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Os gêneros do discurso
Os generos do discurso ll
guagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseoló- volumes, a ordem militar padronizada e até obrigatória por
gicos e gramaticais da lingua, mas, acima de tudo, por sua sua entonação e uma obra lirica profundamente individual,
construção composicional. Todos esses tres elementos - o etc. A heterogeneidade funcional, como se pode pensar, tor-
conteúdo temático, o estilo, a construção composicional _ na os tragos gerais dos generos discursivos demasiadamente
estao indissoluvelmente ligados no coøzjunto do enunciado e abstratos e vazios. A isto provavelmente se deve o fato de que
são igualmente determinados pela especificidade de um cam- a questão geral dos generos discursivos nunca foi verdadei-
po da comunicação. Evidentemente, cada enunciado parti- "É tão
amplo que
ramente colocada. O que mais se estudava eram os generos
cular é individual, mas cada campo de utilização da lingua não literarios. Mas da Antiguidade aos nossos dias eles foram es-
elabora seus ti/Jos rclatíz/ar14cntc está:/cís de enunciados, os conseguiria
estudar"
tudados num corte da sua especificidade artístico-literaria,
quais denominamos generos do discurso. nas distincöes diferenciais entre eles (no âmbito da literatu-
g A riqueza e a diversidade dos generos do discurso são ra) e não como determinados tipos de enunciados, que são
mhnitas porque são inesgotaveis as possibilidades da multi- diferentes de outros tipos mas tem com estes uma naturcza
facetada atividade humana e porque em cada campo dessa verbal (linguistica) comum. Quase não se levava em conta a
atividade vem sendo elaborado todo um repertorio de gene- questão geral do enunciado e dos seus tipos. Da Antiguida-
ros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que tal de até hoje, estudarain-se os generos retóricos (demais, as
campo se desenvolve e ganlia complexidade. (Iabe salientar épocas subsequentes pouco acrescentaram a teoria amiga),
em especial a extrema PJetcrr›gc1zeidac1'€ dos generos do dis- ai ia se deu mais atencão a natureza verbal desses generos co-
curso (orais e escritos). De fato, também devemos incluir nos ino enunciados, a tais moinentos, por exemplo, como a rela-
generos do discurso as breves réplicas do dialogo do cotidia- cão com o ouvinte e sua influencia sobre o enunciado, sobre
no (saliente-se que a diversidade das modalidades de dialogo a conclusibilidade verbal especifica do enunciado (21 diferen-
cotidiano Ó extraordinariamente grande em funcão do seu te- ca da conclusibilidade do pensamento), etc. Ainda assim,
ma, da situacao e da composicão dos participantes), o rela- também ai a especificidade dos generos retóricos (jurídicos,
to cotidiano, a carta (ein todas as suas diversas formas), o co- politicos) encobria a sua nature'/ia linguistica geral. Por últi-
mando militar lacônico padroni'/ado, a ordem desdobrada e mo, estudaram-se também os generos discursivos do cotidia-
detalbada, o repertorio bastante vario (padroni/.ado na maio- no (predominanteinente as replicas do dialogo cotidiano) e,
ria dos casos) dos documentos oficiais e o diversificado uni- ademais, precisamente do ponto de vista da linguistica geral
verso das manifestacöes publicisticas (no amplo sentido do (na escola de Saussure,l em seus adeptos modernos _ os es-
termo: sociais, políticas); mas ai também devemos incluir as
variadas formas das nianifestaçöes cientificas e todos os ge-
l () fundamento da doutrina de Saussure é a distincão entre lingua
neros literarios (do proverbio ao romance de múltiplos volu-
(/11 lmigzøe) como sistema de signos e forinas interligadas, que determina
mes). Pode parecer que a heterogeneidade dos generos dis- normativamente cada ato particular de fala e é o objeto especifico da lin-
cursivos é tão grande que não ha nein pode haver um plano guistica, e fala (la ƒmrole) como emprego individual da lingua. Bakhtin ana-
único para o seu estudo: porque, neste caso, em um plano do lisou a doutrina de Saussure no livro Marxismo e filosofirz da liøzguage/-11
(Leningrado, Pribói, l929) como uma das duas correntes centrais do pen-
estudo aparecem fenómenos sumamente heterogeneos, como
samento linguistico-filosófico (como corrente do “obietivismo abstrato”)
as réplicas monovocais do cotidiano e o romance de muitos das quais ele separa a sua teoria do enunciado (cf. V. N. Volóchinov, Mar-
acabainento
V _ `
, de tipos ~ daf ielacao
- « -f do falante 1 . _
com outros par-
Iticipantes da comunicaçao discursiva _ com os ouvintes, os
eitores, os parceiros, o discurso do outro, etc. O estilo inte- '” (Ílassilicacöes igualinente pobres, vagas e sem uin fundamento bein
gra a unidade de genero do enunciado como seu elemento pensado dos estilos de linguagein são apresentadas por A. N. Gvózdiev em
Isto nao significa, evidentemente, que o estilo de linguagem seu livro Ensaios de estilo da lingua russa (Ólcberlzi ¡zo sfílísti/ee riisskouo
yazí/ui, Moscou, l95l, pp. 13-5). Essas classificaçöes se baseiain numa as-
nao possa se tornar objeto de um estudo especial indepen-
similação acritica das nocöes tradicionais de estilos de linguagem.
Os generos do discurso 21
20 Mikbail Bakhtin
Campo da gramatica, outros, ao campo da estilística. Um de- 2.. O ENUNCIADO COMO UNIDADE DA COMUNICAQAO
les e o sintagma. l)1SCURSIVA. DIFERENQA ENTRE ESSA UNIDADE E AS
d. Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem uNiDADEs DA LÍNGUA (PALAvRAs E oRAçoEs)
e ivergem em qualquer fenomeno concreto de linguagem; Se
0 examm'¿Amos apenas f ~ no sistema
K *
da lingua -
estamos diante A linguistica do século XIX, a começar por Wilhelm
de um fenomeno gramatical, mas se o examinamos no con- Humboldt, sein negar a função comunicativa da linguagem,
junto de um enunciado individual ou do genero discursivo ja procurou coloca-la em segundo plano, como algo secunda-
estainos diante de um fenômeno estilistico , _ Porque L1 própri ¿1 rio; promovia-se ao primeiro plano a função de formação do
escolha deuma determinada forma gramatical pelo falante é pensamento, independente da cornunicação. Dai a fainosa
uin ato estilistico. Mas esses dois pontos de vista sobre o mes fórinula de Humboldt: “Sem fazer nenhuma mencão neces-
mo fenómeno concreto da lingua não devein ser iinpenetri sidade da comunicação entre os homcns, a lingua seria uma
veis_enti('ie si, mas siinplesinente se substituirein de forina ine- condicão indispensavel do pensainento para o hoinem até
c'1nic/1
~ _ « ¬ ev' _ t11do,.porem,' ¬
combinar - . __se organicamcnte
, -_, Á (na sua mesmo na sua eterna solz'dão”.*
majsdprecisa distincão inetodológica) com base na unidade Outros, por exemplo os partidarios de Vossler, coloca-
ca o fcgomcno da lingua. So uma concepcao profunda da vain ein priineiro plano a chamada função expressiva. A des-
naturezt
I ›
1 o cnunci ~'¿ido e das . ~ pcculiaridadcs
_. _ '. ' . ,_ dos_ generos ^ -
dis- peito de toda a diferenca na concepção dessa função por teó-
cursiiíos pode assegurar a solucão correta dessa coinplexa ricos particulares, sua essencia se resume à expressão do
questao metodologica. mundo individual do falante. A lingua é deduzida da neces-
O estudo da natureza dos enunciados e dos generos dis- sidade do hoinein de autoexpressar-se, de objetivar-se. A es-
cursivos e, segundo nos parece, de importancia fundamental sencia da liiiguagem nessa ou naquela forina, por esse ou
para superar as concepcöes simplificadas da vida do discur- aquele caininho, se reduz criacão espiritual do individuo.
so
i , dolc*hiimado ' “ fluxo discursivo
'~~ ¬¬ , da comunicacao,
_ - _ _- etc., Propunham-se e ainda se propöem variacöes uin tanto dife-
c aque/as concepcoes que ainda doininain a iiossa linguisti- rentes das funcöes da linguagein, mas permanece caracterís-
ca. Alem do inais, o estudo do enunciado coino unidade rea/ tico, se não o pleno desconheciinento, ao menos a subestima-
da eornmzzcaçao díscnrsíz/a permitira coinpreender de modo cão da função coinunicativa da linguagem; a linguagein e
mais correto também a natureza das unidades da lingua (en- considerada do ponto de vista do falante, coino que de mn
quanto sistema) _ as palavras e oracöes. falante sem a relação necessáría com outros participantes da
11 para essa questão mais geral que passainos agora. coinunicacão discursiva. Se era levado ein conta o papel do
outro, era apenas como papel de ouvinte que apenas coin-
preende passivamente o falante. O enunciado satisfaz ao seu
objeto (isto é, ao conteúdo do pensamento enunciado) e ao
24 Mikliail Bakhtin
Os generos do discurso 25
lante está determinado precisamente a essa compreensão ati- iiia deforma o quadro real da Comunicação discursiva, supri-
vamente responsiva: ele não espera uma compreensão passi- iiiindo dela precisamente os momentos mais substanciais.
va, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em Hesse modo, o papel ativo do outro no processo de comuni-
voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma par- cacao discursiva sai extreinamente enfraquecido.
ticipação, uma objeção, uma execucão, etc. (os diferentes ge- O mesmo desconhecimento do papel ativo do outro no
neros discursivos pressupöem diferentes diretrizes de objeti- processo da comunicação discursiva e o empenbo em contor-
vos, projetos de discurso dos falantes ou escreventes). O em- iiar inteiramente esse processo manifestam-se no uso impre-
penho ein tornar inteligivel a sua fala é apenas o momento ciso e ambiguo de terinos coino “fala” ou “fluxo da fala”.
abstrato do projeto concreto e pleno de discurso do falante. lisses termos deliberadamente iinprecisos deveriain sempre
Ademais, todo falante é por si mesmo uin respondente em designar aquilo que é subinetido a uma divisão ein unidades
maior ou menor gra u: porque ele não é o primeiro falante, o da lingua, concebidas como seus cortes: unidades fônicas (fo-
primeiro a ter violado o eterno silencio do universo, e pres- iiema, sílaba, cadencia da fala) e significativas (oracão e pa-
supöe não só a existencia do sistema da lingua que usa mas lavra). “O fluxo da fala se desintegra...”, “nossa fala se divi-
também de alguns enunciados antecedentes _ dos seus e de..." _ é assiin que nos cursos gerais de linguistica e gra-
alheios _ coin os quais o seu enunciado entra nessas ou na- mática, bein como nos estudos especiais de fonética e lexico-
quelas relacöes (baseia-se neles, polemi'/.a com eles, simples- logia, costuinain introdii'/.ir as partes dedicadas ao estudo das
mente os pressupöe já coiihecidos do oiivinte). Cada enun- respectivas unidades da lingua. lnfelizinente, até a nossa gra-
ciado é uin elo na corrente complexaineiite organizada de oii- mática acadeinica recentemente lançada einprega o mesmo
tros eii unciados. terino indefinido e ainbíguo “nossa fala”. Veja-se coino se in-
Desse modo, aq uele ouvinte que, com sua compreensão trodiiz a respectiva parte da fonética: “Nossa fala se divide
passiva, é representado coino parceiro do falaiite nos dese- antes de tudo ein oraçöes, que por sua vez podem decoinpor-
nlios esqiieinaticos das linguísticas gerais, não corresponde -se em coinbinacöes de palavras e palavras. As palavras se di-
ao participante real da coinunicacão discursiva. Aquilo que videin nitidamente ein unidades fônicas mínimas _ as síla-
o esquema representa é apenas uin momento abstrato do ato bas... As sílabas se dividein ein sons particulares da fala ou
pleno e real de compreensão ativaineiite responsiva, que ge- foneinas...”."
ra a resposta (a que precisamente visa o falante). Por si ines- O que vein a ser “fluxo discursivo”, “nosso discurso”?
ina, essa abstracño cientifica é perfeitamente justificada, mas Qual é a sua cxtensão? Terão principio e fiin? Se tem dura-
sob uma condiçño: a de ser nitidainente coinpreeiidida ape- cão indefinida, que corte toinamos para dividi-lo ein unida-
nas como abstracão e não ser apresentada coino fenômeno des? A respcito de todas essas questöes reiiiain a plena in-
pleno concreto e real; caso contrario, ela se transforma ein definicão e a reticencia. A palavra indefinida ríétch (“fala,
invenção. É exatamente o que acontece na linguistica, uma |discursoI”), que pode designar linguagem, processo de dis-
vez que esses esquemas abstratos, mesmo não sendo apresen-
tados diretamente coiiio reflexo da comunicação discursiva
real, tampouco são completados por alusöes a uma maior
complexidade do fenómeno real. Como resultado, 0 esque-
ll Gmmrítíca da língim russa, Moscou, 1952, p. 5 I.
7_
que suscita resposta, em relação à qual se pode assumir uma essa a natureza dos generos secundarios.” Entretanto, em to-
posição responsiva. Essa conclusibilidade especifica do enun- das essas manifestaçöes, as relaçöes entre generos primarios
ciado será objeto de nosso exame posterior (trata-se de um reproduzidos, ainda que eles estejain no âmbito de um enun-
dos traços fundainentais do enunciado). Ao mesmo tempo, ciado, não se prestam à gramaticalização e conservam a sua
as replicas são interligadas. Mas aquelas relaçöes que exis- natureza especifica essencialmente distinta da [natureza] das
tein entre as replicas do dialogo _ as relacöes de pergunta- relacöes entre as palavras e oraçöes (e outras unidades da lin-
-resposta, afirinação-objeção, afirinacão-concordância, pro- gua _ grupos de palavras, etc.) dentro do enunciado.
posta-aceitação, ordem-execução, etc. _ são iinpossiveis en- Aqui, com base no material do diálogo e das suas repli-
tre unidades da lingua (palavras e oracöes), quer no sisteina cas, e necessário abordar previamente o probleina da oração
da lingua (no corte vertical), quer no interior do enunciado como unidade da língua naquilo que a diferencia do enun-
(iio corte horizontal). lìssas relacöes especificas entre as re- ciado coino unidade da Comunicação discursiva.
plicas do dialogo são apenas inodalidades das relacöes espe- (A natureza da oração e uma das questöes mais comple-
cificas entre os enunciados plenos no processo de coinunica- xas e dificeis na linguistica. A luta de opiniöes em torno des-
ção discursiva. lìssas relacöes só são possiveis entre enuncia- sa questão continua em nossa ciencia até os dias de hoje. Não
dos de diferentes sujeitos do discurso, pressupöein outros (ein e tarefa nossa, evidentemente, desvendar essa questão em to-
relacão ao falante) membros da comunicacão discursiva. Tais da a sua complexidade; nossa intencão e abordar apenas um
relacöes entre enunciados plenos não se prestain ã gramati- aspecto, mas tal aspecto nos parece de importância substan-
caliyxacão, uma vez que, reiteremos, não são possiveis entre cial para toda a questão. Para nós importa definir coin pre-
unidades da lingua, e isso tanto no sistema da lingua quanto cisão a relacão da oracão com o enunciado. Isto ajudará a
no interior do enunciado. elucidar com inais clareza o enunciado, de um lado, e a ora-
Nos generos discursivos secundarios, particularinente cão, de outro.)
nos retóricos, encontramos fenómenos que parecein coiitra- Posteriormente trataremos dessa questão, por ora ob-
riar essa iiossa tcse. Muito ainiúde o falante (ou quem escre- servamos apenas que os liinites da oracão enquanto unidade
ve) coloca questöes no ambito do seu enunciado, responde a da lingua nunca são deterininados pela alternãncia de sujei-
elas inesinas, faz objeçöes a si inesino e refuta suas próprias tos do discurso. Essa alternãncia, que emoldura a oracão de
objecöes, etc. l\/las esses fenôinenos não passain de represen- ainbos os aspectos, converte-a em uin enunciado pleno. Es-
tacão convencional da comunicacão discursiva nos generos sa oração assume novas qualidades e e percebida de modo
primarios do discurso. Essa representacão caracteriza os ge- inteirainente diverso de coino e percebida a oração einoldu-
neros retóricos (lato sensu, incluiiido alguiiias inodalidades rada por outras oraçöes no contexto de uin enunciado desse
de popularizacöes cientificas), contudo todos os outros gene- ou daquele falante. A oracão e uin pensainento relativamen-
ros secundarios (ficcionais e cientificos) usam diferentes for- te acabado, correlacionado de forma iinediata com outros
mas de introdução na construção do eiiunciado, dos generos pensamentos do mesmo falante no conjunto do seu enuncia-
de discurso primarios e das relaçöes entre eles (note-se que
aqui eles sofrem transformaçöes de diferentes graiis, uma vez
que não ha uma alternância real de sujeitos do discurso). É li As cicatrizes dos liinites estão nos generos secundarios.
Os generos do discurso 97
de discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha
lingua e as formas tipicas dos enunciados, isto é, os genetos
de certo genero de discurso. Essa escolha e deterininada pe-
do discurso, chegam à nossa experiencia e à nossa conscien-
la especificidade de uin dado campo da comunicação discur-
cia juntas e estreitamente vinculadas. Aprender a falar signi-
siva, por consideraçöes semantico-objetais (temáticas), pela
fica aprender a construir enunciados (porque falamos por
situação concreta da comunicação discursiva, pela coinposi-
enunciados e não por oraçöes isoladas e, evidentemente, não
cão pessoal dos seus participantes, etc. Ein seguida, a inten-
por palavras isoladas). Os generos do discurso organizam o
ção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e
iiosso discurso quase da mesma forma que o organizam as
subjetividade, é aplicada e adaptada ao genero escolhido,
formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos a moldar o
constitui-se e desenvolve-se ein determinada forina de gene-
iiosso discurso em formas de genero e, quando ouvimos o
ro. Tais generos existein sobretudo em todos os generos inais
discurso alheio, já adivinhamos o seu genero pelas primei-
variados da comunicacão oral cotidiana, iiicliiiiido o genero
ras palavras, adivinhamos certo volume (isto e, uma exten-
inais familiar e o inais iiitiino.
são aproximada do conjunto do discurso), uma determinada
Falamos apenas atraves de certos generos do discurso,
construção composicional, prevemos o fim, isto e, desde o
isto é, todos os nossos enunciados tem formas relativainente
inicio teinos a sensação do conjunto do discurso que, em se-
estaveis e tipicas de corzstrução do coizjurito. Dispomos de
guida, apenas se diferencia no processo da fala. Se os gene-
uin rico repertorio de generos de discurso orais (e escritos).
ros do discurso não existissem e nós não os dominássemos,
Em termos ,i›rátícos, nós os einpregainos de forma segura c
se tivessemos de cria-los pela primeira vez no processo do dis-
habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconliecer iii-
curso, de construir livremente cada enunciado e pelaƒpriinei-
teiramente a sua existencia. (lomo o _]ourdain de Moliere,
ra vez, a comunicação discursiva seria quase iinpossivel. 1
que falava ein prosa sem que disso siispeitasse, nos falamos
As formas do genero, nas quais moldamos o nosso dis-
por generos diversos sem siispeitar de sua existencia. Ate ines-
curso, diferein substancialmente, e claro, das forinas da lin-
mo no bate-papo inais descontraido e livre moldamos o nos-
gua no sentido da sua estabilidade e da sua coercão (norma-
so discurso por certas foriiias de genero, vezes padroni'/.a-
tividade) para o falante. Em linhas gerais, elas são bem mais
das e estereotipadas, as vezes mais flexiveis, plasticas e cria-
flexiveis, plasticas e livres que as forinas da lingua. Também
tivas (a coinunicação cotidiana tainbein dispöe de geiieros
iieste sentido a diversidade dos generos do discurso é muito
criativos). Esses generos do discurso nos são dados quase da
grande. Toda uma serie de generos suinaineiite difundidos no
inesina forina qiie nos e dada a liiigua materna, a qual domi-
cotidiano é de tal forma padronizada que a voiitade discur-
nainos livreinente até comecarmos o estudo teórico da gra-
siva individual do falante só se inanifesta na escolha de um
mática. A liiigua inaterna _ sua coinposição vocabular e sua
determinado genero e ademais na sua entonação expressiva.
estrutura gramatical _ não chega ao nosso conheciinento a
Assim são, por exeinplo, os diversos generos cotidianos bre-
partir de dicionarios e grainaticas, mas de enunciados con-
ves de saudacöes, despedida, felicitacöes, votos de toda espe-
cretos que nós inesmos ouvimos e nós inesmos reproduzimos
cie, informação sobre a saúde, as criancas, etc. A diversida-
na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos ro-
de desses generos é determinada pelo fato de que eles dife-
deiain. Assimilamos as forinas da lingua somente nas forinas
rem entre si dependendo da situação, da posicãojsocial e das
dos enunciados e justamente com essas fornias. As forinas da
ifelaçöes pessoais de reciprocidade entre os participantes da
38 Mikhail Bakhtin _ (_
Os generos do discurso 3')
comunicaçao: ha formas elevadas desses gêneros, rigorosa- desses gêneros se presta a uma reformulação livre e criadora
mente oficiais e respeitosas, concomitantes com formas fami- (à semelhança dos gêneros ficcionais, e alguns talvez até em
liares, que ademais apresentam diversos graus de familiari- maior grau), mas o uso criativamente livre não é uma nova
dade, e com formas íntimas (estas diferem das familiares).l5 criação de gênero _ cabe dominar bem os gêneros para em-
Esses géneros requerem ainda certo tom, isto é, incluem em pregá-los livremente.
sua estrutura determinada entonação expressiva. Esses gêne- l\/luitas pessoas que dominam magníficamente uma lín-
ros, particularmente os elevados, oficiais, apresentam um al- gua sentem amiúde total impotencia em alguns campos da
to grau de estabilidade e coação. Aí, a vontade discursiva cos- comunicação, justo porque não dominam na pratica as for-
tuma limitar-se à escolha de um gênero, e só leves matizes de mas do gênero desses campos. Com frequência, uma pessoa
uma entonação expressiva (p(›de-se assumir um tom mais se- que tem pleno domínio do discurso em diferentes campos da
co ou mais respeitoso, mais frio ou mais caloroso, introdu- comunicação cultural _ sabe ler um relatório, desenvolver
zir a entonação de alegria, etc.) podem refletir a individuali- uma discussão científica, fala muito bem sobre questöes so-
dade do falante (a sua ideia discursivo-emocional). Mas tam- cials _ em uma conversa mundana cala ou intervém de for-
bém aqui é possível uma reacentuação dos gêneros, caracte- ma muito dcsaieitada. Aqui não se trata de pobreza vocabu-
rística da comunicação discursiva em geral; assim, por exem- lar nem de estilo tomado de maneira abstrata; tudo se resu-
plo, pode-se transferir a forma de gênero da saudação do me a uma inabilidade para dominar o repertorio dos gêneros
campo oficial para o campo da comunicação familiar, isto é, da conversa mundana, à falta de um suficiente acervo de no-
empregá-la com uma rcacentuação irônico-paródica; com fins còes sobre um enunciado inteiro que ajudem a moldar de for-
análogos pode-se misturar deliberadamente os gêneros das ma rápida e descontraída o seu discurso nas formas estilísti-
diferentes esferas. co-composicionais definidas, a uma inabilidade para tomar
Paralelamente a semelhantes géneros padronizados, a palavra a tempo, começar corretamente e terminar corre-
existiam e existem, é claro, gêneros mais livres e mais criati- tamente (nesses generos, a composição é muito simples).
vos de comunicação discursiva oral: os géneros das conver- Quanto mais dominamos os gêneros, maior é a desen-
sas de salão sobre temas do cotidiano, sociais, estéticos e si- voltura com que os empregamos e mais plena e nitidamente
milares, os gêneros das conversas mesa, das conversas ín- descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é pos-
timo-amistosas, íntimo-familiares, etc. (por enquanto não sível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a
existe uma nomenclatura dos géneros do discurso oral e tam- situação singular da comunicação _ em suma, tanto mais
pouco está claro o principio de tal nomenclatura). A maioria plena é a forma com que realizamos o nosso livre projeto de
discurso.
Desse modo, ao falante não são dadas apenas as formas
'Ñ Esses fenómenos e outros análogos interessam aos linguistas (pre- da lingua nacional (a composição vocabular e a estrutura gra-
dominantemente aos historiadores da língua) no corte meramente estilís-
matical) obrigatórias para ele, mas também as formas igual-
tico, como reflexo, na lingua, de formas historicamente mutáveis de eti-
queta, de gentileza, decência. Cf., por exemplo, F. Brunot IF. Brunot, His-
mente obrigatórias de enunciado, isto é, os gêneros do dis-
toire de la langue frmzçaíse des mígiries à 1900, tomos 1-10, Paris, 1905- curso: estes são tão indispensáveis para a compreensão mú-
1943. (N. da E.)]. tua quanto as formas da lingua. Os géneros do discurso, com-
52 Mikhail Bakhtin
Os géneros do discurso 53
Nos dois aspectos finais, a palavra é expressiva, mas essa Desse modo, a expressividade de determinadas palavr2lS
expressão, reiteramos, não pertence à própria palavra: ela ,(30 é uma propriedade da própria palavra como unidade da
nasce no ponto do contato da palavra com a realidade con- lingua e não decorre imediatamente do significado d€SS^HS Pa'
creta e nas condiçöes de uma situação real, e esse contato é lavras; essa expressão ou é uma expressão tipica df! gener@
realizado pelo enunciado individual. Neste caso, a palavra ou um eco de uma expressão individual alheia, qu@ IOYHH 3
l
atua como expressão de certa posição valorativa do homein palavra uma espécie de representante da plenitude do enun- (ii
ii
individual (de alguém dotado de autoridade, do escritor, cien- ciado do outro como posição valorativa determinada. _
tista, pai, mãe, amigo, mestre, etc.) como abreviatura do O mesmo cabe dizer também da oração enquanto uni-
enunciado. dade da lingua: ela também carece de expressividade. Isso
l
Em cada época, ein cada circulo social, em cada inicro- nos já afirmamos no inicio desta seção. Resta apenas com- `l
mundo familiar, de amigos e conhecidos, de colegas, ein que pletar brevemente o que foi dito. Acontece que os tipos €X1S- l
o homein cresce e vive, sempre existein enunciados investi- tentes de oraçöes costuinain funcionar como enunciados ple- il
i
i
dos de autoridade que dão o tom, como as obras de arte, cién- nos de determinados tipos de género. Assim são 215 0fa,§0e5
cia, jornalismo politico, nas quais as pessoas se baseiam, as exclamativas, interrogativas e exortativas. Existe um nuine-
quais elas citain, iinitam, seguem. Ein cada época, e ein to- ro muito grande de géneros centrados nocotidiano e espe-
dos os campos da vida e da atividade, existein determinadas ciais (por exeinplo, géneros de ordens militares e de produ-
tradiçöes, expressas e conservadas ein roupagens verbaliza- ção), que, ein regra, são expressos por uma or21§3_0 de “PO
das: em obras, enunciados, sentenças, etc. Sempre existein es- correspondente. Por outro lado, as oraçöes desse tipo se en-
sas ou aquelas ideias determinantes dos “senhores do pensa- contram de modo relativamente raro no contexto de subor-
mento” de uma época verbalmente expressas, algumas tare- dinação dos enunciados desenvolvidos. Quando expressoes
l'i
fas fundamentais, lemas, etc. já ncin falo dos modelos de an- clesse tipo Ientraml no contexto desenvolvido de subordina-
tologias escolares nos quais as crianças aprendem a lingua ção, destacain-se com certa nitidez de sua c/omposiçao e, em
materna e que, evidentemente, são sempre expressivos. regra, procurando ser ou a primeira ou a ultima OYHQQU df)
Eis por que a experiéncia discursiva individual de qual-
quer pessoa se forma e se desenvolve ein uma interação cons-
enunciado (ou da parte relativaincnte autonoma do enun-
ciado).¿§ Esses tipos de oraçöes apresentam um interesse es-
l
tante e continua com os enunciados individuais dos outros. pecial no corte do nosso problema e ainda voltaremos a elas.
Em certo sentido, essa experiéncia pode ser caracterizada co- Aqui nos iinporta apenas observar que as oraçoes desse tipo
mo processo de assimilação _ mais ou menos criador _ das se fundein muito solidamente com sua expressao de geiier0›
palavras do outro (e não das palavras da lingua). Nosso dis- assiin coino absorvem com especial facilidade a expressao in-
curso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras
criadas) é pleno de palavras dos outros, de uin grau vário de
alteridade ou de assimilabilidade, de uin grau vário de aper-
li A primeira e a última oração de um enunciado téin, ein geral, uma
ceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros tra-
natureza original, certa qualidadeÁcomplementar. Porque se trata, por Hs-
zem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assi-
sim dizer, de oraçöes da “linha de frente”, que se encontram imediatainen-
milamos, reelaboramos, e reacentuamos. te ein plena linha de alternancia dos sujeitos do discurso.
56 Mikhail Bakhtin
Os géneros do discurso 57
etc.), os enunciados dos outros podem ser recontados com posta ãquilo que ja foi dito sobre dado objeto, sobre dada
um variado grau de reassimilação; podemos simplesmente questão, ainda que essa responsividade não tenha adquirido
nos basear neles como em um interlocutor bem conhecido, uma nítida expressão externa: ela ira manifestar-se na tona-
podemos pressupô-los em siléncio, a atitude responsiva po- lidade do sentido, na tonalidade da expressão, na tonalida-
de refletir-se somente na expressão do próprio discurso _ na de do estilo, nos matizes mais sutis da composição. O enun-
seleção de recursos linguisticos e entonaçöes, determinada ciado é pleno de tonalidades díalógicas, e sem levá-las em
não pelo objeto do próprio discurso mas pelo enunciado do tonta é iinpossivel entender até o fiin o estilo de uin enuncia-
outro sobre o mesmo objeto. Este caso é tipico e iinportan- do. Porque a nossa própria ideia _ seja filosófica, cientifica,
te: muiïo amiúde a expressão do nosso enunciado é determi- .irtística _ nasce e se forina no processo de interação e luta
nada nao so _ e vez por outra não tanto _ pelo çomeúdo com os pensainentos dos outros, e isso não pode deixar de
semântico-objetal desse enunciado, mas também pelos enun- encontrar o seu reflexo também nas forinas de expressão ver-
ciados do outro sobre o mesmo tema, aos quais responde- balizada do nosso pensainento.
mos, com os quais polemizamos; através deles se determina Os enunciados do outro e as palavras isoladas do outro,
também o destaque dado a determinados elementos, as repe- .ipreendidas e destacadas coino do outro e introduzidas no
tiçöes e a escolha de expressöes mais duras (ou, ao contrario, enunciado, inserein nele algo que é, por assiin dizer, irracio-
inais brandas); determina-se também o tom. A expressão do nal do ponto de vista da lingua coino sistema, particularmen-
enunciado nunca pode ser entendida e explicada até o fim le- ie do ponto de vista da siiitaxe. As relaçöes recíprocas entre
vando-se em conta apenas o seu conteúdo centrado no obje- o discurso introdiizido do outro e o restante _ o meu discur-
to e no sentido. A expressão do enunciado, em maior ou me- so _ não tém qualquer analogia com nenhuma relação sin-
nor grau, responde, isto é, exprime a relação do falante com iatica no ambito de uin conjunto sintatico simples e coinple-
os enunciados do outro, e não só a relação com os objetos \o, nein com as relaçöes, centradas no objeto e no sentido,
do seu enunciado.” As forinas das atitudes responsivas, que entre totalidades sintaticas grainaticalinente desconexas e iso-
preenchem o enunciado, são sumamente diversas e até hoje ladas no ambito de iiin dado enunciado. Ein compensação,
não foram objeto de nenhum estudo especial. Essas formas, essas relaçöes são análogas (mas, evidentemente, não idénti-
e claro, diferenciam-se acentuadaineiite ein função da distin- cas) às relaçöes das réplicas cio diálogo. A entonação que iso-
ção entre aqueles campos da atividade huinana e da vida nos la o discurso do outro (inarcado por aspas no discurso escri-
quais ocorre a comunicação discursiva. Por mais monológi- to) é um fenômeno de tipo especial: é uma espécie de alter-
co que seja o enunciado (por exeinplo, uma obra cientifica iiância dos sujeitos do discurso transferida para o interior do
ou filosófica), por mais concentrado que esteja no seu obje- enunciado. Os limites criados por essa alternancia são ai en-
to, não pode deixar de ser em certa medida também uma res- fraquecidos e especificos: a expressão do falante penetra atra-
vés desses limites e se dissemina no discurso do outro, que
podemos transmitir em tons irônicos, indignados, simpáti-
cos, reverentes (essa expressão é transmitida com o auxilio
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de uma entonação expressiva _ no discurso escrito é como
A entonação ef particularmente
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sensivel . _
e seinpre iiidica o con-
ÍCXÍU.
se a adivinhássemos e a sentissemos graças ao contexto que
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58 iviiiaiaii Ba1<imn
emoldura o discurso do outro _ ou pela situação extraver- ineira vez, e um determinado falante não é o primeiro a fa-
bal _ ela sugere a expressão correspondente). Assim, o dis- lar sobre ele. O objeto, por assiin dizer, já está ressalvado,
curso do outro tem uma dupla expressão: a sua, isto é, a contestado, elucidado e avaliado de diferentes modos; nele
alheia, e a expressão do enunciado que acolheu esse discur- se cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vista,
so. Tudo isso se verifica, antes de tudo, onde o discurso do visöes de mundo, correntes. O falante não é um Adão bibli-
outro (ainda que seja uma palavra que aqui ganha força de co, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados,
um enunciado pleno) é citado textualmente e destacado com aos quais dá nome pela primeira vez. As concepçöes simpli-
nitidez (entre aspas): aqui se ouvein com nitidez os ecos da licadas sobre coinunicação como fundamento lógico-psico-
alternancia dos sujeitos do discurso e das suas mútuas rela- logico da oração nos lembrain obrigatoriamente esse Adão
çöes dialógicas. Contudo, ein qualquer enunciado, quando initico. Na alma do falante ocorre a combinação de diias con-
estudado com inais profundidade em situaçöes concretas de cepçöes (ou, ao contrario, o desmembramento de uma con-
coinunicação discursiva, descobriinos toda uma série de pa- cepção complexa ein duas simples), e ele profere oraçöes co-
lavras do outro seinilatentes e latentes, de diferentes graus de ino as seguintes: “O sol brilha”, “A grama é verde”, “Eu es-
alteridade. Por isso o enunciado é representado por ecos co- tou sentado", etc. Semelhantes oraçöes, é claro, são perfeita-
ino que distantes e mal percebidos das alternancias dos sii- mente possiveis; contudo, ou são justificadas e assimiladas
jeitos do discurso e pelas tonalidades dialógicas, enfraqueci- pelo contexto de uin enunciado pleno, que as incorpora à co-
das ao extremo pelos liinites dos enunciados, totalmente per- inunicação discursiva (na qualidade de réplica do diálogo, de
meáveis expressão do autor. O enunciado se mostra uin fe- iiin artigo de divulgação cientifica, de palestra de um profes-
nômeno muito complexo e inultiplanar se não o examinamos sor na sala de aula, etc.), ou, se são enunciados acabados, a
isoladainente e só na relação com o seu autor (o falante), mas situação do discurso os justifica de certo modo e os inclui na
como um elo na cadeia da comunicação discursiva e da rela- cadeia da comunicação discursiva. Em realidade _ repeti-
ção com outros enunciados a ele vinculados (essas relaçöes mos _, todo enunciado, além do seu objeto, sempre respon-
costuinavam ser descobertas não no plano verbalizado _ es- de (no sentido ainplo da palavra) de uma forina ou de outra
tilistico-coinposicional _ mas tão somente no plano seman- aos enunciados do outro que o antecederam. O falante não
tico-objetal). é uni Adão, e por isso o próprio objeto do seu discurso se tor-
Cada enunciado isolado é uin elo na cadeia da comuni- na inevitavelinente uin palco de encontro com opiniöes de in-
cação discursiva. Ele tein liinites precisos, deterininados pe- terlocutores iinediatos (na conversa ou na discussão sobre al-
la alternancia dos sujeitos do discurso (dos falantes), mas no guin aconteciinento cotidiano) ou com pontos de vista, vi-
ambito desses limites o eminciado, como a inônada de Leib- söes de mundo, correntes, teorias, etc. (no campo da comu-
niz, reflete o processo do discurso, os enunciados do outro, nicação cultural). Uma visão de mundo, uma corrente, um
e antes de tudo os elos precedentes da cadeia (as vezes os mais ponto de vista, uma opinião sempre téin uma expressão ver-
imediatos, e vez por outra até os muito distantes _ os cain- balizada. Tudo isso é discurso do outro (ein forina pessoal
pos da comunicação cultural). ou impessoal), e este não pode deixar de se refletir no enun-
Qualquer que seja o objeto do discurso do falante, ele ciado. O enunciado está voltado não só para o seu objeto
não se torna objeto do discurso em um enunciado pela pri- mas também para os discursos do outro sobre ele. No entan-
l
P
na literatura. Alem disso, a familiarização dos estilos abre ponto de vista do proposto fundo aperceptível do destinata-
acessos para a literatura a camadas da lingua que até então iio do discurso, mas esse fundo é levado em conta de modo
estavam sob proibicão do discurso. Até hoje a impottância i-xtremamente genérico e abstraido do seu aspecto expressi-
dos generos e estilos na história da literatura não foi suficien- io (também é ininiina a expressão do próprio falante no es-
temente valorizada. iilo objetivo). Os estilos neutro-objetivos pressupöem uma
Os generos e estilos intimos se baseiam na niaxima pro- especie de triunfo do destinatario sobre o falante, uma uni-
xiinidade interior do falante com o destinatario do discurso dade dos seus pontos de vista, mas essa identidade e essa
(no limite, como que na fusão dos dois). O discurso intimo é iiiiidade custain quase a pleiia recusa expressão. Cabe ob-
impregnado de uma profunda confiança no destinatario, ein servar que o carater dos estilos neutro-objetivos (e, coiise-
sua simpatía _ na sensibilidade e na boa vontade da sua qiientemente, da concepção qiie llies serve de base) é bastan-
compreensao responsiva. Nesse clima de profunda confian- te diverso ein funcão da diferenca de campos da coiiiuiiica-
ca, o falante abre as suas profundezas interiores. Isso deter- cai) discursiva.
inina a expressividade especifica e a franqueza interior des- A concepção do destinatario do discurso (coino o sente
ses estilos (diferentemente da barulhenta franqueza de rua do e imagina o falante ou quem escreve) ó uma questão de enor-
discurso familiar). nie importancia na historia da literatura. Cada época, cada
Os generos e estilos familiares e intimos (até hoje inui- corrente literaria e estilo ficcional, cada genero literario no
to mal estudados) revelam de maneira excepcionalmente cla- .iinbito de uma época e cada corrente têm coino caracteristi-
ra a dependência do estilo ein face de uma determinada sen- cas suas concepcöes específicas de destinatario da obra lite-
sacão e compreensão do destinatario pelo falante (ein face do raria, a sensacão especial e a compreensão do seu leitor, ou-
seu enunciado e da antecipacão da sua ativa coinpreensão vinte, público, povo. O estudo liistórico das mudaiicas des-
responsiva pelo falante. Nesses estilos revelain-se com espe- sas concepcöes é uma tarefa interessante e iinportaiite. Mas
cial clareza a estreiteza e o equivoco da estilística tradicional, para sua elaboracão eficaz faz-se necessaria uma cla reza teó-
qiie procura compreender e definir o estilo apenas do ponto rica na própria colocacão do problema.
de vista do conteúdo do objeto, do sentido do discurso e di (Íabe observar que, paralelainente aquelas sensacöes e
relação expressiva do falante com esse conteúdo. Sem levar concepcöes reais do seu destinatario, qiie efetivainente deter-
ein conta a relaçao do falaiite com o outro e seus enunciados ininain o estilo dos enunciados (obras), na liistória da litera-
(presentes e antecipaveis), é iinpossivel coinpreeiider o géne- tura existein ainda formas convencionais ou seiniconvencio-
ro ou estilo do disciirso. nais de apelo aos leitores, ouvintes, descendentes, etc., assiin
Contudo, também os clianiados estilos neutros ou obje- como paralelamente ao autor real existem imagens conven-
tivos de exposicao, concentrados ao iiiaxiino ein seu objeto cioiiais e seinicoiivencioriais de autores testas de ferro, edito-
e, pareceria, estranhos a qualquer olhada repetida para o oii- res, narradores de toda espécie. A imensa inaioria dos gêne-
tro, envolvein, apesar de tudo, uma deterininada concepção ros literarios é constituida de generos secundarios, comple-
do seu destinatario. Tais estilos objetivo-neutros produzem xos, formados por diferentes gêneros primarios transforma-
uma selecão de ineios linguisticos não só do ponto de visti
k Ä x ( dos (réplicas do dialogo, relatos cotidianos, cartas, diarios,
da sua adequacao ao objeto do disciirso, mas também do protocolos, etc.). Tais géneros secundarios da complexa co-
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