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Coletânea

Mulherio das Letras

para Elas

às meninas e mulheres afegãs

Copyright © Amare Editora & Ser MulherArte Editorial, 2021

Coletânea Mulherio das Letras para Elas @ Mulherio das Letras, 2021

Editoras :: Amare Editora | Ser MulherArte Editorial

Organização :: Vanessa Ratton


Coautoras :: Várias (56)

Formato :: Livro digital (PDF)


Revisão :: Vanessa Ratton
Projeto grá co e capa :: Chris Herrmann
Diagramação :: Chris Herrmann

ISBN :: 978-65-00-31630-8

FICHA CATALOGRÁFICA

CRB8/7964

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

A distribuição desta obra é gratuita e sua reprodução permitida, desde


que o conteúdo não seja alterado e as fontes/autorias citadas.

Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

Brasil, 2021

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Índice

Mulherio das Letras 8

Apresentação 11

Adriana Pardo Malt 16


Adriane Gonzale 18
Aline Brand 20
Ana Paula Ene 23
Angela Ferreir 27
Aninha Martin 29
Beth Fernande 32
Carine Martin 33
Carolina Mirand 34
Chris Herrman 35
Clarissa Machad 36
Cláudia Almeida (Negra Luz 39
Deborah de Almeida Mon 40
Dilma Barroz 46
Dirce Carneir 48
Edna Marque 49
Elisabete Pereir 50
Flávia Ferrar 51
Isa Corgosinh 52

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Isabel Campo 54
Isabelle Pire 56
Josuelene da Silva Souz 63
Jaque Machad 65
Kátia Santo 67
Laura Jane Vida 68
Lilly Maga o 70
Line Zanscal 72
Liz Rabell 75
Mara Magañ 76
Maruschka de Mello e Silv 78
Monique Franc 79
Nic Cardea 81
Nilza Freir 83
Nirlei Maria Oliveir 84
Palmira Hein 86
Patricia de Campos Occhiucc 87
Paula Ania 89
Raquel Lope 90
Rita Queiro 91
Rochelle Melo Pereir 93
Rosa Paul 94
Rozana Gastaldi Comina 96
Rose Calz 97
Sabrina Morai 99
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Samanta Aquin 101
Sandra Ramo 103
Sergia A 105
Shirley Lim 107
Silvia Schmid 109
Silvia Silv 111
SOL Figueired 112
Thaís V. Manfrin 113
Taty Regin 114
Valéria Pisaur 116
Vanessa Ratto 117
Vânia Percian 119
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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Mulherio das Letras

O Mulherio das Letras é um movimento literário


feminista que tem como premissas a horizontalidade, a
sororidade, a ampliação da participação das mulheres e
a divulgação das obras de autoria feminina.

Nasceu em 2017 e realiza encontros nacionais


presenciais e virtuais anuais e encontros regionais
promovidos por suas articuladoras. Hoje são mais de
sete mil mulheres escritoras, ilustradoras, poetas,
roteiristas e dramaturgas em todo o Brasil, e brasileiras
que vivem na Europa, África e Estados Unidos. Assim, já
somos um movimento internacional caminhando para o
seu quinto ano de produção e agitação literária.

Infelizmente, diariamente, em nosso país e no


mundo, as mulheres ainda são discriminadas. No Brasil,
com a pandemia, a violência contra a mulher aumentar,
principalmente contra as mulheres negras, indígenas e
trans.

Sabemos que somos diferentes, mas nosso amor à


Literatura nos une. E não podemos nos calar diante da

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

situação ameaçadora que nossas irmãs afegãs estão


vivendo neste ano de 2021.

Através da Amare Editora, empresa que nasceu,


quando o Mulherio das Letras me fez editora —
organizando anualmente suas coletâneas e contando a
história do movimento e divulgando mulheres poderosas
em sua escrita — levantamos nossas vozes, mais uma
vez, para a resistência feminina.

Que todos os nossos governantes saibam que


esperamos mais ações no combate à violência contra as
mulheres e o posicionamento do nosso país e ajuda
humanitária aos afegãos.

Agradecemos à jornalista Adriana Carranca que


prontamente atendeu nosso chamado para falar com
propriedade sobre a situação das Mulheres no
Afeganistão. Muitas de nós conhecemos essa dura
realidade através do trabalho dedicado e de sua obra
Malala.

Adriana que ouviu diversas mulheres afegãs e


vivenciou estar naquela cultura pode sentir a empatia,
pois fez a escuta sem julgamento de uma realidade
diferente, de uma outra cultura com outros valores.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

A maioria de nós tem uma pequena janela para o


mundo exterior, muitas vezes, um olhar mediado pela
imprensa ou pelos grandes potências movidas por
interesses que não estão claros.

Para muitas mulheres do Afeganistão a burca não é


um problema, como conta Adriana Carranca, é uma
cultura. Os problemas são outros, portanto não podemos
nos limitar a ela.

Existem muitas mulheres fortes que lutam para


ocupar espaços importantes e é sobre a participação
feminina no poder, sobre seus direitos ao estudo e a
seguirem as carreiras que desejarem e sobre o combate
à violência contra a mulher e ao abuso e à exploração
sexual que devemos falar aqui no Brasil, no Afeganistão,
nos EUA e em todo o mundo.

Vanessa Ratton
Organizadora da Coletânea


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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

Apresentação

Quando recebi o convite para escrever a


apresentação de uma Coletânea Mulherio das Letras
pelas Meninas e Mulheres do Afeganistão, aceitei
imediatamente por dois motivos. Primeiro, porque
conheci o movimento, ainda em gestação, em um jantar
com Maria Valéria Rezende e Ângela Lago durante a Flip
— Festa Literária Internacional de Paraty, em 1 de julho
de 2016. Naquele momento, eu soube estar
presenciando o nascimento de um movimento literário
histórico.  

Depois, pareceu-me extraordinário que escritoras


brasileiras estivessem interessadas em voltar seu olhar
sensível para mulheres afegãs e expressar o que viram
em poemas, cartas e manifestos. Lembrei-me da fala
poderosa da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi
Adichie sobre os riscos de uma única narrativa.

Por uma dessas coincidências surpreendentes da


vida, dias atrás tive a oportunidade de conversar sobre
este assunto com Chimamanda. O noticiário
internacional alertava para o retrocesso e os perigos que
a volta do Talibã ao poder central em Cabul representava,

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

e nossa conversa caminhou naturalmente para a


condição das mulheres afegãs.

Compartilhei com Chimamanda algumas das


experiências e impressões que tive nas viagens que z
como repórter ao Afeganistão. Falei a ela sobre Shamsia
Hassani, a primeira gra teira afegã. Sobre a violoncelista
Meena Karimi, formada pelo Instituto Nacional de Música
do Afeganistão. Sobre a deputada Fauzia Ko , primeira
mulher a ocupar o cargo de vice-presidente do
Parlamento na história do Afeganistão. Sobre a médica
Massouda Jalal, a primeira mulher a se candidatar à
presidência do país. Sobre a primeira equipe de boxe
feminino do país. Sobre skatistas, ciclistas, estilistas,
jornalistas, fotógrafas e outras.

Mas, não é delas que a maioria se lembra quando


falamos sobre as mulheres afegãs. No consciente
coletivo as mulheres afegãs não têm rosto nem corpo,
escondidos sob a burca.

Os Estados Unidos, em busca de apoio para a


entrada e permanência das forças americanas no
Afeganistão, explorou intensamente essa imagem,
replicada e compartilhada à exaustão em todo o mundo.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

Tanto que se tornou impossível enxergá-las de outra


forma.

Vemos a burca e automaticamente presumimos


esconder uma mulher oprimida, sem estudo,
desinformada, submissa, provavelmente pobre, incapaz.
Vemos a burca e sentimos pena mesmo antes de
conhecermos a pessoa sob o manto azul, “uma espécie
de pena paternalista e bem-intencionada”, como
descreveu Chimamanda sobre o sentimento de sua
colega americana em relação a ela, antes mesmo de
conhecê-la, apenas por ser nigeriana. “Ela tinha uma
única história da África, uma única história de catástrofe”
Chimamanda disse. “Nessa única história, não havia
possibilidade de os africanos serem semelhantes a ela de
forma alguma, nenhuma possibilidade de sentimentos
mais complexos do que a pena, nenhuma possibilidade
de conexões como seres humanos iguais.” O mesmo
pode ser dito sobre o Afeganistão. Vemos a burca, mas
não a mulher afegã.

Isso não signi ca ignorar os desa os e os


problemas que enfrentam — e são muitos — ou
minimizar a gravidade das violações de direitos humanos
que muitas sofrem, mas enxergá-las em toda a sua
complexidade.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Considerar ou narrar apenas o que é imposto a elas


é também uma forma de violação. É negar reconhecê-las
como protagonistas de suas próprias vidas e histórias. É
impedir que sejam vistas por inteiro, da mesma forma
que impõem os Talibãs. E, como me disse a
paquistanesa Malala Yousafzai, que sobreviveu a um
atentado dos extremistas e se tornou a mais jovem
ganhadora do Nobel da Paz, somos não apenas o que
vemos em nós, mas o que os outros enxergam em nós.  

Ao propor que escritoras brasileiras voltassem o


olhar para as mulheres afegãs, Vanessa Ratton e Maria
Valéria Rezende levantam uma ponta do véu sobre elas.

Adriana Carranca
Jornalista


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Dedicado às
meninas e mulheres afegãs,
em especial, à Malala Yousafzai
- Prêmio Nobel da Paz -
e à artista plástica
Shansia Hassani

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

ADRIANA PARDO MALTA


PESADELOS NO AFEGANISTÃO

Nasci mulher,

Cresci mulher.

Sonhei sonhos: amores, estudos, pro ssões.

Desde o início, percebi sombras no meu caminhar.

Às vezes, perto

Às vezes, distante...

Uma noite adormeci

e amanheci com o sol encoberto pela tinta vermelha.

Cores desbotadas se apossaram do meu dia

e eu voltei a dormir.

Pesadelos! Sim, eram pesadelos!

Vi minha mãe professora ser retirada da sala de aula.

Vi minhas irmãs queimarem seus diplomas e seus


uniformes.

Vi minhas tias se esconderem desesperadamente em


lugares insalubres.

Vi minhas amigas tentando fugir para destinos


desconhecidos e descoloridos.

Vi minha lha ser entregue aos soldados americanos!

Com todas as minhas forças, tentei acordar!

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

Vi que o meu corpo fora coberto novamente pela


vestimenta opressora e eu só conseguia enxergar os
meus olhos.

E pelos meus olhos,

vi a minha alma livre, liberta.

Eles não conseguiram encobrir a minha alma.

Eles! Sempre eles!

Elas! Sempre elas!

No distanciamento dos pronomes,

a eterna segregação dos direitos.

Na diferenciação dos artigos,

o signi cado covarde da superioridade.

Mas, alma sempre será alma.

De nitivamente: Alma!

Então, percebi que não estava a dormir.

E não era um pesadelo!

Meu corpo anestesiado pelo horror do cenário sombrio,


me alertava:

Não é hora de dormir.

O dia ainda envolto por nuvens empalidecidas,


continuava a amanhecer.

E eu permanecia mulher!

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

ADRIANE GONZALEZ
PARA MINHAS IRMÃS AFEGÃS

Escrevo para essas mulheres

sofridas,

que têm sua sina

marcada por homens,

que têm suas feridas

sangradas por homens.

Escrevo para essas mulheres,

minhas irmãs

de longe,

mas de tão perto

em alma.

Minhas irmãs

afegãs,

que têm seu destino

ditado por homens,

que têm sua vida

cravada de dor

por causa dos homens

e seus desmandos.

Escrevo por essas mulheres

trancadas

em casa

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por homens,

que têm sua voz calada

por homens.

Que são sujeitadas, reprimidas,

violentadas, sucumbidas,

dilaceradas, submetidas,

mutiladas, agredidas,

assassinadas por homens.

Escrevo por elas

e para elas.

O grito delas,

seja alto

ou silenciado,

é meu grito.

A dor delas

é minha dor.

Suas lágrimas,

derramadas

ou trancadas,

são minhas também.

Sua voz, violentamente calada,

é minha voz.

Escrevo para minhas irmãs

afegãs

e por elas, sempre.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

ALINE BRANDT
AFEGANISTÃO: O TRIUNFO MASCULINO?

Ano dois mil e vinte e um

Na conta do tempo cristão

Temos mais um retrocesso

Que a ige o Afeganistão

Em meio a uma pandemia

Talvez inédita na história

Vemos uma classe sem alma

Desfrutar de plena glória

Nós aqui do Ocidente

Assistimos comovidos

A a ição das mulheres

Alvo um desses bandidos

Brasil e pátrias outras

Todos têm os seus entraves

Mas lá no Afeganistão

O que ocorre é muito grave

Mulher - não importa sua idade

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Você é lindo ser de físico e alma No Ocidente ou no


Oriente

Causa surpresa a sua calma

Os bandidos a oprimem

Porque a tradição facilita

Tire a burca e mostre a eles

O quanto você é bonita

Eles têm armas de fogo

Têm bombas e até canhões

Mas você mulher do hoje

Pode murchar os machões

Afeganistão! Você nos assusta

Mostra um tardio retrocesso

Nós mulheres do Ocidente

Não vemos nisso um sucesso

Insolente ação masculina

Podia surgir de outra forma

Nem o sofrido afegão

Com seu impor se conforma

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Mulher - menina ou criança

O ser frágil no caso presente

É o feminino fora dos trilhos

É um poder que a gente sente

Ao abuso masculino

A que você se entrega

Dê um m de nitivo

A tudo que ele prega

Mulher de todos os planetas

Não subestime o seu poder

Que sempre esteve ao alcance

Mas o vital é exercer

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ANA PAULA ENES


LALEH SAYYID

Laleh Sayyid nasceu no Afeganistão em 2003. Estudava


para ingressar na faculdade de Direito porque queria
imergir nas leis e mudá-las junto às mulheres que
lutavam, entre outras causas, pelo direito de dizer o
próprio nome em público. Apesar de alguns avanços que
a História lhe contava, sua identidade ainda era apagada,
sentia-se um acessório na sociedade: a lha de Abdul, a
irmã de Jamaa, a funcionária da loja de calçados de
Homayoon. Quando ousava dizer que tinha um nome,
era reprimida ou ignorada.

Sua xará Laleh Osmany iniciou a campanha


#WhereIsMyName, que lutava pelo direito de dizer seu
nome em seu país. Gostaria de dizer aonde fosse que se
chamava Laleh Sayyid e estudava Direito e não que era
lha, irmã e funcionária de alguém.

Além da História, sua mãe contou que era muito pior


antes de 2001. Naquela época existia o Talibã e, se ainda
existisse, Laleh não poderia sair de casa
desacompanhada, nem estudar, nem trabalhar, nem
sonhar em dizer o nome; teria de usar a burca, não teria
como tomar sol, nem encontrar as colegas de sala para
estudar antes das provas ou saborear ferni em algum

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

restaurante. Então, naquele momento, reconhecia que


tinha uma certa liberdade, agarrava-se a ela e tinha
esperança em dias melhores.

O Afeganistão tinha um presidente, mas seu governo era


frágil e corrupto. Desde que nasceu via armas de todos
os tipos, muitos homens fardados e ouvia dizer que os
Estados Unidos da América estava ali para proteger a
população afegã mesmo tendo matado mais de 47 mil
civis no início da década de 2000. Soube também pela
História que esses mesmos “heróis” foram responsáveis
por armar e treinar rebeldes para lutar contra um governo
socialista instaurado em 1978. Depois de 10 anos de
guerra contra os soviéticos, fundamentalistas islâmicos
subiram ao poder e, em 1996, o Talibã deu o golpe no
governo vigente estabelecendo suas leis radicais e
totalmente deturpadas da Sharia.

Laleh preferia acreditar numa proteção americana seja lá


qual fosse, a nal, foi educada ouvindo o quanto a
sociedade afegã tinha evoluído nesses 20 anos, apesar
dos mortos, apesar de permanecer muito pobre. Mas há
tempos percebia uma movimentação estranha no país,
lia as notícias, assistia aos telejornais, acessava a
internet e soube do Acordo de Doha: os “heróis” tinham
cumprido a missão de acabar com a Al-Qaeda
(organização abrigada no Afeganistão) há muito tempo e
mataram Osama bin Laden (chefe da Al-Qaeda que

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explodiu as torres gêmeas do World Trade Center em


Nova York em 11 de setembro de 2001, matando quase 3
mil pessoas) há 10 anos, portanto, o governo
estadunidense, na voz do presidente Donald Trump,
considerava razoável a paz com o Talibã e retiraria as
tropas internacionais do país. O frágil governo afegão
que se virasse para conter a onda fundamentalista que
retornava como um tsunami.

Tudo aconteceu muito rápido naquele dia. Só teve tempo


de ir à escola pegar alguns livros na biblioteca que, em
seguida, foi incendiada. O Talibã tomou tudo e grande
parte da população entrou em pânico. Laleh, assim como
as outras mulheres, foi demitida da loja de calçados do
seu Homayoon sob um olhar resignado.

Ao retornar para casa, encontrou sua mãe colocando


suas roupas numa pequena mala. Disse, aos prantos,
que não permitiria que a lha vivesse o pesadelo que ela
já conhecia. A despedida foi breve para não ser mais
doida. Seu pai a esperava no carro que saiu em
disparada em direção ao aeroporto.

O destino foi impossível de ser alcançado, então Laleh


precisou ir andando o restante do caminho em meio a
uma multidão desesperada para sair do país. A partir dali
estava só (e não), tinha apenas uma mala pequena e uma
bolsa a tiracolo com seus documentos e o livro que

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conseguiu levar consigo. Sentiu medo, mas precisava


prosseguir sem olhar para trás. Juntou-se aos milhares
de compatriotas, seu povo a ito, triste, enfraquecido,
que preferia deixar tudo para trás a voltar a ser refém de
um governo maldito e ainda pior com as mulheres.

Laleh conseguiu entrar em um dos aviões estacionados


no aeroporto. Não sabia qual o destino dele, mas se
sentia menos vulnerável em companhia de tantos que,
como ela, não sabiam para onde iam, mas se sentiam
aliviados em sair. Ela só conseguia pensar que, seja lá
para onde fosse, poderia dizer seu nome. 


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ANGELA FERREIRA
FORÇA FEMININA

Por baixo de tecidos

Há um corpo que padece

Sonhos arrefecidos

Muitas vezes perece

Envoltas no véu da dor

Cinza, a cor do rmamento

Fel, o sabor do amor

Sufocado lamento

Jamais desistir de si

De mãos dadas, orar

Livre como colibri

Sempre bom esperançar

Com palavras descrevo

Seu destino traçado

Tempo seja longevo

Há alguém ao seu lado

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

No poema, na luta

Em apoio a causa

Força da natureza

Sem trégua, nem pausa

Agirá, certamente

Cuidando de todas nós

Mulheres fortes, sábias

Não cessemos nossa voz!

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ANINHA MARTINS
PEDIDO

Liberdade arrancada

Imersão no perigo

Coração acelerado

Vida agitada

Tão sem sentido!

A nuvem escura paira

Prenúncio de dias sombrios

De noites tempestuosas

Pra onde ir?

Como fugir?

O redemoinho

Leva e traz

Para o mesmo lugar

Não joga longe

Rodopia, gira...

A mente está confusa

As emoções doem

Os inocentes,

Sem nenhuma culpa,

Padecem

Atordoados

Sem nada entender.

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O mundo está confuso.

Por quê?

Destino.

Será?

Livre arbítrio!

Onde está?

Mas se todos têm poder,

Poder de decidir

Seguir na estrada promissora

Por terra ou por ar,

Para em outras paragens

Chegar

Fugir de todo mal

Imposto pelos "irmãos"

Que derramam o sangue

Que não correm em suas veias

São apenas, lhos do mesmo Pai.

Sol da manhã,

Se faça nascer!

Arrebenta as nuvens

Escuras e pesadas

Que encobrem a luz

Impedindo muitos

De caminhar

Buscar o horizonte

E alcançar a ultrapassagem

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De todas as fronteiras

Externas e internas

Trilhar o caminho dos sonhos

Margeando o vale da esperança

E das algemas,

Duras e frias,

Desprender!

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

BETH FERNANDES
À LUZ
 

Por trás dos olhos

por baixo do pano

um útero velado

dará à luz

(sempre dará)

um brado sagrado.

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CARINE MARTINS
MAR ABERTO

Tua uidez seria fraqueza

Não fosse o deslize do teu canal

Tua uidez seria beleza

Não fosse a força da sua cachoeira

Tua uidez seria correnteza

Não fosse mulher, eterno mar aberto

NA BURCA

Sou mulher entre véus

Sou véus entre homens

Sou onça viva

Cativeiro de presas

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

CAROLINA MIRANDA
A ARTISTA AFEGÃ

As marcas da guerra nas paredes da cidade

São cobertas por contornos feitos por uma mulher afegã

Que todos os dias re ete, calcula e coloca tua ideia


através das tintas

É movida por ideais que fortalecem a paz

Cada arte tem vida

Colher ores enquanto o tanque passa

Procura conforto enquanto toca violão para o mundo

A cada balançar na janela o coração utua feito pipa

O barco de papel a tomar o mar

A libélula a voar distraída entre pólens e barulhos de


armas

As linhas do gra te a virar quebra cabeça da vida

Os encaixes a depender do olhar

Destreza em cada peça

Cuidado humanizado

A mistura do bem a sanar a dor


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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

CHRIS HERRMANN
O SONHO NÃO ACABUL

meninas, adolescentes, mulheres



deste país chamado Afeganistão

todas vocês que sonham como nós

não estão totalmente sós

com os maus de fanática mente

que acreditam ser sóis


juntas somos muito, muito mais

somos uma poderosa lua

que sente, ressente, míngua

logo dá a volta por cima

renova o ar, revira céus e mares

faz do luto a luta de mil mulheres

sonha, realiza suas verdades

com sororidade e liberdade

torna a brilhar


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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

CLARISSA MACHADO
CARTA PARA AS MINHAS IRMÃS

Minhas queridas irmãs,

Calcei os seus sapatos

E doeu-me muitíssimo

Meus pés tão distantes.

E minhas mãos que não

Podem arrancar-lhes o véu

E transformá-los em artes

Cênicas, plásticas, literárias.

E minha voz que custa a ecoar

Para revelar o que se esconde:

O nosso feminino tão sagrado

E o que eles mais temem:

O poder da mulher!

Queridas irmãs do Afeganistão,

Caminho em seus calçados

Em minha pobre imaginação

Para entoar o canto eterno:

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De que nós somos uma só

Ainda que sejamos muitas,

Somos as múltiplas faces

De uma só “Tribo-Mulher”.

Todas irmãs de alma

Todas mães de coração

Todas lhas em espírito

Uma das outras.

Somos a ciranda

A roda matrística

A terra-mãe ancestral

As rainhas de nós mesmas.

Em nosso reino uma palavra:

- Sororidade!

E nós salvamos uma à outra

- Somos nossas próprias princesas.

“Uma por todas e todas por uma.”

Todas por um só lugar

O nosso lugar de fala

Que muitos tentam

Da História riscar.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Nosso lugar que é esperança

É vida

É sonho.

Nosso lugar que é amor

É acolhimento

É paz.

Nosso lugar que é fé

E perseverança.

É união.

O nosso lugar de direito

Reservado pelo universo:

Um lugar chamado

Respeito!

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CLÁUDIA ALMEIDA (NEGRA LUZ)


DE DENTRO DA BURCA

De dentro da burca,

É ín ma a minha janela para o Mundo.

Um mundo em retângulo,

Fatiado para mim.

Um breu a mim posto, 

Que extrapola os olhos, 

Que molha o rosto.

Quer condicionar os meus sonhos,

Quer dominar os meus pensamentos,

Quer ltrar os meus sentimentos,

Imprime os passos que devo seguir.

Algo que se não mata, sufoca.

Algo que se não cala, impede de me ouvir.

Algo que, mesmo que não estando vestida,

Mesmo estando distante daquela vida,

E ainda que enfrentando as minhas lutas antigas, 

Só de me projetar naquela vida,

Justi cam os versos 

Que escrevo sobre o que senti.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

DEBORAH DE ALMEIDA MOND


CARTA ÀS MENINAS AFEGÃS

Porto Alegre, 22 de agosto de 2021.

Minhas queridas,

Estamos muito distantes umas das outras. Mas,


isso não me impede de tentar chegar pertinho do
coração de vocês e, quem sabe, em poucos minutos
acender uma luzinha ali. Reacender uma esperança e
contribuir para se manterem fortes. Vai aqui, então, um
colinho de amiga que embora não conheça vocês,
manda um abraço grande e um pedido para não
desistirem.

Hoje tudo parece muito confuso e o medo toma


conta de todos, mas saibam que não estão sozinhas.
Isso é muito importante. Estamos todas olhando por
vocês. Muitas mulheres lutam, atualmente, pela causa
das mulheres. Existe uma palavra difícil para isso:
“sororidade”. Isso signi ca, em poucas palavras, a
empatia entre as mulheres, sem julgamentos, ou seja,
cada mulher se coloca no lugar umas das outras, sem
disputas ou competições tolas. Não se enganem, somos

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

muitas. Todas crescemos em realidades diferentes, mas


com sonhos semelhantes.

Faz bastante tempo, mas um dia eu também fui


uma menina e o que me vem à mente de lembrança mais
marcante é a vontade incontrolável de crescer. Curiosa
sobre o futuro, planejava ser feliz e forte. E, com sorte,
bonita. A maioria das meninas tem sonhos assim. Vocês
devem ter seus belos sonhos também. Todos os sonhos
são justos e muitos se tornam reais. Mas, para que eles
aconteçam vocês precisam de ajuda. De orientação.
Para isso a melhor ferramenta é o conhecimento. Nunca,
nunca mesmo, abram mão ou desistam dele! Malala
Yousafzai ensina a todas que A educação é o poder das
mulheres. E por que ela a rma isso? Porque o
conhecimento eleva o ser humano. E, por consequência,
para nós mulheres ajuda a desestabilizar um sistema
preconcebido de controle e manipulação. Liberta a alma
feminina. Coloca em risco a supremacia machista que
ousa nos castrar, nos intimidar e nos controlar.

Explico melhor. No princípio dos tempos, em que a


humanidade sobrevivia apenas da coleta dos frutos da
terra a mulher era o símbolo do sagrado, a deusa era
feminina. Mãe terra. Tudo começou a mudar quando a
coleta se tornou insu ciente e o homem precisou caçar.
O trabalho exigia força física e os homens, desde então,
começaram a governar. Passaram a controlar o mundo e,

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principalmente, o universo feminino. Daí a violência


exercida com vigor durante a idade média e, infelizmente,
até nossos dias em muitos lugares. O centro do poder
era (e ainda é) masculino e isso foi a única realidade do
nosso planeta por muitos e muitos anos. Agora, já não é
tão simples assim.

Os nossos valores estão sendo reivindicados!


Tentamos todos os dias e em todos os lugares manter a
nossa dignidade. Para isso buscamos igualdade e
lutamos pelo acesso à educação e ao trabalho nas
mesmas condições dos homens. As coisas ainda são
muito difíceis às mulheres e precisamos derrubar muitos
muros e romper muitos grilhões todos os dias. Mas
estamos progredindo. Devagar, mas com força. Sem
desistir.

O que não se pode admitir é que coisas horríveis


sejam banalizadas e consideradas normais.
Chimamanda N. Adichie, uma escritora nigeriana
maravilhosa, a rmou na palestra/ensaio Sejamos todos
feministas que “Falar é fácil, eu sei, mas as mulheres, só
precisam aprender a dizer NÃO a tudo isso.” Ser
respeitada pela feminilidade e pelas opções não é favor,
é um direito. E isso não diz respeito a diferenças culturais
ou religiosas. Estamos falando de humanidade, de
direitos fundamentais e inegociáveis, que qualquer
pessoa pode e deve reivindicar em qualquer lugar do

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planeta. Inclusive eles, nossos homens. Eles merecem


ser felizes com mulheres felizes.

Assim, não é normal nem aceitável ser obrigada a


cobrir o rosto, a cobrir o corpo até os pés ou se casar
com quem não se conhece. Não é normal ser proibida de
estudar ou trabalhar. Não é normal ser agredida ou morta
por crimes que são crimes só porque algum maluco
resolveu que são. Deus não exigiria isso de nós. Nem de
nossas mães ou de nossas lhas. Nem de vocês!

Nossos corpos, nossos cabelos, nossos rostos são


nossos e devemos nos orgulhar sempre. Nunca se
envergonhem de serem bonitas. Todas são lindas!
Estudar é maravilhoso e ter um trabalho digno é
fundamental para nossa independência. O direito de
escolha por ter ou não lhos é nosso e de mais ninguém.
Casar é uma opção de vida e não cabe a ninguém nos
impor ou nos proibir de coisa alguma. Nossas roupas são
as roupas que escolhemos usar. Se gostamos de véu,
usamos véu. Se não gostamos de véu, não usamos.
Somos donas das nossas escolhas. O que importa é ter
isso em mente. Estar em paz com a condição de ser
menina. Não há culpa na feminilidade! Somos senhoras
dos nossos corpos e do nosso cérebro. Nada ou
ninguém tem direito à escolha sobre e por nós.

Vocês são jovens e têm o tempo a favor. Pensem


nisso. Tenham paciência. Muitas que vieram antes de

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vocês sofreram demais por tentar demonstrar que a


questão de gênero importa. Ser mulher exige resgate de
valores. Vocês vão conseguir, mas enquanto isso tentem
ser simplesmente meninas. Ajudem umas às outras,
cuidem de suas mães e de suas irmãs (no sentido amplo
dessa palavra). Alimentem-se bem, tentem olhar a vida
de uma maneira mais leve, não se deixem humilhar ou
fraquejar. Guardem energia e armazenem forças para
quando tiverem oportunidade de serem ouvidas.
Mencionando Malala de novo - e sempre, ela a rma com
sabedoria que os extremistas se assustam com uma
menina com livro. Percebem isso? Vocês estão (são)
caladas agora, mas nós ouvimos as suas vozes
silenciosas. E o mundo todo escuta vocês. E é
exatamente isso que eles, os extremistas, temem. Não
abandonem os livros...

Como eu disse antes, somos muitas. Fiquem


unidas e perseverem. O segredo é não deixar a amargura
apagar a esperança. O mundo não é um lugar fácil, não
vou enganar vocês, mas é maravilhoso estar nele. As
opções que vão se abrir durante a vida de vocês serão
tantas que será difícil abrir mão de uma em favor de
outras. Viver é um privilégio negado a muitos. Vivam
felizes em homenagem a outros que não tiveram essa
sorte. Usem o tempo a seu favor. Preparem-se para
quando o momento oportuno chegar. E ele vai chegar.

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Brinquem, cantem, rezem, leiam e esperem. Esperar


sempre. As mulheres sempre aprendem a esperar.

Sejam meninas! Sejam sempre meninas.

Com carinho,

Deborah de Almeida Mond

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DILMA BARROZO
RESISTÊNCIA

a verdade não é o que está na vida

que escolhem pra mim

não é essa coisa tão terrena

é aquilo com que sonho

mesmo quando o sonho me parece

distante demais ou impossível

o livro que escrevo é vivo

ele não se solidi ca como asfalto

quando esfria em minha terra afegã

ele não se cala quando não posso falar

ele se movimenta e modi ca comigo

a coragem no ato de viver

sob tantos panos ordens e danos

e a coragem no ato de pensar

camu am um aparente subjugo

são duas fases duas faces

muito distantes

e ao mesmo tempo tão próximas

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palavras e silêncios são textos pra mim

mesmo que por não saber

ainda não os possa ler

creio no dia que virá rompendo

tudo que me limita

creio na força que um dia surgirá

de dentro de mim

e de companheira a companheira

passará de mão em mão

e se fará poder, luta e resistência

na ânsia de conhecimento e liberdade

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DIRCE CARNEIRO
CARTA ÀS MULHERES AFEGÃS

Desçam o véu da lua

soltem o laço do sol

ecoem o verso escandido

RETRATO DE MULHER

Debaixo da burca

busca de asas

borboletas no casulo

MULHERES ALADAS

Vestidas de casulos

gestam voos

pássaros ao grande anil

FILHAS DA TERRA

Tradição, crença, lugar

vestidas do pátrio

hábito não prende o pensar


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EDNA MARQUES
MULHER AFEGÃ
Que triste

Não ver teus olhos

Se queres mostrá-los.

O seu silêncio ecoa pelo mundo,

Nós mulheres te ouvimos.

Minhas lágrimas não a salvam, mas os

muros que eles constroem podem ser derrubados.

Seu caminho deve ser livre, a liberdade é pra todos.

Mulher afegã, cubra-se apenas de coragem.

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ELISABETE PEREIRA
AGRURAS DE UMA AFEGÃ

Meu clamor de dor, ouvir, só eu posso

No oprimido silêncio da minha solidão

A mim, apenas pertence o amor-próprio

E a vil sentença arbitrária da rejeição

Sobre as ideias que perfazem meus sonhos

E tudo o quanto me atrevi arriscar em ser

Numa realidade a que elmente me oponho

E conceitos primitivos, nunca hei de entender

Pois, cobrem meu rosto e despem meu corpo

Como uma das muitas formas de reverenciar

O tirano e austero pensamento do sexo oposto

Cuja a vida dei, mas, jamais soube me amar

E como as estrelas do rmamento intocável

Sou chama acesa que se apaga lentamente

Sobre um chão onde a penúria é suportável

Mas, estigmatizada na alma profundamente

Porquanto, se choro, agonizo e me entristeço

Também reconheço, em viver minhas mazelas

Que em cada face feminina que sofre desprezo

Indubitavelmente, existe uma afegã dentro delas

E de pesar, meu temeroso coração latente

Como quimera, paira seus olhos no futuro

Sedentos por gozar um dia, vida diferente

Em que ser mulher, vença a utopia de júbilo


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FLÁVIA FERRARI
MULHERES DE CABUL

Que homens são esses

que saíram dos úteros

E invadiram as casas

Querendo explodir o mundo

Que ódio é esse

Que condena o futuro

Mutila os corpos

Encerrados em caminhantes mortalhas

Essa dor ilimitada

Que conhece a tortura

Revela os ossos dos vivos

Anunciando a morte em agonia

Haverá ação possível

Na incompreensão absoluta

No grito abafado

que não alcança em tradução?

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ISA CORGOSINHO
FRACTAIS DE ESTRELAS

Empunhando arsenais

Pés espetados do fanatismo marcharam

sobre o solo calcinado

As barbas ásperas do aço

cortaram o ar em Cabul

Homens mulheres crianças

Pânico desespero terror

Transtornados corpos escalaram

deslisaram

pelo ventre liso

quedaram livres

da aeronave  

em voo

No chão fustigado

os corpos ofegantes das afegãs

Aprisionados em burcas

arremessados aos portais medievais do Talibã

miraram com desprezo

agonia

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Os soldados

ocidentais que fugiam

deixando ecos retóricos

da liberdade _

fractais de estrelas _

trapos da bandeira

nas garras empedernidas

da águia traiçoeira!

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ISABEL CAMPOS
FEITO BORBOLETAS

Sonhos coloridos
feito borboletas,

acenam tristemente

às ores que se quedam,

sucumbem...

À brutalidade.

Anjos comovidos

recolhem cestos de lágrimas

no jardim da Vida.

Todos os dias.

Leis, decretos, medidas...

Tentam barrar a maldade

das mentes doentias.

Desde cedo

mulheres à mercê

de violências veladas

e evidentes.

É urgente que se re ita

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a mentalidade machista.

E se alcance

a capacidade de pensar,

perceber,

internalizar;

Toda or tem o direito de brilhar

plena

sob o grande céu.

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ISABELLE PIRES
NEM VESTIDOS, NEM MAQUIAGEM

Eu sou Conradine Aruti e não sei como será o meu


futuro. Há muitas restrições agora. O Talibã ordenou que
um homem precisa me acompanhar. Quando eu saio,
tenho que usar burca - esse traje que me cobre
completamente o corpo com uma treliça estreita à altura
dos meus olhos. Aqui em Ishkamish, distrito rural na
província de Takhar, fronteira nordeste do Afeganistão
com o Tajiquistão, os serviços são escassos.

Nos primeiros dois dias após a chegada do Talibã a


Cabul, as ruas da capital também começaram a dar
sinais dessas mudanças restritivas para as mulheres. Se
elas não usarem véu, se maquiarem ou usarem vestidos
de festa serão arrancadas ou cobertas de tinta. Em Cabul
as mulheres sentem medo e falta de esperança. Olhamos
para o porvir e enxergamos uma fumaça nebulosa. A
cidade é silenciosa depois que o Talibã governa a capital.
Nossas casas são o nosso cárcere.

Eu tinha muitos planos para o meu futuro, mas


agora não posso trabalhar nem ir para a universidade. E
quando digo “tinha” é nesse tempo mesmo de dúvida, de
incerteza que me coloco, porque não sei como será
nosso futuro. Isso me fez perder a esperança. Estou

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procurando uma maneira de sair do Afeganistão porque


não há esperança para as mulheres aqui. O quanto
teremos que perder para provar que temos direito à vida,
à educação, ao conhecimento?

Lembro-me da Malala Yousafzai, que aos 14 anos


sofreu um atentado por lutar em defesa da educação
para nós mulheres e nossas meninas. Ela é a
sobrevivente de um atentado talibã no ano de 2014 e se
tornou a pessoa mais jovem a ganhar o Prêmio Nobel da
Paz, apenas com 17 anos! Ela é uma “voz que clama no
deserto” porque seu papel na sociedade em defesa da
Educação é transformador!

Mas Malala teve sorte. Sobreviveu e anda lutando.


A Mena Magal não. Ela foi jornalista e tinha 27 quando foi
morta a tiros em uma rua de Cabul. Na ocasião, muitos
suspeitaram dos talibãs, mas, no Afeganistão, a violência
contra as mulheres é endêmica. A polícia priorizou a pista
familiar e considera que o ex-marido de Mena teve,
provavelmente, um papel neste crime cometido por
homens em uma moto. Esse assassinato gerou forte
indignação pela situação das mulheres afegãs, com
frequência, vítimas de assédio, violência doméstica e
sexual, assim como de discriminação. Não é fácil ser
mulher afegã.

Mangal lutou muito pelo direto de ser e existir.


Depois de apresentar uma ação por violência conjugal e

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ameaças de morte, conseguiu seu divórcio, o que é uma


verdadeira corrida de obstáculos para as mulheres da
república islâmica, pois as decisões judiciais tendem a
favorecer os homens. Pouco antes de seu assassinato,
ela conseguiu publicar uma mensagem nas suas redes
sociais, a rmando que havia sido ameaçada de morte,
mas não identi cou o potencial agressor. Infelizmente, o
assassinato de Mena não é o primeiro. Sua voz ainda
clama.

Cinco anos atrás, em Cabul, o caso de Farkhunda


também se tornou símbolo da violência endêmica, à qual
as afegãs são submetidas. Ela foi agredida por uma
multidão até a morte sob uma falsa acusação de queimar
o Alcorão, uma blasfêmia! Seu cadáver foi por m
queimado. Inferno religioso! Outra mulher teve o nariz
cortado pelo marido e de uma jovem sequestrada e
assassinada. A violência contra as mulheres é comum e
vivemos a “cultura da impunidade”! Faltam sanções
apropriadas e a corrupção do sistema judiciário deu aos
homens esse sentimento de impunidade.

O mundo sob a íris da mulher afegã é um caos.


Estamos em 2021 e ainda precisamos, a despeito de
tantas lutas, prosseguir. Mas estou sem esperanças. Eu
estudo Ciência da computação (o que é muito incomum
às mulheres daqui) na Universidade de Cabul e fui
agredida junto à multidão que tentava pegar um voo para

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fugir do país no Aeroporto Internacional Hamid Karzai, na


capital. A multidão se empurrava junto com a polícia,
crianças e mulheres que estavam no chão foram
machucadas e eu sofri lesões nas mãos, pés e joelhos.

Tentei embarcar, mas não consegui e z um apelo


nas redes sociais para que algum país me conceda asilo.
Quero poder terminar meus estudos e acho que não será
um caminho fácil. Sinto como se estivesse em um túnel.
Não consigo ver nenhuma luz brilhante e não sei qual é o
comprimento do túnel. Antes disso tudo, antes do Talibã,
nem o mundo nem nossa própria república via realmente
a força da mulher afegã. Nunca foi fácil por aqui. Muitas
mulheres já foram ameaçadas, assediadas, sequestradas
e nalmente assassinadas, mas não houve um
mecanismo para investigar o crime e levar seus autores à
Justiça.

Se nós, mulheres do Afeganistão, ativistas ou não,


pudéssemos sentar-nos à mesa e conversar com os
militantes, eles poderiam ser inteligentes e se
conscientizar sobre os recursos que têm com as
mulheres do Afeganistão. É incrível como existem
pessoas que ainda não acreditam no que estamos
vivendo. Àqueles que estão dizendo que o Talibã não
incomoda ninguém em Cabul e que será por pouco
tempo, como vejo anunciar na TV, mando um recado: -
nenhuma mulher foi espancada ou incomodada porque

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ninguém ousa sair, como estavam acostumados!


Estamos em cárcere privado! Nossa casa é nossa gaiola.
Estou vendo pelas lentes do passado. Regresso vinte
anos e enxergo numa tela sem cores, o que minhas
companheiras sofreram quando os extremistas islamistas
estavam no poder por aqui. Eles proibiam as mulheres de
terem acesso à educação, con navam-nas em casa e as
obrigavam a usar burcas em público. Parece que hoje
não está diferente não é mesmo?

Quero trazer outra informação a vocês que lerão


esse texto. Nem saúde e nem educação. Não à
dignidade feminina! Vocês sabiam que as mulheres só
poderiam sair ou viajar com a presença de um homem da
família e até mesmo o acesso à saúde era limitado, pois
proibiram que fossem atendidas por médicos e
enfermeiros do sexo masculino. Sabiam também que o
marido, os irmãos e a sogra têm permissão para bater na
mulher casada, ação amparada pela religião? Sabiam
que muitos assassinatos são cometidos pela própria
família da mulher, com a participação de pai e irmãos, a
maioria por motivos absurdos, como a recusa em se
casar com um homem escolhido pela família?

Que o mundo nos veja! O Afeganistão é também aí


onde você está. Se você é mulher, você sente minha dor.
A mulher sempre é o alvo desses fundamentalistas
religiosos e, apesar de extremo o que estamos passando

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atualmente não é um “ponto fora da curva”. O


Afeganistão ontem e hoje não é novidade. Não sei como
será o meu futuro. O Talibã deu todas as indicações de
que irá reimpor seu regime repressivo. Em julho, a ONU
relatou que o número de mulheres e meninas mortas e
feridas por aqui nos primeiros seis meses de 2021 quase
dobrou em comparação com o mesmo período do ano
anterior. Isso te diz algo?

Aqui, nas áreas novamente sob controle do Talibã


desde o começo do ano, as meninas foram proibidas de
ir à escola e sua liberdade de movimentos foi restringida.
Eu escutei relatos de casamentos forçados. Estamos
colocando as burcas novamente e vejo a destruição das
evidências de nossa educação e vida fora de casa para
se proteger do Talibã. Viajamos de volta para 20 anos
atrás. Algumas mulheres são incapazes de deixar suas
casas, porque elas não podem pagar uma burca ou já
não têm qualquer parente do sexo masculino. Imaginam
isso?

Estamos caçando burcas e escondendo nossa


identidade! Nem vestidos, nem maquiagem! Não
estamos pintando nossos rostos, mas janelas para que
ninguém possa nos ver de dentro para fora. Eu imploro,
ouçam as vozes das meninas afegãs! não desviem o
olhar! Eu escrevo agora esta “carta aberta ao mundo”
porque não quero me calar. Não sei se meu saldo será

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como o da Sushmita Banerjee, escritora ativista indiana,


expatriada no Afeganistão, que não se encobriu e sua
voz teve o preço da morte. Suas linhas foram escritas
com sangue e seu eco foi silenciado na província de
Paktika por militantes, supostamente por desa ar os
ditames do Talibã. Eu não sei o acontecerá comigo. Mas
não posso emudecer. Eu sou Conradine Aruti e não sei
como será o meu futuro.

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JOSUELENE DA SILVA SOUZA


GRITOS REVERBERADOS

Somos mulheres

Vivemos

Amamos

Choramos

Somos mulheres de saia

Sem saia

Com vestido

Sem vestido

Somos mulheres com short curto

Sem short curto

Somos mulheres com burca

Sem burca

Somos mulheres de corpo e alma

Somos mulheres com corpos e almas aprisionados

por um sistema opressor

Somos mulheres presas pelo fanatismo religioso

Somos mulheres presas pelo fanatismo radical

Somos mulheres aprisionadas no lar

Somos mulheres aprisionadas no mar

Somos mulheres aprisionadas no ar

Somos mulheres aprisionadas no amar

Somos mulheres aprisionadas no cantar

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Somos mulheres aprisionadas no falar

Somos mulheres aprisionadas no pintar

Somos mulheres aprisionadas no trabalhar

Somos mulheres aprisionadas no lecionar

Somos mulheres aprisionadas no estudar

Somos

Mulheres

Aprisionadas

Sufocadas

Presas

pelo sistema opressor

pelo fanatismo religioso

pelo patriarcalismo novo

pelo machismo novo

Somos mulheres precisamos gritar bem alto

para a sociedade ouvir

Somos mulheres precisamos gritar

Gritar

Gritar

Gritar

Gritar

Falar

Falar

Falar

Precisamos!

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JAQUE MACHADO
L 34°31′41″ N L 69°10′20″ E

Nunca estivemos em Cabul, mas estivemos.

No não, na castração, na seletividade por gênero, na


violência, na morte.

Lá a al-amira, um nome bonito, é sudário das dores, a


cisma visual de todos os nãos, a coberta de estigmas
que invisibiliza a mulher.

Nunca estivemos em Cabul, mas estivemos em diversos


ashs da nossa vida, quanto mais escura a pele, mais
próxima de Cabul está a mulher.

Goteja na nossa fronte essa iniquidade para que nos


sintamos sozinhas, uma tortura.

E tentando contra essa força que quer nos separar e


acabamos, em verdade, chegando às vezes em Cabul,
mesmo que para aparar as lágrimas umas das outras,
como se quiséssemos em Cabul estar, mas não
desejando ir.

No entanto, eis a grande realidade: mesmo que fosse


possível todas nós por lá, não estaríamos.

Não é possível que entremos na pele sob a burca, não é


real a dor imaginária que atravessamos por elas na nossa
empatia, nem de perto.

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Estamos tão distantes de Cabul quanto nossa terra de


desigualdades está da estrela luminosa mais próxima.

E até, talvez seja razoável imaginar por um milésimo de


segundos que é adequado seus corpos estarem
cobertos, porque só assim conseguimos visualizar o
tamanho do sofrimento, das proibições, das violências e
das amálgamas dos pés femininos que trilham as vias de
Cabul.

Diferente dos corpos por lá, em outros espaços, entre


ruas e montanhas, campo e cidade, centro e periferia, as
violências, e só elas, é que são veladas, mas não em
Cabul.

Através do diminuto orifício elas veem o mundo, grande,


cheio de vida, um mundo que não lhes pertence mais.

Por esse buraco estreito as vemos, sua mira triste, seus


sonhos mortos, sua bata preta sufocante. Nunca
estivemos em Cabul, mas os gritos são os mesmos, as
bocas se contorcem da mesma maneira que as nossas,
e, apesar das nossas ilações sobre a liberdade na
medida e proporção a que estamos submetidas ao redor
do globo, podemos andar na rua somente com nossas
bocas vendadas, na Cabul que existe em todos os
lugares por onde quer que andemos.

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KÁTIA SANTOS
AFEGÃ

Metralhadoras não calam

A voz do meu coração

Sou vida pulsante

Sua fé, uma contradição

O véu só cobre meu rosto

Não cobre a signi cação

De um alma feminina

Com sua própria tradição

Ainda sou oralidade

Sem a sua interpretação

Minha luta tem validade

Apesar de sua rude mão.

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LAURA JANE VIDAL


UM LUGAR DE SILÊNCIOS...

Era um lugar de silêncios ... assim mesmo, no plural e


com reticências. A nal, eles eram muitos: sentimentos
calados, segredos guardados, verdades não ditas.
Nenhum deles estava ali para sempre. Segredos um dia
se revelam, sentimentos transbordam, verdades vêm à
tona. Assim, eles iam cando ... dias, meses, anos, quem
sabe quanto tempo? Por isso, aquele era um lugar
transitório, passageiro, semelhante a um porto: silêncios
chegavam, outros, partiam. Havia, por ali, silêncios
guardados por quase toda uma vida!

A mulher, que um dia fora a garotinha assustada e


molestada, guardara por tanto tempo lembranças
doloridas, que quase chegara a duvidar de si mesma! Ela
era tão criança quando tudo acontecera. As lembranças
podiam ser fruto de sua imaginação infantil? Quem teria
acreditado nela? Por isso, o silêncio. Calou-se por tanto
tempo, que quase esqueceu. Foi o que a ajudou a viver!
Seu silêncio refugiou-se ali, para que ela pudesse seguir
em frente. E ela seguiu.

Mas nenhum silêncio dura para sempre! Porque, à


semelhança da crisálida, que guarda a promessa de

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liberdade, um dia ele se rompe e, ao se romper, que


alívio, quanta leveza! Fora assim com ela. Ela agora se
sentia mais leve. Ela estivera lá, quando ele se fora, o pai
que nunca soube sê-lo, que nunca o foi! Nos últimos
suspiros de vida, que ele arfava ruidosamente, ligado aos
aparelhos, a alma entre um mundo e outro, ela verbalizou
a dor, o medo, a angústia. Não era um ajuste de contas!
Era tão somente a necessidade de extravasar! Ela
deslizava entre os dedos as pedras do rosário,
murmurando preces por aquela alma que partia, pedindo
clemência, misericórdia. Suplicando a Deus que a zesse
digna de perdoar. Porque perdoar também é se libertar.

Ao ser verbalizado aquele silêncio, ali recolhido há tantos


anos, a crisálida, en m, se rompeu! O silêncio também se
fora, já não havia o que guardar, recolher, calar. Havia
tanta vida lá fora, luzes e cores, a alma acalentava
imensa vontade de viver, que ela se entregou à vida,
quase trêmula, como a borboleta liberta, que voa pela
primeira vez.

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LILLY MAGAFLOR
MULHERES DE CABUL

No escuro da noite,

nunca ninguém te vê chorar.

Mulheres, pilares de força.

Escondidas.

Negadas.

Brutalizada.

Queimadas.

Enlouquecidas.


No escuro da noite,

ninguém te vê chorar.

O mundo de homens pesa.

Pesa como o pano que te cobre,

a religião que te sufoca,

a milícia que te assassina.


No escuro da noite,

ninguém te vê chorar.

No escuro do mundo,

ninguém te vê.

Meninas, mulheres

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aniquiladas,

cobertas,

inexistentes.

Fantasmas que assombram

o pensamento do lado de cá.

Agora choro por vocês.

Pelo mundo que falhou

com vocês.

Mundo de homens.

Eu choro por vocês.

Nós choramos por vocês.

Todas nós, 

meninas,

mulheres.

Choramos.


Mulheres de Cabul.

A vida agora

será uma grande noite,

ninguém as verá.

Todas choramos.

Choramos...

Mas, no escuro

da noite, ninguém

está a nos ver chorar.

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LINE ZANSCALA
SÚPLICAS

Senhor, dos Hebreus...

A quem nomeou Moisés,

Ouça-me, por Abraão!

O céu está em bronze,

Não, permita-me, mais perder,

O pouco que conquistei de ontem.

Senhor, de Israel...

Sou tua lha!

Descendente de Josué,

O Afeganistão, é a minha pátria!

É a minha vida!

Mesmo sozinha e sofrida.

Senhor, da Terra Prometida...

Usa-me,

Oh! Filho de David!

Mas, não atire a primeira pedra,

Não sejais cruel,

Como o homem que usa me e nega.

Senhor, da Humanidade...

No deserto minhas preces ecoam,

Minhas lágrimas!

Não podem ser em vão,

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Pois, já, não tenho mais,

A quem recorrer o vosso perdão.

Senhor, do Ocidente...

Eis aqui a minha vida!

De joelhos estou a suplicar!

Ressigni ca a razão,

De ainda estar viva,

Mesmo sem alma e caída.

Senhor, patriarcal...

Sejais um pai para mim!

Pois nunca o tive,

Mas se essa gura existe,

Seja-o para mim.

Então, pai...

Ouça-me, por favor!

Ceda-me o vosso colo, vai...

Quero viver...,

quero voar...,

Preciso ser amada,

E ter o direito de amar também!

Dai-me a vossa misericórdia,

E o vosso perdão! Mas, devolva-me,

A minha dignidade,

Trazendo de volta,

A minha liberdade.

Estou cansada de chorar...

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Dai-me motivos para lutar,

Preciso acreditar!

Não aguento mais imposições!

Em meu coração sofrido,

Não há mais espaços para ilusões!

Pai, por favor...

Preciso me sentir mulher!

No canto estou acuada,

Sou um ser sem família,

Pois os meus lhos,

Não me veem como mãe e mulher.

Pai, que poderia ser mãe...

Entenda-me!

Preciso ir...

A nal, tenho que servir o jantar,

E a família cuidar!

E mesmo assim sorrir.

Senhor,

Sei que é desa ador,

Viver nesse mundo,

Sem direitos e razões,

Mas..., então..., permita-me,

Antes de morrer,

Que o Talibã,

RESPEITE-ME COMO MULHER!!!

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

LIZ RABELLO
POR TRÁS DO VÉU: CULTURA MACHISTA
(NIQAB, BURKA, CHADOR, HIYAB)

Tortura, não tradição.

Mulher: ser submisso,

fonte, piores pecados.

Feminicídio existe: mulher é culpada,

con rma professor no Brasil. Homens,

inocentes vítimas, só são provocados!

Assim como religião Islâmica, mulheres

não podem incitar homens obcecados.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

MARA MAGAÑA
CABUL

sonhei com

as meninas de Cabul

os olhos assustados

foi tudo o que vi

os olhos em lágrimas

foi tudo o que vi

os olhos vidrados

foi tudo o que vi

sonhei com

as mulheres de Cabul

as palavras caladas

foi tudo o que ouvi

as palavras ceifadas

foi tudo o que ouvi

as palavras em preces

foi tudo o que ouvi

sonhei com

jovens afegãs 

de burca em Cabul

a caminho de destino

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

imposto

desejos sufocados

pela lei sharia

e ordens do talibã

sonhei com as guerreiras

de Cabul

espancadas

mutiladas

assassinadas

sonhei com

malalas multiplicadas

a enfrentar esse islã

sonhei com

a liberdade

em Cabul

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

MARUSCHKA DE MELLO E SILVA


CORAÇÃO DE MULHER

Não se agaste

Não se agaste

Estou só e prouvera a Deus

Que todos tão bem estiveram

Deito o coração de largo.

Ao confessar 

Não ponho a boca em ninguém

Aos tratos 

Não entreguei a minha vida 

É sacrifício 

Não deixei com dor as meninas dos meus olhos

Não me caram com dor a carne e o sangue 

Não me caram com dor as asas do meu coração

Não se agaste

Boas novas lhe dê Deus.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

MONIQUE FRANCO
AFEGÃ OU O POEMA COMO ELO

afegã

mãe, lha, mulher

alcança essa echa

de esperança

o poema vem dizer

lute

alcança essa lança

or da bonança

o poema vem dizer

urre

alcança essa chama

a arte como código

secreto

os opressores não decifram

as letras do afeto

tampouco sentem

o aroma das ores

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

afegã

mãe, lha, mulher

alcança nossas mãos

os opressores não avistam

a luz

tampouco desvendam

a força que provêm

do nosso elo

afegã

mãe, lha, mulher

poetas

escrevam

a memória é o alimento da história

e esta não se apagará

o poema vai estar a contar.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

NIC CARDEAL
BURCA

Fazer do poema um lugar de habitar,

onde seja possível abrigo e silêncio

para que palavras inquietas

quem marcadas

– lacres vermelhos

tatuados na alma –.

Fazer da queda o recomeço

como quem resiste, insiste, consiste

onde a voz [suspensa], pelos olhos continue a dizer

do proibido, do reprimido, do incontido.

Que possamos esticar os dedos

no sagrado propósito de tocar os céus

– nada melhor do que

todas juntas

todas uma

para sonhar com amplidão –

Não adianta esconder, calar, espancar

– não adianta matar –

mulheres nascem a rodo, em tudo, por todos

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

mulheres são desde o início

– e depois do m –.

(* na tristeza afegã que também mora aqui)

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

NILZA FREIRE
POR DETRÁS DA BURCA

A angústia e a desesperança vivem atrás da burca

Não se enxerga o olhar opaco, mas a dor subsiste

Impera o silêncio entre as afegãs de forma absurda

Suas vestes re etem a mesma cor, enlutada e triste

Por detrás da burca há uma mulher encarcerada

Sua submissão forçada mina sua energia, oprime

A dignidade ferida deixou sulcos no rosto e na estrada

Não tem voz, voto ou vez, é vítima de seguidos crimes

Por detrás da burca existe o sonho de um mundo justo

Quando o relógio cessar de contar as horas ao contrário

Ela poderá soltar seus longos cabelos negros sem susto

E o vento do deserto levará o pranto e todo o seu


calvário.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

NIRLEI MARIA OLIVEIRA


AINDA SOBRE O VÉU DAS MULHERES DE LÓ
 

no Afeganistão, no Brasil ou em qualquer lugar

Mulheres Meninas

arfam

não respiram

sufocam

com as perversas permissões tolhimento restrições

violências

não pode porque não pode

as xiam pensamentos e comportamentos

mundo ungido de constrangimentos

opressão

Mulheres e Meninas

olham pelas gretas, frestas, beiradas

sonham

como Virginia Woolf

com “Um Teto Todo seu”

ser e ter

o poder de poder ser

ter liberdade e o destino nas mãos

sem os véus e sem tutelas

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

Mulheres de Ló, até quando?

P.S.: Por um mundo seguro para as Mulheres,


adolescentes, crianças e bebês afegãs

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

PALMIRA HEINE
ASSOMBROSA SOMBRA

Assombrosa sombra de mulheres em burcas. 

Violadas. Violentadas. Humilhadas. Invisibilizadas.

Vestem-se de luto

Por estarem mortas, ainda que estejam vivas. 

Assombrosa sombra nos olhos das meninas entregues


para serem escravas. 

Assombrosa sombra nos olhos das solteiras entregues


para casarem-se forçadas.

Assombrosa sombra que assusta e cala

Esconde-se nos olhos tristes

Das mulheres decepadas por usarem esmaltes e calças.

Assombrosa sombra indesejada

Que invade os olhos das que são apedrejadas.

Assombrosa sombra que faz chorar

E em desespero pedir ao céu menos azul

Assombrosa sombra que assombra mulheres em Cabul. 

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

PATRICIA DE CAMPOS OCCHIUCCI


MULHERES EM LIBERDADE
 

Onde reina a opressão

A face é encoberta

Os passos impedidos

Não há poder de decisão.

A garganta então aperta

Por violência ou deliberação

Direitos são proibidos

Há apenas deveres à mão.

No violar da inocência

O casamento é arranjado

Para elas, impotência.

Portão da escola trancado

Pro ssão incondizente

Com o homem armado

A mulher proibida

De decidir sobre sua vida.

Olhar triste de quem sofre

Os desmandos e tirania

Dizem: “A cultura que cobre!”

Pela falta de empatia.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Usa da força do poder inventado

Superioridade que não consentia

Num contexto ultrapassado

Deveriam, homem e mulher

Por respeito, a parceria.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

PAULA ANIAS
MULHERES DE TODO O MUNDO

Nos olhos daquelas mulheres vejo denuncias

Lamentos, opressão, clamor, lembrar que a liberdade é


direito inalienável

olhos emaranhados revelam o pranto de dor das nossas


iguais

Afeganistão, talibã, religiosas fronteiras são novamente


erguidas

Território de tensão, desespero, medo e bala perdida

Aviões acenam sonhos de liberdade esquecida

Nós Mulheres de todo o mundo somos uma voz


eloquente

Nossas palavras potentes, que como navalhas a adas,


cortam e denunciam o horror

Todas por todas, numa corrente sonora, Mulheres de


todo o mundo,

não podemos nos calar, retroagir, desaminar, retratos das


décadas de 90 jamais

casamentos forçados, silenciamento e estupro, isso tudo


é um absurdo

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

RAQUEL LOPES
LÁGRIMA OCULTA

Conheço o som da fala

contudo não vejo

Ouço seus pensamentos

através do véu

prisão de tecido preto

Os olhos escondem-se

a textura do pano

Seus gestos sem planos

não contam o tempo

Encobrem-se por medo

Menina oculta

a lágrima permanece escura

cai no chão árido

seco

formando o desenho de uma semifusa.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

RITA QUEIROZ
SOB O CÉU DE CABUL

Pipas bailavam livres

Sorrisos faziam festa

Pés transitavam pelos jardins

Rosas, açucenas, margaridas

Vestidas de bem-quereres

Desenhavam, pintavam, cantavam

Escreviam seus destinos.

Nuvens sobrevoavam os céus

Em várias direções

Havia uma sombra aterrorizante.

Ventos gelados sobressaem

Um manto cinza risca os céus.

Recolham-se...

Guardem os sonhos

Vistam-se de agonias

Deixem os pés ncados

Deem adeus às gaivotas

Tornem-se invisíveis.

Trânsito proibido.

Vidas castigadas.

Sol apagado.

Anonimato imposto.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Sedas ultrapassavam fronteiras

Povos e dinastias duelavam

Vidas perdidas.

Nas montanhas, afegãos.

Fundamentalistas:

Sem livros,

Sem cinema,

Sem televisão,

Sem música,

Sem arte,

Sem pipas.

Mulheres, sem vida.

Sob o céu de Cabul

Havia poesia.

Hoje, ruas sem saída.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

ROCHELLE MELO PEREIRA


UM DIA...

Um grito de liberdade

Burcas ao chão

Vendas rasgadas

Pela resistência

De milhões e milhões

De mulheres afegãs.

(E elas dirão os seus nomes!)

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

ROSA PAULA
VENTRES ENCARCERADOS

quem são aquelas mulheres

olhares perdidos

contemplando o vazio

por baixo de telas

tal qual trilhos

de um desprendido vagão?

quem são aquelas mulheres

ventres encarcerados

condenados ao martírio

quando do útero nascido

não brotar homem varão?

quem são aquelas prisioneiras

nas celas de um governo

entregues a opressão?

são dani cadas incubadoras

sem qualquer calor ou combustão

pois ninam sonhos anencéfalos

corpos sem penhora

remanescentes da solidão

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

quem são aquelas mulheres

que choram pelo sorriso negado

desejos e seios empedrados

[humilhação]

dando de comer

ao árido solo

seus lhos amados

do Afeganistão

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

ROZANA GASTALDI COMINAL


DO LADO DE CÁ E DO LADO DE LÁ

direitos e deveres usurpados

pelas elites castradoras

impossível declarar os culpados

querem-nos anônimas, errôneas

lhas de Eva brasileiras e afegãs

maçãs podres somos todas

serpentes a rastejar

vá de retro, satanás!

Do lado de lá e do lado de cá

vozes imperiosas a nos ceifar

vá de retro, satanás!

SOS além-mar e aqui

ninguém solta a mão de ninguém

somos sementes a desabrochar

somos ovelhas desgarradas

que não aceitam pastor nem temor

somos legião, coragem e amor

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

ROSE CALZA
A MENINA, A CABRA

guerra “boa”, amor duro, verrugas

em tuas terras, siga regras, sharia

chadari ocultam rotas de fuga.

ó, menina de Cabul!

o que vale? em casamento

por uma cabra, trocada.

o que ouve, um canto cinza,

a cabra bale, som do sino

avisa mais um tiro.

há paisagem:

o que vê, (o que consentem),

o que vive, horror desconstruindo

tudo o que na vida faz sentido.

ó, menina de Cabul!

há duas faces, uma não

aceita pela outra;

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

há quem quer tua vida assim,

ódio de sobra, ganância, rancor

cobiça de ferro e nióbio é a lavra.

ó, menina de Cabul,

não esqueça teu país e mais oitenta

(de outras meninas), jamais livres.

na desolada paisagem, ainda:

quente vento o desastre insu a,

a tortura como arma, o luto,

o estampido estrondoso do

terror, inclemente (holocausto redivivo),

enquanto tua carne perdurar como lucro.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

SABRINA MORAIS
MENINAS DE KABUL

Cidades bombardeadas 

Guardam meninas com sonhos revolucionários 

Meninas, olhares de fogos de artifício e cabelos


esvoaçantes 

Com suas roupas coloridas

Sorrisos relâmpagos 

E vozes de acalanto 

Cantarolando historinhas de tempos em que a magia era


a vida

Vilarejos amontoados guardam meninas 

Assombradas 

Onde pedras sob pedras censuram os pés das meninas


de Kabul

Meninas vestidas de meninos 

Não sentem medo 

Nem se escondem por detrás de panos e dogmas

Meninas-meninos escolhem seus nomes

Compram no mercado

Arroz e passas

Pegam água 

Meninas de Kabul correm pelo deserto

Pulam sob campos minados 

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Assistem o sol se pôr 

Respeitam o toque de recolher

Voltam pro seu lar e esperam o dia liberdade de ser


menina em Kabul.

(Parvana) 

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

SAMANTA AQUINO
CABUL – 2021

Por que o ódio tranca as casas?

Por que o terror mancha este solo

Que é tão sagrado, materno?

Por que as janelas não esperam mais o ar

Fresco e sensível da tarde?

Por que tantos rebeldes buscam em nome

De um deus – ídolo – seguidor,

Impor a maldade mascarada de religiosidade?

Instaurar a crueldade no lugar da liberdade?

Por que nós mulheres sofremos tanto?

Que ideais são esses onde o ser mais divino

Não é respeitado e sim, covardemente,

Maltratado, humilhado, assassinado?

Onde está escrito que por nascermos mulheres

Erramos, pecamos?

Onde está decretado que não sentimos desejo,

Não sonhamos, não podemos ser independentes?

Por que temos que nos render

A quem não ama esta pátria?

Pois a pátria somos nós,

Seres que a constrói e cuida.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Por que não podemos nos reconfortar

De sermos donos dos nossos quereres?

Por que temos que obedecer aos desmandos

De quem nos tira a brandura dos passos,

A segurança dos nossos lares,

A vitalidade dos nossos olhares?

Cabul, sim, as pipas vão voltar

A colorir os céus, os corações.

Cabul, as crianças e jovens vão voltar

A serem livres para estudar.

Calma, essa tempestade vai passar!

Nunca vi um rei viver eternamente,

Um tirano ser amado verdadeiramente.

Nunca vi as sementes do terror orescerem,

Pois quem merece perfume, beleza,

São os que lutam pela justiça

E trazem bondade no peito.

Cabul, não chora, não se desespera,

Agora tudo é névoa, incerteza,

Contudo, não mate a esperança, a con ança

De uma nova história,

Que no horizonte vai nascer.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

SANDRA RAMOS
CRIME EM SE SER MULHER

Mulher em chamas, engolida pelas trevas do obtuso;

Mulher silenciada por paradoxos condicionantes da sua


existência,

Imposição de antagonismos, resgatadores soberanos do


seu direito,

Violação deliberada de si, do seu leito…do seu respeito.

Mulher, cujas palavras esfumaçam no vento vindo do


Norte,

Só apenas mais um rosto vazio, entre um mar de olhos


adormecidos…

Uma mulher, entre tantas, coagida a cedências abruptas,

Vazia de objetivos na visão terrorista desumana,

Invisível ao mundo novo apetrechado e tão distante de si.

Mulher, à mercê involuntária do cumprimento da


desumana ignorância,

Esmagada na força e engolida pelo ódio machista, pela


cólera ao mundo;

Mecanismos eloquentes de supressão à sua existência,

De contaminação, de totalitarismo e de escravidão.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

E, hoje, sou essa Mulher;

Aprisionada num efeito paralisante,

Por onde as minhas palavras se deslizam num circuito


fechado.

Estou viva, e no massacre que me engole,

Direi, gritarei e não deixarei de “dizer”,

Que no respirar da humanidade, não é crime em se ser


Mulher…

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

SERGIA A.
EFÊMERO INFINITO
Para Nadia Anjuman (1980 – 2005)

Há algo de nuvem nas ores

matéria forma tempo

diz-me teu pranto mudo

sobre a chuva:

o som dos verdes rastros

sob o sol secam os olhos  

gotas em ascensão

cristais de arestas diluídas

delicadeza em círculo

avolumam-se antes da queda

oferecendo ao que foi nuvem o in nito

foge do rosto a alegria

na leveza das pétalas

seiva em etérea textura

no viço de cores e odores o ciclo

revigora-se antes da queda

doando às ores o ser semeadura

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

há algo de or nas nuvens

matéria forma tempo

diz-me teu pranto mudo

caindo em mim como chuva

: o som dos verdes rastros.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

SHIRLEY LIMA
MULHERES AFEGÃS

O pôr do sol no

Oriente, faz brilhar no solo

toda sombra das vestes das mulheres que possam por lá.

Cada gesto machista, cada casamento forçado, cada olhar


mais insinuante, cada or que uma menina não tocou, o sol
foi lá e tocou.

O sol, continua acompanhando quem se refugia.

Tocar nos costumes familiares e interferir nas vestes das


mulheres, é oprimir o seu direito de ir e vir, contemplando o
sol.

As mulheres afegãs, deveriam ser feito as rosas que


aguardam o sol para desabrochar.

Mas cam fechadas, quando os raios de sol

Irradiam, parecem não observar.

O sol, irradia seu corpo, seu hijab.

O hijab, era apenas um costume familiar, virou imposição.

No intenso calor, com uma vestimenta tão fechada, nem as


nuvens tão carregadas conseguem se igualar.

As sombras das mulheres que passam na região do


Afeganistão.

A sombra vem dentro do peito. São caminhos amargos,


espinhos das rosas que não desabrocham.

São protestos e lágrimas, mesmo com o brilho intenso do sol

lá fora.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Dentro é névoa

Dentro são direitos renegados.

Existe um lugar reservado para fazer as refeições, para evitar


olhares, evitar maus tratos.

Que ores povoam essa região?

Parecem não contemplam as ores.

Mas encontrarem espinhos nas mãos.

Que um dia, possam irradiar, libertas das vestes impostas.

O sol não se refugia.

Ele vem, toca nas mulheres dessa região.

Irradia um pouco na burca, mostra que todos podem e


devem irradiar.

Somos seres humanos.

O sol nos ver desabrochar.

Que possam se libertar, ser rosas com os seus rostos sem os


tecidos encobrindo parte do seu olhar.

Que estejam prontas para ser pétalas.

Pétalas, desabrochando nas manhãs de primavera.

Que o pôr do sol do Oriente, brilhe junto com cada olhar e


sorrisos das mulheres que germinarão em dias de felicidades.

Serão feitas majestades, igualando-se ao astro rei.

Sem espinhos nas mãos, irradiem mulheres nas manhãs do


Afeganistão.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

SILVIA SCHMIDT
AFÃ

Olhou para o Sol

mas viu a noite dos dias

Olhou para a Lua

mas viu o eclipse das noites

O que lhe atravessava

chegava-lhe quadriculado

desde a pequena infância

Quando se descobria ao lado

do marido era puro afã

por liberdade tomada à força

sob tiros opressores do talibã

O sol a lua os tiros ela-objeto

Era o que ela era- Era após Era

uma menina uma mulher afegã

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Assim acordava

Assim dormia

Coberta por telas

em seu jazigo

Na esperança

de um outro amanhã

de aquarelas para ela

mãe irmã amigas e

seus muitos lhos.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

SILVIA SILVA
IGUALDADE, PARA TODOS!

Parece um mundo à parte...

Um véu... sobre a realidade

Elas cobertas, da cabeça aos pés...

Sem se verem as caras!

Sem lhes podermos ver as feições,

Sem se lhes podermos observar curvas

E linhas femininas...

Eles sempre imperam,

Em regras escritas...

À lei da ordem e lei da arma!

Afeganistão...

Palco de guerras, de pobrezas, de carências...

Mulheres, ergam-se!

Temos razões de sobra para lutar!

Hoje, por elas...

Amanhã, por nós...

Que a igualdade não seja uma utopia!

Mas sim, o ponto de partida!

...e o sonho realizado!


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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

SOL FIGUEIREDO
ACRÓSTICO: MULHERES AFEGÃS

M ilhares de mulheres tão sofridas

U m pouco de esperança e liberdade

L utam por direitos em suas vidas

H oje e sempre, buscam felicidade!

E nesta corrida, seguem perdidas

R egime autoritário impõe maldade

E suas lhas já são conduzidas...

S e casam com velhos, realidade!

A ssim, sofrem as doces margaridas

F ugindo do domínio Talibã

E m estradas sem m, por um amanhã!

G ira mundo, gira sem ter saídas...

A esperança da Mulher Afegã:

S er considerada uma Cidadã!

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

THAÍS V. MANFRINI
REPENTINO FRUTO
vespertino canto

pirilampo campo

alma broto or

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

TATY REGINA
ACALENTAR

Acalenta-me teu Olhar

Que docemente me acompanha

Numa ternura única e singular

De dois amantes a distância

Acalenta-me a tua doce melodia

Que ameniza toda minha ansiedade

Na ânsia suprema de amar-te

Embora separados corporalmente

Acalenta-me a certeza

De que estas aí e existes

Acompanhando toda minha trajetória

Num amor todo nosso

Acalenta-me tua existência

Que na distância nos aproxima

Num mistério da vida permanente

Embora sejamos totalmente diferentes

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

Acalenta-me o simples saber

Que platonicamente enamora-me

E une nossas bocas e nossos corpos

Num êxtase supremo do Amor

Acalenta-me o frio que me traz

Eternizando nosso caso amoroso

Numa união de positivo e negativo

Onde a magia do acaso se fez

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

VALÉRIA PISAURO
MOVEDIÇAS

Seguem anônimas, semivivas,

Mulheres sentinelas sem saída,

A criança, a moça, a velha.

Sagradas, profanas, escravas,

Da espera tem-se a miséria,

Despidas de prosa, poesia.

São mulheres predestinadas,

Uma entre muitas repartidas,

Encarceradas na ilha do corpo.

Cativas sem idade, sem rosto,

Silhuetas sombrias alegorias,

Cartas marcadas do nada.

São mulheres amordaçadas,

A dilacerar um sonho inteiro,

Que o futuro embaça o olhar.

Voz calada, ventre raiz,

Na pele tatuam desejos

Guardados para outros e para si.

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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

VANESSA RATTON
ELAS POR ELAS

Mulher afegã

eu queria poder lhe dar a mão

Eu queria poder acolhê-la

em meu abraço

Fazer dele seu escudo,

a sua proteção,

um forte laço.

Sinto tanto,

mesmo com todos os meus privilégios.

Estou longe, muito longe geogra camente

Estou tão perto da sua dor.

Se eu tivesse asas,

eu as levaria a outro lugar,

deixaria sua terra somente com homens,

pois sei que logo eles se extinguiriam.

Moça afegã, enxergo seu horror,

sua coragem de existir,

resista em seus sonhos,

proteja-se como puder,

por favor.

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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

Precisamos lhes emprestar nossas vozes

e alimentarmos a con ança num futuro.

Precisamos agir juntas

de todas as partes do mundo.

Assim nós traríamos vocês para perto,

estão longe, mas as sentimos em nós.

Menina afegã,

eu queria te levar à escola

para que essa semente

zesse brotar esperança

no deserto dos homens.

Queria que teu pai lhe conduzisse ao altar,

se assim você quisesse,

entregando-a ao homem que você amasse

se assim o dissesse.

Esse desejo,

essa luta ancestral

é de milhares de mulheres

que vieram antes e virão depois.

Assim, sentimos todas vocês,

não, vocês não estão longe,

estão dentro de todas nós.


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Amare Editora & Ser MulherArte Editorial

VÂNIA PERCIANI
NO CIMO DA ARA

No espaço íntimo vive a mulher

do sonho: uma mulher maçã,

não or! Mas rama – grito

de lua, mandrágora!

No espaço íntimo subverte a mão

o relógio, mulher do rosa frágil

ana, íris pulsante:

ave, palavra no tempo!

O homem mordido: raízes ao ar,

sem chuva azul, saqueada

a igreja do todo real espesso,

sem plumas, que pena! o cão.

No espaço íntimo, eleita arca

da fome, utua, abocanha

a mulher a uente paisagem,

escrevendo no cimo da ara

o queijo, o corvo, o profeta,

a palavra em fogo montada

o manto caído, esquecido no chão.


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Coletânea Mulherio das Letras para Elas

www.amarelivros.com.br

www.sermulherarte.com

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