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72 NÃO
Teresa Dangerfield
Carla Carmona É O TEMPO
QUE NOS MOLDA
28 O SONHO COMANDA
A VIDA SALTANDO Isa Silva
Carlos Musga
DO PARÊNTESIS 73 DA
ESPERANÇA
32 UMA ESPÉCIE DE CICLOS
QUE NOS TRANSCENDE 77 SONHOS
COLETIVOS
Margarida Correia
Cláudia Passarinho Ana Candeias
74 FINITUDE
36
Maria Bruno Esteves
A GRANDE
PERDA
Cristina Bento
79 PELO SONHO
É QUE VAMOS 75 OE OSONHO
POEMA
Carmo Marques
38
Maria Luísa Francisco
A ANATOMIA
DE UM SONHO
Inês Pinto
82 O ALQUIMISTA COM
CHEIRO A MANJERICÃO 76 SONHOS
Maria Silvéria dos Mártires
Gabriela Pacheco
42 UM CONTO
DE NATAL 84 DIREITO
A SONHAR DA PALAVRA
José Mendes Isaura Correia
À FORÇA
46 ASAS
EM QUATRO DOBRAS 86 BLUE SKY, O SONHO
DE ÂNGELA 90 UMA NOVA
ESTRELA
Lúcia Mendes Margarida Constantino Analita Alves dos Santos
50 A POUSADA
KOOKABURRA 88 LETRAS
ABRAÇADAS 92 DO
SONHO
Marisa Rocha Maria Celeste Pereira Eduardo Fernandes
54 A OLIVEIRA
E A ESPADA
LÍNGUA 94 OA IMPORTÂNCIA
LEITOR SABE
DE FAZER
Nuno Gonçalves A ESCOLHA CERTA?
MÁTRIA Helena Gregório
GAVETA 104 ELOGIO
DA PONTUAÇÃO 96 OS SONHOS NÃO PODEM
CRIATIVA Marco Neves SER SÓ SONHOS
Júlia Domingues
102 ESCREVER
É AMAR CRÓNICA 98 QUANDO
O SONHO ACONTECE
David Roque
DO VIAJANTE Manuela Vieira
Olinda Beja
BESTIÁRIO
PALAVRA SENTENTIA ARDILOSO
DE LEITOR 114 POR QUE A MAIORIA DAS
CARREIRAS DE ESCRITOR 112 ODEONIROMANTE
AZARUJA
NÃO DESCOLA?
110 “INTERVENÇÕES”
DE UM RABUGENTO James McSill
Porventura Correia
Mário Rufino
118 ESCRITORES E PÁGINAS EM A BIBLIOTERAPEUTA
BRANCO: UMA CERTEZA,
UMA INEVITABILIDADE SUGERE
E UM CLICHÉ
Lénia Rufino
120 TUDO
É POSSÍVEL
Sandra Barão Nobre
Ficha Técnica
Diretora: Analita Alves dos Santos | Editora: Diana Almeida | Capa, design e paginação: Isa Silva | Revisão: Ana Candeias, Ana Costa, Carmo Marques, David
Roque e Teresa Dangerfield | Nº de inscrição na ERC: 127573 | Propriedade: Analita Alves dos Santos | Sede: Rua dos Missionários, Lote 11 L 8500-309
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Portimão | Sede da redação e da Editora: Rua dos Missionários, Lote 11 L 8500-309 Portimão | analita.santos@oprazerdaescrita.com | Estatuto editorial
©2022 Revista Palavrar | Todos os direitos reservados.
Todos os textos são publicados segundo o Acordo Ortográfico em vigor, excetuando-se os de alguns cronistas.
EDITORIAL ANALITA
ALVES DOS SANTOS
DIANA
ALMEIDA
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A LITERATURA PELOS TEMPOS
MOACYR SCLIAR
E SE AQUILO FOSSE FILIPA MELO
UM HOMEM
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«A metáfora da dualidade
secundário: o de uma classe média em conflito
impregna também com as convenções e em busca de uma
o cenário secundário: possibilidade socialista, mas na qual também
germina o Golpe Militar de 1964.
o de uma classe média Tornada familiar pelo tom empregado pelo
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QUESTIONÁRIO DE PROUST A...
JOÃO DE MELO
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5 | Qual é o seu principal defeito? 10 | Onde gostaria de morar?
Perguntei à minha filha: disse-me que eu era Adoraria ser mais “ibérico”: viver em Madrid
“teimoso” e um pouco “fona”. Não concordo. (onde fui feliz) ou em Barcelona e voar para
E anda um pai a criar filhos para isto! Lisboa sempre que me apetecesse; e daqui para
as minhas ilhas dos Açores, ao encontro do mar.
6 | Qual seu passatempo favorito?
Gosto das artes e das letras. Do cinema, do 11 | Qual sua cor favorita?
teatro e do futebol na televisão. De estar em Sou pelo azul. Não pela cor dos meus olhos,
casa, de receber e visitar pessoas. Mantenho mas porque nele vejo céu e mar na sua
correspondência com alguns leitores. plenitude. O azul vai bem comigo em tudo:
é também a cor do horizonte, que se move
7 | Qual sua noção de felicidade? connosco à medida que caminhamos (disse-o
Amar e ser amado. A explicação da minha vida. o escritor e meu amigo Antonio Tabucchi).
Fui funcionário público, militar, sindicalista,
professor e diplomata. Mas “fugi” sempre a tudo 12 | Qual seu escritor favorito?
isso para me refugiar na literatura. A finalidade Tenho uma paixão tranquila por Eça de Queirós.
da escrita? O amor que passa de nós para os Admiro a sua escrita (bela e descabelada), o
outros através da palavra. De cada vez que um sentido de humor e o seu poder de criação
leitor me agradece um livro, mais do que feliz de caricaturas tipológicas e sociais dos
sinto-me “completo” na minha humanidade. portugueses.
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QUESTIONÁRIO DE PROUST A...
JOÃO DE MELO
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18 | Qual sua figura feminina favorita na 23 | Qual o talento natural que gostaria
história? de ter?
Inês de Castro, que teve a coragem de afrontar, Músico (compositor e instrumentista). Talvez
com o seu amor de paixão, a burguesia cortesã pianista.
que a perseguiu e assassinou. Ninguém a cantou
tão magnificamente como o grande Camões. 24 | Como gostaria de morrer?
Podia ser de eutanásia, se fosse o caso. Assisti
19 | Quais seus nomes favoritos? a duas aplicadas a cães doentes: foram mortes
Gostei sempre do meu nome; se não tivesse tranquilas, sonolentas, quase doces. E sem
sido João, não me importaria nada de o ser metafísica nenhuma.
agora.
25 | Qual é seu estado mental atual?
20 | O que você mais odeia? Luto contra o desânimo e contra a doença. Mas
Os cartéis da droga, a corrupção das sinto-me mais vivo do que nunca.
consciências, a ladroagem e a prepotência; e
este sistema sociopolítico que inflige dor, fome, 26 | Por qual defeito você tem menos
trabalho e sacrifícios sem nome às crianças do tolerância?
mundo inteiro. Não aturo fanatismos, sejam eles ideológicos,
políticos, religiosos ou outros.
21 | Quais as figuras históricas que você mais
odeia? 27 | Qual seu lema favorito?
Os monstros ainda nossos contemporâneos: «Há quem tenha palácios. Eu tenho amigos».
Hitler, Estaline e Mao Tsé-Tung. Os maiores (Frase minha).
facínoras do século XX. Houve vários outros,
mas quero concentrar nestes o meu repúdio.
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PER FICTA, RESISTERE
A TERCEIRA
TORRE ALEXANDRA DUARTE
10
Tal como as escutava, o pequeno gostava Nada a temer, recordava. Entrou, então, dentro
também de contar as histórias do mundo, da primeira torre, mais temeroso do que
não perdendo a oportunidade de o fazer. Os destemido. Penetrava, através da porta, a única
adultos ouviam e sorriam, mas não davam mais claridade. Encontrou uma estátua de um deus.
importância. Os traços do rosto eram rudes, preenchidos por
Gael não compreendia a aparente falta de uma barba cerrada. Na cabeça, uma coroa que
interesse. Sentia-se desolado. Assim, uma após parecia pequena sobre a farta cabeleira. Vestia
outra, as histórias sonhadas esmoreciam. O uma armadura e segurava uma lança tão alta
rapaz foi crescendo e foi deixando de ouvir. quanto ele. Embora surpreso, Gael sossegou,
Por fim, deixou também de contar. Roubei as era apenas uma estátua. Mas algo inesperado
palavras ao mundo e guardei-as na gaveta, aconteceu. Esfregou os olhos, procurou ver
escreveria mais tarde. Não sabia, ainda, que o nitidamente. Sim, era certo, a estátua respirava e
mundo não gosta de estar fechado em gavetas. começava a ganhar vida. O rapaz tremeu —
— o deus de pedra espreguiçou-se e no gesto
*** tornou-se maior, um gigante aos olhos de Gael.
Assombrado, deu um passo atrás e acabou por
Certa madrugada, ao abrir os olhos, Gael cair ao tropeçar nos próprios pés. Recusava
sentiu-se desconfortável e com sabor a terra acreditar no que os sentidos lhe diziam. Mas a
nos lábios. Confuso, levou uns segundos a estátua, agora viva, inclinou-se, até quase tocar
habituar-se à claridade e a perceber que estava o rosto do jovem. Como ousas despertar-me,
deitado de barriga para baixo, num chão duro. pequeno insolente?
Virou-se e, a custo, levantou-se. Não estava no Curiosa troca de papéis esta, quando da pedra
quarto. Ficou assustado, sem perceber como ali nasce vida e a vida jaz inerte; Gael queria fugir,
tinha ido parar, sendo ali onde quer que fosse. mas o corpo não respondia ao que o cérebro
Encontrava-se num caminho largo, de terra ordenava. Sei quem és, continuava a estátua,
batida, campos a descoberto, com algumas és aquele que quer dar palavras ao mundo,
árvores a avistarem-se ao longe. De resto, terra enriquecê-lo. Um tremido e quase inaudível
seca e a alvura do céu. Atrás de si havia um sim surgiu desesperado na voz de Gael. Não
lanço de escadas feitas de pedra, sujas e gastas; podes, disse bruscamente o deus. Ergueu-se
estavam ladeadas de ciprestes com pontas que e começou a andar de um lado para o outro.
se uniam apontando para o céu, formando um A cada passo a terra tremia, reacendendo em
túnel, em cujo início não se avistava o fim. Sem Gael o medo de pedras e muralhas caídas.
outro caminho mais desejável, começou a subir O deus continuou a divagar: Só a nós está
os degraus. Parecia deixar para trás a poeira reservado esse papel. Que seria do mundo se
que o cobria, respirando agora uma frescura meros humanos almejassem acima das suas
oferecida pelas árvores. Levou alguns minutos a virtudes? Somos nós que fazemos a história,
chegar ao cimo, onde o calor e a luminosidade vocês apenas passam por ela. E continuava,
contrastavam com o ar fresco oferecido pelos arrogante, a enaltecer os feitos dos deuses
ciprestes. quando, de súbito, a adrenalina se fez sentir.
Estava agora no que, aparentemente, fora Aproveitando um momento em que a estátua
a alcáçova de um castelo, do qual já pouco lhe virava costas, quase sem saber como,
restava. As temíveis muralhas continuavam Gael deu um salto e correu para a porta, sem
erguidas, entrecortadas por três pequenas olhar para trás. Saiu da torre e continuou a
torres ameadas e acompanhadas, aqui e ali, por correr, ofegante, até se encontrar no centro da
pequenos aglomerados de pedras que tinham alcáçova. O que é que acabara de acontecer?
ruído. Embora se sentisse perdido, intuía que a Enquanto recuperava o fôlego, tentava acalmar
sua presença cumpria uma missão. Apenas não a mente. Olhou para trás, não fosse a estátua
sabia qual. segui-lo. Mas nada saiu pela porta e, por
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PER FICTA, RESISTERE | A TERCEIRA TORRE Alexandra Duarte
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«Olhou para
as torres seguintes
e depois para
o túnel dos
ciprestes.
Surpreendeu-o
a indecisão.
Estaria a curiosidade
a superar o medo? »
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PER FICTA, RESISTERE | A TERCEIRA TORRE Alexandra Duarte
decifrar. Estaria o mundo a contar-lhe outra naquele instante, tinha sido ele o ser magnífico
história? Convidá-lo-ia a escutar de novo? e extraordinário. Venham deuses ou demónios,
Embrenhado nos pensamentos, foi apanhado de que a eles nada compete. Só a Gael. Seria tão
surpresa ao ser abruptamente atirado ao chão. Os só ele o responsável, se quisesse, por dar voz às
degraus de pedra tremeram ferozes, quebrando- palavras do mundo.
-se a meio. Os ciprestes, violentamente
arrancados pelas raízes, já não olhavam o céu e
caíam, agora, por enormes buracos abertos entre «Quase caiu da cama, tal
as pedras e a terra revolvida. Gael, caído, perdeu
apoio e mergulhou numa escuridão assustadora o sobressalto com que
que não chegava ao fim. Tudo se desmoronava,
pedras, arbustos e terra. O coração de Gael
despertara. Sentou-se,
batia acelerado, esperando tão só que o corpo, reavivando os sentidos.
pesado, batesse em qualquer fundo. Mas o fundo
não se avistava. Por fim, estremeceu e acordou.
Adivinhava-se no quarto,
em segurança, mas
***
entorpecido — nunca
Quase caiu da cama, tal o sobressalto com que um sonho lhe parecera
despertara. Sentou-se, reavivando os sentidos.
Adivinhava-se no quarto, em segurança, mas tão real. »
entorpecido — nunca um sonho lhe parecera
tão real. Um raio de lua, ténue e brilhante,
entrava pela janela, incidindo na secretária de
Gael. As folhas em branco que por ali tinha
clamavam por ele. Saltou da cama num ímpeto
e sentou-se a escrever, não queria esquecer Estranhos modos tem o universo de se fazer
qualquer pormenor. Os ciprestes, as torres, ouvir. O sonho ensinara-o como a realidade
as estátuas. Parou ao descrever a terceira nunca o fizera. Aprendera que, quando há
torre. Continuava sem entender. Pela janela sonhos, as gavetas não podem estar fechadas.
entreaberta percebia, ao longe, o perfil negro Gael recordaria mais tarde, ao escrever a sua
das ruínas do castelo. A lua cheia, triunfante, primeira obra, o dia em que enfrentara o medo e
impunha a sua presença, parecendo querer arriscara a ousadia: Não foi a realidade que me
bisbilhotar-lhe a escrita. Ao virar a cabeça, fez, foi o sonho que me ensinou. Abri, por fim, a
inadvertidamente, viu o seu reflexo no espelho gaveta e atirei as palavras ao mundo. Façam
que estava dependurado numa das paredes delas o que quiserem.
do quarto. O outro eu devolvia-lhe o olhar e
prendia-o, como se hipnotizado estivesse.
Entrava-lhe pela alma e pelo coração, de
tão profundo que era. E assim, forçado, A pedido da Autora, este texto não segue
compreendeu. Tal como agora, também na a grafia do Novo Acordo Ortográfico
terceira torre, Gael vira o próprio olhar e, da Língua Portuguesa.
«O sonho
ensinara-o como
a realidade
nunca o fizera.
Aprendera que,
quando há
sonhos,
as gavetas
não podem estar
fechadas. »
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PER FICTA, RESISTERE
SALVADOR ANA COSTA
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acelerava e o calor subia ao rosto. Pegou no
telemóvel e escreveu «Amo-te tanto, meu
«Ela abriu e puxou-o,
amor, és tudo para mim. Já tenho saudades bebendo-lhe um
tuas.» A resposta não tardou: «Também te amo
muito! És tudo para mim! O meu coração vai longo beijo, enquanto
ser para sempre teu!» Saboreou com prazer o conduzia para o
aquela mensagem e arrancou. De olhos fixos na
estrada, as duas mãos no volante, recostado no quarto, trancando a
acento, acelerou e fez as mudanças deslizarem
de tal forma que em breves minutos estava
porta atrás de si. »
a atingir os cento e vinte quilómetros à hora.
Embriagado pela adrenalina e pelo poder, dir-
-se-ia que o Volkswagen Golf GTI Mk2 levantava
voo, não denunciando os anos que tinha.
Chegou a casa. Silêncio. Descalçou-se e foi O limpa-vidros no máximo não garantia boa
tomar um duche rápido. Meteu-se na cama. visibilidade. Resolveu encostar. Ali, na berma da
Gabriela dormia. Fechou os olhos, na tentativa estrada, ao som da chuva, o olhar perdeu-
de adormecer. Ela mexeu-se e ele sentiu as suas -se para além do horizonte. Recordou a coruja
pernas nuas e macias. Começou a percorrer-lhe da noite anterior. «O que ando eu a fazer?
o corpo numa carícia faminta. Meio desperta, Esta vontade não me larga… A Anabela é um
ela deixou-se ir naquele embalo e saciou-o. espetáculo, as coisas que nós fazemos! Até
Quando acordou, Gabriela já tinha saído. Afagou o perigo do marido descobrir me excita! E
a almofada que guardava ainda o seu perfume e a Gabriela? Se ela sonha, coitada! Tão boa
sorriu. «O que mais pode querer um homem?!» rapariga… podia ser melhor na cama, é verdade,
Pegou no telemóvel e enviou uma mensagem mas pronto! Não se pode ter tudo… Ainda bem
«Bom dia, amor!». Anabela rapidamente que vivo no apartamento dela, afinal, é menos
retribuiu. «Bom dia, amor! Só penso em estar uma despesa. Dinheiro, dinheiro! Tanta falta que
contigo!». Quando ia responder, uma chamada ele me faz! Quando é que isto vai acabar? O
impediu-o. Atendeu. «Tem de estar pronto no trabalho em atraso… e os clientes estão a perder
próximo sábado, sem falta!» Mais do mesmo. a paciência. Mas eu não resisto, preciso de estar
Precisava de concluir aquele trabalho, não podia com a Anabela… Serei viciado em sexo? Não!
continuar a adiar. Foi para o ateliê decidido a Qual é o problema de gostar de mulheres? Elas
avançar. Vestiu a bata, calçou as luvas e olhou também gostam… Mas por que sinto este vazio?
com satisfação para o móvel. «Sem dúvida Eu até sou perfeito e dedicado ao que faço.
que está a ficar bonito!» Ia inclinar-se para Se quisesse, tinha a casa cheia de clientes…
retocar uma porta, quando um pensamento se Mas eles estão a desaparecer… o trabalho fica
precipitou. «Esqueci-me completamente da sempre para trás, estas saídas para me encontrar
consulta com o naturopata!» E largou tudo. com a Anabela, os motéis, as refeições, o
Decidira procurar alternativas para aquele gasóleo… quando dou por ela, já o dinheiro
estado que oscilava entre a depressão e a se foi… O Jorge tem razão. Tenho de tomar
euforia. Gostara do primeiro encontro, por isso, uma atitude. Preciso de sair disto. Mas como?»
lançou-se à estrada para não perder a consulta. Deitou as mãos à cabeça e recostou-se no
Agora, de regresso, recordava o tom perentório banco. Através do tejadilho, as nuvens pintavam-
com que Jorge lhe falara «Ou tomas uma atitude -lhe os olhos de um cinzento carregado. «E
e fazes alguma coisa por ti ou escusas de cá se a chuva levasse todos estes problemas?
voltar!». Como seria a minha vida? O que quero para a
Parecia que o céu se ia desfazer em água. minha vida?» Admirou-se mais com o facto de
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PER FICTA, RESISTERE | SALVADOR Ana Costa
«Sentada de
estar a questionar-se a si mesmo do que com costas, a mesma
as perguntas. O som da chuva a cair captou
toda a sua atenção, parecia-lhe ouvir música…
figura do seu
Recordou as palavras do pai, tantas vezes sonho tocava
repetidas: «Os músicos são uns vagabundos!
Não são canções que põem pão na mesa!». guitarra com
«Como eu gostava de ter aprendido a tocar uma graça tal
guitarra… Mas foi o meu irmão que recebeu uma
para nunca a usar…» Um nó amordaçou- que deixou cair
-lhe a garganta… «Vá deixa-te lá dessas coisas!
Já passou! Não é agora que vais aprender a
o maxilar.»
tocar guitarra! Vai mas é trabalhar, que é o
melhor que tens a fazer!»
A chuva abrandou e Salvador retomou a viagem
até ao ateliê. Foi à caixa do correio. Entre cartas
e publicidades, deteve o olhar num folheto que
anunciava aulas de música para todas as idades. o fogo. Ele, não querendo dar parte de fraco,
Separou as cartas e pôs os folhetos publicitários incandescia-se.
no cesto dos papéis. Retomou o trabalho. Um Aquele romance era, cada vez mais, uma
toque. Passados breves minutos, outro toque. lâmpada em vias de se fundir, oscilando entre a
Coçou a cabeça. «É ela.» Tirou as luvas e ligou. O luz e a sombra. Ela continuava a ligar. Salvador,
corpo deleitava-se com aquela voz e tinha sede de olhar indiferente para o visor do telemóvel,
dos beijos que se lhe ofereciam. «Tenho de a pensava: «Isto já não me diz nada… deixa-me em
ver!» E, sem pensar, tirou a bata e meteu-se no paz!» — e continuava a lixar o armário que tinha
carro. Ela já o esperava. Enquanto conduzia, as diante de si ou a aplicar o verniz com cuidado.
mãos dela passeavam-lhe pela perna, acendendo Também ali, a mesma imagem lhe vinha à ideia.
o fogo que já os consumia. Acelerou ainda mais Sem perceber bem porquê, alegrava-se com ela
e, rapidamente, entrou no estreito caminho de e isso refletia-se nos seus trabalhos de restauro.
terra batida. No carro, escondidos pelas árvores, Certo dia, entrou no ateliê um cliente novo com
mataram a fome, mataram a sede e tudo o mais uma guitarra antiga. Salvador nunca fizera um
que sentiam. Deixou-a no sítio onde a apanhara. trabalho daquele tipo e hesitou. Mas o homem
O corpo estava satisfeito, contudo a alma, essa, tinha a certeza de que ele era a pessoa certa
agitava-se inquieta e, pela segunda vez naquele para dar nova vida àquele objeto, sem brilho
dia, a chuva cantou para ele. e repleto de riscos. Quando ficou sozinho, fez
Foi nessa mesma noite que teve pela primeira soar as duas cordas que ela ainda conservava.
vez aquele sonho. No início, ignorou-o, no Segurou-a pelo braço e contornou-lhe o corpo.
entanto, aquela imagem, pouco a pouco, «Vais ficar como nova!» pensou, confiante.
instalou-se na sua vida ao ponto de, cada vez O restauro da guitarra ocupou-o durante alguns
com mais frequência, surgir nos momentos mais dias. Depois de a limpar, passou-lhe uma lixa fina
acesos com a Anabela. Quando isso acontecia, para retirar todo o verniz, ou o que sobrara dele,
murchava. Ela não aceitava e procurava atiçar passou-lhe óleo de coronha, depois cera de
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abelha e de novo o óleo de coronha. A imagem Os ouvidos sorriram e a alma cantou. À noite, o
do sonho fazia-lhe companhia, inspirando-o mesmo sonho.
e motivando-o. Quando terminou, olhou com No dia seguinte, regressou à loja, desta vez para
satisfação para o resultado. começar a aprender música. Quando entrou
Durante todo aquele tempo, nem pensou na na sala de aula, o coração começou a bater-
Anabela e recusou os convites insistentes que -lhe mais rápido. Sentada de costas, a mesma
ela continuava a fazer-lhe. Após cada consulta, figura do seu sonho tocava guitarra com uma
acreditava cada vez mais que conseguiria pôr graça tal que deixou cair o maxilar. Os mesmos
um fim definitivo àquele relacionamento e dar cabelos longos e negros. «Andei a sonhar com
um rumo melhor à sua vida. Apesar de não a professora de música? É ela a mulher do meu
amar Gabriela, sentia-se bem ao seu lado. E o sonho! Aquela que toca num palco para uma
sonho, noite após noite, trazia-lhe algo que não multidão rendida ao seu encanto, no momento
conseguia definir. em que também eu me preparo para entrar em
O cliente da guitarra nunca mais apareceu, nem palco e fazer-lhe companhia. Nunca consegui
atendia o telefone. Salvador, cansado de a ver ver-lhe o rosto, porque acordo antes. É ela! É
sem vida, pegou nela e procurou uma loja de real! Até tem uma blusa branca como no sonho!»
música. Veio de lá com ela num saco próprio e — Sou o Salvador e inscrevi-me nas aulas de
com um folheto. «Aulas de música para todas guitarra! — anunciou.
as idades… Já tinha visto isto…» recordou e, No momento em que ela se virou e sorriu para
desta vez, guardou o papel. Sentou-se, pegou ele, ambos souberam que nascia ali um caminho
na guitarra e passou os dedos pelas cordas. que trilhariam juntos.
19
PER FICTA, RESISTERE
VALENTIM,
SONHO MEU ANA PINHEIRO
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Peritonite, septicémia, são palavras que se lhe «Não consegue
colam ao ouvido, mas não ouve nada mais.
O vazio que lhe percorre o ser açambarca-a tal precisar quanto
qual um usurpador, cola-se-lhe na pele e suga-
-lhe as entranhas.
tempo permanece
Concedem-lhe autorização para o ver abandonada pelo
através do vidro. Equipada a rigor, dentro da
parafernália de acessórios que a assistente chão, em posição
a ajuda a vestir, entra na antecâmara do
quarto, e ali se queda. Valentim, o seu querido
fetal. Desperta,
Valentim, jaz envolto em fios, máquinas, tubos, estremunhada e
segurando-o à vida. Segue-lhe os movimentos
do peito, irregulares e fracos.
tremelicante.
As lágrimas soltam-se, desobedientes, O frio dos mosaicos
gotejando por entre os dedos. As mãos
suplicantes escorregam pelo vidro, deixando
enregela-a e
um rasto de desolação. até o coração
Instintivamente, a mão direita aninha-se no
ventre, lembrando-lhe que não está só. O
se assemelha a
choro redobra e, pela cabeça, avolumam- pedra. Agarra no
-se questões, para as quais não encontra
justificação.
telemóvel, caído
— Porquê o Valentim!? Estamos tão perto da mala aberta.
de concretizar o nosso sonho… anos e anos
de tentativas, exames, consultas, porquê
A fotografia do
agora!? Como vou suportar, sozinha!? — num ecrã, onde Valentim
desespero aterrador.
As forças abandonam-na. Fecha os olhos, sorri em grande
enquanto uma forte vertigem lhe sacode o plano, arrepia-a.»
corpo. Por instantes, não reconhece o espaço
onde se encontra, tudo lhe parece estranho
e confuso, sem perceber o que faz ali. Uma
enfermeira vem em seu auxílio. Demora a
recuperar a consciência dos acontecimentos,
como se tudo tivesse ocorrido numa vida
passada. Aos poucos, o espaço clareia e
devolve-lhe a perceção dos factos. Valentim
permanece imóvel. Não consegue precisar quanto tempo
A casa, outrora alegre, é palco de uma agonia permanece abandonada pelo chão, em
imemorial. Fragilizada, Susana abandona-se posição fetal. Desperta, estremunhada
pelo chão, enquanto lágrimas derramadas lhe e tremelicante. O frio dos mosaicos
queimam a pele, arranham a garganta seca. enregela-a e até o coração se assemelha
Agarra-se à barriga, vociferando impropérios, a pedra. Agarra no telemóvel, caído da
até perder as forças. No meio da desolação, só mala aberta. A fotografia do ecrã, onde
uma certeza permanece: é urgente abdicar da Valentim sorri em grande plano, arrepia-a.
realização daquele sonho; sem Valentim não faz Levanta-se a custo, olha à volta, como se o
sentido continuar. procurasse.
21
PER FICTA, RESISTERE | VALENTIM, SONHO MEU Ana Pinheiro
«Ao raiar da
aurora, enquanto
Em todas as divisões, o mesmo vazio. Deixa-se Valentim luta
cair na cama, exausta. Adormece, todavia, o
sono não é tranquilo. Valentim aparece por fim,
para afastar a
esticando-lhe a mão aberta. Susana deixa-se morte, Susana
levar no seu encalço, contudo não o consegue
segurar. Mal percebe as palavras que brotam da traz ao mundo a
sua boca, só distinguindo duas: sonho e filho. vida, embrulhada
E Valentim desaparece.
Susana acorda num repelão. Encharcada em em tons de
suor, recosta-se nas almofadas, dominando a
custo a respiração arquejante. O sol desponta
azul. O pequeno
pelas frinchas da janela e o ar fresco da manhã Valentim repousa
ajuda-a a raciocinar com clareza. Estonteada,
veste-se apressadamente e corre para o
na quietude
hospital. do berço. »
É neste mesmo hospital que Susana entra
todas as manhãs, religiosamente, à mesma
hora. A barriga crescente acompanha-a nesta
malograda jornada. Cada dia que passa, a
esperança da recuperação de Valentim é
reduzida. Mas todas as noites, Valentim está
presente e sussurra-lhe ao ouvido:
— Amor, nunca desistas do nosso sonho!
Susana leva sempre uma novidade para contar permite. Agarrada a um terço, é a imagem da
a Valentim. Tem autorização para permanecer desolação naquela fria sala de espera. Pobre
no quarto, junto dele, o tempo que lhe convir. Susana, perdida num abatimento absoluto,
Numa das tardes, coloca-lhe a mão sobre o a viver o sonho da maternidade, por entre
ventre, fazendo-o sentir ligeiros pontapés. o pesadelo da doença. A vida e a morte.
Há uma pequena reação, quando dos olhos Antagonistas. Caminhando pela mão de
cerrados de Valentim brotam discretas lágrimas. Susana, lado a lado. Quão ténue pode ser a
Susana chora, ri, estremece, num misto de linha que as separa?
emoções. Ao segundo toque ritmado da Ao raiar da aurora, enquanto Valentim luta
campainha, a enfermeira Júlia entra no quarto. para afastar a morte, Susana traz ao mundo a
Emociona-se com ela, abraça-a, conforta-a. vida, embrulhada em tons de azul. O pequeno
— Pequenas, mas importantes melhorias — Valentim repousa na quietude do berço. Susana
sorri Júlia, ternurenta. — Tenha esperança, é a experimenta uma paz invulgar, que a enleva e
vida que aí vem. faz sorrir. Como que num murmúrio, uma voz
Madrugada dentro, Valentim piora. Levado de conhecida segreda-lhe ao ouvido:
urgência para o bloco operatório, a situação — Obrigada amor, por não teres desistido de
é delicada. Susana segue para o hospital, tão viver o nosso sonho! Estarei sempre aqui para
depressa quanto a sua barriga de oito meses o ti… — olhando para o berço — para vocês!
22
«Agarrada a um
terço, é a imagem
da desolação
naquela fria sala
de espera. Pobre
Susana, perdida
num abatimento
absoluto, a
viver o sonho da
maternidade, por
entre o pesadelo
da doença. »
23
PER FICTA, RESISTERE
SONHOS
E RETALHOS CARLA CARMONA
24
a longa recuperação, a empresa quis chegar
a um acordo comigo para a minha saída.
«Pessoas
Vivemos burlados, no embuste de sermos carinhosas, sempre
importantes ou marcantes. Acreditamos ter
tempo, desmarcar um jantar com amigos por
a contar histórias,
causa do trabalho passa a ser normal, existem umas com piada,
muitos outros dias. Até aquele minuto em que
a existência muda. Contratar alguém para me outras que
substituir é lógico, porém rejeitarem a minha passaram dos avós
volta foi chocante. Hoje aceito que na altura
não me respeitava o suficiente, nunca dizia não, para os pais e que
independentemente do pedido.
repetem para
Entro no edifício da junta de freguesia onde não se perderem.»
agora dou aulas de desenho.
— Boa tarde, Maria, vem cedo!
— Boa tarde, D. Judite, sim, quero preparar
algumas coisas antes dos alunos chegarem.
Quarenta minutos depois, os meus alunos sempre vários cheiros, hoje os mais intensos
começam a chegar. São maioritariamente são a canela e o café. As farófias estão prontas,
pessoas reformadas, demasiado jovens e ativas polvilhadas com a canela; a mousse de café no
para se tornarem vegetativas, ocupando-se com frigorífico; só falta terminar o bolo de bolacha,
diferentes atividades. Somos todos um bando mas antes tomo o pequeno-almoço. Ligo a
de egoístas, tendemos a esquecer aqueles que chaleira, coloco a saqueta do chá de cidreira na
caneca, tiro do frigorífico a minha tigela de fruta,
estão na reforma.
coloco-a sobre a mesa e verto a água quente
Duas horas, às terças e quintas-feiras. Pessoas
sobre a saqueta do chá. Sento-me na mesa
carinhosas, sempre a contar histórias, umas
da cozinha e fico a olhar pela janela. Ao longe
com piada, outras que passaram dos avós para
vislumbro um pequeno monte coberto de verde,
os pais e que repetem para não se perderem.
saboreio a fruta, o chá e a paisagem.
Aprendo sempre qualquer coisa. Eles estão
Uns vinte minutos depois é tempo de terminar
entretidos, ativos. Por vezes, falam de como os
o bolo de bolacha e fazer as entregas. Não me
filhos estão ocupados. O Sr. Rogério e a D. Irene
posso atrasar, hoje é quinta-feira.
são os que mais se destacam. Ambos viúvos,
A aula decorre, como sempre, com boa
ela adora contar histórias, cantilenas, como
disposição e, quando termina, despedimo-nos
as narradas pela minha Avó; o Sr. Rogério está
e todos saem. Eu fico para arrumar a sala. Assim
sempre na brincadeira, com piadas. O tempo
que saio, reparo no Sr. Rogério, do meu lado
debanda como o vento, mas no final da cada
direito, parado.
aula sinto-me acarinhada.
— Sr. Rogério, ainda aqui está?
Presentemente, também faço doces e bolos,
— O meu filho ficou de se vir encontrar comigo
vendo-os para dois cafés e um restaurante no
para irmos jantar, mas atrasou-se.
bairro. O passa-palavra é uma excelente forma
— Podia ter ficado lá dentro comigo e não aqui
de publicidade, íntegra e sem custos. Comecei
na rua, sozinho.
a ter pedidos para festas de aniversário e a
— Maria, posso ficar um pouco na rua, ele
minha clientela foi crescendo.
está a chegar, além disso, sei que, depois de
Acordo cedo. No dia anterior deixo o que posso
arrumar tudo, fica um bocadinho a desenhar.
preparado, mas o meu produto é fresco, por
Sou observador, reparei que, por vezes, quando
isso há ainda muito a fazer. A minha cozinha tem
25
PER FICTA, RESISTERE | SONHOS E RETALHOS Carla Carmona
26
«Gustavo foi contrapondo No carro, a caminho da minha casa, ouvindo
uma música suave, Gustavo diz-me que sabe
com a história da onde fica o meu bairro e ficamos em silêncio.
— Espero que não tenha sido muito chato, o
arquitectura, notando-se jantar, ou a nossa companhia.
uma cumplicidade Sorrio e olho para ele, apanhando-o a olhar pelo
canto do olho.
entre ambos. — Nada Gustavo, fizeram-me rir e ainda aprendi
Acabaram por brincar umas coisas.
— Ainda bem. O meu Pai comentou que, para
com algumas lendas.» além das aulas, de pintar e desenhar, faz doces,
para venda?
— Sim. O meu prédio é já este.
— Maria, quero voltar a estar contigo, jantar,
ou almoçar no fim-de-semana, dar um passeio,
— Maria, desculpe abordá-la assim, mas gostaria cinema, teatro, só os dois.
de lhe perguntar duas coisas. A primeira é se posso — Gustavo, antes de responder, preciso que
ficar a fazer-lhe companhia, uma vez que o meu saibas que eu tive um acidente grave, quase há
filho virá ter comigo novamente, para irmos jantar. um ano, e… deixou marcas.
— Claro que sim, Sr. Rogério. — Todos temos marcas, umas mais visíveis que
— Obrigado — sorrindo —, espero igual resposta outras, doenças, medos. Deixa-me conhecer-te.
à segunda pergunta. Gostaria de jantar connosco Poderemos ficar amigos, ou algo mais, ou nada,
hoje? apenas conhecidos.
— Sr. Rogério, agradeço o convite, mas este — Não é medo de conhecer alguém, só queria
é um momento seu e do seu filho, não quero que soubesses que tenho limitações.
intrometer-me. — E achas que eu não as tenho? Acredita que
— Não estaria a fazê-lo. Ambos gostaríamos da não sou uma excepção. Tens o teu telemóvel?
sua companhia. Posso?
Como estava de costas para a porta não me Aceno-lhe com a cabeça e ele introduz o
apercebi da chegada de Gustavo. número na minha lista de contactos, de seguida
— Olá, Gustavo. Agradeço o convite, mas, para liga para o dele e desliga.
além de achar que não me devo intrometer no — Vou esperar até amanhã à tarde, se não me
vosso jantar, ficaria tarde. ligares, eu ligo-te. Boa noite, Maria.
— Levo-a a casa depois do jantar, o meu carro — Boa noite, Gustavo.
fica estacionado ao pé da casa do meu Pai.
— Muito bem, vamos jantar. No dia seguinte, os meus olhos deparam com
O sorriso de Gustavo parecia eletrizar-me. uma publicidade a uma agência de viagens:
Fomos a um restaurante italiano, não muito a imagem de uma praia paradisíaca. O que
distante. me prendeu a atenção foi o slogan: O sonho
O jantar foi descontraído, o Sr. Rogério, antigo comanda a vida; Sorrio. Sim, é altura de voltar
professor de História, gostava de falar das a sonhar.
pequenas narrativas menos conhecidas. Gustavo
foi contrapondo com a história da arquitectura,
notando-se uma cumplicidade entre ambos.
Acabaram por brincar com algumas lendas. A pedido da Autora, este texto não segue a
Terminado o jantar, despedi-me do Sr. Rogério e grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua
o Gustavo levou-me a casa. Portuguesa.
27
PER FICTA, RESISTERE
O SONHO
COMANDA CARLOS MUSGA
A VIDA
28
Passou os dedos suavemente pelas teclas do
«Quando
piano e lamentou uma vez mais não saber tocar,
aliás, ninguém na família sabia. Talvez ainda queria viajar
fosse a tempo de aprender: para o ano é que é,
prometeu a si próprio.
deleitava-
Depois desta inspeção minuciosa, derreado de -se na leitura
excitação, sentou-se na sala satisfeito consigo
mesmo — os seus jantares continuariam a ser
de crónicas
famosos. Puxou um charuto e deleitou-se com de viagens,
o perfume que só os grandes conhecedores
conseguem encontrar. sentado
Lembrou-se da primeira regra daquele jantar comodamente
— todos viriam vestidos de branco, como
acontecia desde a primeira edição. Era uma à sombra
boa cor para homens ou mulheres. Teve a ideia
quando a sua barba ficou alva. Com a careca
da sua
não havia nada a fazer: os seus caracóis de monumental
juventude — outrora tão invejados —, tinham
levantado ferro sem destino conhecido. Tinha
biblioteca. »
experimentado vários capachinhos, mas até os
seus empregados se riam quando passava por
eles: deitou-os para o lixo e assumiu de forma
estoica aquela longa pista brilhante.
O fumo do charuto trouxe-lhe à memória os blindavam o peito. Se bem se lembrava o tio
convidados dessa noite: em primeiro lugar nunca tinha estado na Marinha; era apenas
o seu velho tio António a quem estava quando queria impressionar o sexo feminino que
eternamente agradecido pela ajuda se fardava a rigor — e como iria lá estar a tia
permanente, permitindo-lhe alcançar uma Gertrudes, viúva, recebida com fanfarra quando
posição de relevo na sociedade. ia ao banco, ainda fresca para os seus setenta(?)
Só com sete ou oito anos lhe contaram como anos, era a ocasião ótima para se pavonear e
tinham morrido os pais: após uma viagem ao puxar pelos galões. Monóculo no olho (que
Egito contraíram umas febres que nenhum no último jantar, de tão alvoroçado com a
medicamento conseguiu debelar. Apesar das perspetiva de pedir a mão da amada, deixara
fortunas gastas em médicos e internamentos, cair no prato da sopa e salpicado a frontaria da
em Portugal e no estrangeiro, foi impossível sua paixão), bigodes retorcidos e pingalim —
salvá-los. Talvez por isso nunca se tenha —uma figura inesquecível.
aventurado em viagens longínquas, preferindo A tia Gertrudes com uma pele branca
a calma e o bucolismo da quinta ali para os encarquilhada (exceto ao olhar do tio António
lados de Colares, quando o bulício de Lisboa — amor é cego!), — era sempre o centro das
o sufocava. Quando queria viajar deleitava- atenções, não só pelo seu porte aristocrático, mas
se na leitura de crónicas de viagens, sentado acima de tudo pela placa dental que usava pois
comodamente à sombra da sua monumental as gengivas foram mirrando e a placa ficando um
biblioteca. pouco folgada, provocando sons de castanholas
O tio, sempre presente nos jantares, vinha entre cada mastigadela — uma espanholada —,
normalmente vestido de almirante — farda levando o tio António a sair da mesa e ensaiar uns
branca de muitos dourados e condecorações passos de flamenco para gáudio generalizado —
tão bastas e numerosas que quase lhe — quase sempre no fim do repasto.
29
PER FICTA, RESISTERE | O SONHO COMANDA A VIDA Carlos Musga
Também o Lopes, seu antigo sócio e amigo, Claro que nada disso tirava o apetite a Eulália,
era presença certa e garantida; em conjunto conhecida como um bom garfo e um bom copo.
tinham gerido e feito prosperar uma retrosaria Costumava dizer — o estômago (e não só) não
na baixa de Lisboa. Quem agora o trata por tem culpa de eu ser noiva há trinta anos — e se
Conde não imagina a destreza manual usada para bem o dizia melhor o fazia.
aviar a freguesia (maioritariamente feminina), Acontecia com frequência que a meio de
desdobrando-se na venda de lãs, fios para refeições mais copiosas (e bem regadas) tivesse
crochet, penas naturais, tecidos a metro, linhas, um ou outro ataque de flatulência, tendo ficado
entretelas e botões, tudo arrumado em caixas e célebre a frase do Conde em idêntico jantar
caixinhas, gavetas e gavetinhas. Muitos mirones anos atrás:
entravam no estabelecimento apenas para — Agarrem os móveis que a Eulália vai arrotar!
admirar o trabalho de estuque que ornamentava Neste jantar — mantendo a tradição —
o teto. Não foi difícil trespassar o negócio enquanto Eulália arrotava alto e bom som,
por bom dinheiro e cada um ir para seu lado, a tia Gertrudes ficava mais destrambelhada
embora mantendo sempre o contacto e amizade e castanholava com a dentadura meia solta,
desenvolvida na retrosaria. O Manuel dedicou-se enquanto o Lopes — até aí sossegado — era
a educar a alma, a cultivar o espírito e a comprar atacado por uma crise de tosseira, fruto de
o título de Conde a um fidalgo(?) falido — que eternos cigarros sem filtro acendidos uns nos
ficou tão radiante que lhe ofereceu o piano outros. O lustre de cristal desatou a vibrar.
que continua mudo e atravancador. O Lopes Parecia uma orquestra desafinada que teve o
prosperou nos negócios, até os filhos recusarem seu auge quando o tio António — já um pouco
seguir as suas pisadas. Depois vendeu tudo a tocado —, começou a ressonar (roncar!).
chineses ou indianos (não interessa) sem verter O Conde ficou sem palavras, sem saber
uma só lágrima. o que fazer!
Quando o Lopes chegou, abraçaram-se De repente uma figura alta e entroncada,
longamente e mentiram-se mutuamente — Estás também vestida de branco, entrou na sala e
na mesma! O Lopes, vestido de branco, tinha um dirigiu-se a ele:
ar de manequim da rua dos Fanqueiros, com o — Senhor Conde, boa noite. São horas
cabelo ondulado cheio de brilhantina escorrendo de recolher ao seu quarto, e tomar os
por vezes para a gola do casaco levantada no medicamentos. Eu próprio me encarregarei disso.
pescoço devido à marreca galopante. Bigode — Desculpe, mas o Senhor não foi convidado
amarelo, pintado pela nicotina, destacava-se para o nosso jantar. É preciso atrevimento para
numa cara ossuda de olhos inexpressivos. interromper o nosso banquete — disparou de
Para o grupo estar completo faltava apenas a rajada o Conde.
Eulália: a noiva do Conde havia trinta anos! Por — O senhor Conde (tinham-lhe aconselhado
várias razões o casamento foi sendo adiado: tratar o Senhor Manuel por Conde que ficava
uma doença aqui, um ano desaconselhado pelos menos agressivo), não me conhece. Sou o novo
astrólogos ali, problemas familiares variados e, enfermeiro da ala onde está hospedado e tenho
finalmente, o internamento forçado do Conde de fazer respeitar os horários de recolher. Não
durante períodos intermitentes, atiraram a há cá filhos e enteados!
hipótese de casório para as calendas gregas. — Já? Logo agora que estava a dar uma festa
30
para os meus melhores amigos!
Posso ficar mais um pouco?
O que vão eles pensar de um
anfitrião que abandona os
seus convidados? Ainda nem
conseguimos cortar o bolo.
— Senhor Conde, os seus
convidados têm de sair
também. Já dei instruções
para trazerem os carros para
a entrada da casa — disse
o enfermeiro, mergulhando
de braço dado no delírio. O
respeito pela hora de recolher
é muito importante para a
sua saúde. Se continuar assim
agitado tenho de recorrer
a outros métodos menos
simpáticos — ameaçou a figura
branca, sorrindo, mostrando
uma camisa daquelas em que as
mangas dão a volta ao corpo.
— Ainda não tínhamos chegado
aos licores — resmungou.
Íamos agora para a sala de
fumo. Agora que a festa estava
a ficar tão animada! Para o ano
organizo outra — disse em voz
baixa e raivosa.
— Está bem. Eu vou. Eu vou.
«O fumo do charuto
Amanhã tenho que falar com o trouxe-lhe à memória
administrador do condomínio
para expressar de forma
os convidados dessa
veemente e acutilante o meu noite: em primeiro
desagrado pela forma brutal e
carrancuda como a minha festa lugar o seu velho tio
foi interrompida. Além disso, o António a quem estava
cão do segundo andar passa a
noite a uivar. eternamente agradecido
A figura branca impassível
pela ajuda permanente,
escoltou o Conde até ao quarto,
enfiou-lhe os comprimidos pela permitindo-lhe
goela abaixo, fechou a porta à
chave com duas voltas e abalou.
alcançar uma posição
Todos os dias acordava a sonhar de relevo na sociedade.»
com a realização da festa. Só
assim se mantinha vivo.
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PER FICTA, RESISTERE
UMA ESPÉCIE
DE CICLOS
QUE NOS
TRANSCENDE CLÁUDIA PASSARINHO
S ONHO:
Atividade mental não dirigida,
que se manifesta durante o sono,
«Nas mãos transportava duas
malas. Na direita, meia dúzia
e da qual, ao acordar, se pode
conservar certa lembrança;
de roupas que, enquanto não
conjunto de ideias e de imagens estivesse devidamente instalada,
que perpassam o espírito; o que é
produto da imaginação, devaneio,
teria que bastar. O pouco seria
desejo veemente, aspiração; o suficiente. Pendia a mais
projeto cuja execução parece difícil
ou impossível, utopia; pesada na mão esquerda. Dentro
coisa muito bela; visão dela a vida. A prova
In Infopédia,pt 15-10-2021 da longevidade. »
A aventura começou sem sermões.
Apenas um: porque não? curto e
desajeitado.
«Partiste de um sonho», dir-me-ias tu, me emaranhou o cabelo, tornando-o tão solto quanto
avó. Eu dir-te-ia que o sonho é que desconfortável. Tal como os longos entrançados que
partiu de mim. a avó me fazia, com início no topo da cabeça. Naquela
Nas mãos transportava duas malas. altura, os puxões pareciam-me excessivos, mas hoje
Na direita, meia dúzia de roupas que, penso neles com saudade. Houve momentos em que
enquanto não estivesse devidamente desejava ter coragem para fugir debaixo das mãos
instalada, teria que bastar. O pouco dela, especialmente quando arrepanhava finos fios que
seria o suficiente. Pendia a mais chegavam a humedecer-me os olhos. Se fugisse, fugiria
pesada na mão esquerda. Dentro para a paisagem, com a qual me deparo trinta anos
dela a vida. A prova da longevidade. depois. Nunca serei tão boa quanto ela, mas encontro-
Seria mais uma existência num monte -me focada na técnica de fazer crescer (sozinha) uma
cheio dela. oliveira e a mim. A liberdade tem destes inconvenientes,
No topo do outeiro, o vento não e o maior deles é aprender a gerir a solidão.
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Voltemos à mala da mão esquerda: penso na Passaram-se meses e ainda aqui estou. Aquilo que
raiz ainda no escuro. Embrulhada num plástico parecia um cliché, assemelha-se a um diamante
com pouca terra húmida. A humidade dá-lhe por lapidar. Continuo a esculpi-lo, diariamente.
oxigénio e mantem-na ligada ao solo, pedindo- Cada contorno. Enquanto me volta a crescer o
-lhe apenas algumas horas para poder voltar a cabelo e os tratamentos são passado; mas essa é
ter um espaço para ganhar novas raízes. a verdadeira magia da coisa.
O pedido parece simples: desejo que a pequena Num curto tempo, aprendi que o interior das
amostra de oliveira se mantenha curiosa para paredes alentejanas que me albergam é feito de
continuar a conhecer o mundo! taipa, herdadas da era Muçulmana.
Lutaremos contra o sol. Será dos raios que Verdade que, quando aqui cheguei, deparei-me
retiraremos energia. Lutaremos contra a chuva, com alguns pontos da casa que esfarelavam ao
pois será da sua água que consumiremos primeiro toque. Todavia, ao contrário deles, o
recursos. Unidas no crescimento. Significará meu sonho alcançava consistência no momento
sempre uma corrida, em que as duas em que os meus dedos ganhavam a cor da
estremeceremos contra o vento. Não importando argila, à medida que lhes tocava.
o quanto poderei crescer, estou consciente de Permito-me sentar na única cadeira,
que a oliveira se elevará sobre mim. confraternizando com o crepúsculo na mesa
Pergunto-me se ela saberá no que um dia se de ferro preto, já este não precisa de assento
poderá tornar. Sufoco uma risada com a palma porque é no céu que repousa. Sabe sempre
da mão, mas deixo-me logo disso e liberto-me bem. E olho para o meu pedaço de terra, onde
numa gargalhada, para que fuja até ao céu. ofereço tempo em troca de comida. Congratulo-
-me por promover o culto da luta entre o
COMANDAR: Homem e a Natureza.
dirigir, como superior, uma força Depois vem a alfazema, um aroma que dá
militar, um navio, etc. à costa, e acorda-me do marasmo. Pego
figurado dominar; mandar novamente no livro. Tinha parado a meio do
poema “Invictus”: Não importa quão estreito o
In Infopédia,pt 15-10-2021 portal,/Quão carregada de punições a lista,
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PER FICTA, RESISTERE | UMA ESPÉCIE DE CICLOS QUE NOS TRANSCENDE Cláudia Passarinho
/Sou o mestre do meu destino:/Sou o capitão Disparámos os dois ao mesmo tempo, ou pelo
da minha alma. Continuo embevecida, por tudo menos assim me pareceu.
e por nada. «Fui eu?» — pergunto-lhe.
«Não sei, menina.» Parece ter medo de saber.
VIDA: Aproximamo-nos de espingarda ainda morna.
estado de atividade dos animais e das Aperto o cano de alma lisa com a mão esquerda
plantas; condição do ser animado; vigor dos e com a direita faço o sinal da cruz, primeiro
seres orgânicos; ser(es) vivo(s) e/ou a(s) sua(s) sobre o rosto e depois cruzando o peito,
atividade(s); o facto de estar vivo; recordando-me vagamente de que não sou
o tempo que decorre desde o nascimento católica. Ouço a minha respiração e as árvores
até à morte; existência que não param de acudir ao animal morto. «Era
num sentido figurado tempo de vigência ou bom não presenciar a minha morte», penso. O
duração de algo; modo de viver; período meu bafo cheira a arrependimento e ainda me
específico da existência de um indivíduo; faltam cem metros para dar de caras com o
fase; idade; conjunto dos acontecimentos e inanimado. Revolta-se-me o estômago quando
experiências durante a vida de um indivíduo; ouço «este é grande, menina». Contudo a
motivo que anima a existência de alguém; alfazema, as oliveiras, as pereiras com bicho, o
energia, dinamismo, vigor, vitalidade poço com substâncias assustadoras, estalam-me
RELIGIÃO em certas doutrinas religiosas, cada no sangue, e uma parte de mim torce no interior
uma das existências de uma alma; encarnação e arranja subterfúgios, unindo-se a este modo
em videojogo cada um dos períodos em que de vida.
decorre a ação de certos jogos, durante o qual Vejo o reflexo do Joaquim na íris do javali, desvio-
o jogador dispõe da possibilidade de atingir o -me dois passos para permitir que o animal seja
objetivo proposto e que está sujeito a condição puxado por uma pata, deixando um rasto de
de perda relacionada com o desempenho do sangue na terra arenosa.
jogador, geralmente implicando algum tipo de Nessa madrugada, cheguei a casa e abracei
penalização, como o regresso ao início ou a todas as árvores do pomar e do olival. Estavam
estágio anterior do jogo carregadas de fruto, excitadas com a primavera.
Se as árvores são eternas, cada pessoa deveria
In Infopédia,pt 15-10-2021 plantar uma árvore para que os outros se
lembrem delas. Desta forma, agradecemos
A essência da oliveira que vibra sob o vento é a existirmos e, quando a nossa voz deixar de
a azeitona. Já a essência do javali demora dez se ouvir, as folhas continuarão a refolhar, não
segundos a esvair-se. fazendo esquecer que um dia passámos por aqui.
O Joaquim Chouriço ensinou-me a disparar. Agora, a pele parece engelhada e de um
Não sei se existirá o dia em que terei coragem tom acastanhado, não se parece com a
de acertar em alguém ou em algum animal minha. Atento ao tudo que sofre constantes
vivo. Porém, parece-me importante saber transformações. Uma espécie de ciclos que nos
acertar numa perna ou num braço o quanto transcende e nos faz partir sem defesas. Que
baste, provocando um ferimento havemos de fazer, senão viver a vida que nos
e salvaguardando-me. procurou?
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«Aperto o cano
de alma lisa com
a mão esquerda e
com a direita faço
o sinal da cruz,
primeiro sobre
o rosto e depois
cruzando o peito,
recordando-me
vagamente de que
não sou católica.»
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PER FICTA, RESISTERE
A GRANDE
PERDA CRISTINA BENTO
D eleito-me a estender o
corpo na imensidão da
praia. A areia envolve-me
num turbilhão de grãos
soltos e conchas abertas.
Ouço o grasnar das gaivotas,
que procuram alimento
ao entardecer. Pintam o
céu escarlate, com as suas
tonalidades de branco e
cinza. Não me incomodo
com as pessoas que por
ali deambulam. Caminham
lado a lado, com as minhas
gotas salgadas salpicando-
-lhes o rosto e os pés. Já
se acostumaram à minha
presença. Oiço-lhes as
conversas e os gracejos
indecorosos quando estão
a sós, escondidos entre as
rochas ou tapados pelas dunas.
É curioso ver os filhos dos
homens, que se tornam pais
e mais tarde avós, num breve
passar de anos que, para mim,
é um pouco menos do que a
eternidade.
Recordo os tempos já idos. Na
Era dos Descobrimentos, as
conquistas e viagens marítimas
36
engrandeceram os homens, pela bravura e em alguma divindade. Mas preferem continuar a
determinação, que mereceu o registo nos anais acreditar, por teimosia e obstinação. É o vosso
de Histórias de Além-Mar. Foram grandiosos os desejo de que a vida tenha um propósito. Nem
sonhos e a fé que depositaram em mim, assim sempre tem um propósito ou faz sentido. Existe
a continuidade e o equilíbrio, e estes fatores não
como as fantasias e temores. Fizeram-se odes e
dependem de vós. Àquilo a que vocês chamam
pregões em meu nome.
sacrifício, eu chamo necessidade.
Há anos que os ouço clamar por tudo o que
Não é tarde para reconhecerem que o passado
sentem ser seu, por direito. Continuo a ser o
já não é o presente e que, se nada for feito, não
espelho do céu que, acima de vós, reveste os
saberemos qual será o futuro. Entre o sonho e o
dias. Nos momentos tranquilos, repouso o olhar
pesadelo, abram os olhos e observem, a maneira
bem alto, observo as nuvens e os traços suaves
como, a cada dia que passa, o filamento de
da minha luz. Arrasto comigo o desalento
prata que rasa as minhas águas se dissipa numa
de nada compreender sobre a humanidade.
imensa escuridão. Aguarda-vos a clemência do
Parecem viver sem amanhã. São a sombra dos
Criador, a quem tanto oram, ou a ira implacável
antepassados, que se perpetua por gerações.
da Natureza.
No meu seio, desbravaram até aos confins da
É ou não verdade que lutam uma vida inteira
Terra. Quisera eu que me amassem, em vez de
contra o esquecimento?
apenas tirarem o proveito.
Se pudessem, apurariam um decreto contra a
Foi devido a mim que se gerou a vida. E sou
perda. Não teriam mais de esgravatar a terra
eu que. ao romper e inundar a terra, a torno
ou de correr contra a gravidade inexistente dos
fértil. Do solo árido, uma réstia de esperança faz
sonhos, agarrando-se a coisas já idas. Aquilo
com que as sementes brotem e despontem em
que veem partir ou que é arrancado às vossas
direção ao sol.
mãos, por vossa inteira responsabilidade,
Como me encanta ver a felicidade no rosto das
denota um total alheamento. Na falta de perdão,
crianças. O seu chapinhar quando me espalho
submetem-se ao esquecimento. Talvez a perda
em densos charcos que lhes inunda o calçado,
e o esquecimento sirvam para vos preparar para
não se importando com o que as suas mães
uma outra realidade, a Grande Perda, chamada
dirão.
morte, à qual ninguém escapa.
Então, porque me mancham a alma? Porque
jazem os despojos de vidas mundanas e sem
regra no meu leito?
Cansado, torturado, incompreendido, por
vezes encolerizo-me e mostro-lhes a minha
força. Na minha revolta, insurjo-me pelas «É curioso ver os
cidades, rasgando o ventre daquela civilização.
filhos dos homens,
Aí, aterrorizados, choram e atormentam-se.
Perguntam a um Deus que desconhecem, e que que se tornam pais
talvez somente naqueles momentos lhes sirva
de consolo…- Porquê agora? O que fizemos para
e mais tarde avós,
merecer esta desgraça? num breve passar de
Deixem-me rir… só um pouco. Até o posso
fazer baixinho, embora, na realidade, quisesse anos que, para mim,
gritar-vos aos ouvidos. Este planeta, onde me é um pouco menos
encontro e a vós me dirijo, só tem espaço para
um número finito de pessoas. Quando alguém do que a eternidade.»
está a mais, a Natureza encarrega-se de levar o
excedente. Nada disto tem a ver com a crença
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PER FICTA, RESISTERE
A ANATOMIA
DE UM SONHO INÊS PINTO
38
A Virinhas, Oliveira de apelido, ficara órfã e fora «Afastei-me, não por
criada por uma tia-avó, mulher solteira, rígida e
conservadora. Aceitara aquela missão de mãe, medo, mas porque em
sem dores de parto, e jurara fazer da sobrinha questões de família
uma mulher de respeito. Depois de completar
o sexto ano de instrução, a Virinhas não quis nem colher nem
estudar mais. Dedicou-se à lavoura: aprendeu
a rotina das sementeiras, a tratar dos animais
outros utensílios.»
e até a regatear os preços das uvas na adega.
Mulher de braço firme e determinação de ferro!
Quando a tia-avó morreu, herdou o que era
seu por direito, bem como a relação desavinda
com o Manca-Mulas, Carvalho de apelido,
homem rude e autoritário. Ele nunca perdoara Eu assistia aos desenvolvimentos desta história
à família Oliveira por ter comprado umas terras, com a regularidade que as visitas me permitiam.
junto ao ribeiro, o que o impedira de expandir No verão passado, percebi que Henrique e
os seus domínios. A partir daí, nasceu uma Virinhas conviviam sem qualquer pudor. Cruzei-
desavença que nem o nascimento do filho -me com eles junto ao canastro. Entretidos a
Henrique amainou. Virinhas e Henrique, quase da desfolhar um malmequer, talvez a acertar as
mesma idade, tornaram-se colegas de escola. agulhas do destino, cumprimentaram-me. Nem
A convivência proporcionou a amizade às tive tempo para retribuir, pois uma voz aziaga
escondidas, sem que pai e tia-avó suspeitassem. ecoou de uma esquina. Afastei-me, não por
O tempo percorreu meses. A maturidade medo, mas porque em questões de família nem
desbravava as suas mentes e os dois, jovens colher nem outros utensílios. O Manca-Mulas
adultos, decidiram que poriam fim a tão fútil espumava, virado do avesso e sem cerimónias
desentendimento. Nessa altura, Henrique no palavreado. Embora eu pretenda ser fiel
completava o mestrado em artes plásticas no à história, é impróprio reproduzir os insultos
Porto. Idealizava gerir a quinta do pai, enquanto e ameaças disparadas pelo canhão bocal do
daria rédea larga à sua criatividade. Fizera homem. Resumo o que aconteceu a seguir.
amizades excêntricas: o seu melhor amigo, Henrique regressou ao Porto sem se despedir
um especialista em efeitos especiais, fora e Virinhas refugiou-se em casa. Raramente
conhecer a aldeia disfarçado de cinquentão se mostrava, mas, quem a via, comentava as
sem ninguém se aperceber do disfarce. Só a olheiras, uma tristeza na alma que a devorava.
Virinhas sabia destas artimanhas, pois, mais Este ano, pela primavera, precisei de ir à aldeia
tarde, acabaria por mo confidenciar. Sempre para fiscalizar as obras do telhado na minha
que visitava o povoado, o Henrique passeava casa. Como coincidiu com a feira do gado
com a Virinhas pela praceta, numa afronta que na cidade vizinha, decidi passar por lá. Entre
entusiasmava todos e indignava o pai. Tal como estábulos portáteis e fardos de feno, avistei a
uma erva daninha, o rumor floresceu. Todos Virinhas. Surpreendi-me com o ar obstinado
desconfiavam que eles se deixaram apanhar no desenhado nas sobrancelhas erguidas.
enredo da paixão. As opiniões divergiam sobre Preparava-me para a saudar, quando o Manca-
as consequências. Mulas, com uma gargalhada trocista, escarrou
— O Manca-Mulas anda com ar de Mafarrico. para o chão, frente a ela. A Virinhas encarou-o.
Nunca vai aceitar — asseguravam uns. Vestida de uma altivez pouco familiar, devolveu-
— E porque não? Os jovens querem lá saber de -lhe um sorriso feroz. Olhei para o Manca-Mulas,
desavindas do antigamente — argumentavam preparado para serenar o ambiente, mas o que
outros. vi foi receio. Incrível, pensei.
39
PER FICTA, RESISTERE | A ANATOMIA DE UM SONHO Inês Pinto
Nessa noite, no café, só se falava do incidente “Marido e mulher” foi o mote e, assim, as
na feira. Tentei perceber o que acontecera gentes abandonaram a igreja. Cochichavam
enquanto estivera ausente. Disseram que entre si. Muitos deles felizes, quase nenhuns
o Henrique não visitava o pai há meses. apreensivos. Comentavam a coincidência de
Telefonava-lhe para saber da saúde e pouco os convidados do noivo não aparecerem, nos
mais. A Virinhas também seguira caminho, sem seus carros citadinos, os homens de fraque, a
lamentações. Imaginem que até aparecera com lembrar louva-deus enlutados, e as senhoras
um homem elegante, de bons modos, mas de vestidos compridos, género esfregonas
pouco dado a convívio. Todos concordavam andantes. Pensativo, relembrei as palavras
que era menos formoso do que o Henrique, uma da Virinhas sobre os sonhos, mas optei por
vez que no seu rosto, decorado por uma barba apreciar o cortejo aldeão a preparar-se para
farfalhuda, ressaltava uma verruga na narina o confronto.
esquerda. Passeavam, visitavam os terrenos Todos nós aguardávamos o casal, frente à
e até tinham ido à missa. Ninguém ousou igreja. Os noivos estariam a assinar os papéis
fazer perguntas, pois não previam a reação na sacristia. O padre, com certeza, não se
da Virinhas. O brilho que ela emanava prendia juntaria à multidão. Afinal, teve o papel de
os menos precavidos. E assim, sem grande encenador! Foi então que pressenti o toque
surpresa, o casamento foi marcado para agosto. da bengala na escadaria que dava para o
Toda a aldeia fora convidada, salvo Henrique e o átrio. A multidão fez alas e o Manca-Mulas
Manca-Mulas, como compreendem. posicionou-se frente à entrada da igreja.
Quando cheguei em finais de maio, a Incrédulo, passava, com um olhar de laser,
rotina aldeã decorria ao sabor de um verão por todos os rostos à procura de confirmar o
antecipado. Poucos dias depois, a Virinhas fez- que a Dona Laurinda lhe denunciara. Confesso
-me uma visita. Conversámos sobre banalidades, que, naquele instante, entendi por que razão
antes de ela me convidar para o casório, comemos tantas pipocas, quando assistimos a
citando o seu palavreado. Notei-lhe uma um filme. A tensão entranha-se de tal forma que
felicidade genuína e, num ímpeto, perguntei-lhe a subconsciência mecaniza o movimento. Seria
se esquecera o Henrique. Retorceu os dedos, muito pior se comêssemos pedacinhos
antes de me presentear com as seguintes de bacon frito!
palavras: “O medo amordaça e tolhe os sonhos A falsa serenidade quebrou-se com o roçar do
frágeis, mas nunca os que estão envoltos pelo vestido e a batida de sapatos altos. No peito
manto da vontade e do acreditar”. No imediato, de cada um de nós um tambor rufava. Pouco
não atingi o alcance daquelas letras, conjugadas depois, o Manca-Mulas aproximou-se para ver
em palavras que destilavam sabedoria. Aceitei o melhor. Esfregou os olhos. No alto da entrada,
convite e aguardei pelo tão extravagante dia. a Virinhas apareceu, feliz, de mãos dadas com
o Henrique que segurava, na mão esquerda, a
*** barba farfalhuda. Largou a mão da Virinhas e
retirou a falsa verruga do nariz. O Manca-Mulas
Caros leitores, voltamos ao início desta história. não reagiu. O povo uniu-se no silêncio e eu
Se bem se recordam, sentei-me no banco, pensava, caros leitores, em como os sonhos
espectador de primeira fila para o desenlace. são reviravoltas da vida!
40
«A falsa
serenidade
quebrou-se com
o roçar
do vestido
e a batida
de sapatos altos.
No peito de cada
um de nós um
tambor rufava. »
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PER FICTA, RESISTERE
UM CONTO
DE NATAL JOSÉ MENDES
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manual de madeira, na família há mais de três Após o almoço do dia seguinte, chegou a hora
gerações. A brancura do tecido, apenas quebrada de se porem a caminho, ao encontro do mestre,
por duas listas carmesim nas pontas, contrastava previamente contactado para lhes fazer as
com o achocolatado claro das paredes da desejadas obras. Seriam iniciadas, sobretudo ao
cozinha, outrora brancas por sucessivas camadas nível do telhado, o qual já não impedia a água de
de cal. Dessa cor se encarregara o fumo que, entrar, nalguns pontos.
quando havia vento a dificultar-lhe a saída, se A mãe, que já só caminhava dentro de casa com
escapava matreiro e cinzento da saia da chaminé. a ajuda de um andarilho, foi colocada na sua
Nela ardiam, lentamente, bem secos, grossos cadeira de rodas, presa a um cabo de aço que
enrolava ou desenrolava numa roldana, através de
troncos de carvalho, provenientes da poda de
um engenhoso sistema electromecânico. A ajuda
árvores, de anos anteriores. Desde a manhã até
de um comando permitia-lhe descer ou subir em
à hora de ir para a cama, aqueciam a casa e
segurança os cerca de trinta metros de rampa
aconchegavam os corações nas longas conversas
íngreme, da casa até à rua.
ao serão. O Inverno, longe dos ares amenos e
O céu mostrava um tempo incerto e estranho,
húmidos do mar, corria frio. No dia seguinte ainda
mas, ainda assim, com algum sol. A meio da lenta
conservavam um brasido meio adormecido que,
depois de soprado, facilmente inflamava novos e cautelosa descida, inesperadamente, começou
toros, num ciclo que durava até à chegada da a cair uma chuva forte, daquelas que nos obrigam
Primavera. a correr à procura de um abrigo. Os trovões e
No dia anterior, à noitinha, logo a seguir à relâmpagos também vieram, furiosos, participar
passagem do Gordo (Preço Certo) na televisão naquele acto de invernia súbita e ruidosa. O resto
— que não dera nenhum carro — o casal de da descida teve por isso que ser feito a correr,
idosos, pais do dono da casa, que com ele fora pondo em risco as habituais regras de segurança,
viver há uns meses, manifestara a intenção de sempre adoptadas nas descidas ou subidas. O
ir à sua terra, que distava dali meia dúzia de piso metálico escorregadio, e a pressa, fizeram
quilómetros. Pretendiam visitar a sua antiga a cadeira deslizar, projectando a senhora
e arruinada casa, construída há quase três para fora da plataforma. Deteve-a, na queda
séculos e que tivera como única melhoria de desgovernada, o portão de ferro, junto à pala de
vulto a construção de uma casa de banho betão armado, ao lado da garagem. Era lá que
no seu interior. Embora bem tratados pelos o velho Opel Kadett os esperava, para a curta
seus cuidadores, filho e nora, e alegrados viagem. As gargalhadas do velhote (a demência
pela traquinice dos netos, as saudades que por velhice tem destas coisas) contrastavam de
sentiam da casa doíam-lhes imenso. Por isso forma descarada com a aflição dos restantes
o velhote, já afectado por alguns sintomas de participantes na cena.
declínio cognitivo, de vez em quando, sentia a — Magoou-se? — perguntaram todos, aflitos.
necessidade de lhe fazer obras, para nela irem Sacudindo as pingas do grosso casaco preto, a
morar de novo, desejo incontido de autonomia mãe respondeu, com um meio sorriso nos lábios,
que já não tinham. Por pouco tempo seria, sabe-se lá se contagiada ou envergonhada pelo
decerto. As patologias de que sofriam já não lhes riso descarado e despropositado do marido:
permitiam viver muito tempo sozinhos. — Não! Está tudo bem. Ajudem-me a sentar na
— Está bem! Vamos lá amanhã, a seguir ao cadeira por favor.
almoço. Tem de ser uma visita rápida, porque A preocupação começou a diminuir. Tudo não
é véspera de Natal e temos que vir descascar passara de um grande susto!
as batatas — dissera-lhes o filho cuidador, um Lá se mantiveram algum tempo, que todos
tanto contristado por não saber mais o que lhes acharam longo, abrigados debaixo da pala de
fazer para se sentirem bem e, ainda assim, ver cimento. Continuava a chover e a trovejar, com
desconsiderada a sua filial dedicação. intensidade. Ninguém falava. Até ao momento
43
PER FICTA, RESISTERE | UM CONTO DE NATAL José Mendes
«A maior surpresa,
contudo, ainda estava
em que o filho cuidador —, instantaneamente por revelar, debaixo
lembrado do que lhe diziam quando era menino
e trovejava —, resolveu quebrar o silêncio: da caliça. À medida
— O Jesus está zangado! que ia sendo retirada
Seguiu-se um novo silêncio.
— Alguém se andou a portar mal… — insistiu. da ombreira da porta
Continuou o silêncio durante minutos.
—Vamos? — disse-lhes, quando a chuva, tão
grande da casa, iam
repentinamente como começara, parou. aparecendo caracteres
Olhando-se meio envergonhados, imbuídos
daquela cumplicidade de muitos anos que
gravados na pedra. »
faz adivinhar pensamentos, os velhotes
responderam à vez.
— Não vale a pena. Vamos para cima.
O filho, algo surpreendido, ainda aguardou e a quem, nessa noite, deram o topo da mesa: o
por uma mudança de planos. Como tal não destinado ao chefe da casa.
aconteceu, lá foram todos rampa acima a
recolher-se. As lâmpadas, em forma de vela, do candeeiro
Das obras, os idosos, nunca mais falaram. colocado por cima da mesa, punham, nos olhos
Nesse dia, estiveram mais simpáticos do que o húmidos de quem as observava, relampejos de
habitual e não só por ser Natal. Sentia-se que estrelas: certamente por causa do fumo que
queriam pedir desculpa por alguma coisa e não se escapava da chaminé. A refeição acabara. A
conseguiam fazê-lo. garrafa de Porto, aberta para encerrar o repasto,
Aquela chuva repentina e despropositada, a ia a meio. O “pestanudo” tardava em chegar. As
queda aparatosa da mãe e o curto diálogo histórias de outros natais de muito longe, saíam
trocado fizeram libertar recordações longínquas. lentas e emotivas.
Mais do que isso, operara um milagre naqueles No dia seguinte, e em muitos outros, a vida
corações sensíveis e crentes, que em todas pacata e simples daqueles velhotes e dos seus
as boas e más manifestações da natureza ou cuidadores corria simples e sem sobressaltos. A
perante qualquer sucesso ou insucesso, como velhota continuaria a preencher as suas tardes
uma simples queda, veem mão divina que, às sentadas na pequena varanda envidraçada.
vezes, castiga. — Vou para o aquário — costumava dizer,
A ceia de Natal correu melhor do que em anos agarrada ao andarilho que a ajudava nas
anteriores. O bacalhau estava no ponto. O vinho pequenas deslocações. Ali gostava de apanhar
tintão — em todas as suas fases produzido com o tímido e morno sol dos dias. Enquanto
a ajuda dos membros da família — deixava, nas prosseguia na leitura dos “Contos da Montanha”
antiquíssimas canecas de porcelana branca, e observava os gatos no quintal, às voltas com
alguns traços que escorriam até à toalha. as suas coreografias amorosas. Embora tivesse
— É forte o vinho, este ano. Está muito bom. apenas a terceira classe — bem tirada, como
Vê-se pela forma como escorre nas canecas! — fazia questão de frisar —, gostava muito de
disse o pai do dono da casa, de repente lúcido, ler. Adorava o livro que o filho lhe oferecera,
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escolhido do armário grande da sala. Por vezes — Está bem, não vos tapamos — pareciam todos
não sabia o significado de alguma palavra que dizer-lhes, rendidos à beleza das suas cores.
fugia ao seu léxico habitual e lá indagava curiosa: A maior surpresa, contudo, ainda estava por
— O que é um dólmen?... revelar, debaixo da caliça. À medida que ia sendo
retirada da ombreira da porta grande da casa,
Os velhotes viveram tranquilamente mais uns anos iam aparecendo caracteres gravados na pedra.
na companhia dos seus cuidadores. Regularmente, Primeiro três iniciais, certamente de um nome.
tinham de recorrer aos cuidados do serviço de A curiosidade obrigava a acelerar a remoção.
urgência do hospital concelhio. Partiram com o Quatro números, irregulares e toscos vieram
intervalo de um ano. Uma pneumonia, contraída no depois: 1760!
mesmo hospital, pôs fim à sua presença entre os De olhos brilhantes de emoção, ouviu-se a idosa:
entes queridos. — Eu bem vos disse que a casa era muito antiga…
A mãe, a última a partir, ainda pode assistir ao
início da recuperação da sua casa, que o filho, Na sequência de uma pesquisa posterior,
entretanto, resolvera encetar. Na sua cadeira ficou a saber-se que a casa era a mais antiga
de rodas, não dispensava o acompanhamento da freguesia que já tivera o nome de Sacro
das obras. Primeiro o telhado, com madeiras e Salvatore de Vilario. Permanece ainda de pé,
isolamentos novos, para lhe dar um mais eficiente depois de alguns episódios em que se pensou
isolamento térmico. A seguir passara-se ao demoli-la, antes de se partir para a reconstrução.
retirar de toda a velha caliça que a revestia, por Decerto as memórias que ela guarda, umas mais
já não cumprir a sua função isolante e estética. recentes, outras remontando a séculos passados,
À medida que a operação decorria, iam ficando terão contribuído para que se tornasse, quem
a descoberto lindíssimas paredes de xisto sabe, eterna.
avermelhado, que pareciam exigir-nos que não as
tapássemos mais. Apenas as ombreiras e padieiras
das portas e janelas eram de granito irregular. A pedido do Autor, este texto não segue a
Também elas pareciam fazer coro com as de xisto: grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua
— Não nos tapem! Portuguesa.
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PER FICTA, RESISTERE
ASAS
EM QUATRO LÚCIA MENDES
DOBRAS
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involuntária, desequilibrou-se. Disfarçou com partiu. Voou, com movimentos atabalhoados,
dois passos curtos subindo o ramo e, num longe da perfeição. Ia, só isso já lhe
crocitar rouco, disse — Quem quer vir comigo? acrescentava um vigor inexplicável. O nevoeiro
Alguns corvos focaram os seus olhos pretos foi descendo, continuou na direção certa. Um
com admiração, outros com escarnecer vento repentino deu-lhe dez voltas ao corpito.
grasnaram e bateram as asas sem levantar voo. Sem norte nem sul, não sabia mais por onde
— Cuá! Cuá! Cuá! Olha lá quem quer ser rei! seguir.
— Partirei amanhã! — enfiou o bico nas penas. Desceu à terra. Não encontrou abrigo, só as
Tantas vezes exaltou esta frase, num grito de ervas rasteiras de um prado já muito mexido.
coragem. Acabava sempre por se acabrunhar. Sentiu os pingos da chuva, cravavam-se nas
O medo também é dono. penas pretas, rebentavam a terra à sua volta,
De madrugada, sem contas nem previsões, formando uma cova.
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PER FICTA, RESISTERE | ASAS EM QUATRO DOBRAS Lúcia Mendes
«As pessoas
Quando o nevoeiro desapareceu, sacudiu as afastavam-se e
asas e partiu em direção à torre, sem olhar
para trás. Se o tivesse feito, veria a fartura. A
davam passagem
chuva intensificou-se durante a noite. Com as a uma mulher, de
casas inundadas, os ratos saíam agora à rua. Os
corvos, que tinham ficado para trás, num ápice
cabelos longos
os caçaram, para uma satisfação efémera. e pretos que
Chegou. O negrume não deu azo à alegria que
alcançou. Tocou o chão despedindo-se já da avançava de
vida medíocre. cabeça erguida,
No escuro, sentiu um cheiro intenso e a
presença de outros corvos. Alimentavam-se em apesar de
silêncio, resignados a uma condição. Não se
consciente de
deram ao trabalho de saudar o recém-chegado.
Foram partindo. Apagaram-se na noite sem seu fim. Subiu uns
lua. Não ouviu o bater das asas, apenas garras
riscando o chão.
pequenos degraus
Depois, sozinho, voou como um louco, vibrando de madeira, ao
sobre os arcos. A cadência das suas asas fazia
eco nas perpétuas paredes.
encontro do
— Chamarei todos lá fora para virem matar a patíbulo. Ouviram-
fome!
Quatro da manhã, quando a luz alvejava as -se as suas últimas
sombras, viu bem de perto o rio. Subindo a palavras. »
torre, toda a podridão ganhava invisibilidade.
Os corvos uniam-se formando uma mancha
preta. Seguiam as delineações que o recém-
-chegado edificava no ar. Não o acompanhavam.
Comia o mais que podia quando um corvo se
aproximou em pequenos saltos: pálidas. Tremiam. Colocou-as sobre o peito,
— Voa enquanto é tempo. sustendo a respiração.
Um alvoroço fez-se sentir na ala aberta da torre. As pessoas afastavam-se e davam passagem
As pessoas, descalças e vestidas de cores cruas, a uma mulher, de cabelos longos e pretos
entraram de rompante naquele compartimento. que avançava de cabeça erguida, apesar de
Os gritos foram tão invasores do silêncio que consciente de seu fim. Subiu uns pequenos
o primeiro instinto do corvo foi fugir. Com a degraus de madeira, ao encontro do patíbulo.
barriga demasiado farta, desequilibrou-se e Ouviram-se as suas últimas palavras. Outra
foi então abeirar-se numa janela peculiar em mulher aproximou-se e, prendendo nos lábios
forma de cruz. Dentro daquelas paredes estava o choro, vendou-lhe os olhos com um lenço
um homem. De pé, dirigia o olhar, para o adro. branco dobrado em quatro, deu dois passos
Esfregava a barba ruiva com as suas mãos para trás e inclinou a cabeça para a frente, para
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que os seus cabelos a vendassem também. nas folhas secas, provocaram um crepitar que
A condenada colocou-se de joelhos, com a fez despertar os guardas. O homem iria ser
cabeça assente numa plataforma. O som de um apanhado. Surgiu então uma ideia. O corvo,
corte afiado, direto e único rasgou o ar. usando o que ouvira muitas vezes, disse, num
O homem agachou-se nesse instante, fez-se crocito frio e duro:
pequeno, escorregando pelas colunas até ao — Viva ao rei!
chão, abraçou os joelhos. Prisioneiro da torre Os guardas estremeceram. Em vez de
e de si próprio, nada poderia fazer para evitar avançarem, recuaram de encontro às paredes e
aquela desgraça. hesitaram. Aquela voz rouca e sarcástica parecia
O corvo depressa concluiu o porquê de tanta levantada das trevas, vingando todas as mortes.
fartura. Bateu as asas em pavor e foi cair diante De repente, o homem agitou os braços
dos outros corvos, apagou-se. desesperado. Tinha deixado cair algo
Quando despertou, uma dor aguda lacerava-lhe importante na fuga. Queria saltar borda fora.
o lado direito. As penas das asas tinham sido Tentavam controlá-lo. Apontava para o jardim.
cortadas. Tentou voar, não conseguiu. Então o corvo percebeu a sua aflição.
Percebia agora o aviso e o deslumbramento Com patas curtas, tentava ser veloz, nos muros,
dos outros perante o seu voo. Tarde de mais. nos degraus, nas pedras, na terra. Por mais
Teria sido melhor morrer do que viver preso à rápido que tentasse e se movesse, o tempo
vertigem de uma vida farta. era ladrão. Os guardas, com as suas lanternas,
Passou dias sem comer, lamentando a sua aproximavam-se, denunciando a morte certa.
ambição. Arrancou ele próprio as restantes Então, pela primeira vez, desde aquele dia
penas. Nu, restava-lhe a coroa negra na sua fatídico, abeirou-se do seu próprio precipício,
pequena cabeça. Era rei, era nada. abriu as asas e atirou-se.
Aos poucos, arrastou-se até ao jardim. Bicava Dois homens controlavam a pequena
bagas entre os lírios. Rebentavam fragrâncias e embarcação e o vento forte em seu favor.
luz na terra negra. As farpas de penas cresciam Iriam conseguir escapar. O fugitivo baixou os
entre as formigas. Esperava eliminarem a braços, escondeu a cabeça no carapuço preto
sensação de incapacidade. e fechou os olhos abraçando o livro que trazia
Ficava cada vez mais ágil e preciso nos embrulhado à cintura. Chorava.
movimentos das suas patas que granjeavam Os dois guardas olhavam a pequena
sola grossa. embarcação, correndo de mãos à cabeça.
Passados dois outonos, já se vestia de preto e Num voo triunfal, o corvo aproxima-se, batendo
os saltos eram acompanhados de flutuações as asas em euforia. Largou o que o homem
que balançavam o seu corpo em voos curtos, perdera nas suas mãos. Este depressa saltou em
sempre rentes ao chão. exaltação. Beijou suavemente o lenço dobrado
Utilizando pequenos muros, aproximava- em quatro, esticou-o. Susteve-o na haste e
se da janela em forma de cruz, desafiando elevou-o bem alto, formando uma bandeira
a gravidade. O homem esculpia palavras branca. O tecido balançou ao sabor do vento e
perpetuadas em sonetos que depois lia em do mar.
voz alta. Quando dava pela presença do corvo, O corvo descansou por um instante no topo do
levantava-se e estendia-lhe pão através da mastro. Pôde ver a árvore de onde partira. Lá
pequena abertura. permaneciam os mesmos pontos pretos.
Numa noite, viu surgir um pano: alongava-se em O homem de barbas, dirigindo-se ao lenço
vários nós até o solo. Por ele descia o homem esvoaçante ao vento, declarou:
de barbas ruivas. No barco, escondido entre — Cumprirei o que prometi, meu anjo. Juntos
os arbustos da margem do rio, aguardavam-no conheceremos os quatro cantos do mundo e
outros dois. Os seus pés, quando assentaram tornarei a nossa história eterna.
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PER FICTA, RESISTERE
A POUSADA
KOOKABURRA MARISA ROCHA
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Partiram nos primeiros dias de novembro, -lhes «From good old Portugal! Good Port
quando o calor já se ia fazendo sentir nos wine!» fazendo Steve soltar uma gargalhada.
antípodas. Em Sydney, início da viagem, Com cabelos encaracolados cor de palha e
pernoitaram em casa de amigos e não podiam alguns brancos nas têmporas, o alegre aussie
ter tido melhores cicerones para visitar esta era um homem atraente, alto e atlético, com
cidade cosmopolita, recortada sobre o mar, cerca de cinquenta anos, que contrariava a
formando um porto natural e a Casa da Ópera ideia alimentada pelos portugueses de que o
que ofusca qualquer monumento. Exploraram australiano era só surf e cerveja. Michelle era
ainda nos arredores as praias Manly e Bondi, a sua única filha. Rapariga adorável que se
mecas do surf. preparava para tirar o mestrado em Inglaterra e
Percorreram de autocaravana a estrada de viajar pela Europa. A mulher de Steve morrera
Sydney a Cairns junto à costa, parando nas com um cancro quando ela tinha apenas dez
inúmeras praias, muitas delas desertas, onde anos e Steve educara-a sozinho com a ajuda dos
se banharam nas águas quentes e cristalinas pais. A sua firma em Perth, a Aussieland, formava
sempre atentos aos tubarões, embora pessoal em novas tecnologias.
parecessem ser os únicos preocupados com os Constança, perdida no seu olhar azul, não queria
mesmos. Paragem obrigatória foram também acreditar, era tudo demasiado para ela. «Ou é o
algumas das cidades e vilas costeiras que destino a brincar ou já não sei o que pensar. No
constavam dos guias turísticos. No interior, mesmo ramo de trabalho que eu?» O interesse
descobriram parques com fauna e flora de Steve por Portugal e pela nova amiga crescia
invulgares e vilas tipicamente australianas, com a cada momento que passavam juntos. Sabendo
nomes tão estranhos como Woy-Woy. Deliraram que ela iria depois seguir viagem sozinha e que
com as experiências no país dos cangurus e tencionava visitar ainda Melbourne, Adelaide e
coalas. Os aussies (diminutivo para australianos) por último Perth, ele fez-lhe uma lista de hotéis
com quem se cruzaram tiveram sempre tempo onde pernoitar nas primeiras duas cidades e
para dois dedos de conversa, oferecendo até as entregou-lhe o cartão de uma pousada nos
suas cervejas. Com uma pronúncia, por vezes, arredores de Perth.
difícil de entender, abreviavam as palavras e Voltaram a encontrar-se em Cairns onde os dias
usavam um calão único. No letreiro à porta passaram a correr. Na pequena cidade tropical
de um restaurante em Byron Bay, zona hippie os quatro dedicaram-se a descobrir a região
chique, proibiam os clientes de entrarem com e os seus pontos de interesse. Visitaram os
thongs. No seu inglês britânico, Constança parques, as ilhas da barreira de coral, fizeram
reconhecia a palavra como sendo calcinhas de mergulho, snorkelling e apreciaram o fundo do
senhora e não entendia. Puseram os fregueses mar nos barcos de casco transparente. Viajaram
todos a rir, depois de alguém lhes apontar para no trem cénico até Kuranda, regressando no
os pés e explicar que na Austrália eram chinelos.
Mas, por fim entraram… com ténis! Passaram
a anotar num caderninho as expressões mais
emblemáticas.
«Constança, perdida
Em Harvey Bay visitaram a ilha Fraser, maior ilha
de areia do mundo, com nascentes naturais, no seu olhar azul, não
zonas de floresta subtropical no interior
e dingos, os cães selvagens australianos.
queria acreditar, era tudo
Simpatizaram com os colegas da excursão, demasiado para ela.»
sobretudo com Steve e Michelle, oriundos de
Perth. À pergunta usual sobre donde vinham,
Afonso, sempre bem-humorado, respondera-
51
PER FICTA, RESISTERE | A POUSADA KOOKABURRA Marisa Rocha
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calções de caqui e uma camisa creme com completavam os sofás confortáveis. A mesa
o nome da pousada Kookaburra Lodge, veio para seis pessoas tinha apenas dois lugares
ao seu encontro com um grande sorriso e postos. Sobre ela, destacava-se um par de
cumprimentou-a com um G’Day. Viam-se velas em candelabros de prata e um centro de
alguns hóspedes junto à piscina. Ao conduzi-la mesa com flores silvestres em tons amarelo e
ao quarto, a moça informou-a de que, naquela branco, que aliás decoravam também toda a
noite, Constança seria convidada do dono sala. Perguntou à empregada se só ela tinha
da propriedade para jantar. Ela agradeceu chegado naquele dia. Ela sorriu-lhe e confirmou.
perguntando a si mesma se seria prática De repente ouviu em português com sotaque:
corrente daquela pousada o primeiro jantar ser «Bême-vindá mênina Constannssa!» O seu
oferecido pelo proprietário. Tomou um bom coração parou. «Hum?! Mas… eu conheço esta
banho, descansou, vestiu um dos vestidos voz!» Voltou-se rapidamente e os seus olhos
frescos de verão que trouxera e calçou umas verdes surpreenderam-se ao encontrarem os
sandálias a condizer. Às dezanove horas, como azuis de Steve que trazia um ramo de lírios, a
combinado, dirigiu-se ao salão. sua flor favorita. Abraçou-o, beijou-o, deixou-
Na lareira de aspeto rústico, uma pintura -se abraçar, beijar, ria e chorava, sem conseguir
aborígene pendia da parede e dois pássaros dizer nada, sob uma chuva de palmas de todos
Kookaburra decoravam a prateleira. No salão, quantos estavam na pousada. Lágrimas de
a decoração era clássica, predominando os emoção caíam-lhe pelas faces e as dúvidas que
tons neutros e várias almofadas coloridas a assombravam dissiparam-se por completo.
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PER FICTA, RESISTERE
A OLIVEIRA
E A ESPADA NUNO GONÇALVES
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à cabeça. E quando deixei de ser uma menina, «Esperais que o
quando os vossos filhos se deixavam enamorar
quando eu passava, desdenhastes-me, calor derreta os
evitastes-me. vossos pecados?
Mas batíeis-me à janela do quarto, escondidos
pela noite, para me mostrardes mazelas, feridas, Pois não viestes
inchaços, pápulas, vermelhões, tumores. E
sabíeis que eu teria um chá, uma planta, um
tantos de vós
unguento que vos aliviasse. trazendo as filhas
Esperais que o calor derreta os vossos pecados?
de arrasto?»
Pois não viestes tantos de vós trazendo as filhas
de arrasto? Prenhas de vida e arrependimento.
Porque tinha de se “resolver a questão”, já que
nem elas sabiam quem seria o pai ou, se sabiam,
não era do vosso agrado, pois lhe faltavam Dizem eles que a Oliveira simboliza a
terras, posses ou títulos. misericórdia. Vos pergunto: é isto misericórdia?
E quantos dos vossos filhos e netos trouxe eu a É misericórdia negar o perdão a quem
este Mundo, com estas mãos agora trucidadas desconhece os seus pecados?
pelas cordas? Quantos salvei de se enforcarem Lançaram-me perguntas com o chicote e, não
no cordão? E quantas das vossas mulheres descobrindo as respostas que procuravam no
teriam partido se não tivésseis mandado sangue que escorria dos vergões, levaram-me
chamar-me? para o chão frio e húmido das santas celas.
Até ao vosso gado eu acudi. “Deus me ajude Depois, prenderam-me os punhos e os pés
que se eu perco esta vaca… Que vai ser de com mais interrogações e fizeram rodar a
nós?” E nem perdestes vaca, nem vitelo, nem o manivela esperando que respostas saltassem
sustento daquele ano. dos meus poros.
Esperais que os meus gritos vos purifiquem? Esperais que a minha alma carregue as vossas
Pois que agora me olhais com desprezo, porém falhas?
já me olhastes com gratidão. Já me olhastes Não tenho vergonha de vos contar o que
através de lágrimas de alívio. Já me deixastes à revelei. Confessei com palavras o que a dor
porta leite, bolos, legumes, cestos de fruta. Já
rezastes a Deus pela minha saúde, pois a minha
saúde seria também a vossa. «Esperais que os meus
E, apesar de saberdes que a vossa vida, a da
vossa família, a dos vossos filhos, a do vosso gritos vos purifiquem?
gado, não terminou graças ao meu saber e às
Pois que agora me olhais
minhas mãos, nenhum teve coragem de erguer
a voz quando eles vieram. com desprezo, porém já
Eles chegaram e perguntaram nesta e naquela
porta, aproximando-se da minha janela aos
me olhastes com gratidão.
poucos. Irromperam sem pedir permissão, exi- Já me olhastes através de
bindo o selo que eu já esperava enfrentar um dia.
Dizem eles que a Espada simboliza a justiça. Vos
lágrimas de alívio.»
pergunto: é isto justiça? É justiça dar a comer ao
fogo quem vos ajudou?
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PER FICTA, RESISTERE | A CONSCIÊNCIA TAMBÉM CHORA Cláudia Passarinho
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«E é a
minha pele
que estala e
contrai, mas
é a vossa que
berra por
alívio. »
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LETRA MIUDINHA
UM ESTRANHO
NO CIMO
DA ÁRVORE MARIA SUSEL
GASPAR
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pensar ou até sonhar. Quando há uma brisa,
«Todos concordaram
então é mesmo o paraíso. A balançar, de cá
para lá. De lá para cá. Daqui para ali, de ali que podiam não ter
para acolá. Até se pode adormecer, como se
estivéssemos em cima de uma nuvem ou no
olhado bem ou não
borbulhar da espuma do mar. ter observado tudo.
Primeiro, costumam subir os que se deslocam
mais devagar; a seguir, os que vão assim-assim
E, além disso, juntos,
e, por fim, os mais rápidos. Todos na mira do podiam enfrentar
seu lugar favorito, sem esquecerem do lema
“quem não vai cedo, perde o folhedo”. qualquer estranho
Ora, num desses entardeceres, os que já ou monstro, por mais
estavam a chegar ao cimo voltaram para trás,
tão depressa quanto podiam, em grande cabrês que fosse.»
alarido. Parecia terem visto o pior dos fantasmas
ou o monstro mais temido.
No meio da confusão, somente as formigas
estavam entusiasmadas.
— Nem imaginam o que está mesmo em cima
do nosso ramo — gritou a formiga Loriga,
prima da Rabiga, completamente eufórica e
com a cabeça às voltas. — Um escorrega! Um Eu descobri que tem uma garra comprida,
enorme escorrega verde, todo espiralado, todo muiiiiito compriiiiiiida.
espiiiiiiraaaaalaaaaaaaadooooooooooooooo. As formigas primas da Rabiga, impacientes,
— Uaaauuuuu! — exclamou a formiga Estiga, tentavam falar do escorrega, que tinham a
também prima da Rabiga, em rodopio sem certeza de ter avistado, mas ninguém as ouvia.
parar. Cada um advertia para um perigo maior do que
Estavam as parentes da Rabiga já a sentir o outro e o medo aumentava como um nevoeiro
borboletas na barriga de tanta animação, cada vez mais denso.
quando um dos pardais, que sabia sempre tudo — Com faróis para procurar, garras e, talvez,
o mais, veio estragar a festa. enormes dentes bem afiados, não deve ser coisa
— Cuidado, que eu não vi nada disso. Primeiro, boa — afirmaram muitos dos animais que se
essa coisa estranha nem sequer é verde, é meio aproximavam para ouvir a tragédia do roubo dos
alaranjada, quase da cor do fogo e tem dois lugares altaneiros com vista para o mar.
faróis que rodam em todas as direções e veem — Nunca mais vamos ter o nosso cantinho
tudo, mesmo tuuuuuuudo, em seu redor. Não preferido — começaram a choramingar outros,
pode ter boa intenção. já a sentirem-se nostálgicos.
Quando as formigas primas da Rabiga iam — Uma autêntica injustiça — reclamavam os
começar a explicar melhor o que viram, um ouriços Roliços, compadres dos Eriços.
dos ouriços, da família dos Eriços, que vivia no No meio de tamanha confusão e desânimo, uma
tronco ao lado, confirmou o pânico do pardal: das formigas, a que mais sentia a força rabiga a
— Também acho que essa coisa, ou melhor, correr-lhe nas veias, resolveu intervir:
esse monstro, não se apoderou dos nossos — Esta discussão é inútil e os lamentos não nos
lugares com bom propósito — concordou ele. servem para nada!
— Temos de ter muita cautela, pois o que eu — Mas o que podemos fazer? — perguntou,
observei é muito pior. Não é verde, nem cor de curioso, um dos pardais.
fogo. Nem tem escorrega, nem faróis a girar. — Temos de saber quem é esse estranho que
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LETRA MIUDINHA | UM ESTRANHO NO CIMO DA ÁRVORE Maria Susel Gaspar
se instalou no cimo da árvore — respondeu a tal anunciar a formiga Loriga, prima da Rabiga.
formiga, com uma energia capaz de enfrentar — Uma cama? — interrompeu um dos ouriços
até a Cabra Cabrês. Roliços. — Mas o que faz uma cama no cimo da
Todos concordaram que podiam não ter olhado árvore? É muito estranho.
bem ou não ter observado tudo. E, além disso, — …leão — terminou a formiga que começara a
juntos, podiam enfrentar qualquer estranho ou falar.
monstro, por mais cabrês que fosse. As palavras — Um leão? Está tudo doido — resmungou um
da formiga, que até era prima direita da Rabiga, pardal.
aguçaram a vontade de conhecer melhor o — Nem sequer há leões por estas bandas, nem
que todos viram, mas ninguém parecia ter eles gostam de subir às árvores — apressou-se
entendido. a explicar outro dos pardais, que sabia sempre
O medo transformou-se em entusiasmo e a força tudo o mais.
de todos em ação. — Um cama…leão! — disse, entusiasmado,
Decidiram, pois, que tinham de ver melhor e, outro dos pardais.
quem sabe, enfrentar a perigosa criatura. Só aí todos perceberam.
Então, com muita cautela, pata-ante-pata ou — Um camaleão. É um camaleão. Um camaleão
asinhas de lã, consoante os casos, subiram, com as cores do arco-íris — gritaram todos ao
subiram, subiram, de pernada em pernada, até mesmo tempo.
conseguirem avistar o estranho. A algazarra interrompeu o descanso do
E lá estava tudo. Uma cauda verde enrolada e monstro, que afinal não era monstro.
agarrada a um tronco, tal e qual um escorrega Com a cauda e as patas bem agarradas ao
em espiral. Dois olhos que giravam como faróis. galho onde se encontrava, lá estava o camaleão.
Uma língua comprida em forma de tubo, como Nisto, virou a cabeça e focou ambos os olhos
uma garra para chegar longe. Cores que podiam no local onde todos se esconderam entre a
variar. E até quatro patas que ninguém notara. folhagem, uns quantos ramos mais abaixo.
— Mas é um cama… cama… — começou a De repente, um silêncio medonho espalhou-se
como uma onda de arrepios.
Por instantes, pensaram que iam estremecer até
serem engolidos, ou esmagados, ou triturados…
«Nesse dia, todos Mas não. O camaleão, apenas ergueu um pouco
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LETRA MIUDINHA
FLOCO
E GOTINHA PATRÍCIA LAMEIDA
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LETRA MIUDINHA | FLOCO E GOTINHA Patrícia Lameida
«O dia terminava, os
raios de sol recolhiam
Na cidade-céu havia um floco de neve
e as estrelas (criaturas
especialmente falador. Adorava passear e estranhas e mágicas)
caminhar sobre os ladrilhos azuis, que o deixavam
ver o castanho e verde da terra bem abaixo. começavam a surgir
Conversava com todos os que lhe respondessem no horizonte. »
e, assim, tinha muitos amigos e ainda mais
conhecidos.
Aquele era um dia brilhante. Os trovões
descansavam depois da tempestade de há duas
semanas, e os ventos andavam em maré de boa de chuva, eram tão tímidas que ficava difícil
disposição. Os raios de sol aproveitavam para deixarem-se ver. E aquela Gotinha era muito
mostrar todo o seu esplendor e era a altura bela…
ideal para espreitar as cores lá debaixo. O Floco — Não tenhas medo. Chamo-me Floco. – Riu
procurava sempre um local diferente, confortável, embaraçado. – Eu sei que não é um nome muito
que lhe permitisse espiar as curvas da superfície original, mas pelo menos identifica-me com
terrestre. Olhava deliciado as copas das árvores muita eficácia.
altas e densas que passavam sob os seus pés, A Gotinha achou engraçado aquele floco de
quando ouviu um suspiro. Estava pouca gente na neve, que se chamava Floco, e que não parecia
rua, e não lhe pareceu que o suspiro tivesse vindo ter medo dela. Os seus pais sempre lhe disseram
da brisa que acabara de entrar na nuvem à sua que deveria ter muito cuidado com estranhos:
frente. Devagar, foi até à nuvem escura que ficava as gotas de chuva são muito molhadas e, ao
na curva e espiou quem seria. Uma pequena aproximarem-se, facilmente poderiam encharcar
gota de chuva, transparente, brilhava com o outros, o que seria com certeza desagradável.
reflexo dos raios que ao fundo se preparavam Poderia até desencadear um conjunto de
para aquecer a tarde. Parada em frente à porta insultos! Mas o Floco não parecia preocupado e
da nuvem que talvez fosse a sua casa, a Gotinha sorria-lhe, incentivando-a a falar.
olhava para baixo com espanto, tal como o — Olá. O meu nome é Gotinha… - Não tinha
Floco estava a fazer. Era tão bonita, a Gotinha, ali muito jeito para aquilo. Não sabia bem que mais
quieta, suspirando pela paisagem que também dizer, pelo que achou seguro voltar à conversa
deixava o Floco sem fôlego. Ele não resistiu: sobre árvores. – Não sei se as árvores serão
— Olá! As árvores são muito lindas, não são? macias, têm uns ramos que parecem bem
Pergunto-me se serão tão macias como parecem pontiagudos.
cá de cima. A Gotinha tinha uma voz baixa, mas clara e
A Gotinha não esperava ter companhia e melodiosa, como se cantasse suavemente
assustou-se quando ouviu o Floco. Como todas enquanto falava. O Floco ficou ainda mais
as gotas de chuva, era bastante envergonhada encantado.
e temia conhecer coisas novas. Encolheu-se e, — Tens razão, talvez não sejam macias. Mas a
embaraçada, não conseguiu melhor resposta erva será macia, com certeza. É tão leve que
do que um murmúrio. O Floco ficou encantado. baila com as brisas, quando elas vão lá abaixo
Agora que pensava, não conhecia muitas gotas brincar, só pode ser macia!
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— Concordo. Ouvi um dia uma brisa contar esperavam a reação que receberam, pois
a um trovão que a erva alta é muito flexível e nenhuma das famílias parecia tranquila com o
que é divertidíssimo fazê-la rodopiar. O mais plano traçado.
engraçado é que o trovão respondeu que, com — Tu és um floco de neve! Se te aproximares
ele, a erva não rodopiava, caía e ficava achatada muito das gotas, derretes! Desapareces! Como
e mortiça, como se tivesse medo. Acho que não queres tu conhecer a terra se deixares de
acreditou na brisa. existir? – diziam os flocos de neve.
Sem se darem conta, o Floco e a Gotinha — Mas Gotinha, ele é feito de neve! Já pensaste
conversaram por muito tempo. Ambos adoravam que podes congelar? Ficar completamente
espiar a terra, imaginando como seria descer imóvel? Não serás capaz de criar uma poça, nem
até lá. Ao contrário dos ventos, das brisas e dos de te unires a um ribeiro! Estarás congelada! –
raios e trovões, flocos e gotas poderiam fazer – eram os medos das gotas de chuva.
essa viagem, mas não conseguiriam retornar, Ficaram tristes. Depois de tanto tempo
pelo menos não imediatamente, e poderiam próximos, estavam tão apaixonados que não
não retornar sob a mesma forma. Assim, parecia possível que os outros imaginassem
muitos temiam perder-se e recusavam descer algum perigo. Eles eram perfeitos juntos!
da cidade-céu. Não era o caso deles. Floco e Ninguém os impediu de fazerem a grande
Gotinha sonhavam descer e ver de perto tudo o viagem. Era do conhecimento geral que viajar
que os intrigava e apaixonava. até à terra seria um destino possível para
O dia terminava, os raios de sol recolhiam e qualquer floco ou gota. Depois dos avisos e
as estrelas (criaturas estranhas e mágicas) medos, Gotinha e Floco não imaginavam descer
começavam a surgir no horizonte. Floco e um sem o outro. Era o sonho dos dois!
Gotinha despediram-se, mas não sem antes Chegou uma manhã carregada. Sobrevoavam
combinarem novo encontro. E não foi só o Polo Norte, tão branco e azul como o céu.
um. Depois da primeira conversa, viram-se Os trovões estavam impossíveis e os ventos
quase todos os dias, nos claros e luminosos decidiram aborrecê-los tanto que conseguiram
e nos escuros e tempestuosos. A cada novo começar uma tempestade. E que tempestade!
dia gostavam mais um do outro, partilhavam Tamanha era a cólera dos trovões, que nem
sonhos, paixões e medos. O Floco amava a anunciaram o seu início. De mãos dadas, Floco
transparência e melodia da Gotinha, que lhe e Gotinha saltaram, juntos, para o centro da
parecia cada vez mais bonita, e a Gotinha discussão. E dançaram. Loucos de alegria,
apaixonou-se por aquele floco entusiasta, bailaram agarradinhos, carregados pela fúria
capaz de ver sempre o lado mais feliz de cada dos ventos, ao som dos resmungos de trovões,
situação. E assim, sem perceberem, foram enquanto viam o céu ficar cada vez mais
planeando aos poucos aquela que seria a longe. Abraçaram-se felizes e, embalados pelo
viagem das suas vidas – a descida até à terra temporal, fundiram-se.
– que já só imaginavam fazer juntos. Os planos Chegaram à terra como um só, na forma de
eram muitos, todos belos e empolgantes. Tanto um belo pingente de gelo com formato de
falaram sobre o projeto que este se tornou gota, que aterrou sereno na superfície polar.
inevitável. Era chegada a altura de tornarem Abriu os olhos e viu o verde da mata densa ao
o sonho realidade. As famílias deveriam ser fundo, o branco do gelo compacto, macio,
informadas e depois seria esperar pela próxima onde vários flocos brincalhões se acumulavam,
erupção de trovões rabugentos. Sentiam os e o azul profundo do oceano mesmo ao lado,
ventos inquietos e sabiam que não tardaria até onde gotas nadavam eufóricas. Estava na terra!
à próxima tempestade. E era bela, como era bela! Rodeado de tantos
De mãos dadas, Floco e Gotinha contaram amigos, neste novo mundo por explorar, o
os seus planos a cada uma das famílias. Não pingente soube que estava em casa.
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LETRA MIUDINHA
CARAMINHAU
E TAU TERESA DANGERFIELD
«Um dia, no
meio da nossa
C hamam-me Napoleão Maximiliano. Se calhar acham
que é um nome pomposo para um gato. Concordo.
Foi ideia da Laurinha e, como ela me trata tão bem, nem
sucata apareceu
me importo. No entanto, o meu nome verdadeiro é um caixote de
Caraminhau. madeira cheio de
Tenho vida de lorde, sem dúvida. De vez em quando lá
dou umas voltas pela casa, ou salto para cima dos móveis, bolor. Apesar de
mas acabo por passar a maior parte do dia esticado, na
não ser grande e
preguiça, a dormir em cima de uma das almofadas com as
minhas iniciais bordadas — sim, isso mesmo, ouviram bem aparentar ser leve,
—, ou a olhar pela janela. Só que nem sempre foi assim...
Eu era um desses gatos vadios. Vivia num monte de carros
nenhum de nós o
abandonados, com pneus por todo o lado. As pessoas conseguia mudar
chamam-lhe sucata. Fiz lá muitos amigos. Vivemos muitas
aventuras, até que vieram uns homens... falaram, falaram e,
de sítio.»
passados uns dias, os carros desapareceram. Começaram
logo a escavar a terra. Como éramos conhecidos no bairro,
fomos levados (quase todos, pois alguns preferiram fugir
para outro lado) para abrigos de animais, à espera que nos
adotassem. Tive a sorte de vir parar a esta casa. vinham; para onde iriam? Eram tão
Desenganem-se se pensam que não estou feliz aqui, mas, rápidos que era impossível pôr-lhes a
se querem saber, eu também era feliz no meu monte de pata em cima. Como é que um rato,
sucata. Além dos carros, havia por lá muitas coisas que as mais pequeno do que eu, podia entrar
pessoas deitavam fora, entre as quais um sofá e um piano e sair assim do caixote, e eu nem
partido. Era bem fixe! era capaz de levantá-lo? Qual seria
Um dia, no meio da nossa sucata apareceu um caixote o segredo? Resolvi esconder-me e
de madeira cheio de bolor. Apesar de não ser grande e observar. Cada vez que um rato entrava,
aparentar ser leve, nenhum de nós o conseguia mudar de gemia: “Chio, chio” e desaparecia.
sítio — parecia colado ao chão. Por baixo dele começaram Eureka! Seria isso? Um código? Esperei
a entrar e a sair ratos. Fiquei com curiosidade: de onde até estar sozinho e tentei: “Chio, chio”.
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Nada aconteceu. Meio chateado, saiu- lhe chegavam à cintura — repetiu: “Bintivin, cintinvim,
me: “Miau, miau”. E não é que o caixote zintinvim”. Outra vez! E ainda por cima o som agora
se levantou e eu caí num buraco? era bem mais forte! Que quereria dizer aquilo? O que
Quando abri os olhos, estava tudo quer que fosse era irritante! Puseram-me numa jaula e
escuro, só que, com a minha visão trouxeram-me comida. Fiquei desconfiado e nem lhe
noturna, consegui perceber que estava toquei, ainda mais que me cheirava a nuvens podres.
numa espécie de caverna. Ouvi: “Bip, Estive assim uns dias, não sei quantos. Já não podia
Bip! Claque, clique, cloque, katchapum!” com o cheiro daquela papa ou sei lá o que era que
Estranho! Reconhecia o cheiro a metal, continuavam a trazer-me. Nada mais acontecia. Estava
porém aqueles barulhos... De repente, a ficar fraco. Quase tentado a comer, senti puxarem-me
acendeu-se uma luz. À minha volta pela cauda. Virei-me e vi um ratinho, mais pequeno que
juntaram-se muitos robôs com cabeças os que via passar constantemente de um lado para o
a imitar ratazanas. Nunca vira nada assim! outro. Olhou para mim encolhido e disse:
Apontavam para mim e diziam: “Bintivin, — Não comas isso... Vou ajudar-te a sair daqui.
cintinvim, zintinvim”. Respondi: “Remiau, Francamente, noutra altura, o ratinho teria sido um
reminhau, renhau, nhau”. bom petisco. Mas não tinha forças para nada. Um rato a
Não nos entendemos. Até ali não estava querer ajudar-me? Hum! Fiquei desconfiado.
preocupado, só que um dos robôs De repente, o ratinho escondeu-se atrás de mim, pois
pôs-me uma trela à volta do pescoço e um dos robôs apareceu com mais comida. Quando ele
arrastou-me. Então, preparei-me para se foi embora, explicou:
o pior. Não fiz nenhum esforço para me — Querem fazer experiências contigo. Assim que
soltar, pois sabia que não iria conseguir: comeres, levam-te para outra sala.
eles eram fortes. Levaram-me para uma Quando ouvi aquilo, fiquei tão zangado que até ganhei
sala onde um robô, que devia ser o chefe forças e disse:
de todos — era tão alto que os outros só — Não vão conseguir! Quem pensam eles que são?
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LETRA MIUDINHA | CARAMINHAU E TAU Teresa Dangerfield
Não tenho medo dos ratos normais, quanto mais porque sou mais pequeno. Quando chegaste,
deles, feitos de lata! Venham cá que eu lhes digo! percebi que só tu nos poderias ajudar. Até
— Não fales assim! Olha que eles têm tudo amanhã, descansa.
controlado. Se puseres uma pata de fora, ou se Queria perguntar-lhe como se chamava, mas
lhes tocares, apanhas um choque — retorquiu o desaparecera. Só eu os poderia ajudar? Ele
ratinho. dissera isso, sem dúvida. Senti-me importante.
— Ai é? E como é que eu vou ter a certeza de Adormeci mais tranquilo.
que não foram eles que te mandaram aqui? — No dia seguinte, logo cedo, já o ratinho corria
perguntei eu, mostrando-lhe os dentes. sem ser notado, levando para fora da jaula toda a
— Estou a dizer a verdade! — continuou ele, a comida que ali estava amontoada. Nem sei como,
tremer. — Se fores para a outra sala, eu posso trouxera-me uns bons pedaços de peixe, que
ajudar-te a fugir. Amanhã trago-te alguma coisa comi num piscar de olhos. Disse-me que tínhamos
para matares a fome e levo isto daqui para fora. de libertar os amigos. Não estava a ver de que
Assim, vão pensar que comeste tudo. maneira. Franzi a testa, pensando que se calhar iria
— Por que estás a fazer isto por mim? — cair nalguma ratoeira. Ele percebeu. O que disse
perguntei-lhe, desconfiado. depois fez-me sentir que estava a ser injusto:
— Não gosto destes robôs — respondeu ele, — Não acreditas em mim? Afinal também já me
com lágrimas nos olhos. — Apanharam os meus podias ter apanhado. Eu também estou a confiar
amigos e estão a fazer experiências. Obrigam- em ti. Não vês que precisamos um do outro?
nos a trazer outros. Ameaçam matar os que Tenho um plano.
ficam, se não obedecerem. Não os vês a entrar e Então, explicou-me que tinha passado dias a
a sair? Eu consigo andar por aqui sem ser visto, observar os robôs e que sabia onde desligar
os comandos deles e todos os cabos elétricos
das gaiolas. Só não conseguiria desativar a sala
«E lá fomos em fila do robô chefe, mas essa era mais longe e não
haveria problema. Iríamos ficar às escuras. Ele
indiana. O ratinho à conhecia o caminho e sabia que para mim isso
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verem, saltou em direção a uma bola enorme -me sentir um super-herói. Olhei para o ratinho
que estava no meio da sala e, num instante, e percebi que sentia o mesmo. Foi como se
abriu-se um alçapão. Fomos aos trambolhões alguma coisa tivesse mudado dentro de nós
por ali abaixo. O pior foi que a minha trela ficou e tivéssemos ganhado uma capa invisível. Eu,
presa na porta do alçapão. Este começou a que sempre tinha sonhado ser uma espécie de
fechar-se e eu fiquei pendurado! Já se ouvia: Supergato, nem queria acreditar! Quase sem
“Bip, Bip! Claque, clique, cloque, katchapum!”. darmos por isso, o leão desapareceu. Já se ouvia
O ratinho, que continuava colado à minha por perto “clique, cloque, katchapum!“
barriga, trepou pela trela e roeu-a até conseguir — Não te preocupes — disse-me o ratinho.
desprender-me. Foi por um triz que não voltei a — Se os robôs saírem da caverna, com a luz,
ser apanhado. desaparecem! Eu vi isso acontecer com um deles!
Por fim, caímos noutra sala cheia de portas. O Então, fechámos os olhos, pensámos no nosso
ratinho pressionou uns botões da porta mais monte de sucata e corremos. Chegámos sem
pequena e apareceu um túnel. Já se ouviam um único pelo a menos.
alarmes a tocar por todo o lado. Corremos O ratinho, muito tímido, estava a querer
pelo túnel e chegámos a uma sala que parecia esconder-se debaixo de um pneu.
um laboratório. Havia pequenas gaiolas a — Não te vás embora. Salvaste-me a vida! E nem
toda a volta e três robôs de guarda. Entrámos sei como te chamas — disse eu.
e comecei a correr e a saltar em direções — Eu não tenho nome. Sou órfão — respondeu
diferentes, para os distrair, enquanto o ratinho ele. Todos me chamam Ratinho, porque sou
se escapou para a sala ao lado. Vieram atrás de mais pequenino do que os outros.
mim e um deles começou “Bintivin, cintinvim, — Não faz mal. Olha, eu sou o Caraminhau. Os
zintinvim”. Que irritação! “É desta!”. Preguei- meus melhores amigos chamam-se Tracaminhau
-lhe um murro. Só que não me lembrei do que e Faradingau. Que achas do nome Tau? —
o ratinho me tinha dito e apanhei um choque perguntei-lhe.
tão grande que o meu pelo ficou todo no ar. Ficou tão contente! Ainda me lembro das
Os outros robôs vieram para me prender, mas, patinhas dele esticadas na minha barriga, a
nesse preciso instante, as luzes apagaram-se e querer dar-me um abraço.
ouviu-se: Plunc! Tlunc! Bléeeemmm! Os robôs E foi assim que o Tau entrou na minha vida e na
começaram a tombar, as gaiolas abriram-se dos meus companheiros. Mal podia esperar para
automaticamente e os ratinhos saíram. Já tinham lhes contar o que tinha acontecido.
sido avisados pelo amigo do que precisavam de Desde esse dia tudo mudou. Fizemos um pacto:
fazer. Não me mexi. Esperei alguns minutos, até o de ajudarmos todos os animais que estivessem
que chegou o ratinho. em perigo. E que aventuras tivemos! Ah, já me
— Rápido! — disse ele. — Sigam-me! ia esquecendo de vos dizer que o caixote de
E lá fomos em fila indiana. O ratinho à frente, eu a madeira nunca mais se viu por ali. Nem os robôs!
seguir e todos os outros atrás. Se me dissessem Não faço ideia do que lhes aconteceu!
que eu ia fazer aquilo, responderia que deviam Há muito mais para contar, mas terá de ficar para
estar a gozar comigo! Chegámos de novo à sala outra vez, pois a Laurinha está a chegar com o
com várias portas. Não havia tempo a perder! meu jantar. Ela não sabe que o partilho com o
Desta vez o ratinho abriu uma porta com Tau. Tal como eu, está velhote e só quer mesmo
uma enorme escada em caracol. Daí a pouco um sítio quentinho para dormir e uns grãozinhos
estávamos ao ar livre. Que alívio! Todos os de comida para sobreviver. Se ela o visse, se
outros fugiram a sete patas e já nem se viam. calhar gritava e alguém o expulsaria daqui... ou
Não fazia ideia de onde estávamos. Nisto, pior — nem quero pensar! O que nos vale é que
apareceu um enorme leão. Parecia transparente. ainda temos as nossas capas invisíveis de super-
Não consigo explicar o que aconteceu, mas fez- -heróis para nos protegerem.
67
RESISTENTIA POETICA
OS SONHOS
NUNCA
SÃO VELHOS JOÃO MELO
Eu vivo apenas.
E sonho.
Mas não tenho técnicas para voar,
como certos poetas
João Melo é um escritor e e amantes.
poeta angolano, publicado em
Neste estranho momento da minha vida, por exemplo,
Angola, Portugal, Itália, Brasil
tenho praticado o sedentarismo com irrepreensível afinco.
e Cuba. Dos seus 11 livros até
agora publicados em Portugal, Os meus próprios sonhos
quatro são de poesia: Auto- são velhos.
retrato, Canção da Terra e
dos Homens, Amor e Polis, Tão velhos que não preciso de nomeá-los.
Poesis, todos pela CAMINHO.
Mas todos os dias, em silêncio,
Vários dos seus trabalhos foram
insisto neles.
traduzidos para inglês, francês,
árabe, alemão e mandarim Eis a minha técnica para sobreviver a estes dias:
e publicados em antologias, renovar os nossos velhos sonhos
revistas, jornais e sites literários sem alarido nem alarde.
internacionais. Igualmente
jornalista, mantém colunas
regulares no Jornal de Angola,
Diário de Notícias (Portugal),
Sinal Aberto (Portugal) e
Rascunho (Brasil).
68
RESISTENTIA POETICA
O BARCO
DO SONHO DANIELA ROSA
Barco a navegar
Âncora lançada,
Assusta as gaivotas.
Barco já não anda à deriva.
Na verdade, eram corvos que andavam a pairar,
Rotina amada de trabalho
Eram os meus medos, couraças mortas
Porém, cada vez que tento,
Que não me deixavam avançar
É garantido que falho
E, cada vez que abro as velas
E me ajusto ao vento,
Sei que a rota está certa.
Porque eu tento e tento.
69
RESISTENTIA POETICA
NOTHING´S
GONNA HURT YOU, FRANCISCO MOUTA RÚBIO
BABY
70
ser ele. Novak buscava prazer para enganar a estranheza da vida. A memória
e os desejos enroscados. A mão irrequieta acariciando o ouriço de pelúcia,
que insistia em escapar, a outra segurando o peso incalculável das razões de
Borges, o pé descalço no chão de gelo encontrava um animal, à frente tigre,
no meio polvo, atrás macaco, o outro pé tomando a bola como mundo que
rola, um ouroboro, o ouvido entortando-se em sinfonias de Baker, o outro
perdido por um caminho difuso escorrendo palavras graves. Já não há sonho
fora dos sonhos. Comandava, por dentro, a nitidez inconsciente do prazer às
fatias. No centro do peito acordou a pedra quente que ainda ouvia o refulgir
da fogueira de palavras, retalhadas por universos imensos. Após se quedar
estátua, a resposta enfim pôs-se de pé. Nothing´s gonna hurt
you, baby.
71
RESISTENTIA POETICA
NÃO É O TEMPO
QUE NOS MOLDA ISA SILVA
72
RESISTENTIA POETICA
DA
ESPERANÇA MARGARIDA CORREIA
73
RESISTENTIA POETICA
FINITUDE MARIA BRUNO ESTEVES
Permanece…
a alma iluminada
num tempo ilimitado!
74
RESISTENTIA POETICA
O SONHO
E O POEMA MARIA LUÍSA FRANCISCO
75
RESISTENTIA POETICA
SONHOS MARIA SILVÉRIA DOS MÁRTIRES
76
SALTANDO DO PARÊNTESIS
SONHOS
COLETIVOS ANA CANDEIAS
77
SALTANDO DO PARÊNTESIS | SONHOS COLETIVOS Ana Candeias
grandes metrópoles conseguiram ver o céu e fizeram a história avançar, ainda assim, pouco,
azul (mas não o arco-íris, porque, esse, tinha já que, mais de 50 anos depois, ainda sobressai
descido à terra, multiplicando-se por tudo o que o preconceito da cor. Yes, we can. Reacendeu-
era sítio). As ruas ficaram mais silenciosas. Até -se o sonho de muitos, derrubado pouco
os indianos puderam ver, pela primeira vez em depois. Comprova-se que a história e a vida são
trinta anos, a cordilheira himalaia de Dhauladhar, feitas em ziguezagues.
segundo circulou nas notícias. Nesta altura, reparo que fui transportada apenas
Um sonho coletivo, que afinal era uma utopia, para sonhos em língua estrangeira. Refreio
com um pesadelo pelo meio. Veio ao de cima novamente o pensamento. Aninho-me no sofá,
o que não é bom, como o azeite em água. com o aconchego de uma manta. Contemplo
Mostrou-se (e mostra-se) o incivismo de muitos. o pinheiro (artificial!) enfeitado de bolas e
Incivilidade e egoísmo, inevitavelmente juntos. serpentinas a condizer, em tons de rosa chá,
Pensar em si e não nos outros. Reclamar os acompanhadas por luzinhas vermelhas, amarelas,
direitos e desdenhar os deveres. Da corrida verdes e azuis, a piscarem à vez. É época de
ao papel higiénico, às máscaras com o nariz avivar o sonho coletivo de Paz entre todos nós.
à janela, aos encostos nas filas, às festas Todos os anos, as mesmas aspirações. E, neste
clandestinas, ao negacionismo e às teorias ano, acresce o sonho “moderno” de que a Covid
da conspiração, ainda mais as máscaras que deixe de estar no meio de nós. Num ou noutro
invadem as águas, concorrendo com plásticos caso, são sonhos sem final feliz à vista.
e outros lixos dos seres humanos. Os seres Claramente, hoje, os pensamentos não estão
pensantes. Não nos tornámos melhores, favoráveis. Estou num círculo que não me leva
nem com os outros, nem com a nossa casa a lugar nenhum, comecei com a pandemia e
(entenda-se, outra vez, o nosso planeta). Algum termino na (mal)dita.
dia seremos melhores do que somos? E com
efeitos universais e notórios? Haja esperança.
Afinal, os líderes dos G20 conseguiram
concordar em limitar o aquecimento global a
1,5ºC. Comprometeram-se a fazer esforços para
tal. O quê? Quando? Jogaram, de semblante
sorridente, uma moeda na Fontana Di Trevi para «Por esses breves
dar sorte a este sonho de não nos afogarmos
com os abusos ambientais que fazemos.
instantes, as mentes
Tento sair deste azedume onírico em que me ficaram mais puras
sinto a mergulhar e que associo ao cansaço.
Travo o pensamento, relembro-lhe que a sua
(ou os corações,
liberdade, tal como a minha e a de todos, não o que for) e o
é absoluta, mas sim apenas relativa, há regras,
há condições. Quero animar-me. Exijo ser ambiente, também.»
transportada a sonhos com final feliz. I had a
dream. Palavras que arrebataram uma multidão
78
SALTANDO DO PARÊNTESIS
PELO SONHO CARMO MARQUES
É QUE VAMOS
79
SALTANDO DO PARÊNTESIS | PELO SONHO É QUE VAMOS Carmo Marques
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce um bem maior, como servir a deus, ao rei,
(F. Pessoa. Mensagem) ao país, a valores ou tradições? Deus quer, o
homem sonha, a obra nasce, diz Fernando
Pessoa, e a referência divina acrescentará
Dessa busca se tem feito a história da fulgor épico ao seu verso, porém, sabemos
humanidade. Mau grado termos de reconhecer que só ao homem cabe o querer, o sonhar e o
que, tantas vezes, porque alguns sonharam e fazer. Por isso, e recorrendo a Gedeão, que o
se focaram na concretização, renegando ou sonho seja espuma e fermento e nos incite a
menosprezando danos, muitos outros sofreram. prosseguir, mas também tela, cor e pincel, para
As conquistas, o progresso, a evolução que possamos pintar o propósito final sem, no
tecnológica e científica de que dispomos têm entanto, descurar as implicações na vida dos
os pés assentes nas ossadas ensanguentadas outros, ou o que teremos de abandonar da
das vítimas de gerações que nos antecederam. nossa, durante o percurso.
Na história da civilização quantos sonhos se
tornaram perversos? Quantos sonhadores
destruíram e mataram, acreditando perseguir
Somente através da arte conseguimos sair de
nós mesmos e conhecer a visão do outro sobre
80
(…) Comparar a vida ao sonho… é uma das
grandes metáforas da literatura, porque
corresponde a algo de essencial.
(Jorge Luís Borges)
81
SALTANDO DO PARÊNTESIS
O ALQUIMISTA
COM CHEIRO
A MANJERICÃO GABRIELA PACHECO
82
sorriso cravado nas bochechas, levantei o braço, a medir a minha felicidade pelo número de
histérico de contentamento. “Pede ao Enrico dentadas. Descascava-lhe a fruta e transformava-a
tudo o que precisas para o teu truque”, disse- em flores, pássaros e corações. Se lhe entregasse
-me a mãe. Não restavam dúvidas da magia de a fruta descascada e tão bonita, em formas de
que ela me via capaz. Corri mais rápido do que esperança, talvez tivesse compaixão pelo meu
a minha habilidade. A minha irresistível felicidade esforço e a acolhesse no bucho triste. Passou
fez com que o Enrico juntasse aos pedidos a ver-se mais do que pele e osso: os efeitos
fartos ramos de cebolinho e coentros, por sua dos caldos, da fruta de amor e das tostas com
própria conta. “Ouvi dizer que és mágico”, conduto.
disse-me piscando o olho. Que maravilha de
acontecimento! Não tardei a ter o mercado Beijei o meu nome na jaleca pela avó costurada.
inteiro dentro do meu sorriso. O dia mais feliz No mesmo instante senti um beijo na nuca.
da minha vida acabava de sair do plano da Uma espécie de beijos dentro de beijos, uma
fantasmagoria. matrioska deles. “Salvaste-me a alma”, disse-me
Lá em casa sobramos nós os dois, eu e a mãe. minha mãe. Avaliei o sorriso dela. Soube que o
O meu pai não sei onde está. Diz a avó que no que fizera na cozinha, no tempo em que o luto
céu, mas a mim não me convence. Sei que morria esmaga, foram, no final de todas as contas,
do medo de alturas. Fiz por garantir que lhe poções mágicas.
guardava o segredo. Nunca gostamos que as “O meu filho é um mágico, há pratos que
mães saibam das nossas fragilidades, tenhamos desabrocham a vida.”
nós a idade que tivermos. Todos continuam, Chefe José. O alquimista com cheiro a manjericão
por isso, certos de que o meu pai está no céu. E da minha avó, o mágico da minha mãe.
mesmo que já morto não possa morrer do medo Descobri onde está o meu pai. Tenho em crer
de alturas, não me parece que lhe fosse dar para que, pelo medo das alturas, permaneceu ao meu
mudar de opinião sem que eu soubesse. Ainda lado. E o amor voou para o caldo, para a ponta
estou para lhe descobrir o lugar do poiso, mas as dos meus dedos, para os meus truques.
saudades têm-me toldado a vista. Na minha jaleca sonhada há amor bordado.
Lembrei-me de que estávamos no dia do meu
aniversário quando a avó me juntou um outro
saco às mãos, mais pomposo que o da velha
peixeira da lota. Tinha um laço, daqueles que só «A pergunta dos
se usam no natal ou nos dias de anos. Uma jaleca
e um bilhete. “Para o meu alquimista com cheiro
truques ficou sem
a manjericão”. Tinha-a ela costurado. José. Chefe resposta. Minha mãe
José. E uma folha de manjericão, o mais belo dos
bordados na minha jaleca sonhada. limitou-se a sorrir
Quando dos três ficámos dois, a minha mãe e a entregar-me
tornou-se ermita. No tempo em que o luto quer
fazer mais mortos, todos os dias lhe levava o o saco que a velha
caldo ao seu ermitério. O caldo fervido das
peixeira da lota lhe
minudências que o faziam especial. O cuidado, a
ternura, o afago. Todos os dias tentava encontrar estendeu, para que
uma receita que a salvasse, aprimorando o
caldo. A minha felicidade resumia-se em ver a
outras mãos
linha na tigela mais baixa do que no dia anterior. o agarrassem.»
Adicionei-lhe umas tostas simples quando a
linha atingiu o meio. Aperfeiçoei as tostas. Passei
83
SALTANDO DO PARÊNTESIS
DIREITO
A SONHAR ISAURA CORREIA
84
que a frase “O sonho comanda a vida” não se vida: a defesa dos direitos das crianças e
aplica a todos. Talvez a frase “A vida comanda dos jovens. Acredito que têm direito a serem
o sonho” se adeque melhor àquelas crianças amados incondicionalmente.
e jovens, que, quando são chamadas à vida, Quando ouço algumas pessoas a defenderem
não escolhem: a família, o local onde vivem, as os direitos dos animais, e eu gosto muito dos
condições adversas que vão condicionar o seu animais, penso sempre: porque não defendem,
desenvolvimento e a sua trajetória. Quando o com essa persistência, os direitos das crianças?
cérebro está em modo de sobrevivência, haverá Porque não se revoltam e fazem manifestações
espaço para sonhar? por esta causa?
E a genética? Sim, a genética condiciona, Não consigo esquecer o jovem a apanhar
mas o contexto tem um impacto, maior ou os restos de comida. Às vezes, imagino que
menor, no potencial de cada um, bem como na encontrou pessoas que o ajudaram a mudar
capacidade de sonhar. No decorrer dos vinte o seu percurso. Imagino que tem uma casa e
seis anos que trabalho com crianças e jovens, uma família que o ama. Imagino-o a sonhar e
tenho colocado várias vezes as perguntas: a planear a sua vida com entusiasmo. Imagino
“Quais são os teus sonhos?”, “Qual é o teu maior a sua cara com um sorriso, a prosseguir o seu
sonho?” Alguns ainda conseguem imaginar: caminho sem a sombra da pobreza e solidão.
“Quero ser o Cristiano Ronaldo!”; “Quero ser A Carta dos Direitos das crianças está
cantora!”; “Quero ser bombeiro!” incompleta. Acrescento:
Ultimamente, tenho feito a mesma questão “Todas as crianças têm direito a sonhar”.
a alguns jovens. Olham para mim como se
estivesse a falar outro idioma ou como se fosse
uma pergunta estranha ou mesmo descabida.
A resposta tem sido “Não sei!” Este “Não sei!”
tem um sentido mais profundo. Quando escuto,
para além do som das palavras, é como se
dissessem: “Como posso saber?”, “Como é que
«Quando ouço
posso sonhar?”, “Para quê sonhar?”. algumas pessoas
O sonho comanda a vida. E quando resta
apenas a vida?
a defenderem
Há vinte e seis anos que anseio reescrever os direitos dos
estas histórias cujo guião tem como desfecho
final: que todas as crianças e jovens tenham as animais, e eu
necessidades básicas satisfeitas; que todas as gosto muito
crianças e jovens tenham direito à educação;
que todas as crianças tenham uma família que dos animais,
as ame; que todas as crianças e jovens tenham
alguém que as aconchegue ao deitarem-se; que
penso sempre:
todas as crianças tenham alguém que lhes leia porque não
um livro de embalar.
Entretanto, a realidade segue com outro
defendem, com
guião: os protagonistas são buscadores de essa persistência,
sobrevivência.
Será que o sonho comanda a vida, ou que a vida os direitos das
comanda o sonho? crianças?»
Sou uma pessoa com fé e esperança. Sou
persistente no que é fundamental para a minha
85
SALTANDO DO PARÊNTESIS
BLUE SKY,
O SONHO
DE ÂNGELA MARGARIDA CONSTANTINO
86
serviço desde a lavandaria até à cozinha. serviam de cobertor. Chegados a Windhoek,
Surpreendeu todos quando anunciou, aos nascidos em Angola foi determinado serem
perentoriamente, que sairia no fim do escoltados até à fronteira do país de onde
mês. Como ninguém suspeitava que a tinham fugido. Os que tinham ascendência
prestativa Ângela podia ter vida própria, portuguesa seguiriam para Lisboa num voo
todos lamentavam a sua futura falta. Só o Sr. militar. Ângela chegou ao aeroporto de Figo
Sacramento se mostrava indiferente. Havia Maduro confiante. Ela vencera a regra cega,
meses que deixara de jogar às damas depois negara a separação dos filhos, estavam a salvo.
das cinco horas, quando os funcionários dos Foram para Setúbal viver na casa confortável
serviços se juntavam a tomar umas cervejas e que o Sr. Sacramento mantinha na Avenida Luísa
a conviver antes do jantar. Quando chegava Todi. Vi-a muitas vezes vestida de samacaca** a
já os comensais tinham terminado a sopa fumar o seu cigarro, invertido na boca, sentada
e esperavam o prato de peixe. Todo ele na varanda de onde seguia o movimento dos
pergaminhos e desculpas pelo atraso, após a navios no Sado, entrando para reparação no
refeição recolhia ao seu quarto. Hóspede desde estaleiro e saindo pintados de fresco, até o silvo
há um ano, chegara num Paquete para ocupar anunciar o rumo ao Atlântico.
a chefia de uma agência. Instalara-se no Hotel Sonhava com um Blue Sky, desta vez um
Moçâmedes. Taciturno, não se conhecia muito cargueiro de esperança, que a levasse de volta à
da sua vida, sabia-se que era de Setúbal e que sua terra.
era viúvo. Nos mentideros diziam que viera em
busca de paz depois de terem morrido a sua
mulher e a sua filha, num acidente no carro que * Povo do sul de Angola e da Namíbia
ele conduzia. **Samacaca tecido angolano que serve para vestir
Ângela gostou da casa com vista para a Baía,
nunca mais de lá saiu: o senhor Sacramento que
era agora o seu companheiro, o jardim para
cultivar e a visão dos navios que chegavam ou
zarpavam preenchiam os seus sonhos. À tarde «Em Janeiro de
gostava de se sentar na soleira da porta a fumar
o seu cigarro invertido, com a ponta acesa 1976, subiram as
dentro da boca que a espaços se abria para escadas do Silver
sair o fumo em nuvem branca ou azulada. O Sr.
Sacramento fazia as compras, dedicava o tempo Sky, o cargueiro
livre à sua coleção de selos e às brincadeiras
que por acidente
com os dois filhos que entretanto nasceram.
Em Janeiro de 1976, subiram as escadas do se tornou o salvo-
Silver Sky, o cargueiro que por acidente se
tornou o salvo-conduto de parte da população
-conduto de parte
a fugir de uma guerra irracional, sem estratégia da população
nem comando. Com eles embarcavam mais
seiscentas pessoas assustadas e sem futuro.
a fugir de uma
Ângela, tomou a direção da cozinha, fazendo guerra irracional,
o milagre da multiplicação de alimentos.
Colaborou com o enfermeiro a tratar dos que sem estratégia
precisavam, da menina que partiu uma perna ao nem comando.»
cair, da parturiente que ali deu à luz por entre
as pessoas amontoadas e os panos que lhes
87
SALTANDO DO PARÊNTESIS
LETRAS
ABRAÇADAS MARIA CELESTE PEREIRA
88
e nos dias sempre iguais.
Com as palavras constroem
frases que, por vezes, desfilam
nas passadeiras coloridas e
iluminadas. São apresentadas
por estilistas da língua que
ditam a moda das expressões.
São tão divulgadas, como
uma música em voga ou
o novo fato do manequim
apresentado na última
passerelle. “AINDA ASSIM” é
um desses dizeres, modelos
mais usados nos meios de
comunicação.
Sendo ela a conetividade
de oposição, o sentido
contrário, usa-se em
desfavor de: “contudo, no
entanto, porém e todavia”;
— passaram a ser Vintage
como o corte de cabelo à
escovinha, as calças boca-
-de-sino ou o albernoz.
Caíram no esquecimento,
já poucos usam, mas não
acabaram. Fazem parte do
património da nossa língua.
As palavras ocupam o lugar
certo, variando o seu uso
ao longo do tempo, ora
abraçadas na escrita, ora
bailadas na oratória.
A língua é viva
As palavras
Não morrem
Ficam nos poemas
E nos livros
Dos que levaram a vida a
sonhar
E, sonhando,“comandaram
suas vidas”
Deixaram obra para que eu
também sonhasse.
89
DA PALAVRA À FORÇA
UMA NOVA
ESTRELA ANALITA ALVES DOS SANTOS
90
91
DA PALAVRA À FORÇA
DO
SONHO EDUARDO FERNANDES
92
93
DA PALAVRA À FORÇA
O LEITOR SABE
A IMPORTÂNCIA
DE FAZER
A ESCOLHA HELENA GREGÓRIO
CERTA?
94
95
DA PALAVRA À FORÇA
OS SONHOS
NÃO PODEM
SER SÓ SONHOS JÚLIA DOMINGUES
96
97
DA PALAVRA À FORÇA
QUANDO
O SONHO MANUELA
VIEIRA
ACONTECE
98
99
DA PALAVRA À FORÇA
ONDE TUDO
COMEÇA PAULO JORGE PEREIRA
100
101
GAVETA CRIATIVA
ESCREVER DAVID ROQUE
É AMAR
102
«Na escrita, o amor
é encarar a obra
como objeto digno
de empenho e gasto
de energia, tendo o
cuidado para que ela
se transcenda e viva
para lá da gestação
e do parto. Isto tem
implicações nos
âmbitos da técnica e
também do espírito,
entidade intangível e
que E pur si muove! »
103
LÍNGUA MÁTRIA
ELOGIO
DA
PONTUAÇÃO MARCO NEVES
S empontuaçãodemoraríamosmuitomaistempo
alerosnossostextostendoemcontaquehojelemos
eescrevemossempararteríamosumavidaumpoucomais
A própria disposição do corpo ajuda-
-nos a transmitir a mensagem — e,
às vezes, até transmite mais do que
complicadaeapostoqueosnossosolhossofreriam queremos. Ora, quando escrevemos,
comestaescritasemdescanso estamos a conversar sem que nos
vejam. A pontuação ajuda-nos a
As frases acima são difíceis de ler? Pois era assim que substituir aos mãos, a cara, o corpo.
se escrevia, em geral, no tempo dos Gregos e dos Não chega, mas ajuda muito.
Romanos. Era a chamada escrita contínua. Não havia Nos dias de hoje, escrevemos
muitos sinais de pontuação — e nem sequer espaços. constantemente, provavelmente mais
Ao longo do tempo, lá fomos inventando os espaços, do que em qualquer outra época da
os pontos, as vírgulas. Não é um alívio? história. Conversamos por escrito,
Estes sinais começaram por assinalar pausas e namoramos por escrito, zangamo-
entoações, para ajudar na leitura em voz alta. Também -nos por escrito. Ora, a pontuação
começaram a mostrar como se organizam os textos e ajuda quem nos lê a compreender-
as frases, ajudando a ler em silêncio. nos melhor, mas também ajuda quem
A pontuação é muito parecida nas várias línguas da escreve, ao obrigar a pensar onde
Europa, mas há alguns pontos em que as línguas pôr a vírgula, onde usar um travessão,
seguiram caminhos diferentes. Basta pensar nos onde deixar reticências… Ajuda-nos
pontos de interrogação e exclamação ao contrário a conversar melhor, ajuda-nos a viver
que vemos no início de muitas frases em castelhano: melhor.
também já existiram em português, mas perderam-se Isto, claro, se ligarmos alguma coisa
ao longo do século XX. à pontuação. E vale a pena! Podemos
O uso dos sinais também vai mudando ao longo do não acertar sempre: ninguém
tempo: por exemplo, se formos ver livros publicados acerta sempre. Podemos discutir
no século XIX, encontramos muito mais vírgulas, esta ou aquela vírgula. Podemos
mesmo entre sujeito em predicado (o grande pecado exagerar neste ou naquele sinal.
da pontuação actual). Mas, se pensarmos na pontuação
Não sei porquê, mas gosto muito destes sinais. Talvez que usamos, mostramos que nos
seja porque gosto de escrever. Quando conversamos preocupamos com quem nos lê. Há
uns com os outros, usamos a voz, mas também o resto também um certo encanto nestes
do corpo: a cara, os olhos, as sobrancelhas, as mãos… sinais, do simples ponto tão final
104
ao arrogante travessão — a riscar a linha e a
ocupar o espaço de uma palavra — passando
pelo musical ponto de interrogação e pela
caprichosa vírgula.
Para lá das regras e das proibições, a
pontuação dá-nos várias opções. É um
excelente sinal do grau de proximidade que
queremos demonstrar… É ainda um piscar
de olhos no papel. Mesmo numa mensagem
rápida, cada sinal (ou a falta de sinal) transmite
mensagens diferentes:
• Beijo.
• Beijo
• Beijo!
• Beijo!!!
O beijo com ponto parece me mais formal
— ou mais seco — que o beijo sem nada. O
beijo com ponto de exclamação é um beijo
ligeiramente mais premente… Já o beijo com
uns excessivos três pontos de exclamação
revela um entusiasmo que talvez decorra da
personalidade da pessoa — ou da vontade
de beijar.
«A pontuação
é muito
parecida nas
várias línguas
da Europa,
mas há alguns
pontos em
que as línguas
seguiram
caminhos
diferentes.»
105
LUSOFONIAS
SONHOS
E CERTEZAS OLINDA
BEJA
II
106
III
VI
coisas da terra
da nossa terra
107
CRÓNICA DO VIAJANTE
«ÉTONNANTS
VOYAGEURS» JOÃO VENTURA
EM MEMÓRIA
DE MICHEL LE BRIS
108
109
PALAVRA DE LEITOR
“INTERVENÇÕES”
DE UM RABUGENTO MÁRIO
RUFINO
(ALFAGUARA, 2021)
S ão muitas as vezes
em que um leitor
acompanha o nome Michel
Houellebecq com um esgar
a denunciar sabor azedo, ou
olor desagradável.
Falar sobre este “sacana” da
literatura francesa é perder
tempo, dizem. E isso afasta
o leitor que nunca leu a
ficção de Houellebecq e
se ficou por umas frases
endossadas por quem
leu algumas das suas
declarações. Ora, não sabe
o leitor o que perde.
Se quer começar pelas suas outros.
declarações, tem aqui um Além da descodificação de vários dos seus romances,
bom livro: desde o comportamento de personagens, estrutura
“Intervenções” (Alfaguara) narrativa e ideias fundamentais, existem considerações
reúne ensaios, entrevistas e sobre Trump (“Resumindo, o presidente Trump parece-
opiniões do autor nascido -me um dos melhores presidentes que a América já
na ilha de Reunião, em 1956. conheceu.), a União Europeia (“Ou seja, uma ideia nefasta,
A partir deste documento ou na melhor das hipóteses estúpida, que se transformou
epitextual à ficção de aos poucos num pesadelo, do qual acabaremos por
Houellebecq encontramos despertar.”), feminismo (“Pela minha parte, sempre vi
chaves de leitura as feministas como umas imbecis amáveis, inofensivas
importantes para uma mais por natureza, infelizmente tornadas perigosas pela sua
completa fruição de livros desarmante falta de lucidez.”), islamofobia (“Atacar uma
como “Submissão” e “O religião é um direito. Por isso, sim, sinto-me obrigado,
Mapa e O Território”, entre mesmo que não queira, a defender a liberdade de
110
expressão.”), entre outras
considerações.
A incisão moralista na literatura
tem separado livros reaccionários
dos progressistas; progressão
como louvor ao novo, à mudança,
«A incisão moralista na
antes mesmo de ser formalizada
a qualidade intrínseca. Quanto ao
reaccionário, esse rabugento, é
avesso, logo de início, à mudança
e só o tempo e o empirismo literatura tem separado
o podem resgatar da má
disposição. livros reaccionários
Cair nos livros que ecoam a
sensibilidade do leitor é isso dos progressistas;
mesmo, uma queda. Não pára
o leitor de cavar um buraco progressão como louvor
onde se acabará por refugiar do
que o agride. Ora, a literatura é ao novo, à mudança,
também uma picareta na nuca,
um desconforto durável para antes mesmo de ser
lá da última página. Ainda que
nos revolva as entranhas, ou formalizada a qualidade
principalmente por nos revolver
as entranhas, deve ser lida. É intrínseca. Quanto
imperioso contrariar as palavras
do autor: ao reaccionário, esse
“A expressão puramente negativa
deixou de ser aceite.” rabugento, é avesso,
Houellebecq é um dos autores
que indispõe muita gente. E por logo de início, à
isso -além da qualidade da sua
escrita - é importante lê-
mudança e só o tempo
-lo. Apesar da acidez dos seus
comentários, por vezes até
revoltantes, a rabugice chega a
e o empirismo
ser hilariante (“Serotonina” é um
o podem resgatar
»
excelente exemplo).
Houellebecq irrita-nos, faz-nos
rir, leva-nos por boas histórias e
da má disposição.
nem tanto por boas ideias. É o
sacana rabugento tantas vezes
no avesso do que pensamos.
Consegue manter a nossa atenção
porque é acutilante e inteligente.
“Intervenções” é mais uma boa
prova disso.
111
BESTIÁRIO ARDILOSO
O ONIROMANTE
DE AZARUJA PORVENTURA CORREIA
112
113
SENTENTIA
POR QUE A
MAIORIA DAS
CARREIRAS DE JAMES
McSILL
ESCRITOR NÃO
DESCOLA?
114
ou pretenda ser? Quem pagaria
o equivalente a dois jantares num
restaurante mediano para desfrutar «Ninguém mais
de uma história de papagaio, a
menos que esteja magistralmente quer ler uma
escrita? Vale mencionar os que
história triste
me dizem: ‘já sei, uma conversa
imaginária entre personagens sobre uma crise
famosos, vivos ou mortos, «O dia
em que Platão encontrou Lula da
da meia-idade
Silva…» Isto há de vender!’ Poupa- e tantas outras
me!!, penso, mas não digo, pois
evito magoar. E há tantas outras
histórias clichés.
coisas que não têm a menor Se não fores um
hipótese de vender. Ninguém mais
quer ler uma história triste sobre gênio para tornar
uma crise da meia-idade e tantas esses assuntos
outras histórias clichés. Se não
fores um gênio para tornar esses interessantes,
assuntos interessantes, ninguém vai
se interessar.
ninguém vai se
Dá para corrigir? Não! Tu só precisas interessar.»
começar de novo. Desculpa!
115
SENTENTIA | POR QUE A MAIORIA DAS CARREIRAS DE ESCRITOR NÃO DESCOLA? James McSill
116
«O bom autor é um
bom leitor.
Aprende os princípios
básicos da autoedição
para que possas
desenvolver as tuas
próprias habilidades
editoriais. »
117
SENTENTIA
ESCRITORES
E PÁGINAS EM BRANCO:
UMA CERTEZA,
UMA INEVITABILIDADE LÉNIA RUFINO
E UM CLICHÉ
118
parecidas, mas a voz do autor, a sua forma de número mínimo de palavras. Mas devia! Por
escrever, são coisas únicas. E é por saber que isso, para 2022, o meu auto-desafio é esse: ser
terei sempre a minha perspectiva única sobre uma escritora organizada, que não se desvia
o que conto que não me assusta a ideia de do caminho que precisa de percorrer, que não
poder vir a ficar sem coisas para contar. Em se distrai do objectivo. E o meu objectivo é
vez disso, olho para a página em branco como simples: escrever o meu segundo romance. E,
lugar de infinitas possibilidades: se, naquela sim, já tive momentos de página em branco
página, nada está escrito, posso escrever o com ele. Mas também já tive texto a escorrer-
que eu quiser, seguir os caminhos que me -me pelos dedos, de forma completamente
apetecer, criar as personagens que me fizerem desregrada a ponto de, chegada ao final
sentido e inventar conflitos, mágoas e passados daquele trecho, ter olhado para ele e, meio
de milhares de formas diferentes. Por isso, estarrecida, ter exclamado um “não sei como é
prefiro olhar para a página em branco como um que isto aconteceu aqui!”.
desafio e não como um carrasco. Portanto, para este ano que agora começa,
Mas nem sempre é fácil escrever a primeira espero que a página em branco seja sempre
frase. Nem sempre é fácil ter a disciplina sinónimo de inúmeras portas abertas e nunca
necessária para encher páginas e páginas de falta de ideias. Ou de medo. Acima de tudo,
de vidas que não existem. que nunca seja sinónimo de medo. Porque,
Não tenho regras nem rituais de escrita. Não entre os milhões de palavras que existem, há
escrevo todos os dias, não tenho uma hora sempre algumas que nos salvam. Que sejam
perfeita para escrever, nunca me imponho um essas que vamos escrever, então.
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A BIBLIOTERAPEUTA SUGERE
TUDO
É POSSÍVEL SANDRA BARÃO NOBRE
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de Biblioterapia de Desenvolvimento
(distinta da Biblioterapia Clínica) deve ter
o cuidado e a sensibilidade para, ainda
que seja ele a selecionar e a recomendar
as histórias a serem lidas, interferir
muito pouco nesse processo de leitura
e respeitar as conclusões a que o leitor
chega por si.
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AS NOSSAS COLETÂNEAS
O TEMPO
DAS PALAVRAS
COM TEMPO
Pequenas grandes histórias para ler e viver.
Com prefácio de James McSill
Disponível em:
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IMPRESSO
NÃO VÃO
OS LOBOS
VOLTAR
Por vezes, é preciso enfrentar o passado para
viver o presente.
Com prefácio de Sofia Batalha
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LITERÁRIA
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