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CULTURA, HISTÓRIA

Resenha – A África Fantasma (M. Leiris)


PUBLICADO POR MÁRIO FRASSON ⋅ 7 DE JULHO DE 2012 ⋅ 1 COMENTÁRIO
ARQUIVADO EM ANTROPOLOGIA, COLONIALISMO, MICHEL LEIRIS

A África Fantasma pensada pelo antropólogo Michel Leiris não tem nada de especial àqueles que procuram um

relato fantástico com tons desbravadores, repletos de águas misteriosas e distâncias

A África Fantasma (684 p.)


Michel Leiris, 1934
Trad. André Pinto Pacheco
Ed. Cosacnaify (2007)

invencíveis. Nada. Há no mundo obras muito mais pujantes neste sentido, não justificando as mais de 600 páginas

desta África.

Aviso dado, pode-se anunciar do que se trata o livro. Trata-se do diário pessoal que Leiris manteve ao longo

da Missão Etnográfica e Lingüística Dacar-Djibuti, da qual fez parte como secretário-arquivista. Missão delegada

pela França ao também antropólogo Marcel Griaule, percorreu, entre 1931 e 1933, por terra do Oceano Atlântico

ao Mar Vermelho com a missão de coletar dados sobre o Império Francês na África e peças para o Museu do

Homem em Paris; e é relatada em seus marasmos e misérias intestinas nos diários de Leiris.

E não fosse o relato sobre as migalhas comezinhas da missão, o robusto livro se converteria em um almanaque de

anomalias do século XIX que, por um acaso das circunstâncias, foi publicado no século seguinte. Em outras
palavras, o que está em foco na África apresentada não são as proezas do homem branco capaz de sobrepor suas

grandezas sobre as terras mais insalubres e remotas; mas sim as baixezas do império colonial: as vontades de

administradores de províncias, obras devastadas pela corrupção do colonizador, as incapacidades de compreensão

real por parte do homem branco, crimes, éticas dissolvidas em justificativas torpes etc.

A um só tempo, Leiris expõe as entranhas e as distâncias grandiosas do projeto colonial, mas tudo com um olhar

personalizado, na pele de um pesquisador que vê as teorias aprendidas na Europa explodirem em imperfeições

frente à realidade. Além disso, sofre com as aberrações geradas pelo pretenso humanismo enunciado nas

metrópoles: para compor o Museu do Homem, era necessário violar o próprio homem. O conhecimento universal

sinalizado na Europa decompunha-se na mesquinharia arrogante colonial, que autoriza saques e violências

crônicas contra as populações locais em nome de um grande projeto.

Além de colocar em perspectiva a nobreza colonial, a narrativa também consegue expor as dificuldades que

cercaram o próprio empreendimento colonial, tradicionalmente retratado com europeus invencíveis cruzando

vazios demográficos nas ricas e misteriosas terras africanas. Iluminando tanto as diversidades locais quanto as

dúvidas e as dificuldades da missão, A África Fantasma abre portas para reflexões mais equilibradas sobre as reais

capacidades de colonizados e colonizadores, reorganizando um pouco os lugares normalmente atribuído a estes

personagens da história do imperialismo na África.

Destaca-se, também, a riqueza iconográfica da obra de Leiris, que traz registros fotográficos de uma África

distante da Europa e repleta de história integrados com importantes esforços de descrição daquelas populações;

ainda que, por vezes, presos a referenciais rasos sobre os costumes locais e impregnados de preconceitos e

cansaços.

Por fim, é interessante observar um relativo valor literário dos diários. A grande capacidade de acomodar

descrições locais com os impulsos de ação dos integrantes da missão é uma constante no livro. E cenas de ação

que poderiam inspirar alguns romances aventureiros são postas na perspectiva do saque patético e antiético; a

culpa e a vergonha, enfim, têm uma chance de rondar o europeu. A África Fantasmaparece mais escancarar os

fantasmas europeus que localizar a África então procurada.

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