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GÉRARD GENETTE

DISCURSO
DA NARRATIVA
Ensaio de método
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A NARRATIVA
E O SEU DISCURSO
Maria Alzira Seixo

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COLECÇÃO PRATICAS DE LEITURA, Direcçéío, prefácio e revisão


da tradução: Maria Alzira Seixo

'l'R~DUÇÃO de Fernando Cabral Martins «"0 que se rpassa" na narrativa não é, do ponto de vista
CAPA E PLANO GRÁFICO de Gina Martins Calado I Atelier Arcádia referenciarl (real), à letra: nada: "o que sobrevem", é apen-as
REVISÃO TIPOGRÁFICA de Almeida Gonçalves a linguagem, a aventura da linguagem, cuja vinda não cessa
de ser festejada.»
Direitos de reprodução e adaptação desta edição reservados para llngua Roland Barthes.
portuguesa por Editora Arcádia, S. A. R:J;,;; é~nJpd,"ae Santa Clara, 160-D, «lntroduction à l'analyse structurale des réoits'»
Lisboa-Portugal © ÉtNtions du Seuil ·· · - · in Communications, 8 (1966).

1.' edição em português-Novembro de 1979.


«0 geraJ está no cerne do singular, e · portank>- con-
EtÍi~ão n. • 782 traTiamente ao preconceito comum- o conhecí-vel no cerne
do mistério.»
Esta edição, de que se tiraram 3000 exemplares, foi composta e impressa
na Editorial Minerva ·- Minigráfica, Coop. de Artes Gráficas, SCARL Gérard Genette.
e acabada nas Oficinas Gráficas da Editora Arcádia <<Discours du Récit»
in Figures -III (1972).
/

I. CONTINUADO DE UM NúMERO ANT:ERIOR

No número 3 desta colecção (') procurámos apresentar estu-


dos sobre alguns dos problemas que se colocam à análise da nar-- -
rativa. Assim, a questão do ponto devista, a modalidade da des-
crição, o modo de construção da personagem, o registo utilizado
no chamado «monólogo interior» foram pontos considerados
no que pretendia 5er uma iniciação {completada por alguns acpon-
ta.mentos :informativos da introdução} ao estudo da análise estru-
tural e serniológica da narrativa literária, finalizando com um
exemplo de consideração global de um texto praticado sobre
um conto de Maupassant. Procurámos aí situar a problemática

( 1) Categorias· da Narrativa, Arcádia, Lisboa, 1976.

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deste tipo de análise em função das relações que não pode dei- tempo -que trabalhava em zonas de pura teoria e de a:bstracção
xar de manter com uma categoria específica da morfologia dos conceptual ou modelar, a estudos de história literária, ou pelo
géneros literários- o romance- e com um conceito que nos menos do que poderemos entender como uma das suas vias
últimos anos tem vindo a desenvolver-se na teoria Hterária e possíveis; artigos consagrados à obra de um determinado autor;
que se tornou central em toda a reflexão que sobre ela actual- e dos mais diversos da história da literatura francesa, são fre-
mente se produz -o conceito de texto. A consciência de que quentes na série das Figures- quando se não constelam em
estas relações ultrapassavam em grande medida a proposta teó- grupos com um sentido determinado de trabalho, como é o caso
rica que nesse volume se pretendia veicular levou a que o dis- do barroco (especialmente) para a poesia e de Proust para o
curso introdutório se detivesse então numa promessa de avanço romance. Questões de história literária são sempre na sua obra,
ulterior e de adiantamento da questão através da publicação de no entanto, decorrência de verificações a que a análise condu-
outro tipo de tra,balhos, respeitantes a essa problemática e a ziu e ilustrando com pertinência esse postulado da Nova Crítica
··outras afins. Até certo ponto, o número 4 desta série{') cum- (que já anteriormente a Estilística pressupunha) de que a história
priu tal função, detendo-se na categoria do romance; é agora da literatura ser'á particularmente a história do discurso literá-
altura de, prosseguindo na perspectiva do estudo da narrativa, rio e não a história dos homens que escreveram literatura (To-
mostrarmos .como este tipo de organização textual pode ser dorov).
encarado de outros ângulos ou como os prismas de análise ante- {<Discurso da Narrativa» é um trabalho que foi apresentado
riormente encarados se podem aprofundar, corrigir ou desen- em parte no Seminário da École Pratique des Hautes Études
volver. em 1970-71 e decorre basicamente da consideração do segui-
Continuamos assim as «'Práticas de Leitura» com a apresen- mento ttarmtivo '(seus processos e efeitors) de À la Recherche
tação de um ensaio de Gérard Genette, extraído do volume III du temps perdu. Teremos então aqui um trabalho sabre Pwust
da sua obra Figures, e que se intitula, no original, «Discours du que envolve .considerações de natureza teórica sobre os proble-
récit». Gérard · Genebte fez pa·rte equipa que, desde o número 8 mas do contar uma história na prosa literária de ficção ou,
da revista Communications, se •propôs estudar em termos de des' inversamente, será· este um estudo sobre as várias· possibilidades
crigão estrutural a organização da narrativa, literária ou não. de o~ganização da narrativa, obedecendo a uma vontade de sis-
A:bordando aí a questão da distinção e interdependência dos tematização e integrando as várias modalidades da sua efecti-
conceitos de mimese e de diegese, prosseguindo .posteriormente vação, funcionando a obra de Proust apenas -como realização
uma via de pesquisa extremamente original em que a defesa dos exemplar das diversas hirpó teses definidas? Na verdade, os dois
postulados da Nova Crítica dos anos sessenta se concerta com sentidos coexistem neste trabalho. É extremamente enriquece-
uma aguda inteligência analítica que o faz ultrapassar a secura clara a compreensão da obra de Proust à luz dos processos de
e a monotonia das ·grelhas puramente descritivas, assume fun- encadeamento do relato que a constitui e, por outro lado, a nar-
damentalmente o seu papel de universitário e de investigador, rativa proustiana é tão rica que abona muitas das possibilidades
isto é, o de uma consciência didáctica que se entende manifestar encaradas pela sistematização teórica praticada. Arliás, todas as
e equilibrar na pesquisa dos meios de compreensão dos objectos hipóteses discursivas que a narrativa de À la Recherche não
delibemdamente sdeccionados. Cmioso (e importante) é, por concretiza são também convenientemente estudadas, embora
exemplo, que este autor se tenha sempre dedicado, ao mesmo numa dimensão menos ampliada, e é impressionante o acervo
de textos de ficção (não só de. literatura como ainda de cinema)
que são ·citados como exemplos práticos d!\ especulação teórica
(!) Semi6tica do Romance,. Arcádia.; Lisboa; 1977. avançada. Uma teoria fortemente apoiada nos textos, uma teoria

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construída fundamentalmente a partir da prática textual embora escrita é perceptível), aspectos de modo (desertvoivimento e sis-
sem renegar a construção de 1hipóteses abstractas de despiste ou tematização das questões levantadas pelo problema do ponto
de avanço que são inerentes à reflexão teórica, mas sempre em de vista .condutor) e de voz (assunção das condições de enun-
perfeita conjunção com a matriz que o texto impõe, eis o que ciação pela instância narrativa)- são os que se consideram
parece ser a dominância do trabalho sabre a literatura que nos neste trabalho.
· apresenta G. Genette. A relação entre teoria e crítica é pois Um problema se coloca, entretanto, quando o autor nos
aqui entendida em termos de interdependência, tão útil como comunica' ser a narrativa em sentido restrito e .não a história
necessária- em termos, portanto, de uma definição da perti- nem~çã~ narrativo produtor) o objecto do seu tra~
nência dos estudos literários. balho... R-que a consideração da voz nos parece relevar funda-
mentalmente._(fõruvel da narração, para já não falar de outros
planos de análise, como o do modo, que igualmente praticam
2. A NARRATNA E O SEU niSCURSO incursões no campo de relação estabelecido pela acção enun-
ciativa; É, na realidade, muito difícil estabelecer níveis de aná-
lise no que respeita à narrativa e, se tal atitude de sistematiza-
Interessa salientar a delimitação de conceitos que, no início ção e de pertinência é defensável e permite uma eficácia m~ior
do seu trabalho, o autor pratica para definir a perspectiva que
adopta. História, narrativa e narração são níveis de consideração no estudo dos textos, deveremos ter em .conta uma possibilidade
de um mesmo objecto a que ele chama a «realidade n~rrativa». de interpenetração dos elementos e a certeza de que no texto
Simplesmente, se é o discurso dessa realidade narrativa que está a fusão que neles opera o trabalho da escrita não permitirá uma
em jogo, o plano da história, isto é, a organização :funcional diferenciação clara nem uma inteligibilidade 'perfeita.
e sequencial do texto, será posto de parte assim como, portanto, Uma das questões que muitas vezes se põe no estudo da teo-
qualquer observação quanto ao sentido diegético dos elementos ria do texto literário é, aliás, a seguinte: estará o progresso
que compõem essa organização; é a narrativa enquanto discurso teórico ligado a uma multiplicação taxinómica que se duplica
e não a narrativa enquanto história ·que está aqui em causa. no desdobramento consecutivo dos planos da consideração ana-
Aspectos de ordenação (não em termos de definição de enca- lítica do objecto? Todos temos, talvez, a experiência da pro-
deamentos mas em termos da percepção do sentido desses enca- funda irritação que nos toma perante a proliferação de con-
deamentos, por outras palavras, o estudo da a'rticulação tem- ceitos num sistema refinado de nomenclatura em que a distin-..
poral, e já não lógica, da narrativa) aspectos de duração (o tempo ção entre os termos se torna ténue ou .chega mesmo a um limiar
encarado, não em função do sentido do seu encadeamento mas de indeterminação. Sejamos dares: a prossecução teórica não tem,
em função da tentativa de estabelecimento de um ritmo da efectivamente, de se preocupar com a sua eficácia analítica
narrativa, de uma alternância ·entre situações de relato que (este é um dos seus dados imediatos); mas crítica e teoria dão-se
poderíamos apelidar de tónicas e átonas através dos meios de por enquanto as mãos em termos de adjunção que não em ter-
discurso que as formulam), aspectos de frequência (relações entre mos de identificação- e praticar uma apelando para a outra,
a narrativa e a diegese, consideração dos meios de escrita que por muito fecundo que seja, exigirá uma inserção do apelo, no
homologam a história na narrativa ou, pelo contrário, a disten- discurso mais vasto que o produz, enquanto presença de outro
dem ou condensam, a pulverizam, a repetem, a entrecortam ou espaço e não enquanto elemento novamente inserido nesse espaço
simplesmente a transcrevem a partir duma idealidade que fun- onde nos situamos. A menos que se queira desconhecer a função
ciona como modelo e que apenas em função desses meios de pedagógica e que uma nova função escrita {ou «escriptural»
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tenda a cobrir o mundo de um tecido de identidade, anulada semi.ológico sobre a análise da narrativa, o elemento tempo nela
a diferença que desde sempre a movimentou.· . · . passou a ocupar um lugar substancialmente reduzido, isso . se
Quer dizer, o trabalho de Genette .aflora essa zona oscila,i!te. deveu, fundamen~almente, ao facto de não estar afinada uma
em que o efeito teórico, para se produzir, tem de parecer exces- aparelhagem conceptual que· penruiisse a sua integração rigo-
sivo em relação a qualquer tipo de aplicação descritiva .ou .de rosa no estudo do texto e, por outro lado, à consideração do
· exercício analítico. Não me parece, porém,. que esse excesso texto enquanto enunciado muito mais que enquanto realidade
resulte em redundânCia- antes em excrescência, de sentído facil- pendente de marcas enunciativas determinantes. Ora este tra-
mente recuperável pela ~argura conceptual que abarca. , . balho de Genette vem justamente integrar o estudo do tempo
Duma maneira geral, porém, os. conceitos são perfeitamei:tte na narrativa, não enquanto procedimento de organização lógico-
definidos e diversificados, cobrindo áreas concretas e delim.i-. -temporal (diegese), mas enquanto elemento de uma alteração
tadas. É talvez mesmo o que torna este trabalho um dos. mais qualquer na sequência do dito e do não-dito e das suas impli-
·· estudados e difundidos no .campo da análise narrativa- esse cações múltiplas. ·Por outras palavras: o tempo, neste estudo
recorte cuidadoso da terminologia·· e a sua exemplar radicação de G. Genette, não é encarado como categoria filosófica ou
semântica e especulativa.. Três zonas deste .trabalho nos parece como sentimento ·v•ivencial, co·ino em determinados estudos clássi-
~os, nem tão-pouco como sistema de relações verbais [como nas
deverem ser particularmente destacadas: a que estuda a ordem,
da narrativa, a que estuda a sua duração e a que se ocupa dqs obras, aliás de importância decisiva, de Benveniste ("} e de Wein-
problemas de frequência; numa .palavra, a incidência do tempo rich {')] : fazendo embora apelo a estas direcções, Genette estuda
nos factos relatados. Desde sempre que a questão do tempo preo- fenómenos muito mais superificiais, como os efeitas de ovdem (defi-
nitivamente adquiridos em teoria da literatura como analepses e
cupou quem abordasse os domínios da teoria literária. Arte da prolepses, a partir deste tmbaiho) e muito mais «laterais»- inces-
sucessão .por excelência, a literatura (como a música e o cinema, saotemente recarlcados ou adiados-, como o ritmo. O ritmo, cacte-
tendo este aliás muito de narrativo) processa-se no tempo e tgma goria !fundameota'l da pradução literária, tanto na poesia como na
um tempo determinado na sua relação de comunicação. Daí prosa, vê o seu lugar já aqui um pouco definido em termos de
que, quer no que respeita à caracterização da ficção (3), quer. no elemento da ficção. Em vão procuraremos, no entanto, este termo ·
que 1 toca à reflexão produzida pelos próprios criadores (4), quer no índice remissivo; o trabalho que ele suscita (ainda a um nível
ainda em embrionárias mas lucidíssimas tentativas de. distinção. diminuído, deve dizer-se) constela-se em torno de outros con-
de gêneros (5), a relação do texto escrito com a categoria do ceitos cujo tipo de alternância e de seguimento o formam ou
tempo se coloque e adquira mesmo. uma emergência central e caracterizam (cf. duração).
irradiante. O que me parece importante sa!íentar é que, se, a
partir de 1966, com a publicação dos primeiros estudos de toque .tiva»Estudo importante da obra de iProust «Discurso da Narra-
'é uma análise sistematizada da arte ' de contar nas suas
vári~s formas. Ao prazer de ler uma história juntar-se-á, com
a leitura deste trabalho de Genette, o prazer de ler o modo
como um determinado narrador dá a ler a sua própria leitura
( 3) Jean Pouillon, Temps et Roman, Gallimard. Paris, 1946. do texto que produz. Jogo de espelhos, lugar geométrico do
· (') A enumeração seria longa! Alguns marcos: Proust e a procura do
tempo; Joyce e a fusão do tempo; Huxley e a <<musicalização do romance»
em termos de r.itmo; etc.
( 5) Emil_ Staiger, Grundbegriffe der Poetik, Zurique, 1946; David
( 6) O Homem na linguagem, Arcádia, Lisboa, •197{).
Me>urão-Ferr.erra, «PMa uma teoria dos géneros iiterários», in Seara Nova,
(T) Le Temps, Senil, Paris, 1973 {Estugarda, 1964).
1154-55, Fevereiro 1950.

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rigor e da definição jogando na vertigem constante duma expan-
são cujo limite é apenas -o da reversão das entidades ocupadas
na i'~ação, reflexão inacabada, produto a produzir-se. Aqui esta,
DISCURSO
mos para o acompanhar.
Julho de 1979
DA NARRATIVA
Gérard Genette

16 2
QÊRARD GENETTE nasceu em Paris em 1!}30.
. PREFÁCIO
Antigo aluno da Ecole Normale Supérieure, é actualmente «maitre de
conférences>> nessa instituição e ensina também literatura francesa na
So<bonne. Tem publicado ensaios em diversos periódicos: Les Lettres
]'louvelles La ]'louvei/e Revue Française, Te/ Que/, Critique, Les Cahiers
de l'Hern'e. L' Are. Le Mercure' de Fran'ce. '
Principais obãas: Figures, 1966; Figures-li, 1969; Figures-/li, 1972;
Mirno/ogiques, voyage en Cratylie, 1976; lntraduction à l'architexte, 1979.

O ensaio que constitui este volume é extraído de Figures-li!.

Tradução de Fernando Cabral Martins

O objectivo específico doote estudo· é a navrativa em À la Rechér:·


che du temps perdu. Esta :precisão dá imediatamente lugar a
duas. dbservações de importância desigual. A primeira refere-se
à definição do corpus: sabe-se hoje que a obra assim denominada,:
e cujo texto canónico se encontra: .estabelecido desde 1954· pela:
edição Clarac,Ferré, mais nãa é que o último estado de uma
o'bra na qual Proust trabalhou· a bem dizer toda a sua vida,. e
cujas anteriores versões se di~>persam, no essencial, entre Led
Plaisirs et les Jours(1896),.Pastiches et Mélanges (1919)', a:s diver"
sas recoLhas ou inéditos. póstumos intitulados Chraniques (1927)',.
Jean Santeuil :(1952) e Contre Sainte-Beuve {1954) (1), e os Ce'l"Ca

(I) As datas recordadas são das primeiras publicações; mas as nos~


sas. ·referências reenviam, naturalmente, para a ed:ição
Claia~andre em·
dois volumes (Jean Sanreuil precedido de Le! Pltdsirs ef ·res Jour<J<; Con-
tre Sainte-Beuve precedido de Pastiches et Mélimges· e segl}i<lo de E>Mlli~

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de pitenta cadernos depositados desde 1962 no gabinete de ma- poética à crítica,· e fazendo dos concéitos, dassiÜcações' e pro-
nusb-ito!i da Biblioteca Nacional. Por essa razão, a que se acres- cessos propostos outros tantos instrumentos ad hoc, destinados
centa a interrupção forçada de 18 de N o'Vem:bro de ~922, a exclusivamente a permitir uma descrição mais exacta ou . mais
Recherche, menos que qualquer outra, não pode ser. considerada precisa da narrativa proustiana na sua singularidade, tendo-se a
como uma obra fechada, e é, portanto, sempre 1egít11Ilo,. e: ~gu­ cada passo imposto um desvio «teórico». pelas necessidades de
mas 'Vezes necessário, para comparação do texto «defmltJVO», uma elucidação metodológica. .
fazer apelo a esta ou aquela das suas 'Variantes. O que também Confesso a minha repugnância, ou a mÍnha incapacidade, em
é verdadeiro quanto à apresentação da narrativa, e não se pode escolher entre esses .dois sistemas de defesa aparentemente incom-
deixar de reconhecer, por exemplo, aquilo que a desco?erta do patíveis. Parece-me impossível tratar a Recheri:he du temps perdu
te:>.:to «na terceira pessoa» de Santeuil traz de perspectiva e de como um simples exemplo daquilo .que seria a narrativa em
significação ao sistema narrativo adoptado na Recherche. O nosso geral, ou a narrativa romanesca, ou a narrativa de forma auto-
trabalho basear-se-á essencialmente, pois, na o•bra última, mas biográfica, ou sabe Deus que outra classe, espécie ou variedade:
não sem que por vezes se tenham em conta os seus anteceden.tes, a especificidade da narração proustiana tomada no seu conjunto
considerados não por eles mesmos, o que tem pouco sentido, é irredutível, e qualquer extrapolação seria aqui um erro de mé-
mas pela luz que podem projectar. todo; a Recherche só se ilustra a si mesma. Mas, de algum mddo,
A segunda observação diz respeito ao método, ou antes: ao essa especificidade não é indecomponível e cada um dos traços
procedimento aqui adaptado. Já se pôde ver que nem o titulo que a análise nela distingue presta-se a uma certa aproximação,
nem o subtítulo deste estudo mencionam aquilo que acabo de comparação ou perspectivação. Como toda a obra, como todo
designar como seu objecto específico. O que não é por coque- o o~ganismo, a Recherche é feita de elementos universais, ou pelo
taria ou por inflação deliberada do assunto. O facto é que, fre- menos transindividuais, que reúne numa síntese específica, numa
quentes vezes, e de um modo ta:!vez exasperante para a1g~ns, a totalidade singular. Analisá-la é ir, não do geral para o particu:lar,
narrativa proustiana parecerá ter sido esquecida em proveito de mas sim do particular para o geral: desse ser incompará'Vel que
considerações mais gerais: ou, como hoje se diz, ~pagar-se a é a Recherche a esses elementos bem comuns, figuras e processos
crítica perante a «teoria literária», aqui, mais precisamente, a de utilidade pública e de circulação corrente a que chamo ana-
teoria da narrativa ou narratc>logia. Poderia justificar e clarificar cronias, itirativo, focalizações, paralepses e outros. O que aqui
esta ambÍgua situação de dois modos diferentes: quer pondo fran- proponho é essencialmente um método de análise: tenho, pois,
camente como outros por sua vez fizeram, o objecto específico que reconhecer que, de facto, procurando o específico, encontro ·
ao serviÇo do desígnio geral, e. a. análise crítica ao serviço da o universal, e que ao querer pôr a teoria ao serviço da crítica
teoria: a Recherche não seria então mais que um pretexto, reser- ponho sem querer a crítica ao sewiço da teoria. Este é o para-
vatório de exemplos e lugar de ilustração para uma poética nar- doxo de toda a poética, e também, sem dúvida, o de toda a acti-
rativa onde os seus traços específicos se perderiam na transc.en- vidade de conhecimento, eternamente dilacerada entre dois incon-
dência das «leis do género»; quer, ao contrário, subordinando a tornáveis lugares comuns, que não há objectos senão singu:lares,
nem ciência senão do geral; sempre reconfortada, todavia, e como
que magnetizada por essa outra verdade, um pouco menos difun-
et Articles), Pléiade, 1971, que contém numerosos .iiléditos. É ainda dida, de que o geral reside no .coração do particular, e, logo,
· necessário, por vezes, enquanto se espera pela edição crítica da Recherche, -contrariamente ao preconceito comum- o conhecível no cora-
con!Jinuar a recorrer à edição Fallois do Contre Sainte-Beuve para certas ção do mistério.
páginas tiradas dos Cadernos.

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Mas caucionar· em cienti.ficidade. uma vertigem, se· não um
estrabismo metodológico, não estará talvez· isento de imposturá. INTRODUÇÃO.
Defenderei então drferentemente a. mesma causa: talvez a ver"
dadeini relação entre a aridez .«teórica» e a minúcia crítica seja
de alternância recreativa e recíproca distracção. Possa. o leitor,
por seu turno, aí encontrar uma espécie de. diversão periódica,
como ,.o insone ao mudar de .mau lado:· amant alterna Camenae.

Empregamos correntemente a palavra narrativa [récit] sem


nos preocuparmos com a sua ambiguidade, por vezes sem a per-
cebermos,· e algumas das dificuldades da narrato!ogia derivam
ta1vez de ta:! confusão. Parece-me que, se se quiser começar a
ver mais claro neste domü:lio, têm que distinguir~se claramente
sob_,_.este termo t11ês noções distintas.
\Num primeiro s~do -lgue é hoje o mais evidente e o mais
central n? uso ·comum-, ~~_<ie~i·gna .o enunci~do narra-. \
tive, o discurso oral ou escnto que assume a relaçao de um
acontecimento ou de uma série de acontecimentoS:~ assim, cha- \.
mar-se-á narrativa de Ulisses ao discurso do her6l perante os
Feácios nos cantos IX a XII da Odisseia, e, logo, a esses mesmos i, •
quatro cantos, ou seja, ao segmento do texto homérico que diz
ser sua fiel transcrição.
N._um. segundo sentido, menos difundido, inas hoje corrente_
entre os analistas e teóricos do conteúdo narrativo, narrativa
22 23
(designa a sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que Como o títillo indica, ou quase,· o nosso estudo baseia-se,
constituem o @bjectQ desse discurso, e as suas diversas relações essencialmente, na narrativa em seu sentido mais corrente, isto é,
de encadeamento, de oposição, de repetição, etc. «Análise_ da de discurso narrativo, que, em literatura, vem a ser, e particular-
narrativa» significa, então, estudo de um conjunto de acções e mente no caso que nos interessa, um texto narrativo. Mas, como
de situações consideradas nelas mesmas, com abstracçãQJ!o me- se ·Verá a anáJise do discurso narrativo, tal como o entendo,
dium, linguístico ou outro, que dele nos dá conheciment.2\ neste implica 'constantemente o estudo das relações, por um lado, entre
caso, as aventuras vividas por Ulisses desde a queda de Tróia até esse discurso e os acontecimentos que relata (narrativa no sen-
à sua chegada junto de Calipso. tido 2), por outro lado, entre esse mesmo discurso e o acto que
/Num terceiro sentido, que é aparentemente o mais antigo, o produz, realmente (Homero) ou ficticiamente (Ulisses): nar-
narrotiva designa, ainda, um acontecimento: já não, toda'l'ia, rativa no sentido 3.
Temos pois, desde já, para evitar ·toda a confusão e qualquer
aquele que se conta, mas a:quele que consiste em que algué..Ph;-
embaraÇo de linguagem, que designar com termos unívocos ·cada
conte a1guma coisa: o acto de narrar tomado em si mesm~
Dir-se-á, assim, que os cantos IX a XII da Odisseia são consa-
um dos aspectos da realidade narrativa. ·Proponho, sem insistir
nas razões aliás evidentes da escolha dos termos, denominar-se
grados à narrativa de Ulisses, como se diz que o canto XXII é história o significado ou conteúdo narrativo (ainda que esse con-
consagrado ao massacre dos pretendentes: contar as suas aven- 1
teúdo se revele, na ocorrência, de fraca intensidade dramática ou
turas é uma acção, tal como massacrar os pretendentes da mu- teor :factual), narrativa propriamente dita o significante, enun-
lher, e, se é escusado dizer que a existência dessas a:venturas ciado, discurso ou texto narrativo em si, e narração o acto nar-
(supondo que se tomem, como Ulisses, .por reais) em nada de- rativo produtor e, por extensão, o conjunto da situação real ou
pende dessa acção, -é igualmente evidente que o discurso narra- fictícia :na qual toma lugar(').
tivo, .por seu Iado (narrativa de Ulisses no sentido 1), depende O nosso objecto aqui é, pois, a narrativa no sentido restrito
delas absolutamente, pois -é o seu produto, como todo o enunciado que passamos a atribuir a este termo. É bastante evidente, penso
é o produto de um acto de enunciação. Se, pelo contrário, se tiver eu, que, dos três níveis agora distintos, o do discurso narrativo· é
Ulisses por mentiroso, e por fictícias as aventuras que ele conta, o único que se oferece directamente à análise textual, que é por
a importância do acto narrativo mais se acentua, pois dele depen- sua vez o único instrumento de estudo de que dispomos no
dem não somente a existência do discurso, como a ficção de campo da narrativa literária, e, especialmente, da narrativa de
existência das acções que «transmite». Dir-se-ã, evidentemente, ficção. Se qui6éssemos estudar em si mesmos, digamos, rn acon-
outro tanto do acto narrativo do próprio Homero onde quer que tecimentos contados por Michelet na sua Histoire de France:
ele assuma directamente ·a relação das aventuras de Ulisses. poderíamos recorrer a toda a espécie de documentos exteriores
Sem acto narrativo, pois, não há enunciado, e às vezes nem a essa obra, respeitantes à história de França; se quiséssemos
sequer conteúdo narrativo. É, portanto, surpreendente que a
teoria da narrativa se tenha até· agora preocupado .pouco com
os problemas da enunciação narrativa, c.oncentrando quase toda (2) Narrativa e narração .passam bem sem justificação. Para histó-
a sua atenção no enunciado e seu conteúdo, como se fosse intei- ria, e apesar de um inconveniente evidente, invocarei o uso corrente
ramente secundário, por exemplo, que as aventuras de Ulisses (diz-se «contar uma história»), e um uso técnico, decerto mais restrito,
fossem contadas ou por Homero ou pelo próprio Ulisses. Sabe,se, mas bastante bem admitido depotis que Tzvetan Todorov propôs distin-
guir a «narrati<va como discurso» (sentido I) e a <<narrativa como histó-
contudo, e· af voltaremos mais adiante, que Platão, outrora, ·não ria>> (sentido· 2). Empregarei ainda no ·mesmo sentido o termo diegese,
tinha considerado tal assunto indigno da sua atenção. que nos vem dos teorizadores da narrativa cinematogrâfica.

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· estudar em si mesma a redatçãt> dessa obra; poderfamos utilizar désta: e daqueles· não 'pode senão ser indir-ecto, inevitavelmente
outros documentos,· igmilmente exteriores ao texto· de Michelet, mediatizado pelo discurso da narrativa, dado que aqueles são
respeitantes à sua vida .e ao seu trabalho durante os anos que t> próprio objecto desse discurso e esta deixa' aí traços, marcas
lhe consagrou. Mas não tem esse r-ecurso quem se interessar, oU: indicias assinaláveis e interpretáveis, tais como a presença de
por um lado, pelos act>ntecimentos contados pela narrativa que um pronome pessoal na primeira pessoa que denota a identidade
constitui a Recherche du temps perdu, e, por outro lado, pelo da personagem e do narrador, ou a de um verbo rio passado que
acto narrativo de que procede: nenhum documento exterior à denota anterioridade da acção contada em relação ·à acção nar-
Recherche, e, especialmente, nenQ-tuma boa biografia de Mareei rativa, sem prejuízo de indicações mais directas e mais explícitas.
Proust, caso existisse('), poderia informá-lo, nem sobre esses ·História e narração só existem para nós, .pois, por intermédio
acontecimentos nem sobre esse acto, dado que são uns e outro da narrativa. Mas, reciprocamente, a narrativa, o discurso nar-
fictícios, e pÕem em cena, não Mareei Proust, mas o suposto rativo não pode sê-lo senão enquanto conta uma 'história, sem
--herói e narrador do seu romance. Não quero dizer, claro, que o -que não seria narrativo (como, digamos, a Ética de Espinosa),
o conteúdo narrativo da Recherche não possua qualquer relação e porque :é proferido por. alguém, sem o que (como, rpor exem-
com a vida do seu autor: inas, simplesmente, que essa relação plo, uma colecção de documentos arqueológicos) não seria, em
não é de tal ordem que se possa utilizar a segunda para uma si mesmo, um discurso. Enquanto narrativo, <vive da sua relação
análise rigorosa do primeiro {ou sequer o inverso). Quanto à com a história que conta; enquanto discurso, vive da sua relação
narração produ tora dessa narrativa, contando o a cto de Mareei (4) com a narração que o profere.
a sua vida passada, evitar-se-á a partir de agora confundi-Ia com A análise do discurso narrativo será, pois, para nós, essen-
o acto de Proust ao escrever a Recherche du temps perdu; mais cialmente o estudo das relações entre narrativa -e história, entre
adiante voltaremos a este assunto, mas :bastará recordar, para narrativa e narração, e (enquanto se inscrevem no discurso d·a
já, que as quinhentas e vinte e uma páginas de Du côté de chez narrativa) entre história e narração. Tal posição conduz-me a
Swann {ed. Grasset) publicadas em Novembro de 1913 e redi- propor uma nova partilha do campo de estudo. Tomarei como
gidas por Proust durante alguns anos antes dessa data, são ponto de partida a divisão adiantada em 1966 por Tzvetan
supbstas (no actual estado da ficção) serem escritas ,pelo narrador Todorov ('). Tai divisão· classificava os problemas da na~rativa
muito depois da guerra. É, portanto, a narrativa, e apenas ela, em três categorias: a do tempo, «onde se exprime a relação entre
que aqui nos in:forma, por um lado, sobre os acontecimentos o tempo. da história e o do discurso»; a do aspecto, «OU a ma-
que relata, e, por outro lado, sobre _a actividade que suposta- neira rpela qual a .história é percebida pelo narrador»; a do modo,
mente a traz a lume: dito de outro modo, o nosso conhecimento isto é, «o tipo de discurso utilizado pelo narrador». Adapto sem
qualquer. emenda a primeira categoria na definição que acabo
de citar, e que Todorov ilustrava com notas sobre as «deforma-
ções temporais», isto é, as infidelidades à ordem cronológica
( 3) As más não apresentam aqui nenhum inconveniente, já que o
seu pr-incipal defeito consiste em atribuir friamente a Proust aquHo que dos acontecimentos, e sobre as relações de encadeamento, de
Protist diz de Mareei, a Illiers aquilo que ele diz de Combray, a Cabourg alternância ou de «encaixe» entre as diversas linhas de acção
o que diz de Balbec, ·e assim por diaitte: proCesso contestável em 'si constitutivas da história; mas acrescentava-lhe umas considera-
mesmo, mas 'para nós sem perigo: a não ser ·nos nomes, nunca se sai da
Rech.erche: ·
( 4) Conserva-se aqui, para designar ao mesmo tempo o herói e o
nar;rador da Recherche, este prenome controverso. Explicar-me-ei no
último capítulo-. <!) «Les catégories' du récit Iittéraire», Communicati&ns 8.

26 27
ções sobre o «tempo da e·nunciação>> e o da «perce.pçãol> narrati- tão monstruoso quanto se ·queira, dado a uma forma verbal,
vas (assimilados por ele aos tempos da escrita e da leitura) que no sentido' ·gramatical do termo: a expansão ?e um verbo. _Eu
me parecem exceder os limites da sua própria definição, e que, caminho Pedro ~>eio são para mim formas mímmas de narrativa,
quanto a mim, resewarei para uma outra orde~ de problem~s, e de m;do inverso, a Odisseia ou a Recherche mais não fazem,
evidentemente ligados às relações entre narrativa e narraçao. d~ algum modo, que amplificar (no sentido retórico) enunci~dos
A categoria do aspecto (6) recobria essencialmente a~ questões tais. como Ulisses volta para ltaca ou Marc:el torna-se escntor.
do «ponto de ·vista>> narrativo, e a do modo(!) recolfua os pro- Isto autoriza-nos talvez a organizar ou, pelo menos, a formular
blemas de «distância», que a crítica americana de tradição jame- os problemas de análise do discurso narrativo segundo categorias
siana geralmente trata em termos de oposição entre showing tomadas da gramática do verbo, e que se reduzirão aqui a três
(«representação)) no vocabulário de Todorov) e telling («narra- classes fundamentais de determinações: as que estão ligadas às
çãO>>), ressuugências das categorias platónicas de mimesis. (imita- relações temporais entre narrativa e diegese, e que arrumaremos
ção perfeita) e de diegesis (narrativa pura), os diversos tipos de sob a categoria do tempo; as que estão ligadas às modalidades
representação do discurso de personagem? os modos d~ presença (formas e graus) da «representação>> narrativa, logo aos modos (9)
implícita ou explícita do narrador e do leitor na narrativa. Como da narrativa; aquelas, finalmente, que estão ligadas à forma peta
para o citado caso do «tempo de enunciação>>, ~reio necessário qual se encontra implicada na narrativa a própria narração no
dissociar esta última série de problemas, na medida em que poe sentido em que a definimos, ou seja, a situação ou instância (10)
em .causa o acto de narração e seus protagonistas; em contra-
narrativa, e, com ela, os seus dois protagonistas: o narrador e
partida, deve reunir-se numa única grande categoria, que é, diga-
seu destinatário, real ou virtual; poderíamos ser tentados a colo-
mos provisoriamente, a das modalidades de representação, ou
car esta terceira determinação sob o título da «pessoa», mas,
graus de mimese, tudo o resto daquilo que Todorov repartia entre
aspecto e modo. Esta redistribuição conduz, pois, a uma divisão por razões que adia,nte se tornarão claras, parece-me preferível
sensivelmente diferente daquela de que se inspira, e que pas- adaptar um termo de conotações .psicológicas um pouco (ai!, bem
sarei a formular por si mesma, recorrendo na escolha dos ter- pouco) menos marcadas, e ao qual daremos uma extensão con-
mos a uma espécie de metáfora linguística que será preferível oeptua-1 sensiveLmente mais larga, em que a <~pesSOR)> (referente à
não tomar demasiado à letra. oposição tradicional entre narrativa «na primeira» e narrativa
Dado. que toda a narrativa -mesmo com a extensão e a «na terceira pessoa))) mais não será que um aspecto entre outros:
complexidade da Recherche du temps petdu M- é uma .pro- esse termo é o de voz. que Vendryes, por exemplo("), definia_.
dução linguística que assume a relação de um ou vários aconte~ assim no seu sentido gramatical: «Aspecto da acção verbal nas
cimento(s), é talvez legítimo tratá-Ia como o desenvoLvimento, suas relações com o sujeito ... >> Bem ·entendido que o sujeito de
que se fala aqui é o do enunaiado, ao passo que, para nós, a voz
, ' . ~ . . I" \ ~"
:I
'
...... -·~~~~·.,~.;r, ..~~- !

(6) Rebaptizada «visão>> em Littérature et Signification (1967) e em '


Qu'est-ce que /e structuralisme? (1968). (9) O termo está aqui tomado muito ao pé do seu sentido linguístico;
. (l) Rebaptizada «registó» em 1967 e 1968. se nos referirmos, por exemplo, a esta definição de Littré: «Nome dado
(') Será necessário precisar que, ao tratar a obra como uma narra- às diferentes formas do verbo empregadas pa,ra afirmar mais ou menos
tiva, se não pretende de modo nenhum reduzi-la a esse aspecto? Aspecto a ooisa de que se trata, e para exprimir ... os diferentes pontos de vista
vezes demais 111egligenciado pela crítica, mas que Prom;t por seu lado e~ que se considera a existência ou a acção.»
nunca perdeu de vista, de maneira que fala da «vocação invisível de· que (lO) No sentido e111 que Benveniste fala de «instância de discurso»
esta obra é a história» (Pléiade, li, ·p. 397,· sublinhado ineu). (P.roblemes de linguistique généra/e, V parte).
(11) Citado no Petlt Robert, s. v. Voix.
28
29
designará uma relação com o sujeito (e, mais geralmente, a ins-
tância) da enunciação: mais uma vez, trata-se tão .somente de
-empréstimos de termos, que não pretendem fundar-se em rigo-
1
rosas homologias (12). ORDEM
Como se vê, as t~ês classes propostas, que designam campos
de estudo e determinam a disposição dos . capítulos .que se se"
guem ( 13), recdbrem menos que recortam de forma .complexa
as três categorias mais atrás definidas, que designavam níveis
de definição da narrativa: o tempo e. o modo funcionam ambos
ao nível das relações entre história e narrativa, enquanto que a
voz designa ao mesmo tempo as relações entre _narração e nar-
·-rativa e entre narração e história. Bvit.ar-se-á, porém, hipostasiar
tais termos, e converter em substância o que não é mais, em
cada momento, que uma ordem ·de relações.

Tempo da narrati.vaY

«A narrativa é uma sequência duas vezes temporal...: há o


tempo da coisa-contada e o tempo da narrativa (tempo do signi-
ficado e tempo do significante). Não só é esta dualidade aquilo
que torna possíveis todas as distorções temporais de que· é banal
dar conta nas narrativas (três anos da vida do herói resumidos.
em · duas frases de um romance, ou em alguns planos de uma.
montagem «frequentativa» de cinema, etc.); mais fundamental-
mente, convida-nos a constatar que uma dasfunções da narrativa
é cambiar um tempo .num outro. tempo (14) •.»
{ 12) Outra justificação, puramente proustológica, do emprego de tal
termo, a existência do precioso livro de Mareei Muller intitulado As Vozes
Narrativas em «A la Recherche du temps .perda>> (Droz;. 1965). (14) Christian Meto<, Essais sur la significatio~t au cinéma, Klinck-
(13) Os três primeiros (Ordem, Duração, Frequência). tratam. do sieqk, Paris, 1968, p. 27.
tempo, o quarto do modo, o quinto e último da. vozc .
31
30.
A dualidade temporal aqui tão vivamente acentuada, e qué uma éstrada· ou um· cámpo: o. texto narrativo,· corno qualquer
os teóricos alemães designam pela oposição entre erziíh/te Zeit outro texto, não tem outra temrporalidade senão. aquela que
(tempo da história) e Erziíhlzeit (tempo da narrativa) (15), é um toma metonimicamente de empréstimo. à sua· própria leitura.
traço característico não somente da narrativa cinematográfica, · Tal estado de coisas, vê-lo-emos niais· adiante, nem sempre
como tambiv<m da narra·tiva oral, a todos os níveis de elaboração será sem consequêncras na parte. que nos. toca, e .haverá que,
estética, incluindo esse nível plenamente «literário» que é o da ·por vezes, corrigir, ou tentar corrigir, os efeitos do deslo.camentP
recitação épica ou da narração dramática (narrativa de Théra- metonímico; mas temos primeiro que o assumir, já que faz parte
mene ... [em Racine: Phedre]). É talvez menos pertinente noutra do jogo narrativo, e tomar, pois, à letra a quase·ficção do Brziíhl-
forma de expressão narrativa, tais como a «fotonovela» ou a zeit, esse falso tempo que vale por um verdadeiro e· que trata-
banda desenhada (ou pictórica, como a •predela de U rbino, ou remos, com o que isso comporta, ao mesmo tempo, de reserva
bordada, como a «tapeçaria» da rainha Mati!de), que, ao mesmo e de aquiescência, como um pseudo-fémpo. ·
tempo que constituem sequências de imagens, logo, exigindo Tomadas estas precauções, estudaremos as relações entre
uma leitura sucessiva e diacrónica, igualmente se prestam, e, tempo da hístória e (pseudo) tempo. da narrativa $egundo aque-
mesmo, convidam a uma espécie de olhar global e sincrónico las que me parecem ser as suas determinações·. essenciais: a:s
ou, ·pelo menos, um olhar cujo percurso não é já comandado relações entre a ordem temporal de sucessão dos acontecimen4os
pela sucessão das imagens. A narrativa literária escrita tem. na diegese e a ordem pseudo-tempor;ll da sua c!isposição na nar-
quanto a este ponto, um estatuto ainda mais difícil de precisar. rativa, que constituirão o objecto deste primeiro capítulo; as
Como a narrativa oral ou fílmica, não pode ser «consumida», relações entre .a duração variável desses acontecimentos, ou seg-
logo actualizada, senão num tempo que evidentemente é o da mentos diegéticos, e a pseudo-duração (na realidade, extensão de
leitura, e, ainda que a sucessividade dos seus elementos possa texto) da sua relação na narrativa: relações, pois, de velocidade,
ser contradita por uma leitura caprichosa, repetitiva ou selectiva, que constítuirão o objecto do segundo; relações, enfim, de fre~
não se pode sequer chegar a uma analexia perfeita: pode-se qu~ncia, quer dizer, para nos atentos aqui. a uma fórmula ainda
passar um filme ao contrário, imagem a imagem; não se pode, aproximativa, relações entre as· capacidades de repetiçãp da. his-
sem que deixe de ser um texto, ler um teJcto· ao contrário, letra tória e as da narrativa: relações a que será consagrado o terceiro
a letra, nem mesmo palavra a palavra; nem sempre, até, frase capítulo.
a frase. O livro é um pouco mais suportado. do que hoje em
dia muitas vezes se diz pela famosa linearidade' do significante
linguístico, mais .fácil de negar .em teoria que de evacuar na Anàcronias
realidade. Contudo, não. se põe a questão de identificar o esta-
tuto da narrativa escrita (literária ou não) ao da narrativa oral: ·Estudar a ordem temporal de uma narrativa é confrontar a
a sua temporalidade é, de alguma maneira, condicional e ins- ordem de disposição dos aconteCimentos ou segmentos tempo-
trumental; produzida, como todas as coisas, no. tempo, existe rais no discurso.narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos
no espaço e como espaço, e o tempo necessário para a «consu- acontecimentos ou segmentos temporais na história, na medida
mir» é aquele que é preciso para a percorrer ou .atravessar, como em que é indicada explicitamente pela própria narrativa ou pode
ser' iriferida. deste ou· aquele indício indkecto. ·É evidente que
a reconstituição nem semprç é possível, e que se torna ociosa
(15) Ver Gunther Mü:ller, «Brzãhlzeit und erzãhlte>>, Festschrift für para .certas obras-limite, .como os romances de RPbbecGri!le!;
Kluckhorn, 1948, retomado em Morpho/ogische Poetik, Tul:>inga, ·1968. onde a referência temporal se encontra pervertida de. pro,pósito.
32 33
3
É igualmente óbvio que, na nar.rativa,clâssica, :pelo' ~o~trá~io, basia, para· nos convencermos, pensar em certas, aberturas 'balza-
ela não somente é ,possível na maior ·parte das, vezes, pots;· a1 o quianas como as de· César Birotteau ou da Du.chesse de LangeaJs,,
o discurso narrativo núncainterverte a ordem dos acpntecllllen~ D'Arthez fez dele um princípio para uso de Lucien de Rubem-
tos sem o dizer, ..como, ·ainda, é: necessária; e precisamente pela pré (17), e o próprio .Balzac repreenderá Stendhal por .não ter
mesma· razão: quando um: segmento narrativo começa -ppr 11ma __ começado a Chartreuse de Parme pelo episódio de· Waterloo,
indicação .como: «Três meses antes, etc.»,. tem que se ter em reduzindo «tudo o que, precede a uma qualquer narrativa feita
conta ao mesmo tempo aquilo depois de que. essa, cena v?m na por Fa,brice óu sobre Fabrice enquanto este jaz na aldeia da
narrativa, e aquilo antes de que. se supõe ·que ,ve10 .na dregese: Flandres onde está ferido ( 18)». Não se cairá no ridículo de apre-
um e o outro, ou, melhor dizendo, a, relação (de contraste oll:. de sentar a anacronia como uma raridade ou como uma invenção
discordância) entre um e o outro é essencial ao texto narra~tvo; moderna: ela é, pelo contrário, um dos recursos tradicionais da
e suprimir essa relação por eliminação· de um dos termos naQ e narração literária.
ater-se ao te:x:to mas matá-lo de boamente.-.· .- , .· De resto, se se {;Onsiderarem mil pouco mais de perto os pri-
·· - .· A localizaçã~ e a medida dessas anacronias narrativas (como meiros versos da .'Ilíada acima evocados, pode ver-se que o seu
chamarei aqui às diferentes formas de disc?rdâ'?~ia entre a orde.m movimento temporal é mais complexo do que se disse. Ei-los:
da história e a da narrativa) postulam Irnphcttamente a ex,ts~
tência de uma espécie .de ,grau zero, que seria um estado d~ Canta, deusa a cólera de Aquiles, o filho de Peleu; detes-
pedeita coincidência temporai entre narrativa e história. Tal est~do tável cólera, que aos Aqueus trouxe sqfrimentos sem conta
de referência é mais 'hipotético que· reaL Parece que a narrativa e lançou a H ades para pasto :rantas orgulhosas almas. de
folclórica terá por háJbito conformar-se, pelo ·menos nas sua~ heróis, enquanto tornava estes mesmos heróis presas dos
grandes. articulações, com a ordem cronológica, mas a nC)ssa tr~;J,, .cães e de todas as aves do céu--:- para cumprimento do
dição literária (ocidental), pelo· contrãr~o, é- inau'~tada. com · desígnio de Zeus. Parte daquele dia em que uma querela
um efeito de anacronia caracterizado, pots desde o mtavo. '\'erso dividiu desde logo o filho de Atreu, protecter do seu povo,
da Jlíada o narrador, depois de ter .evocado a querela en:treAqu~les e· o divil'!o .Aquiles. Quem dos deuses então os fez haverem
e ~gamémnon, .ponto. de partida· declarado ::da . sua narra(iva ·um contra. o outro .em tal querela e batalha? O filh 0 de
(ex hou de ta próta), regressa uma dezena de dtas atrás;· p-ara Leto e Zeus. Foi. ele quem, enraivecido contra o rei, fez por
expor a sua causa em cerca de cento e quarenta versos retros- todo o exército lavrar um cruel . mal, do quaz. os· .homens
pectivos (afronta a Crises- cólera de Apolo- peste)., Sabecs.e iam morrendo; isso porque o filho de Atreu tinha feito
que esse início in medias res seguido de u~ volta~.atras ,~xpli­ afronta a Crises, seu sacerdote(").
cativo se virá a transformar num dos topoz formats do genero
épico, ·e, também; o quanto o· estilo da narração romanesca ·Assim, o primeiro· objecto narrativo designado por Homero
permaneceu neste particular fiel ao do seu. longínquo ant.epas- é a cólera de Aquiles; o segundo; as desgraças dos Aqueus, que
sado (1 6), . e · isto até mesmo em pleno século · XIX «reahsta»: dela são, efectivamente, a consequência; . mas o terceiro é, ,a

(16) . Testemunho a contra'io ·é" esta apreciação d<: ·Huet sobre as· Babic ( 17) <<Entra< desde logo na acção. Tornai-mo vosso . ao,5unto tanto
/ónicas de Jâmblioo: «A ordenança de. seu desígmo , é falha de arte, de través como pela· Cauda; enfim, variai eis vossos plarios, para que nunca
Seguiu grosseiramente a ordem do ~emP<>, e não' éome~ou por lanpar Q seja o. mesmo» (lllusions perdues, ed, Garnier, p; 230) ..
leitor no meio do assunto, seguirtdo o exemplo de_ Hpmero>> (Trwté de (18) Études sur M. Bey/e, Skira, Genebra, ·1943; p. 69.
I'origine· dei·, romans, · 1670, p. 157). · · · ·· ' - ., : · (19) Les Belles Lettres, p. 3.

34 35
"
querela entre Aquiles e Agamémnon; que é a sua causa imediata mas vezes»): segmento A na posição 2 («Algumas vezes, ao passar
e lhe é, portanto, arlterior; depois, continuando a remontar. expli- em frente· da casa, lembrava-se»), B. na posição I («dois dias
. citam ente de causa em causa: a peste, causa da querela, e, de chuva em· que levava até ali a sua criada em peregrinação»),
enfim, a afronta a Crises, causa da peste. Os .cinco elementos. C na· 2 («Mas ele lembrava-os sem»), D na I {«a melancolia que
constitutivos desta abertura, que denominarei A, B, C, D e E então .pensava»), E na 2 {«dever expedmentar um dia no senti-
segundo a ordem do seu aparecimento na narrativa, ocupam res- mento de já a não amar»), F na 1 (<~Pois essa melancolia, aquilo
pectivamente na história as posições cronológicas 4, 5, 3, 2 e 1: que de ántemão· assim o projectava»), G na 2 («sobre a sua indi-
donde esta fórmula, que sintetizarâ melhor ou pior as relações ferença por vir»), H na I («era o seu amor»), I na 2 («E esse
de sucessão: A4-B5-C3-D2,El. Estamos muito :perto de um mo- amor jâ rião era»). A fórmula das posições temporais estâ; por-
vimento regularmente retrógrado (20). tanto, aqui:
. Haverá agora que entrar mais em pormenor na anâlise das
anacronias. ·Tiro de Jean Santeuil um exemplo bem típico. A2-BI-C2"DI-E2-Fl-G2-Hl-I2 ,
'

A situação, que se reencontra sob diversas formas na Recherche,


é a do futuro tornado presente que não se .parece com a ideia ou seja, Um perfeito ziguezague. Notar-se-â, de passagem, que a
que se tinha no passado feito dele. Jean, ·Vários anos depois, dificuldade deste texto à primeira leitura provém do modo, apfl·
reencontra a casa onde habita Marie Kossichef, que antes havia rentemente sisteniâtico, pelo qual Proust elimina aí os pontos de
amado, e compara as suas· impressões de hoje com aquelas que referência temporais mais elementares (antes, agora), que o leitor
cria antes dever sentir hoje: .. deve acrescentar mentalmente para se ir reconhecendo. Mas o
simples levantamento das posições .rião esgota a anâlise temporal,
Algumas vez;es, ao passar em frente da casa, lembrava-se ainda que reduzida às questões de ordem, e não permite deter-
dos dias de chuva em que levava até ali a sua criada em pere- minar o estatuto das anacronias: falta definir as relações que
grinação. Mas lembrava-os sem a melancolia que então pen- Uiiem os segmentos entre si.
. sava dever experimentar um dia no sentimento de já não a Se se considerar () segmentei A como o ponto de partida nar~
amar. Pois essa melancolia, aqu.ilo que de antemão assim a rativo, logo, ein posição autónoma, o segmento B define-se evi-
projectava sobre a sua indiferença por vir, era o seu amor. dentemente como retrospectivo: uma retrospecção que se pode
.B esse amor }á não existia (21). , · qualificar de subjectiva, no sentido de que é assumida pela própria
personagem, cuja narrativa não faz. senão relatar os pensamentos_ .
A anâlise temporal deste texto consistirâ, primeiro, em enu- presentes («lembrava-se ... »); B estâ, pois, temporalmente subor-
merar os segmentos segundo as mudanças de posição no tempo dinado. a A: defü:te-se como retrospectivo em relação. aA.. C.ipro:
· da história. Contam-se aqui, sumal:iamente, nove segmentos repar, cede de. um simples retomo à posição. inicial, sem subordinação.
tidos por duas posições temporais, que designaremos por :2 (agora) D fáz de novo retrospecção, mas, desta vez, directamente assu-
e I (antes), fazendo abstracção do seu carâcter iterativo («algu• mid~ pela narrativa: é, aparentemente, o narrador quem men-
ciona: a ausência de melancolia, mesmo sendo esta notada p~lci
herói. E traz-nos de novo para o presente,· mas de um modo
muito diferente de C; porque, desta ·vez, o presente é considerado
(lO). E mais ainda se se tiver em conta o primeiro segmento,· não .a partir do passado, e <«<o ponto de .viSta» des.se passado; não. se
narrativo, no presente da instância .de· narração, logo, np ·momento mais
tardio possível: «Canta, deusa».· tra,!a d'~.um simples_reg.ress·o ao presente, lllas de uina antecipação
· (21) Pléíade, p. 674. (evidentemente subJectwa) do presente no passado;·.E estâ,.pois,

36
subordinado a D ·como ·D à C, sendo ü alitónomo, ·como A. F · ·. A análise das relações sintácticas. (subordinação e coordenação)
leva-nos pará a posição 1 (o passado) por .sobre a antecipação E: entre os segmentos permite-nos agora substituir à nossa primeira
simples retomo outra· véz, mas retomo a I,. isto é, ·a. uma posição fórmula, .. que. continha simplesmente as posições, uma segunda,
subordinada. G é· de novo lima antecipação, mas esta. objectiva, que faz súrgir as relações e os encaixes: . .
pois o Jean de outrora ·precisamente não previa o fim por vir d.o ,,• :' . . . . .
seu amor como indiferooça, mas como melancolia de já não amar. . A2 [BI] C2 [Dl {E2) Fl (G2) Hl] 12
H, como F, é retorno simples a 1. I, enfim,· é {como C) retorno
simples a 2, isto é, ao ponto de.· partida. ... Vê-se aqui ciitramente a qiferença de estatuto entre os segmen-
Este breve fragmento oferece, pois, uma amostra muito variada tos A. C o I, por um lado, E e G do outro, qu~ ocupamto?os
das diversas relações temporais possíveis: retrospecções subjec- a mesma posição temporal, mas não o mesmo mvel h1erárqmco.
tivas e objectivas, antecipações subjectivas e objectivas, simples Também se vêque as relações dinâmicas (analepses e prolepses)
_retornos a cada uma das duas posições. Como a distinção entre se situam nas abe~ttiras dos parêntesis rectos e dos parêntesis
anacronias subjectivas e objectivas não é de ordem temporal, curvos, correspo'lldendo os fechamentos a simples. retornos_. Obser-
mas releva de outra·s categorias, que iremos encontrar no capítulo va-se, finalmente,. que o fragmooto estudado aqm é perfeltamente
i. do modo, vamos· por agora neutralizá-là; por outro ·lado, para fechado; sendo em cada um dos níveis escrupulosamente reintegra-
' evitar as conotações· psicológicas . ligadas ao emprego de termos das as posições de partida: veremos que nem sempre é esse o
como «antecipação» ou <<retl·ospecção», que evocam espontanea, caso.·. Não há .dúvida que. as rehções numéricas permitem distin-
mente fenómenos subjectivos, eliminá,los"emos na maior parte das guir ás analepses e as prolepses, mas ré possível e~plicitar melhor
vezes em proveito de dois termos mais neutros: designando por ainda. a !fórmula, assim como: · ·
prolepse toda a manobra narrativa consistindo em contar ou evo-
car- de antemão um acontecimento ulterior, e por analepse toda a
ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da. his:
tória em que.se .está, reservando o termo geral de anacronia para
· A2. . [A] Bl · C2
~

[DI
A
(E2) FI {G2)
p p
~

Hl] 12
dysignar quaisquer formas de discordância entre as duas ordens .t
temporai.s, que, veremos, se não ··reduzem inteiramente à analepse
e à prolepse{"}. 'Este fragmento apresentava a vantagem (didáctica) evidente
·de -uma estrutura temporal reduzida a duas posições: é essa uma
situação muito rara, e, antes de abandona·r o nível micro-narra-
·tivo, rétiraremos de Sodome et Gomorrhe,(23 ) um texto.muito mais
(22) Enimmos aqui nos embaraços (e nas penas) da· terminologia. complexo (ainda que o reduzamos, como o ·Vamos fazer, à:s suas
Prolepse e analepse apr<isentam a· vantagem de entrar, pelo reu radlcal, 'posições temporais mais màssivas, deixando de lado certas nuan,
.numa famHia gramático-histórica da qual alguns membros·.·nos servirão ces), e que ilust-ra ·bem a ubiquidade .temporal característica da
mais.üJrde,. ~,.por.outro lado,. haveTemos de jogar com: a_oposição:entre
essé radical -lepse, que designa em grego o facto de agarrar, donde, narra- .narra-tiva proustiana .. Estamos 'na noite em casa. do principe de
tivamente, de tomar à sua conta e de assumir (prolepse:· agarrár' adianta- Guermantes; Swann acaba de contar .a Ma·rceLa oonversão do
dameat:); analep3e: · agarrar .uiteriorme.rite),· e o radicwl -lip.Se- (com:o-· em príncipe ao dreyfusismo, no que, com ingénua parcialidade, vê
elipse ·ou paralipse), que designa, pelo contrário,· o. facto .de. 'deixar, de uma. prova de inteligência.· Eis como se encadeia a narrativa de
passar em . silêncio. Mas nenhum prefixo tirado do gr.ego . nos permite
sobrtiJiassar a oposição profana.. Donde o recurso à anacronia,. que ·é ., ..
perfeitamente claro, mas que sai do sistema; e cuja ·interferência de pre-
com
fixo. analepse -é importuna;. Importuna mas significativa. .. . (23) . IÍ, p. 712-7B. ·

38 '39
t.;farcel (marco por meio de u •. -. .,.
distmguindo). . · . _- · ma letra o 111ICIO de cada segmento
Distinguiram-se aqui, pois (ainda uma vez muito· grosseira'
. (A)Swann achava agora indisti~ta . ·. . ....· . mente e a título puramente demonstrativo), quinze segmentos
os que eram da sua 0 . -~ · . . mente mtebgentes .todos narrativos, repartidos por nove posições temporais.- Essas posições I
G{lermantes, e o meu ~~n:::::; o seu velho amigo prtndpe de
,1;
são as seguintes, na ordem eronológica: L• a_ guerra de 70;
mantido à distância {C) eada Bloch, (BJ que. tinha até aí :2.• a infância de Mareei em Combray; 3.• antes da nóite Guer-
(~) Swann interessou muito Jt~e co'!vidou para almoçar. mantes; 4.• a noite Guermantes, que se pode .situar ein · 1898;
czpr; de Guermantes era dreyfus ~h dHrzend~-lhe que. o prin- 5.• o convite da Bloch ;(necessariamente posterior a essa noite, da
OSSll1flf as nossas liMas pro' P' a~ . « . avena que propo.r-lhe qual Bloch esteve ausente); 6.• o almoço Swann-B!och; 7.• a redac-
s · · · · · zcquart· com •
;eu, rsso tena um efeito fdànidáv l , M ·. um nom~ como o ção do codicilo; 8.• as exéquias de Swann; 9;~ a guerra da qual
.· a_ sua ardente convicção de i ·. el:» as Swann, rmsturando Françoise «encara a perspectiva», que, em rigor, !lão ocupa qual-
tz.ca do mundano (E) d - sra~ ua a moderação diplomá- quer posição definida,, dado ser puramente_ hipotética, mas que se
hábi'tos (F) para deles tãoei/tdr; tmha ganho por demais 'os pode identificar, para a situar no tempó e simplificar as coisas
- a autorizar Bloch a enviar· ~m;ntr; se ~esfazer, recusou'se
1

modo espontâneo uma · · l 110 rmczpe, amda que como de


com a guerra de 14-18. A fórmula das posições será, então, a
seguinte:
f. a~er isso,.. não. se· deve crrcu ar para · ·
pedir .o i . as~mar. «Ele não pode
- - .
. . Ezs um homem encanttK!o. .. . mposszvel, repetia Swann. A4-B-3-C5-D6-E3-F6-G3-Hl-I7-J3-K8-L2-M9•N6-04
lhas para vir até n""s p dr, que se deslocou milhares de mi-
. u. · · o e ser-nos m 't , -. . ·
a v_ossa ü~ta, comprometer-se-ias' l uz o utz 1. Se_ assinasse _Se se comparar a estrutura temporal deste fragmento c0m a do
sena castigado por nossa zmp esmente perante os seus precedente, dar:se-á conta, para além de _um número maior de
suas conjidênciàs, e não causa,! ar~epender-se-ia, talvez, da; posições, de um encaixe hierárquico muito mais complexo, pois,
Swann recusou 0 seú pró as_votana a fazer.» Mais ainda por exe.mplo, M depende de L, que depende .de K, que depende
mais para fazer bom efeJ:~lOA1~me. ;4-chava-o hebraico de: de I, que depende da grande .prolepse D-N, Por outro lado, certas
. . o que respeitava à revisão ~ão em d:sso, . se aprovava tudo anacronias, como B e C, justapõem-se sem regresso impUcito à
~a campanha antimilüarista' U quena mzsturar-se em nada po;oição de base: estão, portanto, ao mesmo nível de subordinação,
· tenha feito, a condecoração (s/ava, (GJ 0 que até então nunca e simplesmente coordenadas entre si. Enfim,_ a passagem de CS
. . soldado da guarda ·nacional . qu~ tmha ganho quando jovem a D6 não faz uma .efectiva prolepse, dadoque nunca se voltará à
testamento um códic'lo ' em ~· {l) e acrescentou ao seu · posição 5: constitui, pois, uma simples elipse do tempo decorrido
· . ' ' para pedzr q · (J') . ··
.. as suas drs.posições precedentes, {K) ue, ~~rarzamente entre 5 (o convite) e 6 (o almoço); a elipse, ou avanço sem recuo.
. prestadas ao seu g·rau de l . honras .mzlztares fossem não é, de modo evidente, uma anacronia, mas uina simples acele-
· cava ezro da Le ·~
· qu;: Juntou à volta da Igreja de C grao de Honra. o ração da, narrativa, que estudaremos no capítulo da duração:
. drao (L) daqueles cavaleiros sobre o ombray todo u;n esqua- rufecta o mesmo tempo, mas não nos casos específicos da ordem,
.chorava Françoise~ quando enc futuro dos quazs outrora que é apenas o que aqui nos interessa; não marcaremos, então,
uma guerra. (N) Enfi'm ·Sw arava (M) a perspectiva de essa passagem de C a D por um parêntesis recto, mas por simples
Bl h · . .· • · ann recuso · -· - .
oc • de. manerra que,- se passava . u asszl1flf. a czrcular de hífen, que indic(lrá uma pura • sucessão. Eis então a fórmula
aos olhos de muitos- 0 me por.dr.eyfusard assanhado completa: -
tado d · · ' u camarada achou
· e naczonalismo e militarão (O) S -o •n:orno, infec-
me apertar a mão para não ser abri Wtmn d(i!;>;OU:me -l'em A4[B3]' [Cs•D6(iE3)F6((}3){Hl)(I7 <J3><K8(L;2<M9 >)>
gado a. fazer adeuses, etc. . >)N6]04
40
41

___
-----------· ------ ·----------------·--------·-· ____ .J
,
'
. ,<\.bandonaremos agora o nível micro-narrativo para considerar toda uma vertente da sua infância («de. Combray, tud? o que não
a estrutu~a. temporal da Reçherçhe tomada nas suas grandes arti·· era o teatro e o drama do meu deitar») que até aí ~mha perm~,
!ações. É claro que uma aná'lise a este nível não pode dar conta necido enterrado (e conservado) num·apatente esquecimento: D5 ·
de pormenores que relevam. de 11ma outra escala, e que procedi:i, Sucede-lhe então um quinto segmento, ~e~ndo regresso a Çom-
pois, de. uma •simplificação \las mais grosseiras: passarrios aqui .da bray,. mas muito n,ais vasto que o pnmeJ.~o na sua a~phtude
micro-estrutura: para a macro-estrutura. · . temporal, pois, desta vez, cobre (não sem ehpses) a totalidade. ~a
O primeiro segmento temporal da Recherche, a que .são con- infância combraysiense. Combray. li ,(pp. 48 a 186) será, po1s,
sagmdas as primeiras seis. páginas do livro, evoca um momento para nós E2', contemporâneo de B2: m~s d~!e transbordando
impossível de datar com precisão, mas situado muito tarde na vida largamente, como C5 transborda de e mclm D5: ._ ... , .
do herói{"), na. $oca em. que, por se c!eitar cedo e sofrer de O sexto segmento (pp. 186-187) !faz retomo a pos1çao_ .s (mso-
insónias, passava a maior parte d.as su'as noites a rememorar o nias): F5, portanto, que serve mais uma vez de tra_mpolun para
. _passado. Este primeiro tempo na ordem narrativa está, pois, longe nova analepse memori~l, cuja posição.~ a mais an!lga de todas,
de ser o primeiro na ordem de diegética. Antecipando· o segui- .pois anterior ao, nasc1mento do herm: . Un anwur de Swann
méinto da análise, afectemos-lhe desde já a posição 5 na história. (pp. 188 a 382), sétimo segmento:. Gl. . , . _
Logo: A5. · Oitavo segmento, muito breve regresso (p. 383) a .pos19ao
O segundo segmento ,(pp. 9 ·a 43), é a narrativa que o narrador das insónias, logo HS, que de nov·o abre uma analepse, desta vez
faz, manifestamente inspirado emlbora pelas recordações do ·herói abortada, mas cuja .função de anúncio _ou de pe?ra ?~ espe:a é
insone. (que preenche aqui. a função daquilo que Mareei Muller .manifesta para o leitor atento: a evocaçao em mem pagma .(a1nda
chama(") o sujeito intermediário), de um episódio muito circuns- p. 383) do quaorto de Mareei em Balbec: nono segmento, 14, a
crito mas muito importante da sua infância eni Combray: a famo'sa que imediatamente se coordena, desta ve:z ·sem regresso percep,
cena do que denomina «o drama do deitar(-se)», no decurso do tível ·à estação {relais) das insónias, a "!-arrativa (igualmente ~etros­
quaol a . mãe, impedida pela visita de Swann cie lhe conceder. o pectiva em relação ao ponto de partrda) dos sonhos de vmgem
ritual ibeijo da noite, acabará -«primeira abdicação» decisiva - do herói. em Pa·ris, muitos a,nos antes da sua estada. em Balbec;
por ceder. às suas instânçias .e passar a noite junto dele: B2. · .. 0 décimo ·segmento será, pois, J3 :, adolescência paris~ense, amores
• .1 O terceiro segmento (pp. 43-44) reconduz-nos muito breve- com Gilberte, convivência com Mme Swann, depors, após uma
mente a posição. 5, a das insónias: C5. O seguinte é provável elipse, primeira estada em Balbec,. ·regres~o a Paris,, entrad.a. no
situar-se àlgures no interior desse período, pois que. determina uma meio Guermantes, etc.: doravante o movJIDento esta adqmndo,
modificação no .conteúdo dasinsónias !("): é o episódio da .madà- e a narrativa, nas suas grandes articulações, torna-se praticamente
!ena (pp . .44.a 48), no decurso do qual o .herói vê restituir-se-lhe regular e conforme à ordem· cronológica- de· ta~ modo. que se
pode considerar, ao nível de análi-se em que aqm· no,s \Sttuamos,
. (24) .Çom efeito, um dos quartos evocados· é o de· Tansonville; · oride
que o segmento J3 é extensivo a toda a continuação (e fim) .da
Mareei dormiu .. apenas no decurso da .permanência contada no fim da Recherche. . . . .
Fugitive e no. começo do .T.emps retrouvé. O período das insónias, neees- . A -fórmula deste começo .é, então, segundo as nossas conven-
sariamente posterior· a· essa permanência, pOOeria coincidir com· uma e/ou ções anteriores: ·
a outra dessás curas em casa de saúde que· se seguem · e enqúadrairi o
episódio P~<ris em guerra (1916). ' ·· · ' AS [B2] C5 [D5' (E2)] F5 [Gl]H5 [14] [J3 ...
(25) Les Voix narratives, primeira parte, cap. 1I, e passim. Sobre a
distinção entre herói e. narmd(>r, voltarei .a ela no último ,capít!]lo. Assim, a Recherche du temps perdué inaugurada por: um mo-
o
·(26) · Após a madalena,' CombTay «total>> ficarã· integrado nas recor-
vimento vasto de· vaivém a partir de uma posição-chave, -.. estrit-
dações do insone. .

'42
43
tegicamente dominante, que é evidentemente a posição 5 (insônias) veremos em Jean Santeuil, e que dá ao narrador tempo de colocar
com sua variante 5 (mad1rlena}, posições do «sujeito intermediário», a voz. Aquilo que faz a particularidade do e!'órdio da _R_echerche
insone ou miraculado da memória involuntária, cujas lembranças é. evidentemente, ·a multiplicação das instâncms memonats, e, por
coinandam a totalidade da narrativa, o que dá ao ponto 5-5' ·a sequência, a multiplicação dos começos, sendo que ca?a um. ~ex­
função de uma espécie de obrigatória estação, ou- se ousarmos cepto o último) pode depois aparecer como um prólo~o mtroduttvo.
dizer~ de dispatching narrativo: para passar de C ombray I a Primeiro começo (começo absoluto): «Durante mmto temp_o me
Combray li, de Combray1l a Un amour de Swann, de Un.amour deitei cedo ... » Segundo começo (começo aparente da_ autobtogra-
de. Swann a Balhec, há que regressar incessantemente a essa posi- fia); seis páginas depois: .<<Em Combray, todos os dtas, desd~ _o
ção, central embora excêntrica (dado que ulterior), cuja pressão fim da tarde ... » Terceiro cbmeço (entrada em cena da memona
só cessa de vigorar na passagem de Balbec para Paris, apesar involuntária), trinta e quatro páginas depois: «E é assim que, por
deste último segmento (J3) estar do mesmo modo (enquanto muito tempo, quando, acordado de noite, relembrava ~oll!b_r~y ...»
coordenado ao precedente) subordinado à actividade memorial do Quarto começo {retomada após a madalena, verdade~ro mtcro da
sujeito intemiediário, e ser, logo, igualmente anaiéptico. A dife- autobiografia), cinco páginas depois: <<Combray, de longe, a _dez
rença-:- sem dúvida capital- entre essa analepse e todas as pre- léguas em redor ... » Quinto começo, cento e quarenta págmas
cedentes é que esta se mantém aberta, e que a sua amplitude se depois: ab ovo, amor de Swann i(novela exempla~ se a houv~sse,
confunde corri a Recherche quàse toda: o que significa, entre arquétipo de todos os amores proustianos), nasctmentos coDJ?~­
outras coisas, que atingirá e ultrapassará, sem o dizer e comó que tos (e ocultados) de Mareei e de Gilberte («Confessaremos, dma
sem· o ver, o seu ponto de emissão memorial, aparentemente
aqui Stendhal, que, seguindo o exemplo de ~Jpitos e gr~ve;s _auto~
sumido numa das suas elipses. Adiante voltaremos a esta parti-
res, começámos um ano antes do seu nasctmento. a histon~ do
cularidade. Retenhamos apenas, por agora, esse movimento de
nosso herói» - não é Swann para Mareei, mutatzs mutandz~ e,
ziguezague, essa gaguez inicial, e como que iniciática, ou propi-
ciatória: 5-2-5-5'-2'-5-1-5-4-3 ... , e ele próprio já contido, como o espero, em bem. e ein. honra (21 ), aquilo que. o tenente Rober.t é
resto, na célula embrionária das seis primeiras páginas, que nos para Fabrice de! Dongo?) Quinto começo, p01s: «Para ·fazer parte
passeiam de quarto a quarto e de era em era, de Paris para Com- do "nucleozinho" do "grupinho", do "clãzinho" dos Verdurin ... »
bray, de Doncieres para Ba:lbec, de Veneza para Tansonville. Sexto começo, c;nto e noventa e cinco páginas depois: «Entre_ os
Hesitação não imóvel, .de resto, apesar dos seus incessantes recuos, quartos de. que evoquei mais veze~ a ima!gem ~~s minhas n01tes
pois, graças a ela, a um Cambray I pontual sucede o mais vasto de insônia ... », imediatamente segmdo de um selim(), e .portanto,_ ..
Combray li, um Amour de Swann mais antigo mas de movimento como se deve, último começo: «mas nada se parecia menqs, tam-
já iHeversfvel, um Nom de pays:.' /e Nom, enfim, a partir do qual bém, com esse Balbec real que aquele com que tanto tinha. so,
a narrativa, definitivamente, assegura a sua marcha e encontra· o nhado ... » Desta vez, o movimento está lançado: não parará mais.
seu regime. · ·
Essas ruberturasde complexa estrutura, .e como que mimando,
para melhor a exorcismar, a dificuldade do começo, estão aparen-
temente na tradição narrativa mais antiga e mais constante: notá.-
mos já a partida em. caranguejo da 1/íada, e deve recordar-se aqui <!') Mas nã<:>, é o ·papel de Swann na.. cena ~o. deita; tipicamente
paternal?· Ao fim e ao cabo, é ele quem pnva ·a cnança da pre~ença. da
que à convenção do começo in medias res Se acrescentou ou so- mãe. o pai legal, pelo contrário, mostra-se _de um cul~~do •!axlsmo, de
brepôs durante toda à épóca clássica à dos encaixes narrativos uma complacência gozadora e .suspe1ta: ·<<Val com o mmdo». Que con-
(X conta .que Y .conta que.:.). que ainda funciona, como adiante cluir deste feixe? . · ·

44 45
··Alcance;·
.
amplitude
. . álguns dias. Assini definido, o estatuto das anacrónias pareêé'lião
ser' mais que uma questão de inais ou ,de ·menos, ta:rêfii de medi:
· Disse que a continuáção da Recherche adoptava nas suas grari- ção sempre espeeíifica, assunto de cronometrista sem •interesse
des articulações üma disposição conforme à ordem .cronológica; teór1co. · É toda-via possível (e, •quanto· a· mim, íítil) repartir as
mas tàl solução de .conjunto não exclui a presença de um grande caractêrfstii:as de álcánce e de .amplitude de modó discreto em
húmei'ó de anacronias de pormenor: analepses e prolepses; mas relação a certos momentos pertiitentes da· !iiatrativa. Repartição
também· outras formas mais complexas ou mais subtis, talvez essa que se aplica de modo sensivelmente idênti7ó às duas gra~­
mais específicas da narrativa ptoustiana, em todo o caso mais · des Classes de anacrónias, mas que, para comod1dade da exposi-
afastadas ao mesmo tempo da cronologia <~real>> e da temporali- ção e para evitar ó risco de uma abstracção demasiada, operar<?
dad~ narrativa clássica. Antes de abordar a análise dessas anacro- mos primeiro exclusivamente sobre as .analepses; o que não quer
nias, precisemos bem que se trata apenas de uma análise tempo- dizer que seguidamente se não alargue o processo. ·
. ral, e ainda reduzida às questões de ordem somente, feita abstrac-
ção por enquanto da velocidade e da freq uência, e a fortiori das
características de modo e voz que podem afectar as anacronias Analepses
tanto. como . a qualquer outra ·espécie de segmentos narrativos.
Peixar-se:á de. lado aqui, de modo particular, uma distinção capi- Toda a anacronia. constitui,· em relação ,à narrativa na qual se
tal que opõe as anacronias directamente assumidas pela narrativa, insere-:-: na qual se .enxerta - uma .l).arra:tiva temporalmente .se•
e que ficam, pois, ao mesmo nivel narrativo daquilo que as rodeia gunda, subordinada à primeira, nessa espéCie de sintaxe narrativa
(exemplo, o~ versos 7 a 12 da llíada, ou o segundo capitulo de que encontrámos qüando da análise, tentada acima; deum muito
César Birotteal}), e aquelas que uma das personagens da narra• curto fragmento de Jean Santeuil. Passaremos a chamar <<narra:
tiv;t primeira tori:út a ·seu cargo, e que se encontram, portanto, a tiva primeira» ao nível. temporal de narrativa em· relação ao 9-ual
um nivel narrativo segundo: exemplo, os · cantos IX a XII da uma anacronia se define enquanto taL Claro .que- e nós Já: o
Odisse!a (narrativa de Ulisses), .ou a autobiografia de Raphael de verificámos- os modos de encaixe podem ser mais complexoS, e
V~lpntrn na segunda parte da Peau de chagrin. Reencontraremos, queumá anacroniapode figurar comonarrativa primeira em rela-
evidentemente,. essa questão, que não é especifica das anacronias ção· a uma outra: qUe, por seu turno, suporta, e, mais geralmente,
apesar de .'lhes dizer ein primeiro lugar respeito, no capítulo da em relaÇão a uma an:lcronia, o éonjunto do contextopode ser
voz narrativa. · ' . · , · considerado como narrátiva 'Primeira. . . .•. . ...... ,
· Uma anacronia pode ir, no passado como no futuro, mais ou A narrativa do ferimento de 'Ulisses reporta-se a um episódio
menos longe do momento «presente», isto é, do momento da. his: · inuito evidentemente anterior ao ponto de partida temporal da
tória em ·que a narrativa se· interrompeu para lhe dar lugar: cha- «narrativa prim~raJ> da Odisseia, ainda que, segundo ta1 prindpio,
maremos alcance da anacronia a essa distância temporal. Pode se englobe nessa noção a narrativa retrospectiva ,de Ulisses aos
i_gualm.ente recobrir uma duração de história mais ou menos longa: Feácios, que remonta à queda de Tró}a. Podemos, pois, qualifi7ar
e aqmlo a que chamaremos a sua amplitude. Assim, quando de externa aquelaanalepse cuja amplit1Jde totalpermaJ1ece e_xtenor
Homero, no canto XIX da Odisseia, evoca as circunst§cncias em à da narrativa primeira. Outro tanto se ditá, pór exemplo, dó se-
que Ulisses, adolescente, .recebeu oUtrora· o ferimento do qual gundo capítulo de César Birotteau, cuja história, como claramente
conserva ainda a cicatriz no momento em que Euricleia se apresta indica a seu título (<<Os antecedentes de Oésar Birotte<tu»), precede
para lhe Iavar os pés, essa amilepse, que ocupa os versos 394-466, o drama aberto pela cena .no.c;turna .do primeiro capítulo. Inversa-
tem um alcance de várias dezenas de anos e uma amplitude de mente, quamicaremos como analepse interna . '0 captíulo seis de
46 47
M.adame Bovary, consagrado aos anos de convento de Emma, tulo já citado; ou sobre· uíná personágeni ,perdida de vista desde
evidentemente posteriores. à entrada de Charies no liceu, que é o há algum tempo e com cujo passado recente é preciso contar, como
ponto qé arranque do.romance; OU, ainda, o princípio de Souf~ é o caso de David no início de Souffrances de l'inventeur. São
trances de finventeur (28), que, após a narrativa das aventuras essas, talvez, as !funções mais tradicionais da analepse, e .é evi-
o
parisienses de Lucien de Rubem pré, serve para informar leitor dente que a coincidência temporal não acarreta,. neste caso, uma
daquilo que foi entrementes a vida de David Séchard em Angou- verdadeira intel1fetência narrativá: assim, quando, à entrada do
Iême. Podem também conceber-se, e por vezes se encontram, ana- principe de Farfenhe~m no salão Vilie>parisis, uma digressão retros-
lepses mistas, cujo ponto de alcance é anterior e o ponto de ampli- pectiva de algumas páginas (' 0) nos revela as razões dessa pre·
tude posterior ao começo da narrativa primeira: como a história sença, ou sejam as peripécias da candidatura do .príncipe à Aca-
de Des Grieux em Manon Lescaut, que remonta a muitos anos demia das Ciências morais; ou quando, ao reencontrar Gilberte
antes do primeiro encontro com o Homem de Qualidade e prosse- Swann transformada em MIJe de Forcheville, Mareei faz com que
gue até ao momento do segundo encontro, que é também o da lhe expliquem as razões dessa mudança de nome ( 81). O casa-
narração. mento de SwaJnn, os de Saint-Loup e do «petit Cambremer», a
Esta distinção não é tão fútil quanto pode parecer à primeira morte de Bergotte (") vêm assim ligar-se à linha principal da his-
vista. Com efeito, as analepses externas e as analepses internas tória, que é a autobiografia de Mareei, sem de modo nenhum
1
(ou mistas, na .sua parte interna) apresentam-se de um modo .com- inquietar o privilégio da narrativa primeira. .
pletamente diferente a uma análise narrativa, pelo menos num É muito dif·erente a .situação das analepses internas homodie.-
ponto, que me parece capital. As analepses externas, pelo simples géticas, isto é, que se referem à mesma linha de acção que a narra·
facto de serem externas, não correm em nenhum momento o risco tiva primeira. Aqui, o risco de interferências é evide>nte, e mesmo
de interferir com a narrativa primeira, que têm simplesmente por aparentemente inevitável. De facto, temos de distinguir aqui duas
função. completar, esclarecendo o Ieitor sobre. este ou aquele «ante- categorias.
cedente»: é, evident~mente, o caso de alguns exemplos já citados, A primeira, a que chamarei ana,Iepses completivas, ou «reen-
e é ainda, .de modo igl,la}mente típico, o de Un amour de Swann vios» [renvois]. compreende os segmentos retrospectivos que
na Recherche du temps · perdu. Já não é o mesmo o caso das ana· vêm preencher mais tarde uma lacuna anterior da narrativa, a
lepses internas, cujo campo temporal está compreendido ho da qual se organiza, assim, por omissões provisórias e reparações
narrativa primeira, e que apresentam um risco evidente de redun- mais ou menos tardias, segundo uma lógica narrativa parcialmente
dância ou de colisão. Temos, pois, que cohsiderf!r de mais perto independente da passagem do tempo. Tais lacunas anteriores
esses problemas de interferência. podem ser elipses puras e simples, ou sejam, falhas na continui-
· Começaremos por ,pôr fora de causa as analepese internas que dade temporal. Assim, a estada de Mareei em Paris em 1914,
proponho denominar heterodiegéticas ("), ou seja, reportando-se contada ·por ocasião de uma outra estada, .esta ·em 1916, vem
a. uma -linha de história, e, logo, a .um conteúdo diegético diferente preencher parcialmente a elipse de vários «longos anos» passados
do (ou dos) da narrativa primeira: ou seja, muito classicamente, pelo herói numa casa de saúde(");. o encontro da Da:iná de cor-
sobre uma nova personagem introduzida, da qual o narrador quer -de-rosa no apartamento do tio Adolphe (") abre a meio da narra·
t::Sciarecer os <<antecedentes», como Flaubert para Enna no capí;
(30) li, pp. 257-263.
(31) III, pp. 574-582.
(32) I, pp. 467471; III, pp. 664-673; III, pp. 182-188.
(2l') 11/usions perdues, Garnier, ·pp. 550-643. (33) III, pp. 737-755, cf. p. 723.
(19): Figures li, p. 202. · (34) I, pp. 72-80.

48 49
4
tiva combraysiana uma porta que dá para a face parisiense da última aparição de Swann (o serão de Guerma,ntes) e o dia do.
infância de Mareei, com essa excepção totalmente oculta, até à ter- 'concerto Charlus-Verdurin em que se insere a notícia retrospec•
ceira parte de Swann. É, evidentemente, em dacunas tempora!s tiva da sua morte .(37): tem, pois, que supor-se que esse aconteci-
deste tipo que se deVem {hipoteticamente) colocar certos. aconteci- mento muito importante na vida afectiva d~ Mareei {<~A mo~~ de
mentos da vida de :Mareei que apenas nos são conheCidos atra~ Swann tinha-me à época transtornado») f01 lateralmente omitido, '
vés de breves alusões retrospectivas: uma viagem à Alemanha em paralipse. Exemplo mais claro ainda: o fim da paixão de Mar- I',,
com a avó, anterior à primeira a Balbec, uma estada nos Atpes eei pela duquesa de Guermantes, graças à intervenção quase mi-
anterior ao episódio de Donciêres, uma viagem à Holanda ante- raculosa da sua mãe, constitui objecto (") de uma narrativa
rior ao jantar Guermantes, ou ainda- s.ensivelmente mais difíceis retrospectiva sem precisão de data {«Certo dia ... »); ma~, como
de localizar, considerando a duração do serviço naquela época- se fala da avó enferma no decurso dessa cena, tem obv~amente
os anos de serviço militar evocados de passagem durante o último que se situá-la antes do segundo crupítulo de Guermantes li (p, 345);
passeio com Charlus ("). Mas. há ainda uma outra espécie de la- mas ta:mbém, cla.ro, depois da 'página 204, onde se vê que Oriana
cunas, de ordem menos estritamente temporal, que consiste já não ainda se lhe não <<.tornou indiferente». Não há aí nenhuma. elipse
na elisão de um segmento diacrónico, mas na omissão de um dos temporal detectável; Mareei omitiu, portanto, o relato a tempo
clementos constitutivos da situação num período em princípio desse aspecto todavia capital da sua vida interior. Mas o caso
coberto pela narrativa: ou seja, o facto, por exemplo, de contar mais notável, ainda que raramente considerado pelos críticos, tal-
a infância ocultando sistematicamente a existência de um dos vez porque se recusem a tomá-lo a sério, ·é o dessa misteriosa
membros da sua família (o que seria a atitude de· Proust para <~priminha» de quem vimos a saber, no momento em que Mareei
com o seu irmão Robert se se tivesse a Recherche por uma autên- dá a uma alcoviteira. o canapé da tia Uéonie (39), que foi com ela
tica autobiografia). Ai, a narrativa não salta, como na elipse, por que conheceu, sobre aquele mesmo canapé, «pela primeira vez
cima de um momento, passa ao lado de um dado. Esse género de os prazeres do amon>; e isso em mais lado nenhum, além de Com-
elipse lateral terá o nome, conformemente à etimologia e ~em bray, e numa data bastante antiga, já que se precisa que a cena
grande entorse do uso retórico, uma para/ipse {"). Como a elipse '•:
de «iniciação {")» se passou <<Uma hora em que a minha tia Léo-
temporal, a paralipse presta-se, ·evidentemente, muito bem a?' pre- nie estava levantada>>, ·e se srube num outro ponto que nos últimos
enbhimento retro~pectivo. Assim, a: morte de Swann, ou, ma1s pre- anos Léonie já não saía do quarto (41). Deixemos de [ado o valor
cisamente, o seu efeito sobre Marcel (pois •essa morte em si mesma temático provável dessa confidência tardia, e admitamos mesmo
poderia ser tida por eiterior à autobiografia do herói, e, logo, que a omissão do acontecimento na narrativa de Combray releva
.por heterodiegética). não foi contado em seu tempo, e, contudo,
nenhuma elipse temporal poderá. ter lugar, em princípio, entre a
(") III, pp. 199-201; a menos que se considere como uma elipse o ···I·'
tratamento iterativo dos primeiros meses de vida comum com Albertine
(35) I, p. 718; li, p. 83; li, p. 523; III, p. 808. Supondo, claro, que no ·início da Prisonniere.
se tomem integralmeilte a sério tais informações retrospectivas, o que é a (38) li, p. 371.
[ei da análise narrativa. Já o crítico pode .també'm considerar .tais alusões (39) I, p. 578.
como lapsos do autor, em que, talvez, a biografia de Proust se projecte · (40) «Prima (uma miúda). A minha iniciadora: I, p. 578», nota, imper-
momentaneamente sobre a de Mareei. turbável e preciso, o [ndex dos nomes de pessoas de Clarac e Ferré.
(36) A paralipse dos retóricos é mais uma falsa omissão, de outro modo (41) É verdade que tem dois quartos, contíguos, passando para um
dita preterição. Aqui, a paralipse enquanto figura narrativa opõe:se à enquanto se areja o outro, (I, p. 49). Mas, a. ser assim, a cena torna-<>e
elipse como deixar de lado a deirar no sítio. Viremos adiante. a reencóntrar das mais arriscadas que pode hav.er. Por outro lado, não há relação clara
a paralipse como .fa:cto de modo. · entre esse «canapé» e a cama descrita na página 50, ·com a sua colcha

50 51
de pura elipse temporal: a omissão da personagem no quadro de permanência, por ordem do médico, tinha tido que fazer todas as
família, essa,· não po'de definir-se senão como uma paralipse, e. o manhãs até ao meio-dia, enquanto as suas jovens amigas se pas-
seu valor de censura vê-se assim acrescentado. Essa priminha no seavam no dique cheio de sol, e se declarava sob as suas janelas
canapé será para nós, pois - cada idade tem os seus prazeres -: o concerto matinal: aqui, mais uma vez, uma analepse iterativa
analepse sobre para lipse. vem preencher uma elipse iterativa- permitindo assim a essa
Considerámos até aqui a localização (retroactiva) das ana- parte da Recherche terminar, não em cinzas de um regresso triste,
lepses como se se tratasse sempre de um acontecimento único a mas na gloriosa suspensão- musical, dourada- de um inalte-
colocar num único ponto da história passada, e, eventualmente, rável sol de estio.
da narrativa anterior. Na realidade, certas retrospecções, ainda
que consagradas a acontecimentos singulares, .podem remeter para Com o segundo tipo de analepses (internas) homodiegéticas, a
elipses iterativas 1("), ou seja, que se referem,· não a uma só das que chamaremos p~ecisamente analepses repetitivas, ou rappels,
fracções de tempo passado, mas a várias fracções, consideradas já não escaparemos à redundância, pois aí a narrativa regressa
como semelhantes. e de alguma maneira repetitivas: assim, o en- abertamente, e por vezes explicitamente, ao que foi dito. Ê claro
contro com a -Dama de cor-de-rosa pode remeter a um qualquer que essas ana,lepses em rappei raramente podem atingir dimen-
dos dia:s de Inverno em que Mareei -e os seus pais viviam em sões textuais muito vastas: são antes alusões da narrativa a\> seu
Paris, num ano qualquer anterior ao seu desentendimento com próprio passado, aquilo a que Lammert (") chama Rouckgriffe, du
o tio Adolfo: acontecimento singular, sem dúvida, mas cuja loca- «etrocepções». Mas a sua importância na economia da narrativa,
lização nos surge como da ordem da espécie ou da classe (um sobretudo em Proust, compensa largamente a sua fraca extensão
Inverno) e não do indivíduo (certo Inverno). Ê assim, a fortiori, narrrutiva.
quando o acontecimento contado ·por amdepse é já de si de or- Têm evidentemente que contar-se entre os rappels as três
dem iterativa. Assim, nas Jeunes filies en fleurs, o dia da pri- reminiscências devidas à memória involuntária no decorrer da
meira apa-rição do «grupinho» termina com um jantar em Rive- manhã Guermantes, e que (contrariamente à da madalena) reme-
belle que já não é o primeiro; esse jantar é para o :narrador uma tem todas para um momento anterior da narrativa: a permanência
ocasião de retorno à série precedente, em que numa só vez conta em Veneza, a paragem no caminho-de-ferro em frente de um ren-
todos os jantares anteriores (40): é claro que a elipse preenchida que de árvores, a primeira manhã face ao mar em BaJbec ( 4 '). Tra-
por essa retrospecção não pode, -por sua vez, ser senão iterativa. ta-se aí de rappels no estado puro, voluntariamente escolhidos
Do mesmo modo, a analepse que !fecha as Jeunes. filles, último olhar ou inventados· pelo seu carácter fortuito e banal; mas esboça-se,
sobre Balbec depois do regresso a Paris (44 ), refere-se, de modo sin- ao mesm~ tempo, uma comparação do presente com o passado:-
tético, a toda a série das sestas que Mareei, durante toda a sua cornparaçao por uma vez reconfortante, já que o momento da
reminiscência e sempre ewfórico, mesmo se ressuscita um passado
em si doloroso: «Reconheci que aquilo que me parecia tão agra-
de .flores de «odor mediano, gordurento, ·insípido, ind-igesto e de fmtas» onde dável era o mesmo renque de árvores que já tinha achado fas-
o muito jovem Mareei, «com um apetite aceso e inconfessado» voltava tidioso de observar e descrever (").» Ê, ainda, a comparação entre
sempre a en.fiar~se. Deixemos este IJ)roblema para os especi~istas, e
lembremos que em «Confession d'une Jeune. Filie», dos Plaisirs et les Jours
a <<iniciação» põe em cena a heroí-na de catorze anos e um «priminho» d~ {45) Bau/ormen. des Erziih/ens, Estugarda, 1955, 2.' parte.
quinze, «já muito vicioso» (Plêiade, p. 87). ( 46) III, pp. 866-869;
cf. III, pp. 623-655, III, p. 855 e. I, pp. 672-674.
(42) Sobre o iterativo em geral, v-er adiante o ca.p. UI. ( 47) • Reco~demos que o rentimento de fastídio perante o renque de
(43) I, pp. 808-823. árvores tmha s1do para Mareei o signo da sua vocação litetáda falhada, logo
(44) I, pp. 953-955. do falhanço da sua vida. · ·· ·

52 53
:I
I

:I
duas· situações ao mesmo tempb semelhantes e di!ferentes·que fre- quer refutando uma primeira interpretação e pondo· outra no seu
quentemente motiva rappels em que a memória involuntária lugar. · . · ·
não desempenha qualquer papel: assim é quando as palavras do A primeira modalidade é designada de mod? muit~ P.reciso
duque de Guermantes a propósito da princesa de Parme, «Ela pelo próprio narrador quando escreve a propósito do mcidente
acha-vos encantador», recordam ao herói - e dão ao narrador a das seringas :("): «No preciso momento, nada vi ali que não fosse
ocasião de no-lo recordar- aqueloutras, idênticas, de. Mme de muito natural, quando muito um tanto confuso, em todo o caso
Villeparisis a propósito de uma outra «alteza», a princesa de Lu- insigniflcante», e ainda: «incidente cuja cruel significação m~ es-
xemburgo ("). Acento posto na analogia; posto na oposição, pelo capou inteiramente e só muito depois foi por mim compreendida.»
contrário, quando Saint-Loup apresenta a Mareei a sua egéria Essa significação será facultada por Andrée depois da morte de
Rachei, e ele reconhece imediatamente nela a prostitutazinha de Albertine ("), e esse caso de interpretação diferida propicia-nos
antigamente, «aquela que, M alguns anos (... ), dizia à inculca- um exemplo quase perfeito de narrativa dupla, primeiro do ponto
deira: "Então, amanhã à noite, se precisar de mim para alguém, de vista (ingénuo) de Mareei, depois do ponto de vista esclarecido
· ,ri:Jandar-me-á buscar"»(")- frase que reproduz, com efeito, qua·se de Andrée e de A\~ertine, quand~ a chave enfi?J enc~trada. '!;is-
textualmente aquela que pronunciava «Rachei quando do Senhor» sipa qualquer espécie de «confusao». Com mmto mais vastrdao,
em Jeunes filies en fleurs (' 0): «Então, está combinado, amanhã o encontro tardio de Mlle de Saint-Loup {04), filha de Gilberte
estou livre, se precisar de alguém não se esquecerá de me mandar e de Robert, será para Mareei oportunidade para uma «reto- 1'.::
buscao>, estando a variante de Guermantes por assim dizer já pre- mada» .geral dos principais episódios da sua existência, até então !:
vista nestes termos: «Ela variava apenas a forma da sua frase, perdidos na insignificância e na dispersão, e reunidos de repente, i'
dizendo: "se precisar de mim" ou "se precisar de alguém".» O tornados significativos por virtude de estarem ligados entre si, !,
rappel é aqui de uma precisão verdadeiramente obsessiva, e põe porque todos ligados à existência dessa criança nascida Swann e
os dois segmentos em comunicação directa: donde a interpolação, Guermantes, neta da Dama de cor-de-rosa, sobrinha-neta de Char-
no segundo segmento, do parágrafo sobre o comportamento pas- lus, ,evocativa dos «dois lados» de Combray ao mesmo tempo,
sado de Rache!, que parece como que arrancado ao texto do pri- mas igualmente de Balbec, dos Champs-Élysées, da Raspeliere,
meiro .. Exemplo surpreendente de migração, ou, se se preferir, de Oriane, de Legrandin, de More!, de Jupien ... : acaso, contin-
de 1disseminação narrativa. gência, arbitrário subitamente abolido, biografia de repente «apa-
Comparação, ainda, em La Prisonniere ("), entre a cobardia nhada» na rede de uma estrutura e na coerência de um .sentido.
presente de Mareei face a Albertine e a coragem que outrora Esse prinoípio de significação diferida ou suspensa {") actua
tivera perante Gilberte, quando «tinha ainda a força suficiente evidentemente em pleno na mecânica do enigma, analisada por
para renunciar a ela»: esse retorno a si confere retroactivamente Barbhes em S/Z, e de que uma obra tão scifisticada como a Re-
ao episódio passado um sentido que ainda não tinha no seu tempo. cherche faz um uso talvez surpreendente para aqueles que colo-
Essa, de facto, a função· mais constante dos rappels na Recher-
che, o vir modificar ulteriormente a significação dos acontecimen-
tos passados, quer tornando significante aquilo que o não era,
(52) III, pp. 54-55; voltando para casa com seringas, Mareei choca'
com Andrée, que, pretextando uma qualquer alergia, o impede de entrar
logo imediatamente. De facto, ela, nesse dia, estava com Albertine em
(48) li, p. 425; cf. I, ·P· 700. situação culpada. ·
(49) li, p. 158. (") III, pp. 600-601.
(50) I, p. 577. (54) III, pp. 1029-1030.
(51) III, p. 344. (55) Ver Jean-Yves Tadié, Proust et le Romàn, Gàllimard, 1971, p. 124.

S4
caro essa obra nos antípodas do romance popular- o que é ver- particular, enganava-se; nunca mais voltei a encontrar, nem iden-
dade, sem dúvida, quanto à sua significação e valor estético, mas tifiquei, a bela mpariga do cigarro (").»
nem sempre no que respeita aos seus processos. Há um lado «era Mas a utilização mais típica do rappel é, sem dúvida, em
Milady» na Recherche, quanto mais não seja sob a forma humo- Proust, aque1a pela qual um acontecimento já provido a seu
ríst!ca do «era. o m~u col~ga Bloch» das Jeunes filies, quando o tempo de uma significação vê depois essa primeira interpretação
tomtruante anti-semita sai da sua tenda ("). O leitor esperará substituída por uma outra (não necessariamente melhor). Tal pro-
mais de mil páginas antes de sa:ber, ao mesmo tempo que o he- cesso é, evidentemente, um dos mais eficazes meios de circula-
rói ("), no caso de ele não a ter já adivinhado por si, a identidade ção do sentido no romance, e dessa perpétua «reversão do pró
d~ Dama de cor-de-rosa. Após a publicação do seu artigo no
no contra» que caracteriza o aprendizado proustiano da verdade.
Fzgaro, Mareei recebe uma carta de felicitações assinada Sanilon, Saint-Loup, em Donciêres, ao encontrar Mareei numa rua, não o
escrita ~um estilo ..popular e encantador: «!fiquei desohido por não reconhece, aparentemente, e saúda-o friamente como um soldado:
consegUJr. descobnr quem me tinha escrito»; virá a saber, e nós viremos adiante a saber que o tinha reconhecido mas não tinha
com. ele, mais tarde, que se trata de 111:Jiéodore, o ex-marçano e querido parar ("). A avó, em Balbec, insiste com irritante futili-
memno do coro de Combray (58). Ao entrar na biblioteca do du- dade para que Saint-Loup a fotografe com o seu belo ohapéu:
sabia-se condenada e queria deixar ao neto uma recordação onde
q.ue de, G~ermantes, cruza-se com um pequeno-burguês provin- não se visse a sua má cara ("). A amiga de Mlle Vinteuil, a prb-
ciano, tumdo e coçado: era o duque de Bouillon (' 9)! Uma se- fanadora de Montjouvain, consagrava-se piamente, pela mesma
nhora .ins!nua-se-lhe na ;ua: virá a ser Mme d'Orvilliers (60)! No época, a reconstituir nota por nota os indecifráveis rascunhos do
combmozmho da Raspehêre uma mulher gorda e vulgar com cara septeto ("), etc. É conhecida a longa série de revelações ·e de
de alcoviteira lê a Revista dos Dois Mundos: virá a ser a prin- confissões pela qua.J se decompõe e recompõe a imagem retros-
cesa Sherbatoff (61)! Algum tempo depois da morte de Albertine, pectiva, ou mesmo póstuma, de Odette, de Gilberte, de Albertine
uma rapariga lo~ra entrevista no Bois, depois na rua, lança-lhe ou de Saint-Loup: desse modo, o jovem que acompanhava Gil-
um olhar que o mflama: voltada a ver no salão Guermantes será berte certa noite nos Champs-Élysées «era Léa vestid'a de ho-
Gilberte (")! O processo é tão frequente, faz tão manifesta~ente mem» ("); desde o dia do passeio nos arrabaldes e da bofetada
cont~xto e norma, que se .pode jogar .por vezes, por contraste ou ao jornalista que Rachei não passava para Saint-Loup de um
de~vi?, com a sua ausência excepcional, ou grau zero: no com- <cbiombo», e desde Balbec que se fechava com o ascensorista do
bowzinho da Raspeliêre, uma esplêndida rapari,ga de olhos ne- Grand Hôtel {68); na noite dos cattleyas. Odette sa.Jia de casa. de
g.ros, carne de magnólia, maneiras livres, voz rápida, fresca e Forcheville (' 9 ); e toda a série de tardias rectificações sobre as -·
nsonha: «Tanto gostaria de a encontrar, exclamei.- Tranquili- relações de Albertine com Aridrée, com More!, com diversas rapa-
ze-se, sempre se volta a encontrar, respondeu Albertine. No caso rigas de Balbec e de outros sítios (70); mas, em contrapartida, e

(63) II, p. 883.


( 56) I, p. 738. (64) li, .pp. 138 e 176.
( 51) li, .p. 267. (65) I, p. 786 e li, p. 776.
( 58) lU, pp. 591 e 701. (66) I, pp. 160-165 e III, p. 261.
( 59) li, pp. 573 e 681. (67) I, p. 623 e III, p. 695.
( 60) li, .pp. 373 e 721. {68) I, pp. 155-180 e Ili, .p. 681.
( 61 ) li, .p.p. 868 e 892. {69) I, pp. 231 e 371.
( 62 ) III, .p.p. 563 e 574. (lO) III, pp. 515, 525, 599-601.

56 57
por uma ironia ainda mais cruel, a ligação culpada entre Alber- praia>>, e que as tinha assim, por incompreensão- por excesso
tine e a amiga de Mlle Vinteuil, cuja confissão involuntária cris- de reflexão -«errado» desde o primeiro instante.
talizou a paixão de Mareei, era pura invenção: «Acreditei estu- · Com o gesto ignorado de Gilbeite é, uma vez mais, toda a geo-
pidamente tomar-me interessante aos seus olhos inventando que grafia profunda de Com:bray que se recomp~e; Gilberte teria. que-
tinha conhecido muito essas raparigas» ("): o objectivo é atin- rido levar Marcel com ela {e outros pattfonos das redondezas,
gido, mas por uma outra via (o .ciúme, e não o snobismo artís- entre os quais Tb!éodore e a innã- futura criada de quarto da
tico), ·com o seguimento que se conhece. baronesa Putbus e o próprio símbolo do fascínio erótico-) às
Essas revelações sobre os h:oibitos eróticos do amigo ou da ruínas da torre de Roussainville-le-Pin: a mesma torre fálica; «con-
mulher amada são evidentemente capitais. Seria tentado a achar !fidente» vertical, no horizonte, dos prazeres solitários de Mareei
ainda mais capital- «capitalíssima», para falar proustiano -, por- no quartínho da íris, e dos seus frenesis vagabundos nos campos
que tocando nas próprias bases da W eltanschauung do herói .(o de Méséglise ("), e de que não suspeitava ainda que fosse algo
universo de Combray, a oposição. dos dois lados, «estratos pro- mais do que isso: o lugar real, oferecido, acessiYel e desconhecido,
fundos do meu solo mental» (")), a série de reinterpretações de «na realidade tão prqximo de mim>> ("), dos prazeres proibidos.
que será ocasião a tardia permanência em Tansonville, e Gilberte Roussaínvi:Ile, e por metonímia todo o lado de. Méséglise ,("), são
de Saint-Loup o médium involuntário. Já tentei, noutro sítio ("), já as Cidades da Planície, «terra prometida (e) maldita» (78). «Rous-
mostrar a importância, em diversos planos, da «verilicação»- que sainville, adentro de cujos muros não penetrei nunca»: q~e oea-
é uma refutação- a que GHberte submete o sistema de pensa- sião perdida, que desgosto! Ou denegação? Sim,. como d1z Bar-
mento de Mareei, ao revelar-lhe, não somente que a nascente da deche (79), a geografia de Combray, aparentemente tão inocente,
Vivonne, que ele se representava «como qualquer coisa de tão
extraterrestre como a Entrada dos Infernos», ·era «apenas uma
espécie de tanque quadrado onde subiam bolhas», mas tamblém
(75) I, .pp. 12 e 158.
que Guermantes e Méséglise não estão assim tão longe, não são (16) III, p. 697.
tão «inconciliáveis» .como tinha pensado, dado que se pode num (11) Que o lado de Méséglise encarna a sexualidade é o que ·mostra
mesll}O passeio «ir a Guermantes passando por Méséglise». A ou- claramente esta frase: «Aquilo que então esperava tão febrilmente, por pouco
tra vertente dessas «novas revelações do ser» é a assombrosa que ela, se eu o tiveSse, simplesmente, sabido compreender e reencontrar,
mo fizera experimentar logo desde a adolescência. Mais 'Completamente
informação de que, no tempo do carreira de Tansonville e dos ainda do que me tinha parecido, Gilberte estava nessa época verdadeira-
espinheiros em flor, Gilberte estava apaixonada por ele, e que o mente do lado de Méséglise» {III, p. 697).
gesto insolente que então 1he tinha dirigido era, de facto, um (7') Roussainville sob a tempestade é, evidentemente (como mais tarde
insinuar-se demasiado explícito (14 ). Mareei compreende então que Paris ~ob o fogo do inimigo), Sodoma e Gomorra sob o fogo divino: «Perante
nós, no longínquo, terra prometida ou rilaldita, -Roussainville,_ adentro de
não tinha ainda compreendido nada, e- verdade suprema- «que cujos murOs da qual não penetrei ·nunca,. RoU:ssainville, pouco depois., quando
a verdadeira Gilberte, a verdadeira Albertine, eram talvez aque- a chuva já tinha cessado para nós, continuava a ser caSitig-ada_ como uma
las que desde o primeiro instante se tinham mostrado no seu "ldeia da Bíblia pelas lanças todas da tempestade, que obliquamente flage-
olhar, uma em frente da sebe de espinheiros rosa, a outra na lavam as moradas dos seus habitantes, ou então estava já perdoada por
Deus Pai, que fazia descerem para ela, desigualmente .longas, como os raios
de uma custódia de altar, os ramos de ouro franjados do seu sol reaparecido»
(I, 152). Notar-se-á a presença do verbo flagelar, surdo redobro do vínculo
(71) li, p. 1120 e III, p. 337. que une -adiantadamente- essa cena ao episódio de M. de · Charlus
(72) I, p. 184. Duran~e a -Guerra, -funcionando a f.lagelação ao· mesmo tentpo como <<vício»
(73) Figures, p. 60 e Figures li, p. 242. ~«pecado») e como castigo.
(74) I, p. 141 e III, p. 694. (19) Mareei Proust romancier, .p. 269.

58 59
é «uma paisagem que tem, como muitas outras, necessidade de ser
decifrada». Mas tal pecifração já se opera, juntamente com algu- O segundo exemplo é· constituído pela narrativa de Ulisses
mas outras,-no Temps retrouvé, e decorre de uma dialéctica subtil aos Feácios. Desta vez, pelo contrário, tendo remontado .até ao
entre a narrativa «inocente» e a sua «verificação» retrospectiva: ponto em que a Fama de a1gum modo o perdeu de vista, isto é,
tais vêm a ser, por um lado, a função e a importância das ana- a queda de Tróia, Ulisses conduz a sua narrativa até vir alcançar
lepses proustianas. a narrativa primeira, cobrindo toda a duração que se estende
desde a queda de Tróia à chegada junto de Calipso: analepse com-
Vimos como é que a determinação do alcance permitia dividir pleta, desta vez, que se vem religar à narrativa primeira, sem so-
as analepses em dois tipos, internas e externas, conforme o seu lução de continuidade entre os dois segmentos da história.
·ponto de vista se situa no interior ou no exterior do campo tem- É inútil demorarmo-nos aqui nas evidentes diferenças de fun-
poral da narrativa primeira. O tipo misto, aliás muito pouco uti- ção entre estes dois tipos de analepse: o primeiro serve unicamente
lizado, é, na realidade, determinado por uma característca de am- pa,ra trazer ao leitor uma informação--isolada, necessária para a
plitude, dado que são casos de ana!epses externas que se prolon- inteligência de um elemento preciso da acção, o segundo, ligado
gam até encontrarem e superarem o ponto de partida da narrativa à prática do começar in medias res, visa a recuperar a totalidade
primeira. É ain?a um dado de amplitude que comanda a distinção do «antecedente» narrativo; constitui geralmente uma parte im-
sobre a qual diremos agora uma palavra, voltando, para os com- portante da narrativa, por vezes, mesmo, como na Duchesse de
parar, aos dois exemplos já encontrados na Odisseia. Langeais ou La Mort d' Ivan Ilitch, -~e-presenta o seu essencili,
O primeiro 'é o episódio do ferimento de Ulisses. Como já se fazendo a narrativa primeira figura de desfe·cho antecipado.
.notou, a sua amplitude é muito in'ferior ao seu alcance, muito Não considerámos deste ponto de vista, até agora, senão as
inferior, mesmo, à distância que separa o momento do ferimento analepses externas, que decretá:mos completas na medida em que
do ponto de arranque da Odisseia (a queda de Tróia): uma vez vão encontrar a narrativa primeira no seu ponto de partida tem-
conta-da a caça no Parnaso, o combate contra o jav<~~li, o ferimento, poral. Mas uma anale-pse «mista», como a narrativa de Des Grie_ux,
a cura, o ·retorno a ftaca, a narrativa corta cerce a ·sua digressão pode ser dita completa num sentido inteiramente outro, pois, como
~etrospectiva _(80) e, saltando por cima de uns decénios, regressa já notámos, vai apanhar a narrativa primeira, não no seu início,
a cena presente. O «retorno atrás» é, pois, seguido de um salto mas no próprio ponto (o encontro em Calais) em que esta se
em frente, quer dizer, de uma elipse, que deixa na sombra toda tinha interrompido para lhe dar lugar: quer dizer, a sua ampli-
uma longa fracção da v;da do -herói: a a:nalepse é aqui, de algum tude é rigorosamente igual ao seu alcance, e o movimento nar-
?JOdo, pontual, conta um momento do passadd que permanece rativo realiza uma perfeita ida-e'volta. É também nesse sentido
Isolado no seu afastamento, que não pretende religar ao momento que se pode falar de analepses internas completas, como nas Souf-
wesente cobrindo um intervalo não pertinente para a epopeia, frances de l'inventeur, onde a narrativa retrospectiva é conduzida
Já que o tema da Odisseia, como o notara Aristóteles, não é a até ao momento em que os destinos de David e Lucien novamente
vida de Ulisses, mas apenas o seu regresso a Tróia. Chamarei sim- se juntam.
pi?smente analeJ?ses parciais a esse tipo de retrospecções que ter- Por definição, as analepses parciais não põem nenhum pro-
mmam numa elipse, sem alcançarem a narrativa primeira. blema de juntura ou continuidade narrativa: a narrativa ana]ép-
tica interrompe-se francamente numa elipse, e a narrativa pri-
meira recomeça onde tinha ficado, quer de maneira implícita
( 80) Recordemos que essa página, contestada por alguns, sem grandes e como se nada a tivesse suspendido, como na Odisseia («Ora, com
pr'?vas e apesar do test'.'mun:ho de Platão (Rep. I, 334 b), forneceu 0 a palma das suas mãos, a velha ao apalpá-lo reconheceu o feri-
ob]ecto de um comentáno de Auerbach -(Mimesis, cap. I).
mento ... »), quer de maneira e~plícita,. fazendo funcionar a inter-
60
61
tupção, e, comó Balzac gosta de fazer, sublinhando a função ~mpli; que se disse («<Eis porque»), termina pelo contrãrio sem outra
cativa jã indicada ao abrir a ana:lepse pelo famoso «eis porque», marca de retorno senão uma simples alínea: «Depois deixou de
ou qualquer uma das suas· variantes. Desse modo, o grande re· pensar nisso./Ota, apenas alguns minutos depois de o pequf(Ilo
torno atrãs de La Duchesse de Langeais, introduzido por esta fór, pianista ter começado a tocar em casa de Mme Verdurin ... » Do
mula das mais expressas: <<Eis agora a aventura que tinha deter· mesmo modo, durante a tarde Villeparisis, quando a chegada de
minado a situação respectiva em que então se encontravam os Mme Swann recorda a Mareei uma visita recente de Morei, a nar-
dois personagens desta cena», termina de maneira mais ou menos rativa primeira encadeia com a analepse de modo particularmente
declarada: «Os sentimentos que animaram os dois amantes quando desenvolto: «Eu, apertando-lhe a mão, pensava .em Mme Swann,
se reencontraram no locutório das Carmelitas em presença de uma e dizia-me com espanto, de tal modo eram longinquas e diferen-
madre superiora devem ser agora compreendidos em toda a sua tes na minha lembrança, que teria daí em diante que identificã-la
extensão, e a sua violência, de parte a parte despertada, expli" com a «Dama de cor-de-rosa». M. de Charlus ficou pouco de·
. cará sem dúvida o desenlace desta aventura» ("). Proust, que pois sentado ao lado de Mme Swann (") ... »
ridiculizou o «eis porque» balzaquiano em Contre Sainte-Beuve, Como se vê, ,o carácter elíptico destas retomadas, em fim de
mas que não deixou de o imitar pelo menos uma vez na Recher· analepse parcial, mais não faz, para o leitor atento, que sublinhar
che (82), é igualmente capaz de retomadas daquele género, como por assíndeto a ruptura temporal. A dificuldade das analepses
esta, depois da narrativa das negociações académicas entre Faf· completas é inversa: está, não na solução de continuidade, mas,
fenheim e Norpois: «Foi assim que o principe de Faffenheim foi pelo contrãrio, na junção necessária entre a narrativa analéptica
levado a vir ver Mme de Villeparisis (")», ou, pelo menos, ex;plí· e a narrativa primeira, junção que dificilmente pode dar-se. sem
citas o bastante para que a transição seja imediatamente percep·. um certo encavalgamento, e, logo, sem .uma aparência de desa-
tível: <çE agora, na minha segúnda estada em Paris ... », ou: <<En· jeitamen~o. a menos que o narrador tenha a habilidade de tirar do
quanto assim reéordava a visita de Saint-Loup {") ... ». Mas, na defeito uma espécie de aprazimento lúdico. Eis, em César Birot-
maior parte das vezes, .a retomada é nele muito mais discreta: a teau, um exemplo de encavalgamento não assumido- talvez não
evocação do casamento de Swann, provocado por uma réplica apercebido pelo próprio romancista. O segundo capítulo (ana-
de 1 Norpois durante um jantar, é bruscamente interrompida por léptico) termina assim: <<klguns instantes passados, Constance e
um retorno à conversação presente («Pus-me a falar do conde de César ressonaram pacificamente»; o terceiro começa nestes ter-
Paris ... »), como aquela, mais tarde, da morte do mesmo Swann, mos: «Ao· adormecer, César temeu que a mulher lhe fizesse no
intercalada sem transição entre duas ,frases de Brichot: <<Não, não, dia seguinte algumas observações peremptórias, e preparou-se para
retomou Briohot (") ... » Ela é, por vezes, tão eliptica que se sente se levantar de madrugada para tudo resolver»: como se vê, a
alguma dificuldade em dar conta à primeira leitura do ponto onde retomada não sucede sem uma suspeita de incoerência. A ligação
se opera o· salto temporal: assim, quando a audição em casa dos [raccord] das Souffrances de /'inventeur é mais conseguida, por-
Verdurin da sonata de Vinteuil iembra a Swann uma audição que aí o têxtil soube tirar da própria dificuldade um elemento
anterior, a analepse, introduzida todavia do modo balzaquiano decorativo. Eis como se abre a analepse: «Enquanto o venerável
eclesiástico sobe as escadarias de Angoulême, não é inútil expli·
car o enredo de interesses em que ia meter o pé. I Depois da par-
(81) Garriier, pp. 214 e 341. tida de Lucien, David Séchard ... » Eis agora como se retoma a
(82) Contre Sainte-Beuve, Pléiade, p. 271 e. Recherche, I, p. 208.
(83) n, p. 263.
(84) III, pp. 755 e. 762.
(85) r; p, 471 e m, p. 201. (86) I, p. 211 e II, p. 267.

62. 63
narrativa primeira, mais de cem :páginas adiante: «No momento em Abre com um esbcço evidente de á!l.altipse: «Voltei a subir e epr
que o velho prior de Marsac subia as escadarias de A'llgoulême contrei a minha avó mais doente. Desde algum tempo, sem saber
para ir instruir Eve do estado ,em que se encontmva o irmão, David muito bem o que tinha, queixava-se da sua saúde... », depois a
estava escondido há onze dias a duacs portas daquela que o digno narrativa, assim encetada no modo retrospectivo, . prossegue de
padre acabava.de deixan> 1(87 ). :Este jogo entre o tempo da histó· maneira contínua até •à morte, sem que seja nunca reconheeido
. ria e o da narração (contar as desgraças de David «enquanto» o e assinalado o momento (contudo necessariamente alcançado e
prior de Marsac sobe as ·escadas), iremos reencontrá-lo nele mesmo superado) em que Mareei, voltando de casa de Mme de Ville,.
no capítulo da -voz; vê-se como transforma em divertimento o que parisis, tinha encontrado a avó «mais doente»: s·em que, pois, pos-
era uma servidão. samos alguma vez situar de maneira exacta. a morte da avó por
A atitude típica da narrativa proustiana parece consistir aqui, relação com a manhã Villeparisis, nem decidir onde acaba a ana-
pelo contrário, em eludir a ligação, quer dissimulando o termo lepse e é retomada a narrativa primeira (90 ). O mesmo evidente-
da analepse naquela espécie de dispersão tempoml que é própria mente se passa, mas numa escala bem mais vasta, com a analep~e
da narrativa iterativa (é o caso das duas retrospecções a propósito aberta em Nom de pays: [e Pays, que, como já· vimos, se esten-
de Gilberte na Fugitive, uma sobre a sua adopção por Forche- derá are à última linha da Recherche, ·sem saudar de passagem
ville, a outra sobre o seu casamento com Saint-Loup (")), quer o momento das insônias tardias, que fora, toda·via, a sua .fonte
fingindo ignorar que o ponto da história em que a analepse ter- memorial e como que a sua matriz narrativa: outra retrospecÇão
mina já tinha sido atingido pela narrativa: deste modo, em Com- mais-que-completa, de amplitude bem superior ao seu al=ce,
bray, Mareei começa por mencionar «a interrupção e o comentá- e que ·num ponto indeterminado do seu percurso, secretamente se
rio que foram trazidos uma vez por uma visita de Swann à leitura transforma em antecipação. À sua macneira ":"""isto é, sem o pr(}o
que estava a fazer de um autor completamente novo para mim, clamar e, provavelmente, sem mesmo disso se dar conta -·Proust
Bergotte», depois volta atrás para contar COliDO é que tinha des- abala aqui as normas mais fundamentais da narração,. e antecipa
ooberto esse autor; sete páginas adiante, retomando o fio da sua as. mais perturbantes tentativas do romance moderno.
narrativa, encadeia nestes termos, como se ainda não tivesse no-
meado Swann e assinalado a sua visita: «Um domingo, contudo,
durante a minha 'leitura no jardim, fui perturbado por Swann, que Prolepses
vinha ver os meus pais. -Que ê que lê, pode-se Vf:Jr? Oh, Ber-
gotte... » ("). Astúcia, inadvertência ou desenvo!Gura, a narrativa A antecipação, ou prolepse temporal, é manifestamente· menos
evita assim reconhecer as suas próprias marcas. Mas a mais auda- frequente que a ·figura inversa, pelo menos na tradição narrativà ·
ciosa das elusões {mesmo que seja audácia de pura negligência) ocidental; ainda qUe cada uma das três grandes epopeias antigas,
consiste -em esquecer o carácter analéptico do segmf:!nto narrativo a llíada, a Odisseia e a Eneida, comece por uma espécie de· su-
no qual se encontra, ·e em prolongar esse segmento de alguma mário antecipado que justifica numa certa medida a fórmula
maneira indefinidamente por ele mesmo sem haver preocupação aplicada por Todorov à narrativa homérica: «intriga da .predes-
com o ponto no qual se vem juntar à narrativa primeira. Ê o que tinação».("). A preocupação de suspense narrativo .própria da ,con-
se passa no episódio, célebre por outras razões, da morte da avó. cepção clássica do romance (no sentido lato, e cujci centro de

(81)Garn;er, I'P· 550 e 643.


(88)III, p. 582 e 676. (90) II, pp. 298-345.
(") I, p. 90 e 97. (91) Poétique de la prose, Seuil, 1971,. p. 77.

64 65
gravidade se eneoiltra mais no século· nx) nãp se ajusta ])em com
tal .prática, tal; aliás, eomo a fiCção tradicional de l!m narrador m~ira é claramente marcado pela última cena não·proléptica; ou
que. pareça dever ir descobrindo de algum modo. o qu" se passa seJa, para a Recherc~e (se se fizer entrar na «narrativa primeira»
ao mesmo tempo que o conta. De maneira que se encontrarão essa enorme anacroma que abre sobre os Champs-Élysées .e não
mirito· poucas prolepses num Balzac, num Dickens, num 'folstoi, voltará a fechar-se), sem hesitação possível, a tarde de Guerman-
mesmo se a prática corrente, como. se viu, do começo in 117fidias tes. Ora, é ~ conhecido que um certo número de episódios da
res (quando não, se assim ouso dizer, in ultimas res) dá por vezes Re~h;.rche se ~Ituam num ponto da história posterior a essa TIJa-
essa impressão: é claro que um certo .peso de «predestinação» nha ( ) (a maior parte são, aliás, contados eTIJ digressão no de-
existe na maior parte da narrativa em Manon Lescaut {onde sa- curso dessa ~mesma cen~): logo, serão, para nós, prolepses externas.
bemos, antes mesmo que Des Grieux comece· a sua histói;ia, que A s.ua funçao é, as mais ~as vezes, de epílogo: servem para. con.
ela termina por uma deportação), ou a fortiori em La Mort d'lvan duZir até ao s~u term~ lógico t.al ou tal linha. da acção, ainda que
llitch, que começa pelo seu .epílogo.· esse termo S~Ja postenor ao dia em que o herói decide deixar o
·- · A narrativa «na primeira pessoa» presta-se melhor que qual- mundo e re~rar-se para .a sua obra: alusão rápida à morte de
qUer outra à antecipação, pelo próprio facto do seu declarado Charlus, alusao também, mas mais circunstanciada no seu alcance
carácter retrospectivo, que autoriza .o narrador a alusões ao fu- altam_ente si'?lbólico, ao casamento de Mlle de Saint-Loup: «essa
turo, e ·particularmente à situação presente, que de alguma maneira rapanga, CUJO nome e fortuna. podiam fazer esperar à sua mãe
fazem parte do seu papel. Robinson Crusoe pode dizer-nos quase que desposasse um príncipe real e coroasse toda a obra ascen,
desde entrada que o discurso mantido pelo pai .para o desviar dente de Swann e sua mulher, escolheu mais tarde para marido
das aventuras marítimas era «verdadeiramente profético»; ·itpe· um obscuro homem de letras, e fez descer essa família mais abaixo
sar de não lhe ter sobr(lvindo. na altura nenhuma ideia disso, e que o nível de que .tinha partido("))); última aparição. de Odette,
Rou~seau não deixa, desde o episódio dos pentes, de atestar não «um pouco amolecida)), quase três anos depois da tarde Guer.-
somente a sua inocência passada cümo também o vigor .da sua ma~te~ ("); futura experiência de escritor de Mareei, com as suas
indignação retrospectiva: «Sinto ao escrever isto que o meu pulso an!p-!stias pe:_ante a m.orte e os empecimentos da vida social, pr.!·
se altera ainda.>> (92) Resta dizer que a Recherche du temps perdu me~ras re~cçoes de ·leJtor,es, prim~ros mal-entendidos, etc. (") . .A
faz1 da prolepse um uso provavelmente sem equivalente em toda mrus. tardia dessas antectpaçoes e aquela que, especialmente im·
a história da narrativa, mesmo de forma autobiográfica (98), e que provisada para ess~ efeito em 1913, termina o Côté de.chez Swann:
constitui; pois, um terreno privilegiado .para o .estudo desse tipo esse .quadro d? Bois de ~oulogne <<hoje)), .por antítese ao dos anos
de anacronias narrativas. . .· . . . . de adoles~ncJa,. está e';d~temente mirito próximo do TIJomento
Aqiri, e mais uma vez, distinguir-se-ão S(lm custo prolepses da narraçao, rpois esse ultimo passeio teve lugar, diz-nos Mareei
internas
. . e externas. O limite do campo temporal
' . da narrativa pú·
'
«este .ano)), «u~a, qas primeiras TIJanhãs do mês, de NovembrO>>:
ou seJa, em pnncipio, a menos de dois meses ·deste momento (").

(92) Con/essions, P•léiade, p. 20.


(93) A Recherche contém mais de vinte segmentos prolépticos de (94) Ver Tadié, Proust et /e Romàn, p. 376. ·
&lguma amplidão nanrativa, sem contarmos as simples alusões ao correr da (95) III, pp. 804 e 1028.
frase. As analepses de igurul defin1ção não são mais numerosas, mas é (96) III, pp. 951-952.
verdade que ocupam, pela sua amplidão, a quase tolltlidade do texto, e (97) III, pp. 1039-1043.
~, pp. 42!-427. Adiante voltarei às dificuldl\des que se levantam
98
que é sobre essa pr-imeira camada retrospectiva que vêm di•por-se anale- ( )
pses e prolepoes .de segundO groo. nesta ~gma, escnta _em .1913 mas, ficticiamente. (diegeticamente), con-
temporanea da narr&Çao final, logo, posterior à guerra.
66
67
mim. Mas,. desde há pouco. tempo, recomeço a. aperceber
· Mais um passo, pois, e .eis-nos nó presente do narr~dor. As muito bem, se apuro o ouvido, os soluços que tive a força
prolepses deste tipo; muito frequentes na Re~herche, relacw~am-se de conter em frente do meu pai e que só rebentaram quando
quase todas com o modelo rousseauísta acl:lla evocado: sao tes- me encontrei sozinho com a mamã. Na realidade, não ces-
temunhos sobre a intensidade da recordação actual, que vêm, de . saram nunca; e é apenas porque a vida se cala agora mais
alguma maneira, autentificar a narrativà do passado. Por exen:- em torno a mim que os ouço outra vez,.comoaqueles sinos
plo, a propósito de Albertine: <<"!'- assim, fazend? al~o, o}hos bn- dos conventos que cobrem de tal maneira os barulhos da
lhantes sob o seu "pólo", que amda agora a ve]o, sühuetada so- ·cidade durMte o dia, que se pensaria que haviam parado,
bre o écran que, em fundo, lhe oferece o mar ... »; da igreja de mas que de novo ressoam no silêncio da noite (' 00).
Combray: <<!E hoje ainda;. se, numa grande cidadel de província
ou num bairro de Paris que conheça mal, um passantel que me Na medida em que põem directame11te em jogo a própria ins-
"pôs no meu caminho" me mostra ao longe, como um ponto de tância narrativa, essas antecipações no presente não constituem
referência, tal torre de :hospital, tal campanãrio de. convento, etc.»; simplesmente factos da tempora!idade narrativa, mas também fac-
do ·baptistério de Saint-Marc: «Chegou uma :hora em qutJ, quan~o tos da voz: voltaremos adiante a encontrã-los, sob esse título;
me lembro do baptistério ... »; tfim da noite Guermantes: «RceveJO
toda a saída, revejo se terei razão em pôr naquela escada o prin- As prolepses internas põem o mesmo gênero de problemas que
cipe de Sagan ... » ("). E sobretudo, é claro, a propósito da cena as analepses do mesmo tipo: o da interferência, do eventual du-
do deitar, essa pungente atestação jã comentada em Mimesis e plo emprego da narrativa primeira e daquela que assume o seg-
que se não pode aqui citar senão por inteiro,. perfeita ilustração mento proléptico. Estão aqui desprezadas, portanto, e de novo, aJS
do que Auerbach chama a «omnitemporalidade simbólica» da prolepses heterodiegéticas, para as quais .esse risco é nulo,. qu.er
«consciência reminiscente», mas também perfeito exemplo da. fu- a antecipação seja interna ou externa(' 0 '), e, entre as outras, dJs-
são, quase miraculosa, entre o acontecimento contado e a instân- tinguir-se-ão ainda aquelas que vêm preencher de antemão uma
cia da narração, ao mesmo tempo tardia (última) e «omnitem-
pora·b>:

Já lá vão muitos anos. O paredão das escadas onde vi (100) I, p. 37. Comentár-io de Auerbach, Mimesis, p: 539. Não se pode
subir o reflexo da sua velà já não existe há muito tempo. deixar de pensar em Rousseau: «Quase trinta anos passaram depois da minha
partida de Bossey sem que me tivesse lembrado esse dia de uma maneira
Também em mim muitas coisas foram destruídas que eu cria agradável por lembrança~; um pouco ligadas: mru;, depois que; .tendo pas-
deverem durar para .sempre, e novas se edificaram de que sado a idade madura, declino para a velhice, sinto que essas mesmru; lem-
nasceram penas e júbilos novos que não teria podido pre- branças .re.nascem enquanto as .outras se· .apagam, .e se. gravam na minha
'ver então, do mesmo modo que se me tornaram os·antigos memória com ,traços cujos charme, e força de dia · para dia aumentam;
como se, sentindo já a vida que se escapa;· eu visse se a retinha pelos
difíceis de compreender. Já há longo tempo também que o seus começos» (Confessions, Pléiade, p. 21).
meu pai cessou de poder dizer à mamã: «Vai com o miúdo.» (101) Eis a lista das principais, na sua. ordem de sucessão no texto:
A possibilidade de tais horas não renascerá nunca para li, p. 630, durante <> encontro Jupien-Charlus: oontinuação .das relações
entre os dois homens, vantagens tiradas !pOr Jupien do favor de Charlus;
estima de ·Françoise· pelas. qualidades morais. dos dois invertidos; li,
pp. 739-74l,.no regresso da soirée Guermantes: conversão ulterior do duque
(!!) I, p. 829; I, p. 67; III, p. 646; 11, p. 120; cf. I, p. 165 (sobre a ao dreyi'usismo; 111,. .pp. 214-216, antes do concerto. Verdurin: descoberta
aldeia de Combray), I, p. 185· (sobre a paisagem de Guermantes), I, p. 186 ulterior ·por · Charlus das. relações entre Moréas e Léa; 111, pp.322-324,
(sobre os «dois ·lados»), I, p. 641 (sobre Mme Swann), 11, p. 883 (sobre a e
no fim do concerto: doença de . Ch~trl\ls. esquecÍII).ento. do. seu rancor
jovem do comboio ·de Ia Raspeliêre), .III, p. 625 (sobre Veneza), etc. ·. · ·
69
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r
r
I
posterior _lacuna (prolepses completivas), e aquelas que, sempre
de antemao, dobram, por pouco que seJa, um segmento narrativo mesma, anotarei simplesmente .a atitude. característica que· con-
a vir (prolepses repetitivas). · siste, por ocasião de. uma primeira vez (primeiro beijo dé Swann e
· Ptolepses complétivas, por exemplo a evocação rápida, em Odette, primeira vi8ta do mar etn Balbec, primeira noite no hotel
Comliray, dos ·futuros anos de co!~gio de Mareei· a última cena de Doncieres, primeiro jantar em casa dos Gueimantes), em rever
entre o pai e Leg.randin; a evocação, a propósito da cena dos . de antemão toda a série de ocorrências que inaugura. Veremos
cattleyas, do segmmento das relações eróticas entre Swann e no capítulo seguinte que a maior parte das grandes cenas típicas
Odette; as descrições antecipadas do espectáculo mudável do mar da Recherche concérnem a uma iniciação desse género («entradas»
em Balbec; o anúncio, a meio do primeiro jantar em casa dos de Swann em casa dos Verdurin, de Mareei em casa de Mme de
Guermant~, d~longa série de jantares parecidos, etc.('"). Todas VH!eparisis, ou da duquesa, ou da princesa), sendo o priméiro
essa~ a_ntec~paço_es co~p~msam futuras elipses ou paralipses. Mais encontro, ev'dentemente, a melhor ocasião para descrever um
subtil e a sltuaçao da uftima cena de Guermontes (visita de Swann espectáculo ou um meio, e valendo, aliás, como paradigma dos
~ Mareei a c~sa ~a duquesa), que é, como se sabe('"), interver- seguintes. As prolepses generalizantes e)(;plicitam de algum modo
tida com a pnme1ra de. Sodome («conjunção» Charlus-Jupien), de essa [unção paradigrnática delineando uma perspectiva sobre a sé~
tal modo que deve cons1dera~-se ao mesmo tempo a primeira como rie ulterior: «janela à qual deveria dali em diante pôr-me todas
uma prolepse ocupando a elipse a,berta, pela própria antecipação, as manhãs ... » São, portanto, como toda a antecipação, uma marca
entre SodoYYKl I e Sodoma li, e a segUJ:lda como uma ana!epse de impaciência narrativa .. Mas também possuem, . .parece-me, um
cobrindo a elipse aberta em Guermantes pelo seu retardamento: valor inverso, talvez mai~S especificamente .proustiano, e que marca
dança de interpo~ações evidentemente motivada pelo desejo que um sentimento dominantemente nostálgico daquilo a que Vladi-
o narrador expenmenta de acabar com o aspecto propriamente mir J ank:élévitch chamou um dia a «primultimidade» da primeira
humano do <dado de Guermantes» antes de abordar o que chama vez, quer dizer, o facto da primeira vez, na própria medida· em
a. «paisagem moral» de Sodoma e Gomorra. que é sentido intensamente o seu valor inaugural, ao mesmo. tempo
Ter-se-á talvez notado a presença de prolepses iterativas que, ser sempre (já) uma .última vez- quanto mais não .fosse por ser
t~I como as ~na!epses do. mesmo tipo, nos reenviam para a ques- para sempre a última. a ter sido a primeira, e por, depois dela,
tao da frequencza narrativa. Sem tratar aqui essa questão em si inevitavelmente, começar _o reino da repetiçã<> e do há:bito. Antes
de a beijar pela primeira vez, Swann retém um instante o rosto
de Odette «a alguma distância, entre as suas duas mãos»: é; diz
o narrador, para dar ao seu pensamento o tempo de acorrer e
c:ontra os Verdurin; III, pp. 779-781, durante o passeio com Charlus con-
tmuação das suas relações com Morei apaixonado por uma mulher. 'vê-se assistir à realização do sonho que tinha por tant6 térnpo acalen-
9ue têm todas por .função anticipar uma evolução para:doxal, um desses tado. Mas há uma outra razão: <<Talvez também Swaim prendesse
Inesperados transtornos de que a narrativa proustiana .faz as suas delícias. a essa face de Odette ainda não possuída, neni mesmo sequer
( 102) I, P·. 74; I, pp. 129-133; I, pp. 233-234; I, p. 673 e pp.802-896; beiiada por ele; que ele via pela última vez, o olhar com o qual,
II, pjl. 512-514, cf. II, pp .. 82~83 (sobre o quarto de Doncieres), III, p. 804 num dia de partida, se gostaria de ·levar uma paisagem qué se vai
(encontro com Morei, do~ anos anteis do passeio com Charlus), III, pp.
703-704 (encontro com· Samt-Loup na alta•roda) ... deixar para sempre.» Possuir Odette; ,beijar Nbel:tine .pela . pri-
( 103) . . . . .
. . «Ora ~a espera· deve?a ter para mim consequências tão consi- méira vez, é. aperceber pela última vez a Odette ainda não pos-
~âve~s e descobrrr~me ~ma paiSagem, não já tumeriana mas moral, tão suída, a Atbertirie ainda não beijooa: tanto é verdadeiro que em
mportoote, que é pre_fenye1 retardar .a sua narrativa por alguns instantes Proust o acontecimento-:- qualquer acontecimento---" mais nãó é
fazendo-a preceder pnme1ro pela da minha visita aos Guermantes quand~
soube que tmham ·regressado» (II, p. 573). que a passa:geiri, fugitiva e irreparavel (no sentido virgilianó), de
um 'hábito para outro. ' · ·
70
71
C0lllo as .ai:talepses do mesmo tipo, e por razões do mesmo onde se pode· entrar e que em vão cem anos se teria procurado,
modo evidenies; as.· prolepses · encontram-se · pouco mais que no esbarra-se nela sem saber, e ela abre-cse» (106). · ..

estado de breves alusões: referem-se antecipadamente a um acon- Mas, na maior parte das vezes, o anúncio é de muit~ mai~
tecimento que será a seu tempo contado de uma ponta à outra. largo alcance. Sabe-se o quanto Prous~ se apega~a à coesao e a
Como as analepses repetitivas desempenham relativamente ao des- arquitectura da sua obra, e quanto sofna por ver Ignorados tantos
tinatário da narrativa uma função de rappel, assim as prolepses efeitos de simetria longínqua e de correspondências «telescópi-
repetitivas desempenham um papel de anúncio, e designá-las-ei cas». A pulblicação separada dos diferentes volumes n~o podia
igualmente :por esse termo. A sua fórmula canónica 'é geralmente senão agravar tal mal-entendido, e decerto que os anunc10s a
um _«como havemos de ver» ou um <<Veremos», e o :paradigma longa distância, como na cena ·de Montjouvain, deveriam servir
ou protótrpo, este aviso a propósito da cena de sacriJégio de Mont- para o atenuar, dando uma justificação . provisória a, ~pisódios
jouvain: «Veremos como, por muitas outras razões, a memória cuja presença poderia, de outro modo, -parecer advent1~1a e. ~a­
dessa impressão devia desempenhar um :papel importante na mi- tuita. Eis ainda algumas ocorrências, na ordem da sua d!spos1çao:
nha vida.» Alusão, bem entendido, ao cirúme que provocará em «Quanto ao professor Cottard, revê-lo-ernos {ongom.ente, muito
Mareei a revelação (falsa) das relações entre A:lbertine e MJ!e Vin- adiante, com a Patronne, no castelo de la Raspeliêre»; «ve~se-á
teuil {10'). O papel desses anúncios na organização e naquilo a de que modo essa única ambição mundana que (Swann) unha
que Barthes chama o «entrançado» [ tressage J da narrativa é ambicionado para a mulher e a filha foi justamente aquela cuja
bastante evidente, pela excpectativa que criam no espírito do leitor. realização se verificou ser-lhe interdita, e por um veto tãci abso-
Expectativa que pode ser imediatamente resolvida no caso desses luto que Swann morreu sem supo~ que a duquesa algum dia ~u­
anúncios de n:mito curto alcance, ou 'prazo, que servem, por exem- desse conhecê-las. Havemos tambem de ver que, pelo contráno,
plo, no fim de um capítulo, para indicar, encetando-o, o assunto a duquesa de Guermantes se ligou com Odette e Gi1berte depois
do cll'pítulo seguinte, como é frequente acontecer em Madame Bo- da morte de Swann»; <<Quanto a um desgosto tão pmfundo como
vary (100). A-.estrutura mais _contínua da Recherche exclui em prin- o da minha mãe, haveria de conhecê-lo um dia, como veremos
cípio esse género qe efeitos, mas quym se lembra do fim do capí- na continuação desta narrativa» {esse desgosto é evidentemente
tulo II-4 de Bovary («Ela nã.o sabia que, no terrraço das casas, o que provocarão a fuga e morte de Albertine); «(Charlus) tinha,se
a chuva forma poças· quando as .goteiras estão entupidas, e assim restabelecido antes de cair mais tarde no estado em que havemos
se ficou na S\la segurança, quando descobriu subitamente uma de vê-lo no dia de certa manhã em casa da princesa de Guerman-
fenda na :pare_:! e»). não t~rá dificuldade em reconhycer este modelo tes (107)». · · · ·
de apre;sentaçao metafonzada na frase de abertura da última cena Não serão de confundir esses anúncios, por definição eXiplí- - .
do Temps retrouvé: «Mas é algumas vezes no momento em que citos, com aquilo que se há-de antes chamar esboços [amor-
tudo .parece perdido que vem o av;so que nos pode salvar; ba- ces] {10 '), simples marcos de espera sem antecipação, mesmo alu-
teu-se a todas as portas que não dão ;para nada, e a única por siva, que apenas mais .tarde encontrarão a sua significação e que
relevam da muito clássica arte da «preparação» (por exemplo, fa-
(104) I, p. !59 .e u; p. U!4. Mas deve-se lembrar que, quando escreve
essa ·frase, antes·de 1913, Pmust ainda não <<inventam> a personagem de (106) 111, p. 866. Cf., desta vez sem -meiãfora, os resumos _antecipados
.4lbertine, que se elaborará entre 1914 e 1917. Tem no espírito, porém, do jantar Verdurin (I, p. 251) ou da soirée Salnte,Euverte (1, p. 322).
com toda· .a evidência, pa,ra a cena de Montjouvain, uma «recaída» dessa (107) I, p. 433 e 11, p. 866 s.; I, p. 471 e III, p. 575 s.; li, p. 768 e
ordem, que se _precisou somente .pela continuação: anúncio, pois, dupla- III p. 415 s.; UI, p. 805 e 859. (Sublinhados meus.) ·
mente profét-ico. · · ' (108) Cf. Raymonde Debray, •Les figures .du récit dans Un caeur
{lOS) Cap. 1-3, 11-4, 11-5, 11-10, II-13, 111-2. · simple», Poétique 3.

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zer aparecer desde o início uma personagem que só intervirá ver- viado os actuais sofrimentos, para, é verdade, os substituir ,por
dadeiramente muito mais tarde, como .o marquês de la Môle no outros» (111). Diferentemente do anúncio, o esboço nunca é, em
terceiro capítulo de Le Rouge et le Noir). Podem considerar-se principio, no seu lugar do texto, mais que um «germe ~signifi·
como tais a .primeira aparição de Charlus e de Gilberte em Tan- cante» e mesmo imperceptível, cujo valor de germe só mais tarde
sonville, de Odette em Dama de cor-de-rosa, ou a primeira men- será r~onhecido, e de ·forma retrospectiva (112 ); Falta, ainda, .to-
ção de Mme de· Villeparisis logo na vigésima .<página de Swann, mar em conta a eventua:l (ou antes, variável) competência narraüva
ou ainda, mais declaradamente :funcional; a descrição do talude do leitor, nascida do hábito, que permite decifrar cada vez mais
de Montjouvain, «que chegava ao salão. do segundo andar, a cin- depressa o código narrativo em geral, ou próprio a certo· ~énero,
quenta centímetros· (sic) da janela», que .prepara a situação de ou certa obra, e identificar os <<germes» desde o seu aparecimento.
Mareei no decorrer da cena .da profanação (10'); ou, mais ironi- Deste modo, nenhum leitor de Ivan Ilitch (ajudado, é verdade,
camente, a ideia recalcada .por Marcel de citar em frente de M. de pela antecipação do des:feeho, e pelo próprio título) pode deixar
.. _ Crécy o que crê tratar-se do antigo <<nome de guerra» de Odette, de identificar a queda de Ivan sobre o trinco da janela como ins-
que prepara a revelação ulterior {por Charlus) da autenticidade trumento do destino, como esboço da agonia. É, aliás, sobre essa
desse nome, e da relação real entre as duas personagens (110). A mesma competência que se funda o autor para enganar o leitor,
diferença entre anúncio e esboÇo está claramente perceptível na propondo-lhe não raro falsos esboços,. o;t _logros {113) .-bem conhe-
forma pela qual Proust :prepàra, em várias etapas, a entrada de cidos dos amadores de romances :pohCJa!S -com nscos, uma vez
Albertine. Prieira menção, no decurso de uma conversação em adquirida pelo leitor a competência de segundo grau que é a
casa de Swann: Albertine é nomeada como sobrinha dos Bon- aptidão de detectar, e portanto de destrinçar o logr?, de lhe. pro-
temps, e considerada como tendo um «aspecto curioso» por Gil- por falsos logros (que são autênticos esboços), e a:ssrm por diante:
berte: simples esboço; segunda menção, novo esboço, pela pró- É conhecido quanto o verosímil proustiano-fundado, segundo
pria Mme Bontemps, que qualifica a sobrinha de «atrevida», de a expressão de Jean-Pierre Richard, na «lógica da inconsequên-
«pantomimeirazinha... fina como um macacó»: recordou publi- cia» (11') - opera, particularmente no que colicerne à hornossexu.a,
camente a uma murher de ministro que o :pai dela era ajudante !idade (e sua subtil variante: a heterossexua!idade), sobre .esse s~s­
de cozinha; tal retrato será explicitamente recordado muito mais tema complexo de expectativas frustradas, de suspeit~s desenga,
tdrde, após a morte de Albertine, e designado como <<germe insig- nadas, de surpresas esperadas e, finalmente, tanto mais surpreen-
nilicante (que) se desenvolveria e· se estenderia um dia a toda dentes quanto eram esperada\S e ainda assim se produziram-em
a minha vida»; terceira menção, desta vez verdadeiro anúncio: virtude desse princípio para todos os .fins, que «O trabalho da cau-
«Houve uma cena em casà porque não acompanhei o meu pai salidade... acaba por produzir mais ou menos todos os efeitos
a um jantar oficial onde deviam estar os Bontemps com a sobri- possíveis,· e, por consequência, também aqueles que se havia crido
nha Albertine, rapariguinha quase criança ainda. Os diferentes
períodos da nossa vida assim se encavalgam uns nos outros. Re-
cusa-se desdenhosamente, por causa do que se ama e um dia
vos importará tão pouco, a ver o que hoje vos pouco importa, (lll) I, p. 512; 598, cf. III, p. 904; I, p. 626.
que amanhã se amará, que se teria, talvez, podido, se se tivesse (112) «A alma de toda a função é, se se pode dizer, o ""u germe,
consentido em ver, amar mais cedo, e que assim vos teria a:bre- aquilo que lhe permite seineacr na narrativa um elemento que amadurecerá
mais tarde» Roland Barthes, «lntroduction à l'analyse structura.Je des récits»,
Communications 8, p. 7.
(113) Ver Roland Barthes, S/Z, p. 39.
(109) I, p. 141; p. 76; I, p. 20; I, p. 113 e 159.
(110) II, p. 1085 e III, p. 301. (114) Proust et /e monde sensible, p. 153.

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serem-no num mínimo» (110 ): aviso aos amadores de «leis psicoló-
gicas» e de motivaçÕ(!S realistas. . ceber ao mesmo tempo todos os seus lugares e momentos, entre
Resta, antes de deixar as prolepses narrativas, dizer alguma os quais ele está constantemente em estado de est~belecer uma
coisa da sua amplitude, e da distinção possível, aqui tamb'ém, multidão de relações «telescópicas»: ubiquidade espacial, mas
entre prolepses parciais e completas, se se quiser conceder esta também temporal, <<Dmnitemporalidade» que ilustra perfeitamente
~ltima qualidade àquelas que se prolongam no tempo da histó. a página do Temps retrouvé em que, perante Mlle de Saint-Loup,
na até· ao «desenlac~> (quanto às prolepses internas) ou até ao o herói reconstitui num relâmpago a «rede de recordações» cru·
próprio momento narrativo (quanto às prolepses externas ou mis· zadas em que se tornou a sua vida, e que vai tornar-se no tecido
tas): não chego a encontrar exemplos disso e parece que, de facto, da sua obra {us).
todas as prolepses são do tipo parcial, muitas vezes interrompidas Mas as próprias noções de retrospecção ou de antecipação,
de forma tão franca como aquela por que foram abertas. Marcas que fundam em «psicologia» as categorias narrativas da analepse
de pro!epse: «Para antecipar, pois que apenas acabo de terminar e da prolepse, supõem uma consciência temporal perfeitamente
a minha carta a Gilberte ... »; «para antecipar ·em algumas sema· clara, e relações sem ambiguidade entre o presente, o passado
nas a .narrativa que reto~re?JOS logo após este parêntesis ... »; «para e o futuro. Foi só por necessidades de exposição, e ao preço de
anteczpar um pouco, po1s amda estou em Tansonville... »; «desde uma esquematização abusiva; que postulei até agora que assim era
o dia seguinte de manhã, digamo-lo para antecipar ... »; «antecipo sempre. Na realidade, a própria frequência das interpolações e o
em muitos anos ... » "( 11 '). Marcas de fim de prolepse e de retomo seu cruzamento recíproco confundem frequentemente as coisas de
à narrativa pri;neira: <<Para voltar atrás, e a esse primeiro serão uma maneira que chega a ser sem saída para o «simples» leitor,
em casa da pnncesa de Guermantes ... »; «mas é tempo de alcan· e mesmo para o mais resoluto dos analistas. Vamos, para termi-
çar o ~arão que avança, com Brichot e comigo, para a porta dos nar este capítulo, considerar algumas dessas estruturas ambíguas,
Verdunn: .. »; «para voltar atrás, ao serão Verdurin ... »; «mas há que nos levam ao limite da acronia ptJra e simpleS.
que voltar atrás ... »; «mas, depois. desta antecipação, voltemos
três a/}-OS para trás, quer dizer, ao serão em que estamos, na ca"sa
da pnncesa de Guermantes... (' 17)». Pode ver-se que Proust nem Em direcção à acronia
sempre recua perante o -peso do explícito.
A importância da narrativa «anacrónica» na Recherche du Encontrámos, desde as nossas primeiras micro-análises; exem-
temps per~u, e~tá, evidenten;ente, ligada ·ao carácter retrospecti- plos de anacronias complexas: prolepses do segundo grau no seg-
vamente s~te~tlco ~a narrativa proustiana, em citda instante :pre- mento tirado de Sodome et Gomorrhe (antecipação da morte de
sen~e por mte1ro a si mesmo no espírito do narrador, que- desde Swann sobre antecipação do seu almoço com Bloch), mas tam--
o dia em que percebeu num êxtase a sua significação unificante- bém analepses sobre prolepses (retrospecção de Françoise em
não cessa de deter todos os seus fios e ao mesmo tempo, de aper· Combray sobre essa mesma antecipação das exéquias de Swann),
ou,. pelo contrário, prolepses sobre analepses (por duas vezes, no
extracto de Jean Santeuil, rappels de projectos passados). Tais
(115) I, p. 471. efe1tos do seguudo ou terceiro grau são frequentes na Recherche,
(116) Il, 739,; III, pp. 214, 703, 779, 803. (Sublinhados meus.) tanto ao nível das grandes como das médias estruturas narrativas,
11
( 1') ~I, p. 716; IH, .I'P·. 216, 806, 9?2. (Sublinhados meus.) É claro mesmo que não se tenha em conta esse primeiro grau de anacronia
Cjue. ~e mgnos _de orgamzaçao da narrallva são eles próprios marrcas da que é o da quase totalidade da narrativa. ·
lilSitânCJa narrativa, que voltaremos a encontrar como tais no capHulo
da voz.
(11') III, p. 1030.
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· A situação típica· evoeada no nosso fragmento de Jean San- tão interessante problema, .que apenas esperava· o fim do ciúme
teuil (recordações de antecipações) proliferou na Recherche sobre para ser tirado a limpo, tinha precisaniente perdido todo. o inte-
~s duas personagens oriundas por cissiparidade do herói primi- resse aos olhos de Swann quando cessara de estar ciumento.»
tivo. O regresso ao casamento de Swann, nas Jeunes filies,
porta uma evocação retrospectiva dos projectos de ambição mun-
=- Resolução de manifestar um dia a sua indiferença a haver, mu-
dada na discreção da verdadeira indiferença: «Enquanto . antes
dana para a filha e (futura) mulher: «Quando Swann, nas suas tinha feito a·jura, se alguma vez deixasse de amar aquela que não
?ora~ de devaneio, via Odette tomada. sua mulher, representava-se suspeitava dever ser um dia sua mulher, de lhe manifestar impla-
1nvanave~ente o momento em que a conduziria, a ela e, sobre- cavelmente a sua indiferença, .enfim sincera, para vingar o seu
tu~o. à: füha, a casa da princesa des Laumes, a que em breve orgulho longamente humilhado, essas represálias que podia agora
sena ?uquesa de Guermantes... enternecia-se quando inventava, exercer sem riscos ... , essas represálias já nada importavam; com
enuncmndo as palavras próprias, tudo o que a duquesa diria dele o amor, tinha desaparecido o desejo de mostrar que o amor aca-
a' Odette, e. Odette a Mme de Guermantes ... Fazia sozinho a cena bara.» A mesma confrontação, via passado, entre o presente ten-
da ap:esentação com a mesma precisão no pormenor imaginário cionado e o presente, real, no Mareei enfim «curado» da sua pai-
que tem aquelas pessoas que examinam como iriam empregar, xão por Gilberte: «.T á não tinha desejo de a ·ver, nem mesmo o
se o ganhassem, um loto, do qual fixam arbitrariamente o mon- desejo de lhe mostrar que não se me fazia não a ver e .que cada
tante» ( 119). Esse «sonho acordado» é proléptico enquanto fan- dia, quando a amava, me prometia testemunhar-lhe. quando já
tasma afa·gado por Swann antes do casamento, analéptico en- a não amasse»; ou, com uma .significação psicológica ligeiramente
qua~to recordado por Mareei depois desse casamento, e os dois diferente, quando o mesmo Mareei, tornado no «grande crack»
mov1mentos compõem-se para se anular, colocando assim o fan- junto de Giloerte e no familiar da sala .de ja:ntar de Swann, se
tasma em. pe~eita coincidência com a sua cruel refutação pelos esforça em vão por reencontrar, para medir o progresso realizado, ·
factos, po1s e1s que Swann está já casado há vários anos com o sentimento que outrora tivera da inacessibilidade desse «lugar
uma Odette que permanece indesejável no salão Guermantes. É inconceblveh>- não sem emprestar ao próprio Swann pensamen-
verdade que ele próprio desposou Odette quando já a não amava, tos análogos quanto à sua vida com Odette, antigo «paraíso ina-
e que <~o ser que (nele) tanto tinha ambicionado e tanto tinha tingível» que não tivera podido imaginar .sem comoção, tornado
desesperado de viver toda a vida com Odette,... esse ser estava realidade prosaica sem charme nenhum (1' 0). O que se projectou
;nor~o». Eis a;gora, portanto, confrontadas, na sua contradição não tem lugar,· o que não se ousava esperar é realizado, mas no
1rómca,. as antigas. resoluç?es ~ as realidades presentes: resolução instante em que já se não deseja: nos dois casos, o presente vem
de eluc1dar um dia as m1stenosas relações de Odette com For- ·sobrepor-se ao antigo futuro, de que tomou a vez, refutação retros-
c~eviHe, m~dada ~m total incuriosidade: <{Outrora, quando so- pectiva de uma errónea antecipação.
fna tanto, tmha-se JUrado que, uma vez que não amasse já Odette Movimento inverso, rappel antecipado, não já desvio pelo
e Il:ão receasse já melindrá-la ou fazer-lhe crer que a amava de~ passado mas pelo futuro, de cada vez que o narrador expõe pre-
ma1s, ~onced,r-se-ia a satisfação de elucidar com ela, por simples viamente como será mais tarde informado, posteriormente aos
amor a verdade e como um ponto de história, se sim ou não For- factos, de um a~ontecimento actual(ou da sua significação): assim,
chevm~ se tinl!a deitado com ela no dia em que tinha tocado à quando, ao contar uma cena entre M. e Mme Verdurin, precisa
ca!llpamha e b~tido no vidro sem que a:brissem, e ela tinha es- que esta lhe será transmitida por Cottard «alguns anos mais tarde».
cnto a Forcheville que era um tio dela que tinha vindo. Mas o Vaivém que se acelera nesta indicação de Combray: <~uitos anos

(119) I, p. 470. (1 20) I, pp. 471, 523, 525; II, p. 713; I, pp. 537-53S.

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'
mais tarde, viemos a saber que se naquele ano tínhamos .comido é para o leitor um anúncio ?~ narrati~a a vir d~ Un amour ~e
espargos quase todas os dias era porque o seu od?r dava a pobre Swann (1 2•). A fórmula esp<lcifica de tais anaor.omas duplas sen~:
moça de cozinha encarregada de os descascar cnses de asma de pois, alguma coisa como: «Devia acontecer mais tarde, como J.a
tal violência que se viu obrigada a acabar por se ir embora)) (121). vimos ... », ou «Já tinha acontecido, como havemos de ver ma1s
Toma-se quase instantâneo nesta frase da Prisonniere: «Soube que tarde ... » Anúncios retrospectivos? Rappels antecipatórios? Quando
naquele dia tinha ocorrido urna morte que me fez grande pena, a o atrás está à d'rente e o à frente atrás, definir o sentido da marcha
de Bergotte>>, tão elíptica, tão discretamente anómica que o leitor torna-se uma tarefa delicada.
crê, à primeira, ler: «soube naquele dia que tinha ocorrido.:. (122)». Outras tantas anacronias complexas, analepses ;PfOléptica~ e
Mesma ida-e-volta em ziguezague quando o narrador mtroduz prolepses ana!epticas, que pe:_turbam em alg~ma _cmsa as noçoes
um acontecimento presente, ou mesmo passado, por mediação tran:quilizantes de retrospecçao e de ante~1paçao.. Re_:;ord:mo~
antecipada da recordação que mais tarde dele virá a ter, como ainda a existência de analepses a·bertas, CUJa termmaçao nao e
já vimos a propósito das últimas páginas das Jeunes filies en fleurs, localizável, o que inevitavelmente arrasta a existência de seg-
que nos reportam às primeiras semanas de Balbec passando pelas mentos narrativos temporalmente indefinidos. Mas encontram-se
futuras recordações de Mareei em Paris; do mesmo modo, quando ainda, na Recherche, alguns acontecimentos desprovidos de qu~I­
Mareei vende a uma alcoviteira o canapé da tia Leónia é que quer referência temporal, e que se não po~em situar de m~~e1ra
sabemos que somente «muito mais tarde» ele se. lem~rará .de, nenhuma em relação àqueles que os rodeia~: basta, para ISS?,
muito tempo antes, ter usado esse canapé com a emgmática pnma que estejam ligados, não a um outro acontecimento (O: que obn-
que sabemos: analepse sobre paralipse, diziam?s nós, mas ~á garia a narrativa a defini-los como anteriores ou postenores), mas
que completar ag?ra a fórm_ula, acresce~t~ndo: vza proJ~pse. Ta1s ao discurso comentativo (intemporal) que os acompanha- e
contorsões narrativas bastanam, sem duvida, para atrair ~obre a sabe-se que lugar ocupa nesta obra. No decorrer do jantar Guer-
hipotética jovem o olhar suspicaz, ainda que benevolente, do mantes, a propósito da obstinação de Mme de Varambon em
hermeneuta .. aparentá-lo ao almirante Jurien de la Graviere, e; logo, por ex-
Outro efeito de estrutura dupla, uma primeira anacronia pode tensão, dos erros análogos tão :frequentes na alta-roda, o nar-
inverter,. inverte necessariamente, a relação entre uma anacronia rador evoca o de um amigo dos Guermantes que se recomendava,
segunda e a ordem de disposição dos acontecimentos no texto. ao abordá-lo, da sua prima Mme de Chaussegros, pessoa dele
Assim, o estatuto analêptico de Un arnour de Swann faz com.que totalmente desconhecida: pode supor-se que esta anedota, que
uma antecipação {no tempo da história) possa reenviar aí para implica certo avanço na carreira munda~a de :Mareei, é .pos~erior
um acontecimento já coberto pela narrativa: quando o narrador ao jantar Guermantes, mas nada perm1te afirmá-lo. Dep01s. da
cio diegético é ao mesmo tempo, pa.ra o leitor, um rappel nar- cena da apresentação falhada a Albertine, :;m Les Jeunes [zll~s
que ele próprio e1rperimentará, «alguns anos mais ta,rde», nas en fleurs, o narrador propõe algumas. ref!exoes sobre a s~bJecti­
noites em que esse mesmo· Swann vier jantar a Combray, esse vidad<l do sentimento amoroso, depois ilustra essa teoria pelo
anúncio diegético é ao mesmo tempo, para o leitor, um rappel exemplo desse professor de Desenho que nunca tinha sabido a
.narrativo, pois 'leu. já a narrativa dessa cena umas duzentas e cin- cor dos cabelos de uma amante que amara apaixonadamente _e
quenta páginas «antes»; inversamente, e pela ~esma razão, a lhe tinha deixado uma filha (<(Sempre a vi de chapéU>> {124 )). Aqw,
referência à angústia passada de Swann, na narratiVa de Cornbray, nenhuma inferência do conteúdo pode ajudar o analista a defi·
{121) UI, p. 326; I, p. 124.
(122) Ill, p. 182. O resumo Clarac-Ferré (III, p. 1155) traduz assim: (123) I, .p. 297 e pp. 30-31.
<<Sei nesse dia da morte de Bergotte».
(124) II, p. 498; I, pp. 858-859.
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riir o estatuto de rima anacronia privada ·de t.oda a relação tem-
poral, e que devemos, pois, considerar mesmo como um aconte- duquesa- vista dos campanários de Martinville, essa sucessão
cimento sem data e sem idade: como uma acronia. não mantém nenhuma relação com a ordem temporal dos acon-
. Ora, não é ~penas certo acontecimento isolado que assim ma- tecimentos que a compõem, ou, simplesmente, uma relação de
nifesta a capacidade da narrativa em desembaraçar a· sua dispo- coincidência parcial. Depende essencialmente da localização dos
sição de toda a dependência, mesmo inversa, relativamente à sítios '(TansonviHe- planície de Méséglise- Montjouvain - re-
ordem .cronológica da história que conta. A Recherche apresenta, gresso a Combray-lado de Guermantes), e, logo, de uma tem-
·~ dms pontos pelo menos, autênticas estruturas acrónicas. No poralidade totalmente outra: oposição entre os dias de passeio a
fim de Sodome, o itinerário do «Transatlantique» e a sucessão Méséglise e os dias de passeio a Guermantes, e, no interior de
das suas paragens (Doncieres, Maineville, Grattevast Hermenon- cada uma das duas séries, ordem aproximativa das «estações» do
ville) determinam uma curta sequência narrativa ('") cuja ordem passeio. 'É preciso confundir ingenuamente a ordem sintagmática
de sucessão i(o percalço de More! no lborde! de Mainevi:He-en- da narrativa e a ordem temporal da história para imaginar, como
- contro de M. de Crécy em Grattevast) nada deve à relação tem- fazem os leitores apressados, que o encontro com a duquesa ou
po~al entre os dois elementos que a compõem, e tudo ao facto o episódio dos campanários é posterior à cena de Montjouvain.
(aliás ele p:ró~;rio diacrónico, mas de uma diacronia qUe· não é A verdade é que o narrador tinha as mais evidentes razões para
a ~os acontec:1me~tos cont~dos) de o comboiozinho passar pri- agrupar conjuntamente, com desprezo por qualquer cronologia,
meiro em Mamevllle, depois em Grattevast, e que essas estações acontecimentos em relação de proximidade espacial, de identidade
evocam. no espírito do na;rrador, por essa ordem, anedotas que de clima (os pa~eios a Méséglise têm sempre lugar com mau
se lhe hgam ("'). Ora, como bem o notou J. P. Houston no seu tempo, a Guermantes com bom tempo), ou de parentesco temá-
estudo sobre as estruturas temporais da Recherche 1(127), essa dis- tico (o lado de Méséglíse representa a vertente erótico-afectiva, o
posição .«geográfica» não faz mais que repetir e manifestar aque- de Guermantes é a vertente estética do mundo da infância), mani-
Ioutr~, mais implícita m~s .mais im~;ortante sob todos os pontos festando assim, mais e melhor que qualquer outro antes dele, a
de v:st~, das c~quenta ulllmas págmas de Combray, em que a capacidade de autonomia temporal da narrativa ("').
seqljenc1a narratwa é comandada pela oposição lado de l'vféséglíse/
/lado de Guermantes, e pelo afastamento crescente dos sítios em Mas seria inteiramente fútil pretender tirar conclusões defini-
rel~ção. à casa familiar; no decorrer de um passeio in temporal tivas apenas da análise das anacronias, que ilustram somente um
e 'mtétrco {'"). A sucessão: primeira aparição de Gilberte- adeus dos traços constitutivos da temporalidade narrativa. É bastante
aos espinheiros- encontro de Swann e de Vinteuil ~morte de evidente, por exemplo, que as distorções da duração contribuem
Léonie ~cena de profanação em casa de Vinteuil- aparição da tanto quanto as distorções da ordem cronológica para a emanci-
pação dessa temporalídade. São elas que vão em seguida reter-nos.

(125) . li, pp. 1075-1086. (129) Tendo bapt-izado analepses e prolepses as anacrondas por retros-
( Conte!'to-me ~ui, à medida que o comboio vai parando e que
126
) pecção ou antecipação, poderiam chamar-se silepses (facto de agarrar no
o empr.egad~ gnta Donc1eres, Grattevast, Maineville, etc., em ·notar aquilo conjunto) temporai-s esses agrrupamentos anacrónicos comandados por tal ou
que a pra~azmha ou a guarnição me evocam» (p. 1076). tal parentesco, e8pacial, temático ou outro. A silepse geográfica é, por
127
· · ( ) «Temporal patterns ·in A la recherche ... » · French Studies ·Ja·n exemplo, o prtinctpdo de agrupamento narrativo das narraif:i!Vas de viagens
1962. ' ' ., enriquecidas de anedotas, tais como Memóri,as de um Turista ou O Reno.
.(128)Am·
. a1or partd · • · pertence, por esse facto, à ordem
e essa sequencta A silepse temática comanda, no romance clássico <<de gavetas», numerosas
do 1teratwo. Desprezo esse aspecto, por ·agora, para considerar apenas a inserções de «histórias», justificadas _por relações de analogia ou de con·
ordem de sucessão dos acontecimentos singulares. ·. · traste. Tornaremos a enKXHJJtra·r a noção de silepse a propósito da narral!iva
iteratirva, que é uma sua outra vari,eldade.
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