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Confins

Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia

5 | 2009

Número 5
Projeto de pesquisa/Position de recherche

A contribuição de Henri Lefebvre


para reflexão do espaço urbano
da Amazônia
La contribution d’Henri Lefebvre à la réflexion spatiale urbaine
de l'Amazonie

Charles Benedito Gemaque Souza


https://doi.org/10.4000/confins.5633

Resumos
Português Français English
O espaço considerado como historicamente produzido pelo homem à medida que organiza
política e economicamente a sua sociedade, esta é a afirmação que distingue o conjunto das obras
de Henri Lefebvre. Trata-se de uma tentativa concreta de retornar à dialética de Marx, contudo
sem os dogmatismos e as opressões características de outras interpretações marxistas. Nessa
acepção, a atualidade das reflexões do autor em relação à realidade do contexto urbano na
Amazônia e, designadamente, com as contradições espaciais presentes no cotidiano de Belém
permite um exercício de reconhecimento da validade deste pensamento para apreensão da
complexidade das cidades Amazônicas.

L'espace considéré comme historiquement produit par l'homme dans le fait d'organiser tant
politique qu'économiquement sa société; c'est l'afirmation qui distingue les oeuvres de Henri
Lefebvre. Il s'occupe d'un essai concret de retourner à dialetique de Marx, mais sans le
dogmatisme et les oppressions qui sont caractéristique d'autres interprétations de matérialiste.
Pourtant, le présent de la réflexion de cet auteur inhérente à l'urbanisation de l'espace amazonien
et dans l'attribution avec son espace social présent dans le quotidien de Belém permet l'exercice
de la reconnaissance de validité d'une telle pensée avec l’appehension de la complexité de la ville
dans l’Amazonie.

The space considered as historically produced by man in organizing both political and economical
his society; this is the affirmation that distinguishes Henri Lefebvre masterpieces. It deals with a
concrete attempt in returning to the Marx dialectic, but without the dogmatism the characteristic
oppressions concerning other materialist interpretations. However, the present time of the actor
reflection inherent to the Amazon urban space and in assignment with its socio-spatial presented
in Belém day-to-day allows the exercise of the validity acknowledgment of such thought along
with apprehension of the Amazon city complexity.
Entradas no índice
Index de mots-clés : dialetique, espace urbain, Lefebvre
Index by keywords: dialectics, Lefebvre, urban space
Índice geográfico: Amazonie
Índice de palavras-chaves: dialética, espaço urbano, Lefebvre

Texto integral
1 Ao apresentar a sua acepção sobre a produção social do espaço o filósofo francês
Henri Lefebvre (1901-1991) resgata o princípio fundamental da teoria de Marx, que
enfatizava o homem como sujeito da sua história. Neste intuito, o autor questiona a
vida cotidiana da sociedade moderna a partir de sua expressão mais manifesta: o
espaço, ao mesmo tempo, consolida uma densidade teórica incomparável para a análise
urbana da Amazônia, assim como para a construção de mecanismos alternativos de
gestão e de planejamento da cidade.
2 Nestes termos, a disposição do espaço urbano traduz as relações conflitantes entre o
capital e o trabalho, condicionando não somente no sentido material, mas nas relações
de poder projetadas territorialmente e nas práticas sócio-espaciais inscritas no espaço.
Deste modo, o espaço representa um componente dialeticamente definido dentro de
uma economia política, que, em última instância, explica a sobrevivência do capitalismo
atual.
3 O sentido do presente trabalho é contribuir para apreensão das contradições nas
espacialidades e temporalidades inerentes à dinâmica interna do espaço urbano
amazônico, através de uma releitura da cidade pela ótica da teoria do espaço social de
Lefebvre. Como procedimento inicial de uma análise urbana capaz de conduzir, em
contextos diferenciados, à democratização da sociedade.

O retorno à dialética
4 Henri Lefebvre foi um profundo estudioso da obra de Marx e, como tal, estava
inconformado com os dogmatismos e opressões filosóficas arquitetados em nome de
um marxismo formal. Dedicou-se, então, a um exercício de releitura, porém situada
criticamente no tempo e no espaço.
5 Não obstante o reconhecimento da autoridade do marxismo para a interpretação da
sociedade moderna, Lefebvre questiona o posicionamento de autores que colocam um
Marx acabado, atemporal e precursor de um novo sistema de poder. Em vez disso,
busca trabalhar de forma a restituir a integralidade do pensamento original, ao mesmo
tempo em que sugere uma maneira de adaptá-lo à segunda metade do século passado.
Tal desafio se depara, inicialmente, com interpretações falsas que mistificam uma
estrutura social já desvendada, que deixa transparecer a idéia de irreversibilidade da
realidade. Trata-se de um obscurantismo teórico que além de se distanciar do real, cria
abordagens que eliminam as contradições das relações sócio-espaciais assim como a
possibilidade de sua superação.
6 Contudo, o mundo real é caracterizado pelas desigualdades sociais, pelas crises
financeiras, pela fragmentação das ciências, pelas necessidades distintas e, sobretudo,
pelo agravamento do conflito entre o capital, o trabalho, assim como pelo avanço do
espaço como um componente dialeticamente definido dentro da economia política.
Logo, as contradições são cada vez mais agudas dentro desta nova realidade, indicando
a precariedade das respostas da lógica (formal) para entrever o real. Ao retomar a
dialética, é necessário atenta-se justamente para o núcleo explicativo do método, ou
seja, a percepção da realidade depende da práxis do concreto.
7 Marx (2003) esclarece que a investigação teórica se apodera do real, e só depois de
concluído esse primeiro movimento do pensamento é que se consegue descrever a
essência do objeto de análise.
Fica claro que nesta concepção o objeto de conhecimento vai se anunciando ao longo do
movimento do pensamento, ou seja, o trajeto define-se a partir do concreto, do real.
Neste ponto, Lefebvre inclui as representações mentais como virtualidades que
simulam a vida e dissimula à realidade concreta, desta forma, o autor acredita que o
pensamento, sem omitir o real, deve orienta-se também em direção ao possível,
aproximando-se da utopia.
Diante disso, a questão central que em Marx era a relação entre o homem e natureza,
ganha um novo componente: as forças produtivas desenvolvidas além do real, do
imediato. A natureza que antes era apenas mediadora da constituição humana, hoje
está submetendo ao homem limitações e padronizações a partir de uma natureza
concebida.
8 Nesta concepção, o homem atua sobre a natureza para atender as suas necessidades
imediatas, modificando a sua própria relação com a natureza e com a sociedade.
Entretanto, essas relações sociais não são uniformes nem no tempo e muito menos no
espaço, depende da realidade contextual. Enfim, o homem reproduz, mas, também
produz, neste aspecto, o espaço envolve as contradições e as particularidades do real,
influenciando os processos sociais subseqüentes.
9 A partir de sua interpretação da dialética, Lefebvre (1995) cria um procedimento
investigativo específico para a realidade social: o método regressivo-progressivo, que
remete, basicamente, a três momentos distintos: a descrição do visível, a análise
regressiva e a progressão genética. A descrição do visível é uma observação inicial da
complexidade horizontal através da experiência e da teoria geral do pesquisador. Trata-
se de um expediente para obter informações sobre a diversidade sócio-espacial do
objeto de estudo. A análise regressiva faz um esforço para especificar as temporalidades
existentes, por meio desta envereda-se pela complexidade vertical. A realidade é
decomposta na tentativa de datar exatamente cada relação social revelada. Neste
momento evidencia-se que o real não é equivalente e nem simultâneo, logo resulta de
atos, de práticas e de representações que dificilmente são contemporâneas. O
reencontro com o presente denomina-se de progressão histórico–genético, e alude a um
presente elucidado, compreendido e explicado. Logo, as contradições sociais não são
apenas das relações de classes, mas desencontros entre temporalidades e
espacialidades, consolidando cada prática social diferente como uma possibilidade de
negação do real.
10 Neste caso, percebe-se uma dupla complexidade para análise da realidade social: a
horizontal e a vertical. A horizontal indica as diversidades espaciais das relações sociais,
enquanto a complexidade vertical está na identificação do tempo de cada relação social,
desdobrando-se em espacialidades e temporalidades desencontradas e coexistentes.
Lefebvre redefine, então, o pensamento a partir do movimento de transducção,
entendido como um instrumento intelectual que pressupõe uma realimentação
incessante entre os conceitos utilizados e as observações empíricas, capaz de introduzir
também as representações mentais. Desta forma, estuda as particularidades do
presente a partir das heranças do passado, assim como indica possibilidades para o
futuro. Não se trata de um método histórico simples, à medida que o historiador busca
no passado eventos da época, para posteriormente criar analogias e deduzir
conseqüências. Enquanto, o método regressivo-progressivo inicia do presente e volta ao
passado para recortar acontecimentos que precederam e elucidam o presente. Depois,
faz o movimento contrário na tentativa de revelar todas as possibilidades
(virtualidades) contidas no momento atual.
11 A originalidade deste método, em relação à dialética convencional, está concentrada
nesta capacidade metodológica de aplicar tal pensamento às relações sociais concretas.
É preciso ressaltar que o fundamental em Lefebvre (1995) era a noção de práxis, no
entanto a realidade e as concepções devem estar sempre abertas a outras dimensões
sociais como as representações e o espaço.
A teoria do espaço social
12 O espaço envolve as contradições da realidade à medida que é um produto social,
diante dessa afirmação o espaço torna-se uma mercadoria que se abstrai enquanto
mundo, ao mesmo tempo, que traduz as diferenças e as particularidades contextuais.
Conferindo a possibilidade de antever os movimentos de opressão ou de emancipação
do homem por meio da dialética espacial. A cotidianidade moderna se resume a uma
constante programação de hábitos sempre direcionados para a produção e o consumo,
produzindo uma “sociedade burocrática de consumo dirigido” (Lefebvre, 1980, p. 47).
Os espaços construídos dentro da lógica capitalista seguem a padronização e o
individualismo desta racionalidade, são, portanto, espaços abstratos, primados pela
razão estética e pela força das imagens.
13 Todavia, o espaço abstrato não consegue destituir completamente as contradições da
realidade prática e sensível imediata, além de abrigar novos conflitos concernentes à
própria lógica econômica e política. Surge o espaço das diferenças, fragmentado pela
resposta da sociedade local à implosão de uma ordem distante. Assim, a ordem próxima
refere-se aos espaços de representações (diferenciais) imediatas, que espelham as
especificidades que não conseguem ser coagidas pela abstração do espaço. Desta
maneira, as representações não podem ser consideradas unicamente como
virtualidades que vão além da realidade para alimentar uma racionalidade abstrata e
ideológica. Para Lefebvre (1974) tal definição não se aplica quando tais representações
incorporam a experiência imediata e sensível, visto que podem de fato reprimir a
abstração, retirando a estagnação e a homogeneidade artificial do conceito de espaço.
Assim, a análise da dialética do espaço significa ponderar sobre as contradições
presentes no espaço-mercadoria, uma abstração que se concebe enquanto mundial a
partir do consumo do espaço. Conquanto, o homem é um ser que usa o espaço para
viver de acordo com as condições naturais e históricas específicas; neste caso, o valor de
troca não repercute da mesma maneira em espaços distintos. Tal realidade exige
definições mais exatas dos níveis de análise, os quais não podem se separar e nem
confundir, mas precisam ser apontadas pela reflexão. Conforme Lefebvre (1991) é
possível seguir dois procedimentos, tanto do geral para o específico quanto partindo do
singular e constrói o geral utilizando os elementos e significações do observável nas
singularidades. A segunda opção, uma espécie de semiologia do espaço consegue unir
teoria e prática, dando conta das alteridades e das representações prescrita.
14 A partir desta percepção, Lefebvre (1974) define três momentos na produção social
do espaço: o espaço concebido; o espaço vivido; e o espaço percebido. O espaço
concebido é notadamente o da representação abstrata traduzido no capitalismo pelo
pensamento hierarquizado, imóvel, distante do real. Advindo de um saber técnico e, ao
mesmo tempo, ideológico, as representações do espaço privilegiam a idéia de produto
devido à supremacia do valor de troca na racionalidade geral.
15 O espaço percebido aparece como uma intermediação da ordem distante e a ordem
próxima referentes aos desdobramentos de práticas espaciais oriundas de atos, valores
e relações específicas de cada formação social. Deste modo, atribui às representações
mentais materializadas funcionalidades e usos diversos, que correspondem a uma
lógica de percepção da produção e da reprodução social. O espaço vivido denota as
diferenças em relação ao modo de vida programado. Enquanto experiência cotidiana
(ordem próxima) está vinculada ao espaço das representações através da insurreição de
usos contextuais, tornando-se um resíduo de clandestinidade da obra e do irracional. O
espaço social, então, configura-se como a expressão mais concreta do espaço vivido,
quando entendido pela soberania do homem sobre o objeto, através de sua apropriação
pela corporeidade das ações humanas. Evidencia-se que esta análise espacial remete à
produção do espaço no processo de reprodução social; por conseguinte, o espaço é
considerado um campo de possibilidades de construção de um espaço diferencial, que
se opõe ao homogêneo e contempla o uso. Em decorrência desta afirmação, percebe-se
que não existe uma imutabilidade entre as dimensões espaciais; desta forma, nada
impede que o espaço concebido absorva o espaço das representações (vivido).
16 A fundamentação teórica de Lefebvre tem como objetivo principal desvendar essa
realidade atual, para tanto o parâmetro é a vida cotidiana na sociedade moderna. Nesta
acepção o autor relata que o espaço contém e está contido nas relações sociais, logo o
real é historicamente construído tendo como representação mental o urbano e a cidade
como expressão material desta representação.
Trata-se de uma definição de cidade (e de urbano) como sendo uma projeção da
sociedade sobre um espaço, não apenas sobre o aspecto da vida social de cada lugar,
mas também no plano da representação abstrata. A partir desse raciocínio Lefebvre
(1974) deduz que o espaço traduz um conjunto de diferenças, ou seja, é o lócus de
coexistência da pluralidade e das simultaneidades de padrões, de maneiras de viver a
vida urbana. Contudo, não descarta a idéia de que o espaço também é o lugar dos
conflitos, onde a exploração subordina não apenas a classe operária como outras classes
sociais.
17 A dialética entre o espaço concebido e o espaço vivido se materializa no momento que
as temporalidades e as espacialidades ligadas à irredutibilidade do uso se fazem
presente na apropriação da cidade. Tal dinâmica pode ser vislumbrada principalmente,
porém não exclusivamente, nos espaços urbanos que reagem à forma metropolitana. O
cotidiano destes lugares designa a atividade criadora por meio da construção individual
e coletiva dos seus moradores diante da reprodução do espaço. O direito à cidade então
é visto por Lefebvre (1991) como um direito inalienável à vida, pela valorização da obra
e do uso, isto só é exeqüível através da construção de uma analise da cidade mais
voltada para um novo humanismo. Portanto, o espaço (social) não é apenas uma
condição e um produto, mas meio para as relações conflitantes dentro do capitalismo.
Assim, é preciso apreender como a reprodução das relações do capitalismo moderno se
desdobra para a vida cotidiana de uma sociedade urbana.

A produção social do espaço urbano


amazônico: o exemplo de Belém
18 Belém tornou-se uma metrópole, um ponto de convergência de fluxos de pessoas,
informações e de decisões que repercutem em toda região amazônica. As suas práticas
sócio-espaciais apresentam uma diversidade, assim como uma complexidade, produto
de uma dialética constante entre a ordem próxima e a ordem distante, ou melhor, em
meio à lógica da reprodução da metrópole e a da reprodução da vida. A reprodução do
espaço abstrato ocasionou dois fenômenos concomitantes em Belém: a implosão da
experiência imediata e a explosão das singularidades. Trindade Jr (2004) esclarece que
a padronização espacial rompe com uma tendência de uma urbanização
predominantemente ribeirinha em Belém, uma vez que as condições naturais e o
processo histórico da região aproximavam a cidade para este tipo de forma
metropolitana.
19 Deste modo, Belém se destaca não somente pelo ritmo do seu crescimento
populacional, mas também pela dinâmica acelerada de transformação do espaço-
tempo, definindo uma forma metropolitana peculiar. A cidade é marcada por
descontinuidades sócio-espaciais produto de uma dialética entre a forma metropolitana
e aspectos do cotidiano da vida social regional. Logo, o espaço concebido assume o
caráter moderno de inserção de uma ordem distante: a reprodução do espaço para o
mercado. Por outro lado, o processo de ocupação da várzea dos igarapés de Belém, foi
conseqüência de um dos mais complexos problemas sócio-espaciais dentro do contexto
urbano brasileiro nestas últimas décadas; uma significativa parcela da população que
não tem poder aquisitivo compatível com os custos de se morar em áreas “urbanizadas”
das cidades.
20 Os moradores das ocupações urbanas assistem gradualmente a segregação dos seus
assentamentos humanos, o empobrecimento de suas relações de vizinhanças e a
diminuição dos espaços públicos por meio da banalização do consumo. Todavia, os
tempos indissociáveis e contraditórios aparecem no estranhamento em relação às novas
formas espaciais, consubstancialmente nos indivíduos ou em práticas que não existem
mais.
21 Neste aspecto, as ocupações urbanas designam um processo coletivo de mobilização e
resistência espacial, articulando o lugar com a (re) produção da metrópole. Portanto,
essas ocupações “coletivas” definem-se como canais de expressão das lutas cotidianas
dentro das práticas sócio-espaciais de Belém, ou seja, o movimento de ocupação
tornou-se um instrumento concreto de contestação e de exercício de poder. Tais
ocupações são produzidas por determinados agentes sociais, as quais delimitam
territorialidades distintas em relação à metrópole, a partir das representações próprias
alocadas no tempo e no espaço. Logo, as baixadas de Belém não foram produtos de uma
padronização ou de uma estratégia deliberada, e sim obra da criatividade dos seus
moradores.
Nestes termos, o território extrapola a idéia de controle e de poder político,
incorporando, igualmente, dimensões espaciais, próprias da acepção de lugar. Tal fato
revela ainda que é errôneo trabalhar com uma percepção única em todas as ocupações
urbanas de Belém, mesmo que estas pareçam tão semelhantes nos aspectos físicos,
guardam em si práticas sócio-espaciais singulares.
22 Diante disso, trata-se de pensar a cidade através da relação espaço-tempo, expressão
dos modos diferenciados de ações sociais. O processo de produção do espaço urbano
baseia-se, de um lado, nas possibilidades de articulação entre formas de uso e de
abstração do espaço e, de outro, pelo conflito de interesses que orientam as ações do
Estado.
Neste ponto, é importante atentar para as possibilidades analíticas e política de uma
metrópole como Belém, onde as resistências são tanto no espaço como no tempo mais
concreto que, por exemplo, em uma metrópole mais consolidada como São Paulo. As
especificidades da trajetória do espaço urbano na Amazônia e as diversas
representações alocadas tornam-se uma característica impar da região.
Conseqüentemente, as ocupações urbanas de Belém são territórios específicos,
construídos por meio de um campo de forças, uma teia de redes sociais e uma
complexidade interna que definem os limites e as alteridades, enfim, as diferenças entre
as suas vivências com o resto da cidade. Tal fato, mostra que é errôneo trabalhar com
uma percepção única em todas as ocupações urbanas da cidade. Mesmo que estas
pareçam tão semelhantes nos aspectos sócio-espaciais, guardam em si individualidades
comportamentais e culturais.
23 Diante disso, as ocupações urbanas designam um processo coletivo de mobilização e
reivindicação, articulando o local com a (re) produção global da metrópole. Segundo
Borges (1992), as ocupações “coletivas” definem-se como canais de expressão das lutas
cotidianas dentro das práticas sócio-espaciais de Belém, ou seja, o movimento de
apropriação de áreas públicas e privadas torna-se um instrumento concreto de
contestação e de exigência política.
Com isso, trata-se de pensar a cidade através da relação espaço-tempo, expressão dos
modos diferenciados de comportamentos e de hábitos. O processo de produção do
espaço urbano, conforme Carlos (2001) baseia-se, de um lado, nas possibilidades de
articulação entre formas de uso e de abstração do espaço e, de outro, pelo conflito de
interesses que orientam as ações do Estado.
24 O fato é que a cotidianidade atual da metrópole é produto de uma racionalidade
programada pela força das representações e dos objetos capturados pela imposição
externa. Trindade Jr. (2004) afirma que a coação da forma metropolitana em Belém
trouxe um estilo de viver que obedece a um padrão elaborado em contextos distantes da
realidade regional. Assim, Belém assumiu o papel de representação espacial de
consumo para as simulações e virtualidades bem delineadas como produto. Este
procedimento causa estranhamentos e desigualdades sócio-espaciais, criando, muitas
vezes uma não-identidade ou uma identidade forçada com a forma metropolitana.
Trata-se, então, de uma luta para a manutenção da diferença e da singularidade que se
torna coletiva à medida que busca um resgate das representações relacionadas às
“organicidades” da vida cotidiana, especialmente daquela que se dá na tradição regional
25 Deste modo, a dialética entre o espaço concebido e o espaço vivido (LEFEBVRE,
1974) se materializa no momento em que as temporalidades e as espacialidades ligadas
à irredutibilidade do uso se fazem presente na apropriação do espaço. Em Belém tal
dimensão pode ser vislumbrada principalmente, porém não exclusivamente, nas
ocupações urbanas. O cotidiano de cada ocupação designa uma estratégia de
sobrevivência na metrópole, bem como uma atividade contestadora por meio da
construção individual e coletiva.

Considerações finais
26 Vários autores regionais já expuseram as conseqüências das intervenções públicas
locais, no entanto, poucos discutem a reprodução da vida humana nos atos do
cotidiano, ou seja, refletir sobre o processo de apropriação do espaço, por meio do uso,
e, como este pode ser reestruturado através de uma ação concreta no espaço. A
dificuldade maior, teórica e política é que o processo de urbanização na Amazônia não
acontece sem a explosão da ordem próxima, escamoteando as contradições do espaço.
Desta forma as atenções estão voltadas apenas ao visível, esta lógica passa longe do
entendimento da essência dessa dinâmica. Neste contexto, o fundamental é resgatar o
valor de uso do espaço a partir da única realidade sensível e prática que ainda conserva
para nós esta representação: o vivido. Trata-se de valorizar espaços diferenciais em
contraposição às representações abstratas do espaço baseado na repetição e na
racionalidade consumista. É verdade que a teoria marxista encontra-se em um
momento crítico. Porém, o método dialético, ainda pode contribuir para apreensão do
concreto, preenchendo o abismo epistemológico. Em uma sociedade em que se busque
a libertação das coerções políticas e economicistas, a teoria do espaço social, entendido
como um movimento do pensamento passa a servir e dá sentido para a construção de
uma nova realidade.
27 Em conseqüência, as singularidades da ocupação urbana em Belém não se definem
apenas por ser uma representação simbólica construída a partir das relações sociais em
torno do espaço-casa, mas é um espaço vivido, socialmente entrelaçado às práticas
cotidianas não modernas. Trata-se, então, de um lugar diferenciado que incorpora a
cotidianidade da forma metropolitana pelos usos e conteúdos presentes na reprodução
da vida social local.
Porém, o ritmo da metrópole impõe um leque necessidades supérfluas que tornam o
morador um mero consumidor de mercadorias. As mudanças produtivas e tecnológicas
das últimas décadas criaram obrigações pessoais e profissionais que impuseram uma
dinâmica de vida acelerada e desumana.
Diante disso, a modernidade é impessoal, individualista e competitiva, criando um
homem solitário que tem objetivos mais elevados do que a do simples flâneur. De
acordo com Acevedo e Chaves (1996) em Belém existe uma repressão subjetiva aos
espaços e às relações que não se encaixem na imagem do moderno, criando um
paradoxo entre a forma metropolitana e a cultura regional.
28 Desta maneira, é preciso que as diversas manifestações espaciais ligadas à identidade
amazônica, manifestadas nas experiências e nas vivências das ocupações urbanas de
Belém, sejam valorizadas. Criando, assim, um contraponto à coerção subjetiva e
material da forma metropolitana da modernidade.

Bibliografia
Logo, a ocupação urbana torna-se uma primeira forma de oposição ao espaço abstrato, isto é,
torna-se uma estratégia de residência (resistência) do excluídos. Neste ponto, a (re) apropriação
do espaço, incorpora a dimensão do vivido, que se relaciona às relações pessoais, às experiências
anteriores, às vivências próprias e às diversas experiências; apesar de não descartar a inserção
desses mesmos moradores na dinâmica da vida metropolitana.
Contudo, cabe uma ressalva final: da mesma forma que se critica o endeusamento de Marx, é
indispensável atentar para as limitações históricas e contextuais do pensamento de Lefebvre. É
preciso avançar, designadamente, no que concerne à relação do Estado com a sociedade civil,
através da análise de políticas públicas urbanas alternativas que mostrem outras possibilidades.
Trata-se de uma reflexão contínua incentivado pelo próprio autor, unindo teoria e prática para
descrição da realidade atual do espaço urbano amazônico.
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Para citar este artigo


Referência eletrónica
Charles Benedito Gemaque Souza, «A contribuição de Henri Lefebvre para reflexão do espaço
urbano da Amazônia», Confins [Online], 5 | 2009, posto online no dia 21 março 2009, consultado
o 27 maio 2022. URL: http://journals.openedition.org/confins/5633; DOI:
https://doi.org/10.4000/confins.5633
Autor
Charles Benedito Gemaque Souza
Geógrafo, Doutorando em Desenvolvimento Sustentável do Tropico Úmido do Núcleo de Altos
Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, gemaquec@ufpa.br

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