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2
Ivone Gomes de Assis
(Org.)
Uberlândia (MG)
2021
© Assis Editora, 2021.
F335
Feito borboletras [livro eletrônico] / Ivone Gomes de Assis
(org.). -– Uberlândia (MG) : Assis Editora, 2021.
144 p. (Série Colcha de retalhos, vol. 1 - A mulher brasileira
de 1920 a 2020, contos.
CDD B869.8
21-2762 CDU 82-34(81)
2021
Impresso no Brasil
SUMÁRIO
HISTÓRIAS CRUZADAS
Annemeire Araújo de Lima
29
ADÉLIA
Arlania de Pinho Menezes
33
GIRASSÓIS
Camila Paiva
35
O AMOR TAMBÉM FAZ SOFRER
Catia Garcia
39
MULHER DECIDIDA
Célia Terezinha Neves Vieira
43
PÜR ELISE!
Edih Longo
45
CHALEZINHO VERMELHO
Escobar Franelas
49
MJÖLNIR KALUNGA
Evandro Valentim de Melo
51
LUZ DEL FUEGO EM VIVA ÁGUA
Evelyn Mello
55
MARÍLIA
Fátima Leonor Sopran
57
MARIA/ MULHER/ MÃE
6 Fernanda Pfau Rosa
61
DO NOME
Hilda Gaspar
65
AVELARY
Ivonita Di Concílio
69
O CÉU DE APARECIDA
Júlia Santos Sahão
73
A DANÇA DA EXISTÊNCIA
Luciane Monteiro
77
SOMENTE UMA MULHER QUE PASSOU POR AQUI
Lucilaine de Fátima
81
UMA HISTÓRIA DE AMOR
Luiz Vieira
85
MULHER SIMPLES, MUITO SIMPLES!
Maria Beatriz Gonçalves
87
TRATAMENTO DENTÁRIO
Maria Heloísa Martins Dias
91
ANTÔNIA E O LEGADO DO SILÊNCIO
Maribel Andrade
95
SOBRE A COORDENADORA
135
SOBRE OS AUTORES
137
8
PREFÁCIO
Amélia Luz
Santo Antônio de Pádua - Rio de Janeiro, Brasil
13
Ana Gonçalves
Itajubá - Minas Gerais, Brasil
17
Anastácia
Berlin, Alemanha
25
“
29
Camila Paiva
Saquarema - Rio de Janeiro, Brasil
35
Catia Garcia
São Paulo - São Paulo, Brasil
39
44
PÜR ELISE!
Edih Longo
São Paulo - São Paulo, Brasil
45
,
babá de duas crianças,
olha os movimentos dos
pequenos. Os gritos que
invadem o parque, trouxeram-lhe sensações esquecidas.
Não se lembrava de risos, gira-gira, balanços com
carinhas de personagens da Disney. Foi uma criança
que pensava velho. A pipoca que saboreava, aguçaram
a procura por fatos de sua vida. Seu baú de lembranças,
não tinha uma foto que a fizesse saber o ser que era.
Nenhum álbum branco e preto de família, que
lhe mostre o passado que teve. Criava o passado. Era
uma deusa criando seu Universo em pleno caos. Todos
sabem o que são? Ou o que foram um dia? Sabem o que
há por trás do cristal de um espelho? Seu baú só tinha
coisa quebrada. Brinquedos desejados, mas abortados.
Plásticos corroídos. Pais desaparecidos em enchentes
furiosas.
Encontrou, no quintal inundado de lama, o velho
livro de poesia que a mãe sempre lia. A cena cria vida
e se lembra dela, quando, com voz grave e musical,
declamava uma poesia que não saía de sua imagem
emotiva, principalmente o primeiro verso. Falava de
algo que a define, em sua angústia: “Quem foi que viu a
minha Dor chorando?!”. Lembrava-se do autor, mas não
do título do poema.
A mãe a socorreu em sonho: “Queixas noturnas”,
sussurrou. Levantou-se lépida e o leu. Sentiu-se
triste pelo autor. Seu agora também é um baú de
lembranças miúdas e feias. Coisas tristes e velhas;
como as senhorinhas que visita em asilos e lhes arruma
os cabelos, conta histórias de mundos catados às
escondidas no computador da patroa.
46 Será que Noel só existe para os que ostentam
árvores enfeitadas, cartinhas com pedidos, meias sem
furos, casas aconchegantes e uma lareira para que o
velhinho desça? Ela é pobre para o rugido do Leão do
Imposto de Renda, mas também não compra a comida?
Lá está a sua contribuição.
Pobre Elisa! Comentou que a musiquinha do
caminhão de gás tem o nome Pür Elise, em alemão. A
patroa, lembrou-lhe que era música para chamar pobre
à porta para comprar um produto que só vai encanado
em casa de rico. Mas, a música é de Beethoven, retrucou
Elisa. Coisa clássica, só ricos conhecem, desdenhou a
patroa. Elisa trancou seu baú e se incrustou em seu
íntimo.
Como uma pérola em uma ostra, que é a sua
sujeira, mas que limpa se torna nobre, abrir-se-ia
para a vida. A mãe era simples, mas culta e declamava
dos Anjos, ensimesmado em uma poesia de dezenove
quadras, que a patroa, nem sabe quem foi. Imagina se
ela decoraria alguma coisa que falasse de Dor e ainda
com letra maiúscula? Se citasse o autor, ela pensaria em
anjinhos e harpas.
Estufou o peito e seguiu suas metas.
[Sou o que sou e posso melhorar. Essa aí
continuará com a empáfia enfiada no íntimo.]
Decorou os poemas que a mãe venerava e hoje
é uma renomada Mestra de Literatura Brasileira em
Lisboa, ensinando a arte de viver nas sublinhas, só
versejando.
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CHALEZINHO VERMELHO
Escobar Franelas
São Paulo - São Paulo, Brasil
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MJÖLNIR KALUNGA
Evelyn Mello
São Carlos - São Paulo, Brasil
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MARIA/ MULHER/ MÃE
sonhou em ser
mãe. Em sua
desesperada
busca por aprovação, envolveu-se com pessoas
medíocres que viam em seus atos meticulosos a
oportunidade de despir-lhe a alma e arrancar-lhe as
esperanças.
Com sua autoestima sempre oscilante, olhava no
espelho manipulada pela sensação de culpa, com uma
fragilidade singular. Punia-se veemente ao crer em seus
próprios devaneios.
Pensou em desistir.
Desistir de lutar por um amor claustrofóbico,
por uma afeição unilateral. Buscou alternativas para
reacender suas expectativas, mas sempre em vão.
Chorava sozinha, duvidava de suas virtudes e
capacidades e discutia com sua própria sombra sempre
que pegava o telefone, cedendo aos seus caprichos.
Embriagou-se de desejos, de amor, de álcool, de
informações, mas percebeu que, o que queria, estava
dentro de si.
Parcialmente, deu adeus ao seu amor insuficiente,
seu respeito obliterante, sua fuga corriqueira, seu
desespero transparente.
Quando parou de chorar, entendeu o esplendor
de sua condição, largou a inércia, cuidou de suas feridas
e, finalmente, se viu. Encontrou o seu amor. Parou de
sabotar-se e emanou amor-próprio, o ópio da realidade.
Com força e coragem, confiou novamente, dividiu
seus pensamentos com respeito e cumplicidade e se
sentiu plena.
Ao engravidar, relembrou toda sua jornada até
62 aquele ponto. Seus tropeços construíram um arsenal
de afluentes, de contornos nas adversidades e sua
vitalidade gerou empoderamento.
Estava preparada para dar sua vida. Gerar.
E assim o fez.
Ao conceber, partiu. Entendeu que havia morrido
aos poucos em todos os comentários maldosos, nos
preconceitos levianos, nas cobranças infundadas.
Percebeu a dor real dos sacrifícios. Criou seu filho com
o compromisso de realizar um sonho antigo, baseado na
crença em uma geração mais tolerante.
Ser feminina, ser menina, apenas ser humana. Um
sonho construído com milhares de vozes.
Existiu com plenitude, conquistou prestígio,
lutou com coragem, fraquejou gloriosamente, e aceitou o
fardo.
Renasceu na riqueza dos sorrisos pueris, dos
momentos dóceis e fraternos. Em cada impressão
registrada, derramava uma lágrima de positividade.
Almejou o momento de descansar da árdua
jornada, das cobranças infames, mantendo a luta em
pensamento e atos por aquelas que buscam respostas
para perguntas ainda nem formuladas.
Se sou mulher, ou mãe, ou Maria?
Sou todas, sou muitas, sou ninguém perante a
eternidade.
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DO NOME
Hilda Gaspar
Uberlândia - Minas Gerais, Brasil
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Ivonita Di Concílio
São José - Santa Catarina, Brasil
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Luciane Monteiro
Curitiba - Paraná, Brasil
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Lucilaine de Fátima 81
Uberlândia - Minas Gerais, Brasil
domingo de outono,
eu estava a pensar
sobre minha própria
vida. Não fiz tudo o que queria e sinto falta de algo que
não sei bem o que é. Falta preencher um vazio deixado
pelo último amor. Estou com minha máquina de escrever,
tentando buscar palavras para algo que me preencha
dessa dor imensa e quem sabe, alcançar um lugar onde
eu encontre a paz. É tudo muito intenso e me matou
por dentro. Não sei quanto tempo vou suportar. Não sei
se espero amanhã para voltar para minha cidade ou se
continuo nesta cidadezinha tão charmosa como Cochem,
aqui na Alemanha. Estou sentada num café, observando
esse rio que passa logo ali à minha frente. Eu vim para
esse lugar fascinante, simples e quieto, para me dar a
chance de, mais uma vez, salvar minha alma escrevendo,
aprendendo, observando algumas pessoas que olham
para minha máquina de escrever e a mesa cheia de
papéis amassados, com frases inacabadas. Peço mais
um vinho. Preciso me sentir mais leve. Não será hoje
que a morte vai me levar. Eu luto com ela, a gente não
se entende. Um lado quer abraçá-la, e penso quão bom
deve ser seu abraço que me levará deste mundo cruel,
enquanto o outro quer mais uma chance de renascer e
seguir em frente. Amanhã será meu aniversário de 36
anos e tudo parece não fazer sentido. Quanta angústia eu
sinto nesta vida assustadora!
Procuro motivos para estancar essa dor de existir.
Penso que tudo começou quando perdi a inocência e
passei a amar. Amei alguns homens e minha intensidade
define o que senti ao lado deles. No entanto, mais uma
vez, eu lamento por tudo que deu errado. Por quê? Seria
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eu uma jovem ingênua, que cai nos braços do primeiro
que lhe oferece migalhas de carinho? Ou eu seria aquela
que deveria seguir os padrões da sociedade e casar-me
com um homem para o resto da vida? No entanto, quem
diz que ama apenas uma só pessoa, no decorrer de sua
vida, está mentindo. Sou diferente, e assim incomodo
muitas pessoas que chegam a ler algumas poesias
minhas. Seja de amor, seja de dor... A verdade é que
nunca pedi para ser aprovada ou não. Eu só quero ser eu
e nada mais.
Termino mais um parágrafo e mais uma taça
de vinho. Decido voltar para a pousada, onde estou
hospedada. É um lugar pequeno e acolhedor, seria ótimo
ficar aqui para sempre. E se o meu “sempre” for amanhã?
A gente poderia escolher o “pra sempre”, que sempre
acaba de todo jeito.
Passei tanto tempo sentada no café, tentando
escrever e não me dei conta de que não me alimentei.
Ainda um pouco zonza, por tanto vinho que bebi, sento-
me, novamente, de frente a minha única amiga: minha
máquina de escrever. Falo para mim mesma que de
amanhã não passa a minha decisão pelo meu fim. Eu
escolhi esse lugar bucólico porque aqui ninguém me
conhece. Escrevi uma carta para minha irmã, dizendo
que talvez eu não volte para Portugal. Ela deve ter
entendido que pretendo morar em Cochem, mas, na
verdade, só eu sei que meu fim poderá ser neste lugar.
Amor! Ah, amor! Como pode estraçalhar desse
jeito a minha alma depois de fazê-la tão feliz? Fui feliz,
sim, e isso ultrapassa qualquer dor que me tenha restado
no final.
Decido parar de escrever e vou preparar um chá
de ervas que trouxe comigo. Não é um chá qualquer, este
tem várias folhas não recomendadas para humanos.
Penso que vou deixá-lo pronto para o momento do meu
aniversário, em que vou sorver todo o seu conteúdo até 83
chegar meu fim. Porém continuo esperando a coragem
para tomar esta decisão. Não é tão difícil compreender
que a morte é a maior de todas as tristezas para quem
fica, e talvez eu esteja sendo egoísta. Afinal, ela vai
interromper todo sonho que eu tinha ao lado desse amor
que vai ficar. A minha vida estável também será o nada,
a escuridão da alma. Que estabilidade eu queria desta
vida? Fico com o nada. A minha relação com a morte não
é mais de repulsa, é de desejo.
Começa a anoitecer e, daqui da janela, eu vejo
uma lua brilhante refletindo na água. Que cenário
perfeito para o meu fim. Não. Eu não posso ir hoje. Eu
me dei um prazo até o final do meu aniversário. Resolvo
vestir um casaco e dar uma volta pelo rio, ainda não
sinto fome e penso em escolher algum prato especial
para fazer um banquete final da minha existência. Eu
tinha visto uma casa de massas, entrei, fiz meu pedido e
levei para viagem.
Já na pousada, preparei a mesa com capricho,
coloquei um vaso de flores vermelhas, um vinho, uma
taça, os talheres e resolvi me fartar com meu delicioso
prato. Se a vida me desse esse orgasmo gastronômico
todas as noites, talvez, ansiosamente, eu esperaria
a morte para dizê-la que hoje não. Hoje eu tenho o
compromisso de sentir prazer. Mas, não é isso que
acontece. A vida é frágil e efêmera. Não irei me apegar a
ela.
A lareira estava acesa, fazia muito frio e eu dormi.
Acordei. E agora? É hoje. Hoje é o grande dia! Dia do meu
aniversário e dia da minha morte”.
Pegou seu chá, preparado na noite anterior,
sentou-se no tapete perto da lareira...
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Luiz Vieira
Irati – Paraná, Brasil
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TRATAMENTO DENTÁRIO
Maribel Andrade
Pelotas - Rio Grande do Sul, Brasil
95
de cabelos bem
trançados, cresceu
vendo sua mãe,
mulher negra que fora escravizada, trazida com as mãos
amarradas para ser colonizada. Antônia crescia e via,
sem entender os porquês que sua mãe não sorria. Aos
poucos, foi compreendendo, e isso lhe aborrecia! Lhe
tiraram a própria voz, lhe tiraram a autonomia, ao fazer
a travessia. Silenciaram os seus sonhos, emudeceram seu
choro, lhe arrancaram a alegria! Sequer o nome trazia;
Abidemi (Iorubá da Nigéria) ...o nome lhe pertencia em
sua terra natal, mas, quando capturada, o silêncio foi
total.
Antônia, menina esperta que nasceu em
liberdade, 1936, quando sua mãe a pariu, a Abolição
no Brasil, aquela que em nada aboliu, permitiu, a duras
penas, lutar por dignidade. E Antônia questionava,
buscava junto a seu povo, queria poder compreender o
porquê de tanto sofrer!
E a boneca que ganhara? A única com que
brincava, por que não tinha olhos e nem boquinha
tampouco? Porque até mesmo a boneca que a ela
pertencia, feita por sua mãe, tinha que ser diferente das
bonequinhas dos brancos? Igual àquelas queria!
Mal sabia a menininha que, Abayomi, sua
bonequinha, confeccionada com tirinhas de tecido de
algodão, era o pouco que se tinha na vida de escravidão.
Abidemi, sua mãe construiu Abayomi, rasgando da
própria roupa as tiras em prontidão.
Ao fazer a bonequinha, Abidemi se inspirou na
mulher que se tornou: uma mulher silenciada, sofrida
e amargurada, sem vontade de mais nada. Mas Antônia
das trancinhas, totalmente diferente, tem o sangue
96 efervescente, não se cansa de lutar. Aos poucos foi
percebendo que mulher de pele preta era difícil estudar,
batalhou sobrevivência, sem jamais desanimar. Foi
forçada, desse modo, desde cedo se virar; foi costureira,
passadeira das roupas de muitas Sinhá!
Em contato com seu povo ouvia muitos relatos,
difíceis de acreditar, mas guardara na memória para
um dia repassar! Aprendeu contar histórias, dançar e
também cantar, nem via as horas passar.
Cantarolava nas ruas, nas praças, no carnaval!
Nas letras de suas músicas, desconstruía conceitos,
denunciando todo mal. E lá passava a Antônia, com
agulha, linha e pano, cantando, contando história, com
eloquência total!
Em sua roupa colorida, a já mulher destemida,
bordou o tambor de “sopapo”, instrumento cuja
história Antônia se fascinava! E o povo que pensava ser
instrumento local, usado no carnaval e originário do
sul, ficava boquiaberto ao saber, na hora certa, a ideia
original.
Aquele instrumento belo, presente no carnaval,
no samba e no terreiro, nas rodas de Candomblé, aqui em
solo gaúcho, tem seus primeiros registros por volta de
1826, contudo, há quem indica uma existência anterior,
no Uruguai e na Argentina com o nome de “Sopipa”.
O som daquele batuque que saía do tambor,
soprava no ouvido de Antônia:
“Espalhe aos quatro ventos que a origem do
Sopapo tem, na verdade, outro autor. É do negro lá da
África, que ao ser capturado, nada podia trazer, apenas
em sua memória trazia, já registrado, que a cultura de
seu povo não pode deixar morrer! E ao chegar nesses
pagos, na cruel terra do charque, juntou com tronco
de árvore, parte de couro animal e, então, fez o Sopapo
pra cultura renascer! Com ele, sua religião, praticada às
escondidas, pra sinhozinho não ver”. 97
Assim foi acontecendo, mas tudo que vem do
negro era de praxe esconder. E Antônia começou e, por
força do destino, uma Griô se tornou!!
Monique Pfau
Camaçari - Bahia, Brasil
103
abortou.
Em 1965, Abigail
tinha 16 anos e vivia
numa cidade pequena. Já tinha os desejos de uma
mulher, ainda que os discursos do padre condenassem
seus pensamentos. Então, conheceu Procópio, que
passava o verão na cidade. Parecia amor à primeira vista.
Procópio era universitário e queria conhecer o mundo.
Abigail queria ser diplomata.
Abigail e Procópio viveram um verão apaixonados.
Procópio tentava de tudo para transar com Abigail. No
início, ela resistia, mas também queria. Procópio ficava
bravo quando Abigail negava seus carinhos. Abigail se
sentia culpada. Aos poucos, foi deixando e gostando.
Abigail não queria engravidar e pedia para Procópio se
controlar. Mas Procópio dizia que ela o enlouquecia.
Abigail engravidou. Aos prantos, procurou
Procópio. Para Procópio, o problema era dela. Abigail não
queria ser mãe, não agora. Como foi burra. Conseguiu,
então, um remédio ilegal. Tomou, chorou e esperou.
Viveu as cólicas e o sangramento, sentiu a dor. Suportou
em silêncio, desmaiou. Sua mãe a encontrou no banheiro
e a levou ao hospital. Na curetagem, Abigail sofreu a dor
dos restos fetais e sua dignidade sugados do seu corpo.
Sua mãe, para sua surpresa, não a repreendeu.
– Isso acontece o tempo todo. Você não é a
primeira e nem será a última. A tia Tina, tirou. A Pérola,
diz que perdeu, mas provocou. A Cristiane, tão cristã,
carrega essa cruz com ela. E a Morgana, que morreu. E
as que não fizeram? A Manuela, minha manicure, que
104 mendiga com aqueles meninos malnutridos. A Casemira,
coitada, que se casou com aquele cafajeste. Não vou te
julgar. Não eu. Mas não vamos mais tocar nesse assunto.
O silêncio de uma prática sussurrada pelos corpos
femininos só foi quebrado porque o médico contou para
os bêbados do boteco. Como uma doença contagiosa, a
notícia se espalhou. A partir daí, Abigail não era mais
bem-vinda nas casas de família, evitava as ruas, pois era
perseguida por rapazes de pinto duro. Também desistiu
da igreja e seus discursos sobre o pecado contra a vida. O
pai, primeiro, lhe deu uma surra, depois, a ignorou pelo
tempo que naquela cidade lhe restou.
Um dia, Abigail abstraiu. Abstraiu o máximo que
conseguiu.
Em 2018, Abigail era uma diplomata aposentada,
uma mulher experiente. Apaixonou-se outras vezes, mas
nunca mais permitiu um Procópio para si. Foi quando
sua neta apareceu de surpresa. Estava chorando. Estava
grávida, estava desesperada. Não queria ser mãe, não
agora. Não sabia quem era o pai. Um dia bebeu demais
e só lembrava de ter acordado seminua na beira
da estrada. Tinha sido estuprada? Não sabia. Tinha
vergonha, sentia-se culpada.
Então, da televisão ligada na sala, escutaram
gritos de homens de paletó sobre um projeto de lei que
criminaliza o aborto, mesmo para casos de estupro
e riscos de vida para a mulher. Em euforia, repetiam:
“Não ao aborto! Sim à vida! Não ao aborto! Sim à vida!”
Os gritos ecoavam nas cabeças das duas mulheres ali
presentes.
Mais de cinquenta anos e Abigail sentiu
novamente aquela cidadezinha dos anos 60 julgando-a.
Agora, no século XXI, esse sentimento vinha de Brasília,
de onde ela mesma teve que se impor como diplomata
e mulher, para homens como esses desse circo, que
desrespeitam a mulher em todos os níveis da sua 105
existência. Homens religiosos, com poder, egoístas,
homens como Procópio, homens que abusam de uma
adolescente bêbada. Abigail, então, olhou com carinho
para sua neta.
– Eu vou te ajudar. Isso acontece o tempo todo.
Você não é a primeira e nem será a última. Eu mesma
já fiz. Era boba e burra, mas a sua bisavó me ajudou. A
tia Tina, também tirou. A Pérola, diz que perdeu, mas
provocou. A Cristiane, tão cristã, carregou essa cruz
com ela na vida. E a Morgana que morreu. E as que não
fizeram? A Manuela que mendigou com seus meninos
malnutridos. A Casemira, coitada, que se casou com um
cafajeste. Não vou te julgar. Não eu. Mas depois de tudo,
não vamos tocar mais nesse assunto.
E assim seguem os segredos das mulheres que
resguardam as dores de ser mulher.
106
UMA IMAGEM FUGAZ
Osman C. Sarmento
Montreal, Canadá
107
Raquel Ordones
Uberlândia - Minas Gerais, Brasil
111
112
A GRAÇA DA MISTURA
Renata Dal-Bó
Tubarão - Santa Catarina, Brasil
113
Roberto Santos
Mosqueiro - Belém- Pará, Brasil
115
Silvana Marques
Uberlândia - Minas Gerais, Brasil
123
o mal no coração
em trevas. Os
gatos Moebius
e Aristóteles saltam. Vejo a caixa cor de ferrugem:
passaportes, cartas, registro de casamento, batom
vermelho, carimbo com um J, seria de João? A fotografia
(eu, João e ela). Em um rasgo de jornal envelhecido os
feitos de minha mãe: o Anjo de Hamburgo. Ela foi uma
feminista liberal, pôs seu nome na História porque agiu
com valentia e deu as mãos a muita gente, arriscando
sua própria vida.
Sobre a mesa, um texto dela: Esse viver ninguém
me tira. “Ainda acredito na compaixão e na bondade
humana. Quero escrever, falta memória. Os gatos
atrapalham. Eles gostam de ouvir narrativas, mas sofrem
com as palavras, são intuitivos.
Nasci mulher no Brasil do início do século XX,
bela, recatada e do lar. Sonhava estudar, trabalhar, ter
outro futuro. Um interregno: amor à primeira vista.
Casei aos 22 e depois de cinco anos, não deu mais.
“– Essazinha é mulher largada, separou-se do
marido. – Pecadora! - Não cumpriu a promessa do altar e
se diz tão fervorosa...” falavam as vizinhas. Preconceitos
vis. A mulher “apedrejada” publicamente. Minha mãe
em nome da família, da moral e dos bons costumes
preocupava-se. Despachou a mim e Eduardo para a casa
de tia Lucy, na Alemanha. Vi naquele vapor esperança e
salvação, a história da Arca de Noé sempre revivida. Iria
para uma sociedade evoluída. Não foi bem assim.
Era uma manhã de sol, quando conheci a Seção
de Passaportes do Consulado brasileiro em Hamburgo.
128 Trabalho e sustentos garantidos. Queria comprar um
automóvel. Impossibilidades no Brasil para uma mulher
na década de 1930. Meses depois, li notícias de Berlim:
“Nazistas matam judeus, incendeiam sinagogas e
destroem lojas da comunidade judaica”. Estremeci... Uma
vertigem tomou meu corpo... Algo lancinante, tamanha
violência. Tive muito medo... Fora degredada do meu
país.
No trabalho, identificava os emigrantes. Judeu
ou não judeu? Era minha responsabilidade estampar
no passaporte em vermelho a letra “J”. A mesma letra
do catecismo JHS. Leitor, não faça comparações porque
o mesmo J de “jaula”, eu leio “janela” de Liberdade. Meu
propósito era servir, queria o bem do povo que me
acolhera quando mais precisei.
Naquele guichê do Consulado, compreendera
a real situação, a dor de tantas mulheres desesperadas
por vistos. Algumas carregavam seus ventres grávidos,
queriam salvar as famílias da perseguição da Alemanha
hitlerista. Sofriam hostilidades, violência verbal e física,
assédio moral, agressão aos filhos até nas escolas. A fila
poderia somar um aceno contra a marcha da morte.
Desterro e resistência.
Eu omiti, sim, o J da classificação. Assumo, agi
por justiça. Falta de ética? Não, as leis brasileiras eram
tortuosas quanto à liberação do visto de emigrantes.
Em nome do desenvolvimento urbano e industrial, o
país compactuava com a política antissemitista alemã.
Confesso, tive muito medo. Crianças e mulheres no
holocausto foram fuziladas, asfixiadas e queimadas
dentro das câmaras de gás nos campos de morte. Eu
vinguei a todos. Vinguei Olga Benário!
Arrependimentos, não! Nenhuma vergonha
porque durmo como os gatos o sono dos justos. “A vida
é assim esquenta e esfria, sossega e depois desinquieta,
é preciso coragem”. Fui mulher de desafiar o regime
hitlerista, lutei com a morte. Mas o inesperado acontece. 129
Conheci João, Guima, um amante da literatura que me
amou. Esperança nossa porque bendito seja o amor fruto
do nosso cuidado e compaixão. Retornamos ao Brasil,
casamos no México, aqui não se permitia o divórcio.
Recebi dele uma homenagem após longa
travessia. Deixo minha retribuição da Rosa do Rosa.
A Rosa de Hamburgo. “Senhora, misericórdia, salvai a
todos!” Sempre haverá naquela bandeira o triângulo da
Santíssima Trindade a repetir: “Liberdade ainda que
tarde”. Ainda dói, mas sei: o não é pouco, porque sem
resistência estaremos sempre no abismo do nada.
(1988) Aracy Moebius de Carvalho Guimarães
Rosa para João Guimarães Rosa.
130
GLÓRIA
Vicentina Maria
Uberlândia - Minas Gerais, Brasil
131