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FRAGMENTOS DO PORVIR

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Comitê Editorial

Rafael Haddock-Lobo - Universidade Federal do Rio de Janeiro


(organizador da Coleção X)

Conselho Editorial

Ana Luisa Mallet - Universidade Estácio de Sá & Universidade Federal do Rio de Janeiro
Carlos Dimas Martins Ribeiro - Universidade Federal Fluminense
Carolina Magalhães de Pinho Ferreira - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Cinara Maria Leite Nahra - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Cristiane Maria Amorim Costa - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Diana Inés Pérez - Universidad de Buenos Aires | Argentina
Diogo G Vianna Mochcovitch - Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Goiás
Fabio Alves Gomes de Oliveira - Universidade Federal Fluminense
Gabriela Alejandra Veronelli - Universidad Nacional de San Martin | Argentina
Guilherme Dias da Fonseca – Université Clermont Auvergne | França
Heloisa Buarque de Hollanda - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Joshua M. Price - State University of New York | EUA
Manuel Villoria Mendieta - Universidad Rey Juan Carlos | Espanha
Maria Andréa Loyola - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Maria Clara Dias - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Martina Davidson - Universidade Federal Fluminense
Mary Garcia Castro - Facultad Latino Americana de Ciencias Sociales
Michelle Cecille Bandeira Teixeira - Universidade Federal Fluminense
Miriam Pillar Grossi - Universidade Federal de Santa Catarina
Murilo Mariano Vilaça - Fundação Oswaldo Cruz
Paula Gaudenzi – Fundação Oswaldo Cruz
Rafael Haddock-Lobo - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rafael Ioris – University of Denver | EUA
Rita Leal Paixão - Universidade Federal Fluminense
Suane Felippe Soares - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Suely Messeder - Universidade do Estado da Bahia
Vanessa Neitzke Montinelli - Instituto Nacional do Câncer
Wallace dos Santos de Moraes - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Yuderkys Espinosa Miñoso - Facultad Latino Americana de Ciencias Sociales

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Vinícius
da Silva
FRa

GMEN
TOs
do
porvir

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Copyright desta edição ©2021 by Ape’Ku Editora e Produtora Ltda

Foi feito o depósito legal conforme Lei 10.994 de 14/12/2004


Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da editora

Produção de capa: Ape’Ku Editora


Arte: “Sem título”, acrílica sobre tecido, 2021 - Vinícius da Silva
Produção gráfica: Ape’Ku Editora

Direitos de reprodução desta edição reservados à


Ape’Ku Editora e Produtora Ltda
contato@apeku.com.br
www.apeku.com.br

dados internacionais de catalogação na publicação (cip)

D111f da Silva, Vinícius


Fragmentos do porvir / Vinícius da Silva (Coleção X, coordenação de
Rafael Haddock-Lobo)– Rio de Janeiro: Ape’Ku, 20212
168 p. ; 23 cm.

ISBN 978-65-80154-38-8 versão impressa

Inclui bibliografia.
1. Filosofia. 2. Ética (moral). 3. Racismo. I. Título. II. Autor.

CDD 170

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Eu dedico este livro às redes de solidariedade que foram tecidas pela Winnie-
Teca desde o começo da escrita deste livro, à memória de todas as pessoas que
morreram ou foram mortas em nome de seus sonhos, às pessoas que lutam
por um outro amanhã e àquelas que, mesmo que de forma indireta, também
assinam este livro comigo.

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Sumário

11
AGRADECIMENTOS

15
APRESENTAÇÃO
POR WANDERSON FLOR DO NASCIMENTO

19
PREFÁCIO
POR WINNIE BUENO

23
INTRODUÇÃO

31
POLÍTICAS DO AMOR E
SOCIEDADES DO AMANHÃ

47
TEM SAÍDA?
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE RACISMO
AMBIENTAL E HORIZONTES PARA A CONSTRUÇÃO
DE UM NOVO MUNDO

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61
“NÃO É MONSTRUOSIDADE, É RACISMO”:
ENTREVISTA COM VINÍCIUS DA SILVA
E WANDERSON FLOR DO NASCIMENTO

75
“A GENTE COMBINAMOS DE NÃO MORRER”:
CORPOS EM ALIANÇA,
RESISTÊNCIA POLÍTICA E DISPUTAS DE NARRATIVAS

83
AMOR, SIGNIFICANTE DESPÓTICO
– UM DIÁLOGO COM HELENA VIEIRA

107
POR UMA POLÍTICA DO PORVIR:
ONTOLOGIAS DE UM FUTURO (IM)POSSÍVEL

161
PÓSFACIO
POR ROBERTA RIBEIRO CASSIANO

165
SOBRE O AUTOR

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“O Brasil não é mais o país do futuro, porque, a rigor,
não existe mais futuro. O novo não para de nos afogar,
mas o futuro já foi conhecido. O novo não para de nos
sufocar, mas o futuro já foi conhecido. O novo não para
de nos refogar, mas o futuro já foi conhecido. São mil
milhões de novidades, mas nenhuma vem redimir o fu-
turo. Ficção e realidade se misturam. Ficção e realidade
são uma mesma coisa. O futuro é narrado no tempo pre-
sente. O presente – esse tempo em que é possível fazer
coisas – é por onde começamos a destruir o futuro. Mas
o futuro já foi conhecido.” (Lara Ovídio, “Notas sobre
o desperdício: uma investigação sobre a experiência do
tempo na contemporaneidade”, p. 83)

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é o ato de afeto e reconhecimento mais importante de um


acontecimento positivo. Meus agradecimentos, neste livro, não se limitam a
alguns parágrafos, pois o livro que você tem em mãos é fruto de um projeto
coletivo que, finalmente, ganha forma a partir de minha escrita esperançosa.
Por isso, cito nominalmente apenas as pessoas mais importantes (e que se en-
volveram diretamente) para a concretização deste projeto.
Agradeço imensamente ao apoio de minha família: Cristina, Nilzete
e Gustavo, minha mãe, avó e irmão, respectivamente, três pessoas impor-
tantes em minha vida que vêm acompanhado de perto o passo-a-passo dessa
trajetória. Expresso, também, profunda gratidão ao apoio de familiares mais
distantes, mas que também acompanham meu trabalho.
Queridos professores, vocês foram e são cruciais em minha trajetória.
Dedico cada linha deste livro aos ensinamentos que vocês passaram a mim,
através de aulas, orientações e diálogos afetuosos. Sou grato por cada aula que
tive, sem a qual não seria quem sou, especialmente no Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) - Campus Nilópo-
lis. Vocês acreditaram em mim e em meus sonhos quando parecia não haver
como realizá-los.
Às minhas amigas mais próximas – Angie, Karine, Kelly, Lidiane,
Nicole e Vitória –, que provam que “família” não é uma instituição estabelecida
por laços consanguíneos, mas sim por afeto, reconhecimento e companhia.
Vocês me ensinaram que as pedras que carregamos não precisam ser levadas
em nossas costas.
Agradeço à recepção e equipe da Ape’Ku Editora, ao professor Rafael
Haddock-Lobo por ter criado as condições para a publicação deste livro e às
pessoas que aceitaram tecer diálogos para a construção deste projeto – An-
dressa Dutra, Helena Vieira, João Pedro Monteiro, Luana Luna e Matheus
Chagas. À Winnie Bueno, quem me ensinou que teoria crítica pode ser pro-

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duzida em primeira pessoa e me apresentou a potência do pensamento fe-
minista negro, pela contribuição em forma de prefácio; Roberta Cassiano,
cuja orientação filosófica foi crucial para o meu desenvolvimento acadêmico e
afeto ultrapassa as paredes da Instituição, pelo posfácio que encerra esta obra.
À assessoria de Lucas Abreu que, gentilmente, auxiliou-me em meus cursos ao
longo do ano, enquanto eu dava aula, estudava e escrevia.
Agradeço ao excelente trabalho de transcrição de Creolla Andrade.
Agradeço às amizades do nosso grupo “Filosofia Africana”, no WhatsApp –
Adilbênia Machado, Lorena Oliveira, Katiúscia Ribeiro, Aline Matos, e tantas
outras pessoas que, de alguma forma, são importantes para este trabalho; agra-
deço especialmente ao professor wanderson flor, querido amigo e parceiro que
confiou e motivou desde o início (n)a realização de meus projetos acadêmicos
em meio à pesquisa solitária sobre bell hooks no Brasil.
Por fim, de forma mais ampla, agradeço ainda o imenso apoio que
recebo de pessoas que, fielmente, têm acompanhado meu trabalho através das
redes; muitíssimo obrigado pela confiança.

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Apresentação

O livro de Vinícius da Silva é um presente. Em muitos sentidos. Em


tempos mortais, em que adoecimentos de todo tipo nos rondam intensamen-
te, pensar em outros futuros, futuros menos opressivos, mais amorosos é um
ímpeto político, um alívio, um motivo de esperança.
As sociedades ocidentais resolveram pensar que as pessoas jovens são
o futuro. E aqui, Vinícius traz sua contribuição para esse projeto de futuro de
uma maneira crítica, lúcida, amorosa. Sem cair na pieguice poliânica de um
amor que tudo remedia, em um romantismo ingênuo, o livro propõe uma
abordagem política do amor, em diálogo com algumas das bibliografias mais
recentes e arrojadas sobre o tema.
O amor aqui é uma atitude e um desafio. Um desafio consciente de
que tipo de mundo vivemos e de que tipo de mundo recusamos, mesmo sem
a certeza de que tipo de mundo teremos. A proposta de Vinícius sabe que há
uma tensão em torno do poder e que isso determina, também, um jeito de
querer o futuro e de recusar o amor como afeto político de resistência, forta-
lecimento, enfrentamento de formas múltiplas de opressão como o racismo, o
sexismo, as LGBTfobias, o classismo, a destruição ambiental etc.
E sabe que buscar futuros outros implica em disputar os projetos de
mundo, frente a essa proposta hegemônica, odiosa e mortal, em que o aqui e
o agora, destrutivo de subjetividades e de mundos, se torna o objetivo final.
Percorreremos, aqui, as páginas oferecidas por um jovem e refinado inte-
lectual que está atento às disputas e discursos sobre o poder; sem fascínios, com os
pés no chão, instruído pelas propostas de uma ancestralidade negra e indígena que
possam nos auxiliar a criticar as estruturas perversas do tempo presente e buscar
alternativas para um futuro, que seja diferente desta atualidade mortificadora.
Essa aposta no futuro parte de um presente. O livro-presente é também
um livro-convite, um livro-conclame, um livro-provocação, que nos chama
à responsabilidade enquanto herdeiras e herdeiros de um colonialismo que

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resiste em nos abandonar, enquanto formadas e formados por um cis-hete-
ropatriarcado, que insiste em controlar corpos e mentes de modo violento,
enquanto imbuídas e imbuídos de um antropocentrismo destrutivo da natu-
reza, enquanto desejantes uma branquitude que ordena o mundo, segregando
vidas, mortificando existências. É um livro-resistência, um livro quilombista
que nos convoca a sermos novamente quilombos.
Algumas linhas diretrizes atravessam o argumento de Vinícius ao lon-
go destes textos com os quais somos brindados. A necessidade do enfrenta-
mento ao racismo e ao patriarcado como condição de possibilidade de cons-
truir um mundo minimamente acolhedor dos diversos sujeitos humanos que
habitam este mesmo mundo; o imperativo de amar como gesto transforma-
dor de quem somos e do mundo que buscamos, de modo crítico, engajado,
potencializador das existências; a consciência de que a natureza não é nossa
casa, não é recurso, não é uma coisa aí, dada às nossas vontades e que é ex-
tremamente perigoso estabelecer com a natureza as mesmas relações de poder
opressivo que manejamos entre os seres humanos.
Estas linhas nos trazem elementos para a crítica, mas também para
propostas de um pensar conjunto, na busca disso que o livro chama de “polí-
tica do porvir”. Não basta apenas saber que as coisas não vão bem. É preciso
agir, fazer algo, e evitar, na resistência, a lógica bélica e mortal de um nós
contra eles, que faz circular a violência de uma maneira particularmente atroz.
Seguindo bell hooks e Cornel West, Vinícius da Silva aposta que essa ação,
esse gesto, deve ser amoroso, fundado em uma política do amor.
Um fazer outro, uma ação que nos afaste do contexto mórbido da
necropolítica, pode aparecer, nesse cenário, como antídoto para as nefastas
prática e lógica políticas de transformar o mundo em um tabuleiro de mortos-
-vivos, em desamor, prestes a morrer, matar ou matar-se. Um fazer amoroso
que tem um inexorável compromisso com a justiça – que é ao mesmo tempo
restaurativa e redistributiva –, que sabe que o caminho para a liberdade ca-
minha pela articulação fundamental entre o individual e o coletivo, portanto,
evitando as lógicas individualistas que sustentam a competição entre os sujei-
tos humanos e sua subjugação.
Essa dimensão comunitária das sociedades do amanhã está em forte
alinhamento com o pensamento negro africano e diaspórico, além do pensa-

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mento dos povos originários, seja pela presença da heroína teórica do livro,
bell hooks, seja pelas outras referências trazidas ao livro que nos fazem pensar
que a ênfase no individualismo é umas das sendas pelas quais os tempos mor-
tais se reproduzem.
Ao fim e ao cabo, o amor aparece como uma maneira de aprender a
viver com, a viver junto, a viver em revoada. Nestes tempos necropolíticos
em que a aversão aos outros se mostra como uma norma, retomar um senso
comunitário é revolucionário. E se a trilha para essa proposta é o amor, temos
um bonito e potente instrumento para lidar com os inevitáveis conflitos que
se dão na vivência coletiva.
Os outros, o mundo, a política não são apenas pretextos para pensar-
mos no amor como lógica política, mas também para não cairmos em imagens
meramente utópicas da dimensão política do amor. Não estamos no campo
do meramente especulativo de afirmar que as vidas negras, de mulheres, das
pessoas LGBTs e de todas as outras vidas expostas à morte importam.
Este livro é um chamado para fazer outros mundos, em que a dife-
rença não implique em um desejo de extermínio. Um chamado para que
o amor nos atravesse como força-ação, como um dínamo espiritual, políti-
co, moral e epistêmico para a construção de um mundo justo, equânime,
transgressor de normas opressivas, plural.  

wanderson flor do nascimento


Professor de filosofia da Universidade de Brasília
Brasília, junho de 2021.

Vinícius da Silva 17

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Prefácio

Durante muito tempo os processos de produção de conhecimento


estavam engessados às normas acadêmicas que subestimaram, silenciaram e
ocultaram os saberes de pessoas negras. Tudo aquilo que era tido como conhe-
cimento crítico engessava a métodos e formas que excluíam o conhecimento
produzido pela negritude. Esse cenário foi alterado pelas próprias lutas e es-
tratégias da intelectualidade negra. O livro que Vinícius nos apresenta agora é
resultado direto dessas lutas. O saber que Vinícius produz é fruto das estraté-
gias de valoração e validação da intelectualidade negra.
As palavras que você está prestes a conhecer são oriundas de esforços
autônomos de um jovem negro que entende o tamanho do legado que carrega.
Trata-se de um exercício bonito de solidariedade epistêmica que envolve múlti-
plos campos de saberes e múltiplos sujeitos de conhecimento. Vinícius nos pro-
põe um exercício de reflexão que não se encerra nas páginas do livro, nos convi-
da a pensar o conhecimento em circularidade, nos instiga a pensar o saber como
e em movimento. Coisa de quem tem o coração tomado pelas esperanças da
juventude e a mente aguçada com o compromisso de apontar outros caminhos.
Os caminhos de Vinicius são caminhos que negam ao essencialismo.
Caminhos que buscam dialogar com as epistemologias feministas negras, com
a filosofia e com outros saberes que não necessariamente foram nomeados. Os
caminhos de Vinicius são construídos a partir de uma disposição ao diálogo.
A partir desses caminhos, ele fala sobre o amor. E falar sobre o amor desde o
lugar que Vinícius fala significa falar de amor a partir de uma perspectiva de
ruptura com o que já está posto sobre o amor.
A própria construção desse livro é um exercício prático do que Viní-
cius afirma sobre o amor. Os afetos dele estão neste livro de várias formas e em
vários lugares diferentes propondo uma teoria política que se articula a partir
destes afetos. Além disso, ele exerce os aprendizados da própria vivência para,
como quem aponta um espelho, refletir um contínuo de conhecimento.

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O primeiro convite reflexivo que se estabelece nesta obra parte da
premissa de bell hooks sobre o amor. Vinícius é mais que um leitor de hooks,
é um especialista na obra da autora que se fez por sua própria vontade e pelas
conexões afetivo-intelectuais que construiu antes mesmo de ingressar efeti-
vamente na academia. A leitura que é feita de bell hooks nessa obra se dá
sem atalhos, é forjada em um compromisso real em compreender, analisar,
desdobrar e espraiar o trabalho intelectual de bell hooks. Uma escolha que
só pode ser feita por alguém que é desprendido das vaidades acadêmicas, por
alguém que realmente se compromete com o conhecimento como ferramenta
de resistência e emancipação.
Vinícius coloca o amor de bell hooks para dialogar com Achille
Mbembe, Sobonfu Somé e Sueli Carneiro, e revela seu apreço por extrair co-
nexões possíveis entre a intelectualidade da diáspora, apresenta uma leitura do
amor a partir de bell hooks que não se encerra nela mesma e, tampouco, na
própria interpretação que ele destina aos escritos de hooks termina.
Este livro também tem o condão de apresentar a potência intelectual
do próprio Vinícius, um dos teóricos mais promissores que já conheci. Vini-
cius é um jovem intelectual em vários sentidos, mas a sua juventude é uma
das forças mais bonitas de seu pensamento. Sua sede de conhecimento é tão
imensa quanto sua juventude. Contudo, apesar de jovem, Vinicius já realizou
muito. De forma bonita, entrega parte de suas realizações como pesquisador
a partir de diálogos sobre racismo ambiental que desaguam em reflexões po-
líticas e filosóficas que apontam saídas para esse tipo de violência que muitas
vezes é secundarizada.
Há nesta obra, ainda, uma possibilidade de compreender detalhada-
mente do que é feito o que o Vinícius pensa. Quem são suas principais re-
ferências intelectuais, seus mentores, professores, amigos e apoiadores. É do
afeto e do compartilhamento que é feito o pensamento de Vinícius e isso está
bastante evidente no livro que você tem em mãos. Quisera que todos os jovens
pesquisadores fossem capazes de respeitar com tanto carinho e reportar de
maneira tão genuína sua gratidão àqueles que lhes ajudaram a pensar.
Aqui também conhecemos o futuro que Vinícius almeja, do que ele
quer fazer parte, para onde ele quer caminhar, formas que ele acredita que é
possível lutar e resistir sendo um jovem homem negro LGBT. Assim, como

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grandes ativistas da luta negra, Vinicius propõe alianças, políticas de coalizão
a partir da solidariedade e de uma leitura crítica do quilombismo de Abdias
do Nascimento.
Há uma infinidade de diálogos postos e explícitos nesse livro e tantos
outros diálogos que se tornam possíveis a partir da leitura dele. Eu tenho tido
a honra de dialogar com Vinicius já há alguns anos, espero que você se per-
mita a este diálogo e que seja permeado por ele. É uma experiência reveladora
que nossas expectativas com a juventude e seu potencial político-crítico não
são em vão.
Boa leitura.
Winnie Bueno

Iyalorixá, pesquisadora, escritora e idealizadora da Winnieteca, um projeto


de democratização do acesso à leitura para pessoas negras

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Introdução

Este livro é fruto de uma coletividade e de uma mutualidade revolu-


cionária sem as quais estas linhas não ganhariam forma. De um lado, a teoria
– produzida a partir, sobretudo, da práxis política de intelectuais negras – e de
outro, a contribuição de pessoas queridas que, ao longo das aulas, palestras e
discussões, forneceram elementos cruciais para o desenvolvimento desta obra,
meu primeiro e talvez único livro de não-ficção.
Primeiramente, é importante salientar que este livro apresenta uma
tese que tem sido pensada e repensada desde 2019. As premissas apresentadas
nos capítulos iniciais serão, gradativamente, pensadas e articuladas ao longo
dos capítulos de maneira capilar. Isto porque parto do pressuposto de que um
conhecimento que se pretende encerrado não fornece elementos para a trans-
formação social efetiva. Por isso, ressalto que este livro se trata de um pontapé
inicial para a construção de um pensamento sobre amor e futuro.
Nesse sentido, este livro é um dos resultados das inúmeras articula-
ções teóricas e políticas de um jovem negro que busca construir, a partir da
filosofia e da ação coletiva, outros fins de mundo que não a morte. Repito:
aqui, vocês encontrarão uma série de proposições que não se pretendem
enquanto finalizadas, mas que organizo neste livro para que elas sirvam,
de alguma forma, a quem objetiva buscar caminhos. Afinal, é isto que este
livro fornece: caminhos. Nunca um destino. E buscando caminhos, escre-
vi este livro porque gostaria de tê-lo em mãos quando comecei a estudar
a questão do amor – à época, a partir do pensamento da intelectual negra
estadunidense bell hooks, cujo pensamento é meu “objeto” de pesquisa
desde 2017.
Eu comecei a escrever – ou melhor, organizar (e reescrever) os ensaios
que o compõem – este livro, ainda no final de 2019. Eu pretendia publicá-lo
em 2020, mas, com o tempo, percebi que as ideias contidas nesta obra ainda
não estavam “prontas” – ou melhor, bem-organizadas –, era preciso mais. De-

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cidi, então, reescrever e reorganizar estes ensaios que hoje chegam às suas mãos
com uma edição/publicação cuidadosa da Editora Ape’Ku.
Ainda sobre o processo de escrita, escrevi este livro no intervalo entre
as aulas, no tempo livre entre as tarefas da pesquisa, no descansar das minhas
traduções, em madrugadas que passei em claro... e mesmo assim, é preciso re-
conhecer que este livro não foi escrito só por mim, seja devido às coautorias de
alguns ensaios e diálogos aqui presentes, seja devido às construtivas discussões
que tive em aulas, cursos e palestras que dei ao longo dos dois últimos anos.
Nesse sentido, este livro é a materialização de um projeto coletivo.
Quando comecei a estudar a questão do amor, com Salvation: black
people and love (2001),1 em 2017, de bell hooks, percebi que não tínhamos,
em solo nacional, um material tão conciso como a obra de hooks – que foi
traduzida para o português, pela primeira vez, em 2013, 32 anos após sua
primeira publicação (1981) no Brasil. Por isso, considero ter sido importante
o meu trabalho de tradução e difusão dos escritos de hooks sobre amor du-
rante, principalmente, os anos de 2018 e 2019, e o trabalho de tradução de
Carol Correia, que começou a traduzir hooks no Medium antes de mim; hoje
trabalhamos em conjunto. Infelizmente, ainda hoje, as obras de intelectuais
negras são pouco ou mal traduzidas devido à lógica capitalista de um mercado
editorial que não preza pela qualidade do trabalho produzido por pessoas ne-
gras ao longo das últimas décadas.
Falar de amor no Brasil, um dos países que mais mata pessoas negras e
LGBTs, é sempre um desafio, pois não se costuma enxergar no amor uma poten-
cialidade política e ética que nos conduzirá à mudança. É normal que entendamos
o amor como “gostar” de ou estar apaixonado por alguém. No entanto, segundo
hooks, pensar em amor não é pensar em relações românticas. O amor ultrapassa a
dimensão subjetivo-psicológica do sujeito e emerge como estratégia política frente
às políticas de morte (o argumento central deste livro). Nesse sentido, como vocês
observarão ao longo dos ensaios, talvez o assunto do qual estejamos falando não
possa ser chamado de amor. Essa é uma das armadilhas da linguagem, nem sem-
pre a sua estrutura binária é capaz de significar as dinâmicas do ativismo e da busca
por justiça social – que é o caso da “ética do amor” de hooks.

1  HOOKS, bell. Salvação: pessoas negras e amor. Trad. Vinícius da Silva. São Paulo: Editora Ele-
fante, no prelo (quando da publicação deste).

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hooks entende o amor enquanto uma prática (política) e diz que nossa
dificuldade em amar é consequência do fato de não definirmos o que é amor.
O primeiro passo para se conhecer a dimensão ético-política do amor é pensar
um novo projeto de sociedade. Pensar novos paradigmas sociais é uma tarefa
coletiva. A comunidade é um lugar a partir do qual teorias potentes podem
nascer. Teorias que pensem um novo amanhã, que construam mundos habi-
táveis para a humanidade. Nesse sentido, o filósofo Severino Ngoenha2 afirma
que o futuro é agora, que o futuro deve ser encarado como um desafio para o
nosso tempo presente. Para Ngoenha, o futuro é compreendido enquanto um
conjunto de projetos, possibilidades, esperanças e liberdades.
Dessa forma, defende-se, aqui, que uma teoria que se proponha a
pensar novos amanhãs deva ser, necessariamente, antirracista e anticapitalista
(tendo em vista que o capitalismo brasileiro se articula profundamente com
o racismo e outros sistemas de dominação, de modo a não ser possível operar
a partir de paradigmas duplos ou triplos). O exercício de pensar uma política
do porvir (não necessariamente do futuro) surge, então, como um exercício
de disputa pela sobrevivência ou pela busca de outros fins possíveis para a
humanidade. Como diria Cornel West, é a esperança o motor da busca pela
mudança. O que chamamos de amanhã (ou novos amanhãs) emerge, então,
como uma metáfora para dias melhores, menos ruins.
Salientando a esperança3 como escolha política, como o princípio
operante de um novo projeto, em Amanhã vai ser maior, a antropóloga Ro-
sana Pinheiro-Machado levanta um ponto importante: o estar no coletivo.
Como dito, a comunidade emerge como um local de fazer teorias e sendo esse
local, o fato de estarmos juntos é essencial para se pensar um amanhã maior e

2  NGOENHA, Filosofia africana das independências às liberdades, 1993.


3  Sobre isso, Helena Vieira aponta algo interessante (que será aprofundado e discutido posteriormen-
te): “E justamente alguns tendem a dizer que a esperança seria um sentimento para se contrapor a
esse período. Eu discordo. A esperança é uma paixão triste. A esperança é a certeza de um final feliz.
A esperança é absolutamente colonizada. Os europeus têm esperança. Para nós, esse sentimento não
cabe. Nós temos nossa vida constituída a partir de inúmeras mortes, da história, do fim de inúmeros
mundos, do fim de inúmeros povos, e justamente por isso não nos cabe ter esperança, nos cabe imagi-
nação. E nesse sentido, pensar a imaginação é pensar que temos de encontrar alguma coisa que ainda
não está aqui. Se imaginar uma saída é o que nos resta, significa que ela não existe. Significa que não
há saída, a não ser aquela que nós vamos ter de inventar.” (No debate “A imaginação como potência,
realizado na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020, com a participação de Bernar-
do Oliveira, Helena Vieira e Ivana Bentes, com mediação de Francis Vogner dos Reis).

Vinícius da Silva 25

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melhor, como sugere Pinheiro-Machado. Nesse sentido, hooks também pensa
a importância da mutualidade na construção daquilo que, a partir do pensa-
mento de Martin Luther King Jr., a autora chama de “comunidade amada”.
Em suas palavras:

Os indivíduos que fazem parte da comunidade amada


já estão em nossas vidas. Nós não precisamos buscar por
essas pessoas. Nós podemos começar onde estamos. Nós
começamos nossa jornada com amor e o amor sempre
nos levará de volta para onde começamos. Escolher o
amor pode curar nossos espíritos feridos e nosso corpo
político. Esta é a mais profunda revolução, o afastamen-
to do mundo tal como o conhecemos em direção a um
mundo que devemos construir se formos um só para
com o planeta (...). O amor é a nossa esperança e a nossa
salvação.4

Pensar em um outro fim de mundo pode ser uma utopia? Sim, mas
utopias não devem mirar o impossível, como sugere Felwine Sarr.5 Para o
filósofo, as utopias não nos entregam a um doce devaneio, mas servem como
instrumentos para se pensar configurações dos possíveis e os espaços do real
a serem alcançados através do pensamento e da ação. Trata-se, portanto, de
uma tarefa coletiva e que necessita de mobilização, caso contrário, para onde
iremos nós? Tendo em vista que a coletividade é o centro da ação política,
considero ser o amor (esse termo que ao longo do livro pode ser renomeado) o
princípio ético e político necessário para que não cometamos mais os erros do
passado ao pensarmos novos projetos de sociedade que se baseiam na plurali-
dade e comunitarismo. Estamos falando do amor enquanto estratégia política.
Com este livro, busco teorizar o amor enquanto uma tecnologia/téc-
nica política. Aqui, tomo emprestado a definição de “técnica/tecnologia” de
Foucault.6 Para Foucault, as tecnologias (do poder) têm como função prin-
cipal gerenciar e regular a vida. Foucault estaria, então, mais preocupado em
compreender as dinâmicas das tecnologias de disciplina do corpo através dos
4  HOOKS, Salvation, p. 225. Todas as traduções de obras em línguas estrangeiras são nossas, a não
ser que o título da obra esteja sendo referenciado em português.
5  SARR, Afrotopia, 1960.
6  CASTRO, Vocabulário de Foucault, p. 412.

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diferentes dispositivos do poder, mas aqui estou preocupado em compreender
como o amor é, também, uma tecnologia política, no que tange a articulação
de múltiplas técnicas de cuidado e mutualidade. Talvez possamos chamar isto
de deslocamento epistemológico, mas quero propor uma expansão – ou talvez
uma ressignificação nos moldes foucaultianos.
Nesse sentido, uma tecnologia política compreende um conjunto de
práticas (políticas), as quais podemos chamar de técnicas, que possuem um ob-
jetivo específico. Para fins de distinção terminológica, podemos assumir técnicas
enquanto meios e táticas, e tecnologias enquanto estratégias políticas, em ter-
mos foucaultianos. Com isso, quero chamar atenção para o fato de que o amor
pode ser uma tecnologia de produção da vida. A vida não somente enquanto
uma categoria biológica, mas também como um ato performativo produzido na
prática social, sobretudo, dos movimentos sociais que lutam por justiça social.
Se quisermos uma definição, podemos assumir: o amor é uma tecno-
logia política performativa, pois ao ser enunciado (coletivamente) produz as
condições de significação da vida; torna-se possível no coletivo, na evocação
mútua de uma ética de preservação e produção da vida. Em outras palavras,
trata-se da hipótese inicial de hooks. Em última análise, o amor é o que pro-
duz a vida e a produz, somente, no encontro. Nesse sentido, a ética do amor é
uma ética da vida e do encontro. Estamos falando, portanto, de tecnologias do
encontro e de enfrentamento. Tecnologias de produção da vida, mesmo quan-
do insistem em nos matar. E, a partir do que observamos em Jota Mombaça
(“não vão nos matar agora”), Conceição Evaristo (“a gente combinamos de
não morrer”) e Danez Smith (“não digam que estamos mortos”), só é possível
enunciar a vida com uso da ética do amor – que produz, performativamente,
a própria vida. Afinal, amor não é sentimento.
Mais recentemente, no Brasil, Henrique Vieira tem realizado um im-
portante trabalho em relação a isso. Em seu livro O amor como revolução, ele
aponta que o amor é uma atitude, que “amor é amar, e amar é agir para que
o outro possa ser em liberdade.”7 Assim, o amor surge como categoria ética
necessária para humanizar nossas relações sociais – uma das condições impor-
tantes para o pleno reconhecimento de sujeitos que têm sido historicamente
silenciados e destituídos. Nesse sentido, na esteira do pensamento de hooks,
7  VIEIRA, O amor como revolução, p. 41.

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salientamos que o  amor e a dominação não podem coexistir e que o amor
passa por um processo de decisão política, logo, decidir amar alguém é criar
justificativas éticas, mas não de violência, e sim de valorização da vida.
O amor é, portanto, também, uma estratégia política, pois ele guia
nossas visões de mundo e permite com que disputemos novos espaços e pers-
pectivas rumo a um novo amanhã.  Uma das maiores dificuldades quando
se fala de amor é compreender como seria a dimensão das práticas do amor,
sobretudo nos dias de hoje. Dessa forma, falar de uma ética do amor é afirmar
que o amor em sua dimensão prática pode ser observado em pequenas atitu-
des do nosso cotidiano como, por exemplo, respeitar as pessoas, a integridade
pessoal delas, priorizar o bem-estar humano, e até mesmo na formulação de
políticas públicas etc. “Uma ética do amor pressupõe que todos têm o direito
de ser livre [e] de viver plenamente e bem,” sugere hooks.8
Nesse sentido, cada ensaio deste livro constitui uma linha de pensa-
mento que se propõe a pensar o papel do amor na teoria política contempo-
rânea, mas que, ao mesmo tempo, não o faz da maneira mais adequada – de
acordo com a epistemologia binária ocidental. Nesse sentido, este livro reflete
um modo de produzir conhecimento que se efetiva no estar com as pessoas e
na coletividade, ao contrário do solipsismo moderno.
Estes ensaios são também autobiográficos, eles espelham as minhas
experiências e aspirações teóricas. Por isso, há momentos em que os sonhos (e
as experiências) se disfarçam de articulações teóricas e há momentos em que
as articulações teóricas parecem ser sonhos. Mas, como sugere Paul Preciado,
“não se trata aqui de ver que a vida é um sonho, mas de ver que os sonhos
também são vida.”9
Por fim, é bom salientar que minha intenção com este livro não é
construir bases prontas e teorias finalizadas, mas sim fornecer caminhos para
que possamos pensar em novas possibilidades e até mesmo em formas de pre-
encher as lacunas propositalmente deixadas por este projeto.
Mesmo não sendo minha intenção construir uma teoria ou organizá-
-la, este livro apresenta um programa filosófico. Eu lhes apresento uma filo-
sofia do porvir, do amor e da desidentificação, portanto, um projeto antifilo-
8  HOOKS, All About Love, p. 87.
9  PRECIADO, Um apartamento em Urano, p. 19.

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sófico, de certa forma, pois sequer chamarei este livro de um livro de filosofia
– o que não retira a importância do programa filosófico apresentado, embora
talvez ele ainda não possua consistência ontológica. Nesse sentido, este livro
é, ainda assim, um livro de filosofia, pois aqui “a filosofia transforma-se numa
linguagem de ficção política, que procura imaginar um mundo”, como diz
Preciado.10 Que linguagem é esta, que mundo é este, são questões que talvez
– mas somente talvez – sejam respondidas nas próximas páginas. Este livro
chega às suas mãos para que estas perguntas ganhem sentido. Boa leitura!

10  PRECIADO, Um apartamento em Urano, p. 41.

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Políticas do amor e
sociedades do amanhã11

Uma das hipóteses centrais da teoria hooksiana do amor12 é a de que


as pessoas precisam de amor. E, no contexto das dores e dos impactos do ra-
cismo na vida das pessoas que herdaram histórias coloniais, frisa-se que, para
as pessoas negras, essa necessidade é imperante. Nesse sentido, entendemos o
amor enquanto uma experiência que possibilita outros modos de viver menos
mortificadores, que constrói e nutre laços afetivos entre nós, através de uma
mutualidade sem a qual não há sujeito, pois “nós somos o resultado de nosso
encontro”, como sempre afirma Luana Luna.
Como salienta hooks, o amor ultrapassa a dimensão afetiva e, se valendo
da metáfora da receita de bolo, requer a mistura de vários ingredientes: “cuidado,
afeto, reconhecimento, respeito, comprometimento e confiança, bem como co-
municação aberta e honesta.”13 Ou seja, o amor é muito mais do que um mero
sentimento, como alardeado, e nem pode ser reduzido ao erotismo, embora não
seja este um tipo dispensável de amor. Para mim, parece haver, ainda, uma dimen-
são psíquica do amor, como sugere M. Scott Peck,14 mas isso será explorado nos
próximos ensaios. Voltando ao argumento, Maya Angelou, por exemplo, também
afirma que o amor ultrapassa a dimensão do sentimentalismo:

11  Versão revisada e ampliada de SILVA, Vinícius Rodrigues Costa. & NASCIMENTO, Wan-
derson Flor. Políticas do amor e sociedades do amanhã. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia,
v. 10 (Edição Especial: Interfaces da Filosofia Africana), pp. 168-182, 2019. DOI: https://doi.
org/10.5902/2179378639954
12  Como não é meu objetivo aprofundar a discussão sobre o pensamento de bell hooks neste livro, eu
gostaria de fazer uma breve observação sobre a relação entre feminismo e amor, para hooks. Em O femi-
nismo é para todo mundo (2000), especificamente, hooks salienta a relação entre amor e política feminista,
uma vez que se trata de políticas antidominação. Com isso, considero ser importante salientar que hooks
é necessariamente uma autora que deve ser lida como feminista revolucionária e a sua teoria feminista
não deve ser apagada, sobretudo quando falamos de amor. A teoria feminista de hooks é, em certa me-
dida, uma teoria sobre amor. Promover o apagamento destas formulações teóricas em seu pensamento é
colaborar com a manutenção da supressão do pensamento feminista negro transnacional.
13  HOOKS, All about love, p. 5.
14  PECK, The Road Less Traveled, 1978.

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O amor cura. Cura e liberta. Eu uso a palavra amor não
como sentimentalismo, mas como uma condição tão
forte que pode muito bem ser o que mantém as estrelas
em seus lugares no firmamento e faz o sangue fluir
disciplinadamente por nossas veias.15

Nos dias de hoje, não nos faltam discursos sobre o amor, mas, como
aponta hooks, há uma falência nas práticas do amor, sobretudo, na vida de
pessoas negras. Em outras palavras, há diversos discursos e múltiplas aborda-
gens sobre amor atualmente, mas não há uma práxis amorosa. Não há, hoje,
uma política do amor. Acreditamos que falar de amor hoje é nadar contra a
corrente, é desafiar o status quo16 que nos prega uma visão completamente
essencialista do amor, isto é, o amor como apenas sentimento, além da alta
disseminação de discursos ocidentais individualistas que tendem a nos afastar
de uma ética e uma política do amor.
Para hooks, o amor tem um poder transformador que é o fundamento
de toda mudança social significativa e, sendo assim, sem o amor, nossas vidas
não possuem significado algum, afinal, o amor é “o coração da questão”.17
Em 1963, o reverendo Martin Luther King Jr., se posicionou perante
cerca de 250 mil pessoas e proferiu o seu mais famoso discurso, I Have a Dre-
am, no qual falou sobre seu sonho de ver uma sociedade sem distinção racial,
sem racismo. Embora Luther King não deixasse isso explícito nesse discurso,
o sonho do reverendo só se tornaria realidade se ele estivesse fundamentado
numa política do amor. Os objetivos de King sempre estiveram fundamenta-
dos sob uma ética e uma política do amor, mas a cultura dominante não. Em
1967, King salientou que:

Quando falo de amor, não estou falando de uma resposta


sentimental e fraca. Estou falando da força que todas as
grandes religiões viram como o supremo princípio uni-
ficador da vida. O amor é de alguma forma a chave que
abre a porta que leva à realidade suprema.18

15  ANGELOU, Mamãe & Eu & Mamãe, p. 8.


16  HOOKS, Love as the practice of freedom, p. 244.
17  HOOKS, Salvation, p. 17.
18  KING apud HOOKS, Salvation, p. 7.

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Nesse sentido, quando o reverendo King assume e destaca a centrali-
dade do amor em seus discursos e experiência de vida, ele se posiciona contra
a cultura dominante, a qual está alicerçada em epistemologias binárias e antia-
mor. Assim, hooks aponta que:

Luther King acreditava que o amor é, “em última análise,


a única resposta” para os problemas enfrentados por esta
nação e por todo o planeta. [...]. É realmente surpreen-
dente que Luther King tivesse a coragem de falar, tanto
quanto ele fez, sobre o poder transformador do amor, em
uma cultura na qual esse discurso é muitas vezes visto
como meramente sentimental.19

No entanto, embora King ressaltasse a extrema importância de amar


nossos inimigos, ele não falava sobre o amor-próprio e a autoestima. Por
isso, hooks salienta que o amor-próprio é a base do amor mútuo – isto é, é
preciso que nos reconheçamos (enquanto sujeitos) e autodefinamos antes de
articularmos uma dimensão coletiva e, portanto, política do amor. Segundo
hooks:

[...] grande parte do foco de King no amor como princí-


pio fundamental que deve guiar a luta pela liberdade foi
direcionado para defender sua crença na não violência.
Enquanto ele advertia os negros repetidamente para re-
conhecerem a importância de amar nossos inimigos, de
não odiar as pessoas brancas, ele não deu tanta atenção
à questão do amor-próprio e do amor comunal entre os
negros.20

Dessa forma, por mais que, para nós, os discursos de Luther King nem
sempre deixassem isso nítido, eles (assim como King) se baseavam naquilo
que há de mais importante entre nós e para nós: o amor. E hooks enxergava
em King, e em suas práticas, a centralidade explícita do amor. Com este livro,
estou interessado em explicitar o caráter político do amor enquanto uma sa-
ída para a crise que, segundo nossa autora, faz com que nós, enquanto povo,

19  HOOKS, Love as the practice of freedom, p. 247.


20  HOOKS, Salvation, p. 7.

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percamos o nosso coração. “Nossa crise coletiva é uma crise tanto emocional
quanto material. Não pode ser solucionada simplesmente com dinheiro.”21
A partir disso, seguindo a linha de pensamento de hooks, uma política
do amor se basearia em permitir que o amor guie nossas visões de mundo ao
disputarmos o bem comum a todas as pessoas que vivem numa comunidade.
A política do amor e a ética do amor são categorias dialéticas, uma vez que se
complementam na medida em que servem de instrumentos para o convívio
social, no que tange às condições de reconhecimento. Em última análise, a
ausência do amor enquanto política desencadearia a falta de esperança gene-
ralizada. No entanto, conforme hooks:

O amor permanece para os negros um caminho crucial


para a cura. Em retrospecto, é claro que, se não criarmos
uma base de amor sobre a qual construirmos nossas lutas
pela liberdade e autodeterminação, as forças do mal, da
ganância e da corrupção minam e acabam destruindo to-
dos os nossos esforços. Não é tarde demais para os negros
retornarem ao amor, para perguntar de novo as questões
metafísicas comumente levantadas por artistas e pensado-
res negros durante o auge das lutas pela liberdade, questões
sobre a relação entre desumanização e nossa capacidade de
amar, questões sobre racismo internalizado e autoódio.22

As ideias postas em jogo na percepção que hooks nos traz sobre o amor
depreende sua dimensão ética na medida em que oferece elementos para que os
valores que utilizamos para guiar nossas relações com os outros e conosco mesmos
seja balizado pela dimensão de uma decisão, de um ato de amar – e de se deixar
ser amado. Na dimensão política, permite que as feridas abertas – e que precisam
ser curadas – pelo racismo deixado pela história colonial, e cotidianamente refor-
çadas em dinâmicas de poder, possam ser enfrentadas em uma dimensão coletiva,
que permita um fortalecimento mútuo na construção de sociedades mais justas e
menos opressivas. Neste momento, essa articulação nos parece suficiente.
Quando essa meta (ter o amor enquanto política) não é alcançada,
a falta de uma práxis do amor desencadeia o que Achille Mbembe chama de
“sociedades de inimizade”. O processo de construção e consolidação das so-
21  HOOKS, Salvation, p. 4.
22  HOOKS, Salvation, p. 14.

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ciedades de inimizade remonta ao colonialismo, ou seja, essas sociedades são,
por definição, herdeiras das dinâmicas de poder colonial. Segundo Achille
Mbembe, a finalidade do colonialismo “era inscrever os colonizados no espaço
da modernidade.”23 Inscrever determinados corpos no espaço da modernidade
significa, forçosamente, objetificá-los e tratá-los com violência, afinal, esses
corpos não eram vistos enquanto humanos, já que precisam ser inscritos num
espaço dolorosamente colonial. É também no colonialismo que das dificulda-
des coletivas de saber o que é amar começam, como enfatiza bell hooks:

Nossas dificuldades coletivas com a arte e o ato de amar


começaram a partir do contexto escravocrata. Isso não deve-
ria nos surpreender, já que nossos ancestrais testemunharam
seus filhos sendo vendidos; seus amantes, companheiros,
amigos apanhando sem razão. Pessoas que viveram em ex-
trema pobreza e foram obrigadas a se separar de suas famí-
lias e comunidades, não poderiam ter saído desse contexto
entendendo essa coisa que a gente chama de amor. Elas sa-
biam, por experiência própria, que na condição de escravas
seria difícil experimentar ou manter uma relação de amor.24

O que acontece, de acordo com hooks, é que nos resta uma herança
colonial que nos impede de amar, pois esta promove uma imagem da alterida-
de que se instala na forma do inimigo, pois produz “uma gama de sofrimentos
que não desencadeavam como resposta nem uma tomada de responsabilidade,
nem solicitude, nem simpatia e nem sequer piedade”.25
Desde o século XIX, os Estados modernos garantem sua efetiva ação
através da política de morte, aquilo que Mbembe nomeia de necropolítica. De
lá para cá, os Estados são Estados, necessariamente, de guerra, onde a busca
maior é por exterminar o Outro. Em sua obra Políticas da Inimizade, Achille
Mbembe argumenta que, numa sociedade de inimizade:

Já não passa claramente por alargar o círculo, mas por tor-


nar as fronteiras formas primitivas para afastar inimigos,
intrusos e estrangeiros – todos aqueles que não são dos

23  MBEMBE, Crítica da razão negra, p. 175.


24  HOOKS, Vivendo de Amor, p. 189.
25  MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 13.

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nossos. Num mundo mais do que nunca caracterizado
pela desigualdade no acesso à mobilidade e onde, para
muitos, o movimento e a circulação são a única hipótese
de sobreviver, a brutalidade das fronteiras é agora um dado
fundamental do nosso tempo. As fronteiras deixam de ser
lugares que ultrapassamos, para serem linhas que separam.
(...). A guerra não só se instalou como fim e como necessi-
dade na democracia, mas também na política e na cultura.
Tornou-se o antídoto e o veneno – o nosso pharmakon. A
transformação da guerra em pharmakon da nossa época,
em contrapartida, libertou paixões funestas que, pouco a
pouco, empurram as nossas sociedades para fora da de-
mocracia, transformando-as em sociedades da inimizade,
como aconteceu durante o colonialismo.26

Em sociedades de inimizade, que também são sociedades onde o po-


der necropolítico atua incessantemente, o inimigo é o Outro, aquele que está
marcado com um “signo da morte.”27 A pele negra, nesse contexto, é um sig-
no da morte. Ou seja, o negro é o inimigo. Nesse contexto, o “inimigo” não
é somente o oposto do “amigo”, mas aquele que deve ser, a qualquer custo,
exterminado. E este morto, exterminado, não tem sua morte entendida como
trágica, como algo que mereça ser sentido, chorado, é “uma morte à qual
ninguém se sente obrigado a responder. Ninguém tem qualquer sentimento
de responsabilidade ou de justiça no que respeita a esta espécie de vida ou esta
espécie de morte.”28 Esse cenário instaura “uma guerra que opõe as espécies
entre si, e a natureza, aos seres humanos.”29 Sobre isso, a partir do pensamento
de Carl Schmitt, Mbembe salienta que:

O inimigo de que Schmitt fala não é um simples concor-


rente ou adversário, nem um rival privado que odiamos
ou por quem temos antipatia. Remete para um antago-
nismo supremo. No seu corpo e na sua carne, é aquele a
quem se pode provocar a morte física, porque ele nega,
de modo existencial, o nosso ser.30

26  MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 10-11.


27  CARNEIRO, A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser, p. 72.
28  MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 65.
29  MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 31.
30  MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 82.

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Uma sociedade de inimizade tem como paradigma organizador
uma(s) política(s) de morte, para a qual o desejo fundamental, nas relações
humanas, torna-se aquele de exterminar aqueles que não são iguais a “nós”. A
partir disso, devemos estar atentos para uma das principais características da
sociedade de inimizade: a substituição da relação de cuidado pela relação sem
desejo. Nas palavras de Mbembe, “no interior de sociedades que não param
de multiplicar os dispositivos de separação e de discriminação, a relação de
cuidado foi substituída pela relação sem desejo”.31
Em sociedades de inimizade, as condições de reconhecimento, como
sabemos, são organizadas a partir de uma dialética da outrificação, ou seja, é
preciso que haja um outro para que eu me reconheça enquanto sujeito. Na
história das teorias da sujeição, desde Hegel,32 por exemplo, nem sempre as
condições de reconhecimento e, portanto, de tomada de consciência foram
estabelecidas a partir de condições de satisfação, digamos assim, do sujeito.
A consciência das contradições do ato de se tornar um sujeito, por exemplo,
é o que Hegel chama de consciência infeliz. Nesse sentido, chamo atenção
para o fato de que, mesmo que as condições de reconhecimento (a menos que
atuemos a partir de outra gramática ontológica) sejam sempre hierárquicas, as
relações das quais Mbembe falam se configuram a partir de condições incom-
pletas de sujeição ou de um não-reconhecimento do indivíduo. Dessa forma,
as relações de cuidado são relações em que há um pleno reconhecimento e as
relações sem desejo são relações de não-reconhecimento, onde a vida deste
Outro não possui um estatuto ontológico que a classifique enquanto vida.
As sociedades de inimizade estão intrinsecamente ligadas a Estados
genocidas de modo que os signos da morte sejam marcadores centrais para o
estabelecimento de uma política da diferença e do des/reconhecimento. Por
isso, a política do amor não é consoante à sociedade de inimizade, não há
coexistência possível. A nossa hipótese evidencia a construção de uma nova
sociedade na qual o amor seja, de fato, profundamente político. Essa socieda-
de, portanto, não existe. Devemos imaginá-la. E por conta disso, ainda não
tem nome, mas, por ora, a chamaremos de sociedade do amanhã, na qual a
prática do amor possa ser o esteio para relações das pessoas consigo e com as
31  MBEMBE, Políticas da Inimizade, p. 104-105.
32  HEGEL, A fenomenologia do espírito, seção IV.

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outras. A sociedade do amanhã é uma sociedade em que a política é baseada
em um desejo amoroso de que os encontros, mesmo quando atritados, não
precisem ser destinados ao ímpeto de exterminar a figura do outro entendido
como inimigo. O amor, então, não deixa de ser conflito,33 mas não organiza
mais relações de poder e de opressão.
Nesse sentido, enquanto as políticas do amor não forem inseridas di-
retamente em nossas vidas e relações, não avançaremos enquanto militantes,
professores, teóricos, mas, sobretudo, não avançaremos enquanto seres huma-
nos, rumo à outra gramática ontológica e operadora. Assim, falar e defender
a aplicabilidade da ética e da política do amor nas sociedades de inimizade
(transformando-as em sociedades do amanhã), e de termos o amor enquanto
orientação moral, é romper com o silêncio imposto pelo projeto colonial.
Aquele que, por mais que nos digam o contrário, sabemos que não acabou.
bell hooks salienta que:

O amor é profundamente político. Nossa revolução mais


profunda virá quando entendermos essa verdade. Só o
amor pode nos dar força para avançar no meio do des-
gosto e da miséria. Somente o amor pode nos dar o poder
de reconciliar, redimir, o poder de renovar os espíritos
cansados e salvar as almas perdidas. O poder transfor-
mador do amor é o fundamento de toda mudança social
significativa. Sem amor nossas vidas são sem significado.
O amor é o coração da questão. Quando tudo mais se
for, o amor sustenta.34

Dito isso, é preciso, então, que nos voltemos à outra questão impor-
tante para hooks: o espírito. Ao contrário da tradição moderna ocidental que
insiste em distinguir espírito e matéria, razão e emoção, a questão do espírito
diz respeito à nossa capacidade de estarmos em comunidade.35 Abordando o
amor romântico, Sobonfu Somé ressalta que:

33  VIEIRA, O amor como revolução.


34  HOOKS, Salvation, p. 17.
35  Ressaltando a importância do espírito na construção da comunidade, Somé aponta que: “Quan-
do povos tribais falam de espírito, estão, basicamente, referindo-se à força vital que há em tudo. (...).
Espírito é a força que nos ajuda a nos unir.” (O Espírito da Intimidade, p. 26).

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A separação do espírito, como vemos aqui no Ocidente,
tem como consequência fazer as pessoas darem uma im-
portância desmedida ao amor romântico. Essa separação
cria um forte desejo por outra pessoa, faz ansiar por uma
forma de conexão. O amor romântico, porém, é apenas
uma forma de descobrir essa outra conexão, que é a do
espírito, aquela que de fato estamos procurando.36

Nesse sentido, ao buscarmos uma ética e uma política do amor, deve-


mos, necessariamente, estar conectados com o nosso espírito, o qual tem um
papel muito importante na construção da mutualidade revolucionária. A com-
preensão de Somé ressalta que “não se pode ser nada sem o espírito”.37 Nesse
sentido, as “necessidades do espírito só podem ser satisfeitas quando cuidamos
da alma. Nossos ancestrais sabiam disso.”38 Em outras palavras, para construir-
mos sociedades do amanhã, nas quais as políticas do amor ocupam um lugar
central nas relações humanas, precisamos, antes, cuidar do nosso espírito.
Nesse sentido, o espírito ocupa um lugar central em nossa busca por
uma política do amor. É a partir dele que nossas relações podem ser humani-
zadas deixando, assim, de ser relações sem desejo. O espírito possibilita, a par-
tir dessa perspectiva, a efetividade da relação de cuidado, onde a vida do outro
importa tanto quanto a minha. Esse é um fator importante para as sociedades
do amanhã. Nestas sociedades a mutualidade deve ocupar um lugar central,
por isso devemos compreender as sociedades do amanhã enquanto baseadas
numa lógica comunitária.
O que nos interessa, de certa forma, aqui é o fato de que essa noção
de comunidade não existe em sociedades de inimizade. O poder necropolítico
jamais seria admitido nas sociedades do amanhã, afinal, as vidas possuiriam
valor imprescritível e central, sendo a condição para que a prática do amor
se exercesse: não seria possível conciliar o desejo e necessidade de viver em
comunidade com uma política da morte. Nesse sentido, para a construção
de sociedades do amanhã, precisamos, necessariamente, deslocar nossas com-
preensões ontológicas existenciais rumo à proposta de uma nova gramática
ontológica e operadora.
36  SOMÉ, O Espírito da Intimidade, p. 33.
37  WELLER & WELLER, Prefácio de O Espírito da Intimidade, p. 7.
38  HOOKS, Salvation, p. 15.

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Nesse sentido, vale ressaltar ainda que quando nós, a partir de uma
percepção biocêntrica da realidade, falamos do valor da vida e que, em nossos
projetos de sociedade, todos os seres vivos devem existir com a mesma digni-
dade, devemos chamar atenção para o fato de que a concepção de vida não se
restringe somente às “pessoas”. A filosofia indígena, por exemplo, salienta que
“os organismos da Mãe Terra são partes do corpo, extensões do espírito e [da]
consciência.”39
Em última análise, ao pleitearmos a consolidação de uma sociedade
do amanhã, devemos estar, obrigatoriamente, pautados numa política e numa
ética do amor. bell hooks salienta que “uma cultura de dominação é antia-
mor. Exige violência para se sustentar. Escolher o amor é ir contra os valores
predominantes dessa cultura.”40 Isso significa que sociedades do amanhã não
se pretendem enquanto sociedades de dominação, pois não há uma lógica
violenta organizando este projeto. É importante salientar o papel do amor
neste processo construtivo e que isso, como é de se esperar, pode levar tempo.
No entanto, parafraseando hooks, quando nada mais tivermos, ainda assim
teremos o amor e é através dele que nosso projeto de sociedade se consolidará.

Políticas de conversão e ética do amor

Tendo em vista o contexto político e espiritual das comunidades afro-


-estadunidenses dos anos 90, presente na análise de Cornel West, surge a pro-
posta das políticas de conversão, as quais buscam pôr fim às “ameaças do nii-
lismo41 concreto.”42 De acordo com West, “novos modelos de liderança negra
coletiva devem promover uma versão dessas políticas.”43 Trata-se da promoção
de um contexto fértil para a mobilização coletiva e articulação de mudanças
sociais. Sobre as ameaças do niilismo, West dirá que:

39  MACHADO, Comunicação ancestral e filosofia indígena: a educação da mãe terra, p. 515.
40  HOOKS, Love as the practice of freedom, p. 246.
41  Para West, em sua obra, o niilismo deve ser compreendido não como uma doutrina filosófica,
mas como a condição de viver uma vida “sem significado, sem esperança e (mais importante) sem
amor.” (Race Matters, p. 23).
42  WEST, Race Matters, p. 29.
43  WEST, Race Matters, p. 29.

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De fato, o maior inimigo da sobrevivência do negro na
América foi, e ainda é, não a opressão nem a exploração,
mas a ameaça niilista – ou seja, a perda de esperança e a
ausência de propósito. Isso porque, enquanto a esperan-
ça perdura o significado da vida preservado, a possibili-
dade de sobrepujar a opressão permanece viva. A ameaça
niilista encerra uma profecia que se cumpre justamente
porque foi feita: sem esperança não pode haver futuro;
sem propósito, não pode haver luta.44

A articulação de West sobre os efeitos do niilismo é importante porque


é justamente a partir desse contexto de falência espiritual e subjetiva que hooks
articula o amor enquanto sendo, principalmente, uma categoria que dá sentido
à vida. E se o amor é o que dá sentido à vida, ele é, também, a resposta direta às
ameaças niilistas. Conforme hooks, “mesmo quando não podemos mudar a ex-
ploração e dominação em curso, o amor dá sentido, propósito e direção à vida.”45
Nesse sentido, as políticas de conversão são, também, políticas de respon-
sabilidade ética, de modo que haja uma nova articulação da dialética do reconheci-
mento entre os indivíduos. Para as políticas de conversão, a “relação de cuidado” de
Mbembe é central. A minha hipótese com noção de amor é a de que a conversão de
West se relaciona diretamente com a proposição de uma nova gramática ontológica,
que articula necessariamente um horizonte a partir do qual a mutualidade revolucio-
nária fundada na ética do amor poderá ser reconstituída. No entanto, a abordagem
fundamentada em conceitos cristãos coloca algumas pedras no nosso caminho...
Para a teoria do amor, portanto, esta discussão deve ser feita de modo
que compreendamos a importância das políticas de conversão na proposição,
sobretudo a partir do pensamento de hooks, de um novo paradigma social que
organizará as relações humanas a partir de outros princípios ontológicos, de
modo que as diferenças não mais articulem sistemas de opressão e dominação,
como sugere hooks em Killing Rage.
A proposta de uma ética do amor nasce com a proposta das políticas
de conversão – ou, melhor dizendo, é a condição para as políticas de con-
versão. De acordo com Cornel West, as políticas de conversão se propõem a
construir um novo paradigma civilizatório.
44  WEST, Race Matters, p. 29.
45  HOOKS, Salvation, p. xxiv.

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Mas há sempre uma chance para a conversão – uma
chance para as pessoas acreditarem que há esperança para
o futuro significado para a luta. Essa chance não se baseia
em um acordo sobre no que consiste a justiça tampou-
co em uma análise de como o racismo, o sexismo ou a
subordinação de classe opera. Tais argumentos e análises
são indispensáveis. Mas uma política de conversão exige
mais.46

Os apontamentos de West mobilizam um horizonte complexo de


análise, onde precisamos pensar as determinações e articulações práticas da
responsabilidade ética. No entanto, o filósofo já fornece o caminho que deve-
mos seguir: o amor. Segundo West, “a ética do amor deve ser o centro da[s]
política[s] de conversão.”47 Nesse mesmo sentido, hooks afirma que “somente
uma política de conversão onde retornamos ao amor pode nos salvar.”48
O amor, nesse sentido, não se refere a “sentimentos ou conexões tri-
bais,” mas sim ao princípio ético a partir do qual as políticas de conversão se
49

organizam. Para hooks, é preciso saber o que queremos dizer quando falamos
de amor – é preciso estabelecer um enquadramento linguístico a partir do
qual os sentidos do amor serão estabelecidos. Por isso, hooks reivindica uma
definição clara e concisa do amor para que a partir disso possamos avançar
enquanto coletividade. O movimento que hooks faz é um dos princípios bá-
sicos da ação política, conforme pensada por Hannah Arendt, por exemplo, o
estabelecimento de consensos e acordos.

O amor no pensamento de bell hooks

O amor é um termo em disputa. Não há postulados corretos ou er-


rados acerca de sua existência. Nesse sentido, a única pretensão que articulo
é a de fornecer os enquadramentos epistemológicos necessários para que pos-
samos abordar o assunto dentro do âmbito das disputas políticas e do debate

46  WEST, Race Matters, p. 29.


47  WEST, Race Matters, p. 29.
48  HOOKS, Salvation, p. 15.
49  WEST, Race Matters, p. 29.

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qualificado sobre amor.
Conforme Scott M. Peck, “o amor é um ato de desejo – nominal-
mente, tanto uma intenção quanto uma ação. O desejo implica, também, em
[realizar] escolha[s]. Nós não temos que amar. Nós escolhemos amar.”50 Isto
estabelecido, considero ser importante compreender o amor enquanto um
produto de nossos acordos coletivos, a partir dos quais escolhemos um novo
princípio organizador das nossas dialéticas do reconhecimento diárias. No en-
tanto, há alguns desafios, de acordo com Henrique Vieira:

O desafio é retirar o amor de um lugar romântico, cir-


cunscrito à vivência de um casal. Pensem em como al-
gumas palavras, de tão usadas, tornaram-se vazias de
significado. “Amor” não pode ser uma delas. (...) Essa
ideia do amor como um sentimento abstrato e relaciona-
do unicamente à vivência de um casal pode criar alguns
paradoxos. Se o amor fica circunscrito, pode conviver
com as maiores atrocidades do mundo. Como um mero
sentimento, vazio de uma ética generosa, o amor pode
coexistir com o racismo, o machismo, a LGBTfobia, a
violência, e por aí vai.51

A análise de Vieira é importante, pois ela dialoga com um aspecto


essencial do pensamento de hooks, o de reduzir o amor ao status de senti-
mento, desprovido de ação política. Para hooks, essa compreensão do amor
impossibilita a sua articulação coletiva, pois o coloca na mesma dimensão
da dominação capitalista e patriarcal. Fazendo isso, como bem aponta Vieira
no trecho citado, permitimos que o amor seja justificativa para estratégias de
dominação. Isso revela a imperante necessidade que as pessoas parecem ter em
relação ao amor, de modo que elas precisam ser amadas para viverem bem – e
não importa o “preço” deste amor.
Distanciando-se dessas compreensões e apropriações liberais – a partir
das quais o amor se torna produto –, hooks nos alerta para não nos sentirmos
atraídos por abordagens reducionistas do amor que o restringe a dimensões
afetivas. É preciso, nesse sentido, entender o amor enquanto um princípio

50  PECK, The Road Less Traveled, p. 83.


51  VIEIRA, O amor como revolução, p. 38.

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básico das transformações sociais. O amor é tudo aquilo que permite com
que nos unamos para disputar o bem comum. Conforme hooks, “em nossa
sociedade, todos os grandes movimentos sociais por libertação e justiça pro-
moveram uma ética do amor,”52 reafirmando que o amor é uma prática da
liberdade, uma vez que, como sugere Vieira, “amar é agir para que o outro
possa ser em liberdade.”53 Nesse sentido, para hooks e Vieira, a teoria do amor
é uma teoria da libertação do sujeito. “Assim, o amor desobedece às regras e
leis injustas, posicionando-se contra o que maltrata a vida.”54

Significativamente, sempre foi o amor que criou a mo-


tivação para uma profunda transformação interna e ex-
terna. O amor era a força que capacitava as pessoas a
resistir à dominação e criar novas formas de viver e estar
no mundo. (...). Engajar-se na prática do amor é opor-se
à dominação em todas as suas formas. Amar nos levará
necessariamente além da raça, além de todas as catego-
rias que visam limitar e confinar o espírito humano. A
dominação nunca terminará enquanto formos ensinados
a desvalorizar o amor. (...). O amor como um modo de
vida torna possível a todos nós vivermos humanamente
dentro de uma cultura de dominação enquanto trabalha-
mos pela mudança.55

A partir dessa compreensão, hooks revela uma das principais carac-


terísticas da teoria do amor – a desmantelação das matrizes de dominação.
O amor é um movimento de libertação, é uma categoria que, embora seja
nomeada, não se restringe aos enquadramentos linguísticos produzidos pelo
exagerado desejo classificatório que atravessa as nossas percepções.
A partir da obra de hooks, Nancy E. Nienhuis aponta que “uma éti-
ca do amor [faz com que nos comprometamos] com a transformação social,
onde a injustiça contra qualquer grupo [precarizado] é intolerável.”56 Nesse

52  HOOKS, All About Love, p. 98.


53  VIEIRA, O amor como revolução, p. 41.
54  VIEIRA, O amor como revolução, p. 46.
55  HOOKS, Trechos de Writing Beyond Race, 2013.
56  NIENHIUS, “Revolutionary Independence”: bell hooks’s Ethic of Love as a Basis for a Feminist
Libera-tion Theology of the Neighbor. In: DAVIDSON & YANCY (eds.). Critical Perspectives on
bell hooks. New York, Routledge, 2009, p. 206.

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sentido, Nienhuis contribui para a nossa proposta de formulação de uma teo-
ria do amor que se mobiliza a partir das políticas de conversão, sugerindo que
o amor possui um grande potencial para desmantelar o patriarcado e, assim,
faz com que reconheçamos do Outro como nosso semelhante, desfazendo a
possibilidade de dominação violenta.
Embora nosso horizonte de análise nos coloque um problema com-
plexo, não obstante fornece caminhos para seguir em direção a outros futuros.
O amor, certamente, não resolverá todos os problemas colocados ao longo de
nossas análises, e não se sabe até que ponto apenas resolver problemas auxilia
em alguma coisa. “Mas ele certamente cria as condições que propiciarão uma
mudança significativa.”57

57  GLASS, Love Matters: bell hooks on Political Resistance and Change. In: Davidson & Yancy
(eds.). Critical Perspectives on bell hooks, 2009, p. 182.

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Tem saída?
considerações introdutórias sobre racismo

ambiental e horizontes para a construção

de um novo mundo

Quando tive meu primeiro contato com os estudos sobre racismo am-
biental, eu buscava respostas à grande pergunta “por que minorias étnicas
estão mais propensas a serem impactadas negativamente por acontecimentos
da natureza [deslizamentos, chuvas fortes, etc.]?” A partir da bibliografia ade-
quada, articulei-me para escrever aquilo que se tornaria, pouco tempo depois,
um projeto de pesquisa sobre racismo ambiental - o qual escrevi com Lua-
ra Magano, sob orientação dos professores Luiggia Girardi e Elton Simões.
De alguma forma, para além de todas as análises e levantamentos de dados
que realizamos, nosso projeto buscava responder à outra questão, igualmente
importante, “o que legitima a precarização dessas populações [afetadas pelo
racismo ambiental] e a condição de inevitabilidade das situações de desuma-
nização às quais essas populações são submetidas?”
O que se segue é um diálogo, realizado em novembro de 2020, que é
fruto de uma articulação mais antiga. Aqui, converso com Andressa Dutra –
gestora ambiental, pesquisadora e uma das minhas principais interlocuções no
campo do racismo ambiental - sobre as dinâmicas das injustiças e do racismo
ambiental e sobre os possíveis horizontes de resistência que temos pensado a
partir disso. Vale ressaltar que essas interlocuções, aqui transcritas, também
são informadas pelos extensos diálogos que tecemos em nossa rede de ambien-
talistas negros, com Luara Magano, Rafaela Dornelas, Victor de Jesus, Ciro
Brito e Erley Bispo.

Vinícius da Silva: Acredito que, talvez, um dos pontos de partida para


a discussão sobre injustiças ambientais seja a compreensão das dinâmicas do
desenvolvimento capitalista no Brasil e no mundo. A globalização capitalista e

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suas múltiplas formas de acumulação de capital têm afastado a maioria da po-
pulação do planeta da natureza. Em nome do “desenvolvimento” explora-se os
recursos naturais e mercantiliza-se a vida. A partir desse processo, a natureza
torna-se um commodity, um produto do capitalismo neoextrativista, algo a ser
explorado, comercializado e convertido em lucro, para que o “desenvolvimen-
to” (neocolonial) se materialize. Nesse sentido, é interessante observar como
essas comodificações acontecem, o que acha?

Andressa Dutra: É por esse caminho que acredito que devemos se-
guir. Até cabe ressaltar nesse primeiro momento um termo de Jason Moore
- Capitaloceno, que se porta como um produtor de crises e catástrofes, aban-
donando qualquer traço de historicidade. Esse termo propõe que além do
antropoceno, o sistema econômico é o que de fato domina e deteriora os sis-
temas terrestres, nesse período, a ciência é desenvolvida para subjugar a natu-
reza como “substrato de dominação”. Os problemas atuais existentes na terra
tratam-se então, do resultado impensado da valorização dos muitos capitais
individuais no mercado mundial. Sendo assim, o capital vai colaborar para o
estudo e a compreensão das “leis” da natureza para aplicá-las na produção de
mercadorias. Um dos reflexos do modo como o homem se desenvolveu no
seu meio ambiente, impulsionado pelo atual modelo econômico, é a perda
de habitats naturais, de cobertura vegetal original dos ambientes, que aca-
bam por precarizar a vida. De acordo com Alberto Acosta, a racionalidade
desenvolvimentista faz parte de um projeto colonial de exploração, onde um
marco desse processo é a ruptura moderna entre humanidade e natureza; “[p]
rodução e consumo se tornam, assim, uma espiral interminável, esgotando os
recursos naturais da maneira irracional e acirrando ainda mais a tensão criada
pelas desigualdades sociais.”

Vinícius da Silva: De fato, o atual modelo econômico parece ter tido


(para não assumir uma totalidade) uma grande influência na construção das
nossas relações com a natureza e, consequentemente, com os outros, de forma
que o critério de reconhecimento e valorização seja estabelecido por uma espé-
cie de rentabilidade que divide e classifica a vida na Terra. A exploração inten-
sa dos recursos naturais, que marcou os séculos XIX e XX e deu origem a um

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modelo de sociedade urbano-industrial, culminou em impactos socioambien-
tais negativos, tais como a crise ecológica que vivemos hoje, as desigualdades
socioambientais, a (in)capacidade de resposta de populações mais vulneráveis
e sua própria vulnerabilidade. Eu acredito, nesse sentido, que a discussão so-
bre injustiças ambientais e racismo ambiental deve ter como ponto de partida
o questionamento “o que é uma vida?”. Realizar essa pergunta pressupõe, por
um lado, que ao definirmos vida, deixaremos de lado aquilo que não é uma
vida; mas, por outro lado, trata-se de um questionamento importante, pois é
a partir dele que podemos analisar e avaliar as formas pelas quais as políticas
públicas, os serviços de saneamento básico, o acesso a condições básicas de
moradia, apenas para citar alguns exemplos, são distribuídas de acordo com
as populações.

Andressa Dutra: Essa distribuição que hierarquiza e gerencia as po-


pulações tem como consequência a vulnerabilização e precarização da vida,
esse fator se porta como um projeto de organização populacional. Sendo assim,
a distribuição desses exemplos que você citou não é feita de acordo com as
regiões nobres do estado. Essas regiões são nobres necessariamente porque
a distribuição de equipamentos, serviços e direitos públicos é feita de forma
a construir tais valores simbólicos e econômicos atribuídos a essas regiões. A
partir dessa compreensão acerca da distribuição de serviços de manutenção à
vida, podemos então levantar a hipótese de que as regiões com maior concen-
tração percentual de minorias raciais serão, consequentemente, mais afetadas.
Realmente, o termo desigual é muito expressivo para essas análises, pois como
trata Juan Martínez Alier, “os impactos são desiguais diferindo quando as áre-
as são habitadas por ricos e pobres, por brancos e por minorias étnicas”. Con-
figura-se assim uma relação lógica entre a acumulação de riqueza e a contami-
nação do ambiente. O desenvolvimento se mantém desigual e combinado ao
processo de acumulação capitalista, gera o uso desigual dos recursos naturais
pelos países de renda mais elevada.

Vinícius da Silva: Exatamente. Acho que a este ponto, é importante


contextualizar a questão da produção de vida e como sua precarização ocor-
re. A passagem do século XVIII para o século XIX é marcada, como diria o

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filósofo francês Michel Foucault, por algumas mudanças governamentais no
que tange à soberania e, necessariamente, o poder sobre as populações e gestão
dessas. De acordo com Judith Revel, a forma pelo qual o poder se transformou
entre o fim do século XVIII e início do século XIX, com a finalidade de go-
vernar não apenas os indivíduos, através de procedimentos disciplinares, mas
também o conjunto de pessoas constituídas em população. Nesse sentido, a
ausência de um determinado tipo de política pública configura um quadro
biopolítico de modo que parte da população sofra de forma desigual com a
sua ausência, por exemplo. Nas palavras de Silvio Almeida: “A saúde pública,
o saneamento básico, as redes de transporte e abastecimento, a segurança pú-
blica, são exemplos do exercício do poder estatal sobre a manutenção da vida,
sendo que sua ausência seria o deixar morrer.” Na transição do século XIX
para o século XX, os contornos se tornaram ainda mais específicos, de modo
que coubesse à atuação do Estado não somente governar os corpos e segregar
as populações, mas também tangenciar o extermínio de determinados seg-
mentos populacionais. Isso é o que Achille Mbembe chama de necropolítica,
ou seja, o poder de ditar quem deve viver e quem deve morrer. É um poder de
determinação sobre a vida e a morte ao desprover o status político e ontoló-
gico dos sujeitos. O Estado moderno neoliberal utiliza da necropolítica para
mercantilizar os corpos e os corpos não rentáveis deverão ser deixados à morte.
Nas palavras de Mbembe, “na economia do biopoder, a função do racismo é
regular a distribuição da morte e viabilizar as funções criminosas do Estado.”
Esse “novo” modo de governar é uma função do Estado com o sentido de pro-
mover a exclusão/eliminação das populações mais pobres (que no Brasil e/ou
na diáspora africana, são, também, as populações negras e mais vulneráveis)
por não serem rentáveis. A necropolítica existe para que a dominação da elite
seja mais efetiva. É uma estratégia de extermínio onde as populações, predo-
minantemente negros e pobres, são cada vez mais marginalizados, esquecidos
no que diz respeito à disponibilidade de recursos essenciais à vida. A necropo-
lítica fere diretamente a constituição brasileira que garante qualidade de vida,
direitos humanos e equidade social. Um conjunto de ações políticas permite
a existência da necropolítica. Em sua essência, sempre direcionada a corpos
vulnerabilizados e em sua maioria, negros ou pertencentes a alguma comuni-
dade tradicional. Dentro desses grupos, a iminência de tais ações é alarmante.

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Podendo-se destacar como exemplo, os inúmeros casos de racismo ambiental
existentes. Por fim, é necessário compreender a existência de uma lógica de
poder, por exemplo, na escolha das áreas que serão exploradas e como essas
áreas serão exploradas, danificando a vida e saúde de povos marcados por sua
identidade racial, como negros, indígenas, latinos e asiáticos. Podemos trazer à
tona a discussão sobre o que hoje em dia chamamos de gentrificação climática
para nos referir a estratégia de escolha dessas áreas exploradas, áreas que pas-
sam a se tornar interessantes para a classe média e/ou elite e geram a expulsão
de antigos moradores com o aumento do preço da terra. Em uma escala glo-
bal, com a mudança de clima e aumento do calor, os que detém mais poder
vão migrar para áreas mais frescas, menos inóspitas e com menores impactos
de desastres. Isso aumentaria, certamente, o valor da terra nesses territórios,
expulsando nativos e impedindo o acesso de pessoas mais pobres. Em outras
palavras, nós estamos vivendo um momento extremamente complexo e críti-
co no que se diz respeito à produção e gestão da vida (ou da morte, né?).

Andressa Dutra: Essa fala do Silvio Almeida que você cita tem mui-
tos significados, historicamente, as populações negras vêm sofrendo com a
falta de saneamento básico em diversas regiões, um exemplo disso pode ser
observado quando analisamos as condições de precarização da vida na Região
Hidrográfica da Baía de Guanabara – RHBG, no Rio de Janeiro, e apesar
deste debate acerca da produção de vida e como sua precarização ocorre estar
sendo racializado de forma mais acentuada atualmente, saneamento e raça/
racismo possuem uma relação tão antiga quanto a colonização, como diria
Victor de Jesus. Diante disso que você expôs, podemos entender então como
o racismo ambiental atua de forma conjunta à necropolítica, e essa “cumplici-
dade” é importante para considerar essas e tantas outras questões, levando em
consideração a relação entre raça/racismo e meio ambiente, Bem Viver e terri-
tório. Nesse sentido, o genocídio da população negra não se dá somente pela
“morte matada”, por assim dizer, mas constitui também toda uma lógica de
exclusão baseada na nossa identidade racial (criando intersecções com gênero,
classe, idade etc.) que faz com que vidas sejam descartadas dentro do sistema.
Isso se concretiza pelo não acesso a tratamentos de saúde, por contaminação
do meio, pelo não cuidado com doenças psicológicas etc. Nesse sentido, é

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importante contextualizar o termo Racismo Ambiental que surgiu em 1981,
criado pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr a partir de suas investigações e
pesquisas entre a relação de resíduos tóxicos e a população negra norte-ame-
ricana. Retrocedendo um pouco, historicamente falando, temos o conceito
de Justiça Ambiental, que surge nos Estados Unidos, no ano de 1978, a partir
da tomada de consciência de uma comunidade de operários, residentes em
Love Canal, em Niagara Falls, que estavam vivendo acima de um aterro de
resíduos tóxicos, articulando-se posteriormente para exigir reparação de danos
ao poder público quanto à saúde dos que ali viviam e o direito à informação.
Marcelo Lopes de Souza em seu livro Ambientes e territórios, salienta que as
ocorrências de injustiças ambientais podem ser classificadas em termos de ra-
cismo e classismo ambiental, no entanto, a ocorrência de racismo ambiental
é mais violenta e recorrente, sobretudo, no Brasil, um país estruturalmente
racista. O conceito de justiça ambiental ganha maior importância política
a partir do “Movimento Contra o Racismo Ambiental”, a perspectiva surge
exatamente a partir de mobilizações que se opuseram a casos locais de racismo
ambiental. A pesquisadora Selene Herculano define racismo ambiental como
sendo o conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus governos, que acei-
tam a deterioração ambiental e humana, justificando-se na busca pelo desen-
volvimento e pela naturalização implícita da inferioridade de determinados
segmentos da população afetados – negros, índios, migrantes, extrativistas,
pescadores, trabalhadores pobres, que sofrem os impactos negativos do cresci-
mento econômico e a quem é imputado o sacrifício em prol de um benefício
para os demais. O conceito está relacionado às injustiças sociais e ambientais
que recaem desproporcionalmente sobre os grupos mais vulneráveis. Segundo
Herculano, o racismo ambiental está principalmente ligado à injustiça racial
e na evidência de que grupos racializados sofrem de forma desequilibrada os
custos sociais de maneira geral.

Vinícius da Silva: Voltando à discussão sobre os processos de vali-


dação e constituição da vida, é importante salientar que o racismo ambiental
ainda parece desempenhar um papel importante na distribuição do direito à
vida e ao território, como você bem aponta, inclusive. Sabemos que o racismo
é um sistema de poder e dominação e, a partir dessa compreensão, por isso

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existem entrelaçamentos no que se refere a questão do meio ambiente. E há
quem diga, por exemplo, que a discussão sobre populações precarizadas (mo-
bilizando o racismo como categoria de análise) não é importante, pois se trata
de uma condição de vulnerabilidade generalizada; mas como a precariedade
e a vulnerabilidade são construídas e distribuídas, sob que critérios? Trata-se,
realmente, de uma questão somente concernente à vulnerabilidade, quando
os dados revelam uma intersecção entre raça-classe-meio ambiente-gênero…
na condição de ausência desses serviços? Nós não precisamos responder a estas
questões, por ora, mas é importante estabelecê-las. Outro ponto importante
para a nossa discussão é sobre as inúmeras dificuldades que o atual contex-
to socioambiental nos coloca quando precisamos imaginar um novo mundo,
como diria Helena Vieira, “a sucessão triste de acontecimentos trágicos parece
sugerir que o futuro é impossível.” Como podemos imaginar um novo mundo
a partir disso? Eis a questão.

Andressa Dutra: Essa questão do direito ao território é algo muito


forte nos meus discursos, porque não acredito no combate aos desafios globais
sem a escuta das pautas locais - onde se territorializam as consequências do
“desenvolvimento”, sem considerar a vivência daqueles que estão expostos a
vulnerabilidade e são afetados constantemente pela violência. Essa lógica po-
tencializa diversas injustiças ambientais, perpetuando práticas como a queima
de florestas, aumento das desigualdades e a exploração dos povos que ocupam
a base da pirâmide social. No Brasil, tem-se a característica de um país de di-
mensões continentais, onde o território é dotado de grande e rica diversidade
cultural, socioeconômica e ambiental, e ainda com marcas de desigualdades
sociais e regionais. Pensando a partir de uma abordagem desenvolvimentis-
ta, configurou-se então no país um padrão de desenvolvimento muito bem
concentrado e ainda excludente. Isso se dá por razões históricas, fazendo com
que parte do território brasileiro permaneça com seu potencial de desenvolvi-
mento subexplorado. As maiores dificuldades de acesso a empregos de quali-
dade e aos serviços básicos se concentram nas regiões menos desenvolvidas e
contribuem para alimentar o círculo vicioso do atraso e para trazer limitações
às oportunidades de crescimento pessoal e profissional dos brasileiros que ali
vivem. Buscar um desenvolvimento mais equilibrado territorialmente, respei-

Vinícius da Silva 53

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tando e explorando sua diversidade, é fundamental para a integração e a coe-
são econômica, social e territorial do Brasil. Você trouxe questões que exigem
uma profunda reflexão, primeiro, como a precarização da vida é distribuída e
construída, a partir disso podemos pensar mais uma vez na produção da vida
e a imposição da vulnerabilidade sobre a mesma, e como pensar/acreditar/
enxergar novas possibilidades? Nesse momento, eu penso muito em Ailton
Krenak que sempre frisa em suas exposições como é necessário mudar as es-
truturas, descolonizar o pensamento e reinventar novas formas de estar nesse
mundo.

Vinícius da Silva: Por que discutir futuro, sobretudo em um cená-


rio pandêmico, é tão difícil? Para algumas pessoas, as discussões sobre futuro
emergem como criações utópicas, mirabolantes e distantes da nossa realidade
social e, por isso, trata-se de uma conversa complexa que nos obriga a encarar
nossa realidade e construir caminhos a partir disso, como você bem disse ao
citar Krenak. É preciso criar formas de estar neste mundo, com ele e não contra
ele, né? Nesse sentido, proponho uma discussão sobre futuro justamente para
podermos refletir sobre as razões que nos levam a constituir alianças e disputar
um novo projeto de sociedade.
“Mas sob qual justificativa uma população que carece de equipamen-
tos de saneamento básico, por exemplo, teria interesse em discutir futuro,
uma vez que essas pessoas estariam preocupadas somente em sobreviver?”, po-
dem perguntar-me, mas sem a intenção de responder esta pergunta, gostaria
de estabelecer uma provocação: como as vidas que não são consideradas, de
fato, vidas ou vivas poderiam estar lutando por sobrevivência? A reflexão que
proponho com este questionamento é simples: precisamos compreender que
a distribuição desigual de recursos ambientais e públicos, como, por exemplo,
a água e o acesso a esgotamento sanitário, não é feita somente articulando a
manutenção de um projeto de poder, mas sim porque as populações que mais
sofrem com essas ausências não são consideradas populações vivas.
Embora a Constituição Federal da República Federativa do Brasil,
promulgada em 1988, garanta que a saúde e segurança são direitos sociais
(artigo 6º), que é dever do Estado assegurar o direito à saúde pública de qua-
lidade à toda população brasileira (artigo 196) e que todos nós temos direito à

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qualidade de vida e de ocupar um meio ambiente ecologicamente equilibrado
(artigo 225), na dimensão prática da nossa realidade, não observamos essas
garantias constitucionais sendo cumpridas de forma proporcional e bem dis-
tribuída. Uma discussão que tem surgido com bastante frequência e uma certa
importância no debate público sobre saneamento básico no Brasil é a pauta
da universalização desses serviços. No entanto, como discutir a questão da
“universalização”, por exemplo, se cerca de 55% da população brasileira não
tem acesso a condições adequadas de esgotamento sanitário e 45% não possui
acesso ao tratamento desse mesmo esgoto sanitário? Como analisar a distri-
buição de serviços de saneamento básico no Norte e Nordeste (regiões com
população negra majoritária), ao passo que outras regiões usufruem desses ser-
viços, de forma mais ampla e “universal”? O que seria essa “universalização”?
O que estaria sendo universalizado, então? Certamente, não é o direito à vida.
No Brasil, uma pessoa negra morre a cada uma hora e meia por falta de
saneamento. “E, como se não bastasse o genocídio por homicídios dos jovens
negros de periferia, a morte por saneamento tem afetado enormemente bebês
e idosos negros, além dos jovens. É como se morrer fosse o nosso destino, na
infância por saneamento, na juventude por bala, na velhice por saneamento”,
aponta Victor de Jesus. Essa “sucessão triste de acontecimentos trágicos”, diria
Helena Vieira, “parece sugerir que o futuro é impossível.”
A partir desse contexto, compreendendo a distribuição de serviços
de manutenção da vida, levantamos uma hipótese: a de que as regiões com
maior concentração percentual de minorias raciais serão, consequentemen-
te, mais afetadas com os desastres ambientais, poluição industrial e com a
omissão do Estado, como apontam Acselrad, Mello e Bezerra, em O que é
justiça ambiental: “os impactos dos acidentes ambientais estão desigualmente
distribuídos por raça e por renda: áreas de concentração de minorias raciais
têm uma probabilidade desproporcionalmente maior de sofrer com riscos e
acidentes ambientais.” Por que as populações negras e indígenas, no Brasil,
estão mais propensas a serem negativamente impactadas com as desigualdades
socioambientais? Isto significaria dizer que a legislação ambiental brasileira
não é eficaz? Há saída para o quadro esboçado, e se sim, qual? Por que é tão
difícil, repito, pensar em estratégias de enfrentamento e mobilização coletiva
a partir dessa realidade? O futuro é realmente impossível?

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Andressa Dutra: Tecer um futuro em meio a essa realidade em que
o racismo se porta como uma ideologia presente na sociedade brasileira, e
ao mesmo tempo como um instrumento que reforça e perpetua estruturas
de desigualdade realmente é um desafio. O preconceito praticado é o que se
referencia na cor, neste contexto temos a iminência de políticas higienistas
e eugenistas entranhadas na composição da sociedade, a ideologia do bran-
queamento promove a precarização de sujeitos negros e exaltação de sujeitos
brancos numa tentativa de promover o branqueamento da população. 
Quando eu penso em particular nessa questão que você levanta sobre
“como uma população que carece de equipamentos de saneamento básico,
por exemplo, teria interesse em discutir futuro?”, eu visualizo uma articulação
política forjada para que esses corpos não sejam, de forma alguma, considera-
dos vivos. Corpos lançados à precariedade, sem tempo de respirar, corpos es-
gotados diariamente, sem direito à saúde, à cidade, à cultura, ao meio ambien-
te, à vida. Como, mesmo depois desse esgotamento, esses corpos pensarão em
futuro sem se quer lhes ser oferecido o direito de viver? Como eu, uma mulher
negra periférica, penso em um novo amanhã se nem o hoje me é garantido,
se a cada dia me é tirado o direito de usufruir dos direitos mais básicos? E é
justamente isso que você pontuou, é mais que uma articulação baseada na
dominação, é sobre deixar viver. Quem merece viver? Temos essa resposta ao
nos deparar diariamente com os corpos não rentáveis sendo lançados a morte,
e vemos isso quando Foucault diz que “o corpo só se torna útil se é ao mesmo
tempo corpo produtivo e corpo submisso” ou quando Mbembe expressa sua
preocupação com a “instrumentalização generalizada da existência humana e
a destruição material de corpos humanos e populações”.
E essa questão do saneamento básico é certamente, como trata Victor
de Jesus, um indicador de desigualdade, uma vez que o acesso a esse equipa-
mento público possui um perfil racial, é um serviço que se constitui como
privilégio - e não direito - e mecanismo de controle racial. A partir dessa pauta
da universalização do serviço de saneamento é possível visualizar as estratégias
por trás dessa privatização. Essas estratégias políticas não pensam no bem-es-
tar social, nem se quer na população que vive em vulnerabilidade social sem
acesso a recursos ambientais e públicos que exprimem qualidade de vida. Ou
seja, como você mesmo evidenciou através de dados, temos uma população

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que morre por não acesso a água com qualidade, esgotamento sanitário, coleta
de lixo, com a privatização do serviço, teremos um verdadeiro extermínio,
a execução da necropolítica, e trago à tona mais uma vez uma reflexão do
Victor de Jesus, em que “o Estado tem utilizado o saneamento como um so-
fisticado dispositivo político para violentar e assassinar os corpos considerados
matáveis,” começamos então a visualizar a morte como ferramenta de atuação
do Estado. No Brasil, o status econômico acompanha a classificação racial e
os equipamentos e serviços públicos aparentam seletividade, mesmo com as
garantias constitucionais. A partir disso, eu repito sua pergunta: será mesmo
possível a existência de um futuro para as vidas negras? Será possível um novo
amanhã?

Vinícius da Silva: Sem ter a intenção de responder às perguntas co-


locadas, saliento que é a partir desse contexto que a discussão sobre futuro
adquire uma importância singular, de modo que possamos construir alianças
de resistência e enfrentamento às articulações (necro)políticas que informam
os contextos sociais esboçados. Mas não nos enganemos, porém, com a pro-
messa solucionadora que as discussões sobre futuro, à primeira vista, podem
nos oferecer. Sempre que me proponho a realizar esta discussão, realizo-a com
a intenção de articular frentes de resistências e novos modos de distribuição do
poder que não impliquem na construção e manutenção de sistemas e matrizes
de opressão. As alianças, diria Butler a partir de uma leitura do pensamento
de Hannah Arendt, são o fundamento da nossa sobrevivência. Formar alian-
ças é estar com as pessoas e, portanto, disputar - nesse sentido - formas de
bem viver. As alianças de Butler são uma resposta das populações precárias
às condições de precarização. Historicamente, a construção de alianças tem
organizado diversas mobilizações sociais por justiça social, por exemplo, como
nos Estados Unidos na década de 80 e em diversos países da América Latina -
uma região que tem sido, sistematicamente, afetada -, ou no Egito, em 2011.
O futuro é uma metáfora temporal que nos chama à mudança, que nos revela
que, sim, nós temos a ver com tudo isso, também é de nossa responsabilidade.
Não devemos nos assustar com o imaginário do amanhã, por mais distante
que ele pareça estar. Nesse sentido, insisto na promessa de um novo tempo
como sendo a nossa principal motivação para continuar lutando por isso. Não

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devemos cair nos devaneios, devemos nos ater a construções coletivas reais
e à formação de alianças para enfrentarmos a precariedade desigual que nos
assola. Este deve ser o caminho para o amanhã. E precisamos agir já, para que
de fato haja um amanhã, um outro dia, um novo nascer do sol.

Andressa Dutra: De fato, construir alianças de resistência é um passo


muito importante contra as políticas de morte impostas sobre os nossos corpos,
alianças entre as vidas precárias, como você bem citou, a partir do pensamento
de Butler. E, nesse sentido, realmente a formação da aliança se torna o pré-re-
quisito para que um corpo permaneça vivo. A aliança se coloca então como
condição para sobreviver, para estar ou ser. Vendo por esse lado, podemos en-
tão pensar propostas para um novo amanhã, a partir da formação de alianças
políticas que permitam o rompimento das necropolíticas coloniais que estão
enraizadas na sociedade. Quando se trata de alianças baseadas em uma formação
que resiste à precariedade, existem efeitos positivos, efeitos revolucionários. Isso
gera resultado, porque a união de vivências gera revolução. E é nesse sentido que
acredito nas alianças, quando falo de alianças me refiro ao encontro, ir com o
outro, o outro pode ser alguém tão distante, mas que entende sua vivência e se
coloca na luta. Essa aliança é baseada na experiência, na vivência. Essa aliança
possibilita a existência do amanhã. Eu recorro a essa aliança para a construção
de um novo amanhã. Pois quando voltamos a discussão do “olhar para o futu-
ro”, certo tom de negatividade e desesperança surge, pois ao firmar os olhos em
um horizonte com base no hoje, no agora, eu penso “como acreditar em uma
promessa de um novo amanhã, um novo mundo se não tenho nem o hoje?”.
Porém, quando baseio a expectativa, ou essa promessa a partir das alianças de
resistência e enfrentamento, eu tenho motivação para um novo amanhã.
Debater o futuro de vidas negras permanece sendo um desafio, ainda
mais quando falamos de Brasil, onde negros morrem mais, são os mais expos-
tos a doenças sanitárias e quando buscam atendimento médico, pessoas negras
não recebem um tratamento isonômico, são a maior porcentagem em imóveis
insalubres, os que mais sofrem com o desemprego, e quando empregados são
os que recebem menor salário, além de serem vítimas de outros atos discrimi-
natórios isolados. Porém, nesse debate de alianças, encontramos a possibilida-
de de obter o Bem Viver, e quando falo de bem viver, não me restrinjo a pros-

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peridade financeira, eu falo de ir contra essa racionalidade desenvolvimentista,
que exprime opressão, da qual nós já falamos aqui. Quando Acosta fala sobre
Bem Viver, ele fala sobre uma filosofia de construção, e eu diria de reconstru-
ção também, abandonando as noções violentas, excludentes e opressoras do
progresso, e criando princípios de solidariedade, cumplicidade, reciprocidade,
e como diria Antônio Bispo, grande referência para mim nessa perspectiva
de pensamento decolonial, confluência. Até mesmo o Bispo traz um termo,
repensando um pouco sobre as alianças, de formação de alianças cosmológi-
cas para a organização política das comunidades, e isso é muito interessante,
porque segundo ele, dentro dessa aliança, povos que se comunicam de forma
diferente conseguem se entender, pelos seus modos, eles se entendem. 

Vinícius da Silva: Este é um ponto importante. O Bem Viver, tal como


teoriza Acosta, promove um deslocamento na compreensão e apreensão do ser,
de uma vida. Eu diria que, nesse sentido, ao retomar a discussão sobre Bem Vi-
ver, estaríamos, também, nos engajando em uma construção de uma noção de
vida que parta do que Butler chama de interdependência ou coabitação, isto é,
o fato de que o sujeito não existe na solidão. O sujeito se torna sujeito no encon-
tro, nas alianças. E o Bem Viver promove essa compreensão, de alguma forma.

Andressa Dutra: O Bem Viver é um ponto fundamental para discutir


novas possibilidades, um novo amanhã. Nesse ponto que você traz sobre a
interdependência ou coabitação, eu lembro muito de algumas palavras do
Nego Bispo, em que ele coloca o poder quilombola baseado na palavra, e como
essa palavra falada é tão cheia de significações e relação entre os seres vivos e
não vivos. Para além disso, ele traz uma reflexão de como as comunidades
tradicionais mantêm sua organização política, baseada na reciprocidade, no
que há em comum, de como essa organização é horizontal. Diferente da
organização política do colonizador que tem um olhar vertical, linear, que
não faz curvas, as comunidades tradicionais pensam e agem de forma circular,
para eles não existe um fim, sempre há chance para um recomeço, sempre é
possível um futuro. Então, quando Butler vai contra essa forma de organização
pautada na autossuficiência e soberania desenfreada, e propõe que uma nova
forma de organização política pensada a partir do reconhecimento de uma

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interdependência inevitável e o apelo da precariedade da vida, acredito eu
que ela traz essa visão horizontal. E nesse pensamento, eu reflito sobre o que
somos sem quem está perto de nós. O que podemos ser com o outro ao nosso
lado? Qual futuro podemos esperar como consequência da confluência das
vivências, da coabitação ou interdependência?

Vinícius da Silva: Uau! Não sei se consigo responder às questões colo-


cadas, mas faço algumas breves e finais considerações. Uma vez que a disputa
pelo futuro se baseia numa ética da coabitação e da coletividade, seus resultados
são imprevisíveis. Este é um dos princípios da ação política, conforme Hannah
Arendt. Não dá para saber qual vai ser o fruto das nossas disputas e reivindica-
ções, uma vez que estamos falando dos dilemas do plural. E isso faz parecer que
o futuro é um terreno de incertezas e disputas talvez inférteis, mas aí entra outro
papel fundamental, a meu ver, da política: a esperança e o entusiasmo. “Não se
faz política sem entusiasmo”, já diria Paul Preciado. E, por política, entendemos:
a qualidade do estar com os outros disputando um projeto de sociedade. Nesse
sentido, a política está aí para todos nós, resta fazermos bom uso dela. E numa
discussão sobre futuro, o bom uso da política se exemplifica nas disputas cole-
tivas pelo Bem Viver. Por isso, tendemos a conceber a discussão sobre futuro,
sobretudo a partir do panorama das injustiças ambientais, enquanto desespe-
rançosa, mas eu me recuso a sucumbir à falta de esperança.

Andressa Dutra: É isso, Vini, complemento sua fala dizendo que


carecemos de um futuro menos opressivo, menos violento, e muito mais
acolhedor. Olho para esse futuro, seguindo o diálogo que tivemos aqui, com
muita esperança, e nessa projeção, retorno sempre ao passado, resgatando saberes
tradicionais que dão significado à minha vida. Que possamos permanecer
lutando a cada dia pelo abandono do antropocentrismo, entendendo que há
muito vida além de nós. Olho com esperança para um futuro que valorize a
vida ao invés de precarizá-la, no qual haja mais opções que não seja produzir
as condições para se manter vivo ou produzir as condições para morrer. Que
a esperança resista a este sistema hegemônico, agressivo e assassino. Que pos-
samos construir um presente baseado nas relações de reciprocidade, amor e
poder ensinadas por nossos ancestrais, para que o futuro seja vivível.

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“Não é monstruosidade,
é racismo”:
entrevista com Vinícius da Silva e wanderson flor do

nascimento58

Esta é um registro de um diálogo singular que eu tive com o professor


wanderson, a convite da jornalista Brenda Vidal. Considero ser esta entrevista
um registro importante de meu pensamento, mas também um instrumento
didático para a compreensão das dinâmicas do racismo. De forma didática e
exemplificada, mobilizamos categorias essenciais para se compreender as dinâ-
micas de opressão das sociedades de inimizade e, com isso, esperamos que esta
entrevista possa servir enquanto material de análise que ela cumpra um papel
central nas discussões estabelecidas nesta obra.

Brenda Vidal: São incontáveis os casos de jovens brancos que co-


metem ataques de violência física contra sujeitos negros e que, muitas vezes,
acabam no assassinato destes. Estes jovens são monstros, que demonstram
uma brutalidade que destoa da sociedade “civilizada”? Eles são a exceção desta
sociedade, eles apresentam uma pré-disposição biológica, como naturalizou-se
no imaginário social, para a violência?

Vinícius da Silva: A meu ver – e vários autores estão discutindo isso,


inclusive –, essa pré-disposição biológica não existe, não é algo de fato com-

58  Esta entrevista foi realizada no dia 21 de julho de 2020, três dias após os aniversários de Brenda e
Vinícius e na véspera do aniversário de wanderson, na ocasião da construção de uma matéria sobre o livro
My Life as a Rat, de Joyce Carol Oates, para a revista da TAG Livros de outubro de 2020. Para estar neste
livro, esta entrevista foi transcrita e editada por Brenda Luíza Ferreira Vidal e Vittoria Polastro Ben (UFR-
GS) e revisada por Brenda, Vinícius e wanderson. Brenda é graduada em Jornalismo pela Faculdade de
Comunicação e Biblioteconomia (FABICO) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
repórter no site e na revista NOIZE, já tendo contribuído para a revista da TAG Livros.

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provado. Eu busco sempre compreender essas dinâmicas a partir do âmbito
dos imaginários sociais; penso que existe toda uma construção social, ideoló-
gica e cultural (e, na prática, são fatores que não se dissociam) que, de certa
forma, tangencia esses fenômenos. Por exemplo, quando se fala do assassi-
nato/genocídio de jovens negros, o modo como essas mortes são tratadas é
diferente. E essa diferença em como essas mortes são concebidas e, consequen-
temente, como essas vidas são concebidas, está sendo informada por toda uma
construção que permeia os nossos “valores morais”, digamos assim, embora eu
não goste deste termo.

wanderson flor: Como que a gente fala sobre isso? A perspectiva


que está em jogo nesse evento é uma perspectiva absolutamente corriquei-
ra do racismo. O problema do racismo é que ele joga uma espécie de véu
em cima dos fenômenos, o que faz com que a gente sequer perceba que a
violência está acontecendo. Esses jovens não são monstros. O racismo não é
uma experiência de monstruosidade, mas seu efeito é um efeito monstruoso.
Esse é um ponto fundamental. Esses jovens [brancos] são jovens comuns
que, muito provavelmente, não conseguiam ver nos sujeitos negros uma vida
humana, uma vida que valesse a pena ser vivida. Se você esbarra numa barata,
numa mosca, num animal que você não considere digno de viver, e desse
encontro tem-se, como resultado, a morte, você não vai imaginar que dali
saiu um gesto violento. Isso não é entendido como um gesto violento. Não
há monstruosidade nesse caso, há uma situação absolutamente corriqueira do
que é o racismo, de que o racismo desumaniza. E desumaniza tanto o sujeito
que é a vítima quanto o sujeito que agride. Isso é uma coisa que o Aimé Césai-
re aponta: o racismo transforma em monstro mais quem atinge do que quem
é atingido.

Brenda Vidal: Por que as pessoas brancas se sentem autorizadas a co-


meter violências contra pessoas negras? E por que ainda encontram justifica-
tivas para tal ato?

wanderson flor: Eu não diria que elas se sentem autorizadas, mas


diria que eles se sentem compelidas a fazer isso. Existe um fator nos proces-

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sos de subjetivação que o Ocidente cismou em fazer funcionar que é o fato
de que um sujeito só se torna, de fato, um sujeito, quando transforma algo
em objeto. É preciso objetificar para ser sujeito; só quem transforma algo em
objeto se torna um sujeito. Esta é uma condição necessária. Por isso que, por
exemplo, você pode também dizer isso em relação ao machismo, ao racismo,
ao classismo, à homofobia, enfim, em relação a todos os sistemas de opressão:
você só se entende como sujeito se você consegue colocar o outro no lugar de
objeto. O homem só se entende homem negando a mulher e transformando-a
em objeto. Um branco só se entende como sujeito branco quando ele nega o
não-branco. Isso não é uma escolha, isso é uma determinação da lógica racista.
A violência racial é o que constitui o sujeito branco; a branquitude é o resul-
tado desse processo violento. Por isso, a violência, a branquitude e o racismo
estão eternamente ligados. E esse é um grande problema. E o grande problema
do racismo é a diferenciação do outro, não como uma forma de dizer “sou
diferente de você”, mas porque não só eu noto essa diferença, como eu preciso
transformá-la em uma hierarquia, e uma hierarquia que se expressa na forma
da violência. Só que um assassinato violento já é um gesto radical, no qual a
violência acaba consumindo uma vida. Mas isso está no racismo cotidiano,
nas brincadeiras, nessas muitas formas que o cotidiano nos oferece de trans-
formar o outro em objeto. Ele [sujeito branco] é compelido e sente que precisa
se reafirmar o tempo inteiro nessa branquitude. A branquitude não é só o fato
de que alguém tem a pele branca, ela é uma lógica na qual o branco precisa
se diferenciar do não-branco de uma forma violenta. É uma hierarquização.

Vinícius da Silva: Eu acrescentaria à fala do professor uã o fato de que


essas relações entre sujeito e objeto, como sugere o pensamento de Patricia
Hill Collins, fundamentam o que a socióloga chama de matrizes de domina-
ção, as quais se organizam a partir de sistemas de opressão, ou também de sig-
nos da morte [conceito da filósofa Sueli Carneiro], dependendo do referencial
teórico. E são justamente essas dialéticas entre sujeito e objeto construídas no
domínio ideológico (Collins chamaria isso de “domínio cultural do poder”),
como eu disse anteriormente, que dão (também) o suporte necessário para a
manutenção das matrizes de dominação. E acrescento ainda que essa estrutura
é algo muito difícil de se reconstruir, de se discutir uma possível reforma, pois

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a forma pela qual ela se organiza é algo que está impregnado na racionalidade
ocidental, algo que foi historicamente construída pela filosofia ocidental e
que, por sua vez, construiu também muitas das nossas percepções acerca da
questão do sujeito e do objeto.

Brenda Vidal: Sublinhando isso que vocês trouxeram tão bem, rela-
ciono com o processo do sujeito branco estabelecer uma relação de Outridade
com esse indivíduo negro. Por que não é só uma questão de dificuldade e de
não assimilação da diversidade, correto?

Vinícius da Silva: Uma das principais características do racismo mo-


derno é que, como ele se orienta a partir dessa relação entre sujeito e objeto,
é justamente essa outrificação do diferente que surge enquanto problemática,
onde a diferença implica não só na informação de uma diferença comum, por
exemplo. Não é como se a gente distinguisse a cor azul da cor vermelha, mas
é uma significação da diferença que também informa determinados objetos
que podem ou não influenciar na organização social num contexto de “pós-
-colonialismo”, digamos assim, apesar de eu não saber se esse é o termo mais
adequado para o momento. A partir dessas relações pós-escravidão, partin-
do daquilo que o Achille Mbembe analisa em uma perspectiva entre pessoas
brancas e pessoas negras, sem falar de pessoas indígenas e pessoas asiáticas,
por exemplo, os contornos do racismo serão muito diferentes. Essa relação, a
partir da outrificação vai ser tão crítica que essa existência do Outro implica
em uma vontade de exterminá-lo em prol de uma organização social, em prol
de um projeto de sociedade que só se executará, de fato, sem a existência desse
“objeto” que desorganiza a ordem social.59 Esses objetos são, justamente, as

59  Em relação ao pensamento de Mbembe, após a publicação do artigo “Políticas do Amor e Socie-
dades do Amanhã” (Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, v. 10, pp. 168-182. DOI: https://
doi.org/10.5902/2179378639954) – também presente nesta obra –, muitas pessoas questionaram-
-me acerca do conceito “relações sem desejo”, presente em Politiques de l’inimitié (Paris, La Dé-
couverte, 2011). Para fins de elucidação, como este conceito é importante para o desenvolvimento
desta entrevista (embora já o tenhamos explorado anteriormente neste livro), costumo o relacionar
com a violência ética de Butler, que compreende formas nem sempre físicas de desumanização e
abjeção. Nesse sentido, as relações sem desejo seriam caracterizadas, não somente como relações sem
afeto, mas pela total aniquilação da responsabilidade ética (da qual Butler também tanto fala) e do
reconhecimento do Outro enquanto sujeito.

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pessoas negras e essas pessoas que são sujeitos dessa sociedade são as pessoas
brancas, numa perspectiva binária. É uma lógica que, de alguma forma, está
tão impregnada no nosso imaginário social e cultural que justifica a falta de
comoção com a morte de pessoas negras. Se observarmos os comentários,
nas redes sociais, de notícias sobre adolescentes negros e brancos que são as-
sassinados - exercício este que eu não faço mais - existe uma diferença de
justificativas éticas para tentar legitimar essa morte no caso de pessoas negras,
o que não acontece no caso de pessoas brancas. Isso está tão impregnado em
nossas relações e em nosso imaginário social que todos nós estamos propensos
a reproduzir esse tipo de julgamento em algum momento das nossas vidas, se
não fizermos uma reflexão crítica.

wanderson flor: Eu reforço que o racismo é uma estrutura paradoxal


pois, ao mesmo tempo que ele transforma o outro em objeto, essa violência só
faz sentido na presença do outro. Não faz sentido você ficar com raiva de um
poste e ficar dando porrada nele, isso não faz sentido… é preciso que o poste
seja gente para que se faça sentido eu querer me vingar, tornar desafeto, querer
atacar, humilhar, envergonhar, etc. Ou seja, o racismo é um sistema paradoxal
porque, ao mesmo tempo que ele desumaniza para que eu esteja confortável
em exterminar esse outro humano... porque não é simples, né? Essa ideia de
matar a pessoa. O rosto do outro nos diz: “Olha o que é que você está fazendo
comigo?”, o rosto do outro desmonta. Então, é preciso desumanizar e sumir
com esse rosto humano quando estamos no limiar da morte, no limiar da vio-
lência extrema. Mas no limiar das outras relações mais cotidianas que tenham
a ver com a crueldade, com a humilhação, com o rebaixamento, eu preciso
que essa pessoa seja um humano para que eu possa dizer “Eu sou melhor do
que você”. Eu preciso estabelecer essa diferença que é paradoxal, porque, para
desumanizar o outro, eu preciso humanizá-lo para rebaixá-lo. Porque eu não
rebaixo um poste, eu não vou ficar batendo boca com uma pedra, isso não
faz sentido, sobretudo não faz sentido, para o imaginário ocidental; dizer que
a minha vida importa mais do que a vida de uma pedra. O racismo tem essa
característica contraditória e paradoxal que faz com que, ao mesmo tempo
que você tem uma relação com a recusa da diversidade, você também tem uma
relação de acolhimento tenso da diversidade para poder inferiorizar. Eu, en-

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quanto branquitude, encarnando o signo da branquitude, preciso de alguém
para subalternizar e inferiorizar. E preciso que esse alguém seja humano. Essa
relação tem a ver com os processos históricos da colonização que atravessam a
história do ocidente. Os seres humanos foram desumanizados, mas para que
ele fosse inserido em uma lógica de internalização do racismo, eu precisava
que eles fossem humanos para entender que eles eram inferiores. Porque, se-
não, a rebelião estava feita, porque se ele entendesse que era uma pedra que
se rebelava, ele não tinha o que fazer porque eu não me comunico com uma
pedra, eu me comunico com outras pessoas.

Brenda Vidal: Esses recursos vão se atualizando e se expressando ao


longo dos tempos. A branquitude implica em um outro subjugado, ela está
sempre nessa relação de gangorra, certo?

Vinícius da Silva: As próprias relações entre sujeito e objeto se ba-


seiam nessa lógica, é algo que se organiza justamente dessa forma.

wanderson flor: É algo que se encaminha, inclusive, para a


possibilidade de nós podermos pensar aquilo que Judith Butler chama de ab-
jeção. Ou seja, já não basta transformar em objeto, mas, sim, banir do mundo,
das relações humanas. Nós temos nossos relógios, por exemplo, nós temos
uma relação muito boa com os nossos objetos, ninguém quer sair por aí dando
porrada no seu relógio. Sobretudo os homens, os “machos” da nossa espécie,
têm uma fixação por carros, ou seja, não é qualquer objeto com o qual você es-
tabelece uma relação de exclusão total. E a objeção implica não só em banir do
mundo sujeitos, transformando-os em objetos, mas também banir do mundo
da convivencialidade na forma da abjeção. O prefixo “a” é o processo de ne-
gação, inclusive da possibilidade de ser, não só de ser humano, mas a possi-
bilidade de ser. Ninguém em seu juízo vai querer exterminar o próprio carro,
você protege um certo campo de existência, agora a abjeção bani inclusive
do âmbito da existência. Logo, a abjeção é muito mais grave, nesse sentido,
porque contempla o âmbito da não existência, então, aí, a morte não vai ser
lamentável. A nossa própria sensibilidade é treinada para isso. Se um relógio
parar de funcionar, você vai lamentar porque vai ter que gastar comprando

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outro, ou de repente você até tem um afeto com ele, mas você pode guardar
esse relógio antigo que não funciona, porque nós temos memórias afetivas
com objetos que, muitas vezes, nós não temos com as pessoas negras porque a
gente baniu do mundo da existência, a gente transformou isso no âmbito da
abjeção. Não a pessoa branca, especificamente, mas esse ser da branquitude é
atravessado completamente por isso. É por isso que não se chora – não tem
por que, não faz sentido – a morte de uma pessoa negra, porque não se chora
a morte do que não morreu, porque ela já foi banida do âmbito da existência
das coisas.

Vinícius da Silva: E essa abjeção da qual uã fala tem seus desdobra-


mentos. Um exemplo que a Butler nos dá, em “Atos performáticos e a forma-
ção dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista” (1988),
é justamente a aceitabilidade seletiva de uma performance dissidente, por
exemplo, de uma travesti. Sua performance será aceita no âmbito teatral, mas
não é aceita dentro das relações sociais. E, de certa forma, penso que isso está
ligado a uma lógica da espetacularização, a qual cria nuances para que isso seja
de fato sentido ou não, porque essa existência ou não-existência requer aquilo
que a Butler vai chamar de “enquadramentos” – isto é, contextos de produção
de sentido –, ela vai falar de enquadramentos epistemológicos, enquadramen-
tos ontológicos, enquadramentos visuais etc., que são justamente os contextos
nos quais se produz essa percepção, e o contexto teatral é um desses capaz de
produzir essa aceitabilidade dentro dessa cena do (des)reconhecimento, o que
não será aceito em outros contextos. Por isso, a Butler utiliza muitas metáforas
do teatro, do visual, da performance. E eu acho que isso tem uma utilidade
didática muito bacana para nós.

Brenda Vidal: É muito interessante pensar em tudo isso que vocês


trouxeram sobre lugares em que toleramos pessoas negras e lugares que não.
Justamente para manter essa hierarquia de lugares secundários ou menores
que aquele sujeito que eu – sujeito dominante – objetifico pode ocupar. Na
experiência do atleta ou do sambista, podemos tolerar a pessoa negra porque
há uma utilidade. Agora, enquanto uma vereadora que enfrenta a milícia,
como Marielle Franco, já é demais...

Vinícius da Silva 67

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wanderson flor: No sentido ainda do que a Lélia Gonzalez chamava
de racismo por denegação, ou seja, essa noção de espetáculo. E aí eu acho que
essa noção de performance é pedagógica, mas é política também, já que eu sou
o agente que confere legitimidade ao espetáculo como espetáculo. Na minha
convivência cotidiana, a presença de uma pessoa não é controlada por mim, e
aí eu sou um agente reativo, enquanto no palco é o meu olhar que confere ao
palco a legitimidade de ser um palco. O sujeito que está ali é político porque
é ele quem confere legitimidade. Por isso que aqui, no Brasil, se fala com
muita facilidade coisas como “Não sou racista porque tenho uma empregada
negra” ou “Meu filho era amamentado por uma pessoa negra”. Esse tipo de
reflexão está o tempo todo mostrando que isso está no controle dela, porque
ela escolheu, ela contratou a empregada, e a pessoa não percebe que já está
numa situação de hierarquia. Essa espetacularização não deixa ver que quem
paga é que está no controle. É uma questão de poder.

Brenda Vidal: Vocês acreditam que exista no ato violento, no limiar


extremo da violência, a vontade dessa branquitude “expurgar” certas coisas
que ela não enxerga nela, mas enxerga no outro?

wanderson flor: Eu acho que existe, de novo, esse aspecto paradoxal


de que a branquitude performa a violência ao transformar o negro em mar-
ginal. O negro é marginal porque ela quer que seja. E aí, qualquer coisa que
o negro faça, qualquer coisa que o indígena faça, qualquer coisa que alguém
não-branco faça, é a marginalidade para a branquitude. É esse campo do li-
mite da legitimidade de que coisas podem e não podem. Isso confere a ela o
poder de classificar, inclusive. Não é só a classificação em si, mas o poder de
classificar. Porque não é o negro que se classifica como marginal.

Vinícius da Silva: Essa dimensão da violência nem sempre é física, tra-


ta-se de uma violência ética também. Podemos entender um ato de violência
enquanto uma negação daquilo que outra pessoa pode ser, nesse primeiro mo-
mento, em linhas gerais. Porque quando a gente fala em discursos, sobre esses
comentários, essas constantes justificativas de desumanização desses sujeitos,
estamos falando de justificativas éticas da violência, utilizando o conceito que

68 FRAGMENTOS DO PORVIR

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a Butler usa também. A violência ética pode ter seu desdobramento físico,
mas considero que até alcançarmos a dimensão física dessa violência, existem
etapas de violência ética, que são discursos/ações (não se separam), atos muito
sutis que de alguma forma corroboram com essa construção ética. E quando
falamos dos estereótipos, isso mobiliza um outro conceito, que é o conceito
de “imagens de controle” de Patricia Hill Collins. O estereótipo é uma re-
presentação física – está na esfera do visível. Eu diria, ainda, principalmente
a partir do contributo de bell hooks, que o estereótipo é uma manifestação
penúltima, digamos assim, da dimensão ideológica do imaginário social, e aí
a gente mobiliza o conceito de imagens de controle nesse sentido justamente
porque é o que está informando, por exemplo, o estereótipo de traficante, o
estereótipo da empregada doméstica negra. Esses estereótipos informam ima-
gens de controle. A partir da minha leitura da obra de Hill Collins, entendo
que o estereótipo pode ser remontado a um determinado contexto histórico,
já a imagem de controle não necessariamente, embora Hill Collins faça essa
genealogia – há uma gênese, mas não há uma fixidez na história –, ela se mol-
da para garantir a manutenção disso que nós estamos chamando de matrizes
de dominação. É uma dimensão ideológica que constrói esses lugares sociais.
Eu gosto muito de tratar esses lugares como lugares de aprisionamento social,
que mantém o sujeito físico naquele local. E ele mantém os jovens negros den-
tro de uma imagem que está convocando a hiperssexualização, a violência, a
desumanização e uma série de fatores que possibilitam essa ocorrência última,
que é a morte desse jovem.

wanderson flor: Porque os corpos mortos estão no chão o tempo in-


teiro, os corpos negros estão tombados em todo canto. A quem isso mobiliza?

Brenda Vidal: É correto afirmar que a branquitude se beneficia das


mortes de jovens negros mesmo quando ela própria não comete a violência
física em si?

Vinícius da Silva: Eu não sei até que ponto isso vai ser um benefício,
mas, neste momento, acredito que a gente pode tratar o direito à vida como
um benefício. E aí sim, a pessoa branca se beneficia porque ela tem o direito

Vinícius da Silva 69

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de estar viva, de poder transitar a qualquer hora na rua, de não ter seu direito
à cidade barrado.

wanderson flor: Eu estou absolutamente convencido de que sim. Eu


entendo por onde foi o argumento de Vinícius, mas, para mim, tem uma
questão muito simples: quem tem o poder de determinar quem vive e quem
morre é a branquitude. E a cada vez que esse poder se realiza, ou seja, quem
ela determinou que morra, morre, a sua própria manutenção está garantida.
Não é só um benefício, ele é sustentado por essa violência. Não importa que
uma pessoa branca jamais tenha visto uma pessoa negra e se beneficiado dela,
a própria lógica da branquitude continua se beneficiando de cada corpo ne-
gro que tomba, porque esse corpo negro que tomba foi projetado para isso
pela branquitude, esse é o ponto fundamental. E aí não se trata de privilégio,
de benefício, se trata do funcionamento do poder. Quando tem uma lógica
funcionando, uma engrenagem funcionando bem, quando morre um negro,
isso significa que essa máquina de moer carne preta continua funcionando, e
esse é que é o ponto fundamental. A própria lógica da branquitude se sustenta
nisso. É preciso que as pessoas negras estejam morrendo, é preciso que elas
estejam subalternizadas, é preciso que elas estejam sendo desumanizadas. E não
importa por quem, porque o problema não é o agente que provoca isso, é a vida
que sofre. Por isso que quando uma pessoa negra está sendo exterminada por
outra pessoa negra por uma razão racista, ele está simplesmente executando a
ordem que o racismo deu. Então quando a gente olha que a maioria da Polícia
Militar, que é quem mais mata jovens negros, é formada por pessoas negras,
a gente pensa que não pode ser racismo porque é um negro matando outro
negro, mas o problema é que eles estão simplesmente fazendo essa máquina
funcionar. Inclusive, quando um policial negro mata um jovem negro, a
branquitude está se fortalecendo com isso. Porque ele não está ali como um
homem negro executando outro homem negro; ele está ali como uma espécie
de reprodutor de uma lógica mandatária pela branquitude, e esse é o ponto
fundamental.

Brenda Vidal: Após o assassinato de George Floyd, o jargão “não bas-


ta ser racista, é necessário ser antirracista”, eternizado pela Angela Davis, tem

70 FRAGMENTOS DO PORVIR

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sido bastante compartilhado. Que possíveis estratégias de brancos e pretos
podem dar forma a essa ideia?

Vinícius da Silva: Antes de pensarmos essas possíveis estratégias, eu


vejo esse grande compartilhamento em redes sociais é de certa forma legal, mas
é algo que me deixa preocupado porque a gente não reflete sobre o que de fato
é o antirracismo. Eu parto de uma leitura muito influenciada por bell hooks
nesse sentido, e penso a ética antirracista enquanto algo que se fundamenta
em uma ética também anticapitalista. Então, quando a gente fala de antir-
racismo, estamos falando da substituição de um paradigma social (não uma
reforma, mas sim uma revolução). Nós estamos falando, por exemplo, daquilo
que a bell hooks vai chamar de “comunidade amada” [Beloved Community],
a partir do pensamento de Martin Luther King Jr., mas que eu prefiro usar
o termo Sociedades do Amanhã, mas isso sempre vai estar de alguma forma se
orientando a partir de uma ética anticapitalista. Isso não é discutido, isso se-
quer é reconhecido. Abro um parêntese: uma crítica que eu faço que é sempre
que a gente fala de mulheres negras, sobretudo as mulheres negras que estão
sendo mais lidas hoje, como bell hooks e Angela Davis, invisibiliza-se ou não
se reconhece a abordagem anticapitalista que essas autoras trazem (com ex-
ceção de algumas poucas pessoas que estão nas redes sociais preocupadas em
criar uma esfera de divificação, isto é, de transformar uma pessoa em diva, em
torno dessas autoras). A Angela Davis é uma autora socialista, ela reivindica
isso. A bell hooks é uma autora anticapitalista e ela também está falando isso
em vários momentos da sua obra. E quando a gente discute antirracismo,
quando a gente discute projetos de sociedade, principalmente através de bell
hooks, ela está falando de um anticapitalismo que busca erradicar isso que ela
está nomeando enquanto um sistema patriarcal, capitalista e imperialista de
supremacia branca. É um sistema de dominação que precisa ser erradicado
para que, de fato, o antirracismo ganhe forma. E uma outra leitura que eu
faço é que o antirracismo não nega essa diferença que a gente tem de diferença
racial, ele não se orienta nessas diferenças para fundamentar essas relações de
poder. Isso é algo crucial para a gente entender porque não basta as pessoas
brancas usarem a fala da Angela Davis como token, não basta as pessoas bran-
cas postarem uma foto preta com #BlackLivesMatter, é preciso haver uma

Vinícius da Silva 71

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ação anticapitalista, e o antirracismo precisa ser anticapitalista, senão ele não
estará promovendo nenhuma mudança. E se a gente não promove nenhuma
mudança, a gente está fazendo um “carinho” nesse sistema, e isso, para mim,
não é válido, não causa uma fratura sistêmica, e penso que a partir disso que
precisamos começar a discutir a questão do antirracismo enquanto algo que é
crucial para isso que a gente está chamando aqui de transformação sistêmica,
o que a Angela Davis, por exemplo, pode chamar de “reforma sistêmica”,
que tem a ver com todo um projeto de sociedade, tem a ver com repensar
o que orienta as relações sociais, repensar a questão da segurança pública,
repensar como os imaginários culturais vão estar sendo formados e o que eles
informam também, então é todo um projeto de sociedade. Pensar um projeto
de sociedade é algo difícil e é algo que precisa ser feito na coletividade. Uma
primeira estratégia é justamente pensarmos a importância da coletividade dos
movimentos sociais, principalmente o movimento de pessoas negras e de mu-
lheres negras, que é um espaço de coletividade que passa para nós muitos
ensinamentos e muitos caminhos a serem seguidos.

wanderson flor: Eu concordo totalmente com o que Vinícius falou.


Para mim, uma coisa muito explícita é entender primeiro que nem toda pessoa
negra se compreende como negro, isso é o primeiro ponto. Não há um povo
negro ainda, eu acho que o grande ponto seria talvez apostar na construção de
um povo onde as pessoas consigam se enxergar como povo negro, ou seja, que
ocupou um lugar na História, que isso tem a ver com o modo como as coisas
foram acontecendo com o tempo. E a outra coisa fundamental é compreender
- todo mundo precisa compreender isso, as pessoas negras, as pessoas brancas,
as pessoas orientais, as pessoas indígenas, as pessoas de qualquer outra confi-
guração racial do planeta - o lugar o racismo ocupa. Quando a gente fala que o
racismo organiza as sociedades modernas, isso não é uma questão meramente
retórica e a maioria das pessoas tão pensando que isso é panfletário. Que lugar
organiza o racismo, como é que o racismo ensinou o capitalismo a ser como é.
O capitalismo era uma teoria de emancipação, a gente tem que lembrar disso,
contra as formas de opressão do antigo regime, regimes feudais em que você
tinha uma nobreza que não trabalhava e que tinha toda a potência de política,
e não tinha nenhuma propriedade. Esse é um ponto fundamental, ou seja, o

72 FRAGMENTOS DO PORVIR

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capitalismo nasceu como uma teoria, como uma economia emancipatória,
por que não foi para a frente? Porque ele foi educado pelo racismo, o racismo
informou para ele como o capitalismo deveria funcionar. O racismo fundou
o patriarcado moderno, e aí mostrou como as mulheres deveriam ser tratadas.
O racismo ensinou como a gente deve se relacionar com pessoas de idades
diferentes, ou seja, o etarismo surge daí, toda essa forma de capacitismo…
inclusive, a nossa relação com a própria natureza e todo esse especismo, o an-
tropocentrismo, tudo isso foi informado pelo racismo. Então a gente precisa
compreender como o racismo se organiza nas sociedades. E ele faz reproduzir
essa mesma lógica de expulsão do mundo dos humanos e de abjeção, em
algum momento, da natureza, das mulheres, das pessoas que não são heteros-
sexuais, das pessoas que são trabalhadoras, enfim, de todas essas figuras que
ocupam o lugar do outro, do inferiorizado, do subalternizado. Talvez levar um
pouco mais a sério aquilo que o Achille Mbembe chama de “devir-negro do
mundo”. Ele não está dizendo que todo mundo é negro, ele está chamando
atenção de que essa lógica colonial que o racismo criou para a figura do negro
vai se encarnando na mulher, no estrangeiro, na pessoa homossexual, na crian-
ça, ou seja, em todas essas figuras que são desumanizadas e, de alguma manei-
ra, expulsas do âmbito da existência nessa onda da abjeção. Acho que esse é o
primeiro ponto. A gente está tentando pensar tanto em alternativas quando
a maioria das pessoas não entenderam nem o problema, eu acho que esse é
o ponto fundamental. Não é possível, exatamente pela razão que o Vinícius
chamou atenção, de que essa deva ser uma alternativa pensada coletivamente,
se a maior parte das pessoas não tem ideia de que isso sequer é um problema.
Então isso está em um núcleo muito pequeno de intelectuais, de ativistas, que
não são os informantes. Queria eu viver num mundo onde a principal refe-
rência cultural fosse Angela Davis. No Brasil, Olavo de Carvalho tem muito
mais influência política. Então, no dia que a gente puder se guiar por Angela
Davis, aí a gente pode pensar em alternativas, porque a gente estará no melhor
dos mundos possíveis, né? E por enquanto a gente ainda está no pior, então
é preciso ainda fazer o problema aparecer como problema para coletivamente
nós possamos poder pensar - pessoas brancas e pessoas não-brancas, pessoas
negras e pessoas não-negras - em alternativas de forma coletiva. Primeiro pas-
so: reconhecer o problema. E isso implica estudar, ver como é que as pessoas

Vinícius da Silva 73

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negras, indígenas e orientais estão falando suas experiências, há tanto tempo, e
as pessoas estão achando que é “mimimi”. Chamando produção de ciência de
“mimimi”. Acredito que a gente só vai poder pensar em alternativas quando a
gente entender qual é o problema.

Vinícius da Silva: E, por fim, eu acrescentaria à fala do wanderson


a questão da comunicação. Uma vez que pensamos no poder político, nessa
questão de quem realmente constitui isso que a gente chama de população
brasileira, por exemplo, nós estamos falando de pessoas que constituem uma
massa de trabalhadores, e que é preciso comunicar esse problema também para
esses trabalhadores. Um dos meus maiores desafios de pesquisa, por exemplo,
é a comunicação do racismo ambiental – que é meu tema de pesquisa. Porque
é muito fácil eu me sentar ao meu computador e escrever um texto, mobili-
zar todos os autores para falar sobre como o saneamento básico é um serviço
desproporcional no Brasil, mas se eu mostrar esse texto para minha vó, por
exemplo, que é empregada doméstica, talvez ela não entenda, embora ela já
tenha me acompanhado em aulas. A comunicação, em si, não é o problema,
mas como isso vai ser comunicado. Esta era a preocupação de Foucault, por
exemplo, em relação à forma do discurso e não necessariamente em relação
a seu conteúdo, embora estejamos falando de discursos específicos. A gente
precisa pensar, e eu acho que isso de certa forma precede essa compreensão
do problema, como comunicar esse problema sem subestimar a capacidade
intelectual dessas pessoas. E aí quando a gente fala de como comunicar tanto
o problema como a mudança, e os termos são muito importantes. A gente
não precisa usar os termos “antirracista”, “anticapitalista”, mas a gente precisa
de alguma forma mobilizar um tipo de comunicação que leve a essa questão
da mudança. E por fim, uma outra coisa que eu acho muito importante tam-
bém é a questão da solidariedade política, tema importante para hooks, que
possibilita a compreensão de que essas diferenças não precisam implicar uma
separação, um tipo de conflito, mas que a gente pode usar instrumentos para
a construção de uma coletividade, porque a coletividade é o primeiro passo
disso. E sem ela, a meu ver, a gente não consegue avançar nem com muito
esforço individual. A revolução há de ser coletiva.

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“A gente combinamos de
não morrer”:
corpos em aliança, resistência política e disputas

de narrativas60

Neste momento, corpos caídos no chão, devem


estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e
relembro um verso que li um dia. “Escrever é
uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de muito
sangrar, muito e muito…

Conceição Evaristo, “A gente combinamos de não morrer”

“Nós somos o resultado do nosso encontro”, firma a sentença – tão


repetida neste livro – que dá título à tese de doutorado de Luana Luna, profes-
sora e pesquisadora. No contexto das ocupações estudantis no IFRJ Campus
Realengo,61 em 2016, o postulado “nós somos o resultado do nosso encontro”
– dita por um estudante universitário – pareceu ecoar firmando uma aliança,
uma razão de solidariedade, a qual narra um mecanismo de sujeição. Nesse
sentido, todo sujeito é o resultado de um encontro, noção esta que prevalece
desde a dialética hegeliana, por exemplo. Mas ser o resultado de um encontro
nos coloca uma responsabilidade e um compromisso ético, pois um encontro
implica responsabilidade, uma quase obrigação de ser responsável pela vida
de alguém.
60  Versão revisada e ampliada de SILVA, V. & ADRIANO, V. “A gente combinamos de não mor-
rer”: Retornar às raízes e (re)construir espaços de afeto para o nosso povo. In: OLIVEIRA, V.; et
al. (Orgs.). De bala em prosa: vozes da resistência ao genocídio negro. São Paulo: Editora Elefante,
2020, pp. 94-101.
61  Trecho retirado do documentário “Resistir e Florescer: a ocupação estudantil do IFRJ Campus
Realengo”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Pth8R_wmmLY. Este documentá-
rio narra a ocupação estudantil do IFRJ Campus Realengo em função da PEC 241, em 2016.

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Segundo o Atlas da Violência de 2018, “apenas nos últimos dez anos,
553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Bra-
sil.”62 Dentre este percentual, estima-se que 71,5% são pessoas negras, isso
contabiliza cerca de 395 mil vidas negras assassinadas nos últimos dez anos.
É importante, aqui, lembrar que estes dados se referem a assassinatos e não a
mortes naturais. Em 2017, a cada 100 pessoas assassinadas, 71 eram negras,
em sua maioria, jovens. Enquanto a taxa de homicídio de pessoas brancas
diminui, a taxa de homicídio de pessoas negras aumenta exponencialmente.
Em termos de perfil, o jovem negro é quem mais morre no Brasil.
Trata-se de um genocídio da juventude negra. Esse genocídio, por sua vez, é
legitimado por um Estado que é, também, genocida. Um Estado que se ar-
ticula a partir de sistemas de dominação neoliberais e colonialistas. Quantos
corpos o Estado tem matado para garantir uma suposta ordem social que se-
quer existirá enquanto vivermos sob a tutela de um Estado neoliberal? Quem
tem direito a esta ordem social da qual tanto se fala?
Em uma sociedade neoliberal, a ideia de ser responsável pela vida de
alguém parece estar distante de nós, pois cria-se, diariamente, uma política
do individualismo que organiza as nossas relações. Nesse sentido, o desejo de
preservação é diferencialmente distribuído entre os nossos semelhantes, em
nossas comunidades. É possível querer preservar a vida de minha mãe e dese-
jar o extermínio de uma pessoa em situação de rua, afinal, nossa subjetividade
só é completamente estabelecida quando desejamos aniquilar o Outro.
Movimentos como este evocam uma política de responsabilidade –
categoria herdada da filosofia de Lévinas e Butler – que nos chama à ação co-
letiva, a partir da qual temos uma profunda responsabilidade ética pela vida de
todos aqueles que habitam este mundo conosco, não somente dos integrantes
de nossas comunidades. Isto significa dizer que nós, em nossa precariedade
ontológica, embora criemos um senso de individualismo que permeia as nos-
sas relações, temos uma inevitável interdependência vital para com os Outros,
de modo que não podemos ser quem somos sem sermos com os Outros.
O (nosso atual) contexto pandêmico, nesse sentido, acentua as ne-
cessidades de uma responsabilidade que tem sido cada vez mais ignorada ou
ocultada em prol de um projeto de sociedade capitalista e neoliberal. Vivemos
62  Disponível em: https://bit.ly/2M1A7NG

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em um tempo especialmente complexo, no qual nossos sentidos de vida e
de mundo se perdem (ou adquirem novos contornos) e a partir disso busca-
mos aniquilar o Outro – esse “sujeito” essencial ao encontro. Como sugere a
cientista política Françoise Vergès, as políticas de confinamento, ao redor do
mundo, acentuam as diferenças entre raça, classe, gênero e outros marcadores
sociais da diferença.
Os dados do Atlas da Violência refletem um enquadramento ontoló-
gico, como já exposto nos ensaios anteriores, que insere (de forma despropor-
cional) as pessoas socialmente racializadas em regimes de opressão e domina-
ção. O Brasil de hoje é uma sociedade de inimizade. Em “Corpos marcados
para morrer”, Suely Aires salienta que:

Há vidas e corpos que são escolhidos e marcados para


serem expostos à morte ou diretamente executados. (...).
Gênero, raça e classe se entrelaçam na ficcionalização do
inimigo (...). Ao identificar o outro como perigo, como
um atentado contra a vida, estabelece-se uma reação de
defesa em que a eliminação do outro parece necessária,
pois implica minha segurança e a manutenção de minha
vida e da vida de meu grupo. (...). É uma guerra que só
acabará com a total eliminação do inimigo: genocídio. E,
no Brasil, genocídio negro.63

A marcação desses corpos, o estabelecimento de enquadramentos on-


tológicos, são estratégias de dominação do Estado moderno. É preciso go-
vernar essas populações. Mas, para além de governar as populações, é preciso
distribuir a vida, como diria Foucault. Nesse sentido, a vida é produto de
governo. Parafraseando Butler, o que está em jogo, então, é quem define o que
é uma vida e a partir de qual estatuto ontológico essas vidas serão construídas.
A partir dessas reflexões, eu conclamo uma política da vida. Nos
termos de Butler, uma aliança entre as vidas precárias, os corpos sem ros-
63  AIRES, Corpos marcados para morrer, p. 29-32. In: Revista Cult, ed. 240 (nov. 2018) – Dossiê
Achille Mbembe (Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/corpos-marcados-para-mor-
rer/). Em The invention of women (1997), a nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí salienta: “Mulheres,
primitivos, judeus, africanos, pobres e todas aquelas pessoas que foram qualificadas com o rótulo
de “diferente”, em épocas históricas variadas, foram consideradas como corporalizadas, dominadas,
portanto, pelo instinto e pelo afeto, estando a razão longe delas. Elas são o Outro, e o Outro é um
corpo”, e se o Outro é um corpo, ele deve ser exterminado e sua morte não será passível de luto.

Vinícius da Silva 77

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to, aqueles que estão às margens do capitalismo. Na esteira do pensamento
de wanderson flor do nascimento, propomos uma ikupolítica. Nos termos
de nascimento, promover uma ikupolítica, em contraposição à necropolítica
colonial, seria importante para a articulação de novas condições de reconheci-
mento – principal questão da teoria do amor. Conforme o filósofo, é preciso:

Promover uma ikupolítica que seja um modo de resistên-


cia à necropolítica. Tarefa para realizarmos no coletivo,
tanto como viver e buscar reconstruir um mundo comu-
nitário, onde se possa viver e morrer para sermos raízes.
Viver uma vida na qual os conflitos não sejam mortais,
mas constitutivos e potencializadores.64

É a partir destas condições, então, que penso ser necessário pensar


uma aliança. De alguma forma, as propostas de alianças políticas já estavam
presente no pensamento de autores negros, muito antes de ter sido teorizada
por Butler.65 Enxergo na produção de teóricos como Abdias Nascimento e bell
hooks, por exemplo, importantes considerações para a construção de alianças.
Neste texto, no entanto, me deterei à análise hooksiana do tema. Na
obra de hooks, a construção de alianças parece se articular a partir do que a
autora chama de solidariedade política, isto é, da organização coletiva que não
nega as diferenças dos sujeitos, mas reorganiza a cena pública, de modo que
essas diferenças não articulem sistemas de poder e dominação.
Em relação ao quilombismo de Abdias, a filósofa e pesquisadora Lo-
rena Oliveira reconhece que a proposta quilombista de Abdias é um marco
importante para a formulação de uma filosofia política em afroperspectiva.
Assim, Lorena salienta que a filosofia política afroperspectivista “deve estar
engajada na construção de mundos habitáveis.”66
A pesquisadora Lia Keller da Costa, nesse mesmo sentido, argumenta
acerca da instrumentalidade estratégica do quilombismo no enfrentamento

64  NASCIMENTO, Da necropolítica à ikupolítica, p. 29-31. In: Revista Cult, ed. 254 (fev. 2020)
– Dossiê Filosofia e macumba (Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/da-necropoliti-
ca-a-ikupolitica/).
65  Como aponta Audre Lorde, “não há novas ideias, apenas novas maneiras de fazer com que elas
sejam sentidas, de torná-las reais.” (Sou sua irmã, p. 109).
66  OLIVEIRA, O Quilombismo: uma expressão da filosofia política afroperspectivista, p. 132.

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ao epistemicídio. O que une todas essas abordagens sobre o quilombismo é o
caráter coletivo de sua construção entre nós. Em seu trabalho, Lia reconhece
os coletivos negros enquanto constituintes de práticas quilombistas.

O quilombismo exprime a necessidade de organização


da população preta, convoca à ação, à construção de pos-
sibilidades de uma nova sociedade, de uma nova percep-
ção de mundo e de viver o mundo na realidade da popu-
lação preta. A prática quilombista evidencia o papel ativo
da população preta e todas as suas ações de construção
do que é essa nação.67

A organização quilombista parece também ser um espaço de alianças,


a partir do qual estes sujeitos, que têm sido historicamente destituídos, podem
denunciar a precarização sistemática que nos atravessa e propor alternativas
autônomas que visam a autodefinição coletiva de um povo. No entanto, faço
uma leitura crítica da proposta de Abdias tendo em vista que “a justiça social
só é possível se ninguém for deixado para trás: se há subordinação de um gru-
po pelo outro, não há justiça social”,68 como aponta Winnie Bueno.
Não se trata, aqui, de compreender a estratégia articulada por Abdias
enquanto insuficiente ou “segregadora” – como costuma reivindicar quem
acredita na lógica de inversão de poder, por exemplo –, mas sim de chamar
atenção para o fato de que as alianças, para serem de fato efetivas, devem ser
articuladas por uma coletividade que não se organiza a partir de característi-
cas em comum. Isso reproduziria um dos nossos maiores problemas políticos
atuais, a lógica do individualismo – a partir da qual só há a integração de um
sujeito político em determinado movimento se este sujeito for similar aos
outros sujeitos, em termos de raça, identidade de gênero, orientação sexual,
etnia, nacionalidade etc., por exemplo. A solidariedade política de hooks não
se organiza desta maneira. Pelo contrário, hooks está interessada em promover
novos modos de organização das nossas relações. E, para isso, é preciso que
haja um trabalho coletivo.

67  COSTA, O quilombismo como instrumento de combate ao racismo epistemológico: a trajetória dos
Coletivos Negros Universitários de Campos dos Goytacazes, p. 26.
68  BUENO, Imagens de controle, p. 120-121.

Vinícius da Silva 79

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As [pessoas] não precisam eliminar suas diferenças para
construir vínculos de solidariedade. Não precisamos vi-
ver sob a mesma opressão para combatermos a opres-
são em si. Não precisamos sentir hostilidade contra os
homens para nos unirmos, tão grande é a riqueza das
experiências, culturas e ideias que podemos compartilhar
umas com as outras. Podemos ser [pessoas] unidas pelo
compartilhamento de interesses e crenças, unidas em
nosso apreço pela diversidade, em nossa luta para aca-
bar com a opressão [capitalista], unidas na solidariedade
política.69

A abordagem de hooks captura uma questão central para as alianças: a


união pela solidariedade política. A união da qual hooks fala não é uma nega-
ção das diferenças, como já apontado, mas uma ressignificação dessas relações
que produz uma nova cena de enunciação e mutualidade para que, de fato,
sejamos o resultado desse encontro.
É importante ressaltar ainda que, ao passo que o amor fornece a condição
necessária para a construção de alianças (leia-se mutualidade revolucionária),
pois trata-se de uma ação política, ele também parece proporcionar condições
de enfretamento à precariedade produzida pelo sistema capitalista e patriarcal.
Trata-se do amor enquanto ação política e imperativo ético.
Recentemente, no Brasil, a ilustração da tatuadora e artista Thereza
Nardelli que crava a famosa frase “ninguém solta a mão de ninguém” ga-
nhou força no contexto das eleições de 2018 e dos protestos contra Bolsonaro.
Como esperado, as dinâmicas virtuais esvaziaram o postulado ético e fez com
que ele fosse constantemente, até os dias atuais, banalizado. A reflexão de He-
lena Vieira nos parece interessante:

“Ninguém solta a mão de ninguém” é um postulado éti-


co, de solidariedade mútua, proteção e cuidado, porém,
entre uma mão e outra existem diferenças que remetem
à própria constituição da humanidade dos sujeitos e do
enquadramento de suas vidas como vivíveis ou não. Que
mãos estamos dispostos a segurar e não soltar? Ou ainda,
69  HOOKS, Teoria feminista, p. 109. As palavras “mulheres”, “irmãs” e “sexista” foram substituídas
por mim, na citação, por “pessoas”, “pessoas” e “capitalista”, respectivamente, de modo a ampliar o
significado da discussão proposta por hooks.

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quais mãos sequer enxergamos para segurar e não soltar?
O chão que se pulveriza sob nossos pés nos traga desi-
gualmente e de formas múltiplas. As vulnerabilidades e
fragilidades das vidas ao nosso lado são, muitas vezes,
imperceptíveis, se vistas estritamente sob a nossa pers-
pectiva.70

De acordo com Helena, “ninguém solta a mão de ninguém” nos con-


voca à formação de alianças, convoca o corpo ao aparecimento. Não se trata
de um “ninguém esquece de ninguém”, diz ela, pois há uma política do corpo
em voga. Nesse sentido, a política passa a ser um modo de viver, uma forma de
disputar a própria sobrevivência. Não à toa, digo que o amor enquanto ação
política permite a integridade do sujeito.
Na esteira do pensamento de Butler, os postulados “nós somos o re-
sultado do nosso encontro” e “ninguém solta a mão de ninguém” articula,
de alguma forma, uma reflexão crítica acerca dos processos constitutivos
do sujeito e da sua dependência ontológica. Se nós somos, de fato, o resul-
tado de nosso encontro, é porque não há sujeito que se constitua fora de
uma cena do reconhecimento e de enunciação que se organiza a partir de
uma dialética do reconhecimento. E se ninguém realmente soltar a mão
de ninguém, teremos de admitir que a aliança é nossa condição de existên-
cia. O amor é a condição de reconhecimento e a aliança é a condição de
existência do sujeito. A formação de alianças, ainda, é o que nos permite
combinar de não morrer, como narra o conto de Conceição Evaristo. Se
Dorvi postula com seus companheiros de que eles não vão morrer, pois
combinaram de não morrer, é porque Dorvi estabelece uma condição de
aliança. Nesse sentido, a morte do outro é uma morte de nós mesmos, por-
que somos sujeitos necessariamente dependentes de uma coabitação que
condiciona a nossa existência. A política das alianças, dessa forma, organiza
uma nova gramática ontológica que enfrenta e disputa a abjeção dos cor-
pos em aliança. Jup do Bairro postula: “o que pode um corpo sem juízo”;
e eu digo: “se entendermos “sem juízo” como “em aliança”, um corpo sem
juízo em aliança pode revelar a norma e combater a precariedade desigual,
em busca de uma vida mais vivível.
70  VIEIRA, Notas (im)possíveis para um futuro insistente, p. 125.

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Amor, significante
despótico – um diálogo com Helena Vieira

Angie Barbosa: Então, gente, eu preparei seis perguntas relativamen-


te complexas para a nossa discussão. Porém, eu levarei em consideração tam-
bém a imprevisibilidade das respostas para seguir e mediar o diálogo.
Nos tempos presentes, a gente pode ver que novos olhares críticos
estão sendo direcionados para o amor; o trabalho de Vinícius é um ótimo
exemplo. Quando a gente pensa em políticas do amor e éticas do amor, isso
significa que a gente tem que delimitar e possivelmente desconstruir esse con-
ceito, que é muito fortemente estabelecido nas nossas culturas, enfim. Nesse
sentido, eu gostaria de perguntar se vocês acreditam que o surgimento de teo-
rias críticas sobre o amor, de olhares críticos sobre amor, enuncia ou prefigura
uma crise do amor. Se é possível dizer que o amor está ou estará em crise e o
que que isso significaria para nós.

Vinícius da Silva: Eu diria que toda a disputa, que é que a gente tem
hoje com a formulação de teorias críticas, por exemplo, sobre a questão do
amor, prefigura uma crise. E por crise a gente pode entender movimentos de
instabilidade, insegurança ou mudanças bruscas na forma como a sociedade
compreende alguma coisa. Então, eu diria que a gente vive de certa forma
numa crise do amor porque sem essa crise a gente não conseguiria disputar
o conceito. É aí que All About Love, de bell hooks, se insere. Uma estratégia
de lidar com a crise é definindo o que está em crise, que é o que hooks faz ao
definir seu conceito de amor, de maneira análoga à uma receita de bolo. Uma
das críticas de hooks é à forma que amamos – ou melhor, que definimos amor.
Nesse sentido, hooks chama atenção para o fato de que se não tivermos uma
base sólida para disputarmos o amor, entramos numa crise, como ocorreu nas
décadas de 70 e 80 nas comunidades afro-estadunidenses.

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Uma crise que não era somente econômica, mas também espiritual.
Mas o que é essa crise espiritual? É o que Cornel West chama de niilismo, que
é uma perda do sentido da vida. Então, estamos falando de uma disputa do
conceito de amor que tem como objetivo recuperar o sentido da vida a partir
da construção de uma comunidade, ou a partir da reconstrução dessa comu-
nidade que de alguma forma foi atravessada pelas dinâmicas de um espírito
nacionalista estadunidense na segunda metade do século XX.
No entanto, eu também diria que a disputa pelo conceito de amor,
pelo menos isso é uma hipótese que eu defendo muito neste livro, também
é disputa para recuperar a forma como a gente compreende a vida, a forma
como a gente compreende a nossa própria vida enquanto sendo interligada
(ou não) à vida dos outros. Por isso, gostaria de salientar que, sob o escopo
do pensamento de hooks, a disputa pelo conceito de amor é uma disputa por
uma ética da vida (embora eu concorde parcialmente com este enunciado,
esta é a hipótese deste livro, e apenas a problematizarei em meu segundo livro)
– porque ela tem a ver justamente com recuperação de sentido e com recu-
peração daquilo que possibilita a construção de uma mutualidade, de uma
comunidade, de fato, política.

Helena Vieira: Não sei se eu diria que há uma crise do amor. E digo
isso porque talvez o que haja seja uma crise de conjuntos de sentidos que
estruturam uma definição específica de amor. Digo isso porque eu me pre-
ocupo em não afirmar o amor como uma condição humana trans-histórica,
que atravessaria a história como um sentimento sempre presente em todos os
povos. Afinal, a própria distinção entre sentimento e não-sentimento, entre
o mundo subjetivo e o mundo objetivo, é uma distinção que se constitui na
modernidade. Então, surge essa nossa forma de pensar as relações a partir de
sentimentos que emanam então de um tipo de encontro não racional. Por
exemplo, os sentimentos para nós – e eu digo “nós” pensando em termos de
como se constrói o discurso sobre o amor – estão ali no campo do irrazoá-
vel, do irracional, porque nós somos sujeitos entendidos de forma cindida; a
cabeça não governa o coração. Há o mundo dos sentimentos e o mundo da
razão. O conceito de amor, então, genericamente falando, passa a invocar na
modernidade sempre um tipo específico de amor. A despeito de existirem

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muitos, a palavra amor é frequentemente sobrecodificada sobre a noção de
amor romântico. A noção de amor romântico sobrecodifica a noção de amor.
E não só sobrecodifica o amor, mas funciona também como um significante
despótico do sentido de ser amado.
E eu digo, então, que o tema do amor é muito importante para mim
porque eu falo do lugar de uma mulher transsexual. Uma mulher transsexual
que ao longo de sua trajetória e assim como muitas mulheres transsexuais en-
frentam aquilo que se pode pensar como uma forma profunda de desamor. De
desamor, no sentido de que há parceiros sexuais, existem amigos, mas aquele
amor romântico que nós aprendemos e que nós idealizamos desde sempre,
que estabelece o território da realização, não nos é ofertado.
Vocês permitem que eu compartilhe com vocês algumas coisinhas que
escrevi sobre isso? É um post meu do início da transição, de 2015, de quando
eu estava numa crise do amor romântico e do amor de amigo tão grande, que
eu escrevi muito sobre essas dores.
Quando escrevi isso, ocorreu que um grupo de amigos foi fazer um
aniversário na casa de um dos amigos. Só que eu não fui chamada por causa
dos pais. Não sabiam como os pais iam entender uma travesti e querendo me
proteger. E aí, naquele momento eu me dei conta de que existia para mim o
tipo de afeto público de quando eu estava nas palestras, de quando eu estava
nesse estrelato, mas que não havia espaço para construção de verdadeiros laços
de intimidade, que eram que nem laços de amor. Então, assim, era uma forma
de se destituir do amor.
E uma vez isso se ressignificou fortemente para mim quando um diá-
logo com um amigo sobre o meu ex-namorado eu falei “Ah, mas tenho medo
de não ser amada de novo”. Ele falou “Mas eu te amo”, eu falei “Mas você é
meu amigo”. E ele disse “Mas por que o amor das pessoas que não te amam
como um namorado, que não te amam romanticamente, não conta quando
você não se sente fundamente amada?”
Com isso, percebe-se então que o que há é que o amor romântico se
transforma em um significante despótico, no sentido que ele vai engolir toda
a possibilidade de experimentação do amor. E ele não é só o amor, mas é tam-
bém a tradução da norma da reprodução heterossexual. Por exemplo, vocês já
ouviram a história de que gays não amam? Que gays gostam de sexo? Que não

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há amor entre gays, que há só putaria? Por isso então que muitos gays são sol-
teiros, são solitários... porque há no amor a realização subjetiva da reprodução.
E justamente por isso, então, ele é tão incentivado, tão promovido,
entre heterossexuais. E existe também como uma possibilidade única de exis-
tir para o futuro. O amor é também uma garantia de futuro. Por que ele é
uma garantia de futuro? Porque na modernidade, ele promove laços que são
de obrigação. O amor implica, nesse caso, em obrigações. Que tipo de obri-
gações? Por exemplo, o amor materno e o amor filial. A organização futurista
heterossexual garante que os pais invistam amor nos filhos e esse amor então
será retornado futuramente em forma de cuidado para garantir a velhice. A
estrutura heterossexual é uma estrutura de garantia da vida, na permanência
da vida. Então, há ali uma codificação que é muito impulsionada pelo amor.
E aí, quando a gente vê a Butler falar do amor da criança, ela vai dizer
que o amor da criança transforma, o amor pela mãe não emerge necessaria-
mente de um sentimento de adorar a mãe, mas emerge de uma necessidade
fundamental de existir e somente a mãe e o pai podem possibilitar essa exis-
tência. Então, transforma-se essa dependência, que seria um sofrimento, em
amor. Os laços de amor como nós organizamos na modernidade são laços de
amor que se constroem para corpos cisgêneros e heterossexuais e para as famí-
lias tidas como normais.
Há uma crise no amor? Há uma crise do amor moderno. Há uma
crise do amor na modernidade. Essa crise se dá na intenção de novas e outras
formas de amar. De outras formas de construir relações de amor e, portanto,
na ressignificação do termo amor. Aí eu não sei, é preciso chamar de amor
estes novos “amores”? Não sei. Acho que a gente vive um processo agora que
é mesmo de invenção e reinvenção do amor.

Vinícius da Silva: A sua fala tocou em pontos bastante interessantes e


importantes e eu concordo com a maioria das considerações, sobretudo com
essas transformações conceituais, digamos assim, que aconteceram na moder-
nidade. E aí, eu penso, na verdade, que essas apropriações, ou talvez, eu acho
que a palavra mais certa seria “significações” características da modernidade...
revelam para a gente mecanismos de controle sobre o conceito de amor. Por-
que uma das coisas que eu tenho tentado entender e eu acho que essa sua fala

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se encaminha um pouco para esse caminho e é isso que eu queria te perguntar,
é sobre como a gente consegue compreender o amor também como um ins-
trumento de reconhecimento.
No final da sua fala, você fala sobre a questão do medo de não ser
amada e também a questão do amor materno. Isso me lembra um pouco o
que a Butler vai discutir sobre o apego apaixonado em A vida psíquica do poder.
E aí, uma coisa que eu tenho tentado justamente entender são os limites disso
e se o amor não é também numa categoria de reconhecimento. Implica numa
vontade de ser reconhecido. O quê que você pensa sobre isso?

Helena Vieira: Desenvolve mais um pouco.

Vinícius da Silva: Então, uma coisa que eu tenho tentado desenvol-


ver é até que ponto o amor pode ser uma categoria de reconhecimento. Mas aí
a gente entra numa outra questão: o que é o amor? E aí, a gente entra na sua
pergunta: é preciso chamar de amor essas novas formas, essas novas discussões,
sobre amor? E eu certamente responderia que não. (Eu falo isso a partir de
uma influência de Patricia Hill Collins e bell hooks.) O que a gente está dispu-
tando é um nome, de certa forma, mas é um nome que carrega consigo uma
prática política. Carrega uma prática também coletiva. Eu acho que o que a
gente tem que manter é essa prática.
Qual é a prática do amor no pensamento de bell hooks? A prática do
amor é uma prática de preservação da vida, de preservação da comunidade. E
se a gente pode chamar essa preservação da vida de comunidade de um outro
nome, a gente chama, caso o nome amor esteja causando algum tipo de con-
fusão, por exemplo. A gente pode trocar o nome, a gente pode assumir um
outro nome e transcodificar o conceito, transcodificar essa prática. E quando
a gente compreende essa questão da comunidade e essa questão do estar com
os outros, eu acho que isso abre uma questão muito central, que é a questão
do reconhecimento. Reconhecimento no sentido de ser plenamente sujeito e
de poder ocupar, poder construir relações sociais enquanto sujeito, que não
sejam relações de dominação.
E aí, um desafio que eu coloco inclusive no livro é como que a gente
pensa então relações que não sejam relações necessariamente de um poder

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dominador dentro de uma lógica vigente. Com isso, chegamos à proposta da
gramática ontológica, da formulação de uma nova gramática ontológica. E
isso dá origem a uma outra questão: como que a gente constrói essas relações
entre o Eu e o Outro, por exemplo, sem diluir essas categorias? Trata-se de uma
questão que eu não consigo responder. Mas a questão mais central para mim
é como é que o amor, e quando a gente fala sobre amor, a gente fala sobre
identificação, pelo menos eu tento pensar assim, é também uma categoria de
reconhecimento que vai permitir a construção de uma relação que não seja
atravessada por uma lógica de dominação. Esse tem sido um dos meus grandes
desafios para pensar o tema do amor. É nesse sentido que eu tento pensar a
partir do seu comentário sobre o medo de não ser amada.

Helena Vieira: Sim, eu acho que o amor romântico, principalmente,


é uma categoria de reconhecimento de muitas coisas. Ele é uma categoria de
reconhecimento de gênero, no sentido de que você se concretiza em termos de
gênero em que exibe socialmente que ama e que é amado. E você se reconhece
a si mesmo como sujeito quando ama e quando é amado.
Ser amado, nesse caso, equivaleria ao reconhecimento do seu valor
social e não só o reconhecimento de valor social, mas no caso do amor ro-
mântico, o reconhecimento de sua posição na economia do desejo. Porque
se ninguém se apaixona por uma pessoa, ela não pode ser alguém desejada.
Portanto, essa pessoa estará relegada ao segundo plano ou à marginalidade da
economia de desejo. São as clássicas figuras do heterossexual nerd, do gordo, e
dessa multidão de sujeitos indesejáveis e não amáveis.
Em algumas outras situações, o amor pode conferir legitimidade so-
cial para sujeitos subalternos. E, nesse sentido, a gente vê as utopias que se
produzem a partir de um conjunto de outros subalternos. Então, por exem-
plo, vemos a utopia que se produz do gay que captura o heterossexual, que
consegue capturar o homem normativo etc. Isso porque transformaria o status
social desse homem social. Em seguida, para os homens negros, a mulher
branca, jogador de futebol que casa com uma loira, que tem então aí uma
política de reconhecimento da não-subalternidade ou do caráter.
Maquiavel usa uma expressão para os destacados da plebe em Roma.
Entre os plebeus, há um destacado que será reconhecido pelo Estado, pelos

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nobres, que é o condottiere. Ele é reconhecido pelos poderosos como alguém
especial, e então, ele é comprado pelos poderosos. Então, o condottiere é um
destacado da plebe que impede a plebe de ascender coletivamente. Porque se
ele pôde, todas nós vamos poder também. Então, trata-se de tornar-se tam-
bém especial. Dessa forma, o amor funciona como uma utopia controladora,
uma utopia normativa. Nós precisamos nos corrigir para então conseguirmos
ser amados. Então, existe essa via sacra de se tornar amável que, para os sujei-
tos subalternos, é sempre uma via sacra de adequação. De ir à academia, de
melhorar isso e aquilo, enfim, de transformação em nome do amor.
Eu quero entender, porque a minha familiaridade com a obra da bell
hooks é pequena, quando se trata da noção de amor, trata-se de qual noção de
amor? Ou de que práticas de amor? Porque a discussão sobre o amor român-
tico é uma discussão. Quando nós falamos do amor para falar de amizade, é
uma outra discussão...

Vinícius da Silva: A bell hooks começa a trabalhar com a questão do


amor em 1993 com o ensaio “Vivendo de Amor” – talvez a primeira tradução
dela no Brasil. Nesse texto, ela enfatiza que “o amor cura”. Para chegar à esta
conclusão, hooks recupera os escritos bíblicos, inclusive, do Evangelho de São
João (“Aquele que não ama ainda está morto”) e, a partir disso, ela mobiliza,
de maneira ainda introdutória, a noção de que o amor é um instrumento de
recuperação ontológica e de autorrecuperação.
Para hooks, a autorrecuperação é um mecanismo de sujeição, uma outra
forma de se tornar sujeito. E quando ela diz que nossa recuperação está no ato
de amar, é porque há, nesta singela ação, a possibilidade de recuperar um sujeito
que foi atravessado pelo colonialismo. Com isso, emerge a noção de que a cura é
uma reintegração ontológica e não somente um mito do amor romântico.
Em All About Love, a gente encontra uma noção importantíssima para
hooks que é a noção de ética do amor. Trata-se da construção de um tipo de
responsabilidade ética que permite compreender que nós somos necessaria-
mente responsáveis pela vida do outro, como sugere, inclusive, Butler, em Ca-
minhos Divergentes. A partir da noção de que “a ética do amor pressupõe que
todos nós temos direito de viver plenamente e bem”, hooks começa a discutir
o papel da comunidade no amor.

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O conceito de amor para bell hooks, de alguma forma, se confunde
no conceito de aliança para a Butler. Digo isso porque o amor tem a ver
com uma construção coletiva, com a busca por um horizonte político e social
para um grupo que tem sido sistematicamente atravessado pela norma, a qual
hooks nomeia como patriarcado capitalista imperialista de supremacia branca.
Então, o amor surge como uma categoria de reconhecimento porque
ele permite a reconstrução da comunidade, e não há comunidade de “quase-coi-
sas” ou de objetos não identificáveis, é preciso reconhecer para formar alianças.
No entanto, tendo em vista todas essas adversidades que podemos enfrentar
nesta discussão, é importante salientar que, nos termos de hooks, o amor não
coloca fim às desigualdades sociais, mas ele constrói um caminho para isso. Por
isso que ele é político, porque ele permite a união. Um tipo de união que não
nega as diferenças sociais, mas faz uso delas para justamente disputar e desman-
telar os sistemas de opressão que são fundamentadas a partir dessas diferenças.
E embora o conceito de amor esteja em disputa, como eu penso isso?
Eu o penso enquanto uma categoria que permite a construção de um coletivo,
a construção de uma mutualidade. Estamos falando de transformação social,
mas existem pessoas que vão disputar outras significações de amor. O que não
é exatamente um problema, mas eu estou particularmente interessado, neste
momento de minha obra, disputar uma noção hooksiana de amor, que com-
preende que o amor é algo que permite a disputa por um sentido da vida. E
como que a gente constrói um sentido da vida? É no estar com os outros que
a gente constrói o sentido da nossa própria vida.

Angie Barbosa: Nós precisamos passar pelo amor para chegar a um


pensamento do futuro? Podemos pensar numa construção de uma futuridade
sem discutir amor?

Vinícius da Silva: Eu diria que o amor não é, e aí quando eu falo amor


nesse momento a gente tem que se render às armadilhas da identificação, a úni-
ca condição para um futuro habitável. O amor é apenas uma categoria política
e ética que permite a disputa por esse futuro. Essa é uma definição válida para o
conceito de amor a partir do pensamento de hooks. Digo isso porque quando a
gente fala de futuro, a gente também fala, pelo menos de alguma maneira, sobre

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a disputa de interesses de um determinado grupo. Então, as pessoas disputam o
futuro e suas garantias o tempo todo. Os conservadores disputam o futuro, os
fascistas disputam o futuro, e nós também. O que cabe aqui pensarmos é sobre
como o amor, e aí eu não falo mais de um conceito, mas sim de uma prática do
amor que a gente pode nomear de outra forma a essa altura da discussão, permi-
te também a disputa por um futuro, como que isso se dá, de fato?
Uma coisa que tenho tentado discutir no livro é sobre como essas
alianças, essas mutualidades, permitem a efetivação de uma prática do amor,
que por sua vez possibilita a construção de um futuro feminista, nos termos
de Virginie Despentes ou de uma futuridade queer nos termos de José Esteban
Muñoz. O que está em disputa é justamente um projeto de justiça social.
E aí, eu acho que a gente chega no ponto central desta discussão:
estamos falando de um projeto de justiça social que objetiva a superação do
capitalismo, que permite a habitação plena ou digna de todas as pessoas da
sociedade. E aí a gente começa a se deparar com diversas questões. Quem são
essas pessoas? Como que a gente lida com determinados sujeitos na sociedade?
E quais são os limites e as fronteiras do amor enquanto uma categoria que per-
mite essa disputa? Essas são questões que eu deixo aqui em aberto para pensar
como o amor enquanto uma categoria ética e política que permite a disputa
por um novo futuro, mas ciente de que ele não dá conta desse futuro, de fato.

Helena Vieira: Trata-se de uma questão complexa porque, em pri-


meiro lugar porque o futuro é essa utopia que não experimentamos jamais.
A nossa existência e a nossa possibilidade de ação se dão dentro da nova tem-
poralidade ocidental, nesse instante. O futuro se torna para nós uma questão
da modernidade. E o futuro se torna uma questão na modernidade porque a
modernidade instaura a noção de uma marcha temporal que podemos contro-
lar, relativamente, e à qual chegaremos em dado momento. É na modernidade
que nascem grandes utopias. Grandes utopias que dependeriam num certo
sentido, da ação humana no mundo. A construção, portanto, do futuro, no
entendimento moderno, é uma construção que é relegada para a ação do hu-
mano no mundo. Essas utopias irão organizar as nossas ações. No sentido de
que então, por exemplo, uma utopia marxista, que busca uma sociedade sem
classes, irá impulsionar ou irá organizar nossas ações em relação à classe tra-

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balhadora, em relação a nosso ideal de revolução, em relação àquilo que serão
as suas práticas de transformação coletiva. Práticas de transformação coletiva
que serão de muitas ordens. Outros, então, terão ali na sua utopia tecnológica
da sociedade liberar positivista do trabalho, essa responsabilidade do trabalho
como, inclusive, uma demonstração de amor, sobretudo numa família tradi-
cional, com a figura paterna, que é a demonstração de amor de ele trabalhar
e sustentar a família.
E o amor seria, nesse caso, nos termos de Lee Edelman em No Future,
assim como o futuro, uma coisa de crianças. Por que o futuro é uma coisa de
crianças? Porque o futuro é sempre para os outros, é sempre para as crianças,
de modo que as políticas quando disputam futuro trazem sempre a ideia das
gerações que virão. E sendo então o futuro para crianças, ele estabelece a pro-
teção do futuro dentro do que ele chama de futurismo produtivo. No sentido
que a geração do futuro deverá ser produzida e ela deverá ser produzida por
sujeitos heterossexuais. Os sujeitos dissidentes, os sujeitos queer, os sujeitos
não reprodutivos ou cujas práticas não são num primeiro olhar reprodutivas,
são antissociais. E justamente por isso, suas práticas de afetividade não são
entendidas imediatamente como práticas de amor, mas como a corrupção
de alguma coisa muito bonita, que seria então o amor. E quando você falou
sobre uma definição de amor em bell hooks, eu consegui entender como um
conjunto de práticas de cuidado e de relação entre os sujeitos. De uma comu-
nidade, de uma família, que garanta as condições de existência. São práticas
que possibilitam a existência da vida. E não são necessariamente românticas
de amizade, mas práticas de cuidado que seriam então de muitas e muitas
ordens e talvez não coubessem simplesmente nessas categorias.
E aí, eu tendo a achar perigoso o termo amor nesses casos justamente
porque o amor é uma daquelas palavras que significam muito e não significam
nada, que é o que Laclau chamará de significantes vazios, são palavras que de
tão surradas, perderam seu núcleo significante e podem significar literalmente
qualquer coisa.
Em “Notas (im)possíveis para um futuro insistente”, em umas das
notas, escrevo sobre minha relação com Vitor, meu amigo, e eu acho que tem
aqui um pouco dessa ressignificação do que é amor, que eu falo dessa extrapo-
lação que se pode fazer com amor.

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O Vitor é minha alma gêmea, inclusive nos tratamos por
“alma”, desde o momento em que constatamos que não
havia, para nós, outro caminho que não fosse o apaixona-
mento. A primeira vez que nos encontramos foi em uma
palestra sobre Teoria Queer, mas pouco falamos um com
o outro. O ambiente era tomado de admiração, e, no meu
caso, alguma dose de insegurança. A segunda vez que nos
vimos foi em uma pequena recepção junina que um ami-
go em comum, Lucas, fizera por ocasião de uma das mi-
nhas muitas idas à São Paulo. Conversamos um tanto e eu
fui embora. Apenas no terceiro encontro, meses depois, é
que nos apaixonamos e constatamos que, tal e qual o mito
grego, éramos almas gêmeas: concluíamos as frases um
do outro. Nossas ideias coincidiam. Nossas experiências
sexo-corporais eram muito semelhantes. Éramos almas
gêmeas, singulares, porém espelhadas, capazes de com-
preender, como ninguém, o que se passava e passa com o
outro. Somos amigos. Trata-se de uma paixão e de um re-
lacionamento que não tem a natureza romântica, com que
frequentemente interpretamos os termos “paixão” e “alma
gêmea”. Temos sempre inúmeras e longuíssimas conversas,
dias inteiros às vezes, tramando em nossos encontros um
mundo que soa impossível para os muitos ouvidos des-
te nosso mundo em desabamento. Entre as muitas coisas
que aprendi com Vitor, que é um brilhante antropólogo,
e cuja grandeza almejo um dia alcançar, é que novas rela-
ções e novas formas de constituir relações com as pessoas
e entre as pessoas são fundamentais para a constituição de
um mundo possível para os corpos impossíveis. “Viver é
perigoso”, ele sempre diz, mas é no conjunto de apostas
que compõem a vida e seus riscos que podemos produzir,
ainda que não intencionalmente, as fissuras no tecido do
real, por onde o desconhecido e novos campos de possi-
bilidade se esgueirarão, deformando este nosso mundo e
possibilitando que o impossível deixe de sê-lo.71

Nessa nota, eu brinco com a ambiguidade do amor. Presume-se que é


um namorado até que falem que ele não é um namorado. Justamente porque
as palavras paixão e alma gêmea são codificadas dessa forma. Então, eu tenho
adotado uma filosofia que eu digo a todos os meus amigos próximos que

71  VIEIRA, Notas (im)possíveis sobre um futuro insistente, p. 133-134.

Vinícius da Silva 93

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sou apaixonada por eles. Alguns tiveram um estranhamento. Busco afirmar
que nossa amizade é um tipo de paixão. É paixão. É paixão porque a paixão
e o amor não podem seguir confinados à exclusividade do amor romântico.
Então, talvez seja preciso que nós pratiquemos a transposição. E praticar a
transposição nos leva a uma outra questão que é desterritorializar as relações.
Nós quando nos relacionamos com alguém estabelecemos a prioristicamente
a forma correta de construir essa relação, de sentir essa relação. Então, a gente
chama de amizade, namoro, “ficante”, conhecido, melhor amigo, colega de
sala etc. Você classifica e cada uma dessas relações têm éticas pré-estabelecidas.
Essas éticas e esses significados constroem uma mediação dessa relação
que confina essa relação a um sentido específico. Então, você não experiencia a
relação, você experiencia os sentidos possíveis os quais se atribuem àquela re-
lação. E tudo aquilo que escapar será considerado problemático. Tudo aquilo
que escapar naquela relação... “Nossa, senti tesão no meu amigo... Ah gente,
mas ele é meu amigo... Ah, mas é meu amigo.”
Então, essa nota nos leva a tentar resistir à tentação de nomear as
coisas, como sugere Susan Sontag, em Contra a interpretação. Quando a gente
não tem como nomear uma relação, nós não temos como enquadrá-la num
conjunto de obrigações específicas. E isso acontece muito entre as pessoas que-
er e as pessoas LGBT. E aí, entra uma outra questão que é o outro lugar, o úni-
co outro lugar que amor é despótico além do amor romântico, que é o amor
familiar. O amor entre a família. Só quem ama de verdade é a sua família. Só
quem te ama de verdade é a sua mãe. É seu pai. Então a família concentra o
sentido de autenticidade do amor. E ela concentra também as práticas de cui-
dado do amor. Então uma sociedade moderna, se você quer ser cuidado, tenha
uma família. Tenha uma família. Que outras práticas de criar parentesco, de
criar família, nós podemos desenvolver que não sejam a família nuclear? E os
terreiros de candomblé? Trata-se de outra forma de gerar parentesco, e isso,
para mim, são práticas de amor. E o que me parece é que não é possível esta-
belecer regramentos para o desenvolvimento de outros territórios do amor. É
preciso, antes, criar outras experiências que fundem outros territórios.

Angie Barbosa: Nesse sentido, eu gostaria de saber se podemos pen-


sar em uma crítica queer ao amor. No escopo da Teoria Queer, é possível ou

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o que significa pensar o amor desnaturalizado, desterritorializado? Pensar o
amor desidentificado ou pensar o amor a partir do próprio fracasso?

Helena Vieira: Colocar amor e futuro no mesmo plano é sempre peri-


goso, porque é como se você colocasse um espelho em frente a norma. Alguém
poderia perceber que está invertido. Mas a norma poderia simplesmente se
identificar e então sequestrar a imagem, ela não estaria mais invertida. Justa-
mente porque o futuro e o amor já são construções da norma. No sentido de
que é o amor por necessidade de amar e todos os efeitos do amor que consti-
tuem os laços que vão garantir o futuro. Justamente porque a relação que se
estabelece no seio da família e nas relações de amor é uma relação que vem
sempre acompanhada de um contra sentimento que é a não-realização dos
ideais de amor. Então, o amor se fundaria sempre numa falta. O amor é uma
coisa porvir, a família é uma coisa porvir.
Mas o que significa realizar este futuro? O que significa concretizar o
futuro? Significa atender a dadas condições de sucesso. Quando uma pessoa
sabe que venceu na vida ou não? A pessoa sabe que venceu na vida ou não se
ela atendeu ao fim, e ao fim é na velhice, mas como seres que se estabeleceram
na juventude para que terminem suas vidas com vitória. Mas um sendo hete-
rossexual e tendo cumprido seu destino heterossexual, ou seja, reproduzindo,
então você tem mais uma chance. Que é de que seus filhos vençam na vida. E
mais uma chance ainda, que é de que seus netos vençam na vida. Os bisnetos,
não, porque você talvez não estaria mais vivo. Veja só: na família heterossexual
há uma herança da experiência familiar que é passada. Quando se pensa em
experiências LGBT, a gente tem família agora. Minha mãe está comigo em
São Paulo, você com seus pais aí, talvez case, talvez não.
A possibilidade de imaginar um futuro e uma velhice é sempre he-
terossexual porque as bixas viram purpurina, as bixas não envelhecem. Eu
tenho um texto que eu escrevi para o Itaú que se chama Velhice e LGBTs: as
vidas que não viraram purpurina, porque elas sumiram, elas somem, viraram
velhas. Então esse futuro, para nós, é construído e pensado enquanto espaço
de desamor. Porque justamente o amor, em sua constituição heterossexual, é
uma garantia de um futuro, das relações, de segurança, da estabilidade, dos
laços, das famílias heterossexuais.

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E aí, eu acho que há coisa que é importante, que é como se constitui o
amável. Como se constitui aquilo que pode ser amado? O que pode ser ama-
do e o que não pode ser amado? Quais são as características que são amáveis?
Virilidade, hombridade, honra, no caso dos homens; fragilidade para as me-
ninas... E esses são conjuntos de características que não são só buscáveis, mas
são também amáveis. A sensualidade excessiva da mulher, por exemplo, não é
amável. Ela é apenas desejável. Assim como o feminino no homem é tratado
como odiável no sentido de odioso, como a fofoca, o melindre, a fraqueza.
Quando você olha por exemplo a história de vilões de desenho animado você
vê quantos vilões são ali relativamente afeminados.
Então, assim, esse lugar do homossexual, do dissidente, vai ser sempre
o lugar daquele que não pode ser plenamente amado porque ele irá te enganar.
Há sempre uma condição de suspeição em relação ao sujeito dissidente, que irá
relegar o sujeito dissidente a espaços de subalternidade. Então, por exemplo, os
laços de amizade nos processos de socialização do menino adolescente afemina-
do. Veja, esse menino, ele vai socializar com meninos e, com outros meninos, ele
será sempre um risco para quem olha. No sentido que “será que aquele hétero
que anda com ele está o pegando? Será que vai dar em cima?” E mesmo para as
meninas lésbicas. Há sempre um sentido de perigo, de falsidade, de suspeição,
de inautenticidade que perpassa a dissidência e que perpassa a raça.
Essas condições de suspeição transformam esses sujeitos em corpos
inamáveis. Estes corpos são inamáveis porque o amor demanda sinceridade. É
justamente essa a construção de modo que se supõe que há no amor um ato
de amar, uma expressão de uma verdade que perpassaria então todos os atos.
E é muito interessante isso porque nessa condição, que é uma condi-
ção utópica – e justamente por isso o amor é uma busca que não se concretiza
porque o amor não é só aquilo que constrói o futuro, o amor é também o
futuro – porque o amor é algo que se busca, mas que nunca se encontra. Esse
amor precisa ser dito e dito e dito por que a dúvida de “será que ama mesmo?”
vai sempre existir. E ela vai sempre existir porque nós chamamos amor como
um sentimento autêntico, como algo profundo, autêntico, que emerge na
gente no estômago, não existe. Não existe na gente nem em ninguém. “Eu
amo fulano”. Bem, a qual conjunto de coisas dentro de você significa amar?
E esse conjunto de coisas que você sente é constante? Não. Justamente por

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isso nessas relações de amor, romântico sobretudo, demanda-se a reiteração
performativa de atos de amor e de declarações de amor. Porque nenhum dos
dois sente amor o tempo inteiro.
Isso porque o amor é sempre o futuro, é algo que vou conquistar. Eu
serei um dia amada. E para isso, então, eu vou construindo práticas que vão
me levar a esse amor. O sujeito queer não é amável. Ele é monstruoso. É o
sujeito a quem o amor não cabe e é o sujeito que ofende o amor. Ele ofende o
amor da mãe e da família, que tanto cuidado deram a ele. Ele ofende o amor
dos irmãos e ele ofende a possibilidade de ser amado, porque ele se torna um
sujeito de tal modo aberrante que ele se transforma em algo impossível de
amar. Impossível de amar porque o amor é aquilo que se oferta aos iguais.
Ainda que você precise transformar um diferente em igual, como nós fazemos
com os pets, que são os processos de humanização dos pets. Mas para aqueles
que, em tese, seriam iguais e que nós consideramos diferentes como travestis,
pessoas negras, corpos muito gordos... Esses sujeitos são impossíveis de amar.
Porque amar a estes sujeitos te levaria ou te relegaria ao campo do patológico.
Então, trata-se de uma experiência de seres que habitam lugares no
mundo que são lugares tidos como inamáveis, ou como impossíveis de ter
amor, de amar. E esses lugares de onde o amor não se concretiza, eles são luga-
res também de classe. Então, por exemplo, quem não viu a matéria de jornal
sobre o amor entre dois mendigos que vivem juntos na rua? Por quê? Porque
olha, o amor é possível quando se mora na rua? É possível construir essas
práticas de amor nesses lugares que o amor é impossível? Só que isso demanda
deixar de existir, isso demanda abandonar o ideal do amor romântico, o ideal
do amor normativo. O ideal do amor das relações tal qual elas são dadas pelo
mundo. A gente tem que inventar formas subalternas, dos subalternos expe-
rimentarem as suas formas de estar juntas, a sua coabitação. E isso tem a ver
com sobrevivência, nesse sentido. Porque veja, não existem práticas de sobre-
vivência coletiva para nós justamente porque nós somos destituídas de instru-
mentos subjetivos capazes disso. É parte da violência contra nós nos destituir
de condições socioemocionais de desenvolver laços coletivos de pertencimen-
to. Só que as experiências coletivas conforme abundam a população mundial,
abundam também as formas de fracasso. Abundando, então, as formas de
fracasso, a gente tem uma multidão de fracassados. Fracassados no amor, fra-

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cassados no sexo, fracassados de formar família, fracassados de ter emprego,
fracassados de ter sucesso. Fracassados, fracassados, fracassados, fracassados...
Frente a uma experiência radical do fracasso, o que fazer? Que tipo de
ética possível se realiza a partir do fracasso? Essa é a questão que Jack Halbers-
tam tem colocado em A arte queer do fracasso, que é justamente essa experiên-
cia das coisas que não acontecem. O que aconteceu, o que acontece quando
fracassamos? A gente diz assim: “É porque não aconteceu. Eu fracassei porque
não aconteceu”. Mas o que aconteceu quando você fracassou? O que é essa ex-
periência do fracasso? O que é fracassar em me amar? O que é não ser amado?
Júlia Kristeva nos diz que não é possível falar de amor. No sentido
que não é possível inclusive falar de um amor por vir. E isso é uma loucura
porque o amor vai ocupar um lugar em que ele só pode ser buscado no futu-
ro, para o futuro, no sentido de que buscamos, mas só pode ser nomeado no
passado. E nós não sabemos, jamais, o que é preciso fazer para ser amado. A
norma constrói um conjunto de predicações que nos tornam amáveis. Ainda
assim, existem amores que insistem para fora dos predicados da norma, que
são chamados, então, de loucura.
Trata-se de um amor que não se busca. É um amor que deve ser re-
cusado, justamente porque ele é perigoso. Ele é perigoso porque ele é de-
sordenador. Então, eu acho que talvez por isso, a produção discursiva sobre
amor existe de forma tão intensa na modernidade; é justamente porque essa
experiência do amor é uma experiência que põe em risco o projeto de razão
da modernidade. E não estou fazendo uma crítica ao amor, mas uma crítica
do amor na modernidade. Foucault dirá que nunca, antes do século XIX, se
falou tanto sobre amor. Por isso, então, Foucault dirá então que nunca se falou
sobre o sexo. Porque o controle sobre o sexo se dá pela proliferação do discurso
sobre o sexo. Porque ele será então alvo de controle em todos os espaços. De
regulação da normalidade heterossexual. A sexualidade será controlada em
todos os espaços, justamente dentro dessa lógica do dispositivo de controle.
O amor como o aceite da heterossexualidade, ele também será regulado em
todos os espaços. Tanto na produção dos tipos amáveis, os tipos de sujeitos
dignos de amor, quanto na produção das formas de amar.
As formas de amar, as formas de amor que escaparem, ou que forem
não normativas, serão alvo do controle médico, jurídico, policial, familiar, re-

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ligioso. O controle das relações e da construção de vínculos é fundamental na
construção de formas de controle comunitárias. Então, por exemplo, quando
as igrejas evangélicas proíbem o casamento com membros de fora da igreja ou
quando proíbem amizade com membros de fora da igreja; elas estão estabe-
lecendo ali formas de manutenção através das práticas de amor. Casamento,
nesse caso, não significa necessariamente amor.
Então, o que significa essa experiência chamada amor? Ninguém co-
nhece essa experiência chamada amor, ninguém sabe o que é, porque a nor-
ma nos obriga a atender uma série de condições que serão aqui condições
socialmente acordadas de demonstração de amor. Nesse sentido, então, as
práticas do amor quando convencionadas coletivamente podem transformar
a representação social ou a representação do amor em um tipo de violência.
No sentido de que eu amo, mas o que isso significa senão um conjunto de for-
mas práticas de amor? Esse é o problema quando eu penso em nós tentarmos
construir práticas de futuro. De amor para o futuro.
Esse é um problema para mim no sentido que as coisas que aconte-
cem são imprevisíveis, no sentido deleuziano. Porque elas não existem ainda.
Porque o acontecimento era o que não era possível nem de ser pensado nem
de ser enunciado antes de acontecer. Então, portanto, para o que não é ainda,
existe a representação. Essas outras práticas de amor etc., já se dão, pode ser
que já se deem entre nós, mas elas não podem ser representadas devido a uma
coisa chamada de injustiça hermenêutica, porque não há palavras para dizer.
Então, talvez, ao invés de buscar inventar, talvez nós precisemos experimentar.
Porque essa ideia de buscar ainda é uma ideia moderna. Ela ainda estabelece
para nós uma utopia. Ela ainda nos coloca em função do futuro. E por isso
gostei de futuridade. Futuridade são práticas de futuro. É como se o futuro,
como um vírus, já se injetasse entre nós e nós pudéssemos experimentá-lo
como uma droga. Como uma droga, como uma injeção de futuros os quais a
gente não experimenta. E que os heterossexuais, se quiserem continuar bus-
cando futuro, que busquem. Eu tenho o meu futuro porque eu o trafico com
minhas práticas de futuridade. Como então fazer, ao invés de inventar novas
formas de amor para o futuro, supor que nossas práticas de futuridade que
nos transformam em traficantes de tempo, sejam capazes de encontrar aqui
as práticas. E se trataria então de difundi-las muito mais do que inventá-las.

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E difundi-las através da experiência. Só que para ter outras experiências, nós
precisamos encontrar novos pontos de fuga. Precisamos inventar coisas, ex-
perimentar coisas que não queremos, não costumamos experimentar, como
por exemplo, o fracasso. O que significa experimentar o fracasso? Significa
que fracassar é sentir toda a dor que o fracasso pode te causar. Porque essa
dor vai produzir algo em você. Significa experimentar a sua tristeza com tudo
que essa tristeza pode oferecer. A organização do nosso tempo impede o gozo
da tristeza. A pessoa se senta num cantinho, ficou emburrada alguém já vai lá
“Ah, sorri, não fica triste, não”.
Quando fazem isso comigo, eu falo “eu quero ficar triste, tenho di-
reito, tenho direito de ficar triste.” Eu preciso experimentar isso. Porque, in-
clusive, essa é a condição de possibilidade de eu experimentar a felicidade.
Quanto menos capaz eu sou de experimentar a tristeza, menos capaz eu serei
de experimentar a felicidade. A minha vida será uma apatia constante. A gente
caminha justamente pela apatia e por isso nós produzimos mais e mais formas
de excitação. Talvez a gente tenha que experimentar um pouco da reclusão,
um pouco da melancolia. Experimentar as coisas que são recusáveis como ex-
periências possíveis. E nada melhor do que a experiência, construir de nossas
posições subalternas. Porque nossas posições subalternas já são fracassadas,
elas são feitas para não serem experimentadas. Ou seja, tornar-se viado e cada
dia mais é experimentar. E quem sabe tal hora, um dia você vai estar numa
festa e você vai olhar para o amigo viado muito afeminado que você não pe-
garia porque você era uma bixa normativa “Ah, eu sou afeminada, então eu
vou pegar a bixa masculina. Eu sou passiva, eu vou pegar a bixa masculina.” E
você fala “nossa, como ele está bonito.” E você descobre que você está olhando
um tipo de beleza que você não via antes, porque não é igual a beleza que você
vê no boy padrão, mas que é tão bonita quanto. Porque você descobriu como
gozar de belezas outras. Porque o problema não é que o padrão não é bonito.
O padrão é lindo. O problema é que ele se coloca como o único bonito e não
nos ensina a gozar as belezas variadas.
E é justamente assim que as coisas ocorrem, na experiência como
acontecimentos. Só que nós precisamos possibilitar que os acontecimentos
aconteçam. E como é que nós possibilitamos isso? No devir. O que é o devir?
O devir é se permitir ser afetado por forças que afetam outras. E esse devir,

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é sempre minoritário, ele é sempre para baixo. Não dá para devir homem,
dá para devir mulher. Porque as experiências normativas já se impõem sobre
nós. Então, devir mulher é permitir que as forças que afetam a mulher nos
afetem. Quais forças? A experiência do machismo, a experiência de só querer
ser comida. O devir índio, o devir animal. Essas possibilidades de encontros
e experiências que nos deformam, e é isso, produzir deformidades, que pode
fazer com que emerjam novas formas de amar. A gente não precisa planejar
amor, planejar revolução. A gente precisa urgentemente experimentar a vida.
É uma ética do viver. Porque não adianta uma ética para viver se essa ética nos
torna tão absolutamente obsessivos em ser éticos, que não vivemos.

Angie Barbosa: Eu gostaria muito de fazer algumas considerações a


partir da sua abordagem das experiências, porque há uma experiência que eu
tive e só recentemente eu descobri uma palavra que a nomeia, que é a experi-
ência da transcestralidade. Trata-se de uma questão meio mítica, uma questão
de olhar para um passado de ativismo, uma memória histórica transvestigêne-
re e traçar uma linha de ancestralidade que de alguma forma chega até nós. No
sentido de entender que aquelas vidas que estiveram em luta possibilitaram
duas coisas, primeiro: que a minha chegasse aqui no estado que está, nas con-
dições nas quais ela se desenvolve, se desabrocha; e em segundo: que a gente
pudesse voltar a essa memória e enxergar possibilidades e caminhos de viver
estando numa posição de pessoa transvestigênere.
E o que eu acho interessante sobre essa experiência é a questão de
como eu relacionei isso com a ideia de amor. Porque eu, e Vinícius sabe dis-
so, acho inclusive que nós concordamos um pouco nisso, faço uma relação
muito íntima entre a questão do amar e do lutar por. Essa questão de amar
e, portanto, é justamente o que você falou de devir. Do sentir e reconhecer o
sofrimento do outro e lutar para que o outro tenha condições de vida.
E aí, quando eu olhava para essa questão da transcestralidade, eu me
sentia transcendentalmente amada através do tempo. Por quê? Por que houve
vidas que lutaram para que a minha vida possa ser. E surge a pergunta: “Lu-
taram pensando em mim?” Eu respondo: obviamente não. Essa ideia de ser
transcendentalmente amada através de uma luta histórica faz sentido? Não,
não faz sentido nenhum; justamente porque ninguém estava pensando em

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mim, ninguém sabia que eu ia existir. Mas eu sou uma pessoa absolutamente
alucinada sobre todas as coisas e eu escolhi acreditar nisso. Porque escolhi de
forma intencional ao acreditar nisso justamente porque algumas utopias nos
motivam para bons propósitos e que permitem que coisas úteis aconteçam,
coisas boas que potencializam nossas lutas, nossas possibilidades de vida.
E eu sinto dessa questão, quando a gente fala do amor e de uma tem-
poralidade, principalmente dele só poder ser nomeado através do passado e
feito no presente, nunca no futuro. Mas eu penso até onde essa alucinação da
possibilidade de amar transcendentalmente através do tempo, ela amplia – se
não a possibilidade, mas pelo menos a nossa motivação para tocar uma luta,
para construir uma futuridade para nós.

Vinícius da Silva: Uma coisa que eu gosto muito de pensar, que eu


já comentei e que eu quero retomar para a gente discutir, é sobre como justa-
mente por encararmos essa injustiça hermenêutica, dirá a Helena, e essa de-
sordem da linguagem, como vai dizer o Barthes, a gente também não tem que
pensar numa experiência do amor que se relacione com a desidentificação.
Isso não significa necessariamente a gente precise nomear algo enquanto sen-
do amor, embora nesse processo de disputa por um conceito, como vai fazer
hooks, seja importante, mas nós precisamos reorganizar as nossas gramáticas.
E essa reorganização precisa abandonar o que Helena chama de desejo
classificatório, para usar o termo da Helena. E aí, a gente volta sempre na
questão do “Como fazer?”. São questões que a gente não tem que responder
porque são questões que vão se construir, vão se efetivar na própria ação. Por
isso que eu queria saber o que Helena acha sobre isso. Talvez o amor nesse sen-
tido seja algo performativo, a gente não consegue necessariamente dar conta.
Mas que vai sendo construído enquanto prática ao passo que a gente o pratica.
E disso a linguagem talvez não dê conta. E que bom que não dá conta, acho
que é nesse âmbito de não dar conta que a gente tem que trabalhar o futuro.
O que vocês acham?

Helena Vieira: Eu concordo. Tudo existe, não há nada que não exista.
Porque, bem, se podemos dizer, existe. Nesse sentido, eu tomo as alucinações
como absoluta realidade. A alucinação é aquela realidade não compartilhada,

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simplesmente. Por que ela é real? Porque ela se constitui com elementos da
realidade. Na alucinação não há nada que necessariamente não existe. Ora,
ser amado transcendentalmente? Não vivem dizendo que Jesus nos ama? Jesus
que viveu a dois mil anos atrás? Então, a travesti dos anos setenta certamente
pode me amar.
E essa noção de transcestralidade, que tanto a Castiel quanto a Renata
têm falado, e eu tenho falado um pouco também... ela tem a ver com o exercí-
cio de memória. E eu considero isso muito importante porque o futuro é uma
obsessão moderna. Mas a memória, não. E a memória não é o mesmo que a
História. Porque a História é a narrativa dos fatos que aconteceram desde uma
posição de quem pode enunciar a verdade sobre o que aconteceu. Então, a
memória tem a ver com a experiência do sujeito no mundo, porque é uma das
coisas de tudo que viveu para considerar importante e marca então a sua me-
mória, que caminha de um lugar para o outro, de um lugar para o outro, de
um lugar para o outro. A construção de uma memória, ainda que uma memó-
ria mitológica, é importante. Ela é importante porque ela nos situa no tempo
em um mundo que tem tempo, que está ordenado pelo tempo. Então essas
práticas de resistência das que nos antecederam, elas são importantíssimas.
Estamos falando deste amor que pode nos conectar de alguma forma,
e aí eu acho que isso que você fez agora foi exatamente o que eu tinha suge-
rido, que é essa prática de encontrar as práticas de amor que se concretizam
aqui. Isso é uma prática de amor. Isso que é construir conexão. Esse sentimen-
to de não estar sozinho. Porque fundamentalmente, o amor é a nossa invenção
para não estar só. Para dizer, o amor é o que possibilitou a invenção de um
nós. É isso.

Angie Barbosa: Não há como lançar um olhar único ou um olhar


universal para o futuro, um olhar único que permita a construção de uma
futuridade. Nesse sentido, pensar futuro também é pensar nesse tensionamento
entre esses diferentes olhares, entre diferentes projetos, entre diferentes
experiências do que pode vir a ser. Esses tensionamentos necessariamente
representam um obstáculo para a construção de uma futuridade, de um futu-
ro? É possível, de alguma forma, utilizar os tensionamentos como potenciali-
zadores de uma luta que busca um futuro que será, de alguma forma melhor

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como esse que vivemos agora? Pensar em ética do amor nos termos que a gente
tem conversado aqui, pensar nas questões de uma política de reconhecimento,
necessariamente nos levaria a um futuro melhor?

Vinícius da Silva: Essa questão dialoga muito com aquilo que a hooks
vai falar sobre solidariedade política e comunidade amada, que eu diria que
são dois conceitos centrais de seu pensamento. Mas, antes de chegar na bell
hooks, eu queria fazer outra consideração a partir da filosofia política, sobre-
tudo a partir do pensamento de Hannah Arendt. Se a gente não enfrenta esses
tensionamentos, por exemplo, esses conflitos, a gente não constrói algo coleti-
vo – porque a esfera do político é necessariamente marcada por uma disputa,
pelas diferenças, porque é nessas diferenças, é no estar com os outros que a
gente consegue, de fato, fazer acordos de futuro, por exemplo. E por que esses
conflitos não são obstáculos? Porque se não há conflito, não há disputa, não
há o que fazer de fato e não há construção, porque o amor é também conflito.
Eu diria ainda que se não há conflito não há sequer sujeito. E esse conflito não
precisa ser violento, hooks disputa um conflito não violento, mas às vezes ele
é e tem sido violento. Dentro de uma sociedade normativa, os conflitos têm
sido violentos. Acho que nosso desafio para disputar essa futuridade é pensar
em conflitos que não sejam violentos, diferenças que não fundamentem siste-
mas de dominação, mecanismos de desigualdade e opressão, enfim. Isso é um
desafio que passa pelo crivo da desidentificação.
E se as nossas relações humanas são necessariamente marcadas pela
desigualdade, que deixemos então de ser humanos para que isso seja exequí-
vel. E quais os limites disso? Eu não sei. Eu gosto de jogar as coisas, não gosto
de respondê-las. Mas que que está em jogo, voltando ao pensamento de bell
hooks? O que está em jogo é a construção de um horizonte social político de
superação do capitalismo patriarcal e imperialista de supremacia branca, mas
que não faça das nossas diferenças muros. Ou, como diria Angela Davis, para
que as pontes não se tornem muros em nossas construções coletivas.
Em Killing Rage, que é um livro de 95, hooks salienta que o que está
em jogo não é a aniquilação das diferenças, mas é o fato delas não mais organi-
zarem relações de dominação. E esse tem sido, também, o grande desafio meu.
Como pensar nesse futuro de forma que a gente não construa uma abordagem

104 FRAGMENTOS DO PORVIR

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teleológica, como disse Helena? Eu acredito que uma abordagem que tem fim
em si mesmo é uma forma de violência política. Porque de alguma forma se
busca controlar essa imprevisibilidade do fazer político e isto é uma violência.
Não há como construir uma abordagem teleológica do futuro, porque ele está
na dimensão daquilo que não conseguimos nomear.

Angie Barbosa: Eu me lembro, inclusive, de uma fala da Helena onde


ela diz que a gente não quer construir nada, a gente só quer destruir. Talvez o
que venha depois seja pior.

Helena Vieira: Exatamente o que eu ia dizer agora. Não dá para saber,


mesmo. A gente só sabe o que pode vir depois na medida que vem. A utopia é
sempre do nosso tempo. Imagine como seria a utopia dos gregos, uma socie-
dade utópica para os gregos, com certeza não seria a nossa. Nós não sabemos
onde nossas ações direcionadas, ainda que direcionadas nos levarão. É quando
se diz que diferentes coletividades desejam diferentes futuros. Justamente por-
que ainda que uma dessas coletividades tenha imenso poder, o mundo escapa
por todos os lados. Não há como a vontade de alguém construir alguma coisa.
Essa é uma das grandes feridas narcísicas da humanidade. Nós não fazemos
a história com a nossa vontade, nós não somos livres para agir segundo nossa
vontade. E eu acho interessante isso porque a experiência do amor, do ponto
de vista romântico, ela é uma experiência que talvez se você é uma daquelas
pessoas místicas, que acha que tudo que nós vivemos tem um aprendizado a
nos oferecer, tem. Mas não intrinsecamente. Nós que aprendemos ou não.
Veja, o amor ele só pode ser percebido pelas marcas que produz em
nós desde a nossa experiência moderna do amor. São as marcas do que a mi-
nha mãe fez para mim, são as marcas do meu amigo de muitos anos, são as
marcas de uma antiga paixão. Essas marcas constituem uma memória desse
amor. E nós observamos as marcas que gostamos de observar. Então, inclusi-
ve, aquelas que doeram em nós são as que nós gostamos de observar porque
são aquelas que, no geral, representam partes das nossas narrativas heroicas de
nós mesmas. Aquelas que contamos, que observamos, enfim. Quando a gente
pensa em construir uma sociedade a partir do amor, olha que interessante, a
gente opera através de uma ideia de amor que tem a ver com cuidado, com

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coletivização etc. Porque a noção de amor, mesmo o romântico, tem a ver
justamente com um deslocamento de si até o outro. Seja o outro do amor
romântico, objeto amado, seja coletividade com a qual me preocupo. Ela tem
a ver com esse deslocamento de si. E nesse processo de deslocamento de si, há
um conjunto de possibilidades de desordem.
Talvez outra tarefa que nós tenhamos é pôr fim às distopias do amor.
E não construir novas utopias do amor, mas findá-las. Findá-las justamente
para que a gente consiga experimentar a trajetória de dor do amor, também. E
a trajetória de destruição que o amor opera. E, encontrando essas trajetórias,
a gente então organiza outras formas.

106 FRAGMENTOS DO PORVIR

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Por uma política do
porvir: ontologias de um futuro (im)possível

Queremos pôr em prática um pensamento


utópico, entendido como energia e força de
insurreição, como presença e como convite para
sonhos, como gesto de ruptura: ousar pensar
para além do que se apresenta como “natural”,
“pragmático”, “razoável”. Não queremos construir
uma comunidade utópica, mas restaurar toda
a sua força criativa em sonhos de insubmissão
e resistência, justiça e liberdade, felicidade e
bondade, amizade e encantamento.

Manifeste de L’Atelier IV

Das utopias, é preciso compreender e apreender os seus mecanismos


de produção e sua função social. Neste livro, parto da noção, já fundamentada
por Sarr, de que as utopias fornecem mecanismos de produção de sentido à
nossa realidade e constroem o terreno fértil para as transformações sociais.
Não há utopia sem esperança e isto significa dizer que o futuro é fruto de uma
disputa coletiva fundamentada na ética da comunhão, como busquei argu-
mentar ao longo dos capítulos que integram este livro.
Como ilustra a epígrafe destas considerações finais, não se trata da
construção de uma comunidade utópica – isto é, inalcançável –, mas sim de
estabelecer um projeto de justiça social a partir de uma ética da utopia, a qual
permite que avancemos coletivamente a partir da constituição de alianças po-
líticas e subjetivas.
Em um momento como este, no qual a morte parece ser o motor da
política nacional, é preciso reivindicar a construção de alianças e políticas

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de coligações de solidariedade. A solidariedade, nesse sentido, emerge como
uma categoria ética (de convivência) que se vale das nossas diferenças para a
construção de encontros potencializadores e não mais de sistemas de opressão
e dominação. Pudemos observar exemplos de convivência e alianças na Revo-
lução Egípcia de 2011, que uniu protestantes na praça Tahrir, no centro de
Cairo, onde as pessoas disputavam e questionavam os sentidos do espaço pú-
blico que, mesmo sendo público, era e é organizado por políticas da diferença.
A disputa pelo espaço público é fundamental para o estabelecimento
de alianças políticas e reivindicações deste mesmo espaço. Neste livro, à esteira
do pensamento de Butler, chamo atenção para a importância das alianças na
construção de um novo paradigma social. As “alianças” de Butler se confun-
dem, para fins didáticos, nas “comunidades amadas” de Luther King Jr. e bell
hooks: trata-se da afirmação da diferença na construção de éticas de coabita-
ção e disputa de imaginários.
Em livros como Killing Rage (1995) e Where We Stand (2000), hooks
disputa os sentidos de uma sociedade sem estrutura de classe e sem racismo.
Tentaremos apreender a sua proposta nas próximas linhas. Em seu pensamen-
to, a disputa é por uma estrutura social na qual todas as pessoas possam viver
plenamente e bem. Trata-se, portanto, da operação de uma nova gramática
ontológica, proposta a partir das políticas feministas e anticapitalistas.
Nesse sentido, a consciência crítica e sua radicalização é fundamental,
pois, como afirma Freire, é necessário que os oprimidos cheguem à luta “como
sujeitos, e não como objetos.”72 A tese de Freire, fortemente presente no pen-
samento de hooks, ressalta a importância da radicalização da consciência dos
sujeitos oprimidos e explorados para que eles possam, em um movimento
revolucionário, subverter as estruturas sociais.
Constituir frentes de oposição, no entanto, não é o suficiente, diria
hooks. É preciso avançar enquanto coletividade para que a transformação so-
cial se torne uma realidade. Conforme hooks, não podemos nos deixar levar
pelo devaneio de um mundo sem diferença racial, por exemplo. Não se trata,
porém, de apagar as nossas diferenças, mas sim afirmá-las. “A falha, contudo,
não era imaginar uma comunidade amada; era a insistência de que essa comu-

72  FREIRE, Pedagogia do oprimido, pos. 830 [recurso eletrônico].

108 FRAGMENTOS DO PORVIR

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nidade só poderia existir se apagássemos e esquecêssemos a diferença racial”,73
aponta hooks.
O que eu chamo, neste livro, de política do porvir se fundamenta nas
discussões de hooks sobre comunidade amada, embora eu não dispute esse
conceito. Uma política do porvir, nesse sentido, afirma as nossas diferenças
sociais construindo o que hooks chama de solidariedade política para que as
comunidades (sociedades do amanhã) sejam construídas. Trata-se de práticas
de futuro que disputam um mundo sem hierarquias de poder e sistemas de
dominação. Partindo do pressuposto de que nossas relações, subjetividades e
formas de apreender o mundo são construídos (mas não somente) pelo e no
discurso, não há como defender uma suposta pré-discursividade das matri-
zes de dominação, como se estas fossem naturais e inevitáveis. Fazer isso, no
entanto, reforça a existência e organização de uma ideologia generalizada de
dominação.

Para construir a comunidade amada, nós não renuncia-


mos aos laços com as nossas origens preciosas. Aprofun-
damos esses laços ligando-os a uma luta antirracista que,
no fundo, é sempre um movimento que perturba [outro]
movimento que se agarra a legados culturais que exigem
investimento em noções de pureza racial, autenticidade,
de fundamentalismo nacionalista. A noção de que dife-
renças de cor de pele, classe social e herança cultural de-
vem ser apagadas para que justiça e igualdade prevaleçam
é uma marca popular da falsa consciência que garante a
manutenção do pensamento e prática racistas.

Nesse sentido, as políticas do porvir devem promover um paradigma


social de afirmação das diferenças e não seu apagamento. Apagar as diferenças
da humanidade seria, por definição, um ato de semiocídio ontológico,74 isto
é, de apagamento das condições ontológicas de um sujeito.

O mais importante do nosso trabalho – o trabalho da


libertação – demanda que criemos uma nova linguagem,

73  HOOKS, Killing Rage, p. 263.


74  SODRÉ, Pensar Nagô.

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que criemos o discurso oposto: a voz libertadora. Funda-
mentalmente, a pessoa oprimida que se move de objeto
para sujeito fala com a gente de um jeito novo. Esse dis-
curso, essa voz libertadora só emerge quando o oprimido
experimenta a autorrecuperação.75

E é nesse movimento de autorrecuperação como um mecanismo de


sujeição que encontramos um fundamento crucial para as políticas do porvir
e construção das sociedades do amanhã: “uma sociedade só é eficaz quando se
torna ato: capacidade de agir em comum”,76 como sugere Sarr. Isto significa
dizer que a condição de efetivação de uma dada sociedade poderia ser avaliada
a partir da condição de integridade de seus sujeitos sociais.
As discussões sobre futuro frequentemente assumem um papel de dis-
cussões fictícias, distantes e impossíveis. Como frisado na introdução deste livro,
não se trata de uma discussão imaterial, mas sim das condições que podem ser
construídas para um novo mundo. O futuro, nesse sentido, é agora e nos valemos
apenas de uma metáfora temporal para criar o terreno fértil para o nosso debate.
Nesse sentido, quero que este livro inspire construções coletivas de
futuros feministas, radicais, subversivos... o objetivo é a transformação social.
E esta transformação acontece na ação do hoje, do agora. Há quem queira
esperar uma mudança, mas é preciso operá-la, construí-la, coletivamente. Por
isso, as políticas do porvir se orientam em políticas feministas e queers para a
construção de uma nova utopia. No que tange o feminismo, compartilho da
visão de Virginie Despentes:

O feminismo é uma revolução, não um reagrupamento


de conselhos de marketing, não apenas uma vaga promo-
ção da felação ou dos clubes de swing, não se trata apenas
de melhorar os salários. O feminismo é uma aventura co-
letiva para as mulheres, para os homens e para os outros.
Uma revolução em marcha. Uma visão de mundo. Uma
escolha. Não se trata de opor as pequenas vantagens das
mulheres às pequenas conquistas dos homens, mas de
dinamitar tudo isso.77

75  HOOKS, Erguer a voz, p. 75.


76  SARR, Afrotopia, p. 91.
77  DESPENTES, Teoria King Kong, p. 121.

110 FRAGMENTOS DO PORVIR

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Em relação às utopias queers, conforme José Esteban Muñoz:

O futuro está no domínio da queeridade. A queeridade


é um modo estruturante e educado de desejo que nos
permite ver e sentir além do pântano do presente. (...).
A queeridade é também performativa, porque não é so-
mente um ser, mas também um fazer para e em direção
ao futuro. A queeridade é essencialmente sobre rejeição
de um aqui e agora e uma insistência na potencialidade
ou possibilidade concreta para um novo mundo.78

Nesse sentido, a disputa por uma política da futuridade queer e fe-


minista se orienta a partir da proposição de uma nova gramática ontológica.
Não há mudança social significativa sem a construção de um proje-
to plural, coletivo e de justiça social que compreenda literalmente todas as
formas subjetivas sociais presentes em nossa sociedade. Esta é a política do
porvir, as práticas de futuro que podem emergir a partir de nossas alianças e
mobilizações coletivas.

O diálogo que se segue foi realizado (e transcrito por Creolla de An-


drade) exclusivamente para este livro, em outubro de 2020, a partir de uma
metodologia epistemológica inspirada em Paulo Freire e bell hooks. Aqui, eu,
Luana Luna, Matheus Chagas e João Pedro Monteiro, buscamos construir um
diálogo que se oriente a partir do pensamento de autoras como hooks e Butler
para compreender as ontologias da futuridade que são disputadas neste livro.
Nas páginas seguintes, há uma aposta: o futuro é uma construção coletiva que
se dá no tempo presente.

Vinícius da Silva: No processo de construção do livro eu decidi me


inspirar na dinâmica dialógica empregada por Freire e hooks em alguns de
seus livros. Por isso, inclusive, eu decidi também inserir uma entrevista que
eu dei com o professor uã, a qual desempenha um papel importante na cons-
trução do argumento desta obra. E estruturar o livro desta maneira, como em
uma aula, foi estratégico para que eu pudesse elencar os tópicos centrais deste

78  MUNÕZ, Cruising Utopia, pos. 324 e 335 [recurso eletrônico].

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diálogo; a questão do amor, do futuro, mas também um processo de compre-
ensão do tempo presente.
Então, eu convidei a professora Luana Luna (com mediação e pro-
vocações do João Pedro e do Matheus Chagas) para construir comigo esse
diálogo, não é uma entrevista, não é uma defesa de tese, é um diálogo, onde
a gente pretende conversar sobre os processos de construção teórica do livro,
a gente não vai falar sobre nada muito técnico, construção teórica; que é um
processo que permeia o meu estudo do pensamento de bell hooks porque por
mais que não seja um livro sobre bell hooks, é um livro que se baseia e que é
informado pelo pensamento da bell hooks.
Tem duas grandes autoras que eu cito no livro, que são hooks e Butler,
são as autoras que eu mais cito, então são as grandes teóricas do livro. Mas
bell hooks é a pessoa que informa a construção teórica desse livro e eu que-
ria construir algo nesse sentido, até mesmo organizando meu programa de
pesquisa no que tange o pensamento de bell hooks e levantando algumas
questões que geralmente aparecem quando eu dou aulas e palestras e enfim,
porque a intenção na construção desse diálogo e que eu também possa usá-lo
como material didático para meus cursos do próximo ano. Minha intenção é
justamente essa, por isso que eu reservei um horário relativamente grande para
a gente estar aqui.

Luana Luna: Antes de falar, eu gostaria de fazer dois comentários


rapidinhos e deixar registrado a gratidão pela oportunidade da conversa, da
partilha. À confiança e à credibilidade para que eu pudesse contribuir com
esse registro, esse documento, essa síntese. E, enfim, estou muito feliz viu,
Vinicius? Obrigada, obrigada, eu me sinto muito honrada. Agradecer aos me-
ninos, Matheus, que já é um querido que conheci recentemente, que sempre
traz reflexões tão cirúrgicas, como o Matheus é lúcido. E aprendo muito, obri-
gada, Matheus, João, Creolla, que eu estou tendo oportunidade de conhecer
agora, mesmo pela mediação aqui da tela, muito obrigada pela disponibilida-
de de vocês de construção com esse projeto lindo, falar de bell, falar de edu-
cação, falar de ativismo, falar de amor. Então muito obrigada, era isso que eu
queria dizer. E sabe uma coisa que pensei... Vinícius já é um querido da minha
vida, não preciso dizer mais nada, ele sabe disso; um professor na minha vida,

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um encontro, essa palavra que a gente gosta tanto de usar e convocar para as
nossas reflexões. Quando você fala sobre a conversa, me lembro de bell. On-
tem mesmo retornei ao “Vivendo de Amor” e, no livro recém-publicado pela
Editora Elefante, Ensinando Pensamento Crítico, eu acho que a conversação, eu
vou até dizer Pedagogia da Conversação é uma metodologia hooksiana.
Então, eu acho que isso é um avanço quando a gente pensa em edu-
cação dialógica. E outra coisa: quando você fala, dá vontade de resumir em
um vídeo algo que está disperso ou registrado em cinco textos ou mais, como
isso é inclusivo também, para pessoas que são deficientes visuais e que não
vão ter a oportunidade de ler bell, mas que o audiobook vem nessa vontade de
trabalhar a inclusão cada vez mais, então acho que se acerta, não acho que é
cópia, acho que se acerta. Educação dialógica, educação com amor, educação
de afeto... Quem sabe não se trata de um pioneirismo bacana para a gente
pensar pedagogia da conversação como uma metodologia inclusiva.

Matheus Chagas: Estava só esperando a Luana falar. Agradeço muito o


convite, é um prazer compartilhar esse espaço com vocês. É um prazer conhecer
a Creolla e o João. Eu acho que a primeira coisa que eu pensei quando você con-
versou... quando você comentou comigo sobre a proposta e fez o convite, que
foi bem no momento que eu comecei a ler também o livro Por Uma Pedagogia
da Pergunta do Freire, que é um livro que a bell cita bastante nos escritos dela e
é um livro dialógico, é um dos livros dialógicos do Freire mais famosos, que ele
disse que fez a mesma coisa: reuniu-se com Antonio Fagundes e eles passaram
uma tarde inteira conversando sobre várias questões sobre a experiência deles na
América Latina, e saiu um livro com muitas proposições e com muitas experi-
ências de vidas de ambos para pensar em, como sempre, uma contribuição, uma
continuação do trabalho que ele já vinha fazendo.
E aí eu comecei a pensar e eu lembrei que quando conheci Vinícius,
eu acho, eu não tenho certeza mais agora, mas ou eu já seguia o Vinícius no
Instagram ou eu comecei a seguir ele depois no Twitter, não lembro. Mas meu
primeiro contato com Vinícius foi quando ele estava propondo uma aula,
uma live no Instagram, e ele estava propondo temáticas, perguntando temá-
ticas para a gente comentar e eu lembro que eu comentei sobre a questão das
margens.

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Naquele momento, a gente começou a conversar sobre a questão das
margens no pensamento da hooks. E a partir disso, veio uma outra coisa que
eu acho muito importante, que eu consigo criar uma ligação perfeitamen-
te com o trabalho que os meninos tão fazendo que é, não só se opor, mas
construir uma nova forma de fazer... que é uma questão que está dentro do
pensamento da hooks e o próprio movimento de construir esse diálogo dessa
forma, como a Luana já falou, é uma forma de não só se opor, mas construir
uma nova forma de fazer é um aspecto importante no pensamento da hooks
e é um aspecto também importante no trabalho que o Vinícius está fazendo.
Então, eu acho que esse primeiro ponto é propício para nosso diálogo,
foi no que eu pensei. Não sei se a Luana e o João trouxeram algo diferen-
te, mas eu sei que essa questão do porquê não só se opor, porque construir
uma nova forma é importante, principalmente porque uma das coisas que
mais me chamaram atenção quando eu conheci o Vinícius é que ele estava
falando sobre novos amanhãs. E eu lembro que na época, falar sobre amor e
falar sobre novos amanhãs era uma coisa muito nova para mim. E eu estava
em um momento, também, dos meus estudos e da minha pesquisa, que eu
estava muito preso na violência, no que a violência faz, e quando eu conheci
o trabalho do Vinícius ele estava falando sobre novos amanhãs e de amor de
uma forma muito radical. Então para mim isso é um exemplo muito forte
de não só se opor, mas de construir uma nova forma de falar, de escrever, de
teorizar. Então eu acho que esse é um bom ponto para a gente começar, se o
Vinícius concordar, se a Luana concordar, se alguém quiser comentar alguma
coisa, foi isso que eu pensei para o início.

Vinícius da Silva: Eu começo, então?

Luana Luna: Por mim, problema nenhum, perfeito, vamos assim.

Vinícius da Silva: Talvez um dos postulados mais conhecidos de bell


hooks, com suas traduções recentes, o trecho de Anseios, onde ela fala que a
linguagem é um lugar de luta. Um lugar de luta que, inclusive, é um dos tre-
chos que a Luana mais gosta, sempre fala sobre isso, e se é num lugar de luta, a
linguagem é um instrumento que constitui um dispositivo de resistência a essa

114 FRAGMENTOS DO PORVIR

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margem imposta. Quando eu comecei a trabalhar com as margens, eu lembro
que também era um assunto muito novo para mim, eu estava estudando...
acho que foi no início deste ano [2020]. Nas conversas que eu tive com o
Matheus, uma das questões que mais intrigava a gente é como essa questão da
margem está diluída. Porque a margem da qual bell hooks fala, não é somente
uma geografia. Ela fala de uma relação posicional, ela está falando de relações
humanas e, também, das dinâmicas de produção e validação do conhecimen-
to produzido, sobretudo, por pessoas negras. Então a gente pode dizer, por
exemplo, que as nossas margens são construídas a partir de marcadores da
diferença. Nossas relações humanas são constituídas a partir dessas diferenças
e essas diferenças organizam nossas relações, que são relações necessariamente
hierárquicas, digamos assim. Essa organização, dessa forma, com nossa gra-
mática atual, organiza as margens. A margem é lugar que não é centro, mas
ainda assim faz parte de um todo, como descreve hooks em Teoria Feminista.
Então, a maior questão que eu levei para o Matheus na época é como,
por exemplo, as epistemologias negras são estudadas em universidades, mas
mesmo assim estão à margem porque não integram disciplinas obrigatórias
ou núcleos de pesquisa (termo usado na filosofia da ciência). Sim, estuda-se
bell hooks, mas a estudamos em disciplinas optativas. E quando isso acontece,
costuma-se estudar trechos e textos específicos de bell hooks – o que também
caracteriza um mecanismo de marginalização e despolitização epistemológica.
Eu tenho a impressão de que o texto onde hooks está propondo uma pedago-
gia feminista revolucionária, por exemplo, nunca vai ser estudado numa dis-
ciplina obrigatória, e eu espero que avancemos em relação a isso, porque esse
texto implica uma transformação ética do sistema educacional e das formas de
ensinar como a gente compreende hoje.
Isso é complexo. Compreendamos ou não, aceitemos ou não, a uni-
versidade, nos dias de hoje, ainda tem sido um dispositivo de perpetuação de
padrões de violência e dominação. Daí então, a proposta da discussão acima
sobre margem, que é uma discussão que tem como principal objetivo tensio-
nar as construções sociais e epistemológicas que criam essas margens. Quando
hooks vai falar sobre isso lá no Anseios, que é um livro de 90, ela vai falar
que é a partir dessa linguagem, a partir dessa autodefinição que a gente pode
reivindicar a margem enquanto um espaço também de resistência. É aí que

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entra uma outra questão do pensamento de hooks e é uma questão impor-
tante, que é a questão de como a experiência fundamenta uma formulação
teórica, por exemplo. Como existe um diálogo muito crucial no processo de
“epistemologização”, digamos assim, o processo de teorização do pensamento
de bell hooks, que é um processo que não se desvincula de uma prática, que
reivindica o tempo todo uma práxis revolucionária que está justamente no
centro dessa discussão sobre margem e que é uma discussão também sobre
como nossas relações são construídas de forma que não questionamos as nos-
sas próprias margens.
Em nossas relações, nós colocamos pessoas à margem o tempo todo.
Os nossos discursos colocam pessoas à margem o tempo todo, as nossas insi-
nuações, para usar o termo do Bourdieu, colocam pessoas à margem o tempo
todo. O que vem com esse postulado, a linguagem é um lugar de luta, é como
a gente usa essa linguagem para subverter essa margem que atravessa o nosso
cotidiano, nossas construções humanas e como que o que está em jogo não
é que deixe de existir as diferenças em si, mas que essas diferenças não impli-
quem numa construção de novas margens, numa hierarquia violenta de um
sistema de dominação. Essa é uma das principais hipóteses que eu levanto a
partir da discussão sobre amor, por exemplo, no pensamento de hooks, que é
o que a gente vai aprofundar mais para frente. Pode falar, Luana.

Luana Luna: Perfeito, tomando nota aqui... eu estou ouvindo você


falar e não tem como... porque me remete muito a tese e eu não tenho como
não voltar para esse lugar porque veja... ainda num primeiro momento, deixa
eu só contextualizar para os demais. A minha tese de doutoramento, na qual
eu estudo o movimento de ocupações estudantis que se deram no ano de
2016, no IFRJ, que é a instituição onde eu trabalho como pedagoga e profes-
sora e Vinícius é estudante. Quando eu começo a pensar sobre a resistência
dos jovens estudantes do IFRJ no ano de 2016, uma coisa não estava visível
para mim, e eu vou descobrindo isso no processo de pesquisa, que majoritaria-
mente, os estudantes que ocupam, que constroem frentes de resistência, que
estão tensionando o status quo são os alunos cotistas.
E eu vou pensando então, ao longo da pesquisa, quando vou fazendo
essas descobertas, e me deparo com hooks trazendo essa reflexão sobre a mar-

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gem. O quanto a experiência da margem é uma experiência de restituição. Eu
gosto muito de usar essa palavra – restituição. Porque, para mim, a restituição
tem tudo a ver com como a gente discute políticas de reparação. E quando
hooks fala, traz essa preocupação, essa intervenção de ouvir, sobre a experiên-
cia da margem ela está falando de restituição. Porque foi isso que os estudan-
tes fizeram no movimento de resistência quando eles tensionam o status quo,
por formas contra hegemônicas de fazer educação, eles foram restituindo essa
institucionalidade ainda tão pautada por valores e por essa lógica hegemônica
de configuração da educação, eles foram restituindo essa institucionalidade,
aquilo que a gente falou aqui no início, que Matheus também trouxe: novas
formas de fazer. Acho que existe um anseio em nós quando a gente começa a
despertar para epistemologias outras, e eu vejo muito essa preocupação na sua
pesquisa, Vinícius, quando você traz isso, quando você convoca a reflexão da
sociedade do amanhã, como a gente sai da denúncia para de fato a interven-
ção que construa, que pavimente esses caminhos de construção sobre outras
formas de fazer político. E aí eu penso que se trata da experiência da margem.
E bell viu isso, lindamente, Freire viu isso, lindamente. Por isso a gente gosta
muito de dizer que bell é uma teórica do porvir, porque por tanto ter os pés
fincados na realidade, tanto Freire quanto hooks, eles conseguiram pensar o
porvir e indicar caminhos.
Eu penso muito no que a gente conversou recentemente, e na fala de
Matheus de que não existe um manual e a gente não quer um manual, mas
existe um caminho. E o caminho é a experiência da margem. Mas, para além
de um discurso que só faz a denúncia da dor, a teorização dessa experiência, a
intelectualização dessa dor nos leva a essa construção. Então foram isso que os
estudantes fizeram em ocupação, restituindo e disputando o caráter público
da instituição e inaugurando novas formas de fazer e nos ensinaram o que de
fato poderia ser uma escola com alegria, com amorosidade, com gentileza,
com comprometimento, com responsabilidade, pautada numa ética do amor.
E essa é a minha tese, e foram os estudantes que a fizeram, porque eram
atravessados pela experiência da margem. E por serem estudantes marginais,
eles conheciam o centro, ou seja, uma visão com totalidade e paixão. O que
nós fomos perdendo no processo de enrijecimento da burocratização da vida.
Porque é isso também, o capitalismo, o patriarcado, o racismo, são sistemas de

Vinícius da Silva 117

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opressão que se relacionam, que se combinam e que se mantém hegemônicos
porque a todo momento eles conseguem, eles agem na nossa desumanização.
E quando a gente disputa a subjetividade, quando a gente está falando
da experiência da margem, quando a gente está falando sobre erguer a voz,
quando a gente está falando da linguagem como lugar de luta, quando a gente
está trazendo a importância da teorização da experiência, da intelectualização
da dor e de se mover para além da denúncia, da construção de outros mundos,
a gente também está invertendo uma lógica ocidental e rompendo a desuma-
nização desse sistema que se mantém hegemônico. A gente está subvertendo e
transgredindo a lógica do “penso, logo existo” que é racional, que é positivis-
ta, individualista. Que retira de nós o espaço de construção de identificação
dos sentimentos e de construção de subjetividade porque as emoções não são
importantes, elas são secundárias. E a gente está dizendo: sinto, logo existo.
Porque sentir nos leva a identificar, identificar nos leva a pensar, identificar
nos leva a construir, identificar nos leva a nomear o que precisa ser nomeado
e identificado. Por isso que mais uma vez eu falo de restituição, porque a
experiência marginal, a experiência da margem, que por excelência traz essa
transgressão do “penso, logo existo” para o “sinto, logo existo.” Então eu fiquei
pensando sobre tudo isso aqui. E mais uma vez trazer a questão do amor e o
quanto é difícil de escutar o amor como caminho que, a priori, por essa lógica
da desumanização dos nossos corpos, dos corpos marginais, espera-se também
de nós a brutalidade. Existe uma contextualização, existe uma história, e es-
pera-se de nós a brutalização, a manutenção da brutalidade. E quando a gente
disputa a narrativa do amor, eu estou falando isso porque eu destaquei aqui a
fala do Matheus, “falar de amor é muito difícil para mim”, e foi uma fala que
surgiu ontem numa reunião de orientação com uma estudante quando num
determinado momento ela falou para mim, “Luana, será que o TCC não está
ficando muito romântico? Será que eu não estou floreando e falando muito de
amor?”, e eu a disse “por que que não podemos falar sobre amor? Por que que
se espera de nós e por que que a gente aceita que esse espaço de fala seja esse
espaço da denúncia e da brutalização sempre?” Ou seja, é sentir para existir.
E falar de amor está nesse espaço da sensação. E essa disputa é muito difícil.
Por essa lógica desumanizante do “penso, logo existo”, que é o arcabouço de
estruturação das ciências sociais nessa sociedade de educação dependente que

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vai toda hora dizer que o lugar da ciência não é o lugar da emoção. O lugar
do sentir não é o lugar da razão, de construir conhecimento. Então eu acho
que pensando mais uma vez em restituição, no lugar da margem, no erguer a
voz, a gente precisa muito falar sobre isso, que a gente está na verdade trans-
gredindo essa fronteira de como construir conhecimento. Essa fronteira aí
que a universidade, como você falou no início, ainda tenta se perpetuar e
fazer valer essa forma de relação que é dominadora, que é opressora, que é
racista, que tenta deslegitimar a nossa voz, dizer que esse espaço não é nosso.
A escrita, a nossa escrita não é legítima, nossa escrita não é científica, e nos-
sa fala não é elaborada, que isso tudo tem a ver com a manutenção de um
status quo. Isso é um projeto. A universidade brasileira nasce heteronômica,
ela nasce dependente e isso tem a ver com um projeto de nação. Uma nação
inacabada, uma nação que não se realiza. De uma nação que é uma cópia. E
veja como é potente isso que a gente está dizendo e refletindo com bell e com
Freire, porque quando a gente está dizendo que a experiência da margem ela
precisa ser a centralidade, não tem como eu não fazer essa conexão. A expe-
riência da margem também funda sabedorias e traz para destaque, para cena
do processo, não só outras formas de fazer como outras formas de lidar com
o conhecimento, mas ela também traz a valorização de sabedorias ancestrais.
Eu gosto muito de trabalhar com essa ideia da ancestralidade. Isso está em
hooks, apesar de não ser tão explorada, mas é isso, a valorização das sabedorias
ancestrais, que fala também sobre outra forma de lidar com o tempo e com a
existência. E quando a gente está falando de sabedorias ancestrais para pensar
Brasil, essa realidade tão violenta que a gente vive, a gente está nomeando
que esses saberes, essas sabedorias, que precisam ser valorizadas para que a
gente construa outras formas de fazer contra-hegemônicas, elas têm nome.
Elas são negras, indígenas e periféricas. E dizendo isso, a gente também vai
construindo um caminho para algo que a gente vem conversando, também,
Vinícius, existe uma filosofia brasileira, como muitos, muitos de nós que tão
implicados com essa discussão vem tentando fazer. Pensar no Brasil a partir
desse lugar marginal, na busca pela valorização e por outras formas. É isso, a
gente se movimentando nas frestas, na guerrilha epistemológica, epistêmica.
Porque é muito difícil a práxis revolucionária. A universidade está cheia de
teoria revolucionária, mas com muita pouca práxis revolucionária. A práxis

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revolucionária promove a quebra do status quo, e a gente cai numa discussão
de privilégios. Quem quer renunciar a seus privilégios? A branquitude não
quer renunciar a seus privilégios. Ela gosta de nos dar a voz, dar dentro de um
limite, um limite que não ameace seus privilégios.
Vinícius da Silva: Você toca em assuntos muito importantes que eu
não sei nem por onde começar a falar, mas acho que talvez um ponto impor-
tante de ser ressaltado é que estar à margem possibilita uma construção de
um conhecimento que compreende tanto as questões da margem quanto às
questões do centro, como diz hooks em Teoria Feminista. Este sujeito produ-
zido pela margem – ou melhor, esta sujeita da margem –, é o que aparece no
pensamento de Patricia Hill Collins, Audre Lorde e da própria hooks, na figu-
ra da Outsider Within, a qual costumamos traduzir, de maneira bem precária,
como “forasteira de dentro”. É uma sujeita que está à margem, mas que tem
acesso ao centro, essas metáforas geográficas que de alguma forma constituem
gramáticas de entendimento referentes às nossas posições e relações sociais.
Esse conhecimento da margem também é um conhecimento do centro, uma
forma de produzir conhecimento que compreende ambas as dinâmicas. Se
você é um sujeito socialmente racializado, então você conhece muito bem, in-
clusive, como esses processos se organizam. Mas não nos enganemos de achar
que a experiência da opressão é equivalente à sua compreensão e capacidade
de análise.
hooks diz algo bem interessante que é desenvolvido ao longo de sua
obra, mas que podemos encontrar de forma sintetizada em Gênero: concei-
tos-chave em Filosofia, de Tina Chanter: “A pensadora hooks alerta contra a
redução da ideia do pessoal ao político a uma expressão de alguma experiência
privada de opressão, na qual o feminismo se degenera em um protesto pessoal.
Atenta ao destaque da importância da ênfase da dimensão política e social do
movimento feminista, hooks resiste à ideia de que a experiência da opressão
seja equivalente à sua compreensão, ou seja equivalente a uma análise crítica e
política de tal dimensão.”
Justamente pelo que se ilustra no comentário de Chantes, defendo a
noção de que é preciso haver um processo de teorização, o qual nem sempre é
mediado pela academia, mas por processos de organização desse conhecimen-
to dessa experiência e de um uso dessa experiência, agora uma epistemologia

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para a gente conseguir lidar com essas diversas questões relativas às opressões
estruturais e à constituição das margens.
É justamente nesse sentido que entra a questão da linguagem
novamente enquanto elemento fundamental para a formação de alianças, que
é algo que está no centro da tese de Luana, a formação de alianças, encontros.
As alianças como elemento que, na esteira do pensamento de Butler, fornecem
para gente uma coletividade importante para a resistência aos processos de
precarização – que é o que está em jogo também no pensamento de hooks,
quando ela articula a noção de talking back (“erguer a voz”, como foi tradu-
zido), articulando também uma política de aparecimento. Nesse sentido há
muitos diálogos possíveis entre Butler e hooks, mas não os exploraremos, por
ora. Em outras palavras, hooks articula a linguagem enquanto um dispositivo
de resistência e de aparecimento.
Mas o que é essa linguagem? Trata-se da linguagem enquanto dis-
curso, sobre ter domínio da própria narrativa e da própria história. É nesse
sentido que a gente consegue articular a margem enquanto um espaço de
resistência, e articular esse encontro do qual Luana tanto fala e desenvolve,
enquanto um lugar para reconstrução ontológica. Eu gosto muito de um tre-
cho de Um apartamento em Urano, no qual Paul Preciado diz o seguinte: “O
que chamamos de subjetividade não é mais que a cicatriz deixada pelo corte
na multiplicidade do que poderíamos ter sido.” Então, a voz, a linguagem e o
discurso, no pensamento de hooks, vêm com o sentido de reconstruir esse ser,
a ontologia desse ser, a multiplicidade desse ser a partir da proposta de uma
nova gramática ontológica, uma nova gramática operacional. É justamente
por isso que as formulações de hooks se orientam em direção a uma práxis
revolucionária, para que possamos articular um horizonte de transformação
social, sem o qual essas novas gramáticas não podem existir.
Trata-se de uma proposta que eu também mantenho na minha pes-
quisa deste livro, que é justamente a articulação de uma nova gramática do re-
conhecimento, a partir da qual a gente consegue articular novos mecanismos e
mecanismos mais complexos de reconhecimento e de sujeição. Porque dentro
desse sistema de subjetivação ocidental, que é um sistema binário e fragmenta-
dor, os processos de reconhecimento têm sido processos incompletos. Butler e
hooks, mesmo que de maneiras diferentes, apontam para a mesma direção ao

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insistirem na questão da linguagem. É um processo de reconstrução do ser. É
isso que significa dizer que “o nosso ser reside nas palavras”, como dito tantas
vezes por hooks. E por se tratar de mecanismos incompletos, isso nos coloca
uma grande questão: é possível pensar processos completos de reconhecimen-
to? É possível pensar numa nova organização dessa dialética do reconheci-
mento onde o Eu, como eu pergunto, não se dissolve em seu Outro? Como
que a gente consegue pensar? Essas são questões que eu não busco responder,
mas que são importantes para a construção (coletiva) de uma nova gramá-
tica ontológica – que talvez não seja formulada a partir do que eu postulo
nesse livro, mas sim a partir da constituição de uma aliança revolucionária
que se movimenta contra essa precarização ontológica. E esse caminho, esse
movimentar-se contra essa precarização, contra os regimes de dominação é o
caminho que vai ser fornecido para a formulação de uma ética do amor. Esta-
mos falando do amor não enquanto uma categoria romântica ou afetiva, mas
enquanto uma categoria de reconstrução ontológica, por isso eu sempre falo
com a Luana que o amor só pode curar – porque a gente tem esse postulado
teórico de que amor cura, né? – se ele permitir a reconstrução do ser, porque
a cura é isso – integridade.
E, nesse sentido, eu acho que a discussão que a Luana faz na tese é
muito interessante, porque quando a gente fala que o amor cura é porque o
amor dá sentido à vida, não é curar feridas de modo que esqueçamos dessas
feridas. Isso é impossível. A gente não consegue esquecer dos nossos traumas,
mas a gente consegue ressignificá-los. Isso é psicanálise. E aí entra uma di-
mensão importante da linguagem. A significação, ou melhor, a ressignificação.
Reencantar-se. O amor é uma categoria de reconstrução ontológica, que dá
sentido ao ser, dá sentido à vida. Ele não cura de forma que perdoemos rela-
ções disfuncionais, abusivas, muito pelo contrário. Não, não é isso. Se as pes-
soas entenderem o amor enquanto cura nesse sentido, esse é um problema que
precisa ser resolvido. Na verdade, é um problema nosso, enquanto pessoas que
estão formulando uma teoria do amor. Mas é uma questão que precisa ser bem
esclarecida, porque o amor não tem coexistência possível com a dominação,
com a questão da disfuncionalidade. Muito pelo contrário, ele se movimenta
contra isso. Por isso que a gente fala que o amor é uma ferramenta de encanta-
mento. Porque ele dá sentido à vida. Se ele dá sentido à vida, é preciso que ele

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seja entendido como tal. Em sua dimensão ética, política e não só romântica,
mas também quanto uma categoria afetiva, retomando o conceito de Espinosa
de afeto, que a gente vai aprofundar daqui a pouco, que é algo que me deixou
literalmente afetado nos últimos dias.

João Pedro: É realmente sobre essa possibilidade de novos amanhãs


e de novos mundos. O Hegel, um filósofo da transição, pensa o mundo em
permanente transformação. O que ele tenta fazer é uma tentativa de uma or-
ganização desse mundo, que se organiza a partir do que ele chama de Espírito
[Geist], que é sempre uma novidade para mim a cada semana que passa. O que
é esse Espírito hegeliano? Hegel, ao longo deste processo, começa com uma
consciência unificada que passa pelo processo de autorreconhecimento e reco-
nhecimento dos outros e que vai, ao longo da Fenomenologia, desmontando as
possibilidades que a consciência tem de acessar o Espírito. Ou melhor, escre-
vendo a consciência do Espírito de uma forma que ela seja apenas a expressão
de sua singularidade. A consciência não teria, portanto, a compreensão do
todo, nem controle do Espírito.
Por isso, esta abordagem é interessante para a gente por conta de dois
motivos. Primeiro: O processo de construção do Espírito, da base desse mundo
novo, para o Hegel é um processo de contradição. As ações que esse singular, a
consciência, tem em relação à estrutura na qual ele já se encontra, são conflituo-
sas. Porque ela é um particular desse todo, então sua ação pode tanto coadunar
com as regras culturais quanto não coadunar, mas será sempre ou atualização
desta, ou sua mudança. Sua ação está sempre marcada pelo negativo. A gente
tem aqui uma dinâmica entre o sujeito e a cultura; a ação individual enquanto
uma ação contraditória em relação à cultura, porque a ação tem duas caracte-
rísticas: simultaneamente, ela constrói a própria cultura e a confronta. Estamos,
então, falando de um processo, de um permanente desarranjo entre a estrutura
e o seu particular individual, um negativo em relação ao outro. Quem lê Hegel
ou Marx, já sabe desse desarranjo que está presente o tempo todo.
Dito isso, o que eu quero realmente trazer ao debate é o processo de
modificação, de construção de novos amanhãs, o qual é, para Hegel, fruto
de uma consciência que não está ciente de todas as determinações e que, em
segundo lugar, emerge desse momento inicial de estranhamento, onde há a

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identificação do problema. Então, esse processo de forjar as ferramentas ne-
cessárias para construir novos amanhãs e da própria possibilidade de conhecer
esses novos amanhãs também é um processo de reconstrução da epistemologia,
pois se desconhece as ações a serem tomadas, bem como suas consequências.
Trata-se de um pensamento complexo, mas temos aqui outro elemen-
to fundamental: os processos da violência e do conflito. Vejo a violência como
uma possibilidade de subversão. Está muito claro que, para Hegel, os processos
de conflito são sempre pontos de ruptura, de passagem, para um outro estágio
(da consciência). Mas outra questão importante é a ação, a própria ação, o fato
de o indivíduo e a consciência não serem propriamente conscientes de suas
ações. Então, a gente tem uma consciência que age, mas que na sua própria
ação perde controle das consequências e do sentido de sua ação. Por isso, não
há como prejulgar se o processo de construção de novos futuros será ou não
efetivo, pois a efetividade é construída a partir da efetivação. A gente efetiva
construindo. Não há como postular novos amanhãs: trata-se de um processo
que desencadeia possibilidades, justamente por se tratar de uma ação coletiva.
É uma construção que se efetiva, que se incorpora, que ao mesmo tempo que
é construída, vai se efetivando. Isso é importante porque a gente não tem
como construir uma filosofia programática a priori, porque a gente precisa ir
construindo as próprias metas, no processo de entender quais são essas metas.
Não há um caminho certo na fundamentação ou construção de uma tese so-
bre o futuro. Nós precisamos construir e, a partir disso, tentar identificar os
caminhos e é isso que eu acho interessante na hooks e que vocês estão o tempo
todo delineando, essa possibilidade de dar visões, de construir possibilidades
de caminhos. O mais interessante é que esses caminhos não estão acabados,
são sempre possibilidades de novos inícios, mas nunca de propriamente tentar
postular desenvolvimentos. Esse movimento da hooks é interessante porque
parece que ela fala justamente disso, dessa incapacidade própria da consciên-
cia de conseguir entender o que está acontecendo. É interessante isso porque
as pessoas gostam de considerar o Hegel somente “um idealista” e eu gosto
de afirmar que não, não nos termos que as pessoas falam. É um processo de
desenvolvimento, de construção contínua desses novos amanhãs, do qual é
impossível postular uma nova filosofia. A filosofia é sempre uma filosofia em
construção, esse é o cerne das coisas.

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Por isso, voltando à questão do afeto, esse é um caminho interessante
para Espinosa, porque ele trata justamente da afetação desse corpo, de como
esse corpo se afeta, como afeta outros; mas também de como ele se produz,
nessa afetação. Não vou entrar muito nesse caminho porque me parece muito
tortuoso. Mas o que, para mim de início, é a consideração de que o processo
de afetação desse corpo é também o processo que não é consciente, a gente
quer afeto, a gente sente, a gente não tem pleno controle teórico da fala,
pleno controle do que nos afeta, mas são justamente essas afetações que vão
construindo esses novos amanhãs, é a possibilidade desses contatos e as ações
desse intersubjetivo. É aí que entra o reconhecimento, é justamente isso que
dá as condições basilares para a gente conseguir construir essas novas possibi-
lidades. E essas possibilidades estão fincadas no que? Justamente em entender
como essas ações afetam no sentido forte do termo, porque se não podemos
conhecer as consequências das nossas ações no futuro, pelo menos devemos
considerar as consequências afetivas das nossas ações no presente. Aí que eu
acho que a gente deve pensar uma filosofia que dê conta disso, quais os afetos
que abrem as possibilidades; quais afetos são impossíveis, mas que abrem um
momento de ruptura absoluta, que seriam afetos do conflito. Por isso que
eu fico pensando nessa questão do amor o tempo todo, porque não pode ser
um amor que ame e somente, tem que ser um amor que combata. Um amor
que efetivamente posicione a possibilidade de conflito. Afetos que conflitam
e afetos que, na sua substancialidade, no seu movimento, abram a possibili-
dade de ruptura. Não são processos que são rotineiros, não são afetos que são
indiferentes, são afetos que constroem a possibilidade de um novo sentir e um
novo devir.

Vinícius da Silva: São afetos que nos levam a um acontecimento,


enquanto algo que não era esperado, simplesmente acontece, como diz Helena
Vieira.

João Pedro: É o sentido do evento, para Badiou, que é esse momento


que não se contém em si mesmo, que se excede e se transborda pros outros,
mas que ao mesmo tempo que seu transbordar não é o transbordar da con-
tinuidade, é o transbordar do conflito, das possibilidades da subversão e da

Vinícius da Silva 125

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construção do novo. Só se constrói o novo quando o velho não dá mais conta,
chegou no seu limite. É isso.

Vinícius da Silva: Sim, eu tenho para mim que o conflito é funda-


mental, porque o conflito é disputa. E no processo de formulação de uma
gramática do amanhã, o conflito é essencial, o conflito é, inclusive, uma das
partes constituintes do amor. Por isso que eu chamo atenção pro fato que
embora o amor seja definido, nomeado, ele também é restringindo nesse pro-
cesso e ele nunca vai ser compreendido na sua forma ampla, completa, porque
ele não pode ser, de fato, nomeado. Como diz Barthes, falar sobre amor é en-
frentar a desordem da linguagem. Porque quando a gente aprofunda o estudo
sobre amor e sobre humanidade, o amor se confunde, inclusive no conceito
de espírito de Sobonfu Somé, que é uma força que organiza a nossa realidade.
Esses conceitos se fundem e é importante entender isso para disputarmos o
conceito de amor, que é um conceito em disputa. Eu sempre chamo atenção
para o fato de que não há abordagens corretas ou erradas, e sim abordagens
qualificadas e comuns. O que a gente tenta construir é justamente uma abor-
dagem qualificada sobre o assunto, se organiza a partir da inserção nessa cate-
goria na filosofia política contemporânea a gente pensar essas desconstruções,
essas novas gramáticas.
E você toca num conceito importante que é a consciência. A consci-
ência também é um debate importante que eu faço de uma forma bem diluída
no livro, para não focar muito nisso, para promoção de um novo tempo, a
consciência se relaciona com a questão do amor no pensamento de hooks.
Quando hooks fala sobre o talking back, ela levanta um debate sobre tomada
de consciência (e sua radicalização). O sujeito de hooks nesse sentido, é um
sujeito autoconsciente, radical, pois ela está falando de um processo de auto-
definição que está sendo construído a partir de sua tese sobre linguagem, de
forma que esses sujeitos possam se autodefinir. Porque, para ela, autodefinição
é um processo crucial para a gente conseguir avançar enquanto coletivo. Hill
Collins também fala sobre isso.
Por isso, falamos sobre amor-próprio. E quando falamos sobre amor-
-próprio, não estamos fomentando uma discussão sobre narcisismo, indivi-
dualismo ou sentimentalismo, muito pelo contrário. Trata-se de um processo

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de autocompreensão e autorrecuperação que possibilita a compreensão de um
indivíduo enquanto sujeito. Talk Back. Então, eu sinto que de alguma forma
a reflexão sobre amor de hooks também é uma reflexão que nos leva a ques-
tão do sujeito. Porque eu considero ser o sujeito uma categoria central para
se entender processos de dominação e, portanto, que é a minha hipótese,
processos de reconstrução ontológica. Nesse sentido, eu acho que a discussão
sobre ontologia, embora eu não a faça propositalmente no livro, é uma dis-
cussão importante. Essa(s) ontologia(s) do amanhã. Os caminhos pelos quais
um amanhã de fato será possível. Embora não pareça possível, embora pareça
muito impossível, é preciso sempre caminhar rumo a uma possibilidade, por
mais impossível que ela seja. Isso é um paradoxo, eu sei, mas isso tem que
movimentar nossas questões.

Luana Luna: João trouxe coisas importantíssimas, anotei aqui, fiquei


conectando, pensando. Ai, gente, que alegria, viu. Gratidão. A conversação
como uma pedagogia, uma metodologia, é importante. Que delícia construir
conhecimento assim. E eu quero voltar na discussão, porque Vinícius trouxe
uma palavra, um conceito, que é muito importante para mim, que é a questão
do encantamento – que eu venho fazendo na tese. E queria, também, voltar à
discussão do encontro, que também é uma outra reflexão muito importante
para mim. E aí, para fazer isso, eu gostaria de recuperar a reflexão que Vinícius
trouxe, sobre a margem, queria voltar nisso. Estar na/à margem, como aquilo
que possibilita conhecer as questões e os anseios da margem e do centro, e que
isso tem a ver com movimento. Quero trazer também a palavra movimento.
Vinícius traz também uma reflexão, e eu queria mais uma vez destacar: a experi-
ência da opressão não é necessariamente o conhecimento da opressão. Eu queria
destacar isso novamente e acho que a gente precisa voltar a falar sobre isso.
A importância da teorização, como nós conversamos aqui, e da teo-
rização da experiência. Que essa teorização não necessariamente se dá dentro
da universidade, a universidade não é o único lugar de excelência para a cons-
trução de conhecimento. Mas a produção de conhecimento também se dá
dentro da universidade e por isso que a gente está disputando; falamos sobre
o espaço da teorização da experiência como aquilo que eleva a consciência
para o conhecimento da opressão. E isso funda uma epistemologia. A gente

Vinícius da Silva 127

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vem também falando muito sobre isso, Vinícius, uma epistemologia marginal,
transgressora, negra e indígena; sobre uma epistemologia que subverte, per-
verte aquilo que falei sobre o status quo do “penso, logo existo”, para o “sinto,
logo existo”, porque é preciso sentir.
E aí falamos de sentir, mas não é um sentir sem elaboração. E por isso,
mais uma vez, a importância da teorização da experiência. Teorização também
como elaboração. Elaboração da experiência e a elaboração da dor, a intelectu-
alização da dor. Audre Lorde fala sobre isso, a intelectualização da dor. Que é
esse espaço de elaboração, de teorização, de intelectualização, que vai nos levar
aos reconhecimentos. E por isso, mais uma vez, sem medo de ser repetitiva,
afirmo que a linguagem é um lugar de luta porque ela significa o real, significa
o vivido, a linguagem significa o sujeito.
Vinícius trouxe a questão das alianças, uma reflexão tão importante
que a Butler desenvolve e que eu faço na tese, como ele mesmo cita. Eu chamo
de aliança o encontro. Não estou querendo me comparar com a Butler em
nenhum momento, mas como eu não sou leitora de Butler, eu estou tentando
significar para o que é mais próximo para mim. E eu falo sobre o encontro.
E Vinícius destaca o encontro como a centralidade da minha tese. Esse título
que a gente gosta tanto de referenciar, de que nós somos os resultados dos
nossos encontros, nós somos os resultados desse encontro; me referindo à
experiência das ocupações estudantis, essa experiência marginal. E aí eu fico
pensando que formar alianças, materializar encontros, realizar encontros, tem
a ver com reconhecimento. E reconhecer é esse título – nós somos o resultado
de nosso encontro. A gente ama esse título. Ele nos traz a dimensão de que
formar alianças tem a ver com reconhecimentos. Porque é no encontro que a
gente se reconhece. Não existe reconhecimento, não existe construção de al-
teridade, na individualidade. E formar encontros, construir reconhecimentos,
também tem a ver com reverter essa lógica hegemônica da individualização.
De transgredirmos essa lógica do individual para o sujeito coletivo, a sujeita
coletiva. A singularidade dentro da coletividade. Aquilo que nos singulariza na
diversidade, mas que não nega nossas diferenças. E eu fiquei pensando, que foi
isso que os estudantes também fizeram em ocupação. Por conta da ocupação,
eu quero, nesse momento, usar a metáfora da ocupação como uma condição
de reconhecimento. A metáfora da ocupação como afirmação. A metáfora da

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ocupação como conexão. Porque eu acho que pensar a ocupação só dentro da-
quele marco, como algo que termina e não gera frutos – saldo organizativo –,
seria muito reduzido. Ocupar, reconhecer, se afirmar, se conectar, é algo para
a vida. Nós estamos fazendo isso o tempo todo no exercício da linguagem, por
exemplo. Então eu quero usar a metáfora da ocupação como reconhecimento,
afirmação, conexão, comunicação. E entendendo que a gente está, também,
nesse exercício de subverter a linguagem colonial, ressignificar a linguagem
colonizada, isso é muito importante.
Voltando, formar alianças tem a ver com reconhecimento, realizar en-
contros tem a ver com reconhecimento. Porque é no encontro que a gente se
conecta, é no encontro que a gente vai tendo a possibilidade de sair do indivi-
dual, de se mover. Movimento. Movimentar-se de uma lógica individual para
uma lógica coletiva, assenta e funda também novas gramáticas, como Vinícius
está bem falando aqui. Era muito isso também, e é muito isso ainda hoje que
os estudantes me falam quando contam que foi na experiência das ocupações
e do encontro, que eles conseguiram entender, por exemplo, que as violências
que sofriam no âmbito institucional, não eram violências individuais que re-
verberam, por exemplo, numa lógica de aceitação de um fracasso. Um fracasso
que é construído e pautado numa ideia de mérito. Mas que essas violências
eram estruturais porque os relatos de dor eram muito semelhantes. E aí veja
como eles se movem do sofrimento individual, individualizante, dessa sensa-
ção de fracasso, de deslegitimação, para uma nova lógica de reconhecimento,
a qual funda uma práxis revolucionária.
Essa nova lógica de reconhecimento estrutural, a qual busca nome-
ar estruturas opressoras, nos coloca em posição de resistência. Então, pensei
tudo isso. E como que o encontro, algo que nós também falamos aqui, esse
movimento, esse reconhecimento, essa restituição, é um espaço também de
reconstrução epistemológica, uma vez que nós estamos falando sobre novas
epistemologias. Novas epistemologias que se baseiam no “sinto, logo existo”,
na teorização e na intelectualização. Vinícius fala de uma nova gramática, da
fundação de uma nova gramática ontológica em hooks e que isso tem a ver
com a reconstrução do ser. E foi isso que os estudantes fizeram, esse foi o mo-
vimento. E por isso eu gosto de dizer: a ocupação é para vida. Nada mais foi
como antes, nem para eles, nem para mim.

Vinícius da Silva 129

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E aí, Vinícius chama a atenção: é possível pensar em processos de
reconhecimento? João traz um questionamento muito importante: e quais
afetos abrem movimentos de ruptura? Eu penso ainda muito sobre isso na
tese. Quais foram os afetos que moveram os estudantes a essa ruptura? E eu
cheguei a perguntá-los muitas vezes sobre isso: “vocês pensaram sobre isso an-
teriormente? Vocês se organizaram para construir essa resistência?” Aí eles me
diziam: “não, a gente foi combinando pelo WhatsApp. A gente estava afetado
por muitas coisas, a gente estava incomodado por muitas coisas”... E a fala
de João me traz esse alumbramento porque é exatamente o que João fala que
os estudantes me diziam. A gente se efetiva construindo, a gente se efetiva se
movendo, a gente se efetiva na ação. O amor é uma ação. E pensei muito, Vi-
nícius, na nossa discussão sobre esperança. Pensei muito na cultura dos povos
indígenas nessa forma de experienciar o tempo, que ela não é linear, é sobre
outras lógicas, que vai dizer que nós só temos o presente. Nós só temos o hoje,
esse dia não volta mais, esse momento não volta mais, esse encontro não volta
mais. Ele reverbera, ele semeia, ele faz florescer, mas ele não volta mais. E é
isso que o João está dizendo, a gente se efetiva construindo, a gente se efetiva
se movendo. E a esperança é uma ação no presente, assim como o amor é
uma ação no presente. Afetações que vão construir novos amanhãs. Afetações
que são fincadas no presente. Afetações que são resultados dos encontros, das
alianças, dos reconhecimentos.
E aí, anotei isso tudo. Quando o Vinícius traz a questão do encanta-
mento, que eu queria dizer que é uma reflexão muito cara para mim, que eu
vou construindo com Simas... muito inspirada por Luiz Antonio Simas, que
é um professor e intelectual que tem os pés fincados no presente, pensando
muito na experiência marginal com o Benjamin, “quem faz as histórias são os
oprimidos e é importante escovar a história a contrapelo”. E o Simas então
pensa que são as sabedorias das encantarias, quando ele conceitua o encan-
tamento como aquilo que dribla a morte, como aquilo que restitui a vida, a
partir dessas sabedorias africanas e indígenas. Ele também está falando de uma
outra epistemologia, apesar disso estar diluído em seus livros, a meu ver.
Eu trago essa reflexão para a tese para dizer que é nesse processo de re-
construção do ser que, para mim, nasce uma teoria sobre a cura. Eu tenho dito
muito isso, como eu vejo em bell uma teorização sobre a cura, sobre como

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a gente se cura. Reconhecendo toda essa estrutura opressora, reconhecendo
essas estruturas opressoras, reconhecendo as despotencializações que a gente
vai sofrendo ao longo da vida nesse sistema patriarcal sexista, heterossexual,
racista. E como que a gente pode se repotencializar, reconstruir-se ontologi-
camente. Considerando também uma reflexão que Matheus trouxe, sobre a
fragmentação da psique, falo sobre a colonialidade como esse projeto que cin-
diu a nossa psique. E a teorização sobre a cura é um caminho de reconstrução
do ser, e por isso hooks também traz a reflexão sobre integridade. Quando
João traz Hegel, convoca Hegel e fala do Espírito, imediatamente eu penso em
hooks falando sobre integridade. Dentro desse arcabouço há uma teorização
sobre a cura, que pensa o amor como esse caminho de reconstrução ontológi-
ca. E hooks vai dizer que o corpo, a mente e o espírito precisam sim se inte-
grar. É essa integridade que talvez promova a reconstrução ontológica do ser.

João Pedro: Você poderia, por favor, repetir a discussão feita a partir
da minha fala sobre Hegel e sua relação com hooks?

Luana Luna: Então, quando você convoca Hegel para falar sobre es-
pírito, sobre a fenomenologia do espírito, eu conectei essa reflexão que você
trouxe com a reflexão que hooks faz sobre a integridade. Num arcabouço dessa
teorização sobre a cura, que para hooks talvez, me corrijam se eu estiver errada e
ponderem aqui comigo, seja a integridade esse caminho de reconstrução ontoló-
gica do ser. E que essa integridade é a conexão entre corpo, mente e espírito – o
que a lógica colonial racista tenta tanto aniquilar quando infere sobre a nossa
desumanização. A busca pela integridade entre corpo, mente e espírito, é um
caminho de cura. Então eu me lembrei muito disso. E mais uma vez, sinto, logo
existo, é preciso sentir. Porque se a gente não sente, a gente não se move para essa
busca. E, finalizando, falo sobre a integridade como aquilo que restitui a vida. A
integridade como aquilo que nos repotencializa. E aí o amor é esse caminho, as-
sim como o encantamento. O encantamento é esse caminho. Convoca-se essas
sabedorias ancestrais negras e indígenas para cena, para centralidade dessa epis-
temologia fincada na experiência marginal. O encantamento é aquilo que dri-
blou a morte, que não aceitou morrer. O encantado é o que não aceita morrer.
Ele se modifica, ele se reinventa. E ontem eu me lembrei, lendo bell novamente,

Vinícius da Silva 131

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para finalizar essa reflexão, que o Simas tem uma frase, fugindo também das
lógicas binárias, que diz: o contrário da vida, não é a morte, mas o desencanto. Essa
frase é muito potente. Aí eu fiquei pensando: o contrário do amor não é o ódio,
mas a desumanização. Talvez seja isso. Se o contrário da vida não é a morte, mas
o desencanto, como aquilo que nos despotencializa, o contrário do amor não é
o ódio, mas a desumanização que legitima violências, que legitima todo tipo de
violência sobre os nossos corpos.

Vinícius da Silva: Eu gostaria de fazer uma última observação: é por


isso que eu discordo quando o Renato Nogueira fala que a gente ama porque
estamos vivos, porque não é nessa ordem de acontecimentos que as coisas de
fato acontecem. A hipótese que eu levanto neste livro é: a gente ama porque
temos uma extrema necessidade de reconhecimento. Porque o amor forne-
ce as condições para a humanização. Ele nos torna humanos, como diz o
Henrique Vieira. O que é tornar alguém humano? É fornecer as condições
completas de reconhecimento para que esse sujeito seja de fato um sujeito.
E aí eu parafraseio o que a Butler e a Athena Athanasiou, em Dispossession,
vão dizer: não se trata de ignorar, por exemplo, as condições atuais de reco-
nhecimento, mas sim de questionar tais condições de reconhecimento justa-
mente porque são elas que produzem essas precariedades ontológicas porque
são condições incompletas. E como a gente faz isso? Não é uma resposta que
a gente tem que dar aqui. Para mim, esse é o grande ponto. A gente não ama
porque estamos vivos. A gente ama porque a gente precisa de reconhecimento
e, consequentemente, amamos porque estamos vivos, mas só estamos vivos
porque fomos reconhecidos como tais... parece um ciclo infindável, onde não
há começo, nem fim.

Matheus Chagas: Eu fiquei pensando aqui sobre a fala de João e a


fala de Luana. Mas a fala da Luana me lembrou bastante as discussões sobre
esperança que o Freire faz. Na verdade, esse diálogo todo me fez pensar muito
sobre a questão da esperança e do amor. Mas do amor como uma – não sei se
vou falar certo o título, mas como você chama aquele texto que você publicou
no Medium – o amor como uma estratégia política. Não é esse o termo que
você usa?

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Vinícius da Silva: Que é inclusive a introdução deste livro.

Matheus Chagas: Sim. E aí, vamos pensar sobre conflito, sobre dis-
puta. Disputar um significado sobre essa discussão sobre amor. Disputar um
significado sobre amor dentro de uma sociedade que é capitalista, que é racis-
ta, que é patriarcal, enfim. E como eu acho importante quando você enfatiza
que discutir amor não é puramente discutir afeto, mas discutir amor é discutir
também novos projetos de sociedade. Eu gostei muito de quando a Luana
trouxe o relato do aluno que perguntou “será que a gente não está falando
muito sobre amor?”. Porque eu lembro que quando eu tive contato com essa
discussão pela primeira vez eu pensei a mesma coisa “como que a gente vai
falar sobre amor em uma sociedade que a gente não tem tempo para isso?” E
logo nesse momento, eu conheci aquele texto da hooks, no qual ela fala da
teoria como espaço de cura.
E ela vai se perguntar: por que a teoria é um lugar de cura? Porque
quando eu teorizo, eu paro de reagir, só reagir... e eu começo a planejar, co-
meço a construir um projeto. Começo a não só receber aquela violência e
reagir a ela, com os movimentos, com os protestos, mas eu paro para refletir
sobre aquilo e projetar uma outra sociedade, um fazer outro. E, a partir disso,
ela constrói uma relação entre teoria e prática. E eu sempre volto à nota de
rodapé do capítulo 3 de Pedagogia do oprimido, na qual Freire fala que não se
faz revolução sem amor: “Cada vez nos convencemos mais da necessidade de
que os verdadeiros revolucionários reconheçam na revolução, porque é um
ato criador e libertador, um ato de amor. Para nós, a revolução que não se
faz sem uma teoria da revolução, portanto, sem ciência, não tem nesta uma
conciliação com o amor, pelo contrário. A revolução que é feita pelos homens
o é em nome de sua humanização, que leva os revolucionários a aderirem
aos oprimidos se não a condição desumanizada que se acham neste.” Então,
quando a Luana fala que o amor é o contrário da desumanização, eu lembro
muito disso, porque o Freire vai falar aqui na Pedagogia do oprimido e mais
em Educação e mudança o seguinte: o amor é uma tarefa do sujeito. Ele vai
trazer várias considerações do que é amor e do que é o contrário do amor, que
se fala do desamor, mas é a desumanização. O amor é um ato de coragem, é
um compromisso com as pessoas, é um compromisso com os oprimidos. É

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a causa da libertação dos oprimidos. Ele vai falar que não se liberta, não se
constrói os processos de humanização sem amor aos sujeitos, portanto não se
pode pensar em educação sem pensar em amor. Isso é o amor como estratégia
política, como estratégia radical para revolução.
E é isso que eu vejo muito no que o Vinícius vem fazendo e falando,
que é localizar a discussão do amor não na dimensão do afeto apenas, mas
numa dimensão de transformação social, numa dimensão de transformação
radical da sociedade. Então eu acho que quando a gente está falando sobre
amor e sobre esperança também, voltamos a quando Freire vai dizer: “nossa
esperança é nossa necessidade ontológica”. Se a gente não tem esperança, quer
dizer que alguma coisa está errada, significa que a gente está desordenando a
nossa necessidade ontológica. Se a humanização é a vocação, às vezes a espe-
rança é a necessidade. O oprimido luta pela sua humanização, ele está lutando
porque ele é esperançoso. Essa esperança não é simplesmente a espera, é uma
espera que reivindica uma ação. Eu gosto muito quando ele diz: “eu espero
na medida em que eu começo a buscar, pois não seria possível buscar sem
esperança.” Então é mais uma vez uma relação de que eu não vou reagir só a
violência, eu vou teorizar aquilo dali, eu vou buscar a minha humanização e
nessa busca é como se concretiza a esperança. A esperança de que o Freire vai
falar que é o desejo imperativo do sujeito.
Então, quanto mais a gente vai vendo essas notícias de violências, e as
violências às quais nós somos submetidos, esse processo de desumanização a
qual nós somos submetidos, a gente encontra no amor e na esperança, uma
possibilidade de cura. Mas essa cura não é simplesmente como: eu estava tris-
te, eu estava violentado e agora magicamente me curei. Eu a construo com
os outros, há uma dimensão coletiva. Vou recuperar o “Vivendo de Amor”,
embora eu ultimamente não goste mais de trazer esse texto; não porque ele
seja ruim, mas porque começou a ser utilizado de uma forma muito esvaziada
em alguns espaços. Neste texto, hooks fala sobre o amor interior. E esse amor
interior não é o amor que ela tem por ela, é o amor que ela constrói com o
outro, em comunhão com o outro. Então não tem como pensar a revolução
sem amor e não tem como pensar a revolução sem esperança.
Corrijam-me se eu estiver errado. Eu gosto muito de quando a Luana
fala sobre encantamento, porque é o que me faz sair desse estado de inércia

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e desesperança. E não é um idealismo, é compreender que essas relações de
amorosidades, essas relações de esperança, elas se dão aqui, por exemplo. A
gente se sente por uma vontade que não é só uma vontade, mas também é
uma intenção – lembrando novamente hooks. Não é uma esperança que é
imóvel, inerte, é uma esperança a partir da busca, e uma busca que acontece
com os oprimidos. Então eu lembro que eu ficava muito impressionado quan-
do o Vinícius falava sobre outros amanhãs porque até então eu não pensava
que era possível estar discutindo sobre isso considerando a nossa conjuntura,
por exemplo. Como é que eu vou falar sobre amor, falar sobre esperança com
essa conjuntura? Mas é justamente por essa conjuntura que a gente tem que
falar sobre amor e se a gente não está pensando em falar sobre amor agora, aí
sim tem alguma coisa errada. E em nossa sociedade, todos os grandes movi-
mentos sociais por representação e justiça promoveram a ética do amor, como
sugere hooks.

Vinícius da Silva: E você toca ainda numa discussão que eu estava


fazendo com a Luana a um tempo atrás, e eu convidei a Helena Vieira para
compor um dos diálogos desse livro justamente por isso, que é a questão da
esperança. A Helena fez uma fala, no início deste ano, muito interessante so-
bre o futuro. Eu gosto da discussão que a Helena traz porque acho que ela tem
muito pé no chão para discutir isso, que é um pouco do que eu também faço,
e eu vou aqui reconhecer também o meu trabalho, que é justamente pensar
no futuro a partir do agora. E ela falou uma coisa muito interessante, que eu
vou abrir o documento para ler para vocês. Eu vou ler um trecho da fala dela.
“Se tem uma palavra que possa nos caracterizar bem ou caracterizar melhor o
nosso tempo, é esgotamento. Temos sido frequentemente incapazes de pensar
o futuro, alguns de nós... De nós não, eu espero, querem voltar para 64 nos
tempos da ditadura; outros querem voltar para dez anos atrás, mas muito
pouco queremos discutir o futuro. Esse fenômeno profundamente esgotado,
desesperador, desesperançoso, é talvez a maior marca desse nosso período. E
justamente alguns tendem a dizer que a esperança seria um sentimento para
se contrapor a esse período. Eu discordo. A esperança é uma paixão triste. A
esperança é a certeza de um final feliz. A esperança é absolutamente coloni-
zada. Os europeus têm esperança. Para nós, esse sentimento não cabe. Nós

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temos nossa vida constituída a partir de inúmeras mortes, da história, do fim
de inúmeros mundos, do fim de inúmeros povos, e justamente por isso não
nos cabe ter esperança, nos cabe imaginação. E nesse sentido, pensar a imagi-
nação é pensar que temos de encontrar alguma coisa que ainda não está aqui.
Se imaginar uma saída é o que nos resta, significa que ela não existe. Significa
que não há saída, a não ser aquela que nós vamos ter de inventar.”
Nesse sentido, à luz do pensamento de Freire, eu gostaria que a Luana
comentasse sobre a disputa do termo “esperança”. Esperança, além de ser um
termo que também está em disputa, assim como amor, e nesse livro com-
preendo esperança enquanto disputa, não necessariamente enquanto esperar
algo. A Luana tem uma perspectiva interessante sobre isso. E é mais ou menos
isso que eu quero disputar com a Helena, quando a gente for dialogar em
dezembro. A gente vai dialogar sobre alianças, esperança e futuro. Então, eu
queria ouvir um pouco mais da Luana nesse sentido.

Luana Luna: A discussão da esperança. Quando você trouxe essa pro-


blematização que Helena nos coloca sobre a esperança, que não caberia espe-
rança, e a gente se debruçou um pouco sobre isso e eu voltei ao pensamento
de Daniel Munduruku, um escritor, um indígena, um professor, um pesquisa-
dor, com mais de 50 livros publicados. É pouco falado, a gente fala pouco, eu
acho, do Daniel, mas enfim. O Daniel fala muito sobre a herança do tempo
dentro da cultura munduruku e ele conecta esperança ao presente. Mais uma
vez entendendo que a percepção de tempo para os povos indígenas não é
uma percepção linear como a lógica ocidental opera. A percepção de tempo
se baseia em ciclos e sobretudo no presente. Um escritor muito importante,
que tem uma produção fantástica e pelas questões do racismo que sabemos,
invisibilizado. E dos meus encontros com o Daniel Munduruku, nesses cami-
nhos de retomada da minha identificação indígena, ressignificando as minhas
experiências de dor e ressignificando a figura paterna na minha busca pela
teorização dessa dor que eu chego ao Daniel. E o Daniel fez uma reflexão que
para mim foi muito importante, que eu fiquei muito emocionada quando ele
disse pensando então o tempo presente, o futuro e o passado, fazendo essas
conexões. E ele disse assim: o passado é um lugar de libertação, o passado
precisa ser um lugar de libertação. E eu guardei essa frase. E ele se pergunta:

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“como que a gente ressignifica o passado? No presente. É vivendo o presente,
pois nós só temos o presente.” E essa reflexão que ele faz sobre o presente é
baseado numa relação de experimentar o tempo de forma não linear. Porque
para os indígenas, a relação com o tempo não se dá como na lógica ocidental,
de um tempo linear, cronológico. Os povos indígenas pensam em tempo pela
questão dos ciclos, respeitando a terra, a natureza, portanto os ciclos. E eles
têm uma percepção de que nós só temos o presente. É neste momento que
estamos vivendo que a vida se realiza. E é preciso viver o presente porque esse
dia não volta mais. E é então pensando nessa relação com o tempo dentro
de uma lógica que não é hegemônica, não é linear, não é cronológica. E ele
conversa com Freire, ele cita Freire, se inspira em Freire e ele vai dizer que a
esperança é um tempo presente. A esperança é o que construímos no agora. A
esperança, portanto, é uma ação. A esperança é uma intervenção. Não existe
futuro, essa ideia de futuro, não há. A esperança é o tempo presente, é o que
estamos fazendo agora. Trazendo essa relação, mais uma vez a relação com a
natureza. Isso é a esperança. A esperança é, portanto, um verbo, a esperança
não é aquilo que nos apassiva. A esperança é a vivência. E por isso, então, essa
relação com o passado que se realiza neste tempo presente. O passado como
um lugar de libertação. Não como aquilo que nos aprisiona, mas como aquilo
que nos liberta no agora. E eu acho isso muito fantástico. E tem muito a ver
com o que acabamos de dizer, pensando em hooks. A teoria como um lugar de
cura e de autorrecuperação, como Matheus trouxe a reflexão do texto de bell.
Que é esse lugar de autorrecuperação, ele emerge a partir da identificação da
dor. E por isso, a teoria é um lugar de autorrecuperação. A teoria é um lugar
de cura. Teorizar a experiência, mas veja: teorizar agora. Teorizar neste tem-
po. Teorizar a experiência então é teorizar a dor, entender que a teoria é um
lugar de cura. Isso é esperançar a vida. E mais uma vez pensando na minha
experiência, do meu pai, um homem indígena que não se reconheceu indíge-
na, que sofreu muito racismo. Que foi muito desumanizado, que foi muito
brutalizado, que amargou com essa dor, que morreu com essa dor. Viveu com
essa dor, morreu com essa dor. Levou essa dor para dependência porque não
conseguia nomear essa dor, não conseguia nomear essa dor. Não conseguia se
reconhecer, não conseguia se conectar. E hoje eu, movida pela esperança como
uma ação, posso significar esse passado nesse tempo presente e me libertar

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dessa dor. Então, a esperança é algo que se realiza no agora. E o passado é um
lugar de libertação quando a gente tem a oportunidade de teorizar a dor, e de
entender que a teoria é um lugar de cura. Mas a gente também não está falan-
do da teoria que se dá dentro da universidade, não é isso. É a elaboração da
dor. E que tudo isso tem a ver com falar de amor. Eu anotei isso aqui porque
foi tão importante, para mim, a fala do Matheus. O encantamento é aqui o
que nos devolve a potência de vida. E se a gente não está pensando sobre tudo
isso, nomeando, se a gente está abrindo mão então de disputar essa narrativa,
e desistir de disputar essa narrativa é desistir de falar sobre o amor. E se a gente
não está fazendo isso, está voltando para o ciclo da desumanização, para o
ciclo da demonização e para o passado como lugar de aprisionamento. E aí
a gente não ama porque está vivo, a gente ama por reconhecimento, como
Vinícius falou, a gente ama para se libertar.
Eu gosto muito de convocar essa palavra, liberdade. A gente ama para
se libertar. O amor é um caminho de libertação. E por isso que liberdade,
educação como prática de liberdade, é algo tão caro no pensamento de bell.
Não existe possibilidade de a gente pensar em uma educação democrática se
a gente não exercita a liberdade como uma prática. Não existe a possibilidade
de a gente pensar em cura se a gente não rompe com os silenciamentos. E
tudo isso é importante para erguermos a voz. Erguer a voz é uma metáfora
para a liberdade. Pensar na esperança que se realiza no presente que faz a gente
se mover, que faz a gente se curar, é romper com o silêncio. É romper com a
invisibilidade. É caminhar no caminho do reconhecimento, da recuperação.
E isso é libertário. E é liberdade que nos faz expandir, não é isso? Porque eu
fico pensando muito em psicanálise. E a bell está dialogando com a psicaná-
lise o tempo inteiro, e por isso eu gosto tanto de dizer pro Vinícius que a bell
está construindo uma teoria sobre a cura. A psicanálise entende a linguagem
como esse lugar preponderante para identificação e nomeação. A psicanálise
trabalha com a linguagem porque a psicanálise entende que a linguagem é o
que nos liberta. Se a gente não fala, se a gente não rompe o silenciamento, a
gente não consegue se libertar. Então, olha a potência de dizer, por exemplo,
erga a voz. Erguer a voz é uma metáfora de ruptura com violências, de ruptura
com a invisibilidade. Porque aquilo que não se anuncia, continua invisível.

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Vinícius da Silva: É justamente por isso, inclusive, que a bell vai falar
que é preciso que nos movamos para além da dor. Não basta somente compre-
ender isso. É preciso tornar palatável, material, algo que possamos tocar, para
que possamos nos movimentar para além disso. Eu gosto muito de quando a
hooks se pergunta: como é que nós lutamos contra algo que não tem nome?
E isso, para mim, é fundamental nesse processo de teorização. É aí que entra
a teoria como uma prática de cura, enquanto uma reconstrução ontológica,
uma reconstituição de si. É por isso que eu digo que o amor é o que permite
que sejamos quem nós somos.
E eu gosto muito também de quando a Butler e o Preciado vão dizer
que a identidade não dá conta da vida. E o que significa isso? Significa não dar
conta de algo. Ponto. É sobre como esses processos de nomeação funcionam.
E que funcionam de um modo a infligir, censurar, criar barreiras, restrições
linguísticas, de forma a tentar mutilar essa multiplicidade do ser. Por isso, eu
estou falando que o sujeito de hooks é um sujeito autoconsciente. Porque ele
se movimenta contra isso, ele se autodefine por meio de uma autoconsciência,
e se distancia dessa gramática normalizadora, essa gramática reguladora. É um
sujeito que não existe na mentalidade presente. Porque ele não pode existir.
Mas que a disputa, que essa esperança enquanto disputa é justamente um
contexto no qual o sujeito pode existir. O sujeito é a base da teoria do amor,
que é uma teoria também sobre reconhecimento.
Eu digo que, inclusive, a gente conversa sobre isso – não é, Luana? –
que a ética do amor é também uma ética da vida. Ela permite também essa
reorganização, esse redirecionamento do sentido que é dado ao ser. E se o ser
não pode ser o que é, o que resta desse ser? Resta o corpo que é o reduto da
violência patriarcal capitalista e imperialista que atravessa constantemente as
nossas subjetividades, como vai dizer a hooks. Exatamente por isso, eu gosto
muito da discussão que a Grada Kilomba faz sobre a voz, sobre essa passagem
do objeto ao sujeito, que é influenciada pela discussão de hooks. Trata-se de
uma discussão que diz justamente sobre como essa negação à fala opera; e
quando a gente fala sobre falar, a gente não está falando de atos de fala. A
gente está falando de condições de existência, de condições de aparecimento.
Esse é o grande ponto. E a gente tem uma grande tendência no debate público
brasileiro de reduzir o termo fala ao ato de fala, como se não fosse um discur-

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so, como se não fosse uma prática de aparecer, uma prática de autoafirmação.
Isso, para mim, é a maior falha que impossibilita a plena compreensão do con-
ceito do lugar de fala, por exemplo, que é um conceito que, na minha opinião,
foi mal inserido e construído pelo debate público brasileiro.
É esse sentido da discussão de hooks e Kilomba que diz que a gente tem
a fala enquanto a condição de existência do nosso ser. Por isso, Kilomba retoma,
por exemplo, a memória da Anastácia, uma mulher escravizada. E a máscara
do silêncio, como esse silêncio é uma negação da existência desse sujeito, uma
objetificação. Por isso que, para hooks, a fala é o que garante a passagem do
objeto para o sujeito, que garante a tomada de consciência desse sujeito. E
falando e assumindo essa fala como um ato de resistência, a linguagem aparece
como um lugar de luta, propriamente dizendo, que o sujeito pode ser de fato
ou pode vir a ser, o sujeito é algo que vem a ser, não é um fato, é um processo
de vir a ser, é um devir, como diz Butler. E fazemos isso para que ele possa vir
a ser quem ele de fato é, nos seus próprios termos e a partir das suas próprias
condições de aparecimento e de definição. Esse é o grande ponto que eu tento
compreender a partir do que a hooks pensa sobre o sujeito.
Como costumamos dizer, hooks não é uma autora que está pensando
em proposições fixas. Ela não está postulando nada, ela não está pensando em
postulados fechados. Ela está pensando caminhos, e pensar caminhos é algo
muito simples, relativamente dito. Não, não é algo simples, desculpa. Pensar
caminhos é algo que é importante para formulação da teoria crítica de hooks
porque isso torna a leitura um pouco mais fácil, mas torna o estudo muito
difícil. Porque existe uma metodologia de produção de conhecimento que
vai estar em voga na obra de hooks que coloca uma gama de barreiras para
a gente que estuda o seu pensamento, o que não é uma coisa ruim porque
aproxima a obra do grande público, que é um dos grandes objetivos de hooks,
mas impossibilita nossa real compreensão do que ela está dizendo. Por isso,
eu tento realizar um exercício de análise minuciosa de cada formulação mais
complexa de hooks para tentar entender o que está por trás disso. E é através
dessa análise que a gente chega à conclusão de que a escrita de hooks é in-
fluenciada pela psicanálise, pela teoria crítica, pelos escritos de Foucault, pela
religião, pelo budismo, por diversas teorias que formam essa multiplicidade
do ser que é hooks.

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É por isso que eu acredito, inclusive, que hooks não disputa as bases
fundadoras da identidade. Ela vai discutir identidade, estética, sujeito. Ela não
vai tentar pressionar as bases em alguns momentos de sua obra, embora em
outros ela o faça, porque o que importa para a gente é entender como as coisas
se tornaram a ser o que são. E não o que as coisas são, de fato, em sua origem.
É por isso que eu não tento responder as perguntas “o que é o sujeito?”, “o
que é, de fato, o amor?”. Porque quando a gente pensa que a gente sabe o que
é algo, é que a gente não sabe, de fato, o que ele é. A gente não está nem perto
da epistemologia. E quando a gente tenta responder o que é alguma coisa, a
gente nega de fato o que essa coisa realmente é. Por isso que eu acho também
– e aí se trata de uma proposição que eu deixo em aberto – que a autodefi-
nição de hooks é uma autodefinição desse movimento propriamente dito de
permitir com que o sujeito se autodefina de acordo com seus próprios termos.
Porque se a definição é, por natureza, limitadora, nada mais adequado do que
deixar que a própria pessoa se autodefina, que ela vai fazer isso, pelo menos,
nos próprios termos. A gente só conhece o que é, de fato, definido. Embora as
coisas e nós mesmos sejamos muito mais do que as nossas definições, os nossos
nomes evocam algo, é a partir dos nossos próprios termos que a gente chega
perto de conhecer tudo que a gente realmente é.

João Pedro: Esta foi a fala perfeita para eu discutir o que queria. Por-
que eu vou falar justamente do sujeito. Primeiramente, o sujeito, a consciên-
cia, o sujeito enquanto consciência. Ela, na minha visão e de muita gente, não
é capaz de se autoconhecer plenamente. Porque existe uma coisa chamada
desejo. E qual é a característica mais pulsante do desejo? É o fato de ele ser
um afeto desorganizador. Ele é o que nos impulsiona à mudança, mas ao
mesmo tempo desorganiza as próprias condições que a mudança vai agir. O
absoluto é contingência, é o desejo. Apesar de ele ser uma força que move, ele
produz condições de completa contingência. É impossível o sujeito se auto-
definir. Porque a própria identidade desse sujeito é mediada por esses desejos.
A identidade desse sujeito é sempre algo que vem de fora. E a identidade é
emersa de universalização. E o que é uma identidade? É algo que eu, enquan-
to sujeito, intitulo e faço uma adesão para conseguir me identificar como
multidão, como algo que me excede, que outras pessoas também compar-

Vinícius da Silva 141

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tilham. A identidade é um elemento universal, de universalização. Então, o
problema, essa coisa da identidade, da relação sujeito-identidade, é que, como
Vinícius disse, a gente sabe que ela é, por definição, algo negativo. Ela precisa
limitar para poder se definir como identidade. E ela é universal, então na
identificação perde-se suas particularidades. A identidade é um conjunto de
características universalizadas -- como a raça, não no sentido social, mas raça
no sentido biológico, como o cachorro. A gente identifica o cachorro a várias
raças e tem características que unificam essa raça, mas ao mesmo tempo que
cada cachorro é uma singularidade dessa raça, ele é uma expressão única dela.
Então, a relação entre sujeito e identidade é um pouco conflitante. Ela seria
quase uma relação entre a estrutura e o sujeito, uma reposição desta relação,
mas em termos subjetivos. Porque o sujeito, subjetivamente, adere a certas
identidades, ele faz certas identificações de si e de outros e ele se sujeita a certas
identificações. Então, são identificações que ao mesmo tempo se produzem
enquanto regras gerais, universais, mas produzem um sujeito também que em
referência a essas identidades.
Este é o movimento entre o sujeito e a cultura. Então, uma coisa
interessante de se pensar é o sujeito que consegue se autodefinir, se auto iden-
tificar. Mas ao mesmo tempo, nesse sentido, o que implode é a própria ideia
de identidade. O que implode aqui quando eu faço esse movimento de dar
ao sujeito as condições para ele próprio se auto identificar e se auto univer-
salizar, é a implosão do próprio universal, porque o sujeito, quando faz isso,
está colocando suas características particulares. A gente tem aí o processo de
fragmentação da própria identidade. E isso é uma grande questão para a mo-
dernidade, para todos. A gente pensa aí o mundo se desmanchando e um dos
elementos mais importantes desse desmanche é a completa fragmentação das
identidades. Este é o primeiro ponto.
O segundo ponto: o sujeito é um processo. O sujeito é um devir.
O que isso quer dizer? O sujeito tem, sim, características que o efetiva, mas
que ele produz outras o tempo inteiro, no seu próprio movimento. Então,
a identificação do sujeito, se é que há alguma, é sempre uma identificação
que só pode ser feita a posteriori, na minha opinião. E por quê? Porque é
um processo que eu só consigo dar conta apenas no momento presente. Eu
não posso me identificar para frente. Uma identificação é isso. Não vejo

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nela um instrumento positivo, ele é um instrumento de negatividade. É um
instrumento de delimitação de uma certa padronização das características do
sujeito, mas que só podem ser feitas na minha opinião, do presente para trás.
Então, o processo de identificação do sujeito no presente é algo que estou
sempre debatendo.
O Vinícius me acompanha nessas reflexões. Eu estou o tempo todo con-
flitando com essa relação entre sujeito e identidade, justamente pelo processo de
identificação desse sujeito ser um processo de sujeição, mas ao mesmo tempo
um processo de libertação, porque quando o sujeito constrói uma identidade
nova que confronta as identidades estabelecidas, ele está se colocando em mo-
vimento de reterritorialização, um movimento de negatividade, mas um movi-
mento de negatividade que o empurra para frente, isso é interessante. Então, eu
chego à conclusão de que a nossa filosofia da mudança requer um horizonte de
negatividade, no sentido de criar o limite para essa transformação, que é o limite
de um certo tipo de projeto que precisa ser posto. O que eu disse antes? Que é
impossível para a filosofia postular um projeto de futuro, ela precisa, ao mesmo
tempo, postular objetivos no presente. E é justamente no horizonte desses obje-
tivos no presente que está, para mim, esse tema da identidade. De como agir em
relação a essa identidade. Enfim, queria levantar essa questão aqui, pois a acho
muito importante, principalmente porque a gente está pensando em afetos e são
esses afetos que desorganizam a identidade.
Por exemplo, a relação entre eu e meu gênero é sempre uma relação
de desorganização colocada pelo desejo. O desejo impulsiona a extrapolar as
implicações que estão pré-determinadas, sejam elas binárias ou não-binárias,
não interessa. Se eu penso em uma estratégia de identificação, meu desejo
desorganiza essa identificação, então eu preciso estar sempre reconstruindo.
Isso já me leva para um outro ponto: a identidade precisa acompanhar esse
movimento de desorganização. Ela precisa ser uma “classificação” que se auto
implode. Então, há uma questão que eu coloquei aqui para o Vinícius que,
para mim, eu tenho pensado estratégias epistemológicas de pensar formas de
discussão sobre o conhecimento que se auto implodem o tempo inteiro, que
se reconstituem em suas próprias bases. Isso impossibilita a tarefa da filosofia
de postular uma epistemologia, mas entende a epistemologia também como
um processo de vir-a-ser.

Vinícius da Silva 143

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Para mim, a relação da identidade é essa, de reterritorialização ou de
territorialização, não de reposição. A gente está colocando aqui um processo
em que existe um negativo, mas que é um negativo que empurra para frente.
Eu acho que é importante recuperar a ideia de negatividade, à revelia de De-
leuze, em que ele fala e que com certeza me daria um tapa se eu falasse isso
perto dele. Porque a negatividade é justamente o que possibilita a construção
da singularidade, até porque a singularidade é uma delimitação em relação
ao universal. Quando eu dou ao indivíduo a possibilidade de construção do
universal e digo para ele: “você é parte do universal, portanto, construa esse
universal”, eu implodo o universal de novo. Enfim, não sei se fez sentido, eu
sei que está contraditório, mas é por aí.

Vinícius da Silva: Bom, eu estou absolutamente de acordo com a


noção de que o sujeito nunca pode, enquanto consciência, de fato, saber ple-
namente de si. Eu estou super de acordo com isso, mas eu repito o que eu
sempre digo quando a gente conversa: a gente parte de paradigmas teóricos,
arquiteturas do conhecimento, diferentes para falar dos mesmos assuntos,
então a autodefinição não é impossível. Pelo contrário, a autodefinição, tal
como a teoria formulada nas epistemologias do pensamento feminista negro,
são movimentos de ruptura com essa dialética violenta que, por exemplo,
se materializa na obra do Hegel como a dialética do senhor do escravo. Esta
dialética violenta, em que não há uma consciência que, de fato, possa ser mol-
dada pelo próprio sujeito, plenamente. O mecanismo pleno de sujeição... não
acho que ele possa ser de fato alcançado. E essa não é uma preocupação de
hooks, inclusive. Mas existem, e eu consigo identificar, mas ainda é algo que
eu estou investigando, algumas contradições e alguns paradoxos nos processos
de autodefinição.
Uma delas é justamente sobre a questão que tu colocas, que é: “seria
então a autodefinição então impossível?” Eu diria que não. Diria que não,
porque a autodefinição não busca uma consciência plena do sujeito, mas ela
busca uma definição dessa consciência, ou desse sujeito, a partir dos próprios
termos. E a discussão sobre autodefinição, principalmente, no pensamento
de Collins e hooks, surge a partir do conceito de dupla consciência, de W. E.
B. Du Bois, um sociólogo negro pioneiro. E esse conceito explica justamente

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como a subjetividade negra é atravessada por uma dupla consciência. Uma
consciência que é ao mesmo tempo moldada por uma dialética que é estabele-
cida entre raças, digamos, uma dialética racial, mas que também compreende
a existência de uma consciência que é moldada pelos próprios termos. Audre
Lorde explica isso ao discutir vigilância. Existe uma dupla consciência que ar-
ticula mecanismos de sobrevivência, articula estratégias de resistência e ocul-
tação para que essas estratégias de autodefinição não sejam capturadas por um
sistema hegemônico, um capitalismo patriarcal, para usar o termo da hooks.
Isso nos coloca um desafio? Sim, mas também revela uma outra coisa. É algo
que o professor uã sempre diz, e aqui eu reforço a sua fala: as teorias ocidentais
do reconhecimento precisam ler as teorias raciais. Existe uma dívida histórica
em relação a esses paradigmas teóricos, de modo que eles nunca vão entender,
de fato, os reais dilemas e as contradições do reconhecimento sem trabalhar
com as teorias raciais. Sem entender a dinâmica do racismo e das ontologias
do racismo contemporâneas. É por isso que quando a gente volta para a ques-
tão do reconhecimento a partir do pensamento de hooks, falamos de autode-
finição. E a autodefinição não é um momento de uma consciência plena desse
sujeito, uma consciência plena, completa. Mas e se fosse, também? O que isso
coloca para a gente, em termos de desafio? Porque se formos colocar respostas
em uma formulação teórica que foi construída a partir de uma epistemologia
que não tem conhecimento, não tem compromisso com as dinâmicas raciais
do seu tempo, a gente nunca vai encontrar uma resposta para pergunta e para
os desafios que o estudo da autodefinição coloca para a gente.
Então, o que importa aqui, e eu digo isso e ressalto que essa é uma
investigação que eu estou ainda fazendo, estou escrevendo um artigo que não
vai estar no livro, mas vai ser publicado no ano que vem, é justamente como
que essas autoras articulam os próprios mecanismos e as próprias condições
de autodefinição.
A autodefinição, nesse contexto, surge como um mecanismo de poder
definir, mesmo que dentro dos limites da nossa gramática identitária e onto-
lógica, a nossa própria identidade. É por isso que eu e Helena Vieira sempre
trabalhamos com o poema Gritaram-me Negra, de Victória Santa Cruz, que
narra o movimento de resistência a uma interpelação do poder, mas também
de uma subordinação primária à interpelação do poder para assumir a própria

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identidade, através de um mecanismo de autodefinição e decodificação. Por-
que a gente só consegue pensar, inclusive, na própria autodefinição a partir
dos termos deste mecanismo hegemônico de sujeição que foram colocados
para gente. É preciso reconhecer isso para que consigamos criar estratégias
de resistência, estratégias de movimento, de autodefinição nesses termos. E
quando Collins vai trabalhar isso, em Pensamento Feminista Negro, que é um
livro maravilhoso, inclusive, todos deveriam ler, ela vai retomar a obra de
Lorde para falar como esses sujeitos são sujeitos de vigilância, são sujeitos que
estão o tempo todo vigilantes, pois eles precisam o tempo todo sobreviver, de
fato. Então, existe uma articulação dentro da consciência feminista negra a
partir do conceito de dupla consciência que vai entender essa vigilância como
a própria categoria formuladora da dupla consciência a partir da qual existe
uma adequação desse sujeito às linguagens, aos comportamentos, às manei-
ras de agir de um sistema de dominação para que esses sujeitos possam agir
a partir dessas estratégias de sobrevivência para que essa autodefinição não
seja captada, capturável. Trata-se de uma hipótese de pesquisa. Então, nesse
sentido, a autodefinição emerge como uma estratégia de resistência, a partir
da qual o sujeito pode, de fato, resistir à uma interpelação do poder para que
ele possa, minimamente, nos termos que temos, assumir a própria identidade.
Signifique o que isso significar. Esse processo é sempre um processo
coletivo. Por isso, eu acho que o postulado de Luana nos coloca algo impor-
tante. Ele nos informa justamente as condições pelas quais o sujeito aparece.
Porque quando o estudante diz e a Luana dá esse título a tese, que é “nós
somos resultado do nosso encontro”, nada mais é do que é nesse encontro que
o sujeito se admite como sujeito e que consigamos então articular a partir de
uma nova gramática da autodefinição, encontros menos opressores, menos
dominadores, encontros que articulem potências, que articulem afetos numa
definição espinosiana de afeto.
O segundo ponto da sua fala, João, nos leva à questão do processo de
formação desse sujeito. E eu estou totalmente de acordo, também. Isso é o que
está no pensamento de Hannah Arendt e no pensamento de Butler. O sujeito
só se reconhece como sujeito após a cena de sujeição/reconhecimento. Que é
quando ele consegue narrar a si mesmo e quando ele pode assumir os próprios
termos. Então, esse movimento de narrar a si mesmo que acontece após a cena

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de sujeição é o que está em jogo com a questão da voz libertadora de hooks,
que é o que a Kilomba vai discutir quando ela narra a passagem do objeto do
sujeito. Quando ele pode narrar, quando ele se narra compreendendo as dinâ-
micas de violência e de dominação que constituem a sua subjetividade, é que
ele pode de fato constituir novas cenas de enunciação, novas linguagens, no-
vos modos de aparecimento e, em último caso, que é o que a gente discute na
formulação de uma teoria de um amanhã, que ele possa de fato articular um
novo modo de estar no mundo que não seja articulado a partir de um sistema
de articulação. Isso é o que está em jogo. Agora, em relação aos caminhos para
se discutir isso, você coloca diversas contradições e diversos paradoxos que eu
acho importante a gente admitir no processo de construção que a gente está
discutindo aqui hoje.
Trata-se de um processo complicado, a gente não vai conseguir resol-
ver isso do dia para a noite. Não acho que a gente tenha que resolver nada,
inclusive. Só acho que nós temos que colocar as questões, fornecer caminhos
e, coletivamente, disputar novos sentidos. Eu acho que esse é o processo, esse
é o ponto central, tanto do meu livro quanto de tudo que a gente está dis-
cutindo em coletivo, nesta mutualidade, para usar o termo de hooks. É na
mutualidade que a gente vai conseguir encontrar, de fato, se estivermos bus-
cando, respostas, caminhos e novas maneiras de pensar sobre as contradições
que foram colocadas por velhas maneiras de pensar. Esse é o movimento do
pensamento que a gente tem que manter. Eu acho que esse é o movimento do
pensamento que a gente pensa também quando a gente discute autodefinição
e autoconsciência.

Matheus Chagas: Eu gostaria de retomar a reflexão de quando a Lua-


na fala sobre a questão das sabedorias ancestrais e, no começo da nossa con-
versa, o Vinícius falou sobre a questão do Eu e do Outro, um Eu que existe
sem precisar aniquilar o Outro. Isso me lembra hooks sobre autorrecuperação.
E eu vou ler algumas marcações que eu fiz nesse texto [Capítulo 4 – Erguer
a Voz]: “Eu chamo essa experiência de ‘autorrecuperação.’ Mas tive que viver
com esse termo para pensá-lo de forma crítica. Eu estava particularmente in-
decisa sobre a palavra ‘autorrecuperação’, a insistência contida nela de que a

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completude do ser – chamado aqui de eu – está presente, é possível, que temos
que experimentar, que é um estado para o qual podemos regressar. Eu queria
saber no meu coração se isso era verdade para o oprimido, o dominado, o
desumanizado, que as condições para a completude, o eu completo, existiam
anteriormente à exploração e à opressão. Um eu que pudesse de fato se res-
taurar, recuperar. Descartando a noção de que o eu existe em oposição a outro
que deve ser destruído, aniquilado (pois, quando saí do mundo segregado de
casa e passei a viver entre pessoas brancas e seus saberes, aprendi essa manei-
ra de compreender a construção social do eu), evoquei os saberes que havia
aprendido de pessoas negras do sul não escolarizadas. Nós aprendemos que o
eu existia em relação, era dependente, para sua própria existência, das vidas e
das experiências de todas as pessoas; o eu não como “um eu”, mas a junção de
“muitos eus”, o eu como a incorporação de uma realidade coletiva passada e
presente, família e comunidade.”
Este texto é fantástico. E eu acho muito interessante quando ela fala
sobre isso porque eu lembro do que a Kilomba fala sobre o trauma colonial,
que é o que faz com que as pessoas racializadas convivam com essa ferida, que
é uma ferida que nunca se fecha, que não cicatriza e está sempre sangrando,
o trauma colonial. E aí, quando eu li essa parte eu lembrei que Vinícius falou
no começo da discussão sobre esse eu que não precisa aniquilar o outro e eu
posso estar equivocado agora, mas acho que o Vinícius falou sobre ética do
amor, que essa ética do amor não precisava aniquilar o outro...

Vinícius da Silva: Sim, exatamente isso.

Matheus Chagas: Nesse mesmo texto, hooks afirma: “nenhuma mu-


dança radical, nenhuma transformação revolucionária poderá ocorrer nesta
sociedade - nesta cultura de dominação – se nos recusarmos a reconhecer a
necessidade de radicalizar a consciência em conjunto com a resistência política
coletiva. Quando falo sobre radicalizar a consciência, penso na palavra cons-
cientização, que implica muito mais do que a mera adoção de slogans politi-
camente corretos ou apoio a causas politicamente corretas.” E aí, ela foca em
outro ponto que eu acho fantástico, que é a questão do ser e da identidade. E
eu acho isso fantástico, queria que o Vinícius comentasse um pouco sobre essa

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questão do “eu”, porque eu vi que ele publicou um trechinho do livro uma vez
num tweet, mas no começo da discussão ele falou sobre isso também.

Luana Luna: Antes só de passar para o Vinícius, que eu também


quero muito ouvir o comentário dele, eu gostaria de compartilhar algumas
observações. Enquanto você estava lendo, eu lia também... e podemos traçar
algumas considerações: o caminho da autorrecuperação e de libertação nunca
pode ser individual. Esse é um dos fundamentos do pensamento feminista
negro. Trata-se de um processo individual, mas ao mesmo tempo coletivo
– a libertação para uma comunidade, de uma comunidade, de histórias que
foram interrompidas pela colonização, pelo contexto escravagista. E a gente
está, agora, neste tempo presente, esperançando essa libertação. Isso é muito
potente. Isso é incrível porque existe uma metáfora dentro da epistemologia
de terreiro, tal como eu nomeio, que é a metáfora da morte do renascimen-
to, Vinícius citou isso no início. Para os povos de terreiro, e toda vez que eu
penso terreiro, eu penso como um lugar de excelência, de reinterpretação,
de reinvenção das sabedorias africanas e indígenas, rompendo também com
essa invisibilidade dos povos indígenas. Então existe uma metáfora, que não
é só uma metáfora, é uma ritualística, é uma epistemologia, é também uma
liturgia, é uma ontologia de reconstrução do ser, que é a metáfora da morte
e do renascimento. Isso é de uma beleza tão incrível e tão sofisticada, de um
conhecimento tão sofisticado, porque não se pensa a morte, a partir da episte-
mologia de terreiro, como uma finitude. A morte não é o fim. O fim só se dá
quando há o esquecimento. O esquecimento, então, é a morte como um fim.
E o que a epistemologia do terreiro, na metáfora do renascimento, através da
sua ritualística iniciática, faz é libertar esse passado realizando neste presente
o renascimento, mas uma nova vida para uma comunidade e que aquela nova
vida represente libertação e continuidade. Então, a cada nova vida iniciada, a
comunidade se repotencializa. A comunidade não morre, a comunidade con-
tinua. Existe uma dimensão de um singular que nutre um coletivo e de um
coletivo que nutre o singular. E essas forças se retroalimentam, é o que a gente
chama de Axé coletivo, o Axé como força vital.
Então, como eu dizia para o Vinicius esta semana, o projeto colonial
racista, no que ele tem talvez de mais perverso, que é a desumanização e o

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extermínio, que não é só o extermínio dos corpos, mas de todo um cosmo
sensível, de toda uma cosmopercepção que é o arrancamento do território
comunitário, que promove o aniquilamento do ser. Porque veja, se a gente
compreende que não existe a morte como finitude, que a morte só existe
quando há o esquecimento, que o renascimento é uma pulsão de vida para
comunidade, que o renascimento é a libertação de um passado que se realiza
no presente, que o renascimento é a continuidade da ancestralidade porque é
pelo renascimento que você mantém a ancestralidade viva sendo rememorada,
quando você tem o arrancamento da comunidade e a dispersão em diáspora,
você então aniquila o ser.
Aniquila o pertencimento, você aniquilou um pertencimento, desti-
tuiu. Porque se a comunidade se reúne para rememorar, com o arrancamento
você aniquilou um pertencimento. Ou seja, houve uma interrupção de histó-
rias. O renascimento, então, é uma metáfora da continuidade dessas histórias
que foram interrompidas, que foram silenciadas.

Vinícius da Silva: O processo que Luana narrou agora por último é o


que o Muniz Sodré chama de semiocídio ontológico. É esse aniquilamento de
um sentido de um ser que antecede e fornece justificativas necessárias para um
genocídio físico desse ser. Não à toa, em Pensar Nagô, Sodré vai afirmar que o
semiocídio ontológico perpetuado pelos evangelizadores precede o extermínio
físico dessas pessoas. E quem são essas pessoas? São pessoas que são marcadas
por isso que Sueli Carneiro chama de “signos da morte.” São pessoas que estão
destinadas a morrer porque não estão inseridas em um enquadramento onto-
lógico específico que determine a sua vida enquanto uma vida que seja vivível,
enquanto uma vida que tenha que ser vivida de fato. Então, você aniquila esse
sentido semiótico, retirando o sentido do ser, e esse processo é o que a gente
chama de semiocídio ontológico.
É exatamente por isso que, para além de retirar o sentido, são retiradas,
também, as possibilidades autônomas da definição do sentido. O sentido
passa a ser dado por outro. Por isso, hooks, à esteira do pensamento de Freire,
discute a radicalização da consciência. Por isso, eu não consigo conceber a ideia
de uma autodefinição que seja, de fato, impossível, como eu apontei antes. Ela
tem as suas contradições, mas ela tem que ser no mínimo muito possível,

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digamos assim, porque a radicalização da consciência desses sujeitos, que são
sujeitos que sequer são reconhecidos como sujeitos a depender do contexto
que estamos falando, busca reconstruir e reconstituir a própria subjetividade
e definir as próprias gramáticas ontológicas. Isso é um processo complexo que
nos coloca alguns desafios, ainda.
O que estamos discutindo aqui são as ontologias da futuridade. São
questões que constituem um núcleo importante para a gente pensar nesse
novo tempo. E quando hooks fala sobre autorrecuperação, que é também
uma forma de autodefinição, ela está falando de um processo, inclusive, de
desmantelação dos sistemas de dominação. Porque a gente só vai conseguir
materializar, construir uma dialética do reconhecimento, tal qual hooks rei-
vindica em sua obra, a partir de outras condições organizadoras, a partir de
outras gramáticas ontológicas. E, para que consigamos construir e (re)conhe-
cer essas (novas) gramáticas ontológicas, é preciso haver uma desmantelação
dos sistemas de dominação.
É por isso que é importante fazer uma discussão que compreenda a
ética do amor enquanto uma ética da transformação, enquanto uma ética da
mudança social, porque sem esse horizonte revolucionário a gente não consegue
sequer discutir os novos mecanismos e as novas possibilidades de ser um sujeito.
O que é um sujeito hoje? Um sujeito hoje é algo que a gente compreende em
contraposição a um objeto. Esse objeto nem sempre é algo físico, pode ser outra
pessoa. Uma outra vida que não vai ser vista enquanto vida, mas que vai ser ob-
jetificada nesse processo. Isso parece ser uma condição necessária para as nossas
atuais políticas de reconhecimento. A partir disso, então, à esteira do pensa-
mento de Butler e de hooks, a questão que fica é: como a gente pode pensar na
radicalização da consciência do oprimido – para usar os termos de hooks – de
forma que isso constitua uma nova gramática ontológica?
Nesse sentido, eu gostaria de recuperar a discussão sobre afeto, a partir
do que foi apontado sobre a dimensão do amor que nos leva ao conflito. E por
que o amor nos leva ao conflito? Porque ele afeta as pessoas. E aí, é importante
retomar a definição do Espinosa sobre afeto: “Por afeto compreendo as afec-
ções do corpo pelas quais sua potência de agir é diminuída ou aumentada.” O
afeto pode ser tudo aquilo que atravessa um corpo – e aí acho que não cabe na
discussão discutir o que é um corpo...

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João Pedro: Um corpo mesmo. Qualquer coisa que tenha volume.

Vinícius da Silva: Certamente, mas eu não estou falando do corpo de


Espinosa, quero trazer ao debate a compreensão de corpo que precisa estar no
centro da discussão quando falamos de aliança. Então, o corpo, para além de
ser algo que tenha volume, é um reduto de precariedade. E, nesse sentido, He-
lena afirma: “apenas o encontro possibilita o afeto.” E essa definição de afeto
não está ligada a um sentimentalismo, mas à ideia de conflito. O corpo, então,
é produzido no encontro com outros corpos. E, nisso, hooks concordaria com
Deleuze. Apenas o encontro possibilita isso. Encontros pacíficos ou violentos.
Afeto é sobre atravessamento.
Neste diálogo, a noção de encontro está permeando todas nossas dis-
cussões porque estamos nos encontrando, de alguma forma, mesmo que re-
motamente, e é esse encontro que produz algo, uma materialidade. É no en-
contro que o afeto, de fato, existe e que nem sempre esse afeto vai ser um afeto
agradável, pode ser violência, pode ser uma violência ética, inclusive – que é
um termo que a gente discute a partir do pensamento de Butler –, e como
que essas afetações elas estão necessariamente diminuindo ou aumentando a
potência pelas quais um corpo pode agir. E é nesse sentido que a gente reto-
ma a discussão sobre o amor enquanto afeto, justamente promovendo uma
noção de amor que aumente a potência desses corpos. E o que é aumentar a
potência desses corpos? É fazer com que esses corpos se autorrecuperem, se
autodefinam e formem alianças porque são essas alianças que vão constituir
necessariamente o nosso amanhã. Aliança enquanto uma condição de vida. O
amor enquanto uma condição de reconhecimento, a aliança enquanto uma
condição para a vida. É nesse sentido que a discussão sobre afeto se insere na
ética do amor. É algo que eu ainda estou tentando formular e compreender.

João Pedro: Eu gostaria de abrir um parêntese para falar sobre as for-


mulações de Žižek, sobre amor. Ao escrever dois livros sobre o cristianismo,
Žižek está tentando recuperar as possibilidades revolucionárias do cristianis-
mo. Em que sentido? Após a morte de Jesus, ele ressuscita e é levado aos céus.
Porém, no dia seguinte, a partir de um derramamento do Espírito Santo, os
apóstolos começam a formar uma comunidade. E é uma comunidade base-

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ada na ideia de quê? Amor ao próximo. Então, você tem uma comunidade
formada onde os vínculos não são vínculos pensados em troca, ou em relação
de ganho, não tem nada disso. O objetivo é construir uma comunidade de
fiéis, onde age ali uma ideia de um reconhecimento da humanidade do outro,
enfim. Essa ideia que fica, que organiza essa comunidade, é a ideia do amor ao
próximo que é longamente discutida por Jesus Cristo.
O que Žižek está tentando fazer é justamente recuperar quais são as
possibilidades que essa ideia de amor ao próximo, de um amor absolutamente
radical, um amor que posiciona o outro como elemento privilegiado, como
que ele pode se organizar e como que ele tem uma potência para ser comple-
tamente anticapitalista. O capitalismo é justamente a negação de tudo isso.
Então, vivemos, hoje, em uma sociedade baseada no lucro e que se a gente for
considerar todo o movimento do capital a sua instalação, enfim... vou pular o
Weber aqui, porque o Weber fala sobre como o protestantismo ajuda no de-
senvolvimento do capitalismo, mas antes disso, tínhamos uma Igreja Católica
muito relutante tanto politicamente quanto filosoficamente em relação aos lu-
cros, em relação às ideias do trabalho, de uma dominação de um humano pelo
outro. Então, temos ali uma noção de anticapitalismo. você tem ali também
alguma coisa fervilhando que poderia ser um anticapitalismo.
O que importa para a gente, aqui, é pensar sob quais condições esse
amor pode ser um amor revolucionário. Não é um amor que é sobre si, é sobre
literalmente as outras pessoas. Jesus morreu e entrega a sua vida para garantir a
salvação dos outros. E como esse amor abre uma possibilidade de uma própria
ética de se posicionar? E como que a gente faz isso?
Para isso, Žižek tenta fazer uma análise de um filme, em que uma
mulher – não lembro se é um filme ou se é um caso real, agora, eu acho que
é um filme, não lembro – estava presa em cativeiro com seus dois filhos. E aí,
com o objetivo de salvar esses filhos, porque ela imaginava que o filho ia ser
morto pela pessoa que o colocou em cativeiro, ela mesma mata seus filhos.
Isso é muito parecido com o que acontece no filme O Nevoeiro. E o que Žižek
analisará a situação da mãe e tentando entender quais são as contradições de
sua ação. O objetivo da mãe é literalmente salvar seus filhos. O objetivo dela
é garantir a liberdade, tanto para ela, quanto para seus filhos. E ela não quer
que seus filhos sejam mortos por esse assassino, então ela mesma executa seus

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filhos. Então, temos que o que estava em jogo não era um ganho pessoal. A
tentativa dela era justamente salvar seus filhos, para que eles não fossem mor-
tos por outra pessoa, um desconhecido..., mas há, também, um elemento sa-
crificial. Ao matar seus filhos, ela mata um pouco de si mesma. E quais são as
consequências disso? Quando ela é libertada e sobrevive, o Estado a processa,
obviamente, por homicídio. Mesmo assim, ela não é presa.
O ato dela é tão pavoroso, tão assustador, mas ao mesmo tempo car-
regado de um sentido tão fundamental também, de uma liberdade, sobrevida
visceralmente fundamental que a ação dela abre um precedente, abre um mo-
vimento que nega a moral estabelecida, e obviamente todo mundo concorda
que a moral é não matar os filhos e nesse momento, ela rompe com a moral
estabelecida de uma forma absoluta, mas ao mesmo tempo ela posiciona uma
nova questão. Então, ela consegue romper, naquele momento, com vários sis-
temas estabelecidos. Ela rompe com a ideia de seu próprio interesse, ela rompe
com a ideia dessa individualidade, ela perde tudo que ela tinha dado até aque-
le momento, ela era mãe. Ela já tinha falado sobre como, para ela, sua família
era importante, ela então perde os filhos, ela perde a si mesma nesses processos
e ela rompe com a moral estabelecida. E aí, ela tem a consequência de ter a
sua relação com os outros rompida. Ela se torna um pária. Uma marginal
absoluta, mas ao mesmo tempo ela traz o movimento com que ela se defende,
ela posiciona uma justificação que é entendida pelos outros. Então, você não
tem uma relação de absoluta violência ou perseguição em relação a ela. Ela é
como se fosse um neutro, ela se torna coisa só a margem, as pessoas não têm
contato com ela, não se aproximam dela, mas compreendem a situação e têm
um pouco de pena, não havendo uma relação de perseguição e ativa violência.

Vinícius da Silva: E, nesse caso, João, ela se torna nada porque se ela
perde contato, ela deixa de ser um sujeito. Deixa de ser alguém.

João Pedro: Isso! Exatamente, é exatamente isso. Ela é uma coisa


“monstro”, vamos botar assim, ela é um corpo abjeto – acho que essa é a
expressão que me fez relacionar com a Butler. Então, você tem aqui um mo-
vimento de rompimento precisamente que é totalmente levado por esse afeto.
É amor, mas um amor que, enfim, a leva à uma ação que é extremamente vio-

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lenta, mas o que fica de fundamento aqui é que existe uma desorganização ab-
soluta possível. É claro que o ato é escabroso, ninguém está fazendo apologia
disso. A gente está pensando realmente na possibilidade efetiva de posicionar
essas questões por que isso está literalmente no limite desse afeto, no limite
do que a gente pode considerar o moral. Tão no limite do moral que empurra
esse limite e que é possível uma certa mudança de conscientização informada
por certas opções e o amor ele tem esse potencial de desorganização.
É como se nas relações com os outros houvesse uma certa comunicação
que é movida por esse afeto, como se ele fosse um afeto que consegue pela
sua própria expressão, ser compreendido ou não compreendido dentro da
norma moral que está posta. É uma compreensão nova que esse próprio ato,
esse próprio evento funda, por mais abjeto que ele seja. Então, a gente tem
aqui muitos elementos para pensar a relação entre esse amor e pensar como
ele é sacrifício, ele envolve um sofrimento, ele envolve uma relação muito
complicada de você lidar. Ele tem um conflito interno aqui nessa ação que
é muito importante, que perdura, que fica como consequência dessa própria
ação. Então, você tem ali, no pós-ação, essa mãe tentando se restabelecer e se
reintegrar com essa sociedade que não a quer, enquanto um sujeito. Enfim,
acho que tem vários elementos aqui para a gente pensar, mas pensar também
reforçar que essa discussão sobre amor não tem a ver com esse sentimentalismo,
reforçando isso que Vinícius ia falar, não existe uma pura docilidade. Esse
amor pode ser agressivo, violento, mas usar dessa agressividade, dessa vio-
lência para postular um excesso na própria moral, enfim. É, então há uma
violência que não seja uma violência necessariamente opressora, propriamente
dita assim, é uma violência diferente, que também deve ser pensada. Enfim,
há muitos aspectos e histórias. Agora, feche o parêntese e voltemos à discussão
do afeto.

Matheus Chagas: Eu gostaria de fomentar a discussão sobre a noção


de solidariedade para hooks. Ela está sempre falando da perspectiva de alguém
que tem amor, que tem esperança e ela tem esperança nessa conscientização
que funciona para os dois lados. A hooks não está falando só sobre nós pes-
soas negras, nós pessoas racializadas, tomando consciência. Ela está falando
de todos nós tomando consciência para transformar a realidade. E isso é uma

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coisa que a gente também encontra na obra do Freire. E ao levantar a dis-
cussão, costumo ver algumas críticas à hooks que insistem em chamá-la de
integracionista. O que eu não acho que seja inválido, principalmente se levar
em consideração o que significa integracionismo no contexto estadunidense.
Então, eu acho que essa solidariedade política entre oprimidos é um
ponto muito especial na obra da hooks, é um ponto muito especial para quem
está engajado na transformação da realidade. Essa crença não é uma crença
idealista, mas é uma crença radical, um ou outro, que também sou eu. E eu
acho que isso acaba sendo complicado e aí é que está, né. Freire vai falar da
ética universal do ser humano. E isso é algo muito complicado porque a gente
está numas situações, às vezes, que é muito difícil que a solidariedade política
aconteça. É muito complicado, muito difícil. Mas de certa forma, é uma coisa
interessante, é um ponto interessante, é um aspecto interessante do pensa-
mento dela que eu acho que a gente conseguiu falar muito bem aqui, também.

Vinícius da Silva: Sim, vocês tocam em pontos importantíssimos. Eu


vou comentar cronologicamente para manter uma linearidade, mas tem uma
relação entre tudo isso que a gente está discutindo. Sobre a fala do João, com
a sua contribuição do Žižek e da narrativa que ele trouxe, há uma coisa que eu
gostaria de chamar atenção inclusive desde antes e agora que eu me lembrei
disso, é sobre a manipulação do amor pelas hermenêutica e pelas éticas do
cristianismo moderno, digamos assim. E aí, a gente percebe uma narrativa que
vem sendo criado acerca da questão do amor que mesmo que não se pretenda
enquanto tal, ela acaba anulando a possibilidade de uma aliança, da criação de
uma comunidade porque existe uma gama de justificativas que vão disfarçar
de amor mas que vão ser justificativas de desumanização mas que vão estar sob
esse manto desse conceito polissêmico que é o amor, mas que por isso vão se
perpetuar. É o que o Henrique Vieira fala no livro dele. É muito possível que
amemos durante o dia e que desejemos a morte de alguém durante à noite,
porque o amor é isso. A gente consegue, de fato, conciliar amor e opressão,
por exemplo, mas quando partimos para uma compreensão do amor revolu-
cionário, uma radicalidade amorosa, a gente passa a compreender que o amor
e a violência não podem coexistir. Que não há como você reivindicar uma
ética do amor que seja baseada numa violência simbólica e ontológica (e não

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estamos falando de autodefesa). Esse, por exemplo, é um dos pressupostos
pelos quais eu digo que a violência não pode ser uma técnica com fim em si
mesma, porque senão ela acaba se tornando uma norma e não é isso que a
gente quer. O que a gente quer é que existam bons usos dessa violência. Mas
que isso, ainda assim, tem que ter enquanto centro a radicalidade revolucio-
nária de uma ética do amor. E aí, você toca num ponto importante, João, que
é a questão da organização moral e da desorganização, também, social, que
justamente tem a ver com o amor enquanto uma ação política.
Retomo o conceito de ação política de Arendt, justamente para dizer
que ação política é tudo aquilo que existe, que acontece no espaço público,
em concerto, na disputa – e não irei, aqui, destrinchar essa noção, Butler faz
isso. As alianças são ações políticas, as nossas relações são ações políticas. Os
acordos, nossas disputas narrativas são disputas políticas porque têm a ver
com toda uma coletividade. O político está na dimensão daquilo que é nos-
so, daquilo que é nós, também. Nesse sentido, o amor é uma ação política,
porque ele tem a ver com disputa, mas ele tem a ver com disputa diferente do
conceito ação política porque ele tem a ver com disputa para uma transforma-
ção social. Então, todo amor é uma ação política, mas nem toda ação política
é um amor. Na verdade, nem todo amor é ação política porque, uma vez que
é um conceito em disputa, não se pode falar que toda coisa é alguma coisa.
Então, o que eu digo é toda teoria do amor tal como eu moldo nesse livro, é
uma teoria que se movimenta para uma ação política, uma teoria política, por
que tem a ver com coletividade. Coletividade é a base da mudança.
E o que é essa coletividade? Essa coletividade é o lugar do encontro.
E esse lugar do encontro é permeado por uma ética do cuidado, uma ética da
preservação ontológica que, por exemplo, se movimenta contra essa violência
contra o outro, que é o que está em voga no exemplo que João traz da mãe que
mata os filhos. A violência contra o outro, dirá a Butler, nada mais é que uma
violência contra si mesmo. Porque o eu só existe contra (ou melhor, ao lado)
esse outro. Por isso que nós somos resultados de nossos encontros, porque o
sujeito só existe no encontro. O lugar do encontro é o lugar do aparecimento
desse sujeito. É por isso que essa ética do amor e as disputas e as discussões
sobre amor são discussões também sobre aliança, porque têm a ver com essas
disputas sempre por uma transgressão revolucionária. Qual é a graça da vida se

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não houver transgressão, se não houver disputas, se não houver utopias? E essa
questão da violência é também uma questão do afeto, mas não uma questão
do amor. Por mais que ela se disfarce de amor, ela não é. O verdadeiro amor,
além de ser indizível, ele é também revolucionário. Esse é o grande ponto. E
aí, só para a gente finalizar a discussão, em relação à discussão sobre integra-
cionismo, eu parafraseio a Helena Vieira quando ela diz que a gente preci-
sa abdicar do nosso insaciável desejo classificatório de querer classificar, por
exemplo, epistemologias de mulheres negras. E a quem insiste na narrativa de
que hooks é materialista ou integracionista, eu faço um convite à leitura, eu
peço que essas pessoas leiam e releiam, e compreendam e analisem e estudem
o contributo intelectual de autoras como a bell hooks, Audre Lorde, Lélia
Gonzalez, Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, que são autoras que não
precisam estar sendo inseridas nessa organização classificatória. A classificação
serve a quem de fato? E o que ela está disputando não é um integracionis-
mo, o que ela está disputando é uma solidariedade política. A solidariedade
política de hooks é o uso das diferenças para constituição de encontros po-
tencializadores. Não é a constituição de hierarquias e sistemas de dominação.
A solidariedade política não nega a diferença e eu não diria que ela é de fato
integracionista, porque a integração, para mim, é algo que nega a diferença.
O que encontramos no pensamento de hooks é a construção de um
horizonte político, de um ambiente revolucionário e coletivo que faz uso des-
sas diferenças, tornando-as instrumentos de potência, digamos assim. Tor-
nando-as úteis para a construção de uma relação mútua que vai, de fato, nos
conduzir à transformação social. Em última análise, essa consciência radical
da qual hooks e Freire falam e essa solidariedade política entre os oprimidos
e também entre os opressores, para usar os termos deles, nada mais é que a
constituição de alianças. Ou a aliança é para todo mundo ou ela não é para
ninguém. Essa é a base dos projetos de justiça social. Winnie Bueno fala sobre
isso, um projeto de justiça social ou é para todos ou não é para ninguém. Essa,
de fato, é a ontologia do amanhã que a gente quer. Ou é uma ontologia que
se organiza para todos nós, ou é um amanhã que se organiza para todas as pes-
soas... porque isso vai promover uma reorganização dessas relações... ou não
é para ninguém. E aí, não há a possibilidade de discutir um novo horizonte
político. Parafraseando o que a gente sempre diz no ativismo, só a luta pode
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mudar a vida e, de fato, é isso. Só a aliança pode ressignificar a vida. Ou, como
bem salienta Paul Preciado, “é urgente inventar uma nova gramática que per-
mita imaginar uma outra organização social das formas de vida.”79

79  PRECIADO, Um apartamento em Urano, p. 41.

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Este livro “pode, finalmente, ser lido como um convite,
uma provocação performativa. Ardente como um mani-
festo, é um chamado a pensar sobre nossas vidas e nossos
tempos de maneira diferente, a ver mais além de uma
versão estreita do aqui e agora, esse tempo a que tantas
pessoas ao nosso redor estão decididas a se aferrar. Neste
livro, a utopia tem sido uma insistência por algo mais,
por algo melhor, por algo incipiente que aparece no hori-
zonte. Ofereço este livro como um recurso para a imagi-
nação política. Este texto pretende funcionar como uma
sorte de plano de voo para um devir político coletivo.
Essas páginas descreveram práticas políticas e estéticas
que devem ser consideradas como modos necessários de
sairmos desse espaço e desse lugar, e nos dirigirmos até
algo mais rico, mais vasto, mais sensual, mais brilhante.
A partir da insatisfação crítica compartida chegaremos a
uma potencialidade coletiva.”80

80  MUÑOZ, Cruising Utopia, p. 189. (Tradução deste trecho direto da edição argentina por Lean-
dro Colling)

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Pósfacio

O livro começa apenas quando a leitura termina. E no limiar destes


caminhos que serão produzidos pelos encontros entre o texto e a comunidade
imaginada de suas leitoras(es), na soleira de infinitas e por hora inclassificá-
veis fusões hermenêuticas, pode ser que caibam ainda mais algumas linhas. O
que quer que siga neste posfácio deve ser entendido como simples exemplo
e testemunho de um pequeno conjunto dentro da multiplicidade de efeitos
possíveis destas conversas sobre amor, política e vida que acontecem na tem-
poralização própria do pensamento a partir de um conjunto de perguntas que
não são apenas sobre o futuro, mas que vem (também) dele. Essa orientação
ativa nossos esforços interpretativos e alimenta a todo instante a sensação de
que prenunciamos algo valioso junto a esta leitura e não a este livro.
Faço esta distinção sem nenhuma intenção de desqualificar o livro
enquanto um objeto, mas para apontar que seria interessante tomá-lo como
indicação formal a ser existencialmente preenchida a cada vez por qualquer
pessoa que se disponha a pensar junto ao texto no conjunto de questões que
ele assumidamente rascunha, sem pretender concluir. Não são diálogos apo-
réticos, mas convites, como sugere sua menção a Cruising Utopia: The Then
and There of Queer Futurity de José Esteban Muñoz ou ainda - e talvez mais
precisamente - um conjunto de protocolos de um exercício filosófico.
Neste sentido, é preciso ainda destacar que mesmo que possamos re-
conhecer no trabalho de Vinícius da Silva um fio condutor desse exercício,
sua coreografia é sempre plural, pluriversal, polifônica, sempre baseada na
“comunidade amada” (bell hooks) que é a sua e que ele generosamente com-
parte conosco por meio deste escrito. Esta comunidade conflui e se distende
em movimentos que poderíamos reconhecer como sendo provocados pelo fe-
minismo negro do qual bell hooks e Patrícia Hill Collins serão aqui expressões
fundamentais e, de modo geral, pelas filosofias feministas e suas intersecções
com as Teorias Queer.

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Por isso a “comunidade amada” que nos guia e nos acompanha nesta
leitura é, antes de tudo, possibilitada pelo compromisso ético-político e onto-
lógico com as lutas antirracistas, anticapitalistas, antipatriarcais, de dissiden-
tes da cishterossexualidade compulsória, contra coloniais, enfim, contrárias à
necropolítica, como resume Achille Mbembe (2018). Os laços desta comuni-
dade se atam, ao mesmo tempo, pelo compromisso com a indissociabilidade
dessas frentes de reparação, o que aparece através da configuração de alianças
a partir da necessidade de rearranjar, questionar e/ou destruir esquemas his-
toricamente consolidados de distribuições desiguais de precariedades e vul-
nerabilidades, mas também de territórios, recursos, linguagens e visibilidade.
Daí advém as múltiplas dimensões transformadoras, vivificantes e
curativas do tomar parte a que nos convidam estas conversas. Eis, portanto,
um livro para entristecer aos fascistas e àqueles que apostam no niilismo, a
todos que procuram dissimular as estruturas de opressão numa escatologia
muito questionável – e que em nada se confunde com o “fim do mundo”
sobre o qual aqui se conjura. Para dizer com Gilles Deleuze, “Uma  filoso-
fia que não entristece a ninguém e não contraria ninguém, não é uma filoso-
fia” (DELEUZE, “Nietzsche e a filosofia”, 1987, p. 87).
Lembro aqui ainda que há tempos Platão reconhecia a necessária
dimensão dialógica do pensamento que, mesmo quando solitário, caracte-
riza uma espécie de “conversa da alma consigo mesma”. (PLATÃO, Teeteto,
189e.). Desde então, a vitória da prosa filosófica de Aristóteles, a cisão entre
a res cogitans e a res extensa operada pelo racionalismo cartesiano, a tentativa
de redução daquilo “sobre o que não se pode falar” ao silêncio, e tantas ou-
tras cenas da epopeia da filosofia ocidental, parecem ter propagado também
o esquecimento dessa suspeita em relação à possibilidade daquilo que não é
palavra viva de dar conta da experiência do pensamento que, no fim, se dá
sempre no mundo e com os outros – é sempre mais que um. Sua performance,
por excelência, é (ou deveria ser) o bate-papo, não o monólogo.
Devemos aqui entender a filosofia, portanto, enquanto resposta pos-
sível e sempre provisória à experiência radical de sermos tocades/as/os pelo
mistério, pelo encantamento, traços e cacos deixados por estes cujo modo de
ser não está sempre simplesmente resolvido e acabado, por essas dinâmicas da
existência que interpelam incessantemente como solo fértil para o trabalho

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fundamental da significação, da produção de comunidades de enunciação e
do cuidado com elas. E para estar à altura disso, como sugere este livro, é pre-
ciso antes desafiar os mapas da distribuição desigual das possibilidades de ser
reconhecide/a/o como uma vida.
Permito-me ainda comentar aqui sobre a dimensão temporalizante
destes escritos a que me referi anteriormente. O pensamento a partir do futu-
ro que embasa o programa filosófico deste livro, como diz a sua introdução, é
também a tarefa de delinear a práxis do agora a partir do que ela sempre ne-
cessariamente evoca, a nossa responsabilidade para com aqueles que já foram
e com aqueles que, a rigor, ainda não são. Nisto concordo com as palavras de
Helena Vieira segundo as quais mais do que o apelo à esperança, o agora nos
impõe uma tarefa criativa.
As demandas de trabalho das filosofias emancipatórias nos becos das
quais estas reflexões caminham iluminam o caráter comunitário da produção
de sentido e, aqui, apostam no amor como estratégia fundamental para o ne-
cessário enfrentamento às políticas da inimizade. O reconhecimento da proble-
maticidade dos problemas a que elas se referem aponta para questões que, por
mais abstratas que sejam, não se distanciam de seu anseio por um devir-corpo.
Por isso estas ideias caminham para além das fronteiras do cânone da história
da filosofia ocidental e o colocam em xeque à medida que evocam memórias de
resistência e de insistência que promovem descontinuidades nos horizontes de
morte e de destruição fundantes do capitalismo racista e patriarcal. Este, que
por toda parte propaga modelos e normas de natureza sádica, está sempre ávido
pela renovação das tensões e disputas lucrativas que, nesse contexto, nunca po-
dem ser produtivas e, portanto, minimamente democráticas.
O empreendedor de si do neoliberalismo é o avesso da filosofia – e
contra ele se insurgem vozes que nos convocam à descrição da relação com
um presente que não se deixa encerrar ou na pura sucessão linear de instante
ou no tempo cronológico do trabalho disciplinado ou no tempo perene e
homogêneo do controle, mas que atualiza, declara e prepara, no agora, outros
tempos. Por isso essas conversas são, antes de qualquer coisa, reivindicações
urgentes por justiça feitas por jovens negres/as/os, por pessoas LGBTI+, por
uma multidão que nos convoca e encoraja mesmo (e principalmente) quando
o presente parece não nos guardar nada de belo ou nada de nada. Ao pergun-

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tarmos pelo amanhã e ao reconhecermo-nos como parte de sonhos e ações
semeados em outros tempos, como faz Angie Barbosa ao evocar neste livro a
transcestralidade, temporalizamos. Somente no engajamento com esta tarefa
ainda faz sentido falar em passado, presente ou futuro.
Por isso “para onde?” é uma pergunta crucial e derradeira. Ela nos per-
mite olhar para quem somos sem as ilusões do realismo ingênuo, sem as falá-
cias do positivismo e sem nos reduzirmos a simples compositoras/es de elegias
ao inevitável – o que torna qualquer justiça impossível e impensável. Mesmo
que ele nunca venha a existir de fato e empiricamente, por ser da ordem do
imprevisível e do imponderável, o futuro já é em nós, em alguma medida. Nas
palavras de Jacques Derrida:

Justiça alguma – não digamos lei alguma, e mais uma vez


lembro que não falamos aqui do direito – parece possível
ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade,
para além de todo presente vivo, nisto que desajunta o
presente vivo, diante dos fantasmas daqueles que já es-
tão mortos ou que ainda não nasceram. (...) Sem essa
não-contemporaneidade a si do presente vivo, sem isto que
secretamente o desajusta, sem essa responsabilidade e
respeito pela justiça com relação a esses que não estão
presentes, que não estão mais ou ainda não estão presentes
e vivos, que sentido teria formular-se a pergunta “onde?”,
“onde amanhã?”. (DERRIDA, J, Espectros de Marx,
1994, p. 12)

O convite das conversas que compõem esse livro é para que essa não-
-contemporaneidade a si do presente vivo seja sempre a seguinte inscrição, a
nós dirigida e por nós repetida: “Por vocês, nós tentamos. E tentaríamos de
novo, quantas vezes for possível. Nenhuma injustiça passou sem revolta.”.

Roberta Ribeiro Cassiano


Filósofa e professora do IFRJ

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SOBRE O AUTOR

Vinícius da Silva é artista, pesquisador, educador, técnico em Con-


trole Ambiental pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio de Janeiro (IFRJ), Campus Nilópolis. Graduando em Licenciatura em
Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Ar-
tes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante o curso
técnico, foi bolsista de Iniciação Científica em Filosofia Política (2017-2018)
e Ciências Sociais Aplicadas (2019-2020). Enquanto pesquisador, dedica-se
a estudar o pensamento de bell hooks, com ênfase em crítica cultural, ética
do amor e teoria feminista; já tendo traduzido obras da autora para a Editora

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Elefante no Brasil. Enquanto artista e educador, tem se dedicado ao estudo
dos processos criativos de pessoas trans/travestis e negras, de modo a pensar
o papel da arte (e sua abolição) no fim do mundo como nos foi dado a co-
nhecer. Desde 2020, Vinícius apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra
cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros
temas de pesquisa; Atualmente, realiza residência artística na Galeria Refresco
(ciclo 3, 2022.1). Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áre-
as: Filosofia Política, Teoria Feminista Negra, Arte Contemporânea, Processos
de Criação, Pensamento e Imaginação Negro Radical, Pensamento Travesti
e Artes Plásticas. Fragmentos do porvir é seu primeiro livro, publicado pela
Editora Ape’Ku.

Foto (em anexo): Michelle Mariane

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Pólen Soft 80g/m2

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

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