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EDITORA 34

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Tradução @ Paulo lšczcrra, 2016
(lopyright © Mikhnil lšnkhrin
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l'ul›||s|1cd by nrr;u1gcn1cnt W|th hlcna V|¿1d|mn(›vn.1 hmllnvl OS generos d
0 dlscurso
and Scrgucy (ìcorgcvich lš<›c|1;1r<›v. All rights lmsuvad

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Nota .1 cdlgao brasl elra

(Íapa, projctn graifico c cdimr;1çã<› c|ctrônic;1: Os generos do dlsaurso


lšmchcr Malta I'rf›d11çúr› (Iníƒím O texto na l|ngL11§tm.1, na filologn
Rcvisfioz c cm outms uenuas humanas
I)aní/0 llum, Išmiríz dv Frcítas Murvira

Nota do tradutor aos D1.1|ogo§


Dlalogo l A questão do dlsçurso dlalogmo
I" |'Ídiçã<› - 2()|6

I osfauo, Iaulo Bczcrra


(Ill) - Brasil. (larnl<›g¿1çã<››|1¿1-Fulìtc
(Sim|ic;1t<› Nacimml dos Editorcs dc Livros, R_|, lšrasll) Sfìbïf U “MU”

Ifiakhtin, Mik|\;1i|(I.“¢*)ï |')7.í) Sobre 0 tradutor


|'›l4.2g_', ()\ gí-|u-rns du di.scu|^.sn / Miklmil I'›.1k|\rin;
c›|^¡¿_;1|1i'/..1ç;ì<›_lr;\¢|L|ç;ìn` |m›†;ici1›<-|||›t;1s dv |';n||r›
|5c7,crr.1; nurns Jn udiçiu russn dc Sc|'_s¿1|ci |š<›rc|\;1|'nv
Í São |);1u|n: lfdirnlïl ì4, l()I(› (|" l'ͱ|i(;ì<›).
176 p.

ISBN “)7?»'¬“{§›7,§l(a†(w 36%

I. l.i11gL|ísricn. l,TL^<›ri;1d;1 cm1u||1iu;1ç[m.


Â. |*`i1<›.sufi¿1 «In lin_L;u;1;¿u|n. I. lšc/crm, Pauln,
II. |š<m'l\;1mv` Scrg_m-1. lll. 'I ítuln.

(ÍDI) 4|()
Os gêneros do discurso

1. O PRoB1.1zMA iz su/\ i)i~:|~'1N|(;Ão

Todos os diversos campos da atividade humana estao li-


gados ao uso da linguagem. (Iompreende-se perfeitamente
que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes
quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não
contradiz a unidade nacional de uma lingua. O emprego da
lingua efetua-se ein forma de enunciados' (orais e escritos)
concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou da-
quele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem
as condicöes específicas e as finalidades de cada referido cam-
po nao só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da lin-

' Išaklitin emprega o termo ¡fis/sázizfmlir', derivado do infinitivo


¡fis/cázimil, que significa aro de enunciar, de exprimir, transmitir pensamen-
tos, sentimentos, etc. em palavras. () proprio autor situa vis/<¢ízízfa11ie no
campo da /mm/U saussuriana. lìm Marxis/rio 4* /íloso/ia da /ir1_s¿'zm¿›c›11 (llu-
citec, Sao Paulo), livro atriliuído a Bal<l1tin, mas assinado por V. N. Volo-
cliinov e até hoje sem autoria definida, o mesmo termo aparece traduzido
para o portugues como "enunciado" e “em|nciacao". Mas Íšakhtin não
faz distincño entre enunciacão e enunciado, ou melhor, emprega o termo
zfískázluanic quer para o ato de produção do discurso oral, quer para o
discurso escrito, o discurso da cultura, um romance já publicado e absor-
vido por uma cultura, etc. Por essa razão, resolvi não desdolwrar o termo
(ia que o próprio autor não o fezl) e traduzir vis/erízíl/ani@ por “enuncia-
do”. (N. do T.)

Os generos do discurso ll
guagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseoló- volumes, a ordem militar padronizada e até obrigatória por
gicos e gramaticais da lingua, mas, acima de tudo, por sua sua entonação e uma obra lirica profundamente individual,
construção composicional. Todos esses tres elementos - o etc. A heterogeneidade funcional, como se pode pensar, tor-
conteúdo temático, o estilo, a construção composicional _ na os tragos gerais dos generos discursivos demasiadamente
estao indissoluvelmente ligados no coøzjunto do enunciado e abstratos e vazios. A isto provavelmente se deve o fato de que
são igualmente determinados pela especificidade de um cam- a questão geral dos generos discursivos nunca foi verdadei-
po da comunicação. Evidentemente, cada enunciado parti- "É tão
amplo que
ramente colocada. O que mais se estudava eram os generos
cular é individual, mas cada campo de utilização da lingua não literarios. Mas da Antiguidade aos nossos dias eles foram es-
elabora seus ti/Jos rclatíz/ar14cntc está:/cís de enunciados, os conseguiria
estudar"
tudados num corte da sua especificidade artístico-literaria,
quais denominamos generos do discurso. nas distincöes diferenciais entre eles (no âmbito da literatu-
g A riqueza e a diversidade dos generos do discurso são ra) e não como determinados tipos de enunciados, que são
mhnitas porque são inesgotaveis as possibilidades da multi- diferentes de outros tipos mas tem com estes uma naturcza
facetada atividade humana e porque em cada campo dessa verbal (linguistica) comum. Quase não se levava em conta a
atividade vem sendo elaborado todo um repertorio de gene- questão geral do enunciado e dos seus tipos. Da Antiguida-
ros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que tal de até hoje, estudarain-se os generos retóricos (demais, as
campo se desenvolve e ganlia complexidade. (Iabe salientar épocas subsequentes pouco acrescentaram a teoria amiga),
em especial a extrema PJetcrr›gc1zeidac1'€ dos generos do dis- ai ia se deu mais atencão a natureza verbal desses generos co-
curso (orais e escritos). De fato, também devemos incluir nos ino enunciados, a tais moinentos, por exemplo, como a rela-
generos do discurso as breves réplicas do dialogo do cotidia- cão com o ouvinte e sua influencia sobre o enunciado, sobre
no (saliente-se que a diversidade das modalidades de dialogo a conclusibilidade verbal especifica do enunciado (21 diferen-
cotidiano Ó extraordinariamente grande em funcão do seu te- ca da conclusibilidade do pensamento), etc. Ainda assim,
ma, da situacao e da composicão dos participantes), o rela- também ai a especificidade dos generos retóricos (jurídicos,
to cotidiano, a carta (ein todas as suas diversas formas), o co- politicos) encobria a sua nature'/ia linguistica geral. Por últi-
mando militar lacônico padroni'/ado, a ordem desdobrada e mo, estudaram-se também os generos discursivos do cotidia-
detalbada, o repertorio bastante vario (padroni/.ado na maio- no (predominanteinente as replicas do dialogo cotidiano) e,
ria dos casos) dos documentos oficiais e o diversificado uni- ademais, precisamente do ponto de vista da linguistica geral
verso das manifestacöes publicisticas (no amplo sentido do (na escola de Saussure,l em seus adeptos modernos _ os es-
termo: sociais, políticas); mas ai também devemos incluir as
variadas formas das nianifestaçöes cientificas e todos os ge-
l () fundamento da doutrina de Saussure é a distincão entre lingua
neros literarios (do proverbio ao romance de múltiplos volu-
(/11 lmigzøe) como sistema de signos e forinas interligadas, que determina
mes). Pode parecer que a heterogeneidade dos generos dis- normativamente cada ato particular de fala e é o objeto especifico da lin-
cursivos é tão grande que não ha nein pode haver um plano guistica, e fala (la ƒmrole) como emprego individual da lingua. Bakhtin ana-
único para o seu estudo: porque, neste caso, em um plano do lisou a doutrina de Saussure no livro Marxismo e filosofirz da liøzguage/-11
(Leningrado, Pribói, l929) como uma das duas correntes centrais do pen-
estudo aparecem fenómenos sumamente heterogeneos, como
samento linguistico-filosófico (como corrente do “obietivismo abstrato”)
as réplicas monovocais do cotidiano e o romance de muitos das quais ele separa a sua teoria do enunciado (cf. V. N. Volóchinov, Mar-

12 iv1¡i<imiiBai<1¬fm Os generos do discurso 13


truturalistas, nos behavioristas americanosì e, em bases lin- discurso oral cotidiano, por vezes orientando-se diretamen-
guisticas totalmente distintas, nos seguidores de Vossler4). te ein enunciados deliberadamente primitivos (os behavioris-
Contudo, esse estudo tampouco podia redundar ein uma de- tas americanos).
finiçao correta da natureza universalmente linguistica do _]ainais se deve minimizar a extrema heterogeneidade dos
enunciado, uma vez que estava restrito à especificidade do generos discursivos e a dificuldade dai advinda de definir a
natureza geral do enunciado. Aqui é de especial importância
xismo 0 fiÍr›sofia da /írzguizgem, cit., pp. 53-84). A escola de Saussure é re- atentar para a diferença essencial entre os generos discursi-
presentada ein primeiro lugar pelos seus discípulos (Íliarles Bally e Albert vos primarios (simples) e secundarios (complexos) - não se
Seclieliaye. (N. da H.) trata de uma diferença funcional. Os generos discursivos se-
l () beliaviorisino e uma corrente da psicologia contemporanea, prin- cundários (complexos _ romances, dramas, pesquisas cien-
cipalmente nos listados Unidos. lìssa corrente julga a atividadc psíquica tíficas de toda especie, os grandes generos publicísticos, etc.)
do lioinem com base ein suas reacöes externamente expressas e coiisidera
surgein nas condiçöes de uin convivio cultural mais coinple-
o coinportamento coiiio uin sistema de respostas a estíiniilos externos no
plano do inoineiito prcseiite. O behaviorisino serviu coino orientacão pa- xo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predo-
ra a linguística descritiva ainericana, cujo maior representante, Leonard iniiiantemente o escrito) - ficcional, científico, sociopolíti-
lšlooinfield, guioii-se pelo esquema do “estimulo-resposta" na descricão co, etc. No processo de sua forinação eles incorporain e ree-
do processo discursivo. (N. da li.)
laborain diversos generos primarios (simples), que se forina-
4 O vossleriaiiisiiio é a escola filológica do linguista alemño Karl rain nas condicöes da comunicação discursiva imediata. Es-
Vossler e seus seguidores, entre os quais se destaca particularmente l,eo
ses generos primarios, ao integrarem os coinplexos, nestes se
Spitzcr, cujos livros lšakhtin cita reiteradamente ein seus traballios. liin
Mrirxísmo 1' ƒiiloso/ía da /i`›zgim_g›'e¡1z, a escola de Vossler é caracteri'/.ada co-
transformam e adquirem uin caráter especial: perdem o vin-
ino “uma das correiites inais poderosas do pcnsainento linguístico-lilos(›- culo iinediato com a realidade concreta e os enunciados reais
fico atual" (p. 5 I ). Para os vosslerianos, a realidade linguística é a ativida- alheios: por exemplo, a réplica do dialogo cotidiano ou da
de criadora constante, reali'/.ada por atos iiidividuais de discurso: a cria- carta no romance, ao inanterein a sua forina e o significado
cão da linguagein e asseinelhada a criacao artística; a disciplina linguisti-
cotidiano apenas no plaiio do conteúdo romanesco, integrain
ca principal passa a ser a estilística; “o primado da estilística sobre a gra-
marica", o priinado do ponto de vista do falante (ein oposicao ao priiiia- a realidade concreta apenas atraves do conjunto do roman-
do do poiito de vista do ouvinte na linguística de Saussure) e o primado ce, ou seja, coino aconteciinento artistico-literario e não da
da funcão estética caracteri'/,ain a concepcao vossleriana de linguagem. lìin vida cotidiana. Em seu conjunto, o romance é um enuncia-
alguinas passagens esseiiciais da Ifislétim da ¢'r¡¿içJr› m'rÍ1a/, Baklitin se do, assim coino a réplica do diálogo cotidiano ou uma carta
aproxima da escola de Vossler (ao mesmo tempo que recusa em maior ine-
privada (ele tem a inesina natureza dessas duas), mas difere
dida o “objetivismo abstrato da linguística") _ aiites de tudo na concep-
cão do einiiiciado coino realidade concreta da vida da linguagein; entre- deles por ser uni enunciado secundario (complexo).
tanto, a teoria bal<htiniana do discurso diverge da concepeão vossleriana A diferença entre os generos (ideológicos) primario e se-
de expressão e enunciado coino ato discursivo individual, salientando o cundario é imensa e essencial, e é por isso mesmo que a na-
seu momento determinante de “socialidade interna” na comunicação dis-
tureza do enunciado deve ser descoberta e definida por meio
cursiva _ momento objetivamente consolidado nos generos do discurso.
Assim, a ideia de generos do discurso separa a metalinguistica de Bal<htin
da análise de ambas as modalidades; apenas sob essa condi-
tanto da corrente saussuriana quanto da vossleriana na filosofia da lingua- cão a definição pode vir a ser adequada à natureza comple-
gem. (N. da E.) xa e profunda do enunciado (e abranger as suas facetas mais

14 Mikhail Bakhtin Os generos do discurso 15


importantes); a orientaçao unilateral centrada nos generos concretos que a vida entra na lingua. O enunciado é um nú-
primarios redunda fatalmente na vulgarização de todo o pro- cleo problemático de importância excepcional. Exaininemos
blema .(0 behaviorisino linguístico e o grau extremado de tal iiesse corte alguns campos e problemas da linguística.
viulgarização). A própria relação inútua dos generos priina- Tratemos em priineiro lugar da estilística. Todo estilo
rios e secundarios, bem coino o processo de formação histó- esta indissoluvelmente ligado ao enunciado e as formas tipi-
rica dos últiinos, lancam luz sobre a natureza do enunciado cas de enunciados, ou seja, aos generos do discurso. Todo
(e antes de tudo sobre o coinplexo problema da relação de enunciado _ oral e escrito, primario e secundario e também
reciprocidade entre linguagem e ideologia, linguagem e visão ein qualquer campo da comunicacão discursiva (rietc/øci/oie
de inundo). ol›schêníe)5 _ e individual e por isso pode refletir a indivi-
O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de dualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter
formas de genero dos enunciados nos diversos campos da ati- estilo individual. Entretanto, nein todos os generos são igual-
vidade lniinana é de enorme importancia para quase todos mente propicios a tal reflexo da individualidade do falante
os campos da liiiguística e da filología. Porque todo trabalho na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual. Os
de investigação de uin inaterial linguístico concreto _ seja mais favoraveis são os generos da literatura de ficcão: aqui o
de historia da lingua, de gramática iiorinativa, de confeccão estilo individual integra diretaincnte o próprio edificio do
de toda especie de dicionarios ou de estilística da lingua, etc. eininciado, é uin de seus objetivos principais (contudo, no
_ opera inevitavelinente com enunciados concretos (escritos ambito da literatura de ficcão os diferentes generos são dife-
e orais) relacionados a diferentes cainpos da atividade hu- rentes possibilidades para a expressão da individualidade da
inana e da coinuiiicacao _ anais, tratados, textos de leis, do- linguagein através de diferentes aspectos dessa individualida-
cuinentos de escritorio e outros, diversos generos literarios, de). As condicöes menos propicias para o reflexo da indivi-
científicos, publicísticos, cartas oficiais e comiins, réplicas do dualidade na linguagem estao presentes naqueles generos do
dialogo cotidiano (ein todas as suas diversas inodalidades), discurso que requerein uma forina padronizada, por exein-
etc. de onde os pesquisadores liaurem os fatos linguísticos de plo, ein inuitas inodalidades de documentos oficiais, de or-
que iiecessitain. Achainos que ein qualquer corrente especial dens inilitares, nos sinais verbalizados da producão, etc. Aqui
de estudo faz-se necessaria uma iiocao precisa da natureza só podein refletir-se os aspectos inais superficiais, quase bio-
do enunciado ein geral e das particularidades dos diversos ti- lógicos da individualidade (e ainda assim predoininantemcn-
pos de enunciados (primarios e secundarios), isto é, dos di- te na realizacão oral dos enunciados desses tipos padroniza-
versos generos do discurso. O desconliecimento da natureza dos). Na iinensa inaioria dos generos discursivos (exceto nos
do enunciado e a relacao indiferente com as peculiaridades artistico-literarios), o estilo individual não faz parte do pla-
das diversidades de genero do discurso ein qualquer campo
da investigação linguística redundam ein formalismo e ein
uma abstração exagerada, deforinain a historicidade da in- š ()Í›scl1êníe, substaiitivo neutro, é comunicacão, rietc/aeuoíe é deri-
vestigação, debilitam as relacöes da lingua com a vida. Ora, vacão de riútcb, que é discurso, fala, ein alguns aspectos linguagem, nias
aqui, na acepcão bal<htiniana, é discurso, dai tradu'/,irmos rieïc/veifói co-
a lingua passa a integrar a vida através de enunciados con-
ino `“discursivo" e rietcløezfoie r›bschêi/lie coino “comunicacao discursiva",
cretos (que a realizam); é igualmente atraves de enunciados porque é esse o sentido do pensainento de Baklitin. (N. do T.)

16 iviii<i¬a¡| B-,1i<i¬f¡n Os generos do discurso 17


no do enunciado, nao serve como um objetivo seu mas é dente. Semelhante estudo, ou seja, a estilística da lingua co-
. . _ A 1
por assim dizer, um epifenoineno do enunciado, seu produ- ino disciplina autónoma, também é possivel e necessario. No
to com p le mentar. Em diferentes
df ` ^
generos podem revelar-se entanto, esse estudo só sera correto e eficaz se levar perma-
d 1 elrentes clamadas.
- ¬ e aspectos
_ _ de uma personalidade
. indivi-
. . .
nentemente em conta a natureza do genero dos estilos lin-
tla , o esti o individual pode encontrar-se em diversas tela- guisticos e basear-se no estudo previo das modalidades de ge-
coes de reciprocidade com a lingua nacional. A própria ques- neros do discurso. Ate hoje a estilística da lingua careceu de
tão
f da lín gYu'a nacional *` - na linguagem
^ . ^ - -
individual f em seus
e, seinelhante base. Dai a sua fraqueza. Não existe uma classi-
undainentos, uma questao de enunciado (porque só nele, no ficação dos estilos de linguagein que goze de reconliecimen-
enunciado, a lingua nacional se materializa na forma iiidivi to geral. Os autores das classificaçöes frequentemente detur-
dual). A propria definição de estilo ein geral e de estilo indi- pain a principal exigencia lógica da classificação _ a unida-
viidual ' cm 1 pgjrticular
« `~ I exigc ' , uin estudo ,_ mais - profundo tanto de do fundamento. As classificaçöes são sumamente pobres
can' _ aturcza ›- o enunciado
› .
quanto da. divci
- sidadc de generos A e não diferenciadas. Por exeinplo, nuina gramatica academi-
discursivos. ca da lingua russa recentemente publicada são apresentadas
A reltlição organica e indissolúvel do estilo com o gene- as seguintes variedades estilisticas da lingua: o discurso do li-
rosereve'
I. W = ›-tambcin
a niftidamcntc 1 na. qucstao .,.~ dos estilos - de vro, o discurso popular, os discursos abstrato-científico, tec-
in ¿¬fua gn tem ou uncionais. * No fundo,' os. cstilos
,_ ' _ dc_ linguagein
- nico-cientifico, jornalistico-publicístico, oficial, familiar coti-
ou funcionais não são outra coisa senão estilos de genero de diano, discurso popular vulgar. Paralelamente a esses estilos
determina
N ` ' i esferas
das ›~ ~ da- atividadc- ` ^ . _ huinana e da coinuinca- - de linguagein, figuram coino inodalidades estilísticas pala-
cao. hm cada campo existein e são einpregados generos que vras dialetais, palavras arcaicas, expressöes profissionais. Se-
corresp^ondem as condicöes especificas de dado campo; e a melliante classificação dos estilos e absolutamente aleatoria,
çsscs~gcncr(›s,qLie correspondem deterininados estilos. Uma baseia-se ein diferentes principios (ou fundamentos) de divi-
uncao (cientifica, tecnica, publicistica, oficial, cotidiana) e são em estilos. Alein disso, essa classificaçao e também po-
certasd conl`"**
t icocs dc> coinunicacao
~ »f discursiva, w . espeeifqe-¿S
¬. de bre e pouco diferenciada.“ Tudo isso e resultado direto da in-
ca
d acamv
_ ff -› '. -^, ,
ido, gcram dctcrminados gcncros, isto e, deterinina- ~_ » A compreensão da natureza de genero dos estilos de linguagem
ostivos
0 j _ cUcnunci~'¿idos cstilisticos, tcmaticos à c composicio- -- e da ausencia de uma classificação bein pensada dos generos
nais rdelativamente estaveis. O estilo é indissociavel de deter- discursivos por campos de atividade (bem como da distincão,
mini
A «_ asu iiiiddidcs '¿ ›~ tematicas
› c o que e» de cspccial _ .
iinpor- muito importante para a estilística, entre generos primarios
tancia_ ' cc > ctciminadas W «~ unidades '. coinposicionais: - de de- e secundarios).
terminados tipos de construcão do conjunto de tipos do seu 3 s

acabainento
V _ `
, de tipos ~ daf ielacao
- « -f do falante 1 . _
com outros par-
Iticipantes da comunicaçao discursiva _ com os ouvintes, os
eitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. O estilo inte- '” (Ílassilicacöes igualinente pobres, vagas e sem uin fundamento bein
gra a unidade de genero do enunciado como seu elemento pensado dos estilos de linguagein são apresentadas por A. N. Gvózdiev em
Isto nao significa, evidentemente, que o estilo de linguagem seu livro Ensaios de estilo da lingua russa (Ólcberlzi ¡zo sfílísti/ee riisskouo
yazí/ui, Moscou, l95l, pp. 13-5). Essas classificaçöes se baseiain numa as-
nao possa se tornar objeto de um estudo especial indepen-
similação acritica das nocöes tradicionais de estilos de linguagem.

18 iv1ii<i~.aii sakiifiii Os generos do discurso 19


AS
epaiacao
- - »Í
dos estilos
'
ein relaçao ~
aos generos A
manifes-
. nal esta íntimamente ligada à penetraçao da linguagem lite
ta-se de forma particularmente nociva na elaboração de uma raria em todos os generos (literarios, cientificos, publicísti-
sériede.questoes ~ historicas.
' As¬ mudancas . historicas dos esti- - cos, de conversação, etc.), em maior ou menor grau, também
los de linguagem estão indissoluvelmente ligadas às mudan- dos novos procediinentos de genero de construção da totali-
ças dos generos do discurso. A linguagem literaria é um sis- dade do discursivo, do seu acabamento, da inclusão do ou-
tema ,clinainico e complexo de estilos de linguagem; o pego vinte ou parceiro, etc., o que acarreta uma reconstrução e
especifico desses estilos e sua inter-relação no sistema da lin- uma renovação inais ou menos substancial dos generos do
guagein literaria estão em mudança permanente. A lingua- discurso. Quando recorremos às respectivas camadas não li-
gem da literatura, cuja composição e integrada pelos estilos terarias da lingua nacional, estamos inevitavelmente recor-
da lin g.,fu'agemáiao P literaria,
' f 2 ef um sistema ainda - mais - coinple- rendo também aos generos do discurso ein que se realizam
xoeorrn;
1. A .ga hiza o cm \ outi as bases. lara 1,.,cntendcr ,,, a complexa essas camadas. Trata-se, na maioria dos casos, de diferentes
cmamica
A I i:"¬¿
storici dcsscs sistemas, ,_ para .. passai da, descricao ,_-~ tipos de generos de conversacão e dialogo; dai a dialogização
siinves
~1 ( es upcifici H ¬`¿il naA maioiia
.' dos casos) dos_ estilos _- que mais ou menos brusca dos generos secundarios, o enfraque-
estao p rew scntcsac sc iltcrnam › . , _,~historica des-
paia a cxplicacao ciinento de sua composicão monológica, a nova sensação do
mudaincas faz-se necessaria uma elaboração especial da ouvinte coino parceiro-interlocutor, as novas formas de con-
istoria
V ._ cos~ gcncros
^›- ~ discursivos~' ¬ (tanto . '
primarios _ quanto se- clusão do conjunto, etc. Onde ha estilo ha genero. A passa-
cuncarios
H I I ), quc› icflctcin -- - ›t dc› modo mais imcdiato, -, -, _›
precigr) @ gein do estilo de uin genero para outro não só modifica o ca-
Ocxivc todas as mudancas que traiiscorrem na vida social. rater do estilo nas condicöes do genero que não lhe é próprio
s cniiiitàiaclos e seus tipos, isto e, os generos discursivos, são como tainbéin destrói ou renova tal genero.
correias
j I .ci trinsmissao
¿ ¡ H-,~ cntic . m
a histoiia da. socicdade
_ e a lns-- Desse modo, tanto os estilos individuais quanto os da
toria da lmguagein. Nenlium fenomeno novo (fonético, léxi- lingua satisfazem aos generos do discurso. Uin estudo inais
co, gramatical) pode integrar i o sistemi
~ ~ K da< lingua t ,sem ter pci *'-
profundo e ainplo destes e absolutamente indispensavcl pa-
corrido un i complcxo
~ › c- longo caminho
¬. ' dc, cxpci, iinentacao ~ e ra uma elaboracão eficaz de todas as questöes da estilística.
elaboracao de generos e estilos.7 (Íontudo, tanto a questão metodológica de principio
lïnìi qada epoca da evolucão da linguagem literaria, o quanto a questão geral relativa as relacöes recíprocas do lé-
tonieca
A c o por,dctcrininados '. -^.
gcncios ,__ do discurso, _ e nao ~ so» xico com a gramática, por uin lado, e com a estilística, por
generos secundarios (literarios, pu blicisticos, científicos) mas outro, baseiain-se no mesmo problema do enunciado e dos
tambein priinarios (determinados tipos de di'ilogoor'1l dc generos do discurso.
salãoíi' Y 1
I, ' , i timo, dc circulo social, familiar-cotidiano, sociopo- _ -- - A gramática (e o léxico) se distingue substancialmcnte
"f|¢0¬ filc;›s<›Sic(›, etc.). Toda ampliacão da linguagein literaria da estilística (alguns cliegam até a coloca-la ein oposicão a
acusta as iversas camadas -cxti aliterarias
ru da.- «
lingua nacio- estilística), mas ao mesmo tempo nenhum estudo de grama-
tica (ja nein falo de gramática norinativa) pode dispensar ob-
7 1.: __
servacöes e incursöes estilisticas. Em toda uma serie de casos
1 i .ssanossatese
gl' I - - tcm
1 c nada - a- vcr
› com
¬ a1 de Vosslci accrca
_, _ do prnna-
-
coco
é como se fosse obliterada a fronteira entre a gramática e a
, esti istico sor-
ic o gi -¿iinatico.
/ -_ Nossa exposicao
_'_.~ subscquente
_ __ o mos-
trara com plena clareza. estilística. Ha fenómenos que uns estudiosos relacionain ao

Os generos do discurso 21
20 Mikbail Bakhtin
Campo da gramatica, outros, ao campo da estilística. Um de- 2.. O ENUNCIADO COMO UNIDADE DA COMUNICAQAO
les e o sintagma. l)1SCURSIVA. DIFERENQA ENTRE ESSA UNIDADE E AS
d. Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem uNiDADEs DA LÍNGUA (PALAvRAs E oRAçoEs)
e ivergem em qualquer fenomeno concreto de linguagem; Se
0 examm'¿Amos apenas f ~ no sistema
K *
da lingua -
estamos diante A linguistica do século XIX, a começar por Wilhelm
de um fenomeno gramatical, mas se o examinamos no con- Humboldt, sein negar a função comunicativa da linguagem,
junto de um enunciado individual ou do genero discursivo ja procurou coloca-la em segundo plano, como algo secunda-
estainos diante de um fenômeno estilistico , _ Porque L1 própri ¿1 rio; promovia-se ao primeiro plano a função de formação do
escolha deuma determinada forma gramatical pelo falante é pensamento, independente da cornunicação. Dai a fainosa
uin ato estilistico. Mas esses dois pontos de vista sobre o mes fórinula de Humboldt: “Sem fazer nenhuma mencão neces-
mo fenómeno concreto da lingua não devein ser iinpenetri sidade da comunicação entre os homcns, a lingua seria uma
veis_enti('ie si, mas siinplesinente se substituirein de forina ine- condicão indispensavel do pensainento para o hoinem até
c'1nic/1
~ _ « ¬ ev' _ t11do,.porem,' ¬
combinar - . __se organicamcnte
, -_, Á (na sua mesmo na sua eterna solz'dão”.*
majsdprecisa distincão inetodológica) com base na unidade Outros, por exemplo os partidarios de Vossler, coloca-
ca o fcgomcno da lingua. So uma concepcao profunda da vain ein priineiro plano a chamada função expressiva. A des-
naturezt
I ›
1 o cnunci ~'¿ido e das . ~ pcculiaridadcs
_. _ '. ' . ,_ dos_ generos ^ -
dis- peito de toda a diferenca na concepção dessa função por teó-
cursiiíos pode assegurar a solucão correta dessa coinplexa ricos particulares, sua essencia se resume à expressão do
questao metodologica. mundo individual do falante. A lingua é deduzida da neces-
O estudo da natureza dos enunciados e dos generos dis- sidade do hoinein de autoexpressar-se, de objetivar-se. A es-
cursivos e, segundo nos parece, de importancia fundamental sencia da liiiguagem nessa ou naquela forina, por esse ou
para superar as concepcöes simplificadas da vida do discur- aquele caininho, se reduz criacão espiritual do individuo.
so
i , dolc*hiimado ' “ fluxo discursivo
'~~ ¬¬ , da comunicacao,
_ - _ _- etc., Propunham-se e ainda se propöem variacöes uin tanto dife-
c aque/as concepcoes que ainda doininain a iiossa linguisti- rentes das funcöes da linguagein, mas permanece caracterís-
ca. Alem do inais, o estudo do enunciado coino unidade rea/ tico, se não o pleno desconheciinento, ao menos a subestima-
da eornmzzcaçao díscnrsíz/a permitira coinpreender de modo cão da função coinunicativa da linguagem; a linguagein e
mais correto também a natureza das unidades da lingua (en- considerada do ponto de vista do falante, coino que de mn
quanto sistema) _ as palavras e oracöes. falante sem a relação necessáría com outros participantes da
11 para essa questão mais geral que passainos agora. coinunicacão discursiva. Se era levado ein conta o papel do
outro, era apenas como papel de ouvinte que apenas coin-
preende passivamente o falante. O enunciado satisfaz ao seu
objeto (isto é, ao conteúdo do pensamento enunciado) e ao

8 Willielni Humboldt, Sobre a diferença entre os organisrnos da lin-


guagem /ournana e a influencia dessa díferença no desenuolz/¡mento men-
tal da humanidade › São Petersbur É;fo, 1859 › . Sl.

22 Mikimii Baimtin Os generos do discurso 23


próprio enunciador. No fundo, a lingua necessita apenas do
falante _ de um falante _ e do objeto da sua fala, se neste
compreender o significado (linguistico) do discurso, ocupa si-
caso a lingua pode servir ainda como meio de Comunicação, multaneamente em relação a ele uma ativa posição responsi-
va: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), com-
pois essa é a sua função secundaria, que não afeta a sua es-
pleta-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição
sência. Evidentemente, uin grupo linguistico, uma multipli-
responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo
cidade de falantes, jamais pode ser ignorado quando se fala
da lingua; no entanto, quando se define a essência da lingua, de audição e compreensão desde o seu inicio, às vezes lite-
ralmente a partir da primeira palavra do falante. Toda com-
esse momento não se torna necessário e determinante da na-
preensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ati-
tureza da lingua. Äs vezes o grupo linguistico é visto como
certa personalidade coletiva, “o espirito do povo”, etc., e se vamente responsiva (einbora o grau desse ativismo seja bas-
tante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nes-
lhe dá grande importancia (entre os representantes da "psi-
sa ou naquela forina a gera obrigatoriamente: o ouvinte se
cologia dos povos"), mas também neste caso a multiplicida-
torna falante. A compreensão passiva do significado do dis-
de de falantes, dos outros em relação a cada falante dado, ca-
rece de substancialidade. curso ouvido é apenas um momento abstrato da compreen-
são ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na
Ate hoje ainda existein na linguistica burguesa ficçöes
subsequente resposta real e em voz alta. clar(› que nem sem-
como o “ouvinte”9 e o “entendedor” (parceiros do “falan-
pre ocorre imediatamente a seguinte resposta em voz alta ao
te”, do “fluxo único da fala”, etc.). Tais ficçöes dao uma no-
enunciado logo depois de pronunciado: a compreensão ati-
ção absolutamente deturpada do processo complexo e am-
vamente responsiva do ouvido (por exemplo, de uma ordem
plainente ativo da comunicacão discursiva. Nos cursos de lin-
militar) pode realizar-se imediatamente na ação (o cumpri-
guistica geral (inclusive em alguns tño serios quanto o de
mento da ordein ou comando entendidos e aceitos para exe-
Saussurem) aparecein com frequôncia representacöes eviden-
cução), pode permanecer de quando ein quando como com-
temente esquemáticas dos dois parceiros da Comunicação dis-
preensão responsiva silenciosa (alguns generos discursivos fo-
cursiva _ o falante e o ouvinte (o receptor do discurso); su-
ram concebidos apenas para tal compreensão, por exemplo,
gere-se um esquema de processos ativos de discurso no falan-
os gêneros líricos), mas isto, por assim dizer, é uma compreen-
te e de respectivos processos passivos de recepção e coin-
são responsiva de efeito retardado: cedo ou tarde, o que foi
preensão do discurso no ouvinte. Não se pode di'/.er que es-
ouvido e ativamente entendido responde nos discursos sub-
ses esquemas sejam falsos e que não correspondam a deter-
sequentes ou no coinportainento do ouvinte. Na maioria dos
minados momentos da realidade; contudo, quando passam
casos, os gêneros da complexa comunicação cultural foram
ao objetivo real da comunicação discursiva eles se transfor-
concebidos precisamente para essa compreensão ativamente
mam em ficção científica. De fato, o ouvinte, ao perceber e
responsiva de efeito retardado. Tudo o que aqui dissemos re-
fere-se igualmente às respectivas mudanças e adendos ao dis-
9 Slzíclmtíel, derivado de slúchal, ouvir; po1z1'nzá1`z4sc/Ji, derivado de curso escrito e ao lido.
ponimát, entender, compreender. (N. do T.)
Portanto, toda compreensão plena real é ativamente res-
'll Ferdinand de Saussure, Tra/Ja//Jos de Íilzguístíca, Moscou, I977, ponsiva e não é senão uma fase inicial preparatoria da res-
p. 50. (N. da E.)
posta (seja qual for a forina em que ela se dê). O próprio fa-

24 Mikliail Bakhtin
Os generos do discurso 25
lante está determinado precisamente a essa compreensão ati- iiia deforma o quadro real da Comunicação discursiva, supri-
vamente responsiva: ele não espera uma compreensão passi- iiiindo dela precisamente os momentos mais substanciais.
va, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em Hesse modo, o papel ativo do outro no processo de comuni-
voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma par- cacao discursiva sai extreinamente enfraquecido.
ticipação, uma objeção, uma execucão, etc. (os diferentes ge- O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no
neros discursivos pressupöem diferentes diretrizes de objeti- processo da comunicação discursiva e o empenbo em contor-
vos, projetos de discurso dos falantes ou escreventes). O em- iiar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impre-
penho ein tornar inteligivel a sua fala é apenas o momento ciso e ambiguo de terinos coino “fala” ou “fluxo da fala”.
abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante. lisses termos deliberadamente iinprecisos deveriain sempre
Ademais, todo falante é por si mesmo uin respondente em designar aquilo que é subinetido a uma divisão ein unidades
maior ou menor gra u: porque ele não é o primeiro falante, o da lingua, concebidas como seus cortes: unidades fônicas (fo-
primeiro a ter violado o eterno silencio do universo, e pres- iiema, sílaba, cadencia da fala) e significativas (oracão e pa-
supöe não só a existencia do sistema da lingua que usa mas lavra). “O fluxo da fala se desintegra...”, “nossa fala se divi-
também de alguns enunciados antecedentes _ dos seus e de..." _ é assiin que nos cursos gerais de linguistica e gra-
alheios _ coin os quais o seu enunciado entra nessas ou na- mática, bein como nos estudos especiais de fonética e lexico-
quelas relacöes (baseia-se neles, polemi'/.a com eles, simples- logia, costuinain introdii'/.ir as partes dedicadas ao estudo das
mente os pressupöe já coiihecidos do oiivinte). Cada enun- respectivas unidades da lingua. lnfelizinente, até a nossa gra-
ciado é uin elo na corrente complexaineiite organizada de oii- mática acadeinica recentemente lançada einprega o mesmo
tros eii unciados. terino indefinido e ainbíguo “nossa fala”. Veja-se coino se in-
Desse modo, aq uele ouvinte que, com sua compreensão trodiiz a respectiva parte da fonética: “Nossa fala se divide
passiva, é representado coino parceiro do falaiite nos dese- antes de tudo ein oraçöes, que por sua vez podem decoinpor-
nlios esqiieinaticos das linguísticas gerais, não corresponde -se em coinbinacöes de palavras e palavras. As palavras se di-
ao participante real da coinunicacão discursiva. Aquilo que videin nitidamente ein unidades fônicas mínimas _ as síla-
o esquema representa é apenas uin momento abstrato do ato bas... As sílabas se dividein ein sons particulares da fala ou
pleno e real de compreensão ativaineiite responsiva, que ge- foneinas...”."
ra a resposta (a que precisamente visa o falante). Por si ines- O que vein a ser “fluxo discursivo”, “nosso discurso”?
ina, essa abstracño cientifica é perfeitamente justificada, mas Qual é a sua cxtensão? Terão principio e fiin? Se tem dura-
sob uma condiçño: a de ser nitidainente coinpreeiidida ape- cão indefinida, que corte toinamos para dividi-lo ein unida-
nas como abstracão e não ser apresentada coino fenômeno des? A respcito de todas essas questöes reiiiain a plena in-
pleno concreto e real; caso contrario, ela se transforma ein definicão e a reticencia. A palavra indefinida ríétch (“fala,
invenção. É exatamente o que acontece na linguistica, uma |discursoI”), que pode designar linguagem, processo de dis-
vez que esses esquemas abstratos, mesmo não sendo apresen-
tados diretamente coiiio reflexo da comunicação discursiva
real, tampouco são completados por alusöes a uma maior
complexidade do fenómeno real. Como resultado, 0 esque-
ll Gmmrítíca da língim russa, Moscou, 1952, p. 5 I.

26 Mikhail Bakhtin Os generos do discurso 27


curso, ou seja, 0 falar, um enunciado particular ou uma serie lo conteúdo, pela construçao composicional, eles tem como
indefinidamente longa de enunciados e um determinado ge- unidades da comunicação discursiva peculiaridades estrutu-
nero discursivo (“ele pronunciou um ríétch [discurso]”), até rais comuns, e antes de tudo límites absolutamente precisos.
hoje não foi transforinada pelos linguistas em um termo ri- lisses limites, de natureza especialmente substantiva e prínci-
gorosamente limitado pela significação e definido (definivel) /zial, precisain ser examinados minuciosamente.
(fenómenos análogos ocorrem também ein outras linguas). Os limites de cada enunciado concreto como unidade da
Isto se deve à quase completa falta de elaboração do proble- comunicação discursiva são definidos pela altcrnâncía dos
ma do enunciado e dos generos do discurso e, consequente- siijeítos do discurso, ou seja, pela alternância dos falantes.
mente, da comunicação discursiva. Quase seinpre se verifica Todo enunciado _ da replica sucinta (monovocal) do diálo-
o jogo confuso com todas essas significaçöes (exceto coin a go cotidiano ao grande romance ou tratado cientifico _ tein,
última). Mais ainiúde subentende-se por “nosso discurso” por assim dizer, uin principio absoluto e um fim absoluto: an-
qualquer enunciado de qualquer pessoa; aléin do inais, essa tes do seu inicio, os enunciados de outros; depois do seu ter-
coinpreensao nuiica e sustentada ate o fiin.” inino, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma
Entretanto, se e indefinido e vago o que se divide e se de- coinpreeiisão ativamente responsiva silenciosa do outro ou,
compöe em unidades da lingua, nestas tambein se introdu- por último, uma acão responsiva baseada nessa coinpreen-
zem a indefinição e a confusão. são). O falante termina o seu enunciado para passar a pala-
A iiidefiniçao terminológica e a confusao em uin ponto vra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente res-
metodológico central no pensainento linguístico são o resul- ponsiva. O enunciado não e uma unidade convencional, mas
tado do desconlaecimento da real unidade da coinunicacão uma unidade real, delimitada com precisão pela alternância
discursiva _ o enunciado. Porque o discurso só pode existir dos suieitos do discurso e que terinina com a transinissão da
de fato na forina de enunciados concretos de deterininados palavra ao outro, por mais silencioso que seja o “dixi” per-
falantes, sujeitos do discurso. () discurso sempre está fundi- cebido pelos ouvintes Icomo sinall de que o falante concluiu
do em forina de enunciado pertencente a uin deterininado su- sua fala.
jeito do discurso, e fora dessa forma nao pode existir. Por Essa alternancia dos sujeitos do discurso, que cria limi-
mais diferentes que sejain os enunciados por seu volume, pe- tes precisos do enunciado nos diversos campos da atividade
humana e da vida, dependendo das diversas funçöes da lin-
guagein e das diferentes condiçöes e situaçöes de comunica-
ll Alias, nem ha coino sustenta-la. Uin enunciado coino “`Ali!" (re- cão, tem uma natureza diferente e assume formas várias. Ob-
plica de uni dialogo) não pode ser dividido ein oraçöes, coinbinacöes de
servamos essa alternancia dos siijeitos do discurso de modo
palavras, sílabas. (Íonsequenteineiite, nein todo enunciado serve. De-
niais, divideiii o enuiiciado (a fala) e chegani a unidades da lingua. (Iom
inais simples e evidente no diálogo real, ein que se alternam
inuita frequencia a oração e definida coino o enunciado mais simples, lo- os enunciados dos interlocutores (parceiros do diálogo), aqui
go, ja não pode ser uma unidade do eiiunciado. Pressupöe-se ein silencio denominados replicas. Por sua precisão e siinplicidade, o diá-
a fala de uin falante, despre7.aiido-se os sons liarinônicos dialógicos. Ein logo e a forina clássica de comunicação discursiva. Cada re-
comparacão coin os limites dos enunciados, todos os demais liinites (en-
plica, por inais breve e fragmentária que seja, tem uma con-
tre oraçöes, combinaçöes de palavr-as, siiitaginas, palavras) são relativos e
conveiicionais.
clusibilidade especifica ao exprimir certa posição do falante

28 Mikliail B-akhtiii Os generos do discurso 29

7_
que suscita resposta, em relação à qual se pode assumir uma essa a natureza dos generos secundarios.” Entretanto, em to-
posição responsiva. Essa conclusibilidade especifica do enun- das essas manifestaçöes, as relaçöes entre generos primarios
ciado será objeto de nosso exame posterior (trata-se de um reproduzidos, ainda que eles estejain no âmbito de um enun-
dos traços fundainentais do enunciado). Ao mesmo tempo, ciado, não se prestam à gramaticalização e conservam a sua
as replicas são interligadas. Mas aquelas relaçöes que exis- natureza especifica essencialmente distinta da [natureza] das
tein entre as replicas do dialogo _ as relacöes de pergunta- relacöes entre as palavras e oraçöes (e outras unidades da lin-
-resposta, afirinação-objeção, afirinacão-concordância, pro- gua _ grupos de palavras, etc.) dentro do enunciado.
posta-aceitação, ordem-execução, etc. _ são iinpossiveis en- Aqui, com base no material do diálogo e das suas repli-
tre unidades da lingua (palavras e oracöes), quer no sisteina cas, e necessário abordar previamente o probleina da oração
da lingua (no corte vertical), quer no interior do enunciado como unidade da língua naquilo que a diferencia do enun-
(iio corte horizontal). lìssas relacöes especificas entre as re- ciado coino unidade da Comunicação discursiva.
plicas do dialogo são apenas inodalidades das relacöes espe- (A natureza da oração e uma das questöes mais comple-
cificas entre os enunciados plenos no processo de coinunica- xas e dificeis na linguistica. A luta de opiniöes em torno des-
ção discursiva. lìssas relacöes só são possiveis entre enuncia- sa questão continua em nossa ciencia até os dias de hoje. Não
dos de diferentes sujeitos do discurso, pressupöein outros (ein e tarefa nossa, evidentemente, desvendar essa questão em to-
relacão ao falante) membros da comunicacão discursiva. Tais da a sua complexidade; nossa intencão e abordar apenas um
relacöes entre enunciados plenos não se prestain ã gramati- aspecto, mas tal aspecto nos parece de importância substan-
caliyxacão, uma vez que, reiteremos, não são possiveis entre cial para toda a questão. Para nós importa definir coin pre-
unidades da lingua, e isso tanto no sistema da lingua quanto cisão a relacão da oracão com o enunciado. Isto ajudará a
no interior do enunciado. elucidar com inais clareza o enunciado, de um lado, e a ora-
Nos generos discursivos secundarios, particularinente cão, de outro.)
nos retóricos, encontramos fenómenos que parecein coiitra- Posteriormente trataremos dessa questão, por ora ob-
riar essa iiossa tcse. Muito ainiúde o falante (ou quem escre- servamos apenas que os liinites da oracão enquanto unidade
ve) coloca questöes no ambito do seu enunciado, responde a da lingua nunca são deterininados pela alternãncia de sujei-
elas inesinas, faz objeçöes a si inesino e refuta suas próprias tos do discurso. Essa alternãncia, que emoldura a oracão de
objecöes, etc. l\/las esses fenôinenos não passain de represen- ainbos os aspectos, converte-a em uin enunciado pleno. Es-
tacão convencional da comunicacão discursiva nos generos sa oração assume novas qualidades e e percebida de modo
primarios do discurso. Essa representacão caracteriza os ge- inteirainente diverso de coino e percebida a oração einoldu-
neros retóricos (lato sensu, incluiiido alguiiias inodalidades rada por outras oraçöes no contexto de uin enunciado desse
de popularizacöes cientificas), contudo todos os outros gene- ou daquele falante. A oracão e uin pensainento relativamen-
ros secundarios (ficcionais e cientificos) usam diferentes for- te acabado, correlacionado de forma iinediata com outros
mas de introdução na construção do eiiunciado, dos generos pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enuncia-
de discurso primarios e das relaçöes entre eles (note-se que
aqui eles sofrem transformaçöes de diferentes graiis, uma vez
que não ha uma alternância real de sujeitos do discurso). É li As cicatrizes dos liinites estão nos generos secundarios.

30 Mikhail Baklitin Os generos do discurso -gl


do; ao termino da oraçao, o falante faz uma pausa para lo- Todas essas qualidades e peculiaridades absolutamente
go passar ao seu pensamento subsequente, que continua, iiovas pertencem não à própria oração, que se tornou enun-
completa e fundamenta o primeiro. O contexto da oração e ciado pleno, mas precisamente ao enunciado, traduzindo a
o contexto da fala do mesmo sujeito do discurso (falante), a sua natureza e não a natureza da oração: elas se incorporam
oração não se correlaciona de forma imediata nein pessoal ii oração completando-a ate torna-la enunciado pleno. A ora-
com o contexto extraverbal da realidade (a situação, o am- cão enquanto unidade da lingua carece de todas essas pro-
biente, a pre-história) nem com os enunciados de outros fa- priedades: não e delimitada de ambos os aspectos pela alter-
lantes, mas tão somente atraves de todo o contexto que a ro- nância dos sujeitos do discurso, não tem contato imediato
deia, isto e, através do enunciado em seu conjunto. Se, po- com a realidade (com a situação extraverbal) nem relação
rem, a oração não está cercada pelo contexto do discurso do imediata com enunciados alheios, não dispöe de plenitude se-
mesmo falante, ou seja, se ela e um enunciado pleno e aca- mãntica nem capacidade de determinar imediatainente a posi-
bado (uma réplica do diálogo), então ela estará imediatamen- ção responsiva do outro falante, isto é, de suscitar resposta.
te (e individualmente) diante da realidade (do contexto ex- A oração enquanto unidade da lingua tem natureza grama-
traverbal do discurso) e de outros enunciados dos outros; a tical, fronteiras grainaticais, lei gramatical e unidade. (Exa-
estes já não se segue a pausa, que e definida e assiinilada pe- ininada em um enunciado pleno e do ponto de vista desse
lo próprio falante (pausas de toda especie, como manifesta- conjunto, ela adquire propriedades estilisticas.) Onde a ora-
çöes gramaticais calculadas e assimiladas, só são possiveis cão figura como um enunciado pleno ela aparece colocada
dentro do discurso de um falante, isto e, dentro de uin enun- em uma moldura de inaterial de natureza diversa. Quando
ciado; as pausas entre os enunciados não são, evidentemen- esquecemos esse porinenor na análise de uma oracão, detur-
te, de natureza gramatical e sim real; essas pausas reais _ pamos a siia natureza (e ao inesmo tempo tambein a nature-
psicológicas ou suscitadas por essas ou aquelas circunstãn- za do enunciado, grainaticalizando-o). Muitos linguistas e
cias externas _ podem destruir tainbein um enunciado; nos correntes linguisticas (no campo da sintaxe) são prisioneiros
generos ficcionais secundarios, tais pausas são levadas ein dessa confusão, e o que estudain coino oracão e, no fundo,
conta pelo artista, o diretor de cena, o ator, mas por princi- alguin híbrialo de oracão (de unidade da lingua) e de einin-
pio elas diferem tanto das pausas grainaticais quanto das ciado (de uiiidade da comunicacão discursiva). Não se inter-
pausas estilisticas _ por exemplo, entre os sintaginas _ no cambiain oracöes coino se intercambiam palavras (ein rigo-
interior do enunciado); espera-se que essas pausas sejam se- roso sentido linguístico) e grupos de palavras; intercambiain-
guidas de uma resposta ou uma compreensão responsiva de -se enunciados que são construidos com o auxilio das unida-
outro falante. Seinelhante oracão, tornada enunciado pleno, des da lingua: palavras, combinacöes de palavras, oraçöes;
ganha uma validade semântica especial; em relação a ela po- adeinais, o enunciado pode ser construido a partir de uma
de-se ocupar uma posição responsiva, com ela se pode con- oração, de uma palavra, por assiin dizer, de uma unidade do
cordar ou discordar, pode-se executá-la, avaliá-la, etc.; no discurso (predominantemente de uma replica do diálogo),
contexto, a oração carece de capacidade de determinar a res- mas isso não leva uma unidade da lingua a transformar-se
posta; ela ganha essa capacidade (ou melhor, familiariza-se em unidade da comunicação discursiva.
com ela) apenas no conjunto do enunciado. A ausencia de uma teoria elaborada do enunciado como

32 Mikliail lšal<htin Os generos do discurso 33


unidade da comunicaçao discursiva redunda em uma distin- nicacao discursiva; como a replica do dialogo, esta vincula-
ção imprecisa da oração e do enunciado, e frequentemente da a outras obras _ enunciados: com aquelas quais ela
na total confusão dos dois. responde, e com aquelas que llie respondein; ao inesino tein-
Voltemos ao diálogo real. Como já dissemos, trata-se da po, a semelhança da replica do dialogo, ela está separada da-
forma mais simples e clássica de Comunicação discursiva. A quelas pelos limites absolutos da alternancia dos sujeitos do
alternancia dos sujeitos do discurso (falantes), que determi- discurso.
na os limites dos enunciados, está aqui representada com ex- Desse modo, a alternancia dos siijeitos do discurso, que
cepcional evidencia. Contudo, em outros campos da comu- emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme, rigoro-
nicação discursiva, inclusive nos campos da comunicação cul- samente deliinitada dos outros enunciados a ele vinculados,
tural (cientifica e artistica), de organização complexa, a na- e a priineira peculiaridade coiistitutiva do enunciado coino
tureza dos liinites do enunciado e a inesma. iiiiidade da comunicacão discursiva, que o distingue da uni-
Complexas por sua construcão, as obras especializadas dade da lingua. Passemos ã segunda peculiaridade do enun-
dos diferentes generos cientificos e ficcionais, a despeito de ciado, intiinaineiite vinculada ii primeira. Essa segunda pe-
toda a diferença entre elas e as réplicas do diálogo, tainbem culiaridade e a corzclusíløílídadc especifica do enunciado.
são, pela própria natureza, unidades da comunicação discur- A conclusibilidade do enunciado e uma especie de as-
siva: também estão nitidamente delimitadas pela alternancia pecto iiiterno da alternancia dos sujeitos do discurso; essa al-
dos sujeitos do discurso, cabendo observar que essas frontei- ternancia pode ocorrer precisamente porque o falaiite disse
ras, ao conservarem a sua precisão externa, adquirein uin ca- (ou escreveu) tudo o que quis dizer ein dado inoinento ou sob
rater interno gracas ao fato de que o sujeito do discurso _ dadas condicöes. Quando ouviinos ou veiiios, percebemos
neste caso 0 autor de uma obra _ ai revela a sua írzdíuídua-, iiitidainente o fiin do enuiiciado, coino se ouvissemos o "di-
/ídade no estilo, na visão de mundo, em todos os eleinentos xi” conclusivo do falante. Essa conclusibilidade e especifica
da ideia de sua obra. lissa marca da individualidade, jacente e determinada por categorias especificas. O priineiro e iiiais
na obra, e o que cria principios interiores especificos que a iinportante criterio de conclusibilidade do enunciado e a pos-
separain de outras obras a ela vinculadas no processo de co- si/Jilidade de respoizdcr a ele, ein terinos mais precisos c am-
municação discursiva de uin dado campo cultural: das obras plos, de ocupar ein relacão a ele uma posicão responsiva (por
dos predecessores nas quais o autor se baseia, de outras obras exemplo, cuinprir uma ordem). A esse criterio corresponde
da inesma corrente, das obras de correntes hostis combati- tainbein a perguiita sucinta do cotidiano, por exeinplo, “Que
das pelo autor, etc. A obra, como a replica do diálogo, esta horas são?” (a ela pode-se responder), e o pedido cotidiano
disposta para a resposta do outro (dos outros), para a sua que pode ser cuinprido ou descuinprido, o discurso cientifi-
ativa coinpreensão responsiva, que pode assuinir diferentes co com o qual podemos concordar ou não concordar (intei-
formas: influencia educativa sobre os leitores, sobre suas con- rainente ou ein parte), e o roinance ficcional, que pode ser
vicçöes, respostas criticas, influencia sobre seguidores e con- avaliado ein seu conjunto. Alguina conclusibilidade e neces-
tinuadores; ela deterinina as posiçöes responsivas dos outros saria para que se possa responder ao enunciado. Para isso
nas complexas condiçöes de comunicação discursiva de um não basta que o enunciado seja compreendido no sentido líri-
dado campo da cultura. A obra e uin elo na cadeia da coinu- guístico. Uma oração absolutamente coinpreensivel e acaba-

34 Mikhail Baklitin Os generos do discurso 35


da, se e oraçao e nao enunciado constituido por uma oraçao,
tema do enunciado (por exemplo, de um trabalho científico),
não pode suscitar atitude responsiva: '4 isso é compreensivel
ganha uma relativa conclusibilidade em determinadas condi-
mas ainda não e tudo. Esse tudo _ indicio da irzteíreza do
çöes, ein certa situação do problema, em uin dado material,
enunciado _ não se presta a uma definição nem gramatical
ein determinados fins colocados pelo autor, isto e, já no am-
nein abstrato-semantica.
bito de uma ideia defirzída do autor. Desse modo, deparamo-
Essa plenitude acabada do enunciado, que assegura a -nos inevitavelmente com o segundo elemento, que e insepa-
possibilidade de resposta (ou de c(›inpreensão responsiva), e
ravel do primeiro.
determinada por tres elementos (ou fatores) íntimamente li-
Em cada enunciado _ da replica monovocal do cotidia-
gados na totalidade organica do enunciado: 1) a exauribili-
no às grandes e coinplexas obras de ciencia ou de literatura
dade semantico-objetal; 2) o projeto de discurso ou vontade _ abrangcmos, interpretamos, sentimos a íntcrzção discursi-
de discurso do falante; 3) as formas tipicas da composição e
va ou a vontade de produzír sentido por parte do falante, que
do acabamento do genero.
determina a totalidade do enunciado, o seu voluine e as suas
O primeiro elemento _ a exauribilidade seinantico-ob-
fronteiras. imaginamos o que o falante quer dizer, e com es-
jetal do teina do enunciado _ difere profundameiite nos di-
sa intenção verbalizada, essa vontade verbalizada (como a
versos campos da comunicação discursiva. Essa exauribilida-
entendemos) e que medimos a conclusibilidade do enuncia-
de pode chegar a uma pleiiitude quase absoluta ein alguns
do. Essa intenção determina tanto a própria escolha do ob-
campos da vida (as questöes de natureza puramente factual,
jeto (ein certas condiçöes de coinunicacão discursiva, na re-
bein coino as respostas factuais a elas, os pedidos, as ordens,
lacão necessaria coin os enunciados antecedentes) quanto os
etc.), ein alguns campos oficiais, no campo das ordens mili-
seus liinites e a sua exauribilidade semantico-objetal. Ele, evi-
tares e produtivas, isto e, naqueles campos ein que os gene-
deiitemente, também deterinina a escolha da forma do gene-
ros do discurso tem iiina natureza sumamente padronizada
ro na qual sera construido o eniinciado (ja se trata do tercei-
e é quase total a ausencia do elemento criativo. Nos campos
ro elemento que abordaremos adiante). Essa intenção _ mo-
da criacão (particularineiite nos cientificos, evidentemente),
mento subjetivo do enunciado _ combina-se em uma unida-
ao contrario, só e possivel uma única exauribilidade seinan-
de indissolúvel com o seu aspecto semantico-objetal, restrin-
tico-objetal muito relativa; aqui só se pode falar de uin inini-
giiido-o, vinculando-o a uma situação concreta (singular) de
mo de acabaineiito, que perinite ocupar uma posicão respon-
coinunicaçao discursiva, com todas as suas circunstancias in-
siva. O objeto e objetivamente inexaiirivel, mas, ao se tornar
dividuais, com seus participantes pessoais, com as suas inter-
vencöes _ enunciados antecedentes. Por isso os participan-
“ lšaklitin emprega o teriiio “reacão responsiva" (r›tz'/etiizaia retilct- tes imediatos da comunicacão, que se orientam na situação
siya). Ein russo, coiiio nas linguas latinas (a palavra ein riisso e uma apro- e nos enunciados antecedentes, abrangein facil e rapidamen-
priacão do latiiii), reacão (iui/ctsiyii) e resposta (oti/íét) são sin<Í›nimos, mas
te a intencão discursiva, a vontade discursiva do falante, e
a priineira vista, no plano superficial, não criain redundancia. _);i ein por-
tugues sua contigiiidade cria uma rediiiidfiiicia ineio estranlia, ra/.ão por desde o inicio do discurso percebem a totalidade do enuncia-
que resolvi substituir “reacão responsiva" por "atitude responsiva", pos- do em desdobramento.
to que a substituicão conserva plenainente o sentido do conceito bakliti- Passeinos ao elemento terceiro e inais iinportante para
iiiaiio. (N. do T.) nós _ as forinas estáveis de género do eiiunciado. A vonta-

36 Mikliail Baklitin , "I

Os generos do discurso 97
de discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha
lingua e as formas tipicas dos enunciados, isto é, os genetos
de certo genero de discurso. Essa escolha e deterininada pe-
do discurso, chegam à nossa experiencia e à nossa conscien-
la especificidade de uin dado campo da comunicação discur-
cia juntas e estreitamente vinculadas. Aprender a falar signi-
siva, por consideraçöes semantico-objetais (temáticas), pela
fica aprender a construir enunciados (porque falamos por
situação concreta da comunicação discursiva, pela coinposi-
enunciados e não por oraçöes isoladas e, evidentemente, não
cão pessoal dos seus participantes, etc. Ein seguida, a inten-
por palavras isoladas). Os generos do discurso organizam o
ção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e
iiosso discurso quase da mesma forma que o organizam as
subjetividade, é aplicada e adaptada ao genero escolhido,
formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos a moldar o
constitui-se e desenvolve-se ein determinada forina de gene-
iiosso discurso em formas de genero e, quando ouvimos o
ro. Tais generos existein sobretudo em todos os generos inais
discurso alheio, já adivinhamos o seu genero pelas primei-
variados da comunicacão oral cotidiana, iiicliiiiido o genero
ras palavras, adivinhamos certo volume (isto e, uma exten-
inais familiar e o inais iiitiino.
são aproximada do conjunto do discurso), uma determinada
Falamos apenas atraves de certos generos do discurso,
construção composicional, prevemos o fim, isto e, desde o
isto é, todos os nossos enunciados tem formas relativainente
inicio teinos a sensação do conjunto do discurso que, em se-
estaveis e tipicas de corzstrução do coizjurito. Dispomos de
guida, apenas se diferencia no processo da fala. Se os gene-
uin rico repertorio de generos de discurso orais (e escritos).
ros do discurso não existissem e nós não os dominássemos,
Em termos ,i›rátícos, nós os einpregainos de forma segura c
se tivessemos de cria-los pela primeira vez no processo do dis-
habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconliecer iii-
curso, de construir livremente cada enunciado e pelaƒpriinei-
teiramente a sua existencia. (lomo o _]ourdain de Moliere,
ra vez, a comunicação discursiva seria quase iinpossivel. 1
que falava ein prosa sem que disso siispeitasse, nos falamos
As formas do genero, nas quais moldamos o nosso dis-
por generos diversos sem siispeitar de sua existencia. Ate ines-
curso, diferein substancialmente, e claro, das forinas da lin-
mo no bate-papo inais descontraido e livre moldamos o nos-
gua no sentido da sua estabilidade e da sua coercão (norma-
so discurso por certas foriiias de genero, vezes padroni'/.a-
tividade) para o falante. Em linhas gerais, elas são bem mais
das e estereotipadas, as vezes mais flexiveis, plasticas e cria-
flexiveis, plasticas e livres que as forinas da lingua. Também
tivas (a coinunicação cotidiana tainbein dispöe de geiieros
iieste sentido a diversidade dos generos do discurso é muito
criativos). Esses generos do discurso nos são dados quase da
grande. Toda uma serie de generos suinaineiite difundidos no
inesina forina qiie nos e dada a liiigua materna, a qual domi-
cotidiano é de tal forma padronizada que a voiitade discur-
nainos livreinente até comecarmos o estudo teórico da gra-
siva individual do falante só se inanifesta na escolha de um
mática. A liiigua inaterna _ sua coinposição vocabular e sua
determinado genero e ademais na sua entonação expressiva.
estrutura gramatical _ não chega ao nosso conheciinento a
Assim são, por exeinplo, os diversos generos cotidianos bre-
partir de dicionarios e grainaticas, mas de enunciados con-
ves de saudacöes, despedida, felicitacöes, votos de toda espe-
cretos que nós inesmos ouvimos e nós inesmos reproduzimos
cie, informação sobre a saúde, as criancas, etc. A diversida-
na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos ro-
de desses generos é determinada pelo fato de que eles dife-
deiain. Assimilamos as forinas da lingua somente nas forinas
rem entre si dependendo da situação, da posicãojsocial e das
dos enunciados e justamente com essas fornias. As forinas da
ifelaçöes pessoais de reciprocidade entre os participantes da

38 Mikhail Bakhtin _ (_
Os generos do discurso 3')
comunicaçao: ha formas elevadas desses gêneros, rigorosa- desses gêneros se presta a uma reformulação livre e criadora
mente oficiais e respeitosas, concomitantes com formas fami- (à semelhança dos gêneros ficcionais, e alguns talvez até em
liares, que ademais apresentam diversos graus de familiari- maior grau), mas o uso criativamente livre não é uma nova
dade, e com formas íntimas (estas diferem das familiares).l5 criação de gênero _ cabe dominar bem os gêneros para em-
Esses géneros requerem ainda certo tom, isto é, incluem em pregá-los livremente.
sua estrutura determinada entonação expressiva. Esses gêne- l\/luitas pessoas que dominam magníficamente uma lín-
ros, particularmente os elevados, oficiais, apresentam um al- gua sentem amiúde total impotencia em alguns campos da
to grau de estabilidade e coação. Aí, a vontade discursiva cos- comunicação, justo porque não dominam na pratica as for-
tuma limitar-se à escolha de um gênero, e só leves matizes de mas do gênero desses campos. Com frequência, uma pessoa
uma entonação expressiva (p(›de-se assumir um tom mais se- que tem pleno domínio do discurso em diferentes campos da
co ou mais respeitoso, mais frio ou mais caloroso, introdu- comunicação cultural _ sabe ler um relatório, desenvolver
zir a entonação de alegria, etc.) podem refletir a individuali- uma discussão científica, fala muito bem sobre questöes so-
dade do falante (a sua ideia discursivo-emocional). Mas tam- cials _ em uma conversa mundana cala ou intervém de for-
bém aqui é possível uma reacentuação dos gêneros, caracte- ma muito dcsaieitada. Aqui não se trata de pobreza vocabu-
rística da comunicação discursiva em geral; assim, por exem- lar nem de estilo tomado de maneira abstrata; tudo se resu-
plo, pode-se transferir a forma de gênero da saudação do me a uma inabilidade para dominar o repertorio dos gêneros
campo oficial para o campo da comunicação familiar, isto é, da conversa mundana, à falta de um suficiente acervo de no-
empregá-la com uma rcacentuação irônico-paródica; com fins còes sobre um enunciado inteiro que ajudem a moldar de for-
análogos pode-se misturar deliberadamente os gêneros das ma rápida e descontraída o seu discurso nas formas estilísti-
diferentes esferas. co-composicionais definidas, a uma inabilidade para tomar
Paralelamente a semelhantes géneros padronizados, a palavra a tempo, começar corretamente e terminar corre-
existiam e existem, é claro, gêneros mais livres e mais criati- tamente (nesses generos, a composição é muito simples).
vos de comunicação discursiva oral: os géneros das conver- Quanto mais dominamos os gêneros, maior é a desen-
sas de salão sobre temas do cotidiano, sociais, estéticos e si- voltura com que os empregamos e mais plena e nitidamente
milares, os gêneros das conversas mesa, das conversas ín- descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é pos-
timo-amistosas, íntimo-familiares, etc. (por enquanto não sível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a
existe uma nomenclatura dos géneros do discurso oral e tam- situação singular da comunicação _ em suma, tanto mais
pouco está claro o principio de tal nomenclatura). A maioria plena é a forma com que realizamos o nosso livre projeto de
discurso.
Desse modo, ao falante não são dadas apenas as formas
'Ñ Esses fenómenos e outros análogos interessam aos linguistas (pre- da lingua nacional (a composição vocabular e a estrutura gra-
dominantemente aos historiadores da língua) no corte meramente estilís-
matical) obrigatórias para ele, mas também as formas igual-
tico, como reflexo, na lingua, de formas historicamente mutáveis de eti-
queta, de gentileza, decência. Cf., por exemplo, F. Brunot IF. Brunot, His-
mente obrigatórias de enunciado, isto é, os gêneros do dis-
toire de la langue frmzçaíse des mígiries à 1900, tomos 1-10, Paris, 1905- curso: estes são tão indispensáveis para a compreensão mú-
1943. (N. da E.)]. tua quanto as formas da lingua. Os géneros do discurso, com-

40 Mikhail Bakhtin Os gêneros do discurso 41


parados às formas da lingua, sao bem mais mutáveis, flexi- Quando escolhemos um tipo de oraçao, nao o escolhe
veis e plásticos; entretanto, para o individuo falante eles têm mos apenas para uma oracão, não o fazemos por considerar-
significado normativo, não são criados por ele mas dados a mos o que queremos exprimir com determinada oração; es-
ele. Por isso um enunciado singular, a despeito de toda a sua colhemos um tipo de oração do ponto de vista do enunciado
individualidade e do caráter criativo, jamais pode ser consi- imfeíro que se apresenta nossa imaginação discursiva e de-
derado uma combirzação absolutamente livre de formas da termina a nossa escolha. A concepcão da forma de um enun-
lingua, como o supöe, por exemplo, Saussure (e muitos ou- ciado integral, isto é, de um determinado género do discur-
tros linguistas que 0 secundam), que contrapöe enunciado (la so, guia-nos no processo do nosso discurso. A ideia de cons-
parole) como ato puramente individual ao sistema da lingua truir o nosso enunciado em sua totalidade pode, é verdade,
como fenômeno puramente social e obrigatório para 0 indi- exigir para sua realização apenas uma oração, mas também
viduo.” A imensa maioria dos linguistas, se não na teoria, pode exigir um grande número delas. O género escolhido nos
assume na prática a mesma posição: veem no enunciado ape- sugere os tipos e os seus vinculos composicionais.
nas uma combinação individual de forma puras da lingua (lé- Uma das causas do desconhecimento linguístico das for-
xicas e gramaticais), e praticamente não enxergam nem estu- mas de enunciado é a extrema heterogcncidade dessas for-
dam nela nenhuma outra forma normativa. inas no tocante à construção composicional e, particularmen-
O desconhecimento dos géneros do discurso como for- te, Z1 sua dimensão (a extensão do discurso) _ da réplica mo-
mas relativamente estáveis e normativas de enunciado deve- novocal ao grande romance. Uma diferença acentuada nas
ria levar necessariamente os linguistas ã já referida confusão dimensöes também ocorre no âmbito dos géneros do dis-
do enunciado com a oração, deveria levar a uma situação curso oral. Por essas razöes, os géneros do discurso se afigu-
(que, é verdade, nunca foi defendida coerentemente) em que ram incomensuráveis e inaplicáveis enquanto unidades do
os nossos discursos só se moldam em formas estáveis de ora- discurso.
ção que nos foram dadas; no entanto, o número de tais ora- Por isso, muitos linguistas (principalmente pesquisado-
çöes interligadas, que pronunciamos seguidamente, e o mo- res do campo da sintaxe) tentam encontrar formas especiais
mento em que paramos (terminamos) são um assunto que se que seiam intermediárias entre a oração e o enunciado, que
deixa ao pleno arbitrio da vontade individual de discurso do tenb-am conclusibilidade como o enunciado, e ao mesmo tem-
falante ou ao capricho de um mítico “fluxo da fala”. po comensurabilidade como a oracão. Assim são a “frase”
(por exemplo, em Kartzevsl<i),'7 a “comunicação” (Chál<h-

lb Saussure define o enunciado (la ƒmrolv) como "ato individual da


vontade e da compreensão, no qual cabe distinguir: 1) combinaçöes, com
auxilio das quais o sujeito falante usa o codigo linguístico com o objetivo '7 A "frase" como fenômeno linguístico de ordem diferente da ora-
de exprimir o seu pensamento pessoal; e 2) mecanismo psicofisico que lhe cão foi fundamentada nos trabalhos do linguista russo S. O. Kartzevski,
permite objetivar essas combinaçöes” (Ferdinand de Saussure, Curso de participante do Circulo Linguistico de Praga. A diferenca da oração, a fra-
linguistica geral, Moscou, 1933, p. 38 |cf. Ferdinand de Saussure, op. cif., se "não tem estrutura gramatical pr(›pria”, mas tem a sua estrutura foni-
p. 52. (N. da E.)]). Assim, Saussure ignora o fato de que, além das formas ca que consiste em sua entonação. “É precisamente a entonação que for-
da lingua, existem ainda as formas de coflibinaçöes dessas formas, isto é, ma a frase” (S. Kartzevski, Sur la 17/øonol(›gz'e de la phrase, em Traz/¿mx du
ignora os géneros do discurso. Cerclc Lirigzrisïiqiie de Prague, 4, 1931, p. 190). "A oração, para ser rea-

42 l\/likbail Bakhtin Os generos do discurso 43


matovlx e outros). Entre os pesquisadores que empregam es- destacada do contexto, inventa-se promové-la a um enuncia-
sas unidades não existe identidade na sua concepção, porque do pleno. Consequentemente, ela atinge o grau de conclusi-
na vida da lingua a elas não corresponde nenbuma realidade bilidade que lhe permite suscitar resposta.
definida e nitidamente delimitada. Todas essas unidades ar- Como a palavra, a oração é uma unidade significante da
tificiais e convencionais são indiferentes à alternância dos su- lingua. Por isso, cada oração isolada, por exemplo “o sol
jeitos do discurso, que ocorre em qualquer comunicação dis- saiu”, é absolutamente compreensivel, isto é, nós compreen-
cursiva viva e real, por isso se obliteram os limites mais subs- demos o seu sígníficado linguístico, o seu papel possível no
tanciais em todos os campos da ação da lingua _ os limites enunciado. Entretanto, é impossivel ocupar uma posição res-
entre os enunciados. Dai (consequentemente) desaparece o ponsiva em relação a uma posição isolada se não sabemos se
critério central de conclusibilidade do enunciado como uni- o falante disse com essa oração tudo o que quis dizer, que es-
dade auténtica da comunicação discursiva _ a capacidade sa oração não é antecedida nem sucedida por outras oraçöes
de determinar a ativa posição responsiva dos outros partici- do mesmo falante. Mas neste caso ela já não é uma oração e
pantes da comunicação. sim um enunciado plenamente válido, constituido de uma só
Para concluir esta seção, cabem ainda algumas observa- oração: ele está emoldurado e delimitado pela alternancia dos
cöes sobre a oração (faremos um resumo a respeito no final sujeitos do discurso e reflete imediatamente a realidade (si-
do nosso trabalho). tuacão) extraverbal. Esse enunciado suscita resposta.
A oração enquanto unidade da lingua é desprovida da Contudo, se essa oração está envolvida pelo contexto,
capacidade de determinar imediata e ativamente a posição ela assume a plenitude do seu sentido apenas nesse contexto,
responsiva do falante. Só depois de tornar-se um enunciado isto é, apenas no enunciado inteiro, e uma resposta só é pos-
pleno, uma oração particular adquire essa capacidade. Qual- sivel a esse enunciado inteiro cujo elemento significante é a
quer oracão pode figurar como enunciado acabado, mas, nes- referida oração. O enunciado pode, por exemplo, ser tam-
te caso, é completada por uma série de elementos essenciais bém assim: “O sol saiu. hora de me levantar”. A coinpreen-
de indole não gramatical, que lhe modificam a natureza pe- são responsiva (ou a resposta em voz alta): “Sim, realmente
la raiz. E é essa circunstancia que serve de causa a uma aber- está na bora”. Entretanto, o enunciado pode ser também as-
ração sintática especial: ao analisar-se uma oração isolada, sim: “O sol saiu. Mas ainda é muito cedo. Preciso dormir
mais um pouco”. Aqui, o sentido do enunciado e a atitude
responsiva perante ele são outros. Essa oração pode fazer
lizada, deve receber a entonação da frase... a frase é a funcão do dialogo. parte até da composição de uma obra de arte como elemen-
H uma unidade de troca entre interlocutores" (S. Kartzevski, Sur la para- to da paisagem. Aqui a atitude responsiva _ impressão ar-
mxe et la syritaxe en russe, em Cahiers Ferdinand de Saussure, n" 7, 1948, tistico-ideológica e avaliação _ pode referir-se apenas a uma
p. 34). (N. da E.)
paisagem em seu conjunto. No contexto de outra obra, essa
lx A. Chál<bmatov entendia por “comunicação” um ato de pensa-
oração pode ganhar significação simbólica. Em todos os ca-
mento como fundamento psicológico da oração, o elo intermediario "en-
tre o psiquismo do falante e sua manifestação na palavra a que ele aspi-
sos semelbantes, a oração é o elemento significante do con-
rava” (A. Chákbmatov, A sirztaxe da lingua russa, Leningrado, 1941, pp. junto de um enunciado, e ela adquiriu o seu sentido definiti-
19-20). (N. da E.) VO apenas HÉSSÉ COÍIÍLIÍIÍO.

44 Mikhail Bakhtin Os géneros do discurso 45


Se nossa oração figura como enunciado acabado, ela ad- cursiva. É a posiçao ativa do falante nesse ou naquele cam-
quire o seu sentido pleno em determinadas condiçöes concre- po do objeto e do sentido. Por isso cada enunciado se carac-
tas de comunicação discursiva. Assim, ela pode ser uma res- teriza, antes de tudo, por certo conteúdo semántico-objetal.
posta a pergunta do outro: “Será que o sol já saiuì”. (É cla- A escolha dos meios linguisticos e dos géneros de discurso é
ro que em certas circunstancias qiie justifiqueni essa pergun- determinada, primeiramente, pelas tarefas (pela ideia) do su-
ta.) Aqui esse enunciado é a afirmação de um determinado jeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no senti-
fato, afirmação que pode ser verdadeira ou falsa, com a qual do. É o primeiro elemento do enunciado que determina as
podemos concordar ou não. Uma oração, afirmativa em sua suas peculiaridades estilistico-composicionais.
forma, torna-se alirmação real apenas no contexto de uin de- O segundo elemento do enunciado, que lhe determina a
terminado enunciado. composição e o estilo, é o elemento expressivo, isto é, a rela-
Quando se analisa semelhante oração isolada costuma- cão subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o
-se interpreta-la como enunciado acabado em alguma situa- conteúdo do objeto e do sentido do seu enunciado. Nos di-
ção simplificada ao extremo: o sol realmente saiii e o falan- ferentes campos da Comunicação discursiva, o elemento ex-
te constata: “O sol saiu”, o falante está vendo que a grama pressivo tem significado vário e grau vário de força, mas ele
é verde e declara: “A grama é verde”. Semelbantes “comuni- existe em toda parte: um enunciado absolutamente neutro é
caçöes” sem sentido costiimam ser consideradas francamen- iinpossivel. A relação valorativa do falante com o objeto do
te como casos classicos de uma oração. Em realidade, porém, seu discurso (seja qual for esse objeto) também determina a
toda informação semelhante dirige-se a alguém, é suscitada escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais
por alguina coisa, tem alguin objetivo, ou seja, é um elo real do enunciado. O estilo individual do enunciado é deterinina-
na cadeia da comunicação discursiva ein determinado cain- do sobretudo por seu aspecto expressivo. No campo da esti-
po da atividade humana ou da vida. listica, pode-se considerar essa tese universalinente aceita. Al-
(lomo a palavra, a oração tem conclusibilidade de sig- guns pesquisadores chegam inclusive a reduzir diretamente o
nificado e conclusibilidade de forma gramatical, mas essa estilo ao aspecto emocionalmente valorativo do discurso.
conclusibilidade de significado é de indole abstrata e por is- Pode-se considerar o elemento expressivo do discurso
so mesmo tão precisa: é o acabamento do elemento, mas não um fenómeno da lingua como sistema? Pode-se falar de as-
o acabamento do conjunto. A oração como unidade da lin- pecto expressivo das unidades da lingua, isto é, das palavras
gua, semelbança da palavra, não tem autor. lila é de nin- e oraçöes? A estas perguntas faz-se necessária uma resposta
guém, como a palavra, e só funcionando coino um enuncia- categoricainente negativa. A lingua como sistema tem, evi-
do pleno ela se torna expressão da posição do falante indivi- dentemente, um rico arsenal de recursos linguisticos _ lexi-
dual em uma situação concreta de comunicação discursiva. cais, morfológicos e sintáticos _ para exprimir a posição
Isto nos leva a uma nova, a uma terceira peculiaridade do emocionalmente valorativa do falante, mas todos esses recur-
enunciado _ a relação do enunciado com o próprío falante sos enquanto recursos da lingua são absolutamente neutros
(autor do enunciado) e com outros participantes da comuni- em relação a qualquer avaliação real determinada. A palavra
caçao discursiva. “benzinho” _ hipocoristica tanto pelo significado do radi-
Todo enunciado é um elo na cadeia da Comunicação dis- cal quanto pelo sulixo _ em si mesma, como unidade da lin-

46 Mikhail Bakhtin Os géneros do discurso 47


guai é f30 Hfïutra quanto a palavra “lonjura”. Ela é apenas No sistema da lingua, isto é, fora do enunciado, ela nao exis
uni recurso linguistico para uma possivel expressão de rela- ie. Tanto a palavra quanto a oração enquanto unidades da
çao emocionalmente valorativa com a realidade no entanto //ii_t›'ua são desprovidas de entonação expressiva. Se uma pa-
_, 7
nao
_ jse refere I a nenhuma« realidade ` - determinada,' _ essa ¬ referen-^ lavra isolada é pronunciada com entonação expressiva,
cia › isto e , e sse real juizo ` ' de. valoi,- so' pode ser realizado - pelo iiao é uma palavra mas um enunciado acabado expresso por
falante em seu enunciado concreto As palavras não são de uma palavra (não ha nenhum fundamento para desdobrá-la
nin 5,fuémI , ein~ sif mesmas
~ « nada valorizam, . -. mas . podem abaste- ein oração). Na comunicação discursiva, existein tipos bas-
cu qua quer falante e os juizos de valor inais diversos e dia- iaiite padronizados e muito difundidos de enunciados valo-
metralmente opostos dos falantes. rativos, isto é, de géneros valorativos de discurso que tradu-
_A or'açao ¬` n enquanto - ' .
unidade da. lingua
f tambein» e» neutra /.ein elogio, aprovação, éxtase, estiinulo, insulto: “Ótimol”,
ein si mesma« c› nao f tem aspecto s exprcssivo; __ - ela o adquire - (ou "l*›ravo!”, “l\/laravilhal”, uma vergonha!", “Porcarial”,
melhor, coinunga com ele) unicamente em um enunciado con- "Uma bestal”, etc. As palavras que, em determinadas condi-
creto.A “ ` qui"e possivel ' a. mesma..abeiraçao. .,.~ Uma oraçao ~ co- çöes da vida politico-social adquirein um peso especifico, tor-
ino Ele morreu” pelo visto incorpora uma determinada ex- iiam-se enunciados exclamativos expressivos: “Pazl”, “ Liber-
pressao, e a incorpora ainda inais uma oração coino “Que dadel”, etc. (Trata-se de uin género de discurso politico-so-

alegria. H i” . Ein ¬ rcalidade,
i. ' . nosf _ percebemos
_ açoes N dessa nature- cial específico.) Em certa situação a palavra pode adquirir uin
za coino enunciados plenos e ainda inais ein uma, situação ti _ sentido profundamente expressivo na forma de enunciado
pica, isto e, nuina especie de géneros do disciirso dotados de exclainativo: “l\/lar! Marl” (exclamam dez mil gregos em
expressao tipica. Enquanto oraçöes elas são desprovidas des- Xenofonte).Z'
saf ex P rex” 553% sio Z iieutias. -- Dcpendendo› .
do contcxto , do enun- Em todos esses casos não estamos diante de uma pala-
ciado, a oração “Ele inorreu” pode traduyir também uma CX vra isolada como unidade da lingua nein do significado de tal
pressão positiva, de alegria e até de júbilo. E a oração “Que
ale›ria!”
j Ag, '
, no contexto -
de certo ›
cnunciado, < pode assumir_, - ` tom
o contexto extraverbal: a entonação viva parece levar a palavra para os
ironico ou ainargainente sarcástico seus próprios limites. |...| A entonação esta sempre mi fronteira do verbal
llm
l dos meios ' de expressao _ .~ da relaçao ~ einocionalinen-
- e do nao verbal, do diro i' iiào dito. Na entonação, a palavra contara iine-
te~ va o rativa
f - - ^
do falante coin o objeto da sua fala e a entona- . . » cliatamente coin a vida. E é sobretudo na entonação que o falante coiitata
çao expressiva que soa nitidamente na execução oral.” A en- coin os ouvintes: a entonação é social par excelle11ce" (V. N. Volóchinov,
"A palavra na vida e a palavra na poesia", Zi/íezdá, 1926, n" 6, pp. 252-
tonaçao expressiva é um traço constitutivo do enunciado 1°
3). Cf. ainda: “E precisamente este “tom` (entonação) que faz a “música”
(sentido geral, significado geral) de todo enunciado. (...| A situação e o res-
pectivo público deterininain, antes de tudo, precisamente a entonação e
i«› Nos,
› . evidentcincnte,
« _ ì . _
a assiinilainos _
coino fator estilistico e na lei- através dela realizam também a escolha das palavras e a sua ordem; atra-
tura muda de iiin discurso escrito. vés da entonação assiinilam o conjunto do enunciado" (V. N. Volóchinov,
lll a . J
' dA cntoiiaçao _ _ ^
expiessiva coino pura expressão da avaliação do “A coiistrução do enuiiciado”, Litcratiirrzaia Utclzióba, n" 3, 1930, pp. 77-
enun¬i- ¬
c a o e como ~
seu «
mais importante , _« -
tiaço constitutivo -- minuciosa-
foi . . 8). (N. da E.)
mente estudada nuina série de trabalhos do autor na segunda metade dos 3' Xenofonte, Ariabasis, l\/loscou-Leningrado, 1951, p. 121 (livro IV,
anos 1920. "A ento n iiçfio estabelcce
¬ - ›- um vinculo
' - , '
cstreito da palavm ¿Om cap. 3). (N. da E.)

48 l\/likhail Baklitin Os géneros do discurso 49


palavra, mas de um enunciado acabado e com um sentido E, apesar de tudo, isso nao é assim. Estamos diante de
concreto” estainos diante do conteúdo de um dado enun- iiina aberração conhecida. Quando escolhemos as pala-
ciado; aqui, o significado da palavra refere uma realidade vras, partimos do conjunto projetado do enunciado” e esse
concreta em condiçöes igualmente reais de comunicação dis- conjunto que projetamos e criamos é sempre expressivo e é
cursiva. Por isso, aqui não só compreendeinos o significado cle que irradia a sua expressão (ou melhor, a nossa expres-
de dada palavra enquanto palavra da lingua como ocupamos são) a cada palavra que escolhemos; por assim dizer, conta-
em relação a ela uma ativa posição responsiva _ de simpa- gia essa palavra com a expressão do conjunto. E escolheinos
tia, acordo ou desacordo, de estimulo para a ação. Desse mo- a palavra pelo significado que ein si mesmo não é expressivo
do, a entonação expressiva pertence aqui ao enunciado e não mas pode ou não corresponder aos nossos objetivos expres-
à palavra. sivos em face de outras palavras, isto é, em face do conjunto
E ainda assiin é muito dificil desistir da convicção de que do nosso enunciado. O significado neutro da palavra referida
cada palavra da lingua tem ou pode ter por si mesma “um a certa realidade concreta em determinadas condiçöes reais
tom emocional”, “um colorido emocional”, “um elemento de coinunicação discursiva gera a centelha da expressão. Ora,
axiológico”, uma “auréola estilística”, etc. e, por coiiseguin- é precisamente isto que ocorre no processo de criação do
te, uma entonação expressiva inerente a ela enquanto pala- enunciado. Reiteramos: só o contato do significado linguis-
vra. Porque se pode pensar que quando escolheinos as pala- tico com a realidade concreta, só o contato da lingua com a
vras para o enunciado é coino se nos guiássemos pelo tom realiclade, contato que se da no enunciado, gera a centelha
emocional próprio de uma palavra isolada: selecionainos da expressão; esta não existe nein no sistema da lingua nein
aquelas que pelo tom correspondem à expressão do nosso na realidade objetiva existente fora de nós.
enunciado e rejeitamos as outras. precisamente dessa ina- Portanto, a emoção, o juizo de valor e a expressão são
neira que os poetas representain o seu trabalho coin a pala- estranhos ã palavra da lingua e surgem unicamente no pro-
vra e e assiin inesmo que o estilista (por exemplo, a “expe- cesso do seu einprego vivo ein uin enunciado concreto. Ein
riéncia estilística” de Pechl<ovsl<i)3›i interpreta esse processo. si mesmo, o significado de uma palavra (sem referéncia à rea-
lidade concreta) é extraeinocional. Ha palavras que signifi-
›> - . _ _ _ j cam especialmente emoçöes, juizos de valor: “alegria”, “so-
bio livio Marxismo e filosofia da /iiiguagein, o sentido concreto
do enunciado é determinado terminologicainente coin _ o seu tema'
. . "O te -
inaddo enungiado e, no fundo, -individual e singular coino o próprio enun-
cia o. lor significado, diferenteinente de tema, entendemos aqueles l“echl<ovsl<i, Qiiesroes de metodologia da liiigiia materna, da liiigiiistica e
inesinos inomentos cio enunciado que são re/)etíifei`s e idêníicos em si gm da estilística, Moscou-l.eningrado, 1930, p. 133). (N. da E.)
todaslasosiias repetiçöes. |...| O teina do enunciado, ein esséncia, é indi-
34 Quando construimos o nosso discurso, sempre trazemos de ante-
visive.
I A d A si giåihcado
› *- ›
do cnunciado, . contrario,
ao ~ r - dccompoe-se
,. ~ , ein uma
mão o todo do nosso enunciado, na forma tanto de um determinado es-
serie e si gi1 i cados
~- ~ de elcmentos
› '
da lingua. que delc. fazem
1 parte” (pp.
quema de género quanto de projeto individual de disciirso. Não enfiamos
l()l-2). (N. da lt.)
as palavras, não vainos de iinia palavra a outra, mas é coino se completas-
1_;A> -A Ñ., _ _ _ “_
A cxperiencia cstilistica, qiie consiste na “ini/ençizo artifiçml ¿gs seinos a totalidade com as devidas palavras. Enliainos as palavras apenas
. . ¬ _ '_ ' ,_
variantes estilisticas do texto ¬, , e» um procediniento
, I _
metodologico einpre- na priineira fase do estudo de uma lingua estrangeira e ainda assiin ape-
gado por A. M. Pechl<ovsl<i para analisar o discurso ficcional (cf. A M nas quando usamos uma orientação inetodologica precaria.

S0 Mikhail Baklitin Os géneros do discurso 51


frimento”, “belo”, “alegre”, “triste”, etc. Mas esses signifi- curso, no geral, se prestam de modo bastante fácil a uma rea-
cados também são neutros como todos os demais. O colori- tentuação; o triste pode ser transformado em jocoso-al€gf€¬
do expressivo só se obtéin no enunciado, e esse colorido in- inas dai resulta alguina coisa nova (por exemplo, o genero C16
depende do significado de tais palavras, isoladamente toina- um epitáfio jocoso). _
do de forina abstrata; por exemplo: “Neste momento, qual- Essa expressividade tipica (de género) pode ser vista co-
quer alegria é apenas amargura para mim” _ aqui a palavra ino a “auréola estilística” da palavra, 11188 €SSH^ aufeola mm
“alegria” recebe entonação expressiva, por assiin dizer, a des- pgrtence à palavra da lingua como tal mas ao genero em que
peito do seu significado.
dada palavra costuma funcionar, é o eco da totalidade do ge-
Contudo, o aciina exposto está longe de esgotar a ques- nero que ecoa na palavra. ~
tão. Esta é bem mais complexa. Quando escolhemos as pa- A expressão de género da palavra _ e a expfffssfìø de
lavras no processo de construção de um enunciado, nem de
género da entonação _ é impessoal como impessoais sao os
longe as tomamos sempre do sistema da lingua em sua forma proprios géneros do discurso (porque estes são uma forma
neutra, lexícográfica. Costumamos tirá-las de outros enun-
tipica de enunciados individuais mas não sao os proprios
ciados, e antes de tudo de enunciados congéneres com o nos-
enunciados). Todavia, as palavras podem entrar no nosso
so, isto é, pelo tema, pela composição, pelo estilo; consequen-
discurso a partir de enunciados individuais alheios, manten-
temente, selecionamos as palavras segundo a sua especifica-
do em menor ou maior grau os tons e ecos desses enunciados
ção de género. O género do discurso não é uma forma da lin-
individuais. _ ,
gua, mas uma forma tipica do enunciado; como tal forma, o
As palavras da lingua não são de ninguem, mas ao mes-
género inclui certa expressão tipica que lhe é inerente. No gé-
ino tempo nós as ouvimos apenas em certos enunciados in-
nero a palavra ganha certa expressão tipica. Os géneros cor-
clividuais, nós os leinos em determinadas obras individuëflsi
respondem a situaçöes tipicas da comunicação discursiva, a
e ai as palavras já não téin expressão apenas tipica, poi'€H1
teinas tipicos, por conseguinte, a alguns contatos tipicos dos
expressão individual externada com maior ou menor nitidez
sigrzificadris das palavras com a realidade concreta em cir-
(ein função do género), determinada pelo contexto singular-
cunstâncias tipicas. Dai a possibilidade de expressöes tipicas,
inente individual do enunciado.
que parecem sobrepor-se às palavras. Essa expressividade ti-
Os significados lexicográficos neutros das palavNras da
pica do género não pertence, evidenteinente, à palavra en-
lingua asseguram para ela a identidade e a compreensao inu-
quanto unidade da lingua, não faz parte do seu significado,
tiia de todos os seus falantes, maso emprego das palavras 118
mas reflete apenas a relação da palavra e do seu significado
coinunicação discursiva viva sempre é de indole individual-
com o género, isto é, coin enunciados tipicos. Essa expressão
-contextual. Por isso pode-se dizer que qualquer palavraƒexis-
tipica e a entonação tipica que lhe corresponde carecem da-
te para o falante em trés aspectos: como palavra da lingua
quela força de coerção que téin as formas da lingua. E uma
neutra e não pertencente a ninguém; como palavrajalløeia C108
normatividade do género mais livre. Neste exemplo: “Neste
outros, chela de ecos de outros enunciados; e, por ultimo, co-
momento, qualquer alegria é amargura para mim”, o toin ex-
ino a minha palavra, porque, uma vez que eu operon com ela
pressivo da palavra “alegria”, determinado pelo contexto,
em uma situação determinada, com uma intençao discursiva
evidentemente não é tipico dessa palavra. Os géneros do dis- - -f ' - « x ressao.
determinada, ela ja esta compenetrada da minha e p

52 Mikhail Bakhtin
Os géneros do discurso 53
Nos dois aspectos finais, a palavra é expressiva, mas essa Desse modo, a expressividade de determinadas palavr2lS
expressão, reiteramos, não pertence à própria palavra: ela ,(30 é uma propriedade da própria palavra como unidade da
nasce no ponto do contato da palavra com a realidade con- lingua e não decorre imediatamente do significado d€SS^HS Pa'
creta e nas condiçöes de uma situação real, e esse contato é lavras; essa expressão ou é uma expressão tipica df! gener@
realizado pelo enunciado individual. Neste caso, a palavra ou um eco de uma expressão individual alheia, qu@ IOYHH 3
l
atua como expressão de certa posição valorativa do homein palavra uma espécie de representante da plenitude do enun- (ii
ii
individual (de alguém dotado de autoridade, do escritor, cien- ciado do outro como posição valorativa determinada. _
tista, pai, mãe, amigo, mestre, etc.) como abreviatura do O mesmo cabe dizer também da oração enquanto uni-
enunciado. dade da lingua: ela também carece de expressividade. Isso
l
Em cada época, ein cada circulo social, em cada inicro- nos já afirmamos no inicio desta seção. Resta apenas com- `l

mundo familiar, de amigos e conhecidos, de colegas, ein que pletar brevemente o que foi dito. Acontece que os tipos €X1S- l
o homein cresce e vive, sempre existein enunciados investi- tentes de oraçöes costuinain funcionar como enunciados ple- il
i
i

dos de autoridade que dão o tom, como as obras de arte, cién- nos de determinados tipos de género. Assim são 215 0fa,§0e5
cia, jornalismo politico, nas quais as pessoas se baseiam, as exclamativas, interrogativas e exortativas. Existe um nuine-
quais elas citain, iinitam, seguem. Ein cada época, e ein to- ro muito grande de géneros centrados nocotidiano e espe-
dos os campos da vida e da atividade, existein determinadas ciais (por exeinplo, géneros de ordens militares e de produ-
tradiçöes, expressas e conservadas ein roupagens verbaliza- ção), que, ein regra, são expressos por uma or21§3_0 de “PO
das: em obras, enunciados, sentenças, etc. Sempre existein es- correspondente. Por outro lado, as oraçöes desse tipo se en-
sas ou aquelas ideias determinantes dos “senhores do pensa- contram de modo relativamente raro no contexto de subor-
mento” de uma época verbalmente expressas, algumas tare- dinação dos enunciados desenvolvidos. Quando expressoes
l'i
fas fundamentais, lemas, etc. já ncin falo dos modelos de an- clesse tipo Ientraml no contexto desenvolvido de subordina-
tologias escolares nos quais as crianças aprendem a lingua ção, destacain-se com certa nitidez de sua c/omposiçao e, em
materna e que, evidentemente, são sempre expressivos. regra, procurando ser ou a primeira ou a ultima OYHQQU df)
Eis por que a experiéncia discursiva individual de qual-
quer pessoa se forma e se desenvolve ein uma interação cons-
enunciado (ou da parte relativaincnte autonoma do enun-
ciado).¿§ Esses tipos de oraçöes apresentam um interesse es-
l
tante e continua com os enunciados individuais dos outros. pecial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas.
Em certo sentido, essa experiéncia pode ser caracterizada co- Aqui nos iinporta apenas observar que as oraçoes desse tipo
mo processo de assimilação _ mais ou menos criador _ das se fundein muito solidamente com sua expressao de geiier0›
palavras do outro (e não das palavras da lingua). Nosso dis- assiin coino absorvem com especial facilidade a expressao in-
curso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras
criadas) é pleno de palavras dos outros, de uin grau vário de
alteridade ou de assimilabilidade, de uin grau vário de aper-
li A primeira e a última oração de um enunciado téin, ein geral, uma
ceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros tra-
natureza original, certa qualidadeÁcomplementar. Porque se trata, por Hs-
zem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assi-
sim dizer, de oraçöes da “linha de frente”, que se encontram imediatainen-
milamos, reelaboramos, e reacentuamos. te ein plena linha de alternancia dos sujeitos do discurso.

54 Mikhail Bakhtin Os géneros do discurso 55


dividual. Essas oraçöes em muito contribuiram para conso-
lidar a ilusão sobre a natureza expressiva da oração. i- expressivas. Com isto se determinam também os estilos Ela
Mais uma observaçao. A oraçao enquanto unidade da lingua, tanto os de uma corrente quanto os 1nCl1V1dUa15- O 3"
lingua tem uma entonação gramatical especifica e não uma lante com sua visão do mundo, os seus juizos de valor e emã-
€I]f()H21ç21() ÚXPFCSSÍVZ1. Slfuìllìl-SC CHUÍÚ 38 €l1ÉOÍ]3çö€S gfafiìã- roes, por um lado, e o objeto de seu discurso e sistema a
ticais especificas: a entonação de acabaineiito, a explicativa, lingua (dos recursos linguisticos), por outro _ eis tL1ÍÍ0 0,que
a disjuntiva, a enuinerativa, etc. Cabe um papel especial à en- «It-termina o enunciado, o seu estilo e sua comP051§a0- E es'
tonação narrativa, à interrogativa, à exclamativa e à exorta- i.i a concepção dominante. _
tiva: aqui se cruza de certo modo a entonação gramatical com Em realidade, a questão é bem'ma1S C0mPl.eXa-_T(()i(_lO
a entonação de género (mas não com a expressiva no senti- enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicaçfw 15'
do preciso do terino). A oração só ganha entonação expres- cursiva de um determinado camP0- OS própnos hlnltes do
siva no conjunto do enunciado. Ao apresentar uin exeinplo enunciado são deternåinados pela'alåe;nânͧ; Ílqïrìllslifiïglìflsï
de uma oração com o fito de analisa-la, costumamos abaste- discurso. Os enuncia os não sao in i eren
cé-la de certa entonação tipica, transforniando-a ein enun- bastam cada um a si mesmos; UHS C0“heCem OS øutmf C Se
ciado acabado (se tiramos a oração de um texto determina- refletem mutuamente uns nos outros. Esses ,reflexos mutu0S
do nós a entonainos, evidentemente, segundo a expressão de llies determinam o caráter. Todo enunciado e pleno de ecoãë
dado texto). i-essonâncias de outros enunciados com 95 f-111315 eâta llãado
Pois bem, o eleineiito expressivo é uma peculiaridade pela identidade da esfera de comunicaçao dlscurslva' O O
constitutiva do enunciado. O sisteina da lingua é dotado das enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta
formas necessárias (isto é, dos meios linguisticos) para emi- aos enunciados precedentes de uin determinado caf11P0 laqu'
tir a expressão, mas a própria lingua e as suas unidades sig- concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo)2
nificativas _ as palavras e oraçöes _ carecem de expressão ela os rejeita, confirma, coinpleta, baseia-se neles, suben1t)en-
pela própria natureza, são neutras. Por isso servein igualinen- de-os coino conhecidos, de certo modo os leva em conta.d(
te bem a quaisquer juizos de valor, os mais diversos e contra- que o enunciado ocupa uma posiçao definida ein uma daãf
ditórios, a quaisquer posiçöes valorativas. esfera da comunicação, ein uma dada questao, em uin 0
Portanto, o enunciado, seu estilo e sua composição são assunto, etc. E iinpossivel alguém definir siia P051919 56111 ãmï
deterininados pelo elemento semântico-objetal e por seu ele- relaciona-la com outras bosiçöes. Por isso, todo enuncia CT É
mento expressivo, isto é, pela relação valorativa do falante repleto de variadas atitudes responsivas a outros enunciafo
com o elemento semântico-objetal do enuiiciado. A estilisti- de um dado campo da coinunicação discursiva. Essas reaçoes
ca desconliece qualquer terceiro eleinento. Ela só considera tém diferentes forinas: os enunciados dos outros podemdser
os seguintes fatores que determinain o estilo do enunciado: introduzidos diretamente no contexto do enunciadoí P0 em
o sistema da lingua, o objeto do discurso e do próprio falan- ser introduzidas somente palavras isoladas ou oravçoes qU@›
te e a sua relação valorativa com esse objeto. A escolha dos neste caso, figurem como representantes de enunciados plc-
ineios linguisticos, segundo a concepção linguistica corrente, nos, e além disso enunciados plenos e pala)/1218 1S0l21Cl-35 P0'
é determinada apenas por consideraçöes semântico-objetais dem conservar a sua expressão alheia mas nao podem ser ffffl-
centuados (em termos de ironia, de indignH<;H0› f@Vef€nC1a=

56 Mikhail Bakhtin
Os géneros do discurso 57
etc.), os enunciados dos outros podem ser recontados com posta ãquilo que ja foi dito sobre dado objeto, sobre dada
um variado grau de reassimilação; podemos simplesmente questão, ainda que essa responsividade não tenha adquirido
nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido, uma nítida expressão externa: ela ira manifestar-se na tona-
podemos pressupô-los em siléncio, a atitude responsiva po- lidade do sentido, na tonalidade da expressão, na tonalida-
de refletir-se somente na expressão do próprio discurso _ na de do estilo, nos matizes mais sutis da composição. O enun-
seleção de recursos linguisticos e entonaçöes, determinada ciado é pleno de tonalidades díalógicas, e sem levá-las em
não pelo objeto do próprio discurso mas pelo enunciado do tonta é iinpossivel entender até o fiin o estilo de uin enuncia-
outro sobre o mesmo objeto. Este caso é tipico e iinportan- do. Porque a nossa própria ideia _ seja filosófica, cientifica,
te: muiïo amiúde a expressão do nosso enunciado é determi- .irtística _ nasce e se forina no processo de interação e luta
nada nao so _ e vez por outra não tanto _ pelo çomeúdo com os pensainentos dos outros, e isso não pode deixar de
semântico-objetal desse enunciado, mas também pelos enun- encontrar o seu reflexo também nas forinas de expressão ver-
ciados do outro sobre o mesmo tema, aos quais responde- balizada do nosso pensainento.
mos, com os quais polemizamos; através deles se determina Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro,
também o destaque dado a determinados elementos, as repe- .ipreendidas e destacadas coino do outro e introduzidas no
tiçöes e a escolha de expressöes mais duras (ou, ao contrario, enunciado, inserein nele algo que é, por assiin dizer, irracio-
inais brandas); determina-se também o tom. A expressão do nal do ponto de vista da lingua coino sistema, particularmen-
enunciado nunca pode ser entendida e explicada até o fim le- ie do ponto de vista da siiitaxe. As relaçöes recíprocas entre
vando-se em conta apenas o seu conteúdo centrado no obje- o discurso introdiizido do outro e o restante _ o meu discur-
to e no sentido. A expressão do enunciado, em maior ou me- so _ não tém qualquer analogia com nenhuma relação sin-
nor grau, responde, isto é, exprime a relação do falante com iatica no ambito de uin conjunto sintatico simples e coinple-
os enunciados do outro, e não só a relação com os objetos \o, nein com as relaçöes, centradas no objeto e no sentido,
do seu enunciado.” As forinas das atitudes responsivas, que entre totalidades sintaticas grainaticalinente desconexas e iso-
preenchem o enunciado, são sumamente diversas e até hoje ladas no ambito de iiin dado enunciado. Ein compensação,
não foram objeto de nenhum estudo especial. Essas formas, essas relaçöes são análogas (mas, evidentemente, não idénti-
e claro, diferenciam-se acentuadaineiite ein função da distin- cas) às relaçöes das réplicas cio diálogo. A entonação que iso-
ção entre aqueles campos da atividade huinana e da vida nos la o discurso do outro (inarcado por aspas no discurso escri-
quais ocorre a comunicação discursiva. Por mais monológi- to) é um fenômeno de tipo especial: é uma espécie de alter-
co que seja o enunciado (por exeinplo, uma obra cientifica iiância dos sujeitos do discurso transferida para o interior do
ou filosófica), por mais concentrado que esteja no seu obje- enunciado. Os limites criados por essa alternancia são ai en-
to, não pode deixar de ser em certa medida também uma res- fraquecidos e especificos: a expressão do falante penetra atra-
vés desses limites e se dissemina no discurso do outro, que
podemos transmitir em tons irônicos, indignados, simpáti-
cos, reverentes (essa expressão é transmitida com o auxilio
lfi , .F
de uma entonação expressiva _ no discurso escrito é como
A entonação ef particularmente
, 4, »
sensivel . _
e seinpre iiidica o con-
ÍCXÍU.
se a adivinhássemos e a sentissemos graças ao contexto que

Os géneros do discurso 59
58 iviiiaiaii Ba1<imn
emoldura o discurso do outro _ ou pela situação extraver- ineira vez, e um determinado falante não é o primeiro a fa-
bal _ ela sugere a expressão correspondente). Assim, o dis- lar sobre ele. O objeto, por assiin dizer, já está ressalvado,
curso do outro tem uma dupla expressão: a sua, isto é, a contestado, elucidado e avaliado de diferentes modos; nele
alheia, e a expressão do enunciado que acolheu esse discur- se cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vista,
so. Tudo isso se verifica, antes de tudo, onde o discurso do visöes de mundo, correntes. O falante não é um Adão bibli-
outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha força de co, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados,
um enunciado pleno) é citado textualmente e destacado com aos quais dá nome pela primeira vez. As concepçöes simpli-
nitidez (entre aspas): aqui se ouvein com nitidez os ecos da licadas sobre coinunicação como fundamento lógico-psico-
alternancia dos sujeitos do discurso e das suas mútuas rela- logico da oração nos lembrain obrigatoriamente esse Adão
çöes dialógicas. Contudo, ein qualquer enunciado, quando initico. Na alma do falante ocorre a combinação de diias con-
estudado com inais profundidade em situaçöes concretas de cepçöes (ou, ao contrario, o desmembramento de uma con-
coinunicação discursiva, descobriinos toda uma série de pa- cepção complexa ein duas simples), e ele profere oraçöes co-
lavras do outro seinilatentes e latentes, de diferentes graus de ino as seguintes: “O sol brilha”, “A grama é verde”, “Eu es-
alteridade. Por isso o enunciado é representado por ecos co- tou sentado", etc. Semelhantes oraçöes, é claro, são perfeita-
ino que distantes e mal percebidos das alternancias dos sii- mente possiveis; contudo, ou são justificadas e assimiladas
jeitos do discurso e pelas tonalidades dialógicas, enfraqueci- pelo contexto de uin enunciado pleno, que as incorpora à co-
das ao extremo pelos liinites dos enunciados, totalmente per- inunicação discursiva (na qualidade de réplica do diálogo, de
meáveis expressão do autor. O enunciado se mostra uin fe- iiin artigo de divulgação cientifica, de palestra de um profes-
nômeno muito complexo e inultiplanar se não o examinamos sor na sala de aula, etc.), ou, se são enunciados acabados, a
isoladainente e só na relação com o seu autor (o falante), mas situação do discurso os justifica de certo modo e os inclui na
como um elo na cadeia da comunicação discursiva e da rela- cadeia da comunicação discursiva. Em realidade _ repeti-
ção com outros enunciados a ele vinculados (essas relaçöes mos _, todo enunciado, além do seu objeto, sempre respon-
costuinavam ser descobertas não no plano verbalizado _ es- de (no sentido ainplo da palavra) de uma forina ou de outra
tilistico-coinposicional _ mas tão somente no plano seman- aos enunciados do outro que o antecederam. O falante não
tico-objetal). é uni Adão, e por isso o próprio objeto do seu discurso se tor-
Cada enunciado isolado é uin elo na cadeia da comuni- na inevitavelinente uin palco de encontro com opiniöes de in-
cação discursiva. Ele tein liinites precisos, deterininados pe- terlocutores iinediatos (na conversa ou na discussão sobre al-
la alternancia dos sujeitos do discurso (dos falantes), mas no guin aconteciinento cotidiano) ou com pontos de vista, vi-
ambito desses limites o eminciado, como a inônada de Leib- söes de mundo, correntes, teorias, etc. (no campo da comu-
niz, reflete o processo do discurso, os enunciados do outro, nicação cultural). Uma visão de mundo, uma corrente, um
e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (as vezes os mais ponto de vista, uma opinião sempre téin uma expressão ver-
imediatos, e vez por outra até os muito distantes _ os cain- balizada. Tudo isso é discurso do outro (ein forina pessoal
pos da comunicação cultural). ou impessoal), e este não pode deixar de se refletir no enun-
Qualquer que seja o objeto do discurso do falante, ele ciado. O enunciado está voltado não só para o seu objeto
não se torna objeto do discurso em um enunciado pela pri- mas também para os discursos do outro sobre ele. No entan-

60 Mikhail Bakhtin ()s géneros do discurso 61


to, até a mais leve alusao ao enunciado do outro imprime no superior, uma pessoa íntima, um estranho, etc.; ele também
discurso uma reviravolta dialógica, que nenhum tema cen- pode ser um outro totalmente indefinido, não concretizado
trado meramente no objeto pode impriinir. A relação com a (em toda sorte de enunciados monológicos de tipo emocio-
palavra do outro difere essencialmente da relação com o ob- nal). Todas essas modalidades e concepçöes do destinatario
jeto, mas ela sempre acompanha esse objeto. Reitereinos: o sao determinadas pelo campo da atividade humana e da vi-
enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e da a que tal enunciado se refere. A quem se destina o enun-
não pode ser separado dos elos precedentes que o determi- ciado, como o falante (ou o que escreve) percebe e represen-
nam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes ta para si os seus destinatarios, qual é a força e a influência
responsivas diretas e ressonâncias dialógicas. deles no enunciado _ disto dependem tanto a composição
Entretanto, o enunciado não esta ligado apenas aos elos quanto, particularmente, o estilo do enunciado.
precedentes mas também aos subsequentes da comunicação Cada gênero do discurso em cada campo da comunica-
discursiva. Quando o enunciado é criado por um falante, tais ção discursiva tem a sua concepção típica de destinatario que
elos ainda nao existem. Desde o inicio, porém, o enunciado o determina como gênero.
se constrói Ievando em conta as atitudes responsivas, ein prol O destinatario do enunciado pode, por assim dizer, coin-
das quais ele, em essência, Ó criado. O papel dos outros, pa- cidir pessoalmente com aquele (ou aqueles) a quem respon-
ra quem se constrói o enunciado, é excepcionalmente gran- de o enunciado. No dialogo cotidiano ou na correspondên-
de, como ja sabemos. ja dissemos que esses outros, para os cia, essa coincidencia pessoal é comum: aquele a quem eu res-
quais o meu pensamento se torna um pensamento real pela pondo é o meu destinatario, de quem, por sua vez, aguardo
primeira vez (e deste modo também para mim mesmo), não resposta (ou, em todo caso, uma ativa compreensão respon-
são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunica- siva). Mas nos casos de tal coincidência pessoal uma pessoa
ção discursiva. Desde o inicio o falante aguarda a resposta desempenba dois diferentes papéìs, e essa diferença de papéis
deles, espera uma ativa compreensao responsiva. como se e justamente o que importa. Porque o enunciado daquele a
todo o enunciado se construísse ao encontro dessa resposta. quem eu respondo (com o qual concordo, ao qual faço obje-
Um traço essencial (constitutivo) do enunciado e a pos- cão, o qual executo, levo em conta, etc.) ia esta presente, a
sibilidade de seu r1'irecíom1me†zto a alguém, de seu efzdereça- sua resposta (ou compreensão responsiva) ainda esta por vir.
1m>m^o. Ã diferenca das unidades significativas da lingua _ Ao construir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira
palavras e oraçöes -, que são impessoais, de ninguem e a ativa; por outro lado, procuro antecipa-lo, e essa resposta an-
ninguém estão enderecadas, o enunciado tem autor (e, res- tecipavel exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o
pectivamente, expressão, do que ja falamos) e destinatario. meu enunciado (dou resposta pronta as objeçöes que preve-
Esse destinatario pode ser um participante-interlocutor dire- io, apelo para toda sorte de subterfúgios, etc.). Ao falar, sem-
to do diálogo cotidiano, pode ser uma coletividade diferen- pre levo em conta o campo aperceptivo da percepção do meu
ciada de especialistas de algum campo especial da comunica- discurso pelo destinatario: até que ponto ele esta a par da si-
ção cultural, pode ser um público mais ou menos diferencia- tuação, dispöe de conhecimentos especiais de um dado cam-
do, um povo, os contemporáneos, os correligionarios, os ad- po cultural da comunicação; levo em conta as suas concep-
versarios e inimigos, o subordinado, o chefe, um inferior, um cöes e convicçöes, os seus preconceitos (do meu ponto de vis-

62 Mikhail Bakhtin Os géneros do discurso 63


F.
l
ta), as suas simpatías e antipatias - tudo isso ira determinar ca, mas assim mesmo evidente da influência do destinatario
li
a sua ativa compreensão responsiva do meu enunciado ele. sobre a construção e o estilo do enunciado.27 lil
ilil
Essa consideração ira determinar também a escolha do gêne- V
Matizes mais sutis do estilo são determinados pela ín-
ro do enunciado e a escolha dos procedimentos composicio- dole e pelo grau de proximidade pessoal do destinatario em
nais e, por último, dos meios linguisticos, isto é, o estilo do relação ao falante nos diversos géneros familiares de discur-
enunciado. Por exemplo, os gêneros da literatura popular so, por um lado, e íntimos, por outro. A despeito de toda a il
ill
científica são endereçados a um determinado círculo de lei- iinensa diferença entre os gêneros familiares e íntimos (e, res-
tores dotados de um determinado fundo aperceptivo de com- pectivamente, os estilos), eles percebem igualmente o seu des-
preensão responsiva; a outro leitor esta endereçada uma li- tinatario em maior ou menor grau fora do ambito da bierar-
teratura didatica especial e a outro, inteiramente diferente, quia social e das convençöes sociais, por assiin dizer, “sem
trabalhos especiais de pesquisa. Em todos esses casos, a con- classes”. Isto gera uma franqi/reza especial do discurso (que l,i
sideração do destinatario (e do seu campo aperceptivo) e a nos estilos familiares chega às vezes ao cinisino). Nos estilos if
sua influência sobre a construção do enunciado são muito iiitimos isto se traduz no empenho voltado como que para a
simples. Tudo se resume ao volume dos seus conhecimentos plena fusão do falante com o destinatario do discurso. No
especiais. discurso familiar, graças à supressão dos vetos ao discurso e
Em outros casos, a questao pode ser bein mais comple- das convençöes, e possível o enfoque especial, não oficial e
xa. A consideração do destinatario e a antecipação da sua livre da realidade.” Por isso, na época do Renascimento, os
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atitude responsiva são frequentemente amplas, e inserem uma ;1,êiieros e estilos familiares puderam desempenhar uin papel I
original drainaticidade interior no enunciado (em algumas grande e positivo na causa da destruicão do quadro oficial
modalidades de dialogo cotidiano, ein cartas, em géneros au- medieval do mundo; também ein outros períodos em que se
tobiograficos e confessionais). Esses fenômenos são de uma colocava a tarefa de destruir os estilos e concepcoes de mun-
índole aguda, porém mais exterior nos géneros retóricos. do oficiais, que se haviam petrificado e tornado convencio-
A posição social, o título e o peso do destinatario, refle- nais, os estilos familiares ganliam uma grande importancia
l
tidos nos enunciados dos campos cotidianos e oficiais, são de
l
íiidole especial. Nas condiçöes de um regime de classes e par-
ticularmente de castas, observa-se uma excepcional diferen- 1' Lcmbrciiios uma observacão de (iogol a esse respeito; "lil impos-
ciação dos géneros do discurso e dos respectivos estilos em sivel contar todos os mati'/.es e sutilezas do nosso apelo... lìiitrc nos exis-
tem uns s-.ibicliòes que falam com fazeiideiros doiios de du/,entos servos de
função do título, da categoria, da patente, do peso da fortu-
iim modo inteiramente diferente daquele coni que falam com fat/,endeiros
na e do peso social, da idade do destinatario e da respectiva donos de rrezentos scrvos, e com estes donos de trezentos não irão falar
posição do próprio falante (ou de quem escreve). Apesar da do mesmo ieito com que falam com aqueles que possuem quinlientos, e l
riqueza da diferenciação tanto das formas basilares quanto coni estes possuidores de quiiilieiitos não irão falar do mesmo jeito com l
iI
das miances, esses fenôinenos são de índole padronizada e que falam com os que possuem oitocentos; em suma, mesmo que apare-
l
cam donos de uni milhão de servos, vão encontrar matizes para estes” (A1-
externa: não são capazes de inserir uma dramaticidade inte-
/rzas mortizs, cap. 3).
rior minimamente profunda no enunciado. São interessantes
apenas como exemplos da expressão, ainda que bastante tos-
2* A fran ueza da P ra 4;*a ública P ronunciada em viva voz e o ato de
chamar os objetos pelos seus próprios iiomes caracterizam esse estilo. i
64 Mikhail Bakhtin Os generos do discurso 65

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na literatura. Alem disso, a familiarização dos estilos abre ponto de vista do proposto fundo aperceptível do destinata-
acessos para a literatura a camadas da lingua que até então iio do discurso, mas esse fundo é levado em conta de modo
estavam sob proibicão do discurso. Até hoje a impottância i-xtremamente genérico e abstraido do seu aspecto expressi-
dos generos e estilos na história da literatura não foi suficien- io (também é ininiina a expressão do próprio falante no es-
temente valorizada. iilo objetivo). Os estilos neutro-objetivos pressupöem uma
Os generos e estilos intimos se baseiam na niaxima pro- especie de triunfo do destinatario sobre o falante, uma uni-
xiinidade interior do falante com o destinatario do discurso dade dos seus pontos de vista, mas essa identidade e essa
(no limite, como que na fusão dos dois). O discurso intimo é iiiiidade custain quase a pleiia recusa expressão. Cabe ob-
impregnado de uma profunda confiança no destinatario, ein servar que o carater dos estilos neutro-objetivos (e, coiise-
sua simpatía _ na sensibilidade e na boa vontade da sua qiientemente, da concepção qiie llies serve de base) é bastan-
compreensao responsiva. Nesse clima de profunda confian- te diverso ein funcão da diferenca de campos da coiiiuiiica-
ca, o falante abre as suas profundezas interiores. Isso deter- cai) discursiva.
inina a expressividade especifica e a franqueza interior des- A concepção do destinatario do discurso (coino o sente
ses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do e imagina o falante ou quem escreve) ó uma questão de enor-
discurso familiar). nie importancia na historia da literatura. Cada época, cada
Os generos e estilos familiares e intimos (até hoje inui- corrente literaria e estilo ficcional, cada genero literario no
to mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente cla- .iinbito de uma época e cada corrente têm coino caracteristi-
ra a dependência do estilo ein face de uma determinada sen- cas suas concepcöes específicas de destinatario da obra lite-
sacão e compreensão do destinatario pelo falante (ein face do raria, a sensacão especial e a compreensão do seu leitor, ou-
seu enunciado e da antecipacão da sua ativa coinpreensão vinte, público, povo. O estudo liistórico das mudaiicas des-
responsiva pelo falante. Nesses estilos revelain-se com espe- sas concepcöes é uma tarefa interessante e iinportaiite. Mas
cial clareza a estreiteza e o equivoco da estilística tradicional, para sua elaboracão eficaz faz-se necessaria uma cla reza teó-
qiie procura compreender e definir o estilo apenas do ponto rica na própria colocacão do problema.
de vista do conteúdo do objeto, do sentido do discurso e di (Íabe observar que, paralelainente aquelas sensacöes e
relação expressiva do falante com esse conteúdo. Sem levar concepcöes reais do seu destinatario, qiie efetivainente deter-
ein conta a relaçao do falaiite com o outro e seus enunciados ininain o estilo dos enunciados (obras), na liistória da litera-
(presentes e antecipaveis), é iinpossivel coinpreeiider o géne- tura existein ainda formas convencionais ou seiniconvencio-
ro ou estilo do disciirso. nais de apelo aos leitores, ouvintes, descendentes, etc., assiin
Contudo, também os clianiados estilos neutros ou obje- como paralelamente ao autor real existem imagens conven-
tivos de exposicao, concentrados ao iiiaxiino ein seu objeto cioiiais e seinicoiivencioriais de autores testas de ferro, edito-
e, pareceria, estranhos a qualquer olhada repetida para o oii- res, narradores de toda espécie. A imensa inaioria dos gêne-
tro, envolvein, apesar de tudo, uma deterininada concepção ros literarios é constituida de generos secundarios, comple-
do seu destinatario. Tais estilos objetivo-neutros produzem xos, formados por diferentes gêneros primarios transforma-
uma selecão de ineios linguisticos não só do ponto de visti
k Ä x ( dos (réplicas do dialogo, relatos cotidianos, cartas, diarios,
da sua adequacao ao objeto do disciirso, mas também do protocolos, etc.). Tais géneros secundarios da complexa co-

66 Mikliail Biikhtiii Os generos do discurso 67


municação cultural, em regra, representam formas diversas versos padröes e modificaçöes das oraçöes). Entretanto, eles
de comunicação discursiva primaria. Dai nascein todas essas so atingem o direcionainento real na totalidade de um enun-
personagens literarias convencionais de autores, narradores ciado concreto. E evidente que a expressão desse direciona-
e destinatarios. Entretanto, a obra mais complexa e pluricom- mento real nunca se esgota nesses recursos linguisticos espe-
posicional do género secundario no seu conjunto (enquanto ciais (gramaticais). Eles podem nein existir mas, neste caso,
conjunto) é o enunciado único e real, que tem autor real e o enunciado pode refletir de modo muito acentuado a in-
destinatarios realmente percebidos e representados por esse fluéncia do destinatario e sua atitude responsiva antecipada.
autor. A escolha de todos os recursos linguisticos é feita pelo falan-
Portanto, o direcionamento, o endereçamento do enun- te sob maior ou menor influéncia do destinatario e da sua res-
ciado, é sua peculiaridade constitutiva sem a qual não ha nein posta antecipada.
pode liaver enunciado. As varias formas tipicas de tal dire- Quando se analisa uma oração isolada, destacada do
cionamento e as diferentes concepçöes tipicas de destinata- contexto, os vestigios do direcionamento e da influéncia da
rios são peculiaridades constitutivas e determinantes dos di- resposta antecipavel, as ressonâncias dialógicas sobre os
ferentes géneros do discurso. enunciados que antecedem aos outros, os vestigios enfraque-
A diferença dos enunciados (e dos géneros do discurso), cidos da alternancia dos sujeitos do discurso, que sulcaram
as unidades significativas da lingua - a palavra e a oração de dentro o enunciado, perdein-se, obliteram-se, porque tu-
por sua própria natureza são desprovidas de direcionainen- do isso é estranlio à natureza da oração coino iinidade da lin-
to, de endereçamento - nao são de ninguém e a ninguém se gua. Todos esses fenômenos estão ligados ao todo do emin-
referem. Adeinais, em si mesmas carecem de qualquer rela- ciado, e deixain de existir para ele onde esse todo desapare-
ção com o enunciado do outro, com a palavra do outro. Se ce do campo de visão do analisador. Nisto reside uma das
uma palavra isolada ou iiina oração esta endereçada, direcio- causas da ja referida estreiteza da estilística tradicional. A
nada, temos diante de nós uin enunciado acabado, constitui- analise estilistica, que abrange todos os aspectos do estilo, só
do de uina palavra ou de uma oração, e o direcionainento e possivel coino analise de uin enunciado pleno e só naquela
pertence não a elas coino unidades da lingua, mas ao enun- cadeia da comunicação discursiva da qual esse enunciado é
ciado. Envolvida pelo contexto, a oração só se incorpora ao uin elo inseparavel.
direcionamento através de uin enunciado pleno como siia
parte constituinte (eleinento).2`)
A lingua como sistema tem uma iinensa reserva de re-
cursos puramente linguisticos para exprimir o direcionamen-
to formal: recursos lexicais, morfológicos (os respectivos ca-
sos, pronomes, formas pessoais dos verbos), sintaticos (di-

lii ()bserveinos que os tipos exclainatorios e indutivos de oracoes


costimiam figurar coino eniinciados acabados (iios respectivos géneros do
disciirso).

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68 Mikliail Bakhtin ` Os géneros do discurso 69 il `

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