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SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO

DISCURSO DA UNICENTRO
ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1

ANAis 2016
ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE
ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO

ORGANIZADORES
Denise Gabriel Witzel
Priscila de Souza
Suelem Lopes
Victor Mateus Gubert Teo

www.eventos.unicentro/sieduni2016
www.facebook.com/sieduni2016

Guarapuava - PR
UNICENTRO | LEDUNI | LABELL
2016
comissão organizadora
Denise Gabriel Witzel (Coordenadora Geral)
Maria Cleci Venturini
Adenize Aparecida Franco
Priscila de Souza
Suelem Lopes
Victor Mateus Gubert Teo

comissão científica
Daniela Silva da Silva
Célia Bassuma Fernandes
Luciana Fracasse
Maria Regina Baracuhy Leite
Ivania dos Santos Neves
Angela Derlise Stube
Helson Flavio da Silva Sobrinho

OS ARTIGOS QUE CONSTITUEM ESTE MATERIAL SÃO DE INTEIRA RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.
apresentação
A Análise do Discurso (AD) é um campo teórico que congrega intensos
diálogos e confrontos em cujas semelhanças/diferenças busca-se compreender a
relação inescapável entre a língua, a história e a memória. Nesse sentido, o I Simpósio
Nacional de Estudos do Discurso da Unicentro tem como objetivo primordial reunir
pesquisadores que se colocam, fundamentalmente, a seguinte pergunta: como os
sujeitos e os sentidos são constituídos nos discursos?
As respostas, que apontam para um campo tanto de reunião de ideias
quanto de dispersão, são um convite aos participantes para interagirem nos
espaços de reflexões e nos debates - organizados por conferências, mesas-redondas,
comunicações orais e apresentações de pôsteres - a fim de melhor compreenderem
as produções discursivas a partir de discussões acerca dos seguintes temas: ensino
de língua, sujeito, memória, imagem, corpo, mídia, tecnologia e virtualidades.
SUMÁRIO

ESCRITA: PERSPECTIVAS E PRÁTICAS ESCOLARES EM LÍNGUA INGLESA

11
Adriane Silva dos Reis
Didiê Ana Ceni Denardi

AS POSIÇÕES-SUJEITO PRESENTES NO CURSO DE PEDAGOGIA DA UFSM


17
Adriele Delgado Dias
Eliana Rosa Sturza

IDENTIDADES DE FRONTEIRA: UMA ANÁLISE DO ARGENTINO NOS TELEJORNAIS


DA RPC-TV CATARATAS (2015)
25
Amanda Padilha Pieta
Ariane Carla Pereira Fernandes

O CORPO TRANSEXUAL NA ORDEM DO DISCURSO DIGITAL


35
Andréia Apª.Thibes dos Santos Silveira
Denise Gabriel Witzel

PUNIÇÃO PRIVATIVA DE LIBERDADE: SEU DISCURSO NA CONTEMPORANEIDADE


43
Andreia Schinaider; Jaqueline Iara Poteriko; Daiane Almeida; Vanessa
Rodrigues
ADMIRÁVEL MUNDO NOVO (DA PUBLICIDADE): ONDE A VIOLÊNCIA NÃO ENTRA

51
Aryovaldo de Castro Azevedo Junior; Hertz Wendel de Camargo

HERÓI E TIRANO: A SAGA DO MASCULINO EM WORLD OF WARCRAFT

69
Bryan Rafael Dall Pozzo; Nincia Cecilia Ribas Borges Teixeira

A SUBJETIVAÇÃO DO SUJEITO MULHER-MÃE-PARTURIENTE EM O RENASCIMENTO DO PARTO

77
Camila Ratki Krautchuk; Denise Gabriel Witzel

OLIMPÍADA RIO 2016: UMA LEITURA DE CHARGES

85
Carla Ramos de Paula

ACONTECIMENTO DISCURSIVO E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE SEGUNDO MICHEL FOUCAULT

93
Célia Iarosz Frez
Denise Gabriel Witzel

INTERFACES ENTRE A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO JURÍDICO E O


INTERACIONISMO SÓCIO DISCURSIVO: ANÁLISE LINGUÍSTICA DISCURSIVA
DO GÊNERO TEXTUAL JURÍDICO SENTENÇA
99
Cláudia Maris Tullio

FUGA, NENHUM DE NÓS: SILÊNCIO E VIOLÊNCIA

109
Cleverson Lucas dos Santos
Silvana Apª da Silva
ROTINAS: SENTIDOS PRESENTES NO DISCURSO

117
Danieli Winck Iijima

FISGADOS PELA BOCA: QUANDO O PERSONAGEM “VENDE” O PRODUTO

125
Eliane Dominico
Aliandra Cristina Mesomo Lira

ENTRE AS DUAS FACES DE ANTÍGONA: A FALA MÍTICA ATRAVESSADA PELAS LEIS NÃO
ESCRITAS

133
Felipe Soares
Denise Gabriel Witzel

TODAS QUEREM SER BONITAS: A MULHER CURITIBANA NAS PÁGINAS DA REVISTA


GRAN-FINA (1940)
147
Jasmine Horst dos Santos
Nincia Ribas Teixeira

O ANTICLERICALISMO NAS ILUSTRAÇÕES DA REVISTA O OLHO DA RUA:


RELAÇÕES ENTRE RELIGIOSIDADE E MASCULINIDADES
157
Jéssica Lange de Deus
Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira

DISCURSO E PRODUÇÃO DE VERDADES: DE ANTÍGONA A ZUZU ANGEL


165
Kelly Cristina Schneider

HOMEM OPRESSOR OU OPRIMIDO: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, UM OLHAR MAIS


ATENTO AO SEU AUTOR PERMEADO POR QUESTÕES CULTURAIS

175
Marcela de Fátima Kloster; Marianne Pauluk ; Adriele Andreia Inácio
UM OLHAR DE CIGANA: REPRESENTAÇÕES DE CAPITU EM GRAPHIC NOVEL

183
Marcia Costa
Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira

MELHORIA DO ENSINO DE LITERAUTRA E DA PRÁTICA DE LEITURA


193
Marielle Schramm
Cláudio José de Almeida Mello

“TECENDO A CIDADE” – O SUJEITO E OS SENTIDOS NA CONSTITUIÇÃO DO ESPAÇO URBANO


199
Marilda Aparecida Lachovski de França

O DISCURSO MIDIÁTICO SOBRE A CONCORRÊNCIA UBER VERSUS TÁXI EM


CURITIBA

207
Marilia Gasparovic
Gesualda Rasia

ESTRATÉGIAS MONOFONIZANTES EM FORMAÇÕES PEDAGÓGICAS PARANAENSES


215
Mônica Cristina Metz

A CONSTRUÇÃO DE VERDADES: ANÁLISE DAS DECLARAÇÕES DE TERRAS DA VILA


DE GUARAPUAVA – PR 1854 -1857

227
Robson Luiz de Bastos Silvestri
Marcia Maria Menendes Motta
DISCURSO E RELAÇÕES DE PODER EM ANTÍGONA

233
Sandra Lúcia Dimidiuk Bassani
Denise Gabriel Witzel

DISCURSOS PÓS-DITADURA EM NICOLAU: NO PASSADO UMA LIÇÃO PARA O PRESENTE


243
Scheyla Joanne Horst
Márcio Ronaldo Santos Fernandes

A REPRESENTAÇÃO DO MST NO JORNALISMO: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE REPORTAGENS


DOS JORNAIS CORREIO DO POVO DO PARANÁ E CORREIO DO ESTADO
251
Silvana Apª da Silva
Cleverson Lucas dos Santos

POESIA E RESISTÊNCIA EM XOSÉ LOIS GARCÍA


259
Sirlei da Silva Fontoura
Cláudio José de Almeida Mello

GÊNERO CARTAS AO EDITOR: UM INSTRUMENTO PARA O DESENVOLVIMENTO DA


CRITICIDADE EM AULAS DE LÍNGUA INGLESA
265
Taynan Paz Ribeiro da Silva; Siderlene Muniz-Oliveira; Didiê Ana Ceni Denardi

AS RELAÇÕES DE PODER NAS OBRAS DE MICHEL FOUCAULT: BREVES APONTAMENTOS

277
Vanessa Elisabete Raue Rodrigues; Rita de Cássia da Silva Oliveira

A PROPAGANDA NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA

287
Vera Lúcia Freitas Franco
Andréia Roberta Rossi Colet
Didiê Ana Ceni Denardi
ESCRITA: PERSPECTIVAS E PRÁTICAS
ESCOLARES EM LÍNGUA INGLESA
Adriane Silva dos Reis (UTFPR/PB)
Didiê Ana Ceni Denardi (UTFPR/PB)

INTRODUÇÃO
Tomando como premissa a notória representação da escrita em toda a
história da humanidade, bem como o seu papel no desenvolvimento cognitivo
dos sujeitos, a identificamos como um instrumento eficaz para a aprendizagem de
língua Inglesa. Todavia, observa-se que a produção textual ou mesmo o registro
escrito é negligenciado em muitas salas de aula de Língua Inglesa no contexto
brasileiro. Portanto, vemos a necessidade de investigar esta questão nas aulas de
Língua Inglesa.
O objetivo deste artigo, é apresentar uma revisão de literatura sobre
o papel da escrita na vida social, sobre o ensino-aprendizagem de escrita na
escola e, brevemente, descrever alguns aspectos metodológicos de um projeto de
pesquisa qualitativo-interpretativista a ser desenvolvido à luz do Interacionismo
Sociodiscursivo (BRONKCART, 2012 e seguidores). Por sua vez, o objetivo principal
do projeto é verificar como o processo de ensino-aprendizagem de escrita em Língua
Inglesa se desenvolve em uma turma de Ensino Médio de uma escola pública
federal localizada no sudoeste do Paraná. Intenta-se com o projeto vislumbrar novas
perspectivas para o ensino-aprendizagem dessa capacidade.
Neste sentido, o presente artigo está organizado em três seções a partir
desta Introdução: a primeira procura mostrar uma certa dissonância que há
entre a função da escrita na vida e a atividade de escrita na escola; a segunda
apresenta os aspectos metodológicos de um projeto de pesquisa sobre ensino-
aprendizagem de escrita a ser desenvolvido; e a terceira algumas considerações
sobre as questões discutidas.

A escrita na vida X a escrita na escola


O processo da escrita inicia-se bem cedo na vida social. A partir dos 2 anos,
a criança já consegue reproduzir algumas imagens mentais e nessas representações
encontram-se desenhos, traços, garatujas, sinais, letras. Na escola, no período da
alfabetização a criança começa a conhecer as letras do alfabeto, na sequência aprende
a formar as primeiras palavras, construir as primeiras frases e orações. Nas fases
subsequentes do desenvolvimento da criança ou do sujeito e nas fases subsequentes
da escolarização/formação, a escrita vai acontecendo na vida social dos sujeitos.
Posto isto, utiliza-se a escrita muito mais do que poderíamos imaginar.
Valemo-nos da escrita em nosso cotidiano, na vida escolar e nas demais esferas
que fazem parte do nosso contexto social, sem mesmo perceber a frequência com
a qual a utilizamos.
Com relação à importância da escrita, Higounet (2003) afirma que

A escrita não é apenas um procedimento destinado a fixar uma palavra,


um meio de expressão permanente, mas também dá acesso direto ao
mundo das ideias, reproduz bem a linguagem articulada, permite ainda
apreender o pensamento e fazê-lo atravessar o espaço e o tempo. É o fato
social que está na própria base de nossa civilização. Por isso a história
da escrita se identifica com a história dos avanços do espírito humano
(HIGOUNET, 2003, p.10).

Como visto, a escrita tem sua importância tanto ao se manifestar


deixando marcas e representações das identidades dos povos que aqui viviam,
como também no desenvolvimento de ideias, no desenvolvimento humano e no
desenvolvimento das civilizações.
Ainda, a escrita, assim como a linguagem, é dialógica. Ela prevê uma resposta
ativa dos interlocutores (Bahktin, 1997) que por sua vez, envolvem múltiplas vozes
de outros textos e assim escritor e leitor constroem significados a partir dos textos.
Escrevemos para comunicar, informar, solicitar algo a alguém ou para persuadir e
mesmo entreter, divertir alguém. Portanto, qualquer que seja nosso interlocutor(es)
esperamos pelo diálogo/ resposta, que pode ser imediata e direta ou não.
A escrita quando manifestada no ambiente social pelos seus interlocutores,
promove sentidos e representações diferentes para os seus sujeitos sociais. Essas
distintas acepções são constituídas ao longo do tempo pelos conhecimentos,
informações e também pelas instruções que são concebidas culturalmente nas
diferentes sociedades.
Referindo-nos sobre a questão da escrita no ambiente social, para os autores
Dolz, Gagnon e Decândio (2010), a escrita se define como “forma de comunicação
que permite diversas modalidades de ação social, a escrita possibilita diferentes
trocas entre os indivíduos”, (DOLZ; GAGNON; DECÂNDIO, 2010, p.14). Através
da escrita a essência da mente humana se constitui pelos pensamentos ligados a uma
concatenação de ideias transmitidas e deslocadas por diferentes sujeitos sociais.
No entanto, se voltarmos nosso olhar para o contexto escolar, com o foco
no ensino de línguas estrangeiras, especificamente a língua inglesa, encontraremos

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alguns aspectos negativos em relação ao ensino-aprendizagem de escrita. Para
Paiva (2012, p. 96),

[...] a escrita sempre foi usada como pretexto para o ensino de gramática e
vocabulário. Até hoje é comum encontrar em materiais didáticos, exercícios
do tipo “faça frases com”, cujo único objetivo é fazer que o aluno use
determinado vocabulário ou pratique uma estrutura gramatical específica
sem nenhuma preocupação com o sentido (PAIVA, 2012, p.96).

De fato, observa-se que no ensino de línguas estrangeiras na educação


escolar, independentemente de sua institucionalização determinada como privada
ou pública, a questão da atividade escrita precisa ser desenvolvida com mais cuidado
e planejamento. Quando nos inserimos na sala de aula, como professor ou como
pesquisador, notamos que há um determinado grau de dificuldade ao solicitar que
o aluno desenvolva, por exemplo, uma produção de texto em inglês, pois naquele
momento percebemos que falta aos alunos vocabulário e conhecimento linguístico
(sintaxe, semântica, mecanismos de textualização1, mecanismos enunciativos2 etc)
para o desenvolvimento da tarefa solicitada.
Ademais, a maioria das escolas não costuma desenvolver projetos que
visem a prática mais intensiva ou frequente da escrita nas aulas de Língua Inglesa,
uma vez que a maior parte das aulas são ministradas focando somente na estrutura
gramatical, deixando escasso o enfoque sobre de prática dessa capacidade.
Tendo em vista essa realidade, algumas iniciativas vem sendo tomadas,
como por exemplo, ações de projetos institucionais (PIBID-CAPES, por exemplo),
projetos de extensão promovidos por Cursos de Licenciatura em Letras, dentre
outros, bem como prescrições referente à escrita em línguas estrangeiras no Ensino
Médio, proporcionando novas sugestões de práticas pedagógicas, como podemos
observar nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006).

Para o desenvolvimento da prática escrita, [...] torna-se importante, também,


ter em mente a implementação de uma epistemologia contemporânea,
a qual não enfatiza o conhecimento compartimentado e fragmentado
que comumente se encontrava nos exercícios gramaticais escritos, mais
interessados em itens linguísticos isolados do que na comunicação
contextualizada da maneira como ela se apresenta. Dessa forma, em vários
contextos, as atividades escritas podem ser vinculadas às atividades de
leitura, o texto de leitura servindo como estímulo à produção escrita. Em
outros contextos, podem-se usar outros estímulos contextualizados e
significativos em Línguas Estrangeiras, tais como a troca de informações
pessoais, pequenos relatos de passeios e eventos locais, relatos de notícias,
construção de jornal mural, etc. Em outros contextos ainda, pode-se
1. Os mecanismos enunciativos [...] contribuem para o estabelecimento da coerência pragmática do
texto (BRONCKART, 2012, p.319).
2. Os mecanismos de textualização são, por sua vez, articulados à progressão do conteúdo temático,
tal como é apreensível no nível da infra-estrutura (BRONCKART, 2012, p.259).

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promover a interligação de habilidades, como relatar por escrito uma
entrevista oral (com professor, colegas, familiares) ou recontar por escrito
a história expressa na letra de uma música (BRASIL, 2006, p.122).

Também, projetos de pesquisa concernentes à área de Linguística Aplicada


ao ensino de Língua Inglesa participam da vontade de mudança de uma perspectiva
conteúdista, edificada no ensino de gramática pela gramática, para uma perspectiva
de ensino-aprendizagem mediada por gêneros textuais, tais como as pesquisas
focadas no ensino-aprendizagem de escrita por meio de Sequências Didáticas (SDs).
Conforme Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), uma sequência didática
refere-se a um conjunto de atividades de compreensão e/ou produção de textos
orais e/ou escritos, cujo instrumento de ensino-aprendizagem é a linguagem como
prática social, ou seja o gênero textual.
Como exemplos de projetos de pesquisa nesta área, podemos citar os
trabalhos de Beato-Canato (2009) e de Denardi (2009), dentre outros. A pesquisa de
Beato-Canato centrou-se no gênero cartas de penpal trocadas entre alunos de uma
7ª série/8ºano do Ensino Fundamental de uma escola da cidade de Joinvile (SC/
Brasil) e alunos da mesma faixa etária (11/12 anos de idade) de uma escola da cidade
americana de Chesapeake (VA/EUA). Já a pesquisa desenvolvida por Denardi (2009)
versa sobre a aprendizagem do gênero resumo acadêmico. No estudo 10 professores de
Língua Inglesa da rede pública estadual da região sudoeste do Paraná produziram
resumos acadêmicos a partir da leitura de artigos acadêmicos referentes a modelos
didáticos dos gêneros carta de pedido de ajuda e de conto de fadas. Após produzirem
os resumos, os professores desenvolveram suas próprias SDs dos gêneros estudados
para serem aplicadas em seus contextos de prática.
Ambos os trabalhos trouxeram valiosas contribuições para o ensino-
aprendizagem de escrita em Língua Inglesa, uma vez que ao contribuírem para
a área de Linguística Aplicada impulsionaram novas práticas de atuação para o
ensino-aprendizagem da escrita em Língua Inglesa no contexto escolar, confirmando
a afirmação de Bronckart (2012),

[...] os programas escolares evoluíram na direção de uma diversificação


dos gêneros3 propostos aos alunos e, além disso, foram introduzidos novas
noções para conceitualizar alguns parâmetros e mecanismos que entram
em jogo nas atividades de produção (p.85).

3. Do ponto de vista do uso e da aprendizagem, o gênero pode, assim, ser considerado um mega-instrumento
que fornece um suporte para a atividade nas situações de comunicação e uma referência para os aprendizes,
(Schneuwly, noverraz e Dolz, 1997, p.7).

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Projeto de Pesquisa: Escrita: perspectivas e práticas escolares em
língua inglesa
Considerando os aspectos abordados na seção anterior referente às
irregularidades e lacunas existentes no ensino de escrita em Língua Inglesa na
escola, apresentamos nesta seção um projeto de pesquisa etnográfica qualitativa
à luz do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONKCART, 2012 e seguidores), cujo
objetivo principal é verificar como o processo de ensino-aprendizagem de escrita
em Língua Inglesa se desenvolve em uma turma de Ensino Médio de uma escola
pública federal localizada no sudoeste do Paraná, procurando vislumbrar novas
perspectivas para o ensino-aprendizagem dessa capacidade.
Neste sentido, as questões de pesquisa que nos norteiam são: a) de que
maneira os professores de Inglês trabalham com a escrita? e b) A forma como
o ensino de escrita é abordado na sala de aula pode contribuir para o melhor
desenvolvimento de Língua Inglesa e desenvolvimento cognitivo e social dos
alunos de Ensino Médio?
Com relação aos aspectos metodológicos da pesquisa, prevemos a coleta
de dados por meio de observações de aulas de Inglês em uma turma do 2º ano do
Ensino Médio, gravações em áudio, transcrições das gravações das aulas, tomada
de notas das aulas observadas e entrevistas semi-estruturadas com o professor e
com seus alunos, averiguando quais são as principais dificuldades e obstáculos
que impedem a aprendizagem de escrita, bem como, quais são as práticas que
estimulam e contribuem para seu desenvolvimento. A análise dos dados coletados
será fundamentada com base na análise de conteúdo (BRONCKART, 2012).
Ponderando tais aspectos abordados, enfatiza-se que o projeto então proposto
se interessa em estudar, averiguar e analisar as diversas atividades, visando contribuir
que por sua vez contribuirá grandemente para o desenvolvimento cognitivo e social
dos alunos. Assim sendo, procuraremos abordar os aspectos que interrelacionam
as esferas da linguagem de atividades de escrita, buscando resoluções que possam
contribuir para melhoraras técnicas e estratégias, aperfeiçoando o ensino da escrita
de língua inglesa no ensino médio.

Considerações Finais
Lamentavelmente, enfatiza-se que muitas escolas não apresentam um meio
ou plano de ensino que vise dar mais atenção à linguagem escrita, assim como, à
sua prática no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa. Tais fatores trazem danos
desmedidos aos aprendizes e sua formação escolar. Acreditamos que a prática de
escrita possa contribuir para transpor obstáculos de aprendizagem de Língua Inglesa

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na Educação Básica, como também contribuir para o desenvolvimento cognitivo e
social dos alunos envolvidos nesse processo.

Referências
BEATO-CANATO, A. P. M. O desenvolvimento da escrita em língua inglesa com o uso
de sequências didáticas contextualizadas em um projeto de troca de correspondências.
Universidade Estadual de Londrina. Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem. Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação
em Estudos da Linguagem. Londrina – PR. 2009. Disponível em: <http://livros01.
livrosgratis.com.br/cp110587.pdf> Acesso em: 08 set. 2016
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio: Linguagens,
códigos e suas tecnologias. Secretaria de Educação Básica. Brasília. Ministério da
Educação, Secretaria da Educação Básica. Brasília, 2006, v.1, 364 p. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf.>
Acesso em: 04 ago. 2016
BRONCKART, J. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo
sociodiscursivo. Tradução e coordenação de: Anna Raquel Machado e Péricles
Cunha. 2. ed. São Paulo: Editora Educ, 2012.
DENARDI. D. A. C. Flying together towards EFL teacher development as language learners
and professionals through genre writing. Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-
Graduação em Letras – Inglês. Tese submetida à Universidade Federal de Santa
Catarina. Florianópolis – SC. 2009. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/
bitstream/handle/123456789/92491/276044.pdf?sequence=>Acesso em: 10 set. 2016
DOLZ, J.; GAGNON, R,; DECÂNDIO, F. Produção Escrita e Dificuldades de
Aprendizagem. Tradução de: Fabrício Decândio e Anna Rachel Machado. Editora:
Mercado de Letras – 1ª edição. Campinas – SP. Maio, 2010.HIGOUNET, Charles.
História Concisa da Escrita. Tradução: Marcos Marcionilo. 1ª edição - Editora
Parábola. Maio de 2003.
PAIVA, V. L. M. Ensino de língua inglesa no ensino médio – teoria e prática. Editora
Somos Mestres – 1ª edição. São Paulo – 2012.
SCHNEUWLY, B.; NOVERRAZ, M.; DOLZ, J. Sequências Didáticas para o oral e a
escrita: apresentação de um procedimento. Coleção de Livros Didáticos. Edições
De Boeck, 2001.

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AS POSIÇÕES-SUJEITO PRESENTES NO CURSO
DE PEDAGOGIA DA UFSM
Adriele Delgado Dias (UFSM)
Eliana Rosa Sturza (Orientadora-UFSM)

Introdução
Minha formação em Pedagogia aliada aos meus estudos de Pós-Graduação
no Mestrado em Letras, ambas pela Universidade Federal de Santa Maria, instigou-
me a buscar mais conhecimentos sobre os estudos da língua e da linguagem por
acreditar que esta questão é pouco explorada no curso de graduação referido.
E partindo das minhas inquietudes como professora formada pela UFSM,
e, com o intuito de ampliar meus estudos para minha pesquisa de Mestrado, que
busca compreender como os estudos da língua e da linguagem se fazem presentes
no curso de Pedagogia da UFSM, é que se delineia este artigo que se detém na
compreensão de como o ementário da disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita”, do
Curso de Pedagogia da UFSM, certifica o perfil de professor que está assentado no
objetivo geral desse curso.
Para tanto, fez-se necessário analisar as disciplinas que desenvolvem um
trabalho em relação à língua e a linguagem. Sendo assim, escolhemos a disciplina
“Oralidade, Leitura e Escrita” por observarmos que no seu programa estão expostos
temas referentes a questões especificamente linguísticas, como: Sociolinguística,
Psicolinguística e Linguística Aplicada.
Para então realizarmos a análise deste trabalho, utilizamos os pressupostos
teóricos da Análise de Discurso (AD) para permear os conceitos necessários na
compreensão desta pesquisa baseado nos estudos de Michel Pêcheux e Eni Orlandi.

A Análise de Discurso
A AD se situa na relação entre o linguístico e o histórico, estabelecendo o
discurso como objeto de estudo que conjuga aspectos linguísticos com aspectos
histórico-ideológicos. Ela surgiu nos anos 60, na França, como campo teórico e analítico
fundada por Michel Pêcheux e, no Brasil, nos anos 80, postulada por Eni Orlandi.
Para Orlandi (2005), a AD vai constituir-se como um lugar teórico propício
ao estudo a partir de três grandes áreas do conhecimento: a Linguística, a Psicanálise
e o Marxismo, pois somente assim é possível contemplar a significação do discurso.
A autora ainda salienta que a Análise de Discurso:

Concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade


natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a
permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do
homem e da realidade em que ele vive. (ORLANDI, 2005, p. 15)

Segundo Orlandi (2005, p. 21), “o discurso é efeito de sentidos entre


locutores”, em que constantemente a posição-sujeito é redefinida, nas práticas
sociais, pelas condições de produção do discurso. Com isso, entendemos que o
sujeito não se desvincula da ideologia, pois ele é um sujeito socializado, ou seja, ele
discursiva de acordo com suas marcas do social, do ideológico e do histórico, em que
ora é assujeitado pela ideologia que o domina, ora pelo seu próprio inconsciente.
Sendo assim, compreendemos que “a ideologia interpela os indivíduos em
sujeitos” (PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p. 167). Dessa forma, não existe um discurso
sem sujeito e nem sujeito sem ideologia, pois o sujeito sempre se inscreve em uma
ideologia, colocando suas posições no discurso.
Orlandi (2005) nos explicita que o sujeito só tem acesso à parte do que diz,
sendo atravessado pela linguagem e pela história, sob o modo do imaginário. Ele é
sujeito à língua e à história, pois é afetado por elas quando produz sentidos, e ele
necessita disso, pois se não produz sentidos, não se constitui como sujeito.
Sendo assim, a autora apresenta a ideia de “posição” que um sujeito
discursivo tem frente a outros, pois é o lugar que o sujeito ocupa que o coloca como
sujeito de sua fala. “É a posição que deve e pode ocupar todo indivíduo para ser
sujeito do que diz” (ORLANDI, 2005, p. 49). Ou seja:

O modo como o sujeito ocupa seu lugar, enquanto posição, não lhe é
acessível, ele não tem acesso direto à exterioridade (interdiscurso) que o
constitui. Da mesma maneira, a língua também não é transparente nem
o mundo diretamente apreensível quando se trata da significação pois o
vivido dos sujeitos é informado, constituído pela estrutura da ideologia.
(PÊCHEUX, 1975 apud ORLANDI, 2005, p. 49)

Podemos dizer que um mesmo indivíduo assume-se como diferentes


sujeitos em diferentes formações discursivas. Por exemplo, quando uma mulher
fala da posição de mãe, questionando seu filho sobre o horário de chegada em casa,
o sentido do enunciado é construído a partir da posição de mãe assumida.
O que compreendemos é que todos os enunciados fazem parte do discurso;
um sujeito pode ter uma posição social em cada momento, por exemplo, podemos

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ser professora, filha, estudante, etc, de acordo com a situação em que estamos
inseridos. E segundo Courtine (1999),

[...] são posições de sujeito que regulam o próprio ato da enunciação: o


interdiscurso, sabe-se, fornece, sob a forma de citação, recitação ou
preconstruído, os objetos do discurso em que a enunciação se sustenta
ao mesmo tempo que organiza a identificação enunciativa (através
do regramento das marcas pessoais, dos tempos, dos aspectos, das
modalidades...) constitutiva da produção da formulação por um sujeito
enunciador. (COURTINE, 1999, p. 20, grifos do autor)

A Análise de Discurso parte da ideia de que o sujeito não é fonte do sentido,


mas que se forma a partir de uma rede de memória acionada pelas formações
discursivas que representam no seu discurso diferentes posições-sujeito, ou seja,
a formação discursiva, como lugar da interpelação ideológica do sujeito, configura
uma matriz de sentido.
Para tanto, Pêcheux e Fuchs afirmam que

É impossível identificar ideologia e discurso [...], mas que se deve


conceber o discursivo como um dos aspectos materiais do que chamamos
de materialidade ideológica. Dito de outro modo, a espécie discursiva
pertence, assim pensamos, ao gênero ideológico, o que é o mesmo que
dizer que as formações ideológicas [...] comportam necessariamente,
como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas
interligadas que determinam o que pode e deve ser dito [...] a partir de
uma posição dada numa conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares
no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes.
(PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p. 166)

Com isso, tem-se que no discurso a ideologia se revela através de sua


materialidade ideológica, que, por sua vez, se materializa nas Formações Discursivas
(FDs), em que segundo Pêcheux (1997) o sujeito do discurso se inscreve por meio
da forma-sujeito de acordo com as posições e as condições de produção dadas. O
autor, ainda expõe que a forma-sujeito “tende a absorver-esquecer o interdiscurso
no intradiscurso, isto é, ela simula o interdiscurso no intradiscurso, de modo que o
interdiscurso aparece como o puro ‘já-dito’ do intra-discurso, no qual ele se articula
por ‘co-referência’ ” (PÊCHEUX, 1997, p. 167, grifos do autor).
Nesse sentido, Orlandi (2005) apresenta duas observações referentes às
FDs. Primeiro que os sentidos derivam das formações discursivas que as palavras
se inscrevem, e segundo, que é pela identificação da FD que se podem compreender
os diferentes sentidos.
Pêcheux (1997) explica que formação discursiva é aquilo que, numa formação
ideológica dada, determina o que pode e deve ser dito. Assim as palavras recebem

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seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas, pois “os indivíduos
são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações
discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são
correspondentes” (PÊCHEUX, 1997, p. 161, grifos do autor).

Analisando
Partindo do interesse em compreender de que forma os estudos da
língua e da linguagem estão presentes no curso de Pedagogia da UFSM, e ainda,
respondendo as minhas inquietudes, é que se faz este trabalho, o qual buscamos
analisar a posição de sujeito na disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita” do curso
de Pedagogia da já referida universidade, contrapondo com a posição de sujeito
detalhada no objetivo geral do curso.
Entendemos que, uma disciplina é um conjunto de discursos. Ela se constrói
em um campo de enunciação, com uma regulação e funcionamento específicos,
pela discursivização dos conhecimentos a partir de determinadas FDs. Esse
espaço de enunciação distribui os conhecimentos de um modo particular, e, essas
configurações específicas dos discursos em suas relações com outros discursos e
com o conhecimento irão incidir em relação à história e à memória das línguas, do
saber sobre elas produzidas, das instituições e do sujeito.
Várias são as disciplinas que prevê o conhecimento linguístico no curso
de Pedagogia da UFSM, mas para este trabalho, tomamos apenas uma disciplina,
no qual fizemos um recorte dos seus objetivos, pois esta trata sobre questões da
aquisição da linguagem.
Para isso, implica apresentar, primeiramente a materialidade linguística
deste trabalho, com a finalidade de viabilizar o conhecimento empírico das
formações discursivas analisadas. Dessa forma, seguem abaixo as transcrições - fiéis
às escrituras da ementa da disciplina e do site do curso.
RECORTE 1 - Objetivos da ementa da disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita”:
Analisar o processo de construção do conhecimento e as teorias
que o embasam, procurando estabelecer uma relação dialética entre
desenvolvimento, ensino e aprendizagem, que contribuam para a aquisição
e desenvolvimento da linguagem escrita e da leitura.
RECORTE 2 - Objetivo geral do curso de Pedagogia da UFSM:
O curso tem como objetivo geral formar professores/profissionais em
nível superior para a docência na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental. Os alunos são capacitados para atuar nas diferentes

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modalidades de ensino e/ou nas demais áreas nas quais sejam previstos
conhecimentos pedagógicos.
De acordo com Orlandi (2005), as formações discursivas permitem
compreender o processo de produção dos sentidos, estabelecendo regularidades no
funcionamento do discurso e determinando o que pode e deve ser dito. Segundo
a autora, o próximo passo é relacionar as formações discursivas com as formações
ideológicas que rege essas relações. E em nossa pesquisa identificamos saberes que
se inscrevem em pelo menos duas formações discursivas:
FD1: FD na qual se inscrevem sujeitos que adquirem conhecimentos teóricos
referentes à aquisição e desenvolvimento da linguagem e da escrita.
FD2: FD na qual se inscrevem sujeitos que são aptos e preparados para atuar
como professores.
Ao observarmos a ementa da disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita”,
o que se torna sobressalente é a presença do verbo no infinitivo que introduz o
objetivo da mesma. Isso nos revelou a ausência do cunho de formação docente,
já que de acordo com o objetivo geral do curso de Pedagogia, este é um curso de
licenciatura, que forma professores aptos a trabalhar com o ensino e aprendizagem
da leitura e escrita.
Na FD1 encontramos um sujeito que apenas conhece teorias, porém não
está hábil a transmiti-las atuando como profissional capacitado para tal, pois ele
ainda é um professor em formação. Já na FD2 o que encontramos é um sujeito que
se forma docente, capaz de atuar como tal tanto na Educação Infantil, quanto nos
Anos Iniciais de uma escola.
Dessa forma, ao analisarmos o objetivo do curso de Pedagogia da UFSM e
a ementa da disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita”, consideramos que o sujeito
pressuposto no objetivo geral do curso é um sujeito-professor, pois se espera que o
curso forme profissionais docentes, aptos a atuar com tal. Já o sujeito que encontramos
presente no objetivo da disciplina é um sujeito que ocupa uma posição que apenas
adquiri informações e estuda conhecimentos teóricos referentes à aquisição da
língua e da linguagem, porém não é hábil a trabalhá-las de forma prática, ou seja,
não as aplica como professor em sala de aula.
Com isso, podemos dizer que a posição de sujeito do objetivo do curso se
difere da posição de sujeito da ementa. Contudo, o que nos inquieta é como que um
curso formador de professores, não possui na ementa de suas disciplinas o mesmo
objetivo geral que no do curso. Obviamente, não queremos dizer que as disciplinas
do curso de Pedagogia devam estar todas baseadas na prática do professor, até

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porque sabemos da importância das teorias para nossa formação, mas sim, que elas
mantenham uma relação dialética com o princípio docente do curso.

Considerações Finais
Ao realizarmos este trabalho compreendemos que “para trabalhar com
a categoria de discurso, é necessário ser linguista e deixar de sê-lo ao mesmo
tempo” (COURTINE, 1999, p. 18), ou seja, precisamos saber um pouco de língua
para fazer análise de discurso.
Dessa forma, analisamos e refletimos sobre as posições de sujeito presentes
no ementário da disciplina “Oralidade, Leitura e Escrita” do Curso de Pedagogia da
UFSM, assim como, do objetivo geral do Curso. E ao partirmos do pressuposto de
que o sujeito se constitui a partir de uma formação ideológica é que compreendemos
a posição-sujeito presentes na disciplina e no curso. Ou seja, identificamos com esta
análise que o sujeito presente no objetivo geral do curso difere do sujeito presente
no ementário da disciplina.
O que concluímos, então, foi uma posição-sujeito incômoda e contraditória,
posições de diferentes sujeitos. No objetivo geral do Curso de Pedagogia identificamos
um sujeito-professor, que supõe um docente em formação, enquanto que no
ementário da disciplina identificamos um sujeito que apenas adquire informações,
conhece teorias que embasam o processo de construção do conhecimento, referentes
à aquisição da linguagem escrita e da leitura, porém, estes conhecimentos não
preveem possíveis aplicações no fazer docente.
Nesse sentido, de acordo com Orlandi (2006), compreendemos que as
diferentes posições de sujeito representam as diferentes formações discursivas que
atravessam a história, pois “cada texto tem, assim, uma certa unidade discursiva com
que ele se inscreve em um tipo de discurso determinado” (ORLANDI, 2006, pg. 60).
Enfim, é importante ressaltar que este trabalho nos possibilitou vislumbrar
outras análises referentes ao Curso de Pedagogia, em que, como curso de licenciatura
que objetiva formar professores, necessita de alguns estudos mais avançados no que
se refere ao estudo da língua e da linguagem.
Nesse sentido, o que queremos dizer é que para um professor em formação
é necessário saber como o processo de aquisição em linguagem ocorre, pois ele deve
saber atuar e intervir neste processo como um mediador do conhecimento.

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Referências
COURTINE, J. J. O chapéu de Clémentis. In: INDURSKY, F.; FERREIRA M. C. L.
(Orgs) Os múltiplos territórios da Análise do Discurso, organizadoras. Porto Alegre:
Editora Sagra Luzzatto, 1999.
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP:
Pontes Editores, 2005.
______. Discurso e leitura. 7.ed. São Paulo: Cotez, 2006.
PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da Análise Automática do Discurso:
atualização e perspectivas (1975). In: GADET, F.; HAK, T.(Orgs.) Por uma Análise
Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução de:
Bethania S. Mariani et al. 3. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de:
Eni Pulcinelli Orlandi et al. 3. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. UFSM- Pedagogia Diurno.
Santa Maria, 2016. Disponível em: <http://w3.ufsm.br/ce/index.php/graduacao/
pedagogia-diurno>. Acesso em: 01 jun. 2016.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. UFSM- Portal do Ementário.
Santa Maria, 2016. Disponível em: <https://portal.ufsm.br/ementario/curso.
html?idCurso=1061>. Acesso em: 01 jun. 2016.

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IDENTIDADES DE FRONTEIRA: UMA ANÁLISE DO
ARGENTINO NOS TELEJORNAIS DA RPC-TV
CATARATAS (2015)
Amanda Padilha Pieta (Unicentro)
Ariane Carla Pereira Fernandes (Unicentro)

Resumo: Esse artigo é o recorte de um estudo que analisa as reportagens veiculadas


no primeiro semestre de 2015 pela emissora RPC – TV Cataratas, de Foz do Iguaçu,
que fizeram referência ao estrangeiro de fronteira daquela região – o argentino e
o paraguaio. Nesse texto, a análise se limita ao conteúdo sobre os argentinos. A
partir do objeto de estudo, buscou-se investigar qual era a identidade formada do
estrangeiro para e pelo brasileiro através das narrativas telejornalísticas. Com o
suporte da Análise do Discurso foi possível fazer um panorama de quais estratégias
comunicativas foram utilizadas pelo telejornal para objetivar/subjetivar o paraguaio
e qual a importância dessa mensagem sendo disseminada pelo jornalista para
milhares de telespectadores.
Palavras-chave: Telejornalismo. Tríplice fronteira. Formações imaginárias.

Introdução
Existe uma relação ímpar em regiões de fronteira. Afinal, uma área de
intersecção entre países forma uma comunidade que compartilha o mesmo
espaço, possibilitando que diferentes culturas, costumes, línguas e realidades se
misturem. No Paraná, a região de Foz do Iguaçu é ainda mais complexa nesse
sentido, pois separados por duas pontes, brasileiros, argentinos e paraguaios
dividem o mesmo espaço.
Três povos que - apesar de suas diferenças e até mesmo de algumas rixas
marcadas na História e na Cultura, como a Guerra do Paraguai e a disputa entre
Brasil e Argentina no futebol - convivem e comungam realidades, e que ao se
mesclar possibilitam a imersão de um novo modo de ser e estar no mundo, o que
vamos designar como cultura de fronteira. Afinal, brasileiros atravessam as pontes
da Amizade e da Fraternidade diariamente com destino ao Paraguai e à Argentina
respectivamente, onde trabalham e consomem desde bens materiais à cultura e ao
final do dia voltam para suas casas no país de origem. O sentido inverso também
acontece entre paraguaios e argentinos.
A partir dessa característica, de uma região multicultural, multiétnica e
multieconômica, encontramos uma profusão de assuntos envolvendo os brasileiros e
os estrangeiros dessa fronteira pautada pelos veículos de comunicação que atuam na
região. Esse artigo é o recorte de um estudo que investiga as representações do outro
pelos telejornais locais de uma das emissoras de televisão de Foz do Iguaçu, a RPC-TV
Cataratas, procurando entender como se dá a construção da identidade do argentino
e do paraguaio para e pelo brasileiro. Nesse artigo em especial, o foco da discussão
ficará apenas na formação de identidade do argentino pelo/para o brasileiro.
Para isso foram tomadas como objeto de estudo as reportagens que
envolviam questões de fronteira exibidas durante o primeiro semestre de 2015 pelos
dois telejornais diários da RPC-TV Cataratas, pertencente ao GRPCom/RPC (Grupo
Rede Paranaense de Comunicação/Rede Paranaense de Televisão) e afiliada à Rede
Globo de Televisão. A partir disso, buscou-se evidenciar os dispositivos discursivos
empregados pela emissora para objetivar/subjetivar o estrangeiro, utilizando-se da
Análise do Discurso, já que ela

visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele


está investido de significância para e por sujeitos. Esta compreensão, por sua
vez implica em explicitar como o texto organiza os gestos de interpretação
que relacionam o sujeito e o sentido. (ORLANDI, 2009, p.26-27)

Através do acompanhamento dos telejornais da RPC-TV Cataratas pelo


período acima descrito, foram encontrados 112 vídeos que incluíam reportagens,
notas cobertas, notas peladas, links e entrevistas de estúdio que citavam o estrangeiro
de fronteira. Desse total, 70% eram sobre paraguaios, 17% sobre argentinos e 13%
falavam de ambos. O objeto também foi separado por temas, sendo 29% da editoria
policial, 21% sobre infraestrutura, 20% sobre turismo, 17% de economia, 7% sobre
segurança, 5% da área cultural e 1% sobre esporte. Das 112 reportagens, 65% não
retratam sujeitos ou histórias de vida, não possibilitando, então, a formação de
identidade. Porém, em 35% do material exibido é possível perceber processos de
objetivação/subjetivação do estrangeiro.
A partir disso, buscou-se a compreensão de como os jornalistas representam
e, assim, contribuem para a formação da identidade do argentino na perspectiva do
brasileiro. Análise norteada pelos conceitos de formações ideológicas e de formações
discursivas, sendo a segunda a materialização, na linguagem, da primeira. De
acordo com Pêcheux (1997), o termo formação ideológica caracteriza

um elemento (este aspecto da luta nos aparelhos) suscetível de intervir


como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica
característica de uma formação social em um dado momento; desse
modo, cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de
atitudes e representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’

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mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em
conflito uma com as outras. ( p. 166)

Na Análise do Discurso não são os sujeitos físicos em seus lugares empíricos


que importam, mas sim suas imagens, que são resultantes de projeções, chamadas
de formações imaginárias, que permitem que os indivíduos passem de sua situação
empírica e adquiram a posição de sujeito no discurso (ORLANDI, 2009). A partir
da identificação do sujeito falante interessa-nos analisar também a posição social
deste na medida em que as práticas discursivas jornalísticas funcionam também
como práticas de poder ao legitimar modos de ver, se posicionar e ser no mundo
contemporâneo. Afinal,

o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não


existe ‘em si mesmo’ (isto é, em relação transparente com a literalidade do
significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas
que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras,
expressões e proposições são produzidas. (PÊCHEUX, 1997, p. 160)

Das 112 reportagens decupadas durante o período de análise, foi constatado


que 42 delas formavam alguma identidade sobre o argentino ou paraguaio. A
maioria delas sobre paraguaios e a minoria sobre argentinos ou citando ambas as
nacionalidades. Pelo volume de conteúdo que a pesquisa trouxe, optou-se pela
separação das nacionalidades, estando presente neste texto apenas a parte referente
ao argentino, como afirmado acima.

“Ermanos”, sim ou nem tanto?


Um dos principais estereótipos do argentino, para o brasileiro, é derivado
da rixa entre os dois países no futebol. Ou seja, o de um povo marrento, que gosta
de uma catimba e que não vacila em usar de recursos não exatamente lícitos para
se dar bem - com o utilizado por Maradona, há anos, para garantir a vitória do país
vizinho numa Copa do Mundo. Quem não lembra da “mão de Deus” ajeitando a
bola para marcar o gol anotado como de cabeça do craque portenho?
Os estereótipos, assim como todo e qualquer discurso em circulação,
fazem parte do nosso arquivo quando elaboramos enunciados acerca do outro, no
caso o argentino. Desse modo, também compõem as condições de possibilidade
discursivas do brasileiro da tríplice fronteira, entre eles os jornalistas da RPC-
TV Cataratas. Assim, ao analisar os discursos jornalísticos da emissora, buscamos
compreender se esse e outros estereótipos são reforçados ou se há um deslocamento
no dizer dos moradores da região.

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Acontecimentos/fatos envolvendo os argentinos correspondem a 24 das 112
reportagens coletadas para análise dessa proposta de estudo. Desse total, metade
tratou de sujeitos e, portanto, permitem vislumbrar as identidades assumidas pelos
argentinos a partir dos olhos de brasileiros. E a maioria dessas representações está
presente nos formatos jornalísticos que enunciam ocorrências policiais:

Apresentador) A polícia de Barracão, no sudoeste do Estado, está a procura


de um argentino suspeito de praticar três arrombamentos numa mesma
noite na cidade. As câmeras de segurança instaladas em uma das empresas
ajudaram na identificação do bandido. (ParanáTV 1ª edição, TV Cataratas,
5 de janeiro de 2015, grifos das autoras)

Na primeira nota, o jornalista utiliza a palavra “bandido” para descrever o


argentino, ressalte-se, ainda suspeito. Somente o fato de mencionar a nacionalidade
do indivíduo já permite que seja instaurada uma identidade em torno dele. Em
termos jornalísticos, afinal, que diferença faz se o assaltante é argentino, brasileiro,
norueguês ou de qualquer outro país do globo? Essa informação é realmente
necessária no processo informativo? Para o telespectador interfere na compreensão
da notícia saber ou não a nacionalidade do suspeito?
O modo como os fatos são enunciados, afirma Michel Pêcheux (2001), para
além de determinar o “dito”, rejeita outras possibilidades de dizer, o silenciado, o
“não-dito”. Isso significa que ao formular um discurso, o jornalista coloca fronteiras
entre o que ele seleciona e dá ênfase, e o que é rejeitado (PÊCHEUX, 2001, p.175).
Diante dessa situação, o jornalista seleciona algumas palavras para caracterizar
o argentino, acreditando que não há outra maneira de se expressar, o que é uma
crença errônea já que todo enunciado “está intrinsecamente suscetível de tornar-
se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para
derivar para um outro” (PÊCHEUX, 2002, p.53).
Um assunto que rendeu algumas suítes e trouxe reclamações de brasileiros
e argentinos às telas da TV Cataratas foi a decisão do governo argentino de
cobrar uma taxa dos veículos que entrassem no país. Na primeira vez em que o
assunto é tratado no telejornal, o apresentador Anderson Frigo conversa com um
representante do Conselho Municipal de Turismo, Licério Santos, que diz estar
mobilizado para evitar isso:

Licério Santos, Contur) É, isso é uma decisão federal argentina mas


afetou diretamente porque no momento de fazer o recadastramento da
documentação necessária pra passar pra fronteira foi também exigida a
cobrança dessa taxa que não é pequena. É uma taxa pesada. Não é que
aumentou, ela começou a ser cobrada a 1000 pesos pra ônibus, 750 pesos
pra vans, e 500 pesos pra carros pequenos executivos. E isso onerou
pesadamente o setor do turismo e agora também eles estão começando e

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ver para os táxis e, nesse sentido, estamos dando apoio tanto pros taxistas
brasileiros quanto para os argentinos.
Apresentador) Licério e. sinceramente. sobre essas atitudes que a gente
vê o governo da Argentina tomar faz com que dê a impressão de que eles
tão querendo afastar o turista da cidade vizinha. Vocês têm essa mesma
sensação ou não? (Paraná TV – 2ª edição, TV Cataratas, 7 de maio de 2015,
grifos meus)

Exemplo 2:

Apresentador) Bom, eu já começo falando que hoje, argentinos, brasileiros


e paraguaios se uniram e fecharam a ponte que dá acesso à Argentina.
Tudo por conta daquela taxa de migração que a Argentina está cobrando
para entrar no país vizinho. Eles querem a suspensão dessa cobrança.
(ParanáTV 1ª edição, TV Cataratas, 28 de maio de 2015, grifos meus)

O assunto em questão foi retratado pelo telejornal como um motivo de


união dos moradores da fronteira, que se mobilizaram contra a “taxa pesada”. O
telejornal culpou a Argentina por onerar o setor do Turismo e afastar os turistas não
só de Porto Iguaçu, mas de toda a tríplice fronteira, o que preocupou as autoridades.
O tratamento dado a um assunto, segundo a AD, é, também, uma estratégia
discursiva. A antecipação, como é chamada, se dá quando o sujeito falante, ao
projetar as imagens de si e do outro no discurso, se preocupa com quem é o sujeito-
enunciatário e qual seria sua reação às informações e comentários que se seguirão.
No caso em questão, o telejornal “previu” que o telespectador poderia se sensibilizar
pela medida argentina pesar tanto para seu próprio bolso quanto para o setor de
Turismo, um dos maiores e de maior orgulho do fozdoiguaçuense. Assim,

segundo o mecanismo da antecipação , todo sujeito tem a capacidade de


experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor
“ouve” suas palavras. Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao
sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação
de tal forma que o sujeito dirá de um modo ou de outro, segundo o efeito
que pensa produzir em seu ouvinte (ORLANDI, 2003, p.39)

No momento em que esses discursos estão sendo materializados eles passam


pela constituição de um conjunto de projeções de imagens chamado formações
imaginárias. De acordo com Pêcheux, as formações imaginárias não correspondem
aos sujeitos físicos do discurso, mas sim às imagens que o locutor e o interlocutor
formam de si mesmos, do outro e do assunto sobre o qual está sendo falado (2001,
p.82). “São essas projeções que permitem passar das situações empíricas – os lugares
dos sujeitos – para as posições do sujeito no discurso. Essa é a distinção entre lugar
e posição” (ORLANDI, 2003, p.40).

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Nesse caso, temos na posição de sujeito-enunciador, que narra os
acontecimentos ao seu enunciatário, conforme o que ele acredita ser a melhor
forma de descrever um fato. Na condição de jornalista e com algumas estratégias
discursivas, seu objetivo é convencer o público a compactuar de uma ideia, fazer
com que o receptor considere a imagem formada dos argentinos e paraguaios
passada através da notícia que ele construiu.
Na posição de sujeito-interlocutor temos a imagem do telespectador que
precisa acreditar que o discurso com o qual está tendo contato é verdadeiro. Assim, o
telejornal conquista a legitimidade e confiança do seu público. No entanto, é importante
ressaltar que nessa relação discursiva em questão existe um sujeito a mais do que
apenas o locutor e interlocutor da mensagem. Esse terceiro sujeito é o estrangeiro
que primeiramente constitui a própria mensagem, sobre o que está sendo falado, e
também pode ou não ser o público dela, fazendo parte do grupo de interlocutores.
A imagem negativa do argentino, porém, não é constante, nem predominante
nos telejornais da RPC-TV Cataratas. Ela emerge nas situações em que o argentino,
por ações pessoais ou por iniciativas do poder público, busca, de modos distintos,
tirar vantagem e coloca-se numa posição igualitária em relação ao brasileiro. Nos
outros momentos, porém, é como se o argentino da fronteira, morador de Porto
Iguaçu fosse um argentino outro e a região uma ilha deslocada do restante do país.
Assim, o discurso da fraternidade, da convivência e da parceria é reiterado.
No dia 25 de março, por exemplo, o ParanáTV enfatizou “uma notícia boa
logo de cara”: o projeto da Argentina que visa facilitar e tornar mais rápido os
procedimentos de fronteira em Porto Iguaçu:

Apresentador) Quer uma notícia boa logo de cara? Pois é... Ir até a Argentina
pode ficar mais ágil pra quem mora aqui na região. Tudo por causa de um
único documento. Caio Vasques, boa noite, que documento é esse?
Repórter -Boa noite, Ronaldo. É uma carteira de trânsito fronteiriça e,
como você disse, vai facilitar a vida de quem mora em Foz do Iguaçu e
de quem mora em Porto Iguaçu, na Argentina. (...) É tudo muito rápido
e só funciona pra quem mora em Foz e Porto Iguaçu? (dirigindo-se ao
entrevistado)
Ricardo Cubas Neto Cesar, delegado PF) Isso. E a partir de uma grande
demanda de expedição desse documento nós temos a possibilidade que
essa máquina venha para Foz do Iguaçu e seja emitido para agilizar a
expedição e que as pessoas não precisem ir até a aduana para emitir o
documento.
Repórter - Já té valendo isso?
Ricardo Cubas Neto Cesar, delegado PF) Já tá valendo. Já estão emitindo o
documento, sai na hora e é um documento importante porque vai facilitar.
Além do ingresso na Argentina, alguns estabelecimentos darão descontos

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aos moradores de Foz do Iguaçu com compras na Argentina. (Paraná TV –
2ª edição, TV Cataratas, 25 de março de 2015, grifos das autoras)

Durante a entrevista percebemos que as qualidades de facilidade, rapidez e


agilidade são enfatizadas mais de uma vez, tanto pelo repórter quanto pelo delegado,
elogiando, de certa forma, a iniciativa do país vizinho.
Antes de seguir com a análise, é importante destacar que esse e os outros
discursos jornalísticos que serão apresentados só são eficazes porque o público deles
consegue compreender o que está sendo dito. Isso acontece primeiramente porque
existe um pré-conhecimento da língua, que fornece “ligação, identificação ou
transferência” (PÊCHEUX, 2002, p. 54), possibilitando a capacidade de interpretar.
Outro fator importante para que o gesto de leitura seja eficaz é a presença da
ideologia que traz “evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado
‘queiram dizer o que realmente dizem’ e que mascara, assim, sob a ‘transparência
da linguagem’, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e
dos enunciados” (PÊCHEUX, 1997, p.160). Dessa forma, o telespectador absorve as
palavras positivas grifadas que foram enfatizadas na reportagem do exemplo acima
e as relaciona tanto à ação quanto aos personagens dela, ou seja, os argentinos.
Esse vai-e-vem de formações ideológicas está marcado no discurso
jornalístico e influi também sobre a formação que o público irá fazer do estrangeiro,
já que o primeiro está numa posição ideológica favorável que permite ampla
divulgação e legitimação do que está sendo dito. O sentido de uma palavra depende
das posições ideológicas do sujeito e também do processo sócio-histórico no qual
elas estão sendo produzidas, pois

as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo


as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer
que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em
referência às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem.
(PÊCHEUX, 1997, p.160)

Considerações finais
A partir da análise das reportagens que fizeram referência aos argentinos
produzidas pelos telejornais brasileiros de Foz do Iguaçu, constatou-se que em um
mesmo esquema de relação de amizade, como é designada a ponte, se quer construir
uma nova imagem e uma nova relação para com o estrangeiro da tríplice fronteira.
Houve um crescimento do setor do Turismo na região e consequentemente veio a
conscientização da população de Foz - e também do Porto Iguaçu - de que os povos

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fronteiriços vivem numa situação de interdependência, onde o turismo fornece
renda tanto para a cidade brasileira quanto para a paraguaia.
Para a comunidade de Foz do Iguaçu - e o jornal e os jornalistas da RPC-
TV Cataratas estão aí inclusos também - é importante construir essa relação de
boa vizinhança e mostrar uma imagem positiva deles para a região e para o resto
do Brasil e do mundo. Apesar dessa nova relação determinada por formações
discursivas outras que emergem na fronteira, que determinam um argentino
companheiro, ainda assim temos resquícios de outras formações negativas que
as vezes voltam a se misturar nessa relação. Geralmente, estas aparecem quando
o interesse para de ser mútuo e o estrangeiro faz algo de errado que faz lembrar
e retomar as imagens anteriores. E, assim, as múltiplas formações discursivas se
mesclam, trocam o posto de destaque constantemente entre elas, e a relação de
fronteira acaba ficando nesse vai-e-vem.
Ao empregar certos sentidos em seus dizeres, os jornalistas adquirem uma
grande responsabilidade já que estão em uma posição na sociedade que recebe
crédito e legitimidade do seu público sobre o que estão dizendo. “Se passou no
jornal, é porque é verdade”, como muitas pessoas costumam acreditar. “Os sentidos
são produzidos face aos lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução. Assim,
uma mesma palavra pode ter diferentes sentidos em conformidade com o lugar
socioideológico daqueles que a empregam” (FERNANDES, 2007, p.21).
Segundo Orlandi (2002), as palavras mudam seu sentido de acordo com as
posições socioideológicas de quem as emprega. “Elas ‘tiram’ seu sentido dessas
posições, ou seja, em relação as formações ideológicas nas quais essas posições
se inscrevem” (p.42-43). Por isso, o jornalista como formador de opinião tem
um papel importante na projeção da imagem que ele mesmo faz do estrangeiro
– nesse caso, o argentino -, pois a identidade que ele forma pode influenciar
milhares de telespectadores.

Referências
FERNANDES, C. A. Análise do Discurso: Reflexões introdutórias. Editora
Claraluz, 2007.
ORLANDI, E. Análise De Discurso: Princípios e Procedimentos. 5.ed. Campinas:
Pontes, 2003.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 3.ed. Campinas, SP: Pontes,
2002, 65p.

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FUCHS, C. A propósito da Análise Automática do Discurso: atualizações e
perspectivas. In: GADET, Françoise; HAK, Tony. Por uma Análise Automática do
Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. 3.ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 2001, p.163-252.
______. Semântica e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. 3.ed. Campinas:
Editora da Unicamp, 1997.

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O CORPO TRANSEXUAL NA ORDEM DO
DISCURSO DIGITAL
Andréia Apª.Thibes dos Santos Silveira (LEDUNI- UNICENTRO)
Denise Gabriel Witzel

Introdução
A Análise do Discurso, desde sua criação, com o gesto fundador de
Michel Pêcheux, passou por muitas modificações que fizeram com que os analistas
deixassem de pensar apenas no texto escrito, como produtor de sentido e de sujeitos,
mas o rosto, os gestos adquiriram, também, importante papel e, consequentemente,
as imagens como um todo, havendo uma verdadeira “metamorfose do discurso
político”. Nosso trabalho está centrado nessas reflexões acerca do discurso no que
se refere à iconografia e a sua relação com a memória(intericonicidade). Para tanto,
adotamos o conceito de enunciado de Foucault (2007), afastado da definição de frase
e de proposição e dos atos de fala; trata-se de uma função enunciativa e, portanto,
adquire um estatuto semiológico.
Trataremos, mais precisamente, da foto da modelo transexual Viviany
Beleboni, que desfilou na Parada e Orgulho LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais), de 07 de junho de 2015, em São Paulo, simbolicamente
crucificada. Ao ser divulgada a foto nas redes sociais, mais especificamente no
Facebook, causou grandes polêmicas e muitos discursos foram produzidos acerca
desse enunciado, reunindo, polemicamente, saberes e poderes que emergiram
porque o corpo transexual rompeu com certas normas da interdição discursiva.
Fonte: Página pessoal do Facebook

Foucault (2010, p.18) propõe que tratemos os discursos como acontecimentos,


isto é, “como séries homogêneas, mas descontínuas umas em relação às outras[...]
trata-se de cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade
de posições e de funções possíveis”. Desse modo, a foto da modelo Viviany Beleboni,
divulgada no Facebook, rompeu o instante e surgiu como acontecimento discursivo
que dispersou os sujeitos em várias posições que, em alguns momentos, geraram
embate.
Os efeitos de sentido produzidos a partir desse acontecimento no Facebook
foi o que despertou nosso interesse, por entender que essa rede social é uma fonte
abundante de produção de discursos e de subjetividades; nele e por ele os sujeitos
se identificam, se reconhecem, se subjetivam. Com a simples atitude de curtir,
demonstram valores éticos, culturais, religiosos, políticos, etc. O discurso digital
possibilita que os sujeitos pronunciem coisas que em uma interação face a face não
fariam, entretanto, segundo Foucault (2010a), há em toda sociedade processos de
controle do discurso, o que significa que certos enunciados jamais podem ser ditos,
segundo as leis de regulação dos discursos, ou seja, “os procedimentos externos de
controle e delimitação dos discursos” (FOUCAULT, 2010a).
A foto da modelo crucificada entra na ordem da interdição porque ao
ocupar um lugar sagrado e sacralizado de Cristo, masculino e viril. Segundo alguns
comentários postados no Facebook, isso implica uma “blasfêmia”, “falta de respeito”,
“uma abominação”, na medida em que rompe com as normas de interdição,
tornando-se sujeito a sanções e é, com relação ao corpo, que essas interdições e
sanções acontecem. Para as condições sócio-históricas, econômicas, e religiosas que

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possibilitaram o surgimento do corpo crucificado, essa posição só pode ser ocupada
por um homem viril, associando a imagem historicamente construída de um Cristo
homem, e de um Deus pai, e quando o corpo feminino de uma transexual ocupa
esse lugar é fadado as punições mediante discursos e práticas que o subjetiva de
forma negativa.
Respaldados, pois, em alguns conceitos da Análise do Discurso de linha
francesa, como enunciado, memória e corpo procuramos evidenciar as relações
entre esses conceitos na produção de subjetividades que subjetiva o transexual ora
como ser “demonícaco”, “cristofóbico” ora como “mártir”, “salvador”, e metáfora
daqueles que sofrem diante da violência homofóbica. Além disso, focalizamos a
rede de enunciados que mantém relação com este através da memória das imagens,
conforme postulou Courtine(2013) a intericonicidade.

Corpo, enunciado, memória


O corpo, enquanto objeto de discursos, não é entendido na sua condição
biológica, física, mas com uma historicidade que o criou e o “arruinou”. Uma
história que entendeu o corpo inicialmente como expressão do pensamento, com
Descartes e o “penso logo existo”. Com a contribuição de outros pensadores, essa
concepção mudou e, hoje, entendemos o corpo como a construção daquilo que a
sociedade necessita. Foucault (1979, 2010b) escreveu sobre as formas que o poder
investiu sobre o corpo, e o moldou conforme as necessidades de cada período, a
exemplo das disciplinas que o docilizaram e o tornaram útil para o capitalismo
que surgira e, posteriormente, a vigilância constante que o controlou não mais
através de punições, mas através do olhar, o vigiar constante sem ser visto, aos
moldes do Panóptico. Há ainda o biopoder, poder que controla os corpos em favor
da vida, investindo sobre sua saúde, beleza, natalidade, longevidade; desse modo,
o controle é constante, há um cuidado de si, mas, ao mesmo tempo, há um cuidado
dos outros.
A objetivação do corpo pelo poder ocorre na e pela linguagem; o enunciado
é a materialização da linguagem, ainda que não tenhamos necessariamente
um sintagma, “nem inteiramente linguístico, nem exclusivamente material”
(FOUCAULT, 2014, p.104). Um enunciado existe sob condições determinadas e é
sempre produzido por um sujeito; lembremo-nos que o sujeito do enunciado é um
lugar vazio, uma posição e que o enunciado só existe na relação com um campo
associado. Para que possamos analisar um enunciado, é preciso que consideremos
as margens, o “campo adjacente” que o cerca, isto é, o domínio de memória que são
aqueles enunciados que formam uma trama, a partir da qual podemos estabelecer as

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séries enunciativas, em meio as quais o enunciado pode ser repetido, mas também
modificado, adaptado, ou silenciado
. Esse sempre já do discurso, entendido como interdiscurso é o que sustenta
a noção de intericonicidade, postulada por Courtine (2013) como memória das
imagens. Para o autor, toda imagem tem um eco, assim como o enunciado toda
imagem traz a relação com outras imagens, inscrita em uma cultura visual. A
intericonicidade é a relação de conexões de imagens externas ao indivíduo, mas
também a existência da memória das imagens junto ao indivíduo, como os sonhos,
as imagens vistas, aquelas que de certa forma assombram o imaginário.
Assim, respaldados nesses conceitos basilares montamos uma série
enunciativa de imagens que mantêm relação com a foto da modelo crucificada, para
, desse modo, darmos visibilidade ao papel da memória das imagens, ou seja, à
intericonicidade na produção de sentidos e na construção de subjetividades.

Rastros da memória sobre o corpo crucificado


A imagem da modelo crucificada retoma as inúmeras representações
da arte sobre a crucificação de Cristo. Como um efeito de diplopia, ao olharmos
a imagem da modelo vemos também a imagem de Cristo, no entanto, essa
apropriação do discurso religioso foi entendida por alguns dispositivos religiosos,
como indevida, o que ocasionou o embate discursivo nas redes sociais sobre esse
acontecimento, interpretado por alguns como falta de respeito e, por outros, como
metáfora do sofrimento LGBT.
A representação do corpo crucificado não é uma novidade. Muitas vezes, a
iconografia da cruz foi usada como sinônimo de sofrimento, a exemplo do jogador
de futebol Neymar que foi capa da revista Placar, por ter sido usado como “bode
expiatório” de um esporte em que todos fingem sofrer faltas, mas somente ele é
criticado pela mídia e tido como “cai-cai”. A crucificação de Neymar, nesse sentido,
é entendida como o sofrimento do jogador em prol da categoria dos jogadores de
futebol.

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Na ótica da análise do discurso ,notamos que “A crucificação de Neymar”


é a reatualização da crucificação de Cristo. Essa memória das imagens é retomada
pela iconografia central da cruz e pelo corpo que está exposto: masculino, magro,
com marcas das chagas e do sangue ainda que simbólico. Entretanto, os sentidos
que permeiam a crucificação de Cristo são deslocados quando no lugar de um
simples pedaço de pano amarrado à cintura, nós temos, no caso de Neymar, ao que
parece, a camisa do Santos, time que o jogador atuava na ocasião, demonstrando o
grupo pelo qual ele sofre. Outra transformação no enunciado, tendo a crucificação
de Cristo como referência, é com relação ao posicionamento da cabeça que não está
caída, simbolizando a morte, mas erguida aos céus como quem “pede socorro”, por
ser injustiçado. O que interessa, em termos de discurso, é que essa imagem, não
chegou perto das polêmicas discursivas que a imagem da modelo causou; por ser
o corpo masculino, não entra na ordem dos interditos e pode circular sem sofrer as
sanções que foram impostas ao corpo transexual.
Sob o funcionamento da resistência ao poder, que incide sobre o corpo, e
define quem pode ou não ser crucificado, temos a imagem da atriz Vera Fischer, no
lançamento do filme Navalha na Carne, de 1997, foi fotografada crucificada, conforme
a imagem abaixo:

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Fonte: Reprodução / Via produto.mercadolivre.com.br

No filme, a atriz fez o papel de uma prostituta que sofria com humilhações
da mulher do cafetão. Por se tratar de um corpo feminino, a imagem atualiza o
discurso da “blasfêmia”. Esse corpo visto como tentador retoma a memória
das práticas discursivas que envolvem o pecado, a concuspiscência e o desejo
desenfreado das filhas de Eva e das forças do mal (WITZEL, 2014), que, ainda hoje,
causa a fuga e o temor. Assim, como o corpo da modelo crucificada que é marca de
um protesto contra a violência ao grupo LGBT, a crucificação da atriz representa o
protesto contra a violência as mulheres.
O corpo transexual, nessa trama dos discursos sobre o corpo crucificado,
entra na ordem da anormalidade, pois segundo a história da homossexualidade, e
da transexualidade, ambas foram entendidas como doenças, que precisariam ser
tratadas e os sujeitos subjetivados como seres doentes foram, em muitos momentos,
segregados. Para o discurso religioso, as práticas de relação sexual entre pessoas do
mesmo sexo, são entendidas como “abominações”, “atos pecaminosos”, conforme o
texto bíblico: “Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. Isso
é abominável!” (LEVÍTICO 18). O corpo para o discurso religioso é sagrado, templo
de Cristo, e por isso deve ser puro. Nesse sentido, a transformação do corpo com
relação ao sexo biológico, funciona sob esse discurso como anormalidade.

Considerações finais
O corpo anormal, segundo Foucault, é aquele que foge às leis da natureza.
Essa definição está ligada às normas jurídicas, que ditam as verdades em uma
sociedade - o que pode ou não ser dito. O corpo transexual, nesse caso, o corpo
masculino transformado em um corpo feminino, para o discurso religioso, não

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poderia ter ocupado o lugar sagrado de Cristo. Em tendo ocupado, esse corpo entra
na ordem da resistência, pois o poder para Foucault(1995) não é algo que reprime,
mas age sobre sujeitos livres.

O poder só se exerce sobre ‘sujeitos livres’, enquanto livres - entendendo-


se por isso sujeitos individuais ou coletivos que tem diante de si um campo
de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos
modos de comportamento podem acontecer(p.244).

O corpo considerado anormal, historicamente marginalizado, colocado


no lugar simbólico de um herói religioso sé discursivamente um confronto, uma
resistência ao poder que segrega e exclui. Nesse sentido, a imagem da modelo
transexual é entendida como resistência ao poder que ao longo dos tempos instituiu
a binaridade entre o feminino e o masculino.
As verdades que definiram normas, gestos e comportamentos para homens
e mulheres, ao longo da história, é o que faz gerar, hoje, muitos atos de violência
contra o grupo LGBT, e, em especial, contra os transexuais. Isso é evidenciado em
uma pesquisa, realizada entre 2008 e 2014, que mostra que o Brasil é o país que “mais
mata travestis e transexuais no mundo”; no perído da pequisa, foram registradas
604 mortes, além dos inúmeros casos de denúncias registrados por violação dos
direitos relacionado ao grupo LGBT4. As atuais condenações da transexualidade
reacendem nas redes sociais as chamas que, a mando da igreja, queimaram um sem
número de homens e mulheres que desrespeitavam as normas do sexo, juntamente
com aqueles que praticavam magia ou eram hereges.
Desse modo, o único corpo que está autorizado a ocupar o lugar sagrado
do Cristo é o corpo masculino viril e heterossexual. O corpo transexual não está
autorizado a ocupar o lugar simbólico da crucificação, pois transformou o corpo
que “recebeu de Deus”e, por isso, é entendido como anormal, ao ser colocado. No
lugar sagrado funciona como discurso de resistência, pois está na contramão do que
propõe os dispositivos da religião e da normatização.

Referências
BRUNS, M. A. T. PINTO, M. J. C. Vivência transexual: o corpo desvela seu drama.
Coleção sexualidade & vida. Campinas-SP: Editora Átomo, 2003.
CORBIN, A. COURTINE, J. VIGARELLO, G. História do Corpo: Da Renascença ás
Luzes. Tradução de Lúcia M. E. Orth; revisão da tradução Ephraim Ferreira Alves.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
4. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/com-600-mortes-em-
seis-anos-brasil-e-o-que-mais-mata-travestis-e>. Acesso em: 27 ago. 2016.

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COURTINE, Jean-Jacques. Análise do Discurso Político: o discurso comunista
endereçado aos cristãos. São Carlos: EduFSCar, 1981.
______. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Tradução de Francisco Morás.
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
______. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P. & DREYFUS, H. Michel Foucault. Uma
trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p.231-249.
______. Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
______. História da Sexualidade I: a vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
______. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
______. A ordem do discurso. 20. ed. São Paulo: Loyola, 2010a.
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______ .Os anormais. Tradução de: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010c.
KLEIN, Alberto. Imagens de Culto e imagens da mídia: interferências midiáticas no
cenário religioso. Porto Alegre: Sulina, 2006.
MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje.
Campinas: Pontes, 2003.
WITZEL, D.G. Discurso, História e Corpo Feminino em Antigos Anúncios Publicitários.
Alfa,São Paulo, 58(3):525-539,2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/alfa/
v58n3/1981-5794-alfa-58-03-00525.pdf>. Acesso em: 09 abr. 2016.

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PUNIÇÃO PRIVATIVA DE LIBERDADE: SEU
DISCURSO NA CONTEMPORANEIDADE
Andreia Schinaider (UCP- Faculdades do Centro do Paraná)
Jaqueline Iara Poteriko (Unicentro)
Daiane Almeida (Unicentro)
Vanessa Rodrigues (Orientadora- Unicentro)

Introdução
Este estudo, de caráter bibliográfico, busca realizar uma incursão histórica
no campo das medidas punitivas, que pautam na privatização da liberdade a
“fórmula” correta e satisfatória de sanção àqueles que ferem os códigos morais
e jurídicos impostos e vigentes na sociedade. Para tanto, serão consideradas as
obras de Caldeira (2009), Foucault (2000) e Leal (2001) no intuito de compreender
o processo histórico deste sistema e os discursos enrustidos durante sua trajetória.
A análise do atual sistema prisional pode ser observada no desgaste e fracasso
apresentado pela mídia atual. Considerando o fato de que este sistema existe como
código de punição legal, desde o século XVI, faz-se pertinente questionar acerca
de sua eficácia e de sua contribuição no processo de ressocialização dos indivíduos
que por ele passam, bem como quais discursos no decorrer deste processo histórico
embasam sua existência e manutenção.

Metodologia
Esta pesquisa configura-se como de caráter qualitativa bibliográfica visto
que, de acordo com a definição de Gil (2002) “desenvolvida com base em material
já elaborado, constituído principalmente de livros.” Neste sentido Marconi e
Lakatos (2010) contribuem afirmando que a abordagem qualitativa configura uma
pesquisa que preza pela análise e interpretação mais profunda dos eventos. É
propicia a um maior detalhamento de atitudes, comportamentos e das dinâmicas
de relações sociais.

Desenvolvimento
A privação da liberdade parece recente, no entanto seus primeiros
registros datam a idade antiga, não como penalidade de decisão judicial mais sim
como uma forma de controle entre as tribos. Os primeiros “clãs” ou “bandos”,
preconceituosamente chamados, ao tentar regular a conduta dos componentes do
grupo, estabeleciam regras que visavam ao bem estar comum (TELES, 2006, p. 20).
A partir do momento que o ser humano começa seu processo de agrupamento,
em virtude de seu nítido impulso associativo e de espelharem-se, no seu semelhante,
inicia a vazão por suas necessidades, anseios, conquistas, enfim, por sua satisfação.
Outro aspecto que pode ser destacado também é que desde os primórdios,
este viola as regras de convivência impostas socialmente, ferindo os semelhantes e
a própria comunidade onde vivia, tornando inexorável a aplicação de um castigo
(sanção). Incialmente os indivíduos que desrespeitavam as regras estipuladas
pela comunidade, eram expulsos do grupo pela própria vítima e pelos os seus
consanguíneos, ou seja, era uma vingança penal. “No início, a punição era uma
reação coletiva contra as ações antissociais” (CALDEIRA, 2009, p. 260). A pena era
definida a partir de um consenso da comunidade.
Sabe-se, no entanto, que com o início das institucionalizações, da organização
classista social e da hierarquização do poder dentro das sociedades, surge também,
neste meio de violações uma formalização das punições.
Um fato importante a ser destacado em relação ao sistema penitenciário
contemporâneo é que o surgimento da prisão cautelar antecede à existência da
prisão-pena. Este modelo só é instituído a partir do momento que a humanidade
conheceu o instituto da privação da liberdade. Desse modo, a prisão inicialmente
era destinada apenas a retenção do condenado até o efetivo cumprimento de sua
punição, a qual era sempre corporal ou infamante (FOUCAULT, 2000, p 207).
Legalmente as instituições punitivas que optavam pela privação da
liberdade do sujeito, surgem no século XVI, como prisões leigas na Europa. O
avanço da pobreza e o aumento desmesurado nos índices da criminalidade, haja
vista que os pobres sobreviviam de esmola, roubo e latrocínios, e por razões
políticas e criminais, a pena de morte já não era suficiente para atender a demanda
de necessidades por punições, numericamente falando torna-se inviável aplicar a
pena de morte a tanta gente.
Neste panorama surge, na segunda metade do século XVI, um movimento
visando o desenvolvimento das penas privativas de liberdade, e assim o surgimento
das prisões. Como ressalta Leal (2001):

No século XVI, começaram a aparecer na Europa prisões leigas, destinadas a


recolher mendigos, vagabundos, prostitutas e jovens delinqüentes, os quais se
multiplicaram principalmente nas cidades, mercê de uma série de problemas
na agricultura e de uma acentuada crise na vida feudal. Em decorrência
deste fenômeno e de sua repercussão nos índices de criminalidade, várias
prisões foram construídas com o fim de segregá-los por um certo período,
durante o qual, sob uma disciplina desmesuradamente rígida, era intentada
sua emenda. Entre elas, a mais antiga foi a House of Correction, na cidade
inglesa de Bridewell, inaugurada em 1552. Com o propósito reformador,

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surgiram por igual, no fim do século XVI, em Amsterdã, prisões que se
tornaram famosas, como a de Rasphuis, para homens, que dava ênfase ao
castigo corporal, ao ensino religioso e ao labor contínuo (na raspagem de
madeiras de diferentes espécies, para uso como corantes, donde o nome
da instituição). Outros países europeus, no rastro destas experiências,
fundaram estabelecimentos similares. (LEAL, 2001, p. 54)

Observa-se aqui que, em momento algum, existe a preocupação com o


prosseguimento do processo punitivo da prisão: a liberdade. Os segregados tinham
sua mão de obra explorada e posteriormente eram devolvidos às ruas, sem a
preocupação de seu destino e suas ações a partir deste momento.

O discurso religioso no processo punitivo


Já na Grécia, segundo Noronha (1991, p.21), o crime e a pena já se justificavam
pelo discurso religioso, tendo em vista que o direito e o poder procediam de Júpiter,
acatado como deus criador e benfeitor do universo. Deste modo, o poder dos reis
advinha desta divindade e em nome disto se legitimava o julgamento do litígio e a
imposição do castigo.
Quando se analisa a Idade Média, a importância e influência que possuía
o discurso religioso ficam ainda mais visíveis. Neste momento o direito é formado,
basicamente, pelo direito canônico, adota-se a pena capital, executada de formas
cruéis com finalidade intimidativa. É comum a realização de confisco, mutilação e
tortura. As punições eram desiguais, variavam de acordo com as condições sociais
do infrator. Fatores como a insegurança, incerteza e medo em relação ao sistema
penal surgem neste momento. De acordo com Nogueira Junior:

[...] assiste-se ao poder da Igreja em punir. A punição foi inspirada pelos


Tribunais de Inquisição, período em que a pena ensejava o arrependimento
do infrator” (NOGUEIRA JÚNIOR, 2006, p.1).

O direito canônico nasce a partir da adaptação do direito romano às suas


necessidades e se configura como um precursor da humanização do direito penal.
É o primeiro a pregar a regeneração do criminoso. Através do arrependimento e
purgação da culpa trilha-se o início do percurso que levará à Inquisição. Se porta, desta
forma, contrário à pena de morte, permitindo ainda punições severas, embasadas
no discurso de fim superior no intuito de salvação da alma do condenado. O direito
canônico estabelece o direito de asilo e as suspensões divinas. Se posicionando contra
a vingança privada, da forças e poder a jurisdição pública (NORONHA, 1991, p.23).
Ao sofrer influências do Cristianismo, passa a considerar preceitos de
ordem moral, mas em contra partida a Igreja passa a penitenciar aqueles que não

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professassem a fé católica. Institui-se o Santo Oficio da Inquisição que perdura
entre os séculos XIII e XIX. Onde muitos infiéis são queimados vivos. As prisões
eram, neste período, geralmente subterrâneas, denominadas “penitenciárias”,
com celas individuais, escuras, imundas, já que segundo os inquisidores, estavam
destinadas à penitência, à expiação e à purgação dos delitos cometidos. Conforme
Nogueira Júnior (2006, p.1):

[...] a punição ganhou uma conotação de vingança e de castigo espiritual,


acreditando-se que através dela poderia se reduzir à ira divina e regenerar
ou purificar a alma do delinqüente, cometendo-se todas as atrocidades e
violências em nome de Deus. No direito eclesiástico, a penitência era a
melhor forma de punição, nesse sentido, conforme já salientado, a custódia
do acusado antecede até mesmo a pena privativa de liberdade. Diante
disso, foram então construídas prisões denominadas “penitenciários”,
onde os acusados cumpririam penitência e esperariam o momento em que
seriam guiados para a fogueira. A denominação penitenciária é utilizada
por nós até os dias de hoje, como o local onde o acusado ou condenado irá
permanecer preso (grifo do original).

Portanto, foi somente, na sociedade cristã que a prisão tomou forma de


sanção. Até então, a pena de morte era usada severamente contra os infratores. Com
o surgimento da pena de reclusão, houve o enfraquecimento progressivo desse tipo
de punição. Segundo Oliveira:

As penas mais graves foram as primeiras a serem atenuadas para


depois desaparecerem. À medida que tais penas se retiram do campo da
punibilidade, formas novas invadem os espaços livres. A pena privativa
de liberdade durante muito tempo guardou um caráter misto e indeciso.
Muitas vezes, era aplicada acessoriamente, até se desembaraçar, pouco
a pouco, e atingir sua forma definitiva. De prisão preventiva, passou
posteriormente para prisão, na forma de pena privativa de liberdade. Só
no século XVIII é que foi reconhecida como pena definitiva em substituição
à pena de morte. OLIVEIRA (1996, p.45)

Dessa forma pode-se atribuir ao direito canônico, a carceragem como objeto


de castigo aos os seres humanos, com finalidade de flagelá-los por suas culpas,
através do sofrimento e penitência.

A privação de liberdade no atual sistema prisional


Atualmente o Estado foca seus esforços na continuidade e afirmação das
penas de caráter punitivo. Neste sentido, nota-se um certo desvelo no que diz respeito
aos direitos básicos de sobrevivência do sujeito garantidos institucionalmente. Este
fato levanta questionamentos em relação a luta deste sujeito por seus direitos e sua
emancipação enquanto cidadão, haja vista sua precária condição de sobrevivência

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dentro da instituição. Quando se busca relatos sobre seu interior é comum ouvir
experiências que ao passo de reformar o indivíduo pode marginalizá-lo ainda mais.
Barrocal (2015) denuncia a ineficiência do sistema carcerário transformado
em “escolas do crime”. Essa definição retrata a realidade de que o indivíduo, que
está à espera de julgamento, acaba se envolvendo com facções criminosas dentro
das penitenciarias e saindo de lá um marginal de auto potencial.

[...] Do jeito que as cadeias brasileiras estão – lotadas, sem controle do poder
público e entregues ao domínio do crime organizado –, não resta dúvida,
dali ninguém sai melhor, só pior. “Presídio é um ambiente criminógeno.
Prender deveria ser exceção, não regra”, defende o juiz Luís Geraldo Sant’ana
Lanfredi, coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização
do Sistema Carcerário do Conselho Nacional de Justiça.[...] (Barrocal, 2015)

Prova deste processo desumanizador a que o indivíduo é submetido, são


os alarmantes índices de criminalidade que assolam até mesmo o interior destes
presídios. É cada vez mais reincidente o número de rebeliões, crimes hediondos,
tráfico e controle de facções criminosas externas que pode ser observado no sistema
brasileiro. Em matéria veiculada à Revista Carta Capital (2015), Se cadeia resolvesse
o Brasil seria exemplar, Barrocal escreve que:

[...] O complexo penitenciário de Curado, no Recife, é o exemplo mais recente


do risco de o encarceramento lotar as cadeias e estas se transformarem em
escolas de crime. O governo de Pernambuco enfrenta uma rebelião desde
o início do ano, motivada pela superlotação. O local tem capacidade para
2 mil detentos, mas abriga quase 7 mil. Na fúria intramuros, não faltaram
foices, facões e barbárie. O preso Marco Antonio da Silva, de 52 anos, foi
decapitado pelos colegas. [... ]

No sistema prisional brasileiro vigente, a lei de execução penal nº 7.210,


de 11 de julho de 1984, busca explicitar as disposições pertinentes a sentença,
ao sentenciado ou internado, de maneira a harmonizar sua integração social e a
equiparidade nos âmbitos sociais, raciais, religiosos e políticos. Em seu Art. 10 fica
garantido que: “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando
prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.” E em Parágrafo
único garante que “A assistência estende-se ao egresso.”

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Esta assistência ao indivíduo é deixada explicita no art. 11, quando são
elencados os fatores privilegiados: material, saúde, jurídico, educacional, social e
religioso. Fica ainda estabelecido que:

Art. 12. A assistência material ao preso e ao internado consistirá no


fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas.
Art. 13. O estabelecimento disporá de instalações e serviços que atendam aos
presos nas suas necessidades pessoais, além de locais destinados à venda
de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela Administração.

Entretanto, Costa (2012) afirma que:

O relator da Comissão Parlamentar de Inquérito, instituída com a


finalidade de investigar a realidade do Sistema Carcerário Brasileiro
apresentou, em junho de 2008, relatório final onde afirmou que “apesar
da excelente legislação e da monumental estrutura do Estado Nacional,
os presos no Brasil, em sua esmagadora maioria, recebem tratamento
pior do que o concedido aos animais: como lixo humano”.   E o Brasil
continua a ser sucessivamente punido por tribunais internacionais
em razão de violações graves aos direitos humanos cometidos nesses
estabelecimentos. (COSTA, 2012, p. 10)

Além da dura realidade dentro das prisões, ao sair o egresso ainda é


submetido ao crivo de discursos midiáticos e sociais que de vários modos irão
rotulá-lo. Quando se observa estas disposições, é possível afirmar que o sistema
prisional brasileiro é amparado por um belo discurso, no entanto, a realidade
aparece um pouco distinta.
É comum assistir em noticiários notícias de investimentos milionários
no sistema prisional. A problemática aqui consiste no fato destes investimentos
serem direcionados ao aumento da capacidade das prisões e não para melhorar as
condições de convívio interno, onde indivíduos privados da liberdade vivem em
situação desumana.

Considerações finais
Podemos desta forma, perceber quão desestruturado é o sistema prisional
que presa pela privação da liberdade do individuo, em sua atual conjuntura e no
decorrer de sua história.
É perceptível também que, sua eficácia também deixa duvidas, visto que
as ações de quem é submetido a ele não condizem com o esperado de um sujeito
que deveria retornar ao seu convívio social de formas pacifica, ingressando nas
estruturas sociais de acordo com aquilo que já é antecipadamente instituído.

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Os discursos que o norteiam, seja religioso, político ou social, caem por terra
frente aos resultados que são apresentados pela mídia e outros meios de divulgação.
Deste modo faz-se necessário um novo olhar interpretativo e reflexivo sobre
a Lei de Execução Penal, de forma a garantir a observância dos direitos do apenado,
haja vista que ressocialização não existem simples métodos prontos e milagrosos,
caso se persista nesta concepção os resultados continuarão sendo insatisfatórios.
Seria, portanto, pensar em discursos que defendam as penas alternativas,
em crimes que sejam possíveis, o que já é previsto legislativamente, porém não é
cumprido de maneira eficiente. A pena de prisão pode ser analisada como uma
saída adequada, nos casos de crimes mais graves, desde que tratada com seriedade
e respeito, sem a humilhação e degradação do indivíduo, retirando o criminoso da
sociedade, porém, propiciando condições para que este retome o convívio social de
maneira digna e efetiva.

Referências
COSTA, F. O discurso, a realidade, as perspectivas. Disponível em: <http://www.
cartacapital.com.br/politica/o-discurso- a-realidade- as-perspectivas>.
BARROCAL, A. Se cadeia resolvesse o Brasil seria exemplar. Disponível em: <http://
www.cartacapital.com.br/revista/838/se-cadeia-resolvesse-4312.html>.
CALDEIRA, F. M. A evolução histórica, filosófica e teórica da pena. Revista da EMERJ,
Rio de Janeiro, nº45, v.12, 2009.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. São Paulo: Saraiva. 2000.
LEAL, C. B. Prisão: crepúsculo de uma era. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
TELES, Ney Moura. Direito Penal Parte Geral: Arts. 1º a 120. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

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ADMIRÁVEL MUNDO NOVO (DA PUBLICIDADE):
ONDE A VIOLÊNCIA NÃO ENTRA
Aryovaldo de Castro Azevedo Junior5
Hertz Wendel de Camargo6

As narrativas midiáticas constituem, hoje, uma reatualização dos mitos.


Autores como Contrera (1996, 2008), Rocha (2010) e Camargo (2013) apontam para
os conteúdos arcaicos presentes nos discursos da mídia, que ora se aproximam dos
arquétipos e o inconsciente coletivo, ora dos mitos como base do texto cultural.
Especialmente a narrativa publicitária, em muitos aspectos, se aproxima à estrutura
dos mitos tais como seu processo de criação (“bricolagem”), o ritual do consumo
da mensagem publicitária, os elementos totêmicos, o deslocamento do consumidor
entre os tempos profano e sagrado, a narrativa fantástica.
Existem diversos pontos de convergência entre as narrativas míticas do
passado e as narrativas publicitárias do presente, os atuais mitos, no entanto, em
apenas um ponto são divergentes. Enquanto o mito contempla a morte, a tragédia
e os deuses podem ser vingativos e cruéis, as narrativas mito-publicitárias formam
outro panteão de deuses e histórias (marcas e campanhas), dão espaço para a
felicidade, o hedonismo e uma realidade narcísica. Enfim, os temas morte, violência
e tragédia são atenuados (quase sempre omitidos) nas narrativas publicitárias,
revelando que somente sua face luminosa é difundida na atual sociedade do
consumo. Cada publicidade consumida como imagem, peça, mensagem, estilo de
vida representa um admirável novo mundo fundado, condizente com a construção
cultural da realidade e atendendo o principal objetivo do consumo – a necessidade
humana do simbólico.
Expostos tais apontamentos, o objetivo deste ensaio é apresentar uma
reflexão, uma intepretação plausível sobre a ausência da violência – estendendo
tais pensamentos aos demais temas igualmente negativos que a orbitam como a
morte, o sofrimento, o suplício, a tristeza, a infelicidade, a vingança, o grotesco,
a tragédia. Independente do atual politicamente correto, partimos da ideia de
que a publicidade sempre opera com todos os elementos da narrativa mítica,
exceto seu lado sombrio. Para este ensaio, buscamos uma análise dos comerciais
5. Professor adjunto do Departamento de Comunicação Social e PPGCOM da Universidade Federal
do Paraná (UFPR), Doutor em Multimeios IAR/UNICAMP. Pesquisador nos grupos ECCOS (Es-
tudos em Comunicação, Consumo e Sociedade) e CEL (Comunicação Eleitoral) da UFPR. E-mail:
prof.ary.azevedo@uol.com.br.
6. Publicitário e jornalista, doutor em Estudos da Linguagem (UEL). Professor adjunto do Depar-
tamento de Comunicação Social (UFPR) e PPGCOM-UFPR. Pesquisador líder do grupo ECCOS
(Estudos em Comunicação, Consumo e Sociedade). E-mail: hertzwendel@yahoo.com.br.
vencedores do principal festival mundial da propaganda, o Festival Internacional
da Criatividade de Cannes, na França, em 2015, nos detendo no filme “100”,
produzido por uma agência brasileira para a marca de câmeras fotográficas Leica,
comemorando seu centenário.

Publicidade: a língua do consumo


A lógica capitalista está fundamentada na produção de significados que
transitam do “mundo culturalmente construído” (MCCRACKEN, 2007) para
os consumidores por meio do consumo massificado, estabelecendo conexões
entre objetos e o imaginário, uma relação mais complexa que a de produtores e
consumidores. Como criadores de significados, os sistemas de moda e publicitário
ganham relevância enquanto difusores e socializadores de comportamentos, modelos
de ser-estar em sociedade a partir do consumo ritual de bens, serviços e estilos de
vida oferecidos como forma de saciar desejos culturalmente construídos disfarçados
de necessidades. Desta forma, consolidam a estrutura cíclica de funcionamento do
capitalismo enquanto estrutura de permanente busca pela satisfação do simbólico
por meio do consumo.
As corporações valem-se da comunicação promocional para fomentar
esta ideologia na qual se estimula a compulsão em consumir, seja por meio da
particularização da necessidade de consumo, seja pela obsolescência programada
onde a última versão das coisas sempre será a melhor e a qual deve ser consumida.
O cerne de todas as indústrias da cultura está no consumo que deve ter seu
sentido ampliado para além do conceito da aquisição de bens e serviços, ou seja,
“estruturador dos valores e práticas que regulam relações sociais, que constroem
identidades e definem mapas culturais” (ROCHA, 2005, p. 124). Segundo Da Matta
(2010), o consumo realiza-se no processo de inserção do produto na sociedade e nos
circuitos de trocas sociais, essencialmente simbólicos, nas relações humanas. Assim,
somos subjugados pelo bombardeio contínuo de produtos culturais diversos, pela
educação midiática do que é ser e estar na sociedade, especialmente, a publicidade.
Como sujeitos, as mercadorias ganham por meio da publicidade uma
biografia, uma vida cultural própria, uma identidade, portanto, são “magicamente”
humanizadas. O sistema publicitário torna o produto o duplo de seus consumidores e
apaga a essência não humana da mercadoria, alimentando o imaginário cultural com
produtos (objetos autômatos) que falam, pensam, são performáticos, fotogênicos,
enfim, um ser que “anda por si” (BAUDRILLARD, 2007, p. 120). Portanto, devemos
incluir no conceito de consumo, além de objetos e serviços, o consumo da imagem,
da mídia e seus discursos e ideologias, o consumo da arte, da informação, das

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relações humanas, das religiões, das identidades, das experiências, dos modos de
vida, ou seja, tudo o que, na cultura, promova a troca de significados simbólicos. Em
outros termos, consumir é produzir cultura.
A estetização da vida cotidiana e a sua reverberação publicitária reforçam
o conceito de que o consumo não deve ser compreendido apenas pela busca de
valores de uso, mas primordialmente pelo valor simbólico atribuído aos produtos
e às marcas. Esta abordagem emocional onde a comunicação cria simulacros nos
quais o deleite só é alcançado por meio da aquisição de experiências geradas pelas
marcas acaba por caracterizar a sociedade de consumo (BAUDRILLARD, 1991)
e retratar a sociedade do excesso de bens, mercadorias, experiências, imagens e
signos que caracterizam o homem pós-moderno. Não obstante, verifica-se que, na
sociedade do consumo,

a publicidade traduz a produção para que esta possa virar consumo, e ensina
modos de sociabilidade enquanto explica o que, onde, quando e como
consumir. O consumo é onipresente na sociedade contemporânea, e é através
do sistema publicitário que ele adquire sentido social, pois as marcas, os bens,
os produtos e serviços ganham as suas identidades nesse discurso, e, com elas,
uma existência concreta em nossas vidas (ROCHA, 2006, p. 11)

A função da publicidade, mais que simplesmente vender um produto e


aumentar as vendas, é fundar novos mundos, segundas realidades. Para Barbosa
(2005), a publicidade difunde tais mundos através das várias plataformas de mídia,
reiterando os valores da sociedade de consumo, os quais se convertem em parâmetros
de identificação do indivíduo perante o coletivo, tornando-se parte significativa da
definição diferencial dos grupos sociais e dos indivíduos. Vale salientar que, além
auxiliar na composição da identidade do consumidor,

a publicidade parte num sentido aparentemente contraditório, o da


segmentação da comunicação para atingir um público maior, gerado
pela internacionalização do consumo. Ou seja, mercados regionais
integram-se ao mercado global e o mercado global torna-se segmentado
por meio do comportamento socioconsumista de seus integrantes:
grupos sociais que possuem semelhantes hábitos de comportamento
e de consumo, notáveis principalmente nas grandes metrópoles do
planeta. Tribos virtuais, presentes em um mundo cada vez mais
global, se integram, independente de suas nacionalidades, tornando o
mantra da nova era capitalista sinônimo de pensar tribalmente e agir
universalmente. Coletividades que tomam como referência para condição
de pertencimento ao grupo, um estilo, resultado de elaborações coletivas
e aceito consensualmente, que elabore, além de uma proposta estética,
um padrão de comportamento. A produção e consolidação da diferença
e variedade é essencial ao capitalismo contemporâneo, crescentemente
envolvido na múltipla variedade de micromercados. Ao mesmo tempo,

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o micromercado ocorre no contexto das crescentes práticas econômicas
universais-globais [...] (AZEVEDO, 1999, p.16)

Enquanto se consome símbolos autodefinidores, aumenta-se a imersão


no simulacro criado pela indústria cultural, uma vez que estes símbolos são por
ela construídos e disponibilizados como determinantes do comportamento. A
coisificação da personalidade transforma o ser humano numa vitrine. O sujeito
passa a ser objeto numa clara inversão de valores (BAUDRILLARD, 2007).
Mercadologicamente, o papel da publicidade é informar de modo sedutor
sobre as características de produtos para a sociedade em geral e, para os potenciais
consumidores, em particular. Conceitualmente, ela representa a idealização de
desejos que forjam a identificação do consumidor com a marca, integrando-se
ao universo referencial-onírico que ela constroi em sua narrativa publicitária e
passa a referenciar não só a relação entre consumidor-marca, como também a
representação identitária do consumidor em seu processo de construção e projeção
do self em suas relações sociais.
As narrativas publicitárias valem-se de personagens, lugares e situações
fictícios a fim de seduzir o consumidor ao comunicar-lhe os atributos e benefícios
físicos e emocionais do produto e posicioná-lo perceptualmente em sua mente.
Em paralelo, visa associar a marca com sentimentos como elegância, sofisticação,
prestígio, sucesso, racionalidade, afetividade, vigor, força, saúde, entre outros
atributos (sempre positivos), aproximando-a da cognição humana, a tangibilizando
emocionalmente para torná-la um valor referencial alcancável por meio do consumo.

Idealização social
Christopher Lasch (1983) já apontou que nossa cultura do consumo, no
ponto de vista da psicologia, também se trata de uma “cultura do narcisismo”. É
evidente a relação entre consumo, narcisismo, hedonismo e publicidade já que,
como língua do consumo, a publicidade transforma o simbólico em uma narrativa
para ser consumida esteticamente pelo corpo e pela alma do homem. Mito que
apresenta uma realidade ideal, um reflexo perfeito do nosso mundo, onde não há
espaço para a infelicidade ou o lado sombrio da existência humana.
A comunicação publicitária é a mensagem de renovação, progresso,
abundância, lazer e juventude, que cerca as inovações propiciadas pelo aparato
tecnológico. Sua onipresença na sociedade de consumo cria um ambiente cultural
próprio no qual sugere atmosferas, embeleza ambientes e artificializa a natureza,
gerando um novo sistema de valores que simula o ideal da perfeição a ser

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perseguido pela sociedade. Sem a aura que a publicidade lhes confere, os produtos
seriam apenas objetos inanimados. Mas, mitificados, são antropomorfizados, isto é,
“adquirem atributos da condição humana” (CARVALHO, 2001, p. 12). E, mais que
promover a antropomorfização dos objetos,

o discurso publicitário é um dos instrumentos de controle social e, para


bem realizar essa função, simula igualitarismo, remove da estrutura de
superfície os indicadores de autoridade e poder, substituindo-os pela
linguagem da sedução. Tais recursos permitem que o discurso publicitário
cumpra sua finalidade por três vias: psicológica, antropológica e sociológica (cf
Lagneau, 1974, p. 21). A via psicológica, [...] revela que a eficácia publicitária
do jogo de palavras resulta do fato de que esse jogo, para o receptor do
anúncio, é erótico no sentido psicanalítico do termo. Freud notava que o
ouvinte obtém com muito pouco dispêndio o prazer que lhe proporciona a
palavra. [...] A via antropológica parte da proclamação da irracionalidade do
receptor. O jogo simbólico dos signos reaviva arquétipos coletivos ocultos
mas fundamentais, de tal modo que um verbo aparentemente insignificante
induz à compra, escamoteando a barreira da consciência. A via sociológica
parte do fato, de que, não se dirigindo a ninguém em especial, a publicidade
dá a cada um a ilusão de que dirigi-se a ele individualmente e, ao mesmo
tempo, o faz ter consciência de ser membro de uma pólis. [...] (Idem, p. 17)

É comum ao texto publicitário enfatizar aspectos eminentemente positivos


e parciais da marca anunciada e, para tanto, é comum o uso de processos semânticos
de redução de problemas e naturalização de comportamentos, a fim de pressupor
a usualidade e a inevitabilidade desses fenômenos, estados e processos. Assim,
apresenta um fenômeno como algo tão evidente e natural que dispensa qualquer
exame crítico e o torna inevitável às convicções que não são questionadas por serem
apresentadas como inabaláveis. Suas mensagens prosaicas de “senso comum”
são adaptadas ao contexto social de tal modo que não procuram deter ou reverter
a mudança social em andamento e, desta forma, pressupõem que mudança é
impossível (VESTERGAARD, 1994, p. 161).
Partindo-se desta premissa, nota-se no universo publicitário uma alienação
ao conceito de violência. Onipresente na sociedade contemporânea nas cidades,
bairros, ruas e, principalmente, por meio de variados produtos culturais, como
notícias, livros, filmes, músicas, games e uma infinidade de outras plataformas
midiáticas – a violência é tão usual que se torna banalizada. No universo edulcorado
da publicidade, as mensagens são carregadas basicamente de positividades e
felicidade, estabelecendo uma atmosfera idílica e paradisíaca que, mesmo quando
transfigurada na cotidianidade, passa a esmaecer ou pelo menos tornar nebulosos
quaisquer traços de violência.
Neste ponto, Rocha (2010) destaca que o papel da publicidade é sempre o
de irromper o cotidiano, interpelar o consumidor e propor um deslocamento do

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tempo histórico para o tempo mágico, sagrado, mítico, da narrativa publicitária.
O antropólogo lembra da importância dos estudos das narrativas publicitárias ao
destacar que consome-se muito mais publicidade do que os produtos e serviços
que ela anuncia.
Se no ranking da indústria cinematográfica nota-se a banalização da violência,
no ranking do principal evento mundial da área, o Festival Internacional da Criatividade
de Cannes, a violência é uma exceção e, quando surge, é suavizada ou solucionada
com a ação publicitária que instrumentaliza as características da marca anunciante
como a solucionadora de quaisquer problemas. Até mesmo os violentos.

Festival Internacional da Criatividade de Cannes


O Festival Internacional de Criatividade de Cannes7 tem sido a expressão de
grandes ideias no ramo publicitário desde 1954. Nestes 62 anos, o Festival cresceu
para um programa que transcendeu o mercado publicitário e tornou-se referência
internacional no mercado de criatividade. Os Leões são os prêmios mais cobiçados
do mundo da criação publicitária e os trabalhos concorrem nas categorias Film, Print,
Outdoor, Interactive, Radio, Design, Product Design, Promo & Activation, Film Craft,
Mobile e Integrated Advertising, bem como a melhor Media, Direct, Public Relations,
Integrated, Creative Effectiveness, Creative Data, Innovation, Entertainment e Music Ideas,
e novas categorias como Pharma e Health & Wellness.
No conjunto das premiações dos Leões de Cannes 2015, seus prêmios
são divididos em categorias como Grand Prix, Leão de Ouro, Prata e Bronze. Em
todos esses vencedores, a retórica publicitária é caracterizada pela ausência da
violência e ênfase em abordagens que caracterizem situações fantásticas de uso
de produtos e serviços, suas características e benefícios ou os estilos de vidas dos
consumidores. Uma socialização dos ideais de cultura em atmosfera narcísica cujo
principal efeito de sentido é a inspiração das pessoas na busca pelo “paraíso”, só
alcançado por meio do consumo.
Das peças premiadas em 2015, em quatro a violência, bem como seu campo
polissêmico, se encontram referenciados. Os filmes “100”, da marca Leica; “Life
Paint”, da marca Volvo; “Mães Seguranças”, do Sport Club do Recife; “The Berlin
Wall of Sound”, da SoundCloud, são marcados por narrativas baseadas em imagens
de conflitos e guerras, morte e acidentes de trânsito com ciclistas, a violência das
torcidas de futebol e o drama histórico. Em um primeiro olhar, chamou nossa atenção
a presença da violência nas peças, seja uma referência direta como nos filmes do
Sound Cloud e Esporte Club de Recife – por meio de sons de momentos históricos

7 . http://canneslions.estadao.com.br/cannes-lions-2016/o-evento/

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da Alemanha ou por imagens do jornalismo – ou indireta, como nos filmes da Leica
e Volvo. No entanto, ao observar de forma mais atenta, não se trata de violência.
Neste ensaio, analisamos detalhadamente o filme produzido para a famosa marca
de câmeras fotográficas.

Leica: 100 anos de fotografia


A campanha “100”8, produzida pela agência brasileira F/Nazca Saatchi
& Saatchi  para a Leica, tradicional marca de máquinas fotográficas, faz uma
homenagem à fotografia e aos 100 anos da marca, com recriação audiovisual de fotos
históricas. Embora haja cenas de violência, como o último plano do filme (referência
à fotografia de Robert Capa, 1936), ela é amenizada por contextualizar a natureza
humana ao justapô-la a outros planos e cenas, que retratam o amor, proezas artísticas,
esportivas e tecnológicas, simples imagens de cotidiano, celebridades e outros
variados temas que são referenciados em um século de fotografia. Imagens que
compõem o mosaico daquilo que a marca retrata como referências da humanidade.
Inclusive a violência.
O filme tem dois minutos de duração. Apresenta uma abertura com sete
planos antes de aparecer o lettering com o título do filme, “Um tributo à fotografia”.
E foi a abertura, com quatro planos referentes a fotografias com temas relacionados
à violência que despertou a metodologia análise do filme.
Lembrando que o plano, para o cinema e para os demais produtos
audiovisuais, é a duração da imagem entre dois cortes, verificamos que o filme
publicitário da Leica possui um total de 35 planos. No geral, cada plano do filme é
o equivalente a uma fotografia eleita para ser recordada, como ícone histórico. No
entanto, em quatro planos duas fotografias são referenciadas e em três planos, três
são referenciadas. Deste modo, em sua maioria, os planos do filme representam os
mesmos sentidos das fotografias originais em um total de 43 referências.
Para nossa análise, conforme Vanoye e Goliot-Lété (1994), pretendemos
extrair elementos que não são percebidos a “olho nu” e, em seguida, estabelecer
elos entre tais elementos, estudados isoladamente, para compreender como eles
se relacionam e “[...] se tornam cúmplices para fazer surgir um todo significante”,
considerando que “os limites da ‘criatividade analítica’ são os do próprio objeto
de análise” (Idem, p. 15). Portanto, partimos da metodologia de “dissecação” do
filme “100”, da marca Leica, para, posteriormente, compreendermos que a mesma
metodologia de análise fílmica poder ser aplicada aos demais filmes publicitários
8. Diretor Geral de Criação: Fábio Fernandes, Eduardo Lima. Direção: Jones+Tino. Criação: Bruno
Oppido, Romero Cavalcanti, Thiago Carvalho, João Linneu. Pós-produção: Casablanca Effects.
Disponível em << https://www.youtube.com/watch?v=rPtfiRkt-WA >>, acesso em 18/07/2016.

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vencedores do Leão 2015, sem ter que repetirmos o processo. Enfim, a partir de um
filme entendemos que os demais são estruturados diegeticamente da mesma forma.
Assim exposta nossa metodologia, optamos pela classificação das
referências, conforme o significado geral de cada uma, em positivas, negativas e neutras
(cf. tabela). A base de nossa classificação é visual-estético-discursiva, apoiada no
efeito de sentido de maior força presente na imagem audiovisual, evidentemente,
uma tradução de fotografas com grande repercussão na história, na imprensa e,
por ser amplamente disseminada em diferentes plataformas, representam parte da
memória (visual) do homem contemporâneo.

Tabela 1: Divisão dos planos do filme “100”, segundo sua temáticas geral
Tipos Significados geral Abertu- Filme Total de Referências
ra
Positivas Felicidade, alegria, beleza, harmonia, vida 1 12 13
Negativas Drama, tragédias, conflito, guerra, violência, 4 16 20
angústia, sofrimento, morte
Neutras Cotidiano, banalidades, objetos, arte 2 8 10
Totais 7 34 43
Fonte: os autores

A seguir, apresentamos o texto completo da locução:

TRIBUTO À FOTOGRAFIA. Há cem anos, algo mudou dramaticamente


a trajetória da fotografia. A primeira Leica nasceu. É claro que você
poderia dizer: “Ei, nem todas essas fotos foram feitas com uma Leica”.
Mas permita-me gentilmente discordar de você. A Leica tirou a câmera
do estúdio e a trouxe para a vida real. Image à la sauvette. Snapshots. Ela
nos permitiu ver, viver e sentir milhares de momentos. E se tornou uma
extensão dos olhos do fotógrafo. Alegria. Dor. Coisas banais. Medo.
Perdedores. Vencedores. Agonia. A guerra vista por dentro. Uma
imagem contaminando as outras. Metástase. As imagens mais icônicas
da história, até aquelas que não foram feitas com uma Leica, só foram
feitas por causa de uma Leica. Nós não inventamos a fotografia. Mas nós
inventamos a fotografia. (F/Nazca Saatchi & Saatchi, 2015)

A associação entre a realidade e a fotografia, como expressão da verdade,


a aproxima de sentimentos e situações reais, distantes do universo fantástico da
publicidade. O sentido do fantástico é descrito por Todorov (2008) como um sentido
que oscila entre o real e o imaginário. Na mídia, o fotojornalismo está para o real,
assim como a fotografia publicitária está para o imaginário, e o encontro entre ambos
– dentro da moldura publicitária, no caso, a narrativa do filme da Leica – torna o
texto publicitário fantástico.
Ao trazer imagens fotográficas – recortes de um determinado momento/
espaço da história, um tempo em suspensão – traduzidas em linguagem audiovisual,

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a agência recria outro universo, no complexo imbricamento entre memória, história
e iconofagia. As fotografias são textos referenciados em imagem-som-movimento,
em outros termos, textos trazidos para dentro do texto do filme publicitário em um
processo característico da criação desse produto midiático – a intertextualidade.
No processo de criação publicitária, dentro do tempo do filme publicitário,
estabelecem-se hierarquias e espaços determinados para signos e significantes.
Essa hierarquização é estabelecida por diversos códigos, tais como a gramática/
linguística/enunciação (presente no texto da locução), a retórica (o tom de voz,
a entonação do locutor, a argumentatividade do texto, o discurso e a estética da
linguagem audiovisual), a perspectiva da imagem fotográfica (transposta para o
filme, em língua cinematográfica que organiza estética e politicamente os signos em
cada enquadramento/plano/cena/sequência), a ambientação/perspectiva sonora.
Há, ainda, um recorte dado pela cultura e pela memória coletiva, revelando a
natureza dialogal, multifacetada da publicidade. A intertextualidade da publicidade
é signofágica, polissêmica e polifônica, justamente por sua habilidade em trazer
tudo para dentro de sua moldura e ressignificar os textos.
Na prática da criação publicitária, Carrascoza (2008, p. 18) chamou de
bricolagem o processo pelo qual os diversos textos da cultura são recortados e
convergidos à moldura publicitária, onde ganham novos sentidos, onde “os
criativos atuam cortando, associando, unindo e, consequentemente, editando
informações que se encontram no repertório cultural da sociedade”. Sendo assim,
aproximamos o conceito de texto da publicidade à ideia de um mosaico em que
cada fragmento é proveniente de discursos, informações, técnicas, linguagens e
meios distintos, atuais e anteriores.
O enunciado publicitário é fenômeno no qual se manifesta a cultura em
processo de espelhamento e expansão de sentidos. Como traço da publicidade,
a intertextualidade opera na produção de sentidos, deslocando para dentro da
moldura publicitária – isto é, para dentro de seus limites, demarcados por meio
de signos e significantes da peça publicitária audiovisual – a informação de outros
textos da cultura. Desta forma, a intertextualidade torna-se o jogo entre informação
e memória, portanto, entre os sentidos circulantes no aqui-agora da cultura e os
sentidos sedimentados na cultura. As imagens referenciadas no filme se valem da
memória coletiva para ganharem sentido ou, mesmo que o público não conheça as
fotografias, estas são rememoradas, para caírem no esquecimento. São ressuscitadas
com novos sentidos. “Fazemos da fotografia um meio de, precisamente, dizer
qualquer coisa, servir a qualquer propósito. O que na realidade está separado, as
imagens unem” (SONTAG, 2004, p. 191-192).

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As imagens e a violência
Voltemos à constatação inicial de que imagens de violência estão
presentes no filme da Leica por meio das referências, em grande parte, de
imagens de guerras, conflitos, dor, sofrimento, angústia, morte. Contestamos
essa presença ao verificar, portanto, que tais referências, ao adentrarem o campo
do texto publicitário, são destituídas dos seus sentidos originais, ou seja, passam
a ser signos publicitários e não mais signos jornalísticos. Passam a ser texto
fantástico, entre a realidade e o imaginário. Portanto, novamente, a publicidade
reafirma sua natureza excludente dos signos, significados, símbolos e textos
clara e diretamente ligados à violência. A publicidade está aberta à violência,
mas sempre prismatizada, recontextualizada e recodificada a serviço do bem, da
felicidade, do posicionamento (sempre positivo!) da marca.
Em outro momento de análise, nos indagamos sobre a razão pela seleção
de referências cujos temas, em sua maioria, estavam ligados à violência. O menino
apontando uma arma, a mulher oferecendo uma flor a soldados armados, o
homem que beija um convalescente, o monge ateando fogo em si próprio, um
tanque prestes a passar por cima de um homem, a garota correndo nua pela cidade,
um homem da resistência armada mascarado, mulheres de burca empunhando
uma metralhadora, uma mãe com o filho morrendo em seus braços, entre
outras referências, até finalizar com o soldado baleado. De fato, as referências às
fotografias com temas violentos são mais numerosas e mais facilmente recordadas,
por gerarem impacto, ficarem na memória.
Para o semioticista da cultura, Ivan Bystrina (1995), na primeira realidade
do homem (a biológica), a morte sempre será vencedora, e por isso o homem cria
uma segunda realidade. O autor explica que em um determinado período da
história humana, os homens se viram desafiados pela pressão da sobrevivência
física e psíquica; e que para responder a esses desafios não era apenas necessário
que se afastassem da realidade imediata, era preciso inventar, como única
alternativa, uma segunda realidade. A segunda realidade, portanto, torna-se a
ambiência dos símbolos, das interpretações, dos significados, espaço dos textos
imaginativos e criativos como os simulacros, as representações, as imagens, os
arquétipos, os ritos, a arte, a ideologia, a utopia, enfim, a cultura – matéria-prima
da publicidade. Portanto, a preferência por imagens de violência se dá por serem
naturalmente mais fortes, tanto na primeira quanto na segunda realidade, que as
imagens positivas, imagens da vida.

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Destacamos no texto da locução a seguinte escolha lexical que, da mesma
forma que as escolhas visuais, sobressaem as que apontam para aspectos negativos:

A Leica tirou a câmera do estúdio e a trouxe para a vida real. [...] Ela nos
permitiu ver, viver e sentir milhares de momentos. E se tornou uma extensão
dos olhos do fotógrafo. Alegria. Dor. Coisas banais. Medo. Perdedores.
Vencedores. Agonia. A guerra vista por dentro. Uma imagem contaminando as
outras. Metástase. [...] (F/Nazca Saatchi & Saatchi, 2015, grifo nosso)

Figura 1: frame do filme “100” da Leica

Fonte: YouTube

Figura 2: frame do filme “100” da Leica

Fonte: YouTube

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Figura 3: frame do filme “100” da Leica

Fonte: YouTube

Figura 4 : frame do filme “100” da Leica

Fonte: Youtube

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Figura 5 : frame do filme “100” da Leica

Fonte: Youtube

Figura 6 : frame do filme “100” da Leica

Fonte: Youtube

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Figura 7 : frame do filme “100” da Leica

Fonte: Youtube

Figura 8 : A morte do soldado Legalista, de Robert Capa (1936), referenciada no último


plano do filme

Fonte: Youtube

Considerações finais
As imagens fotojornalísticas (natureza original das imagens referenciadas
no filme da Leica), mesmo com toda sua carga subjetiva original, passa a funcionar
como uma imagem objetivada no sentido de que sobre ela é construída uma
identidade de marca sugerida ou direcionada pelo título (Tributo à fotografia), pelo

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texto narrado, pelo slogan, pelo roteiro, pelo som, pela montagem e pela narrativa.
Como não se tratam de imagens publicitárias – isto é, que não foram produzidas
para esse fim, mas selecionadas especialmente para serem homenageadas no filme
e pela marca –, quando trazidas para dentro da moldura publicitária, recebe uma
nova carga de significados que orbitam os signos do fascínio, do simbólico, do
memorável, do tempo, da jornada da marca, da resistência, da inovação, enfim,
símbolos presentes no filme e que não possuem conexão com os sentidos originais
das fotografias que são mais negativos que positivos (cf. tabela: drama, tragédias,
conflito, guerra, violência, angústia, sofrimento, morte). Em outros termos, somente
a publicidade é capaz de promover a sedução de uma marca com imagens de
violência, guerras, um monge suicida ateando fogo no próprio corpo, uma garota
ferida por bomba de napalm, a mãe com o filho morrendo nos braços. Para Susan
Sontag (2004), é preciso considerar a capacidade da publicidade em converter os
sentidos da imagem segundo suas intenções e conexão de significados.
O consumo é um fenômeno que ultrapassa a lógica econômica binária da
relação entre corporação e consumidor, transcendendo o ciclo produção/lucro e
aquisição/satisfação. Ele se caracteriza como o conjunto de processos socioculturais
em que se realizam a apropriação e o uso dos produtos enquanto símbolos de
identidade. Neles, o homem se projeta socialmente através da interação com as
marcas, absorvendo (destas) e projetando (nestas) seus valores e crenças, os quais
só reverberam socialmente por possuírem significação coletiva (CANCLINI, 2006,
p. 60).
Se a sociedade do consumo produz diferentes objetos que, em suma, são
projeções do homem, reflexos narcísicos de sua essência, fica mais evidente a
ausência da violência na publicidade: consumidores (narcisos) não desejam consumir
imagens reais de si, especialmente aquelas que mostram a violência como produto
da natureza (in)humana. Para tanto, atenuar, esconder, ocultar, ofuscar são armas
da publicidade para permitir uma falsa presença do lado sombrio do homem dentro
do admirável mundo da publicidade. Mesmo que as referências sejam a morte, a
tragédia, a violência, dentro da moldura publicitária tudo é vivo, feliz e pacificante.

Referências
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Parágrafo Comunicação, 2012.
BARBOSA, I. S. Os sentidos da publicidade – estudos interdisciplinares. São Paulo:
Thomson, 2005.

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São Paulo: Perspectiva, 2007.
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Eduel, 2013.
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Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
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ready-made na publicidade. São Paulo: Saraiva, 2008.
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CONTRERA, M. S. Mídia e pânico: saturação da informação, violência e crise
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declínio. Tradução de: Ernani Pavaneli. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
MCCRACKEN, G. Cultura e consumo: uma explicação teórica da estrutura e do
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Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. São Paulo:
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Tradução de: João Alves dos Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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HERÓI E TIRANO: A SAGA DO MASCULINO EM
WORLD OF WARCRAFT
Bryan Rafael Dall Pozzo (UNICENTRO)
Nincia Cecilia Ribas Borges Teixeira (Orientadora-UNICENTRO)

Introdução
Há muito tempo temos observado, através dos mais variados tipos de
mídia, que modelos e padrões vêm sendo difundidos por entre a população em
geral. Seja através do rádio, da tevê, das revistas e jornais ou pela internet, somos
bombardeados diariamente com imagens sociais, arquétipos do que devemos vestir,
pensar, desejar ou até mesmo, de como nos comportarmos. Por essa razão, é de se
imaginar que quanto aos gêneros não seria diferente e, num momento em que está
nítido que devemos repensar modelos socialmente impostos, devemos discutir quais
são os rumos que a masculinidade está tomando e como as “novas” mídias digitais,
além das tradicionais, ajudam a reforçar estereótipos através da disseminação de
referências hegemônicas e marginais, que embora admitam a existência de diversas
masculinidades, elencam uma única a ser seguida, a imagem do homem forte,
grande e conquistador, que tem uma única função na vida, vencer.
Ainda que esses padrões tenham encontrado um ótimo ambiente de
disseminação dentro do cinema e da tevê, nada impede que migrem para outras
mídias, em uma forma de se manter em contato com diversos públicos de várias
faixas etárias, num esforço de representação de seus ideais. Assim, parece natural
que sigam seu caminho para plataformas mais “modernas”, adentrando a internet
e consequentemente mídias que estão intimamente ligadas a ela, como os jogos de
computador. Não é difícil imaginar como os jogos afetam o dia a dia dos jogadores,
sejam eles fãs de uma franquia em específico ou jogadores casuais, posto que nas
últimas duas décadas os games tem se estabelecido como uma das mídias mais
rentáveis e acessíveis ao público, existindo diversos gêneros de jogos e formas
através da qual jogar, com orçamentos e lucros que já superam até mesmo os filmes
hollywoodianos desde 2007 (FERREIRA, 2015).
Os jogos são responsáveis por uma das formas mais criativas e eficazes de
imersão, dado que não existe o simples contato com a tela digital ou com as páginas
do livro, existe de fato uma interação com o mundo em que o jogo se encontra, o
jogador é responsável por escolhas, sejam para o bem ou para o mal, refletindo
valores da nossa sociedade, como Salen e Zimmerman exemplificam: “o jogo reflete
os valores da sociedade na qual eles são jogados porque eles são parte da estrutura
dessa sociedade” (SALEN e ZIMMERMAN, 2004, p.75).
Em vista disso, tomamos como base para a pesquisa o jogo World of Warcraft
e certas características presentes em sua história, como o personagem Garrosh Grito
Infernal, antigo líder tirânico da Horda. A partir disso, pretendemos demonstrar
como a mídia jogo vem a reforçar algumas das referências de masculinidades
hegemônicas de nossa sociedade.

Pai, diga-me... você se orgulha de mim?


Considerado um herói por sua campanha de guerra e por não ter sido
atingido pela mácula dos demônios, Garrosh, filho de Grommash é a primeira escolha
de Thrall, antigo líder da facção, para a liderança da Horda. Parece até uma fórmula
comum, utilizada para lembrar a sociedade em tempos de crise de suas forças e do
que poderiam conquistar pela força, se perseverarem, assim como é apresentado
nos filmes pós-guerra. Contudo, Garrosh não é a masculinidade una e firme que
aparenta ser sob sua camada de músculos e ódio. Como quase todo masculino, ele é
atormentado pelo legado familiar, pela sombra do pai e pela desconfiança.
De acordo a narrativa do jogo, a infância do orc foi cruel, deixado em uma
colônia de quarentena ainda pequeno por seu pai, para se tratar de doenças que
afligiam seu povo (curiosamente essa foi a salvação dos orcs que se encontravam lá,
já que não foram afetados pelo sangue demoníaco de Mannoroth), cresceu fraco e
doente, assolado pelo fantasma do pacto que seu pai havia feito, escravizando seu
povo ao “Frenesi”. Essa falta de afeto do pai pode estar no cerne da sua necessidade
de se provar como másculo, como argumenta Nolasco (1993), a masculinidade

[...] está pautada por uma rotina contínua e uniforme tanto em relação
ao trabalho como no que diz respeito aos afetos. Esta uniformidade de
comportamento para conduzir o cotidiano tem na representação da
ausência paterna seu expoente máximo. [...] “A ausência paterna é a desgraça
do filho”. O mesmo pode ser observado, por exemplo, na Metamorfose de
Kafka, ou ainda nas declarações de Rousseau sobre seus filhos. Ele, que
defendeu o direito à liberdade, não suportando as limitações do cotidiano
com os filhos, colocou-os no asilo (NOLASCO, 1993, p. 35).

Mais tarde Garrosh se livra da doença física, mas não da psicológica,


acometido pela desgraça que atormentava seu povo. O interessante desse trecho de
sua história é que os jogadores devem convence-lo de sua grandeza, mostrar que na
verdade seu pai não era fraco e que libertou os orcs, o que pode ser feito com a ajuda
de Thrall em determinado trecho do jogo, mostrando a Garrosh visões da luta de

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Grom. Para o jovem guerreiro, isso foi como se os anos de escuridão se esvaíssem,
seu pai não era um covarde, era um herói.
Thrall se torna o mentor de Garrosh, este que, ao aceitar que sua linhagem
não era fraca e que deveria ter orgulho de ser orc vai para Orgrimmar, capital do
povo órquico, para aprender mais sobre sua raça e liderança. O mentor é uma figura
comum na história dos homens, responsável pela iniciação dos meninos no mundo,
esse é um conceito muito evocado por Badinter (1993), que explica que o mentor
geralmente não é o pai, é um homem forte da tribo, exemplar, que deve iniciar
os jovens a buscar sua verdadeira masculinidade, muito a exemplo das tribos da
África e Nova Guiné com seus rituais, ou até dos fuzileiros navais dos EUA e suas
constantes provações (referenciais utilizados pela autora), essas crianças devem
provar que estão prontas para o novo e perigoso mundo dos adultos (e dos homens)
(BADINTER, 1993, p. 72).
Entretanto em seu novo lar, Garrosh acredita que os orcs se tornaram num
povo fraco, impuro, relegando sua natureza combativa para viver numa terra árida
e inóspita, quase que exilados e reféns de tratados comerciais com outras raças para
sobreviver nesse ambiente árduo, marginalizados e esquecidos. Apesar de grande
parte da população aceitar as decisões de Thrall, que estava disposto a liderar com
calma e a sempre usar da diplomacia antes da força, Garrosh começa a se sentir
atormentado novamente, ele havia sido criado para ser um guerreiro, um líder, era
estranho ver o Chefe Guerreiro parado, conversando ao invés de pegar em armas
enquanto seu povo sofria. Entretanto, não tarda para o chamado à guerra chegar,
não através dos inimigos comuns como elfos, humanos e anões, mas por uma nova
ameaça que não respeita a ninguém, o Flagelo, o exército de mortos-vivos de Arthas.
Garrosh se prontifica imediatamente para provar a Thrall e ao povo órquico
que ele pode sim liderar e viver pelo machado, partindo em uma campanha militar
contra seus novos inimigos, como Badinter evoca:

Dever, provas, provações, estas palavras dizem que há uma tarefa real a
cumprir para tornar-se homem. A virilidade não é dada de saída. Deve
ser construída, digamos ‘fabricada’. O homem é, portanto, uma espécie
de artefato e, como tal, corre sempre o risco de apresentar defeito. Defeito
de fabricação, falha na maquinaria viril, enfim, um homem frustrado
(BADINTER, p. 03, grifos da autora).

O jovem guerreiro parte para Nortúndria com Varok Saurfang ao seu


lado, um velho e antigo general da Horda. Essa parte da história de Garrosh é
incorporada na expansão do universo conhecida no jogo como Wrath of the Lich
King, que trata de eventos que datam das primeiras versões do game. Aqui,

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Garrosh participa de toda a campanha contra o Lich Rei e é um dos combatentes
que invadem a Cidadela da Coroa de Gelo, derrubando Arthas de seu trono gélido,
recebendo assim o título de herói da Horda.
Nem bem retornam ao continente de Durotar, dá-se início a um novo evento
que ameaça partir Azeroth, conhecido como Cataclismo. O Cataclismo faz com que
Thrall se ausente, e coloque Garrosh em seu lugar. O jovem orc aceita prontamente
a liderança, governando com punho de ferro, força e “honra”, aspectos bem comuns
à identidade masculina, como afirma Nolasco (1993):

Comumente associam-se à identidade dos homens características de


força física e de espírito guerreiro, aspectos agregados à visão de mundo
masculina. No cotidiano, as intimidades e os níveis desses aspectos variam,
mas o fato é que no decorrer da história humana o imaginário masculino tem
se identificado mais com exemplos de figuras autoritárias e controladores
do que com as moderadoras e pacifistas (NOLASCO, 1993, p. 59).

Garrosh começa uma liderança se apoiando no orgulho do povo órquico e


no poder, ou seja, apoiado na definição hegemônica de virilidade, que se resume
a um homem no poder, com poder ou de poder, igualando a masculinidade com
ser forte, bem-sucedido, capaz, confiável e que exibe controle (CONNELL, 1987).
Todavia, a liderança tirânica e imprudente de Garrosh ocasiona a fúria dos outros
líderes, principalmente de Caerne, líder dos taurens (outro povo da Horda) e amigo
de longa data de Thrall, que desafia Garrosh ao Mak’gora, um desafio órquico
antigo em que os combatentes devem lutar pela supremacia e liderança.
O novo Chefe Guerreiro aceita o desafio prontamente, para se provar
como o mais forte e viril, único digno da liderança. De acordo com Nolasco
(1993), essas demonstrações de poder e força são comuns entre homens, uma vez
que ainda na infância

pede-se aos meninos que desempenhem como líderes; que demonstrem


força física e que estejam preparados para provar que sabem viver
sozinhos. Quando adultos, eles acabam acreditando que a tensão é inerente
ao estilo de vida de um homem, e que a agressividade é a melhor maneira
de expressá-la (NOLASCO, 1993, p. 59).

O combate acaba com Garrosh como vencedor, mas ele não vence por
sua habilidade em combate, e sim por veneno, utilizado como um peão em uma
trama. Magatha, uma líder taurena, vê no Mak’gora a chance perfeita de ver seu
rival, Caerne, morto. Ela se oferece prontamente para “abençoar” Uivo Sangrento,
o machado de Garrosh, antes do combate, como era o costume, e utiliza esse

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momento para envenenar a arma, que com um simples arranhão inutiliza o chefe
tauren e o leva à morte.
O medo retorna a Garrosh ao saber da traição, usado e agora desprezado
por parte da Horda por ser impulsivo e imprudente, ele vê o fantasma do legado
familiar voltar, pois para muitos nesse instante ele se tornara um traidor, assim
como seu pai fora antes dele. Em uma carta à Magatha ele destila todo o seu ódio
pelo poder, inerente ao homem hegemônico, ter sido tirado dele, assim como sua
honra, por vencer por meios tão covardes, na carta lê-se:

À bruxa anciã Magatha dos Temível Totem, o Chefe Guerreiro em


exercício da Horda, Garrosh Grito Infernal, envia os mais sinceros desejos
de uma morte lenta e dolorosa. [...] Chegou aos meus ouvidos que você
foi a responsável por me privar de uma vitória honrada, Caerne Casco
Sangrento era nada menos um herói da Horda, um membro honrado de
uma raça geralmente honrada. Tomado pelo desgosto e cólera, descobri que
graças a uma traição acidental causada por você, fui eu o causador de sua
morte. Táticas como essa podem funcionar bem com sua tribo desonrada
e com o lixo da Aliança, mas só me causam repulsa. Era meu desejo lutar
com Caerne de maneira justa, vencendo ou não exclusivamente graças
às minhas habilidades ou falta delas. Agora, além de nunca saber, serei
obrigado a conviver com o fantasma da traição até o dia em que sua cabeça
estiver na ponta de uma lança, e eu puder apontar para você e revelar a
verdadeira traidora. [...] De todo modo, aguardo ansioso por notícias da
sua ruína. Você está sozinha Magatha, rejeitada e odiada como sempre.
Talvez mais. Aproveite a solidão (GOLDEN, p. 274 e 275, 2013).

Como explicado por Connell (1993), a masculinidade só é reconhecida


como hegemônica quando exercido por ou a mando de um homem, neste caso,
ao se ver como peça em um joguete político, a fúria de Garrosh é incontrolável,
ele abandona Magatha e os Temível Totem e suas táticas à mercê de seus inimigos
e à consequente aniquilação por parte do filho de Caerne, Baine. Garrosh segue
esse estilo de liderança por algum tempo até ser deposto pelas diversas crueldades
que exerce, como tentativa de assassinato de Vol’jin, líder dos trolls, escravização,
distorção de formas de vida e entre outras diversas acusações, tudo isso em nome
da hegemonia e do legado familiar, em prol da força e do orgulho órquico.
Numa força conjunta entre o restante da Horda e da Aliança, ele é deposto
e preso. Contudo, o julgamento não chega até o final, uma vez que Garrosh escapa
com a ajuda de um dragão brônzeo, um dos guardiões do tempo. Sua fuga só se dá
com um intuito, impedir que seu pai faça o pacto com a Legião, e, portanto, a traição
de ambos, bem como a mácula da honra.
Desta maneira, tudo recai sobre o mesmo ponto: honrar pai, família e o
orgulho de ser orc, os seres mais másculos que já pisaram em Azeroth. Dado que
além da virilidade e da honra serem tratadas dentro do contexto de relação entre os

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
gêneros masculino e feminino, elas podem ser estabelecidas quando o filho se vê na
necessidade imposta de lavar a honra de seu pai (GROSSI, 1995).

Considerações finais
Games são mídias complexas, com diversos pontos a serem explorados
e capazes de atrair pessoas por motivos diferentes. Eles possuem as mesmas
características gerais das outras mídias, os fazendo tão bom objeto de análise
quanto as tradicionais, permeados dos mesmos arquétipos, com narrativas fluídas
e interessantes, capazes de manter o consumidor imerso tanto pelo próprio jogo,
quanto pelos produtos diversos disponibilizados para quem se interessa mais
pelo universo, já que como comentado por Murray (2003), jogos são como bailes
de máscara venezianos, neles os jogadores podem escolher ser quem quiserem, ou
quem tem o desejo de ser.
Podemos perceber que o maior problema referente a masculinidade de
Garrosh, sempre foi a relação que nunca teve com o pai, um pai ausente que
deixou uma marca tão profunda em seu ser que ele deve retornar ao passado para
ter o contato que sempre desejou, explicando assim sua agressividade e constante
busca, uma vez que incapaz de lidar com os sentimentos, extravasava o que sentia
através da brutalidade:

Como sabemos, o cotidiano dos homens não é constituído de estimulação,


contato e expressão imediata do que sentem mas, ao contrário, da
disciplinarização do sentir e do condicionamento e comportamentos
estereotipados viris e agressivos. Este aprendizado de postura diante
da vida começa na infância, determinando para um homem adulto sua
incapacidade em contatar as próprias emoções e demandas afetivas. Parte
dessa incapacidade é por nós conhecida sob o aspecto da violência e da
agressividade masculinas (NOLASCO, 1993, p. 46).

Sendo isso bem aceito socialmente, na medida que para a constituição do


modelo de masculinidade hegemônica em nossa cultura, não recorremos apenas à
sexualidade, pois ela é também percebida positivamente como agressividade. Além
de claro, dominação, força, poder e soberania, todos aspectos almejados por toda a
vida de Garrosh e, por assim dizer, de todos os homens.

Referências
CONNELL, R. W. Políticas da Masculinidade. Educação & Realidade, 20 (2), pp.
185-206, 1995.
______. Gender and Power. Stanford, CA:Stanford University Press, 1987

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
GOLDEN, C. A Ruptura. Tradução de Bruno Galiza, Lia Raposo e Rodrigo Santos. –
1ª ed. – Rio de Janeiro. Galera Record, 2013.
GROSSI, M. Antropologia em primeira mão. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina. —, n.1 (1995). —
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SALEN, K.; ZIMMERMAN, E. Rules of Play: Game design fundamentals. Cambridge:
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WoW Girl. Personagem Garrosh Grito Infernal. Disponível em: <http://www.wowgirl.
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Acesso em: 18 mai. 2016.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
A SUBJETIVAÇÃO DO SUJEITO MULHER-MÃE-
PARTURIENTE EM O RENASCIMENTO DO PARTO.
Camila Ratki Krautchuk (UNICENTRO - LEDUNI)
Denise Gabriel Witzel (UNICENTRO - LEDUNI)

Resumo: Ao longo da história das mulheres, deparamo-nos com séries discursivas


que, não raro, discriminam e subjulgam o ser feminino, considerando-o um ser in-
ferior se comparado o homem. Atentos a discursos que atualizam essas relações de
desigualdade, propomo-nos analisar certa “produção discursiva do sujeito mulher
mãe parturiente”, à luz dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha
francesa, mais precisamente a partir das formulações arqueológicas do filósofo Mi-
chel Foucault. O material de análise é constituído pelos discursos do filme “O Re-
nascimento do Parto”, de Érica de Paula e Eduardo Chauvet. Partimos do princípio
de que (i) todo enunciado se materializa em uma determinada data/lugar; (ii) um
conjunto de enunciados tece uma rede de discursos quando tratam de um mesmo
objeto, pretendemos descrever e interpretar a interdiscursividade constitutiva do
filme, dando relevo à relação entre discursos, memória e história a partir da qual
definem-se modos de subjetivação do sujeito mulher parturiente. Assim sendo, re-
tornamos às memórias dos discursos do objeto parto, para assim fazer uma arqueo-
logia dos saberes e poderes que contribuem para a subjetivação desse sujeito no
decorrer das descontinuidades dessa história e para responder a seguinte questão
basilar da arqueologia: porque este enunciado e não outro em seu lugar?
Palavras-chave: Análise do Discurso. Michel Foucault. O Renascimento do Parto.

Introdução
Primeiramente associada à imagem de Eva, a mulher era vista como culpada
pelos problemas do marido, chegando a ser considerada a “doença do homem”
(FOUCAULT, 2015, p. 351) por quem ela deveria ser disciplinada! Tempos mais
tarde, foi ligada a imagem da Virgem Maria, ou seja, passou a ser entendida como
símbolo de pureza e dedicação ao lar, tendo como função primordial a gestação e
o cuidado dos filhos. Portanto, desde os tempos mais remotos, o corpo feminino
foi alvo de discursos morais que o limitaram, intimidaram e principalmente, o
subjetivaram.
Entre os discursos de ordem familiar e religiosa circulam também os
discursos médicos que tomam a mulher como objeto para a produção de verdades
(FOUCAULT, 2014) que afirmam que esta só estará completa quando tornar-se
mãe. A exemplo disso, tomamos como material de análise os discursos do filme “O
Renascimento do Parto”, de Érica de Paula e Eduardo Chauvet. Este é do gênero
documentário, foi lançado no ano de 2013 e trata das cirurgias obstétricas realizadas
no mundo todo e da importância do parto humanizado para a saúde da mãe e de
seu filho, ao defender que durante o parto normal ou humanizado, a mãe libera
para o bebê os hormônios do amor, que não são liberados durante o parto cesárea.
Conforme essa teoria cientificamente comprovada, ao receber os hormônios do
amor, a criança recebe uma carga hormonal que aumenta a afetividade entre ela e
a mãe.
Dessa forma, ao olhar para os discursos do filme, analisamos as relações de
poder presentes no discurso médico - tomado como verdade - que re-atualizam os
saberes que dirigem as práticas do parto e as posições dos sujeitos discursivos, as
quais, definirão através da história o que é ser mãe.
Assim, nos propomos a analisar a “subjetivação do sujeito mulher mãe
parturiente” pelo viés da Análise do Discurso de linha francesa, de forma especial,
pelos pressupostos teóricos metodológicos do filósofo Michel Foucault em sua
Arqueologia do Saber. Para isso, olharemos para as redes de memória (PECHÊUX,
1999) da história do parto e da maternidade e trataremos das relações de poder
que estabelecem nas descontinuidades dessa história, para então, realizarmos a
análise dos efeitos de sentido (FOUCAULT, 2015) que produzem esses discursos
sobre a mulher. Portanto, para nós, importa a relação entre língua, sujeito, história
e memória.

Análise do Discurso em Michel Foucault


As seguintes análises serão realizadas a partir dos pressupostos da Análise
do Discurso de linha francesa, para que possamos desenvolver, segundo orienta
Michel Foucault em sua Arqueologia dos Saber (2014), uma arqueologia dos saberes
e poderes que subjetivaram o sujeito-mulher-mãe no decorrer da história do parto.
Na esteira de Foucault (2014) o enunciado é diferentes de frase ou de ato de
fala, pois podemos considerá-lo como o efeito de sentido produzido no momento
da enunciação; e o discurso como “domínio geral de todos os enunciados”
(FOUCAULT, 2014, p. 96), ou seja, o discurso é, para Foucault (2014) uma rede de
enunciados que “formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo
objeto.” (FOUCAULT, 2014, p. 39).
Então, para pensar os discursos, Foucault (2014) utiliza-se da noção de
poder: algo não concreto, mas que alguém possui domínio sobre e que propaga-se
entre todas as instituições e pessoas, afetando-as de diversas formas, até mesmo o
seu corpo. O filósofo define três tipos de poder: o poder soberano, o disciplinar e o
biopoder. Segundo ele, no poder soberano o criminoso através de seu ato ofende
ao monarca, e então, precisa passar por rituais públicos de clemência que fariam
o povo temer ao poder dominado pelo soberano; o poder disciplinar também se

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exerce sobre o indivíduo, pois o crime é causado contra a sociedade e o criminoso
deve conseguir sua absolvição através do castigo imposto por ela. O transgressor
sente-se controlado, então, porque é vigiado e seu comportamento registrado a
todo momento, fazendo com ele mesmo se auto-vigie e auto-discipline temendo o
vigilante; no terceiro tipo de poder, a população toda é afetada, já que o biopoder se
exerce sobre a vida, tentando controlar o nascimento, a mortalidade, etc.
Ainda é importante lembrar que todo discurso pressupõe uma relação de
enunciados entre sujeitos, no entanto, conforme Foucault (2014), os sujeitos do
discurso não são indivíduos da sociedade, mas vozes que evidenciam posições
sócio-históricas discursivas, coexistentes no a priori histórico, criando o arquivo
do discurso, que permite pensar o sistema pelo qual surgiram os enunciados
e pelo qual modificam-se e transformam-se regularmente, constituindo assim, a
memória discursiva.
Logo, para realizar uma análise linguística do discurso, se torna fundamental
perceber que a história define as condições, o momento, e o lugar onde foram
realizados, e reproduzidos estes discursos, e esta projeta-os para o futuro.

Hospital e Maternidade, construções históricas.


Desde o início dos tempos, a sociedade apóia-se sobre os textos sagrados
para construir a imagem do homem e da mulher, e a partir desta, seus papéis na
sociedade. Badinter (1985) afirma que na maioria dos textos, como por exemplo
o Vedas, homem e mulher possuem papéis contrários: ele é considerado o chefe
da família, pois possuía autoridade marital e paternal, portanto, tinha o direito de
julgar e punir seus filhos e esposa; a mulher, tinha apenas a função de reprodução e
era considerada a culpada pelos problemas do marido, pois era associada a imagem
da Eva. O marido era então, segundo ela, uma representação de Deus, já a mulher
além de ser considerada pecadora, ainda lhe era recomendado que se comportasse
de forma adequada com a sua inferioridade.
Até o fim do século XVIII, a mortalidade infantil era alta, então, os pais
procuravam manter-se indiferentes afetivamente em relação ao seu filhos. Sendo
assim, estes eram vistos como um estorvo e muitas mães os entregavam às amas de
leite. Se chegavam a falecer, a mãe facilmente os substituíam pelo próximo filho que
nasceria, como afirmou Badinter (1985).
Até meados do século XVII, toda mulher tinha então função de ser mãe, mas
por isto não eram valorizadas. Segundo Badinter (1985) queriam, então, mostrar
que eram capazes de ser como os homens e para isso, voltaram-se aos seus estudos
para provar que eram iguais a eles intelectualmente.

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Foi só em 1760 que a mulher-mãe passa a ser associada a imagem da Virgem
Maria, e isto modifica sua imagem, já que passa a ser vista como uma mulher delicada,
doce, modesta e dedicada ao lar. Também irrompe na sociedade muitos discursos a
favor da maternidade, afirmando que a mãe dedicada é indispensável para a família
e sociedade. Essa valorização faz com que a mulher sinta-se emancipada, conforme
Badinter (1985).
Também é nesse período que o matrimônio por amor - e não mais o arranjado
pelos pais - passa começa a ser um costume da população e com essa modificação
começa-se a amar os frutos do casamento. A mãe toma para ela a responsabilidade
de amar e assegurar a saúde de seus filhos (Badinter, 1985).
Durante esta mesma época, o hospital também passa por diversas
modificações, até chegar ao que conhecemos hoje. Pois, até o século XVIII, este
prestavam auxílio para os pobres para diminuir os problemas do Estado. Porém, a
população era recebida nessa instituição não para ser examinada e curada, mas para
que pudesse ter sua alma salva, conforme Foucault (2014). Esse hospital, o filósofo
chama de morredouro, pois era o local onde as pessoas de classe baixa dirigiam-
se para falecer, retiradas do restante da sociedade, pois acreditava-se que eram
portadoras de doenças contagiosas.
Segundo o filósofo, ainda neste momento, os médicos atendiam nas casas
dos doentes. Era a beira de seus leitos que constituíam-se os saberes medicinais. A
doença era vista como um mal enviado por Deus e tratada através da medicina das
simpatias. Pouco depois, a medicina começa a dividir as doenças entre famílias,
gêneros e espécies, fazendo com que elas já não sejam vistas como um mal, mas
como parte da natureza humana.
Somente no fim do século XVIII, o hospital liga-se ao Estado e traz o doente
para essa instituição. Todavia, ao misturar os pacientes, misturam-se também os
diversos tipos de doenças e as epidemias passam a ser constantes. Então, para
pensar uma solução para essas doenças, segundo Foucault (2014), não costumava-
se neste período olhar para as características dela, mas para sua regularidade dentro
do hospital. Então, é com o objetivo de realização dessas análises que foi criada a
Sociedade Real da Medicina, para que esta estudasse as epidemias, suas causas e
tratamentos, e ainda, constituir um estatuto político medicinal.
Para que o hospital pudesse receber uma população variada - pessoas
de classe alta ou baixa, com doenças contagiosas ou não - fez-se necessária uma
mudança em toda a configuração hospitalar.

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De acordo com o pensador, os projetos de Tenon procuravam resolver
esse problema e trazer para o hospital doenças variadas sem que sejam agravadas.
O objetivo neste momento ainda não é medicalizar o hospital, mas purificá-lo e
organizá-lo para minimizar seus problemas. Um exemplo citado por Foucault
(2014) é a troca de ordem de salas para evitar a morte de parturientes, ao perceber
que colocá-las abaixo de uma sala com afetados por febre maligna, sua taxa de
mortalidade aumenta.
A partir dai os médicos passam a obter formação para terem o direito
de exercer a profissão. Essa formação se dá dentro da Clínica, pois nesse local, o
estudante manipulava as teorias ao atender os doentes dentro do hospital. Foi um
momento, conforme Foucault (2014) de grande formação de conhecimento e saber
nos discursos médicos.
Assim ocorre, de acordo com o filósofo, a medicalização do hospital e sua
transformação em local de cura, a partir da formação médica que torna o preço do
trabalhador mais alto e a partir da entrada do poder disciplinar neste espaço para a
melhor organização política e administrativa.

A subjetivação do sujeito mulher-mãe-parturiente


Para fazer Análise do Discurso, conforme ensina Michel Foucault (2014), é
necessário entender que entre língua, sujeito e história existe uma relação intrínseca.
Ou seja, é preciso olhar para a história, onde os sujeitos materializam seus discursos
por meio da linguagem. Para pensar, então, a subjetivação do sujeito mulher-mãe-
parturiente precisamos olhar para a história da maternidade e para a história do
parto para observar em que momentos começaram a irromper discursos sobre o
parto que se relacionam numa rede discursivas com os da atualidade - de forma
mais específica com os discursos do filme “O Renascimento do Parto”?
Primeiramente devemos observar que no século XVIII houve grande
preocupação com a sobrevivência da criança, tanto pela mãe, quanto pela medicina
e pelo Estado, pois a taxa de mortalidade durante o parto era alta, devido a falta de
assistência médica, já que, neste momento o parto era um acontecimento natural
e fisiológico que acontecia nas casas, e no qual só era admitida a presença de
mulheres. A parturiente então recebia apenas a assistência da parteira. Também era
considerada alta a taxa de mortalidade feminina, pois os partos eram devastadores,
já que, conforme Perrot (2015, p. 42), quando ocorria alguma dificuldade salvava-
se a criança primeiramente, e somente depois, a mãe. Após a disciplinarização do
hospital, agora entendido como instrumento de cura, e do nascimento do parto
hospitalar, nasce também o parto cesárea. A partir disso, o parto hospitalar - que

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só era realizado em mulheres de classe baixa que não poderiam pagar por uma
parteira - é aderido por mulheres de classe alta que passam a acreditar que o saber
médico salvou suas vidas através desse tipo de concepção.
Diante disso, a mulher - antes protagonista do parto - passa a ser tratada como
paciente doente que precisa de cirurgia e cuidados médicos; o poder recai sobre o
médico - tornando-se ele o protagonista do parto cesárea e os discursos modificam-se.
Durante muito tempo, os discursos que afirmavam que o parto cesárea
salvava vidas eram entendidos como verdades intrínsecas, pois a medicina dava
ao médico o poder de decisão sobre o que era verdade ou não, fazendo com que as
pessoas tomassem esses discursos como verdadeiros. Ao olhar para os discursos do
filme, “O Renascimento do Parto”, observamos que eles se enredam com as vozes
desses primeiros especialistas, criando uma relação interdiscursiva entre ambas:
“Quando mal indicada, ela [a cesariana] põe a mulher e o bebê em risco, três
vezes mais do que se fosse um parto normal.”
Considerando que, na esteira de Foucault (2014, p. ) “todo discurso
manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que este já-dito não seria
simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um ‘jamais-
dito’”, ao enunciar que a cesariana tem maiores riscos que o parto natural, o
discurso médico retoma a memória dos discursos do parto normal - aquele que
muitas vezes, acabava levando à morte -, e ao fazê-lo reverberar na atualidade, o
transforma, pois a cesariana já não é mais tomada como solução, mas como algo
três vezes mais perigoso, tanto para a mãe como para o bebê. Portanto, os já-ditos,
um dia enunciados nas vozes dos médicos do século XVIII, ao serem proferidos
atualmente transformam-se em jamais-ditos:
“Há mulheres, ás vezes, que estão na sua primeira gestação e são abatidas em
uma cesariana sem dó nem piedade.”
“Para o bebê, o risco da cesárea desnecessária é o risco primeiro da
prematuridade.”
Se antes acreditava-se que a maternidade levava a morte a mãe e seu bebê
e que o parto cesárea era capaz de salvar a vida de ambos, agora, os discursos do
documentário tentam desconstruir as verdades referentes ao parto e impostas
historicamente, pois, conforme o dicionário Houaiss (2015, p. 03) abatido significa
“[...] 6. que aparenta estar doente; [...] 7. que foi morto [...]”, e ainda conforme
os médicos do filme, o bebê que nasce prematuro ainda não se desenvolveu
completamente, podendo - a prematuridade - vir a afetar de forma negativa sua
saúde. Assim, ao enunciar que mãe e bebê correm riscos durante o parto cesárea, os

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discursos médicos criam efeitos de sentido que levam a mãe a contestá-lo. Inicia-se
dessa forma o processo de subjetivação deste sujeito por meio do biopoder:
“Se tivermos uma visão geral de todos os estudos publicados, notaremos
que quando os pesquisadores exploram [...] uma doença ou um desvio
na personalidade, por exemplo, [...] criminalidade, autismo, suicídio,
comportamento auto-destrutivo, [...] anorexia, algo a ver com a capacidade
de se amar ou de amar o próximo, os pesquisadores sempre concluem que
o que acontece no nascimento é importante.”
Ao referir-se “ao que acontece no nascimento” o médico fala dos hormônios
do amor, que segundo os discursos do filme, somente são liberados durante o parto
normal ou humanizado. Segundo o enunciado, portanto, a falta desses hormônios
para a criança poderá acarretar futuramente adversidades tanto na saúde, quanto
no seu comportamento em sociedade. Assim, o biopoder age sobre o sujeito mulher-
mãe ao impor sobre ela a obrigação de garantir toda uma vida saudável para seus
filhos. Consequentemente, os discursos do filme fazem com que esse sujeito negue a
cirurgia cesariana, sendo subjetivado pelo biopoder e pelas novas verdades impostas
pela medicina contemporânea.

Considerações finais
Historicamente, “o corpo da mulher torna-se objeto médico por excelência”
(FOUCAULT, 2015, p. 351). Não só médico, como também discursivo, pois foi
subjetivado de diversas formas durante a história. No presente trabalho, procurei
mostrar como esse corpo foi subjetivado no decorrer da história do parto e da
maternidade e como esses discursos se retomam e se transformam na atualidade
através dos discursos do filme “O Renascimento do Parto” de Érica de Paula e
Eduardo Chauvet, criando assim, conforme ensina Michel Foucault (2014) uma
arqueologia dos saberes e poderes que subjetivaram o sujeito mulher mãe parturiente
através da história do parto.

Referências
BADINTER, E. Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
COURTINE, Jean-Jacques. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Tradução de
Francisco Morás. Petrópolis, RJ: vozes, 2013.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

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______. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em
2 de dezembro de 1970. 24. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
______. Microfísica do Poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
______. O Nascimento do hospital. In: Microfísica do Poder. 2. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2015, p. 171 - 189.
______. O Nascimento da Medicina Social. In: Microfísica do Poder. 2. ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2015, p. 171 - 189.
______. O Nascimento da clínica. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
GREGOLIN, M.R.. Foucault e Pêcheux na construção da análise do discurso: diálogos
e duelos. São Carlos: Claraluz, 2007.
HOUAISS, Antônio. Ranço. In: Pequeno dicionário da língua portuguesa. São
Paulo: Moderna, 2015.
MATOS, Maria Izilda. Santos.; SOIHET, Rachel. O corpo feminino em debate. São
Paulo: Ed. da UNESP, 2003.
PECHÊUX, Michel. Papel da Memória. In: Papel da Memória. Campinas, SP:
Pontes, 1999. Disponível em: <https://gefut.files.wordpress.com/2012/04/achard_
pierre_org-_papel_da_memc3b3ria.pdf >. Acesso em: 30. maio. 2016.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2015.

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OLIMPÍADA RIO 2016: UMA LEITURA DE CHARGES
Carla Ramos de Paula (UNIOESTE)

Introdução
Neste artigo objetivamos dialogar com o gênero discursivo “charge”, com
destaque nas especificidades do gênero, em especial, elegemos como temática de
discussão produções chargísticas que tecem temas acerca da Olimpíada Rio 2016.
A pretensão é discutir a charge como expressão de vozes sociais
historicamente inscritas em um dado contexto social. Para tanto, abordamos
brevemente algumas considerações acerca das conceituações em torno do gênero
discursivo charge a partir das contribuições de Romualdo (2000), de Flôres (2002) e
de Teixeira (2005). Fundamentamo-nos no referencial de linguagem bakhtiniano na
compreensão do construto da charge, na análise dos aspectos referentes ao marco
temporal e enunciados sociais ali presentes.
Inicialmente pontuamos a charge como manifestação de uma esfera de
atividade humana, a jornalística/humorística, um gênero verbo-visual que expressa
uma opinião de seu autor, o chargista. Posteriormente, apresentamos as charges que
versam acerca da Olimpíada Rio 2016 e tecemos uma leitura de possíveis sentidos
evocados a partir do discurso ali posto.

Charge: conceituando
É sabido que existe uma diversidade de gêneros discursivos circulando
e, assim, constituindo a vida nas relações estabelecidas em sociedade. Entre essa
diversidade temos a charge, um gênero de ampla circulação, veiculado em distintos
suportes: jornais, livros, revistas, internet.
Para Romualdo (2000), na leitura de textos humorísticos, muitas vezes um
termo é empregado pelo outro devido ao não conhecimento das especificidades
de cada gênero. Exemplo disso é a confusão que ocorre entre charge, caricatura e
cartum. Assim, diferenciamos definições registradas em dicionário sobre o que se
compreende por cartum, caricatura e charge, com foco na última.
Em relação ao cartum, este é um “[...] desenho humorístico ou caricatural,
espécie de anedota gráfica que satiriza comportamentos humanos, geralmente
destinada à publicação jornalística” (HOUAISS, 2001, p. 638). Isto é, o universo dos
cartuns focaliza a crítica ao comportamento humano. De acordo com a definição fixada
no dicionário, caricatura é “[...] desenho de pessoa ou de fato que, pelas deformações
por um traço cheio de exageros, se apresenta como forma de expressão grotesca
ou jocosa. Reprodução deformada de alguma coisa. Indivíduo de aparência ou de
maneiras ridículas” (HOUAISS; VILLAR, 2001). Já no que diz respeito ao gênero
discursivo charge, a conceituação registrada em dicionário aponta a charge como:

[...] desenho humorístico, com ou sem legenda ou balão, geralmente


veiculada pela imprensa e tendo por tema algum acontecimento atual
que comporta crítica e focaliza, por meio de caricatura, uma ou mais
personagens envolvidas [...] Charge: “carga”, “o que exagera o caráter
de alguém ou de algo para torná-lo ridículo, representação exagerada e
burlesca” [...]. (HOUAISS; VILLAR 2001).

Assim, entendemos a charge como um: “[...] texto visual humorístico que
critica uma personagem, fato ou acontecimento político específico” (ROMUALDO,
2000, p. 21). Já Teixeira pontua que “[...] a charge é um desenho de humor que
estrutura sua linguagem como reflexão e crítica social” (TEIXEIRA, 2005, p. 11).
E, para Flôres, “[...] a charge é um texto usualmente publicado em jornais, sendo,
via de regra, constituída por quadro único. A ilustração mostra os pormenores
caracterizadores de personagens, situações, ambientes, objetos” (FLÔRES, 2002, p.
14).
A charge é um texto que expressa algum fato atual, ou seja, a partir da
leitura de mundo do chargista-autor, emprega o recurso humorístico de forma
irônica e, assim, o texto chargístico carrega intenções, críticas, posicionamentos,
confronto de opiniões. Então o leitor, ao ler charges, é conduzido a reconstruir os
enunciados sociais que estão presentes na charge e a agir de alguma forma frente ao
texto, seja concordando, seja discordando, enfim, o leitor age de forma responsiva.
Logo, a charge, ao mesmo tempo em que possibilita o riso, também proporciona
uma reflexão sobre determinado assunto atual.
Desse modo, entendemos que, dada a inscrição do sujeito-chargista
na ideologia, sua produção chargística carrega e expressa um determinado
posicionamento decorrente de sua visão de mundo. Assim, temos charges
diferentes, dadas as posições diversas de seus criadores, inscritos no movimento
social, na corrente da linguagem. É, contudo, importante ressaltar que a produção
do chargista, ao expressar determinada intencionalidade, é fruto da coletividade, da
sua inserção na teia social.
O discurso ideológico presente no gênero discursivo charge propaga, em
última instância, um fato social, ou seja, juízos de valor expressos pela visão de

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mundo de seu autor, que provoca sentidos nos que a leem: “Em outras palavras,
não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes senão
aquilo que adquiriu um valor social” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p.
45). Logo, o “dizer” da charge é um dizer que extrapola a si mesmo, pois sua
construção como gênero possibilita a manifestação de uma opinião acerca de um
tema, acontecimento atual (na maioria das vezes político), de uma forma peculiar
própria do gênero, pois utiliza o humor com intuito de criticar e de denunciar,
provocando o leitor a refletir sobre o dito.
Assim, “[...] a charge é um tipo de texto que atrai o leitor” (ROMUALDO,
2000, p. 5), isto é, instiga, chama para a leitura, pois possibilita o confronto com a
realidade, com os episódios vivenciados, de forma humorística. A seguir, as charges
que abordam como tema a Olimpíada Rio 2016, e possíveis leituras.

Olimpíadas Rio 2016: possibilidades de leitura


É sabido que, presentemente, o Brasil foi destaque no cenário internacional
devido à realização da 31ª edição dos Jogos Olímpicos de Verão, popularmente
denominada Olimpíada Rio 2016. Trata-se de um evento multiesportivo que ocorre
há cada quatro anos, sendo que o país sediou o evento entre 5 a 21 de agosto de 2016.
A charge, como um texto que aborda algum tema da atualidade, torna-
se um material rico para exploração de sentidos ecoados acerca do evento
Olímpiada Rio 2016.
O objetivo aqui proposto é refletirmos sobre como as charges são expressão
do marco temporal, e como o construto chargístico é recheado de enunciados sociais.
Então, ao lermos uma charge sobre a Olimpíada, é necessário firmar uma atenção
para a reconstrução dos sentidos, ou seja, o leitor precisa se dispor a reconstruir o
episódio e, assim, conseguirá extrapolar os sentidos explícitos e implícitos. Há a
necessidade de buscar nomes de atletas, modalidades, medalhas, reconstruir fatos.
Foge do limite do artigo debater os aspectos negativos e positivos referentes
à Olimpíada Rio 2016 ou, quiçá, tecer uma leitura romantizada do evento no país.
Em contrapartida, o intuito da discussão proposta é refletir sobre os sentidos que
ecoam das charges, que são resultados de vozes sociais.
É de conhecimento que a Olimpíada no país foi palco de inúmeras discussões
– discussões que envolveram desde orçamentos, impactos sociais, o alarme em torno
da polêmica acerca das doenças provocadas pelo mosquito Aedes aegypti (febre
amarela, dengue, zika vírus e chikungunya), os escândalos envolvendo corrupção,
possíveis ameaças de atentados terroristas.

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Logo, os chargistas, a partir dos episódios que compreenderam o evento,
produziram inúmeras charges. Aqui, selecionamos quatro charges para discussão.
São elas: i) a primeira retrata a repercussão do desempenho da seleção masculina
de futebol nos primeiros jogos da olimpíada; ii) a segunda realiza um trocadilho
olimpíada versus corrupção política; iii) a terceira aborda a corrida eleitoral como uma
Olimpíada II, isto é, a briga eleitoral por votos, e iv) a quarta discute a criminalidade
na Olimpíada Rio 2016.

Figura 1 - Charge produzida por Amarildo – Charge Online (12/8/2016)

Fonte: <http://www.chargeonline.com.br/>.

A charge da Figura 1 retrata possíveis posicionamentos dos torcedores


diante do desempenho dos jogadores de futebol masculino nas competições. Há,
na charge, a divisão em dois quadros. Visualizamos que o chargista retratou a sala,
o torcedor em frente à televisão, acomodado no sofá. Vemos o contraponto entre o
perfil do mesmo torcedor frente ao resultado de dois jogos. No jogo Brasil X Iraque
o torcedor aparece desapontado, com expressão de raiva e o próprio balão de texto
alude a possíveis obscenidades dirigidas ao time, haja vista que, nessa ocasião, o jogo
finaliza empatado com o placar de 0x0. Já no jogo Brasil X Dinamarca visualizamos
outra imagem de torcedor, um homem alegre, com a bandeira da pátria nas mãos e
o texto no balão sugere otimismo e orgulho da seleção olímpica, além do que o sofá
está elevado, o que sugere uma animação do torcedor, fato atrelado ao resultado da
competição Brasil 4 X 0 Dinamarca.
Percebemos que uma das possíveis intenções do chargista foi o de expressar
a realidade do que muitos brasileiros compartilharam nos momentos dos jogos.
O leitor, ao ver/ler a charge, provavelmente se identificará com o personagem ali
representado. Assim, ao mesmo tempo em que a charge provoca o riso, pois é uma
situação engraçada que expressa a mudança de estados de humor do torcedor, ela
tece uma crítica aos torcedores brasileiros que aparentam orgulho nos triunfos, mas,

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nos momentos com resultados negativos, o que se percebe é um movimento de
crítica desenfreado dirigido aos jogadores. A charge apresentada acerca do futebol
é expressão de vozes sociais que demonstram a postura dos brasileiros amantes do
futebol – estes brigam, choram, riem... tudo pelo futebol.

Figura 2 - Charge produzida por Duke – Charge Online (15/8/2016)

Fonte: <http://www.chargeonline.com.br/>.

A charge Figura 2 apresenta como temática uma crítica ao cenário político


brasileiro. A charge figura Brasília como panorama, pois expõe a imagem do
Congresso Nacional. O chargista retrata dois homens numa situação de diálogo e o
texto presente na charge faz uma crítica aos políticos brasileiros, pois a modalidade
olímpica do “atletismo 100 metros rasos” é proposta como uma leitura de possível
competição entre os políticos. A arrancada com a frase “pega ladrão”, pelo exposto
na charge, resultaria em recordes na briga entre os políticos, ou seja, o chargista
denuncia e/ou ironiza a honestidade dos líderes políticos brasileiros.
A charge expressa um posicionamento ideológico do chargista (a crítica
contundente à situação política atual). A temporalidade presente nos remete às
Olímpiadas e aos desastres políticos, isto é, o leitor, ao mesmo tempo em que é
convidado a rir pela forma como o trocadilho foi proposto, também é conduzido a
refletir acerca da situação política brasileira na contemporaneidade.

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Figura 3 - Charge produzida por Nocolielo – Charge Online (15/8/2016)

Fonte: <http://www.chargeonline.com.br/>.

A charge da Figura 3 aborda, como marco temporal na produção chargística,


a temática das eleições no país. A Olimpíada Rio 2016 aparece como chamada para
a Olímpiada II. Presenciamos a figura de três possíveis candidatos segurando
placas, numa posição de corrida eleitoral. O texto nas placas é “vote”, ou seja, uma
possível leitura que a charge propõe é o fato de que estamos vivenciando uma
outra olimpíada, esta com viés político, fato visível, haja vista que estamos em ano
eleitoral para eleições municipais, e o cenário é justamente este representado pelo
chargista, uma competição, não por medalhas, mas por votos.

Figura 4 - Charge produzida por Pater Charge Online (15/8/2016)

Fonte: <http://www.chargeonline.com.br/>.

A charge da Figura 4 apresenta como tema um assunto polêmico, amplamente


retratado pela mídia nacional e internacional. Trata-se dos recorrentes assaltos e onda
de violência, em especial, alarmante na cidade do Rio de Janeiro, fato gerador de
preocupação entre atletas, visitantes e população brasileira em geral. O chargista
ilustra a cena de um assalto e faz alusão ao salto ornamental presente na olimpíada,

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
isto é, o leitor é convidado a refletir acerca da “criatividade” dos ladrões, por meio de
diferentes estratégias empregadas nos assaltos durante o período dos jogos olímpicos.

Considerações finais
Neste artigo propusemos uma reflexão acerca de possíveis sentidos ecoados
a partir da expressão de charges que abordam a Olimpíada Rio 2016. Primeiramente,
apresentamos a charge como manifestação de uma esfera de atividade humana,
a jornalística/humorística, um gênero verbo-visual que expressa uma opinião de
seu autor, o chargista, e este, por sua vez, está inscrito na coletividade, de modo
que a sua voz deve ser considerada como sendo uma voz social. Posteriormente,
foram apresentadas algumas charges e realizadas as respectivas leituras de seus
construtos, dos elementos necessários para a captação das críticas ali presentes.
Discutir acerca das charges demonstrou que as produções estão
intrinsecamente atreladas ao marco temporal, ou seja, carregam às marcas da
Olimpíada, um evento que está localizado temporalmente e, ao mesmo tempo,
expressam outras marcas sociais, como vozes que circulam socialmente.

Referências
BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. São
Paulo: Hucitec, 2004.
CHARGE On Line. Disponível em: <http://www.Charge Online.com.br/>. Acesso
em: 8 ago. 2016. 
FLÔRES, O. A leitura da charge. Canoas, RS: Ed. ULBRA, 2002.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de
Dados de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
ROMUALDO, E. C. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de
charges da Folha de S. Paulo. Maringá, PR: Eduem, 2000.
TEIXEIRA, L. G. S. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 2005.

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ACONTECIMENTO DISCURSIVO E PRODUÇÃO DE
SUBJETIVIDADE SEGUNDO MICHEL FOUCAULT
Célia Iarosz Frez (IC-LEDUNI- UNICENTRO)
Denise Gabriel Witzel (LEDUNI- UNICENTRO)

Resumo: Sabemos que o mundo da política, até pouco tempo atrás, era totalmente
interditado para as mulheres. Estudos sobre a história das mulheres na política, tais
como os de Mary Del Priore (2004) e Michelle Perrot (2007), pontuam que de todos
os obstáculos que a mulher teve que enfrentar nos processos de emancipação, a
política foi o mais difícil. Foi preciso aguardar o século XX para que os movimentos
feministas definissem novas formas de se conceber a mulher, permitindo que elas
‘entrassem’, não sem resistência, no mundo político dos homens. Porém, quando
elas aí estão, emergem na mídia em geral, e nas redes sociais de modo particular – e
viral – discursos que definem quem são essas mulheres sob certa ótica, sob certos
aspectos. Partindo dos pressupostos da Análise do Discurso de linha francesa, mais
precisamente dos estudos desse campo do saber que se pautam no pensamento de
Michel Foucault, pretendemos analisar a produção de sentido tomando como ma-
terial de análise um post da página Dilma Bolada disponível no Facebook. Para isso,
fazemos funcionar conceitos da Arqueologia do Saber que guiam nossas análises,
notadamente os conceitos de história e de acontecimento, articulando os aos proces-
sos de produção e circulação dos sentidos. Nosso corpus de análise encontra-se na
página Dilma Bolada, página esta que usa o humor e a ironia para defender a presi-
dente Dilma Rousseff, ironizando, desse modo os anti-Dilma. Para além da ironia,
nossas análises apontam para os modos de produção de subjetividades da mulher
quando esta se envolve em espaço tradicionalmente viril.
Palavras-chave: Análise do Discurso. Dilma Rousseff. Michel Foucault.

Introdução
Estudar o discurso, conforme propôs Michel Pêcheux, significa considerá-
lo como algo que “não se confunde nem com o discurso empírico sustentado
por um sujeito nem com o texto, um conceito que estoura qualquer concepção
comunicacional da linguagem” (MALDIDIER, 2003, p.21). Em outras palavras,
diante de um texto ou imagem, não encontramos o discurso na manifestação dos
encaixamentos sintáticos, pois se trata de um processo do qual participam o sujeito,
a língua e a história. E quando falamos de sujeito, nessa teoria, não estamos falando
de um sujeito de “carne e osso” ou daquele que seria a origem e fonte autônoma de
seu dizer. Trata-se, antes, de um sujeito historicamente determinado.
Partindo desse pressuposto fundamental e fundante da Análise do
Discurso de linha francesa, interessamo-nos em analisar (descrever e interpretar)
a produção de sentido tomando como material de análise um post da página
“Dilma Bolada” disponível no Facebook. Nesse espaço discursivo, vem a público
séries de dizeres que falam da atual presidente da República – Dilma Rousseff –
incitando-nos a pensar no funcionamento discursivo da linguagem quando ela
está a serviço da imagem da mulher política na atualidade, no Brasil. Que sujeito
discursivo é ali produzido?
Sabemos que o mundo da política, até pouco tempo atrás, era totalmente
interditado para as mulheres. Estudos sobre a história das mulheres na política, tais
como os de Mary Del Priore (2004) e Michelle Perrot (2007), pontuam que de todos
os obstáculos que a mulher teve que enfrentar nos processos de emancipação, a
política foi o mais difícil. Foi preciso aguardar o século XX para que os movimentos
feministas definissem novas formas de se conceber a mulher, permitindo que elas
‘entrassem’, não sem resistência, no mundo político dos homens. Porém, quando elas
aí estão, emergem na mídia em geral, e nas redes sociais de modo particular – e viral
– discursos que definem quem são essas mulheres sob certa ótica, sob certos aspectos.
Foi preciso aguardar o século XX para que os movimentos feministas
definissem novas formas de se conceber a mulher, permitindo que elas ‘entrassem’,
não sem resistência, no mundo político dos homens. Entretanto, quando elas aí
estão, emergem na mídia em geral, e nas redes sociais de modo particular – e viral –
discursos que definem quem são essas mulheres sob certa ótica, sob certos aspectos.
Metodologicamente, trabalharemos com a linguagem atentando para as
relações diretas com a história, tentando entender e explicar como se constrói o
sentido de um texto e/ou imagem, articulados com a história e com a sociedade
que o produz. Para tanto, (i) elegeremos como categorias analíticas o conceito
de memória discursiva e o de sujeito discursivo; (ii) organizaremos um corpus
constituído de séries enunciativas que, pela regularidade, permitem delinear os
modos de subjetivação de Dilma Rousseff; (iii) trataremos desse corpus em rede
de memórias, ou seja, estabeleceremos relação de sentidos com outros discursos,
outras formas do dizer que participam da discursividade que será analisada; (iv)
desconstruiremos a materialidade – o texto, a imagem – mediante uma operação de
batimento, como ensinou Pêcheux (2009), ou seja, descrevermos e interpretaremos
os efeitos de sentido ali (re) produzidos que definem, na atualização de memórias,
o sujeito mulher.

Sobre Arqueologia do Saber, Enunciado e Função Enunciativa


Em 1969, Michel Foucault publica a obra Arqueologia do Saber. Esta obra
não é somente uma elaboração de um método das pesquisas anteriores de Foucault,
tampouco apresenta propostas para suas próximas pesquisas. Ela tem o propósito

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de dar significação à palavra arqueologia que Foucault havia empregado em obras
anteriores e não havia explicado claramente do que se tratava.
O conceito de enunciado ocupa todo o terceiro capítulo da obra Arqueologia
do saber e é entendido como unidade elementar do discurso, desta maneira o
enunciado é definido:

Em seu modo de ser singular (nem inteiramente linguístico, nem


exclusivamente material) o enunciado é indispensável para que se possa
dizer se há ou não frase, proposição, ato de linguagem (...) ele não é, em
si mesmo, uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio
de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com
conteúdos concretos, no tempo e no espaço (FOUCAULT, 2014, p. 104-105).

Assim, Foucault pensa o enunciado como uma função e descreve-o a partir


de oposições com outras unidades para mostrar que os estudos linguísticos sempre
deixaram o enunciado de lado, apensas pressuposto, mas não analisado.
Foucault cria o conceito de Função Enunciativa para mostrar que o que torna
uma frase, um proposição, um ato de fala em enunciado é exatamente a “função
enunciativa”, o fato de o enunciado ser produzido por um sujeito, em um lugar
institucional determinado por regras sócio-históricas que vão definir e possibilitar
que ele seja um enunciado.
Além disso, um enunciado não tem existência sozinho e independente,
pois ele entra em contato com muitos outros, quer para modifica-los, repeti-los ou
adaptá-los, sua existência não se dá de modo livre, neutra e independente.

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Análise do Corpus

Post I: Disponível em: <https://fbcdn-sphotos-a-a.akamaihd.net/hphotos-ak-xtp1/v/t1.


0-9/10464118_434637330008263_4711848851864712091_n.jpg?oh=0bd8a340e2251e1335e-
021b858aa5fdb&oe=585C80AF&__gda__=1481440409_d72eb980a313716a055efb9cfed31f78.>
Acesso em: 20 out. 2015.

Neste post, temos imagens da Presidente Dilma Rousseff discursando no


parlatório do Palácio do Planalto, na posse do seu primeiro mandato, em 2011. No
primeiro quadrinho, temos o enunciado “atenção cambada!!!”, onde o vocativo é
usado para evidenciar os seres a quem a presidente se dirige, no caso, os anti-Dilma.
Nos três próximos quadrinhos, a presidente discursa para um sujeito indeterminado,
no entanto, sabemos que o sujeito foi escondido propositalmente para ironizar os
adeptos aos movimentos contra a presidente.
Com relação às condições sócio-históricas de emergência desse post,
temos o acontecimento das vaias e xingamentos proferidos contra a presidente na
abertura da Copa do Mundo 2014, cuja repercussão teceu a rede de discursos que
fundamentam o post. Os xingamentos contra a presidente foram ouvidos em dois
momentos antes da partida: após a sua chegada ao estádio e após a execução do
hino nacional, já a poucos minutos do início do jogo. No segundo tempo, Dilma foi
xingada mais duas vezes. Os integrantes dos movimentos anti-Dilma organizaram
protestos contra a presidente durante a Copa do Mundo e reivindicaram que o
dinheiro gasto na preparação da Copa, deveria ser investido em saúde e educação.
Atentamos para a produção de efeitos de sentindo que se dá com o
deslocamento das imagens da Presidente Dilma Rousseff. Por exemplo, a imagem

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do terceiro quadrinho, onde a presidente está enxugando as lágrimas, foi retirada
do momento em que ela falava das perseguições e torturas que sofreu durante a
Ditadura Militar, ao relembrar, ela fica emocionada. Essa imagem trazida para
este post produz humor, pois dá a entender que a presidente chora por ter sido
injustiçada durante a abertura da Copa do Mundo.
Destacamos o enunciado “mamãe ama vocês”, que é utilizado no final do
post, observando que, se os discursos são inevitavelmente regidos por regras de
formação, inseridos em um espaço em que saber e poder se articulam, o enunciado
em questão irrompe em meio a procedimentos de controle, seleção e organização que
determinam o que pode ser dito. Jamais, em situação real de discurso da presidente
do Brasil este enunciado seria proferido. Ele somente é possível porque o Facebook
é um lugar de enunciação que possibilita a crítica, o confronto em que milhares de
usuários expõem ideias e imagens, influenciando, não raro, a opinião pública acerca
de importantes temas do cotidiano.

Conclusão
Fazer Análise do Discurso consiste em tentar entender e explicar como
se constitui o sentido de um texto e como esse texto se liga com a história e a
sociedade que o produziu.
Ao analisarmos o post Ipor essa ótica da Análise do Discurso com Foucault,
percebemos que a língua produz sentido porque se articula com a história e o sujeito.
Vimos que em torno do enunciado “Mamãe ama vocês”, para muito além de uma
estrutura linguística, uma informação, ou mesmo uma estratégia de humor cara
aos usuários do Facebook, atualizam-se discursos outros – ditos em outros lugares,
em outros momentos – que remetem aos movimentos anti-Dilma e aos embates
políticos dali derivados.
Portanto, no post, é a reconstrução dos acontecimentos passados,
compartilhados e o reconhecimento por parte do leitor (internauta) da estabilização
dos sentidos dos enunciados/imagens supostamente ditos pela presidente Dilma,
que nos permite percorrer trajetos de leitura que nos levam a considerar que,
obviamente, jamais uma presidente enunciaria das formas expostas nos posts,
também não reconhecemos a figura materna nesses dizeres.

Referências
DELEUZE, G. Um retrato de Foucault. In: Conversações 1972-1990. São Paulo: Ed. 34,
1992a, p. 127-147.
DEL PRIORE, M. (Org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

97
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FERNADES, C. A. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2012.
______. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos: Editora
Claraluz, 2008.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
______. Diálogo sobre o poder. Ditos e escritos. Estratégias, Poder-Saber. MOTTA,
Manoel Barros da (Org.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. v. 4.
______. A ordem do discurso. Aula Inaugural no Collège de France, Pronunciada em
2 de Dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 1971.
GREGOLIN, M. R. Foucault e Pêcheux na construção da análise do discurso: diálogos e
duelos. São Carlos: Claraluz, 2004.
______. O dispositivo escolar republicano na paisagem das cidades brasileiras: enunciados,
visibilidades, subjetividades. Disponível em: <http://www.periodicos.ufpa.br/
index.php/moara/article/viewFile/2633/2775>. Acesso em: 19 mai. 2016.
MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Campinas:
Pontes, 2003.
PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 4. ed. Campinas, SP:
Pontes, 2006.
______. Papel da Memória. In: ACHARD, P.et al. Papel da memória. 2. ed. Campinas,
SP: Pontes, 2007.
PERROT, M. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.

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INTERFACES ENTRE A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO
JURÍDICO E O INTERACIONISMO SÓCIO DISCURSIVO:
ANÁLISE LINGUÍSTICA DISCURSIVA DO GÊNERO
TEXTUAL JURÍDICO SENTENÇA
Cláudia Maris Tullio (UNICENTRO)

Introdução
O presente trabalho tem como eixo a investigação centrada no gênero textual
jurídico sentença. Propôs-se um estudo interdisciplinar dos Estudos da Linguagem
e do Direito, com o objetivo de elaborar um estudo linguístico discursivo da
sentença, a fim de verificar a hipótese de adequação do texto jurídico aos interesses
e necessidades da sociedade moderna.
A análise se propõe a observar se houve modificações na linguagem
forense dessa peça processual, principalmente no tocante ao léxico, num lapso
temporal de aproximadamente duas décadas; identificar palavras ou expressões
latinas e/ou rebuscadas que podem ser substituídas por equivalentes na língua
portuguesa sem prejuízo de seus significados no contexto do gênero e contribuir
para os estudos interdisciplinares.
Apesar de os gêneros não se caracterizarem, nem se definirem por aspectos
formais (linguísticos ou estruturais), mas por aspectos sociocognitivos e funcionais,
isso não significa que se deva desprezar a forma. Haja vista, em muitas situações,
ser justamente ela a determinante do gênero, quando não as funções. Por exemplo,
o gênero sentença judicial é constituído por três partes distintas: o relatório (de
que constam o fato, as circunstâncias e as provas levantadas); a fundamentação
(argumentação jurídica) e a decisão (aplicação da norma jurídica).
Pois bem, muitos podem asseverar que outros gêneros possuem a mesma
estrutura, mas o gênero sentença judicial, além da estrutura, contém elementos
lexicais/linguísticos próprios do domínio discursivo jurídico que o diferencia dos
demais gêneros. Eis o porquê de verificarmos o léxico.
Metodologicamente, trata-se de um estudo que se insere no paradigma
qualitativo de caráter interpretativista, a partir do método epistemológico
materialismo crítico dialético, pesquisa bibliográfica centrada no Interacionismo
Sociodiscursivo e na Análise Crítica do Discurso, embasada em autores como
Bakhtin (1992), Bronckart (2003) e Fairclough (2001) e pesquisa documental de
sentenças produzidas nas décadas de 1990 a 2010, nas comarcas de Ponta Grossa e
de Londrina, Estado do Paraná.
Ao final, pela análise do gênero textual, a imagem que permanece no
ideário da sociedade contemporânea brasileira, em específico a da paranaense, é a
do Direito como espaço secreto e da Justiça, consequentemente, como algo distante
de grande parcela da população.
Assim, acredita-se que as interfaces realizadas entre as correntes teóricas
tornaram possível analisar a estrutura funcional dos gêneros textuais jurídicos e
conferir que suas atualizações linguístico-discursivas, em especial a seleção lexical,
refletem as relações de poder existentes no domínio discursivo jurídico.

Reflexões teóricas e interfaces


Procuramos, neste tópico, referenciar teoricamente a natureza do gênero
selecionado, explanar a respeito dos critérios que nortearam a sua escolha, e
analisar os aspectos textuais selecionados, a fim de comprovar ou não a hipótese
inicial descrita anteriormente.
O termo gênero remonta aos gregos, com Platão e com Aristóteles e seus
estudos a respeito da retórica; considerada na Antiguidade Clássica como uma arte,
teve seu desenvolvimento voltado para capacitar tanto escritores quanto oradores
na produção de gêneros, observados os propósitos e audiências.
Contemporaneamente, os estudos a respeito de gênero pressupõem a
noção de um contexto mais amplo, social e cultural, em que a linguagem é utilizada.
Como mencionado nos itens anteriores, esses estudos têm como ponto de partida as
reflexões bakthinianas acerca de gênero, discurso e enunciado.
Para o pensador russo, os gêneros são determinados historicamente (essa é
a importância do contexto sociocultural), e as intenções comunicativas, como parte
das condições de produção dos discursos, geram usos sociais determinantes dos
gêneros, os quais dão forma ao texto.
Nossa pesquisa é embasada nos escritos de Bakhtin (1992; 1994), Bronckart
(2003), Adam (1999), Marcuschi (2008) a respeito dos gêneros textuais. E ao adotar
os pressupostos teóricos desses autores, entendemos a língua como atividade
social, histórica e cognitiva, postulando sua natureza funcional e interativa. E é
justamente nesse aspecto sociointerativo da língua (nesse contexto), que os gêneros
textuais se organizam como ações sociodiscursivas para agir sobre o mundo e
também para dizê-lo e construí-lo.
Bakhtin concebia a linguagem como prática social numa perspectiva
dinâmica, sua natureza relaciona-se com o social e o ideológico, portanto deve ser
compreendida na interação entre os sujeitos socialmente organizados. Cabe lembrar

100
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que as interações ocorrem em determinadas esferas de comunicação e têm propósitos
comunicativos específicos. Assim, na esfera jurídica, os advogados, promotores e
juízes têm propósitos comunicativos específicos de acordo com a intencionalidade
da ação judicial.
O Interacionismo sociodiscursivo, doravante denominado ISD, encontra-se
inserido no movimento do interacionismo social que prega serem as propriedades
das condutas humanas o resultado de um processo histórico de socialização.
O ISD nasceu com os pesquisadores do grupo de Genebra, dentre eles Jean-
Paul Bronckart, Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz. Um de seus aspectos centrais
é ponderar não apenas os estudos linguísticos, mas também fazer uso da psicologia
e da sociologia para analisar os eventos interacionais, considerando a língua como
prática humana e, portanto, social.
Bronckart assevera que nossas interações sociais ocorrem pela produção
de discursos, motivo pelo qual denominou sua perspectiva teórico-metodológica
de interacionismo sociodiscursivo. As bases teóricas do ISD perpassam a teoria do
desenvolvimento de Vygostky (1989), a teoria bakhtiniana da linguagem (1992) e a
teoria do agir comunicativo de Habermas (1987).
O ISD, com base nas correntes teóricas acima mencionadas, busca analisar a
linguagem como prática social, em que os comportamentos humanos compõem redes
de atividades as quais acontecem mediante diversas interações e são materializadas
por meio de ações de linguagem, que se realizam discursivamente em um gênero.
A ação de linguagem é definida por Bronckart (2003, p.99)

Num primeiro nível, sociológico, como uma porção da atividade de


linguagem do grupo, recortada pelo mecanismo geral das avaliações
sociais e imputada a um organismo humano singular; e pode ser definida
em um segundo nível, psicológico, como o conhecimento disponível
em um organismo ativo sobre as diferentes facetas de sua própria
responsabilidade na intervenção verbal. Desse segundo ponto de vista,
que é o único que nos interessa aqui, a noção de ação de linguagem reúne
e integra os parâmetros do contexto de produção e do conteúdo temático,
tais como um determinado agente os mobiliza, quando empreende uma
intervenção verbal.

Essas ações estão associadas à utilização das formas comunicativas e


encontram-se em uso numa determinada formação social, ou seja, ao emprego dos
gêneros textuais.

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Fairclough (2001) preconiza o discurso como uma prática social, valoriza
também a análise linguístico-textual, pois, segundo ele, a partir dela é possível
compreender a prática social.

Minha tentativa de reunir a análise linguística e a teoria social está centrada


numa combinação desse sentido mais societário de ‘discurso’ com sentido
de ‘texto e interação’ na análise de discurso orientada lingüisticamente.
Esse conceito de discurso e análise de discurso é tridimensional. Qualquer
‘evento’ discursivo (isto é, qualquer exemplo de discurso) é considerado
como simultaneamente um texto, um exemplo de prática discursiva
e um exemplo de prática social. A dimensão do ‘texto’ cuida da análise
linguística de textos. A dimensão da ‘prática discursiva’, como ‘interação’,
na concepção ‘texto e interação’ de discurso, especifica a natureza dos
processos de produção e interpretação textual (FAIRCLOUGH, 2001, p.22).

Para este pesquisador, a interpretação dos discursos parte das diversas


manifestações textuais e do modo como elas constituem a construção de diferentes
discursos. Dessa forma, é possível afirmar que certos discursos manifestam-se por
meio de determinadas construções linguísticas e textuais a fim de expor conceitos
fundamentais (sustentam a existência) de tais discursos.
É importante ressaltar que Fairclough é o precursor da abordagem teórico-
metodológica de investigação linguística conhecida como Análise Crítica do
Discurso, doravante ACD, perspectiva que surge na década de 1980 e se fortalece
na década de 90. Essa teoria compreende a linguagem como prática social e
observa a ligação entre linguagem, poder e sociedade, deste modo uma de suas
maiores preocupações é revelar as relações de dominação e hegemonia produzidas
discursivamente. Para tanto, ela descreve e interpreta todos os mecanismos
responsáveis pela transformação de tais relações.
Assim, a ACD procura, na superfície dos textos analisados, marcas de como
as estruturas e práticas sociais afetam e induzem a seleção dos elementos linguísticos
usados num texto e os efeitos dessas escolhas linguísticas nas referidas estruturas e
práticas sociais.
Esta é a razão pela qual buscamos subsídios na ACD para auxiliar a
interpretação de nossos dados, afinal, ela não contempla só a análise linguística,
mas observa também a crítica social e a situação sócio-histórica, numa perspectiva
transdisciplinar. Assim, partimos dos dados linguísticos dos gêneros textuais
jurídicos para verificar a inter-relação dos textos com as estruturas e práticas sociais.
Em nosso trabalho, usamos a análise de gêneros proposta por Bronckart
e nos apropriamos dos ensinamentos de Fairclough (2001) para compreender a
problemática social da manutenção ou não do “juridiquês” no léxico e na construção

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do gênero textual jurídico. Na perspectiva da ACD, o analista precisa identificar os
obstáculos sociais que corroboram para instaurar o problema em pauta como um
problema social. Assim, faz-se necessário descobrir as questões sociais, envolvidas
na sustentação ou não do ‘juridiquês” e a ACD, ao expor o funcionamento dos
mecanismos de dominação social instituídos pela/através da linguagem, busca
possibilidades de intervenção e transformação das relações de poder.

Caracterização do gênero selecionado: estrutura, funcionamento,


alcance social
Primeiramente, cabe salientar que a “interação não se dá intermediada
pelos advogados que foram os textualizadores da Petição e da Contestação,
mas pelas informações proferidas pelos expositores....” (SILVA, 2002, p.143). Os
elementos motivadores de toda e qualquer decisão proferida pelo juiz devem estar
efetivamente fundamentados (em textos legais, na jurisprudência e em declarações
de peritos e testemunhas), pois eles induzem o magistrado em sua decisão. Este é o
enunciador/textualizados do gênero e os coenunciadores são as partes (requerente
e requerido), representadas por seus advogados.
O lugar social da produção é a 2ª Vara Cível da Comarca de Londrina,
Estado do Paraná (Linha 01 e 02, página 1). O enunciador-textualizador é marcado
pela unidade linguístico-discursiva nome e assinatura do juiz de direito responsável
ao final da última página, enquanto o destinatário imediato é determinado pela
designação Poder Judiciário” (Linha 01, página 1). O textualizador objetiva
apresentar sua decisão judicial acerca do que foi visto e discutido nos gêneros
petição inicial e contestação, deixando transparecer as várias vozes: ditames
legais e os referidos gêneros, como tem força decisória no mundo jurídico, seu
caráter é performativo. Além do textualizador e do destinatário, figuram no texto
os expositores da Petição Inicial, identificados como requerentes e a outra parte
designada como requeridos.
O conteúdo temático da interação se constrói a partir da ação proposta, a
qual impõe uma sentença dirigida ao Poder Judiciário. No plano actancial, apresenta
uma síntese dos dois gêneros anteriores, sua própria avaliação dos mesmos, sua
decisão final. Os tipos de discurso se estruturam em discurso interativo e discurso
narrativo. O discurso interativo é predominante, pois instaura uma relação jurídica.
Aparece marcado pelos dêiticos de pessoa e de lugar que identificam o textualizador,
o destinatário e o lugar de interação conforme visto anteriormente; pelos dêiticos
temporais com verbos conjugados no tempo presente do modo indicativo. Já o
discurso narrativo revela-se pela designação dos autores e dos réus; pelos verbos,

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em sua maioria, no tempo pretérito perfeito do modo indicativo. Verificamos os
tempos verbais quando da discussão da petição inicial.
No que concerne às modalizações, notamos a inter-relação da deôntica com
a lógica e a pragmática. Como já mencionado anteriormente, a primeira é própria
dos textos jurídicos e as demais dizem respeito ao “querer” e aos “fatos”. Como
exemplos das modalizações presentes no texto, há a citação de vários artigos do
Código Civil e do Código de Processo Civil, menção a várias jurisprudências, aos
contratos e aos documentos em anexo.
A sequência argumentativa prevalece no desenvolver do gênero articulada
às sequências narrativas, responsáveis por retomar os fatos e fundamentos já
arrolados. Com efeito, a sentença retoma, de forma coerente, os argumentos expostos
na petição inicial e na contestação, formando uma extensa sequência argumentativa.
Os mecanismos de conexão presentes na sequência argumentativa têm função de
balizamento e explicitam a ordem lógica dos fatos e dos fundamentos: por outro
lado; na mesma linha de raciocínio, no caso em tela, no tocante, etc.
Relativo à coesão nominal e ao enunciador/textualizador, encontramos o
nome próprio (última página) ocupando a função de introduzir o referente. Como
marca de anáfora pronominal na retomada do elemento, temos também na última
página a expressão “juiz de direito”. No que concerne ao destinatário, a função
de introdução é marcada na L.01, p. 01 – Poder Judiciário, não há ocorrência de
anáforas nominais, nem pronominais.
As personagens são os propositores da ação, ora requerentes, e os
demandados, ora réus-requeridos. Com relação aos primeiros, temos como
função de introdução o nome próprio. São retomados pelas anáforas nominais:
designadoras de nacionalidade (brasileiro), estado civil (casado), identificação
(CPF/RG), residentes e domiciliados, os autores, os requerentes, as partes. Não há
ocorrência de anáforas pronominais. Em relação aos demandados, também os seus
nomes próprios funcionam como introdutores, retomados pelas anáforas nominais:
pessoa jurídica , identificação, requeridas, as partes; não há presença de anáfora
pronominal. Relativo ao lugar físico e social de interação, a introdução é feita pela
unidade linguístico-discursiva Comarca de Londrina – 2ª Vara Cível.
Seguindo o postulado por Silva (2002, p. 162),

[...] as retomadas anafóricas não apresentam a mesma configuração das


dos textos anteriores, uma vez que as decisões e o veredicto carecem de
especificações, daí a presença maior de expressões lingüísticas ao invés de
termos vocabulares independentes. Como nos demais textos, cabe, aqui,
também, ressaltar a predominância de retomadas com valor nominal, e

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não pronominal, dada a necessidade, existente nos textos jurídicos, de
explicitar com precisão as instâncias estabelecidas.

De forma diversa à petição inicial e à contestação, que se preocupavam


em expor os fatos, a sentença apresenta uma característica performativa por ser
um ato decisório, e, logo, sua base é verbal. No que concerne à coesão verbal, na
temporalidade primária há predominância da simultaneidade, pois, o tempo
presente é o balizador das decisões tomadas pelo enunciador/textualizador – Julgo;
Decido, verbos performativos. A temporalidade secundária apresenta uma situação
de anterioridade com a retomada do exposto na inicial e na contestação.
Encontram-se presentes as vozes do enunciador/ textualizador – Juiz
de Direito, investido de prerrogativas legais, (por meio de expressões legais, em
especial, e por jurisprudências); dos advogados e dos requerentes e réus-requeridos.
O enunciador/textualizador (juiz), representante legal do Estado no campo
do Direito, procede à sua decisão acerca de tudo que foi exposto e apresentado,
ditando ao final: “Publique-se, Registre-se, Intime-se” com a finalidade de divulgar
publicamente sua decisão. Dessa maneira, a sentença é baseada apenas nos contextos
linguísticos da inicial e da contestação.
Quanto aos arcaísmos e preciosismos sentença, foi elaborado um
levantamento e pelos dados analisados é possível verificar grande incidência de
vocábulos e expressões latinas, das quais a maior parte já tem termo correspondente
em português. E esse fato apresentou-se de forma uniforme tanto na comarca de
Londrina quanto na de Ponta Grossa. Logo, a possibilidade de que a disciplina de
Latim, na grade curricular dos cursos de Direito, colaboraria para a manutenção
dos latinismos nos gêneros da área não teve respaldo. Enquanto na UEL, a referida
disciplina nunca fez parte da grade curricular, na UEPG, era obrigatória até 1989, e
tornou-se optativa de 1990 a 1996.
Como não houve diferenças significativas nas ocorrências entre as comarcas,
ficou latente que, independentemente de localização geográfica e/ou cultural, o
domínio discursivo jurídico é coercitivo tanto nos rituais quanto na configuração
linguística de seus gêneros.
Os gêneros textuais revelam os ideais, os medos de uma determinada época.
E, ao verificarmos o léxico do gênero jurídico num lapso temporal de duas décadas
buscamos índices das mudanças sociais. Constatamos que a linguagem do Direito
ainda se mantém arcaizante, um repositório de termos e expressões latinas, numa
tentativa de manutenção do poder. A linguagem arcaica, no sentido assumido
nesta pesquisa, e rebuscada restringe o acesso ao entendimento, reforçando

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o caráter “elitizado” do Direito. Exibe também uma ideia de superioridade de
discurso e superioridade dos sujeitos que conhecem estes discursos e seus códigos.
Fairclough (1989, p.2) preconiza

Dentre os efeitos mais óbvios e visíveis das restrições sobre o acesso está a
maneira pela qual ter acesso a tipos prestigiados de discurso e posições do
sujeito acentua um status e autoridade publicamente reconhecidos.

Uma razão para isso é que tornar-se um doutor ou um professor ou um


advogado é geralmente visto como uma realização puramente individual
que merece o reconhecimento de status e autoridade, sendo que as restrições
sociais sobre quem pode alcançar tais posições são correspondentemente
encobertas[...]Assim, o conhecimento profissional e habilidades atuam
como emblemas de uma realização pessoal, mistificando as restrições
sociais ao acesso – tanto como cartões de sócios para aqueles que logram
o acesso como um meio de excluir os que estão fora. Os discursos dessas
profissões, incluindo vocabulários especializados, ou jargões servem a
todas essas funções.

Como já mencionamos anteriormente, o abandono de construções lexicais


arcaizantes e preciosas é mais perceptível no gênero sentença, devido à própria
orientação da AMB quanto ao uso da linguagem. Logo, é possível entrever que os
magistrados vêm tentando aproximar o Poder Judiciário e a população por meio de
práticas de linguagem mais claras e concisas, o que facilita a desburocratização da
prestação jurisdicional.

Considerações Finais
A análise do corpus evidencia que a estrutura funcional do gênero textual
jurídico sentença é prototípica, institucionalizada; a dimensão polifônica do gênero
se dá pela articulação das vozes dos enunciadores/textualizadores (advogados e
juiz), das vozes das personagens (requerentes e requeridos) e pela voz da Lei; a
modalização predominante é a deôntica, própria dos textos jurídicos, articulada, com
a modalização pragmática (valor de veredicto); a partir das relativas estabilidades do
gênero, as atualizações linguístico-discursivas dos enunciadores/textualizadores são
responsáveis por demonstrar a adequação do referido gênero aos anseios da sociedade
moderna, no que tange ao léxico; a visão do Direito como espaço para confrontos
linguísticos reforça a ideia de que os profissionais do Direito devam se manifestar
de forma prolixa, rebuscada e ornamental ao construir sua rede argumentativa;
vislumbram-se mudanças paulatinas na linguagem jurídica, especialmente, na dos
magistrados; portanto, são as coerções exercidas pelo domínio discursivo jurídico as
responsáveis pela sustentação das práticas de manipulação e de hegemonia.
Como já exposto anteriormente, o gênero textual jurídico, objeto de nossa
análise, apresenta particularidades prototípicas no tocante à sua organização

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estrutural e às suas peculiaridades linguístico-discursivas pelo fato de ser
institucionalizado. Logo, como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, de
forma prototípica, o gênero sentença manifesta as mudanças históricas e sociais pelas
atualizações linguístico-discursivas, em especial pela escolha lexical. Dessa forma,
na composição de uma teia argumentativa para asseverar a tutela jurisdicional, o
léxico utilizado pelos enunciadores/textualizadores em suas atualizações linguístico-
discursivas auxilia na reconstrução das condições de produção do gênero.
Cabe lembrar que as escolhas lexicais feitas pelos enunciadores/
textualizadores na elaboração de um gênero estão relacionadas à coerção do próprio
gênero, e, no caso em tela, do próprio domínio discursivo jurídico. Nesse domínio
discursivo, ainda há uma crença fortemente arraigada de que a linguagem jurídica,
vista como rebuscada e cheia de labirintos arcaicos, é sinônima de prestígio e de
poder, principalmente por ser “ininteligível” aos cidadãos leigos.
Assim, acreditamos que as interfaces realizadas entre o Interacionismo
Sociodiscursivo, a Análise Crítica do Discurso e a Lexicologia tornaram possível
analisar a estrutura funcional do gênero textual jurídico e conferir que as atualizações
linguístico-discursivas, em especial a sua seleção lexical, refletem as relações de
poder existentes no domínio discursivo jurídico, ou seja, as práticas de manipulação
e manutenção hegemônicas.

Referências
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AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros). Campanha Nacional pela
Simplificação da Linguagem Jurídica. Jornal Tribuna do Direito, Santos, 30 out. 2005.
Disponível em: <http://atribunadigital.globo.com/br>. Acesso em: 06 mar. 2006.
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introdução de um novo instrumento na escola. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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discursivo. São Paulo: Educ, 2003.

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CÂMARA JR, J. M. Dicionário de Lingüística e Gramática. Petrópolis: Vozes, 1986.
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ciências sociales. In: WODAK, Ruth; MEYER, Michel. (Eds.) Métodos de análisis crício
del discurso. Barcelona: Gedisa, 2003. p.179-203.
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racionalización social. Madrid: Taurus, 1987
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Parábola Editorial, 2008.
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inicial, contestação e sentença. 2002. Tese em Estudos Linguísticos - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

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FUGA, NENHUM DE NÓS: SILÊNCIO E VIOLÊNCIA
Cleverson Lucas dos Santos (UNIOESTE/SEED)
Silvana Apª da Silva (UNIOESTE/SEED)

Introdução
Todo discurso é um jogo entre o silêncio e o dizer. Um dito que é atravessado
por uma memória discursiva e um interdiscurso que lhe dá sustentação. Que já
foi dito “antes e em outro lugar”; e também um não-dito que deixa em aberto as
inúmeras possibilidades do dizer, ou que, deixa em silêncio aquilo que poderia/
deveria ser externalizado. A canção Fuga da banda Nenhum de Nós, põe em
funcionamento essas premissas, fazendo funcionar o dito x não-dito na composição.
Além dos efeitos de sentido advindos da própria canção, a memória
evocada nela traz consigo outra canção já existente da banda. Articulada como uma
continuação da narrativa posta em “Camila, Camila”, almeja dar um desfecho (ou
não) ao já proposto nesta: a violência contra a mulher. Aí, outros efeitos de sentido
surgem. É importante destacar as condições de produção iniciais: foi lançada
em 1989, é uma composição de uma banda pop rock gaúcha, que vivenciava um
período de efervescência junto aos adolescentes e jovens e que chegou a vender
mais de 200 mil cópias de seu 2º trabalho em que “Fuga” se encontra, embalada
justamente, pelo sucesso da canção “Camila, Camila” do primeiro disco. A partir
disso trabalharemos como o silêncio discursivo/sonoro dialoga com a perspectiva
do dito e não dito presente no discurso.
Nessa análise recorremos ao referencial teórico-metodológico da Análise de
Discurso de linha francesa (doravante AD). Fazemos um breve percurso histórico
destacando quais conceitos serão aqui utilizados no percurso teórico-metodológico,
destacando como a articulação entre Linguística, Materialismo e Psicanálise permite
vislumbrar o discurso enquanto materialidade a ser estudada.
Além disso, é preciso imbricar duas outras temáticas a esta análise: a
música e a violência contra a mulher. Com relação à música, ela é percebida
justamente em sua perspectiva significante em essência. Cada composição
musical é aberta a significação, como o é o próprio discurso. No caso, da banda
Nenhum de Nós, pop rock, traz consigo uma estética sonora/linguística e visual
própria para o seu público.
Por outro lado, é evocada de maneira sutil, mas bastante contundente,
a temática da violência contra a mulher/de gênero. Essa temática está presente na
cultura brasileira, e produz efeitos na definição do imaginário do ser homem e mulher
no país. São traços muito presentes: diariamente são registrados casos de violência
doméstica, machismo, condições desiguais, assédio moral e sexual, com relação às
mulheres, mesmo após aprovação de legislação que prevê a punição aos agressores.
Por fim, percebemos que a canção mobiliza efeitos de sentido pondo à
mostra o diálogo entre aquilo que é dito e o que é posto em silêncio. O próprio
silêncio é tratado de maneira material: mais do que materializar a violência, o não-
dito é significativo. O caminho que, possivelmente, a garota seguiu é fruto desse
movimento de dizer e não-dizer, em um momento crucial de reflexão/desespero
diante da situação vivenciada.

Fundamentação Teórica
A AD surgiu na década de 1960, com os estudos propostos pelo filósofo
francês Michel Pêcheux diante dos estudos da linguagem, que então estruturalistas,
voltavam-se unicamente sobre a língua para desenvolverem seus estudos. Ferreira
(2003) aponta que a AD caracteriza-se por um viés de ruptura a toda uma conjuntura
política e epistemológica e pela necessidade de articulação a outras áreas das ciências
humanas, especialmente a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise.
A AD continua a autora, percebe o discurso enquanto objeto teórico, no
entremeio de diferentes áreas do conhecimento:

O que ela visa é tematizar o objeto discursivo como sendo um objeto-fronteira, que
trabalha nos limites das grandes divisões disciplinares, sendo constituído de
uma materialidade linguística e de uma materialidade histórica, simultaneamente.
A AD recorta, portanto, seu objeto teórico (o discurso), distinguindo-se da
linguística imanente, que se centra na língua, nela e por ela mesma, e também
das demais ciências humanas, que usam a língua como instrumento para a
explicação de textos (FERREIRA, 2003, p. 41, grifos nossos).

A AD trata assim os conceitos dentro de seu próprio espectro investigativo,


ressignificando-os para analisar o seu objeto em uma perspectiva própria. Essa
condição acabou por formar um novo terreno, em que o analista trabalha:

[A AD] Interroga a Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona
o Materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo
modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como
materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele
(ORLANDI, 2009, p. 20, grifos nossos).

Partindo dessa articulação, foram sendo delineados os conceitos que


compõem a AD. Em nosso caso, memória, interdiscurso, silêncio, condições de

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produção são vistos em uma perspectiva discursiva. É importante lembrar que no
Brasil, os estudos da AD que utilizamos são dos representantes da teoria no Brasil,
que ressignificam os conceitos primordiais. Os trabalhos de Orlandi (1997, 2009);
Ferreira (2003) e Souza (1984) são determinantes nessa análise.
Nesse referencial, destaque-se o conceito de interdiscurso proposto por Pêcheux
(2009): “aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente”, isto é, que precede
o discurso e dá sustentação para o dito, articulado às condições de produção. Condições
que, além da materialidade linguística, significam no discurso. Nelas estão também os
sujeitos, não enquanto origem do discurso, mas como parte dele.
Outro conceito importante é a noção que temos de silêncio. Orlandi (1997)
trabalhou o silêncio em duas possibilidades: enquanto fundante, origem do dizer
e como silenciamento, impedimento do dizer. A linguagem supõe a transformação
da matéria significante por excelência (silêncio) em significados apreensíveis,
verbalizáveis. A significação é um movimento. Errância do sujeito, errância dos
sentidos (ORLANDI, 1997, p.35). O silêncio, assim, não é ausência de discurso, mas
é ele em potencial, possibilidade de sempre ser outro. É constitutivo do discursivo.
Também o é, quando se impõe o discurso único ou não deixa o discurso surgir, força
o silenciamento. Mas, produz efeitos de sentido.
Nesse trabalho, consideramos a canção em sua materialidade linguística
e sonora, que dialogam incessantemente com o silêncio. Entre a sonoridade e o
silêncio, os sujeitos inserem-se/são inseridos fazendo funcionar o discurso, a partir
de suas condições de produção. Dessa maneira não há sentido fechado, mas há a
multiplicidade significante: o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma
proposição não existe em si mesmo, na relação transparente com a literalidade
do significante, mas é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo
no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são
produzidas; adquire sentido em referência as posições ocupadas por aqueles que as
empregam (PÊCHEUX, 2009, p. 146).
Na materialidade linguística, há o diálogo entre o dito e o não-dito e
também entre o dizer e o silêncio; na sonoridade consideramos tanto o verbal
quanto o não-verbal, em sua polifonia. Souza (1984) trata desta questão: a
autora percebe a discursividade que está presente também no plano sonoro, não
somente enquanto sons variados, mas que possibilitam a polissemia no campo
sonoro. É nessa presença-ausência evocada pela canção que buscamos desvelar o
funcionamento discursivo de “Fuga”.

Entre o dito e o não-dito: silêncio(s)

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Ao analisar a canção “Fuga”, logo de início percebe-se que muitas lacunas
se abrem. É pelo interdiscurso e pela memória discursiva, que é possível perceber
a questão da violência contra a mulher. Uma questão presente no imaginário da
sociedade brasileira, mas que é sempre tratada de maneira velada e/ou reticente.
Considerando que é uma canção ainda da década de 1980, o traço patriarcal da
cultura brasileira é ainda mais arraigado nas diferentes FDs.
Até o século XX, quando a violência chegava a ser denunciada e posta
em julgamento, a defesa do agressor atuava tendo duas possibilidades: defesa da
honra ou crime passional, motivado por amor desmedido, invertendo a situação e
incriminando, mais uma vez, a vítima. O patriarcalismo na sociedade advém das
formações discursivas religiosas, culturais, socioeconômicas presente nas diferentes
classes sociais brasileiras. De uma forma que, arraigado, tende a tornar-se violento,
quando encontra resistência àquilo que tem como valor estabelecido.
A banda Nenhum de Nós9 foi formada em 1986, no estado do Rio Grande
do Sul10. “Fuga” integra o 2º disco da banda. A canção inicia-se com a seguinte
sequência discursiva11 (SD):

SD01: Nunca mais vai estar em casa/E Nada será igual (NENHUM DE
NÓS, Faixa 6, Fuga, 1989)

Os advérbios “nunca mais” e “nada” põem em funcionamento o confronto


entre o dito e o não-dito. O dito expõe que não mais vai estar em casa, e diante
de determinadas situações, será diferente. O não-dito, possibilidade discursiva,
questiona o quê será diferente? Que situação é esta que estar em casa é um problema?
Evocando desse modo, as condições para que esse discurso possa fazer sentido:
algo aconteceu/acontece dentro do espaço da casa.
O lar é um ambiente em que supostamente as pessoas sentem-se protegidas,
dadas relações familiares, mas nesse caso, mostra-se hostil: há um problema, que
impele a garota a sair desta situação/fazer diferente. Há aqui, duas perspectivas
que se interpenetram. A primeira, que trata do discurso presente na própria canção

9. A explicação dada pelos primeiros integrantes da banda sobre a sua denominação consta em seu
site: “- O que nós três temos em comum? - Nenhum de nós enxerga bem! (todos míopes) - Nenhum
de nós pegou caserna! (serviço militar) - Nenhum de nós isso! - Nenhum de nós aquilo! NENHUM
DE NÓS! Ficou! Simples assim, despretensioso, sem mistérios. Uma decisão que vem nos valendo
quinze anos de explicacões!!! (http://www.nenhumdenos.com.br/) Os efeitos de sentido advindos
desse nome não serão explorados aqui.
10. A banda é composta por Thedy Correa, Sady Homrich, Carlos Stein; depois passam a inte-
grar o grupo, Veco Marques e João Vicenti. O disco de estreia da banda é de 1987 e vendeu, na
época, 30 mil cópias.
11. Utiliza-se aqui a noção de sequência discursiva enquanto “sequências orais ou escritas de dimen-
são superior à frase” (COURTINE, 2009, p.55)

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e os efeitos de sentido advindos dela, sem a retomada de outra canção intitulada
“Camila, Camila”. A segunda, leva em consideração o que a própria banda afirmou:

Desde o início esta canção nasceu como sendo uma espécie de continuação
da história da Camila. O que teria acontecido depois dos olhos insanos
e as marcas no espelho. A garota se mandou... Na gravação original a letra
de Camila é sussurrada quase que como uma despedida (NENHUM DE NÓS,
2003, grifos nossos)

Considerando isso, a canção “Camila, Camila” assume função de


interdiscurso e atravessa “Fuga”, reverberando seus efeitos de sentido. A violência
contra a mulher é a memória que lhes dará a sustentação. “Fuga” assume tons mais
dramáticos e densos. O que poderia funcionar como birra adolescente, de fugir dos
pais por não se enquadrar nos ditames familiares, mas que posteriormente acaba
voltando... Vai além: a violência evocada, a intensidade dos fatos tomam contornos
mais intensos. A memória discursiva é de abuso sexual e psicológico que implica
(re)ações mais drásticas.
Em “Olhava as pessoas em volta/E Ninguém podia Ajudar” constrói-se uma
imagem de uma pessoa hesitante, diante da situação de que não havia condições de
solucionar o problema. O que na canção em si parece uma incompreensão, que se
atribui ao adolescente/jovem, amplia-se considerando “Camila, Camila”. Em casos
de violência doméstica, em uma sociedade marcadamente machista, a denúncia
acaba voltando-se contra a própria vítima.
A marcação rítmica da canção traz presente algo semelhante ao metrônomo,
sequenciador sonoro que mantém o ritmo de todos os instrumentos. As estrofes
cantadas em um tom quase confessional, alongando as palavras finais dos versos,
são rompidas pela intensidade do refrão. A sonoridade construída traz momentos
de paz e tranquilidade e os momentos intensos da violência vivenciados pela garota.
“Tinha o fogo em suas mãos/E dentro de si o medo”, o confronto entre o
“fogo” e o “medo’ impõe a reação da garota. O fogo evoca a ardência, o calor. Há
sofrimento, mas também, ímpeto para mudar. Há medo, mas ainda tem o gérmen
que é possível reagir.
A sonoridade do refrão intensifica o clímax que prepara o desfecho final de uma
cena. “A garota se mandou!”, confronta a expressão popular que dá conta de apontar
que a garota foi embora, mas que pode ser apenas um atenuante de um desfecho ainda
pior: a morte, em muitos casos registrados com relação a violência doméstica.
O trabalho entre o dito e não-dito discursivo realizado na canção “Fuga”
põe à mostra o silêncio que se faz presente enquanto materialidade mesma, silêncio

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enquanto possibilidade do dizer e do não-dizer, além do silenciamento imposto.
Diante da impossibilidade de resolução dos problemas, muitos optam por tirar
a própria vida. O não-dito reforça isso: o problema aparentemente não exposto,
fica restrito ao plano psicológico do sujeito que experiência o sofrimento e a dor.
A proximidade fonológica entre se mandou/se matou constrói efeitos de sentido
que transformam a materialidade linguística/sonora apresentada. A paráfrase com
“matou” traz a tona, de maneira ainda mais contundente a perspectiva exposta em
“Camila, Camila”, que acaba tendo um desfecho trágico.

SD03: Tudo em volta parecia um sonho/Nada fazia sentido/E Nada será


igual/O silêncio das paredes Esperava/O silêncio Esperava/Então Adeus é
mais do que um pensamento/Então Adeus Palavra Triste (NENHUM DE
NÓS, Faixa 6, Fuga, 1989).

O silêncio presentifica todo o medo e o receio de estar em determinado


espaço. Um ambiente opressor que fazia com que a mesma não encontrasse sentido
(para vida?). A noção de silêncio aqui é bastante significativa tal qual o discurso, o
silêncio que “esperava”, toma forma: há presente o medo de se estar em silêncio.
Que, não é ausência daquilo que causa dor/sofrimento. O silêncio enquanto
materialidade dentro das vivências dela e ao mesmo, tempo, silenciamento imposto
de não poder compartilhar aquilo que estava sofrendo.

Considerações Finais
O título “Fuga” mobiliza efeitos de sentido de que, alguém ou alguma coisa
está fugindo: de quê e/ou de quem são as perguntas imediatas. Nesse processo fuga
é substantivado. Formado a partir do verbo fugir por derivação regressiva cristaliza
a ação em um ato. É o que se mostrou nesse processo: o que acontece é algo que
tem volta (ou há alguma alternativa?). Os acordes vão se intensificando, em uma
sequência repetida. Marcando e criando o espaço sonoro em que acontecem as
cenas/situações vivenciadas pela garota. A velocidade rítmica prepara os sujeitos
para a exposição daquilo que, geralmente, fica em silêncio.
O silêncio da jovem em silêncio expõe o não-dito pela canção: há sofrimento
e dor, e por outro lado, uma tentativa de se solucionar essa situação. Há uma
situação absurda exposta – nada fazia sentido – que, dada a memória discursiva
de violência doméstica, deixa em silêncio, no campo do não-dito, àquilo que de
fato se quer mostrar. A violência que impede à fuga/à morte não está dita, mas
funciona nas diferentes FDs em que os sujeitos estão inseridos. Ainda hoje, não é/
pode ser dita, não se tem respaldo em muitas destas FDs. É a realidade patriarcal,
que silenciosamente é posta em questão.

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Referências
FERREIRA, M. C. L. O Quadro Atual da Análise de Discurso no Brasil. In: Revista
Letras. PPGL-UFSM. Nº 27, jul-dez 2003. (p.39-46) Disponível em: <http://
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NENHUM DE NÓS. Acústico ao Vivo 2. Encarte. Rock, Orbeat Music, 2003 1 CD
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ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 8. ed. Campinas,
SP: Pontes, 2009.
______. As Formas do Silêncio: No Movimento dos Sentidos. 4 ed. Campinas, SP:
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PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Tradução
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SOUZA, T. C. C. Discurso e oralidade: um estudo em língua indígena. Tese de
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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
ROTINAS: SENTIDOS PRESENTES NO DISCURSO
Danieli Winck Iijima (UNIOESTE)

Introdução
A pesquisa propõe dialogar com os discursos implícitos e explícitos
presentes na interação entre professor e aluno diante da materialização das rotinas
em sala de aula nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, tomando como base os
pressupostos Bakhtinianos de linguagem. Para tanto, são utilizados dados coletados
em uma pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Educação baseada na análise das rotinas no processo de ensino e de aprendizagem.
O artigo está estruturado primeiramente na descrição das rotinas no processo
educativo. Em seguida, destaca-se algumas rotinas extraídas da pesquisa de campo
desenvolvida, a luz neste momento, da perspectiva de linguagem mediadora para
a análise. Por fim, destacamos algumas considerações acerca do quê esse referencial
de linguagem possibilitou verificar e compreender das rotinas pedagógicas.

Rotinas no processo de ensino e de aprendizagem


No dia-a-dia quando recorre-se a palavra rotina, logo nos referimos
as ações ou atividades que se desenvolvem com repetição constante e que se
estabelece de maneira intrínseca as ações cotidianas, sendo realizadas muitas
vezes de forma habitual.
Não muito diferente na cotidianidade do ambiente educativo as rotinas
são estabelecidas com um padrão característico e recorrente, isto é, são ações
desenvolvidas com mediação do professor mediante um propósito regulador.
Estas podem estar sendo vinculadas para iniciar uma atividade de estudo – ação
estabelecida pelo professor mediador do processo – e que tem como prerrogativa a
apropriação do conhecimento historicamente acumulado, ou para encaminhar uma
norma/exigência já estabelecido pelo espaço educativo.
Verifica-se que ao se tratar da primeira opção, as rotinas que se evidenciam
são leituras coletivas ou individuais pelos alunos na sala de aula, dos cartazes,
alfabetos, numerais, registro da data e nome da escola (cabeçalho), contagem da
quantidade de alunos em sala, arrumação do calendário e distribuição de crachás de
cada aluno. A segunda já é estabelecida por ações como chamada e organização de
filas para direcionamento dos alunos aos lugares do espaço educativo.
Tanto a primeira como a segunda, carregam a herança cultural de
desenvolver essas ações habitualmente do mesmo modo e maneira. O que difere-se
de uma a outra materialização é o modo de encaminhamento, mediação com que o
professor estabelece e o objetivo a que ele propõe com determinada ação.
A pesquisa de campo desenvolvida para compreensão das rotinas
pedagógicas no espaço educativo, com turmas dos anos iniciais do Ensino
Fundamental – 1º e 2º anos – detalha e exemplifica as categorias de rotinas
encontradas no processo de ensino e de aprendizagem (IIJIMA, 2014):

Tabela 1: Categorização das rotinas nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental


ROTINAS
Categorias Subcategorias
▫ Entrada
e cumprimento das nor-
Organização do espaço

▫ Refeitório
▫ Banheiros
mas escolares

▫ Sala de aula
▫ Recreio
P Organização de filas
▫ Informática
▫ Biblioteca
▫ Final de aula
▫ Lavatórios
▫ Flúor
▫ Conjunta das letras do alfabeto
▫ Conjunta das letras do alfabeto aleatoriamente
▫ Individual aleatoriamente
▫ Conjunta dos sons das letras do alfabeto
▫ Conjunta das sílabas
▫ Conjunta de
Palavras individuais
P Leituras ▫ Individual das letras do alfabeto
▫ Individual dos sons das letras do alfabeto
Estruturação dos conteúdos

▫ Individual das palavras


▫ Conjunta somente de vogais
▫ Conjunta das regras da classe
▫ Números fixados no quadro
▫ Números fixados na parede
▫ Nome das formas geométricas
▫ No caderno
P Registro do Cabeçalho ▫ No livro
▫ Na atividade
▫ Quantidade de meninas
P Contagem dos alunos em ▫ Quantidade de meninos
sala ▫ Total dos alunos
▫ Total dos alunos ausentes
▫ Distribuídos pela professora
P Distribuição de Crachás
▫ Identificados pelos alunos
P Oração ▫ Todos

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
zação do
Organi-

tempo
P Arrumação do Calendário ▫ Na parede
normas esco-
mento das
Cumpri-

▫ Leitura oral dos nomes dos alunos realizada pela pro-


lares

P Chamada
fessora

Fonte: Elaborado a partir de pesquisas da autora.

As diferentes manifestações de rotinas estão relacionadas ao processo de


ensino e de aprendizagem, uma vez que, são efetivadas dentro do sistema educativo
de ensino. Cada categoria bem como subcategoria desenvolvida pelo professor ou
por solicitação da norma institucional vincula-se ao objetivo principal da escola,
isto é, enquanto instituição social de transmissão dos conhecimentos científicos.
Logo, verifica-se que seus objetivos devem estar voltados a apropriação dos
conhecimentos mais desenvolvidos pelos alunos, a quem os enunciados a todo o
momento são conferidos.
Para que os enunciados sejam verificados evidencia-se, a seguir, recortes de
rotinas visualizadas na pesquisa de campo (IIJIMA, 2014), visando neste momento,
um olhar para a interação professor-aluno na perspectiva bakhtiniana de linguagem12.

Os sentidos presentes nas rotinas


Todo o discurso prevê um interlocutor, na sala de aula, os discursos se
revelam na interação dos sujeitos, reveladores de diferentes intencionalidades.
Neste sentido, os interlocutores são estabelecidos, como o professor, que media
o processo de ensino e de aprendizagem e o aluno sujeito em desenvolvimento
que deve, a partir da mediação do professor, apropriar-se do conhecimento já
produzido pela humanidade.
As rotinas estão intrínsecas na linguagem de seus interlocutores e
ocorrem na e por meio dela, isto é, na enunciação dos sujeitos deste processo.
Segundo Bakhtin (2004),

[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato
de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém.

12. Não trabalhou-se nesta pesquisa com a gama de categorias e subcategorias elencadas por meio das rotinas,
em destaque algumas são evidenciadas com enfoque para um olhar linguístico, em virtude do espaço para
análise neste momento.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 113).

A seguir, destaca-se a interação professor-aluno no momento de rotina para


registro do cabeçalho escolar:
Professora solicita que os alunos registrem a data e se direciona ao quadro,
indagando-os:
- O que a gente precisa para escrever a data... Colocar o nome da...
Os alunos:
- Cidade...
A professora:
- E qual é o nome da nossa cidade?
Os alunos demoram em responder, e a professora os auxilia:
- Casca...
E os alunos:
- vel...
- Então agora cada um de vocês vai falar uma letra pra eu poder escrever o
nome da cidade!
Desse modo, cada aluno menciona uma letra para compor o nome da cidade
no quadro. Nesse momento, os alunos se auxiliam entre si.
Em seguida, a professora continua:
- Que dia a “prof.” falou que era hoje?
Um aluno responde:
- O 2 e o 0...
- Isso é, o 2 e o 0 formam o dia 20. De que mês?
Os alunos respondem:
- Março...
P3 complementa:
- Isso do mês de março, que é o terceiro mês, por que passou janeiro,
fevereiro e agora março, que representa o terceiro mês...
Ao mesmo tempo em que a professora explica aos alunos, registra no
quadro. E continua:
- Do ano de Dois mil e?
Os alunos:
- Treze...
Assim que encerram, a professora solicita que os alunos registrem no
caderno a data (Dados caderno de bordo/IIJIMA, 2014).

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Por meio da enunciação, ou seja, da palavra dirigida ao outro, o professor
se estabelece como autoridade naquele momento, para realização pelos seus
interlocutores de determinadas ações específicas da rotina escolar. Neste aspecto,
Bakhtin (2004), destaca que, “toda palavra serve de expressão a um em relação ao
outro. Através da palavra defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise,
em relação à coletividade” (p. 113). O exemplo destacado na rotina a seguir
exemplifica essa relação:
Às 09h45min, um aluno chama a atenção da professora dizendo que estava
na hora do lanche. Assim todos param o ditado e começam a se direcionar na fila.
A professora interrompe os alunos reforçando que não os havia chamado para fila:
- Eu não chamei ainda pra fila... Pode voltar do tumulto, por favor!
Os alunos voltam para as carteiras e logo em seguida a professora os
chama. Os alunos se direcionam e a professora aguarda todos se organizarem.
Ela os direciona em fila, mas antes param no lavatório para lavarem as mãos.
Assim que lavam voltam para fila que prossegue ao refeitório. A professora chama
atenção dos alunos que não estavam quietos em fila, chamando-os pelos nomes
(Dados caderno de bordo/IIJIMA 2014).
No ato da enunciação entre os interlocutores e suas diversas
manifestações, pode-se visualizar também elementos não verbais, como esclarece
o autor: “o tema da enunciação é determinado não só pelas formas linguísticas
que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os
sons, as entonações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação”
(BAKHTIN, 2004, p.128).
A rotina destacada a seguir revela esses elementos,
Às 10h40min o sinal soa. Os alunos organizam-se em fila no pátio e
aguardam pela professora, alguns brincam enquanto a esperam. Ela então
vai até a fila e os direciona à sala de aula. Antes de chegarem, passam em
frente aos bebedouros e alguns alunos saem da fila para beber água. A
professora não os espera e continua direcionando a fila. A fila dos meninos
e das meninas entra em sala de aula e a professora aguarda na porta os
que estavam tomando água, que se direcionam à sala de aula correndo. A
professora assim aponta com o dedo para o início do corredor, solicitando-
lhes que voltem, procurando andar e não correr como ocorrerá com todos
(Dados caderno de bordo/IIJIMA, 2014).
De acordo com a perspectiva bakhtiniana, toda e qualquer linguagem
apresenta uma atitude responsiva frente ao enunciado, isto é, cada enunciado vem

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
estabelecido por outro, ou ainda também por elementos não verbais presentes na
enunciação viva. De acordo com o autor,
Toda compreensão de fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente
responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão
é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte
se torna falante (BAKHTIN, 2011, p. 271).
Nas rotinas essa atitude responsiva pode revelar enunciados tanto do
professor, quanto nos enunciados ou expressões dos alunos:
Às 10h50min, todos recebem o caderno de avaliação, entregue pela
professora. Neste momento é solicitado o registro do cabeçalho (escola/
cidade, dia, mês e ano). O mesmo é escrito no quadro pela professora.
Após escrever o cabeçalho, circula pela sala de aula e chama a atenção do
aluno (nome do aluno):
- Vamos, (nome do aluno)!? Hoje nem lápis você pegou (nome do aluno)!
No entanto, mesmo com sua atenção chamada, o aluno não realiza a atividade
e continua observando os colegas. A professora continua, realizando uma
pergunta:
- (Nome do aluno), eu vou ter que chamar a coordenadora aqui?
Dessa forma, o aluno procura o lápis, pega-o, bem como a atividade que a
professora lhe entregou no início da aula.
Logo a professora procura afastar a carteira de outros dois alunos que
estavam conversando, e não se preocupavam em registrar o cabeçalho.
Coloca suas carteiras encostadas no quadro, cada um em uma ponta,
distanciando-os dos colegas, bem como um do outro.
Mesmo distantes, a conversa entre os dois continuava (Dados caderno de
bordo/ IIJIMA, 2014).
Todo ato de enunciação, ao ser direcionado ao outro, remete uma resposta,
seja esta envolta por linguagem verbal ou elementos não verbais.

Considerações Finais
O olhar para as interações manifestadas por meio das rotinas analisadas
com base em uma perspectiva de linguagem, permitiu verificar elementos não
detalhados em pesquisa inicial para compreensão desse elemento intrínseco ao
processo de ensino e de aprendizagem.

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As diferentes manifestações de rotinas no espaço educativo vinculam-se
a organização do tempo escolar, do espaço, dos conteúdos e as normas escolares
característico de um processo histórico de desenvolvimento de determinadas ações.
Ao professor mediador deste processo cabe imprimir detalhes nessas
rotinas para que estas sejam apropriadas e efetivas de uma maneira que garanta
aos alunos o objetivo principal da escola: apropriação dos conhecimentos
historicamente acumulados.
O referencial de linguagem bakhtiniana permitiu verificar que as rotinas
se estabelecem por meio de enunciados entre seus interlocutores, como do mesmo
modo que todos os enunciados presentes em sala de aula são carregados de
intencionalidade, seja para transmissão dos conhecimentos (professor), apropriação
do conhecimento (alunos) ou para estabelecimento das normas escolares.
Nas interações visualizadas percebe-se a atitude responsiva dos sujeitos
envolvidos neste processo, por meio das entonações, da linguagem não verbal,
elementos reveladores de apreciações ou não da rotina, seja esta estabelecida pelo
professor ou pelo seja do aluno.
Verificar que as rotinas ocorrem na e por meio da linguagem (interação com
o outro) e como esta linguagem se estabelece em algumas das suas categorias no
processo de ensino enriquece a compreensão das rotinas como elemento carregado
de significados e sentidos.

Referências
BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. 11 ed. São
Paulo: Hucitec, 2004.
BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV). A estética da criação verbal. 4.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
IIJIMA, D. W. Rotinas nos processos de Ensino e de Aprendizagem nos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental. 114 p. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, 2014.

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FISGADOS PELA BOCA: QUANDO O PERSONAGEM
“VENDE” O PRODUTO
Eliane Dominico- ( GEPEDIN, UNICENTRO)
Aliandra Cristina Mesomo Lira- (GEPEDIN, UNICENTRO)

Introdução
Há algum tempo, como pais e professores, temos notado que a alimentação
das crianças está mudando. Seja em casa ou na escola, itens que antes não eram
consumidos pela maioria das crianças hoje fazem parte diariamente de sua
alimentação. O mundo mudou, a produção e oferta de alimentos também, e com
isso os hábitos alimentares de todos nós também, incluindo as crianças. O lugar da
criança na sociedade também se alterou, e hoje ela é vista como consumidora em
potencial, ou seja, ainda por conta própria não tem poder de compra, mas pode
influenciar as escolhas das famílias. Esse olhar para a criança fez com que a indústria
de alimentos e as empresas de voltadas ao entretenimento infantil construíssem uma
aliança, com produtos dirigidos especificamente ao público infantil. A hipótese de
que muito do que as crianças comem é por influência da publicidade, que constrói
os desejos e estimula o consumo, já foi debatida por alguns estudiosos como Alessi
(2014), Brito (2009), Dornelles (2005) Schoor (2009), dentre outros.
Partindo desses pressupostos o objetivo desse trabalho é refletir acerca da
relação entre publicidade, consumo e alimentação infantil, buscando identificar
em que medida o que as crianças comem é influenciado pelas propagandas e a
generalizada associação entre produtos e personagens conhecidos do público
infantil. Como problemática central elegemos algumas questões norteadoras:
Quais produtos são consumidos pelas crianças e como são feitas essas escolhas?
Quais suas preferências? Qual a relação das crianças com os alimentos? As reflexões
aqui apresentadas são resultado de estudos teóricos e pesquisa de campo, cujos
dados foram coletados por meio de entrevistas-conversas realizadas com crianças
de 6 a 8 anos de idade de duas instituições de ensino de um município de médio
porte do interior do Paraná.

Análise dos dados


A fim de reconhecer as preferências alimentares e como se dão as escolhas
das crianças dos alimentos que consomem nos propomos a coletar dados por meio
de conversas. Foram ouvidas 27 crianças, com idade entre 6 a 8 anos, alunos do
primeiro ao terceiro ano do ensino fundamental de duas instituições de ensino do
município de Guarapuava (Paraná), no primeiro semestre do ano de 2016. A seleção
das instituições deu-se de forma aleatória, bem como a participação das crianças
foi motivada pela livre manifestação, que foi autorizada por seus responsáveis.
Para efeitos de análise omitimos o nome das instituições e optamos por manter o
verdadeiro nome das crianças, resguardando sua identificação e entendendo-as
como sujeitos principais da pesquisa (KRAMER, 2002). Preliminarmente, foram
realizadas visitas às duas escolas com o intuito de conhecer as instituições, conversar
com a equipe pedagógica e deixar os termos de consentimento livre e esclarecido,
para que fossem enviados aos responsáveis pelas crianças.
As conversas foram gravadas e posteriormente transcritas com a finalidade
de focalizar as crianças e dar importância as suas vozes, pois como registra o
Kaufmann, (2013, p.79) “[...] o desafio é superar uma análise superficial, ou pautar-
se apenas no que está explícito e aparente”. O autor ainda ressalta que “[...] para
atingir as informações essenciais, o pesquisador deve se aproximar, de fato, do
estilo da conversa [...]” dos sujeitos. Os encontros aconteceram na parte externa das
instituições, onde as crianças sentaram em círculos em pequenos grupos.
Brevemente apresentamos algumas informações das instituições
frequentadas pelas crianças participantes da pesquisa. A primeira instituição
(A) é uma escola privada que atende 191 crianças de educação infantil e ensino
fundamental I e II em jornada parcial ou integral. Dispõe de boa estrutura física,
inclusive com uma horta onde, de acordo com a equipe pedagógica, são realizados
projetos voltados à alimentação. Durante a concretização do projeto os alunos
plantam, cuidam da horta, colhem e levam para casa os alimentos por eles plantados.
As mesmas verduras e legumes também são preparados para o almoço dos alunos
que frequentam período integral. Além da horta a escola oferece uma trilha ecológica
e um espaço amplo aonde acontecem aulas de equitação. A segunda instituição
(B) está localizada na “periferia da cidade e atende 254 alunos matriculados no
período matutino e vespertino. A escola é ampla, as salas são confortáveis e o
espaço externo é grande. Quanto às crianças, nas duas instituições mostraram-se
receptivas e animadas com a realização da conversa. Embora tivéssemos distribuído
mais de 120 Termos de Consentimento Livre e Esclarecido para as crianças, apenas
27 retornaram assinados e cujas crianças participam desse estudo”.
Partimos do pressuposto de que para reconhecer os hábitos alimentares dos
infantis precisávamos dedicar um tempo para escutá-los pois entendemos que as
crianças:

[...] sabem muito e sobre muitas coisas. Muitas vezes, são saberes diferentes
dos do adulto-professor, mas que possuem seu valor, o seu sentido e que

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variam em função das relações estabelecidas por elas nos espaços sociais,
históricos e culturais em que vivem. Precisamos de sensibilidade e escuta
atenta [...] (ALESSI, 2014, p.185).

As falas foram organizadas a partir da apresentação de alimentos e


produtos, bem como imagens13. Num primeiro momento mostramos figuras de
alimentos cuja embalagem estampava personagens conhecidos pelas crianças por
sua veiculação em desenhos e filmes, como Galinha pintadinha, Snoopy e Minions
e outros sem personagens. Mostramos imagens do produto leite fermentado com e
sem personagem, segue o diálogo:
Pesquisadoras: Quando vocês vão ao supermercado com seus familiares
quais dos dois produtos vocês preferem/compram?
Crianças: O da galinha pintadinha (em coro).
Pesquisadoras: Por que escolhem esse, é o mais gostoso?
Crianças: Nãaao (prolongamento de vogal).
Pesquisadoras: Então por que preferem esse?
Gabrielly: Eu prefiro o da galinha pintadinha porque é de criança.
Pesquisadoras: E o personagem está aqui por causa da criança ou do adulto?
Crianças: Das crianças.
Pesquisadoras: Por que?
Maria Eduarda: Pra deixar as crianças mais alegres.
Eduardo: Porque faz parte da infância da criança (INSTITUIÇÃO A).
Observamos na conversa a identificação criada entre o produto, o
personagem e os sujeitos, sendo reconhecida que a relação entre esse alimento e as
crianças foi fortalecida pelo personagem.
Na instituição B mostramos figuras de bebida láctea, uma da marca Choco
Milk® e outra com a figura do Minions e novamente perguntamos qual preferiam.
A maioria afirmou ter preferência pelo produto que estampa o personagem e
apenas Nicole disse que “Compraria o outro porque não gosto do Minions e nem
assisto ele na TV”. Percebemos que a escolha dos produtos com os personagens está
relacionada com a exposição das crianças a situações onde eles aparecem, como em
propagandas, filmes e desenhos animados, cuja regularidade e frequência configura
gostos e determina preferências. Schor (2009, p. 64) reitera esse dado ao dizer que,

13. Tal encaminhamento foi inspirado no documentário Muito além do peso (2012), de Estela Renner.

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“[...] a televisão é correlacionada positivamente com a solicitação. Os anúncios de
alimentos afetam as preferências”.
Em outro momento mostramos a figura de uma lata de Coca-Cola e
perguntamos:
Pesquisadoras: Quem gosta de Coca-Cola?
Crianças: Euuuuuu (em coro).
Pesquisadoras: vocês tomam Coca-Cola todos os dias?
Gabriel: Eu tomo, mas não todo dia.
Emily: Minha mãe não deixa eu tomar todo dia.
João Victor: Melhor refrigerante.
Ana Flávia: Posso tomar somente no final de semana.
Ybrayn: Se eu pudesse tomava todo dia.
Pesquisadoras: Vocês acham que o refrigerante é feito com açúcar?
Crianças: Sim
Pesquisadoras: Bastante ou pouco?
Crianças: Pouco (INSTITUIÇÃO A e B)
Observamos, pelas falas das crianças, que todas disseram gostar do
refrigerante, embora não possam tomar todos os dias. As propagandas veiculadas
na mídia pela marca associam o consumo à ideia de felicidade, sem mencionar
restrições ou a composição, com muito açúcar e corante. Segundo Schor (2009) os
estudos indicam que o consumo de refrigerantes por crianças aumentou muito nos
últimos dez anos, sendo que estimativas indicam que mais da metade das calorias
ingeridas por crianças norte-americanas vem das bebidas industrializadas.
Em seguida, ao mostrarmos a figura de um combo (lanche, batatas e
refrigerante) do Bob´s e perguntarmos o que achavam daquele alimento:
Luiza: Uhum.
Eduardo: Ai, ai! Que delícia! Quando eu olho, dá vontade de comer.
Nicoly: Eu sempre vou ao Bob´s.
João Victor: O mais legal é o brinquedo que vem dentro do lanche
Raíssa: Eu adoro quando é sábado, e eu posso ir ao Bob´s.
Helena: Tem o parquinho. (INSTITUIÇÃO A e B)

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As crianças evidenciam que gostam de frequentar o Bob´s pois, além dos
lanches que vêm com brinquedos dos personagens conhecidos pelas crianças, esses
ambientes contam com um espaço específico para as crianças brincarem. Assim,
entram em cena os parques, mesas para desenhos, salas de jogos, cantinhos da leitura
e contação de histórias. Tais estratégias conquistam a criança como consumidora do
alimento e associam a marca e o espaço ao lazer e diversão, o que leva a criança a
querer voltar mais vezes.
Perguntamos para as crianças das duas instituições se costumam ir com
seus pais ao supermercado e todos afirmaram que sim. Nesse espaço, mais do que
acompanhantes dos adultos as crianças expressam gostos, influenciam escolhas e
encontram produtos e gôndolas especialmente pensadas para elas.
Pesquisadoras: Quando vocês vão com seus pais no supermercado o que
costumam comprar?
Alice: Eu gosto de comprar salgadinhos.
Eduardo: Eu chocolate, muitos doces.
Maria Eduarda: Eu bolacha recheada (INSTITUIÇÃO A).
Pesquisadoras: E quando vocês passam nas gôndolas em frente aos caixas
do supermercado, vocês têm desejo pelos produtos ali expostos?
Gabriel: Muito, eu sempre quero comprar Kinder Ovo, mas meu pai não
deixa comprar, porque é muito caro.
Maycon: Eu compro sempre chocolates, minha mãe deixa.
Pesquisadoras: Os pais deixam vocês comprarem tudo que vocês desejam?
Grazielly: Minha mãe deixa eu comprar só uma coisa.
Erica: Minha mãe faz combinado em casa, só duas coisas.
Nicole: Eu tenho um irmão, então minha mãe deixa eu comprar duas coisas,
uma para mim e outra para meu irmão”.
Nicolas Eduardo: Eu sempre pego vários. (INSTITUIÇÃO B)
O apelo organizado pelos supermercados em colocar os alimentos como
doces e bebidas na altura das crianças exige por parte dos pais uma negociação com
os pequenos, que geralmente querem ‘tudo’, afinal parecem coisas muito gostosas
e ‘feitas para crianças’. De acordo com Brito (2009) as crianças são consideradas
há muito tempo consumidoras por estabelecer seus desejos aos pais e acabarem
influenciando nos momentos das compras domésticas.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
Levamos também para eles alguns legumes como abobrinha, berinjela,
beterraba, brócolis, cenoura, chuchu e pepino, com o intuito de verificar se faziam
parte da alimentação das crianças e eram por eles conhecidos. Os alunos da
instituição A reconheceram os alimentos e relataram que fazem o consumo em casa,
sendo que somente a berinjela foi ‘rejeitada’ por eles. As crianças da instituição B
identificaram apenas os brócolis, a cenoura e o pepino. A Grande maioria afirmou
consumir em casa somente o brócolis e a cenoura. Assim uma parte das crianças
conhece e consome legumes e uma parcela delas não tem hábito alimentar que os
inclui, inclusive não consegue nomeá-los. Vale lembrar que a instituição A possui
um projeto alimentar e conta com uma horta, onde os alimentos são plantados e
colhidos pelas próprias crianças e consumidos na escola e em suas casas.
Por fim, buscamos reconhecer como se manifesta para as crianças a relação
entre mídia, personagens e consumo:
Pesquisadoras: Quando vocês visualizam algum personagem na televisão
e depois vêm o mesmo personagem na embalagem de algum alimento no
supermercado, vocês sentem vontade de comprar?
Crianças: Sim.
Maria Cecília: Sempre que eu assisto as propagandas da Coca-Cola eu quero
tomar e vem aquele gostinho na minha boca.
Luis Felipe: Eu compro e quando eu gosto muito, eu deixo ali e fico só
olhando, depois de um tempão que eu como. (INSTITUIÇÃO A)
Como registra Dornelles (2005, p. 95) as “[...] crianças consomem com os
olhos, absorvendo produtos com o olhar cada vez que empurram o carrinho pelos
corredores de um supermercado, navegam na internet e assistem televisão [...]”
(DORNELLES, 2005, p.95). Luis Felipe, a criança acima, nos conta que o fascínio do
produto é tanto que o fato de o admirar lhe traz satisfação.
Alessi (2014) ressalta que muitos estudiosos e pesquisadores têm se
preocupado em que as crianças tenham vez e voz na coleta de dados, sendo
importante dedicar um tempo para escutá-las e considera-las como informantes
competentes acerca do mundo que as cerca e das relações que estabelecem.

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Considerações finais
A alimentação faz parte da cultura e é por ela influenciada, sendo os hábitos
alimentares reflexo dos valores comportamentais, sociais e culturais. Refletir sobre
a alimentação infantil e sua relação com a mídia e o consumo torna-se importante
num contexto onde as crianças são vistas e tratadas como consumidores em
potencial. Assim, muitas crianças não têm o poder de comprar os produtos, mas
são convencidas e exercem influência sobre os adultos provedores – pais, avós, tios.
As crianças da pesquisa evidenciaram um interesse pelas embalagens e
produtos que apresentam personagens, revelando grande interesse e fascínio não
só pelo alimento, mas pelas mensagens que carregam. Comumente o campo do
entretenimento infantil foi visto como uma área inconteste, ou seja, somente ligada
ao lazer. Contudo, nos últimos anos tempos sido alertados sobre a necessidade de
reconhecer nos mais variados artefatos, de comida a roupas, de brinquedos a filmes,
seu potencial pedagógico e o investimento educativo e formativo que os acompanha.
A publicidade de alimentos, principalmente dirigida ao público infantil,
apresenta imagens de produtos aparentemente deliciosos que, contudo, são
muito calóricos e com pouco ou nenhum valor nutritivo. Os brindes – geralmente
brinquedos - que acompanham os produtos interferem na escolha dos pequenos,
embora na maioria das vezes sejam descartados e descartáveis.
As crianças participantes evidenciaram que frequentam os supermercados
e que se sentem atraídos pelos produtos nos momentos de compra, embora sofram
restrições para aquisição instituídas pelos pais. Também relataram que suas
escolhas são influenciadas pelo que veem na televisão, ‘preferindo’ os produtos
cujas embalagens estampam personagens conhecidos.

Referências
ALESSI, V. M. Rodas de conversas: uma análise das vozes infantis. Curitiba: UFPR,
2014
BRITO, I. M. C. A influência da publicidade na alimentação infantil. Fortaleza, julho de
2009.
DORNELLES, L.V. Infâncias que nos escapam: da criança na rua à criança cyber.
Petrópolis: Vozes, 2005.
KRAMER, S. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças.
Cadernos de pesquisa, São Paulo, n. 116, p. 41-59, julho, 2002.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
KAUFMANN, J.-C. 2013. A entrevista compreensiva: um guia para pesquisa de campo.
Petrópolis/Maceió, Vozes/Edufal,
SCHOR, J. B. Nascidos para comprar: uma leitura essencial para orientarmos nossas
crianças na era do consumismo. São Paulo: Gente, 2009.
ENTRE AS DUAS FACES DE ANTÍGONA: A FALA MÍTICA
ATRAVESSADA PELAS LEIS NÃO ESCRITAS
Felipe Soares (UNICENTRO/PPGL)
Denise Gabriel Witzel (Orientadora-UNICENTRO)

Introdução: Um olhar inacabado para Antígona

A fotografia deve ser silenciosa. [...] A subjetividade absoluta só é atingida


em um estado, um esforço de silêncio (fechar os olhos é fazer a imagem
falar no silêncio). A foto me toca se a retiro de seu blá-blá-blá costumeiro:
“Técnica”, “Realidade”, “Reportagem”, “Arte” etc.: nada a dizer, fechar os
olhos, deixar o detalhe remontar sozinho à consciência coletiva. (Roland
Barthes, A câmara clara)

Enquanto as imagens falam aos olhos de Barthes, aos olhos dos literatos, um
texto literário fala de nós e de outros. Provoca-nos compaixão, nos instrui deleitando.
Como diz Antoine Compagnon em Literatura para quê? (COMPAGNON, 2012, p.
62), “quando leio eu me identifico com os outros e sou afetado por seu destino;
suas felicidades e seus sofrimentos são momentaneamente os meus”. A literatura
assim, nos desconcertando, incomodando e desorientando, consequentemente
desnortearia mais que discursos

filosófico[s], sociológico[s] ou psicológico[s], [...] ela percorre regiões da


experiência que outros discursos negligenciam, [...] nos liberta de nossas
maneiras convencionais de pensar a vida nossa e a dos outros – ela arruína
a consciência limpa e a má fé [...](COMPAGNON, 2012, p. 64).

Arrolada a medida sugerida por Compagnon, tal possibilidade de ampliação/


extensão de nossos sentidos, bem se emparelharia concomitante também ao texto
literário (cuja discursividade pode asseverar um acontecimento que constitui
memória) a imagem em seus turnos artísticos e/ou publicitários. Isso, tomando-a como
um operador da memória social, uma vez que, segundo Jean Davalon (1999), esta

oferece – ao menos em um campo histórico que vai do século XVII até


nossos dias – uma possibilidade considerável de reservar a força: a imagem
representa a realidade, certamente, mas ela pode também conservar a
força das relações sociais (e fará então impressão sobre o expectador) [...]
(DAVALON, 1999, p. 27).

Logo, a pensar na conservação das relações sociais através do texto


literário (este, por percorrer no tempo regiões da experiência que outros discursos
negligenciam) e na impressão que uma imagem pode fazer sobre o seu expectador,
por considerá-la um dispositivo pertencente a uma “estratégia de comunicação” capaz
de “regular o tempo e as modalidades de recepção da imagem em seu conjunto
ou a emergência da significação” (DAVALON, 1999, p. 30), não obstante, podemos
observar esses processos de manutenção da coesão social (no que se refere à produção
cultural levando em conta sua eficácia simbólica) próximos àqueles das falas míticas.
Isso considerando que os mitos, avaliados como discursos, seriam produtos
de práticas sociais capazes de engendrar, diante de certas regras de formação,
conjuntos de sequências de enunciados, sendo possível conferir-lhes, nessa medida,
modalidades de existência enunciativa particular. Assim sendo, imbricados textos
literários, imagens e Mito, poder-se-ia perceber de tais manutenções da coesão social,
discursos cujos conflitos e resistências bem poderiam irromper como acontecimento
à luz da memoria na contemporaneidade. Se, para Roland Barthes em Mitologias,

o que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido, por mais


longe que se recue no tempo, pela maneira como os homens o produziram
ou utilizaram; e o que o mito restitui é uma imagem natural deste real [...]
(BARTHES, 1980, p. 163)

Isso posto, cabendo a nós, leitores, a capacidade de produzir formas


simbólicas de representação de nossa relação com a realidade concreta, e também,
se tendo em vista que o registro de um acontecimento possa constituir memória (no
sentido da abertura de uma dimensão entre um passado originário e o futuro a ser
constituído), diante de manchetes de web jornais que exploram a figura de cadáveres
expostos às vistas da sociedade, o presente artigo pretende demonstrar a possível
atualização de uma fala mítica. Para tanto, diante das possíveis representações
emanadas de corpos insepultos, elegendo do campo literário a tragédia de Sófocles
Antígona (século IX a. C.), bem como uma pequena série de imagens dos domínios
artísticos e jornalístico, pretendemos com a presente análise, perfilada às concepções
de Poder, Discurso e Enunciado foucaultianas tanto quanto à ótica barthesiana
de Mito e Fotografia, desse modo, apresentar uma admissível ampliação do mito
Antígona na Contemporaneidade.

Formações discursivas: um corpo entre as leis escritas e não ESCRITAS


Delineados brevemente esses pressupostos, da relação que se pretende
estabelecer entre texto (verbal) e imagem (não verbal), principiamos a análise

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explanando as naturezas do Enunciado. Segundo prescreve a perspectiva
arqueológica de Foucault (2010), este

não é uma unidade do mesmo gênero da frase, proposição ou ato de


linguagem; não se apóia nos mesmos critérios; [...] Em seu modo de ser
singular (nem inteiramente linguístico, nem exclusivamente material), ele
é indispensável para o que se possa dizer se há ou não frase, proposição,
ato de linguagem; [...] (FOUCAULT, 2010, p. 97)

Sendo um enunciado nem inteiramente linguístico, tão pouco


exclusivamente material, notamos possível atrelar a uma dada imagem a
característica de enunciado. Ainda corroborando com esse sentido, ainda para
Foucault, por enunciado compreende-se

uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir


da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles
“fazem sentido ou não”, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de
que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação
(oral ou escrita [e logo, imagética]) [....] (FOUCAULT, 2010, p. 97).

Por fim, a respeito dos possíveis critérios estruturais de unidade pertinentes


ao enunciado – verbal ou não verbal – convém elucidar, que este “não é em si mesmo
uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de
unidades possíveis que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo
e no espaço”. (FOUCAULT, 2010, p. 98). Desse modo, essa função deve der descrita
(num texto ou numa imagem), portanto, “em seu exercício, em suas condições, nas
regras que a controlam e no campo em que se realiza.” (FOUCAULT, 2010, p. 98).
Prosseguindo, já acerca da natureza atribuída ao Discurso, para Foucault
(A ordem do Discurso, 2009), os discursos obedecem a determinadas leis. Nesse
sentido, tomando a obra Antígona como um acontecimento discursivo ainda capaz
de irromper certos enunciados na contemporaneidade, é preciso analisá-la por meio
de seu exercício, suas condições de produção e pelas regras que controlam seus
discursos no campo em que estes se realizam. Tal demanda necessita, de antemão,
de uma avaliação dos discursos e leis que atravessavam o mundo grego do século V,
a fim de conceituar a exposição de um corpo insepulto na sociedade grega enquanto
uma condição possívelmente rememorada através da atualização do mito Antígona.
Desse modo, para que se comprove tal percurso, primeiramente sinalizamos
a escolha da peça Antígona considerando desta a discursividade religiosa da sociedade
grega conforme retratada por Sófocles. Por conseguinte, ao nos remetermos à obra
precisamente pela perspectiva do desdobramento de seu discurso religioso, seguimos
com a análise atrelando-o à perspectiva da historiadora J. de Romilly, no tocante

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ao caráter de suas leis escritas e não escritas. Apresentamos antes, uma passagem
capital da tragédia:

Antígona: – Uma coisa é certa: Polinices era meu irmão, e teu também,
embora recuses o que te peço. Não poderei ser acusada de traição para
com o meu dever.

Ismênia:– Infeliz! Apesar da proibição de Creonte?

Antígona:– Ele não tem o direito de me coagir a abandonar os meus. [...]

(SÓFOCLES, séc. IX, p. 8)14

De início, segundo assevera Romilly (La loi dans la pensée grecque, 1971),
a sociedade grega discursivizada por Sófocles em Antígona tem como base o seu
condcionamento regido pelo nomos (lei). Em linhas gerais, da evolução do nomos
entre os gregos, este

inicialmente, tinha caráter religioso - fosse ou não escrito. Designava ritos,


regras morais, ordem do mundo imposta pelos deuses. As leis da pólis
eram, portanto, as leis positivas, relativamente ligadas às leis não escritas
[...] (ROMILLY, 1971, p. 29-30).

Romilly ainda afirma que se deve compreender a aplitude do nomos entre


as leis não escritas e as leis escritas considerando-as “quer se lhes desse uma origem
divina, como ocorreu nas origens, quer se as entendesse como produto da convenção
entre os homens” (ROMILLY, 1971, p. 29-30), sobremodo. Nesse sentido, tem-se
da obra literária a imersão de um conflito basilar estabelecido entre o embate dos
discursos de ordem política e religiosa.
Tendo-se em vista, mais precisamente o nomos relioso apresentado na
peça, o qual Antígona obedece tomanda por um ato pessoal de vontade, então sem
constranger-se com quaisquer infrações às leis de natureza religiosa, no entando,
consciente com a violação do nomos de Creonte – discurso embasado pelo decreto
do Estado, cumpre-se elencar que, conforme as palavras de Roselly,

ao tempo de Sófocles, alguns autores dão a essas leis conteúdo mais moral
do que religioso. [...] Tal amplitude favoreceu a uma certa identificação das
mesmas com as leis comuns dos gregos. Os gregos reconheciam algumas
práticas como deveres que ultrapassavam as fronteiras da pólis. Assim,
poupar prisioneiros e suplicantes, ser fiel ao juramento, respeitar hóspedes

14. Grifos nossos

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e, também, enterrar os mortos15, essas eram práticas que em geral tinham
origem religiosa. (ROMILLY, 1971, p. 31-32-33).

Ora, nessa perspectiva, a pensar os discursos e leis da sociedade


discursivisados por Sófocles em Antígona, o dever de sepultar os mortos torna-
se caráter fulcral no conflito sucitado na peça justamente por Antígona que, ao
confrontar Creonte, invoca as leis não escritas, por sua vez, sobrepujando a lei
escrita (a palavra de Creonte). Acerca desse conflito de normas – de poderes – pelo
qual se oporiam as leis naturais (que poderiam ser tidas como divinas) e as leis
humanas diante da prática do enterro, convém nesse passo também associarmos tal
ritualística à concepção teórica de Walter Burckert.
Para o autor, (Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, 1993), em se tratando
do valor que tinham a prática ritual e a exterioridade na conduta religiosa dos gregos,
“a religião grega não repousa na palavra, mas na tradição ritual”.  (BURCKERT,
1993, p. 35). Burckert, em seu turno, ressalta a íntima relação que havia entre a fé
cívica e a segurança da comunidade estabelencedo que

no antigo mundo da pólis a solidariedade humana era mais importante


do que a exaltação da fé. A religião não era um caminho ou uma porta,
mas ordem, integração consciente num mundo “dividido” e limitado [...]
(BURCKERT, 1993. P. 36).

Como dever que era, pontanto, a religião grega manifestava-se em


mandamentos e ameaças de sanções severas, muitas vezes desproporcionadas em
relação à transgressão. Mediante a tanto, Burckert ainda salienta que

a formação de um “super-ego” através da educação constitui um processo


fundamental no desenvolvimento do indivíduo e religião é um fator decisivo
desse processo: o facto de existirem deveres categóricos incondicionais é aqui
pressuposto como absoluto. Não há moralidade sem autoridade. Na ética
popular grega, isto aparecia como código básico: honrar os deuses e honrar
os próprios pais. Ambos os preceitos se apoiam mutuamente e garantem a
continuidade ao longo do tempo do grupo constituído de acordo com as
suas regras de conduta [...] (BURKERCT, 1993, p. 37).

Não obstante, uma vez explanada a concepção das leis (escritas e não
escritas) e a decorrência e implicação destas para a sociedade grega do século
V, nos parece que o embate discursivizado em Antígona – a proibição de enterrar
Polínices – pode concatenar-se ao ideário das formações discursivas, conforme
estabelece à ótica foucaultiana arrolada ao Discurso. Isso por considerar existir em
tal sociedade o procedimento da interdição (visível no decreto de Creonte) uma vez

15. Grifo nosso.

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que nesta que não havia o direito de dizer ou falar tudo em qualquer circunstância
(a pensar na condenação de Antígona por violar a decisão do Estado). Assim sendo,
se o confronto estabelecido entre Antígona e Creonte se arrolaria à produção de
discursos que, para Foucault é

ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por


certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes
e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade [...] (FOUCAUL, 2009, p. 9).

Nesse sentido, avaliando a prática da protagonista que, obediente ao nomos não


escrito (leis divinas) dado o impulso de sepultar seu irmão, (lembrete e que os gregos
enterravam seus mortos conforme procedimentos consagrados) em decorrência à
desobediência de Antígona ao nomos proclamado por Creonte (leis da pólis) notamos
constituída na obra uma produção discursiva resultante do cruzamento de interdições
atreladas ao tabu do objeto em circunstância: o cadáver de Polínices.
Logo, tem-se estabelecido um jogo de duas faces em Antígona: de um lado,
está o nomos não escrito (lei – discurso religioso): os deveres da consciência moral
e religosa, concretizado/personificado pela figura da personagem. De outro, está
o nomos escrito (o decreto de Creonte; a ordem do rei promulgada e divulgada,
assumindo validez e força de lei), concretizado em Creonte como a figura do Estado.
Nessa medida, retomando o processo fundamental do desenvolvimento
do indivíduo grego (Antígona) é preciso aprofundar a relação de poderes entre a
protagonista e Creonte, pois, se ambos possuem características em comum, estando
firmemente ancorados em suas razões e sofrem as conseqüências destas, logo, que
força teria a verdade de Antígona sem a verdade do rei contra qual ela se afirma?
Admiti-se que Antígona segue inserida nas práticas decisivas acerca
dos deveres categóricos incondicionais ao discurso religioso (o saber que honra
os deuses). No entanto, Antígona não compartilha da moral social estabelecida
pela autoridade conforme apregoavam os preceitos da ética popular grega (o saber
dos códigos básicos apoiados nas leis da pólis, o Estado). Para explanar a relação
que se coloca, convém conceituarmos a autorização da palavra, conforme Foucault
apregoa a verdade no discurso. A despeito do desenrolar do nomos, leis escritas
ou não, para Foucault, desde os gregos o discurso verdadeiro seria aquele que
responde ao desejo ou aquele que excederia o poder na vontade de verdade. Estando

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em jogo nas sociedades discursivizadas como na polis de Sófocles o desejo e poder
pelo nomos, para Foucault,

o discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo


e libera do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o
atravessa; e a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante
tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la [...]
(FOUCAULT, 2009, p. 20).

Pode-se concatenar nesse cenário uma luta pelo estabelecimento de poder


por trás da expedição do corpo de Polínices: em Antígona, este é figurado pelas
leis não escritas, e em Creonte este é configurado pelas leis escritas. Desse embate,
portanto, a verdade do nomos parece atada à relação transitória que contrapõe um
saber instituído (o poder do Estado) ao saber tradicional (o poder religioso). Logo,
a vontade de verdade em Antígona surge como uma

prodigiosa máquina destinada a excluir todos aqueles [Antígona] que,


ponto por ponto [...] procuram contornar essa vontade de verdade [o
decreto de Creonte] e recolocá-la em questão contra a verdade [as leis
não escritas], lá justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a
interdição [sepultar Polínices] [...] (FOUCAULT, 2009, p. 20).

Desse modo relacionando o nomos grego à produção de discursos, pontua-


se que a interdição de sepultar Polínices em Antígona irrompe como exemplo de
produção discursiva atrelada a um acontecimento histórico, por ter em vista que
tal interdição desencadeia séries enunciativas, que, na sociedade grega do século V,
entrecruzam discursos ora divergentes (interdição do decreto real) ora consonantes
(dever religioso cumprido). Assim, é possível que circunscrevamos o lugar deste
acontecimento (a Polis); as margens de sua contingência (regimes religioso/político)
e as condições de sua aparição (representação literária do sepultamento).
Explicitada a concepção de Foucault sobre Poder, Enunciado e Discurso,
bem como examinado a produção discursiva da sociedade grega discursivisada
em Antígona, direcionamos a análise, nesse momento, para a ampliação do mito
Antígona na contemporaneidade a partir da perspectiva barthesiana.

ANTÍGONA: o espetáculo da fala mítica nos discursos artístico e


jornalístico
“Eu erguerei um túmulo para meu irmão muito amado!” (SÓFOCLES, séc.
IX, p. 10)

Do temor de possuir um familiar não sepultado, surge-nos o enunciado


acima. Através das palavras e ação representadas por Antígona, o agir com piedade

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passa a ser entendido também como um dever cívico. Creonte e Antígona divergem
sobre o que deve ser feito acerca do corpo de Polinices. Enterrar Polinices é, para
Antígona, cumprir o rito, honrar os deuses e os seus familiares mortos, o que, aos
olhos da protagonista, jamais implicaria em dano à polis. A morte a todos iguala,
não há vencedores nem vencidos.
Por sua vez, para Creonte, de início, Polinices é o traidor da polis, Etéocles,
o defensor. Seu dever como rei de Tebas é honrar um e desonrar o outro. Essa
desonra, ele pretende levá-la ao extremo; fazer o cadáver apodrecer ao sol, num
espetáculo público grotesco e chocante. Com o desenrolar dos acontecimentos, essa
situação constrangedora revela-se problemática para Creonte, mostrando o quanto
sua conduta era alimentada pelo ódio e pela impiedade.
Logo, os possíveis conjuntos de enunciados evocados de Antígona (o
familiar não sepultado; a irmã piedosa; o tirano impiedoso, indiferente), por
exemplo, também emergiriam das artes ao jornalismo, em condições diversas, por
sua vez assegurados por suportes institucionalmente legitimados (igrejas/museus/
web jornais) pelos sujeitos (artistas, mecenas, jornalistas) que os proferem.
A partir desses sujeitos que, das artes ao jornalismo ampliariam o
sepultamento de Polínices por meio de discursos outros (pinturas, vídeos e
fotografias), que enredados assim interdiscursivamente abafam Antígona e
Polinices, tem-se construídas imagens culturais e generalizações que contribuem na
fala mítica de Antígona, no sentido barthesiano de mito (1980). Ou seja, a captura,
seleção, transformação e divulgação do acontecimento sepultamento de Polinices,
pelas artes e pelo jornalismo, fazem este surgir representado geralmente como um
efeito de naturalização da piedade.
Retomando a natureza do Mito segundo Barthes, este é analisado como uma
linguagem (coexistência de dois sistemas, sendo um deles deslocado em relação ao
outro). Logo, o mito é produzido a partir de uma cadeia semiológica já existente,
parasitando-a; logo, é realizado em um segundo plano. Assim, se o signo do sistema
da língua submete-se a um deslocamento, uma vez que, antes, era o termo final e,
depois, passa a ser o termo inicial no mito, implica-se neste o movimento de um
processo de ampliação.
Nesses termos, se o signo do sistema da língua é submetido a um
deslocamento, de tal modo, tem-se o sepultamento de Polínices (matéria prima para a
fala mítica/escrita) ampliado da narrativa de Sófocles, em seus diferentes aspectos,
dada sua captura pelo mito Antígona ampliado (transposto à matéria prima da fala
mítica enquanto pintura, vídeo-arte, escultura e fotografia).

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Para demonstrar a transição sugerida do mito Antígona, lido enquanto
efeito de naturalização de piedade, propomos a análise do material imagético
recolhido a seguir. Compreendendo sua produção e leitura possíveis a partir dos
conceitos barthesianos de “Operator” (o fotógrafo), “Spectator” (todos nós, que
compulsamos nos jornais, nos livros, [...] coleções de fotos); “Spectrum” (o alvo,
o referente emitido pela imagem/fotografia); “Satadium” (campo que percebo [...]
em função de meu saber, de minha cultura [...] segundo a arte ou a oportunidade
do fotógrafo); e “Punctum” (aquilo que [detalhe na fotografia] me punge (mas que
também me mortifica, me fere). (BARTHES, 2015, p. 17-29).
Dessa maneira, considerando as evidencias apresentadas das estéticas
composicional dos seguintes enunciados (pinturas, vídeo-arte, escultura e fotografias)
a partir dos processos barthesianos de análise de imagens citados acima, espera-se,
decifrando destes possíveis signos simbólico/expressivos (efeito de naturalização
de piedade), aproximar o mito Antígona dessas formas discursivas. Empreende,
pata tanto, como elemento norteador de análise o Punctum como acolhimento do
cadáver de Polínices, e a presumível interdiscursividade entre Antígona (efeito
de naturalização de piedade) como aquilo que é visível pelo Stadium (campos
percebidos da esfera religiosa/jornalística).

Imagens coletadas
Imagem 1: PIEDADE, Séc. XV, Óleo sobre ma- Imagem 2: PITIÉ, 1878, Óleo sobre tela. Smith College
deira. Munique. Sandro Botticcelli Museum of Art, Massachusetts. William Bourguereau

Fonte: BECKETT. História da Pintura,1997


Fonte: BECKETT. História da Pintura, 1997.

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Imagem 4: PIETÁ, Miguel Ângelo Buonarotti 1499.
Imagem 3: EMERGENCE, Bill Viola, Vídeo, Escultura. (Alt. 174 m X base 195 m) São Pietro, Vaticano
colorido, 2002. Projeção sobre tela em sala escura,
12 min. (198 x 198 cm) J. Paul Getty Museum, Los
Angeles.

.
Fonte: FARTHING, Arte, toda la historia,2010. Fonte: NÉRET, Miguel Ângelo, 2000.

Imagem 5: Imagem 6:

HISTÓRIAS DE UMA PIETÁ


CONTEMPORÂNEA
Cena de grupo jogando altinho perto de
corpos em São Conrado choca internautas publicado em fotografia por Marlen Couto (aces-
sado em 02 agosto 2016)
Durante a cobertura da queda da ciclovia da Ave-
nida Niemeyer, em São Conrado, que vitimou pelo Uma mãe acaricia o corpo do próprio filho, um
menos duas pessoas, um “detalhe” não passou des- engenheiro assassinado no Centro do Rio. Vence-
percebido: a indiferença de quem continuou seus dor dos prêmios Esso e Rei da Espanha, o instante
momentos de lazer apesar da tragédia. Enquanto os congelado pelo fotojornalista Marcelo Carnaval
dois corpos encontrados ainda estavam na areia da em 2006 se imortalizou ao retratar um drama uni-
praia, banhistas jogavam altinho ali perto, aparen- versal. Nos bastidores, os dilemas éticos do fotó-
temente alheios à dor. No Twitter, o Padre Fábio grafo que se depara com as dores humanas. Quan-
de Melo fez um comentário pertinente sobre essa do, afinal, abaixar a máquina?
situação e foi apoiado pelos seguidores: “Estamos
todos menos humanos”, escreveu. Fonte: © obvious: http://lounge.obviousmag.
org/conversas_da_rua/2014/12/por-tras-da-cam-
Fonte:http://extra.globo.com/noticias/rio/cena- era-a-historia-de-uma-pieta-contemporanea.htm-
de-grupo-jogando-altinho-perto-de-corpos-em- l#ixzz4GD9VOdIP 
sao-conrado-choca-internautas-rv2-2-19142329. Follow us: @obvious on Twitter | obviousmaga-
html#ixzz4GD8YZV5W zine on Facebook

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Análise das imagens

Primeiramente, pensado no esquema tridimensional ampliado de Barthes,


percebe-se por meio da fotografias 5, irromperem discursos na web, que se tratados
enquanto acontecimentos, bem poderiam (re)constituir a memória contemporânea
o nomos grego (lei não escritas): o dever social de se sepultar os mortos outrora
reclamado por Antígona mediante sua indignação para com o corpo de seu irmão,
Polínices (o Punctum: o jovem jogando bola, indiferente aos cadáveres), que por sua
vez é retomado nesta pelo Stadium (os dois corpos expostos na sociedade).
Já no plano imagético da imagem 6, rememoramos uma mãe enquadrada na
cena de um crime (o Stadium). Seu olhar, indignado, parece não acreditar no que vê (o
Spectrum). O sensacionalismo do corpo exposto num espaço público, a Rua Visconde
de Inhaúma, à mercê da curiosidade humana é vencido pela dramaticidade de um
encontro já explorado dos renascentistas italianos aos artistas contemporâneos (os
Operators – como mostram as imagens 1, 2, 3 e 4): o efeito de piedade estabelecido
entre um familiar e seu ente falecido assassinado imortalizados numa via pública
através de um sepultamento simbólico realizado pelas mãos da mãe (o Punctum em
comum entre as imagens 1, 2, 3, 4 e 6) que envolvem o próprio filho.
A mãe sobre o corpo do filho são os elementos que constituem o sentido
da imagem. Ela pode significar ao Spectator contemporâneo, todavia, uma
naturalização do efeito de piedade entre familiares: esta mãe, em resposta à agressão
de seu familiar se determina resistir à violência velando o corpo do filho exposto na
rua como espetáculo grotesco em sua sociedade. Desse modo delineado, percebe-se
a existência de uma intrínseca associação entre a denotação – a figura da mãe está
velando seu filho morto – e a conotação – a figura da de resistência de Antígona em
sepultar Polinices.

Uma Antígona ampliada pelo olhar


Os mitos, sendo no âmago barthesiano, histórias narradas, discursos
capazes de produzir e reproduzir acontecimentos, logo passam por um processo
de edição (escrever, pintar, filmar, esculpir, fotografar). Este processo, índice de
uma manutenção da coesão social, por fim organiza os sujeitos envolvidos (artistas/
jornalistas) e os inscrevem num sistema estabelecido em relações de poderes e de
saberes atrelados aos sistemas sociohistóricos culturais.
Desse modo, os mitos (disseminados pelas artes e mídias jornalísticas –
legíveis como Stadium) participam da construção do acontecimento e das imagens
que os expectadores/leitores compõem da realidade e das produções de sentidos

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sobre o mundo que os entorna (notados através da leitura do Punctum). Assim, o
sujeito jogando bola diante dos cadáveres do caso da queda da ciclovia da Avenida
Niemeyer, em São Conrado, bem como o sujeito “Uma pietá contemporânea” no Rio
de Janeiro falam, nas fotografias, muito além do descaso para com a morte ou a
trágica de um filho. Ampliam, finalmente, o mito Antígona.
Isto por, os discursos (irrompidos como um acontecimento) nas imagens se
enredam interdiscursivamente num mecanismo que sobrepuja identidades de outro
Creonte, outro(s) filho(s) mortos (Polinices, Jesus Cristo), assim (re)construíndo
imagens culturais e generalizações que nutrem o mito (Antígona) enquanto
repetições históricas que funcionam como verdades inquestionáveis (o nomos, as
leis não escritas). É possível, dessa maneira, atualizarmos as formas simbólicas (a
necessidade de um sepultamento) diante da representação das nossas relações com
a realidade concreta (o descaso social e a violência urbana).
Por fim, nas palavras de Foucault, “certamente os discursos são feitos de
signos, mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse
mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse mais que é preciso
fazer aparecer e que é preciso descrever (FOUCAULT, 2009, p.55).
Assim sendo, de resto, concluímos que os enunciados imagéticos coletados
são uma prática imersa em relações de saberes e de poderes implicados mutuamente.
Isso, tendo em vista que os ditos (verbais e/ou não-verbais) enunciados no web
jornal e veiculado também como fotografia, junto com as memórias que evocam
(o sepultamento de Polinices), se colocam, portanto, em contato com outras
formulações enunciativas. Permite-se, portanto, observar as artes e o jornalismo
como campos discursivos inevitavelmente constituídos por discursos heterogêneos
(Sófocles, Botticelli, Viola, Miguel Ângelo, Marlen Couto) que estabelecem as
características individualizantes de um novo Polínices. E, consequentemente, ao
fazê-lo tem-se ampliado na contemporaneidade a forma do mito Antígona.

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TODAS QUEREM SER BONITAS: A MULHER CURITIBANA
NAS PÁGINAS DA REVISTA GRAN-FINA (1940)
Jasmine Horst dos Santos (Unicentro/Capes)
Nincia Ribas Teixeira (Unicentro)

Resumo: A partir da análise do texto jornalístico, é possível perceber diferentes per-


cepções que possibilitam variados entendimentos acerca do que é ser mulher em
diferentes épocas. O objetivo desta pesquisa é analisar, através, principalmente, de
textos presentes na seção “Todas querem ser bonitas”, presente na revista Gran-
Fina, do início da década de 1940, o perfil da mulher curitibana da época, no que
diz respeito às temáticas comportamento e família. Para essa discussão, buscamos
utilizar referências dos estudos culturais, tais como Hall (2004), Escosteguy (2001),
Bauman (2009), entre outros, além de utilizarmos o conceito de lugares de memória
proposto por Nora (1993).
Palavras-chave: Mulher. Identidade. Paraná. Memória.

Estudos Culturais, Imprensa e Memória


O papel da mulher na sociedade muda ao longo do tempo. Suas funções,
obrigações e subjetividades variam de acordo com o período histórico. A mídia,
partindo do pressuposto de que é um lugar de memória contemporâneo, nos moldes
propostos por Pierre Nora (1993), apresenta-se como um espaço privilegiado para
percebermos essas variações do comportamento feminino em diferentes épocas.
Para Barbosa (2007), o jornalismo é uma espécie de memória escrita de determinada
época, porque retém principalmente aquilo que considera importante (ao levar em
consideração os aspectos de relevância jornalística na construção de suas pautas).
Entretanto, isso não quer dizer que os discursos registrados nas páginas de jornais
e revistas são a descrição da realidade.

Ao se constituir como documento, podemos pensar os meios de comunicação


como um dos mecanismos contemporâneos de transformação do ausente
no presente e, portanto, como lugar da memória contemporânea. Por outro
lado, ao possuir o estatuto de texto, transforma-se em uma espécie de
documento de época, regido pela convenção de veracidade necessária aos
documentos – monumentos de memória. (BARBOSA, 2007, p. 51)

De acordo com Ribeiro (2005), houve uma reapropriação do jornalismo


como fonte histórica. Isso ocorreu por conta da mudança da concepção que define
que o mais importante não é o fato em si, mas sim a maneira como os sujeitos
tomam consciência dele e assumem uma posição antes de o relatarem. Dessa forma,
mesmo que sejam produzidas diferentes construções acerca do fato, há um fundo
de referência neles, o que faz com que a mídia ainda tenha grande aceitação no que
diz respeito à leitura de uma época.
Ribeiro (2005) reforça a ideia do jornalismo como uma “arena de discursos”,
onde uma pluralidade de vozes – consonantes, contrárias, antagônicas – se
manifestam, mostrando ou refletindo padrões de comportamento social. Essa “arena
de discursos” dentro da revista escolhida como fonte de pesquisa possibilita aos
seus contemporâneos encontrar, através da interpretação dos relatos jornalísticos,
um sentido do mundo que os cercava naquele período que ganhavam destaque na
imprensa e, mais especificamente, as percepções que se constroem sobre a mulher.
De acordo com Escosteguy (2001), os estudos culturais não configuram
uma disciplina, mas sim uma área onde diferentes disciplinas se completam,
visando ao estudo de aspectos culturais da sociedade. Essa área, não se constitui
numa nova disciplina, mas resulta da insatisfação com algumas disciplinas e seus
próprios limites.
De acordo com Hall (2004), um dos mais lembrados autores dos estudos
culturais, a descentralização do sujeito acarreta a possibilidade dele ser constituído
de diversas facetas identitárias, ora complementares, ora controversas. Para ele,
existem três tipos de sujeito, o do iluminismo, que seria a figura do humano centrado,
sem qualquer transformação ao longo da vida; o sociológico, que seria aquele que
começa a transparecer a complexidade do mundo moderno; e o pós-moderno, em
que a descentralização da sua identidade, provocaria uma mistura dos sistemas
culturais que o cerca e acaba por constituir essa identidade em movimento.

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,


identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro
de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções,
de modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.
(HALL, 2004, p.13)

Dentro da revista, é possível, entender quais eram os papéis ocupados


pela mulher na sociedade. De acordo com Scott (1995), através do estudo e análise
do gênero feminino, pode-se chegar a uma definição de como eram as mulheres
de determinada época, traçando uma espécie de perfil identitário. Para ela, o que
interessa são as construções culturais sobre as diferenças, e de que forma que elas
sugerem uma posição hierárquica dentro da sociedade entre a mulher e o homem.
Scott (1995) afirma que “[...] o gênero é uma primeira maneira de dar significado às
relações de poder” (p.116), deixando claro que esse não é o único campo, mas que
provavelmente constitui um meio de dar eficácia à significação de poder no Ocidente.

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Butler (2008, p.25) segue a mesma ideia de Scott (1995), ao afirmar que a
divisão natural entre macho x fêmea está baseada, principalmente, em aspectos
culturais. Segundo ela, a distinção entre sexo e gênero parte de que o sexo é natural
e o gênero é culturalmente construído. Segundo Butler (2008, p.26), nesse caso, não
a biologia, mas a cultura se torna o destino. Ela contesta as características ditas
“naturalmente femininas”, principalmente a dupla sexo/gênero, que serviu às teorias
feministas até meados da década de 1980, quando começaram a ser questionadas.
Seguindo as ideias de Butler (2008), que acredita que o gênero é algo
culturalmente construído, Bauman (2009) afirma que a identidade também é um
conceito construído socialmente, no coletivo, e não na individualidade da pessoa.
Dessa forma, a revista, através de suas reportagens e de outras questões envolvendo
a sua produção, tais como a seleção de fontes, de matérias de capa, das fotografias,
dos títulos, entre outros, auxiliam a delinear como ela entendia ser a identidade
feminina, refletindo uma percepção de época acerca do tema.

Ter a necessidade de se transformar no que somos é uma característica


da vida moderna (não da “individualização moderna”, uma expressão
evidentemente pleonástica; falar de individualização e de modernidade é
falar da mesma condição social). (BAUMAN, 2009, p. 184)

Dessa forma, Bauman (2009), acredita que a identidade não é algo pronto,
mas sim algo construído socialmente, dependendo da interação social que há. Dessa
forma, até mesmo a interação que acontecia entre o periódico e suas leitoras poderia
ser vista como um estimulador de certas identidades, ou seja, muitas mulheres
poderiam se inspirar nas identidades ditadas pela revista.

Revista Gran-Fina e os “assuntos femininos” (1940)


Segundo Buitoni (1990, p.17), a revista funcionou como uma espécie de
feminização da imprensa, pois: [...] “Lazer e um certo luxo foram-se associando
à ideia de revista no século XX. E a imprensa feminina elegeu a revista como seu
veículo por excelência”. De acordo com a autora, entre os motivos pelos quais esse
“relacionamento” entre a mulher e a revista aconteceu, estão o fato de as revistas
de variedades começaram a utilizar uma linguagem pessoal, “conversando” com
seus leitores e, nas seções femininas, essa diferença na linguagem era ainda mais
notável. Dessa forma, é possível entender os motivos de se utilizar de um meio de
comunicação tão querido pelas mulheres para incentivar uma “boa conduta”, por
parte delas.
As constantes mudanças no cenário social também são refletidas no discurso
jornalístico. Entende-se que, através da análise da revista Gran-Fina, é possível

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perceber as nuances dos lugares sociais e possíveis identidades construídas (HALL,
2005) pela e para a mulher no contexto paranaense. Huyssen (1996), apresenta um
argumento sobre as relações da cultura de massa e o universo feminino surgidas no
século XIX e que prevaleceram até meados do século XX. O autor explica que a leitora
desse período é “construída” como uma pessoa subjetiva, emocional, passional,
transformando-se, então, numa “mulher consumidora de literatura massificada”
(HUYSSEN, 1996, p. 43). Com esse perfil estigmatizado, nada mais consequente
do que criar nas revistas seções que refletissem aquilo que se esperava delas, numa
espécie de “manual”.
Durante o início da década de 1940, as revistas curitibanas tinham essa
propriedade de introduzir comportamentos que eram esperados de seus leitores.
No caso das colunas femininas, elas funcionavam como um manual de atitudes
que eram esperadas e também daquilo que não deveria ser feito para que elas se
mantivessem dentro dos preceitos da moral e dos bons costumes, e dessa forma,
fossem respeitadas dentro da sociedade. De acordo com Bassanezi (2008), as revistas
desse período traziam a reflexão de um consenso social sobre a moral e os bons
costumes, promoviam valores de classe, raça e gênero dominantes naquela época:

Como conselheiras, fonte importante de informação e companheiras


de lazer, as revistas influenciaram a realidade das mulheres de classe
média de seu tempo assim como sofreram influências das mudanças
sociais vividas – e algumas, também promovidas – por essas mulheres.
(BASSANEZI, 2008, p. 609).

A revista Gran-fina foi fundada em Curitiba no início da década de 1940.


Seu foco principal eram os acontecimentos gerais da sociedade paranaense, com
destaque para assuntos que envolvessem diretamente a capital do estado. Embora
seu público principal não fossem mulheres, elas estavam presentes em algumas
matérias específicas do periódico e também em algumas colunas destinadas a elas,
que tratavam, principalmente, de assuntos relacionados ao comportamento feminino.
Durante a década de 1940, as colunas e reportagens destinadas à mulher
abordavam assuntos relacionados à vida da dona de casa, como o cuidado com o lar
e a aparência. É difícil saber quem escrevia as reportagens da revista Gran-fina, pois a
maioria das páginas não trazia o nome do responsável, salvo alguns casos. A revista
tinha periodicidade quinzenal, com circulação em todo o Paraná e em um pequeno
território catarinense. Cada exemplar tinha aproximadamente 60 páginas, onde se
mesclavam páginas coloridas com preto e branco, além de seções fixas e aleatórias.
Lipovetsky (2000) traz algumas percepções a respeito da mulher em
diferentes períodos histórico-culturais, traçando diferentes perfis. O primeiro é

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a mulher dos tempos primitivos, que exercia praticamente os mesmos trabalhos
que o homem. Já o segundo diz respeito à mulher submissa, aquela que passa a
apresentar uma feminilidade maior, mas que é considerada inferior ao homem.
Nesta caracterização, enquadra-se a mulher da década de 1940, cuja identidade
voltava-se para a posição de filha, mãe e esposa, o que era refletido pelas
publicações da revista.
No início da década de 1940, período em que a revista Gran-fina circulou,
Curitiba possuia 140 mil habitantes, que estavam divididos entre vinte bairros. A
capital paranaense era tida como uma das mais industrializadas do país, entretanto,
a agricultura também representava uma importante base da economia. Essa
característica da cidade ainda estar ligada à atividades rurais, influenciava muito nos
modos de seu povo, onde se mesclavam características de cidade moderna e outras
de cidade interiorana. Segundo Boschilia (2010), havia, por parte dos governantes
da época, um interesse na construção de uma imagem de cidade próspera e ordeira,
em todos os sentidos, que englobavam desde o sentido político até o familiar.

A ida à missa ou ao culto dominical era um ritual cumprido semanalmente


por grande parte da população curitibana. Homens e mulheres, com suas
melhores roupas de passeio, assistiam à missa em alas separadas. No
lado esquerdo, ocupado exclusivamente pelas mulheres, a mistura do
branco e preto dos véus diferenciava as solteiras das casadas, bem como
o caimento da roupa e o porte definiam a classe social de cada uma delas.
(BOSCHILIA, 2010, p.38).

Esses “hábitos”, típicos de cidades interioranas que foram trazidos para a


capital, também eram perceptíveis quando o assunto era a imprensa paranaense.
A predominância do público alvo das revistas era o masculino, entretanto, havia
espaços dentro dos periódicos em que as mulheres eram o foco das matérias,
normalmente em seções comportamentais.
Nesse período, com a crescente demanda de mão de obra, as mulheres
começaram a conquistar seu espaço no mercado de trabalho. Segundo Boschilia
(2010), a grande maioria estava ligada ao setor industrial, onde correspondiam a
cerca de 11,4% dos mais de 12 mil trabalhadores ligados a esse setor. A maior parte
dessas mulheres que começavam a despontar no mercado de trabalho vinham de
classes econômicas mais baixas, e eram, quase em sua totalidade, moradoras dos
subúrbios curitibanos.
Apesar de já ser possível encontrar a figura feminina no mercado de trabalho,
a imagem de “ordem” que persistia na cidade fazia com que os espaços urbanos

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ainda tivessem sérias restrições ao que seriam lugares permitidos à mulher, e outros
onde elas não eram bem vindas, ou, caso frequentassem, não eram bem vistas.

As mulheres, com exceção daquelas que utilizavam a própria rua como


espaço de trabalho, sofriam limitações não só de horário, mas também de
acesso a determinados locais. As confeitarias, principalmente aquelas que
vendiam bebidas alcoólicas eram um exemplo típico de espaço proibido às
mulheres [...] o acesso das mulheres a estes locais só era permitido se ela
estivesse acompanhada por um homem. (BOSCHILIA, 2010 p.39)

Segundo Buitoni (1990, p.22), quase não há revista que não trate do tema
coração, uma das vertentes do tema comportamento, que pode ter diferentes enfoques,
seja o romance, o melodrama, a análise ou o sexo. E com as publicações paranaenses
não era diferente, de forma direta ou indireta, o assunto relacionamento sempre
vinha à tona. Uma coluna em específico, que esteve presente em praticamente todas
as edições da revista, desde sua criação, e que sempre trazia assuntos relacionados ao
tema do coração, era a “Todas querem ser bonitas”, um espaço assinado por alguém
que se utilizava do codinome “Madame Helena”, uma consultora sentimental e de
beleza. A coluna servia como uma espécie de manual de como a mulher deveria se
vestir, se maquiar, se pentear, de modo a estar dentro dos padrões de beleza da época,
que em muito se pareciam com os padrões adotados pela indústria hollywoodiana.
Através da análise de revistas do começo da década de 1940, fica claro que, de acordo
com a imprensa da época, casamento era o principal anseio que rondava as moças
de então. Para “arranjar um bom partido”, o sonhado príncipe encantado, a forma
de se posicionar socialmente era fundamental. Para se inteirar dos “truques” dessa
árdua missão, nada mais confortável do que aprendê-los através das páginas de
uma revista, em que os “manuais” já estavam pronto, e, portanto, bastava colocá-los
em prática. A mídia impressa da época “cobrava” um perfil que deveria ser seguido
pelas mulheres, fosse no campo pessoal ou profissional.

De nada há de adiantar ser naturalmente bonita, ter uma boa pele e bons
dentes, se a moça não cuida de sua higiene. Nenhum homem há de se
interessar por uma pessoa que não cuida bem do próprio corpo, pois,
ela com certeza não cuidará do lar e do esposo. (TODAS QUEREM SER
BONITAS, 1942, p. 15)

Algumas matérias traziam dicas de como a mulher deveria se portar no


ambiente profissional. A maioria dos textos ainda chamava a atenção para o fato
de que elas deveriam sempre agir de forma a não “mexer com a cabeça do patrão”.
Isso mostra que havia muita pressão social sobre elas, e que a culpa por possíveis
assédios seria sempre delegada à mulher. Dessa forma, era comum que a revista
trouxesse dicas de como se portar no meio profissional. Essas dicas iam desde a

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roupa que se deveria usar até pedidos de que ela cuidasse para que um sorriso não
fosse interpretado como sinal de segundas intenções.

Quanto ao riso, aconselho-lhe o provérbio seguinte: Quem ri por último,


ri melhor. Rir o tempo todo pode passar uma imagem de mulher fácil,
mas não rir também pode ser interpretado de uma maneira errada.
Seja feminina e prefira sempre a moderação. (TODAS QUEREM SER
BONITAS, 1941, p. 06).

Algo perceptível ao analisar a revista diz respeito a forma como a mulher


era vista pelas próprias mulheres, ou seja, a visão que elas tinham delas mesmas.
Em alguns trechos das colunas já mencionadas, há pedidos de conselhos e perguntas
em que as mulheres se referem a outras mulheres.

Fico em dúvida se uma mulher conseguiria manter-se fiel à moral e aos


bons costumes trabalhando fora de casa. Sou mulher e acredito que nosso
papel é ficar dentro de casa e trabalhar em prol da felicidade da família.
Se seu marido chega em casa, depois de uma longa jornada de trabalho
ele espera encontrar seu jantar preparado, um bom banho quente e o
colo de sua esposa, ela não quer encontrar uma esposa também cansada,
e que queira discutir problemas de trabalho. (TODAS QUEREM SER
BONITAS, 1941, p. 34).

A forma como a leitora se refere às mulheres que trabalhavam fora vem


de encontro ao que Trindade (1996) fala sobre a objeção das próprias mulheres à
presença feminina nos espaços públicos:

Dessa maneira, as próprias mulheres fazem, muitas vezes, objeção à


presença feminina nos espaços externos, sobretudo em se tratando dos
ambientes de trabalho. A discussão dessa possibilidade, cada vez mais
presente no decorrer do período, atinge pontos mais polêmicos do que as
atribuições domésticas da mulher e alcança, por isso mesmo, uma gama
mais variável de possíveis respostas. Há, porém, uma grande diferença
na opinião pública sobre a atuação relativa ao trabalho e à participação
simplesmente decorativa e benemérita da mulher na vivência social.
(TRINDADE, 1996, p. 147).

Conclusão
Entendendo a mídia como local de reiteração de sentidos, de representações,
o principal objetivo desse trabalho foi analisar a forma como as mulheres da cidade
de Curitiba eram representadas na revista Gran-fina, e de que forma o periódico se
colocava como um “manual” a ser seguido pelas leitoras através da coluna “Todas
querem ser bonitas”.

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Percebe-se que as seções e colunas da revista utilizavam-se de dicas e
conselhos para mostrar às leitoras a forma como elas deveriam agir em diferentes
seguimentos da sociedade. Por se tratar de uma cidade bastante industrializada,
mas que ainda procurava manter ares de cidade interiorana, observa-se que a revista
insistia em promover perfis de boa filha, boa esposa e boa mãe, incentivando seu
público leitor a manter, ou pelo menos, procurar manter, essas características.

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Janeiro: Zahar, 2009.
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curitibano (1940-1960). São Paulo: Contexto, 2010.
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O ANTICLERICALISMO NAS ILUSTRAÇÕES DA
REVISTA O OLHO DA RUA: RELAÇÕES ENTRE
RELIGIOSIDADE E MASCULINIDADES
Jéssica Lange de Deus (PPGL-UNICENTRO/Bolsista Capes)
Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira (UNICENTRO)

Introdução
O início do século XX foi marcado por intensas mudanças, trazendo
avanços tecnológicos significativos para a comunicação, como as prensas que
possibilitavam impressão em maior quantidade e também colorida, de jornais e
revistas, como é o caso da O Olho da Rua. Os ilustradores procuravam detalhar
por meio de imagens, charges entre tanto outros desenhos, os acontecimentos que
marcavam Curitiba, no Paraná. Fatos estes ligados à política local, a literatura,
personalidades e, ao anticlericalismo.
A mídia impressa contribui para a construção dos gêneros e identidades,
colaborando para a edificação de comportamentos tidos como masculinos ou
femininos na sociedade. Os papéis sociais designados a homens e mulheres são
como regras impostas socialmente, as quais buscam dizer como cada indivíduo
deve se vestir, se relacionar, se comportar perante os outros.
O objetivo geral da presente pesquisa é analisar como as masculinidades
dos membros do clero são representadas nas ilustrações da revista curitibana
O Olho da Rua, do início do século XX. Partindo do princípio que a revista
assume posicionamento anticlericalista, pretende-se aqui verificar como essas
masculinidades se aproximam do modelo hegemônico.

Estudos Culturais: relações entre gênero e masculinidades


A concepção dos Estudos Culturais se deu a partir de uma abordagem
multidisciplinar e crítica da cultura, que então, passa a ser vista como uma prática
social, legitimando até mesmo a cultura popular que por muito tempo foi deixada
de lado. O Centro, fundado por Richard Hoggart em 1964, possibilitou que fossem
realizados trabalhos de pesquisas envolvendo literatura, antropologia, comunicação,
psicologia, entre tantas outras vertentes do conhecimento, contribuindo para a
transformação do pensamento acadêmico.
Quando pensarmos na palavra “gênero” logo a relacionamos com
oposições, homem versus mulher, masculino versus feminino, entre tantas outras.
Porém, essa palavra tão utilizada atualmente em estudos que envolvem o feminino,
levanta questões muito mais complexas. Ao conceito de gênero são atrelados
comportamentos e regras que buscam naturalizar e ao mesmo tempo orientaras
atitudes dos indivíduos na sociedade.
Para Tereza de Lauretis (1994), as concepções de masculino e feminino, nas
quais todos os seres humanos são classificados, formam em cada cultura, um sistema
de gênero, um sistema simbólico ou um sistema de significações que relaciona o
sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais. Podemos
perceber que o conceito de gênero ultrapassa as relações entre homens e mulheres,
sendo visto como um sistema que engloba a economia, a sexualidade, a família, o
estado, a classe, a raça etc.
Com relação às identidades, Stuart Hall (2001) afirma que não há uma
identidade única e estável, como se acreditava no passado. Assim, existem
várias identidades que são fragmentadas e até mesmo contraditórias, as quais
são cambiantes e poderíamos nos identificar ao menos temporariamente. Para
Zygmunt Bauman (2005), a formação da identidade é como um quebra-cabeça
incompleto, no qual faltam muitas peças, porém, não se tem como saber quantas.
Cada indivíduo teria uma determinada quantidade de peças, mas que não sabe
qual imagem deverá formar com elas, não sabe também, se possui as peças corretas
ou se encaixou no lugar certo.
Sobre a masculinidade, Connell e Messerschmidt (2013), a definem como
uma prática em torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero.
Para tanto, é necessário compreender que o conceito de masculinidade só pode
existir em correlação ao feminino e vice-versa. Assim, normalmente existem “mais
de uma configuração desse tipo em qualquer ordem de gênero de uma sociedade”
(Connell e Messerschmidt, 2013, p. 188). Dada esta pluralidade, não deveríamos
falar em masculinidade, mas em masculinidades.
Dentre as diversas masculinidades existentes, existiria uma que se
apresentaria como sendo hegemônica, ou seja, um modelo ideal, soberano e
padronizado de masculinidade, no qual os homens deveriam se encaixar. Um
exemplo de modelo hegemônico disseminado em nossa sociedade é o do homem
heterossexual, branco, provedor, de classe superior, forte e viril. Assim, segundo
Connell e Messerschmidt (2013), as demais masculinidades, vistas como periféricas/
marginais, seriam concorrentes, subordinadas ou afirmadoras dessa.
Para Pierre Bordieu (2009), existem três instâncias principais que atual na
construção do gênero, neste caso, o masculino, são elas: “a Família, a Igreja e a
Escola, que objetivamente orquestradas, tinham em comum o fato de agirem sobre
as estruturas inconscientes” (BORDIEU, 2009, p. 103). A igreja seria a reguladora

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dos valores de uma família, pois, em certas épocas, procurou justificar a hierarquia
de autoridade baseada no patriarcado, ou seja, na autoridade que o pai exerce
sobre a família.
Por muito tempo, aos homens foram atribuídos papéis relacionados com a
religião. A eles foi incumbida à função de líder religioso, como é o caso dos bispos e
padres. Fazer parte do clero era um ‘privilégio’ que somente os homens poderiam ter.
O poder participar deste grupo seleto estaria relacionado com a crença da existência
da ‘superioridade’ masculina em tomar decisões sobre questões que envolvessem
sentimentos, pois as mulheres teriam um lado ‘frágil’, sendo mais sensíveis com as
situações. Para Fernanda Lemos (2008, p. 11), “tentar compreender a masculinidade
sob o prisma da religião é perfeitamente possível e necessário, se considerarmos a
influência histórica e social que a religião exerce sobre a realidade dos sujeitos”.
Nesse sentido, é importante ressaltar o papel da mídia em representar os
gêneros, seja feminino ou masculino. Essas representações ao mesmo tempo em
que derivam das atitudes e valores de cada sociedade, são também responsáveis por
reforçar tendências de comportamento e incentivar a instauração de novos valores.

As masculinidades na revista O Olho da Rua


A revista O Olho da Rua foi criada no início do século XX, sendo publicada
de 1907 a 1911 em Curitiba, no Paraná. A capa da revista era sempre ilustrada, e no
interior veiculavam temas como política, anticlericalismo, literatura e música, quase
todos sob uma abordagem humorística e crítica.
Para tal estudo foi escolhida como base a perspectiva hermenêutica, que se
constitui como um método interpretativo de análise. Segundo Sirlene Cristófano
(2009) a hermenêutica, em seu significado técnico, se explica como a ciência e a arte
da interpretação bíblica, surgida a partir da Idade Média, que tinha como objetivo
possibilitar aos fiéis uma verdadeira compreensão da mensagem divina. Com
o passar do tempo esse método foi ampliado, de modo que atualmente pode ser
aplicada nos mais diversos objetos de investigação.
Para a análise foram selecionadas duas imagens. A primeira, figura 1, foi a
ilustração da edição número 54, de 1909, da revista O Olho da Rua.

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Figura 1 - Revista O Olho da Rua, nº 54, 1909

Fonte: Biblioteca Pública do Paraná

Na Figura 1, há um frade representado. Ele segura uma garrafa de bebida,


chamada Champagne de Cajú, elevando-a próximo ao rosto como se quisesse
mostrá-la para alguém. O título da ilustração: ‘Mais uma prova’, se liga com as
inscrições abaixo da ilustração:

(sic) ‘Irmãos. Devo esta abençoada <champagne de Cajú> (da casa


Manoelito) a minha salvação!… Se eu tive forças para correr ante a tremenda
tunda que levamos dos alumnos do Gymnasio, só devo á <champagne de
Cajú>, há este vinho sagrado, que até dá forças às pernas!! Irmãos. Quem
quiser ter saúde, gordura, paz de espírito e disposição para correr é só usar
nas refeições a salutar <champagne de Cajú>, da casa Manoelito, ali á rua
de São Francisco junto à Delegacia Fiscal.

Com isso percebemos que o frade associa o uso da bebida com sua força para
correr, da surra que levaram dos alunos do Ginásio Paranaense, que era uma escola
religiosa, onde religiosos eram responsáveis por cuidar e educar as crianças. Isso
possivelmente aconteceu por conta de algum desentendimento entre os frades e os
alunos, os quais, em várias ilustrações da revista, aparecem beliscando, chicoteando,
maltratando os estudantes.
Damos destaque à questão da bebida relacionada com a masculinidade.
Ela está, muitas vezes, ligada com a virilidade, com a força. Segundo Nascimento
(2015), o beber masculiniza: “assim como dizer para os amigos que teve muitas
relações sexuais é uma forma de se apresentar como “mais homem”, beber e, em
alguns casos, beber muito, pode ser também uma forma de parecer do mesmo modo
(NASCIMENTO, 2015, p.3). Portanto, beber é uma forma de provar a masculinidade.
A bebida, na Figura 1, é tida como um combustível, como algo bom, tanto
que na descrição ela é elogiada, elevada ao patamar de ‘salvação’, que o tirou

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da enrascada com os alunos. Com ela o frade ficou com mais ‘força nas pernas’
para correr, fugir da situação. A revista O Olho da Rua, representa o personagem
se entregando ao ‘prazer’ de uma bebida alcoólica. Podemos relacionar isso com
a masculinidade hegemônica, onde todos viveriam em busca de atingir o padrão
do ‘ser homem’, incluindo, os religiosos. Nas palavras de Oliveira apud Sanches
(2014, p.58) “a mídia associa características de masculinidade hegemônicas, como
virilidade, ao consumo de álcool. Essa estratégia instiga muitos homens ao consumo
de álcool a fim de demonstrar ter e de reafirmar características de masculinidade”.
Seria uma forma de mostrar que antes de ser frade, ele era um homem ‘comum’.
Já na Figura 2, assinada por Herônio, que era outro pseudônimo utilizado
por Mário de Barros, um frade é flagrado agredindo uma criança com um beliscão.
Muitas das críticas anticlericais presentes n’Olho da Rua voltavam-se à atuação dos
religiosos no ensino.

Figura 2 - Revista O Olho da Rua, nº 58, 1909

Fonte: Biblioteca Pública do Paraná

Há na ilustração um forte tom de denúncia, com relação aos religiosos que


agrediam os alunos. É perceptível a reação da criança ao ser agredida: seu olhar
parece assustado, com medo, ao mesmo tempo, não reage, pois o frade era maior e
consequentemente, mais forte. Nessa época, início do século XX, era comum que as
crianças estudassem em colégios onde os membros do clero eram os responsáveis
pela educação. De acordo com Queluz (1996), nesse tipo de colégio os regulamentos
eram fortes, ou seja, a disciplina era imposta pelo castigo. Quem ousasse desobedecer,
seria agredido sem dó. Nesse aspecto, a masculinidade do frade, se relaciona com a
violência, a dominação por meio da força.
Assim como a agressividade, o uso da força como meio de dominação
também é uma característica da masculinidade hegemônica, discutida por Connell
e Messerschmidt (2013). Para Santos (2010, p. 60), “a todo momento, o homem tem
que provar a sua masculinidade, que se manifesta, principalmente, por atos de
violência”. Esses aspectos fazem parte da cultura patriarcal, que prevalecia no início

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do século XX, onde o homem seria o responsável pela família, o ‘chefe da casa’, a
autoridade máxima.
Para Bordieu (2009), a escola é um lugar de regulação, que dita o que pode
e o que não pode ser feito etc. Isso vai ao encontro da frase na Figura 2, onde se lê:
“(sic) Licção de catecismo (leia-se: muque) no collegio dos santos frades da Praça da
Republica. Exercícios puramente sagrados; não offendem o carão dos alumnos, pois
deixam ecchymoses d’este tamanho…”. A revista compara a lição de catecismo ao
muque, à lição que o frade está dando no menino por meio da força. Diz também,
ironicamente, que estes são exercícios ‘sagrados’ e que não ofendiam os alunos, pois
deixavam hematomas do mesmo tamanho.
Com isso, percebemos que as masculinidades são construídas com base em
vários aspectos como: a religião, a época, a tradição, os costumes, a economia, a
cultura local etc. Nesse contexto, a religiosidade seria uma das peças do quebra-
cabeça que compõe a identidade masculina. Ela auxilia no processo de instauração
de valores que serão vigentes na sociedade, atuando também como reguladora do
que pode ou não pode ser feito/dito.

Considerações Finais
No estudo, percebemos que o homem religioso foi representado, como
devasso e até mesmo profano. Para Queluz (1996), a ironia presente nas charges da
revista se voltou para os sacramentos, para o ensino religioso, para o chamavam
de hábitos mundanos desses religiosos. Assim, “o anticlericalismo do Olho da Rua
assume, portanto, o papel de reafirmação da liberdade individual, do patriotismo e
das convicções republicanas” (QUELUZ, 1996, p. 125).
Em uma única ilustração podemos perceber várias identidades e
masculinidades. A representação dos padres e frades se relaciona com o modelo de
masculinidade hegemônica e com o modelo patriarcal, pois buscavam provar, por
meio da força, virilidade, autoridade e até mesmo violência, que eram ‘machos’,
antes de se qualquer outra coisa.
É notável a busca da revista pela desmistificação do padre como sujeito sem
pecado, puro, livre de qualquer maldade. A O Olho da Rua, procura mostrar que os
padres eram homens que erravam assim como os demais, que gostavam de bebidas
alcoólicas, que não tinham total controle sobre a raiva que sentiam quando os alunos
os desobedeciam no Ginásio Paranaense, ou seja, ilustravam os membros do clero
de forma oposta ao que se esperava deles, que fossem exemplos para a sociedade.

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Referências
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Zahar, 2005.
BORDIEU, P. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. 6ªed. – Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, n 11, 1991.
CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W. Masculinidade hegemônica: repensando
o conceito. Revista Estudos Feministas, 2013. Disponível em: <https://periodicos.
ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104026X2013000100014/24650>Acesso em:
27. fev. 2016.
CRISTÓFANO, S. Hermenêutica e literatura: aportes para a interpretação e
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Procópio – PR, vol. 2, 2009. Disponível em: <http://www.faccrei.edu.br/gc/anexos/
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HALL, S. A identidade cultural da pós-modernidade. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
LAURETIS, T. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, B.H. Tendências e impasses:
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LEMOS, F. A representação social da masculinidade na religiosidade contemporânea.
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NASCIMENTO, P. Beber como homem: Dilemas e armadilhas em etnografias sobre
gênero e masculinidades. 2015 Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/
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QUELUZ, M. L. P. Olho da Rua: o humor visual em Curitiba (1907-1911). 1996, 198
p. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Paraná. Disponível
em: < http://acervo.ufpr.br/> Acesso em: 5 jul. 2016.
SANCHES, A. C. F. Bebo sim e estou vivendo: Qualidade de vida, masculinidade,
padrões de consumo de álcool e representações sociais de bebida alcoólica para
homens usuários de Unidade de Saúde da Família. 2014. Disponível em: <http://
docplayer.com.br/13546513-Universidade-federal-do-espirito-santo-programa-
de-pos-graduacao-em-psicologia-mestrado-em-psicologia-ana-claudia-ferreira-
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SANTOS, S. C. M. O modelo predominante de masculinidade em questão. Revista
de Políticas Púbicas. São Luís, v.14, n.1, p. 59-65, 2010. Disponível em: <http://www.
periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/352/771> Acesso
em: 9 de mar. 2016.

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DISCURSO E PRODUÇÃO DE VERDADES: DE
ANTÍGONA A ZUZU ANGEL
Kelly Cristina Schneider (PPGL/UNICENTRO)

Introdução

Tendo como compreensão o sujeito e as relações que se exercem entre poder/


saber esse trabalho pretende a partir da Análise do Discurso, baseada nos estudos
de Michel Foucault, em: a Ordem do discurso e As Verdades Jurídicas verificar na
obra Antígona, escrita por Sófocles no ano 442 a.C lutas verbais que a posicionam
como sujeito/mulher, filha de Édipo proveniente de um relacionamento incestuoso
com Jocasta, protagonista do acontecimento em torno do corpo do irmão Polínicie
e que vem atualizar-se na saga Zuzu Angel estilista brasileira nos anos 70 e 80, pela
busca incansável do seu filho Stuart.
E, fundamentalmente no contexto de lutas e domínio decorrentes de
práticas discursivas em que o conhecimento é produzido, buscamos como material
de análise: a obra Antígona e o filme Zuzu Angel, centrar-me-ei às verdades, ambas
empreendem uma busca incansável para desconstruir as verdades produzidas em
meio a cerrados exercícios de poder/saber.
O que de fato podemos tomar como um discurso verdadeiro em um
campo impactante em que as leis predominam sobre a sociedade? Para Foucault
(2010), “a verdade pode produzir, enxergar aquilo que a sabedoria dos outros
não pode perceber.”
Mais precisamente, partiremos das discussões de Foucault acerca dos jogos
de poder/saber que interessa-nos e os elementos que dão sustentação aos discursos
produzidos e promovendo efeitos de sentido, por meio de seus enunciados frente
à subjetivação da mulher quanto sua forma de se impor, denunciar e questionar
cujo comportamento evidencia um comportamento rebelde para a época, cujo
prestígio era voltado, projetado em sua totalidade para o universo masculino, o
patriarcal e o soberano.
Foucault vem reafirmar que, nem tudo pode ser dito e nem mesmo em
qualquer lugar ou circunstância, somos controlados e ao ato verbalizado traz
consigo enunciados que trazem consigo memórias e formulações heterogêneas
que constitui o sujeito em um dado espaço e tempo e também o polemizam, pois
o poder está em toda parte.
Pensando a reverberação e aos efeitos de sentido e sua relação discursiva,
Foucault (2007), em seu método arqueológico trata o enunciado como acontecimento
pela sua materialidade; atribui certo paradoxo entre novidade e repetição estando
aberto a transformação ou reativação que se dá na história e tangenciam novos outros.
Com esses apontamentos é que trazemos para o presente estudo os discursos
produzidos por mulheres destemidas que se posicionam diante da soberania e que
historicamente rompem com as leis e regras que se impõem decorrentes de poderes
normatizadores. Como observaremos, entrar na ordem do discurso é arriscado, há
seus temores, e, contudo esse desvencilhar das estruturas a que estamos envoltos é
também analisar que toda forma de poder/saber apresenta algo equivocado estando
sujeito a erros.
Trataremos da discussão em torno das verdades sobre o corpo que se quer
enterrar, no caso de Polinicie e Stuart sendo Antígona e Zuzu Angel, protagonistas
da história que a estas implicam subjetivações como: submissão e obediência, aos
padrões essencialmente machistas, mesmo tendo consciência de que de alguma
forma pela contradição seriam punidas e levadas à morte.

Discurso verdadeiro
Em todas as sociedades houve complexidade de poderes, desde um passado
remoto até os dias atuais estamos a ele submersos, resiste ao tempo, evidencia-se
por uma materialidade real, palpável e a partir dele surgem produções de saber e
verdades ao mundo evasivo e enaltecedor na amplitude do pensamento filosófico,
psicológico, político entre outros.
É no posicionamento do sujeito feminino na ordem do discurso, seu
contexto histórico e acontecimento que pretendo compreender sobre o que de
fato constitui um discurso verdadeiro, e se de fato estamos certos quanto ao que
podemos julgar e como se derivam seus efeitos, nas suas variáveis sedimentações
a que estamos expostos.
Concentram-se nessa exposição os saberes movimentando as ciências
humanas e pensadores que demarcam o método de análise de acontecimento
exercendo influência sobre os sujeitos e as instituições que estão aí estão interligados
nesse campo discursivo e encontra-se investido pelo desejo, e juntamente com ele
estão a exaltação e angústia há uma contraposição entre ambos no embate do que
pode ser dito e ao mesmo tempo do que não se pode dizer (Foucault, 2010).
Ao produzirmos discurso libertamo-nos e ao mesmo tempo somos
surpreendidos por uma força maior a qual estamos envolvidos: a repressão.

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Ao mesmo tempo, questionamos e procuramos respostas em torno de como se
organizam a história e as verdades e o poder que está aí imerso pelas instituições.
Embasados na teoria de Foucault e sobre os aspectos linguísticos, o discurso
se estabelece como jogo estratégico e polêmico entre perguntas e respostas e as
verdades podem ser definidas por regras, o filósofo procurou tematizar o sujeito
voltando-se à sua história, preocupou-se com os jogos de verdade mais precisamente
com as práticas discursivas que o complementam e o estabelece como sujeito de
conhecimento imbuídos de poder e saber desde as ciências que estudaram o homem
como: (i) ser simbólico; (ii) ser vivo representante de desejos; (iii) ser produtivo e
que se relaciona. Analisando o sujeito que exerce poder e sofre as relações de poder.
Pensar a história das verdades merece uma volta ao passado e se constitui
pela experiência e atualiza-se no presente. Diante do verdadeiro e do falso Foucault
nos faz pensar e entender o discurso e os sujeitos, pois dentro do contexto das
verdades está uma inquietação em torno da subjetivação da mulher em meio às
pressões e sistemas de coerção que a envolvem em um cenário imerso ao controle
e imposições até mesmo no desenvolver das verdades que pactuam com a história
incontornável sobre a identidade da mulher que a muito tempo limitou-se pela
visão dos homens sobre a mesma, frágil e de submissão.
De acordo com Foucault:

Certamente, se nos situamos no nível de uma proposição, no interior


de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem
arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas se nos
situamos em outra escala, se levantamos a questão de saber qual foi, qual
é constantemente, através de nossos discursos, essa vontade de verdade
que atravessou séculos de nossa história, ou qual é, em sua forma muito
geral, o tipo de separação que rege nossa vontade de saber, então é talvez
algo como um sistema de exclusão (sistema histórico, institucionalmente
constrangedor) que vemos desenhar-se. (FOUCAULT, 2010, p.14)

Como distinguir o que de fato pode se considerar como verdade? O que é


falso ou verdadeiro nesse um jogo de relações? É continuamente arriscado dizer
de que lado ela está se para Foucault, (2010) onde está a verdade lá está o poder,
há arbitrariedades, entradas que contornam metaforicamente os meios a que se
destinam, entretanto, difícil é encontrar uma saída em um meio de imposições e
reconduções, paradoxalmente estamos envolto em uma continuidade histórica
de julgamentos em meio a lutas e conflitos pelo que se deseja refletindo nosso
comportamento indo além do que poderia ser considerado como normalidade.
Com vistas nas relações de poder e saber produz-se o conhecimento entre
domínio uns sobre em Nietzsche, grande filósofo ocidental, questionador sobre

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o conhecimento e a história da verdade, Foucault repensa sobre as verdades nas
ordens das ciências, o que para torna fundamental associar a verdade discursiva à
invenção, as coisas são fabricadas, nada está por acabado, reproduzimos o que um
dia já estava lá no tempo em algum lugar dito por alguém, e, portanto, tais saberes
como são inventados podem equivocar-se.

Mulheres: um percurso pela história


A história das mulheres revela saberes e poderes que definem o sujeito
mulher, modos de agir, de pensar em determinados espaços da sociedade, da família
em contextos exclusivamente próprios do universo masculino. Deslocando-se a uma
historicidade que predominou no passado quanto à estrutura familiar é possível
nos localizarmos quanto ao campo do feminino para melhor compreendermos as
constantes transformações e evoluções e aos sentidos que se produziu.
O espaço histórico marcado por suas lutas vem romper com certos
estereótipos que circundaram sua existência por muitos anos, a historiadora
Michelle Perrot através da história investiga saberes e poderes que a definem, seu
lugar no mundo não apenas como a mulher mãe e esposa, submissa e obediente,
destaca sua forma de rebelar-se contra o jugo do poder patriarcal, enredadas pela
religiosidade, preceitos morais e determinações jurídicas; conquistando o espaço
público e privado notoriamente.
Para Perrot (2007), houve um silenciamento que durou por muito tempo e
um querer gritante pela liberdade e igualdade nas relações com os homens em todo
aspecto social, entretanto, a atuação masculina era predominante. Esse silenciar vem
se instaurar ao jogo das relações de poder, com efeito de memória entre o que deve
ser lembrado e esquecido para que apenas os anseios do masculino exercessem força
sobre o feminino. Até o século XVIII, a mulher era considerada um ser irracional,
entretanto, começa haver mudanças pela sua manifestação nas décadas de 1960 a
1970 no século passado e evidenciam uma nova realidade hoje, subsistem:

muitas zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de silêncio,


ligado à partilha desigual dos traços, da memória e, ainda mais, da
História, este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres, como
se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrável, elas
estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento. (PERROT,
2005, p.9)

A partir do que foi dito, escrito e narrado é possível entendermos o quanto


significou a luta e reinvindicações nas vozes dessas feministas provocando uma

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dissolução na diferença dos sexos na sociedade ocidental alcançando alguns países
como os Estados Unidos e a França.
As feministas lutavam contra todo tipo de discriminação social, política,
econômica que se propagavam para oprimi-las no decurso da história. Os
deslocamentos e as reinvenções conquistadas contribuíram para as mulheres
acedessem ao mundo político, podendo desempenhar seu intelecto, adentrar no
mercado de trabalho, dissolvendo preconceitos e adquirindo conquistas ao mundo
do saber, propriamente ao mundo do poder; provocando significativas mudanças
tanto nos aspectos jurídicos quanto nos costumes.
Dentro desse universo de conflitos a mulher emancipou-se, conseguiu
autonomia reconstruindo sua identidade, desde a dissociação entre sexo e
procriação, que no entendimento de Perrot (2005), é a grande revolução do século
XX e contribuindo para uma rejeição da mulher contra a dominação masculina.
Não se podem afirmar diferenças entre ambos, mesmo que seus corpos sejam
biologicamente diferentes. Ser homem ou ser mulher na perspectiva dos estudos de
gênero é o resultado de uma construção histórica e cultural, marcadas por relações
poder-saber que constroem e reconstroem verdades sobre o sujeito.

Enunciado e a voz feminina na produção das verdades


Foucault em Arqueologia do saber trata do enunciado como unidade
elementar do discurso indo além de uma construção gramatical ou sintagma.
Como todo acontecimento implica estar aberto à: (i) novidade; (ii) irrupção de
uma dada singularidade histórica; (iii)atualidade. Para melhor compreender sua
existência é necessário relacionar seus objetos a seus sujeitos dado que a língua e
sua materialidade concebem o discurso possibilitando a formação de objetos e a
produção de subjetividades.
Para descrevê-lo é preciso saber entender de que modo e a função que
estabeleceu, desse modo o filósofo contribui significativamente ao nos inteirar
quanto à forma verbal do enunciado como um conjunto de signos e série de frases e
proposições do qual é constituído o discurso e seus sentidos.
Na análise discursiva temos como investigação o enunciado que implica
as condições históricas e a posição do sujeito com o lugar de sua dispersão e da
sua descontinuidade. Esse lugar a ser ocupado pelo sujeito é o que o caracteriza na
função enunciativa demarcado por poderes-saberes ordenados e hierarquizados.
Foucault em sua obra leva-nos a compreender o poder como prática social
que atinge a todos e pela forma que é exercido, trata-se de uma ação de uns sobre os

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outros, nos deixa claro que o enunciado não é, pois, uma estrutura, mas [...] é uma
função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual
se podem decidir [...] se eles fazem sentido ou não [...] É essa função que preciso
descrever agora como tal, ou seja, em seu exercício, em suas condições, nas regras
que a controlam e no campo em que se realiza. (Foucault, 2007 p. 203).
Quando nos colocamos em contato com o enunciado e os conceitos do autor,
encontramos na sua exterioridade elementos, regras que se relacionam e formam
novos outros enunciados, que se repetem com efeitos de memória e se reatualizam,
nesse sentido entendemos que para Foucault, o enunciado quanto existência e
acontecimento: é inesgotável.
Logo, partimos para os acontecimentos em que a interdiscursividade se
dá nesse processo da subjetivação da mulher que perpassa a um tempo passado
e constitui na modernidade, quanto as funções entre o masculino e feminino e os
conflitos que se empreendem nos séculos V na mitologia grega e ao século XVIII no
auge da ditadura:
Creonte
(Ao guarda) Podes ir para onde quiseres, livre da acusação que pesava
sobre ti!( a Antígona) Fala, agora, por tua vez; mas fala sem demora! Sabias
que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizeste?
Antígona
Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?
Creonte
E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?
Antígona
Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que
habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre
os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a
um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas
são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim!
E ninguém sabe desde quando vigoram! – Tais decretos, eu, que não temo o
poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir
os deuses! Que vou morrer, eu bem sei; é inevitável; e morreria mesmo sem
a tua proclamação. E, se morrer antes do meu tempo, isso será, para mim,
uma vantagem, devo dizê-lo! Quem vive, como eu, no meio de tão lutuosas
desgraças, que perde com a morte Assim, a sorte que me reservas é um mal

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que não se deve levar em conta; muito mais grave teria sido admitir que o
filho de mim mãe jazesse sem sepultura; tudo o mais me é indiferente! Se
te parece que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me
acusa de loucura!
Foucault (2002) vem evidenciar em As verdades jurídicas esse poder-saber,
como atos múltiplos e contraditórios dos quais o homem se apodera violentamente e
lhes impõe relações de força estabelecendo saberes e verdades de forma estratégica,
mas precisamente utiliza-se do conhecimento como forma de dominação e
manipulação, e de acordo com suas implicações e a prática apresenta falhas e erros.
Dentre essa forma dominadora o homem precisa punir, usar da violência
caso haja desobediência às leis e atitudes consideradas contrárias ao que é imposto,
as verdades existentes no papel das leis é que a ordem seja mantida e as autoridades
respeitadas principalmente sobre o que lhe é imposto.
Antígona revela forte expressão ao afrontar o rei Creonte pelo fato de
não confiar nos homens, nas leis impostas, contesta pela interdição ao enterrar
seu irmão Polinicie para que sua alma pudesse descansar e para análise da
materialidade linguagem verbal entre os personagens buscaremos entender as
verdades que prevalecem nesse embate de perguntas e respostas estando de um
lado e as leis divinas e do outro as leis do homem. A dominação do homem sobre
a mulher é exercida mediante heterogêneas e complexas relações de poder- saber
ligadas as condições sociais, econômicas, políticas e culturais, que de certa maneira
contribuíram para a resistência feminina, cujo reflexo está na forma de violência a
que está submetida ao dizer “não”, ao contestar.
Numa relação de sentidos e que se articula na memória, esse discurso entre
Antígona e o rei nos leva a compreender a concepção foucaultiana, [...] o discurso
verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror, aquele ao qual era preciso submeter-
se, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e conforme
ritual requerido [...] E somente a este lhe era dado autoridade e poder para decidir
quanto a ordem e a justiça. Foucault(2010. p.15)
Mais tarde, o mesmo discurso vem reatualizar-se na Saga de Zuzu Angel,
estilista brasileira que busca pelo corpo do filho que supostamente teria sido
torturado por se tratar de um revolucionário e subversivo. Ela enfrenta a militância,
protesta ao descobrir que ele foi morto rompendo com os padrões de uma sociedade
em que a mulher não poderia manifestar-se, entretanto seu posicionamento, tem
repercussão em vários lugares do mundo.

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Observemos o seguinte excerto, que traduz toda luta de uma mãe que
percorre muitos lugares para encontrar seu filho. Informada pela execução de seu
filho na aeronáutica do Galeão, vai até as últimas consequência destemida se dirige
ao delegado e agente executor da repressão Claúdio Antonio Guerra, que matou
muitos jovens estudantes revolucionários.
Delegado: Eu soube que a senhora deu um show no avião!
Zuzu: O senhor se informa rápido.
Delegado: E bem. Saberia até mesmo dizer a cor da sua roupa de baixo, só
não sei do seu filho, eu nunca o vi. Mas, a senhora foi ao exterior me acusar
de assassinato, sem prova. Eu tenho família, minha mulher e meus filhos
ficaram chocados com isso.
Zuzu: Seus filhos devem estar indo à praia e a festinhas. O meu foi torturado
e morto.
Comandante: Quem disse, um terrorista? Quais as provas?
Zuzu: O corpo do Stuart é o mínimo que eu posso exigir.
Comandante: Não há corpo.
Zuzu: O que?
Comandante: Se seu filho morreu mesmo a senhora acredita, depois de
tanto tempo já não há mais corpo em lugar nenhum.
Zuzu: Mas os assassinos ainda estão soltos.
Comandante: Pois então reúna provas.
Zuzu: Quem matou Stuart um dia irá pagar por isso.
Comandante: Dona Zuleica eu não a aconselharia a me transformar em um
inimigo pessoal.
Em uma sociedade patriarcal em que a mulher deveria silenciar, ela luta
verbaliza seus ideais em torno do que para ela faz sentido, rompe com estereótipos
e centraliza-se em um duelo em que as verdades, vontades de verdades são
importantes acima do poder, das leis e das regras. Sua forma de confrontar o poderio
do rei e sua interdição vai até as últimas consequências e a extremos contra o poder
que reprime, ilude e disciplina.
Há de certo modo, uma angústia que permeia esses enunciados, pelas
posições que ambas ocupam e as verdades que sobressaem sobre elas é um
comportamento de afronta que vai contra o contexto da época. Nesse sentido,

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Foucault nos leva a refletir que por trás do poder-saber há o discurso verdadeiro,
que a necessidade de sua forma liberta do desejo e libera do poder, não pode
reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, essa que
se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar
de mascará-la. (Foucault 2010, p.20)
Adentrar nesse campo discursivo, é submeter-se ao jogo de poder e o desejo aos
quais somos subjugados de acordo com o que pronunciamos em um dado momento,
percorrendo anos, meses e dias. Propriamente valendo-se do que é dito hoje, alguém
já o disse e há de dizer, reatualizamos novos outros enunciados, entretanto, nem
mesmo a ciência e outros saberes podem classificá-lo como falso ou verdadeiro.

Considerações finais
Pudemos com nosso estudo dar visibilidade aos discursos produzidos,
relacionado-os com a história das mulheres, e alicerçados em Michel Foucault,
com o intuito de identificar aspectos culturais e sociais como as imposições
estabelecidas e o jogo que produzem verdades no campo do poder-saber, em meio
aos acontecimentos que se estabelecem.
Foucault nos situa quanto ao discurso como lutas que se propagam em
meio aos sistemas que dominam, esquivam, interditam e ao nos apoderar daquilo
que almejamos nos caracterizamos como sujeitos.
Nossas reflexões tiveram como prioridade a análise da obra Antígona e a saga
Zuzu Angel e as circunstâncias em que os enunciados se estabeleceram visando efeitos de
sentido e reconstruindo novos outros, atualizando a expressão da mulher e a produção
de verdades que se constroem e as subjetividades em torno dela na atualidade.

Referências
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2002.
______. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
______. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2010.
PERROT, M. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
______. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP: EDUSC, 2005.

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HOMEM OPRESSOR OU OPRIMIDO: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, UM
OLHAR MAIS ATENTO AO SEU AUTOR PERMEADO POR
QUESTÕES CULTURAIS
Marcela de Fátima Kloster (UNICENTRO/UFS)
Marianne Pauluk (USF)
Adriele Andreia Inácio (Orientadora-UFSC)

Introdução
Este trabalho possui o objetivo de contextualizar as questões referentes a
Violência Doméstica, porém, com um olhar voltado para a situação dos homens
nesta conjuntura, esquecido pelas políticas públicas, devido a sua própria construção
social que foi embasada na virilidade e masculinidades que os tornam intocáveis, ou
seja, sua condição social de “macho” não necessita de cuidados e acompanhamentos.
A metodologia deste trabalho consiste em uma pesquisa bibliográfica,
que de acordo GIL (2008) se desenvolve a partir de materiais já elaborados sobre
determinada temática, através de consultas em livros, artigos, periódicos, revistas,
jornais, discussões assentadas por diversos autores, como os apontamentos
situados por Heleieth Saffioti, em seu livro O Poder do Macho, Jean Pierre
Bourdieu, em o Poder Simbólico e a Dominação Masculina, interpretações de
Theodor Adorno e Michel Foucault.
Com base no pensamento destes autores possibilita-se demonstrar que
os privilégios dados aos homens trata-se de conceitos simbólicos, estruturados
subjetivamente, o que torna os homens seres dominados e oprimidos, pela sua
própria posição social, que lhes fornece poder, porém de tão natural que ele é
repassado aos homens através de discursos incontestáveis, tidos como verdades
extremas, operam na objetividade destes seres, tornando-os seres moldados por
uma sociedade que determina que a sua virilidade deve ser demonstrada.
Assim, busca-se com este trabalho demonstrar que o processo de construção
social dos homens, como das mulheres, foi permeado por questões culturais, que
criaram uma sociedade hierarquizada, onde os homens situam-se no topo desta
pirâmide e deste posto emanam ordens para as mulheres que se encontram na base
piramidal, estruturando a dicotomia de poder entre homens e mulheres, ou seja,
opressores e oprimidas.
Neste sentido, se os homens são produtos de uma construção histórica e
cultural, que os aprisiona nas questões de virilidade e masculinidades, ao ditar
que devem reprimir seus sentimentos afetivos e extravasar sua agressividade, eles
tornam-se tão vítimas quanto as mulheres agredidas por eles.
Portanto, os homens devem ter suas necessidades reveladas, pois, a
discussão da violência doméstica demonstra que ela é uma violência de gênero,
e assim, ela deve tratar tanto dos homens quanto das mulheres, trata-se de algo
indivisível, gênero é equidade, contudo, atender somente as mulheres e excluir os
homens é não promover esta equidade.

Virilidades e masculinidades
As virilidades e masculinidades dos homens foram constituídas para serem
o oposto das mulheres, ou seja, a dicotomia feminino e masculino, impôs uma ordem
de como os homens e as mulheres devem se comportar, criaram-se estereótipos
que devem ser usados como moldes. Segundo Bourdier (2002, p.16) “A divisão
dos sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do
que é normal, natural, a ponto de ser inevitável [...]”. Para que “naturalmente” seja
mantida certa estabilidade social e harmoniosa entre os seres.
Eles devem ser os homens que os outros homens determinam que eles
sejam, avesso a tudo o que é colocado como feminilidades, para que eles e a sua
honra permaneça intacta, ou seja, que ela não seja “afeminada”. O processo de
construção social dos homens está alicerçado em estruturas duradouras que os
legitimam com virilidades e masculinidades, que precisam ser confirmadas por
outros homens. De acordo com Bourdier (2002, p.66) “A virilidade, como se vê, é
uma noção eminentemente relacional, construída diante dos outros homens, para
os outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do feminismo,
e construída, primeiramente, dentro de si mesmo”.
Ser homem significa ser macho, atitudes sentimentais devem ser suprimidas, a
agressividade deve ser valorizada, tudo o que está relativo com o “universo” feminino
deve ser evitado, e assim, os homens vão sendo moldados e sem se aperceberem se
tornam dominados, de acordo com Saffioti (1987, p.27) “[...] existem também condutas
impostas aos homens, que limitam extraordinariamente o seu desenvolvimento”.
Neste sentido, o processo de construção social dos homens, legitimou a eles
poderes específicos, que produzem discursos que se consolidam como verdades
incontestáveis, e resultam na formação de poderes peculiares e complexos, e a sua
desconstrução torna-se difícil pois trata-se de uma ideologia vigente e aceita pelos
sujeitos (FOUCAULT, 1984 apud RIBEIRO, 1999).
No entanto, estes “verdadeiros discursos” atribui virilidades e
masculinidades, que permitiu repressão aos homens, tornando-os reféns de uma
estrutura que subjetivamente opera na objetividade destes homens, que sem se

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aperceberem perpetuam estes discursos, materializando uma sociedade machista e
sexista que exclui quem não se enquadra nos moldes pré-determinados.

Poder Simbólico

Os papéis sociais que a sociedade determina que sejam interpretados de forma ri-
gorosa, cria marcas de dominação e exploração entre homens e mulheres, ou seja,
de acordo com Saffioti (1987, 0.29) “[...] a construção da supremacia masculina exige
a construção da subordinação feminina”. Colocando as mulheres em condição de
inferioridade diante da superioridade dos homens.
Este fato discorre de uma construção social e histórica que legitimou poderes
enunciados como verdades supremas e que beneficiou os homens com privilégios,
pois possuem o controle da esfera pública e privada, no entanto, eles sem se
aperceberem tornam-se vítimas da legitimação deste poder (SAFFIOTI, 1987).
Assim, levanta-se o questionamento se de fato este poder dados aos
homens, esta relação assimétrica entre eles e as mulheres produz efeitos favoráveis
em suas relações sociais, comportamentos e atitudes, na sua interação com a
família e no trabalho?
Diariamente os homens são podados, um pai de família, desempregado,
que não possui condições econômicas de abastecer as necessidades materiais da sua
família, é considerado pelos outros homens que integram a sociedade, como seres
fracassados, sem condições de ao menos sustentar a sua família, desqualificando-os
perante os outros homens. (SAFFIOTI, 1987)
Ao retirarem “naturalmente” destes homens a possibilidade de demonstrarem
sentimentos, pois, eles foram ensinados pelos próprios pais que homem de verdade
não chora, muitos engoliram o choro para não serem considerados “mulherzinhas”,
adotam uma agressividade que foi construída culturalmente, mais que causa aflição,
um sentimento de autodepredação que os domina (SAFFIOTI, 1987).
Nas palavras de Bourdier (2002, p. 45) “Os dominados aplicam categorias
construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as
assim ser vistas como naturais. O que pode levar a uma espécie de autodepredação
ou até autodesprezo sistemáticos”. Trata-se, portanto, um poder simbólico, que
opera segundo a vontade involuntária de seus dominados, pois ele não precisa ser
justificado e sim praticado.

O poder simbólico não pode se exercer sem a colaboração dos que lhe
estão subordinados e que só se subordinam a ele porque o constroem como
poder [...] temos que registrar e levar em conta a construção social das

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estruturas cognitivas que organizam os atos de construção do mundo e de
seus poderes. Assim se percebe que essa construção prática, longe de ser
um ato intelectual consciente, livre, deliberado de um “sujeito” isolado, é,
ela própria resultante de um poder, inscrito duradouramente no corpo dos
dominados sob forma de esquemas de percepção e de disposições [...] que o
tornam sensível a certas manifestações do poder (BOURDIER, 2002, p. 51).

O poder simbólico presente nas relações masculinas torna-se uma violência


praticada por eles contra eles, pois não existe uma reflexão crítica sobre os seus atos
e sim uma racionalidade instrumental praticada e reproduzida por seus seguidores,
os homens compreendem que esta maneira de agir está compatível com a ordem
natural, mesmo que para isso ele seja aprisionado em diversos momentos da sua
vida, os homens tornam-se produtos culturais baseados em estereótipos.
Segundo Neuvald (2013, p. 21), Adorno cita que os homens são “[...]
produtos culturais, que se submetem aos moldes adaptativos da cultura, à lógica
da racionalidade instrumental, minando as potencialidades emancipatórias – o que
é possível na medida em que os indivíduos são privados do exercício da autocrítica
reflexiva”. Destarte a libertação dos homens só será possível se forem dadas a eles
oportunidades de entendimento crítico e emancipatório, que permitam romper com
estruturas dominantes e classificatórias.

Patronato Municipal de Pitanga - Paraná


O Patronato Municipal de Pitanga, foi criado em setembro de 2013, é um
Programa de Alternativas Penais, que trabalha como órgão da Lei de Execuções
Penais, na fiscalização, acompanhamento e orientações do cumprimento das
penas de prestação pecuniária, serviços à comunidade e comparecimento
mensal, determinados em audiência aos sentenciados, é formada por uma equipe
multiprofissional composta por advogado, assistente social, pedagogo, psicólogos e
administradores (SEJU, 2013).
A realização deste trabalho é efetivada pela articulação de corresponsabilidades
entre Prefeitura, o Estado através da Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino
Superior – SETI e as Instituições de Ensino Superior - IES (SEJU, 2013).
A Secretaria da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos – SEJU, é a
responsável por assessorar as atividades realizadas no Patronato, que além da
fiscalização das determinações judiciais impostas em audiência, determina a
realização de programas de acompanhamento específico aos assistidos, conforme
o delito praticado por eles (SEJU, 2013).
Estes programas possuem o objetivo de produzir espaço e atividades
que propiciem aos assistidos reflexão sobre os seus atos, visando mudanças

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comportamentais e de atitudes, através de uma perspectiva de re (educação) e re
(socialização). Através do atendimento da equipe multiprofissional o Patronato
disponibiliza de 04 (quatro) programas de acompanhamento específico, o E-LER, que
incentiva o retorno as atividades escolares, o SAIBA, para os assistidos que foram
pegos com pouca quantidade de entorpecentes, considerado para consumo próprio,
o BLITZ, para ao autuados dirigindo sobre o efeito do álcool e o BASTA, para homens
autores de violência doméstica, enquadrados pela Lei Maria da Penha.

Programa de Acompanhamento Específico – Basta para Homens Autores


de Violência Doméstica
Este programa é realizado em consonância com as diretrizes da Lei
11340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que “[...] cria mecanismos para
coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, [...] Eliminação de
Todas as Formas de Violência contra a Mulher, [...] para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher [...]”. Brasil (2010). No entanto, ela não é uma lei
específica para as mulheres, e sim, trata da violência em um contexto mais amplo.
A Lei Maria da Penha entende que a violência doméstica contra as mulheres
é complexa, pois ela afeta não somente as mulheres que se encontram em situação
de violência, mais todo o conjunto em familiar, neste sentido, ela entende que
os homens desempenham papel de grande relevância para a perpetuação desta
violência. Em seus artigos ela dispõe da especificidade relativa do atendimento aos
homens, pois, menciona que eles também devem ser atendidos e contribua para os
objetivos para qual esta lei foi criada (BRASIL, 2010).

Art. 35 - A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão


criar e promover, no limite das respectivas competências: V - centros de
educação e de reabilitação para os agressores. (BRASIL, 2010, p.30); Art.
45 - Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar
o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeduca-
ção. (BRASIL, 2010, p. 32)

Neste sentido, o Patronato realiza o Programa de Acompanhamento


Específico Basta – para homens autores de violência doméstica, eles são
encaminhados pelo Poder Judiciário e a sua participação é determinada através da
obrigatoriedade imposta no termo de audiência, não como pena alternativa, mais
como uma oportunidade de oferecer a estes homens um espaço para que possam
relatarem as suas histórias, suas dificuldades, e que assim, tenham contato com
questões que para eles foram concebidas como naturais.
Este programa possui 08 (oito) módulos, divididos em 04 (quatro) encontros,
seguindo as diretrizes da Cartilha do Patronato, as temáticas são abordadas através

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de debates, vídeos e dinâmicas, que compreendem desde a discussão sobre a Lei
Maria da Penha, contextualização histórica sobre a construção social de homens
e mulheres, formas existentes de violência. Todos os temas são direcionados para
que ocorra a participação de todos os integrantes, no intuito de despertar neles
conhecimento crítico sobre as suas condutas (SEJU, 2013).
Assim, este programa visa reduzir os danos provocados por este cotidiano
de violência que afeta toda a família, mais principalmente, instigar nestas homens
oportunidades de mudanças de comportamentos, atitudes através de uma
intervenção reflexiva e crítica.

Considerações finais
O processo de construção social dos homens não foi oposto ao das
mulheres, ele também foi permeado pela dicotomia público e privado, pelo sistema
patriarcal, por discursos de significados de como homens e mulheres devem se
comportar perante a sociedade, assim, o contexto que estão embutido os homens
não permitem a eles falhas.
Eles precisam mostrar as suas masculinidades e virilidades, em oposição a
tudo o que for remetido como feminino, para que assim sejam aceitos pelos outros
homens, a demonstração de gestos, sentimentos que pareçam estar na ordem do
feminino, são questionados e excluídos.
Ao mensurar a violência doméstica há de se levar em conta as especificidades
que atinge todos os autores envolvidos nesta trama, isso não significa que os homens
autores de violência doméstica não devam ser punidos pelos seus atos, porém,
deve-se levar em conta que assim como as mulheres o seu contexto é permeado por
significações, subjetividades perpetuadas por discursos que os fazem reféns de um
poder simbólico, que através de uma racionalidade instrumental não os permite
vislumbrar novas possibilidades.
Neste sentido o Programa Basta do Patronato Municipal de Pitanga –
Paraná, juntamente com a Lei Maria da Penha, cria um espaço para que estes homens
autores de violência doméstica sejam atendidos em suas necessidades, pois, desde o
momento em que as mulheres que se encontram em situação de violência doméstica
realizam o boletim de ocorrência até o momento em que estes homens vão para
a audiência, em nenhum momento eles foram ouvidos, simplesmente o colocam
como culpado e assim devem responder seus atos.
Portanto, o trabalho com os homens autores de violência doméstica
permite a eles o contato com o desconhecido, que permite a desconstrução de

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estruturas machistas e sexistas e propicie conhecimento crítico sobre as suas
atitudes na perspectiva de mudanças comportamentais que favoreçam não
somente a erradicação da violência contra as mulheres, mais a violência cometida
por homens a outros homens diante deste poder simbólico dado a eles sob a ótica
dos Direitos Humanos.

Referências
BOURDIER, P. A dominação Masculina. Tradução de: Maria Helena Kühner. 2ª ed. –
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002;
BRASIL, Lei Maria da Penha, Lei nº11.340, Procuradoria Especial da Mulher,
Brasília, 2010;
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008;
NEUVALD, L. Subjetividade e Formação na Perspectiva Adorniana. Educação
Unisinos, v. 17, n. 1, p. 19-27, janeiro – abril, 2013;
RIBEIRO, M. O. A Sexualidade segundo Michel Foucault: uma Contribuição para a
Enfermagem. Ver. Esc. Enf. USP, v.33, n.4, p. 358-363, dez, 1999;
SAFFIOTI, H. I. B. O Poder do Macho. Coleção Polêmica, São Paulo: Moderna. 1987;
SEJU, Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos. Patronato Municipal:
Municipalização da Execução das Alternativas Penais. Curitiba/PR, 2013a. Acesso
em: 29 ago. 2016.

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UM OLHAR DE CIGANA: REPRESENTAÇÕES DE
CAPITU EM GRAPHIC NOVEL
Marcia Costa (UNICENTRO/PPGL - CAPES)
Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira(Orientadora-UNICENTRO)

Introdução
Na linha das adaptações em quadrinhos há publicações que transcendem e
acrescentam elementos interessantes à obra literária, independente do suporte que
utilizem, permitem uma série de modificações em relação à obra original. Sendo
trabalhada com maior liberdade de criação, as adaptações buscam conversar com
um público específico, transmitindo um novo olhar e moldando o original com as
alterações que ocorreram com a chegada da modernidade e as mudanças nos meios
de comunicação impressos ou digitais.
Há, por parte dos programas de formação em literatura, uma resistência
que fomenta o preconceito contra gêneros híbridos e suportes alternativos ao do
texto impresso tradicional, gerando a ideia errônea de uma tradução substitutiva,
que grande prejuízo acarreta à compreensão do fenômeno adaptativo, tal como
define Hutcheon (2011).

A adaptação não é vampiresca: ela não retira o sangue de sua fonte,


abandonando-a para a morte ou já morta, nem é mais pálida do que a obra
adaptada. Ela pode manter viva a obra anterior, dando-lhe uma sobrevida
que esta nunca teria de outra maneira (HUTCHEON, 2011, p.234).

A autora reforça que ainda que “esta é uma forma de recontamos as


histórias e as mostramos novamente e interagimos uma vez mais com elas - muitas
e muitas vezes; durante o processo elas mudam a cada repetição, e ainda assim são
reconhecíveis” (2011, p. 234).

Desenhando a Literatura
Quando nos referimos a um clássico literário, devemos reforçar o quanto
esta leitura contribui para que o sujeito que lê, desenvolva um conhecimento acerca
do mundo que o rodeia. Ler e reler um clássico são descobrir sempre novas histórias.

Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer,
quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.
Naturalmente isso ocorre quando um clássico “funciona” como tal, isto é, estabelece
uma relação pessoal com quem o lê. (CALVINO, 1999, p.12)

Partindo deste princípio de que há uma relação da obra com quem a lê, a questão da
percepção estética passa a ter um papel fundamental, facilitando a compreensão e aliando a
imagem ao que está sendo dito. Para Iser (1996), a obra literária tem dois polos: o artístico
designa
o
texto
criado
pelo
autor 
–
e
o
estético
–
que
é
a
concretização
produzida
pelo
 leitor.

A
 interpretação
 tende
 a
 mostrar‐se
 objetivista; em consequência seus atos de


apreensão eliminam a multiplicidade de significação da obra de arte. Se afirmamos,
como sucede muitas vezes, que uma obra literária é boa ou má, então formamos um
juízo de valor. Mas quando necessitamos fundar esses juízos, utilizamos critérios que,
na verdade, não são de natureza valorativa, mas que descrevem características da obra
em causa. Se compararmos essas com as de outras obras, não conseguimos ampliar
os nossos critérios, pois as diferenças entre esses critérios já não representam o valor
próprio (ISER, 1996, p.59)

As três histórias em quadrinhos escolhidas para este trabalho conseguem manter a


identidade do autor, o que é bastante interessante, já que através de uma nova roupagem
conta a história se valendo dos termos usados por Machado de Assis, despertando nos novos
leitores, e amantes das histórias em quadrinhos, a curiosidade pela obra original, e acendendo
nos antigos leitores, a vontade de revisitar os “clássicos”. As histórias em quadrinhos tem a
seu favor a particularidade de unir literatura e artes plásticas, o que torna sua leitura mais
atraente, despertando o interesse para a literatura brasileira, principalmente em crianças e
jovens, que atualmente, em sua maioria, preferem os meios digitais aos impressos, quando o
assunto se refere às leituras.

Pode-se dizer que em praticamente todos os países do mundo é possível encontrar


exemplos de utilização da linguagem dos quadrinhos nos mais diferentes setores ou
atividades humanas, seja com finalidades de educação e treinamento, de entretenimento,
como fins de divulgação ou publicidade de produtos comerciais.” (VERGUEIRO 200,
p.84).

Como vimos, as histórias em quadrinhos estão inseridas em diversos contextos, e foram


utilizadas em várias partes do mundo para os mais diferentes fins, segundo (VERGUEIRO,
2009, P. 86): “Instruções de uso de armas, durante a Segunda Guerra Mundial, Iniciativas
Governamentais, com uma visão Educativa na França, e no Brasil, o autor aponta a revista
Tico-Tico, de 1905, para a divulgação dogmática e cívica”.
De acordo com Silva (2009, p.3), “a adaptação é um processo de diálogo intertextual
onde o material original é reconstituído, reconfigurado, em outro universo expressivo”.

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Para Pina, (2014, p.75) A linguagem quadrinística, especialmente na Literatura em
Quadrinhos, exige uma mediação eficaz”:

Ela conjuga vários elementos organizadores, os quais garantem sua peculiaridade. As


adaptações resultam de suas apropriações de cada obra-fonte. Os adaptadores são, antes
de tudo, intérpretes da obra original e eles introjetam entre as linhas dos textos adaptados
os resultados dessa atividade meio marginal, gerando novas obras. (PINA, 2014, p.75)

O Mesmo Olhar de Cigana


Machado de Assis (Joaquim Maria M. de A.), jornalista, contista, cronista, romancista,
poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também
no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da Cadeira nº. 23 da Academia
Brasileira de Letras. Velho amigo e admirador de José de Alencar, que morrera cerca de
vinte anos antes da fundação da ABL, era natural que Machado escolhesse o nome do autor
de O Guarani para seu patrono. Ocupou por mais de dez anos a presidência da Academia,
que passou a ser chamada também de Casa de Machado de Assis. (Disponível em: <http://
www.machadodeassis.org.br/>. Acesso em: 05 abri. 2016).
Publicada em 1899, a obra Dom Casmurro, carrega uma trama de romance
e incertezas que se assemelham muito as telenovelas, ou seja, dois séculos após sua
publicação, é uma obra que continua atual e claro, carregada de mistério. “Dom Casmurro
surge como momento único de recolhimento: das experiências com a técnica narrativa e,
simultaneamente, da ficcionalização de tudo aquilo que, por falta de melhor nome, chama-
se de realidade.” (BARBOSA apud GOMES, 2007, pg. 2).
A obra retrata o núcleo familiar de Bentinho, que é enviado ao seminário por
promessa de sua mãe quando este nasceu, mas ele não quer ser padre, pois fez juras de
amor a Capitu, com a qual se casa mais tarde e tem um filho que passa a ser o fruto da
discórdia e ciúmes entre ambos, já que o filho se parece muito com seu melhor amigo e
lhe desperta as suspeitas de traição. Aí está o mistério que a obra carrega não se sabe, em
momento algum, se as desconfianças de Bentinho tinham fundamento. O autor narra a
obra em primeira pessoa e deixa a interpretação final para o leitor.

Durante toda a narrativa do romance, a metalinguagem tem um papel fundamental,


dando um tom, muitas vezes jocoso, ou criando cumplicidade com o leitor, que ao
invés de apenas ler passivamente, participa do próprio ato de narrar, ao servir de
confidente do escritor, transcendendo o próprio texto. (SENDAY, 2011. Disponível

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em:<http://bia-senday.blogspot.com.br/2011/01/tese-psicologia-na-
literatura-em-dom.html>. Acesso em: 07 abri. 2016).

Mesmo sendo escrita em uma época carregada de costumes, é possível trazê-


la para o momento atual sem que a história sofra grandes mudanças. Sim, alguns
questionamentos são feitos, por fatores históricos, mas nada que o leitor não consiga
decodificar de imediato.

Dom Casmurro assinala o momento em que o escritor e o romancista


se consorciam equilibradamente, graças à harmonia entre o estilo e a
imaginação. Se antes deste romance o escritor tendia a prevalecer, e se,
depois dela, o memorialista entraria a preencher o vácuo da fantasia
criadora, – em Dom Casmurro se observa a íntima fusão das duas
vertentes machadianas. De onde ser a obra-prima de romances, e das
mais altas expressões da ficção brasileira de todos os tempos. (SENDAY,
2011. Disponível em:<http://bia-senday.blogspot.com.br/2011/01/tese-
psicologia-na-literatura-em-dom.html>. Acesso em: 07 abri. 2016).

Ao compararmos a obra literária de Machado de Assis, Dom Casmurro escrita


em 1899, com três modernas adaptações da obra para as histórias em Quadrinhos,
percebemos o quanto a força do texto machadiano se mantem, mesmo passado
tantos anos da escrita original. Como afirma Calvino, (1999, p.15): É clássico aquilo
que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”.
A intertextualidade entre as duas obras, faz com que o leitor atual busque
informações históricas (em sua memória e ou através de estudos), para interpretar
e interagir com a obra machadiana. Na concepção da intertextualidade, o sentido é
produto da troca entre leitor e texto. O receptor/leitor, a partir de suas experiências,
irá construir sentido, influenciado pelo conhecimento que já detém sobre o mundo.
Ou seja, a noção de intertextualidade desenvolvida por Kristeva - com base em
reflexões de Mikhail Bakhtin (1970) – La poétique de Dostoievski - sobre o dialogismo
– coloca em evidência a constante influência que um produto da expressão cultural
exerce sobre outro. Todas as formas de expressão carregam consigo marcas de seu
contexto histórico e da recuperação de significados que lhe são anteriores. E esses
significados são colocados em movimento na recuperação da memória e da história
que o sujeito receptor realiza ao inferir sentidos. Entra, portanto, em cena o papel da
história como espaço não centralizado onde circulam e significam as textualidades
da mídia – história em quadrinhos - e as textualidades da literatura.
Eco defende pensar adaptação com mudança de suporte consistindo
numa forma de interpretação, mas não necessariamente numa tradução. Pois,
―as variações são múltiplas, mas se deveria falar sempre de adaptação ou

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transmutação, justamente para distinguir essas interpretações da tradução
propriamente dita. (2007, p.382).
Plaza também acredita que deve haver essa diferenciação, já que o material
utilizado para contar uma mesma história, é outro, e logo, deve haver sim uma
alteração das estruturas, novos sentidos e claro que vai se distanciar do original,
visto que utiliza de recursos antes não explorados ou até inexistentes no momento
da escrita original.

Numa tradução intersemiótica, os signos empregados têm tendência a formar


novos objetos imediatos, novos sentidos e novas estruturas que, pela sua
própria característica diferencial, 27 tendem a se desvincular do original.
A eleição de um sistema de signos, portanto induz a linguagem a tomar
caminhos e encaminhamentos inerentes à sua estrutura (PLAZA, 1987, p. 30).

O que se nota na adaptação de Dom Casmurro é uma preocupação em manter-


se o mais próximo possível da ideia original. Mesmo quando o texto sofre alterações,
como no caso do roteiro escrito por Ivan Jaf, em 2012, “ele preferiu transferir grande
parte das metáforas criadas por Machado de Assis para as imagens – m vez de inseri-
las nas legendas; ao mesmo tempo, procurou criar senas inusitadas e fantásticas, nas
quais Bento menino interage com Casmurro, mais velho”. (ROSA e JAF, 2012, pg.84).
Percebe-se a preocupação dos roteiristas e designs dos quadrinhos, de fazer
esse elo entre a obra original e as suas, seja através dos traços dos personagens, seja
pelo texto, o ainda dando ênfase as passagens mais intrigantes do livro.
No site “Quadrinhofilia”, há uma descrição de como o segundo livro
adaptado para quadrinhos, também mantem a fidelidade com a obra original:

Adaptação do romance clássico de Machado de Assis. O roteirista


Wellington Srbek preserva o texto machadiano, reunindo os 148 capítulos
curtos que integram a obra original em 20 partes. O realismo da obra é
também transposto nos traços de José Aguiar, que trazem dois estilos
para diferenciar a narração feita por Casmurro dos fatos que ele narra.
(QUADRINHOFILIA, 2013. Disponível em:< http://quadrinhofilia.com.br/
projetos/dom-casmurro/>. Acesso em: 07 abri. 2016).

A adaptação mais completa e mais demorada, a meu ver, foi a realizada


por Felipe Grecco e Mario Cau. Seis anos trabalhando sem número de páginas
determinado, o que normalmente acontece na maioria das adaptações e tentando
manter tanto na escrita, quanto nos traços, as marcas machadianas da obra original.

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Em entrevista para Paulo Floro, da Revista “O Grito”, em 2013, o quadrinista
Cau, se rende aos encantos machadianos e descreve o que tentou transpor para o papel,
de forma a contar da mesma maneira que Machado de Assis a história de Bento e Capitu:

[...] Machado foi um gênio. O jeito de escrever, sobre coisas comuns, mas
temperadas com tantas outras sacadas narrativas, à frente do seu tempo…
Especificamente sobre Dom Casmurro, ainda me fascina que ele nunca
tenha dado uma resposta para a questão crucial da obra. E melhor do
que isso, a história é narrada pelo próprio Bento, que é um homem difícil,
ciumento, mimado. A opinião dele é distorcida, não é verdade absoluta. E
isso tendencia o leitor a acreditar nele. É um autor de camadas, de sutilezas,
de subtramas elaboradas, e sabia como usar recursos de texto pra criar
experiências únicas. (CAU apud FLORO, Revista “O Grito”, 2013)

Quando se trata de quadrinhos, é importante transferir para os desenhos


a força textual. Se utilizarmos como exemplo, uma das passagens mais marcantes
do texto, quando Bento destaca a força dos olhos de Capitu, percebemos que os
desenhos conseguem registrar a frase dita:

Olhos de Ressaca. Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova.


Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava
para dentro, como a vaga que se retira da praia nos dias de ressaca. Para
não ser arrastado, agarrei-me a outras partes vizinhas [...] mas tão depressa
buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura,
ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (ASSIS, 2008, p.49)

Seja dando destaque aos olhos através dos desenhos, seja utilizando mais
quadrinhos para tratar a narrativa machadiana, ao lermos as adaptações é como se
nos aprofundássemos no significado do olhar. Poderíamos até dizer que Machado de
Assis estudava cada um de seus personagens com muita profundidade, como acontece
com os designs, normalmente com algum conhecimento de signos e semiótica.
Segundo Chevalier, no dicionário dos símbolos, (2001, p. 653), “O olhar
é como o mar, mutante e brilhante, reflexo ao mesmo tempo das profundezas
submarinas e do céu.” E aplica versos de Baudelaire para fazer esta comparação:
Homem livre, tu sempre amarás o mar!
O Mar é teu espelho; contemplas tua alma
No desenrolar infinito da onda,
E teu espírito não é um precipício menos amargo
... Sois todos os dois tenebrosos e discretos:
Homem, ninguém sondou o fundo de teus abismos,
Ó mar, ninguém conhece tuas riquezas íntimas,

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De tal modo cuidais de guardar vossos segredos
Ao compararmos os versos à obra de Machado de Assis, podemos dizer que
é um resumo muito bem escrito sobre o livro Dom Casmurro e certamente daria uma
bela análise, o que me proponho a fazer futuramente. De imediato, uso apenas como
exemplo para afirmar que a adaptação da obra para os quadrinhos é carregada de
fidelidade tanto na narrativa como no design.

Considerações finais
As adaptações são uma releitura de clássicos, quando se tratam das Histórias
em Quadrinhos, Will Eisner (2010, p. 2) descreve que uma adaptação: “culmina
num ―ato de percepção estética e de esforço intelectual‖; estamos diante de uma
narrativa visual, ou ainda de uma forma de ―arte sequencial”.
Em Dom Casmurro, notamos que as histórias em quadrinhos tratam essa
narrativa visual juntamente com o texto, facilitando uma interpretação por parte
do leitor. Claro que quanto mais repertório social cultural, político e histórico
este leitor carregar, mais fácil será a forma de decifrar esta arte sequencial, como
Eisner descreve acima. Porém, mesmo que o leitor não tenha entrado em contato
com a obra original, e não tenha vivenciado o mesmo contexto do autor, através
da adaptação, há um despertar para que essa aproximação ocorra, principalmente
porque as histórias em quadrinhos aqui citadas, tentam ao máximo, fazer a conexão
com o texto original, utilizando trechos fiéis a narrativa Machadiana, ou se valendo
dos desenhos para enfatizar as partes mais relevantes da história.
Além de contribuir para despertar o interesse de novos leitores, em sala de
aula ou apenas como laser, as histórias em quadrinhos adaptadas, fazem com que
os amantes de literatura, tenham uma nova maneira de reler seus clássicos.
Há, além de novas oportunidades para os escritores e designers que vem
surgindo e se utilizando de novas mídias, um reconhecimento literário de grandes
obras que talvez ficassem esquecidas se estas novas releituras não as fizessem
emergir em meio a tantas informações que recebemos nos tempos atuais.
É importante ressaltar que, mesmo se utilizando de um clássico e fazendo
uma intertextualidade entre suportes distintos e maneiras de dizer o que já foi dito,
há um cuidado em manter toda a força da narrativa de Machado de Assis e talvez
seja esse o ponto forte das releituras apresentadas. E nós leitores, podemos rever
depois de tantos anos da obra original, os mesmos olhos de cigana dissimulada de
Capitu e novamente, (re)criarmos várias possibilidades em relação a uma das obras

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mais misteriosas de Machado de Assis. Talvez ele tenha sido tão “Dom Casmurro”,
que teima até hoje em se manter vivo entre os amantes da literatura.

Referências
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, 2011. Machado de Assis. Disponível em:<
http://www.machadodeassis.org.br/>. Acesso em: 05 abri. 2016
ASSIS, M. Dom Casmurro. 2.ed – São Paulo: Ciranda Cultural, 2008 – (Literatura Brasileira)
CALVINO, L. Tradução de: Nilson Moulin. Por que ler os clássicos. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.
ECO, U. Quase a mesma coisa: experiências da tradução. Rio de Janeiro: Record, 2007.
EISNER, W. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FLORO, P. Entrevista: Felipe Greco e Mario Cau, autores da HQ Dom Casmurro.
Revista O Grito, 2013. Disponível em:< http://revistaogrito.ne10.uol.com.br/
page/blog/2013/02/18/entrevista-felipe-greco-e-mario-cau-autores-da-hq-dom-
casmurro/>. Acesso em: 07 abri. 2016.
GOMES, L. T. Dom Casmurro: da Literatura de Machado de Assis ao Cinema
de Moacyr Góes. Revista Travessias, 2007, n.1. Pesquisas em educação, cultura,
linguagem e arte. Disponível em: <http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/
revistas/travessias/ed_001/artigosensaios/DOM%20CASMURRO-%20DA%20
LITERATURA%20DE%20MACHADO.pdf>. Acesso em: 06 abr. 2016.
GRECO, F. Dom Casmurro - Machado de Assis. São Paulo: Devir, 2012.
HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: UFSC, 2011
ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Vol 1. Tradução de: Johannes
Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.
JAF, I. Dom Casmurro - Machado de Assis. Roteiro Ivan Jaf; arte Rodrigo Rosa. 1.ed. São
Paulo. Ática, 2012.
KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
PLAZA, J. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva. 1987. (Coleção estudos; 94).
PINA, P. K. C. A Literatura em Quadrinhos Formando Leitores Hoje. Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2014. 90p.

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QUADRINHOFILIA. Dom Casmurro, 2013. Disponível em: <http://quadrinhofilia.
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SENDAY, F. M. F. Psicologia na Literatura em Dom Casmurro. Traição ou Obsessão:
A dúvida que paira no final do Romance. Tese de 2011. Disponível em: <http://
bia-senday.blogspot.com.br/2011/01/tese-psicologia-na-literatura-em-dom.html>.
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de José Aguiar – 1e.d, 2.reimp – São Paulo: Editora Nemo, 2015. 80p. il
SILVA, M. V. B. Adaptações literárias no cinema brasileiro contemporâneo: um painel
analítico. In: Rumores – revista online de comunicação, linguagem e mídias, São
Paulo, v.2, janeiro-abril de 2009. Disponível em:< http://www.revistas.univerciencia.
org/index.php/rumores/article/viewfile/6544/5951>. Acesso em: 04 abri. 2016.

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MELHORIA DO ENSINO DE LITERAUTRA E DA
PRÁTICA DE LEITURA
Marielle Schramm (UNICENTRO/USF)
Cláudio José de Almeida Mello (Orientador-UNICENTRO)

Introdução
O artigo apresentado detém-se na verificação dos fundamentos teórico-
metodológicos de leitura e literatura, como também o encaminhamento metodológico
da prática de leitura, segundo as Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para
a Educação Básica da Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Em primeiro
caso, são feitas leituras teóricas, que se estendem durante todo o projeto, sobretudo
acerca da prática de leitura, literatura e leitura na perspectiva do letramento. São
feitos fichamentos acerca das leituras realizadas de acordo com as informações
julgadas de interesse de análise. Um questionário será aplicado para alunos do
Ensino Fundamental II e Ensino Médio em escolas do Turvo, Pinhão e Guarapuava,
no estado do Paraná. O questionário trata sobre como o aluno se identifica como
um sujeito leitor e pretende também verificar o contato do aluno com a literatura.
Com posse dos resultados dessa pesquisa de campo, análises serão realizadas e
serão feitas visitas nas escolas para divulgação do resultado e discussão com os
professores para melhoria da prática de leitura como também do contato do aluno
com a literatura, tomando como base as leituras teóricas realizadas até o momento.
Pretende-se com essa pesquisa: identificar conceitos teórico-metodológicos para a
leitura e literatura em documentos curriculares, estabelecer relações entre propostas
de atividades para a promoção da leitura literária em ambiente escolar e conhecer
estratégias de leitura em sintonia com a perspectiva interacionista da linguagem.

Tópico I
Segundo os fundamentos teórico-metodológicos para a leitura nas
Diretrizes Curriculares, a leitura é um ato dialógico que deve ser estimulado desde
a alfabetização. Um ato dialógico, pois ela deve implicar uma resposta do leitor.
Leitura é um ato de recepção e o leitor, com seus conhecimentos prévios (cultura,
religião, família) deve interpretar e dialogar com o interlocutor, buscando também
novas experiências. Deve-se prezar o caráter individual da leitura, pois o leitor deve
participar da elaboração de significados.

“[...] a prática de leitura é um princípio de cidadania, ou seja, o leitor


cidadão, pelas diferentes práticas de leitura, pode ficar sabendo quais são
suas obrigações e também pode defender os seus direitos, além de ficar
aberto às conquistas de outros direitos necessários para uma sociedade
justa, democrática e feliz.”. (SILVA, 2005, p.24)

No que se diz respeito quanto à literatura nos fundamentos teórico-


metodológicos nas Diretrizes Curriculares, ela é uma produção humana ligada à
vida social. As Diretrizes citam Cândido que afirma que a literatura transforma e
humaniza o homem, pois ela possui três funções básicas: psicológica, formadora
e social. A psicológica seria a fuga da realidade. Por meio da literatura o homem
pode buscar experiências psicológicas como a imaginação, catarse e experimentar
diversos sentimentos com a obra. A literatura também seria formadora, pois tem
caráter educador, mostrando uma realidade que o indivíduo desconhecia pela
cultura dominante.

“A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...]


Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, [...], ela age
com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela. [...]
Dado que a literatura ensina na medida em que com toda a sua gama,
é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa
conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada momento
lhe parece adaptado aos seus fins, pois mesmo as obras consideradas
indispensáveis para a formação do moço trazem frequentemente aquilo
que as convenções desejariam banir. [...] É um dos meios porque o jovem
entra em contato com realidades que se tenciona escamotear-lhe. [...]
Ela não corrompe nem edifica portanto; mas, trazendo livremente em
si o que chamamos o bem o que chamamos o mal, humaniza em sentido
profundo, porque faz viver.” (CANDIDO, 1972, p. 805-806).

E por último, a literatura teria a função social de retratar segmentos da


sociedade. Cândido aborda o regionalismo como exemplo dessa função.
As Diretrizes também citam Eagleton (1983), que afirma haver uma
dificuldade em se definir literatura uma vez que cada indivíduo dará um valor
determinado a cada obra. “Sem essa constante participação ativa do leitor, não
haveria obra literária” (EAGLETON, 1983, p. 105). As Diretrizes sugerem o ensino
de literatura baseado nas teorias da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito que
buscam formar um leitor capaz, um leitor que interage com a obra. Interação que se
dá na prática da leitura.
Porém, o papel do leitor nem sempre foi respeitado e foi Hans Robert Jauss
em 1960 que criticou a metodologia de ensino de literatura da época como sendo
historiográfica, estruturalista e formalista, ignorando completamente o papel do
leitor como receptor. A Estética da Recepção foi elaborada por Jauss (1994). Ele
escreveu sete teses para reescrever a metodologia de ensino de literatura. A primeira
destaca o diálogo entre o leitor e a obra. A segunda tese fala que cada leitor reage

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individualmente, com seu saber prévio e influenciado por um contexto social. A
terceira aborda o horizonte de expectativas de que através de como foi recebida pelo
público é possível medir o caráter artístico da obra. A quarta trata sobre o caráter
dialógico da obra, de que ela pode oferecer respostas para os questionamentos do
leitor. A quinta aborda um enfoque diacrônico da obra. A sexta, um enfoque no
corte sincrônico. E a última abordará atuação do homem na sociedade a partir da
experiência estética recebida da obra literária.
Quanto à Teoria do Efeito que diz respeito ao resultado estético da obra no
leitor, foi Wolfgang Iser quem a elaborou. Segundo essa teoria, o escritor já escreve
pensando num leitor prévio, o interlocutor que dará sentido à sua obra. Mas nem
sempre é exatamente assim, pois cada indivíduo reagirá de uma forma, cada um
com sua experiência e conhecimento prévio. O texto literário possui uma estrutura
que conduzirá o leitor a uma leitura coerente, mas sempre há lacunas e essas lacunas
é o leitor que preencherá de acordo com a sua individualidade.
As teorias da Estética da Recepção e a Teoria do Efeito são, sem sombra de
dúvida, suportes teóricos importantes para a reflexão sobre o ensino de literatura.

Tópico 2
Quanto aos encaminhamentos metodológicos para a leitura nas Diretrizes
Curriculares, a leitura é um ato dialógico e interlocutivo. Ela deve propiciar o
desenvolvimento de uma atitude crítica e o leitor deve ser ativo nesse processo.
Deve-se também considerar linguagens não-verbais no ato da leitura, como charges,
imagens, gráficos, tirinhas, onde exige do aluno um cuidado maior para os detalhes
para interpretar algo que não está verbalizado. “Ler é familiarizar-se com diferentes
textos produzidos em diversas esferas sociais [...]” (DIRETRIZES, 2008, p. 71).

O papel do professor em sala de aula deve ser de um mediador, aquele que


provoca e dá condições para o aluno realizar uma leitura significativa e crítica. Somente
com uma leitura aprofundada o aluno conseguirá absorver a verdadeira intenção
do texto. As condições necessárias para o aluno poder se posicionar diante do que lê
é pela “percepção e reconhecimento – mesmo que inconscientemente – dos elementos
de linguagem que o texto manipula” (LAJOLO, 2001, p. 45).

“Do ponto de vista pedagógico, não se trata de ter no horizonte a leitura


do professor ou a leitura historicamente privilegiada como parâmetro de
ação; importa, diante de uma leitura do aluno, recuperar sua caminhada
interpretativa, ou seja, que pistas do texto o fizeram acionar outros
conhecimentos para que ele produzisse o sentido que produziu; é na
recuperação desta caminhada que cabe ao professor mostrar que alguns
dos mecanismos acionados pelo aluno podem ser irrelevantes para o
texto que se lê, e, portanto, sua “inadequada leitura” é consequência deste

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processo e não porque se coaduna com a leitura desejada pelo professor”
(GERALDI, 1997, p.188).

Para o encaminhamento da prática de leitura deve-se determinar o texto


a ser trabalhado, daí então, planejar as atividades. Depende muito do gênero do
texto, da finalidade da leitura e do suporte. Não se lê da mesma forma, por exemplo,
um poema e um formulário. De um poema é possível tirar várias interpretações,
já um formulário não permite a mesma liberdade. Para as Diretrizes, o educador
deve prestar atenção também aos textos não-verbais como possibilidades de leitura.
Nesse caso, exige-se um olhar mais atento do aluno-leitor. Deve-se incluir a leitura
de hipertexto (texto no suporte digital), pois nessa esfera a leitura se modifica, torna-
se mais rápida. Há no hipertexto uma combinação de linguagens, exige um leitor
dinâmico capaz de direcionar a sua leitura.
A escola deve se apresentar “como um ambiente rico em textos e suportes
de textos para que o aluno experimente, de forma concreta e ativa, as múltiplas
possibilidades de interlocução com os textos.” Silva (2005, p. 66).

Nas atividades de interpretação de um texto deve-se analisar os


“conhecimentos de mundo do aluno, os conhecimentos linguísticos, o conhecimento
da situação comunicativa, dos interlocutores envolvidos, dos gêneros e suas esferas,
do suporte em que o gênero está publicado, de outros textos (intertextualidade).”
(DIRETRIZES, 2008, p. 73)

“Para a seleção dos textos é importante avaliar o contexto da sala de aula,


as experiências de leitura dos alunos, os horizontes de expectativas deles
e as sugestões sobre textos que gostariam de ler, para, então, oferecer
textos cada vez mais complexos, que possibilitem ampliar as leituras dos
educandos.” (DIRETRIZES, 2008, p. 74)

Nas Diretrizes Curriculares, os encaminhamento metodológicos da literatura


baseiam-se no Método Recepcional proposto por Maria da Glória Bordini e Vera
Teixeira de Aguiar que se basearam na Estética da Recepção e na Teoria do Efeito.
Pois nesse, o leitor é ativo no processo de leitura e possibilita momentos de interação.
Esse método tem como objetivos, segundo Bordini e Aguiar (1993): “efetuar leituras
compreensivas e críticas; ser receptivo a novos textos e a leitura de outrem; questionar as
leituras efetuadas em relação ao seu próprio horizonte cultural; transformar os próprios
horizontes de expectativas, bem como os do professor, da escola, da comunidade
familiar e social. Alcançar esses objetivos é essencial para o sucesso das atividades. Esse
trabalho divide-se em cinco etapas e cabe ao professor delimitar o tempo de aplicação
de cada uma delas, de acordo com o seu plano de trabalho docente e com a sua turma.”
(DIRETRIZES, 2008, p. 74).

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Na primeira etapa (determinação do horizonte de expectativa), o professor
deve conhecer os seus alunos, conhecendo sua realidade sócio-cultural. Na segunda
etapa (atendimento ao horizonte de expectativas), o professor deve apresentar textos
que sejam próximos ao conhecimento de mundo do aluno. Na terceira (ruptura do
horizonte de expectativa), a obra nem sempre é o que o leitor espera, pode haver uma
ruptura e cabe ao professor trabalhar com obras que aprofundem os conhecimentos
do aluno e o tire do senso comum. Na quarta (questionamento do horizonte de
expectativas), o professor deve orientar o aluno a uma reflexão e autoavaliação.
Na quinta e última etapa (ampliação do horizonte de expectativas), deve haver
uma ampliação dos conhecimentos do aluno através da tomada de consciência das
aquisições e mudanças.
Ao aplicar esse método o professor deve estar ciente das diferenças
entre Ensino Fundamental e Ensino Médio, porém, nos dois, o aluno tem que
ter participação ativa no processo de leitura. O primeiro olhar do aluno para o
texto literário deve ser de identificação. Na prática da leitura, o professor deve
“provocar” o aluno para que ele se perceba como coautor da obra, mas mesmo
com a interpretação individual de cada aluno, as estruturas de apelo e as marcas
linguísticas levam a uma interpretação restrita ao que o texto permite.
A aula de literatura terá um curso planejado pelo professor, mas poderá ser
modificada de acordo com as necessidades e interesses do aluno.

Considerações Finais
Resultados parciais indicam, ainda hoje, práticas cristalizadas em torno
da transmissão de conhecimentos sobre a literatura, com orientação formalista
e historiográfica. A escola trabalha o texto literário para ensinar a gramática
normativa, excluindo o aluno como ser atuante no processo de leitura de uma obra
literária, proposta pelas Diretrizes Curriculares. Percebe-se que a escola não segue
verdadeiramente as propostas do encaminhamento metodológico dadas pelas
Diretrizes Curriculares.
Sendo assim, a ideia para realização desse projeto está nítida em nossa
sociedade. Percebe-se que o aluno não possui o hábito da leitura e que o estopim disso
está nas escolas que trabalham inadequadamente sobre essa questão que deveria ser
de grande importância, pois a leitura é a prática da cidadania. É através dela que
o aluno se reconhece como ser atuante em sua sociedade, refletindo, imaginando,
criticando e analisando as experiências recebidas durante o processo da leitura.

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Referências
DALVI, M. A.; DE REZENDE, N. L.; JOVER-FALEIROS, R.; [orgs.]. Leitura de
literatura na escola. São Paulo: Parábola, 2013. 168 p.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. São Paulo: Autêntica 1999.
AMORIN, G. (Org). Retratos da leitura no Brasil. Disponível em: <http://livraria.
imprensaoficial.com.br/media/ebooks/12.0.813.460.pdf>. Acesso em: 16 set. 2016.
BAKHTIN, M. (1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem. (16ª edição). São Paulo:
Hucitec Editora, 2014. 208 p.
STAHLSCHMIDT, R. S. A. A importância da leitura. 1996. 38f. Monografia (Pós-
Graduação – FACIBEL – Francisco Beltrão. Francisco Beltrão, 1996.
LAJOLO, M. et al. Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. 3ª Edição.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984. 164 p.
PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares de Língua
Portuguesa para a Educação Básica, Curitiba, 2008.
“TECENDO A CIDADE” – O SUJEITO E OS SENTIDOS
NA CONSTITUIÇÃO DO ESPAÇO URBANO
Marilda Aparecida Lachovski de França16

Introdução
A cidade, aqui entendida como texto dado a ler, portanto, passível de gestos
interpretativos, constitui-se, na teoria que adotamos, como um atravessamento
do discursivo, do histórico e do político. Nesse sentido, busca-se refletir sobre os
modos de significação do/no sujeito e sua inscrição no espaço urbano, sinalizando
para os movimentos do dizer, dos sentidos e da memória. Partimos da premissa
de que a cidade, como objeto discursivo, funciona como parte constitutiva dos
sujeitos que nela circulam. Ocupar um determinado lugar no espaço urbano é,
sobretudo, ocupar uma posição em discurso, pois, como postula Orlandi, (2001,
p. 186), ela [a cidade], “se caracteriza enquanto espaço em que se materializam
gestos de interpretação específicos, aqueles que constituem o urbano. [...]. A isto
chamamos ordem do discurso urbano”. Assim, nosso interesse no presente trabalho
é reconhecer, do ponto de vista discursivo, como a cidade (se) significa e textualiza
os sujeitos, de modo que o corpo, como materialidade do sujeito é inscrito e faz
parte do espaço, que é coletivo. Destacamos ainda, como as relações sociais desses
sujeitos, seus trajetos e suas movimentações pelo espaço permitem a construção
simbólica da cidade, sua ordem discursiva.
Para tal análise, constituímos nosso corpus a partir de fotografias/imagens
produzidas por alunos do ensino fundamental da cidade/espaço urbano de Pinhão/
PR, sendo que para isso optamos pelo recorte do arquivo inicialmente formado por
mais de quarenta (40) imagens para nos determos em três (3) delas. A proposta
feita aos alunos foi de busca/captura de imagens com registro de sujeitos em suas
atividades comuns, pela/na cidade. Partindo dessas materialidades, se consideramos
o corpo como materialidade do sujeito, ele significa. Não há significação do corpo
sem sujeito em sua materialidade. Por sua vez, sujeito e corpo só significam no
trabalho da linguagem, que, como lugar material é o local onde se realizam os efeitos
de sentidos (ORLANDI, 2012a, p. 83). Por esse viés, seguimos o trajeto analítico na
revisitação da teoria discursiva da AD e a movimentamos nos gestos interpretativos
quanto ao sujeito, a ideologia e a memória na /pela cidade de Pinhão.

Tecendo a teoria: sujeito, ideologia e memória


16. Professora da Rede Estadual de Ensino. E-mail: proffmarilda@hotmail.com.
Pensar o sujeito e seus modos de significação na AD nos conduz aos
pressupostos de Michel Pêcheux no que se refere à condição de assujeitamento
pela ideologia. Quando teoriza sobre esse assunto Pêcheux desloca a noção de
sujeito, acrescentando a ideologia como condição necessária para essa existência.
Partindo de Marx, Althusser, Lacan, Freud e outros autores, que analisaram
o sujeito e sua existência sob outros aspectos, Pêcheux afirma que o humano só
pode ser sujeito social enquanto agente de uma prática social, sendo assim
configurado aquilo que ele mesmo denominou efeito ideológico elem17entar
, relacionando linguagem e ideologia (PECHEUX, 1997, p. 32-35).
Sendo o sujeito considerado, quanto ao discursivo, como lugar de produção
de sentidos, como lugar de significação, o dizer constitui sua materialidade –
modo de significação e entrada no simbólico, pela ordem do imaginário e pelo
cruzamento da história. Sendo assim, atesta-se para o fato de que, como postulou
Maldidier (2003, p. 49-50), sujeito e sentido são indissociáveis na análise de
discurso, abrindo espaço para a ideologia como elemento essencial para sujeito
e sentidos. Como já destacamos anteriormente18, Pêcheux defende a ideia de que
a ideologia não é apenas o reflexo das práticas sociais isoladas, mas sim, condição
necessária para que o sujeito, no discurso, assuma posições e que assim, signifique.
No entanto, essa condição de entrada do sujeito no simbólico e no político também
o fragmenta, o divide: não mais um sujeito centrado e único, mas dividido e
descentralizado, que pode ocupar diferentes posições no discurso, derivando para
outras formas de ser e de significar, na relação língua/sujeito/história. As condições
destacadas sinalizam para a posição sujeito dentro das formações discursivas19
, fazendo movimentar o dizer, os sentidos e as memórias. Ocupar um lugar,
discursivamente, nos obriga a pensar como o fez Pêcheux, numa “tomada de posição”,
na reduplicação do inconsciente no “Outro”, do “sujeito” no “Sujeito”, ou melhor:

[...] a tomada de posição não é, de modo algum, concebível como um “ato


originário” do sujeito-falante: ela deve, ao contrário, ser compreendida
como o efeito, na forma-sujeito, da determinação do interdiscurso como
discurso transverso, isto é, o efeito da “exterioridade” do real ideológico-

17. Venturini (1999, p.110-111), sobre a noção de sujeito postulada por Pêcheux afirma que na relação
com a ideologia e o sujeito, entram em questão as formações ideológicas que dizem respeito ao
fato do sujeito ser sempre um já-sujeito, pelo “teatro da consciência” que atesta a ilusão de autono-
mia do sujeito, os efeitos de evidência.
18. Trata-se de nossa dissertação de mestrado na qual analisamos a noção de sujieto na AD a partir de
Louis Althusser e outros autores, destacando a relação entre a Psicanálise, o materialismo histórico
e a linguística - áreas que dariam origem à AD como espação de entremeio, ciência da linguagem
que trabalha que trabalha nas falhas e incompletudes dessas três áreas do conhecimento humano.
19. Seria aquilo que segundo Pêcheux (2009, p.174) determina o que pode e deve ser dito numa dada
formação ideológica.

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discursivo, na medida em que ela “se volta sobre si mesma” para se
atravessar. [...] (PÊCHEUX, 2009, p. 159-160)

Esse desdobramento do sujeito pelas condições do inconsciente se dá


pelo duplo atravessamento pela relação do que lhe é exterior – a história e aquilo
que lhe é interior – sua condição ilusória de ser fonte e origem do dizer. Assim,
ao produzir algo, ilusoriamente novo, o sujeito está condicionado ao seu eterno
retorno, pois tudo aquilo que diz já foi dito por outro sujeito, em outro lugar, em
outras condições de produção. Neste sentido, pelo viés discursivo, se pensamos esse
retorno, consideramos especificamente no presente trabalho, o lugar dos sujeitos
no/do espaço organizado pelas câmeras como uma tentativa de apreensão do real,
entendendo de modo crucial a relação entre a constituição do sujeito e dos sentidos
que compõe e textualiza o espaço urbano.

Tecendo a cidade: o corpo e o espaço urbano


Tecer: costurar, enlaçar, alinhavar - palavras entre outras tantas que podem nos
conduzir a leitura dos sentidos que sinalizam para o espaço urbano, para a construção
da cidade e seu entendimento, em AD, como espaço discursivo, histórico e simbólico,
sendo que é na intrínseca relação entre o corpo do sujeito e o corpo da cidade que
trabalhamos. Como fez Orlandi (2001), não buscamos entender o espaço urbano como
fragmentário, mas sim como “flashes”, como movimento e transformação contínua,
que permite os furos, as falhas – “em sentidos que estão sempre em movimento,
sempre incompletos”. (ORLANDI, 2001, p. 194). A câmera fotográfica, sendo aquela
que captura, que tenta organizar esses sujeitos no espaço, promove uma espécie de
flagrantes, de registros aparentemente estáticos, mas que, pelo trabalho da memória,
circulam, deslizam e permitem a produção de sentidos múltiplos.
Assim, se entendemos a fotografia enquanto representação ou criação
humana pressupõe-se a sua flexibilidade, a sua multiplicidade, a sua instabilidade.
Neste sentido, é sobre ela que se produzem os sentidos e a interpretação. Ou como
nos afirma Orlandi (2012a, p. 88): aos homens enquanto seres históricos e simbólicos
que somos, não nos basta falar para significar e nos significarmos. Também
pintamos, compomos, escrevemos, cantamos. É neste aspecto puramente necessário
de representação e significação humana que o corpo significa no e o espaço por onde
os sujeitos circulam e aos quais estão filiados; numa interpelação do individuo em
sujeito – papel da ideologia. A ideologia, por sua vez, produz nessas significações
as formas sujeito históricas desses com seus corpos. Há, portanto, segundo Orlandi
(2012b, p. 86), uma forma histórica (e social) do corpo, se pensada a relação sujeito
e corpo, uma pluralidade de interpretações e diferentes gestos de leitura, de modo

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que esses discursos produzidos sempre podem ser outros, produzindo outros
efeitos de sentidos, para outros sujeitos em diferentes situações, já que, segundo
Orlandi (2012a, p. 152), “não há linguagem que não se confronte com o político”,
sendo esse efeito de multiplicidade comprovado, pois a formação social é, neste
sentido, “regida pela diferença, pela divisão, pela dispersão”.
Essa multiplicidade de discursos é o que se denomina em Análise de Discurso
como interdiscurso, um conjunto de dizeres que falam antes, em outros lugares, por
outros sujeitos; “um conjunto não discernível, não representável de discursos que
sustentam a possibilidade mesma do significar, sua memória” (ORLANDI, 2012a,
p.105). Se pensamos desse modo buscamos as noções postas por Davalon sobre a
imagem, sendo que o autor afirma que a mesma funciona como um operador de
memória, ou como nos afirma Orlandi:

(...) negociação entre o choque de um acontecimento singular e o


dispositivo complexo de uma memória poderia bem, com efeito, colocar
em jogo, a nível crucial, uma passagem do visível ao nomeado, na qual a
imagem seria um operador de memória social, comportando no interior
dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito discursivamente
em outro lugar: é o efeito de repetição e de reconhecimento que faz da
imagem como que a recitação de um mito. (ORLANDI, 2012b, p. 63)

Como memória, na relação com a História, trazemos à baila as concepções


herdadas da Nova História de Jaques Le Goff (1990), no que se referem às condições
das novas abordagens, novos objetos. Não só a arte de lembrar, a memória funciona,
segundo P. Nora, como “constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material
daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos
ter necessidade de lembrar” (NORA, 1984, p. 15). Sendo assim, a memória guarda
os vestígios do real para que o sujeito possa então reorganizá-los e produzir novos
dizeres, novos sentidos sobre determinado fato/evento/lugar. Podemos dizer,
amparados nos estudos de Nora que a linguagem, ou melhor, o discurso assegura
a função dos lugares de memória, da problemática desses lugares, pois ao homem
cabe a tarefa sempre contínua de significar, de interpretar. Na AD esse movimento
é entendido como um indício de regularização, ou seja, a memória estaria situada
entre o histórico e o linguístico, imbricadas nas imagens e imergem na organização
prática desses sujeitos, já que para Pêcheux nenhuma memória pode ser um frasco
sem exterior (SCHERER, sd, p.05).
Tomando como base também as noções de Catroga (2001), podemos dizer
que a memória e a tentativa de sua perpetuação funcionam como uma espécie de
“testemunho” e de “indício”, como na analogia feita pelo autor – os vestígios deixados

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em uma atividade de caça, ou seja, na busca por aquilo que não se mostra efetivamente,
mas que está condicionada a um retorno, no presente daquele que a analisa. Assim:

[...] o imaginário da memória liga os indivíduos não só verticalmente, isto é,


a grupos ou entidades, mas também a uma vivência horizontal e encadeada
do tempo (subjetivo e social). [...] A memória revivifica-se, portanto, num
“campo de experiência” aberto à recordação e às expectativas, horizonte
que a recebe como herança e como um imperativo de transmissão, num
aceno em que se promete ser possível vencer a morte, jogo ilusório que
faz esquecer que, tarde ou cedo (duas, três gerações?) também os mortos
ficarão órfãos de seus próprios filhos. (CATROGA, 2001, p. 28-29)

Neste sentido, as imagens aqui entendidas como textos, permitem a análise


dos modos como a memória funciona e assim mobiliza sentidos e discursos outros,
no entrecruzamento memória/história abrindo para o simbólico, para o imaginário
construído nos grupos sociais, no caso, os habitantes da cidade de Pinhão. A cidade
analisada está situada na região centro-sul do Paraná, numa área de 2002 Km², com
aproximadamente 30.000 habitantes, sendo sua economia baseada principalmente
na pecuária e agricultura . Essas condições, próprias de sua existência, favoreceram
20

alguns aspectos sociais, como as famílias tradicionais, os usos e costumes de origem


patriarcal, as festas religiosas, entre outros. Na constituição do perfil da cidade, um
dos discursos que ressoa pela memória é de que os seus habitantes são valentes,
bravos e defensores dos seus espaços. Ainda, acrescenta-se a ideia de uma cidade
do interior, quase provinciana, que tem na lida do campo sua principal atividade
econômica. Esses discursos, trazidos pelo imaginário funcionam nas imagens aqui
analisadas, na medida em que as pessoas têm vergonha de mostrar o rosto, e sendo
explicado o trabalho dos alunos a elas, a maioria não quis ser fotografada. É assim
que, retomando Orlandi, podemos dizer que o corpo constitui o sujeito enquanto
tal, pois “a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia produz uma forma
sujeito histórica com seu corpo. Há, eu diria, uma forma histórica e social do corpo, se
pensamos o corpo do sujeito” (ORLANDI, 2012b, p. 86). O espaço urbano de Pinhão,
pelo viés discursivo que adotamos, é constituído e constitui os corpos dos sujeitos
que o atravessam, que o preenchem, que sinalizam para a construção do imaginário
e do simbólico, ressoando ideais de luta, de bravura, mas de um povo tímido e
interiorano, fazendo movimentar-se as memórias e os sentidos que os integram.
Nas fotografias, aqui entendidas como enunciados-imagem , a maioria dos sujeitos
21

20. Esses dados foram retirados do site oficial da prefeitura municipal de Pinhão/PR.
21. Essa definição é posta por Venturini (2009) quando a autora analisa imagens veiculadas em Cruz
Alta (RS), cidade natal do autor/escritor Erico Veríssimo. Essa noção, segundo Venturini (2009),
desloca a ideia da imagem como objeto estático para texto enquanto objeto simbólico aberto a ges-
tos interpretativos. Para a autora, as imagens como textos não-verbais, significam pelo “silêncio,
que funda e constitui sentido.”. (VENTURINI, 2009, p. 132).

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que são inscritos no espaço, são mulheres e crianças, sobretudo circulando a pé,
pelo centro da cidade. Vejamos:

Figura 02 - Posto de saúde


Figura 01 - Rua principal municipal Figura 03 - Cadeirante

A cidade que funciona no dia a dia é o espaço do comum, do simples e do


trivial. Mães que levam filhos para a escola, pessoas que aguardam no posto de
saúde municipal, lojistas que organizam o espaço das calçadas, homens reformando
o cemitério municipal – ou seja – fatos do cotidiano que podem escapar aos olhos do
passante em suas correrias e afazeres diários. Esses sujeitos que textualizam a cidade
formam-na por seus modos de vestir, de ser e de circular pelo espaço na medida em
que seus corpos não precisam falar para significar, já que suas significações são
autorizadas pelo silêncio de seus movimentos, pelas suas passagens, pelas suas
esperas, pelo trabalho, ou simplesmente por seu jeito de estar no espaço da cidade,
sendo esses corpos investidos de sentidos, deslocando-se materialmente na ordem
do histórico e fazendo imergir na inscrição do discursivo, em seus processos de
significação, como “sujeitos de sentidos”, como postula Orlandi (2012b, p. 92).
São esses corpos aparentemente imóveis que permitem o deslize dos sentidos, da
memória e do dizer, pois, se por um lado se mostram, por outro silenciam, não se
deixam revelar por inteiro; portanto, vale relembrar Orlandi (2001, p. 34), já que o
silêncio “passa pelas palavras. Não dura. Só é possível vislumbrá-lo de modo fugaz.
Ele escorre por entre as tramas da fala”. É o silêncio, no seu modo de significar e
movimentar a memória que nos permite entender as formas de textualização dos
corpos na/pela cidade.

Considerações finais
Partimos do princípio de que pensar o corpo desvinculado da relação
sujeito/mundo e história é negar-lhe sua significação, seus limites de dizer e
suas possibilidades de movência. Logo, não apenas significamos nos discursos

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enunciados, mas enquanto seres históricos e simbólicos, agimos, movemos o corpo;
nos identificamos nele e com ele nos agrupamos ou desvinculamos de grupos,
textualizamo-nos. Deslocando o corpo o sujeito significa a si e ao outro, numa relação
contínua de sentidos que permitem ao mesmo sujeito ser o lugar de sua própria
subjetividade. Constituir a cidade na espacialização dos corpos que a preenchem, é
uma das possibilidades de compreender o humano em sua forma política e social,
numa filiação a discursos plurais que permitem as formulações do sujeito, em suas
condições específicas, em diferentes possibilidades de dizer, de ser.

Referências
CATROGA, F. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001.
LE GOFF, J. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. 5. ed. Campinas,
SP: Unicamp, 1990.
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de: Eni P. Orlandi. São Paulo: Pontes, 2003.
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de mémorie. Tradução de Yara Aun Khoury. Paris: Gallimard, 1984.
ORLANDI, E. P. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. 2. ed. Campinas, SP:
Pontes, 2012a.
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Vozes, 1996.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução
de: Eni P. Orlandi et al. 4. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.
______. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel
Pêcheux. Org. Françoise Gadet; Tradução de: Bethania Mariani et al. 3. ed. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 1997.
VENTURINI, M. C. Imaginário Urbano. Espaço de rememoração/comemoração. Passo
Fundo, RS: Editora UFP, 2009.
SHERER, A. Dos domínios e das fronteiras: o lugar fora do lugar em outro e mesmo
lugar. In: SARGENTINI; Vanice/ GREGOLIN, Maria do Rosário. (orgs). Análise do
Discurso. Heranças, métodos e objetos. São Paulo: Claraluz, 2008.

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O DISCURSO MIDIÁTICO SOBRE A CONCORRÊNCIA
UBER VERSUS TÁXI EM CURITIBA
Marilia Gasparovic (UFPR/CAPES-DS)
Gesualda Rasia (Orientadora-UFPR)

Introdução
A Uber é uma empresa norte-americana de transporte privado, criada em
2009, que funciona por meio de aplicativo, o qual conecta passageiros e motoristas.
Similar à rede de táxis, a Uber teve grande aceitação pelos usuários por custar
menos e por alegar mais qualidade de serviço, afirmando que há mais critérios para
motoristas cadastrarem seu veículo na função, como o carro possuir quatro portas,
ar-condicionado e ser ano-modelo a partir de 2008. No Brasil, a empresa funciona
em nove capitais e é dividida por categorias: Uber Black, UberX, Uber Pet e Uber
Pool. Neste trabalho, dar-se-á ênfase à UberX. Essa categoria funciona desde março
de 2016 em Curitiba, entretanto, o serviço ainda não está regularizado na cidade,
apesar de estar tramitando na Câmara de Vereadores.
O aplicativo de transporte, todavia, não agradou a todos: os taxistas não
aceitaram a concorrência, argumentando que é a Uber é uma empresa ilegal, a qual
paga menos impostos e que está diminuindo a demanda de táxi nas capitais. Por essas
razões, apesar de o Sindicato dos Taxistas repudiar atos violentos, muitos taxistas têm
atacado de forma física e moral os motoristas da Uber na cidade de Curitiba.
Nesse sentido, este trabalho se propõe a analisar o discurso midiático
a respeito da concorrência Táxi versus Uber em Curitiba, visto que gerou grande
polêmica e levantou questões que, até então, estavam silenciadas pela mídia. O
corpus do trabalho são duas colunas opinativas, sendo uma publicada no Blog do
Esmael e outra publicada em um blog na Gazeta do Povo, que apresentam aspectos
distintos sobre a rivalidade no transporte em Curitiba.
Foram selecionadas duas sequências discursivas (SDs) de cada um dos textos
para a análise, à luz da Análise do Discurso de linha francesa (doravante, AD). Ressalta-
se que o objetivo deste trabalho não é tomar posição a favor ou contra a empresa Uber,
mas sim identificar os efeitos de sentido gerados pelo corpus selecionado.

Análise do Discurso
A AD surgiu na França, com os estudos de Michel Pechêux, na década de
1960, em meio a um período agitado política e economicamente, com a confluência
entre Linguística, Psicanálise (releitura Lacaniana de Freud) e Materialismo Histórico
(leitura althusseriana de Marx). O objeto de estudo da teoria é o discurso, um conjunto
heterogêneo de enunciados, que se caracteriza por não ser neutro nem transparente.
Além disso, considerar o sujeito do discurso é necessário, pois ele é
permeado pelo inconsciente e pela ideologia, o que redunda em dizer que o sujeito
não dissemina discursos por sua livre escolha, pois é assujeitado. Orlandi (2010)
afirma que é a partir da ideologia que se dá a constituição dos sentidos. A estudiosa
ainda afirma que “se ele [o sujeito] não se submeter à língua e à história, ele não
se constitui, ele não fala, não produz sentidos” (2010, p. 50), já que os sentidos não
estão nas palavras nem mesmo no sujeito, pois elas mudam de sentido de acordo
com quem as dissemina.
Ainda de acordo com as palavras de Orlandi (2010), as condições de
produção estão relacionadas às relações de força presentes nas práticas discursivas,
bem como as relações de mundo e sociais entre sujeitos. O autor também discorre
sobre a forma-sujeito: é por meio dela que o sujeito se inscreve em uma FD, ou seja,
o lugar do sujeito não é vazio.
O domínio da forma-sujeito é o conjunto de diferentes posições-sujeito. No
interior de uma FD, segundo Indursky (2005), é possível identificar várias posições-
sujeito, pois um sujeito histórico é dividido entre diversas posições de sujeito graças
à interpelação ideológica. A posição-sujeito é a relação de identificação entre o sujeito
enunciador e o sujeito do saber, ou seja, a identificação entre o sujeito enunciador e
a forma-sujeito.
Já o interdiscurso, conceito essencial para a teoria, é onde acontecem os
embates entre FDs, onde estão dispostos historicamente todos os discursos. Um
conceito próximo ao de interdiscurso é o de memória discursiva, que remete à noção
de que tudo aquilo que é dito não se origina no momento em que é dito, mas é um
eco de ideias/enunciados já disseminados no interdiscurso, o já-dito, os implícitos,
os pré-construídos. Há também o intradiscurso, relacionando aquilo que o sujeito
já disse com o que ele dirá depois, ou seja, é da ordem da formulação do discurso.
Assim, pode-se inferir que os efeitos de sentido não são gerados a partir
de um enunciado, mas da relação com outros enunciados já materializados, o que
significa dizer que todo discurso é construído a partir de uma memória. Todo sujeito
do discurso privilegia alguns dizeres em detrimento de outros, e isso acontece por
conta das diferentes FDs pelas quais é permeado. É importante destacar que FD é
um conceito cunhado por Foucault, mas que foi adotado e transformado pela AD,
sendo, então, aquilo que pode e deve ser dito por um sujeito em dada posição.

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Diante disso, é perceptível que os sentidos são apreendidos de acordo com
a FD, pois o mesmo enunciado, em FDs distintas, apresenta sentidos distintos, já
que é a partir da ideologia que se dá a interpretação. Assim, é possível afirmar que
os sentidos não são originados nos sujeitos, nem nas palavras, mas sim nas FDs.

Uber versus Táxi


Nesta seção, será feita uma breve análise das duas colunas escolhidas
como corpus. Foram selecionadas quatro SDs, sendo duas de cada uma das
colunas, respeitando a sequência de início, meio e fim dos textos, para que haja
compreensão dos textos.
Os taxistas sentem-se prejudicados pela concorrência, que, segundo eles, é
desleal. Por isso, a forma que alguns taxistas encontraram de demonstrar a revolta
pela chegada do aplicativo Uber foi agindo com violência, quebrando carros dos
motoristas do aplicativo, agredindo alguns deles e impedindo que passageiros
entrem nos carros. O Sindicato dos Taxistas já se pronunciou alegando que repudia
atos violentos, mas que está na luta contra a regularização da Uber em Curitiba.
Muitos motoristas de Uber trabalham com o aplicativo como um ganho
extra, mas há um número considerável de trabalhadores que perderam seus
empregos – alguns de alto nível – e viram no Uber uma possibilidade de estabilidade
no mercado de trabalho, mesmo não sendo uma atividade regularizada na
cidade. Nesse sentido, o aplicativo chegou à capital paranaense em um momento
conturbado, mas propício a novas possibilidades “empregatícias”, especialmente
pelo Uber não exigir um grande investimento do motorista cadastrado: basta ter
(ou alugar) um carro nas condições solicitadas pela categoria UberX (além de
requisitos burocráticos, mas com baixo custo).
Após apresentadas as condições de produção de forma sucinta, serão
realizadas as análises breves das SDs da coluna Sobre a apreensão de veículos e o Uber
em Curitiba, escrita por Marcelo Araújo, ex-presidente da Comissão de Trânsito,
Transporte e Mobilidade da OAB/PR, e publicada no Blog do Esmael, e, em seguida,
da coluna Uber x táxi? Os prefeitos de Curitiba têm lá sua culpa, escrita por Rogério
Galindo e publicada em seu blog na Gazeta do Povo.
Na SD01, Marcelo Araújo demonstra seu posicionamento contrário ao
aplicativo Uber.

SD 01: Outro assunto que continua rendendo, e que já me custou ser


arrastado pelos cabelos do parlamento apenas por dizer uma verdade, nada
mais que uma verdade, mas que foi tomada como ofensa, é o tal do UBER.

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O último capítulo é um veto do prefeito que dá margem a implantação
‘oficial’ do sistema clandestino, que já funciona na marginalidade.

É importante ressaltar que o autor é ex-presidente da Comissão de Trânsito,


Transporte e Mobilidade da OAB/PR, ou seja, está em uma posição de sujeito que
regulamenta/fiscaliza o transporte, não em posição de usuário de táxi ou Uber. O autor
frisa que seu dizer era verdadeiro, o que ilustra o funcionamento do esquecimento n.
2, isto é, o sujeito tem a ilusão de que não há outra forma de dizer o que disse. Além
disso, Araújo afirma que a verdade que enunciou foi tomada como ofensa, como se o
interlocutor no momento da enunciação tivesse interpretado de forma equivocada
seu dizer, como se não houvesse possibilidade de distintos efeitos de sentido.
Com isso, o autor busca controlar os efeitos de sentido por meio de falas
firmes, para convencer o leitor de que seu posicionamento é o certo. Ao colocar
que o tal do Uber é um sistema clandestino, que funciona na marginalidade, Araújo
dissemina um discurso contrário à utilização do aplicativo por razões legais, mas
em momento algum aponta críticas à qualidade do serviço ou compara a empresa
ao serviço de táxi. Além disso, o autor também visa gerar o efeito de sentido de que
o leitor não deveria fazer uso de um serviço de transporte irregular. Assim, infere-se
que o discurso do autor é permeado por uma FD contrária ao aplicativo Uber.

SD 02: O grande argumento de quem advoga em favor do UBER é a Lei


12.587/12, conhecida como Lei da Mobilidade Urbana, que em seu artigo
4º, em seus incisos VIII e X faz duas definições: 1) transporte público
individual: serviço remunerado de transporte de passageiros aberto
ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização
de viagens individualizadas; 2) transporte motorizado privado: meio
motorizado de transporte de passageiros utilizado para a realização de
viagens individualizadas por intermédio de veículos particulares.

Nessa SD, o autor traz argumentos contrários para favorecer seu ponto de
vista, fazendo uso do domínio da antecipação do que o outro dirá. Araújo se utiliza
do discurso jurídico, uma vez que é advogado, buscando oficializar seu argumento
e demonstrar, por meio da legalidade, que seu dizer é verdadeiro, já que está presente
no interdiscurso a ideia de que o discurso jurídico não deve ser contrariado.
O autor também coloca que o grande argumento de quem advoga em
favor da Uber é a Lei da Mobilidade Urbana. Ao utilizar o adjetivo grande,
é perceptível o tom irônico de Araújo, pois logo em seguida ele quebra esse
argumento, tentando mostrar ao leitor que o argumento favorável ao aplicativo
é, na verdade, um argumento frágil e sem validade, pois é um erro de interpretação
dos favoráveis à empresa Uber.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
Com isso, Araújo reforça o discurso de que o serviço prestado pela Uber
não deve ser regularizado em Curitiba, mas silencia em seu discurso qualquer
informação sobre o serviço prestado pelos taxistas, assim como pelo funcionamento
da licenças de táxi, o principal ponto abordado pela próxima coluna opinativa a ser
analisada neste trabalho.

SD 03: De um jeito ou de outro, os taxistas iam reclamar do Uber. Faz parte:


ninguém gosta de mais concorrência, ainda mais quando o seu competidor
não precisa pagar as mesmas taxas, passar pelas mesmas burocracias e
consegue com isso ser mais barato. Mas boa parte da culpa pelo clima hostil
criado na cidade entre os motoristas dos dois serviços é do poder público. A
prefeitura de Curitiba sempre fez vistas grossas para o comércio de licenças
de táxi. Qualquer um que converse cinco minutos com um taxista sabe que
a maior parte das placas foi comprada [...] Muita gente investiu pesado para
ter uma permissão, que na verdade deveria ser de graça.

Nessa primeira SD, Galindo revela concordar com os taxistas no que tange
aos impostos pagos pelos motoristas de Uber: segundo ele, são taxas mais baixas do
que as pagas pelos motoristas públicos. Contudo, o autor não aponta essa questão
como responsável integralmente pela polêmica criada na cidade, pois a raiz do
problema estaria na prefeitura de Curitiba, não apenas na gestão atual.
Galindo aponta que o poder público da capital não é transparente e fiel
à legislação quanto às licenças das placas de táxi: o que deveria sair de graça,
na verdade se tornou um negócio. Muitas placas são vendidas em vez de serem
simplesmente licenciadas aos motoristas. Com isso, diferentemente do discurso de
Marcelo Araújo, por assumir uma posição de fiscalizador da lei, apontava a ilegalidade
da Uber como única causa da hostilidade em Curitiba, silenciando o contexto que
envolve a situação das placas de táxi. Já Galindo, assumindo a posição de jornalista,
denuncia as irregularidades no poder público, sem se posicionar diretamente
favorável ou não favorável ao funcionamento do aplicativo Uber na cidade.

SD 04: Imagine qual seria a situação se os taxistas todos da cidade [...]


tivessem entrado no esquema gratuitamente, só comprando o carro.
Chegando o Uber (caso ele venha a ser regularizado), bastaria o sujeito
devolver sua licença à Urbs, fazer o cadastro no Uber (ou em algum outro
concorrente) e tirar o alaranjado do carro. [...] A coisa toda muda – e muito
– de figura quando o sujeito investiu a economia de uma vida na placa.
E não é exagero: muita gente pagou mais de R$ 100 mil para ter o táxi –
hoje, o preço está estimado em mais de R$ 140 mil [...]. Aí quando chega
um concorrente, o que o sujeito vê é seu investimento ser ameaçado. Seu
patrimônio. Seu capital.

Nessa SD, Galindo compara o credenciamento no aplicativo Uber às


licenças de táxi: se fossem gratuitas, o motorista poderia simplesmente optar por

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
trabalhar pela Uber ou como taxista, pois o investimento seria similar. Contudo,
como os taxistas tiveram de investir um alto valor na aquisição da licença de táxi,
se revoltam com a chegada da empresa americana. Assim, o autor reforça seu
posicionamento de que o culpado pela situação é o poder público e busca controlar
os efeitos de sentido, tentando fazer com que o leitor se convença de que aquilo
exposto por Galindo é a verdade. O jornalista, ao dizer “caso ele [o Uber] venha a ser
regularizado”, deixa transparecer que tem dúvidas na regularização da empresa,
não defendendo que deva acontecer o processo regulatório.
Além disso, dizendo que “o sujeito vê seu investimento ser ameaçado. Seu
patrimônio. Seu capital”, o jornalista apela para o lado emocional do leitor, para que
se sinta comovido e veja que, de fato, o Uber é uma injustiça com os taxistas, mas
porque a licença do táxi custou caro. Na próxima SD, Galindo aponta características
negativas do serviço de táxi, especialmente o preço.

Considerações Finais
Pelo breve gesto analítico realizado por este trabalho, foi possível perceber que
os dois autores – Marcelo Arújo e Rogério Galindo – estão inscritos em FDs distintas,
apresentando posicionamentos que defendem diferentes causas para a polêmica que
envolve o funcionamento, até então irregular, da empresa Uber em Curitiba.
Ressalta-se que, por mais que haja divergências em alguns aspectos,
ambos os colunistas, ao darem ênfase a esse tema em seus textos, demonstram a
preocupação com a situação do transporte na capital paranaense. Isso acontece por
ser uma ideia presente no interdiscurso de que a qualidade e custo-benefício do
transporte, seja ele público ou privado, contribui para uma melhora na qualidade
de vida dos cidadãos.
Marcelo Araújo, em sua publicação, faz uso do discurso jurídico buscando
oficializar seus dizeres, pois acredita que a sua interpretação da Lei da Mobilidade
Urbana é a única possível. Por sua vez, Rogério Galindo critica o poder público de
Curitiba ao alegar que a culpa de parte do clima hostil na cidade é dos prefeitos da
cidade, por conta da chamada “pequena corrupção” que envolve as licenças de táxi.
Galindo não cita em momento algum argumentos legais para o
funcionamento do aplicativo, isto é, ele silencia em seu discurso a legalidade da
empresa. Esse silenciamento também gera efeitos de sentido: há a possibilidade de
ele não conhecer a fundo as questões legislativas do processo ou também entender
que, pela lei, o aplicativo realmente não deveria funcionar, mas isso não justificaria
os atos violentos dos taxistas.

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É importante ressaltar que essas são algumas das possibilidades de efeitos
de sentidos, pois os sentidos não se encontram nas palavras, nem estão fechados,
a cada nova leitura é possível a construção de uma interpretação, dentro do que a
historicidade e as condições de produção possibilitam.

Referências
ARAÚJO, M. Sobre a apreensão de veículos e o Uber em Curitiba. Disponível em:
<http://www.esmaelmorais.com.br/2016/06/marcelo-araujo-sobre-a-apreensao-de-
veiculos-e-o-uber-em-curitiba/>. Acesso em: 25 de jun. 2016.
GALINDO, R. Uber x táxi? Os prefeitos de Curitiba têm lá sua culpa. Disponível em:
<http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/caixa-zero/uber-x-taxis-a-culpa-tambem-
e-da-prefeitura/>. Acesso em: 29 de jun. 2016.
ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 5. ed. Campinas:
Editora da Unicamp, 2002.
______. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2007/2010.

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ESTRATÉGIAS MONOFONIZANTES EM
FORMAÇÕES PEDAGÓGICAS PARANAENSES
Mônica Cristina Metz (Doutoranda – UEM/ Professora – UNICENTRO)

Introdução
Conforme Bakhtin, a realidade fundamental da linguagem está no seu
caráter essencialmente dialógico, uma vez que toda manifestação de linguagem é
constituída a partir de, e para, um Outro. Assim, a constituição de elos na corrente
de comunicação humana se dá a partir do diálogo entre diferentes manifestações
de linguagem. Os textos, os discursos produzidos na sociedade estão todos ligados
a textos e discursos anteriores e estarão na base da construção de diferentes
manifestações futuras.
Dessa forma, podemos dizer que todo texto é constituído por várias
vozes, algumas que se fazem ecoar do interior do texto (polifonia), e outras que a
organização textual tenta silenciar (monofonia).
Nesse sentido, pretendemos verificar, neste trabalho, como se constitui
a polifonia nas discussões da Semana Pedagógica de uma escola pública de
Guarapuava-PR, a fim de contrastá-la com o caráter monofônico do relatório da
Semana Pedagógica elaborado pela mesma escola para apresentação ao Núcleo
Regional de Educação a que pertence. Para tanto, iniciaremos com uma breve
exposição das bases teóricas acerca do dialogismo, da polifonia e da intertextualidade,
que dão o suporte ao nosso trabalho, passando pela contextualização do corpus
utilizado, chegando então à análise do corpus.

Dialogismo, polifonia e intertextualidade


Em suas discussões, Bakhtin (VOLOCHÍNOV, 2006; 2003) critica
dialeticamente as correntes linguísticas abrangidas pelo objetivismo abstrato e pelo
subjetivismo idealista, por não considerarem em suas abordagens a enunciação em si,
defendendo que

a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema


abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada,
nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social
da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações.
A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua
(BAKHTIN, 2006, p. 127, grifos do autor).

Sob essa perspectiva, o que constitui fundamentalmente a língua é o seu


caráter essencialmente dialógico, ao passo que interagir verbalmente com alguém
é participar ativamente de um diálogo: toda palavra que procede de um indivíduo
socialmente organizado dirige-se a um outro indivíduo também socialmente
organizado. E a enunciação é o produto dessa interação. Assim, a linguagem não
pode ser individual uma vez que está sempre lançada entre um eu e um outro.
O termo diálogo abarca, além da comunicação oral, em voz alta, entre pessoas,
um sentido muito mais amplo, que se estende a toda e qualquer tipo de comunicação
verbal. Qualquer texto oral ou escrito tem caráter dialógico, constitui da mesma
forma um elemento de comunicação verbal. Conforme Bakhtin (VOLOCHÍNOV,
2006, p. 128), “o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão
ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa
as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc.”.
Sob essa perspectiva, de acordo com Bakhtin (2003), nenhum sujeito se
constitui como um Adão mítico produzindo um enunciado inicial, puro, que não
possui nenhuma relação dialógica. Todos os nossos conhecimentos nos foram dados
a partir de discursos que se formaram (e se formam) relacionando-se com discursos
anteriores. Nesse sentido é que todo texto é “um elo na corrente complexamente
organizada de outros enunciados” (BAKHTIN, 2003, p. 272).
Barros (1994; 1999) explica os dois aspectos do dialogismo bakhtiniano
como diálogo entre interlocutores e diálogo entre discursos.
O primeiro está relacionado à interação verbal que se estabelece entre o
enunciador e o enunciatário no espaço do texto, ao papel do outro na constituição
do sentido. Ou seja, o dialogismo concebido como o espaço interacional criado entre
um eu e um outro, sujeitos históricos e ideológicos constituídos a partir de diferentes
vozes sociais, no texto. Nesse sentido, o centro da interlocução não está no eu nem
no outro, mas nesse espaço criado por ambos no texto, pois de acordo com Barros
(1999, p. 28), “o dialogismo interacional de Bakhtin desloca o conceito de sujeito,
que perde o papel de centro ao ser substituído por diferentes vozes sociais que
fazem dele um sujeito histórico e ideológico”.
Esse novo conceito de sujeito, por sua vez, nos remete também ao
segundo aspecto do dialogismo bakhtiano apontado por Barros (1999), o diálogo
entre discursos. 70

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Como apontado acima, não há um enunciado inicial, mas enunciados que
derivam de outros enunciados, diálogos entre discursos. Esses diálogos se instauram
no interior de cada texto e são eles que o definem. De acordo com Barros, para
Bakhtin todo texto é

tecido polifonicamente por fios dialógicos de vozes que polemizam entre


si, se completam ou respondem umas às outras. Afirma-se o primado do
intertextual sobre o textual: a intertextualidade não é mais uma dimensão
derivada, mas, ao contrário, a dimensão primeira de que o texto deriva
(BARROS, 1994, p.).

O dialogismo é, portanto, inerente a toda manifestação de linguagem.


No entanto, as vozes que compõem esses diálogos são, em alguns tipos de textos,
camufladas pela construção textual dos discursos. Esses tipos de textos são os
chamados textos monofônicos, em oposição aos textos polifônicos, nos quais as várias
vozes que os constituem, ou algumas delas, deixam-se aparecer.
O termo polifonia vem do campo musical, significa a presença de vozes
múltiplas, referenciando-se àquele tipo de música em que duas ou mais linhas
melódicas soam simultaneamente. Bakhtin (2002), fazendo uma metáfora com a
música, ressignifica o termo:

A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui,


permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade
de ordem superior à da homofonia. E se falarmos de vontade individual,
então é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de várias
vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites
de uma vontade (BAKHTIN, 2002, p. 21).

Dessa forma, as vozes que aparecem nos textos polifônicos não se fazem
superiores umas às outras, dialogam de modo a não dar a apenas uma delas a
condição de verdade. Ao contrário, nos textos monofônicos, os diálogos são abafados
e apenas uma voz faz-se como absoluta e verdadeira. Barros (1999) considera que
os textos monofônicos e polifônicos distinguem dois grandes tipos de discursos, a
saber, os discursos autoritários e os poéticos.
Conforme a autora, nos discursos poéticos as vozes que constituem o
dialogismo são mostradas, e

nos discursos autoritários abafam-se as vozes, escondem-se os diálogos


e o discurso se faz discurso da verdade única, absoluta e incontestável.
A única forma de contestar tais discursos é recuperar externamente a
polêmica escondida, os confrontos sociais, ou seja, contrapor ao discurso

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
autoritário um outro discurso, responder a ele, com ele dialogar,
polemizar (BARROS, 1999, p. 36).

Nosso objetivo, neste trabalho, vai ao encontro da consideração de Barros,


ao tentarmos recuperar a polêmica escondida no relatório da Semana Pedagógica
elaborado pela escola, a partir das discussões realizadas pelos professores nessa
Semana que suscitaram a elaboração do material. Mas, antes de passarmos ao nosso
objetivo analítico, continuemos a nossa exposição teórica, falando sobre alguns
desdobramentos da teoria polifônica de Bakhtin, que servem como base para nossa
análise dos recursos que fazem com que as discussões dos professores e o relatório
sejam polifônicas e monofônico, respectivamente.
Ducrot (1987), numa extensão à linguística das discussões de Bakhtin acerca
da literatura, propõe sua própria teoria da polifonia, enquadrando-a na disciplina
“pragmática semântica” ou “pragmática linguística”, na qual se situam suas
pesquisas. A polifonia de Ducrot, portanto, vai se prender às ideias que compõem o
enunciado, isto é, a construção argumentativa do enunciado.
Em sua teoria, o autor, assim como Bakhtin, considera o dialogismo como
princípio constitutivo da linguagem, no entanto critica a teoria da unicidade do
sujeito falante. Para Ducrot (1987, p. 182), o enunciado pode conter “a atribuição à
enunciação de um ou vários sujeitos que seriam sua origem”. Assim, além do autor
empírico, que produz o enunciado psicofisiologicamente, o enunciado representa
sua enunciação a partir de uma espécie de encenação em que se movem dois tipos
de personagens, quais sejam os locutores e os enunciadores.
Por locutor Ducrot (1987, p. 182) entende “um ser que é, no próprio sentido
do enunciado, apresentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem
se deve imputar a responsabilidade deste enunciado”. Mas, nessa encenação da
enunciação, podem surgir outras vozes que não são as do locutor:

Chamo “enunciadores” estes seres que são considerados como se


expressando através da enunciação, sem que para tanto lhe atribuam
palavras precisas; se eles “falam” é somente no sentido em que a enunciação
é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas
não, no sentido material do termo, suas palavras (DUCROT, 1987, p. 192).

Dessa forma, para o autor, há dois tipos de polifonia, a de locutores e a de


enunciadores. Ocorre a primeira quando num mesmo enunciado aparece mais de
um locutor, como no caso das citações, por exemplo, e, ocorre a segunda quando
num mesmo enunciado se tem mais de um enunciador, ou seja, encenações de
perspectivas diferentes.

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De acordo com Koch (1997, p. 51), a noção de polifonia de enunciadores
permite explicar diferentes fenômenos discursivos “que podem ser classificados
segundo a atitude de adesão ou não do locutor à perspectiva polifonicamente
introduzida”. Entre os casos de adesão a autora cita a pressuposição, certos
tipos de parafraseamento e argumentação por autoridade. E entre os casos da
não adesão do locutor estão a negação, enunciados introduzidos por ao contrário,
pelo contrário, aspas de distanciamento, o détournement, a contrajunção e certos
enunciados comparativos22.
A autora, ao refletir acerca dos conceitos de polifonia e intertextualidade,
chega à conclusão de que todo caso de intertextualidade é um caso de polifonia,
mas nem todo caso de polifonia pode ser considerado intertextualidade. Na
intertextualidade, a presença da voz do Outro está necessariamente marcada pela
presença do intertexto, já na polifonia, a voz do Outro pode estar apenas encenada
a partir de perspectivas de enunciadores diversos.
Koch (1997) distingue dois tipos de intertextualidade, a saber,
intertextualidade em sentido amplo e intertextualidade em sentido restrito. A
primeira se aproxima da noção de dialogismo entre discursos, apontada por Barros
(1999), é a “condição de existência do próprio discurso” (KOCH, 1997, p. 47). E a
segunda diz respeito à “relação de um texto com outros textos previamente existentes,
isto é, efetivamente produzidos” (p. 48). Entre os tipos de intertextualidade em
sentido restrito, são referenciados: de conteúdo X de forma/conteúdo; explícita X
implícita; das semelhanças X das diferenças; e com intertexto alheio, com intertexto
próprio ou com intertexto atribuído a um enunciador genérico.
Discorremos até aqui sobre esses fenômenos característicos da linguagem,
o dialogismo, a polifonia e a intertextualidade. Queremos, agora, passar à
contextualização de nosso corpus para que possamos, a seguir, analisar a ocorrência
desses fenômenos no contexto das discussões e da documentação escolares.

Contextualização do corpus e a questão da polêmica


Os professores das escolas públicas de nível fundamental e médio do Paraná
reúnem-se, no início e no meio de cada ano letivo, em semanas pedagógicas e de
estudo para (re)elaborar e refletir acerca das linhas-mestras que nortearão o trabalho
pedagógico durante o respectivo semestre, tendo como base as Diretrizes Curriculares
da Educação Básica (DCE’s) (PARANÁ, 2008) e o Projeto Político Pedagógico da escola.
As discussões realizadas nessas semanas seguem algumas orientações elaboradas

22. Limitamo-nos a mencionar esses fenômenos, neste momento, explicitando, posteriormente, em


nossa análise, aqueles que aparecem em nosso corpus.

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pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná que visam a uma reflexão acerca de
concepções teóricas e a sua relação com a prática realizada pelos professores.
Nosso corpus consiste, portanto, na gravação e transcrição das discussões
realizadas na Semana Pedagógica de fevereiro de 2009 em uma escola pública de
Guarapuava-PR23, como também na documentação apresentada pela Secretaria de
Estado da Educação do Paraná que norteou essa semana pedagógica e, ainda, no
relatório da Semana elaborado pela escola para apresentação ao Núcleo Regional
de Educação a qual pertence.
As Orientações para a Organização da Semana Pedagógica Fevereiro/2009
constituem-se a partir de três Roteiros, compostos de textos teóricos e propostas
de atividades diversas, previstos para os três dias de discussões da Semana. Neste
trabalho, enfocaremos apenas o Roteiro número 1.
O Roteiro número 1, norteador das discussões previstas para o dia 04 de
fevereiro de 2009, constitui-se respectivamente a partir de:
Texto 1 – Concepções de currículo disciplinar: limites e avanços das escolas da
rede estadual do Paraná. Neste texto há uma crítica aos PCN’s e às concepções de
ensino-aprendizagem, de currículo e de professor que fundamentam o documento
(competências e habilidades, pedagogia de projetos, professor como facilitador).
As concepções que fundamentam as Diretrizes Curriculares estaduais seriam os
avanços em relação a esses limites encontrados nos PCN’s (conhecimento científico,
currículo disciplinar, professor como mediador).
Texto 2 – Educação Básica e a opção pelo currículo disciplinar. Nesse texto,
há uma discussão teórica acerca do currículo disciplinar: fundamentos teóricos;
dimensões do conhecimento; o conhecimento e as disciplinas curriculares; a
interdisciplinaridade; contextualização sócio-histórica; e avaliação.
Roteiro de Atividades. Esse Roteiro é composto de dois exemplos de
propostas de organizações curriculares que expressam duas concepções diferentes
de currículo: um sob a perspectiva do currículo disciplinar – Exemplo 1; e o outro
sob a perspectiva da pedagogia de projetos – Exemplo 2. E, depois dos exemplos,
são propostas algumas atividades de reflexão acerca dos textos e dos exemplos
expostos em relação com a prática pedagógica da escola, divididas em Atividade 1,
Atividade 2 e Atividade 3.
A realização das atividades referentes ao Roteiro 1 ocorreu da seguinte
forma: organizados em grupos, os professores realizaram em conjunto a leitura dos
textos e dos exemplos constantes no Roteiro e desenvolveram as questões propostas
23. Este corpus é parte do corpus coletado para pesquisa de Mestrado realizada em 2009 com as devi-
das autorizações assinadas pelos participantes.

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nas atividades. Após esse trabalho em grupo, reuniram-se, novamente, todos os
professores para a discussão acerca das respostas de cada grupo às questões
levantadas nas atividades. Selecionamos para nossa análise, neste trabalho, alguns
trechos de uma discussão proporcionada pela seguinte questão proposta na
Atividade 1 do Roteiro 1:
“Tomando como base os textos 1 e 2, os dois exemplos anteriores contidos
neste caderno e a produção da Semana Pedagógica de Julho da sua escola ,
analise: (...) b) Qual das propostas possibilita trabalhar com os conhecimentos
de forma menos fragmentada? Quais elementos indicam esta opção?” (p. 34).
Instaura-se uma polêmica entre dois professores em torno dessa questão,
por embasarem sua argumentação em perspectivas distintas. Todavia, pode-
se perceber, já nos textos constituintes do Roteiro, que as próprias Orientações
pautam-se em um discurso polêmico. Inscreve-se o Outro para desqualificá-lo: o
documento, pautado nos pressupostos das Diretrizes Curriculares Estaduais do
Estado do Paraná (DCE’s), constrói a sua perspectiva a partir da crítica à perspectiva
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s).
Dessa forma, a polêmica, definida, neste trabalho, como as relações explícitas
que se estabelecem entre dois discursos antagônicos (cf. MAINGUENEAU, 2008), é
constitutiva da documentação oficial que permeia as escolas públicas do Estado do
Paraná. Conforme Maingueneau (2008, p. 108), a polêmica caracteriza-se “como uma
espécie de homeopatia pervertida: ela introduz o Outro em seu recinto para melhor
afastar sua ameaça, mas esse Outro só entra anulado enquanto tal, simulacro”. Isto
é, cada perspectiva interpreta a perspectiva do seu Outro de uma maneira própria,
numa espécie de tradução do Outro para a sua perspectiva, a perspectiva do Mesmo,
e é essa tradução que se introduz no discurso do Mesmo.
Na perspectiva das Orientações, os pressupostos dos PCN’s, traduzidos
pelos pressupostos das DCE’s, aparecem como limitados, errôneos, numa espécie
de denúncia dos erros do Outro. Para Maingueneau (2008, p. 110), “polemizar é,
sobretudo, apanhar publicamente um erro, colocar o adversário em situação de
infração em relação a uma Lei que se impõe como incontestável”. No caso das
Orientações, essa Lei seria a ditada pelos pressupostos das DCE’s.
Nesse sentido, a própria pergunta trazida pelo Roteiro tem por objetivo
a reafirmação dessa Lei, uma vez que exige uma resposta que tenta dar fim à
polêmica instaurada, dando a uma só voz a condição de verdade. No entanto,
apesar da exigência da pergunta, a polêmica persiste nas respostas dos professores,
como veremos a seguir.

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As discussões dos professores versus o relatório
A polêmica instaurada nas Orientações da Semana Pedagógica persiste nas
discussões dos professores acerca da questão proposta, pois as respostas à questão
não seguiram apenas uma das perspectivas. Tanto as vozes dos PCN’s quanto as
das DCE’s fizeram-se ouvir nas falas dos professores. Passamos, agora, a analisar os
fenômenos pelos quais essa polifonia se deixa mostrar.
Trecho I:
Prof. 1 – Questão B.. Qual das propostas possibilita trabalhar com o
conhecimento de forma menos fragmentada? Quais elementos indicam isso? Aí..
nós tinha colocado que o exemplo 2, por ter é.. por ter lá no 2 fala muito da...
Prof. 2 – interdisciplinaridade...
Prof. 1 – O dade né.. aí eu fico pensando, os estudiosos ou os professores
universitários que, de repente, perde um pouco a noção né.. interdisciplinaridade,
transdisciplinaridade, multidisciplinaridade, né.. Agora, é uma coisa simples de se
entender porque, quer dizer, o aluno traz a vida dele de lá, ele não traz em caixinhas,
né, aqui tenho um pouco de matemática, aqui eu tenho geografia, aqui eu tenho português,
aqui eu tenho inglês, aqui eu tenho história, ele vem de uma vez só, então a gente sabe
que tem que ser dessa forma, né, o ideal a gente pensa que tem que ser assim...(...).
Podemos visualizar que a argumentação construída pelo prof. 1 se
dá por meio da retomada de conteúdo explícita e implícita de outros textos
(intertextualidade em sentido restrito), a saber, do Exemplo 2 do Roteiro e dos
PCN’s. Conforme Koch (1997, p. 49), “ocorre intertextualidade de conteúdo, por
exemplo, entre textos científicos de uma mesma área ou corrente do conhecimento,
que se servem de conceitos e expressões comuns, já definidos em outros textos
daquela área ou corrente”.
Desse modo, a retomada explícita do conceito de interdisciplinaridade
é percebida pela indicação da fonte (Exemplo 2), e a implícita pode ser percebida
pelas marcas linguísticas que são próprias do documento PCN’s. Isto é, a
interdisciplinaridade vinculada à metodologia curricular. Os elementos que
permitem retomar a interdisciplinaridade da pedagogia de projetos dos PCN’s são,
justamente, as várias disciplinas citadas pelo professor.
Assim, tentando buscar a fonte do intertexto, temos:
Retomada de conteúdo explícita do exemplo 2 do Roteiro:

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“Para desenvolver essas questões, o enfoque dado deverá ser interdisciplinar,
percebendo-se o ambiente como um tema transversal que permeia as várias
disciplinas” (Exemplo 2 - Roteiro, p. 32).
E retomada de conteúdo implícita dos PCN’s:
“De fato, será principalmente na possibilidade de relacionar as disciplinas
em atividades ou projetos de estudo, pesquisa e ação, que a interdisciplinaridade
poderá ser uma prática pedagógica e didática adequada aos objetivos do Ensino
Médio” (PCN’s, p. 75).
Além desse fenômeno da intertextualidade, a polifonia se deixa mostrar na
fala do prof. 1 ao colocar em cena dois locutores: Prof. 1 e Exemplo 2. Dessa forma,
atribui-se a responsabilidade pelo discurso da interdisciplinaridade ao Exemplo 2. E
é nessa responsabilidade que a resposta do Prof. 1 se apoia.
Temos, portanto, nessa fala do Prof. 1, uma resposta que se apoia na
perspectiva que é criticada pelas Orientações. No entanto, outra perspectiva é
colocada na fala do Prof. 3, que começa uma discussão com o Prof. 1:
Trecho II
Prof. 3 – Eu só queria comentar... Qual das propostas possibilita trabalhar
com o conhecimento de forma menos fragmentada? É o exemplo 1, só que eu
analisando o exemplo 1 e o 2 a gente... eles colocam sempre o que ta errado né,
e o que a gente faz é o 2, a gente ta no 2, a gente faz o 2 na escola e ainda mesmo
com falhas. E1 {O exemplo correto seria o 1,} E2 {mas eles não deixam claro como
seria essa forma,} E1 { então eles querem que a gente ache um caminho.} E2 {Mas,
eu penso que aí teria que ser de um outro jeito, assim, exemplos mais específicos,
talvez, com esse exemplo que tá aqui não há possibilidade. Então eu vejo falhas,
falhas no material..}
O Prof. 3 constrói sua argumentação a partir da encenação de dois
enunciadores: E1: o documento; e E2: o seu próprio ponto de vista. Temos aí
um caso de polifonia de enunciadores em que o locutor não adere à perspectiva
polifonicamente introduzida. É, pois, um caso de Contrajunção, no qual “acolhe-se
no próprio discurso o ponto de vista do Outro (E1), dá-se-lhe uma certa legitimidade,
admitindo-o como argumento possível para determinada conclusão, para depois
apresentar, como argumento decisivo, a perspectiva contrária” (KOCH, 1997, p. 55).
Assim, o Prof. 3, encenando a perspectiva defendida pelas Orientações,
chega a admitir que a proposta de trabalho das DCE’s seja a mais correta, em relação
ao trabalho proposto nos PCN’s. Mas, critica o modo pelo qual as Orientações
trazem essa nova proposta, problematizando a sua efetivação. Dessa forma, mesmo

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apontando falhas na elaboração das Orientações, a resposta do Prof. 3 se apoia na
perspectiva por elas defendida. E a polêmica continua:
Trecho III
Prof. 1 – Viu (prof. 3), no 2 aparece, não que aparece PCN, aparece a palavra
competências, e a gente ficou até 2003, o que se falava muito? PCN, competências e
habilidades, isso é comentado no 2. Então, os textos, tirando as críticas, que o autor faz,
os dois textos são uma coisa só...
Prof. 3 – Não.. não é porque o exemplo 1 fala em totalidade do conhecimento, fala
na questão que a escola tem que fazer o recorte, que nós...
Nesse trecho, a argumentação do Prof. 1 se constrói, novamente, a
partir da encenação dos dois locutores: Prof. 1 e Exemplo 2, dando a esse último
a responsabilidade de reproduzir o discurso sobre competências e habilidades
dos PCN´s. Temos, assim, retomadas explícitas do conceito de competências e
habilidades do Exemplo 2 do Roteiro e também dos PCN’s:
“O desenvolvimento de competências e habilidades básicas comuns a todos
os brasileiros é uma garantia de democratização. A definição destas competências
e habilidades servirá de parâmetro para a avaliação da Educação Básica em nível
nacional” (PCN’s, p. 17).
“Muito diferente seria a escola se preocupasse com o desenvolvimento de
competências e habilidades básicas nos alunos através de projetos transdisciplinares
centrados na resolução de problemas levantados pelos alunos – ou projetos centrados
nos sonhos dos alunos, naquilo que eles têm desejo e interesse de aprender”
(Exemplo 2 - Roteiro, p. 31).
Desse modo, a polifonia na fala do Prof. 1 pode ser vista a partir de dois
fenômenos, a intertextualidade e a polifonia de locutores. Assim, concordando
com Koch (1997), podemos perceber que a intertextualidade é um caso de polifonia
marcada pela presença do intertexto. Nesse caso, a voz dos PCN’s, na fala do Prof.
1, é marcada pela presença de conceitos que são próprios desse documento.
Já a argumentação do Prof. 3 se constrói a partir da retomada explícita do
Exemplo 1 do Roteiro e da retomada implícita do Texto 1 apresentado pelo Roteiro:
“O que estamos sugerindo é o trabalho com a totalidade no sentido da
recuperação das partes enquanto elementos que, articulados entre si, constituem o
todo. Essas articulações constituem as noções fundamentais – os fundamentos - que
explicam um dado objeto do conhecimento” (Exemplo 1 – Roteiro, p. 29).

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“[O professor] É aquele que seleciona o recorte do conteúdo, o qual não
é aleatório e sim planejado, movido por uma intenção social, política, histórica e
cultural” (Texto 1 - Roteiro, p. 11).
Além disso, encenam-se também, nessa fala do Prof. 3, dois locutores:
Prof. 3 e Exemplo 1. A esse último é atribuída a responsabilidade pelos discursos da
totalidade do conhecimento e da questão do recorte do conteúdo, nos quais a fala
do Prof. 3 se apoia.
A polifonia, portanto, constitui-se conforme as diferentes formas com que
os professores inscrevem a voz do Outro (os documentos) na sua argumentação:
Intertextualidade de conteúdo explícita e implícita e encenação de locutores e
enunciadores. As vozes que aparecem a partir desses fenômenos são, justamente, as
das DCE’s, na fala do Prof. 3, e as dos PCN’s, na fala do Prof. 1. Assim, a polêmica
instaurada na própria constituição das Orientações continua viva nas falas dos
professores, ao retomarem tanto a perspectiva das Orientações quanto a perspectiva
dos PCN’s, criticada pelas Orientações.
No entanto, o Relatório sobre a Semana elaborado pela escola para
apresentação ao Núcleo Regional de Educação abafa as vozes que constituíram
as discussões dos professores, de modo a esconder a polêmica constitutiva dos
documentos oficiais do Paraná. Dessa forma, com a polifonia camuflada, o Relatório
caracteriza-se como monofônico, reproduzindo somente a voz das Orientações,
pautadas nas DCE’s, e reafirmando a sua voz como Lei inquestionável.
Podemos verificar isso na resposta àquela questão apresentada no Relatório:
“Qual das propostas possibilita trabalhar com os conhecimentos de forma
menos fragmentada? Quais elementos indicam esta opção?
Critério da totalidade: o ensino a partir dos fundamentos (indo do todo
para as partes ao invés de tomar as partes como ponto de partida para se chegar ao
todo)” (Relatório, p.04).
Essa resposta constitui-se como uma transcrição literal da perspectiva
trazida pelo Exemplo 1 do Roteiro:
“Esta proposta, entretanto, não se configura, como poderia parecer à
primeira vista, como uma simples inversão de percurso, indo de todo para as partes
ao invés de tomar as partes como ponto de partida para se chegar ao todo. O que estamos
sugerindo é o trabalho com a totalidade no sentido da recuperação das partes
enquanto elementos que, articulados entre si, constituem o todo. Essas articulações
constituem as noções fundamentais – os fundamentos - que explicam um dado objeto
do conhecimento” (Exemplo 1 – Roteiro, p. 29).

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Podemos caracterizar o Relatório, desse modo, conforme apontado por
Barros (1994), como um veículo de um discurso autoritário. Discurso esse, que é
buscado pela própria questão formulada nas Orientações.
Percebemos, portanto, com a análise do corpus que a polifonia existente nas
discussões dos professores desaparece no Relatório da escola, através dessa estratégia
do apagamento das vozes (monofonia) que busca um discurso de verdade única,
isto é, autoritário. Assim, o que era polifônico nas discussões passa a se caracterizar
como monofônico no Relatório
Para finalizar, podemos dizer que o objetivo das Orientações para as semanas
pedagógicas das escolas públicas paranaenses de camuflar a polêmica constitutiva
da documentação estadual é alcançado pelo Relatório da escola. No entanto, esse
Relatório não revela a realidade polêmica das discussões do âmbito escolar.

Referências bibliográficas
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C. A.: TEZZA, C.; CASTRO, G. (orgs). Diálogos com Bakhtin. 2. ed. Curitiba: Editora
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dito. Campinas: Pontes, 1987.
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Curitiba: SEED, 2009.

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A CONSTRUÇÃO DE VERDADES: ANÁLISE DAS
DECLARAÇÕES DE TERRAS DA VILA DE
GUARAPUAVA – PR 1854 -1857
Robson Luiz de Bastos Silvestri (UNICENTRO)
Marcia Maria Menendes Motta (UFF)

A primeira tentativa de organizar o cenário rural brasileiro dos oitocentos,


teve início com a Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, conhecida de como Lei
de Terras e aprovada pelo Decreto nº1.318 de 30 de janeiro de 1854. Dentre as
várias determinações da lei, estava a obrigatoriedade de registrar posses junto ao
Vigário e como consequência dessa ação surge o Livro de Registro de Terras ou
Livro de Registros do Vigário. Uma fonte histórica que supostamente refletia o
cenário agrário brasileiro dos oitocentos, através das declarações de posses que o
compunha. O ato de registrar essas posses propiciou a chance de potentados em
legitimar domínios e também de forjar documentos de imóveis, em muitos casos
ilegais, numa clara afirmação e demonstração de prática de poder e construção de
verdades que se tornariam em litígios. Verdades reconhecidas pelo sistema jurídico
que considerava a declaração do bem como um importante mecanismo no processo
de presunção de posse. Declarações que ao serem realizadas forjavam fronteiras,
limites, reconheciam confrontantes ou os omitiam. Contraditoriamente pequenos
posseiros e trabalhadores, também fizeram uso da Lei, e iniciaram o processo de luta
pela terra em meio aos latifundiários detentores da farsa do discurso legitimador e
dominante. Em muitos casos essas ações estavam respaldadas por tabeliões, juízes
e políticos. Enquanto tentativa de esboço do agrário brasileiro dos oitocentos a
Lei de 1850 falhou, mas suas consequências são indeléveis para o sistema agrário
brasileiro, possibilitando o acúmulo de posses, institucionalizado e sustentado por
documentos ilegais.
Como consequência dos registros de terras temos o surgimento do Livro de
Registro do Vigário. Contendo as declarações levadas ao clérigo e registradas em duas
vias: uma permanecendo com o requerente e outra com o religioso. Uma vez com
os domínios devidamente registrados, os requerentes poderiam iniciar o processo
de presunção de posse. Esse rico material composto por detalhes e silenciamentos -
proposital ou não – é composto por descrição de fronteiras de reconhecimento ou não
de confrontantes, e em alguns casos com descrição minuciosa do espaço geográfico
recheada por pontos de orientação que separavam e possibilitavam, talvez, algum
mínimo sentido ao complexo cenário aqui analisado, os oitocentos brasileiro.
Ao registrarem “seus” domínios, os declarantes consolidavam uma prática
que se tornou comum ao longo dos oitocentos e que adentrou o século seguinte,
na tentativa de obter domínio sobre posses nem sempre legítimas. A construção
de documentos em forma de declarações de terras passou a ser um dos itens
indispensáveis no processo de consolidação efetiva da posse. Nesse processo, os
mais diversos indivíduos estavam envolvidos, desde requerentes ou proprietários
até aliados dedicados em dar segurança ao processo corriqueiramente ilegítimo.
Dentre os envolvidos encontramos juízes, tabeliões, políticos, militares e, se houvesse
algum tipo de parentesco, os mecanismos para burlar a lei eram mais eficazes.
Diante do apresentado, encontramos dois pontos fundamentais em meio
a prática do registro e o resultado do declarar seu imóvel: o Vigário e o Livro de
Registros Paroquiais ou Livro de Registros do Vigário.
Segundo o Decreto de 1854, era função dos Vigários de cada freguesia, como
representantes da lei, receber devidamente as declarações e realizar o registro dos
domínios. Precisamente em cada declaração, que seria anexada ao livro de Registros,
deveria haver duas vias iguais, uma permanecendo com o proprietário e outra
anexada ao livro de registro. Nas declarações, deveriam estar presentes detalhes,
tais como o(s) nome(s) do(s) possuidor(es);, a região precisa da Freguesia explicada
por meio de pontos cardeais ou de alguma outra característica que informasse de
maneira compreensível sua localização, - ou seja, ao norte ou sul do rio, arroio,
capão etc – sua fronteira com outro proprietário, sua extensão, caso fosse conhecida,
e igualmente, um dos itens mais importantes sua forma de aquisição.
Dentre as determinações legais impostas pela lei de terras destacamos as
brechas permitidas ao declarar aumentando a real possibilidade de falsificação de
informações levadas ao Vigário.
Os livros de Registros Paroquiais têm sua origem a partir da segunda
metade do século XIX, quando passaram a ser importantes fontes de pesquisa e de
conhecimento sobre o rural brasileiro, mesmo que de forma genérica. Esses Registros
nos incita a lançar um olhar atento e crítico, opondo-se a uma visão limitada voltada
para uma verdade absoluta, questionando a possível situação das terras declaradas.
Esses livros foram produzidos por meio das mãos detentoras, naquele
momento, da fé pública outorgada temporariamente ao Vigário. Tal documento
se mostra como uma suposta verdade concretizada ou como a construção de uma
verdade; a sua manipulação poderia ser utilizada em ação requerente de posse como
uma das provas de domínio por parte de quem possuísse tal declaração, ou seja,
declarar o item como propriedade perante o Vigário era um importante passo para se

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obter a posse efetiva do imóvel. Mesmo se não fosse verdade, o falsificador poderia
iniciar o processo de reconhecimento de posse através da declaração realizada.
Nossa fonte – o Livro de Registros do Vigário ou Livro de Registros de
Terras da Vila de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava –ainda está por ser
explorada de maneira minuciosa. Neste trabalho, faremos uma provocação inicial
de reflexão, sem a pretensão de esgotar as leituras críticas acerca de uma fonte tão
rica quanto complexa.
Dentre as 396 declarações contidas no Livro, algumas foram feitas a
rogo de terceiros ou atendendo solicitação de analfabetos ou impossibilitados de
comparecerem junto ao religioso para realizar sua declaração. Alguns declarantes
possuíam mais de um domínio, totalizando 632 declarações, perfazendo um total
de 672 locais declarados no período de 22 de maio de 1855 a 31 de maio de 1857. O
responsável por escrever nossa fonte foi o Vigário Antônio Braga de Araújo, contando
com um total de 369 pessoas registradas como declarantes24. As designações dos
locais que mais aparecem nas declarações são Jordão, Pinhão e Rocio da Vila25.
A partir dessas declarações nosso intuito é compreender os mecanismos
utilizados principalmente por potentados ao defenderem seus interesses e,
consequentemente, o acúmulo de bens presente no processo de registrar o que
alegavam lhes pertencer, cumprindo a determinação prevista na Lei nº 601 de 18 de
setembro de 1850, aprovada pelo Decreto 1.318 de 30 de janeiro de 1854, composto
por IX capítulos e 109 artigos.
Como resultado da aprovação da Lei de Terras de 1850 e seu Decreto de
1854, temos os registros de bens junto ao vigário, indivíduo responsável por receber
e deixar arquivado a solicitação do requerente. Com o objetivo de dar visibilidade
a uma parte de como eram organizados e estruturados os registros de terras de
Guarapuava – PR, este trabalho se debruça sobre a fonte histórica presente no Arquivo
Histórico da Catedral Nossa Senhora de Belém de Guarapuava, notadamente
sobre o Livro de Registros do Vigário ou Livro de Registros Paroquiais da Vila de
Guarapuava – PR26. Seguindo o cumprimento da Lei, os registros de posses eram
realizados junto ao vigário do local onde o requerente residia.
Nas relações de luta e de poder, na maneira como os homens se odeiam,
disputando espaços na sociedade, aprovando juridicamente mecanismos que
24. Sabemos que esse não é o número total de declarações que deveriam constar na fonte, pois em
carta enviada ao Vice-Presidente da província o padre relata que alguns não compareceram na
paróquia para atender a imposição da Lei.
25. Todas essas informações serão retomadas adiantes com elaboração de gráficos para melhor vi-
sualização.
26. VECCHIA, Z. H. D. (org.) Registro do Vigário da Vila de Nossa Senhora de Belém de Guarapuava
(Prelo) Guarapuava, Ed Unicentro.

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beneficiam poucos em detrimento de terceiros, é possível compreendemos o sentido
de “conhecimento”, em termos de Foucault (2013)27. Ele se dá:

[...] sob a forma de um certo número de atos pelos quais o ser humano
se apodera violentamente de um certo número de coisas, reage a um
certo número de situações, lhes impões relações de força. Ou seja, o
conhecimento é sempre uma certa relação estratégica em que o homem se
encontra situado [...] (FOUCAULT, 2013, p. 33)

Esse conhecimento se encontra também e principalmente no campo de ação


política. A importância da instituição política e jurídica nem sempre é reconhecida,
uma vez que acreditamos conhecer melhor as estruturas econômicas do que as
estruturas do poder político. Contudo, não nos passa despercebida a existência de
uma série de desdobramentos econômicos que somente podem ser explicados se
forem associados às relações políticas que permeiam toda a trajetória documental28.
Dos jogos de entraves políticos que sustentam o conhecimento, temos
outra parcela importante de ações que compõem a prática jurídica: a construção de
verdades, ou melhor, o jogo de produção de provas de verdades. Ao pensar esse jogo
da verdade, nos damos conta de que esse mecanismo está submetido a uma lei, algo
intrínseco que podemos chamar de leis das metades por meio das quais se ajustam e
se encaixam a verdade que vem à tona29. Por verdade, portanto, podemos conceber
o resultado dos encaixes das metades que fizeram parte do jogo jurídico, ou seja, dos
interesses de credores, comerciantes, potentados, legisladores locais ou da capital,
motivados pela questão econômica, o status, a tradição. Somando todos esses itens,
temos o debate legislativo e, em decorrência, a completude do jogo das metades.
Na prática, o indivíduo que detém mais símbolos consegue facilmente
dominar o jogo das metades. Dessa forma, aquele que possui um símbolo, ou um
segredo capaz de mudar o desfecho da situação, detém e exerce maior poder.

[...] O poder se manifesta, completa seu ciclo, mantém sua unidade graças
a este jogo de pequenos fragmentos, separados uns dos outros, de um
mesmo conjunto, de um único objeto, cuja configuração geral é a forma
manifesta do poder. (FOUCAULT, 2013, p. 45.)

Esse poder, mais especificamente o poder político a que nos referimos,


está intimamente ligado a um certo tipo de saber, não compartilhado com outros
grupos sociais, ou seja, os mecanismos de construção de uma lei não são objetos
de debate ou de consulta pública. Trata-se, pois, de uma prática sectária. Para

27. Idem p. 31.


28. Idem p. 39.
29. Idem p. 41.

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se realizarem os debates, é necessário conhecimento jurídico adequado e uma vez
confeccionado o projeto, a futura lei não vai para consulta, salvo em alguns casos,
pois, se não existe o saber sem o poder, consequentemente, não há o poder político
sem o saber especial30. Isso porque o poder político é uma junção, uma trama junto
ao saber e, para nós, o saber jurídico possibilita o poder sobre dos trâmites legais até
a aprovação, a defesa ou prática da manutenção de interesses.
O saber especial está ligado à persuasão de pessoas para as quais aquela ação
é a verdade, é sobre a verdade ou a defende num jogo regulado e sustentado pelo
testemunho, lembrança/experiência ou inquérito. Na existência do saber especial,
sua essência está ligada à prova – constatação – de algo em defesa do que se pretende
comprovar. Essa prova não implica ser a verdade ou estar falando a verdade; o
saber é, assim, um importante mecanismo possibilitado no jogo da verdade31.
No jogo da verdade, a contestação judiciária é uma prática normal. Esse
jogo de contestação estava limitado a pouco jogadores, como já dito, a uma “classe
média” a serviço de grandes senhores e potentados. Esse privilégio é possibilitado
pelo local de origem dos legisladores, proporcionando-lhes, para além da
contestação judiciária, o controle da circulação de bens, confiscados por quem já
detinha mecanismos de dominação simbólica mediante acúmulo de riquezas, como
no nosso caso o poder do saber, ampliando a esses indivíduos potencialmente o
controle, o encaminhamento e ordenamento dos debates jurídicos.
Como uma das consequências desses debates temos, na Europa dos séculos
XVI e XVII, o acúmulo de riquezas constituído por terras, herança que chega ao
Brasil e possibilita nossas pesquisas de cunho agrário.
Por fim, de maneira breve, concluímos que a complexa composição e organização dos
oitocentos agrário brasileiro se deu através de disputas jurídicas desiguais, construção de
verdades que se mantiveram por longa data até o acesso aos documentos de registros de
terras serem possibilitados.

As consequências são indeléveis ao espaço rural brasileiro, decorrentes


da falsificação de documentos tidos como legais ao longo dos anos. Por essas
desigualdades e outras que a atenção a construção de discursos inclinados à defesa
de interesses específicos se faz necessária, na busca por respostas ainda possíveis
das desigualdades e manipulações em vários âmbitos.

30. FOUCAULT, A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Eduardo Jardim e Roberto Machado Rio de
Janeiro RJ: 4ªed NAU, 2013, p. 55.
31. Idem p. 58 - 65.

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Referências
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FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. Tradução de: Eduardo Jardim e
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Questões de Método e de Fontes. In: _____. História da Agricultura Brasileira.
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DISCURSO E RELAÇÕES DE PODER EM ANTÍGONA
Sandra Lúcia Dimidiuk Bassani (PPGL/UNICENTRO).
Denise Gabriel Witzel

Resumo: Antígona, peça de teatro escrita por Sófocles por volta de 442 a.C., é uma
obra na qual encontramos, na ordem do discurso, um jogo conflituoso de poderes,
notadamente, o poder soberano de Creonte, rei de Tebas, e a resistência de Antígo-
na. De um lado, portanto, estão os discursos e as práticas do rei, representante di-
vino entre os homens; de outro, Antígona, apenas uma mulher que vai de encontro
às ordens do soberano e age de acordo com suas verdades subjetivas e religiosas,
não aceitando as ordens impostas pelo monarca. Por ser insubmissa, é condenada
à morte. Nossas análises se fundamentam na arquegenealogia de Michel Foucault
(2009), que considera que o poder é exercido nas relações e é identificado nas ações
de uns sobre os outros. Focalizando os discursos a partir do embate dos dois per-
sonagens, este estudo dará visibilidade ao confronto, às batalhas enunciativas cen-
tradas na associação entre língua, sujeito e história, evidenciando que não se tem o
direito de dizer tudo em qualquer lugar ou circunstância, pois existe uma ordem
imposta pelos poderes que circulam e funcionam em rede.
Palavras-chave: sujeito mulher; relações de poder; poder soberano; poder disciplinar.

Introdução
Ao recuperarmos fragmentos da história sobre quem é o sujeito-mulher,
podemos começar com o mito da criação da mulher. Em Schimitt-Pantel (2003),
encontramos relatos sobre o estabelecimento deste ser. De acordo com a crença
Judaica Cristã, a mulher foi criada como “categoria secundária”. Segundo a autora,

Deus moldou no barro o homem e os demais animais, mas percebendo


que o homem estava muito solitário, em um dia fez com que este dormisse
profundamente, e, de uma de suas costelas, fez a mulher, o que levou Deus
a expressar as seguintes palavras: “Esta sim, é osso de meus ossos e carne
da minha carne! Ela será chamada ‘mulher’, porque foi tirada do homem!”.
(SCHIMITT-PANTEL, 2003, p. 135).

Percebemos, a partir desta ótica, que a mulher foi criada para servir o
homem e que, desde o mito da criação de Eva, ela tinha somente uma utilidade:
agradar Adão. Destacamos o relato do apóstolo Paulo, retirado da primeira epístola
de Timóteo, também da Bíblia Sagrada: “Eu não permito que a mulher ensine ou
domine o homem. Que ela conserve, pois, o silêncio. Porque primeiro foi formado
Adão, depois Eva”. (SCHIMITT-PANTEL, 2003, p.136).

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No mito Grego da criação da mulher, encontramos a figura de Pandora, do
escritor Hesíodo, que cria a primeira mulher para ser a representante da “raça feminina”.
Ela surge como representação da degradação moral e do pecado, ou seja, emerge
de pensamentos extremamente negativos sobre as mulheres. As obras de Hesíodo
serviram de “referência para autores gregos” (SCHIMITT-PANTEL, 2003, p. 134), isto é,
repercutindo ideias que colocavam a mulher como uma ameaça aos homens.
De acordo com Perrot (2003), a mulher da Grécia Antiga não tinha direito
sobre o seu corpo e, inclusive, as aparições em público eram proibidas, como diria
Pitágoras: “uma mulher em público está sempre deslocada” (PERROT, 2003, p.14). A
mulher era apenas uma demonstração do poder do marido, que poderia evidenciar
suas riquezas até mesmo por meio das vestimentas ou joias que a esposa ostentava.
A beleza feminina também era considerada um bem pertencente ao homem e que
reforçava a virilidade masculina, pois: “no palco do teatro, nos muros da cidade, a
mulher é o espetáculo do homem” (PERROT, 2003, p. 14). Sendo assim, as mulheres
deveriam ser silenciadas, ficar obedientes e submissas a seus maridos.

Poder e relações de poder em Michel Foucault


Nossa análise irá girar em torno do poder e das relações de poder. Para
Foucault, o objetivo do estudo do poder nas relações de uma sociedade não está
na constituição das instituições ou na cultura, mas sim, no sujeito. De acordo com
ele, “o sujeito é dividido no seu interior em relação aos outros” (FOUCAULT, 2009,
231). Esse sujeito é colocado nas relações de produção, significação e poder, as quais
devem ser utilizadas como ferramenta de estudo dos corpos sujeitados pelo poder
das instituições e do Estado.
Visando o estudo mais aproximado entre a teoria do poder e as práticas
sociais, Foucault (2009) apresenta as possibilidades de resistência contra as formas
do poder, sendo esse o ponto de partida: “usar a resistência como um catalisador
químico de modo a esclarecer as relações de poder, localizar seu ponto de aplicação
e os métodos empregados, analisar o poder através do antagonismo das estratégias”
(FOUCAULT, 2009, 234). Para que possamos compreender as relações de poder,
então, devemos ficar atentos às formas de resistência.
Foucault não fica preso às lutas antiautoritárias, mas sim às séries de
oposições, como lutas entre homens e mulheres; pais e filhos; Estado e modos de
vida das pessoas. No ponto de vista dele, o poder está em todas as partes e transita
como se fosse um nó em uma rede de relações, nas lutas cotidianas que surgem com
a tomada de consciência em torno da seguinte questão: “quem somos nós?”.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
Para o estudo da mecânica do poder (2008), destacamos as seguintes
análises realizadas por Foucault: poder soberano, poder disciplinar e biopoder.
Poder soberano retinha o poder na figura do rei, com rituais do suplício; poder
disciplinar seria um lugar para corrigir, uma evolução das punições, materializada
no surgimento de instituições, como: prisões, escolas e indústrias, que acarretam
o controle dos corpos; biopoder, que ocorre na utilização do controle dos corpos
criando a sociedade dos corpos dóceis e adaptados aos interesses econômicos.
O poder dominante na Grécia Antiga era o soberano. É o estudo da
constituição do sujeito histórico na genealogia, “com a história dando conta das
formas de poderes e de saberes dos discursos, o campo dos acontecimentos”
(FOUCAULT, 2008, p.7), que dará visibilidade ao sujeito súdito do reino.
No poder soberano, o monarca poderia ser considerado o corpo vivo da
soberania e detentor de poderes absolutos. Os súditos teriam a obrigação de acatar e
seguir todas as ordens determinadas, afinal, “diante da justiça do soberano, todas as
vozes devem-se calar”. (FOULCAULT, 2006, p. 33). Em outras palavras: o rei tinha o
domínio total dos sujeitos, pois ao soberano caberia mandar e, aos súditos, obedecer.
Segundo Foucault, o que imperava era a dominação dos corpos, visto que as relações
de soberania eram, na realidade, relações de dominação sobre os sujeitos.
O rei teria o poder de punir com base em suas convicções e pretensões,
utilizando penas físicas, de acordo com a gravidade dos crimes cometidos. Por
intermédio de grandes e solenes execuções, geralmente promovidas em praça
pública, a técnica do suplício dos corpos era realizada. O suplício era uma forma
de punição que seguia alguns critérios: produzir dor nos culpados por meio de
sofrimentos calculados, que iam da simples morte ao esquartejamento. O tempo e o
grau de aflição determinavam a importância do sujeito na sociedade ou a intensidade
dos seus crimes, transformando-se no ritual do suplício.
O suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só:
esta produção é regulada. O suplício faz relacionar o tipo de ferimento físico, a
quantidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a
pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor;
a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é
calculada de acordo com regras detalhadas; número de golpes de açoite, localização
do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou na roda (o tribunal decide se é
o caso estrangular o paciente imediatamente, em vez de deixa-lo morrer, e ao fim de
quanto tempo este gesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor (mão
decepada, lábios ou língua furados). (FOUCAULT, 2006, p. 31).

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O rei, ao determinar o suplício, mostrava que o poder soberano de punir
pertencia a ele e não à multidão. Tudo se dava através de um ritual organizado
para evidenciar à sociedade quem tinha o poder de castigar e de colocar a ordem
pretendida, por meio de um espetáculo de horrores que provocava medo e pavor
coletivo, proporcionando imagens que deveriam ficar por muito tempo guardadas
na memória de quem presenciava aquelas demonstrações de poder.
Com o surgimento da burguesia, no século XVIII, o suplício passou a ser
visto como vingança pessoal do rei e não como aplicação de punições, colocando
em discussão a necessidade de castigos aos infratores, mas sem suplício. A partir
de então, ao serem punidos os sujeitos deveriam ser, também, humanizados. A
ilegalidade do ataque aos corpos dos indivíduos se tornou evidente e outros meios
se manifestam, como a vigilância penal. Sendo assim, a punição deixa de ser exercida
sobre os corpos para passar a atingir a alma dos indivíduos:
Significa um esforço para ajustar os mecanismos de poder que enquadram
a existência dos indivíduos: significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos
que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade,
atividade, gestos aparentemente sem importância: significa outra política a
respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa.
(FOUCAULT, 2006, p. 66).
Este novo tipo de poder, conforme Foucault, foi a grande invenção da
sociedade burguesa, aspecto fundamental para a implantação do Capitalismo: “esse
poder não soberano, alheio, portanto, à forma de soberania, é o poder disciplinar”.
(FOUCAULT, 2005. p. 43). O poder disciplinar se exerce a partir de um jogo de
heterogeneidades, onde vários discursos se cruzam e os diversos aparelhos do saber
ou dos saberes constituídos se manifestam. Os sujeitos deixam de obedecer ao rei e
passam a seguir leis e normas. O poder soberano sobrevive na ideologia do direito,
nos códigos jurídicos. Ocorre a democratização da soberania, ela permanece envolta
pelos mecanismos de coerção disciplinar. O discurso disciplinar é o discurso da
regra, das normas, passamos a vivenciar a normalização no campo das ciências
humanas, as disciplinas adotam um discurso arbitrário. Uma nova forma de poder,
de saber e de dominação de saberes. (FOUCAULT, 2008, p. 51).
Dessa maneira, a produção do discurso passa a ser controlada, selecionada,
organizada e os sujeitos descobrem que “não se pode dizer tudo, que não se pode
falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar
de qualquer coisa”. (FOUCAULT, 1996, p. 9). A sociedade começa a conhecer os
procedimentos de exclusão, como interdições, tabu do objeto, direito de apenas
alguns falarem. Os discursos passam a ser apenas permitidos para pessoas

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
habilitadas, como médicos, padres, juízes... O discurso, então, carrega terríveis
perigos, não sendo permitido a todos falar.

Poder nas redes discursivas de Creonte e Antígona


Na análise da tragédia Antígona, observamos a luta entre os poderes
do soberano e as práticas vindas das relações sociais, relações de poder que
determinam quem pode e quando pode falar, de que lugar ou para quem fala,
uma vez que para Foucault:

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo


controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, esquivar
sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1996. p. 9).

Nesse contexto, as mulheres não tinham o direito de falar ou de questionar,


eram interditadas e sofriam procedimentos de exclusão de todas as formas. Antígona,
em conversa reservada com sua irmã Ismênia, relata que a partir das determinações
de Creonte, o soberano, o corpo de seu irmão Polinice deveria permanecer insepulto,
provocando a fúria dos deuses: “ele proibiu aos cidadãos que encerrem o corpo
num túmulo, e sobre este derramem suas lágrimas. Quer que permaneça insepulto,
sem homenagens fúnebres, e presa de aves carniceiras”. E continua: “disso faz ele
grande empenho, e ameaça a quem quer que desobedeça, de ser apedrejado pelo
povo” (SÓFOCLES, 2005, p. 6). Esta violência contra o corpo de Polinice era uma
afirmação do triunfo, glória e força sobre o culpado. Os suplícios eram prolongados
até mesmo após a morte dos oponentes, com a exposição dos corpos insepultos.
(FOUCAULT, 2006, p. 32).
Percebemos que Antígona se posiciona totalmente contra a decisão tomada
pelo rei, e ao compartilhar o veredito com sua irmã, demonstra que não irá obedecer
ao poder soberano de Creonte. Solicita que a irmã a ajude, que seja corajosa para
enfrentar os perigos que as esperam, mas Ismênia se reduz à sua condição de sujeito-
mulher incapaz de esboçar qualquer reação contra o rei. Não ajuda Antígona,
mas não a impede, deixando que vá sozinha. Assumindo uma posição sujeito de
resistência ao poder soberano, Antígona afirma: “Ele (o rei) não tem o direito de me
coagir a abandonar os meus!” (SÓFOCLES, 2005, p. 8). Antígona, então, ergue um
túmulo para seu irmão, indo de encontro às ordens soberanas.
Por ser considerado amigo de Tebas, guerreiro de grande coragem e lealdade
ao povo tebano, o novo rei ordena que Etéocles, um dos irmãos de Antígona, seja
sepultado e honrado com os ritos funérios destinados aos grandes heróis na nação.

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Ao contrário de seu irmão Polinice, que faleceu em batalha pela disputa do trono de
Tebas, Creonte decreta:

Quanto a seu irmão – quero dizer: Polinice, – que só retornou do exílio com
o propósito de destruir totalmente, pelo fogo, o país natal... declaro que
fica terminantemente proibido honrá-lo com um túmulo, ou de lamentar
sua morte; que seu corpo fique insepulto, para que seja devorado por aves
e cães, e se transforme em objeto de horror. (SÓFOCLES, 2005, p.16).

Creonte, a personificação divina e detentor do poder soberano, poder este


que se caracteriza de um ciclo do sujeito ao sujeito (FOUCAULT, 2008), mostra como
os indivíduos devem se sujeitar às suas ordens. No ato de decretar, pode assumir
a figura do monarca, impondo sua vontade entre os vivos e até mesmo entre os
mortos. Ao receber notícias sobre o ocorrido com o corpo de Polinice, ou seja, que
alguém teria tentado sepultar o morto e realizado os ritos funérios, Creonte quis
saber quem havia tido tamanha audácia.
Antígona, descoberta pelos soldados e, após tentar novamente enterrar
seu irmão com as próprias mãos, é levada ao trono do rei para ser julgada por sua
insubmissão, por ter ido à contramão das determinações do decreto real. Interpelada
por Creonte a respeito dos seus atos, responde: “Confesso o que fiz! Confesso-o
claramente!” (SÓFOCLES, 2005, p. 29). Nesse momento, Antígona, por meio da
confissão, onde o próprio acusado “toma lugar no ritual de produção da verdade”
(FOUCAULT, 2006, p. 35), se compromete em relação à acusação, ela produz
a verdade. A verdade não existe sem o poder, pois ela é produzida por meio de
coerções reguladas pelo poder e cada sociedade manifesta sua maneira de produzir
esta verdade. Para Foucault, “a verdade é um conjunto de regras segundo as quais
distingue o verdadeiro e o falso e se atribui ao verdadeiro, efeitos específicos de
poder”. (FOUCAULT, 2008, p. 11).
Questionada sobre as ordens do rei, Antígona declara que sabia das
determinações, mas que nem mesmo o rei Creonte teria autoridade para proibi-
la de dar um descanso para seu querido irmão Polinice, pois, no ponto de vista
dela, as ordens vinham do rei, que era um homem, e estavam em desacordo com
as leis divinas. Com coragem, ela expressa: “tais decretos, eu, que não temo o
poder de homem algum, posso violar sem que isso me venham a punir os deuses!”.
(SÓFOCLES, 2005, p.30-31). Antígona não teme as leis terrestres, somente as divinas,
caso venha a morrer antes do seu tempo, ou seja, de velhice, não irá lamentar, a
considerar quantas tragédias sua família havia enfrentado: “se te parece que
cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura!”.
(SÓFOCLES, 2005, p.31).

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Ao reafirmar suas ordens, Creonte, em conversa com seu filho Hêmon, noivo
de Antígona, declara: “cumpre pois, atender a ordem geral, e não ceder por causa
de uma mulher. Melhor fora, em caso tal, ser derribado do poder por um homem;
ninguém diria, então, que as mulheres nos venceram!”. (SÓFOCLES, 2005, p. 45).
Neste ponto da tragédia, o rei Creonte assume que prefere ser derrubado
ou destronado por homens do que ser levado a mudar de decisão a pedido de uma
mulher. Para ele, a maior vergonha para o seu governo seria ouvir o que um ser
desprovido de razão, como uma mulher, estava a lhe pedir. Considerando que as
mulheres foram criadas para servir os homens, lembremo-nos do mito de Eva e a
criação da mulher a partir da costela de Adão, ou de Aristóteles, quando considerava
que as mulheres não tinham o poder de pensar ou exprimir suas vontades e desejos,
pois seriam apenas homens incompletos, não pensantes. (PERROT, 2003, p. 14 e 20).
Em defesa de sua noiva e na tentativa de que ela fosse libertada, e não
morta, Hêmon ouve de seu pai, Creonte: “Bem se percebe que ele (Hêmon) se
tornou aliado de uma mulher!”. Ou ainda: “Criatura vil, que se põe a serviço de uma
mulher”! E segue: “Escravo de uma mulher, não me perturbes com rua tagarelice!”.
(SÓFOCLES, 2005, p. 49-50).
Antígona, condenada e levada para a sepultura, uma caverna de pedras,
ficaria longe do descanso eterno e ao mesmo tempo afastada dos vivos, mas não se
arrepende do que fez, e sabe que muitos dos seus amigos e membros da cidade de
Tebas concordam com sua atitude e não se expõem por medo de castigos e punições
vindas do soberano, por isso calam-se diante de tamanha injustiça. Levada a seu
destino final, ela declara:
Creio, porém, que no parecer dos homens sensatos, eu fiz bem. Com
efeito, nunca, por um filho, se fosse mãe, ou pelo marido, se algum dia lamentasse
a morte de um esposo, eu realizaria semelhante tarefa, contrariando proibição
pública! (SÓFOCLES, 2005, p.58).
Na Grécia antiga, como vimos, as mulheres não eram consideradas sequer
cidadãs, não tinham poder de voz ou qualquer tipo de expressão no reino, a não ser
a função de reproduzir e dar continuidade à espécie. Antígona não aceita as ordens
do soberano. Esses atos jamais poderiam ser realizados por uma simples mulher
e, mesmo após ter decretada sua prisão, para que permanecesse em sofrimento
(expressão do suplício imposto pelo poder soberano), fazer com que Antígona
morresse por falta de alimentos, mesmo em relação ao castigo da sua morte, pratica
ações sobre as ações dos outros (FOUCAULT, 2008). Ela prefere provocar sua morte
pelo enforcamento, tendo certo poder de decisão sobre a sua vida. Antígona resiste.

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Considerações finais
Sobre os poderes constituídos nos estudos de Foucault (2005), aplicando a
reflexão a respeito de poder soberano, poder disciplinar e relações de poder na obra
Antígona, de Sófocles, verificamos que esses se manifestam em qualquer sociedade,
afinal, o poder nos obriga a dizer sempre a verdade e somos “submetidos pelo poder
à produção da verdade” (FOUCAULT, 1999. p. 101).
Ao ser questionada pelo “suplício do interrogatório”, Antígona produz o
ritual da verdade. No momento da confissão, ela perde a batalha para seu inimigo,
no caso, o soberano, ao falar a verdade que o poder soberano queria ouvir, pois “o
poder não para de interrogar, a indagar, registrar, a busca da verdade” (FOUCAULT,
2005). Os sujeitos em todos os tempos estão sujeitados ao poder.
Estar sujeitada pelo poder soberano na figura do rei Creonte e “as múltiplas
sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social” (FOUCAULT, 1999,
p. 102), determinam os atos de todos, mas Antígona vai além da dominação. O
poder circula, funciona em redes, “nas suas malhas os indivíduos não circulam, mas
estão sempre em posição de exercer este poder ou de sofrer sua ação” (1999, p. 103).
Antígona também põe à mostra o seu poder, o fato de ir contra o poder soberano e
de decidir sobre sua vida, não se deixar conduzir, ela resiste.
Para Foucault (2009), a conduta das relações sociais e o poder de conduzir
essas condutas têm a função de estruturar o campo de ação dos outros. Apesar
de Antígona ser mulher, ela não se coloca no mecanismo de dominação imposto,
não se deixar coagir, entra em cena o poder e o jogo da liberdade. A liberdade só
existe porque os homens se deixam governar, conduzir e controlar. Antígona e suas
atitudes e a pretensa liberdade de ação entram em choque com poder. Creonte, ao
exercer o poder de punir e de colocar em prática o poder sobre os corpos, evidencia
que os poderes se exercem em rede, que os atos de uns refletem sobre os atos dos
outros. Ao determinar a morte de Antígona, Creonte sofre os reflexos de suas
atitudes, pois pouco depois disso presencia a morte de seu filho Hêmon, e recebe a
notícia do suicídio de sua esposa.

Referências
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. Michel
Foucault: Uma Trajetória Filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica.
2ª. Edição Revista. Tradução de Vera Porto Carrero e Gilda Gomes Carneiro. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2009.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
_____________. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 13ª
edição. Edições Loyola: São Paulo, 1996.
______________. Em defesa da sociedade. Curso Collège de France. (1975 -1976).
Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005.
_____________. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado.
25ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008.
_____________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete.
31ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2006.
PERROT, M. Os silêncios do corpo da mulher. In: MATOS, M. I. S; SOIHET, R. O
corpo feminino em debate. Organizadores: Maria Izilda Santos de Matos, Rachel
Soihet. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
SCHMITT-PANTEL,P. A criação da mulher: um ardil para a história das mulheres?
In: MATOS, M. I. S; SOIHET, R. O corpo feminino em debate. Organizadores: Maria
Izilda Santos de Matos, Rachel Soihet. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
SÓFOCLES. Antígona. Tradução J.B. de Mello e Souza. Versão para e-book. E-book
do Brasil.com, Fonte Digital: Digitalização do Livro em Papel. Clássico Jackson,
vol. XXII. 2005.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
DISCURSOS PÓS-DITADURA EM NICOLAU: NO
PASSADO UMA LIÇÃO PARA O PRESENTE
Scheyla Joanne Horst (PPGL Unicentro, CLC, Bolsista Capes)
Márcio Ronaldo Santos Fernandes (Unicentro, CLC)

Os temas Censura, Liberdade de Expressão e Democracia são recorrentes


nas edições do Nicolau, publicação da Secretaria da Cultura do Paraná que circulou
entre 1987 e 1996 e se configurou como um jornal cultural de relevância para o
Estado. Aqui, o nosso esforço está centrado em analisar como se deu o uso da
memória (TODOROV, 2000) pelo editor do jornal, o escritor Wilson Bueno, nos
editoriais do periódico. Por consequência, aliamos as nossas discussões à reflexão
sobre o tipo de Jornalismo (KUNCZIK, 2002) praticado pelo meio de comunicação
em um momento de consolidação da abertura política no país. Para buscar os nossos
objetivos, realizaremos uma análise documental (CELLARD, 2012) do corpus, que
foi obtido após leituras e releituras das edições de Nicolau, procurando a recorrência
dos assuntos citados no início deste texto.
Conforme André Cellard (2012, p. 295-314), a análise documental considera
pelo menos cinco etapas que são conduzidas criticamente pelo pesquisador. As
fases podem ser subdivididas da seguinte maneira: o contexto; o autor ou autores;
a autenticidade e a confiabilidade do texto; a natureza do texto e os conceitos-chave
e a lógica interna do texto. A análise é construída após tais verificações. Seguindo a
ideia de Michel Foucault em sua Arqueologia do Saber, pensamos que o pesquisador
deve escavar o seu objeto, ou ainda, tritura-lo para depois reconstruí-lo. Para
Cellard, é exatamente a ligação entre a problemática do analista em sintonia com o
que emerge do texto que “possibilita formular explicações plausíveis, produzir uma
interpretação coerente, e realizar uma reconstrução de um aspecto qualquer de uma
dada sociedade, neste ou naquele momento”. (CELLARD, 2012, p. 304).
Dessa maneira, com base no que nos apresenta Cellard, desenvolvemos
este texto inspirados nos critérios pertinentes a uma análise documental, num
processo de bricolagem qualitativa. Peça por peça, apresentamos os componentes
em destaque para que os caminhos da nossa investigação fiquem evidentes. Afinal,
assim como Foucault, consideramos que o documento não é matéria inerte, mas um
tecido vivo e pulsante.
Projeto aberto e democrático
Na história recente do Brasil, a abertura política ocorreu entre 1974 e 1988,
com a promulgação da nova Magna Carta, chamada de Constituição Cidadã. Em
julho de 1987, na estrutura do governo estadual de Alvaro Dias, nascia no Paraná
o Nicolau, uma proposta inovadora, sem fins lucrativos, financiada com dinheiro
público e interessada em reunir e divulgar a produção cultural em diversas
áreas – poesia, prosa, artes visuais, ensaios, pesquisas, reportagens, etc. – muito
silenciadas durante os “famosos vinte anos”, como ficaram conhecidas as duas
décadas posteriores ao Golpe de 1964. A inquietação dos envolvidos no projeto do
Nicolau era visível tanto na retórica quanto na postura da equipe, que publicava
mensalmente um jornal que registrava alta tiragem e distribuição, chegando a 160
mil exemplares em alguns meses. Os leitores de qualquer parte do mundo podiam
receber assinatura gratuita e a publicação também era encartada nos principais
jornais do Estado.
O Nicolau contemplava diferentes tipos textuais, como por exemplo
entrevistas, reportagens, relatos de experiência, colunas opinativas, trechos de
obras de ficção, poemas, cartas dos leitores e editoriais. O editorial se enquadra
no gênero jornalístico opinativo e é encontrado em quase todos os produtos da
imprensa com a finalidade de apresentar o material produzido e/ou professar a
fé do meio de comunicação, defendendo posicionamentos que não são abordados
abertamente em outros gêneros jornalísticos, como nas notícias, que se pretendem
mais objetivas e isentas. Neste trabalho, nós realizamos a leitura crítica dos editoriais
redigidos pelo editor da publicação, o escritor Wilson Bueno, analisando como se
deu o uso da memória conforme as reflexões de Tzvetan Todorov (2000). Logo no
primeiro número do jornal, Bueno afirmou: “Espelho e síntese do trabalho de nossos
criadores, Nicolau se quer assim, como registro vivo, inquieto e perturbador do tempo
em que vivemos”. (BUENO, 1987, n. 1, p. 2, grifo nosso).
Marcio Renato dos Santos, em relato à edição especial do Cândido32 a
respeito da trajetória do Nicolau afirma que o jornal fez parte do legado de Bueno,
que faleceu em 2010 vítima de assassinato. Para Santos, na condução do suplemento
de cultura aquele escritor conseguiu experimentar literariamente, compartilhando
produções próprias com o público e também teve a chance de dar visibilidade a
vozes pelas quais tinha admiração – como a do amigo Paulo Leminski, bastante
participativo no periódico. “Bueno esteve à frente do Nicolau até a edição 55 e, na
60ª edição, em 1997, o suplemento deixou de circular. Os livros mais elaborados
e maduros, pelos quais o autor conhecido e reconhecido, surgiram após aquela
32. Atual publicação da BPP (Biblioteca Pública do Paraná). Disponível no site: www.candido.bpp.
pr.gov.br.

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temporada do Nicolau”. (SANTOS, 2014, p. 33). Em textos sobre sua biografia,
Wilson Bueno é chamado de escritor, poeta, jornalista, cronista ou ensaísta. Entre as
suas obras de maior destaque estão: Bolero’s bar (1986), Mar Paraguayo (1992), Amar-
te a ti nem sei se com carícias (2004) e Cachorros do Céu (2005).
A trajetória completa do Nicolau abrange 60 edições. Todavia, é no recorte
dos dois anos iniciais que a efervescência é mais perceptível, tendo em vista que,
com o passar do tempo, aconteceram algumas mudanças governamentais que
acabaram interferindo na dinâmica do jornal e desmobilizando a equipe inicial.
Demissões consideradas arbitrárias e a instalação de um conselho editorial foram
motivos preponderantes para que, paulatinamente, o meio de comunicação se
tornasse mais convencional e menos rebelde. O nosso acesso aos documentos foi
facilitado pelo fato de que, em 2014, a Biblioteca Pública do Paraná lançou todos
os exemplares tanto em seu site, com os arquivos digitalizados na íntegra, quanto
em impressos fac-similares33, isto é, reproduzidos dos originais, que também são
encontrados na BPP, em Curitiba. Conforme o atual secretário de Estado da Cultura,
a ideia de reimprimir o jornal se deu em virtude da relevância do projeto até os dias
de hoje. Paulino Viapiana chama o Nicolau de “um canal de difusão dos múltiplos
pensamentos que, enfim, se revelavam pós-ditadura” (BPP, 2014, online).
Os editoriais geralmente não carregam a indicação do autor, afinal, como já
afirmamos aqui, procuram transparecer uma visão de mundo que é compartilhada
pelos proprietários do meio de comunicação ou por um grupo de pessoas
financiadoras. À contramão da tendência, Wilson Bueno colocava o seu nome logo
em baixo dos seus textos, que geralmente eram breves, com média de três a quatro
parágrafos e sempre localizados na segunda página do jornal, junto do expediente
– que é o espaço destinado aos dados mais técnicos da publicação, como equipe
fixa, local de impressão, tiragem e nomes dos dirigentes (no caso, o governador do
Paraná e o secretário de Estado da Cultura). Logo no primeiro número, Bueno trata
de chamar o Nicolau de um “projeto aberto e democrático”.
Nos parágrafos acima, de maneira objetiva, buscamos apresentar o contexto
em que o Nicolau surgiu no Paraná; o autor dos editoriais que são objeto deste estudo,
o escritor Wilson Bueno; a natureza dos textos que serão analisados a seguir, bem
como a autenticidade que eles têm. Dessa forma, registramos os principais aspectos
que compõem a fase preparatória para uma análise documental no ponto de vista
de Cellard (2012). A seguir, vamos partir para as análises e, como finalização,
apresentaremos os conceitos-chave que relacionamos ao nosso trabalho.

33. Disponíveis no site: http://goo.gl/p6f1xC.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
Construção da democracia
A preocupação em colaborar ativamente para a construção da democracia no
país, após anos de opressão e tortura aos que pensavam diferente do regime político
vigente, é perceptível nos editoriais selecionados para análise. O editor Wilson
Bueno se expressava, em alguns textos, de maneira poética, abusando das metáforas
na apresentação dos conteúdos que figuravam nas páginas do exemplar ou mesmo
ponderando sobre algum aspecto pertinente do momento. Em outras inserções,
todavia, era bastante objetivo, como se necessitasse reforçar posicionamentos éticos
e esclarecer críticas. Esses ímpetos e contradições são revelados por um dos membros
da equipe, Rodrigo Garcia Lopes, em relato ao Cândido: “Éramos independentes,
ambiciosos, criativos demais. O Bueno e a equipe sofriam muita pressão. Política,
institucional, ideológica”. (LOPES, 2014, p. 27).
Uma inquietação recorrente era a de reafirmar o compromisso maior do
projeto com o interesse público, mesmo inserido em uma estrutura governamental,
sob o comando de uma administração transitória. Inevitavelmente, após o
período da repressão, havia desconfiança por parte dos leitores sobre as reais
intenções do governo. Sabendo disso, Bueno faz questão de afirmar, já na sexta
edição do jornal: “Jamais, em nenhum momento, até aqui, da trajetória Nicolau
sofremos qualquer tipo de pressão, procedente de qualquer instância ou escalão
do Governo” (BUENO, 1987, n. 6, p. 2, grifo nosso). É interessante perceber que
o uso da expressão até aqui indica a instabilidade existente, ressaltando que a
democracia é uma construção diária e coletiva. Ele completou o pensamento acima
mostrando o seu posicionamento pessoal como editor da publicação: “Em caso
contrário, nos recusaríamos a subescrever a publicação que se quer um espaço
aberto e democrático, única forma capaz de refletir o hoje e o agora da criatividade
de nossa gente”. (BUENO, 1987, n. 6, p. 2, grifo nosso).
Já na edição que lançou o jornal, Bueno afirmou que o Nicolau nascia com
a missão de reunir variantes do pensamento, num esforço coletivo e também
contínuo para o desenvolvimento humano por meio da construção coletiva
de um país essencialmente democrático. O fato de o meio de comunicação ser
financiado pelo Estado, e não independente ou integrante da chamada imprensa
nanica, era um ponto sempre abordado. Ainda na primeira edição ele faz questão
de dizer que não seria tarefa fácil, mas permeada por muitas lutas: “Isto, numa
publicação oficial, sob os auspícios do Estado, dá bem a medida do esforço em
que todos estamos empenhados pela construção da democracia brasileira”. (BUENO,
1987, n. 1, p. 2, grifo nosso).

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Dando seguimento ao tema, na edição de número 18 ele ressalta a importância
de olhar para trás criticamente com vistas à construção do futuro. Duas palavras
usadas por Bueno mostram a necessidade de evidenciar o nome mais próximo dos
acontecimentos: tirania e tortura. Não há meias palavras ou amenizações em seu
editorial, o que ele deixa claro quando insere a expressão dossiê sinistro da repressão
entre nós para nomear a obra que foi apresentada em reportagem naquela edição do
Nicolau, composta por testemunhos de vítimas da Ditadura Militar no Estado:

Re-olhamos lá atrás: foi duro e mártir a resistência à mais recente tirania


brasileira e contamos, entre perdas e danos, o saldo bem trágico de nossa
queda-de-braço com o futuro. Pela primeira vez, o Estado patrocina o
dossiê sinistro da repressão entre nós, através do livro de Miton Ivan Heller
(Resistência Democrática – A repressão no Paraná), objeto de ampla matéria
nesta edição – da visão particular e pessoalíssima de Nilson Monteiro ao
depoimento das vítimas no país da delação e da tortura. (BUENO, 1988, n.
18, p. 2).

Ainda na sequência discursiva acima, Bueno chama o Brasil de “país


da delação e da tortura”, num exercício perceptível de trazer a lembrança os
acontecimentos recentes, para que eles não caíssem no esquecimento, o que faria
com que perdessem o impacto. Re-olhar, para o autor, supõe não apenas sofrer
novamente, mas também ver nos acontecimentos uma lição para o futuro. E, como
nossas observações constatam, Bueno acreditava que o amanhã não deveria ser
apenas outro nome para o hoje.
Em vários textos, o editor também adota um tom mais otimista. Com
o feedback positivo dos leitores registrado por meio de manifestações (cartas,
telegramas, telefonemas) constantes, a equipe se sentia fortalecida para continuar
seguindo à contramão do sistema e do tipo de Jornalismo convencional que era
praticado à época (e continua sendo exercido até os dias de hoje pela grande mídia).
Percebemos tal aspecto no manifesto de Bueno inserido no editorial da edição nº 4:

A trajetória do Nicolau, até aqui, já nos permite dizer, sem erro, que somos
muitos. Mais do que a nossa primeira intuição deduziu, mais do que supôs
a nossa (vã) expectativa. A julgar pelas cartas, telegramas, telefonemas ou
pelos numerosos textos espontaneamente chegados à redação, podemos
afirmar que somos muitos – nos bairros, nas cidades, nos Estados, no País.
E é, sobretudo, esta solidariedade de raiz que funda, alimenta e constrói
os nossos melhores propósitos. Considerado, por gente rigorosa, como
saudável inventiva na história das publicações culturais do Brasil, Nicolau
continua aferrado à ideia de que só a pluralidade de pensamento será capaz
de refletir, por inteiro, a nossa singularidade. E nem poderia ser de outra

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
forma, se estamos sinceramente empenhados na construção da democracia
brasileira. (BUENO, 1987, n. 4, p.2).

Mais uma vez Bueno recorre ao até aqui, mostrando que a liberdade de
expressão no Brasil é, de fato, uma conquista diária e que corre risco a cada amanhecer
– ainda mais em um jornal inserido na estrutura estatal. A mesma solidariedade que
frutificou durante o período de repressão no país, na opinião dele, seria capaz de
incentivar o respeito às opiniões divergentes. Nas palavras dele: “só a pluralidade
de pensamento será capaz de refletir, por inteiro, a nossa singularidade”. Ou seja,
no ponto de vista do editor, apenas uma visão (geralmente, a oficial) não consegue
contar toda a história. Novamente, no encerramento do texto, ele retoma a missão do
Nicolau de colaborar de alguma forma para a construção da democracia brasileira.

No passado uma lição


Muitos pesquisadores afirmam que eventos traumáticos, como as Guerras
Mundiais, o nazismo e os regimes ditatoriais ao redor do mundo nas últimas
décadas ocasionaram um boom da memória na área acadêmica. Entre os intelectuais
preocupados com o assunto está a argentina Beatriz Sarlo, que realiza uma
investigação interessante focada na guinada subjetiva atrelada aos testemunhos
de vítimas, por exemplo, e às complexidades existentes quando se considera
tais relatos como verdades inquestionáveis. “Discursos testemunhais, sejam
quais forem, são discursos e não deveriam ficar confinados numa cristalização
inabordável”. (SARLO, 2007, p. 47).
Por outro lado, a repressão também causa outro extremo: o silenciamento da
memória, fazendo com que ela migre para outros locais para resistir. Ao refletir sobre
este campo movediço, o filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov realiza uma
interessante relação que, consideramos, repercute em nosso corpus. O pesquisador
apresenta pelo menos dois usos distintos da memória (por historiadores e, ao nosso
ver, também pelos meios de comunicação): o literal e o exemplar. Enquanto o
literal está atrelado a um comportamento mais passivo, isto é, lembrar como culto
ao passado; o exemplar pressupõe ação: emprego pedagógico da lembrança com
a finalidade de que ela seja útil ao presente e consiga evitar que o trauma ocorra
novamente no porvir. Sendo assim, a memória exemplar “generaliza, mas de maneira
limitada; não faz desaparecer a identidade dos acontecimentos, só os relaciona
entre si, estabelecendo comparações que permitem destacar as semelhanças e as
diferenças”. (TODOROV, 2000, p. 45).
Nesse contexto, consideramos que o Nicolau, através dos seus textos
editoriais, realizava um bom uso da memória, tentando tirar do passado – àquela

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época bem recente – elementos para que a repressão materializada pela Ditadura
Militar no Brasil não se repetisse. Tal perspectiva adotada pelo editor Wilson Bueno
no comando da equipe vai ao encontro, também, da definição de Jornalismo de
Desenvolvimento traçada pelo pesquisador Michael Kunczik (2002). Isso porque,
com base em tal postura, o jornalista tem uma atitude diferenciada, buscando
realizar um trabalho que possa ser encarado como uma mão orientadora em um
aparente caos social. Inevitavelmente, os profissionais são éticos, engajados e
preocupados com questões preponderantes da cidadania. Afinal, o jornalista de
Desenvolvimento “precisa estar convencido de que o futuro da humanidade não
está determinado unicamente pelo seu passado. O futuro deve ser visto como algo
capaz de ser moldado ativamente”. (KUNCZIK, 2002, p. 351).
Tais pontos de vista, então, convergem para aquele apresentado por Bueno
na edição inaugural de Nicolau, publicada em julho de 1987, há quase 30 anos:
“Impõe-se, para nós ao menos, um único e inextricável compromisso: o de contribuir,
ainda que modestamente, para o progresso humano, sem o que a vida de um homem
não faz sentido, nem o seu destino”. (BUENO, 1987, n. 1, p. 2, grifo nosso).

Referências
BUENO, Wilson. Editorial. Nicolau. Curitiba, julho, 1987, ano 1, n. 1, p. 2.
______. Editorial. Nicolau, Curitiba, outubro, 1987, ano 1, n. 4, p. 2.
______. Editorial. Nicolau. Curitiba, setembro/outubro/novembro, 1989, ano 3, n. 27, p. 2.
______. Editorial. Nicolau, Curitiba, mai. 1988, ano 1, n. 11, p. 2.
BPP. Biblioteca Pública do Paraná. Jornal Nicolau ganha edição fac-similar. 2 de
setembro de 2014. Disponível em: <http://www.bpp.pr.gov.br/modules/noticias/
article.php?storyid=554>. Acesso em: 23 ago. 2016.
CELLARD, A. A análise documental. In: A pesquisa qualitativa: enfoques
epistemológicos e metodológicos. Tradução: Ana Cristina Nasser. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2012.
KUNCZIK, M. Conceitos de Jornalismo: Norte e Sul: manual de Comunicação. São
Paulo: Edusp, 2002.
LOPES, R. G. Com quantos paus se fazia um Nicolau. Cândido, Curitiba, maio de
2014, n. 34, p. 26-27.
SARLO, B. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire
d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras/Belo Horizonte: UFMG, 2007.

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SANTOS, M. R. O jornal também faz parte do legado do escritor. Cândido, Curitiba,
maio de 2014, n. 34, p. 32-33.
SOBOTA, G. Bueno também deixou sua marca no jornalismo. Cândido, online.
Disponível em: <http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.
php?conteudo=273>. Acesso em: 09 jun. 2016.
TODOROV, T. Los Abusos de La Memoria. Tradução de: Miguel Salazar. Buenos Aires/
Barcelona: Editorial Paidos, 2000.

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A REPRESENTAÇÃO DO MST NO JORNALISMO34: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA DE REPORTAGENS DOS JORNAIS CORREIO DO
POVO DO PARANÁ E CORREIO DO ESTADO
Silvana Apª da Silva (UNIOESTE/SEED)
Cleverson Lucas dos Santos (UNIOESTE/SEED)

Introdução
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) historicamente
tem sido representado no Brasil pelos principais veículos de comunicação de
circulação nacional e local, como uma organização ilegal e criminosa. Isto acontece
de tal forma, que tem-se cristalizado no imaginário popular discursos advindo
destas formações discursivas, reflexo das opiniões deturpadas, que quase sempre
atendem aos interesses dominantes produzidos pela imprensa.
Segundo Orlandi (1997) todo dizer é ideologicamente marcado, sendo através
da língua que a ideologia se materializa nas palavras dos sujeitos. O que significa
que não há enunciado neutro ou despossuído de significados pré-estabelecidos: uma
vez que, embora possamos ter a ilusão de sermos a origem do que dizemos, somos
na realidade sua retomada, a reprodução de sentidos pré-existentes. Nesse sentido,
mesmo que não explicitamente, os sujeitos ao reproduzirem a ideologia hegemônica,
que são as ideias de uma classe dominante, estão atendendo aos interesses desses
grupos sociais, e de certa forma, são também os interesses do Estado, visto que este
é permeado em sua composição por interesses hegemônicos.
Segundo os princípios liberais, o Estado é uma entidade separada da
sociedade civil, e, portanto deveria ser independente de afinidades ideológicas.
Ou seja, sua atuação seria de ordem impessoal, cuja responsabilidade seria o
estabelecimento de leis que garantam a ordem e a resolução dos conflitos sociais.
No entanto, a propriedade privada ao constituir-se como centro da sociedade
civil, diferenciando os indivíduos, grupos e classes sociais, acaba por alocar
ao Estado uma função restritiva, pois ao ser o garantidor do direito de posse da
propriedade, assume uma condição política como defensor, apenas, dos direitos
dos indivíduos proprietários. Ocorre uma sobreposição dos interesses econômicos
das classes proprietárias sobre o Estado e a partir deste, um consequente processo
de reprodução desses interesses, por meio da difusão promovida por instituições
sociais, que são também aparelhos ideológicos do Estado como as escolas, igrejas e
a própria imprensa, validando-os nestas diferentes formações discursivas.
34. Embora tenhamos adotado no título o termo jornalismo, nossa análise no presente trabalho se refere apenas
a um número limitado de reportagens que foram tomadas como estudo.
Segundo Chauí (2000, p.532) longe de diferenciar-se da sociedade civil e de
separar-se dela, longe de ser a expressão da vontade geral e do interesse geral, o
Estado é a expressão - legal-jurídica e policial - dos interesses de uma classe social
particular, a classe dos proprietários privados. Para a autora, o Estado é a maneira
pela qual a classe dominante de uma época garante sua dominação sobre o todo
social, sendo “expressão política da luta econômico social das classes, amortecida
pelo aparato da ordem (jurídica) e da força pública (policial e militar)”. Para Chauí,
(2000) o Estado não é, mas aparece como se fosse, um poder público distante e
separado da sociedade civil.
Nessa conjuntura, a formação discursiva dominante naturaliza e omite
as desigualdades sociais que passam a ser concebidas de modo acrítico como
processo natural e não como resultado histórico. Quando setores progressistas da
sociedade se colocam na posição de enfrentamento das condições de desigualdade
historicamente instituídas pelo sistema hegemônico capitalista, acabam sendo
reprimidos e ilegalizados, por fugirem da ideologia previamente aceita, tendo sobre
si estereótipos que levam ao processo de criminalização destas organizações. Aquilo
que foge aos ditames deve ser combatido. É o que acontece com os movimentos
sociais, principalmente o MST, que no caso brasileiro, tem sua imagem vinculada a
atos de baderna e vandalismo.

O histórico problema da reforma agrária no Brasil e o MST


A questão agrária no Brasil é historicamente marcada por um processo de
concentração fundiária. Desde o período colonial através das capitanias hereditárias
e das sesmarias, a terra passou a ser distribuída tendo em vista apenas os interesses
da Coroa, beneficiando aqueles que tinham condições financeiras e impedindo que
ex-escravos e trabalhadores rurais tivessem direito a posse desta. Com a criação
da primeira Lei da Terra em 1850, lei que garantia o direito a propriedade privada
da terra, a concentração fundiária tornou-se ainda mais acentuada, pois somente
poderia ter acesso quem pudesse pagar à Coroa o valor estipulado. Para o MST,
nesta lei se encontra uma prática comum ao latifúndio brasileiro: “a grilagem de
terras ou a apropriação de terras devolutas através de documentação forjada - que
regulamentou e consolidou o modelo da grande propriedade rural e formalizou as
bases para a desigualdade social e territorial que conhecemos” (MST, 2010, p.8).
Com a abolição da escravidão em 1888, a tática adotada pela monarquia
para manter o Brasil dentro do mercado capitalista de produção e também dispor
de mão-de-obra para o trabalho na agricultura foi o regime de colonato. Através
de propagandas, imigrantes europeus foram incentivados a vir para o Brasil

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entre o final do século XIX e início do século XX. Italianos, alemães, espanhóis
dentre outros, recebiam lotes do governo para desenvolver monoculturas ou iam
trabalhar em grandes fazendas de café, em troca de salários, moradia e, às vezes,
recebiam uma pequena parte da produção. O incentivo a imigração deixou ainda
em piores condições os negros, que despossuídos da terra, só poderiam sobreviver
da venda do seu trabalho.
Dessa forma, temos a formação do campesinato brasileiro constituído
por trabalhadores rurais advindos da população composta da miscigenação entre
negros e índios, negros e brancos, brancos e índios que formariam o povo mestiço
e de trabalhadores oriundos da imigração. Estes trabalhadores passaram a se
organizar de diversas formas para garantirem sua permanência no campo e meios
de sobrevivência para suas famílias. Alguns se tornaram arrendatários, boias-frias,
meeiros, etc. Neste período também ocorreram vários movimentos de resistência35,
mas somente após a segunda metade do século XX, a reforma agrária passou a ser
vista como um problema nacional, sendo abordada no âmbito político. Para tanto,
tiveram importância “as ligas camponesas36 no nordeste e os movimentos liderados
por posseiros no sudoeste do Paraná na década de 1950, entre outros que colocaram
os camponeses no cenário político” (CERICATO, 2008, p. 21).
O MST é resultado de uma série de protestos que vinham acontecendo entre
as décadas de 1970 e 80, como marco de lutas democráticas contra o regime ditatorial
instalado no Brasil em 64. Conforme Medeiros (1989), a origem dos sem terra foi
à exclusão de todo um conjunto de trabalhadores do processo de modernização
pelo qual passou a agricultura do Sul do país, e que resultou na impossibilidade
de reprodução social de setores de pequenos agricultores familiares. Formalmente
instituído em janeiro de 1984 na cidade paranaense de Cascavel, o MST desde
sua fundação até os dias de hoje, se constitui como uma importante organização
coletiva articulada a três objetivos principais: “lutar pela terra, lutar pela reforma
agrária e lutar por mudanças sociais no país” (MST, 2010, p.9). Este movimento
pode ser compreendido como uma articulação política realizada por um grupo
de trabalhadores que convergiram em um encontro nacional e que explicitam no
próprio nome dado ao movimento, uma condição social da qual são vítimas seus
proponentes: a de Ser Sem Terra.

35. A história brasileira está repleta de manifestações e conflitos campesinos: revoltas como a de
Canudos (1897, nordeste brasileiro) e do Contestado (1912-1916, sul do Brasil) marcaram significa-
tivamente a questão agrária do país.
36. As ligas camponesas eram movimentos de camponeses em prol da reforma agrária. Iniciado em
1954 funcionaram basicamente nos estados do Nordeste brasileiro, (Pernambuco, Paraíba, Ala-
goas). Esses movimentos existiram até 1964, quando passaram a ser colocados na ilegalidade,
sendo perseguidos pela Ditadura Militar.

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Na década de 1990, o MST já era considerado o maior movimento social
da América Latina e a reforma agrária tinha conseguido espaço para ser debatida
dentro da agenda política do país. Após os anos 90, o movimento adquiriu fama
internacional como um dos principais críticos das políticas neoliberais e tornou-
se uma voz em defesa dos interesses do setor agrário. Atualmente o MST ganhou
espaço também em redes internacionais como o Fórum Social Mundial e a Via
Campesina, uma coalização de associações de lavradores familiares em 69 países
(SOUZA; SILVA, 2013, p. 179).
O papel incisivo de reivindicação travado pelo MST na luta pelo processo de
redistribuição de terra tem sido alvo de defesas e aclamações por parte de integrantes
da esquerda política, mas também tem sido objeto de hostilidade e deturpações
por parte da ala conservadora da política nacional, que estereotipa como atos de
vandalismo e terrorismo as ocupações em massa organizadas pelo movimento
nos latifúndios. As duas interpretações sobre o movimento se fundam nas práticas
adotadas e nos ideários revolucionários estipulados pela organização, que em sua
maioria é composta por brasileiros de baixo poder aquisitivo provenientes muitas
vezes de regiões distintas do país/estado e com experiências variadas de vida.
Longe de ser composto por indivíduos santos e inocentes, também não o é por um
conglomerado de bandidos.
É notório o fato de a grande maioria da população ter conhecimento sobre
o MST, seus objetivos e ações, apenas por informações midiáticas. Tais construções,
conforme aponta Pêcheux (1998) provoca a formação de um mecanismo que tende a
apresentar o acontecimento midiático produzido como algo único, desprezando suas
variações e contradições. Isso implica na resistência por parte da população brasileira
em reconhecer a importância do movimento social e do próprio projeto de reforma
agrária, tomando-o apenas como aquilo descrito e media(tiza)do pela mídia.

Discussão das reportagens


Para a composição deste trabalho foram selecionadas quatro notícias
veiculadas entre os meses de abril a agosto de 2016 nos jornais Correio do Povo do
Paraná e Correio do Estado, presentes nos sites destes veículos de comunicação.
Três delas foram extraídas do Jornal correio do Povo do Paraná e uma do Jornal
Correio do Estado. Nesta análise, baseados nas propostas de AD de Pêcheux e
Orlandi utilizaremos os seguintes critérios: a) a relação entre o discurso e a
ideologia; b) o dito e o não-dito; c) o fato de o significado depender de quem e
de onde se enuncia; d) e a importância do interdiscurso, da memória, do pré-
construído (SOUZA; SILVA, 2013, p. 182).

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As manchetes são os seguintes:
10/07/2016 – Festa do MST para celebrar invasão vira ato contra governo no
PR – Jornal Correio do Estado;37 18/05/2016 - MST volta bloquear BR 277 em Nova
Laranjeiras – Jornal Correio do Povo do Paraná;3808/08/2016 – Famílias são expulsas de
acampamento pelo MST – Jornal Correio do Povo do Paraná; 3929/07/2016 - PF concluiu
que Polícia Militar agiu em legítima defesa durante confronto com MST em Quedas do
Iguaçu – Jornal Correio do Povo do Paraná;40
Em “Festa do MST para celebrar invasão vira ato contra governo no PR”,
noticiada na página do jornal Correio do Estado os termos utilizados evocam o
discurso de criminalização do MST. Ao utilizar “invasão” constrói-se uma imagem
de contravenção à legislação e de reforço do estereotipo de baderneiros de seus
integrantes. Acrescente-se que “festa”, assume tom provocativo, visto ser uma
invasão e ainda que, se coloca contra o Estado constituído. Deixa-se de lado o ato
cultural e político organizado pelo movimento, para levar o leitor apenas a uma
leitura, a da FD em que se insere o jornal, que diz que o MST estaria comemorando
o “próprio crime de invasão” e de que isto ainda teria se convertido em um ato de
politicagem partidária, o que nesta percepção não deveria ser possível.
Assim, a FD em que se insere o jornal, reforça a reprodução de um sentido
cristalizado sobre o MST, construída e mantida pela própria mídia, constituindo-
se como memória e o já-dito sobre o movimento. A narrativa se constrói sob a
perspectiva da ilegalidade das ações do MST, em que seus integrantes seriam todos
criminosos. No texto, o dito criminalizador desconsidera o não-dito, que trata da
perspectiva cultural e política de agrupamento de pessoas em torno de uma causa
comum. Condena-se apenas, descaracterizando os feitos do movimento desde sua
fundação até a atualidade. Em “Comemorar um ano da invasão de uma área da
empresa Araupel” e “se transformou em um evento contra o governo interino de
Michel Temer (PMDB)” reforça-se a perspectiva da FD dominante de que o direito
à propriedade privada é algo intocável. É uma empresa e, assim sendo, não deve
ser questionada. Nesse ponto, não é questionada, porém pela empresa jornalística
a maneira com que ocorreu a aquisição e posse dessas mesmas terras. O que
prevalece é a condenação ao MST em ter invadido uma propriedade da empresa

37. Disponível em: http://www.correiodoestado.com.br/brasilmundo/festa-do-mst-para-celebrar-in-


vasao-vira-ato-contra-governo-no-pr/281972/ Acesso em: 15 de agosto de 2016.
38. Disponível em: http://www.jcorreiodopovo.com.br/noticia/mst-volta-bloquear-br-277-em-nova
-laranjeiras Acesso em: 15 de agosto de 2016.
39. Disponível em: http://www.ejornais.com.br/jornal_correio_do_povo.html Acesso em: 15 de agos-
to de 2016.
40. Disponível em: http://www.jcorreiodopovo.com.br/noticia/pf-conclui-que-policia-militar-agiu
-em-legitima-defesa-durante-confronto-com-mst-em-quedas-do-iguacu Acesso em: 15 de agosto
de 2016.

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(ato ilegal) e que isso não é uma ocupação de terras visando à reforma agrária,
por serem estas, de titulação questionável diante da justiça. Além disso, é trazida a
questão partidária de que o movimento permeado por um partido político estaria
se utilizando da ocupação para fazer campanha partidária contrária ao governo do
Paraná, incitando a violência.
No espaço destinado às lideranças do movimento, o que se busca é falsear
a intencionalidade existente dando voz a todos os envolvidos. Porém, o recorte e a
seleção destes são feitos justamente para justificar a proposta inicial do texto e fechar
a interpretação. Há um “ajuste do dizer a seus objetivos políticos, trabalhando o
jogo de imagens” (ORLANDI, 1997, p.41).
Já em “MST volta bloquear BR 277 em Nova Laranjeiras”, o verbo “volta”
aponta que essa ação já foi realizada outras vezes (é recorrente?). Não há espaço para o
contraditório. No dito não se explicam os porquês dos fechamentos. Já há, no entanto,
uma preocupação a ser posta para o leitor: o que fazer diante do fechamento. A notícia
é construída sob a omissão de informações, pois, não evidencia as causas do MST nem
analisa as condições de vida dos trabalhadores do campo brasileiro ou da necessidade
prevista em lei de que a terra cumpra uma função social (SOUZA; SILVA, 2013).
O jornalismo se constitui para validar a FD em que está inserido, na seleção,
indução e omissão das informações para formação de opinião dos leitores. Não há
discurso sem as suas condições de produção, e assim sendo, não há neutralidade. No
caso “Famílias são expulsas de acampamento pelo MST”, o que se veicula é que há uma
ruptura dentro do próprio movimento e, ainda, que há um processo violento nisso:
expulsar alguém/algo é uma ação que exige uso da força. Isso prejudica a imagem
do movimento. Mas, não são incorporados elementos que apontem as circunstâncias
em que isso ocorre. A notícia é construída apenas sobre a perspectiva dos expulsos,
implicando a denúncia sobre o movimento como um todo, não aos fatos ocorridos
em determinado acampamento. Reforçando a imagem negativa do movimento e não
sobre os responsáveis em específico. Há uma produção de imagens e sentidos sobre
os sujeitos, e não somente sobre o objeto do discurso dentro de uma conjuntura sócio-
histórica que induz a uma rotulação de pensamentos sobre estes (ORLANDI, 1997).
No texto está presente o reforço à criminalização do MST, com um recorte
do relato do denunciante: “O MST hoje trabalha apenas politicamente. Não
queremos isso, queremos apenas cuidar da nossa terra, plantar nossas lavouras e
criar nossos animais”. Constrói-se um discurso, como se fosse possível agir sem
estar permeado pela política. Toda ação é política. São os sujeitos dentro de suas
FDs. Mas, aí contraditoriamente é permitido agrupar-se sob outra denominação (a)

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política: “o objetivo das famílias é fundar um novo movimento, sem vinculação
política: o Movimento Camponês Cantuquiriguaçu”.
O reforço na partidarização recai sobre apenas uma denominação
contestada pela mídia. Outros partidos, porém, estão livres para agrupar-se e
promover a “verdadeira” política. Não há um questionamento dos porquês do
MST não poder ser um movimento político partidário. Aponta-se que, somente
este movimento utiliza os integrantes de suas bases como massa de manobra para
alcançar interesses particulares de suas lideranças. Outros movimentos, por sua
vez, não fariam isso? Assim, o discurso jornalístico é construído, de maneira que
esteja fechado para outras leituras, pois segundo Orlandi (1997) no discurso existem
relações de sentido que permitem a antecipação do impacto das mensagens ditas,
ou seja, é possível antecipar-se quanto ao sentido que as palavras produzem, tendo
em vista que o direcionamento do discurso na argumentação visa à produção de
efeitos no interlocutor.
Por fim, em “PF concluiu que Polícia Militar agiu em legítima defesa
durante confronto com MST em Quedas do Iguaçu”, a manchete traz o imaginário
que se tem sobre a função da polícia no combate ao crime, de combate aos
bandidos, e a validação do crime cometido (legítima defesa). A legítima defesa
é a prerrogativa jurídica que permite matar outra pessoa, se defender. É uma
construção que coaduna com as FDs da mídia e do próprio Estado, apresentando
os elementos que foram considerados ao longo do desenvolvimento do processo de
investigação. Contudo, não são expostos os relatos dos integrantes do movimento
que questionam o parecer tomado.

Considerações Finais
Apesar das manifestações do campo fazerem parte da constituição da
sociedade brasileira e representarem os inúmeros e graves problemas que marcam
a posse da terra no Brasil, as mesmas são constantemente apresentadas ao público
na mídia sob prisma da FD hegemônica, que criminaliza os movimentos sociais,
colocando na ilegalidade suas ações. Isso ocorre justamente porque questionam
o status quo imposto. A mídia impressa e televisiva tem um papel fundamental
nesse processo. Pois, atendendo a esses interesses vigentes, mantém grande
parte da população desmobilizada e desmotivada a realizarem ações como estas.
Mantém assim, através da (des)informação apresentada, uma concepção estreita e
formatada da realidade em que vivem. Constrói-se uma visão deturpada e negativa
dos movimentos sociais para que não existam outras concepções sobre a realidade
(excludente) em que a população como um todo está inserida.

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Referências
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ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes, 1997.
MST. Lutas e conquistas. São Paulo: janeiro de 2010.
PECHEUX, M. O discurso: Estrutura Ou acontecimento. São Paulo, Pontes, 1998.
SOUZA, M.; SILVA, U. O MST no jornal hoje uma análise discursiva. Estudos
lingüísticos. Campinas, 2013, 177-191.
CERICATO, K. A. S. Os princípios organizativos e a proposta pedagógica do MST:
contradições de sua materialização na Escola Estadual Iraci Salete Strozak. 2008.
215f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós Graduação em
Educação, Universidade Estadual de Londrina. 2008.
MEDEIROS, L. S. História dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Fase, 1989.

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POESIA E RESISTÊNCIA EM XOSÉ LOIS GARCÍA
Sirlei da Silva Fontoura (PG-UNICENTRO)41
Cláudio José de Almeida Mello (UNICENTRO)42

Resumo: A partir dos contextos histórico, político, social e literário em que se ins-
creve Xosé Lois García, o presente trabalho objetiva explicitar a dimensão política
traduzida esteticamente em sua poesia. A análise incide sobre um discurso de resis-
tência que caracteriza um momento histórico da Galiza, o Franquismo, inscreven-
do-se o autor na tradição da literatura engajada, a partir da constituição de um su-
jeito que expressa uma denúncia social por meio da literatura. O poeta representa,
portanto, uma tomada de posição diante dos problemas concretos, relacionada aos
grandes problemas da época, imersa pelas injustiças sociais. Trata-se de um traba-
lho de análise crítico-analítica de material bibliográfico embasado em referencial
teórico de crítica literária, engajamento e literatura, dominação e resistência à luz de
autores como Bosi (2002), Torres (2015), Denis (2002), Cândido (2014), Moura (2009).
Palavras-chave: Literatura galega. Poesia e resistência. Engajamento político.

Introdução
Xosé Lois García é um dos grandes escritores representativos da literatura
galega. Nascido em 1945, durante o período ditatorial, o escritor foi testemunha de
uma realidade injusta e subversiva devido à opressão e exploração dos burgueses,
bem como a agressão dos falangistas e franquistas na Galiza.
Com o seu trabalho ainda em curso, o escritor se dedica a vários gêneros
literários, como: poesia, narrativa, ensaios, teatro, artigos jornalísticos, crítica
literária, literatura infantil. Desde a sua primeira obra poética intitulada Cancioneiro
de Pero Bernal, redigida em 1972 e publicada somente em 1988 devido à censura
franquista, García assume um compromisso explícito com as causas políticas e
sociais, marcado pela intensa expressão de sua poesia enquanto resistência contra
a barbárie da Guerra Civil Espanhola e dos anos de ditadura franquista sob o
comando Francisco Franco.
Dessa forma, a partir dos contextos histórico, político, social e literário em
que se inscreve García, o presente trabalho objetiva explicitar a dimensão política
traduzida esteticamente em sua poesia por quem também teve a sua vida marcada
pela ditadura. A análise incide sobre um discurso de resistência que caracteriza um
momento histórico da Galiza, o Franquismo, inscrevendo-se o autor na tradição da
41. Mestranda em Letras. Universidade Estadual do Centro-Oeste. sirleifontoura@gmail.com
42. Doutor em Letras. Professor Associado da Universidade Estadual do Centro-Oeste.
claudiomello10@gmail.com
literatura engajada, a partir da constituição de um sujeito que expressa uma denúncia
social por meio da literatura. O poeta representa, portanto, uma tomada de posição
diante dos problemas concretos da vida, relacionada aos grandes problemas da
época, imersa pelas injustiças sociais.

O discurso político-ideológico de García


Nascido no meio rural galego, “no berce de canas e xergón de follas de
millo” (GARCÍA, 2012), Xosé Lois García viveu uma infância difícil, marcada pela
opressão social e política impostas às classes populares, bem como pelas dificuldades
econômicas dos seus pais. Aos 13 anos decidiu emigrar à Barcelona, a fim de
melhorar sua vida econômica, assim como seu plano intelectual e acadêmico. Em
1966, começou a trabalhar em uma empresa de plástico. Nessa época, frequentou
assiduamente a Biblitoteca de Catalunya, sendo uma de suas primeiras leituras O
capital, de Karl Marx. Outras foram escolhidas a dedos para a sua leitura, as quais o
ajudavam a compreender as contradições de seu tempo.
Em 1970, começou a trabalhar na SEAT (Sociedade Española de Automóbiles
de Turismo), onde os galegos representavam de 8% a 9% do quadro de profissionais.
Nesse local, García criou um grupo reivindicativo galego. (TORRES, 2015).
Protagonista da atividade sindical, política e cultural, criou, em 1972, o
IDGA (Irmandade Democrática Galega). Participava de debates nas assembleias
e sindicatos, de debates radiofônicos sobre a política galega, de conferências de
temática social e política. Ao mesmo tempo, se dedicava ao trabalho jornalístico e
poético, sem deixar de lado as lutas política e sindical diárias, cerne de seus escritos.
Portanto, toda a sua atividade literária é coerente com a sua condição de galego, que
não se esquece da sua Galiza, de um galego que é

[...] social e politicamente comprometido cos desamparados, de Galiza, de


Angola, de Mozambique ou de calquera parte do planeta; porque el segue
a amar e cantar a creatividade do ser humano expresada en tradicións e
costumes populares, en monumentos artísticos, en traballos labregos, nas
loitas pola liberación dos pobos, en dignificar e fixar os nomes dos lugares
de Galiza rural e labrega que esmorece vítima da indiferencia dos seus
propios fillos... (TORRES, 2015, p.266)

Dessa forma, estudaremos sua obra pela perspectiva sociológica da


literatura, a qual não se fecha à questão do valor estético, visto que tem interesse
pela origem social dos autores, pela relação entre suas obras, suas experiências,
seus valores e suas ideias, bem como pela organização social, política e econômica,
a qual exerce forte influência. Nesse sentido, considera-se de suma importância o

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binômio sociedade-arte, “um vasto sistema solidário de influências recíprocas”.
(CANDIDO, 2014, p. 33).
Assim, o acesso do social ao literário, com “um intuito ideológico marcado”
(CANDIDO, 2014, p. 19) é possível. Difunde-se em toda a obra a ideologia, visto que
o autor a partir da palavra considerada “um fenômeno ideológico por excelência
(BAKHTIN, 2010, p. 36), não se afasta da responsabilidade de produzir discursos de
classe que refletem a sociedade na qual está inserido. Somente por meio do verbo é
que se pode refletir, expressar-se e posicionar-se diante dos mais variados grupos
sociais, bem como dos problemas deles decorrentes.
Por esse viés, a ideologia se concretiza e se corporifica no conjunto de signos
verbais utilizados pelo autor ao considerar sua carga semântica ligada à história. Esse
mesmo autor se apresenta situado em um tempo histórico e em um espaço social
e cultural, os quais acabam por condicionar o uso da língua, ou seja, a atividade
discursiva é regida por parâmetros de ordem ideológica.
Nessa perspectiva, nada é produzido de forma aleatória. Xosé Lois García é
um escritor que localiza seus escritos em meio ao conflito e tumulto reais, integrando
na sua totalidade assuntos que denunciam as atrocidades da sociedade, deixando
claros os traços políticos e sociais subjacentes e, sobretudo, acreditando no poder da
palavra contra o poder dominante.

Non gusto de verbas esquizoides e reverentes


con suprema lealdade ao que ninguén cre.
Pero útil é a palabra en seu desasosego
cando ten irmandade con rostros conmovidos,
[...]
(GARCÍA, 2005, p. 220)

Seus versos não “esquizoides”, desvinculadas do mundo real. A fim de


evidenciar sua “irmandade con rostros conmovidos”, faz-se entender pela singeleza
de sua poesia, sem deixar de tecer críticas ao poder dominante, sem deixar de se
apresentar de forma ativa, de colocar-se diante da realidade de injustiça, violência

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e opressão, de “abrir camiño cara os seus abrentes”, como se constata no poema 13
de febrero de 2003.

Estes meus carballos definen nación.


Os coñezo só por súa potencia suntuosa,
mais eu pretendo, no que sei,
abrir camiño cara os seus abrentes.
Estes carballos foron humillados cando ardían
para distinguir seu berce de súa brasa.
[...]
Un carballo, despois dous e mais douscentos,
en simetrías lentas e contrastadas,
acomodan carballal, devesa e mais bugallo,
na xenial orfandade que nos depreda.
Galicia, unxida nos chouzais por ser nación,
rexo carballo removendo a consciencia que nos doe.
(GARCIA, 2005, p. 90).

O poeta metaforiza a Galiza utilizando a figura do carvalho, árvore robusta


e longeva. Sua madeira é resistente, de difícil putrefação, muito utilizada para os
trabalhos dos escultores e carpinteiros. Para a Galiza, esta árvore simboliza a força
e a pureza.
O poeta pretende “abrir camiño cara os seus abrentes” e revelar que os
“carballos foron humillados”, principalmente, durante a Guerra Civil Espanhola,
visto que a Galiza foi massacrada por um governo totalitário que almejava uma
Espanha unificada a qualquer custo. Posicionando-se de forma crítica e singular
em épocas difíceis da história da Galiza, García apresenta na “xenial orfandade que
nos depreda”, uma região humilhada, mas também forte como um “rexo carballo
removendo a conciencia que nos doe”.
Assim, por meio da sua palavra é que o poeta marca sua posição para
debater algo de interesse, atendendo às questões políticas e ideológica do momento
presente por meio da escolha dos procedimentos da linguagem, de uma palavra
“útil en seu desasosego”.

García e o seu discurso de resistência


A poesia galega durante as décadas de 60 e 70, sofreu uma de suas
maiores crises, principalmente aquela que compartilhava compromisso, denúncia
e solidariedade ao povo. Nestes anos florescem os poemários Cancioneiro de Pero
Bernal (1972), Borralleira para sementar unha verba (1974) e Non teño outra cantiga (1975),
período em que a Espanha está lutando contra a poesia comprometida e de denúncia
sociopolítica. Difundia-se a ideia de que a poesia de denúncia era antipoesia, lixo
verbal, um insulto à inteligência ao bom gosto, além de ser considerada sinônimo de

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panfleto político. Somente outros tipos de poesia eram dignos de serem lidos, como
por exemplo, as que reiteravam temas como: o amor, o erotismo, a Terra.
Resistindo às amarras impostas, a poesia de García seguiu em liberdade,
“liberdade para dicir o que queira, cando queira e como queira” (MOURA, 2009, p.
26). A única imposição estava em seguir as convicções éticas, políticas e ideológicas
do seu criador. Nesse sentido, compreende-se que a poesia tem o poder de resistir
à falsa ordem, simplificada ao rigor e ao caos, resistir à memória viva do passado e
resistir imaginando uma nova ordem, numa atitude de contradição aos discursos
em voga (BOSI, 1977, p. 145).
O termo resistência relacionado à cultura e à arte, surgiu entre 1930 e
1950, quando os intelectuais viram a necessidade de se engajarem no combate ao
fascismo, ao nazismo, ao salazarismo e ao franquismo. Trata-se do cerne da literatura
denominada de literatura de resistência, termo que coincide com a estética do
Neorrealismo Português, o qual se destaca por sua clara posição de esquerda, no qual
os autores assumem compromisso no confronto de classes, contra a desumanização
da sociedade. Em suma, o conceito de resistência está inteiramente ligado à luta
política, na qual a desordem estabelecida é negada (BOSI, 2002).
García, em suas obras, sempre se posicionou politicamente, assumindo a
posição de um sujeito porta-voz marcado, portanto, por uma ideologia claramente
de esquerda. A escolha de sua posição o inscreve na tradição da literatura engajada,
ou seja, a escrita de autor que ‘faz política’ sem seus livros (DENIS, 2002, p. 9).
Em outras palavras, é a partir da sensibilidade estética do autor, que o leitor tem
oportunidade de refletir sobre os problemas sociais e políticos, como por exemplo,
a luta das minorias sociais, as desigualdades, a violência, a exploração.

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Nessa perspectiva, García se apropria de fatos políticos como objeto para
suas criações, as quais assumem caráter de protesto e de resistência contra todo tipo
de opressão que atinge o povo da Galiza.

[...]
Van á guerra Castela e Toledo;
por Santa María xurei
no coller lanza nen coitelo.
Pobre son e non irei
non irei, non irei.
Se a guerra a fan cristianos;
por Santa María xurei
non matar como os tiranos.
Pobre son e non irei
non irei, non irei.
[…]
Que vaia El-Rei co seu espadón;
por Santa María xurei
non coller nengún pendón.
Pobre son e non irei
non irei, non irei.
(GARCÍA, 1988, p. 23)

O poeta, por meio da ação do eu-lírico, vai à luta contra os dramas vividos
durante o passado medieval ao ignorar a guerra imposta pelos grandes senhores
que objetivam aumentar seu poderio político e econômico. Entretanto, mesmo
fazendo referência a um período distante no tempo, a sociedade atual nesta cantiga
está representada, uma vez que o poeta se posiciona contra a violência da guerra
e da ditadura franquista, portando-se como resistente contra os tiranos que estão
no poder. Para isso, o poeta vai à luta sem “lanza nen coitelo”, sem “coller nengún
pendón”; ele vai à luta com armas não convencionais, com seus versos focados na
realidade social de seu tempo.
O poeta também se apresenta resistente contra a imposição da língua
castelhana em vários setores da sociedade galega, uma língua que insiste em negar
a sua. Entretanto, a voz poética é contundente ao afirmar que a sua “única lingua é a

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galega”, não obedecendo às regras da língua imposta, resistindo à condição de uma
Galiza negada e marginaliza pela “prevaricadora da España sen honra”.

Cicatrizados no verbo de Castela


[...]
!Longa e Castela! Lonxicua mentira!
Terra seca con ideas interpostas.
[…]
prevaricadora da España sen honra.
Cicatriz levamos do reino de Castela;
chagas putrefactas nela respiramos
e as axóuxeres nas vísceras replican.
Así é a longa Castela amendrentándonos
entre media mentira e unha estrela.
Amo o teu verbo, Castela, ¿sabías?
Mais miña única lingua é a galega.
(GARCÍA, 2005, p. 305)

Em suma, tal como concebe Lukács (1978, p. 216), consideramos que o


trabalho poético de García se trata de uma obra de alta qualidade estética, uma
vez que é capaz de representar uma tomada de posição justa diante dos problemas
sociais, representados por um conteúdo capaz de expressá-los adequadamente. O
seu engajamento se torna político-social quando seus versos são transformados em
luta e resistência contra a “longa Castela” que segue “amedrentándonos”. (GARCÍA,
2005, p. 305)
Convém salientar que o engajamento de uma obra só se torna efetivo quando
se associa a radicalidade ideológica à radicalidade estética (ABDALA JÚNIOR,
1989, p. 22). Quanto à radicalidade estética do escritor, esta é marcada com “revolta
e verbo forte” (MOURA, 2005, p. 49) na medida em que ele é capaz de expressar em
seus poemas uma sociedade imersa na desigualdade, na injustiça, na violência e na
opressão social, política e econômica, como vimos anteriormente. Já a radicalidade
estética diz respeito a uma obra de arte engajada capaz de atuar como objeto de
conscientização do leitor a que se destina, exigindo do autor consciência crítica da
realidade. Em outras palavras, o autor deve estar sempre atento ao debate político
de sua época, sem dispensar dos efeitos estéticos.
Nas palavras de Sartre, segundo Denis (2002, p. 60), engajar uma obra é
recusar a sua autossuficiência. Para isso, é necessário que o autor reflita sobre a sua
posição no processo de produção, visto que

[...] a situação social contemporânea o força a decidir a favor de que causa


colocará sua atividade. O escritor burguês, que produz obras destinadas à
diversão, não reconhece essa alternativa. [...] ele trabalha a serviço de certos
interesses de classe. O escritor progressista, conhece essa alternativa. Sua
decisão se dá no campo da luta de classes, na qual se coloca ao lado do

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proletariado. [...] Sua atividade é orientada em função do que for útil ao
proletariado, na luta de classes. (BENJAMIN, 1987, p. 118)

Em resumo, trata-se de situar uma obra socialmente, politicamente e


ideologicamente, determinando os fins para o seu empreendimento, dando
possibilidades ao leitor de assimilação de sua natureza política. Uma obra de arte
assim compreendida, não cabe dentro do conceito de “arte pela arte”.

Conclusão
Adentrar o universo poético de Xosé Lois García é perceber que, ao falar
da opressão, da violência, da desigualdade social existente no seio da comunidade
galega, ele o fala em nome de todos os povos. Desde a redação da sua primeira
obra, Cancioneiro de Pero Bernal, publicada em 1988, até a mais recente, percebemos,
ao virar cada página que seu discurso é sempre atual, visto que os anos passam e
os problemas permanecem estanques: a ordem dominante ainda embrutece a vida
de muitos seres humanos. Característica de uma poética engajada, de resistência,
suas linhas poéticas são capazes de causar incômodo e tirar o leitor de sua zona de
conforto e fazê-lo refletir sobre os dramas sociais.
Com a “palabra útil en seu desasosego”, García mescla lirismo, denúncia
social, consciência política sem doses medidas, até chegar ao ápice de um
discurso de resistência. Verificou-se que sua obra é autêntica, não somente pelos
procedimentos estéticos adotados, mas também pela sua relação com os contextos
social, político, econômico e cultural, os quais lhe proporciona uma visão apurada
da realidade que o cerca. Portanto, compreendemos a estreita relação entre
ideologia e literatura, entre o ser-homem e o ser-escritor, relações que tornam
clara a presença da política no texto literário.
Observamos, ainda, que García recusa a posição de um ser passivo, recusa
o status de mero espectador dos problemas que o cercam. Essa recusa o constitui
em um sujeito porta-voz das mazelas sociais vividas por ele e por todos os seus
pares. Assumir um compromisso com a sociedade galega faz com que García seja
considerado um autor engajado com as causas políticas e sociais.
Nesse contexto, o engajamento caracteriza o pertencimento do escritor ao
mundo. Para isso, além de se engajar na produção de seus escritos, o autor deve
engajar a totalidade da sua pessoa, evidenciando os próprios valores. Engajar-se é
arriscar-se na produção de uma obra, é responsabilizar-se pelas escolhas que dirigem
seus atos. Em García isso é perceptível, uma vez que suas poesias se transformam
em luta e resistência, não se apresentando como um trabalho voltado para si mesmo.

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Pelo contrário, sua poesia tem uma função social, visto que leva o leitor à reflexão, à
ação, a fim de tornar o mundo melhor.

Referências
ABDALA JUNIOR, B. Literatura, história e política: Literaturas de língua
portuguesa no século XX. São Paulo: Ática, 1989.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.
BENJAMIN, W. O autor como produtor: Conferência pronunciada no Instituto para o
Estudo do Fascismo, em 27 de outubro de 1934. In: Obras escolhidas: Magia e Técnica,
Arte e Política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987
BOSI, A. Formações ideológicas na cultura brasileira. São Paulo: 1995. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ea/v9n25/v9n25a21.pdf>. Acesso em :10 set. 2015.
______. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
______. O ser o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.
CANDIDO, A. C. Literatura e Sociedade. Estudos de Teoria e História Literária. 13. ed.
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GARCÍA, Xosé Lois. Cancioneiro de Pero Bernal. In: Tempo Precario: Coleção de
livros escritos entre 1972 e 1987. A Coruña: Ediciós do Castro, 1988.
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LUKÁCS, G. Introdução a uma estética marxista. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização
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MOURA, A. S. A letra e o ar: palavra-liberdade na poesia de Xosé Lois García. Lisboa:
Universitária, 2004.
TORRES, Camilo Gómez. De rebeldias, soños e irmandades. Noticia de Xosé Lois
García. Xermolo, 2015.

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GÊNERO CARTAS AO EDITOR: UM INSTRUMENTO PARA O
DESENVOLVIMENTO DA CRITICIDADE EM AULAS DE
LÍNGUA INGLESA
Taynan Paz Ribeiro da Silva (UTFPR-PB)
Siderlene Muniz-Oliveira (Coautora-UTFPR-PB)
Didiê Ana Ceni Denardi (Orientadora-UTFPR-PB)

Introdução
O trabalho com os gêneros textuais vem ganhando cada vez mais espaço nas
escolas brasileiras, fazendo com que esses sejam amplamente utilizados no processo
de ensino-aprendizagem de línguas materna ou estrangeira. Mas, para que esse
processo se dê de forma eficiente e que, ao mesmo tempo, os gêneros também sejam
um instrumento de (inter)ação social para os sujeitos, é preciso que, primeiramente,
o professor domine as capacidades de linguagem que subjazem os gêneros textuais.
Desse modo, a partir dos pressupostos teóricos do Interacionismo
Sociodiscursivo, doravante ISD, (BRONCKART, 2012; SCHNEUWLY, DOLZ,
2004; CRISTOVÃO, 2013; dentre outros), o presente artigo objetiva apresentar uma
análise crítica de dois exemplares de textos pertencentes ao gênero textual carta ao
editor, cuja análise foca nas capacidades de linguagem (DOLZ et. al., CRISTOVÃO;
STUTZ, 2011) como uma proposta para o ensino-aprendizagem de gêneros em
Língua Inglesa (LI) em uma perspectiva instrumental.
Portanto, justifica-se o escopo deste trabalho, no sentido de que através da
análise de textos pertencentes ao gênero carta ao editor, tomando como categorias de
análise as capacidades de linguagem, ele possa oferecer aos professores e estudiosos
da área de Linguística Aplicada ao ensino de Inglês uma maior compreensão sobre
o referido gênero, bem como auxiliar na elaboração de material didático.
O artigo divide-se em três seções, na qual na primeira serão abordadas
noções de texto, gênero textual na perspectiva do ISD e aspectos referentes ao gênero
carta ao editor; na segunda seção será explanada a metodologia utilizada, bem como
a análise e resultados dos dados e a última seção abrange algumas considerações
sobre o trabalho aqui desenvolvido.

Pressupostos teórico-metodológicos
O Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) vincula-se ao interacionismo social,
que faz parte do quadro epistemológico das correntes da filosofia e das ciências
humanas. Assim, o ISD tem o objetivo analisar as condutas humanas por um viés
social e histórico, onde a linguagem possui papel fundamental e organizacional
do funcionamento humano, uma vez que esta “[...] teria emergido sob o efeito de
uma negociação prática das pretensões das produções sonoras dos membros de um
grupo envolvidos em uma mesma atividade” (BRONCKART, 2012, p. 33).
O autor destaca que no processo de comunicação os interlocutores
mobilizam signos produzindo textos entendidos como “toda unidade de produção
de linguagem que veicula uma mensagem linguisticamente organizada e que tende
a produzir um efeito de coerência sobre o destinatário” (BRONCKART, 2012, p. 71).
Em função da diversidade de textos e a partir da necessidade de delimitá-los
e nomeá-los acabou se estabelecendo os gêneros textuais, considerados como formas
relativamente estáveis de textos que possibilitam a comunicação e (inter)ação dos
sujeitos no mundo. Entende-se por relativamente estável as possíveis modificações
que o agente poderá executar no texto no momento de sua produção, dado os
momentos históricos e sociais em que ele está inserido (ABREU-TARDELLI, 2007).
Importante salientar, entretanto, que por mais que os gêneros textuais estejam
disponíveis, isto é, sejam artefatos simbólicos, é preciso que os sujeitos se apropriem
deles para que, de fato, os gêneros sejam instrumentos mediadores das ações de
linguagem dos seres humanos no mundo (MUNIZ-OLIVEIRA, 2013, p. 77).
Assim, o ISD sugere que os gêneros textuais podem ser utilizados para o
desenvolvimento da linguagem. Em contexto escolar, Schneuwly (2004) sugere
que os gêneros podem ser utilizados como um instrumento para o ensino e
desenvolvimento de capacidades de linguagem (DOLZ, PASQUIER, BRONCKART,
1993; CRISTOVÃO, STUTZ, 2011) que são mobilizadas em atividades de leitura e
produção textual.
Dentre os inúmeros gêneros textuais presentes na sociedade, sugere-se a
realização de um trabalho com o gênero textual carta ao editor para o ensino de LI na
escola, uma vez que esse veicula em jornais e revistas as manifestações e opiniões dos
leitores sobre assuntos de seus interesses. A carta ao editor possui certas regularidades
como presença de um destinatário, assinatura e o local de procedência do autor. O
que irá diferenciar uma carta ao leitor de outras é a posição adotada pelo autor, bem
com os objetivos e finalidades na abordagem dos conteúdos e a seleção de elementos
discursivos e lexicais para a composição desta (CARDOSO, 2005, p. 65-66).
Ademais, ao se pressupor a presença de um destinatário, prevê-se a relação
de responsividade da carta com o texto que se comunica. Sobre a responsividade,
Bakhtin (2003) comenta que é toda compreensão (linguística) do discurso que
necessita de uma resposta, de uma atitude responsiva por parte dos interlocutores

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
em uma situação concreta de comunicação. Embora não imediata, como um diálogo
face a face, a responsividade é uma característica presente nas cartas ao editor, uma
vez que há relação interlocutiva e dialógica entre notícia publicada por um jornal e
consequente resposta em forma de carta ao editor.

Metodologia, análise e discussão


Para a análise do gênero textual carta ao editor foram selecionados quatro
textos autênticos do referido gênero, sob a temática do uso dos banheiros públicos
e/ou escolares por pessoas transgêneras, isto é, pessoas que não se identificam com
o gênero feminino ou masculino registrados ao nascer. No entanto, por limitações
de espaço, o artigo apresentará apenas a análise de dois dos textos selecionados.
Assim, as duas cartas analisadas foram extraídas do portal de notícias americano
Portland Press Herald.
Com relação à análise dos dados, optou-se por utilizar como categorias
de análise alguns elementos das capacidades de ação e da capacidade de significação.
Na capacidade de ação foram evidenciados os contextos físico e sociossubjetivos
das cartas. Já na capacidade de significação, foram enfatizados os mapas semânticos,
engajamento em atividades de linguagem e posicionamento sobre relações textos-contextos.

Análise da capacidade de ação nas cartas ao editor


As análises dos elementos constitutivos da capacidade de ação foram
organizadas e sistematizadas no quadro abaixo:
Quadro 1: Carta 1 e Carta 2

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
Quadro 1 - Níveis de análise das capacidades de ação
Gênero adotado: Carta ao editor (Letter to the editor)
Carta 1 Carta 2
Título: Transgender restroom access ignores sex Título: Transgender bathroom use, sex assault sepa-
assault victims’ trauma1 rate issues2
Contexto físico Contexto físico
Lugar de produção: Scarborough. Lugar de produção: Walpole.
Emissor: Ted Bennet. Emissor: Elizabeth Throckmorton Kellett.
Receptor: leitores do site e da carta. Receptor: leitores do site e da carta.
Momento de produção: publicação em 15 de Momento de produção: publicação em 28 de feverei-
fevereiro de 2016. ro de 2016 (13 dias após a carta 1).
Contexto sociossubjetivo Contexto sociossubjetivo
Lugar social: mídia (site: Portland Press Herald) Lugar social: mídia (site: Portland Press Herald).
Posição social do emissor (enunciador): cidadão Posição social do emissor (enunciador): cidadã e
e autor da carta. autora da carta.
Posição social do receptor (destinatário): leito- Posição social do receptor (destinatário): leitores do
res do site e da carta. site e da carta.
Objetivos: apresenta seu ponto de vista acerca do Objetivos: em resposta à carta 1, a autora refuta os
tema de modo claro e objetivo, tentando conven- argumentos apresentados pelo autor e sustenta suas
cer o leitor através de argumentos. ideias de modo a convencer os leitores através de ar-
gumentos.
1 “Acesso a ‘banheiros transgêneros’ ignora os traumas de vítimas de violência sexual” (tradução
nossa). Disponível em: <http://www.pressherald.com/2016/02/15/letter-to-the-editor-in-allowing-
transgender-people-restroom-access-also-consider-sex-assault-victims/>.
2 Uso de banheiros transgêneros e violência sexual: questões distintas (tradução nossa). Disponí-
vel em: <http://www.pressherald.com/2016/02/28/letter-to-the-editor-transgender-bathroom-use-
sex-assault-separate-issues/>.
Fonte: adaptado de Bronckart (2012) e Cristovão (2013)

O Quadro 1 aponta que os autores de ambas as cartas mobilizaram o gênero


carta ao editor para expor suas opiniões. Essa seção destinada às opiniões dos leitores
neste portal é denominada de “Letter to the editor”.
Em relação à responsividade, a carta 1 não se apresenta como uma resposta
direta a uma notícia divulgada no site em questão, mas pode-se inferir que seja
resposta aos debates recorrentes sobre o tema na mídia e, consequentemente, na
sociedade. A carta 2 se apresenta como uma resposta direta à carta 1 já em sua
primeira oração, conforme demonstram os trechos destacados abaixo:

(Carta 1): “With the push to guarantee the safety and emotional well-being
of transgender people comes the unexpected oppression of victims of sexual
abuse (...) With that in mind, I’d like to suggest (...)”.
(Carta 2): “In response to Ted Bennett’s letter to the editor (Feb. 15), suggesting
that transgender people using a bathroom that corresponds to their identity
would somehow traumatize women who have been raped, I would ask (…)”.

Ademais, as cartas 1 e 2 provêm de diversos espaços físicos e estabelecem uma


relação de responsividade não imediata entre si, uma vez que, entre a publicação da

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
carta 1 e a resposta da carta 2, houve um intervalo de 13 dias. Embora não imediata,
essa relação entre cartas provenientes de cidades variadas é possível devido ao fato
do portal ser online, permitindo uma maior interação entre os leitores.
Desse modo, as duas cartas ao editor apresentadas possuem certas
regularidades quanto a sua estrutura, como título, data, o texto em si, com o
objetivo de atingir e convencer os leitores, a assinatura do autor e a cidade de onde
ele escreve, além disso, as cartas estabelecem relação de responsividade explícita
com outras matérias, cartas ou debates na sociedade.

Análise das CAPACIDADES DE SIGNIFICAÇÃO nas cartas ao editor


Na análise das capacidades de significação, os elementos, baseados em
Cristovão (2013), que emergiram foram mapas semânticos; o engajamento em atividades
de linguagem e o posicionamento dos autores sobre a relação textos-contextos.
Com relação aos mapas semânticos, que diz respeito aos discursos com o
mesmo sentido, ambas as cartas abordam uma situação que vem ganhando cada
vez mais espaço nos debates políticos e sociais: a criação de leis que ora permitem,
ora proíbem a livre escolha de uso dos banheiros públicos por pessoas transgêneras.
Ainda que tratem do mesmo tema, as opiniões divergem entre si. Assim,
o autor da carta 1 se posicionou contra o livre uso dos banheiros por pessoas
transgêneras e a autora da carta 2 se mostrou a favor das medidas protetivas em
relação a esse público.

(Carta 1): “I think that we ought to carefully consider what kind of message
it sends to the 25 percent of women who have suffered the trauma of some
form of sexual assault when we impose a biologically intact male presence
into their facilities, to accommodate 0.4 percent of the populace. It says,
“Your trauma is irrelevant.”.
(Carta 2): “Since transgender men are more likely than men who are not
transgender to be assaulted and attacked by homophobic men, the desire of
transgender men to use the women’s room is certainly warranted.”.

Quanto à categoria de engajamento em atividades de linguagem e o posicionamento


sobre relações textos-contextos, os autores das cartas estão engajados linguisticamente,
ou seja, ambos são capazes de emitir opiniões ou refutar/responder a outras sobre
o assunto e seus textos estão amplamente interligados com o contexto social e/ou
histórico nos quais eles se inserem.
Na conjuntura atual dos Estados Unidos o debate sobre os “banheiros
transgêneros” ganha cada vez mais espaço na sociedade, na política e,
principalmente, na mídia, como é o caso do portal das cartas, que é proveniente da

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sociedade americana. Um exemplo que se pode citar é que, de acordo com algumas
notícias publicadas nos meios de comunicação, grupos conservadores, composto
principalmente por líderes religiosos, alegam que o livre uso dos banheiros por
transgêneros pode significar uma violação da privacidade das pessoas, bem como
pode facilitar agressões sexuais às mulheres. Tal acepção é aceita e perpetuada por
algumas pessoas, como é o caso do trecho destacado da carta 1, ou contestada como
evidencia o excerto da carta 2:

(Carta 1): “What I am saying is that female victims of sexual assault can suffer
extreme anxiety and feelings of panic when forced into the close proximity of
a biological man”.
(Carta 2): “I’ve never heard of a woman being assaulted by a transgender man in
a restroom, but we know lots of stories of transgender men being assaulted
by other men”.

As notícias veiculadas na mídia também mostraram as opiniões de pessoas


engajadas com a causa LGBT, que ressaltam a importância de se combater o
preconceito e a discriminação das pessoas por conta de sua identidade de gênero,
como evidencia o excerto da carta 2. Já o autor da carta 1 não comenta sobre essas
questões, já que seus argumentos são focados nas mulheres vítimas de violência:

(Carta 2): “This is an individual’s choice to dress and act as he wants, and
everyone should have the freedom to feel safe”.
(Carta 1): “The last thing we want to do is unnecessarily incite any fear or
anxiety among our population. With that in mind, I’d like to suggest that is
exactly what we are doing when we insist that biological males who self-identify
as female (i.e., transgender females) must be able to use female facilities”.

Destaca-se que, dentre os elementos/categorias das capacidades de


significação, escolheu-se os/as que mais se destacaram. Entretanto, tais elementos
não se esgotam nem se limitam a esses apresentados, uma vez que tal capacidade
tende a se aprofundar em reflexões ideológicas, históricas, culturais, relações de
poder, etc. imanentes a textos sociais.

Considerações Finais
As análises dos elementos das capacidades de ação e de significação
permitiram lançar um olhar crítico ao gênero textual carta ao editor, contribuindo
para o uso de gêneros textuais como instrumentos mediadores das ações dos sujeitos
no mundo, através da linguagem.
Deste modo, se trabalhadas em conjunto e levando em consideração a
adequada transposição e didatização de conteúdo, as capacidades de linguagem
aqui apresentadas nas análises das cartas, podem auxiliar na expansão de aspectos

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linguísticos e gramaticais nas aulas de língua inglesa, bem como permitem que a sala
de aula constitua um espaço propício para a discussão de temas atuais e emergentes
da sociedade, de modo a desenvolver a criticidade nos alunos e sua consequente
inserção social, a fim de modificar o meio em que eles vivem.
Por fim, este estudo pode apresentar-se como material auxiliar para uma
possível construção de material didático acerca do gênero e contribuir com o
trabalho docente.

Referências
ABREU-TARDELLI, L. S. 2007. Elaboração de sequências didáticas: ensino e
aprendizagem de gêneros em língua inglesa. In: DAMIANOVIC, M. C. (org). 2007.
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ed. (Paulo Bezerra, trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1979/2003. p. 261-306.
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Cunha. – 2.ed., 2.reimpr. - São Paulo: EDUC, 2012.
CARDOSO, M. M. O Gênero Carta ao Editor em Newsweek: Aspectos Discursivos
e Sociointeracionais. Universidade Estadual do Ceará, 2005. Mestrado em
Linguística Aplicada ao Ensino área de Concentração: Tradução e Ensino/
Aprendizagem de Línguas.
CRISTOVÃO, V. L. L. Para uma expansão do conceito de capacidades de linguagem.
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Elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). In: Gêneros Orais
e escritos na escola. Campinas (SP): Mercado de Letras; 2004.
MUNIZ-OLIVEIRA, Siderlene. O Interacionismo Sociodiscursivo: elaboração de
Modelo Didático para o ensino de gêneros textuais. Revista Educação e Linguagens,
Campo Mourão, v. 2, n. 3, jul./dez. 2013.
SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e
ontogenéticas. In: Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização de: Roxane
Rojo e Glaís Sales Cordeiro. – Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004.

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AS RELAÇÕES DE PODER NAS OBRAS DE MICHEL
FOUCAULT: BREVES APONTAMENTOS
Vanessa Elisabete Raue Rodrigues (UEPG)
Rita de Cássia da Silva Oliveira (UEPG)

Resumo: O presente estudo partiu das reflexões relacionadas ao percurso histórico


das obras de Michel Foucault e da construção de sua teoria. Através de uma revisão
bibliográfica, buscou-se investigar as estruturas de poder identificadas no discurso,
considerando três escritos publicados em períodos históricos distintos. Iniciou-se,
portanto, por História da Loucura de 1961, passando pelo ápice desta abordagem
em Vigiar e Punir de 1975 até o Governo de Si e dos Outros de 1983, uma das últi-
mas obras, que antecedeu a morte do autor. Para análise foi utilizada a genealogia
de Foucault, estabelecendo uma investigação nas singularidades presentes nas suas
obras, observando as mudanças conceituais durante o percurso de sua escrita. Não
tem a pretensão de se fazer, portanto, um estudo contextualizado, mas vasculhar a
prioridade ao abordar a temática evidenciada. Para sistematização desta proposta,
os apontamentos foram organizados de modo a explicitar o cenário de estudos, a
justificativa da escolha das obras e de que forma a abordagem se estabeleceu na teo-
ria foucaultiana a partir dos escritos. No passo seguinte, com vistas ao alinhamento
do método, analisou-se as relações de poder observadas nas obras selecionadas.
Deste modo, foi possível identificar, dentre muitas questões, que não há um poder
único, mas relações em que são estabelecidas de diferentes formas de poder insti-
tucionais. Neste sentido, a apresentação das estruturas do poder, observadas pelas
suas redes de efeitos, embora apresentem pontos de resistência, ainda são frágeis na
possibilidade de mudança e, portanto, não permitem a sua superação.
Palavras-chaves: Poder. Genealogia. História

Introdução
A complexidade das análises de Michel Foucault é destacada por vários
estudiosos de suas obras. Compreendê-lo não se trata de uma tarefa fácil visto a
dimensão de seus escritos. Buscando explicar categorias como poder, conhecimento
e política, o autor definiu questões que vão desde abordagens individuais envolvendo
a loucura até às relações institucionais como a prisional. Dentre suas publicações,
estão muitas transcrições de cursos realizados no Collége de France em Paris, onde
dedicou-se até os últimos dias de sua vida. O objetivo foi identificar as relações
de poder presentes nas obras de Foucault, considerando três obras publicadas em
períodos históricos distintos na vida do autor. Os estudos iniciaram por História
da Loucura de 1961, sua tese de doutorado, passando por Vigiar e Punir de 1975
até o Governo de Si e dos Outros de 1983, uma de suas últimas obras. Ainda tempo,
considerou-se importante os estudos de autores que se dedicaram a determinadas
obras ou biografias e contribuíram para análise.
O trabalho elaborado tratou de uma revisão bibliográfica, observando que
o processo de seleção das obras, embora estruturado pelo encadeamento histórico
de escrita do autor, teve como método de análise a genealogia foucaultiana num
processo de desconstrução da linearidade histórica, compreendendo a singularidade
do objeto estudado.

A escolha das obras e a estrutura de análise da teoria


O encadeamento histórico da produção das obras foi o fio condutor para
o levantamento dos estudos de Foucault. Embora muitos dos textos do autor não
apresentem o poder como único aspecto de análise, em algum momento destes o
surgimento do tema se apresentou ou para definir conceitos ou mesmo para justificar
a busca de outro suporte da composição teórica. A opção da obra História da Loucura
(1961) foi um dos exemplos. Ao buscar analisar como o poder foi estabelecido em
cada produção do autor, foi optado pelo procedimento genealógico compreendendo
que o objeto de pesquisa se encontra disposto na mesma descontinuidade histórica
ressaltada na apresentação do método. Os acasos da definição de poder estão
pautados na desconstrução da linearidade histórica.
Compreendendo o homem como produto de suas práticas discursivas,
Foucault apresentou desde suas primeiras obras a definição da história do homem
como sua própria criação. O homem como criação do próprio homem, mas com
interpretação que não são similares em todos os contextos históricos. Todavia,
não é o contexto que o produz, mas ele mesmo que interpreta o seu contexto e o
reproduz pela sua interpretação e discurso. Trata-se de uma monografia filosófica
antropológica, uma representação de si.
O método genealógico cabe aqui como uma forma de problematizar, num
movimento de estranhamento das representações já postas. A descontinuidade
e a representação são, neste sentido, alguns dos pilares do método, abrindo mão
de qualquer análise comparativa ou que busque a finalidade histórica de cada
período. Desta forma, utilizar-se do método seria “demorar-se sobre os documentos
que narram o cotidiano e os detalhes considerados banais, que pareciam não ter
história” (LEMOS, CARDOSO JR, 2009, p.354). A história, deste modo, tem vários
tempos e não uma linha única e a tarefa de sua investigação deve ser desnatualizá-
la, observando suas múltiplas objetividades e também subjetividades.
Definido o método a ser utilizado, considerou-se importante descrever
qual foi a intencionalidade na seleção das produções de Foucault para análise das
relações de poder retratadas no percurso de sua escrita. Entende-se que o caráter
multifacetado das obras não desarticula os textos, mesmo considerando que, em

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alguns momentos, elas se dão em períodos históricos que não são paralelos e nem
simultâneos. Contudo, as investigações se completam e aprofundam especificidades
muito importantes referente às instituições e as relações de poder implicadas nestas
estruturas. A análise do poder disciplinar e do biopoder demonstram a maturidade
do autor nas suas conclusões epistemológicas.

As relações de poder
Com uma escrita complexa, muitas vezes enigmática, Michel Foucault
iniciou suas publicações em 1954 com a obra Doença Mental e Psicologia, contudo
foi no ano de 1961 que publicou uma das obras que representou o início dos
estudos aprofundados sobre as relações de poder das instituições: A História
da Loucura. O livro descreve como a loucura foi tratada do Renascimento à
Modernidade, destacando a marginalização dos ditos loucos nas instituições
conhecidas como Hospitais Gerais.
Elencado por Vilas Boas (2002) e Machado (2007) como um momento de
investigação arqueológica, a obra direciona o olhar ao homem como objeto de estudo
num período histórico específico. Este, por sua vez, vasculha diante das regras
sociais e discursos, como e por quais motivos o louco é tratado numa determinada
época, estabelecendo uma articulação entre o “discurso de verdade” e os sujeitos
que dizem, como dizem e instituição a que pertencem. (VILAS BOAS, 2002)
Apesar do estudo ser pautado na loucura, não se trata de um levantamento
da história da psiquiatria ou da doença mental. A obra está focada na transição
de um período clássico, dando ênfase a prática de reclusão do homem visto como
louco e o entendimento do que é loucura pelo viés médico. Tem na psiquiatria seu
cenário de estudos e faz compreender que esta, reconhecida hoje como defensora
do tratamento humanístico dos doentes mentais, nem sempre teve o referido
princípio. Trata-se de desvelar a história e apresentar uma forma de dominação
que se estabelecia a partir do deslocamento da atenção médica para os antagônicos:
razão e loucura. (MACHADO, 2007)
A razão frente à loucura tomou o sentido de dominação jurídica e médica,
numa relação de poder que fez o louco perder a condição de sujeito de direito à
liberdade de decisão sobre sua própria vida, assim ele tinha seu destino decidido
pelos “homens de razão”. Deste modo, o louco foi “convidado a objetivar-se nos
olhos da razão razoável como o estranho perfeito” (FOUCAULT, 1978, p. 530). Este
estranho tinha na razoabilidade a culpa pela insanidade que continuamente era
julgada pelo olhar dos homens razoáveis, classificando-o e vigiando-o. O espaço de
contenção estava na instituição Hospital, cujo mecanismos eram fundamentados no

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controle atrelado à outras instituições sociais: família, Igreja, justiça e medicina, as
quais contribuíam para a vigia e o consentimento.
Todavia, esta instituição de um lado com poder jurídico e de outro moral, não
teve somente o objetivo propriamente médico. Cartas régias e decretos permitiram
legalmente que a instituição, dada como assistencial, pudesse “controlar” a miséria
e o crime, dados por muitos momentos como iguais. Esta condição de poder relegou
“entre os mesmos muros os condenados de direito comum, jovens que perturbavam
o descanso de suas famílias (ou que lhes dilapidavam os bens), vagabundos e
insanos” (FOUCAULT, 1978, p. 63). O momento foi intitulado por Foucault de
“Grande Enclausuramento” e conduziu a um balizamento, pela força, com vistas à
integração de uma ética pautada em regras sociais da época.
Ao assumir a cátedra da disciplina História dos Sistemas de Pensamento
no Collége de France, em 1970, envolto na teoria estruturalista, o autor mudou seu
foco. Não necessariamente de uma negação do método arqueológico, mas lançou
dúvidas nas suas análises, as quais tal método não alcançava. Passou a se preocupar
com a descrição de compatibilidades e incompatibilidades entre os saberes,
observando na sua transformação as relações de poder, nasceu aí o interesse pelo
método genealógico.
Na obra Vigiar e Punir o autor procurou atrelar os conceitos de disciplinamento
e poder, presentes na sociedade moderna e empregados em uma das suas criações,
a prisão. O entendimento científico judiciário apresenta a transição do suplício do
corpo com as punições físicas para a contenção do corpo e suplício psicológico com
a pena de prisão. Contudo, o poder se estabelece em muitos outros componentes de
punição como a privação sexual, o controle alimentar e, principalmente, a vigilância
constante. Neste sentido, Foucault (2012, p. 20) ressalta que, mesmo com o discurso
de “afrouxamento” penal feito pelos juristas, a pena de prisão

Permanece, por conseguinte, com um fundo “supliciante”, nos modernos


mecanismos da justiça criminal – fundo que não está inteiramente sob o
controle, mas envolvido, cada vez mais amplamente, por uma penalidade do
incorporal.

Assim como em História da Loucura o autor apresentou a relação dos


espaços psiquiátricos sendo envolvidos com as relações de crime e miséria, na obra
subintitulada como História da Violência nas Prisões. Os estigmas de inadaptação
e perversão rotulam o criminoso como um ser anômalo e, portanto, o qualifica
e justifica seu afastamento da sociedade. Segundo Foucault (2012, p. 22) os
componentes punitivos não se apresentam como uma sanção ao crime cometido,

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“mas a controlar o indivíduo, a neutralizar sua periculosidade, a modificar suas
disposições criminosas”, não se tratando do feito, mas de quem o fez. Deste modo,
a qualificação não é do crime, mas do criminoso.
Foucault (2012, p. 23) afirma que “todo um conjunto de julgamentos
apreciativos, diagnóstico, prognósticos, normativos, concernentes ao indivíduo
criminoso encontrou acolhida no sistema do juízo penal”, de uma forma que a loucura
refletiu diretamente nas relações jurídicas. Louco e Criminosos se confundem. O
considerado indivíduo estranho citado em parágrafos anteriores é investigado e
julgado por peritos psiquiátricos e forenses, sugerindo o que o autor citou como
“tratamento médico-judicial”.
Esta coerção corporal com a implantação da gestão da pena encontra no
suporte institucional um cenário fértil e justificado pela disciplina. Um mecanismo
que automatiza os hábitos e transforma o indivíduo que se submete a um corpo
“inteligível”, um ser manipulável.
A disciplina é abordada pelo autor como utilidade entendendo-a nas
relações econômicas e de obediências pela questão política. Importante citar o
conceito de política de Foucault numa compreensão que evolui para o termo de
biopolítica. Aponta uma transição de uma forma de governo de si pela disciplina
para um governo instituído pelo poder de controle sobre outras preocupações
coletivas como natalidade, higiene, entre outros. O autor chamou este poder de
biopoder. Esta relação vai além dos procedimentos disciplinares, ela define um
investimento político sobre o corpo o qual, pelas minúcias, internaliza as normas
impostas. Assim, “a disciplina é uma anatomia política do detalhe.” (FOUCAULT,
2012, p. 134)
O autor amplia a análise na obra, destacando que o detalhamento
da disciplina se apresenta nos regulamentos e no cotidiano de muitas outras
instituições além das prisões, como quartéis, conventos e escolas. Embora com
suas especificidades a disciplina tem algumas características comuns. Uma delas
é a exigências do “cercamento”, ou seja, precisa ser disposta num espaço fechado
em si. Contudo, apesar do espaço fechado ser coletivo ele impõe ao indivíduo sua
compartimentação, porém impede o reconhecimento da identidade. O que acontece
é o reconhecimento por categorização, com a necessidade de organizar e facilitar
o aspecto da vigilância. Impondo, assim, o tempo, as ações, os locais de acesso e
permanência, a movimentação de bens, o som e o silêncio, entre outras relações.
Esta condição encontra no paradoxo sua heterogeneização das classificações e
homogeneidade das exigências.O indivíduo fica preso ao que chamou Foucault de

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“sistema de sujeições”, fazendo com que o corpo produtivo seja ao mesmo tempo
corpo submisso pela disciplina.
Especificamente no livro O governo de si e dos outros, o autor fez um recuo
histórico e promoveu uma releitura dos autores gregos, propondo uma abordagem
muito distinta das duas obras analisadas anteriormente. Weizenmann (2013, p. 49)
aponta a esta observação que a “leitura cronológica de seus textos evidencia recusas
de suas próprias reflexões em contextos distintos”, aspecto o qual Foucault intitula
simplesmente de deslocamento conceitual.
O livro é a transcrição de um Curso ministrado no Collège de France em
1983, cujo propósito foi aprofundar as práticas subjetivas do indivíduo articulando-
as à dimensão política, observando a relação que pode ser construída com o outro, a
partir da intencionalidade daquele que quer dirigir e dos que obedecerão (BARROS,
2013). Foucault afirma, porém, que se alguns indivíduos se submetem a colocar
outro para dirigi-lo, não é porque quem os dirige se apossaram desta condição,
muito menos que eles tenham permitido que isto acontecesse. O que verifica-se é a
incapacidade de se autodirigir, aceitando um padrão de comportamento usual.
Utilizando apontamentos de textos de Immanuel Kant, o autor objetivou
promover uma “ontologia do presente” a partir de um Filosofia analítica da
verdade, referendando a reflexão kantiana que a única saída do homem para o
entendimento da verdade é o esclarecimento de si, de seu poder de decisão e de
coragem. (WEIZENMANN, 2013)
Esta retomada provoca a problematização sobre o sentido da verdade, frente
o poder e o sujeito articulando-os com as práticas atuais. Aponta a necessidade
do indivíduo em preocupar-se como seu próprio saber com vistas a tentativa de
superação da razão dominadora. Trata-se da última fase dos textos de Foucault, um
momento em que os pontos de resistência concernente ao poder ficam um pouco
mais explícitos.
A problematização proposta revela a estrutura do cuidado de si
compreendendo “cuidado de si, conhecimento de si, arte e exercício de si, relação
com o outro, governo pelo outro e dizer-a-verdade, obrigação desse outro de
dizer a verdade” (FOUCAULT, 2010, p.44). Indicando que o dizer a verdade tem
um destaque no estabelecimento de uma relação adequada com o outro, mas
também consigo mesmo. Cuidar de si significa, a partir dos apontamentos, como
“o conjunto das experiências e das técnicas que o sujeito elabora e que o ajuda a
transformar-se a si mesmo.” (REVEL, 2005, p. 33) Enquanto o governo dos outros
abarca um poder assujeitador pautado na política da verdade moderna.

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Esta definição é um prolongamento de um outro conceito de Foucault: a
governamentalidade, apresentada por Foucault (2008) como um conceito que
remete para o que o autor chama de “política externa” que trata da razão de Estado
e da “política interna” que aponta para o Estado de polícia compreendendo-a como
uma racionalização da prática governamental no exercício da soberania da política.
Revel (2005) ao aprofundar os estudos na definição do termo foucaultiano em outras
obras amplia as abordagens. A governamentalidade, num primeiro momento, pode
ser explicada como o

[...] conjunto constituído pelas instituições, procedimento, análises e


reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bastante
específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, como
forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos
essenciais os dispositivos de segurança. (REVEL, 2005, p. 54)

Este conceito explicita a utilização do termo da política interna e o mecanismo


da segurança como instituição social de controle. Outra abordagem refere-se a
ênfase dada para a necessidade de uma soberania, ou seja, do estranhamento do
autor ao compreender que não se problematiza a existência de um governo sobre
todos, não se considera possibilidades contrárias a esta condição. Uma característica
apresentada por Foucault como histórica.
Entretanto será no conceito de governamentalidade moderna que Foucault
irá apresentar o conceito definido na última obra selecionada e indicada para análise.
Neste o autor, ao evidenciar o governo dos outros, classifica o entendimento de
população como uma construção da gestão política implicada na vida os indivíduos,
uma ação da biopolítica. O movimento da governamentalidade pela biopolítica,
segundo Revel (2005, p. 55)

[...] implica, entretanto, não somente uma gestão da população, mas um


controle das estratégias que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter
em relação a eles mesmos e uns em relação aos outros. As tecnologias
governamentais concernem, portanto, também ao governo da educação
e da transformação dos indivíduos, àquele das relações familiares e
àquele das instituições.

Deste modo, Foucault amplia o governo dos outros para ao governo de si, num
desdobramento da dominação. As relações de poder se manifestam numa agitação entre
ser governado e governar. “Existir com ou outro” é uma inquietação presente em todos os
textos do autor, no exercício de estar no mundo é preciso se ater às manifestações de se
apoderar e ser apoderado.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
Considerações finais
A proposta de investigação nas obras de Michel Foucault relacionadas pelo
percurso histórico de publicação, sendo selecionadas: História da Loucura, Vigiar
e Punir e Governo de Si e dos Outros teve como objetivo analisar as estruturas de
poder que se apresentavam nas relações do discurso, considerando os três escritos
publicados em períodos históricos distintos. A partir desta finalidade foi possível
perceber que, para o autor, não há um poder único, mas relações em que são
estabelecidas diferentes formas de poder institucionais.
A descontinuidade histórica, confirmada nas obras do autor, demonstram
que as abordagens genealógicas estavam presentes antes mesmo do método ser
citado nas suas análises. A partir destes procedimentos de observação foi possível
identificar que a relação de poder disposta nas suas obras se apresentam numa
rede de efeitos os quais são indicadores de uma estrutura social complexa com
uma perspectiva muito difícil de superação. Embora a última obra analisada tenha
indicado pontos de resistência, percebe-se que para o autor são incipientes as
possibilidades de saída destes enlaces de submissão.
Considera-se, contudo, que pela sua complexidade e extensa produção,
esta proposta represente uma breve aproximação da teoria foucaultina sobre a
abordagem das relações de poder. O ponto de discussão indicado foi atingido num
entendimento amplo, sendo possível vasculhar muito mais as diversas obras do
autor e identificar pontos que se apresentaram neste trabalho como lacunares.

Referências bibliográficas
BARROS, M. E. B. (org.) Notas das aulas do curso de Michel Foucault “O Governo de si e dos
outros”. Vitória: Saberes Instituto de Ensino, 2013.
FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Média. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
______. O governo de si e dos outros. Curso no Cóllege de France (1982-1983). São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
______. Nascimento da Biopolítica: curso dado no College de France (1978-1979). São
Paulo: Martins Fontes, 2008.
______. Vigiar e Punir: nascimento da prisão 40. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
LEMOS, F. C. S. CARDOSO JR, H. R. A genealogia em Foucault: uma trajetória. In:
Revista Psicologia & Sociedade. Belo Horizonte, MG, v. 21. n. 3. p. 353-357, 2009. Disponível
em: <http://www.scielo.br/pdf/psoc/v21n3/a08v21n3.pdf>. Acesso em: 08 out. 2015.
MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.
VILAS BOAS, C. T. Para ler Michel Foucault. 2.ed. Ouro Preto: Imprensa Universitária da
UFOP, 2002.
WEIZENMANN, M. Foucault: sujeito, poder e saber. Pelotas: NEPEFil, 2013.

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ANAIS DO I SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS DO DISCURSO DA UNICENTRO | ISSN: 2526-1770 v. 1, n. 1
A PROPAGANDA NO ENSINO-APRENDIZAGEM DE
LÍNGUA INGLESA
Vera Lúcia Freitas Franco (UTFPR/CAPES)
Andréia Roberta Rossi Colet (UTFPR)
Didiê Ana Ceni Denardi (UTFPR)

Resumo: A propaganda pode ser tomada como um instrumento de contribuição para


o desenvolvimento linguístico, crítico e cultural dos aprendizes de língua inglesa. Par-
tindo dessa premissa e à luz da perspectiva teórico-metodológica do Interacionismo
Sociodiscursivo (BRONCKART, 2012), esta comunicação tem por objetivo apresentar
uma análise descritiva de um anúncio de propaganda extraído da revista americana
AFAR, especializada em produtos e serviços para viagens, de junho/julho de 2014. Es-
pecificamente, os conceitos “tipos de discurso” (BRONCKART, 2012) e “capacidades
de linguagem” (BRONCKART; PASQUIER; DOLZ, 1993, CRISTOVÃO; STUTZ, 2011)
foram utilizados para a análise do referido anúncio, cujo propósito é o de persuadir
possíveis turistas para hospedarem-se no hotel “Sofitel Chicago Water Tower” em Chi-
cago/Estados Unidos. Com relação ao tipo do discurso, a análise aponta para a predo-
minância do relato interativo, uma vez que o anúncio contém uma foto do hotel e uma
anotação verbal de um visitante elogiando o hotel onde esteve hospedado, portanto, a
interação entre texto e leitor é disjunta e autônoma. Já com relação à análise das capa-
cidades de linguagem do texto verbo-visual, nas capacidades de ação e de significação
identificou-se que a relação entre contexto de produção, objetivo e conteúdo temático
do texto verbo-visual é determinada pelos contextos histórico, sociocultural e econô-
mico – hotel luxuoso em uma cidade famosa dos Estados Unidos da América. Com
relação às capacidades discursivas e linguístico-discursivas observou-se através do for-
mato da propaganda – uma página de diário de viagem - que os elementos linguísticos,
semânticos e semióticos que as constituem contribuem para materializar o discurso na
propaganda impressa.
Palavras-chave: Interacionismo Sociodiscursivo. Capacidades de Linguagem. Propa-
ganda.

Introdução
A vida em sociedade requer que os indivíduos se apropriem dos sistemas de
representação e de conhecimentos historicamente construídos. Desta forma, não basta
apenas dominar a escrita, mas compreendê-la como um processo alfabético-ortográfico,
bem como dominar suas convenções, sendo capaz de ler e produzir textos em diversas
situações comunicativas. Ademais, o mundo contemporâneo demanda práticas de
ensino que objetivem não somente o desenvolvimento das habilidades linguísticas dos
alunos, mas também a formação de cidadãos críticos e conscientes a partir da interação
provocada em sala de aula buscando valorizar a concepção sobre temáticas variadas, ou
seja, no cenário atual, deve ser trabalhada e potencializada no aluno a “capacidade de
pensar criticamente”, incluindo neste leque de habilidades “contextualização, análise,
adaptação, tradução de informação e interação entre os indivíduos dentro e além de
sua comunidade” (BRYDON, 2011, p. 105).
Em vista disso, a sala de aula torna-se ambiente propício para elencar
questões relacionadas à reflexão e a criticidade, que proporcionam engajamento
nas mais diversas práticas sociais permeadas pela escrita, permitindo a construção
de saberes múltiplos que oportunizam um agir nas sociedades, cada vez mais
complexas em relação às suas formas de comunicação. Sendo também importante
oferecer oportunidades de vivências significativas com culturas e conhecimentos
necessários, para que haja um envolvimento em interações com textos seja na língua
materna ou em outra(s) língua(s), visando à integração em realidades marcadas
pelas múltiplas linguagens e pela diversidade.
Para tal, apresentamos breves considerações a respeito de como organizar as
capacidades de linguagem (BRONCKART; PASQUIER; DOLZ, 1993, CRISTOVÃO;
STUTZ, 2011) que cingem os gêneros existentes (SCHNEUWLY ; DOLZ, 2004), e que
tornarão a compreensão do gênero escolhido, em questão o gênero propaganda, um
trabalho dentro da perspectiva do interacionismo sociodiscursivo (ISD) propagado
por Bronckart (2012), com enfoque especial para a multiplicidade semiótica do
gênero propaganda a ser analisado. Em seguida, apresentamos considerações sobre
o contexto da análise e uma breve discussão de um anúncio na revista americana
AFAR voltada para produtos e serviços para viagens, edição de junho/julho de 2014.

Anúncio de propaganda na perspectiva do ISD


A perspectiva do ISD apresenta a língua como instrumento de comunicação
e agregada a essa ideia a presença de novas linguagens que circulam nos mais
diversos gêneros e que suscitam possibilidades de leitura mais produtivas em sala
de aula. Estamos nos referindo a outros campos da comunicação que vão além
da textualidade escrita, ou seja, a importância da linguagem visual no processo
de ensino-aprendizagem especificamente de LI. Pois, quando o professor dialoga
nas suas aulas com a dimensão verbo-visual, inúmeras outras possibilidades de
produção de sentido são elencadas. Para Brait (2010), o termo verbo-visual demanda,
necessariamente, um enunciado concreto no qual as dimensões verbal e visual
tornam-se indissociáveis, isto é, não permite separação, nem valoração de um em
detrimento de outro. Sendo assim, ambos são fundamentais para a compreensão do
enunciado como um todo:

Fazem parte das produções de caráter verbo-visual, em circulação em


diferentes esferas, charges, propagandas, capas de revistas, páginas de

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jornal, aí incluída a primeira, poemas articulados a desenhos, comunicação
pela Internet, textos ficcionais. (BRAIT, 2009, p.144)

Ao pautarmos a análise textual nas concepções do ISD, abordamos escalas


como, por exemplo, a identificação de informações específicas, a interpretação
e a reflexão. Sob o viés teórico-metodológico de Bronckart (2012), observamos
também os elementos da estrutura composicional, contexto de produção, conteúdo
temático, tipos de discursos, sequências textuais, mecanismos de textualização e
mecanismos enunciativos.
Para tanto, apresentamos uma breve análise de um anúncio de propaganda
conforme categorias de análise das capacidades de linguagem – ação, discursiva,
linguístico-discursiva e de significação, com o intuito de ilustrar como práticas
possíveis são construídas a partir da interação em sala de aula, processo de reflexão
das teorias do ISD e das capacidades de linguagem para se alcançar um ensino de
LI, mais informado e mais consciente para as questões de cidadania.
Seguindo esse raciocínio, ao olharmos a capa de revista abaixo,

Fig. 01 - Imagem da capa da revista AFAR. Edição de junho/julho de 2014

observamos, a princípio, que esta edição dá-se justamente dentre os meses


considerados dentro da melhor época para se visitar Chicago, pois é um período
de alta temporada, há diversos festivais, entre eles o de jazz e blues, a cidade
está mais “viva”, “agitada”, etc. Chicago é conhecida como a “Windy City” pela
grande presença de vento, um dos fatores pelos quais propicia uma maior visitação
justamente em altas temporadas, ou seja, especialmente no verão. Dessa forma, é

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um momento oportuno para que a rede de hotéis Sofitel tente chamar a atenção de
possíveis futuros hóspedes para a unidade em Chicago.
Vejamos o anúncio de propaganda inserido na página 45 da revista AFAR.

Fig. 02: Página 45 da Revista AFAR.

Edição de junho/julho de 2014

Passaremos agora a apresentar uma breve análise do anúncio de propaganda,


cujas categorias de análise são as capacidades de linguagem – ação, discursiva,
linguístico-discursiva e de significação.
Iniciamos pela capacidade de ação, a propaganda refere-se a rede de hotéis
Softifel, com algumas unidades espalhadas pelo mundo, veiculada na revista AFAR,
edição de junho/julho de 2014. A imagem mostra uma folha de diário de viagem,
indicando anotações de um hóspede do Sofitel Chicago Water Tower, incluindo
uma foto do hotel – supostamente feita pelo hóspede. A mensagem no diário de
viagem sugere a estadia do hóspede e este ressalta, em seu texto, qualidades do
hotel. Dessa forma, o anúncio busca chamar a atenção e despertar o interesse de
possíveis hóspedes por seu hotel.
Para melhor visualização, no Quadro 01 apresentamos os elementos
constitutivos da capacidade de ação divididos em tópicos, ou seja, o contexto de
produção; a discussão social sobre o texto propaganda; e os elementos constitutivos
de cada tópico observáveis na propaganda analisada.

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Quadro 01 - Capacidade de ação
Contexto de produção
Emissor: Rede de hotéis Sofitel (Sofitel Luxury Hotels)
Receptor: Possíveis pessoas com intenção de viajar para Chicago
Temática: Divulgação do Hotel, em Chicago
Esfera de circulação: Revista AFAR, produzida e publicada em 2014, nos Estados Unidos
Objetivo: Divulgar o hotel, unidade em Chicago, exatamente na época de alta temporada a fim de
atrair possíveis hóspedes.
Avaliar a adequação de um texto à situação na qual se processa a comunicação
O texto do anúncio está de acordo com a situação, pois sugere que se um diário de viagem de que já
esteve no hotel Sofitel, em Chicago, e sugere que todos quiseram fotografar o hotel que, de acordo
com o texto do anúncio, seria fotogênico tanto por dentro quanto por fora
Levar em conta propriedades linguageiras na sua relação com aspectos sociais e/ou
culturais
- “Archicterual landmark” - “... the heart of the magnificent mile”
- “... offering breathtaking views ...” - “my magnifique voyage”
- “amazing hotel” - “and the inside is just as photogenic”
- “a real architectural star” - “life is magnifique!”
- “Sofitel Luxury Hotels”
Uso frequente de adjetivos e estruturas positivas, ressaltando a experiência (também positiva) de
se hospedar no Sofitel Chicago.
Mobilizar conhecimentos de mundo para compreensão e/ou produção de um texto
“in the city that invented the skyscrapers, everyone wanted to photograph our amazing hotel”; “a
real architectural star”.
As frases acima revelam o destaque ao Hotel Sofitel, ressaltando sua arquitetura que, como
sugerido pelo texto, em nada perde para os “skyscrapers” da cidade, estando mesmo à altura
deles, já que todos quiseram fotografar o hotel.
Fonte: Elaborado pelas autoras

Prosseguirmos para uma breve análise da capacidade discursiva. Esta


capacidade compreende a infraestrutura geral do texto propaganda, ou seja,
refere-se ao plano geral, aos tipos de discurso e à organização sequencial do texto,
possibilitando a construção do sentido mediante representações e/ou conhecimentos
sobre as características próprias do gênero. O Quadro 02 resume as principais
características contempladas na leitura da propaganda da rede de hotéis Sofitel.

Quadro 02 - Capacidade discursiva


Tipo de discurso
Analisando-se o anúncio é possível identificar um tipo de interação disjunta, ou seja, não ocorrendo
no momento da leitura como seria o caso de diálogos por exemplo. Além disso, é também autônoma,
pois a revista circula e, portanto não tem, necessariamente, um local fixo. A comunicação não
depende de um determinado local para ocorrer. O anúncio poderia ser entendido como de ordem
implicada se for talvez pensado do ponto de vista do agente (anunciante) que necessita estar em
algum lugar e, neste caso, dentro do conteúdo da revista.
Tipo de sequência
Trata-se de um relato interativo, uma narração.
Estrutura global

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Layout = propaganda na página de uma revista contendo uma foto do prédio do hotel, contendo
informações de divulgação da localização do hotel no cartão de visitas no canto superior esquerdo.

O formato da propaganda sugere uma página de diário de viagem, contendo a foto do hotel no qual,
supostamente, o autor do texto teria se hospedado e suas anotações sobre a experiência no hotel.
Construção composicional
O anúncio apresenta dêiticos de local e tempo como o endereço, por exemplo: “20 East Chest-
nut Street – Chicago IL” – além de apresentar unidades em outros locais como as cidades que
aparecem ao final do anúncio, como informação de rodapé: “Chicago, Mumbai, Paris, Los An-
geles, et...” e em relação a tempo o anúncio traz logo abaixo da foto do hotel, à direita: “Sofitel
Chicago, July 28”.
Fonte: Elaborado pelas autoras

Ao analisarmos a capacidade linguístico-discursiva, verificamos que ela


possibilita a construção do sentido mediante representações e/ou conhecimentos sobre
mecanismos de textualização e enunciativos responsáveis pela coerência temática e
pragmática do texto. Como podemos observar no Quadro 03 que segue:
Quadro 03 - Capacidade linguístico-discursiva
Mecanismos de textualização
Coesão nominal: Como anáforas, aparecerem, por exemplo, as palavras: “magnifique” (2 vezes);
“architectural” (2 vezes)

Coesão verbal: Passado: “invented”, “wanted”. Com o uso desses verbos no passado fica clara a
ideia de que a experiência da viagem “My Magnifique Voyage” já aconteceu
Mecanismos enunciativos
O texto trabalha com expressões como “skyscrapers” e “architectural star”. É importante ressaltar
que, a ideia de skyscaper é um dos itens pelos quais a cidade é famosa, pois o primeiro arranha
céu (skyscraper) do mundo foi construído em Chicago, portanto, chamar o Sofitel Chicago Water
Tower de “a real architectural star” ressalta, dentre outras, mais uma de suas qualidades: ele é um
“skyscraper” com 32 andares no centro de Chicago.
Fonte: Elaborado pelas autoras

Cristóvão e Stutz (2011) evidenciam aspectos mais amplos, dentro da capacidade de


significação, relacionados aos contextos ideológico, histórico, sociocultural, econômico,
dentre outros. No caso do texto propaganda inserido na revista AFAR, destacamos tais
aspectos de forma a ordená-los, no Quadro 04. Desta forma, procuramos apresentar
uma análise concisa de alguns critérios compreendidos na capacidade de significação
da linguagem, possibilitando a construção do sentido mediante representações e/ou
conhecimentos sobre práticas sociais; a compreensão da relação entre textos e a forma
de ser, pensar, agir e sentir de quem os produz; e a compreensão de conjuntos pré-cons-
truídos coletivamente.

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Quadro 04 - Capacidade de significação
Contexto ideológico, histórico, social, cultural, econômico
O conteúdo do anúncio mostra a experiência de quem pode se hospedar em um hotel de luxo. O
texto sugere que o simples fato de estar no Sofitel já é algo de muito sofisticado quando em uma
viagem e, por isso, merece ser fotografado, pois sua arquitetura é tão interessante quanto a dos
outros prédios: “Discover our architectural landmark”.
Num contexto de viagem as pessoas normalmente fotografam tudo que lhes é interessante e bonito,
além de registrar os momentos vividos. No caso do anúncio, a foto e o texto ilustram as três ideias
quanto ao item fotografado: o hotel é interessante e bonito, e a foto é também o registro do momen-
to vivido: a estadia no hotel que é sugerido como tão magnífico quanto à cidade.
Fonte: Elaborado pelas autoras

Em relação às características de capacidades de linguagens mencionadas


nos quadros, ressaltamos que é possível ainda tratar de outros detalhes e aspectos
das mesmas. No entanto, para o que o tamanho deste trabalho permite, ficaram
destacados os pontos considerados mais relevantes para este estudo.

Considerações finais
A propaganda, de modo geral, utiliza, dentre muitas outras características,
a criatividade e a persuasão na busca de atrair o público de determinado produto
ou serviço. Neste trabalho, o anúncio analisado é o do hotel Sofitel, intitulado “My
Magnifique Voyage” que divulga o Sofitel Chicago Water Tower, localizado em
Chicago, Estados Unidos, e que busca atrair possíveis turistas com o intuito de fazê-
los se hospedar no hotel. Desta forma, o anúncio busca ressaltar fatores importantes
para cumprir sua missão, tais como sua arquitetura, excelente localização por ser no
centro de Chicago - conhecido também por “The Mag Mile”, nome dado a uma parte
da Michigan Avenue, por sua beleza, dentre outros, e chama atenção também para
a palavra “magnifique”, retomando o título do anúncio (My Magnifique Voyage):
“life is magnifique!”.
Após observarmos, de forma geral, as características do anúncio, buscamos
verificar as possíveis contribuições que a propaganda poderia proporcionar quando
utilizada no contexto de ensino de línguas em geral e, em especial neste estudo, a
língua inglesa.
Verificamos a possibilidade de auxiliar os aprendizes além da aquisição de
vocabulário e contato com informações de outra cultura: 1) conhecer a relação do
material verbo-visual com o tipo de discurso que apresenta, neste caso o discurso
interativo; 2) conhecer, identificar e mobilizar capacidades de linguagem do texto
verbo-visual, o que permite aos alunos relacionar o contexto de produção, objetivo
e conteúdo temático do anúncio através do contexto histórico, sociocultural e
econômico, no caso das capacidades de ação e de significação; 3) proporcionar

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aos alunos formas de reconhecimento do gênero, compreendendo que se trata de
discurso em propaganda impressa, facilitando essa compreensão por meio das
capacidades discursivas e linguístico-discursivas.
Considerando, neste trabalho, algumas das contribuições que a propaganda
pode proporcionar durante o ensino de línguas, pois há inúmeras formas de trabalho
e benefícios que o uso da propaganda pode trazer para a sala de aula e que, devido
ao propósito e tamanho deste trabalho, serão consideradas para estudos futuros,
concluímos que o uso de anúncios para análise em sala de aula, pode proporcionar,
aos alunos, a oportunidade de uma análise mais crítica ao se depararem com uma
propaganda e assim fornecer-lhes opções de como se posicionar em relação a ela.
Esperamos assim, auxiliar na formação de alunos, portanto cidadãos, mais críticos e
melhor preparados para analisar as mensagens que recebem ao seu redor.

Referências
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sociodiscursivo. Trad. Anna Rachel Machado, Péricles Cunha. 2 ed. 2 reimpr. São
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