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Anais do 6 0 Seminário

de Pesquisadores
do PPGAartes
UERJ

Cont
ingên
cia
2017
Cont
ingên
cia

Anais do 6 0 Seminário
de Pesquisadores do PPGAr tes
UER J

5 A 6 DE JULHO 2017
CENTRO CULTURAL DA UER J - DECULT
RUA SÃO FRANCISCO XAVIER, 524
MARACANÃ - RIO DE JANEIRO

2 CONTINGÊNCIA 3
SUMÁRIO
Apresentação 08
Grupos de Trabalho
Berlinda A 10
Berlinda B 16
Vestígio A 24
Vestígio B + C 30
Vontade A 35
Vontade B 41
Participantes Convergência
Agrippina Cândido Viegas Pequeno 47
Corpos em TRANSito: Corpos transvestigeneres e o espaço público
Alice da Palma 53
Carne. Imagem, desejo e Encarnação em Fra Angelico
Ana Alves 59
Rastros paleopoéticos: toda caverna tem uma saída ou é prisão
Ana Elisa Lidizia 64
Carta ao leitor. Por uma crítica de arte epistolar
Bernardo Wagner Marques Baptista 68
Rabeca: o artefato musical como escrita etnográfica
Cristiane de Souza 74
Sobre o Vestido Branco - Encontros
Douglas Zimmermann de Oliveira 78
Potências imperceptíveis como procedimento criativo
Gilberto Hora e Daniele Gomes 83
Performance Presente - Transformando ações cotidianas em arte política
Istefânia Marcarini Rubino 88
A Visceralidade na Obra de Anna Bella Geiger (1965-1969)
Lara (Larissa) Silva 92
Recolho História de Mulheres - Mapeando memórias de “continuum lesbiano”
CATALOGAÇÃO NA FONTE Leonardo Antan 98
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC Reis e Pinto - As linguagens marginais dos desfiles das escolas de samba em 1980
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
Leonardo Perdigão Leite 103
Outros olhares, outros trajetos: arte no cotidiano citadino
S472 Seminário de Pesquisadores do PPGAartes UERJ (6. : 2017 : Rio Lucas Sargentelli 106
de Janeiro)
Deriva de um diagrama (Aldeia Maracanã, UERJ e Metrô-Mangueira)
Contigência : Anais do 6º Seminário de Pesquisadores do
PPGAartes UERJ / 6º Seminário de Pesquisadores do
Patrícia Amorim da Silva 112
PPGAartes UERJ; Ana Emília Silva ... [et al.], organizadores. - Ficção e realidade na construção de identidades de gênero na fotografia digital de retratos
Rio de Janeiro : UERJ, DECULT, 2018. Pedro Ambrosoli 117
148 p. Cores proibidas sobre corpos de carne
Pedro de Souza Fonseca 122
ISBN 978-85-85954-78-9 A subjetividade poeta. Por novos modos artísticos de atravessar a rotina
Seminário realizado de 5 a 6 de julho 2017 Centro Cultural da Rafael Amorim 127
UERJ.
Breves apontamentos sobre as relações afetivas com nossos espaços cotidianos
1. Arte e educação - Congressos. I. Silva, Ana Emília. René Gaertner 132
II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Departamento Audioguias e Lista de insanos. Como engolir o mar com uma enciclopédia
Cultural. III. Título. Thábata Castro Roberto 137
CDU 7:37(063) Odoyá! Um presente de cor à cidade
Victor Hugo de Oliveira Pinto 142
A arte como vontade/potencialidade da percepção/transformação na realidade.
Bibliotecária: Leila Andrade CRB7/4016
Bibliotecária: Leila Andrade CRB7/4016 Espaços e fissuras na criação estética como bricolagem/criação da realidade

4 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 5


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitor Organizadores: Programação visual Comissão editorial publicação
Ruy Garcia Marques Diretor do Centro de Educação e Humanidades
Ana Emília Silva Ana Emília Silva Ana Emília Silva
Lincoln Tavares
Vice-reitor Andrea Pech Andrea Pech Daniel S. Lopes
Maria Georgina Muniz Washington Diretor do Instituto de Artes Daniel S. Lopes Jean Carlos Azuos Debora Seger
Alexandre Sá Débora Seger Luana Fonseca Eduardo Mariz
Sub-reitora de Graduação Eduardo Mariz Ellen Lima
Tania Maria de Castro Carvalho Netto Coordenador do Programa de Pós-graduação Ellen Lima Comunicação Gabriela Caspary
Sub-reitor de Pós-graduação e Pesquisa em Artes Gabriela Caspary Débora Seger Luciana Grizoti
Egberto Gaspar de Moura Maurício Barros de Castro Jean Carlos Azuos Ellen Lima
Jonatas Martin Puga Gabriela Caspary
Sub-reitora de Extensão e Cultura Coordenadora Adjunta de Pós-graduação Juliana Notari Jonatas Martin Puga
Elaine Ferreira Tôrres Denise Espírito Santo da Silva Luana Fonseca
Luciana Grizoti Fotografia
DEPARTAMENTO CULTURAL - DECULT Luiz Guimarães Débora Seger
Paula Trope Eduardo Mariz
Diretor Produção e Montagem Rafael Adorjan Ellen Lima
Marcelo Campos Leandro Almeida Violeta Pavão Rafael Adorjan Os artigos publicados
Rafael Ferezin
Coordenadora de Exposições Rejane Manhães são de inteira
Analu Cunha responsabilidade
Produção Cultural de seus autores.
Comunicação Social Rafael Ferezin
Rosane Fernandez
Ana Carolina Jacuá Arte-educação
Bianca Oliveira (bolsista) Patrícia Chiavazzoli
Karoline LIma (bolsista) Monique Araújo (bolsista) Anais e catálogo também disponíveis em:
Luane Teixeira (bolsista) Rayssa Ruiz (bolsista)
https://contingenciappgartes.wixsite.com/seminario
Programação Visual (publicação) Equipe Técnico-Administrativa
Ana Cristina Almeida Heloísa Barboza
Mayumi Yamashita (bolsista) Renato Cascardo
Amanda Gabriel (voluntária) Rosana Dias

Revisão de Textos 60 SEMINÁRIO DE Agradecimentos


Renato Cascardo PESQUISADORES DO PPGARTES
Rosane Fernandez Ana Cristina Almeida Marcelo Wassen
Denise Espirito Santo Maurício Barros de Castro
Eloisa Brantes Mônica Bolsoni
Fernanda Pequeno Nanci de Freitas
apoio realização Inês de Araújo Pedro Henrique de Brito Borges
Marcelo Campos Rafael Ferezin
Marcelo Lins Ricardo Gomes Lima
Marcelo Oliveira Rosane Fernandez

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mensionam nosso momento contin-
gente: Berlinda, Vestígio e Vontade.
Berlinda como movimento constante,
APRESENTAÇÃO
berlinda
sobre linhas instáveis, como produção
de desconfortos à história supostamen-
te canônica. Vestígio como aquilo que
Comissão organizadora do Contingência,
reveste os sinais do tempo e do agora,
6º Seminário de Pesquisadores do
que propõe fissuras e faz denúncias ne-
PPGArtes/UERJ
cessárias para que a memória seja polí-
tica. Vontade como algo ordinário que
conduz tudo de humano adiante, como
lugar da subjetividade, do afeto, do
desejo e do sonho. E ao mesmo tempo beira
“Na mão direita tem uma roseira
potência de mudança e transformação. caô embate
Autenticando eterna primavera
marginal
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira entre os girassóis”
Dadas as três palavras, a organização golpe rua
Caetano Veloso
do Seminário propôs reunir em grupos risco comoção
comuns os participantes que reconhe- memória desmonte
ciam em seu próprio trabalho o pulsar
da Berlinda, do Vestígio ou da Vontade. fóssil
No decorrer dos dois dias do Contin-
O 6° Seminário de Pesquisa do PPGArtes gência, deparamo-nos com reflexões,
da UERJ teve por título a palavra que resu- narrativas e ações que marcaram a re-
simbólico
me, no limite, a atual condição simbólica levância e a singularidade de cada pes- realidade
e material de nossa universidade perante quisa, bem como a reafirmação da ne-
o atual (des)governo: Contingência. Com- cessidade de promover encontros como narrativa tensão
preendendo a necessidade de resistir e esse. Mesmo que, (e principalmente) em
responder ao desmonte, nós, discentes
do programa, convidamos artistas, pes-
condições adversas, como o momento
político que nos encontramos hoje; al-
vestígio vontade
quisadores e demais interessados a se vos desse projeto espúrio de inviabilizar
juntarem ao grupo na proposição de pen- a ciência, a pesquisa e a cultura. Pensar
samentos, ações e reflexões que abran- ainda representa a mais eficaz ferramenta
jam o momento que vivemos. de transgressão. Juntamos nossas berlin-
Nesse sentido, consideramos im- das, vestígios e vontades e estamos ainda
portante evocar três palavras que di- mais vivos, combativos e marginais.

8 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 9


Grupos de trabalho - berlinda a

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duação (principalmente); justamente so ver, as paredes ganharam vida e po-
pelas relações promovidas pelo traba- esia! E para pretensiosamente garantir
lho com participantes de outros grupos a continuidade da produção daquele
BERLINDA A no contexto do seminário, às relações espaço coletivo, com a multiplicida-
promovidas com o trabalho ali exposto de de linguagens e ações quaisquer,
junto aos estudantes da graduação, ex- voltaremos ao “cubo branco”, a tábula
Daniel dos Santos Lopes1
pondo seus respectivos trabalhos-final rasa que prenuncia a tríade citada aci-
Jean Carlos de Souza dos Santos2
de período na própria “galeria”. Tam- ma. Com a possibilidade, já enunciada
Jonatas Conde Y Martin Puga3
bém interviram na intervenção. pelo IARTES, de termos tinta branca
Entretanto, vale ressaltar, que para para atravessarmos as paredes da sa-
além de juízos de gosto e moral a res- la-galeria, aquelas marcas se esvairão.
peito da elaboração do trabalho em si, O trabalho do Berlinda (A) – organismo
bem como de sua materialidade, gestu- vivo, organismo coletivo - vai continuar
alizada, expressa e rasgada nas três pa- de outras maneiras sem estar naquelas
redes da sala-galeria: as marcas, os dese- paredes a partir da primeira ou da se-
A ação/pesquisa/obra/etc. - realiza- somente neste conjunto inicial de liga- nhos, as intervenções, aquela produção gunda semana do mês de agosto, vol-
da no âmbito do 6º Seminário Contin- duras no Berlinda (A). política e estética, NÃO SÃO SUJEIRAS. tando as aulas. O tempo dele lá, é este.
gência (organizado por parte discente Para fins metodológicos-discursivos, E que para tanto, o argumento (que foi Justo porque, temos o entendi-
do Programa de Pós-graduação em o grupo decidiu portanto, intervir na ventilado) das paredes serem limpas por mento que a obra de arte é um orga-
Arte Contemporanea e Cultura – PP- “galeria” do ateliê do Instituto de Artes, trabalhadores terceirizados é minima- nismo vivo, um organismo estético;
GARTES/UERJ, em parceria com o Ins- numa ação de escrita-imagem-vestígio mente de uma mesquinharia conceitual tomamos aqui a mesma comparação
tituto de Artes/UERJ, COART/UERJ e com carvão e giz branco, como decor- pueril. Mas isso é de certo modo inteligí- à cidade, ao meio urbano, que se re-
DeCult/UERJ – foi elaborada coletiva- rência da apresentação final coletiva, vel. Estamos acostumados a manter e re- aliza pelas contradições, produções
mente no contexto do grupo de traba- proposta à todos os grupos que compu- produzir a tríade propriedade/memória/ estéticas e ambivalências de modos
lho BERLINDA (A); que teve como eixos nham o seminário Contingência. patrimônio. Em todo caso, aquilo não de vida. A cidade, além de ser pro-
de teoria e prática, narrativas e práticas Sabemos que o tal trabalho é traba- é sujeira, muito menos “vandalismo”. É jeções de realidades da sociedade
discursivas ligadas a verve de métodos lho de muitas mãos e modos de vida. produção de arte! sobre um território geográfico, é “ao
de escrita, cartografias, crítica, lingua- Não somente pelo grupo em si estru- Sabendo que é arte, e sabendo que mesmo tempo o local e meio, o teatro
gem marginal, autoria, “vandalismo”, turado pelo Contingência e em contin- tal trabalho esteve exposto na “galeria” e a arena dessas interações comple-
cidade, trajetos invisíveis, resistência, gência, mas também, por ter sido re- do ateliê do IARTES, faz-se necessário xas”, promove transformações na vida
ficção, desconforto, instabilidade, des- alizado em ambiente coletivo, dentro pensar no tempo de exposição da obra cotidiana que modificam a realidade
montagem de sistemas organizadores do Instituto de Artes, com o término em relação a ocupação daquele am- urbana de maneira radical, se asso-
de conhecimento. Isso, para ficarmos do período fatídico-ficcional da gra- biente. O espaço foi produzido. Ao nos- ciando assim, mais como uma obra

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de arte do que um simples produto de alguma maneira em confronto com arte, ou a subvenção de murais pagos afronta. A materialidade de uma iden-
material, como nos lembra Lefebvre . 4 a propriedade privada/pública seja de- pelo Estado a título de revitalização tidade entintada que “degenera” a pro-
A pichação vem justamente neste terminando que a pichação, criminal- mundo a fora. priedade. Simbiose. Aquilo que era teu,
interim, como uma irrupção, um orga- mente, é crime ambiental (?), seja de- Sendo assim, a pichação aparece se torna meu, até alguém apagar. Apro-
nismo estético, um vírus que se espalha flagrando processos de “revitalização” como fluxo de vida. Linhas de fuga. priação, co-autoria. Esquiva sempre,
pela cidade, em uma ambivalência de de zonas degradadas (espaços públi- Aquele risco que a propriedade priva- manifesta! Mesmo aqui, neste breve
práticas discursivas e modos de vida. cos, ruas, praças, etc, tendo a pichação da/pública sempre vai ter. O risco do texto, tentado pensar a pichação como
Alguns segmentos do sistema de o aspecto visual mais escancarado); conceito enquanto incapturável, o ris- fenômeno artístico, ela já se foi, es-
arte no contemporâneo – artistas, co- sempre se percebe, ao menos nas co da não-inteligibilidade enquanto quivou-se apresentando nossas con-
entrelinhas, a necessidade de conter forma, o risco da linguagem enquanto tradições.
letivos de artistas, curadores, a acade-
os antagonismos de classe, e eleger
mia, etc. – tem pensado produções,
determinadas linguagens, tipos e
processos artísticos e práticas estéti-
formas de expressão artísticas que
cas, que a figura do autor, já se esvai,
possam fazer parte da produção de
a ponto de não existir mais. Contudo,
um arcabouço cultural e artístico só-
pensando a pichação como obra de
cio-político na história.
arte – conceitual, e ou pintura – ela se
O sistema de arte, assim como o Es-
realiza a partir de uma co-autoria. Mes-
tado, tem como uma de suas premis-
mo um pichador, tendo sua assinatu-
sas fetichizar, capturar aquilo que está
ra, seu “xarpi”, produzido, taticamente
à margem de sua estrutura, aceitando
pensado em onde fixar parte de sua 1 Daniel dos Santos Lopes é militante, historia- mance [Oi Futuro Ipanema] e atualmente de-
depois de muita mediação e coopta-
identidade, esse fenômeno só se reali- dor da arte e mestrando em Arte e Cultura Con- senvolve projetos em Educação e Curadoria no
ção, justamente por vislumbrar as po- temporânea, ambos pela Universidade do Estado Galpão Bela Maré.
za a partir da relação de embate com tencialidades materiais (econômicas) do Rio de Janeiro (UERJ). Co-organizador do livro
a propriedade privada/pública. Isto é, Babado, confusão y gritaria - dia a dia do 16º en- 3 Jonatas Conde Y Martin Puga é fotógrafo e
e conceituais (estéticos, políticos) de contro nacional dos estudantes de artes (Editora Artista Visual. Mestre em Arte e Cultura Contem-
como diz Engels: é antes de tudo um processos artísticos e modos de vida Razzah, 2017). Integrante da Casa de Estudos porânea - PPGARTES/UERJ. Bacharel e Licencia-
Urbanos, atualmente desenvolve sua pesquisa do em Artes Visuais pela UERJ. Licenciado em
produto da sociedade, quando esta che- que de alguma forma entram em con- sobre as ações estético-políticas contra o golpe Sociologia FE/CFCH/UFRJ. Professor de Socio-
ga a um determinado grau de desenvol- de Estado de 2016 no Brasil, com a destituição da logia do magistério estadual do Rio de Janeiro;
flito com o dogmatismo das Artes. O presidenta eleita Dilma Rousseff. e músico. Temas de investigação: Linguagem
vimento; é a confissão de que essa so- grafitti – uma das expressões artísticas fotográfica, cinema, intervenções artísticas, arte
ciedade se enredou numa irremediável 2 Jean Carlos de Souza dos Santos, é Artista Vi- urbana, gravura; filosofia, sociologia, educação,
do que podemos chamar de arte urba- sual, Mestre em Arte e Cultura Contemporânea política, estudos culturais; juventudes, relações
contradição com ela própria e está divi- na – é um dos exemplos, tendo como pelo PPGARTES/UERJ. Tem experiência na área comunitárias.
de Artes, com ênfase nas Linguagens Visuais
dida por antagonismos irreconciliáveis sustentação jurídico-política, uma Contemporâneas e Arte Educação. Sua pesquisa 4 Filósofo marxista e sociólogo francês. Cunhou
que não consegue conjurar. liberdade assistida. Economicamen- permeia questões do espaço e sua relação am- o termo “Direito à cidade” com o qual defendeu
pliada com os corpos e a cidade. Participou de que a população deveria ter acesso à vida urbana
Toda a tentativa do Estado em con- te, já estamos vendo a proliferação diversas exposições coletivas no Rio de Janeiro. e que foi desenvolvido no livro de mesmo nome
jurar práticas discursivas que entram do graffiti em galerias e coleções de Foi assessor de Curadoria do Festival +Perfor- publicado em 1968 em francês: “Le droit à la ville”.

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Grupos de trabalho - berlinda b

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mocracia. A espiral de acontecimentos todo. Vivemos uma espécie de ápice do
políticos que acarretou o golpe de 2016 capitalismo cognitivo, com seu processo
faz parte de um contexto mais amplo. No cada vez mais fluido: financeirização do
BERLINDA B cenário mundial, vivemos desde 2008 em capital, estado neoliberal, novas tecno-
uma crise econômica permanente e piora logias da comunicação, subjetividades
acentuada nas relações entre os estados. flexíveis. A agenda do “capitalismo finan-
Luiz Carlos Guimaraes1 A experiência de democracia liberal ges- ceirizado, neoliberal e globalitário”2 vai
Juliana Notari2 tada após o fim da segunda grande guerra de vento em popa. No cenário brasileiro,
é colocada em cheque pelo modelo capi- diferentemente do golpe de 1964, que se
talista globalizado. Uma série de acordos valeu da força militar, o Golpe de 2016 se
que foram gestados naquele pós-guerra vale da “força do desejo, a fim de torná-la
parecem ruir. Talvez não estejamos conse- reativa”, com o impulso midiático e mani-
guindo compreender quais são as novas festações financiadas pelos grandes em-
Performatividade Resistente fronteiras do jogo macropolítico. presários cumprindo papel fundamental
O poderio das corporações transna- na destituição da presidenta eleita.
cionais alcança dimensões extraordiná- No âmbito macropolitico, as artes
Movimento de resistência, do instinto (Marcos Aganju), o “Milho aos pombos” rias e inéditas. A ideologia calcada na plásticas parecem ter se tornado, em
de sobrevivência coletivo de uma institui- (Nathan Braga). Neste caldeirão eferve- “crença no indivíduo” leva os sujeitos a se grande medida, um dispositivo de po-
ção que foi largada à propria sorte, mas cente nasce o diálogo com e a partir e das sentirem fracassados economicamente der no processo do capital cognitivo, ao
que se recusa aceitar o fim que lhe foi diferenças, do desejo de exercer o direito por sua própria culpa, por sua incapaci- serem capturadas pelo mercado e insti-
traçado. Amplo, inclusivo, agregador de de fala e a necessidade – cada vez mais dade de se reinventar constantemente, tucionalizadas – por meio do turismo dos
energias potentes na busca da sinergia a urgente – da escuta, índice da liberdade de se flexibilizar criativamente diante da museus, das bienais, das exposições, das
partir das diferenças: Contingência. de expressão e da igualdade de direitos. aparentemente infinita gama de possibi- feiras e do colecionismo. Para o capitalis-
A berlinda como base de sustentação Entre a presença, a fala e a escuta se lidades da economia dos desejos e afetos mo, a arte surge como parte importante
para os “Corpos em TRANSito” (Agrippi- situa a performatividade. Sujeitos perfo- contemporâneos. O capitalismo cogni- desse processo de gentrificação que visa
na R. Manhattan / Matheus Cândido), as mam a si mesmos e aos outros, reelabo- tivo reduz, de maneira complexa, sutil e a valorização de áreas para o capital imo-
“interfaces entre performance e descolo- rando perspectivas e mundos. No cru- perversa, a subjetividade ao indivíduo e biliário e turístico.
nização na América Latina” (Júlia Jenior zamento das performatividades nasce o “não produz apenas objetos, mas tam- No nível micropolítico, é possível per-
Lotufo), as “ (Des)escolas experimentais aprendizado da diferença e a consicência bém seus próprios sujeitos” 3. ceber que a política de ação do desejo
como obra de arte: como inventar anti- dos longos caminhos por vir. No campo das artes plásticas, pude- instaurada pelo capitalismo cognitivo
-métodos entre arte e intervalos?” (Karen Vivemos em meio a uma crise aguda, mos presenciar um boom do mercado de trata de transformar a subjetividade e seu
Aquini Gonçalves), as “Vias de fato” (Lucas cuja amplitude parece corroer alguns dos arte. As feiras crescem no mundo todo campo relacional. Segundo Suely Rolnik,
Sargentelli), a “Existencia como Resistên- princípios e instituições mais basilares e e impressiona a crescente influência do tal ação do desejo se orienta numa pers-
cia – exercícios de silêncios e intervalos” fundamentais para a existência da de- mercado no sistema da arte como um pectiva “antropo-falo-ego-logocêntrica”,

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definidora do “inconsciente colonial-ca- ras de ver, pensar e sentir, estimulando simbólica. Um exemplo próximo e em- tiva de encerramento dos dois dias de in-
pitalístico”. Este, por sua vez, “consiste na e produzindo subjetividades inventivas, blemático desse sintoma foi o recente fe- tensas discussões e ricas trocas foi realiza-
anestesia da potência que o corpo tem de críticas, de resistência. chamento da exposição “Queermuseu”5, da no vão central do Coart, Uerj, onde há
decifrar o mundo a partir de sua condição Entretanto, estando no bojo das crises em Porto Alegre. A autocensura trans- uma fonte – seca, sem vida e abandonada,
de vivente: o saber-do-corpo torna-se da representação que afetam principal- formada em censura pelo Santander uma espécie de retrato possível do força-
inacessível”. Por estar bloqueada, a expe- mente os campos político e social, a arte Cultural deveria ser um alerta sobre as do processo de sucateamento da Universi-
riência da subjetividade passa a existir e a também não escapa de tal crise em seu pulsões e projetos fascistas que parecem dade que a abriga, imposto pelo desmon-
se orientar somente a partir de sua expe- âmbito simbólico. Nesse sentido, é preci- avançar globalmente. te provocado pela ausência de repasses
riência como sujeito. Sendo assim, o de- so ficarmos atentos para um determinado Diante de tal cenário é preciso per- por parte do Estado e, por outro lado, pela
sejo é então convocado a recobrar apres- tipo de instrumentalização da potência da guntar: o que pode a arte hoje? Quais crise da educação pública brasileira, for-
sadamente um equilíbrio e o faz por meio arte no campo macropolítico, sobre o qual são as suas linhas de fuga? Quais são jada por classes dominantes a quem não
da conexão do consumo de produtos de já comentamos antes. A potência política as operações políticas, micropolíticas e interessa a educação crítica da população.
todo tipo a fim de refazer rapidamente da arte não está no sentido macropolítico, poéticas por elas realizadas? O que elas Com um batidão ao fundo – do funk
um contorno reconhecível e livrar-se de mas no sentido micropolítico. É criam no mundo? Como pensar a arte ao techno – se aproximam e tomam o
seu mal-estar. É isto o que Rolnik define enquanto acontecimento? O que seria vão corpos vestidos de maiôs coloridos,
como uma “micropolítica reativa”, cujo (...) diferente de uma arte que in- “fazer arte”, hoje em dia? que gradativamete ocupam a fonte
efeito é a conservação do status quo. Esse forma, inclusive quando o assunto é Tais questões, animaram a experiên- seca. Degenerados – no sentido de não
tipo de micropolítica reativa vem aumen- macropolítico a potência política da
cia/ação da obra coletiva realizada pelo sucumbirem à imposição social de um
arte não está em revelar o assunto
tando assustadoramente no Brasil e no macropolítico, mas em performatizar a grupo BERLINDA (B) ao final do seminá- gênero qualquer – , os corpos reabrem
mundo, fazendo com que os microfascis- tensão de vida pelo corpo daquela ex- rio Contingência, a qual tomava a ideia a torneira e por um cano em desuso sai
mos violentamente venham à tona. periência macropolítica. (...) A relação de estar à prova, sob avaliação, como uma água turva que vai aos poucos en-
entre arte e política não pode ser um
Sabendo que a arte já vem há algum conceito/dispositivo temático do grupo chendo a fonte que, gradativamente,
tema de exposição, o próprio conceito
tempo cultivando esse namoro perigoso e curatorial tem que ser um dispositivo de trabalho que a desenvolveu. Para o ganha outras cores, num percurso do
apaixonado pelo sedutor processo do ca- político nesse sentido da potência po- grupo, menos importante era o caráter marrom ao translúcido. O público se
pital financeirizado (frisando-se que este lítica da arte, micropolítica.4 avaliatório do que a certeza de um mo- aglomera nas janelas e em volta do lo-
é o parceiro dominante na relação), ficam vimento constante, motor de conexões cal. Alguns, atraídos pela vida que bro-
evidentes os procedimentos desvitalizan- O movimento da arte é incessante que produzem desconfortos à história ta ali, se animam e entram na dança. A
tes e castradores dessa imbricação. em sua potência de provocar atritos, co- supostamente canônica. Estar na berlin- batida aumenta, o povo se achega, a
Nesse cenário, urge que convoque- nexões, desconfortos e deslocamentos, da pelo desejo de semear o porvir, cami- água traz a vida de volta. Benze, lava,
mos a potência política da arte. No en- provocando, desde sempre, reações con- nhando sobre linhas instáveis, sem rede hidrata e renova. Por alguns minutos,
tanto, todo cuidado é pouco ao conju- servadoras. A própria metáfora e o jogo de proteção, num voo de convicções nem na força daquela ocupação e dada a
gar arte e política, mas creio que a arte, ficcional da arte parecem questionados sempre compreensíveis. potência de performatividade de cada
como expressão humana, será sempre e incompreendidos no mundo contem- Não à toa, a linguagem escolhida pelo sujeito e da coletividade ali conjugada,
política. A arte possibilita outras manei- porâneo. Trata-se de uma crise de ação grupo foi a performance: uma ação cole- a Uerj ativou sua identidade, reposicio-

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nando-a também diante de cada um arte e a concepção de que a performan- 4 Rolnik, 2016, p. 9. – um mês antes do previsto –, a exposição Que-
5 Rolnik em entrevista para Pedro Britto (2010). erMuseu, – Cartografia da Diferença na América
dos participantes da ação. ce tem a capacidade de desestabilizar, Disponível em: http://www.corpocidade.dan.ufba. Latina em Porto Alegre, depois que a mostra rece-
Na duração da ação, a música si- enquanto dispositivo artístico-político, br/redobra/r8/trocas-8/entrevista-suely-rolnik/ beu uma série de ataques homofóbicos desferi-
dos por pessoas identificadas com o Movimento
lenciou-se paulatinamente até que pa- 6 O Santander Cultural encerrou no dia 10/09/17
formas hegemônicas de ver e de sentir, Brasil Livre (MBL).
rou, enquanto as pessoas lentamente atuando, assim, na produção do que
se afastavam. Por sua vez, a água não Deleuze e Guattari chamaram de per-
cessou de correr e a fonte já não po- ceptos e afectos. A performance pode
REFERÊNCIAS MASSUMI, Brian. O CAPITAL (SE) MOVE. Tradução:
deria insistir apenas na secura ante- atuar, portanto, aumentando nossa Edições Antipáticas. São Paulo: n-1 edições, 2016..
BADIOU, Alain. Em busca do real perdido. Belo
rior. A ação manteve a fonte cheia na potência de agir no mundo, de criar MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação.
Horizonte: Autêntica -Editora, 2017.
memória do corpo e na experiência de possíveis, produzir realidades pela via Rio de Janeiro: Zahar, 2009
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na era de sua
todos que ali estiveram, imantando a da experimentação. Ao produzir cer- Reprodutibilidade Técnica. In Benjamin, Walter. PEGGY, Phelan. A ontologia da performance In:
Obras Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. “Revista de comunicação e linguagem”, n. 24 Lisboa.
Universidade de vida. Ocupar, trans- tos tensionamentos político-afectivos Ed. Cosmos, 1997.
gredir, recusar-se a aceitar o descaso, – tais como a suspensão temporária de COHEN, Renato. Performance como linguagem. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2002. PELBART, Peter Pál. Carta aberta aos secundaristas.
o desrespeito imposto goela abaixo regras e do modus operandi, a desesta- São Paulo: n-1, 2016.
por aqueles que tentam asfixiar e dei- bilização do dito “natural”, a subversão Appenzeller – Campinas, SP: Papirus, 1993. (Série
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de liberdade e – desde antes e agora saber-do-corpo6, as performances po- Vidéo, 1988. em 17/09/2017
sempre mais – resistência. dem ser compreendidas como atos de DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? ROLNIK, Suely. A HORA DA MICROPOLÍTICA. São
Trad.: Bento Prado Jr. e Alberto Muñoz. Rio de Janeiro: Paulo: n-1 edições, 2016.
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presas formado pela Universidade Fumec/Belo em artes visuais pelo PPGARTES/UERJ. Trabalha Editora Perspectiva, 2009
Horizonte, com pós-graduação em Gestão Logísti- php/lume/article/viewFile/276/256. Acesso em:
com diversas linguagens, tendo como foco nos
ca e Supply Chain pela Fundação Dom Cabral. En- últimos anos a videoperformance. Com caráter GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria 17/09/2017.
tre 2012 e 2016, foi Diretor administrativo financei- multidisciplinar, sua pesquisa visual transita en- Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus Editora,
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos
ro do Museu de Arte do Rio – MAR, participando tre a biografia, o confessional, a catarse e as práti- 2001.
políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São
de todo o processo de fundação do Museu. Desde cas relacionais. Recebeu diversos prêmios, entre
março de 2016 é Sócio Diretor da MOIRE produção os que se podem destacar: artista nomeada para HOLMES, Brian. Investigaciones extradisciplinares. Paulo: Cosac Naify, 2015.
cultural e gestão. É mestrando em história e crítica o prêmio Pipa 2018, Prêmio do Salão Arte Pará Hacia una nueva crítica de las instituciones.
SANTOS, Laymert Garcia. O intolerável + escutas em
de arte pelo Programa de Pós-gradução em Artes em 2014, Prêmio Funarte – Mulheres nas Artes Tradução: Marcelo Expósito, revisada por Brian
transe. São Paulo: n-1 edições, 2016
(PPGARTES) da Universidade do Estado do Rio Visuais em 2013. Holmes e Joaquín Barriendo. 2007. Disponível em:
de Janeiro – UERJ. Atualmente é Coordenador de http://eipcp.net/transversal/0106/holmes/es. Acesso TURNER, Victor W. O processo Ritual. Petrópolis:
Operações do Instituto Casa Roberto Marinho. 3 Massumi, 2016, p.10. em 17/09/2017 Vozes, 1974.

22 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 23


Grupos de trabalho - vestígio a

24 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 25


cia imprevisível daquilo que não pode- nossas vozes se misturaram em uma sala
mos ver? Instigante, arrisco dizer. escura. De que vestígios partimos e que
Talvez o acaso esteja na junção de vestígios deixamos? Fomos tocados uns
VESTÍGIO A tudo que vamos construindo indivi- pelos outros e, desse encontro, não so-
dualmente, mas que em coletivo uma mos nem podemos ser mais os mesmos.
energia é construída e fortalecida. O Leonardo cria uma imagem onde o Eu
Luciana Grizoti 1 corpo da noite talvez seja a arte, nossas torna-se Outro, e o Outro é também parte
Andrea Pech 2 discussões em imersão. do Eu. Recolhidas e apresentadas por La-
Luana Fonseca 3 O fluxo plural de ideias que, no fim, rissa, histórias de outras mulheres tornam-
Violeta Pavão4 converge para o mesmo lugar… Assim -se dela, nossas. De diverso modo, Rafael
como a força da gravidade que une, pren- também busca palavras do outro. As en-
de, concentra e faz girar tudo em vários contra através de uma cartografia afetiva
ritmos em uma mesma dança. Assim pela cidade. Jéssica usa a luz para imprimir
PALAVRAS
como o movimento celeste é lento, que corpos à margem, imagens que eventual-
Excertos das memórias de um coletivo
para caminhar um centímetro demora mente desaparecerão. Pedro nos conta so-
milhares de anos, através da criação artís- bre um corpo que também não podemos
O presente testemunho consiste na pública de ensino do Estado do Rio de tica mudamos lentamente o pensamen- enxergar claramente, um movimento rea-
junção de pequenos escritos produ- Janeiro. to, hábitos, vida. Passos lentos. lizado no escuro. Luiza e Andréa, antes de
zidos pelas mediadoras do grupo de “O que eu preciso te dizer… noite, coro de pa- Gratificante, hoje, poder conversar nós, já compartilhavam suas poéticas para
trabalho Vestígio A, no Contingência, lavras juntas: distorção de fluxo da dessacra- a criação de um trabalho conjunto sobre
lização das percepções de si entre violências, com as estrelas, mulheres, gêneros, nar-
6º Seminário de pesquisadores do PP- registro, palavras incineradas, encontradas, cisos e centauros, política, derivas e flu- o corpo discente – esse corpo que é tam-
resgatadas, escavadas.” 5
GArtes/UERJ. As linhas que seguem são xos do ir e vir. Indivíduos diversos unidos bém um conjunto múltiplo.
compostas pelas memórias resgatadas Escrito por Luciana Grizoti em 6 de ju- ao acaso, pulsando mesmas vontades. Reunidos naquela sala, indivíduos de
da vivência em coletivo nos dois dias lho de 2017: Acabo achando que a noite somos nós, pesquisas distintas pensaram inicialmen-
de evento e imersão artística. Fiquei pensando na nossa necessi- seres tão complexos e imprecisos pre- te um sobre o trabalho do outro, e depois
Os participantes do grupo Vestígio dade de falar para a noite. Precisei en- enchidos de movimentos ocultos que, sobre o espaço que buscamos ocupar na-
A apresentaram suas produções artís- tender o que ela é, porque, diferente de quando iluminados e multiplicados, pro- quele breve período de tempo. O ateliê de
ticas e, a partir de reflexões sobre as saber cotidianamente, através da experi- duzem a força do movimento. artes da UERJ estava aberto para aqueles
mesmas, produzimos palavras que em ência, o que é, faltou o ato reflexivo. que, mesmo não pertencentes àquela ins-
junção formam frases que deram ori- O sol, imã de todo o sistema que gi- Escrito por Andrea Pech em 7 de março tituição, sentiam a necessidade de vibrar
gem a uma ação artística no escuro, ramos sem perceber, sensibilizou intui- de 2018: na mesma frequência que nós. Se nós
recitando palavras, pensando sobre ção e curiosidade. Disse que a noite é o Ativo a memória para tentar recons- quatro, Andrea, Luana, Luciana e Viole-
arte e a condição de desmonte que a tempo que transcorre entre o acaso e o truir aquele dia em especial. As falas e ta estávamos lá para escutar, impossível
UERJ está vivendo enquanto instituição seu nascer. Seria a noite uma consequên- os trabalhos se confundem, assim como seria não reverberar. Coletamos palavras,

26 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 27


transitamos pelo espaço, criamos uma es- que compunham a polifonia das que “Sob o signo de Cristo, a “Favela do Esqueleto” transmutou-se em CAMPUS Universitário majestoso.
Que, em seu novo pedestal, a mesma que presidiu ao milagre, acompanhe a UERJ pelos séculos afora.”
crita do corpo e uma escrita para o corpo. repetiam seus textos. Se, naquele mo- XXX Aniversário da UERJ
Encontramos na noite nosso lar. mento, habitar uma UERJ precarizada, MC MLXXX

Escolhemos um abrigo para experi- ameaçada, abandonada pelas finanças Está escrito assim no pé da cruz, ali no jardim.

As camadas sem foco


mentar com a arte, juntas. Era um breu, do Estado, em urgência contingente
Estão se acendendo debaixo da terra.
mas podíamos nos ver: junto aos partici- constante, nos parecia habitar a noite, Ascender pela escuridão.
pantes nos percebemos no toque, nos en- no que ela tem de obscuro e amedron- Além do foco de luz jogado em cima de coisa sem sentido,
Tem pedaços de terra que envolvem e alimentam outres corpes.
contramos nas vozes. Alguns minutos, vá- tador, hoje a perspectiva de um regime
rias mortes. Todas conjuntas. Levantamos. dito “democrático”, que finge solucio-
Eu vi um vulto.
Escrito por Luana Fonseca em 15 de nar questões sociais como questões de
Eu vi um vulto que escalou ao contrário a vida.
março de 2018: guerra, que instaura regimes de exceção Virou.
Escrevo atravessada pela notícia da cujos efeitos incluem mais mortes com Eu vi um vulto assim
lateralmente à frente do meu próprio
morte com fim de extermínio da verea- menos investigações e que durante o Corpo
dora em exercício do Rio de Janeiro, Ma- qual uma parlamentar, mulher, negra, visão periférica

rielle Franco. Hoje nos atravessa a morte bissexual, militante, de esquerda, é exe- olhos fechados.

de Marielle; à ocasião do Contingência e cutada a tiros no meio da rua, como um Pra ser vulto
o vento leva
ainda agora, um cenário crise, precarie- recado simbólico, nos faz vislumbrar tre-
o vento pesa o vulto
dade e crueldade frente a instituições, vas mais profundas. Porém, assim como Subiu aos céus
trabalhadores e estudantes do Estado. nossas vozes na polifonia contingente, Lançou-se ao mar.

“Crise no Estado, estado de crise. Crise que vibravam nos corpos emissores de
no Estado, estado de crise. Crise no Es- som e em todos os outros, que nos fa- Exercício de quedas no escuro.
Transmutar o luto em luta, isso sim.
tado, estado de crise.”, escrevia então. ziam mover pelo espaço e encontrarmos Respeitar a(s) memória(s).
“Um corpo em crise produz a crise pra uns aos outros, a vida de Marielle - e não Vestígio na luta não é o que sobra e fim.
É ir além do próprio
sair do lugar. Um estado em crise pro- a morte - nos faz manter o pulso, a voz
Vestígio.
duz a crise pra manter um lugar. O que vibrando, a escuta ativa do outro, o en-
atravessam os corpos em crise para que contro dos corpos. Nos faz ver a noite no 1 Luciana Grizoti. Artista visual e artista educa- duada em Terapia Através do Movimento pela
a crise se mantenha no estado? Primeiro que ela tem de múltiplo e potente: as vo- dora, bacharel e mestranda pelo Programa de Faculdade Angel Vianna.
Pós-graduação em Artes/UERJ, sob orientação da
como farsa, depois como tragédia.” Esse zes juntas, sem distinção dos contornos, Profª Drª Leila Danziger. 4 Violeta Pavão. trabalha seu corpo buscando
a construção de imagens que causem ruído nos
texto, repetido por mim como mantra que a olhos nus parecem dissolver-se, 2 Andrea Pech. Artista, performer, educadora e espaços e afetos. Mestre em Artes Visuais (UERJ),
enquanto caminhávamos, juntos, no mas para aqueles que enxergam além designer. Mestranda no Programa de Pós-gradu- investiga criações estéticas através de oficinas
ação em Artes/UERJ. Possui especialização em corporais, dança, desenho, escritas e escutas.
escuro, numa sala fechada, em alternân- do óbvio, permite que sigamos moven- Ensino da Arte pela UERJ e graduação em design
pela ESDI-UERJ. 5. Frase construída em coletivo por todos os par-
cia de ritmos e volumes, hoje reverbera do juntos, apesar do apagar das luzes. ticipantes do grupo de trabalho a partir de pa-
em tom de luto. “O que vai ser da gente Escrito por Violeta Pavão em 06 de ju- 3 Luana Fonseca. Artista, Arquiteta e Urbanista, lavras escritas individualmente, inspiradas pela
graduada pela Escola de Arquitetura e Urbanis- apresentação das pesquisas artísticas dos com-
durante a noite?”, dizia uma das vozes lho de 2017 e 24 de março de 2018: mo da UFF, mestre em artes pela UERJ, pós-gra- panheiros de imersão.

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Grupos de trabalho - vestígio b+c

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em movimento e seus possíveis significa- ava a crescer. Por infeliz ironia a escola
dos no espaço institucional (Dally Vello- estadual onde trabalhava uma das me-
so); o abstracionismo como vestígio da diadoras do grupo não estava presente
Vestígio B+C figuração (Istefânia Rubino); a inserção no levantamento dos participantes, sen-
da arte no cotidiano em vestígios que re- do incluída no dia da performance. Além
montam a colonização, mas sugerem um de outros nomes que chegavam a cada
Eduardo Mariz1
levante popular (Ana Alves). Por fim, uma hora, por mensagens vindas de uma rede
Ellen Lima2
leitura crítica ao sistema convencional do independente de professores. Nessa
Paula Trope3 documento de frequência dos alunos, a perspectiva a lista estava viva, evocando
“chamada”, como vestígio do desmonte o “falecimento” de turmas, turnos e es-
da educação pública (Daniela Gomes da colas inteiras. O incitamento dessa lista
Silva e Gilberto Horta). convocou-nos a integrar à ação pedras
A abordagem metodológica para a portuguesas propostas pela participante
Presente realização da prática final, consistiu em do grupo, a artista Ana Alves. Tais pedras
reconhecer as reivindicações políticas, constituíram uma ideia de objetos perdi-
afetivas e de resistência presentes nos dos, ressignificados através do trabalho.
O presente texto aborda aspectos memória no tempo. Vestígio, como resis- discursos como ponto de interlocução Num primeiro momento, as pedras fo-
conceituais e poéticos da performance tência, ainda que o desejo vigente seja entre os projetos dos participantes. ram experimentadas pelo próprio gru-
Presente, concebida e realizada pelo gru- destruir, fragmentar e forjar a essência. Como consequência dessa investigação, po. Seus integrantes foram convidados
po a partir das comunicações e trocas Vestígio, como fim e começo presentes. o passo seguinte foi a sobreposição des- a “esquecer” as pedras, inserindo-as em
entre seus integrantes. O coletivo propôs Vestígio como transformação. ses vestígios numa ação poética. Materia- espaços públicos. Examinando a ideia de
uma prática como resultado da elabora- As comunicações realizadas no grupo lizando os discursos a partir da união das rastro como pista e investigando a po-
ção de seus próprios vestígios. Carrega- de trabalho Vestígio B+C, apesar de apa- propostas trazidas pelos participantes, o tência desses objetos de se constituírem
da de reivindicações afetivo-políticas, rentemente distintas, construíram um grupo elaborou a performance que mar- ativadores de lideranças anônimas.
a ação, realizada em espaço aberto na diálogo comum intenso. Debateram-se cou uma crítica à situação atual da edu- Anunciando e denunciando o fecha-
Instituição, envolveu passantes, curiosos a criação e o acúmulo de imagens, bem cação pública no Rio de Janeiro: o sucate- mento de turmas e escolas inteiras2 , noti-
e participantes do seminário, tendo sido como seu arquivo morto e um tipo de ar- amento, o abandono e o desmonte. ciadas pelo governo e pela grande mídia
promovida uma profunda e contunden- queologia das mesmas na contempora- O levantamento das unidades esco- como ‘otimização’, os nomes das escolas
te reflexão sobre a situação da educação neidade (Pedro Diaz). A epifanização das lares e das turmas fechadas foi realizado foram lidos um a um, como por ordem
pública no Rio de Janeiro. coisas oferecidas como espetáculo, de até a data do envio do trabalho para se- de “chamada”, o tradicional documento
Vestígio, como reivindicação política, forma a celebrar o corpo social (Frederico leção de comunicações do seminário pe- de registro de frequência dos alunos uti-
como evidência de uma fragmentação Freitas); as subjetividades poéticas como los participantes Gilberto e Daniela. No lizado pelos professores. Após o nome da
violenta do agora. Vestígio, como afirma- processo de ressignificação da existência entanto, desde a data da inscrição até o escola ser pronunciado, os demais diziam
ção física ou imaterial da persistência da (Pedro Fonseca); a investigação do corpo ultimo dia do seminário a lista continu- em coro a palavra “presente” e uma pedra

32 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 33


previamente carimbada com a palavra com os nomes das escolas do corredor
“P(H)ODER” era jogada ao chão, forman- onde foi realizada a ação, formou-se no
do uma enorme pilha, um túmulo, um chão uma poeira gerada pelo atrito das
enterro simbólico da educação de gera- pedras que eram jogadas umas sobre as
ções inteiras, exterminadas pelo descaso outras. Uma vez limpo o corredor, apa-
das políticas públicas de educação do Es- receram curiosamente os vestígios da
tado do Rio de Janeiro. performance. O que restou quando não
Ainda como indício, após a retirada havia mais: o pó que ficou pelo chão...
das pedras portuguesas e dos papéis Vestígio como resistência?

1 Eduardo Mariz, fotógrafo com ênfase de pro- UERJ, linha de pesquisa História e Crítica da Arte,
dução para artes visuais, desenvolve também orientação professora Sheila Cabo. Grupos de trabalho - vontade a
trabalhos em performance, vídeo e escultura.
Orientado por Roberto Corrêa dos Santos, cursa 2 De acordo com os dados do Censo Escolar
doutorado em artes na UERJ, onde concluiu mes- divulgado no ano de 2017 com a chancela do
trado em 2013. Participa de exposições continua- Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educa-
mente desde 1994 como curador ou artista. cionais Anísio Teixeira (INEP), entre 2010 e 2017
– período das gestões de Sérgio Cabral e Luiz
Fernando Pezão – foram fechadas pelo estado
2 Ellen Lima, Mestranda do PPGArtes UERJ, na 231 escolas públicas. Além disso, uma resolu-
linha de pesquisa História e Crítica da arte, sob ção da Secretaria de Estado de Educação (See-
orientação do professor Guilherme Bueno. Atua duc), publicada no diário oficial em 01/08/2017
como docente na rede pública Estadual e Muni- estabelece normas para a oferta de Educação
cipal do Rio de Janeiro. Básica. A resolução, entre outras coisas, prevê o
encerramento de turnos e turmas sob o termo
3 Paula Trope, artista com atuação em Arte Con- “otimização”, que na prática, superlota turmas,
temporânea, desenvolvendo trabalho experi- deixa professores excedentes e fecha escolas
mental no campo da imagem técnica. Professora exatamente onde a presença do Estado se faz
de Artes e Fotografia. Doutoranda do PPGArtes mais importante.

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Vontade A

Ana Emília C. Silva1


Rafael Adorján2

Sobre Vontade

Vestígio, Berlinda, Vontade… DES- cada uma das palavras nesse diagrama
MONTE … Marginal, memória, símbo- atualiza também imagens, desejos e
lo, fóssil, beira … GOLPE… realidade, ações presentes no cotidiano dos estu-
narrativa, embate, tensão… RISCO… dantes de Arte da UERJ. Ora definem,
CAÔ… COMOÇÃO… RUA. ora margeiam reflexões. Vontade foi a
Essas palavras compuseram o dia- palavra norteadora das nossas trocas
grama usado como parte da convo- durante os dois dias que compuseram o
catória do Contingência. Não neces- Contingência. Desejosa por atualidade,
sariamente em ordem, as palavras “Vontade” dialoga com um contexto es-
emergiram como sugestões investiga- pecífico, arrasta a cadência ritmada das
tivas para os grupos de trabalho desse palavras que deram início a esse texto e
encontro. Berlinda, Vontade e Vestígio diz sobre uma conjuntura pela qual não
ganharam centralidade e deram ori- podemos deixar de passar. Retomemos
gem a laboratórios teórico-práticos, es- ao sujeito que conjuga nossa verborra-
paços em que os pesquisadores partici- gia, a UERJ.
pantes experimentaram coletivamente Por consequência de uma política
proposições criadas a partir do inte- antidemocrática, vivemos na Universi-
resse em comum. Ocorre afirmar que dade do Estado do Rio de Janeiro um

36 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 37


autêntico desmanche. Desenham-se Para Algo originário que conduz gens fotográficas, trouxe importantes visação, neste caso, a ideia pode ser so-
sobre os prédios que um dia abrigaram tudo de humano adiante. Mas que von- fisticada, a estética não. Para que uma
colaborações nesse dia com sua reflexão
tade seria essa, se já nascemos cavalos imagem de “meme” seja entendida ela
uma favela verticalizada, os improvisos encilhados? Realmente nossa ou do sobre a “Ficção e realidade na construção precisa de um contexto, geralmente os
de uma nova resistência. Os edifícios óbvio aguardado? Caberia buscar uma de identidades de gênero na fotografia contextos são políticos e culturais (liga-
que antes sediavam a luta por sobre- verdadeira liberdade sobre a qual cons- digital de retratos”. Numa retomada de dos à cultura pop). Analisar o “meme” é
truiríamos nossas vontades? Vontade analisar a relação entre a imagem e o tex-
vivência de inúmeras famílias, hoje são sua pesquisa de mestrado, a pesquisado-
como lugar da subjetividade, do afeto, to, a ideia e o contexto. (Trecho de uma
moradas da educação de guerrilha. do desejo e do sonho. Ao mesmo tem- ra relacionou a palavra guia “vontade” à fala de Luiz durante sua apresentação,
Salva a consciência sobre a dívida his- po, como potência viva de mudança e atualidade das imagens autobiográficas, 07/09/2017).
tórica da remoção que lhe deu origem, de transformação. (Trecho da chamada propondo uma discussão que explo-
aberta do Contingência escrito por Edu-
a UERJ resiste ao desmantelamento da ra como a manipulação fotográfica do Esse era o gatilho que nos faltava para
ardo Mariz).
educação pública. Sobre essa atmosfe- corpo humano afeta a maneira como se pensar a relação entre palavra e imagem
ra experienciamos o Contingência, um Motivados por essa palavra abrimos percebe a pessoa retratada. Victor Hugo como uma forma de produzir conheci-
encontro pensado e organizado por o primeiro dia de atividades com a ex- de Oliveira Pinto, com sua pesquisa “A mento, pedagogias anárquicas e próxi-
estudantes de Artes, os quais viveram posição das pesquisas dos participantes arte como vontade/potencialidade da mas da relação entre arte e vida. Partimos
nesse espaço imantado a democratiza- do laboratório investigativo e a conside- percepção/transformação na/da realida- então do “meme” como forma de mate-
ção do ensino na prática, em projetos ração dos mediadores Ana Emília C. Silva de”, instalou questionamentos incisivos rializar toda a discussão teórica levantada
no bairro da Mangueira, com a Aldeia e Rafael Adorján. O desejo pela pesquisa sobre a relação aurática e profanada das nesse primeiro dia.
Maracanã, com os movimentos de re- de imagens, sobretudo as fotográficas, já imagens, apontando a subversão como No pensamento fundador dos situa-
sistência que se estenderam desde indicava afinidades entre as propostas potência. Por fim, Luiz Henrique Duar- cionistas, encontramos Huizinga (2000,
2013 até 2017, negociando espaços apresentadas ao encontro e os objetos te Barbosa nos recomendou olharmos prefácio), que em sua “teoria do momen-
de aprendizado e militância. Mais que de estudos dos condutores do laborató- para formas da palavra e da imagem to” define uma função que se verifica tan-
discursos acadêmicos, sedimentaram- rio Vontade A. Nos desdobramentos do que problematizam a comunicação pelo to na vida humana quanto na vida animal,
-se nessas experiências educacionais e nosso grupo, Érica Castelo Castilho nos “meme”, propondo subversões criativas o jogo. Ele retoma em Schiller (1791),
extra-acadêmicas, algumas palavras de apresentou “Vontades de potências: pen- à realidade. o estado “entre” o racional e sensível, o
ordem, devires que atravessam e cons- samentos coletivos para ações afetivas”, Luiz, ao pensar na democratização qual configura uma nova região do ser. O
tituíram nosso percurso crítico e a von- um estudo que atualiza as leituras de da internet e livre criação de peças jogo que faz referências ao termo alemão
tade de fazer sempre críticos os nossos Suely Rolnik e Hakin Bey e propõe práti- gráficas, estabeleceu uma instigante spielen, se apresenta não afinado ao senti-
processos artísticos e teóricos. cas educacionais que consideram o caos, relação entre arte e informação. Nas do de aposta ou competição propriamen-
Salvo a apresentação necessária os territórios anárquicos e as cartografias palavras do pesquisador: te dita, mas como significantes referentes
sobre o terreno em que trabalhamos, maleáveis. Provocações sobre a abertura a “modos de lidar”. Nesse sentido, quem
O “meme” é uma ideia que prolifera
cabe falar sobre nosso grupo focal, o para os afetos e experiências que mate- joga é movido pela vontade de criar, não
uma cultura, no caso dos “memes” vir-
Vontade A, um segmento localizado na rializam o pensar encarnado, antropo- tuais brasileiros, uma cultura de ironia apenas se enquadrar a uma dada dinâmi-
cartografia palavresca que deu forma fágico e as vontades coletivas. Patrícia e malandragem que tem em sua base ca. Sendo o ato de jogar desviado do fim
ao Contingência. Por “Vontade” temos: Amorim, artista e pesquisadora de ima- uma estética de precariedade e impro- ou da vitória, concentrado sobre o ato

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de jogar, um exercício prático-reflexivo Deixamos palavras e imagens soltas em
focado na maneira de lidar com a reali- uma mesa branca no centro da sala dis-
dade em construção, de elaborar ideias e ponível para manipulação. Criamos coa-
ações no coletivo. gulações de informações não hierarqui-
Assim, se pensarmos o Contingência zadas e capazes de esticar a informação,
desde sua origem, existia certa urgên- dar margem à ironia e a ludicidade como
cia em lidar com algumas palavras de ferramentas para desconfiarmos das re-
ordem, ecos de uma realidade atual, po- alidades dadas. Aberta aos demais par-
tente e muitas vezes cruel. Necessidade ticipantes do Contingências, a mesa de
essa que perpassa as imagens, as notícias “memes” ganhou novos contornos, bem
imagéticas, com um histórico recente de como a sala em que estava instalada, es-
acontecimentos políticos, sociais, cultu- paço tomado de assalto por outro grupo
rais e artísticos afinados com a nossas de trabalho, que acrescentou uma nova
biografias coletivas. camada de sentido a nossa proposta, in-
Dessa forma, no segundo dia, parti- serindo à giz palavras nas paredes da sala
mos dessas conexões para realizar o tra- em que aconteceu nosso laboratório.
balho coletivo. O propósito era exercitar Nossa proposta ganhou a organicidade
a criação de “memes”, reunindo recortes da comunicação em rede, em que o co-
de jornais e revistas que, de certa forma, municado é coletivo e as palavras encar-
atravessavam as nossas conversações. nadas na apropriação e na ação direta.

Grupos de trabalho - vontade b

1 Ana Emília C. Silva é crítica e pesquisadora de dução: Renato Rezende. São Paulo: Conrad Editora
artes visuais, cursa doutorado no PPGARTES/ do Brasil, 2004.
UERJ na linha de pesquisa Crítica e História da HUIZINGA, Johan. Homo Ludens.(1938) Trad.
Arte sob a orientação da Prof. Dra Sheila Cabo João Paulo Monteiro. São Paulo: Editora Pers-
Geraldo. pectiva, 2000.

2 Rafael Adorján é artista visual e cursou mes- ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: Trans-
trado no mesmo programa, na linha Processos formações Contemporâneas do Desejo. Porto
Artísticos Contemporâneos sob a orientação de Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2007.
Regina de Paula.
SCHILLER, Friedrich. A Educação Estética do
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Homem(1791). Trad. SCHWARZ, Roberto e SÜS-
SEKING, Pedro. Schiller e os gregos. In: Kriterion,
BEY, Hakim. Zona Autônoma Temporária. (2001).Tra- Vol. 46, no 112, Belo Horizonte, 2005

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Vontade B

Débora Seger 1
Gabriela Caspary2

Comunicar os desejos imaginados


e as imagens desejadas é a tarefa mais difícil3.
Agamben

O que pode a vontade em tempos de balho, iniciados no dia 5 de maio, no


opressão? Cada vez mais, sobre nossos âmbito do debate de encerramento da
próximos passos incidem as mais variadas exposição Planos de Contingência, na Ga-
formas de controle e violência social: o leria Candido Portinari. Organizada pela
porvir é território de disputa. No entanto, Professora Fernanda Pequeno e pela Co-
também ali, desejos e sonhos insistem e ordenadoria de Exposições do Departa-
conjugam possíveis e impossíveis em um mento Cultural da UERJ, esta exposição
movimento jamais silenciado. reuniu trabalhos dos alunos do Progra-
A realização do seminário Contingên- ma de Pós-graduação em Artes da uni-
cia passou por uma grande vontade de versidade, muitos dos quais fazem parte
resistência e produção coletiva. Em um do comitê de organização do seminário.
momento de crise aguda da universida- Um dos grandes desafios de todo o
de, sob ataques do governo do estado processo foi a questão da urgência na
e do governo federal e diante de uma realização do seminário. A elaboração
ameaça de paralisação da universidade, do modelo de trabalho e a convocatória
nós, alunos, nos mobilizamos para se- foram feitas em sistema de emergência.
guirmos em frente. Essa contingência deu-se pela sensação
Foram ao todo dois meses de tra- de que tudo poderia ser interrompido

42 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 43


pela deflagração de uma greve, que palavras-chave disparadoras: vontade, Cristiane de Souza, artista-pesquisa- divindade na imaginação de cada um.
estava eminente e de fato aconteceu, berlinda e vestígio. A palavra vontade, dora, desenvolve sua pesquisa no campo Os quatro trabalhos, tão díspares numa
entre idas e vindas, e pelas paralisações que, no nosso entendimento, foi de- da performance e apresentou o trabalho primeira visada, mostraram-se permeáveis
em função da falta de pagamento e re- cisiva na realização do seminário, foi “Vestido Branco”. Seu vestido, com uma aos atravessamentos que o seminário pro-
passes por parte do governo estadual, também a norteadora do grupo que longa cauda branca, é vontade de em- porcionou. A abertura e a disponibilidade
situação que se prolongou por quase mediamos. Dele participaram quatro bate e captura – como em uma pescaria dos pesquisadores, assim como o desejo co-
um ano. Nós conseguimos lançar o edi- pesquisadores: Alice de Palma, Bernardo de arrasto – de afetos, de arquitetura, de
letivo de troca e partilha, ficaram evidentes
tal dia 14 de junho e em 15 dias alcan- Marques, Cristiane de Souza e Douglas objetos, em encontros propiciadores de
desde o início do primeiro dia de trabalho. À
çamos 36 inscrições. Zimmermann. sentidos. A cada nova captura, advêm
O formato de seminário definido Alice de Palma, pesquisadora que medida que as proposições individuais fo-
novos achados e experiências de troca.
pelo grupo foi horizontal, aberto a to- trabalha no campo da história da arte, ram sendo apresentadas, imagens, palavras
Douglas Zimmermann, artista e desig-
das as universidades e também a artis- apresentou-nos sua pesquisa em torno e desejos ecoaram de um trabalho a outro,
ner gráfico, nos convidou a criar imagens
tas-pesquisadores não necessariamen- da pintura Anunciação de Cortona, do modificando-se em contínua reverberação.
através de suas narrativas mitológicas.
te vinculados à academia. A intenção artista renascentista italiano Fra Angelico Apresentou-nos Demoglia, divindade que Solene e misteriosa, a anunciação res-
foi criar grupos de trabalho que pudes- (1395-1455). No trabalho de Alice, a von- nasce de suas palavras. A partir da leitura soou nas cordas de uma rabeca no segun-
sem pensar conjuntamente uma ação tade passa pelo olhar atento ao vestigial do mito, o grupo foi convocado a dar-lhe do dia de trabalho. A invocação fez surgir
coletiva. Foram dois dias de trabalho da cena, como, por exemplo, as pequenas rosto através do desenho. Douglas compar- uma deusa fantástica, encarnada em vesti-
(5 e 6 de julho de 2017) divididos em: flores do jardim, e pelas sutilezas que des- tilhou, assim, sua vontade de contato com do branco. Vozes, luzes, corpos, presença: a
apresentação dos trabalhos individuais, dobram na pintura, e, em encadeamento o desconhecido e com as metamorfoses da vontade se fez afeto e encontro.
debate, formulação de proposta coleti- imagético, os mistérios do tempo.
va e apresentação do resultado. Bernardo Marques, artista-pesqui-
A abertura do seminário contou com sador, expôs sua pesquisa em torno da
a participação da professora Eloisa Bran- música e da tradição, em particular do
tes, que propôs a dinâmica “Corpo me- instrumento musical rabeca. Sua busca
mória em movimento”, integrando par- passa pelo desejo de artesania e do en-
ticipantes e equipe de organização. Esse contro com a ideia de ancestralidade. Sua
primeiro momento do seminário foi par- investigação o leva à construção de seu
ticularmente instigante por ter ocupado próprio instrumento a partir do contato 1 Débora Seger é mestranda em Artes pela Uni- tranda em Teoria e Crítica de Arte pelo PPGAr-
versidade do Estado do Rio de Janeiro. É gradu- tes Uerj. Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Atua
áreas comuns do Campus Maracanã (Co- com artesãos experientes. Hoje, com seu ada em Psicologia e mestre em Psicologia Social na área de artes gráficas desde 1994. Em 2007
art, bosque e arredores da capela Ecumê- instrumento construído, passa às expe- e Institucional pela Universidade Federal do Rio torna-se sócia-gerente da produtora Espaço
Grande do Sul. Pesquisa, principalmente, articu- Donas Marcianas Arte e Comunicação. Desen-
nica), aproximando a prática da pesquisa riências musicais, utilizando tecnologia lações entre arte, teoria psicanalítica e filosofia; volve trabalho autoral em artes visuais desde
à existência cotidiana da UERJ. (pedais de distorção, alteração sonora e cultura e produção de subjetividade. 2010.

Ao todo, foram organizados seis loop) para trabalhar a sonoridade tradi- 2 Gabriela Caspary é bacharel em História da 3 Agamben, Giorgio. Profanações. São Paulo:
grupos de trabalho divididos por três cional contemporaneamente. Arte pelo Instituto de Artes da UERJ e mes- Boitempo, 2007, p. 49.

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Chamo-me Agrippina, tenho 20 anos
e sou travesti. Faz-se necessário, nesse
momento, que eu me afirme enquanto
os dois. É por estas afirmações que eu
exemplifico minhas questões. Quando
me afirmo enquanto Agrippina, estou
subvertendo a política que condiciona
a aceitar o nome do meu registro geral
enquanto minha identificação. Serei pu-
blicada com o nome que escolhi e que,
apesar de não legitimado, é o meu nome.
Quando me afirmo travesti, desconstruo
a imagem que foi concebida para mim ao
Corpos em TRANSito: me afirmar. A imagem negativa que cer-
Corpos transvestigeneres e ca a palavra é perversa e manipuladora,
o espaço público. ao falar que eu sou travesti espera-se de
mim que me submeta a um estereótipo
PARTICIPANTES CONTINGÊNCIA que é conectado automaticamente com
(Berlinda b) a prática da prostituição, mas o que não
se percebe é que esse estereótipo é, na
verdade, uma das condicionantes limita-
Agrippina Cândido Viegas Pequeno1 doras que impedem que as travestis con-
sigam sair da situação de marginalização
Agrippina Cândido Viegas Pequeno |alice da palma|ana alves social, assim como da prostituição em si.
Espera-se muito pouco de nós, e assim
ana elisa lidizia|bernardo wagner marques baptista|cristiane de souza
nos é oferecido, mas para a percepção
douglas zimmermann de oliveira|gilberto hora e daniele gomes hetero cisnormativa a consequência aqui
istefânia marcarini rubino|lara(larissa)silva|leonardo antan parece preceder a causa.
leonardo perdigão leite|lucas sargentelli|patrícia amorim da silva
pedro ambrosoli|pedro de souza fonseca|rafael amorim|rené gaertner A universidade

thábata castro roberto|victor hugo de oliveira pinto


Em 1971, Linda Nochlin escreve seu
ensaio Porque não houve grandes mulhe-

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res artistas? e este ano eu escrevi um ar- seus corpos e subjetividades legitimados biopolítico cria discursos e ferramentas de insistir de que se fala muito em estudos
tigo intitulado Porque não houve grandes nos espaços. Pois, para quem tem seu cor- controle da vida e dos corpos. de gênero, mas continua a me tratar no
artistas travestis? para repensar a questão po expulso e sua identidade negada pelo masculino.
colocada por Nochlin. Quando ela fala de Oras, usam a palavra “trans” a rodo,
cistema3 ,as questões teóricas da história Há ainda que lidar com o fato de que
a mesma gente que se recusa a empre-
grandes mulheres artistas certamente não da arte, como é meu caso, parecem não gar “cis”, e usam porque acreditam que cisgeneridade fica perplexa quando des-
estaria falando de mim. Apesar de que sou se adequar à realidade. A verdade é que ela diz algo, ainda que não saibam exa- cobre que eu posso falar. É preciso que
artista e sou mulher. eu posso, sim, pesquisar qualquer tema tamente o quê. Usam porque acreditam as pessoas trans estejam sempre pro-
que existimos e acreditam que existimos
Como posso eu, enquanto pesquisa- que a universidade me proponha, pois eu, vando que são dignas da atenção que
porque já não são capazes de não nos
dora, ignorar o fato de que sequer sou vis- assim como vocês, sou pesquisadora. In- ver, de não nos reconhecer na multidão. lhes é dada, pois somos condicionadas a
ta como uma mulher quando se trata de clusive, para a surpresa da cisgeneridade, (MOIRA, 2013, p. 3) provar nosso valor para só assim termos
estudos de gênero? Minha presença não nós travestis, de fato, pensamos. Mas, me uma chance da nossa produção ser reco-
Como, então, suportar estar num
conta? Se Nochlin expõe de maneira cla- recuso deixar que se perpetuem políticas nhecida. Por isso, somos empurradas na
espaço que não foi feito pra você? Pois,
ra o privilégio que é ter nascido homem, transfóbicas dentro da academia. Não é academia a falar daquilo que “falamos
todos os espaços e instituições foram
branco, e de preferência de classe média, possível tolerar um cenário que me obri- de melhor”: gênero. Não podemos pen-
criados dentro dessa lógica heterocis-
é preciso hoje expor o privilégio que se ga a colocar minha identidade em forma sar em outra coisa. Pois, este rótulo que
normativa. Logo, aderem a suas práticas.
tem ao se nascer cis2 . Privilégio, pois, se de nota de rodapé, explicando um con- nos é colado ao renegarmos o futuro
Como suportar ouvir, dia após dia, um
coloca de tal forma que cria dispositivos ceito que parece misterioso ou especifico que o genital decreta para nós, compele
nome que não é o seu sendo constan-
para garantir sua posição como condição para pessoas trans. nossa produção ao nicho específico da-
temente usado e sendo obrigada pelo
normativa. Foram pessoas cisgêneras que Digo isso, pois, como Amara Moira quilo que abrange apenas um aspecto
Estado a responder a ele? Pois, mais que
criaram o termo trans para patologizar explicita, há uma desigualdade de no- de nossa subjetividade.
a questão da identificação com o nome,
uma condição identitária que desvia da menclatura que acredito ser familiar para
a documentação para pessoas trans. traz
que era adotada pelo poder hegemônico, todas as pessoas trans, que é justamente Há pessoas trans* fazendo teoria
uma série de complicações burocráticas
mas foi preciso que as pessoas trans crias- a compulsão em nos denominar trans. Ela mundo afora, apesar de aqui no Brasil,
que são baseadas em políticas sexistas por todos condicionantes sociais exclu-
sem o termo cis para evidenciar que não explica que trans foi um conceito criado
de gênero. Pensemos no seguinte caso: dentes que conhecemos, estas presen-
se tratava de uma configuração de con- pela comunidade médica para designar ças ainda serem muito pontuais e com
eu, quando aprovada para a UFRJ, fui
dição natural vs. condição desviante, mas aqueles que tinham uma doença (é recor- pouco poder de decisão: ainda assim,
obrigada a entregar meu certificado de onde estão elas nos referenciais biblio-
sim de um cenário de dominação que ex- rente ver a patologização das identidades
reservista (documento que comprova gráficos mesmo quando se abordam
clui as pessoas trans de se apresentarem e desviantes) que as fazia não se identificar
que me alistei no exército), pois o Estado questões trans? (MOMBAÇA, 2015)
de terem voz. Não é por acaso que o termo com o gênero que lhes foi designado no
me reconhece como homem, ainda que
cis só é criado 60 anos após o termo trans nascimento. No entanto, esse cenário faz
eu não o seja. Como, então, lidar com O banheiro
ser inventado. sentido somente se acreditarmos na su-
este cenário? Pode a Universidade, nesta
Poder ignorar tais questões e se abs- premacia do genital para a designação
configuração, ser considerada um espa- Palavra que me dá um frio na barriga.
trair em questões teórico-conceituais é, e de identidades como uma forma de do-
ço inclusivo? A cisgeneridade teima em Esse é o impacto que a constituição fisca-
sempre foi, um privilégio cis, que tiverem minância sexopolítica, onde o capitalismo

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lizadora do banheiro impõe: uma confir- tem o poder de decretar o futuro para
mação estética da identidade. Frequen- esse corpo. E ai dessa pessoa se ela se
desviar desse futuro. Vivemos numa cul-
temente, há seguranças que impedem
tura que presume os genitais e queremos
pessoas trans de entrarem em banheiros que os corpos se adequem a esse geni-
por questão da passabilidade4 que apa- tal que a gente não vê, mas que a gente
rece sempre de maneira obrigatória. Para acha que sabe qual é. (MOIRA, 2017)
entrar no banheiro feminino não basta
ser mulher, é preciso parecer mulher. Isto é sintomático de uma configuração
Isto porque os estereótipos de gê- social onde o órgão sexual (ou como coloca Laerte Coutinho, Muriel Total, 2015. Tinta sobre papel. Publicada primeiramente pelo Jornal Folha de
Preciado, o órgão que foi escolhido para ser S. Paulo e depois no blog: http://murieltotal.zip.net/.
nero que funcionam como mecanismos
de controle para o corpo de mulheres identificado como o órgão sexual) é o fator
cisgêneras operam também no corpo de diferenciação entre homens e mulheres,
das mulheres trans. Quando falam para onde as pessoas com pênis são identifica- A rua que você é estranho que você é esquisi-
uma pessoa trans que ela não se asse- das como masculinas e pessoas com vagi- to, que você não faz sentido. E que eles
melha ao gênero que ela identifica estão nas são identificadas como femininas. E isso Andar na rua é estar exposta. Expos- têm o direito de te olhar até entender
o que você é ou deixa de ser. E é nosso
supondo que existe um modelo ao qual está enraizado de tal maneira na cultura da ta ao olhar do outro, vulnerável. Noventa dever, nos deixar sermos olhadas. (MOI-
ela deveria se assemelhar e frequente- sociedade ocidental que existe, como Ama- por cento das mulheres trans e travestis RA, 2017)
mente não percebem que este modelo ra bem colocou, um compulsão em querer estão em situação de rua. Andar na rua
é ficcional. Exemplos como esse foram descobrir que órgão genital as pessoas para elas é batalhar. Para mim significa É nosso dever enquanto pessoas trans
criados para perpetuar o privilégio hete- trans possuem, pois segundo a estética da girar uma roleta russa. Elas nos olham, sermos pacientes, estarmos dispostas a
rocis ao recorrer ao discurso do natural normatividade, nossos corpos apresentam vocês me olham. Me encaram até forma- sermos olhadas e explicar calmamente
ou do biológico como fatores determi- uma ambiguidade de gênero que só pode rem uma decisão nas suas cabeças sobre nossa identidade para o outro. Ser trans
nantes da estruturação da subjetividade ser solucionada ao enfrentarmos o parecer o que eu sou. Tem barba, é homem. Tem é ter o dever de sempre ser professora
Citando Amara Moira, ela coloca em do pênis ou da vagina. peito é mulher. E eu que tenho os dois? do outro e saber lidar com a ignorância
um outro artigo que há um desejo por A cartunista Laerte Coutinho demons- alheia. Afinal, quem mandou ser travesti?
parte das pessoas cis em descobrir o tra isso muito bem em uma série de quadri- Outro tipo de assédio vivido pe- Somos vítimas de ter nascido num siste-
que há no meio de nossas pernas. Elas nhos que ela desenvolve enquanto passava las pessoas trans é a metralhadora de ma que nos considera anormais, que nos
por seu período de transição. Laerte explici- olhares que vive toda pessoa trans, marginaliza e temos que dar um jeito de
se sentem no direito que querer nos
você entra num espaço e um monte de
desmascarar como se estivéssemos de ta que pessoas trans precisar exibir uma car- lidar com isso. Somos obrigadas a sermos
pescoços vão virando, procurando você
algum modo as enganando. Ela diz: teirinha de validação genital para entrarem o tempo inteiro. Às vezes não são olha- fortes, somos obrigadas a ter coragem.
nos banheiros, enquanto pessoas cis não, res de hostilidade, olhares agressivos. Para mim, conseguir me inserir em um
Existe um genital que ninguém vê, pois a sociedade consegue deduzir qual Às vezes são olhares curiosos apenas,
meio acadêmico é de certa forma um
que ninguém tem acesso a esse genital. A olhares que querem entender o que
não ser que você vá transar com a pessoa,
seria seu genital enquanto o nosso perma- você é. Mas nesse desejo de entender o alívio, primeiro por ter meu trabalho re-
mas a gente acha que vê. E esse genital nece um mistério. que você é, esses olhares estão dizendo conhecido, segundo por saber que talvez

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exista um futuro para mim que não seja obrigadas pela configuração do sistema Imagem, desejo e Encarnação
o subemprego, que não seja o não-lugar, a estarem a todo momento cientes da
Desde muito cedo o Catolicismo supe-
que não seja ser morta aos meus 35 anos. sua posição e das barreiras que ele co-
rou a proibição veterotestamentária da fa-
Eu acredito que todas as pessoas loca (ou melhor que o cistema coloca).
bricação de imagens2 , o aniconismo herda-
trans desenvolvam para si estratégias A sociedade não deixa travesti esquecer do do Judaísmo. Encarnação do filho único
para lidar com as adversidades, pois são que ela é travesti. de Deus, que é também ele Deus, eis o que
permite o uso de imagens, de figuras huma-
nas e também da figura de Deus, ao Cristia-
nismo. Economia encarnacional, como bem
CARNE disse Marie-José Mondzain (2013).
IMAGEM, DESEJO E ENCARNAÇÃO Mas essa economia, para se fazer
como tal, pressupôs uma contrapartida
EM FRA ANGELICO da própria imagem. A economia implica
na abertura da imagem ao motivo da En-
1 Artista, pesquisadora e travesti. Aluna da Escola MOMBAÇA, Jota. Pode um cu submisso falar?. Me- (VONTADE b) carnação. Dotá-la, portanto, de uma du-
de Belas Artes da UFRJ, seus trabalhos dialogam dium, 2015. Disponivel em <https://medium.com/@ pla potência: potência de evento e potên-
com questões de gênero, identidades e institui- jotamombaca/pode-um-cu-mestico-falar-e915ed-
ções. cia de mistério. Fazê-lo sintoma, indício.
9c61ee>Acessado em 19/09/2017.
As imagens cristãs, então, por essa eco-
2 Cis é a abreviação do termo cisgênero, termo MOREIRA, Amara. Travesti ou mulher trans: tem di- ALICE DA PALMA1
criado para designar as pessoas que se identifi- nomia, exigem um outro olhar, um olhar que
ferença? Mídia Ninja, 2017. Disponível em < http://
cam com o gênero que lhes foi atribuído no mo-
mento do nascimento. midianinja.org/amaramoira/travesti-ou-mulher- se alonga e que se abandona na imagem.
-trans-tem-diferenca > Acessado em 20/08/2017.
3 Termo usado nas discussões transfeministas Olhar que deseja ir além do visível, do ma-
como forma de trocadilho com a palavra sistema _________O mundo nas palavras trans. TEDXVolta nifesto. Olhar para o sintoma: ver o mistério.
incluindo o termo cis. É usado frequentemente Redonda, 2017. Disponivel em <https://www.youtu-
para demonstrar as relações de poder estabele- be.com/watch?v=WYBkm-9P93E> A imagem toca, então, a região do maior
cidas por pessoas cis ao contrário da situação de desejo se fazendo potência de Encarnação.
invisibilização sofrida por pessoas trans. __________O cis pelo Trans. Revista Estudos Femi- Resumo: O presente texto pretende analisar, ain-
nistas. Florianopolis, 2017.
da que brevemente, alguns aspectos da Anuncia-
Toca os limites das imagens e indica sua fi-
4 Passabilidade é o conceito de que uma pessoa
trans pode se passar por uma pessoa cis, e muitas NOCHLIN, Linda. Porque não houve grandes mu- ção de Cortona (c. 1433-34) pintada pelo artista nalidade, o umbral de um limite luminoso
vezes isto é usado de forma opressora como se, lheres artistas? São Paulo; Publication Studio São e frade dominicano Fra Angelico. Nestas linhas, e inexplicável. É forma extrema do desejo,
ao ser confundida com uma pessoa cis, fosse um Paulo, 2016. Tradução Juliana Vacaro. vamos comentar sobre alguns dos mecanismos
objetivo ou um dever das pessoas trans. feito imagem, de ir além da imagem.
Preciado, Paul Beatriz. Manifesto Contrassexual - pictóricos para a representação do mistério da
práticas subversivas de identidade sexual. São Pau- Encarnação e seus desdobramentos teológicos, O principal traço em comum é o de-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS i.e., como Angelico responde ao desejo de visão sejo de visão (...) Visão tanto como ponto
lo, N-1 edições 2015.
CROSS, Katherine. I Am Whoever You Say I abrindo sua imagem ao mistério infigurável. de partida e objetivo de toda elevação do
Am. Disponível em: http://quinnae.wordpress. espírito e fonte de todo afeto religioso. 3
com/2010/10/01/i-am-whoever-you-say-i-am/ , Palavras-chave: Imagem; desejo; Anunciação; H. G. BECK apud FREEDBERG, 1991. p.
2010a. Encarnação; Fra Angelico 161 (tradução nossa)

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Anunciação Não surpreende, então, que para a A Anunciação de Cortona o divino chega no humano.
tradição cristã pré-moderna os episódios O espaço entre as duas figuras é mar-
A Anunciação narra a visita do anjo A Anunciação de Cortona, pintada cado por um signo: a pilastra. A figura da
da Queda, da Anunciação e da Crucifica-
Gabriel à Maria em Nazaré. O relato, tão por volta de 1433-34, é o painel princi- coluna é recorrente em textos religiosos,
ção tivessem ocorrido em um mesmo dia
breve, deste encontro entre anjo e mulher pal do retábulo executado por Angelico a ela é associada a figura do próprio Cris-
do ano, o 25 de março:
está presente no Evangelho de Lucas (Lc 1, para a Igreja de San Domenico na cida- to. Ela representa, portanto, exatamente
“Salve dia festivo que cura nossas fe-
26-38), e também em Evangelhos Apócri- de italiana de Cortona. O retábulo con- o lugar do mistério.
ridas! O anjo foi enviado, o Cristo sofreu
fos (nos capítulos X e XI do Protoevange- siste, além da Anunciação, de mais seis Essa mesma pilastra passa “por cima”
na Cruz, Adão foi criado, e, nesse mesmo
lho de Tiago e no capítulo IX do Evangelho imagens de menor tamanho localizadas de palavras inscritas na imagem, parcial-
dia, caiu [pecou]” VORAGINE, 2004. p. 264
de Pseudo-Mateus). O mistério da Encar- na predella e que representam cenas da mente escondendo-as. A inscrição, dessa
- tradução nossa)5 .
nação se dá justamente na Anunciação. vida da Virgem Maria. forma, se torna tangível. Palavras para se-
Sendo a Anunciação o momento que
Anuncia-se um nascimento: o nasci- Angelico situa o colóquio angelical rem não apenas lidas, mas também vistas.
encerra o mistério da Encarnação, que é
mento da própria Palavra criadora que se em uma loggia ao lado de um florido jar- Para os cristãos pré-modernos, o mis-
o mistério dos oximoros, como então fi-
fará carne no ventre de uma mulher. Este é dim. Maria se encontra sentada em uma tério da Encarnação era, antes de tudo,
gurar este mistério? Como dar forma aos
o momento dos impossíveis, dos oximoros. cadeira ornada com tecido, um livro re- um mistério linguístico6: “E a Palavra se
vazios do texto sem ultrapassá-los e trair
São Bernardino de Siena, em seu sermão De pousa em seu colo, as mãos cruzadas em fez carne e habitou entre nós” (João 1,
seu espírito?
Glorioso Nomine Iesu Christi, comenta o mis- seu peito em sinal de humildade e a ca- 14). O paralelo tipológico traçado pe-
Com isso em mente, tornemos a olhar
tério da Encarnação através de uma longa beça levemente inclinada na direção de los Pais da Igreja entre Maria e Eva era
para a Anunciação de Cortona (Fig.01).
série aporética, diz ele ser este o momento seu visitante. Ele, por sua vez, encontra-se também linguístico . Eva havia sido se-
em que: “a eternidade chega no tempo, a em pé, inclinando seu tronco em direção duzida pelas palavras envenenadas da
imensidão na medida, o Criador na criatura, da mulher. Sua mão direita aponta para serpente, enquanto a Virgem Maria se
(...) o infigurável na figura, o inenarrável no o seio da virgem enquanto a esquerda rendeu às palavras luminosas do emissá-
discurso, o inefável nas palavras, o incircuns- aponta para um ponto no alto. Seguindo rio do próprio Deus.
critível no lugar, o invisível na visão...” 4 . seu dedo vemos a figura esculpida do Pai Palavras que fecundam.
Anuncia-se um nascimento, como já que se volta para Maria e, com o levantar As palavras tangíveis funcionam, en-
dito, mas também anuncia-se a morte, a de sua mão esquerda, envia a pomba do tão, também para marcar, juntamente
ressureição e a redenção. A Anunciação Espírito Santo em sua direção. com a pilastra, a entrada do logos na figu-
guarda em si a história da salvação da hu- As figuras de Gabriel e Maria são rabilidade, i.e., sua encarnação.
manidade em semente: nascer, ou seja, emolduradas cada qual por um arco da Deixando a loggia, entramos num
fazer-se carne implica que Cristo sofra e arquitetura da loggia, marcando, assim, delicado jardim verde, pontuado aqui
morra na cruz para redimir a transgressão seus respectivos espaços simbólicos: o e ali por pequenas flores. Mais adiante,
cometida por Adão e Eva; implica também Fig.01
Fra Angelico. Anunciação de Cortona (c. 1433- divino e o humano. Contudo, eles se en- ao fundo, vemos um lindo roseiral e uma
que ele ressuscite e, vencendo a morte, 34). Têmpera sobre madeira, 175 cm x 180 cm – contram no mesmo plano, partilhando cerca de madeira. Ultrapassando esta
restaure a todos para a vida eterna. Museo Diocesano di Cortona, Itália.
um só pavimento. Eis o momento em que cerca, temos várias árvores e uma paisa-

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gem árida que nos leva a subir o olhar. Nesse sentido, a imagem estaciona- podemos supor tratar-se do 25 de mar- cessidade, o mistério da Encarnação.
Estamos agora às portas do Paraíso. Da da/cristalizada de um momento opera ço da Crucificação, o sacrifício perfeito e Abrindo suas imagens para o mis-
porta aberta emerge a figura de um anjo também uma suspensão no tempo, é definitivo de Cristo. A morte de Cristo, o tério, ele nos convida a olhar no tempo.
a empunhar uma espada, a sua frente presente eternizado que não cessa de Segundo Adão, na cruz, funciona como Percorremos a história de pecado e re-
vão, apenados, Adão e Eva. repetir-se. A suspensão parece abrir a o perfeito sacrifício capaz de expurgar a denção, desde a Expulsão de Adão e Eva
A Expulsão do Paraíso relembra ao es- obra ao “logo antes” e ao “logo depois”, mácula do Pecado Original e restaurar a do paraíso do Éden até a Crucificação do
pectador o motivo da Encarnação ter sido aspecto de eminência do presente. Lem- aliança entre humano e divino, aliança Deus-homem, passando pelo momento
necessária. Porque os Primeiros Pais caí- bra seu observador que o mistério ocor-
essa que começa a ser restaurada pela chave da Anunciação, tema central do
ram pelo pecado da desobediência e foi re sempre e que deve sempre se repetir
obediência de uma mulher, Maria, anos retábulo de Cortona ora estudado e tam-
preciso que as obediências de Maria (seu e se renovar, pela fé.
antes em Nazaré. bém da fé cristã.
fiat) e posteriormente de Cristo (seu sacri- O espaço da Anunciação foi desloca-
Para poder “mostrar o que não se Angelico, então, articula o desejo de
fício) acontecessem para reverter a falta do para a direita de modo a nos permi-
pode dizer ao lado do que é dito” a arte visão transformando sua imagem em ves-
cometida e expiar a humanidade. tir contemplar o espaço da Expulsão, o
de Angelico se torna uma arte do vestígio tígio. Assim fazendo, ele consegue trans-
O espaço se transforma em tempo. tempo passado. Façamos, então, o movi-
e da memória. Ele deixa marcas que, ao bordar as coordenadas da imagem e da
Ou melhor, tempos. Passado, presen- mento contrário, puxemos a loggia para
serem vistas, trazem à mente outras ima- linguagem, tornando, através do próprio
te e futuro se encontram no espaço da a esquerda.
gens que vão desencadear toda uma sé- limite, o visível e o legível ilimitados. Faz,
imagem. A imagem é, então, cesura do Esse espaço além nos é sugerido pelo
rie de reflexões sobre o mistério do qual em suma, de suas imagens “janelas aber-
tempo, corte que revela o que já estava uso da perspectiva por Angelico. A estru-
lá mas que não era visto. tura da construção arquitetônica em que tiram sua mais profunda e essencial ne- tas” para a contemplação do mistério.
O fluxo espaço-temporal da imagem se encontram anjo e virgem é composta
flui horizontalmente, da esquerda para por três. Isso fica explícito na parede que
a direita. Contemplada assim, a obra separa a parte externa da construção da
nos apresenta primeiro o espaço da Ex- sua parte interna (o quarto da Madonna).
1 Bacharel em História da Arte pela Universidade 4 Apud DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 57: “[l]’éternité
pulsão do Paraíso ocorrido no passado Da parte externa só vemos dois terços, os do Estado do Rio de Janeiro (2017), membro do dans le temps, l’immensité dans la mesure,
veterotestamentário do Gênesis. No pri- espaços respectivos do anjo e de Maria. grupo de curadoria 7Curadoria, curadoria da le Créateur dans la créature, (...) l’infigurable
exposição Limiares (Paço Imperial RJ - 2017) dans la figure, l’inénarrable dans le discours,
meiro plano, propositalmente deslocado A haste de metal, acima dos capitéis das l’inexplicable dans la parole, l’incirconscriptible
para a direita por Angelico, temos o tem- colunas, interliga os arcos da construção 2 Proibição retirada, dentre outros, de um trecho dans le lieu, l’invisible dans la vision ...”.
do livro do Êxodo (20: 4-5): “tu não farás nada que 5.“Salut, jour de fête qui bride nos blessures!
po neotestamentário da Anunciação, o e forma uma linha reta que leva nosso pareça ao que está lá no alto nos céus ou aqui L’Ange a été envoyé, le Christ a souffert sur la
presente em si da imagem, ocorrido na olhar ao espaço sugerido. embaixo na terra, ou nas águas embaixo da terra. Croix, Adam a été créé, et, en ce même jour, a
Tu não te prosternarás diante destas imagens chuté”.
cidade de Nazaré. Ademais, na constru- Seguindo a lógica do fluxo espaço- nem as servirás, porque Eu, Iahweh, teu Deus, sou
um Deus zeloso”. 6 Paralelo traçado desde pelo menos o século
ção em que se passa o colóquio, a loggia -temporal da composição, este espaço II com São Justino Mártir (c.100-165). Ele está
renascentista, tem-se uma sensação de apenas sugerido nos levaria a contemplar 3 “The major common feature is the desire for presente no Dialogus cum Tryphone Judaeo, em
vision. (...) Vision both as point of departure que São Justino debate com um judeu sobre sua
presente (em relação ao tempo em que outro tempo, posterior. Usando a passa- and goal of every elevation of the spirit and the conversão ao cristianismo e, consequentemente,
a obra foi produzida). gem da Legenda Áurea já reproduzida, source of all religious affect.” o status de Cristo como o Messias.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Capítulos em livros Walter Benjamin, no livro Passagens,
Livros define o rastro como a aparição de uma
MARIN, Louis. “Stating a Mysterious Figure”. In:
A Bíblia Sagrada. Trad. Padre Antônio Pereira de BOGUE, R (org.). Mimesis in the Contemporary proximidade. Segundo Benjamin, por
Figueiredo. Rio de Janeiro: PAUMAPE, 1979 Theory: An Interdisciplinary Approach, Volume II:
Mimesis, Semiotics and Power. Philadelphia: Ben- mais longe que esteja aquilo que o dei-
ARGAN, Giulio Carlo. Fra Angelico. Lausanne: SKI- jamins Pub. Co., 1991.
RA, 1955. xou, no rastro apoderamo-nos da coisa.
BASCHET, Jêrome. A Civilização Feudal: do ano Periódicos Durante o Contingência, 6º Seminá-
mil à colonização da América. Rio de Janeiro: Edi-
tora Globo, 2006. CORNINI, Guido. “Beato Angelico”. Art e Dossier, rio de Pesquisadores do PPGArtes Uerj,
155, 2000.
BELTING, Hans. Semelhança e Presença: A história módulo Vestígio, o exercício proposto
da imagem antes da era da arte (org. Maria Be- SCOTT, Timothy. “The Annunciation: symbolic
functions of space in Renaissance depictions of the
consistiu em gravar a palavra “P(h)ODER”
atriz de Mello e Souza). Rio de Janeiro: Ars Urbe,
2010 Annunciation”. Sophia: The Journal of Traditional sobre pedras portuguesas para, em se-
Studies, 2007.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant L’Image: guida, inseri-las nos espaços públicos e/
Question posée aux fins d’une histoire de l’art. SIMONE, Gerardo de. “Fra Angelico: perspecti-
Paris: Les Éditions de Minuit, 1990. ves de recherches, passées et futures”. Pespec- ou privados. Na medida em que esse tipo
tive, la revue de l’INHA. Actualités de la recherche de inserção pode gerar reações imprevis-
_____ . Fra Angelico: Dissemblance et figuration.
Paris: Flamarion, 2012.
en histoire de l’art, 2013 – I.
RASTROS PALEOPOÉTICOS: tas, a aparição da pedra-rastro (objeto-
FREEDBERG, D. The power of images: Study in the
history and theory of response. Chicago/London:
Referências eletrônicas TODA CAVERNA TEM UMA SAÍDA -coisa) pode parecer tão próxima quanto
University of Chicago, 1991. PANOFSKI, Erwin. Perspective as Symbolic
Form. Disponível em: <http://isites.harvard.
OU É PRISÃO indeterminada e, nesse sentido, se apo-
MONDZAIN, Marie-José. Imagem, ícone, econo- derar de um “p(h)oder”, a exemplo de “um
edu/fs/docs/icb.topic775201.files/Readings_
mia: As fontes bizantinas do imaginário contem- Week%202/Panofsky%20sect%201-3%20no%20 lance de dados jamais abolirá o acaso”.
porâneo. Rio de Janeiro: Contraponto/Museu de plates.pdf>. Acesso em: 01 de julho de 2014.
Arte do Rio, 2013. (VESTÍGIOS b+C)
THE BIBLE: Latin Vulgate. Disponível em: <http:// Da calçada portuguesa à pedra de ar-
SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens: www.fourmilab.ch/etexts/WWwww/Vulgate/>.
Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Acesso em: 29 de janeiro de 2016. remesso
Bauru: EDUSC, 2007.
VORAGINE, Jacques de. La Légende dorée. Paris: ANA ALVES 1
Gallimard, 2004. Tecnicamente, a presença do mosaico
marca a extensão geográfica do impé-
rio romano também em Portugal, mas é
por volta de 1500, durante o reinado de
Resumo: Relato de uma ação coletiva em torno Manuel I, que as pedras portuguesas, fei-
de modos de produção e inserção de rastros no tas a partir das rochas negras (basalto) e
espaço público. Uma experiência de caráter prá-
brancas (calcita), passam a ser utilizadas
tico sobre formas de deslocamento da palavra
(verbo) “poder” através de superfícies móveis; no revestimento das calçadas de Lisboa,
apropriação e compartilhamento de lideranças mantendo-se como uma espécie de tra-
como dispositivos de resistência poético-política. dição, mesmo após o terremoto de 1755.
Palavras-chave: poder, resistência, lideranças
Somente a partir de 1842 é que surge em
compartilhadas. Portugal a primeira calçada no estilo das

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que vemos hoje em dia no Brasil, com o surgem, em nome da modernização, as Do poder ao p(h)oder
padrão de desenho “Mar Largo ”. No Bra- reformas urbanas de Pereira Passos divi-
sil, segundo o historiador Milton Teixeira, dindo oficialmente a cidade do Rio de Ja- “As Máscaras da Homofobia, Racismo, Machismo, Consumismo, Dinheirismo não resistem diante do
PHODER HUMANO do ser que encara a vida desassombradamente” 4
tudo indica que a primeira calçada brasi- neiro em dois territórios: favela e asfalto.
leira a fazer referência ao “Mar Largo2” data De certa forma, pode-se considerar,
de 1900 e circunda o Teatro Amazonas, nesse sentido, que as pedras portugue-
em Manaus. A seguir, na cidade do Rio de sas são vestígios de um processo de
Janeiro, na gestão de Pereira Passos, tam- gentrificação que vem sedimentando lu-
bém as pedras portuguesas passam a re- gares, mentalidades e comportamentos
vestir calçadas, primeiro as da Av. Central desde a Primeira República. Pouco mais
e, depois, o calçadão de Copacabana, até de um século depois, nas manifestações
se espalhar por toda a cidade e boa par- de junho de 2013, as pedras portuguesas
te do país. Não bastasse o fato de termos retomam a cena carioca na “função-mo-
sido colônia de Portugal - de que “antes de do”, objeto de arremesso, numa demons-
Portugal ter descoberto o Brasil, o Brasil tração legítima e concreta da insatisfação
tinha descoberto a felicidade3” -, eis que da população contra o poder do Estado.

“Poder” - Carlos Vergara - 1975.

Nos anos 70, o artista contemporâneo de “mise en abyme”, com uma imagem
Carlos Vergara fotografa cenas do carna- dentro da outra. O corpo, a palavra e o es-
val carioca como objeto de sua pesquisa pectador: imagens de um “poder” que se
visual. “Poder” é o título da obra que faz apropria dos corpos no mesmo instante
parte da série “Bloco de Carnaval Cacique em que estes se apropriam dele. Aqui, o
de Ramos”. A natureza alegórica dessa “poder” é o verbo que nomeia os corpos,
imagem pode ser comparada a uma ação ou seja, a própria expressão de uma força
que resgata do esquecimento algo que que se volta para fora. A equação é literal,
ameaça desaparecer, fazendo sobreviver o corpo é igual ao “poder”, antes mesmo
o “poder” como uma presença em po- de qualquer ideia de representação. Na
Policiais militares usam escudos para se proteger das pedras atiradas por
manifestantes no Centro do Rio de Janeiro (18/junho/2013). tencial que, por sua vez, gera um efeito fotografia de Vergara, o “poder” encarna

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os corpos. A partir daí, surgiu a ideia de Dos vestígios uma espécie de arrecife de micro poderes, sifo parecia habitar muitas memórias sem
se apropriar do “poder” incorporado na formavam vestígios de um mo(nu)mento chão. No meio das pedras haviam muitos
pele, e das pedras, como um modo de in- A situação precária em que se encon- de passagem. Por um instante, imagem e caminhos: aprendizes-mestres e passan-
vestigar as relações e reações que surgem tra o sistema educacional no Estado do silêncio. Entre as pedras e as costas de Sí- tes, todos, rastros públicos de resistência.
do encontro entre palavra, objeto, ação e Rio de Janeiro foi crucial e determinante
contexto. Ao migrar dos corpos para as para a ação apresentada no último dia
pedras portuguesas, a palavra “poder” foi do seminário. Entre nós, a partir de re-
acrescida da letra “h” entre o “p” e o “o”, re- latos sobre a real situação dos alunos e
sultando na grafia “p(h)oder”. professores da rede estadual de ensino,
foi elaborada uma lista com centenas de
Da contingência nomes de escolas e turmas fechadas du-
rante o ano de 2017. A partir daí, decidi-
Ao propor uma dinâmica de grupo em mos marcar o nosso encontro com uma
torno da produção de múltiplos, e a partir ação que, de alguma maneira, tornasse
do que denominei de “litobravuras”, foi pedi- pública a violação da garantia do direito
do a cada participante que levasse consigo básico à educação.
uma ou mais pedras portuguesas. Durante O ato aconteceu no pátio da UERJ,
o encontro, as pedras foram carimbadas mais precisamente no meio do corredor
com a palavra “p(h)oder”, mas também com de acesso, entre o prédio principal e o
outras palavras como, por exemplo, os pro- portão 1. Os participantes do encontro
nomes pessoais eu e/ou você. A proposta formaram uma grande roda, entre todos
gerou desdobramentos, passando a incor- foram partilhadas pedras portuguesas
porar outros interesses e falas referentes às carimbadas e fitas de papel contendo o Rastros paleopolíticos, 2017. Imagem: Eduardo Mariz
pesquisas apresentadas pelos membros do nome de uma unidade escolar mais o res-
nosso módulo. Uma vez que teríamos dois pectivo número de turmas fechadas em
dias para a realização do seminário, no pri- 2017. Iniciada a “lista de chamada”, en-
meiro dia ficou combinado que as pedras quanto cada pessoa pronunciava o nome
gravadas seriam inseridas em lugares públi- de uma escola em voz alta e depositava
cos ou privados, de acordo com a intenção uma pedra no centro da roda, um coro
de cada um. Também foi criada uma conta de vozes, em uníssono, respondia “pre-
1 Mestranda em Processos Artísticos Contemporâ- 3 “Manifesto Antropofágico”, 1928. Oswald de
coletiva no Instagram (https://www.insta- sente” e/ou “faltou”. Autorregentes, éra- neos, PPGArtes/UERJ. Orientadora: Inês de Araújo. Andrade.
gram.com/?hl=pt-br) a fim de gerar um ar- mos todos componentes de um coral de
2 Nome do padrão de desenho usado no calça- 4 Corrêa, Martinez José Celso. In: https://www.
quivo com as imagens das pedras, nos luga- lideranças compartilhadas. No centro da mento que cobre os 8.712 metros quadrados da cartacapital.com.br/sociedade/um-apavorante-
res onde foram instaladas. roda, algumas centenas de pedras, como Praça do Rossio, em Portugal. -susto-1636.html

62 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 63


O amante, o sujeito amoroso, não é tes de variação, onde aquele que se deixa lugar de existência, mas enquanto uma
um indivíduo qualquer, uma vez que se tomar pelas atividades do campo da arte carta que se escreve em expectativa de
afasta do modo comum de estar no mun- o faz apontando para diversos caminhos, resposta). Um escrever expandido por-
do por um saber (amoroso) que o singu- direções múltiplas (além mesmo do deta- que infinito. Aqui, crítica-(carta), mesmo
larizou. Percebemos que o “homem sem lhamento das próprias linhas de escolha) que não enviada, ou talvez enviada, mas
qualidades”, o homem ordinário, pode, (BASBAUM, 2013, p.21). Pois, principalmente, que se propõe fazer o
pela intermediação de um acontecimento que faz o diálogo e a poesia, manter con-
quando a palavra crítica surge no vo-
(o amor), tornar-se sujeito na breve dura- tato, chamar o que se perde, chamar o
CARTA AO LEITOR ção do evento amoroso. Roland Barthes
cabulário da filosofia ocidental (lembre-
mos de Kant), ‘crítica’ significa, sobretu- impossível, reconhecendo de antemão
POR UMA CRÍTICA DE ARTE faz seu amante enlaçar (abraçar) o mun- do, questionamento da razão sobre seus sua afasia e seu engodo.
limites, ou, como diz Giorgio Agamben
EPISTOLAR do, tecer com o mundo e com a vida ao no prefácio de Estâncias, significa investi-
A professora francesa Geneviève Ha-
tornar-se sujeito através do amor, único gação sobre os limites do conhecimento, roche-Bouzinac em Escritas Epistolares3
acontecimento que possibilita o discurso. sobre aquilo que não é possível colocar explicita que o correspondente ideal não
(BERLINDA A) Com esse sujeito amante, se prioriza nem apreender. É desse modo que ele é “aquele que responde, mas os que pos-
defende o pensamento crítico como um
uma escrita não submetida à doxa e livre exercício da negatividade (ele cita inclu-
suem as características ideais, como: saber
para ser deslizante, inconclusiva, hesitan- sive o grupo de Jena que propunha uma dialogar sem se impor”. A carta permite
ANA ELISA LIDIZIA 1 te, aberta, em experimentação, plena em crítica que incluísse a própria negação, e ainda que as relações sobrevivam, uma
cujo conteúdo fosse o que nela não se
possibilidades quanto a seu destino. Em vez que é quase sempre apresentada
encontrava)2. (CESAR, 2013, p. 141)
crítica como amante, aquele que exige, como uma ilusão, “seja de presença, seja
implora, suspira e responde. Repito: é Não seria cabível, então, uma vez que de diálogo”; é de certa forma um aguar-
para você que escrevo. Sempre para você falamos de uma escrita do oximoro, do im- dar/ansiar esperançoso, ou longing no ter-
Resumo: Propor, em alternativa à crítica de arte que me recebe, senão é para ninguém. A possível, do que continua ressoando e do mo em inglês. Sua força reside aí, em certa
formal, uma escrita de forte teor experimental, fim de criar um pacto sincero entre quem que se perde da obra de arte, que no es- compensação, um “marcar ausência”.
híbrida e em investigação amorosa. A partir do escreve (o remetente), o objeto do amor e crever crítico expandido, nos alinhemos a As cartas caracterizam-se ainda pela
estudo dos discursos retórico e oratório e da
aquele que lê (o destinatário). essa sobrevivência tanto do objeto-obra em flexibilidade dos seus usos. A pesquisa-
escrita epistolar, criar uma crítica de arte que
se quer amante, ou seja, composta em íntimo Revelador seria pensar uma crítica am- questão na crítica, mas também - e a partir dora Brigitte Diaz, em O gênero epistolar
diálogo com a obra de arte. Uma crítica de arte pla e presente em muitas mídias, em um de - como um fio que tece a escrita, falemos ou O pensamento nômade4 , defende
epistolar. Propose an alternative to formal art escrever enlaçado pelo objeto e em eterna poeticamente do que resta, do que chama e que “a correspondência escreveria o
critique by creating an experimental writing,
composição com ele. Essa é uma crítica que do que se perde? Não seria adequado que o avesso da história singular, trata-se não
within a hybrid space. Starting with rhetoric,
oratory and epistolary studies to create a “lover’s se dirige à linguagem mesma, mas não só. traço que risca sobre tão íntima experiência só de um documento, um discurso,
review” that is an intimate dialogue with the work Um risco-experimental-poético, enquanto que é a da obra de arte também traçasse em como de um fazer.” Torna-se, então, um
of art. An epistolary art review. espaço privilegiado de mediação na
espaço privilegiado de elaboração de di- resistência da língua? Língua que implora o
Palavras-chave: Crítica de arte; epístola; escrita álogos, que não deseja prescrever regras imperceptível, que chama pelo nome e res- qual os escritores enviam poemas, pe-
experimental ou deveres, mas antes (...) apontar horizon- ponde em seu nome (não roubando o seu dem a intervenção do interlocutor nas

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discussões artísticas. A carta é, pois, um timo e público, tensionado entre secreto o fim pertence a quem o recebe (missivista/ da investigação amorosa e para isso é ne-
texto híbrido, rebelde e ficcional. e sociável, a carta, melhor que qualquer
destinatário). Nesse momento em que o crí- cessário criar um espaço híbrido, pleno em
outra expressão, associa o lugar social e
A instantaneidade, a sinceridade asse- tico passa a problematizar a própria lingua- fraturas e faltas. Assim, construímos uma es-
a subjetividade. Cada grupo vive e for-
gurada pelo caráter confessional, por vezes mula à sua maneira este problemático gem ao invés de utilizá-la somente como crita em liberdade de experimentação a que
confidencial, o espaço adequado a dar-se a equilíbrio entre o eu íntimo e os outros. instrumento de abordagem, ele torna-se podemos chamar crítica epistolar, pois essa
conhecer ao outro, que assume certa fun- [Tradução nossa]5 (CHARTIER, 1991: 9
escritor. E finalmente, o conceito de obra é a escrita que abriga as missivas dos aman-
apud SOTO, 2007: 98).
ção de “espelho para observação de si” e a também muda, pois, sob a perspectiva da tes. Diálogo com o mundo, linguagem que
linguagem simples devido às características Afirmar a missiva enquanto texto híbri- pluralidade, a obra e a escrita tornam-se adere e repulsa seu objeto, que expõe suas
do diálogo são tensionadas e postas à prova do e mapear seu traços complexos passa ambas abertas à multiplicidade e possibili- ambiguidades, jogo de perguntas e respos-
quando pensamos nas missivas como um por abordar as aparentes antinomias cita- dades de lugar e sentido, admitindo inclusi- tas, aliança entre letra e imagem, caligrafia
espaço de “limites utópicos” e uma leitura das, uma vez que a carta permeia diversas ve suas ambiguidades6 . do querer em busca de outro querer. Tão
do gênero mais ampla e de instâncias pa- práticas sociais e apresenta configurações A crítica defendida aqui, pois, é aquela logo a próxima carta.
radoxais surgem, permitindo a construção particulares e, portanto, exige que não
de algo com um “direito” e “avesso” dessa excluamos nenhum dos pares dessa equa-
possível comunicação. Afirmando a carta ção. A epístola ser híbrida e múltipla só
enquanto espaço contaminado e movediço. nos reafirma sua capacidade de comuni-
1 Graduanda em História da Arte –Uerj e mes- 6.BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo:
A duplicidade da escrita, na ação de lei- cação e, principalmente, de criação. tranda do Programa de Pós-graduação em Estu- Perspectiva, 1970. p. 210-215.
tura e releitura, influencia tanto o remetente Um dos aspectos que Barthes salien- dos Contemporâneos das Artes- UFF, na Linha
de Estudos Críticos das Artes, com orientação da
quanto o destinatário, tornando-a simétrica; ta sobre o escrito crítico é que ele é um professora doutora Viviane Matesco. Curadora do
é um deslizamento. Essa ideia do gesto epis- discurso (ou linguagem) sobre outro dis- projeto de intervenção urbana Dia de Glória.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
tolar dá a ver uma articulação entre o ato curso, a linguagem-objeto, com a qual 2 REZENDE, Renato; BUENO, Guilherme. Conver-
sas com curadores e críticos de arte. Rio de Janei- AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e
enunciativo e o texto da correspondência compõe e, ainda, estabelece um diálogo outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Ho-
ro: Editora Circuito, 2013.
em uma imbricação mais densa, apontando entre ela e o mundo, colocando-a em si- 3.FERREIRA, Ligia Fonseca, HAROCHE-BOUZINAC, Ge- nesko. Santa Catarina: Argos, 2009.
nevière. Escritas epistolares. São Paulo: Edusp. 2016.
possíveis deslocamentos para as missivas. O tuação. Ainda Barthes em Fragmentos de BRIGHELLI, Jean-Paul. L’épistolaire. Paris: Magnard,
gesto epistolar de Roger Chartier diz ainda um discurso amoroso, no que diz respeito 4 HERVOT, Brigitte, DIAZ Brigitte , FERREIRA, San- 2003.
dra. Gênero Epistolar ou o Pensamento Nômade:
sobre o privilégio contido nessa atitude, o à escolha de uma escrita fragmentada e Formas e Funções da Correspondência em Al- FERREIRA, Gloria. (Org). Crítica de arte no Brasil: te-
guns Percursos de Escritores no Século XIX. São máticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte,
da reunião de instâncias e novamente mul- deslizante sem “eu”/narrador fixo e rejei-
Paulo: Edusp. 2016. 2006.
tiplicidade: o espaço privado e convencional tando uma narração contínua, que tem
SMALL, Daniele Avila. O crítico ignorante: uma ne-
e o público; um delicado equilíbrio entre a como inspiração mais próxima O sofrimen- 5 Dans une histoire culturelle redéfini comme lieu
où s’articulent pratiques et représentations, le geste gociação teórica meio complicada. Rio de Janeiro:
elaboração de si e a relação com a cultura: to do jovem Werther, texto de estrutura épistoliere est un geste privilégié. Libre et codifiée, 7Letras, 2015.
epistolar, prioriza o discurso não submeti- intime et publique, tendue entre secret et sociabilité,
NANCY, Jean-Luc. Fazer, a poesia. Tradução de
Em uma história cultural redefinida la lettre, mieux qu’aucune autre expression, associe
do à doxa e portanto livre para ser incon- le lien social et la subjectivité. Chaque groupe vit et Letícia Della Giacoma de França, Janaina Ravagno-
como lugar onde se articulam práticas formule à sa manière cet problématique équilibre ni e Mauricio Mendonça Cardozo. Disponível em:
e representações, o gesto epistolar é um clusivo, porque ele enquanto poeta (mis- entre le moi intime et les autres. (CHARTIER, 1991: 9 <http://www.scielo.br/pdf/alea/v15n2/10.pdf>
gesto privilegiado. Livre e codificado, ín- sivista/remetente) apenas enuncia o início, apud SOTO, 2007: 98). Acesso em: 23 de novembro de 2016.

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Polifonia e diálogo etnográfico por Pará, ao Cavalo Marinho em Pernambu- resta. É o caso dos caiçaras provenientes
uma devolução de uma sonoridade co, às Folias de Reis de Minas Gerais, de da atual “Estação Ecológica Juréia-Itatins”,
inesperada
São Paulo e do Paraná, ao Fandango Cai- no sul de São Paulo. Cleiton do Prado é
Neste relato, abordo a prática artística çara, que se estende do litoral norte de de uma família que viveu nessa região e
dialógica na construção de uma rabe- São Paulo ao litoral sul do Paraná, e em foi removida, já que não há órgãos que
ca, me posicionando como um “artífice festas e rituais guaranis, dispostos em di- titulem os caiçaras e disponibilizem essas
aprendiz2 ”, após ter acompanhado ao ferentes localidades. terras para os mesmos. Ao perderem o
menos duas técnicas/processos diferen- A referida rabeca, que estou aqui direito de morarem em suas terras, após
RABECA: tes de produção do instrumento com abordando, é a “Moura”, instrumento a homologação dessas como Unidade de
O ARTEFATO MUSICAL COMO dois mestres – Caiçara da Jureia (SP), com produzido em meu ateliê entre os anos Conservação de Proteção Integral, os anti-
ESCRITA ETINOGRÁFICA Cleiton Prado, e de cabaça com Di Freitas de 2015 e 2017. A batizei com esse nome gos moradores da Jureia se mobilizaram.
(CE) –, definidos também como autores aludindo às diversas origens possíveis4 Com o intuito principal de se manterem
do artefato musical. Tive acesso a uma do instrumento musical, referências à unidos e organizados, foi criada a União
(VONTADE B) polifonia de saberes e fazeres construti- conquista árabe, ou domínio mouro, que de Moradores da Juréia (UMJ) e logo após
vos de artefatos musicais que considero ocupou a Península Ibérica durante os a Associação Jovens da Juréia (AJJ). Suas
relevantes em uma etnografia da vida séculos VIII ao XIII e às lendas das “mouras principais atividades sugerem a geração
BERNARDO WAGNER MARQUES BAPTISTA 1 social da rabeca. Propus, então, uma “es- encantadas”, seres sobrenaturais que são de renda, o resgate e manutenção da cul-
crita” da experiência etnográfica através avistados em forma feminina entoando tura caiçara e a permanência das comu-
da “linguagem” artesanal, unindo os dife- cânticos, no folclore português. nidades da Juréia em suas terras. Hoje,
rentes “modos de fazer”, e seus respecti- Propus a construção deste instrumen- vivendo em Iguape, Cleiton é integrante
vos saberes, não os traduzindo ou com- to após ter coletado e registrado saberes e da AJJ e coordena a oficina de artesanato
parando e sim os conectando. fazeres da rabeca caiçara, com Cleiton do da associação. Na oficina são produzidos
A rabeca é um artefato musical brasi- Prado, em Iguape, São Paulo, e da rabeca artefatos diversos, de utilitários a peças
Resumo: Este trabalho analisa a produção artística leiro, também chamado em diversas re- de cabaça feita por Francisco Freitas, Di artísticas e instrumentos musicais (violas
de um artefato musical, uma rabeca, como giões do país de rebeca. É um cordofone Freitas, em Juazeiro do Norte, Ceará. caiçaras e rabecas caiçaras), com caixe-
materialização de uma “experiência etnográfica”.
friccionado, segundo a organologia3 mu- Os caiçaras são povos tradicionais dis- ta (tabebuia cassinoides) beneficiada, já
A construção deste instrumento musical é
resultado de pesquisas em comunidades sical, que está inserido nas tradições das tribuídos ao longo do litoral entre o Rio que a política de preservação impede a
tradicionais e manifestações culturais pelo Brasil, festas e manifestações populares do Bra- de Janeiro e Paraná, e tem uma forte rela- retirada de matéria prima das áreas, mes-
onde o instrumento está presente. A polifonia de
sil e não possui uma padronização geral ção com a Mata Atlântica. Recentemen- mo que essas práticas sejam seculares e
variados saberes e fazeres relacionados à rabeca,
instrumento essencialmente artesanal, parte em relação à execução musical, ao tama- te, com a criação de Parques e Unidades comprovadamente não agressoras da
de uma proposta de autoetnografia, onde, um nho de escala, formas, número de cordas, de Conservação naturais, muitos grupos natureza (o corte da caixeta possibilita
objeto manual, sonoro e performático, dialoga madeiras utilizadas e outros processos e comunidades caiçaras foram expulsos rebrotas na árvore). O artesanato atua
com alteridades.
de construção. Encontra-se em diferen- de suas terras e impedidos de manter como recurso complementar apropriado
Palavras-chave: rabeca, etnografia, artesanato tes pontos do país, ligado à Marujada no suas subsistências ligadas ao mar e à flo- para geração de renda, além de manter a

68 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 69


tradição caiçara de trabalhos com a cai- ças (o fruto das cabaceiras, secas) são parte deste gênero científico. Segundo O modo dialógico apresenta processos
xeta. Na construção de instrumentos mu- facilmente encontradas no mercado Clifford (2011), a experiência do pesqui- discursivos da etnografia sob a forma de
sicais, Cleiton utiliza os saberes caiçaras local, iniciou a produção desses ins- sador, o “eu estava lá”, é uma das formas um diálogo, já o modo polifônico rompe
da produção dos instrumentos, usando trumentos com esse material orgânico, de atestar e unificar a autoridade etnó- com a autoridade monofônica a partir
ferramentas manuais produzidas pelos utilizando-as como lateral e fundo do grafica. Ainda para Clifford, “a experiên- de uma autoria plural: dos etnografados,
próprios caiçaras, como o alegre (espécie instrumento. A cabaça permite uma cia evoca uma presença participativa,
etnógrafos e informantes.
de pequena enxó), facas artesanais, ferra- infinidade de formas e tamanhos do um contato sensível com o mundo a
Trazendo métodos de construção,
mentas industrializadas, como serrotes e instrumento, assim como sonoridades ser compreendido, uma relação de afi-
ferramentas artesanais (como o alegre) e
formões, e mecânicas como serras de fita, diferenciadas, que são influenciadas nidade emocional com seu povo, uma
matérias-primas (como a caixeta e a caba-
furadeiras e lixadeiras. Há uma equilíbrio pela ressonância do material. concretude de percepção” (2011, p.36).
entre a construção milimetricamente Todos esses processos e agências ça) pude propor um diálogo de múltiplas
Com a vivência no trabalho, o etnógrafo
planejadas e processos táteis e “no olho” relacionadas à rabeca influenciaram na vozes, conectando universos, em busca
acumula conhecimento pessoal sobre o
na produção do instrumento musical. proposta de construir um instrumento de uma sonoridade que é única. Essa so-
campo. Outro ponto atentado por Cli-
Para produzi-los é necessário sentir. musical que pudesse dialogar com esses fford é como a autoridade etnográfica noridade, inesperada, tem um pouco de
Juazeiro do Norte, Ceará, é polo da percursos do objeto e com esses saberes é construída em “referência às vozes cada um dos autores, etnógrafos e etno-
cultura popular brasileira, terra de Padre e fazeres etnografados. Como um “etnó- daqueles que fornecem a informação e grafados. A proposta deste experimento,
Cícero, grande incentivador da prática grafo/aprendiz”, utilizei a reunião de téc- o papel que lhes é atribuído nos textos em forma de artefato musical, é exercer
artesanal5 . É na Colina do Horto, onde nicas e saberes que me foram apresen- resultantes” (STRATHERN, 2017, p.136). uma forma de escrita etnográfica a partir
encontra-se a estátua de Padre Cícero, tadas pelos outros autores do artefato Propõe, então, conceber a etnografia de uma prática manual e sonora, lingua-
que um cearense nativo de Fortaleza se musical, para escrever uma autoetnogra- sob paradigmas de diálogo e polifonia. gens essas universais.
instalou há mais de vinte anos. Educador, fia em “forma de rabeca” a partir de uma
músico e produtor cultural, Di Freitas de- subjetividade dialógica, enfatizando a
senvolve um projeto de musicalização presença do Outro na escrita do Eu (VER-
com crianças e jovens de Juazeiro do SIANI, 2002). Um instrumento musical
Norte. A Orquestra Armorial do Cariri é que pudesse ser a conexão de uma po-
uma orquestra formada por instrumental lifonia de experiências (minhas e deles) Figura 01
Entalhe do tampo de
local, com pífanos, rabecas e zabumbas. que estão impressas, de alguma forma,
caixeta com o alegre,
Diante de um período de ausência de nesse artefato. ferramenta artesanal
construtores de rabeca em Juazeiro do Como é sabido, a primazia do tra- caiçara. Conceitos de
Cleiton do Prado.
Norte, Di Freitas empreendeu na cons- balho de campo do etnógrafo é dado
trução de rabecas simples que pudessem pela descrição e a escrita, as principais
ser rapidamente construídas e servissem ferramentas da disciplina. A “leitura da
de primeiro instrumento na musicaliza- cultura”, a partir de uma observação par-
ção de jovens e crianças. Como as caba- ticipante, e a escrita interpretativa, fazem

70 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 71


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS STRATHERN, Marilyn. Os limites da autoantropologia.
In: STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros
ensaios. São Paulo: Ubu Editora, 2017. p. 133-157.
CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfi-
ca. In: CLIFFORD, James. A experiência etnográfi- VERSIANI, Daniela Beccaccia. Autoetnografia:
ca: antropologia e literatura no século XX. Rio de uma alternativa conceitual. Letras de Hoje, Porto
Janeiro: Editora UFRJ, 2011. p. 17-58. Alegre, v. 37, n. 4, p.57-72, dez. 2002. Disponível
em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/fo/ojs/
SENNETT, Richard. O Artífice. 4. ed. Rio de Janeiro: index.php/fale/article/view/14258>. Acesso em:
Record, 2008. 360 p. Tradução de Clóvis Marques. 9 dez. 2017.

Figura 02 Figura 03
Estrutura interna da rabeca de cabaça. Moura, 2017 Artefato musical de madeira
Conceitos de Di Freitas. e aço. Autores: Bernardo Marques, Cleiton
do Prado e Francisco de Freitas (Difreitas)

1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em 4 Possivelmente tem sua origem relacionada ao


Artes/PPGARTES da Universidade do Estado do rabab e a instrumentos da família da viela de
Rio de Janeiro/UERJ. E-mail: bernardomarques@ arco, ambos instrumentos de corda friccionada.
id.uff.br Ao que tudo indica, modelos de instrumentos
desta família foram trazidos ao Brasil por colonos
2 Segundo Senett (2013), nas guildas medievais a
e missionários ibéricos.
autoridade encarnava em três níveis: mestres, jor-
naleiros e aprendizes. “O trabalho apresentado pelo
aprendiz centrava-se no princípio da imitação: a có- 5 A célebre frase é vinculada ao Padre-políti-
pia como aprendizado” (p. 72). co: “Em cada casa um altar e em cada quintal
uma oficina”. Senett (2013) também atenta
3 Ciência que estuda os instrumentos musicais. O que desde suas origens, o cristianismo primi-
sistema de classificação mais difundido é o de Hor- tivo abraçou a dignidade do artífice (p.69).
nbostel e Sachs, Alemanha, 1914.

72 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 73


Segundo o autor Richard Shcechner, Assim, a performance esgarça as nu- seus elementos. O branco também pode
performances consistem em compor- ances das forças que permeiam a presen- ser associado ao ar e a água.
tamentos duplamente exercidos, co- ça dos corpos no espaço, jogando com A ação se inicia num jogo da artista
dificados e transmissíveis, podendo os elementos sonoros e as possibilidades com o tecido que manipula e é surpreen-
acontecer em muitos setores da vida que nascem das relações. dida pelas sugestões desse jogo com as
humana. Ele defende que rituais são O branco é a cor-luz ideal, síntese-luz formas no espaço, peso do tecido, nós e
memórias transcritas e codificadas em de todas as cores. É a mais estática, favo- tramas que se estabelecem. O tecido, em
ações. Logo, em performance, o indi- recendo, assim, à duração silenciosa, den- sua potência material, estica, enrola, voa,
SOBRE O VESTIDO BRANCO víduo tem a possibilidade de reviver sa, metafísica (Oiticica, 1986). O branco embola, dança, enquanto a música que
ENCONTROS ações cotidianas, ressignificando-as e, absorve luz, absorve as outras cores, re- vai contornando a atmosfera. As ações
a partir daí, se transformar, se rever, se bate, brinca, joga. Também pode ser con- se desenvolvem até um dado momento,
renovar. Por esse prisma, podemos en- siderado ausência de cor, a neutralidade. quando uma pessoa da audiência será
(VONTADE B)
tender as performances como compor- Já na espiritualidade é cor associada ao convidada a compor a outra extremidade
tamentos ritualizados, permeados pelo respeito e sugere muitas simbologias, do vestido. A movimentação se desenro-
jogo com o presente. Este trabalho é uma que vão desde o nascimento até a morte. la, num acordo não verbal e empírico. A
CRISTIANE DE SOUZA 1
possibilidade de, através dos encontros O branco é a cor mais usada tanto para partir daí os movimentos serão sugeridos
e situações vividas, fazer um mergulho rituais específicos como para o trabalho pelos corpos, pelas forças, pelos encon-
transformador nas experimentações das diário. Ele caracteriza os praticantes de tros, pelas vontades. Ações como puxar,
relações do eu com relação ao outro, religiões de matriz africana, servindo arrastar, empurrar, enrolar, são algumas
além de suscitar o desejo de vivenciar tanto para os trabalhos mais ordinários, que podem surgir, por um lado bem físico
experiências provocadas pelo presente. quanto para os rituais, propriamente da experiência. Por outro lado, momen-
Traz ainda a chance de investigar ações dito. Assim, no sagrado, tudo que vem da tos de silêncio, abraços, afagos, colo, são
Resumo: O trabalho propõe o desenvolvimento de
uma ação performática, onde a artista Cristiane de
mútuas dos corpos, uns com os outros, natureza é reverenciado e cultuado como situações também vividas. Um dia nunca
Souza utiliza um vestido branco com uma extensão e observar as forças desses corpos que as folhas das plantas que são respeitadas será igual a outro, cada pessoa que se
de 40 metros. Ambas as extremidades da vestimenta se fazem existir a partir da presença e indispensáveis aos cultos afro-brasilei- aproxima para participar da performance,
são possíveis de serem vestidas, podendo, então,
da sua contraparte, agindo e reagindo ros do candomblé. Também o sangue é acrescenta com sua potência e subjetivi-
ser usada por duas pessoas ao mesmo tempo. O
trabalho conta também com a ação do músico com e sobre eles. São esses encontros elemento de reverência e culto, mas não dade ao trabalho.
Bernardo Marques, que toca uma rabeca, fabricada que permitem o exercício de alteridade somente o sangue animal, o sangue ver- A mola propulsora para a realização
a partir de uma cabaça, por ele próprio. A música como estímulo aos sentimentos e sen- melho, mas também o chamado sangue dessa experiência é a vontade do encon-
nasce como improvisação no desenrolar da ação
sações, que nascem ao afetar o outro branco, de origem vegetal e mineral. Este tro, pois é necessário se estabelecer um
da performance, sendo, por isso, uma trilha original,
composta ao vivo, que permanece em diálogo com e ao deixar-se afetar, auxiliados nessa pode ser representado pelo sémen, sali- modo de estarmos juntos naquele mo-
a ação por todo o tempo do trabalho. empreitada, pelo branco do vestido e va e pelo plasma e relaciona diretamente mento, movidos por todos os elementos
Palavras-chave: performance; vestido; sua extensão, que nos trazem muitas à Oxalá, o ancião do panteão dos orixás, internos e externos, pessoais e coletivos.
rabeca; encontro. referências simbólicas. reconhecido pelo branco das vestes e de Enquanto artista, experimentando sen-

74 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 75


sações no presente, tento ficar atenta Falsa arquitetura. Escultura móvel com Assim, vou tentando domá-lo
ao que o companheiro de ação sugere. Mandei fazer um vestido milhares de possibilidades. quanto mais ele me desafia. Já sei que
O trabalho é sempre bem recebido, no Seda com algodão que desliza na pele Agora ele vai ver, vou fitar de frente. é impossível. Sei também que é esse o
sentido de estimular a vontade do públi- Eu sou grande e ele é grande (ele é Encarar mesmo. Verei se ele continua pe- caminho: ser vencida por todos os ma-
co em participar. Algumas vezes eu nem maior)
tulante assim. O algodão, na sua male- teriais e conceitos aos quais tento apri-
Meu rabo virou de sereia
precisei mostrar a outra parte, ela foi molência displicente. Eu, meu corpo. Ba- sionar, ter coragem e recomeçar. Sou
De mulher grande
simplesmente descoberta pelo público e E ele me engole com sede de cheiro de ses disformes e indefinidas inspiradas em Dalila, sou canto da mulher-peixe, sou
logo alguém se candidatou e vestiu. Ime- gente. minha própria anatomia. as águas para Oxum se banhar. Flor que
diatamente o jogo está colocado. Tento O que era lama, útero, entranhas se nasce do chorume. Luta insana que ser-
ouvir com o corpo os estímulos desse É suave e pesado. Assim eu vejo a transfigura em silhueta esvoaçante, trans- ve de acalanto ao desejo primordial de
novo e breve companheiro. Muitos ficam vida. Não digo nada. Ele não me deixa lúcida, etérea. Ele precisa ir para a rua, be- ser artista. Eu, oficina de mim mesma,
brincando com o tecido por um tempo, dizer. Engole até a minha cara, me deixa ber das alegrias e das maldades do mundo. ateliê itinerante.
numa investida mais solitária; outros já minúscula e pareço ridícula na inabilida-
começam a puxar ou movimentar o te- de do trato com ele. Não termina nunca
cido para incitar em mim algum movi- e seus vinte e cinco metros se multipli-
mento; uns tentam criar imagens, por cam só para me confundir e me pregar
exemplo, balançando o tecido para criar uma peça. Cresce ainda mais quando,
uma onda. Daí surgem abraços, toques, junto à natureza sublime, resiste a todas
pausas, olhares, silêncios. Assim como as tentativas de entendimento. Eu me
experimentos de ações físicas, como rendo! Ele não depende de mim.
empurrões, puxões, quedas, amarrações Botei o vestido na pedra e eles se de-
e emaranhamentos. ram muito bem. Botei o vestido na água
Fiz um vestido de sereia, de doida, e eles se deram bem também. Assim
de bruxa, de Sheila. Queria um tubinho como no mato, na terra, no chão, na ci-
interminável que se prestasse a todas as dade e com as outras gentes. E eu ali no
situações e hipnotizasse qualquer tran- meio daquilo tudo, bêbada de branco.
seunte para sempre. Que me protegesse Tendo que estar ali.
da acusação e do pudor de todos, tam- Ele depende de mim. Sem mim ele é
1 Atriz e artista plástica, tendo sua linguagem SCHECHNER, Richard. Performance e antropologia
bém do meu. Queria que me servisse só mais um monte de branco no chão. Eu desenvolvida no campo da performance. É de Richard Schechner - seleção de ensaios organi-
de casa, de véu, de amante, de água de e o meu vestidão que erguido, me engo- mestranda em Artes pela UERJ e professora de zado por Zeca Ligiéro. Tradução: Augusto Rodrigues
Artes Visuais. da Silva Junior. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.
rio, de túnel, de carrossel, de espelho, le. Precisamos de nós, mas ele não sabe,
de pele, de escudo, de colo e de caixão. nem se importa. Despreza-me, me igno- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Memória ancestral. Roupa linda para me ra, me reprime e me desafia. Zomba de OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de
mostrar ao mundo como eu não sou. mim e fico com cara de tonta, mirando. Janeiro: Rocco, 1986, p. 45.

76 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 77


Território filósofo alemão que viveu no início do des sociais: certo ou errado, mulher
século XX, o tempo é o horizonte possí- ou homem, negro ou branco, empre-
A ideia da onipresença convive com vel para a compreensão do ser. Somos sário ou funcionário.
o ser humano há muitos anos. A tradi- essencialmente seres temporais. O fa- As três linhas, geralmente, existem
ção judaica, islâmica e cristã tem a ubi- moso intelectual canadense Marshall em harmonia. Os dois outros tipos de li-
quidade2 como algo divino. Na Capela Mcluhan defendia que todas as tecno- nhas são fundamentais para reconstruir
Sistina, desde o ano de 1510, é possível
logias são extensões de nosso sistema novos territórios. As linhas flexíveis são
se surpreender com a grandeza da obra
POTÊNCIAS IMPERCEPTÍVEIS “A Criação de Adão”, de Michelangelo.
físico e nervoso. Tomando as novas responsáveis pelos microdesvios, pe-
plataformas digitais como extensões quenas rachaduras imperceptíveis, em
COMO PROCEDIMENTOCRIATIVO Deus é representado na horizontal, re-
do humano, temos, então, tempo e es- sua maioria. São como esteiras rolan-
fletindo a figura de Adão e nos leva a
paço expandidos. Novas potências se tes que nos transportam para outros
crer em nosso parentesco celestial. Vi-
(VONTADE B) apresentam em nosso horizonte. territórios. Mesmo estando parados,
vemos hoje em um mundo em que a
As linhas de Jullien nos lembram essas linhas nos movem e nos condu-
ubiquidade, resultante da vida on-line,
o que Deleuze e Guattarri contaram zem para outro lugar. Essas pequenas
se tornou comum. Em novembro de
em várias outras linhas de seus tex- variações foram chamadas por Deleu-
DOUGLAS ZIMMERMANN DE OLIVEIRA 1 2015, em Londres, o artista gráfico fran-
tos. Em Diálogos, Deleuze aponta ze de micropolítica. A linha de fuga ou
cês Jean Jullien pegou seu caderno de
três que nos atravessam: dura, fle- nômade está ligada à criação de no-
desenhos e, sem nenhum esboço pré-
xível e de fuga. Somos atravessados vos territórios. No entanto, é preciso
vio, traçou o símbolo da paz somado ao
por linhas em todas as direções e em ter cautela, pois, se não tratada com
da Torre Eiffel. Em algumas horas, essas
todos os lados. “Nós somos desertos, prudência, pode-se encontrar nela a
poucas linhas ganharam o mundo e se
mas povoados de tribos, de faunas e destruição da vida. O trabalho “Peace
tornaram a representação de um pedi-
floras. Passamos nosso tempo a arru- for Paris”, de Jullien, pode ser tomado
do de paz de todos que se importaram
mar essas tribos, a dispô-las de ou- como um bom exemplo de sabedoria
com aquele acontecimento, indepen-
Resumo: Infinitas linhas nos atravessam e nos tro modo, a eliminar algumas delas, ao se lidar com a linha de fuga.
dentemente do seu país de origem.
carregam para territórios diversos. O presente a fazer prosperar outras” (DELEUZE, Quando aconteceu o ataque em
As novas tecnologias, como de cos-
texto sugere investigar como se dá essa ação de 1998, p. 19). A dura ou segmentária 2015, em Paris, em suas palavras, Jean3
linhas que nos fogem e nos fazem fugir. A opo- tume, trouxeram novos comportamen-
sição entre leveza e peso também se entrelaça tos. A fotografia, registrada através dos demarca lugares bem definidos, res- disse que no momento estava choca-
com o estudo das linhas. Todas essas potências aparelhos móveis, se revela conjugada ponsável pelas dualidades que fa- do, triste, deprimido e aterrorizado. E,
imperceptíveis são terreno fértil para a criativi- zem parte do nosso cotidiano. Estas, em vez de escrever alguma coisa, se
dade e foram despertadas no Grupo de Trabalho
com a ação. Vivemos e compartilhamos
o registro da vida no mesmo instante. também ligadas à história, marcam expressou através da linguagem com
Vontade do encontro Contingência – 6º Seminá-
rio de Pesquisa do PPGArtes da UERJ. Tempo e espaço ganham uma nova por onde passamos e nos enchem de a qual mais tem intimidade, o dese-
textura. Rastros virtuais marcam nos- certeza de quem nós somos. São as nho. Aqueles traços o carregaram para
Palavras-chave: linhas; território; potência;
vontade; criatividade. sa existência. Para Martin Heidegger, respostas precisas dos perfis das re- uma nova região. Desconstruiu o lugar

78 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 79


que o azucrinava e, em seguida, um Vontade deidade Demovlia. As cordas da rabeca esse ser. Ela está fora dos territórios que co-
novo espaço surgiu. Um pedido de retomaram o sentido de mestre artífice nhecemos. Está em trânsito, em busca de
paz estava posto. Uma bandeira feita Em um momento de pesadas incer- saciar seu desejo único e primeiro. Como
e, ao final do primeiro dia, nos encontra-
de tinta, papel e fotografia apontava tezas, o Contingência – 6º Seminário de um cão de caça ou um carrapato, Demovlia
mos todos nas tramas do tecido da perfor-
uma nova direção. Peter Pál Pelbart, Pesquisa do PPGArtes da UERJ optou vive à espreita. É fiel ao seu único objetivo.
mance Actioni Reactionen - Um encontro.
filósofo húngaro que vive no Brasil, pela leveza do encontro. Contudo, é Dentro de sua busca existe um mundo. “Ali-
Vontade é a palavra que costurou e uniu
nos lembra que, cronologicamente, preciso que não se confunda esse en- menta-se”, se é que podemos usar este ter-
esse grupo. Como o dizia o edital, von-
as linhas de fuga são as primeiras. contro com uma mera fuga da realida- mo, de potência humana. Transitando em
tade é a potência viva de mudança e de
Uma sociedade se define menos pe- de. Pelo contrário, é a busca de novas seu não-território, ela vive apenas para um
transformação. No segundo dia, o bíblico
las contradições do que pelas linhas possibilidades. motivo: busca de potência. Esse alimento
e o ímpio ganharam carne através da per-
de fuga, ressalta Pelbart. É nesse ter- Cada vez que o reino do humano me formance de Cristiane de Souza. A rabeca vem de um lugar bem específico: as fissuras
reno que a criação se fecunda. Atra- parece condenado ao peso, digo para feita e tocada por Bernardo Baptista teceu que o ser humano possui. Essas rachaduras
vés do direito ao intempestivo, é que mim mesmo que à maneira de Perseu eu
a atmosfera da apresentação. Alice da Pal- emanam potência. É algo que não se vê fa-
devia voar para outro espaço. Não se trata
a criação ganha corpo. ma e Douglas Zimmermann conjugavam cilmente. É preciso muita atenção e Demo-
absolutamente de fuga para o sonho ou
Ponto e linha, já institucionali- o irracional. Quero dizer que preciso mu- seus textos sagrado e profano, respectiva- vlia a tem. Somos atravessados por milhares
zados pela geometria, ganharam dar de ponto de observação, que preciso mente. As potências imperceptíveis estão de faunas. O ar que respiramos é o mesmo
um novo olhar. Para Deleuze, “não é considerar o mundo sob uma outra ótica, ar que milhões de seres também um dia en-
outra lógica, outros meios de conheci-
no emaranhado de todas as linhas que nos
a linha que está entre dois pontos, atravessam. Os territórios para os quais goliram e, em seguida, devolveram. Infini-
mento e controle. As imagens de leveza
mas o ponto que está no entrecruza- que busco não devem, em contato com tas linhas marcam nossos corpos. Algumas
somos levados, sejam físicos ou digitais,
mento de diversas linhas” (DELEUZE, a realidade presente e futura, dissolver-se dessas linhas nos cortam. É desse ferimento
são resultado de infinitas possibilidades.
2008, p. 200). Sob o ponto de vista da como sonhos... (CALVINO, 2010 p. 19). que emana a potência-alimento para essa
O texto da deidade Demovlia, que segue
ubiquidade digital vivida hoje, essa deidade. Feridos, perdemos nosso território.
Nesse encontro existiu um Grupo de abaixo, e que foi apresentado no GT, bus-
frase recebe um novo contexto. Po- Nesse momento, deixamos de ser uma coi-
Trabalho chamado Vontade, mediado pe- ca conjugar esses conceitos apresentados
demos escapar para qualquer linha, sa para voltar para o estado de ainda não ser
las professoras Débora Seger e Gabriela brevemente aqui.
física ou virtual. A geografia hoje tem uma. Enquanto não encontramos um novo
Caspary. Tivemos a oportunidade de pre-
mais importância que as estruturas. território, Demovlia mata sua fome. Deglu-
senciar a potência criativa ganhar corpo à Demovlia
Quando falamos de estrutura, pode- te cada partícula de potência que surge
medida que os trabalhos foram apresen-
mos pensar em linhas duras que dão daquela ferida. Ferimento cicatrizado, o ser
tados e, depois, entrelaçados. Apesar dos Existe uma espécie de divindade muito
suporte às estruturas da família, jus- mitológico parte a espreitar novamente.
diferentes temas, uma linha em comum foi antiga chamada Demovlia. Na verdade, ela
tiça, capitalismo... A onipresença di-
tecida por todos os envolvidos. Encontra- não se encontra entre os deuses, mas tam-
gital tem grande papel para criar des-
mos o rígido simbolismo da anunciação de bém não podemos dizer que está conosco.
vios, fugas para labirintos sem saída.
Fra Angelico. Em oposição ao sagrado do Não é boa nem bela, não é feia ou má. Os
pintor italiano, seguimos pela imaginária desejos humanos não fazem sentido para

80 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 81


A contemporaneidade é marcada
1 Licenciado e bacharelado em Educação Artís- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS por impermanências. Deleuze (2000), em
tica pela Universidade Federal de Juiz de Fora. diálogo com Foucault, nos alerta para
Especialista em Design Gráfico pela Faculdade CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo
Estácio de Sá, de Juiz de Fora. milênio: lições americanas. São Paulo: Compa- a transição da “sociedade disciplinar”
nhia das letras, 2010.
(FOUCAULT, 1987) - que se orienta pelo
2 Ubiquidade, de acordo com o dicionário Mi-
DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). 7. ed. trânsito dos sujeitos, por instituições e
chaelis é: qualidade do que está ou existe em
todos ou em praticamente todos os lugares. São Paulo: Ed. 34, 2008.
pela disciplinarização dos corpos - para a
______; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora
“sociedade de controle” (DELEUZE, 2000)
3 Peace for Paris: meet the artist who designed
the symbol that went viral. Reino Unido: Gurdian
Escuta, 1998.
PERFORMANCE PRESENTE -, em que a virtualização e fluxo de dados
Culture, 18/02/2016. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=KNKYFvTXVYE>.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como
extensões do homem. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2014. TRANSFORMANDO AÇÕES norteiam a ação dos sujeitos, pois eles já
Acesso em: 5 de agosto de 2017.
PELBART, Peter Pál. A arte de viver em linhas. In: COTIDIANAS EM incorporaram a lógica disciplinar e da do-
DERDYK, Edith (org.) Disegno, desenho, desígnio. cilização. Nesse processo, as instituições
São Paulo: Senac, 2007, p. 282-289. ARTE POLÍTICA perdem sua força e, muitas vezes, essa
dissolução é auxiliada por um movimen-
(VESTÍGIO A + C) to estrategicamente pensado de sucatea-
mento em macro escala.
O sucateamento da educação pública
brasileira nunca esteve tão visível; o atual
GILBERTO HORA 1 E DANIELE GOMES2
cenário de crise política e econômica po-
tencializou e desvelou ainda mais essas di-
versas ações que levam ao seu desmonte.
Nesse contexto, podemos compreender
os movimentos estudantis de 2016 como
um ato de resistência, onde a comunidade
escolar ocupou as ruas e as escolas para
denunciar cortes, “reformas” e emendas
Resumo: Este trabalho apresenta o processo de
composição coletiva realizado em forma de per- (anti)constitucionais que fissuram o direi-
formance, apresentado no evento Contingências to a uma educação pública e de qualidade.
(UERJ, 2017), através da ressignificação da ação A arte teve papel significativo nesse
burocrática cotidiana da chamada escolar, uti-
lizando-se de fragmentos poéticos trazidos por
processo, trazendo apelo estético, políti-
diferentes artistas participantes do grupo de cria- co, comunicativo e mobilizador aos atos.
ção chamado Vestígio. Folhas de cadernos tornaram-se cartazes,
Palavras-chave: Educação; Arte; Vestígio; Resis- carteiras auxiliaram em performances e
tência. happenings externos e as “palavras de or-

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dem” foram replicadas simultaneamente dos os espaços da cidade. Além disso, os tessitura pedagógica que perpassa todos boração dos partícipes passantes. Desse
pela multidão, e se materializou em me- estudantes que também trabalham têm os espaços sociais. modo, a performance buscou criar no-
gafones humanos. maior restrição de horário. E, com a inefi- Essa performance, inspirada nas repli- vos enunciados e fazer com que diversas
Pode-se perceber essa desestrutu- ciência do transporte público, a locomo- cações coletivas de voz, muito presentes vozes fossem ouvidas, por meio de uma
ração de forma patente no estado e na ção fica sofrida e demorada. Desse modo, nas manifestações e também na chama- linguagem direta, objetiva, que toca e
cidade do Rio de Janeiro. O setor da edu- todas essas modificações causam muitas da escolar formal, presentifica a memória que é de extrema imanência. Dialogando
cação vêm sofrendo um desmonte pro- perdas e faltas. da instituição e ressignifica poeticamente com o corpo, com a sensibilização e com
gressivo no que diz respeito aos níveis de Essa violência é denunciada por servi- o artefato burocrático da chamada e con- a subversão que a linguagem artística
ensino, pesquisa e extensão. dores estaduais e estudantes em uma lista voca os corpos dos sujeitos a experimen- carrega consigo.
A Universidade do Estado do Rio de colaborativa, publicada e atualizada pro- tarem essa experiência de partilha. Ao romper com o fluxo habitual dos
Janeiro (UERJ), uma das mais significativas gressivamente na rede. Essa lista se apre- Em meio à diversidade de percursos e passantes, do uso do espaço e criar um
na produção de conhecimento e desen- senta como um vestígio documental des- experiências, houve uma postura de aco- novo modo de ocupá-lo, instaurou-se
volvimento científico, sofre desde 2015 te esfacelamento, podendo também ser lhimento, e, principalmente, de compro- uma “tática desviacionista” (CERTEAU,
com a ausência do repasse de verbas, o compreendida como uma lista de chama- metimento com a força transformadora 2002), produzindo, assim, afetações dife-
que interfere tanto na manutenção da es- da de uma turma superlotada, que cons- da arte e da educação. Os processos e rentes e suspendendo o modus operandi
trutura física da Universidade quanto na tantemente recebe novos estudantes. influências trazidos pelos outros artistas imposto. Essas táticas são práticas astu-
ausência de bolsas, incentivos aos estu- Motivados por mais essa ação de participantes modificaram a proposta ori- ciosas e teimosas, que podem parecer
dantes e pagamento de seus funcionários. sucateamento da educação e pensando ginal, gerando algo totalmente novo, que discretas, mas são fundamentais para
Destarte, o sistema estadual de en- em uma forma de expor e tornar públi- foi experienciado pelo público ao final do criar fissuras internas na ordem sistêmica,
sino do Rio de Janeiro encontra-se em co tais acontecimentos, foi idealizada a segundo dia de evento. na medida em que abrem possibilidades
um contexto de risco, em que diversas performance “Presente!”. Haja vista que, Pensando no contexto dos processos para a apropriação.
instâncias vêm sendo golpeadas pau- frente a todas as faltas que a educação escolares institucionalizados, que muitas Nesse sentido, cabe salientar a im-
latinamente por ações “silenciosas”. Nas foi submetida, queríamos mostrar a for- vezes têm vestígios da Modernidade, há portância de pensar tal gesto não ape-
escolas de Educação Básica foi instituída ça de resistência. a segregação entre mente e corpo. As- nas do que diz respeito a ocupação de
uma reorganização escolar que fez com Assim, como forma de amplificar tal sim, as experiências de aprendizagens espaços físicos, mas também na (re)
que diversas turmas, turnos inteiros ou acontecimento, propomos a leitura da são pautadas por processos mnemônicos ocupação de espaços simbólicos. Afinal,
mesmo toda a unidade escolar, fosse fe- lista de maneira coletiva, em roda, em e pouco envolvem a sensibilidade dos essa alteração do uso do espaço cria mo-
chada. Essa ação resultou na restrição de local aberto, com convite prévio a volun- sujeitos. Talvez, por conta disso, muitos vimento e incita a percorrê-lo de outras
possibilidades de estudar a milhares de tários presentes no entorno. Ao ser lido acontecimentos que envolvem a educa- formas, reinventando-os.
estudantes, além da superlotação de sa- o nome de cada escola, todo o grupo ção caem no esquecimento, por conta da Essa experimentação corporal é uma
las de aula e sobrecarga de trabalho para falaria conjuntamente a palavra “presen- falta de apropriação. forma molecular e rizomática de resistên-
os docentes. Afinal, em nossa cidade, por te”. Como uma encenação inesperada Nesse sentido, a performance buscou cia ao processo molar de dominação e
conta de sua constituição social, nem que irrompe o fluxo habitual do espaço se afastar do aspecto transcendental e ordenação, e tal qual nos fala Oiticica, um
todos podem circular livremente por to- público (SIBILA, 2009) e torna patente a convocou a presença do corpo e a cola- modo de “incorporação do corpo na obra

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e da obra no corpo3 ”. Assim, esse movi- que rementam ao universo escolar é um REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento
da prisão. Trad. Lígia M Pondé Vassalo. Petrópo-
mento retifica a força micropolítica dessa gesto que provoca a realidade, que além DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pe- lis: Vozes, 1987.
performance, ao criar novas narrativas de golpear a realidade imposta, ela a (re) lbart. Rio de Janeiro: Editora 34. 2000.
JACQUES, P. B. Estética da ginga, a arquitetura
e memórias dos corpos dos sujeitos em faz (CERTEAU, 2002), desdobrando-se em CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. das favelas através da obra de Hélio Oiticica.
Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2002. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.
relação ao espaço, num procedimento de consciência e vivificação dos processos
ESQUERDA DIÁRIO. “Pezão fechou turmas em
inscrição e escritura. educativos que estão sendo feridos. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: es-
mais de 150 escolas do estado do RJ.” 20 de Junho tética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São
“O cotidiano se inventa com mil ma- Assim, frente às violações e violên- de 2017. Disponível em :<http://www.esquerda- Paulo: EXO Experimental/Editora 34, 2005.
neiras de caça não autorizada”, diz De cias, respondemos com uma estratégia diario.com.br/Pezao-fechou-turmas-em-mais-
-de-150-escolas-do-estado-do-RJ>. Acessado em SIBILA, Paula. Performance Presente Futuro. Vol II.
Certeau, evidenciando que os espaços de guerrilha sensível, ou seja, uma resis- 15 Mar 2018. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2009.
banalizados e corriqueiros podem (e de- tência que não atua de forma binomial
vem) sofrer significações e realizações e opositiva maniqueístas, mas que se
“impróprias”, ou seja, que desviam das engendra em “partilhas sensíveis” (RAN-
expectativas e normas institucionali- CIÈRE, 2005), que convoca a diferentes
zadas. Assim, o cotidiano é fecundo de maneiras de intervir com a arte.
desobrigações, reparações e da possi- A experiência de pensar e executar
bilidade de criação. No que diz respeito a performance é uma maneira de tornar
ao cotidiano escolar, pode-se pensar em patente a importância de construir es-
uma pedagogia errática e errante, que paços de trocas em que a relação entre a
adentre em novos caminhos. E esta pode educação básica e universidade, interme-
ter como companheira a arte. diada pela arte na produção de conheci-
Para Michel de Certeau, falar ou nar- mento, seja potencializada. Profanando
rar é uma prática artística (2002), na me- espaços físicos e simbólicos e presenti-
dida em que produz efeitos e reverbera ficando histórias, memórias, narrativas,
no e com o mundo. Desse modo, proferir ocupações, políticas e ações. Afinal, essa
o termo “presente” ou demais palavras é uma contingência que se faz necessária.

1 Docente de Arte .Licenciado pela Escola de Be- no filme HO, do cineasta Ivan Cardoso. De todo
las Artes(EBA/UFRJ,2013). modo, suas propostas artísticas buscam ma-
neiras de incoporar e fazer com que o público
2 Doutoranda em Educação (PPGE-UFRJ).Ensaia interaja com suas obras, como é o caso de seus
a docência desde que se graduou em Filosofia “Parangolés”, que se propunha a “incorporar a re-
(IFCS-UFRJ) volta” (JACQUES, 2001).
3 Esse enunciado de Hélio Oiticica foi proferido

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A primeira fase da artista Anna Bella inclusive, é indiscutivelmente significa- passagem não-proposital das manchas
Geiger desenvolve-se enquanto prova de tiva, se não exclusiva, na história da arte informais para órgãos neo-icônicos e de
uma gravadora intensamente atuante nos brasileira no sentido de atentar para a cunho expressivo, pois a artista adota seu
anos 60 – a fase áurea da gravura no Brasil complexidade da mudança de uma cena mundo interior enquanto natureza.
–, com obras abstratas que brilhavam em moderna para outra contemporânea. Segundo Paulo Herkenhoff em “A tra-
salões, museus, galerias e bienais. Diante A denominação “visceral” foi criada jetória de Maiolino: Uma negociação de
da eminência da arte contemporânea, o primeiramente pelo crítico Mário Pedro- diferenças”, o tema da visceralidade se
visceral apresenta-se na obra da artista sa durante a década de sessenta, para desenvolve nos anos sessenta, através do
A VISCERALIDADE NA OBRA DE através desta fase (1965-1969), reconhe- definir a obra da própria artista como um próprio meio artístico brasileiro. Artistas
ANNA BELLA GEIGER (1965-1969) cida oficialmente pela crítica de sua obra todo. Durante o princípio da série, escre- como Ana Maria Maiolino, Rubens Ger-
em geral, como a inserção de uma nova ve um texto para o Catálogo da exposi- chman, Antonio Dias, Hélio Oiticica e Lygia
interpretação do corpo. Remete às entra- ção de Anna Bella Geiger, realizada em Clark passam a empregar as expressões
(VESTÍGIO A+B)
nhas ou vísceras do corpo, à essência mais 1967, na Galeria Relevo, no Rio de Janeiro como “visceral” e “visceralidade” para ini-
íntima e mais profunda; tudo aquilo que e publicado na Coleção Debates. Segun- ciar a intensidade expressiva simbolizada
é visceroso, essencial e estrutural. Con- do o autor, Anna Bella fez por conta pró- no corpo ou a produção de sentido a par-
ISTEFÂNIA MARCARINI RUBINO 1 siste em, aproximadamente, trinta obras pria uma descoberta: a de que a realida- tir do orgânico. A visceralidade, portanto,
entre gravuras em metal e desenhos em de maior é a do corpo. Ao tentar definir a buscava dar conta dos indivíduos psicolo-
guache, ecoline e nanquim, a maioria ca- materialidade das vísceras do corpo hu- gicamente em sua resistência política e in-
talogadas e outras presentes apenas em mano, Anna Bella, no fundo, o que procu- conformidade. Vivencia-se um novo papel
seu acervo pessoal. Nas obras viscerais, ra é recriá-las, dar-lhes vivência própria e do artista “revolucionário consequente” e
há uma profunda consciência percepti- autônoma e mostrar que a vida múltipla instrumentalizador do reconhecimento
Analisa-se a fase reconhecida como visceral va e solidária do corpo próprio ou vivido, se perpetua na dissociação do próprio das massas, que criava uma dinâmica de
(1965-1969) em Anna Bella Geiger, bem como seu
surgimento e recepção perante público, crítica e
conhecida também como nostalgia do corpo de sua evidente natureza intros- resistência presente em neovanguardas
artistas. A visceralidade em sua obra remete às corpo ou “morcelement”. A maneira como pectiva, idealista senão mística. A carne como a da Nova Objetividade Brasileira.
entranhas ou vísceras do corpo; tudo aquilo que o suporte é utilizado, ou seja, cortando e lhe oferece todo um mistério a desven- “Como proposta de uma arte compro-
é visceroso, essencial, aludindo subjetivamente
subdividindo a chapa de metal, demons- dar: o corpo vivo é como as engrenagens metida com uma produção cultural de
a órgãos internos do corpo humano. Diante de
uma expressão de fundo neo-icônico, o processo tra uma forma tipicamente inovadora do de um relógio, composto de vísceras que militância política. A atitude do artista é
de gravação permite uma profunda consciência ato de gravar, que trata metaforicamente se movem dentro dele. Pois essa é para decisiva para definir uma consciência de
perceptiva do corpo próprio ou vivido da artista. da própria fragmentação do corpo. Mário Pedrosa a primeira série de gravura realidade social, bem como sua análise.”
Enquanto fragmento, corte, ruptura, decomposi-
Anna Bella Geiger é senhora de mui- em metal a seccionar a chapa para aludir (PECCININI, 1999, p.14-15). Segundo Paulo
ção ou impossibilidade, a obra origina-se diante
da própria fragmentação da consciência do ho- tas linguagens. Realizando exposições ao interior do corpo através da estética Herkenhoff, o conceito repercute na arte
mem moderno. em várias cidades ao redor do mundo, da Nova Figuração. A passagem do In- brasileira a partir da metade da década de
Palavras-chave: visceralidade; órgão; gravura; sua obra faz parte de inúmeras coleções formalismo para a Nova Figuração traz sessenta, através do contato entre artistas
fragmentação. particulares. A tragetória de Anna Bella, uma crise da representação por meio da cariocas e argentinos.

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“Corpo humano- estômago” (1965) na figura humana, caracterizada pelo as- NAVAS, Adolfo Montejo. Anna Bella Geiger: territó- TÁVORA, Maria Luisa Luz. Anna Bella Geiger: inquie-
pecto fragmentário, como que refletindo rios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa da tações no corpo fragmentado. Revista do Programa
A obra visceral “Corpo humano- estô- a constante dicotomia existencial do ser Palavra, 2007. de Pós graduação em Artes Visuais da Escola de Be-
mago”, de 1965, é praticamente abstra- humando e relações vitais estabelecidas ARANTES, Otília B. F. Mário Pedrosa: Itinerário Críti- las Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
ta. Faz uma breve alusão a uma possível entre o homem e seu ambiente circun- co. 1. ed. São Paulo: Editora Página Aberta, 1991. Rio de Janeiro, 2002.
figura, não propriamente o estômago, dante” (PECCININI, 1999, p. 102). É uma
órgão não facilmente reconhecível na das últimas gravuras abstratas produ-
obra, a não ser pela menção em seu tí- zidas por Anna e exemplo da busca do
tulo. Concebida em um ano de signifi- afastamento preponderantemente da
cativo acontecimento para a perspec- abstração, a fim de retomar a figura em
tiva da arte brasileira no Brasil: Opinião sua obra, porém enquanto resultado de
65 do Museu de Arte Moderna do Rio. sua experiência com a abstração. O fato
A alusão ao estômago como centro da de ser intitulada indica não só uma pre-
obra remete a um importante conceito tensão à figuração, como permite filiar
que colocava o homem na centralidade sua temática à categoria fisiológica de
de sua problemática, porém diante de organismo. Apesar de fazer alusão ao
uma linguagem onde a proposta princi- estômago por meio do título, a obra não
pal era o rompimento gradual com a arte se faz reconhecer enquanto tal, devido a
abstrata, estreitando assim as relações sua natureza abstrata. Simbólica ou ico-
com a vanguarda experimental da Nova nicamente, de acordo com a própria ar-
Figuração brasileira, trazida da Escola de tista, considera-se a obra uma expressão
Paris através da realização de Opinião da necessidade de um alerta do dever “di-
65. “O imaginário de artistas referentes à gerir” a realidade de um ano de ditadura
Nova Figuração no Brasil centralizava-se onde se vivia com dramas e medos.

1 Licenciada em Artes Plásticas pela Escola de REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


Belas Artes da UFRJ (2009). Mestre em Histó-
ALVARADO, Daisy V.M. Peccinini de. Figurações -
ria e Crítica de Arte pelo Instituto de Artes da Anna Bella Geiger,1965,
Brasil Anos 60. São Paulo: Itaú Cultural/ EDUSP, 1999.
UERJ com o seguinte tema de dissertação: A gravura em metal, 40 x 55 cm
Visceralidade na Obra de Anna Bella Geiger COCCHIARALE, Fernando & GEIGER, Anna Bella. Abs- (GEIGER, Anna Bella Geiger:
(1965-1969), sob orientação da Profª Drª Vera tracionismo geométrico e informal: a vanguarda o sorriso do gato de Cheshire em Alice.
Beatriz Siqueira (2015). brasileira nos anos cinqüenta. 2. ed. Rio de Janeiro: Catálogo de exposição na Galeria Saramenha.
Funarte, 2004. 2 de outubro à 14 de novembro de 1988).

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Fomos socializadas para respeitar e a centralidade também normativa do rede e cultura de protagonismo lésbi-
mais ao medo que às nossas próprias masculino e do patriarcal, estes conduzi- co. Criar dobras de viabilidade para vi-
necessidades de linguagem e definição, dos como regra nos mais diversos níveis sualidades e visibilidades partindo da
e enquanto a gente espera em silêncio de sociabilidade em nossos percursos referência contida nas memórias, acre-
por aquele luxo final do destemor, o como mulheres. ditando ser possível estimular a mo-
peso do silêncio vai terminar nos engas- Assim, a fim de fortalecer, ampliar e bilização da geografia das redes femi-
gando. (LORDE, 1988. p 90) visibilizar o continuum de afetividade e nista-lesbianas. Presente nas práticas e
priorização das mulheres entre si como artísticas evidenciadas necessariamen-
RECOLHO HISTÓRIAS “Recolho histórias de mulheres” tra-
ta-se de ação artística de recolhimento a lesbianidade contida nas memórias te como potência de processo artístico
DE MULHERES MAPEANDO de vestígios partindo do protagonismo recolhidas, se abre a possibilidade de e formativo.
MEMÓRIAS DE das mulheres. Com o intuito de pensar investigação através dos relatos e narra-

“CONTINUUM LESBIANO” as narrativas como forma de resiliência tivas, constituindo uma cartografia das
em torno das memórias e esquecimen- ações de continuum lesbiano.
tos engendrados nas sociabilidades e
(VESTÍGIO A) constituição dessas sujeitas historica- o termo continuum lesbiano inclui
mente silenciadas e subalternizadas, uma gama de experiências identificadas
com mulheres – na vida de cada mulher
por serem mulheres.
e ao longo da história – não simples-
LARA (LARISSA) SILVA 1 A construção da obra é parte de pes- mente pelo fato de que uma mulher
quisa em andamento que toma como tenha tido ou desejado conscientemen-
mote revisão bibliográfica, relato de te uma experiência sexual genital com
outra mulher. Se o ampliamos até incluir
experiências e coleta de narrativas re-
muitas outras formas de intensidade
alizadas por mim, pretendendo visibili- primária entre duas ou mais mulheres,
zar práticas e modos de ação política e incluindo o compartilhamento de uma
cultural. Essas experiências priorizam o vida mais profunda e rica, a união soli-
Resumo: Por compreender a construção da dária contra a tirania masculina, dando
percepção do mundo e das existências se cons- registro e difusão da trajetória de mu- e recebendo apoio prático e político(...)
tituindo num quadro de pensamentos e ações lheres em escala de construção de sub- (RICH, 1986. P.67)
ordenados em categorias, imagens e represen- jetividades, procurando dar centralida-
tações sociais – estas legitimando lugares, pa-
de aos pontos de toque e conexão entre Instrumentalizando, postulados e
péis e atividades na criação e instituição do que
considera-se padrão e real –, a importância da as sujeitas que vão se constituindo. teorias já produzidas por autoras les-
lesbianidade para análise da memória traz motes Ao potencializar os relatos como ma- bianas nos servem como objeto de re-
de resistências e resiliências contidas no amor e triz de investigação da representação,
fortalecimento das relações entre mulheres. flexão e consequente consolidação de imagem 1
trabalhamos em função da emergência possível reordenamento simbólico das
ação “recolho histórias de
Palavras-chave: lesbianidade; mulheres; memó- mulheres”, 2017.
da ruptura com a heteronormatividade visibilidades, trazendo nas memórias
ria. Fotografia: Emmanuele Russel.

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A proposição “Recolho histórias de Como feministas, temos a neces- Grapichos na impressão de memória aqui aplicada em laranja sobre fundo
sidade de buscar, acima de tudo, a lesbiana – visibilidade e legitimidade branco compondo a figura de caçam-
mulheres” para a convocatória do “Con-
grandeza e a sanidade das mulheres
tigência: 6° Seminário de pesquisadores ba do caminhão em ascendência sobre
comuns, e ver como estas mulheres
do PPGARTES/UERJ” é oportunidade em tem resistido coletivamente. Ao buscar O grafite advém das artes plásticas, a a superfície do muro, em fundo verde
que se dá também o mote de transbor- neste território encontramos algo me- pichação é oriunda da escrita. Dessa for- alaranjado, que algumas das artistas
lhor que heroínas individuais: a assom- ma, a primeira valorizaria a imagem e a
damento e escuta afetiva das histórias presentes apelidaram de “caminhão
brosa continuidade da imaginação para segunda, a palavra, a letra. Da interação
de mulheres como ponto central, tra- sobreviver das mulheres, que persiste da ‘sapatão visível’ em chamas”. Por
entre essas duas intervenções surgiram
zendo a proposta teórico/prática em através das grandes e pequenas mortes até formas híbridas, chamadas por alguns possuir pouca experiência no trabalho
configuração de ação pública realiza- da vida diária. (RICH, 1986. P. 147) de grapicho. (PEREIRA, 2007. p.228) com desenhos figurativos, bem como
da também durante o seminário, que devido a quase nula habilidade na pre-
naquela ocasião ocorria de maneira Ao pensar nos áudios recolhidos Ao refletirmos sobre a produção, cisão e prática necessárias ao grafitti,
concomitante à apresentação da obra como poética, e em construção perma- difusão e visibilidade inseridos nas vi- escolhi uma representação mais ge-
em construção na exposição “Olha Ge- nente e provocação de voo, é que as sualidades produzidas em determina- ométrica, no retângulo, a mensagem
ral”- exposição dos estudantes de ar- escutas de mulheres tornam-se ferra- do tempo e espacialidade históricas, circularia estando em trânsito na car-
tes -, que, assim como eu, contam com mentas fundamentais de apreensão do ganhamos em nos aproximar dos sen- roceria do caminhão. As companheiras
esse espaço para o compartilhamento invisível que se encontra entre a produ- tidos e representatividades em circu- artistas: J-Lo Borges e MaiDu Viana da
e composição de seus processos artís- ção das imagens e dos discursos, carac- lação, bem como ao analisar o espaço arte do grafitti, vemos alguns dos seus
ticos. Nessa oportunidade, a obra apre- terizando deste modo a resistência que como potência em produção de ecos. trabalhos expostos nesse muro como
sentava na Galeria Gustavo Schnoor reside na ruptura e recombinação de Uma consistente quantidade de auto- suporte que se compõe de uma série
histórias já recolhidas e os processos ar- perspectiva. Ter na constatação da am- res se referem a essa construção social de mensagens visuais sendo transmi-
tísticos e políticos em torno desses reco- nésia histórica algo como a necessária e cultural em diferente níveis de debate tidas e se tornam parte da paisagem
lhimentos, bem como, naquela situação, fome para a imaginação, a melancolia e interesse. desse importante espaço de represen-
os recolhimentos ainda se encontravam como suavidade adocicada para essa Como matriz reproduzida em dife- tação. Diante de uma sociedade publi-
em processo de coleta. dita imaginação, deixando vestígios de rentes contextos espaciais, trazemos o camente tão centralizada pelo poder
O recolhimento de vestígios com- depressão e rio raso que se passa a pé, registro da experiência no espaço de hegemônico, também no que se refere
põe parte fundamental do processo ou banco de areia que eleva à superfície muro galeria em Irajá, superfície utili- à circulação de imagens e visualidades,
de recolhimento das histórias de mu- o que de fundo também há no mar. zada por artistas que trabalham com o elas criam fissuras com a composição
lheres, que no intuito de pensar as Romper o silêncio, contar nossos re-
grafitti para seus estudos e elaboração das artes visuais que produzem com
narrativas como forma de resiliência latos, não é suficiente. Podemos valorizar
de seus trabalhos. Produzi também um seus grafites.
em torno das memórias e esquecimen- esse processo – e a coragem que possa
trabalho de impressão da mensagem (Re)colher. Como plantar sementes
tos engendrados nas sociabilidades requerer – sem ter porque pensar que
inicialmente pensada partindo de stên- e acompanhar brotos. Replantar e par-
e constituição como subalternizadas seja um fim em si mesmo. Depois e junto
cil, produzido anteriormente por mim ticipar também da tarefa dada à natu-
ampliam latitudinalmente as possibili- a tudo, nossa responsabilidade histórica
com a mensagem “Sapatão Visível” reza de traduzir. Preparar solos, conhe-
dades potentes de resistência. tem a ver com a ação.

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cer e tocar novas formações rochosas, acontecimentos-sintomas que atingem PEREIRA, Alexandre Barbosa. “Pichando a cidade: RAYMOND, Janice. A passion for friends:
o visível como tantos rastros ou estilha- apropriações “impróprias” do espaço urbano”. In: toward a philosophy of female affection.
contribuir na organicidade e mapea-
ços. (DIDI-HUBERMAN, 2014. p40) MAGNANI; José Guilherme Cantor & SOUZA; Bruna Austrália: Spinifex Press, 1986.
mento desses grãos, que é também
Mantese de (orgs.). Jovens na metrópole: Etnografias
RICH, Adrienne. Sangre, pan y poesia. Espa-
como sinto as dobras das palavras das de circuitos de lazer, encontro e sociabilidade. São
Como os conceitos elaborados por nha: Icaria Editorial, 1986.
mulheres em minha própria história a Paulo: Editora Terceiro Nome, 2007, p 90-115.
artistas lésbicas-feministas imbricam-
cada história recolhida.
-se para fortalecer a arte das mulheres -
Na produção de visibilidades, cons-
através da leitura de continuum lésbico,
truções visuais e pinturas gravadas
possibilitando a criação de resistência à
em diferentes superfícies, a condução
de modos e tradutibilidades. As sen- heteronormatividade patriarcal e de con-
das da poética de mulheres que com trole às mulheres. A visibilização de ferra-
suas existências produzem importan- mentas para que a representatividade do
tes revoluções nas políticas artísticas, imaginário das mulheres emerja a partir
conformando perspectivas de repre- da visualidade presente nos relatos, des-
sentação que obviamente nos levam a se modo, pretende conferir força de cen-
visibilidades e visualidades, trazendo à tralidade e protagonismo na narrativa
tona o que também postulava Didi-Hu- destas. A investigação e o trabalho em
berman, em seu “Diante da Imagem” curso pretendem contribuir na tradução
(2014): dos conceitos no discurso e na constru-
ção de imaginários das artistas apoiando
Com o visível, é claro, estamos no
reinado do que se manifesta. Já o visual e fortalecendo a produção de arte feita
designaria antes essa malha irregular de por mulheres.

imagem 2:
grafittis de Lara,MaiDu e J-LO Borges
em Irajá, 2018.
1 Mestranda em Imagem e Cultura no PP- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fotografia: JLo Borges
GAV/UFRJ, orientanda de Profª Drª Cláudia
Oliveira; Licencianda em Artes Visuais na DIDI HUBERMAN, Georges. Diante da imagem.
UERJ e Licenciada em Geografia pela Facul- São Paulo: Editora 34, 2014.
dade de Formação de Professores da UERJ. LORDE, Audre. “Las herramientas del amo nunca
Lésbica e feminista, poeta e artista em for- desarmarán la casa del amo”. In: MORAGA; Cher-
mação. ríe & CASTILLO; Ana (orgs). Esta puente, mi espal-
da. San Francisco: Ed. ISM Press, 1988, p 89-93.

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Em 21 de fevereiro de 1985, após os redos, o futuro seria a grande novidade”. para o palco personagens populares e
desfiles e a apuração daquele ano, o crí- Frederico Morais elogiaria nominalmente da cultura de massa, bebendo em outro
tico de arte Frederico Morais dedicaria na Fernando Pinto, “genial como sempre”. tipo de teatro, o de revista. Entretanto, sua
sua coluna do jornal O Globo uma análise Além do carnavalesco da Mocidade, Mo- produção mais expressiva se daria princi-
das apresentações das escolas de samba. rais também destacaria as qualidades da palmente nos anos 1980, quando dividiria
Com o título “Carnaval: volta ao passado obra de Joãosinho Trinta. Ao criticar a Ca- atenção com outro Fernando, o Reis, que
ou nostalgia do futuro?”, Morais destaca- prichosos de Pilares, ele não cita sequer de seu lado atualizaria a proposta cotidia-
ria a contradição temática dos dois des- o nome de Luiz Fernando Reis, falando na de Maria Augusta, acrescentando um
REIS E PINTO taques principais daquele ano: “Zirigui- apenas o “autor do samba da Caprichosos sabor fortemente político.
AS LINGUAGENS MARGINAIS dum 2001”, da Mocidade Independente, de Pilares”, sem dar os créditos. As alegorias de Fernando Pinto e
DOS DESFILES DAS que fazia uma viagem para o futuro, Mesmo com um olhar generoso para Luiz Fernando Reis em 1980 e 1984 se-
as escolas, Frederico cairia num lugar co- riam um bom exemplo para compreen-
ESCOLAS DE SAMBA 1980 enquanto “E por falar em saudade...”, da
Caprichosos de Pilares, pegava o destino mum ao relegar o carnaval ao terreno da der a atuação de ambos no seu mesmo
oposto. Para ele, o desejo de ir ou voltar arte não institucionalizada. Apesar de ser contexto, através de suas proximidades
(BERLINDA A) no tempo revela, inicialmente, uma ques- uma festa da coletividade, o gesto que e afastamentos. O signo escrito de ca-
tão óbvia: a dificuldade de um momento marca um autor se tornaria fundamental ráter político marcaria a intenção de
atual conturbado, já que em 1985 o Brasil ao carnaval, sobretudo a partir da chega- ambos em reverberar o contexto políti-
estava num processo de redemocratiza- da do grupo liderado por Pamplona e Ar- co-social no qual estavam imersos. Há,
LEONARDO ANTAN 1
ção, feito a passos lentos, e, no contexto lindo, que instauram o carnavalesco como nos dois casos, o desejo de repensar seu
econômico, a inflação ainda atordoava os principal articulador artístico da festa. O país e sua sociedade, de ir ao encontro
cidadãos. O crítico destacaria que: autor-carnavalesco lança um enunciado, de seu público, potencializando o cará-
como propõe Foucault, e tem no gesto ter político de uma escola através de seu
Resumo: Investigar o papel do carnavalesco na assim pelo menos, no carnaval, o a marca característica de sua ausência, poder de fala e do alcance de público.
produção de um desfile das escolas de sambas, melhor é esquecer. Se o presente está como nos termos de Agamben. Entretanto, os cenários propostos nos
investigando a trajetória de dois nomes impor- difícil, vamos então nos refugiar no pas- dois carros alegóricos, o da Anistia e o
O grupo de carnavalescos que atuou
tantes para os desfiles nos anos 1980: Luiz Fer- sado, ou no futuro. Utopia e nostalgia:
nando Reis e Fernando Pinto. Ambos dialogaram no Salgueiro na década de 1960 seria res- das Diretas Já, marcariam as diferenças
as duas faces da mesma moeda. Uma
com seu contexto social intimamente, dando res- coisa e outra estão muito próximas de ponsável pelo estabelecimento de uma desses desejos. A “anistia” de Pinto surgi-
postas diferentes as mesmas demandas políticas, nós: afinal, o passado é revivido com linguagem artística baseada no histori- ria de maneira grandiosa e alegórica em
rompendo a linguagem canônica do luxo estabe- a mesma velocidade que nos prepara- cismo, no luxo e na teatralidade, incorpo- meio a um Congresso Nacional compos-
lecido no imaginário comum da festa, fixando-se mos para o futuro. (O Globo, 21-2-85)
através da marginalidade, articulando em meios rando elementos da cena “erudita” do Mu- to por onças ferozes, feijões e “oncetes”
artísticos diferentes processos percebidos na arte nicipal. Já nos anos 1970, Fernando Pinto dos partidos políticos da época. Marcan-
brasileira dos anos 1960 à 1980. A crítica do autor estaria voltada ao começaria a incorporar outros elementos do sua necessidade de atualizar o mo-
Palavras-chave: escolas de sambas, carnaval,
fato saudosista, afirmando que “a sau- em sua obra. Contra a historicidade dos mento tropicalista de anos antes, Pinto
arte brasileira, tropicália, arte conceitual dade é uma espécie de rotinas nos en- temas de Arlindo e Joãosinho, ele traria faz usos dos signos tropicais aliados a

98 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 99


co tropicalista tal gesto se articularia pelo anos após o lançamento de sua pedra fun-
dito e não dito, para Reis era necessário su- damental, o carnavalesco estava estabele-
blinhar e reforçar o momento crítico vivido cido como figura central da festa. No con-
com palavras. O uso de símbolos através texto social, o período político conturbado
do humor marcaria uma suspensão de hie- marcava a necessidade de uma tomada de
rarquias através do riso, um riso quase ten- posição. Nesse sentido, o carnaval marca-
so diante dos tempos difíceis. A ironia em ria sua posição de campo de autonomia,
Fernando Pinto seria menos engraçada e pois, enquanto a arte institucionalizada
mais sugerida, juntando configurações e vinha de décadas, com uma série de mo-
imagens quase díspares, marcando uma vimentos radicais e engajados, a produção
A última alegoria de ‘Tropicália Maravilha”, celebração dúbia, sarcástica, ácida, assim artística buscaria se distanciar da política
em 1980, de Fernando Pinto e
a alegoria da Caprichosos de Pilares
como as obras de cunho tropicalista. com a chamada “volta da pintura”. Nos
em 1984, de Luiz Fernando Reis As características de ambos os car- desfiles, marcar-se-ia uma posição de con-
navalescos os colocariam em diálogos testação nunca antes tomada. Estabeleci-
com movimentos artísticos brasileiros das culturalmente, com a construção do
da chamada cultura marginal. Um, liga- Sambódromo e a criação LIESA, as agre-
imagens da cultura de massa, num li- pela diferença. Enquanto Pinto os usava do às questões tropicalistas e reatualiza- miações se assumiram pela primeira vez
miar entre ironia, deboche e celebração. de maneira alegórica e os distanciava atra- das pela linguagem do desbunde e da no campo da contestação, lançando sua
A ironia também estaria presente vés de associações externas, misturando irreverência, como o Dzi Croquettes e as voz política e destemida, tendo os jurados
na obra de Reis, mas sua “Diretas” surgia diferentes categorias de obras e objetos, Frenéticas, dos quais Fernando Pinto fez como únicos algozes.
quase que clandestinamente, como uma não hierarquicamente um desejo de apre- parte. O outro, destacado por uma postu- Assim, Reis e Pinto responderiam às
pichação de muro, feita ilegalmente, de ender o real, subsumir junto à festa. Na ra mais radical e crua, tomada pela parte demandas sociais de sua época, cada um
modo quase invisível. Exacerbando seu tentativa de se comunicar diretamente “engajada” da cultura, batizada também a seu jeito, num processo de construção
caráter panfletário, Reis evidencia um vi- com o público, dessacralizando o palco de arte de guerrilha, que retrabalhava as de duas linguagens artísticas diferentes,
sual pautado pelo precário que busca a dos desfiles e apresentando o mais ordi- questões lançadas na arte conceitual ao mas que encontram pontos de interse-
comunicação imediata. O personagem nário, através de uma estética precária. momento ditatorial, o que teria em Reis ção e distanciamentos. Os dois seriam,
Milas Fulam e as caricaturas de Tancredo Através de seus readymades, tanto Pinto diversos procedimentos e toques de con- então, as vozes mais políticas que o car-
Neves, Leonel Brizola e Ulysses Guimarães quanto Reis buscariam o mesmo sentindo tato. Seriam as patrulhas ideológicas con- naval já teve. De um lado, a necessidade
marcavam sua apropriação de signos coti- crítico, mas um se afastaria, suspendendo tra as patrulhas “odara” como se discutiu tropicalista de atualizar símbolos nacio-
dianos outros, buscando “quebrar o gelo” seu sentido através de outras associações no fim dos anos 1970. nais, do outro, a utilização do precário
da crítica através do humor e da sátira. e o outro os utilizaria para aproximar, para Com essas duas linguagens na dispu- e do sublinhamento das questões polí-
O uso de objetos banais seria um pro- se comunicar diretamente. ta principal da folia, os anos 1980 marca- ticas. Suas atuações marcariam um pe-
cesso comum às obras de Reis e Pinto, mas O gesto irônico dos dois autores tam- riam uma pluralidade artística nunca vista ríodo de extrema riqueza artística para
destacariam outra proximidade marcada bém os aproximaria. Se para o carnavales- nos desfiles das escolas de samba. Vinte a festa carnavalesca. Atuando direta-

100 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 101
mente para influenciar um fechamento A vitória de “Liberdade! Liberdade! O presente texto parte da ideia de que
de ouro dos anos 80, o desfile “Ratos e Abra as asas sobre nós” nesse mesmo a realidade é performada e/ou encenada
Urubus larguem minha fantasia”, pre- ano, contando a história oficial, mar- conforme os textos de Law e Mol (1995) e
sente num grande imaginário popu- caria a soberania dos estilos luxuosos de Law e Urry (2005). Por esse viés, a rea-
lar, traria características bebidas na sobre as estéticas marginais e políticas, lidade e a sociedade não são a priori, mas
fonte desses dois carnavalescos por fazendo-as se extinguir completamen- OUTROS OLHARES, são moldados através de nossas práticas.
Joãosinho Trinta. te no decorrer dos anos vindouros. OUTROS TRAJETOS: É lógico que existem estruturas que são
prévias a nossas existências individuais.
ARTE NO COTIDIANO CITADINO Porém, elas não podem ser entendidas
como formas transcendentes que com-
(BERLINDA A) põe um todo maior que as partes.
Os autores desenvolvem a questão da
política ontológica, ou seja, não há várias
perspectivas acerca de uma única e mes-
LEONARDO PERDIGÃO LEITE1
ma realidade, mas a encenação de múlti-
plas realidades. Esse movimento é obtido
1 Mestrando da UERJ em Arte, Cultura e Cogni- FERREIRA, Felipe. Escritos Carnavalescos. Rio de Ja- quando se troca da epistemologia para a
ção, orientando do Prof. Dr. Felipe Ferreira. É gra- neiro: Aeroplano, 2012.
duado em História da Arte pela mesma institui- ontologia. “Esse é um deslocamento que
Resumo: A presente proposta passa pela assun-
ção. Atua no site Carnavalize e no universo das FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: ______. nos move de um único mundo para a
ção de que existem caminhos invisíveis pelas
escolas de samba. Além de ser curador indepen- Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura, músi-
dente dos “Dia de Glória”. ca e cinema. Rio de Janeiro: Forense, 2011. cidades, ou seja, que há trajetos não mapeados ideia de que o mundo é multiplamente
pelas instâncias reguladoras - sejam elas o Esta- produzido na diversidade dos contextos
GUIMARÃES, Helenise Monteiro. Carnavalesco, o do, os gestores e administradores das cidades ou
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS profissional que “faz escola” no carnaval carioca. outras que tentam normalizar as ações citadinas.
sociais e relações materiais. A implicação
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boi- Dissertação de mestrado apresentada à Escola de é que não há um único mundo” (LAW e
Desta forma, podemos compreender o grafite
-tempo, 2007. Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro. Rio de Janeiro, UFRJ, 1992.
e a pixação como práticas que performam um URRY, 2005, p.397, tradução nossa).
COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha movimento ora de marginalidade ora como mo-
Mol (2008) desenvolve em artigo al-
culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das PEREIRA, Bárbara. Estrela que me faz sonhar: Histó- vimento artístico, quando em espaços expositi-
décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização rias da Mocidade. Rio de Janeiro: Verso Brasil Editora, vos, museus ou galerias, ou espaços autorizados. gumas ideias e várias perguntas sobre a
Brasileira, 2010. 2013. Podemos pensar que nas práticas ilegais desses política ontológica. Uma das considera-
RAMÍREZ, Mari Carmen. Táticas para viver da adver- movimentos - cabe salientar que o grafite já gal- ções feitas é de que se deve falar em on-
DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim. A Tropicá-
lia e o surgimento da contra-cultura brasileira. São sidade: O conceitualismo na América Latina. Arte & ga junto à mídia e ao senso comum um status
Ensaios. Revista do Programa de Pós-Graduação em
tologias, no plural, pois a realidade passa
Paulo: Editora Unesp, 2008. de arte enquanto a pixação ainda é relegada a
Artes Visuais EBA, Rio de Janeiro, n.15, 2007. sujeira e vandalismo - existem outras versões, a ser entendida como algo produzido,
FABATO, Fábio; SIMAS, Luiz Antônio. Pra tudo se co-
SCOVINO, Felipe. Táticas, posições e invenções: outras visões de mundo, outras histórias e outras localizada histórica, cultural e material-
meçar na quinta-feira – o enredo dos enredos. Rio
dispositivos para um circuito da ironia na arte con- memórias que não são vistas nos circuitos oficiais mente, e por isso, múltipla.
de Janeiro: Editora Mórula, 2015.
temporânea brasileira. Tese de doutorado apresen- das cidades.
FAVARETTO, Celso. Tropicália, Alegoria, Alegria. São tada à Escola de Belas Artes da Universidade Federal
A autora ainda destaca que o termo
Paulo: Ateliê Editorial, 2007. do Rio de Janeiro, 2007. Palavras-Chave: Cidade; Grafite; Pixação de referência da política ontológica é o

102 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 103
de performance. Soma-se a esse ter- protesto; como formas artísticas; como Não é minha intenção de romantizar to dentro da legalidade como o antídoto
mo a ideia de versões. Diz Mol: “Em vez forma de rememorar e homenagear os o grafite e a pixação como manifesta- da pixação, praga que deve ser combati-
de atributos ou aspectos, são diferentes mortos; dentre outras. ções artísticas essencialmente marginais da e erradicada da cidade ideal.
versões do objecto, versões que os instru- Também é possível observar, como e transgressoras, mas de dizer que elas Algumas questões que permeiam
mentos ajudam a performar [enact]. São nos casos do Museu de Favela (MUF) e podem servir a variados usos. No Rio de o trabalho são: como fazer com que
objetos diferentes, embora relacionados na proliferação de galerias em favelas Janeiro, temos como exemplo o uso dos esses outros olhares e circuitos sejam
entre si. São formas múltiplas da realida- cariocas, como a Galeria Providência grafites na revitalização da Praça Mauá mapeados e explorados sem recorrer
de — da realidade em si” (MOL, 2008, p.6, e a Galeria Babilônia que o grafite é para as Olímpiadas e a formação de um à institucionalização? Como manter a
grifos da autora). utilizado como uma forma de contar polo turístico pensado e fomentado pela multiplicidade e a singularidade dessas
Desta forma a política ontológica é histórias de outras maneiras. O MUF, Prefeitura da cidade. Neste sentido, os manifestações? Como abrir espaço para
um museu de percurso localizado nos murais são protegidos, financiados e a proliferação de diversas expressões de
um termo composto. Refere-se a morros do Cantagalo e Pavão-Pavãozi- divulgados à exaustão por redes televi- diferente cunho político, ideológico, ar-
ontologia — que na linguagem filosófica nho, faz uso dos grafites como forma sivas propagando a ideia de que o grafi- tístico, marginal?
comum define o que pertence ao real, as de narrar e de rememorar a história te muralista, normalmente ligado a uma Não há de minha parte uma resposta
condições de possibilidade com que vi-
dos moradores das favelas. Os murais estética realista é arte e que a pixação, fechada para cada uma das perguntas,
vemos. A combinação dos termos “onto-
logia” e “política” sugere-nos que as con- foram feitos com a curadoria de Carlos seu “primo feio” é crime e deve ser de- mas uma multiplicidade de cenários nos
dições de possibilidade não são dadas Acme e foram pintados por diversos sencorajada. Portanto, há uma campa- quais o grafite e a pixação se performam
à partida. Que a realidade não precede
grafiteiros como Kajaman e Eco. nha midiática que incentiva o grafite fei- de diferentes maneiras.
as práticas banais nas quais interagimos
com ela, antes sendo modelada por es- Desta forma, o MUF constrói narrati-
sas práticas. O termo política, portanto, vas que diferem das histórias e memórias
permite sublinhar este modo activo, oficiais e podem ser relacionadas àqui-
este processo de modelação, bem como
lo que Pollak (1989) chama de memó-
seu carácter aberto e contestado (MOL,
2008, p.2, grifos da autora). rias subterrâneas, ou seja, de memórias
contestatórias, alternativas às narrativas
estabelecidas pelos poderes instituídos. 1 Bacharel em Museologia, licenciado em Peda- and sociality. The Sociological Review, 43: 274-294,
Dessa forma, procuramos entender gogia, mestre e doutorando em Psicologia Social 1995.
Diz o autor, na UERJ. Faz parte da linha de pesquisa História,
as manifestações do grafite e da pixa- Imaginário Social e Cultura e é orientado pelo LAW, John; URRY, John. Enacting the social. Eco-
ção2 como práticas que não são apri- A fronteira entre o dizível e o indizí- professor titular Dr. Ronald Arendt. Integra o gru- nomy and Society, nº 33, 390-410, 2005.
vel, o confessável e o inconfessável, se- po de pesquisa Entre-Redes.
sionadas em categorias estanques, mas MOL, A. (2008). Política ontológica: algumas ideias e
para, em nossos exemplos, uma memó-
que se performam de diferentes manei- 2 Optei pela grafia da palavra com X como é co- várias perguntas. IN: J. Arriscado Nunes, & R. Roque
ria coletiva subterrânea da sociedade mumente escrita pelos pixadores e não com CH
ras em diferentes contextos. Ao longo civil dominada ou de grupos específicos, (Eds.), Objectos impuros: experiências em estudos
como no dicionário.
de uma memória coletiva organizada sociais da ciência (Biblioteca das ciências). Porto: Edi-
do último ano de pesquisas no douto- ções Afrontamento.
que resume a imagem que uma socie-
rado foi possível ver que há utilizações dade majoritária ou o Estado desejam
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio.
do grafite e da pixação como formas de passar e impor. (POLLAK, 1989, p. 8) LAW, John; MOL, Annemarie. Notes on materiality Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989.

104 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 105
Em 2014, participei da mostra co- Essa pergunta foi um disparador para tras narrativas – insurgentes contra as vio-
letiva de graduação no bacharelado trocas que abordaram sensações plás- lências do Estado-empresa – precisavam
em Artes do IARTES-UERJ com uma ticas e estéticas naquele momento de ser construídas. Desde então, continuei
série de ações, a partir de um dia- urgência política, momento em que ou- acompanhando as mudanças no entorno.
grama, pelo entorno do campus da
UERJ. O diagrama (imagem 1) suge-
ria os limites de uma área a ser visi-
tada (em uma caminhada guiada por
mim) entre a universidade e dois vi-
zinhos, a Aldeia Maracanã e a favela
Metrô-Mangueira. A área havia sido
DERIVA DE UM DIAGRAMA escolhida pela gravidade do que pas-
(ALDEIA MARACANÃ, UERJ E sava ali, tendo em vista o seu papel
METRÔ -MANGUEIRA emblemático das muitas remoções
na cidade do Rio durante os prepa-
rativos para megaeventos esportivos
(BERLINDA B que transformaram a cidade entre
2012 e 2016. Naquela semana a Me-
trô-Mangueira passava por mais uma
LUCAS SARGENTELLI1 série de intervenções policiais e re-
moções forçadas, continuação das
violentas expropriações de diversos
Resumo: Com esse breve relato, busco narrar
grupos de moradores em anos ante-
como se deu o meu contato com a retomada da
Aldeia Maracanã, contando como se deu esse riores. Em março de 2013, a totalida-
contato com a resistência e as minhas atividades de de moradores na Aldeia também
de militância nos últimos meses, pois se deram a havia sido removida. Com o nome Instrução para
partir da minha prática artística. Tive, até agora, a uma dúvida,
oportunidade de propor algumas vivências com que dei à proposta, ‘Instrução para 2014.
moradores e frequentadores da Aldeia. Entre elas uma dúvida’, também quis evocar o Galeria Gustavo
Schnoor
um exercício de mapeamento coletivo das rela- desafio de experimentar a espaciali- Coart / UERJ
ções entre Aldeia, UERJ e Mangueira, que gerou
zação daquele estado de coisas, mas, Foto: Beto Pêgo
diversos cadernos de nota. Compartilho aqui al-
gumas dessas notas. sobretudo, fazer circular a pergunta
durante a caminhada e em conver-
Palavras-chave: pesquisa-ação; resistência; Al-
deia Maracanã; diagrama; caminhar sas posteriores: ‘cabe a dúvida aqui?’

106 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 107
Outra ação, em 2015, foi uma segun- proposta, que chamei de ‘Como dita o Aldeia Maracanã da vida, naquele movimento. O contato
da versão da caminhada guiada2 . Pro- figurino’, foi a de frustrar a festividade com integrantes da resistência me fez
pondo uma apropriação do imaginário sugerida no convite e pela semana de Em abril de 2017, li uma matéria de compreender, por exemplo, que o terre-
do carnaval, convidei pessoas a virem carnaval. Como em um cortejo fúne- jornal4 sobre a retomada da aldeia no ano no e o prédio abandonado pelo Estado
fantasiadas e trazerem instrumentos bre, naquele dia chuvoso de fevereiro, anterior por um grupo indígena dissiden-
por décadas não são apenas uma heran-
musicais para realizar o percurso entre realizamos o percurso carregando ins- te que havia optado por não negociar
ça histórica (o prédio onde funcionava o
os três locais. Os convites foram feitos trumentos sem poder tocá-los. Com o com o Estado. Eles recusaram a ‘propos-
Museu do Índio foi construído pelo Du-
por email, através de cartazes coloridos ta’ governamental do realocamento da
projeto, quis investigar os efeitos de que de Saxe em 1862 e doado em 1910
aldeia para um terreno em Jacarepaguá
no espaço expositivo e na noite da aber- criar um evento falido como memória ao Serviço de Proteção aos Índios, órgão
ou mover-se para apartamentos do pro-
tura da mostra3 . Guiei a caminhada ves- de um evento traumático para a cidade. estatal comandado pelo Marechal Ron-
grama ‘Minha Casa, Minha Vida’. Fiquei
tido do personagem “Amigo da Onça”. A (imagem 2). don, quando de sua criação, em 19105 ;
sabendo depois que uma liminar na jus-
em 1953, Darcy Ribeiro criou ali o primei-
tiça garante hoje o uso do terreno pelos
ro Museu do Índio do Brasil).
indígenas, como ‘manejo parcial de terra’.
A Aldeia Maracanã é principalmente
Visitei a Aldeia Maracanã pouco tem-
um espaço espiritual e político de reto-
po depois, e, desde então, sigo acompa-
mada das práticas de povos originários,
nhando e colaborando com integrantes
massacrados por mais de cinco séculos
da retomada. Esse encontro resultou da
de colonialismo. O que está em ques-
minha pesquisa artística, mas vem se
desdobrando na militância política e essa tão ali são, principalmente, os modos
relação segue se atualizando. O processo singulares indígenas de habitar, hoje,
inclui revezamentos, desvios, e, claro, dú- aquele território e de como esses mo-
vidas. Passei a visitar a aldeia com certa dos produzem saberes e espaços para
frequência (procuro estar lá uma vez por acolhida de ‘parentes’ de todo o Brasil,
semana), e, aos poucos, laços afetivos es- tornando a Aldeia uma embaixada dos
tão se fortalecendo. Seja para ajudar nos indígenas e povos tradicionais na cida-
mutirões, levar provisões ou participar de. E aquele não é qualquer território.
dos eventos públicos como mostras de O território conhecido como Maracanã
filmes, oficinas, discussões; seja para pro- (ou Maraká’nà), na cidade do Rio de
por dinâmicas com integrantes e colabo- Janeiro, era utilizado como reserva de
radores, que se constituíram como expe- manejo ecológico durante o período
rimentação plástica ou estética. pré-colonial. A denominação do espaço
Como dita o figurino, 2015. Aos poucos, vou aprendendo com a (com referência a seu passado ances-
Foto: Pedro Victor Brandão insistência, característica tão marcante tral, imemorial, indígena) como Mara-

108 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 109
canã ‘nos remete a seu sentido como da relação Aldeia + Mangueira + UERJ Com esse breve relato, busquei nar- plantas medicinais cortadas
território sagrado dos Povos Tupi, como toda uma ecologia de saberes, trocas e rar como se deu o meu contato com a jogos no Maracanã – MEDO
ação do Estado – Remoção
bem-comum imaterial, como territoriali- apoio afetivo entre esses lugares e seus retomada da Aldeia Maracanã. Contando
desmatamento
dade indígena6’. atores. Essa rede se nota na participação como esse contato com a resistência e as dificuldade na luta – falta de estrutura
A resistência da Aldeia constitui, assim, dos indígenas em movimentos de apoio minhas atividades de militância com eles momento atual – recuperação, replantio
um movimento que toma por princípio a à UERJ; na presença constante de profes- nos últimos meses, se deram a partir da união das lutas: negros e indígenas
sua relação com a territorialidade, seu sig- antes da UERJ – favela do Esqueleto
sores, alunos e funcionários da UERJ na minha prática artística. Tive até agora a
espiritualidade, ancestralidade
nificado histórico ancestral e social atual, aldeia; de ações comunitárias importantes oportunidade de propor algumas vivên- resistência na UERJ
como base de sua atuação política. Pela de décadas na Mangueira, que seguem se cias com moradores e frequentadores ocupa Bandejão
força de sua luta, a aldeia recebeu apoio renovando, por funcionários da UERJ; de da Aldeia. Entre elas, um exercício de Bruno Alves – estudante morto por falta de
de diversos grupos minoritários e movi- moradores (especialmente crianças) da mapeamento coletivo das relações entre assistência pelo Estado
Bruno vive
mentos sociais. Desde a primeira entra- Mangueira que frequentemente visitam a Aldeia, UERJ e Mangueira, que gerou di-
estudantes na luta
da no prédio abandonado em 2006, por Aldeia; e muito mais. versos cadernos de nota7 . Compartilho peixinhos na UERJ na resistência
reiteradas vezes os indígenas voltaram a Atualmente, as atividades na Aldeia aqui algumas dessas notas: A UERJ É UM CEMITÉRIO INDÍGENA’
‘aldeiar’ aquele espaço, e em 2013 se tor- são voltadas para o fortalecimento da rela-
naram símbolo das lutas contra as remo- ção com a terra, que inclui as necessidades
ções no Rio de Janeiro dos megaeventos. mais básicas como água, luz, construção
As marchas de junho de 2013 no Rio de de mais casas e o plantio, no sentido da
Janeiro tiveram na luta contra as arbitra- autonomia alimentar, principalmente. Ou- 1 Artista e pesquisador. Atualmente é mestrando -rio.shtml?cmpid=compfb Consultado em 1 de
da linha de Linguagens Visuais no PPGAV/UFRJ. março de 2018.
riedades cometidas na Aldeia um de seus tro desejo entre os integrantes é o do au- Orientação de Felipe Scovino; Coorientação de
Ricardo Basbaum. 5 Wikipédia, consultado em 1 de março de 2018.
principais disparadores. No cenário atual, mento da população indígena habitando
2 No contexto da mostra Abre-Alas, na Galeria A 6 Trecho do texto de apresentação do 1º Con-
do golpe de Estado institucionalizado e o território. Apoiadores e colaboradores gresso Intercultural de Resistência dos Povos In-
Gentil Carioca.
do desgaste com a crise política, a Aldeia são também convidados a aprofundar sua dígenas e Tradicionais do Maraká’nà – COIREM,
3 As filipetas distribuídas durante a abertura da realizado em 2014.
Maracanã conquistou uma vitória parcial relação com a cultura indígena através da mostra na galeria diziam: ‘Você está preparado
para encarar o espaço de maneira inovadora? Para 7 Realizado em outubro de 2017. Convidei pessoas
por entre as brechas do poder. atuação junto ao movimento. O principal atuantes nos três locais a uma experimentação com
lembrar como é navegar pela esquina da sua casa
É marcante que, visto o risco de des- projeto da Aldeia, hoje, é a Universidade como um astronauta? Reinterpretando os seus o percurso das caminhadas anteriores, a partir da
próprios sonhos? Gostaria de construir um cartaz proposta de uma atividade. No jogo-exercício que
monte de instituições públicas como a Indígena – que, enquanto aldeia-univer- eu trouxe, alguns participantes narram, ao vivo,
mental coletivo? Com fantasias invisíveis e ins-
UERJ, integrantes da Aldeia estejam dire- sidade, visa aliar os princípios de manejo trumentos musicais imaginários? Para tudo isso e sem parar, sua experiência do percurso e outros
muito mais, nos encontre dia 28 (sábado) de feve- pensamentos que lhes ocorra; outros participantes
tamente envolvidos em atividades várias comunitário e vivência do território com reiro às 16:30h, na entrada da antiga localização da tomam o máximo de notas possível da narração
contínua dos primeiros em blocos de notas. Realiza-
por lá. Destaco o curso ‘Língua e cultura o ensino e valorização dos saberes dos po- Aldeia Maracanã - Avenida Radial Oeste, no mes-
ram o percurso conosco, 7.principalmente, pessoas
mo quarteirão do estádio do Maracanã.’
Tupi-guarani’ dado por Urutau Guajajara, vos indígenas e tradicionais –, segue sendo da aldeia, o que já mostra outra forma de ativar rela-
4 http://www1.folha.uol.com.br/cotidia- ções no diagrama inicial. O exercício se conectou, de
às quintas-feiras, e a venda de artesana- discutida em encontros abertos na Aldeia no/2017/04/1879927-indios-retomam-aldeia- forma não esperada por mim, com a narrativa oral e
to, às terças-feiras. Existe desde o início (geralmente aos sábados). -maracana-estopim-de-protestos-de-2013-no- práticas de caminhada na cultura indígena.

110 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 111
A vontade de pesquisar este assunto e local específicos. Essa mudança nega ao to, um instrumento de dominação. A foto-
veio de várias possibilidades criativas ofe- corpo seu caráter universal e, como tal, ele grafia foi um meio para classificar, identi-
recidas pela questão de gênero relaciona- pode ser percebido ou avaliado de forma ficar, analisar o ser humano e através dele
da à manipulação de imagens pela foto- subjetiva (de acordo com a percepção da corrigi-lo e controlá-lo (esse poder exer-
grafia digital e softwares de computador. pessoa, seu passado). A representação do cido por instituições públicas como esco-
A capacidade dos seres humanos de cons- corpo é um canal para observar os com- las, prisões, etc.). Assim, algumas pessoas
truir um alter ego à medida que os escri- portamentos que refletem as relações em eram elegíveis para viver na sociedade e
tores criam seus personagens, como dar uma sociedade, de um determinado mo- outras não.
Ficção e realidade vida e identidade a personagens que exis- mento e lugar. Além de estar mais aber- No século XIX, com o período de colo-
na construção de identidades tiam apenas na imaginação e como isso tamente presente, a imagem da figura nização maciça, a fotografia foi utilizada
de gênero afetou a forma como a Fotografia passou humana pode informar sobre construções como ferramenta para literalizar estereó-
a ser recebida pelo público. Como mudou como poder, ideologia e política. tipos e para exercer o controle simbólico
na fotografia digital a relação que as pessoas tinham anterior- De acordo com Michel Foucault (1926- sobre os corpos dos outros sob a forma
de retratos mente com a imagem, o relacionamento 1984), a visão do corpo humano como de seus substitutos fotográficos, a foto-
com a mídia e a tecnologia e, finalmente, a somente uma entidade física surgiu no sé- grafia desempenhou um papel central na
construção da identidade. culo XVIII com a influência do Iluminismo formação do colonialismo. Não estava so-
(VONTADE A)
De acordo com a filósofa búlgaro-fran- (Foucault, 1975). O ser humano não era zinho nesse processo (os assuntos “orien-
cesa Julia Kristeva, a identidade, construí- mais a articulação da entidade espiritual e talistas” na pintura romântica também
da sobre a representação do corpo, é me- física. A fotografia também foi fundamen- foram estereotipados). Mas, ao contrário
PATRICIA AMORIM DA SILVA1 diada pelas relações sociais. Isso significa tal para isso, pois parece funcionar como de imagens tão obviamente artesanais
que nossa identidade expressa é quando a visão humana para oferecer um conhe- como pinturas e impressões, as fotogra-
confrontada com a identidade de outros cimento mecanicamente empírico, exata- fias desmentiam
Resumo: O objetivo e o tema da pesquisa é de- povos, como as diferenças entre si são evi- mente o que o Iluminismo propôs. Esse O surgimento da fotografia digital veio
senvolver uma discussão que explore como a denciadas (KRISTEVA, 1984). filósofo francês afirma que a disciplina em 1960, com a necessidade da NASA1
manipulação fotográfica do corpo humano afeta Desde o período renascentista até dos indivíduos é possível de ser executada para mapear a superfície da Lua e enviar
a maneira como se percebe a pessoa retratada.
Este assunto descobre relevância social con-
agora, o corpo humano foi compreendido através de um dispositivo onde as técnicas imagens para a Terra. A solução para isso
temporânea, pois a prática da manipulação de a partir de um ponto de vista externo; nós que nos permitem ver, induzir os efeitos era usar os avanços na tecnologia da in-
imagem tornou-se um lugar comum dentro do construímos nossa imagem corporal atra- do poder e os meios de coerção tornam- formação. Assim, a NASA passou de usar
consumo moderno de imagens. A partir dessa
vés do olhar de outra pessoa não através -se claramente visíveis sobre aqueles que sinais analógicos para sinais digitais com
observação, argumenta- se que, onde quer que
a realidade modelada é consumida como o re- da nossa. Ao longo da história, o corpo hu- o aplicam (Foucault, 1975, p. 196). A câ- suas sondas espaciais para mapear o es-
gistro da realidade, ipso facto, é também sujeito mano foi representado em uma variedade mera tornou-se um instrumento de poder paço. Em meados da década de 1970, a
à modelação de maior compreensão mundana. de formas diferentes. Essa alteração ocor- que poderia ser usado no controle da vida Kodak criou o sensor de imagens utilizado
Palavras-chave: Arte; Fotografia; Digital; Mani- re no corpo de acordo com o ambiente das pessoas. Representou um exemplo de em câmeras digitais. Consiste em uma pe-
pulação; Identidade. físico, refletindo a cultura de algum tempo progresso industrial e científico e, portan- quena placa que converte luz em imagens

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digitais. A Kodak criou a primeira câmera matizada, o que permite que o produto grafia digital e manipulação, confundem ções sobre a imagem motivam a mudan-
digital profissional em 1991 (Nikon F-3) resultante desse processo não seja neces- fatos e ficção (o acontecimento de um ça social, pois o cidadão comum não está
com sensor de 1,3 megapixels ( capaz de sariamente uma imagem fixada em um momento misturado com a criação do em plena disposição para distinguir se a
gravar 1,3 milhões de pixels que pode- papel, mas agora não precisa ir além das autor) com nova curiosidade, pelo qual fotografia digital foi manipulada ou não.
riam produzir uma impressão digital de informações binárias armazenadas pelo a imagem fotográfica não se afirma mais Tudo devido à impossibilidade de retratar
qualidade fotográfica de 5x7 polegadas). computador. Embora a fotografia digital como a representação da realidade. a realidade, porque a fotografia não pre-
Desde então, a tecnologia digital desen- possa ser impressa, o formato binário o A fotografia digital está cada vez mais serva mais um momento, mas o altera ou
volveu-se cada vez mais rápida. A expan- torna ideal para a Internet através de blo- relacionada com questões diárias, como o cria. A fotografia digital de publicidade
são das tecnologias digitalizadas e outros gs, sites e e-mails. É mais rápido e mais a perda de individualidade, a reprodu- e/ou arte representa o mundo simboli-
mercados de mídia e multimídia perme- barato. Isso leva ao futuro da fotografia. tibilidade de objetos e o acesso indis- camente, pois não há imagem que não
aram a acessibilidade de pessoas, profis- A manipulação aconteceu desde o criminado a informações resultantes da seja manipulada se considerarmos que a
sionais ou não, de tais equipamentos. O início da fotografia. Era chamada de re- globalização e, especialmente, a perda fotografia funciona do ponto de vista de
sensor da câmera em trabalhos digitais toque e feita com um pincel adicionando gradual de identidade nas atividades de outra pessoa. Como qualquer outra arte,
atua da mesma forma que o filme no cores à fotografia. Mesmo assim, apesar rotina, como ir ao banco, dirigir, andar na a fotografia não é imparcial. A manipula-
analógico. É sensível à luz, mas com a di- dessa manipulação, a fotografia não per- rua sem perceber o espaço por onde se ção de imagens tornou-se uma expressão
ferença de que não tem grãos, mas pixels deu sua credibilidade como indiciológica. passa e nem as pessoas ao redor, levando gráfica deixada pelos artistas em sua fo-
e, tecnicamente, quanto mais mega pixels No entanto, o desenvolvimento tecnoló- as pessoas a refletirem sobre sua indivi- tografia e transformou o corpo humano
possui, melhor a qualidade de imagem. gico da fotografia que lhe permite, como dualidade em oposição à sociedade. O por diferentes perspectivas, há uma obje-
As obras de arte atuais, produzidas meio, expressar ideias, começou no final choque entre subjetividade e identidade. tivação desse corpo como resultado das
usando tecnologias multimídia, são cada do século XIX. Além das questões éticas, devemos levar várias manipulações exercidas sobre ele.
vez mais dinâmicas. No caso da fotogra- A diferença hoje em dia é que a mani- em consideração princípios e valores cul- O problema da fotografia digital atu-
fia, a imagem está se tornando difícil de pulação digital no computador fica mais turais que mudam ao longo do tempo almente é como ela alcança as pessoas
analisar devido a sua contemporaneidade fácil e acessível a todos. A diferença en- e do lugar. Ainda temos que aprender a instantanea e abundantemente, já que as
(a tecnologia da evolução da fotografia tre os dois processos é que quase tudo diferenciar o gosto da ética; as coisas não pessoas prestam cada vez menos atenção
é tão rápida que difícil refletir sobre seu o que é feito com o equipamento analó- podem ser consideradas não éticas ape- para lê-la. As pessoas se esqueceram de
uso). O fotógrafo não quer colocar marcas gico fica mais rápido com o digital. Esse nas porque não gostamos delas. A cultura olhar para o mundo e quando vêem em
de tempo na imagem, mas sim deseja se processo de manipulação está cada vez afeta muito o gosto. Quem define os limi- isso sem o aparelho fotográfico se sen-
eternizar através da sua criação, a aspira- mais transparente, pois há uma escala- tes da manipulação? tem perdidas, porque sentem vontade de
ção de recriar o mundo a cada momento. ção em diferentes pontos de interferên- A manipulação de imagens na fo- registrar tudo ao seu redor, elas também
Usar a fotografia para criar uma ilusão cia ou aprimoramento de imagens. Essas tografia digital tanto na arte como nos se acostumaram a olhar através de uma
tornou-se muito mais atraente do que oportunidades crescentes permitem meios de comunicação sempre gera janela, da câmera. Ao contrário da escrita,
documentar o mundo lá fora. A fotografia que a imagem capturada transforme o discussões. Esses podem abordar uma que requer entender regras de gramáti-
digital difere da analógica em seu proces- ordinário em algo incomum. A transpa- variedade de questões sobre a vida, a ca, para fotografar basta simplesmente
so, já que não é mais química, mas infor- rência, agora oferecida através da foto- cultura, a sociedade, etc. Essas manipula- pressionar um botão. O fotógrafo ama-

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dor acredita que a fotografia se resume a Eles estão mais interessados em nos fa- A convivência de movimentos de corpos
esse gesto automático, pois ela contem- zer sentir do que ver as coisas como elas no interior de páginas com palavras es-
poraneamente não pretende mostrar a realmente são. critas pode ser um contrassenso. Porém,
realidade, mas construir significados di- A fotografia digital veio superar os o evento estudado aqui conduz a esse
ferentes. Os fotógrafos não querem ficar limites previamente estabelecidos como encontro, pois há uma fisicalidade lite-
na superfície da imagem, mas explorar meio de comunicação e criar novas for- rária aliada aos dois seres humanos e de
um mundo metafórico de significados. mas de composição. uma galinha que compõe as camadas da
escritura corporal Kinjiki, a primeira expe-
rimentação coreográfica do butō do artista
japonês Hijikata Tatsumi (1928-1986). Es-
CORES PROIBIDAS SOBRE ses processos ressoam corpos que vivem,
andam e dançam fora das normas estabe-
CORPOS DE CARNE lecidas, criando coreografias particulares.
As ligações de Hijikata com as palavras
(VESTÍGIO A) escritas eram profundas, segundo Mark
Holborn, “Hijikata literalmente escrevia
dança; Ele ficava surpreso com as simila-
PEDRO AMBROSOLI 1 ridades entre o processo criativos dos es-
1 Artista visual e educadora na Escola Concept. FLUSSER, Vilém. (2002). A Filosofia da Caixa Preta: critores e os seus” (HOLBORN, 1987, p.13).
Bacharel em Artes Visuais pelo Centro Universi- Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio
tário Belas Artes de São Paulo. Mestre em Artes de Janeiro: Relume Dumará. Ele criava atravessado pela devoração de
pela Northampton’s School of Arts. Trabalho de
pesquisa sobre a prática fotográfica aplicada à HARRISON, Charles; WOOD, Paul J. (2003). Art in livros de diversas naturezas, sua escrita era
facticidade do retrato humano sob a orientação Theory 1900 – 2000: An Anthology of Changing polimórfica com tênues distinções entre
do Prof.º Dr. Staff Craig. Ideas. 3rd edition United Kingdom: Blackwell
Publishing.
palavras e imagens. Com suas vinculações
Resumo: Em 1959, a obra Kinjiki (Cores Proibi- entre literatura e artes visuais, Hijikata
Referências bibliográficas JEUDY, Henri-Pierre. (2002). O corpo como objeto da
das) de Hijikata Tatsumi (1928-1986) apresen-
arte. São Paulo: Estação Liberdade. construiu corpos de imagens de carne.
BARTHES, Roland. (1984). A Barthes Reader. Canada: tou seu butō junto com a participação de Ōno
Susan Sontag. KRISTEVA, Julia. (1984). Revolution in poetic Yoshito e uma galinha viva. A proposta deste Kinjiki aconteceu em 1959 no Dai-is-
language. Trans Margaret Walker. New York: estudo é escrever junto aos movimentos deste chi Seimai Hall em Tōkyō em um evento
EWING, William A; Hayward Gallery. (2004). About Columbia University Press. ato e compor possíveis corpos que estavam nes- organizado pela Associação Japonesa de
face: photography and the death of the portrait.
London: Hayward Gallery. LE BRETON, David. (2003). Adeus ao corpo: ses momentos através de alguns dos vestígios
deles e influências como as fotografias feitas por
Dança, ele escolheu Ōno Yoshito para lhe
Antropologia e Sociedade. São Paulo: Papirus.
FIGUEIREDO, Lucy. (2007). Imagens polifônicas: Shashinkan Kurokawa; os escritos do próprio acompanhar. Houve pouca documentação
corpo e fotografia. São Paulo: Annablume. O’REILLY, Sally. (2009). The Body in Contemporary
artista na época; textos de Mishima Yukio, Jean da performance, só sobrevivendo duas fo-
Art. London: Thames & Hudson Ltd.
FOUCAULT, Michel. (1975). Docile bodies. In: Genet e Georges Bataille.
________. Discipline and Punish: The Birth of the PULTZ, John. (1995). Photography and the body. tografias feitas por Shashinkan Kurokawa,
Prison. France: Gallimard. London: Everyman Art Library. Palavras-chave: butō; corpo; escrita; coreografia. outras onze em ensaios posteriores no es-

116 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 117
túdio de Tsuda Nobutoshi por Otsuji Seiji O nome da performance é o mesmo biotexto, uma escritura em ações, um re- dutiva. Eu sou capaz de dizer que minha
do livro homônimo de Mishima Yukio dança compartilha uma base comum
e alguns depoimentos como o de Yoshito lato vivido pela carne. Pouco depois de
com os crimes, a homossexualidade
e o do crítico Nario Gôda. É verdade que (1925-1970), publicado em 1951. A tra- Kinjiki, ele escreveu o texto Para a prisão masculina, as orgias, os ritos porque são
desde sempre as imagens se desvanecem dução comum ocidental para Kinjiki é (1961) em que relata a influência e seu comportamentos que explicitamente
tanto quanto uma pedra vira pó, mas é “Cores proibidas”, mas a pesquisadora convívio com alcoólatras, drogados, gays ostentam seus despropósitos na face de
Katja Centonze aponta “Prazeres proibi- uma sociedade orientada para a produ-
possível vê-las através das sombras. e criminosos que lhe acompanham des-
tividade. Nesse sentido, minha dança é
Sob a penumbra, os dois artistas se dos” como possível tradução, destacando de a infância em Tōhoku até chegar em baseada na ativação humana, incluindo
moveram descalços, com silêncio ao o cunho marginal dos desejos envolvidos Tōkyō, em 1952, quando conseguiu pe- a homossexualidade masculina, o crime
nela. Apesar da trama do romance de quenos trabalhos diurnos que não eram e uma batalha ingênua contra a nature-
fundo, interrompido por gravações de za primitiva, se constitui naturalmente
Mishima ser uma concepção temporal suficientes para viver e seguir suas aulas
gemidos, respirações pesadas e músicas como uma revolta contra a “alienação do
linear, há referências a figuras informes de dança. Para se sustentar, ele recorreu à trabalho” na sociedade capitalista. Essa
tocadas com gaita por Shûgo Yasuda. Ini-
que Hijikata buscava. Também, muitos venda de sucatas e roubos. Esse ambien- também é, provavelmente, a razão pela
cia-se com a perseguição de Yoshito por
dos acontecimentos mais relevantes su- qual expressamente me aproximei dos
te lhe propiciou viver um ambiente sexu-
Hijikata, seguida do encontro dos dois criminosos.
cedem na noite como na performance e almente aberto. O texto de 1961 aponta
quando Hijikata empurra uma galinha Existem alguns pontos comuns na
ambos artistas sumariamente exploram traços importantes dessas experiências: taciturnidade dos criminosos, e há er-
para o outro que a sufoca entre as pernas.
os extremos do corpo humano, apresen- ros esmagadores que se estendem di-
Ōno dispôs a galinha no chão e Hijikata retamente. Sou sempre arrastado pelas
tando materiais considerados abjetos De repente, um corpo nu entrou no
se aproximou dele, os dois rolaram ao pernas que nunca levaram as políticas
como homossexualidade e morte. porto das armas. O corpo nu está san-
redor entrelaçados no chão, sugerindo como cúmplices para passear. Jovens
grando. Em meio a uma continuidade
A narrativa se passa em Tōkyō tam- que perseguem muito além da suspeita
sodomia que não se tem conhecimento semelhante à raiva, eu faço reparos para
bém, um pouco depois da Segunda da medicina interna e faca cirúrgica, que
braços e pernas que constantemente se
de concretização. As luzes foram abaixa- a civilização de hoje dispensa sobre eles.
Guerra Mundial. Os protagonistas são desviam de um corpo orgânico individu-
das e o palco mergulhou na escuridão, Aposto numa realidade de vitalidade
um escritor idoso renomado, Shunsuke al. Esquecendo a origem das pernas e até
absurda que purgou o eco da lógica do
deixando o público seguir a ação esprei- mesmo das armas. Eu sou uma oficina;
e Yuichi, um jovem empresário. Os dois meu corpo e sonho com o dia em que
minha profissão é o empreendimento
tando pelo breu e ouvindo os sons dos caminham na descoberta de suas sexu- sou enviado para a prisão com eles. Na
da reabilitação humana, que hoje existe
dois rolando e lutando junto a gravações prisão, vou aprender a jogar futebol.
alidades por meio de um percurso de com o nome de dançarino.
Essas são as pernas dos criminosos que
de respirações tensas. Esse momento foi lugares fora do controle da sociedade Todas as forças morais civilizadas,
não tem necessidade de aprender se co-
registrado numa única fotografia de Ku- em colaboração com o sistema de eco-
heteronormativa onde crime e sexualida- nomia capitalista e suas instituições polí-
locar em tal lugar. Estou estudando este
rokawa em que há predominantemente de se misturam, são parques, banheiros ticas, excluem firmemente a carne como
tipo de “dança criminosa”. 2
preto com algumas zonas cinzas que são públicos, becos, saunas, boates e bares. objetivo, meio ou instrumento de prazer.
fragmentos dos corpos dos dois dançari- Misteriosos incêndios, verdadeiros so- Ainda mais, para uma sociedade orienta- Hijikata transformou estas vivências
da à produção, o uso da carne sem obje-
nos. Por fim, Hijikata grita “Je t’aime, Je pros da noite emanam dessas estâncias e marginais em matéria e intenção para
tivo, que eu chamo de dança, é um inimi-
t’aime” (“Eu te amo, Eu te amo” em fran- convidam a volúpia tomar controle. go mortal e um tabu. Isso porque minha suas obras assim como Jean Genet (1910-
cês) para Yoshito que bate seus pés com Já a escrita de Hijikata cria neologis- dança é uma operação para exibir a este- 1986), seu escritor favorito. Ele via a sexu-
rilidade absoluta contra a sociedade pro- alidade e a violência de Genet como por-
força contra o chão apavorado. mos muito pessoais e existe como um

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tas para profundezas do corpo que lhes ao passo que o colocou como forma sim- dançar suas coreografias próprias, atra- irregulares, junto com morte e sexo, são
são apresentadas como zonas sombrias bólica e oferenda para o ato sexual que vi- vés de diversas experimentações e das as carnes e as cores da performance que
de criação nas quais eles tateiam outras ria a seguir. Para Georges Bataille, as expe- obras de outros artistas como Mishima, dança contra as coreografias instituídas e
possíveis concepções de corpo, locomo- riências místicas e eróticas estão entre as Genet e Bataille. Em Kinjiki, esses corpos se presentifica em suas transgressões
ção e experiência. Dez anos de caminha- mais intensas e as que provocam maior
das marginais de Genet pela Europa fo- unificação do corpo por intensificarem as
ram recolhidos no seu biotexto Diário de relações pulsantes entre desejo e morte,
um ladrão (1949), em que relata seus pas- estes eram considerados como funda-
sos silenciosos que espreitam e aspiram mentais na vida interior do corpo e para
a invisibilidade em sua criminalidade que sua consciência de si, mesmo que numa
está em Kinjiki também, são movimentos experiência de crise.
acompanhados dos seus próprios sons O autor francês foi lido por Hijikata
que Genet descreve: e influenciou suas concepções de corpo
e carne. Sobre isso, ele escreveu: “O que
Caminhada na ponta dos pés, o o ato de amor e o sacrifício revelam é a
silêncio, a visibilidade que precisamos carne. (...). A carne é em nós esse excesso
mesmo em plena luz do dia, as mãos que
que se opõe à lei da decência. A carne é
tateiam organizando na sombra gestos
de uma complicação, de uma precaução o inimigo nato daqueles a quem obseda
insólita - girar a simples maçaneta de o interdito cristão, mas se, como creio,
uma porta exige uma multidão de mo- existe um interdito vago e global que se
vimentos de que cada um tem o brilho
opõe (...) à liberdade sexual, a carne é a
de uma faceta de joia (...) a prudência, a
voz sussurrada , o ouvido atento, a pre- expressão de um retorno dessa liberdade
sença invisível e nervosa do cúmplice e a ameaçadora” (BATAILLE, 2013, p.116). 1 Mestrando em História da Arte pela Alma Ma- HOLBORN, Mark. Dance of the Dark Soul. Nova York:
compreensão do menor sinal dele, tudo Hijikata investigava essas vivências ter Studiorum – Università di Bologna, Itália. Atua Sadev/Aperture Foundation, 1987.
nos firma em nós mesmos, nos confirma, também como curador e artista interdisciplinar.
faz de nós uma bola de presença que a
libertadoras, mas não foi qualquer corpo CENTONZE, Katja. Encounters between Media and
2 Esta tradução foi feita pelo autor com trechos
palavra de Guy descreve tão bem: que ele filosofou, ele escolheu o dos do- já traduzidos por Éden Peretta e Christine Grei- Body Technologies. Mishima Yukio, Hijikata Tatsumi,
-A gente se sente viver. (GENET, 1983, p.29) ner da versão em inglês To prison, publicada na and Hosoe Eikō. In: B. Geilhorn, E. Grossman, Miura
entes, criminosos, crianças, deficientes, revista The drama review, ver as referências bi- H. and P. Eckersall (org.). Enacting Culture-Japanese
prisioneiros, prostitutas, homossexuais, bliográficas. Theater in Historical and Modern Contexts. Mün-
Estas práticas são a construção de vida transexuais que não eram apenas margi- chen: Iudicium, 2012.
em ato com a ativação da consciência do nalizados e proibidos na época, mas es- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PERETTA, Éden. O soldado nu: raízes da dança bu-
corpo em suas minúcias. Essas experimen- tão em posição subalterna há muito mais BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Atu- toh. São Paulo: Perspectiva, 2015.
tações são ampliadas em ações como o tempo. Hijikata tentou compreender os têntica Editora, 2013.
TATSUMI, Hijikata. To prison. In: In: TDR: The Drama
estrangulamento da galinha pelo qual Hi- mecanismos corporais que esses corpos GENET, Jean. Diário de um ladrão. Rio de Janeiro: Review, Volume 44, Number 1 (T 165), Spring 2000,
jikata quebrou a temporalidade de Kinjiki possuem para existir, para andar e para Nova Fronteira, 1983. p.43-28.

120 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 121
Estesícoro, um relegado pensador lheres aparecem, as mulheres são de Entrei em contato com as reflexões li-
formosos joelhos ou olhar. Poseidon tem
grego nascido em 650 A.C. e atuante no terárias de Anne Carson e os fragmentos
sempre as sobrancelhas azuis de Posei-
intervalo entre Homero e Gertrude Stein, don. O riso dos deuses é insaciável. Os de obras de Estesícoro, por ela recupe-
um período difícil para um poeta (CAR- joelhos humanos são ágeis. O mar é in- rados, quase um ano após as considera-
SON, 2017, p.9), foi ignorado pela História cansável. A morte é má. Os fígados dos ções e sugestões que ofereci em formato
cobardes são brancos. Os epítetos de
por muito de sua obra ter sido recupera- de apresentação ao Contingência 2017.
Homero são uma dicção fixa com a qual
da em precários fragmentos e, de resto, ele liga cada substância do mundo ao Sei, também, que a desconstrução que
ter se perdido descuidada, infelizmente.
A SUBJETIVIDADE POETA Me deparei com sua práxis em análises
seu atributo mais adequado, deixando-
-os prontos para o consumo épico. (CAR-
o pensador produziu na linguagem e
na forma de escrita daquela época nada
POR NOVOS MODOS ARTÍSTICOS da escritora e tradutora canadense Anne SON, 2017, p.10)
tem de relação à temporalidade do ago-
DE ATRAVESSAR A ROTINA Carson em “Autobiografia do Vermelho”,
Em oposição à fixidez da adjetivação ra, que já nasceu sob essas possibilidades
livro publicado em 1998. Um longo pre- infinitas de caracterizar aquilo que no-
homérica, Estesícoro “por uma qualquer
âmbulo, dividido em três partes, antecede meamos. Mas acredito que, ao trazer a
(VESTÍGIO A +B) razão que ninguém consegue nomear”
o romance de Carson, que é inteiro escrito noção de “subjetividade poeta” presente
(idem. p. 11), fazia uso dos adjetivos de
em versos; em um dos pontos dessa vas-
maneira não-ortodoxa, sobretudo para a em minha fala e minhas investigações,
ta introdução vestigial, Carson recupera
época. Os antigos como Estesícoro e Ho- anseava por esse “desaferrolhamento do
PEDRO DE SOUZA FONSECA 1 e traduz alguns fragmentos de Estesícoro
mundo” que Estesícoro foi capaz de pro-
mero ainda estavam povoando o mundo
acerca do mito de Gerião, um dos mons-
de ideias, ainda procuravam descobrir as mover através de suas razões que não
tros derrotados por Héracles em seus
coisas, dar nome às coisas. Mas Estesíco- conseguiam dar conta de nomear. Anse-
Doze Trabalhos.
ro, ainda assim, procurou forçar as bor- ava por essas formas de libertar os seres e
Carson, ao nos esclarecer os motivos
das, alargando-as; ou, como bem coloca as coisas seja através de um modo de ver
de centrar-se no mistério do esquecido
Carson, “Estesícoro começou a soltar os ou agir. À época, tal conceito da subjeti-
Estesícoro e sua produção tão incompleta
ferrolhos”, “Estesícoro soltava o ser” (idem) vidade poeta caiu como uma luva no que
diz que, na Grécia antiga, sobretudo nas
e então “Todas as substâncias do mundo dizia respeito à aproximação da arte com
tradições dos textos épicos de Homero,
começavam a flutuar. De repente, não se a resistência cotidiana que propus, e ago-
Resumo: Partindo do conceito de “subjetividade os adjetivos atuavam enquanto “ferrolhos”
poeta”, sugerido por Rosane Preciosa em “Rumo- do ser. A metáfora do ferrolho diz respeito podia dizer nada sobre cavalos terem cas- ra procuro complementar esse conceito
res discretos da subjetividade” (2010), procuro
a seres e coisas – substantivos – estáveis, cos ocos. Ou de um rio ser prateado na raiz. com outras vozes.
uma ponte entre a vida e os mundos da arte, em
imóveis, cujas características e virtudes Ou de uma criança ser imaculada. Ou de o De acordo com uma ideia postulada
que a arte se insere no cotidiano e passa a habi-
tar não somente os espaços institucionalizados, deveriam ser rápida e claramente identifi- inferno ser tão fundo quanto o sol é alto. Ou por Rosane Preciosa em “Rumores discre-
como também nossas estratégias rotineiras no cadas: então os adjetivos os envelopavam. de Héracles ser forte no infortúnio. Ou de tos da subjetividade”, temos que a sub-
encontro com um mundo linha-dura que nos um planeta estar preso a meio da noite. Ou jetividade poeta “se expõe ao mundo e
tem exigido leveza e criatividade.
Quando Homero menciona o san- de um insone estar fora da alegria. Ou de aguenta o tranco. Não se protege de suas
Palavras-chave: Arte; Subjetividade; Cotidiano. gue, o sangue é negro. Quando as mu- assassínios serem negro creme.” (ibidem) ininteligibilidades, nem fica abismado

122 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 123
diante de seus inúmeros paradoxos. Vai é possível astutamente desviar toda Em analogia, percebo as adjetivações que vem sofrendo com a crise da imagina-
misturando todos os ingredientes que re- a operação não-artística para longe de de Estesícoro muito próximas à intencio- ção de seus governantes, cujos horizontes
onde as artes costumeiramente se con-
colhe em seu desitinerário a céu aberto e nalidade de Kaprow e suas atividades. Am- lucrativos de expectativa não condizem
gregam, tornando-se, por exemplo, um
os devolve constelação de inventos” (PRE- contador, um ecologista, um dublê, um bos esmiuçam e viram de cabeça pra baixo com a realidade de um povo que se assola
CIOSA, 2010, p.29). A autora ainda define político, um vagabundo de praia. Nes- aquilo que enxergamos e decodificamos cada vez mais. Versa sobre estarmos PRE-
ses diferentes ambientes, os vários tipos rapidamente. A metáfora dos ferrolhos
o poema como um “conteiner de aconte- SENTES, atentos aos muitos desmontes.
de artes discutidos operariam indireta-
cimentos” (idem), e acredito que podemos mente como um código guardado que,
soltos cabe bem à subjetividade poeta, Creio que a subjetividade poeta, em
estender o adjetivo desaferrolhado a todo em vez de programar um curso especí- aquela que não se esconde, que sugere e toda a concepção que aqui procurei evi-
o espaço produtivo da arte em si, local não fico de comportamento, facilitaria uma que, como o ferrolho, apenas destranca: a denciar, nos apresenta sugestões frutífe-
atitude de brincadeira deliberada em
somente de desconstrução, como de pro- porta continua lá, fechada. Nós escolhe- ras para os próximos passos. Ainda em se
relação a todas as atividades profissio-
dução de novas formas de enxergar a vida nalizantes bem além da arte. (KAPROW, mos abri-la e enfrentar o fora, ou encarar tratando do encontro no Contingência,
e atravessarmos o cotidiano. 1971, p. 221) o destrancamento da oportunidade e per- sobre o qual este texto procurou refle-
Acredito que a arte poderia ser enxer- manecermos no dentro e na dúvida do tir, terminei minha apresentação com a
gada como nos coloca o artista perfor- Partindo, então, das premissas não- que está fora. proposta de “ir e voltar sobre si mesmo”,
mático Allan Kaprow, o qual uno às ideias -artísticas necessárias para produzir arte, Vivemos um período de desmonte(s), retirada de um poema curto de Gab Mar-
de Preciosa para sugerir um olhar atento Kaprow propunha, por exemplo, peque- de intervenções repreensivas, de extre- condes (2016, p.19). A instrução, seme-
à subjetividade poeta. Em 1971, Kaprow nos deslocamentos nas ações cotidia- ma reatividade por parte de uma parcela lhante às atividades de Kaprow, porque
escreveu “A educação do não-artista”, pro- nas: através de anotações de ordem que conservadora de habitantes do mundo exigem que nos debrucemos sobre uma
pondo que vislumbrássemos a arte sob chamava de “atividades”, o artista nos que trancam todas as portas, manipulam ação cujas respostas motoras ou intelec-
duas perspectivas: uma, a Arte com letra convidava a olhar atentamente (ou desa- todas as fechaduras para que jamais nos tuais não se dão diante de nossos olhos,
maiúscula, dizia respeito à toda forma de ferrolhadamente) para ações cotidianas. sintamos livres, em nem sequer considerar abrindo as portas destrancadas para o
Arte institucionalizada, elocubrada e res- Por exemplo, a oportunidade de encarar uma porta de- fora, para o movimento, para novas for-
paldada, absorvida tanto pelos museus, saferrolhada, pronta para ser aberta. A prá- mas de enxergar tanto a nós mesmos,
Hello/Goodbye (1978)
quanto pelos mercados galeristas. Em tica em arte contemporânea reflete sobre quanto a situação em que nos encontra-
A escreve Adeus e Olá
suma, a Arte que acontecia dentro de um uma certa “arte de viver”, em letra minús- mos, nossos arredores, os encontros com
em folhas
espaço propício a esta. Já a outra seria a entrega as folhas para B cula, estratégias de entradas e saídas para o mundo, enfim. Encontros que admitam
arte com inicial minúscula, referindo-se a B esperando em algum lugar períodos de crise. Crises financeiras, crises que não há lugar para a Lógica singular, e
uma visão expandida do que é que a arte lendo as palavras escritas por A estatais, crise no imaginário de um país sim lógicas plurais, novos modos de vida.
deveria representar em nossas vidas. A se aproxima de B
caminhando
A tal arte com letra minúscula era uma
diz Olá
espécie de “arte de viver”, que atravessa-
ou Adeus.
va a vida e que se ativava como estratégia (KAPROW apud NARDIM, 2011, p. 108)
1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação busca sugerir relações entre arte, vida e escrita,
em Artes, Cultura e Linguagens da UFJF, orien- analisando processos criativos e possíveis pontes
no cotidiano de quem fosse. De acordo tado pela profa. Dra. Rosane Preciosa Sequeira. entre teoria, ficção e as escritas de si.
com o artista, Escritor e desenhista, em seus ensaios e ensejos,

124 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 125
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NARDIM. Thaise. As Atividades de Allan Kaprow: Testemunhar a banalidade dos dias
artes de agir, obras de viver. Disponível em <
é atentar-se ao que deixamos de lado
CARSON, Anne. Autobiografia do Vermelho. Lisboa: http://seer.ufrgs.br/index.php/RevistaValise/article/
não (edições), 2017. view/19892 > Acesso em 14/03/2018, 17:00 quando imersos na rotina que nos condi-
ciona a um cotidiano de comportamen-
KAPROW, Allan. A educação do não-artista (I). MARCONDES, Gab. Mão Dupla. Rio de Janeiro: Lu-
naparque, 2016. (coleção megamíni) tos automatizados. O verbo testemunhar
1971. Disponível em <https://liviafloreslopes.
files.wordpress.com/2015/12/kaprow-allan- aqui nos acompanhará como um olhar
PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetivi-
-a-educaccca7ao-do-nao-artista.pdf> Acesso dade – Sujeito e escritura em processo. Porto Ale- novamente para a banalidade, como pai-
14/03/2018, 17:00 gre: Sulina: Editora da UFRGS. 2010.
BREVES APONTAMENTOS sagens que se constroem e se destroem
nestes recortes temporais e que dificil-
SOBRE AS RELAÇÕES AFETIVAS mente aparecem nas cartografias usuais
COM NOSSOS de dispositivos mapeativos.
ESPAÇOS COTIDIANOS Essa relação sujeito/cidade, em que
há um eu testemunhando um outro, pa-
rece ter sofrido um afastamento das im-
(VESTÍGIO A) portâncias do dia a dia, como se não es-
tivéssemos continuamente agenciando
negociações com os espaços que habi-
RAFAEL AMORIM 1 tamos durante as vinte e quatro horas de
um único dia. Nos habituamos a tomar as
cidades como cenografia de uma rotina
produtivista, sendo necessário um desvio
para vislumbrá-la como campo de afetivi-
Resumo: Ensaio elaborado a partir de recentes
dades, poesia e práticas artísticas.
apontamentos sobre a construção de uma poé-
tica verbo/visual na arte contemporânea, em que Portanto, essa percepção sobre a banali-
o artista se vê interessado na interlocução entre a dade traz consigo ações silenciosas que de-
prática da escrita e o território urbano para a pro- pendem do ser, do estar. Uma vez habitando
dução de materiais que propiciem maiores proxi-
estes espaços, é preciso relacionar-se com
midades entre sujeitos e seus lugares de passa-
gens. Sobretudo, tem-se o intuito de propor uma eles, olhá-los duas vezes e enxergá-los com
sensibilização do olhar para com a possibilidade olhos de possibilidades. Tomemos consci-
de se enxergar as cidades como vasto campo de
ência dos microprocedimentos inerentes ao
experimentações poéticas em troca com aqueles
que as habitam. nosso existir: coisas as quais fazemos todos
os dias sem um intuito aparente. Desde a es-
Palavras-chave: escrita; cidades; arte contempo-
colha por um dos lados de uma calçada ou
rânea.

126 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 127
por uma rua em detrimento da outra. d’água, estações e plataformas de trem, exercício poético sobre a construção ima- Há aqui um desejo de sobrevivência
Por exemplo: a memória associativa trilhos, pontos de ônibus, janelas, bicicle- gética da escrita meio ao banal. Trata-se do sensível. É possível pensar que esteja-
de pontos de referências para se chegar a tas, telhados, caixotes etc. de vestígios escritos alicerçados a demar- mos diante da busca do não apagamento
determinado lugar nos revela uma sensi- Assim, escolhemos o que enquadrar, cação de territórios sensibilizados por do mundo como o conhecemos. Já não
bilização sobre esses lugares, sobre nossa o que figurar e ao escolhermos, excluímos uma escrita afetiva, frequentemente com escrevemos cartas. Trata-se de um jogo
troca entre os habitarmos e sermos ha- o restante. Excluímos tudo o que está fora remetentes e destinatários ocultos. de deslocamentos: do papel para o muro,
bitados por eles. Diante desses procedi- de quadro. Figurar essas paisagens, en- As palavras são da ordem do cuidado da escrita para a cidade.
mentos, que nos passam despercebidos, tão, é ficcionalizar o banal. Figurar esses com o outro e, ao se escolher deslocá-las A percepção acerca da presença de
é que encontramos a possibilidade para espaços é abrir perspectivas para teste- do papel ou das telas de dispositivos ce- Paredes cartas surge como resposta ao
pensar a cidade como um outro, desmisti- munhá-los de maneiras diversas. lulares, deixando-as sobre um muro para não condicionamento perante a indi-
ficando sua imagem comumente atrelada Revelamos sobre nossos lugares ha- serem lidas no fluxo cotidiano das gran- ferença rotineira para com o território
a um monstro que nos engole. bituais (nossa rua, nosso bairro, nossa ci- des cidades, tem-se um gesto situado urbano, tal como resposta ao conserva-
Quando olhamos da janela para a dade) quando escrevemos a respeito da no campo dos microprocedimentos já dorismo na linguagem que visa excluir
rua (a nossa rua), a enxergamos como calçada em que caminhamos ou com re- citados anteriormente. Nesse gesto existe toda e qualquer prática marginal que
ela é, como a conhecemos. Apenas uma lação às características específicas de uma uma troca, embora imperceptível, capaz não esteja inserida nos hábitos de higie-
artéria – caso seja possível abrirmos esta avenida. Porém, os obscurecemos quando de ressignificar os espaços. nização das cidades e espetacularização
associação ao corpo humano, já que es- abrimos mão de tratarmos sobre o outro Elas, as escritas, nos chegam como rá- dos espaços por meio da ideia de um
tamos propondo reconhecê-la enquanto lado da calçada ou quando não escreve- pido vislumbre em nossos lugares de pas- progresso ao qual não interessa a singu-
um outro. Mas não a vemos por completo. mos sobre outros aspectos para eviden- sagem: às vezes, enquanto ainda nos en- laridade do sujeito.
contramos dentro do transporte coletivo, Encontrar Paredes cartas é ver o outro
Tudo o que está fora do alcance da visão ciarmos, por exemplo, seus transeuntes.
andando no ritmo acelerado do cotidiano resistir e reexistir em seus espaços diários,
também existe em experiência, através Ao escrevermos sobre essas banalida-
etc. Acontecem (pois são gestos) quando é também reconhecer coisas que vemos
de escalas múltiplas, do micro ao macro. des, estamos, de alguma forma, revelan-
não procuradas, assim como uma carta todos os dias, mesmo que não as procure-
São meios de existir, algumas vezes silen- do e obscurecendo a realidade, nos apro-
que demora a chegar: quando não esta- mos. É o reconhecimento de si mesmo na
ciosos e invisíveis. Portanto, o instante em ximando e afastando, habitando espaços
mos à sua espera, somos acometidos por coisa, a espera por alguém para decodi-
que enquadramos determinada paisa- inabitáveis, recortando-os, tomando-os
sua chegada. ficar a mensagem, ler a carta. Trata-se da
gem (com os olhos ou com a escrita) tor- para fazermos o que desejarmos com ele.
Podemos nos valer dessa afetividade comunhão entre o eu e o outro.
na-se um instante decisivo sobre o nada. Até aqui, podemos propor que o teste-
em direção a um destinatário (ou na bus- Ao acessarmos esta prática, acessa-
Olhar para este instante em que nada munho pela banalidade se dá a partir da
ca por um) para pensarmos na potência mos também o caráter de imediaticida-
e tudo acontece ao mesmo tempo é acei- comunhão com os espaços.
das marcas que as ruas e as cidades dei- de em sua comunicação, que não se trata
tar como experiência a figuração da ba- Nesse curso que seguimos, sobre re-
xam sobre seus remetentes, que também da mesma ordem da escrita publicitária
nalidade e de seus elementos habituais: cortes de elementos que compõem a
são cartógrafos circunscrevendo seus de outdoors, de placas e prospectos in-
de prédios, ruas, becos, viadutos, postes a banalidade, é onde situa-se a série de
próprios espaços, transmutando a si e a formativos que populam as cidades. A
buracos, bueiros, lixeiras, canteiros, poças fotografias intitulada Paredes cartas: um
seus cotidianos. imediaticidade dessas escritas tende a se

128 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 129
fazer sentir, agindo no inconsciente do pela forma como descrevemos para ter-
movimento cotidiano, para que, dessa ceiros ou através de qualquer que seja a
maneira, possa existir não apenas para linguagem preterida.
um destinatário. Testemunhar a banalidade é, então,
O encontro com as Paredes cartas além de reconhecer as paisagens cons-
irrompeu do desejo por construir ima- truídas pelo fluxo que tomamos, olhar
gens como parte de um todo, a pulsão mais atentamente para os vestígios de
por criar um recorte que naquele ins- uma existência em partilha com um outro
tante decisivo simbolize algo incapaz de que germina em trocas: um outro sujeito,
ser apreendido pelo aparato fotográfico, um outro cidade. Um outro que recorre

Imagem 2. Acervo do artista

Imagem 1. Acervo do artista 1 Estudante da graduação em Artes Visuais pela


UFRJ desde 2014 e pesquisador pelo Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PI-
BIC). Pesquisa e desenvolve metodologias que
auxiliam a consolidação de sua poética a partir
do encontro entre o fazer artístico e a escrita.

130 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 131
Audioguias e Lista de insanos (2010 e minou a população de hibridus azulis pressões do outro e do desconhecido. A
caranguejae em toda aquela região.
2012) são trabalhos que compõem parte estrutura enciclopédica do texto procura
Como resultado do massacre, criou-se
da minha pesquisa teórica e prática de uma mancha azul que se observa até evidenciar o status de legitimidade desse
mestrado. A pesquisa investiga dois mo- os dias de hoje no solo daquela região, tipo de discurso com o uso de um voca-
vimentos relacionados à figura enciclo- onde um dia habitaram os bravos Gue- bulário que se propõe científico e na uti-
renguês.(Trecho do Audioguia da cida-
pédica: o sentimento enciclopédico, que lização de um meio que se supõe neutro
de do Rio de Janeiro – Guerenguê, Vol.
passa pelo desejo de abarcamento do 1, 2012) – a voz de computador, dotada de certa
todo; e a natureza do discurso enciclopé- neutralidade e credibilidade –, porém,
AUDIOGUIAS E LISTA DE INSANOS dico, abordada através da desmontagem Audioguias – A história dos lugares é sarcástico em relação aos sistemas de or-
COMO ENGOLIR O MAR COM UMA e da crítica dos sistemas organizadores formando a partir da construção de uma ganização oficiais e institucionalizados,
ENCICLOPÉDIA do conhecimento. Ambos os trabalhos pequena enciclopédia da história dos lu- no momento em que se observa o caráter
são produzidos a partir da experiência gares no formato de áudio [o texto é lido satírico e paródico do texto.
de viver na cidade do Rio de Janeiro, no por uma voz feminina de computador], Se a ficção pode ser traduzida como
(BERLINDA A) embate e nos desdobramentos causados em que cada lugar dá origem a um ver- uma pluralidade dos pontos de vista,
por esse encontro que abarca todas as bete, no qual são descritos aspectos his- logo pode ser considerada um real sobre
suas contradições, histórias – visíveis e in- tóricos, etimológicos, geográficos, sociais o qual foi necessário fabular. Criar contra-
RENÉ GAERTNER1 visíveis – e sua paisagem urbana e huma- e culturais2. Essa construção surge a partir factuais para que nele se evidenciem ou-
na. Experimentar a cidade com o corpo [e das minhas imaginações e impressões re- tros protagonismos, outras histórias que
sua relação de tensão com a paisagem] e lacionadas aos lugares e seus nomes e se no futuro, talvez, se apresentem como
com a imaginação – no sentido de pen- desenvolve numa escrita que incorpora a uma possibilidade efetiva. Poderia ser,
sar os possíveis, as ficções que constroem apropriação de uma linguagem científica dessa forma, a ficção científica - aquela
Resumo: O texto faz um recorte da pesquisa de
mestrado da artista intitulada Como engolir o mar a sua imagem; mas também no sentido e uma estrutura enciclopédica, aliadas que projeta um futuro possível -, uma
com uma enciclopédia, trazendo um comentário de um pensar crítico que recolhe os frag- a uma narrativa fantástica em que são ficção de potência política, no sentido
dos trabalhos Audioguias – a história dos lugares e mentos do sensível e produz imagens postos em evidência dados e descrições amplo da palavra, que a todo tempo joga
Lista de insanos (o primeiro uma coletânea de ver-
que despertam o aspecto questionável absurdas. Na acomodação no mesmo com as ficções [construções] históricas.
betes sobre os lugares em formato de áudio e o
segundo uma série de desenhos de personagens [e por vezes risível] das narrativas oficial- plano entre linguagens aparentemen- Se os Audioguias são contaminados pelo
urbanos e um vídeo), que exploram questões em mente instituídas. te opostas, as narrativas dos Audioguias real [este atual em que vivemos] é por-
torno da crítica e desmontagem dos modelos de propõem um questionamento e uma que, dentre outros aspectos, este se apre-
organização do conhecimento. Convoca a ficção
(...) Em 1889, após a “Revolta dos desmontagem dos discursos históricos senta como irremediavelmente absurdo
como instrumento tanto de projeção dos possí-
Guerenguês”, que culminou na instaura- oficiais, do conhecimento instituído e das e inapreensível. Se a fala dos Audioguias
veis dentro de uma cidade– outras narrativas e
ção do Estado Guerenguelense da Gua-
outros protagonismos -, como de questionamen- fragilidades e limites dos conceitos [por muitas vezes se mostra precária – incor-
nabara, na atual Jacarépaguá, o governo
to dos discursos hegemônicos. porando também os erros de tradução da
do Rio decreta estado de calamidade exemplo, real e ficcional, ou verdade e
Palavras-chave: desmontagem, ficção, discurso, pública e realiza defensiva no conhecido mentira]; e por outro lado, colocam em máquina -, ela assume essa fragilidade,
cidade. “Massacre dos Guerenguês”, que exter- jogo como se dá a construção das im- que é também a fragilidade dos discursos

132 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 133
hegemônicos da história e dos processos montá-los. Desmontar os discursos que se Lista de insanos é uma série de dese- construção, num contraponto aos as-
de tradução do outro, do desconhecido. pretendem autoridade de uma história ou nhos de personagens construídos a partir pectos negativos que se relacionam com
Dentro do plano do desconhecido, de um povo – seja através do humor, da da minha vivência diária na cidade, no os sentimentos de repulsa e com a ideia
do não experimentado - o não saber -, apropriação dos dispositivos, ou por um caminhar pelas ruas e observar as pesso- de controle – no sentido de impedir que
proponho-me a descrever com a autori- deslizamento da linguagem -, questionar as e conviver com elas, mas também me esses animais proliferem ou sejam vistos
dade da personagem que incorporo, um o que constitui esse conhecer e falar sobre observar como habitante desse espaço e onde não são desejados. Os insetos tam-
lugar que não conheço, ser guia de um o estranho, o desconhecido, o outro. tentar entender como ele afeta a mim e as bém são ao mesmo tempo o estranho e
lugar que não conheço. Nesse sentido, É impossível nomear a cidade, ao pessoas que o habitam. Os desenhos par- o familiar; estranho no que concerne à
o próprio nome Audioguia é contraditó- mesmo tempo poder lhe ser dada todos tem de um interesse pelas formas e abor- diferença (eles parecem ser o grupo de
rio, guiar o quê e por onde? Os nomes os nomes. Marco Polo fez da sua cidade dagens dos desenhos científicos de inse- animais que mais diferenças comportam)
dos lugares oferecem a pista que traça o todas as cidades, e através desse movi- tos e também da minha prática de criação e à necessidade de mantê-los à distância
caminho do estranho e do desconheci- mento, inventariou todas as suas virtu- de personagens - embora frequentemen- aceitável; e familiar no sentido de que
do. Na tentativa de traduzir/ler o outro, des, suas comicidades, suas vergonhas e te misture nos desenhos morfologias es- compartilhamos com eles o espaço e no
a máquina fala com propriedade o texto brutalidades, evidenciando, assim, o ca- tranhas ao grupo dos insetos. Num de- sentido de sua função necessária dentro
que lhe foi delegado, porém, sem nunca ráter múltiplo e ao mesmo tempo único terminado aspecto, há uma referência à de um todo, função primordial no que diz
perder seu sotaque de origem. E então, que é vivenciar uma cidade singular que ciência e aos artistas viajantes, na prática respeito ao equilíbrio e manutenção da
quando o movimento de apropriação dos abarca, de diferentes maneiras, todas as dos naturalistas da coleta e catalogação própria vida. Somado a isso, penso que as
dispositivos e das linguagens se faz: des- outras. de espécies e na representação dos tipos questões como as relações de espaço – os
urbanos feitas pelos artistas viajantes no cantos, as esquinas e as bordas -, os cor-
Brasil do século XIX, mas essa referência se pos que habitam esses espaços, as ideias
dá mais numa crítica a essas práticas, uma de restos e de invisibilidade, também
vez que se observa nelas um viés científi- passam pelo processo de produção dos
co circundado pelo discurso institucional, desenhos e do vídeo Lista de insanos – a
Desenhos - série o qual tem como ponto norteador a bus- boca quase sempre consome (2017, 2’24’’)3
Lista de insanos, ca pelo sentido e pela verdade através da que é um prolongamento poético da sé-
nanquim sobre
representação; enquanto penso a repre- rie onde o que está em jogo, entre outras
papel (caderno,
14x21cm), sentação de personagens, também como coisas, é sobretudo o tempo em que es-
2016-2017. uma expressão do não saber, da tentativa ses personagens aparecem e desapare-
Fonte: acervo da
autora, 2017. de capturar algo que não é explicável em cem na tela, a forma como se duplicam
sentenças discursivas. ou multiplicam, os enquadramentos de
Desejo trazer a figura dos insetos, detalhes (fragmentos de objetos e cor-
sobretudo na sua forma de potência: de pos) e a trilha sonora que também traz a
levante coletivo, de metamorfose, de ideia de um tempo que se desenrola e é
resistência, de escape, de destruição e interrompido, num lugar que não temos

134 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 135
certeza aonde fica, mas que nos é próxi- Trabalhar com fragmentos, com res- O culto de Iemanjá realizado à bei-
mo e familiar. ra do rio Ogum, em Abeocutá, na África,
tos, possibilita que tudo seja reordena-
transferiu-se no Brasil para o mar. No
A produção dos Audioguias e da Lis- do e que novas relações sejam eviden- continente de origem, o mar era o reino
ta de Insanos passa por um exercício de ciadas, possibilita a ressurgência das mítico de Olocum (literalmente, o Dono
criar ficções, um instrumento de resis- ou Dona do Mar, divindade considerada
coisas. Apesar da insistência de todos os
pai ou mãe de Iemanjá). Iemanjá perdeu
tência em amplo sentido. Criar ficções, sistemas ordenadores, da sua insuficiên- o rio Ogum e ganhou o mar. A nova geo-
remontar os fragmentos do real, cons- cia em dizer o mundo e das suas sutis grafia reorganizou o panteão; a nova cul-
truir lugares para suportar a ausência tura rearranjou os patronatos. (VALLA-
brutalidades. No meu trabalho, o resto
das imagens e a sua simultânea multipli- não é propriamente aquilo que se apre-
ODAYÁ! DO,2011,p.33)

cação infinita. Criar ficções para resistir à senta em sua materialidade, mas um UM PRESENTE DE COR Dentre os rituais que se mantiveram
brutalidade dos discursos de dominação motivo, o que me faz imaginar de onde À CIDADE no Brasil está o Presente à Iemanjá. Rea-
– e, quando possível, ironizá-los, expô- aquilo se desprendeu, o que de ausên- lizado anualmente, com a finalidade de
-los ao seu ridículo e ao seu absurdo -; cia ele carrega e no que pode se trans- renovar o axé, agradecer, homenagear e
operar na desmontagem e na desquali- formar, quais as potencialidades que (BERLINDA A) realizar novos pedidos, levando ao mar
ficação dos discursos e dos dispositivos ele traz. A montagem também é mais oferendas e objetos sagrados ao orixá. No
de poder. A ficção como um possível que um jogo de recolher esses fragmentos Rio de Janeiro, esse evento ocorre em cin-
constitui o real e nele age – é preciso fic- e recolocá-los em ação, numa ação de THÁBATA CASTRO ROBERTO1 co datas distintas. Neste artigo falaremos
cionar o real para que ele seja pensado projetar possíveis, do que um procedi- de três delas, que são: 29 de Dezembro,
como afirma Rancière (RANCIÈRE, 2005, mento que se percebe imediatamente. realizado pelo Mercadão de Madureira
p. 54). A ficção como superfície para su- Recolher esse mundo então, esse dispo- (Madureira x Copacabana); 2 de feverei-
portar as ausências e perceber a condi- nível e insuficiente que se apresenta a ro, realizado pela Casa de Cultura e Afoxé
ção humana diante do incomensurável e mim, assumir a insuficiência, e remontá- Estrela D’oyá (Lapa x Praça Marechal An-
do impossível; e ao mesmo tempo, ques- -lo quando possível, remontá-lo quando côra); e o do segundo domingo do mês de
tionar e perturbar a realidade do mundo. necessário. fevereiro (praia Recôncavo em Sepetiba),
Resumo: Uma análise sobre a cor branca que realizado por uma comissão organizadora
percorre a cidade através dos Presentes à Ieman-
com membros de diversas terreiros. Além
já. Destacando este elemento como ímpar na
estrutura religiosa, assim como nos rituais, pro- dessas três datas, encontramos também o
porcionando uma observação da construção do dia 31 de dezembro, festa popularmente
1 Artista visual e pesquisadora, mestra em Arte e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS espaço urbano através da dinâmica estabelecida conhecida como Réveillon e o dia 15 de
Cultura Contemporânea pela UERJ (2017). pelos Presentes e os territórios por onde passam.
RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível: estética agosto, onde se comemora o dia de Nos-
Indiciando a cor como elemento primeiro deste
2 Audioguias disponíveis em: https://sound- sa Senhora da Glória, que foi sincretizada
e política. São Paulo: Ed. 34, 2005. ritual, para nortear a discussão, possibilita uma
cloud.com/rene-gaertner
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: série de relações acerca da arte, do ritual religio- em Iemanjá.
3 Vídeo disponível em: https://vimeo.
Companhia das Letras, 1990. so, como também disseminadora de tal estética. Esses cortejos acabam por ter a respon-
om/212936409
Palavras-chave: Presente; cor; ritual; cidade sabilidade de manter viva, no meio urbano,

136 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 137
uma estética da cultura negra invisibiliza- Iemanjá é a mãe dos orixás, está à es- por excelência, que veicula e representa, homenagear Iemanjá. E nela, o branco é
da pelo racismo estruturado na sociedade querda, onde estão as Iyabás, matriarcas, ao mesmo tempo, a água – sêmen – e a percebido como a cor inserida pelos cor-
brasileira. Ao saírem pelas ruas, eles não genitoras, usam o branco e outras cores. água contida – sangue, branco, femini- tejos. Não descarto os outros tons e co-
só provocam uma incisão no cotidiano da Oxalá, o pai, o senhor do branco, faz par- no-; ela fertiliza, apazigua e torna pro- res trazidos, mas reconheço o peso que o
urbe, como acionam uma mobilidade que te da direita onde está a força patriarcal, pício; nenhuma oferenda ou invocação branco tem, através de seu quantitativo
sempre foi característica das práticas da po- está relacionado à criação, há um mito poderá ser efetuada sem água.” (SANTOS, no espaço urbano. Tornando-se um bloco
pulação negra (e por consequência parte que revela que anos após ter ficado pre- apud THEODORO, 2013) em movimento, constituindo quase uma
da cultura popular), pela falta de estabilida- so por engano nas masmorras de Xangô, A relação da cor com as religiões de unidade, através de suas partes (popula-
de e pelos inúmeros despejos causados por o mesmo ordenou que todos vestissem matrizes africanas e, por consequência, ção de devotos que traja roupas típicas
tantas ações higienistas na cidade. branco como forma de desculpa por com a arte afro- brasileira, vê-se retoma- de rituais, ou quaisquer roupa branca),
A estética dos Presentes de Iemanjá le- aquele terrível engano. das por diversas vezes em obras que bus- trazendo uma experiência significativa,
vam para a rua as texturas, cores, cheiros, cam e abarcam esses vínculos, trazendo pois o branco também é luz, e aqui se tor-
[...] o branco, poder genitor repre-
sons, objetos ritualísticos, ervas, flores, senta não só existência genérica no àiyé, o cotidiano visual dos terreiros para os na também identidade.
atabaques, e muito mais do universo dos mas também existência genérica no meios culturais, como museus e galerias. Esse movimento e este corpo único
terreiros para a cidade. A procissão anun- òrun e como tal constitui um dos três No entanto, essa disseminação ain- acabam por dialogar com uma passagem
cia que a capital neste universo religioso elementos que participam na formação
da é restrita pela aceitação dessas obras de Oiticica, que diz: “[...] Quando, porém, a
de tudo o que existe. Mas, simultanea-
também tem componentes do sagrado e pelo próprio sistema educacional, que cor não está mais submetida ao retângu-
mente, o branco representa, também, a
(a natureza é sagrada nas religiões afro). E passagem, a transformação, de um nível pouco faz com que a população circule lo, nem a qualquer representação sobre
ela movimenta as ruas para este sentido. de existência a outro, assim como o ex- por esses ambientes. Sendo assim, acre- este retângulo, ela tende a se ‘corporifi-
E provoca imagens ímpares desta ação pressa o mito que atribui ao òpásóró de
dito que as obras públicas que dialogam car’; torna-se temporal, cria sua própria
Òrisálá a separação, a diferenciação en-
que interrompe o fluxo urbano. Observo com essa temática realizam a grande estrutura, que a obra passa então a ser ‘o
tre o àiyé e o òrun. Em todos os ritos de
e recorto esses momentos através da fo- nascimento e de renascimento, o branco tarefa de, instauradas no “mundo”, disse- corpo da cor.’” (OITICICA, 1986, p.23)
tografia como linguagem visual, que me representa não só a morte e o renasci- minarem essa estética por meio de suas O branco, que para diversos campos
permite salientar essas cenas que apre- mento reais, mas também a morte e o
presenças, como é o caso dos orixás flu- como arquitetura, engenharia, decoração e
renascimento simbólico ou rituais (SAN-
sentam o universo afro-religioso atraves- tuantes instalados no Dique do Tororó; do até mesmo a arte, muitas vezes é encarado
TOS,1976,p.78)
sando a cidade, transformando a urbe artista Tati Moreno, o Cedro da Ancestrali- como uma não cor, ou seja, entende-se que
num grande terreiro expandido. Identificamos aqui o motivo para a dade; de Mestre Didi; o Portal de Iemanjá; um local branco não informa nada, pode ser
Assim, analiso aqui um dos elemen- presença massiva da cor branca, que pre- de Jorge dos Anjos e poucas outras obras. um ambiente preparado para receber algu-
tos que se destaca nesta caminhada co- domina e se apresenta como base na in- Essas obras públicas trazem não só o ma coisa. Aqui, ele ganha corpo, o branco se
letiva, a cor branca, a indumentária ritual. dumentária e em algumas oferendas de- branco, mas as cores e os elementos que impõe de maneira significativa e volumosa,
Trarei o branco explorando-o no universo positadas para Iemanjá. O branco, assim dialogam entre si e constroem assim toda ele tem contornos e texturas e, mais que
afro-religioso e na arte, numa tentativa como a água, estão associados à vida, ao uma carga simbólica. isso, ele se locomove no espaço urbano.
de revelar a potência dessa cor que erro- poder genitor, Iemanjá é a água, por ex- Uma carga similar, porém mais forte, E essa locomoção é praticada com
neamente tratamos como neutra. celência a vida. “o omi, água, é a oferenda se apresenta nos cortejos destinados a um ritmo, entoado por atabaques. Essa

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massa de cor dança, literalmente dança. em meio a prédios e montanhas. O branco
Porque dançar aqui é rezar. traz essa relação ambígua, ao mesmo tempo
Como dito por David Batchelor: “[...] em que se tenta com ele introduzir uma neu-
Mas precisamos seguir com prudência, tralidade. Pode-se, com o mesmo, interromper
tomando especial cuidado para não to- tal fluxo. A exemplo, as pessoas compreendem
marmos cor e branco como opostos.” os setores médicos que utilizam roupas bran-
(2007, p.15) E acredito que este papel é cas no seu dia-a-dia, mas olham com muita
exercido quando inserimos estes cortejos estranheza/preconceito para pessoas que es-
sobre os bairros que os abarcam, princi- tão de preceito (utilizando roupas brancas, e
Devotos no Cortejo dos Filhos de Gandhi em Cortejo percorrendo
palmente em se tratando dos bairros de normalmente com a cabeça coberta).
uma barca cedida pela Prefeitura para homena- a Praia do Recôncavo,
Copacabana e Centro, que expõem algu- Muitas vezes, perceber o cortejo será notar gens à Iemanjá. Fevereiro / 2014. em Sepetiba. Fevereiro / 2017.
ma necessidade e intenção estética e que essa massa unificada, essa alteridade no espa-
confundem tons claros e o uso do branco ço urbano, e o mais curioso é que esse rito está
como sinônimo de limpeza. inserido há muito tempo na cidade, e mesmo
Nada que há na cidade se compara à al- assim, não perde essa condição de um corpo
vura encontrada nos Presentes à Iemanjá, e é estranho à realidade cotidiana. Devotos aguardando a
chegada da imagem
neste momento que isso é revelado. Talvez Os Presentes estabelecem um fluxo,
de Iemanjá
se sinta a mesma coisa quando se é renova- orgânico e dinâmico. Eles têm sonorida- na orla de Copacabana.
da a pintura dos Arcos da Lapa, por alguns de e perfume, literalmente perfume, eles Dezembro / 2017.

instantes nada naquela região é tão alvo. causam impacto no ambiente deixam um
Lembro da obra de Jaume Plensa, rastro tão orgânico quanto eles, pétalas
Awilda, instalada na Praia de Botafogo em de rosas. Eles são efêmeros, são rituais,
2012, uma cabeça gigante feita de pedra de performáticos, mas não como um vínculo
mármore e resina branca, emergia da água na interpretação, apenas na vivência.
como se uma mulher de tamanho irreal fos- Neste ponto é importante pensar a
se sair do mar. Ela possuía feições negras, era construção da arte afro-brasileira por 1 Mestranda no PPGArtes – UERJ, da linha de pes- OITICICA, Hélio. Aspiro ao Grande Labirinto . Rio
uma alusão clara à Iemanjá. A escultura con- meio da exploração/apropriação das re- quisa História e Crítica da Arte, graduada em His- de Janeiro: Rocco-Rio, 1986.
tória da Arte prla mesma instituição. Desenvolve
frontava o morro do Pão de Açucar que esta- ligiões de matrizes africanas, tendo aqui, seu trabalho relacionando a linguagem fotográfi- SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte:
va ao fundo da estátua, e nada, nada naque- como seu signo maior, a cor. Mas, não dei- ca com as religiões de matrizes africanas, eviden- Pàdé, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis:
ciando as imagens instauradas no meio urbano
la região era mais branco, do que a Awilda. xando de lembrar como essa construção através dos rituais públicos. Ed: Vozes, 1976

Vemos aqui um “corpo” estático, branco, vem sendo fundamental para a difusão, SILVA,Yara da. Tia Carmem: Negra tradição da
inserido no espaço urbano, que causava es- resistência e valorização dessa estética que, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Praça Onze. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

tranheza não só pelas dimensões, mas tam- por muito tempo, esteve à margem, seja BATCHELOR, David. Cromofobia. São Paulo: Ed: VALLADO, Armando. Iemanjá, a grande mãe afri-
bém pela cor, essa massa branca, antinatural, dos debates, dos estudos e do óbvio social. Senac – São Paulo, 2007 cana do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

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Introdução arte contemporânea como nas bricola- bliográficas que tratam tanto do caráter
A partir da constatação de que a arte gens construídas pelos estudantes nos político da estética contemporânea e o
é uma característica de construção de espaços escolares. A partir das inquieta- papel que o ensino de arte pode propor-
linguagem das pessoas e que é um dos ções trazidas pela arte contemporânea, cionar para o empoderamento e descon-
meios de comunicação mais antigos, o olhar desloca-se do espectador passivo dicionamento das pessoas.
aponta-se a estética como uma poten- e contemplativo para maior atuação do Para o alcance dessa reflexão, o tex-
cialidade imanente do ser na medida sujeito enquanto protagonista da obra e to tem como referência os textos de
em que constitui as sensações/sentidos da transformação do olhar e percepção Foucault (1999) para a compreensão da
A ARTE COMO VONTADE/ que fazem parte das suas experiências, da realidade em favor do estranhamento ordem do discurso como elemento for-
POTENCIALIDADE DA PERCEPÇÃO/ narrativas e trânsitos que se manifestam que descondiciona as pessoas. Com base matador da educação e das subjetivida-
TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE. nas suas expressividades. A partir destas nesta consideração, de que a história da des, assim como para a compreensão dos
afirmações procura-se trazer a ideia da humanidade é permeada de condicio- processos de castração e naturalização
ESPAÇOS E FISSURAS NA CRIAÇÃO arte como um elemento que tem pos- namentos, afirma-se que estes condicio- da anulação dos sujeitos e suas potencia-
ESTÉTICA COMO BRICOLAGEM/ sibilidade de tensionar valores e ideias namentos estão presentes em diversas lidades em favor de determinadas nor-
CRIAÇÃO DA REALIDADE já cristalizadas e enraizadas. Esta tensão esferas da sociedade, incluindo a educa- matividades. Em seguida, busca proble-
está constante nas buscas e trânsitos dos ção que, por sua vez, está diretamente matizar a ideia de hegemonização deste
sujeitos por superar limites e confrontar associada a um modelo de memorização discurso através dos usos e consumos
(VONTADE A) ao invés de se pautar pelo aprendizado que proporcionam a bricolagem e a cria-
sujeições. Portanto, a potencialidade da
arte não está apenas no simbólico e cul- necessário para o desenvolvimento da ção (CERTEAU, 1998). Através destas pre-
tural, mas também no político, na medi- criatividade. Até então, a escola estava missas, busca compreender a arte como
VICTOR HUGO DE OLIVEIRA PINTO1 da em que a sensibilidade da percepção diretamente relacionada a um modelo uma linguagem que produz símbolos e
incomoda e proporciona estranhamen- de memorização e fixação tecnicista dos representações que afetam as pessoas
tos em relação às supostas estabilidades, conteúdos. Diante deste modelo extre- (ELIADE, 1996) e consequentemente são
desloca o olhar da zona de conforto para mamente palavrório e que não está vin- fundamentais na construção de senti-
o movimento e fluxo constante, reafir- culado à ideia de desenvolvimento da dos que nos constituem como sujeitos
Resumo: Esta proposta tem como objetivo deba- mando autonomias e subjetividades. criatividade (READ, 1968). Com base nes- (READ, 2013). Portanto, entende-se que a
ter sobre o valor simbólico presente nos signos da ta premissa, o artigo busca no conceito diversidade não é algo que necessita de
sociedade e as possibilidades do sujeito a partir
da inquietação do olhar através da arte como sig- Metodologia de bricolagem (CERTEAU, 1998) para a explicações, mas sim de ser sentida.
nificado/significante de desejos. Na medida em compreensão das possibilidades da arte
que se percebe a formação do simbólico, cons- O presente artigo parte da con- e do ensino de artes nas brechas e possi- Relevância
tata-se que os símbolos são representações dos cepção da arte como um elemento de bilidades de ressignificações da vida nos/
desejos que se manifestam nas diversas relações/
formação política e reflexão crítica da dos/com os sujeitos. Para tal objetivo, o A relevância deste artigo consiste em
tessituras que compõem o imaginário e dinâmica
das diversas subjetividades que se entrelaçam no sociedade, através das probabilidades presente artigo parte de análises críticas elucidar a função da arte para o desen-
conjunto de redes de relações e afetos humanos. existentes tanto nas possibilidades da e problematizadoras de referências bi- volvimento humano e como o ensino de

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artes pode contribuir para a construção cimento. Michel de Certeau nos oferece É imperante compreender a versão das suas diversificadas maneiras de en-
da autonomia dos sujeitos através das um material rico para debater e refletir so- dada pela Base Nacional Curricular Co- tender o mundo e a vida, das suas diver-
diversas possibilidades de transforma- bre as táticas de desconstrução e de resis- mum no que se refere à questão da arte sas experiências e narrativas. Por isso, não
ção, ressignificação, proporcionado pelo tência aos moldes disciplinarizadores que nas escolas. No seu entendimento, o do- há como padronizar uma diversidade tão
acesso à diversas linguagens e culturas buscam adequar e conformar os sujeitos cumento oferece a ideia de que a arte grande através de metas prévia e vertical-
que a arte oferece. Na medida em que na medida em que o autor expõe que compreende um fenômeno visual (BRA- mente estabelecidas por instituições ou
se compreende que a diversidade faz aqueles tidos como desconhecidos. Criam SÍLIA, 2016), entretanto, não considera a secretarias de ensino.
parte da existência, também se compre- a partir do momento que fazem usos da- dimensão simbólica da arte como uma
ende as múltiplas maneiras de expressão quilo que consomem (CERTEAU, 1998). linguagem expressiva que constitui a al- Considerações finais
que se manifestam em diversas culturas Michel Certeau (1998) afirma que exis- teridade das pessoas.
que constituem a humanidade. Portan- tem fissuras entre os discursos e ordens É importante compreender que toda É importante considerar que o uni-
to, questiona-se: A arte pode promover estabelecidas e o modo como as pessoas esta lógica da BNCC está alicerçada numa versalismo produziu uma série de pen-
a emancipação política de opressões e no cotidiano se apropriam desta ordem. É lógica de padronização do ensino e, tam- samentos abissais (SANTOS, 2002, 2007),
segregações? Em um mundo permeado a partir da apropriação do que existe que bém, desconsidera as particularidades e que legitimam segregações e precon-
por relações de poder (FOUCAULT, 1979) novos significados e símbolos são cons- especificidades de um país continental ceitos que embrutecem as pessoas
a arte pode assumir um papel de descon- truídos e são os múltiplos modos de se como o nosso em favor de um entendi- (ADORNO, 2012). Diante deste cenário, a
dicionar as pessoas através da educação apropriar da realidade que constituem a mento que se pressupõe como válido educação estética assume um papel fun-
estética dos sentidos (READ, 2013). As- astúcia, a bricolagem, as ressignificações, para todas as demais escolas. Além deste damental no desenvolvimento sensível
sim, este artigo é fundamental por buscar que, por sua vez, constituem as táticas de entendimento uniforme, também preva- dos indivíduos contra os processos de
elucidar, a partir de discussões filosóficas, um enfrentamento indireto em relação aos lece a ideia da arte como “enriquecedora” condicionamento a partir do desenvol-
o papel político-social da arte na constru- discursos e estruturas que se querem hege- como “mobilizadora”, assim, dando a en- vimento cultural (MARCUSE, 1968; OS-
ção da autonomia das pessoas. mônicos. É a astúcia de remodelar o que é tender que os estudantes são receptácu- TROWER, 1987, 1998) que é feito cotidia-
modelado pelas formas das ordens estabe- los que necessitam ser “despertados para namente. Portanto, a arte é fundamental
lecidas e discursos hegemônicos que cons- a sensibilidade, para o questionamento e para a superação de segregações e para
Resultado e discussão
tituem os múltiplos saberes que, em suas para a problematização”, como se não fi- o desenvolvimento sensível, já que se
Com base na discussão acima, a pes- existências, burlam as estruturas e ordens zessem isso no cotidiano e também como constitui como um elemento fundamen-
quisa busca uma alternativa em relação do discurso. A partir deste exposto, toma- se fossem pobres culturalmente, quando, tal na construção da percepção do sujeito
ao modelo de formatação como uma -se como ponto de partida analisar como na prática, os jovens estudantes possuem perante a si e ao mundo (READ, 1972; LE
tática importante na desconstrução de este tipo de relação se dá no ambiente dis- uma diversidade muito grande a partir BRETAON, 2016).
condicionamentos e preconceitos, legiti- ciplinar da escola. Para isso é importante a
mados pelas práticas e relações estabele- coleta de dados, a pesquisa e entrevista de
cidas no cotidiano da escola de modo a estudantes e professores como um termô-
validar os jovens estudantes como autên- metro que mostrará a cartografia dessas
ticos produtores de estéticas e de conhe- relações no ambiente escolar.

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1 Licenciado em educação artística, habilitação READ, Hebert. Arte e alienação. Rio de Janeiro:
em artes plásticas pela Escola de Belas Artes da Zahar 1968.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, EBA-UFRJ,
Mestre em educação pelo Programa de Pós- Gra- __________. Educação pela arte. 2 ed. São Paulo:
duação em Educação da Universidade Federal Flu-
minense, PPGE-UFF. Atua como professor de Artes Martins Fontes, 2013
visuais na Secretaria Municipal de Educação e Cul-
tura de Itaboraí (SEMEC- Itaboraí) e na Secretaria __________. O sentido da arte. São Paulo: Institui-
Municipal de Educação de Queimados (SEMED – ção Brasileira de Difusão Cultural S. A. (IBRASA), 1972.
Queimados).
OSTROWER, Fayga. A sensibilidade do intelecto, vi-
sões paralelas de espaço e tempo na arte e na ciên-
cia, a beleza essencial. Rio de Janeiro: Elsevier, 1998
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. ___________. Criatividade e processos de criação.


São Paulo: Paz & Terra, 2012. Petrópolis: Vozes, 1987

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano, 3 ed. Pe- SANTOS, Boaventura de Souza. “Para além do
trópolis: Vozes, 1998. pensamento abissal, das linhas globais”. Revis-
ta Novos Estudos. Novembro 2007: 71-94.
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1996. SANTOS, Boaventura de Souza. “Para uma so-
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: ciologia das ausências e uma sociologia das
Graal Edições, 1979. emergências”. Revista Crítica de Ciências Sociais.
Coimbra: Outubro 2002: 237-280
LE BRETON, David. Antropologia dos sentidos. Pe-
trópolis: Vozes, 2016.
Documentos consultados.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização, uma interpre-
BRASÍLIA, Base Nacional Comum Curricular
tação filosófica do pensamento de Freud. Rio de
Janeiro: Zahar, 1968. (BNCC). Brasília: Ministério da Educação, 2016.

146 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ CONTINGÊNCIA 147
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150 ANAIS DO 60 SEMINÁRIO DE PESQUISADORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES • UERJ

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