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1.

NAS ORIGENS DA MODA:


CORTES E CIDADES ENTRE A IDADE
MÉDIA E A IDADE MODERNA

1. Antes da moda: hierarquias sociais e vestuário

É possível identificar um momento histórico em que a moda emerge pela


primeira vez? Pergunta banal, mas de resposta difícil. Já se pode falar
de moda na Antiguidade, como é bem visível nos frescos de Pompeia
e Ercolano. Mas, em muitos aspectos, a moda como a entendemos hoje
teve origem na Idade Média e desenvolveu-se no decurso dos sécs. XVI
e XVII, até assumir muitas das características da «moda moderna» 1•
Na realidade, a origem medieval da moda é dupla. Por um lado, ela
impõe-se como parte da cultura das cortes europeias: é a moda como
luxo, magnificência e requinte, que se torna um traço distintivo das
elites sociais; mas, por outro, é também um fenómeno mais extenso, que
interessa amplos estratos da população urbana europeia: é a moda da
rua, fonte de preocupação entre as hierarquias eclesiásticas e políticas.
Para compreender este dúplice aspecto é necessário recorrer ao
contexto em que a moda emergiu entre os sécs. XIII e XIV. A sociedade
medieval era fortemente hierarquizada, com uma acentuada divisão
·em classes (guerreiros, sacerdotes e camponeses) e fortes ligações
verticais de poder, por exemplo, entre vassalos, vassalos dos vassalos
e vassalos dos vassalos dos senhores. Na primeira Idade Média não se
~la de moda mas de traje, que identifica e distingue grupos de indiví-
~os. O vestuário distingue a mulher casada da solteira, o cristão do
infiel, o forasteiro do cidadão e assim por diante. Uma rua da Europa
medieval apresentava contrastes visuais muito acentuados, não só en-
tre ricos (sumptuosamente atav iados COI}1 fatos de cores esplêndidas,

Note-se com o a raiz da palavra «m oda» c <<moderno» é a mesma . Em muitos as pectos


a origem m edieval da moda assinala também o início da modernidade. Veja-se a propósito
Paulicclli (organização de) 2006.

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III STÓ RI A DA MODA - DA IDADE MED IA AOS NOSSOS DIAS CüllH S [ C IDADlS ENT RE A I DADE MEDI A E A IDADE MODERNA

sedas e ornatos de ouro e de prata) e pobres (geralmente com poucos a aquisição de um fato novo não era um capricho, mas uma decisão
farrapos em cima), mas também entre pessoas de diferentes profissões. bem planeada, que geralmente se fazia coincidir com as festividades
Frequentemente, a filiação política ou a proteção por parte de famílias citadinas ou religiosas mais importantes, ou com casamentos e funerais.
nobres e poderosas traduziam-se visualmente no uso de cores específi- E que exigia que fosse tomada de forma atempada, para que houvesse
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I I cas, de símbolos e trajes que eram vestidos como sinais distintivos, no um arco temporal suficiente para escolher o tecido e confecionar o fato.
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que era definido como «libré». Em suma, na sociedade medieval o traje
,, servia não só para tornar manifesta a hierarquia social, mas também
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r~ \ para representar as mais ínfimas divisões entre as diversas camadas e 2. Vestir o homem e a mulher
os diferentes grupos de poder: «trajes e objetos de luxo serviam para
r' construir, manter e reforçar identidades coletivas» 2 • Qual é a relação entre vestuário e moda? A moda é interpretada como
Mas o vestuário tinha um custo elevado e, além disso, quem queria uma forma de mudança do vestuário no tempo. O início desta mudança
um novo traje, tinha de «mandá-lo fazer». Começava-se pelo tecido. ocorre no decurso do séc. XIV, quando a silhueta masculina começa
··) Em muitos casos, a matéria-prima (predominantemente lã e linho) era a diferenciar-se da feminina . Até ao início do séc. XIV, homens e mu-
produzida em casa, fiada por mulheres e filhas e tecida pelos maridos 3 • lheres usavam longas túnicas ou camisões feitos sem cintura. Dante,
Os tecidos, em especial os de lã, eram habitualmente enfeltrados, de- por exemplo, é representado, em finais do séc. XIII , início do séc. XIV,
pois cardados para os tornar mais uniformes e finalmente tingidos em com um longo hábito vermelho (e o capuz distintivo) não muito dife-
oficinas especializadas. Mas a produção de tecidos e fatos de maior rente daquele que era usado por uma mulher desse tempo. Uma análise
qualidade ocorria na cidade: as pessoas dirigiam-se a uma loja de co- visual, ainda que sumária, de pinturas e frescos dos sécs. XIV e XV
merciantes de tecidos de lã e alfaiates, a «peleiros» e «fabricantes de mostra com grande evidência a mudança do vestuário masculino. Os -
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casacas» ; para os que tinham menos posses havia os «strazzaroli» e jovens, sobretudo, preferiam roupas mais curtas, com calções de ma-
outros vendedores de roupa em segunda mão 5• O custo de um fato era lha justos, sapatos sob a forma de simples meias com sola de couro e
considerável comparado com o que gastamos hoje com o nosso vestuário. coletes acolchoados que, com a utilização de um cinto, formavam uma
Uma parte consistente da despesa total derivava do próprio material. espécie de saiote por cima das meias-calças. Por sua vez, as mulheres
Por sua vez, a confeção tinha menor incidência no custo, sendo, contu- continuaram a usar vestidos compridos, por vezes de cauda, que con-
do, relativamente excessiva, porquanto exigia contínuos ajustamentos feriam uma proeminência particular ao busto- sobretudo ao seio, em
e numerosas sessões de prova por parte do cliente. Eram poucas as geral mostrado pudicamente por meio de decotes. A mulhe r nunca se
roupas produzidas em massa. Efetivamente, a maior parte do vestuário apresentava em público sem a cabeça coberta: simples véus de linho
era confecionado artesanal mente em casa, ou por medida por alfaiates para as mulheres de baixa condição; formas e materiais mais sofistica-
e costureiras: produzir fatos que não se adaptavam ao corpo do cliente dos, com rendas e fios de ouro, para as mulheres de condição elevada.
seria um terrível desperdício de material muito dispendioso. Assim, Esta transformação foi possível graças a inovações técnicas que
hoje damos por adquiridas. Em primeiro lugar, o vestuário era reali-
Muzzarelli, 20 11 , p. 79. zado, cada vez com maior frequência, através de processos de costura.
A seda estava ao alcance de um número restrito de ricos e só começou a ser produ zida na As vestes direitas, «as túnicas», são substituídas por indumentárias
Europa a partir do séc. XIV. O mesmo acontecia com os algodões, geralrncntc importados
até à segunda metade do séc. XV II, quando a produção curopeia começou a expandir-se.
adaptadas à forma do corpo, coisa que requeria mais trabalho e maio-
Sobre este assunto, veja-se Riello, obra e m impressão. res competências por parte dos alfaiates. Começaram também a ser
Em It ália, os «z upparii » confecionavam casacos, ou casacas, denominados «zuponi».
(N.T.) difundidas as técnicas da malha e do croché: para confecionar um par
Cf. Collier Frick, 2000, p. 64. de meias ou um camisolão já não era necessário produzir o material
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têxtil, cortá-lo e depois cozê-lo, podendo adotar-se um pr~cedimento As cidades da Europa medieval eram centros não só de produção
que permitia criar o tecido ao mesmo tempo que a peça de vestuário- e comércio, mas tamb~m de consumo. Era ali que se podiam comprar
em tridimensional, como dizemos hoje. A vantagem dos fatos e peças os melhores tecidos, e que alfaiates, ourives e outros artesãos confe-
de vestuário de malha é que, graças à sua elasticidade, se adaptam cionavam e produziam fatos, joias e outros objetos na moda .. A cidade
perfeitamente às formas. do corpo. ~or fim, os botões e objetos afins, era também o local onde se podia ostentar novos trajes, especialmente
a começar pelos simples alfinetes, tornaram-se cada vez mais comuns, para as elites, que optavam cada vez mais por residir dentro dos muros
como testemunham os muitos achados arqueológicos. A partir do início urbanos. Assim, na Idade Média, a cidade torna-se o cenário perfeito
do séc. XIV assiste-se, pois, a uma diferenci~ção do trabalho de confe- para ~ criação e a representação de novas modas. É também o lugar
ção entre os dois sexos. Esta mudança é considerada pelos estudiosos onde o princípio da hierarquia medieval, onde o status social de um
como um dos fenómenos chave em toda a história da moda, por duas indivíduo era determinado pelo nascimento, começa a ser posto em
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:, razões. Em primeiro lugar, a diferenciação de género no vestuário causa. No espaço urbano, ao contrário do feudo, a condição social é mais
manteve-se como uma característica distintiva da moda e da relação determinada pela riqueza do que pela origem. É por essa razão que os
entre os sexos até aos dias de hoje: homens e mulheres não são apenas trajes elegantes, dispendiosos e na última moda podem elevar o status
biologicamente diferentes, também reafirmam a sua diferença física, social de pessoas ricas mas de curta linhagem como, por exemplo, co-
psicológica e sexual através daquilo que vestem. Em segundo lugar, merciantes e artesãos abastados. A moda torna-se assim um instrumento
crê-se que a diferenciação entre a roupa masculina e a feminina foi de competição social numa sociedade ainda fortemente hierarquizada. ''
para os dois géneros um primeiro passo para uma visão dinâmica do E esta competição baseia-se no objetivo de parecer melhor do que
vestuário que começou a diversificar-se ao longo do tempo. E esta di- aquilo que se é. Neste caso é mesmo verdade que «O hábito faz o mon-
versificação - das formas e dos gostos - impõe-se também graças ao ge», no sentido em que dá acesso a .contextos sociais dos quais de outro
surgimento de novos contextos para mostrar f! usar a moda. modo se seria excluído. Contudo, esta interpretação do nascimento da
moda foi um tanto criticada. A cidade, pelo menos até ao fim da idade
moderna, era uma exceção à regra, pois a maior parte da população
3. A cidade faz moda ainda estava ligada à terra. Cerca de oito pessoas em dez viviam no
campo e dedicavam-se à produção de alimentos para sustentar uma
Entre o ano Mil e a peste de 1348, a população em·opeia quase triplicou população em crescimento. A moda urbana caracteriza assim apenas
e as cidades, sobretudo nas zonas ricas do Sul da Europa, aumentaram uma minoria da população europeia entre os sécs. XIV e xvm. Os
em número e em grandeza. Novas cidades e centros urbanos mais popu- historiadores também são prudentes ao sublinharem que os limites
losos desenvolveram-se graças ao aumento da produtividade agrícola, da expansão da moda não eram determinados apenas pelo número de
permitindo que um número sempre crescente de pessoas se libertasse pessoas que podiam participar neste novo fenómeno, mas também pela
da terra e exercesse o comércio e várias atividades artesanais. A cida- capacidade de produzir objetos de moda. A percentagem de artesãos
de do último período medieval torna-se, pois, um local de dinamismo entre a população total era muito pequena e ainda mais modesto o nú-
social, de excelência na produção de artefactos de diversos tipos e de mero daqueles que tinham as capacidades profissionais e a mestria para
comércios de curta e longa distância. A Itália era a zona europeia com produzir trajes e acessórios de alta qualidade.
maior taxa de urbanização e cidades como Florença, Veneza, Milão,
Roma e Nápoles constituíam verdadeiras 'megalópoles' 6 •

Ver a propósito Malan i ma, 2005, pp. 97-122.

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4. Domar a moda: as leis sumptuárias assim em diante. Por sua vez, em França contam-se uma centena e na
Alemanha entre 3.500 e 5.000, se se considerarem não só as leis, mas ,W
A expansão do consumo urbano, as sedas provenientes do Oriente, os também as disposições e outros regulamentos. O sociólogo Alan Hunt
objetos de luxo- como enfeites em prata e ouro- e o aumento geral dos refere que as leis sumptuárias foram mais comuns nas áreas europeias I

gastos com o vestuário eram fonte de preocupação para as autoridades de forte desenvolvimento económico, avalizando assim a hipótese de
civis e religiosas de cidades e Estados da Europa mediável. A resposta uma relação entre o crescimento económico, o surgimento da moda e
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foi uma série de medidas legislativas, as chamadas leis sumptuárias, a resposta sumptuana .
destinadas a limitar as despesas com objetos de moda, luxo e entrete- As leis sumptuárias regulavam não só as despesas com o vestuário,
nimento. A lei sumptuária inglesa de 1363, por exemplo, impunha que roas também os gastos com cerimônias como casamentos e funerais,
«maridos e mulheres, filhas e filhos não possam usar vestuário de valor estabelecendo legitimamente o que podia e não podia ser trocado entre ·
superior a dois marcos para o tecido [.. .] que artesãos e camponeses os esposos ou entre sogros e noras, bem como o número de velas per-
e as suas esposas, filhas e filhos não possam usar vestuário de valor mitidas num funeral. Uma análise das 145 leis sumptuárias francesas
superior a 40 xelins [...] que senhores e fidalgos abaixo da condição de mostra que um quarto delas incidiam no vestuário, um outro quarto
cavaleiro, com um rendimento inferior a 100 esterlinas por ano, e as suas nas festas, como por exemplo os batismos, um outro quarto nos'casa- '\
mulheres, filhas e filhos não possam usar vestuário de valor superior mentos e o quarto remanescente nos lutos e funerais e nas festividades
a 4 marcos e meio, nem tecidos de ouro, de prata, de seda ou bordados, religiosas. No entanto, convém sublinhar que as leis sumptuárias não
nem anéis, botões e outros artigos de ouro ou prata, pedras preciosas regulam todos os tipos de consu111o, mas apenas os considerados ex-
ou peles». A lei continua a elencar os senhores com um rendimento cessivos, isto é, «sumptuosos»: no centro da atenção está o supérfluo e
superior a 200 esterlinos, os comerciantes com propriedades de um a finalidade da lei é refrear o luxo e as formas de mudança, substituição
valor de pelo menos 500 esterlinos, os comerciantes com propriedades e alternativa instigadas pela moda.
no valor de pelo menos 1.000 esterlinos, e depois os cavaleiros com Muitos preâmbulos das leis sumptuárias esclarecem que o seu obje-
vários rendimentos e os prelados, e para terminar «os camponeses e tivo é manter o status quo e, ao fazê-lo, preservar o bem-estar da nação.
todos os que tiverem menos de 40 xelins em objetos e propriedades não Ao impedir gastos excessivos- proclamam as leis - persegue-se o fim
podem usar nenhum tecido que não seja de linho ou lã não trabalhada, da «boa governação». Um bom governo deve manter a ordem moral
no valor não superior a 12 xelins por el/» 1 • do povo evitando os desperdícios, entre os quais se incluem também
Exemplos semelhantes encontram-se em toda a Europa, desde as despesas com o vestuário e as festas. O luxo, geralmente de origem
a França à Itália, aos Estados alemães, à Escócia e à Rússia, sinal estrangeira, é o primeiro a ser condenado. Em vez das sedas importa-
de que entre o séc. XIII e o séc. XVIII este tipo de intervenção estatal das da Ásia, é preferível utilizar os tecidos de mais modesta laboração
estava um tanto difundido, o que pode ser lido como a tentativa de mas produzidos in loco, porque assim se dará trabalho ao tecelão e aos
conter um fendmeno de amplitude europeia. As leis sumptuárias eram seus trabalhadores, à mulher que fia o material e ao artesão que faz '"' '
particularmente comuns em Itália nos sécs. XIV e XV, no séc. XVI em o tingimento. Estes sustentarão as suas famílias e, ao pagar os impostos
Inglaterra e entre os sécs. XVI e XVII em França8 . Em Itália contam-se devidos, contribuirão para a prosperidade do erário e para a capacidade
220 (entre verdadeiras leis e outros regulamentos) apenas em Peru- do Estado se defender dos inimigos internos e externos. É este o caso
gia, 130 em Orvieto, 80 em Bolonha, 23 em Assis, 22 em Modena e da lei sumptuária inglesa de 1483, que proíbe especificamente o uso

Lei sumptuária ing lesa de 1363, em apêndice a Phillips, 2007, pp. 33-34. Um ell equivale
a 94 em.
Kovesi Killerby, 2002, pp. 28-29. Ver Hunt, 1996.

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de tecidos de lãs estrangeiras por todos aqueles que estejam abaixo da sumptuárias surgem assim como uma espécie de «imposto sobre
condição de Lord.
0 luxo» para aqueles que podiam permitir-se tanto os vestidos, como
Por vezes, os tons adotados são marcadamente morais. Não é por
0 pagamento das multas. Do outro lado da escala social, a maior parte
acaso que é este o princípio orientador de um outro grupo que não ama da população é mencionada nestas leis, mas é delas excluída de facto /
a moda: os homens da igreja. Padres, monges e pregadores lamentam porquanto não é suficientemente rica para se permitir infringi-las.
repetidamente que a atenção ao vestuário distraia não só dos verdadeiros Bernardino de Siena chega a sugerir precisamente que a lei sumptuária
objetivos da vida terrena mas também dos da vida além-terrena: a moda pode produzir mais danos que remédios ao problema da propagação
é uma transgressão à fé e, como tal, uma afronta a Deus. Bernardino de do luxo e da moda no vestuário: efetivamente, defende que o texto da
Siena, de entre os mais convictos detratores do luxo e da moda, numa lei, geralmente lido em público, acaba por _fomentar a cobiça, ao dar
sua prédica intitulada Contra mundanas vanitates et pompas (1427) a conhecer nos mínimos detalhes as formas, as cores e as caracterís-
instrui moralmente, sobretudo as mulheres, a evitar sedas e damascos, ticas dos objetos proibidos 10 •
pérolas e pedras preciosas, sapatos com as pontas alongadas e vestes As leis sumptuárias levantavam um problema ulterior: para fazer
adornadas de arminho e até caudas e maquilhagem. E identifica dez respeitá-las era necessário criar um sistema de polícia. Por exemplo,
razões pelas quais se pode causar ofensa a Deus através do vestuário, urna em Florença, em 1330, os denominados Polícias das Mulheres ti nham
das quais é a própria moda, que ele define como «novidade». Bernardino a tarefa de multar as que não respeitavam as regras sumptuárias vigentes.
e muitos outros pregadores admoestavam publicamente as multidões e Andavam pelas ruas e praças, colocavam-se nas pontes e dispunham
denunciavam que era cada vez mais difícil distinguir a mulher virtuosa da faculdade de mandar parar quem infringia a lei e sequestrar in loco
(dama) da imoral (prostituta). Se esta última se ataviava com vestidos (com muito embaraço do prevaricador) todos os objetos proibidos. Para
que estavam mui.to acima da sua posição, a primeira caía na tentação quem fosse encontrado nesta situação a única saída era correr para
de usar vestidos ignominiosos. Encontramos aqui uma sobreposição uma igreja, lugar onde os polícias não podiam exercer os seus poderes.
semântica e conceptual entre luxo e luxúria: o luxo e o excesso são No entanto, são pouquíssimos os documentos que atestam casos
geralmente representados como uma tentação que é simultaneamente de pessoas perseguidas pela le i.1Pela docu mentação conservada nos
da carne e do espírito. O remédio é a purificação: renunciar a todas as arquivos florentinos constata-se que entre 1638 e 1640 mais de 200
tentações, abjurando-as public~mente. É o caso da famosa «fogueira indivíduos, de entre os quais apenas 40 homens, foram perseguidos
das vaidades» ordenada por Savonarola em Florença, no dia 7 de fe- pelas leis sumptuárias em vigor na cidade. Trata-se de uma documen-
vereiro de 1497, durante a qual foram destruídos objetos considerados tação rara, que mostra que mesmo a gente comum (guardas, notários,
pecaminosos, como vestidos luxuosos, tecidos preciosos, mas também lojistas, mas também tecelões, vendedores ambulantes, ferreiros, cha-
espelhos, cosméticos e pinturas. peleiros, sapateiros, camponeses, etc.) era encontrada a usar vestuário
Assim, a moda e o luxo eram condenados e proibidos, mas a história proibido. Quase todos os homens apanhados, na maioria dos casos
mostra que reprovação e proibição serviram muito pouco para deter em frente de tabernas, vestiam coletes com um rebordo de renda que
a ascensão da moda: advertências e prédicas frequentes e repetidas excedia o comprimento autorizado; por sua vez, as mulheres foram
' tinham pouco acolhimento por parte dos fiéis. O mesmo se pode dizer encontradas com vestidos adornados com fi ligranas e bordados, mas
das leis su mptuárias, que eram ·constantemente emanadas e prova- também com pérolas e diamantes, sendo apanhadas sobretudo à saída
velmente ignoradas. Em alguns casos as próprias leis propunham das igrejas 11 •
escapatórias, como a lei sump't uário florentina de 1415, que estabelecia
que as mulheres que quisessem usar vestidos e joias proibidos podiam 10
Muzzarcll i, 2006, p. 36.
fazê-lo durante todo o ano pagando simplesmente 50 florins. As leis 11
Calvi, 203, pp. 222-224.

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CO RT ES E C IDAD ES ENTRE A IDA DE MÉDIA E A IDA DE MODERNA

5. Mulheres e moda pretendia que as mulheres estivessem subordinadas aos homens tam-
, • 13
béro na estettca.»
A p_rep~nderância feminina nas perseguições sumptuárias na Florença Esta posição subalterna da mulher em relação ao poder patriarcal
do séc. XVII e a existência de Polícias das Mulheres chamam a atenção foi teorizada no final do séc. XIX pelo sociólogo americano Thorstein 1
sobre o facto de que a m_u lher era considerada pa!"ticularmente sujeit~ Veblen (1857-1929) que na sua obraA_Jeoria da classe abastada (1899)
à influência da moda. A associação entre moda e mulher permaneceu -;ôs a hipótese que o verdadeiro motivo pelo qual as mulheres eram
até aos nossos dias. Mas se hoje se apresenta como uma «feminiza- vistas como «criaturas da moda» não era a sua vaidade, nem sequer
ção» geral da moda, na Ic!_ade Média representava uma confirmação ·uroa conveniência pessoal, ma_s sim a ~osiçã() social dos maridos.
da natureza nefanda da moda que atingia o «sexo fraco»: a mulher, A_pmlher torna-se «fetiche», demonstração evidente do poder e do
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bero-estar da família e do marido (da mesma maneira que um auto-
não sendo capaz de resistir às tentações (pelo menos não tanto como
o homem), estava mais sujeita a tornar-se, como diríamos hoje, uma roóvel, um iate ou uma casa). A mulher medieyal e l,"_t!nascentista não
«vítima da moda». Tanto as leis sumptuárias como as frequentes se exprime e não comunica através do luxo e da moda; a comuQicação
prédicas dos homeos da igreja e moralizadores .§.obre os p_erigoul.o_ oco~or interposta pessoa, p~r parte do homem. Trata-se de uma
luxo e da moda eram d~ facto especificamente dirigidas às mulheres, teoria um tanto diferente da proposta pelo sociólogo Georg Simmel,
como no .caso do tratado De usu cuiuscumque ornatus (1434-48) de que interpreta a moda como fator de «compensaç~o» para a_!!!_Ulher: _
Giovanni da Capestrano, ou do Tractatus de ornatu mulierum (1526), excluída de uma vida pública ativa, cria a sua esfera de escolha e
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de Orfeo Cancellieri. Savonarola não utiliza subtilezas e chama as expressão precisamente na moda •
mulheres à honestidade, que as distingue dos animais, ao afirmar: «A É difícil dizer qual das duas teorias serve melhor para explicar
vaca é um animal sem graça, e grande, como um bocado de carne com a posição da mulher e a sua relação com a moda na época medieval.
olhos. Mulheres, fazei com que as vossas filhas não sejam vacas; fazei É certo que as mulheres era~ excluídas da vida p2Jítica e profissional
com que andem com o peito coberto, não usem cauda, como as vacas e, ao mesmo tempo, representay_am a _Qonra e a dignidade da família.
[.. .] se apresentem como mulheres de bem, e honestas.» 12 A mulher É esta a posição expressa precisamente por uma mulher, Nicolosa
deve repudiar todas as modas congderadas vergonhosas, isto é, que Castellani, mulher de Nicolo Sanuti, conde de Porretta, a qual, em
desonrem a mãe, mas sobretudo o marido, o pai e os irmãos. A mulher meados do séc. XV, escreveu uma oração (em latim) endereçada ao
da Idade Média- e, para dizer a verdade, até um tempo recente - não cardeal Bessarione, redator de uma lei sumptuária de Bolonha. O texto,
exprime uma posição própria mas é, como afirma Savonarola, uma único no seu género, apresenta a voz de uma mulher em matéria de
vítima passiva de impulso~e desejos_ que não sabe dominar. O mesmo vestuário e moda. Quase misturando os argumentos que serão séculos
princípio se encontra nas leis sumptuárias. Naturalmente, a mulher depois os de Veblen e Simmel, Nicolosa Sanuti sublinha que a lei não
não toma parte na elab_graçã_9 destas leis, embora seja geralmente consente ~as mulheres exibam através do vestuário a sua condição
o objeto das regras que elas impõem. As mulheres têm uma posiçã_g_ e a dos maridos, privando-as, em particular as nobres, da única forma
subalterna: o que podem ou não podem usar é estabelecido, não pela de distinção social disponível ~a época, ':isto estarem excluídas da
sua condição soe~ mas pela dos seus maridos, pais ou irmãos: «Um carreira eclesiástica e dos serviços públicos.
requisito necessário para que ó sistema dos códigos funcionasse era
que todos conhecessem e_r~speitassem as regras, uma das quais, de
tal modo enraizada que não tinha de ser necessariamente formalizada,
" Muzzarell i, 1999, p. 347.
" Simmel, 1995 (ed . or. 1905), p. 37. Sobre Vcblen c Simmel ver também Segre Reinach,
12
Girolamo Savonarola, Le Prec/iche: meretrici, 1496. 20102 (Edição portuguesa: Filosofia da Moda, Edições Texto & Grafia, Lisboa, 2008).

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HISTÓ RIA DA MODA - DA IDADE MÉDIA AOS NOSSOS DIAS CORTES E C IDADES ENTRE A IDADE MED IA E A I DADE MOD ERNA

6. Moda, cortes e cortesãos Baldassare Castiglione (1478-1529), publicado em 1528. Castiglione


introduz a figura do cortesão do modo seguinte:
Muitos historiadores afirmam que aquilo que hoje se denomina moda
devia ser um fenômeno um tanto limitado, que só interessava~s camadas Assim, o cortesão, além da nobreza, quero que[...) tenha por natureza não
urbanas mais abastadas. Outros sublinham, por outro lado - como Odile só o engenho e bela forma de pessoa e de figura, mas uma certa g raça e,
Blanc - que o aparecimento d<: ~1_9da foi uma mudança ' revolucionária' como se diz, um sangue (um ar), que o torne ao primeiro olhar de quem
que, independentemente da sua extensão, veio desestabilizar os preceitos 0vê grato e amável; e seja este um ornamento que componha e acompa-
sociais~ morais da é_m>ca 15• Outros ainda defendem que foi a corte qu~ nhe todas as suas atuações e prometa ser dig no do comércio (confiança)
desempenhou um papel fundamental no nascimento da moda) A dis- e graça de qualquer grande senhor. 16
tinção entre vestuário masculino e feminino, vista como o incipit da
própria moda, é considerada por muitos como o resultado do uso de Segundo Castiglione, o cortesão é um homem, de preferência de
armaduras por parte dos nobres e cavaleiros da corte. A~madura é nascimento nobre ou pertencente a uma linhagem rica, capaz de obter
símbolo do valor masculino e da sua capacidade de travar batalha, de uma posição de relevo na vida da corte graças às suas virtudes morais
lutar em vez de pregar ou, pior ainda, trabalhar a terra. Mas a armadura e intelectuais. É um homem, como hoje diríamos, de grande fascínio,
não podia ser usada por cima de vestes compridas e era necessário usar mas também uma pessoa determinada, consciente de que a sua meta é
indumentárias acolchoadas, sobretudo para cobrir o busto. Nasce assim, obter poder e influência junto do príncipe: um objetivo possível graças
em meados do séc. XIII , o pourpoint, o colete acolchoado que envolvia ~sua capacidade de criar uma imagem de si que não seja uma máscara,
o corpo e se usava sob a arm~dura e que, a partir dos anos trinta do mas uma verdadeira identidade baseada em qualidades como a cora-
séc. XIV começou a ser usado também sem a armadura. g~m, o valor e respeitabilidade. As vestes acompanham a imagem de
Além das formas do vestuário, a partir do séc. xv e durante os dois ·~er-homem' do cortesão, diz Castiglione, porquanto a mensagem que
séculos seguintes, a corte tornou-se um dos mais importantes lugares deve transmitir não se exprime apenas nas suas ações, na sua produção
não só de criação de novas mod<!_s, mas também de produção de novos literária ou em combate, mas também através do vestuário.
có~igos de comportamento. Formada pela família reinante e pela sua Castiglione - também ele homem de letras e cortesão na corte de
vasta entourage, tinha possibilidades financeiras para competir em Francesco Maria de la Rovere, duque de Urbino, um dos centros mais
magnificência, luxo e muitas vezes extravaga'ncia com outras cortes. importantes do Renascimento italiano do séc. XVI - descreve na sua obra
O vestuário torna-se assim, n<L_~io da cultura da corte, um importante uma sociedade em que o presente do início do séc. XVI se diferencia,
símbolo, além de manifestação material de riqueza e poder: podemos nos usos e nos costumes, não só da antiguidade, ou seja, da cultura
ver isso nos muitos retratos de príncipes, reis e imperadores dos sécs. xv da Grécia antiga e de Roma, mas também das gerações precedentes.
e XVI. E a relevância do vestuário e das maneiras estende-se também O modo de vestir do séc. XV baseava-se no conceito de abundância ou
a todo o grupo da corte, constituído por artistas, músicos, homens de superfluidade. No final do séc. xv, Lourenço de Médicis, senhor de
armas e letrados. Florença, é pintado envergando uma ampla gama de tecidos preciosos,
Na história da moda tem primazia a figura do «cortesão». O cortesão joias e uma profusão de cores berrantes. Se déssemos um salto crono-
é um homem de cultura, hábil nas artes e em batalha e, sobretudo, capaz lógico de cerca de duas gerações, até meados do séc. XVI, Lourenço
de moldar a sua imagem a fi in de adquirir poder. A obra mais conhecida de Médicis teria sido ridicularizado e a sua indumentária considerada
sobre a vida das cortes italianas do Renascimento é O Cortesão, de não só fora de moda, mas também parola. Efetivamente, o 'homem do

16
" Blanc, 2002, pp. 157-172. Castiglione, 1998 (ed . or. 1528), pp. 40-41.

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r-rr ~ r UKi i\ Oi\ MODA - Oi\ IDAD E MÉD IA AOS NOSSOS DIAS CORTES E C IDADES ENT RE A IDADE MED IA E A IDADE MO DERNA

séc. XVI veste uma casaca de seda negra da qua~em as mangas de Numa das mais belas pinturas de Rafael, datada de 1514-16 e hoje
uma camisa de seda branca. Requinte e elegância são obtidos graças no Louvre, Castiglione veste um gibão de veludo negro, uma camisa
à refinada combinação de cores primárias, sem recorrer a acessórios e de linho branco tufada e uma boina basca, também de veludo negro;
materiais faustosos, não deixando de conseguir transmitir um sentido seu busto é pregueado, quase classicamente, com um veludo cinzento.
0
d~ luxo e de singelo esplendor.
Os olhos são azuis, a expressão segura mas não arrogante e as mãos
Assim, por um lado o fausto! a sumptl!_osidade e a pompa através é que são o centro, não o vestuário. Aquilo que Rafael quer represen-
da ostentação de trajes ricos; por outro, um requinte não menos dis- tar é 0 homem que está sob as vestes. A pintura assume visualmente
pendioso, mas pacato, comedido e seguramente judicioso. O psicólogo
0 que poderemos definir como «moda ética»: o negro não é (ou não
da moda John Carl Flügel 17 explica que estas divergentes opções de é apenas) cor na moda, mas é a única forma possível através da qual
vestuário são na realidade parte de um espectro de preferências que vai são representados exteriormente os princípios morais que orientam
da «ostentação» à «modéstia». A acumulação, que se poderia definir a ação do cortesão. Trata-se não só de uma escolha de indumentária,
como «redundância» de vestuário, opõe-se à modéstia, vista quase mas também de uma escolha de indumentária moral. A conduzir as
como uma forma de «renúncia». Para Flügel «ostentação-redundância» escolhas comportamentais do cortesão e do fidalgo está a mediocritas,
e «modéstia-renúncia» não são escolhas opostas, mas representam as o justo meio de tradição horaciana. O homem virtuoso deve evitar os
forças da luta psicológica, inata em qualquer de nós, entre a necessidade extremos para viver uma vida ' equilibrada': assim, são de recusar as
de sermos únicos, de surpreender e de aparecer, e a de sermos quase formas e as cores berrantes, o fausto e o excesso na decoração; tal como
invisíveis, de nos perdermos na multidão. é de evitar o extremo oposto, isto é, a renúncia ascética: por exemplo,
um vestuário quase monacal.
Mas se o negro é omnipresente, os tecidos que se divisam nas pintu-
7. O homem de negro
ras são de altíssima qualidade e as formas revelam uma atenta procura
estética. O negro não é certamente a cor dos pobres: é, na mentalidade
No séc. XVI, a ostentação, de forma física e material, transforma-se num renascentista, a cor que contem todas as cores e uma das mais dispen-
atributo intelectual: representa a capacidade de exibir a sua cultura, diosas a produzir nos seus mais belos matizes. É por essa razão que,
os seus conhecimentos e de fazer escolhas ponderadas. Mas como se a partir do início do séc. X V I, o negro se torna a cor das cortes, não
manifestava esta tendência para a simplicidade aparente, para a recusa só em Itália, mas em toda a Europa. É o caso do imperador Carlos V,
de qualquer exagero e a renúncia à exibição material do valor monetário que reinava no vasto império dos Habsburgos, na rica Espanha e suas
da roupa a favor de uma opção de vestuário que sublinhasse os valores possessões no novo mundo. Ticiano retrata-o em muitas das suas obras,
estéticos, culturais e intelectuais? Tratava-se de dar forma a virtudes muitas vezes em traje de combate, por vezes vestido com um simples
que não podiam ser compradas como se compram sedas preciosas fato negro, quase como se quisesse confundir-se com os retratos dos
ou objetos de luxo, mas que deviam ser tornadas próprias através da opulentos comerciantes do séc. XVI e dos séculos seguintes.
educação e da formação pessoal. Esta renúncia ao mundano, ao exte- Os inúmeros retratos de homens vestidos de negro dos sécs . XVI
rior e ao superficial a favor de ,qualidades interiores exprime-se com e XVII ajudam-nos a compreender as diferentes razões que tornaram
particular eficácia no uso do negro. Os sécs. XVI e XVII são os séculos o negro uma cor tão popular. De facto, só numa pequena percentagem
do negro por antonomásia. · os homens renascentistas aspiravam tornar-se cortesãos ou faziam parte
de uma corte, pelo que o negro era usado por outros motivo.s. E ra, por
17
exemplo, a cor da Reforma protestante e, depois dos faustos da corte
Flügel, 2003 (cd. or. 1930).
papal da primeira metade do séc. XVI, também da Contrarreforma.

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CO RTES E C I DA DES EN TRE A IDA D E MLD I A ~A IDAD[ MO D [RNA
III STÓRIA DA MODA - DA I DAD~ MÉDIA AOS NOSSOS D IA S

O catolicíssimo Filipe II de Espanha veste-se de negro. Nos cinquenta


-
mas também com as boas maneiras. O fidalgo do Renascimento deve
anos seguintes o negro torna-se parte integrante do vestuário da corte conhecer os movimentos a seguir nas danças frequentes, deve saber
a tal ponto que, em 1623, Filipe IV decreta que quem se apresentar na comportar-se à mesa, nas procissões, nos rituais e nas cerimónias pú-
corte de Espanha deve ir vestido de negro. Finalmente, na rica Holanda blicas, mostrando um valor moral superior ao de um simples «aldeão».
do séc. XVII o negro torna-se a cor dos homens e mulheres, jovens e Em suma, as maneiras da corte, da aristocracia, mas também cada vez
velhos, ricos e pobres. É a cor do quotidiano, sinal de uma respeita- mais das classes médias ricas da idade moderna, vão-se refinando.
bilidade pragmática e comercial que muitos historiadores veem como Não basta, como se dizia, o hábito. Também é necessário conhecer
precursora dos valores da burguesia do séc. XIX. O negro dos comer- a etiqueta. Della Casa afirma: «Ninguém deve despir-se, e especialmente
ciantes holandeses do séc. XVII é a cor de uma classe moderna que tem tirar as calças, em público [.. .] Do mesmo modo, não se deve aparecer
necessidade de um vestuário funcional para realizar as suas atividades com a touca de dormir na cabeça, nem apertar as calças na presença de
quotidianas na máxima liberdade. Nasce a primeira «indumentária de pessoas.» 20 E continua: «Não fica bem coçar-se quando se está sentado
trabalho» da classe média ís. à mesa [...] Nem enxaguar a boca e cuspir o vinho [...] Também não
convém ficar deitado sobre a mesa nem encher de comida os dois lados
21
da boca de tal forma que as bochechas inchem.»
8. Etiqueta e maneiras Esta lista de regras é parte de um «processo de civilização», de
transição para uma cultura das maneiras - especialmente das boas
Todavia, o vestuário é apenas uma parte desta nova «cultura das maneiras-, que se encontra também na idade moderna e se baseia em
aparências>>. Castiglione, a bem dizer, não dá nenhum conselho sobre processos de aprendizagem social de regras que são depois teatralmente
a moda, preferindo centrar-se nas maneiras e nas ações do homem da repetidas como demonstração do seu requinte 22 . Assim, o homem (e
corte. Mas não é o único a aventurar-se sobre estas questões. Giovanni a mulher) «elegante» do Renascimento e da idade moderna é-o não só
Della Casa publica em 1558 o seu famoso Galateo, no qual fornece um graças ao hábito mas também ao habitus, o modo de comportar-se: não
vade-mécum sobre o modo de comportar-se, sobre os tipos de indu- se assoa o nariz com a toalha, usam-se talheres à mesa, não se metem
mentária a usar, e assim por diante. Escreve Della Casa: os dedos no nariz e nunca se passa - recomenda Della Casa - o seu
lenço a outrem. Trata-se de um dos maiores processos de mudança
Bem vestido deve andar cada um segundo a sua condição e segundo a sua social ocorridos nos últimos séculos, que conduzem à criação de uma
idade, porque de outro modo pode parecer que despreza as pessoas [...] sociedade que não é de modo algum «natural», mas sim construída ou,
E não só se requer que os trajes sejam de tecidos finos, mas que o homem poder-se-ia dizer, «artificial».
se esforce por retratar-se [adequar-se] o mais possível ao costume dos
outros cidadãos e deixar-se moldar pelos usos. 19
9. As cortes europeias da moda
Esta passagem sublinha que não é suficiente vestir o traje adequado
à ocasião ou poder permitir-se tecidos preciosos, na última moda. A cul- A atenção dada até então à Itália não é casual. Até aos primeiros
tura e a educação são elementos igualmente importantes e uma pessoa anos do séc. XV I o país teve de facto um lugar de destaque na criação
mostra que as possui não só através do que pode adquirir com o dinheiro, das modas, servindo de modelo ao resto da Europa. Senhores como

lO fbid., p. 73
21
" Ver Q uondam, 2007. lbid. , p. 70.
19 22
Delta Casa, 1975 (cd. or. 1558), p. 14. EI ias, 1993.
CO RTES E CIDAD ES ENTR E A IDADE MÉD IA E A IDA DE MO DERNA
HI STO RI A DA MODA - DA IDA D E M ÉDIA AOS NOSSOS DI AS

Federico da Montefeltro e a mulher Battista Sforza ou, uma geração a morte prematura de Maria pôs termo a estas influências. A nova
depois, Elisabetta Gonzaga, não poupavam em vestidos, joias e tecidos rainha, Isabel I, era acérrima inimiga de tudo o que fosse espanhol.
caríssimos. No entanto, precisamente no momento do triunfo da moda, Enquanto a corte de Espanha indicava o negro como cor apropriada,
a Itália entrava numa fase de declínio político que levou, primeiro os a rainha «virgem» fazia do branco e das cores pastel a paleta da moda
franceses, e depois os espanhóis, a controlar grande parte da península. da corte inglesa. Só depois do interregno de meados do séc. XVII e do
A debilidade política da Itália teve diversos efeitos na moda. Francis- regresso de Carlos 11 do seu exílio em França, a moda inglesa, e não
co I, rei de França, entre 1515 e 1525, esteve envolvido em campanhas só a da corte, se abriu às influências francesas.
militares do norte de Itália contra o imperador Carlos V. Conta-se que, No séc. XVII a corte inglesa torna-se lugar de criação de moda, mais
no seu regresso a França, depois de uma derrota humilhante e a prisão do que tinha sido durante o período medieval e o séc. XVI, e não só em
em Madrid, o culto Francisco impôs a toda a sua corte novas modas França, Inglaterra e Espanha: a Europa pululava de cortes de Estados
e novos objetos de luxo de origem italiana. É esta a primeira vaga de menores, desde os da Alemanha e Itália aos novos Estados emergentes
sucesso internacional da moda italiana, continuada depois a partir dos como a Suécia, mas também a Prússia e a Rússia. Em Estados grandes
anos cinquenta do séc. XVI por Catarina de Médicis, filha de Lourenço 11 e pequenos, ricos ou instáveis, a vida da corte torna-se o mundo em
de Médicis e consorte de Henrique 11 de França, sucessivamente figura torno do qual gravita a nobreza. Viver perto do rei significa ter a pos-
chave na vida política francesa. sibilidade de aceder a favores e poder, mas é também uma constrição
Todavia, no decurso do séc. XVI, outras nações europeias, especial- desejada pelo reinante para manter «OS amigos chegados e os inimigos
mente a França e a Espanha, tornam-se mais influentes na moda de ainda mais chegados». Luís XIV talvez seja o rei de maior sucesso
corte. A Espanha, por exemplo, assiste à elaboração de uma linguagem nesta estratégia que vê Versalhes semelhante a um carrossel do luxo,
decorativa específica já a partir dos anos vinte e no decurso do século do desregramento e do excesso, acompanhado por formas cada vez
a rica corte espanhola torna-se o símbolo de uma elegância comedida mais rígidas de protocolo e etiqueta.
e muitas vezes em negro. Por sua vez, a França só no séc. XVII emerge No final do séc. XVII, graças à atenção maníaca das cortes pelas
com uma moda própria. A consolidação da monarquia com Henri- boas maneiras, mas também graças à difusão da moda urbana entre as
que IV (m. 1610) e sobretudo a partir do reinado de Luís XIV (1643- camadas mercantis e profissionais, assiste-se ao nascimento, também
-1715), não só cria uma moda francesa como potencia e conduz ao seu conceptual, da moda, que começa assim a fazer parte do vocabulário
máximo esplendor a corte como ambiente de criação e consumo da de muitas línguas europeias. É este o momento em que moda e mo-
moda. Ao realizar o sumptuoso palácio real de Versalhes, Luís XIV dernidade entram numa nova fase que as levará, nos séculos seguintes,
dá vida a um cenário em que a família real e toda a nobreza de França a impregnar todos os aspectos da vida social e económica europeia.
passam o tempo a respeitar rígidos protocolos de ações simbólicas,
como o despertar matutino do rei. No séc. XVII as cortes de França e
Espanha tornam-se modelos alternativos de moda na Europa. Seguindo
a dicotomia «ostentação versus modéstia», a corte francesa representa
segura~ente a máxima forma de ostentação, enquanto a espanhola
permanece símbolo de uma falsa modéstia.
Por sua vez, a Inglaterra ·dos Tudor, de fé protestante, não olhava
nem para a moda da corte francesa nem para a da Espanha, ambas
monarquias católicas. O casamento de Maria Tudor com Filipe 11 de
Espanha, em 1554, introduziu alguns elementos espanholados, mas

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