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Uma política poética.

Um dia vivido ou alguma criação rea-


lizada durante essa época dramática de pandemia. Textos,
desenhos, fotografias, recortes, citações, poesias. Regis-
tros de inquietações. Nossa paralisia e nosso movimento.
Textos-potência, evidenciando sensibilidades e subjeti-
vidades reveladas na pergunta que não quer calar: o que
fazer?
Textos-memória, singularizando o tempo de cada sujeito
isolado. A memória e a palavra, o gesto. Livro-arquivo. Como
nos representamos? Cada texto é um corpo exposto. Beirando
a estética e a política num tempo de gestos sobreviventes.
Para quem quer um arquivo de imagens e textos teste-
munhais ou ficcionais sobre a experiência de isolamento
durante os meses de março, abril e maio de 2020, este é o
livro perfeito. Revela parte do que nos aconteceu/acontece
durante a pandemia. Pedimos aos convidados para enviarem
páginas sobre um dia vivido ou alguma criação realizada
durante essa época dramática. Textos, desenhos, fotogra-
fias, recortes, citações, poesias. Uma pequena coletânea-
-coleção, um arquivo de memórias vividas na realidade ou
na imaginação de artistas, literatos, historiadores, an-
tropólogos, filósofos, sociólogos, psicólogos, geógrafos,
comunicólogos... Gente de carne e osso.
Metáforas e metonímias que não cabem somente em versos,
mas que se fazem presentes também nas narrativas histó-
rico-antropológicas e visuais, literárias, teóricas, enfim,
nos variados campos da linguagem.
Perdas e faltas habitam nosso tempo excessivamente du-
rante uma pandemia tornada guerra. E como numa guerra se
levantam gestos, num movimento de fluxos e refluxos. O que
leremos aqui é o que Benjamin chama de uma política poética.
Aqui, acolá, num texto ou noutro, numa espécie de materia-
lismo antropológico que é capaz de agarrar esse momento de
absoluta tensão, manifesta como uma enervação do corpo
coletivo, uma histeria generalizada, vista através das re-
des sociais.
As organizadoras
ARQUIVO PANDEMIA

Diários íntimos,
recortes poéticos,
históricos,
geográficos,
políticos,
antropológicos,
artísticos,
psicossociais do isolamento

Volume 1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
REITORA Sandra Regina Goulart Almeida
VICE-REITOR Alessandro Fernandes Moreira

EDITORA UFMG
DIRETOR Flavio de Lemos Carsalade
VICE-DIRETORA Camila Figueiredo

Flavio de Lemos Carsalade (PRESIDENTE)


Ana Carina Utsch Terra
Antônio de Pinho Marques Júnior
Antônio Luiz Pinho Ribeiro
Camila Figueiredo
Carla Viana Coscarelli
Cássio Eduardo Viana Hissa
César Geraldo Guimarães
Eduardo da Motta e Albuquerque
Élder Antônio Sousa e Paiva
Helena Lopes da Silva
João André Alves Lança
João Antônio de Paula
José Luiz Borges Horta
Lira Córdova
Maria Alice de Lima Gomes Nogueira
Maria de Fátima Cardoso Gomes
Renato Alves Ribeiro Neto
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rodrigo Patto Sá Motta
Sergio Alcides Pereira do Amaral
Sônia Micussi Simões
Andréa Casa Nova Maia
Vera Casa Nova
Organizadoras

ARQUIVO PANDEMIA
Diários íntimos,
recortes poéticos,
históricos,
geográficos,
políticos,
antropológicos,
artísticos,
psicossociais do isolamento

Volume 1
© 2020, As organizadoras
© 2020, Editora UFMG

Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem autorização escrita do Editor.

A772 Arquivo pandemia : diários íntimos, recortes poéticos,


históricos, geográficos, políticos, antropológicos,
artísticos, psicossociais do isolamento : volume 1 /
Andréa Casa Nova Maia, Vera Casa Nova,
organizadoras. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2020.

399 p. : il.
ISBN: 978-65-5858-002-7

1. Literatura brasileira. – 2. Epidemia – História. –


3. COVID-19 (Doença). 4. Civilização - História I. Maia,
Andréa Casa Nova. II. Casa Nova, Vera. III. Série.

CDD: B869.3
CDU: 869.0(81)-3

Ficha catalográfica elaborada por Vilma Carvalho de Souza – Bi-


bliotecária - CRB-6/1390

COORDENAÇÃO EDITORIAL Jerônimo Coelho


DIREITOS AUTORAIS Anne Caroline Silva
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa
PROJETO GRÁFICO e FORMATAÇÃO Alessandra Magalhães
MONTAGEM DE CAPA Humberto Bianchi
IMAGEM DE CAPA Alex Carvalho
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 – CAD II / Bloco III
Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte/MG
Tel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – editora@ufmg.br
Sumário

Apresentação 14
Andréa Casa Nova Maia
Vera Casa Nova

Paraquedas – Krenak para


enfrentar a pandemia 18
Andréa Casa Nova Maia
Beto Bianchi

Construir paraquedas coloridos?


Corona e os sonhos para
além do apocalipse e da redenção 20
Márcio Seligmann-Silva

Caos/Colapso/Cola lá 40
Beto Bianchi

O Baile da Ilha Fiscal 42


Nuno Ramos
Quarentena e insônia 59
Rafael Climent-Espino

O inferno sem os outros 64


Márcio Venício Barbosa

END 69
Toti Meer

A estupidez no século XXI 71


Júlio Pinto

Zürich WB 80
Eduardo Jorge de Oliveira

Solidão 88
Mário Alex Rosa

A casa é minha rua 90


Alicia Maria Parreiras Barbosa

Às sombras de nós/No meu todo dia 92


Vera Casa Nova

Um pedaço 96
Grace Passô
A viagem/
Sobre a pandemia e afetos/
Viver sobre a pandemia 98
Gisele Sanglard

Lento o tempo 108


Sabrina Sedlmayer

Perguntas e respostas apropriadas 116


Marilá Dardot

Três crônicas 120


Sofia Soft

Sonhos, dentes, compras e falta de ar 128


Rebeca Gontijo

Carta a Diogo Ramada Curto 136


Eduardo Sinkevisque

Feitiço do tempo 140


Luciene Carris

Aniversário na Quarentena 145


Paolo Suhadolnik

Aniversário de abraços distantes! 147


Ricardo Oriá
Os quinze passos 151
Samantha Viz Quadrat

Um dia no isolamento 156


Ana Maria Marques

Não sou coveiro… E daí? 160


Andréa Casa Nova Maia

Ella anota outra coisa 166


LuLuxa

Casa Comigo 170


Marcelino Freire

Estar sonho: Um dejá vù


memorável sussurra pelas vozes do silêncio 173
Lina Maciel Pereira de Souza

Fragmentação, dispersão e repetição/


Uma saída perigosa e quase (?) fatal 180
Teodoro Rennó Assunção

Imantação do real: uma pedagogia do corpo-flor 189


Dinah de Oliveira

Dauphine 194
Ricardo Santhiago
Disritmia 198
Jorge Cupim

Nomadizar-se na pandemia? 200


Cíntia Vieira da Silva

Em busca de uma lamparina no final do túnel 205


Célia Regina Pereira de Toledo Lucena

Cotidiano nº 3 209
Juliano Spyer

Memória da pandemia ou Tristeza profunda 213


Antônio Edmilson Martins Rodrigues

Memórias do bêbado e a equilibrista 218


Beatriz Bissio

A equilibrista no parapeito 222


Eduardo Chacon

E onde encontrar consolo


para essa dor que me consome?
Na música, caro amigo, apenas na música… 226
Bruna Aparecida Gomes Coelho

Uma bricolagem de emoções 231


Denise Pirani
O sábado mais triste! 235
Francisco Carlos Teixeira da Silva

O país do ornitorrinco 239


Fernando Viotti

Urgência cotidiana 244


Rita Lages Rodrigues

João 248
Lucilia de Almeida Neves Delgado

Laura 253
Marieta de Moraes Ferreira

Ao dia seguinte 257


Fernando Santoro

Apenas um dia? 260


Fernando Augusto Silva Lopes

Relato de um cão 264


Quincas Borba, o Yorkshire

Totem 269
João Castilho

Respira, você vai terminar! 271


Vitor Leandro de Souza
Distopias geográficas de um veloz COVID 19 275
Valnei Pereira

Pandemia: percepção, memória e quarentena 279


Antônio Torres Montenegro

O vírus e o assassino.
Uma luta diária para não esquecer 284
Márcia Maria Menendes Motta

Tempos de pandemia – incertezas vitais 288


Regina Beatriz Guimarães Neto

Pandemia e gentrificação em Nova Iorque 293


Rogério Manata Fernandes Távora

Considerações Matinais 297


Rafael Mendonça

Gavião 305
Alex Carvalho

Acerca de janelas, panelas e esperanças 307


Rosalba Lopes

Reflexões biossociais de
uma pandemia: banheiros, cozinha e Gaia 313
Lise Sedrez
O trabalho e a peste:
todos os dias são domingos 317
Deivid Valério Gaia

Sol de maio 323


Priscila Heeren

Covid-19 325
Roberto Delpiano

Penso sobretudo no tempo 329


Ana Carolina de Moura Delfim Maciel

A (des)temporalização da pandemia 336


Rodrigo Turin

Do tempo 340
Regina Helena Alves da Silva

Amores possíveis e rituais de vida na


#quarentena 345
Giovana Xavier

A valsa e o anel 349


Karla Carloni

Me serviu pra perceber… 354


Wolmin Dahgrota
Clipping de notícias de
um dia de maio no Brasil 357
Autor incidental

Procurando Amaral Quinto 360


Guaracy Araújo

Pedacinho do céu 367


Flávio de Castro

Boa sorte 371


Jacinto A. Cloroquina

Ad Infinitum/Adagio 375
Celina Lage

Sobre os autores 378


Apresentação
Andréa Casa Nova Maia
Vera Casa Nova
Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Isolamento, 2020

14
Apresentação

O tempo é um tecido invisível em que se pode


bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama,
um castelo, um túmulo. Também se pode bordar
nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil
obra deste mundo, e acaso do outro.

Machado de Assis

O que te direi? Te direi os instantes. Exorbito-


me e só então existo e de um modo febril. Que
febre: conseguirei um dia parar de viver? Ai
de mim, que tanto morro. Sigo o tortuoso
caminho das raízes rebentando a terra, tenho
por dom a paixão, na queimada de tronco
seco contorço-me às labaredas. À duração de
minha existência dou uma significação oculta
que me ultrapassa. Sou um ser concomitante:
reúno em mim o tempo passado, o presente e
o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos
relógios.

Clarice Lispector

15
Este livro-arquivo-memória é uma produção coletiva sobre
as nossas vivências – experiências cotidianas na pandemia.
Procuramos instigar pessoas de diferentes lugares, gerações
e formações a pensar conosco sua vida diante do que estamos
atravessando devido ao isolamento pelo perigo de contágio
do Covid-19.
O objetivo desta publicação é revelar parte do que nos acon-
teceu/acontece durante a pandemia. Pedimos aos convidados
para enviarem de uma a quatro páginas sobre um dia vivido
ou alguma criação realizada durante essa época dramática.
Textos, desenhos, fotografias, recortes, citações, poesias.
Uma pequena coletânea-coleção, um arquivo de memórias
vividas na realidade ou na imaginação de artistas, literatos,
historiadores, antropólogos, filósofos, sociólogos, psicólogos,
geógrafos, comunicólogos… gente de carne e osso.
Nas próximas páginas, você irá encontrar alguns textos
mais longos, porque intelectualmente represados durante o
isolamento e expressos aqui e agora. Outros, como os de poe-
sia, mostram a capacidade de síntese que um verso pode re-
velar. Metáforas e metonímias que não cabem somente em
versos, mas também nas narrativas histórico-antropológicas
e visuais, literárias, teóricas, enfim, nos variados campos da
linguagem.
Perdas e faltas habitam nosso tempo excessivamente du-
rante uma pandemia tornada guerra. E como numa guerra se
levantam gestos, num movimento de fluxos e refluxos. O que
leremos aqui é o que Benjamin chama de uma política poéti-
ca. Aqui, acolá, num texto ou noutro, numa espécie de mate-
rialismo antropológico que é capaz de agarrar esse momento
de absoluta tensão, manifesta como uma enervação do corpo
coletivo, uma histeria generalizada, vista através das redes
sociais.

16
Textos-potência, evidenciando sensibilidades e subjeti-
vidades reveladas na pergunta que não quer se calar: o que
fazer?
Crispados os valores, a potência que se escreve e se inscre-
ve na dýnamis encarada como a potência da transformação
e enérgeia, o ato. Potência e impotência caminham juntas.
Giorgio Agamben, Deleuze ou Nietzsche, entre tantos outros,
seguem vias da crise e nos fazem pensar na vitalidade do pen-
samento e nos percursos da história individual e coletiva.
Textos-memória, singularizando o tempo de cada sujeito
isolado. A memória vive do tempo que passou e o supera. E a
memória e a palavra, o gesto, são inseparáveis e re-atualizam
o tempo que passou.
Aqui vocês lerão imagens que os sujeitos, autores, sen-
tiram, ouviram em textos que vão do drama ao mais fino
humor.
Como nos representamos? Cada texto é um corpo ex-
posto. Beirando a estética e a política num tempo de gestos
sobreviventes.
Registramos nossas inquietações, nossa paralisia e nosso
movimento, através de imagens e de palavras que mostram
nossa resistência e nosso real.

17
Paraquedas – Krenak
para enfrentar a pandemia

Andréa Casa Nova Maia


Beto Bianchi
Rio de Janeiro, 15 de abril de 2020
Construir paraquedas coloridos?
Corona e os sonhos para além do
apocalipse e da redenção
Márcio Seligmann-Silva
Campinas, 15 de abril de 2020
Construir
paraquedas coloridos?
Corona e os sonhos
para além do apocalipse
e da redenção
Vamos aproveitar toda a nossa capacidade
crítica e criativa para construir paraquedas
coloridos. Vamos pensar no espaço não como
um lugar confinado, mas como o cosmos
onde a gente pode despencar em paraquedas
coloridos.

Ailton Krenak, Ideias para


adiar o fim do mundo

Essa epígrafe de Ailton Krenak, retirada de uma fala sua


publicada em 2019, como que indica uma janela, desenha
uma brecha no confinamento a que fomos obrigados a viven-
ciar em 2020, para tentar superar a crise produzida pela
pandemia da covid19. Lendo a passagem, pensamos: vamos

21
sair do espaço confinado com a potência de nossa mente, ex-
pandindo-o para a dimensão do cosmos onde voaremos em
nossos “paraquedas coloridos”! Essa formulação, que per-
mite se estabelecer uma ponte que vai do terrível ao mara-
vilhoso, rompe com a clausura, rachando as paredes de nos-
sos “claustros”. Podemos dizer que ela é autoperformática,
na medida em que Krenak, ao formular a sua tese, já está
produzindo em nossas mentes aberturas, expansões para
além de nosso confinamento. Mas não se trata, é claro, ape-
nas do confinamento produzido pela pandemia de Sars-CoV-2.
Krenak formulou essa ideia antes da pandemia e a partir
de uma poderosa reflexão sobre os caminhos e acidentes
da história da humanidade. O espaço confinado a que ele se
refere nessa passagem é o confinamento dentro da razão
instrumental de origem Humanista e Iluminista. Essa razão
elegeu um modo de progresso que entroniza uma técnica
destruidora que se alimenta da terra e das pessoas e está
nos levando ao “fim do mundo” a que se refere o título de seu
livro, Ideias para adiar o fim do mundo.
A razão instrumental nos lançou em uma aporia, em um
impasse, numa incerteza profunda que nos paralisa. Fechou
as portas e estamos sem saída. Aporia vem do grego áporos
e deriva, conforme o dicionário Houaiss, “de a- ‘privação,
negação’ […], + grego póros, ou ‘passagem’”. Em meio a essa
clausura produzida por esse modelo de desenvolvimento e
que agora gerou uma gigantesca e avassaladora pandemia,
as palavras de Krenak, um líder indígena que vem de uma
cultura que vive há milênios nas Américas sem nunca ter
chegado à situação semelhante, sugerem a necessidade de
uma pausa para reflexão: vamos construir saídas criativas,
façamos os nossos “paraquedas coloridos”.

22
Krenak descreve essa aporia vivida pela sociedade con-
temporânea, mas ao mesmo tempo se separa dessa socieda-
de, mostra que vem de outra tradição, de uma história mul-
ticentenária de sobrevivência:

Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por


uma situação nova no Brasil, me perguntaram: “Como os índios
vão fazer diante disso tudo?”. Eu falei: “Tem quinhentos anos que
os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos,
como que vão fazer para escapar dessa”. A gente resistiu expan-
dindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós
somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias
que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam
mais de 150 línguas e dialetos.1

Ao invés de cair na posição melancólica, na prostração


paralisante, Krenak nos fala de um outro registro de pen-
samento, para além de nossos parâmetros cartesianos, que
veem no raciocínio lógico o ápice do saber. E motivos para a
melancolia é que não faltam, quando observamos a história
da destruição e da violência contra os indígenas no Brasil.
Claude Lévi-Strauss, no livro Saudades do Brasil, apresen-
tou suscintamente essa história como a de um fantástico acú-
mulo de barbáries. É a extensão do massacre indígena que o
antropólogo destacou nessa obra. Em fazendo isto, ele apon-
tou ao mesmo tempo para a grandeza das culturas indígenas
que vivem em terras brasileiras, revertendo a hierarquia
tradicionalmente atribuída aos povos originários nas Améri-
cas: a “Amazônia”, ele escreve, “poderia ser o berço de onde

Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, São Paulo, Compa-
1

nhia das Letras, 2019, p. 31.

23
saíram as civilizações andinas.”2 Lévi-Strauss surge como
uma testemunha de populações que sobreviveram a “um
monstruoso genocídio” que se estende desde a chegada dos
europeus até hoje. Ele viu “os últimos sobreviventes desse
cataclismo que foi para seus antepassados [sc. dos índios]
o descobrimento e as invasões que se seguiram.”3 Calcula-se
que entre cinco a nove milhões de indígenas foram assassina-
dos graças à empresa colonial, seja por meio de epidemias, de
massacres ou da escravização. Trata-se de um dos maiores
genocídios da história da humanidade. Essa empresa colonial
está ainda em curso e recuperou fôlego em 2018.
Krenak, partindo dessa gigantesca e pesada herança de
genocídios, etnocídios e de lutas pela sobrevivência, dá uma
virada e propõe a resistência pela imaginação. Ela é uma po-
derosa “esburacadora” de brechas, que permite o abrir de
caminhos, de inúmeros “poros”, que facultam sairmos de
nossa “aporia”. Esse comutador que nos lançaria para fora
do buraco em que nos encontramos tem como uma de suas
faces os sonhos:

Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade,


é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos
encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado
por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e
mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir,
cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão
abertas como possibilidades.4

2
Claude Lévi-Strauss, Saudades do Brasil, São Paulo, Companhia das Le-
tras, 1994, p. 13.
Ibidem, p. 16.
3

Krenak, p. 52.
4

24
Esses sonhos são locais privilegiados que descortinam
um novo olhar sobre nossas vidas. Além dessa abertura que
permite estruturarmos uma outra leitura do real e construir
outras subjetividades, os sonhos são em si mesmo locais de
moradia sem paredes. Krenak nos fala: “De que lugar se pro-
jetam os paraquedas? Do lugar onde são possíveis as visões
e o sonho. Um outro lugar que a gente pode habitar além
dessa terra dura: o lugar do sonho.”5 Habitar os sonhos, vi-
ver para além “dessa terra dura”, na suavidade multiforme
dos sonhos, abrir poros entre o mundo onírico e nossa vi-
gília, quebrar as paredes da “instituição total” e totalitária
em que o sistema converte e reduz a terra inteira. Antes que
a terra toda fique dura e seca, Krenak propõe, com toda a
leveza do mundo, sem gritos revolucionários, sem clamores
a derramamento de sangue, que reconheçamos nos sonhos
um lugar de expansão de nossas vidas, um espaço para sair-
mos da aporia.
Durante o mês de abril, ou seja, poucos meses após o início
do surto da pandemia de covid19, Krenak publicou outras
falas em seu pequeno opúsculo O amanhã não está à venda.
Novamente ele volta ao tema da falta de saída, agora radica-
lizada com a covid19, para aqueles que apostam no modelo
de humanidade consagrado pela tradição Humanista, Ilu-
minista e pela entronização da técnica como agente de do-
minação e destruição da natureza. A Modernidade na qual
confluíram essas tendências, sempre foi marcada tanto por
uma biopolítica que reduz grandes partes da humanidade
à categoria de sub-humanos, pelo preconceito étnico-racial,
por políticas de escravidão e de genocídio e, por fim, foi ca-
racterizada por uma relação de espoliação com a natureza.
Por outro lado, os povos ameríndios, como escreve Krenak

Ibidem, p. 65.
5

25
apresentando a sua cosmovisão, não percebem “que exista
algo que não seja natureza. Tudo é natureza.”6 Assim, eles
abandonaram o binarismo que marca ao menos desde a vi-
são de mundo clássica, nascida na Grécia, a dualidade que
reproduz a relação de objetificação com essa natureza domi-
nada pela “cultura”. O antropocentrismo e o especismo são
parte central do projeto que culminou no Antropoceno, ou
seja, a era na qual a humanidade molda o planeta e constrói
as bases para a eliminação de sua possibilidade de sobrevida.
Não podemos esquecer que esta pandemia é resultado da
destruição da biodiversidade. As “zoonoses emergentes” são
fruto da invasão desses habitats ricos em biodiversidade. A
biodiversidade é ao mesmo tempo o depositário de nosso fu-
turo e a sua preservação a garantia de que essas zoonoses
não se repetirão.7 Nas Américas, as populações ameríndias
são as grandes responsáveis pela conservação dos territórios
da biodiversidade. As populações originárias no Brasil são
guardiãs de um dos maiores patrimônios de biodiversidade
do mundo, como também, como lemos acima com Krenak,
elas detêm um dos mais ricos patrimônios culturais, com
suas 250 etnias e cerca de 150 línguas e dialetos. Assim,
Krenak aponta para o fato de que esse vírus coloca em xe-
que esse modelo de relação destruidora com a natureza:

Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em


volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de
casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum
outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos

Ailton Krenak, O amanhã não está à venda, São Paulo, Companhia das
6

Letras, 2020, versão Kindle.


Janes Rocha, Biodiversidade é a chave para prever e evitar novas pan-
7

demias, Jornal da Ciência, 16 abr. 2020.

26
humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que
entrou em crise.
[…]
Somos piores que a Covid-19. Esse pacote chamado de huma-
nidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo
que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a
diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência
e de hábitos.8

No livro, Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak iro-


nizava um certo alarmismo acerca do “fim do mundo” e lem-
brava que os povos indígenas convivem com mais de cin-
co séculos de epidemias introduzidas pelos “brancos”. Ele
apresenta um modo de vida que escapa às nossas visões de
mundo judaico-cristãs (marxistas ou não) que apostam em
um “fim do mundo”, em uma revolução, em uma redenção
pontual. A sabedoria cultivada nos sonhos e, nas danças e
no diálogo com os espíritos do passado ensina que a “revolu-
ção” está na capacidade de frearmos e sairmos do caminho
aporético. Devemos aprender a perfurar nossos muros, a
cavar pontes e túneis, encher de poros uma sociedade e as
mentes fechadas e programadas para um projeto em si en-
trópico, posto que aposta na exploração infinita dos recur-
sos naturais. Aposta também no fim da pluralidade da bio-
diversidade e das formas de vida e cultura, as verdadeiras
bases da vida na Terra. Em seu O amanhã não está à venda
Krenak justamente vai destacar a importância de não lu-
tarmos, agora, por uma “volta à normalidade”, ou seja, ao
mesmo caminho que vínhamos trilhando e que produziu
essa pandemia.

8
Krenak, 2020.

27
Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é
porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo
inteiro. […] Não podemos voltar àquele ritmo, ligar todos os car-
ros, todas as máquinas ao mesmo tempo. Seria como se converter
ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir
nos devorando. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma
mentira.9

Outra grande voz vinda do mundo ameríndio que tem tra-


zido uma série de preciosos e urgentes ensinamentos é a de
Davi Kopenawa. Em seu livro A queda do céu. Palavras de
um xamã yanomami (coescrito com o antropólogo Bruce
Albert) ele descreve em centenas de páginas o martirológio
dos yanomamis provocado pelos contatos com os brancos, se-
jam militares em missões de demarcação das fronteiras, ou
operários construindo estradas, mas sobretudo garimpeiros
em busca dos minérios sob a terra yanomami. Kopenawa tem
uma clareza total com relação ao fato de que essas explora-
ções dos minérios em si produzem epidemias. Ou seja, não só
o contato com esses brancos traz as doenças, mas a destrui-
ção da floresta, dos rios e do solo produz epidemias.

As coisas que os brancos extraem das profundezas da terra com


tanta avidez, os minérios e o petróleo, não são alimentos. São coi-
sas maléficas e perigosas, impregnadas de tosses e febres, que só
Omama [o deus criador] conhecia. Ele porém decidiu, no começo,
escondê-los sob o chão da floresta para que não nos deixassem do-
entes. Quis que ninguém pudesse tirá-las da terra, para nos pro-
teger. Por isso devem ser mantidas onde ele as deixou enterradas
desde sempre. A floresta é a carne e a pele de nossa terra, que é o

Krenak, 2020.
9

28
dorso do antigo Hutukara [nome xamânico do antigo céu] caído no
primeiro tempo. O metal que Omama ocultou nela é seu esqueleto,
que ela envolve de frescor úmido. São essas as palavras dos nos-
sos espíritos que os brancos desconhecem. Eles já possuem merca-
dorias mais do que suficientes. Apesar disso, continuam cavando
o solo sem trégua, como tatus-canastra. Não acham que, fazendo
isso, serão tão contaminados quanto nós. Estão enganados.10

Segundo narra Davi Kopenawa, recordando o saber que


lhe foi passado em conversas com os antigos xamãs, em
sonhos e nos transes xamânicos, os metais foram criados
não por Omama, mas sim por seu malévolo irmão Yoasi,
o deus que também introduziu a morte. Omama enterrou
os metais para proteger-nos e debaixo da terra eles devem
ficar. Esses metais, ademais, seguram os esteios que sus-
tentam o céu, eles mantêm “a terra no seu lugar”. Ou seja,
retirar esses metais do solo, destruir a floresta que os isola,
implica em liberar epidemias fatais:

Agora sabemos de onde provém essa fumaça maléfica. É a fu-


maça do metal, que também chamamos de fumaça dos minérios.
São todas a mesma fumaça de epidemias xawara11 que é nossa
verdadeira inimiga. Omama enterrou os minérios para que ficas-
sem debaixo da terra e não pudessem nunca nos contaminar. Foi
uma decisão sábia e nenhum de nós [yanomami] jamais teve a
ideia de cavar o solo para tirá-los da escuridão! […] O sopro vital
dos habitantes da floresta é frágil diante dessas fumaças xawara.
[…] Quando essas fumaças sugiram, não tiveram forças para se

10
Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu. Palavras de um xamã
yanomami, São Paulo, Companhia da Letras, 2015, p. 357.
11
Mais adiante Kopenawa define: “O que chamamos de xawara são o
sarampo, a gripe, a malária, a tuberculose e todas as doenças de brancos
que nos matam para devorar nossa carne.” (Ibidem, p. 366.)

29
defender. Todos arderam em febre e logo ficaram como fantasmas.
Faleceram rapidamente, em grande número, como peixes na pesca
com timbó. Foi assim que os primeiros brancos fizeram desapare-
cer quase todos os nossos antigos.12

Kopenawa afirma também que apesar de nossas cidades es-


tarem infestadas dessa fumaça mortal, não desistimos, con-
tinuamos destruindo a floresta, criando cidades gigantescas.
Nosso pensamento, ele afirma, “está todo fechado”, em uma
expressão que lembra a imagem do “lugar confinado” da fala
de Krenak que lemos na abertura deste texto. Kopenawa es-
tabelece uma relação entre essas epidemias e as mercadorias
trazidas pelos brancos: “a doença e a morte golpeiam os ha-
bitantes da floresta assim que estes começaram a desejar as
mercadorias. […] De modo que, para nós, as mercadorias têm
valor de epidemia xawara.”13 Esse raciocínio é fundamental e
parte central da contra-antropologia de Kopenawa: os bran-
cos, que ele denomina de “povo da mercadoria”, são também
de certo modo o povo que traz e produz as epidemias, com
sua sanha de arrancar os metais, que seguram os esteios do
céu sobre nossas cabeças, e gana de produzir mercadorias,
com o que esgotam os metais da terra. “Hoje, os seres maléfi-
cos xawarari não param de aumentar”, ele escreve de modo
quase profético, mas que na verdade explicita simplesmente
a percepção dos povos que vivem nas florestas e são a vítimas
mais fáceis dessas epidemias há séculos. E ele continua:
“Mas as orelhas dos brancos não escutam as palavras dos
espíritos! Eles só prestam atenção no seu próprio discurso
e nunca se dão conta de que é a mesma fumaça de epidemia

12
Ibidem, p. 363-64.
Ibidem, p. 368.
13

30
que envenena e devora suas próprias crianças.”14 Assim como
Krenak fala da necessidade de despertarmos, antes que seja
tarde demais, para o que está acontecendo com a Terra,15 aqui
Davi Kopenawa fala dessa necessidade de ouvirmos os cla-
mores da Terra. Temos que sair de nossa “zona de conforto”
que se tornou uma “zona de desconforto”, pois estamos sim
cavando o chão sob os nossos próprios pés.
O Brasil da pandemia de covid19 em abril de 2020 é tam-
bém um país assolado pela praga de uma política fascista de
caráter abertamente genocida. É importante retomar uma
fala do atual presidente feita em 29/06/2017 em Porto Alegre:
“Minha especialidade é matar”. Naquela ocasião ele também
recordou que o maior feito de sua atividade como deputado
teria sido a aprovação da “pílula do câncer” (a fosfoetanola-
mina), um embuste, o que não deixa de recordar a sua atual
insistência na suposta capacidade milagrosa da cloroquina
contra a covid19. Sua tanatopolítica contra as populações in-
dígenas, quilombolas, negras, LGBTQ+, sua misoginia e ataque
às liberdades fundamentais, fazem com que a pandemia surja
como um aliado da política de morte desse governo, sendo que
já está claro que as populações mais pobres e desprotegidas
pelo sistema de saúde serão as mais vitimadas. Agora, não só
tem aumentado as invasões de garimpeiros e madeireiros aos
territórios indígenas, levando a pandemia às populações ori-
ginárias, como o desmatamento da Amazônia tem se intensi-
ficado. Segundo o Instituto Socioambiental, “o desmatamento

Ibidem, p. 370.
14

15
“O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar,
porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que es-
távamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas
vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a
nossa demanda.” (Krenak, 2019, p. 45)

31
no primeiro trimestre deste ano [2020] foi 51% maior que
o mesmo período do ano passado.”16 Essas árvores derruba-
das são potencial combustível para queimadas que prova-
velmente serão ainda mais avassaladoras do que as de 2019.
Como assumido cavaleiro da morte esse presidente se recusa
a ver de frente a pandemia, ele a nega, como nega as ques-
tões socioambientais ou a destruição e violência associadas
ao período da ditadura de 1964-1985, que ele prefere enxer-
gar como uma fase heroica e modelar. Seu negacionismo de
raiz se associa a uma incapacidade patológica de empatia e
de solidariedade. O “outro”, nesta visão de mundo, merece
apenas o seu apagamento. O monolinguismo fundamentalista
nega a pluralidade e a diferença. O “outricídio” se dá tanto em
termos culturais, extinguindo tentativamente toda produção
cultural e destruindo etnias, sobretudo as culturas indígenas
e quilombolas, seus alvos prediletos, o que indica também a
sua covardia intrínseca. Os povos da megadiversidade, indí-
genas e quilombolas, são os antípodas do modelo de pensa-
mento fascista “outricida”. Necropolítica e ultraliberalismo,
nesse sentido, andam de mãos dadas, vide o desmonte dos di-
reitos trabalhistas que está sendo realizado desde o governo
Temer, que continuou em 2019 e agora, durante a pandemia,
procurando-se extirpar os poucos direitos que sobraram, re-
duzindo o trabalhador a uma situação de total desamparo. O
ultraliberalismo é apenas a expressão contemporânea da em-
presa colonial que sempre quis reduzir a terra à commodity e
o trabalhador à escravo.

Desmatamento na Amazônia cresce e pode gerar novas queimadas, dis-


16

ponível em https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-monito-
ramento/desmatamento-na-amazonia-cresce-e-pode-gerar-novas-quei-
madas, visitada em 25 abr. 2020.

32
A pandemia de corona além de tornar a morte onipresente,
obriga-nos a uma reclusão que impede que enterremos nos-
sos parentes e amigos. O próprio luto fica barrado. Trata-se
de uma morte que vem com a morte da própria morte, o que
destrói nossos quadros de referência e barra a simbolização.
Para piorar a situação no Brasil, acrescenta-se a isso tudo
um governo que assume a morte como seu mote. Aprovei-
ta-se o período conturbado e caótico, sem um ministro que
lidere o combate à doença (uma vez que o ex-ministro da
saúde Luiz Henrique Mandetta foi demitido em plena pande-
mia e substituído por um administrador empenhado em mi-
nimizar a gravidade da crise – que não durou nem um mês
no cargo) para realizar um desmonte do país. Por exemplo,
o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, assinou recen-
temente (06/04/2020) um despacho que anistia terras des-
matadas até 2008 em Áreas de Conservação Permanente da
Mata Atlântica, facultando o uso “produtivo” desses locais.
Essa autorização da destruição ratifica o ecocídio praticado
freneticamente. Tudo que propicie a máxima exploração
dos trabalhadores e da natureza é validado pelo governo
Bolsonaro. No dia 23 de abril, Bolsonaro baixou uma por-
taria que autoriza civis a adquirir 550 unidades de muni-
ção por mês. Ao invés do combate à pandemia, o incentivo
aos armamentos, a construção de um exército de milicianos
com potencial inimaginável de morte e destruição.
Existe um descompasso evidente entre a radicalidade dessa
política da destruição e da morte e, por outro lado, o movimento
de cuidado e de proteção da população, exigido em um momen-
to de pandemia. O presidente, nas poucas vezes que se dignou
a falar do tema, adere, como mencionei, a soluções mágicas,
como medicamentos comprovadamente pouco eficazes e até
perigosos para o combate ao covid19. Outro ponto que mobiliza

33
este governo, que depois de demitir o Ministro da Justiça, está
colocando a Polícia Federal a serviço da família do presidente
e de seus novos aliados no chamado Centrão, é a expansão do
controle da população, por meio de acesso a dados dos celulares
e computadores, como a sua localização. O panóptico digital ali-
menta um presidente ávido de informações da ABIN (Agência
Brasileira de Inteligência) e da Polícia Federal.
Nesse contexto, a saída proposta por Krenak e sustentada
pelas palavras de Kopenawa, de que temos que nos abrir para
as demandas da Terra, sem dúvida é difícil de se traduzir em
prática. Mas o império da morte, com seus dois cavaleiros do
apocalipse Bolsonaro e Corona servindo de escudeiros momen-
tâneos, não há de triunfar tão rapidamente ou sem resistência.
A própria publicação do texto de Krenak, composto a partir de
três falas ministradas em abril deste ano, é uma prova disso.
Ele mesmo nos lança seus paraquedas coloridos, indicando a
necessidade de revermos nossa ideia de “normalidade” diante
da crise da pandemia e do desgoverno Bolsonaro. Krenak nos
faz lembrar também de outros pensadores que, no século XX,
vivendo situações limite, aporias e encurralamentos, quando
a morte também se estendia sob boa parte do mundo. É o caso
de Walter Benjamin, que foi vítima do nazifascismo e que tam-
bém refletiu profundamente sobre a necessidade de frearmos
o modelo de sociedade que associou o capitalismo a um modelo
destruidor de técnica.17 Benjamin resumiu a sua crítica ao pro-
gresso no modelo industrializante europeu com essa forte ima-
gem: “Marx afirma que as revoluções são as locomotivas da
história do mundo. Mas talvez isso seja totalmente diferente.

Remeto sobre essa teoria da técnica em Benjamin ao meu artigo re-


17

cente: “Filosofia da Técnica: Arte como um novo campo de ação lúdico


(Spielraum) em Benjamin e Flusser”. Em: ARTEFILOSOFIA, n. 26, p. 52-
85, jul. 2019 (também disponível online).

34
Talvez as revoluções sejam o acionar do freio de emergência
pela humanidade que viaja neste trem.”18 Benjamin, desde seu
importante ensaio sobre o surrealismo, de 1929, também este-
ve ocupado com um projeto que nos lembra muito a apologia e
a centralidade dos sonhos e do transe xamânico nas culturas
ameríndias: “Mobilizar para a revolução as forças da embria-
guez”.19 Evidentemente, a ideia de “revolução”, como vimos,
não é parte do arcabouço ameríndio e sim um fruto de nosso
pensamento judaico-cristão (e a seu modo marxista no caso de
Benjamin). Mas isso não implica que não possamos encontrar
afinidades aqui, pois Benjamin era um pensador do “tempo do
agora” (Jetztzeit), que valorizava a ideia de curtos-circuitos
temporais na produção de mudanças vitais. O mesmo se dá no
xamanismo e no mundo dos sonhos, onde tampouco existe a
fronteira entre passado, presente e futuro.
Para Benjamin, essa conquista das forças da embriaguez
para a revolução estava associada também ao que ele deno-
minou de “organização do pessimismo”.20 Nada mais atual.
A tarefa que ele se colocava era a de alterar radicalmente a
relação entre a política e a moral a partir dessa mobilização
das forças da embriaguez. Benjamin adere ao que ele acre-
dita ser a alternativa dada pelos surrealistas. Nessa visão,
em oposição ao otimismo burguês da socialdemocracia e ao
“arcabouço imagético” dos seus poetas, prega-se um pessi-
mismo de princípio como guia para a mudança. E sobretudo:
trata-se de uma clara consciência de que o único “avanço”

18
Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, Vol. II: Essays, Vorträge,
Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1980, p. 1232.
19
Walter Benjamin, Obras escolhidas, v. I, Magia e técnica, arte e políti-
ca, trad. S.P. Rouanet, revisão técnica Márcio Seligmann-Silva, São Pau-
lo, Brasiliense, 2012, p. 33.
20
Ibidem, p. 34.

35
alcançável no atual modelo capitalista (seja nos anos 1930,
seja nos 2020) é o da técnica que leva à destruição. Tam-
bém essa ideia é luminar hoje, nesses tempos de nuvens
negras, rios de dejeto, de oceanos de piche, destruição de
florestas e de pandemias. Para organizar o pessimismo se-
ria necessário “simplesmente extirpar a metáfora moral da
esfera da política, e descobrir no espaço da ação política o
espaço completo da imagem.”21 Ou seja, tratava-se e trata-se,
ontem como hoje, de reconhecer na política voltada para o
moralismo, para a “luta contra os corruptos”, para a higiene
que eliminaria os “esquerdistas”, a mais clara expressão do
fascismo. A luta política se dá como uma batalha de ima-
gens e pensadores como Kopenawa e Krenak, assim como
artistas, poetas, trabalhadores e intelectuais, produzem a
cada dia novas imagens que se opõem à pretensa verdade
monológica que os donos do poder procuram impor. Essas
outras imagens mobilizam nossas paixões e sustentam no-
vas e robustas subjetividades, formam outras coletividades
e amparam a resistência.
Benjamin também se dedicou à “embriaguez” do haxixe,
que ele consumiu para estudar os seus efeitos na nossa men-
te, e foi alguém que procurou trazer para sua teoria a força
do sonho. Como ele anotou no seu livro sobre as passagens
de Paris: “No sonho, em que diante dos olhos de cada época
surge em imagens a época seguinte, esta aparece associada
a elementos da história primeva, ou seja, de uma sociedade
sem classes. As experiências desta sociedade, que têm seu
depósito no inconsciente do coletivo, geram, em interação
com o novo, a utopia que deixou seu rastro em mil configu-
rações da vida, das construções duradouras até as modas

Ibidem, p. 34.
21

36
passageiras.”22 Saber sentir e perceber esses fragmentos de
utopia dispersos na superfície da sociedade e na sua histó-
ria é um primeiro passo para se iniciar a sua concretização.
Benjamin, em suma, também nos presenteou com uma série
de paraquedas coloridos para enfrentarmos os tempos som-
brios e aprendermos a romper com nossos muros e paredes,
saltar com paraquedas coloridos e a cair de modo mais suave.
Por fim, concluo essas reflexões, desencadeadas pelo
isolamento e pela pandemia da covid19 que agora se espa-
lha por todo o mundo e já vitimou mais de 200 mil pessoas
(25/04/2020), sendo 4 mil no Brasil, recordando um poeta,
portanto um outro criador de paraquedas, que sobreviveu
a campos de concentração nazistas onde perdeu seus pais.
Refiro-me a Paul Celan. Ele possui um poema que tenho re-
lido nestes dias. Seu título é “Corona”. “Corona” (coroa) em
italiano é também o nome da indicação que se coloca sobre
uma nota para aumentar o seu valor e que em português
se denomina suspensão ou fermata. Esta última expressão
também vem do italiano e significa “parada”. Ela pode in-
dicar tanto a extensão de uma nota como de uma parada,
do silêncio. O poema de Celan “Corona” trata do tempo e do
dar-se do próprio tempo. Na primeira estrofe lemos, na tra-
dução de Mauricio Cardozo:

O outono come suas folhas na minha mão: somos


amigos.
Descascamos das nozes a hora e a ensinamos a ir:
a hora volta de novo pra casca.

Benjamin, Passagens, org. Willi Bolle e Olgária Matos, trad. Irene Aron
22

e Cleonice Paes Barreto Mourão, São Paulo, Belo Horizonte, Editora


UFMG, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 41.

37
Esta “hora”, ou “tempo” (“Zeit”), que volta à casca é um
tempo tanto do ciclo da natureza, quanto o tempo das re-
lações humanas. O poema, como acontece muito na poéti-
ca de Celan, dirige-se a um “tu” e fala de um “nós”, de um
encontro. Trata-se da construção de uma epifania, marcada
pelo encontro de duas pessoas, que rompe a continuidade
temporal, “é domingo”, instaurando tanto o esquecimento
(papoula) quanto a memória. O poema continua:

No espelho é domingo,
no sonho se dorme,
na boca, a verdade.

Meu olho desce até o sexo dos amantes:


nós nos vemos,
nós nos dizemos coisas obscuras,
nós nos amamos como papoula e memória,
dormimos como vinho nas conchas,
como o mar no sangue que raia da lua.

Nós juntos na janela, eles nos olham da rua:


tá na hora de saber!
Tá na hora de a pedra se acostumar a florir,
de a inquietude fazer bater um coração.
Tá na hora de estar na hora.
Tá na hora.

Esse tempo instaurado, o tempo do tempo, pode ser lido


como um renascimento a partir da onipresença da morte.
Dos corpos que se encontram, renasce a vida. As pedras na
poética de Celan quase sempre remetem à morte e à neces-
sidade de se fazer o luto. Depois da morte, no reencontro

38
com o “outro”, a vida volta a fluir: “Tá na hora de a pedra se
acostumar a florir”. O que mais me interessa em “Corona”
no nosso contexto é essa sua estrofe final. A imagem desse
casal à janela e de um saber que subitamente é instaurado e
rompe com a linearidade do tempo. Ele rompe também com
o “lugar confinado”, para retomarmos a epígrafe de Krenak.
A pedra que vai florir é associada ao coração que bate. O
tempo que nasce é um tempo puro, sem passado ou futuro,
simples instância do devir, do dar-se, para além do apocalip-
se e da redenção. Sem o medo do fim e sem a esperança vã
da revolução messiânica. “A hora volta de novo pra casca”,
“die Zeit kehrt zurück in die Schale”. “Tá na hora de estar na
hora”, “Es ist Zeit, daß es Zeit wird”: já é tempo que o tempo
se concretize.
Não seria essa temporalidade irmã daquela que permite
que construamos nossos paraquedas coloridos? Caminhemos
da corona para a fermata, em direção ao tempo da suspensão.
O tempo reinstaurado abre espaço para que despenquemos,
em rede, mediatizados e unidos pelos nossos poros eletrôni-
cos, mas não só, “em paraquedas coloridos”, rompendo com
as aporias. Não seria essa consciência da “fermata”, da sus-
pensão do tempo, o primeiro passo para que agarremos no
freio de emergência de que nos fala Benjamin? Já é mais do
que tempo.

39
Caos/Colapso/Cola lá
Beto Bianchi
Grajaú, Rio de Janeiro, 13 de maio de 2020
O Baile da Ilha Fiscal
Nuno Ramos
São Paulo, março a maio de 2020
O Baile da Ilha Fiscal
Neste 5 de março, fiz 60 anos. Depois de muito tempo
sem comemorar, dei uma festa consideravelmente grande
no quintal aqui de casa, de onde agora escrevo este texto. Foi
uma espécie de Baile da Ilha Fiscal particular. Por um triz,
não me tornei patrocinador de uma fonte trágica de conta-
minação. As fotos e vídeos que ainda me mandam, com todo
mundo abraçado, cantando e dividindo um copo, parecem
de outra era ou planeta. Que eu tenha entrado nessa catego-
ria oficial, “idoso”, em sincronia perfeita com o fechamento
epidêmico, é uma dessas ironias que trazem consigo todo o
resto do pacote – fragilidade, dificuldade de entender o que
se passa, falta de concentração, sentido de impotência. Uma
casa isolada em meio a uma pandemia tem de fato algo de
um asilo de velhinhos.
No entanto, o mundo ruge lá fora, num duplo apocalipse
onde o primeiro, o vírus, é sequestrado o tempo todo pelo
segundo, o bolsonarismo. A hora em que inevitavelmente
coincidiriam, em que o segundo se renderia ao primeiro,
unificando o horror, parece não chegar nunca, num enlou-
quecimento de significados públicos em que os motivos in-
dividuais (o “idoso” a que passaria a pertencer) perdem
qualquer relevância. Mais: será mesmo que a grande cisão

43
(essa que o Baile anunciaria) já chegou ou estará ainda por
vir? Qual degrau exatamente de nossa peculiar descida aos
infernos alcançamos até aqui?

***

Há um sentimento constante que me acompanha por todo


o labirinto da casa – a raiva. Estou exausto de raiva. A lenta
e inexorável naturalização do absurdo em que a vida políti-
ca brasileira se transformou ao menos desde o impeachment
de Dilma Rousseff, com um duplo twist carpado a partir da
eleição de Bolsonaro, chegou, finalmente, à minha mais pro-
funda intimidade. É no corpo, não na mente, que a sinto. Sob
o comando, e a ameaça, de Dona Macroeconomia, essa rai-
nha da Alice mandando cortar todas as cabeças que vê pela
frente, fomos emparedados a ponto de aceitar que um ser
que limpa o nariz e em seguida estende a mão à população,
durante a mais violenta pandemia desde a gripe espanho-
la, seja nosso Presidente. Além de Dona Macro, foi também
uma estranha Balança, que punha este… como chamá-lo?…
numa ponta, e Lula ou o PT ou a esquerda ou Chico Buar-
que ou o populismo ou Moby Dick ou o que fosse na outra,
como se mensuráveis por um só mecanismo. O que se natu-
ralizou aqui foi a anomalia completa de uma das extremida-
des, como parte do jogo. Não era. Não foram apenas finan-
ciamento corrupto da vida pública nem irresponsabilidade
fiscal – que teriam derrubado um partido e um presidente,
mas não o próprio sistema democrático, entronizando seu
pior inimigo – que nos trouxeram até aqui. Fomos também
vítimas de uma rainha criminosa-serial (“Cortem a cabeça
dele!”), a quem ninguém lembrou de dizer que era, ela mes-
ma, uma entre as demais cartas do baralho (como fizeram

44
Alice e a atual pandemia), e da apropriação indébita de um
instrumento arquetípico de justiça – uma balança abstrata,
pendurada por toda parte, equalizando o que não podia ser
equalizado.

***

Agora, aguente. Passeio entre o sentimento cosmopolita-


-viral que nos une a todo o planeta, e a mediocridade provin-
ciana, encarnada num maluco. Um sístole-diástole perigoso,
que pode levar à pane cardíaca. De um lado, o sofrimento
italiano, por exemplo, me oferece um lugar. Sou italiano,
agora. Gilberto Gil cantando Volare com a netinha. Pertenço
àquilo. De outro, o rosto odioso num pronunciamento que
não quer dizer nada, pois será desmentido daqui a duas ho-
ras em algum tweet. Tenho nojo até da contração facial, ela
mesma autoritária. Entre a expansão piedosa, planetária,
e a contração raivosa, local e claustrofóbica, tento acertar
meu passo.

***

Em primeiro lugar, como chamá-lo? Não quero brindá-lo


com o pronome das eleições – Ele, não –, que me parece qua-
se nobre. Sou da época em que um locutor radiofônico usa-
va este mesmo pronome quando Pelé pegava na bola: Ele…
Como chamá-lo, então? Tirano? Imbecil? Genocida? Nada
parece suficiente, nem se encaixa bem. O nome próprio é
ainda um pouco melhor, isolando-o de um contágio de tipo
paradigmático. Algo da identidade bolsonarista aparece nes-
ta dificuldade. Há uma casualidade em seu percurso que a
facada, mais do que qualquer outro episódio, encarna – este

45
poderia-não-ser-assim enfumaça seu contorno e torna difí-
cil a nomeação. O pesadelo de tê-lo por presidente continua
inacreditável – como nomear aquilo em que não se acredita?

***

Que Bolsonaro quer o poder, parece óbvio – afinal, fala em


reeleição desde o segundo dia de mandato e pensa num Gol-
pe desde o primeiro, chegando a implorar por cenas de rua,
à Chile, para promovê-lo. Mas tenho que confessar minha
dificuldade em entender para que quer o poder. Não consi-
go organizar direito isso em minha cabeça. Para que o ca-
pitalismo mais descontrolado impere, os ricos fiquem ain-
da mais ricos e os direitos dos deserdados desapareçam de
vez? Sim, com certeza, mas é preciso confessar que haveria
formas mais precisas e econômicas de fazê-lo. O próprio ví-
rus lhe ofereceu uma oportunidade de acesso a grupos que
lhe renderiam um verdadeiro passe livre, imperial e refor-
mista. Mas escolheu apostar exclusivamente em seu pró-
prio grupo identitário, perdendo os demais.
Para promover, então, o retorno de valores arcaicos ou
tradicionais (família, religião)? Mas não há nada tradicio-
nal num incendiário de quartéis ou num defensor do estu-
pro, muito menos naqueles que o cercam. Sua ideia de poder
parece, antes de mais nada, a de sacanear e agredir alguém,
um inimigo verdadeiro ou imaginário – ou o primeiro que
passar. É assim que o bolsonarismo entende o mundo – al-
guém precisa urgentemente sofrer, perder, apanhar. Ser
caluniado. Morto. Há algo pré ou pós político aqui (ou, se
se quiser, num sentido mais antropológico, de essencialmen-
te político) – a simples potência de agressão, isolada e dis-
funcional, perturbando a todos o tempo todo, pensando na

46
própria reprodução, ameaçando por dentro os projetos que
veicula. Difícil lidar com isso, formular isso, trazer esse bi-
cho às palavras. Xingar o bolsonarismo, ao modo das redes
sociais, não ajuda, e tentar compreendê-lo, relacioná-lo a ou-
tros fenômenos etc., parece já lento e dignificante demais.
Levado até o fim, deixará de pé um único e último otário,
o próprio Mito, os olhos voltados para trás, como o anjo de
Benjamin, mas, ao contrário dele, rindo da merda que fez.

***

Tentei o Hermógenes. Não é o Hermógenes.

***

O tempo da pandemia, entre nós, é o tempo mesmo da


política. São idênticos. Claro que há, em qualquer país, con-
tágio entre as duas coisas, mas aqui sobrepõem-se até tor-
narem-se indistintos. Pois é próprio de um impulso como o
do bolsonarismo entrar nas coisas o tempo todo e sempre
pelo revés, pelo ralo, pelo incêndio, pelo tornar pior e mais
violento. Não há hiato, não há pausa, e a identidade em seu
sentido mais pobre, o permanecer assim, o reaparecer igual,
é seu núcleo. Ao invés de despolitizar o vírus, portanto, será
preciso, de nosso lado, politizá-lo loucamente. E não é para
fazer isso depois, quando a quarentena terminar, quando a
vida se normalizar e voltarmos pra rua (essa miragem). É
agora. A luta mais chocante de todas está acontecendo nes-
te exato momento – pessoas são mandadas à morte. Esses
Grandes Sacanas, esse combo de ressentimento popular
com sadismo de elite, não para nem vai parar nunca. So-
frem, como os zumbis das séries e dos filmes B, de uma fome

47
que não pode ser saciada. Nós é que temos de pará-los, ainda
que fechados em nossa casa. Nossa quarentena não deve ter
nada de doméstica. Não pode ser feita de minisséries, lei-
turas de Proust, cuidados com orquídeas – nossa varanda
deve se transformar, não sei como, numa arena pública.

***

Como reagir a tamanha falta de vergonha, que começa por


chamar esse mico de Mito? A ausência completa de vergo-
nha não é o capital primeiro dessa turma? Seria um Tricks-
ter, então, uma dessas divindades perversas, um Hermes ou
Loki, que pousou em Brasília? Claro que não. Pois não há
uma “inteligência astuciosa” aqui, uma Mètis grega – ape-
nas a luz branca da violência iluminando infindavelmente,
sem nenhuma vergonha, a triste cena que ela mesma cria.
É que o patrimônio político de Bolsonaro não é propriamente
político – é a violência estrita. Sua entronização, no limite, vem
do crescimento progressivo, até 63 mil/ano, dos mortos por
assassinato que assombraram, por mais de duas décadas, os
governos democráticos, sem que nada fosse feito (número que,
para ser fiel à verdade, começou a cair em 2016, no governo
Temer). São estes mortos que se cansaram de nós, ligaram o
foda-se e entronizaram seu próprio carrasco. Neste sentido, há
muito mais, e muito menos, em Bolsonaro do que a execução
extremada e desvergonhada do projeto da Direita mais per-
versa (flexibilização radical dos direitos trabalhistas, culpabi-
lização e abandono permanente dos excluídos à própria sorte
etc.). Isso tudo ocorre, e em níveis altíssimos, pois não se per-
deria uma oportunidade dessas. Mas é preciso reconhecer que
Bolsonaro também atrapalha, em parte, este projeto, ou que
jogou fora a oportunidade de maximizá-lo ainda mais.

48
***

Até a pandemia, creio que o país se dividia em três fatias:


1) os Bolsonaristas, para quem o mundo inteiro se resume a:
a) bolsonaristas, b) comunistas, c) corruptos; 2) os “Natura-
listas”, para quem o bolsonarismo seria administrável, em
especial se Dona Macroeconomia nos encarasse com simpa-
tia; 3) Os “Catastrofistas” (o leitor já deve ter percebido que
me incluo nesta categoria), para quem o custo da destruição
universal e minuciosa que o bolsonarismo pressupõe seria
sempre impossível de pagar. Bem, ao que parece, o primeiro
grupo, ainda que levemente declinante, mantém-se estável
e assim ficará, independentemente do que o presidente faça.
O segundo grupo, depois da pandemia, é que vai migrando
velozmente para o terceiro. Alguma coisa meio estranha no
jeito dos zumbis andarem parece afinal ter chamado a aten-
ção dos súditos da Rainha Macro. O bolsonarismo simples-
mente não funciona. Tem dificuldade para amarrar o sapa-
to, abrir uma porta, chamar um táxi, ler um teleprompter,
assinar o nome. Que dirá de organizar uma prova do Enem.
Seu barato de fato não é funcionar, mas destruir, caluniar,
mentir. Não dá para contar com ele.
Assim, bastava que os dois últimos grupos, Naturalistas
e Catastrofistas, negociassem suas versões de nossa histó-
ria recente e mandassem essa excrescência para seu devido
lugar – aqueles vinte por cento de fascistas estridentes que
nunca alcançam o centro do poder. Confesso que acreditei
que isto fosse possível, e durante as últimas eleições tor-
ci demais por isso, mas hoje me parece ainda mais difícil.
Exatamente porque esta excrescência alcançou o poder, o
antigo país não está disponível, esperando por nós. Foi pro-
funda e irrevogavelmente transformado pelos 15 meses de

49
bolsonarismo. A mitologia de dois gêmeos inimigos (PSDB e
PT) servidos por um primo cruzado tosco (PMDB) e lutan-
do para negar a mútua identidade, já não serve. Perdemos
seus defeitos, mas, também, e principalmente, suas virtu-
des. Pois há um patrimônio unificado da Nova República,
de Itamar a Dilma, que estamos passivamente deixando ri-
far, já que ninguém reivindica em sua totalidade – o SUS, a
universalização do ensino, a estabilização da moeda, o Bol-
sa Família, o acesso de etnias minoritárias ao Ensino Supe-
rior, a potencialização do Sistema S, a demarcação de terras
indígenas. Todos com problemas em escala atlântica, mas
incrivelmente generosos. Todos dependentes de institui-
ções intermediárias, famosas ou anônimas, como um halo
de bondade que mantém o país de pé, e que o bolsonarismo
vai cuidadosamente aniquilando. Há algo comum a este pa-
trimônio que, por isso mesmo, ninguém consegue chamar
inteiramente a si.
Pois é muito difícil vencer a pergunta fatal, que grita cada
vez mais alto e divide irremediavelmente os dois grupos:
como pudemos chegar a uma barbaridade dessas? Difícil
ignorar a potência deste ato expiatório – culpar – e simples-
mente seguir adiante, colher os destroços pelo chão e re-
construir o país. Essa resposta teremos de dar, antes de en-
trar em qualquer palco: vamos mesmo para o pau expiatório
(como faz Ciro Gomes) ou, diante de uma emergência viral-
-política muito maior, dormir com o antigo inimigo (mas não
com o atual)?

***

Que país é este? era a pergunta que a gente ouvia numa


pista de dança, nos anos de 1980, quando eu tinha vinte e

50
poucos anos. Brasil, mostra a tua cara, dizia outra canção
dessa época. Hoje, do quintal da minha quarentena, olhan-
do as trepadeiras do muro, o país chega a mim sob a forma
exclusiva da distância e do longínquo, no eco de um motor,
na vaga textura de um grito batendo contra o arrimo de con-
creto. É deste lugar em suspenso, sem poder sair de casa,
que recuso, por falsa, a cara que ele me mostra, faz mesmo
questão de mostrar, sem vergonha nenhuma (e a dificuldade
de toda uma equipe ministerial em usar uma simples más-
cara também diz muito, aqui – essa gente não pode perder a
referência do próprio rosto nem por um segundo).
Algo daqueles quadros de De Chirico, com suas locomoti-
vas perdidas num espaço enorme, vem à minha memória.
Ainda há fumaça ali, mas não movimento. O espaço da cul-
tura italiana, o “como é doce a Perspectiva!” com que Paolo
Ucello se referia a ela, parece ter-se transformado num es-
quema vazio de onde qualquer movimento foi excluído e onde
os passos humanos, se ensaiados, perderiam toda a potência.
É o oposto exato do Futurismo de Marinetti, com aquele en-
tusiasmo cinético que leva, no entanto, à Guerra. O mundo de
De Chirico é um “mundo sem nós”– por sua fumaça imóvel é
mais difícil o fascismo entrar.
Mas este eco que bate no muro, onde procuro os sinais,
as cifras de alguma coisa que faça sentido, será atropelado em
breve pela gritaria da tevê, do Uol, da frase aflita, da boa-
taria. Por isso sei que devo me orgulhar do que não sei, e
essa frase é mais preciosa para mim do que sua banalidade
socrática. Ainda que em regime de urgência, devemos ter
paciência conosco, com nossa dificuldade de formulação.
Quem interpreta o Brasil hoje, e com boçalidade inédita, são
os próprios zumbis. Têm explicação para tudo. O atirador da
Virgínia manipula melhor que ninguém o código-Brasil, que

51
lhe serve de fundo a todas as brutalidades. Há um maoísmo
às avessas nessa gente, começando tudo do zero. Pois a eles
basta inverter. Vivem de um parasitismo por inversão, mas
ainda simétrico, sem criação nenhuma. A escravidão fez bem
aos povos escravizados, por exemplo (frase do presidente
da Fundação Palmares – de novo, a absoluta falta de vergo-
nha). Precisamos, em contraposição, honrar certo silêncio,
pedir licença antes de dizer alguma coisa, levar a sério estes
amuletos da empatia linguística: veja bem, talvez, você não
acha que etc. Os índios da América do Norte referiam-se aos
brancos como “uma espécie zoológica que faz uso imoderado
da fala” (Lévi-Strauss, A oleira ciumenta). Os bolsonaristas
são herdeiros destes invasores falastrões. Hoje, a estridên-
cia é bolsonarista.

***

Há, no entanto, um período de nosso cinema profunda-


mente estridente, que quero convocar aqui. Se algo em nos-
sa cultura “pegou” o bolsonarismo e adjacências, propondo
uma saída, terá sido o Cinema Marginal (cinquenta anos
atrás). A falta de horizonte explicitamente político (ao con-
trário do pai fundador, Glauber Rocha); o consumo como
dejeto, quase lixo; a duração de cada plano do filme (daí o
amor pelos planos-sequência), como uma espécie de última
fronteira (ou seja, o filme quase acaba a cada vez que um
plano termina); a coincidência meio documental do tempo
do plano com o tempo do real, apesar da antologia de ab-
surdos nada documental à nossa frente; a violência como
Forma do filme, presente na atuação, na trilha, no corte, no
movimento de câmera – tudo isso foi compondo um corpo
de resistência inconfundível, que o cinema brasileiro deixou

52
pra trás por décadas e que filmes como “Branco sai, preto
fica” parecem de algum modo reconectar.
Se as personagens giram e giram numa loquacidade sem
fim é porque o chão coletivo, político, simbólico, o que seja, dis-
solveu-se debaixo delas com o golpe dentro do golpe (o AI-5), e
também o Milagre Econômico. Gritam o próprio nome para
que não derretam à nossa frente. Constroem dessa forma a
continuidade que lhes falta historicamente – repetindo-se,
voltando a si, presas num autocircuito (de gestos, de vestu-
ário, de frases), para de alguma forma orientar-se (e a nós
que as assistimos). Repetem-se para sobreviver num lugar
onde nada do que foi dito, escrito, combinado, pode ser leva-
do a sério. “Eu fracassei…. tinha de avacalhar”; “A solução
para o Brasil é o extermínio, o extermínio total”, diz o Ban-
dido da Luz Vermelha. Tudo foi traído, e ainda num clima
nacional-megalômano (com Dona Macroeconomia uivando:
“Milagre! Milagre!”). Matar a família (Matou a família e foi
ao cinema); compartilhar a mulher (A mulher de todos);
fundir o consumo ao crime (O bandido da luz vermelha);
as religiões afro em tecla incestuosa (Copacabana, mon
amour); a própria tortura (Hitler no terceiro mundo) – to-
dos os valores foram examinados, devastados, expurgados,
canibalizados, furados com faca e muito, muito sangue.
São filmes que tomam, assim, esta virada da década pelo
que de fato era: uma (sedutora) fraude. A partir desta fres-
ta profundamente higiênica, ética mesmo, o cinema margi-
nal liberou uma interminável energia empoçada, superan-
do contradições entre a alta e a baixa cultura, o feminino
e o masculino, o profundo e o superficial, o irresponsável
e o político, em termos mais violentos do que tinha feito o
Tropicalismo. Em termos inegociáveis. É este o tônus que
volta a nós, agora. Como representar este bando de abutres,

53
ou mesmo diante deles? Por esta fresta, respondem estes
filmes, e somente por ela, nos termos do nosso próprio con-
trato, é que o real poderá um dia nos recompensar. Com Luiz
Gonzaga, por exemplo, cantando “Boca de forno” no alto do
morro, num travelling interminável (Sem essa, aranha,
1970) – será que o cinema brasileiro alguma vez filmou ta-
manha realeza e alegria?

***

Me alonguei ao evocar o Cinema Marginal, talvez porque


nessa evocação haja algo paradoxalmente tranquilizador:
para ele, o apocalipse já tinha se instaurado. Havia um chão
“negativo” diante de si, dado pelo AI-5, a fossa mais profunda
do inferno de 64, e pelo Milagre Econômico, este aliciador dos
condenados. E nós? Já atingimos o fundo? Teremos chegado
ao pico da nossa curva? Nosso Baile da Ilha Fiscal já ocorreu
ou o grande cataclisma que ele anuncia está ainda por vir?
Até onde vai o bolsonarismo? Pois, para tornar mais pessi-
mista um mote lindo de Arnaldo Antunes, o real resiste, sim,
mas também do lado de lá.
No caso da pandemia, as apostas são bastante díspares,
mas têm alguns termos fixos, que as organizam – isolamento
social, economia, número de mortos, vacina. Mas o que di-
zer desse nosso segundo apocalipse, exclusivo e particular?
Tanques ocuparão as ruas?; haverá impeachment?; vere-
mos F-10s a toda velocidade disparando arminhas e armo-
nas contra os prédios de Higienópolis?; coveiros em greve?;
milicianos impondo quarentena?; traficantes encerrando
quarentenas? Estamos durante, antes ou depois do nosso
destino?

54
***

Li na Internet a seguinte pergunta – Como um fascista


mente?
Bem, ele não mente – desmente. Ele nega o que disse e
nos acusa de tê-lo dito por ele. Cria uma câmara de ecos (na
rede social, por exemplo) onde a energia do que disse, do seu
“ato” verbal, já se perdeu completamente – e é nessa perda
mesma que ele investe. Um fascista mente sem gramática,
não por ignorância (isso não seria nenhum problema, errar
a gramática), mas porque precisa de uma dispersão linguís-
tica que beire o ininteligível e onde, embora o sentido do que
diz seja claro (por exemplo, “dar um Golpe”), o contrário
também estará dito ali, numa frasezinha lateral e aparen-
temente sem sentido, para que possa ser resgatada, caso ne-
cessário. Mais do que de falsidade, a mentira fascista é um
caso de covardia.
Lembro-me de um trecho de um ensaio famoso de Lévi-S-
trauss (“Introdução à obra de Marcel Mauss”), em que ele
afirma que a linguagem teria nascido de uma só vez, bumba
– haveria, por isso, e para sempre, um excedente do Signi-
ficante sobre o Significado (mais possibilidades de signifi-
cação do que significados efetivamente adquiridos), numa
“servidão de todo pensamento finito mas garantia de toda
arte, poesia, invenção mítica”. A mentira fascista é o con-
trário disso. É o aprisionamento deste significante numa câ-
mara de ecos onde, como pássaros batendo contra o vidro,
os significados repetem-se sem parar, até deixá-lo exausto,
em choque.

55
***

Há uma figura mítica, telúrica, que atravessa as mais


diversas culturas – o “Anão sem ânus”, espécie de titã da
retenção. Defecar é, em alguma medida, separar-se de si, e
é isto o que esta figura problematiza (Lévi-Strauss, A olei-
ra ciumenta). Embora liberadora do grotesco, a energia do
bolsonarismo vem desta mesma região. Pois este festim ou
estridência espalhafatosos, esta falta de vergonha, esconde,
como mostra a comparação com o Cinema Marginal, o seu
avesso. É para reter, prender, conter, sob um escombro qual-
quer de autoridade, que ele veio ao mundo. Que Bolsonaro
não tenha mostrado seu sangue depois da facada, apenas
seus dejetos intestinais, é prova desse pertencimento. Foi ao
revelar publicamente, num saquinho de colostomia, a maté-
ria de que é feito, que Bolsonaro, fugindo aos debates televi-
sivos (a um tipo qualquer de Logos, digamos), firmou-se país
afora. A facada trouxe à luz o que não conseguia sair por
falta de ânus (daí sua importância central nesta tragédia).
Não o sangue vermelho dos mártires, mas o marrom de um
dejeto intestinal. Bolsonaro é um anão sem ânus.

***
Sentem-se e negociem
À vontade, velhas raposas prateadas.
Vamos emparedá-las num palácio esplêndido
Com comida, vinho, boas camas e fogo
Contanto que negociem e tragam acordo
Às vidas de nossos filhos e às suas.

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Que toda a sabedoria da criação
Concorra para abençoar suas mentes
E as conduza pelo labirinto.
Aqui fora, no frio, esperaremos nós,
O exército dos mortos em vão,
Nós do Marne e de Montecassino,
De Treblinka, de Dresden e Hiroshima:
E estarão conosco
Os leprosos e os tracomatosos
Os desaparecidos de Buenos Aires,
Os mortos do Camboja e os moribundos da Etiópia,
Os derrotados de Praga,
Os exangues de Calcutá,
Os inocentes massacrados em Bolonha.
Ai de vocês se saírem em desacordo:
Serão esmagados pelo nosso abraço.
Somos invencíveis porque vencidos.
Invulneráveis porque já extintos:
Nós rimos de seus mísseis.
Sentem-se e negociem
Até que suas línguas sequem:
Se persistirem o dano e a vergonha
Nós as afogaremos em nossa podridão.

O poema é de Primo Levi (utilizei a tradução de Maurício


Santana Dias, em Mil Sóis, ed. Todavia, 2019), sobreviven-
te de Auschwitz. Diante do que parece uma negociação po-
lítica (um tratado de limitação de armas atômicas?), Levi
convoca os mortos. São eles que oferecem aos negociadores
cama, comida, calor. São eles também que mostram paciên-
cia, como simpáticos tutores. O pressuposto do poema é que
os vivos, neste caso os políticos, estão inteiramente em suas
mãos. São aqueles “invencíveis porque vencidos/invulnerá-
veis porque já extintos” que dão as cartas. Mas atenção.

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Se algo sair errado… se não fizerem o que vieram fazer… to-
mem cuidado conosco… serão esmagados por nosso abraço.
Chegou a hora de o Brasil convocar seus mortos. Não os
mais famosos, as pessoas exemplares, os santos, as figuras
históricas, aqueles cuja biografia é lembrada nos jornais, em
nomes de rua. Involuntariamente, estes já pertencem, está-
tuas de bronze em plintos de pedra, ao fio de horrores que
nos trouxe até aqui. O caso agora é grave demais.
Precisamos dos mortos anônimos, recentes, mandados
por seu presidente aos hospitais sem leito, para que mor-
ram afogados numa maca. Precisamos de cada criança le-
vada por uma bala perdida, a quem ninguém lembrou de
explicar o que quer dizer essa palavra, perdida. Precisamos
de cada cabecinha sob a mira oficial de um fuzil. Precisamos
dos mortos por motivo fútil – por um desconhecido, um vizi-
nho, um rival no trânsito, um ex-amigo, um parente, a quem
pareceu tão “natural” fazer isso. A banalidade que alcança-
mos agora não é a do mal, mas a da morte mesma. Precisa-
mos da indiazinha contaminada pelo vírus que o pregador
trouxe na bíblia. E se não nos comportarmos à altura, se não
fizermos o que devemos fazer (e com certeza não estamos
fazendo), que venha o abraço de podridão dessa gente.

58
Quarentena e insônia
Rafael Climent-Espino
Waco, Texas, 21 de abril de 2020
Quarentena e insônia
Tão eficaz foi a quarentena, que chegou o dia
em que a situação de emergência passou a ser
encarada como coisa natural e se organizou
a vida de tal maneira que o trabalho retomou
seu ritmo e ninguém voltou a se preocupar
com o inútil costume de dormir.

Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão

Terça, 21 de abril, 2020. Acordo de manhã, surpreso pelo


canto dos pássaros, normalmente é o barulho dos carros
que me acorda. Não dormi bem, tive um pouco de insônia,
e sonhei coisas esquisitas, mas nunca me lembro bem dos
sonhos. Abro os olhos com preguiça ainda na cama, e nes-
se instante inesperado volta o mesmo odioso primeiro pen-
samento do dia desde há semanas, quantos mortos haverá
hoje? Tentando pensar em outras coisas, escovo os dentes e
lavo a cara, enquanto enxugo o rosto penso que não lembro
bem se a pasta de dentes tinha gosto de pasta de dentes, os
contagiados perdem o gosto e o olfato, a doença se chama
anosmia. Ponho um pouco de pasta de dentes no indicador,
antes de pôr o dedo na boca, respiro e penso caaalmaaa,
olho no espelho e vejo alguém que não tem cara de doente,

60
passo o indicador por toda a língua, o gosto e o cheiro a men-
ta é claro e intenso, devo estar ficando hipocondríaco de ler
toda essa informação sobre o covid-19, quantos mortos ha-
verá hoje? O pensamento é recorrente.
Vou para a cozinha, preparo um café, será que ponho hoje
um pouco de açúcar? Os últimos dias foram amargos… eu
queria tirar completamente o açúcar da comida, ponho um
pouco. Ligo o computador e vou para a página do El País
Espanha já preocupado, quantos mortos haverá hoje? To-
mara que menos do que ontem. Eu moro em Waco, no centro
do Texas, minha família no sul da Espanha, na Andaluzia.
Lá a situação parece mais tranquila do que nas áreas ur-
banas e no norte do país, eles moram em uma região rural
rodeada por milhões de oliveiras. “La cifra de muertos dia-
rios en España con coronavirus registra un ligero repunte
hasta los 431 fallecidos”. Mais do que ontem. O ziguezague
de mortos das últimas semanas é atordoante. As manche-
tes não deixam muita esperança para o otimismo, leio uma
última manchete, “Malos tiempos para ser joven”. O 90%
das pessoas que morreram na Espanha tinham mais de 60
anos, penso no azar de muitas delas que sofreram a guerra
civil, a pós-guerra, os anos da fome, a ditadura franquista e
ainda tiveram um fim ruim, sozinhos em suas casas, ou em
hospitais sem suas famílias poderem estar perto deles ou
acompanhá-los nos últimos momentos, isso me entristece.
Reflito que sempre é um tempo ruim para não ser jovem e
por isso nunca há manchetes como “Maus tempos para ser
idoso”. Clico no El País Brasil, dou uma olhada, as manche-
tes me espantam, fecho. O nome do vírus se viralizou nas
suas diferentes versões – COVID-19, Covid-19, covid-19 –,
aparece em todo lugar, não há notícia que não faça referên-
cia a ele, páginas contagiadas da informação do vírus. Não

61
gosto que o vírus se chame de covid e também não gosto de
escrevê-lo em maiúscula, não merece. Minha forma de com-
bater o vírus é ortográfica, escrevo em minúscula. Numa di-
gressão filológica boba reflito que “co” me lembra do prefixo
co- e “vid” de vida; “covid” poderia ter sido um nome legal de
ONG: “COm VIDa?”, “COnVIDA?”, “COoperação e VIDa?”…
Um vírus tão ruim mereceria ser nomeado doutro jeito. On-
tem assisti no YouTube uma performance do Arnaldo Antu-
nes, mestre de palavras, se pudesse lhe pediria que nome-
asse e inclusive desse entonação ao nome do vírus, certeza
que concordaria comigo em que não devia ser “covid”.
Enquanto mastigo uma torrada com azeite, tomate e
sal… queria tirar completamente o sal da comida… repa-
ro que ontem não falei com minha mãe. Ligo, a conversa
é sempre igual nas últimas semanas, a mesma pergunta
“Mamá, ¿cómo estás?”, e a mesma resposta “Bien, sin po-
der salir a la calle, ¿cómo estás tú?”. Há quase um mês que
é proibido sair à rua na Espanha. Então ela me pergunta
sobre o número de mortes e se eu acho que vai melhorar a
situação. E sempre falo que acho que vai. Após a conversa,
abro o The New York Times, leio a manchete principal:
“Trump planeja suspender a imigração aos EUA”, chega,
fecho o jornal.
O dia aqui está ótimo e decido fazer uma caminhada, só
se permite sair para fazer esporte. Vou no Cameron Park,
há anos eu caminho nesse parque três ou quatro vezes por
semana. Por causa do vírus no último mês quase não há
trânsito e poucas pessoas vão no parque, há muito menos
barulho e poluição. É primavera, tudo está florescendo, há
tartarugas, esquilos, um monte de pássaros. Pela primeira
vez nesses anos, reparo na intensidade do canto dos pássa-
ros, …por que antes não os ouvia?, fico muito surpreso com

62
o cheiro de algumas árvores e arbustos …por que antes não
percebia esse cheiro?. Há nome para a doença de não ouvir
os pássaros e não perceber o cheiro das árvores em tempos
de não-vírus? Não gostaria de converter o Arnaldo Antunes
em nomeador de doenças, mas também lhe perguntaria
sobre isso. Volto pra casa, tomo banho. Mudamos todas as
aulas presenciais para online por causa do vírus. Dois estu-
dantes o pegaram, malos tiempos para ser joven. Após três
aulas online seguidas, são quase 7 da noite.
É o melhor momento do dia, deito no sofá, leio – crôni-
cas de Carlos Monsiváis, um romance de Carlos de Brito e
Mello – e escrevo – um texto sobre Miguel Ángel Asturias.
22:35, faço um sanduíche de presunto e queijo …queria ti-
rar completamente o queijo da comida… Antes de ir dor-
mir, assisto a um programa onde parodiam as políticas
do governo. Depois, deito na cama, fecho os olhos, e vou
pegando no sono pouco a pouco …Quantos mortos haverá
amanhã?… Porra!

63
O inferno sem os outros
Márcio Venício Barbosa
Natal, 25 de abril de 2020
O inferno sem os outros
Creio ter uma certa capacidade de me adaptar às situa-
ções, sobretudo às situações ruins. Não quero, com isso, con-
tar nenhuma vantagem. É apenas uma conclusão alcança-
da enquanto pensava no convite feito para falar da minha
quarentena. Essa adaptação é mais uma economia de esfor-
ços, não chega ao conformismo. Ela impede, por exemplo, a
revolta inútil e perigosa: um revoltado sozinho, entre quatro
paredes, além de não poder chegar longe, não vai fazer boa
coisa.
Mas comecemos pelas quatro paredes. O que é o inferno
sem os outros? Geograficamente falando, encontro-me em
uma situação privilegiada, pois tenho bem mais de quatro
paredes para ecoar os poucos barulhos que faço. Penso,
claro, no pequeno inferno de muitos mundo afora, encer-
rados, literalmente, apenas entre quatro paredes, parti-
lhadas com famílias enormes. Isso às vezes alivia, por ter
uma dose de sofrimento inferior à de boa parte da humani-
dade, numa escala montada com os valores cuja podridão
está hoje escancarada. Mas às vezes faz parecer que mi-
nhas paredes se revestem de impotência.
Gostaria de poder fazer uma análise conjuntural da polí-
tica e da economia sustentadas pelo liberalismo, sobretudo
agora, quando o mais ínfimo dos seres consegue, pelo menos,

65
fazer com que todas as mazelas sejam vistas com o perigo que
sempre representaram e, cansadas dos habituais sofredores,
passam a atingir todos nós. Mas faltam-me os conhecimentos
necessários para isso.
Volto ao meu inferno, desconfiando estarem os “outros”
sartreanos todos em mim. Nisso Sartre não pensou, mas
Deleuze sim. Claro que dá vontade de rir. Cada um é um
inferno. No meu (ou deveria dizer: em mim?) ocorre um
amálgama de sensações passadas, projetos e desejos, sem
permitir nenhum freio para organizar sua ocorrência. O
fato de o mundo estar trancado lá fora diminui as inter-
ferências externas e a consciência corre solta, como ne-
nhum surrealista pensou que fosse possível.
Já consertei o mundo e, consequentemente, minha vida,
centenas de vezes nesses dias. Mas a cada dia, como todas
as pessoas em seu confinamento, acordo nesse looping do-
minical. Dá uma certa raiva descobrir na realidade a lógica
das ficções científicas. Há coisas mais agradáveis quando
estão no papel, e coisas difíceis de se limitar à horizontali-
dade formal da escrita com toda a intensidade com que se
manifestam. Assim acontece com essas reflexões, irrompi-
das sem nenhuma linearidade, num fluxo descontrolado.
Penso, então, em todas tentativas de escrituras buscando
romper com essa linearidade. No mundo de papel, apenas
o fragmento, talvez, consiga um efeito de simultaneidade
próximo de um êxito nesse sentido.
Fragmentados, meus sentimentos confinados poderiam
se resumir em poucas palavras (ou poucos significantes,
como minha memória estruturalista insiste em dizer!):
fora, fome, ordem, nada.
Fora: É impossível conceber estar dentro de um espaço
limitado sem pensar no fora que o constitui. O que há fora,

66
que faz tanta falta? Há pessoas, às quais todos somos gra-
tos, claro, mantendo a continuidade do mundo em tarefas
essenciais. Mas há pessoas desafiando despudoradamente
o perigo para defender valores que continuarão matan-
do mais do que qualquer vírus… Há também um mundo
natural recuperando pequenos espaços para respirar
livremente, uma vida selvagem exibindo sua liberdade em
um zoológico às avessas… Mas, para a maioria das pesso-
as, há uma série de atividades latentes, lacradas e etique-
tadas com um grande “agora não”. Nesse sentido, a adap-
tação de que falava no início, me diz simplesmente: se sair,
você não vai encontrar o que espera!
Fome: É a fome do Arnaldo Antunes! Não é só de comi-
da, mas a comida ajuda a preencher os vazios, para aque-
les que têm fogão, panela e o que pôr dentro delas. As mi-
lhares de horas de programas culinários nunca foram tão
úteis! Também nunca foram tão úteis as fugazes lives dos
tantos aplicativos. Assim como nunca foi tão evidente a
necessidade de educação, ciência e cultura, às quais todos
se voltam hoje, percebendo que vínhamos podando uma
árvore antes que ela desse seus frutos e, no momento da
fome, restam poucas folhas para nos alimentar. Impossí-
vel não pensar numa fome de justiça nesse momento.
Ordem: Barriga cheia, olhos cansados das telas, falta de
paciência com os livros… O que resta? Organizar o tesouro
guardado em nossos sésamos. Não há uma tentativa de or-
ganização desacompanhada da pergunta: por que guardo
isso? Nessa hora, o tesouro vira tralha. Não há uma expli-
cação lógica para a existência de tantas cópias amareladas
de xerox, tantos livros que nunca vão ser lidos, tantas pa-
nelas que nunca vão esquentar seus fundos no fogão, tantas
roupas que só vão ser usadas pelos cabides… Organizamos,

67
limpamos, descartamos, doamos… Enfim, ordem! Onde?
Continua o fluxo desordenado!
Nada: Já falei do inferno de Sartre, não queria falar tam-
bém do seu nada. Mas a toda hora me parece que o mun-
do está mergulhado numa grande náusea. As milhares
de mortes por toda parte, que cada um torce, no mínimo,
para permanecerem em estatísticas, sem ganhar rostos
queridos, associadas a esse confinamento que nos reduz ao
mínimo possível, trazem a pergunta inevitável: para quê?
Fora do supérfluo que mantém a economia, que, por sua
vez, mantém a miséria, o que sobra?
Esses pequenos fragmentos me ocupam e dão tons dife-
renciados à cor monótona dos dias iguais. Com eles, vou
intercalando lembranças, principalmente, desejos e pro-
jetos para uma vida que ninguém sabe ainda como vai
ser “quando tudo passar” (frase recorrente nos discursos
otimistas). Continuo como o sujeito do Zeca Baleiro, que
qualquer beijo de novela faz chorar, pensando justamente
nisso: quando teremos o toque, as lágrimas, os abraços e
beijos. Em suma: quando meu inferno será, novamente, os
outros?

68
END
Toti Meer
Valparaíso, Chile, março de 2020

Ficha Técnica
El trabajo “END” pertenece a una serie de trabajos
que el artista ha realizado en su encierro voluntario
durante la pandemia covid-19 en su casa-taller, em-
plazada en la localidad de Concón, en la ciudad de Val-
paraíso, Chile.
DIMENSIONES: 0,75 x 0,60 Mts.
TÉCNICA: Ensamblaje (Objetos de madera, placas
acrílicas, pintura acrílica, acuarela, grafito y tinta sobre
fieltro rojo).
A estupidez no século XXI
Júlio Pinto
Chapel Hill, Carolina do Norte, 25 de abril de 2020
A estupidez no século XXI
O lugar comum, hoje em dia, é o de dizer que estamos na
era da informação. E, geralmente, temos um problema com
o senso comum, pois ele se funda em uma ideologia que,
muitas vezes, fica inquestionada e, por isso, incide em erro.
Quero dizer, desde o início, que, na minha opinião, temos um
equívoco com essa denominação de Era da Informação que,
de tão repetida, virou senso comum e ninguém questiona,
porque, como se lembram, o concreto é a parcela do abstra-
to que o uso tornou familiar. A razão para esse comentário
desdobra-se em duas partes.
A primeira parte é que a informação, pensada como algo
que fica lá guardado, em algum escaninho (hoje em dia, esse
escaninho é sempre eletrônico), é o sustentáculo de toda
uma sociedade. Ora, é-o apenas em parte. Digo em parte,
porque ela, em seu estado de informação guardada, acumu-
lando poeira iônica, por assim dizer, é só latente. Ela fica
lá (e, no caso da informação armazenada eletronicamente,
ninguém sabe exatamente onde é esse lá), à espera de al-
guém que a use. E ela fica lá guardada em uma forma que
somente as máquinas entendem. Deixemo-las quietas por
um instante e vamos pensar em nós.
Ora, nós, os chamados seres humanos, compartilha-
mos com os demais seres vivos uma característica muito

72
interessante. O organismo vivo está vivo porque depende
da percepção de algo a que se pode chamar de informação
para se alimentar, para se defender, para se reproduzir, em
suma, para viver.
É preciso, aqui, fazer uma parada para uma consideração
teórica da maior importância. É que o sentido da palavra
percepção, tal como nós a usamos, não é muito correto. Ge-
ralmente pressupomos que é a operação de captação de uma
realidade externa, mediante um processo de recepção de in-
formações dessa realidade. Na verdade, a coisa é bem mais
complexa que isso, e tem a ver com um antigo ditado latino,
agere secundum esse, isto é, o agir se conforma ao ser. Vou
explicar isso melhor, citando Humberto Maturana:

[S]eres vivos são sistemas dinâmicos determinados estrutural-


mente, e tudo o que acontece neles é determinado a cada instante
por sua estrutura. Isso significa que o meio não pode especificar o
que acontece num sistema vivo, e que pode apenas desencadear em
sua estrutura mudanças determinadas por sua estrutura. Como
resultado disso, constitutivamente, um sistema vivo opera sempre
em congruência estrutural com o meio, e existe como tal somen-
te na medida em que essa congruência estrutural (adaptação) for
conservada. Caso contrário, ele se desintegra. Nessas circunstân-
cias, o fenômeno conotado pela palavra percepção consiste na as-
sociação, pelo observador, das regularidades de comportamento
que ele ou ela distingue no organismo observado, às condições do
meio que ele ou ela vê desencadear. O observador usa tais regu-
laridades comportamentais para caracterizar objetos perceptivos.
Isso se aplica a todos os seres vivos, incluindo o observador. A ex-
plicação da percepção no contexto do determinismo estrutural dos
sistemas vivos invalida qualquer tentativa de dar conta do fenôme-
no da cognição (incluindo a linguagem) com noções que implicam a

73
denotação ou conotação do domínio da realidade independente das
distinções do observador.1

Trocando em miúdos, dizem que um sapo não tem, em


sua aparelhagem ocular e nervosa, nenhum registro para a
imobilidade. Isso quer dizer que ele não está equipado para
ver nada que esteja imóvel. Ele só vê o inseto que será seu
alimento quando esse inseto se mexer. Em outras palavras,
a mera existência do inseto não garante comida para o sapo.
Isto é, o inseto imóvel é uma informação latente porque está
fora da estruturalidade do sapo, isto é, está fora daquilo que,
sapalmente, seria a linguagem dele, já que linguagem é mui-
to mais que uma língua. A informação real – isto é, aquilo
que está na linguagem dele – é quando ele se mexe. Aí, sim,
o sapo o vê e dele se alimenta. E o que é ver? Ver é perceber
uma informação visual e processá-la no sistema nervoso.
Ver é participar de um processo de comunicação. Comuni-
cação, nesse sentido, é o processo de pegar uma informação
e interpretá-la, quer dizer, torná-la relevante para o orga-
nismo, na medida em que essa informação é colocada no que
podemos chamar de espaço de interação do organismo com
seu meio. Nietzsche fala disso de maneira mais poética, mas,
nem por isso, menos verdadeira: “não há forma na natureza
porque não há nem interior nem exterior. Toda arte nasce
no espelho do olho”.2
Já começamos a vislumbrar a ideia que informação sem
comunicação é o mesmo que um inseto imóvel para o sapo,
isto é, não é nada. Podemos dar um passo adiante: a comu-
nicação é a própria interface. Aí está a primeira parte da

Humberto Maturana e Jorge Mpodozis, Percepção: configuração do ob-


1

jeto pela conduta, Arch. Biol. Med. Exp., n. 20, p. 319-324. 1987.
Friedrich Nietzsche, O livro do filósofo, Porto, Ed. Rés, s.d., p. 59.
2

74
razão pela qual eu disse que o nome Era da Informação é
equivocado. Deveria ser Era da Comunicação.
A segunda parte tem a ver com um outro aspecto dessa
mesma informação. Vou privilegiar as tecnologias digitais
porque está todo mundo preocupado com elas, se bem que,
na maior parte, a preocupação das pessoas se resume em
aprender a usá-las. Uma das coisas que muito se diz a res-
peito dessas tecnologias é que elas revolucionam a forma de
estocar e disseminar a informação. Fazem isso por causa
de sua enorme versatilidade, rapidez, memória e possibili-
dades de interatividade. Deposita-se grande esperança na
instantaneidade e nas possibilidades interativas das novas
tecnologias eletrônicas. Mas, em parte, essa esperança se
deve a uma atitude de deslumbramento diante da máquina
inteligente, quase uma reversão ao pensamento mágico
pré-moderno.
Com efeito, parece mesmo haver mágica na relação quase
binária que temos com os computadores que, por sua vez,
também dependem de uma lógica binária para sua opera-
ção, essa lógica binária sendo o 1 e o 0, o on e o off, o liga-des-
liga. Digo “quase binária” porque a presença das interfaces
amigáveis, com seus ícones autoexplanatórios, provoca uma
relação que parece ser do tipo ação e reação (clico no mouse
aqui e acontece ali). Isso aí é o binário, isto é, o um é o clicar,
o dois é o acontecer. O acontecer segue o clicar. Entretan-
to, é uma questão de aparência, porque, na verdade, outros
termos entram em ação que produzem algo visível na tela
como resultado de todo um processo. Mas, é também verda-
de, contudo, que o resultado provém de um encadeamento
de relações binárias executadas a grande velocidade. Seja
como for, minha percepção como usuário-consulente (não
é quase isso o que somos diante do oráculo maquínico?) é

75
de quase instantaneidade e de uma ação resultante de um
toque meu. Eu faço um gesto e coisas acontecem.
Ora, essa relação binária imediata e mágica (assim como
o controle remoto do aparelho de TV, varinha de condão
contemporânea) reflete, mutatis mutandis, o pensamento
mágico. E o pensamento mágico não é senão pensar que a
palavra tem um poder real em relação ao mundo das coisas:
a fórmula encantatória, o abracadabra, o encanto que deve
ser dito para que algo extraordinário aconteça. Digo a fór-
mula mágica e com ela inverto as leis da natureza. A magia
se funda também na binariedade, na medida em que não há
interpretação possível: há apenas o sinal verbal ou gestual e
seu resultado fixado, previsto, numa relação de pertinência
de um para um. Um sinal ou uma palavra, um resultado. Em
outras palavras, falamos de simbologia: um símbolo e algo
que não precisa de explicação. Ele diz.
Ora, a magia é uma espécie de tecnologia, uma tecnolo-
gia sem ciência. E o que é uma ciência? A ciência se funda
na dúvida e no querer saber. O não saber produz o saber.
Em outras palavras, a ciência se funda na pergunta, e não
nas respostas. A ciência quer saber o porquê, ela quer fazer
a pergunta fundante. Na magia, assim como na tecnologia,
aprendo as fórmulas e manipulo o mundo, como vimos. E,
em ambas, a minha primeira pergunta não é “por que?” mas
“como?”
O receio é, portanto, que a tecnologia esteja sendo vista do
mesmo jeito que a magia. O que se diz, por exemplo, quando
se fala em aprender informática, refere-se ao aprendizado
mecânico, quase maquínico, dos procedimentos que se de-
vem seguir para a correta aplicação de um programa ou
aplicativo (o nome é autoexplicativo), seguindo a lógica da
programação. As explicações para esses procedimentos, se

76
alguém pergunta por que, sempre parecem ser “é assim por-
que é assim que foi feito”.
Se a ciência se funda nas perguntas, as tecnologias se
manifestam como respostas cujas perguntas foram, para-
doxalmente, suprimidas ou substituídas por outras, menos
fundamentais e mais imediatas. Perguntas típicas seriam:
“Como retratar fielmente o fluxo de caixa de minha empre-
sa?” ou “Como facilitar a rastreabilidade das informações e
dos procedimentos de produção em minha fábrica?”. Para
elas a resposta é um certo software, que, certamente, de-
mandará treinamento (e não ensino) de algum funcionário,
aprendiz de mágico, para sua correta execução. Como se vê,
essas perguntas talvez não sejam, a rigor, científicas, mas
são, elas também, tecnológicas.
Por trás disso tudo está um receio: o de que a dissemina-
ção quase total das tecnologias digitais está tendo impactos
cognitivos. Estamos ficando mais estúpidos. A tecnologia so-
zinha é ingênua como a magia. Ela é uma resposta pronta
para perguntas prontas. Ela é o que algum costureiro imagi-
na que todas as mulheres vão querer vestir. A tecnologia é
uma roupa de pronta entrega. E ela é assim porque ela deixa
de lado uma coisa fundamental que está na ciência: suas dú-
vidas são superficiais.
Pior: o binarismo do faz aqui, acontece ali, ou diz aqui,
acontece lá, é o caminho mais fácil para o dogma e o fun-
damentalismo, a visão de mundo que não aceita a dúvida.
Assim como o computador é uma máquina burra, porque é
dogmática (para ele o dado ora é, ora não é), o uso dogmáti-
co que o humano faz da linguagem a binariza, na medida em
que faz subsumir, na representação, aquilo que é represen-
tado com aquilo que é interpretado. A interpretação pode
até ser análoga à representação ou ao representado, mas

77
não é igual. No fundamentalismo, a interpretação é igual ao
representado. Não há a diferença. Em outras palavras, algo
é algo e fim de conversa.
Por que isso se dá? Um conceito crucial para a noção de
continuum informacional é o de ordem. Na ordem, nada
deve mudar, sob pena de não ser reconhecido. Entretanto, e
por isso mesmo, parece haver um medo da estridência (que
é um nomezinho que prefiro ao tradicional ruído) e uma in-
sistência na forma fixa e na ordem, que é o que redunda em
fundamentalismo ou excessiva aderência a princípios ope-
racionais aceitos meio sem pensar.
Acho que agora posso falar da nossa atual quarentena.
E de como o fundamentalismo reinante não consegue dar
conta dela, a não ser negando-a. O Covid 19 não passa de
uma gripezinha, dizem. E, por isso, posso sair pela cidade
cumprimentando as pessoas com apertos de mão e espir-
rando na cara delas. E, como existe nesse fundamentalismo
um mito, um símbolo messiânico, a palavra dele se configu-
ra lei e não admite interpretações. Não importa que o signi-
ficado – milhares de mortes e dificuldades hospitalares de
toda ordem – produza interpretações que sugerem métodos
científicos, porque acreditamos que a ciência não serve para
nada porque temos um líder, um messias que me guia e cuja
palavra constitui a lei. Seja no Brasil, seja nos Estados Unidos,
seja onde for, se o líder diz que posso tomar injeção de desin-
fetante para matar o vírus, eu tomo e morro porque minha
fé é cega. Quer dizer, minha interpretação é igual ao signifi-
cado que ele me transmitiu. Não preciso pensar.

78
Porque pensar é hesitar, pensar é saber que não se está
nem dentro nem fora, como quer Nietzsche, é interpretar
sem a certeza da mágica.3

Outras obras consultadas: Justus Buchler, Philosophical Writings of


3

Peirce, New York, Dover, 1955; Herch Moysés Nussenzveig (org.), Com-
plexidade e caos, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, COPEA, 1999; Julio Pinto,
O ruído e outras inutilidades, Belo Horizonte, Autêntica, 2002; Paul
Virilio, A imagem virtual mental e instrumental, em André Parente
(org.), Imagem-máquina: a era das tecnologias do virtual, Rio de Janeiro,
Editora 34, 1993, p. 127-132.

79
Zürich WB
Eduardo Jorge de Oliveira
Zurique, abril-maio de 2020
Zürich WB
Isto não é o começo de um diário. Talvez não seja um. Me-
nos. São notas de leitura ainda em desordem, pois não tive-
ram o tempo necessário de organização para serem escri-
tas. Imagens de pensamento. Denkbilder: conceito nada fácil
de Walter Benjamin que, nas palavras de João Barrento, se
aproxima da linguagem imediata em termos de forma breve,
aforismo, fragmento pequena crônica, citações. Benjamin
anota que “uma eficácia literária significativa só pode nas-
cer de uma rigorosa alternância entre ação e escrita.”1 Essa
é a primeira nota do livro. No interior dela existe uma di-
mensão prática que desvia da finalidade universal do livro:
“Terá de cultivar e aperfeiçoar, no panfleto, na brochura, no
artigo de jornal, no cartaz, aquelas formas despretensiosas
que se ajustam melhor à sua influência sobre comunidades
ativas do que o ambicioso gesto universal do livro.”2 As con-
tingências possuem uma autoridade na obra do autor de
tal forma que os termos “obra” e “autor” oscilam com o ar
dos tempos. Ao sentir a respiração, escrevo algumas notas

Walter Benjamin, Imagens de pensamento, ed. e trad. João Barrento,


1

Lisboa, Assírio & Alvim, 2018, p. 9.


Ibidem.
2

81
imitando alguém que precisa preparar as malas para uma
viagem imediata e imprevista sem saber quando volta e se
retorna. Mesmo que o retorno seja certo, essa pessoa não
voltará a mesma. O que levar por um período que se passará
fora para que não se perca totalmente os laços com o tempo
da vida que levava? São algumas anotações entre urgências
de sirenes e manchetes, ao lado de uma demora no luto pelos
mortos pela Covid-19, cujo ponto de partida destes escritos
busca entender que o tempo de confinamento é muito mais
um convite para abandonar o tempo íntimo do que um modo
de se esconder em si mesmo. Talvez seja essa uma subjetivi-
dade de relógio na qual se deve acordar um tempo ampliado
de escuta e de renúncia de si, pois há uma dimensão de exí-
lio enquanto pessoas – conhecidas ou não – morrem, outras
estão hospitalizadas e outras contaminadas ou em vias de
serem. O que dizer para elas e sobre elas que não seja a tra-
dução de uma experiência espectral, sentir-se fantasma ao
manter a distância entre os corpos e, ao mesmo tempo, exis-
tir ampliando a própria pele, de modo que ela constitui uma
nova membrana invisível e plasmática, além de uma nova
fronteira que não pode ser ultrapassada por possivelmen-
te por a própria respiração em risco. A leitura do ensaio de
Paul Preciado deu um parâmetro para a nova fronteira: “La
nueva frontera es la mascarilla. El aire que respiras debe ser
solo tuyo. La nueva frontera es tu epidermis. El nuevo Lam-
pedusa es tu piel.”3 O texto foi publicado no jornal El País
no dia 28.03.2020. Enquanto as fronteiras geograficamente
distantes encurtaram as fronteiras pessoais se ampliaram

Paul Preciado. “Aprendiendo del virus.” El País. Disponível em: https://


3

elpais.com/elpais/2020/03/27/opinion/1585316952_026489.html?s-
sm=FB_CC&fbclid=IwAR1alhSOBCSTimekB5B42ILqwi05nvhL3Iu-
QkLARjR4_-IOStt33Y7PRQdA

82
mais ou menos dois metros. De modo que existe um efeito de
forte contração e curta expansão que dá ao corpo a sensação
de ser um fantasma. Essa foi uma nota de leitura do texto de
Preciado que é muito mais rico que esse breve comentário.
Ao ler Benjamin e Preciado, existe uma sensação estranha
de escrever-se, de inscrever o corpo e participar de uma co-
munidade ainda que se esteja em silêncio. Uma leitura que
compartilha do ar contaminado e do breve movimento des-
crito – forte contração e curta expansão – cuja imagem mais
próxima seria a de um airbag de um carro abrindo-se no mo-
mento de um forte impacto do veículo contra o muro. Estar
saudável é um modo de convalescença. Nesse sentido, ler é
um privilégio e dormir não deixa de ser uma experiência ra-
dical. Escrever lida com ambos, a leitura e o sono, dado que
alguém disse que a literatura é sonhar acordado. Sonhar o
sonho de outrem. Escrever praticamente equivale a andar
com cuidado nesse sonho do outro e o som da caminhada
vem do som das palavras vindo dos próprios dedos contra
o teclado. A imagem de pensamento deixa-se atravessar
pela imagem do sono do outro, o som de uma vida exterior
e involuntária capaz de receber o som da passagem de al-
guns carros, dos trams, de caminhões com mercadorias que
não deixaram de passar pela rua Seilergraben, em Zurique.
Este corpo ainda é tocado simultaneamente pelo silêncio da
Härig-Strasse que também deixa a outra rua passar por ela.
Por isso não falo apenas de mim quando escrevo na primei-
ra pessoa do singular. E possivelmente não falo apenas por
mim. A singularidade das preposições me permite perceber
posições prévias, a ser permeável aos acontecimentos do
mundo e à responsabilidade dos meus mortos, isto é, dos
mortos que animo quando escrevo, cito, rememoro ou de-
senvolvo alguma ideia física. Essa escrita está atravessada

83
– e motivada – por leituras em silêncio ou em voz alta, por
troca de mensagens, telefonemas, fotografias, desenhos, en-
contro fortuito com objetos do passado e uma atenção frágil
diante da música. Dispersão e dificuldade de concentração,
dois fatores da urgência do presente, se unem numa afinida-
de ativa em torno da possibilidade de reter e esquecer uma
palavra chave para a ambiência da Covid-19: a respiração.

O sono e o negócio da respiração


Contar um sonho é por uma nova história no mundo e tal-
vez seja isso que sustente o mundo. Mesmo que uma dessas
histórias sonhadas se perca ou se dilua em outras ao longo
dos dias, talvez seu destino final seja o esquecimento. Dizem
que a palavra é metade de quem fala – ou escreve – e metade
de quem ouve ou lê. Há uma partilha no que é dito, escri-
to. Partilha que muitas vezes não é igualitária. Além disso,
existem rituais mínimos para compartilhar histórias. De-
pois de acordar de um sonho intranquilo, preparei um café,
pois uma vez a minha avó me disse que não se devia contar
um sonho em jejum. A história continuava na memória. E
essas histórias de sonhos são facílimas de desaparecer. Eva-
poram muito rápido. Por isso elas estão muito próximas da
verdade e da vida. Elas são uma espécie de caminho para
ambas. Depois do café da manhã, anotei o sonho e o número
do telefone de um amigo, a quem ia contá-la. Antes do telefo-
nema, busquei dois livros; How to Write, de Gertrude Stein,
e A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud. A combi-
nação poderia ser um exercício de bibliomancia, para usar a
expressão de Carlo Ginzburg, citada por Muriel Pic. Abrin-
do How to Write aleatoriamente na passagem da página 188,
leio a definição de Gertrude Stein para uma sentença, isto é,
uma frase. Ela escreve: “A sentence is when they express

84
that they wish that they were made of it as well which is
whatever they do. How do you do. This is a sentence.” (“Uma
frase é quando eles expressam o que desejam que eles foram
feitos disso, que é também qualquer coisa que eles fazem.
Como você faz. Isto é uma frase”). Isso é libertador. Dar uma
forma ao sonho em frases o é também. Sigmund Freud, por
sua vez, evoca uma razão técnica da interpretação do so-
nho. Ele defende a força demonstrativa da interpretação
que contextualize, caso contrário se perde sua beleza e, se-
gundo ele, uma interpretação do sonho, mesmo pouco apro-
fundada, adquire logo uma vasta amplitude que faz com que
o fio do comentário explicativo se perca, perdendo também
todas as ilustrações às quais ele possa servir. Acordar. Acor-
dar em silêncio. Perceber-se respirando. Observar o quar-
to. Lidar com o resto das imagens noturnas ainda no hálito.
Acordar com certo alívio. Pegar o smartphone ao lado – que
está permanentemente no silencioso e sem notificações ati-
vadas – para ver as horas e, depois, as mensagens. Devolvê-
-lo à mesa ao lado da cama. Olhar para o teto. Lembrar-se
que sonhou com o João Gilberto, o álbum branco de 1973.
Quando soube da morte dele, 6 de julho de 2019, estava
terminando a visita na casa-museu do Sigmund Freud, em
Londres, e que ao terminar a visita, passei na pequena loja,
sentei-me no jardim ao fundo para reler o ensaio dele Luto e
Melancolia. Retornando ao que grifei em vermelho, sobres-
saiu-se o objeto perdido que persiste na psique. Os objetos
perdidos persistem. E essa imagem do sonho me deixou uma
boa parte do dia a ouvir João Gilberto na vitrola e fiquei dei-
tado a olhar para o teto, de modo a repetir inutilmente a
experiência de acordar sem ter dormido. Inútil porque acor-
dar é um ato involuntário. Respirar também o é. A tarde a
ouvir João Gilberto me fez adiar o sono. No começo da noite,

85
peguei novamente no telefone, sem checar as mensagens e
telefonei para contar o sonho a um amigo.

Zurique: trem e o trema


Zurique é uma cidade que me dá uma forte sensação de
estar dentro de um trem e talvez por isso tenha hesitado
tanto a chegar ou sair dessa cidade tomando algum avião.
Um dos fatos que reforça essa impressão é a palavra alemã
para trem, Zug, a letra Z em comum com o começo das pala-
vras. No entanto, essa impressão é apenas visual, dado que
foneticamente os dois zês têm sons diferentes: Ts de Zug,
onde o ar mais parece o de um trem que está a chegar no seu
destino final e o Z de Zürich, é um pouco mais pausado pela
vogal U com trema. O trema amortece e mantém a sensação
de permanência. No entanto, a diferença se mantém míni-
ma: a chegada de trem na estação (Zürich Hauptbahnhof ou
simplesmente Zürich HB), ainda que brusca, demora para
chegar na cidade, pois pode-se morar em Zurique e estar ao
mesmo tempo com sensação de estar chegando. Pelo fato de
a cidade começar com a última letra do alfabeto latino, o Z,
tenho a impressão de que estou muito longe e que uma das
experiências mais fortes tem sido a de dormir e sonhar nes-
ta cidade. O sonho é o mais puro dos significantes. Parece
que estou dentro de um trem noturno cujo movimento é tão
lento que se atinge uma experiência parecida com a imobili-
dade de morar. O título deste ensaio é Zürich WB, pois deli-
beradamente incluí o monograma Walter Benjamin.

86
87
Solidão
Mário Alex Rosa
Belo Horizonte vazia, 10 de abril de 2020
Solidão
A luz solar clareia o dia
O sol expandindo o mundo
Nenhuma sombra fazia
A cidade acordou vazia

Quem diria
Um dia
A cidade amanheceria
Assim sem você
Sem cidadania

O sol clama
O sol chama
O sol não quer estar só
O sol é para todos
(o sol do teu rosto)

A cidade sozinha
A lua ilumina
Meu amor na janela
(Ainda espera)
O sol de todo santo dia

89
A casa é minha rua
Alicia Maria Parreiras Barbosa
Belo Horizonte, 26 de abril de 2020
A casa é minha rua
Chegamos aqui
Onde não é mais
Casa e nem mais
Essa distância da rua
nosso refúgio

Descobrimos

o simulacro do milagre

e do mistério e
da vida

Nesse Castelo
de cartas que
desabou

91
Às sombras de nós
No meu todo dia
Vera Casa Nova
Belo Horizonte, 30 de março de 2020
Às sombras de nós
Pensando na “banalidade do mal” com Hannah Arendt,
resolvi ler poesia e conversar com alguns de meus poetas
preferidos. Dentre esses Paul Celan, em A morte é uma flor.
Poemas do espólio, na brilhante tradução de João Barrento.
(Lisboa, edições Cotovia, 1998).

Converso com Celan sobre a morte,


Sobre as feridas,
Sobre o silêncio,
E ele me diz:
“Só a noite deves deixar falar diante dos olhos:”
E a coragem de viver
à vezes se desfaz
como um vulto da fantasia
às sombras de nós.
Ficam somente os rastros
de amor e ódio
à margem da tua nostalgia
desse amor em Marrocos.
Mas beijar a morte
é da impossibilidade do ser.
Na palavra-limiar

93
o olhar errante escorre pelo teu universo de espanto.
Ainda no rastro de nossa conversa
as imagens crescem como teu olhar deseja…
Minha roseira oferta sua beleza
a quem passa na rua.
Eu também prefiro as cascas das árvores
e assim vou vivendo no fio ou à beira da navalha.

No meu todo dia


No meu todo dia, olho a janela. Não há ninguém passando
pela rua. Entro. Varro a casa, lavo a roupa e passo, cozinho…
tornei-me uma doméstica a bem de quê? Estou pagando a
faxineira, a passadeira, o jardineiro, devidamente licencia-
dos por mim, devido ao isolamento. Acho até que eles pode-
riam vir trabalhar, mas fico receosa pela saúde deles e pela
nossa.
No celular recebo mil e uma mensagens: políticas, poéti-
cas, musicais, místicas, espirituais, pra não resumir com a
palavra “religiosas”. Algumas compartilho, outras deleto.
Me distraio nesse vai-e-vem.
Leio muito: Paul Celan, A morte é uma flor; Herberto Hel-
der, Poemas completos; Valter Hugo Mae, O paraíso são os
outros; Simone de Beauvoir: Brigitte Bardot e a síndrome
de Lolita & outros escritos. E ainda outros. Boa lista, rica,
para me fazer esquecer um pouco a tristeza das mortes pela
Covid 19. Meus amigos, os livros, são bons conselheiros.

94
Outro lado do meu pensar cotidiano: as curvas das esta-
tísticas do vírus. Tristemente mudo de canal para ver um fil-
me, um capítulo de série. Depois do jornal, nada me agrada.
Há um mal-estar que fica no gosto amargo. Meu fígado, meu
baço, meu pâncreas não gostam dessa amargura (ou desse
amargo?), desse gosto acentuado de laranja podre.
Nesses “todo o dia” volto a traduzir. A editora espera, mas
nem tanto. Para me desligar um pouco das notícias que circu-
lam, como um pedaço de chocolate “no added sugar”, “sans
sucre ajouté”, de gianduia. O chocolate me deixa menos “de-
prê” e continuo. Continuo a escrever a lápis, num caderno
que ganhei de um amigo – El Valle Sagrado (ali escrevo ver-
sos), e numa das páginas iniciais está escrito:

Recuérdate a ti mismo
Este cuaderno tiene una misión.
Será quien deba guardar
para tu futuro
la que es hoy tu verdad.
(…)
Y en ese momento
en tiempo presente
recordarás y
sonreirás
le sacudirás el polvo
y lo abrazarás
y soñarás aún más alto.

Sonharei que depois dessa pandemia, a humanidade será


outra…

95
Um pedaço
Grace Passô
São Paulo, Quarentena de 2020
Um pedaço
Empurro a porta. Do tanque de guerra.
Pesada, porque é de um tanque de guerra.
Range erótica até cair: um som de ferro sobre ferro, de
sino angustiado.
Uma pequena escada conduz um de meus pés, e depois
outro.
Alcanço o teto até ver, enfim axé, a mãe.
Ela me vê, salto dali, aquilo tem altura, torço meu pé, en-
contro apoio no chão, a mãe resmunga de longe.
Levanto, corro manca, nasce um abraço. Existe o alívio
mas isso é um pedaço.
A gente esfrega o tato, lambe a lágrima a língua, eu lato,
ela insiste em me cheirar.
Não há palavra. Elas aparecem por esmola dos sons.
Uma, duas, algumas cervejas e carne. Gargalhadas, al-
tas, em algum momento interrompidas como se fossem
roubadas.
“Você sente como se mais alguém estivesse aqui?”,
pergunto.
Ela responde que sim, que agora a morte existe mais.

97
A viagem
Sobre pandemia e afetos
Viver sobre a pandemia.
Gisele Sanglard
Teresópolis, Rio de Janeiro, entre 09 e 10 de março de 2020
A viagem
“E para você que vai viajar/o tempo é bom/sujeito a amo-
res impossíveis no final” – assim cantava o grupo Blitz em
um de seus maiores sucessos do rock dos anos de 1980 no
Brasil. Estes versos traduzem esta viagem.
Uma viagem é planejada com tempo, desenhada pela ima-
ginação. Às vezes é necessário pagar o óbolo a Caronte, para
poder conhecer o reino de Hades. Pode demorar 20 anos,
como o retorno de Ulisses, depois de diversas aventuras,
a sua Ítaca e a sua Penélope que o aguardava paciente-
mente, enquanto distraía os pretendentes ao lugar de seu
marido-rei.
Pode permitir o acesso ao reino das águas claras. E quais
outras entradas pode permitir a leitura de um livro: emo-
ções diversas, vividas e revividas a cada leitura.
Uma viagem pode significar retorno, não o de Ulisses que
volta ao ponto inicial, mas um reencontro com nosso passa-
do, com lugares onde vivemos e com pessoas queridas. Rever,
reviver.
E assim foi construída esta viagem à Suíça: rever lugares,
pessoas. Fazer novos contatos, construir pontes para o fu-
turo. Mergulhar em arquivos. Fazer conferências. Falar de
uma parte de minha vida.
Rever a paisagem dos Alpes, a vista do Mont Blanc, o
Lac Léman, a passagem da gare em Genebra com sua loja

99
de chocolates. Uma fondue moitié-moitié: gruyère-vacherin
fribourgeois. Uma de minhas madeleines… Aquela ida aos
arquivos, projetos novos surgindo.
Os pré-Alpes e meu primeiro castelo – o de Gruyère. O se-
gundo, é o da Fiocruz. O primeiro, medieval, o segundo neo-
-mourisco. Passado e presente.
Andar pelas ruas de Fribourg: a rue de Romont, a Univer-
sidade no bairro sugestivo de Miséricorde, a falésia, a rue
des Époux, la Sarine. E muitas lembranças.
O Jura, Cornol, la Cornoline e as fritures de carpes – e,
também, la tête de moine, porque não podia faltar um quei-
jo. Mais lembranças, mais sabores. Cornol de onde meus an-
cestrais partiram em 1819 para fundar uma nouvelle Fri-
bourg. Uma conferência no Musée Jurassien para falar de
um tema que me é caro: a imigração suíça ao Brasil.
O reencontro imaginado ganhou contornos doloridos: mi-
nha companheira de viagens, sem sair de sua casa, talvez
não fosse acompanhar minhas aventuras. Não teriam aque-
les telefonemas diários para contar as experiências. Não te-
ria a felicidade de saber que encontraria minha amiga-irmã.
Não teria a pergunta se tinha comido friture de carpes no
Lion d’Or, ela nunca esquecera o sabor, muito menos a per-
gunta insistente se já tinha comprado seu chocolate favori-
to: o bastão da Lindt com kirsch.
Como toda viagem é marcada pela imaginação, nesta não
faltou sentimentos os mais diversos. Quanto mais se aproxi-
mava a data da viagem mais me via mergulhada no roteiro
de um filme que vi no cinema em Fribourg. Tal qual o perso-
nagem principal do filme Le Hussard sur le toit (O cavalhei-
ro no telhado) estaria atravessando um país durante uma
epidemia. O cavalheiro fugia de anarquistas austríacos que
o tentaram matar em Aix-la-Provence. Fugia pelo território

100
francês devastado pelo cólera: vilas e cidades desertas. A
população fechada dentro das casas e dos hospitais. Morte
para todos os lados.
De mesma forma, estava eu indo em direção à epidemia –
só que não fugia de nada, ia de boa vontade em direção a ela.
Não a epidemia do cólera morbus, mas desta doença nova
– o coronavírus – que estava varrendo o velho continente,
depois de ter iniciado no Oriente. As cidades italianas em
quarentena; a França em passos largos para decretar epide-
mia. Os suíços apavorados – eventos com mais de mil pesso-
as cancelados, evitar transporte público em horário de pico.
E minha pesquisa nos arquivos da Nestlé? Como chegar à
Lausanne? Imaginei o InterCity vazio, os controladores de
máscaras… As conferências esvaziadas pela falta de públi-
co. Qual o sentido?
A cada dia a paisagem idílica ia ficando mais longe e
a opressão do caos dominava. Não poderia abraçar aos
velhos amigos.
“Você não pode viajar”.
Ao invés da irritação, o sentimento de liberdade.
A paisagem dos Alpes, dos pré-Alpes e do Jura vol-
ta a ficar colorida. Viagem adiada, pois uma viajante
apenas adia….

101
Teresópolis, 21 de março de 2020

Sobre pandemia e afetos


O coronavírus chegou e devastou o mundo, com uma ra-
pidez incrível. Supersônica. A facilidade com que as distân-
cias são vencidas na contemporaneidade, a vida frenética e
o inverno no hemisfério norte ajudaram que ele se instalasse
ceifando vidas, colapsando os serviços de saúde – mesmo
em países onde o estado de bem-estar social impera.
Aqui no Brasil ele está a chegar, com velocidade alarmante.
Uma epidemia desorganiza uma sociedade, um país – co-
letiva e individualmente. Quando a epidemia tiver passado,
o mundo será outro. Diferente do que hoje conhecemos. Do
ponto de vista pessoal, o coronavírus decidiu que não teria
férias: a ida à Suíça e aqueles dez dias que poderia ter para
mim, para poder me reencontrar, para poder me fortalecer
e enfrentar a guerra pela reabilitação da mãe deixaram de
existir. Seria uma viagem de reencontros: presente, passa-
do e, quem sabe, futuro.
A não viagem trouxe sentimentos diversos: no primeiro
momento, um enorme alívio. O fim de uma enorme preocu-
pação, que se mostrou real. Estaria presa, por não sei quan-
to tempo, na Suíça. No segundo momento, a frustração de
sua não realização.

102
Não deu tempo para que todas estas sensações se acal-
massem. Fui dominada pela crise do coronavírus: decisões
institucionais, preocupação com alunos. Férias? Quem sabe
para depois que a epidemia passar…. por ora, reuniões e
pensar o enfrentamento da epidemia.
Outras decisões apareceram. A mãe precisava sair da Clí-
nica São Vicente onde ela vinha sendo cuidada com carinho
e atenção desde 22 de janeiro – e, ao contarmos do AVC e o
breve tempo que esteve em casa, desde 28 de dezembro.
Novas emoções sobrevieram: tirá-la daquele porto segu-
ro, do cuidado daquela equipe especial. Para casa? O que se-
ria preciso em casa? Home care, empregada, gestão de todo
este cenário, trabalhando e morando em outro bairro. Esta
solução pareceu inviável.
A opção que se foi constituindo foi um hospital de baixa
complexidade, voltado aos doentes crônicos e à reabilitação.
Enquanto isso o coronavírus avançava a passos largos.
A saída dela desse lugar seguro passou a ser necessária. O
enfrentamento da epidemia precisa deixar as UTIs para os
casos graves e agudos que chegarão. Se, em condições nor-
mais, o doente crônico já não tem espaço, frente à epidemia
passa ser arriscado. O doente crônico nunca teve espaço no
hospital: quer denominado de crônico, quer como incurável
– mesmo os hospitais de caridade tinham dificuldade de li-
dar com esses pacientes.
Chegou o dia da transferência. Há uma semana não a ve-
mos por precauções devidas ao contágio sustentado da nova
doença no Rio de Janeiro. Uma semana que só temos notícia.
A transferência se dá neste momento: sem poder vê-la, sem
poder acompanhar. O que ela está percebendo de tudo isso?
Não sei se um dia saberemos…

103
A dor vem mais forte. Deixá-la sozinha num espaço dife-
rente, com pessoas diferentes, sem nossa presença, sem re-
ferências. Ao longo destes quase três meses de sofrimento,
poucas vezes fui dominada pela dor quanto hoje. Impotên-
cia, incapacidade de lidar com este período de afastamento
sem prazo de terminar. A epidemia apenas começa.
A incerteza do reencontro é por demais dolorosa.
Me seguro na certeza de que a equipe que a acompanhou
ao longo destes meses estará com ela, dando algum sentido
a este novo lugar. Referência e carinho.
Aprender a ter paciência. Aguardar. Até quando?

104
Rio de Janeiro, 03 de abril de 2020

Viver sobre a pandemia


Nos últimos três meses vivi uma montanha-russa de emo-
ções com o adoecimento da mãe. Um looping que não passou
ainda, apesar de estar um pouco sufocado pelos sentimen-
tos trazidos pela pandemia de COVID-19: medo do adoeci-
mento; espera pelo encontro com o vírus – que espero que
não seja fatal; isolamento social. Nesse meio o isolamento
significa não mais acompanhar diariamente a mãe, não ver
seus altos e baixos. Não deixar de comemorar uma reclama-
ção – momentos em que sua personalidade forte está mais
aguçada.
Ser mera espectadora de sua transferência da clínica
para um espaço voltado à reabilitação ou readequação – um
eufemismo para o estágio de cronicidade. Mais um momen-
to duro. Ao mesmo tempo, o telefone não para: precisamos
repensar o semestre letivo. Decisões institucionais a serem
tomadas. Entrevistas para veículos de imprensa: com a pan-
demia os historiadores da saúde foram requisitados. Tudo
ao mesmo tempo.
Em tempos de isolamento social imaginar-se-ia que as
redes sociais acabariam por aproximar mais as pessoas.
Mas ao contrário, percebe-se que as pessoas também se

105
recolheram por ali: as postagens diminuíram. Não há mais
fotos para serem divulgadas.
Como movimento, alguns começaram a trazer fotos de
viagens antigas, relembrar. Reviver. Em vários momentos
me pego pensando: vou ligar para mãe e contar… E ela não
está ali para ouvir. Não posso ligar para ela. Vazio. Solidão.
Vejo postagem de pessoas colocando em prática seus dotes
culinários. Terapias do isolamento. E penso, e os meus? Des-
de que a mãe adoeceu, a cozinha ficou de lado. Os almoços
de domingo não serão mais os mesmos. As reuniões sem
fim também são outro obstáculo para me dedicar à cozinha.
Ontem me aventurei. O picadinho não saiu ruim, mas quase
esqueci o champignon que havia comprado para acrescen-
tar…. A cabeça não funciona. Os colegas falam em escrever.
Alguns apontam a dificuldade, outros indicam como uma
forma de se manterem firmes. Eu, desde que a mãe adoe-
ceu, já não consigo me concentrar para escrever artigos
científicos. No máximo estes pequenos textos que falam
mais da emoção do que da razão.
Também me vejo me lembrando do passado. Outro dia re-
cebi um zap: me lembrando das faxinas no chateau Vêrá,
em Paris. As faxinas não são mais no dia internacional
da depressão, como entendia os domingos quando morei
fora. Mas na medida da necessidade: casa com piso claro e
cachorra não dá certo, principalmente sendo idosa. Além
de limpar o banheiro dela diariamente, preciso, com mais
frequência, limpar a casa toda, as marcas ficam por todo
lado.
Além da casa, outra situação me faz lembrar das esta-
das no exterior: preciso fazer pé e mão. Esta já fiz hoje e
o pé, atacarei, literalmente, amanhã. Quando a quarentena

106
acabar, estarão ambos em petição de miséria – como depois
das temporadas na Suíça e na França.
Faltam apenas a experiência culinária e os telefone-
mas para a mãe.

107
Lento o tempo
Sabrina Sedlmayer
Belo Horizonte, 02 de abril de 2020
Lento o tempo
1.0
É uma sensação de déjà vu que me assombra desde a che-
gada da Itália há uma semana. Hoje achei que Groundhog
Day, filme protagonizado por Bill Murray, lá do início de
1990, no qual um repórter se vê repentinamente obrigado a
viver o mesmo e enfadonho dia reiteradamente, como uma
espécie de castigo metafísico ou de áspero aprendizado, era o
enredo do tempo presente. Vivo o dia da marmota como Bill,
não mais em Milão, como vivi por todo fevereiro e início de
março, mas em quarentena em Belo Horizonte, Minas Gerais,
cidade emoldurada por montanhas carcomidas pela explora-
ção dos seus minérios. BH não promete cerco real nem ima-
ginário contra a epidemia do Coronavírus, como algumas ve-
zes no estrangeiro sonhei com o retorno, e vem reagindo em
alguns aspectos (ou melhor, em alguns sintomas) de forma
semelhante à rica capital da Lombardia.
É sobre essa estranha gramática que rege as nossas vidas
nos últimos tempos que desejo me aproximar nessas notas
que rascunho. Se não escuto, como no filme, as vozes de Sony
& Cher (“I got you Babe”), sou obrigada a ouvir as mesmas
notícias e estatísticas sobre o vírus, e o mais importante: na
mesma ordem.

109
O vírus é a pauta prioritária (movida pelo medo, a audi-
ência é cativa,1 sabem as mídias) e também funciona como
ritornelo ou refrão, já que os mesmos ditos são reiterados
tanto aqui como na maioria dos cantos do mundo: “evite o pâ-
nico”, “lave cuidadosamente as mãos”; “não passe as mãos
nos olhos, boca e no nariz”; “sempre que tossir, se proteja
com os braços”, “se estiver com algum desses sintomas, não
saia de casa”; “não faça parte de nenhuma aglomeração hu-
mana”; “postergue o encontro com os mais velhos da sua fa-
mília, proteja os idosos…”
As notas pedagógicas e preventivas vão se tornando va-
zias perto da paranoia que cresce em vertigem. Proliferam,
abundantes, os tons apocalípticos da mídia e dos seus repór-
teres ao mostrarem os supermercados com suas prateleiras
vazias, ou apenas para noticiar que, infelizmente, o álcool
gel e as máscaras acabaram em todas as cidades do país.
Mas tanto lá quanto aqui escutei espantada que algumas
pessoas compraram estoques para revenderem posterior-
mente, no auge da crise, com aumento de 500 a 1000%.
As infinitas mensagens (escritas e em áudio) do grupo da
família, das amigas e dos amigos, dos colegas de trabalho, to-
dos pelo WhatsApp, também não ajudam. Por elas, tive um
descompasso estranho em meados de fevereiro: lá vivíamos o
choque diante dos anúncios das primeiras mortes e, ao mes-
mo tempo, sobre as medidas de fechamento das escolas,
museus, shows, feiras, etc., junto à sugestão de reclusão do-
miciliar, enquanto pelas redes sociais, via imagens do carna-
val no Brasil. Nenhuma das minhas mensagens nesse tempo

A palavra cattiva em italiano, o contrário de buona, significa “má, ruim”. A


1

mídia como espécie de dispositivo que, ao invés de ser benéfico e informar,


também embaralha e atordoa, me remete, nesse tempo de crise, à etimolo-
gia da palavra pharmakón que é, ao mesmo tempo, saúde e veneno.

110
de festa aqui, e de recolhimento lá, foram respondidas de for-
ma empática. Na quarta-feira de cinzas fiquei sabendo que as
notícias do Coronavírus passaram a circular no Brasil. E re-
cebi algumas mensagens curiosas, outras solidárias.
Os gráficos, as entrevistas de especialistas, as estatísticas,
as charges, os memes, corroboraram a tese do filme que
aludi – e que só assisti uma única vez, quando tinha vinte
anos (e que vem agora, nessa volta do parafuso, como algo re-
lacionado a um Bildungsroman (romance de formação) sem
cafeína: tentar saltar o tempo presente é tarefa vã porque os
minutos passam muito devagar quando a liberdade de ir e vir
é tolhida). Ler muito, aproveitar o tempo para redigir os arti-
gos incompletos, desenvolver o projeto do livro acertado em
coautoria com o colega e com a editora, arrumar gavetas, lim-
par a geladeira, tudo fica opaco perto da vontade de caminhar
pela cidade, de errar e de perambular. A impotência diante da
doença que está próxima se torna uma impotência textual.
Talvez por isso o diário, essa modalidade meio covarde e que
nasceu no seio do lar burguês, como espécie de confissão e de
livro de contas.
“Armadilha do tempo” (tradução brasileira para o filme)
é, para mim, o dia de hoje

Vai, vai, vai, disse o pássaro;


O gênero humano não pode suportar
muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é
sempre o presente.
T.S. Eliot

111
2.0
Lá pelo dia 20 de fevereiro, os abraços, os apertos de mãos
e os beijos foram desaconselhados pela vigilância sanitária
italiana. Estava em Milão como visiting professor na Unimi
(Università degli Studi di Milano) e até aquela data tinha
transcorrido apenas a metade do meu curso. Me encontrava
cada vez mais próxima dos alunos, que eram jovens e amá-
veis, e oriundos das mais diversas partes do mundo: Rússia,
Venezuela, Espanha, Chile, Peru… e, entre os trinta, surpre-
endentemente havia um que falava um português embolado,
que nasceu em Pouso Alegre, Minas Gerais, justo na cidade
onde meu marido também nasceu. Era residente na Itália
desde os três anos de idade. Também me aproximava aos
poucos dos novos colegas e do ambiente da Faculdade, que
é impossível descrever aqui porque sinto-o somente sen-
sorialmente: tem a ver com o cheiro da biblioteca, do café
da máquina do departamento, com a fisionomia do portei-
ro sorridente (que nunca consegui entender o que falava),
com a alegria e com as promessas que os amplos corredores,
sempre prenhe de alunos de diversas cores, me traziam.
Uma brisa de rotina começava a se desenhar. Acordar, fa-
zer café, arrumar o apartamento, responder aos e-mails, or-
ganizar o material das aulas, ir almoçar perto da Universi-
dade com algum conhecido, dar aulas à tarde, participar de
alguma reunião com o grupo de pesquisa e, talvez, se tivesse
sorte, nesse mesmo dia fazer um aperitivo com os colegas lá
pelas 19h para fechar a lida e não ir para casa tão cedo (para
não ficar mais tempo sozinha).
Foi num domingo que recebi a notícia que as aulas esta-
vam suspensas a partir do próximo dia letivo. Decreto, me-
dida de emergência. Não entendi nada no primeiro momen-
to. Como não havia entendido por que, quando cheguei dias

112
atrás, em Lisboa, não fui atendida no aeroporto abarrotado
de gente e na Itália, num aeroporto vazio, tive meus olhos
examinados e respondi um questionário em que afirmei que
não tinha febre, gripe nem dores no corpo.
O objetivo da interrupção das aulas e de todas as ativida-
des presenciais, diziam, era tutelar a saúde e a vigilância
pública da comunidade universitária (e em geral) contra a
disseminação do vírus. O comunicado do Reitor era lacônico
em relação à causa da medida, mas, tal como em Kafka, des-
crevia pormenorizadamente o que não poderia acontecer:
encontro presencial. As aulas deveriam ser retomadas pe-
los professores através da “modalità telemática”. Nunca ha-
via dado aula virtual. Não só porque sou desengonçada em
tudo que se refere às imagens, mas porque gosto das aulas
expositivas, a energia da sala de aula. Vencer a vergonha de
fazer um vídeo e o medo de ele ser péssimo foi complicado.
Ruminava: se um dos objetivos do intercâmbio acadêmico
era dar aulas, por que fazer ali o que poderia fazer na minha
casa e na minha universidade?
Recordei, na altura, de um recurso que usava sempre
quando me deparava com alunos (seja da Graduação, do
Mestrado ou do Doutorado) que estavam tendo dificuldades
em algum ponto do programa de Curso. Sempre recorro a
uma feliz etimologia que o Agamben ressuscitou em Ideia da
prosa: a palavra estudar é atravessada por tensões contra-
ditórias, tanto de sofrimento quanto de paixão. A etimologia
studium, remonta ao estudo e também ao espanto: studiare
ou stupire (raiz st e sp) se assemelham porque aquele que
estuda sente-se estupefato com a potência do aprendizado
e, outras tantas, se sente um estúpido, por não conseguir
assimilar o que lê. Chegara a minha hora de me sentir estú-
pida. Antes de tentar gravar a primeira aula, pedi socorro

113
às amigas do grupo de WhatsApp, que são exímias em ma-
téria de postagens e de fotografia, e uma delas me socorreu:
“Fica de frente a luz da janela. Grave de dia. Coloque o celu-
lar na sua frente. Deixe o aparelho na horizontal. Você dará
conta!”
Coloquei uma mala pequena na mesa, em cima dela 5 li-
vros, e só por cima desse monte meu celular. Me lembrei
que tinha que colocá-lo em modo avião, como o marido de
outra amiga também alertou. Eu, estudiosa da gambiarra,
fazia ali um exemplar singular: era uma tática espontânea,
com propósito utilitário e operava numa diversa economia,
diversa do mercado. Trabalhava com os meios-limites, com
recursos finitos. Vivia uma contingência.
Fiz o vídeo. Ficou pesado e foi muito difícil para o meu
amigo italiano (que era o coordenador da Cátedra que me
recebia na Itália) postar na plataforma da Universidade.
Ainda não sei o que os alunos acharam, pois não tive chance
de me despedir deles.
No dia seguinte fui com um casal de amigos à loja IKEA
para passar o tempo, e lá achei um dispositivo para encai-
xar o celular. Havia uma quantidade imensa desse troço, de
madeira reciclada, com design, pela pechincha de três eu-
ros. Comprei.
Penso agora: quero fazer uma despedida para os meus
alunos italianos e talvez dizer que a nossa existência é,
neste momento, uma grande gambiarra. Farei outro vídeo,
fracassarei de novo, fracassarei melhor. Mas acenarei, tal
como o angustiado homem sem metafísica de Fernando
Pessoa se despede de longe do Esteves, dona da Tabacaria.
À distância. Mas quem sabe, neste gesto, alguma coisa do
Universo se recombina?

114
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco
na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-
se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!,
e o universo
Reconstruiu-me sem ideal nem esperança, e o
Dono da Tabacaria
[sorriu.

Álvaro de Campos

115
Perguntas e
respostas apropriadas
Marilá Dardot
Lisboa, abril de 2020
117
118
119
Três crônicas
Sofia Soft
Três crônicas
Tornozeleira eletrônica?
Lá fora e aqui dentro. Entre as duas possibilidades, uma
janela. Meu habitat é aqui dentro, sempre foi. Sempre foi? Na
infância e na adolescência, reconheço que lá fora era tão es-
timulante quanto aqui dentro. Havia a sombra sufocante da
timidez, é certo. Mas ela não era tão opressiva a ponto de me
manter em casa o tempo todo. Eu evitava as saídas noturnas,
as festinhas e festonas, mas gostava bastante da vida diur-
na, de pedalar com os amigos. Da piscina e da quadra de bas-
quete, no clube. Também gostava do colégio (não sabia, mas
gostava). Naquela época o oxigênio ainda era abundante em
toda a parte. Foi mesmo na maturidade que lá fora começou a
perder feio para aqui dentro.
Recentemente, escutando um podcast sobre um de meus
escritores prediletos, fiquei sabendo que ele sofria de claus-
trofilia, atração por ambientes fechados. (Agorafobia inver-
tida?) Será essa minha condição? Uma tornozeleira ele-
trônica invisível? Porque eu olho lá pra fora − adoro olhar
lá pra fora, adoro bisbilhotar as pessoas apressadas, prin-
cipalmente quando não percebem que estão sendo obser-
vadas − e fico feliz de estar aqui dentro, em minha concha

121
aconchegante, mais perto dos detalhes internos do que dos
externos. Aqui dentro eu tenho todo o oxigênio de que pre-
ciso. Lá fora não existe atmosfera, não mais, dificilmente
eu conseguiria respirar. E os minutos passam. E as horas
passam. E o passado inteiro passa mais rápido lá fora do que
aqui dentro, meu presente perpétuo.
O problema é que… De repente, recebemos todos a ordem
de ficar em casa. Situação insólita! Que novidade é essa?! For-
ças superiores, preocupadas com a nossa respiração nacional,
com as nossas mãos tão eloquentes, não param de repetir:
isolamento social total. Quarentena. Fiquem em casa! Esse co-
mando mexeu magicamente numa chavinha aqui na base da
nuca, uma chavinha vermelha que fez clique, mudando pra
claustrofobia minha confortável claustrofilia. Esta tornozelei-
ra eletrônica, não, eu não enxergo, mas quero tirar. Que von-
tade louca de saltar pela janela e desbravar a metrópole, fazer
dez vezes (ida e volta) a mesma viagem de metrô, assistir ao
show daquela banda de que eu nem gosto muito, virar a noite
num botequim insalubre, testemunhar da arquibancada lota-
da uma final de campeonato.
Quero gente, cadê o enxame de gente? Cadê os abraços,
os amassos, os esbarrões, as compressões? Preciso confra-
ternizar num parque ensolarado. Ainda hoje! Entenderam?
Preciso entrar numa fila de supermercado. Preciso entrar
numa fila de embarque. Viajar pra um congresso. Partici-
par das olimpíadas. Eu e vocês. Precisamos antecipar um
réveillon, qualquer réveillon, e também um carnaval, qual-
quer carnaval. Ainda hoje! O mais tardar amanhã!
Perplexa com meu surto agorafílico, a estante do escri-
tório arremessa um livro em meu cocuruto. Pegou de quina,
ui. Eu recupero o livro e logo reconheço a capa. É um velho
bom amigo que eu não visito há tempos. Viagem ao redor

122
do meu quarto, de Xavier de Maistre. Recado (nada sutil)
entendido. Dos cafundós do século dezoito Xavier me fala
novamente como é precioso viajar sem sair de casa. “Meu
coração sente uma satisfação inexprimível quando penso no
número infinito de infelizes a quem ofereço um recurso cer-
to contra o tédio e um calmante para os males que sofrem.”
Na verdade, ele fala apenas do seu quarto, mas desconfio
que meu apartamento seja do mesmo tamanho, ou um pou-
co menor. O livrim foi escrito na prisão, durante quarenta e
dois dias. Xavier cumpriu pena por participar de um duelo
com espadas. Tá bom. Não posso reclamar. Fico feliz de co-
meçar uma gloriosa expedição de autodescobrimento aqui
dentro mesmo, sem precisar espetar nem ser espetada por
ninguém.

Umas meditações-pantufas
O lado bom de qualquer quarentena é que sobra bastante
tempo pra gente refletir sobre as mais profundas questões
da existência. Tuntum, tuntum. O tempo, por exemplo. Você
está percebendo o fluxo volátil da ampulheta, o corpo-fan-
tasma do tempo? Preste atenção em teu isolamento, em teu
coração, tuntum, tuntum. O que é o tempo? Uma flecha mui-
to sacana que viaja do passado para o futuro envelhecendo
tudo? Tem certeza? Tuntum, tuntum. Pra mim o tempo é
uma nuvem psicotrópica que engana nossos sentidos, fazen-
do a gente acreditar que ele está passando, quando na ver-
dade não está.
Outra questão profunda sobre a qual ando gostando de
meditar são as pantufas lápis-lazúlis. Eu tenho um par. Mas
ainda não descobri por que estão aqui nem por que essa cor.
Nem por que são tão amigáveis. Neste isolamento elas são

123
mais misteriosas do que a própria nuvem-tempo. Aliás, sem-
pre que eu calço minhas pantufas lápis-lazúlis, pra mim fica
bem claro que não existe passado, não existe futuro. Só exis-
te o aqui-agora maleável dessa nuvem psicotrópica chamada
“atmosfera”, que a gente não para de respirar. Tão maleável
e tão aqui-agora que eu já não sei com certeza quanto tempo
faz que não ponho os pés num par de tênis fora de casa. Me
ajuda, memória. Faz exatamente… Perdi a conta no começo
da quarta semana, quando parei de fazer risquinhos-de-pre-
sidiário na parede ao lado da cama. Mas posso dizer com
segurança que minha sanidade física e mental ainda não so-
freu qualquer arranhão. Até aqui tá tuuuuuudo beeem.
Ontem e anteontem eu passei o dia de pijama. Hoje tam-
bém. (Mas “ontem” e “anteontem” também são “hoje”, certo?
Veja, ainda estou calçando as pantufas lápis-lazúlis… Deixa
pra lá.) Será que este pijama estampado também é eterno e
psicotrópico? Já não me lembro se um dia usei outra roupa,
se realmente não nasci dentro deste traje tão compreensí-
vel, que me entende e aceita do jeitinho que eu sou. Moletom
é pros fracos! Meu pijama estampado é meu palácio e nada
me faltará. Às vezes brigamos, não vou mentir. Exceto por
esse detalhe, até aqui tá tuuuuuudo beeem.
Aliás, aqui está outro tema muito apropriado numa qua-
rentena: o taedium vitae. Para minhas pantufas e meu pija-
ma, tempo e tédio são duas noções entrelaçadas. Não existe
tédio sem tempo, não existe tempo sem tédio. Contra o té-
dio, bolei um plano. Cansei dos filmes e das séries, e come-
cei a baixar das estantes todos os livros que eu ainda não
li. É hora de recuperar o precioso tempo (pedacinhos cinti-
lantes deste hoje infinito) perdido com as fúteis distrações
audiovisuais.

124
Estabeleci um método de leitura deveras proveitoso, um
regime de atleta campeão. Se o livro é antipático e eu não su-
porto sua presença demorada, leio apenas uma página por
dia. Se o livro é simpático e eu não quero que ele acabe logo,
leio apenas uma página por dia. Desse modo já estou lento,
quero dizer, já estou lindo, não é isso, já estou lendo cento e
sessenta e cinco livros paralelamente, ao ritmo de uma pá-
gina por dia cada um. Meu objetivo é ler no mínimo trezentas
obras paralelamente, talvez quatrocentas. Por isso continuo
baixando livros. Simpáticos e antipáticos, tagarelas e aca-
nhados. Às vezes brigamos, não vou mentir. Exceto por esse
detalhe, até aqui tá tuuuuuudo beeem.

Minha carta de amor para o presidente


Prezado presidente, eu sei que isso é estúpido. Estúpido,
não… Ridículo. Exatamente. Isso é ridículo. Não era o que
dizia aquele poeta? “Todas as cartas de amor são ridículas,
não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.” Mas es-
túpida ou ridícula, não faz mal, continuarei escrevendo mi-
nha primeira cartinha de amor. Bem tola. Bem superficial.
Breguíssima. Totalmente minha.
Começarei falando da raiva. Da raiva, não. Do medo. Uma
carta de amor pode falar também do medo? Da raiva? Na ju-
ventude eu conheci um sábio que dizia: cuidado com o medo,
não fuja do medo, tente viver em equilíbrio com o medo, por-
que, se fora de controle, o medo leva à raiva, a raiva leva ao
ódio e o ódio leva ao sofrimento. Não é de sofrimento que eu
quero falar, não em minha primeira cartinha de amor. Fala-
rei apenas do medo, da raiva, e de como precisamos viver
em equilíbrio com ambos.
Também falarei do infinito, se esse tema não aborrecer
demais vossa excelentíssima paciência. Não me entenda

125
mal. Eu queria falar era de nossa mortalidade, mas numa
missiva de amor?! Isso brocharia a audiência… Então é im-
portante que eu fale um pouquinho do infinito porque não
há nada que valorize mais o amor, não há nada que fortaleça
mais seus afetuosos limites, do que o infinito. Eu reconheço
que as pessoas não pensam demoradamente sobre o infinito,
nosso instinto de autopreservação não aprova esse tipo de
obsessão abstrata.
Mas pense um pouco… O que são dez mil anos ou dez mil
anos-luz perto do infinito-eterno? Nada. O que são cem mi-
lhões de anos ou cem milhões de anos-luz perto do infinito-
-eterno? Nada. No entanto esse tempo e esse espaço quase
impensáveis estão mais próximos de um segundo, de um mi-
límetro, do que da metade da metade da metade da metade
da metade (infinitas vezes) do infinito, certo? Se as pessoas
olhassem pra cima e pensassem demoradamente sobre o in-
finito elas enlouqueceriam, ao entenderem pra valer que nós
somos nada. Nadinha. Compreende agora por que o amor é
tão precioso? Ele é uma fagulha microscópica de nada, flutu-
ando na indiferença irracional infinita do tempo e do espaço.
Minha cartinha de amor, estúpida, ridícula, é pra você mas
não é apenas pra você, pequena fagulha eleita entre centenas
de pequenas fagulhas eleitas. É principalmente para o outo-
no e pra essas brancas montanhas gasosas que sobrevoam a
gente. É para o vento. É para meus humanos olhos e ouvidos
e nariz e tudo o que me compõe (fagulhas) e para a evolu-
tiva biologia do acaso, esse susto aleatório que me permite
apreciar sem medo os magníficos trambolhos flutuantes (fa-
gulhas) e o oceano e o sol e a praia e aquela floresta e aquela
cidade e aquelas crianças, fagulhas, fagulhas, fagulhas, fagu-
lhas. Minha cartinha de amor − uma bolha de sabão? − não é
apenas pra você que não me lê, é principalmente para o nosso

126
mínimo mistério reduzido a microfagulhas de uma fagulha
um pouquinho maior.
Entende agora por que o amor é tão precioso? Se a vida é
uma centelha-minuto cercada do infinito vazio por todos os
lados, por que desgastar com o medo e a raiva a profundida-
de desses sessenta segundos? Não há nada antes da finitude
e não haverá nada depois. Sessenta segundos de profundi-
dade − e acabou. Pare de reclamar, criatura. Pare de exibir
esse orgulho-aos-gritos, essa arrogância-aos-gritos. Volte a
cantar, criança. Volte a dançar, criança. Aprecie o precioso
privilégio dos teus pequenos sessenta segundos. Respire. Os
pulmões são um sopro, uma dádiva do acaso. Dedique a cada
finito segundo uma cartinha afetuosa. Uma bolha de paixão.
Bem tola. Bem superficial. Breguíssima. Totalmente tua.
Com todo o meu amor infinito (enquanto dure),
Sofia

127
Sonhos, dentes,
compras e falta de ar
Rebeca Gontijo
Rio de Janeiro, 18 de abril de 2020
Sonhos, dentes,
compras e falta de ar
Fui dormir sentindo falta de ar. Meu nariz costuma entu-
pir à noite. Talvez eu seja alérgica, mas nunca dei importân-
cia a isso. O médico chinês ensina a massagear as laterais do
nariz, o que de fato ajuda.
Não sei ao certo quando peguei no sono. Costumo dormir
tarde, mas acordo cedo, após um sono mais profundo ao
amanhecer. O sono normalmente é interrompido, mas não
me sinto cansada ao acordar. Sinal de que durmo bem. Às
vezes sonho.
A rotina segue quase normal. Trabalho muito em casa.
Mas as notícias que chegam pela tevê não deixam esquecer
que há algo muito errado lá fora. A sensação é de estar em
perigo eminente. Um risco de morte nas próximas semanas.
Sonhei com dentes pouco depois da chegada da covid-19.
Dizem que sonhar com dentes é mau sinal. Alguém vai mor-
rer. Lembrei da minha mãe. Morreu no dia 29 de setembro
de 2019, aos 87 anos. Faltou ar. Semanas antes eu havia so-
nhado com dentes. Tinha aquele medo estranho que surge
quando alguma superstição idiota parece se confirmar. O
medo nasce da desconfiança. Cortar unhas à noite faz com
que você não esteja por perto quando seus pais morrerem?

129
Eu li isso em algum lugar há muito tempo…. ficou lá na no
cantinho da memória, mas racional que sou, não acreditava
nisso, não. Mas, por via das dúvidas, nunca cortei unhas à
noite. Não adiantou.
Então, tem essa história do sonho com dentes… dentes
caindo, dentes doendo…. acho que é um mau agouro. Será
que inventei isso? Vou perguntar ao Google. Sonhos.com.br
me diz que sonhar com dentes pode significar diversas coi-
sas… “sonhar que sente dor de dente é aviso para que não
cometa injustiça, assim, não sentirá remorso mais tarde”. É
importante ser justo. Historiadora que sou, não almejo jul-
gar, mas compreender e explicar. E não abandono as notas
de rodapé. Para ser justa é preciso confiar nas notas.
Voltando ao problema dos dentes, sonhar com a ida ao
dentista para tratar os dentes é prenúncio de período de
muita sorte. Não era o caso. Meu sonho tinha dentes, não
dentistas. “Dentes postiços ou dentaduras vistos ou usados
em sonho é sinal de que será ajudado num momento difícil”.
Nada de dentes postiços. E “se você viu os próprios dentes,
em sonho, prepare-se para assumir grandes responsabilida-
des”. Sim, creio agora, passado algum tempo desde que so-
nhei, que os dentes eram meus. Sonhos.com.br informa que,
conforme a situação [do sonhador? Do mundo?], a interpre-
tação dos sonhos em que figuram dentes quebrados indica
presságio desfavorável às relações amorosas. Já os dentes
brancos e saudáveis são augúrio de prosperidade. Contudo,
o que eu temia: dentes podres indicam enfermidade grave
de pessoa muito querida… eu sonhei com dentes moles, su-
jos…. isso exige atenção à saúde. Dentes que caem, “morte de
pessoa conhecida ou parente próximo”.
As notícias que chegam pela tevê não deixam dúvidas: o
perigo ronda lá fora. Mas, e toda aquela gente que sai, anda

130
e conversa normalmente como se nada de estranho ocor-
resse? No supermercado, dois funcionários seguem traba-
lhando e conversando animados enquanto trabalham no
corredor do material de limpeza. Passo ou não passo entre
eles? Vou dar uma corridinha… não, melhor dar marcha
à ré e procurar outro caminho. Mas, que tolice. Vou lá. Se
eles estão ali sem máscaras e alegres, quem sou eu além de
uma burguesa medrosa preocupada com perdigotos? Pensei
depois: vou registrar esse dia e contar o tempo pra ver se,
daqui a uma semana, apresento algum sintoma.
Deixei meu carrinho de compras no corredor principal e
entrei no corredor das massas. Ao voltar, cadê meu carri-
nho cheio de compras? Um certo pânico, afinal, eu já esta-
va quase terminando, carrinho cheio… já ia para o caixa e…
sumiram com meu carrinho. É a segunda vez na vida em
que isso acontece comigo. Corri para o caixa na expectati-
va de achar o carrinho roubado. O coração acelerou. Faltou
ar. Será que terei que fazer as compras novamente? Terei
que passar mais tempo aqui? Nada do carrinho. Verifiquei
os corredores próximos e nada. Desisti.
Recomecei a operação, sem luvas e sem máscaras, ten-
tando evitar aproximações. Colhi os produtos em tempo re-
corde, penso. No setor de legumes, alguém se aproxima com
uma beterraba na mão. Pergunta se é um inhame. Pensei
rápido: vou dizer que sim. Mas decido dizer a verdade e sigo.
Eis que, na Peixaria, no canto esquerdo mais longínquo, lá
estava meu carrinho de compras cheio, abandonado, com
minhas sacolas coloridas. Revirei rápido o carrinho para pe-
gá-las e fui correndo para o caixa. Minha blusa estava molha-
da. Meu cabelo, minguado. Meu óculos, embaçado. Passo por
duas mulheres, talvez mãe e filha, com máscaras e luvas.
Onde será que elas compraram? Preciso de luvas e máscara

131
como quem precisa de um batom. Será que encontro álcool
gel? Esqueci de procurar.
Volto exausta pra casa. A tevê não deixa dúvidas de que
há algo muito estranho acontecendo lá fora. Os amigos no
Facebook também alertam e eu reproduzo sem cessar a in-
formação até cansar. Meu nariz já começa a fechar. Vou dor-
mir. Talvez sonhar.

132
133
134
135
Carta a
Diogo Ramada Curto
Eduardo Sinkevisque
Campinas, 07 de março do ano da peste de 2020
Carta a
Diogo Ramada Curto
Diogo, caro,
como vai o amigo? Por aqui sobrevivendo e livre da peste.
Como me disse Hansen outro dia, por enquanto. Espero que
o amigo e os seus estejam bem e sem peste. Estive fora de
São Paulo depois que voltei do RJ.
Quando iria retomar os trabalhos na Mário de Andrade,
a biblioteca entrou em quarentena, como toda a cidade. En-
tão, a revisão das transcrições está por fazer. O edital que
concorreria fez água.
Por outro lado, fiz outro projeto e encaminhei para um
outro edital. O ministro da Educação cortou verbas e, para
o Programa não perder bolsa, resolveram renovar o subsí-
dio de uma aluna de Pós-doutoramento já contemplada. Vou
submeter o projeto a outra agência, que não a CAPES. Mas
terei que fazer uns ajustes. Enquanto isso, tenho lido uns li-
vros e escrito umas resenhas de livros de poesia e/ou ficção
para uma editora de e-books.
Submeti à revista Topoi um artigo, reescrita daquela mi-
nha conferência sobre Rocha Pita e a ideia de Império no sé-
culo XVIII, que enviei ao amigo. Agora, desatualizada. Se o
confinamento em virtude da pandemia demorar muito, vou

137
estabelecer o texto das nossas transcrições com lacunas e,
tão logo possa voltar à sala de Obras Raras da Mário, volto
ao trabalho lá, com o objetivo de preencher essas lacunas,
principalmente de entendimento de certas palavras dos ma-
nuscritos. Assim que eu termine uns textos que tenho para
escrever, volto ao nosso trabalho.
Nesta semana, radicalizamos ainda mais o confinamento.
Quando digo radicalizamos, digo eu e os meus. Não se tra-
ta de lado, de clã, nem de Djavan. Trata-se de radicalizar o
isolamento, o distanciamento social. Eu, meus pais, minha
irmã. Dela nada sei. Apenas o suficiente: que está bem e se-
gue isolada também.
Nesta semana, não teve feira no domingo. Não fui. Não
teve supermercado, nem padaria, nem farmácia. Não teve
entrega, que tenho ouvido dizerem entrega de delivery, que
é entrega de entrega.
Nesta semana, teve a total entrega à luta contra a disse-
minação da peste. Não há problema no sintagma entrega de
delivery. Não preciso nem consultar linguista.
Se Luciano tem um interlocutor Fílon a quem chama
de amigo, o amigo amigo, por que não haver entrega de
delivery? Se Félix é um gato, felis catus, gato gato, qual o
problema de uma entrega de entrega? Que as pessoas se
entreguem!
Nesta semana, teve o acirramento de uma imbecilidade.
Só pode. Certas coisas quando nos chegam aos ouvidos é
porque acirraram-se, aumentaram de tamanho, de vulto.
Ouvi que a pandemia de covid-19 é uma conspiração da es-
querda para derrubar o presidente. Ora, que presidente, se
nem presidente temos? Um inquilino, um mandatário, no
máximo. Um assassino. Também não temos Brasil. Bye bye
Brasil.

138
Nesta semana, minha mãe não formulou a já famosa frase
dela: daí aproveita, né filho? Mas bençãos e recomendações
continuou a me enviar pelo WhatsApp. Meu pai continuou a
me telefonar: alô, tava dormindo? Não, pai. E você? Não. Tá
em casa? Eu tô, e você?
Também a diferença desta semana para as demais é que
não cogitamos almoçarmos juntos na sexta-feira Santa. Me-
lhor não, né filho? Disse minha mãe. É. “É”, como diz Millôr.
Minha mãe conhece a peça “É”, de Millôr Fernandes. Conhece
antes de eu a conhecer. A peça. Mas também a ela mesma,
claro, antes de eu a conhecer.
Nesta semana, radicalizamos. Outros afrouxaram. Quem
ama cuida? Quem afrouxa se rende ao relaxo? Aumentaram
os ruídos de meu entorno. Talvez mais gente circulando em
relação à semana passada. Mesmo assim, decidi não me in-
comodar com isso. Não quero mais me desgastar com as es-
colhas alheias, mesmo afetando o coletivo. Não sou síndico.
Para isso, chamem o Tim Maia. Ouvir eu ouço Chico. Radica-
lizamos. “Mil perdões”.
Dê-me notícias.
Forte abraço do Eduardo.
P.S.: A Senhora Joana me escreveu para saber notícias do
amigo. Fiquei de as enviar assim que as tiver.

139
Feitiço do tempo
Luciene Carris
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2020
Feitiço do tempo
Poderia ser um domingo qualquer, mas era um domingo de
quarentena, para completar era o Dias das Mães. Um evento
mundial que tem o intuito de celebrar o amor e o carinho
pelas mães. Sem dúvida ganhou um cunho bem comercial,
mas não perdeu lá o seu charme. Até recentemente as famí-
lias se reuniam para o tradicional almoço. Para mim, aquele
encontro anual com os meus pais e o meu filho possuía um
ar de sagrado, que foi temporariamente prorrogado. Neste
ano de 2020, a data caiu no dia 10 de maio.
Era um domingo de sol, aliás muito agradável, apesar das
circunstâncias dos últimos dois meses de isolamento so-
cial. Para contornar o tédio e a angústia cotidiana eu havia
elaborado um plano de tarefas diárias, que ganharam mais
dinamismo com a adoção de mais uma gata durante a qua-
rentena, a Lili, que veio se juntar a Juru. Os dois filhotes
trouxeram um pouco de alegria. No primeiro momento, hou-
ve um certo estranhamento entre as duas fêmeas. A antiga
dona do território não aceitou muito bem compartilhar de
seu espaço conquistado. Mas pouco a pouco isto acabou sen-
do resolvido.
Era um domingo. Não acordei muito bem, diga-se de pas-
sagem. Imaginava que poderia ser uma indisposição do jan-
tar daquele sábado. Procurei resistir bravamente a seguir

141
para uma emergência de algum hospital na zona sul da ci-
dade carioca. Contudo, não deu certo. Acabei indo mesmo,
apesar do receio da pandemia do Covid-19. A recepção se
encontrava vazia para minha surpresa. Tamanho era o meu
desconforto que a enfermeira da triagem dos pacientes me
encaminhou para uma sala onde ministraram remédios
bem potentes. Exames foram feitos, mas não teve jeito de
contornar nem de adiar a cirurgia: era uma apendicite agu-
da. O apêndice é um órgão que se liga ao intestino grosso
pelo lado direito. Quando há a obstrução do canal, uma dor
indescritível ocorre. Até agora não entendi a sua utilidade.
Perdi um segundo órgão depois de dois anos, mas também
não sinto falta do primeiro. O certo é que não demorei vinte
e quatro horas no hospital. Ao que parece, devido a pande-
mia, a recomendação é partir de lá o mais breve possível
pelo receio de uma possível contaminação. Afinal de contas,
o hospital é considerado o lugar de mais alto contágio.
Observei com certa parcimônia a rotina daquele dia, es-
pecialmente depois de ser encaminhada para o meu quarto.
Os médicos, enfermeiros e outros profissionais do hospital
procuram se precaver com o uso de máscaras e do álcool,
também se possível mantêm um certo distanciamento, algo
que acredito ser praticamente impossível. Constatei um ar
de medo e de desconfiança naquele ambiente hospitalar ca-
muflado pela cortesia. Quando parti de lá, recebi simpáticos
acenos de adeus das enfermeiras de plantão. Tão logo voltei
para casa, busquei retomar aquela rotina meio capenga, o
que foi praticamente impossível nos primeiros dias.
Até aquele fatídico dia, parte da minha rotina concentra-
va-se na idealização de um prato saboroso para as pessoas
que estão em casa comigo confinadas. O ato de elaborar uma
refeição me remete a uma passagem de um célebre conto do

142
escritor moçambicano Mia Couto. Um diálogo entre o neto
que parte do vilarejo e a sua avó, que avigora que “cozinhar
é o mais privado e arriscado ato. No alimento se coloca ter-
nura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno.” Mas
adiante, ela reforçava que “cozinhar não é serviço, meu neto
– disse ela. – Cozinhar é um modo de amar os outros.”1 Sendo
assim, o amor pode e deve ser diariamente recuperado em
diversos sentidos, mesmo que não dito, mas demonstrado
por ações. Em tempos de medo, de dor e de desavenças, pe-
quenos atos de delicadeza são imprescindíveis para supor-
tar o isolamento social, tais como o simples ato de cozinhar
para sobreviver.
Além das tarefas domésticas, retomei a rotina de leitura
e de pesquisa, algumas bibliotecas e arquivos com acervos
digitalizados têm facilitado esse trabalho. Alguns dias têm
sido mais produtivos do que outros, pois a concentração
está um pouco prejudicada em tempos de Covid-19 e a mi-
nha recuperação tem sido um pouco lenta.
Me deparei relendo alguns livros da minha biblioteca da
época da graduação, principalmente dos cursos de sintro-
dução à História, de Filosofia e História do Brasil dos Oito-
centos. Certo dia comecei a redação de um ensaio para um
livro em homenagem a um saudoso professor que faleceu
em 2015. O texto versa sobre a interdisciplinaridade entre a
História e Geografia, da importância da formação territorial
na construção do estado nacional. Não consegui finalizar
por enquanto.
Algumas poucas páginas foram escritas até agora, mas
as lembranças daquele período têm um sabor diferente.
Escrever sobre uma pessoa querida que partiu é um pouco

Mia Couto, A avó, a cidade e o semáforo, em O fio das missangas, São


1

Paulo, Companhia das Letras, 2016.

143
delicado na atual conjuntura. A cada dia abro o arquivo com
o texto, leio, releio, reescrevo algumas frases e anoto alguns
pensamentos para depois retornar. Situação semelhante
com o projeto que idealizei por conta do encerramento do
meu estágio pós-doutoral. Releio o livro que anseio publicar
sobre história urbana da cidade de São Sebastião.
Reconstruo frases, reelaboro parágrafos e corrijo er-
ros. Por outro lado, descobri um outro lado que desconhe-
cia. Despretensiosamente, comecei a escrever, a convite
de um velho amigo, crônicas sobre a quarentena para um
blog, o Textão. Somado a tudo isso a literatura tem estado
presente no meu cotidiano, assim como músicas e filmes.
Reencontrei-me lendo obras de Gabriel García Márquez,
Charles Dickens, Virginia Woolf, Oscar Wilde, Umberto
Eco, Machado de Assis, Lima Barreto, Carolina de Jesus,
entre tantos outros. Talvez seja um reencontro comigo
mesma.
O impacto do confinamento e a inesperada cirurgia têm
me trazido algumas reflexões sobre a brevidade e a finitude
da vida, bem como sobre o futuro. Tais pensamentos são ma-
nifestados durante a noite, quando sonhos estranhos apare-
cem e me relembram às imagens enigmáticas dos pintores
surrealistas. Logo que desperto procuro decifrá-los breve-
mente, mas em pouco tempo desisto disso. Um novo dia se
inicia não muito diferente do anterior. Assim, tal como na-
quele filme Feitiço do tempo da década de 1990, me sinto
presa numa espécie de túnel do tempo.

144
Aniversário na Quarentena
Paolo Suhadolnik
São Paulo, 17 de abril de 2020
Aniversário
de abraços distantes!
Ricardo Oriá
Brasília-DF, 04 de abril de 2020
Aniversário
de abraços distantes!
Não há quem possa negar que, para além dos efeitos pro-
vocados pela pandemia do novo coronavírus em vários se-
tores da sociedade, temos sentido o peso que o isolamento
social provoca na vida cotidiana de todos nós.
Acostumados a lidar com o contato humano constante, vi-
mo-nos, de um dia para outro, forçados a ficar reclusos em
nossas residências, limitando as saídas a lugares estrita-
mente necessários para a nossa sobrevivência (supermer-
cados, padarias, farmácias) com o devido cuidado para não
se deixar contaminar por um vírus de rápida propagação.
Máscaras faciais e álcool em gel passaram a ser produtos de
uso cotidiano.
O mundo do trabalho também foi afetado. Quem pode,
dada à natureza de sua atividade profissional, permanece
em casa realizando o tal do home office, tendo que lidar, de
uma hora para outra, com videoconferências, chamadas
instantâneas pelo Whatsapp e o uso de outras plataformas
digitais imprescindíveis no atual contexto. Muitos trabalha-
dores, sobretudo os que estão na linha de frente no comba-
te ao coronavírus, tais como profissionais da saúde os mais
diversos, da polícia militar e de segurança pública, além do

148
pessoal de apoio logístico, enfrentam a dura realidade de se
expor ao possível contágio do covid-19 para salvar vidas.
De repente, espetáculos teatrais foram cancelados, shows
adiados, salas de cinema, museus e espaços culturais fe-
chados, sem previsão de retorno. O mundo da cultura nas
suas mais diferentes expressões e linguagens artísticas se
viu numa situação sui generis. Esse segmento cultural que
necessita de público para sua efetiva realização foi um dos
mais atingidos pela nova pandemia e, dada a necessidade de
continuarmos mantendo o distanciamento, será, com certe-
za, um dos últimos a retornar em toda plenitude. E aí recor-
remos à letra da música para expressar essa atual realida-
de: “Sei que nada será como antes, amanhã… Sei que nada
será como está. Amanhã ou depois de amanhã…”1
A tão falada quarentena nos serviu para mostrar que é
perfeitamente possível viver sem ir às compras, passear nos
shopping centers, não viajar por algum período e até mes-
mo deixar de frequentar bares e restaurantes. No entanto,
esse período de isolamento social seria muito mais penoso
se não tivéssemos ao nosso alcance os livros, o cinema, a
música, mesmo que em outros suportes físicos, sobretudo
aqueles advindos com o avanço tecnológico que a internet
nos proporciona, como o novo fenômeno das lives. Assim,
em meio à quarentena, fomos tentando nos acostumar a essa
nova realidade que não havia sido vivenciada por ninguém
que hoje ainda esteja vivo. Tínhamos apenas ouvido falar
de experiências de nossos antepassados, relatando quão
dura foi a famosa gripe espanhola, ocorrida entre os anos
de 1918/1919. Minha avó Ana Costa (1902-1980) contava
que até um presidente da República foi acometido pela gri-
pe e veio a falecer. Depois, como historiador, fiquei sabendo

“Nada será como antes”, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1976.


1

149
de que se tratava do paulista Rodrigues Alves (1848-1919)
que, eleito presidente pela segunda vez, não conseguiu to-
mar posse e novas eleições foram realizadas no país.
Além de desestruturar nossa rotina, a pandemia traz re-
percussões no campo das subjetividades. O isolamento so-
cial nos faz mais solitários, pensativos e questionadores.
Comigo ocorreu uma experiência inusitada: como fazer
aniversário em plena quarentena e isolamento social? A
data de nascimento constitui um momento de celebração
da vida e da amizade. Gosto de comemorar meu aniversário
na presença de familiares e amigos ou viajar na companhia
de várias pessoas. Mesmo com todo o aparato tecnológico
representado hoje pelas redes sociais, nada se compara ao
contato físico, que se expressa em um sorriso ao vivo, um
beijo, o aperto de mãos e o melhor de todos – o abraço de
congratulações. Nada como um abraço e a troca de energias
positivas que ele nos proporciona. Isso me fez muita falta na
passagem de aniversário neste ano trágico.
O 4 de abril de 2020 vai ficar na história da minha vida
como o aniversário de “abraços distantes”. E indago a mim
mesmo: e em 2021? Novamente me vem à memória a letra
de um belo samba-enredo: “O que será o amanhã? Como vai
ser o meu destino? (…) E o realejo diz, que eu serei feliz.”2

“O Amanhã”, G.R.E.S União da Ilha do Governador, Letra: João Sérgio;


2

Intérprete: Aroldo Melodia, 1978.

150
Os quinze passos
Samantha Viz Quadrat
Niterói, Rio de Janeiro, 27 de abril de 2020
Os quinze passos
Como a maior parte dos pesquisadores do Brasil, eu sou
uma devedora. E como toda pessoa endividada vivo ro-
lando as dívidas acadêmicas. Negocio prazos, perco datas
e todas essas coisas que fazem parte do nosso cotidiano.
Quando a quarentena começou, no dia em que as aulas
retornavam na Universidade Federal Fluminense, local
onde trabalho, ingenuamente pensei: hum, o Brasil co-
meçou a quarentena cedo, diferente da Europa. Vou apro-
veitar esse período para pagar as dívidas acadêmicas e
arrumar a estante de livros. Pensei com meus botões que
seria uma quarentena curta.
Nos primeiros dias em casa já abandonei a ideia da ar-
rumação do escritório. Asmática que sou, passei esses
dias com uma respiração bem ruim. Comprei um nebuli-
zador e remédios para uma emergência e decidi que me-
xer em poeira não era recomendável naquele momento. A
estante estava tão naturalmente bagunçada que poderia
continuar assim.
O que eu não entendi naquele momento é que o corpo já
estava avisando, ao som da bateria da Viradouro, a minha
escola de samba campeã em 2020, o que a minha mente
insistia em negar: Samantha, não vai ser fácil.

152
Criei a minha rotina: pegar sol na varanda, cuidar das
plantas, colocar a leitura em dia, atender alunos e come-
çar a pagar as dívidas acadêmicas que só cresciam.
Foi aí que comecei, obviamente que sem me dar conta,
o programa dos 15 passos. Algo de trabalho? Não! Os 15
passos que envolve levar o lixo na lixeira do andar do meu
apartamento. Até então o meu maior “problema” num
evento tão banal era não encontrar o vizinho de cueca no
corredor. Mas na quarentena, como acabei descobrindo,
nada é banal.
O primeiro dos 15 passos é esperar o movimento do cor-
redor diminuir. Não sei o porquê, mas os meus vizinhos
saem toda hora e ainda conversam animadamente no cor-
redor. Nesse sentido, quanto mais tarde eu saio, menor a
chance de encontrar com alguém.
Mesmo assim, aqui entra o segundo passo: coloco o
ouvido na porta para conferir se tem algum movimento.
Nessa hora, escuto mentalmente a trilha do filme do 007.
Espionando o corredor. Que derrota! Silêncio! Ufa! Acho
que posso sair. Posso mesmo? Melhor conferir.
Terceiro passo: abro a porta, me estico toda para ver se
não há ninguém. Se não, agora sim!
A trilha sonora muda para o quarto passo. Me sentin-
do a própria pantera cor-de-rosa, me estico pelo corredor
para calçar as havaianas que agora “moram” do lado de
fora de casa.
Com medo de encontrar alguém (não exagero quando
digo que os meus vizinhos saem toda hora), com óculos,
com máscara e saco de lixo na mão dou uma acelerada
até a lixeira. O quinto passo não pode ser lento. Tenho que
ser rápida. E nessa hora não há nada pior do que abrir a
porta de lixeira e me deparar com as caixas de papelão

153
das encomendas me separando do meu destino final: a
portinhola onde devo jogar meu lixo. Resmungo, os ócu-
los embaçam e o meu quinto passo está com-ple-ta-men-te
comprometido.
Mas, como diz o slogan, eu sou brasileira e não desisto
nunca. Os passos 6 e 7 são rápidos: jogo o lixo, volto cor-
rendo para a casa e deixo o chinelo no corredor.
Respiro aliviada, mas ainda não acabou. O oitavo passo
me obriga a fechar a porta com o cotovelo para não en-
costar a mão na maçaneta. Vi essa estratégia na TV e in-
corporei. Achando isso tudo absolutamente normal. Lem-
bram? O corpo diz uma coisa, mas a mente nega…
Em casa, meu nono passo é correr para jogar a roupa
na máquina de lavar. Afinal, sei lá se encostei em alguma
coisa.
Já estou quase voltando a respirar normalmente. Passo
o álcool em gel nos braços e nas mãos, como meu décimo
passo, e vou trancar a porta e higienizar tudo. Já são onze
passos para uma simples ida a lixeira.
Mas não acabou, Samantha? Não!
Vou tomar banho. Nunca se sabe. Então esse décimo se-
gundo passo é fundamental. Momento relax.
Limpa e cheirosa, como décimo terceiro passo dessa
nova rotina, me sento finalmente no sofá. Sobe a música
na cabeça: We are the champions, my friends… Só falta
levantar os braços e jogá-los de um lado para o outro.
Mas a mente, sempre ela, não descansa e começo o dé-
cimo quarto passo: nossa, será que me contaminei? Será
que limpei tudo?
Até que “ela” me fala em seu grand finale e último pas-
so: Samantha, você está ficando louca! Apenas pare.

154
***

No dia 26 de abril, esqueci dos passos e sentei no sofá


para ver o Roberto Baggio perder o pênalti contra o Brasil
e gritar junto com Galvão Bueno e Pelé: Acaboooou! É te-
traaaaaa! É tetraaaaaaa! Um minuto depois, ao perceber
que havia abandonado os quinze passos, gritei: Puta que
pariu! Coronguei!

***

P.S. com amor: se devo algo para você, me desculpe. Es-


crever na quarentena dói.

155
Um dia no isolamento
Ana Maria Marques
Cuiabá, 23 de abril de 2020
Um dia no isolamento
23 de abril de 2020. Há um mês foi decretado, oficialmen-
te, o isolamento social em Mato Grosso. Não se sabe ao certo
quando as escolas voltarão a funcionar, porque a cada sema-
na é preciso reavaliar a capacidade dos hospitais – é o que
minimamente se recomenda. Mas o comércio está a reabrir
aos poucos – o capitalismo não para a sua marcha de explo-
ração humana. Dizem que a economia não pode parar, como
se houvesse alguma possibilidade de existir uma economia
sem trabalhadores. À medida que o vírus chega aos mais po-
bres, eles adoecem e morrem. Em Mato Grosso, as mortes
não chegaram aos dois dígitos de quantidade, apesar de se-
rem mais de três mil mortos em todo Brasil. Nem por isso é
possível descuidar.
O COVID-19 está mais para os trabalhadores comuns que
não têm como parar. Ele me espreita, parece que de longe,
apesar de nas proximidades do meu bairro, que é redondeza
da Universidade Federal de Mato Grosso, existirem várias
notificações de casos. São bairros de classe média e média
alta. Então, mesmo na mira do vírus, estou protegida pelo
meu privilégio de classe. Posso ficar em casa, o calendário
acadêmico foi suspenso e meu salário não foi alterado ou cor-
tado, nem fui dispensada do trabalho. Saio, desde então, só
para o mínimo necessário: supermercado, farmácia, caixa

157
eletrônico, e hoje, em especial, para buscar duas gatinhas
(mãe e filha) abandonadas numa oficina de automóveis.
Abril, mês de minhas férias também. Eu tinha viagem
programada para a primeira semana e depois ia para minha
casa em Florianópolis, onde tenho filhos e parentes. Mas,
por motivos óbvios, passagens foram canceladas e as férias
passadas em casa, paciência, é preciso.
No dia 2 de abril, aniversário do meu filho Rodrigo tam-
bém, iniciei um programa de saúde corporal. Eu nunca
pensei em fazê-lo porque inúmeras vezes repeti: não é para
mim, não gosto e não tenho mais idade. Mas resolvi encarar.
Estava há um ano lutando com dores na lombar e ciático.
Doía para ficar sentada, para ficar em pé ou deitada. Iniciei
fisioterapia e acupuntura, mas tudo parou. Eu não podia pa-
rar, senão ia travar. Decidi que não ia deixar a dor me domi-
nar e resolvi enfrentá-la.
Chamei o programa de Zélia Duncan porque a pessoa dela
(corredora, além de cantora) e as músicas me foram com-
panheiras. A partir do dia 2 de abril, todos os dias, passei
a acordar disciplinadamente às 6 horas da manhã ou, às
vezes, antes. Bebo água, tomo vitamina C, como fruta, faço
quinze minutos de alongamento no sol e saio pelo quartei-
rão a caminhar e correr por meia hora. Depois, faço mais
uns vinte minutos de exercícios ouvindo música popular
brasileira. Às vezes aproveito para ouvir alguma entrevista
com a Zélia e vou seguindo as orientações dela, perseguin-
do os compositores, parceiros e vozes femininas graves que
me encantam. A música me ajuda a fazer várias viagens e
ritmam meus movimentos. Depois meu dia segue com mais
energia e a noite eu durmo cedo, mais que antes. Claro que
para melhor desempenho que o corpo vai ditando: cortei
pão, álcool e diminuí o açúcar.

158
As duas primeiras semanas foram de muita dor, claro. Mas
é uma dor boa, os músculos ativando, o coração batendo mais
forte. Passei a sentir o coração bater quando em repouso.
Nem sabia que isso era possível – foi uma descoberta incrível
e emocionante. Feito uma boba perguntei a várias pessoas
mais chegadas se elas sentiam o coração bater, certa de que
precisam sentir o pulsar da vida.
Essa rotina que criei foi imbuída da convicção de que o
único escudo contra o vírus é a imunidade. A corrida ativa
tudo no corpo, obriga o corpo a produzir enzimas, hormô-
nios, músculos e tudo mais se arregimenta. Gostaria que
todas as pessoas tivessem a possibilidade de encontrar seu
programa pela vida. Que pudessem aproveitar para fazer
essa viagem para dentro de si e, assim, se conectar com a
humanidade. A gente precisa de pouco para fazer por nós
mesmos e, consequentemente, pelos outros.

159
Não sou coveiro… E daí?
Andréa Casa Nova Maia
Tijuca, Rio de Janeiro, 1º. de maio de 2020
Não sou coveiro… E daí?
Dia do trabalho. Me lembro de Getúlio Vargas e das leis
que já não valem mais. Mas quero pensar o presente e a
peste.
O mais difícil do isolamento pelo Covid-19 é ter que su-
portar o fato de ter um presidente genocida. SIM! Estou no
Brasil. Estou no Rio de Janeiro. Já é muito difícil para mim,
que tenho a tendência de sofrer as dores do mundo, saber
que, enquanto estou trancada em minha casa, já morreram
mais de 5.000 pessoas em meu país. Muuuito triste.
Já era previsto, mas simplesmente há um mundaréu de
gente transitando pelas ruas… Não consigo parar de pen-
sar… às vezes, acho que eu estou maluca! Passei muito mal
desde o início do isolamento… comecei com uma dor de cabe-
ça que simplesmente não passava. 15 dias! Até que vomitei
de dor. Quase 30 dias dentro de casa e fui parar no pron-
to-socorro de um hospital cheio de suspeitos de Covid. Os
funcionários estavam tão surtados que, após duas ressonân-
cias, resolveram me internar. Poderia ser um AVC! Longe
da família tudo foi mais difícil. Sem falar que eu enxergava
vírus em todos os cantos… Sem máscara! Ninguém me ofe-
receu nenhuma máscara! Só quando entrei na ambulância,
sendo transferida de hospital, me deram uma máscara! Eu
fiquei realmente me sentindo contagiada… me senti num

161
filme de ficção apocalíptica… Azarada ou sortuda? Só sei
que no outro hospital disseram que era só uma enxaqueca
e me mandaram para casa. Mais 15 dias morrendo de medo
de desenvolver a doença… Eu sou grupo de risco: hipertensa,
pré-diabética e tabagista!
Felizmente, nada até agora. E a situação fica mais críti-
ca a cada dia… Já não existem leitos com respiradores… Já
não tem lugar para os corpos… covas estão sendo abertas…
Covas rasas… É inacreditável ouvir as declarações do pre-
sidente da República. Terrível mesmo. Parece um pesadelo.
Já era assustador, mas agora nem tenho palavras pra tra-
duzir como anda minha cabeça no meio disso tudo. E eles
ainda aproveitam para retirar verbas, bolsas e autonomia
das universidades… do lugar onde eu trabalho e continuo
trabalhando… Nem estou conseguindo mais produzir… mas
sigo participando de bancas, orientando e lendo os textos
dos meus alunos de mestrado e doutorado… dando parece-
res de artigos acadêmicos, escrevendo para livros… Olha, eu
não parei de trabalhar e de ver meus colegas e alunos pelo
Zoom, WhatsApp etc… além disso, lavo roupa, lavo louças e
cozinho, cozinho muuuito… E tenho visto muita TV! E isso
não é normal… Tudo que eu li na minha vida não consegue
me ajudar a explicar… Nem tudo que eu pesquisei… Esqueci
de dizer que sou historiadora, profissão que, aliás, até hoje
não foi regulamentada e outro dia mesmo foi vetada por
essa figura que está à frente do Executivo do Brasil! Como
historiadora uma das coisas em que eu mais acredito é que
a História ensina. Fui logo pesquisar a gripe espanhola do
início da República para tentar entender… aprender com a
História… reli sobre as pestes todas desde o início da civili-
zação ocidental. Só cheguei a uma conclusão: vai piorar. Me
desculpe, caro leitor. Queria ter uma escrita otimista, dizer

162
que por tudo que eu estudei, sairemos dessa melhores, mas
não é o que eu penso. Pelo menos, a natureza respirou.
Acho que essa parada deu um fôlego para os oceanos, para
a flora e fauna em geral, mas ainda é muito pouco. Pouco
tempo… Mas e o tempo? O tempo parou. O cotidiano entrou
num eterno repetir-se. Ao mesmo tempo, tudo em suspenso.
Comecei a fazer bonecos de massinha de modelar… Tarefa
para meu filho, da escola, que eu adotei como terapia. Fiz
curtas de animação e publiquei nas redes para meus ami-
gos. Ficaram divertidos… Simples. Muitas fotos. Parei de fo-
tografar comida e passei a fotografar os personagens que fo-
ram saindo do imaginário meu e de meu filho de 8 anos. Nos
divertimos muito. Vou fechar esse relato sem citar nenhum
autor… vou fechar com fotos dos meus trabalhos em massi-
nha de modelar de hoje. Um presidente genocida e o barril
de ossos que ele está expondo sob seus pés… o Brasil conti-
nua barroco e as vítimas, pobres, negros, favelados, gritam
como os franciscanos alertavam na entrada do templo em
Évora: “Nós que aqui estamos por vós esperamos”.

163
164
165
Ella anota outra coisa
LuLuxa
Belo Horizonte, 28 de abril de 2020
Foto: Luciana Cezário.
Ação do projeto Adeuzará no CEFET-MG Campus 1.

Ella anota outra coisa


para a deusa rá

Dessa vida só me tiram morta. Ella sai hoje, pelas ruas joga
com o espaço, com o corpo: brinca com o redondo. Sente-se
viva, esquece de qualquer saída, de qualquer uma das inú-
meras fugas nas quais constrói sua vida. Uma sequência de
escapes que resultam em tudo que lhe cerca e que resta. A
memória da ocasião mais real de fuga, do dia em que Ella
usa suas (próprias) pernas para correr da morte. Do fim.

167
Arrepio que Ella já não visita tanto nesses dias de, como diz
sua Glaura, bicho invisível. Em dias de bicho invisível não
recorde, permita-se ser lembrada.
Ella anota o parágrafo impulsivamente na página enquan-
to se prepara para uma sessão de gravação. Músicos juntos
podem mudar tudo, pensa. De fato, dá para chorar e para
rir. Dá pra ficar muda, sem voz. Nos últimos dias a mudez
visita Ella com mais frequência. Escuta, ouve com o coração
o sentimento do mundo, desse mundo Raimundo, i-mundo,
o mundo de hoje. Ontem mesmo, vejam bem, ali ao lado, era
um outro lado, mas esse mesmo lado já acabou, pondera Ella,
desapareceu depois das chuvas torrenciais dos dois últimos
verões. Ella nota as evidências do redondo do mundo, ape-
sar de muitos, pasmem, ainda não acreditarem no simples
fato. Todas as evidências ainda não são suficientes. Trocam
ciência por religião com frequência e sem pudor. A existência
do messias é mais palpável (e assustadora): acreditam em
tudo que lhes é horizontalmente tocado. Para Ella, que quer
ver a fundura dos gestos, a palavra mais tirana? Não. Isso
não está certo, Ella sabe. Ella olha ao redor.
Ella descola sua liberdade em um diálogo contínuo com as
artes, essa sublimação que lhe alivia o pescoço em chamas.
Sai palavra, ou não sai, movimenta dentro e a faz lembrar
(ou sentir?) uma imensidão estatelar no céu da Terra. Ou
seria a Terra no céu? Ella para. Inspira. Respira. Não pira.
Pega na gíria, guria.
Marcar lugar no avião, reservar hospedagem, marcar
passagem, arrumar mala, providenciar vacina, rever pla-
no de ganhos e gastos. Ella olha a lista de seu caderninho
A5: vários afazeres, inúmeras folhas com rascunhos, notas
soltas, registros de pensamentos, desenhos, traços, abra-
ços, linhas, números, conexões, indicações, ideias, temas,

168
colagens, objetos, formas, cores. Matéria significante, den-
sa, funcional. Hoje isso tudo aí é outra coisa. Ella pensa no
bicho invisível de Glaura. A materialidade criativa que ema-
na de Glaura. Ella lhe quer coragem e alegria em dias de sol,
como hoje. Hoje em dia escrever me cansa, anota, finalmen-
te, enquanto escapole para seus antepassados, exercita-se
com sinopses, argumentos, pesquisas de personagens. Pes-
quisa de locação? À hora da morte?
Ella percebe seus afazeres crescendo, as responsabilida-
des mais pesadas, o tempo que não está no relógio (já que-
brado) da casa. Toma consciência de seu magnetismo, o
magnetismo de Ella. Pratica um pensar mais lento e puro.
Ella não perde o amor próprio, deseja não retornar autôma-
ta. Quase escreve uma palavra, mas seu pensamento flutu-
ante, fugaz, não chega a ser forte o suficiente para mover
Ella a usar sua caneta. Não anota nada.

169
Casa comigo
Marcelino Freire
São Paulo, 21 de maio de 2020
Casa comigo
lembro da mesma xícara
que meu pai levava à mesa
ao toque da fidelidade
centenária uma amizade assim
que não se largava eternamente
unidos pelas mesmas asas

agora entendo o tamanho


deste sentimento é
com ele que acabaremos
com o fim do mundo

a faca o garfo a colher


o prego que martelo
um quadro os instrumentos
cada um em seu ofício cego
nossas mãos à obra para
toda hora que for preciso

171
agora entendo a força
dos utensílios nem reparamos
em seu suor diário firmes e
fortes para nos livrar da morte

a escada o corte da tesoura


o alicate os travesseiros
há quanto tempo abraçam
os nossos sonhos os pensamentos
mais mundanos debaixo dos lençóis
os panos sem julgamento algum

agora entendo por que tanto


fugimos para lá e cá sem destino
nossa casa um ventre que espera
sorrindo a filha ou o filho ingrato

o pão o fogo o abacaxi na cesta


o ronco da geladeira que nunca
dorme a beleza da fruteira a nossa
rica natureza morta a porta aonde
ninguém mais vem sempre aberta
a qualquer coração que a visita

agora entendo o que é estar dentro


do espírito que habita os espaços fechados
no centro do umbigo na solidão dos livros
o profundo amor da casa comigo

172
Estar sonho:
Um déjà vu
memorável sussurra
pelas vozes do silêncio
Lina Maciel Pereira de Souza
Lavras, Minas Gerais, 03 de maio de 2020
Estar sonho:
Um déjà vu
memorável sussurra
pelas vozes do silêncio
30/04
Humano rítmico

O entrelaçar de corpos
Costura dos movimentos
Onipresença fissurada no amado
Nos reflexos das pétalas-prismas índigo azul
Dissolve nossa ideia de eu,
Para tudo.
Preenche com sua maestria
Todos os milímetros de meu corpo-estar

174
A encruzilhada é troca
O céu vem nos perguntando
Mensageiro dos sonhos
Seu coração tem fome de quê?
Reluzindo as chamas da vontade
Firma-se no espaço feito de restos crescentes
Anímicos floridos
Representantes da sagacidade dos sonhos mais
profundos
Fio luminoso centraliza corpo
Falange egregorial, no caule firme
A visão torna-se uma entrega empossada
De oferendas na encruzilhada

02/05
Vida-rito
Um corpo-ser, só, embarcação
Tem flor corte que remexe cinzas
Me parece que o cataplasma, feminino,
É transplantar-se a si mesmo na ferida
Fazer da semente correnteza movediça
Como a enrugada que, na dança, recolhe ossos

Poetisa dança
No elogio simples
À pomba ao anoitecer
À ardência
Seu corpo sente, ao fascínio
No compassar de passos no escuro, arder mistério
Coragem, sim

175
Toque das presenças mesmas, o alcançável enca-
rar ao tão familiar
Toque
Nadando nas profundezas, e estando na superfí-
cie, navegação infindável de tempos.

Atiçando minha calma


Vertiginosa
Total abertura à fundo
Então eu escuto.
Se você me permitir,
Posso delinear a travessia

Abismo que é estar


Estar-mergulho
Fala, mas no fundo conversação
Alcançável natureza tópica

No toque
Navega-se ao beijo da impermanência
Martela-se o tempo
Floresce à vida
Corte só
Ferida fluida cataplasma
Alça voos
Para o sonho.

03/05
Rio abaixo do rio
Parece, para mim

176
Que o prisma das lágrimas
Enchem rios
Que as feridas abrem fechaduras
Antes obstruídas por teias de aranha
Para que penetre profundo,
Os murmúrios vindos lá de baixo
Parece, para mim,
Que os toques penetram como mergulho, e sussur-
ram sob a vertigem
Do desamparo de cair por terra
O que pensávamos ser chão
Superfície escorregadia capturada pelas palavras
Almas perambulantes, solo
Que vagam demonstrando,
A recepção do sopro,
O sustento
Cai na terra, velhas garras me vestem como raízes
tronco
Coloco meu chapéu e se torna pisável
A prismática sala de espelhos

Silêncio
O tempo é sentido
Longitudinalmente, veem-se frestas
De um silêncio tocado e desobjetos palpados
Na profunda reverência a cada ruptura
Que são os encontros

Mirar a escuridão
Me parece que a cada lampejo de dor,
Um pedido de redenção.
Sonhei acordada, a vida consagrada

177
Percebi então o peso da solidão
Alcei voo para dentro, e acredita que lhe
encontrei?
Me parece que sonhar é uma mulher de seios far-
tos e longitudinais rugas. Escura.
E o retiro, é lembrar a sonhar.
Não tema a noite.

178
Fragmentação,
dispersão e repetição

Uma saída perigosa


e quase (?) fatal

Teodoro Rennó Assunção


Belo Horizonte, 05 de maio de 2020
Fragmentação,
dispersão e repetição
Em meio à repetição não só de jogos de futebol, de vôlei ou
de tênis, mas também de novelas nos horários nobres normais
vespertinos ou noturnos pras telenovelas nos grandes canais
(e não num alternativo no começo da tarde ou num canal só
de repetições), os telejornais pareciam ampliar e diversifi-
car a sua faixa horária com notícias quase sempre novas
a praticamente cada turno do dia não só sobre as calami-
dades do coronavírus no mundo, mas – no caso brasileiro –
também sobre as sempre renovadas trapalhadas patéticas,
num estilo grotesco vulgar de filme de horror B (mais pre-
cário do que o do Zé do Caixão), de um Bolsonaro genocida
e talvez suicida (em termos médicos e políticos), disposto a
romper o isolamento horizontal (em nome da retomada do
trabalho e das atividades econômicas), saindo às ruas e, por
exemplo, se juntando sem nenhuma máscara de proteção
a manifestantes fascistas que vociferavam em prol do AI-5
e da ditadura militar (ou demitindo um ministro da Saúde
que propunha com algum bom senso um isolamento mais
estrito), infelizmente poupando assim à imprensa (mesmo
a mais séria) todo e qualquer esforço – já que diariamente
tudo vinha de bandeja e em profusão numa espécie de circo

181
do horror centrado no Palácio da Alvorada – em direção ao
(como sugere a definição do Houaiss para “imprensa mar-
rom”) “sensacionalismo das notícias (com ênfase para es-
cândalos amorosos, políticos, sociais, econômicos)” e “o
achaque a personalidades”.
Mas ainda bem mais rapidamente do que na TV (e digo
isso simplesmente porque, tecnologicamente defasados, não
temos em casa ainda uma Smartv), as notícias, montagens
em vídeo e interpretações novas da pandemia chegavam e
chegam, a quase todo instante, via internet (e-mail), Face-
book, WhatsApp, Twitter e Instagram, com todos esses ca-
nais de comunicação facilmente acessíveis num mero celular
tipo iPhone vibrando insistentemente com intervalos às ve-
zes de brevíssimos segundos, e isso praticamente ao longo
de todo o dia, mesmo durante as refeições, com paradas e
intervenções de duas ou três pessoas (eu, minha mulher e
minha filha mais nova), cada qual com seu celular-computa-
dorzinho na mão, pra dizer um “você viu isso?”, acionando
um vídeo ou resumindo uma notícia, com um comentário
breve e ordinário também quase imediato: “que horror!”,
“puta que o pariu!”, “tá muito engraçado!”(…), dificultando
a leitura de qualquer texto mais longo ou o acompanhamen-
to contínuo de qualquer filme, episódio de série, ou jogo intei-
ro (já passado) de futebol ou vôlei. À primeira vista, parecia
hegemônica a incômoda sensação de fragmentação explosi-
va e pluralidade inumerável, ambas potenciadas e caóticas
(incluindo toda uma mecânica obsessiva de propaganda e
anúncios das grandes marcas e empresas digitais), mas –
como antes no telejornalismo as notícias do dia, a partir das
mesmas grandes fontes de informação, se repetiam indefini-
damente à noite nos mais diferentes canais de TV aberta ou
a cabo, criando paradoxalmente a impressão contrária de

182
uma monótona e infinita repetição de um mesmo repertório
limitado de notícias mais importantes1 – também nos novos
e mais rápidos meios de comunicação (internet e WhatsA-
pp, p. ex.), em intervalos ou blocos de tempo mais breves
do que um dia (p. ex., um turno apenas, como uma manhã,
uma tarde ou uma noite), não só as notícias se modificavam
vertiginosamente de um turno do dia para o outro, mas ime-
diatamente depois, no interior deste mesmo turno do dia
(manhã, tarde ou noite), começavam a se repetir indefini-
damente, intensificando gradativamente a impressão meio
zumbi de achatamento da atenção, esvaziamento de sentido
e supressão do espírito, numa areia movediça fatal da mole
e preguiçosa indiferença e inércia do mero (mas milionesi-
mamente multiplicado) consumidor digital de textos, sons
e imagens… Também se tornou muito comum que um texto
ou vídeo inteligente e/ou engraçado começasse nas redes so-
ciais a ser repassado por muitos e com tanta frequência (o
efeito irônica e coincidentemente – em tempos de pandemia
– chamado em linguagem digital de “viralização”) que du-
rante um breve período muitos amigos ou conhecidos “infor-
mados” e “inteligentes” acabassem por repetir indefinida-
mente suas mesmas pérolas ultra-vulgares: frases de efeito,

Certamente não será de todo gratuita a espantosa semelhança entre


1

esta impressão de infernal repetição produzida a partir dos hoje já ve-


lhos (em seu formato comunicacional) telejornais e aquela impressão de
uma igualmente infernal repetição produzida pela insônia, segundo o
que sugere magistralmente Aníbal Machado em dois aforismos da hoje
já clássica “Topografia da insônia” (de Os cadernos de João): “Quando
chegamos a perceber que são as mesmas coisas que se repetem, fingindo
de novas – já a insônia está lavrando pelos pontos mais protegidos e
em toda a extensão do nosso ser.” / “A questão é que não acaba nunca
de desenrolar-se essa película interminável, com o negativo de todas as
imagens do dia…”.

183
textos breves, microcartazes, vídeos ou memes circulando
sempre mais e mais num círculo vicioso doentio e sem fim…2

2
E, enfim, como forma ultramitigada de participação política possível
numa época em que estavam e ainda estão proibidas e/ou desaconse-
lhadas as manifestações de protesto coletivas e públicas na rua, restam
as assinaturas dos abaixo-assinados digitais vulgarizados sobretudo em
plataformas como a do Change.org ou a do Avaaz, recentemente satiri-
zada por um programa de TV conhecido da HBO, o GregNews, que, no
entanto, também começou a lançar mão de algum abaixo-assinado di-
gital pra tentar intervir publicamente contra o desgoverno Bolsonaro,
algo que, como bem disse o próprio Gregório Duvivier, pode muito bem
ser feito tranquilamente por alguém, bem instalado ou estendido num
confortável sofá, vendo TV e bebericando uma cervejinha ou um cafezi-
nho, a partir do seu laptop ou iPad ou celular tipo “iphônico”. Mas ainda
menos efetivos eram os envios frequentes de textos, vídeos e mensagens
pra indivíduos ou grupos de e-mail e WhatsApp, ou já convertidos ao
antibolsonarismo, ou fanáticos inconvertíveis (e que têm também seus
robôs pra multiplicar indefinidamente estes envios).

184
Uma saída perigosa
e quase (?) fatal
Apesar da insistência paranoica de minha família e de
algum temor acrescido meu, ambos inteiramente justifi-
cados – (devido à minha hipertensão e a um câncer recente
quimio-rádio-curado, que debilitam potencialmente minha
imunidade, além dos 60 anos completados há dois meses
apenas), quanto aos riscos de contágio pelo coronavírus
numa mera saída de casa (isto é: do apartamento) numa re-
gião urbana (Zona Sul de BH) com algum comércio aberto
(como farmácia, supermercado, banca de jornal ou agência
de banco aberta com seus caixas automáticos) e com uma
certa frequentação humana (mesmo que já relativamente
esvaziada), como era pra mim a agora saudosa Av. Prudente
de Moraes (que se tornara, em chave de humor pastelão, a
“Imprudente de Imorais”) –, eu voltei a não resistir e, ten-
do o pretexto de alguma urgência inadiável de banco (como
uma conta a vencer naquele dia e não pagável pela inter-
net), de farmácia (uma compra de um tarja vermelha, exi-
gindo receita e não liberado ainda pra pronta-entrega) e de

185
supermercado (algumas frutas, verduras pra salada, coalha-
da e ao menos uma garrafa de um bordô chileno honesto e de
preço não exorbitante), saí a pé, me deliciando de poder esti-
car as pernas pra valer, respirando com gosto e prazer o ar
mais ou menos fresco de uma tarde iluminada de um outono
já ameno e com um céu azulzinho estriado de leve por finíssi-
mas faixas brancas de nuvens, e bendizendo uma liberdade
de poder sair (“que delícia!”) agora ameaçada e tolhida pelo
imperativo da reclusão (“puta que o pariu! que merda! quem
é que podia imaginar um terror science-fiction assim?”), mas
passando a sentir algum incômodo pra respirar e pra enxer-
gar com os óculos intermitentemente embaçando, quando,
ao chegar à rua Iraí, com seus alguns transeuntes e passa-
geiros de ônibus esperando nos pontos, não tive como não co-
locar a máscara de proteção pra cobrir a boca, enquanto eu
tentava sempre me desviar o bastante e manter pelo menos
dois metros de distância de qualquer transeunte com que eu
cruzava ou de qualquer ser humano parado no passeio e que
eu ultrapassava rápido, continuando a andar firme.
De máscara e tentando manter a distância padrão (assim
como passando álcool-gel logo depois de tocar em algo ma-
nuseado por um vendedor ou caixa), aproveitei na farmácia
pra comprar, além de um Selozok de 50 mg e de um genérico
de cloridrato de fluoxetina de 10 mg (pra espantar minha
melancolia suicida diária habitual na hora do crepúsculo),
alguns fios dentais, aspirinas tamponadas e paracetamóis,
uma meia dúzia de sabonetes Phebo de perfumes variados,
dois shampoos “naturais” pra cabelos oleosos e umas cápsu-
las com guaraná em pó, e saí (sempre de máscara), atento
à movimentação em frente àquela Araújo, indo direto pra

186
uma agência do Banco do Brasil, nem tão vazia assim (e
com mais de seis clientes simultaneamente usando os caixas
automáticos), onde tive alguma dificuldade pra pagar uma
conta que vencia aquele dia e excedia mil reais, mantendo o
uso da máscara, pois com ela os óculos estavam embaçando
e eu precisei digitar toda uma série de números porque a
máquina não estava conseguindo ler o código de barras, me
levando também (atento à ali difícil distância de dois metros
dos outros clientes) a passar álcool-gel umas quatro ou cinco
vezes ainda dentro da agência.
Saí rápido, evitando os mendigos pedindo esmola que
moravam sob a marquise na entrada desta agência do BB
(que chance eles teriam agora?), e fui pro supermercado
Carrefour, onde (ao entrar) foi testada minha temperatura
(36,3º) por um funcionário com máscara e luva, e consegui
comprar rápido dois potes de coalhada, alguma rúcula, alfa-
ce e berinjela já embaladas (pra facilitar), um suco de me-
xerica Do Bem e um bordô Casillero del Diablo que estava
em promoção, felizmente não pegando fila num caixa rápido
pra no máximo 15 volumes (onde também usei três vezes o
álcool-gel). Numa banca em frente, não me contive e, vendo
que poderia pegar um exemplar da Folha de S.Paulo e dar
por ele uma nota de cinco reais sem tocar em nada tocado
pelo vendedor (e, mesmo assim, usando logo depois o meu
álcool-gel), comprei deliciado um jornal em papel. Apesar de
ter desejado muito uma tradução nova d’O asno de ouro de
Apuleio, passei meio apressado junto à livraria Ex-Calibur e
continuei meu caminho de volta na Prudente, mas, já na es-
quina com a rua Guaicuí, não consegui me impedir de parar
pra olhar exposto no chão, junto a alguns outros livros, um

187
exemplar novinho de O crime do restaurante chinês de Boris
Fausto, que um sem-teto, deitado sobre um colchão postado
ao lado, vendia por módicos 10 reais, nota que passei então
pra ele sem tocar sua mão, pegando o livro eu mesmo e pas-
sando álcool-gel não só na minha mão, mas também na capa
e contracapa do livro, assim como água sanitária em tudo o
que eu comprara (jogando no lixo as sacolinhas, após tirar o
tênis), quando cheguei em casa.
Feita essa louca temeridade, passei a só andar perto de
casa em ruas desertas e nunca mais fui a pé até a Prudente,
mas exatamente duas semanas depois, comecei à tarde a ter
uma dor de cabeça forte e a tossir muito e bem seco, e no
começo da noite minha temperatura subiu pra cima de 39º.
Minha mulher, nervosa, começou então a passar uns zaps e
a telefonar pra uns médicos amigos seus. E minha filha mais
nova, desde que soube, fingiu estar tranquila e (pra não pio-
rar) tentou discretamente disfarçar o choro.

188
Imantação do real: uma
pedagogia do corpo-flor
Dinah de Oliveira
Rio de Janeiro, primeiro domingo de maio de 2020
Imantação do real: uma
pedagogia do corpo-flor
Experimento de escrita número zero
Enfrentar o momento traumático
Estando na estrutura dos stories do artista Gustavo Von Há
“Não é o significado, mas o sussurro que me motiva”

Jota Mombaça, Aqui foi o


Quilombo do Pai Felipe, BUALA

Lembro agora do filme O sacrifício do cervo sagrado do


cineasta Yórgos Lánthimos. Você viu? (pergunto assim
diretamente para performar um outro que me escutaria
no aqui e agora do meu isolamento). O problema do filme
é que a tragédia se aloja justamente no lugar em que as
coisas pareciam tão familiares, tão próximas de nós. Algo
da ordem daquilo que Freud chamou de o infamiliar. Parece
que não chegamos a um céu de brigadeiro, bem diferente
das religiões que pregam a boa-nova. Nossa matéria é ou-
tra. Nosso céu está opaco da fumaça que sai da lata em que
nosso povo branco seca o ouro no garimpo, como disse o
Davi Kopenawa: “(…) uma fumaça que não se vê e que se
alastra e começa a matar os Yanomami. Ela faz morrer os

190
brancos da mesma maneira”. A psicanálise e a arte tam-
bém nos avisaram há tempos que vivemos no universo das
representações e, como adverte Michel Foucault, a palavra
é a morte das coisas. A linguagem é contínua criação e não
temos acesso aos fatos, só temos acesso a como a realidade
nos afeta. Diferimos nosso momento. Ainda que a realidade
seja um núcleo duro, ela é feita em acordo com a matéria
imaginária, por aquilo que é capaz de impressionar nossos
sentidos e assim, se faz de acordo com o simbólico. Mas, no
momento, não temos como garantir a realidade. Não acom-
panhamos de todo o índice da mutabilidade do Covid-19. O
mundo se assemelha ao delírio.

Se não posso dobrar os poderes celestiais,


agitarei o Inferno.Virgílio, Eneida, VII, 312

Epígrafe de A interpretação dos sonhos,


Sigmund Freud

Quem disse que a gente não pode cair? Quem


disse que a gente já não caiu?

Ailton Krenak, Ideias para


adiar o fim do mundo

Podemos continuar: e quem disse que sabemos onde fica o


chão? A doença desperta no corpo todas as fantasias, sejam
elas quais forem. Quando nos deparamos com o real, nos de-
paramos conosco. O real para Lacan é aquilo que não deixa
de não se inscrever, é aquilo que nos surpreende por sua fal-
ta de sentido. E se pudermos então abrir espaço para uma
pré-ontologia do corpo novo? Eis aí minha aposta. Aprendo
com Jota Mombaça: “Não é o significado, mas o sussurro que

191
me motiva” no trabalho da artista Castiel Vitorino Brasi-
leiro. Estou atenta ao meu lugar historicamente racista por
tradição + radiação. Radiação é ato falho da linguagem que
encarnou na escrita. Não existem facilidades para o convi-
te ao seu repertório de imagens-de-cura. Não temos códigos
determinados para ler seus signos de desconstrução e aglu-
tinação = Tanatos + Eros. Sigamos as intensidades na série
fotográfica Aglutinar e redistribuir. Mire e veja: https://
castielvitorinobrasileiro.com/_foto_ar. Tem ainda a falta de
garantia que sentimos no confronto com o corpo-flor que a
poética da artista elabora. A falta de saber próprio do sujei-
to moderno e cisgênero-colonial-autodeterminado. Castiel
Vitorino + Denise Ferreira da Silva = artistas + filósofas nos
ensinam a ouvir o rumorejar das fontes.
Que nos mostram o quanto mais
Nada garante o saber da linguagem que apreende a coisa
Mas sabemos que a arte é trabalho de contornar VAZIOS
Derivar dos saberes = Obra de marco zero, seu corpo-flor,
Castiel! Love, Love, Love
Aquilo que salta do seu corpo-flor, rebatizado pela ma-
cumbaria que pratica, é princípio de ordenação entre seres
sujeitos e seres de outras animações. O corte é ação libidinal
que Castiel nos exibe. Mire e veja: https://castielvitorino-
brasileiro.com/_foto_cf. A repetição de suas cores, de suas
formas em espada, das máscaras, o singrado do cheiro que
exala da visão, aahhahahaha tonalidades de delírio com sua
arte de incorporar cuidado: imanta os objetos e reorienta
a falta do campo do outro. Lembramos que se não alcança-
mos sua proposição de cuidado poético do corpo travesti,
é na medida em que esse corpo nos avisa sobre os desgas-
tados meios de vigiar os sentidos, não somente dos traba-
lhos de arte, não somente na academia, mas também nas

192
existências do corpo próprio. Seu corpo-flor denuncia como
esses meios são produtores de políticas de globalização ca-
mufladas de epistemes.
Pura travessia do real
Espada de São Jorge que não ignora a língua que fala
E dança, dança, dança
Sua iconografia inscreve um núcleo resistente de sub-
jetividades já incorporadas de um porvir. Não é mais um
gesto de corpo e acaso, mas a aparência material de outra
vida na forclusão criadora de caos na febre histórica do
significar. Daí seu teor político de subverter as ordena-
ções sobre os corpos normatizados pelo sexo. Esse corpo
que ultrapassou o totem recai sobre o mito civilizatório
perpetuado na colonialidade sempre genocida como uma
ameaça. Nada de não revisitar o crime para que ele não
aconteça. Estamos justamente dentro dele. Então, cui-
demos do corpo-flor. A resistência ao estado das coisas é
uma pedagogia do cuidado bichanada no murmurejar das
fontes somente para aqueles que sabem escutar as infu-
sões. “Não é o significado, mas o sussurro que me motiva”:
a frase de Jota Mombaça atravessa a supremacia da car-
ne intelectual com uma machadinha mutável e afiada.

193
Dauphine
Ricardo Santhiago
São Paulo, 05 de maio de 2020
Dauphine
Ctrl Z. Ctrl Z urgente. A culpa é minha; punam-me! Sim,
fui eu quem logo na primeira reunião falou que aula não, que
só uma coisa ou outra pra manter o vínculo, que transformar
disciplina de graduação em curso a distância era gambiar-
ra, que o mais importante nesse momento era garantir aos
alunos que eles não estão abandonados. Os calouros, princi-
palmente. Aqueles meninos magrinhos que dá medo de que-
brar, aquelas mocinhas cheias de canetas coloridas que dá
medo de perder, e vice-versa. E também aquela menina fo-
finha com sua eloquência de girafa na semana de recepção.
Ou aquele moleque marrento com a camiseta do The Who
toda suja de Toddynho, se não me engano, light. Todas, todos
e todes, como anunciou a pró-reitora de assuntos comuni-
tários nas boas-vindas que não ouvi. Garantir que não es-
tão abandonados, onde já se viu? Ctrl Z, por favor. Ctrl Z no
meu Amazon Prime, Americanas Prime, Submarino Prime.
Ctrl Z na mesa digitalizadora, no microfone condensador, na
câmera Full HD. Ctrl Z pra que eu não tenha que embalar
tudo, imprimir o código de postagem e concorrer na fila do
Correio com CPFs suspensos, precisados dos seiscentos re-
ais que antes eram duzentos. Ctrl Z pra não ter que espe-
rar o reembolso no cartão: “o senhor visualiza na próxima
fatura, em até 45 dias”. Pra poupar a ligação do atendente

195
da operadora ensanduichado entre três ripas de madeira no
call center onde 279 companheiros de turno fofocam per-
guntando se “viu o insta do filho do patrão, escondendo o
tanquinho afofado com um cartaz?”, um cartaz que dizia “o
Brasil não pode parar”, só que isso não se comentou. Ctrl Z,
é o que rogo. Em suas casas, as alunas, os alunos e es alunes
devem estar rogando, “por favor, professor, menos texto,
menos live, menos postagem, por favor professor, prome-
temos silenciosamente que não pensaremos em você como
um tio do pavê, criando grupo de disciplina no Facebook e
achando que é da hora, quando da hora é uma coisa que a
nossa geração já quase nem sabe o que significa”. E olha que
eram textos incríveis: Cortázar, Rosa, Machado. E olha que
eram lives incríveis: arte, loucura, documentação. E olha
que eram postagens incríveis – só que parecia que os algorit-
mos não funcionavam. 60 alunos, 39 inscritos, 22 visualiza-
ções, uma curtida. Uma. E as atividades transversais como
uma espécie de cortina de fumaça para mundos internos
nada isolados, nada paralisados, mundos internos frenéti-
cos dos quais o meu não dista, licenciado portanto a escre-
ver assim, sem tanta vírgula, sem parágrafo, sem submis-
são à gramática e tampouco à ortografia, porque os russos
estavam meio certos e a forma é. E se é assim, então nada de
Ctrl Z. Que vençam os links para as lives e es alunes entrem
e dupliquem com câmeras fechadas suas ausências indiciá-
rias. Que vençam os debates online e nada de Cortázar, de
Rosa, de Machado, mas de “nossa, professor, o que que é
Dauphine?”. Que vença a negligência no grupo que cuidado-
samente intitulei, mas ironicamente se autorrealizou “Nar-
rativas em tempos de isolamento” e eu permaneça ali tão
só, isolado do campus, das salas, dos horários, des alunes,
mas das reuniões nunca, porque os colegas mais jovens – eu

196
sou jovem, mas minha alma é velha e precoce – são ator e
argumento de virtue signalling, conceito oportuno e neces-
sário ainda sem tradução para o português. Que eu saiba.
Characters perfeitos da sátira italiana que imprimi uma vez
e preguei na cortiça do antigo departamento duas semanas
antes de pedir exoneração, mas foi pura coincidência. “Con-
voca una riunione! Potrai vedere gente, disegnare grafici,
sentirti importante, fare colpo sui colleghi – tutto durante
l’orario di lavoro!” Ctrl Z. Ctrl Z por favor. Ou Ctrl Z tanto
faz. Mas reconheço que a culpa é minha; punam-me! Fui
eu quem logo na primeira reunião falou que aula não, etc.
etc. etc., que o mais importante nesse momento era garan-
tir aos alunos que eles não estão abandonados. Fui eu quem
não deu escuta e acolhimento para a colega que disse ficar
cansada só de ouvir uma explicação sobre como era ligar o
Zoom, o Skype, o Teams, o que obviamente nos catapultaria
direto daqui para março de 2021. Reconheço que fui eu. A
culpa é minha; punam-me!

197
Disritmia
Jorge Cupim
Rio de Janeiro, 24 de maio de 2020
199
Nomadizar-se
na pandemia?
Cíntia Vieira da Silva
Serra, Belo Horizonte, 06 de maio de 2020
Nomadizar-se
na pandemia?
Confinamento.
Esse termo, antes reservado ao rebanho bovino, passou
a designar o nosso, assim espero, provisório modo de vida.
Nosso, quer dizer, de quem pode afastar-se da vida ao ar li-
vre ou poluído e de quem assimila as informações difundidas
por tantas fontes de conhecimento científico a respeito da
gravidade da pandemia que ameaça o globo que habitamos.
Outra palavra vem sendo usada para designar a vida con-
finada: quarentena. Se, por um lado, remete diretamente à
epidemia e ao procedimento empregado para impedir a pro-
pagação de tantas outras enfermidades que nos têm atingi-
do, por outro, seu uso no atual momento incorre em certa
imprecisão. Primeiro, porque o confinamento já se estende
por mais de quarenta dias e ninguém sabe quanto mais virá
a durar. Segundo, porque não são apenas os doentes ou in-
fectados que permanecem em quarentena, sendo desejável
que todos a ela pudessem aderir.
No começo, pensei: essa medida preventiva (confinamen-
to ou quarentena) não vai modificar tanto minha rotina. À
exceção dos dias em que dou aula, e umas poucas saídas

201
para atividade física e compras, outras para encontrar pes-
soas queridas, a maior parte dos meus dias já transcorre
mesmo no interior desse apartamento.
Felicitei-me por já estar praticando meditação desde as
últimas eleições, pois, logo depois dessa visão tão otimista,
vislumbrei o quanto essa rotina de uma vida toda interior
seria diferente. Não só por seu caráter compulsório, mas
também por se acompanhar de uma sensação de ameaça
pairando sobre o mundo todo. Previ, então, que o hábito da
meditação, mesmo sem qualquer busca religiosa, ajudaria
a me manter senão serena, ao menos com algum grau de
sanidade mental.
Tinha pela frente uma defesa de doutorado na PUC de São
Paulo, marcada para o dia 24 de abril. Obviamente, não mais
viajaria para participar desse rito que viria a tornar o ami-
go Francisco Freitas doutor. A defesa seria virtual. Já tinha
visto Chico falar de sua pesquisa, porém, só ao começar a ler
a tese, dei-me conta da ironia da situação. Sua tese se intitula
Cartografias nômades.
Será que essa leitura poderá me fazer encontrar um pou-
co de nomadismo nesse cotidiano tão sedentário?, era o
que eu pensava lendo as primeiras páginas. Percorrendo as
páginas da tese, senti que atravessava um deserto, que me
embrenhei numa floresta e, então, deparei-me com o nau-
frágio. Um Robinson Crusoé nômade, não o de Daniel Defoe,
mas o de Michel Tournier, lido por Deleuze, descortinava
para mim a possibilidade de aliança entre a minha situação
– compartilhada por tantos – e o nomadismo. Em Sexta-fei-
ra ou os limbos do pacífico, quem naufraga não é apenas o
navegante europeu Robinson Crusoé, mas, com o passar de
sua estada na ilha que batiza de Esperanza, toda a estrutura
sociocultural que o náufrago trouxera consigo. A identidade

202
de homem civilizado que pisara na ilha vai sendo lentamente
demolida, até que seus últimos resquícios fossem destruídos
com a explosão do arsenal de pólvora que vinha sendo ciosa-
mente mantido como uma espécie de garantia da presença
do mundo civilizado.
A possibilidade de um nomadismo insular cintilava para
mim como a promessa de algum nomadizar, mesmo no inte-
rior de um apartamento, esse epítome da vida sedentária ci-
vilizada. É que, na palavra isolamento, também usada para
descrever o recolhimento profilático recomendado a todos
quantos possam, se pode ouvir algo que evoca a palavra ilha.
Haveria elementos para nomadizações, para além de um pa-
rentesco etimológico?
O que parecia me afastar de qualquer nomadismo era a
quase ausência de deslocamento que experimentava (e na
qual permaneço). Contudo, desde o “Tratado de nomadolo-
gia”, parte dos Mil platôs de Deleuze e Guattari, já se sabe
que o nômade não se define pelo movimento no espaço ex-
tensivo, que, enquanto deslocamento (mudança de lugar),
é sempre relativo. O que distingue o nomadismo de outros
modos de existência são seus movimentos intensivos, que
se podem fazer num mesmo lugar e, como não se medem
pela distância em relação a um ponto de referência, são mo-
vimentos absolutos. Na medida, então, em que conseguisse
me deixar afetar pelos acontecimentos propiciados pelo
meu atual cotidiano, experimentando diferentes maneiras
de sentir, de perceber e até de ser, poderia constatar no-
madizações perpassando o sedentarismo desses dias isola-
dos. E talvez sejam lampejos de nomadismo que me tornem
tão avessa a participar da miríade de transmissões ao vivo
que pululam pelas redes sociais afora. Elas me soam como
tentativas de manter a vida escandida pelos horários de

203
compromissos de reunião ou de trabalho conjunto com cole-
gas, de frequentação de espetáculos para o lazer, de sociali-
zação com amigos, conhecidos e desconhecidos. Cintilações
do nomadizar me convidam, ao invés de ficar à espreita da
oportunidade de debates e conferências tão interessantes,
a aquietar-me, seguindo a sugestão de Ailton Krenak (feita,
vejam só, em uma transmissão ao vivo no canal da ANPOF
[Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia] con-
duzida por Susana de Castro em 22 de abril de 2020). Mais
do que sugerir, Krenak exprimia ali o desejo de que o isola-
mento pudesse nos ensinar – e imagino que, apesar da gen-
tileza de usar o “nós”, o pensador se referisse ali mais aos
brancos – a deixar de imaginar o tempo todo que devemos ir
a algum lugar ou devemos fazer alguma coisa.

204
Em busca de
uma lamparina
no final do túnel
Célia Regina Pereira de Toledo Lucena
Fazenda Bela Vista, São Paulo, 25 de abril de 2020
Em busca de
uma lamparina
no final do túnel
Falar em sociedade contemporânea é pensar em forças
controladoras, angústias, esperanças, projetos para o fu-
turo, comunicação e tecnologia. Michel Foucault em Vigiar
e punir1 apresenta a disciplina enquanto forma de poder
exercido sobre o corpo dos indivíduos. A disciplinarização,
uma vez interiorizada fabrica corpos dóceis, amedrontados
e submissos. Os mecanismos de controle e de vigilância fo-
ram se identificando na sociedade disciplinada, onde todos
se vigiam e vigiam a si próprios.
No século XXI o isolamento social imposto pelo COVID-19
sequestra o indivíduo da sociedade e o confina na própria
casa. A sociedade contemporânea atinge o ápice da discipli-
narização. O isolamento bastante assustador, ao distanciar
familiares, amigos, profissionais, interrompe atividades,
projetos, coloca os personagens de vez, em condição virtual.
A falta de medicamento, de vacina, a facilidade em contá-
gio, deixam a população assustada e faz com que o coletivo

Michel Foucault, Vigiar e punir, Petrópolis, Vozes, 1989.


1

206
transite pela escuridão dentro de um túnel infindável. Exis-
te uma crença, um desejo coletivo de encontrar luz. Essa ca-
minhada angustiante é carregada de esperança e de sonhos
de encontrar uma lamparina no final do túnel.
O isolamento tem provocado mudanças nos comporta-
mentos, nos convívios sociais e no meio ambiente. Com cer-
teza quando chegarmos ao final do túnel, não sairemos da
mesma forma que entramos. Haverá um divisor de águas,
mudanças nos pensamentos, nos costumes, quiçá mais to-
lerância diante das diferenças. Sem dúvida, o confinamento
vem sugerindo novos formatos nas relações, nas redes so-
ciais, conversas por voz (via telefone), novos amigos virtu-
ais, entram em cena na busca de expectativas e construção
de esperanças. Diante das dificuldades sociais e econômicas
do distanciamento social, pontos positivos são apontados
com relação ao índice da poluição do ar e a circulação mais
livre de alguns animais em algumas cidades do planeta. O
humano, uma vez isolado, traz algumas benfeitorias com re-
lação ao mundo animal e ambiental.
As regras disciplinadoras do isolamento social passam
pelas decisões políticas nos respectivos países. No caso bra-
sileiro, as contradições predominam; de um lado, pessoas
sensatas buscam a quarentena, tendo em vista a não prolife-
ração do vírus, e de outro, as propostas dos “verde-amarelo”
colocam a população em risco.2 O grupo adepto da teoria da
Terra plana, do fim da democracia e soberania, agora acha
desnecessário quarentena e isolamento social criando difi-
culdades na busca de projetos benéficos para saúde pública.

Malu Aires, “‘Os verde-amarelo’: inimigos mortais do brasil – por Malu


2

Aires”, disponível em htps://gustavohorta.wordpress.com/2020/04/13/


os-verde-amarelo-inimigos-mortais-do-brasil-por-malu-aires/.

207
Dia 29 de março
Dia da mudança da cidade de São Paulo para um sítio no
interior paulista, com a perspectiva de buscar um isolamen-
to mais rigoroso. A princípio fiquei preocupada em abandonar
Sampa, o conforto da casa, distanciar da internet e das ativida-
des que vinha realizando, como participar de banca de tese, via
e-mail, do envio de notícias ao grupo e ao centro de estudos na
Universidade. Assim, crianças, pais, avós, cachorro, carrinho
de bebe, brinquedos infantis, computadores, livros, filtro solar,
migraram da capital para o interior. Após adaptações, negocia-
ções de algumas práticas culturais e de escolhas de cardápios,
foi possível adequar um cotidiano saudável, distante à reali-
dade do coronavírus. A partir de então artigos foram escritos
e concluídos, subprojetos foram pensados, pareceres em arti-
gos foram realizados, contatos com amigos nas redes sociais
foram concretizados, dotes culinários foram aprimorados.
Ainda de olho na lamparina entendida como um jato de es-
perança, rememoro “O mundo não se acabou”, música cantada
por Carmen Miranda, em 1938.3 “E a história não teve fim”
como teorizou Fukuyama na virada do milênio.4,5

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=abVNWgeonOY.
3

Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man, New York
4

Free Press, 1992.


Sou grata a minha filha Cibele Lucena pela colaboração na tradução da
5

metáfora da lamparina em imagem.

208
Cotidiano nº 3
Juliano Spyer
São Paulo, maio de 2020
Cotidiano nº 3
Céu azul, ar está mais limpo do que de costume e silêncio.
Parece domingo.
Entre os sons recorrentes: o coral de 15 cães de uma das
casas próximas, a chegada de entregadores anunciando-se
com toques conhecidos de buzina, passagens ocasionais de
helicópteros e a chegada e partida de um helicóptero aqui
na vizinhança.
Trabalho diariamente no quarto de uma edícula. Seus
muitos armários sugerem que além de hospedagem impro-
visada, ele serve como depósito. A minha mesa de trabalho
improvisada fica junto a uma janela de madeira ampla que
decorei com quatro vasos.
Sem poder caminhar regularmente, sinto a cada instante
dores nas costas, no pescoço e nos tendões do braço.
Círculo entre a edícula e o quintal de ladrilhos parcial-
mente ladeado por um jardim em condição de semiabando-
no. As cores predominantes do entorno são creme e bege.
O dono da casa aderiu ao “isolamento radical”. Ele tem 68
anos e não sai de casa. Para manter o distanciamento social,
conversamos gritando entre a edícula e a casa.
Ao meio-dia paramos para preparar o almoço e comer. Ele
cozinha e temos um ritual de afastamento para ele deixar o
meu prato sobre a cadeira no quintal.

210
A temperatura tem variado entre 20 e 30 graus neste ou-
tono na cidade de São Paulo.
A rua que eu não vejo, mas escuto, deve estar vazia,
descontando a aparição de vizinhos que caminham ou cor-
rem usando roupas coloridas e a circulação de algumas fun-
cionárias de passagem de manhã e à noite.
A conversa matinal dos passarinhos já atrapalhou a mi-
nha concentração em uma reunião de trabalho pela inter-
net. Vi uma família de papagaios brincando nas árvores.
No último final de semana, um amigo filmou ao vivo sua
TV para que eu assistisse o programa de um canal fechado.
Um dia desses dancei no quintal durante o experiente
graças aos meus fones de ouvido wireless.
Pelo mesmo fone participo de reuniões enquanto lavo a
louça, verifico as roupas que secavam no quintal e pego amo-
ras no pé junto ao muro.
Passo o dia de pijama e sem camisa. Entro em reuniões
com a câmera desligada assim como a maioria dos meus co-
legas de trabalho.
Quando o vento sopra em direção norte, escuto o zumbido
dos veículos passando na Marginal Tietê.
Recebemos compras a partir de pedidos feitos pelo
WhatsApp. O merceeiro e agora entregador também faz
assistência técnica de computadores. Ele deixa as com-
pras na garagem e nós recolhemos depois que ele vai
embora.
Uma mensagem no WhatsApp no fim do dia informa que
881 pessoas morreram de Covid-19 no Brasil nas últimas
24 horas.
A solidão e o silêncio na noite me deixam inquieto.
Continuo sem conseguir abrir todos os links que me
mandam.

211
Às vezes navego aleatoriamente pelo YouTube.
Fantasio cenários muito diferentes do que vivemos antes
da pandemia.
Verifiquei o preço de estilingues à venda pela internet.
Assisti uma reportagem sobre um homem que sobrevive co-
mendo plantas alimentícias que parecem mato.
O Jornal Nacional é um supermercado de notícias. A in-
ternet é um supermercado mais interessante de notícias.
Como seria um memorial para as vítimas da desigualdade
subtraídas pelo Covid-19?

212
Memória da pandemia ou
Tristeza profunda
Antônio Edmilson Martins Rodrigues
Rio de Janeiro, 03 de maio de 2020
Memória da pandemia
ou Tristeza profunda
São tempos que vão para além da cólera. As perdas são
muitas e imensas. Os cariocas, em pouco tempo, perderam
vários daqueles que representavam os tipos que andam
pela cidade. Rubem Fonseca e Garcia-Rosa, então, foram
provocadores de dores profundas e chagas abertas. Mas,
por mais marcantes que tenham sido, não despertaram
em mim nada que fosse além da dor. A pandemia roubou
minha imaginação e com ela a inspiração. Estava sem von-
tade de escrever. Mesmo a preparação de aulas não pro-
duzia efeitos maiores, funcionavam burocraticamente, se
transformando em áudios e vídeos. Uns perdem o paladar,
eu perdi o gosto e a sensação de perda é grande. Para quem
ama as ruas o isolamento social é um golpe profundo e gra-
ve e deixará imensas marcas. Algumas pessoas têm me
dito que é uma época boa para recordar, mas nem isso me
agrada. As sextas-feiras estão vazias, os encontros gastro-
nômicos inviáveis e os novos rituais produzidos pela pan-
demia não me agradam, não mexem comigo, são ridículos
e patéticos, talvez porque não seja esperto na tecnologia
da informação. Hoje, entretanto, aconteceu um fato que
mexeu comigo e que me levou a escrever pequenas coisas

214
em memória de Aldir Blanc. Elas se anunciaram fortes e
me lembrei dele no colégio. Três anos mais velho que eu,
um cara alto da turma dos mais velhos. Três anos era mui-
ta coisa na época. Eu estava na admissão e ele já no tercei-
ro ano ginasial, na nomenclatura daquele tempo.
Por um instante, tive uma oportunidade única. Nos corre-
dores do colégio ficavam uns tapetes de arame, grossos, sem
querer ao pisar num deles a sola de meu pé foi atravessada
por um arame que estava para fora, ultrapassando o tênis
conga e a meia. Doeu muito. O furo era profundo e saía muito
sangue. Mas quem vinha atrás de mim e me socorreu? Aldir
Blanc, talvez antecipando a sua vocação pela medicina. Le-
vou-me até a enfermaria e desapareceu da minha vista, os
recreios eram separados para os maiores e menores. Talvez
a lembrança tenha ficado na minha cabeça pelas consequ-
ências. Dois medos me apavoraram logo a seguir. O medo da
gangrena, anunciada por todos que sabiam do acidente, e
o da primeira injeção na barriga. Mais tarde, já na adoles-
cência, voltei a encontrar o poeta. Foi quando soube que o
cara que tinha me socorrido era o Aldir Blanc. Eu morava
na rua Senador Soares 70, numa casa que fazia parte das
vilas operárias da Fábrica Confiança de Tecidos que ficava
na rua Maxwell. A rua é a continuação da rua dos Artistas,
onde Aldir Blanc morava e que foi título de um dos seus li-
vros de crônicas. Nos esbarrávamos em turmas diferentes
por conta da idade na esquina de Senador Soares com a rua
Gonzaga Bastos, onde havia um boteco frequentado por vá-
rios tipos cariocas e onde acontecia do samba ao bicho e to-
dos se misturavam com os mendigos, que na época tinham
nome, com o filho do patrono do Salgueiro Osmar Valença,
o Neném, e outros entre policiais e malandros. Os mais no-
vos eram os soltadores de pipa e os fazedores de cerol com o

215
vidro moído nos trilhos do bonde que passava na rua Pereira
Nunes ou com o mármore moído que nós pegávamos na
Fábrica Marcovan que ficava na rua Gonzaga Bastos.
Um tempo depois, já quase adulto, voltei a encontrar
Aldir Blanc num churrasqueto conhecido como Bunda de
Fora na rua Barão de Mesquita em frente à igreja de Santo
Afonso, perto da Praça Saens Pena, ponto de encontro de
músicos como Ronaldo Bastos e a turma da Tijuca dos fes-
tivais universitários. Por vezes, também via Aldir Blanc
quando ia fazer feira para minha mãe na rua dos Artistas
numa época em que os carrinhos de rolimã de entregas
foram a salvação de muitos. Explico. Logo que entrávamos
na feira, que começava logo depois da rua Pereira Nunes
e ia até a rua Almirante Candido Brasil, colocávamos em
ação os entregadores que nos acompanhavam pelas bar-
racas. Quando terminávamos as compras chegávamos no
fim da feira onde havia um outro botequim. A essa altura
já bebíamos no bar. Nesse ponto, dispensávamos os entre-
gadores e seus carrinhos mandando-os para nossas casas
e ficávamos no bar que hoje é famoso na cidade, na época o
Siri era de duas portas. Caros leitores, fui provocado, agora
aguentem. A minha rua era sensacional. Havia de tudo,
de festas juninas organizadas por nós até baleia e garra-
fão como também pique-bandeira, taco e pelada. Foi nesse
tempo que lavávamos os carros dos pais dos amigos e fu-
gíamos com eles, geralmente, nos sábados, para passar na
porta dos colégios para paquerar as meninas. Mas, o que
me chamava atenção na rua eram as diferenças sociais e
arquitetônicas. Do lado da rua onde ficava a minha casa,
as demais casas mantinham o estilo arquitetônico das
fábricas, muitas delas, como a minha, já reformadas. Do
outro lado, eram casas mais modernas de cimento armado

216
com os muros cinzas de cimento chapiscado, onde morou
o Sílvio Tendler. Esses muros eram, para nós, ótimos para
fazer a bainha dos botões de galalite e de coco que faziam
sucesso no jogo de botão. O desespero dos moradores com
essa prática acabava por fazer com que eles jogassem água
na gente.
Engraçado como uma coisa puxa a outra e vem em cas-
cata, com força total. Mas isso não me faz alegre hoje, dia
04 de maio de 2020, está certo que por um tempo o gosto
perdido voltou e chateou vocês leitores, até me emocionou
recordar essas coisas. Enfim, perdemos um dos grandes
poetas cariocas que como ninguém sentia o mundo e se
inspirava no cotidiano da vida. Saudades, Aldir Blanc.

217
Memórias do
bêbado e a equilibrista
Beatriz Bissio
Rio de Janeiro, maio de 2020
Memórias do
bêbado e a equilibrista
No meio da quarentena me surpreendeu logo cedo, na ma-
nhã desta segunda-feira 04 de maio, a notícia da morte de
Aldir Blanc por Covid-19. A reportagem lembrava a vasta
produção musical de Aldir Blanc, a maior parte dela em par-
ceria com João Bosco, e descrevia como sua obra-prima a
canção que se tornaria “hino” da luta pela anistia, composta
e popularizada alguns meses antes de a anistia ser oficiali-
zada em lei, em 28 de agosto de 1979.
A notícia imediatamente me transportou ao México. Lá
estávamos Neiva Moreira e eu, com a nossa filha de pouco
mais de um ano, Micaela. Morávamos no bucólico bairro de
Coyoacán, pertinho da praça principal e da casa-museu de
Frida Kahlo. Depois de perambular por vários países sen-
do expulsos por sucessivos golpes de Estado, tínhamos sido
acolhidos pelo México e amigos mexicanos tinham nos aju-
dado a alugar aquela casinha. Ficava nos fundos de uma ou-
tra, da mãe de Enrique Cortez, quem tinha se tornado uma
espécie de mecenas nosso por ter ajudado, inclusive cedendo
o seu nome como editor – exigência da lei, tinha que ser um
cidadão mexicano –, para que pudéssemos retomar o proje-
to da revista Cadernos do Terceiro Mundo (que, como nós,

219
tinha sido expulsa da Argentina pela Tríplice A). A ideia de
relançar a revista no México tinha contado com a fraterni-
dade de múltiplos amigos e instituições, como a Federação
Latino-Americana de Jornalistas, FELAP, dirigida pelo pe-
ruano Genaro Carnero Checa, e fundamentalmente pelo Ins-
tituto Latino-Americano de Estudos Transnacionais, ILET,
presidido por Juan Somavía, exilado chileno, que mais tarde
se tornaria o Diretor da Organização Internacional do Tra-
balho, OIT. No ILET tínhamos também reencontrado Rafael
Roncagliolo, querido amigo peruano, também exilado na al-
tura, que mais tarde viria a ser Ministro das Relações Exte-
riores do Peru.
Na casa ao lado da nossa moravam Betinho e Maria que,
chegados do Canadá, tinham escolhido o México como
novo porto do exílio, atraídos, entre outras vantagens,
pela importância do país como centro político do exílio
latino-americano.
E as lembranças me levaram a uma noite muito especial,
em que Maria bateu à nossa porta, emocionada, e nos convi-
dou a ir até a sua sala… Lá estava Betinho, no telefone, com
Henfil, lá do outro lado da linha, que tinha colocado para eles
ouvirem bem alto “O bêbado e a equilibrista” na voz de Elis
Regina… Choramos de emoção, abraçados, e sonhamos o so-
nho comum da volta ao Brasil.
Falar com o Brasil naquela época não era algo banal, não
só pelas dificuldades tecnológicas e os preços exorbitantes
das chamadas internacionais, mas sobretudo pelo risco a
que se expunha quem tivesse, aqui, a ousadia de telefonar
para um exilado, mesmo que, como era o caso naquela oca-
sião, fosse o seu irmão. Mas aos poucos o ambiente no Brasil
tinha se tornando mais leve, augurando um futuro não mui-
to longínquo, no qual a promulgação da anistia e o gradual

220
processo de abertura permitissem superar o longo período
ditatorial.
A morte de Aldir Blanc foi um detonador de memórias de
um período muito duro, no exílio, “sem lenço e sem docu-
mento”, mas muito rico em aprendizados, em solidariedade,
em resistência… Fiquei por vários minutos com lágrimas
nos olhos e pensando em Betinho e em tantos outros brasi-
leiros e brasileiras que sonharam com um Brasil acolhedor
e fraterno que abriria uma nova etapa da sua vida no encon-
tro, na confiança no futuro. E senti que falta que eles fazem
nestes momentos para nos lembrar que a luta vale a pena,
que toda noite acaba numa aurora, e que o ódio sempre é
vencido pelo amor.

221
A equilibrista
no parapeito
Eduardo Chacon
Andaraí, Rio de Janeiro, 04 de maio de 2020
A equilibrista
no parapeito
Tenho duas lembranças de infância que associo com a des-
coberta do impacto da política na vida das pessoas. Uma é só
minha e estou certo de que aconteceu. A outra é coletiva e
talvez não tenha ocorrido exatamente como minha memória
registrou. No dia 21 de abril de 1985, eu tinha oito anos de
idade e passava de carro, com minha família, pela Praça da
Bandeira, Zona Norte do Rio. Ao ver o pavilhão a meio mas-
tro, perguntei o porquê e alguém falou, com a voz embargada,
que era um sinal de respeito pela morte de Tancredo Neves,
quase presidente do Brasil, um homem muito bom. Todos fi-
caram em silêncio durante um bom tempo, enquanto eu sen-
tia o peso da morte de um quase presidente “muito bom”, dei-
xando os adultos tristes e interferindo na paisagem urbana.
O segundo evento acontecera seis anos antes: diante da TV,
assisti à volta do Betinho, anistiado, recebido no aeroporto
por Elis Regina e um coro desafinado entoando “O bêbado e
a equilibrista”, canção de Aldir Blanc e João Bosco. Eu tinha
dois anos de idade e é bem pouco provável que soubesse quem
era Betinho, Elis, Aldir ou Bosco, o que significava a Anistia
e, menos ainda, o sentido das metáforas da letra daquela can-
ção. Não perguntei nada, apenas permaneci quieto, intuindo

223
a gravidade daquelas imagens e daqueles sons. Diferente da
bandeira a meio mastro de seis anos depois, não tenho certe-
za se as coisas se deram assim, mesmo. Ao longo da vida, revi
essas imagens muitas vezes, em reportagens, documentários,
séries e filmes de ficção. Descobri que o coro estava só (sem a
Elis), mas, por outro lado, muitas obras utilizam a gravação ca-
nônica da intérprete como trilha. De tanto ver e me emocionar
com tais cenas, devo ter inventado a lembrança. Não importa:
mesmo assim, ela é minha.
Só mais tarde entenderia as conexões desses acontecimen-
tos com a ditadura civil-militar. Aos poucos, precisei reelabo-
rar a memória – compreendendo, por exemplo, os limites da
“bondade” de Tancredo e a precariedade da própria Lei de
Anistia. Em ambos os casos, a “conciliação” surgia como pala-
vra-chave, engendrando uma Abertura política duramente ne-
gociada, limitada, incompleta. Ainda assim, mesmo com o espí-
rito crítico aguçado, sou incapaz de ver imagens de Tancredo
sem me remeter à bandeira naquele dia ou de falar da Anistia
sem lembrar-me do aeroporto e da voz de Elis, acompanhada
pelo coro desafinado. Ainda fico comovido diante da política e
de seus impactos em nossas vidas.
Hoje o Aldir Blanc faleceu, vitimado pela Covid. Um anúncio
no Facebook sugeriu que se cantasse “O bêbado e a equilibris-
ta” nas janelas, às 20h. Desde que a Quarentena começou, há
quase dois meses, a janela tem sido minha rua, minha ágora,
meu palanque. Impossibilitado de ocupar o espaço público, me
debruço nessa zona limítrofe entre o dentro e o fora, e protesto
contra o desgoverno de Jair Bolsonaro. Grito e apito contra sua
política perversa, escarnecendo dos mortos e menosprezando
as ações para tentar conter os avanços do vírus. No esforço de
compensar o corpo parado, concentro toda a energia nos pul-
mões e termino suado e dolorido, como se tivesse participado

224
de uma passeata por quilômetros. Hoje era o dia de fazer isso
por Aldir.
Faltando cinco minutos para a hora marcada, peguei minha
caixinha de música (pequena, mas potente) e engatilhei a fai-
xa, esperando para acionar o play no segundo exato em que a
hora virasse. Com uma espiadinha para fora, não identifiquei
mais nenhum vizinho nas janelas. Não importava, iria fazer
minha homenagem sozinho (Rodolfo, meu marido, estava mi-
nistrando uma aula online naquele horário e pediu que eu can-
tasse por ele).
Quando a música começou, percebi que seria difícil acom-
panhar Elis. O nó na garganta se iniciou já no Caía a tarde…,
mas ainda deu para ir murmurando baixinho, as lágrimas
escorregando com elegância, comportadas. O choro veio
forte, descambado, no sufoco louco, na noite do Brasil, meu
Brasil. Daí, foi só um fio de voz estrangulada, dolorida, ras-
gando a garganta, mas subindo de tom e saindo esgoelada e
rouca no Sei que uma dor assim pungente / Não há de ser
inutilmente / A esperança dança na corda bamba de som-
brinha / E em cada passo dessa linha pode se machucar.
Fui surpreendido pelo abraço do Rodolfo, que não aguentou
e veio chorar e cantar junto: Azar / A esperança equilibrista
sabe que o show de todo artista tem que continuar. Decidi-
mos tocar mais uma vez – e choramos de novo, no mesmo
ritmo – e emendamos com outras composições do Aldir que
amamos. Encharcados de lágrimas, doídos, permanecemos
um bom tempo contemplando a caixinha de som pulsan-
do suas luzes vermelhas, equilibrando-se no parapeito da
janela.

225
E onde encontrar
consolo para essa dor
que me consome? Na
música, caro amigo,
apenas na música…
Bruna Coelho
Alto Rio Doce, Minas Gerais, 04 de maio de 2020
E onde encontrar consolo
para essa dor que me
consome? Na música, caro
amigo, apenas na música…
Hoje o dia acordou mais triste e nublado na pequena ci-
dade mineira. Aldir Blanc partiu. A notícia trouxe a consci-
ência de que perdemos um grande nome da música popular
por causa do novo coronavírus e que, infelizmente, ainda
teremos muitas baixas. Os dias têm sido assim, um após o
outro, observando pela janela a vida social da vizinhança
onde cresci enquanto leio as notícias e tento manter uma
rotina de estudos. Muitas pessoas ainda não acreditam no
impacto da covid-19 e não dimensionam as perdas diárias
que estão acontecendo.
Os versos do choro de Chico Buarque e Francis Hime,
“Meu caro amigo”, parecem ter se fixado em meus pensa-
mentos. A letra da canção é uma carta para Augusto Boal
que se exilou em Portugal durante o regime militar, mas
de muitas formas me remete ao que estamos vivendo: eu
também queria fazer uma visita aos amigos para abraçá-los

227
e lhes contar as novidades. Mas, assim como em 1976, “a
coisa aqui tá preta” e nós também estamos “engolindo cada
sapo no caminho” ao longo dos dias de horror causados não
só pela doença, mas também pelas notícias que chegam de
Brasília. A luta é por nossa saúde física e mental, pois há
dias em que as notícias nos devoram.
O campo musical se adaptou à quarentena. Os artistas
usam as redes sociais como mecanismo para estar em con-
tato com o seu público e fazer seus shows por meio de lives.
São muitos os formatos de produção: só o cantor em casa
auxiliado por sua família, a banda reunida ou com uma equi-
pe de apoio. Alguns intérpretes e músicos decidiram fazer
apelos em prol de pessoas que precisam de ajuda, pedindo
doações para aqueles que sentem fome diariamente e/ou
material para os profissionais que trabalham na chamada
linha de frente. Outros deram prioridade para a divulgação
de patrocinadores e o retorno financeiro. É triste perceber
que existem aqueles que não entendem seu papel de figura
pública, criando aglomerações para produzir suas lives, o
que incentivou fãs a seguirem seu exemplo. Hoje, ao refletir
sobre as perdas que a pandemia vem causando, só pude pen-
sar que nós, historiadores, ainda escreveremos muito sobre
esses personagens centrais da história da música, analisan-
do a postura que assumiram diante de algo tão extremo que
tem sido o isolamento e as consequências da pandemia.
O fato é que as lives têm acalmado meu espírito e me
animado um pouco nesses dias, principalmente ao ouvir
Teresa Cristina homenageando a saudosa Beth Carvalho e
assistir Alcione com sua incrível voz. Os fãs se aproximam
de seus ídolos por compartilharem da mesma realidade
e aflições. A música, como outras expressões artísticas,
ocupa seu papel na sociedade ao servir como um remédio

228
para a sobrevivência do próprio espírito humano, afinal não
é possível viver sem arte.
A pandemia nos forçou a retroceder ou mudar de direção.
No meu caso, precisei retornar ao ninho. O que me conforta
é pensar que em qualquer lugar do mundo eu estaria na mes-
ma situação, ficando o máximo possível de tempo em casa.
As canções do Clube da Esquina sempre me acompanharam
em minhas constantes mudanças e agora, ouvindo “Nada
será como antes” (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos),
experimento o que senti quando saí de casa pela primeira
vez. É o mesmo sentimento que tenho ao me lembrar da
formatura na faculdade. É a sensação que quero ter quando
tudo isso passar e eu seguir meu caminho para contribuir
na construção de um país melhor através da educação. É a
esperança de poder partir novamente e cantar: “Eu já estou
com o pé nessa estrada / Qualquer dia a gente se vê / Sei que
nada será como antes, amanhã…”.
Entre a música, a casa, e as memórias que sustentam o
presente, lembro que uma pessoa próxima me disse que eu
parecia o vento: livre, com direção e impossível de parar.
Mas a pandemia me parou. Os sentimentos que inundam a
minha mente nessa situação são diversos, porque há dias
que o humor melhora vendo as notícias de solidariedade en-
tre as pessoas, porém em outros a raiva toma conta diante
das atitudes arbitrárias dos governantes, e, ainda, há dias
de muita desolação por não poder impedir o avanço da do-
ença e ajudar as pessoas que sofrem pela perda de familia-
res e entes queridos. Viver a história não é fácil! Você pode
estudar sobre a negação da ciência ou o fanatismo no esteio
de grupos sociais e religiosos, mas viver para enfrentá-los é
muito diferente. Tornou-se difícil explicar o óbvio.

229
Todos os dias acordo e me faço a mesma pergunta: como
consolar a dor que me consome? E todos os dias meu incons-
ciente responde que é apenas com música. A única variá-
vel é quais canções conseguem transmitir esse turbilhão de
emoções que se agita cotidianamente em meu peito. Com-
partilhar o afeto das pessoas que amamos é salpicar espe-
ranças em dias de dor. Afinal de contas, como disse Chico
em sua poesia, “a gente vai se amando que, também, sem um
carinho, ninguém segura esse rojão”.

230
Uma bricolagem
de emoções

Denise Pirani
Belo Horizonte, 05 de maio de 2020
Uma bricolagem
de emoções
Lévi-Strauss, ao refletir sobre o papel e a função do bri-
coleur no seu clássico O pensamento selvagem, afirma que
“o bricoleur está apto a executar grande número de tarefas
diferentes; (…) seu universo instrumental é fechado e a re-
gra de seu jogo é arranjar-se sempre com os meios-limites”
(1976, p. 38). Esta é uma breve definição dentro uma refle-
xão bem mais ampla sobre o assunto, mas, que pode definir
alguns dos meus sentimentos no último mês dentro desta
crise global do coronavírus.
Em tempos de isolamento e/ou confinamento, todos os dias
tenho que reinventar um cotidiano que tento manter minima-
mente: hora para se levantar e se deitar, refeições, leituras, tra-
balho, alguns parcos exercícios físicos. No entanto, uma nova
relação surge com a casa e que se tornou em um verdadeiro
microecossistema. Ao me debruçar sobre os cuidados da casa,
inevitavelmente, vi-me forçada a observações antes negligen-
ciadas por um cotidiano desvairado de tarefas e obrigações
nos quais estamos todos submetidos. Assim, quando tenho que
limpar o quintal, aguar as plantas, vejo o desabrochar de uma
flor, as lagartas nas árvores, os pássaros que delas se servem, o
cuidado da horta e dos animais, pequenos reparos cotidianos,

232
enfim… este conjunto de fatores me colocou em uma outra re-
lação com a moradia, mais afetuosa e cuidadosa. Atividades
estas de bricolagem na medida em que preciso me organizar
em diversas funções que se sobrepõem dentro de um universo
fechado e instrumentalmente limitados.
No entanto, se esta é uma relação externa e prática com a
casa, há de considerar as emoções, tanto no plano micro (in-
dividual) quanto no macro (político e global). O isolamento
(in)voluntário acarreta ansiedade, agonia, dúvidas, insônias…
Uma bricolagem de emoções. Reinventar um cotidiano priva-
do, e também público, tão repentinamente, me desafiou a sen-
das que antes me sentia, minimamente, dentro de um certo
“equilíbrio”. Parentes, marido, amigos, colegas de trabalho,
pets… Eu me vi, de certa forma, necessitada a repensar e a re-
conceber estas relações. Nada dramático, às vezes bem cômi-
co, mas é importante perceber as mudanças.
Todavia, o que mais angustia no confinamento é o aspecto
político e global. Esta dimensão macro da pandemia global
tem impactado fortemente nas questões políticas nacionais e
internacionais. As novas configurações sociais têm tido forte
impacto no meu plano emocional. Eu nunca tinha vivido, tão
intensamente, ondas gigantescas de ideologias fundamentalis-
tas, seja no plano político, econômico, religioso, profissional ou
cultural. É assustador o radicalismo, em quase todos os aspec-
tos, das pessoas, grupos e comunidades.
Igualmente a sensação de insegurança, sobre o futuro, de
cada um de nós, é muito impactante para mim. “Nada” se
sabe, mas tudo se transforma. Outro aspecto a ser sublinha-
do são os meios de comunicação nos dias atuais. Estes têm
sido um problema que necessito administrar. Entre “fake
news” e “true news” nas redes sociais, há, abertamente, uma
histeria coletiva. Necessário, sem dúvida, as informações

233
diárias, mas comecei a ter fortes sentimentos de angústia.
Com o confinamento social, a angústia produz outras dimen-
sões negativas, tanto no plano físico e/ou mental. Assim, um
outro tipo de isolamento, ainda que de forma parcial, se faz
necessário: o das informações.
Entre a minha vida pessoal e as condições de vida mais
abrangentes, tanto no plano mais imediato como a casa, pa-
rentes, marido, amigos, colegas de trabalho, pets; bem como
no plano mais mediato como as questões políticas, econô-
micas, sanitárias, religiosas ou culturais; tudo isso tem me
afetado psicologicamente. E a palavra de ordem nos últimos
tempos é resiliência!! Não sei até que ponto eu serei capaz…
Finalmente, mais do que nunca, sinto que vivo nos “Tris-
tes Trópicos”. Se falar dos “tristes trópicos” era “projetar-se
em outro lugar, simultaneamente exótico e intacto, fasci-
nante e mágico” (Lévi-Strauss, 1955, p. 50), falar hoje dos
“tristes trópicos” é acionar o signo do caos que se encontra
entre a sua imagem e conceito: são eles produzidos pelos
impactos/desastres ambientais, psíquicos, sociais, educa-
cionais, sanitários, políticos… O signo do caos revela, igual-
mente, uma luta de classes cada vez mais cruel, desumana
e, definitivamente, escravizadora. Esta é a outra pandemia
mundial na qual Karl Marx já havia profeticamente escrito:
“tudo que é sólido desmancha no ar”!
Proust!! Estarei à procura do tempo perdido

234
O sábado mais triste!
Francisco Carlos Teixeira da Silva
Rio de Janeiro, 09 de maio de 2020
O sábado mais triste!
Será o sábado sobre o qual vamos todos um dia precisar
falar! Aos jorros, borbotões, teremos ganas de contar: onde
estávamos no nosso confinamento: como foi o dia, como
soubemos, de onde ouvimos, em qual TV, qual jornal deu a
notícia?
O sábado em que ultrapassamos os 10.000 mortos!
Esse foi o sábado, 9 de maio, mais triste de todos os sába-
dos! Mais triste que qualquer domingo; que qualquer fim de
semana; mais triste que qualquer dia triste, de todos os dias
tristes dos dias tristes que vivemos!
10.000 mortos!
Poderia ter sido na segunda-feira! Quem sabe se não foi?
Descuido, descaso, deboche, negação! O sábado pode ter
sido, de fato, na segunda-feira. Na terça-feira. Na quarta-feira.
Na quinta-feira. Na sexta-feira.
Mas, não foi! No sábado João, meu filho, me disse que
Wanderlu morreu. “Complicações Respiratórias Agudas.” O
hospital não fez o teste. Não registrou o óbito. Não expe-
diu o certificado.
A pandemia do não-dito. O mal-dito. O sub-dito. A babá que
cuidou do meu filho e aqui ficou. E que meu filho adotou de-
pois de casado e que, na inversão brasileira, chamávamos
de “Neném”. Se foi! Era jovem, ao menos tão jovem como eu.

236
Mal se aposentara e queria agora cuidar de seus próprios ne-
tos. Estava com os netos.
Neném se foi!
Não está entre os 10.000 mil do sábado.
Neném é a nuvem dos sub-ditos de segunda/terça/quarta/
quinta e também de sexta-feira: 10.000? Quem sabe? Quem
saberá? A quem importa?
Meu filho chorou. Eu chorei. As netas de Neném choraram.
Neném se somou aos 10.000 mortos de sábado. Pessoas
perdidas – muito além de CNPJs. Antes, só números, esta-
tísticas. Mas, já agora são tantos, e cada vez mais, que os nú-
meros viram nomes. Os nomes são presenças. As presenças
são rostos. Os rostos nos são conhecidos. Colegas, amigos,
familiares.
O perigo já está aqui, se aproxima, a longa sombra pene-
tra pelos cômodos de cada casa. A tristeza se mescla com a
raiva, a pressão, o isolamento.
Sábado triste, o mais triste. Desprotegido – sem uma pa-
lavra, conforto ou força, vindo de fora. Lá fora, no mundo
que se faz todo inexorável, com seu dia e sua noite, alheios à
dor humana, há o deboche e o “E daí?”. De lá, só ouvimos a
charanga bozo-fascista cantar sobre os mortos: “Pra frente
Brazil…!”
A morte vestiu uma camiseta verde-amarela da Seleção:
infâmia, heresia, apostasia.
De longe sopra o bafo pútrido da Morte morta e da Morte
andante, viva, falante, que dispersa ao vento os esporos da
Destruição.
Nós todos guardaremos na Memória o sábado mais triste
de todos os dias tristes o mais triste da nossa existência. De
dentro da Gaiola do Vírus 19 lutaremos contra a Gaiola do
Vírus 17: todos os sobreviventes, na epifania da vida, terão o

237
dever de lembrar o sábado dos 10.000 mortos! O sábado do
churrasco, do jet ski e das pegadinhas!
O sábado da Neném!
Sabemos, sem ilusões, que teremos mais mortos, mais sá-
bados, mais dias, mais confinamento, mais tristeza!
Mais 10.000?
Mais Neném?
Isso não sabemos… Só rogamos: por Deus, não!
Que a Morte que caminha e sua charanga dançante sejam
detidas!

238
O país do ornitorrinco
Fernando Viotti
Sydney, Austrália, 09 de maio de 2020
O país do ornitorrinco
A atualização diária de sábado, 09 de maio, mostra 15
novos casos e nenhuma morte a se acrescentar ao total de
97 ocorridas desde o início da pandemia de covid-19. Defini-
tivamente a Austrália é um bom país pra se estar em tem-
pos como os nossos. As medidas restritivas, anunciadas pelo
primeiro-ministro Scott Morrison em 25 de março e válidas
pra todo o território nacional continuam em vigor, ainda que
com algum relaxamento, como praias abertas – pra ativida-
des dentro da água e exercícios na areia; o dolce far niente
continua proibido – e visitas de até no máximo duas pessoas.
Como é grande a oferta de parques nos arredores da minha
casa em Sydney, não é difícil encontrar rotas seguras pra
caminhar, ou mesmo espaço pra bater um papo e apreciar o
pôr-do-sol, ainda que em grupos de no máximo três pessoas,
limite que subirá para dez a partir da próxima sexta-feira.
Trabalho em uma multinacional de tecnologia que deter-
minou home office desde meados de março, mas minha fun-
ção exige que eu vá à companhia duas vezes por semana,
quando sou a única pessoa num ambiente onde antes tra-
balhavam cerca de vinte. Além de bastante seguro, esse ar-
ranjo alia a conveniência de trabalhar de casa ao benefício
de não ter que fazê-lo todos os dias, rotina obviamente des-
gastante. Minha vida social em Sydney sempre foi limitada,

240
especialmente de um ano pra cá. Sinto falta dos pubs, mas
tenho um quintal agradável onde bebericar uma boa cerveja
ou vinho australianos, na companhia de um ou dois compa-
nheiros brasileiros radicados aqui ou com a amiga recente
neozelandesa, um dos seres humanos mais doces que conheci
na vida. Kokaburras gargalham das árvores em redor; colo-
co Sketches of Spain de Miles Davis pra tocar. Resumindo,
não há um dia em que eu não pense como sou privilegiado;
os impactos da pandemia na minha rotina diária têm sido
muito limitados, quando não positivos.
O problema é o Brasil.
No dia 26 de março, logo após o anúncio das medidas res-
tritivas, recebi – a exemplo de qualquer um que possua um
número de celular australiano – o seguinte SMS: “Coronavi-
rus Governo da Austrália msg: para evitar a propagação da
doença, mantenha a distância de 1,5 metros, lave as mãos,
só saia de casa para atividades essenciais. Aus.gov.au”. A
mensagem me fez lembrar um artigo lido no New York Times,
“The Single Most Important Lesson From 1918 Influenza”,
em que o historiador americano John Barry sublinha a
enorme importância de se produzir um discurso único, cla-
ro, curto e objetivo, com orientações que a população possa
absorver e seguir em tempos de pandemia. Não tenho notícia
de iniciativa semelhante por parte do governo brasileiro.
Pode ser que ela exista; as notícias que me chegam se des-
tacam mais pela ambivalência e elisão típicas do discurso
poético. Sem lograr os correspondentes efeitos estéticos.
Scott Morrison não é nenhum Winston Churchill. Em ja-
neiro, ele era uma das pessoas menos populares da Austrália,
com uma taxa de aprovação que cairia para 37%, na estei-
ra da atitude medíocre que adotou diante dos incêndios flo-
restais que devastaram parte do país. Não é preciso ser um

241
gênio da conjuntura política pra adivinhar a razão pela qual
agora ele desfruta de uma aprovação para muitos não me-
recida (68%), mas a melhor taxa dentre os cinco primeiros-
-ministros que passaram pelo cargo nos últimos dez anos.
Nada melhor que um inimigo comum pra unir um país em
torno de seu líder. Curiosamente, o presidente brasileiro não
viu a oportunidade chegando, prova dos nove de que quais-
quer supostos métodos que pudessem existir na sua loucura
são apenas uma tragédia de erros produzidas por sua mente
tacanha. Gostando ou não do primeiro-ministro, ou das me-
didas restritivas, ou do monumental desemprego que atinge
em cheio metrópoles como Sydney, altamente dependentes
do afluxo de visitantes em geral, sejam turistas, estudantes
ou imigrantes, a população tem colaborado absolutamente,
fazendo o que dela se pede. Imagino uma explicação simples:
as pessoas não querem morrer. Ou serem entubadas. Ou ve-
rem outras pessoas morrendo. Sejam estas da sua família
ou não. É o que eu suponho, mas sei lá, posso estar sendo
ingênuo. Vejo que no Brasil não é assim, pelo menos não pra
uma parcela considerável da população. Não falo daqueles
cuja única opção é se arriscar pra não passar fome, mas dos
fanáticos obcecados em defender o seu líder na insana cru-
zada contra o distanciamento social, remédio amargo mas
por enquanto o único comprovadamente eficaz para preser-
var vidas.
É quando minha sensação de privilégio se transforma
em desespero, raiva e impotência. Penso em conseguir o
número do presidente brasileiro e enviar a ele o singelo SMS
que recebi em 26 de março. Vai lá, Jair, compartilha essa
com a sua turma. Quanto melhor a Austrália vai gerencian-
do a crise, pior eu me sinto. O acachapante contraste confe-
re evidência macabra à tragédia brasileira e dá contornos

242
surreais, senão assustadores, à decisão – tomada antes da
pandemia – de voltar ao Brasil daqui a menos de três me-
ses. Aos que tentam me demover explico querer retomar a
carreira acadêmica, ficar perto do filho, dos amigos e da lín-
gua portuguesa. Me embeber de Minas Gerais por todos os
poros. Passar três semanas em Diamantina, mais três em
Caxambu, mais três nas Vargens da Laje. Para além disso,
falo da sensação de conforto se destilando em culpa. Como
desfrutar do privilégio e salvar a própria pele enquanto toda
a família e tantos amigos queridos permanecem à mercê de
um imbecil que mantém o país marchando firme em direção
ao caos?
Durante esse período tem sido difícil escrever alguma coi-
sa, ou mesmo ler algo para além da avalanche de notícias so-
bre a pandemia. Ouvir música é a atividade mais frequente.
Dia desses assisti um vídeo disponível no YouTube, “Dindi”,
na voz de Gal Costa com Tom Jobim ao piano. Acho que por
causa da saudade do Brasil, às vezes me emociono ao ouvir
música brasileira e nessa ocasião acabei ficando muito co-
movido. Após ouvir a canção três ou quatro vezes, vendo Gal
e Tom deixando o palco, fiquei me perguntando, num misto
de pasmo e indignação, como o mesmo país de onde essas
pessoas vieram pode ter produzido um presidente como o
que ora ocupa o Palácio da Alvorada.

243
Urgência cotidiana
Rita Lages Rodrigues
Belo Horizonte, 11 de maio de 2020
Urgência cotidiana
Acordar em plena segunda-feira sem a urgência de sair
de casa. Em dezembro do ano anterior seria impensável
despertar em um dia de semana ordinário sem, em seguida,
tomar o café às pressas, colocar a roupa às pressas, chamar
o filho às pressas, pegar bolsa e livros às pressas e sair, ra-
pidamente, em direção à garagem. Há 50 dias não há mais
essa urgência. O tempo tornou-se outra coisa, as horas, os
dias, as semanas. A presença do corpo em um apartamen-
to de 120 m², onde pouco bate sol, onde vivo há 16 anos e
onde descubro cotidianamente o que gosto e o que não gosto,
tornou-se a realidade possível. Por vezes, fantasio uma casa
no campo com terra, mato, jardins e flores, até pesquiso na
internet casas e terrenos à venda. Ecos de uma existência
quase romântica de um ser essencialmente urbano. É o so-
nho da falta. Ao olhar a jardineira inalcançável estranha-
mente disposta a uns 50 centímetros da janela de um primei-
ro andar com grades, observo pequenos insetos nas plantas
que mesmo com a constante limpa dos jardineiros teimam
em perseverar. Conto, com olhar urbanoide, uns dez tipos de
plantas e uns quatro tipos de insetos. Pelo furor com que to-
das foram arrancadas uns meses atrás, impressiona a força
com que a natureza teima em confrontar o espaço urbano,
ficticiamente domado pelo homem. Ao meu redor, prédios e

245
mais prédios em um bairro classe média da zona sul de uma
cidade brasileira. Quase não há plantas, nem árvores, em
uma rua que fica entre Cidade Jardim e Coração de Jesus,
sem jardim e sem fé. Os sons da cidade tornaram-se estra-
nhos, vivo em um apartamento de fundos, não consigo ver a
rua de minha janela, um dos poucos contatos com vizinhos
era com o menino ao lado, de quem invejo a área privativa,
mas cuja presença não vejo há umas duas semanas. Fan-
tasio. Deve ter ido para um sítio ficar com os avós, perto da
natureza, há um gramado extenso, uma cachoeira a poucos
metros, um ar respirável sem a fuligem que ainda teima em
aparecer nos móveis e em meus pulmões. Quero sujar meus
pés na terra, plantar e colher o que nunca plantei. Outro dia
escutei passarinhos ao longe, junto ao barulho de caminhão,
ônibus, carro. O som que mais identifico é o do caminhão
de lixo à noite e que, a depender do dia, me faz recordar da
atividade não feita, tamanha a operação necessária para le-
var um simples lixo para o lado de fora: máscara, sapato de
sair, óculos, cuidado com os outros seres humanos, sai, leva
o lixo, torce pra não encontrar ninguém, tira os sapatos na
porta, lava as mãos no tanque, desde o início da pandemia
já não entro pela porta da sala, passa álcool 70% nos óculos,
melhor já deixar a roupa na máquina de lavar, sair direto
para o banho, esperando que todos os vírus contaminantes
saiam pelo ralo. Daí lembro que vestígios do vírus foram já
encontrados nos esgotos, nos bancos e nas ruas da cidade.
Há semanas de reuniões de trabalho todos os dias, de orien-
tações, de órgão colegiado, de pesquisas e projetos futuros.
As urgências do momento são outras. As aulas suspensas,
os artigos a serem escritos, tudo que antes possuía prazos
iminentes são deslocados para outro lugar. As necessidades
são outras. Não há previsão de retorno. Retorno a quê?

246
Penso. Acompanho as notícias mundo afora e não há nenhu-
ma certeza, o futuro nunca pareceu tão improvável. Alguns
imaginam um admirável mundo novo, de divisões sociais
ainda mais intensas, de exploração; outros, um mundo mais
solidário e humano. Oscilo entre imaginar um futuro de
utopias experimentáveis e uma distopia completa. Volto e
me agarro ao cotidiano para manter a fictícia sanidade.

247
João
Lucilia de Almeida Neves Delgado
Brasília, abril de 2020
João
O céu era de abril. Um azul límpido que sempre me assom-
brou na chegada do outono. Os dias eram tão claros que só
podia ser um mês de oferta. E como foi!
Aquele foi um abril de intenso azul! Pela segunda vez, meu
ventre se abriu. Marina chegou decidida. O parto foi rápido,
delicado! Eu me sentia novamente pronta para acolher uma
vida. De mim brotou uma pessoa a mais entre os bilhões de
seres humanos que habitam o planeta denominado Terra.
Mas para mim era um ser único! Minha Marina! Quando o
médico anunciou, lá naqueles idos de 1982: “– É menina!”,
eu disse com voz que brota da alma: “– Graças a Deus!”
Aconteceu o que eu queria! Sempre me vi como mãe de
meninas. Gabriela já desabrochava há quatro anos. Minha
convicção se confirmava nas filhas que chegavam! É ótimo
ser mulher! Sabia que nem todas as mulheres pensavam ou
sentiam o mesmo. Razões inumeráveis as faziam e, ainda
fazem, temer com impotência a trajetória de ardentes sofri-
mentos que a condição feminina lhes impõe. Todos sabem
que é comum para milhões de mulheres uma vida de dor ou
de muitas dores. Mas comigo não foi assim! Cresci amada e
orgulhosa de ser mulher, a ponto de só enxergar meu mun-
do. Para mim era único. Arrogância juvenil? Autoestima

249
feminina real? Incapacidade de reconhecer outras realida-
des. Idealização?
Quaisquer que fossem as razões, vivi epifanias nos nas-
cimentos das minhas filhas. Naqueles dias minha alegria
foi genuína! Multiplicou-se nos desafios da vida, embora,
muitas e muitas vezes, permeada por angústias, medos,
atropelos, dúvidas, culpas, divisões, incertezas, desejos não
realizados, correrias e muitos apelos incompatíveis com a
maternidade. A arrogância juvenil dissipou-se nos inevitá-
veis tombos do viver, mas o prazer de ser mulher cresceu.
Sedimentou-se.
Os labirintos da vida entrecruzaram-se e um novo abril, 38
anos depois, se anunciou. Chegou sem festa para a humanida-
de. Um apelo ao recolhimento involuntário, a se afastar dos
outros, a usar máscaras, luvas, óculos se fez maior que todos
os seres humanos reunidos. Abraços? Nem pensar! Olhos nos
olhos? Só para os enlouquecidos ou irresponsáveis! Flanar
nas ruas e beber o ar da vida? Só mesmo os loucos o farão.
Trancamo-nos nas casas, apartamentos, cubículos – es-
ses, os reinos do impossível. Do inevitável beijo da morte! E
o azul do céu, aqui pras bandas do hemisfério sul, onde “não
existe pecado”, escondeu-se! Talvez tenha achado melhor
recolher-se e com prudência observar à distância os cená-
rios de devastação que, sem dó, nem piedade, fazem morada
também no hemisfério norte.
Abril seguia e dele brotavam surpresas inimagináveis, du-
rezas e agressões impensáveis, medos nos semblantes das
pessoas. O mundo dizia não ao mundo. Melhor mesmo devia
ser se trancar no lado de dentro das paredes. Silenciar, espe-
rar, ter fé e, embora nem todos assim pensem, respeitar os
cientistas e as pessoas que cuidam da saúde de outras pesso-
as, como podem e onde podem!

250
No meio dessa onda de temor outro ventre se abriu.
Marina, minha menina-mulher, trouxe ao mundo nova vida.
Renovação! Esperança! Sentimentos de júbilo mesclados ao
medo! Mas você, João, chegou! Chegou mesmo! Chegou pra
valer! Chegou destemido, sem nem saber da sua força de
viver! Pequenino, mas com um poderoso e vibrante nome.
Como se dizia antigamente! Marina, mãe, “deu à luz”.
E na dor do estar perto de você, mas sem verdadeiramen-
te poder estar, enxerguei no céu gris, deste abril, um azul
outonal. Daqueles esplendorosos! Chorei muito! Um meni-
ninho chegou para nós! Um menino luz! Só pode ser luz! De-
safiador! Um menino a afirmar a força da vida e se entregar
aos braços acolhedores de seus pais, a dizer: “– Por enquan-
to preciso totalmente de vocês!”
Tempo! Tempo! Tempo!
Será você, João, o caçula? Como se diz na minha terra.
Será nossa rapa do tacho? Será um pouquinho nosso, dos
seus avós? Bem diga a vida que sim! Na hora dos apertos do
cotidiano ou mesmo nas de brincar e comer doces e gostosu-
ras, nós o acolheremos.
Pode ser daqui a um bom tempo! Talvez demore pra va-
ler! Você é luz, mas o azul do céu ainda está inseguro, ora
aparece, ora se esconde! A medida das horas mudou! Elas
estão flutuando! Pouco sei desse novo tempo e do que o su-
cederá! Mas, na sucessão das horas e dias, você chegará ao
nosso recôndito.
Acho que nem os deuses sabem dizer-me quando será!
Quando poderei viver a epifania de te dizer, quase em silên-
cio: “Você é meu amor. O quinto, entre os que brotaram das
minhas filhas, mas único, único como cada um deles.”
Nessa hora, como em um milagre que alarga o tempo, para
caber tantos dizeres em poucos minutos, poderei te contar

251
alguns segredos. Desses que você nem saberá que escutou,
mas que entrarão no seu corpo, incluídos na mente e cére-
bro, coração e alma. Isso eu sei, entrarão para sempre. Fica-
rão habitando seus dias pra lá do tempo em que eu já tiver
viajado para outros rincões, lá pras bandas do infinito, onde
moram estrelas, planetas, lua, constelações e muitas luzes.
Mas antes dessa viagem inevitável, espero termos juntos
dias de fazer nada e tudo falar. E você que é luz me dirá:
“– Vovó! Não quero só alegrias banais! Não quero só cami-
nhos fáceis! Não quero só amores superficiais! Quero fé, ge-
nerosidade, força, ternura, tolerância, firmeza, inquietação,
paz, determinação, flexibilidade, sonhos, incertezas. Quero
conhecer o avesso, para não andar somente sobre solos su-
perficiais. Quero ser uma pessoa do meu tempo e contribuir
para que esse tempo seja fértil em esperanças e realizações
que fazem do bem seu fermento.”
Nesses dias também vamos brincar, ler e contar histórias,
mergulhar em águas transparentes, colher frutos nas árvo-
res, assistir desenhos e filmes, espalhar legos e carrinhos
pelo chão. Tomar sorvete, comer pipoca, chupar um montão
de balas, ficar um tempão olhando luzes das diferentes telas.
Então você soprará no meu ouvido: “– Sou seu menino. Sou
João, nasci como luz num tempo de dificuldades, mas não
esperem que eu seja necessariamente brilho. O que quero
mesmo é ser um bom homem.”

252
Laura
Marieta de Moraes Ferreira
Rio de Janeiro, 18 de maio de 2020
Laura
Já se vão dois meses de isolamento social por conta da
pandemia do Covid 19. O que dizer sobre isso? Que senti-
mentos essa situação tem provocado?
Logo nos primeiros dias uma sensação de espanto, sur-
presa e um certo temor… especialmente porque logo de iní-
cio meus dois filhos tiveram contato com uma amiga que
tinha testado Covid 19 positivo e deveriam ficar em qua-
rentena. Esse primeiro contato com a pandemia criou uma
ansiedade, mas o fato de não terem desenvolvido sintomas
foi aplacando o medo, minimizando as preocupações. Nes-
sas primeiras semanas o tempo passava devagar e foi a fase
de se dedicar à casa, arrumar armários, organizar papéis,
descartar coisas e especialmente falar com amigos. Era im-
portante saber de todo mundo, trocar sensações e apreen-
sões, mas com a expectativa de que aquilo não ia se alongar
muito….
Mas as primeiras semanas passaram e o prazo da qua-
rentena foi se estendendo… As obrigações de trabalho co-
meçaram a surgir (ainda bem)… Tratava-se de criar uma
nova rotina, orientações de alunos, bancas e principalmente
reuniões de todos os tipos, referentes às minhas obrigações
como professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
e gestora de unidades da Fundação Getúlio Vargas. Para isso

254
era preciso aprender a lidar com a tecnologia, uma hora é
Teams, noutra o Zoom, o Google Meet, o Skype. Para cada
um é preciso baixar um aplicativo e aprender a propor e
aceitar reuniões. Assim sucedem-se as chamadas de vídeo,
lives, videoconferências, bancas. Aos poucos o uso dessas
ferramentas vai se naturalizando e intensificando, e o tem-
po que passava devagar vai se acelerando e ajuda a pensar
menos na situação excepcional que estamos vivendo.
Mas mesmo com tudo isso e mais o acompanhamento de
vários grupos de WhatsApp e Instagram, a angústia e a an-
siedade permanecem subjacentes e de repente emergem
com intensidade e você começa achar que está com algum
sintoma do Covid19, mesmo que esteja levando a sério o iso-
lamento social e não saia de casa.
Mas o mais dramático é a sensação de que isso não tem
fim… e tudo fica ainda mais grave quando está se aproximan-
do a data em que a sua primeira neta vai nascer! A ansiedade
e o medo de que mãe e filha não ficassem contaminadas pelo
covid19 e a esperança e preces de que o parto corresse bem e
a bebê nascesse com saúde, marcaram esses momentos. De-
pois de passar dias de grande apreensão, no dia 18 de abril
nasceu a Laura na Maternidade Perinatal de Laranjeiras, RJ.
Um alívio e uma alegria de sabê-la saudável e de que mãe
e filha puderam voltar para casa sãs e salvas. Mas ao mesmo
tempo uma grande tristeza de não poder visitá-la e conhe-
cê-la de perto. Detalhe, meu filho mora no meu prédio, mas
os protocolos médicos recomendam que não tenhamos con-
tato. Assim foi iniciado um período de namoro a distância e
minha maior alegria é descer do 14° andar para o 5° andar
para vê-la de longe e levar um agrado alimentar para meu
filho e minha nora que enfrentam sozinhos esse desafio de
aprenderem a ser pais.

255
Hoje, dia 18 de maio, Laura está completando um mês de
vida e todo dia olho uma nova foto, um novo vídeo e fico feliz
de vê-la crescendo saudável, mas sinto por deixar de usu-
fruir de seu contato e poder transmitir meu afeto.
Mas mesmo enfrentando essas dificuldades e sofrimen-
tos, me sinto privilegiada de ter uma casa legal, poder me
alimentar bem e estar acompanhada do meu marido e mi-
nha filha que são companhias maravilhosas (ainda que a
gente brigue volta e meia) que ajudam a amenizar o medo e
as angústias do desconhecido que virá… Tenho que mencio-
nar também a ajuda inestimável da Valéria, secretária exe-
cutiva da casa que optou por ficar no isolamento conosco.
A pandemia do Corona vírus dá medo, mas o que é mais
aterrador é a situação política e econômica que vivemos no
Brasil. Ter à frente do país um governante irresponsável
que só pensa em disseminar o ódio, desqualificar a ciência e
não consegue implementar políticas que de fato dos ajudem
a enfrentar essa crise de magnitudes inimagináveis gera
todo tipo de desalento.
Ainda assim não podemos desistir e achar que o Brasil
não dá certo. Precisamos continuar lutando, acreditando e
lembrando a música do Chico Buarque, que isso “vai passar”.

256
Ao dia seguinte
Fernando Santoro
Rio de Janeiro, 23 de maio de 2020
Ao dia seguinte
A Madrugada
Junto com a aurora refletida nas ondas,
entoamos dez vezes o canto e silenciamos,
de pé sobre o convés, olhos para o horizonte.
O comandante proferiu austeras palavras de
exortação
e seguimos para os postos:
no mastro, ao leme, no manejo das cordas —
cada um na competência de seu afazer,
cada um refletindo sobre si
as memórias corridas e as expectativas do amanhã…

O Meio-Dia
O Sol ardeu,
as sombras das velas se encurtaram.
Suor e maresia salgaram nossos corpos.
Um horizonte límpido cercava por completo a
embarcação.
De alegria ou loucura, por nada,
o timoneiro ressoou uma cortante gargalhada.
Todas as atenções voltaram-se a ele —
neste instante, ganhou toda a amplidão do mar.

258
Secundaram-no — um primeiro e outro e outros —
em risos cúmplices gratuitos.
Nossas faces ganharam asas
e mergulharam como gaivotas na espuma das ondas.

A Tarde
O mar alastra infinitos mistérios,
em todas as direções abre sua superfície viva.
Seu ânimo imprevisto estende uma estrada para a
jornada,
nossas vãs agitações na deriva da história.
O mar. O mar.
Não cansamos de repetir o instante único do
convívio.
Não cansaremos de temer e venerar
o balançar rumo ao que não se vê,
rumo ao que não se sabe, rumo ao que ainda não é.

O Ocaso
O Sol baixa a olhos vistos no horizonte.
As cores desfilando no poente anunciam os segredos
da Noite —
sorrateira, ela infiltra-se por trás de nós.
Quando a percebemos — já tarde —
diz-nos ao ouvido que o coração serenou.
Segreda-nos o sono escuro
e o lodo viscoso do esquecimento.
O que passou
— naufrágio de outra barca do Sol —
dissolve-se irremediavelmente no horizonte.
O que passou
já passou.

259
Apenas um dia?
Fernando Augusto Silva Lopes
Belo Horizonte, 08 de maio de 2020
Apenas um dia?
Amanhece o dia. As janelas, que não mais se fecham, de-
nunciam a aurora de uma realidade criada por um patógeno
que subverteu a vida humana e a privou de uma convi-
vência social. O ranger de metais das chaves que anuncia-
vam o exercício da virtude, já não mais platônica, não mais
incomodam as minhas manhãs. Confiro meus bolsos vazios
em algo que não sei o quê, sinto uma tranquilidade quase
poética que é brutalmente rasgada ao primeiro contato com
a tecnologia informacional.
Nesta manhã, uma estranha sensação insiste em me ator-
mentar: como posso estar confortavelmente em segurança
enquanto tantos padecem? Não consigo mais pensar a so-
brevivência como uma forma de arte. Estaria o fantasma de
Luis Buñuel a me atormentar? Tento me distrair com Jessé
Souza e A Guerra contra o Brasil, guerra simbólica embebida
na “fabricação de consentimento”, tão cara aos dias atuais.
Apenas a proximidade do horário do almoço será forte o su-
ficiente para interromper o silêncio resistente da leitura.
Provavelmente a principal mudança ritualística imposta
pelo isolamento social em minha rotina seja o almoço. Já
não mais me recordo quando os lúdicos almoços em família
foram trocados pelo protocolo parnasiano dos refeitórios e
restaurantes. A plástica e o comportamento desejável dos

261
ambientes de trabalho transformaram em sonetos o ritual ro-
mântico que eu fantasiara desde a infância. Neste dia, ape-
sar do descaso com a estética pessoal posso sentar à mesa
com minha esposa e romantizar, descalço, este momento
mítico.
O início da tarde é o prenúncio que não é possível estar
“À espera dos bárbaros”,1 já que o capitalismo financeiro
transformou a criatividade em capacidade de gerenciar
pessoas, e a liberdade na possibilidade universal de ser em-
presário de si mesmo, não trabalharei no meu escritório,
mas sim, estarei conectado com o mundo através do meu
home office além-mar. Se há algo positivo provocado pelo
isolamento social em meu trabalho é a possibilidade de estar
submerso no próprio objeto de trabalho. Afinal, esta experi-
ência, dura e sensível, está a alterar radicalmente a cons-
trução de um Museu Virtual dedicado à Lusofonia.
Após a faina, a noite traz consigo a minha dose diária de
contrariedade, repugnância e horror: é hora de saber o que
se passou e foi notícia durante o dia. Nesses tempos obscu-
ros, voltei a me informar pelo rádio, e fui obrigado a ceder
a um jornalista que outrora criticava por ser liberalista e
conservador, mas que, sobretudo, é um raro resquício de co-
erência. Uma taça de vinho não é suficiente para encarar
o escárnio e a escatológica postura do governo brasileiro
diante de uma crise que ceifa um número tão elevado de
vidas. Das patuscadas fascistoides presidenciais aos desa-
tinos de Reginas, Ernestos e Abrahans, não basta indignar-
-me, preciso olhar pela janela para ter certeza se realmente
não estamos em 1964. A dor de perceber que essa gente está
sobrepondo a economia à vida humana me leva a encerrar a
noite com uma amarga dose de cachaça.

Poema escrito pelo poeta grego Constantino Kaváfis (1863-1933).


1

262
Antes de me deitar, deixo a água do banho, mesmo sem a
arruda, tentar lavar minha alma, pois meu corpo quer re-
sistir e seguir lutando pela vida e pela liberdade, que estão
sendo roubadas pelo autoritarismo e contaminadas por uma
endemia reacionária. Neste momento percebo que meu eu
lírico está se fundindo com minha alteridade, logo será ne-
cessário convencer as paredes do quarto para que eu possa
ao menos tentar dormir com um mínimo de paz.

263
Relato de um cão
Quincas Borba, o Yorkshire
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2020
Relato de um cão
Olá, seres humanos, sei que não é comum ler uma carta
de um cachorro. Entendo que as coisas não vão muito bem
para vocês, então para ficar com um astral melhor escre-
verei isso no lugar da minha tutora. Não fiquem com receio
de aparecerem latidos no meio desse relato, eu não costu-
mo fazer isso! Ao contrário, tenho hábitos muito humanos
e uma super conexão com a mulher que vai assinar essas
linhas, então resolvemos trocar os papéis.
Permitam que eu me apresente. Chamam-me de Quincas,
Quincas Borba, eu tenho doze anos e dizem que sou da raça
Yorkshire. Também sou bem maior que o “normal”, eu peso
honestos oito quilos e tenho uma saúde relativamente frágil
(o que compenso com uma enorme inteligência). Eu sem-
pre acreditei que teria uma velhice tranquila, mas ganhei
um companheiro chato, o Aureliano, outro cão – meu cão!
Ele é um vira-lata enorme de dois anos, barulhento e idiota
que não consegue fazer nada certo. Vocês podem estar pen-
sando: por que tantas apresentações? Afinal, eu deveria es-
crever sobre o cotidiano da Flavia nessa tal pandemia. Mas
esses dados são muito relevantes para descrever a loucura
que virou a vida dela.
Percebi que algo estava diferente quando depois do nosso
passeio matinal quase fui embebido em álcool 70. Sobretudo

265
nas patas, ela ficou aficionada nas nossas patas! Nem eu,
nem o Aureliano podíamos entrar em casa sem aquele ritual
de tortura. Quando eu tentava entrar em casa sem limpar
as patas ela gritava. Um dia o Aureliano conseguiu se soltar,
entrar sem passar o álcool e correu para subir no sofá. Ela
entrou em casa, lavou as mãos (e como lava as mãos!), tirou
a roupa, sentou no chão e começou a chorar. Achei que ela
tivesse ficado louca de vez! O pior não acaba por aí! Ela deu
para o Aureliano o pior castigo que um cachorro pode ter,
levou-o para dentro do chuveiro e deu um banho nele! Acha-
ram que acabou? Estão errados! Ela jogou álcool e água
sanitária em tudo! O cheiro foi horrível e eu e o Aureliano
ficamos tossindo. Pelo computador ela falou com a nossa
veterinária e tivemos que tomar um remédio para parar a
tosse. Que bom que deu certo!
Depois ela teve a ideia besta de criar uma “zona suja” na
casa e queria me impedir de deitar na porta. Eu obedecia,
se ela estivesse na sala. Coisa de doido não me deixar deitar
na porta! Por sinal, esse lance da porta está realmente es-
quisito. Sempre quando ela voltava da rua abria a porta aos
gritos de “Cadê o Dedê? Cadê o sorriso do Dedê?” (o Dedê
sou eu, não pergunte o porquê), e agora é “sai pra lá vocês
dois!!!”. Eu não sei a razão de tanto mau-humor quando ela
volta para casa. É álcool, lavar as mãos, mais álcool, a gente
não pode nem chegar perto para cheirar o que ela comprou.
Eu fico embaixo da mesa, porque eu não gosto de confusão. O
Aureliano, que parece mais um burro que um cachorro, fica
tentando pular nela, pegar as coisas que ela tem na mão…
Ele não sabe se dar valor!! Aff, muitos gritos!!! Ela está tão
louca que aquela coisa que ela passou no chão e quase matou
a gente, ela passa na comida que ela vai comer!

266
Outra coisa que está me irritando é a diminuição dos
passeios, antes a gente saia três vezes no dia e não tinha
essa coisa de álcool, agora só saímos uma vez e ela não dei-
xa mais ninguém brincar com a gente. Eu sinto falta de ir
no parque que tem aqui perto de casa. Não sei por que ela
nunca mais foi lá. Ela se divertia também. Como se não bas-
tasse, ela começou a ter atitudes estranhas na rua e a nos
difamar! Acreditam que um dia disse para uma senhora que
queria entrar no elevador com a gente que eu mordia?? Eu
nunca mordi ninguém!! É muito bem feito o Aureliano fazer
xixi na casa toda!
Acho que a mudança teve alguma coisa a ver com um
pano que ela coloca na cara quando tem que sair. Ouvi ela
reclamando que embaça os óculos. Uma vez o Aureliano viu
um cachorro no outro lado da rua e começou a latir e puxar
como um louco. Eu fiquei na minha, mas na confusão os ócu-
los voaram longe e ela não conseguia achá-los porque era de
noite e estava escuro (ela é mais cega que eu!!!). Depois dis-
so ela passou a levar a gente para passear sem óculos. Nessa
brincadeira já a vi pisar em cocô duas vezes, na última era
um cocô tão grande que ela escorregou e quase caiu. Seria
muito bem feito!
Mas nem tudo é ruim, tem umas semanas que ela desco-
briu uns paninhos que não têm álcool. Então, não é mais tão
desconfortável limpar as patinhas, acho que até curto. Ela
desistiu da “zona suja”, porque o único jeito de me fazer não
deitar na porta é se ela ficasse deitada lá. Ela não tem saído
de casa, e eu acho ótimo! Eu passo o dia batendo no meu
pote de comida e ela sempre me dá alguma coisa. Ração? Co-
midinha de panela? Maçã? Banana? Toda hora vem alguma
coisa diferente! Além disso, ela passa o dia me subindo e me
descendo do sofá, da cama, da mesa do computador (não me

267
julguem, eu tenho doze anos e não consigo sozinho). Ainda
bem que ela é muito inteligente para entender o que eu que-
ro. A casa está mais confortável. Tem almofadas e travessei-
ros pelo chão e a gente fica deitado por lá. Muitas vezes ela
fica me escovando, e eu adoro!
Não entendo por que às vezes estamos deitados juntinhos
e ela desatina a chorar. Penso que ela brigou com os amigos,
todos eles! Ninguém mais tem vindo aqui. Fico pensando
que ela tentou passar álcool neles e todo mundo ficou bra-
vo. Se ela quiser passar álcool nos amigos acho que deveria
tentar os paninhos que tem passado na gente, são bem me-
lhores. O problema é que a ouvi dizer que eles são caros e ela
não sabe como vai fazer para comprá-los quando um tal con-
trato acabar. Mas isso não importa para a gente, ainda que
todo mundo esteja longe, nós estaremos sempre por perto
para alegrá-la.

268
Totem
João Castilho
Belo Horizonte, 02 de abril de 2020
Respira,
você vai terminar!
Vitor Leandro de Souza
Rio de Janeiro, 12 de maio de 2020
Respira,
você vai terminar!
O isolamento faz-me mal à alma e ao pensamento.

Lima Barreto

Quais eram os significados socioculturais do trabalho dos


homens do Corpo de Bombeiros, para si próprios, e para os
moradores da cidade do Rio de Janeiro, no início do século
XX? Era essa a questão que deveria estar costurando cada
minuto do meu dia, sobretudo às vésperas da entrega do
texto da minha tese de doutorado em História. Porém, em
um cotidiano de distanciamento físico imposto pela pande-
mia da COVID 19 e em meio a incertezas de todos os tipos,
não tem sido fácil manter a mínima concentração para a
escrita, para repensar ideias e realizar leituras que ajudem
a desenvolver melhor o tema da tese.
Há pouco mais de um ano descobri estar passando por
uma crise depressiva, sob orientação e acompanhamento
médico e psicológico me propus a não alimentar o princi-
pal sintoma, o que para mim era o mais perceptível: ficar
em casa. Eu precisava sair para socializar com as pessoas
queridas, que diziam sentir minha falta e tentavam marcar.

272
Porém, o primeiro pensamento que me vinha era não sair,
eu [SÓ] queria ficar ali “na minha”. Essa forte tendência ao
autoisolamento não me fazia bem. A cada dia eu fui perce-
bendo que sair para interagir com outras pessoas – e todo
o movimento de escolher uma roupa, me arrumar, sair de
casa e tudo mais o que isso exigia – era um elemento essen-
cial para sair daquela situação difícil, e manter minha saúde
psicológica e emocional.
Até março de 2020 tudo seguia como o planejado: térmi-
no no uso de medicamentos, terapia, vida social equilibrada
com os compromissos. Mas veio a tal de quarentena, e me vi
obrigado a me impor um distanciamento físico que foi flexi-
bilizado, poucas vezes, com idas ao comércio essencial e a
(tensas e necessárias) visitas ao meu avô materno que, com
grande coragem do alto de seus quase 90 anos, enfrenta um
câncer.
Inicialmente vi na quarentena e na necessidade de per-
manecer em casa uma possibilidade de dedicação à escrita e
reescrita da tese. Todavia, com o passar dos dias percebi que
ali estavam grandes riscos para recaída. É difícil entender
os labirintos dos pensamentos e das emoções.
Consciente de que precisava agir, busquei esquematizar
uma rotina de trabalho. Procurei manter o hábito de acor-
dar cedo, ver algumas notícias – hábito que passei a reduzir
por conta da toxicidade –, me alimentar e me sentar diante
da tela branca do computador.
Escrevia algumas palavras, apagava, voltava a escrever.
Fim do dia! Quase nenhum avanço. No WhatsApp, a espera
por notícias, talvez cheguem coisas boas. Ou talvez um afago
qualquer na tela fria do smartphone. Amigos encaminhan-
do mensagens, vídeos, áudios. Não dá! Até tento insistir. Na
manhã seguinte o telefone fica longe, talvez seja ele a me

273
distrair… Tento revisar e reescrever trechos do capítulo
que, a duras penas, consegui rascunhar dias desses. O pará-
grafo inicial já não me agrada. Tudo parece tão ruim!
No outro dia, é domingo, eu acho. Ainda acordado, con-
tinuei deitado. Uma xícara de chá poderia ajudar… Decidi
voltar para a cama. Não era preguiça, era um desânimo que
beirava a exaustão. Li algo, mas é vaga a lembrança do que
estava escrito. Batidas na porta: “Amor, está tudo bem?”.
Assenti com a cabeça, e mantive os olhos fechados. Ainda
não era o dia em que eu conseguiria produzir. Talvez nem
tenha esse dia. Culpa, eu sinto. Solidão também!
Uns dias.
Vamos colocar uma música. Preparar algo para o almoço,
porque hoje marquei de almoçar virtualmente com amigas
queridas. Todos distantes fisicamente, mas socialmente
estamos próximos, compartilhando preocupações e espe-
ranças. Sei que elas também estão na montanha russa das
emoções, culpas, medos e angústias. Curioso que a passa-
gem do carrinho/isolamento de cada um pelo ponto mais
baixo da montanha russa não se tornou diretamente pauta
de nenhuma das nossas conversas. E quando alguém está
escorregando, inconscientemente temos nos ajudado. Seja
comentando sobre as aventuras e desventuras de ir ao su-
permercado fazer compras, ou mesmo quando temos que
receber alguma mercadoria. Quando simples ações cotidia-
nas, de ter contato com qualquer coisa, se tornaram uma
operação de guerra…
A tese vai, eu sei que vai. A escrita também vai.
Hoje parece que não.
Escrevo a primeira linha: Respira, você vai terminar!
De algum ponto a gente tem que partir né?

274
Distopias geográficas
de um veloz COVID 19
Valnei Pereira
Higienópolis, São Paulo, 15 de maio de 2020
Distopias geográficas
de um veloz COVID 19
Desde o final do ano de 2019, minha vida de geógrafo cul-
tural e urbanista, pesquisador e consultor parecia ainda
mais se acelerar. Fui pra Omã fazer um trabalho na área de
Direitos Humanos super desafiador, experiência única e for-
midável na minha vida. Lá, na companhia de dois amigos
extraordinários, uma advogada cultural e academicamente
interessada em relações de gênero e migrações interna-
cionais e um economista urbanista, dedicado à análise da
urbanização no Sul Global, especialmente na Índia, anali-
sávamos e falávamos sobre conexões globais. Em Omã, em
meio a tantas atribuições relacionadas à rotina do trabalho,
em momentos de pausa e encontros, discutíamos e viven-
ciávamos fervorosamente a experiência com o lugar: meio
do mundo, no sentido dessa encruzilhada entre Ocidente e
Oriente. Um deleite para novos imaginários e repertórios,
flânerie e Aleph, dispostos em uma geografia da alteridade,
simbólica, cultural, revanchista e transformadora.
Voltei de lá, como em toda e qualquer experiência de via-
gem, para novos lugares, transformado, metamorfoseado e
com interesses e chamamentos abertos para “outros” Orien-
tes. Comecei a ler e a analisar as muitas geografias dessas

276
“Ásias”: A Menor, O Oriente Médio, O Subcontinente Indiano
e Extremo Oriente, esse mais distante, nas suas complexas
transformações e nos custos em realizar mudanças entre
passado, presente e futuro.
De volta ao Brasil, praticamente não notei a passagem en-
tre 2019 e 2020, dadas as atribuições na vida pessoal e do
trabalho. Mas sentia algo estranho, um presságio anunciado
de algo atormentador. Me recordei aterrorizado de uma ca-
tarse com meu psicanalista. Nela, o que apenas se anuncia-
va era a morte, mas uma morte estranha, não compreendi-
da, como uma espécie de cataclisma apocalíptico. Nessa fala
interior, fiquei tentando imaginar o que/quem poderia(m)
morrer.
Chega fevereiro e ouço notícias de um vírus na China que
coloca todo mundo perplexo com ações como fechamento
de cidades e regiões, construção alucinada de hospitais de
campanha e emergência, descontaminações sanitárias de
espaços e proibições à circulação de pessoas. Diziam, den-
tre várias teses, que se tratava de um vírus mutante forja-
do nos mercados de carnes exóticas de animais selvagens.
Tudo muito surreal.
E, de repente, esse vírus parecia se espalhar geografica-
mente numa epidemiologia mundial célere que se difundia
para países do Sudeste Asiático e na sequência Irã e, daí,
“Europas”, “Américas” e “Áfricas”. No Brasil, depois de via-
gens entre São Paulo, BH e Rio de Janeiro, chego em casa e
vejo o anúncio de que uma quarentena seria imposta como
forma de conter a disseminação daquele vírus, o mesmo da
China, da última fronteira do Extremo Oriente, viajante, rá-
pido e bastante controverso, multifacetado. Aqui, no nosso
continental país, com tanta diversidade e profunda desi-
gualdade socioespacial, especulações surgem como forma de

277
antecipar análise de tendências para os efeitos sociais, eco-
nômicos, políticos, culturais e de saúde. Em meio à adversa
e difícil rotina da Quarentena, que já é difícil por si só, assis-
timos à uma catástrofe anunciada com seus reflexos graves
sobre os mais pobres e vulneráveis, sobretudo nas favelas,
periferias e territórios nômades dos sem-teto e moradores
de rua das nossas metrópoles, mas também em cidades pe-
quenas e médias de um Brasil sem infraestrutura básica de
saúde até comunidades indígenas e tradicionais espalhadas
por todo o país. Como se não já tivéssemos problemas o sufi-
ciente, uma gravíssima crise política é o fermento que asso-
la a todos e ameaça a construção real e simbólica do presen-
te e do futuro. Na linha dos Direitos Humanos aprofundei o
exercício dos pilares e responsabilidades: o pilar protetivo
(Universo do Estado); o pilar do Respeito (Universo das Em-
presas) e o pilar da Remediação (Universo Misto – Estados e
Empresas). Trata-se de uma discussão e ação de responsabi-
lidade do Estado! Mas onde está esse Estado, qual sociedade
ela representa e deve fazer representar?
O COVID é mesmo veloz, controverso, ameaçador, inespe-
rado e transformador. Pode causar desde uma “gripezinha”
até destruir lugares, famílias e pessoas e agora torna-se
“comunitário”, “social”, “político”, “ideológico”, “científico”,
“econômico”, “ativista”, “ambientalista”; um vírus “geográ-
fico” que já marca nossos espaços, nossos tempos, nosso
mundo, do Oriente ao Ocidente. Está em todos os lugares e
dissemina mortes, de um mundo, de um tempo. Reinventa
e “antitetiza” distopias, enquanto localizações anômalas,
fora do lugar. Tudo é e será mesmo diferente no mundo do
COVID-19. Vai passar?

278
Pandemia: percepção,
memória e quarentena
Antônio Torres Montenegro
Recife, Pernambuco, 18 de maio de 2020
Pandemia: percepção,
memória e quarentena
Em tempos históricos perigosos e desafiadores, filio-me
àqueles que se apoiam no conhecimento para pensar e agir
em face da realidade.
Inicio pelo filósofo Henri Bérgson, estudioso dos processos
da memória, que escreveu em obra clássica, Matéria e me-
mória, não existir percepção pura. Ou seja, não é a realidade
que lança aos nossos olhos ou aos nossos sentidos as coisas,
os acontecimentos com significados puros e acabados. Pelo
contrário, interagimos com o mundo ao redor com os conhe-
cimentos acumulados e as experiências que se encontram
registrados na memória. É por essa condição da memória
em nossas vidas, que Bérgson afirma estarmos em constante
movimento mental do passado ao presente.
Por outro lado, afirma que não existe memória pura. As-
sim, no ato de recordar não retornamos ao registro primeiro
que se formou na memória no instante vivenciado de algum
acontecimento. Isto porque os sentidos, ao estabelecerem
contatos com o mundo ao redor, em permanente processo
de transformação, também nos modificam. Assim, a rela-
ção dos sentidos com a realidade exterior é fundada em um
movimento constante e ininterrupto, que nos torna sempre

280
distintos do que éramos. Dessa forma, segundo Bérgson, em
razão da relação dos sentidos com o mundo exterior, tam-
bém nunca somos os mesmos.
Porém, no viver cotidiano a memória atua parecendo con-
trariar a representação do fluxo ininterrupto do presente
vivido ao passado relembrado, e vice-versa. Por exemplo, a
memória hábito faz repetir comportamentos, pensamentos,
ideias de maneira automática como se o real estivesse “con-
gelado” e não tivesse nenhum poder de interferir na manei-
ra como agimos e pensamos.
Talvez este seja um dos desafios que estamos coletiva-
mente vivenciando no mundo: o de termos que modificar
hábitos arraigados em nossas memórias. Processo que ins-
tiga momentos de significativa mudança social e atos de so-
lidariedade surpreendentes. Porém, ao mesmo tempo, não
devemos deixar-nos enganar pelo discurso de alguns seg-
mentos dentro e fora do governo que, em nome da “salvação
econômica”, difundem outro vírus ainda mais grave, o da
indústria da pandemia.
Relembro o escritor sul-africano Coetzee e sua metáfora de
que os hábitos são tão resistentes quanto os ossos. Ou as pala-
vras do historiador alemão Reinhard Koselleck, ao apontar
que as experiências vivenciadas durante a vida são funda-
mentais, no entanto, em certos momentos podem tornar-se
empecilhos para compreender e atuar adequadamente nas
novas realidades políticas, sociais e econômicas.
Neste momento, descubro-me revisitando memórias pre-
téritas de outros períodos de reclusão vivenciados, em bus-
ca de referências que auxiliem na leitura e no interagir com
o tempo presente da pandemia da Covid 19. E as memórias
voluntárias me remetem ao século passado, quando da es-
crita da dissertação e da tese na área da história. Porém,

281
se a prática pessoal de reclusão possibilita alguma aproxi-
mação entre o passado da memória e o presente vivencia-
do, outros laços de contiguidade são impossíveis de serem
estabelecidos.
Aquela não era uma reclusão que trazia embutida qual-
quer sinal de medo em face do perigo da morte, que a atual
“quarentena” recomenda como a estratégia mais eficaz para
o enfrentamento deste vírus.
No entanto, são nas trilhas sociais e políticas que as maio-
res diferenças e um significativo mal-estar se constitui. O
passado da minha memória, ao bordejar o presente produ-
zido pela pandemia, não é capaz de estabelecer qualquer
comunicação entre a experiência no passado e a vivência
atual do isolamento a que somos coletivamente obrigados,
para sobrevivermos.
Por outro lado, no plano social a recomendação da re-
clusão como tratamento mais eficaz tem sido sinônimo de
maior dificuldade para a população trabalhadora pobre, so-
bretudo os informais. Estes, além de enfrentarem o cresci-
mento do desemprego, na maioria das vezes, estão submeti-
dos a condições de moradia em que muitas pessoas habitam
um pequeno espaço, o que praticamente inviabiliza cumprir
a regra da quarentena. Não é fortuito que as estatísticas já
apontem os bairros pobres como aqueles de maior incidên-
cia do vírus no Brasil.
Porém, a história vivida está sempre a surpreender e obri-
gar a reconstruir outros parâmetros de análise. Assim, é sur-
preendente descobrir, por um lado, como esta experiência
da pandemia torna todas as classes sociais ainda mais in-
terdependentes, e por outro, como se assiste a amplos movi-
mentos de solidariedade e apoio aos mais necessitados, uma
prática de reduzida tradição no cotidiano do país. Ao mesmo

282
tempo, as denúncias de corrupção, sobretudo no superfatu-
ramento da compra de materiais hospitalares para combate
ao vírus, ao repetir a conhecida cultura dos aproveitadores,
têm encontrado um forte movimento de denúncia e repúdio
da sociedade e de parcelas dos agentes públicos.
No entanto, é no campo político que a memória da re-
clusão, especialmente na época da escrita da minha tese de
doutorado, projeta uma diferença abissal com o presente.
Mas advirto ao leitor, antes de expor esta diferença, não
há na presente escrita nenhum saudosismo. São lembran-
ças seletivas dos idos da década de 1980, como a eleição de
Luiza Erundina para prefeitura de São Paulo, a aprovação
da Constituição de 1988 e a vitória da revolução Sandinista
na Nicarágua, que figuravam – para mim e muitos de nós
– horizontes sociais e políticos que anunciavam um certo
otimismo.
Porém, ao não mais privilegiar a memória e focar no ce-
nário social, político e econômico do Brasil na atualidade,
sou atingido pela intuição de um grande perigo a nos rodear.
Afinal, as forças que ocupam o proscênio político no nível fe-
deral comportam-se como negacionistas das recomendações
científicas no nível mundial e nacional, concorrendo dessa
maneira ainda mais para o agravamento da pandemia e o
estarrecedor aumento de mortes. E, ao mesmo tempo, ope-
ram diuturnamente para o agravamento da crise política e
econômica.
Em face da leitura apresentada, me coloco na corrente po-
sitiva de resistência e solidariedade em associação a todos
os grupos da sociedade que têm atuado incansavelmente
para vencer a pandemia e barrar as sérias ameaças às liber-
dades democráticas.

283
O vírus e o assassino.
Uma luta diária
para não esquecer
Márcia Maria Menendes Motta
Rio de Janeiro, 16 de maio de 2020
O vírus e o assassino.
Uma luta diária
para não esquecer
Eu cheguei ao Rio no dia 16 de março, após uma viagem de
retorno da Europa, a trabalho. Estive em Coimbra e Porto,
em Portugal. Fui a Girona e Barcelona, na Espanha. Ainda
em Girona, tive a dimensão do espalhamento da pandemia,
quando uma colega da Universitat de Girona me contou as
últimas notícias que chegavam naquele país.
Naquela ocasião, eu ainda nutria a crença de que a pan-
demia não atingiria violentamente o Brasil. Mas, em minha
viagem de volta, minha esperança foi se esfacelando aos
poucos. Ao passar pelo aeroporto de Paris, já totalmente
isolado, não havia nenhum controle sobre o estado de saúde
dos passageiros. Nada nos foi inquirido, tampouco mediram
nossa temperatura e ninguém recomendou o uso de másca-
ras. Apenas alguns passageiros as usaram espontaneamente,
talvez já cientes da rapidez da propagação do contágio.
Ao chegar ao aeroporto do Galeão, nada nos foi pergunta-
do. Ali também não foi estabelecida nenhuma contenção de
segurança e sequer alguma recomendação para que ficásse-
mos em casa. Foi a mídia que nos alertou sobre a necessidade

285
de ficarmos em nossos lares em quarentena. Eram apenas
14 dias de reclusão, daria tempo de avaliar melhor o que
acontecia no Brasil, à espera de uma solução que evitasse
aqui a replicação da calamidade italiana.
De lá para cá, acordo todo o dia na esperança de que al-
gum cientista consiga nos livrar dessa tragédia cotidiana.
Tento controlar a minha ira, tristeza e impotência. Os mor-
tos daqui se avolumam aos milhares. Os nomes e os rostos
dos que já se foram não nos deixam esquecer que eles eram
iguais aos nossos filhos, pais, irmãos, amigos. Como lidar
com tanto sofrimento? É preciso se desumanizar para não
chorar, diante dessa catástrofe que chega aos nossos lares.
Os lamentos e os pedidos de ajuda aos desafortunados se
propagam via WhatsApp e somente os memes contra o go-
verno nos fazem rir um pouco.
Mas a magnitude da desventura do país vai mais além.
Diante desta pandemia, vivemos dia a dia com as maldades
de um estadista às avessas. Sem nenhum projeto razoável,
sem nenhum plano de governo, o presidente se coloca como
a expressão maior da crença de que a ciência não serve para
nada e que a simples opinião sobre uma doença é suficiente
para que ele possa defender o que bem desejar, mesmo às
custas das evidências mais banais, como o número de mor-
tos no país, o colapso do sistema de saúde e o desespero da-
queles que, ao perder seus parentes e amigos, sequer podem
lhes oferecer um enterro digno.
É difícil acordar todo dia e alimentar esperanças quando
ainda se tem a tarefa de presidir a Associação Nacional de
História - ANPUH. Bolsonaro destrói a nação física e moral-
mente. Ousa nos tirar o direito à nossa própria história, re-
atualizando a ideia de que o golpe de 64 foi na verdade uma
revolução e nos fazendo lembrar que, afinal de contas, ele

286
sempre foi a favor dos torturadores e figura central na legi-
timação e propagação das milícias.
Como se não bastasse, nos recusa o direito ao reconhe-
cimento como profissionais de história, ao vetar a regula-
mentação da profissão. Mas, mesmo diante deste infortúnio
diário que nos dilacera, há algo que Bolsonaro não pode nos
tirar. Quer ele queira ou não, nos destruindo agora, ou não,
Bolsonaro entrará para a História como o pior presidente
que o país já teve. Os livros didáticos “de um novo amanhã”
explicarão aos jovens o processo de propagação do Corona-
virus e não deixarão de destacar que, para além da fatali-
dade provocada pelo vírus, vivemos sob o comando de um
presidente em guerra e acelerando a morte dos mais vulne-
ráveis. A História não perdoou os algozes da Humanidade
e não o absolverá também. Tem sido este o meu alento e,
enquanto estiver por aqui, o meu principal objetivo, como
presidenta da ANPUH será este: não esqueceremos e não
deixaremos que ninguém se esqueça: não há haverá indulto
para um assassino no poder.

287
Tempos de pandemia –
incertezas vitais
Regina Beatriz Guimarães Neto
Recife, Pernambuco, 17 de maio de 2020
Tempos de pandemia –
incertezas vitais
Vivemos tempos trágicos, diretamente ligados a nós.
Não estamos fora da paisagem social, mas imersos nela.
Somos personagens das histórias – das histórias de vida
e morte – que se imbricam umas às outras e expressam
nossos sentimentos de maneira multiforme e simultânea.
São sentimentos contraditórios, algumas vezes coerentes,
outras, muitas outras vezes, completamente incoerentes.
Entre isso e aquilo, entre pensamentos que apaziguam e
outros que colidem e destroem verdades, convicções e
crenças (coisa boa!), somos lançados em um mar de incer-
tezas vitais. Nossa alma flutua nas saudades, memórias e
abraços… e medos, mais medos.
Como dizem diversos escritores romancistas – e nós, his-
toriadores e historiadoras, gostamos muito do que dizem –,
não são as grandiosas marcas criadas para produzir a iden-
tidade das regiões, dos países, das cidades e suas amplas
avenidas, exposições de construções e monumentos que nos
contam das experiências e dos segredos do seu dia a dia. Pelo
contrário, nos relatos que adentram esse “mundo” o coração
pulsa nos detalhes, nos gestos e vozes, nos modos de fazer e
inventar o cotidiano dos grupos sociais que as habitam.

289
Da janela do apartamento em que moro contemplo mu-
danças e silêncios. Dela consigo ver a praia de Boa Viagem
em Recife. A antes barulhenta praia – com os agradáveis
jogos de futebol – é hoje tomada pela ausência de pessoas,
ocupada apenas pelo murmúrio do mar; nada de se ouvir
camarãooooo… peixe fritoooo, caldinho de feijãoooo, sorve-
tes e picolés, anúncios de bugigangas e música sertaneja!
Agora há um silêncio que emite signos a serem decifrados e
anuncia maus presságios!
Mesmo na paz da nossa casa, para mim e meu companhei-
ro – nosso casulo –, a incerteza nos habita e a inquietude nos
atormenta. Meus amigos e amigas, nossos filhos e nossas
filhas, irmãos e irmãs, tias queridas, pai… Estão bem?!!!
Logo me vêm as imagens também de pessoas desconhecidas
que clamam por solidariedade diante do sofrimento. Há an-
gústias que tentamos dispersar ao escrever, ler e conversar
pelos mais diversos meios, especialmente vídeos, porque
queremos ver e até sentir os rostos, o sorriso carinhoso e
o compartilhamento das emoções. Em meu caso, tenho a
sorte de tudo dividir com o meu companheiro de todas as
horas. Um acalma o outro. Mas, a cada espirro, a cada tosse,
a cada mal-estar – antes corriqueiros –, há uma indagação
no ar! Sempre olhamos um para o outro, numa linguagem
muda: quero que você viva!
Reagimos às saídas de casa com mil perguntas que en-
sejam dúvidas e inseguranças.
Seguimos ouvindo histórias, desde a filha de nosso ami-
go que se encontra na UTI às imagens fatídicas nos tristes
relatos na imprensa, com as notícias do crescente e assus-
tador número de pessoas atingidas pela pandemia. Cada
vez mais valorizamos os testemunhos de quem vivencia
ou vivenciou os acontecimentos traumáticos e que nos

290
atingem, pois estamos ligados a uma relação de dependên-
cia mútua. Isto é crucial neste novo mundo! Por isso, os
nossos testemunhos devem ser narrados e transformados
em histórias para que possamos viver e compreender…
Por isso escrevo e reflito. Com dor!
De outra parte, minhas análises e sentimentos se ba-
seiam também em outras avaliações. Vários filósofos, fi-
lósofas e estudiosos de outras áreas das ciências vêm de-
batendo o individualismo na sociedade neoliberal, o caos
da saúde, a fome por lucro dos grandes bancos e empresas
financeiras, a precariedade e a vulnerabilidade dos traba-
lhadores – distribuídas de forma completamente desiguais
– que enfrentam o desmonte das legislações trabalhistas.
Resultado de lutas históricas para assegurar direitos so-
ciais e sobretudo direitos humanos, como a filósofa Judith
Butler e a historiadora Angela de Castro Gomes defendem.
A pandemia era algo anunciado, especialmente em diag-
nósticos científicos, fruto da inexistência e/ou da ineficá-
cia dos sistemas de saúde mundiais. Além disso, deve-se
acusar as comercializações criminosas de espécies de “ani-
mais selvagens”, como na China, no Brasil e em vários lu-
gares do mundo, e dos desmatamentos de florestas, como
na Amazônia, em que os cientistas já estão alertando para
possíveis focos de epidemias, causados pelos desfloresta-
mentos. Os crimes ambientais de maneira geral colocam
em risco o equilíbrio biológico de várias espécies animais
e vegetais; organismos como bactérias, fungos e mesmo ví-
rus fazem parte da vivência comum – para o mal e para
o bem – no planeta Terra. Conviver, coabitar, coexistir se
tornam condição para a vida.
No entanto, há diferentes perspectivas, e algumas são
assustadoras. Para atestar a complexidade da nossa

291
compreensão social e filosófica, e mesmo nossa absoluta
perplexidade, testemunhamos no Brasil um governo para
quem a morte e a vida se equivalem. Um governo que se
alimenta de crises políticas e trabalha para militarizar a
esfera federal como forma de governabilidade, que envol-
ve a tomada de decisões autoritárias se não golpistas. A
todo o momento há declarações governamentais, apoia-
das em perigosas algazarras e tagarelices milicianas, so-
bre a “economia da morte”, naturalizando os efeitos da
pandemia e do número de mortos no Brasil. Qual é a maior
catástrofe? A nossa angústia!

292
Pandemia
e gentrificação
em Nova Iorque
Rogério Manata Fernandes Távora
Brooklyn, New York City, 15 de maio de 2020
Pandemia
e gentrificação
em Nova Iorque
Hoje é dia 15 de maio, mas poderia ser qualquer outro dia.
De repente os carros sumiram, as ruas se esvaziaram e a ci-
dade que nunca dorme entrou em coma. Os dias tornaram-se
repetitivos e ações cotidianas como lavar roupa tornaram-se
algo assustador. Supermercados transformaram-se em uma
área perigosa e seus empregados acrescem a estatística dos
contaminados. Um decreto da prefeitura para evitar que as
pessoas movam seus carros fez desaparecer o ritual diário
das máquinas de limpeza varrendo a cidade e, como conse-
quência, as ruas ficaram sujas, cheias de máscaras e luvas ci-
rúrgicas descartadas por uma população apavorada. O único
barulho é o som constante das sirenes das ambulâncias e dos
helicópteros levando pacientes de um lado a outro da cidade.
A intersecção onde estou confinado é uma área peculiar
da cidade. Na fronteira entre a comunidade hispânica, italia-
na e a comunidade Satmar dos judeus ortodoxos, Williams-
burg é hoje um retrato do processo de gentrificação que to-
mou conta de Nova Iorque. Um bairro que nos últimos anos

294
transformou-se de forma assustadora impulsionado pela
ganância do mercado imobiliário em transformar antigas
áreas industriais em lucrativos complexos residenciais.
Originalmente concebido para ser um bairro residencial de
classe alta, a especulação imobiliária rapidamente transfor-
mou o bairro uma área industrial. Diversas indústrias se
instalaram na região destacando entre elas fábricas de açú-
car, cervejarias, refinarias e industrias de tecidos que nos
anos seguintes transformariam Williamsburg em uma pode-
rosa área industrial.
Massas de trabalhadores cruzavam todos os dias das
mais diversas áreas de Nova Iorque para trabalhar em
Williamsburg. Irlandeses e imigrantes alemães forma subs-
tituídos no começo do século XX por judeus e italianos.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os judeus ortodoxos
Satmar migraram para a região. A partir dos anos 50 e
principalmente a partir dos anos 60 os imigrantes porto-ri-
quenhos começaram a se mudar para o bairro e até os anos
2000 controlavam uma extensa área. Atualmente partes de
Williamsburg recebem um grande influxo de mexicanos, ni-
caraguenses, hondurenses e poloneses; estes basicamente
ocupando a parte Norte do bairro.
É neste complexo bairro de extrema diversidade racial,
étnica, religiosa e de classe que se transformou no microcos-
mo do qual assisto uma economia vibrante colapsar. Peque-
nos negócios, restaurantes familiares e pequenos comércios
foram os primeiros a apresentar sinais de que a pandemia
não ia ser democrática. O sistema de metrô mais avançado
do mundo virou um refúgio dos mendigos. Em uma das cida-
des mais ricas do mundo os excluídos agora foram varridos
para o subterrâneo onde tornaram-se invisíveis aos olhos
da elite. A crise trouxe mais do que nunca a certeza de que

295
estamos caminhando para um mundo onde as desigualda-
des irão se acentuar e a vigilância do Estado no cidadão irá
aumentar.
Poderosas corporações avaliam e analisam os nossos dados
para cada vez mais encontrar na nova ordem do trabalho
formas de explorar cada vez mais e de ampliar os próprios
lucros em uma economia devastada. Aqueles que acreditam
em um Deus invisível de repente ignoram algo que não con-
seguem ver e compreender e contribuem para a dissemina-
ção da doença real e da desinformação.
Neste mundo que se colapsa e se transforma vamos todos
tentando sobreviver e ter esperança de que, da mesma for-
ma que a crise do século XIV trouxe o Renascimento, algo de
positivo possa vir de um momento tão nefasto.

296
Considerações Matinais
Rafael Mendonça
São Paulo, abril-maio de 2020
Considerações Matinais
24 de abril

Consideração Matinal ou Pois seja o que vier


Venha o que vier
Qualquer dia, amigo, eu volto
A te encontrar
Qualquer dia, amigo, a gente vai se encontrar

O quão aberto você é para novas amizades? Eu sou mais


do que devia. Eu adoro transformar pessoas que aprendo a
amar em amigos de infância. E cultivo fortemente quando
bate e se é recíproco amo, senão me afasto, fico triste e vou
tentar fazer novas amizades do coração.
Neste quase um ano e meio em SP, terra difícil pra fazer
novos amigos de infância, conquistei alguns poucos, quero
acreditar que tenho outros poucos bem encaminhados, ami-
gas e amigos que me ensinam a ser um homem melhor, mes-
mo longe disso e não merecendo, que ouvem o chororô e as
dores. Amigas e amigos que fazem o que amigos e amigas
fazem, trocam.

298
Amizades são bonitas porque são baseadas na troca, sem
isso não é amizade e sem isso pode ser um tanto de trem
ruim. Reciprocidade.
Tenho um faro relativamente bom, saber o que a pessoa
quer de você, e fico bem feliz quando vejo que não quer nada
além de você mesmo, da sua companhia, de um bar, de ouvir
e ser ouvida.
Eu me apaixono toda semana por ser como sou, amores
não acontecem como quero, nunca. Amigos não se impor-
tam, se gordo, careca, meio peça rara, meio doido ou o que,
amigos são amigos. Sabem suportar e ser suportados.
E neste confinamento o que mais sinto falta é do amor dos
meus amigos, dos novos e dos velhos. Do contato humano
com eles, abraços. Paixões seguirão, eu amando e a moça
não dando bola, mas as amizades estarão lá pra dar o ombro
pra uma chorada e vice-versa.
Mas este texto é em louvor dos novos, das amizades re-
centes e queridas. Obrigado por terem tornado este ano e
quase meio nessa cidade maluca um tanto melhor.
Queria mandar aqui confinado um beijo enorme pra essas
amizades novas, as antigas não se preocupem, essas sabem
que meu coração é de mãe, cabe todo mundo.

29 de abril
Considerações Matinais ou
Pai, afasta de mim esse cálice.
De vinho tinto de sangue

1 - Usando Zola – Eu acuso. Acuso esse bolsonaro de ge-


nocídio, incompetência, assassinato, negligência. Acuso de
ser um não ser um ser humano e não ter nenhuma simpatia
pela vida, um psicopata. Acuso de facilitar a vida de bandido

299
e de ter os seus de estimação. De não ter a menor capacida-
de de dirigir a própria vida, quanto mais o país. Quanto mais
o Brasil em uma pandemia mortal.

Como beber dessa bebida amarga


Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta

2 - Eu acuso. Os conhecidos e desconhecidos, os votos


nulos e brancos, os muristas, os isentões, os dissimulados,
meus familiares e todos os que, de qualquer forma, ajuda-
ram a fazer isso com o Brasil, de cúmplices de assassinato,
de genocídio da raça humana. Acuso de culpa pela miséria
em que se encontra o Brasil, em sua sociedade, de grana, de
valores e de amor ao próximo.

De que me vale ser filho da santa


Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

3 - Usando Proudhon – A propriedade é um roubo. Eu acu-


so quem tem mais de 500 mil no banco, os bancos, os agros, a
FIESP, os empresários e qualquer merda que se acha empresá-
rio, quem defende banco ou o capital por colocar o dinheiro aci-
ma do ser humano. E com isso ser o pior tipo de ser humano.

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado

300
4 - Eu acuso, na verdade, qualquer pessoa que dê mais
valor ao dinheiro que à vida de ser um crápula mau cará-
ter, um maldito. ACABOU O AMOR. AMOR AGORA SÓ PRA
QUEM AMA, pra vocês acima que o pior, com sofrimento, se
possível. Sentir a dor que o brasileiro sente, sentir a perda
dos que perdem, que percam.

Esse silêncio todo me atordoa


Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

5 - Carinho e consideração a quem é de carinho e consi-


deração, aos outros, a escória da humanidade o pior, não
chego a desejos nefastos, mas os vejo como cúmplices de
vários crimes e assim desejo punição. Que seja o que o deus
deles quiser.

De muito gorda a porca já não anda


De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta

6 - De tanto amar, virei o que não tem amor, virei o que


sofre. E não sou eu que amo e faço o que posso que tenho que
sofrer, não são os que amam e fazem o que podem por um
mundo melhor que têm que sofrer. São os cúmplices de ge-
nocídio e os culpados pelo assassinato dos valores, do amor,
dos pretos, do povo das favelas, dos pobres. O sofrimento
tem que ser desses.

301
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

7 - Eu quero o amor, sim. Quero a paz e a fraternidade,


isso nunca perderei. Nunca deixarei de me apaixonar por
você. Nunca deixarei o amor. Nunca deixarei de ajudar como
puder. Nunca deixarei de tentar ser um ser humano melhor.
Nunca deixarei esses desgraçados me transformarem neles,
mas precisava desabafar. Soltar esse rancor do momento.

Talvez o mundo não seja pequeno


Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno

8 - Não quero mais acordar às 4 da manhã com vontade de


chorar, como hoje. Não quero acordar querendo vomitar pa-
lavras. Não quero acordar mais sem você do meu lado. Não
quero acordar pensando em como vamos sair desse buraco.
Eu sei que esse buraco vai longe, não tem ingenuidade aqui,
queria que tivesse. Sejamos a mudança, amor, fraternidade,
amizade que o mundo precisa.

Quero perder de vez tua cabeça


Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Por hoje é isso, sigamos firmes e fortes em busca do amor,


do carinho, da fraternidade e amizade.

302
Desejo pra vocês o dobro do que cês desejam pro Lula.
Tenho falado disso muito aqui esses tempos. Se abracem
(mesmo que de longe), se amem, diga que cê gosta de quem
vc gosta. Distribua amor e carinho, que tá tudo puxado de-
mais. Ligue pras pessoas, mande beijos. AMEM, se amem,
amem quem vocês amam… Beijos e abraços apertados.

30 de abril
Sou um confinado exemplar, só saio pra comprar comida,
tô com medo, tô preocupado, tô vendo as pessoas relaxarem.
Sou um confinado exemplar que ainda assim se arrisca,
eventualmente peço almoço e seu coração.
Sou um confinado exemplar que trabalha de 10 a 14 horas
por dia há 45 dias amanhã e só mostro 1/17 avos do que es-
crevo entre tanto trabalho. Tenho medo de morrer e escrevo
pra ficar vivo.
Sou um confinado exemplar que tem dias ruins como on-
tem. Mas hoje foi melhor. O desejo de deitar no seu colo e
chorar um pouco não passou. Só vai passar quando acabar,
pois aí eu chorarei pois não tenho seu colo. É assim a minha
vida amorosa, de confinado ou não.
Sou um confinado exemplar que mora no centro de São
Paulo e meu termômetro pro isolamento alheio é minha co-
riza que a poluição do trânsito causa, ela voltou esses dias e
com ela o medo de morrer.
Fiquem em casa.
(…) Tinha muito mais pra escrever mas vou poupá-los,
vou recomendar que escutem Rodolfo Medeiro, Brian Eno,
Jorge Mautner, The Red Krayola, e qualquer cúmbia que
acharem, tudo isso faz bem pra alma, que se cuidem, que se
amem, e busquem o amor, valorizem suas amizades, vendo
nestes dias quem são os meus e como valem ouro.

303
Fiquem bem. Mil e quinhentos beijos e abraços.

9 de maio
Tive que sarar das vontades e desejos, principalmente
dos desejos. A vida na quarentena não é fácil. Tive sonhos
e interesses. De percorrer estradas que levariam a lugares
melhores, lugares úmidos e aconchegantes. Nada deste
tempo seco, triste e poluído. Confinado exemplar que sou,
sabia que seria impossível.
Quis ir nos montes, nas selvas, nas curvas e morros que
esta estrada tem, em andar no seu limite, em ver as belezas.
A vida em quarentena é apenas trabalho, alguma distração,
alguma fumaça e tristes idas ao mercado ben hur que, dife-
rente do herói, não é escravo, é senhor. Mas como o herói
tem ajudado.
Queria sentir cheiros, sabores, provar dos licores dessa
estrada. As delícias que ela proporciona. Queria devolver
isso à estrada. Queria deixar na estrada o bem que ela me
faz. O momento não está pra devaneios. O país não está pra
romantismo, muito menos sonhos com estradas que no fundo
não levariam a lugar algum.
(O amor, quem tem, tem que dar valor).

304
Gavião
Alex Carvalho
Rio de Janeiro, da janela, maio de 2020
Acerca de janelas,
panelas e esperanças
Rosalba Lopes
Belo Horizonte, maio de 2020
Acerca de janelas,
panelas e esperanças 1

Primeiro, a sensação de urgência. Ela resumiu minha en-


trada no isolamento, meu 18 de março. Era urgente com-
prar: álcool, material de limpeza, comida, a ração do gato
que apareceu em minha porta em janeiro e chorou tão te-
nazmente, que acabei por colocá-lo porta a dentro. Ainda
não sabia que seria minha única companhia, de corpo pre-
sente, pelos próximos meses. E a areia, meu Deus? O leite, o
sabonete, a água sanitária! Ai!
Depois, a urgência do limpar. E eu que, até ontem, só que-
ria gastar tempo com coisas importantes, me vi, como al-
guém disse, dando banho até em saco de batatas! Limpa a
casa, limpa o pé, limpa os óculos, limpa celular, limpa a vida
de tudo o que antes parecia defini-la! E o trabalho? Ainda
é preciso lutar por ele. Como conciliar essa luta e a sede
de informação? A esperança de que ela, a informação, nos

1
Texto produzido originalmente para atender parte das tarefas exigidas
para a Olimpíada Nacional de História (ONHB), organizada pela Unicamp,
em 2020, em versão especial, durante a pandemia. Ao longo das três
primeiras etapas, solicitou-se ao participante a elaboração de um diário
de suas vivências durante a pandemia. O presente texto iniciou o meu
diário.

308
permita a recuperação de algum controle sobre a vida! Cadê
a racionalidade? Só ela pode nos salvar neste momento em
que os relógios perderam de vez o sentido! E a total falta de
concentração? Urgências! Mas a vida oferece consolo! Che-
gou pelo e-mail de alguém me lembrando Paulinho da Viola:
“Faça como um velho Marinheiro, que durante o nevoeiro
leva o barco devagar.”2
A segunda sensação foi de solidão e isolamento. Como vou
fazer para me suportar o tempo todo? Como silenciar as tan-
tas questões que matracam na minha cabeça?! Todo socorro
soa bem-vindo: ioga, meditação, caminhadas de duas ho-
ras, música, leitura… Mas, e essa falta dos abraços? Nunca
pensei que a partida dos meus filhos rumo a suas vidas de
adultos, ambos se mudaram em fevereiro, ocorresse em um
contexto no qual todos os demais abraços me fossem proibi-
dos! Ninhos e ruas vazias! Repentinamente, da vitória dos
meninos só se sobressai o gosto de solidão. Cadê todo mun-
do? Mas, a vida oferece consolo. De lazer e descanso a litera-
tura ganha agora a importância dos alimentos, vêm em meu
socorro! Enredada no isolamento, tropeço em Guimarães
Rosa: “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo,
demais.”3
Agora, o sono pode me levar…
Levou-me o sono, mas o corpo desperta em sobressalto.
Será tudo verdade? O que sobrará de nosso mundo? Este
que, a despeito de tantas mazelas, nos parecia tão defensá-
vel! Medo, medo, medo. Esta é a terceira sensação. Acom-
panha-me no café da manhã. E, novamente, o esbarrão em

Coração leviano, Intérprete Paulinho da Viola, Compositor Paulo Cesar


2

Baptista De Faria, em Paulinho da Viola, São Paulo, Odeon, 1968. LP.


João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, Rio de Janeiro, Nova
3

Fronteira, 2006, p. 422.

309
Guimarães, o mesmo: “O que o medo é? Um produzido den-
tro da gente, um depositado; e que às horas se mexe, sacoleja,
a gente pensa que é por causas: por isto ou por aquilo, coisas
que só estão é lhe fornecendo espelho. A vida é para esse sarro
de medo se destruir!”4
Pronto! Dá pra levantar e buscar o sol que, na rua, trans-
forma o exercício em caminhada e a caminhada em movi-
mento. Movimento em roda de mim mesma, como os navios
em volta da saia da menina que fui. E movimento em direção
aos outros. Todos os outros: os que amei desde sempre, os
que amei há muito tempo e os que recém chegaram. Bom
que a internet existe. Bora conversar com todos que se pos-
sa achar: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas, a travessia do
Atlântico! Pequenas descobertas: então, você guardou aque-
la pedrinha? Lembra-se que eu gostava de Cazuza?! Como
ensina Adélia Prado: sem poesia, a gente olha pedra e vê pe-
dra mesmo.5
Medo de quê?
Redescobertas, a quarta palavra. Faz-se urgente redes-
cobrir pequenas alegrias. Fotos antigas? Tomar sol no chão
de casa, fazer bolo de laranja às duas da tarde na segunda-
-feira! Que luxo! E tem a Adélia a nos dizer: “Minha mãe
cozinhava exatamente: arroz, feijão roxinho, molho de ba-
tatinhas. Mas cantava.”6 Então não preciso ir ao mercado.
Dá pra cantar com o que tenho em casa. É a autora também
que, com sua pergunta, me mostra o que há de incrível e
esperançoso no ser humano. Este animal que pode matar
por nada, mas que é também capaz de dar a vida pelo outro.

4
Ibidem, p. 366.
5
Adélia Prado, O coração disparado, 3ª ed., Rio de Janeiro, Salamandra,
1984, p. 73.
6
Ibidem, p. 28.

310
Redescubro sua pergunta: “[…] como é possível que a nós,
mortais, se aumente o brilho nos olhos porque o vestido é
azul e tem um laço? […].”7 Por fim, acerca da alimentação
em tempos de quarentena, é no embalo da poesia que me
chega o resumo: “[…] neste exato momento, […], o céu é
bruma, está frio, estou feia, acabo de receber um beijo pelo
correio. […], não quero faca nem queijo. Quero a fome.”8
Indignação! Como o artista, perguntamos: que país é esse?
Que presidente é esse? Quantos escárnios nos oferece! De
qual inferno saiu? Com o artista cantamos: “a nossa indig-
nação é uma mosca sem asas, não ultrapassa as janelas
de nossas casas!”9 Mas até as janelas se ressignificam nes-
tes tempos sombrios! Delas surge o estampido das panelas,
muitas panelas!! Os artistas, os abraços, a fraternidade! Se o
desespero não vence é porque os consolos não param de che-
gar. Meus meninos se fazem próximos, as meninas se esme-
ram em dar carinho, da amiga me chegam palavras sobre me-
ninos e águas. D’além-mar, com abraços transoceânicos, me
chega tanto! Impossível enumerar. Novamente, a música vem
em meu socorro: “Tu verras, tu verras: tout recommencera,
tu verras, la vie c’est fait pour ça, tu verras, tu verras.”10 Em
português, resumo a esperança: “Você verá, tudo recomeçará,
a vida é feita para isto.” Encerro este diário compartilhando
a saída, uma vez mais na voz de Guimarães, o Rosa: “[…] por
cativa em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tanto

7
Ibidem, p. 38.
8
Ibidem, p. 32.
9
Indignação, Intérprete Skank, Compositores Chico Amaral/Samuel
Rosa, em Skank, Belo Horizonte, Independente/Chaos (Sony Music),
1992. LP/CD.
10
Tu verrás, Intérprete Alexis, Thomas e Alliye, Compositor Chico Buarque,
versão Claude Nougaro, disponível em https://www.youtube.com/chanel/
UCynt.

311
os braços.”11 Presos em nossas casas, os abraços escapam pe-
las janelas, voam, e mantêm a certeza de que tudo recome-
çará. Fique em casa e verá.

11
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, p. 323.

312
Reflexões
biossociais de uma
pandemia: banheiros,
cozinha e Gaia
Lise Sedrez
Rio de Janeiro, 19 de maio de 2020
Reflexões
biossociais de uma
pandemia: banheiros,
cozinha e Gaia
Imagino que daqui a alguns anos vou olhar para trás e
pensar: “Que tempo louco”. E não sei se estarei me refe-
rindo *só* à pandemia. Mas há muito o que pensar. Há o
cotidiano. Limpeza, por exemplo. Sem poder sair para um
passeio, limpar o banheiro se tornou uma desejada tarefa
de procrastinação. O texto não anda? Limpar o banheiro. A
CAPES mandou uma nova portaria? O box parece meio sujo.
A aluna enviou um texto sem uma única crase correta? Hora
de trocar as toalhas.
A cozinha também me chamava – mas só nas primeiras
semanas. Então, era quase uma alegria inventar coisas no-
vas, bem apresentadas, testar novas receitas, tirar fotos,
colocar no Instagram. Com o tempo, cansou. Na medida em
que as semanas passavam – e o número de mortos aumenta-
va – a celebração da vida que era o cozinhar, a tarte tatin, a
berinjela parmegiana, o vitello tonnato, pareciam fora do lu-
gar. Artificiais como um ensaio fotográfico da revista Caras,

314
uma certa obrigatoriedade de euforia. Mesmo os primeiros
Zooms sociais, com vinho e amigas distantes, ficaram espa-
çados. Falar de tristeza? Da desesperança? Das perdas? Do
Louco? Da raiva?
Perdi rotina. Sem passeios de bicicleta, sem subir na ba-
lança, sem incursões semanais na Livraria da Travessa.
Criei rotinas. Yôga, 20 minutos diários, pelo aplicativo do
telefone. (Problema: aquele tapetinho é terrivelmente pró-
ximo do chão, e vejo toda a poeira que preferia não ver).
Telefonema diários aos meus pais. Às vezes, mais de uma
vez por dia. Tenho sobressaltos todas as vezes que vejo notí-
cias sobre a desgraçada expressão “grupos de risco”. Meus
pais têm ambos mais de 80 anos. Independentes, teimosos,
brilhantes, e sem poder sair de casa por semanas. De vez
em quando, a notícia de um amigo que se foi, sem que eles
pudessem se despedir. Eu os visito duas vezes por semana
– mas sem contato físico praticamente desde meados de fe-
vereiro. Como quero dar um abraço em minha mãe! Como
sinto falta de um beijo em meu pai! Eu e meu irmão nos re-
vezamos nas compras, mas é importante também o carinho
e a presença. Mas e se esta presença pode trazer o maldito
vírus? Foi uma decisão. Operação de guerra de desinfecção
cada vez, isolamento quase total no resto do tempo. Espero
que eu consiga viver com esta decisão.
De resto, obsessão pela leitura de cinco jornais (Folha, O
Globo, Guardian, New York Times, Washington Post, e às ve-
zes, até bula de remédio). Eventualmente, as lives de Atila
Iamarino, Monica Bolle, e quem mais eu conseguir achar que
dê uma luz, que explique este momento pelo qual passamos.
Enrico Leff, Donald Worster, George Mobiot, John McNeill…
Volto aos meus mestres da história ambiental – Alfred
Crosby, William McNeill, John Opie. O que mais dramático

315
que uma pandemia para nos lembrar que somos também
natureza? E o que mais definitivo que uma pandemia parali-
sante para lembrar que esta natureza está inscrita em mar-
cadores sociais de tempo, de espaço, de desigualdade social?
Não é hora de pensar o Antropoceno, aliás, o Capitaloceno,
a Grande Aceleração, o Aquecimento Global? Não é esta
pandemia uma forma de ver que sociedade e natureza estão
entranhadas, às vezes com implicações catastróficas?
Eric Hobsbawm falava do longo século XIX, um século
que teria começado na Revolução Francesa e terminado na
Revolução Russa. Talvez. No mesmo espírito, ele propôs o
“curto século XX”, da Revolução Russa ao colapso da União
Soviética, em 1991. Não se engane, meu amigo. Aqui acre-
dito que, no seu pessimismo, Hobsbawm foi um otimista. Se
tivesse vivido mais alguns anos, acho que ele concordaria
comigo. O fim do século XX não foi marcado pela queda da
União Soviética, pela ascensão da China, pela derrubada das
torres, ou mesmo pela crise da democracia liberal.
O século XXI começa agora.

316
O trabalho e
a peste: todos
os dias são domingos
Deivid Valério Gaia
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2020
O trabalho e
a peste: todos
os dias são domingos
O dia de domingo, para mim, era sinônimo de vazio, in-
trospecção e silêncio; às vezes me amedrontava. Diferente
de todos os meus conhecidos, o meu dia preferido sempre foi
a segunda-feira. Acordava antes do sol e quando ele raiava,
eu já estava a postos. Havia luz, luz celeste. Era alfa, a ideia
do começo; possibilidade de criação na semana que se inicia-
va. O domingo era ômega e já no sábado à noite era momento
de me colocar nas profundezas da terra e lá ficar até brotar,
com os primeiros raios solares, na segunda-feira. Grão!
Na segunda, germina. Na terça, se levanta face ao sol.
Na quarta, floresce para o mundo. Na quinta, derrama seus
grãos. Na sexta, fenece. No sábado, seca. No domingo, nas en-
tranhas da terra, espera o renascimento com o primeiro raio
solar. Doutrina universal da vida. Simples mistérios.
Para mim, o trabalho e a correria do dia a dia sempre fo-
ram sinônimos de felicidade, de germinação, de florescimen-
to, enfim, de vida. Os feriados, durante a semana, eram uma
imposição de recolhimento, nem sempre agradável, a não ser

318
quando era para ser arbusto junto à natureza, ao sol. O do-
mingo, fora na natureza, sempre foi solidão!
Sempre considerei muito nobre o trabalho da minha
classe, e por conta de todo esse meu encantamento pela
docência, escolhi seguir essa profissão. Nós, professores,
apesar dos desafios inúmeros, lidamos com a expressão
de beleza do mundo que emerge nas letras e nas artes,
nos frutos das musas apolíneas que são nossos alunos e
colegas. A minha especialidade lida com a beleza que foi
durante muito tempo considerada clássica: fascínio.
Um trabalho, uma honra, uma vida! Quando me pergunta-
vam por que eu escolhi ser professor, eu respondia orgulhoso:
“sou pago para fazer aquilo que eu pagaria para fazê-lo, se
tivesse condições”. Para alguns, a disciplina está na base do
trabalho e do conhecimento; para outros, a base é a liberdade.
Exerço um trabalho que não pode ser desenvolvido sem disci-
plina e liberdade. Daí a necessidade do ciclo contínuo do grão
ao qual eu me condicionava de segunda a domingo.
Apesar do amor e da devoção pelo que faço, ferem-me algu-
mas instituições que nos levam a um caminho de rês, fomen-
tando a produção, a produção e a produção que, quando com-
pletada, traz gozo e cansaço; mas quando não, também traz
cansaço, medo e derrota. Depois de experimentar duas co-
lheres de derrota, meia xícara de medo e um litro de cansaço,
a gente teme tomar esse líquido rançoso e re-re-recomeça a
trabalhar. Impõem-nos a disciplina e retiram-nos a liberdade,
filha e irmã da criatividade. É necessário aprender a tirar um
“dia pra vadear, botar a barba de molho vendo você passear
no cantinho do meu olho”, a pescar no rio de Jererê, de papo
para o ar. O otium cum dignitate que, como diz o nome, era
tempo livre que enroupava-se de dignidade e virtude, deve
ser procurado.

319
O otium, no nosso mundo da compulsão pelo trabalho, foi
interpretado como um vício, um erro, como vagabundagem.
No passado, seguíamos o ritmo do sol e havia leis que impe-
diam o trabalho depois do crepúsculo para manter um certo
equilíbrio ao trabalhador e porque, também, na falta de luz
elétrica, as velas ou candeeiros eram os únicos recursos. Nas
noites frias e cansativas, as velas eram perigosas porque ao
caírem poderiam queimar tudo e todos, por esta razão esse
trabalho noturno, no escuro, era proibido. Daí a expressão
“travail au noir”, trabalho à noite. Ilegal!
Depois da luz elétrica, passamos a trabalhar mais, tornou-
-se não só legal mas também virtuoso. Depois do smartphone,
trabalhamos na cama. Foi então que inventaram a luz azul
para nos sentirmos menos cansados. Assim, adoecemos dia
após dia numa sociedade altamente competitiva na qual, até
nas escolas, as crianças são formadas para competir, para
ganhar. Fomentamos esse modelo por toda parte. Ganhar e
lucrar (às vezes a qualquer custo) passou a ser representa-
do como Vitória. Mas sempre que uma criança ganha, numa
disputa, uma outra perde! Na vida, é mais fácil perder do
que ganhar, e assim criamos uma sociedade de perdidos, de
perdedores, e alguns usam luz azul e trabalham na cama à
noite para vencer. Depois, adoecem.
E agora, que não podemos trabalhar como antes, como li-
dar com a rotina? Diante de um apego tão grande por uma
fictícia virtude chamada trabalho moderno, que se revelou a
fonte falsa da alegria de pessoas adoentadas, veio a peste. No
início da peste, metemo-nos a trabalhar para que tudo pare-
cesse normal, como antes; a falta do trabalho poderia levar
consigo a falta da felicidade.
Sem estrutura, com duas pestes à porta, a sanitária e a po-
lítica, colocamo-nos a trabalhar. Os prazos urgem. As revistas

320
não esperam. As defesas continuam pela internet. A caixa de
e-mail fica lotada. Os planos de aula devem ser revistos. As
bibliografias devem ser atualizadas. As monografias devem
ser lidas e discutidas por Skype. É preciso aprender a usar
o Zoom, o Google Meet. Os documentos devem ser assinados
digitalmente e enviados às chefias. As dissertações de mes-
trado precisam ser rediscutidas. O projeto de doutorado do
orientando precisa ser refeito. A plataforma Sucupira nos
oferece seu chá com fel. Há reuniões e comissões para partici-
par. Sem falar na casa, uma novidade para muitos, inclusive
para mim. No final, de pijama, descabelados, nos vemos dian-
te do computador com os olhos lacrimejando e preocupados
com o mundo lá fora que passa fome, que morre. Nós, aqui, a
trabalhar, sem pudor e com muita culpa.
Mesmo diante de, aparentemente, tanto tempo livre.
Quanto tempo terei para ler, se é na leitura que encontro meu
renovo. Ler o quê? A literatura técnica que nos rodeia ou nos
entregar aos gracejos e delícias do desconhecido que, às ve-
zes, fingimos conhecer para criar um ar de erudição? Farsa!
Somos rodeados de farsas. Não há tempo para ler, só para
trabalhar e há uma diferença nisso. Lê-se um excerto para
citar e para embasar. Mas a alma completa da coisa é perdida.
Joga-se na gaveta, na esperança do tempo de amanhã, que
será corroído pela mesma estrutura. A angústia também se
apresenta como inimiga da leitura.
Nos primeiros sintomas, imaginários ou não, de covid, pa-
rece que é hora de parar. O corpo e alma pedem para parar!
É hora de contemplar o próprio cansaço pelo estresse de fi-
car isolado em um apartamento sem a perspectiva rápida de
saída. É hora de lidar com a dor e remorso da desigualdade
porque enquanto uns sofrem de tédio, outros sofrem de fome.
É hora de pensar, que ciclo é este? Como este grão deve ser

321
plantado e germinado? Chega-se à conclusão óbvia de que
ele precisa de natureza, pois sem o sol não há florescimento.
Sem os pássaros, os morcegos e insetos, não há possibilidade
de reprodução. Somos grãos, flores, natureza e devemos nos
respeitar enquanto tais.
O domingo não é dia de trabalho, por isso sempre me pa-
receu tão enfadonho, triste e cansativo. Vazio! Sempre tive
medo do domingo, o dia do Senhor. E hoje, todos os dias são
domingos. O que o dominus tem a dizer?
A Peste não nos dá muita perspectiva de futuro, mas só de
presente. A peste é agora. Amanhã estaremos aqui? Nossos
amados, como estarão? Ficamos expostos diante de nós mes-
mos para viver o difícil aprendizado do presente. É hora de
parar e depois, enfim, continuar de modo muito diferente. É
hora de parar para virar grão, de sentir o breu e a umidade
da terra, pois fomos sequestrados por Hades e inseridos no
submundo. O que brotará depois desse longo domingo? É pre-
ciso esperar a primavera.

322
Sol de maio
Priscila Heeren
Belo Horizonte, 11 de maio de 2020
Covid-19

Roberto Delpiano
Rio de Janeiro, 19 de maio de 2020
Covid-19
Cooo-Vii-Deee… que nome bonitinho.
Covid-19, o décimo-nono filhinho da família… de repente
não… o filhinho que nasceu no ’19. Isso!
Filhinho pequeno, macio, FDP. Pode mudar o curso da sua
vida, mudar mesmo, literalmente. E você nem sabe o que
foi, não vai saber, pode tentar imaginar, errando quase com
certeza.
E aqui nós estamos, eu estou, com este medo, esta “Es-
pada de Dâmocles” pendurada na minha, na nossa cabeça.
Todo dia, desde o momento em que acordo (cedo) e começo
a ler os jornais no meu tablet.
Rotina: leitura dos jornais italianos, antes de tudo mais,
com as notícias mais adiantadas, histórias de situações que
estão mudando, melhorando, com muita politicagem, mui-
ta lama que “aqueles que não fazem nada” estão jogando na
cara daqueles que se responsabilizam, que tentam encon-
trar soluções. Sempre foi assim.
Em seguida, leio os jornais brasileiros, a conhecida “mí-
dia manipuladora”. Mas ainda é cedo, antes das 9-10 horas
é muito difícil que o nosso “jester” no Planalto esteja fazendo
a mesma coisa que os italianos… “aqueles que não fazem
nada”, etc. etc.

326
Uma boa dose de ódio diário para começar a enfrentar o
dia.
E esses são os meus primeiros pensamentos conscientes,
todo dia, de segunda a segunda. Mas não fica bonito, não me
deixa feliz, mesmo com desgosto, já virou rotina.
Um dia igual aos outros, viver. O que já, falando sério,
numa situação dessa, é um luxo. Viver, ter a certeza de que
terei comida, hoje e amanhã, e um lugar onde dormir, onde
fazer as minhas coisas, passar o meu tempo (livre).
Isso aí, “passar o meu tempo”. Sempre igual, uma im-
produtividade que não é muito da minha índole, acho que
sempre fui um “hiperativo”, sempre correndo atrás de como
fazer, como aprender, como quebrar novos paradigmas. En-
frentar a novidade, o desafio intelectual… mas agora não.
Não tem onda nesse mar. Água parada, o meu barco não
vai em lugar nenhum, não tem vento, não tem onda, o motor
está parado? Depressão? Silêncio?
Um dia igual aos outros. E o cérebro que tenta avaliar,
que trabalha, mas com pouco retorno. E as atividades que
entreprendo que não vão muito adiante… tudo um “déjà
vu”.
Porém, porém… peraí! Nessa folha branca em que o meu
cérebro está traçando ideias mais ou menos concretas, apa-
rece uma luz.
Calma, não é Deus não, eu continuo sendo felizmente
ateu. Afinal compreendi alguma coisa, do meu viver… des-
tes dias todos iguais… desta monotonia, fotografia em preto
e branco, sem contraste.
E aí veio a iluminação, o “Eureka Moment”, intenso, tal-
vez inútil, na minha cabeça: eu sei o que estou fazendo! Es-
tou esperando!

327
Estou aguardando alguma coisa que aconteça. Banal,
hein?
Aguardando que o bichinho do nome bonito me pegue, eu
com os meus pulmões de baixa qualidade e minha pressão
alta? Possível.
Mas com mais realismo estou aguardando que “outra enti-
dade” (e continuo dizendo que Deus não é, não vamos entrar
nessa) tome conta da minha vida, tome decisões que eu de-
veria tomar. Que me mate ou me liberte. Que me tire o futuro
ou me devolva o que eu tinha, quem sabe de pior qualidade,
mas não importa, sempre será melhor do que este “aguardar
passivamente”, eu, indivíduo que perdeu a liberdade das
próprias escolhas.
E tudo isso não tem nada a ver com a “quarentena”, mas
sim com “o medo de que tudo pode acabar”. Acabar sem mui-
to barulho, nos sibilos de quem não consegue botar ar pra
dentro, na certeza de que ninguém pode te ajudar de verda-
de (mesmo que tentem com todo o sacrifício e coração), que
não temos como escolher neste enorme campo de concen-
tração, que nem “o trabalho nos libertará” (cit) se o bicho
pegar.
Coo-Vii-Deee… nome bonito. Que merda, gente.

328
Penso
sobretudo no tempo
Ana Carolina de Moura Delfim Maciel
Lavras, Minas Gerais, 20 de maio de 2020
Penso
sobretudo no tempo
Sim, era realmente o sentimento do exílio esse
vazio que trazíamos constantemente em nós,
essa emoção precisa, o desejo irracional de
voltar atrás ou, pelo contrário, de acelerar a
marcha do tempo, essas flechas ardentes da
memória.

Albert Camus, A peste

Nesses dias de isolamento venho pensando sobre-


tudo no tempo
um tempo tão literal quanto metafórico
um tempo sem limite
um tempo sem sentido
um tempo sem marcha.

Liberdades poéticas de tempos passados revisitados ao


toque de uma pedra, localizada no ficcional círculo “Craig
Na Dun” (na Escócia), é o mote da série televisiva Outlan-
der, uma coprodução anglo-americana baseada na obra de
Diana Gabaldon. Na trama a protagonista, Claire Randall,

330
é transportada de 1945 para o ano de 1743. Nessa viagem
no tempo ela mantém consciência de seu presente, ou seja, o
século XX, e como enfermeira – e posteriormente médica –,
sabe como lidar com epidemias à época mortais pois já tinha
o devido conhecimento de tratamentos profiláticos e dos cui-
dados necessários para evitar disseminação. Num misto de
ficção baseada em episódios históricos, a série nos impulsio-
na a refletir a concepção de um tempo, esse tempo que nos é
pretensamente linear, com a ousadia de uma temporalidade
passível de coexistir entre si separada por duzentos anos de
distância. Feliz coincidência acompanhar essa série em tem-
pos de isolamento.
Imóvel, mas sonhando em marchar para outros tempos
sejam estes passados ou futuros.
Irracionalmente desejando voltar atrás ou, pelo contrá-
rio, desejando acelerar a marcha do tempo, nos deparamos
com imobilidade e impotência. A pandemia da Covid-19
está paulatinamente alterando trajetórias de vida em suas
esferas individuais e coletivas e em escala planetária. Já nos
é possível vislumbrar a dimensão desse evento pandêmico
enquanto trauma coletivo, trauma este que redimensionará
relações humanas, alterará a interação de indivíduos entre
si e igualmente suas interações com espaços públicos ins-
crevendo no percurso inexorável da história uma perspecti-
va outra de memória e de tempo.
E assim, a vida real vai ganhando contornos ficcionais
com grande parte do planeta em isolamento social: bairros e
cidades com feições fantasmagóricas, países sitiados, fron-
teiras bloqueadas, sociedades, famílias e indivíduos convi-
vendo com medidas de isolamento e, num extremo opos-
to, populações vulneráveis abandonadas à própria sorte.
A isso deve-se somar atitudes irresponsáveis e de cunho

331
negacionista que levam o evento da pandemia, suficiente-
mente dramático por si, a níveis insuportáveis.
O passado não é livre. Nenhuma sociedade o
deixa à mercê da própria sorte. Ele é regido,
gerido, preservado, explicado, contado,
comemorado ou odiado. Quer seja celebrado
ou ocultado, permanece uma questão
fundamental do presente.

Régine Robin

Esses tempos que ora atravessamos, suas narrativas e seu


arcabouço de significados, estão sendo coletados, registra-
dos e publicados para salvaguarda futura. A virtualidade das
redes em que estamos imersos possibilita esse avanço de re-
gistros em tempo real: imagens, relatos e textos circulam, a
toque de caixa projetos vão sendo gestados pari passu com a
pandemia: livros, documentários, diários, fotografias, coleta
de testemunhos. Não há risco em se afirmar que jamais um
episódio de tamanha proporção e dramaticidade foi, ao mes-
mo tempo em que se desenrola, alvo de tamanhos registros,
expressões e reflexões. E assim, narrativas do isolamento
vão sendo organizadas, configuradas, registradas e preser-
vadas como cápsulas do tempo que vão presentificando peda-
ços de memórias, configurando um mosaico de experiências
dispersas no globo, isoladas dentre muralhas – sejam estas
físicas ou imaginárias –, mas devidamente unidas pelo leit
motiv “Pandemia”. Em plena fase da melancolia, do luto, do
drama, da insegurança generalizada cujas sequelas ainda
nos são desconhecidas, concomitantemente a essa profusão
estamos construindo, intencionalmente, um arcabouço me-
morial. Ainda não despertos do pesadelo já estamos a redigir
sua trama para que não nos esqueçamos ao alvorecer.

332
Atravessamos um momento de compulsão de memórias
como se, ao registrá-las, nos apaziguássemos de tantos te-
mores. Estamos diante de um novo horizonte de expecta-
tiva e os efeitos psíquicos que isso nos legará vai alterar o
modo como lidamos com o passado e, numa mesma propor-
ção, com lidamos com o futuro ou, no limite, com a nossa
ilusão do que seria um futuro. A vivência desse trauma em
redes virtuais, compartilhamentos de posts, imagens e rela-
tos faz com que narrativas entrem para o curso da história
antes do que normalmente se previa. Isso nos impulsiona a
repensar o tempo, o passado e a memória.

Esse tempo, que não é exatamente o passado,


tem um nome: é a memória. É ela que decanta
o passado de sua exatidão. É ela que humaniza
e configura o tempo, entrelaça suas fibras,
assegura suas transmissões, devotando-o a
uma impureza essencial.

Georges Didi-Huberman

Na atual conjuntura de trauma a memória vai decantando


o passado às pressas…, e assim o vai reconfigurando, trans-
mitindo um arsenal de narrativas que circulam na tempo-
ralidade presente. Não há um intervalo suficiente para re-
cordar, tampouco para esquecer. Seria o fim da memória tal
como a concebemos? Já assistimos a descrença em narra-
tivas míticas, o desgaste das ditas grandes narrativas his-
toriográficas, nos desvencilhamos das memórias oficiais,
assistimos com fascínio o advento da micro-história.
Hoje, no traçar dessas linhas, constato que atravessamos
uma mutação, seja esta simbólica ou literal. Um entre tempos
esvaziado de presente que não é passado, tampouco futuro.

333
Tal supressão e descontinuidade temporal, e as narrativas
dela advindas, terão papel fundamental numa transforma-
ção da relação da sociedade com o tempo. Submersos nesse
sentimento de exílio não temos como viajar no tempo… tam-
pouco como acelerar sua marcha.
Nos resta narrar.

Nesses dias de isolamento venho pensando sobre-


tudo no tempo
um tempo tão literal quanto metafórico
um tempo sem limite
um tempo sem sentido
um tempo sem marcha
um tempo…
inexorável e impassível.

334
335
A (des)temporalização
da pandemia

Rodrigo Turin
Rio de Janeiro, 20 de maio de 2020
A (des)temporalização
da pandemia
As unidades de tempo não são unidades
de medida, mas unidades de um ritmo, no
qual a alternância das diversidades conduz
periodicamente ao semelhante.
Henri Hubert

Para quem pode e está em confinamento, esse privilégio


precário, a forma de se temporalizar durante a pandemia
mudou significativamente. Devido a isso, mais do que narrar
um dia específico desse estranho período, gostaria de apro-
veitar esse espaço para tentar descrever o substrato tempo-
ral que deu forma a, ou, melhor, que deformou, cada conteúdo
de experiência desses meus dias de isolamento social.
Dentre as várias mudanças que a pandemia trouxe, uma
das que mais me chamou a atenção é justamente a perda da
qualidade que distingue e dá ordem ao tempo. Os dias foram
se tornando embaçados, sem forma definida. Com os marca-
dores temporais do cotidiano suspensos, foi-se perdendo a di-
mensão que distingue os diferentes momentos da semana, do
mês, do ano. Se é terça ou quarta, sábado ou domingo, quan-
tas semanas já estamos sem sair de casa – a desorientação

337
temporal torna-se uma nova forma de vida. Se a perda de
qualidade do tempo sempre foi uma marca da nossa socieda-
de moderna, comparado com outras formas de experiências
temporais – como as referidas acima por Henri Hubert –, agora
parece que essa perda ganhou novas proporções, desfazendo
o que restava do ritmo (mecânico) da vida. Um tempo sem
qualidade, precário.
Na verdade, durante a pandemia a vida não deixou de ga-
nhar novos ritmos, acelerados pela torrente de informações,
pelas inúmeras lives, pelos novos rituais de limpeza, pela
angústia do futuro incerto. Esses novos ritmos, no entanto,
se assim podemos chamá-los, são estruturalmente desagre-
gados, do mesmo modo como sua repetição faz com que eles
se tornem monótonos, in-diferentes entre si. Cada um de nós
vai tentando encontrar e se agarrar a novos marcadores
temporais, privados e em rede (mais do que “públicos”), por
mais frágeis que eles sejam. O dia da limpeza adiada, o dia da
ressaca, o dia de desinfetar as compras, o dia das polêmicas
nas redes sociais, o dia de evitar ler jornais, não necessaria-
mente nessa ordem, não necessariamente em ordem nenhu-
ma. O tempo da pandemia se mostra, assim, essencialmente
disruptivo, desarranjando nossas sincronizações cotidianas
e desfazendo os laços que uniam – precariamente – as dimen-
sões do passado, do presente e do futuro.
Todos, nessa condição, parecem viver experiências pare-
cidas, mas isso não as torna comuns. Essa temporalização é
isolada, por mais compartilhada que seja nas salas do Skype
ou do Zoom. Cada um dançando em sua própria sala, como
nessas festas online que surgiram mundo afora. O mundo
passou a se dividir entre os cômodos da casa e as janelas da
internet. A oposição entre o privado e público dá lugar a uma
outra coisa, nem privada nem pública. O dentro e o fora se

338
interligam em um ambiente espectral, fantasmagórico. A mi-
nha sensação, no decorrer do tempo, foi justamente essa: de
me tornar um espectro, nem presente, nem ausente, peram-
bulando pela casa e pela virtualidade das redes, vivendo uma
assombração cujas formas não conseguem ganhar nitidez.
Uma das únicas constantes desse tempo, no meu caso, tem
sido acompanhar o crescimento do meu gato, o Miguilim, ado-
tado um dia antes de eu entrar em confinamento. Indiferente
ao caos da pandemia, ele foi descobrindo o seu novo espaço,
habitando e tomando posse de seus cantos escondidos, desen-
volvendo novos (e estranhos) hábitos, temporalizando-se em
um novo cotidiano, do qual eu e minha companheira fazíamos
– graças ao isolamento social – parte integral e essencial. Es-
tamos ali dispostos para ele todo dia, o dia inteiro. Sem nunca
ter conhecido a vida pré-pandemia – com nossas ausências,
com visitas de amigos, com viagens –, esse cotidiano é o seu
“único normal”. Observar ele descobrir e formar um mundo,
no mesmo momento em que eu tenho a sensação de estar per-
dendo um mundo, tem sido uma experiência incrível, ainda
que ambígua. Em um futuro próximo, se e quando houver,
tanto ele quanto nós teremos que descobrir um outro mundo,
outras temporalizações – diferentes, mas em comum.
Para todos nós que vivemos o tempo dessa pandemia, des-
cobrir esse novo mundo não será fácil. No entanto, no mundo
que vier, se essa disritmia e essa espectralidade da tempo-
ralização da pandemia servir para nos lembrar que o tempo
precisa ter qualidades; que ele precisa ser experimentado em
comum; que ele precisa de condições de possibilidade para
existir – já sairíamos ganhando muito. Um outro tempo, pelo
menos.

339
Do tempo
Regina Helena Alves da Silva
Belo Horizonte, 18 de maio de 2020
Do tempo
EM CASA
Mãe, que dia é hoje? da semana e do mês….
Todo dia minha filha de 9 anos me pergunta isso, toda noi-
te quando vai dormir, dormir no isolamento.
Todo dia o meu filho, de quase 11 anos me pergunta
Mãe, é difícil ser mãe?
Todo dia de isolamento eu acordo, leio as notícias, nos
portais e nas redes sociais, respondo algumas mensagens do
WhatsApp e vou tomar banho. Por que tomo banho quando
acordo? Todo dia me pergunto isso.
Saio do quarto, vou até a cozinha, guardo as vasilhas la-
vadas da noite anterior, as que estão no escorredor da pia,
as que estão na lava-louça.
Todo dia, depois disso, eu faço o café pra mim e meus fi-
lhos, todo dia.
Todo dia nós tiramos a mesa, eu vou pro computador, eles
vão pra seus celulares, todo dia.
Todo dia isso é sempre igual, igual na pandemia.
O tempo do isolamento é um tempo sem rotina, já me dis-
seram isso por todos os cantos e lados. Muitos me alertam,

341
cuidado com a falta da rotina, a falta de rotina deixa as
crianças desorganizadas.
A rotina dos nossos tempos acelerados, a rotina de acordar,
correr para alguma coisa (judô, balé, inglês, futebol), correr
para almoçar, correr para levar as crianças à escola, correr
para chegar na universidade, correr para a sala de aula, cor-
rer para pegar as crianças na escola, correr para dar jantar e
banho, correr… correr… correr…
Isso é a chamada rotina sem a qual as crianças ficam
desorganizadas.
O tempo lento do acordar, banho lento, café da manhã que
pode terminar até quando eu quiser, ler, jogar, brincar, ficar
com o celular, regar as plantas, pular na cama elástica de
ginástica, deitar na rede, escrever, ler, ler, brincar, olhar o
céu…. As nuvens ainda andam…. Ainda existem batalhas de
papagaios (pipas) pelos céus.

NO PRÉDIO
De repente me surpreendi morando em um espaço coleti-
vo, um lugar que existe para além das reuniões de condomí-
nio, um prédio com 16 apartamentos.
Primeira semana de isolamento: fiquem todos em casa,
vamos dispensar os funcionários do prédio, vamos dispen-
sar as empregadas domésticas e faxineiras dos apartamen-
tos, vamos cuidar uns dos outros.
Segunda semana de isolamento: fiquem todos em casa,
vamos dar férias coletivas para os funcionários do prédio,
vamos dispensar as empregadas domésticas e faxineiras
dos apartamentos, gente como vamos fazer com o lixo do
prédio? Vamos cuidar uns dos outros.
Terceira semana de isolamento: fiquem em casa, aposto
que a Venezuela vai invadir o Brasil em busca de hospitais,

342
gente retirem o lixo e não deixem nas áreas comuns, gen-
te…. Quem vai limpar as áreas comuns?
Quarta semana de isolamento: quem quer ajuda para com-
pras na rua? Quem quer álcool gel e água sanitária? Gente
vamos contratar uma faxineira que venha aqui duas vezes
por semana? A gente dá luvas e máscara para ela e faz ela
limpar onde toca com álcool gel, assim ela não nos conta-
mina. A gente acha uma na favela aqui perto assim ela não
anda de ônibus e o perigo é menor.
Quinta semana de isolamento: Quem deixou o lixo na ca-
çamba do prédio vizinho? Vamos fazer churrasco nas terças
e sextas porque a faxineira contratada vem nas quartas e
sábados, a gente faz uma escala de apartamentos que po-
dem fazer. Alguém quer que compre algo no supermercado?
Sexta semana de isolamento: silêncio no grupo de What-
sApp, cansaço.
Sétima semana de isolamento: acabaram as férias coleti-
vas, o que vamos fazer? Vamos votar… aquela mulher é uma
esquerdopata, ela quer que os pobres morram de fome, ela
não quer que eles trabalhem, se eles não voltarem a traba-
lhar vão morrer de fome…. Eu não aguento mais tirar o lixo
de casa…. Eu não aguento mais passar pano com água sani-
tária no hall do meu apartamento…. Eu vou fazer um chur-
rasco com minha família na área comum do prédio, eu vou
receber pessoas em casa porque acho isso tudo uma boba-
gem…. Ninguém mais se oferece pra comprar nada… alguém
pergunta em caixa alta: PRA QUE FICAR EM ISOLAMENTO?
Oitava semana de isolamento: sai do grupo de WhatsApp
do prédio, silêncio.

343
NA CIDADE
Duas saídas durante dois meses.
A primeira, para vacinar. Ruas vazias, silêncio, rapidez,
sensação estranha de tempo lento demais. As crianças den-
tro do carro, dar uma volta, elas no celular. A cidade vazia,
a praça vazia, o silêncio.
A segunda, para ir à farmácia tomar uma injeção: a cidade
andando, a cidade barulho ainda calmo, a cidade com mui-
tas pessoas, as pessoas com máscaras, nos pontos de ôni-
bus, nas esquinas, caminhando. Meu filho, no carro, pede:
mãe, passa na frente da minha escola… No caminho ele gri-
ta: mãeeeee, olha lá… tem uns caras num bar escondidos,
levantaram a porta e estão lá dentro… aposto que votaram
no Bolsonaro…
Chegamos na frente da escola, meu filho olha pra mim e
diz: mãe, eu estou com saudades de jogar futebol com meus
amigos!!!

O TEMPO
Presente: saudades de um passado-presente
Futuro: desse não sabemos mais nada
Passado: qual?

344
Amores possíveis
e rituais de vida
na #quarentena
Giovana Xavier
Rio de Janeiro, 18 de maio de 2020
Amores possíveis
e rituais de vida
na #quarentena 1

18 de maio de 2020. 16.118 mortes registradas por CO-


VID19 no Brasil. Considerando-se as subnotificações, mo-
vimentos e organizações da saúde estimam que o número
verdadeiro de óbitos seja de pelo menos dez vezes mais.2

***

Nesse contexto de institucionalização da morte como po-


lítica de Estado, hoje completo oficialmente dois meses de
quarentena. Um processo em família nomeado aqui na nossa
bolha através da palavra “recolhimento”. Tal qual no can-
domblé, onde nos recolhemos por 21 dias para renascer, en-
contro-me recolhida em casa. Segura, protegida, acolhendo,
sendo acolhida. Ao lado do meu filho e do meu namorado

1
Texto escrito na poltrona da sala de minha casa. Iluminada pelo sol, na
companhia do tapete de Yôga e da indispensável caneca de café.
2
COVID19: monitoramento e análise da situação do Corona Vírus no Bra-
sil, disponível em https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/, acesso em 18 de
maio de 2020.

346
construímos, diariamente, formas de renascer que se re-
metem a novos projetos de vida e existência. Morte lá fora,
vida aqui dentro: sentimentos contraditórios. Tecidos em
um contexto adverso que se traduz em oportunidade para
aprofundar o autoconhecimento. Aprender a separar culpa
de cuidado, compromisso de limite, coletivo de individual.
E, principalmente, dedicar-se a criar definições de amores
possíveis, condizentes com quem somos.
Na prática dessa agenda, uma coisa permanece: o dia com
suas 24 horas. O que mudou foram as maneiras de se re-
lacionar com elas. A dedicação minuciosa à casa, com seu
infinito repertório de tarefas domésticas, segue cansativa. A
diferença é que agora se trata de um cansaço feliz. O traba-
lho é resultado de uma bela partilha na qual todos fazemos,
ensinamos, aprendemos. Listas de compras em documen-
tos compartilhados, que contribuem para dividir de forma
saudável as responsabilidades. Preparo coletivo de receitas,
tornando a cozinha um ambiente de prazer para os grandes
e o pequeno. Faxinas semanais, com conversas leves sobre
definição de estratégias para manutenção do trabalho reali-
zado. Escolarização em casa, marcada por muitos papos so-
bre direitos, deveres e também pelas gargalhadas dos adul-
tos. Doutores sabichões que, muitas vezes, desconhecem as
respostas certas para os exercícios da criança.
Pular corda, tomar café da tarde, jogar bola, praticar
Yoga. Ler romances, assistir séries, cuidar das plantas. Fa-
zer festas de aniversário surpresa, rezar, falar com pessoas
que resgatamos do passado. E, claro, a inesgotável lista de
trabalho acadêmico: fechar relatórios, prestações de contas,
orientar, submeter artigos, projetos, manter contato com as
turmas, participar de reuniões.

347
Viver tudo isso em um contexto de desumanização, mar-
cado por dores, mortes e injustiças contra pessoas com his-
tórias, nomes e sobrenomes desrespeitados pelas autorida-
des tem nos encorajado a criar novos rituais de existência.
As ideias de Audre Lorde, Beatriz Nascimento e Conceição
Evaristo nunca fizeram tanto sentido. O maior ativismo de
mulheres negras é pela nossa própria vida.3
Obrigada Peri e Thiago, por esta oportunidade. Amo
vocês!
Amor, respeito e solidariedade às milhares de pessoas
mortas por COVID19 e seus familiares!

3
Audre Lorde, Irmã outsider: ensaios e conferências, Belo Horizonte,
Autêntica, 2019; Beatriz Nascimento, A mulher negra e o amor, Jornal
Maioria Falante, fev.-mar. 1990, disponível em https://www.geledes.
org.br/a-mulher-negra-e-o-amor/, acesso em 18 de maio de 2020; Con-
ceição Evaristo, Insubmissas lágrimas de mulheres negras, Rio de Ja-
neiro, Malê, 2016.

348
A valsa e o anel
Karla Carloni
Guapimirim, Rio de Janeiro, 21 de maio de 2020
A valsa e o anel
Então, ela se fez bonita
Como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado
Cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços
Como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça
Foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança
Que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade
Que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz
“Valsinha”, Chico Buarque e Vinícius de Moraes

Mais cedo conversei com uma amiga sobre assuntos da


vida acadêmica. De supetão ela me convidou para escrever
este texto. Prazo: hoje mesmo! Assim é ela: sempre com uma
novidade que não pode esperar. Sua sede de viver é urgente.

350
Sou historiadora. Poderia enveredar em uma análise po-
lítica e social da realidade. Mas estou cansada. Deixo para
aqueles que tiveram a sorte de ter mais tempo e disposição
para escrever sobre dias tão sombrios. Peço licença para fa-
zer um exercício de escrita quase catártica.
Neste momento estou diante da tela do computador e dis-
tante da cidade. O silêncio se junta ao barulho de grilos e ou-
tros animais noturnos. As fortes rajadas de vento que come-
çam a soprar nas copas das árvores não me assustam como
antes. Por algum instante parece estar tudo no seu lugar.
Não sinto falta do barulho dos carros, das vozes das ruas
e das luzes da cidade. A tranquilidade da floresta me abraça
e me acalenta.
Mas meu corpo insiste em lembrar que hoje não é mais
um dia como outro qualquer. Coração pulsa acelerado ape-
sar de me encontrar confortavelmente sentada. É uma sen-
sação que me acompanha nesses novos tempos.
Há pouco mais de 60 dias eu andava pelas ruas do bairro
no qual vivi minha juventude. Estava envolta em boas lem-
branças do passado embora as notícias que chegavam anun-
ciavam que passaríamos por momentos difíceis. Mas nin-
guém imaginava como seriam.
Depois de namorar uma vitrine comprei um anel de ouro.
Senti um daqueles impulsos que nos faz parecer criança.
Era o meu presente para a mulher mais bela de todas. Em
breve ela iria celebrar 70 anos de uma vida intensa. Iríamos
comemorar. Haveria uma festa. Eu estava ansiosa. Tinha or-
gulho e medo. Orgulho por ser fruto de sua história e medo
do tempo que um dia irá nos separar.
No dia do aniversário eu já estava aqui. Isolada. Passei a
noite acordada e vi o dia amanhecer. Apesar do lindo dia de
sol e céu azul, tudo estava turvo e a natureza estava parada.

351
Me sentia presa no quadro de Dalí olhando grandes relógios
derretidos.
Diante da internet choro os mortos, amaldiçoo as elites
com sua ganância adornada de crueldade e me encho de có-
lera assistindo o sórdido espetáculo encenado pela fábrica
de fazer cadáveres que se instalou na capital do país.
Penso nas mulheres que neste momento lutam para
sobreviver e não deixam de cuidar de seus filhos, compa-
nheiros(as) e pais. Mulheres diversas que cuidam do ou-
tro. Sejam eles conhecidos ou estranhos. São profissionais
de saúde, donas-de-casa, diaristas, professoras, religiosas,
cozinheiras, trabalhadoras fabris, balconistas, motoristas.
Todas sobrecarregadas e sujeitas a violências mentais e físi-
cas. Mas que se doam para tentar amparar um mundo feito
à imagem e semelhança do sexo oposto e que agora agoniza
e desmorona. Lembro de minha mãe.
Ao telefone vomito palavras e desopilo meu fígado com
amigos que pacientemente me escutam. Falo de minhas
preocupações, da minha impotência, dos meus medos e da
saudade. Ouço seus desalentos. Parecemos cegos tateando
possíveis caminhos mentais para manter a sanidade.
As pessoas me aparecem planas e inodoras nas telas do
computador e do celular. Não é mais permitido o toque. A
limpeza desenfreada da casa surge como solução terapêu-
tica. Muitos produtos químicos para eliminar o vírus do te-
mor pelo que virá.
Troco a tentação de uma agenda produtiva cheia de exer-
cícios físicos, receitas culinárias mirabolantes, literatura,
projetos infinitos de trabalho, filmes, casa organizada, medi-
tação, trabalhos manuais, shows, lives e grupos e mais gru-
pos virtuais por simplesmente tentar respirar e olhar.

352
E sob meus olhos os pequeninos animais que eventual-
mente passam por meu jardim junto com os dois gatos que
me fazem companhia escancaram a simplicidade da vida e a
barbárie humana. Sinto a obrigação de pedir desculpas por
todos nós.
Por enquanto espero o dia em que poderei dançar valsa
na praça com meu companheiro e ver a cidade iluminada
amanhecer em paz.
E o anel está guardado. É surpresa. Não sei quando poderei
entregar.

353
Me serviu
pra perceber…
Wolmin Dahgrota
Rio de Janeiro, 21 de maio de 2020
Me serviu
pra perceber…
Me serviu para perceber
que vivia dentro de uma tempestade
que me devastava desde o dia em que nasci.
O recolhimento mais uma vez,
me fez olhar pra dentro,
pra saber quem era fora, se o que estava realmente fazendo
era a forma como realmente pensava,
comecei a questionar meus questionamentos,
meus pontos de vistas se tornaram tão claros
que conseguia enxergar o fundo,
e não era tão fundo assim,
não o quanto achava que fosse.
Várias barreiras externas solidificavam passagens
que só se tem em momentos assim:
INTROSPECTOS.
Organizei meus pensamentos, coloquei em prática
uma rotina criativa que me proporcionava ter um
controle
sobre tudo o que acontecia comigo.
Assim, meus expurgos tinham um sentido a ser in-
vestigado, tinha um propósito no entendimento do eu
próprio, melhorar como um ser vivente e útil.
Vivi durante um tempo da minha vida em isolamen-
to, e lá aprendi a conviver comigo, a aprender com a
minha personalidade que às vezes nego ou finjo que
não vejo,
nesses momentos, uso para essa leitura potencializar
meu atman além de tirar a craca externa que
acumulamos
Durante nossa caminhada babilônica.
Precisamos estar preparados, sempre.
Clipping de
notícias de um
dia de maio no Brasil
Autor incidental
Brasil, maio de 2020
Clipping de
notícias de um
dia de maio no Brasil
O problema, para Bolsonaro, é que seu padrão se tornou
previsível e, no limite, insustentável sem ruptura real. Ou,
na ilusão do bolsonarismo raiz, a solução. (Analista em
Folha de S.Paulo)
O preço de uma base de apoio no Congresso está aumen-
tando. (Época)
Especialistas usam expressões como “apagão de dados” e
“voo cego” para descrever a situação atual do país na pan-
demia. (BBC)
Segundo o Ministério da Saúde, a fila de testes faz com
que os óbitos sejam confirmados, em média, uma ou duas
semanas após terem ocorrido. O Uol identificou atrasos de
até 51 dias para a oficialização de mortes.
Já foram registrados 77 óbitos entre povos de 34 etnias
indígenas do país – com 308 casos de infecções confirmadas.
(El País)
Na hipótese de 70% das pessoas se contaminarem, o país
pode ter 1,8 milhão de mortos. (G1)

358
O economista diz ainda que os investidores estrangeiros
deveriam evitar a “casa em chamas” do Brasil principalmen-
te por causa da crise política. “No momento, é melhor deixar
o Brasil para especialistas, malucos, oportunistas de longo
prazo e aqueles sem outras opções”, afirma. (Info Money)
A extensão das medidas contra a crise pode levar a um
rombo de R$ 1,2 trilhão com dívida acima de 100% do PIB
em 2020, cerca de dez vezes o projetado no início do ano.
(Folha)
Natural da Bahia, José Roberto dos Santos foi para São
Paulo há pouco menos de 20 anos e ajudou a construir a casa
de dois quartos onde morava com a companheira, Maria, as
três filhas (de 18, 17 e 9 anos) e um casal de netos (de 2 e
4 anos). Pedreiro, ele trabalhava de maneira informal. Nas
últimas semanas estava em casa, por conta da pandemia de
coronavírus, saindo muito pouco. Estava reformando o lo-
cal, colocando gesso no teto da sala. O processo parou pela
metade. Maria o levou ao hospital pela primeira vez no dia
18 de março, um sábado. Recebeu medicamento para asma
e voltou. Na noite do dia seguinte, retornaram, porque ele
quase não conseguia respirar. Ela voltou para cuidar das fi-
lhas. No dia seguinte, de manhã, o marido ligou, avisando
que seria internado. Ela nunca mais o viu. (Folha)
O setor da construção civil foi enquadrado como essencial
no estado de São Paulo: 88% de suas obras foram mantidas
durante o isolamento. O IBGE estima que para cada traba-
lhador com vínculo formal (CLT), existem dois informais.

359
Procurando
Amaral Quinto
Guaracy Araújo
Belo Horizonte, 21 de maio de 2020, 69o dia de quarentena
Procurando
Amaral Quinto
No transe de tantas perdas, neste tempo que é ferida aber-
ta, sinto que a alexia é a minha própria pandemia. O pre-
sente parece uma pedra que não se pode mais rachar com
o entendimento. Por isso passo tanto tempo do isolamento
buscando frestas. Testando novas consistências entre pen-
samento e imaginação na busca de um resto de possibilida-
de. A possibilidade é o que mais nos falta.
Não é de hoje que estudo a ardilosa extrema direita que
nos coube enfrentar pelo sorteio da História. É a liga mais
dura desta pedra? Fato é que pouco faremos frente ao mono-
lito com boas intenções, revolta romântica e cantando Bella
Ciao. Tento romper as camadas rumo ao núcleo do horrível
presente que se nos apresenta usando a imaginação como
uma picareta. É preciso imaginar este horrível. É quase for-
çoso. E logo Amaral Quinto me surge de uma névoa de filme
noir antigo.
Li durante o isolamento A literatura nazista na Amé-
rica, de Roberto Bolaño. Nele Bolaño tece uma genealogia
fictícia de literatos de extrema direita no continente ame-
ricano ao longo do século XX. Mas muito lodo rolou debaixo
dessa ponte desde que o livro foi escrito uns 25 anos atrás.

361
Novas figuras a adicionar no bestiário surgiram desde en-
tão. Amaral Quinto rompe a película e insiste em se dar à
presença.
Fidelis dos Santos AMARAL QUINTO
Rio de Janeiro, 1995-
Ele é filho de Amaral Quarto e neto de Amaral Neto: jorna-
lista, deputado e enfant terrible do udenismo. Seu pai teria
sido um participante atrasado da contracultura brasileira
tardia? Fã do Caetano, dropeiro, se deixa ver em todas as
passeatas das Diretas Já, converteu-se ao vegetarianismo
e enfim abandonou o filho aos cuidados de avós opressivos?
Eh, não fica ruim. Amaral Quarto bem poderia ter sido como
tantos dos sessentosetentistas que conheço: valente até a
página dois. Talvez tenha militado em uma tendência radical
e divisionista de um partido de extrema esquerda. Vai saber,
era tudo confuso naquela época. Seja como for, Amaral Quinto
foi criado na ausência paterna e na biblioteca silenciosa do
avô – um escritório escuro, repleto de gavetas trancadas e
livros com grossas lombadas verdes, azuis e marrons.
Melhor: o pai de Quinto o deixa na casa dos pais e desapa-
rece. Num cestinho, seria um detalhe bíblico e comovente.
Foi visto pela última vez misturado a um grupo de daimistas
no Alto Xingu.
Aos 12 anos, Quintinho descobriu o British Steel do Judas
Priest e as Tempestades de Aço de Ernst Junger (na edição
francesa original da Payot, com tradução de Grenier). Não é
tarde para contar que Quintinho foi educado – criado – por
uma governanta europeia que, claro, tem um coque e parece
vagamente sinistra com sua idade incerta. Ele achou dentro
do livro um postal que mostra Adolf Hitler em primeiro pla-
no e a Torre Eiffel no fundo, o qual foi distribuído pelos jor-
nais alemães após a vitoriosa tomada da França em 1940.

362
Na parte de trás uma garatuja redigida em alemão numa
letra que, Quintinho sabia, não era do avô. Junger, Paris to-
mada e a gilete do tamanho de uma mão se tornaram insíg-
nias febris que se alternavam nos seus devaneios; soldados
vestidos com jaquetas de couro atirando em casamatas no
alto de uma montanha sob uma chuva de bombas. Na trilha
sonora, a voz agudíssima de Rob Halford entoando uma ver-
são metal de um lied de Wagner.
A esta altura não será inútil relatar que Quintinho havia
herdado a cara sem curvas, a miopia, a corpulência e as
orelhas de abano do avô. E nada de melhor havia em suas
próprias contribuições para a feição da família. Quintinho
era flácido até no rosto, suas espinhas pareciam chagas pu-
rulentas, usava um aparelho de aço fosco que lembrava a
arcada dentária de um tubarão.
Mesmo? Não seria essa uma psicologia banal? Adolescen-
te que não arruma namorada e desanda para o ultraconser-
vadorismo? Não será simplificar demais? Mas então como
explicar esses novos personagens que emergiram do nada
para a inutilidade: os incels? Não, incel não. Nosso glorioso
idioma contém termo melhor: virjão. Sabe-se que existe uma
correlação estável entre sexualidade não realizada e extre-
modireitismo. Mas Quinto não poderia ser como um desses
semideuses helenizados que aparecem aos montes no livro
de Bolaño, como Ignacio Zubieta talvez? Um daqueles jovens
perfeitos que jogam polo equestre e começam a compor so-
netos aos nove anos de idade? Uma encarnação rediviva
da Weltanschauung nazista? Não seria melhor imaginá-lo
como anti-herói trágico em vez de ridículo?
Não. Melhor chegar ao trágico PELO ridículo. Para não
abrir chance à nobreza, em prol da verdade da ficção.

363
Foi em fins de 2009 que Quinto descobriu a internet – que
até então considerava vulgar demais para quem já lia em
inglês, francês e latim – e o blog Mídia sem Modos, de Leitão
de Carvalho. Sete anos mais tarde, ao ser introduzido pela
primeira vez no convívio do Mentor, ele lhe dirá em primei-
ro lugar: para muitos o senhor é um guru, mas para mim é
como um pai.
E eis que o relato passa a exigir peripécias, algo para con-
tar – e neste momento a fronte gorda e untada de Amaral
Quinto começa a me escapar pelos dedos. O que terá lhe as-
segurado uma fama incerta nos meios da altiraite? Na pri-
meira versão, Quinto começa a pichar os muros da Barra da
Tijuca com citações de São Tomás de Aquino – irremissibili
secundum suam naturam, in quantum excludit ea per quae
fit remissio peccatorum e também legibus iudiciisque homi-
num lex antecedit iudiciumque Christi – e de Virgílio – nos
patriae fines et dulcia linquimus arva –, já que se sentia um
exilado em meio aos oito anos de um governo de esquerda
que estarrecia o Mentor. Assina como Deos Vult.
Na segunda versão Quinto se integra ao Anonymous Brasil
por volta de 2010 e passa a hackear sites governamentais,
inserindo neles apotegmas de decepção. E também frases
obscenas em línguas semiesquecidas. Nesta versão Quinto
é mais troll que literato. Mas literatos não são todos trolls?
Na terceira versão Quinto se torna conhecido como ide-
alizador de manifestos longos e ilegíveis – são textos bar-
rocos que alternam referências a textos de Ayn Rand, ar-
tigos de Berdiaev e paráfrases dos belos períodos de Evola,
entremeadas de referências à cultura viking, manuais de
contraespionagem da CIA, poemas de Céline e letras de mú-
sicas de bandas Oi! Porque seus textos são ilegíveis e bei-
ram o sem sentido, são ovacionados como peças literárias

364
experimentais altamente elaboradas pelo Mentor, que as di-
vulga para dezenas de milhares de seguidores de seus sites
e blogs afluentes, fazendo de Quinto uma espécie de gênio
incompreendido e radical, um Rimbaud ultramontano.
Não sei – não consigo – dizer o que aconteceu com Quinto
nesses anos que vão entre 2010 e 2019. Seu rosto volta a
se fixar por esta altura. Agora ele é um curioso misto com
corpo de adulto e face de adolescente, como tantos extre-
modireitistas egressos das upper classes. Que foram anos
de conspiração, de slogans pletóricos e vitórias cínicas, de
patos amarelos tomando as ruas como versões amigáveis do
Godzilla, ah isso foram. Sei que Quinto considerou a reali-
zação de atos terroristas e a elaboração de uma coletânea
de seus trabalhos – poemas concretos, pequenas histórias,
ensaios? não sei ao certo – enquanto se tornava uma espécie
de minimito. Seu nome foi considerado para ocupar cargos
de segundo escalão no governo que foi empossado em 2019.
Talvez a Biblioteca Nacional, porque não?
E ao chegar neste momento começo a perder de novo os
traços de Quinto. É que nesta altura a ideia de matar o per-
sonagem – que desde o início o acompanha e como que deli-
neia seu contorno – se torna cada vez mais atrativa. Ele é
meu personagem mas é um lixo mesmo assim. Penso por ou-
tro lado que Quinto, nascido em 1995, poderia perfeitamen-
te ser o filho que nunca tive. E que desconheço mais do que
entendo a nova geração, como são chamados? Millenials?
Sou séculovintista, sem redenção. Serei justo com Quinto?
Mas: será que Quinto é justo conosco? Duvido.
E assim, perdido de dúvida em dúvida, Quinto volta a se
esfumar. Não sei o que fazer com ele. Mas quando da rua
o som das sirenes me sobressalta – sejam camburões, se-
jam ambulâncias; quando tomo conhecimento de milícias

365
acampando na Praça dos Três Poderes; quando vejo em ví-
deo que, na Avenida Paulista, se dança o trance com caixões
sendo ostentados como troféus; e noticiam que covas e mais
covas e mais covas são abertas em todos os cemitérios do
Oiapoque ao Chuí, enquanto corpos são desenterrados por
famílias que acreditam que dentro das covas só se encon-
tram pedras – famílias que em breve enviarão companhia
a seus mortos; quando vejo as carreatas cobertas de ban-
deiras e sinto no ar o cheiro do chumbo, de novo eu procu-
ro Amaral Quinto, eu imagino Amaral Quinto, e talvez tema
Amaral Quinto.

366
Pedacinho do céu
Flávio de Castro
Belo Horizonte, 22 de maio de 2020
Pedacinho do céu
Hoje o velho faz 71 anos. Lembro que no ano passado,
quando o velho fez 70, a gente ouviu “Pedacinho do céu”
(choro de Waldir Azevedo, pra quem não nasceu ontem) ao
vivo, ôxe, com violão de sete cordas e tudo. A gente comeu
costela, bebeu cachaça e serviu bolo confeitado pra significar
o que não tem data.
Hoje eu mando WhatsApp pro velho, encabulado, pergun-
tando sei vai ter churrascão. Ele desatina, diz que é dia de
asinha de frango, se muito. Batuco a velha frase da tempes-
tade finita. O velho responde:
– Boa noite, bj.
A Carolina, estirada na sala, mistura a terceira taça com
a segunda temporada de uma série escandinava. Nossas
mãos, molhadas de suor, não conseguem respirar. Ouço
Douglas Germano quando o Seu Raimundo interfona dizen-
do que chegaram seis latas de cerveja do Porquinho’s Grill.
Quando desço pra pegar o Graal avisto a orquídea amarra-
da com arame na árvore. A orquídea que Seu João, o antigo
porteiro noturno, cuidou até semana passada, quando mor-
reu de infarto, aos 54 anos.
A mãe da Carolina avisa no grupo da família que vai ter
golpe e se mostra apreensiva com a declaração do IR. O

368
celular apita sem dó. Clarah declara que tomou cachaça com
Zolpidem e que está com vontade de cessar de viver. Reparo
no verbo cessar e digito:
– Hoje não, viada. Precisamos de você.
Davi foi pra casa do tio. Já comprou tudo quanto é jogador
caro no FiFA 2019 depois de horas de lero-lero com Matheus
sobre os melhores custos-benefícios da Champions League.
Seis horas depois se encurvou no sofá, olhando para o nada,
enquanto o cachorrinho esperava algum movimento brusco
para se espevitar.
Thiago me mandou uma música que fez num aplicativo
de celular junto a uma guitarra de verdade. Tem até letra.
A guitarra é bonita que dói, melhor não repetir. Guitarrinha
que coça no peito e instaura uma vontade de sair pra não sei
onde. Pra onde ninguém sabe, aliás.
Nem mesmo eu sei da dona Inês, tadinha. Lá no Asilo
Nossa Senhora de Fátima, sem sair ou receber visitas, me
confessou ao telefone que comeu os bombons chorando de
alegria ou raiva, chorando inteira naquele sonho de valsa
que a floricultura Regina enviou no dia das mães mediante
transferência em C/C.
Chorou Inês na valsa, Thiago na guitarra, Bruno Zamba
também chorou quando o chorão tocou o “Pedacinho do céu”
no aniversário do velho.
Eu tento juntar esse mundaréu todo, tento registrar meu
desbrasil.
Logo menos nascerá um dia exatamente igual a todos os
outros. 5h de uma madrugada imensa. Andreia me apressa
e eu me apresso em lembrar de todo mundo que existe aqui
neste (ainda) 22 de maio. Parece cloroquina, mas é só triste-
za. Logo menos será sábado em BH e eu fazendo aliterações.
Avisa pra Vera que venceremos.

369
Oxalá. Pois Waldir Azevedo, segundo o Google, compôs
“Pedacinho do céu” no banheiro da Continental em 1923 ou
1946, sei lá. Logo menos, em todos nossos banheiros, um pe-
dacinho do céu há de se insinuar. Azulejado, repleto, sereno.
Quem viver, verá.

370
Boa sorte
Jacinto A. Cloroquina
Facebook, 7 de maio às 9:51 PM
Boa sorte
Hoje nasceu uma criança que estará viva e saudável da-
qui a 163 anos. Daqui a 163 anos, no dia de seu aniver-
sário, ela terá tirado um dia inteiro de férias e aproveitado
para jogar tênis com amigos. Todos eles em algum lugar des-
conhecido dos outros, vendo-se e interagindo por um corres-
pondente futuro da internet.
A terra será um lugar estranho, com mudanças bruscas
de temperatura, geralmente semidesértica, mas com tem-
poradas de inverno polar que durarão meses ou anos. Mas o
clima já não é uma preocupação, é apenas a maneira como
as coisas já serão muitos anos antes.
O clima será apenas assunto daquilo que, nesse futuro, for
o correspondente ao que conhecemos hoje por literatura,
história e arqueologia.
As pessoas viverão confinadas e só sairão “para fora” por
motivos especiais, tendo alguma justificativa prática de tra-
balho ou estudo.
Ninguém mais terá vontade de ficar do lado de fora, ou de
sentir a brisa, ou de nadar no mar.
A humanidade (qual das humanidades?) vai olhar pra
esses nossos hábitos em 2020 como nós hoje imaginamos
o tempo em que quase todas as pessoas cultivavam sua pró-
pria comida e tinham seus próprios animais.

372
Nem conseguiremos avaliar como era viver tendo casas
com quintais e passear ao ar livre. A gente não sente falta do
que nunca experimentou.
Essa criança que nasceu hoje, como eu disse, estará em
perfeito estado de saúde nesse longínquo 2183, e sua pers-
pectiva será continuar assim por mais um século.
Em uma data próxima a esse aniversário, sentindo-se
nostálgico, essa pessoa assistirá filmes produzidos e lança-
dos mais ou menos na época em que ele nasceu. Mas talvez,
dada a enormidade de informações, não terá ficado sabendo
que nasceu em meio a uma pandemia. Foi apenas um dia
qualquer, como todos os dias são um dia qualquer, só que em
2020.
Esse aniversariante terá tido um filho depois de conquis-
tar sua estabilidade financeira aos 93 anos. (Nessa época as
pessoas começarão a pensar em ter filhos entre 70 e 120
anos.)
Esse filho – que não é filho nem filha, é apenas alguém
– terá sido gerado a partir da combinação genética de seu
progenitor com um/a galã que leiloou seu DNA para uma em-
presa de reprodução in vitro. Apenas mil compradores tive-
ram acesso a esse material leiloado. Esta será uma prática
estabelecida e aceita.
Ele acompanha a vida de seu(sua) filho(a) a distância, e
pensa que o(a) filho(a) também pensa e se lembra dele ao
olhar para o próprio corpo e fazer exames de saúde. Ela
também se envaidece secretamente por ter trazido ao mun-
do uma criança tão especial e perfeita, que tem a saúde per-
feita e é absolutamente independente.
Mas duas coisas continuarão verdadeiras para esta crian-
ça nascida hoje, e todos nós que tivemos a chance/a sorte/o

373
acaso/o desprazer de ler esta mensagem desimportante
neste momento, e por pura curiosidade:
1) Essa criança nascida hoje continuará insensível à de-
sigualdade, ao sofrimento alheio. Daqui a 163 anos e para
sempre tivemos e teremos aqueles que são mais e outros que
são menos; aqueles que fazem pelos outros e aqueles que re-
cebem dos outros, mesmo que essa relação esteja concebi-
da de maneiras completamente incompreensíveis para nós,
hoje, em 2020.
2) O nosso aniversariante continuará escravo de sua soli-
dão interior, sentindo-se imortal, e percebendo a vida como
um sonho que não parece confuso, mas que é, e prossegue
acompanhado de um zumbido, que desaparece se não pres-
tamos atenção. Algo sem sentido, que se faz inconsciente-
mente, apenas por se ter nascido.
A essa pessoa e a todas as outras que lerem ou não lerem
esta bobagem curtida no tédio e na tristeza do confinamen-
to, quero dizer apenas mais uma coisa:
– Boa sorte.

374
Ad infinitum
Adagio

Celina Lage
Belo Horizonte, em um vácuo entre abril e maio de 2020
Ad infinitum
Durante meu isolamento, realizei uma série de seis mo-
notipias (Adagio, Adagietto, Grave, Largo, Larghissimo e
Larghetto). Cada uma delas com três fileiras sequenciais,
contendo padrões que se repetem, mas que, no entanto,
diferem uns dos outros. Entendo as linhas traçadas como
subjetividades fragmentadas, dadas as suas características
únicas e disformes. São rastros, impressões, borrões, man-
chas. Poderiam representar indivíduos, projetos, sonhos,
sinais de um radar, dias sucessivos sendo anotados por um
encarcerado nas paredes de sua cela, covas enfileiradas sen-
do abertas em cemitérios esperando para serem ocupadas,
mapeamentos genéticos, dados estatísticos, dados vitais.
Em suma, são apenas partituras musicais de uma marcha
fúnebre, que está sendo executada em um loop ad infinitum.

376
Adagio

Série Ad infinitum. Marcha Fúnebre.


Acrílica sobre papel
404x305mm.

377
Sobre os autores
Sobre os autores
Alex Carvalho
Autor da capa. Fotógrafo. Artista visual. Skatista de rua.
Iniciou sua jornada como arte-finalista gráfico no início dos
anos 90, quando ainda não existia o digital. Em meados dos
anos de 1990 foi programador visual durante a transição do
analógico para o digital em alguns estúdios do Rio de Janeiro
como: Pro Design, ColorOffice, Fotosfera, entre outros. Neste
último, esteve à frente do laboratório digital como gerente de
produção durante nove anos. Do ano de 2007 até o momento
atual dedica-se profissionalmente somente à função de fotó-
grafo, atividade que, assim como o skate de rua, desenvolve
com muito prazer desde a infância. Já atuou como fotojorna-
lista para as agências: AGIF, Gazeta Press, Agência Estado,
Reuters Thompson, Agência O Globo, entre outras. Na foto-
grafia de publicidade, já fez still, produto, editorial, life style
para diversas agências e produtoras de eventos. Gosta de se
comunicar através de imagens! Podem conhecer melhor seu
trabalho no Instagram: @fococruzado – artes visuais e @oldquimica
– skate de rua.

379
Alicia Maria Parreiras Barbosa
Poeta. Médica. Residência em Psiquiatria IRS, FHEMIG e SUS.
Filha de Dunthalmo Monteiro e Terezinha de Jesus Parreiras.
Aluna da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na Fa-
culdade de Medicina foi aluna de Dirceu Greco e Manoel Otávio.
Na Faculdade de Letras da UFMG e na PUC-Minas foi aluna de
Júlio Pinto e Vera Casa Nova. Na FAFICH, na Filosofia da UFMG
e na UFSCAR, foi aluna de Ivan Domingues, Newton Bignotto e
Bento Prado Júnior.

Ana Carolina de Moura Delfim Maciel


Historiadora, coordenadora da Coordenadoria dos Centros e
Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa da Unicamp (COCEN),
presidenta da Cátedra Sérgio Viera de Mello - Unicamp/ACNUR.
Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em
Multimeios da Unicamp, International Fellow do ICMigrations/
França e membro do Comitê Editorial da Editora da Unicamp.
Presidiu a Associação Brasileira de História Oral (biênio 2016-
2018). Atua como diretora de filmes documentários e é autora
de diversos livros e artigos, dentre os quais destaca-se Yes nós
temos bananas. Cinema industrial paulista: a Companhia
Cinematográfica Vera Cruz, atrizes de cinema e Eliane Lage.
Brasil, anos 1950 (Alameda Editorial, 2011).

Ana Maria Marques


Historiadora, professora do Departamento de História da Uni-
versidade Federal de Mato Grosso e do curso de Pós-Graduação
strictu sensu em História, Mestrado e Doutorado, da Universi-
dade Federal de Mato Grosso.

380
Andréa Casa Nova Maia
Historiadora, Professora de História do Brasil e de História da Arte
do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Vice-Presidente da International Oral History Association (IOHA,
2014-2016). Autora, dentre outros, dos livros Ética e imagem
(C/Arte), História oral e direito à cidade: paisagens urbanas,
narrativas e memória social (Letra & Voz, 2019) e Waldir dos
Santos, o sambista operário: história de uma mina de ouro no
tempo de Vargas (Gramma, 2019).

Antônio Edmilson Martins Rodrigues


Historiador e livre-docente em História do Brasil pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é professor da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro e professor da Universida-
de do Estado do Rio de Janeiro. Autor de inúmeros livros e artigos,
dos quais destaca-se A costura da cidade (Bazar do Tempo, 2018).

Antônio Torres Montenegro


Historiador. Professor Titular de História do Brasil da Universi-
dade Federal de Pernambuco. Autor de diversos livros e artigos
publicados em revistas nacionais e internacionais. Autor de vá-
rios livros e artigos dos quais destacam-se História, Metodolo-
gia, Memória (Contexto, 2010) e Travessias: Padres europeus
no Nordeste do Brasil 1950-1990 (Cepe, 2019).

Beatriz Bissio
Historiadora, professora associada do Departamento de Ciência
Política - IFCS/UFRJ, professora do Programa de Pós-Gradua-
ção em História Comparada (PPGHC UFRJ). É autora do livro O
mundo falava árabe (Civilização Brasileira, 2012). Teve longa
atuação internacional como jornalista e recebeu os Prêmios Vla-
dimir Herzog e Golfinho de Ouro 2000 de Jornalismo. Preside o
Espaço Cultural Diálogos do Sul.

381
Beto Bianchi
Artista plástico. Design gráfico, comunicólogo, skatista. Artista
premiado em vários concursos, dentre os quais destaca-se Rio
Arte 1999. Suas últimas exposições incluem #Arte do Fodasse
na Audio Rebel e mostra coletiva Mercadinho Mimosa em 2019.
Rock, prostituição e subúrbio.

Bruna Aparecida Gomes Coelho


Historiadora. Doutoranda em História Social pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desenvolve pesquisas sobre a
história da música popular brasileira.

Célia Regina Pereira de Toledo Lucena


Historiadora, doutora em História Social, pesquisadora do
CERU-USP e membro da comissão editorial dos Cadernos CERU.
Mediadora do grupo de estudos Migrações e Identidade (FFL-
CH-USP). Participou de grupos de estudos transfronteiriços e da
Rede de Investigaciones amazônicos da Universidade Nacional
da Colômbia. Atualmente desenvolve pesquisas sobre migrações
contemporâneas e questões urbanas. Autora de vários livros e
artigos dos quais destaca-se Bixiga Revisitado (Pannartz, 2013).

Celina Lage
Artista transdisciplinar. Professora do Programa de Pós-Gra-
duação em Artes (PPGArtes/UEMG) e dos Cursos de Graduação
da Escola Guignard, Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG). Doutora em Literatura Comparada pela UFMG. Pós-
-doutorado na National & Kapodistrian University of Athens
(Grécia) e na Athens School of Fine Arts (Grécia).

382
Cíntia Vieira da Silva
Filósofa, professora no Departamento de Filosofia da Univer-
sidade de Ouro Preto e presidenta da Associação Brasileira de
Estética. Autora do livro Corpo e pensamento: alianças concei-
tuais entre Deleuze e Espinosa (Editora Unicamp, 2013).

Deivid Valério Gaia


Professor de História Antiga, do Programa de Pós-Graduação
em História Comparada e do Programa de Pós-Graduação em
Letras Clássicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Doutor em História Antiga pela École des Hautes Études
en Sciences Sociales de Paris em cotutela com a Universidade
de São Paulo.

Denise Pirani
Antropóloga, ex-professora da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais. Atualmente é pesquisadora e colaboradora do
Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Linguagem - NIEL/UFPE
atuando em pesquisas sobre as periferias urbanas e a linguagem
semiótica das metrópoles.

Dinah de Oliveira
Professora do ensino superior e pesquisadora na Escola de Belas
Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no curso de
Artes Visuais. Investiga as metodologias artísticas, suas peda-
gogias e os estudos decoloniais. Associada do Corpo Freudiano
do Rio de Janeiro, remete parte de sua produção e pesquisa à
relação entre a arte e a psicanálise.

383
Eduardo Chacon
Escritor e historiador. Autor de contos, crônicas e poemas, pu-
blicou seu primeiro romance, A perna de Sarah Bernhardt, pela
Amazon, em 2019. Professor de História do Brasil República do
Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em
História da UERJ. É pesquisador do Núcleo de Estudos sobre
Biografia, História, Ensino e Subjetividades (Nubhes-UERJ), do
Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi-UFF) e membro
do GT Imagem, Cultura Visual e História da ANPUH-Rio e do GT
Audiovisual, Ensino de História e Humanidades. Com seu nome
de batismo, Carlos Eduardo Pinto de Pinto, é autor de artigos e
capítulos de livros sobre as relações entre história e imagens,
com destaque para a representação cinematográfica do Rio de
Janeiro.

Eduardo Jorge de Oliveira


Professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Universi-
dade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor em Teoria da
Literatura e Literatura Comparada pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), em cotutela com a École Normale
Supérieure (ENS/Paris) com pesquisa sobre o trabalho do ar-
tista Nuno Ramos e do escritor Georges Bataille. Tem vários
livros e artigos, dos quais destaca-se A invenção de uma pele:
Nuno Ramos em obras (Iluminuras, 2018).

Eduardo Sinkevisque
Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Pau-
lo, especialista em Literatura Brasileira Colonial, Letras Portu-
guesas dos séculos XVI/XVII/XVIII, em retórica, em poética e
em arte histórica e sócio-fundador da Sociedade Brasileira de
Retórica. Autor do livro Mar dos dias (Árvore Digital, 2018).

384
Fernando Santoro
Filósofo. Poeta. Professor e pesquisador da Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro. Classicista, investiga as relações entre fi-
losofia e poesia. Publicou: Poesia e verdade (1994), Imaculada
(1999), O poema de Parmênides: da natureza (2006), Arqueo-
logia dos prazeres (2007), Os filósofos épicos: Xenófanes e Par-
mênides (2011); Dicionário dos intraduzíveis (2018).

Francisco Carlos Teixeira da Silva


Historiador, Professor Titular da UFRJ, autor de diversos livros,
dentre eles Atlântico: A História de um Oceano (Civilização Bra-
sileira, 2013), Prêmio Jabuti de 2014.

Flávio de Castro
Escritor. Poeta. Autor de Desaparecida (2016) e A última casa
noturna da manhã (2018) pela Editora Urutau. Cronista do jor-
nal O Beltrano e repórter diletante da Revista Fórum, é profes-
sor de literatura e faz “poesia e arte ladeira abaixo” pelas ruas e
muros da América do Sul sob o codinome Sete Capetas.

Fernando Augusto Silva Lopes


Doutor em Estudos Culturais pela Universidade do Minho, Por-
tugal, com a tese A imagem digital como um signo cultural
contemporâneo. Mestre em Estudos Culturais Contemporâneos
pela Universidade FUMEC. Atualmente é diretor e pesquisador
do Museu Virtual da Lusofonia, da Universidade do Minho.

385
Fernando Viotti
Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela
UFMG com tese sobre a lírica de Drummond e Bob Dylan (2018).
Tem publicado ensaios sobre literatura e experiência, epistolo-
grafia e autores como Guimarães Rosa e Lobo Antunes, dentre
outros.

Giovana Xavier
Historiadora, professora da Faculdade de Educação da UFRJ,
coordenadora do Grupo Intelectuais Negras UFRJ. Autora de
Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por
mulheres negras contando sua própria história (2019). Líder
apoiada pelo Programa de Aceleração e Desenvolvimento de
Lideranças Femininas Negras Marielle Franco do Fundo Baobá
para Equidade Racial.

Gisele Sanglard
Historiadora, pesquisadora em saúde pública da Fundação
Oswaldo Cruz. Coordenadora do PPG em História das Ciências
e da Saúde (Fiocruz) e presidente da Sociedade Brasileira de
História das Ciências. Recebeu o prêmio ABL História e Ciências
Sociais 2009 pelo livro Entre os salões e o laboratório (2008); e
ganhou o 2º lugar no prêmio ABEU (Ciências da Vida) pelo livro
Amamentação e políticas para a infância no Brasil (2017).

Grace Passô
Atriz, dramaturga e diretora. Seus textos teatrais, como Por Elise,
Amores Surdos e Vaga Carne, dentre outros, estão publicados pe-
las editoras Cobogó e Javali além de traduzidos em seis idiomas.
Dentre os prêmios que recebeu como dramaturga estão Shell SP e
RJ, APCA, Questão de Crítica e Prêmio Leda Maria Martins.

386
Guaracy Araújo
Filósofo. Mestre e professor de Filosofia na PUC-MG. É coautor
de Filosofia como esclarecimento (Autêntica, 2014).

João Castilho
Artista. Fotógrafo. Realizou exposições individuais no Museu de
Arte da Pampulha (MG), na Fundação Joaquim Nabuco (PE), no
Palácio das Artes (BH), na Zipper Galeria (SP), na 1500 Gallery
(NY), na Celma Albuquerque Galeria de Arte (BH). Participa re-
gularmente de coletivas no Brasil e no exterior como Elóge du
Vertige (Maison Européenne de la Photographie, Paris, 2012);
Mythologies (Shiseido Gallery, Tóquio, 2012), Encubrimientos,
Photoespaña, Madri (2010), entre outras. É autor dos livros Zoo
(2017), Hotel Tropical (2013), Pulsão Escópica (2012), Peso
Morto (2010) e Paisagem Submersa (Cosac Naify, 2008).

Jorge Cupim
Artista plástico. Radicado no skate, onde afloraram suas pri-
meiras observações, transformadas em esculturas, perfor-
mances, instalações. Prêmio Tatuagens Urbanas com a obra
Gota d’água, escultura feita em Pedras Portuguesas, no Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro (2015); Piskate: Mobiliário
urbano permanente, localizado na Praça XV, Rio de Janeiro
(2015). Participa do livro comemorativo dos 40 anos da EAV
Parque Lage O que é uma escola livre? e no documentário No ca-
minho das pedras, um filme de Marco Antônio Pereira (2020).

387
Juliano Spyer
Antropólogo. Doutor pelo Programa de Antropologia Digital da
University College London (UCL). É pesquisador na behup e tra-
balha no desenvolvimento do Voices, uma metodologia que com-
bina etnografia e o uso criativo de novas tecnologias. Publicou
Mídias Sociais no Brasil Emergente (2018) e Conectado (2007)
e organizou Uma rua chamada Borboletas Psicodélicas (2020)
e Para entender a internet (2008).

Júlio Pinto
Semioticista. PhD em Semiótica pela University of North
Carolina, Chapel Hill, Estados Unidos. Ex-presidente da Asso-
ciação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comu-
nicação Social (Compós). Já foi professor e coordenador do
Programa de Mestrado em Comunicação Social da Pontifícia
Universidade Católica - PUC/MG e professor da Faculdade de Le-
tras da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de diver-
sos livros e artigos, dos quais destaca-se Olhares sobre nossos
agoras (CRV, 2017).

Karla Carloni
Historiadora. Professora de História e do programa de Pós-
-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
Doutora pelo mesmo Programa. É autora de diversos livros e
artigos, dos quais destacam-se A República no Brasil (Eduff,
2019), Marechal Henrique Teixeira Lott: a opção das esquer-
das. Uma biografia política. (FAPERJ/Garamond, 2014) e
Forças Armadas e Democracia no Brasil: o 11 de novembro de
1955 (FAPERJ/Garamond, 2012).

388
Lina Maciel Pereira de Souza
Poeta. Estudante. Modelo Ford Models. Estuda a descolonização
do feminino, pesquisa a cultura dos povos originários e medicinas
da terra. Estudou no Teatro Escola Macunaíma.

Lise Sedrez
Historiadora, professora associada de História da América no
Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Participa do projeto multidisciplinar Occupy Climate Change!,
coordenado pelo Laboratório de Humanidades Ambientais do
Real Instituto de Tecnologia, Estocolmo, Suécia. Coordenadora
do PPGHIS-UFRJ. Doutora em História da América Latina pela
Stanford University.

Luluxa
Pseudônimo de Luciana Tanure. Jornalista. É diretora de cria-
ção da Access Produções Ltda. e editora na Quixote + Do Edito-
ras Associadas. Atua no campo das artes integradas, em espe-
cial na Literatura e nas Artes Visuais.

Luciene Carris
Historiadora. Doutora em História pela UERJ, colaboradora do
Blog Textão e do podcast Sarau da Casa Azul e um dos idea-
lizadores do canal Entreconexões, no YouTube, voltado para
a difusão cultural através de entrevistas e para elaboração de
documentários. Autoria de diversos livros e capítulos de livros,
dentre os quais destacam-se, em coautoria com Andréa Casa
Nova Maia, os livros: Lições do tempo (7Letras, 2016) e Russos
em revista (Gramma, 2018).

389
Lucília de Almeida Neves
Historiadora. Poeta. Pintora. Ex-professora da UFMG, da
PUC-Minas e da UnB. Foi vice-presidente da Associação Nacio-
nal de História (ANPUH) e consultora ad hoc da CAPES, CNPq e
FAPESP. Entre suas premiações se destacam a Medalha de Hon-
ra da Inconfidência, o título de cidadã honorária de Belo Hori-
zonte e o Prêmio da União Brasileira de Escritores na categoria
História e Biografia. Autora de diversos livros e capítulos de li-
vros. A lista é tão imensa, que é melhor nem citar.

Marcelino Freire
Escritor. Nasceu em 1967 em Sertânia, Sertão de Pernambuco.
Vive em São Paulo, vindo do Recife, desde 1991. Escreveu, entre
outros, Angu de sangue (Ateliê Editorial, 2000), Contos negrei-
ros (Record, também publicado na Argentina e no México) e Nos-
sos ossos (Record, também publicado em Portugal, na França e
na Argentina). Em 2004, criou e organizou a antologia Os cem
menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial). Para sa-
ber mais sobre o autor, acesse o blog Ossos do Ofídio: marcelino-
freire.wordpress.com.

Márcia Maria Menendes Motta


Historiadora, professora do Departamento e do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
Organizou o Dicionário da Terra, publicado em 2005 e que ficou
em 2º lugar no Prêmio Jabuti, categoria Ciências Humanas, em
2006. Atualmente é presidenta da ANPUH Nacional para o biê-
nio 2019/2021.

390
Márcio Seligmann-Silva
Professor titular de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador
do CNPq. Autor de diversos livros, dentre eles Walter Benjamin:
romantismo e crítica poética (vencedor do Prêmio Mario de
Andrade de Ensaio Literário da Biblioteca Nacional em 2000)
e Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (Prêmio
Jabuti na categoria Melhor Livro de Teoria/Crítica Literária
2006).

Márcio Venício Barbosa


Professor de Língua e Literatura Francesa da Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Norte, onde ocupa o cargo de Secretário
de Relações Internacionais. Pesquisa a obra de Roland Barthes e
participou da organização dos livros Maurice Blanchot, Interar-
tes, Roland Barthes plural e Novamente Roland Barthes.

Marieta de Moraes Ferreira


Historiadora, professora emérita do Instituto de História da
UFRJ. Atualmente é coordenadora do programa FGV Ensino Mé-
dio; Diretora executiva da Editora FGV. Já exerceu cargos em
associações de história oral, como a International Oral History
Association (IOHA). Membro do conselho editorial de diversas
revistas nacionais e internacionais.

391
Marilá Dardot
Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Artista visual cuja atenção se concentra nas relações
entre o sujeito, a linguagem e seus suportes (a palavra, a página,
o livro, a parede). Seu trabalho explora os termos desses rela-
cionamentos na literatura, mídia impressa e discurso político,
fazendo uso de várias mídias, como vídeos, fotografias, escultu-
ras, ações e instalações. Entre inúmeras exposições individuais
e coletivas, participou da XIII Bienal de Havana, Cuba; Flori-
pesfera I Bienal Cultural Transatlântica, São Tomé e Príncipe;
21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil; Bienal de
Coimbra Anozero’19, Portugal; e das 27ª e 29ª edições da Bienal
de São Paulo.

Mário Alex Rosa


Natural de São João Del-Rei. Licenciado em História pela Uni-
versidade Federal de Ouro Preto, mestre e doutor em Letras -
Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. É autor
dos livros: ABC futebol clube (Aletria, 2015), Formigas (Cosac
Naify, 2013), Ouro Preto – poemas (Scriptum, 2012) e Via Férrea
(Cosac Naify, 2013). Professor universitário.

Nuno Ramos
Escritor, compositor e artista plástico. Formado em Filosofia,
ganhou o Prêmio Oceanos pelos livros Ó (2009) e Junco (2012),
ambos pela Editora Iluminuras. Em 2019, publicou o livro de
ensaios Verifique se o mesmo, pela editora Todavia. Recebeu
o Grand Award da Barnett and Analee Newmann Foundation,
pelo conjunto da obra.

392
Paolo Mandatti (Suhadolnik)
Artista visual, figurinista e cenógrafo formado pela Escola de
Belas Artes da UFMG. Entre seus principais trabalhos na área
de moda e design estão marcas como Ronaldo Fraga, Vide Bula,
Chilli Beans, Patachou, Samsung e Tok&Stok. Atualmente tra-
balha como Educador Cultural e Figurinista/Cenógrafo do Pro-
grama Fábricas de Cultura do Governo de São Paulo.

Priscila Heeren
Artista e pesquisadora, nascida no Rio de Janeiro, vive e tra-
balha em Belo Horizonte. Mestre em Artes Plásticas, Visuais e
Interartes (EBA/UFMG, bolsista PROEX/CAPES), especialista
em Gestão Cultural (UNA-BH); graduada em Artes Plásticas
(Escola Guignard/UEMG) e em Letras (FALE/UFMG).

Quincas Borba, o Yorkshire


É o cachorro de Flávia Ribeiro Veras. Professora da rede privada
de ensino no Rio de Janeiro, doutora em História, Política e Bens
Culturais pelo CPDOC/FGV. Suas áreas de pesquisa são: mercado
das diversões, gênero/sexualidade e transnacionalidade.

Rafael Climent-Espino
Doutor em literatura latino-americana pela Purdue Universi-
ty, possui mestrado em literatura hispânica pela Universida-
de de Granada (Espanha). É professor associado de espanhol
e português na Baylor University. Sua pesquisa se concentra
na narrativa latino-americana dos séculos XX e XXI. Dentro
dessa vasta área, trabalha com questões ligadas à materiali-
dade do texto e com o papel da comida no romance latino-a-
mericano. É autor de Del manuscrito al libro. Materialidad
del texto y crítica genética en la novela iberoamericana:
1969-1992 (2017), e organizador do livro Food, Texts and
Cultures in Latin America and Spain (2020).

393
Rafael Mendonça
Jornalista. Fundador e Editor de O Beltrano. Cuidador da pró-
pria vida. Mexe com uns trem de política e uns trem de música.

Rebeca Gontijo
Historiadora, professora do Departamento de História, do Pro-
grama de Pós-Graduação em História e do PROFHISTÓRIA da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutora em His-
tória pela Universidade Federal Fluminense. Autora do livro O
velho vaqueano: Capistrano de Abreu: memória, historiografia e
escrita de si (7Letras, 2013).

Regina Beatriz Guimarães Neto


Historiadora, professora associada do Departamento de História
e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Pernambuco. É vice-presidente da Associação Nacio-
nal de História Oral (ABHO). Autora de Cidades da mineração -
memória e práticas culturais: Mato Grosso na primeira metade
do Século XX; A lenda do ouro verde. Políticas de colonização
no Brasil Contemporâneo e, em coautoria com Angela de Castro
Gomes, Trabalho escravo contemporâneo: tempo presente e usos
do passado.

Regina Helena Alves da Silva


Historiadora, Cientista social e política, doutora em História So-
cial pela USP. Professora associada da Universidade Federal de
Minas Gerais, atua nos programas de pós-graduação em Histó-
ria e em Comunicação Social. Coordenadora do Centro de Con-
vergência de Novas Mídias - CCNM-UFMG e vice coordenadora
do INCT de Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial.
Autora de diversos livros e capítulos, dos quais destaca-se Ruas
e Redes, dinâmicas dos protestos BR. (Autêntica, 2014)

394
Ricardo Oriá
Historiador. Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo,
realizou estágio pós-doutoral em História na Universidade Fede-
ral Fluminense (UFF) e atualmente é Consultor Legislativo da
área de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados. É autor
de artigos sobre patrimônio histórico e ensino de história em
revistas e coletâneas e de livros, dos quais destaca-se O Brasil
contado às crianças: Viriato Corrêa e a literatura escolar brasi-
leira (Annablume, 2011).

Ricardo Santhiago
Historiador, comunicólogo, professor da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp). Autor e organizador de alguns livros, dos
quais se destacam Memória e diálogo: Escutas da Zona Leste,
visões sobre a história oral e Solistas Dissonantes: História
(oral) de cantoras negras. Editor e produtor do site e canal no
YouTube A música de.

Rita Lages Rodrigues


Historiadora, professora adjunto do Departamento de Artes
Plásticas da Escola de Belas Artes da UFMG. É autora do li-
vro Entre Bruxelas e Belo Horizonte: itinerários da escultora
Jeanne Louise Milde. Atualmente lidera o Grupo de Pesquisa
Estopim, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares de Patrimônio
Cultural, é cocoordenadora do Laboratório de Curadoria Bisi Silva
e participa do Grupo de Pesquisa Centro de Convergência de
Novas Mídias.

395
Rodrigo Turin
Historiador, Professor da Escola de História da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro. Autor de vários livros e
artigos, dos quais destacam-se Tessituras do tempo: discurso et-
nográfico e historicidade no Brasil oitocentista (Eduerj, 2013)
e Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neo-
liberal (Zazie, 2019).

Roberto Delpiano
Fotógrafo. Designer. Artista ítalo-brasileiro, gosta de viver, é
amante de leitura e criação e desenvolvimento de ideias. E, quiçá,
um pouco filósofo.

Rogério Manata Fernandes Távora


Historiador. Bacharel Licenciado pela PUC-MG, Especialista em
História da Ciência UFMG, Mestre em História pelo City College
of New York. Atualmente trabalha como intérprete da Suprema
Corte do Estado de Nova Iorque.

Rosalba Lopes
Historiadora, doutora em História pela Universidade Federal
Fluminense, com experiência no magistério superior, no ensino
médio e na educação de jovens e adultos (EJA), onde conquistou
o primeiro lugar do Prêmio Paulo Freire, em 2004. Atuou em
projetos voltados para o desenvolvimento social, coordenando
pesquisas e projetos no Instituto Inhotim, em Brumadinho, no
campo do direito à memória e também a implantação e o fun-
cionamento da Comissão de Bolsas e da Comissão de Ética em
Pesquisa de Inhotim.

396
Sabrina Sedlmayer
Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Sócia benfeitora do Real Gabinete Portu-
guês de Leitura, no Rio de Janeiro, desde 2017. Autora de alguns
livros, como Jacuba é gambiarra, Ao lado esquerdo do pai e
Lavoura arcaica: um palimpsesto.

Samantha Viz Quadrat


Historiadora, professora de História da América Contemporânea
da Universidade Federal Fluminense, onde atua no Laboratório
de História Oral e Imagem (LABHOI) e no Núcleo de Pesquisa
História e Ensino das Ditaduras (NUPHED). Autora de Não foi
tempo perdido: os anos 80 em debate e Caminhos cruzados:
história e memória dos exílios latino-americanos no século XX.

Sofia Soft
Cronista, é o mais novo alter ego do escritor Nelson de Oliveira, que
atualmente divide seu tempo entre a prática literária e a coordena-
ção de oficinas de escrita criativa. Nelson publicou diversos livros,
entre eles os romances Gigante pela própria natureza (finalista
do Prêmio Kindle de Literatura), Poeira: demônios e maldições e
Subsolo infinito; as coletâneas de contos Vinte e um, Às moscas,
armas! e Naquela época tínhamos um gato; e a coletânea de arti-
gos sobre escrita criativa Ateliê de criação literária: prosa & verso,
teoria & exercícios, e-book disponível na plataforma da Amazon.
Mantém uma página mensal no jornal Rascunho e venceu duas
vezes o Prêmio Casa de las Américas, em 1995 e 2011.

397
Teodoro Rennó Assunção
Professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais, doutor em Histoire et Civilisations pela École des
Hautes Études en Sciences Sociales. Coeditor de Ensaios de re-
tórica antiga, organizador de Isaura Pena e autor de Ensaios
de escola, Autociografias e Extra-vacâncias (ensaios).

Toti Meer (Luis Salas van der Meer)


Artista visual, professor e pesquisador independente. Estudou
Artes Visuais (UPLA) e Iconologia (PUCV). Possui estudos em
Engenharia de Construção Naval (UACH), Desenho Industrial
(UV) e Pedagogia das Artes (UPLA). Trabalhou no desenvolvi-
mento e produção de várias obras interativas de percepção vi-
sual no Museu Interativo Mirador (MIM). Dirigiu várias oficinas
de arte contemporânea na Escola de Pedagogia da Universidade
de Viña del Mar. Colaborou em vários projetos de arquitetura
e design. Seus trabalhos participaram de inúmeras exposições
pessoais e coletivas no Chile e no exterior.

Valnei Pereira
Geógrafo cultural e urbanista, mestre em Planejamento Urbano
e Regional pelo IPPUR/UFRJ e doutor em Arquitetura e Urba-
nismo pela FAU/USP. Com 20 anos de experiência, foi professor
assistente e pesquisador da PUC-Minas e atua como consultor
na área ambiental realizando estudos e análises sociais deriva-
das da implantação de grandes projetos no Sul Global (Brasil,
América Latina e Caribe, África Subsaariana e Oriente Médio).
Mineiro, reside em São Paulo e é atualmente Líder de Desenvol-
vimento Socioterritorial da Golder Consultoria.

398
Vera Casa Nova
Tradutora, poeta e ensaísta. Professora aposentada da Faculdade
de Letras da UFMG. Doutora em Ciência da Semiologia pela UFRJ.
Pós-doutora pela École de Hautes Etudes en Sciences Sociales. Au-
tora de diversos livros e artigos, dos quais destacam-se Lições de
almanaque (Editora UFMG), Poemas da página e da tela (C/Arte),
Rastros (7Letras) e Fricções: Traço, olho e letra (Editora UFMG).

Vitor Leandro de Souza


Historiador, doutorando em História Social da Cultura pela Pon-
tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Autor do livro
Mercado central: modernidades e resistências cotidianas no
Rio de Janeiro das primeiras décadas da república.

Wolmin Dahgrota
Designer e artista multidisciplinar. Profissional de criação bra-
sileiro com mais de 15 anos atuando no mercado de design,
publicidade, moda, cinema e literário. Desenvolve projetos de
branding, identidade visual, publicidade e arte. A escola de arte
é a vida que o cerca, sua motivação é a prosa visceral do ser
humano animal em meio a uma sociedade decadente! Apaixo-
nado pela vida, trabalha com linhas orgânicas a partir do erro,
percebendo que na essência não existem ângulos nem retas, a
construção de uma realidade é mera casualidade. Seu desenvol-
vimento artístico é reflexo de sua evolução pessoal, uma cons-
tante “metamorfose ambulante”! O resto fica por conta do ponto
de vista.

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