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Ivone Gomes de Assis
(Org.)

Uberlândia (MG)
2021
© Assis Editora, 2021.

Projeto gráfico e capa | Assis Editora


Revisão gramatical | Ione Mercedes Miranda Vieira
Revisão técnica | João Davi Resende
Prefácio | JAX e Carolina Butler
Sinopse e capa | Ivone Gomes de Assis

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Angélica Ilacqua CRB-8/7057)

F335
Feito borboletras [livro eletrônico] / Ivone Gomes de Assis
(org.). -– Uberlândia (MG) : Assis Editora, 2021.
144 p. (Série Colcha de retalhos, vol. 1 - A mulher brasileira
de 1920 a 2020, contos.

ISBN: 978-65-87354-33-0 (e-book)


4
1. Contos brasileiros I. Assis, Ivone Gomes de

CDD B869.8
21-2762 CDU 82-34(81)

Índices para catálogo sistemático:


1. Contos brasileiros

Direitos Reservados em Língua Portuguesa à


ASSIS EDITORA LTDA.
Rua José Antônio Teodoro, 76 – Aparecida
CEP: 38400-772 – Uberlândia/MG
Telefone: (34) 3222-6033
www.assiseditora.com.br / assis@assiseditora.com.br

Reprodução proibida sem prévia autorização.


Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

2021
Impresso no Brasil
SUMÁRIO

PREFÁCIO: MULHER PRO QUE DER E VIER


JAX e Carolina Butler
9

VOOS ALTOS, VOOS RASANTES


Amélia Luz
13 5
HISTÓRIAS DE RAIVA
Ana Gonçalves
17

BENEDITA TATU: UMA MULHER QUE SE FEZ LUZ E SOMBRA


Ana Paula de Castro Neves
21

NASTÁCIA RESOLVE FALAR


Anastácia
25

HISTÓRIAS CRUZADAS
Annemeire Araújo de Lima
29
ADÉLIA
Arlania de Pinho Menezes
33
GIRASSÓIS
Camila Paiva
35
O AMOR TAMBÉM FAZ SOFRER
Catia Garcia
39
MULHER DECIDIDA
Célia Terezinha Neves Vieira
43
PÜR ELISE!
Edih Longo
45
CHALEZINHO VERMELHO
Escobar Franelas
49
MJÖLNIR KALUNGA
Evandro Valentim de Melo
51
LUZ DEL FUEGO EM VIVA ÁGUA
Evelyn Mello
55
MARÍLIA
Fátima Leonor Sopran
57
MARIA/ MULHER/ MÃE
6 Fernanda Pfau Rosa
61
DO NOME
Hilda Gaspar
65
AVELARY
Ivonita Di Concílio
69
O CÉU DE APARECIDA
Júlia Santos Sahão
73
A DANÇA DA EXISTÊNCIA
Luciane Monteiro
77
SOMENTE UMA MULHER QUE PASSOU POR AQUI
Lucilaine de Fátima
81
UMA HISTÓRIA DE AMOR
Luiz Vieira
85
MULHER SIMPLES, MUITO SIMPLES!
Maria Beatriz Gonçalves
87
TRATAMENTO DENTÁRIO
Maria Heloísa Martins Dias
91
ANTÔNIA E O LEGADO DO SILÊNCIO
Maribel Andrade
95

MARIA: EXPRESSÃO DE FORÇA, DETERMINAÇÃO E VISÃO DE MUNDO


Marilde Queiroz Guedes
99
O ABORTO DE ABIGAIL
Monique Pfau
103
UMA IMAGEM FUGAZ
Osman C. Sarmento
107
A MULHER DO SÉCULO
Raquel Ordones
111
A GRAÇA DA MISTURA
Renata Dal-Bó
113
VESPA 7
Roberto Santos
115
A MULHER E O MUNDO
Schleiden Nunes Pimenta
119
O TOMBO DAS FERIDAS
Silvana Marques
123

A VÓS BRADAMOS, OS DEGREDADOS FILHOS DE EVA


Tania T. S. Nunes
127
GLÓRIA
Vicentina Maria
131

SOBRE A COORDENADORA
135

SOBRE OS AUTORES
137
8
PREFÁCIO

MULHER, PRO QUE DER E VIER 9

obra “Entre borboletras”, do projeto Colcha


de Retalhos, volume 1: A mulher brasileira de
1920 a 2020, com o objetivo de apresentar uma
“retrospectiva” de um centenário, traz em seus contos
o retrato da mulher de ontem e da mulher de hoje, com
sua beleza, dor e força em lutar. São trinta e quatro
narrativas riquíssimas, e a obra se abre com dois contos
que abordam a gravidez “antes do tempo” e se fecha
com uma gravidez indesejada pelo pai. É a vida e seus
conflitos em todos os estágios respiratórios, anunciando
que a luta é contínua.
No conto “Voos altos, voos rasantes”, Amélia Luz
apresenta uma mulher corajosa, que enfrenta a ruptura
com os conceitos de uma família tradicional árabe para
viver a sua escolha, ao lado do filho e do esposo. No
segundo conto, Ana Gonçalves, em “Histórias de raiva”,
apresenta a dor e o silêncio de uma mulher idosa,
machucada pelas farpas da memória, que a assombrava
com uma gestação antes do casamento, cuja notícia foi
recebida aos açoites pelo pai embriagado. E, agora, em
seus dias de quase adeus, esse fantasma da juventude
serve de chibata à neta adolescente, que, na impaciência
para ouvir as repetidas histórias, comuns à velhice,
reabre a ferida. Como muito bem apontou Amélia Luz,
estamos diante da Guernica, mas a batalha ainda não
cessou, e cabe a cada um ver/viver a arte ou a guerra.
O conto terceiro, à voz de Ana Paula de Castro
Neves, apresenta Benedita Tatu, uma mulher cuja
coluna foi quebrada, como resultado da violência contra
a mulher no finalzinho do século 19. Depois, em 1929,
essa mesma Benedita Tatu passou a compor a lista do
tão atual feminicídio, com o agravante de que ela foi
assassinada à luz do dia, sob os olhos impiedosos que
assistiam seu algoz golpeá-la a pauladas, para higienizar
10
as ruas poeirentas de uma corrutela.
Tania T. S. Nunes homenageia Aracy Moebius,
pela sua grandeza humana, que foi capaz de salvar tantos
judeus do horror do holocausto, durante a Segunda
Guerra Mundial. Assim a contista anuncia que este
episódio não pode ser apagado, para que não se repita.
E assim a obra vai ressuscitando histórias, cada
uma com seu marco. Célia Terezinha Neves Vieira, por
exemplo, traz a persistência e o amor de uma “Mulher
Decidida”, que em tempos de seca absoluta, no ano de
1977, fez-se amparo na vida de uma família paranaense.
E como não se comover com as vítimas da
enchente citadas por Escobar Franelas? Ou, como não
encontrar inspiração na criativa Helena, de Evandro
Valentim de Melo? Uma mulher que saiu do Quilombo
para se tornar empresária.
Impossível, ainda, é não rir alto com a
ingenuidade dos jovens apaixonados, em um tempo em
que meninos e meninas não podiam frequentar o mesmo
espaço escolar, apresentada por Osman C. Sarmento.
A obra traz muitas Marias... Mulheres violentadas,
abusadas, açoitadas... Mulheres sábias, inspiradoras,
apaixonantes, apaixonadas... Mulheres que sonham
ser mães, mulheres que sonham ser filhas, mulheres
que sonham ser livres... Mulheres intensas, mulheres
determinadas, mulheres inovadoras. Mulheres de fé.
Mulheres empreendedoras. Mulheres que mudaram o
rumo da história.
A autora Luciane Monteiro, em “A dança da
existência” apresenta, dentre outras riquezas, uma mãe
que “ensinou ao filho que mulher se ama e se respeita”.
Tem “homem” que só quer mulher para exibir.
Outros bichos homens querem mulher para cozinhar,
lavar, passar roupa etc. e tal, sobretudo o etc. Põe “bicho”
nisso!
A esperança, a última que morre, é que a maioria 11
dos gajos encare as mulheres como seres tão humanos
quanto eles. Ressalvadas as bem-vindas diferenças entre
as espécies, seres que almejam amar, ser correspondidas,
triunfar na vida, abraçar e exercer sua vocação
profissional com talento e dignidade, ter oportunidade,
enfim, de cumprir seus objetivos, ainda que por vezes
possam revelar-se algo indefinido, assim como também
ocorre com os homens.
São muitas as histórias que se conhecem sobre as
mulheres e sua trajetória de luta milenar. Para adquirir
direitos, fazer-se respeitar como ser humano, conquistar
seu lugar ao sol, mesmo sob chuvas e intempéries.
Como dissemos, “Feito borboletras” reúne 34
histórias transformadoras, em uma bela iniciativa
literária ficcional! Por mais que alguém conheça
histórias, a vida sempre pede mais. A criatividade não
para. E, de fato, não pode parar. A própria linguagem
está em constante mutação. Observando a crítica
literária e seus conceitos sobre os contos tradicional e
contemporâneo, não há dúvidas de que o gênero ganhou
novas formas, portanto, já não cabe apenas na roupa
velha. O crítico Alfredo Bosi assinala: “O conto cumpre a
seu modo o destino da ficção contemporânea [...]. Ora é o
quase-documento folclórico, ora a quase-crônica da vida
urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês, ora o
quase-poema do imaginário às soltas, ora, enfim, grafia
brilhante e preciosa voltada às festas da linguagem
(BOSI, 1974, p. 7). Também Julio Cortázar ensina: “se
não tivermos uma ideia viva do que é o conto, teremos
perdido tempo, porque um conto, em última análise, se
move nesse plano do homem onde a vida e a expressão
escrita dessa vida travam uma batalha fraternal [...]; e o
resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese
viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada [...]”.
Os autores de “Feito borboletras” desbravam
12
um paço literário, com suas narrativas e variações
sintomáticas do conto, encantando com a inesgotável
temática sobre a mulher. Aos que venham a ler estas
páginas e a partilhar dos múltiplos desafios do universo
feminino, quem sabe, muitos poderão reexaminar seus
conceitos acerca da matéria, refletir e querer trazer, no
futuro próximo, suas próprias impressões e histórias.
Não fossem os caracteres a avisar que o espaço acabou,
muitas mulheres seriam, ainda, mencionadas neste
prefácio. Contudo o leitor poderá se encontrar com todas
elas nas páginas que formam esta obra.
Então, parafraseando Schleiden Nunes Pimenta,
pegue o livro, despalhe o livro, descabele o livro, debulha
o livro, cozinha o livro, monte a página para a História,
faça o amarrio, meta-lhe uma tora de queijo, abra a porta
do conhecimento e diga ao mundo: Pode entrar!

JAX e Carolina Butler, julho 2021.


VOOS ALTOS, VOOS RASANTES

Amélia Luz
Santo Antônio de Pádua - Rio de Janeiro, Brasil
13

pequeno palacete da Avenida Paulista,


moças e rapazes se reuniam, esticavam-
se em seus trajes de gala, esperavam a
carruagem à porta para irem ao Theatro Municipal.
Muitas novidades. Grande curiosidade. Tio Jacó, um
árabe descendente, observava sem dizer palavra.
Tia Ruth ajeitara a mesa farta, convidando-nos a
participar do chá da tarde. Sara saiu do aposento linda
em seu traje adamascado com brilho dourado, chalé em
franjas sobre os ombros e um negro cabelo em cachos
soltos. Benjamin, meio enciumado, a vigiava com um
semblante duvidoso.
Saímos entusiasmados, era a SEMANA DA ARTE
MODERNA abrindo ala para uma nova época em que
homens e mulheres experimentariam novos costumes.
As correntes de vanguarda da Europa diante dos olhos.
Saindo de influências estrangeiras, moldávamos o nosso
próprio rosto cultural.
Nas artes em geral, galerias lotadas de artistas
em exposição, pinacotecas, bibliotecas e até as bancas de
jornais trazendo motivação.
“Antropogafia”, um grupo prometendo devorar
o que for europeu e a vomitar o que não for da nossa
cultura.
O Verde-Amarelo construindo poesia nacional
com tendências renovadoras, bem mais próximo do
Romantismo. Um tempo fragmentado, que surgia sem
aviso. Sara parecia preocupada. Estava perdidamente
enamorada por um músico italiano, um violonista, sem
qualquer posição social que o distinguisse. Um músico,
apenas. Para a família seria um escândalo. E o pior era
a vinda prevista de um filho dentro de alguns meses. E
Benjamin, rico e importante na sociedade, dono de lojas
14 e de posses?
A família não aceitaria esse relacionamento, além
do mais o tal músico era casado e separado da família,
que vivia no interior do estado, sendo pai de dois filhos.
O seu nervosismo aparente denunciava o vulcão de
sentimentos que explodia dentro dela. O que seria da
Sara, a filha do grande joalheiro libanês?
Na época, a rigidez dos costumes. Mulheres
amordaçadas pelos padrões impostos pela sociedade.
Para a época, o papel desempenhado pela mulher era
a administração perfeita do lar, o receber amigos e
representar o marido e os filhos diante da sociedade. A
mulher elegante, rainha do lar, deveria conciliar a graça
e a delicadeza, conseguindo tudo através da submissão
e da renúncia. Que nova mulher surge com os novos
costumes para os próximos cem anos, em que tantas
transformações viriam a acontecer entre guerras,
ditadores, países recortados, misérias e ideologias
transformadoras. Compreendemos assim a mulher
contemporânea, aquela que ainda tenta desajeitada
dar o famoso salto, de 1920 a 2020. O escândalo estava
exposto e nas galerias não se falava em outra coisa a não
ser do caso amoroso de Sara com o Domênico Franco,
um pobre violonista de esquina, que recebia donativos
no chapéu.
Evidenciadas as concepções de modernidade,
muitas coisas mudaram nos decorrentes cem anos.
“Madames, mademoiselles melindrosas” representariam
a nova mulher da época, vestindo melindrosamente,
dançando Charleston, sem espartilhos e prisões.
Sara foi um ensaio para a revolução feminina.
Assumiu o seu relacionamento, gerou e deu à luz ao seu
filho, rompendo com as tradições. Isolada e pobre, num
cortiço conheceu a pobreza e a dor. Dos bailes elegantes,
que ativamente participava na vida social da cidade,
lhe sobrou a bica, a bacia, a corda, as roupas sujas a
estender, enquanto o amante na rua tocava, para ganhar 15
uns poucos réis.
Estávamos diante da Guernica, diante do novo.
E Macunaíma passeava irônico, fazendo valer as
mudanças.
Valeu a pena!
E a vida segue...
“A roda viva... nas voltas do meu coração...”
16
HISTÓRIAS DE RAIVA

Ana Gonçalves
Itajubá - Minas Gerais, Brasil
17

velha casa da família ecoava a voz de minha avó,


bravejando insultos ao marido sobre coisas a
serem reparadas, deslocadas, compradas, ou
qualquer outro motivo que não me interessava. Dos dois
juntos, recordo pouco além da resignação muda e da
raiva talhando o ar dos cômodos.
A morte dele transfigurou as coisas. Primeiro,
ainda que viúva, os filhos soltos na vida, ela continuava
passando horas na cozinha preparando pães, sua
especialidade, para assentos vazios da mesa. Distribuía
entre os vizinhos as sobras e depois dizia que não
cozinharia mais, mas levantava com os galos e
desandava a trabalhar. Mais velha, os braços cansados e
vazios, cedeu, com certa altivez, a uma nova rotina sem
propósito. E apegou-se mais e mais aos personagens de
seu passado.
Nosso maior contato foi nessa época. Às 5 da
tarde, claudicava da cama até a mesa, onde o café com
leite e o pão já se encontravam postos pela empregada.
Coagida por meus pais, eu a acompanhava no lanche
e escutava suas histórias repetidas, captando apenas
as mudanças sutis de cada versão como se quisesse
desmascará-la. Firmava o olhar sobre minha própria
comida para não entrever a dentadura triturando o pão,
mas o barulho me exasperava. Nesses momentos do
fim do dia, colocada ali pelo acaso da linhagem, ouvi as
crônicas de seus anos de casada em retrospectiva. A voz
chorosa era, por vezes, sincera, por vezes, perdida no
ofício teatral, mas nunca cativava meu interesse. Tinha
vontade de voltar para o presente, para a vida, para as
crises da adolescência que me sugavam.
Ela, nessa altura, mais afeita a cenas dramáticas
que violentas, gostava de ostentar a sorte de ter
conhecido meu avô, o “melhor entre os homens”, com
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quem adentrou a “dignidade do matrimônio”. Como se
eu não recordasse os gritos assolando a casa. Um dia,
na raiva pela obrigação de escutá-la, decidi pedir que
contasse uma história específica. Seu olhar assumiu
um vigor breve, que morreu na compreensão de que
eu desejava expor sua imoralidade, queria envergonhá-
la. Pedi que falasse sobre o nascimento de seu primeiro
filho — meu pai — apenas 5 meses após a data do
casamento, fato que eu havia descoberto escutando um
telefonema de família. Lembro-me de sua expressão
altiva, como uma amazona prestes a entrar uma última
vez no campo de batalha.
Mantenho até hoje as cenas na cabeça. Na semana
do casório, o pai surge aos berros na casa, roxo das
bebidas e da raiva: “Thereza, sua puta!” As mulheres
da casa também gritam diante da fúria do macho:
“Corre, Thereza, seu pai tá indo atrás!” Com passo
ligeiro, ela corre aos fundos da casa, os dedos trêmulos
nas fechaduras e depois no ventre. A mãe e as irmãs
agitadas tentam acalmar o velho, para que não bloqueie
a expiação da transgressora: “Homem, você tá louco, ela
tá prenha, ela já vai casar...”. Ele alcança a filha e a joga
no chão, como a um pedaço de carne a martelar; usa os
pés e os punhos para deixá-la macia até os ossos... As
mulheres em volta urram a cada som abafado dos golpes,
mas ela está inteira concentrada em proteger a barriga,
não deixá-la quebrar e a vida escorrer vermelha de suas
partes…
Algo profundo se alterou em mim ali. Até o
momento, via meus avós como seres simples, previsíveis,
com seus monstros à vista. Ela quem concebeu meu pai
no pecado, comandou tiranamente o lar e, no fim da vida,
mostrava o pão encharcado na boca sem pudor. Agora,
eu sabia que carregava uma raiva incurável e complexa,
a qual havia sido suportável pela presença tranquila de
meu avô. Por intermédio dele, ela conseguiu espaço para
19
deixar que sua própria violência fluísse, expurgando
os dias de filha, colocando no lugar os dias de esposa
e mãe. Em sua ausência, eram as histórias narradas o
que ancorava aquela mulher aos anos que ela desejava
reviver e adormecia os que queria esquecer. Eu precisava
apenas escutar, sem raiva.
20
BENEDITA TATU:
UMA MULHER QUE SE FEZ
LUZ E SOMBRA
21
Ana Paula de Castro Neves
Goiânia - Goiás, Brasil

conta essa história é o meu


amigo Bento, amante das
memórias e dos guardados
da avó. Ai de nós, se o Bento não tivesse paixão por
inventários e não tivesse cavoucado documentos
cartoriais para provar que ela existiu. Todo mês de julho,
a romaria segue o seu curso entre andarilhos, carros de
bois e vias sacras rumo ao altar do Divino Pai Eterno,
sem se dar conta de que um dia, por aquelas trilhas, hoje
modernizadas, houve uma dama, uma frequentadora
famosa. Foi nos idos tempos do século passado. No
município de Trindade, a antiga Vila de Barro Preto, em
Goiás.
Uma mulher fez-se luz e sombra. Era Benedita
Tatu, paisagem pretérita, memória diluída, translúcida.
Marca identitária de um tempo que passou e emerge
como ferida que se abre para incomodar, denunciar
e anunciar que o tempo passou, mas a violência
permanece. Agora, sob o manto do esquecimento. Não
há, na memória contemporânea de fiéis, comerciantes
e religiosos, um traço da trajetória dessa mulher que
foi lançada para fora da vida e do cotidiano da cidade
do Divino e da festa religiosa mais tradicional do país.
Benedita Tatu, de beleza inigualável, chegou a Barro
Preto em 1887. Nasceu em 1854, em Corumbá de Goiás,
foi casada e abandonada pelo marido. Aos 23 anos,
entrou para a “vida” numa romaria de Trindade. Seguia,
naqueles tempos, as trilhas dos romeiros, dos bordéis e
caiu nas graças e desgraças da Vila, onde permaneceu
até sua morte indigente.
Naquele tempo, como ainda hoje, a violência
22
contra as mulheres e, mais ainda, contra as prostitutas,
tinha justificativa. Benedita Tatu passou à decadência,
sofreu agressões, surras e espancamentos. Até que um
– não se sabe quem – lhe quebrou a coluna vertebral,
deixando-a torta, caminhante dobrada. Sem serventia
e sem “beleza”, foi abandonada e expulsa dos bordéis.
Passou a mendigar pelas ruas. Benedita Tatu é a prova
mais hedionda da miséria humana e da maldade dos
homens nos tempos antigos e ainda nos atuais. Uma
heroína às avessas. Andava curvada sobre si. Daí,
recebeu o apelido de tatu, por estar emborcada e ter
as unhas muito grandes. Catava lixo, dormia na poeira,
era enxotada como bicho pernicioso, adquiriu lepra.
Foi escorraçada e proibida de se arrastar no, então,
novo “Jardim Público”, construído em 1927, no antigo
largo de terra, com coreto de alvenaria, calçamento
de pedra tapiocanga e luz de lampião de gás acetileno.
Ela não pertencia mais a esse mundo. Era a escória. No
entanto, teimava em viver, permanecia ali, incomodando
as romarias, os fiéis, os puros de fé, a cada mês de julho
em que se arrastava para a mendicância. Ela morreu a
pauladas em plena rua, às três horas da tarde do dia 27
de outubro de 1929, com 75 anos de idade, coberta de
feridas e de sujeira, enterrada no, então, novo cemitério
em vala comum. A causa mortis foi classificada como
“violenta” e seu assassino, desconhecido, ficou impune.
Ela representava o “nada” do qual todos tinham nojo
e fugiam. No seu atestado de óbito, declarado pelo
comerciante Moysés Jacinto de Lemos, aparece como
“Benedita de tal (Tatu), profissão de mendiga, pais
ignorados e causa da morte alcunhada de “violenta”. São
coisas que a história oficial da “terra santa da devoção”
não registra.
Benedita Tatu não é a única prostituta
escorraçada, segregada e amaldiçoada. O ofício de
prostituta é efêmero e seu final, quando não trágico,
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vem acompanhado de miséria e exclusão. Outras
famosas prostitutas trindadenses terminaram seus
dias em grande sofrimento, ao tornarem-se penitentes,
mendicantes pelas ruas, no mais completo abandono.
Mas Benedita Tatu, nossa heroína, ganha um sopro de
vida quando tem sua história resgatada pelo meu amigo
Bento. Hoje ela entrou para a Academia. Para provar que
não estou mentindo, Benedita Tatu, agora, é nome de
grupo de estudo sobre violência contra a mulher. Sem
glória e sem remissão, apenas entrou para história.
24
NASTÁCIA RESOLVE FALAR

Anastácia
Berlin, Alemanha
25

qual não foi minha surpresa ao ver a


Alice do País das Maravilhas no Sítio do Picapau
Amarelo! A inglesinha falava a nossa língua e o Visconde
de Sabugosa logo tratou de me explicar o motivo: ela
tinha sido traduzida para o português. Tivemos várias
conversas e ela me contou suas peripécias. Daí em
diante, não parei mais de querer conhecer aquele país
e de imaginar uma vida diferente para mim. Foi assim
que tomei uma decisão. Mas, para botar minha ideia em
prática, precisaria de ajuda. Minha criaturinha Emília?
Ela sempre sabe um jeito de arrumar tudo, mas é
malcriaaaada! Fui me aconselhar com a Floresta e saí de
lá com a receita na mão.
À noite, quando Emília adormeceu, entrei à moda
do bicho-preguiça no quarto de badulaques e esfreguei
na cabecinha dela o maço de ervas. Ela mergulhou
em águas profundas de um sonho no fundo do mar, e
eu pude começar minha tarefa. Descosturei a boneca
inteira. Peguei o retalho de uma velha saia preta e refiz a
Emília com esse trapo. Quero dizer, pano. O enchimento
dela ficou quase igual. Só misturei com a macela as ervas
encantadas.
Na manhã seguinte, Emília acordou e não notou
nada, porque ainda não tinha sido vista pelos outros,
mas estava mudada e me olhou como se fôssemos feitas
do mesmo retalho. Não tinha perdido a fala, pois, a pílula,
aquela com gosto de sapo, era muito eficaz e lá estava de
26
volta sua tagarelice. Assim que abriu os olhos, começou
a narrar seu sonho e me perguntou se eu também
sonhava. Ao que respondi que sempre e um dos meus
maiores sonhos agora era viajar para uma terra distante
e nunca mais ouvir injúrias... “Que injúrias, tia Nastácia?”.
Ora Emília, você já se esqueceu de como costuma falar
comigo? Além do mais, você diz, nas suas memórias, que
o que mais te dói é ver uma injustiça. E você acha justo eu
estar sempre à beira do fogão, enquanto dona Benta fica
lendo histórias? Logo você que tem tanta imaginação!
Aliás, sabia que você só existe graças a mim? Agora, se
quer saber mesmo, consulte minha outra criaturinha,
o sabuguinho científico, sobre o Código Penal, art. 140,
parágrafo 3°. Emília sai do quarto e mais tarde volta,
pensativa. “Ora essa, nunca me ensinaram que essas
palavras configuravam em crime! Acho que foi uma falha
na minha educação. Sendo eu e o sabugo falante suas
criaturas, afinal, que criatura é a senhora?”.
Eu já nasci de carne osso, não de pano; depois
de abolida a escravidão, que meus pais testemunharam,
embora como pessoas livres. Mas não eram ventres
livres, como se dizia na época, os motivos desconheço.
Sei que eram apadrinhados por um barão. “Barão de
Itararé?”, não, esse nasceu depois. Acho que era Barão
de Vila Rica. Ao contrário do que pensam, sei ler,
escrever e falar bem, aprendi com minha mãe. Mas ela
morreu cedo, eu era pequena. Com o fim do Império, o
padrinho do papai foi banido do Brasil e ele do emprego.
Passou a sofrer de alienismo e a família dispersou.
Meus irmãos foram morar com parentes, eu fiquei com
minha madrinha, mas logo fui parar na casa dos pais de
dona Benta. Não me botaram na escola, mas nem por
isso me afoguei num lago de lágrimas. Eu lia escondido
os livros da biblioteca da família e aprendi a gostar de
estranhezas. Essas leituras me deram o entendimento de
que somos personagens e podemos sobreviver a nossos
27
autores. Eles morrem, nós nem sempre. Se somos fortes,
criamos a ilusão de realidade e ficamos.
Vamos, agora me ajude a escrever uma carta
convencendo Alice a nos revisitar. E que ela nos traga
aquela bebida beba-me. Este é meu plano: ao fim de sua
estadia no sítio, quando Alice estiver prestes a retornar
ao seu país, antes de fechar a bagagem, sentamos num
travesseiro alto ao lado da mala aberta. Tomamos a beba-
me e tibum! Pulamos dentro e nos escondemos no meio
das roupas. Chegando ao país da Alice, comemos do bolo
coma-me. Desencolhemos e aí decidimos, retornar ou
fundar outro sítio com novas histórias.
28
HISTÓRIAS CRUZADAS

Annemeire Araújo de Lima


Manaus - Amazonas, Brasil


29

começou quando Antônia


conheceu o Comandante em
um barco, bem no meio do
Tapajós.” A mulher de 35 anos digitava essas palavras
quando foi interrompida por um barulho de vômito
vindo da cozinha. Chegando lá, encontrou sua serelepe
cadela de estimação, diferente do que sempre se
mostrou: “Com a boca suja de uma espuma que expelia,
puxou a corda da descarga e cuspia, desconfiada de que
algo estava errado. – Será que foi o cheiro de caju?! – Era
normal que ele a deixasse enjoada, mas tudo aquilo a
intrigava porque, por ele, ela nunca vomitou.”
Sem dinheiro pra levá-la ao vet? Não tinha jeito.
Apelaria pro quiabo. Serviria pra Tonica amassado, na
seringa, ou batido no liquidificador. Foi assim que outro
filhote ela salvou, o acometido pela tal de Cinomose.
Desejou que desta vez não fosse a virose, mas sarrabulho
que, comido, lhe pesou.
“Antônia, grávida, foi aconselhada a casar-se
com o Comandante. Depois do enlace, ficou sozinha,
convivendo com a sogra, enquanto o amado navegava
pelos rios. Do Pará pro Amazonas, do Amazonas pro
Pará, ninguém sabia onde ele estava, quando Antônia
fez suas malas. Infeliz, deixou o marido, em seu regresso,
descontente.”
Tonica havia melhorado. Não precisou
veterinário. Então, a mulher conseguiu voltar à sua
escrita, conforme orientou a terapeuta. O exercício era
um modo de destrave, pois tinha dificuldades pra falar
da mãe e da avó.
“Com poucos dias de resguardo, Antônia recebeu
visita de um pai interessado, com pacote de fraldas e
bacia na mão. Cumprimentando seus cunhados, sentiu-
30 se logo intimidado, cortavam cana, mal encarados,
ameaçando-o com seus facões. Por sua amada ignorado e
de safado, então, sendo acusado, saiu dali o Comandante.
Ninguém mais viu o genitor...”
A mulher de 37 anos caiu em depressão. Tirou
licença do trabalho. Depressão ignora ensino superior.
Havia nela uma ferida no inconsciente. “Aprendeu a ler
com 54!? – a novidade deixa todos admirados. Antônia
já assinava o próprio nome. Trocou o bibelô de Buda
por um crucifixo prateado, e fez da Bíblia o seu treino de
leitura. Lembrou-se de si como empregada doméstica,
ainda menina, bem cedo na lida, quando, do Ceará, no
Amazonas chegou. Sua patroa faleceu, depois de tê-la
servido por mais de 30 anos. Antônia sentiu-se perdida.
A forte cearense-amazonense se abateu. – O quê eu vou
fazer agora? – se perguntava...”
Pipoca de micro-ondas. É feita em casa. Aproveito
dos clientes a companhia. Era solidão o que a de 38
sentia, não era dinheiro o que queria com a pipoca. Mas
a ideia desandou. Restou Tonica, seu marido sempre
ocupado e seu velho computador.
“Antônia não queria ficar parada. Certa vez, ao
ouvir que nenhuma idosa trabalhava, seu gênio inquieto
questionou: ‘Pra quê serve me chamar de alfabetizada, se
me dizem que incapacitada estou?’”. A mulher de 40 anos
detestava os limites da idade. Enquanto era cobrada por
não ter filhos, também incentivada a perdoar a relação
abusiva, na qual o seu censor, antigo amor, dentre outras
coisas, a impedia que ajudasse sua mãe ou sua família,
reivindicando ser só dele o seu amor.
“Por sua idade proibida de trabalhar, Antônia um
luto vivo se transformou. Acabava de morrer o terceiro,
dos três homens por quem se apaixonou.” A de 43 se
separou. Convívio forçado na pandemia. Como perto dos
seus pais se preferia, botou a máscara, chamou um Uber,
se apartou. Com o rosto coberto, ninguém via, mas ela
sorria ao sentir-se filha. E foi cuidada, também cuidou. 31
Distância larga, mercado e casa. “Isto é essencial” –
classificou.
“As crises de diabetes de Antônia se
intensificaram. Problemas no baço a mantinham
hospitalizada. Isso foi três anos antes da pandemia.
Partiu deste plano, despediu-se das queridas filhas”.
Da mulher de 46 anos, foi semelhante o final.
Morreu em um pronto socorro, na cidade de Manaus.
Sobre a maca, seu corpo sem fôlego. Texto incompleto no
computador. Diante da tela, sua mãe se sentava, Tonica
no colo, os olhos esfregava. A filha dizia: “Sinto falta da
vovó”.
32
ADÉLIA

Arlania de Pinho Menezes


Entre Rios - Bahia, Brasil
33

morava na praia. Saía


todos os dias bem
cedinho. Sumia na
imensidão de areia. Caminhava com o sol. Também
queria iluminar os dias de alguém, mas quem a queria?
Adélia (coitada!?), não tinha ninguém. Ninguém
encarava seus olhos tortos. Ninguém via a pessoa que
nela habitava. Ninguém ouvia suas dores, seus rancores.
Adélia se encolhia! Mas um dia, suas andanças a levaram
para lá... À sombra dos coqueirais, ela se sentava, perto
de um velho barco isolado. Vagarosamente, ele vinha.
Sentava-se ao seu lado. Mãos se tocavam e corações se
abriam. Ambos se enxergavam pelo coração. Nos olhos
dele, luz não havia. Mas seu coração a conhecia. Deitados
à sombra dos coqueiros, dois corpos se uniam. E durante
muitos anos esse amor foi vivido. Até o dia em que Adélia
o esperou, esperou, e no coração sentiu uma agonia.
Esperou até anoitecer. Ele não veio. Ele não mais viria.
Partiu para outro plano. Adélia soube que, para aquele
recanto, não mais voltaria. E a sua vida voltaria a ser a
mesma de antes, sem graça, solitária, naquela casinha
distante de tudo e todos, parece que nem parentes
tinha, que foi nascida do nada; mas agora, memórias de
amor teria, podia lembrar dos afagos carinhosos à beira
da praia com aquele a quem amara por tantos anos,
com quem amor fazia, que alegrava suas tardes até
chegar à noite e voltar para casa, tendo a lua como guia.
Não, Adélia não era mais solitária, um amor em seu
coração havia. E ela sempre soube, em sua vã sabedoria,
que há tempo para tudo nessa vida, para sofrer e para
amar, para amar e para sofrer. O tempo é o senhor! Ela
entendia. Ela aceitava. Não reclamava, resignava-se!
Adélia, independente de tudo, existia!
34
GIRASSÓIS

Camila Paiva
Saquarema - Rio de Janeiro, Brasil
35

amiga minha, Marta, havia me


confidenciado que não andava
bem nos últimos tempos, precisava
de espaço, de tranquilidade. Buscava por uma paz que
não encontrava em lugar algum.
A confusão mental dela era tanta, que ela
começou a sentir umas fortes dores no peito e nas costas,
sentia as pernas pesarem e estava sempre cansada.
Passava seus dias sempre muito impaciente, qualquer
ruído a incomodava. Os filhos e o marido, apesar de
amar muito e com muita intensidade, pois só sabia
amar assim, também a incomodavam. Era um incômodo
misturado com cuidado e afeto. Queria que fizessem o
que lhes pedia, no momento em que pedia e, como não
era ouvida, sentia-se destruída.
Ela não sabia explicar sua angústia, sua aflição
e sua raiva constante, então, chorava e reclamava do
mundo.
Tomou remédios para se acalmar, fez análise,
yoga, meditação... nada adiantava. O que ela procurava
era difícil de encontrar, porque nem mesmo ela sabia
o que era. No entanto, de repente, seu comportamento
mudou.
Todos estranharam, atribuíram os resultados aos
remédios, à análise, à meditação. Não era! Confidenciou-
me um dia seu segredo. Era o cemitério.
Encontrava a paz que queria quando ia ao
cemitério. O espaço vazio a transportava para uma
ressignificação de seu espaço mental. Lá, ela ficava umas
duas horas por dia, só olhando para o céu e pensando em
quase nada de produtivo. Ficava em cima de um túmulo,
sempre o mesmo, era de uma mulher. Coincidentemente
36 a defunta tinha o mesmo nome dela, talvez isso a tenha
feito parar logo em cima deste túmulo. Tinha sempre
girassóis, suas flores prediletas, e um cheiro de perfume
infantil que a acalmava e trazia paz.
Certo momento desses, de cemitério e
tranquilidade, fora interrompido por um enterro de uma
criança. Coisa que a fez ficar profundamente triste e não
querer mais voltar àquele lugar. Perdeu sua paz mais
uma vez.
Foi quando ela passou a ir ao cinema todos os dias
à tarde, depois de deixar seus filhos na escola. Ia sempre
aos cinemas de rua, ficava sentada lá atrás e o filme
escolhido pouco importava, ela só olhava para a telona
e sentia-se calma e solitária. Porém, um casal começou a
brigar, do seu lado, deixando-a muito atordoada. Não lhe
servia mais aquele lugar.
Fez uma terceira tentativa de encontrar a tão
sonhada paz e tranquilidade. Entrou, então, em um
parque municipal cheio de árvores, micos, patos, gansos
e flores. Sentou-se em um banco e ficou lá olhando
para as nuvens no meio das folhas das árvores que
se entrecruzavam. Esta rotina se repetiu por duas
semanas, até que um morador de rua e seu cachorro se
apoderaram de seu banco. Sem poder questionar, saiu
correndo e preferiu retornar ao seu primeiro espaço de
silêncio e paz, o cemitério. Voltou ao túmulo de sempre e
ele estava como todos os dias que fora lá, com girassóis e
cheiro de perfume.
Depois desse desabafo, fiquei sem notícias dela
por um bom tempo. Morávamos na mesma cidade, mas
como eu trabalhava muito, não tinha tempo para vida
social e afastei-me dos meus amigos e conhecidos. Na
semana passada, por acaso, encontrei um velho amigo
e perguntei-lhe daquela antiga amiga e de sua família.
Para minha surpresa, ele me disse que a mulher havia
morrido há dois anos, após perder seus dois filhos,
37
ainda crianças, em um trágico acidente de carro, quando
voltavam de um maravilhoso passeio de domingo, que
incluía ida ao parque municipal e cinema. Por isso, ela
havia ficado transtornada e com raiva do mundo. Um
dia, brigou com seu marido, saiu correndo de casa e
atravessou a rua sem olhar para os lados, o caminhão
pegou-lhe em cheio.
Lembro-me muito bem o que mais me
impressionou na fala deste meu amigo, ele disse que
seu túmulo era sempre coberto de girassóis, pois o
marido levava as flores todos os dias e que havia deixado
também um frasco de perfume infantil usado pelos seus
filhos.
38
O AMOR TAMBÉM FAZ SOFRER

Catia Garcia
São Paulo - São Paulo, Brasil
39

história não tem começo e nem fim, mas um


punhado generoso de entremeios. Muitas foram
as mulheres fortes que conheci, aliás, muito
provavelmente, se eu pensar bem, a maioria delas.
Difícil foi a decisão de escolher uma, na minha cabeça
ficou passando uma porção de cenas, cheguei a ouvir
vozes e a sentir seus perfumes, mas eis que escolhi a
mulher que foi o meu exemplo mais determinante, por
quem eu deveria ter feito mais, mas, infelizmente, não
fiz – Acredito que todo arrependimento vem com um
sentimento de culpa e uma dose de ressaca moral.
Ela foi a minha primeira estrela, a que me guiou,
a que me ergueu, a que me trouxe ao mundo. Mamãe
casou-se às pressas porque já estava grávida de mim –.
Ela mesmo fez seu próprio vestido de noiva, como fez
o meu também, anos depois. Meu pai fugiu do exército
para se casar, em seguida, foi preso.
Desde o começo, a vida deles não foi nada fácil,
mas a esta mulher poderosa eu serei eternamente
grata. Foram anos de luta para poder criar eu e meu
irmãozinho, um ano mais novo. Ela trabalhava de sol a
sol debruçada numa máquina de costura – Tinha vezes
que nem sabia se era dia ou noite.
Nossa pequena família de berço era formada por
seis pessoas, meus pais, nós os filhos, uma avó e uma
bisavó paternas que moravam conosco. Eram elas que
ajudavam a cuidar da casa para que mamãe trabalhasse.
Meu pai era um desastre, nenhum emprego estava à sua
altura, vivia entrando e saindo deles. Para piorar, numa
fatídica madrugada, sofreu um acidente que deixou
sequelas na sua cabeça – passou um tempo internado,
mas mamãe, vendo o quanto ele sofria, virou sua
40
curadora e o tirou de lá.
Sinceramente, nunca soubemos o que minha
mãe viu nele. Era de difícil trato, um homem até bonito
e vaidoso, mas prepotente e ignorante – Não sabia lidar
bem com as pessoas e tratava-nos com austeridade e
impaciência – Ele tinha uns apagões e, simplesmente,
sumia de casa, várias foram as madrugadas em que ela
tinha que sair à procura dele.
Nossa vida era simples, mas bonita – Também
houve bons momentos – Me lembro de vê-los felizes,
dançando na sala ao som de The Platters, eles adoravam
– Viviam abraçados e se beijando. Teve um episódio
engraçado, quando eu a peguei folheando uma revista
minha sobre orientação sexual, se assustou quando me
viu, fechou imediatamente com as faces rosadas.
Dona Dirce era uma mulher simplória, sem
muita vaidade. Depois de já crescidinha eu tentava
passar batom na sua fina boca para realçar sua pele
clara, mas ela não gostava. Seus olhos eram grandes
e esbugalhados, verdes escuros, fundo do mar – Meu
primogênito tem os olhos dela. Penteava os cabelos
pela manhã, mas não tinha mais tempo de se olhar no
espelho, novamente.
Entre linhas e retalhos, minha mãe sofria
sozinha, eram muitas as preocupações que tinha, muitas
as responsabilidades sobre suas costas. O cansaço
emocional a fazia chorar. Devido às crises financeiras,
eles vendiam as coisas de casa. Uma vez, com dor no
coração, entregaram o nosso aparelho de som e todos os
seus álbuns com discos de vinil por alguns tostões.
Em meio a tanta tristeza que já existia, eis que
também perdemos meu irmão num trágico acidente
– Isso acabou com ela e sua vontade de viver, mesmo
tendo recebido uma carta dele, vinda de Chico Xavier, o
espírita.
Demos a ela dois lindos netinhos que puderam
lhe trazer novas alegrias, mas o que queria mesmo 41
era desistir e, finalmente, se foi. Não dá para julgar as
atitudes de uma pessoa, cada um de nós é que sabe sobre
a carga pesada que carregamos. Sinto por não estar
mais conosco, mas sei também que teve o seu merecido
descanso.
42
MULHER DECIDIDA

Célia Terezinha Neves Vieira


Irati – Paraná, Brasil
43

ano de 1977, houve uma grande seca no


PR. A grama estava estorricada. A ventania
intensa, naquele outono, castigava as
plantações nos dias sempre ensolarados e inundava tudo
de poeira. A roupa lavada era pendurada dentro de casa
para secar, resguardada do pó vermelho. Todos os dias, o
pátio ficava coberto de cinzas dos incêndios florestais ao
redor da cidade de Toledo.
O nosso poço era fundo e foi mais um pouco
cavado. Mas já não segurava água, que mal dava para
as necessidades mais urgentes, como beber, cozinhar,
banho e lavar as fraldas do nosso primogênito e a roupa
que eu usava para ir dar aulas no Colégio. Éramos seis
adultos em casa. Não sabendo mais o que fazer, queixei-
me para Carolina, conhecida por Calú, minha vizinha,
que vinha trabalhar como diarista.
Mulher decidida e valente, sempre contando
histórias de como tinha feito o parto de seus seis filhos,
sozinha. Disse para não me preocupar, pois daria um
jeito. Pediu para colocar todas as roupas sujas naquela
bacia bem grande de tomar banho. Disse que passaria no
dia seguinte, de madrugada, para apanhar. Dito e feito.
No raiar do dia, lá estava ela descendo a ribanceira em
direção ao córrego. Só voltaria para minha casa quando
toda a roupa estivesse lavada, enxaguada e torcida. Isso
se repetiu diversas vezes. Chegamos a pensar que nunca
mais choveria, o que logicamente não ocorreu.
Olhos de jabuticaba, cabelo preso na nuca, sorriso
no rosto moreno. Jamais a esqueceremos.

44
PÜR ELISE!

Edih Longo
São Paulo - São Paulo, Brasil
45

,
babá de duas crianças,
olha os movimentos dos
pequenos. Os gritos que
invadem o parque, trouxeram-lhe sensações esquecidas.
Não se lembrava de risos, gira-gira, balanços com
carinhas de personagens da Disney. Foi uma criança
que pensava velho. A pipoca que saboreava, aguçaram
a procura por fatos de sua vida. Seu baú de lembranças,
não tinha uma foto que a fizesse saber o ser que era.
Nenhum álbum branco e preto de família, que
lhe mostre o passado que teve. Criava o passado. Era
uma deusa criando seu Universo em pleno caos. Todos
sabem o que são? Ou o que foram um dia? Sabem o que
há por trás do cristal de um espelho? Seu baú só tinha
coisa quebrada. Brinquedos desejados, mas abortados.
Plásticos corroídos. Pais desaparecidos em enchentes
furiosas.
Encontrou, no quintal inundado de lama, o velho
livro de poesia que a mãe sempre lia. A cena cria vida
e se lembra dela, quando, com voz grave e musical,
declamava uma poesia que não saía de sua imagem
emotiva, principalmente o primeiro verso. Falava de
algo que a define, em sua angústia: “Quem foi que viu a
minha Dor chorando?!”. Lembrava-se do autor, mas não
do título do poema.
A mãe a socorreu em sonho: “Queixas noturnas”,
sussurrou. Levantou-se lépida e o leu. Sentiu-se
triste pelo autor. Seu agora também é um baú de
lembranças miúdas e feias. Coisas tristes e velhas;
como as senhorinhas que visita em asilos e lhes arruma
os cabelos, conta histórias de mundos catados às
escondidas no computador da patroa.
46 Será que Noel só existe para os que ostentam
árvores enfeitadas, cartinhas com pedidos, meias sem
furos, casas aconchegantes e uma lareira para que o
velhinho desça? Ela é pobre para o rugido do Leão do
Imposto de Renda, mas também não compra a comida?
Lá está a sua contribuição.
Pobre Elisa! Comentou que a musiquinha do
caminhão de gás tem o nome Pür Elise, em alemão. A
patroa, lembrou-lhe que era música para chamar pobre
à porta para comprar um produto que só vai encanado
em casa de rico. Mas, a música é de Beethoven, retrucou
Elisa. Coisa clássica, só ricos conhecem, desdenhou a
patroa. Elisa trancou seu baú e se incrustou em seu
íntimo.
Como uma pérola em uma ostra, que é a sua
sujeira, mas que limpa se torna nobre, abrir-se-ia
para a vida. A mãe era simples, mas culta e declamava
dos Anjos, ensimesmado em uma poesia de dezenove
quadras, que a patroa, nem sabe quem foi. Imagina se
ela decoraria alguma coisa que falasse de Dor e ainda
com letra maiúscula? Se citasse o autor, ela pensaria em
anjinhos e harpas.
Estufou o peito e seguiu suas metas.
[Sou o que sou e posso melhorar. Essa aí
continuará com a empáfia enfiada no íntimo.]
Decorou os poemas que a mãe venerava e hoje
é uma renomada Mestra de Literatura Brasileira em
Lisboa, ensinando a arte de viver nas sublinhas, só
versejando.

47
48
CHALEZINHO VERMELHO

Escobar Franelas
São Paulo - São Paulo, Brasil
49

chalezinho vermelho era uma construção


antiga, que ficava numa rua sem saída nos
confins de Itaguases. Lá, a velhinha vivia só.
Vezoutra recebia a visita da netinha que, mandada pela
filha, lhe trazia notícias da rua e alguma coisa diferente
pra comer. A mulher trabalhava longe, dormia no
trabalho mesmo e, sem tempo para visitá-la, incumbia a
menina de ir vê-la e dar uma faxinada na casa. As três
mulheres viviam só.
Com as chuvas de verão, as bocas-de-lobo
carregadas de sujeira não suportaram, vomitaram toda
a excrescência depositada nas artérias debaixo da pele
dura do asfalto. As águas diluviaram e, pela primeira
vez, subiram acima do combinado, alcançaram a cama
da vovozinha e fizeram dela uma jangada. Mãe e filha,
quando, enfim, conseguiram aproximar-se para socorrê-
la, a encontraram surfando, a quilha do estrado batendo
na janela. Quando os bombeiros lá chegaram, arfantes,
esfomeados e inseguros, a boa senhora, quase cega,
semiparalítica e um pouco surda, praticava vela com um
varal.
Segundo as últimas notícias, os militares
suspenderam as buscas por causa do mau tempo.
“Amanhã cedo continuaremos à procura das duas”,
informou o comandante Lobão, responsável pelas
buscas.

50
MJÖLNIR KALUNGA

Evandro Valentim de Melo


Brasília – Distrito Federal, Brasil
51

inescapável, quem já leu sobre mitologia nórdica


conhecerá Thor, deus do trovão e seu poderoso
martelo Mjölnir. Empunhando-o, o filho de Odin
é invencível. Suas histórias inspiraram os vikings em
suas conquistas contadas e cantadas até os dias atuais.
A mais de dez mil quilômetros de distância do
frio nórdico, se situa o maior território quilombola
brasileiro, conhecido como Kalunga, abrangendo três
municípios goianos: Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e
Teresina de Goiás, na região da Chapada dos Veadeiros.
Nessa comunidade de casas de pau a pique, adobe
ou palha, residem famílias descendentes de escravizados
fugidos de um jugo tirânico, conforme se vê em livros de
História.
Lá o desjejum tem de ser reforçado, a fim de
suportar a lida na roça a exigir braços adultos, mas
também infantis. Matula é o nome de um prato que
lhes fornece energia e saciedade por longo tempo. Leva
farinha e carne seca piladas e ovos mexidos. Colocado no
prato de alumínio, lembra um morro, porém, devorado
com rapidez.
Dessa rica cultura descende Helena, cuja vida se
transformou a partir do arremesso da versão quilombola
do poderoso Mjölnir, por um de seus irmãos. Não fosse
a inversão de papéis, a cena replicaria as diversas lutas
entre o deus do trovão, Thor e seu irmão adotivo, o deus
da trapaça, Loki.
A força e a precisão do golpe foram tamanhas,
que a ferida aberta na cabeça da vítima demandou
atendimento emergencial em Cavalcante. A permanência
na cidade foi recomendada pelo médico, a fim de garantir
atendimento imediato em eventuais complicações.
Ainda em convalescença, Helena passou a ajudar
52 na casa que a hospedou. A ligação entre ela e essa família
se fortaleceu e, quando se mudaram para Brasília, a
jovem os acompanhou.
Helena se tornava empregada doméstica. A seu
favor, a alimentação e um teto, liberando-a de ter de
arcar com tais despesas longe dos seus.
A menina adolesceu, entrou na vida adulta e na
faculdade. Contou com a ajuda daquela família para o
custeio do curso. Adiante, graduou-se em Contabilidade.
Veio a indicação para trabalhar em um escritório
de advocacia. Precisou enfrentar uma de suas mais
implacáveis inimigas, a timidez, segundo ela, comum aos
negros, pelo pesado fardo que carregam abarrotados de
preconceito e discriminação.
Dentre as encruzilhadas da vida, uma acabou por
conduzi-la a nova oportunidade profissional, junto a
uma marca de produtos de beleza, vetor de significativa
mudança no jeito de cuidar de si, aumentando-lhe a
autoestima.
Mas havia um sonho impronunciado. A habilidade
culinária inata de Helena, cujas iguarias sempre lhe
renderam elogios, dizia-lhe “não desista!”. O receio do
desconhecido e a timidez, contudo, a aconselhavam
“cautela, menina!”.
Hábil na mistura de ingredientes, Helena juntou
colheradas de seu sonho a pitadas de cautela e se
inscreveu em cursos de formação de empreendedores.
A manivela do tempo girou.
Naquele sábado, depois da semana de labuta,
quem cedo madrugou e foi à padaria, deparou-se com
uma nova loja em ritmo final de preparativos. Decoração
inspirada na cultura kalunga, chão de cimento
queimado, mesas e cadeiras de madeira maciça, bules
e canecas esmaltados, meia parede de tijolos aparentes
a separar o local de preparo dos itens do cardápio da 53
área dos comensais. Lugar ao mesmo tempo rústico e
aconchegante.
Nascia uma cafeteria diferente, tendo como
proprietária uma jovem empreendedora de origem
quilombola, negra, ex-empregada doméstica, bacharel
em Contabilidade, mãe e detentora da incrível habilidade
de repaginar, de transformar em gastronomia urbana
os alimentos com os quais conviveu em sua infância
kalunga.
A timidez jamais a abandonou, está presente em
seu olhar, sorriso e jeito de falar.
Helena, assim como todos os negros, tem muitas
batalhas a vencer. As sagas crioulas nada deixam a dever
às de Thor e seu Mjölnir. A de Helena, por exemplo,
bem poderia começar assim: “Um belo dia, um martelo
acertou outra cabeça, que não a do prego...”.
54
LUZ DEL FUEGO EM VIVA ÁGUA

Evelyn Mello
São Carlos - São Paulo, Brasil
55

trágico blackout surgia a luz, aos poucos,


vinda em passos e bailados. Por morros
e peles passeavam cobras, em tudo dela
tão íntimas, afastadas da moral que fere, nudez que
desponta.
A verdade nua ultraja. O passo ainda é firme no
tablado. Num primeiro momento, surge entre moitas
de jardins familiares. Eva decaída em manicômio
trancafiada.
Seu crime? Despertara olhares indesejados.
Ainda vestida, entretanto, tradicionalmente adequada.
Reage ao assédio do cunhado, não se curva. Paga caro.
Despe a primeira peça: desmente o mito da
família perfeita. A normalidade condena, a loucura
abraça. Eletrochoque. Escuridão.
Novamente em cena, perde as amarras de uma
lucidez forjada.
Coreografia própria, os primeiros passos, ensaia,
rumo a uma apresentação que dispensa figurino e
máscara.
As formas redondas mostram a explosão de pele.
O diário denuncia a outra parte.
Pele e letra. Pelada a tinta. Revela, desvela,
escancara.
A Dora Vivacqua adota a Luz del Fuego que
escandaliza famílias inteiras.
Demole pilares – deus, família, propriedade.
A verdade nua prevalece, mas queima nas
fogueiras. Vaidade. Família Vivacqua reage. Ardem em
altas chamas todos os exemplares de Trágico Blackout.
O escândalo arde em vivas brasas, mas as cinzas
não escondem – delatam artificiais posturas.
56 Medusa pagã, em vida assumida. Rédeas ganhas
em isolada ilha. Paga o preço por seu crime – perseguir
a liberdade. Sereia por pescadores fisgada. Morre a
mulher, mas Luz ainda arde. Morre a carne, vive a arte. A
verdade segue nua. Não se deu o blackout.
MARÍLIA

Fátima Leonor Sopran


Luís Eduardo Magalhães - Bahia, Brasil
57

escritoras, Simone de Bouvard, Lygia


Fagundes Telles, Clarice Lispector, dentre
outras, abordaram e abordam a figura da
mulher na literatura. Sabe-se que as escritoras citadas
estudam o mundo da mulher de várias perspectivas.
Simone de Bouvard apresenta uma mulher liberta, sem
preconceitos, Lygia também constrói personagens fortes,
mas problemáticas, já Clarice traz uma mulher que
deseja se desvencilhar da vida cotidiana, da mesmice
de sempre, mas, muitas vezes, essa mulher permanece
presa às regras sociais.
Marília é uma personagem forte. Quando Marília
chegou à capital, depois de ter recebido vários nãos, uma
vitória iluminou-lhe a alma. Estar viva e ter vencido as
objeções da família. Para Marília, a nova trajetória que
iria percorrer dali em diante a transportaria a um novo
mundo. E foi o que aconteceu. Naquela tarde, um forte
nevoeiro nublava seu olhar, há pouco tinha chegado do
interior, tudo era novidade, até mesmo a sensação de
solidão, de desalento, de medo. Porém estava decidida
a passar por todos os sentimentos para alcançar suas
metas.
Marília, sentada ao pé da janela, observava o
horizonte. Eram seis horas da tarde, o sol se escondendo,
ela impregnada de esperança que tudo se transformaria.
À noite, em casa de sua tia, estavam todos saboreando
um jantar dos deuses, Marília ainda sentia um certo
desalento, sentimento que ardia em seu peito, algo
inexplicável. De qualquer forma, devia enfrentar
tudo e adentrar naquele mundo mesclado de ilusões
e realidade. Ela ainda não parecia preparada para a
escalada, mesmo assim, iria tentar, conversou com sua
tia e programaram sair no dia seguinte, bem cedinho,
para procurar emprego.
58
No amanhecer, já estavam prontas para o
percurso que fariam pelas empresas e lojas. Marília
não tinha experiência comprovada em carteira, o jeito
era começar lá do primeiro degrau. E foi o que se deu.
Conseguiu trabalho numa grande loja, à primeira
semana, os pés padeceram e quase que a alma também,
mas a persistência venceu.
Os dias correram normalmente, os meses e os
anos, e Marília continuava em seu laborioso trabalho
na loja de departamento. A capital lhe trouxe muitas
expectativas, mas nem todos os sonhos se realizaram.
Mesmo assim, não desistiu. Marília acostumou a
trabalhar em pé o dia todo, muitos episódios presenciara
na loja em que trabalhava. Especialmente as histórias
das colegas, cada uma com sua peculiaridade.
Uma delas, a Margarida, se destacava, pois tinha
uma particularidade muito especial, demonstrava alegria
de viver, sua alma límpida contrastava com seus cabelos
negros, longos e esvoaçantes, que tomavam conta de
seus ombros, ela fazia questão de mostrar suas madeixas
para todos que passavam, dizia que sentia um enorme
prazer ao ver que estava sendo assediada, transmitia a
todos os momentos inebriantes de felicidade. Pois sabia,
como ninguém, envolver as pessoas com sua vontade
de viver, sem medo de ousar. Marília, ao contrário de
Margarida, parecia uma ostra, protegida por seu casulo,
não tinha coragem de se mostrar, preferia viver no
anonimato. Porém, sorrateiramente, havia um enorme
desejo de vencer a qualquer custo. E essa vontade de
chegar ao topo a fez aproveitar o mês de agosto, para
perscrutar, nas noites geladas, uma alma que estivesse
solta ao vento à procura de um alento para aquecê-la,
não sabemos se encontrou tal criatura.
O que se sabe é que o inverno, naquele ano de
1980, foi muito rigoroso. Marília experimentava o sabor
daqueles dias e noites frias. Quando a noite caía, o vento
59
cortante assoviava pelos becos da cidade, e ela sentia
uma solidão tão grande como o vento que dilacerava
corpo e alma. A esperança foi o motivo pelo qual
prosseguiu sua caminhada, passou o inverno e chegou
o outono, mais cinzento que qualquer outra estação. Ela
estava mais sensível do que nunca. O tempo reforçou
suas forças e a manteve viva. Porém o medo nunca
abandonou de todo sua alma.
Marília transitou entre inverno e outono, chegou
à primavera com o perfume e o colorido das flores,
esta estação a revigorou, parecia mais suave, dava a
impressão de que adquiriu um tanto da alegria de sua
colega Margarida, muitos percalços se apresentaram, e
ela foi eliminando cada um. Mas foi o verão que iluminou
os dias e as noites de sua vida.
Nesse período, tudo se torna mais fácil, o calor
ajuda a aquecer a existência, e foi nesta estação que fez
amizades, que se tornou uma espécie de deusa de uma
turma de três casais. Todos a elogiavam, diziam que era
impecável, feita para o casamento. Porém o tempo lhe
pregou uma grande armadilha, todas as duas amigas se
casaram, tiveram filhos e ela, que era perfeita, não casou
e não sabe até hoje se realmente foi amada por alguém.
Dizem as boas línguas que um moço sonhava tê-la, ela
própria já ouvira dele mesmo que a paixão o corroía.
Mas Marília sempre amou aqueles que a desprezaram,
teve três paixões entre infância, adolescência e idade
adulta, todas marcaram sua vida, foram intensas, sempre
por parte dela, a última foi a que mais a despedaçou e
ficou até hoje com o gosto da saudade.

60
MARIA/ MULHER/ MÃE

Fernanda Pfau Rosa


Curitiba - Paraná, Brasil
61

sonhou em ser
mãe. Em sua
desesperada
busca por aprovação, envolveu-se com pessoas
medíocres que viam em seus atos meticulosos a
oportunidade de despir-lhe a alma e arrancar-lhe as
esperanças.
Com sua autoestima sempre oscilante, olhava no
espelho manipulada pela sensação de culpa, com uma
fragilidade singular. Punia-se veemente ao crer em seus
próprios devaneios.
Pensou em desistir.
Desistir de lutar por um amor claustrofóbico,
por uma afeição unilateral. Buscou alternativas para
reacender suas expectativas, mas sempre em vão.
Chorava sozinha, duvidava de suas virtudes e
capacidades e discutia com sua própria sombra sempre
que pegava o telefone, cedendo aos seus caprichos.
Embriagou-se de desejos, de amor, de álcool, de
informações, mas percebeu que, o que queria, estava
dentro de si.
Parcialmente, deu adeus ao seu amor insuficiente,
seu respeito obliterante, sua fuga corriqueira, seu
desespero transparente.
Quando parou de chorar, entendeu o esplendor
de sua condição, largou a inércia, cuidou de suas feridas
e, finalmente, se viu. Encontrou o seu amor. Parou de
sabotar-se e emanou amor-próprio, o ópio da realidade.
Com força e coragem, confiou novamente, dividiu
seus pensamentos com respeito e cumplicidade e se
sentiu plena.
Ao engravidar, relembrou toda sua jornada até
62 aquele ponto. Seus tropeços construíram um arsenal
de afluentes, de contornos nas adversidades e sua
vitalidade gerou empoderamento.
Estava preparada para dar sua vida. Gerar.
E assim o fez.
Ao conceber, partiu. Entendeu que havia morrido
aos poucos em todos os comentários maldosos, nos
preconceitos levianos, nas cobranças infundadas.
Percebeu a dor real dos sacrifícios. Criou seu filho com
o compromisso de realizar um sonho antigo, baseado na
crença em uma geração mais tolerante.
Ser feminina, ser menina, apenas ser humana. Um
sonho construído com milhares de vozes.
Existiu com plenitude, conquistou prestígio,
lutou com coragem, fraquejou gloriosamente, e aceitou o
fardo.
Renasceu na riqueza dos sorrisos pueris, dos
momentos dóceis e fraternos. Em cada impressão
registrada, derramava uma lágrima de positividade.
Almejou o momento de descansar da árdua
jornada, das cobranças infames, mantendo a luta em
pensamento e atos por aquelas que buscam respostas
para perguntas ainda nem formuladas.
Se sou mulher, ou mãe, ou Maria?
Sou todas, sou muitas, sou ninguém perante a
eternidade.

63
64
DO NOME

Hilda Gaspar
Uberlândia - Minas Gerais, Brasil
65

dizer uma vez,


ninguém esque-
cia. Tia Rúbia, no
primeiro dia do pré-escolar, confessou: “Eu ainda não sei
o de todos vocês, só lembro Gaspar” – enquanto sorria
com os olhos para mim. Nunca foi apenas um nome,
sempre foi um título.
Mamãe quis muito ter filhos – sentimento que
acabou sendo transferido a mim. Batizou o primeiro
Belcchior, como um vaticínio da chegada de Baltazar e
Gaspar. Respondia amiúde às pessoas surpresas devido
à inabitual combinação de irmãos “são os meus três-
reis-magos” – enquanto expressava, entusiasta, orgulho
materno.
Da história cristã sei pouco. Desconheço detalhes
e, com verdade, nunca me interessei por eles. Nem por
incenso. Ficava imaginando o que daria de presente para
Jesus, mas certo niilismo já despontava. Era Jesus, ele
não precisaria de nada. Sequer de incenso.
A identificação com o feminino veio em tenra
idade – como uma panela de pressão no fogo antes
mesmo do mise en place. Mas Gaspar era homem. Já
fui Gabriela, Letícia, Ana Paula. Graça não havia, pois
retirava algo ilustre de mim. O quadro de giz no quarto
recebia a inscrição “Professora Gaspar” alinhada à
direita superior. Repetidas vezes, apaguei açodadamente
o artigo, evitando risos ou tapas.
Passei a adolescência compondo nomes e
tentando me identificar com algum deles. Conheci Hilda
Hilst, nessa época, e me soou lisonjeira combinação
entre consoantes e vogais. Na ocasião, não cabia
qualquer decisão – embora sentisse os ingredientes se
remexendo dentro da panela.
66 Primeiro veio o apelido Beth. Fantasia
imiscuindo-se com realidade. Meus caros só se referiam
a mim pela alcunha. “Cadê a Beth?”. “Oi Beth, vem pra cá”.
“Beth, nem te conto!”. Beth perdurou até a vida adulta e
passou. A transgeneridade, não.
A desconformidade com meu gênero biológico
já era panela de pressão a pleno vapor. Logo, esse
objeto do qual tenho pânico e com o qual cedo aprendi
a me relacionar com paciência abundante e acuidade
inexorável, em vistas a evitar ou o sabor amargo dos
ingredientes ou a sua explosão.
Quando a panela-gênero chiava,
estrepitosamente, precisei agir para obstar uma
tragédia. A transição, assim, foi como abrir a válvula
depois da calmaria, com o fogo desligado. Suave aroma
evolando à medida que a pressão saía. É um prato que
vou saborear pelo resto de meus dias.
No princípio, nome e gênero, meus dois tesouros,
geraram litígio de difícil resolução. Fui indômita: eu seria
a Gaspar. A bisavó Maria abriu precedente na família, ao
batizar vovó com Messias, e isso me consolava. Enquanto
a pressão saía, mais acirrada a contenda se tornava. Era
lida no feminino só até saberem do nome.
Certa vez, obtive prova final para resolver a
discórdia: fui recepcionada com “boa tarde, senhora”,
pelo porteiro do condomínio de uma amiga. Apresentei-
me e, para chegar à casa, “o senhor vira na próxima à
direita”.
Abandonar meu título? Incogitável. Hilda logo
despontou como possibilidade, mas não resisti à sutileza
do primeiro nome da cantora e compositora Fitzgerald
e o saboreei por algum tempo: Ella Gaspar. Qualquer
escolha me contemplaria e assim sucedeu o veredito: o
homófono do pronome feminino na língua portuguesa
não soava apropriado, e o outro se sobrepujava em 67
elegância e vigor na combinação com meu título. Hilda
Gaspar. Um feminino, outro masculino. Ingredientes que
passaram anos em fervura.
Naturalmente, mamãe precisou do tempo dela. O
novo nome reivindicava também gênero oposto àquele
biologicamente concebido. Com a paciência de uma
monja, esperei. E hoje sou sua filha. Dois reis e uma
rainha.
68
AVELARY

Ivonita Di Concílio
São José - Santa Catarina, Brasil
69

primeiras noções de ser


pensante, como para qualquer
pessoa, eram flashes de locais,
pessoas e animais, lembranças nebulosas e confusas
de fatos. Muito cedo, perceberam que Avelary seria
diferente dos demais, e essa percepção foi confirmada
muitíssimos anos depois. Primeiro, com a grande
musicalidade que demonstrou com pouca idade,
acrescida com a profusa faculdade de criatividade
intelectual, e quem a acompanhou até sua morte, aos 89
anos, conheceu uma mulher que venceu várias batalhas
e nunca se abateu ante os reveses do destino.
A insegura infância foi vivida com períodos
alternados por fantasias e realidades, castigos e
premiações, afagos e surras, ingenuidade e malícia,
compreensão e intolerância, compondo uma inevitável
base tortuosa para a breve e conturbada adolescência
que lhe propiciaram. Seguindo o exemplo de uma pessoa
insana, quase que entra em terreno também insano.
Mas aquela extemporânea percepção que haviam feito
em sua primeira infância (de que seria um ser especial)
tomava corpo e a afastava dos maus procederes que lhe
eram oferecidos maldosamente.
Muito jovem apaixonou-se e se entregou a esse
amor ardorosamente, teve filhos. No entanto, não
se desvencilhava dos grilhões que há tantos anos a
dominavam. Viveu a vida, viu os filhos crescerem, teve
desilusões, sofreu e, só então, ao chorar todas as lágrimas
de sua dor, cresceu. Cresceu e rompeu as correntes que
a amarravam ao frustrador e triste passado. A maior
ousadia e reflexo do grito libertário foi a decisão pessoal
– a primeira em sua curta vida – foi mudar-se para outro
ponto do País e modificar radicalmente sua existência,
sempre conquistando espaços e ampliando horizontes.
70
Nessa nova condição de ‘estrangeira’ numa terra
acolhedora, encontrou pessoas que a estimularam e
lhe desvendaram um mundo cheio de atrações, repleto
de oportunidades, Avelary, antes uma mulher com
pouca instrução se contrapondo com um grande e
desconhecido reservatório de cultura, desabrochou
tal qual uma flor nascida entre pedras inóspitas e
totalmente transformada ao ser transplantada para solo
fértil.
Houve momentos em que ela própria se
surpreendia com seu desempenho, tanto na Arte
quanto na Literatura – terrenos que, aos poucos, foi
desbravando e conseguindo ocupar lugar e destaque.
Surpresas em novos gestos audaciosos, surpresas na
obtenção de conhecimentos enriquecedores, que a
levaram a patamares jamais imaginados. Nunca fugia
das responsabilidades e enfrentava crises com coragem
e determinação.
Era apenas uma mulher ávida por conhecimentos,
e as oportunidades lhe foram oferecidas como se
houvessem sido colocadas em grandes e adornadas
bandejas. Tornou-se cantora e encantou algumas
plateias. Arriscou-se na Literatura e também obteve
êxito. Adotou a filantropia e ajudou bastante, por meio
de shows beneficentes e outras atitudes.
Uma vez que já dominava o espaço que adquiriu
sem lutar, apenas como se o merecesse por mérito, a
nova mulher se destacava incrivelmente com o passar
dos anos, e nessa jornada de amadurecimento, aos
setenta anos, se deslumbrou com um novo mundo
que lhe foi desvendado. Sem temer a idade avançada,
frequentou uma universidade, amealhou novos
amigos e empreendeu novas atividades. Aprendeu a
compreender e a enriquecer a velhice com saudáveis e
bons propósitos.
Enfim, uma criança de origem obscura, alguns 71
pendores; uma jovem confusa e a adulta sofrida, o
Destino forjou essa mulher que, qual a Fênix, roeu o osso
da desilusão e renasceu várias vezes. Amou muito e foi
muito amada. Se errou no longínquo passado, redimiu-
se ajudando e provendo a quem necessitasse, até seu
descanso derradeiro. Avelary morreu durante o sono,
sem sofrer. Saiu de cena suavemente, talvez cantando
uma linda e romântica canção.
Este é o resumo da história verídica de Avelary,
uma mulher que, inadvertidamente, mudou sua vida,
sem nada planejar. Apenas deixando acontecer, nada
mais...
72
O CÉU DE APARECIDA

Júlia Santos Sahão


Campinas - São Paulo, Brasil
73

contemplava o céu noturno, de seu quintal, e rezava para


a Santa de mesmo nome, de quem aprendeu a ser devota,
desde que nasceu, 86 anos atrás. Olhar para o mar de
estrelas acima da sua cabeça era reconfortante, pois
sentia-se próxima de Deus – cuja obra se manifestava na
natureza – e daqueles que amava. Afinal, onde quer que
estivessem, enxergariam o mesmo céu que ela.
A senhora perdeu as contas de quantos anos
já vivia sozinha, em Ibitinga, interior de São Paulo.
Viúva e mãe de cinco filhos aprendeu a conviver com
a saudade, que amenizava com suas orações, as quais
tinham sempre o mesmo fim: o bem-estar, a felicidade e
a proteção dos que lhe eram caros.
Já era quase madrugada, mas ela continuava
de pé, na expectativa do telefonema de seu caçula, que
voltava de viagem do exterior. Como em seu samba
favorito, “Trem das Onze”, Aparecida não dormiria até
sua chegada. O sono poderia esperar.
O frio de outono afugentou-a do quintal. Dentro
de casa, sentou-se em sua poltrona, com os olhos já
pesados e pensou em descansar um pouco a vista.
Todavia, embalada pela voz de Tom Jobim no rádio,
falando de saudade, apagou e assistiu à própria vida
passar em sonho. Viu-se novamente na sala de cinema da
pequena Ibitinga, em 1958, aos quase 23 anos, quando,
na espera do filme, começou a trocar olhares com um
belo rapaz. Seu nome? Sebastião.
Ele era alto, de pele morena – como se tivesse
queimado ao sol –, olhos azuis como o céu, sem cabelos
e com braços fortes. De voz grossa, risada contagiante,
74
boa prosa e bondade inata. Já ela não tinha muito
mais que um metro e meio, sua pele era clara, os olhos
verdes esmeralda e tinha cabelos fartos, longos e
escuros, que viviam em trança. A jovem era tímida,
quieta, observadora, tinha um bom coração e amava
intensamente, mesmo em silêncio.
Depois de algumas semanas de conversas e
encontros na sorveteria, Sebastião ganhou o coração de
Aparecida. Um ano após o singelo encontro de almas,
ele colocou um anel de ouro em seu anelar esquerdo e já
estavam à espera da primogênita.
Eles eram opostos, divergentes, antagônicos.
Mas também complementares. Se um era o dia, o outro
era a noite. Entendiam-se muito bem e, acima de tudo,
amavam-se muito. A família de Sebastião, porém, nunca
aprovou a união. Para eles, era uma paixão frívola,
indecente e fadada ao fracasso. Não apenas pela notável
diferença de idade entre eles – 11 anos –, mas pela
distância social.
Sebastião era de família abastada de comerciantes
libaneses e único filho homem. Seu pai falecera há mais
de 20 anos, fazendo dele o homem da casa, que abrigava
a mãe e as quatro irmãs. Elas não achavam Aparecida
digna de receber o sobrenome da família, pois a jovem
nasceu em berço muito pobre. Em suas veias corria,
sangue cigano, italiano, espanhol e indígena. Era a mais
velha de seis filhos e, com apenas nove anos, largou a
escola para ajudar os pais a sustentar a casa. Aparecida
fazia o que era necessário: trabalhou em fábricas como
faxineira e na parte de confecção de roupas; como
empregada doméstica e babá.
Mas nada disso importava aos apaixonados. Eles
se casaram, tiveram cinco filhos – uma mulher e quatro
homens – e foram felizes por quase 18 anos, quando
Sebastião morreu, subitamente, de infarto. Sem apoio
da família do marido, eles perderam tudo, com exceção
do teto sobre suas cabeças. Novamente, Aparecida fez
75
o que foi preciso para garantir o sustento dos filhos.
Vendeu suas joias e algumas roupas. Passou a fazer e a
comercializar bordados na sala de casa e a vender leite
de porta em porta. Ela foi bem-sucedida: prosperou e os
filhos cresceram, alçando voo.
– Triiiiiim.
Aparecida acordou sobressaltada com o toque
estridente do telefone. Ela levantou, ainda com sono,
para atender a ligação. Ao olhar para o relógio de corda,
estava parado. Os ponteiros marcavam 23h59. Não se
importou com isso – amanhã daria um jeito – e atendeu
o telefone:
– Filho?
– Aparecida?
Ela sentiu o sangue se esvair de seu rosto. Aquela
voz era inconfundível. Era de Sebastião.
76
A DANÇA DA EXISTÊNCIA

Luciane Monteiro
Curitiba - Paraná, Brasil
77

bisavó, Maria herdou a raça e a coragem,


o canto dolorido nas noites escuras sob
a memória da dignidade arrancada pelo
senhorio. Herdou a dança da capoeira, que girou como o
gingado do bisavô, que invocava a coragem preparando a
fuga, enquanto a pele cicatrizava o último açoite.
Da avó, herdou a ousadia do grito selvagem no
meio da mata, na exaltação da natureza, os pés descalços
na chuva louvando a liberdade e aspirando vida. Ela, que
lidou na terra, guardou a dança no bolso e soprou ao
vento para a geração seguinte. Não tinha direito ao voto,
mas opinava sem medo e, sem reservas, soprava também
ideias em papéis que foram assinados por homens.
Da mãe, herdou a força de enfrentar os medos,
cair, erguer-se e começar sem mágoas da vida, sem
pena de si, sem receios do futuro. A mãe, que tinha
sede e bebeu o que pôde, pois lhe davam ainda gotas de
liberdade. Recatada e obediente ao estatuto da mulher
casada, foi mãe com a força de uma leoa, embora tenha
lhe faltado a garra de uma guerreira. Usou, contudo, o
poder dos livros, de onde arrancou palavras e escondeu
com sabedora no coração da filha.
Por fim, da vida, Maria tragou o que pôde,
guardando todas as heranças femininas, pois sabia que
nenhuma batalha havia sido terminada. Como mulher,
armou-se, guerreira, e protestou contra o abuso.
Bradou por conquistas, arrastando-se ferrenha no mar
de insultos de um mundo que não aceita a igualdade
de direitos. Viu a Amélia humilhada no trabalho, foi ao
enterro de Mariana, esfaqueada pelo companheiro, e
visitou Teresa, violentada por um estranho. Chorou
lágrimas amargas porque sentia a dor alheia, urrava.
A cada triste notícia, caminhava desorientada,
78
descalça, sem alentos. No mar do Rio de Janeiro,
mergulhava no anseio de ressurgir renovada para não
entregar a guerra. Bandeira branca jamais! Gritou no
silêncio da madrugada, na mente ensandecida debaixo
d’água. Vontade de imergir para sempre. Mas emergiu,
impulsionada pela sede de justiça. Uivou debaixo da
lua para não perder a alma selvagem, urrou sobre a
montanha para espantar os predadores. Correu como
maratonista para não perder a festa da chegada de um
novo tempo. Sim, um novo tempo no qual acreditava
para os herdeiros que viriam.
Ergueu-se de novo, renascida da força do eu-
selvagem que despertou no grito da alma, no sentimento
de um ser que invocou tímida, talvez chamando de
Deus, na força da natureza, da estrada, da luta, das
verdades que não podiam ser escondidas. Despiu-se
das angústias e deixou que a criança interior sorrisse
de novo para receber a nova criança que nascia. E assim
se impulsionava ao próprio renascimento, cada vez que
uma vida surgia. As suas, as delas, as que via nascer
todos os dias. Nas mãos, a habilidade da obstetrícia, no
coração a grandeza do sentimento materno.
Ensinou ao filho que mulher se ama e se respeita.
Ensinou à filha que o direito se conquista a duras penas.
E soprou para ela o segredo do feminino: a dança, a
força, a garra, e a capacidade de se refazer a cada dia! A
beleza das formas só se revela na beleza da alma!
Quando se deitou para o descanso do corpo,
a mulher sabia que havia espalhado sementes, e que
seriam colhidas ao longo do tempo, na certeza de que
nenhuma luta é em vão. Como não é em vão nenhum
amor que se doa, que se espalha, que se desenha
no tempo e na beleza da permanência. Na dança da
existência, só existiu quem soube se doar, morrer e
nascer no silêncio da autodescoberta, da capacidade de
mergulhar no mar selvagem da vida!
79
80
SOMENTE UMA MULHER
QUE PASSOU POR AQUI

Lucilaine de Fátima 81
Uberlândia - Minas Gerais, Brasil

domingo de outono,
eu estava a pensar
sobre minha própria
vida. Não fiz tudo o que queria e sinto falta de algo que
não sei bem o que é. Falta preencher um vazio deixado
pelo último amor. Estou com minha máquina de escrever,
tentando buscar palavras para algo que me preencha
dessa dor imensa e quem sabe, alcançar um lugar onde
eu encontre a paz. É tudo muito intenso e me matou
por dentro. Não sei quanto tempo vou suportar. Não sei
se espero amanhã para voltar para minha cidade ou se
continuo nesta cidadezinha tão charmosa como Cochem,
aqui na Alemanha. Estou sentada num café, observando
esse rio que passa logo ali à minha frente. Eu vim para
esse lugar fascinante, simples e quieto, para me dar a
chance de, mais uma vez, salvar minha alma escrevendo,
aprendendo, observando algumas pessoas que olham
para minha máquina de escrever e a mesa cheia de
papéis amassados, com frases inacabadas. Peço mais
um vinho. Preciso me sentir mais leve. Não será hoje
que a morte vai me levar. Eu luto com ela, a gente não
se entende. Um lado quer abraçá-la, e penso quão bom
deve ser seu abraço que me levará deste mundo cruel,
enquanto o outro quer mais uma chance de renascer e
seguir em frente. Amanhã será meu aniversário de 36
anos e tudo parece não fazer sentido. Quanta angústia eu
sinto nesta vida assustadora!
Procuro motivos para estancar essa dor de existir.
Penso que tudo começou quando perdi a inocência e
passei a amar. Amei alguns homens e minha intensidade
define o que senti ao lado deles. No entanto, mais uma
vez, eu lamento por tudo que deu errado. Por quê? Seria
82
eu uma jovem ingênua, que cai nos braços do primeiro
que lhe oferece migalhas de carinho? Ou eu seria aquela
que deveria seguir os padrões da sociedade e casar-me
com um homem para o resto da vida? No entanto, quem
diz que ama apenas uma só pessoa, no decorrer de sua
vida, está mentindo. Sou diferente, e assim incomodo
muitas pessoas que chegam a ler algumas poesias
minhas. Seja de amor, seja de dor... A verdade é que
nunca pedi para ser aprovada ou não. Eu só quero ser eu
e nada mais.
Termino mais um parágrafo e mais uma taça
de vinho. Decido voltar para a pousada, onde estou
hospedada. É um lugar pequeno e acolhedor, seria ótimo
ficar aqui para sempre. E se o meu “sempre” for amanhã?
A gente poderia escolher o “pra sempre”, que sempre
acaba de todo jeito.
Passei tanto tempo sentada no café, tentando
escrever e não me dei conta de que não me alimentei.
Ainda um pouco zonza, por tanto vinho que bebi, sento-
me, novamente, de frente a minha única amiga: minha
máquina de escrever. Falo para mim mesma que de
amanhã não passa a minha decisão pelo meu fim. Eu
escolhi esse lugar bucólico porque aqui ninguém me
conhece. Escrevi uma carta para minha irmã, dizendo
que talvez eu não volte para Portugal. Ela deve ter
entendido que pretendo morar em Cochem, mas, na
verdade, só eu sei que meu fim poderá ser neste lugar.
Amor! Ah, amor! Como pode estraçalhar desse
jeito a minha alma depois de fazê-la tão feliz? Fui feliz,
sim, e isso ultrapassa qualquer dor que me tenha restado
no final.
Decido parar de escrever e vou preparar um chá
de ervas que trouxe comigo. Não é um chá qualquer, este
tem várias folhas não recomendadas para humanos.
Penso que vou deixá-lo pronto para o momento do meu
aniversário, em que vou sorver todo o seu conteúdo até 83
chegar meu fim. Porém continuo esperando a coragem
para tomar esta decisão. Não é tão difícil compreender
que a morte é a maior de todas as tristezas para quem
fica, e talvez eu esteja sendo egoísta. Afinal, ela vai
interromper todo sonho que eu tinha ao lado desse amor
que vai ficar. A minha vida estável também será o nada,
a escuridão da alma. Que estabilidade eu queria desta
vida? Fico com o nada. A minha relação com a morte não
é mais de repulsa, é de desejo.
Começa a anoitecer e, daqui da janela, eu vejo
uma lua brilhante refletindo na água. Que cenário
perfeito para o meu fim. Não. Eu não posso ir hoje. Eu
me dei um prazo até o final do meu aniversário. Resolvo
vestir um casaco e dar uma volta pelo rio, ainda não
sinto fome e penso em escolher algum prato especial
para fazer um banquete final da minha existência. Eu
tinha visto uma casa de massas, entrei, fiz meu pedido e
levei para viagem.
Já na pousada, preparei a mesa com capricho,
coloquei um vaso de flores vermelhas, um vinho, uma
taça, os talheres e resolvi me fartar com meu delicioso
prato. Se a vida me desse esse orgasmo gastronômico
todas as noites, talvez, ansiosamente, eu esperaria
a morte para dizê-la que hoje não. Hoje eu tenho o
compromisso de sentir prazer. Mas, não é isso que
acontece. A vida é frágil e efêmera. Não irei me apegar a
ela.
A lareira estava acesa, fazia muito frio e eu dormi.
Acordei. E agora? É hoje. Hoje é o grande dia! Dia do meu
aniversário e dia da minha morte”.
Pegou seu chá, preparado na noite anterior,
sentou-se no tapete perto da lareira...

84

Inspirado em Florbela Espanca, 08 de dezembro de 1894 – 08 de dezembro


de 1930.
UMA HISTÓRIA DE AMOR

Luiz Vieira
Irati – Paraná, Brasil
85

meados do século XX, Dona Vitória,


mulher bem resolvida viúva, com quatro
filhos decidiu se casar novamente. Com
o casamento, vieram junto com o marido os nove filhos
dele, dos quais os pequenos dependiam de cuidados.
Adotou-os com o maior carinho. Do novo casamento
logo vieram mais três filhos e queria parar por aí,
já que a família estava bem grande. Tudo ia bem até
que se passaram oito meses e ela não estava grávida
novamente.
Uma vez por mês havia missa na comunidade e
todos tinha que passar pelo confessionário. Na confissão,
foi questionada sobre estar ou não grávida. Confirmou
que não queria mais filhos, apesar da insistência do
confessor em convencê-la a tê-los, pois era a vontade de
Deus.
Do confessor recebeu, por isso, uma pesada
penitência em orações de joelho. O desatino a aguardava
na missa logo em seguida.
Tudo normal até a fila para receber a hóstia
consagrada. Lá estava dona Vitória com seu véu preto
na cabeça, acessório obrigatório para as mulheres,
ajoelhada em frente à cerca que separava o altar do
restante da igreja, local onde se recebia a comunhão.
Há muito tempo, o andar do povo era ditado pela
igreja.
O confessionário, ouvidos com olhos grandes que
tudo ouvia, tudo via, tudo sabia e controlava, ninguém
escapava. As mulheres eram as mais visadas, por mais
afoitas que fossem, curvavam-se sob a voz sussurrada
através dos buracos quadriculados do confessionário,
onde, do outro lado, estava o conselheiro, o juiz e o
carrasco ditando a penitência.
86 Quando alguém mais afoito avançasse o sinal, era
na hora da comunhão que a humilhação se agigantava.
Ali era dobrado, sendo expulso, impedido de receber o
sacramento. Somente poderia retornar após demonstrar
ter se submetido à obediência e cumprido a determinada
penitência. Ninguém escapava.
Ao chegar sua vez de comungar, o celebrante
interrompeu a distribuição da hóstia, bradou
esbravejante: Vitória, te retires da fila e voltes aqui
somente depois que engravidares. Toda a assembleia
dentro da igreja fez silêncio sepulcral. Ela, então, saiu
aos prantos e foi para a casa com sua alma mortalmente
ferida. Não cabendo em si tanta humilhação.
Nove meses se passaram e ela, então, pariu um
menino. Um ano depois outro, mais outro e assim vieram
mais oito (seis meninos e duas meninas). Jamais pensou
em abortar, pois os amava incondicionalmente.
Enfim, veio a menopausa e deu um basta.
MULHER SIMPLES, MUITO SIMPLES!

Maria Beatriz Gonçalves


Windischeschenbach, Alemanha
87

“Não se nasce mulher, torna-se mulher”


Simone de Beauvoir

existe mesmo a possibilidade de


uma vida simples neste mundo
complexo? Aqui, simplicidade se
entende por um cotidiano despojado. O alimento se faz
num fogão de lenha. A casa é sem porta e sem janela. O
telhado é de folha. A água se busca em um córrego. A
medicina é toda natural. Para dor de barriga, raízes. Para
corte no pé, açafrão. Para resfriado, chás. E para tristeza?
Não. Para tristeza não havia remédio, era mesmo chorar
para aliviar a alma. Chorar… chorar…
Essa mulher de que vos falo não aprendeu a
ler porque, nos seus primeiros dias de escola, sua mãe
morreu e como herança recebeu a incumbência de
cuidar dos irmãos mais novos e, com isso, cultivou
uma vida de trabalho e simplicidade. Em suas palavras,
“a pessoa que não sabe ler é como uma pessoa cega”.
Portanto, ela carregou em sua vida a tristeza de não
saber ler. Mas também a sabedoria de viver… viver…
Seu sonho era ter uma casa. Ergueu com luta e a
solidariedade dos filhos a casa de seus sonhos. Comprou
fogão e televisão. Comprou armários e geladeira. Viveu
sua casa. Realizou seu sonho. Sonho de mulher simples.
Sonho de uma simples mulher. Sonho… sonho…
Mas o nome dessa mulher de vida simples era
único no planeta, que, como muitos nomes no Brasil dão
errado no cartório, o nome dela também é fruto de um
engano. Normalmente, ela deveria se chamar Ingézia,
mas, por erro, ficou Ingrezia, Ingrezia! Enganos…
enganos…
88 Em meio a enganos e planos, numa simplicidade
sóbria e árida a Ingézia ou Ingrezia do cerrado goiano
teceu uma vida simples e o único registro que se tem
de sua história está na memória dos que com ela
partilharam alegrias e tristezas. Alegrias e tristezas…
Sim. Porque até os seus 80 anos sua memória era
boa. Narrava histórias de tempos distantes, histórias
arrepiantes de uma vida tecida na dureza dos desafios…
fio por fio…
Depois dos 80 anos, foram muitos os desenganos!
Seu sonho que era sua casa tornou-se numa prisão! Sim!
Com a chegada do Alzheimer eis que, de repente, a casa
dos sonhos se torna um pesadelo, já não é a mesma casa.
A casa já não tem mais significado na vida da Ingézia. Já
é tempo de ir embora… partir…
Talvez pela ausência da memória, pela falta
da “casa dos sonhos”, a Ingézia começa a quebrar
seu corpo… uma perna, outra perna, vai partindo…
quebrando… quebrando…
Assim, no dia 16 de junho de 2018, morria a
Ingézia. Assim como ninguém no mundo tem um nome
igual ao seu, também ninguém sobre ela nenhuma
palavra escreveu! Era muito simples! Era discreta. Era
dura. Era correta. Ah, Ingézia é minha mãe e deixou-me
uma lição: é preciso ler… ler… para a cegueira vencer!
Vencer… e, quem sabe, encontrar poesia neste mundo
que, na verdade, não é nada muito simples.

89
90
TRATAMENTO DENTÁRIO

Maria Heloísa Martins Dias


Pinheiros - São Paulo, Brasil
91

colocou os brincos de argola dourada,


depois de retocar a maquiagem.
Olhou mais uma vez no espelho para
se ver de corpo inteiro. Sim, uma bela mulher, tentou
se convencer dessa fala, tantas vezes ouvida a seu
respeito. Mas, não era isso que lhe satisfazia, gostava,
simplesmente, de estar com a aparência que se ajustasse
ao seu bem-estar.
Chamar atenção não era seu interesse, aliás, não
entendia por que as mulheres precisam lançar mão de
expedientes para atrair os outros, especialmente, os
homens. Confiar em sua autenticidade e simplicidade
foi sempre o que procurou fazer, sem artifícios. Certo
que, às vezes, exagerava na moderação, não queria
exuberância, muito menos gestos afetados. Seja mais
flexível, informal, não precisa ser tão séria... Não precisa,
de fato, mas era sua natureza, ora!
O horário marcado de sua consulta, 18h, a última
do dia, segundo a secretária do dentista. Não gostou,
mas aceitou, afinal, tinha conseguido a custo essa vaga
com o dr. Laerte, que atendia pelo seu convênio. Recusar
seria perder uma oportunidade de não precisar pagar a
consulta. E se o tratamento fosse longo e custoso? Não
tinha dinheiro para um odontologista particular. Melhor
não reclamar.
Chegou pontualmente ao consultório. Não, para
ser mais exata, com quinze minutos de antecedência.
Gostava de se adiantar para os compromissos marcados.
Delicadamente, entrou na sala do dr. Laerte.
A recepção foi gentil, mas o olhar dele demorou mais
do que o necessário, deixando-a sem graça. A seguir,
apresentação de praxe e o início do exame bucal.
92 Logo veio o desconforto. Nada de dor, de sensação
desagradável por causa do espelhinho ou do aparelho e
demais instrumentos. É que o braço dele foi roçando no
seu e tudo lhe dizia que o braço iria caminhar ou ficaria
por ali mais tempo. Ana recuou o seu braço, ajeitando-se
na cadeira de modo a ficar mais distante. Não adiantou,
o braço atingiu o peito e logo mais o seio foi o alvo. Ela
se irritou e pediu que parasse o exame, afastando-se
bruscamente. Não deu resultado. Ele retirou o sugador
e os instrumentos da boca, como se fosse atender ao
pedido dela, mas, em seguida, a segurou com força,
prendendo-a na cadeira e tentando beijá-la. Defendeu-se
como foi possível, mas ele era mais forte, claro, e o beijo
não correspondido foi seguido por umas frases que ela
mal conseguia ouvir, pela sensação repelente e pelo ódio.
Sabe que sua cor negra me fascina e deixa você ainda
mais bonita do que é? Podemos prolongar essa consulta
em meu apartamento, ok? Mulheres como você não saem
impunes daqui, ouviu? Cada vez mais, desesperava-se e
debatia-se, para tentar se soltar das garras do dentista,
ele, cada vez mais a investir sobre ela com violência. O
toque do interfone soou como salvação. Os dois estáticos
e mudos. Uns instantes mais e a secretária abre a porta.
Conseguiu se desvencilhar dele, que recuou afinal,
descontrolado pelo flagrante e por ter sido interrompido
em seu desejo perverso. A secretária parada, atônita,
ouviu a fala ríspida, saia daqui sem dizer nada e pode ir
para casa, o expediente terminou.
Ana pegou, rapidamente, a bolsa e saiu meio
trôpega da sala de consulta e, com a cabeça baixa ao
passar pela sala de espera, ganhou a rua. Respirou fundo
e enxugou umas lágrimas tímidas, mas suficientes para
borrarem um pouco a maquiagem. Que se dane o rímel e
a sombra, queria chegar em casa o mais rápido possível.
No dia seguinte, já refeita, entrou nas redes
sociais e contou o que sofreu nas mãos do Dr. Laerte, com
todos os detalhes. Não temia nada, queria desmascarar 93
o odontologista, um “excelente profissional”, com
Doutorado feito no exterior. Sim, sua especialidade era
outra, fez questão de exibir na Internet. Como também
postou comentários sobre as mulheres negras que vivem
sofrendo assédios sexuais.
Assim, nasceu a matéria para este conto enviado,
algum tempo depois, a um concurso. O resultado? Ah,
isto fica para o leitor imaginar.
94
ANTÔNIA E O LEGADO DO SILÊNCIO

Maribel Andrade
Pelotas - Rio Grande do Sul, Brasil
95

de cabelos bem
trançados, cresceu
vendo sua mãe,
mulher negra que fora escravizada, trazida com as mãos
amarradas para ser colonizada. Antônia crescia e via,
sem entender os porquês que sua mãe não sorria. Aos
poucos, foi compreendendo, e isso lhe aborrecia! Lhe
tiraram a própria voz, lhe tiraram a autonomia, ao fazer
a travessia. Silenciaram os seus sonhos, emudeceram seu
choro, lhe arrancaram a alegria! Sequer o nome trazia;
Abidemi (Iorubá da Nigéria) ...o nome lhe pertencia em
sua terra natal, mas, quando capturada, o silêncio foi
total.
Antônia, menina esperta que nasceu em
liberdade, 1936, quando sua mãe a pariu, a Abolição
no Brasil, aquela que em nada aboliu, permitiu, a duras
penas, lutar por dignidade. E Antônia questionava,
buscava junto a seu povo, queria poder compreender o
porquê de tanto sofrer!
E a boneca que ganhara? A única com que
brincava, por que não tinha olhos e nem boquinha
tampouco? Porque até mesmo a boneca que a ela
pertencia, feita por sua mãe, tinha que ser diferente das
bonequinhas dos brancos? Igual àquelas queria!
Mal sabia a menininha que, Abayomi, sua
bonequinha, confeccionada com tirinhas de tecido de
algodão, era o pouco que se tinha na vida de escravidão.
Abidemi, sua mãe construiu Abayomi, rasgando da
própria roupa as tiras em prontidão.
Ao fazer a bonequinha, Abidemi se inspirou na
mulher que se tornou: uma mulher silenciada, sofrida
e amargurada, sem vontade de mais nada. Mas Antônia
das trancinhas, totalmente diferente, tem o sangue
96 efervescente, não se cansa de lutar. Aos poucos foi
percebendo que mulher de pele preta era difícil estudar,
batalhou sobrevivência, sem jamais desanimar. Foi
forçada, desse modo, desde cedo se virar; foi costureira,
passadeira das roupas de muitas Sinhá!
Em contato com seu povo ouvia muitos relatos,
difíceis de acreditar, mas guardara na memória para
um dia repassar! Aprendeu contar histórias, dançar e
também cantar, nem via as horas passar.
Cantarolava nas ruas, nas praças, no carnaval!
Nas letras de suas músicas, desconstruía conceitos,
denunciando todo mal. E lá passava a Antônia, com
agulha, linha e pano, cantando, contando história, com
eloquência total!
Em sua roupa colorida, a já mulher destemida,
bordou o tambor de “sopapo”, instrumento cuja
história Antônia se fascinava! E o povo que pensava ser
instrumento local, usado no carnaval e originário do
sul, ficava boquiaberto ao saber, na hora certa, a ideia
original.
Aquele instrumento belo, presente no carnaval,
no samba e no terreiro, nas rodas de Candomblé, aqui em
solo gaúcho, tem seus primeiros registros por volta de
1826, contudo, há quem indica uma existência anterior,
no Uruguai e na Argentina com o nome de “Sopipa”.
O som daquele batuque que saía do tambor,
soprava no ouvido de Antônia:
“Espalhe aos quatro ventos que a origem do
Sopapo tem, na verdade, outro autor. É do negro lá da
África, que ao ser capturado, nada podia trazer, apenas
em sua memória trazia, já registrado, que a cultura de
seu povo não pode deixar morrer! E ao chegar nesses
pagos, na cruel terra do charque, juntou com tronco
de árvore, parte de couro animal e, então, fez o Sopapo
pra cultura renascer! Com ele, sua religião, praticada às
escondidas, pra sinhozinho não ver”. 97
Assim foi acontecendo, mas tudo que vem do
negro era de praxe esconder. E Antônia começou e, por
força do destino, uma Griô se tornou!!

(Homenagem à pelotense Griô Sirley Amaro ,1936- 2020)


98
MARIA: EXPRESSÃO DE FORÇA,
DETERMINAÇÃO E VISÃO DE MUNDO

Marilde Queiroz Guedes 99


Barreiras - Bahia, Brasil

Século XX revelou muitas mulheres que


se destacaram em vários campos do
conhecimento, que exerceram papéis
importantes na política, na literatura, nas artes, na
educação escolar e na educação de vidas.
Maria nasceu, cresceu, casou-se, teve filhos e
morreu no Século XX, com apenas 49 anos. Não foi uma
Hillary Clinton, Madonna Louise, Cecília Meirelles, Maria
da Penha nem outras mulheres famosas, conhecidas
socialmente. Maria foi uma mulher (in)visível.
Aprender a ler e a escrever foram desejos
alimentados em quase toda a sua vida, pois, queria tirar
o título de eleitor, votar e ser votada, ser vereadora da
sua cidade, representante do bairro em que viveu por 31
anos. Sonhava dar voz e visibilidade àquela comunidade.
Assim, quando já era avó, foi alfabetizada com a palavra
da escola, porque a palavra do mundo ela dominava,
tinha experiência e fluência invejáveis. Aqui está a visão
de mundo de Maria, era de vanguarda, que esperançava
uma vida desoprimida para si e para o seu povo.
A história de vida de Maria expressa força,
determinação, visão de mundo para além do seu tempo.
Criada só pela mãe, porque perdera o pai ainda criança. A
mãe ficou cega em decorrência de glaucoma. Logo assim
ficou viúva, daí passou a pedir esmolas para prover o
sustento dos filhos. Neste contexto, Maria aprendeu a
superar as agruras da vida, lutar incansavelmente pela
sobrevivência e conquistar uma certa estabilidade.
Casou-se muito jovem, teve sete filhos, somente cinco
sobreviveram. De igual modo, viúva ficou com apenas 30
anos.
Sua viuvez, com a perda de Eurico Santos, seu
100
esposo, chegou ao final dos anos de 1960, precisamente
1968, em pleno Regime Militar. Época em que muitas
vozes foram silenciadas, homens e mulheres torturados,
famílias exiladas, vidas condenadas. Contudo a voz de
Maria se manteve ecoando na luta diária para criar e
educar seus cinco filhos biológicos e tantos outros, filhos
do coração, presentes que a vida lhe confiou.
Mesmo analfabeta do código escolar, Maria
priorizou a educação escolarizada dos filhos. Seu
orgulho maior, ver todos formados. Por isso, madrugava
nos portões das escolas, em época de matrícula, para
conseguir vaga para todas as crianças em idade escolar,
moradoras do Bairro Vila Brasil. Nessa época, a oferta de
vaga na escola pública era escassa, apesar dos discursos
em prol da democratização do ensino, da expansão das
vagas e da qualidade tão desejada.
Politicamente, era bem relacionada. Com sua
desenvoltura para falar, destemida e movida por
um ideal, além de um vasto rol de amizades com
personalidades influentes na política baiana, dialogou
com governadores, deputados, prefeitos e vereadores.
Eram seus admiradores e, por ela, admirados. Com sua
bravura, seu trabalho e a ajuda de tantos amigos, alçou
voos altos.
Maria voou, profissionalmente, de trabalhadora
informal à merendeira municipal, em 1977, com Carteira
Profissional assinada, à Agente de Portaria, servidora da
Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Bahia, em
1981, de uma escola de seu bairro. Ela esperançou por
essa estabilidade, trabalhando e lutando, como sujeito
político, construtor e ator de sua história, como nos
lembra o educador Paulo Freire.
Maria Queiroz dos Santos não viveu o suficiente
para chegar à câmara legislativa, porém, exerceu seu
papel político de mulher, mãe, ativista em defesa dos
mais vulneráveis, da educação pública para todos e da
liberdade das mulheres. 101
No desempenhar de suas atividades
sociopolíticas, fomentou a cultura e a educação no seu
bairro, as festividades religiosas, a empatia, o senso de
justiça e sobretudo, o altruísmo, não medindo esforços
para ajudar. Sincrética, acreditava na força de Deus, dos
santos, bem como nos orixás e na espiritualidade como o
caminho para encontrar as respostas da sua existência.
O legado de Maria é inspiração para muitas
mulheres do século XXI, que continuam lutando, muitas
vezes sozinhas, para conquistar seus sonhos, utopias e
reconhecimento como sujeitos históricos.
102
O ABORTO DE ABIGAIL

Monique Pfau
Camaçari - Bahia, Brasil
103

abortou.
Em 1965, Abigail
tinha 16 anos e vivia
numa cidade pequena. Já tinha os desejos de uma
mulher, ainda que os discursos do padre condenassem
seus pensamentos. Então, conheceu Procópio, que
passava o verão na cidade. Parecia amor à primeira vista.
Procópio era universitário e queria conhecer o mundo.
Abigail queria ser diplomata.
Abigail e Procópio viveram um verão apaixonados.
Procópio tentava de tudo para transar com Abigail. No
início, ela resistia, mas também queria. Procópio ficava
bravo quando Abigail negava seus carinhos. Abigail se
sentia culpada. Aos poucos, foi deixando e gostando.
Abigail não queria engravidar e pedia para Procópio se
controlar. Mas Procópio dizia que ela o enlouquecia.
Abigail engravidou. Aos prantos, procurou
Procópio. Para Procópio, o problema era dela. Abigail não
queria ser mãe, não agora. Como foi burra. Conseguiu,
então, um remédio ilegal. Tomou, chorou e esperou.
Viveu as cólicas e o sangramento, sentiu a dor. Suportou
em silêncio, desmaiou. Sua mãe a encontrou no banheiro
e a levou ao hospital. Na curetagem, Abigail sofreu a dor
dos restos fetais e sua dignidade sugados do seu corpo.
Sua mãe, para sua surpresa, não a repreendeu.
– Isso acontece o tempo todo. Você não é a
primeira e nem será a última. A tia Tina, tirou. A Pérola,
diz que perdeu, mas provocou. A Cristiane, tão cristã,
carrega essa cruz com ela. E a Morgana, que morreu. E
as que não fizeram? A Manuela, minha manicure, que
104 mendiga com aqueles meninos malnutridos. A Casemira,
coitada, que se casou com aquele cafajeste. Não vou te
julgar. Não eu. Mas não vamos mais tocar nesse assunto.
O silêncio de uma prática sussurrada pelos corpos
femininos só foi quebrado porque o médico contou para
os bêbados do boteco. Como uma doença contagiosa, a
notícia se espalhou. A partir daí, Abigail não era mais
bem-vinda nas casas de família, evitava as ruas, pois era
perseguida por rapazes de pinto duro. Também desistiu
da igreja e seus discursos sobre o pecado contra a vida. O
pai, primeiro, lhe deu uma surra, depois, a ignorou pelo
tempo que naquela cidade lhe restou.
Um dia, Abigail abstraiu. Abstraiu o máximo que
conseguiu.
Em 2018, Abigail era uma diplomata aposentada,
uma mulher experiente. Apaixonou-se outras vezes, mas
nunca mais permitiu um Procópio para si. Foi quando
sua neta apareceu de surpresa. Estava chorando. Estava
grávida, estava desesperada. Não queria ser mãe, não
agora. Não sabia quem era o pai. Um dia bebeu demais
e só lembrava de ter acordado seminua na beira
da estrada. Tinha sido estuprada? Não sabia. Tinha
vergonha, sentia-se culpada.
Então, da televisão ligada na sala, escutaram
gritos de homens de paletó sobre um projeto de lei que
criminaliza o aborto, mesmo para casos de estupro
e riscos de vida para a mulher. Em euforia, repetiam:
“Não ao aborto! Sim à vida! Não ao aborto! Sim à vida!”
Os gritos ecoavam nas cabeças das duas mulheres ali
presentes.
Mais de cinquenta anos e Abigail sentiu
novamente aquela cidadezinha dos anos 60 julgando-a.
Agora, no século XXI, esse sentimento vinha de Brasília,
de onde ela mesma teve que se impor como diplomata
e mulher, para homens como esses desse circo, que
desrespeitam a mulher em todos os níveis da sua 105
existência. Homens religiosos, com poder, egoístas,
homens como Procópio, homens que abusam de uma
adolescente bêbada. Abigail, então, olhou com carinho
para sua neta.
– Eu vou te ajudar. Isso acontece o tempo todo.
Você não é a primeira e nem será a última. Eu mesma
já fiz. Era boba e burra, mas a sua bisavó me ajudou. A
tia Tina, também tirou. A Pérola, diz que perdeu, mas
provocou. A Cristiane, tão cristã, carregou essa cruz
com ela na vida. E a Morgana que morreu. E as que não
fizeram? A Manuela que mendigou com seus meninos
malnutridos. A Casemira, coitada, que se casou com um
cafajeste. Não vou te julgar. Não eu. Mas depois de tudo,
não vamos tocar mais nesse assunto.
E assim seguem os segredos das mulheres que
resguardam as dores de ser mulher.
106
UMA IMAGEM FUGAZ

Osman C. Sarmento
Montreal, Canadá
107

década de 1950, as escolas primárias no


Brasil eram ainda segregadas. Segregadas,
sim! por sexo... havia classes de meninos
e classes de meninas, e os únicos contactos possíveis e
imagináveis dentro da escola entre uns e outras, por
furtivos que fossem, eram durante o recreio. Como
incentivo à socialização, esse sistema escolar deixava a
desejar...
Ainda mais para um filho único como era o
Zezinho, essa situação de total ignorância do mistério
que representava aquela inatingível gente feminina
era, simplesmente, terrível, difícil de se imaginar
hoje em dia, quando, praticamente, toda informação
é disponível mediante simples clicar de teclas no
universo informático. Naquela época, não, tudo era
mistério! Embora tudo que fosse proibido despertasse,
automaticamente, a curiosidade duma descoberta...
Zezinho morava com os pais numa rua do
bairro da Vila Mariana, em São Paulo, Capital. Essa rua
ainda não era pavimentada, passavam pouquíssimos
veículos a motor, de maneira que as crianças
podiam tranquilamente brincar no meio da rua sem,
praticamente, medo nenhum de serem atropelados
por algum carro. Por outro lado, uma das visitas mais
esperadas da sua rua era a das cabrinhas leiteiras,
com seus simpáticos guizos ao pescoço a anunciar sua
chegada, com o pastor que as acompanhava e vendia
leite de cabra tirado na hora, espumoso e quente, uma
caneca de cada vez, ó delícia das delícias! Leite puro,
saudável, integral, nada de pasteurização nem de
outras reduções... e cresciam todos saudáveis como os
cabritos alimentados com o mesmo leite das simpáticas
cabrinhas que faziam o deleite de grandes e pequenos.
108
Para ir à escola primária, Zezinho ia a pé, como
praticamente todos os outros alunos da época. A ida
até que era fácil, quase toda em longa descida, não lhe
tomava mais do que uns três quartos de hora. A volta,
porém, ladeira acima... pra descer todo santo ajuda,
pra subir a coisa muda! Normalmente subiam todos os
alunos em bando na volta, a pé mesmo.
Na volta da escola, com o passar do tempo,
Zezinho notou que algumas das meninas também
faziam o mesmo itinerário ladeira arriba. Entre essas
meninas, havia uma bem feitinha de corpo e cara que
lhe havia chamado a atenção durante o recreio, cabelos
negros lisos aparados em estilo “tigelinha”; Zezinho
ouvira dizer que ela se chamava Ana Maria, mesmo
nome duma prima dele; então não poderia ele esquecer
o nome dessa coleguinha que lhe chamara a atenção; e
pareceu-lhe, às vezes, que a Ana Maria fazia o mesmo
percurso na volta, até pelo menos a sua rua!
Às vezes, caminhavam até que próximos um do
outro, mas sem jamais trocarem palavra! Difícil saber
o que se passasse com a menina, mas o que ele sabia
era que dentro dele, cada vez mais se desenvolvia uma
curiosidade, uma vontade de falar com ela, mas, ao
mesmo tempo, sentia-se coibido pelo receio de que
talvez não fosse boa ideia, de que talvez sua iniciativa
fosse ser mal-recebida... ó dilema! tudo o que era bom,
ou gostoso, ou divertido, era proibido!
Último dia de aula do curso primário. Contentes,
os alunos se despedem dos colegas, professores e escola,
e rumam de volta a casa. Ao aproximar-se da sua rua,
quem vê o Zezinho adiante dele, senão a bela Ana Maria!
Zezinho apressa o passo, põe-se a imaginar qual
a frase mais adequada para abordá-la, seu coração bate
acelerado, sua respiração é ofegante, sua boca está seca
como o deserto do Saara, não consegue articular nem
sequer um simples “Bom dia!”, suas pernas titubeiam, 109
receia cair e estatelar-se e fazer feio perante a menina.
Quê fazer?! Decide entrar rapidamente em casa e pegar
a sua bicicleta para poder segui-la melhor... sai montado
na bicicleta que lhe dá um certo apoio moral, mas... cadê
a Ana Maria?! Não mais a vê! com vigorosas pedaladas,
Zezinho chega ao final da rua, olha prum lado e pro
outro, nada! Evaporou-se! Nada mais lhe restou senão
aquela imagem fugaz, etérea, inatingível...
110
A MULHER DO SÉCULO

Raquel Ordones
Uberlândia - Minas Gerais, Brasil
111

minha mãe me conheceu com vinte de dois anos


de idade, apesar de bem antes ter me sentido. E,
com certeza, também a senti, só não me lembro,
mas continuo sentindo ainda, e disso me lembro a cada
instante.
Ela me deu luz de vida, de sol, dia, lua... Estava
comigo na minha primeira dor, no meu primeiro sorriso,
na minha primeira palavra, no meu primeiro passo.
É por isso que hoje tenho essa força; fui amparada
pela melhor pessoa que já pode existir.
Fui socorrida na dor com todo carinho; o meu
primeiro sorriso foi aprovado por ela, e nunca mais
parei de sorrir. Talvez a minha primeira palavra a tenha
surpreendido. E, no meu primeiro passo, ela teve a
certeza de que trilharia a minha estrada ao modo dela.
Quando já entendia as coisas, descobri que o
olhar dela tinha tantos versos e risos fascinantes; até o
seu ralhar era carinhoso.
A sua humildade era sábia e santa; dividia tudo
de si, sem sequer pensar num retorno.
A lembrança me faz revivê-la todos os dias,
trazendo imagens incríveis nas quais ainda me espelho.
A disciplina fazia parte da rotina e soava tão
natural. O seu exemplo sempre foi de grandeza e o seu
perfume está impregnado em minha alma além de tudo.

112
A GRAÇA DA MISTURA

Renata Dal-Bó
Tubarão - Santa Catarina, Brasil
113

Dandara Anahi Pereira da Silva,


com muito orgulho. Carrego comigo
o nome de origem afro-indígena-
portuguesa-brasileira, que é minha marca identitária.
“Dandara”, herdado de minha avó materna, uma negra
linda, neta de escravos, é um nome afro-brasileiro e
significa “princesa guerreira”. “Anahi” veio de minha
avó paterna, índia da tribo Guarani, e significa “Bela flor
do céu”. O “Pereira” é de meu avô materno, fazendeiro
do sul de Minas, vindo do norte de Portugal. Minha avó
trabalhava na casa de meu avô. Os dois se apaixonaram
e viveram um amor proibido, entre uma negra lavadeira
e um homem poderoso e temido. “Silva” vem do meu
avô paterno, um caixeiro-viajante, que conheceu
minha avó nas suas andanças pelo nosso imenso e
miscigenado Brasil. Carrego comigo as dores, as cores
e os sonhos do povo brasileiro. Sou “das” Minas Gerais,
onde a mestiçagem é uma característica marcante, que
gerou uma identidade brasileira singular e um povo
substancialmente mestiço na aparência, na cultura e no
modo de ser. Sou fruto desta mistura, corre em minhas
veias o sangue negro, indígena e branco. Brinco que
sou uma “cafuza meio mameluca” ou “meio maluca e
confusa”, sei lá.
Nasci envolta a uma pele, que será minha pelo
resto da vida. Esta pele carrega minha herança genética,
minha história e minha origem. Orgulho-me muito em
fazer parte deste Brasil miscigenado, de ter na cor da
minha pele um pouco de cada raça que constitue nosso
país. Uma parte de mim é candomblé, outra parte é
um Deus cristão. Uma parte de mim é samba, a outra
é capoeira. Uma parte de mim é cachaça, moleque,
quindim e cochilo, outra parte é arrastão, cachoeira,
piracema e ribanceiras. Uma parte de mim é Camões
e Fernando Pessoa, a outra é Jorge Amado e Castro
114
Alves. Essas partes convivem em simbiose, às vezes,
coerentemente, e outras, de forma desconexa.
Meus ideais, valores e sentimentos vêm destas
várias partes/ peles que coabitam dentro e fora de mim.
Pele que protege e envolve meu corpo, pele que descende
de outras peles. Penso que a busca de todos nós para
sabermos de onde viemos e, consequentemente,
quem somos, seja extremamente importante para
que possamos construir nossas identidades e nos
orgulharmos, cada vez mais, da cor de nossa pele, não
importa qual seja.
Sonho em viver num mundo em que as
pluralidades cultural, racial, ética e social sejam vistas
como um valor positivo, e não uma ameaça. A graça da
mistura está justamente na história que contamos, na
marca que deixamos, nas causas que defendemos e
na luta pela aceitação num mundo ainda tão cheio de
preconceitos.
VESPA

Roberto Santos
Mosqueiro - Belém- Pará, Brasil
115

sempre na hora da novela que ele


vinha ao meu quarto, somente
aos sábados, quando bebia. Antes,
perguntava para mamãe: Será que ela está bem?
Eu o amava e, naquele tempo, pensava que seus
toques eram de carinho, amor. Depois que me tocava,
ainda no cômodo, pegava um trinta e oito, guardado na
minha penteadeira. Sentava na frente de casa, exibia-se
para os colegas — sempre amigo de todos, era bem visto
em nosso bairro, pela família e no trabalho. Bêbado,
tirava algumas balas do tambor e brincava de roleta
russa. O que eles não sabiam era se tratar de projéteis de
festim. Na manhã seguinte, entregava-me a arma e pedia
para recarregá-la e guardar no lugar.
Uma vez por semana, mandava-me lustrar sua
vespa. O veículo, um modelo 1972, de cor creme com
exceção dos paralamas que eram cinza. Tinha banco
marrom de couro e pneus, que possuíam uma faixa
branca e calotas feitas de um metal que reluzia como o
alumínio polido. Nela, havia apenas um retrovisor do
lado esquerdo de quem a dirigia, era cromado assim
como outros detalhes.
Apesar da idade, funcionava perfeitamente bem,
e às vezes, aos domingos, pela manhã, ele saía com ela,
para dar uma volta na Orla. Retornava pontualmente
para o almoço.
Certo dia, fui brincar de pilotar a velha vespa,
nesse exato momento ele chegou da firma. Dei-lhe
um sorriso, esperando ser retribuída. Em vez disso,
puxou-me pelo cabelo com tanta força, que me fez cair
para dentro da sala, quebrando o telefone. Eles ficaram
semanas sem poder discar.
Com o passar do tempo, as primeiras espinhas
116 surgiram em meu rosto, comecei a sentir nojo do meu
corpo e evitava o espelho. Passei a acreditar que eu era
a culpada da situação, pratiquei automutilação. Falava
para minha mãe, o que acontecia, mas de nada adiantava.
“É assim mesmo”, ela dizia.
Na adolescência, ele passou a sentir um ciúme
doentio de mim. Não me deixava ir à praia com as
colegas, passou a me vigiar e a revirar meus cadernos
procurando bilhetes. Uma tarde, o Rafa foi em casa,
em busca de um dever que havia perdido. Ele deu um
safanão no rapaz para fora e com a arma em punho o
ameaçou:
— Se voltares aqui eu te mato!
E assim foi com todos os amigos que se atreviam
a visitar-me.
Um dia, falei a ele que queria aprender dirigir a
vespa, respondeu-me que aquilo não era coisa de mulher.
Que eu nunca mais retornasse com aquele assunto.
Aos sábados, passei a dormir toda coberta,
porque sabia que ele beberia e viria ao meu quarto.
Acordava à noite com ele em cima de mim, com aquele
fedor de cigarro e bebida. Chutava e ameaçava gritar por
socorro. Era o que o afastava. Ao mesmo tempo, minha
mãe estava na sala vendo a novela.
Apesar dela também ter culpa, não guardo
rancor. Sei que, naquela época, assim como hoje, muitas
mulheres se submetem à vontade dos maridos por
dependência financeira e ou psicológica. Era eu quem
tinha que tomar uma atitude drástica, pois já era uma
moça e sabia que, mais cedo ou mais tarde, ele iria
conseguir o que queria.
Comprei uma bala de verdade e coloquei-a na
arma. Pensei em pegar o revólver e dar fim à própria
vida. Será que faço isso? O sábado chegou, junto com
ele, a bebedeira e o cheiro de cigarro. Ouvi risos insanos
vindos da frente de casa e não demorou a novela 117
começou.
Fingi que dormia, ele tentou beijar-me, mas um
chute o fez recuar. Fiquei acuada na cama. Enquanto
ele procurava a arma na penteadeira, estive a observá-
lo pelo espelho. Após desistir da procura virou e ficou
de frente para mim, para a sua surpresa, o trinta e oito
estava em minhas mãos. Estendeu os braços, vendo que
eu permanecia imóvel, veio em minha direção. Atiro
nele? Atiro? Joguei o revólver no chão e ele o pegou.
Saindo em seguida.
Fiquei deitada, rezando..., quando ouvi um
estampido seco. Terei culpa? Acho que não. “O mal por si
mesmo se destrói”.
Passei pela sala, a televisão estava ligada, a
novela havia acabado. Peguei a vespa. Finalmente, estava
pilotando, senti o vento em meu rosto, pelo retrovisor vi
seu corpo, inerte, sentado na cadeira.
118
A MULHER E O MUNDO

Schleiden Nunes Pimenta


Campo Belo - São Paulo, Brasil
119

— bisa, Vó Nega, era porreta.


Sabe o que ela fazia, quando
ia ter filho? Fechava a porta
do quarto, falava “Todo mundo para fora”. E o povo saía.
Ela trancava a porta, ela mesma fazia o parto, ela mesma
limpava o sangue da criança – ninguém ouvia um... pio!
Só ia ouvir o choro da criança depois. Vó Nega pegava
uma vassoura, esticava o braço, abria a porta: “Pode
entrar”.
Minha mãe contava essa narrativa sobre a Vó
Nega, ora em pé, ora sentada, segurando uma faca de bife
em uma das mãos. Na outra mão, uma espiga de milho
era brandida, já debulhada.
A franja de mamãe escapava das orelhas, mas só
um pouco, e, quando interpretava as falas, encurvava
as costas, dobrava o bucho; com os dentes da espiga,
ameaçava. Ela se orgulhava. Os anos do passado, os seus
heróis de família – eu sentia – nos visitavam para ajudar.
Vinham também fiscalizar o evento que é o dia de fazer
pamonha. Traz o milho, despalha o milho, descabela o
milho, debulha o milho, mói o milho, descalda o milho,
cozinha o caldo do milho, monta a palha para a pamonha,
faz o amarrio: para enfim mergulhar uma tora de queijo
fresquinho.
Se o processo de fazer pamonha for como a
vida, digamos que o queijo é a nossa alma. O resto é
trabalharia.
Vários queijinhos nos rondaram ao passo que
minha mãe contava. Cada filho, cada neto, genro e nora, e
meu pai – o seu segundo marido – a ajudar com alguma
coisa. Não é qualquer um que amassa o bagaço de modo
a dar um bom, bom, pedaço. Ou, dizendo grosso modo,
um pedaço do bão.
120 Eu me pergunto se Vó Nega também fazia a
pamonha do mesmo jeito que dava cria – sozinha –,
mas, mamãe? Ah, ela adora é a coisa da parentada.
Para ela, daria à luz no meio da rua, e cada parente a
ajudaria puxando um membro da criança para fora. Uma
perninha, o narizinho, um bracinho. Esse absurdo que é
a sua noção de família. É filha única, só que às avessas.
Um faz-de-conta. Em verdade, é irmã de um menininho
que morreu ainda no berço, logo ao nascer, de problema
no coração.
Brandindo a faca, nem parece que a sua língua
fora cortada à metade, quase arrancada com um murro
que lhe deu seu ex-marido. Nem parece que, quase
sozinha, cuidou de três filhos naquele monstro que
é a cidade de São Paulo, apanhando, costurando às
escondidas para ganhar algum dinheiro que lhe desse
independência, outra visão, além da passagem que os
levasse de volta para o interior e a salvo do seu marido
insão.
Sovando a espiga, lembrava a mulher que
desafiou até o Vaticano para conseguir o divórcio, que
voltou para a roça, encontrou, enfim, o seu grande
amor, e, depois de parir mais dois filhos, jamais sentir-
se-ia sozinha de novo em vistas do irmão que o destino
lhe tirou. Gargalhando, assim, até parece a fotógrafa,
de roupas cor-de-rosa, que coleciona boneca, que veio
do nada e enfrentou de peito aberto o mundo, e, com a
família nas costas, vence o século XXI.
Acaba de perder um filho (o segundo dos cinco)
para uma pandemia imprevista, e, no leito de morte dele,
desfez-se em prantos ante o corpo de um pedaço seu,
que saiu de seu próprio ventre, aprumou a palha, fez o
amarrio, descaldou as lágrimas ante aquele corpo que já
não tinha mais a sua tora de queijo própria.
Eu sei: somos molengas, tal qual um bolo de
milho vestido, de modo que jamais conseguiremos ser
como foi Vó Nega; todavia, a feitura, o processo de tudo 121
isso, é um parto, é duro: traz o filho, despalha o filho,
descabela o filho, debulha o filho, mói o filho, descalda
o filho, cozinha o caldo do filho, monta a palha para a
História, faz o amarrio: para, enfim, mergulhar uma tora
de espírito frio.
Nossa mãe é forte. Não venceu o mundo, a
violência, a ditadura, o preconceito e o machismo, para
deitar-se ante um vírus.
Para os seus amigos despalhados, desencarnados,
do outro mundo, hoje Vó Nega brande a vassoura, conta
causo, interpreta: “Minha bisneta, Landinha, é porreta.
Sabe o que fez, quando perdeu o filho? Abriu a porta da
vida, e falou: “Todo mundo para dentro”. E o povo entrou.
Ela mesma destrancou a porta, ela mesma velou, ela
mesma limpou o sangue da alma – então, todo mundo
ouviu um... choro incontido! Não parou o choro nunca
mais. Ainda assim, Landinha reuniu a família, e com
força, abriu o peito, gritou para o mundo: “Pode entrar!”.
122
O TOMBO DAS FERIDAS

Silvana Marques
Uberlândia - Minas Gerais, Brasil
123

inclina o corpo e tira


rapidamente uma a uma as
rebarbas de carrapicho que
prendem a barra do seu vestido e deixam à mostra a
sua perna, visivelmente flácida pra idade. Teme ser
observada, mas está sozinha, como sempre esteve. O
que lhe faz companhia nesse momento são as plantas
do entorno de sua morada. Os sinais de frescor em
inesperadas e curtas rajadinhas já avisam da chegada
do inverno de 1972, o que faz vir-lhe também a
lembrança de que fará 36 anos que habita na superfície
de um pedaço desta terra. Nisso, emerge-lhe na mente
reminiscências de feridas do passado que se seguem
no presente, obedecendo à linearidade do destino que
lhe foi imposta. Nada mudou. Só o tom da descrença,
que ora lhe faz ver o sol que realça os derredores com
um pouco mais de cores quentes, ora permanece o
cinza da paisagem de seu interior sofrido. Só se sabe
que o semblante da tristeza se autorizou permanente
no rosto fino e cansado desta mulher. Recorda que seu
corpo esguio, alvo e de altura mediana, nunca entrou
em contato com os bons tecidos, na forma de vestidos
bem cortados e com decotes denunciantes de formato
dos seios. Agnes pensa no perfume que nunca escorreu
pela sua pele, agredida pelas arranhaduras dos espinhos
do seu entorno. Vem à sua mente o olhar indiferente do
marido, que nunca lhe deu a mínima importância, nunca
lhe presenteou com o sapato tão flertado da loja da
esquina da cidade, e sua boca nunca conheceu um batom
cremoso, quanto mais o beijo que antecede a ânsia de um
encontro carnal. Nisso, uma borboleta, com experiência
recente de vida fora do casulo, pousa delicada na folha
de um pé de funcho, perto de Agnes, que olha reflexiva
e curiosa para aquela inesperada cena. Ela imaginou
124
que borboletas acordam as reflexões da gente sobre um
cotidiano que tortura, sem que percebamos claramente,
devido à anestesia dos costumes, dos padrões, da falta
de afeto dentro de um casamento sem sentido. Agnes,
com olhos, marejados, em razão de uma tristeza de
longa data, sem intervalos, indaga a si mesma, por onde
anda sua vida soterrada, onde está sua liberdade real,
como ela está vestida, qual seu cheiro e sua cor. É uma
amiga íntima que nunca foi-lhe apresentada. Dói cabeça
e o corpo frágil de Agnes, que aproveitou um naco de
sua solidão para velejar por águas turbulentas, que
percorrem seu intrínseco, judiado pelos anos, desde
a mais tenra idade. Imagina que a cabeça dói porque é
uma espécie de inchaço do recordar de uma vida inteira.
Enquanto isso, Antenor, o marido blasé, lava
seus cavalos lá fora. É previsível que, na sua volta para o
interior da casa, ele clame pelo jantar e, logo mais, pegue
no costumeiro sono.
Espanar a poeira interior de uma alma
despedaçada, despeja no rosto de Agnes uma lágrima
ardida. Os irmãos, o pai, agora o marido, não sentiam sua
existência no plano nobre. A voz da opressão, embebida
em ruídos, lhe descompunha a possível harmonia da
face. Agnes, não se desvinculava de seu semblante triste
de um luto por si mesma, que não acabava. Já sentiu na
pele do braço o apertar raivoso de Antenor pela sexta
vez.
Ela, uma mulher jovem, sempre viveu para e pelos
outros, seja por um misto de temor com alteridade nata.
Sempre vislumbrou, nos seus silêncios, poder participar
de outras searas de vivências. Sempre quis ser uma
pianista e poder escolher seus vestidos, seus colares,
seus passeios, seus amigos. Que pena que Agnes deixou
o mundo varrer de si a liberdade de uma libélula. Não é
para se crer que isto durará para sempre. Enquanto isso,
Antenor traz do quintal uns inhames pra ela descascar,
125
mas Agnes já começou a arrancar, com suas mãos alvas e
delicadas, os carrapichos grudados nas entranhas de sua
psiquê vigiada. Um por dia. De repente, ela teve um leve
susto com o pousar atrevido de uma borboleta colorida
em seu ombro caído. Era sinal de mudança para o ecoar
da voz de uma nova mulher.
126
A VÓS BRADAMOS,
OS DEGREDADOS FILHOS DE EVA

Tania T. S. Nunes 127


Niterói - Rio de Janeiro, Brasil

o mal no coração
em trevas. Os
gatos Moebius
e Aristóteles saltam. Vejo a caixa cor de ferrugem:
passaportes, cartas, registro de casamento, batom
vermelho, carimbo com um J, seria de João? A fotografia
(eu, João e ela). Em um rasgo de jornal envelhecido os
feitos de minha mãe: o Anjo de Hamburgo. Ela foi uma
feminista liberal, pôs seu nome na História porque agiu
com valentia e deu as mãos a muita gente, arriscando
sua própria vida.
Sobre a mesa, um texto dela: Esse viver ninguém
me tira. “Ainda acredito na compaixão e na bondade
humana. Quero escrever, falta memória. Os gatos
atrapalham. Eles gostam de ouvir narrativas, mas sofrem
com as palavras, são intuitivos.
Nasci mulher no Brasil do início do século XX,
bela, recatada e do lar. Sonhava estudar, trabalhar, ter
outro futuro. Um interregno: amor à primeira vista.
Casei aos 22 e depois de cinco anos, não deu mais.
“– Essazinha é mulher largada, separou-se do
marido. – Pecadora! - Não cumpriu a promessa do altar e
se diz tão fervorosa...” falavam as vizinhas. Preconceitos
vis. A mulher “apedrejada” publicamente. Minha mãe
em nome da família, da moral e dos bons costumes
preocupava-se. Despachou a mim e Eduardo para a casa
de tia Lucy, na Alemanha. Vi naquele vapor esperança e
salvação, a história da Arca de Noé sempre revivida. Iria
para uma sociedade evoluída. Não foi bem assim.
Era uma manhã de sol, quando conheci a Seção
de Passaportes do Consulado brasileiro em Hamburgo.
128 Trabalho e sustentos garantidos. Queria comprar um
automóvel. Impossibilidades no Brasil para uma mulher
na década de 1930. Meses depois, li notícias de Berlim:
“Nazistas matam judeus, incendeiam sinagogas e
destroem lojas da comunidade judaica”. Estremeci... Uma
vertigem tomou meu corpo... Algo lancinante, tamanha
violência. Tive muito medo... Fora degredada do meu
país.
No trabalho, identificava os emigrantes. Judeu
ou não judeu? Era minha responsabilidade estampar
no passaporte em vermelho a letra “J”. A mesma letra
do catecismo JHS. Leitor, não faça comparações porque
o mesmo J de “jaula”, eu leio “janela” de Liberdade. Meu
propósito era servir, queria o bem do povo que me
acolhera quando mais precisei.
Naquele guichê do Consulado, compreendera
a real situação, a dor de tantas mulheres desesperadas
por vistos. Algumas carregavam seus ventres grávidos,
queriam salvar as famílias da perseguição da Alemanha
hitlerista. Sofriam hostilidades, violência verbal e física,
assédio moral, agressão aos filhos até nas escolas. A fila
poderia somar um aceno contra a marcha da morte.
Desterro e resistência.
Eu omiti, sim, o J da classificação. Assumo, agi
por justiça. Falta de ética? Não, as leis brasileiras eram
tortuosas quanto à liberação do visto de emigrantes.
Em nome do desenvolvimento urbano e industrial, o
país compactuava com a política antissemitista alemã.
Confesso, tive muito medo. Crianças e mulheres no
holocausto foram fuziladas, asfixiadas e queimadas
dentro das câmaras de gás nos campos de morte. Eu
vinguei a todos. Vinguei Olga Benário!
Arrependimentos, não! Nenhuma vergonha
porque durmo como os gatos o sono dos justos. “A vida
é assim esquenta e esfria, sossega e depois desinquieta,
é preciso coragem”. Fui mulher de desafiar o regime
hitlerista, lutei com a morte. Mas o inesperado acontece. 129
Conheci João, Guima, um amante da literatura que me
amou. Esperança nossa porque bendito seja o amor fruto
do nosso cuidado e compaixão. Retornamos ao Brasil,
casamos no México, aqui não se permitia o divórcio.
Recebi dele uma homenagem após longa
travessia. Deixo minha retribuição da Rosa do Rosa.
A Rosa de Hamburgo. “Senhora, misericórdia, salvai a
todos!” Sempre haverá naquela bandeira o triângulo da
Santíssima Trindade a repetir: “Liberdade ainda que
tarde”. Ainda dói, mas sei: o não é pouco, porque sem
resistência estaremos sempre no abismo do nada.
(1988) Aracy Moebius de Carvalho Guimarães
Rosa para João Guimarães Rosa.
130
GLÓRIA

Vicentina Maria
Uberlândia - Minas Gerais, Brasil
131

já não era mais a menina raquítica, de


olhar tristonho, que um dia saiu do
interior de Minas Gerais, como babá,
acompanhando uma família para a capital do Rio de
Janeiro. Logo se tornou uma moça alta, bonita, alegre,
porte elegante, trazia no olhar uma malícia pouco
comum, só vista nas meninas do interior que brincam
com os gatos de fazenda sem deixar-se arranhar. Em
novo trabalho, com gosto apurado pela dança, nas
horas de folga fazia aulas de dança, em pouco tempo
transformou-se em uma excelente dançarina. Entre
plumas e paetês, seu corpo gingava na arte da dança e na
magia sublime do prazer.
Gostava de ir à praia admirar o sol ora rasgando
as vestes da madrugada, ora fugindo para se esconder
da lua. Com sua pele levemente bronzeada, sempre bem
vestida, bem maquiada, nos saltos, era cliente assídua
dos salões de beleza. Era também muito querida e
sempre requisitada nas rodas de amigos, sendo bastante
cortejada.
No auge de sua carreira de dançarina, foi
surpreendida pela flecha do cupido. O amor era lindo!
Entre festas, badalações e flores, vivia feliz com o
encantamento da dança, e dos honorários. Glória estava
amando, apaixonada, acreditava haver encontrado o
grande amor de sua vida, dos sonhos de menina brejeira
e sonhadora.
Mas, inesperadamente, o dom maravilhoso da
vida se fez presente em seu útero. Um filho, fruto do seu
amor! Foi com grande emoção, quase em êxtase, que a
dançarina, num clima festivo, deu a notícia da gravidez
a seu amado. Grande foi sua decepção e amargura, ao
132
conscientizar-se de que teria um filho para sozinha
criar. Sua vida, que parecia navegar em um barco com
um motor possante, havia se transformado num barco a
remo, o qual suas habilidades e forças se esvaiam.
O amor maternal falou alto dentro dela. No
limiar das dificuldades, entre a gravidez e o trabalho,
Glória decidiu, por definitivo, tomar o caminho de volta,
caminho esse que antes era feito apenas nas férias.
Assim, a moça deixava de ser dançarina e recomeçava
uma nova etapa em sua vida. Um lar! Sim, um lar. Uma
mãe idosa e um bebê para cuidar, mas, em seu coração
havia um resquício de alegria, uma onda de esperança,
onde o amor e o aconchego eram como um bálsamo para
suas feridas e angústias. Suas dificuldades se tornaram
amenas devido à sua integridade, disposição para o
trabalho e suas boas amizades. Glória havia aprendido,
no Rio de Janeiro, a confeccionar, além dos típicos frutos
do mar, vários pratos saborosos. Seus dons culinários
garantem até hoje suas despesas. São trabalhos feitos
com carinho e bom gosto.
Sendo ela avessa ao mofo, pintava sua casa,
sempre que necessário, com suas próprias mãos. Certa
feita, quando pintava a caixa d’água em cima da casa,
caiu ao solo, ficou inerte por alguns segundos, depois,
disse apenas: “meu Deus me socorra!”
Dois braços que garantiam o sustento, não mais
se moviam, fraturados, engessados de forma semelhante
a um par de asas alçando voo, limitava qualquer
movimento manual. Mãos que tudo faziam, limitadas, só
conseguiam fazer carinhos no rosto do seu filho de nove
anos, que a alimentava, levando comida à sua boca, às
vezes, em descuido, queimava os lábios de sua mãe.
O banho, momento crucial. Não tendo recursos
financeiros para contratar uma enfermeira, hesitou um
pouco, mas depois chamou pelo filho: “Carlos Augusto,
por favor, venha ajudar a mamãe a tomar banho”. E 133
assim, o menino não só auxiliava na higiene pessoal,
sempre que necessário, como também a acudia em todas
as necessidades, durante aqueles quarenta dias.
Ex-dançarina, que agora já não tem mais o bronze
do mar, declara: “Sou forte, às vezes, me sinto como uma
mulata de senzala; entretanto sinto-me coroada como
uma rainha, com a dádiva da maternidade”!
Fora dos saltos, despida de luxo e vaidade;
desfraldando a bandeira do bem viver, da solidariedade,
da amizade. Com um sorriso espontâneo, Glória, com
novo brilho no olhar, faz jus o seu nome.
134
SOBRE A COORDENADORA

IVONE GOMES DE ASSIS, escritora, designer gráfico, editora.


Mestre em Teoria Literária, pela Universidade Federal de
Uberlândia (Bolsista Capes). Especialista em Literatura
135
Infantil. Graduada em Letras. Estudos especializados em
Marketing. Colunista no jornal Diário. Apresenta o “Ponto
de Leitura” (FM 107,5). Contadora de Histórias. Autora de
vários livros, sendo a última publicação: “A ficção sob os
escombros da história: estudo sobre ‘Guerra em surdina’,
Boris Schnaiderman” (2021). Organizadora de dezenas de
livros, concursos, eventos culturais, dentre eles, o Sarau
Gotas Poéticas (11 anos), o projeto “Camarinhas de Poesias”,
contemplando 56 anos, e “Por trás das folhagens”, lançado na
Europa, em 2017. Em 2019, sua obra “O medo do escuro” foi
objeto de pesquisa de duas pesquisadoras da Universidade
do Estado da Bahia, cuja pesquisa foi publicada em 2021.
Homenagens recebidas: “Mulheres Extraordinárias” (Centro
Municipal de Cultura e Turismo, 2021); “Curadora destaque”,
Casa Brasil em Liechtenstein (2020); Poema “Caiapó”, por
Gilberto Mendonça Teles, publicado na obra “Lirismo Rural:
o sereno do cerrado” (Português/Inglês), 2019. Título
Cidadã Honorária (2015). “Mulheres Destaque 2014” (Clube
Soroptimista). Palestrante. Fotógrafa. Oficineira.
136
SOBRE OS AUTORES

AMÉLIA LUZ, formou-se em Pedagogia – Administração


Escolar e Magistério – Orientação Educacional – Comunicação
e Expressão em Língua Portuguesa, com Pós-Graduação 137
em Psicopedagogia, na Escola e Planejamento Educacional.
Oficineira de versos e prosa, leva sempre a palavra
despertando o próximo para a leitura e a poesia como meio
de educar para a paz.

ANA GONÇALVES nasceu em 1991 entre as montanhas da


Serra da Mantiqueira, no interior de MG. Graduada em Letras.
Mestre em Literatura, divide seu tempo entre pesquisa
independente, tradução, aulas de inglês. Escritora.

ANA PAULA DE CASTRO NEVES. Doutoranda e Mestre


em Direitos Humanos do Programa de Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos - (PPGIDH)
da Universidade Federal de Goiás. Graduada em Direito
(Bacharelado-2004) pela Universidade Federal de Goiás.
Especialista em Direito e Processo Civil (2007) pela Uni-
Anhanguera. Advogada militante. E-mail: anapaula_castro@
discente.ufg.br
ANNEMEIRE ARAÚJO DE LIMA é uma manauara apaixonada
pela mãe e pela avó (em memória). Professora da Secretaria
Municipal de Educação em Manaus desde 2006. Mestra
em Estudos da Linguagem, pela Universidade Federal do
Amazonas. Pós-Graduanda em Literatura, pela Universidade
de Brasília.

ARLANIA DE PINHO MENEZES. Professora Mestra em


Literatura (UEFS), graduada em Letras Vernáculas (UNEB),
Especialista em Estudos Literários (UNEB). A escrita foi
sempre uma paixão! Autora de “Poematizando a vida”
(poesias), “Desencontro em doze contos femininos” (contos),
“Um sertão chamado Tapuio” (contos), além de Antologias.

CAMILA PAIVA DA SILVA (21/08/1985, São Paulo-SP). Profa.


de Língua Portuguesa e Literatura desde 2009. Mestre e
doutora em Literatura Portuguesa pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa sobre a poesia brasileira e
138 portuguesa de autoria feminina do início do século XX, focada
na poesia erótica de Gilka Machado e Judith Teixeira. Escreve
poesia e prosa. Autora de “Cálculo do Impreciso” (2017).

CATIA GARCIA. AUTODIDATA. Ilustradora e designer de


marcas há 10 anos, no mercado mundial. Artista plástica,
detentora de diversas premiações nacionais e internacionais.

CÉLIA TEREZINHA NEVES VIEIRA. Professora, Pós-Graduada


em Ensino de Língua Portuguesa, UNICENTRO – Irati - Paraná
– Brasil, Graduada em Língua Portuguesa e Literaturas
Portuguesa e Brasileira pela Universidade de Passo Fundo –
RS – BR Membro da UBT (União Brasileira de Trovadores),
Seção Irati – Paraná – Brasil.

EDIH LONGO. Linguista, Professora de Português e atriz,


formada pela USP. Poeta, contista, cronista, romancista
e dramaturga. Ganhou alguns prêmios nas modalidades.
Participa de Saraus Poéticos, Concursos Literários e Clubes de
Leitura.

ESCOBAR FRANELAS. Escritor, cineasta e historiador


paulistano. Autor de 5 livros, entre romances, poesia e
história, é integrante dos coletivos “A Casa Amarela – Espaço
Cultural”, “Lentes Periféricas” e “Curta Suzano”. Desde 2013
é colunista do portal Entrementes (http://entrementes.com.
br/).

EVANDRO VALENTIM DE MELO. Escritor brasiliense;


assíduo participante de concursos literários; idealizador e
organizador do Concurso Literário Beleza e Simplicidade
em Contos e Crônicas, que, em 2021 chegou à 3ª edição
consecutiva. Caapuã (Telucazu, 2021) é seu mais recente livro
lançado.

EVELYN C. DE MELLO. Graduada em Letras - Espanhol


pela Ufscar e doutorado em Estudos Literários - UNESP - 139
Araraquara (2018). Realizou pós-doutorado pela Ufscar e atua
como professora de língua portuguesa do Centro Estadual de
Educação Tecnológica Paula Souza, Etec Paulino Botelho.

FÁTIMA LEONOR SOPRAN. Dra. em Estudos Literários pela


Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal. Prof.ª
Adjunta da UNEB – Universidade do Estado da Bahia. Membro
do corpo Editorial da Revista Topus, (MG). Livro publicado
em 2020 pela Paco Editorial - Espaço Literário: Um Elemento
Importante em Tempos Líquidos.

FERNANDA PFAU ROSA. Fisioterapeuta, 42 anos. Autora do


livro infantil “Tenho isso, ...mas e aquilo?”. Poetisa. Coautora
em várias Antologias das editoras Chiado Books, Vivara e
Assis.

HILDA GASPAR. Sou pianista e professora, licenciada em


Música (2014) pela Universidade Federal de Uberlândia – com
período de graduação sanduíche na Universidade de Évora,
em Portugal. Dedico-me à docência há mais de uma década.
Aos poucos estou me aventurando na arte de escrever.

IVONITA DI CONCÍLIO (19/01/1938, Porto Alegre/RS).


Transferiu-se para SC, em 1974. Mora em São José/SC.
Aposentada do serviço público, foi jornalista, publicitária
e cantora profissional. É Diretora-Geral da ACLC/
UFSC e Presidente da ALIFLOR - Associação Literária
Florianopolitana e mantém um programa “Avós na Tarde”
(Youtube e Instragam), dirigido à 3ª Idade.

JÚLIA SANTOS SAHÃO. Nascida em Campinas, em agosto


de 1996, é jornalista, autora do livro Armaduras de Ferro e
Flores, pós-graduanda em Neurociência e Comportamento, e
poetisa.

LUCIANE MONTEIRO. Professora e escritora, natural de


140 Paranaguá, reside no Canadá. Participou das antologias:
Pó&Teias I e II, Conto Brasil, Poéticas do Sertão e Literatura
em Pandemia. Lançou, pela KDP Amazon, os livros Estela
Becker, História de uma vida, O amor é demi-sec e Nas
montanhas de Monte Verde. Autora dos livros Taça Escarlate e
A última tempestade, pela Editora Inverso.

LUCILAINE DE FÁTIMA. Professora Especialista em EJA.


Graduada em Pedagogia: gestão e tecnologia educacional.
Especialista Educação Especial e Inclusiva. Poetisa. Autora
das obras: “O avesso do ser”, “Flor de Lu” e “Entre Cacos e
Pincéis”. Antologista. Desenvolveu o projeto “Anjos da leitura”,
contemplado pela lei do incentivo fiscal. Foi membro da
extinta ALMBL – Academia Leonística Mineira e Brasiliense
de Letras. Organizadora do livro “Meu lugar” (PMIC 2018).

LUIZ VIEIRA, Professor, Pós-Graduado em Educação Musical


e Regência, pela EMBAP (Escola de Música e Belas Artes do
Paraná); Graduado em Estudos Sociais, História e Geografia
pela Universidade de Passo Fundo–RS; Acadêmico da ALACS
(Academia de Letras Artes e Ciências Sociais) do Centro Sul
do Paraná, Trovador; Vice-presidente da UBT/Irati-PR (União
Brasileira de Trovadores), Escritor, Compositor e Arranjador
Musical e Poeta.

MARIA BEATRIZ GONÇALVES é geógrafa, com mestrado em


História Medieval Portuguesa. Estudante de Filosofia. Autora
de “Renascer em Versos”, “Triz no Trem” e “O Perfume do
Vento” e “Vida sem Porta” (poesia), este último premiado em
Genebra, em 2019.

MARIA HELOISA MARTINS DIAS. Professora livre-docente


de Literatura Portuguesa na Unesp. Autora de diversos
livros, alguns premiados: “Fernando Pessoa, um interlúdio
intertextual” e “Casa, família & cia”, romance infanto-juvenil.
Colaboradora em revistas literárias, nacionais e estrangeiras.
Ministra cursos em oficinas de literatura. Autora de “O canto
metálico da cigarra”, ensaio crítico sobre Guilherme de 141
Almeida (no prelo).

MARIBEL DA ROSA ANDRADE, natural da cidade de Arroio


Grande/RS, reside em Pelotas, Rio Grande do Sul. Professora
da Rede Municipal de Educação, Mestra em Filosofia pela
UFPel, Doutoranda na Faculdade de Educação pela UFPel.
Estudos e escritos têm como eixo norteador: A aporofobia e o
Racismo; o mundo dos periféricos.

MARILDE QUEIROZ GUEDES. Pós-doutorado em Educação


pela Universidade de Lisboa (Portugal). Doutora em
Educação: PUC, São Paulo. Graduada em Letras e Pedagogia
pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Caruaru,
Pernambuco (FAFICA). Professora da Uneb e UFOB. Membro
da Academia Barreirense de Letras (ABL). Tem vários artigos,
capítulos e livros publicados.
MONIQUE PFAU é professora de Letras na Universidade
Federal da Bahia, tradutora e escritora. É graduada em
História e Letras Inglês e doutora em Estudos da Tradução
pela Universidade de Santa Catarina.

OSMAN C. SARMENTO. Engenheiro electricista pela Escola


Politécnica da USP, consultor, formador, voluntário, radialista
amador, trabalhou em projetos nos 5 Continentes. Em busca
de como comunicar-se com as gentes, tornou-se estudioso de
línguas.

RAQUEL ORDONES. Uberlândia-MG, Bacharel em


Administração, com habilitação em Marketing, poeta,
escritora, sonetista, contadora de histórias. Autora do livro
“Gotas de mim” (2017). Antologista. Homenageada com o
troféu “Replantando palavras” (Assis, 30/08/2017).

RENATA MARQUES DE AVELLAR DAL-BÓ. Jornalista, escritora.


142 Colunista/crônista no Jornal Diário do Sul. Presidente
coordenadora da Associação de Jornalistas e Escritoras
do Brasil (AJEB) – Santa Catarina, e membro da Academia
Tubaronense de Letras (Acatul). Apresenta o programa Bate-
Papo Literário, na Unisul TV. Autora dos livros “Histórias,
Sonhos e Imaginação” e “Para ti”.

ROBERTO SANTOS. Professor de Matemática. Autor do livro


“O manto e outros contos amazônicos” (no prelo). Possui
escritos nas obras “Vida sob as agruras da seca” (Assis
Editora) e “Antologia da Praia”, organizado pelo coletivo
literário Escritores da praia. Contatos: profroberto2009@
gmail.com

SCHLEIDEN NUNES PIMENTA, 32 anos, é mineiro de Campo


Belo, advogado e especialista em Filosofia e Teoria do Direito.
Autor premiado de dezenas de obras acadêmicas e literárias,
é um escritor que caminha entre o realismo-mágico e a
fantasia, trabalhando contextos sociais que beiram o limite do
absurdo. Defensor dos direitos humanos e animais.

SILVANA MARQUES. Goiana da cidade de Itumbiara e


residente em Uberlândia-MG desde 1990. Professora,
formada em Letras e apaixonada por Literatura, seja lendo
ou escrevendo contos ou poemas. Participou de 2 antologias
com um conto de suspense no livro O CASO DÁLIA NEGRA e 3
poemas no livro FOBIAS.

SIMONE PEREIRA GONÇALVES (pseudônimo: Anastácia),


formada em Tradução pela Universidade Humboldt de Berlim,
em Filosofia pela UFPR. Tradutora de cinco obras do alemão,
uma do francês e de diversas publicações em Cadernos de
Literatura em Tradução (FFLCH/USP). Domiciliada em Berlim
há 30 anos, tradutora pública e intérprete comercial de
português, francês e alemão.

TANIA T. S. NUNES. Professora, Doutora em Estudos 143


de Literatura pela Universidade Federal Fluminense.
Autora de Corpo e Alegoria – João Gilberto Noll e Walter
Benjamin (2011) e coautora e organizadora de Escritas
do Contemporâneo - foco em ficções (2021). Curadora do
projeto artístico visual Eu Mulher. Nós Mulheres. Presente!, de
Elizabeth Salles.

VICENTINA MARIA DA SILVA. Autora de vários poemas


publicados pela Secretaria de Cultura de Uberlândia. Poeta
do Sarau Gotas Poéticas (Assis Editora). Antologista em:
“Camarinhas de Poesias” (Assis), “Poesias Encantadas IX e X,
“Talento Poético” (2016–2017-2018-2019-2020), “Janelinhas
Encantadas”, “Cartinhas na Janela” (Becalete), “Miscelânea
Poética Brasileira”, vol. 1, “Revista Feminina”, “Habita-me”
(Publicações). Doceira. Recebeu o troféu “Palavras, uma
persiana para a vida” (Assis, 27/04/2017).
144

Obra preparada pela Assis Editora Ltda.


(34) 3222-6033 (MG)
AE.2008-02.09.2021(183)-21-0134(N)
Impresso (SP) CNPJ 13.480.185/0001-20
em 2 de setembro de 2021.

Formato: e-Book PDF 14x21cm. Miolo 1x1.

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