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RESISTERE RESISTENTIA
LETRA POETICA
8 MÃOS D’OURO
E LÍNGUAS DE PRATA MIUDINHA 36 ELEGIA SOBRE
Alexandra Duarte
28 MALDITAS O TEMA DA ROSA
Nuno Júdice
12 A ROSA
E A MARGARIDA
COMPARAÇÕES
Cristina Ferreira Grego
37 ODOMISTÉRIO
Ana Carvalho
32 ROSABELA POEMA
Maria José Esteves
14 AS PALAVRAS
NÃO SAEM
Teresa Dangerfield
38 DESCORTINANDO
PALAVRAS
Carolina Cordeiro
SALTANDO Maria Luísa Francisco
16 A CONSCIÊNCIA
TAMBÉM CHORA DO PARÊNTESIS 39 PROTESTO
Cláudia Passarinho
40 SONHOS
Ana Candeias
DE AMOR
Maria Silvéria dos Mártires
20 O PLANTADOR
DE PALAVRAS
42 LER É CONHECER.
Inês Pinto ESCREVER É ETERNIZAR DA PALAVRA
24 O SOÇOBRO
Ana F. Pinheiro
À FORÇA
E A PROCEDÊNCIA
Patrícia Lameida 44 ODAPRAZER
ESCRITA 52 A(MAIS
VIDA
OU MENOS)
Carmo Marques
Júlia Domingues
GAVETA 46 CAFÉ COM LETRAS
E POESIA VADIA 54 ESCREVER ANTES
CRIATIVA Ermelinda Toscano QUE A TINTA SEQUE
Ana Costa
62 AHUMANIDADE
ARTE COMO
48 ALVORADA
Gabriela Pacheco 56 DA PALAVRA
À FORÇA
David Roque
50 BIBLIOTECAS, UM MEIO Manuela Vieira
LÍNGUA
DE DEMOCRATIZAÇÃO
DO ACESSO AOS LIVROS 58 SE PASSASSE UM FILME
RETRATANDO A TUA VIDA
MÁTRIA E À CULTURA
Isaura Bento Correia
Helena Gregório
64 PORQUE É QUE UM
REVISOR DE TEXTOS 60 LEITURA
Margarida Constantino
DEVE RESISTIR? BESTIÁRIO
Ana Salgado
ARDILOSO PALAVRA
LUSOFONIAS 72 AVERMELHAS
VELHA DAS FITAS
DE LEITOR
66 TIMOR, O PARAÍSO OU
O PAÍS A PRETO E BRANCO
Porventura Correia
70 ADESEGUNDA VIDA
OLIVE KITTERIDGE,
DE ELIZABETH STROUT
Luís Cardoso
SENTENTIA Tânia Ganho
CRÓNICA 74 CHEGADO
O FIM
A BIBLIOTERAPEUTA
DO VIAJANTE
Analita Alves dos Santos
76 OE POSSÍVEL
MILAGRE FÁCIL SUGERE
68 DEBAIXO
DO VULCÃO James McSill 82 BIBLIOTERAPIA
O QUE É
João Ventura
80 LITERATURA:
Sandra Barão Nobre
A VIAGEM INFINITA
Lénia Rufino
Ficha Técnica
Diretora: Analita Alves dos Santos | Editora: Diana Almeida | Capa, design e paginação: Isa Silva | Revisão: Ana Candeias, Ana
Carvalho, Carmo Marques, David Roque, Teresa Dangerfield | Nº de inscrição na ERC: 127573 | Propriedade: Analita Alves dos
Santos | Sede: Rua dos Missionários, Lote 11 L 8500-309 Portimão | Sede da redação e da Editora: Rua dos Missionários, Lote 11 L
8500-309 Portimão | analita.santos@oprazerdaescrita.com
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Todos os textos são publicados segundo o Acordo Ortográfico em vigor, excetuando-se os de alguns cronistas.
EDITORIAL ANALITA
ALVES DOS SANTOS
DIANA
ALMEIDA
Analita Alves dos Santos prazer pela leitura, uma página de cada vez.
Assumimos as causas da promoção da escrita,
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A LITERATURA PELOS TEMPOS
ANAÏS NIN
E HENRY MILLER FILIPA MELO
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contínua», mais «romance literário» do que (traduzido por Luiza Neto Jorge, nos anos
documento de uma paixão literata. É uma pena 80, para a Bertrand; reeditado pela Bico de
que, como diz, tenha deixado de parte «longas Pena em 2006), livro que defendeu ter escrito
discussões acerca de Dostoiévski, Proust, Joyce, apenas por questões de sobrevivência. Miller é
D. H. Lawrence; críticas pormenorizadas feitas identificado sobretudo pela autobiografia crua
ao trabalho em curso um do outro; reflexões e pelo realismo brutal (para muitos, entendido
acerca de filmes, livros, e assim por diante, ainda como mera ‘obscenidade’) de Trópico de
frequentemente encaixadas em cartas de vinte Cancer (primeiro publicado em Paris, em 1934,
ou mais páginas dactilografadas». O legado de e que muito deve ao apoio de Anaïs) ou Trópico
afirmação feminina de Nin supera a mera autoria de Capricórnio (1939). Pouco é reconhecido do
de literatura erótica e os epítetos agressivos esforço técnico das suas especulações quase-
que lhe colaram inclinações para a ninfomania, filosóficas, dramas simbólicos e associações
a poligamia, a bissexualidade ou, mesmo, surrealistas, presentes também na trilogia de
o incesto. Miller foi bem mais do que um «Rosa-Crucificação» (Sexus, 1949, Plexus, 1953,
vagabundo boémio e libertino, predador sexual Nexus, 1960).
e autor de literatura durante anos banida nos A biógrafa Deirdre Bair definiu Anaïs Nin como
EUA como de matriz pornográfica. O equívoco «uma grande autora menor». Igualmente com
feito de lugares-comuns que envolveu durante dificuldade Henry Miller será alguma vez aceite
décadas o nome e a relação dos dois pode como autor relevante para os cânones literários
até derivar da publicação póstuma da versão mais exigentes. Produto da sua época, os dois
não expurgada dos diários de Anaïs e ter sido escritores não resistiram à prova que o tempo
reforçado pelo sucesso do filme Henry & June fez do resultado literário daquilo que mais
(Philip Kaufman, 1990, com Maria de Medeiros confiavam possuir: no caso dele, «talento»,
no papel da escritora) ou da muito pouco no dela, «instintos». Cartas de Amor mostra-
reverente biografia Anaïs Nin, assinada, em 1995, nos, antes, a prevalência mútua da análise
por Deirdre Bair. autobiográfica sobre qualquer outra motivação
Aquilo a que Stuhlmann chama «material ou conquista literárias, com exemplo máximo
marginal à história pessoal» é, afinal, o mais em O Diário de Anaïs Nin (editado pela
interessante nesta correspondência compulsiva Bertrand, com introdução de G. Stuhlmann),
(só em 1932, ano em que se conheceram, registo que a escritora manteve dos 11 anos de
Miller endereçou mais de 900 páginas a Anaïs). idade até quase à morte. A herança de Nin e
Um diálogo intelectual entre um homem e Miller concentra-se na força e originalidade da
uma mulher num momento histórico muito investigação de um passado individual, centro
importante, a batalha de explicação mútua da criação de cada um deles. Uma espécie de
entre duas pessoas que, muitas vezes em autoetnografia, de esforço de recuperação do
divergência teórica, ambicionam acima de tudo «tempo perdido» («Está tudo escrito em pedra»,
escrever uma literatura inovadora e apurada. O diz Miller), cuja dimensão mais íntima nos é
que as tornaria indestrutíveis, segundo Anaïs, dada a partir de um enredo de amor, entre duas
era o facto de «no [seu] âmago, [estar] um pessoas sem medo do ‘sexo’ e com fome de
escritor, não um ser humano». Na verdade, liberdade perfeita, porque criativa.
concretizaram mais percursoras tentativas de
automaterialização do corpo mental e físico
através da escrita do que um banal enredo com
várias triangulações picantes. A pedido da Autora, este texto não segue
Anaïs é talvez mais famosa pelas páginas a grafia do Novo Acordo Ortográfico
eróticas de Passarinhos ou de Delta de Venus da Língua Portuguesa.
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QUESTIONÁRIO DE PROUST A...
FILIPA MELO
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10 | O que menos gosta na sua aparência? 21 | O que mais valoriza nos seus amigos?
Os joelhos. A generosidade, o humor.
11 | Que pessoa viva mais despreza? 22 | Quem são os seus escritores favoritos?
Os extremistas. Assim, de cabeça: Shakespeare, Dante, Keats,
Dickens, Baudelaire, Tolstoi, Rimbaud, Yeats,
12 | Qual a característica que mais aprecia em Lorca, Withman, Pirandello, Proust, Bashevis
homens? Singer, Clarice Lispector, John Updike, Iris
A generosidade. Murdoch, Saul Bellow, John Banville, Martin Amis,
Javier Marías, …
13 | Qual a característica que mais aprecia em
mulheres? 23 | Quem é o seu herói da ficção?
A generosidade. Dom Quixote.
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PER FICTA, RESISTERE
MÃOS D’OURO
E LÍNGUAS
DE PRATA ALEXANDRA DUARTE
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*** ou dois a cada quatro ou cinco gerações, são
seres excepcionais, considerados abençoados
O corpo fora encontrado pelos primeiros raios — prostrou um joelho na areia — e agora está
da aurora, que abrilhantavam a areia negra da morto. Sabe-se lá se haverá algum outro por aí.
praia onde repousava. Chamadas as autoridades
competentes, vieram mestre e aprendiz. Logo ***
se debruçaram sobre o corpo: calças de linho
escuras, túnica branca, colar de torcedura de Efectuadas as diligências necessárias, o corpo
linho, de onde pendia uma pena. Era calvo e o é retirado e levado pelo coche policial, para
rosto apresentava-se sereno. O braço direito, que, posteriormente, se efectue a autópsia.
dobrado, apoiava a mão sobre o peito, o braço O inquérito prossegue. Os ajudantes oficiais,
esquerdo estava estendido ao longo do corpo e zelosos na investigação, através dos contactos
a mão cerrada com força agarrava parte de um familiares que estavam num dos cadernos,
pequeno e amarrotado caderno. perceberam que o Perpetuador estava longe do
— Deve ser importante, para tê-lo agarrado seu burgo. Questionavam-se, agora, sobre o que
dessa maneira, na sua última hora — observou o o teria trazido tão longe. Tentavam identificar
mestre. o edifício da fotografia e, sobretudo, queriam
— Vai ser complicado recuperá-lo. aceder ao caderno que a mão agarrava.
Ambos pensavam o mesmo, como é que iriam
tirar o caderno de dentro de uma mão de ouro O olho do aprendiz agigantava-se através da
maciço? lupa com que observava a fotografia.
— Um Mão d’Ouro, mestre, provavelmente obra — Mestre, é mesmo um hospital, aqui neste
de algum Inquisidor. canto vê-se uma ambulância e tem qualquer
A alguns metros do corpo estava uma mala coisa escrita, acho que o podemos encontrar.
com pertences do falecido: um caderno com E, de facto, após algumas verificações e
anotações variadas, outro com o registo das telefonemas feitos, puderam identificar a
famílias para quem perpetuava a história e um edificação de aspecto apalaçado.
calendário com marcações futuras. Havia ainda
uma fotografia, com data de dois dias atrás,
de um edifício apalaçado que parecia ser um
hospital. Enquanto observava os objectos, o
mestre foi surpreendido por um pequeno grito
do seu ajudante. Virou-se e viu o rapaz chocado
a olhar para o rosto do defunto.
— O que foi rapaz? Parece que viste um
fantasma. «Ao recém-nascido
Boquiaberto, apontava para a boca do falecido. nota-se-lhe um brilho
— Prata, mestre, prata!
O homem acercou-se e quase deu um salto na mão pequenina
ao ver a língua reluzente no interior da boca ou na minúscula
ligeiramente entreaberta.
— Mãos de ouro e língua de prata, mestre? língua, que grita
O ancião franziu o sobrolho, os olhos pensativos
a sua chegada ao
fitaram o mar.
— Não é do teu tempo, nunca deves ter mundo.»
conhecido nenhum; eu tão pouco, mas lembro-
-me, em criança, de ouvir falar. Aparecem um
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PER FICTA, RESISTERE | MÃOS D’OURO E LÍNGUAS DE PRATA Alexandra Duarte
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«E agora,
pelo amor
de Deus,
Façam-me
o funeral de
uma vez!
Afinal todo
o rei merece
o seu
descanso. »
PER FICTA, RESISTERE
A ROSA
E A MARGARIDA ANA CARVALHO
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— Florêncio, quero incumbir-te de fazeres o mais
belo jardim alguma vez visto! — disse o Rei.
«Basta seres quem
— Sua Majestade, é com muita honra e orgulho tu és. É evidente
que recebo esse desafio, mas as plantas levam
o seu tempo a crescer e por isso é necessário que gostamos de
ter paciência para que elas desabrochem. ser aceites pelos
— Sim Florêncio, estou ciente disso. Serve-me
de treino para praticar a virtude da paciência. nossos colegas
O jardineiro foi plantando árvores e plantas, foi
semeando flores e o tempo foi passando.
e amigos.»
Certo dia, o Rei pediu ao jardineiro que
o levasse ao jardim para ver o progresso
alcançado até àquele momento.
Havia um canteiro de roseiras cujos botões
definhavam. O Rei, curioso, perguntou a
-nos situações idênticas. Não precisas de gostar
Florêncio o que se passava com aquelas flores.
de futebol nem de jogar futebol para te sentires
Florêncio respondeu dizendo que, por mais que
popular. Basta seres quem tu és. É evidente que
conversasse com os botões de rosa pedindo-
gostamos de ser aceites pelos nossos colegas
lhes para darem o seu melhor, para mostrarem
e amigos. Mas, não gostar das mesmas coisas
a sua essência, todo o seu perfume de rosas não quer dizer que não gostem de nós. Antes
vermelhas, elas teimavam em querer ser de mais, devemos ser livres para afirmarmos
brancas como as margaridas. Por mais que se os nossos gostos e a expressão individual.
esforçasse em demonstrações de todo o seu Mesmo que alguém critique, ou discorde, não
afeto pela cor vermelha e prazer em aguardar há problema. É a opinião dessa pessoa e a
pelo seu aroma, elas mantinham-se irredutíveis sua opinião não te define, não é quem tu és.
na determinação de quererem nascer brancas. Se a opinião for expressa com agressividade,
— As margaridas, como estão? perguntou o Rei. como se fosse a única verdade possível, podes
— As margaridas seguem serenas no seu responder com gentiliza que aceitas que
percurso de crescimento, de um verde intenso; essa pessoa tenha opinião diferente da tua.
encheram-se de flores com toda a sua força — Talvez possas contribuir para que essa pessoa
respondeu-lhe Florêncio. possa refletir sobre algo em que nunca tinha
— Por que razão as rosas vermelhas queriam ser pensado antes: que não há uma só verdade, há
brancas avô? — interrogou João. perspetivas e gostos diferentes e está tudo bem
— Sabes João, o jardineiro explicou ao Rei que na mesma.
as rosas estavam tão determinadas em ser — Já percebi avô, é como aquele anúncio na
perfeitas, em agradar ao Rei, pretendendo ser televisão: «se gostássemos todos do amarelo, o
as suas prediletas, que queriam ser brancas — a que seria do verde», não é?
cor que achavam ser a sua preferida. — Isso mesmo, cada um com a sua expressão e
Perplexo o Rei exclamou: beleza individual. E agora? já te sentes melhor
— Cada um tem a sua beleza natural! pensando no que aconteceu na escola com o
— Sabes João — continuou o avô — as Gaspar?
margaridas estavam muito felizes por estarem — Sim avô. Obrigado pela ajuda. Amanhã já vou
naquele jardim, e deram tudo para serem quem dizer à Mafalda que é bonito gostar de dançar,
nasceram para ser. Brancas, luminosas e alegres. como é bom gostar de jogar à bola ou brincar
Já as rosas, também elas de uma beleza singular, com legos. O que é bom é cada um fazer o que
não aceitaram a sua natureza e queriam ser gosta e ser feliz.
como as margaridas. Na vida real acontecem- —Maravilhoso, João.
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PER FICTA, RESISTERE
AS PALAVRAS
NÃO SAEM CAROLINA CORDEIRO
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humanidade. Naquele então, o mundo rendeu- «Mas a sorte,
se a seus pés, as extravagâncias desse mundo
foram-lhe concedidas e os elogios subiram ao quando vem,
éter. Ascenderam os gabos e a sua importância. nunca vem
Os louvaminhas, esses voltaram à terra numa
correria, mas ele não. Permaneceu na sua por inteira.»
passarola, à espera do novo poiso. Mas o
passado não se apaga, esquece-se, talvez. Ele
fora esquecido, sabia. Mas também sabia que
seria lembrado, assim que acabasse o seu novo
empreendimento, assim que encontrasse aquela
palavra que tanto procurava.
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PER FICTA, RESISTERE
A CONSCIÊNCIA
TAMBÉM CHORA CLÁUDIA PASSARINHO
16
desejo outros por desprezo, que conduzem o rubro do lado de fora da janela, os prémios
futuro e o modo como este se desenrola. traziam consigo uma mistura de desgosto e
Coçou o braço, o pescoço e uma perna a um desilusão. Há uma certa nostalgia quando se
ritmo rápido e doloroso. No jovem morava uma pensa na infância. Memória do passado que nos
comichão canibal, nascida num sangue impuro diz quem fomos, quem desejávamos ser e no
onde a dependência se igualava às manchas que nos tornámos.
das paredes que cresciam no espaço como O pulso latejou junto da tatuagem de arame
trepadeiras. farpado feita contra vontade. Recordou o dia
As lágrimas começaram a soltar-se. Talvez a em que enodoou o corpo sujeitando-se a um
esperança se insubordinasse pelo choro. Afinal grau de perigosidade e submissão elevado. De
quem nada tem nada pode dar, talvez ainda não cada vez que a engenhoca artesanal, controlada
fosse um poço seco. pelos companheiros, se introduzia debaixo
da epiderme, lambuzava-se na fragilidade
Remexeu-se dentro do macacão esverdeado. O humana; «maricas! Sobrevivem aqueles que se
tecido pesava-lhe nos ombros, sugerindo que adaptam», lembrava-se de ouvir alguém dizer
até este dispensava a convivência. Só poderia no meio de gargalhadas.
estar num sonho. Há quanto tempo não se Observou os pés destapados, com máculas
trajava assim. arroxeadas entre os dedos e encolheu-se para
Uma das lágrimas caiu no chão, devolvendo os esconder de si.
limpeza e brilho ao soalho no local onde agora Chegava da cozinha o som da água corrente,
secava. Ping, ping, ping, ping, seguiam-se uma os passos arrastados da mãe, o abrir constante
atrás da outra. À medida que caíam, o espaço da porta do frigorífico. Vozes provenientes do
começava a luzir. Com a palma da mão formou rádio falavam de um Deus prometedor «Comerás
uma concha reunindo fé em formato de gotas, livremente o fruto de qualquer espécie de
lançou várias contra uma mancha fétida na árvore que está no jardim; contudo, não
parede, limpando-a. O espaço aclarou. Se não comerás da árvore do conhecimento do bem
tivesse sido o forte prurido que lhe nasceu junto e do mal, porque no dia em que dela comeres
aos hematomas do braço, não teria despertado. com toda a certeza morrerás!»
Levou alguns minutos a perceber onde estava A mensagem condenatória fazia crescer um
deitado. O espaço era familiar, mas parecia-lhe ímpeto de cólera. «Promessas! Promessas! Tantas
coisa do passado. Lambia a língua encortiçada, promessas! Qual morte qual quê?!» — pensou.
tentando descobrir a presença do próprio
corpo, quando viu uma manta tapando a
miséria de pernas, a antítese dos troféus
ordenados na prateleira do antigo quarto.
«Campeonato regional, primeiro prémio,1996. «No jovem morava uma
Oeiras Open,1997. Hungria, Espanha, França:
comichão canibal, nascida
Primeiro lugar…» Prémios que marcaram anos
de bate-bolas, pés enfiados em pó de argila, num sangue impuro onde a
que tingiram a inocência de Ismael de laranja.
dependência se igualava às
Depois veio a pressão, duelos que saquearam
a juventude, viagens longas, camas alheias ao manchas das paredes que
destino, ataques de fúria incompreendidos.
Uma raquete enfiada por um crânio adentro.
cresciam no espaço como
Uma morte! Uma primeira prisão, que se tornou trepadeiras.»
num encarceramento repetido e sem retorno.
Naquele final de tarde, que oferecia um vento
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PER FICTA, RESISTERE | A CONSCIÊNCIA TAMBÉM CHORA Cláudia Passarinho
«Para Ismael,
Levantou-se estonteado, pronto para entrar de colocar o futuro
rompante na cozinha e calar a língua bifurcada
que invadia os ouvidos da mãe. Por entre a nas mãos de Deus
porta entreaberta, vislumbrou-a adormecida não era rentável,
em palavras bíblicas, mal a reconheceu tão
pequena, contida naquela carcaça grisalha. limitava-se a ser
Cortava legumes, controlando com perícia
o movimento da faca. Para Ismael, colocar
um estado de
o futuro nas mãos de Deus não era rentável, espírito de gente
limitava-se a ser um estado de espírito de gente
medíocre.
medíocre.»
— Ó filho, não te ouvi chegar. Senta-te! — pediu,
enquanto arrastava uma cadeira. Sentou-se!
— Parte-me o coração ver-te assim. — Colocou
a mão sobre a do filho, numa espécie de
carícia constrangedora. Identificou-o como um
momento importante. Porém, para o filho o Pergunta tão ingénua que se fosse um gesto
ensejo não chegou e continuou de expressão seria um «faz figas» antes de se atirar de um
baça e desafiante. penhasco.
— Ai Senhor, quem me dera conseguir dizer-te o — Como queiras! Ainda te vais arrepender por
quanto sofro sempre que olho para ti. Meu rico seres igual ao outro e não me ajudares.
filho, no que te tornaste. Aí, se o teu pai fosse Afogou-se numa infeliz rebeldia e pegou na
vivo… seriamos dois a sofrer! — concluiu ainda carteira num movimento tão rápido quanto
de faca na mão. aquele que o corpo permitiu.
— Sim, de certeza que está a esgravatar o Que pena miúdo, as drogas levaram o teu
caixão da mesma maneira que fez com a minha melhor! Sim, aquelas a quem tratavas por tu
vida. e que rapidamente domaram o teu espírito.
Ali estava, um violino interior de cordas Contra o exército de vozes presentes da
danificadas que deformava as notas todas as mãe, do pai morto, do pastor evangelista que
vezes que se aludia ao pai. continuava a apregoar eufórico, fugiu. Abriu a
— Preciso de dinheiro! Dá-me algum. porta de casa e nem a advertência do gemido
— Não tenho… não te posso dar! — reformulou. escandalizado das dobradiças o impediu.
A certeza da mãe fê-lo semicerrar os olhos. Na Fugiu da vergonha. Correu dali para fora!
cabeça dele existiam três tipos de raiva: a raiva Num resquício de arrependimento sentiu a
da ignorância, a do abandono e da cobardia. carteira pesar o dobro daquilo que pesava.
Em cima do móvel, a namoriscá-lo, a carteira Será que a honra teria peso? Estaria também ela
da mãe. Segredava-lhe ao ouvido palavras elucidada sobre o conceito de consciência?
obscuras e ousadas. Pobre Ismael, que se sentiu glorioso e louco
Ismael sabia que a consciência não fazia parte o suficiente para considerar que possuía a
da sua existência. «Se o cérebro é consciência e liberdade refundida nas mãos, assim que a porta
se a consciência é existência, quem serei eu?» se fechou no seu encalço.
18
«Abriu a
porta de
casa e nem a
advertência do
gemido
escandalizado
das dobradiças
o impediu.
Fugiu da
vergonha. »
PER FICTA, RESISTERE
O PLANTADOR
DE PALAVRAS INÊS PINTO
20
-lhe sinal para ir às traseiras e abriu a porta que — Sim, é verdade. Todos têm sido simpáticos!
dava para o quintal. — Se precisar é só chamar. — Semicerrou os olhos numa atitude de
— Aproximou-se da cancela na vedação que desconforto. — Dona Alzira, não quero ser
separava os quintais. Abriu-a e passou para o intrometido. Ouvi alguém referir-se ao plantador
outro lado. — Não vou maçá-lo mais. Até logo. de palavras. Pareceu-me uma pessoa importante
João agradeceu e despediu-se. Aproveitou para a aldeia, mas ainda não o conheci. —
para analisar o quintal. Os canteiros floridos Tossicou para disfarçar a ousadia.
aromatizavam aquele pedaço de terra. Por A Dona Alzira riu-se.
momentos sentiu-se diferente. Já não pesava a — É verdade! Mas ainda não é o momento
solidão. Não tinha filhos e o único sobrinho vivia para o Doutor o conhecer. — Afastou-se
na Austrália. Contava apenas consigo e com enquanto regressava à varanda. Virou-se
amigos que fez ao longo da vida. Esfregou as e encarou-o.— Admire estes vasos com
mãos para afastar algum laivo de tristeza. Era ervas aromáticas. São obra do plantador de
tempo de começar a semear! palavras. — Regressou a casa.
João franziu a testa sem perceber o alcance do
No dia seguinte, João passeou pela aldeia. Leu o conselho da senhora. Fixou-se nos vasos, mas
jornal no café, enquanto saboreava uma cevada a sua ignorância “erval” desanimou-o. E nem
preparada no pote, acompanhada por fatias de sequer podia cheirá-las. Prestes a desistir, a
pão doce. Alguns olhares de esguelha fizeram- Dona Alzira assomou à varanda.
-no sorrir e acenar com a cabeça. Pouco depois, — Eu dou-lhe uma ajuda! Tome nota da ordem:
já ninguém estranhava a sua presença e até alecrim, manjericão, orégãos e rosmaninho —
lhe pediam opinião sobre o jogo de futebol do acrescentou, a rir — ... para bom entendedor,
último domingo. meia palavra basta! Até amanhã, se Deus quiser.
Aos poucos, João habituou-se à simplicidade do João pegou no bloco e registou as palavras.
tempo naquele lugar: o galo despertava-o; os Passou o serão a tentar descobrir o enigma,
trilhos, por entre giestas e silvas, estimulavam- mas o cansaço e a impaciência venceram-no às
-lhe as sensações e as conversas na praça primeiras horas da madrugada.
tornavam-se em ideias que fervilhavam na sua Os dias seguintes passaram sem novidades. Não
alma. No quintal, as folhas do caderno enchiam- conseguia desvendar o mistério. Tentou tudo:
-se de fragmentos de memórias e de pedaços escrever na horizontal, na vertical, da esquerda
de conversas. Mas algo o deixara intrigado. para a direita e vice-versa. Não interpretou a
Ultimamente as conversas referiam sempre mensagem escondida. Frustrado, copiou as
o “plantador de palavras”. João conhecia as palavras, usando diferentes cores para as letras.
alcunhas de todos e não descobriu de quem se O espanto acelerou-lhe a alma, porque bastava
tratava. Assim que se aproximava para perceber usar as letras iniciais para desvendar a palavra
melhor, as vozes calavam-se. Só restava uma escondida: amor. Para confirmar, foi até à praça
solução. Olhou para a varanda da Dona Alzira,
onde os vasos, em fila indiana, decoravam o
parapeito da janela. Iria perguntar-lhe. Nesse «Quando chegou à aldeia,
momento, a porta abriu-se e a senhora saiu com
um regador. João foi até à cancela.
João rendeu-se à beleza
— Boa tarde! Como tem passado? — rústica do aglomerado
cumprimentou com cautela.
— Ó senhor doutor! Bons olhos o vejam. — Sem
de casinhas castanhas
o olhar, refrescou os vasos. — Sei que anda viradas para a praça.»
entretido por aí. Todos gostam de si. — Pousou
o regador e dirigiu-se à vedação.
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PER FICTA, RESISTERE | O PLANTADOR DE PALAVRAS Inês Pinto
e espreitou para a horta da Dona Laurinda. Favas — Pois bem. Hoje vamos começar a ler
e ervilhas: fé. Sentou-se no banco para acalmar “Felizmente há luar”, uma peça de teatro. —
o turbilhão de emoções. Queria conhecer o Aproximou-se da mesa e pegou no livro. — O
plantador que ensinava àquelas gentes o dom nome faz lembrar alguma coisa?
da palavra. Recomposto, bateu à porta da Dona — “Quanto mais luz ao luar, mais lhe hão de os
Alzira. Ela recebeu-o com um sorriso rasgado cães ladrar” — respondeu a Dona Laurinda.
como se adivinhasse a sua conquista. — “Da lua nova arrenego, mas com a cheia me
— A sua palavra é amor, mas há outras alegro” — acrescentou o Senhor Inácio.
espalhadas pela aldeia. Alexandre anuía, enquanto o casal escrevinhava
— Sim senhor! Sendo assim já o posso convidar em pequenos cadernos. Pouco depois, o
para a reunião na coletividade. É no próximo jovem, com disfarces feitos à mão e uma voz
sábado às oito em ponto. — Tocou-lhe no pausada, iniciou a leitura. João deliciou-se com
braço. — Há uma regra que não pode quebrar: o espetáculo. As palavras e os gestos envolviam
perguntas só no fim! A palavra é prata, o silêncio todos numa comunhão literária que só quem
é ouro, compreendeu? — Maneou a cabeça em assistisse podia sentir. No final, os aplausos de
tom de despedida. satisfação ecoaram na sala. Alguns regressaram
João mal controlou o entusiasmo. Imaginou um a casa enquanto outros falavam com o casal.
velho sábio e resistente, talvez antigo padre João dirigiu-se ao Alexandre.
ou professor, que não queria deixar as palavras — Meu jovem, só te posso agradecer. É
morrer. Um exemplo de vida ativa que João inacreditável o que fazes!
também ansiava. Faltavam cinco dias. — Obrigado, professor. A minha avó Alzira falou-
-me do senhor. Disse-me que andava por aí a
Não se preocupou com a indumentária. Podia escrever. Desconfia que o senhor é escritor.
ser ele mesmo, informal, com as suas fraquezas — Ainda não, mas acalento o sonho. E agora
e dúvidas, sem se importar com julgamentos. ainda mais, depois de ver a tua ousadia. Como
Animado, chegou cedo à coletividade. surgiu a ideia?
Cumprimentou quem ia chegando e não se — Para mim, a leitura é uma janela aberta para o
atreveu a fazer perguntas. Pouco depois, a mundo, mas também é a porta de entrada para a
Dona Alzira convidou todos a entrarem na sala sabedoria popular. Eu nasci nesta aldeia rodeado
preparada para a reunião: cadeiras em filas de pessoas simples, mas sábias. Falei com os
viradas para um palanque. Ávido de curiosidade, meus pais — apontou para o casal desconhecido
apercebeu-se, junto ao palco, de uma mesa — e eles acharam boa ideia. Tomam nota do que
onde um casal desconhecido estava sentado. é dito para não se perder no tempo. Como se
Não teve tempo para pensar, pois o som de diz, juntar o útil ao agradável.
passos silenciou a plateia. João ficou abismado. João não escondeu a emoção. A sua mente já
Um jovem posicionou-se no centro e elaborava um projeto em conjunto com o jovem.
cumprimentou a audiência. Ele até tinha contactos. Não resistiu a fazer-lhe a
— Olá! Já estamos todos! Antes de começar, proposta.
quero dar as boas-vindas ao professor João e — O que achas de dar voz a essa sabedoria?
apresentar-me: sou o Alexandre, tenho 16 anos e Pode ser um livro, uma revista.
sou o plantador de palavras! Com olhos a brilhar de prazer, Alexandre
João permaneceu calado. A sua perplexidade assentiu e respondeu:
impediu qualquer reação. — Conte comigo. Afinal, ler e escrever é resistir!
22
«Os dias seguintes
passaram sem novidades.
Não conseguia desvendar
o mistério. Tentou tudo:
escrever na horizontal,
na vertical, da esquerda
para a direita e vice-versa.
Não interpretou
a mensagem escondida. »
PER FICTA, RESISTERE
O SOÇOBRO
EA
PROCEDÊNCIA PATRÍCIA LAMEIDA
24
letras que trovam as pessoas e os feitos, os direito uma cratera, escura e infecta. Barba
ambientes e sentires. De trocas tais, crescem farta, enfeitada de areia, rodeia lábios gretados
egos, alimentados a ouro e ambição. Os e entreabertos, que aspiram ar devagar. Traz o
barcos multiplicam-se. Enchem-se até à borda corpo coberto com uma camisa comprida, suja,
com porcelanas, sedas e atavios esmaltados, que ondula leve sobre o peito que ainda respira
riquezas que deliciarão as cortes, pavões que se – adormecido. Prende sob o braço um saco de
passeiam do outro lado do oceano, absortos. lona encerada, preso na mão por correias bem
A cobiça menospreza a prudência. Uma cingidas. Apesar de vivo, não responde à voz
nem aos movimentos de incentivo do agricultor,
embarcação repleta é difícil de manobrar e no
que abana o corpo pesado. Mesmo estranho, é
mar do sul chinês os baixios apresentam-
um homem, e o deus-sol reina por estas horas.
-se traiçoeiros para um capitão inexperiente.
A afronta da exposição direta pode pagar-se
Os cascos inundam, afundam posses e afogam
com a morte. Assim, o agricultor descarrega a
tripulantes em luta, comerciantes sujos de
barca, que navega até ao homem entorpecido.
medo, guerreiros em paz com o seu destino
Carrega-o em braços para dentro do casco,
e homens de letras desesperados. E são
o saco de lona a rasto, e leva-o consigo. Na
poucos os relatos que atravessam as águas
aldeia terá abrigo. Como ele, outros acorreram
para descrever todos os desastres que da em auxílio, providencia-se enxerga, sombra
negligência brotam. e água para refrescar o corpo. As mulheres
recolhem as crianças, e os homens dividem-se -
O agricultor começa o dia entre águas tratam o moribundo e recolhem dos destroços
sentimentais, barcaça embalada pela brisa espalhados o que pode ser de serventia à
que canta o silêncio. Desce um troço até ao comunidade.
arrozal onde se ancora. Solta o agasalho, saúda Passam os dias e o corpo encontrado não
cada planta e brinca com girinos e rãs vizinhas. desperta. É desnudado, lavado, untado e
Começa o lavor como uma prece que cumpre vestido. Em repouso, mantém-se um dos
ritualmente até que o sol aqueça a água sob os aldeões na sua companhia. Os seus pertences
seus pés. Na calmaria boia uma tábua curtida - o saco que trazia preso, cheio de papel
que encontra pousio nos seus tornozelos. manchado, e as vestes já lavadas – são
Um pedaço de madeira quebrado, mas forte, armazenados. Deitado, de feições cansadas,
encerado. O lavrador ergue-se com o achado faces encovadas e órbita vazia, aguarda a
nas mãos e vê outros flutuantes, semelhantes
na qualidade, maiores no tamanho, dispersos
pelo canal. Sobe à barca, disposto a recolher
o que encontrar. São bom material, com corda
grossa poderão servir de padiola, remendo
na cabana que o abriga, albergue do arroz
armazenado. No percurso manso, cada tábua
recolhida aguça a curiosidade sobre a sua «Eram os anos
origem. Chegado ao areal, aporta a barcaça
carregada e recolhe outros pedaços. Há outros
de 1500. Corre o
objetos dispersos pela areia, pálida sob a luz do Mekong milenar, a
fim da manhã, mas não lhes percebe utilidade.
Ao fundo, um vulto destaca-se. O desconhecido
mesma força, rumo
dita cautela, a aproximação é lenta, pausada, ao mesmo mar.»
até reconhecer um homem. Pele curtida,
cabelo grisalho e ondulado, no lugar do olho
25
PER FICTA, RESISTERE | O SOÇOBRO E A PROCEDÊNCIA Patrícia Lameida
26
«Viver a simplicidade
de tantos dias iguais,
alheado de guerras,
mares e reinos, aviva
a memória de outros
lugares, da terra que
o criou e que ele crê
»
sentir-lhe a falta.
LETRA MIUDINHA
MALDITAS
COMPARAÇÕES CRISTINA
FERREIRA GREGO
28
«Foi com seis anos
que me enchi de
coragem e tirei o
primeiro dente.
Parecia um pequeno
baloiço a entrar e
vazio. “Porque é que me querem
desdentada?”
sair da minha boca,
Mas que beleza encontram as cada vez que comia
pessoas crescidas numa boca
desdentada? ou quando a minha
Seja como for, o primeiro dente língua, teimosa,
que tirei foi parar dentro de uma
caixinha forrada de algodão em o empurrava
rama e exibido a toda a gente
como se fosse uma coisa milagrosa.
para fora.»
Este e todos os outros que tirei ou
foram caindo, passaram a primeira
noite dentro de um saquinho de
linho a cheirar a alfazema, debaixo
da minha almofada. Esperava
ansiosamente a visita da fada dos
dentes. Ainda hoje não sei se deva
acreditar na sua existência, mas
é certo que na manhã seguinte, açúcar a mais no sangue. Eu era tão grande que
dentro do saquinho tinha sempre na maternidade todos me iam espreitar, porque
uma prenda à minha espera. parecia uma bebé de um mês. Para agravar o caso,
Dois anos depois do episódio da roupa comprada com tanta dedicação e amor,
que vos contei, já com oito anos nada servia. Era a quarta filha, numa família de
compreendi: era por causa da minha mulheres.
estatura que eles queriam que eu Quando me viram, a minha mãe, a minha avó e as
perdesse os dentes. minhas irmãs exclamaram:
Não é que os dentes façam — Meu Deus!
crescer, estou a explicar-me mal. Só o meu pai teve a coragem de dizer a verdade:
Vou explicar melhor, ou seja, vou — É sem tirar nem pôr um pequeno buda, mas
começar pelo princípio. bonita.
Nasci de quase dez meses. Sentia- A minha avó, com a sensatez adquirida ao longo
-me confortável dentro da barriga dos anos, abafou o silêncio que encheu aquele
da minha mãe e, na verdade, não quarto e disse:
tinha pressa nenhuma em vir cá para — Que lábios lindos tem esta menina. Parece uma
fora. Durante a gravidez ela teve pequena rosa.
diabetes. Sabem o que é? Bem, na Queriam dar-me o nome de Benvinda, em
verdade também não, mas acho homenagem à tia-avó paterna. Era uma joia de
que tem qualquer coisa a ver com pessoa e também tinha formas arredondadas.
29
LETRA MIUDINHA | MALDITAS COMPARAÇÕES Cristina Ferreira Grego
Abençoado o momento em que uma das minhas momento, festejando cada centímetro e cada
irmãs, a terceira, descontente com o meu grama a menos. E chamaram-me Sofia.
nascimento, se saiu com o seguinte desabafo: Pela minha parte, tudo fiz para não frustrar as
— Só se a chamarem de Mal-vinda. expetativas da família e, com a ajuda de uma
Nessa altura era demasiado pequena para alimentação saudável e da minha boa vontade,
protestar. Mas já me disseram que, no batizado, cheguei pouco ou menos ao estado em que me
berrei durante toda a cerimónia. Aliás, como descrevo na seguinte redação.
era caraterística minha, não parava quieta e “A minha estatura é quase normal e não sou
consegui dar uma valente queda. O vestido muito robusta, mas a minha avó diz que mais
branco, que vinha sendo usado a cada geração, vale ser assim e inteligente, do que magra
foi brindado com uma mancha vermelha de e estúpida. Tenho olhos verdes e coro com
sangue que escorreu quando abri o lábio. frequência, especialmente quando me zango.
Voltando à questão dos dentes. Compreendem Ainda tenho na boca dentes de leite, poucos,
que chamar Benvinda a uma miúda que só cabe e a minha mãe conta-os sempre que telefona
em roupa duas vezes o tamanho normal é uma à sua amiga Rute, que tem um filho magro
enorme irresponsabilidade. “Se ela continuar a desdentado que se chama Luisinho.”
ser desse mesmo calibre, como é que poderá Este Luisinho era-me antipatiquíssimo, mas
suportar um nome tão absurdo?”, pensavam eles. não tanto devido ao físico, mais por causa
Creio que foi por isso que começaram a medir- daquela feia janela que tinha na boca e o fazia
-me e a pesar-me a toda a hora e a todo o cuspir gafanhotos sempre que falava. Eu tinha
um medo terrível de, perdendo os dentes,
ficar parecida com ele. Mas ao mesmo tempo,
depois de a minha mãe me ter dado a entender
que ansiava pelo momento em que eles
caíssem, já não conseguia suportá-los.
Por isso, quando me caía um dente, examinava
todos os dias o meu espaço vazio e pensava
«Creio que foi por com horror no Luisinho quando se ria e cuspia
gafanhotos.
isso que começaram a Agora, no sítio dos meus dois antigos
dentes de leite, que eram pequeninos e bem
medir-me e a pesar-me proporcionados, tenho uns incisivos que me
a toda a hora e a todo fazem parecer um castor!
E a minha mãe, mais aquela antipática da Rute, a
o momento, festejando dizer que eles cresceram bem!
cada centímetro e Consolo-me pensando que o Luisinho teve de
pôr um aparelho que parece um açaime ao
cada grama a menos.» contrário.
A ver se param com essas malditas
comparações.
30
«Queriam dar-me o
nome de Benvinda, em
homenagem à tia-avó
paterna. Era uma joia de
pessoa e também tinha
formas arredondadas.
Abençoado o momento
em que uma das minhas
irmãs, a terceira,
descontente com o meu
nascimento, se saiu com
o seguinte desabafo:
— Só se a chamarem
de Mal-vinda. »
LETRA MIUDINHA
ROSABELA TERESA
DANGERFIELD
32
«A conversa animou-se:
Todos quiseram contar
as suas histórias. Malmo
teve de metê-los na
ordem, em especial os
amores-perfeitos, que se
não gostava que troçassem, fosse de
quem fosse. Rosabela iria precisar
achavam os melhores.»
de uma pequena ajuda.
— Conta-nos como vieste parar aqui
— insistiu Malmo.
— Quando o Senhor Marcelino —
que foi quem vos trouxe hoje — veio
para esta casa, não havia plantas no
jardim. Um dia foi à vila e havia uma
feira. Eu estava lá à venda. Ninguém
me queria, porque sou diferente. As
pessoas olhavam para mim e diziam
coisas feias. Tão feias que nem quero as plantas ficaram agitadas. Rosabela fechou as suas
repetir. pétalas com muita força.
— Nem precisas de contar o resto. Já dentro de casa, o Senhor Marcelino limpou
O Senhor Marcelino viu-te e gostou muito bem o vaso com a sua rosa preferida, e
de ti. Viu que és diferente; és mesmo colocou-o dentro de uma caixa de papelão. Com
linda! E não vale mudares de cor por muito cuidado, foi pôr tudo na parte de trás da sua
eu dizer isto, porque é verdade. carrinha. A vizinha do lado, curiosa como era, viu-o
— Dizes coisas tão... tão bonitas, sair e veio cumprimentá-lo:
Malmo. — Bom dia, Marcelino. Estou a ver que leva uma
— Olha, nunca tinha conhecido uma rosa: vai a alguma festa?
rosa como tu. És o máximo! — Bom dia, Hermengarda. Então a senhora — que
— Obrigada, Malmo. Sabes, o que sabe sempre tudo — não ouviu dizer que hoje vai
eu queria mesmo? Era conhecer haver um concurso de rosas numa vila que fica a
outras como eu. Ouvi dizer que há poucos quilómetros daqui? Não me lembro do
mais rosas assim: diferentes. nome, sabe como é esta minha memória, mas
— Acredito. Mas não te esqueças de tenho para ali o folheto. Soube ontem, quando fui
que somos todos únicos e especiais. ao centro de jardinagem. Pensei logo na minha
A conversa animou-se: todos Rosabela. Ainda assim, é por aí uma hora de
quiseram contar as suas histórias. caminho. Olhe, vou tentar.
Malmo teve de metê-los na ordem, — Ah, pois... essa. Boa sorte então — disse ela
em especial os amores-perfeitos, ao Senhor Marcelino. Mas assim que ele entrou na
que se achavam os melhores. carrinha, continuou entredentes: “Com uma rosa
No dia seguinte, o Senhor Marcelino daquelas, o que é que ele pensa?”
veio ao jardim mais cedo do que o Agora que sabia para onde ia, Rosabela sentia-se
habitual. Pegou no vaso onde estava super feliz.
Rosabela e levou-o consigo. Todas O Senhor Marcelino precisava de estar no local
33
LETRA MIUDINHA | ROSABELA Teresa Dangerfield
do concurso às duas horas da tarde. Saíra de Com o vento, a caixa voara para longe. O vaso
casa bastante cedo, pois conduzia devagar. rachara-se e estava tombado à beira da estrada.
Começou a notar que o céu estava a ficar Mas Rosabela era forte e não tinha sido puxada
carregado de nuvens. Daí a pouco chovia tanto, para fora da terra. Fechou as suas pétalas com
que era difícil ver a estrada. O vento soprava muita força, como era costume. Desta vez, quem
com imensa força: parecia uma tempestade. percebesse, veria que ela estava a chorar.
Rosabela ficou um pouco assustada quando a Já não chovia e o vento começara a abrandar.
carrinha começou a abanar. De repente, uma Nisto, passou por ali um rapaz de bicicleta. Viu
corrente de ar abriu a porta de trás. A caixa o vaso caído, com a rosa lá dentro. “Esta rosa
onde estava o vaso foi deslizando, deslizando, é estranha, mas a minha mãe gosta tanto de
e acabou por cair e ser arrastada até à berma rosas...”, pensou ele. Pegou no vaso e colocou-o
da estrada. O Senhor Marcelino não deu conta no cesto que tinha na parte da frente da bicicleta.
do que se estava a passar. Avistou uma estação Lá se foi a cantarolar. Rosabela continuava de
de serviço e resolveu parar. Quando saiu da pétalas apertadas com toda a força.
carrinha, viu que a porta de trás estava aberta: o O Senhor Marcelino conduziu até uma rotunda
seu coração começou a bater com muita força. e voltou para trás, tentando descobrir a sua
Percebeu o que acontecera e deitou as mãos rosa caída nalgum sítio. Passado pouco tempo,
à cabeça. Começou a andar de um lado para o avistou, do outro lado da estrada, um rapaz
outro, enquanto falava sozinho: numa bicicleta: pareceu-lhe ver que ele levava a
— Deve ter caído por aí e eu nem reparei. A sua Rosabela. Fez uma travagem brusca. Tinha
culpa foi minha: de certeza que que tornar a voltar para trás e tentar alcançá-
não fechei bem a porta. Devia ter tido mais -lo. A bicicleta ia mais devagar do que a sua
cuidado. E se a roubaram? E se foi atropelada? carrinha, por isso pensou que não seria difícil.
A minha Rosabela! Tenho que voltar para trás. Só que, quando deu a volta à rotunda, à sua
Não há tempo a perder! frente estava um enorme trator.
— Só me faltava isto! — barafustou o Senhor
Marcelino.
O trator andava a passo de caracol. E não era
possível ultrapassá-lo. Não adiantava apitar,
pois sabia que um trator anda como um trator,
não havia nada a fazer. Começou a transpirar:
«Mas Rosabela era forte os minutos pareciam-lhe horas. Estava a ficar
cada vez mais nervoso. Felizmente apareceu um
e não tinha sido puxada cruzamento e o trator virou à esquerda.
para fora da terra. — Até que enfim! — suspirou o Senhor
Marcelino.
Fechou as suas pétalas Não havia sinais da bicicleta. Teria virado à
com muita força, como esquerda? À direita? O Senhor Marcelino hesitou,
mas como só via campos de um lado e do
era costume.» outro, resolveu seguir em frente. Acelerou e
pareceu-lhe ver, a alguma distância, o rapaz com
a sua Rosabela. Daí a pouco, conseguiu chegar
34
perto dele. Começou a gesticular e pétalas com feitios diferentes. Quem passava
a falar na rosa. O rapaz não percebia, dizia coisas bonitas. Quando Rosabela mudava
mas pensou que o senhor talvez de cor, todos ficavam deslumbrados. Sentia-se
precisasse de ajuda e resolveu mesmo especial.
parar. Pararam os dois numa berma. Ao fim da tarde, o júri anunciou os vencedores
Rosabela ficou muito feliz quando nas diversas categorias. Até havia um prémio
viu o Senhor Marcelino, que explicou para a rosa mais perfumada. Ninguém podia
tudo a Tomás, assim se chamava o duvidar dessa escolha, pois tinha realmente um
jovem. O vaso estava rachado, mas a perfume de causar inveja. Chegou a vez das
rosa continuava como se nada tivesse rosas inéditas. Houve um empate de pontos
acontecido. Tomás ficou contente por entre Rosabela e Rosibranca, uma rosa de
a ter reunido ao Senhor Marcelino e duas cores. O júri resolveu dar o prémio às
encorajou-o a levá-la ao concurso. duas, em igualdade. Isso mesmo, vencedoras
Como iam para a mesma vila, o na Categoria de Rosas Inéditas, em igualdade!
Senhor Marcelino deu boleia a Tomás Rosabela nem queria acreditar! Não poderia
e ele, depois de pôr a bicicleta estar mais feliz!
dentro da carrinha, ofereceu-se para Vieram dar os Parabéns ao Senhor Marcelino e a
segurar o vaso e a rosa com todo o senhora que trouxera Rosibranca disse-lhe que
cuidado, durante o resto do caminho. todos os anos havia um concurso internacional
Chegaram muito a tempo. Tomás de rosas em Barcelona, no mês de maio; ela
foi a casa e voltou com a mãe, iria levar lá a sua rosa. O Senhor Marcelino teria
que trouxe um vaso muito bonito. de pensar nisso, para o próximo ano. Quando
Entregou-o ao Senhor Marcelino: contasse tudo aos filhos e aos netos, nem iriam
— É para pôr lá dentro o seu vaso. A acreditar. Agradeceu muito ao Tomás e à mãe,
sua rosa merece. O Tomás contou- despediu-se e partiu, cheio de orgulho na sua
-me o que aconteceu. rosa, que recebera uma medalha em forma de
Rosabela estava muito atenta a tudo flor. Quanto a Rosabela, estava ansiosa por voltar
o que se passava à sua volta. Parecia- a casa e contar tudo aos seus amigos.
-lhe um sonho. Havia tantas rosas, de Chegaram quase ao anoitecer. Hermengarda
cores e perfumes tão variados. Umas estava a espreitar por detrás das cortinas. Mal viu
maiores, outras mais pequenas, tão a medalha, encolheu os ombros e fez uma careta.
pequenas que até lhes chamavam Quando o Senhor Marcelino voltou a pôr
rosas em miniatura. Até ouviu falar Rosabela no jardim, quem conseguisse
em rosas japonesas. Cada uma perceber o que as plantas dizem, teria ouvido,
tinha o seu lugar. Ela estava entre quase imediatamente, Malmo: “Rosabela,
as chamadas rosas de variedades que te aconteceu? Vens mais bonita. Tens um
inéditas. Não percebia bem o que vaso novo! E essa medalha!”; logo de seguida,
isso queria dizer, mas parecia-lhe um coro de vozes, vindo de todos os lados:
que eram rosas diferentes, únicas! “Rosabela, Rosabela, ainda bem que voltaste!
Não havia nenhuma com o caule Sentimos a tua falta!”; e, finalmente, Rosabela,
tão grosso como o dela, mas havia que mais parecia uma estrela a brilhar na Terra:
outras com duas cores, algumas de “Nem imaginam o que tenho para vos contar!”
35
RESISTENTIA POETICA
ELEGIA SOBRE
O TEMA DA ROSA NUNO JÚDICE
36
RESISTENTIA POETICA
O MISTÉRIO
DO POEMA MARIA JOSÉ ESTEVES
Escrevo,
quando a alma geme…
por palavras nuas
que sangram
dentro de mim.
Palavras cruas.
Metáforas de palavras nobres
e honrosas
que mostram ao mundo
… um poema
de versos macios e formosos.
Palavras que desabrocham
da minh`alma despida,
frágil… e louca.
As suas vestes são o negro…
e o vermelho
da morte… e do sofrimento
da dor… e da paixão!
Escrevo…
num íntimo impulso
numa corrida, num desafogo
num caminho sem rumo
para reviver
um sentimento ou… simplesmente
um pensamento.
E por fim…
sonhar doidamente
no mistério… do poema.
37
RESISTENTIA POETICA
DESCORTINANDO
PALAVRAS MARIA LUÍSA FRANCISCO
Não é um fato, mas é de facto estranho reduzir a ato subtraindo a solenidade ao acto
Desembaciando lugares
38
RESISTENTIA POETICA
PROTESTO
DE AMOR MARIA SILVÉRIA DOS MÁRTIRES
1) Referência à Canção de madrugar, concorrente ao festival da canção 1970, cantada por Hugo Maia de Loureiro com
letra de José Ary dos Santos e música de Nuno Nazareth Fernandes.
39
SALTANDO DO PARÊNTESIS
SONHOS ANA CANDEIAS
40
Os sonhos de quando dormimos, essa atividade impossível de concretizar”, “de pouca duração”.
cerebral misteriosa, que tanto debate tem Não são estas as palavras de que precisamos
criado entre neurocientistas e psicanalistas. para conseguirmos avançar. Sonhos-aspirações
Adormecer é um ato de coragem em si próprio, têm de ser encarados como objetivos a
porque o sono, embora necessário para a nossa concretizar, de acordo com as nossas forças e as
saúde no geral, não deixa de ser uma condição nossas fraquezas. Quem o diz? Muitas pessoas.
estranha. Depois de adormecemos, para ali Incluindo este alguém que palavrou estas ideias
estamos, não sabemos o que nos acontece, e que durante muitos anos sonhou escrever,
nem o que acontece à nossa volta, se ainda partilhar a sua voz. Foi um sonho escondido,
vivemos, ou se já morremos. E não bastasse abafado e sabotado. Foi. Está a deixar de ser e
esta vulnerabilidade, eis que o nosso cérebro, haja alento para continuar.
por conta própria, se entrega a uma azáfama
de processamento de informação, gerando
sonhos, dos quais, na maioria das vezes, temos
lembrança nula ou em retalhos de enredos,
frequentemente sem ponta por onde se lhes
pegue ou com alguma aparente ligação a um
acontecimento recente ou antigo ou, quem
sabe, a algo que nos venha a acontecer.
Esta referência ao futuro, é a oportunidade
conveniente para passarmos aos sonhos de
quando estamos acordados, conscientes, em «Esta referência
menor ou maior escala, de quem somos e
ao futuro, é a
quem queremos ser, do que fazemos e do que
queremos fazer. Alguns deles são sonhos- oportunidade
-fantasias, devaneios que, se tudo correr
conveniente
bem, são inofensivos para o nosso equilíbrio.
Idealizamos uma outra vida e ficamo-nos pela para passarmos
satisfação de apenas imaginar o que poderia
ser, sem nos importarmos de efetivamente
aos sonhos de
não ser, voltando sempre ao nosso mundo quando estamos
real, sem amarguras de maior. Outros dos
sonhos de quando estamos acordados, são
acordados,
os sonhos-aspirações, desejos que temos. conscientes, em
Sonho um dia ser… Gostava tanto de um dia…
Sonhos que guardamos em nós. Escondidos
menor ou maior
pelo receio de não sermos capazes. Abafados escala, de quem
pela prioridade que damos a outras tarefas ou
pessoas. Sabotados pela nossa falta de foco e somos e quem
disciplina. Com o passar dos anos, podem ser queremos ser, do
esquecidos ou permanecem em nós, envoltos
em melancolia. Eu podia ter sido… Eu gostava que fazemos
de ter feito... Se pensarmos bem, isto de lhes e do que
chamarmos “sonhos” resulta numa emboscada.
Culturalmente e em qualquer dicionário, a queremos fazer.»
palavra “sonhos” dirige-nos sobretudo para algo
de “imaginação”, “ilusão”, “utopia”, “difícil ou
41
SALTANDO DO PARÊNTESIS
LER
É CONHECER.
ESCREVER
É ETERNIZAR ANA F. PINHEIRO
42
sei de cor. Continuo a comprá-los para os meus carinho, dedicação. Incentivo e estímulo. Sem
filhos. Mas sou quem os lê primeiro. imposições ou recriminações.
A par da leitura, a escrita também sempre me A leitura ajuda-nos a conhecer novos mundos.
acompanhou. Um dia a minha mãe inscreveu- Traz-nos novas palavras. Novos significados.
-me num curso de datilografia. Um curso de Melhora a escrita. Pese embora não tenhamos
verão. Ao início, contrariada (uma miúda no todos aspiração a escritores, a escrita está
início da adolescência tem mais que fazer do presente no dia-a-dia, nas mais variadas formas.
que passar as tardes de sábado em aulas de Todos escrevemos, seja de que forma for.
datilografia), o entusiasmo floresceu. A máquina Mensagens de texto. Redes sociais, sobretudo
de escrever, o mais próximo da tecnologia que nestas, escreve-se cada vez mais. E não há nada
tinha experimentado até então, tornou-se uma que me possa ferir mais a visão do que um texto
grande companhia. Recordo as teclas tapadas
pejado de erros, ortográficos ou gramaticais.
com autocolantes coloridos, que indicavam os
Ler é conhecer. Escrever é eternizar. Deitemos
dedos correspondentes a cada uma. Depois palavras ao mundo. Deixemos a semente
veio a elétrica, que excitação. Era apetrechada germinar.
com corretor, o que aliviava a pressão de
cometer erros.
A tecnologia evoluiu. A miúda cresceu. O
computador é hoje o parceiro favorito de
escrita. As tardes de sábado tornaram-se em
longas e solitárias noites de escrita. A escrita é
um processo desafiante – conjugar as palavras,
dar-lhes sentido. Tocar o leitor, transmitir a «A leitura ajuda-
mensagem, despertar sentimentos, é a magia
de quem escreve. De quem toca a alma do -nos a conhecer
leitor. O coração. Provoca interrogação. Ação e novos mundos.
transformação.
Para mim, cada livro lido é uma experiência que Traz-nos novas
fica, marca, e faz pensar. Confesso que a minha
predileção, a par dos livros de aventuras da
palavras. Novos
infância, são os romances. Histórias de amor, significados.
sofridas, mas quase todas com um final feliz.
Esforço-me por transmitir aos meus filhos o
Melhora a escrita.
gosto pela leitura. A importância de ler. Mostrar Pese embora
o fascínio de conhecer novos lugares através
de um livro. Ter em casa muitos ajuda, mas não
não tenhamos
chega. É importante incentivar, dar o exemplo. todos aspiração
Embora comigo não tenha sido exatamente isso
que aconteceu… a escritores,
Hoje em dia há diversas atividades que a escrita está
facilmente despertam a atenção dos jovens. A
leitura é muitas vezes vista como aborrecida. presente no dia
Como pouco interessante. Cá por casa existem a dia, nas mais
estratégias, incentivos, metas e recompensas.
Não há fórmulas mágicas. Nem mudanças variadas formas.»
instantâneas. O gosto pela leitura cultiva-
-se. Aos poucos. Devagar. Com tempo, com
43
SALTANDO DO PARÊNTESIS
O PRAZER
DA ESCRITA CARMO MARQUES
44
recordo da temível vareta de ferro com que a gorda que me parecia muitíssimo mais bonita.
professora da primeira classe nos convencia a Depois, na faculdade, o ritmo do discurso dos
desenhar a letra redondinha, nem demasiado docentes não tinha em consideração primores
pequena nem demasiado grada. Havia de de grafia, e a minha passou a gatafunhos,
caber, à justa, no espaço entre os traços temperados de arremessos estenográficos que
paralelos do, denominado, caderno de duas só eu, e por vezes nem eu, entendia. Perdi o
linhas, fabricado especialmente para esse fim. estilo e ganhei um calo no dedo médio. Para
O corpo de cada letra havia de ficar ali contido. tornar apresentáveis os trabalhos a entregar aos
Apenas exceções como a perninha do ‘p’ ou o professores, recorria a uma velha máquina de
anzol do ‘g’ podiam descer abaixo da linha, e escrever, em cujo rígido teclado martelava as
os pescoços do ‘d’ ou do ’t’ subir acima delas. letras com pavor de me enganar, pois, qualquer
Éramos repreendidas por fazermos abóboras, falha poderia representar ter de redatilografar
se tendíamos para letras grandes; ou formigas, toda uma página, ou mais. Para um lapso menor,
se as desenhávamos pequenas. Para quem não havia a borracha dura, em forma de lápis,
se concentrava o suficiente, ou, por se deixar que rasurava a tinta, mas, com desesperante
atordoar pelo medo, persistia no erro, vinha frequência, levava também o papel, deixando
o castigo da vareta, aplicado nas cabeças um buraco onde antes estivera o erro.
dos ossos do metacarpo da mão com que Que conforto é hoje poder escrever no teclado
escrevíamos. Não aprendemos então o nome macio de um computador que até nos aponta
dos ossinhos onde recebíamos o castigo — os erros de ortografia! Como é fácil corrigir
chamavam-lhe os canhotos —, mas aprendemos um engano, mudar de ideias, reescrever um
a dor que neles ficava. texto, mudar-lhe a forma e o conteúdo, quantas
Era assim na minha escola primária. vezes a inspiração, a hesitação ou a urgência
Aprendíamos a escrever à moda antiga, pelo de dizer o deslumbramento, o amor ou a raiva o
menos tão antiga quanto a era dos aparos exigirem. Não trocaria esta ferramenta pela pena
metálicos, dos tinteiros de porcelana — que de outrora. Contudo, por brincadeira saudosista,
cada uma tinha na sua carteira —, dos mata- deleita-me ver a dança revoluteada do seu bico,
-borrões e dos dedos e roupa manchados de ao som do seu próprio roçagar sobre o papel,
tinta azul ou preta. A vermelha estava reservada seguindo o ritmo do capricho das ideias em
às correções das professoras e a verde excluída, liberdade.
porque era falta de educação usá-la, diziam-
-nos. Quando chegávamos à quarta-classe
tínhamos permissão para usar uma caneta de
tinta permanente. Apreciei de tal forma o salto
qualitativo, que ainda hoje cultivo um gosto
especial por esse tipo de instrumento e será
por isso que, quando me ataca a saudade de
«Que conforto é hoje
escrever à mão, não quero uma esferográfica,
nem nenhum dos eficazes objetos de escrita poder escrever no
que hoje existem no mercado.
No ensino secundário, passei, como todos os
teclado macio de um
outros, a usar as então modernas esferográficas: computador que até
práticas, baratas e quase infalíveis. Esqueci a
contenção e enchi páginas de letras-abóbora.
nos aponta os erros
De vez em quando, enchia-me de brios e de ortografia!»
escrevia um bocadinho seguindo as regras da
primária, mas logo regressava à minha letra
45
SALTANDO DO PARÊNTESIS
CAFÉ COM
LETRAS
E POESIA VADIA ERMELINDA TOSCANO
E ra um fim de semana de
inverno. O dia estava soalheiro
e, apesar de bastante frio,
convidava a sair de casa. Por isso,
depois do almoço, resolvi fazer
uma caminhada até ao Cais do
Ginjal.
No regresso, parei junto ao
ancoradouro dos cacilheiros e ali
fiquei a olhar Lisboa, enquanto
imaginava o percurso a pé que
pretendia fazer já na próxima
segunda-feira: do Cais do Sodré
até ao Jardim Constantino, em
Arroios, onde trabalhava, à procura
de pormenores arquitetónicos ou
de lembranças esquecidas nas
pedras da calçada.
Estes passeios matinais — ou «No regresso, brincadeira, um amigo me
vespertinos —, explorando as ruas costumava dirigir, já andava
da capital, na companhia da minha
parei junto ao a incomodar.
Canon, numa busca permanente ancoradouro Lembrei-me, entretanto,
do inusitado, sempre foram muito que aquele era o último
revigorantes e serviam para dos cacilheiros sábado do mês: não podia
dispensar as idas ao ginásio, que e ali fiquei a perder a sessão de poesia
isto de trabalhar com políticos vadia no Café com Letras!
tem os seus contratempos, como olhar Lisboa.» Em passo rápido, dirigi-
seja a necessidade de engolir -me à rua Cândido dos Reis
uns sapos e, em consequência, numa dança constante entre
ganhar uns quilos extra… e o os carros estacionados
epíteto de “pneuzinho da Michelin” em cima do passeio, ou
(passe a publicidade) que, por executando malabarismos
46
para fugir àqueles que circulavam na via de não sei se me revejo, ou em ti me descubro
rodagem (no presente, felizmente, esta artéria é as mágoas que me afligem são como as nuvens
pedonal). sobre a água:
Quando entrei, o espaço estava na penumbra sombras indeléveis do meu sentir que em nada se
e, como música ambiente, ouviam-se acordes desfazem.
de violino e acordeão numa composição que, De repente, a música parou. Num timbre forte,
ao fim de alguns instantes, reconheci ser de impactante, um jovem de preto integral declamou
um álbum de Richard Galliano. Nas paredes um poema de Ary dos Santos, como se cada
brancas, uma exposição coletiva de fotografia palavra fosse parte de uma peça de teatro
sobre o concelho de Almada. representada de forma magistral. Sem intervalo,
Havia apenas uma mesa disponível, debaixo seguiu-se-lhe uma idosa de voz quase inaudível que
do arco central — que sorte, pensei. O meu leu um poema de sua autoria; no final, a satisfação
lugar preferido. Encostada a um dos pilares, a pela ousadia de ter conseguido, pela primeira vez,
estante onde repousavam as obras dos clientes apresentá-lo em público, confessou-o à audiência.
para consulta no estabelecimento ou aquisição O som de uma viola campaniça ecoou na sala e a
a um preço simbólico: a poesia liderava, mas seguir a ela o cante alentejano à capela — eram
tinha por companhia contos, romances e até apenas três membros, mas valiam pelo coro inteiro
crónicas. —, findo o qual, irrompeu pela sala um poema
Numa prateleira, em lugar de destaque, de Fernando Pessoa com pronúncia brasileira, de
as duas fanzines do projeto cultural ali sílabas onduladas que arrastavam consigo o oceano
desenvolvido: o jornal trimestral O sabor das que separa Portugal e o Brasil. Uma surpresa que
palavras e a coleção 12 páginas de poesia, prendeu a atenção de todos os presentes.
dedicada à publicação de trabalhos inéditos Inesperadamente, uma voz de criança deixou todos
dos frequentadores das sessões mensais de boquiabertos. Teria, talvez, quatro anos e da sua
poesia vadia. Na contracapa, o objetivo da boca soltaram-se alguns versos. Animada, de olhos
sua existência e que não posso deixar de aqui sorrindo, terminou de forma efusiva com: — Mãe,
transcrever: mãe! Viste como eu sei os teus poemas? Uma
sonora salva de palmas deixou a progenitora de
“Para que a poesia nunca mais fique lágrimas nos olhos.
aprisionada nas gavetas da memória, ou Serenados os ânimos, e embora não tenha havido
esquecida numa folha de papel que ninguém coordenação prévia, a declamação de poemas
lê. Porto de abrigo para os poemas que continuou de forma alternada até que, aos poucos,
queremos partilhar. Convite à imaginação de as pessoas se foram ausentando, despedindo-se
quem escreve. Janela aberta no campo fértil até ao próximo sábado.
das palavras por publicar. Uma forma diferente
de comunicar, sem pretensões de excelência
literária: cada poema tem o peso das emoções
e a qualidade que o autor exige a si próprio.”
47
SALTANDO DO PARÊNTESIS
ALVORADA
48
Escolhi quem não tinha medo de um
mundo tão cheio de génios, ao ponto de
não se conseguir reconhecer nenhum.
Tinha também um trejeito nos mamilos
apetitoso. Censurado! — isto por mim
mesmo, que são outros quinhentos, e
revela-se aqui um obsceno atentado à
decência. Ainda que sejam eles a mais «Ler é meter a
bela das artes. Espetei-lhe um beijo de
língua no dia em que me deu a coragem.
engrenagem do
E se me dessem um superpoder, que pensamento a
fosse apalpar-lhe a alma, ter mãos para o
tanto que aquilo era!
trabalhar, escrever
“Nem todos os que leem são ativistas é meter a máquina
mentais, literários… o que lhes queiras
chamar”, continuei ingenuamente. a todo o vapor.
Sorriu-me num fragmento de segundo Há um jogo de
e, logo depois, meteu a voz de fogo
que tem a paixão, para me dizer — A imaginação e
força da cadência das palavras, dos
palavras, que cria
pensamentos alinhados, pujantes e
profundos nem sempre é percetível. uma linha paralela
O encontro do livro com aquele que
lê escarra-lhe a possibilidade de
ao tempo, que
ordenar as sensações, os argumentos, nos embebeda de
os pensamentos. Nasce a habilidade
de legendar capazmente memórias e
possibilidades.
histórias. Há um nascer, um despertar, É um confronto
um refletir e depois um bailado. Não
nascemos todos no mesmo dia. Ler é
do pensamento
meter a engrenagem do pensamento com a ação. E dói,
a trabalhar, escrever é meter a
máquina a todo o vapor. Há um jogo quase sempre. Há
de imaginação e palavras, que cria uma resiliência
uma linha paralela ao tempo, que nos
embebeda de possibilidades. É um avassaladora
confronto do pensamento com a ação.
nas palavras
E dói, quase sempre. Há uma resiliência
avassaladora nas palavras organizadas. organizadas.»
Somos, por dentro, infinitos pontos de
vista. E há uma luta e um amor que se
faz com todos eles!
O ativismo literário! Oh, que maravilha!
Casamos. Ela comigo e eu com uma
infinidade de possibilidades. Cheirar-
-me-á, acima de tudo e eternamente,
a Amor.
49
SALTANDO DO PARÊNTESIS
BIBLIOTECAS, UM MEIO
DE DEMOCRATIZAÇÃO
DO ACESSO AOS LIVROS
E À CULTURA ISAURA BENTO CORREIA
50
biblioteca sentia-me em casa. Ainda hoje, sinto da leitura e da escrita? Ao divagar sobre a minha
que estou num lugar sagrado, num mundo de ancestralidade, lembrei-me de que a minha avó
vidas reais e imaginadas. gostava de contar histórias e dizer provérbios.
Nas leituras que influenciaram esta fase estão A minha mãe, que tem apenas a quarta classe,
também os livros de romances cor-de-rosa das gosta de fazer versos. Só lhe descobri esta faceta
minhas tias. Tantos sonhos coloridos e paixões quando veio à Madeira e me escreveu uns versos.
vividas, amores platónicos. À noite tinha de me Na sua juventude também fez teatro.
deitar cedo. Lembro-me de fingir que ia dormir e As peças do puzzle foram-se juntando. Apesar
estar a ler até tarde. de não terem a oportunidade de estudar e
Passei tardes lendo livros, esquecendo o local desenvolver os seus dons literários, ambas me
onde estava e fazendo viagens por países transmitiram essa paixão. A diferença é que eu
desconhecidos — dialogando com personagens tive os meios para estudar. Apesar de, na altura,
interessantes sobre a vida, sobre os valores, não ter posses para comprar livros, as bibliotecas
sobre o meu lugar no mundo. deram-me a oportunidade de contactar com
Houve uma fase em que queria ser cientista. Os eles, de percorrer o caminho acompanhada pelas
livros do Carl Sagan despertavam a minha veia palavras. Para mim, ficou claro que as bibliotecas
de investigadora do espaço e do que está para democratizam o acesso à leitura e à escrita, para
além da Terra. Imaginava ser uma astrónoma. todos aqueles que de outra forma não teriam
Os livros policiais eram para mim outra área de acesso à cultura e aos livros.
interesse: Agatha Christie e o Poirot. Os mistérios Eu sou Eu, em grande parte, pelos livros que li.
por resolver, as pistas subtis, faziam-me ser uma Os meus tijolos são feitos de livros e o meu ADN
grande detetive. de palavras.
A escrita veio por acréscimo. Escrevia histórias,
principalmente poesias. O que me inspirava?
As vivências de adolescente, os amores e
as angústias. A escrita era uma catarse. Ao
escrever havia uma libertação das amarras dos
pensamentos e emoções.
A entrada para a universidade, foi outra mudança
na minha vida. A leitura tornou-se técnica e
«A escrita veio por
a escrita mecânica. A fonte secou. Ainda não acréscimo. Escrevia
consigo entender o que aconteceu. Houve um
adormecimento, a negação de uma parte de mim.
histórias, principalmente
Em agosto, fui de férias, à minha terra natal. poesias. O que me
Como sempre, fui à biblioteca, onde cresci
e viajei, sem sair da cidade. Aconteceu algo inspirava? As vivências de
inusitado. Ao falar com a funcionária, para adolescente, os amores e
requisitar um livro, ela foi ao computador e
verificou que eu ainda estava inscrita. Disse-me as angústias. A escrita era
que fui das primeiras a inscrever-me, porque a uma catarse. Ao escrever
Biblioteca tinha aberto nessa altura. Voltei a ser
adolescente, a sentir aquela chama dentro de havia uma libertação das
mim, a vontade de ler e escrever. Percebi que
amarras dos pensamentos
os livros sempre me acompanharam e ajudaram:
a resistir, a ultrapassar barreiras, a sonhar e a e emoções.»
projetar-me numa vida diferente.
A questão permanece. O que me levou à paixão
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DA PALAVRA À FORÇA
A VIDA
(MAIS OU MENOS) JÚLIA DOMINGUES
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DA PALAVRA À FORÇA
ESCREVER
ANTES QUE A
TINTA SEQUE ANA COSTA
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DA PALAVRA À FORÇA
DA PALAVRA MANUELA VIEIRA
À FORÇA
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DA PALAVRA À FORÇA
SE PASSASSE
UM FILME HELENA GREGÓRIO
RETRATANDO
A TUA VIDA
“Se passasse um filme retratando como um troféu ganho. Até aos trinta e nove anos,
a tua vida, assistirias na sala com inconscientemente fechei os olhos, tapei os ouvidos,
a família?” ignorei a intuição que me dizia não merecer aquele inferno.
O meu rosto estava envelhecido carreado de tristeza.
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DA PALAVRA À FORÇA
LEITURA MARGARIDA CONSTANTINO
«A paixão do colecionador de foi aceite pelo pai, que substituiu o desgosto pelo incansável
livros assemelha-se à do viajante. trabalho de jornalista. A mãe, em perpétuo suplício, sacrificou
Cada biblioteca é uma viagem; a vida para a consagrar à filha. Soledad tornou-se uma pessoa
cada livro é um passaporte sem exigente, manipuladora e maquiavélica, ao ponto de sentir
caducidade.» prazer em infligir sofrimento aos pais.
Irene Vallejo, O infinito num junco Aos quarenta anos, quando ficou só, não era a feiura que
saltava à vista, era a falta de amor-próprio. O universo, na sua
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61
GAVETA CRIATIVA
A ARTE
COMO
HUMANIDADE DAVID ROQUE
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«A literatura coloca-
-se no patamar difuso
da arte, sem ser
possível garantir
o exato contorno dos
sentidos. O significado
da literatura é vasto
e multiforme,
é a hidra mil vezes
renascida pela mão
dos escritores que a
alimentam, cada qual
com desígnios pessoais,
os medos, ambições,
taras, fantasias,
denúncias. »
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LÍNGUA MÁTRIA
PORQUE É QUE
UM REVISOR
DE TEXTOS DEVE ANA
SALGADO
RESISTIR?
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Quase que me atrevo a dizer que a revisão termos de organização, estrutura e clareza
é uma faca de dois gumes. Por mais que do conteúdo. Na verdade, tudo se poderia
cuidemos de um texto, por mais que sejamos resumir em tornar a leitura mais aprazível aos
dotados de um sublime olhar de lince, de uma futuros leitores aquando da publicação ou
visão atenta direcionada ao pormenor, um disponibilização dos textos definitivos.
estilo proficiente, quantos de nós, revisores, Aproveito para esclarecer um outro ponto
ao folhear o manuscrito acabado de publicar, com que geralmente sou confrontada.
nos deparamos com uma gralha esbugalhada a Muitas vezes me têm questionado por que
fazer-nos sinal. «Eh, eh, fintei-te! Nem deste por razão um texto traduzido para português,
mim nas tuas sucessivas leituras!» É ingrato? sendo que o tradutor é alguém também
É. Mas não podemos aspirar à glória da especializado em questões de língua,
perfeição, podemos antes atenuar esse golpe necessita de revisão. Não confundamos.
interiorizando que, afinal, somos mesmos Ambos desempenham funções diferentes
humanos e, em muitos casos, relembrar as e têm olhares diferentes sobre um mesmo
condições oferecidas para o desempenho de texto. Um bom entendimento entre estas
um determinado trabalho. Tenho defendido, duas classes, o apontar construtivo, são
em várias ocasiões, que o trabalho editorial de sempre mais-valias para cada um deles.
perfeição seria aquele em que fosse possível Reler e rever é também saber resistir. Uma
passar um mesmo texto por dois olhos forma de resistência que deve perdurar.
diferentes.
Contudo, desengane-se se ainda acredita
nesse mito enraizado de que a atividade se
resume à caça à gralha. Não. É muito mais do «Contudo,
que isso. Talvez fosse mais correto dizer que
mais do que rever nós, revisores, depuramos
desengane-se se
e polimos os textos. Um revisor, além das ainda acredita nesse
suas competências linguísticas, tem de ter
desenvolvido as suas competências textuais mito enraizado de
que lhe possibilitem um aprimoramento que a atividade se
dos textos, quer a um nível estrutural, quer
discursivo e estilístico. Como é que se resume à caça à
desenvolvem essas competências? Pela
prática associada à busca de conhecimento
gralha.
e a um incessante pôr em causa. A dúvida é Não.
nossa aliada.
Mas então, afinal, em que consiste a edição
É muito mais do que
e revisão de textos? São tarefas que se isso. Talvez fosse
relacionam com um exame minucioso
sobre o que se lê, em busca de lapsos e mais correto dizer
problemas, e é certo, caçando gralhas, que mais do que
mas distanciando-nos o suficiente para
poder julgar a compreensão e legibilidade rever nós, revisores,
da escrita linha por linha. É um trabalho de
depuramos e polimos
sapa, mas fundamental em qualquer escrito.
Em traços gerais, um revisor concentra o os textos.»
seu trabalho em questões ortográficas,
morfossintáticas, estilísticas, mas também em
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LUSOFONIAS
TIMOR, O PARAÍSO
OU O PAÍS A PRETO LUÍS
CARDOSO
E BRANCO
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tentasse, e bastas as vezes o fiz, nunca tivesse crianças que se aproximavam dos fotógrafos
encontrado no Álbum de Álvaro Fontoura, sem medo das máquinas fotográficas, dizia que
um dos governadores de Timor, alguém que só tinham olhos. Eram elas que fotografavam
sorrisse. Os homens mostravam-se sérios e os estrangeiros com os seus olhos luminosos.
hirtos e as mulheres apareciam despidas de Sorriam como se tivessem recuperado o paraíso
tronco para cima, submissas. Fizeram-me roubado aos seus antepassados. Eram sorrisos
lembrar os rebeldes que foram capturados e de crianças de um país independente.
exibidos como troféus. Timor é um estado soberano e com petróleo
Timor também foi o paraíso de Ruy Cinatti, que a alguns enriquece e a outros empobrece.
o poeta português que se apaixonou pelo Por debaixo do manto colorido que encanta
território onde terminava o império e por lá quem chega ao território, existe um país que
viveu um tempo da sua vida, depois de ter feito ainda é a preto e branco onde uma grande
o curso de agronomia em Lisboa. Descreveu-o parte da sua população ainda vive no limiar da
como sendo uma terra de paisagens com pobreza. Virá um dia em que Timor-Leste será
vultos. Os vultos eram os timorenses. Vultos que um paraíso, quando os timorenses o souberem
apareciam e desapareciam. Apenas vultos. Creio colorir com a sua experiência e sabedoria por
que o disse em defesa dos timorenses para dar cima da trágica memória da sua história.
a entender aos que mandavam em Lisboa que
nem tudo era um mar de rosas nas terras onde
o sol logo em nascendo vê primeiro, razão pela
qual teve alguns dissabores conforme o próprio
me confidenciou quando o consultei sobre os
solos de Timor. Lembro-me que andava muito
triste por causa da ocupação de Timor pela
Indonésia. Chovia. Pediu-me que fosse rezar
com ele por Timor, em plena Rua Jau. Tive uma «Não me
valente constipação que me fez ficar na cama
durante alguns dias. Coisas que uma pessoa faz lembro de
para alcançar o Paraíso.
Na adolescência, nas minhas andanças pelo
ter tido
território que aliás descrevi no meu primeiro conhecimento
livro “Crónica de uma Travessia” tive a noção
que vivia num paraíso e, por ter tantas línguas,
sobre o Paraíso
também numa Torre de Babel. Chorei com na minha
saudades do paraíso quando saí para estudar
em Portugal. infância. Achava
As primeiras imagens que vi de Timor depois que vivia num
da invasão indonésia eram a preto e branco,
de crianças esfomeadas, esqueléticas. Delas lugar, que para
fizemos cartazes e panfletos para mostrar ao mim era seguro,
mundo o que estava a acontecer numa terra que
devia ser o paraíso, para que a comunicação por viver junto
social mobilizasse as boas consciências e o caso
daqueles que
tivesse um final feliz.
Regressei pela primeira vez a Timor, um tempo me amavam.»
depois do referendo, para acompanhar José
Saramago, o nobel de literatura, que ao ver as
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CRÓNICA DO VIAJANTE
DEBAIXO
DO VULCÃO JOÃO VENTURA
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PALAVRA DE LEITOR
A SEGUNDA VIDA
DE OLIVE KITTERIDGE,
DE ELIZABETH STROUT TÂNIA
GANHO
(ALFAGUARA, 2021)
A Luz em Fevereiro
H á personagens na
história da literatura
que nos marcam e
acompanham para o resto
da vida, apesar de nos
suscitarem sentimentos
contraditórios, por vezes
mais negativos do que
positivos, como a frívola
Emma Bovary, de Flaubert, o
pedófilo confesso Humbert
Humbert, de Nabokov, ou
o atormentado assassino
Raskólnikov, de Dostoiévski.
A este meu panteão de
personagens indeléveis e
amores conturbados, junta-
-se agora Olive Kitteridge, «A autora americana,
de Elizabeth Strout. A autora
americana, galardoada com
galardoada com o prémio
o prémio Pulitzer, criou Pulitzer, criou uma Olive
uma Olive «tão Olive», que
se destaca das páginas e
«tão Olive», que se destaca das
se instala na cabeça dos páginas e se instala na cabeça
leitores como uma mulher
de carne e osso, uma dos leitores como uma mulher
velha ranzinza «que gosta de carne e osso.»
de falar de si própria» e
nos irrita, sim, mas nos
70
comove sobejamente. Poucos de nós teríamos finalmente as origens da violência no âmago da
coragem de admitir, como Olive, «Não sua família, o porquê de o seu irmão – que já
faço a mínima ideia de quem sou [...], não conhecíamos de Olive Kitteridge – ter assassinado
compreendo nada». uma mulher com vinte e muitas facadas.
Nos dois volumes de histórias que gravitam em Os temas são pesados, poderiam ser
torno de Kitteridge e se estendem ao longo de deprimentes, mas a escrita de Strout é magistral
vários anos, Strout apresenta-nos vislumbres e alterna parágrafos dolorosos, sobre o
das vidas de antigos alunos, vizinhos ou envelhecimento ou a solidão – «Há alturas em
familiares de Olive na (aparentemente) pacata que tenho tantas saudades do Henry, que
vila costeira de Crosby, no Maine. A povoação parece que nem consigo respirar», diz Olive, a
é ficcional, mas, tal como os seus habitantes, dada altura –, com momentos hilariantes, em
entranha-se-nos na memória e deixa-nos que damos por nós a rir de situações absurdas,
saudosos das suas paisagens. Quando, neste como o despertar de Olive no hospital depois
segundo livro, Olive vende a sua casa à beira- de sofrer um ataque cardíaco. Acima de tudo,
-mar e se muda para uma vivenda num terreno Elizabeth Strout consegue apontar-nos, no meio
sem vista, sentimos uma intensa nostalgia da banalidade de vidas tristes e sensaboronas, os
daquela sua janela sobre a baía reluzente, à qual pormenores que as tornam únicas e faz-
nos sentámos tantas vezes com ela, no primeiro -nos pensar que a felicidade está mesmo nas
volume. E a Olive que se nos revela agora é pequenas coisas que nos rodeiam: «da entrada
uma mulher em pleno balanço de vida, ciente de casa, [Olive] via a floresta e todas as manhãs,
da sua mortalidade: «a sua vida estava quase a quando abria a porta, tinha noção da beleza do
acabar. Estendia-se atrás de si como uma rede mundo. Era uma surpresa para ela. Quando o
de sardinhas, com todo o tipo de algas inúteis, primeiro marido morrera, Olive não tivera noção
pedacinhos de conchas e peixinhos diminutos de nada. [...] Mas eis o mundo, agora, exibindo-lhe
e cintilantes...» Ciente, acima de tudo, dos seus a sua beleza dia após dia, e ela sentia-se grata.»
erros: «De repente, foi assolada pela horrível
vaga crescente da verdade: ela falhara e falhara
de maneira colossal. Devia andar a falhar há
anos, sem se aperceber.» O olhar de Olive, que
antes se centrava implacavelmente nos outros,
vira-se desta vez para dentro e a conclusão «Acima de tudo,
vai ao encontro dos sentimentos dos leitores:
«Percebeu que era ela própria que não lhe
Elizabeth Strout consegue
agradava, a si, Olive.» apontar-nos, no meio
Elizabeth Strout tem uma invulgar capacidade
de entrar na mente de cada uma das suas da banalidade de vidas
personagens e descrever, em pequenas cenas, tristes e sensaboronas, os
concisas e incisivas, momentos que as definem
em toda a sua complexidade humana. Nenhuma pormenores que as tornam
delas é de papel, nenhuma delas é plana, todas
nos fazem reflectir, horas depois de fecharmos
únicas e faz-nos pensar que
o livro, sobre as suas reacções e escolhas na a felicidade está mesmo
vida, como, por exemplo, o casal que durante
anos vive na mesma casa sem se falar e delimita
nas pequenas coisas
o espaço de cada um com uma fita adesiva que nos rodeiam.»
amarela no chão, e cuja filha lhes anuncia que
é dominatrix; ou a advogada que descobre
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BESTIÁRIO ARDILOSO
A VELHA
DAS FITAS
VERMELHAS PORVENTURA CORREIA
C onheci-a, ao acaso, em
reportagem, na vida urbana,
entre multidões comuns, quando
das Fitas Vermelhas como guia ou a nela dardejarem
ódio. Os aliados de peso são os transmorfos lobisomens,
os lamentosos corrilários, as moiras das rochas, as jãs
não aparentava ter mais do que fiandeiras, os moirinhos dos muros e as peeiras das fragas.
vinte anos, formosa e subtil garça. Quando juntos, dispõem-se a bravatas com temíveis
À noite, quando se invoca, dança cocas e papões, ou outros seres do mundo obscuro.
desvairada e revela a natureza Em estado de moça, é namoradeira e lúbrica. Quando
milenar: cabeleira nevada, rugas assume faceta de velha, prefere não se cruzar com humanos.
cavadas na face, dedos chupados Uma vez por outra, não se impede de dar castigo aos
e estalactites em vez de dentes. perversos que atormentam os animais sem propósito
No alvoroço da mutação, irrompe que não a malvadez. Jornais relatam a sorte dos que se
da cabeça a tiara circular de ouro, colocam ao alcance da lâmina curva do alfange de prata.
donde pendem a toda a volta As entidades policiais nada conseguem explicar e eu, apesar
fitas de seda vermelha, com um de saber os segredos da sombra, nada posso afirmar, sob
côvado de comprimento e dois pena de perder a cabeça.
dedos de largo. Oculta-se nesse Contou-me fonte segura, de íntima amizade, que ela
véu escarlate e permanece em viveu uma paixão centenária com um oniromante, o
silêncio até se sentir impelida mais belo, o melhor dos mestres. Tão poderoso que,
a montar o seu Cavalo de Cal e um dia, arrancou do sonho de uma criança o Cavalo de
correr pelos campos de alfange ao Cal, capaz de voar sem asas. Achou-o tão belo que não
alto, agitando as vestes nacaradas resistiu a ofertá-lo à outra metade de si, a Rapariga das
e as fitas de seda, criaturas vivas Fitas Brancas, como era conhecida naqueles tempos.
ondulando no ar. Porém, um dia, o oniromante saiu para um sonho e
No tropel desenfreado, madrugada não regressou. Três décadas ela esperou. Trinta anos
fora, combate os entes da desesperou. Depois, entregou-se à busca eterna, todas
escuridão e concede liberdade aos as noites correndo na sua fiel montada, o Cavalo de Cal,
animais encurralados, lacerando e alfange de prata em riste. A saudade ardia nos olhos.
trincos de pocilgas e cavalariças. As fitas brancas douraram, depois foram ocre escuro e,
Nem o cão subjugado à corrente por fim, o retinto rubi dos nossos dias.
de aço escapa à misericórdia Tanto procurou a justiça, que se tornou o rosto da justiça,
libertadora. Tal temeridade a mão do castigo e o olhar da acusação. Hoje, temem-na
impressiona as criaturas do mundo homens e criaturas do obscuro e até os deuses evitam
oculto, dispostas a aceitar a Velha os seus caminhos.
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73
SENTENTIA
CHEGADO
O FIM ANALITA ALVES DOS SANTOS
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75
SENTENTIA
O MILAGRE
FÁCIL
E POSSÍVEL JAMES
McSILL
É simples: se não
compreenderes
como se estruturam
«Se não compreenderes como se
estruturam as histórias, jamais saberás
as histórias, jamais
saberás como fazê-
como fazê-lo com a tua.»
-lo com a tua. Se
lidas com outros
no teu trabalho e
desconheces o que ***
se esconde por
entre o emaranhado Dois bêbados estavam no bar, há mais de três horas, enchendo a
de elementos que cara, até que um pergunta ao outro:
compõem uma — Onde é que você mora?
narrativa, não tens — Aqui, na rua do lado...
como ajudar ninguém, — Ah, vá... Eu também! Mas nunca te vi por aqui...
pois, para transformar — Minha casa é a da esquina com jardim na frente...
— Você está de brincadeira! A minha também é na esquina com
tens de saber o
jardim na frente...
que transformas,
— A minha é aquela amarela... número 743.
porque transformas
— Espera lá! Mas essa é minha casa!!
e até onde podes
— Não senhor! É muito minha!
transformar.
Sem parar a discussão, foram na direção da tal casa. Chegando lá...
— É aqui que eu moro!
— IMPOSSÍVEL! Quem mora aqui sou eu!
— Se eu. Tô falando que moro aqui, é porque moro!
— De jeito nenhum! Está me chamando de mentiroso?
— Estou sim, essa casa é minha!
E ficaram os dois nesse papo-furado até que a porta se abriu, e uma
senhora aparece furiosa e diz:
— BONITO, né? Pai e filho bêbados discutindo no portão!
***
76
Engraçadinha a piada? Voltarei a ela no fim
desta conversa.
Para já, prossigo com uma confissão:
«Desde
quando comecei a minha carreira como
consultor de histórias pensava que era sempre, as
uma arte cujos princípios se aplicavam
ao entretenimento ou ao marketing
pessoas são
e desvalorizava o seu valor para os movidas por
profissionais que — com o intuito de
alinhar, para fortalecer — lidam com
histórias:
a mente e, portanto, comportamento para entreter,
humano. Achava que o coach, por exemplo,
ao inserir uma história, interromperia o ensinar,
fluxo do tratamento, o que só iria atrasar, confortar e
ou distrair o cliente do ponto a que se
quisesse chegar. O mundo era outro, inspirar.»
então. No divã, quem contava a história
era o cliente e o terapeuta, na medida do
seu conhecimento, ia retirando sentido do
que ouvia. Alinhar uma história demorava
meses, anos ou talvez nunca acontecesse.
Hoje, contudo, aumentaram as buscas
por soluções mais rápidas, pelo ‘mude
a sua história, mude a sua vida’. E um
coach experiente poderá consegui-lo em
minutos, quer em privado, quer em grupos
pequenos ou em imensas multidões.
Desde sempre, as pessoas são movidas por
histórias: para entreter, ensinar, confortar
e inspirar. Para que transformes a ti e aos
outros, então, basta aprender a estrutura
de histórias realmente influentes. 2. Mostrando uma história em andamento
Há, pelo menos, cinco abordagens Usa uma história para explicar os detalhes
básicas de narrativa que valem a pena ser de uma estratégia bem ou mal sucedida.
exploradas. Às vezes é muito mais fácil contar uma
história sobre alguém, exibindo uma série
1. Mudança simples de estado de comportamentos úteis ou destrutivos.
Conta uma história em que o estado
inicial das personagens corresponde 3. Metáfora
ao do teu público. Em seguida, Recorrer à metáfora, pode ser uma forma
descreve um evento ou interação que eficaz de aproximação ao âmago de uma
faça com que as personagens passem questão. Por exemplo, se estás perante
para um estado mais positivo. O um grupo de diretores que não estão
relacionamento empático do cliente sendo úteis um para o outro, contas uma
com as personagens, levá- história sobre um bando de indivíduos
-lo-á também para esse estado mais fora da lei que perderam tudo porque não
positivo. concordaram nas decisões a tomar.
77
SENTENTIA | O MILAGRE FÁCIL E POSSÍVEL James McSill
78
«Quando comecei
a minha carreira como
consultor de histórias
pensava que era uma
arte cujos princípios
se aplicavam ao
entretenimento
ou ao marketing
e desvalorizava
o seu valor para
os profissionais que —
— com o intuito
de alinhar, para
fortalecer — lidam com
a mente e, portanto,
comportamento
humano. »
SENTENTIA
LITERATURA:
A VIAGEM
INFINITA LÉNIA RUFINO
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81
A BIBLIOTERAPEUTA SUGERE
BIBLIOTERAPIA
O QUE É SANDRA BARÃO NOBRE
82
encontro das suas necessidades
intelectuais, emocionais ou
espirituais. Naquele dia, o que
se revelou totalmente novo para
mim foi: 1) descobrir a palavra que
englobava tudo aquilo que eu já «Determinante é a figura
intuía sobre os efeitos da leitura;
2) perceber que o tema era do Biblioterapeuta, que
estudado cientificamente
faz a selecção cuidada dos
pelo menos desde a década
de cinquenta do século XX; 3) livros mais adequados às
encontrar centenas de artigos
científicos que evidenciam a
circunstâncias de cada
eficácia da Biblioterapia; um e que orienta os seus
4) descobrir que havia profissionais
de Biblioterapia.
clientes contribuindo para
No dicionário online de língua o seu bem-estar.»
portuguesa da Porto Editora, a
Biblioterapia é definida como o
“tratamento de doenças através
da leitura de livros2” , uma aceção
que faz apenas jus à vertente
clínica da Biblioterapia (onde
estão, aliás, as suas origens
mais remotas). Sendo esta uma
definição incompleta e redutora,
a fórmula a que mais recorro
— por ser igualmente sucinta
e inteligível, porém muito mais
abrangente —, surge num artigo3
de Dale-Elizabeth Pehrsson e No artigo “Biblioterapia: o estado da questão4”,
Paula McMillen, que definem a Ana Cristina Abreu, Maria Ángeles Zulueta e
Biblioterapia como o “facilitar Anabela Henriques explicam que a Biblioterapia
do desenvolvimento pessoal é: uma actividade da qual se pode beneficiar em
e da resolução de problemas qualquer idade (até crianças ou adultos que não
através dos livros”. É claro que os saibam ler); pode ser praticada individualmente
problemas podem ser também de ou em grupo; revela eficácia quando os
ordem médica, mas esta definição problemas já se declararam, mas também pode
contempla já a Biblioterapia de ser aplicada de forma preventiva; e permite o
Desenvolvimento Pessoal, que recurso a textos de todos os géneros
ganhou pujança a partir dos (de ficção ou não).
anos sessenta do século XX e Determinante é a figura do Biblioterapeuta,
que levou o método muito para que faz a selecção cuidada dos livros mais
além do contexto hospitalar, adequados às circunstâncias de cada um e que
nomeadamente para o dia-a-dia orienta os seus clientes contribuindo para o seu
de qualquer pessoa em princípio bem-estar através do processo de psico-
saudável. -dinamização5 que é espoletado pela leitura.
83
A SUA
REVISTA
LITERÁRIA
PALAVRAR.OPRAZERDAESCRITA.COM
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