdução aos Estudos Culturais. São Paulo:
14 Cf. VIEIRA, Liszt. Op. Cit. p. 26. Parábola Editorial, 2004.

358
REFERÊNCIAS OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de. GUIMARÃES, Flávio Romero.
Direito, Meio Ambiente e Cidadania: uma abordagem interdisciplinar.
ALMEIDA, Jozimar Paes de. Ciência e meio ambiente: a interdis- São Paulo: Madras, 2004.
ciplinaridade na constituição do pensamento ocidental. Revista de
História Regional. Vol. 2, n. 2. 1997. PEDRO, Joana Maria. Identidade e diferenciação: o gênero enquanto
questão. ANPUH. XVIII Simpósio Nacional de História. Recife, 1995.
ARISTÓTELES – vida e obra. Coleção Os Pensadores. Editora Nova
Cultural Ltda. 2000. REIS, José Carlos. História & Teoria: Historicismo, Modernidade,
temporalidade e verdade. RJ: FGV, 2003.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 7 ed. v. 1. Petrópolis:
Vozes, 1991. SILVA, Tomaz Tadeu (organização e tradução). O que é, afinal, Estu-
dos Culturais. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
PAGLIA, Camile. Personas Sexuais: arte e decadência de Nefertite a
Emily Dikson. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. VIEIRA, Liszt. Fragmentos de um discurso ecológico. São Paulo:
Editora Gaia, 1990,
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Tradução de Póla Civelli. São
Paulo: Perspectiva. 1972. WILSHIRE, Donna. Os usos dos Mitos, da Imagem e do Corpo da Mulher
na reinvenção do Conhecimento. In. Gênero, corpo e conhecimento.
MATTELART, Armand & NEVEU, Erik. Introdução aos Estudos Alisson M. Jaggar, Susan R. Bordo (Editores). Trad. Britta Lemos de
Culturais. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. Freitas. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1997.

359
o TrABALHo E os mEsEs No PórTiCo
DE sANTA mAriA DE riPoLL - (sÉC. Xii)

Paula de Souza Santos Graciolli Silva1


Ricardo Luiz Silveira da Costa2

o romÂNiCo
E o PórTiCo Do mosTEiro
DE sANTA mAriA DE riPoLL

As figuras não são apenas adicionadas, pare-

D
urante a Idade Média, a Igreja foi a maior
mecenas da arte. Por isso, o principal cem surgir da alvenaria. Elas não só habitam, mas
traço das obras daquele período foi a aformoseiam a construção. Esses relevos transfor-
religiosidade. No século XI, o Românico foi o mavam uma simples edificação numa personifica-
primeiro “estilo” internacional, marca da Euro- ção viva do corpo místico de Cristo. Conseguiram
pa ocidental, favorecido pelo poder monástico, iconograficamente associar temas do Velho e do
pelas grandes peregrinações religiosas, pelo Novo Testamento, profecias escatológicas e a per-
desenvolvimento do sistema feudal e pela intensa cepção eclesiástica da história do mundo.
atividade construtiva.
Destaque entre os monumentos românicos da
Equipes de arquitetos e escultores se desloca- Catalunha, o Mosteiro de Santa Maria de Ripoll
vam de um lugar para outro realizando obras, fato foi fundado em 879 pelo conde Guifré, el Pilós
que colaborou para dar ao Românico sua unidade (Wilfredo, o Peludo). A obra de construção do
estilística. Nessa época, a escultura era inerente mosteiro começou em 888 e, durante o século X,
à arquitetura e essa última, por sua vez, tinha um o edifício passou por várias reformas.
aspecto sólido, além de uma notável resistência às
A cultura europeia durante os séculos da Idade
intempéries e ataques inimigos.
Média se conservou e, em grande parte, se salvou gra-
Os escultores românicos se defrontaram com ças à ação dos mosteiros e das catedrais. A mudança
adversidades sui generis pertinente a seu meio ex- provocada pela queda do Império Romano e pelas
pressivo, pois as superfícies destinadas à escultura invasões dos povos germânicos favoreceu a acolhida
eram tímpanos, capitéis e portais, com ângulos dos instrumentos de cultura nas catedrais e, sobretudo,
pouco propícios ao ato de esculpir. nas fundações monásticas, em especial nos mosteiros
O virtuosismo com que eles solucionaram beneditinos (JUNYENT; MUNDÓ, 1997, p. 10).
esses problemas ainda causa estupor. Grande parte No entanto, nem todos os mosteiros podiam contar
das obras egrégias da escultura românica são rele- com um scriptorium permanente. Santa Maria de Ripoll
vos ajustados às complexas condições dos locais foi uma das poucas congregações religiosas que pôde
em que se desenvolveram. A partir daí, percebe-se manter um − e muito ativo por cerca de seis séculos. Os
a profunda integração entre arquitetura e escultura, primeiros códices conhecidos escritos em Ripoll datam
espaço e forma, artista e arte. do princípio do século X. Um deles contém, além de
1 Graduanda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo – diferentes textos da época romana clássica, um mapa
UFES. Email: sant_paula@terra.com.br.
2 Doutor em História. Docente do Departamento de Artes da UFES. da Península Ibérica (o mais antigo preservado até hoje).
361
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

No período do abade Arnulfo (948-970) há ras simbólicas de vícios e virtudes e as lutas do


vários testemunhos da atividade do scriptorium e espírito contra as paixões. Esses diversos temas
da cópia de livros, destinados tanto para os condes desenvolvem-se pelas arquivoltas e se estendem
de Barcelona quanto para outras partes do reino. até a base (JUNYENT; MUNDÓ, 1997, p. 3).
A atividade do scriptorium de Ripoll foi notável O pórtico foi ricamente ornado com cenas bí-
também durante o período dos abades Guidiscle blicas. Entretanto, as esculturas não ficaram circuns-
(†975) e Seniofredo (†1008). Porém, foi na época do critas apenas a representações religiosas, pois, como
abade Oliva (1008-1046) que o scriptorium de Ripoll dissemos, há temas profanos, igualmente importantes
alcançou seu máximo esplendor. Entre os códices para o homem daquele período, como o trabalho
conservados que se têm notícia existem cópias de camponês e os meses, o calendário, a guerra, os
exemplares desde a Lombardia e Alvernia até as costumes, animais reais e fantásticos, etc. O portal da
fontes do Ebro e as terras ao Sul (de domínio árabe). fachada de Ripoll está escalonado em sete arquivoltas
Os textos copiados ao longo desse período assentes em pilares e colunas. No pilar onde inicia a
foram variados: obras dos santos Padres da Igreja, última arquivolta está a representação dos meses do
comentários bíblicos, livros litúrgicos com nota- ano segundo a agricultura camponesa. Começa em
ções musicais, textos históricos e jurídicos, de janeiro, na parte inferior do batente direito, em ordem
Gramática e de ciências profanas, monásticos e crescente, e a seção superior do batente esquerdo
hagiográficos, sem contar uma grande quantidade segue também em ordem crescente.
de autores clássicos latinos e traduções do grego e
do árabe (MUNDÓ, M. A. 1997, p. 10).
O pórtico do mosteiro beneditino de Santa
Maria de Ripoll (séc. XII) ostenta um intricado
esquema iconográfico. Este mosteiro, assim como
outros grandes edifícios monásticos no século XII,
foi realçado com um magnífico pórtico esculpido.
Esta obra, primorosa pela profusão de cenas e
figuras que a compõem, forma uma espécie de
arco do triunfo sagrado (JUNYENT,1997, p. 3).
É provável que em nenhum outro lugar a ico-
nografia românica tenha alcançado uma epopeia
religiosa de tanta grandiosidade, traduzida em
pedra, em um conjunto harmônico que expressa
cenas inspiradas na Bíblia.
No topo do pórtico está o Senhor, Onipotente
(Pantocrátor), rodeado pelos símbolos dos evan-
gelistas, recebendo aclamações dos anciãos do
Apocalipse e a adoração dos justos e dos santos. Figura 1 - Vista da fachada do pórtico
Desde a parte superior aparecem as homenagens, as de Santa Maira de Ripoll.
batalhas e as cenas do povo de Israel comemorando
Sua infinita bondade e misericórdia.
Os camponeses desempenharam um papel
A imagem de São Pedro e São Paulo, ao lado importante na sociedade medieval. Na Idade
da porta, introduz as cenas com os episódios de Média, o trabalho camponês era a fonte que as-
seus martírios e segue com as figurações dos segurava a sobrevivência da população. Em uma
meses do ano, temas de animais fantásticos, figu- sociedade na qual a terra constituía o único meio
362
Paula de Souza Santos Graciolli Silva / Ricardo Luiz Silveira da Costa

de subsistência, era o camponês quem preparava des tanto quanto a linguagem escrita e discursiva.
o solo, plantava, colhia e cuidava dos animais. Assim como há o pensamento lógico, existe também
o pensamento plástico. Dessa maneira, é possível
O campesinato promovia o sustento econô-
entender como se dá uma descrição pré-iconográ-
mico de todas as camadas sociais. Na civilização
fica de uma obra (PANOFSKY, 2009, p. 55): uma
deste tempo, o campo era tudo. Todos os homens,
investigação minuciosa do contexto histórico da
mesmo os mais ricos, os bispos, os próprios reis,
época em questão, integrada à história da arte.
e os raros especialistas, judeus ou cristãos, que
nas cidades exerciam o ofício do comércio a longa No pórtico do Mosteiro de Santa Maria de
distância, permanecem rurais. Sua existência era Ripoll os relevos românicos revelaram uma nova
ritmada pelo ciclo das estações agrícolas, sua expressão formal com a valorização da mensagem.
subsistência dependia da terra-mãe, dela era re- A figura humana é representada de frente,
tirado todos os recursos (DUBY, 1987, p. 19-20). com um suave realismo anatômico. Os gestos
Nos relevos do pórtico do mosteiro de San- são rígidos e as partes pouco proporcionais. Na
ta Maria de Ripoll, o mês de julho representa a composição, os personagens estão colocados nor-
colheita do trigo, agosto a preparação do barril malmente em simetria. As cenas estão tratadas em
para a vindima, e setembro a vindima da uva. poucos planos, quase sem perspectiva e a temática
é tanto religiosa quanto profana, pois relatam his-
As estações do ano eram importantes para o
tórias bíblicas e cenas da vida cotidiana.
ritmo de trabalho do campesinato. Na Idade Média,
o tempo era determinado pela regularidade agrária,
imprecisa em sua medição. A unidade de tempo era
o dia, que se iniciava com o nascer do Sol.
JuLHo
No calendário dos trabalhos dos meses pre-
domina a economia rural. Normalmente eles são
voltados ao tempo cíclico do eterno recomeço,
embora sejam sensíveis à lenta evolução da eco-
nomia e das técnicas (LE GOFF, 2012, p. 497).

ENsAio PrÉ-iCoNoGráFiCo

As criações artísticas do mundo da tradição


solicitam a fruição contemplativa. Aguçam os sen-
tidos por sua delicadeza, pela noção intrínseca do
Belo, por seu sentido estético, pelo conhecimento
crítico do mundo. Apreciaremos melhor a arte do
passado se melhor conhecermos sua significação
humana. Nossa sensibilidade estética é refinada
pelo estudo (FRANCASTEL, 1993, p. 48).
Como a análise de imagens exige percepção,
apreensão e acolhimento, é necessário ir além do
que se vê, transpor o visível e o efêmero, arraigar a
interação subentendida na obra. A arte integra um Figura 2 - Representação do mês de Julho
vasto campo de inquirição. É essencial às socieda- no pórtico de Santa Maira de Ripoll.
363
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Passado junho, mês do corte do trigo na agricul- época. O pão negro medieval que alimentava o povo
tura camponesa medieval, tem-se a reprodução do mês incluía todas as espécies de cereais (por vezes milho,
de julho que, no pórtico de Santa Maria de Ripoll, está geralmente cevada, cereal de grande rendimento e,
representado pela cena de um casal. O homem carrega por fim, a aveia, que os homens consumiam também
um feixe de trigo, com o amparo de uma mulher. em papas). Os abastados comiam pão branco, feito
Esse casal, possivelmente marido e mulher, só com trigo (DUBY, 1962, p. 122).
trabalham juntos nas obrigações cotidianas. A re- Para os camponeses, a carne era um item de
presentação da mulher com essa touca na cabeça luxo destinada apenas aos dias festivos. Se para
provavelmente simboliza uma mulher casada. Na a aristocracia o pão era guarnição para os pratos
Idade Média, as mulheres casadas envolviam seus feitos com carne, para os camponeses era a base da
cabelos em toucas, o que indicava seu compromisso alimentação. Na verdade, o pão, essencial desde a
conjugal (MACEDO, 2002, p. 21). Antiguidade, foi valorizado pelo Cristianismo, que
A Bíblia (Cor 1, 7:4) diz que o corpo do marido o tomou como símbolo do próprio Deus encarnado
pertence à esposa, e o da esposa pertence ao marido. (também presente na oração do Pai Nosso, Mt 6, 9:13).
Dessa forma, marido e mulher deveriam ser um só.
Compartilhavam os ofícios do dia a dia.
A mulher camponesa era essencial na divisão AGosTo
das tarefas, pois não só fazia o trabalho doméstico
mas, quando casada, deveria participar ao lado do
marido das atividades realizadas na tenência – parte
do domínio feudal explorada pela família: plantava,
pescava, colhia e batia o trigo, ordenhava as vacas,
tosquiava os carneiros (MACEDO, 2002, p. 32).
Na imagem do relevo respectiva ao mês de julho,
da esquerda para direita, o provável marido é quem
sustenta a maior parte do feixe de trigo. Apoiando-o
sobre os ombros, seus braços abertos e arqueados o
segura com firmeza e vigor. Suas pernas levemente
flexionadas indica o peso de seu fardo. À sua direita,
a esposa ergue a parte posterior do maço de trigo com
os braços unidos e flexionados.
As roupas dos camponeses eram simples e
práticas. Na cena, o homem porta uma túnica até
os joelhos, presa por uma espécie de cinto. Por sua
vez, a mulher veste uma longa e justa túnica, como
um vestido. Na parte superior, mangas compridas
Figura 3 - Representação do mês de Agosto no pórti-
cobrem os braços, e na inferior, a saia lhe confe- co de Santa Maira de Ripoll.
re mais liberdade de movimentos. Essas túnicas
eram normalmente feitas de lã. Não era incomum Agosto é representado pela cena de um ho-
camponeses andarem descalços, especialmente nos
mem com um menino. É provável que sejam pai
dias mais quentes, mas para o trabalho nos campos
e filho, já que toda a família, célula social básica,
sapatos de couro eram mais usados.
trabalhava. Ela era a própria estrutura da aldeia
O mês de julho está representado pela colheita e de seu território, a divisão do trabalho e do
do trigo, cereal importante para a alimentação da consumo (DUBY, 1962, p. 47).
364
Paula de Souza Santos Graciolli Silva / Ricardo Luiz Silveira da Costa

A figura à esquerda na imagem é possivel- Setembro é o mês da colheita da uva. A uva


mente um menino, pois mesmo sobre um banco era pisada (ou prensada) e, da primeira extração
ele ainda está mais baixo que a figura à direita. Na era feito o vinho mais refinado, reservados às
Idade Média, as crianças camponesas medievais classes altas. A segunda, mesmo a terceira pren-
eram inseridas muito cedo no universo adulto, pois sagem, eram de qualidade inferior e, consequen-
ajudavam os pais e assim aprendiam um ofício. temente, dedicadas ao restante do povo.
A imagem do mês de agosto no pórtico sugere Na Idade Média, o armazenamento do vinho
que os dois personagens trabalham na preparação era feito em tonéis cavados no chão. Por avinagrar
de um recipiente para a produção do vinho, um dos rapidamente, utilizavam-se aromatizantes.
elementos mais importantes da dieta.
Nesse período, a Igreja desempenhou um
À esquerda, a criança está com um dos pés importante papel no desenvolvimento e aprimora-
sobre o banco para alcançar o recipiente, o outro mento dos vinhedos e do vinho. O simbolismo do
está apoiado no tonel, para assim se equilibrar e vinho na liturgia católica não poderia ter enfoque
manusear uma ferramenta esguia e pontiaguda, maior: era o sangue do próprio Cristo. Assim
aparentemente cortante, com uma das mãos. A como na passagem bíblica (Mc 14, 22:24) “En-
outra mão repousa sobre a cintura. quanto comiam, Jesus tomou o pão, deu graças,
À direita, o homem segura com uma das mãos partiu-o, e o deu aos discípulos dizendo: ‘Tomem
um objeto semelhante a um martelo. Seu corpo, e comam; isto é o meu corpo’. Em seguida tomou
projetado para frente, e seus braços (o esquerdo o cálice, deu graças e o ofereceu aos discípulos,
estendido e o direito dobrado) indicam que está dizendo: ‘Bebam dele todos vocês. Isto é o meu
inteiramente absorto em sua labuta. sangue’”.
Na imagem do mês de setembro, aparece
novamente um casal, dessa vez trabalhando
sETEmBro na colheita da uva. Provavelmente um casal de
irmãos, uma vez que era comum os ofícios do
campo serem feitos por todos os membros da
família.
A mulher, à esquerda, é representada com
duas linhas laterais ao rosto, o que sugere serem
tranças. A longa cabeleira feminina na Idade
Média era vista como um atributo sexual. O
cuidado com os cabelos, longos, era um hábito
íntimo reservado ao espaço da casa. Ao saírem,
as mulheres prendiam-no com tranças, indicação
visível de sua disponibilidade para o casamento
(MACEDO, 2002, p. 21).
A jovem usa um longo vestido e, diferente
das cenas anteriores, parece calçada com um
sapato pontiagudo. Totalmente posicionada de
frente, ela ergue um dos braços para colher os fru-
tos e, com o outro, aparenta tocar em uma folha.
Entre o casal está uma árvore, possivelmente
Figura 4 - Representação do mês de Agosto no pórti- um vinhedo. Esse, por sua vez, cobre os dois jovens.
co de Santa Maira de Ripoll. À direita encontra-se um recipiente em formato
365
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

cônico, um cesto, provavelmente utilizado para Para analisar um monumento dessa envergadu-
armazenar as uvas enquanto ocorre a colheita. ra e importância, que representa e sintetiza o estilo
de uma época, é necessário obter o máximo possível
O homem, à direita, com um cesto a seus pés
de informações acerca das imagens estudadas e
que lembra uma treliça, colhe os frutos.
de seu contexto cultural, como e quando a obra foi
realizada, sua finalidade, seus significados e valo-
res para a sociedade que a produziu. Isso porque a
CoNCLusÃo imagem não é apenas uma mera representação de
Um dos motivos que faz de Ripoll um dos
sua época, mas uma extensão da sociedade que
monumentos românicos da Catalunha, é seu a produziu. Como tal, deve ser minuciosamente
magnífico e imponente pórtico esculpido. Os analisada, especialmente suas intenções subjetivas.
escultores se dedicaram intensamente a recriar Nesse sentido, o realismo das cenas dos trabalhos
as miniaturas que aparecem no códice da Bíblia dos meses esculpidas no Pórtico de Santa Maria de
de Ripoll. Além disso, a riqueza de detalhes do Ripoll nos sugere a profunda conexão entre a reali-
Pórtico é notável: há detalhes preciosos, desde dade e a arte na Idade Média. A arte era então um
as dobras das túnicas e tecidos até as armaduras, prolongamento da vida, uma extensão do material
capacetes e escudos dos soldados. ao imaterial, do humano ao divino.

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366
A DAmA Do PÉ DE CABrA E o miTo DE mELusiNA
No LIVRO DE LINHAGENS Do CoNDE D. PEDro (sÉC XiV)

Polyana Muniz1
Adriana Zierer

ma mulher muito bonita, de aparência nobre segundo Aline Dias da Silveira, uma ‘Melusina

U e com uma aura de perfeição sobrenatural,


é encontrada em uma floresta, por um
homem nobre, mortal, que se apaixona. Ela está
portuguesa’, considerando que as próprias heran-
ças regionais portuguesas e a função social em
que o mito foi inserido no Livro de Linhagens são
próxima da água, isto é, algum poço, lago, córrego, específicas. No entanto, José Mattoso, historiador
fonte, etc. E canta, encantadoramente. A figura o português que editou e comentou a publicação do
seduz e promete casar-se com o desconhecido, isto Livro de Linhagens percebe na dita narrativa uma
com a condição de um interdito. Ele promete cum- clara prova do encontro, possivelmente antigo, de
pri-lo. E inevitavelmente, depois de algum tempo culturas, que de qualquer forma não são originá-
felizes, de uma descendência gerada e a linhagem rias do Portugal medieval, mas anteriores a sua
ter aumentado em poder e riqueza, a mesma proi- formação. É essencial para esse trabalho, portanto,
bição é desobedecida, e, com a mesma proporção, o entendimento do sincretismo.
tudo é perdido. No entanto, é importante questionar até que
Esse esquema narrativo, denominado de contos ponto representações universais como essas real-
melusinianos, do qual faz parte a narrativa analisada mente explicam a utilização regional e as diferentes
por este trabalho, funciona como uma versão de um versões dos contos, senão anacrônicas, devem ser
mito adaptado a origem de várias famílias e se estende citadas com bastante cuidado, de forma que não
a muitos países como a França, Portugal, Alemanha, é possível traçar uma linha genealógica ao mito
Rússia, países eslavos e, é claro, a Irlanda e suas original celta e as diferentes versões, e os processos
origens célticas. As vezes sem nome, em algumas históricos e sincréticos envolvidos na transmissão
histórias aparece como Melusina (nome mais famoso do folclore oral.
da personagem), em Portugal, também sem primeiro Segundo Le Goff, que percebe uma dialética
nome, é a Dama do Pé de Cabra. Não há dúvida sobre cultural entre os clérigos e o povo (PATLAGEAN,
sua raiz comum com as tradições folclóricas do norte 1998), a pressão das representações populares
da Europa, Gales, Irlanda e a Bretanha francesa. sobre a religião dos eruditos foi um verdadeiro
Apesar das heranças pagãs semelhantes, fenômeno medieval, existindo diversas fontes que
influenciadas por uma mesma mitologia, não se demonstram essa realidade (LE GOFF, 1980, p.
deve, no entanto, deixar de observar que quando 28). Há duas vertentes de pesquisa sobre esse tipo
transformados em obras literárias são resultados de questionamento: uma tenta analisar esse tipo
de uma interpretação autoral e, portanto, modifi- de literatura maravilhosa como um contraponto
cadas por ele e por sua bagagem social. Não existe, das pressões sociais (Inspirados nos estudos de E.
1 Graduanda em História – Licenciatura pela UEMA/BRATHAIR. Pesquisa Köhler). A outra dá ênfase aos substratos pagãos
realizada com Bolsa de Iniciação Científica (FAPEMA/UEMA) e no Programa em detrimento do contexto em que depois foi reu-
de Iniciação Científica Voluntária (PIVIC) entre 2012-2014 sob a orientação da
Prof. Drª Adriana Zierer. E-mail: polyanammz@gmail.com tilizada (inspirados nos estudos de R.S. Loomis).
367
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

A conduta adotada por esse artigo segue o p. 139). É importante ressaltar que esses dois
exemplo de Antônio V. P. Morás, onde se perce- polos opostos não eram impermeáveis uns aos
beu que a análise deve ser feita diante das duas outros. Um exemplo disso é a origem laica dos
perspectivas – não se devem ignorar as origens e o indivíduos que adentravam a vida eclesiástica, e
passado da mitologia, nem retirá-la de seu contexto a origem cristã que no seu processo de formação
histórico. A principal questão extraída de seu traba- enquanto religião de minorias, também apresenta
lho é a diferenciação entre o mito e a obra literária, elementos sincréticos como os mitos.
que já pressupõe uma modificação pelo autor e seu
A pressão que as representações populares cau-
contexto histórico e que não pode ser comparada
savam na religião e nas preocupações dos eruditos
estritamente com o mito imemorial e antigo, embora
cristãos foi em geral bastante forte durante toda
suas influências possam ser localizadas.
Idade Média, embora seja detectável momentos
A formação da sociedade, e principalmente, da de maior repressão por parte da Igreja contra os
cultura medieval foi disposta de vários processos discursos e ações que ameaçam sua unidade, e de
voluntários (estratégias, guerras e conflitos etc.) maior afrouxamento na vigilância e ataque contra
e involuntários (que resultavam em meios sinc- costumes e aspectos laicos. Segundo Le Goff,
réticos e/ou aculturados, e de longa duração) que Assistimos assim à afirmação de dois fenômenos
proporcionaram a perda, a modificação (muitas essenciais: a emergência da massa camponesa
vezes somente maquiada) de aspectos culturais das como grupo de pressão cultural e a indiferencia-
diversas sociedades que habitaram a Europa. Mas ção cultural crescente – com algumas exceções
foi resultado também desses processos a criação individuais ou locais – de todas as camadas
sociais laicas face ao clero que monopoliza as
de “mitos literários”, a coexistência e a mescla de
formas evoluídas, e nomeadamente escritas, de
culturas diferentes (que em foco são as fontes estu- cultura (LE GOFF, 1980, p. 209).
dadas pelos medievalistas), e é claro, a curadoria de
muitas fontes clássicas que produzidas em forma de É bem difundido o fenômeno histórico
livros e relatos, ainda examinados pela lente cristã, do uso e da apropriação de figuras históricas, que
sobreviveram como vestígios daquele tempo. são mitificadas e endeusadas, ou o contrário, a
No centro dessa discussão está o embate historicização de figuras heroicas lendárias, em
entre a cultura erudita, de elite, letrada e em sua diversas sociedades e momentos da humanidade.
maioria, originada dos seios de monastérios e A produção dos Livros de Linhagens portugueses
púlpitos cristãos que a transmitiam formalmente são um grande exemplo desse tipo de construção,
(a própria universidade surgiu a partir dessa lógi- e o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro de
ca de produção), foi eclesiástica e conservadora; Barcelos, fonte principal dessa monografia, faz
a cultura popular2, “bárbara” e voltada para os parte de um projeto político explicitado por seu
mitos e lendas pagãos, foi primordialmente oral, próprio autor, no prólogo da narrativa. O mesmo
transmitida através de dialetos vernaculares e ocorre com o Romance de Melusina – Ou a nobre
utilizada em vários exemplos históricos como história dos Lusignan, do livreiro Jean d’Arras,
forma de resistência política e cultural, como que foi encomendado pelo Duque de Berry, ser-
veremos posteriormente. “Ela expressava a men- vindo para um objetivo igualmente político.
talidade de forma mais direta, com menos inter- O marco cronológico de início do que Le
mediações, com menos regras preestabelecidas. Goff, a partir dos estudos de Köhler, definiu como
Ideologicamente, ela se inclinava a recusar os “reação folclórica”, isto é, a tentativa por parte da
valores e práticas oficiais” (FRANCO JR, 2001, aristocracia de forjar uma identidade cultural que a
2 Sobre a denominação “popular”, ao longo dos estudos sobre o tema várias
denominações são utilizadas para classificar a cultura não-eclesiástica. Foi diferenciasse da organização clerical, foi a chamada
chamada de folclórica, laica, e vulgar – pois assim rotulava tudo que não fosse Reforma Gregóriana,3 do século XII. Dessa forma,
clerical. (FRANCO JR, 2001, p.139). Essa diferenciação, no entanto, não é
trabalhada neste trabalho, visto que todas elas se remetem a um mesmo obje- 3 Movimento criado pela Igreja Católica no século XII que visou o fortaleci-
tivo, embora atualmente este último seja o mais utilizado por medievalistas. mento do papado. Tendo como maior protagonista o papa Gregório VII (1075-

368
Polyana Muniz / Adriana Zierer

os leigos foram buscar na cultura pré-cristã, uma A utilização dos contos para justificar poderes
reserva cultural já existente, a valorização cultural também funcionava como elemento que diferencia-
que permitiria fazê-los únicos e ‘especiais’ e que va famílias poderosas através de suas heranças pa-
fosse independente da cultura clerical (não como gãs. O clero, buscando provar que eram os desígnios
contracultura, mas como uma cultura diferente). divinos que regiam a vida dos medievos, apontava
os aspectos demoníacos dos contos melusinianos.
Considerando os aspectos já citados da so- Dentro da teorização do que representa o maravi-
ciedade medievale dos contextos específicos, se lhoso, argamassa das narrativas analisadas, está
torna perigoso às designações já estabelecidas justamente o conceito de ‘maravilhoso político’.
pela historiografia tradicional do que pode ser É importante diferenciar aquilo que partia da reli-
‘cristão’ ou ‘pagão’. De forma similar estão as giosidade popular, que vinha da oralidade e partia
relações culturais na sociedade brasileira, por das adaptações aqui discutidas e a religião oficial,
exemplo, ainda que se reconheçam as identidades cânone que lutava e combatia o sincretismo e que
distintas, a mentalidade social é formada por vai demonizar as personagens femininas.
uma mescla de costumes e conceitos diversos.
O mito consiste em uma narrativa, o que não
É nesse sentido que Le Goff (1994), discutindo
significa que o seja falso ou mentiroso. Tem suas
acerca da utilização do sobrenatural e qual a sua funções de legitimação e organização da sociedade
origem ‘cultural’ (erudita, cristão, pagã?) pensa em que é transmitido, partindo do questionamen-
em “laicização do sobrenatural”. to humano entre si mesmo e o universo em que
A discussão acerca desse conceito parece ser vive. Com o tempo, no entanto, se transforma em
essencial para o entendimento do contexto que patrimônio literário. Só se transforma alienador
cerca as duas narrativas medievais aqui compa- quando deixa de desempenhar seu papel origi-
radas, já que partilham de um mesmo enredo, nal e é utilizado para outros fins. Nesse sentido,
uma mesma ‘origem’ antiga, e servem (de formas trabalhamos não com mitos, mas com suas rein-
distintas) para a alienação do mito e a adaptação terpretações, que são fontes para a literatura. Por
conseguinte, um conto ou novela podem derivar
ao tema linhagístico.
de um dado complexo mítico, mas sua presença
A laicização do sobrenatural funciona no escrita já pressupõe um processo de elaboração/
contexto político contra as regulamentações da interpretação de um certo autor. É nesse cenário
Reforma Gregoriana no século XII, e como balan- que surgem os contos melusinianos.
ça ‘ecumenizante’ em favor das demais culturas
As primeiras aparições escritas desse modelo
e formas em que o maravilhoso se manifesta. O de contos foram nos séculos XII e XIII e faziam
julgamento cristão sobre os contos é inegável, mas parte da literatura de entretenimento das cortes,
em níveis mais profundos, a utilização dos mesmos produzida em língua vulgar e constituída em torno
ainda que sob esta ótica primeiramente negativa dos principados regionais (MORÁS, 1999, p. 229).
mostre uma permanência sincrética. A prova são Apesar disso também eram produzidos em latim
as figuras demoníacas e femininas funcionando narrativas nas cortes de Henrique II, dos Planta-
como fundadoras e construtoras de bens e proles genet, pelas figuras dos curiales (administradores
seja para o bem ou para o mal das famílias que jurídicos e fiscais), jovens universitários instruídos
procuravam se afirmar socialmente. como Gautier Map e Gervais de Tilbury.
1083), essa reforma passou a rejeitar a interferência dos leigos em assuntos
eclesiásticos, como por exemplo, a escolha do papa ou de bispos por senhores No século XIII e XIV o tema foi adapta-
feudais e/ou pelo Imperador. Ao mesmo tempo a Igreja como instituição pro- do para os relatos linhagísticos, e a Melusina
curou uma maior espiritualização, estabelecendo o celibato como obrigatório
a partir de então a todos os clérigos e a proibição da simonia (venda de cargos (Mèlusine, Mellusine, Mesluzine, Messurine,
eclesiásticos). No caso do Portugal medieval, o clérigo, sobretudo o pároco, de-
veria ser um separado, distinguindo-se de todos, pelos trajes, costumes, com- Meslusigne ou Mellusigne) ganha nome e se
portamento e instrução. Para Mattoso, as autoridades eclesiásticas essa diferen- transforma em romance, e a família do esposo é
ciação era necessária para que não se transformassem em um instrumento das
religiões populares, a quem estavam suscetíveis (MATTOSO, 1988, p. 394). a Lusignan, nobres importantes em Poitou, cujo
369
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

ramo mais antigo se extinguiu em 1308 (passando entre 1340 a 1344, o enredo parece o mesmo,
seus domínios para o poder real e depois para o embora as particularidades da região e do con-
Duque de Berry). Em 1392, o livreiro Jean d’Ar- texto histórico construam uma “versão” própria
ras começa a produzir uma obra para o duque, e diferente para o conto.
que tem como fonte a história oral, conhecimen-
Para a historiadora Aline Silveira, que escre-
tos populares além das crônicas de Gervais de
veu sua dissertação de Mestrado sobre o pacto
Tilbury. O Romance de Melusina – ou a nobre
feérico que envolve a Dama do Pé de Cabra na
história dos Lusignan, ascendendo assim a lenda
Idade Média portuguesa; o ritual e o pacto por
para o estatuto de obra literária, seguida de um
qual passam essas histórias feéricas são um es-
romance em versos de Coudrette (1404-1405, na
pelho (que não deixam de ser utilizados para fins
Inglaterra), e a figura mítica da Melusina ainda é
políticos) das relações matrimoniais e vassálicas
parte da tradição folclórica moderna na França.
medievais. Dessa forma, é possível identificar
Por fim, A Dama Pé de Cabra e a Dona Ma- na literatura laica e nas diversas manifestações
rinha, as duas personagens portuguesas, são as culturais as representações e idealizações desses
figuras ligadas aos contos melusinianos contidas pactos. A partir desse ponto de vista, é perceptível
no Livro de Linhagens do conde D. Pedro, que a função legitimadora de narrativas como essas,
no século XIV também contam a origem das pois representam os valores da época (SILVEI-
famílias Lopes de Haro e Marinho. RA, p.10, 2002).
A partir das narrativas bases sobre a Melu- Para a autora, existe uma estrutura ritualística
sina e A Dama do Pé de Cabra encontrou-se o comum entre os pactos feéricos e os pactos vassá-
que Propp (1984 apud SIQUEIRA, 1995, p.256) licos e matrimoniais que nos ajuda a compreender
chama de “Morfologia dos contos maravilhosos”. mais a fundo como esses esquemas narrativos
Uma série de variantes e constantes nos contos serviriam para a classe nobre, refletindo como as
melusinianos que adaptadas de uma situação para relações políticas e familiares se descortinavam no
outra, guardam elementos fixos que devem ser medievo. Esses três elementos podem ser destaca-
analisados posteriormente e que correspondem dos no ritual: 1) O ambiente de encontro, geralmente
às origens do mito, concluídos por Claude Lecou- natural e desabitado, evocando o limite entre os dois
teux. Estes são: Encontro na floresta (próximo a mundos (humano e sobrenatural), sendo um dos
um rio, fonte, etc.), com uma dama bem vestida; elementos de análise também das constantes das
Esta impõe uma condição em troca do amor e do duas narrativas; 2) O sacrifício (‘dever sagrado’),
casamento (não vê-la nua, tomando banho, depois momento de união do ser sobrenatural em que é
do parto, aos sábados, não se benzer, etc.); Dá acolhida a restrição do interdito ou condição; 3) O
ao seu marido mortal prosperidade e poderosa poder da palavra, evidenciada em uma sociedade
descendência; Ocorre a transgressão por parte do pautada pela oralidade.
marido; A dama desaparece e leva embora alguns
Essa explicação é de suma importância, visto
filhos e a prosperidade que trouxe.
que insere e dá sentido à construção da narra-
Estes elementos que se repetem não somente tiva, dentro do contexto histórico das relações
nos contos em que aparece a Melusina, mas em medievais, como também procura intermediar
outras narrativas de raízes célticas medievais as possíveis funções originais do mito fundador
conhecidas, como Tristão e Isolda, Rei Arthur e (e suas regulamentações próprias) aos usos sim-
entre as novelas de cavalaria etc. correspondem a bólicos adaptados para sua fase ‘alienante’, isto
certas características que cristianizadas servirão é, no momento histórico estudado, de utilização
para outro sentido na sociedade medieval. No política do maravilhoso e do imaginário. Para
caso da narrativa A Dama do Pé de Cabra, caso além desta, é necessário explorar outros elemen-
português do livro do Conde Barcelos escrito tos que caracterizam esses contos.
370
Polyana Muniz / Adriana Zierer

Trabalhando com os padrões constantes levan- As duas personagens míticas femininas


tados por Lecouteux, e o inventário das pesquisas contidas no nobiliário são, cada qual a seu modo,
sobre o maravilhoso de Le Goff, é possível discutir representantes da imagem da mulher no imaginário
alguns elementos presentes nas várias versões dos português. Maria Lucia Dal Farra expõe diante dos
contos, de forma a observar suas peculiaridades. embates entre o paganismo e o cristianismo nesses
O primeiro ponto é a questão da natureza. Esta contos, o “antagonismo em que a mulher estava
corresponde a um âmbito que o homem medieval situada” (DAL FARRA, 2007, p.10). Além do local
tem medo por não poder controlar – daí a vinda da onde a mulher maravilhosa se encontra, há também
mulher sobrenatural de tal lugar, de origem obscura a sua forma animal que a difere dos mortais. Nas
e poderosa. Em seus primeiros usos antigos, o ca- tradições célticas há histórias que versam sobre
samento da mulher-animal com um homem mortal uma mulher-equídea, mas nos contos apontados ela
seria extremamente benéfico, pois se tratava de uma toma forma de metade serpente/dragão/sereia (por
união entre o provedor e o provido (mulher-trickster). estar ligada a água) e cabra – no caso português.
Com a alienação do mito, no entanto, essa origem Portanto, a personificação das águas e do mal que
natural será elemento negativo, tornando-se parte essas criaturas representaram significam muito bem
dos atributos demoníacos da personagem. Por sua a evolução de Melusina/Dama do Pé de Cabra como
“ambiguidade de prover à alimentação, ao mesmo mulher-animal, antes celta, depois medieval.
tempo que, assustadoramente, toma seu tributo de
morte, a floresta parece ser o lugar de excelência para A cabra, outro animal que é simbolicamente
o encontro dos dois mundos, assumindo a função representado como demoníaco no medievo e que ca-
simbólica de deserto bíblico e do mar das aventuras racteriza a Dama do Pé de Cabra, também tem outras
célticas” (LE GOFF apud SILVEIRA,2002, p.28) interpretações que não a mais popular. Ainda que
a escolha deste tenha intencionado a demonização
Na Biscaia, região em que habitava a família feminina, o bode e a cabra tiveram outros significa-
Haro, o casamento com a Dama do Pé de Cabra expo- dos em culturas distintas. Angélica Varandas mostra
ria o poder de D. Diego Lopes de controlar a natureza como esses animais foram símbolos de procriação
do local que dominava. Além de representar indícios associados à luxuria e ao diabo.
do sobrenatural, também mostra resquícios do mito
de casamento com a natureza, tão importante ainda A proibição que a mulher sobrenatural dá ao
para uma sociedade agrária como a da Idade Média. marido é justamente para que não se descubra a
sua natureza mágica, já que a fada quer se inserir
O mesmo corresponde à proximidade das fon-
no mundo humano – no que condizem as versões
tes e da água. Esta última está ligada ao feminino por
estudadas, para se redimir por ser sobrenatural
estes dois, como fatores animados, representarem a
(isto é claro, na visão do autor medieval que tenta
origem da vida. A representação do feminino junto
explicar uma origem familiar a partir de uma união
ao aquático pode ser observada em vários elementos
híbrida). Esta é, portanto, o principal contraponto
das versões existentes, inclusive na história linhagís-
dos dois contos analisados, o invólucro cristão
tica “Dona Marinha” que também está contida no
que maquia os aspectos pagãos e os adaptam/
Livro de Linhagens e representa um mito de funda-
transformam em mitologia cristã.
ção, relacionado a uma família Marinho (ZIERER,
2013, p. 250). Esta repete os mesmos elementos dos Na fonte Narrativas dos Livros de Linha-
contos melusinianos, mas tem seu final modificado, gens, ocorre uma maior cristianização do conto.
o que representaria, para Irene Freire Nunes, a vitória A fada é vista sob uma ótica negativa por manter
do cristão sobre o pagão, e a imagem de uma família características femininas combatidas na Idade
que venceu o sobrenatural. Por ser uma figura que Média. Esta tem o pé de cabra, animal direta-
foi achada no mar, a personagem é chamada de mente ligado ao Diabo, embora tenha outros sig-
Marinha, que gera o nome de sua linhagem e remete nificados nas culturas pagãs (Pã, Thor etc.) este é
ao meio aquático. relacionado à feitiçaria e ao demônio. O ponto de
371
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

encontro natural ganha outra significação e o fato fauno também com características semelhantes
de ela dar como condição ao casamento o mari- parece fornecer as influências diretas para a
do não mais se benzer, mostra esse afloramento formação da narrativa, nesse caso, inclusive na
do maravilhoso cristão no exemplo português. sua forma oral, mais antiga. Desse modo, outra
Ainda assim, ela origina uma descendência e é questão de discussão é levantada sobre as origens
posta como fundadora da família Lopes de Haro, da Dama do Pé de Cabra, no que tangem as in-
uma importante família castelhana que tinha in- fluências externas e internas para a produção do
tegrantes na família real portuguesa e que atuou conto linhagístico, problemas delimitadores que
em várias cortes. Para alguns autores, este conto permeiam nossa análise.
representaria uma inversão do mito original
Os historiadores que analisaram a fonte aqui
O historiador português José Mattoso atenta estudada remetem-se a uma questão pontual e in-
para outro aspecto ligado à figura da mulher-ca- trodutória, questionando as origens ou influências
bra. Em algumas versões medievais da Lenda de para a narrativa. Suas origens míticas são locais/
Salomão, a Rainha Belquis de Sabá tem a mesma regionais ou adaptadas de uma outra realidade? A
característica da Dama, os pés de cabra. Para comparação entre as duas narrativas – O Romance
Mattoso, isso pode representar para a versão da de Melusina ou a Nobre História dos Lusignan e A
Biscaia um contato com a mitologia mediterrânea. Dama do Pé de Cabra não pode deixar de perceber
Não há dúvidas sobre a herança céltica do conto, diferenciações, já que são dispostas temporal e
pois há muitas observações acerca destes possíveis espacialmente, pertencendo a contextos diferentes
contatos entre a Navarra e a cultura céltica, entre (formação do povo, poder clerical, poder real etc.).
as tradições da Galiza e do Norte de Portugal Para Le Goff, a utilização de histórias com perso-
(MATTOSO, 1987, p.80). Isso não significa que nagens femininas como a Melusina na região do
estes foram introduzidos nessas regiões apenas na norte da França foi realizada principalmente por
época medieval. O provável é que podem resultar uma baixa nobreza que precisava de legitimação
de tradições antigas já enraizadas na cultura local. para ascender. Desta forma, a fada oferece benes-
A disseminação do “sincretismo” por vezes chega ses e com ela os Lusignan conquistam riquezas,
a níveis estruturais, já que não se pode localizar terras e descendência.
especificadamente a origem de cada elemento em
datas específicas. Somente podemos caracterizar No contexto português, o conto é utilizado
a partir de exemplos escritos, mas que já cami- não para justificar a decadência da família Lo-
nhavam na mentalidade popular há muito tempo. pes de Haro, mas, como explica Aline Silveira
(2002, p.19) está inserido em um cenário de luta
Segundo os estudos de Siqueira, houve fi-
pela autonomia das casas nobres frente ao poder
guras míticas próprias da região da Biscaia que
real. As discussões que envolvem a formação de
estariam ligadas à figura da Dama, sem a neces-
um feudalismo português e que movimentam a
sidade direta da personagem ser uma ‘cópia’. A
historiografia medieval possuem relações com
fundadora da linhagem dos Haros reúne em torno
essa diferenciação, já que o modelo de feudalismo
de si diversos elementos do folclore local, tendo
desenvolvido historicamente foi francês.
esses mesmos a função genética que os elementos
célticos e nórdicos tiveram na literatura melusi- Dessa forma, podemos discutir dentro
niana (SIQUEIRA, 2002, p. 42). A representação da temática aqui pesquisada, questões específi-
diabólica da cabra e do bode acontece de forma cas que envolvem os contextos regionais e que
mais recorrente no final da Idade Média. Exis- disponibilizam oportunidades de trabalhos mais
tiu, no entanto, na Península Ibérica uma deusa aprofundados acerca dos conflitos políticos que
representada por cabras de nome Ategina. Além envolvem a utilização desses contos, e caracte-
disso, a figura de Besojaum, personagem mítico rísticas mais universais que demonstram uma
guardião das montanhas bascas, uma espécie de estrutura arquetípica, que tentamos destrinchar.
372
Polyana Muniz / Adriana Zierer

Um consenso entre os pesquisadores do rísticas próprias. Ainda, a percepção de que os


tema, é que o fenômeno medieval dos Livros de fatos históricos e o maravilhoso sobrenatural se
Linhagens, também chamados de nobiliários, mesclavam na criação de heróis e personagens
deve ser analisado de forma isolada, principal- lendários que constroem os contos nos Livros de
mente o exemplo português que possui caracte- Linhagens e na genealogia europeia.

373
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FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média nascimento do Ocidente. na Idade Média ibérica. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre,
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374
ENTrE imAGENs E LEiTurAs:
Representações medievais da mulher
no filme “Em Nome de Deus”

Priscila de Moura Souza1*


Pedro Pio Fontineles Filho2**

iNTroDuÇÃo
[...] as mulheres são antes de mais nada corpos havia incompatibilidade fundamental entre cultura
consignados à Igreja ou à família: virgens não e democracia”. E as mulheres nessa rede de relações
maculadas completamente dedicadas à vida da dominantes sempre eram subjugadas e submetidas
alma, mulheres fecundas que garantem a conti-
a sistemas de limites e exclusões.
nuidade do núcleo familiar, viúvas capazes de
esquecerem as exigências carnais para viverem A jovem apaixonou-se por Abelardo, e de olha-
a vida do espírito. A este público, aparentemente res, os dois passaram a trocar mensagens e depois de
ordenado e tranqüilizante, e aparentemente imó-
vários encontros as saídas ficaram cada vez mais ínti-
vel e insensível às mutações da história, dirigem-
se sermões, conselhos, avisos e ensinamentos mas e ardentes. Abelardo estratégico e intencionado
de pregadores, clérigos, monges, maridos e pais a viver próximo de sua amada, aproximou-se do tio
(CASAGRANDE, 1990, p. 116). da jovem e pediu-lhe hospedagem; em contrapartida,
ele daria lições à sobrinha, como retratou:

M
ergulhar na educação repassada ao fe- Assim concordei com Fulbert, que ele me
minino medieval implica recordar essa levaria para sua casa, fixando o preço a sua
sociedade conservadora onde predomi- vontade. [...] E assim conseguiu ele atingir seu
nava os dogmas católicos, em que o comportamento objetivo: meu dinheiro para ele e o aprendizado
esperado de uma jovem educada dentro desses prin- da sobrinha. [...] Durante essas lições tínhamos
cípios cristãos e as exigências atitudinais às esposas muito tempo para nosso amor [...] ocorriam mais
da época eram previamente prescritas, mesmo que beijos. Minha mão tinha mais buscas a fazer em
seus seios do que em nossos livros, e em vez
contra a vontade. Tentando responder a esses ques-
de lermos os textos, líamos longamente nossos
tionamentos toma-se por objeto a jovem Heloíse, olhos” (ABELARDO, 2005, p.84).
uma órfã de 14 anos, recém-saída do convento, no-
bre, bonita e instruída que havia sido confiada a seu Até que aconteceu o inevitável: os amantes fo-
tio Fulbert, cônego na comunidade de Notre Dame ram surpreendidos, e Abelardo foi expulso da casa.
em Paris, é tratada pelo tio como meio de aquisição
Heloíse enfrentou todas as proibições possíveis, foi
de riqueza e troca de favores através de um possível
vê-lo em sua nova residência e engravidou, Heloíse
casamento. Conforme explicita Silva (2002, p.136),
fugiu com Abelardo para sua casa na Bretanha e
“nessa visão burguesa e elitista, a cultura era intrin-
quando o filho deles, Astrolábios, nasceu em 1118;
secamente privilégio de um grupo de pessoas onde
Abelardo regressou a Paris e retomou seus cursos.
1* Graduanda do Curso de Licenciatura Plena em História, da Universidade
Estadual do Piauí – UESPI, Campus Rio Marataoan. Membro do Núcleo Mas a família de Heloíse permanecia em cólera, para
de Pesquisa em História e Educação – NUPEHED. Linhas de Pesquisa em
História, Literatura e Imagens. E-mail: cyla_moura@hotmail.com
acalmá-los Abelardo pediu a Heloíse que se casasse
2**Doutorando em História Social – UFC. Mestre e Especialista em História com ele, a jovem porém, não queria o casamento,
do Brasil – UFPI. Graduado em História – UESPI. Graduado em Letras-In-
glês – UFPI. Professor Assistente de História – UESPI/CCM temia ser a desgraça do homem que idolatrava, sabia
375
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

que o prazer do seu amado era lecionar, como a guiram suas próprias vidas, encontrando-se oca-
filosofia era submetida a fé, o matrimônio preju- sionalmente. Não havia impedimento nenhum,
dicaria a carreira de Abelardo. já que ele não recebera as ordens maiores. Logo
Heloíse não gostava da ideia de ter seu amor depois da cerimônia de casamento, Fulbert que-
submetido à igreja que subjugava os desejos ria uma recompensa maior em troca da desonra
individuais. Ela preferia ser chamada de amiga, da família. Abelardo decidiu raptá-la temendo
irmã ou amante (amica), a ser chamada de espo- que o tio da jovem cometesse alguma loucura,
sa, unindo-se a ele apenas através dos próprios enviou Heloíse pro mosteiro, o mesmo que ela
sentimentos, em vez das obrigações dos laços havia sido criada e educada desde a infância e
conjugais. Percebe-se isso em seu discurso: “E providenciou-lhe hábitos, apropriados à sua nova
se o rótulo de esposa parece ser mais sagrado e vida no monastério. Ela se vestiu como uma frei-
forte, o nome ‘amica’ sempre me pareceu mais ra, com exceção do véu, reservados àquelas que
carinhoso, como os nomes - sem querer chocá-lo fizessem votos mais duradouros, tudo isso para
– de concubina e cortesã”. Preferindo o “amor não prejudicar a carreira de Abelardo.
em vez do casamento, liberdade ao invés da es- Inconformado com o casamento, as chacotas
cravidão”. Na época, a moral para o homem era da sociedade e com a Igreja Católica que fingia não
clara: era melhor deixar sua esposa e viver de ver o romance do casal, visto que, Abelardo trazia
forma ascética do que ser um marido devotado. muitos lucros à igreja, Fulbert mandou castrar
Da mesma forma, mulheres que se recusavam a Abelardo. Que por sua vez resignou-se e aceitou
casar ou abandonar sua prole em nome de uma essa provação “Em Nome de Deus”. A sorte de
vida religiosa eram abençoadas. Heloíse, mais uma vez foi decidida por Abelardo
Foucault (1985, p.77) lembra que “se quisermos e, desta vez, de maneira irrevogável. Ele ordenou
compreender como funciona o poder, basta que que ela usasse o véu permanentemente. No período
olhemos para as margens, basta que observemos medieval a educação funcionava como rédeas do
a luta daqueles que foram relegados à condição de catolicismo na sociedade, através do filme “Em
‘os outros’ por poderosos grupos dessa sociedade”. Nome de Deus” pode-se perceber que dentro do
sistema feudal a esposa era subserviente ao marido,
De acordo com a doutrina cristã, esperava-se
obrigada a obedecê-lo em tudo, contanto que ele não
que as esposas copulassem apenas com o intuito
ordenasse algo que pudesse violar as Leis Divinas.
da procriação. Relações sexuais pelo simples pra-
zer de fazer sexo foram veementemente condena-
das. As esposas, especialmente, eram instruídas a
evitar maiores intimidades; era suficiente saudar
o marido discretamente, mas compartilhar de sua
DA EDuCAÇÃo A PrATiCA:
paixão era expressamente proibido. As relações
A escolástica primitiva e a mulher
sexuais eram consideradas uma obrigação solene
A forma pela qual se dá o diálogo entre corpo e
que cada cônjuge devia ao outro, e não um ato de
religião é fruto de diversas relações entre os homens,
mero prazer, como acontece atualmente. Heloíse
entre homem e sociedade, entre o homem e a nature-
não aceitava a teologia medieval que insistia
za, entre o homem e o sobrenatural. Tais relações são
que o prazer da carne era coisa do mal e que o
estabelecidas levando em consideração que é a partir
matrimônio era, na melhor das hipóteses, um
da formação de grupos sociais que normas, regras,
mal necessário. Mas os protestos de Heloíse não
valores, culturas são estabelecidas e legitimadas.
surtiram efeito algum; Os amantes se casaram
secretamente na igreja na presença de Fulbert e A religião, por exemplo, é uma forma de institu-
de algumas poucas testemunhas. Para manter o cionalizar, de organizar determinadas características
casamento em segredo, Abelardo e Heloíse se- e, a partir delas, gerar um ambiente propício para
376
Priscila de Moura Souza / Pedro Pio Fontineles Filho

propagar valores e normas específicos. O corpo tificativas que aproximavam a mulher do pecado.
tornou-se protagonista de grande parte desse arca- Do mesmo modo, era a mulher que pedira a cabeça
bouço de relações humanas, principalmente quando de São João Batista e que descobriu o segredo de
adentrou-se ao mundo da religiosidade, sendo esse Sansão e o entregou para a sua humilhante morte.
um ambiente que, constantemente, utilizou-se da Como tradição, grande parte dos costumes inseridos
corporeidade para transmitir seus ideais e sua singu- na educação do corpo feminino são construções
laridade. Primeiro o corpo que precisa ser escondido, históricas que trazem um sentido de continuidade.
discreto, abrigado por mantos, túnicas e hábitos Os valores referentes às normas de um refinamento
onde não se permite ver o torneamento das formas, de conduta tiveram um grande destaque na Idade
tentando demonstrar que o mais importante é o que Média em meio às tensões e contradições exercidas
se carrega dentro dele. Sendo assim, o que está fora é sobre o corpo cristão.
enquadrado em padrões únicos para todos os corpos.
No filme Em Nome de Deus (1988) do diretor
Mas como é possível não exteriorizar o que se Clive Donner nos oferece informações interessantes
possui intrinsecamente a não ser pelo próprio cor- acerca da educação das mulheres na Idade Média,
po? O corpo é visto, lido, tocado, sentido. Através desde os seus costumes e hábitos até as contradições
do mesmo corpo abrigado e escondido revelou-se que tencionavam as crises entre o corpo e a alma.
gestos definitivos na liturgia católica. Movimentos e No período medieval, a Igreja Católica desempe-
expressões que abrem mão da fala para demonstrar nhou várias ações na intenção de civilizar o corpo
seus significados. Não é preciso falar nada, é essen- dos indivíduos e seus costumes, pois, para ela, era
cial apenas ficar de joelhos para apresentar devoção preciso controlar os prazeres que levavam ao pecado
e reconhecimento a algo superior. Nada mais precisa e à desvalorização da alma. Mas não sendo possível
ser dito para entender o movimento de uma mão exercer um total controle sobre os corpos, a Igreja se
sobre a face, o peito e os ombros, fazendo referência empenhou em codificá-lo e regulamentá-lo através da
ao sinal de uma cruz, um dos maiores símbolos do formação de um discurso estreitamente relacionado
cristianismo. O corpo fala através de seus gestos, às práticas corporais como a arte culinária, a beleza,
tornando-se a expressão máxima de uma crença e os gestos, o amor, a nudez entre outras questões.
de um discurso historicamente datado.
Da gula à luxúria, dos pecados determinados
Na idade média, os padrões estabelecidos para pelo discurso da Igreja, tem o corpo enquanto me-
os gestos, vestimentas, comportamentos dentro diador de prazeres maléficos que comprometeriam
dessa sociedade marcada pela participação intensa a salvação da alma, outra questão interessante
da Igreja Católica geraram grandes influências no forjada na Idade Média foi à concepção de beleza
âmbito mais geral da sociedade, indo além dos con- feminina e a construção de representações que
ventos, clausuras, seminários e chegando dentro das caminharam entre Eva e Maria. Uma representan-
famílias, das escolas e de outras instituições. Em um do a pecadora que mostra a nudez e a sexualidade
contexto educacional, em nível de instituição formal, enquanto tendências pecaminosas de uma mulher
tal atenção atribuída ao corpo também ganha suas tentadora que leva o homem a pecar. A outra
evidências, principalmente se for conduzido dentro representando a redentora que esconde seu corpo
um caráter religioso, como acontecia nas instituições com trajes compridos e só deixa a mostra um rosto
de ensino da Idade Média. com olhar de brandura e submissão.
Na medida em que o celibato se tornou uma A subordinação da mulher através da in-
das exigências mais importantes da organização fluência dos pensamentos de Santo Agostinho
hierárquica da Igreja, notou-se que a desvalorização onde o ser humano é cindido, onde a parte supe-
feminina põe-se como estratégia de manutenção da rior, representada pela razão e o espírito, está do
organização eclesiástica. Eva, vista como a grande lado masculino, enquanto a parte inferior, que
responsável pelo pecado original, é uma das jus- seria o corpo, a carne, está do lado feminino. Nes-
377
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

sa perspectiva, o corpo da mulher representaria a fornicação. Porém, exatamente como Agostinho


os instintos, os impulsos e o pecado, um corpo teria feito, davam primazia moral à reprodução. O
considerado imperfeito e nada mais do que um caráter de remédio esbarra em seus limites quando
receptáculo para a procriação. Diante do contexto se impede a reprodução ou se pratica a contracepção.
“A ética educacional nega a pluralização de ações, Aos olhos desses teólogos o casamento é um hospital
ideias, histórias, realidades, sujeitos a educação para aqueles que por fraqueza não conseguem seguir
da diferença vira o sistema de limites e exclusões o que lhes foi designado, a castidade.
[...]” (MOREIRA, 2005, p. 110), levando em con-
Os primeiros escolásticos viam em todas as
sideração os ideais do pós-currículo.
pessoas casadas, fornicadores em potencial. A
Este momento histórico é fortemente marcado doença de que sofre os casais encontra seu remédio
pela supremacia da Igreja Católica. É nesta fase que e seu perdão no casamento. O medicamento que
recai sobre a mulher os resquícios do pecado original tomam é a cópula que deve, portanto, estar sempre
cometido por Eva, à medida que experimentou e fez a sua disposição. Nesse caso, a mulher é como uma
com que Adão experimentasse o fruto proibido. A enfermeira que rompe a grande temporal com que os
partir daí a mulher passa a ser considerada a porta teólogos haviam cercado o sexo. A ideia da mulher
de entrada para o demônio, a menos que fossem vir- como enfermeira dos homens dominava o pensa-
gens, mães, esposas, ou quando viviam no convento. mento medieval. Historicamente considera Costa
Assim, não é à toa que este período foi considerado a (2002, p.13): “esse espaço que afirmou e fortaleceu
idade das trevas, sobretudo para as mulheres. as diferenças utilizadas como argumentos lógicos,
O pessimismo sexual de Agostinho (o prazer naturais, têm funcionado como justificativa para a
sensual nunca ocorre sem pecado) dominou o século desigualdade e a exclusão”, inclusive no contexto da
XI ao XIII a época da escolástica, a idade áurea da contemporaneidade.
teologia. O apogeu da escolástica acredita-se que Uta Ranke-Heinemann quando retrata a esco-
tenha ocorrido com Tomás de Aquino (1274), que até lástica primitiva enfatiza a posição dos teólogos e
hoje se equipara a Agostinho como a segunda grande afirma que por volta do fim do século XII, e início
autoridade em questões sexuais. Mas com Aquino, a do XIII, houve, um acordo quase universal entre
teologia cristã do casamento atingiu seu ponto mais teólogos: todo ato sexual no casamento era pecami-
baixo, criando o contexto para demonização do sexo noso. As mudanças no pensamento do século XII
e do prazer feminino. veio com a oposição único teólogo casado, Pedro
Os teólogos da chamada escolástica primitiva Abelardo que desde cedo travou um embate com seus
(do século XI ao início do século XIII) distinguem, mestres tradicionalistas, se tornou famoso por causa
como faz Agostinho, duas finalidades do casamento: de seu infeliz caso de amor com Heloíse e seu grande
a procriação segundo determina o gênesis: “crescei e êxito como professor de Paris. Abelardo foi o único
multiplicai-vos” e a prevenção da fornicação (de acor- dissidente na massa dos teólogos que detestavam o
do com a 1º Cor. 7). Como Agostinho, os escolásticos prazer e que sempre apresentavam sob nova forma
primitivos achavam que nos tempos pré-cristãos a os mesmos argumentos.
humanidade havia se multiplicado o suficiente para Conforme Foucault (1985), a vida monástica
completar o número de santos no céu. Agora, após modificou a questão da renúncia sexual. Não era
o novo testamento, o celibato, a virgindade, era o suficiente apenas obedecer às prescrições morais
programa de escolha divina. para evitar atitudes reprováveis. Comportar-se em
Embora Agostinho insistisse na procriação conformidade com as leis cristãs não bastava. Era
como finalidade do casamento e deixasse seu caráter preciso penetrar nos labirintos da alma e vasculhá-los
de remédio em segundo plano, os primeiros escolásti- para descobrir o que estava escondido. Os monges
cos ressaltavam esse segundo ponto. Para eles o casa- deveriam observar e perscrutar a própria dimensão
mento era agora principalmente destinado a prevenir subjetiva para controlar o desejo. Não houve nessa
378
Priscila de Moura Souza / Pedro Pio Fontineles Filho

época o desenvolvimento de novas interdições, mas o quando o homem vivia no paraíso sem pecado”, o
surgimento de “tecnologias de si” mais aprimoradas ato sexual e o consumo de alimentos saborosos era
e complexas. O indivíduo foi convidado a realizar in- naturalmente ligados ao prazer. A maioria dos casais,
tenso trabalho de vigilância sobre si a fim de expurgar seguindo, ou não, as instruções religiosas, foram
o pecado que se encontrava na esfera da não-ação. levados a acreditar que o sexo, mesmo dentro do
Esse era o novo território que a atenção do monge casamento, carregava a mancha do pecado original,
deveria percorrer e explorar. guiados por um sentimento de culpa, se privavam
O que está em jogo não é um código de dos seus próprios desejos.
atos permitidos ou proibidos, é toda uma técnica
para analisar e diagnosticar o pensamento, suas
origens, suas qualidades, seus perigos, seus po- CoNsiDErAÇÕEs FiNAis
deres de sedução, e todas as forças obscuras que
podem se ocultar sob o aspecto que ele apresenta Uma série de conceitos preconceituosos de
(FOUCAULT, 1985, p. 37).
grandes pensadores contribuiu para relegar a mulher
a uma posição de inferioridade e reprimir qualquer
Matéria versus espírito, razão versus fé. Eis o manifestação do feminino na história. A imagem
problema que o mestre Abelardo erigiu com seus de fragilidade e submissão sempre esteve ligada à
ensinamentos, colocando tudo em dúvida. Desse mulher na história, principalmente na antiguidade,
modo podemos ver, claramente, que, para o século idade média e moderna. Muitos pensadores, teólogos
XII, pensar como Pedro Abelardo, era no mínimo e filósofos contribuíram para aumentar sua posição
inovador, já que a Igreja Católica- instituição que de inferioridade.
abarcava todo o saber da época- era hostil aos pen-
sadores não cristãos, nos quais ele muito se pautava. Na idade média as mulheres foram classifica-
Abelardo expunha abertamente em suas obras e das de como prostitutas, ou santas servindo como
preleções, ideias consideradas heréticas pela Igreja. modelo a virgem Maria. As prostitutas eram as que
se entregavam aos vícios da carne e utilizavam seus
Entretanto, embora a questão erigida por Abe- corpos para saciar os desejos ou para ganho. Buscar
lardo, matéria (razão) versus espírito (fé) tivesse susci- alguma forma de conhecimento custou à vida de
tado polêmica e tentando mostrar outro caminho para milhares de mulheres. As mulheres da idade mé-
os homens, a Igreja (fé) triunfou naquele momento dia tinham que ser moldes de virtudes da Virgem
da medievalidade. Maria, dóceis, puras e devotadas aos seus maridos.
Abelardo foi influenciado pelos fatos da época e Religiosos como São Tomas de Aquino dizia que
influenciou, com suas ideias, o pensamento de muitas “ela era um ser acidental e falho e que seu destino é
pessoas. Embora fosse um homem religioso que, sem o de viver sob a tutela de um homem, por natureza é
dúvida, acreditava no poder divino, sua fé em Deus inferior em força é dignidade“ Tertuliano dizia que
não o impedia de acreditar, também, com a mesma “era a porta do Demônio”.
intensidade, na razão humana. Desde os primeiros séculos da era cristã, a
Nesse sentido, é importante considerar que a sexualidade foi amplamente discutida pelo cris-
forma dialética de Abelardo pensar não estava de- tianismo, aparecendo nas pregações, nos tratados
sarraigada da realidade vivida por ele. teológicos, nas orientações doutrinárias e nos códigos
morais. A instituição eclesiástica preocupou-se com
Abelardo censurou seus contemporâneos por
a vida sexual da sociedade ocidental, dispondo-se a
só permitirem que o coito ocorresse sem prazer,
orientá-la segundo suas prescrições.
“nenhum prazer natural da carne pode ser declarado
pecado, nem se pode imputar culpa quando alguém A Igreja Católica se empenhou na educação do
se delicia no prazer, onde deve necessariamente sen- corpo feminino determinando as relações pessoais e
ti-lo”. Pois “desde o primeiro dia de nossa criação, sexuais das mesmas, a mulher em posição de inferio-
379
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

ridade, vista como ser de natureza sexualmente sel- dos atos humanos. Seus corpos repousam hoje, lado
vagem que precisava ser dominada e adestrada pelos a lado no cemitério Pére Lachaise, em Paris.
seus donos, os homens. Esse longo período nomeado
Contextualmente a idade média caracterizou-se
Idade Média representa a invisibilidade feminina,
por segmento a preceitos dogmáticos religiosos, com-
uma história completamente masculinizada. A figura
preende-se a resignação dos grupos subordinados
da mulher como aquisição de riqueza para a família,
que tentam resistir à imposição de significados que
objeto de sexo e procriação para seus esposos.
sustentam os interesses dominantes do contexto. Po-
A Igreja transmitiu também hábitos e costumes rém, a versatilidade dos estudos culturais no contexto
que as mulheres deveriam saber e que evidenciavam da contemporaneidade em territórios de diferentes
essas boas maneiras: ao vestir-se, sentar-se, ao servir embates discursivos possibilitou operar no âmbito
uma mesa, esses costumes determinariam o seu futu- amplo da política cultural na qual a conquista das
ro, seu dote, seu casamento, seu prestígio. Ao analisar mulheres por igualdade: nas comunidades locais, no
a figura de Heloíse, hoje objeto de estudo, figura trabalho, em suas vidas pessoais, produzem efeitos
reconhecida porque rompeu com os paradigmas da inenarráveis para além das fronteiras das diferen-
Igreja e da sociedade, um caso único na sociedade ças. Portanto, urge em tempos diferentes, contextos
medieval, à história de Abelardo e de Heloíse conti- antagônicos, perspectivas diversas que se amplie o
nua a ser, e será para sempre, a história de um casal diálogo em meio à multiplicidade de significados que
célebre, primeiro amantes e depois casados, que se penetram nos espaços cotidianos, seja em relação
tornaram vítimas das leis do celibato sem poder a mulheres em seus interesses e escolhas, seja em
viver o amor impossível, eles acabaram por atender relação a classes subjugadas na definição e escolha
aos anseios de uma Igreja mais madura e consciente dos seus próprios modos de vida.

REFERÊNCIAS de si. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.


ABELARDO, Pedro. A História das Minhas Calamidades. São Paulo: FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. 2. Ed.
Editora Nova Cultura, 2005. Rev. E ampl. São Paulo: Brasiliense, 2001.
CASAGRANDE, C. A mulher sob custódia. In: DUBY, Georges; PERROT,
RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus: Mulheres,
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Afrontamento, 1990. Sexualidade e a Igreja Católica. 3. Ed. Rio de Janeiro : Record: Rosa dos
Tempos. 1996.
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios
da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: YALOM, Marilyn. A História da Esposa: da Virgem Maria a Madona: O
Campus, 1997. Papel da Mulher Casada dos Tempos Bíblicos até Hoje. Rio de Janeiro:
FOUCAULT, Michel. 1926- 1984. História da Sexualidade III: o cuidado Ediouro, 2002.
380
o simBoLismo Dos ANimAis E moNsTros
No imAGiNário mEDiEVAL

Ramsés Magno da Costa Sousa


Nácia Lopes Noleto Sousa1*

S
abe-se que a Idade Média passou por longos sucederam em longas odisseias. A historiadora
anos sendo reconhecida como a “Idade das Mary Del Priore chegou a comentar que, no período
Trevas”. Todavia, esse pensamento hoje é bas- antecedente ao pensamento moderno, o imaginário
tante contestado. Não se deve perder de vista que foi medieval fervilhava (2000, p.17):
a Igreja Católica, sem dúvida, a principal instituição Durante a Idade Média, quando a maior parte
do período medieval e que soube se aproveitar desta do mundo era considerada terra incógnita,
situação. Mas também, foram os padres que “civi- momento em que as fronteiras do mistério ainda
lizaram” muitos costumes na sociedade2, além de não tinham sido devassadas pelas novas desco-
cuidar de velhos, doentes e até mesmo da educação, bertas científicas e enquanto a razão não domi-
nava o universo, uma vida intensa fervilhava
numa época de ausência de assistencialismo por parte
nos quatro elementos. Vindos do caos, os seres
do Estado. Os membros da Igreja, ou pelo menos a que aí se debatiam povoavam as mitologias,
grande maioria deles, estavam certos daquilo que nutriam as superstições, agitavam os espíritos
faziam; para eles, era a vontade divina. e tomavam forma graças ao pincel dos artistas
e ao martelo de escultores.
Sabe-se que esse período tornou-se algo fas-
cinante, pois atualmente nos fornece um enorme
No Oriente exótico, a promessa de riquezas e de
emaranhado de possibilidades de estudos. E talvez o
fontes com águas que presenteavam seus banhistas
que mais nos encante seja aquele imaginário medieval
com a eterna juventude vieram acompanhadas não
repleto de demônios, monstros marinhos, sereias e
só do desejo de reencontrar o paraíso perdido, como
tantos outros que faziam a imaginação florir.
também o temor de enfrentar diversos monstros e
Não se pode esquecer de que boa parte dos animais. Exemplos claros desse contexto estão pre-
elementos que nos levam a compreender a Idade sentes em obras como as das viagens de Marco Polo.
Média, e mesmo a Antiguidade, dá-se com as lendas
Um ponto importante a ser discutido é que, como
concernentes às criaturas míticas, mágicas e extraor-
conseqüência do processo de expansão marítima na
dinárias que ocupavam terras distantes, ilhas, mares
busca de uma nova rota para as tão sonhadas espe-
e todo o Oriente desconhecido ou, pelo menos, pouco
ciarias, “esbarrou-se” na América e, assim, todo esse
explorado pelos homens medievais.
imaginário foi transplantado para o “Novo Mundo”,
Poucos foram os aventureiros que se prestavam surgindo figuras como homens sem cabeça ou mes-
a avançar rumo ao Oriente de onde retornavam com mo com cabeças de bestas, cães, lobos, entre outros,
incansáveis feitos e histórias para contar; histórias figuras típicas da imaginação acerca do Oriente.
essas repetidas e confirmadas por outros que os
Instaurou-se uma idéia de paraíso terrestre na
1* Licenciados em História pela UFMA e especialistas pelo IESF-CAPEM.
Além de professores das redes: públicas e particulares de ensino básico e su- América, do qual Adão fora expulso, como castigo
perior.
2 Podemos citar como exemplo, a criação das “justas” – lutas de cavaleiros divino. O Pe. Claude d’Abeville chegou a pôr a culpa no
com regras para derrubar o oponente – ao contrário das antigas lutas até a
morte. Ou então, de condenar a luta entre cristãos, mesmo que para isso, os
demônio pelos problemas enfrentados no mar quando
tenha lançado contra os hereges e os infiéis através das Cruzadas. da sua viagem para o Maranhão, na expedição colo-
381
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

nizadora de Daniel de La Touche. Para d’Abeville, as mães de tais crianças a idéia de que teriam sido
a América era o paraíso terrestre dominado, por ludibriadas e encantadas carnalmente pelo próprio
longos séculos, pelo demônio, sendo então dever da satã, sofrendo, por isso, duros castigos.
cristandade francesa3 colaborar para a reconquista Segundo Del Priore, o ensino medieval, prin-
divina do paraíso. Daí as intenções do demônio em cipalmente o da igreja, explorava muito a forma
procurar desviá-los de sua missão. Esses temores audiovisual. Dessa maneira, as imagens pintadas e
só começaram a perder fôlego na medida em que o esculpidas proporcionavam muito mais prazer que os
mundo tornava-se conhecido. Mesmo por que, vencer textos manuscritos; por exemplo, a cena da serpente
o “mar tenebroso” não seria tarefa fácil para nin- (o próprio demônio) que conduziu Eva e Adão ao
guém. Seus monstros, abismos e águas quentes, que pecado. Construíram-se assim fábulas encantado-
tanto intimidaram os marinheiros por muito tempo, ras – grandes suportes para a exegese5. Nas bíblias
serviram de obstáculos para o alargamento de novas ilustradas vemos ainda os evangelistas representados
fronteiras. Foi à própria Igreja uma das responsáveis por animais: o leão (para representar São Marcos), o
pela manutenção de muitas dessas idéias. E, sendo ela touro (simbolizando São Lucas) e a águia (símbolo
a detentora do saber e das rédeas da sociedade me- de São João). Apenas Mateus não é representado por
dieval, muito contribuiu para a divulgação e mesmo um animal, porém, é associado a um anjo6.
consolidação de tais pensamentos.
Cada tipo de deformidade passou a ser signifi-
Mary Del Priore descreveu relatos de muitos cada em muitos livros que reuniam histórias reais e
aventureiros e estudiosos que chegaram a fazer outras extraordinárias (PRIORE, 2000. p.28):
inúmeras publicações, como “os bestiários” ou os
Num desses livros, por exemplo, datado do século
manuais que faziam uma classificação dos monstros
XIII e depositado em Westminster, Inglaterra, os
em quatro famílias: monstros individuais, a das raças pigmeus simbolizavam a humildade; os gigantes,
monstruosas, a dos monstros fictícios e a dos animais o orgulho; os cinocéfalos, a discórdia; os homens
ou bestas humanas4. Em meio a tantos estudos surgiu com beiços pendurados, a mentira [...] No livro
a ciência que buscava estudá-los: a Teratologia. dos homens monstruosos, de Thomas Cantimpré,
que vem a luz no século XIV, os latidos inarticu-
Tais monstros foram vistos com certa cautela por lados dos cinéfalos são associados à calúnia, e os
Santo Agostinho, que não negava suas existências, po- homens sem cabeça, aos cobradores de impostos
rém via nelas uma manifestação divina semelhante às que só pensavam em encher a própria barriga.
deformidades do corpo de algumas pessoas com dedos
a mais. E, mais ainda, recorria à bíblia para lembrar que Mesmo na arquitetura sentimos essa influên-
Noé seria o patriarca de todos, inclusive dos monstros, cia. As igrejas medievais do estilo gótico têm
já que todos descendiam dele pós-dilúvio. como uma de suas características marcantes a
presença de gárgulas nas paredes externas, im-
Porém, a partir da Crise Geral que se abateu na
pelindo as pessoas para dentro do templo, sob a
Europa ao final da Baixa Idade Média, tais situações
proteção da Igreja e de Deus.
de mal estar, por que passou a humanidade, induzi-
ram à crença de que os monstros seriam os presságios Ao discutirmos o simbolismo dos animais na
de calamidades iminentes e mesmo da interferência Idade Média nos deparamos com Hilário Franco Jr,
diabólica nas obras divinas. De forma que defeitos em sua obra “Eva Barbada”, onde ele faz uma análise
físicos passaram a ser vistos como atuações do de- da Aventura de Guingamor. Segundo este lai7, o herói,
mônio e, assim, pessoas com essas deformidades não ao perseguir um javali, acaba indo para um mundo de
estariam aptas a servirem ao reino de Deus, devendo fadas. Não acreditando, retorna ao seu mundo; porém,
ser duramente perseguidas. Familiares passavam desobedece a orientação de não se alimentar, caso
por rituais de purificação; enquanto que recaía sobre 5 Crítica e interpretação dos livros bíblicos.
6 Essa simbologia, que tem por base a missão do profeta bíblico Ezequiel (Ez.
3 Até porque os franceses estariam em dívida, já que eles foram o primeiro 1,10), é vista, ainda hoje, pintada em algumas igrejas.
povo bárbaro-cristão da Europa ocidental: o império franco. 7 Eram pequenos poemas medievais, compostos de versos de oito sílabas e can-
4 Estudo do bispo espanhol Isidoro de Sevilha (576-636), na sua obra “Etimologias”. tados por jograis (os trovadores medievais) acompanhados ao som das harpas.

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Ramsés Magno da Costa Sousa / Nácia Lopes Noleto Sousa

quisesse regressar e, por isso, aproxima-se da morte. lismo dos animais na Idade Média, foi o “Livro das
No desenrolar de suas análises, Franco Jr. aponta para Bestas”, escrito por Raimundo Lúlio. Na verdade,
a simbologia de alguns animais, como o cavalo e o ele escreveu por volta de 1288 a 1289, em Paris,
cão – símbolos de nobreza; o cavalo poderia ainda um livro intitulado Félix, conhecido ainda como o
simbolizar o trânsito entre o dia e a noite, e também a “Livro das Maravilhas”9, composto por dez livros,
vida e a morte. O cão poderia simbolizar o guerreiro. sendo o Livro das Bestas o sétimo deles, um dos
O próprio javali, também foi identificado como o de- mais conhecidos. Nesta obra Raimundo Lúlio
mônio em algumas culturas. Em outras, ao ser branco, procurou uma maneira de orientar reis em seus
seu sacrifício simboliza um ritual druida de passagem. governos, a partir de atitudes e lições de animais.
Em uma das passagens aparece a seguinte lição:
Em seu outro livro, A Idade Média: Nascimento
do Ocidente o autor ao discutir a Teoria das Três [...] Ninguém é capaz de calcular o mal provocado
Ordens, extrapola a simples discussão de um triplo por um príncipe ruim: seja pelo mal que faz, seja
pelo bem que poderia fazer e não faz. E assim, de
estatuto na Ordem – os oratores (clérigos), bellatores
um príncipe ruim provém o mal de duas maneiras.
(guerreiros) e laboratores (trabalhadores) –, elabo-
rada pelo bispo Adalberon de Laon entre os anos de
1025 e 1027, chegando a relatar a metáfora de Eadmer Cada animal no Livro da Bestas procurava
de Canterbury, um bispo contemporâneo de Adalbe- representar um segmento da sociedade. Os ani-
ron, que associava as ordens a animais. Assim, o clero mais protagonistas da fábula: o Leão, o Boi e a
era associado aos carneiros (fornecedores do leite e Raposa possivelmente representariam, respec-
da lã), os servos aos bois (prestam serviço para outros tivamente, o rei, o povo e o patriciado urbano.
viverem), os nobres aos cães (novamente a idéia de Assim, podemos dizer que a fábula buscava
guerreiros defendendo os seus dos inimigos, estes demonstrar um novo cenário; e uma nova ordem
simbolizados nos lobos). Canterbury ainda afirmou social começava a se evidenciar, com valores
que “a palavra ordo não designa somente cada uma desprezados por Lúlio, como: “Egoísmo, traições,
delas; exprime o exercício da autoridade que as acúmulo exagerado de riquezas e outros abusos
coordena e as distingue”. [...]” (JOSÉ, 1998, p. 224).

Ainda sobre essa abordagem há uma discussão Seria o patriciado urbano ambicioso de
interessante levantada por Jacques Le Goff, ao afir- poder, um dos focos mais importantes da obra.
mar que, fora desse esquema da sociedade divina Para Lúlio, esse grupo, representado pela raposa,
tripartida, havia ainda exceções: alguns grupos como faria de tudo para chegar ao poder, semeando a
os médicos, comerciantes e os marinheiros; sendo discórdia e mesmo conjurando a morte do rei:
que estes últimos tinham, não raramente, e não tão “[...] Respondeu a serpente que desde que o Boi
erroneamente assim, suas figuras associadas à arraia- e Da. Raposa vieram para a sua corte, esta não
miúda, bandidos, mercenários. Fruto de suas grandes ficou mais sem sofrimentos e tribulações [...]”
aventuras, as quais exigiam desde muita coragem, O professor Ricardo Silva José (1998, p.224)
ambição, loucura, até mesmo um sentimento de discute também a representação de “diferentes
pouco a perder por parte de alguns em meio a tantos vícios e virtudes, tipicamente humanos”; ele des-
perigos reais e imaginários, que conduziram tantos a taca ainda que existem na obra de Lúlio:
fazer do mar suas sepulturas. Reforçando essa linha uma infinidade de narrativas que retratam o
de raciocínio Anacarsis8 (499-428 a.C.) chegou a cotidiano de pastores, agricultores, tecelões,
considerar que “Há três espécies de seres: os vivos, monges, bispos,[...] judeus e mulçumanos,
os mortos e os marinheiros”. prostitutas e mulheres santas, escravos, servos,
doentes, pregadores[...].
Uma das obras, que melhor retratam o simbo-
9 Trata das aventuras de um jovem, o Félix, que ao percorrer o mundo aprende com
8 Anacarsis foi um historiador de uma antiga tribo Russa, a tribo dos “cita”. Ele distintos mestres. Félix, louvava aquilo em que acreditava ser digno – como a exem-
seria possivelmente um dos sete sábios que foram à Grécia, para escrever sobre os plo da “Ordem dos Apóstolos” logo no começo do Livro das Bestas – e censurava,
costumes de outros povos, sabe-se que ele lá esteve no tempo do legislador Sólon. afrontava as coisas, homens e mulheres que fugiam aos princípios cristão-católicos.

383
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Dessa maneira, temos uma “[...] prova ca- Eram devorados por outra besta, mais aterro-
bal que Lúlio se inspirava em fatos reais para rizante que a predecessora, com dois pés, duas
asas muito grandes e de sua boca saíam grandes
criar seus personagens [...]” (JOSÉ, 1998, p.
chamas de fogo. No interior do monstro, os conde-
224). Fábulas, como o Livro das Bestas, servem nados recebiam tormentos e engravidavam, tanto
para reforçar a afirmação da Professora Adriana homens quanto mulheres, de outras feras, as quais
Zierer (2004): “[...] a interação entre literatura pariam, com grandes gritos, por todas as partes
e história é fundamental para a compreensão do do corpo. Estes animais os mordiam até os ossos
período medieval [...]”, pensamento que também e queimavam suas artérias e pulmões10 (op. cit.).
segue a direção dos estudos de Jacques Le Goff
(1994), o qual aponta a importância do estudo das De certo sobre esse imaginário de monstros
fontes literárias para a compreensão do imaginá- e animais medievais é o que disse a professo-
rio de uma determinada sociedade. ra Mary Del Priore (2000, p.38): “longe de se
mostrarem incrédulas, as pessoas seguiam
E não é de se negar que, para a Igreja apro- manifestando uma impressionante capacidade
veitar e mesmo reforçar essas crenças, seria muito de assombrar-se, de admirar-se e seguiam repro-
proveitoso, como vemos na obra já citada neste duzindo as fábulas com as quais se deleitavam”.
nosso trabalho, da professora Mary Del Priore. Até por que, como afirmou Zierer (2004): “No
Ao discutir a visão do Além Medieval, na período feudal, havia uma presença constante
obra do século XII, do monge irlandês Marcos “A do sobrenatural, havendo grande confusão entre
Visão de Túndalo”, Zierer destaca que os monstros algo imaginado e a verdade, sendo o ‘ouvir dizer’
aparecem provocando temor para que as pessoas a garantia de veracidade para a confirmação
aprendam a evitar o pecado e suas severas puni- de um fato extraordinário”. E, por que não, na
ções. O demônio se confundia com grandes bestas, crença de animais e monstros extraordinários.
monstros que estariam no inferno ou mesmo no
purgatório para penitenciar os pecadores: 10 Esse castigo era destinado aos que cometiam a luxúria.

REFERÊNCIAS Disponível: <http://www.ramonllull.net/sw_studies/l_br/t_bestas.


htm>. Acesso: 20/09/2010.
ABEVILLE, Claude d’. História da missão dos padres capuchinhos
na ilha do Maranhão. 2.ed. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: JOSÉ, Ricardo Silva. Tradição Literária, Simbolismo e Política Palaciana
Livraria Martins, 1945. no Livro das Bestas. Revista de Pós-Graduação em História. Assis-SP,
UNESP, v.6, p. 221-224, 1998.
DIEGUES, A. C. Ilhas e Mares: Simbolismo e Imaginário. São Paulo.
Ed. Hucitec, 1998. LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.

FRANCO JÚNIOR, H., A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval, PRIORE, Mary del. Esquecidos por Deus: Monstros no Mundo Europeu e
São Paulo, Brasiliense, 2001. Ibero-Americano. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

FRANCO JÚNIOR, H., A Idade Média: nascimento do ocidente. 2. ZIERER, Adriana. Literatura e Imaginário: fontes literárias e concepções
acerca do Além Medieval nos séculos XII e XIII. Outros Tempos. São Luís,
ed. São Paulo, EDUSP, 1996.
Ed. UEMA, 2004, v. 1. Disponível em: http://www.outrostempos.uema.br/
LÚLIO, Raimundo. O Livro das Bestas. Trad. Cláudio Giordano. volume01/vol01art02.pdf . Acesso em: 20/09/2013.
384
Ramsés Magno da Costa Sousa / Nácia Lopes Noleto Sousa

LiTErATurA Como FoNTE Em LA CITÉ ANTIQUE

Roberto Pontes1

APANHANDo o PiÃo NA
uNHA
A ideia central norteadora do livro de Fustel
de Coulanges é: toda a vida social, a organiza-

N
uma Denis Fustel de Coulanges nasceu
em Paris a 18 de março de 1830 e faleceu ção política e jurídica dos povos organizados na
aos 59 anos de idade em Massy, a 12 cidade antiga, se acha fundada na prevalência
de setembro de 1889. Foi considerado, ainda em avassaladora da crença religiosa que tem por
vida, e confirmado após a morte, como o mais centro as divindades familiares. E o historiador
importante historiador francês do século XIX francês chega à seguinte conclusão: o abandono
pela crítica de sua área de investigação. dessa crença impõe inevitavelmente aos antigos
a desagregação da vida social, política e jurídi-
La cité antique. Étude sur le culte, le droit, les
ca, daí advindo o consequente declínio daquela
institutions de la Grèce et de Rome2, eis o título
espécie de organização pública.
original da obra-prima de Fustel de Coulanges,
encurtado nas traduções de língua portuguesa Na segunda parte de seu monumental traba-
para A cidade antiga3, obra notável não apenas pela lho, Fustel de Coulanges examina a dissolução
correção das informações nela contidas, mas ainda ocorrida em decorrência do afrouxamento da
pela fluência de seu estilo, pela concepção arguta religião dedicada aos deuses familiares, tanto na
ali posta e pelo plano expositivo bem estruturado ordem política quanto na organização jurídica.
de seu arcabouço. O laxismo, segundo ele, é provocado por uma
Este livro, trabalho imperecível e, por isso sequência de revoluções, das quais as três mais
mesmo, convertido em clássico da História e das decisivas são: a) o estiolamento da autoridade po-
humanidades, nos dá noção da história e da vida lítica dos reis, conservada apenas sua importância
civil do mundo greco-romano com apoio no culto religiosa; b) as mudanças ocorridas na constitui-
dedicado aos mortos nas antigas Grécia e Roma. ção das famílias; c) a ascensão social da plebe.

Coulanges intuiu, investigou, pesquisou e Ao fim dessa segunda parte de A cidade


alinhou metodicamente nas páginas de A cidade antiga, Coulanges conclui que apenas com a era
antiga, razões suficientes e claras para nos con- do cristianismo a civilização clássica conseguiu
vencer de que, sendo a cidade-estado uma enti- ressurgir noutra ordem cultural, numa nova etapa
dade de natureza social, seus cidadãos sentiram da vida humana em que o temor dos deuses cede
e praticaram a religião da morte com intensidade lugar ao amor a Deus. O culto plural dos deuses
bem mais acentuada do que as celebradas no familiares e dos mitos laicos dá vez ao de uma
culto das divindades para nós hoje consideradas religião universal centrada no monoteísmo de
maiores. raiz hebraica.
1 Doutor em Letras. Docente da Universidade Federal do Ceará. Email:
rpontes@ufc.br Em suma, este é o plano de obra seguido pelo
2 Paris: Durand, 1864. historiador francês, que assumiu em 1875 a cáte-
3 São Paulo: Editora das Américas – EDAMERIS, 1961, tradução de
Frederico Ozanam Pessoa. dra de História Antiga, da Sorbonne, e para quem
385
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

foi criada a cadeira de História Medieval, apenas também de informação, difundida por outros meios
três anos após seu ingresso no magistério daquela comunicativos operantes fora da escola. Assim, cos-
conceituada instituição de ensino superior. tumamos explicar nossos sucessos tanto quanto os
fracassos históricos, políticos, econômicos, e mesmo
PoNDo ALGuNs PoNTos as crises e ressurgimentos culturais e literários do
Nos “iis” nosso tempo, a partir das experiências greco-ro-
manas. Do mesmo modo, ressalta Coulanges, não
O “Prefácio” que Fustel de Coulanges pre- devemos tentar estudar nem elucidar a cultura da
parou para A cidade antiga, sob o título “Da ne- antiguidade a partir dos pressupostos ordenadores da
cessidade de estudar as mais velhas crenças dos visão de mundo de nossa época. O resultado desastro-
antigos para conhecer suas instituições”, nos põe so para quem assim procede é o engano, o equívoco,
desde logo ante a intenção do historiador de ana- o qual torna imprestável o labor científico e cultural.
lisar as crenças de Grécia, Roma, e outros povos, Por isso, sublinha: “Quando estudamos esses povos
a fim de compreender o mecanismo das institui- antigos através das opiniões e fatos de nossa época,
ções deles surgidas. E quem pensa em “crenças” quase sempre nos enganamos” (COULANGES,
assunta religiões, anseios humanos de união a um 1961, p.27), “que uma das grandes dificuldades
Ser supremo, necessidade de recorrer a uma força que se opõem à marcha da sociedade moderna é o
superior em busca de auxílio, proteção e conforto; hábito de ter sempre diante dos olhos a antiguidade
quem fala em “instituições” faz referência a algo greco-romana” (COULANGES, 1961, p.28). Por
estabelecido, algo construído pelo homem, de essa razão, o historiador da Sorbonne se acautela e
acordo com o étimo latino instituere. propõe: “Para conhecer a verdade a respeito desses
Instituições, conforme as ciências sociais, são povos antigos, deve-se estudá-los sem pensar em
organismos e meios de ordenação da sociedade, nós, como se nos fossem completamente desco-
quase sempre de caráter jurídico, que desempenham nhecidos, com o mesmo desinteresse e liberdade
uma função social e perduram para além das von- de espírito com que estudaríamos a Índia antiga ou
tades dos indivíduos, porque têm raízes firmadas a Arábia” (COULANGES, 1961, p.28). Para tanto,
na vida coletiva, a exemplo do Estado, da Igreja, sabia ele ser necessário “demonstrar as regras que
da família, do sindicato, da escola, da literatura4. governaram essas sociedades”, as quais “não podem
mais dirigir a humanidade” (COULANGES, 1961,
Nas páginas preliminares indicadas, Coulan- p.28). É que, diz ele, “nossas instituições e leis estão
ges anuncia seu intuito de apontar os princípios e sujeitas a transformações. O homem de hoje não
regras disciplinadores das sociedades de Grécia e pensa mais o que pensava há vinte e cinco séculos,
Roma antigas, por observar que estes dois povos e é por isso que não se governa mais como outrora”
pertencentes a um mesmo tronco étnico eram (COULANGES, 1961, p.28).
utentes de idiomas originários de uma mesma lín-
gua, mantenedores de instituições comuns, além Mas, ninguém desconhece, a “história de
de haverem experimentado processos sociais de Grécia e Roma é testemunho e exemplo da estrei-
mudança histórica similares. ta relação que há entre as idéias da inteligência
humana e o estado social de um povo” (COU-
Com muita razão Coulanges adverte para nossa LANGES, 1961, p.28), relação esta suficiente
tendência de tomarmos os gregos e os romanos como para deixar-nos entrever o fator preponderante na
espelhos e paradigmas, dada a força referencial da formação dessas duas culturas. E assim surge a
história e da cultura desses povos, que nos é repas- esclarecedora tese fusteliana contida nas páginas
sada através de intenso processo de escolarização e de A cidade antiga, num tom de recomendação:
4 DUBOIS, Jacques. L’institution de la littérature. Bruxelles: Fernand
Nathan/Éditions Labor, 1978, p.19; KRISTEVA, Julia. “Julia Kristeva: “Observai as instituições dos antigos, sem atentar
entretien”, in 34/44, Cahiers de recherches, 13, 1984, p.59; REIS, Carlos. para as crenças; achá-las-eis obscuras, bizarras,
O conhecimento literário: introdução aos estudos literários. Coimbra:
Livraria Almedina, 1997, pp. 24-5. inexplicáveis” (COULANGES, 1961, p.28).
386
Roberto Pontes

Do exposto, decorrem dez questões, levanta- langes acresce que, estabelecida e consolidada a
das pelo autor para prosseguir em seu raciocínio família-padrão daqueles povos, a religião igualmen-
que são as seguintes: te operou no sentido de moldar a instituição-mor, a
Por que havia patrícios e plebeus, patrões e cidade, traçando-lhe o modelo e o perfil o qual nos é
clientes, eupátridas e tetas, e de onde vêm as dado por numerosa literatura5 trazida à colação pelo
diferenças nativas e indeléveis que encontra- notável historiador. A força da religião é tão acen-
mos entre essas classes? Que significam essas tuada na cidade, que predomina nos atos públicos,
instituições lacedemonianas, que nos parecem sacralizando os ritos formais da administração, do
tão contrárias à natureza? Como explicar essas
mesmo modo como se dava com a família.
bizarrias únicas do antigo direito privado: em
Corinto e em Tebas, proibição de vender pro- Conforme as páginas de Fustel de Coulan-
priedades; em Roma e em Atenas, desigualdade ges a religião modelou efetivamente todas as
na sucessão entre irmão e irmã? Que é que os instituições do direito privado antigo. Foi ela que
jurisconsultos entendiam por agnação ou gens?
forneceu à cidade os princípios, os costumes, as
Por que essas revoluções no direito e na polí-
tica? Que patriotismo singular era aquele que regras, e mesmo as magistraturas que, natural-
apagava todos os sentimentos naturais? Que se mente, com o transcurso do tempo vão passar
entendia por liberdade, da qual não cessavam por modificações e evoluir, em conjunto com as
de falar? Como é possível que instituições, que instituições, para novos modelos.
se acham tão afastadas de tudo o que podemos
imaginar, possam hoje restabelecer-se e reinar O historiador então escreve:
por tanto tempo? Qual é o princípio superior que É necessário, portanto, estudar antes de tudo a
lhes deu autoridade sobre o espírito do homem? crença desses povos. As mais antigas são as que
(COULANGES, 1961, pp.28-29). devemos conhecer melhor, porque as instituições
e crenças que encontramos na época áurea da
A fim de bem compreender e explicar tanto Grécia e de Roma nada mais são que a evolução
de crenças e instituições anteriores; é necessário
as instituições quanto as leis objeto desse decálogo que busquemos as raízes em um passado bem
interrogativo, o historiador sugere: “à frente dessas longínquo. As populações gregas e italianas são
instituições e dessas leis colocai as crenças, e os infinitamente mais velhas que Homero e Rômulo.
fatos tornar-se-ão claros e a sua explicação tornar- Foi em época mais antiga, em uma antiguidade
que escapa às datas, que se formaram as crenças
se-á evidente”; e prossegue, defendendo que à época
e se estabeleceram e prepararam as instituições
em que surgiram as instituições greco-romanas, é (COULANGES, 1961,p.30).
possível observar a estreita correspondência da idéia
então tida da “criatura humana, da vida, da morte, Mas, logo nos sobressalta uma preocupação: -
da segunda existência, do princípio divino” [...], das Será possível conhecer com segurança um passado
“opiniões, das regras antigas do direito privado”, tão remoto assim? E desta indagação surgem desdo-
com “os ritos que se originaram dessas crenças e as bramentos igualmente inquietantes: - Quem estará
instituições políticas” (COULANGES, 1961, p.29). apto a nos assegurar qual era o pensamento dos
homens de dez a quinze séculos anteriores ao nosso?
Coulanges expõe e defende que a tanto a
–Será possível apreender com exatidão coisas tão
família grega quanto a romana se constituíram a
escorregadias como mentalidades, crenças, opiniões,
partir de uma religião primitiva também respon- mormente as de período tão recuado historicamen-
sável pela consolidação da autoridade paterna, do 5 Na verdade, Colanges retira suas certezas históricas, sobretudo, da literatura
casamento, das linhas de parentesco, do direito antiga, estando entre as obras a que recorre reiteradas vezes, as de Ovídio, Pín-
daro, Alceste, Eurípides, Homero, Juvenal, Marcial, Virgílio, Horácio, Plauto,
de propriedade e do de sucessão, e que isto se Sófocles, Ésquilo, Luciano, Plutarco, Apuléio, Hesíodo, Petrônio, e outras. O
historiador recorre também à literatura deixada por filósofos como Platão, Ploti-
deduz quando se faz a comparação das crenças no, Aristóteles. Por cronistas como Heródoto, Xenofonte, Plínio, Tucídides, Tito
Lívio, Suetônio. Por oradores como Cícero, Catão, Demóstenes. Faz uso ainda
com as leis greco-romanas. do repertório de leis antigas como as de Manu, as dadas pelo Rig-Veda, pelo
Bhagavad-Gita, pelo Vrihaspati, ou as do Deuteronômio, do Digesto, do Código
Seguindo a mesma linha de raciocínio Cou- de Justiniano, das Institutas (de Gaio ou Justiniano).

387
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

te? Essas aporias são ultrapassadas por Coulanges Cícero – falo sobretudo do homem do povo – tem
ao escrever: “sabemos o que pensavam os árias do a imaginação cheia de lendas; essas lendas lhe
Oriente, há trinta e cinco séculos, e o sabemos pelos vêm de tempos antigos, e são testemunhas do
de seu modo de pensar. O contemporâneo de
hinos dos Vedas, que são seguramente muito antigos,
Cícero serve-se de uma língua cujas raízes são
e pelas leis de Manu, mais recentes” (COULANGES, extremamente antigas; essa língua, exprimindo
1961, p.30). No entanto, o autor da Cidade antiga o pensamento de épocas passadas, foi modelada
amplifica o questionamento anterior: – Mas onde de acordo com esse modo de pensar, guardando
encontrar trechos escritos de épocas ainda mais o cunho que o mesmo transmitiu de século para
remotas? – Onde achar os antigos hinos helênicos? século (COULANGES, 1961, p.30).
Sua resposta é: “Eles, como os itálicos, possuíam
cantos antigos e velhos livros sagrados; mas de tudo Coulanges observa que os gregos contem-
isso nada chegou até nós.” (COULANGES, 1961, porâneos de Péricles e os romanos coetâneos
p.30)? – Que informações nós temos das gerações de Cícero guardam em comum certas maneiras
antiquíssimas que não nos legaram produção escrita? devidas aos séculos mais extremos, sob a forma
A propósito dessa indagação, Coulanges tece de resíduos. Por isso, caminha em direção ao
considerações importantíssimas. Diz ele: imaginário vigorante no tempo daqueles dois
proeminentes homens antigos. O acesso ao modo
Felizmente, o passado nunca morre por completo
para o homem. O homem pode esquecê-lo, mas de pensar daquela época, diz Coulanges, só se
continua a guardá-lo em seu íntimo, pois o seu torna possível através das lendas do imaginário
estado em determinada época é produto e resumo do período, posto na tradição oral de uma língua
de todas as épocas anteriores. Se ele descer à sua também sobremaneira antiga.
alma, poderá encontrar e distinguir nela as dife-
rentes épocas pelo que cada uma deixou gravada Coulanges tinha confiança de que:
em si mesmo (COULANGES, 1961, p.30). O sentido íntimo de uma raiz pode às vezes
Ora, o ser humano não pode prescindir do revelar uma antiga opinião ou um antigo costu-
me; as idéias transformaram-se, e os costumes
passado. O conjunto das experiências individuais,
desapareceram, mas ficaram as palavras, imu-
quando partilhado coletivamente, se conforma táveis testemunhas de crenças desaparecidas
como memória coletiva6, no âmbito da qual po- (COULANGES, 1961, pp.30-31).
demos surpreender resíduos culturais originários
Alicerçado numa preciosa noção da crítica
de vários contextos societários e etnológicos.
filológica, o historiador reconhece a importância
Segundo Coulanges, o homem pode até julgar
da raiz linguística na identificação de antigas
que esqueceu o passado, porém este permanece
opiniões e mores. De modo cativante para quem
enquanto substrato mental, como remanescência
lida com a literatura, proclama o valor e a impor-
de épocas precedentes. Um mergulho do indivíduo
tância da perenidade das palavras, através das
no mais íntimo de si mesmo pode tornar possível
quais considera possível recolher o testemunho de
seu encontro com matizes epocais os mais diversos
realidades e idealidades transformadas ou desa-
acrisolados nas camadas mais profundas do ser e
parecidas. Justamente por essa passagem liminar
que lhe conferem equilíbrio e identidade.
de sua obra nos é facultado compreender por que
Coulanges prossegue: ele converte obras de literatura inventiva em fon-
Observemos os gregos dos tempos de Péricles e tes primárias de um livro de História com tanta
os romanos dos tempos de Cícero: levam consi- relevância, como é a Cidade antiga. A erudição
go marcas autênticas, e o vestígio7 indubitável de Coulanges lhe permitiu assumir uma posição
de séculos mais remotos. O contemporâneo de
humilde e sábia no concerto das humanidades ao
6 HALBWACS, Maurice. La mémoire collective. Paris: Presses
Universitaires de France, 1950; A memória coletiva. São Paulo: Vértice considerar a Ilíada e Odisseia como documentos,
Editora, 1990. ainda no século XIX.8
7 A palavra usada aqui é “vestígio”, mas é melhor substituí-la por resíduo,
termo mais capaz de exprimir a idéia do autor. 8 Não resisto à tentação de referir nesse momento aos apedeutas que se

388
Roberto Pontes

“O contemporâneo de Cícero”, diz ele: mesmo modo, invalida a passagem do espírito en-
Obedece a determinados ritos nos sacrifícios, tre estes povos para a região chamada céu, ou luz,
nos funerais, nas cerimônias nupciais; esses ritos que reputa datar de tempo muito próximo de nós
são mais antigos que ele, e a prova é que não no Ocidente. Esta recompensa só era concedida
correspondem mais às suas crenças. Mas olhando “a grandes homens, a benfeitores da humanidade”
de perto os ritos que observa e as fórmulas que (1961, p.35), que parece em consonância ainda hoje
recita, encontrar-se-ão vestígios9 do que os ho-
com os preceitos islâmicos.
mens acreditavam quinze ou vinte séculos atrás
(COULANGES, 1961, p.31). O autor da Cidade antiga enfatiza: “De acordo
com as mais antigas crenças dos itálicos e dos gregos,
Há, pois, de ter em mente que boa parte do a alma não passava sua segunda existência em um
que os homens são se deve ao passado impresso mundo diferente do em que vivemos; continuava
em sua mais recôndita subjetividade pela força junto dos homens, vivendo sobre a terra” (COU-
modeladora existente nos substratos mentais, LANGES, 1961, pp. 35-36). Esta não parece ser uma
enfim, nos resíduos culturais. crença exclusiva nem originária dos povos citados,
pois a cultura africana, bem anterior, e mesmo nos
dias de agora, também considera a permanência do
mErGuLHANDo espírito dos mortos ao lado dos vivos para sempre,
no constante desempenho de uma subida função
NAs ANTiGAs CrENÇAs
tutelar.10 Como cabe aos africanos a primazia da
introdução da vida humana no planeta Terra, esta
Vamos, portanto, em busca de conhecer o crença apontada está antes neles do que naqueles.
que pensavam os antigos gregos e romanos acerca
da natureza, da alma, do mistério da morte, lan- Voltemos a Coulanges: “Acreditou-se até por
çando mão do exame das instituições vigorantes muito tempo que durante essa segunda existência a
naqueles recuados séculos. alma continuava unida ao corpo. Nascendo junto a
ele, a alma não se separava, mas fechava-se com ele
Os indivíduos pertencentes ao tronco étni- na sepultura” (1961, p.36). O abono à sua afirmação,
co-linguístico indo-europeu, do qual derivaram os em nota de pé de página, é de Cícero, Tusc., I, 16.
gregos e itálicos, tinham consigo que o fim da vida Este intelectual romano assegura que mesmo depois
humana se dava com a morte física. Não obstante, de estabelecido o costume da cremação dos corpos,
mesmo antes das reflexões dos primeiros filósofos, as persistiu a crença na vida dos mortos debaixo da
gerações antecedentes fizeram crença numa segunda terra. Coulanges mostra como Eurípedes corrobora
existência posterior à que todos temos direito por nas- essa informação em Alceste e Hécuba. É a literatura
cença. Constituiu-se assim a crença básica que nega dando conta dos ritos fúnebres, testemunhando em
a dissolução do ser na morte natural, daí em diante favor da História. Esses ritos nos dizem que o se-
encarado o falecimento como simples mudança de pultamento do corpo era considerado como enterro
espécie de vida. Essa concepção dos antigos, regis- de um ser vivo. Virgílio encerra a descrição das
trada por Coulanges (1961, p.35), é tão significativa exéquias de Polidoro dizendo: “Encerramos a alma
e entranhada na cultura humana, que a encontramos no túmulo”. Passagens de igual teor nos são passadas
em diversos povos da antiguidade e a temos presente por Ovídio e por Plínio, o Jovem. Isso não significa
nas religiões monoteístas de nossos dias. Noutros que eles cressem pessoalmente nisso, mas somos
termos: a morte encarada como passagem de uma levados a compreender que suas obras exprimem
espécie de vida para outra, beneplácita e definitiva. no plano da linguagem, as antigas crenças dos povos
Coulanges recusa ter tido a idéia da metemp- aqui estudados.
sicose raízes fundas entre os greco-romanos; do 10 Noêmia de Sousa tem um poema bem ilustrativo do ora afirmado por
mim, intitulado “Let my people go!”. Nos versos dessa grande poeta se
dão ao descuido de escrever livros da espécie Literatura não é documento. fazem presentes, como apoio a uma nobre causa, os numes tutelares de
9 Vide a nota 6, supra. sua estirpe e da etnia.

389
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Certas coincidências ocorrem entre o ritual do túmulo, como o haviam feito durante a vida
dos antigos e os por nós postos em prática du- (COULANGES, 1961, p.37).
rante o cerimonial do sepultamento. Vêm ao caso
palavras de Coulanges na seguinte informação: Essas anotações são feitas por Coulanges com
base em passagens extraídas de Eurípedes, Alceste
Era costume, no fim da cerimônia fúnebre, cha-
mar três vezes a alma do morto pelo nome do e Ifigênia em Táurida e Hécuba; Homero, Ilíada;
falecido, desejando-lhe vida feliz sobre a Terra. Virgílio, Eneida; Plutarco, Sólon; e Suetônio, César.
Diziam-lhe três vezes:- Passe bem! – E acrescen-
Mas, é conveniente saber, esses ritos fúne-
tavam:? – Que a terra lhe seja leve! – tanta era a
certeza de que a criatura continuava a viver sobre
bres já eram praticados entre 30 e 35 mil anos
a terra, conservando a sensação de bem-estar ou pelos integrantes das civilizações tapajônica,
sofrimento. No epitáfio declarava-se que o morto santarênica e marajoara, na Amazônia brasileira,
ali repousava, expressão que sobreviveu a essas sem que estes tivessem possivelmente qualquer
crenças, e que de século em século chegou até contato com os povos estudados por Coulanges.
nós (COULANGES, 1961, pp.36-37).
Para os antigos, o corpo insepulto ocasionava
Epitáfio célebre e cômico é o do autor de a errância da alma, de onde se origina a crença
Encontro marcado, assim concebido: “Aqui jaz nos espíritos do outro mundo que até hoje per-
Fernando Sabino; nasceu velho, morreu menino. dura. Plauto já narra um caso de alma penada
” Eu mesmo escrevi um poema intitulado “Epi- e Suetônio conta como a alma de Calígula se
táfio” cujo incipti é: “Aqui jaz o amor um dia tornou errante por haver ele sido enterrado antes
dito”, sentença também passível de figurar no dos ritos fúnebres. O temor de ser privado de
meu túmulo qualquer dia desses... sepultura inquietava os homens, pois se estes não
temiam a morte em si, tinham pavor de não serem
Não será despropositado relacionar as encomendados ritualmente, do que dependia o
observações de Coulanges ao rito católico de sossego e a felicidade eterna. Assim se explica por
encomendação da alma do morto, com palavras que a lei apenava os criminosos perigosos com
litúrgicas de mesmo sentido que as empregadas a privação de sepultamento. Essa modalidade de
pelos antigos. Na liturgia católica da encomen- condenação e pena alcançava não apenas o cor-
da do corpo diz o sacerdote: “Descanso eterno, po, mas a própria alma, condenada para sempre
dá-lhe Senhor!”, logo seguido pela jaculatória a suplício perpétuo. Mencionada pena está nos
coletiva dos fiéis: “Que a luz eterna o ilumine!”, diálogos de Antígona, de Sófocles, por exemplo.
celebração três vezes repetida. Também é opor-
tuno ter em mente como o uso dos epitáfios tem As crenças assim começadas deram lugar a
raízes tão vetustas. Eis dois exemplos de como regras de conduta, pois se os mortos tinham ne-
são transmitidos os resíduos culturais através dos cessidade de vestimentas, comida e bebida, passou
tempos, mesmo que do fato não se tenha clareza a ser obrigação dos vivos prover as carências dos
nem plena consciência. Noutros termos: fazemos mortos. Os desaparecidos, segundo Plutarco em
porque os antigos já procediam assim. página de Aristides, citada por Coulanges (1961,
p.43), eram considerados entidades sagradas, e
Importa é saber que os antigos acreditavam mereciam epítetos positivos tais como “bons”,
piamente viver no túmulo um homem, razão pela “santos”, “bem-aventurados”, cf. Plutarco, Aristó-
qual com o corpo iam à cova objetos necessários teles, Ésquilo, Eurípedes, Homero, Cornelio Nepus
como vestes, vasos e armas. E mais: e Virgílio. Este último, por exemplo, qualifica o pai
Derramava-se vinho sobre o túmulo, para matar- morto de “Sancte parens, divinus parens”.
lhe a sede; levavam-lhe alimentos, para saciar-lhe
a fome. Degolavam-se cavalos e escravos, pen- A consolidação dos deuses familiares ocorre
sando que essas criaturas, sepultadas juntamente indistintamente entre os grandes homens e os mais
com os mortos, prestar-lhes-iam serviços dentro simples mortos. Escreveu Cícero in De legibus, cita-
390
Roberto Pontes

do por Coulanges: “Nossos ancestrais quiseram que Coulanges demonstra muito certeiramente
os homens que deixaram de viver fossem contados como o fogo votivo vem a simbolizar a alma dos
entre os deuses” (COULANGES, 1961, p.44). Em mortos familiares metamorfoseados em deuses
consequência, os túmulos foram convertidos em domésticos. As casas dos gregos e dos romanos
templos dessas divindades familiares e diante deles tinham obrigatoriamente seu altar sobre o qual
foram erguidos altares destinados a sacrifícios, tal deviam permanecer carvões acesos conservados
qual ocorre com qualquer celebração aos deuses. em cinza dia e noite, obrigação esta do chefe da
O culto ora referido ocorria entre árias, helenos, casa. Os gregos designavam esses altares ora por
latinos, sabinos e etruscos. Os ritos fúnebres antigos bõmos, eschára, hestía; os romanos os nomeavam
persistem, remanescem com vigor igual ao de mais por vesta, ara ou focus (COULANGES, 1961, p.49).
de uma vintena de séculos, entre os hindus, que O fogo votivo não podia apagar-se, pois tal fato era
continuam a oferecer persistentemente dádivas aos indicativo da extinção da família. A extinção do
ancestrais (COULANGES, 1961, p.45). A qualidade fogo implicava no desaparecimento do deus a que
divina e os poderes atribuídos aos mortos podem servia; e sendo este um deus familiar, a maldição
ser avaliados pela prece dirigida por Electra aos recaía sobre a família. Sempre que um homem saía
manes de seu pai quando acossada pelo tirano: “Tem de casa realizava uma reverência e uma prece diante
piedade de mim, e de meu irmão Orestes; faze-o do fogo sagrado; no retorno ao convívio da mulher
voltar; meu pai, ouve minha oração; atende meus e filhos, procedia sempre do mesmo modo.
desejos ao receber minhas libações”. Para concluir, muito poderia ainda ser dito,
Divinizadas pela morte, as almas humanas mas o assunto é complexo e muito amplo para
eram denominadas pelos gregos dáimon ou caber numa comunicação como a de agora. Di-
demônios; héros, ou heróis, assim se infere dos gamos, pois, ainda com Coulanges:
registross de Pausânias, Aristóteles, Erípedes e Essa religião não foi sempre igualmente poderosa,
Ésquilo (p.48). Os latinos as denominavam lares, nem sempre teve igual influência sobre a alma; aos
poucos se foi enfraquecendo, mas não desapare-
manes ou gênios, como registram Virgílio e Tito ceu por completo. Contemporânea das primeiras
Lívio (p.48). E Apuléio em De deo Socratis firma: idades da etnia ariana, enraizou-se tão profunda-
“Nossos antepassados acreditaram que os manes, mente nas entranhas daquele povo, que a brilhante
quando maus, deviam ser chamados de larvas, religião do Olimpo grego não foi bastante para
e de lares quando eram benfazejos e propícios”. arrancá-la, sendo para isso necessário o advento
do Cristianismo (COULANGES, 1961, p.59).

391
REFERÊNCIAS recherches, 13, 1984.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Trad. Frederico Ozanam REIS, Carlos. O conhecimento literário: introdução aos estudos
Pessoa. São Paulo: Editora das Américas – EDAMERIS, 1961. literários. Coimbra: Livraria Almedina, 1997.
DUBOIS, Jacques. L’institution de la litérature. Bruxelles: Fernand HALBWACS, Maurice. La mémoire collective. Paris: Presses Uni-
Nathan/Éditions Labor, 1978. versitaires de France, 1950; A memória coletiva. São Paulo: Vértice
KRISTEVA, Julia. “Julia Kristeva: entretien”, in 34/44, Cahiers de Editora, 1990.

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A muLHEr N’A DEmANDA Do sANTo GrAAL:
Pecadora e diabólica

Rosário de Maria Carvalho Silveira1


Elizabeth Sousa Abrantes

iNTroDuÇÃo

A
Demanda do Santo Graal é uma novela Estória do Graal; Merlim com suas Continuações e
de cavalaria, fonte anônima do século a Demanda do Santo Graal, que encerra o ciclo com
XIII, foi inscrita na Post-Vulgata,ou seja, um resumo da morte do Rei Artur no final.
num período de vasta produção tardia do chamado Para este estudo foi utilizada a novela de
ciclo bretão ou arturiano. A obra tem origem em cavalaria A Demanda do Santo Graal da segunda
lendas celtas cristianizadas. A referência ao Santo prosificação, por ser esta a que temos em portu-
Graal como um recipiente sagrado possui relação guês. Essa obra narra as aventuras dos cavaleiros
com a mitologia do povo celta sobre o caldeirão da Távola Redonda e busca do Santo Graal, único
da abundância, cujos alimentos eram inesgotá- objeto com capacidade de devolver a paz ao reino
veis. Os celtas habitaram a Europa Ocidental na do Rei Artur. A busca pelo Santo Graal represen-
Antiguidade, antes da chegada dos romanos. Após tava a tentativa por parte do cavaleiro de alcançar
terem sido progressivamente reprimidos pelos in- a perfeição. A Demanda do Santo Graal destaca
vasores anglo-saxões, refugiaram-se na Armória, dentre os cavaleiros: Galaaz que era o cavaleiro
na Escócia e no País de Gales. Espalharam-se pela mais perfeito, esperado e o eleito para dar cabo às
Europa onde foram relegados às ilhas Britânicas aventuras do reino de Logres. Galaaz era o melhor
pelo Império Romano, onde conservaram as suas cavaleiro, ou seja, o melhor cristão foi o único que
crenças até o século V d.C. Esse povo conservou conseguiu retirar a espada fincada no mármore e
as lendas de sua grandeza passada. ocupar o “assento perigoso” da Távola Redonda.
A Demanda do Santo Graal não é uma obra Esses eram sinais da pureza da alma desse cava-
isolada, ela faz parte de um conjunto de cinco leiro, que era virgem e temente a Deus.
obras, é uma novela de cavalaria que integra o ciclo Esse personagem representa o próprio Cristo
arturiano. O ciclo arturiano se ocupa da persona- em sua peregrinação entre os homens, a fim de
gem do rei Artur, de seus cavaleiros, da Távola pacificá-los, defendendo os fracos e oprimidos.
Redonda e do mito arturiano. A influência da religião cristã nesta obra revela
uma função doutrinária que visava a prática das
A obra faz parte de um conjunto de textos divi-
virtudes cristãs e pregava a salvação do mundo
didos em duas prosificações. A primeira é composta
pelo exemplo de Cristo e seus apóstolos.
pelas obras: Estória do Santo Graal; Merlim; O livro
de Lancelote do Lago; As aventuras ou a Demanda Alguns registros sobre a cavalaria foram escritos
do Santo Graal; e A morte do Rei Artur. E a segunda por religiosos que exerciam uma espécie de censura
prosificação contém os títulos: O livro de José de nestes textos, punindo os cavaleiros que se se apaixo-
Arimatéia, que é praticamente o mesmo texto da nassem ou demonstrasse amor pela figura feminina.
1 Graduada em História na Universidade Estadual do Maranhão, sob a orienta- Não é à toa, portanto, que apenas Galaaz pôde con-
ção da Prof. Drª Elizabeth Abrantes. Possui Especialização em História da Áfri- templar o Santo Graal, e Lancelot, embora tenha tido
ca na Faculdade Atenas Maranhense (FAMA). Foi tutora do Curso Gênero e
Diversidade na Escola, oferecido pela UEMA. Email: rosariohst@yahoo.com.br a mesma oportunidade, foi impedido no último mo-
393
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

mento de fazê-lo, pelo único motivo de que não ser Na obra a imagem da mulher está impreg-
puro o suficiente, pois se envolvera com uma mulher, nada pela idéia da culpa e de pecado, que associa
mais especificamente Genevra, a esposa de Artur. o sexo ao demônio e a mulher a um instrumento
demoníaco. Ao episódio citado acima, no qual a
A Demanda do Santo Graal é uma obra de
mulher acaba por ser morta, embora não fosse
intenção religiosa, representando certa inversão
culpada de adultério, cabe ressaltar que sempre
de valores com relação à moral cortês que inspira
sua imagem é negativa. Sendo que ela foi sa-
as cantigas de amor. Com relação à lírica cortês
crificada sem ter feito nada de mal. No período
se exalta o amor como caminho para a felicidade
medieval a mulher era considerada o caminho que
e a perfeição moral, mas na Demanda todo amor
levava os homens à perdição e ao afastamento do
é considerado pecaminoso, e a virgindade reco-
modelo cristão, segundo a dicotomia Eva versus
mendada como estado mais perfeito.
Maria apresentada pelos oratores: [...] “não dese-
Na Idade Média, de acordo com o ideal java nada do mundo; assim que viu esta donzela,
dos clérigos, o homem deveria buscar a virtude, parecia-lhe que fora em bom dia nascido, se
mantendo-se virgem e afastando-se do pecado. pudesse ter seu amor” (ANÔNIMO, 1999, p.85).
A vasta literatura religiosa da época consagra a Apenas o cavaleiro que amava e temia a
virgindade como um retorno à origem e à imorta- Deus, conseguia se livrar da tentação e perma-
lidade. Observa-se através dessa obra como a vir- necer puro. Vejamos a narrativa na qual sob a
gindade era valorizada: “[...] disse-lhe que mais aparência de uma formosíssima donzela que o
lhe valeria ficar em virgindade, porque se lhe os demo aparece a Percival para tentá-lo, obser-
outros fizessem tanto como ele, bem poderia ser vemos a figura feminina como sendo a imagem
que morresse virgem” (ANÔNIMO, 1999, p.39). utilizada para enganar o homem:
A mulher n’A Demanda do Santo Graal está [...] E depois acordou e olhou ao redor de si e
sempre relacionada ao pecado, à tentação e ao viu a donzela rir, porque vira que tivera medo.
diabo. Os cavaleiros ao desprezarem os valores E quando a viu rir, espantou-se e logo entendeu
que era o demo que lhe aparecera em seme-
mundanos dedicavam-se a adorar a Deus, en-
lhança de donzela para o enganar e o meter em
quanto as mulheres são consideradas perigosas, pecado mortal[...] viu que a donzela se tornou
frágeis, astuciosas, infiéis, fúteis, sensuais e ado- em forma de demo tão feio e tão espantoso que
radoras dos prazeres mundanos. A narrativa trata não há no mundo ninguém tão valente que o
de uma série de aventuras nas quais os cavaleiros visse que não houvesse de ter grande medo. Daí
se deparam com várias mulheres, e na maioria das aconteceu a Persival que teve tão grande medo
que não soube o que fizesse, senão que dissesse:
vezes a figura feminina é mostrada apenas como - Ai, Jesus Cristo, Pai Verdadeiro, Senhor, ficai
um instrumento diabólico, uma tentativa de atrair comigo (ANÔNIMO, 1999, p. 86-87).
os cavaleiros para o pecado e danação eterna.
No texto é evidente a maneira como as A obra enfatiza as virtudes necessárias a um
mulheres eram vistas no período medieval pelos bom cavaleiro na busca do Santo Graal sendo que as
religiosos, pois os homens não tinham nem um mulheres são mantidas afastadas dos homens, com o
pouco de confiança e respeito por elas. Como se propósito de não prejudicar o modelo ideal de cristão.
observa na citação abaixo: O episódio “As Maravilhas da Besta Ladrado-
[...] não vedes a minha mulher desleal e traido- ra” é um dos principais que mostram a mulher como
ra, que fez aqui vir um cavaleiro estranho, para uma criatura mais facilmente enganável pelo diabo.
me escarnecer, enquanto fomos andar por esta
floresta? Agora fez já o cavaleiro quanto quis
Tão formosa quanto letrada e sabia, a donze-
nela, visto que de novo já tomou suas armas, la tinha um irmão de vida tão boa e tão gloriosa
para nos fazer parecer que não veio aqui por para Nosso Senhor, porém apaixonara-se pelo
nenhum mal (ANÔNIMO, 1999, p.63). irmão e tentou seduzir lançando mão de “todas
394
Rosário de Maria Carvalho Silveira

as maravilhas que pôde, tanto pela ciência como A muLHEr


por outra coisa” (ANÔNIMO,1999, p.125). NA soCiEDADE mEDiEVAL
Como foi rejeitada, desejou-se matar-se E suA imAGEm ViNCuLADA
para sair de sua aflição. “E apareceu-lhe o demo Ao PECADo E Ao DiABo
em figura de homem tão formoso e tão bem feito
que era maravilha” (ANÔNIMO,1999, p.125). A Idade Média foi uma época marcada pela
Este consegue enganá-la a possuindo e fazendo consolidação e expansão da fé cristã herdadeira
com que ela se vingue do seu irmão. “E quando do Império Romano. A Igreja Católica como ins-
deitou com ela, teve ela tão grande prazer, que lhe tituição detinha um poder extremamente grande e
esqueceu o amor de seu irmão tão mortalmente, tinha por objetivo ideológico o controle da men-
que mais não poderia” (ANÔNIMO,1999, p.126). talidade das pessoas, com objetivo de levá-las a
Então ela forja uma situação em que parecia estar salvação. Muitos através da pregação eclesiástica
sendo agredida pelo irmão, denunciando-o a por viviam temendo o inferno e o diabo.
estupro, que seria fácil de comprovar pelo estado
Nesse contexto a vida mulheres medievais
de gravidez já aparente em que se encontrava. O
não era fácil uma vez que a concepção clerical
irmão, então é condenado a uma cruel morte por
as divida em pecadoras (associadas a Eva) ou
ela sugerida ao pai, devorado por cães famintos.
santas (vinculadas à Maria). De acordo com a
Porém antes proclama sua inocência e anuncia o
camada social a que pertenciam suas funções
nascimento da filha do diabo, que sempre ladraria
variavam. Nas classes mais altas, as mulheres
“em lembrança e em memória dos cães” a que ela
tinham participação na política, economia e até
o fizera ser entregue.
funções territoriais. As mulheres dos senhores
Após o nascimento da besta o pai conhece a feudais eram responsáveis pela organização do
verdade e condena a filha pecadora a uma morte castelo, supervisionavam tudo, desde a cozinha
pior que a sofrida pelo irmão inocente. Esta besta até a confecção de vestimentas. Elas tinham que
ladradora se tornaria o flagelo dos cavaleiros na saber como preservar a carne e alimentos e tam-
floresta, mas acabaria morta por Palamades, após bém coordenavam todos os empregados. Além
este ser convertido ao cristianismo por Galaaz, disso, tinham que estar preparadas para defender
este último, o cavaleiro predestinado e de nome o castelo na ausência de seu marido (MACEDO,
igual ao do donzel morto. 2002). As camponesas trabalhavam junto com seu
Novamente a mulher se apresenta como a marido nas terras do senhor feudal e, além disso,
criatura mais facilmente enganável pelo diabo, ainda tinham que cuidar dos afazeres domésticos.
vingativa e lasciva, susceptível de com ele co- As mulheres não tinham muitas opções; ou se
pular. Criatura a quem se devia temer pelo seu casavam, ou iam para os conventos. Entretanto, o
poder, que na personagem em foco se representa convento não era para qualquer uma, e sim, para uma
não apenas pela intervenção satânica, mas pelo minoria da alta classe que tinha que pagar uma taxa
fato de ser superiormente letrada, “tão entendida bastante cara para se tornar uma freira. A maioria,
e tão sabia que todos se maravilhavam pela sua porém, estava destinada ao casamento e a uma vida
sabedoria” (ANÔNIMO, 1999, p.124). Através submissa ao marido. As meninas eram educadas
de tal exemplo de mulher diabólica, letrada e somente para este fim: serem boas esposas.
sensual, propugnava-se o modelo contrário de
O casamento entre as famílias nobres era
mulher virtuosa, ignorante e castrada.
arranjado pelo pai quando sua filha ainda era
A obra revela a inferioridade das mulheres criança. A mulher era vista como uma proprie-
em relação à superioridade dos homens, as mu- dade, usada para obter vantagens. Os casamentos
lheres são apresentadas como um obstáculo ao geralmente visavam o aumento de terras. Nas
crescimento espiritual buscado pelos cavaleiros. classes mais altas, as meninas eram casadas com
395
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

idade de oito anos. A mulher era objeto de seu A mulher, apesar de trabalhar tanto quanto o
marido, devendo a este obediência e fidelidade. homem estava sempre em grau de inferioridade.
Dirigia-se a ele com formas de tratamento res- A identidade do pecado original, principalmente
peitosas como “meu amo e senhor”. na história do cristianismo, foi um fardo pesado
para a mulher até o século XVIII. Desde os pri-
Era permitida a agressão física a mulheres
meiros cristãos, a busca da austeridade religiosa
quando o marido achasse que ela o havia deso-
tornou-se não só uma regra para o aprimoramento
bedecido e as histórias de mulheres que sofriam
espiritual, mas também consagrou o papel da mu-
agressões eram contadas nas vilas em tom humo-
lher como a principal tentação mundana, capaz
rístico. As agressões não podiam causar a morte
de afastar o homem do caminho da purificação.
nem incomodar os vizinhos, entretanto, em caso
de adultério flagrante, o marido tinha o direito Na Idade Média, como em outros períodos, a
até mesmo de matar a própria esposa. A lei não sociedade definiu os papéis e os lugares reservados
poderia intervir em nada. aos sexos. Era, no entanto, dirigida e controlada por
homens, cujos valores oscilavam entre os princípios
Todas as mulheres deveriam aprender sobre
éticos e cristãos e o ideal de guerra, ambos restritos
a cura e medicina familiar. Mas não deveriam se
ao sexo feminino (MACEDO, 2002, p.100).
aprofundar muito sobre a cura, pois seriam con-
sideradas bruxas: uma verdadeira contradição. As mulheres durante o período medieval es-
tavam incluídas na categoria dos “desprezados”,
Para provar a propensão natural da mulher
elas faziam parte de um grupo de pessoas que
não faltavam argumentos aos autores Sprenger
até certo ponto estavam integradas na socieda-
e Kramer ao redigir o Malleus Maleficarum,
de, mas, porém eram mal aceitas ou vítimas dos
obra publicada em 1486 e que atribuía muitos
preconceitos. Segundo José Rivair Macedo, não
malefícios às mulheres pela sua capacidade de
se pode afirmar que tenham sido marginalizadas.
realizar curas e utilizar ervas. A começar por
Sendo responsáveis pela reprodução biológica da
uma falha na formação da primeira mulher, por
família, encontravam-se enquadradas em seus
ela ser criada a partir de uma costela recurva, ou
respectivos grupos sociais, desempenhando seu
seja, costela no peito, cuja curvatura é por assim
papel na reprodução da ordem social. Não obstan-
dizer contraria a retidão do homem.
te eram menosprezadas (MACEDO, 2002.p.47).
A própria etimologia da palavra feminina
Se, para os homens da Idade Média, existe
confirma essa fraqueza, origina segundo os auto-
uma categoria de mulher, durante muito tempo
res, femina, em latim, reunia em sua formação as
a mulher não é definida por distinções profissio-
palavras fide e minus, o que quer dizer menos fé.
nais, mas pelo seu corpo, pelas suas relações com
Defender idéias assim não era exclusividade dos
determinados grupos. A mulher define-se como
dois inquisidores alemães. A aversão à mulher
esposa, viúva ou virgem (LE GOFF, 1989, p.22).
como ser mais fraco e, portanto, mais propenso a
sucumbir à tentação diabólica era moeda corrente A maioria das informações obtidas sobre a mu-
em todas as regiões da Europa – dos pequenos vila- lher no período medieval foram ao demônio, e a
mulher, a um instrumento demoníaco. (escritas
rejos camponeses aos grandes centros urbanos. Nos
por homens, na maior parte, religiosos inspirados
sermões de padres por toda a Europa proliferava a por princípios éticos impregnados pela idéia de
concepção de que a bruxaria estava ligada à cobiça culpa e do pecado e que associavam o sexo e/ou
carnal insaciável do “sexo frágil”, que não conhece a sexualidade MACEDO, 2002, p.10).
limites para satisfazer seus prazeres. Com seu “furor
uterino”, para o homem a mulher era uma armadilha Portanto, a maioria dos escritos revela a imagem
fatal, que podia levá-lo à destruição, impedindo-o da mulher sob um olhar masculino nem um pouco
de seguir sua vida tranquilamente e de estar em paz neutro que estabelecem modelos ideais de mulher e
com sua espiritualidade. regras de comportamento a serem seguidas.
396
Rosário de Maria Carvalho Silveira

A Demanda do Santo Graal é obra que faz como meio para conseguir atingir seus objetivos,
parte da cristianização da matéria da Bretanha destruindo as almas dos cristãos.
do século XIII, Galaaz o principal cavaleiro da Na Demanda do Santo Graal, a mulher é
narrativa é puro e casto, é o modelo ideal cris- retratada como um ser perigoso e astuto, sem-
tão. Na obra são descritos vários episódios que pre disposta a enganar e persuadir o homem. E
envolvem a figura feminina, na maioria deles a sendo representantes da luxúria, elas pendiam
presença das mulheres está sempre relacionada naturalmente para o prazer e não para a virtude.
a um instrumento do diabo para iludir e enganar
o homem. Os episódios: Como Galaaz e Boorz Na obra, se observa claramente à mulher
como a inspiradora do desejo, a obra do diabo,
Chegaram ao Castelo do Brut e a filha do Rei
sendo por excelência agente do mal, causa do
Brutos enamorou-se de Galaaz por Louco Amor;
desespero, da morte e da danação eterna.
A Tentação de Persival e As Maravilhas da Besta
Ladradora são os mais importantes para com- [...] A donzela era de bela aparência e alegre, e
tinha maior gosto pelo mundo do que deveria
preender que o ideal cristão era resistir à tentação
ter; e quando conheceu o que era amar, amor
e temer a Deus. seu irmão pela beleza e pela bondade que nele
A mulher na Demanda do Santo Graal é havia [...] E aquele, que era virgem o queria
ser em todos os dias de sua vida e se punha
vitima dos preconceitos da época, incluída na
a servir a Nosso Senhor com todas as suas
categoria dos “desprezados”, malvistas e postas forças, teve grande pesar e disse à sua irmã
à margem. Com relação ao modelo ideal cristão para espantá-la:
eram consideradas perniciosas para a Cristandade. _Vai, desventurada, nunca mais mo digas,
O sexo era visto como um mal que afastava o porque te farei queimar, [...] aquela, que era
cheia de pecados e de desventura concordou
cavaleiro da glória de Deus, pelo qual o demônio
[...] Deste modo entregou seu amor ao demo,
sempre se esforçava para confundir os cristãos e ele deitou com ela, como o pai de Merlim com
os levarem ao pecado. sua mãe. E quando deitou com ela teve ela tão
[...] foi chamada fonte da virgem, e este nome grande prazer que lhe esqueceu o amor de seu
ainda hoje tem, e nunca aí veio cavaleiro, irmão tão mortalmente que mais não poderia
naquele tempo, que não cuidasse morrer, fora (ANÔNIMO, 1999, pp.124-126).
somente Persival e Galaaz, porque não veio aí
cavaleiro que não fosse tocado de luxúria de Enquanto o homem era virgem e pretendia
algum modo (ANÔNIMO, 1999, p.101). servir ao Senhor, a mulher era luxuriosa e servia
ao mal.
O texto enfatiza a necessidade de o cavaleiro
Em uma sociedade tão fortemente penetrada
ser virtuoso, bom cristão, virgem, um verdadeiro
pelos valores da Igreja, quer dizer, da comuni-
modelo para toda a sociedade. Apenas o cavaleiro
dade cristã,
puro conseguiria encontrar o Santo Graal.
A vida sexual ideal passou a ser inexistente.
Assim, a busca do Santo Graal se transfor- A virgindade tornou-se a um grande valor,
ma na luta em busca dos valores ideais cristãos. seguindo os modelos de Cristo e de sua mãe.
O cavaleiro cristão é aquele que procura se Vinha depois a castidade: quem já havia
afastar do mal e do pecado, na obra esse mal é pecado podia em parte compensar essa falta
abstendo-se do sexo pelo restante de sua vida
representado pela figura feminina das donzelas
(FRANCO JÚNIOR, 2004, p.127).
formosas.
Essas formosas donzelas eram utilizadas A Idade Média através do relato bíblico
como instrumento para que o demônio pudesse do qual Eva nasceu de uma costela de Adão,
atrair e tentar os cavaleiros ao pecado. O diabo argumenta em favor da pretensa inferioridade
se transformava na imagem feminina ou usava-as feminina, justificando sua submissão. A maioria
397
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

dos escritores cristãos considerava a mulher CoNCLusÃo


como sendo um ser frágil que não resistiu à
sedução de Satã e causou a perdição de todo o
Através da obra A Demanda do Santo Graal
gênero humano.
é possível perceber os elementos que caracterizam
Incorporando, pois, todas as crenças da anti- bem a Idade Média; o modelo ideal de cristão e a
guidade, amplificado pelo discurso da Igreja, o
imagem da mulher. A Idade Média cristã ocidental
diabo preside a vida da comunidade cristã. Em
toda parte se vê o diabólico,o mundo inteiro é foi uma época marcada pela religião. O cavaleiro
por ele invadido. E sua vítima é por excelência aqui representado pelo jovem formoso Galaaz é
a mulher. Por que a mulher está mais predesti- o representante das virtudes necessárias ao bom
nada ao mal que o homem, segundo os textos cristão, por ser virgem e temente a Deus. Por outro
bíblicos – “Toda a malícia é leve, comparada lado, a imagem que se tinha da mulher na Idade
com a malícia de uma mulher; que a sorte dos
pecadores caía sobre ela!” (Eclesiástico 25:26)
Média através do discurso clerical que dividia o
– e os primeiros teólogos cristãos (NOGUEI- feminino na dicotomia Eva versus Maria é fruto
RA, 1986, p.35). de uma sociedade dominada pelos homens, na
qual as mulheres eram representadas na maioria
A Demanda do Santo Graal é uma obra das vezes como pecadoras e diabólicas.
inspirada no modelo ideal de cristão. Para per- A Demanda do Santo Graal foi escrita num
manecerem firmes na fé em nosso Senhor, os período em que a Igreja pregava os ideais cristãos
cavaleiros buscam as virtudes necessárias para como um modelo para a salvação da alma e pureza
não se afastar de Deus, e cair na tentação. As do espírito. Dessa forma, condenava o sexo, que
mulheres deveriam ser mantidas sob o controle é considerado fruto do desejo e obra do diabo. E
dos homens e afastadas dos círculos sociais para consequentemente as mulheres foram as que mais
que não os levassem à perdição. Os homens que sofreram com reações misóginas nessa época, pois
conseguissem se livrar do mal teriam a proteção havia uma série de princípios éticos nos quais a mu-
do Senhor. lher estava associada à idéia de culpa e de pecado.
[...] Persival, venceste, entra nesta nave e vai- A Demanda do Santo Graal enfatiza a fi-
te onde ela te levar e não te espantes de nada
gura feminina como a tentação e o instrumento
que vejas, e Deus te guiará onde quer que vás
e tanto te acontecerá bem que acharás todos demoníaco que leva a perdição e o afastamento
os companheiros do mundo que mais amas, de Deus. Por outro lado, exalta as virtudes dos
Boorz e Galaaz (SANTO GRAAL, 1999, p.87). cavaleiros como um modelo para a sociedade.

REFERÊNCIAS 1989, p. 21-22.

FONTE FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do Ocidente.


Brasiliense, 2004.
ANÔNIMO. A Demanda do Santo Graal. Século XIII. Tradução de
Heitor Megale. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999. MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Média. 5ª ed. São Paulo:
Contexto, 2002.
ESTUDOS
NOGUEIRA,Carlos Roberto F..O diabo no imaginário cristão. Ática,
LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval. Lisboa: Editora Presença, 1986.
398
mEmóriA E rELiGiosiDADE
NA VISÃO DE TÚNDALO

Solange Pereira Oliveira1

iNTroDuÇÃo

N
a Idade Média os clérigos cumpriam A relação entre os que ainda viviam na carne
as tarefas de mediadores entre o Céu e e os defuntos era muito marcante na Idade Média,
a Terra exercendo um papel de grande pois havia um conjunto de interações com a presença
relevância para a concepção do mundo dos mor- do morto entre os vivos, ritos funerários, os cultos
tos no imaginário medieval, pois uma das suas cristãos aos mortos, dentre outros elementos, os
principais funções consistia em revelar aos vivos quais estavam relacionadas com as práticas sociais
o destino das almas no Além. dos medievos.
Através das revelações sobre os mistérios do Para Jean Claude-Schmitt, as atitudes cristãs
mundo dos mortos, já que os medievos acreditavam com relação aos mortos estavam contidas na noção
na continuidade da vida para além deste plano de memória, precisamente na noção de memória
terreno, os clérigos difundiam para a comunidade dos mortos (SCHMITT,1999, p. 19), pois havia
dos fiéis a importância de levar uma vida baseada uma preocupação em rezar missas para o morto
nos ensinamentos cristãos e com isso buscavam e realizar sufrágios para livrar as almas das tribu-
influenciar um comportamento de acordo com os lações e perigos na passagem deste mundo para o
seus valores. Além. Desse modo, através da liturgia dos mortos
a Igreja Medieval lembrava aos vivos a importância
Dessa maneira, as graças e tormentos das
de tê-la como aliada para a salvação da alma após o
almas no pós-morte eram constantemente lem-
trespasse. Com isso eram evocadas nas liturgias as
bradas nos ofícios dos religiosos medievais que
mensagens sobre a salvação e o pecado. Segundo
transmitiam oralmente nas missas, sermões e
Patrick Geary,
pregações as ações feitas em vida que elevam as
a memória litúrgica, no sentido de memori-
almas a salvação ou ao tormentos eternos com
zação da liturgia e da comemoração por meio
intuito de levar os fiéis a conversão. da liturgia dos vivos e sobretudo dos defuntos,
Como especialistas de memória, os clérigos fazia dos profissionais da religião verdadeiros
especialistas da memória dentro da sociedade
selecionavam aquilo que era digno de ser lem-
medieval (GEARY, 2002, p. 171).
brado, principalmente quando tratavam da vida
no além-túmulo, de grande importância para a
Nesse sentido, as atuações dos clérigos regu-
população medieval que tinha uma preocupação
lares, representados pelos monges, se destacavam
com o pós-morte. Tanto que os religiosos direcio-
como produtores de memória, pois nos mosteiros
navam os seus discursos para a importância e os
se dedicavam quase integralmente à produção
cuidados que os vivos deveriam ter para com a
escrita da liturgia para as suas celebrações litúr-
sua vida espiritual.
gicas transmitidas para os seus pares e os demais
1 Mestre na Universidade Federal do Maranhão (UFMA/FAPEMA/Mnemosyne), sob
orientação da Prof. Drª Adriana Zierer. Email: solstar22@hotmail.com componentes da sociedade medieval.
399
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Portanto, eram especialistas em produzir alemão, inglês entre outras) que circularam por toda
relatos escritos como uma das suas missões evange- a Europa, entre os séculos XII e XV. Existem duas
lizadoras, cujas intenções era lembrar os princípios versões portuguesas do manuscrito, ambas produzi-
morais de contemplação a Deus que levam, num das entre o final do século XIV e o início do século
futuro próximo, as almas para a vida eterna. Nesse XV. Utilizamos neste estudo a versão do códice 244,
sentido, na tentativa de reforçar as ações pastorais proveniente do mosteiro de Alcobaça, na tradução de
perante a comunidade cristã multiplicaram-se os Frei Zacarias de Payopelle, que consideramos ser a
relatos sobre temas que tratam das almas no mundo mais detalhada das versões portuguesas.
dos mortos e dos modelos de vida evangélicas que
A obra trata do cavaleiro Túndalo, personagem
no pós-morte levam ao caminho do Paraíso Celes-
principal, nobre de boa linhagem que vivia nas
tial e aos sofrimentos eternos no espaço do Inferno.
vaidades do mundo e não cuidava da sua alma.
Assim, temos como exemplo de relatos do Fica como se estivesse morto por um espaço de três
mundo dos mortos as narrativas de visões sobre o dias, enquanto seu espírito é conduzido por um ente
Além, escrito pelos clérigos e divulgados por estes celestial para conhecer e vivenciar os tormentos do
oralmente para os medievos. Tais visões possuem Inferno, Purgatório e as alegrias do Paraíso. Ao pas-
certas características peculiares nesses tipos de sar por essas experiências no Além o cavaleiro volta
gênero narrativo a saber: possuem um personagem ao seu corpo regenerado e torna-se um modelo de
principal que é escolhido para fazer uma viagem bom cristão, de acordo com os preceitos da Igreja.
pelo mundo dos mortos, geralmente esse possui as O objetivo ao contar a experiência de Túndalo, ex-
qualidades de um pecador, ou seja, leva uma vida periência esta tida como verídica por quem escutava
totalmente entregue aos prazeres terrenos. o relato serve de exemplo para que outras pessoas
seguissem os passos do cavaleiro regenerado.
A alma do personagem é separada momen-
taneamente do corpo dele, de forma geral, a alma Esse manuscrito enfatiza os aspectos da me-
é elevada ao plano superior dando início a uma mória do cavaleiro que conduzido pelo anjo aos
viagem aos espaços do Além (Inferno, Purgatório espaços do Além vivencia e conhece as recom-
e Paraíso) sendo submetida a várias experiências pensas das almas que seguiram os ensinamentos
no mundo dos mortos; retornando ao corpo, atra- cristãos e os tormentos dos pecadores que viviam
vés da memória dava o seu testemunho do que viu uma vida contrária aos ensinamentos cristãos
e ouviu e transmitia assim suas visões aos vivos. pregados pelos religiosos.
Tais relatos transmitem mensagens cristãs
sobre as viagens das almas no Além Medieval
composta por três divisões espaciais: Inferno,
Purgatório e Paraíso, onde estão reunidas as expe- mEmóriA E rELiGiosiDADE
riências que as almas têm nesses lugares quando Dos EsPAÇos
se separam do corpo bem como as principais as Do ALÉm mEDiEVAL
ações para a formação religiosa dos fiéis baseada
num modelo de vida conforme os valores cristãos.
Os discursos religiosos sobre o pecado e a
Partindo destas questões o nosso objetivo de salvação foram temas sempre presentes na socie-
estudo é apresentar o manuscrito Visão de Túndalo dade medieval, pois os representantes da Igreja
como exemplo desses relatos de visões que se caracte- Católica (clérigos, padres e outros) exerciam os
riza como narrativa de memória e religiosidade cristã seus ofícios de levar a palavra do evangelho aos
difundida oralmente pelos clérigos. O manuscrito é medievos. Seja através dos sermões e pregações,
de autoria anônima, produzido no ano de 1149 por um como já comentados aqui, o importante para a
monge de origem irlandesa e possui várias traduções instituição eclesiástica era não deixar a população
(espanhol, francês, provençal, gaélico, português, esquecer o caráter efêmero da vida terrena e a
400
Solange Pereira Oliveira

imortalidade da alma no Outro Mundo. de evidenciar de que modo as ações feitas em vida se
refletem na elevação espiritual das almas no mundo
Essa missão da Igreja Medieval tinha claras
dos mortos, principalmente quando se tem um com-
intenções de influenciar o comportamento da socie-
dade e com isso manter suas concepções perante a portamento contrário aos ensinamentos de Deus.
população, atribuindo a si própria a tarefa de cuidar Então, desse modo a viagem da alma do
da vida espiritual dos laicos para o correto caminho cavaleiro percorre os três espaços do Além, ini-
da salvação. E para alcançar os seu objetivos elabo- ciando a sua jornada pelo Inferno e Purgatório
rava um sistema de práticas religiosas terrenas que e em seguida ao Paraíso, cuja finalidade não se
elevam as almas a felicidade, mas também práticas restringe apenas a revelação desses ambientes,
considerada por ela como desviantes elevam os mas também a uma rememoração de um ideal de
sofrimentos eternos no pós-morte. comportamento já mencionado nas ações missio-
O manuscrito Visão de Túndalo desempenha nárias cristãs pretendidas pela Igreja Católica.
claramente essas intenções de mostrar aos medievos Essas evidências ficam bem claras quando
o valor de ser ter uma vida religiosa baseada nos na redação do manuscrito são elencados as
ensinamentos cristãos que a Igreja, representante de virtudes e os vícios das almas que respectiva-
Deus na Terra, tanto enfatizava em suas pregações, mente recebem no Além as glórias celestiais
juntamente com as advertências de ações considera- no Paraíso ou sofrimentos eternos no Inferno.
das pecadoras que se refletirá na vida do pós-morte. Desse modo, a Visão de Túndalo reforça os
Essa obra apresenta três personagens centrais preceitos e ensinamentos dos oratores que
para a rememoração das palavras cristãs sobre o tentam disciplinar e converter os ouvintes e
pecado e a salvação, já recitadas pelos eclesiásticos leitores à vida religiosa.
em suas tarefas religiosas: O cavaleiro Túndalo, o Um dos indícios bem recorrentes disso são
Anjo e o Diabo, que no manuscrito têm funções os constantes diálogos entre o cavaleiro e o anjo
essenciais para o mecanismo de pedagogia espi- que o conduz na viagem pelo Além, aquele vai
ritual empreendida pela pastoral cristã. sempre indagando este quando vai passando pelo
Logo de início o relato começa informando Inferno e Paraíso. São perguntas que enfatizam
aos leitores e ouvintes as atitudes e ações do o caráter didático na transmissão dos valores
escolhido, Túndalo, para fazer essa viagem aos cristãos, através de um recurso dialógico que
espaços do Além (Inferno, Purgatório e Paraíso). permite o processo de memorização para os que
Ele tinha a ausência das qualidades de um bom leem e ouvem a narrativa quando ambos estão
cristão, como nos informa esta passagem: passando por aqueles espaços.
[...] o qual auia muy pequeno cuidado de sua Como exemplo, temos as falas de Túndalo
alma. Ca a ssua mancebia e a sua fremosura. que ao ver as almas pecadoras sendo punidas
E o seu linhagen. Todo tornauan en uaidade
no Inferno diz para o ente celestial: [...] Rogo-te
do mundo. Por a qual razon non auia sabor
de auer saude de sua alma. Eralhe muy graue Senhor que me digas que fezeron estas almas por
de hir aa egreia nen fazer oraçon. Daua muy que receben tal pena. Responde o angeo e disse.
poueas esmolas por deus. Pero era muy largo [...] (VT, 1895, p. 103). A partir dessa indagação
en despender esso que auia em maaos husos a narrativa detalha as ações comportamentais
[...] (VT, 1895, p. 101). [grifos nossos].
pecadoras que foram feita neste mundo e conse-
quente os castigos que recebem por essas práticas.
Como podemos observar, aquele personagem
não tinha uma vida religiosa conforme as orientações Assim nos diálogos entre o cavaleiro e o anjo
dos oratores as quais eram baseadas em orações, são enumeradas várias ações pecadoras das almas
assiduidade às missas, doações aos pobres e à própria cometidas na vida terrena e suas respectivas pu-
Igreja. Tais características do cavaleiro têm o propósito nições em lugares específicos do mundo infernal,
401
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

pois os personagens percorrem vários ambientes em que são castigados os pecadores conforme a uma
escala de gravidade de seus pecados, como no quadro a seguir:
Quadro 1. Pecadores, Ambientes e Punições na Visão de Túndalo
Pecadores Penas Lugar do Inferno

Matadores Pecadores e Padecer e ser queimados numa cobertura de ferro. Vale de trevas fundo e calorento.
quem com eles consentem. (VT, 1895,p. 103) (VT,1895, p.103)

Soberbos Padecer num rio de grande fedor e towrmento. Vale fundo e escuro. (VT,1895, p. 104).

Ficar na companhia de demônios aparelhados Lugar seco e escuro em uma casa


Fornicadores e Glutões com instrumentos que torturavam as almas. aberta, redonda, em chama, como forno
(VT,1895, p. 104). aceso. (VT,1895, p. 106).
Estar em uma ponte estreita cheia de espinhos sobre
Ladrões um mar com muitas bestas que aguardavam as almas Vale fundo e escuro. (VT, 1895, p. 104)
passarem e cair. (VT,1895, p. 105).
Para os que não tem a Ter companhia de uma besta que comia as almas Lago muito grande que apresenta al-
sabedoria e querem ser e estas padeciam muitas penas no ventre daquela. ternância de temperatura: congelado e
melhor que os outros. (VT,1895, p. 107-108). quente. (VT,1895, p. 108).

Ter a companhia de demônios dotados de gada-


O vale do caminho da morte. (VT,1895,
Os vícios do mundo.1 nhos e ferros os quais colocavam as almas no
p. 109).
fogo. (VT, 1895,p. 109)

Como podemos observar nesse quadro, essas depara-se com um ambiente onde só reina a paz, a
são ações que as almas pecadoras recebem no felicidade, claridade, onde as almas que seguiram
pós-morte, por não ter levado uma vida terrena os ensinamentos de Deus pregados pelos oratores
de condutas cristãs como propostas pela represen-
desfrutam das glórias eternas nos três Muros ce-
tante de Deus na Terra, a Igreja, por isso, sofrem
lestiais: Muro de Prata, Ouro e Pedras preciosas.
vários castigos e tribulações no Inferno.
O lugar do Paraíso, assim como no Inferno, é
Toda essa visão que o manuscrito apresenta
dado a conhecer através das falas do cavaleiro que
nos lugares Infernais são bem detalhados, cuja
pergunta ao anjo quem são as almas que vivem
evidência é alcançar a consciência dos ouvintes
nesse ambiente, como citado no manuscrito: [...]
e leitores quanto os “reais” castigos que as al-
Senhor quen son estes que em tal folgura moran.
mas podem sofrer no mundo dos mortos se não
[...] (VT, p. 112). [...] Rogote senhor que me digas
cuidarem da sua vida espiritual. Tanto que o
anjo sempre explicava a Túndalo quais deveres de quaes almas he esta folgança [...]. (VT, p. 112).
cristãos não foram realizados tanto por ele como Através dessas citações o anjo responde a Tún-
pelas almas para merecerem os castigos que es- dalo as virtudes que levaram as almas a receberem
tavam recebendo, e assim, preservar na memória tamanha recompensa nos muros celestiais, e claro,
daqueles que tinham acesso a narrativa dos atos apresenta os comportamentos que permitem as
pecaminosos que deveriam ser evitados. graças no pós-morte para o bom cristão que soube
Uma vez apontados esses castigos no mundo escutar e praticar as ações justas, baseada nos dog-
infernal, a instituição clerical reforçava as suas mas da Igreja e nos ensinamentos de Deus.
orientações cristãs estimulando um comporta- Conforme o relato, no “Muro de Prata estariam
mento adequado dos fiéis e de preferência com- as almas dos bens casados que cultivaram o sacra-
portamentos que seguissem as normas indicadas mento do casamento legítimo e para os que repar-
por ela, pois só assim os fiéis poderiam alcançar tiram seus bens com os pobres e fizeram doações
a salvação eterna na hora do trespasse. a Igreja de Deus”. (VT, 1895, p. 115). “No Muro de
Chegando ao espaço do Paraíso Túndalo Ouro estão os mártires de Deus que se guardaram
402
Solange Pereira Oliveira

dos prazeres do mundo e viveram uma vida santa, para os leitores e ouvintes da Visão de Túndalo,
honesta e dedicada aos serviços de Deus, e ainda pois desempenha um papel fundamental para a
os monges”. (VT,1895, p. 116); “Já no de Pedras formação religiosa dos fiéis ensinando as normas
Preciosas estão as ordens dos anjos, dos Apóstolos, de comportamentos que tinham consequências
Profetas e das virgens”. (VT,1895, p.118). benéficas ou não no pós morte.
Além disso, o personagem vê os elementos que Dessa maneira a fixação das mensagens pas-
constituem a morada das almas eleitas como, cam- torais se davam, como se encontra na estrutura da
pos verdes, rosas de diferentes tipos que exalavam narrativa, por vários índices de oralidade que in-
bom odores, árvores carregadas de frutos e casas terpretamos conforme a definição de Paul Zumthor:
de louvores, dentre outros, (VT, 1895, p. 112- 117).
“[...] tudo o que no interior de um texto, informa-
Tais descrições mostravam as graças desfrutadas nos sobre a intervenção da voz humana em sua
pelas almas que foram justas, ao dedicarem suas publicação – quer dizer, na mutação pela qual
vidas às boas ações cristãs, e portanto, merecedoras um texto passou, uma ou mais vezes de um
de tamanho deleitamento nos espaços paradisíacos. estado virtual à atualidade e existiu na atenção
e na memória de certos número de indivíduos
Após a jornada no Além o cavaleiro retorna ao (ZUMTHOR, 1993, p. 35).
seu corpo e começa a praticar todas as boas virtudes
de um bom cristão (dar esmolas, repartir os bens Para Adriana Zierer, a presença da orali-
com os pobres, pregar as palavras santas). Como dade na Visão de Túndalo remete-se a dois níveis:
indícios de que esse personagem se arrependeu dos “O primeiro, é entre Túndalo e seus interlocutores,
seus atos pecaminosos, ele se converteu e começou em especial o anjo. Em segundo lugar, há o diálo-
a contar tudo que viu, sentiu no mundo dos mortos
go do pregador religioso com a plateia que ouve o
para aconselhar os outros a fazerem o bem e viver
relato. Ambos, Túndalo e os ouvintes, necessitam
uma vida santa, como demonstra no relato:
ser convertidos, daí o empenho e convencimento
E mandou poer o signal da cruz nos vestidos com argumentos” (ZIERER, 2010, p. 15).
com que se vestio, e desi começou de nos contar
quanto uira. E conselhou nos que fizessemos Então nos registros de memória do cavaleiro
bem e uiuessemos boa vida e sancta. E pregou as Túndalo sobre o Além estão reunidos didaticamente
palavras da sancta scriptura muy afficadamente as ações religiosas que elevam as almas a salvação
a cousa que nunca leera nen soubera muy sa-
eterna no Paraíso e as ações mundanas que elevam as
gesmente com gran deuoção (VT, 1895, p. 120).
almas ao sofrimento eterno no Inferno. Tal experiên-
cia desse personagem no mundo dos mortos configu-
Podemos informar, então, que os constantes
ra-se em um recurso de conversão cristã da sociedade
diálogos entre o anjo e o cavaleiro é um importante
medieval empreendida pela Igreja Católica.2
recurso que auxilia no processo de memorização

1 No manuscrito não são apresentados os tipos de vícios do mundo que o anjo se refere.

403
REFERÊNCIAS SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval.
Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo. Companhia das Letras, 1999.
FONTE
ZIERER, Adriana M. S. Oralidade, ensino e imagens na Visão de Túndalo.
Visão de Túndalo (VT). Ed. de F.H. Esteves Pereira. Revista Lusitana,
3, 1895, p. 97-120. Domínios da imagem. (UEL), Londrina, Ano III, nº 6, 2010, p. 7-22.

ESTUDOS _. Aspectos Educacionais da Salvação Cristã na Visão de Túndalo (Século


XII). In: OLIVEIRA, Terezinha e VISALLI, Angelita Marques (Orgs.). Pesqui-
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do paraíso? Trad. Maria Machado. São sas em Antiguidade e Idade Média: Olhares Interdisciplinares. São Luís:
Paulo: Companhia das Letras, 2003. Ed. UEMA, 2007, p. 293-308.
GEARY, Patrick. Memória. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. SP: Companhia das Letras, 1993.
(coord). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC/
Imprensa Oficial do Estado,vol II, 2002, p.167-180. (Footnotes)

LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 1994.

404
o imAGiNário CrisTÃo Do ALÉm mEDiEVAL
NA VISÃO DE TÚNDALO

Solange Pereira Oliveira1


Adriana Zierer

iNTroDuÇÃo

A
s narrativas sobre viajantes das almas ao que os cristãos estariam sujeitos se não cumprissem
Além foram um dos instrumentos utili- com as doutrinas religiosas indicadas por esta insti-
zados pela Igreja Medieval para conduzir tuição. Vários relatos de viagens imaginárias sob for-
os Cristãos na busca pela salvação. Um exemplo ma de visão foram difundidos pelos clérigos durante
foram os relatos de visões, descrevendo as felicida- a Idade Média, com o objetivo de fornecer modelos
des e tribulações do Além, através dos quais essa de comportamento para obtenção da salvação.
instituição tentava converter as almas dos fiéis e
A Visão de Túndalo é uma viagem imaginá-
conduzi-los à salvação.
ria escrita no século XII em latim ou gaélico por
Pelas narrativas visionárias sobre o Outro Mundo, um monge irlandês e traduzida em português no
encontraremos a concepção que os medievos tinham século XV, versão utilizada nesse trabalho, que
sobre os espaços destinados as almas. Aquelas consti- descreve os caminhos percorridos pelas almas
tuíram um gênero literário muito presente no cotidiano em diferentes moradas dos três Reinos Eternos
da população medieval, já que se tratava de relatos cujo (Inferno, Purgatório e Paraíso).
conteúdo era fruto do imaginário cristão.
Neste relato, o cavaleiro Túndalo é o persona-
O objetivo desse trabalho é apresentar a Visão de gem principal, um nobre de boa linhagem que vivia
Túndalo, que nos permite compreender o imaginário nas vaidades do mundo e não cuidava da sua alma.
da sociedade medieval sobre o Além, onde são apre- Morto por um espaço de três dias foi conduzido ao
sentados os lugares destinados às almas e os caminhos Além para conhecer a morada dos eleitos e o am-
que têm que percorrer na busca pela salvação. biente destinados aos pecadores. Nessa viagem, ele
Além disso, apontaremos alguns exemplos vai percorrer os espaços dos Três Reinos Eternos
de representação de imagens que constituem o acompanhado por um ente celestial, o anjo, que lhe
espaço do Além Medieval, assim como o cons- mostrará as glórias e punições destinadas às almas.
truto da imagem mental no mundo Cristão para
compararmos com a Visão de Túndalo.
o iNFErNo
os LuGArEs Do ALÉm NA NA VISÃO DE TÚNDALO
VISÃO DE TÚNDALO
Os espaços infernais constituem-se no primei-
Sendo um dos grandes domínios do imaginário ro espaço a ser apresentado por Túndalo. Caracte-
medieval, o Além foi um dos temas utilizados pela rizado como o lugar dos pecadores, as paisagens
Igreja Católica para difundir as glórias e as punições possuem um tom edificante, com vales tenebrosos
1 Mestre na Universidade Federal do Maranhão (UFMA/FAPEMA/Mnemosy- muitos profundos, montes muito alto, mar com on-
ne), sob orientação da Prof. Drª Adriana Zierer. Email: solstar22@hotmail.com
das gigantes assim como grandes lagos em chamas.
405
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Esssas características do mundo das trevas cas entre o mundo terreno e o além (preces,
são bem enfatizadas no manuscrito Visão de penitências, indulgências), que constitui um
dos elementos específicos da religião cristã
Túndalo, pois a medida que esse relato era con-
(CASAGRANDE e VECCHIO, 2002, p. 347).
tado pelos pregadores religiosos a uma audiência,
aumentava o temor dos ouvintes e consequente- Então, percebemos que as punições aos pe-
mente sua busca pela salvação. cadores no Além estão intimamente relacionadas
Os castigos e as punições das almas pecadoras com os pecados cometidos pelas almas enquanto
determinam um lugar específico no Inferno ou viviam na vida terrena.
Inferno Superior, constatado através da indagação Segundo Baschet, “os discursos dos vícios,
feita por Túndalo ao ente celestial: “Rogote senhor ao mesmo tempo denúncia do mal e ocasião de
que me digas que fezeron estas almas”.(VT, 1895, inculcar as atitudes legítimas, é um instrumento
p. 103). Dessa maneira, pretendia-se informar e excepcional, pelo qual a Igreja difunde seus va-
reforçar aos ouvintes dessa narrativa as punições lores no seio da sociedade e aumenta seu controle
e o sofrimento que os esperava se praticassem e sobre ela” (BASCHET, 2006, p. 380).
consentissem com os prazeres e vícios mudanos.
Além dessas descrições do ambiente inóspito
No quadro a seguir estão os tipos de pecados do mundo das trevas, a figura do diabo constitui
cometidos pelas almas e suas respectivas punições outro elemento que fez parte do imaginário cris-
apresentado no manuscrito Visão de Túndalo: tão, pois era constantemente lembrado pela Igreja
Quadro 1. Pecadores e Punições na Visão de Túndalo como o responsável em castigar e se apossar das
almas dos maus cristãos no Além. “O Diabo sem-
Pecadores Punições
pre foi tido como inspirador dos inimigos da Igreja
Matadores
Vale de trevas muito fundo e muito e da Cristandade” (BASCHET, 2002, p. 328).
calorento.
Na Visão de Túndalo, esse ser maligno é apre-
Soberbos Vale fundo e escuro.
sentado com vários instrumentos de torturas com
Ponte de tábua, toda de espinhos que punia as almas como, gadanhos, martelo de
Ladrões
e abaixo desta há várias bestas. ferros e etc., conforme a descrição dessa narrativa:
Fornicadores e Casa em chamas, na companhia “Entom tomauannas os diaboos con gadanhos, e
Gargantões de demônios carniceiros. con torqueses, e poynhannas na foria e malhauan en
ellas con martellos de ferro [...]” (VT, 1895, p. 109).
Falar em pecado na Idade Média é funda- Dessa maneira, a Igreja revelava aos ouvintes
mental para entendermos as concepções que se dessa narrativa os horrores do espaço do Inferno,
tinha das representações dos castigos no Além, com intuito de servir de exemplo para as pessoas
tanto divulgados pela Igreja que tinha a função de que não seguiam os seus ensinamentos e não
interceder pelas pessoas que viviam no pecado, acatavam as regras cristãs indicadas por ela.
ou seja, mostrando os meios para o pecador se
redimir. Assim como também assumia o poder PurGATório:
de perdoar já que a vida dos medievos girava em Um espaço intermediário no Além
torno dos pecados oferecidos na vida terrena.
O problema do pecado na cultura medie- O Purgatório é o terceiro lugar do Além
val não é compreensível fora do vínculo que cristão que tem a função de alocar as almas, tem-
mantém com a prática da penitência. O caráter
porariamente, para a remissão de seus pecados. O
remissível dos erros e o monopólio que a Igreja
exerce sobre o poder de perdoar os pecados seu nascimento está relacionado com a “profunda
e de prescrever punições situam o binômio mutação dos esquemas mentais e intelectuais da
erro-castigo no interior de um sistema de tro- Cristandade.” (LE GOFF, 1994, p. 113).
406
Solange Pereira Oliveira / Adriana Zierer

A ordenação desse espaço na Visão de Túndalo No próprio relato há menção as almas que es-
não é bem definida, pois se confunde com os lugares peram a misericórdia de Deus e, portanto a salvação:
infernais, principalmente nas penas provatórias das [...] a alma non podia falar nen responder.
almas pecadoras. “Estas provações, como se verá, Tanto saya britada e fraca. O angeo coufourtoa
podem ser múltiplas e assemelhar-se às sofridas enton e disselhe. Anda e ueeras outras mayores
pelos condenados, no Inferno. Mas duas delas penas. Que as que uisti. Mais tu serás liure
aparecem com mais freqüentemente, o ardente e o dellas póla misericórdia de deus. Ca todas es-
tas almas que tu uisti. Todas speran saluaçon.
gelado [...]” (LE GOFF, 1993, p. 21).
E outras que non uiste. Pois anda e ueeras as
Então, a narrativa não define bem a organização que ia son julgadoas pero nunca seeren saluas
desses espaços causando confusões quanto as suas ( VT, 1895, p. 109).
delimitações por não precisar até onde vai o Inferno
ou o Purgatório. Há apenas uma expressão que nos Numa imagem contida no Livro de Horas de
permite identificar a falta de delimitação entre esses Branca de Borgonha do século XIV, sobre as almas
dois lugares: “Ata aqui falou da uison que uio no sendo retiradas do Purgatório pelos anjos, é possível
purgatório e das penas e tribulaçooens que padecen observar as almas sofrerem os tormentos do fogo que
os maaos em el e no inferno.”(VT, 1895, p. 111). as queima, assim como no Inferno. Mas é importante
lembrar que nesses dois espaços a chama do fogo
É possível que a falta de clareza quanto à or-
tinha durações diferentes nos discursos eclesiásticos,
denação do Purgatório na Visão de Túndalo esteja
conforme nos explica Jacques Le Goff:
relacionada com a sua construção ainda incipiente
pela Igreja, pois ainda estava se estruturando como [...] Não antes do século XIV, ao que parece,
um terceiro alugar do Além na metade do século XII. viesse a haver uma iconografia do Purgatório,
seria o gesto da súplica que permitiria distinguir
Para Jean-Claude Schmitt, o nascimento do os torturados do Purgatório dos condenados do
Purgatório trouxe esperanças para a salvação das Inferno e as chamas do fogo temporário das
almas cristãs que poderiam ter a esperança de ser chamas do fogo eterno (LE GOFF, 152, p. 268).
absolvidos dos seus pecados depois da morte,
sendo necessário passar por castigos reparadores: Outro detalhe relevante desta imagem são almas
estarem sem vestimentas, o que suscita um sofrimento
Doravante todo cristão podia esperar ser
salvo, mas com a condição de sofrer depois da
corporal real dos castigos, seja no Purgatório ou no
morte castigos reparadores cuja duração e inten- Inferno. Para Jean-Claude Schmitt, quando se trata de
sidade dependiam, de um lado, de seus méritos figurar a alma separada no Além, no “fogo corporal”
pessoais (suas boas e más ações e seu arrepen- do Inferno ou do Purgatório, só a forma de um corpo
dimento no momento da morte) e, de outro lado, humano, geralmente nu. Que permite sugerir sua pas-
dos sufrágios (missas, preces e esmolas) de que
sibilidade quase corporal (SCHMITT, 2002, p. 263).
seus parentes e amigos lançavam mão para a sua
salvação (SCHMITT, 1999, pp. 18-19). Então, o Purgatório, pode-se dizer, funciona-
ria como uma esperança para as almas se livrarem
Podemos definir então o Purgatório como um de seus pecados, bastando para isso expiá-los para
lugar habitado pelas almas que não tiveram uma que possam ascender ao Paraíso.
vida completamente virtuosa, mas se arrepende-
ram dos vícios e pecados cometidos e, portanto
sendo necessário passar por algumas penitências PArAÍso CELEsTiAL:
e provações para que possam ascender ao Paraíso. Um lugar de delícias
“É um lugar duplamente intermediário: nele não
se é nem tão feliz como no Paraíso nem tão infeliz Depois de passar pelos tormentos e penas dos
como no Inferno, e só durará até o Julgamento lugares infernais, Túndalo e o anjo chegam aos
Final” (LE GOFF, 1993, p. 268). espaços paradisíacos e mostram as glórias que rece-
407
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

bem as almas que levaram uma vida terrena baseada ramente maus [...], os não inteiramente bons [...]”
nos dogmas da Igreja e nos ensinamentos de Deus. (LE GOFF, 1993, p. 263).
A primeira descrição apontada na narrativa As imagens sobre o Paraíso foram muito di-
pelos personagens antes de chegar no Paraíso vulgadas por artistas, principalmente a partir dos
propramente dito são os elementos que constituem séculos XIV e XV, como um reforço do imaginário
o espaço do pré-paraíso. Nesse lugar o cavaleiro paradisíaco com paisagens idílicas concebidas como
Túndalo vê uma grande companhia de homens e um jardim onde as almas dos justos repousam e
mulheres que sofrem grandes tormentos, fome e gozam da feleicidade eterna.
sede, mas vive na claridade sem os odores fétidos A figura a seguir mostra o detalhe do Paraíso
do Inferno, como exemplificado no relato: de Fra Angélico que apresenta a figura das almas
uiron gram companha de homeens e de mo- que se dirigem para a porta de entrada do Reino
lheres que sofriam gram tormenta e muy coyta celestial , o ambiente de luz e paz,“anjos e santos
de muy gram uento e de muy grande água. E que dançam embaixo de árvores de mãos dadas”
estauan muy tristes e muy coitados em sofrendo
(DELUMEAU, 2003, p.132).
fame e sede.Empero auian lume e claridade e non
sentian nenhuun maao fedor (VT, 1895, p. 112).

Através de indagação ao anjo, Túndalo


pergunta quem são estes que desfrutam desse
ambiente, o anjo lhe responde que esse espaço
é destinado às almas que não foram muito más,
pois mesmo vivendo honestamente não dividiram
seus bens com os pobres e mereciam passar por
esse sofrimento para depois alcançar a paz eterna.
Continuando a caminhada pelo pré-paraíso fo-
ram encontrando paisagens de campos muito verdes
e formosos com rosas que exalavam bons odores,
onde só havia claridade, pois a noite não existia nesse
lugar, somente o sol que iluminava esse ambiente; a
fonte da vida também é mencionada nesse relato que
nas palavras do anjo “quem dela beber a água, viverá
para sempre e nunca mais terá sede”. Essa morada
pertencia às almas não muito boas que se livraram
e foram tiradas das penas do Inferno, portanto ainda
não podem desfrutar da companhia dos santos.
Assim, no pré-Paraíso estão alocadas as almas
Figura 1. Fra Angélico. Detalhe de O Juízo Final (1432-
que não foram nem totalmente más e nem totalmente 1435). Museu de S. Marcos, Florença.
boas, por isso ainda não merecem está desfrutando
da paz eterna no lugar do Paraíso propriamente dito.
Já no Paraíso, Túndalo encontra Três Muros
Essa menção de almas que sofrem no Celestiais divididos em: Muro de Prata, Muro de
pré-paraíso devido à falta de cumprimento de Ouro e Muro de Pedras preciosas. Cada alma elei-
alguns deveres cristãos “dizem respeito a três ta estaria ordenada em suas respectivas muralhas
categorias de pecadores pessoais entre os quais dependendo apenas do tipo de boas ações que pra-
há uma hierarquia de responsabilidade e de ticaram para merecer está em um desses muros. No
destino: os maus [...], os bons [...], os não intei- de Prata (fig. 2) estariam os castos no casamento,
408
Solange Pereira Oliveira / Adriana Zierer

ou seja, que não cometeram adultério e respeitaram e luminosos dessa morada. A cada alma é atribuído
a lei do casamento e repartiram seus bens com os um lugar de acordo com os graus de glórias, pois a
pobres. No Muro de Ouro se encontram os monges, Igreja Católica em seu discurso deixa bem clara essa
homens e mulheres, os construtores da Igreja com divisão em função dos méritos de cada um, como por
coroas de ouro com pedras preciosas na cabeça, os exemplo, nessa menção aos vários muros sucessivos.
que se guardaram dos prazeres e vícios do mundo,
Essas divisões do Paraíso citadas acima mos-
dedicando suas vidas a serviço de Deus. já no
tram que existem diferentes moradas no Reino
Muro de Pedras Preciosas estão as nove ordens
Celestial. Jean Delumeau nos mostra como que a
dos anjos, os Patriarcas, os Profetas da Bíblia, os
Apóstolos de Jesus e as virgens. Igreja explicava essa divisão do Paraíso em três
Muros celestiais: “Todos os habitantes do paraíso
gozam ali de felicidades iguais? A resposta oficial
da Igreja Católica foi que existem graus de Glória,
portanto, de beatitude, em função dos méritos de
cada um.” (DELUMEAU, 2003, p. 201).
Depois dessa jornada no Além, Túndalo re-
torna ao corpo e conta tudo o que viu nesse lugar
e passa a praticar todas os ensinamentos da Igreja,
para merecer está no Paraíso após sua morte.

CoNsiDErAÇÕEs FiNAis

A Visão de Túndalo funciona como um manual


pedagógico (ZIERER, 2007) utilizado pela Igreja
para ensinar como as pessoas devem se comportar
para evitar o sofrimento eterno no espaço do Inferno
e merecer as glórias no Paraíso Celestial.
Através da descrição dos espaços do Além
era difundido para leigos e cristãos os lugares
destinados às almas após a morte, que estavam
Figura 2. Simon Marmion. diretamente ligados com a conduta das pessoas
Túndalo e o Anjo com os fiéis no casamento. enquanto viviam na terra. Segundo a doutrina
Tondal Vision (C. 1475). Paul Getty Museum, Los Angeles.
religiosa cristã, dependendo do comportamento
que se tinha na vida terrena as almas estariam
A fig. 2 representa o Muro de Prata onde sujeitas ao repouso ou tormentos eternos.
se encontram as almas dos castos no casamento
Diante disso, que a Igreja Medieval se utili-
como já mencionado anteriormente. Nesta ima-
zou dos relatos de viagens ao Além, como a Visão
gem observamos homens e mulheres com vesti-
de Túndalo, para continuar garantindo o seu espa-
duras brancas e muito formosas, com expressões
ço na sociedade medieval, pois a sua presença era
de alegria, beleza e santidade como relatados na
indispensável para a salvação cristã. Atribuições
narrativa (ZIERER; OLIVEIRA, 2013, p. 242).
que a própria divulgava para os cristãos e não
Dessa maneira, nem todos os habitantes do Pa- cristãos da sua importância na intermediação
raíso conheciam igualmente os espaços verdejantes entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.

409
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

REFERÊNCIAS Paulo: Companhia das Letras, 2003.


FONTE PRIMÁRIA: LE GOFF, Jacques O nascimento do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1993.
Visão de Túndalo.Ed. de F.H. Esteves Pereira. Revista Lusitana, 3, 1895, LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (coord.). “Além”. In: Dicionário
p.97-120 (códice 244). Temático do Ocidente Medieval,São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial do
Estado,vol I, 2002,p.21-33.
OBRAS TEÓRICAS:
RUSSEL, Jeffrey Burton. Lúcifer: O diabo na Idade Média.São Paulo:
BARROS, José D’ Assunção. O Campo da História: especialidades e
Madras, 2003.
abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
SCHMITT, Jean-Claude. Os Vivos e os Mortos no Ocidente Medieval.
LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Editorial Estampa,1994
São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
OBRAS ESPECÍFICAS:
ZIERER, Adriana Maria de Souza. “Aspectos Educacionais da Salvação
BASCHET, Jérôme. “Diabo”. In: LE GOFF, Jacques &SCHMITT, Jean-Claude Cristã na Visão de Túndalo (Século XII)”. In: OLIVEIRA, Terezinha e VISALLI,
(coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval,São Paulo: EDUSC/ Angelita Marques (Orgs.). Pesquisas em Antiguidade e Idade Média:
Imprensa Oficial do Estado,vol I, 2002,p.319-331. Olhares Interdisciplinares. São Luís: Ed. UEMA, 2007, p. 293-308.
CASAGRANDE, Carla; VECCHIO, Silvana. “Pecado”. In: LE GOFF, Jacques ZIERER, Adriana M. S.; OLIVEIRA, Solange P. Diabo versus salvação na
& SCHMITT, Jean-Claude (coord). Dicionário Temático do Ocidente Medie- Visão de Túndalo. Opsis. (UFG), v. 10, p. 43-58, 2010.
val,São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial do Estado,vol II, 2002, p.337-350. ZIERER, Adriana; OLIVEIRA, Solange. Visão de Túndalo. Harmonia, Paraíso
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do paraíso? Trad. Maria Machado. São e Salvação no Além Medieval. Mirabilia, v. 16, 2013.

410
A LEGENDA áurEA E o EXEMPLUM No CoNTEXTo
DA PrEGAÇÃo DomiNiCANA (sÉC. Xiii)

Tereza Renata Silva Rocha1

ara Paul Zumthor, a voz intervém sempre Estas últimas eram muitas vezes tiradas da vida

P na relação do homem com o sagrado ao


mesmo tempo como poder e como ver-
dade. Através dela as formas sacramentais e
cotidiana cujo tom oscilava entre o drama cristão
e o cômico (BEAULIEU, 2006, p. 374).
O exemplum se desenvolve essencialmente
exorcizantes se realizam, proporcionando a sal-
nesse contexto da grande renovação da pregação
vação. A voz não é, portanto, apenas um meio de
no fim do século XII e do início do século XIII.
transmissão de uma doutrina; é fundadora de uma
Sua natureza e utilização podem ser mensuradas
fé (ZUMTHOR, 1993, p. 77). Pode-se constatar
na análise do sermão. De acordo com Bremond, Le
esta afirmação observando a preocupação dos
Goff e Schmitt, ele testemunha alguns aspectos da
pregadores com os seus sermões, principalmente
empreitada de “domesticação” da cultura folclóri-
o cuidado das ordens mendicantes, aperfeiçoando
ca, mas não foi elaborado pelos clérigos da Idade
a arte predicatória.
Média com este intuito (BREMOND; LE GOFF;
Marie-Anne Polo de Beaulieu afirma que os SCHMITT, 1982, p. 13).
sermões eram o meio básico de instrução dos lei- Os dominicanos em sua pregação esforça-
gos. O ato de pregar se constituía numa definição vam-se para falar dos problemas específicos dos
dos contornos da religião diante da heresia e da citadinos e distinguiam os auditórios segundo
superstição e uma proposição de um modelo de seus ofícios, assim se observavam sermões para
cristianismo (BEAULIEU, 2006, p. 367). intelectuais, universitários, artesãos, campone-
A revitalização das cidades e as heresias mar- ses, etc. Recorriam aos exempla para lhes dar
caram o surgimento de uma nova forma de pregação exemplos da vida cotidiana (LE GOFF, 1992,
encarnada pelos mendicantes. A pregação foi uma p. 183).
atividade central na vida dos dominicanos, princi- É importante ressaltar aqui a dificuldade de
palmente. A pregação mendicante procurava chegar penetração do discurso clerical sobre os leigos e a
aos problemas específicos e aos distintos públicos necessidade eminente de modificar a forma como
de acordo com os seus ofícios e sua posição social. esse discurso era divulgado. Os pregadores reformu-
Ela se desenvolveu muito nas grandes cidades e era lam as estratégias discursivas que existiam até então
exercida especialmente em lugares públicos movi- para tornar sua mensagem mais clara e facilmente
mentados, como as praças, por exemplo. compreensível para o público leigo. Nesse sentido,
A intensificação da pregação foi acompa- caso o pregador achasse necessário, poderia reani-
nhada da aparição de um novo tipo de sermão, o mar o auditório contando-lhe histórias engraçadas
sermo modernus, que assentava-se em três pila- ou exemplos alegres para, logo depois, reinserir em
res: as autoridades (auctoritates), os argumentos seu discurso palavras sérias, elevadas das sagra-
(rationes) e as anedotas exemplares (exempla). das Escrituras. Era legítimo também inserir casos
1 Mestre em História na Universidade Federal Fluminense. Doutoranda em exemplares ao argumento desenvolvido. Para isso,
História Medieval do PPGH-UFF, sob a orientação da Prof. Drª Vânia Leite os dominicanos desenvolveram a arte do sermão,
Froés (Scriptorium/UFF). Bolsista CAPES. Email: tereza_rocha@gmail.
com além da produção dos textos utilizados como inspi-
411
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

ração para estes sermões, incluindo-se as coletâneas argumentação se articula em três espécies de provas:
hagiográficas e de exempla. as auctoritates, as rationes e os exempla. As auctori-
tates são essencialmente citações das Escrituras. As
Thomas Crane distingue dois sentidos do
rationes, por sua vez, estão no presente didático. Já o
exemplum na Idade Média e particularmente nos
exemplum insinua um segmento de tempo narrativo,
seus três últimos séculos. O primeiro sentido é
histórico, linear e divisível. “Encontramos no exem-
de “exemplo”, o segundo é de história ilustrati-
plum os três tempos da enunciação histórica segundo
va. O estudo de Bremond, Le Goff e Schmitt é
Émile Benveniste: o aoristo (passado simples ou
consagrado ao estudo do exemplum em seu se-
passado definido), o imperfeito e o mais-que-perfeito”
gundo sentido: “história ilustrativa”. Isto porque o
(LE GOFF, 1994, p. 124). Ao contrário do prestígio do
exemplum assim compreendido aparece como um
passado – e da eternidade -, que caracteriza o tempo
fenômeno literário ligado às estruturas culturais,
das autoridades e das razões, o tempo do exemplum
mentais e sociais – um fenômeno historicamente
busca uma das suas forças de persuasão no seu caráter
definido entre os séculos XII e XV (BREMOND;
recente. “Não foi por acaso que os frades mendicantes
LE GOFF; SCHMITT, 1982, p. 27).
foram os grandes difusores tanto deste tipo de história
O exemplum antigo, que influenciou pouco o [história-testemunho] como dos exempla. Eram espe-
medieval, era, sobretudo, ordenado em torno de he- cialistas do tempo próximo” (LE GOFF, 1994, p. 125).
róis, grandes homens ou personagens de referência.
O exemplum é, antes de tudo, um discurso oral,
O exemplum cristão dos primeiros séculos teve uma
sustentado pela voz e pelo gesto. Entretanto, apesar de
forte tendência a transferir este papel para os modelos
profundamente arraigado na oralidade, este discurso
humanos cristãos, os mártires, os santos, sobretudo,
só é conhecido hoje através de sua forma escrita. A
para Cristo. Entretanto, o exemplum medieval não
ele recorrem, ao longo da Idade Média e de forma
designa jamais um homem, mas uma narrativa,
especialmente recorrente a partir do século XIII,
uma história a ser tomada como um instrumento de
professores, oradores, moralistas, místicos e prega-
ensinamento e/ou de edificação (BREMOND; LE
dores, para exemplificar e adornar suas exposições
GOFF; SCHMITT, 1982, p. 27–28).
ilustrando-as mediante todo tipo de fábulas, anedotas,
O exemplum não é uma simples exemplificação, bestiários, relatos históricos, legendas, etc. Trata-se
uma ilustração de um enunciado abstrato de uma de uma ficção narrativa concebida para servir de de-
verdade ou de uma lição religiosa ou moral, mas é, monstração, é ao mesmo tempo um método didático
ele mesmo, um ato, um argumento retórico da mesma e um gênero literário.
forma que outros enunciados. Ele não é um simples
A introdução crescente no sermão de pequenas
ornamento de um texto, ele é um elemento deste
narrativas destinadas a ilustrar aspectos diversos da
(BREMOND; LE GOFF; SCHMITT, 1982, p. 28).
doutrina para elevar o nível cultural dos fiéis será,
Jacques Le Goff define o exemplum como a precisamente, uma das chaves da modernização
expressão de um compromisso entre o presente ha- do gênero ao longo do século XIII. Neste século,
bitual e uma espécie de presente eterno. Este é um as conclusões do IV Concílio de Latrão (1215), que
instrumento de conversão que tem a função de ligar recomendam aos prelados uma maior atenção à
a realidade histórica a uma aventura escatológica. instrução das pessoas, impulsionaram a renovação
O tempo do exemplum representa uma dialética dos sermões. Deste fato, são indícios as compilações
entre o tempo da história e o tempo da salvação que de exempla e os tratados sobre sua utilização que
constitui uma das maiores tensões da Idade Média floresceram desde o começo deste século.
central (séculos XII – XIII) (LE GOFF, 1994, p.124).
O exemplário medieval fornece ao orador
O autor continua sua argumentação lembrando um arsenal argumentativo pré-fabricado repleto de
que a concepção de tempo que está implícita no argumentos programados e de contos prontos para
exemplum ilumina-se no contexto dos sermões, cuja usar. O pregador só tinha que eleger aqueles relatos
412
Tereza Renata Silva Rocha

que melhor cumpriam com o seu propósito, seguindo Para Aristóteles, na sua Retórica, os meios de
a isto, uma calculada estratégia oratória que atendia persuasão se dividem em três grupos: ethos, o ca-
a todos os parâmetros do ato pedagógico, ato de ráter do orador; pathos, a emoção do auditório; e
comunicação por excelência: desde o tipo de público logos, a argumentação. O ethos seria a impressão
para quem era dirigido o sermão até a capacidade causada pelo orador através do seu discurso, sua
de concentração do ouvinte. O exemplum não serve figura precisa ser confiável. Quanto ao pathos, a
somente para transmitir um saber, mas também para emoção causada pelo orador em seus ouvintes é
captar um auditório, para despertar ser interesse, fundamental para o convencimento. Por último,
seduzi-lo, conquistá-lo e, finalmente, persuadi-lo. o logos constitui o discurso argumentativo, em
que se aplicam as técnicas de persuasão. E os
Nesse sentido, o exemplum é um recurso que
recursos argumentativos são fundamentalmente
o orador utiliza no processo de persuasão, de “fa-
dois: o entinema e o exemplo. O entinema é um
zer crer”. A noção de persuasão integra a ideia da
tipo de dedução próprio da oratória. Suas pre-
vulgarização, da performaticidade da palavra, da
missas não precisam ser verdadeiras, como já foi
imagem, das metáforas, do gesto, dos mecanismos
dito aqui, apenas devem ser verossímeis. Quanto
não verbais. A persuasão se inscreve num processo
ao exemplo, ele é um tipo de indução e consiste
triangular ligando em todos os sentidos comunica-
em citar oportunamente um caso particular para
ção, circulação e recepção. Trata-se de convencer
persuadir o auditório. (SOUSA, 2001, pp. 17–19)
o receptor acerca de algo. Quem persuade leva o
outro à aceitação de uma dada ideia, como já foi De acordo com Aristóteles:
mencionado aqui, “faz crer”. Les moyens de démonstration réelle ou appa-
É possível que o persuasor não esteja trabalhan- rente sont, ici comme dans la dialectique,
l’induction, le syllogisme réel et le syllogisme
do com uma verdade, mas somente com algo que se
apparent. En effet, l’exemple est une induction,
aproxime de certa verossimilhança. Entretanto, a et l’enthymème est un syllogisme. J’appelle en-
ideia defendida deve ter o estatuto de verdade. Adil- thymème un syllogisme oratoire et exemple une
son Citelli esclarece essa questão da verossimilhança induction oratoire. Tout le monde fait la preuve
para a eficácia da persuasão: d’une assertion en avançant soit des exemples,
soit des enthymèmes, et il n’y a rien en dehors
Verossímil é, pois, aquilo que se constitui em de là. Aussi, comme il est absolument néces-
verdade a partir de sua própria lógica. Daí saire que l’on ait recours soit au syllogisme,
a necessidade, para se construir o “efeito de soit à l’induction pour faire une démonstration
verdade”, da existência de argumentos, provas, concernant un fait ou une personne (alternative
perorações, exórdios, conforme certas propo- que nous avons reconnue dans les Analytiques,
sições já formuladas por Aristóteles na Arte il s’ensuit que chacun de ces deux moyens (dans
retórica (CITELLI, 1985, p. 14). la rhétorique) est identique à chacun des moyens
correspondants (de la dialectique) (ARISTOTE,
Persuadir, portanto, é o resultado de certa 1882, Livre Premier, VIII).
organização do discurso que o constitui como
verdadeiro para o receptor. Para isto, o orador O exemplo, para Aristóteles, não é um caso
utiliza os argumentos, as autoridades e as provas, particular que explica o geral, mas sim um caso
que, no caso dos sermões, são os exemplos. O conhecido que serve de prova demonstrativa:
exemplum tem valor de prova, mas por si não con- Ce n’est pas dans le rapport de la partie au
tém prova de nada. Dito de outra maneira, quem tout, ni du tout à la partie, ni du tout au tout,
dá um exemplo não apresenta uma prova, mas mais dans le rapport de la partie à la partie,
et du semblable au semblable. Lorsque sont
a inventa e a confere um caráter probatório que
donnés deux termes de même nature, mais que
de modo algum possui. No entanto, o exemplum l’un est plus connu que l’autre, il y a exemple
medieval oferece ao orador um campo de expe- (ARISTOTE, 1882, Livre Premier, XIX).
rimentação retórica e argumentativa inesgotável.
413
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Um bom orador deve influenciar o estado de das festas do ano. É universal na medida em que
ânimo de seus ouvintes, provocando-lhes as emoções concerne às narrativas ligadas aos cultos que se
ou as paixões que mais convenham à causa, pois este observam no conjunto da cristandade. Não tem
despertar de paixões (pathos) adequadas no auditório função diretamente litúrgica, mas serve de auxi-
é um dos mais importantes recursos de persuasão. liar para a pregação, seja por seu uso direto pelo
Assim, se faz patente a dimensão pragmática do pregador itinerante, seja pelo uso dos mestres dos
exemplum, que não só pretende deleitar o público, studia dominicanos que formavam os pregadores
mas também mover os ânimos dos ouvintes, fazendo (ВOUREAU, 1993, p.55).
-os atuar. Ainda que não isento de certa teatralidade, Os legendários dominicanos do século XIII,
seu poder de incitação é real. que chamamos de Legendae Novae ou legendários
A manipulação que supõe a utilização de um abreviados, são um canal de transmissão cultural
exemplo, qualquer que seja, começa pela escolha que, inicialmente, tinha como destinatário último
– nunca inocente – do caso que se decide tomar, o público dos pregadores, quer dizer, seus ouvintes,
entre todos os possíveis, como modelo para re- então, que não sabiam ler e não compreendiam
presentar uma categoria ou um conjunto suposta- o latim. Os pregadores, destinatários imediatos,
mente universal. O exemplum está programado a encontravam todo material necessário para sua
partir de um desenlace premeditado e toda a ação tarefa lendo os livros compilados em latim pelos
se desenvolve em função do objetivo didático e dominicanos. (MAGGIONI, 2008, p. 148).
argumentativo fixado pelo orador e que, em geral, A Legenda Áurea é um longo trabalho de pro-
mostra-se para o leitor desde o começo. porções quase enciclopédicas. O século XIII é um
Cada acontecimento narrado no exemplum é, período em que este tipo de obra ganha destaque.
por sua vez, um episódio da ação e um momento Vários trabalhos deste tipo foram compostos nesta
da argumentação: tudo o que se conta, se faz com época pelos dominicanos Thomas de Cantimpré
vistas a um desenlace nem sempre previsível, mas e Vincent de Beauvais e pelo franciscano Barthé-
sempre calculado de antemão. O final do exemplum lemy l’Anglais. A Legenda é dividida em cerca de
não é, de um ponto de vista estrutural, nada além do 182 capítulos, a maior parte dos quais descreve a
que seu ponto de partida, de modo que quanto mais vida e os milagres dos santos. Importantes festas
o leitor se aproxima do desenlace da história, mais do calendário dominicano também estão incluídas,
se aproxima, na verdade, de seu estabelecimento. A e as entradas são organizadas de acordo com a
lição final nada mais é do que seu ponto de partida. ordem do ano litúrgico, começando com o Advento
do Senhor. Varazze prefaciou seu trabalho com
Deste modo, podemos entender o exemplum um curto prefácio discutindo as cinco divisões do
como técnica de persuasão, no sentido em que ano litúrgico, chamando a atenção para os escritos
facilita o entendimento da argumentação que está que deveriam ser lidos nas principais festas. Um
sendo exposta e lhe serve de prova. Além disso, curto prólogo também acompanha o texto da vida
desperta a emoção dos ouvintes, facilitando o seu de cada santo e geralmente toma a forma de uma
convencimento. A Legenda Áurea, utilizada na etimologia linguística improvável, mas apropria-
composição de sermões, foi, portanto, produzida damente piedosa do nome do santo.
como um material retoricamente elaborado para
Muitas das narrativas da Legenda Áurea são
a persuasão, através das vidas dos santos.
bem breves. Os fundamentos de cada vida são
A Legenda Áurea (c.1260-1298), escrita pelo narrados com um mínimo de detalhe descritivo,
dominicano Jacopo de Varazze (c.1230-1298) é mas em conformidade com a forma narrativa
um exemplo de legendário universal, ou seja, da passio ou da vita que se desenvolveram nos
uma compilação de textos hagiográficos e de primeiros séculos do cristianismo. Além dessas
narrativas ligadas às grandes celebrações do ca- narrativas hagiográficas, o texto inclui vários
lendário litúrgico reagrupadas segundo a ordem capítulos mais longos, incluindo aqueles sobre
414
Tereza Renata Silva Rocha

a Assunção da Virgem Maria, São Gregório e a récits montre de la part de Jacques la volonté
Comemoração de Todas as Almas. Grande parte de tenir compte des exigences d’un public de
do material nestes capítulos não é narrativo, mas lecteurs certes dévôts mais aussi cultivé et
intéressé (CASAGRANDE, [s.d.]).
oferece uma análise de questões teológicas com-
Assim, os primeiros leitores pretendidos por
plexas, como a assunção corpórea da Virgem, em
Jacopo eram os membros do clero. Para Boureau:
que Varazze normalmente avalia o valor relativo
“Jacques de Voragine semble supposer chez son
das fontes, como São Jerônimo e São Bernardo. lecteur une certaine habitude de la parole pré-
Jacques Le Goff defende que apesar da Le- dicante”.(BOUREAU, 1984, p.23) Portanto, seu
genda ser um conjunto de vidas de santos, ela tem leitor pretendido não somente seria um clérigo,
em seu interior uma exposição da liturgia. « La mas especificamente deveria ser um pregador.
Légende dorée dépasse largement le caractère A Legenda Áurea, então, foi concebida como
très limité d’un simple recuel de vies de saints uma obra de referência, na qual os clérigos pu-
applé ‘légendier’ » (LE GOFF, 2011, p. 11). dessem encontrar um vasto material útil para os
Alain Boureau chama a atenção para a cons- seus sermões. Como afirma Hilário Franco Jr.:
trução narrativa da Legenda Áurea em capítulos O objetivo imediato de Jacopo de Varazze
distintos, que oferecem geralmente uma sucessão de era fornecer aos seus colegas de hábito, os
dominicanos ou frades pregadores, material
episódios autônomos delimitados por uma demar-
para a elaboração de seus sermões. Material
cação temporal ou espacial, uma mudança de pro- teologicamente correto, isento de qualquer
blema ou de personagens. No domínio hagiográfico, contágio herético, mas também compreensível
a necessidade de enquadramento narrativo parece e agradável aos leigos que ouviam a pregação
menor, pois a narrativa se lê como uma descrição da (FRANCO JR., 2003, p.11).
santidade, como uma lista de méritos, que justifica
a devoção e a canonização; os termos da sequência Os leitores para os quais o texto era destinado
geralmente são a graça e o mérito que gratificam o compreendiam o latim, mas na medida em que
eles poderiam ser privados de todo contato com o
santo através de uma revelação ou de uma capaci-
pregador e sua palavra, Jacopo colocou advertên-
dade taumatúrgica (BOUREAU, 1986, pp.58-59).
cias no texto e assinalou o início e o fim de alguma
A diversidade das condutas santas mostra narrativa apócrifa. (MAGGIONI, 2008, pp.173-174).
claramente que a Legenda não dá lições diretas; ela
No entanto, Néri Souza nos lembra de que
apresenta a absoluta imprevisibilidade da santida-
“a despeito da erudição e da orientação ortodo-
de e da graça. A conduta divina dos eventos parece
xa de Jacopo de Varazze, seu texto surpreende
obscura aos homens. A diversidade dos resultados pela singeleza de formas e de idéias” (SOUZA,
do pecado refere-se mais à arbitrariedade provi- 2002, p.74). Há uma “vulgarização da doutrina”
dencial que a uma gradação das faltas humanas: na Legenda: a narrativa é permeada por elemen-
o pior perseguidor podia escapar do castigo por tos maravilhosos. Além disso, Jacopo recorre
uma miraculosa conversão, assim como uma falta ao exemplum, instrumento de persuasão, como
venial, em certos casos, danava irremediavelmente principal elemento da estrutura narrativa de sua
seu autor (BOUREAU, 1986, p. 67–68). obra. Então, seria impossível acreditar que seu
Por todos esses aspectos entende-se o porquê público alvo fosse somente os clérigos.
do texto ter sido utilizado como um instrumento Para Alain Boureau, a Legenda está no cru-
pelos pregadores para a composição de seus zamento entre as tradições populares e a cultura
sermões. Como nos informa Carla Casagrande: clerical: “la Légende dorée, dans son orientation
Dans la première redáction prévaut la volonté et par l’accueil qu’elle reçut, peut être considérée
de Jacques de préparer un instrument utile à comme un lieu de rencontre du populaire et du
la prédication; ensuite, l’insertion de quelques clérical”.(BOUREAU, 1984, p.11).
415
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Portanto, Jacopo pretendia dirigir-se a um o melhor itinerário para seu público, procedendo
público eclesiástico e leigo das mais diversas for- a uma escolha apropriada entre o grande número
mações culturais. Os clérigos eram os consumidores de narrações hagiográficas e o grande número de
imediatos da obra, leriam ou ouviriam a compilação exempla. (MAGGIONI, 1986, p. 172)
e a utilizariam, adaptando-a de acordo com as suas
Assim, a compilação foi uma fonte inesgo-
intenções, para compor os seus sermões. Os leigos
tável de citações e de referências intertextuais
ouviriam os sermões compostos pelo material com-
nos gêneros os mais diversos (crônicas, sermões,
pilado e adaptado pelo frade dominicano.
compilações de exempla, etc.), fazendo também
A Legenda se inscreve no contexto da Ordem parte dos sermões. Os capítulos da Legenda
Dominicana de inserir o apostolado cristão na prática Áurea não possuem uma ordenação cronológica
dos fiéis. Para Boureau, trata-se de um condensado nas vidas de santos. Elas são divididas em epi-
de contribuições intelectuais dominicanas à atividade sódios, os exempla, que exaltam as virtudes e
pastoral cristã. Os fiéis encontravam na compilação principalmente os milagres desses indivíduos.
uma soma que representava sistematicamente as vias Esses episódios eram selecionados e extraídos
da salvação, se colocando num equilíbrio entre a ex- para serem utilizados no contexto da pregação.
posição doutrinal e a narrativa oral, entre a narrativa
dos gestos de Deus e o anúncio profético dos Tempos Devemos lembrar que as vidas de santos
Novos. A Legenda oferecia uma verdadeira enciclo- fazem parte de uma cultura comum largamente
pédia da salvação. (DUNN-LARDEAU, 1986, p. 76) partilhada entre o pregador e seu público. Assim,
essas histórias facilitavam a operação de persua-
Para Giovanni Maggioni, Jacopo de Varazze
são realizada pelo orador. A Legenda, então, ofe-
tinha uma tendência a dar a seu público num se-
rece um conjunto de histórias exemplares, que o
gundo nível, aquele dos ouvintes e dos leitores, a
pregador podia utilizar segundo sua inspiração e
maior possibilidade de escolha entre os itinerários
a demanda de seu público, colocando-as a serviço
possíveis no domínio hagiográfico. Na Legenda
da predicação e do convencimento.
Áurea, os pregadores podiam sempre encontrar

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416
A HYBRIS Do PEsCADor:
Experiência democrática na Atenas Clássica

Talysson Benilson Gonçalves Bastos1


Ana Livia Bonfim Vieira

iNTroDuÇÃo:
Percursos teóricos

O
ateniense, do período clássico, tinha em bastante coerente com a noção de cidadania ideal
seu cotidiano a forte presença do mar, que temos sobre o ateniense deste período, que
afinal eram 180 quilômetros de costa, seria um homem político, religioso, militar, eco-
acreditamos que deste contato o homem criou nômico, doméstico (VERNANT, 2001, p. 169).
suas interpretações e os símbolos, seja de grupo Logo o mar representa, neste caso, força, poder,
ou individual acerca deste espaço: dominação, segurança, coragem e honra, pois não
[...] o sentido dos outros nos confronta com a podemos esquecer que os marinheiros que saíam
evidência do sentido que os outros, indivíduos para o mar em períodos de guerra tinham o orgulho
ou coletividade, elaboram[...] o sentido social, de lutar pelo bem da comunidade políade, e no re-
isto é, o conjunto das relações simbolizadas,
torno, vivos ou mortos, recebiam as glorias e eram
instituídas e vividas entre uns e outros no seio
de uma coletividade que esse conjunto permite considerados como heróis (VIEIRA, 2011, p. 65).
identificar como tal (AUGÉ, 1999, p. 9). Porém nem tudo no ambiente marítimo é fami-
liar ao homem, a morte no mar e os perigos deste
Seja em seu aspecto mais “prestigioso” ou outro universo que possui leis próprias ilustram um
pelo seu lado negativo. Nos aspectos positivos dos piores aspectos do mar e se pensarmos que na
ao que tange esse imaginário constituído entre contemporaneidade nossos avanços tecnológicos já
o ateniense e o mar temos a questão das trocas possibilitaram a ida do homem à lua e, no entanto,
comerciais que eram vistas com bons olhos uma não possibilitam o total conhecimento do fundo
vez que proporcionavam à polis ateniense os do mar e toda sua fauna, para o grego do período
produtos as quais esta não produzia internamen- clássico o medo e a precaução com aquilo que es-
te, tais produtos vinham predominantemente do taria relacionado ao mar e seus monstros, aliados
Egito, África, Ásia e outros pontos da Europa às narrativas mitológicas (que foi a forma de trans-
(VIEIRA, 2011, p. 64). missão dos saberes dos helenos que nos falam do
Percebemos o quanto importante era esta via estreito da Sicília e de seus perigos especificamente
de comércio, talvez a principal, dado a dimensão Scylla e Caribides) e padrões ideológicos como os
e a importância atribuída ao Pireu, porto de propostos por Platão em As Leis, legitima e dá a
Atenas, nesse período. Além disso poderíamos dimensão, pelo menos em parte, dessa descon-
citar a navegação militar como outro importante fiança. Para o grego a morte era algo natural, mas
aspecto do mar uma vez que cria-se o sentimento algumas formar de morrer não. Um corpo que se
de koinonia politiké, que seria aquele ideal de pôr perde em alto mar denota primeiramente a falta de
um enterro apropriado, ou seja, a falta da simbologia
o bem da comunidade em primeiro lugar, algo
ritual das honras fúnebres, e isso era um peso para
1 Graduando em História na UEMA/Mnemosyne sob a orientação da Prof.
Dra. Ana Livia Bonfim Vieira. o imaginário coletivo.
417
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Dentro disso temos a figura do pescador, que de Oppien, Halieutica e as cartas de Alciphron
na polis ateniense recebia um status social menor, que nos fornecem alguns dados técnicos e sobre
ou um olhar de desconfiança, justamente pelo con- o cotidiano e a difícil vida dos pescadores, seus
tato diário que esse grupo tinha não só com o mar anseios e suas esperanças, além disso algumas
mas com seus habitantes: os peixes. Os pescadores ações que nos possibilitam a construção de um
diferenciavam-se ainda pela própria aparência afinal olhar político sobre aquele grupo. Para a
estes eram “usados pelo mar”. A pesca não foi uma leitura da documentação primária, optamos pelo
atividade bem vista pelos filósofos e moralistas. método proposto por Frontisi-Ducroux (1975) que
Platão, fazia juízo indigno daqueles que utilizavam visa identificar a família lexical de um termo e per-
de armadilhas, redes, pequenos truques para obter ceber seus atributos, os juízos de valores emprega-
sua caça, o que estaria longe de ser o ideal cívico dos quando ele aparece na documentação textual,
e heroico do caçador (CORVISIER, 2008, p.300). o termo que escolhemos foi: alieús (pescador).
Nesse contexto entendemos que o uso da métis, Segundo a autora, para cada ocorrência o contexto
(O mar é um lugar permeado de armadilhas e cheio nos fornecerá dois tipos de dados: primeiramente o
de criaturas possuidoras de métis; o pescador precisa significado do termo, o seu emprego e os sentidos
ser mais ardiloso que sua presa para obter sucesso. atribuídos a ele, segundo: refere-se aos valores
DÉTIENNE; VERNANT, 2007, p.33) a astúcia, para que são associados ao termo. Então a partir deste
a captura da presa do pescador era algo que iria contra termo selecionado e das palavras que formam
o ideal do caçador-hoplita (por ser um conhecimento suas respectivas famílias lexicais identificamos,
que era atribuído aos políticos, uma techné maleá- na documentação o sentido dado a ele.
vel) aquele que deveria se defrontar diretamente, Trabalhamos até agora com a noção de Luga-
perseguir e vencer pela técnica e pela força (sem o res proposta por Marc Augé (1994), trazendo essa
uso de armas) o animal, no caso personificados por noção para o espaço marinho como sendo o lugar
javalis e leões, no entanto essa caça idealizada era estranho, de transição, ou seja, espaço do desconhe-
algo impraticável tanto por esse ideal de ausência de cido, mas que é o espaço de identidade de grupo do
armamentos para a caça quanto a própria caça pois pescador, já que “a partir do momento que o dispo-
sabemos que animais como leão estavam muito mais sitivo espacial é, ao mesmo tempo, o que exprime
ligados ao simbolismo que representavam como: a identidade do grupo, as origens do grupo são,
força, agilidade, ferocidade, do que faziam parte, muitas vezes, diversas, mas é a identidade do lugar
propriamente, do cotidiano do ateniense. No entanto, que o funda, congrega e une” (AUGÉ, 1994, p. 45).
na documentação encontramos referências à caça do
Javali e do Urso, nunca do Leão como, proposto por Utilizamos também o conceito de identidade/
Homero na Odisseia2. alteridade “Alteridade, noção vaga e excessiva-
mente ampla, mas que não reputo anacrônica,
Pretendemos a partir do nosso objeto, os na medida em que os gregos a conheceram e
pescadores, visualizar a democracia ateniense utilizaram. Assim é que Platão opõe a categoria
enquanto pratica política, além disso perceber do Mesmo à do Outro em geral, tó héteron”3, o
algumas fraquezas deste sistema tido como de qual encontramos eco em outra obra de Augé, O
plena participação e envolvimento do dêmos. Sentido do Outro (1999). Outra bibliografia de ex-
Nossa discussão teórica se deu após a coleta de tremo significado para nossa pesquisa é a tese, já
alguns documentos primários que serão de suma publicada em modelo de livro, da professora Drª
importância para o desenvolver da pesquisa tais Ana Lívia Bomfim Vieira, através de sua leitura
como As Leis, Platão (1984); Política, Aristóteles pudemos pensar quais caminhos seguir e quais
(1977) leituras indispensáveis para a construção de
evitar, sua abordagem inédita e a riqueza de sua
um panorama sobre o ideal cívico, e as leis regu-
obra foram as inspirações do desenvolvimento
lamentadoras da cidade ideal, tal como o tratado
3 Cf: Vernant, J-P. A Morte nos Olhos. Figuração do Outro na Grécia Anti-
2 Ver Oppien, Halieutica I, p. 201. ga- Ártemis e Gorgó, 1991: 12.

418
Talysson Benilson Gonçalves Bastos / Ana Livia Bonfim Vieira

desta pesquisa. Discutimos ainda os conceitos ideia de plena democracia é o fato de que apenas
de plena cidadania que aparecem em G. Starr uma parte restrita da população realmente partici-
(2005) juntamente com a crítica tecida por Moses pava nas discussões e assembleias, (Ver: Hansen,
I. Finley (1988) ao regime democrático em Atenas 1998) isso se dá pois apenas cidadãos poderiam vo-
e a relativização da plena participação cidadã. tar, e uma vez que a ideia de cidadão em Atenas era
muito especifica (homem, maior de 18 anos e filho
Este tema acaba por ser de extrema relevância,
de pai e mãe ateniense) o que acabava por excluir
ao nosso ver, uma vez que visa uma abordagem
grande parte do contingente humano que habitava a
pouco trabalhada nos estudos das sociedades an-
Ática que seriam no caso, os metecos (estrangeiros
tigas e nos centros acadêmicos do Norte/Nordeste
domiciliados) escravos e mulheres. No entanto essa
brasileiro, além disso levando em conta a relevân-
crítica é rasa, uma vez que excluir os estrangeiros,
cia de pensar-se o quanto o ideal de democracia
as mulheres e os escravos era algo que fazia parte
antiga chegava aos grupos sociais que em tese mais
da própria estrutura social ateniense, no entanto
necessitavam de medidas igualitárias, tal como
pensar que mesmo pessoas que eram consideradas
perceber em que proporção um discurso sobre um
como cidadãos e não se interessavam em votar (A
dado espaço de integração, no caso o mar, destina-
exemplo dos próprios pescadores. Não encontramos
do à um grupo, foi apropriado para a visualização
na documentação trabalhada nenhuma referência
destes “homens do mar” em sociedade.
que aponte estes homens como estrangeiros, ou
metecos, possuindo portanto direitos jurídicos,
2. um PANorAmA soBrE mesmo que não se interessassem por exercê-los)
nos ilustra o quanto este regime ainda era limita-
As CLAssEs ELEUTHÉROS
do. Segundo Finley (1988) no tempo de Péricles, o
número de cidadãos qualificados era cerca de 35
Pensar um dado espaço é perceber em que
ou 40 mil, no entanto o ponto crítico a se pensar é
medida ele influencia ou interage com as populações
quanto deste contingente realmente ia às reuniões,
humanas. No caso de Atenas, o discurso platônico
é sensato imaginar, por exemplo, que em condições
sobre o mar e seus atributos negativos, negando a
necessidade da cidade ideal de possuir atividades normais, a assistência fosse constituída principal-
relacionadas ao mar, é um ataque à própria cons- mente dos residentes urbanos. Poucos camponeses
tituição da identidade de grupo dos pescadores, fariam a viajem para comparecer a uma reunião da
o que desemboca no afastamento destes homens Assembleia. Portanto, grande parte da população
enquanto sujeitos políticos e atuantes. O foco nas qualificada estava excluída, no que diz respeito à
obras As Leis de Platão e a Política de Aristóteles participação direta.
nos proporcionou perceber o quanto estes filósofos Um dos principais motivos para que estes cida-
viam a democracia enquanto um sistema altamente dãos se mantivessem alheios ao voto era a própria
falho uma vez que não abarcava, em seu total, o distância do centro cívico (que era a Acrópole e
dêmos. Logicamente poderíamos atribuir isso às onde ocorriam as assembleias) das outras áreas con-
suas posições favoráveis a política oligárquica, no sideradas campesinas, na verdade alguns autores
entanto a objeção de Platão chama a atenção para defendem que a maioria dos habitantes de Atenas
a “apatia” política que o grupo dos pescadores par- se concentravam nessas regiões mais afastadas.
tilhava, entra aqui a teoria política da democracia Na Eclésia, os cidadãos presentes às sessões não
desenvolvida por Finley (1988) que demonstra um representavam a totalidade do corpo cívico. Prova-
medo iminente das elites intelectuais atenienses (no velmente uma minoria tomava ali as decisões. Isto
caso Platão e Aristóteles principalmente) de que a nos leva a pressupor que cidadãos que habitavam as
democracia poderia se tornar um governo pelos regiões mais afastadas da Pnix não tinham uma vida
pobres e para o interesse dos pobres.
política ativa (Theml, 1997, pp. 51-52), essa questão
Uma das principais críticas historiográficas à era tão presente que durante o governo de Péricles
419
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

criou-se um sistema de remuneração em dinheiro cendência materna ou paterna também não basta,
para os ocupantes de cargos públicos (mistoforia) colocaria um problema de formulação uma vez
como uma forma de incitar a participação popular que os fundadores da cidade acabariam por não
nos assuntos da administração da cidade. se encaixar neste critério (mesmo que acabe por
admitir que a ascendência por via paterna é impor-
Por existir em Atenas do V século a.C um
tante para ser cidadão). Sendo assim o cidadão é,
sistema de pressupostos para o exercício da cida-
verdadeiramente, o que participa na vida política,
dania, que seria em si, segundo Starr (2005) uma
através de funções deliberativas ou judiciais; e
moradia próxima ao centro de discussão política,
designa-se por cidade a multidão de tais cidadãos
e não só restringir-se ao caráter físico da locomo-
em número suficiente para alcançar a autarquia.
ção, mas estar ideologicamente favorável ao que
iria ser discutido em assembleia. Padrões os quais Dentro de sua crítica à democracia e por sua
não eram atingindo pelos pescadores e não só por percepção dos limites participativos em sua época,
eles, por muitos thêtes em geral, nos evidenciam Aristóteles indaga que “As eleições são aristocráti-
uma grave fraqueza deste sistema político, que cas, não democráticas elas introduzem o elemento
em tese deveria envolver o todo, no entanto a da escolha reflexiva, da seleção das “melhores
leitura das cartas de Alciphron, especificamente pessoas”, os aristói, em vez do governo por todos”
as cartas atribuídas aos pescadores fica evidente (POLÍTICA, IV, 1300b, pp.4-5) parecendo irônico,
o quanto a mentalidade destes homens tende para no entanto correto em sua posição, a democracia
o afastamento das atividades relacionas à cidade, mostra-se enquanto algo contraditório, não deixa
ou seja, eventos cívicos. O discurso presente era de ser, como posto, uma escolha dos “melhores”.
que o bom cidadão deve ter coragem de expor-se Talvez por esta razão houvesse em Atenas de
ao perigo e o temor aos inimigos pessoais, não fins do século cinco uma grande disputa interna
deve manter-se indiferente aos interesses públicos, entre dois grupos gerando o que caracterizou-se
afinal aqueles que se ocupam dos seus negócios como stásis, verdadeiras guerras civis que en-
privados não contribuem em nada com a pólis, o volviam dois grupos políticos: um democrático,
interesse público faz a polis grande e livre (TU- outro de caráter oligárquico. As stásis estavam
CÍDIDES, 2.40.2): “Um homem pode, ao mesmo ligadas a disputas internas a respeito de uma
tempo, cuidar de seus assuntos particulares e dos maior participação na política ateniense a dis-
do Estado. (...) Consideramos aquele que não par- tribuição ou redistribuição dos recursos comu-
ticipa da vida de cidadão não como quem cuida nitários (GUARINELLO, 2003). Esses conflitos
da sua própria vida, mas sim como um inútil” revelavam as contradições entre cidadãos ricos
(FINLEY, 1988, p. 42). Percebemos que o discurso e pobres, as disputas sociais irão por fim ter este
em voga contrasta quando aplicamos essa situação teor de exercício da cidadania, segundo Finley,
para os pescadores, uma vez que estes por serem a estrutura de grupos de interesse da sociedade
muito pobres e terem necessidades imediatas, grega, da sociedade política, era relativamente
preferiam, por ocasião lançarem-se à caça marinha simples. Entre eles não haveria divisões nem ét-
para promover seu sustento do que participar em nicas nem religiosas. Não havia instituições como
discussões ou decisões na Eclésia. Essa noção de partidos políticos comprometidos com interesses
cidadania ateniense fica bem posta por Aristóteles específicos. As divergências mostram-se, como
quando ele define, por eliminação, o que seria esse citado acima, entre interesses setoriais, entre o
cidadão. Segundo o filósofo, a residência no terri- meio rural e o urbano; mas acima de tudo havia
tório não pode ser um critério (apesar de, como já a divisão entre ricos e pobres. O uso de termos
vimos, ser um facilitador) porque estrangeiros e como classes sociais ou classes econômicas para
escravos podem possuir. O direito de processar e esta sociedade não se aplicam, era uma sociedade
ser processado judicialmente é insuficiente; pode constituída em sua maioria por proprietários de
ser assegurado à estrangeiros por tratado. A des- terras, incluindo desde camponeses com peque-
420
Talysson Benilson Gonçalves Bastos / Ana Livia Bonfim Vieira

nas propriedades de um a dois hectares, dedicadas suportaremos, diga-me, de nos colocarmos em


à cultura de subsistência ( Muito provavelmente batalha e de nos dispormos aos serviços de ho-
mens fortemente armados? As duas soluções são
aqui encontraremos os pescadores, acreditamos
cruéis: fugir e abandonar as mulheres e as crianças
que estes sejam por vezes incluídos no grupo dos ou expormos nossas vidas ao perigo duplo das
pequenos camponeses uma vez que tinham por armas e do mar. Ficar é inútil; é claro que o melhor,
área de atuação a costa ateniense considerada é fugir (ALCIPHRON, 1999, p. 62).
área campesina.), até grandes proprietários, que
recebiam rendas substanciais de suas terras. Posto isso, precisamos esclarecer algumas
coisas. No período Clássico, a principal força de
combate nos exércitos gregos era o corpo de hopli-
Em BusCA tas, que seria uma espécie de milícia de cidadãos
Do sENTiDo POLITEÍA composta por soldados de infantaria portando
Dos PEsCADorEs armas e entravam em combate com rígida forma-
ção. Os hoplitas deviam equipar-se com recursos
Nas empreitadas da nascente Imperatriz próprios e não recebiam qualquer pagamento
do Egeu, o pescador, por vezes era designado além de um modesto “por dia” quando prestavam
à função de remador nos trirremes. Era uma serviço ativo. Por essas razões eram recrutados do
atividade que provavelmente não o agradava, setor mais rico da população. A marinha, por outro
mas que, acredita-se, despertava um sentido de lado, era constituída por um corpo profissional
integração com a comunidade. Porém por todo de remadores de ocupação mais regular. Durante
conhecimento construído acerca deste grupo seu período Imperial, Atenas manteve uma frota
não conseguimos enxergar este pescador como permanente de, no mínimo, uma centena de trir-
alguém que se prestasse a contribuir para o remes, fazendo jus a pagamento por até oito meses
sentido de koinonia, não seria interessante a ele no ano, além de outras duzentas em doca seca,
abandonar sua própria “subcomunidade” onde prontas para entrar em ação quando necessário. Os
era aceito e reconhecido e lá possuiria sua honra remadores eram recrutados da metade mais pobre
própria, além disso quem traria sustento para sua da população. Havia, portanto, uma divisão nítida
família (caso tivesse uma)? e significativa: os ricos e o exército, os pobres e a
Em uma carta atribuída a Thynnaios direcio- marinha (FINLEY, 1988, pp. 97-98). Interessante
nada a Scopílos, é nítida a aversão à participação perceber o contraste entre os discursos, segundo
de uma expedição colonizadora que os pescado- Tucídides, sobre a votação final que aprovou a
res compartilhavam: expedição para a Sicília de 415a.C:
Havia uma paixão pela expedição que se apoderou
de todos. Os mais velhos achavam que, ou con-
Você ficou sabendo das terríveis notícias Scopílos? quistariam os lugares para onde navegavam ou,
Os Atenienses estão projetando uma expedição em qualquer caso, com uma força tão grande, não
para além das fronteiras: eles pretendem lançar-se lhes poderia suceder nada de mal; os jovens ansia-
ao mar. De Paralos à Salamina, os barcos escudei- vam por ver lugares diferentes e pelas experiências
ros mais rápidos, saíram a fora com observadores e estavam confiantes que voltariam sãos e salvos;
a bordo que irão decidir quando e qual local mais a massa inclusive os soldados, via a perspectiva de
adequado para a partida dos futuros combatentes. ganhar dinheiro no momento e depois, ao anexar
Os outros navios destinados ao transporte das a Sicília ao Império, assegurar uma renda futura
tropas, precisam de mais remadores e, particular- (TUCÍDIDES 6.24, pp.3-4).
mente, de gente habituada a lutar contra os ventos
e as ondas. O que faremos meu amigo? Fugir ou
ficar? Em todos os lugares, em Piraeus, Faliro,
O resultado desse excessivo entusiasmo da
Cabo Sounion e às fronteiras de Géraistos, eles grande maioria foi que aqueles que realmente
pedem os trabalhadores do mar. Mas nós, que se opunham à expedição ficaram com medo de
não conhecemos nem mesmo a Ágora, como serem considerados antipatrióticos se votassem
421
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

contra e, portanto, se mantiveram calados. Para intenção, com certeza, que os teus pais, nativos
os pescadores as possibilidades das empreitadas de Égina (onde o destino quis que tu nascesse
e crescesse) confiaram a mim o teu início nos
do Império não os interessava, sendo portando,
mistérios do casamento. Se aquela é a vila que
a fuga uma forma de resistência às práticas te acalenta, adeus, vai-te! Mais se tu amas teu
imperialistas que poderiam traga-los para um marido e o mundo marinho, volta –você faz
destino incerto e mesmo perigoso. Acreditamos a escolha certa- e esqueça para sempre estes
que a sociedade políade criou vários elementos espetáculos, estas armadilhas da cidade (AL-
CIPHRON, 1999, p.54).
de identificação e integração com a vida urbana
no quinto século, seja pelo viés religioso como
a difusão do culto cívico tal como os festivais Em sociedade é possível perceber vários grupos
sazonais, a exemplo das Oscoforias, seja pelo específicos que possuem uma identidade e práticas
prisma político do regime democrático ou mesmo comuns próprias. A sociedade como um todo abarca
a propagação de ideais colonialistas. diversos grupos heterogêneos. Para as sociedades
antigas é preciso identificar os pontos de pertenci-
O que nos fica bastante claro é que para mento que fazem os grupos heterogêneos verem-se
criar-se um elo entre integração social/ integração enquanto sociedade total. Partindo da ideia de que
política/ reconhecimento de grupo, aos pesca- a democracia, os ritos cívicos ou mesmo o “espirito
dores, necessariamente precisariam encontrar imperialista” eram pontos de pertencimento político,
pontos de pertencimento, o que nos parece, pelo social, ou mesmo econômico de uma “comunidade
menos do ponto de vista das práticas citadas, a nuclear” que tinha por área de atuação a vida urbana,
ausência de tal sentimento, trazendo na verdade percebemos pelos elementos já elencados a caracte-
o espectro oposto, a recusa em se envolver com rização do cidadão padrão. Quando lançamos tais
os “atenienses ricos”. perspectivas para o modelo de vida dos pescadores
Tal postura poderia ser erroneamente interpre- não há harmonia com a ideia de cidadão nuclear ur-
tada como um aspecto apolítico, no entanto a sua bano construída acima. Para os pescadores há uma
própria recusa já denota um posicionamento forte outra formulação. Em sua subcomunidade a principal
e consciente. Reforço que os pescadores eram ho- ligação é o viés profissional, muito provavelmente
mens do aqui e agora, portanto preocupados antes suas associações seriam aquilo que indicamos como
em prover seu sustento familiar do que contribuir “associações de oficio” na qual as relações de xênia
em um desenvolvimento político-democrático, e permeavam as interações.
muito provavelmente nem saberiam ao certo, o Concluímos que a principal causa para a
que tal pratica buscaria abarcar. Uma outra carta “apatia” política deste grupo dava-se por uma
evidencia esse distanciamento entre os pescadores falta de reconhecimento, pelo viés identitário, de
e as atividades da cidade. De Kymothoos à Tritônis: um significado pertinente para o seu envolvimen-
Como há diferença entre a terra e o mar, assim to com as atividades políticas da polis.
como há, entre nós, os trabalhadores do mar,
e a gente que vive nas vilas e nos vilarejos. O ideal de cidadão bom, belo e justo, está
Eles, eles permanecem atrás das paredes para estritamente ligado à participação em um grupo e
lidar com assuntos públicos, ou anexar-se à a interação em um espaço: aqueles que participam
um pedaço de terra a espera que do solo se da assembleia e tecem suas relações no espaço
alimente a sua renda. Mas a nossa própria políade ativamente.
vida é sobre a água; a terra causa nossa morte,
como os peixes, incapazes de respirar o ar. A figuração da polis vai mais além do que
Então, o que você estava pensando, mulher, o local físico, ela está relacionada diretamente à
deixando a costa e as redes de linho, para ir à mentalidade, o que implica que estar fora desse
vila deslumbrar-se com os ritos das Oscoforias
e das Lêneas e ti envolver com os festivais conjunto de normas, ou seja, ser “mau” é transgredir
desses atenienses ricos? Isto não é razoável, a noção pura de cidadania pregada na cidade ideal.
isso não é uma boa conduta, não foi com esta Os indivíduos que interagiam e estavam ligados ao
422
Talysson Benilson Gonçalves Bastos / Ana Livia Bonfim Vieira

ambiente marinho não criaram a sua comunidade como as ferramentas de pesca, as vestes do pesca-
o seu conjunto enquanto grupo fundamentando-se dor e etc. Neste caso, a documentação imagética
nos moldes da cidadania ateniense, nos parâmetros será trabalhada no que ela se refere aos aspectos
da polis. As interações e dinâmicas do mar eram ca- rituais, às representações de sacrifício e oferenda
tegorias que fugiam ao controle ou regulamentação utilizando animais marinhos, e no que ela omite.
da polis, contribuindo para a desarticulação de um
O enfoque na leitura da obra As Leis, mais
ideal proposto de cidade. Em As Leis e Política, a
especificamente o livro IV da obra no qual o fi-
preocupação com os lugares de habitação e a mis-
lósofo discute as relações sobre o mar e a cidade,
tura nociva dos bons cidadãos (altas camadas hie-
se deu por um interesse pelo viés político e social,
rárquicas) com os trabalhadores manuais em geral,
na leitura da outra obra, Política de Aristóteles,
e principalmente com os comerciantes estrangeiros
percebemos que nela há uma discussão mais pro-
(o outro) ligava-se ao problema da formulação das
funda com relação ao questionamento do regime
categorias e a busca pelo ethos do “ser ateniense”
democrático e alguns postulados que fazem-se
( Ver: Leis, IV, 705 a e b.) essa noção do “outro”
necessários como as noções de cidadania e a
teorizada por Augé (1999) e Vernant (1991) nos
definição de cidade trabalhada pelo filósofo.
serve para pensar o pescador como um símbolo de
alteridade, alguém que constitui uma espécie de sis- Como sabemos, as pinturas nos vasos áticos
tema alegórico de estranheza seja por sua aparência possuem também um caráter pedagógico, ou seja,
física, seja pela sua tida “apatia” política. tem o intuito de transmitir certos valores, o ato de
pintar cenas de pesca com o olhar de perfil que
O medo do contato com o outro estaria ligado
implica a não participação da cena, o que inferi
à preocupação de que ideias estrangeiras, como
a pesca como atividade proibida (VIEIRA, 2011,
evidencia Aristóteles, pudessem em algum nível
p.53), e o fato de não representar a pesca em alto
afetar o sistema políade, trazendo o caos e desor-
mar denota primeiramente o não interesse em
dem. O pescador sendo aquele que não cumpria
representar essa atividade, e posteriormente o
certos pressupostos da idealização do cidadão bom,
total desconhecimento da procedência da mesma.
caracteriza-se como uma hýbris (desmedida) política,
aquele que poderia através do contato com o cidadão Os pescadores eram transgressores da ordem
“bom” torna-lo ardiloso, corrompe-lo daí toda a regu- e da identidade ateniense enquanto discurso, eles
lamentação entre espaços selvagem (costa; planícies rompiam com modelos hierárquicos propostos por
alagadiças) e espaço de cultura plena (acrópole; pnix Platão. Um interessante exemplo é a questão da caça,
) (ARISTÓTELES, VII, 1327b, pp. 8-9). a caça terrestre/campestre segue uma série de regras
e rompê-las infere o declínio para a selvageria.
Ártemis era a deusa das fronteiras era ela quem
CoNCLusÃo estipulava e protegia os espaços dúbios, Ártemis
preside a caça. Ao perseguir os animais para matá
-los, o caçador penetra o terreno da selvageria[...] as
Até o momento a documentação trabalhada
ameaças que rondam o caçador quando ultrapassa
foi estritamente a documentação textual. Esta
certos limites[...] Mas a caça é praticada em grupo
opção se deu por percebermos que a documen-
e com disciplina – é uma arte controlada, regula-
tação imagética trata da pesca como atividade
mentada, com imperativos rigorosos, obrigações e
complementar à agricultura, ou seja, as cenas da
proibições (VERNANT, 1991, pp. 18-19).
pesca na cerâmica ática não representam signos
referentes a pesca em alto mar, ou manifestações A caça marinha possui um ethos próprio, um
sociais ou políticas destes agentes, sendo nosso saber tradicional, ela não faz parte de um conjunto
interesse explorar esta segunda também, mesmo de obrigações ou regras impostas, ela depende do
que a primeira ainda esclareça pontos cruciais uso da métis e do ardil do pescador, na caça ma-
423
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

rinha é a métis que vai denominar o sucesso ou o comunidade própria, com características próprias
fracasso do pescador daí seu aspecto transgressor) e que se estabeleciam, muito provavelmente, em
mas ao mesmo tempo que recebiam este olhar a uma região definida: a costa ateniense.
polis ainda assim precisava destes homens, esta
Sendo a democracia um regime do povo
figura seria então um “mal” necessário.
e para o povo, o que poderia trazer um anseio
Poderia o pescador ser um cidadão “outro” de melhoria social para todos os grupos menos
mas que ganharia um estatuto relativo de “mes- abastados e a possibilidade de participação direta
mo” quando este comercializava ou fornecia o nas decisões da polis, uma experiência de governo
produto para o comercio, a preços que as cama- nunca antes pensada no mundo antigo ocidental
das mais baixas podiam comprar e se abastecer? no qual as tiranias e os regimes oligarcas se des-
Seria nesse momento que o pescador conseguiria tacavam, posto isso, um dos nossos principais
enfim se aproximar e criar laços, pelo menos, questionamentos girou em torno dessa recusa por
com outros grupos da polis? E dentre esse sis- parte deste grupo em específico, os pescadores
tema hierárquico e excludente da polis havia atenienses do período clássico, neste modelo
espaço para o exercício de plena cidadania dos político, tal como o imaginário negativo que foi
pescadores? Através destes questionamentos se constituindo sobre o mar e fazendo com que
pudemos perceber que os pescadores eram um estes pescadores fossem vistos com característi-
grupo isolado e apolítico do ponto de vista de cas próprias do mar, “homens mais que humanos”
seus contemporâneos, mas que constituíram uma (Oppien, I: 201), homens mar.

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424
PRIVILEGIUM PAUPERTATIS:
Apontamentos sobre a Sicut Manifestum Est de 1228
de Gregório IX

Verônica Aparecida Silveira Aguiar1

papa Urbano IV (1261-1264) reformulou a Regra

O
objetivo principal deste texto é elencar
os principais elementos em relação ao de Clara e estabeleceu uma homogeneização dos
conceito do “Privilégio da Pobreza” da conventos de seguimento franciscano com a re-
Sicut manifestum est de 1228 de Gregório IX comendação do uso da Segunda Regra, refreando
(1227-1241) que foi uma das principais bulas pon- a propagação da norma de 1253 (ALBERZONI,
tifícias para o movimento feminino franciscano 1995, p. 18).
e para a Regra de 1253 de Clara de Assis. Para Desta forma, fica evidente que as “Irmãs
fazer o nosso exercício de análise iniciaremos a pobres” possuíram um estreito vínculo com
nossa exposição com algumas características do a primeira geração menorita. Sendo assim, o
mosteiro de São Damião, a relação de Gregório movimento feminino franciscano, sobretudo, as
IX e Clara e, por último, as peculiaridades do sorores Minores de São Damião, igreja doada de
conceito de pobreza na interpretação de Clara. Francisco à Clara de Offreduccio em 1212, ini-
O movimento feminino franciscano finca as ciaram um processo mais rápido de adequação e
suas origens com a fundação da Primeira Ordem enquadramento jurídico aos moldes institucionais
dos frades menores. Desde o princípio, as “Pobres monásticos que a Igreja permitia naquele período.
damas” estabeleceram relações intrínsecas com Para Michel Mollat, a figura do pobre sempre
a fraternitas de Francisco de Assis. Na verdade, esteve presente desde o cristianismo primitivo
a criação de comunidades femininas atrelada aos na história da Igreja Romana, mas no século XIII
frades deu-se por uma série de atos do cardeal ganhou uma nova entonação com o movimento
protetor da Ordem, Hugolino de Óstia, futuro penitencial de Francisco de Assis (MOLLAT,
papa Gregório IX (1227-1241), que almejava a 1989, p. 117).
criação da Segunda Ordem com o objetivo de Por um lado, constatamos que para Clara e
atender uma necessidade de participação fe- companheiras não foi suficiente terem recebido a
minina religiosa na Igreja, ter uma ramificação igreja de São Damião de Francisco e prometer a
feminina dentro da Ordem franciscana e por inte- obediência ao mesmo. Era preciso uma organiza-
resse político de Inocêncio III (1198-1216). Tendo ção mais eficiente visto que entre os anos 1214 a
em vista os três elementos acima citados, não 1216 houve um crescimento bastante significativo
podemos afirmar que Clara foi a fundadora da da comunidade de São Damião, o que acarretava
Segunda Ordem franciscana com a sua vestição problemas jurídicos maiores, tais como, quem
em 1212 e vale lembrar que só podemos utilizar assumiria a direção da comunidade e qual regra
o termo “clarissa” a partir de 1263, data em que o seria adotada pelo nova comunidade?
1 Graduada e Mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP).
Professora Assistente II de História Antiga e Medieval na Universidade Por outro lado, a insistência de Clara e com-
Federal de Rondônia (UNIR) e Doutoranda em História Social na USP, sob panheiras no “Privilégio da Pobreza” revela uma
orientação do Prof. Dr. Flávio de Campos. Email:veronicaaguiar2501@
gmail.com consonância com os demais movimentos femi-
425
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

ninos do período. O problema deu-se em razão com o passar do tempo foi adquirindo certa ex-
da aplicabilidade da pobreza no cotidiano dos periência prática em como dirigir um convento,
conventos ou nas pregações porque a Igreja tendia isso fica claro no conteúdo da Regula de 1253.
a levar a discussão ao plano jurídico canonístico Por fim, a clausura e o voto de silêncio, entre
da definição de ter ou não ter propriedades, o que outras medidas mais rigorosas e disciplinadoras
gerou muitas tensões entre Clara e os papas Gre- do monasticismo feminino de tradição beneditina
gório IX (1227-1241) e Inocêncio IV (1243-1254). foram adaptadas às monjas de São Damião e se
compararmos com a Regra da Primeira Ordem
Clara de Favarone de Offreduccio nasceu
franciscana constatamos elementos mais rígidos
em Assis, no coração da Úmbria, pertencia a
no tocante a disciplina da pobreza.
uma importante família da aristocracia assisien-
se de tradição senhoril e entrou para o estado Um elemento importante para compreen-
penitencial em 1212. Logo em seguida, Clara foi der a Sicut manifest est que não pode passar
escolhida como a abadessa de São Damião pelas despercebido é a trajetória do papa Gregório
demais companheiras. Em 1219, o cardeal Hugo- IX, ex-cardeal de Óstia. O cardeal Hugolino
lino, protetor da Ordem Franciscana, estabeleceu dei Conti di Segni nasceu no ano de 1170 em
ao mosteiro de São Damião uma Regra nova ou Anagni, cidade na qual recebeu a sua primeira
Forma vitae que recebeu o nome a posteriori de formação religiosa. Estudou direito em Bolonha,
Constituições Hugolinas, assim neste primeiro é considerado um dos papas “juristas” segundo
momento as “Irmãs Pobres” eram obrigadas a ob- a historiografia, e provavelmente, conseguiu o
servar a Regra beneditina com alguns acréscimos título doutoral na faculdade de Teologia de Paris.
de Hugolino. Porém, Clara e suas companheiras Sobrinho de Inocêncio III, foi cardeal-bispo de
lutaram pela defesa da premissa da “Altíssima Ostia e Velletri. Embora, a carreira de Hugolino
Pobreza” e “resistiram” as interferências dada não se iniciou apenas com a subida de Lotario dei
pelo cardeal protetor no tocante a normativa be- Conti di Segni como o papa Inocêncio III (1198-
neditina ao convento de São Damião. Através das 1216). No ano de 1198 Hugolino foi elevado ao
Cartas e outras fontes, percebemos que ao longo cargo de capelão papal e de cardeal diácono de
da vida, Clara defendeu a redação de uma Regra São Eustáquio. E somente em 1206, tornou-se
própria, baseada nas origens do franciscanismo cardeal-bispo de Óstia.
e na Regra de 1223. Desde o início o movimento Conforme a Enciclopedia dei Papi (CA-
feminino Franciscano estabeleceu-se sob o pris- PITANI, 2000, p. 363), o cardeal Hugolino
ma contemplativo de vida evangélica com base na encontrou-se pela primeira vez com Francisco
pobreza integral, caridade e comunhão fraterna, de Assis no dia 14 de maio de 1217 na cidade de
presentes na Norma posteriormente. Firenze, exatamente depois de um Capítulo geral
Antes de tudo, o convento de São Damião dos frades, celebrado na Porciúncula, dentro da
configurou-se numa exceção em relação aos qual havia sido decidido o envio de frades pelo
outros conventos hugolinianos franciscanos do mundo cristão e fora da Itália. A partir daquele
ponto de vista institucional. Em primeiro lugar, momento, o cardeal de Óstia teria iniciado a sua
devido à presença de Clara que pessoalmente e atuação política dentro do movimento francis-
constantemente comunicava-se com Frei Francis- cano. Era um momento delicado para os frades,
co de Assis. Em segundo lugar, por conta do IV porque a fraternitas não tinha adequado-se as
Concílio de Latrão de 1215, havia a necessidade prescrições conciliares com a sua nova forma
de adotar-se uma Regra religiosa para consolidar de vida, somente havia obtido a aprovação oral
a institucionalização e Clara um pouco antes de dada pelo papa Inocêncio III (1198-1216) em 1210.
morrer redigiu uma Regra com aprovação papal Respondendo ao pedido de Francisco de As-
com elementos ex novo. Em terceiro lugar, Clara sis, o papa Honório III (1216-1227) teria dado um
foi eleita abadessa pelas demais companheiras e “protetor” aos franciscanos, mas o nome de “do-
426
Verônica Aparecida Silveira Aguiar

minus de Ostia” teria sido escolhido pelo próprio evangélico-pauperista que não queriam proprie-
Frei Francisco segundo as hagiografias de Boaven- dades, mas havia o problema de garantir a posse
tura. Em 1217, Hugolino de Óstia utilizou-se dos da casa em que elas moravam.
poderes que lhe foram dados pelo papa Honório
A bula Sicut manifestum est foi promulgada
III, visitava os movimentos novos e mosteiros
no dia 17 de setembro de 1228 por Gregório IX
femininos da região em que era responsável, sobre-
(ex-Cardeal Hugolino) com o objetivo de garantir
tudo dos lugares que almejavam seguir o modelo o “Privilégio da pobreza” à Clara e suas compa-
de São Damião. Na Ordem franciscana a função nheiras de São Damião conforme o cabeçalho
do cardeal protetor era corrigir as situações de nos indica: “Gregório, bispo, servo dos servos
perturbação, ele agia como um guia disciplinador de Deus, às diletas filhas em Cristo, Clara e as
“externo”, que cuidava das intervenções coerci- demais servas de Cristo, reunidas na igreja de
tivas que aos poucos se tornavam necessárias e São Damião, na diocese de Assis, saudação e
também exercia influência para a formulação de bênção apostólica” (CAROLI, 2004, p. 1949).
uma Regra definitiva, mais articulada e orgânica, No entanto, o “Privilegium paupertatis” também
para ser submetida à aprovação pontifícia. foi concedido a outros conventos de seguimento
Desta forma, a figura de cardeal protetor franciscano, inclusive ao de Inês de Assis, em
existe desde 1217, data na qual inicia o processo Florença e ao da Inês da Boêmia, em Praga. Às
de institucionalização do movimento franciscano. vezes, o mesmo texto redacional do papa era
As funções do cardeal protetor estão explicita- repassado para outros conventos de seguimento
mente descritas na normativa franciscana no final franciscano, caso da Sicut manifestum est, porque
do capítulo XII da Regra de 1223: fazia parte de um plano político de Gregório IX.
Ad haec per obedientiam iniungo ministris, ut Por que a necessidade de ter que garantir
petant a domino papa unum de sanctae Roma- o “Privilegium paupertatis” através da bula
nae Ecclesiae cardinalibus qui sit gubernator, papal? Para responder a esta pergunta, vale
protector et corrector istius fraternitatis, ut recordar que inicialmente ao convento de São
semper subditi et subiecti pedibus eiusdem
Damião foi estabelecido a Regra de São Bento,
sanctae Ecclesiae stabiles in fide (cf 1Col
1,23) catholica paupertatem et humilitatem et o que causou preocupação e aflição das irmãs
sanctum evangelium Domini nostri Jesu Ch- porque não representava a pobreza escolhida por
risti quod firmiter et promisimus, observemus Francisco e Clara. Sendo assim, Clara pediu ao
(MENESTÒ, 1995, p. 180). papa um “privilégio” para preservar a inspiração
pauperística e para evitar impasses em relação à
Assim, o cardeal Hugolino agia como inter- pobreza adotada pela sua comunidade. Com isso
mediador dos frades menores perante o papa. Da o “Privilegium paupertatis” foi assumido como
mesma forma, atuava e persuadia o movimento um valor jurídico e dado a uma laica que fez a
franciscano a mostrar a disponibilidade à institu- sua profissão de fé religiosa um modo de vida ou
cionalização, que deveria se enquadrar aos mol- ideal que havia se iniciado com um outro laico
des das demais Ordens religiosas, não perdendo iletrado. Desta forma, o “Privilégio da Pobreza”
a sua especificidade mendicante. Oficialmente, passou a ser visto como o coração da comunida-
Hugolino foi nomeado como “cardeal protetor” de feminina e não a Regra beneditina até então
pelo papa Honório III no ano de 1219, período adotada. Podemos afirmar que as características
na qual redigiu a forma vitae para as damianitas, básicas da nova comunidade juridicamente asse-
conhecida como Regra Hugoliniana. Antes de gurada eram três: a vida em comum, o trabalho
tudo, a presença de Hugolino de Óstia na Ordem com as próprias mãos – que não reveste um valor
franciscana foi importante e ocupou uma posição econômico, mas ligado a pobreza – e, sobretudo,
central (BOLTON, p. 38), principalmente no que a opção pela pobreza no sentido de não possuir
se refere às comunidades femininas de inspiração nada. (MERLO, 2005, p. 95).
427
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

Em 1219, o cardeal Hugolino, protetor da Montecelli, mosteiros com trajetória peculiar em


Ordem Franciscana, estabeleceu ao mosteiro de relação aos demais, sabemos que podem ter sido
São Damião uma Regra nova ou forma vitae que utilizados conjuntamente com as Bulas papais.
recebeu o nome a posteriori de Constituições
Conforme Alfonso Marini elenca, a Regra
Hugolinas, assim Clara e companheiras eram
de Clara constitui-se estruturalmente das se-
obrigadas a observar a Regra beneditina com
guintes características: formada por trechos da
alguns acréscimos de Hugolino, o que provocou
Regra de Hugolino ou Constituições Hugolinas
novas tensões, por isso Clara pedia constantemente
de 1219 de Gregório IX, com algumas alterações
aos papas uma garantia do “privilégio” de viver
sucessivas, sendo a última em 1238, enviada a
na pobreza apostólica prometida a Francisco,
Inês da Boêmia (1211-1282); este texto foi depois
o privilégio de viver uma vida sem privilégios,
um privilégio que garantia a vida sem garantias reescrito por Inocêncio IV em 1245; mas em
(BARTOLI, 1992, pp. 110-111). Ademais, o con- 1247 o mesmo Inocêncio apresentou uma nova
ceito de “Altíssima pobreza” presente na Regra proposta de Regra, para os mosteiros damianitas,
de 1253 caracterizava-se pelo princípio de não ter na qual a referência a São Bento e a sua regra era
propriedade nem individual e nem em comum, substituída pela premissa de Francisco; na Regra
viver sem nada de próprio, não possuir bens numa de Clara se encontram ainda alguns trechos da
pobreza que deveria ser antes de tudo espiritual, Regra beneditina, que junto com as Constituições
com desapego pessoal a toda raiz de posse, e ma- de Hugolino consistiram na base da religio da-
terial, porque somente quem de tudo se despojava mianita, resultando numa ‘originalidade’; enfim,
vivenciava o caminho para a salvação. a Regra de 1253 contém alguns trechos da qual
Inocêncio IV escreveu a Inês da Boêmia em
Assim, a Regra de Hugolino não foi escrita
1243; outros trechos derivam da Regra bulada dos
somente por ele, há indicações históricas de que
frades menores de 1223 e outros, enfim, foram
Frei Felipe Longo, um dos companheiros de Fran-
criações ex novo (MARINI, 1993, p. 115 e 116).
cisco, foi um colaborar na redação do texto, porque
ele era o visitador das Irmãs Pobres. O tempo de Para Alfonso Marini, Clara sabia utilizar as
uso da Regra de Hugolino foi de 1219 até 1247, várias contribuições com um toque de criação pes-
quando foi substituída pela Regra de Inocêncio soal, que teve a estima dos seus precisos pontos de
IV (1243-1254). Além da “resistência” a imposição referências e da sua espiritualidade, mais ainda, de
da Regra de São Bento e as exigências do cardeal quarenta anos de experiência de vida comunitária
protetor em relação ao jejum e ao silêncio, Clara e monástica. Em resumo, a Regra de 1253 consiste
as Irmãs “resistiram” às outras imposições alheias numa evidência não só da experiência de Clara
ao modelo evangélico-pauperista que havia pro- como abadessa e conhecedora das normas jurídi-
metido a Francisco. O objetivo de Hugolino era cas canônicas, mas também revela a sua “leitura”
dar respaldo jurídico às comunidades femininas das Regras Beneditina, Apostólica, Hugoliniana e
que estavam sendo incorporadas ao movimento Inocenciana. Além do mais, o texto contém uma
franciscano. Embora, não haja nenhum documen- seleção de trechos bíblicos específicos, de autores
to curial enviado a São Damião estabelecendo a sacros do seu tempo (papa Gregório IX e Inocêncio
Regra Hugoliniana, sabemos que Clara de Assis IV) e isso revela uma experiência toda original no
utilizou este texto em sua normativa. monasticismo feminino do Ocidente Medieval.
O modelo cisterciense influenciou bastante Ela não só tinha acesso as Escrituras e outros
as “Constituições hugolinianas” que aos poucos textos canônicos como ainda utilizou-os em sua
serviu de base para a construção de outras Re- normativa. Por fim, a redação da Regra de 1253 e
gras para o mosteiro de São Damião. Apesar de a sua aprovação com bula só foi possível devido as
o formulário de Hugolino de Óstia não mencio- Cartas pontifícias que garantiram o “Privilégio da
nar São Damião de Assis e nem Santa Maria de pobreza”, uma delas que propomos a analisar neste
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Verônica Aparecida Silveira Aguiar

texto. Podemos indagar se a premissa de manter e mião dos outros conventos hugolinianos e contém
pedir a garantia do “Privilégio da pobreza” seria importantes reflexões teológicas sobre a pobreza
uma forma de “resistência” às interferências da apostólica como sinal de total abandono à vontade
Igreja no convento de São Damião? de Deus, conforme a passagem bíblica Mt 6, 26-28,
“Naturalmente, aquele que alimenta os passarinhos
Segundo o processo de canonização de Clara
do céu e veste os lírios do campo, não deixará faltar
e a hagiografia de Tomás de Celano, a bula mais
o alimento e as vestes, até que Ele mesmo, passará e
antiga em relação ao “Privilégio da pobreza” foi
vos servirá na eternidade, isto é quando a sua destra
supostamente a Sicut manifestum est (O mani-
vos abraçará mais felizmente na plenitude da visão”,
festo é) de Inocêncio III de 1216 na qual Clara
(CAROLI, 2004, p. 1949) não faltará alimento às
recebeu uma resposta de garantia ao pedido de
“servas” que optaram por seguir Cristo pobre –
que ela e suas irmãs não fossem impedidas de
sequela Christi (MERLO, 2005, p. 94).
viver na pobreza e preservassem a inspiração
franciscana. Embora, tenha sido discutida até De 1220 a 1230, as relações entre Clara e o
recentemente pela historiografia, segundo Grado papa Gregório IX (antes Cardeal Hugolino) foram
Merlo, a autoria do documento comprovadamente tensas, porque Clara insistia nos laços diretos com
não é de Inocêncio III, a Carta supostamente os frades menores e com a memória de Francis-
atribuída a ele se comparada com a Carta de co. Já Gregório IX tinha um projeto papal para
Gregório IX possuem em termos de conteúdos o monaquismo feminino com a posse de bens e
bastantes semelhanças, inclusive frases idênticas. a clausura de acordo com a tradição beneditina,
além de almejar uma forte distinção entre a Ordem
Enfim, a Sicut manifestum est de Inocêncio III
masculina dos frades menores e a Ordem feminina
não faz parte do Bullarium franciscanum e a histo-
de São Damião. Enfim, como resposta as prerroga-
riografia “à margem de Roma” defende que o docu- tivas de Gregório IX, Clara e as Irmãs exerceram
mento jamais teria sido um escrito de Inocêncio III um afrouxamento das suas relações com o papa
(MERLO, 2005, p. 93), também porque Gregório IX nos anos trinta do século XIII, uma forma de de-
omite qualquer menção à Inocêncio III na sua Sicut monstrar a não neutralidade em relação às medidas
manifestum est, o que provaria que a Carta seria impostas a elas (MERLO, 2005, p. 95 e 96).
posterior a dele. Ademais, há ainda a possibilidade
de Inocêncio III ter dado somente uma aprovação Entretanto, na época da Sicut manifestum
oral ao convento de São Damião, fato impossível de est, Gregório IX admitia a renúncia aos bens
se provar pela falta de testemunhos. Já para Werner materiais, entre outras características de estreito
Maleczek como parte de uma historiografia “mais laço com os Menores, por isso fica claro que o
próxima de Roma” realizou um estudo comparativo papa queria realizar outro projeto evangélico para
das duas cartas, constatando que a primeira Sicut São Damião e conhecia as relações das “Pobres
seria de Inocêncio III e a de Gregório IX seria a Damas” com as origens do franciscanismo como
segunda (MALECZEK, 1995, p. 16). vemos no trecho abaixo às referências a pobreza
franciscana e a renúncia total aos bens materiais.
A bula Sicut manifestum est representa um do-
Como é manifesto, desejando dedicar-vos uni-
cumento fundamental para entendermos a evolução camente a Deus, renunciastes a todo desejo das
do conceito de pobreza na Regra e no convento de coisas temporais. Por isso, tendo vendido tudo e
São Damião, porque havia uma necessidade prática dado aos pobres, propondes não ter propriedade
de defender a própria identidade e os “costumes alguma, aderindo em tudo aos passos daquele que
de São Damião”, por isso as respostas dadas pelas por nós se fez pobre e é o Caminho, a Verdade e
a Vida. Nem a falta das coisas vos afasta desse
Cartas pontifícias, contribuíram substancialmente
propósito, pois a esquerda do Esposo celeste está
para a redação da normativa de Clara de 1253. sob a vossa cabeça para sustentar o que é fraco
Mesmo sendo um privilégio escrito com brevidade, em vosso corpo, que submetestes à lei do espírito
a Carta de 1228 distinguia o convento de São Da- com ordenada caridade (CAROLI, 2004, p. 1949).
429
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

voluntária, conforme o seu Testamento, na qual


Mais adiante, Gregório IX assegura o “Pri- fala do início de sua vida religiosa.
vilégio da Pobreza” as Irmãs do convento de São Considerans igitur, ego Clara, Christi et so-
Damião, pobreza institucionalizada pela Regra dos rorum pauperum monasterii Sancti Damiani
frades menores de 1223 que tem como princípio ancilla, licet indigna, et plantuncula sancti
a negação de qualquer forma de propriedade con- patris, cum aliis meis sororibus, tam altissimam
professionem nostram et tanti patris mandatum,
forme o capítulo seis “Os irmãos não se apropriem
fragilitatem quoque aliarum, quam timebamus
de nada, nem de casa, nem de lugar, nem de coisa in nobis post obitum sancti patris nostri Francis-
alguma” (Regulae bullata, 6,2) e aparece na Regra ci, qui erat columna nostra et unica consolatio
de Clara como “não aceitar e nem ter posse ou post Deum et firmamentum (cfr. 1Tim 3,15),
propriedade nem por si, nem por pessoa interme- iterum atque iterum voluntarie nos obligavimus
dominae nostrae sanctissimae paupertati, ne
diária, e nem coisa alguma que possa com razão ser
post mortem meam sorores, quae sunt e quae
chamada de propriedade” (Regulae sancta Clarae venturae sunt, ab ipsa valeant ullatenus decli-
6, 12-15), uma direta alusão a Regra de 1223, forma nare (MENESTÒ, 1995, p. 2314).
de mostrar uma ligação com os frades menores
(MENESTÒ, 1995, pp. 2229-2230). Essa ligação Vale ressaltar que a Regra e a própria vida de
foi reconhecida por Gregório IX em 1228 segundo Clara, como todas as demais Regras franciscanas,
outro trecho da bula “Privilegium paupertatis”. têm sua origem no ideal de vida de Francisco de
Assim, confirmamos como pedistes, com a Assis. Como já mencionamos, a experiência de vida
aprovação apostólica, o vosso propósito da mais cristã remete a inspiração de seguir Cristo na expe-
alta pobreza, concedendo-vos em força deste riência de “Pai Francisco” conforme o Testamento.
documento que não possais ser por ninguém
Postquam altissimus Pater caelestis per mise-
obrigadas a receber propriedades. Por isso, a
ricordiam suam et gratiam cor meum dignatus
absolutamente ninguém seja permitido infringir
est illustrare, ut exemplo et doctrina beatissimi
esta página de nossa concessão ou agir contra
patris nostri Francisci poenitentiam facerem,
ela com temerária ousadia. Se alguém presumir
paulo post conversionem ipsius, una cum paucis
fazê-lo, saiba que vai incorrer na indignação de
sororibus quas Dominus mihi dederat paulo
Deus Onipotente e dos bem-aventurados após-
post conversionem meam, obedientiam volun-
tolos Pedro e Paulo (CAROLI, 2004, p. 1949).
tarie sibi promisi sicut Dominus lumen gratiae
suae nobis contulerat per eius vitam mirabilem
Como já mencionamos a bula Sicut manifestum et doctrinam. [...] et ad pietatem erga nos motus,
est, tradicionalmente chamada de “Privilégio da obligavit se nobis per se et per religionem suam
Pobreza”, foi promulgada na visita do papa Gregó- habere semper de nobis tanquam de fratribus
rio IX ao convento de São Damião. A resposta da suis curam diligentem et sollicitudinem specia-
Carta papal transpareceu a preocupação de Clara lem. [...] Postea scripsit nobis formam vivendi
et maxime ut in sancta paupertate semper
e companheiras com a vontade de manter-se fiel a perseveraremos (MENESTÓ, 1995, p. 2313).
“Altíssima pobreza” prometida a Frei Francisco de
Assis. Segundo Caroli, uma leitura nupcial da “Al- A redação definitiva da Regra de Clara de
tíssima pobreza” que era típica das Cartas de Clara Assis, a exemplo da Regra franciscana de 1223,
na qual defendia um propositum de virgindade que percorreu uma trajetória longa e repleta de percal-
identificava com o seguir “Cristo pobre” revela que ços, tensões, conflitos, embates, vindos, princi-
a pobreza e a sua aplicabilidade são as bases do
palmente da autoridade eclesiástica. Assim como
convento de São Damião. (CAROLI, 2004, p. 1944).
a normativa de Francisco, a Regra Clariana é bem
Clara sempre se referiu como “a plantinha mais para além e mais profundamente que um
do bem-aventurado pai Francisco”, prometendo simples e mero escrito, revela questões centrais
obediência ao fundador de sua comunidade e de discussão jurídica do movimento francisca-
como pai da sua própria opção de vida na pobreza no. A forma de viver (do latim Forma vivendi,
430
Verônica Aparecida Silveira Aguiar

literalmente a forma que se deve viver), que se- dos frades menores nos conventos em lugares
gundo o Capítulo VI da Regra de 1223 teria sido não compreendidos pela clausura devido à pre-
dada por Francisco a Clara e suas coirmãs. Não gação, já os conventos femininos franciscanos
se conhece essa primeira forma vivendi e nem só permitiriam a entrada dos frades com uma
os termos exatos, alguns especialistas afirmam autorização especial da Igreja Romana com a
que provavelmente foram citações bíblicas, algo função de dificultar a entrada dos frades. Enfim,
semelhante a proto-Regra franciscana de 1210. isso causou uma reação de Clara e suas irmãs
Segundo a historiografia, até o ano de 1216, a que identificavam laços diretos e particulares
forma vivendi de Francisco foi a única Regra que com Frei Francisco e com a Ordem dos Menores,
orientava Clara e suas companheiras no convento vínculos que provocaram momentos de tensão
de São Damião (FASSINI, 2009, P. 30). entre Clara e o papa Gregório IX.
Isso gerou um conflito com Clara e suas
Em suma, a pobreza defendida por Clara e
irmãs que não aceitavam a Regra imposta e de-
companheiras em São Damião adquiriu um valor
sejavam manter-se fiel à forma vivendi prometida
de resistência às intervenções de Gregório IX e,
a Francisco, contida na máxima da Altíssima
ao mesmo tempo, transformou-se na identidade
Pobreza e observância rigorosa do evangelho que
daquela comunidade, por isso a importância da
na leitura franciscana proibia toda e qualquer tipo
Sicut manifestum est. A bula reforçava a “resis-
de propriedade, coisa que a Regra de São Bento
recomendava, porém não era a mesma coisa, tência” das “Pobres Damas” que conheciam no
por isso as “resistências” e o pedido de viver no conceito de pobreza do não possuir nada nem em
Privilégio da Pobreza (FASSINI, 2009, p. 31). comum e nem em comunidade a partir das refe-
rências dos frades menores, da Regra de 1223 e
Sem dúvida, a Sicut manifestum est foi uma da memória de Frei Francisco, pilares das origens
bula essencial na qual o papa Gregório IX demons-
do franciscanismo, fator que as diferenciava do
trou uma atenção significativa ao caráter evangélico
restante do monaquismo tradicional ou das outras
de vida assumido e vivido pelas irmãs do convento
Ordens femininas.
de São Damião em Assis. Posteriormente, a mesma
Carta pontifícia foi enviada a outros conventos de A Carta de Gregório IX garantiu a pobreza
seguimento franciscano, por exemplo, endereçada ao convento de São Damião e, ao mesmo tempo,
as irmãs de Santa Maria de Monteluce e as irmãs de mostrou a irredutibilidade de Clara e suas com-
Perugia, confirmando que São Damião não estava panheiras no seguimento de Cristo pobre através
em total isolamento. Indubitavelmente, o objetivo das diretrizes do franciscanismo que acreditavam
de Gregório IX seria a unificação do monaquismo ser o mais próximo das origens. Enfim, Clara
feminino sob a Regra beneditina com uma ênfase teve um contanto pessoal com Francisco e deixou
na clausura e com medidas jurídicas sutis para a isso transparecer na sua normativa, quando por
aquisição de bens móveis. várias vezes menciona a palavra “conforme Pai
Na Carta Quo elongati de 1230, Gregório Francisco” e “segundo nosso Pai Francisco”, uma
IX acabou estabelecendo uma distinção entre o alusão aos primeiros tempos em que não havia
monaquismo feminino franciscano e os demais uma distância física entre os primeiros seguidores
conventos femininos, porque autorizava a entrada de Francisco de Assis.

431
REFERÊNCIAS BOLTON, Brenda. A reforma na Idade Média. Trad., Lisboa: Edições 70, 1986.
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CAROLI, Ernesto (org.) Fonti Francescane, nuova edizione. Scritti e Istituto della Enciclopedia italiana, 2000, 2v., p. 363-380.
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432
o NoBrE FiLósoFo Em DANTE ALiGHiEri

Viviane de Oliveira1
Terezinha Oliveira2

Casou-se por volta de 1285 com Gemma Donati,

C
onsideraremos nesse trabalho uma perspec-
tiva do conhecimento medieval a partir da por meio de um contrato matrimonial estipulado
leitura das obras Convívio e Monarquia, por seu pai Alighiero, em 1277. Porém, amou e
escritas por Dante Alighieri, e analisamos o de- se inspirou em Beatriz, escrevendo Vida Nova,
senvolvimento do conceito de nobre filósofo para em 1292. Esta obra era um conjunto de prosas e
o poeta florentino. poesias. Após a morte da amada, Dante mergu-
Primeiramente, é necessário observar que o lhou seus escritos na filosofia e, posteriormente,
autor da obra, Dante Alighieri, foi um importante na política em obras como Convívio e Monarquia.
intelectual da Baixa Idade Média. Franco Jr. o Segundo Franco Jr. (2000), pouco se sabe a
define como: respeito da formação intelectual do pensador, mas,
Um conservador, alguém que construiu uma certamente, ele cumpriu os estágios básicos da edu-
utopia baseada no passado e que sua nostalgia cação medieval, trivium e quadrivium. A formação
a idealizava. Foi ainda um patriota, apaixonado intelectual de Dante Alighieri pode ser considerada
por sua Florença e tendo mesmo forte senso de autônoma. Apesar de não concluir nenhuma acade-
italianidade. Foi um Grande sábio, conhecedor
mia, o poeta foi influenciado pelas ordens mendican-
de quase tudo que sua época possuía. Foi um
exaltado amante, que cantou um símbolo de be- tes de Florença, tornando-se um preciso conhecedor
leza e virtude. Contudo nenhuma essas fórmulas do método escolástico, procedimento indispensável
bastam. (FRANCO JR, 2000, p. 121). no ensino das universidades medievais e fundamental
para a escrita de tratados políticos. Franco Jr. (2000)
É incontestável a importância do autor como
destaca ainda o quão foram relevantes os incentivos
político, filósofo e poeta. O que Franco Jr. (2000)
literários de Guido Cavalcanti (c. 1255-1300), impor-
explicita em sua obra são as diversas análises que
tante poeta florentino, e as lições que o poeta recebeu
podem ser feitas a partir de uma perspectiva ana-
do escritor, poeta e político florentino Bruneto Latini
lítica do poeta. Assim, o autor divide seu livro em
(c.1220-1294/5), por volta de 1280.
diversos “perfis” de Dante Alighieri: O florentino,
O exilado, O enciclopédico, O esotérico, O amante Antes de ter se destacado pela sua produção
e O místico. Franco Jr. (2000, p. 121) conclui que literária, Dante Alighieri obteve destaque pela
nenhuma dessas análises define o poeta, pois, atuação política na cidade de Florença, até ser
limitar o poeta florentino a uma determinada ca- condenado ao exílio em 1302. Seu contato com
racterística, é limitar “alguém que buscava romper a política se inicia servindo nas guerras entre as
os limites. Dante foi o poeta do Absoluto”. cidades da Península Itálica, chegando a participar
do conselho especial do Povo e membro do Con-
Dentro dessa perspectiva, analisamos os fatos
selho dos Cem3.
que levaram Dante a ser um importante intelectual,
homem de seu tempo. O poeta florentino nasceu em O envolvimento político de Dante acarretou-lhe
1265, originário de uma família da baixa nobreza. vários problemas. Segundo Orlandi (1972), ao tomar
1 Graduanda em História na Universidade Estadual de Maringá (UEM). 3 “Conselho de cem membros com poderes consultivos, por uma Assembleia
2 Doutora em História. Docente do Programa de Pós-Graduação em Funda- Popular que se reunia quatro vezes ao ano para confirmar os atos dos cônsules,
mentos da Educação da UEM. Coordenadora do grupo GTSEAM(Transforma- aprovar os tratados concluídos, definir funções de cada funcionário comunal.”
ções Sociais e Educação na Antiguidade e Medievalidade) (FRANCO JR, 2000, p.20)

433
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

partido pelos Guelfos Brancos, que apoiavam a Além dos embates políticos que se configu-
tese de divisão do poder papal e real, tornou-se raram na formação de dois grandes ‘partidos’ os
inimigo do Papa Bonifácio VIII, que tinha a guelfos e os gibelinos - que marcaria Florença por
pretensão de ocupar Florença. Assim, quando os muito tempo, consequentemente, a vida de Dante
Guelfos Negros, que apoiavam o Papa, venceram, Alighieri – o desenvolvimento dos centros de
Dante foi exilado de Florença. Deu exílio pode ser comércio florentino marcaram, indelevelmente,
considerado como um “divisor de águas” em sua os posicionamentos do poeta e filosofo. Segundo
vida, tendo sua produção literária impulsionada, Franco Jr. (2000), quase toda nobreza Florentina
escrevendo obras como a monumental Divina era de origem feudal, mas, à medida que os co-
Comédia. Conforme a posição política vai se ex- merciantes iam prosperando, a nobreza perdia os
tremando pós o exílio, sua condenação também, seus poderes, o comércio passou a tomar controle
até que em 1315, Dante é considerado herege. do econômico florentino.
O século XIII ficou marcado como um Em 1293, uma nova legislação foi imposta,
período de transformação na Europa Ocidental. pondo fim aos privilégios da nobreza. Com a
O feudalismo dava mostras de seus limites e, Ordenação da Justiça, as famílias nobres foram
concomitante, registrava-se a ascensão das ci- excluídas dos cargos públicos e a participação polí-
dades, como aponta Franco Jr. (1986). Foi entre tica passou a ser condicionada à inscrição em uma
os séculos XII e XIII que surgiram intensas ati- corporação. Deste modo, segundo Orlandi (1972),
vidades econômicas e intelectuais, um aumento Dante filiou-se à Corporação dos Boticários para
demográfico acelerado, com marcante expansão participar da vida ativa da cidade. Essa legislação
territorial e um grande deslocamento de pessoas explicitava e legitimava o fato de Florença ser
e do trabalho, do mundo rural para urbano. governada por muitos comerciantes. Isso se torna
relevante para o estudo da obra de Dante Alighieri
É nesse cenário de grandes transformações
porque a urbanização é um dos grandes motores
que se encontra Florença, a tão amada cidade
para as transformações na educação medieval.
de Dante Alighieri e é nela também que o autor
Como observa Le Goff (2003), o intelectual da
participa das grandes disputas travadas entre os
Idade Media nasceu junto com a urbanização na
poderes Papais e os Imperiais. Segundo Franco
Europa Ocidental. O professor, erudito intelectual,
Jr. (2000), desde o século XI, as características
só apareceu com o surgimento das cidades.
papistas dominaram Florença. Considera-se
como relevante para história de Florença desse Um homem cujo ofício é escrever ou ensinar,
período a famosa disputa entre o Papa (Gregório e de preferência as duas coisas a um só tempo,
um homem que, profissionalmente, tem uma
VII) e o imperador (Henrique IV). Nesta dispu-
atividade de professor e de erudito, em resumo,
ta, a condessa florentina Matilde tomou partido um intelectual – esse homem só aparecerá com
pelo Papa, cristalizando a posição papista, depois as cidades. (LE GOFF, 2003, p. 23)
denominada de Guelfos. Esse posicionamento da
Mas para compreender o que é o intelectual
condessa afetou, diretamente, a vida dos florenti-
medieval, é necessário diferenciar a ideia apre-
nos, especialmente a da família Alighieri.
sentada por um historiador contemporâneo para
Na Toscana, essa disputa foi marcada por com a de Dante Alighieri, um homem do século
dois momentos. Primeiro, em 1260, quando XII/XIII. A análise posta por Le Goff representa
os gibelinos obtiveram a vitória decisiva em o homem mediador do conhecimento, tal qual
Montaperti e as principais famílias guelfas fo- compreendemos o professor. Para Dante Alighie-
ram exiladas, gerando uma profunda crise na ri, a ideia de intelectual ou filósofo ultrapassa essa
estrutura política florentina. Segundo, em 1266, conotação. Além de conhecer, o homem deve ser
em Benevento, com a recuperação da autoridade capaz de vivenciar os conhecimentos clássicos,
guelfa e o fim das tropas gibelinas. tal como expõe em seu tratado Convívio.

434
Viviane de Oliveira / Terezinha Oliveira

Do Convívio à Monarquia: não pode estar o tempo todo no estado da con-


templação. Assim percebemos a relevância que
O que Dante propõe no Convívio é a uti- o poeta credita à racionalidade, porém ela só é
lização dos conhecimentos clássicos, como os permitida diante das condições que alguns ho-
princípios aristotélicos, para traçar a perfeição mens possuem, no caso os nobres.
de nobreza por meio do saber, ou seja, a partir Uma das questões que, segundo Dante
da leitura dessa obra é possível analisar que, para Alighieri, levou o desenvolvimento inicial da obra
Dante Alighieri, o conhecimento é a virtude ca- é quanto o conceito de filósofo e filosofia: Quem é
paz de ordenar o mundo. A partir dessa proposta, o filosofo verdadeiro e o que é a filosofia? Dante
analisamos os embates em torno da elite medieval Alighieri não responde diretamente essas pergun-
e do conhecimento, durante os séculos XIII e tas. Para ele, todo homem pode ser genericamente
XIV, momento em que a nobreza e a educação chamado de filósofo, pois em todos se encontra,
passaram por uma série de transformações, que potencialmente, o desejo de saber (Conv. III, XI,
partem do: crescente meio urbano, fortalecendo 6). Mas essa posição aceita no mundo intelectual
o ideal de liberdade e da educação religiosa até a da época parece não satisfazer o próprio Dante
formação das primeiras universidades. por completo. Por isso ele define que: o homem
Como considerado anteriormente, Dante não recebe o nome de filosofo quando o amor ao
Alighieri é um homem de seu próprio tempo. saber só se encontra nele, quase que por um acaso
Portanto, a obra Convívio é um reflexo da rea- (Conv. III, XI, 7-10). Para Dante, a ‘verdadeira fi-
lidade e da necessidade, percebida pelo poeta, losofia’ é engrenada pela honestidade e bondade,
no contexto do século XIII e XIV. Essa obra com reto desejo e reta razão. (Conv. III, XI, 11).
expressa a ideia de intelectual e saber que se Essas ideias são desenvolvidas em quatro
disseminava na Europa ocidental. Para entender tratados. O primeiro tratado justifica o porquê da
esses conceitos, o poeta Florentino vai diferenciar obra, seu objetivo e a escolha da língua toscana
o Aristocrata do verdadeiro Nobre. De acordo e não o latim. Assim, Dante Alighieri restringe
com Dante Alighieri, a aristocracia só alcança o conhecimento que leva à perfeição a um seleto
a verdadeira nobreza se for educada segundo os grupo de homens designados, divinamente, para
parâmetros da filosofia aristotélica. possuir esses conhecimentos. Para isso ele aponta
as causas de tal restrição. A primeira causa seria
Quando analisamos as investigações rea-
a imperfeição do homem, tanto de corpo quanto
lizadas por Dante Alighieri, a racionalidade e
de alma. Outra condição, segundo o poeta, para
a temporalidade são evidenciadas. A defesa da
adquirir o conhecimento está relacionada ao meio
razão surge como do seu pensamento clamado
no qual o homem se desenvolveu. É necessário
como filosófico. Dante escreve “quando se diz
existirem condições de ócio para o desenvolvi-
que o homem vive, deve se entender que o homem
mento desse verdadeiro conhecimento.
usa a razão. (Conv. II, VII, 2). E depois, citando
Boécio, acrescenta: “[...] quem se desvia da razão O segundo tratado inicia com Dante Alighieri
e usa somente os sentidos não vive como homem, apresentando o ‘prato’ do banquete ao seu leitor.
mas como um animal.” Vive como um asno.” Ou seja, antes mesmo de apresentar suas ideias
(Conv. II, VII, 2). Podemos compreender que a centrais, o poeta explica como o tratado deve ser
análise do poeta para razão distancia o homem lido e interpretado. Para ele, toda interpretação
dos seus sentidos. Assim, como uma forte crítica, deve considerar quatro sentidos: literal, alegórico,
Dante Alighieri acredita que os homens vivem moral e anagogico (Conv. II, I 2-15). O que se deve
mais segundo os sentidos do que de acordo com observar na sua exposição é que os quatro sentidos
a razão. Quanto a temporalidade, o pensamento podem ser considerados como diferentes níveis de
somente se dá enquanto hábito e o ser humano interpretação de um texto. Dessa forma, ao lermos

435
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

a obra Convívio, como um todo, compreendemos resolver essa indagação, o autor expõe a existência
o método do discurso do poeta. Há um claro de dois argumentos: o primeiro é a questão da
desenvolvimento da ideia do autor em diferentes nobreza; a segunda a legitimidade do império.
níveis de interpretação e retórica, dando-as como Em ambos, os argumentos partem da premissa
base ao seu leitor antes de apresentar sua principal que todas as atividades humanas relacionadas ao
ideia centrada no último tratado. saber estão destinadas aos respectivos homens
e a base para os seus argumentos é Aristóteles.
No terceiro tratado, Dante Alighieri apresenta
Essas questões que permeiam o quarto tratado
uma exaltação à filosofia, personificada pela amada
da obra Convívio são os ‘alicerces’ do tratado que
do poeta, uma dama nobre. Explica como nasceu
seria posteriormente escrito por Dante Alighieri,
o seu amor pela filosofia e por que é legítimo que
a Monarquia. Essa obra foi escrito em latim, di-
esse amor supere qualquer outra forma de amor,
ferentemente de outras que foram escritas em ita-
referindo-se principalmente ao amor carnal existente
liano. Esse fato é relevante, pois permite perceber
na personificação de Beatriz. O florentino analisa
o público alvo de Dante Alighieri: as pessoas do
a ideia de intelecto e a chama de mente. Nela, ele
segmento dominante, especialmente o alto clero,
distingue as virtudes do conhecimento e indica que
pois, em geral, eram estes que tinham o domínio
uma corresponde à alma e a outra à razão. Diferente desta língua. Entretanto, o latim também era re-
de muitos estudiosos do período, o poeta não define conhecido como a língua universal, ou seja, Dante
o caminho para a divindade pelo conhecimento dirigia essa obra para o setor mais alto do século
simplesmente. Para ele, o conhecimento é um dom XIII e para os intelectuais, propondo na língua
divino que deve ser utilizado pelo governante ou pelo universal uma monarquia, também, universal.
segmento dominante para conduzir a humanidade.
O tratado sobre a Monarquia foi dividido em
O quarto tratado se refere ao real significado três livros. O primeiro livro intitula-se a Necessi-
da nobreza. O autor critica a nobreza florentina dade da Monarquia. Nele, Dante defende a ideia
enquanto fundamentada pela riqueza herdada por de que a monarquia é a única que assegura a paz e
seus antepassados: a ordem no mundo, pois o Monarca é aquele que,
Procedo dizendo que as riquezas, como o outro por providência divina, é, intelectualmente, capaz de
acreditava, não podem conferir a nobreza. E para guiar os homens para a benevolência terrestre, a Paz
mostrar a grande distância que as separa, afirmo Universal. Dante (1999, p. 16) aponta essa estima à
que as riquezas não podem tirá-la de quem a
virtude do conhecimento em passagem do primeiro
possui. Além do mais, não podem conferi-la,
uma vez que são naturalmente vis e, por causa livro: “Concluamos: torna-se evidente que a per-
de sua vileza, são contrárias à nobreza. Por vileza feição suprema da potência específica do homem
entende-se aqui a degeneração, a qual se opõe à reside na faculdade ou na virtude da intelecção”.
nobreza. (Conv. IV, VIII, 5-6). Kantorowicz explica essa ideia do poeta florentino:
O monarca de Dante não era simplesmente um
Para o autor, a virtude do conhecimento é o que homem da espada e, com isso, o braço executivo
legitimaria o nobre. Ainda nesse tratado, o poeta do papado; seu monarca era necessariamente um
argumenta e apresenta o real papel do nobre com poder filosófico-intelectual por seus próprios
condição primordial individual, de origem divina e méritos. Era responsabilidade principal do im-
que se manifesta por meio de um comportamento perador, por meio da razão natural e da filosofia
moral a que pertencia a ciência legal, guiar a
virtuoso que conduziria para a verdadeira felicidade. mente humana para a beatitude secular, tal como
No quarto tratado, Dante Alighieri afirma o papa era encarregado pela Providência de guiar
sentir-se frustrado pela incapacidade de resolver a alma cristã para a iluminação supranatural.
(KANTOROWICZ 1998, p. 280-281).
uma questão metafísica e busca refúgio no âmbito
da ética e, no interior desta, analisa um problema Assim, Dante legitima e distingue o poder
muito concreto que é o conceito de nobreza. Para do monarca do poder do papado. Para um, estava
436
Viviane de Oliveira / Terezinha Oliveira

determinado, por meio do conhecimento, guiar os migos, o que Dante propõe é apenas a distinção da
homens ao paraíso terrestre, e ao outro, por meio perfeição “humana” da “cristã”. Portanto, olhar
da Providência, guiá-los para o paraíso celestial. a Monarquia como apenas um tratado político é
Finalidades diferentes por meio de virtudes di- reduzir a extensão do conhecimento de Dante.
ferentes e o único ponto de coincidência entre os O que ele propõe é um modelo de governo no
dois gládios seria a originalidade de seus poderes. qual o Imperador teria o poder supremo. O Im-
perador ou Monarca mandaria em todos os reis
No segundo livro: Como o Povo Romano
e chefes políticos de forma justa e todos agiriam
obteve legitimamente o encargo da Monarquia
justamente conforme o exemplo monárquico.
e do Império, o poeta afirma que o domínio uni-
Porém, sem desconsiderar esse modelo político,
versal dos romanos não ocorreu em virtude da
é possível perceber que o debate que Dante trava
força, mas, sim, pela proeminência divina que
não se restringe meramente a isso.
interferiu, a partir de milagres, para expansão.
Para comprovar isso, Dante cita diversos ‘mila- Segundo Kantorowicz (1998),
gres’ que ajudaram os romanos. Ao separar o intelecto de sua unidade anterior
No terceiro livro: O Encargo da Monarquia com a alma e separar as virtudes intelectuais
de sua unidade com as virtudes divinamente
e do Império provém imediatamente de Deus,
infundidas, Dante liberou o poder do intelecto
Dante explicita que o poder do Imperador provém livre. Em função da busca da felicidade deste
diretamente de Deus, portanto, não há necessi- mundo, utilizou-o para unir, em uma só, a co-
dade de intermediário, como o Papa. Ou seja, munidade mundial humana composta de todos
ele propõe uma divisão do poder temporal e do os homens, cristãos e também não cristãos.
espiritual, que até o momento era indissociável (KANTOROWICZ, 1998, p.285)
para a mentalidade cristã medieval ocidental.
Conforme a afirmação de Kantorowicz
Afirmo, então, que o poder temporal não recebe (1998), é possível evidenciar nessa obra a atri-
do espiritual nem a existência, nem a faculdade
buição de um pensamento religioso ao mundo
que é a autoridade, nem mesmo o exercício puro
e simples. Recebem, sim, do poder espiritual secular e as distintas finalidades do homem no
aperfeiçoamentos acidentais: age com maior mundo real e no celestial. Porém, ele considera
eficácia pela luz da graça que Deus, no céu, e a essa dualidade de finalidades dentro de uma
benção do Sumo Pontífice, na terra, lhe infun- proposta de centralidade da comunidade humana,
dem. (DANTE, 1999, p. 98). no qual mede suas relações a partir das disputas
Segundo Kantorowicz (1998), Dante apresen- entre os poderes papal e imperial. Dentro dessa
tou essa tese para se contrapor aos canonistas do perspectiva, observamos que Dante não apresen-
século XII, que apontavam o poder papal superior ta somente uma tentativa de reelaborar o papel
ao monarca. Dante toma partido pelos dualistas: da Igreja - muito criticada enquanto instituição
estes já defendiam essa ideia de divisão de poderes, eclesiástica corrupta -, nem mesmo de legitimar
o que o Poeta fez foi se apropriar dessas ideias e o poder imperial, simplesmente por sua providen-
aprofundá-las. Para provar que o poder do mo- cia divina. O que o poeta propõe é um modelo
narca estava livre da jurisdição do poder papal, o de sociedade unificada, centralizada por dois
autor Florentino propõe regulamentar o que cabe poderes, um designado a guiar a humanidade a
a Igreja e ao Monarca, distinguindo-os enquanto partir do conhecimento e outro por meio da fé.
função, mas não enquanto a meta de organizar o Em face dessa proposição, podemos afiançar que
mundo e manter a paz. Ou seja, para distinguir os o poeta florentino, põe, na ordem do dia, um novo
poderes, Dante afirma haver apenas um ponto de princípio de educação, por conseguinte de saber.
coincidência em ambos, sua origem divina. Uma das principais considerações apontadas
Essa dualidade de fins não implica que os nesse texto diz respeito ao papel do nobre nas
poderes papais e imperiais eram antíteses ou ini- obras Convívio e Monarquia. No primeiro trata-
437
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

do, Dante Alighieri discute sobre qual a origem a perfeição de sua natureza.
da nobreza no homem, estabelecendo uma clara
Um mundo sem nobreza, para Dante, é im-
diferença entre a nobreza de virtude e a hereditá-
pensável. Pois é no homem nobre que se realiza a
ria. Segundo Brazarolla (2007), na Germania do
ordem total das coisas. Segundo o poeta, o intelec-
século XII, uma discussão desse tipo estaria fora
tual não é um simples intermediário, mas é antes
de cogitação. Nesse momento, o termo nobreza
um homem “divino”. A invenção do intelectual
tinha outra concepção. Um homem era nobre
por Dante está além da nobreza de linhagem ou da
caso ele viesse de uma família feudal ou tivesse
nobreza de ofício, é uma nobreza virtuosa de saber
uma nobreza reconhecida pelo soberano. Esse
essencialmente inserida dentro do desenvolvimen-
indivíduo era considerado nobre, contudo, não
to urbano. Consideramos ainda, que esse modelo
necessariamente detentor de virtudes.
de nobre filósofo, dirigente social, proposto por
Dante Alighieri não é próprio do poeta. Esse con-
ceito perpassa a humanidade desde os primórdios
CoNsiDErAÇÕEs FiNAis da filosofia Aristotélica e Platônica.
O posicionamento de Dante Alighieri, pre-
A leitura dos tratados Convívio e Monarquia sente no século XIII, nos permite refletir acerca
permite compreender a proposta de nobreza e a dos conceitos de homens intelectuais e dirigentes
busca por uma adequação entre a preeminên- da sociedade. A realidade onde um dirigente
cia social e a superioridade moral. A partir de social é embasado nos mais profundos conceitos
uma leitura mais precisa dos tratados de Dante de razão e saber está distante de qualquer modelo
Alighieri, percebe-se uma proposta de uma de comparação ou anacronismo que poderia ser
identidade nobre muito peculiar. A nobreza nasce feito. Contudo, a leitura do Tratado e o posicio-
então por meio da união de uma vida política namento do poeta nos permitem ao menos deixar
com uma formação ampla, um caminho pelo essa provocação: qual o lugar e o valor dado
qual o homem nobre deve passar para alcançar conhecimento na sociedade contemporânea?

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438
o sÉTimo sELo:
As representações do medievo na película de Ingmar Bergman

Wendell Emmanuel Brito de Sousa1


José Henrique de Paula Borralho

iNTroDuÇÃo

Uma música aterrorizante, o céu parece minados momentos históricos (1992, p. 238).
anunciar uma tempestade, uma águia sobre- No campo dos estudos sobre mentalidades, o
voa o ambiente sem parecer se interessar pelo
trabalho de Michel Volvelle repercutiu de forma
o que ocorre em terra firme. No chão vemos
dois indivíduos exaustos, um possuindo sem- positiva entre os historiadores. Sem aprofundar em
blante apreensivo parece refletir. O cavaleiro uma discussão entre cinema e história o autor des-
então se levanta lava o rosto nas águas do mar taca o papel da fonte iconográfica como importante
e se ajoelha, fecha os olhos parece ensaiar documento para analise do historiador. Dentro des-
uma oração. Contudo, seus olhos se abrem tas novas perspectivas Marc Ferro – com sua obra
transpondo toda a incerteza em seu olhar.
Cinema e História – será o pioneiro nos estudos e no
Imediatamente somos apresentados a um ser
de capa preta que se diz ser a morte, antes estabelecimento da relação entre cinema/história.
que possa levá-lo o cavaleiro então a convida Apesar de todo o pioneirismo de Ferro e
para uma partida de xadrez. Assim, com as
seu lugar de importância no campo da teoria e
incertezas do jogo se inicia o filme O Sétimo
Selo (1956) de Igmar Bergman.
metodologia. Na atualidade tanto a historiografia
estrangeira como a brasileira tem exposto criticas
a relação entre cinema e história proposta pelo

O
cinema é um produto da modernidade do
final dos oitocentos e consolidado como francês. Sobre essa questão, as ideias de Eduardo
a diversão para as massas no século XX. Morettin são consideradas por Marcos Napolitano
Ao longo desse período tem sido promotor de cons- significativas em relação a alguns equívocos da
truções históricas e revelador de uma mentalidade análise do francês:
social. No campo da história tudo começa com o [...] as tensões internas de um filme vão além de
movimento conhecido como “Nova História” que um jogo “história oficial” ou “contra-história”,
da “manipulação” fílmica em oposição a uma
promove novas metodologias para o oficio do histo-
“verdade” por trás do filme, como coloca Ferro.
riador. Evidências dessa grande contribuição podem O que é mais importante, para o pesquisador
ser analisadas a partir da citação de Mônica Kornis: brasileiro, é perceber a ambigüidade das imagens
Foi no âmbito da Nova História que a his- que nem sempre consegue representar um leitura
tória das mentalidades ganhou um impulso coerente e unívoca do fato histórico, mesmo quando
maior – apesar de já ser enunciada desde a é desejo dos seus realizadores,como nos filmes his-
École des Annales – enriquecendo o estudo tóricos patrocinados pelo Estado (NAPOLITANO,
e a explicação das sociedades através das 2010, p. 244).
representações feitas pelos homens em deter-
1Graduado em História. Este artigo é resultado de trabalho orientado pelo O medievalista Rivair Macedo (2009)
Prof. Dr. José Henrique Borralho durante o período de graduação na UEMA.
Mestrando no Programa de Pós-Gradução em História Social da Universi-
também faz algumas contribuições para esta
dade Federal do Maranhão. Email: wga_wendell@hotmail.com importante relação. Segundo o historiador é
439
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

necessário distinguir os filmes de ficção, aqueles medieval. O objetivo deste artigo é identificar
com temática contemporânea e as películas de algumas representações do período como: cris-
ficção com temática histórica. Para Macedo: tianismo, Deus, fé e morte.
Os primeiros constituem por si próprios Como os FiLmEs rETrATAm
testemunhos das tensões políticas e sócias A iDADE mÉDiA?
dos séculos XX e XXI. No segundo caso,
a realização dos filmes ditos “históricos”
Marcos Napolitano (2010) estava com razão
exigem do cineasta e sua equipe de pro-
quando disse que o cinema descobriu a história
dução a reconstituição de aspectos do
muito antes de a história descobrir o cinema.
passado (2009, p. 209)
Muitos cineastas recorreram a filmes históri-
Seguindo o raciocínio do historiador, as pelí- cos para refletir sobre o presente. Ao longo das
culas com temáticas históricas são produtoras de décadas de 40 e principalmente 50 os épicos
construtos históricos, ou seja, os filmes também ganharam força entre a indústria e o publico.
são responsáveis por (des)construir saberes históri- O Sétimo Selo é um filme que não se encaixa
cos que ficam a margem da construção do discurso nessa linha, a película recorre a reflexões exis-
histórico feito por historiadores. Macedo aponta os tências, marcas definitivas na cinematografia
perigos na analise de um filme histórico: de Bergman.
A maior dificuldade em se abordar o filme com
Antes de aprofundarmos a análise da obra
temática histórica reside no fato de que se
trata, afinal de uma obra elaborada consciente do sueco, acreditamos que seja necessário fa-
e propositalmente a respeito de determinado zer uma reflexão sobre as múltiplas imagens
acontecimento ou de terminado contexto do fílmicas acerca do medievo. Assim, podemos
passado (e não um testemunho “puro”,” ge- trabalhar com duas afirmativas: a primeira,
nuíno”). Sendo uma obra de ficção, ele é fruto tendo o cinema como um meio de representa-
de imaginação criadora da equipe (diretor,
ção da mentalidade social, e a segunda, como
roteirista, produtor, fotografo, montador) o
que idealizou e realizou, e sua composição representações específicas da Idade Média. Para
obedece antes de mais nada aos critérios da uma melhor ilustração José D’ Assunção Barros
linguagem cinematográfica (2009, p. 209-210). faz uma análise da representação fílmica do
medievo em entrevista dada a IHU On-Line:
No caso de O Sétimo Selo, uma obra que se Para o caso da Idade Média, isso significa
encaixa na relação entre os filmes de ficção-his- que o cinema pode tratá-la ou como uma
tórica e a sua relação com o saber produzido por “ fantasia” ou como uma “realidade” a ser
historiador, a película se apresenta com traços conhecida; ou uma forma de se referir a uma
autobiográficos que marcaram a maneira de outra realidade para a qual a Idade Média
fazer cinema de Bergman. O diretor estabelece será apenas uma metáfora.Iremos encontrar
nos diversos filmes que se ambientam na Idade
uma relação intima entre seus filmes e suas
Media não apenas essas três pretensões, como
lembranças. Muito de suas películas retratam combinações delas (BARROS, 2006, p. 10.
inúmeras passagens de sua vida, principalmente
a infância e adolescência. Portanto, através dessa tríade podemos citas
A obra do sueco, com laços teatrais e cine- muitas outras ramificações que representam a Idade
matográficos tem um papel de importância para Média ao longo da produção cinematográfica como
a história do cinema mundial. Em seus trabalhos, menciona Barros. A “Idade Média heroica” como
o diretor de Morangos Silvestres, suscita refle- Robin-Hood (2010) de Ridley Scott; a “fantástica”
xões estéticas, sociais e filosóficas (BARREIRA como O Feitiço de Áquila (1985); a “cristã” com
JUNIOR, 2011, p. 2). Dentre as inúmeras obras Francisco, o Arauto de Deus, de Roberto Rossellini.
esta O Sétimo Selo, filme histórico com temática Todos esses ditos podem evidenciar as múltiplas
440
Wendell Emmanuel Brito de Sousa / José Henrique de Paula Borralho

faces imaginadas a cerca da Idade Média. experiências marcam profundamente sua obra.
Podemos dizer que O Sétimo Selo corresponde
A grande questão que norteia essa discussão
a uma metáfora criada que se aproxima de uma
é que por mais que o filme seja fiel ao desejo
realidade vivida por Bergman.
proposto. Por mais que a película ambientada
no medievo, preencha com rigor e fidelidade o A CruZADA NÃo DiTA
período que a narrativa se propõe a contar. A
obra vai revelar muito mais sobre a mentalidade Em O Sétimo Selo acompanhamos a saga de
da sociedade que o produziu do que a sua ilus- Antonious Block, cavaleiro cruzado que ao re-
tração imagética exposta no filme. Sendo assim, tornar a sua terra natal vive uma crise espiritual.
a imagem transpõe ambiguidades. Ao receber a visita da morte que deseja levá-lo, o
Tendo cada sociedade em dado espaço de cavaleiro propõe uma partida de xadrez para que
tempo produzido e apreciado sua visão sobre possa ter tempo para encontrar respostas para
a Idade Média. O cinema é antes de tudo um as suas incertezas e quem sabe o próprio Deus.
meio de entretenimento responsável por levar A experiência da cruzada – mesmo não
o espectador a um distanciamento da realidade. exposta na película – representa o inicio das
Rivair Macedo faz uma reflexão sobre estas incertezas do personagem. Pouco comentada ao
proposições e o saber histórico construído longo do filme, temos apenas alguns diálogos
pelo cinema: no inicio; sendo assim; podemos achar que a
Para mim tal qual no passado, a Idade Mé- cruzada tem pouca importância para o enredo
dia continua a ser vista não pelo que ela foi, da narrativa e para o desenvolvimento dos
mas pelo que poderia ter sido. Quer dizer, a personagens. Penso diferente, não é porque a
Idade Média, lembrada hoje nas mídias,na experiência na cruzada é pouco evidenciada
literatura,e mesmo nas artes é um tempo que a mesma não possui seu grau de impor-
mitificado,interessando mais certas imagens
tância. Os filmes europeus tem por esta, uma
esteticamente em consonância com os anseios
atuais do que um tempo efetivamente his- de suas caracteristicas, tanto o enredo como
tórico,vivido,que um dia possui concretude o não exposto na narrativa fazem parte das
(2006, p.22). problematizações expostas na película.
O não mencionar, o evitar falar, é prova dos
Sendo assim, Macedo fala mitificação da tormentos e o trauma que a cruzada proporcionou
Idade Média, intimamente ligada ao desejo do a Block. Em uma conversa entre seu servo Jöns
espectador por imagens que se apresentam de e o pintor que estava a trabalhar no templo o
diferentes formas: romântica, bélica e fantás- personagem revela as dificuldades que passaram
tica. No campo do conhecimento o fascínio na reconquista da Terra Santa. Como o persona-
pelo medievo cinematográfico representa uma gem afirma tudo pela gloria de Deus. A seguir,
busca por conhecimento pela visualização de completa o raciocínio acrescentando: A cruzada
fatos que poderiam ter acontecido, uma pala- foi uma tolice que só um idealista inventaria.
vra dita; um rei morto; uma batalha sangrenta.
Todo esse imaginário imagético nos direciona Alguns estudos sobre o tema trataram de
na busca pelas origens por uma identidade na definir o objetivo das Cruzadas na Idade Mé-
qual pertencemos. dia. Dentre esses está o artigo de Jean Flori,
no Dicionário Temático do Ocidente Medieval,
Ao longo dos estudos históricos entendemos intitulado Jerusalém e as Cruzadas:
que as experiências do historiador influenciam
[...] a Cruzada foi pregada como operação
diretamente na sua escrita e olhar sobre o docu- militar de reconquista dos lugares santos
mento. A analogia pode ser feita com o trabalho de Jerusalém, na qualidade de uma guerra
do cineasta, principalmente Bergman. Suas santa prescrita aos guerreiros em troca de
441
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

remissão dos pecados, garantindo aos que Para Bergman a incerteza do mito de algo
dela participassem os mesmo privilégios de que esta além do conhecimento humano o in-
uma peregrinação pela simples razão de que quieta. Por algumas vezes em seu dialogo com
também tinha por meta Jerusalém e os lugares
a morte Antonuis pronuncia a palavra conheci-
santos (2006, p. 19).
mento, conhecimento esse que persegue até o
Portanto, a Cruzada se caracterizava em
fim. Bergman presenciou o poder e apogeu da
uma operação de resgate da Terra Santa e dos
ciência e sua capacidade hipotética/experimental.
lugares sagrados como também de uma remissão
Através do conhecimento paradigmas foram der-
dos pecados para os guerreiros que estivessem
rubados graças aos estudos científicos. Mas nem
dispostos a combater em nome da igreja. Mas
tudo a ciência respondeu e nem pode preencher
Flori alerta quando reflete sobre a conquista de
o vazio espiritual do cineasta metaforizado na
Jerusalém pelos cruzados. Sendo assim,
figura do cruzado.
a maior parte retornou aos locais de origem
convencida de ter comprido o dever,embora A visão bergmaniana de Deus pode se as-
talvez decepcionada ao constatar que Deus,- semelhar muito a visão que alguns escritos do
que lhes tinha enviado exércitos celeste em Velho Testamento tem de Deus como Armstrong
Antioquia e Jerusalém, não fizera contudo (1994) exemplifica:
Cristo descer do Céu com a esperada Jerusa-
lém celeste.A vida cotidiana continuava nesta Deus como um déspota e sádico, e não sur-
terra da sofrimentos (FLORI, 2006, p. 23). preende muito gente hoje,que há ouviu (relativa
história do Êxodo)na infância ,rejeite tal divin-
dade [...] É um Deus brutal,parcial e assassino:
um deus de guerra,que seria conhecido como
Javé Sabaoth,o deus dos Exércitos.É passional-
A CrENÇA NA iNCErTEZA:
mente associado,tem pouca misericórdia pelos
Reflexões sobre a fé não favoritos,uma simples divindade tribal.
e a existência de Deus Se Javé continuasse sendo esse deus selva-
gem,quanto mais cedo desaparecesse,melhor
teria sido para todo mundo(apud BARREIRA
Ao longo de sua carreira cinematográfica a JÚNIOR, 2011, p. 12).
presença de símbolos cristãos é uma recorrente
marca no cinema autobiográfico do sueco. O O que fica claro é a antítese que vive o ci-
pai de Bergman era um pastor luterano. Ao neasta, mesmo negando a existência de Deus, não
sofrer com a rígida educação, o cineasta através consegue fugir do dele em suas obras. Em uma
desta experiência parece sempre refletir sobre a analise aprofundada, personagens são apresenta-
existência de Deus e sobre como as pessoas o dos a mercê da força da natureza a procura de um
interagem com ele. Deus que se mantém misterioso, mesmo assim o
Em O Sétimo Selo o cineasta mostra a im- personagem do cavaleiro perciste incessantemente
possibilidade do homem de alcançar a Deus, pelo em sua procura. A representação de Deus em O
menos como deseja o cavaleiro Bock. Esse Deus Sétimo Selo difere bastante da exposta por Schmitt:
que deseja ser adorado, que castiga os homens Deus não é somente o “senhor” soberano da
e se alimenta do medo dos mesmos, porém se sociedade medieval e não é somente o objeto
mantém misterioso. inacessível do discurso racional da teologia.
É também esse outro, no entanto semelhante,
Como Deus pode significar amor, se o ao qual o crente se dirige em suas preces ou ao
mesmo castiga os homens impiedosamente com qual beija a imagem milagrosa (2006, p.311).
a peste? Como pode haver conforto na fé em
Cristo se os homens perderão a fé em si mesmos? Sendo assim as fronteiras entre o Deus impie-
Como pode haver salvação através da morte de doso compreendido por Bergman e o Deus apren-
semelhantes? dido pela mentalidade medieval parecem distantes
442
Wendell Emmanuel Brito de Sousa / José Henrique de Paula Borralho

uma das outras. Mas não deixam de estar paralelas. A DANÇA DA morTE
Em cada período Deus assume uma representação.
No contexto em que foi produzido o sueco discute Tema tabu no ocidente a morte é uma figura
o papel da religião em tempos soberanos da ciência presente em O Sétimo Selo. É representada de forma
e do pós-guerra. Já o Deus medieval se assume sarcástica e cômica pelo cineasta. Diferente de Deus,
em duas figuras, na primeira senhor e criador do a morte na película apresenta sua face, estende sua
mundo, figura onipresente e fator de explicação mão e sem piedade pretende ceifar o cavaleiro. Como
para os fenômenos ocorridos. Mas também esse um jogo de xadrez, ilustrado no filme, os humanos
mesmo Deus se assume intimo dos humanos em articulavam sua relação como a morte.
suas orações e pedidos. Um Deus mais próximo
A relação do medievo com a morte se estabele-
da vida terrena através da figura de Cristo.
ce de forma intima de quem espera, através de uma
Boureau (2006) afirma que a Idade Média se vida digna, um” bom morrer”. Em O Sétimo Selo
configura como um tempo de fé. Essa convicção essa relação com a morte – além de sua representa-
nos desígnios de Deus lançou os homens a cons- ção – é tão intensa quanto conflituosa. Essas frontei-
truir templos e a combater nas cruzadas. Para o ras entre o morrer medieval e o fílmico/intimista de
autor a fé seria uma aceitação espiritual e intelec- Bergman refletem as múltiplas apropriações acerca
tual dos propósitos de Deus para com os homens. da morte ao longo dos tempos.
Um pacto de “confiança naquele que transmite
Tal conflito é evidenciado a todo instante no
essa mensagem direta (Jesus) ou indiretamente
filme onde a figura do cavaleiro reflete a angustia de
(a comunidade dos fieis, a Igreja)” (2006, p.412).
Bergman diante da morte e a passividade dos outros
Na película, Bergman critica essa noção de fé. personagens diante da mesma. Segundo Mussi:
Para ele a fé não aproxima os homens de Deus. O a morte era tida como um evento natural e es-
real motivo de aproximação entre o homem e o sa- perado, própria do ser humano. Era o mundo
grado cristão e consequentemente a Igreja é o medo. dos vivos e dos mortos ligados por uma relação
Esta representação esta relacionada com a visão quase simbiótica e aos mosteiros cabia o papel
bergmaniana de Deus, mencionada anteriormente. de interceder junto ao “alem” em favor da
sociedade.Assim a morte era aceita, num clima
Em cena já ilustrada no texto, o dialogo em de tranqüilidade e resignação (2011, p. 2).
uma igreja entre o servo Jons e um pintor repre-
senta a ideia do cineasta. Ao questionar o pintor A crítica que Bergman faz gira em torno da
porque os desenhos de pessoas agonizando com passividade que nos apresentamos diante da morte
a peste, pinturas da morte; pessoas se auto flage- sem ao menos termos certeza do nosso destino.
lando estão presentes em um santuário cristão. Como aceitar a morte diante das chagas que a vida
O homem responde que isso atrai pessoas para nos proporciona? Como estar em paz se não temos
os templos. Essa passagem da narrativa pode ser certeza da recompensa na outra vida? Para esses
entendida como uma critica a Igreja que utiliza questionamentos Bergman cria um palhaço e o pinta
do terror psicológico para arrebatar os fieis. de branco e o reveste de um manto escuro, ri da sua
própria angústia, passividade e de sua incerteza. A
Sendo assim, os principais símbolos cristãos
morte nos convida para um dança sem ao menos
– Deus, Cristo, fé e Igreja – são representados de
nos perguntar se estamos preparados pra ela.
forma negativa. Gerador de tensões sócias, pois a
peste a é atribuída como um castigo divino, Deus
para Bergman não é capaz de suprir o vazio existen-
CoNsiDErAÇÕEs FiNAis
cial metaforizado na figura de Block, mesmo assim
o cavaleiro não consegue tirá-lo de seu interior.
O Sétimo Selo é uma obra enigmática. Para
entendê-la, ou não, assim com a vasta obra cine-
443
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

matográfica do diretor – é necessário desvendar dos questionamentos de Bergman, é um ambiente


o passado nebuloso de Bergman. Buscamos totalmente passivo diante das investidas do cineasta.
com este artigo estabelecer uma relação entre
Como dissemos, nosso objetivo não foi em me-
Historia-Cinema sem sobrepor nem uma e nem
diar um relação entre História-Cinema, tentando bus-
outra. Claro que ao objetivar a nossa intenção
traçamos um caminho sem volta, e como muitos car indícios históricos a todo custo na obra do sueco.
percorridos, deixamos coisas para trás. Tentamos conduzir essa relação de forma harmoniosa.
Elencamos as principais ideias do filme para poder
Apesar de ser um filme histórico, O Sétimo Selo
estabelecer uma relação e um paralelo com a História,
foge das narrativas cinematográficas do gênero. Na
sendo mais específica a relação com a Idade Média.
película o medievo que nos é apresentado através

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11, 2006, p. 10-14.
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CARRIÈRE, Jean-Calude. A Linguagem Secreta do Cinema. – 1. ed.
SCHMITT, Jean-Claude. Deus. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-
Especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
Claude (Coord.) Dicionário Temático do Ocidente Medieval. coorde-
Como se vê a Idade Média?: Entrevista com José D’Assunção Barros. nador de tradução Hilário Franco Júnior. Bauru, SP: Edusc, 2006, v. I.
444
os CrisTiANismos
E os DisCursos DE AuToriDADE No sÉCuLo i

William Braga Nascimento1


Ana Lívia Bomfim Vieira


A
comparação é a vara de condão da histó- que sobrepõe identidades culturais inerentes aos
ria”. Com esta frase, o historiador Marc espaços geográficos e aos contextos políticos,
Bloch já ressaltava a importância em tirar reforçando assim, a lógica desse discurso de que
o exclusivismo de determinados objetos, á fim de não houve diferenciações históricas construídas.
se obter uma compreensão maior a respeito dos Esse entendimento quando posto em relação
mesmos, variando no tempo e lugar. É com este com a temática proposta neste trabalho, nos oferece
principio que norteio nesta investigação a temática um amplo leque de análises sobre as relações sociais
sobre os discursos de autoridade nos cristianismos dentro do movimento cristão primitivo, colocando ter-
em seu aspecto primitivo, ressaltando a pluralidade mo, a partir do viés da história nos discursos pautados
de ideias e concepções de cada membro quanto ao eminentemente pelo campo teológico, que ressaltam
funcionamento das comunidades. apenas questões de âmbito religioso quando referidas á
O Cristianismo do século I caracterizou-se por organização das comunidades cristãs. Um estudo mais
ser um movimento marcado pela heterogeneidade, aprofundado, realizado em parceria com as demais
sendo mais coerente chama-lo de “cristianismos”, ciências humanas, como a arqueologia, antropologia
por assim dizer, correntes que tinham em comum a e a história, podem nos ajudar a contextualizar melhor
crença em Cristo, mas que interpretavam o mesmo o ambiente no qual viviam os primeiros cristãos, e em
passado – vida, morte e ressurreição de Jesus - de quais conflitos estes estavam situados, e o porque deles
maneiras diferentes, dependendo do contexto de cada existires nessas comunidades.
localidade onde fora disseminado o movimento cris- As leituras tradicionais sobre o apóstolo Paulo
tão (CHEVITARESE, 2011). A atuação do apóstolo tratam o mesmo como um agente histórico que
Paulo é de tamanha importância para a compreensão pouco ousou discordar do aparato politico-ideo-
de uma proposta universalizante do cristianismo, pois lógico romano. Esta leitura baseada quase que
ao pregar a igualdade como característica universal exclusivamente na teologia, conservou apenas
do movimento cristão, Paulo caminhava em um aspectos religiosos ás comunidades paulinas, o que
direcionamento oposto ao que era praticado pelo apenas serviu para legitimar os discursos das ins-
império romano, como pode ser assim explicitado no tituições religiosas. Porém, com uma analise mais
versículo: “Não há judeu nem grego, não há escravo acurada dos textos bíblicos, sobretudo das cartas
nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vóis paulinas, perceberemos que Paulo estava também
sóis um só em Cristo Jesus” (Gl 3:28). dialogando com o poder imperial romano em suas
Contudo, o discurso da universalidade pres- cartas, contudo, de forma contra-imperial, através
supõe dissoluções de diferenças como forma de do evangelho da cruz de Cristo, no qual através
amalgamar todas as características particulares desta, formulara suas teleologias.
de cada localidade em prol de um projeto maior, As formas das quais Paulo organizava uma so-
1 Graduando do curso de História da UEMA e Bolsista FAPEMA, ciedade alternativa que ia contra o império romano,
desenvolvendo pesquisa sobre o processo de hierarquização nas comunidades
cristãs do século I, sob a orientação da Prof. Drª Ana Livia Bonfim Vieira. deu-se através das chamadas “Ekklêsias” (Rm 16:1;
445
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

1 Cor 16:19), que nos dias atuais é comumente tra- Com efeito, meus irmãos, pessoas da casa de
duzido como “Igreja”, contudo, conforme explica Cloé me informaram de que existem rixas
entre vós. Explico-me: cada um de vós diz:”
Horsley (2004, p. 207),” continuar traduzindo este
Eu sou de Paulo!”, ou “Eu sou de Apolo!”, ou
termo como sendo igreja é incorrer no erro, posto que “Eu sou de Cefas!”, ou “Eu sou de Cristo!”.
exclui as dimensões políticas que estava permeada Cristo estaria assim dividido? (1 Cor 1:11-13)
as ekklêsias. Entrementes, o termo “ekklêsia” no
mundo grego fazia referencia ás “Assembleias de Esta passagem do texto bíblico refere-se á um
cidadão da pólis grega”, logo, um termo politico com grande conflito no interior das comunidades paulinas
certas tonalidades religiosas que envolvia louvor, nos quais nos mostram a fragilidade dos discursos
aclamação, mas que também envolvia discussões no movimento cristão primitivo. Estas controvérsias
sobre os interesses dos cidadãos (e não somente devem-se, entre outros, ao fato da não instituciona-
eles), que também eram as principais atividades que lização de um determinado discurso – no caso, o
as comunidades de Paulo realizava. de Paulo – na comunidade de Corinto. Paulo nos
Importante ressaltar que Paulo não entendia apresenta nesta passagem, além do próprio estar
sua missão apenas como pregação do evangelho envolvido na questão, mais dois sujeitos que estariam
da crucificação e ressurreição de Cristo. Para confundindo e atrapalhando o bom funcionamento
da ekklêsias coríntia, segundo sua concepção, como
além disso, entendia que suas atividades consis-
Apolo e Cefas. Dentro das comunidades paulinas
tiam em estabelecer assembleias de fiéis entre
predominava a visão de que todos eram iguais, sem
as nações da Ásia menor e da Grécia, como
distinção de cor, gênero, etnia ou posição social
sociedades alternativas á lógica de dominação
conforme já mostrado na passagem aos Gálatas.
imperial romana, pautada entre outras no sistema
Todos estariam unidos através de Cristo. Logo, as
de patronato, em atividades politico-religiosas
ekklêsias de Paulo eram comunidades místicas em
como o culto ao imperador, entre outras. Con-
que as diferenças seriam sobrepujadas em prol de um
forme Horsley (2004, p. 212), “através das suas
objetivo muito maior, por assim dizer – preservação
cartas ás comunidades, Paulo insistia para que
em unidade visando a volta de Jesus – contudo, as
todos os membros das assembleias mantivessem
primeiras tensões locais começariam a aparecer
a solidariedade na batalha contra a ordem impe-
nessas organizações.
rial dominante até que Cristo tivesse ‘submetido
todas as coisas a si’. (Fl 3:20-21) O temor de Paulo era que os coríntios se
deixassem seduzir por seus adversários, os quais,
Após estas observações de grande impor-
segundo Murphy- O’ Connor (2004, p.33), ele estava
tância, sem as quais a compreensão da temática desacreditado, temendo que seus ensinamentos
ficaria comprometida, toma-se como exemplo fossem substituídos pelos de seus oponentes. Ainda
um primeiro caso analisado nas cartas paulinas em 1 Coríntios, Paulo é confrontado com a opinião
que deixam transparecer os conflitos dentro das contrária e depreciativa dos demais líderes das
comunidades paulinas. assembleias coríntias que apontam para o caráter
A primeira carta escrita à assembleia aos Corín- frágil e débil da oratória e retórica paulina (2Cor
tios deixa claro que esta foi escrita para responder os 11:5-6), quanto ao seu apostolado já que Paulo não
muitos questionamentos da presente comunidade. A conviveu com Jesus (1 Cor 9:1-3), e quanto a obs-
principal delas gira em torno das disputas de poder curidade de seu evangelho (2 Cor 4:2).
entre os líderes das assembleias da cidade. O objetivo Isso fica claro na questão tratado pelo após-
principal do apóstolo é manter a unidade, evitando tolo mostrado a seguir:
dissensões que poderiam fazer com que suas con-
De fato, ainda que vocês tivessem dez mil
cepções sobre um determinado tipo de cristianismo pedagogos em Cristo, não teriam muitos pais,
não perdurasse ali, sendo assim, distorcido, como porque fui eu quem gerou vocês em Cristo
explicitado no verso abaixo: Jesus, através do evangelho. Portanto, sede
446
William Braga Nascimento / Ana Lívia Bonfim Vieira

meus imitadores. Foi em vista disso que vos assembleias cristãs. Lembremos ate aqui do
enviei Timóteo, meu filho amado e fiel no principal ponto de vista de Paulo quanto a forma
Senhor; ele vos recordará minhas normas de de relacionamento dentro das comunidades, a
vida em Cristo Jesus, tais como as ensino em
toda parte, em todas as igrejas. (1 Cor 4:15-17)
igualdade. A fraca institucionalização dos dis-
cursos dentro do movimento cristão primitivo,
Ainda sobre tais questões, é importante fica demonstrada nas passagens abaixo, levando
ressaltar que para Paulo o conhecimento sobre em consideração as alterações dos textos:
determinado aspecto á fim de organização social Romanos 12:2 Romanos 13:1
é necessário para a legitimação do poder nas
assembleias. No caso em questão, esse conhe- “Cada um se submeta ás
“E não vos conformeis
autoridades constituídas,
cimento, fica respaldado no tocante ao encontro com este mundo,
pois não há autoridade que
mas transformai-vos,
com o Cristo ressuscitado, no qual Paulo teria renovando a vossa
não venha de Deus, e as que
encontrado na estrada de Damasco (Atos 9:1-31). mente, a fim de poderdes
existem foram estabelecidas
por Deus. De modo que
Esse episódio legitima a autoridade apostólica e discernir qual é a vontade
aquele que se revolta contra a
de Deus, o que é bom,
organizacional das assembleias por ele fundada. agradável e perfeito”
autoridade, opõe-se a ordem
Logo, o conhecimento se transforma para Paulo estabelecida por Deus”.

num instrumento de poder, sendo efetivado através


de outro aparato de legitimação deste, como as Causa estranheza no leitor que se depara
epistolas e cartas escritas pelo apóstolo. Ademais, com estes versículos na carta autentica de Paulo
deve-se notar que o material escrito por Paulo aos Romanos devido a monumental contradi-
são instrumentos usados intencionalmente para ção em que um se refere ao outro. No caso em
exercer autoridade, trazendo em si estratégias de questão, não se trata de uma pseudoepígrafe, e
influência que Paulo acreditava ser mais eficiente. sim de uma interpolação paulina, contudo uma
pergunta deve ser feita: qual a seria a intenção
Nesse contexto, percebemos a deslegitima- para que alguém manipulasse o ensino paulino
ção de discursos, tanto de Paulo quanto de seus na ekklêsia de Roma?
oponentes pelo controle das assembleias, o que
enseja disputas entre as variadas lideranças com Ademais, a passagem em Romanos 13 só
suas “verdades”. No entanto, deve-se atentar ain- pode ser entendida de forma mais ampla levando
da para outro fato contido no processo inicial do em consideração as interpolações após o período
cristianismo primitivo: as interpolações paulinas. de vida de Paulo, posto que em vida seria emi-
nentemente incoerente que o apostolo permitisse
As pseudoepígrafias segundo nos informam esta posição como correta na assembleia romana.
Koester (2005) e Crossan (2008) era um processo
aceitável na antiga tradição judaica. Contudo, to- É importante apontar que no contexto das in-
terpolações e pseudoepígrafias como tratado aqui, é
mando por as cartas inautênticas de Paulo como
tomado como pressuposto de que a base cultural de
Efésios, Colossenses, 2 Tessalonicenses, 1 e 2
um determinado individuo ou de um grupo social,
Timóteo e Tito, podemos inferir que essas cartas
aliado ao contexto de cada localidade são decisivas
foram usadas em nome de Paulo á fim de conceder
para explicar essas questões polissêmicas em torno
em meio a uma dada sociedade as quais estas cartas
das ideias e propostas de Paulo. Este pressuposto
se dirigem, a autoridade necessária para o estabe-
entra em conflito com a visão de mundo de Paulo
lecimento de um tipo de cristianismo que necessa-
pautado no discurso da universalidade, como já cita-
riamente não significava ser igual em concepções
do anteriormente. Na questão da assembleia romana
com os ensinamentos difundidos por Paulo.
pareceria caro a proposta de não se conformar com
A pluralidade em torno do movimento a ordem imperial romana vigente. Contudo, em que
cristão ganha mais ênfase quando tratado nesse níveis de contestação presentes no capitulo 12 da
contexto, posto a importância da escrita nas carta poderia se dar a não conformidade com a ordem
447
Nas Trilhas da Antiguidade e Idade Média

romana? Paulo deixa claro nas demais cartas que essa já havia morrido, Devido a grande autoridade que
conformidade não se ateria a resignação politica- o nome de Paulo gozava nas cidades de missão
cultural, sendo as ekklêsias a forma e o lugar onde por onde ele esteve, o autor das cartas a Timóteo
poderiam ser catalisados movimentos de contestação escreve em seu nome á fim de (re)organizar o
a ordem romana, mesmo que de forma silenciosa ou comportamento feminino na assembleia.
não efetiva em práticas armadas ou semelhantes. O autor desconhecido desta carta não per-
Outro exemplo apontado para percebermos a deria tempo para determinar o comportamento
ressignificação dos escritos paulinos, encontra-se feminino se elas já estivessem caladas e reclusas
pautado na postura de Paulo quanto a participa- nas assembleias. Logo, o que se pode inferir é
ção das mulheres nas assembleias. Lembremo- que elas participavam ativamente das reuniões
nos de que a contextualização do papel social e discussões nas assembleias. Ao relegá-las ao
das mulheres na vida pública era nulo, ou quase ambiente doméstico, o autor desta carta de-
nulo, quando referente a atuação politica nas as- monstra ser simpático ao modelo romano que
sembleias oficiais da cidade, sendo restrito a elas regia a vida nos lares com os códigos morais que
o questionamento aos seus maridos no ambiente determinavam a vida entre homens e mulheres,
doméstico. Tomando por base novamente Gl 3:28, o que também pode ser reiterado na carta pseu-
para Paulo não haveria o porque de distinções dopaulina de Colossenses no capitulo 3:18 – 4:1.
serem sustentadas na questão de gênero, etnia Contudo, o que os versos tratados em Timóteo
ou posição social. Porém, analisemos os textos a demandam a questão de que parte considerável
seguir de modo semelhante ao anterior: do movimento cristão do primeiro século era
contrária ao pensamento paulino, talvez pela
1 Coríntios 14: 33-36 2 Timóteo 2:11-12 questão da universalidade em dirimir diferenças
“Como acontece em todas as
“Durante a instrução históricas arraigadas naquela sociedade.
a mulher conserve
igrejas dos santos, estejam
caladas as mulheres nas
o silêncio, com toda De outra forma, podemos pensar também de
submissão. Não permito que as tensões entre os grupos cristãos do século
assembleias, pois não lhes
que a mulher ensine ou
é permitido tomar a palavra. I quando relacionados a participação feminina,
domine o homem. Que
Devem ficar submissas,
conserve, pois, o seu assenta-se no fato que silenciando as mulheres
como diz também a lei”.
silêncio”.
nas assembleias e excluindo dos seus postos
proeminentes de organizações litúrgicas, elas não
Antes de adentrarmos especificamente a este poderiam exercer com autoridade o apostolado,
quadro, ressalto a importância paulina das mulheres assim sendo, não poderiam ser líderes dentro do
em suas missões como sendo patrocinadoras de suas movimento cristão
campanhas. Romanos no capitulo 16 ressalta a pre-
Conforme Crossan (2008: 113), quando uma
sença de Febe³, uma mulher que ocupava um cargo
mulher transitava com um ensinamento do após-
de proeminência dentro da assembleia coríntia, que
tolo (como no caso de Febe), era necessário que
segundo Crossan (2008), transmitiu os ensinos de
esta mulher não somente entregasse a carta, mas
Paulo da região oriental de Corinto até Roma, além
também que lesse e explicasse aos demais mem-
de Prisca e seu marido Áquila (16:3-4).
bros da assembleia para a qual ela fora destinada,
Ressaltado ainda que breve a importância os principais pormenores dos escritos paulinos,
feminina nas missões de Paulo, passemos a no caso de Febe, a assembleia de Roma.
analisar os versículos no quadro exposto acima.
O texto de 1º aos Coríntios exposto no quadro,
As cartas destinadas a Timóteo tratadas aqui não se trata de uma pseudoepígrafia, mas de uma
como pseudoepígrafes, apontam uma visão poste- interpolação paulina, certamente feita após a morte
rior a vida de Paulo, haja visto que foram escritas de Paulo com a finalidade de instruir somente aos
após os anos 90 do I século, época em que Paulo homens o controle das Ekklêsias. O que mais chama
448
William Braga Nascimento / Ana Lívia Bonfim Vieira

atenção nesses textos é o fato de que as motivações Podemos constatar que esses discursos
cristãs dos grupos que fizeram as interpolações nas possuem certos graus de autoritarismos, pois
cartas de Paulo e as dos que escreveram pseudoepí- buscavam legitimidade em algo ou alguém, ou
grafias são a aproximação com os valores familiares e ainda em estruturas bem consolidadas no mundo
políticos gerais normalmente aceitáveis pelo império mediterrâneo á fim de terem proeminência em
romano, seja na teoria ou na prática. dadas localidades.
Portanto, os que esses textos querem passar uma Uma nova forma de ler o cristianismo pode e
problemática extremamente importante no dialogo deve ser feita em seu contexto plural, apontando
com o “cristianismo” atual: Teria esses autores a idéia e ressaltando que as diversas cidades por onde
de tornar o cristianismo mais aceitável ás estruturas passou o movimento, tinham formas especificas
políticas e culturais do império romano, calando assim de se relacionar com a ordem vigente, e formas
um subversivo social chamado Paulo? O movimento sociais que determinavam os comportamentos fa-
cristão do século I, longe de oferecer uma instituciona- miliares, políticos, tanto na esfera pública, quanto
lização de hábitos e comportamentos aproveitou-se de privada. Continuar tratando o “cristianismo”
suas estruturas locais diversas encontradas nas áreas como um movimento que reduz aspectos cultu-
de missões de Paulo para interpretar a sua própria rais a um discurso somente é continuar negando
identidade social-religiosa, longe do ideal paulino de as diferenças do ambiente quando relacionadas
universalidade, ou ainda o discurso da equidade seria a outro espaço. Entende-lo como um movimento
mais conveniente ao modelo cultural do cristianismo? diverso, heterodoxo, nos abrem novos prismas
Esta última pergunta parece responder a estas questões para a compreensão de um movimento bem
propostas neste trabalho. mais amplo do que aquele consagrado a tradição.

449
REFERÊNCIAS ESTUDOS

FONTES CHEVITARESE, André Leonardo. Cristianismos: Questões e Debates


Metodológicos. Rio de Janeiro, Kliné, 2011.
Atos dos Apóstolos. IN: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
CROSSAN, John Dominic & REED, Jonathan. Em Busca de Paulo:
Epístola aos Gálatas. In: ____
Como o Apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano:
1º e 2º Epístola aos Coríntios. In: ____
São Paulo: Paulus, 2008.
Epístola aos Romanos. In: ____
HORSLEY, A. Richard. Paulo e o Império: Religião e poder na Socie-
Epístola aos Filipenses. In: ____ dade imperial romana. São Paulo, Paulus, 2004.
Epístola aos Colossenses. In: ____ KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento: História e
2º Carta a Timóteo. In: ____ Literatura do Cristianismo Primitivo. Vol II. São Paulo: Paulus, 2005.

450
FICHA TÉCNICA

Adriana Zierer pesquisa a materialização dos discursos dominantes nas


práticas representativas das manifestações populares, tendo
Possui graduação, mestrado e doutorado em História pela como foco, o desenvolvimento da “política de apropriação
Universidade Federal Fluminense (2004). Realizou estágio Pós-Dou- cultural” desenvolvida pelo poder Público, entidades culturais
toral, na École des Hautes Études en Sciences Sociales (2013-2014) e iniciativas privadas. Na segunda área tem como enfoque a
junto ao Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Medieval análise dos discursos hagiográficos franciscanos do século
(GAHOM), com apoio da CAPES. Atualmente é professora Adjunta XIII, em especifico, sobre a estigmatização de Francisco de
III da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), na graduação e Assis ocorrida em 1224, este fato, teria transformado o santo
no Mestrado em História, Ensino e Narrativas, e professora colabo- italiano na imagem e semelhança do Cristo Crucificado. Foi
radora do Mestrado em História Social (UFMA). Atua nos seguintes Bolsista de Iniciação Científica BIC-UEMA (2010-2011) e bol-
temas: imaginário medieval, Visio Tnugdali, viagens imaginárias, sista de Iniciação Científica PIBIC-FAPEMA, (2011-2013), sob
cavalaria, mulher medieval, monarcas portugueses e rei Artur. a orientação da Prof. Drª Júlia Camêlo. Em 2013 ficou em 1º
Desde 2005 coordena bianualmente os Encontros Internacionais Lugar no SEMIC – Prêmio do Seminário de Iniciação Científica
de História Antiga e Medieval do Maranhão na UEMA. É uma das – Área de Ciências Humanas (Modalidade – PIBIC/FAPEMA),
coordenadoras dos grupos de pesquisa Brathair – Grupo de Estudos na Universidade Estadual do Maranhão. Em 2011 ficou em 1º
Celtas e Germânicos e Mnemosyne – Laboratório de História Antiga Lugar – SEMIC – Prêmio do Seminário de Iniciação Científica
e Medieval e uma das diretoras da Mirabilia – Revista Eletrônica de – Área de Ciências Humanas (Modalidade – PIBIC/UEMA), na
Antiguidade e Idade Média. Pesquisadora do Scriptorium (Labora- Universidade Estadual do Maranhão – UEMA.
tório de História Antiga e Medieval) da UFF, do GTSEAM (Transfor-
mações Sociais e Educação na Antiguidade e Medievalidade) e do
LEAM (Laboratório de História Antiga e Medieval), ambos da UEM. Alexandre Carneiro Lima
Publicações recentes: Da Ilha dos Bem-Aventurados à Busca do
Santo Graal – uma outra viagem pela Idade Média (2013), História Possui Graduação em História pela Universidade Federal do
Antiga e Medieval, v. 4 (2012). Rio de Janeiro (1995), Mestrado em História Social pela Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (1998) e Doutorado em História
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001).
Alair Figueiredo Duarte Atualmente é Professor Adjunto do Departamento de História
da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem experiência na
Possui graduação em Filosofia pela Universidade do Estado área de História, com ênfase em História da Antiguidade, atuando
do Rio de Janeiro pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro principalmente nos seguintes temas: Corinto, História da Grécia
– UERJ (2008). É Mestre em História Comparada, pela Univer- Antiga, Politeísmo, Artesanato e Corpo. É coordenador do grupo
sidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (2011). Atualmente é de pesquisa: Imagens, Representações e Cerâmica Antiga -
doutorando em História Comparada pela Universidade Federal NEREIDA (Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens
do Rio de Janeiro, sob orientação da Profª. Drª. Maria Regina da Antiguidade) e pesquisador do Mnemosyne (Laboratório de
Candido, e professor do Curso de Especialização de História História Antiga e Medieval).
Antiga e Medieval da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Publicações recentes: Ritos e Festas em Corinto Arcaica
(CEHAM-UERJ). Publicação recente: Práticas Religiosas no (2010), História e Imagem: Múltiplas Leituras (2013).
Mediterrâneo Antigo: Religião, Ritos e Mito (2012).

Alexandro Almeida Lima Araujo


Alex Silva Costa
Graduação em andamento em História Licenciatura plena pela
Mestrando em História Social pela Universidade Estadual Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Integrante do grupo de
de Londrina (UEL) sob a orientação da Prof. Drª Angelita pesquisa Mnemosyne – Laboratório de História Antiga e Medieval
Marques Visalli. Graduado em História pela Universidade Es- do Maranhão. Bolsista de Iniciação Científica pelo Conselho Na-
tadual do Maranhão (UEMA/2013). Participou do Mnemosyne cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, quota
(Laboratório de História Antiga e Medieval do Maranhão), 2011/2012. Bolsista BIC-UEMA, quotas 2012/2013 e 2013/2014.
orientado pela Prof. Drª Adriana Zierer. Atua em duas áreas de Em 2013 ganhou o prêmio Menção Honrosa ao trabalho de pesquisa
pesquisa, são elas, a História Cultural e a Medieval. Na primeira intitulado “Gladiadores na Roma antiga: cidadania, espetáculo e
451
inserção social”, apresentado sob forma de comunicação oral no Ana Marcia Alves Siqueira
XXV Seminário de Iniciação Científica – SEMIC, orientado pela Profª.
Drª. Ana Livia Bomfim Vieira. Em 2010 atuou como pesquisador, no Possui Licenciatura Plena em Letras pela Universidade
controle e organização do acervo documental da Coordenadoria do Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP (1992),
Arquivo e Documentos Históricos (CADH) do Tribunal de Justiça do Mestrado em Estudos Literários pela Universidade Estadual
Maranhão – TJMA. Atua nas áreas de Roma Antiga, gladiadores, Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP (1998) e doutorado
espetáculo, jogos. em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo – USP
(2007). Professora adjunta do Departamento de Literatura e
da Pós-Graduação em Letras do Centro de Humanidades da
Aline Leitão Moreira Universidade Federal do Ceará. É pesquisadora da área de Li-
teratura Portuguesa e Literatura comparada entre as literaturas
Possui mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Le- portuguesa e brasileira, especialmente, obras e autores ligados à
tras pela Universidade Federal do Ceará (2010). Especialização medievalidade e/ou ao Romantismo. Atualmente coordena o gru-
em Ensino de Literatura Brasileira pela Universidade Estadual po de pesquisa “Tradição, mitos e lendas: estudos de literatura
do Ceará – UECE (2005). comparada” e é membro do Conselho Científico da EntreLetras,
revista da Pós-Graduação em Letras da UFT. Publicou o livro
Antiguidade e Medievalidade nos textos (2013).
Ana Carolina Lima Almeida

Possui licenciatura e bacharelado em História pela Univer- Andréa Magalhães da Silva Leal
sidade Federal Fluminense (2006), mestrado em História pela
Universidade Federal Fluminense (2009) e doutorado em História Especialista em História Antiga e Medieval pela Univer-
pela Universidade Federal Fluminense (2013). Faz parte, como sidade do Estado do Rio de Janeiro (2013). Licenciada em
pesquisadora, do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Medieva- História pela Universidade Veiga de Almeida (2008). Espe-
lística (LEPEM) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro cialista em Docência no Ensino Superior pela Universidade
(UFRRJ). Tem experiência na área de História, com ênfase em Cândido Mendes (2006). Bacharel em Comunicação Social
História Antiga e Medieval, Humanismo, atuando principalmente pela Universidade Estácio de Sá (2003).
nos seguintes temas: Idade Média, História de gênero e relações
entre História e Literatura, Humanismo.
Bianca Miranda Cardoso
Ana Livia Bomfim Vieira Concluiu a graduação no ano de 2010, pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, com a monografia de título:
Possui graduação em História pela Universidade Federal do “Os Celtas da Galácia e a carta de Paulo: interações culturais nos
Rio de Janeiro (1996), mestrado em História Social pela Univer- primeiros séculos da era comum”, atuando nas áreas de Religio-
sidade Federal do Rio de Janeiro (1999) e doutorado em História sidade no Mundo Antigo, Assentamentos Celtas na Ásia Menor.
Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2005), tendo Concluiu o Mestrado em 2014 no Programa de Pós Graduação
realizado doutorado Sanduíche pela Université de Liège - Bélgica da Universidade Federal Fluminense produzindo a dissertação
e duas estadias como pesquisadora na École Française d’Athènes de título “Depósitos de sacrifícios humanos e terrenos de en-
- Grécia. Realizou também uma estadia como pesquisadora no terramentos formais: o caso de Gordion e a população Gálata”
Musée D’Archéologie de Bruxelas. É professora de História Antiga defendida em março deste mesmo ano sob orientação da Profª.
na Universidade Estadual do Maranhão - UEMA e coordena o grupo Drª. Adriene B. Tacla dando continuidade a sua pesquisa sobre
de pesquisa em História Antiga e Medieval Mnemosyne - Laboratório as populações celtas residentes da Península da Anatólia com
de História Antiga e Medieval. Organiza bianualmente o Encontro ênfase nas áreas de Arqueologia Histórica, Sacrifícios Humanos
Internacional de História Antiga e Medieval do Maranhão. Participa e Religiosidade. Atua também como revisora da revista Brathair.
como pesquisadora dos grupos de pesquisa “Imagens, Repre- http://ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair.
sentações e Cerâmica Antiga” - NEREIDA (Núcleo de Estudos de
Representações e de Imagens da Antiguidade) da UFF, “Política e
Sociedade no Mundo Greco-Romano: entre tradição e inovação” Bianca Trindade Messias
da UNB e Laboratório de História Antiga (LHIA), da UFRJ. Tem
experiência na área de História, Arqueologia Clássica e Antropologia Mestranda do Programa de Pós-Graduação História,
com ênfase em Historia Antiga Grega. Publicações recentes: O Mar, Ensino e Narrativas da Universidade Estadual do Maranhão
os pescadores e seus deuses. Religiosidade e Astúcia na Grécia (UEMA). Graduada em História licenciatura pela UEMA (2012)
Antiga (2011), História Antiga e Medieval – v. 4 (2012). com a monografia “O Combate pela Salvação: dinâmica dos
452
cavaleiros segundo a Visão de Túndalo e o Livro da Ordem de Camila Alves Jourdan
Cavalaria”. Bolsista de Iniciação Científica vinculada ao BIC/
UEMA no período de 2008 a 2011. Membro do grupo de pes- Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação
quisa Mnemosyne, Laboratório de História Antiga e Medieval em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Graduada
do Maranhão (UEMA). Em 2009 ganhou como Melhor Bolsista em História pela mesma universidade (2012), com experiência na
da área de Ciências Humanas (BIC/UEMA), no XXI Seminário área de História Antiga e Medieval com ênfase em História Antiga
de Iniciação Científica da UEMA, Universidade Estadual do nos seguintes temas: navegação grega no período arcaico (séculos
Maranhão – UEMA, sob orientação da Profª. Drª. Adriana Zierer. VIII-VI a.C.), a métis (astúcia/ardil) dos nautai (navegantes), constru-
Atualmente é professora do Programa Darcy Ribeiro – UEMA. ção de representações acerca do meio marítimo a partir da literatura
Trabalha com os seguintes temas: cavalaria, nobreza, Visão e imagética, iconografia. Aprovada como primeiro lugar geral de
de Túndalo, educação e religiosidade medieval. História Antiga e Medieval no processo de seleção de mestrado da
Universidade Federal Fluminense, aprovada em primeiro lugar como
monitora de História Antiga, desempenhando a função entre 4/2010
Bruno Rafael Véras de Morais e Silva e 7/2010. É membro do Núcleo de Estudos de Representações e de
Imagens da Antiguidade (NEREIDA), participando de projeto de pes-
Mestrando em História Social pela Universidade Federal da quisa como bolsista de iniciação científica PIBIC-UFF (2010-2011)
Bahia – UFBA. Licenciado em História pela Universidade de Per- e FAPERJ (2012-2013), e da equipe editorial da Plêthos - Revista
nambuco – UPE (2011). Bacharel em História pela Universidade Discente de Estudos sobre a Antiguidade e o Medievo.
Federal de Pernambuco - UFPE / Centro de Filosofia e Ciências
Humanas – CFCH. Realiza pesquisas em Historia e Historiografia
da África e ênfase à História da África no período Medieval (Séc. Camila Rabelo Pereira
XIV) a partir de fontes Literárias, mais especificamente Rihlat
de Cronistas Islâmicos africanos. Foi Bolsista de Iniciação Graduanda em História Licenciatura Plena pela Universidade
Científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Estadual do Maranhão (UEMA). Pertencente ao Grupo de Pes-
Tecnológico – CNPq, nos períodos de 2008 a 2011. quisa Mnemosyne – Laboratório de História Antiga e Medieval
do Maranhão. Bolsista de Iniciação Científica (BIC-FAPEMA) no
período 2011-2012 e BIC-UEMA em 2012-2013, sob a orientação
Brunno Oliveira Araujo da Prof. Dra. Adriana Zierer. Trabalha com temas relacionados
ao gênero, hagiografias e à figura da Virgem Maria.
Mestrando em História pela Universidade Federal Fluminen-
se - UFF. Filiado ao Núcleo de Estudos de Representações e de
Imagens da Antiguidade (NEREIDA) desde 2010. Graduado em Cintya Kelly Barroso Oliveira
História pela Universidade Federal Fluminense – UFF (2011).
Desenvolve pesquisa na área de Estudos Célticos, em especial Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do
nos debates sobre cultura, religiosidade e identidade celtas nas Ceará (2003), Especialização pela Universidade Estadual do
Ilhas Britânicas no Baixo Império e no Medievo sob orientação Ceará em Ensino de Literatura Brasileira (2005) e Mestrado em
da Profª Drª Adriene Baron Tacla. Atua também como editor- Letras pela Universidade Federal do Ceará (2009). Tem experi-
técnico da revista Brathair. http://ppg.revistas.uema.br/index. ência docente na Área de Letras, com ênfase em no ensino de
php/brathair e como professor de História. Docente da Rede Literatura Brasileira no Instituto de Educação Superior do Brasil,
Municipal de ensino, na cidade de Volta Redonda, RJ. na Faculdade da Aldeia de Carapicuiba e na Universidade Estadual
Vale do Acaraú. Exerceu o cargo de Coordenadora Regional do
Projeto Professor Diretor de Turma na Secretaria de Educação
Calil Felipe Zacarias Abrão do Estado do Ceará, e, atualmente, é professora efetiva da rede
pública de ensino do Governo do Estado do Ceará.
Especialista em História e Historiografia do Brasil pela Uni-
versidade Estadual do Piauí – UESPI, com o título “Prefaciando
a História: Teresinha de Queiroz e a Historiografia Piauiense”. Clara Manuella de Souza Guerra
Especialista em História Sociocultural pela Universidade Es-
tadual do Piauí – UESPI, com o título “História em prefácios: Possui graduação em História Bacharelado – CERES/UFRN
Teresinha Queiroz e a terceira fase da historiografia piauiense”. Campus Caicó (2013), com o título “Mulheres em Cena: uma
Possui Graduação em Licenciatura em História pela Universida- análise sobre as mulheres da Grécia Clássica nas peças de
de de Brasília – UNB. Tem experiência na área de História, com Aristófanes”. Graduanda em História Licenciatura – CERES/
ênfase em História Regional do Piauí, História Antiga, atuando UFRN Campus Caicó (2014). Tem experiência na área de
principalmente nas áreas de historiografia piauiense e cinema. História, com ênfase em História Cultural.
453
Darlan Pinheiro de Lima Fabrício Nascimento de Moura

Possui graduação em História pela Universidade Luterana Possui Mestrado em História Comparada pela Universidade
do Brasil (2005). Mestrando em História na UFRGS com a orien- Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2013, com o título “Práticas de
tação do Prof. Dr. José Rivair Macedo. Pesquisador na área de Sacrifícios Humanos em Cartago: exercício de experimentação
História Medieval, delimitando-se ao estudo na área de cultura e comparada com a civilidade romana no século III a. C.”. Possui
representações das sociedades ibéricas na Baixa Idade Média. Graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de
Faz parte do conselho editorial da revista Aedos – Revista do Janeiro (UERJ), 2008, com o título “A dinâmica das Relações Diplo-
Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da máticas relativa a tratados entre Cartago e Roma - séculos VI e III”.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, gestão 2011/2012. Pesquisador Orientador do Grupo de Estudos Multidisciplinares de
História Antiga e Medieval – GEMHAM/UEMA. Professor Substituto
de História Antiga e Medieval da UEMA, campus de Imperatriz.
Dayse Marinho Martins

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura Flávia Santos Gomes


e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão PGCULT/
UFMA. Licenciada em Pedagogia (2005) e História (2008) com Graduada em História pela Universidade Estadual do Ma-
Especializações em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela ranhão (2007). Bolsista de Iniciação Científica BIC-UEMA sob
Faculdade Santa Fé (2006), História do Brasil pela “Faculdades orientação da Profª Drª Adriana Zierer. Atua como professora de
Integradas de Jacarepaguá” (2008), Educação Infantil pela Escola História Antiga e Medieval do Programa Darcy Ribeiro/UEMA e
Superior Aberta do Brasil (2010), Ensino de Filosofia e Sociologia Professora do Ensino Fundamental II no Colégio Adventista de São
pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (2014). Graduanda em Luís e na Prefeitura Municipal de São Luís. Membro do Instituto de
Filosofia. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio e do Mnemosyne – Laboratório
história da educação, alfabetização, prática de ensino, educação de História Antiga e Medieval. Trabalha com o tema da educação
infantil, educação de Jovens e adultos, supervisão e gestão esco- na obra do filósofo catalão Raimundo Lúlio.
lar, bem como, aprofundamento em informática e comunicação na
educação. Professora e Suporte Pedagógico na E. Infantil da rede
municipal de São Luís. Supervisora Escolar na Rede Estadual de Flávio Pereira Costa Júnior
Ensino do Maranhão atuando como gestora da Divisão de Ensino
Noturno no Centro Integrado do Rio Anil - CINTRA/ Fundação Nice Graduado em História na Universidade Estadual do Mara-
Lobão no nível Médio Regular e EJA. nhão (UEMA), 2013, com o título “Entre o popular e o erudito:
as lendas como representação do Maranhão oitocentista”.
Atualmente é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação
Elizabeth Sousa Abrantes de História Social da Universidade Federal do Maranhão (PP-
GHIS-UFMA). Integrante do projeto Cnpq: “Posse, comércio e
Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense circulação de impressos na cidade de São Luis (1800-1841)”,
(2010), Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal de Per- coordenado pelo professor Dr. Marcelo Cheche Galves. Faz
nambuco (2002) e Graduada em História, pela Universidade Federal parte do Núcleo de Estudos do Maranhão Oitocentista (NEMO).
do Maranhão (1996). Atualmente é professora Adjunta e chefe do
Departamento de História e Geografia, da Universidade Estadual do
Maranhão, Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Edu- Francisca Derlange Soares de Sousa
cação do Maranhão (NUPEGE) e Docente Permanente do Programa
de Pós-Graduação História, Ensino, Narrativas (Mestrado Profissio- Especialista em Psicopedagogia Clínica.
nal - UEMA). Coordenou a Especialização em História do Maranhão
(UEMA) de 2004 a 2005, o curso de Aperfeiçoamento em Gênero e
Diversidade na Escola (MEC/UEMA/2010), na modalidade à distância Francisco Wellington Rodrigues Lima
(EaD). Foi Diretora do Núcleo Regional da Associação Nacional de
História (ANPUH-MA) no período de 2003 a 2005. Tem experiência Possui Graduação em Letras pela Universidade Federal
na área de História, com ênfase em História do Brasil e do Maranhão, do Ceará (2002), Especialização em Estudos Clássicos pela
atuando principalmente nos seguintes temas: gênero, mulher, dote e UFC (2006), Mestrado em Letras/Literatura pela Universidade
educação, nos séculos XIX e XX. Publicações recentes: A Educação do Federal do Ceará (2010), Doutorando em Literatura Comparada
“Bello Sexo” em São Luís na Segunda Metade do Século XIX (2014) UFC (2014.1). É ator, Diretor, Dramaturgo e Produtor da Cia.
e O Dote é a Moça Educada: mulher, dote e instrução em São Luís Teatral Moreira Campos, formado pelo Curso de Extensão em
na Primeira República (2012). Arte Dramática da UFC (2002). Foi Professor das Faculdades
454
Cearenses onde ministrou as seguintes disciplinas: Arte João Marcos Alves Marques
Educação e TCC I (Pedagogia), Comunicação e Expressão
Empresarial e Projetos Acadêmicos (Administração), Por- Atualmente é estudante do Curso de História da Univer-
tuguês e Metodologia do Trabalho Científico (Comunicação sidade Estadual do Ceará – UECE. Possui interesse principal-
Social - Publicidade e Jornalismo). É bolsista da Universidade mente nos seguintes temas: Antiguidade Clássica, Literatura
Aberta do Brasil / Universidade Federal do Ceará e já ministrou e História de gênero.
as disciplinas de Litertura e Didática. Atualmente é Professor
Substituto da Universidade Regional do Cariri, atuando no
Curso de Licenciatura em Teatro. Título da Dissertação de Mes- Jonathan Mendes Gomes
trado: “A Representação do Diabo Medieval no Teatro Vicentino
e seus Aspectos Residuais no Teatro Quinhentista do Padre Possui Graduação (Bacharelado e Licenciatura) em História
José de Anchieta e no Contemporâneo de Ariano Suassuna”. pela Universidade Federal Fluminense (2006) e Mestrado em
História Social pela Universidade Federal Fluminense (2010). Atu-
almente encontra-se matriculado no Programa de Pós-Graduação
Gladson Fabiano de Andrade Sousa em História da Universidade Federal Fluminense no nível Doutora-
do, com o título “Razom y Speriencia: Relações políticas e sociais
Graduando em Letras pela Universidade Federal do Mara- entre o homem e a natureza no Portugal Medieval (séc. XIV-XV)”,
nhão – UFMA. Desde 2008 é membro do corpo editorial “Jornal sob orientação do Prof. Dr. Roberto Godofredo Fabri Ferreira. Tem
Letras em Movimento”. experiência na área de História, com ênfase em História Medieval
Portuguesa. Interessa-se e pesquisa sobre literatura técnica, prosa
moralística, processo civilizador, sociedade de corte, discurso do
Igo Castro Carreiro paço, poder régio, relações entre homem e natureza, apreensão
do conhecimento no Portugal baixo-medieval.
Graduação em andamento em História pela Universidade
Federal do Piauí – UFPI.
José de Moraes Sousa
Jacklady Dutra Nascimento Possui graduação pela Universidade Federal do Pará (1999)
e mestrado em Educação em Ciências e Matemática - Núcleo de
Possui graduação em História pela Universidade Estadual Pesquisa e Desenvolvimento da Educação Matemática e Cientí-
do Maranhão (2004), especialista em Docência do Ensino fica (2009). Atualmente é assistente 1 - Campus Universitário
Superior (Faculdade Estácio de Sá/LABORO) e Mestrado em Bragança. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em
Ciências Sociais com habilitação em Antropologia, Sociologia Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educa-
e Ciências Políticas, pela Universidade Federal do Maranhão ção, sustentabilidade, inclusão, interdisciplinaridade e cultura.
(2010). Atualmente é Professora Efetiva E.B.T.T do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão.
José Henrique de Paula Borralho
Jaime Estevão dos Reis Possui graduação em História pela Universidade Federal do
Maranhão, UFMA (1997), Mestrado em História pela Universi-
Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade dade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP-Assis/
Estadual de Maringá (1986), graduação em História pela Univer- SP (2000) e Doutorado pela Universidade Federal Fluminense,
sidade Estadual de Maringá (1992), mestrado em História pela UFF (2009). É Professor Adjunto da Universidade Estadual do
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000) e Maranhão (UEMA). Tem experiência na área de História e Litera-
doutorado em Historia pela Universidade Estadual Paulista Júlio tura, atuando principalmente nos seguintes temas: identidades,
de Mesquita Filho (2007). Atualmente é professor Adjunto da intelectuais, tradição, teorias da história e literária, política-lite-
Universidade Estadual de Maringá (UEM). Trabalha no Departa- ratura, literatura e historia. É professor do quadro permanente
mento de História na área de História Medieval, com pesquisas do Programa de Pós-Graduação em História, Ensino, Narrativas
e orientações nos seguintes temas: instituições medievais, pen- (UEMA- São Luis), Coordenador Operacional do Doutorado
samento político medieval, economia medieval, direito hispânico Interinstitucional (DINTER) Novas Fronteiras em Ciências da
medieval, Península Ibérica na Idade Média. É coordenador do Literatura entre a UFRJ e a UEMA. Vice-Coordenador do NEMO
Laboratório de Estudos Antigos e Medievais (LEAM) e pesquisador (Núcleo de Estudos sobre o Maranhão Oitocentista). É autor
do GTSEAM (Transformações Sociais e Educação na Antiguidade das obras: Uma Athenas Equinocial: a literatura e a fundação
e Medievalidade), ambos sediados na UEM. de um Maranhão no império brasileiro (2010); Terra e Céu de
455
Nostalgia: Tradição e identidade em São Luis do Maranhão José Roberto de Paiva Gomes
(2011); VERSURA: poemas, contos e crônicas (2014), autor
do blog VERSURA (www.versura.blogspot.com) e da fanpage: Doutorando em História Comparada (PPGHC/UFRJ).
www.facebook.com/blogversura. Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janei-
ro – UFRJ (2004). Atualmente é membro da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Co-editor das revistas Jornal
José Maria Gomes de Souza Neto Philia, Fórum de Debates, Nearco e NEA com a Prof. Drª. Maria
Regina Candido (NEA/PPGH e PPGHC/UFRJ).
Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE),
Campus Mata Norte. Ministra as disciplinas de História Antiga
no Curso de História. Professor do Mestrado em Gestão do Josena Nascimento Lima Ribeiro
Desenvolvimento Local Sustentável (UPE). Bacharel (1997),
Mestre (2000) e Doutor (2005) em História pela Universidade Graduada em História pela Universidade Estadual do Mara-
Federal de Pernambuco. Publicou a coletânea Antigas Leituras: nhão – UEMA (2014) com a monografia “Messianismo e Poder no
Diálogos entre a História e a Literatura (Edupe, 2012) e foi Reinado de D. João I, de Portugal.” Bolsista de Iniciação Científica
autor individual de Sonhos de Nabucodonosor (Edupe, 2013). pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-
Tem experiência na área de História, com ênfase em História lógico – CNPq (2011/2012) e Bolsista de Iniciação Científica pela
Antiga, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino de Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico
História; Literatura e História; civilização: conceitos e debates; do Maranhão – FAPEMA (2012/2013), sob orientação da Profª.
História e propaganda. É coordenador do grupo de pesquisa Drª. Adriana Zierer. Premiada como Melhor Bolsista de Iniciação
Leitorado Antigo. Científica da Área de Ciências Humanas- CNPq/PIBIC/UEMA, no
XXIV Seminário de Iniciação Científica (SEMIC), da Universidade
Estadual do Maranhão – UEMA. Atua nos seguintes temas:
José Rivair Macedo Portugal, messianismo e crônicas régias. Em 2010 atuou como
pesquisadora, no controle e organização do acervo documental
Possui graduação em Licenciatura em História pela da Coordenadoria do Arquivo e Documentos Históricos (CADH)
Universidade de Mogi das Cruzes (1985) e doutorado em do Tribunal de Justiça do Maranhão – TJMA.
História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP (1993). Atualmente é Professor Associado 4
no Departamento de História da UFRGS, professor do quadro Joyce Oliveira Pereira
permanente do Programa de Pós-Graduação em História da
UFRGS, pesquisador do CNPq desde 1995, com Bolsa de Graduada em História Licenciatura pela Universidade Federal
Produtividade em Pesquisa Nível 1D; Coordenador do Núcleo do Maranhão – UFMA (2012), com o título “Em nome do Deus dos
de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos da UFRGS; Exércitos: a teologia política de Antônio Vieira no contexto das inva-
Coordenador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do sões neerlandesas na Bahia (1624-1641)”, sob orientação da Profª.
Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS. Drª. Maria Izabel Barbosa de Morais Oliveira. Foi Bolsista de Iniciação
Tem experiência na Área de História, com ênfase em História Científica financiada pela FAPEMA (2010-2011) e pelo CNPq (2011)
das Sociedades Africanas Antigas, atuando principalmente com projeto de pesquisa voltado para História da idéias Políticas
nos seguintes temas: africanos e portugueses no contexto com enfoque no Brasil e França do século XVII. Possui estudos
da abertura do Atlântico (séculos XV-XVII); fulas e mandingas voltados no período colonial para União Ibérica, teologia-política
na Senegâmbia e na Guiné (séculos XV-XVIII); tendências de Padre Antônio Vieira, a presença francesa e neerlandesa no
de abordagem da africanologia. Desde 2007 vem atuando Maranhão. Trabalha com planejamento de exposições, catalogação
na produção e divulgação do conhecimento da história das de acervos museológico, documental, visual. Também opera com
sociedades africanas, tendo coordenado a publicação do livro conservação e higienização dos acervos descritos anteriormente. É
Desvendando a História da África (EDUFRGS, 2008), História professora do Programa Darcy Ribeiro/UEMA. É membro do corpo
da África (Coleção Síntese Universitária, Ed. Contexto, 2013) editorial da Revista “O Historiante”.
e coordenado o projeto de cooperação entre a UFRGS e a Se-
cretaria de Educação Continuada, Educação e Diversidade do
Ministério da Educação (SECAD-MEC) que resultou na produção Júlia Constança Pereira Camêlo
do Vídeo-documentário “Viajando pela África com Ibn Battuta”
(2010). Realizou estágio sênior da CAPES junto à Universidade Possui graduação em História pela Universidade Federal do
de Lisboa, com o plano de atividades em torno do tema: “Portu- Maranhão (1997), mestrado em História pela Universidade Estadual
gueses e africanos no contexto da abertura do Atlântico” (2012). Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000) e doutorado em Ciências
É sócio da Academia Portuguesa da História. Sociais pela Universidade Federal do Pará (2010). Atualmente
456
é professora Adjunto II da Universidade Estadual do Maranhão Honra ao Mérito, Universidade Federal do Rio Grande do Norte
– UEMA, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura – UFRN. Atualmente é Professora da Faculdade de Formação
popular, bumba meu boi, sociedade, literatura, ensino, pesquisa, de Professores de Afogados da Ingazeira – FAFOPOI.
cocanha, apropriação, cultura popular e infância, trabalho, código.
Coordenadora da área de História do PIBID (Programa Institucional
de Iniciação à Docência). Publicações recentes: Fachada da Inser- Leonardo Augusto Silva Fontes
ção. A Saga da Civilidade em São Luís do Maranhão (2012) e O
cordel e o migrante nordestino: companheiros de viagem. Doutorando e mestre em História Social pelo Programa de Pós-
Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense
(UFF), na área de Antiga e Medieval, onde defendeu a dissertação
Kamilla Dantas Matias ‘Às margens da cristandade: os moros d’España à época de Afonso
X’ e atualmente desenvolve a tese ‘A oficina régia e a cultura escrita
Graduada em História pela Universidade Estadual do Su- no reinado de Afonso X (Castela e Leão, 1252-1284)’. Trabalha no
doeste da Bahia, UESB (2012). Mestre em História, na linha Arquivo Nacional desde 2006, sendo técnico da Equipe de Docu-
de pesquisa de História da Idade Média, pela Universidade de mentos Privados / Coordenação de Documentos Escritos (CODES),
Coimbra, Portugal (2014). Doutoranda em Altos Estudos em onde atua no tratamento arquivístico da documentação textual de
História pela Universidade de Coimbra. Atua nas seguintes natureza privada que integra o acervo da instituição. No final de
áreas: História Medieval, com ênfase em análise iconográfica 2011, foi um dos profissionais iberoamericanos selecionados pelo
e do discurso, e História Social do Trabalho, com ênfase em governo espanhol para participar da estancia “Gestión de fondos
iconografia dos movimentos sindicais de Vitória da Conquista documentales privados”, ocorrida em Toledo, na Sección Nobleza
(BA) da segunda metade do século XX. del Archivo Histórico Nacional da Espanha. Além disso, é membro
titular do Colegiado Setorial de Arquivos no Conselho Nacional
de Política Cultural do Ministério da Cultura (biênio 2013-2014) e
Katiuscia Quirino Barbosa secretário-geral da Associação dos Arquivistas do Brasil (AAB).
Interessa-se sobre os seguintes temas: história medieval; retórica;
Doutoranda em História Social pela Universidade Federal escrita, leitura, produção, circulação e recepção de textos; margi-
Fluminense (UFF). Possui Mestrado em História Social pela nalidade; mouros, cristãos e relações de poder; Afonso X; reinado
Universidade Federal Fluminense, com ênfase em Baixa Idade afonsino; história e/do direito; narrativa e história; organização
Média, com o título “A Imagem do Cavaleiro Ideal em Avis à de acervos; arquivologia; política arquivística; arquivos privados;
Época de D. Duarte e D. Afonso V” (2010). Possui Especializa- indexação; língua inglesa e tradução.
ção em História das Relações Internacionais pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com o título “A atuação
da política externa Brasileira na América do Sul” (2012). Gra- Lúcio Carlos Ferrarese
duação em andamento em Direito pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Professora Regente de História na Rede Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual
Estadual do Rio de Janeiro. Bacharel e licenciada em História de Maringá, com o título “Responsabilidade Civil do Médico
pela Universidade Federal Fluminense, com o título “Amadis nas Cirurgias Embelezadoras” (2008) e graduação em História
de Gaula: O cavaleiro perfeito” (2007). pela Universidade Estadual de Maringá (2012). Atualmente
é Mestrando da Universidade Estadual de Maringá, com o
título “Ideal Cavaleiresco e Atitude de Guerra: A Cavalaria de
Kyara Maria de Almeida Vieira Guilherme, o Conquistador e a Batalha de Hastings de 1066
nas Fontes Anglo-Normandas dos Séculos XI e XII”, sob orien-
Possui graduação em História pela Universidade Federal tação do Prof. Dr. Jaime Estevão dos Reis. É membro do LEAM
da Paraíba (2003) e mestrado em Sociologia Rural pela Uni- (Laboratório de Estudos Antigos e Medievais). Tem experiência
versidade Federal de Campina Grande (2006). Doutora pelo na área de História, com ênfase em História Medieval, atuando
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade principalmente nos seguintes temas: cavalaria, idade média,
Federal de Pernambuco (2014). Pós-doutoranda pelo Programa nobreza, guerreiros e Tapeçaria de Bayeux.
de Pós-Graduação de História da Universidade Federal de Cam-
pina Grande. Tem experiência no Ensino Básico, na graduação
e pós-graduação, atuando na área de História e Sociologia, Luís Carlos Mendes Santiago
nos campos de Teoria e Metodologia do Ensino de História,
Teoria e Metodologia da História, com trabalhos sobre Ensino Mestre em História Social pela Universidade Estadual de
de História, Multiculturalismo, Diversidades, Sexualidades, Montes Claros – UNIMONTES (2013). Possui graduação em
Identidades, Linguagem. Foi premiada com o Certificado de História também pela Unimontes (2007). Escritor com títulos
457
publicados sob o nome de Luís Santiago, com destaque para (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (1997).
a série O Vale dos Boqueirões, sobre a história do vale do Professora Associada nível IV da Universidade Federal do Maranhão.
Jequitinhonha, da qual quatro volumes já foram publicados. Pós-Doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de Lisboa
em andamento. Ex-coordenadora do Programa de Mestrado Inter-
disciplinar em Cultura e Sociedade da UFMA. Professora do quadro
Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro permanente dos mestrados em Letras e em Cultura e Sociedade da
UFMA. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa em Estudos da Paisagem
Mestrando em História Política pela Universidade do Es- nas Literaturas de Língua Portuguesa. Pesquisadora do Mnemosyne
tado do Rio de Janeiro – UERJ, com projeto versando sobre (Laboratório de História Antiga e Medieval). Presidente da ABRA-
o caráter político e ideológico da comédia de Aristófanes na PLIP (Associação Brasileira de Professores de Literatura Portugue-
sociedade ateniense do século V a.C.. Graduado em História sa) na gestão 2010-2011. Tem experiência na área de Letras, com
pela Universidade de Pernambuco (UPE-Campus Mata Norte). ênfase em Outras Literaturas Vernáculas, atuando principalmente
Pesquisador do Leitorado Antiguo (LEIA), grupo de ensino, nos seguintes temas: literatura e paisagem, literatura portuguesa e
extensão e pesquisa da UPE, com ênfase na área de História africana de língua portuguesa, cultura, identidade, memória e exílio.
Antiga. Atualmente, atua no referido grupo como técnico e Publicações recentes: Literatura e História Antiga e Medieval (2012),
possui pesquisa sobre representação dos papeis sexuais nas Literatura e Paisagem: perspectivas e diálogos (2010).
comédias do grego antigo Aristófanes, com a qual obteve
financiamento de bolsa de iniciação científica do CNPq no
projeto de pesquisa “É duro falar e mais duro ainda calar”: Marcio Felipe Almeida da Silva
Teatro Grego, sexualidade e Ensino de História, projeto PIBIC
iniciado em Agosto de 2010 e terminado em julho de 2011. Tem Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense
experiência no ensino fundamental e médio público e privado (2013). Graduado em História pelo UNIABEU – Centro Universi-
nas áreas de História, Filosofia, Sociologia e Geografia. tário. Atua como professor nos cursos de História e Pedagogia do
Centro Universitário UNIABEU. Membro desde 2011 do laboratório
de pesquisa Translatio Studii - Dimensões do Medievo.
Mailson Gusmão Melo

Graduação em História pela Universidade Federal do Mara- Marcos Edilson de Araújo Clemente
nhão – UFMA, com o título “Do Inferno ao Paraíso: represen-
tações historiográficas sobre Manoel Beckman” (2010). Espe- Licenciado em História pela Universidade Católica do Sal-
cialização em História do Brasil pela Faculdades Integradas de vador (1987). Mestrado em História pela Universidade Estadual
Jacarepaguá – FIG, com o título “As metamorfoses de Manoel de Campinas (2003) e doutor em História Social pela Universi-
Beckman” (2012). Mestre em História pela Universidade Fede- dade Federal do Rio de Janeiro (2011). É professor adjunto da
ral do Maranhão – UFMA, com o título “Um sujeito histórico, Fundação Universidade Federal do Tocantins (UFT), campus
vários personagens: representações historiográficas sobre de Araguaína. Membro associado do Núcleo de Estudos da
Manoel Beckman”, sob orientação do Prof. Dr. João Batista Violência – Nupev. Membro do Conselho Editorial da Revista
Bitencourt. Vencedor do concurso de monografias na área de Escritas. Concentra e desenvolve pesquisas com ênfase em
História da Historiografia Brasileira, Sociedade Brasileira de História do Brasil República, com as temáticas seguintes:
Teoria e História da Historiografia. (2013). História social, Nordeste, Banditismo social e Cangaço, Ser-
tões, História e Narrativa, Literatura e História. Publicou o livro
Lampiões acesos: o cangaço na memória coletiva (2009).
Márcia de Fatima de Moraes Sousa Bastos

Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Maria Regina Cândido


Pará – UFPA, com o título “A inclusão do Deficiente Visual na Escola
Estadual Heraldo Fonseca” (2004). Tem experiência na área de Possui Doutorado em História Social pela Universidade
Educação, com ênfase em Planejamento e Avaliação Educacional. Federal do Rio de Janeiro (2001) com estágio na EFA: Escola
Francesa de Atenas/Grécia e Mestrado em História Social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995). Atual-
Márcia Manir Miguel Feitosa mente é Professor Associado da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro/UERJ, coordenadora do Núcleo de Estudos
Possui Graduação em Letras pela Universidade Estadual de da Antiguidade (NEA/UERJ) e coordenadora do Curso de
Campinas (1984), Mestrado em Letras (Literatura Portuguesa) Especialização de História Antiga e Medieval da UERJ (Lato
pela Universidade de São Paulo (1992) e Doutorado em Letras Sensu). Atua junto ao programa de Pós Graduação de História
458
Comparada/UFRJ e da Pós-Graduação de História da UERJ. Nácia Lopes Noleto Sousa
Tem experiência na área de História, Filosofia, Antropologia
e Arqueologia com ênfase em sociedades antigas grega e Licenciada em História pela Universidade Federal do Ma-
romana. Interage com a área de Teoria e Metodologia na ranhão – UFMA. Especialista pelo IESF-CAPEM. Atualmente
construção do conhecimento em História aplicados princi- é professora das redes públicas e privadas de ensino básico
palmente nos temas sobre: rituais, práticas mágicas, análise e superior.
do discursos, praticas sociais, politica e na recepção dos
estudos clássicos junto ao “Iluministas do sec XVIII”. Atua
ativamente na área de orientação de alunos de graduação e da Natasha Nickolly Alhadef Sampaio Mateus
pós-graduação, recebendo, inclusive premiação PIBIC/UERJ,
Moção de Honra e Reconhecimento da ALERJ. Membro da Graduação em andamento em História pela Universidade
Society for Historical Archaeology - SHA/USA. Estadual do Maranhão – UEMA. Bolsista de Iniciação Cientí-
Publicações recentes: Medeia Mito e Magia: a imagem fica, quota 2012/2013, com o título “A Salvação segundo a
através do tempo (2010), Práticas Religiosas no Mediterrâneo Obra Doutrina para Crianças e Félix, o Livro das Maravilhas,
Antigo: Religião, Ritos e Mito (2012). de Ramon Llull”, sob orientação da Profª. Drª. Adriana Zierer.
Bolsista do projeto PIBID (Programa Institucional de Iniciação
à Docência) no período 2013-2014 sob a orientação da prof.
Marília da Rocha Marques Dra. Júlia Constança Pereira Camêlo. Membro do Mnemosyne
– Laboratório de História Antiga e Medieval.
Graduação em andamento em História pela Universidade
Estadual do Ceará – UECE. Integrante do Grupo de Pesquisa
na Antiguidade e Medievalidade - ARCHEA e tem pesquisa Neila Matias de Souza
com ênfase em História Antiga, com o título “As mulheres
de Deméter: Representações no Hino Homérico a Deméter Graduada em História pela Universidade Estadual do Mara-
na Grécia Arcaica (séc. VIII VI a.C.)”, sob orientação da Profª. nhão. Bolsista do CNPq/PIBIC/UEMA no período de 2006-2007
Drª. Sílvia Márcia Alves Siqueira. e 2007-2008, sob a orientação da Profª Drª Adriana Zierer.
Prêmio de Melhor Bolsista de Iniciação Científica na Área de
Ciências Humanas no XIX Seminário de Iniciação Científica da
Marla Rafaela Lima de Assunção UEMA (2007). Mestre em História Social pelo Programa de
Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense. Bolsista
Graduação em andamento em História pela Universidade da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento
Estadual do Maranhão – UEMA. Bolsista de Iniciação Cientí- Científico e Tecnológico do Maranhão – FAPEMA no período
fica PIBIC/FAPEMA (2010/2011), em que atuou nas relações de 2009-2011. Faz parte do Translatio Studii, Grupo de Pes-
entre o imaginário sobre o mar e as ambivalências sociais quisa vinculado ao CNPq e é associada à ANPUH e ABREM
dos “homens do mar” nas sociedades antigas, sob orientação (Associação Brasileira de Estudos Medievais). Doutoranda pela
da Profª. Drª. Ana Livia Bomfim Vieira. Integrante do grupo Universidade Federal Fluminense – UFF, com o título “Nobreza,
de Pesquisa Mnemosyne – Laboratório de História Antiga e Linhagem e Relações de Parentesco: uma análise da identidade
Medieval do Maranhão. cavaleiresca no século XIII”, sob orientação do Prof. Dr. Mário
Jorge da Motta Bastos. Tem experiência na área de História,
com ênfase em História Medieval, atuando principalmente
Matheus Corassa da Silva nos seguintes temas: Teorias da História, Idade Média, Idade
Média Central, Nobreza, Cavalaria, Relações de Poder entre a
Graduando em História pela Universidade Federal do Espírito Aristocracia Feudal, Portugal nos séculos XI-XIV.
Santo (UFES). É membro pesquisador do Grupo CNPq “Arte,
Filosofia e Literatura na Idade Média” coordenado pelo Prof.
Dr. Ricardo da Costa, participando dos projetos “As Projeções Ofélia Maria de Barros
Oníricas na História: ‘Lo Somni’ de Bernat Metge (1340-1413)”
e “Manifestações estéticas da concepção do tempo na arte Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba
românica da Península Ibérica Medieval (sécs. XI-XIII)”. Ademais, (1989), mestre em Sociologia Rural pela mesma universidade
traduziu, em parceria com o referido orientador, o tratado médico (1997), com a dissertação: “Não ser debandada no mundo:
“As Regras da Saúde a Jaime II (1308)”, do médico catalão Arnau a construção social das donas de casa no Cariri Paraibano”.
de Vilanova. Áreas de interesse: História Medieval, Literatura Ca- Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
talã, Arte Românica, Medicina Medieval, História da Alimentação da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, com a
Medieval, Educação, Memória e Patrimônio Histórico. tese “Terreiros Campinenses: Tradição e Diversidade” (2011).
459
Integra o corpo docente do Centro de Educação da Universida- 2013, com o sub-projeto “Paganismo versus Cristianismo
de Estadual da Paraíba (UEPB), Departamento de História. Tem no Romance de Melusina e em A Dama do Pé de Cabra”, sob
experiência na área de história, com ênfase em História antiga, orientação da Profª. Drª. Adriana Zierer. Estagiária no Arquivo
Oriente, sociologia e antropologia, atuando principalmente nos Público do Estado do Maranhão (APEM), atuando na conser-
seguintes temas: currículo e ensino, cultura e identidade, mito, vação e divulgação de acervos deste Arquivo. Premiada como
religiões e religiosidade, gênero e multiculturalismo. Melhor Bolsista de Iniciação Científica da área de Ciências
Humanas – PIBIC/UEMA, no XXIV Seminário de Iniciação
Científica – SEMIC (2012). Bolsista Modelo de Iniciação
Paula de Souza Santos Graciolli Silva Científica PIBIC/UEMA no XXIV SEMIC-UEMA. Premiada em
2º Lugar em Comunicação Oral - Categoria Graduação, no
Graduada em Administração pela Faculdade de Aracruz V Simpósio Nacional e IV Internacional de Estudos Celtas e
(2006). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Arte Germânicos (2012). Tem experiência na área de História, com
Medieval. Participa como bolsista do CNPq do Projeto interins- ênfase em História Antiga e Medieval, atuando principalmente
titucional de pesquisa (UFES-UNESP-Marília) intitulado “Mani- nos seguintes temas: linhagem, sobrenatural, mito e folclore.
festações estéticas da concepção do Tempo na Arte Românica Participante do laboratório de estudos Brathair – Grupo de
da Península Ibérica Medieval (sécs. XII-XIII)”, coordenado pelo Estudos Celtas e Germânicos.
Prof. Dr. Ricardo da Costa. Especialização em andamento em
História da Arte pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais
(CEUCLAR). Graduação em andamento em Artes Visuais pela Priscila de Moura Souza
Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.
Graduação em andamento em História pela Universidade
Estadual do Piauí, campus Poeta Torquato Neto, Teresina –
Paulo Ângelo de Meneses Sousa Piauí. Atua principalmente nas áreas de História, Literatura
e Cinema. Membro do Núcleo de Pesquisa em História e
Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Educação – NUPEHED.
Universidade Federal do Piauí – UFPI (1990) e doutorado em
História Social pela Universidade de São Paulo – USP (2001).
Atualmente é Professor Associado da Universidade Federal do Ramsés Magno da Costa Sousa
Piauí. Tem experiência na área de História, com ênfase em His-
tória Antiga e Medieval. Atuando principalmente nos seguintes Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela
temas: Heródoto, Debate Persa, Crítica e Interpretação. Universidade Federal do Maranhão (2002) e é Especialista em
Ensino-Aprendizagem da História (2004). Atualmente é professor
de História do 3º Ano do Ensino Médio pela Secretaria de Estado
Pedro Pio Fontineles Filho da Educação (MA), de grandes escolas particulares de São
Luís: Colégio Santa Teresa, Colégio Marista Araçagy e Jardim
Doutorando em História Social (UFC). Mestre em História do Escola Crescimento. Compõe também o quadro de professores
Brasil – UFPI (2008). Especialista em História do Brasil – UFPI da Educação de Jovens e Adultos pela Secretaria Municipal de
(2005). Graduado em Licenciatura Plena em História – UESPI Educação, atuando principalmente nos seguintes campos de
(2003). Graduado em Letras-Inglês – UFPI (2008). Atualmente pesquisa: Balaiada, Resistência, Educação, Escravidão e Cultura.
é Professor Assistente - Dedicação Exclusiva da Universidade
Estadual do Piauí. Membro do Núcleo de Pesquisa em História
e Educação - NUPEHED, da UESPI. Membro do Grupo de Pes- Renata Vereza
quisa Temporalidades da Memória: escrita, oralidades e cultura
material, da UFC. Nos últimos anos tem ministrado disciplinas de Possui graduação em História pela UFF (1995), mes-
cunho teórico como Introdução aos Estudos Históricos e Teoria trado em História Social pela USP (1998) e doutorado em
da História, além de disciplinas de pesquisa, como Métodos e História Social pela UFRJ (2007). Atualmente é professora
Técnicas de Pesquisa em História. do Departamento de História da Universidade Federal Flu-
minense. Tem experiência na área de História, com ênfase
em História Ibérica, atuando principalmente nos seguintes
Polyana Muniz temas: História Medieval, História Ibérica, História Urbana
e Conflitos Étnicos. Conta com experiência, também, em
Graduação em andamento em História pela Universidade gestão universitária, em especial, nas áreas de pesquisa e
Estadual do Maranhão – UEMA. Bolsista de Iniciação Científica pós-graduação. Pesquisadora do Translatio Studii – Núcleo
BIC-UEMA, quota 2011-2012 e aluna voluntária em 2012- de Dimensões do Medievo, da UFF.
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Ricardo Luiz Silveira da Costa Grupo de Estudos de Residualidade Literária e Cultural, que integra
o Diretório de Pesquisas do CNPq. Outra contribuição teórica sua é
Mestre e Doutor em História Social pela UFF (1997 e 2000), a Teoria da Poesia Insubmissa. Integrou o Grupo SIN de Literatura
com dois Pós-Doutorados em História Medieval e Filosofia que em 1968 imprimiu novo rumo às letras do Ceará. De 1995 a
Medieval pela UIC (Universitat Internacional de Catalunya, Bar- 1998 foi orientador das Oficinas de Poesia da Biblioteca Nacional
celona, 2003 e 2005). Professor Associado III do Departamento (RJ). É mestre em Literatura Brasileira (UFC) e Doutor em Literatura
de Teoria da Arte e Música da UFES. Acadêmico Correspondente Portuguesa (PUC-Rio). Membro efetivo do PEN Clube do Brasil (RJ)
da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona, Espanha (15- e representante do Brasil na Mesa Diretiva da Junta Mundial de
12-2005). Diretor da Revista Mirabilia - www.revistamirabilia. Poesia em Defesa da Humanidade, sediada no Caribe. Sua atuação
com. Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq “Arte, Filosofia e crítica e ensaística está em revistas e jornais brasileiros como En-
Literatura na Idade Média”. Membro de IVITRA (Institut Virtual contros com a Civilização Brasileira, Vozes, Poesia Sempre, Jornal
Internacional de Traducció), da Universitat d’Alacant (Espanha), de Letras, Tempo Brasileiro, Jornal de Letras, Suplemento Literário
do Grupo de Trabalho “Filosofia na Idade Média” da ANPOF e Minas Gerais, Poiésis, e inúmeras revistas acadêmicas. Em 2002
do “Principium” (Núcleo de Estudo e Pesquisa em Filosofia representou o Brasil no Primeiro Festival de Poesia de El Salvador,
Medieval, UEPB). Professor Efetivo do Programa de Doctorado e em 2007, no XII Festival Internacional de Poesia de Havana-Cuba.
Internacional Transferencias Interculturales e Históricas en Possui publicados 11 livros de poemas e 2 de ensaios.
la Europa Medieval Mediterránea da Facultad de Filosofía y
Letras da Universitat d’Alacant (UA-Espanha), dos Programas
de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFil) e Artes (PPGA) da Rosário de Maria Carvalho Silveira
UFES. Trabalhos disponíveis em seu site - www.ricardocosta.
com. Traduziu a novela “Curial e Guelfa” (séc. XV) e “Lo Somni” Graduação em História pela Universidade Estadual do
(1399), de Bernat Metge (1340-1413), sob encomenda para a Maranhão – UEMA (2008). Possui Especialização em História
Universitat d’Alicant (Espanha), publicada pela Universidade de da África pela Faculdade Atenas Maranhense (FAMA/2010).
Santa Bárbara (Califórnia). Foi tutora do Curso Gênero e Diversidade na Escola, oferecido
pela Universidade Estadual do Maranhão.

Rita de Cássia Mendes Pereira


Sayuri Grigório Matsuoka
Possui Licenciatura em História pela Universidade Federal
da Bahia (1987), Mestrado em História Social pela Universidade Graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará –
de São Paulo (1996) e Doutorado em História Social pela Uni- UFC (2005). Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual
versidade de São Paulo (2003). Atualmente, é professora titular do Ceará – UECE (1995). Mestrado em Literatura Comparada
de História Medieval da Universidade Estadual do Sudoeste da pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Bahia e docente do quadro permanente do Mestrado em Cultura, Federal do Ceará – UFC (2012). Doutoranda em Literatura
Educação e Linguagens. Tem experiência de pesquisa e ensino Comparada pela Universidade Federal do Ceará.
nos campos da Leitura e História Social do Trabalho. É membro
da diretoria executiva da Revista Politeia: História e Sociedade.
Sílvia Márcia Alves Siqueira
Roberto Pontes Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1994), mestrado em
Poeta, crítico, ensaísta, tradutor. Professor na graduação e no História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Programa de Pós-Graduação, de Literatura Brasileira, Literatura Filho (1999) e doutorado em História pela Universidade Esta-
Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Univer- dual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2004). Pós-Doutorado
sidade Federal do Ceará. Participante do grupo pioneiro dos estudos pela Università degli Studi Roma Ter, UNIROMA, Itália (2013).
destas últimas, no Brasil. Introdutor do estudo das Literaturas Atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual do
Africanas, disciplina de caráter obrigatório, no currículo do Curso Ceará e coordenadora do ARCHEA (Cultura Escrita e Oralidade
de Letras da UFC, tendo sido seu primeiro professor. É o criador na Antiguidade e no Medievo). Tem experiência na área de
do neologismo afrobrasiluso, para designar uma nova espécie de História, com ênfase em História Antiga e Medieval, atuando
literatura de língua portuguesa. É membro da Cátedra UNESCO, principalmente nos seguintes temas: história das mulheres,
da United Nations University - UNU, conveniada com a FACED/ gênero, mulher, história antiga e memória. Publicações re-
UFC. Sistematizador da Teoria da Residualidade, que já forneceu centes: Antiguidade e Medievalidade nos textos (2013), Cultos
fundamentos teóricos para 32 dissertações de mestrado e 5 teses orientais e magia no mundo helenístico-romano. Modelos e
de doutorado tanto no Brasil quanto no exterior. Coordenador do perspectivas metodológicas (2006)
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Solange Pereira Oliveira Terezinha Oliveira
Graduada em História pela Universidade Estadual do Mara- Possui graduação em História pela Universidade Estadual
nhão (2012). Mestre em História Social na Universidade Federal do Paulista Júlio de Mesquita Filho (1986), mestrado em Ciências
Maranhão (UFMA/2014) com a dissertação intitulada “Imaginário Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (1991) e doutorado
e Ideologia Cristã: uma versão portuguesa do Além Medieval em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
na Visão de Túndalo (século XV)”, sob orientação da Profª Drª Filho (1997). Realizou, em 2004, estágio de Pós-Doutorado em
Adriana Zierer. Bolsista da FAPEMA (2012-2014). Membro do História e Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP.
Grupo de Pesquisa Mnemosyne (Laboratório de História Antiga Atualmente, é professora associada nível C da Universidade Estadual
e Medieval do Maranhão). Atua principalmente nos seguintes de Maringá e Editora-chefe da Editora da Universidade Estadual de
temas: além, Túndalo, inferno, paraíso e viagem imaginária. Em Maringá. Também é Editora Científica das Revistas Acta Scientiarum
2009 foi premiada com Menção Honrosa na Área de Ciências Education, Imagens da Educação e membro do Conselho Editorial
Humanas – Categoria Aluno Voluntário (PIVIC/UEMA) no XXI da Revista Brasileira de História da Educação. Coordenadora do
Seminário de Iniciação Científica (SEMIC) da Universidade Esta- grupo de pesquisa GTSEAM (Transformações Sociais e Educação
dual do Maranhão, UEMA. Em 2010 foi premiada com Menção na Antiguidade e Medievalidade). Tem experiência na área de Edu-
Honrosa na Área de Ciências Humanas – Bolsista PIBIC/CNPq, no cação, com ênfase em Fundamentos da Educação, especialmente
XXII Seminário de Iniciação Científica da Universidade Estadual do em Filosofia e História da Educação, atuando principalmente nos
Maranhão – UEMA. Em 2011 foi premiada como Melhor Bolsista seguintes temas: transformação social, história da educação na
de Iniciação Científica da Área de Ciências Humanas – CNPq/ Idade Média, escolástica, filosofia da educação na Idade Média,
PIBIC/UEMA, no XXIII Seminário de Iniciação Científica (SEMIC) Intelectuais e Instituições Educacionais na Idade Média e formação
da UEMA. Neste mesmo ano foi premiada como aluna Padrão de professores. É filiada a ANPUH, SBHE, SBHR e a ABREM. Publi-
na categoria Bolsista de Iniciação Científica da área de Ciências cações mais recentes: Ensino e Debate na Universidade Parisiense
Humanas CNPq, no XXIII Seminário de Iniciação Científica, da do século XIII: Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnoregio (2012)
Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. e Dupont de Nemours. Fisiocracia e Educação (2014).

Talysson Benilson Gonçalves Bastos Veronica Aparecida Silveira Aguiar


Graduação em andamento em História pela Universidade Possui bacharelado em História pela Universidade de São
Estadual do Maranhão (UEMA). Bolsista de Iniciação Cientí- Paulo (2005). Licenciatura em História pela Universidade de São
fica PIBIC/CNPq, quota 2013/2014, ao desenvolver pesquisa Paulo (2006) e Mestrado em História Social pela Universidade de
sobre o estatuto jurídico e político dos pescadores da Grécia São Paulo (2010). Lecionou História no ensino médio e fundamen-
no período Clássico, sob orientação da Profª. Drª. Ana Livia tal nas escolas estaduais paulistas. Atualmente é presidente da
Bomfim Vieira. Integrante do Grupo de Pesquisa Mnemosyne ANPUH - Seção Rondônia, doutoranda em História Social na Uni-
– Laboratório de História Antiga e Medieval do Maranhão. versidade de São Paulo e professora Assistente II na Universidade
Federal de Rondônia na área de História Antiga e Medieval, atuando
principalmente nos seguintes temas: transformação social, Ordem
Tereza Renata Silva Rocha religiosa, escolástica, Intelectuais e Educação Institucionais na
Idade Média, ensino, Educação e formação de professores.
Doutoranda em História Medieval pelo Programa de
Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal
Fluminense (UFF), sob a orientação da Professora Dra. Vânia Viviane de Oliveira
Leite Fróes. Mestre em História Medieval (2011) pelo mesmo
Programa. Durante o Doutorado fez um Estágio na École des Graduanda em História pela Universidade Estadual de Ma-
Hautes Études en Sciences Sociales - Groupe d’Anthropologie ringá (UEM) e bolsista de iniciação científica sob a orientação
historique de l’Occident médiéval, sob orientação do Prof. Dr. da Profª Drª Terezinha Oliveira.
Jean-Claude Schmitt (2012). Formou-se em História na Univer-
sidade Federal Fluminense (2008), obtendo o título de bacharel e
licenciada em História. Está vinculada ao Scriptorium (Laborató- Wendell Emmanuel Brito de Sousa
rio de Estudos Medievais e Ibéricos). Tem experiência na área de
pesquisa em História, com ênfase em História Medieval, atuando Graduado em História pela Universidade Estadual do Mara-
principalmente nos seguintes temas: hagiografia, santidade, o nhão – UEMA (2013). Mestrando em História pela Universidade
Mal na Idade Média, imagem, narrativa, memória. Federal do Maranhão (UFMA).
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William Braga Nascimento que pesquisa sobre Cristianismos Primitivos com ênfase
nas relações Políticas e religiosas entre as primeiras co-
Graduação em andamento em História pela Universi- munidades cristãs e o Estado Romano a partir das cartas
dade Estadual do Maranhão – UEMA. Bolsista de Iniciação Paulinas e Deutero-Paulinas, sob orientação da Profª. Drª.
Científica – PIBIC/FAPEMA (2012/2013 e 2013/2014), em Ana Livia Bomfim Vieira.

UNIVERSIDADES DOS AUTORES

Instituto Federal do Maranhão – IFMA


Uniabeu – Centro Universitário
Universidade de Coimbra – UC
Universidade de Pernambuco – UPE
Universidade de São Paulo – USP
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Universidade do Sudoeste da Bahia – UESB
Universidade Estadual da Paraíba – UEPB
Universidade Estadual de Londrina – UEL
Universidade Estadual de Maringá – UEM
Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES
Universidade Estadual do Ceará – UECE
Universidade Estadual do Maranhão – UEMA
Universidade Estadual do Piauí – UESPI
Universidade Federal da Bahia – UFBA
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
Universidade Federal de Rondônia – UNIR
Universidade Federal do Ceará – UFC
Universidade Federal do Espírito Santo – UFES
Universidade Federal do Maranhão – UFMA
Universidade Federal do Pará – UFPA
Universidade Federal do Piauí – UFPI
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
Universidade Federal do Tocantins – UFT
Universidade Federal Fluminense – UFF
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
Universidade Regional do Cariri – URCA

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