Nº 6

Jacaranda - Nº 6
Jacaranda Nº 6 is dedicated to Marielle Franco Not for sale.

Jacaranda
Jacaranda Nº 6 é dedicada a Marielle Franco Distribuição gratuita.

Jacaranda
(2) Luisa Duarte
(6) Suzana Velasco
(12) Moacir dos Anjos
(16) Sérgio Bruno Martins
(24) Luiz Camillo Osorio
(30) Daniela Labra
(34) Fred Coelho
(42) Michelle Sommer
(46) Marisa Flórido Cesar
(56) Maria Angélica Melendi e Lais Myrrha
(66) Daniela Name
(83) Clarissa Diniz
(84) Marcelo Campos
(92) Ronaldo Lemos
(100) Bernardo Mosqueira
(110) Gaudêncio Fidélis
(118) Suely Rolnik

Nº 6

1 3
Jacaranda - Nº 6

Jacaranda is a cross-media platform created to establish

new connections between Brazilian Contemporary
Art and the international art circuit.
Jacaranda é uma plafatorma crossmedia criada
para a divulgação da Arte Contemporânea
Brasileira no circuito internacional de arte.

Chief Editor / Editor Chefe

Raul Mourão
Executive Director / Diretor Executivo
João Vergara
Editora Convidada / Guest Editor
Luisa Duarte
Editorial coordination / Coordenação editorial
Suzana Velasco
Art Direction / Direção de Arte
Gustavo Prado
Editorial board / Conselho Editorial
Felipe Scovino, Frederico Coelho, Luiza Mello, Álvaro Piquet
e Marcos Augusto Gonçalves

Translations / Traduções
Adriana Francisco (84 -91 )
Chris Burden (72 - 83)
Ccaps Translation and Localization (todos
os outros / all of the others)
John Norman (110-117), (6-11)
Fernanda Gurgel (2-5), (100-109)

Jacaranda Platform is made possible with funding from

/ Plataforma Jacaranda é possível com o apoio de:
Pipa, LandMark Properties, Jorge de Laura,
ID Cultural, Rhanine Pessoa.

Copyright© 2018 Jacaranda Foundation, Inc.

All Rights deserved under international Pan-American
Conventions. No Part of this publication may be reproduced in
any form without written permission from the publisher.
Todos os direitos reservados sob a convenção internacional
Panamericana. Nenhuma parte dessa publicação pode ser
reproduzida em qualquer formato sem autorização do autor.

1. Artists cannot be silenced. 6. The day the poor revolts, everyone will dance
2. A smoke screen is art. Art is not a smoke screen. to a different tune.
1 2
Brasilia in focus. 7. Attention! They are trying to distract you.
3. Stop killing black people. 8. No censorship.
4. Brazil, entranced earth, entranced... 9. Where does anger go?
5. Pussy power. 10. Galloping coup.
Jacaranda - Nº 6
Nota da editora convidada
* Luisa Duarte
Em outubro de 2017, Raul Mourão me
convidou para editar um número especial da
Revista Jacaranda tendo como mote os episó-
dios de censura à arte então deflagrados no
país. Comumente dedicada a temas sem relação
com uma agenda específica, pela primeira vez
a revista voltaria sua atenção para uma pauta
determinada e traria um conjunto de textos
inéditos produzidos especialmente para a oca-
sião. Aceitei de imediato o convite por enxergar
ali a oportunidade de doar perenidade a certas
reflexões e gerar uma memória desse momento
histórico pelo qual passava o Brasil e o seu meio
artístico em particular. Tal senso de perenidade
sempre me pareceu relevante em um período
no qual o debate acontece, em sua maior par-
te, no registro da Internet, guardando assim
uma dimensão tão efêmera quanto dispersa.
Passados seis meses, temos a satisfação de
apresentar aos leitores uma edição composta por
quinze textos inéditos e uma entrevista reali-
zada especialmente para este número. Assim,
pela primeira vez, a Jacaranda vem ao mundo
trazendo consigo o pulso do presente, ao mesmo
tempo em que lança um olhar reflexivo sobre
o mesmo. Testemunha-se ao longo das pági-
nas seguintes uma pluralidade de respostas de
diferentes naturezas para os eventos que nos
conduziram ao contexto de censura à arte no
Brasil de 2017. Abrimos a revista com um texto
de caráter jornalístico, Um ano de ataques à
criação artística e à liberdade de expressão,
assinado por Suzana Velasco, coordenadora
editorial deste número, no qual o leitor terá um
panorama dos fatos que marcaram esse perío-
do, e fechamos com um ensaio longo de Suely
Rolnik, intitulado O abuso da vida – Matriz do
inconsciente colonial capitalístico, cujo enfo-
que não está diretamente ligado aos casos de
censura, mas cujo pensamento ilumina todo um
contexto mais amplo da contemporaneidade na
qual tais casos de ataque à arte se sucedem.
Entre ambos, uma multiplicidade de pontos
de vista que, esperamos, aproximará o leitor
3 4
de esforços reflexivos que podem abrir cami-
nhos de interpretação do que se passou e, desse
modo, clarear o futuro. Pois o que vivemos
não se encerrou, como em um passe de mági-
ca, no último 31 de dezembro. Se a experiência
de 2017 foi marcada por uma compreensível
comoção no meio da arte, este número especial
da Revista Jacaranda busca, simultaneamente,
preservar a intensidade própria dos documen-
tos que convocam à reflexão do presente como
também doar uma certa distância que a inter-
rupção, necessária ao pensamento, impõe.
Assim, fica aqui o convite para o leitor apro-
ximar-se das diferentes perspectivas contempla-
das neste dossiê. Notas sobre a miséria do olhar,
de Moacir dos Anjos, lembra que uma certa
miséria do olhar não é exclusiva dos conservado-
res, mas sim algo que afeta também aqueles que
defendem o poder transformador da arte e que
combatem e repelem os que a atacam; A Hora
das Instituições, de Sérgio Bruno Martins, se
dedica a pensar o papel central das instituições
diante dos impasses postos em cena no ano de
2017; La Bête - depois da intolerância, alguma
conversa, de Luiz Camillo Osorio, traz o pensa-
mento depois da tormenta tecido pelo curador
do 35º Panorama da Arte Brasileira, no MAM
de São Paulo, onde a performance La Bête, de
Wagner Schwarz, foi alvo da sanha censora que
atravessou o país; O Corpo Nu, aquele estranho
conhecido, de Daniela Labra, traça um olhar
retrospectivo sobre o nu na arte para chegar
aos impasses provocados pela sua distorção no
presente; Arte para quem? Arte para todos, de
Fred Coelho, coloca as artes visuais em relação
a outras linguagens, como a música e a literatu-
ra, para pensar o seu (não) lugar no imaginário
popular do país; Fome de democracia – Arte,
política & utopia, de Michelle Sommer, parte
de um encontro entre Mário Pedrosa, Darcy
Ribeiro, Glauber Rocha e Ferreira Gullar, no ano
de 1977, para refletir sobre o Brasil de trinta anos
depois; Arte entre liberdade e servidão, de Ma-
risa Flórido, aborda o registro fascista que tem
Editor’s note
* Luisa Duarte
In October 2017, Raul Mourão invited me to
be the editor of a special issue of the Jacaranda
Magazine, which would deal with the episodes
of censorship that affected the world of art all
around the country. Commonly dedicated to sev-
eral topics, unrelated to a specific theme, for the
first time the publication would turn its attention
to one pressing issue and bring a set of unpub-
lished texts produced especially for the occasion.
I immediately accepted the invitation because
I saw the opportunity to ensure perpetuity to
certain reflections and to generate a memory of
this historical moment through which Brazil and
its artistic milieu, in particular, have been going
through. The sense of perpetuity has always seemed
relevant to me in an age when the debate takes
place, for the most part, on the Internet, which
is a dimension as ephemeral as it is scattered.
Six months later, we are pleased to present
our readers with an edition composed of fifteen
unpublished texts and an interview specially written
for this issue. Therefore, for the first time, Jac-
aranda comes into the world with a finger on the
pulse of the present, while simultaneously casting
a reflective gaze upon it. Throughout the follow-
ing pages, one can bear witness to a plurality of
responses to the events that led us to the context
of art censorship in Brazil in 2017. We open with
a journalistic text, A Year of Attacks on Artistic
Creation and Freedom of Expression, by Suzana
Velasco, this issue’s editorial coordinator, in which
the reader will have an overview of the events that
marked this period. We close the magazine with a
comprehensive essay by Suely Rolnik, entitled The
Abuse of Life - Matrix of the Capitalistic Colonial
Unconscious, which does not focus directly on cases
of censorship, but sheds light on a wider context
in which the aforementioned cases happened.
Between the two pieces, a multiplicity of points
of view that, we hope, will bring the reader closer to
reflective efforts, which can open paths of inter-
pretation about what has happened and clarify the
future since what we experienced did not end mag-
ically on December 31. The experience of 2017 was
marked by an understandable commotion in the art
community. Therefore, this special issue of Jacaran-
da Magazine seeks to preserve the intensity of the
documents that call for reflection about the present
while donating a certain distance that pause, instru-
mental for the development of thought, imposes.
With that in mind, we extend an invitation to
readers to peruse the different perspectives cov-
ered in this dossier. Misery of the Gaze, by Moacir
dos Anjos, reminds us that a certain misery in our
outlook on things is not exclusively conservative,
but also affects those who defend the transforming
power of art and who fight against and repel those
who attack it; The Time for Institutions, by Sérgio
Bruno Martins, scrutinizes the central role of insti-
tutions in the face of such impasses; La Bête - after
intolerance, budding conversation, by Luiz Camillo
Osorio, presents the after-the-storm thoughts of
the curator of the 35th Panorama of Brazilian Art,
held at the São Paulo Museum of Modern Art, where
the performance La Bête by Wagner Schwarz was
victimized by the censorship ferocity, which has
stormed the nation; The Naked Body, that familiar
stranger, by Daniela Labra, traces a retrospective
look at nudity in art to examine the impasses caused
by its distortion in the present; Art for whom? Art
for all, by Fred Coelho, looks at the visual arts in
relation to other languages, such as music and
literature, to think of their place (or displacement)
in Brazilian popular imaginary; Hunger for Democ-
racy - Art, Politics & Utopia, by Michelle Sommer,
is part of a meeting between Mário Pedrosa, Darcy
Ribeiro, Glauber Rocha, and Ferreira Gullar, in 1977,
to ensue reflections on Brazil thirty years later; Art
between freedom and servitude, by Marisa Florida,
addresses the fascist trait that targets the power
to imagine other possible worlds, intrinsic to art;
Messengers of fear - iconoclastic acts in present-day
Brazil, by Maria Angelica Melendi and Lais Myrrha,
interprets the performance of Antonio Obá, Acts
of the Transfiguration - Disappearance or Recipe
to Make a Saint (2015), drawing an unsuspected
parallel between that performance and the case
of the TV evangelist who, in 1995, appeared on the
Jacaranda - Nº 6
como alvo o poder de imaginar outros mundos
possíveis, próprio da arte; Mensageiros do medo
– atos iconoclastas no Brasil atual, de Maria
Angelica Melendi e Lais Myrrha, traça um diálo-
go insuspeitado entre a performance de Antonio
Obá, Atos da Transfiguração – Desaparição ou
Receita para Fazer um Santo (2015), e o caso
do pastor que em 1995 apareceu na rede de TV
Record chutando a imagem de uma santa, para
pensar o horror à imagem em tempos de censu-
ra, lançando mão, para tal, de um diálogo com
autores como Giorgio Agamben e Bruno Latour;
Imagem, ficção e gueto, de Daniela Name, aposta
na possibilidade de o meio de arte ver a si mesmo
criticamente no sentido de alagar as fronteiras
de seu próprio gueto; Tudo – ainda – está em seu
lugar, de Clarissa Diniz, parte de uma obra da du-
pla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, assim
como de uma fala do cantor popular Benito de
Paula, para sublinhar a importância de se proble-
matizar a luta de classes circunscrita na chamada
“guerra cultural” que habita o ataque ao campo
da arte contemporânea; Herança conquistada,
direitos esquecidos, espelhos devolvidos: a pre-
sença da cultura africana no entendimento da
arte e da cultura brasileiras, de Marcelo Cam-
pos, descortina embates vividos pela sociedade
brasileira no campo religioso, racial, e também
artístico, que antecedem os conflitos de 2017;
Veneno-Remédio: Arte e Liberdade de Expressão,
de Ronaldo Lemos, apresenta um ponto de vista
jurídico sobre os dilemas diante da censura na
era da Internet e das Fake News; A crise de 2017,
de Bernardo Mosqueira, faz um longo apanhado
dos fatos que marcaram o ano que passou com
o intuito de evocar encruzilhadas e possíveis
aberturas para o território da arte; por fim, uma
entrevista com Gaudencio Fidelis, curador de
Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte
Brasileira, exposição suspensa pelo Santander
Cultural, em Porto Alegre e vetada pelo prefei-
to e pastor Marcelo Crivella no MAR – Museu
de Arte do Rio de Janeiro, dá voz a quem este-
ve no centro dos ataques sofridos em 2017.
A todos os colaboradores, que dispuseram
de seu tempo para pensar à luz da urgência do
presente, o nosso mais sincero agradecimento.
5 6
TV network Record, kicking the image of a saint, to
discuss the disgust for imagery in times of cen-
sorship, calling upon the ideas of authors such as
Giorgio Agamben and Bruno Latour; Image, fiction,
and ghetto, by Daniela Name, bets on the possibility
that the art world can see itself critically after the
2017 episodes, in order to blur the borders of its
own ghetto; Everything is – still – in its place, by
Clarissa Diniz, is part of a paper by the duo Barba-
ra Wagner and Benjamin de Burca, triggered by a
line by popular singer Benito de Paula, to underline
the importance of problematizing class struggle
circumscribed in the so-called “cultural war,” which
inhabits the attack on the field of contemporary
art; Conquered Heritage, Forgotten Rights, Re-
turned Mirrors: the presence of African culture in
the understanding of Brazilian art and culture, by
Marcelo Campos, reveals the conflicts experienced
by Brazilian society in the religious, racial and
artistic fields that preceded the conflicts of 2017;
Poison-Remedy: Art and Freedom of Expression, by
Ronaldo Lemos, brings the legal point of view of
the dilemmas facing censorship in the era of the
Internet and Fake News; The 2017 Crisis, by Bernar-
do Mosqueira, takes a detailed look at the facts that
marked last year crisis to evoke the crossroads and
the possible open paths while braving the territory
of art; Lastly, an interview with Gaudencio Fidelis –
curator of Queermuseu - Cartographies of Difference
in Brazilian Art, an exhibition that was cancelled by
Santander Cultural in Porto Alegre and banned by
the mayor slash evangelist Marcelo Crivella from
the Rio de Janeiro Museum of Art – gives voice to
those who were at the center of the 2017 attacks.
To all the contributors, who dedicated
their time to think in the light of the urgen-
cy of the present, our most sincere thanks
Jacaranda - Nº 6
Um ano de ataques à criação
artística e à liberdade de
expressão
* Suzana Velasco
Na segunda metade de 2017, o Brasil foi
marcado por uma série de ataques à arte por
grupos ultraconservadores, que, em protes-
tos, atos violentos, campanhas na internet e
fatos inventados alcançaram uma dimensão
inédita. Não é novidade a reação a obras de
arte em nome da moral e dos bons costumes,
com a consequente interrupção de mostras
pelas próprias instituições.1 Tampouco o con-
servadorismo é traço estranho à sociedade
brasileira. No entanto, o momento de amea-
ças à democracia, radicalização de posições
políticas, ausência de diálogo e a facilidade
de propagação de notícias falsas na internet
contribuiu para que se configurasse um cenário
de violência à liberdade de expressão no país.
Entre dezenas de casos, de distintas áreas
de criação e pensamento, dois se tornaram
emblemáticos dos ataques a exposições, artistas
e curadores em 2017: o fechamento da mostra
Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte
Brasileira pelo Santander Cultural, em Porto
Alegre, após protestos alegando “incitação a
pedofilia, zoofilia e blasfêmia”; e as acusações
de pedofilia e perseguição ao artista Wagner
Schwartz após a circulação do trecho de um
vídeo da performance La Bête, realizada na
abertura do 35o Panorama da Arte Brasileira, no
Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo.
Em ambos os casos as ações se serviram da
replicação de mensagens de ódio e fake news
nas redes sociais, em ação conjunta de políticos,
organizações religiosas e grupos ultraconserva-
dores, como o Movimento Brasil Livre (MBL)2.
Em ambos os casos, os curadores das exposi-
ções, respectivamente Gaudêncio Fidélis e Luiz
Camillo Osorio, foram convocados a depor na
Comissão Parlamentar de Inquérito dos Maus-
-Tratos Infantis no Senado Federal, que atuou
como guardiã da moral da “família brasileira”,
repetidamente evocada pelos acusadores.
Com 263 obras, Queermuseu ficou quase um
7 8
mês em cartaz até ser fechada em 10 de setem-
bro, após protestos no Santander Cultural e nas
redes sociais da instituição e do banco, que teve
uma de suas agências pichada. As acusações de
pedofilia se concentraram sobretudo em te-
las de Bia Leite inspiradas no tumblr “Criança
Viada”, que reunia fotos, enviadas por adultos,
de suas infâncias marcadas por característi-
cas não heteronormativas. Em Cruzando Jesus
Cristo com Deusa Shiva, de Fernando Baril, a
mistura de Jesus e da deusa indiana foi tacha-
da de blasfema. E recortes de Cena de Inte-
rior II, em que Adriana Varejão reúne práticas
sexuais e trata de uma herança colonial de
violência no Brasil, foram ampliados e difundi-
dos como incitação à zoofilia, por mostrar um
homem transando com uma cabra, e ao sexo
grupal. Muitos dos que pediam o encerramen-
to da exposição admitiram não tê-la visto.
Sem aviso prévio ao curador, o Santander
Cultural anunciou o fim súbito da mostra em sua
página no Facebook, que na ocasião já reunia
mais de 20 mil avaliações negativas: “[O]uvimos
as manifestações e entendemos que algumas das
obras da exposição Queermuseu desrespeitavam
símbolos, crenças e pessoas, o que não está em
linha com a nossa visão de mundo”3. O Ministério
Público Federal recomendou a reabertura, mas
o centro cultural decidiu mantê-la fechada.
Menos de três semanas depois, os ataques
recaíram diretamente contra Wagner Schwartz.
Em La Bête – que já havia sido realizada deze-
nas de vezes, desde 2005 –, o artista fica nu e os
membros do seu corpo podem ser manipulados
pelo público, em performance inspirada nas es-
culturas dobráveis Bichos, de Lygia Clark. Assim
como a obra de Varejão foi reduzida a detalhes
de uma pintura, a performance de cerca de 40
minutos no MAM-SP ficou conhecida como o
momento em que uma criança, acompanhada de
sua mãe, toca os pés do artista. Neste caso, a pro-
pagação do vídeo motivou acusações não apenas
A year of attacks on artistic
creation and on the freedom of
expression
* Suzana Velasco
In the second half of 2017, Brazil was marked
by a series of attacks on art by ultraconserva-
tive groups, which reached an unprecedented
dimension in terms of protests, violent acts,
Internet campaigns and invented facts. There is
nothing new about the reaction to artworks in
the name of morality and good customs, with the
consequent interruption of shows by the hosting
institutions.1 Nor is conservatism a new feature
of Brazilian society. Nevertheless, the moment
of threats to democracy, the radicalization of
political positions, the absence of dialogue and
the ease of spreading fake news on Internet all
contributed to configuring a scenario of violence
against the freedom of expression in this country.
Among dozens of cases, in different areas of
creation and thought, two became emblematic of
the attacks on exhibitions, artists and curators
in 2017: the closing of the show Queermuseu –
Cartografias da Diferença na Arte Brasileira by
Santander Cultural, in Porto Alegre, after protests
alleging “promotion of pedophilia, zoophilia and
blasphemy,” and the persecution and accusations
of pedophilia directed at artist Wagner Schwartz
after the dissemination of a segment of the vid-
eo recording of the performance La Bête, at the
opening of the 35th Panorama da Arte Brasileira,
no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo.
In both cases the attacks involved the repli-
cation of messages of hate and fake news on the
social networks, an action carried out jointly with
politicians, religious organizations and ultraconser-
vative groups, such as the Movimento Brasil Livre
(Free Brazil Movement – MBL).2 Also in both cases,
the curators of the exhibitions, Gaudêncio Fidélis
and Luiz Camillo Osorio, respectively, were sum-
moned to testify at the Parlimentary Investigative
Commission on Child Abuse in the Federal Senate,
which acted as the moral guardian of the “Brazilian
family,” a term repeatedly invoked by the accusers.
With 263 artworks, Queermuseu had been
running for nearly a month when it was closed on
September 10, after protests at Santander Cultural
and on the social networks of the institution and the
bank, which had one of its branches painted with
graffiti. The accusations of pedophilia were concen-
trated mainly on the paintings by Bia Leite inspired
in the Tumblr page “Criança Viada” [Queer Child]
which featured photos, sent by adults, of their
childhoods marked by nonheteronormative char-
acteristics. In Cruzando Jesus Cristo com Deusa
Shiva [Crossing Jesus Christ with the God Shiva],
by Fernando Baril, the mixture of Jesus and the
Indian God was labeled as blasphemy. And details
of Cena de Interior II [Interior Scene II], in which
Adriana Varejão gathers various sexual practices
and treats on a colonial heritage of violence in
Brazil, were enlarged and publicized as a promotion
of zoophilia, insofar as they showed a man having
sex with a nanny goat and depicted an act of group
sex. Many of those who demanded the closing of
the exhibition admitted that they had never seen it.
Without prior notice to the curator, Santander
Cultural announced the sudden end of the show
on its Facebook page, which then contained more
than 20,000 negative evaluations: “We heard the
manifestations and understand that some of the
artworks in the exhibition Queermuseu disrespected
symbols, beliefs and people, which is not in line with
our worldview.”3 The Federal Public Prosecutor’s
Office recommended that the show be reopened,
but the cultural center decided to keep it closed.
Less than three weeks later, the attacks fell
directly on Wagner Schwartz. In La Bête – which
had been staged dozens of times since 2005 – the
artist is nude and his limbs can be manipulated
by the public, in a performance inspired by the
manipulatable Bicho sculptures by Lygia Clark.
Just as the work by Varejão was reduced to the
details of a painting, the performance of around
40 minutes at MAM-SP became identified with
the moment at which a child, accompanied by her
mother, touches the artist’s feet. In this case, the
dissemination of the video gave rise to accusa-
tions not only against an institution, but against
Jacaranda - Nº 6
contra uma instituição, mas contra um homem
que foi obrigado a depor na delegacia, recebeu
ameaças de morte e foi alvo de notícias falsas
sobre seu suicídio e assassinato a pauladas.4
Dois meses antes de La Bête no Panora-
ma, Maikon K fora detido em Brasília por “ato
obsceno”, ao ficar nu na performance DNA de
DAN – realizada desde 2013 –, interrompida pela
Polícia Federal; no dia seguinte, o governador
do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg, e o
secretário de Cultura, Guilherme Reis, descul-
param-se pelo ocorrido. Já no caso de Schwartz,
o prefeito de São Paulo, João Doria, condenou
a obra como “cena libidinosa”, num vídeo em
que aproveitou para criticar Queermuseu.
No Congresso Nacional, Schwartz foi chama-
do de psicopata e “tarado por criança” pelo
deputado federal João Rodrigues, o mesmo que,
em 2015, foi flagrado vendo pornografia du-
rante a votação da reforma política. Já o depu-
tado Laerte Bessa incitou a tortura: “Direitos
humanos é um porrete de pau de guatambu,
que a gente usou muitos anos em delegacia de
polícia. (…) Se aquele vagabundo fosse fazer
aquela exposição lá no Goiás, ele ia levar uma
‘taca’ que ele nunca mais iria querer ser artis-
ta e nunca mais iria tomar banho pelado.”
Entre o fechamento de Queermuseu e a real-
ização de La Bête houve outros casos de violência
contra manifestações artísticas, numa onda de
ações reacionárias. Depois de uma ocorrência
registrada por deputados federais de Mato Gros-
so do Sul, a polícia apreendeu a pintura Pedo-
filia, de Alessandra Cunha, a Ropre, do Museu
de Arte Contemporânea de Campo Grande, em
14 de setembro, a três dias do encerramento
da exposição Cadafalso. No dia seguinte, uma
liminar judicial proibiu a apresentação da peça
O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, de
Jo Clifford, no Sesc Jundiaí (SP), porque Jesus
era interpretado por uma atriz transexual,
Renata Carvalho5. O espetáculo, que estreara
em 2016 no Festival Internacional de Londrina,
foi apresentado nos dias seguintes em outras
cidades. No início de outubro, outros políticos
e grupos religiosos saíram em defesa da moral
e da família, agora em Belo Horizonte, prote-
stando contra a exposição Faça Você Mesmo Sua
Capela Sistina, de Pedro Moraleida, no Palácio
das Artes, que já era recomendada para maiores
de 18 anos. O prefeito da capital mineira, Alexan-
dre Kalil, defendeu publicamente a mostra.
Já no Rio de Janeiro, o prefeito e pastor
Marcelo Crivella descartou a possibilidade de
9 10
Queermuseu ser realizada no Museu de Arte do
Rio (MAR), como anunciado pela instituição, que
é administrada pela prefeitura em parceria com a
iniciativa privada. “Saiu no jornal que vai ser no
MAR. Só se for no fundo do mar”, ironizou Cri-
vella, num vídeo em que cinco anônimos rejeitam
uma “exposição de pedofilia e zoofilia” na cidade.
Na mesma época, alegando uma pane elétrica, a
prefeitura cancelou o evento Curto-Circuito no
Castelinho do Flamengo, na véspera do espetá-
culo Bicha Oca. O projeto fazia parte da progra-
mação da semana da diversidade no Rio e incluía
uma exposição com fotografias de homens nus.
Depois de uma bem-sucedida campanha de
financiamento coletivo, encerrada no fim de
março de 2018, a Escola de Artes Visuais (EAV)
do Parque Lage receberá Queermuseu em junho
deste ano. A proposta da EAV surgiu em outubro,
num movimento de reação de setores da cultu-
ra no país – que se manifestaram em frente ao
MAR, em protesto, e reuniram-se na escadaria
da Câmara Municipal do Rio de Janeiro para
pensar em estratégias frente à onda de caça às
bruxas. Outro grupo, encabeçado pela empresá-
ria Paula Lavigne, criou o movimento #342ar-
tes6, com o objetivo de acionar parlamentares e
o Judiciário em casos de difamação na internet.
Ainda que alguma reação começasse a se
esboçar, o clima de medo instaurado fez com que
o Museu de Arte de São Paulo (MASP) adotasse
pela primeira vez a classificação restritiva de
18 anos para a exposição Histórias da Sexual-
idade, programada desde 2016, com mais de
300 obras. Na prática, menores de idade não
podiam visitar a mostra nem mesmo acompan-
hados dos responsáveis. Durante a abertura,
em 19 de outubro, houve um protesto contra a
restrição etária, vista por muitos como um ato de
autocensura. No vão livre do MASP foi lida uma
carta-manifesto que insere a violência contra
criações artísticas num contexto de crescimento
da extrema-direita e de oposição aos direitos
humanos, acirrado com o golpe que tirou Dilma
Rousseff da Presidência da República, em 2016.7
Os curadores da exposição – Adriano Pe-
drosa, Lilia Schwarcz, Pablo León de la Barra
e Camila Bechelany – justificaram a decisão do
MASP como uma medida preventiva. Porém,
20 dias depois, o museu alterou a classifi-
cação de 18 anos para indicativa, ou seja, pas-
sou a permitir que menores de idade fossem
acompanhados dos pais. A motivação foi uma
nota da Procuradoria Federal dos Direitos
do Cidadão, do Ministério Público Federal,
a man who was obliged to give a deposition at a
police station, received death threats, and was
the target of fake news reports about his sui-
cide and murder by being beaten with sticks.4
Two months before the performance of La
Bête at the Panorama, Maikon K was arrested in
Brasília for the “obscene act” of being nude in the
performance DNA de DAN, which had been staged
since 2013 but on that occasion was interrupted
by the federal police. The following day, the gov-
ernor of the Federal District, Rodrigo Rollemberg,
and the Secretary of Culture, Guilherme Reis,
apologized for the occurrence. In Schwartz’s
case, the mayor of São Paulo, João Doria, con-
demned the work as a “libidinous scene,” in a
video in which he also criticized Queermuseu.
In the National Congress, Schwartz was called
a psychopath and “a pervert lusting for children” by
federal deputy João Rodrigues, the same politician
who in 2015 was caught watching pornography
during the voting for the political reform. For his
part, deputy Laerte Bessa urged torture: “Human
rights is a wooden billy club, which was used for
many years at police stations. […] If that bum were
to hold that exhibition there in Goiás, he would
receive a “whack” that would make him never want
to be an artist again or to ever take a bath naked.”
Between the closing of Queermuseu and the
performance of La Bête there were other cases
of violence against artistic manifestations, in a
wave of reactionary actions. After a complaint
filed by federal deputies from Mato Grosso do Sul,
the police confiscated the painting Pedofilia, by
Alessandra Cunha, a.k.a. Ropre, from where it was
on display at the Museu de Arte Contemporânea
of Campo Grande, on September 14, three days
before the closing of the exhibition Cadafalso. The
next day, a judicial injunction prohibited the pre-
sentation of the play O Evangelho Segundo Jesus,
Rainha do Céu [The Gospel According to Jesus,
Queen of Heaven], by Jo Clifford, at Sesc Jundiaí
(SP), because Jesus was played by a transsexual
actress, Renata Carvalho.5 The show, which had
debuted in 2016 at the Festival Internacional de
Londrina, was presented on the following days in
other cities. At the beginning of October, other
politicians and religious groups came out in defense
of morality and the family, now in Belo Horizonte,
protesting against the exhibition Faça Você Mesmo
Sua Capela Sistina [Make Your Own Sistine Chapel]
by Pedro Moraleida, at Palácio das Artes, which
already had a suggested age rating of 18 years
old. The mayor of the capital of the state of Minas
.
Gerais, Alexandre Kalil, publicly defended the show.
In Rio de Janeiro, the city’s mayor, Marcelo
Crivella, who is also a pastor, dismissed the possibil-
ity that Queermuseu would be held at the Museu de
Arte do Rio (MAR), as announced by the institution,
which is administered by the city government in
partnership with the private sector. “Newspaper
reports say it’s going to be at the MAR. Only if it’s at
the bottom of the mar [sea], Crivella ironically stat-
ed, in a video in which five anonymous people reject
an “exhibition of pedophilia and zoophilia” in the city.
At the same time, alleging an electrical problem,
the city government canceled the event Curto-Cir-
cuito at Castelinho do Flamengo, on the eve of
the show Bicha Oca. That project was part of the
programming of Diversity Week in Rio and included
an exhibition featuring photographs of nude men.
After a successful crowdfunding campaign,
which ended in late March 2018, the Escola de Artes
Visuais (EAV) do Parque Lage will host Queer-
museu in June of this year. The EAV’s proposal
arose in October, in a counterreaction movement
by the cultural sectors in the country – who got
together for a protest in front of the MAR and
gathered on the stairs of Rio de Janeiro City Hall
to conceive strategies against the wave of witch
hunts. Another group, headed up by business-
woman Paula Lavigne, created the movement
#342artes6 with the aim of suing politicians and
judges in cases of defamation on Internet.
Even though some counterreaction had begun
to form, the climate of fear that had been instated
caused the Museu de Arte de São Paulo (MASP) to
adopt for the first time in its history an age rating of
18 years for its exhibition Histórias da Sexualidade,
planned since 2016, with more than 300 artworks. In
practice, minors could not visit the show even when
accompanied by their parents or a responsible adult.
During the opening, on October 19, there was a pro-
test against the age restriction, seen by many as an
act of self-censorship. In the ground-level plaza un-
der the MASP building’s free span a letter-manifesto
was read that ascribed the violence against artistic
creations to a context of growth of the extreme
right and opposition to human rights, encouraged
by the coup d’état that removed Dilma Rousseff
from the Presidency of the Republic, in 2016.7
The exhibition’s curators – Adriano Pedrosa,
Lilia Schwarcz, Pablo León de la Barra and Camila
Bechelany – justified MASP’s decision as a pre-
ventative measure. Twenty days later, however,
the museum changed the age restriction from “no
one under 18” to “minors admitted only if accom-
Jacaranda - Nº 6
com o argumento de que a restrição feria o
direito à criação dos filhos e à liberdade de
expressão, portanto era inconstitucional.
Os ataques à diferença na criação, no pens-
amento e no credo continuaram. Em novembro
de 2017, manifestantes protestaram na porta
do Sesc Pompeia, em São Paulo, queimando um
boneco que retratava a filósofa Judith Butler
como uma bruxa, pois ela promoveria “ideologia
de gênero” – expressão que se tornou recorrente
entre os ultraconservadores. Lemos periodica-
mente notícias sobre a destruição de terreiros
de candomblé e ataques a professores e institu-
ições de ensino, na esteira do movimento Escola
sem Partido, “contra a doutrinação nas escolas”.
Esta edição especial da Jacarandá não esgota
esses casos, concentrados no segundo semestre
de 2017, mas parte deles para pensar por que e
de que maneiras a liberdade de expressão e a
criação artística, ou seja, a própria democra-
cia, estão sob forte ameaça no Brasil de hoje.
1. Textos desta edição relembram casos como o cancelamento da
exposição de Nan Goldin pelo Oi Futuro no fim de 2011, a menos de
dois meses de sua abertura; e o fechamento da mostra Erotica – Os
Sentidos na Arte pelo Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de
Janeiro em 2006, após protestos contra uma obra de Márcia X.
2. Criado no fim de 2014 por apoiadores de partidos de direita,
o movimento político apoiou o golpe contra a presidenta eleita
Dilma Rousseff. Em março de 2018, o MBL ajudou a propagar
fake news sobre a vereadora, socióloga e ativista carioca Marielle
Franco, executada a tiros no Rio de Janeiro, em 14 de março.
3. https://www.facebook.com/SantanderCultural/
posts/732513686954201, acessado em 25 de março de 2018.
4. Ver “Fui morto na internet como se fosse um zumbi da série The Walking
Dead”, entrevista do artista a Eliane Brum, no El País Brasil, 12 de fevereiro
de 2018, disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/12/
opinion/1518444964_080093.html, acessado em 25 de março de 2018.
5. Renata Carvalho, Wagner Schwartz, Maikon K e a performer
Elisabete Finger – mãe da criança filmada em La Bête – criaram
juntos a peça Domínio Público, sobre esses casos de violência,
apresentada no Festival de Curitiba, no fim de março de 2018.
6. O nome é um desdobramento do movimento #342agora, referência aos
342 votos necessários para que denúncias contra o presidente Michel Temer
fossem aceitas pela Câmara dos Deputados, em 2017 – o que não ocorreu.
7. Com 1219 assinaturas de artistas, críticos de arte e profissionais de outras
áreas, a carta está disponível em https://pelademocracia.com/2017/10/19/
carta-manifesto-pela-democracia-2/, acessado em 25 de março de 2018.
11
panied by their parents.” Their motivation was a
note from the Federal Public Prosecutor’s Office’s
Federal Prosecutor of Citizenship Rights which
held that the restriction infringed on the right
of parents to raise their children and on free-
dom of expression, making it unconstitutional.
The attacks on differences in parenting, thought
and belief have continued. In November 2017,
protesters gathered at the door of Sesc Pompeia,
in São Paulo, where they burned an effigy depicting
philosopher Judith Butler as a witch, since she had
promoted “gender ideology,” an expression that
has become recurrent among ultraconservatives.
We periodically read news about the destruction of
places of worship of the religion of Candomblé and
attacks on professors and teaching institutions,
in the wake of the movement Escola sem Partido
[School Without a Party], “against indoctrination in
the schools.” This special edition of Jacarandá does
not exhaustively cover these cases, concentrated in
the second semester of 2017, but begins with them
to think about why and in what ways the freedom
of expression and artistic creation – that is, democ-
racy itself – are under great threat in Brazil today.
1. Texts in this issue recall cases such as the canceling of the exhibition of Nan
Goldin by Oi Futuro in late 2011, less than two months after its opening, and the
closing of the show Erotica – Os Sentidos na Arte by the Centro Cultural Banco do
Brasil of Rio de Janeiro in 2006, after protests against an artwork by Márcia X.
2. Created in late 2014 by supporters of the rightist parties, the
political movement supported the coup d'état against President Dilma
Rousseff. In March 2018, the MBL helped to spread fake news about
Rio de Janeiro city councilwoman, sociologist and activist Marielle
Franco, assassinated by gunshots in Rio de Janeiro on March 14.
3. https://www.facebook.com/SantanderCultural/
posts/732513686954201, retrieved on March 15, 2018.
4. See “Fui morto na internet como se fosse um zumbi da série The
Walking Dead,” interview of the artist by Eliane Brum, in El País Brasil,
February 12, 2018, available at https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/12/
opinion/1518444964_080093.html, retrieved on March 25, 2018.
5. Renata Carvalho, Wagner Schwartz, Maikon K and the performer
Elisabete Finger – the mother of the child in the video recording of La
Bête – jointly created the play Domínio Público, about these cases of
violence, presented at the Festival de Curitiba, in late March 2018.
6. The name is an unfolding of the movement #342agora, in reference to the
342 votes necessary for the denouncements against President Michel Temer
to be accepted by the Chamber of Deputies, in 2017 – which did not happen.
7. With 1,219 signatures of artists, art critics and professionals from other
areas, the letter is available at https://pelademocracia.com/2017/10/19/
carta-manifesto-pela-democracia-2/, retrieved on March 25, 2018.
12
Jacaranda - Nº 6
Notas sobre a
miséria do olhar
* Moacir dos Anjos
1. Foram muitos os ataques a exposições de
arte ocorridos no Brasil ao longo de 2017. Assaltos
físicos e violentos: contra as obras expostas,
contra seus criadores, contra as instituições que
as abrigavam e até mesmo contra quem se dis-
pusesse a vê-las. Ataques que, na frequência e no
grau de agressividade com que ocorreram, foram
novidade no país, mesmo quando cotejados com
os ocorridos no período mais tosco e brutal da
ditadura militar. Assaltos que se assemelham,
contudo, às perseguições feitas à criação naquele
momento passado por não elaborarem crítica
fundamentada às formulações artísticas que com-
batem, buscando, ao contrário, a completa aniqui-
lação do discurso do outro de quem divergem.
2. Todo ataque tem uma autoria ou agência.
E os aqui aludidos foram abertamente assumidos
por movimentos ou agrupamentos criados em
meio àquilo que se convencionou chamar de crise
de representação no sistema político brasileiro.
Crise que abriga, entre seus vários significados e
desdobramentos, o esgarçamento dos mecanis-
mos de mediação entre as distintas equivalências
simbólicas do mundo que são o tempo inteiro
criadas, seja por meio de imagens, de gestos, de
formas ou de palavras. E não somente no cam-
po usualmente descrito como o da política, mas
também naquele associado à criação e ao consumo
artísticos. Equivalências que são sempre e neces-
sariamente abstrações de um real inapreensível,
e que tanto incluem como excluem fatos, gen-
tes e entendimentos de como o mundo opera,
disputando entre si a hegemonia, mesmo que
provisória, frente aos outros recortes da vida com
que concorrem. No Brasil de 2017, aqueles movi-
mentos e agrupamentos que atacaram exposições
de arte quiseram transformar disputa legítima
em apagamento do diferente, igualando o embate
democrático à violência sem qualquer regulação.
3. Os ataques foram resultado de má-fé e
cálculo político que quer calar tudo o que põe
13
em dúvida a divisão desigual das competências e
retribuições em cada espaço de vida. O que seus
líderes tentaram fazer, com cínica competência
e auxiliados por seguidores orgulhosos de sua
ignorância e força bruta, foi combater um dos
poucos espaços de sociabilidade crítica existentes
no mundo de hoje – a criação e a fruição artísticas
–, atribuindo-lhe intenções que lhe são em tudo
estranhas. Estiveram empenhados em interditar
uma das únicas arenas de promoção do dissenso
que restam no Brasil. Em retirar da arte a sua
potência de desobedecer normas e de reinventar
o que se pensava ser já sabido, confinando-a em
um espaço apaziguado e inócuo, mantendo-a aí
sob vigilância estreita, violenta e moralista.
4. Os ataques são também sintomas de uma
miséria do olhar. De uma incapacidade de pro-
mover, através do exame cruzado entre o que
se enxerga e o que se pensa, o conhecimento
que qualquer imagem contém em potência. Ao
estabelecerem vínculos únicos e diretos entre
imagens de nudez e situações supostamente
atentatórias ao que a lei proíbe ou o costume
reprova, os responsáveis pelos assaltos à arte,
aos artistas, aos museus e aos frequentadores
destes quiseram implicitamente suprimir toda
diferença entre imagem e vida, ou entre rep-
resentação de algo e esse algo representado. É
perturbador perceber que em um mundo cada
vez mais mediado por imagens, estas progres-
sivamente percam seu poder de afirmar-se como
invenção de narrativas, sendo entendidas não
como mediações entre o sujeito e o que ele vive,
mas como espécies de absurdas extensões do real.
5. A miséria do olhar não é exclusiva dos
conservadores. É algo que afeta, cada vez mais,
também aqueles que defendem o poder trans-
formador da arte e que combatem e repelem os
que a atacam. Sem se enfrentar a necessidade
de formar espectadores experientes e eman-
cipados – resgatando assim o papel de uma
Notes on the misery
of the gaze
* Moacir dos Anjos
1. There were multiple attacks on art exhibits
in Brazil in 2017. Both physical and violent attacks:
Against the works of art on display, against their
curators, against the institutions that housed them,
and even against those who chose to go see them.
Attacks whose frequency and level of aggressive-
ness were unheard of in the country, even when
compared to the crudest and most brutal period of
the military dictatorship. These attacks, however,
were similar to persecutions against creation during
that moment of the past, since they did not present
any founded criticism of the artistic expressions
they condemned. Rather, they sought to annihilate
the speech of those with opposing viewpoints.
2. Every attack has authorship or agency. And
those described here were unabashedly assumed by
movements or groups created amidst the so-called
crisis of representation in the Brazilian political
system. It is a crisis that harbors, among its many
meanings and developments, a fraying of mea-
surement mechanisms between different symbolic
equivalences of the world that are constantly being
created, whether through images, gestures, shapes,
or words. And not only in the field normally described
as political, but also that associated with artistic cre-
ation and consumption. Always and necessarily, these
equivalences are abstractions from an elusive reality,
which at the same time includes and excludes facts,
peoples, and understandings of how the world func-
tions. They fight hegemony amongst themselves, even
if temporarily compared to other snapshots of life
with which they compete. In 2017 Brazil, those move-
ments and groups that attacked art exhibits wished
to transform a legitimate dispute into an all-out
obliteration of that which is different, equating the
democratic struggle to violence with no holds barred.
3. The attacks were the result of ill will and
political calculus designed to silence everything
that questions the unfair division of competencies
and retributions in each space of life. Assisted by
proud followers of their ignorance and brute force,
what their leaders attempted to do with a cynical
competency was to bring the fight into one of the
few spaces of critical sociability that exist in today’s
world: Artistic creation and fruition. They claimed
to have intentions that could be no farther than the
truth. They made every effort to shut down one
of the only arenas for the promotion of dissidence
still existing in Brazil. The idea was to remove from
art its power to disobey norms and reinvent what
was previously thought to be known, restraining
it to a pacified and benign space and keeping it
under strict, violent, and moralist surveillance.
4. The attacks are also symptoms of a misera-
ble eye. An inability to promote the knowledge that
any image potentially contains by cross-examining
what one sees with what one thinks. By establishing
single, direct bonds between images of nudity and
situations that supposedly promote what is prohib-
ited by law or condemned by custom, the implicit
desire of those attacking art, artists, museums and
even museum-goers was to suppress any difference
between image and life, or between the represen-
tation of an object and the object represented. In
an increasingly image-mediated world, it is quite
disturbing to see how these images can progres-
sively lose their power to present themselves as the
invention of narratives. Astonishingly, instead of
being understood as a mediation between the subject
and what he or she lives, these images are seen as
some kind of absurd extension of what is real.
5. The miserable eye is not unique to conserva-
tives. It also increasingly contaminates those who
promote the transforming power of art and who
fight and push back against those who attack it.
Without addressing the need to develop experienced
and emancipated spectators – thereby recovering
the role of a trained eye –, we will not only end up
claiming from images what is not their responsibil-
ity but will also let their liberating power slip away.
This is the role that should be played by institutions
that house and promote artistic production.
14
Jacaranda - Nº 6
pedagogia do olhar –, está-se destinado não
somente a cobrar das imagens aquilo que não
é culpa delas, mas também a deixar escapar o
que guardam de poder que liberta. E nisso cabe
uma grande responsabilidade das instituições
que abrigam e promovem a produção artística.
6. Museus ou centros culturais que se cur-
vam às demandas de censura à arte não estão à
altura de sua mais essencial missão, que é cuidar
do que pode a arte; que é cuidar do poder de a
arte transformar a vida de quem se deixa afetar
por ela. É detestável que o Cultural Santander
tenha cancelado a exposição que abrigava sobre
diversidade sexual como resposta aos ataques
sofridos, escudando-se no cínico motivo de que
os clientes do Banco Santander (e não a audiência
das exposições que o centro cultural do banco
promove) poderiam ficar melindrados com as
obras expostas. E é inconcebível que o Museu
de Arte de São Paulo (MASP) tenha estabelecido
uma barreira à entrada de menores de 18 anos a
uma exposição sobre histórias da sexualidade em
antecipação a protestos que poderiam ocorrer
após a abertura da mostra. De fato, quando o mais
importante museu da América Latina, escudado
em um conselho formado por representantes das
maiores fortunas do Brasil, pratica a autocensura
em vez de combater – respeitados os limites da lei
– qualquer forma de censura à arte, e ainda apela
à “sociedade” (como se o MASP não fosse parte
poderosa dela) para que esta lute pela reversão da
medida autonomamente tomada pelo museu, es-
tá-se diante de uma enorme capitulação ao atraso.
15
7. Tempo cronológico e tempo político nem
sempre caminham em paralelo e adiante. Embo-
ra tenha sido comum, no Brasil das últimas três
décadas, a crença de que mesmo a tropeçadas
se avançava para um estado de mundo menos
desigual – uma crença motivada em parte pelo
término da ditadura militar –, os tempos de agora
mostram como o futuro político pode mirar o
que se pensava ter sido deixado para trás. Aten-
do-se apenas aos ataques recentes e violentos
à liberdade artística, é pesaroso (e muito mais)
notar como o clima de intolerância e perseguição
agora instalado evoca um tempo político de afetos
tristes, no qual se reproduziam desigualdades e se
sufocava tudo o que fosse da ordem da mudança e
do diverso. Essa dessincronia pode, contudo, ser
também mote para rejeitar retrocessos e aban-
donar fatalismos, levando a buscar, no mesmo
tempo passado, pistas do que é desejado para
um porvir democrático. Seriam muitos os exem-
plos desses rastros que fortalecem a imaginação
política, alguns mais e outros menos recentes,
mas um apenas pode aqui bastar. Como parte da
programação da 29a Bienal de São Paulo, em 2010,
houve a apresentação do Bailado do Deus Morto
(1933), única peça do artista Flávio de Carvalho,
em adaptação de Zé Celso Martinez Corrêa, com
Teatro Oficina e Bando Cavallaria. Em meio a
centenas de pessoas então em visita à exposição
– mulheres, homens, crianças –, atrizes e atores
desceram as rampas do Pavilhão da Bienal com
seus corpos pintados e quase nus, interpretando
o provocante trabalho do artista. Não houve um
incidente qualquer, apesar do texto irreverente
e inteligente encenado. Não houve qualquer
invocação moralista, a despeito das bucetas e dos
paus à vista. Não houve nenhum ato de violência
antes, nem depois. Nenhum protesto até o final do
que parecia um cortejo ou procissão ou passeata,
quando o grupo finalmente deixou o prédio e se
misturou, por alguns momentos, aos desavisados
frequentadores do Parque Ibirapuera. Fosse
hoje, tão poucos anos passados, autor (mesmo
morto), diretor, atrizes e atores seriam quase
certamente violentamente atacados, enquanto a
Bienal seria, talvez, fechada à visitação. Às vezes,
é preciso disputar o legado do passado para se
lutar pelo futuro que se deseja. Como agora.
6. Museums and cultural centers that bend to the
demands of censorship against art are not sticking
to their most essential mission: To safeguard the
power of art, the power to transform the lives of
those who allow themselves to be moved by art.
Ducking behind the cynical reason that Santander
customers (and not audience members attending
the exhibits organized by the bank’s cultural center)
could be offended by the works of art on display,
Santander Cultural cancelled its exhibit on sexual
diversity as a response to the attacks suffered. This
is abhorrent. It is unimaginable that the São Paulo
Museum of Art (MASP) has prohibited the entry of
minors to an exhibit featuring histories of sexuality
in anticipation to protests that could occur after the
opening. Indeed, a major setback is installed when
Latin America’s most important museum – shield-
ed by a board where Brazil’s greatest fortunes sit
– practices self-censorship instead of combating
(within the limits permitted by law) any form of
censorship on art, and even calling on “society” (as
if MASP were not a powerful member itself) to fight
to reverse the measure taken by the museum itself.
7. Chronological time and political time do not
always walk hand-in-hand and move forward togeth-
er. Over the past three decades, there has been a
belief that in Brazil we were progressing toward a
less unequal world, even if clumsily along; a belief
motivated in part by the end of the military dicta-
torship. However, modern times have revealed how
the political future may very well be heading toward
something that was thought to be left in a forgotten
past. Considering only the recent, violent attacks
against artistic freedom, it is mournful (and more) to
see how the mood of intolerance and persecution that
has taken hold evokes a political time marked by such
sadness, where disparities re-emerge and all that
represented change and diversity is snuffed out. This
out-of-sync state, however, may also set the tone for
rejecting such regressions and abandoning fatalisms,
prompting us to seek – once again reaching to the
past – signs about what is desired for a democratic
future. There would be many examples of these signs
that strengthen political imagination, some more
recent and others less so, but one is enough here. The
programming for the 29th São Paulo Biennial in 2010
featured the presentation of Bailado do Deus Morto
(“Dance of the Dead God”) (1933), the only work by
artist Flávio de Carvalho and an adaptation by José
Celso Martinez Corrêa in partnership with Teatro Ofi-
cina and Bando Cavallaria. Amongst the hundreds of
people visiting the exhibit at the time – women, men,
and children –, actresses and actors walked down the
ramps of the Biennial Pavilion with their bodies paint-
ed and nearly nude, interpreting the artist’s provoca-
tive work. Despite the irreverent and intelligent text
acted out, there was not a single incident. No moral-
ist uproar, despite the genitalia in plain sight. Not a
single act of violence either before or after it. No pro-
tests up until the end of which resembled a parade,
procession, or march, when the group finally left the
building and blended for a few moments with the
unsuspecting group frequenting Ibirapuera Park. Had
this happened today, just a few short years later, the
author (although dead), director, actresses and actors
would almost for sure be violently attacked, while
the Biennial would perhaps be closed to the public.
Sometimes, it is necessary to challenge the past
legacy to fight for the future we want. Like right now.
16
Jacaranda - Nº 6
A hora das instituições
*Sérgio Bruno Martins
O artista David Batchelor certa vez descreveu a
relação entre arte contemporânea e seu público como
“um encontro às escuras com um fantasma”1. Batchelor
se referia a uma quimera – o imperativo de aproximação
entre arte e público enquanto fantasia ideológica –,
mas essa mesma descrição, no Brasil de 2017, ganha
verdadeiros contornos de filme de terror, com artistas,
curadores e instituições perdidos e assustados numa escu-
ridão repleta de fantasmas demasiado reais. De que outra
forma descrever os ataques físicos e verbais sofridos por
funcionários e frequentadores de museus, as ameaças de
morte dirigidas a artistas e um abaixo-assinado com cerca
de 90 mil nomes pedindo o fechamento de uma instituição
do porte do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo?
Ou ainda a convocação de curadores para depor na assim
chamada CPI dos Maus-Tratos, onde os papéis se invertem
e a arte é colocada ela própria no lugar do fantasma a
ser exorcizado pelo senador e pastor Magno Malta?
Os eventos que nos conduziram a tal cenário já foram
incessantemente repisados: o fechamento da exposição
Queermuseu, os ataques ao 35º Panorama da Arte
Brasileira por conta da performance La Bête, de Wagner
Schwartz, o veto do prefeito do Rio de Janeiro e pastor
Marcelo Crivella à remontagem da mesma Queermuseu no
Museu de Arte do Rio (MAR), a opção do Museu de Arte de
São Paulo (MASP) pela classificação restritiva de 18 anos
na exposição Histórias da Sexualidade e, em paralelo a
tudo isso, o circo midiático-policial instalado por Malta no
Senado Federal. Igualmente conhecidos são os provoca-
dores de plantão: políticos e grupos ultraconservadores,
religiosos ou não, e turbas virtuais inflamadas por grupos
como o Movimento Brasil Livre (MBL), cujo arsenal de
memes, robôs e fake news foi instrumental na confecção
dos escândalos que motivaram os ataques. É fácil apontar
o cinismo por detrás de tudo isso – é revelador, por
exemplo, que se tenha tentado criminalizar muito mais
o artista nu na performance do Panorama do que quem
gravou e disseminou o vídeo, este sim um fato gerador de
constrangimento para a criança que ali participava. Fácil,
mas por isso mesmo, inócuo: Malta e o MBL sabem per-
feitamente bem que nada naquelas exposições constitui
pedofilia ou infringe o Estatuto da Criança e do Adolescen-
17
te (ECA), mas sabem também que isso pouco importa num
clima de caça às bruxas e pós-verdade (na pior das hipóte-
ses, a polêmica ainda poderia servir-lhes para enfraquecer
o próprio ECA, alvo antigo dos defensores da redução da
maioridade penal). Do ponto de vista meramente eleito-
ral, o objetivo é simples: para o MBL, encobrir com uma
cortina de fumaça sua vista grossa à corrupção do governo
Temer, que poderia alienar suas bases eleitorais; para
Malta e outros políticos, produzir os troféus a serem ex-
postos durante as eleições de 2018. Em poucos meses, não
faltarão candidatos exibindo orgulhosamente a cabeça
de um artista ou curador “pedófilo” no horário eleitoral.
Isso nos traz ao cerne do problema: se há algo em
comum em todos os ataques à arte, é que eles nada têm a
ver com arte. Ao contrário da exposição de arte degenera-
da organizada pelo nazismo – a famosa Entartete Kunst,
de 1937 –, a importância da forma artística para as atuais
pautas ultraconservadoras é nula. As “deformações” da
arte modernista serviram de contraimagem tanto para a
idealização do corpo ariano quanto para o retorno ao clas-
sicismo, pilares estético-ideológicos cruciais do projeto
nazista. Não é por menos que Entartete Kunst foi espelha-
da por uma exposição de “grande arte alemã” (Große Deut-
sche Kunstausstellung) inaugurada na véspera, também
em Munique – do outro lado da rua, aliás. Não quero dizer
com isto que o atual projeto de poder da extrema-direita
e do conservadorismo neopentecostal seja desprovido de
qualquer dimensão estética; o ponto é que esta dimensão
passa ao largo das artes visuais. É a partir dos programas
de humor politicamente incorretos, como um CQC, e do
universo dos memes que o MBL, por exemplo, constitui
seu linguajar performático e visual. Não há qualquer
interesse ali numa disputa pela arte contemporânea em
si, apenas em aproveitá-la como um alvo fácil e oportuno,
um fogo de palha capaz de produzir a cortina de fumaça
que mencionei acima. De quebra, o alvo é conveniente
também por reforçar a oposição destes grupos em
relação tanto aos círculos intelectuais progressistas (que
consomem arte) quanto às tradicionais elites financeiras
(que consomem e patrocinam obras de arte). Dessa forma,
uma convivência historicamente contraditória ganha ares
de conluio, juntando num mesmo balaio intelectuais “de-
The time for institutions
* Sérgio Bruno Martins
Artist David Batchelor once described the relation-
ship between modern art and its audience as “a blind
date with a ghost”.1 Batchelor referred to a chimera
– the imperative of approximation between art and the
public as ideological fantasy –, but this same descrip-
tion in 2017 Brazil earns truly terrifying airs, with
artists, curators, and institutions lost and frightened in
a darkness filled with all-too-real ghosts. What other
way can be used to describe the physical and verbal
attacks suffered by museum-goers and employees,
death threats toward artists, and a petition with some
90,000 names calling for the closure of an institution
with the stature of the São Paulo Museum of Modern
Art (MAM)? Or even the call for deposition by curators
in the so-called “Congressional Investigative Commit-
tee on Mistreatment,” where the roles were reversed,
and art was shoved into the position of a ghost to
be exorcised by Senator and Pastor Magno Malta?
The events that led us to this situation have already
been brought up again and again: The closure of the
Queermuseu (“Queermuseum”) exhibit, attacks on the
35th Panorama of Brazilian Art due to the La Bête (“The
Beast”) performance, by Wagner Schwartz, the veto
from Rio de Janeiro Mayor and Pastor Marcelo Crivella
to reopening Queermuseu at the Rio de Janeiro Museum
of Art (MAR), the choice by the São Paulo Museum
of Art (MASP) to restrict entry into the Histórias da
Sexualidade (“Histories of Sexuality”) exhibit to individ-
uals aged 18 and older, and simultaneously the medi-
atic-police circus promoted by Malta in the Brazilian
Senate. Equally important are the usual provocateurs:
Ultra-conservative politicians and groups, religious or
otherwise, and virtual mobs incited by groups like the
Free Brazil Movement (MBL), with its arsenal of memes,
robots, and fake news, were instrumental in fabricating
the scandals that prompted the attacks. It is easy to
point out the cynicism behind all this – it is revealing,
for example, that there has been an attempt to crimi-
nalize the nude artist during the Panorama performance
much more than the person who recorded and distrib-
uted the video. This, in fact, was the biggest source of
embarrassment for the child that participated in the
act. Easy, but for the same reason, harmless: Malta and
MBL know perfectly well that nothing in those exhibits
constitutes pedophilia or violates Brazil’s Statute of the
Child and Adolescent (ECA), but they also know that this
does not matter much in a witch-hunt and post-truth
environment – in the worst case scenario, the con-
troversy could further help them weaken ECA, an old
target of those who defend the reduction of legal age. It
is quite simple from a merely electoral perspective: For
MBL, the goal is to use a smoke screen to camouflage
their turning a blind eye to the rampant corruption
in the Temer Administration, which could alienate its
electoral bases; for Malta and other politicians, the
goal is to produce trophies to be displayed during the
2018 elections. In just a few months, there will be no
shortage of candidates proudly exhibiting the head of a
“pedophile” artist or curator during their campaigns.
This leads us to the heart of the problem: If there is
a common thread in all the attacks against art, it is that
they have nothing to do with art. Different from the
Nazi degenerate art exhibit – the famous 1937 Entartete
Kunst –, the importance of artistic form for today’s
ultra-conservative agenda is null. The “deformations”
of Modernist art served as a contrasting image, both
for the idealization of the Aryan body and the return
to Classicism – esthetic-ideological pillars that were
crucial to the Nazi agenda. For no other reason, the
Entartete Kunst mirrored an exhibit of “Great German
art” (Große Deutsche Kunstausstellung) inaugurated
on the eve of its opening– also in Munich and across
the street, nonetheless. By saying this, I do not mean
that the current the extreme right and neo-Pentecostal
conservativism agenda to gain power lacks any esthetic
dimension; it just has nothing to do with visual arts. Its
entertaining and visual jargon is based on politically-in-
correct comedy shows, like CQC and on MBL’s universe
of memes, to name a few . There is no interest in engag-
ing in a dispute about modern art itself, but rather to
use it as a weak and timely target, a flash in the pan to
create the smoke screen mentioned earlier. In addition,
the target is also convenient because it reinforces their
opposition to progressive intellectual circles (who con-
18
Jacaranda - Nº 6
pravados” e os bilionários que bancam tal “depravação”.
Montado este pano de fundo, MBL et caterva podem posar
de resistência a um só tempo moralmente virtuosa e an-
tielitista. Uma resistência às “famílias tradicionalíssimas
donas do Itaú [e que] promovem a agenda esquerdista no
Brasil,” como estampou um site, aproveitando o episódio
de La Bête para denunciar “as agendas revolucionárias”
das famílias Setúbal, Villela e Moreira Salles.2 É o ultra-
conservadorismo brasileiro em plena virada populista.3
Ora, se a arte contemporânea não é em si o que está
em jogo nestes ataques – repito, se não é seu sentido
imanente que está em disputa – de que serve qualquer
resposta formulada com base no vocabulário formal ou
representativo da arte contemporânea? Pior: será que
um contra-ataque amparado em mais destes mesmos
signos – seja remontando Queermuseu, seja organizan-
do carnavais de resistência em atos públicos – não seria
exatamente dar ao inimigo aquilo que ele mais deseja?4
É evidente que, em alguma medida, tais atos cumprem
a função de produzir reconhecimento e solidariedade
entre pares num momento difícil, mas é ingênuo acred-
itar em sua eficácia como contraponto a ataques dessa
amplitude e capilaridade. O risco é alimentar um ciclo
de “cismogênese simétrica”, como bem lembrou Rodrigo
Nunes, lançando mão do conceito de Gregory Bateson:
“uma ‘interação cumulativa’ em que os membros de
dois grupos respondem uns aos outros com um padrão
de comportamento igual e de mesma intensidade, mas
em direção contrária, de modo que a ação de cada grupo
conduz o outro a uma ênfase excessiva no padrão de com-
portamento em questão. Uma ação de um tipo provoca
uma reação do mesmo tipo em direção contrária, e assim
sucessivamente, como numa corrida armamentista”5
Cabe acrescentar: o problema dessa “simetria”, no
atual contexto, é sua falsidade de fundo, isto é, o fato de
que uns têm muito mais a ganhar com ela do que outros.
Se é verdade que os grupos neoconservadores visam
encobrir suas próprias contradições instaurando um
clima de guerra cultural, e se é verdade também que essa
é uma guerra que não se pode ganhar com argumentos
(se é que isso algum dia foi possível), dado que suas armas
são memes e fake news, então é evidente que o objetivo
desses grupos não é propriamente o de vencê-la. Não:
para eles, a instauração e perpetuação de um clima de
guerra cultural já é por si só uma vitória. E cabe acrescen-
tar também que este clima extrapola em muito o âmbito
meramente artístico. É fácil vibrar com a cusparada dada
por Jean Wyllys em Jair Bolsonaro no plenário da Câmara
dos Deputados, por exemplo, e até reconhecer que Wyllys
pessoalmente tinha boas razões para fazer o que fez, mas é
preciso que nos perguntemos em que medida tal gesto não
contribui para reforçar uma polarização mais prejudicial à
causa dos direitos civis e liberdades individuais defendi-
dos com vigor por Wyllys que à pauta de sua supressão
19
pelo neofascismo de Bolsonaro. Dito de outra forma, a
polarização pessoal entre ambas as posições nivela suas
divergências, remetendo-as a uma falsa simetria que
iguala a defesa e a supressão dos direitos civis, como se
defender ou repudiar o direito ao aborto ou ao casa-
mento homoafetivo fossem posições de igual dignidade
democrática, ou então meras diferenças de opinião. Não
são: direitos civis e liberdades individuais deveriam ser
entendidos como pilares fundamentais de uma sociedade
democrática, e não como cláusulas negociáveis segundo
o sabor da moral majoritária vigente; defender sua su-
pressão no interior do rito democrático é uma contradição
em termos. É quase impossível assistir à cusparada
sem sentir que Wyllys “lavou a nossa alma”; o proble-
ma é que o que está em jogo não são almas e lacrações,
mas corpos e a legislação que sobre estes incide.6
Num encontro ocorrido no início de outubro de 2017
na escadaria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro,
um grupo de artistas debateu possíveis respostas aos
ataques. Pouco a pouco, falas de diferentes matizes foram
cedendo lugar a palavras de ordem autoconfiantes como
“nós vamos ganhar, a direita é muito burra” e “já falamos
demais, vamos agir!” – na sequência desta última, uma
parte do grupo simplesmente saiu em marcha. Há pelos
menos dois pressupostos que alimentam um voluntaris-
mo dessa ordem. Primeiro, o da hegemonia cultural da
esquerda, inabalável mesmo durante o regime militar, mas
que agora encontra-se sob fogo cerrado –  nesse quesito,
somem-se aos eventos já citados a emergência e o rápido
trânsito de propostas como as do movimento Escola sem
Partido, que visa instalar um clima de patrulha moral
permanente em escolas e universidades. A hegemonia
cultural da esquerda funcionava como uma espécie de
porto seguro, uma plataforma a partir da qual era possível
imaginar caminhos e estratégias futuros mesmo em
cenários de adversidade e recuo. Mas é preciso recon-
hecer que este porto já não é mais tão seguro; ignorar
este novo cenário e atuar como se tudo seguisse como
dantes é deixar um flanco escancarado para o avanço
do inimigo. Em outras palavras, a esquerda cultural
encontra-se no limiar de uma crise de legitimidade;
requentar slogans e evitar a dura tarefa de repensar suas
condições de atuação é a receita certa para aprofundá-la.
O segundo pressuposto é oriundo do canto do
cisne vanguardista e contracultural dos anos 1960:
trata-se de um vocabulário de contestação política que
ainda influencia fortemente – e, no limite, aprisiona – o
imaginário tanto da produção artística engajada quanto
da estética das manifestações de partidos de esquerda e
sindicatos. No caso das manifestações, basta verificar
o constrangedor apego ao velho repertório de canções
de protesto de um Geraldo Vandré, por exemplo, e no
choque disso com a estética de junho de 2013 (que foi
uma ruptura estética também com o mar de bandeiras
sume art) and traditional financial elites (who consume
and sponsor the art work). In this way, a historically
contradictory coexistence can look like collusion,
grouping together the “perverted” intellectuals and the
billionaires who profit from such “perversion.” Once set
the stage, MBL and crew can pose as the resisting pow-
er – morally virtuous and anti-elitist all at once. Taking
full advantage of the La Bête episode to denounce the
“revolutionary agendas” of the Setúbal, Villela, and
Moreira Salles families2, they resist to the “ultra-tra-
ditional families who own Itaú Bank [and] promote
the leftist agenda in Brazil,” as stated on a website.
Brazilian ultra-conservatism in full populist upturn.3
Indeed, if modern art itself is not what is at stake
in these attacks – I repeat –, if it is not its inherent
sense what is being disputed, then what is the point
of any formulated response based on the formal
or representative vocabulary of modern art? Even
worse: Would a counter-attack backed by more signs
of the same – whether re-opening Queermuseu or
organizing resistance carnivals in public acts – not
give the enemy exactly what it most desires?4 To
a certain degree, these acts clearly serve the pur-
pose of peer sympathy and solidarity during difficult
times, but let us not be too naïve to believe they are
effective counterpoints to attacks of this amplitude
and scope. The risk lies in fueling a cycle of “sym-
metric schismogenesis,” as Rodrigo Nunes reminds
us while adopting Gregory Bateson’s concepts:
“a ‘cumulative interaction’ in which members of
two groups respond to one another with equal be-
havioral pattern and intensity level, while pulling in
opposite directions, so that the action of one group
prompts the other to react excessively. One kind of ac-
tion causes a reaction of the same kind in the opposite
direction, and onward successively, like an arms race.”5
It should be added that the problem with this
“symmetry” in the current context is its fake depth. In
other words, the fact that some have more to gain from
it than others. If it is true that Neoconservative groups
attempt to hide their own contradictions by instilling a
climate of cultural war, and if it is also true, given that
their weaponry is formed of memes and fake news,
that this war cannot be won with arguments (was it
ever possible?), then the goal of these groups is clearly
not to win the war. For them, instilling and perpetuat-
ing a climate of cultural war is a victory in itself. And
it is important to add here that this climate extends
far beyond the artistic realm. When Jean Wyllys spits
on Jair Bolsonaro’s face during a plenary session at
the House of Representatives, for example, it is easy
to cheer for him. We could even agree that Wyllys
had good personal reasons to do what he did. But we
must ask: To what degree such gesture contributes to
further polarize and damage the agenda of civil rights
and individual freedoms he so vehemently defends as
opposed to Bolsonaro’s Neofascistic agenda? To put
it differently, the personal polarization between both
stances levels out their differences, relegating them to
a phony symmetry that equates the support and sup-
pression of civil rights. As if supporting or disavowing
the right to abort or same-sex marriage were positions
of equal democratic dignity or perhaps just differences
of opinion. No, they are not. Civil rights and individual
freedoms should be understood as the fundamental
pillars of a democratic society, not debatable clauses
that bend according to the mood of the majority’s
morality of the day. To promote their suppression as
part of the “democratic rite” is a contradiction in terms.
One can hardly watch Wyllys spit on Bolsonaro without
feeling a sense of redemption. Yet this is not about
redemption and throwing shade, it is about physical
bodies and the legislation that regulates them.6
During a meeting that took place in early October
2017 in the stairway of the Rio de Janeiro City Council,
a group of artists debated possible responses to the
attacks. Little by little, original and diverse expressions
gave rise to self-confident watchwords, such as “the
right is so stupid that we shall win” and “too much
talk already, let’s start acting!” Right after this last
statement, a part of the group simply decided to march.
Two assumptions at least fuel such a volunteerism.
First, the assumption of cultural hegemony of the left,
which even during the military regime was steadfast,
but has now come under fire. In this regard, add to the
aforementioned events the emergency and swift pass-
ing of proposals like the “Party-Free School” movement,
designed to create an environment of permanent moral
surveillance at schools and universities. The cultural
hegemony of the left functioned as a safe haven, a plat-
form from which one could envision paths and strate-
gies for the future, despite all adversity and setbacks.
This haven, however, one must realize, is no longer
safe. To ignore this new scenario and act as if nothing
has changed is the same as leaving an open flank for
the enemy to attack. In other words, the cultural left
has found itself edging toward a crisis of legitimacy.
Rehashing slogans and avoiding that hard task of
rethinking its methods is a sure-fire way to deepen it.
The second assumption comes from the avant-gar-
de and counter-cultural ideas of the 1960s: This is a
vocabulary of political challenge that still holds strong
influence – and, at its limit, imprisons – the imaginary of
both the engaged artistic production and the esthetic of
demonstrations by left-wing parties and labor unions.
As for the demonstrations, the embarrassing attach-
ment to the old repertoire of protest songs by Geraldo
Vandré, for example, and how much this clashed with
20
Jacaranda - Nº 6
e carros de som das marchas sindicais). Já do ponto
de vista das artes, a insistência numa eficácia direta e
transformadora remonta ao sonho utópico de fundir
arte e vida, mas isto num contexto em que estes gestos
já se encontram desgastados pela repetição, quando não
simplesmente mercantilizados. Em todo caso, o ponto
é que não há nenhuma boa justificativa para acreditar
que a arte contemporânea possua grande poder de
transformação direta da sociedade (até o final dos anos
1960 era perfeitamente compreensível que promessas
dessa ordem fossem críveis, mesmo que, em retrospec-
to, muitas delas possam nos parecer infundadas), o que
torna gestos como a marcha espontânea que mencionei
acima pouco mais que arroubos brancaleônicos.
Por coincidência, foi nessa mesma noite que outro
encontro, na casa da empresária e produtora Paula
Lavigne, desenhou um tripé estratégico de outra nature-
za, amparado no diálogo com parlamentares visando o
bloqueio de projetos de lei reacionários, no acionamento
judicial de agressores físicos e verbais, e num esforço de
comunicação reunido sob o manto da hashtag #342artes.7
Este terceiro ponto é sem dúvida o mais problemático:
novamente, qual o sentido de reunir o contra-ataque sob o
rosto de artistas variados, como se não fosse exatamente
a autoridade cultural destes que estivesse em questão,
especialmente após o MBL elevar a personagem de Dona
Regina à condição de porta-voz involuntária e memética
das “pessoas comuns” contra a suposta arrogância das
elites artística e intelectual? 8 E qual o sentido de reunir
tudo sob uma rubrica claramente identificável, e portanto
neutralizável (rubrica esta que foi prontamente ironizada
com a criação de uma hashtag alternativa, #171artes)?
Nesse quesito, por mais distantes que estejam os artistas
de rua reunidos na Cinelândia e o círculo de maior fama
em torno de Paula Lavigne, ambos parecem incapazes de
traçar uma estratégia de comunicação capaz de escapar
da lógica da cismogênese simétrica. Quem o fez, ironica-
mente, foi o programa Fantástico, da Rede Globo, que,
numa matéria sobre os ataques à arte, privilegiou as vozes
de advogados e pastores evangélicos progressistas, as-
sociou de forma criativa e inequívoca os ataques a outros
fenômenos, como a destruição de terreiros de candomblé
por traficantes ligados ao fundamentalismo neopente-
costal e, mais importante, não fez uma menção nominal
sequer ao MBL. Em tempos de monetização de cliques,
é capaz de ter sido este, e não o conteúdo da matéria, o
motivo de irritação maior para os líderes do movimento.
Feita essa ressalva, é preciso reconhecer: os dois
primeiros pontos da estratégia de Lavigne e seus as-
sessores são certeiros. O primeiro – lobby parlamentar
– demonstra a clara consciência de que, num momento
adverso, é imprescindível traçar estratégias defensivas e
de contenção de danos. Já o segundo toca num ponto mais
fundamental. Como um advogado presente na reunião
21
de Lavigne fez questão de lembrar, o poder responsável
por salvaguardar as minorias numa democracia (imped-
indo que esta se transforme numa ditadura da maioria)
é o Poder Judiciário. Independentemente de o Judiciário
estar (muito) longe de ser perfeito ou mesmo de ter plena
consciência dessa responsabilidade, isso significa que
é preciso agir politicamente no sentido de instá-lo a tal
atuação, trazendo para perto juízes, procuradores e defen-
sores públicos mais sensíveis a questões desta natureza
e potencialmente capazes de pautá-las de forma positiva
no interior de suas respectivas instituições. Ademais, é
preciso deixar claro: uma acusação infundada de pedofilia
é ela própria um crime, e deve ser tratada como tal (não
é por menos que Crivella cautelosamente pôs a acusação
de pedofilia na boca de figurantes anônimos no vídeo
em que vetou Queermuseu, chamando para si apenas o
anúncio do veto, e simulando uma enquete democrática
com um elenco cuidadosamente selecionado para parecer
de periferia). Há indícios suficientes de que grupos como
o MBL são mais financeiramente fracos do que dão a
parecer, e portanto vulneráveis a uma potencial torrente
de processos (os resultados iniciais são promissores, com
Caetano Veloso já registrando ganhos judiciais contra o
MBL e o ator Alexandre Frota). Ademais, a via legal deslo-
ca a trincheira para um campo onde nossos corpos deixam
de estar tão diretamente expostos ao fogo cruzado – algo
de primeira importância num momento crítico como este.
Mas é claro que uma estratégia de resposta jurídica
não pode depender integralmente da boa vontade circun-
stancial de indivíduos com recursos, por mais consisten-
temente engajados que estes possam vir a ser. É por essa
razão, entre outras, que as instituições artísticas e cul-
turais precisam posicionar-se de forma assertiva e coletiva
neste debate. Se é verdade, novamente, que a arte está na
berlinda simplesmente por ser um alvo fácil e conveniente,
então é urgente que ela deixe de sê-lo. Nenhum artista,
curador ou museu tem sozinho o poder para fazer que isso
aconteça; é necessário que se forme um grande movimen-
to conjunto de instituições em todo o país, sacramentado,
de preferência, num encontro presencial. Um movimento
desse porte seria capaz, por exemplo, de compartilhar
protocolos comuns de resposta jurídica e institucional a
ataques abusivos, minimizando a diferença de poderio
jurídico que existe entre os grandes museus e as institu-
ições de menor porte. Tal compartilhamento contribuiria
para evitar elos fracos na corrente institucional brasileira,
dificultando assim a identificação do próximo alvo fácil.
Ademais, uma articulação coletiva dessa ordem teria mais
força para dialogar com casas parlamentares e com os
diversos órgãos do Poder Judiciário, ajudando a criar juris-
prudências favoráveis e a melhorar (ou pelo menos a difi-
cultar a piora) a legislação pertinente. No limite, essa seria
uma excelente oportunidade para dar inédita consistência
institucional a um meio historicamente frágil, com ganhos
the June 2013 esthetic (which was also an esthetic
rupture with the sea of flags and sound-equipped
vehicles at labor union marches) is noticeable. From
the art perspective, insisting on a direct and trans-
formative impact reminds us of the utopian dream
of merging art and life, yet this happens in a context
where such gestures are already worn out due to
repetition, if not simply commodified. In any case,
the fact is that there is no good reason to believe
that contemporary art has this massive power to
directly transform society – until the late 1960s, such
promises were understandably credible, despite their
appearing in retrospect unfounded–, which turns acts
like the spontaneous march mentioned above into
raptures similar to those of L’armata Brancaleone.
Coincidentally, on the same night, another
meeting was held at the home of businesswoman
and producer Paula Lavigne. Backed by the dialogue
with lawmakers to block reactionary bills, by legal
action against physical and verbal aggressors and
by communication efforts formed under the hashtag
#342artes (“#342arts”), participants elaborated a
strategy of a quite different nature.7 This is the third,
and undoubtedly the most problematic point: Once
again, what is the point of having different artists
counter-attacking since their cultural authority is
precisely what is being questioned? In a time when
MBL raised Dona Regina’s voice to an involuntary and
memetic spokesperson for the “common folk” against
the alleged arrogance of artistic and intellectual
elites, this is counterproductive altogether.8 And
what is the meaning of putting all efforts under a
clearly identifiable, and therefore, neutralizable
statement – one that was promptly mocked when
an alternative hashtag, #171artes (“#171arts”) was
created? Regardless of the distance between the
street artists gathered in Cinelândia and the circle
of greater fame surrounding Paula Lavigne, both
appear incapable of elaborating communication
strategies that can avoid the logic of symmetrical
schismogenesis. Ironically, the one player who did it
successfully was Fantástico, a Globo Network’s TV
program. In its feature story about the attacks on
art, the show gave voice to attorneys and progressive
evangelical pastors, creatively and unquestionably
associating the attacks with other phenomena (such
as the destruction of Candomblé places of worship
by drug dealers tied to neo-Pentecostal fundamental-
ism) and more importantly, did not mention the MBL
movement a single time. In a time when mouse clicks
bring money, this may have irritated the movement’s
leaders more than the actual content of the story.
One thing is certain: The first two points of
Lavigne’s strategy and that of her advisors stroke a
chord. The first, parliamentary lobby, proves how clear-
ly aware they are of the need to create defensive and
damage-containing strategies during adverse times. As
an attorney attending Lavigne’s meeting reminded them
all, the second touches on a more crucial point: In a de-
mocracy, the responsibility of the Judicial Branch is to
safeguard minorities and ensure that a dictatorship of
the majority does not settle in. Regardless of how (very)
far from perfection the Judicial Branch is, or how little
aware it is of this responsibility, one needs to act politi-
cally in the sense of urging the Branch toward such ac-
tion. Enlisting judges, prosecutors and public defenders
who are more sensitive to such issues and are poten-
tially capable of framing them positively within their
respective institutions is necessary. It is important to
elucidate that unfounded accusations of pedophilia are
a crime and should be treated as such. For no other rea-
son did Crivella carefully place the accusation of pedo-
philia in the mouths of anonymous figures recorded in
the video when he vetoed Queermuseu. The Mayor took
responsibility only for the announcement of the veto
and simulated a democratic poll with a carefully select-
ed group of respondents who resembled members of
the outskirts. Because there is sufficient evidence that
groups like MBL are financially weaker than they pose
to be, this makes them vulnerable to a potential flood
of lawsuits –Caetano Veloso celebrating legal victories
against MBL and actor Alexandre Frota is a promis-
ing result to start with. Furthermore, the use of legal
channels moves the trench to a field where our bodies
are no longer directly exposed to the cross-fire – some-
thing of utmost importance in critical times like this.
However, it is clear that a strategy of legal
response cannot depend fully on the circumstantial
goodwill of resourceful individuals, regardless of how
consist their engagement is. Among others, this is
why artistic and cultural institutions need to position
themselves assertively and collectively in the debate.
If, once again, it is true that art is only in the spotlight
because it is an easy and convenient target, it urgently
needs to cease from being so. No artist, curator, or mu-
seum alone has the power to make this happen. A large
movement must be formed to join together institutions
from all over the country, preferably in face-to-face
meetings. A movement of this size could, for instance,
share common protocols for legal and institutional
responses to abusive attacks, diminishing the gap of
the legal power large museums and smaller institutions
have. This act of sharing would help prevent weak links
along the Brazilian institutional chain, thereby making
it harder to identify the next easy target. Furthermore,
such a collective coordination would have more power
to establish a dialogue with the Houses of Parliament
and the different arms of the Legal Branch, while help-
22
Jacaranda - Nº 6
capazes de extrapolar a simples resposta à presente crise.
A rigor, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) é
o órgão que deveria tomar a dianteira de tal articulação.
Cabe cobrá-lo, sem dúvida, mas não esperar por ele. Os
museus e centros culturais mais bem estruturados, e dota-
dos de assessoria jurídica, têm plena condição de chamar
para si a responsabilidade por tal articulação, até porque
eles próprios poderiam se beneficiar do estabelecimento
de um protocolo jurídico mais lúcido e politicamente in-
formado (que poderia ter evitado, por exemplo, a afobada
adoção da classificação restritiva de 18 anos, por parte do
MASP, na exposição Histórias da Sexualidade). Algumas
iniciativas já despontaram, mas seguem isoladas: um
debate sobre liberdade de expressão e direito realizado no
início de novembro na OAB/RJ, por exemplo, contou com
baixíssima adesão por parte das instituições artísticas.9
Por fim, cabe observar, à guisa de reflexão mais
ampla, que o atual clima político é apenas uma parte
da equação que explica os ataques. Ora, se o Santander
Cultural não tivesse passado recibo e fechado a Queermu-
seu em primeiro lugar, é provável que a gritaria do MBL
gaúcho tivesse se dispersado sem maiores consequências.
É por isso também que a questão institucional se impõe. O
que o Santander Cultural fez não foi nada muito difer-
ente do que já haviam feito, em outras ocasiões, o Centro
Cultural Banco do Brasil – CCBB (com a obra Desenhando
com Terços, de Márcia X., em 2006) e o Oi Futuro (com
uma exposição de Nan Goldin, em 2011). Foram polêmi-
cas mais circunscritas exatamente porque lhes faltavam
as câmaras de ressonância proporcionadas pelas redes
sociais e pelo crescimento do populismo ultraconservador
nas bancadas parlamentares. De toda forma, o fechamen-
to da Queermuseu pode ser lido na esteira da crítica de
Batchelor ao imperativo ideológico de buscar o público a
qualquer custo, agravado, no caso, pela lógica do patrocí-
nio empresarial. Ao montar uma exposição como Queer-
museu, o Santander Cultural mostrava-se ainda afinado
com o ambiente cultural nos anos Lula, no qual reinavam a
celebração da diversidade e a euforia econômica (uma boa
síntese disso eram as frequentes exaltações, em páginas de
economia e negócios da época, ao potencial do “turismo
LGBT”). Confrontado com o ruído realizado pelo MBL, a
instituição parece ter se dado conta de que os ventos mu-
daram, e que o público junto ao qual ele buscava valorizar
sua marca vinha identificando-se com valores cada vez
mais conservadores. Como boa instituição de marketing
que é (e como CCBB e Oi Futuro também são, diga-se de
passagem), o Santander Cultural respondeu na forma
de um release que propagava uma visão completamente
anódina da arte (“quado a arte não é capaz de gerar in-
clusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que
é elevar a condição humana”) para embalar a mensagem
que realmente lhes importava: o freguês tem sempre a
razão. Trata-se de um discurso à primeira vista benevo-
lente, mas desprovido de qualquer compromisso com a
23
experimentação artística e com o papel democrático das
instituições culturais (a ditadura do consumidor é apenas
uma variante da ditadura da maioria). O capitalismo de
mercado pode não ser inerentemente ultraconservador,
mas também não é inerentemente avesso ao ultraconser-
vadorismo: se a adesão a este for lida como a chave para a
lucratividade ou o ganho de marca, é certo que a justificava
ideológica desta adesão não tardará em dar as caras.10 Por
isso, tão importante quanto reagir estrategicamente a
ataques como estes é reagir também de forma crítica, bus-
cando desmontar condições de possibilidade nem sempre
tão visíveis e que, muitas vezes, tocam em arranjos histori-
camente arraigados na própria estrutura do meio de arte.
1. David Batchelor, “Unpopular Culture”, Frieze, nº 20, jan-fev 1995, disponível em
https://frieze.com/article/unpopular-culture, acessado em 3 de janeiro de 2018.
2. “Famílias tradicionalíssimas donas do Itaú promovem a agenda
esquerdista no Brasil”, Terça Livre, https://www.tercalivre.com.br/
familias-tradicionalissimas-donas-do-itau-promovem-com-seus-bilhoes-
a-agenda-esquerdista-no-brasil/, acessado em 3 de janeiro de 2018.
3. O cenário brasileiro é distinto em muitos aspectos, mas é evidente aqui
um eco distante da configuração que ajudou a eleger Donald Trump nos
EUA: lá, o bilionário angariou o voto decisivo do segmento blue collar,
que sentia mais simpatia por sua verborragia politicamente incorreta do
que pelos setores progressistas urbanos e liberais, representados por
intelectuais e por uma classe gestora com formação universitária.
4. As propostas de remontagem de Queermuseu me parecem particularmente
problemáticas. As duas instituições que se propuseram a remontar a
exposição o fizeram de forma afobada: ao não prever o veto do prefeito e
ter uma resposta pronta, o MAR saiu enfraquecido; já a direção do Parque
Lage desconsiderou não apenas a impropriedade técnica de suas instalações
como também o potencial agravante político de ser uma escola, e portanto
passível de acusações falaciosas, mas eficazes, de doutrinação ideológica.
5. Rodrigo Nunes, https://www.facebook.com/orango.quango/
posts/10215124563413995, acessado em 3 de janeiro de 2018.
6. A recente polêmica entre Wyllys e o cantor Roger é ainda mais preocupante:
a oposição veemente a Bolsonaro ainda tem a justificativa de este ser também
deputado; o caso de Roger demonstra apenas a recorrência do antagonismo
como uma estratégia política sedutora mas, a meu ver, equivocada.
7. O movimento #342agora foi originalmente articulado por Lavigne, em parceria
com a Mídia Ninja, para pressionar a Câmara dos Deputados a levar adiante
denúncias contra o presidente Michel Temer; o número faz alusão à quantidade
de votos necessários para acolher a denúncia. Posteriormente, o movimento
desdobrou-se na campanha #342Amazônia, contrário ao decreto de Temer que
liberava a exploração de recursos minerais, por empresas privadas, de uma área
de cerca de 46.650 quilômetros quadrados na fronteira entre o Pará e o Amapá.
8. Dona Regina é um perfeito exemplo da eficácia memética do MBL: uma senhora
que estava na plateia do programa de TV “Encontro” discordou da fala da atriz
Andrea Horta sobre a performance La Bête, expressando o senso comum de que
seria indecorosa a participação de uma criança numa performance com um homem
nu. A discordância em si foi banal, mas o MBL editou a cena de modo a produzir
uma série de memes e explorar ad nauseam a imagem de Dona Regina, alçando-a
ao papel de representante da gente comum, e de sua moral, contra o já mencionado
e supostamente imoral conluio de artistas, instituições, intelectuais etc.
9. http://www.oabrj.org.br/noticia/110526--seccional-promove-debate-sobre-
liberdade-de-expressao-e-direito, acessado em 3 de janeiro de 2018.
10. Não quero dizer com isso que toda instituição regida pelo patrocínio
vai necessariamente atuar desta forma, apenas que isto é parte de sua
própria natureza institucional. É possível inclusive que, num meio em que
diversas instituições se articulem para explicitar de forma consequente
seu compromisso com princípios democráticos e com a liberdade de
experimentação e expressão artística, as próprias instituições de marketing
cultural sintam-se mais compelidas a resguardar estes mesmos princípios.
ing to create favorable jurisprudence and strengthen
(or at least make it harder to undermine) the applicable
legislation. At the most, this would be an excellent
opportunity to provide unprecedented institutional con-
sistency to a historically weak field, whose gains can
extrapolate the simple response to the present crisis.
This coordinated work should be led by IBRAM,
the Brazilian Institute of Museums. Without a doubt,
it needs to be pressured, but one must not wait for
it to engage. The museums and cultural centers that
are more structured and have legal support are fully
capable of assuming the responsibility for this artic-
ulation, especially because they could benefit from
the establishment of a more rational and politically
informed legal protocol. This could, for example,
have prevented the rushed adoption of restrictive
classification to people aged 18 and older by MASP
for the Histórias da Sexualidade exhibit. Some initia-
tives have emerged but remain isolated: A debate on
freedom of expression and the law that took place
in early November at the Rio de Janeiro Chapter of
the Brazilian Bar Association (OAB/RJ) had an ex-
tremely low attendance from artistic institutions.9
Finally, it is important to observe, through a more
extensive reflection, that the current political climate is
only part of the equation to explain the attacks. Indeed,
if Santander Cultural had not closed Queermuseu in
the first place, it is likely that complaints from MBL’s
Southern Brazilian group would dissipate without
major consequences. This is also why the institutional
issue is important. What Santander Cultural did was
not far from what Banco do Brasil Cultural Center
(CCBB) had done with the Desenhando em Terços
(“Drawing with Rosaries”) project, by Márcia X in 2006;
or what Oi Futuro had done with an exhibit by Nan
Goldin in 2011. These controversies were restricted
precisely because they lacked the sounding boards
offered by social media and the growth of ultra-con-
servative populism on parliamentary benches. By any
means, the closure of Queermuseu can be read within
the lines of Batchelor’s criticism of the ideological
imperative to seek out the public at any cost, further
aggravated by the logic of corporate sponsorship.
When opening an exhibit like Queermuseu, Santand-
er Cultural demonstrated that it was still aligned
with the cultural environment that blossomed during
President Lula years. These were times when diversity
was celebrated and economic euphoria dominated.
One such example was how the potential of “LGBT
tourism” was frequently praised in the Economy
and Business newspaper sections at the time. When
faced with MBL’s noise, Santander Cultural seemed to
understand that the winds had shifted, and that the
public it struggled to retain had started to identify with
increasingly conservative agendas. As any market-
ing-oriented institution, similar to CCBB and Oi Futuro,
Santander Cultural’s response came in the form of a
press release. To wrap up their first message, “The
customer is always right”, this document propagated
a completely trivial vision of art (“When art cannot
generate inclusion and positive reflection, it loses
its main purpose: To elevate human condition.”) This
speech appears benevolent at first, yet it is devoid of
any commitment to artistic experimentation and to the
democratic role of cultural institutions – the dictator-
ship of the consumer is only a variant of the dictator-
ship of the majority). Market capitalism may not be
inherently ultra-conservative, but neither it is inher-
ently opposed to ultra-conservativism: If the affiliation
to ultra-conservativism is the key to increase profit-
ability or improve brand value, the ideological justifica-
tion for this affiliation will emerge sooner than later.10
This is why it is as important to react strategically to
attacks like these as it is to react to them with criti-
cism, in an attempt to dismantle the not always visible
possibilities, which often touch on historically rooted
arrangements in the very structure of the art world.
1. David Batchelor, “Unpopular Culture,” Frieze, No. 20,
January-February 1995, available at: https://frieze.com/article/
unpopular-culture, last accessed on January 3, 2018.
2. “Famílias tradicionalíssimas donas do Itaú promovem a agenda esquerdista
no Brasil” (“Ultra-traditional families who own Itaú Bank promote left-
wing agenda in Brazil”), Terça Livre, https://www.tercalivre.com.br/
familias-tradicionalissimas-donas-do-itau-promovem-com-seus-bilhoes-
a-agenda-esquerdista-no-brasil/, last accessed on January 3, 2018.
3. The Brazilian scenario is in many aspects diverse, but the wide gap from the setup
that helped elect Donald Trump in the United States is clear. In the US, billionaire
Trump won the decisive vote from the blue-collar segment, who sympathized more
with his politically incorrect verbiage than with the urban and liberal progressive
sectors, represented by intellectuals and university-educated leaders.
4. The proposals to reopen Queermuseu seem particularly problematic to me.
The two institutions proposing to do so did it in a rush: The lack of preparation
against the mayor’s veto weakened the Rio de Janeiro Art Museum (MAR);
Parque Lage’s management, on the other hand, failed to recognize not only
the technical inadequacy of its facilities, but also the potentially aggravating
political factor of its being an art school, which makes it more susceptible to
misleading yet highly effective accusations of ideological indoctrination.
5. Rodrigo Nunes, https://www.facebook.com/orango.quango/
posts/10215124563413995, Accessed January 3, 2018.
6. The recent controversy between Wyllys and Roger, the singer, is even more
concerning. The fervent opposition to Bolsonaro can be justified by the fact
that he is also a Congressman. The case with Roger simply demonstrates
the recurring antagonism as a seductive yet mistaken political strategy.
7. The #342agora (“#342Now”) movement was originally coordinated by Lavigne
in partnership with Mídia Ninja (“Ninja Media”) to put pressure on the House of
Representatives to carry forward the accusations against President Michel Temer.
The hashtag alludes to the number of votes needed to pass the vote. After that, the
movement unfolded into the #342Amazônia (“#342Amazon”) campaign against Temer’s
decree to approve the exploitation of mineral resources by private companies across
an area extending approximately 46,650 square kilometers at the Pará-Amapá border.
8. Dona Regina is a perfect example of the memetic effectiveness of MBL: A woman
in the audience of the Encontro (“Meeting”) TV program who disagreed with what
actress Andrea Horta had to say about the La Bête performance. She expressed
the “common sense” view that it would be indecent to have children attend a
performance featuring a naked man. The disagreement had no consequences, but
MBL edited the scene to produce a series of memes and by exploiting the image of
Dona Regina ad nauseam, the movement lifted her into the role of representative
of the “common people” and their moral views against the allegedly immoral
collusion of artists, institutions, intellectuals, and more we mentioned earlier.
9. http://www.oabrj.org.br/noticia/110526--seccional-promove-debate-sobre-
liberdade-de-expressao-e-direito, last accessed on January 3, 2018.
10. I do not mean to say that every institution ruled by sponsorship will necessarily
act this way, but only that this is part of its very institutional nature. It is even
possible that, in an environment in which so many institutions work together
to consistently explain their commitment to democratic principles with the
freedom of experimentation and artistic expressions, cultural marketing
institutions themselves feel more compelled to protect these same principles.
24
Jacaranda - Nº 6
La Bête - depois da
intolerância, alguma conversa
* Luiz Camillo Osorio
Escrever sobre o 35º Panorama da Arte Brasi-
leira (Museu de Arte Moderna de São Paulo/2017),
especialmente sobre os desdobramentos da perfor-
mance La Bête, de Wagner Schwartz, ainda me custa
caro. Não me sinto com a distância necessária. O
trauma ocasionado por toda aquela histeria moralis-
ta e posterior convocação ao Senado Federal – para
responder sobre maus-tratos à criança e ao ado-
lescente! – ainda não cicatrizou. Ver-se apanhado
por uma onda de acusações absurdas, totalmente
descoladas da razão de ser da performance e da
exposição, evidenciou-me o quanto vivemos em
um mundo fragilizado institucionalmente e cuja
linha que separa realidade e absurdo parece peri-
gosamente (não criativamente) borrada. Ao mes-
mo tempo, explicitou-se ali nossa dificuldade, falo
agora da sociedade brasileira contemporânea, em
lidar com as diferenças e com o simbólico. Essas
são questões em que tocarei mais adiante. De início,
quero começar falando de quanto o corpo, na sua
nudez original, pode ainda incomodar apenas por
estar presente, por mais passivo que ele seja. Este
incômodo é o que ainda falta ser pensado. Em
que medida a arte, depois de tudo o que vimos ao
longo do século XX, ainda produz desconforto?
A performance La Bête foi escolhida para o 35º
Panorama por sua relação direta com o corpo e com
o espectador. Vale lembrar que a curadoria tomou
como base para a exposição uma homenagem/
releitura aos 50 anos do Esquema Geral da Nova
Objetividade Brasileira, escrito por Hélio Oiticica,
em 1967. Considero esse texto um divisor de águas,
que introduz novos critérios críticos e poéticos
para pensarmos a arte contemporânea a partir do
momento traumático instaurado pelo golpe mili-
tar de 1964 e pelo desencanto generalizado com o
projeto moderno. Se, por um lado, ele derivava de
um contexto específico brasileiro, por outro, suas
postulações ultrapassavam esta delimitação geopo-
lítica e apontavam para desafios inerentes ao fazer
artístico tout court. As seis tendências discutidas
25
nesse texto abriram o caminho para uma discussão
do contemporâneo no que diz respeito às relações
entre arte, política, cultura popular, experimentação.
Fui apresentado a este trabalho do Wagner por
Lia Rodrigues. Quando comecei a pensar sobre este
projeto, a primeira pessoa com quem fui conversar
foi ela, que, além de uma amiga querida, é coreó-
grafa. O campo da dança me parecia fundamental
para pensar a “linha evolutiva” da arte brasileira
que juntaria a participação neoconcreta e o corpo
performático (frágil-potente) tropicalista. Vejo a
dança hoje como uma linguagem artística radical
justamente por sua questão física, pela ação do corpo
não necessariamente virtuosa, mas que sabe de si
e que se desdobra na procura por movimento vital.
Não se reduzir ao objeto é uma forma de resistir à
mercadoria. Coisa rara e difícil. Neste aspecto, a
apropriação do Bicho de Lygia Clark em La Bête me
parece crucial dadas as constantes diluições desta
obra – especialmente na sua dimensão participati-
va – pelas imposições institucionais e comerciais.
Há um corpo passivo do dançarino que se mantém
no máximo de tonicidade para se sustentar diante
dos movimentos que lhe são impostos pelo outro.
Ao longo de mais ou menos 40 minutos o artista-
-bicho fica ali vulnerável e disponível ao manuseio.
Esta entrega ao outro é o grande risco da peça.
Tudo pode acontecer e a responsabilidade de quem
age determina os rumos do movimento. Como escre-
veu Lygia Clark em 1966, em um texto intitulado Nós
Recusamos, depois de recusar todas as condições do
fazer artístico convencional, ela acrescenta: “pro-
pomos o precário como novo conceito de existência
contra toda cristalização na duração”. Esta precarie-
dade é própria ao risco da participação, de uma obra-
-processo, de um não saber como as coisas aconte-
cem e estar aberto ao movimento e à transformação.
Por ocasião da apresentação anterior de La
Bête no Brasil em dezembro de 2015, a crítica de
dança Helena Katz, em uma resenha no jornal O
Estado de São Paulo – intitulada profeticamente
La Bête - a dialogue in the wake of
intolerance
* Luiz Camillo Osorio
It still haunts me to write about the 35th Pan-
orama of Brazilian Art (São Paulo Museum of Modern
Art /2017), especially on the unfolding of the La Bête
(“The Beast”) performance, by Wagner Schwartz.
I don’t feel distant enough. The trauma caused by
all that moralistic hysteria and being subsequently
summoned by the Federal Senate to address child-
hood and adolescent maltreatment – is yet to be
healed. Seeing myself caught up in a wave of absurd
accusations, totally detached from the motives for
the performance and exhibition, proved to me how
much we have been living in an institutionally fragile
world whose line that separates reality from absur-
dity seems dangerously (and not creatively) blurred.
At the same time, our problems became clear. Now I
speak of the contemporary Brazilian society and its
difficulty to address differences and symbolism. These
are questions I will bring up later. First, I want to talk
about how much the body, in its original nudity, can
still make one feel uncomfortable just for its pres-
ence, no matter how passive it may be. This is the
nuisance that needs to be addressed. To what extent
does art, after everything we have seen throughout
the twentieth century, still cause discomfort?
The La Bête performance was selected for the
35th Panorama for its direct connection with the body
and the spectator. It is important to bear in mind that
the curatorship based the exhibition on a tribute/re-
reading of the 50th anniversary of Esquema Geral da
Nova Objetividade Brasileira (“General Scheme of the
New Objectivity”), written by Hélio Oiticica in 1967. To
me, this text is quite a turning point, as it introduces
new critical and poetic criteria to reflect on contem-
porary art during the traumatic period introduced by
the 1964 civil-military coup d’état and the widespread
disenchantment with the Modernist project. If, on one
hand, it derived from a context specific to Brazil, on the
other hand, its postulations have gone beyond the geo-
political territory and pointed toward challenges inher-
ent to art’s tout court making. The six trends examined
in this text have opened the path to discussing contem-
porary times in regard to the relationships between
art, politics, popular culture and experimentation.
Lia Rodrigues introduced me to Schwarz’s work.
When I started pondering over this project, she was
the first person I went to talk to; my dear friend who is
also a choreographer. To me, the field of dance seemed
fundamental to consider the “evolutionary line” of
Brazilian art as it merged the non-concrete aspect
with the (fragile-potent) tropicalist performing body.
I regard dancing today as a language of radical art
precisely because of its physical aspect; the action of
the body is not necessarily virtuoso but understands
itself and unfolds in the quest for vital movement.
Breaking away from objectification is one way to resist
consumerism, which is a rare and difficult thing. In this
regard, I find the appropriation of Bicho (“Animal”), by
Lygia Clark, in the La Bête performance to be crucial
given the constant dilutions of this piece, especially
in its participatory dimension, by institutional and
commercial coercion. Characterized by a passive body,
the dancer retains maximum tonicity to sustain himself
despite the movements imposed on him by others.
Over the course of some 40 minutes, the animal-art-
ist is there: Vulnerable and available for handling.
In this availability lies the great risk of the piece.
Anything can happen and the responsibility of those
involved determines the direction of the movement. In
a text called Nós Recusamos (“We Refuse”), written in
1966, after rejecting all conditions of the conventional
art making, Lygia Clark stated that: “We propose the
precarious as a new concept for existence against
all crystallization while it lasts.” This precariousness
is unique to the risk of participation, of a work in
process, one not knowing how things happen and
being open to movement and transformation.
When La Bête was presented in Brazil in Decem-
ber 2015, a review prophetically titled “La Bête and
the barbarism of these dark times” and published
in the O Estado de São Paulo newspaper, dance
critique Helena Katz emphasized the vulnerability
of the dancer once he sees himself subject to any
26
Jacaranda - Nº 6
“La Bête e a barbárie destes tempos sombrios” –,
ressaltava a vulnerabilidade do dançarino uma
vez que ele se vê sujeito a todo tipo de movimento
imposto de fora, que testa seu corpo “no limite
do desconforto, desequilíbrio e dor”. Desta vez
no Panorama, não foi o limite da dor física que foi
testado, mas da dor existencial de se ver refém da
manipulação moralista a partir de um gesto ino-
cente de uma mãe, ela mesma dançarina e amiga
do artista, que entrou inesperadamente com a
filha – e esta tocou no pé e na mão do “Bicho”.
Vale lembrar que a performance só aconteceria no
dia da abertura, para convidados. Avisos sobre a
nudez da performance estavam fixados no museu.
Só ia até lá quem queria assistir e, eventualmente,
participar. A participação em La Bête é facultativa e
acontece sempre sem qualquer constrangimento.
No final do mesmo texto de 2015, Helena faz um
último comentário que cabe desdobrar: “E vai fican-
do muito claro que agora é assim mesmo: pode-se fa-
zer com o outro o que se quer. La Bête nos faz ver que
somos nós que ajudamos a barbárie avançar”. Curio-
so pensarmos que se havia aí o risco da violência dos
participantes manuseando o artista-bicho, agora foi
justamente a partir do toque lúdico de uma crian-
ça, fazendo cócegas no pé dele, que se disseminou
uma manipulação violenta por parte do público que
não viu a performance ao vivo, mas um fragmento
desvirtuado dela na internet. O corpo, ao que parece,
não pode nunca se vincular à inocência do gesto in-
fantil sem produzir desconforto e histeria. Mas como
aquele corpo passivo, entregue ao gesto alheio, de-
serotizado, sem vontade própria, podia ser acusado
de incitar a pedofilia? Como deixamos aparecer com
tanta violência aquela barbárie que só viu o que quis
e sem nenhuma capacidade de ir além dos discursos
pré-fabricados, alimentados por ódio e intimidação?
Não querer saber o que houve e não querer dife-
renciar formas de nudez e de participação, não per-
ceber o espaço da arte e do museu como um espaço
do ver além do sabido e onde outras formas de vida
e visões de mundo podem ser imaginadas é querer
fechar o campo simbólico de sua constante abertura
para a diferença. Fechar o campo simbólico de suas
virtualidades é uma maneira de desidratar nossa
vida espiritual tornando-a refém da vida ordinária.
Este fechamento do simbólico – a incapacidade de
imaginar além do já visto e sabido e experimentar a
liberdade do desconhecido – remete diretamente
para o retraimento da política no mundo contem-
porâneo. Tomo política aqui em um sentido menos
institucional e mais como espaço de imaginar formas
de viver juntos ainda não instituídas, mas que se via-
27
bilizam na negociação civilizada dos conflitos. Este
momento é determinante para definirmos se ainda
queremos reinventar a política ou se deixaremos a
barbárie como legado para as gerações futuras.
De forma a contextualizar historicamente
o acontecido e propor alguns desdobramentos
possíveis na direção do fortalecimento de nossas
instituições e da própria democracia brasilei-
ra – como lugar de convivência entre diferentes e
de defesa da expressão das minorias –, recuarei
um pouco no tempo. Por ocasião da exposição de
Nan Goldin no Museu de Arte Moderna (MAM) do
Rio de Janeiro, em 2012, com curadoria de Ligia
Canongia e Adon Peres – período no qual eu era
o curador do museu –, uma onda de contestação
começou antes mesmo da abertura. Isso se deveu
ao cancelamento por parte do Oi Futuro às vésperas
da abertura e à decisão, no calor do acontecido, de
levá-la para o MAM dois meses depois – diga-se
de passagem que o Oi Futuro manteve o patrocínio
à exposição quando da sua vinda para o museu.
Evidentemente, com todo o barulho ecoado
pela mídia, um oficial de justiça chegou ao museu já
no dia da abertura com uma intimação acusando o
MAM de incitar, com as imagens expostas, os crimes
de pedofilia e violência à mulher. Toda uma ação
jurídica e educacional foi montada para enfrentar a
adversidade daquele momento. O museu “comprou”
a briga e fez do episódio uma plataforma pedagógica
através de um fórum de debates em torno da ques-
tão: “O que significa expor Nan Goldin?”. A curadoria
e o educativo do MAM – àquela altura coordena-
do por Luiz Guilherme Vergara e Jessica Gogan –,
ao lado de advogados, sociólogos, psicanalistas,
educadores e artistas, constituíram um espaço de
discussão junto à exposição, buscando esclarecer o
público em relação às questões levantadas pela obra
de Nan Goldin. O debate franco e aberto, ouvindo
um leque variado de perspectivas de abordagem,
é sempre a melhor forma de enfrentar a estridên-
cia embrutecedora das polêmicas midiáticas.
Felizmente, o fim da história foi-nos favorá-
vel. Reproduzo agora um parágrafo do parecer do
Ministério Público encaminhado ao fim da expo-
sição, determinando o arquivamento do processo.
Nele o Procurador da República Antonio do Passo
Cabral faz o seguinte esclarecimento depois de um
longo arrazoado: “A propósito, devo frisar, por dever
de consciência, que muitas das fotografias expe-
rimentadas na exposição ora em análise parecem
a este signatário completamente fora de tom e
inadequadas. Não obstante, se jamais seria nosso
objetivo impor nossos valores morais ou nossa visão
kind of external movement, taking his body “to the
edge of discomfort, imbalance and pain.” This time
in the Panorama presentation, the test was not on
the limit of physical pain, but on the existential pain
of being taken hostage by the moral manipulation of
a mother’s innocent gesture. The mother – a dancer
herself who was friends with the artist – unexpectedly
entered the room with her daughter, who touched
the foot and hand of the “Bicho.” It is important to
remember that the performance was exclusive for
guests on the opening day. Warnings about nudity in
the performance were posted in the museum. Only
those who wanted to watch and eventually interact
would go there. Participation in La Bête is optional
and always happens without any embarrassment.
Toward the end of that review in 2015, Katz makes
one last remark that deserves further comment: “And
it becomes very clear that this is how things present
themselves today: One can do to the other whatever
one wishes. La Bête makes us realize that we are the
ones moving barbarism forward.” It is puzzling to think
that if there was a risk of violence posed by partic-
ipants handling the animal-artist, it was rather the
very playful foot-tickling touch of a child that spread
a violent manipulation by the public who was not at-
tending the live performance, but its distorted version
on the web. It seems the body can never be linked to
the innocence of the childish gesture without causing
discomfort and hysteria. But how could that passive
body, characterized by such an eroticized and grudg-
ing gesture by someone else, be accused of inciting
pedophilia? How do we allow such violence to happen,
the barbarism seen through a distorted and selective
eye that lacks any ability to go beyond the prefabri-
cated speech, fueled by hatred and intimidation?
The lack of desire to know what happened and
the unwillingness to differentiate forms of nudity
and participation, the refusal of the art space and the
museum as an environment to see what lies beyond
what is known and where other life forms and world
views can be imagined, closes the constantly open
door of the symbolic field to difference. Removing
its virtual nature from the symbolic field means to
dehydrate our spiritual life, holding it hostage by
ordinary life. This shutting down of the symbolic – the
inability to imagine beyond what has already been
seen and known and experience the freedom of the
unknown – is directly connected with the retrenchment
of politics in today’s world. Politics here is considered
less in its institutional sense and more like a space for
imagining not yet introduced ways of living togeth-
er, but which become practical in civilized acts of
conflict resolution. This is a critical moment for us to
determine whether we still want to reinvent politics
or leave barbarism as legacy for future generations.
To historically contextualize what happened and
to propose possible developments in the direction of
strengthening our institutions and Brazilian democracy
itself as a place for coexistence of what is different
and for the defense of the expression of minorities,
let me go back a little in time. During the Nan Goldin
exhibition at the Rio de Janeiro Museum of Modern Art
(MAM) in 2012, curated by Ligia Canongia and Adon
Peres, when I was the museum curator, a wave of
protests deflagrated even before the opening. This was
due to the cancellation of the exhibition by Oi Futuro
on the eve of its opening and the decision, in the heat
of the moment, to have MAM house it only two months
later – worth mentioning that Oi Futuro maintained
the sponsorship when the exhibition moved to MAM.
Evidently, with all the noise echoed by the media,
on the opening day, a bailiff arrived at the museum
accusing MAM of stimulating crimes of pedophilia and
violence against women through the displayed images.
Thorough legal and educational actions were taken
to challenge the accusations. The museum picked
the fight and turned the episode into a pedagogical
platform through a forum of debates on the issue:
“What does it mean to exhibit Nan Goldin?” MAM’s
curatorship and education body, coordinated at the
time by Luiz Guilherme Vergara and Jessica Gogan,
together with lawyers, sociologists, psychoanalysts,
educators and artists, created a space for debate
about the exhibition in an attempt to shed light to
the public on the issues raised by Nan Goldin’s work.
The frank and open debate that considers a wide
range of viewpoints is always the best means to face
the stultifying shrillness of media controversies.
Fortunately, the story ended in our favor. I am
now copying a paragraph of the statement by the
Office of Public Prosecution Service made at the
end of the exhibition, with a nolle prosequi decision.
Therein, Federal Prosecutor Antonio do Passo Cabral
provides the following explanation after a long
plead: “In respect thereof, I must stress, as a duty of
conscience, that many of the photographs that were
part of such exhibit are deemed completely out of
tune and inadequate by this signatory. Nevertheless,
while it should never be our goal to impose our own
moral values or worldview to anyone, we are also fully
convinced that, within a democratic State, access to
art is an essential condition for debate, consensus
and criticism.” Shortly thereafter, he concludes with
an impeccable note, in my view: “Nevertheless, the
greatest demonstration of institutional maturity in
a democratic and pluralistic society is to accommo-
28
Jacaranda - Nº 6
de mundo a quem quer que seja, também estamos
plenamente convictos que, no seio de um Estado
Democrático, o acesso à arte é condição essencial
para que haja debate, consenso e crítica”. Termi-
nando, logo em seguida, com uma conclusão a meu
ver impecável, a saber: “Sem embargo, a maior
demonstração de amadurecimento institucional, em
uma sociedade democrática e plural, é acomodar as
divergências numa moldura de tolerância e reco-
nhecimento da diversidade, até porque o dissenso
depende da liberdade tanto quanto a concordância”.
Será que nosso “amadurecimento institucio-
nal” foi abalado nos últimos anos? Como buscar
reforçá-lo para que sigamos com um mínimo de
segurança jurídica diante da grita que quer atropelar
princípios constitucionais básicos, antes de todos,
o da liberdade de expressão? Trago também esse
episódio de 2012 à memória por duas razões que me
parecem antecipar o que aconteceu em 2017 – com a
sequência envolvendo a exposição Queermuseu e o
Panorama: 1 – a coincidência de um centro cultu-
ral corporativo recuar diante de exposições que
produzam atrito e polêmica; 2 – o compromisso dos
museus, enquanto instituições artísticas, na defesa
das exposições independentemente do teor de críti-
ca e de valores não canônicos veiculados pelas obras.
Não se trata, evidentemente, de negar o direito
de as instituições corporativas decidirem e terem
autonomia sobre o que querem ou não expor. O
ponto é vacilar diante de pressão conservadora oca-
sional e não sustentar o valor de atrito e a liberdade
de expressão como determinantes da dimensão
dissensual da arte em uma sociedade plural e de-
mocrática. Os dois casos ilustrados acima, somados
ao do CCBB-Rio quando da censura a uma obra de
Márcia X, em 2006, mostram que os interesses
corporativos muitas vezes falam mais alto do que o
compromisso com a arte e seus atritos eventuais. É
fundamental que as empresas patrocinem cultura e
que venham a veicular suas marcas em instituições
culturais próprias, mas como criar alguma regu-
lação para que defendam os interesses artístico-
-culturais e não apenas os corporativos? Que tipo
de diferença deveria ser pensada, por exemplo,
no acesso à renúncia fiscal quando se trata de um
museu e de um centro de cultura corporativo?
29
Vimos no rescaldo da polêmica de 2017 aparecer
a discussão de classificação indicativa obrigatória
nas exposições. Importante que o debate se faça. As
novas formas de arte, a presença da performance e
de meios expressivos não convencionais obrigam
reflexão institucional, responsabilidade e adap-
tação legal. O objetivo, entretanto, não pode ser
restringir o acesso, mas qualificá-lo e ampliá-lo. O
museu é e deve continuar a ser um espaço educativo.
Uma educação pautada na diversidade, na comple-
xidade e no debate. Importante lembrarmos que
no meio da polêmica do Panorama as escolas de
São Paulo mantiveram as visitações sem qualquer
alteração, evidenciando a credibilidade institu-
cional do MAM-SP e a maturidade das escolas.
Um ponto importante que não podemos es-
quecer é relativo aos limites da arte. Quais seriam
esses? Quem estabelece? Como imaginar uma
autorregulação institucional que escape de censura
externa? Será possível imaginarmos compromissos
relacionados a uma regulação institucional que não
implique restrição à liberdade de expressão? Como
apostar na liberdade de criação e respeitar o outro, o
que não compartilha nossa forma de vida? Como ser
intolerante na defesa da liberdade sem correr o risco
de ser tolerante com o intolerável? Nenhuma dessas
questões é meramente retórica – não tenho uma
resposta encaminhada para qualquer uma delas. Em
alguma medida, a potência da arte tem a ver com sua
incondicional adesão à singularidade, aos aconte-
cimentos que abrem no tempo histórico a condição
de seu passado e do seu futuro, sem determinismo
de qualquer ordem. Neste aspecto, quando dizemos
que a arte é estranhamento e deslumbramento,
estamos falando de um modo de sentir e pensar que
não se submete ao já sentido ou pensado. É o lugar
do heterogêneo, da “imaginação sem fio” que se
projeta na construção de uma comunidade por vir. A
partir daí podemos começar a discutir as instituições
de arte, seus papéis e competências e as possíveis
redefinições de seus procedimentos jurídicos.
date the differences in a framework of tolerance and One important issue that we must not forget is
acknowledgement of diversity, especially because the limit of art. What should this be? Who sets this
both dissent and assent are the pillars of freedom.” limit? How can we develop institutional self-regulation
Has our “institutional maturity” been shaken that overrides external censorship? Could we conceive
down in recent years? How can we strengthen it commitments tied to institutional regulation that do
to continue with minimal legal certainty in the face not entail restriction on freedom of expression? How
of cries demanding to trample basic constitutional do we support creative freedom and respect those
principles, above all freedom of speech? I am bring- with opposing ways of life? How do we not tolerate
ing back this episode from 2012 for two reasons that attacks on freedom without the risk of being tolerant
seem to set the stage for what happened in 2017 with the intolerable? None of these questions is merely
regarding the Queermuseu (“Queermuseum”) exhi- rhetorical – I honestly cannot answer any of them.
bition and Panorama: 1. The coincidental retreat of To a certain extent, the power of art is linked to its
a corporate cultural center around exhibitions that unconditional adherence to singularity, to the events
gave rise to conflict and controversy; 2. The dedica- that throughout historical times reveal the condition
tion of museums as artistic institutions advocating of its past and future, with no determinism whatsoev-
for exhibits irrespective of the criticized content and er. When we say that art is strange and dazzling, we
the non-canonical values conveyed by the works. are talking about a way of feeling and thinking that
It is obviously not about denying the right for does not bow down to what has already been felt or
corporate institutions to autonomously decide what thought. It is the place for the heterogeneous, a “wire-
they wish or do not wish to exhibit. The issue here less imagination” that exists in the construction of a
is to bend to the occasional conservative pressure, forthcoming community. Only then can we begin to
rather than not sustaining the value of conflict and discuss art institutions, their roles and competencies,
freedom of expression as decisive elements in art’s and the potential redefinition of their legal procedures.
disagreeable dimension in a pluralistic and democratic
society. The two cases illustrated above, in addition
to the censorship of Márcia X’s work in 2006 by
the Bank of Brazil Cultural Center in Rio de Janeiro
(CCBB-Rio), prove that corporate interests often
speak louder than their commitment to art and any of
its disagreeable encounters. While it is essential that
companies sponsor culture and act as a brand vehicle
for their cultural institutions, how can we regulate the
protection of artistic and cultural interests, and not
just corporate pursuits? What kinds of different tax
benefits, for example, could we envision when offering
them to museums and corporate culture centers?
In the aftermath of the 2017 controversy, the topic
of mandatory indicative rating system in exhibitions
came under discussion. This is an important debate.
New forms of art, performance and unconventional
means of expression require institutional reflection,
accountability and legal adaptation. The goal can-
not, however, be to restrict access, but rather to
qualify and amplify it. Museums are and must con-
tinue to be an educational space; education based
on diversity, complexity and debate. It is important
to remember that, amidst the Panorama contro-
versy, schools in São Paulo maintained intact their
scheduled visits, which further highlights MAM-SP’s
institutional credibility and the maturity of schools.
30
Jacaranda - Nº 6
O corpo nu, aquele
estranho conhecido
* Daniela Labra
Em outubro de 2017 o Brasil assistiu a es-
petáculos de perseguição e censura moralista a
exposições onde havia obras representando corpos
nus em diversos suportes. Entre os mais midiáticos
episódios destaca-se a reação violenta de repre-
sentantes conservadores da sociedade civil contra
a performance La Bête, do performer Wagner
Schwartz, apresentada na abertura do 35º Panora-
ma da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna
(MAM) de São Paulo. Fazendo referência direta
ao jogo lúdico proposto por Lygia Clark com seus
Bichos – esculturas dobráveis para serem manip-
uladas pelo espectador/coautor da obra, o artista
se estendia nu no chão, deixando-se ser manusea-
do. No evento, adultos participavam da ação até
que uma criança, acompanhada de responsável,
aproximou-se e tocou na mão, no pé e no tornozelo
daquele homem inerte despido. Não havia erotismo
nem sexualização na proposta. Contudo, um vídeo
desse momento foi postado na internet – aparen-
temente sem má-fé – e em 24 horas uma edição
maldosa já circulava com protestos e acusações
de pedofilia ao performer e demais implicados no
evento, envolvendo também a criança e sua família
em imenso e prolongado constrangimento público.
Dias após a performance uma turba enfurecida,
liderada por certo ex-ator pornô em busca de
fama requentada, invadiu o MAM e agrediu
funcionários, novamente acusando a instituição
de incitar pedofilia. Tal crime define-se como
aquele praticado por indivíduo adulto acometido
de perversão, atraído sexualmente por crianças,
que o leva à prática sexual efetiva com estas. Uma
acusação grave e irresponsável, cuja finalidade,
no caso, era demonizar artistas, curadores e
intelectuais em um falso debate, inócuo no combate
à realidade de violência contra menores no Brasil.
Na esteira dessa polêmica inventada,
mandados de segurança e censura contra obras
artísticas em exposições começaram a ser
expedidos em cidades do país com apoio de
políticos oportunistas, em sua maioria homens
religiosos, defensores de uma visão idealizada e
31
portanto irreal de “família brasileira”. Essa reação,
contudo, não está sozinha no cenário mundial e se
apóia no recrudescimento de fundamentalismos
beatos e abordagens binárias da sociedade, as
quais enxergam problemáticas complexas pela
ótica da mera oposição de definições estabelecidas,
tais como: bem/mal, certo/errado, bom/ruim,
moral/imoral, feminino/masculino. Esse tipo de
argumentação claramente despreza o pensamento
crítico e, por sua vez, enquadra objetos artísticos
em apreciações literais, longe da sutileza própria
das poéticas. Curiosamente, enquanto a mídia e
a publicidade brasileiras banalizam a nudez e o
erotismo exibindo-os ad nauseam, sem causar
maiores revoltas na população, na arte exposta em
museus o corpo sem roupa foi atacado como algo
mau e que não nos pertence.
A representação do corpo nu acompanha a
história da arte desde os tempos mais remotos.
Dos desenhos rupestres à representação de anjos
na pintura renascentista, chegando às Demoiselles
cubistas e à performance, a nudez sempre esteve
presente, recontextualizada de acordo com as
luzes da época. Há quase 150 anos, nas primeiras
rupturas estéticas do modernismo europeu,
impulsionadas pelo ímpeto de eliminar barreiras
entre arte e vida, artistas começaram a propor
experiências estéticas que estimulavam reflexões
críticas sobre o mundo, tocando em assuntos que
estavam para além da imagem representada na
obra. Na metade do século XX, após duas Guerras
Mundiais, revoluções culturais, tecnológicas,
científicas e conquistas de direitos civis, entre
outros acontecimentos, as compreensões sobre ser
e estar no mundo mudaram, afetando igualmente
modos de fazer e pensar os propósitos da arte.
Em 1959, nos Estados Unidos, quando emergia
a segunda vanguarda artística moderna, novas
práticas experimentais envolvendo o corpo do
artista e do público surgiram. Naquele ano, Allan
Kaprow cria o happening: ação artística coletiva,
em parte orquestrada, ocorrida em ambientes
onde os espectadores podiam participar e integrar
a obra, subvertendo seu posto de observador
distante e passivo. Os happenings se multiplicaram
e se legitimaram como linguagem, levando ao
The naked body:
that intimate stranger
* Daniela Labra
In October 2017, Brazil witnessed the persecu-
tion and moralist censorship of exhibits that showed
works of arts representing nude bodies displayed
in different forms. One of the episodes that earned
the most media coverage was the violent reaction by
conservative individuals to the performance La Bête
(“The Beast”) by Wagner Schwartz presented during
the opening of the 35th Brazilian Art Panorama at the
São Paulo Museum of Modern Art (MAM). In direct
reference to the playful game proposed by Lygia Clark
with her Bichos (“Animals”) — bendable sculptures
that could be moved about by audience members who
would become co-authors of the work —, the artist
stretched out naked on the floor, allowing himself to
be handled. Adults were taking part in the act, until
a child, accompanied by her guardian, approached
the artist and touched the hand, foot, and ankles of
that naked, motionless man. There was no eroticism
or sexualization involved. However, a video capturing
this moment was posted online – apparently with no
ill will intended – and within 24 hours, a more mali-
cious edition of the event was circulating, complete
with protests and accusations of pedophilia and other
insinuations. This also involved the child and their
family in a major, prolonged bout of public humiliation.
Days after the performance, a furious mob – led
by no less than a former porn star seeking to regain
fame – invaded MAM and attacked employees, once
again accusing the institution of promoting pedo-
philia. Pedophilia is a crime practiced by a perverse
adult who is sexually attracted to children, and which
effectively leads to sexual activity. This serious and
irresponsible accusation was designed to demonize
artists, curators, and intellectuals as a pretense
debate to protect minors from violence in Brazil.
Because of this fabricated controversy, court
injunctions and censorship petitions against artistic
works at exhibits began to appear in different Brazilian
cities with the support of opportunistic politicians,
mostly religious men who defend an idealized, and
therefore, unrealistic view of the “traditional Brazil-
ian family.” This reaction, however, is not an isolated
stance in global terms. It has gained momentum
with the resurgence of rigid fundamentalisms and
binary approaches taken by society, whose view of
complex issues is based on a polarized perspective
of well-established definitions, such as good x evil,
right x wrong, good x bad, moral x immoral, feminine
x masculine. While this type of argument clearly does
no justice to critical thinking, it also constrains the
artistic object to literal examination, distancing them
from their inherent poetic subtleness. Interestingly,
while nudity and eroticism are banalized by Brazilian
media and advertising channels who display them ad
nauseam and cause no such revolt from the popu-
lation, the nude body as art displayed at museums
was attacked as something evil and foreign to us.
The representation of the nude body has been part
of art history since the most ancient times. From cave
drawings to the depiction of angels in Renaissance
paintings, to Cubist Demoiselles and performance art,
nudity has always been present and re-contextualized
according to the taste of the time. Nearly 150 years
ago, artists began to propose esthetic experiences
that encouraged critical thinking about the world,
reflecting on topics that extended beyond the image
represented in the artwork itself. Those were the first
esthetic disruptions proposed by European modern-
ism, driven by the impulse to eliminate the barriers
between art and life. In the mid-20th century, after
two World Wars, a number of cultural, technologi-
cal, and scientific revolutions, civil rights victories,
and many other events, the concepts of to be and to
exist in the world changed, with equal effect on the
ways we create art and think about its purposes.
In 1959, with the emergence of the second artistic
vanguard of the modern times in the United States,
there appeared new experimental practices involving
the artist’s body and the audience. That year, Allan
Kaprow created Happening, a partially orchestrated
collective artistic act occurring in settings where
audience members could participate and become
32
Jacaranda - Nº 6
desenvolvimento, na década seguinte, da arte
da performance – ou da arte de ação – como
expressão artística visual ao vivo, de caráter
sobretudo individual. Naquele momento, fosse
na vida ou na arte, o ato de se despir ganhava
contornos políticos, de crítica e deboche contra
sociedades conservadoras, brancas, apoiadoras de
ações bélicas, ditaduras e ódio às minorias.
Por outro lado, no Brasil do período
artistas como Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio
Oiticica, entre outros à frente da fundação do
neoconcretismo, lançavam propostas estéticas
que novamente incitavam a participação
ativa – física ou conceitualmente – do público,
compreendido como co-autor da obra. Nesse
contexto surgem proposições como os Bichos,
de Clark, os parangolés de Oiticica ou o Balé
Neoconcreto de Pape. A originalidade dessas
propostas, assim como o próprio movimento
Neoconcreto, entendido hoje como uma vanguarda
artística singular, fez a arte brasileira ser
conhecida internacionalmente – mesmo que por
vezes associada a estereótipos de sensualidade,
espontaneidade da forma e exotismo. A arte
contemporânea do país é, contudo, filha da tradição
moderna construtiva em diálogo com o imaginário
popular urbano, aliado a um pensamento
conceitual que revisou essas mesmas bases, e ainda
o faz. Admirada no meio da arte internacional, a
cena contemporânea do Brasil como um todo é uma
das mais interessantes do mundo e, no entanto,
é desconhecida pela população em geral e agora
parece ser detestada.
Diversos motivos podem estar no cerne desse
“detestar”. Arrisco dizer que um deles é o histórico
acesso restrito à educação, problema de base na
formação da sociedade desde a colônia, que levou
à conformação de uma massa com dificuldade
para se articular criticamente. Esta é facilmente
submissa aos interesses de uma elite mandante
colonialista, líder dos movimentos censores que
identificam o nu artístico como um mal contra “a
família de bem”. Além dessa situação histórica, os
equipamentos culturais brasileiros, erroneamente
compreendidos como exclusivos, são pouco
populares salvo excessões, sendo os museus de arte
moderna e contemporânea os menos visitados.1
33
No que tange de novo à questão da nudez
artística e sua censura atual no Brasil, deve-se
considerar que este é um país de base católica,
regido por mentalidade machista, com altas taxas
de prostituição infantil, onde a bunda feminina
é símbolo nacional. Tal quadro torna quase
impossível olhar o corpo despido sem um misto
de erotização, depravação e culpa. Na obra de
arte, onde a finalidade da nudez é em geral poética
mesmo quando política, é importante diferenciar
representações do corpo pornográfico, erótico
e natural. No primeiro caso, a nudez é gratuita e
exagerada, chegando a causar aversão ou mesmo
indiferença dado o excesso de exposição das
intimidades corporais; no erotismo, o elemento
sexual é sugerido como um clima, e há mais desejo
oculto do que literalidade das fantasias;
por último, no corpo natural este se mostra
sem apelo sexual, exposto principalmente em
sua forma e beleza inatas – tal como na proposta
de Schwartz em La Bête. Reagir com censura e
escândalo a ações artísticas e obras que apresentam
imagens do corpo nu, como se estas fizessem
pura apologia à pornografia ou ao crime sexual
denota falta de informação e má fé, ressucitando
polêmicas datadas com roupagem nova por quem
evita se aprofundar em reflexões sobre o mundo,
despreza histórias da arte, teorias filosóficas e seus
desdobramentos na contemporaneidade.
Entender a ação artística de um homem
desnudo em um museu sinalizado, iluminado, como
um ato de perversão criminoso, análogo à pedofilia
quando acontece perto de crianças acompanhadas
de seus responsáveis, é atestar os próprios
recalques existentes na dificuldade de aceitar o
corpo como ele é: nu, apenas. E exigir a censura
de obras de arte onde figuram imagens desses
corpos despidos é impedir o desenvolvimento do
pensamento analítico, acreditando que o mal está
na transparência da informação e na poesia, e não
no deserto provocado pela ausência destas.
1. Sobre os dados dos museus brasileiros ver: “Museus em Números Volume 1”
e “Museus em Números Volume 2”, Instituto Brasileiro de Museus. http://www.
museus.gov.br/tipo-publicacao/documentos-e-relatorios/, acessado em 20/12/2017
a piece of the work, distancing themselves from
the role of the detached and passive observer. The
Happenings multiplied and became a legitimate form
of language. In the following decade, this led to the
development of performance art (or “action art”) as a
form of live visual artistic expression, with a primary
focus on the individual. At that moment, whether in
life or in art, the act of stripping nude earned polit-
ical depth, focused on the criticism and mockery of
white conservative societies that supported hawkish
actions, dictatorships and hatred toward minorities.
On the other hand, Brazil at the time had artists
like Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica and others
from the Neo-Concrete movement who were launching
esthetic proposals that once again encouraged active
participation – both physically or conceptually – of
audience members, seen as co-authors of the art-
work. Propositions such as Clark’s Bichos, Oiticica’s
Parangolés (wearable sculptures), or Pape’s Balé
Neoconcreto (“Neo-Concrete Ballet”) were born in
this environment. Their originality, together with the
very Neo-Concrete movement, understood today as a
unique avant-garde movement, brought international
recognition to Brazilian art, even if at times it was
associated with stereotypes of sensuality, spontaneity
of method, and exoticism. Brazilian contemporary art,
however, is the offspring of the modern constructive
tradition that dialogues with popular urban imagi-
nary, which is aligned with the conceptual mindset
that revisited and still revisits these same bases.
Despite being one of the most intriguing and inter-
nationally admired art scenes in the world, Brazil’s
contemporary production is yet unknown to the
general population — who now appear to also hate it.
Different reasons may be found at the core of this
“hatred.” I would go as far as to say that one of them
is access to education, historically restricted to a few.
Since it dates back to colonial times, this is a problem
that lies at the base of Brazilian society. Such restrict-
ed access to education disables critical thinking and
forces a large mass of the population to accept the
norm. This group easily submits to the interests of the
colonialist elite in charge, the same leaders who censor
and identify artistic nude as evil for the “moral family.”
In addition to this historic situation, the Brazilian cul-
tural framework is mistakenly seen as exclusive and is
not very popular. Despite certain exceptions, museums
of modern and contemporary art are the least visited.1
The issue of artistic nudity being censored in
Brazil today should be examined in the context of a
primarily Catholic country with a widespread chau-
vinist mentality, high rates of child prostitution, and
where the female bottom is considered a national
symbol. This scenario makes it nearly impossible for
one to see the nude body exempt from eroticization,
depravation, and guilt. In works of art, where the
purpose of nudity is often poetic, even when it has
political fabric, it is important to differentiate the
pornographic body, from the erotic, and the natural.
In pornography, nudity is gratuitous and exaggerated,
causing aversion or indifference due to the excessive
exposure of intimate body parts. In eroticism, there
is a suggestion of sexual element, and hidden desires
outnumber literal fantasies. Finally, in the natural body
there is no sexual appeal; it is exposed because of its
innate shape and beauty – similarly to what Schwartz
proposed in La Bête. Censoring and hysteric reactions
to artistic performances and artworks that present
images of the nude body, as if they blatantly promot-
ed pornography or sexual deviation, indicates lack of
information and ill will. It also brings back outdated
controversies by cloaking them in new arguments,
made by those who avoid in-depth reflections of
the world, and who scorn art history, philosophical
theories and the way these unfold in modern day.
To understand the artistic act of a naked man
in a properly signed and duly lighted museum as an
act of criminal perversion analogous to pedophilia
when it occurs close to children accompanied by
their guardians only proves the very repressions
and difficulties one has to accept the body as it is:
simply nude. To demand censorship of artworks
depicting these naked bodies is to suffocate the
development of analytical thinking in the belief that
evil lies in the transparency of information and in
poetry, not in the desert created by their absence.
1. For more information on Brazilian museums, please refer to “Museus em Números
Volume 1” (“Museums in Numbers Volume 1”) and “Museus em Números Volume 2”
(“Museums in Numbers Volume 2”), the Brazilian Museum Institute. http://www.
museus.gov.br/tipo-publicacao/documentos-e-relatorios/, accessed on 12/20/2017
34
Jacaranda - Nº 6
Arte para quem?
Arte para todos
* Fred Coelho
Um dos pontos mais inquietantes a respeito dos
ataques sofridos pelo meio das artes visuais em 2017
foi a baixa aderência popular à defesa do mesmo.
Quando digo aqui “meio das artes visuais”, refiro-me
ao campo de ações e agentes envolvidos em sua
produção, circulação, exibição, crítica, manutenção,
comercialização, seu ensino e outras frentes que, de
alguma forma, estão relacionadas ao fazer artístico.
A arte como espaço exclusivo da elite e de-
marcador das diferenças sociais a partir do gosto,
do saber e do mercado é, ainda, a forma como o
brasileiro médio ou o senso comum em geral a
enxerga. O meio da arte contemporânea no Brasil
muitas vezes só aparece na mídia massiva quando
valores de obras atingem cifras impressionantes
ou quando o artista se transforma em celebridade.
Assim, o dia a dia extensivo e precário de muitos
para fazer arte no país se torna opaco e naufraga
frente ao excesso de visibilidade pop de poucos.
O ponto aqui não é afirmar que a arte sucum-
be ao mercado e à cultura de celebridades – isso,
talvez, seja a face inevitável de um produto de
status social cujos preços envolvem, também,
competências técnicas e qualidades estéticas – mas
sim traçar algumas linhas gerais e hipóteses (bem)
abertas sobre o lugar problemático que artistas e
trabalhadores da arte ocupam no imaginário social
e na opinião pública brasileira contemporânea.
Essa abordagem, se verticalizada, pode criar uma
longa cauda de investigação sobre a baixa densidade
institucional de museus, o escasso interesse do
público para artes que envolvem experimentação
formal e riscos conceituais, a aceitação tácita da arte
como decoração milionária, a alta taxação de seus
produtos como se fossem supérfluos, o fechamento
ensimesmado entre fronteiras de classe e de raça
sem a problematização devida deste fato e muitas
outras frentes que não caberiam aqui apontar. Neste
texto, portanto, o tema que interessa especifica-
mente é o abandono da arte pela população quando
atacada por discursos moralistas e mentiras virais.
Aqui, antes de tudo, vale uma breve inflexão. Por
35
conta desse “desentendimento” entre artistas e pop-
ulação, geralmente o meio da arte em suas múltiplas
formas discursivas cai na tentação de pensar que a
melhor saída para resolver tal problema é explicar,
ensinar, educar – em suma, civilizar – os ignorantes.
Isso pode ocorrer na melhor das intenções ou nos
mais inovadores discursos libertários. Talvez seja
aí, nesse ímpeto de transmitir saber para esclarecer
os que não conhecem a “verdade da arte”, a arma-
dilha que, certamente, mais afastou populações
iletradas ou de baixa escolaridade desse assunto – e
sua consequente prática. A arte, por não ser parte
do sistema produtivo maquínico do capital indus-
trial, não tem conexões com as forças precárias de
trabalhos manuais e seus fundamentos escravagistas
no Brasil. A leitura comum, portanto, é necessari-
amente de um mundo à parte, elitista e fechado.
É nítida, em diversos momentos de nossa
formação cultural, a distância estrutural entre uma
camada social que acessa os códigos sofisticados do
mundo e aprimora – sempre por cima – as definições
locais do que é arte, literatura, cultura letrada em
geral; e uma camada social sem acesso à informação
estética, esmagada como corpo mecânico de baix-
íssima formação escolar, recebendo passivamente
definições que “vêm de cima”. As artes visuais,
apesar de sua profunda ligação com o imaginário
popular e as práticas classificadas “evolutivamente”
como artesanato, ficaram na ponta do processo de
distanciamento simbólico entre classes. Em suma, o
mundo da arte foi aos poucos sendo visto como uma
antítese ao que é prático, público e palpável. Nessa
perspectiva reducionista, quem não tem dinheiro
não tem nenhuma relação com as artes visuais.
Vale lembrar também que não se afirma aqui a
obrigação de artistas, curadores e críticos estarem
sempre preocupados com os temas populares e a
busca incessante de público. As artes visuais, em sua
autonomia histórica na esfera pública da moderni-
dade, não funciona necessariamente a partir da
lógica da cultura de massas e do consumo popu-
lar. Além disso, ocorrem no país, com frequência,
Art for Whom?
Art for Everyone
* Fred Coelho
One of the most troubling facts about the attacks
suffered by the medium of visual arts in 2017 was
the low popular adherence to its defense thereof.
When I say, “medium of visual arts,” I am referring
to the field of actions and agents involved in art
production, circulation, display, critique, conserva-
tion, marketing, teaching and other fronts that are
related to art making in some way or another.
The average Brazilian, or common sense in
general, still sees art as an exclusive space for the
elite and a path to social differences based on taste,
knowledge and market. The medium of contemporary
art in Brazil often only comes to light in mass media
when valuable pieces reach impressive figures or
when the artist becomes a celebrity. The extensive
and precarious daily routine for many who make art
in this country therefore becomes opaque and sinks
in the face of excessive popular visibility of a few.
The point here is not to assert that art succumbs
to the market and to the culture of celebrities – this
is maybe the inevitable nature of a product of social
status whose pricing also involves technical skills
and aesthetic qualities – but rather to outline some
general stories and (favorable) open assumptions
about the problematic place that artists and art
workers occupy in the minds of society and contem-
porary Brazilian public opinion. If verticalized, this
approach can create a long line of investigation into
the low institutional density of museums, scarce
interest from the public for arts that involve for-
mal experimentation and conceptual risks, the tacit
acceptance of art as a millionaire decoration, the
high tax rates on its products as though they were
superfluous, the reflective closure between class and
racial barriers without any due questioning and many
other fronts that would not be suitable for this text.
This text, hence, is interested in the special topic of
how art is abandoned by the population when at-
tacked by moralistic speeches and viral fabrications.
But first a brief inflection. Because of this
“controversy” among artists and the population, the
art medium in its multiple discursive forms is of-
ten tempted to think that the best way to solve the
problem is to explain, teach, educate the ignorant; in
short, making him or her “civilized.” This can take place
with the best of intentions or in the most innovative
libertarian speeches. It is perhaps in this drive to
transfer knowledge and clarify the “truth of art” to
the uneducated that lies the trap that most alienates
the illiterate and poorly-educated on the subject and
its consequent practice. Since art is not a piece of the
powerhouse productive system for industrial capital,
it bears no connections with the precarious forces
of manual labor and the respective slave founda-
tions in Brazil. Art then is inevitably and generally
understood as a fenced off, elitist and closed world.
In several moments of our cultural development, it
becomes clear the structural distance between two so-
cial layers: One that is able to access the sophisticated
codes of the world and to refine – always from the
top – the local definitions of what is art, literature, and
literate culture in general, and another layer that has
no access to aesthetic information and, as a mechani-
cal body of limited education, is crushed and passively
adopts the definitions that “come from above.” Despite
the profound connection with popular imagery and the
practices “evolutionarily” classified as handicrafts,
visual arts fell at the extreme of the symbolic gap
between classes. In short, the art world was gradu-
ally seen as an antithesis to what is practical, public
and tangible. In this short-sighted perspective, those
with less money have no connection with visual arts.
It is worth stressing that the burden artists,
curators and critics carry when having to worry about
popular themes and the constant search for audiences
is not asserted here. In its historical autonomy in the
public sphere of modernity, visual arts do not neces-
sarily work with the logic of mass culture and popular
consumerism. In addition, there are often exhibitions
with prominent names that attract massive audiences
across the country, which proves some kind of popular
appeal. Despite of that, there is an immense distance
between visual arts and mass media, a situation that
is further aggravated as it occurs in a country where
36
Jacaranda - Nº 6
exposições de grandes nomes com grandes públicos,
demonstrando algum tipo de apelo popular. Mes-
mo assim, a distância das artes visuais em relação
ao meio massivo é imensa. Com o agravante de
tal situação ocorrer em um país em que a música
popular, o teatro, o rádio, a televisão e até mesmo a
literatura deram inúmeras coordenadas na for-
mação desse imaginário. Se a música brasileira criou
pontos de convergências – mesmo que mínimos ou
artificiais – entre classes e grupos sociais distin-
tos, tal conexão vital não se efetivou com as artes
visuais. O exercício que podemos fazer de forma
sucinta não é cavar causas, mas percorrer pequenos
momentos em que tal “sintoma” se manifestou.
Em dezembro de 1917, a jovem pintora Anita
Malfatti faz sua primeira grande exposição em
São Paulo. Para muitos, esse é um dos momentos
decisivos para a mitologia modernista. É ao redor da
defesa da exposição da artista frente a uma crítica
contundente de Monteiro Lobato que o embrião do
grupo que promoveria a Semana de Arte Moderna se
reúne. Apesar da polêmica desenrolada em artigos
de jornais, o alcance da exposição entre a população
paulista é mínimo – assim como do evento que
ocorre em fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de
São Paulo. Já no Rio de Janeiro, no mesmo ano de
1917, Ernesto dos Santos, conhecido como Donga,
torna-se autor, ao lado de Mauro Duarte, de Pelo
Telefone, canção registrada na Biblioteca Nacional
como o primeiro fonograma que ganha o gênero
“samba” da história. As gravações fonomecânicas,
isto é, feitas com tecnologia de ponta daquele tempo,
transformaram a faixa em um sucesso popular.
Sem entrar no mérito sobre o amplo debate
historiográfico ao redor da autoria da canção – fruto
de criação coletiva em pagodes da Praça Onze e arre-
dores –, o fato é que um descendente de escraviza-
dos torna-se autor de um produto de cultura de
massas cuja reprodutibilidade mecânica lhe fornece
grande alcance. Ao confrontarmos os dois even-
tos – a exposição de Malfatti e o samba de Donga
– vemos como a memória brasileira “oficial” do que
é “moderno” no país passa pelas artes visuais e não
pela música popular. Apesar disso, já existe aí um
germe do paradoxo contemporâneo: a importância
simbólica das artes visuais brasileiras e seu ideário
democrático de modernidade não tem relação com
a escala de seu alcance enquanto evento social.
A fundação de um campo de ação moderno
dessas artes visuais no Brasil ocorreu, portanto,
no esteio de vanguardas internacionais e, simulta-
neamente, na descoberta de uma imagem popular
brasileira (penso em telas de Tarsila do Amaral, Di
Cavalcanti ou Lasar Segall). Esse mesmo processo,
37
porém, foi feito entre poucos e com nítido corte
de classe e cor, provocando um corte informativo
profundo frente à população que não acessava as
matrizes dessas vanguardas. Se, como nos ensinou o
compositor Noel Rosa, o samba seria “coisa nossa”
nas décadas seguintes, o cubismo certamente não.
Essa aproximação entre Anita Malfatti e Donga,
talvez deveras forçada para alguns, é uma forma de
promover uma provocação estratégica no argumento
aqui apresentado. São diversos os momentos em
que, numa história oficial da cultura brasileira, as
artes visuais estão presentes. Ao mesmo tempo, são
diversos também os momentos em que ela foi vista
como acessório secundário frente à predileção do
brasileiro aos produtos da cultura de massas. Como
dito mais acima, o teatro de revista, a canção popu-
lar, o rádio e a televisão foram sem dúvida os espaços
realmente “modernos” em termos de revolução de
costumes e experimentações estéticas no âmbito de
um público massivo. Apesar dos murais de Portinari
e de obras públicas como as grandes esculturas de
Bruno Giorgi em Brasília, o artista visual brasileiro
era um excêntrico ou um acadêmico. Pensemos em
figuras como Pancetti, Guignard, Volpi, Maria Le-
ontina, Ismael Nery e outras cujas excelentes obras
não tinham destaque popular como Orlando Silva,
Virginia Lane ou Procópio Ferreira. Vale lembrar,
também, que apenas no início da década de 1950 os
Museus de Arte Moderna começam a ocupar um pos-
to de visibilidade mais qualificado – e aberto – para a
apreciação desse acervo brasileiro constituído quase
em silêncio durante as décadas de 1930 e 1940.
Assim, chegamos a um período importante nes-
sa discussão. A partir da década de 1950, o debate
crítico sobre artes visuais se amplia de acordo com
renovações tanto institucionais quanto por parte dos
meios de publicação. Jornais ao redor do país passam
a circular seus suplementos culturais e a pauta das
artes visuais – principalmente a matriz construtiva
brasileira dos concretos e neoconcretos – pode ser
lida quase diariamente na imprensa. Museus de Arte
Moderna e cadernos que organizam didaticamente
a história da arte moderna ocidental ampliam o
escopo das artes visuais e a transformam em partic-
ipante ativa do debate nacional – inclusive político.
Novamente, mesmo com essa ampliação qual-
itativa da arte e do seu pensamento crítico, perma-
necia o dilema quantitativo, isto é, como atingir um
público maior. Esse impasse tornou-se ainda mais
agudo na década seguinte, quando o modelo do
realismo socialista e do engajamento político por
parte do artista reduziu temas artísticos complexos
como a forma e a experimentação a escapismos
burgueses alienados e alienantes. Basta pensarmos
popular music, theater, radio, television and even liter-
ature greatly coordinate the formation of this mindset.
If Brazilian music created convergence points – how-
ever minimal or artificial – between different classes
and social groups, no such vital connection was made
by visual arts. The exercise that we can succinctly do
is not to dig into the causes, but rather search for the
short periods when such “symptom” manifested itself.
In December 1917, young painter Anita Malfatti
conducted her first major exhibition in São Paulo.
For many, this is one of the defining moments for
the Modernist mythology. The fledgling Modern Art
Week group grows when it comes to the defense of
the artist’s exhibition after the scathing critique of
Monteiro Lobato. Despite the controversy reported
by newspapers, the reach of the exhibition among
the São Paulo population is minimal – and so is the
reach of the Week itself, which would only take place
at the São Paulo Municipal Theater in February 1922.
In Rio de Janeiro, during that very same year of 1917,
Ernesto dos Santos, known as “Donga,” and Mauro
Duarte coauthored Pelo Telefone (“Over the Phone”),
a song registered in the National Library as the first
“samba” song in history. Phonomechanical recordings
were made with cutting-edge technology of the time
and turned the track into a huge popular success.
Leaving aside the extensive historiographical
debate around the authorship of the song – fruit
of collective creation in the pagodes of Praça Onze
Station and surroundings – the fact is that a slave
descendant became the author of a mass culture
product whose mechanical reproduction provid-
ed him with wide reach. As we compare the two
events – Malfatti’s exhibition and Donga’s samba – we
realize how the “official” Brazilian impression of
what is “modern” across the country goes through
visual arts rather than popular music. Nevertheless,
therein lies the seed of the contemporary paradox:
The symbolic importance of Brazilian visual arts
and its democratic ideals of modernity do not cor-
relate with the scale of its reach as a social event.
The foundation of a modern field of action of
these visual arts in Brazil was laid down based on the
international avant-garde and, simultaneously, in the
discovery of a popular Brazilian image (think of Tarsila
do Amaral, Di Cavalcanti or Lasar Segall). This same
process, however, was made among just a few and
with sharp distinction of class and color, causing a
deep information gap for the people who did not have
access to these avant-garde environments. Composer
Noel Rosa would say in the following decades that
samba was “our thing.” Cubism certainly was not.
Aligning Anita Malfatti and Donga may sound
forced to some, but it serves as strategic provocation
for the argument presented here. Visual arts are pres-
ent in various periods of the official history of Brazilian
culture. On the other hand, there are several instances
when it was considered secondary when compared
to the Brazilian predilection for mass culture prod-
ucts. As mentioned above, vaudeville, popular music,
radio and television were undoubtedly the de facto
“modern” environments where a revolution of mores
and aesthetic experiments in a massive audience
were taking place. Despite Portinari’s Murals and
other public works such as Bruno Giorgi’s large-scale
sculptures in Brasilia, the Brazilian visual artist was
an eccentric or a scholar. Think of Pancetti, Guignard,
Volpi, Maria Leontina, Ismael Nery and others whose
excellent work did not have the same popular prom-
inence as Orlando Silva, Virginia Lane or Procópio
Ferreira. It is also worth remembering that only in the
early 1950s did the modern art museums begin to have
more qualified (and open) visibility for the apprecia-
tion of this Brazilian art collection created during the
1930s and 1940s – produced practically in silence.
We have now reached a crucial period in this
discussion. In the 1950s the critical debate on visual
arts expands thanks to renewed institutions and the
publishing media. Newspapers across the country
start printing their cultural supplements, and the
visual arts agenda can be read almost daily in the
press – especially the building blocks for the Brazilian
Concrete and Neo-Concrete Art. Modern art museums
and books that organize the history of the Western
Modern Art for educational purposes amplify the
reach of visual arts and transform them into an active
player of the national debate – politics included.
Yet even with this qualitative expansion of art
and its critical thinking, the quantitative dilemma
remains: How to reach a larger audience is still an
issue. In the following decade, when socialist realism
and political engagement reduced complex art topics,
such as form and experimentation, to alienating and
alienated bourgeois escapism, the deadlock deepens.
To further reinforce this idea, remember that unlike
popular music, theater, cinema and poetry, visual arts
had no prominent role in a nation-wide and articulated
institutions like the People’s Center for Culture (CPC)
of the National Union of Students (UNE), running
between 1961 and 1964. Ironically, it was the very
so-called formalistic artists who came up with vital
criticisms of didactic approaches and the pedagogical
tone that artists and intellectuals of initiatives such
as the CPC presented in their work. But this would
open a long discussion that is outside of the scope
of this text. Playwrights and filmmakers had great
influence in teaching “the people” about the revolution
via class awareness, but their actual reach – whether
38
Jacaranda - Nº 6
que, em uma instituição nacional e articulada como
o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacio-
nal dos Estudantes – UNE (funcionando entre 1961
e 1964), as artes visuais não tiveram nenhum papel
de destaque – ao contrário da música popular, do
teatro, do cinema e da poesia. Ironicamente, foram
justamente artistas ditos formalistas que con-
struíram críticas importantes ao didatismo e ao tom
pedagógico que os artistas e intelectuais de inicia-
tivas como o CPC apresentavam em seus trabalhos
(mas isso abriria uma longa discussão que não cabe
aqui desenvolver). A fim de ensinar “o povo” a ser
revolucionário através de sua consciência de classe,
dramaturgos e cineastas faziam trabalhos impor-
tantes, cujo alcance efetivo porém – seja político, seja
estético – foi tímido frente aos objetivos almejados.
Em uma entrevista para Ferreira Gullar em
1965, publicada na Revista Civilização Brasileira
(número 2, maio de 1965), Ivan Serpa sintetiza de
forma exemplar esse momento da história da arte
brasileira. Os impasses de um pintor que atravessou
as vanguardas construtivas e vivia um momento
de extrema politização no campo cultural do país
apontam a necessidade de as artes visuais bra-
sileiras se abrirem para o campo popular. O artis-
ta valoriza contatos com o olhar de pessoas “do
povo” e aciona uma retórica coletivista em quase
todas as respostas. Desdenha do mercado, critica o
jovem artista que “é logo contratado pelas gale-
rias, ainda que não saiba pintar direito” e afirma
que “talvez se Portinari tivesse convivido mais
com o povo teria resolvido melhor seus quadros”.
Por fim, arremata a entrevista dizendo que “ainda
hoje a direção dos museus fica contente quando
consegue atrair figuras da elite social, quando
devia preocupar-se em levar o povo ao museu”.
Nesse cenário – em que as artes visuais per-
maneciam distantes de qualquer relação efetiva
com a população – ocorre a emblemática exposição
Opinião 65, realizada no Museu de Arte Moderna
(MAM) do Rio de Janeiro, em 1965. Emblemática
porque foi feita no primeiro momento de oposição
ao novo regime político oriundo do golpe civil-mil-
itar de 1964. Seu nome fora retirado do musical
montado pelo grupo homônimo. Opinião foi
encenado no Rio de Janeiro em dezembro do ano
do golpe. Opinião era, também, o nome do grupo
de dramaturgos e atores que se reuniram após o
fim do CPC devido a um incêndio criminoso ainda
na primeira noite de abril daquele ano. O grupo, a
peça e a exposição do MAM, obviamente, tinham
um corte político e crítico àquele momento, tornan-
do-se, ao menos para a intelectualidade da época,
atos expressivos de protesto contra o novo regime.
39
É conhecido o acontecimento principal do
evento: Hélio Oiticica, já frequentador de pouco mais
de um ano da escola de samba da favela da Mangue-
ira, apresenta seus parangolés na abertura e, junto
a moradores mangueirenses e passistas da escola, é
impedido de entrar ao som da batucada. O motivo
alegado pela direção do MAM à época era o som dos
instrumentos de samba. Vale lembrar que Oiticica
participa da exposição com uma tenda-parangolé,
alguns bólides e os parangolés, exibidos de forma
precária, segundo matérias em jornais da época.
Existem atualmente ótimas leituras tensionan-
do um evento que envolve diversos fluxos políticos,
históricos e estéticos entre Hélio Oiticica, moradores
pretos de uma favela e um museu de arte moderna.1
O fato é que, no período, os filtros de leitura do even-
to usavam grandes lentes da macropolítica da Guerra
Fria. Estas suprimiam o viés racista do debate e
ampliavam o tema do “popular” e do povo. O registro
que fica no período é de uma exposição de conteúdo
político, cujo entrevero entre artista e instituição a
partir de uma obra de caráter coletivo e participati-
vo demonstra mais uma vez o espaço da arte como
exclusivo de elites econômicas e intelectuais. Nessa
leitura, talvez a participação efetiva dos passistas da
Mangueira no MAM naquela noite, como planejado
por Oiticica, certamente ampliaria a narrativa da
história da arte brasileira para novas direções – mes-
mo que limitadas pelas marcas discursivas do perío-
do, como se vê na entrevista de Serpa para Gullar.
Dois anos depois, em 1967, a censura e a perse-
guição política que atravessariam com violência
a década de 1970 já se enraizavam e preparavam
o golpe final com o Ato Institucional número 5,
editado em dezembro de 1968. Os debates sobre
as artes visuais no país frente ao quadro político
e aos grandes movimentos globais, como a arte
pop e as novas figurações francesa e argentina,
continuava afirmando seu lugar precário e isola-
do. Em uma coluna sobre artes visuais publicada
na Tribuna da Imprensa em 6 de junho de 1967, o
crítico Jacob Klintowitz relata o que ouviu de Mario
Schenberg, crítico fundamental do período, em
um seminário ocorrido na Escola de Belas Artes:
(Mario Schenberg) acha que no Bra-
sil uma arte pop é irrealizável e que não
existe. O que existe são preocupações
sociais nos trabalhos, que entretanto não
têm repercussão social. Mas nenhuma
obra de arte, na sua opinião, teve uma
participação verdadeiramente popular.
Mas o crítico também afirma que
political or aesthetic – was short of the desired goals.
In an interview for Ferreira Gullar in 1965, published
in Revista Civilização Brasileira (Number 2, May 1965),
Ivan Serpa illustratively synthesizes this moment in
Brazilian Art history. The conflicts of a painter, who had
crossed the constructive avant-gardes and was living
in a time of extreme cultural politicization in Brazil,
pointed to the need for Brazilian visual arts to open for
popular influence. Serpa starts to see the value in the
contact with “the people” and almost every answer
is triggered by a collectivist rhetoric. Playing down
the market, he criticizes young artists who “are soon
enough hired by galleries, although they do not know
how to paint” and states that “perhaps if Portinari had
spent more time with the people, he would have finalized
his paintings better.” At the end of the interview, he
says that “even today museum directors are only happy
when they attract the elite, when they should instead be
concerned about bringing the people to the museum.”
In a scenario where visual arts remained distant
from any effective connection with the people, the sym-
bolic Opinião 65 (“Opinion 65”) exhibition was held at the
Rio de Janeiro Museum of Modern Art (MAM) in 1965. Its
symbolism lies in the fact that it is the first movement
to oppose the new political regime arising from the 1964
civil-military coup d’état. It was named Opinião after the
musical staged in Rio de Janeiro in December of that
year. Opinião was also the name of the group of play-
wrights and actors who gathered after CPC ended due
to an arson on the night of April 1, 1964. The group, the
play and the MAM exhibition obviously had a political and
critical stance. At least for the intellectuals of the time,
they became expressions to protest the new regime.
The highlight of the event was its opening, when
Hélio Oiticica presented his parangolés (wearable
sculptures) with Mangueira residents and school
dancers. Oiticica, who had spent a little more than
a year in the Samba School of Mangueira slum, was
prevented from entering the event with the batucada
(drums) sound. According to MAM’s management,
the reason for blocking access was the sound of
samba instruments. It is worth noting that Oiticica
participated in the exhibition with a parangolé tent,
some bolides and parangolés, which were exhibited
precariously, according to newspapers of the time.
Nowadays there are great readings on the event
involving several political, historical and aesthetic flows
between Hélio Oiticica, black residents of a slum and a
museum of modern art.1 The fact is that, during this pe-
riod, the event was read through filters using the large
lenses of Cold War macropolitics, which suppressed the
racist bias of the debate and amplified issues relat-
ed to “the people.” The record from this period is an
exhibition with strong political content, whose conflict
between artist and institution resulting from a piece of
art with collective and participatory work reinforces
how the art space is exclusive to the economic and
intellectual elites. In this regard, the actual partici-
pation of Mangueira dancers at MAM that night, as
planned by Oiticica, would have certainly extend the
narrative of Brazilian art history to new directions –
regardless of how limited it was by the speech of the
time, as can be seen in Serpa’s interview to Gullar.
Two years later, in 1967, the censorship and political
persecution that would permeate the 1970s with strong
violence were already rooted and started to prepare
the final blow: Institutional Act Number 5, published in
December 1968. Faced against the political framework
and major global movements, such as Pop Art and the
new French and Argentine Figuration narratives, the
debates on visual arts across the country remained
precarious and isolated. In a column about visual arts
published in the Tribuna da Impresa newspaper on June
6, 1967, critic Jacob Klintowitz reported what he had
heard Mario Schenberg, a fundamental critic of the
time, say at a seminar held at the School of Fine Arts:
(Mario Schenberg) thinks that in Brazil
any pop art piece is unrealistic and nonexis-
tent. What does exist is social concern with
no social repercussion. No work of art, in his
opinion, has had actual popular participation.
But the critic also states that:
(...) social participation is indirectly
possible because avant-garde works are
conducted as laboratory research and will
later have social repercussion. Art is one of
man’s deeds and cannot solve all problems.
Such statements are just fragments of an immense
debate of the time, which were mainly triggered by the
collective exhibition Nova Objetividade Brasileira (“New
Brazilian Objectivity”), held at MAM in Rio de Janeiro
during the first 6 months of 1967. The statements,
however, are significant enough as we can already agree
with Schenberg on the role of visual arts in our soci-
ety. Let’s save that argument for the end of this text.
To avoid following a tedious chronology through
the decades up to the present time, it is worth mention-
ing that if in the 1970s conceptual swings and political
impasses made visual arts even less accessible to the
people, the following decade finds a better balance by
bringing figurative art back – here I am restrained to
what has been treated as hegemonic in the account
about this era. The later decades roughly coordinate
the qualitative and quantitative expansion of production
40
Jacaranda - Nº 6

resultado de suas ações sempre demonstra conex- with the expansion of a stable market. Its topics and
(...) indiretamente é possível a par- ões com nosso quadro social. Há de se entender, agenda are broad, diversified and establish a dialogue
ticipação social porque os trabalhos de portanto, o risco calculado desse espaço, seu recorte with local and global issues, new fields of knowledge
vanguarda se realizam como pesquisa de frágil e sua força asmática no contexto geral do país. and decisive political events around the country.
laboratório e mais tarde terão repercussão O problema, porém, é vermos que, quando a The fact is that visual arts in Brazil have always
social. A arte é uma das atividades do homem questão estética torna-se apenas questão política, tal been political. Not only as a creative practice that
e não pode resolver todos os problemas. lugar frágil vem à tona de forma negativa. Fecharem expands the boundaries of debate and critical reflec-
exposições por meio de uma “aliança” entre reli- tion on society, but also as a contumacious narrator
giosos, reacionários e gestores de espaços culturais of the historical problems we have always faced. This
Tais afirmações são apenas fragmentos de
privados por conta de um tema moral ou acusarem is precisely the point: Even with critical reflection on
um imenso debate no período, desencadeado
performers e curadores de pedófilos e coniventes such problems, art has limited power of collective
principalmente pela exposição coletiva Nova
com crimes contra a infância são discursos que coordination. Boosted by social networks and their
Objetividade Brasileira, realizada no MAM do
esvaziam radicalmente qualquer debate estético em large-scale digital reproduction, several initiatives in
Rio de Janeiro no primeiro semestre daquele ano.
prol de debates supostamente políticos. A tentação recent times were still incapable of creating prominence
São importantes, porém, para que já se possa
pedagógica de “ensinar” o valor da arte aparece among the public and the involvement of further layers
concordar com Schenberg no que diz respeito ao
exatamente em momentos como esses, reafirmando of the population who would come in their defense
papel das artes visuais em nossa sociedade. Guar-
a armadilha hierárquica que as artes visuais vivem from the constant attacks suffered throughout 2017.
demos esse argumento para o final do texto.
no país. No momento em que o meio da arte percebe To organize the masses around them might not
Para não seguir em uma cronologia enfadonha
como é frágil a garantia de sua existência “à parte” be the main role of visual arts. Neither it is to guide
através das décadas até o tempo presente, basta
de um contexto mais amplo no imaginário popular political debates or be at the mercy of everyday events
apontar que, se nos anos de 1970 a guinada con-
do país, é possível apontar brevíssimas questões at all costs and momentum. Its political and inescapable
ceitual e os impasses políticos fizeram das artes
como as propostas neste texto. Talvez um exercício dimension, however, is guaranteed by its aesthetic
visuais um espaço mais rarefeito ainda frente uma
crítico mais amplo passe pela seguinte reflexão: dimension, whose actions always result in connec-
escala popular, a década seguinte, com sua retom-
como reivindicar uma liberdade criativa e institucio- tions with our social framework. We must therefore
ada da figuração (isto me atendo ao que se colocou
nal, como conviver com um mercado de trabalho understand its calculated risk, its fragile shape and its
como hegemônico na narrativa sobre o período),
para poucos consumidores e, ao mesmo tempo, não feeble strength in the general context of the country.
equilibra de alguma forma o jogo. As décadas
ser parte orgânica daquilo que um cidadão comum The problem, however, is to see the aesthetic
posteriores, a grosso modo, articulam a ampli-
lutaria para garantir sua existência? Em suma, como question becoming only a political issue; this is when
ação qualitativa e quantitativa da produção com
convencer a todos de que a liberdade individual da this fragile place emerges negatively. Shutting down
a ampliação de um mercado estável. Seus temas e
arte é a garantia de liberdade coletiva da vida? exhibitions through an “alliance” between the religious,
pautas são amplos e diversificados, em diálogo com
the reactionary and the managers of private cultur-
questões locais e globais, novos campos de saber 1. Faço aqui especificamente referência ao texto de Cíntia Guedes, “E se Hélio
fosse hoje? Ou, como a favela chega ao museu”. In: Bárbara Szaniecki; Giuseppe al spaces on account of moral themes or accusing
e, também, eventos políticos decisivos no país. Cocco; Izabela Pucu (orgs.). Hélio Oiticica para Além dos Mitos, p. 122. performers and curators of pedophiles who collude
O fato é que, no Brasil, as artes visuais sempre
with crimes against children are speeches that radi-
foram políticas. Não apenas enquanto prática cria-
cally remove any aesthetic debate in the interests of
tiva que expande os limites do debate e da reflexão
supposedly political debates. These are the moments
crítica de sua sociedade, mas também enquanto
when temptation to “teach” the value of art appears,
comentarista contumaz dos problemas históricos
thereby confirming the hierarchical trap into which
que sempre atravessamos. O ponto, porém, é justa-
Brazilian visual arts have fallen. When the art medium
mente esse. Mesmo com alta reflexão crítica sobre
perceives how fragile it is when the guarantee of its
tais problemas, sua força de articulação coletiva
existence is detached from the broader context in the
é pouca. Diversas iniciativas nos últimos tempos,
country’s popular imagery, one can raise the very brief
turbinadas principalmente pelas redes sociais
issues such as those proposed here. Perhaps a deep-
e sua reprodutibilidade digital de larga escala,
er critical exercise will reflect on this: How to claim
ainda assim não foram suficientes para gerarem
creative and institutional freedom, how to coexist with
algum protagonismo público e envolvimento de
a labor market for very few consumers and, at the same
camadas mais amplas da população na defesa aos
time, not be an organic part of what an ordinary citizen
ataques constantes sofridos ao longo de 2017.
would fight to ensure his/her own existence? In short,
Talvez não seja mesmo papel principal das artes
how to convince everyone that art’s individual freedom
visuais arregimentar as massas ao seu redor. Nem
lies in the guarantee of life’s collective freedom?
mesmo pautar debates políticos ou ficar à mercê dos
eventos cotidianos a todo custo e momento. Nova- 1. Here I make specific reference to the text of Cíntia Guedes: “E se Hélio fosse
hoje? Ou, como a favela chega ao museu” (“What if Hélio was present today? Or how
mente, porém, sua dimensão política e inescapável the slum enters the museum.” In: Bárbara Szaniecki; Giuseppe Cocco; Izabela Pucu
está garantida pela sua dimensão estética, cujo (orgs.). Hélio Oiticica para Além dos Mitos (“Hélio Oiticica Beyond the Myths”), p. 122.

41 42
Jacaranda - Nº 6

Fome de democracia Hungry for democracy

Arte, política & utopia Art, politics & utopia
* Michelle Sommer * Michelle Sommer

“Não é fechando que o Brasil vai criar uma que proíbem a exposição de fotos, textos, desenhos, “It is not by closing itself down that Brazil will scenes of nudity or references to sexual acts in public
cultura. É a partir de um processo, difícil, de pinturas, filmes e vídeos contendo cenas de nudez create a culture. It is through a process – and a spaces designated for cultural artistic activities, together
que o povo participe, em que haja uma políti- ou referências ao ato sexual em espaços públicos hard one – in which the people can participate to with a vetoing of books that expose children to “per-
ca não de protecionismo cultural, mas de uma destinados às atividades artístico-culturais, além de build a politics not of cultural protectionism, but missive ideologies harmful to character formation.”1
política de Brasil”. Mário Pedrosa, 1977 vetos a livros que exponham crianças a “ideologias rather a Brazilian politics.” Mário Pedrosa, 1977 Brazil is not alone in this modern-day global war
permissivas e nocivas à formação de caráter”.1 of capitalism vs. democracy. In Brazil, however, specif-
“Acho que no Brasil nós temos realmente a Na atual guerra global capitalismo x democracia, “I think that in Brazil, we truly have the ic historical characteristics create a fragile territory
possibilidade de criar um modelo político novo o Brasil não está isolado. Porém, aqui, particular- possibility of creating a new political model between a colonial and slave-based past and still-fresh
e essa ideia não é um absurdo do ponto de vis- idades históricas configuram um frágil território and this idea is not so absurd from an imagi- memories of the military dictatorship (1964-1985).
ta da imaginação”. Glauber Rocha, 1977 entre um passado colonial e escravocrata e as vivas native perspective.” Glauber Rocha, 1977 Examining this specific period marked by censorship,
memórias da ditadura militar (1964-1985). Olhando we recovered two historical interviews articulating
“Me dei conta de que a gente não tomava para esse período de censura em específico, res- “I realized that we actually were not aware of any thoughts on art and politics to reflect on our present.
mesmo conhecimento de nada disso, desse outro gatamos duas entrevistas históricas que articulam of this, this other world, this society that is forming In 1997, the Jornal do Brasil newspaper published a
mundo, dessa sociedade que está se formando com pensamentos sobre arte e política para pensarmos o out of a savage capitalism.” Ferreira Gullar, 1977 conversation that took place in 1977 between intellectuals
um capitalismo selvagem”. Ferreira Gullar, 1977 hoje, esse depois. Em 1997, o Jornal do Brasil publica returning from exile and which remained unpublished
uma conversa ocorrida entre 1977 entre intelectuais “The intellectual’s purpose is to express his for 20 years.2 The meeting led by journalist Elizabeth
“A função do intelectual é de expressar o seu retornados do exílio e que permaneceu inédita por 20 or her people, to ensure that our artistic lan- Carvalho gathered Mário Pedrosa (1900-1981), Darcy
povo, é dar existência em nossa linguagem artísti- anos.2 O encontro conduzido pela jornalista Elizabeth guage reflects our experiences, our way of be- Ribeiro (1922-1997), Glauber Rocha (1939-1981), and
ca às nossas vivências, ao nosso modo de ser, Carvalho reúne Mário Pedrosa (1900-1981), Darcy ing, which is a way of being human, and not just Ferreira Gullar (1930-2016). In 1981, O Pasquim – the
que é um modo de ser humano, e não apenas um Ribeiro (1922-1997), Glauber Rocha (1939-1981) e a way of being folkloric.” Darcy Ribeiro, 1977 foremost weekly newspaper in resistance to the military
modo de ser folclórico”. Darcy Ribeiro, 1977 Ferreira Gullar (1930-2016). Em 1981, O Pasquim – dictatorship which circulated from 1969 to 1991 – pub-
principal semanário de oposição à ditadura militar, Since the impeachment of former Brazilian President lished what is possibly the last interview with Mário
Desde o impeachment da presidenta Dil- editado entre 1969 e 1991 – publica possivelmente Dilma Rousseff in August 2016, threats to democra- Pedrosa.3 Prompted by conversations with Lygia Pape
ma Rousseff, em agosto de 2016, acentuam-se aquela que é última entrevista de Mário Pedrosa.3 cy have grown. In Brazil of 2017, conservative groups (1927-2004), Ferreira Gullar, Hélio Pellegrino (1924-1988),
as ameaças à democracia. No Brasil de 2017, Incitado por conversas com Lygia Pape (1927-2004), promoted protests and attacked institutions, curators, Jaguar, and Ziraldo, among others, the meeting registered
grupos conservadores promoveram protestos e Ferreira Gullar, Hélio Pellegrino (1924-1988), Jaguar e and artists using false arguments that they promoted the art critic’s main ideas on the course of his career.
ataques a instituições, curadores e artistas sob Ziraldo, entre outros pensadores, o encontro reg- pedophilia and were destroying family and moral values. In these interviews, in the immediate and organic
falsos argumentos de promoção de pedofilia e istra as principais ideias da trajetória do crítico. There has been a series of attempts to repress nature of action and reaction, question and answer, lies
destruição da família e de valores morais. Nessas entrevistas, na organicidade imediata freedoms of expression: The closure of the Queermu- the debate on how to build the project for a Brazilian
Lista-se uma série de repressões às liberdades de entre ação e reação, pergunta e resposta, está em seu (“Queermuseum”) exhibit at Santander Cultural in culture. When times of crisis become a way of life, such
expressão: o fechamento da exposição Queermuseu debate a construção de um projeto cultural brasileiro. Porto Alegre, threatening a bench warrant against the thoughts represent the fuel for continuing the fight
no Santander Cultural em Porto Alegre, com ameaça Em tempos de crise como modo de viver, esses pens- curator, Gaudêncio Fidélis; attacks against the per- to guarantee the rights to freedom of expression.
de condução coercitiva do curador, Gaudêncio Fidélis; amentos são alimentos para a persistência das lutas formance of artist Wagner Schwartz during the 35th During an interview in 1977, Darcy Ribeiro talks about
ataques à performance do artista Wagner Schwartz à garantia dos direitos às liberdades de expressão. Brazilian Art Panorama at the São Paulo Museum of a conversation on his return from exile in Uruguay: “We
no 35º Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Em 1977, Darcy Ribeiro narra na entrevista uma Modern Art, which forced him to leave the country; and arrived here asking: ‘How are things, folks? When will de-
Arte Moderna (MAM) de São Paulo, que o obrigaram conversa no contexto do retorno do exílio no Uruguai: an attempt to close the Faça Você Mesmo sua Capela mocracy finally arrive?’ And those folks would ask back:
a abandonar o país; tentativa de fechamento da expo- “Nós chegamos aqui perguntando: ‘Como é que vão as Sistina (“Make Your Sistine Own Chapel ”) exhibit, by ‘What will democracy look like here? We don’t know.”
sição Faça Você Mesmo sua Capela Sistina, de Pedro coisas, gente? Quando é que chega a democracia por Pedro Moraleida (1977-1999) at the Palace of Arts, in Belo Dear Darcy, over 40 years later we still do not
Moraleida (1977-1999), no Palácio das Artes, em Belo aqui?’ E o pessoal também pergunta para nós: ‘Como é Horizonte, among others. What unfolded after these know. However, in the meantime, between the rise and
Horizonte, entre outras ações. Os desdobramentos que vai ser a democracia por aqui? A gente não sabe’.” actions were attempts – some unfortunately success- attempts to overthrow the democratic system, we realize
subsequentes a essas ações são tentativas – algumas Mais de 40 anos depois, caro Darcy, segui- ful – to pass laws that prohibit the display of photos, that democracy characteristically reconfigures itself
lamentavelmente exitosas – de aprovação de leis mos não sabendo. No entanto, nesse intervalo texts, drawings, paintings, films, and videos containing while surrounded by the threats to its very destruction.

43 44
Jacaranda - Nº 6
de tempo, entre ascensão e tentativas de der-
rubada do sistema democrático, percebe-se que
é característico da democracia reconfigurar-se
entre as ameaças de sua própria destituição.
Nas ameaças à democracia que se apresentam
em distintas roupagens de um mesmo corpo, dar
sequência ao conhecer e reconhecer o que é nosso
para nós pode ser a chave para o incessante proces-
so de construção de um projeto cultural brasileiro
implicado com novas configurações democráticas.
“A condição fundamental para a existência nacional
é de que esse povo passe a existir para si mesmo”,
diz Ribeiro em 1977. “Essencial é conhecer o Brasil,
conquistar o Brasil, a terra brasileira, chegar ao fundo
das origens do nosso povo”, aponta Pedrosa em 1981.
Os projetos culturais contemporâneos – inclusive
os que sofreram ataques – contemplam discussões
sobre o que é nosso a partir da nossa própria diver-
sidade, ressignificando traços culturais distantes
de uma ideia totalizadora de Brasil. Na tomada de
posição crítica, essas pautas emergem sob agendas
de urgência, onde se debate identidade de gênero –
lembrando aqui que o país lidera o ranking mundial
de assassinatos a transexuais4; feminismo – conside-
rando que a taxa de feminicídio no Brasil é a maior do
mundo5; além da inserção de arte indígena e afro-
-brasileira como contribuições fundamentais desse
bloco de construção do que atualmente chamamos
Brasil. Enquanto explodem genocídios indígenas em
violentos conflitos de terra, a omissão do estado é
agravada por disputas entre comunidades e gover-
no federal para comandar a Fundação Nacional do
Índio (Funai), sendo emblemático nesse contexto a
indicação recente de um general identificado com a
ditadura militar para a ocupação da pasta. A taxa de
mortalidade por suicídio entre indígenas é quase o
triplo da média nacional, segundo o Ministério da
Saúde. Sobre a população negra, o Atlas da Violên-
cia de 2017 aponta que são os negros, jovens e de
baixa escolaridade que continuam totalizando a
maior parte das vítimas de homicídios no Brasil.6
Como a arte implica-se com esse cenário ca-
tastrófico? “A arte não é uma coisa artificial. Ela
vem do homem”, diz Mário Pedrosa na entrevista
de 1981. Nas artes que vêm de pessoas, que são
endereçadas para pessoas – múltiplas – estão
contidas as pluralidades de temas que as afli-
gem. Por que não, então, acentuar a fluidez entre
os vasos comunicantes entre arte e política?
“Então política e arte não são irreconciliáveis?’,
pergunta-se a Mário Pedrosa em 1981. A resposta
é: “Nem devem ser. Ser revolucionário é a profissão
natural de um intelectual”. Darcy Ribeiro aponta na
mesma direção em sua fala de 1977: “A função do
45
intelectual é de expressar o seu povo, é dar existência
em nossa linguagem artística às nossas vivências,
ao nosso modo de ser, que é um modo de ser hu-
mano, e não apenas um modo de ser folclórico”.
As artes mantêm vivo o espírito utópico quando
a utopia parece não ter mais lugar. Sensibilizam para
gerar novas percepções e outras relações de afeto,
desestabilizando o que está posto como realidade
estanque e gerando outras realidades possíveis:
utopias impulsionadas pela arte podem inventar
futuros. No contexto da apatia dominante e mal-es-
tar social generalizado, utopias são alimentos.
“Acho que no Brasil nós temos realmente a pos-
sibilidade de criar um modelo político novo e essa
ideia não é um absurdo do ponto de vista da imag-
inação. Ela encontra, inclusive, raízes na nossa cul-
tura”, aponta Glauber Rocha na entrevista de 1977.
Em 2017, 40 anos após essa entrevista, os projetos
culturais contemporâneos que debatem temas daqui
com ênfase na diversidade ampliam debates sobre
o que é nosso para nós. Se reside no entendimento
da nossa própria cultura uma das possibilidades
para a criação de novos modelos políticos, cabe às
artes também, em momentos de crise democrática,
impulsionar estados de invenção para a criação de
outras realidades possíveis. As atuais repressões às
liberdades de expressão não calarão as artes e sua
multiplicidade de vozes. Qualquer censura imposta
às artes caminha em direção a uma estrada única:
a miséria cultural assentada sob um pavimento de
intolerância em relação a nossa própria diversidade
constituinte. Nesse incessante processo de con-
strução de um projeto cultural brasileiro, as falas dos
vivos tempos de censura, lidas no contemporâneo de
crises avassaladoras, são sopros de esperança para
crer que a saída segue sendo fazer a revolução. “Uma
nação que não passa por uma revolução não é ainda
uma nação formada”, diz Pedrosa, na entrevista de
1981, ciente de que sua aposta reside na utopia. E
ora, quem diz utopia, diz arte, diz vontade criadora!7
1. Em outubro de 2017, a Câmara Municipal de Uruguaiana (RS) solicitou a
retirada do catálogo Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira
do acervo da Biblioteca Pública Municipal, devolvendo-o ao Santander Cultural,
junto à moção de repúdio ao conteúdo da publicação com obras “distorcidamente
permissivas e potencialmente nocivas para a formação do caráter”. Ainda
anunciou solicitação para que o Executivo analise outros livros que contenham
conteúdo similar, e que atentem “contra a moralidade”, para que sejam retirados
da Biblioteca Pública. Em 6 de novembro de 2017, a Assembleia Legislativa do
Espírito Santo aprovou o Projeto de Lei 383/2017 que proíbe a exposição de fotos,
textos, desenhos, pinturas, filmes e vídeos contendo cenas de nudez ou referências
ao ato sexual em espaços públicos destinados a atividades artístico-culturais.  drawings, paintings, films, and videos containing scenes of nudity or references
2. Jornal do Brasil, 24 de fevereiro de 1997, pp. 4-7.
3. O Pasquim, edição 646, 12-18 de novembro de 1981. Debate republicado
na Arte & Ensaios, número 37, 2017. https://revistas.ufrj.br/index.php/
ae/article/view/14513, acessado em 21 de fevereiro de 2018.
4. Ver: http://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/11/TvT-
PS-Vol14-2016.pdf, acessado em 21 de fevereiro de 2018.
5. No Brasil, a taxa de feminicídios foi de 4,8 para 100 mil mulheres em 2013 – a
quinta maior no mundo. Relatório “Diretrizes Nacionais – Feminicídio”, ONU
Mulheres. Ver: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/
diretrizes_feminicidio.pdf, acessado em 21 de fevereiro de 2018.
6. Portal desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em
parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. http://www.ipea.gov.
br/atlasviolencia/download/2/2017, acessado em 21 de fevereiro de 2018.
7. Mário Pedrosa, “Reflexões em torno da nova capital”, Revista
Brasil: Arquitetura Contemporânea, n. 10, 1957.
Among the threats to democracy whose figure
appears under different guises, to persistently learn and
recognize that what belongs to us should be ours, can be
the key to the tireless process of building the project for
a Brazilian culture that entails new democratic config-
urations. “This people need to exist for themselves; this
is the crucial condition for the existence of a national
identity,” said Ribeiro in 1977. “It is essential to under-
stand Brazil, conquer Brazil, the Brazilian land, get to the
bottom of the origins of our people,” said Pedrosa in 1981.
The contemporary cultural projects – including
those that suffered the attacks – discuss what is ours
from the perspective of our own diversity, giving new
meaning to old-fashioned cultural traits of a totalitar-
ian vision of Brazil. When assuming a critical position,
these topics emerge as part of urgent agendas around
gender identity (the country leads the global ranking
in murders of transsexuals4), feminism (Brazil has the
highest femicide rate in the world5) and the acknowl-
edgment of the capital contribution of indigenous and
Afro-Brazilian art to this building block we currently call
Brazil. As indigenous genocide explodes through violent
land-related conflicts, the government’s negligence has
been exacerbated by disputes between communities and
the federal government to decide who will head Brazil’s
National Indian Foundation (FUNAI). One emblematic case
is the recent nomination of a general associated with the
military dictatorship to assume this role. According to
the Brazilian Ministry of Health, the suicide rate among
indigenous people is nearly triple the national average. As
for the black population, the 2017 Violence Atlas indi-
cates that young, black Brazilians with low schooling
still rank the highest as homicide victims in Brazil.6
How does art fit within this catastrophic scenario?
“Art is not something artificial. It comes from man,”
said Mário Pedrosa during a 1981 interview. The arts
that come from the people and are directed toward the
people – multiple ones – hold the pluralities of themes
that plague them. So, why not improve the flow be-
tween the art and politics communicating vessels?
“Are then politics and art irreconcilable?” was the
question asked of Mário Pedrosa in 1981, to which he
answered: “They should not be. An intellectual’s nat-
ural profession is to be revolutionary.” Darcy Ribeiro
indicated something similar in his 1977 conversation:
“The intellectual’s purpose is to express his or her
people, to ensure that our artistic language reflects
our experiences, our way of being, which is a way of
being human, and not just a way of being folkloric.”
With the 2018 election year upon us, something
Darcy Ribeiro said during the 1977 debate is a living echo
that connects the military dictatorship of the past with
the democratic crisis of the present: “When dominated
by a ruling elite that is disconnected from the nation,
the government loses its single reason for existence,
which is to legitimate the expression of the people’s will.
Until now, the only mechanism invented to achieve this
was the election process. E-le-ction! I feel that there is
in Brazil an attempt to shirk the people, to find a way
to prevent the people from expressing themselves.”
It is the arts that keep the utopian spirit alive and
kicking when there seems to be no space left for utopia.
They raise awareness to generate new perceptions and
other bonds of affection, disrupting what is offered as
a staunch reality and generating the possibility of other
realities: Art-driven utopias can invent futures. Within
the current context, where apathy rules and social
malaise is generalized, utopias serve as nourishment.
“I think that in Brazil, we truly have the possibility of
creating a new political model and this idea is not as ab-
surd from an imaginative perspective. In fact, it has roots
in our culture,” said Glauber Rocha during the 1977 inter-
view. In 2017, 40 years after this interview, the contempo-
rary cultural projects that discuss topics about this land
with an emphasis on diversity help extend debates about
what belongs to us should be ours. If the understanding
of our own culture promotes one of the possibilities
for creating new political models, then during times of
democratic crisis the arts too are responsible for driving
states of invention to create other possible realities.
The current repressions against freedoms of
expression will not silence the arts with their multitude
of voices. Any censorship imposed on the arts leads down
to a single path: Cultural poverty that rests on a platform
of intolerance for the very diversity that makes us who
we are. In this incessant process of building the project
for a Brazilian culture, the voices of those raw times of
censorship, examined from the contemporary perspective
of rampant crises, are rays of hope to believe that the
solution continues to be through the revolution. “A nation
that does not experience revolution is not yet a formed
nation,” said Pedrosa in a 1981 interview, fully aware
that his beliefs reside in utopia. And whoever proclaims
utopia, proclaims art, and proclaims creative will!7
1. In October 2017, the Uruguaiana Municipal Chamber in the state of Rio Grande
do Sul requested the removal of the Queermuseu – Cartografias da Diferença na
Arte Brasileira (“Queermuseum – Cartographies of Difference in Brazilian Art”)
catalog from the Municipal Public Library, returning it to Santander Cultural,
together with a motion of rejection for the content of the publication with works
that were “distortedly permissive and potentially harmful to character formation.”
It also announced the request for the Executive Branch to analyze other books
containing similar content, which “assailed morality,” so that these could also be
removed from the Public Library. On November 6, 2017, the Espírito Santo Legislative
Assembly approved Bill No. 83/2017, which prohibits the display of photos, texts,
to sexual acts in public spaces designated for cultural artistic activities.
2. Jornal do Brasil, February 24, 1997, pp. 4-7.
3. O Pasquim, edition No. 646, November 12-18, 1981. Debate republished
in Arte & Ensaios, No. 37, 2017. https://revistas.ufrj.br/index.php/
ae/article/view/14513, last accessed on February 21, 2018.
4. See http://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/11/TvT-
PS-Vol14-2016.pdf, last accessed on February 21, 2018.
5. In 2013, for every 100,000 women, 4.8 were victims of homicide in Brazil, the fifth
highest femicide rate worldwide. UN Women report Diretrizes Nacionais – Feminicídio
(“National Guidelines – Femicide”). See http://www.onumulheres.org.br/wp-content/
uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio.pdf, last accessed on February 21, 2018.
6. Portal developed by the Brazilian Applied Economic Research Institute in
46
partnership with the Brazilian Public Safety Forum. http://www.ipea.gov.br/
atlasviolencia/download/2/2017, last accessed on February 21, 2018.
7. Mário Pedrosa, “Reflexões em torno da nova capital” (“Reflections on the
new capital city”), Revista Brasil: Arquitetura Contemporânea, No. 10, 1957.
Jacaranda - Nº 6
Arte entre liberdade e servidão
* Marisa Flórido Cesar
Ao longo destes últimos anos, falou-se repeti-
damente que o fascismo entrava em nossas vidas.
Repetidamente, acusou-se de banalizar a palavra,
uma vez que o fascismo é identificado, em geral,
apenas aos regimes totalitários e suas grandes
máquinas estatais. Muitos autores1 também pens-
am o fascismo pela vida cotidiana, pelos micro-
fascismos nossos de cada dia. Como eles, tendo a
crer que o fascismo não é apenas o poder central-
izado e nacionalista, não se manifesta somente
pelas grandes cabeças do ditador deificado como
Hitler ou Mussolini e nas comunidades monocé-
falas e fusionais que ele produz (a comunidade
ariana, nacionalista etc). “Comunidades” que cri-
aram e eliminaram em genocídios épicos o Outro,
o inimigo, a ponto de sequer considerá-lo parte
da humanidade. Os fascismos não se instituíram
apenas de cima para baixo, esses microfascismos
foram importantes para o nazismo ganhar força
na Alemanha: ataques de bando, ódio dissemina-
do... O partido nazista apropriou-se deles e lhes
deu organicidade. Ora, a esqualidez dos corpos
dos judeus, corpos que não eram mais corpos,
seus nomes apagados e reduzidos a números
tatuados são apenas a face extrema, mais expli-
citada e concentrada da negação de sua humani-
dade. Mas os assassinatos cotidianos em nossas
favelas de negros e pobres, o genocídio indígena
que se perpetua pelo interior, a escandalosa e
trágica estatística de sermos o país que mais mata
LGBTQIs, a misoginia, o fundamentalismo que
persegue e demoniza a religião que não é a sua, o
gozo com o linchamento de um pobre coitado nas
ruas de todo o país são outra face do fascismo, dis-
seminado, e que por nós foi tão naturalizada que
deixamos de lhe dar atenção, deixamos de pensar.
Em nossa versão da banalidade do mal, destruir
os “indesejáveis” (como fala Hannah Arendt) é
antes destituí-los de sua condição humana; nada
exemplifica melhor do que os mortos (esses ma-
táveis) em favelas, campos e florestas deste país.
O fascismo assombra nossos corpos e almas,
47
nossas pequenas condutas cotidianas, não é
exterior, é o que faz desejar o que nos domina. É
metastático, mas uma metástase que se dissemi-
na também, como diriam Deleuze e Guattari, em
“fluxos” microfascistas. Infiltrando-se no que
somos: dos pequenos ódios à iconoclastia religio-
sa ou moral, da intolerância à diferença aos gritos
histéricos de nobres senhoras que clamam pela
eliminação do Outro enquanto vão ao templo orar.
Os governos ditatoriais foram a potencialização
e a culminação da subjetividade dos microfasci-
mos; creio que eles se instalam ali onde impera
não o vazio nem o desamparo, mas justamen-
te a angústia de não conseguir encará-los.
Para Deleuze e Guattari, o fascismo não
coincide perfeitamente com o totalitarismo. Este
diz respeito ao Estado e suas máquinas abstra-
tas de sobrecodificação, e mesmo o Exército
na ditadura militar é sua máquina abstrata.2 O
fascismo é a máquina de guerra que se apropria
de um Estado “suicidário”, como o definiu Paul
Virilio, “um niilismo realizado”3. Por isso, dizem
os filósofos, os nazistas anunciavam, ao mesmo
tempo, “núpcias e morte, inclusive a sua própria
morte” e a dos alemães. Eles gritavam “mata” e
“bravo” pela morte do outro, porque “queriam
esta morte que passava pela dos outros”4. “Se a
guerra está perdida, que pereça a nação”5, dizia
o telegrama de Hitler ao sentir-se encurralado
e decidir consumar a destruição integral, dos
recursos do país à destruição de seu próprio povo.
Devemos então temer, hoje, esses microfascis-
mos juntando as linhas de fuga, como se ameaç-
assem uma concentração absoluta e exponencial?
Pela cabeça do líder, do Leviatã, a conjugá-las,
como ocorreu no século XX (Hitler, Mussolini,
Franco, Salazar, as ditaduras militares da América
Latina etc.)? A extrema-direita avança no mundo,
Trump e similares parecem a caricatura midiática
desse líder mitificado, mas são a culminação e a
personificação do ódio de classe, da xenofobia,
do racismo, da misoginia, do nacionalismo, do
Art torn between freedom
and servitude
* Marisa Flórido Cesar
Over recent years, there has been recurring
talk about how fascism has invaded our lives. It has
repeatedly been argued that the word “fascism”
has been banalized since it is generally identified
with totalitarian regimes and their monstrous
government machines. Many authors1 also think
about fascism based on daily life, through our daily
micro-fascisms. Like them, I tend to believe that
fascism is not only a centralized and nationalist
power, it not only manifests through the minds of
worshipped dictators like Hitler or Mussolini and the
single-brained and fusional communities it produces
(the Aryan, nationalist community etc.). “Commu-
nities” that created and eliminated the “Other,”
the enemy, in epic genocides to the point of not
even considering this “Other” as part of humanity.
Fascisms do not only gain power from the top-down.
These micro-fascisms were important for Nazism
to gain popularity in Germany: Gang-style attacks,
widespread hatred... The Nazi party exploited them
and gave them organicity. The squalor of Jewish
bodies, bodies that were no longer bodies, their
names erased and reduced to tattooed numbers are
only the extreme, more clarified and concentrated
image of the denial of their humanity. The daily
murders in our favelas inhabited by the black and
the poor, the indigenous genocide that devastates
rural areas, the scandalous and tragic statistics
revealing that we are the country that most kills
LGBTQI individuals worldwide, misogyny, the fun-
damentalism that persecutes and demonizes other
religions, and the sheer enjoyment with the lynching
of the homeless poor souls all over the country:
All of this forms the other face of fascism. It has
been disseminated and made so natural to us that
we have stopped paying attention; we have stopped
thinking about it. In our version of the banality
of evil, destroying the “undesirables” (as Hannah
Arendt puts it) means stripping them of their human
condition in the first place. There is no better
example than those dead (suitable for killing) in the
favelas, rural areas, and forests of this country.
Fascism haunts our bodies and souls, our
simple, daily conducts. It is not something exteri-
or to us; it is what makes us desire exactly what
overpowers us. While metastatic, it is a metas-
tasis that, as Deleuze and Guattari would put it,
spreads in micro-fascist “flows.” It infiltrates our
beings: From the small acts of hate to the reli-
gious or moral iconoclasm, from the intolerance
to difference to the hysterical cries from noble
women who call for the elimination of the “Oth-
er” while heading to church to pray. Dictatorial
governments emblazoned the power and peak of
micro-fascism subjectivity. I believe that this is
where they find their place; there where what
prevails is not emptiness or abandonment, but
precisely the anguish of not being able to face them.
For Deleuze and Guattari, fascism does not fully
coincide with totalitarianism, which is connected
to governments and their abstract over-coding
machines; even the Army in military dictator-
ships is an abstract machine.2 Fascism is the war
machine that seizes “suicidal” governments – as
defined by Paul Virilio, “an accomplished fulfilled
nihilism.”3 That is why, as philosophers point out,
the Nazis announced, “at once wedding bells and
death, including their own death, and the death
of the Germans.” They yelled “kill” and “bravo”
for the death of the other, because “they wanted
that death through the death of others.”4 When he
felt cornered and decided to consummate his full
destruction, from the country’s resources to the
destruction of its own people, Hitler’s telegram
read: “If the war is lost, may the nation perish.”5
Should we fear these micro-fascisms today as
they join the escape routes, as if they threaten an
absolute and exponential concentration? Through
the head of the leader, the Leviathan, which com-
bines them, similarly to what occurred during the
20th century – Hitler, Mussolini, Franco, Salazar,
Latin America’s military dictatorships etc.? The
extreme right advances on a global scale. Trump and
others like him appear to be the media caricature of
48
Jacaranda - Nº 6
sexismo que refluem de volta, como o retorno
do recalcado. Na outra face do espelho, ressur-
gem também cabeças espectrais, como poder de
conjugação fusional, na figura do inimigo coletivo
a ser decapitado. O ódio à alteridade, às esquerdas
e às políticas sociais (midiaticamente insufla-
do) é apenas um desses sintomas de conjugação
fusional na eleição de um inimigo comum. Esses
fluxos microfascistas já adquiriram organicida-
de, nas manifestações de extrema-direita; nos
brados pelo torturador Ustra; nas perseguições
a universidades, escolas e professores, pelo
país, acusados de “doutrinação ideológica”; no
ataque violento a religiões (como as dos povos de
terreiro), a costumes e culturas; nas agressões e
na censura a exposições, peças de teatro, obras
de arte que explodiram pelo país principalmente
a partir da mostra Queermuseu, em Porto Alegre.
Mas estamos em um momento distinto dos golpes
de Estado dos anos 1960 e 70, quando ditadu-
ras militares se instauraram na América Latina,
quando suas mídias (tevê, rádio) alardeavam
a ameaça comunista e os horrores do stalinis-
mo, consolidando aqui o sistema capitalista.
Talvez fosse necessário então tentar perce-
ber a mudança que vem se operando nas formas
do fascismo antes e depois da Segunda Guerra
Mundial, antes e depois da queda do Muro de
Berlim e da URSS, antes e depois da hegemonia do
capitalismo neoliberal dos anos 1980/90. Siga-
mos os vaga-lumes de Pasolini e seu resgate por
Georges Didi-Huberman. No início dos anos 1940,
Pasolini recorda Dante, que falara do contraste
entre a luz deslumbrante do paraíso (luce) e os
vislumbres de luz dos espíritos mesquinhos do
mal, convertidos em vaga-lumes (lucciole). Em
suas crônicas, essa figura é invertida: o cineasta
compara a luz ofuscante da propaganda fascista
e seus políticos gloriosos e superexpostos com
a luz do paraíso de Dante (lembremos do filme
Triunfo da Vontade, de Leni Riefenstahl, em que
o Exército e a massa, que assistem Hitler, não
possuem individualidade, conformando o grande
corpo coletivo e abstrato da nação ariana à sub-
missão de apenas uma cabeça, uma face e uma voz
que dominam a cena: aquelas do ditador mitifi-
cado), e a resistência antifascista aos vaga-lumes
fugidios que emitem seus sinais discretos porém
insistentes. São esses momentos frágeis e fugazes
que resistem ao mundo do terror. Em 1975, três
décadas depois, no pós-guerra, Pasolini retoma a
metáfora dos vaga-lumes: em vez da luz fascista
dos Estados totalitários, ele vê um neofascismo
implícito na cultura de massa e do espetáculo ca-
49
paz de eliminar as resistências populares por via
da integração perversa na sociedade de consumo.
São outra vez os vaga-lumes, em suas fulgurações
passageiras, que oferecem uma alternativa.
Os vaga-lumes são resgatados por Didi-Hu-
berman para pensar a imagem em sua potência
insurgente. É preciso restituir a cada imagem
sua aparição intempestiva, fazê-la outra vez uma
intermitência que interrompe o espetáculo e as
opressões tanto como resistência quanto como
operadora de intensidades e escolhas. São esses
vaga-lumes, essas pequenas luzes preciosas,
que talvez sejam capazes de resistir tanto à luz
deslumbrante e cegante da superexposição das
propagandas nazifascistas com seus políticos
gloriosos quanto à narcose provocada pelos
holofotes da sociedade do espetáculo. São esses
vaga-lumes discretos e erráticos, esses lampejos
solitários, que oferecem outros horizontes além
daquele da ofuscante luz das tiranias e servidões,
sejam elas de que ordem for, do capital, da
política, das igrejas, das mídias... “Dar exclusiva
atenção ao horizonte”, observa o autor, “é tor-
nar-se incapaz de olhar a menor imagem”. Aquela
“imagem-vaga-lume”, cujo lampejo inesperado
pode ser o primeiro “operador político de pro-
testo, de crise, de crítica ou de emancipação”6.
Há portanto transformações nas relações
entre a soberania moderna e a biopolítica, entre a
obediência e o agenciamento do desejo. Mas como
seria o fascismo em sua face contemporânea,
quando o capitalismo financeiro se torna hege-
mônico (espetacular, globalizado, com as novas
tecnologias de comunicação em rede)? Quando
este se mostra cada vez mais incompatível com
a democracia e o Estado de direito (que surge
no século XVIII), com a liberdade individual, a
liberdade de expressão, de imprensa e opinião,
a liberdade de organização associativa etc?
Como “globalização” define-se em geral o
processo de integração dos mercados, mas é
sobretudo o mundo que é produzido pelo capital
financeiro, na velocidade das redes eletrônicas, na
transformação nas formas de produção, organi-
zação e circulação (o declínio do trabalho indus-
trial, fordista ou taylorista, e de suas formas de
representação, como os sindicados), na disputa
do monopólio das visibilidades e dos afetos. O
que está em questão quando falamos de global-
ização senão a imagem de um mundo comum,
que sempre existiu no imaginário ocidental, em
seus desejos de universalidade e totalização?
Mas este é um mundo que perdeu as chaves de
sua decifração, que reflui incessantemente sobre
this mythicized leader, but they are the culmination
and personification of class hatred, xenophobia,
racism, misogyny, nationalism, and sexism that
are flowing back, like the return of that which was
previously repressed. On the other side of the coin,
there is also the resurgence of spectral leaders
with fusional conjunction power, in the face of the
collective enemy to be decapitated. The hatred
(inflated by the media) toward otherness, left-wing
movements, and social policies is only one symptom
of fusional conjunction when picking a common ene-
my. These micro-fascist flows have become organic
in extreme-right protests; in the praise for torturer
Colonel Ustra; in the persecution of universities,
schools, and professors all over the country, who
are accused of “ideological indoctrination;” in the
violent attack against religions (mainly of African
descent), customs, and cultures; in the aggression
and censorship against exhibits, plays, and works of
art that exploded around the country especially af-
ter the Queermuseu (“Queermuseum”) exhibit in Por-
to Alegre. But the time in which we currently live is
different from that of the coups d’état of the 1960s
and 1970s, when military dictatorships took hold
in Latin America, when the media (television, radio)
emphasized the Communist threat and horrors of
Stalinism to consolidate the capitalist system here.
Perhaps it is necessary to try and see the
change that has taken place in fascist methods
before and after World War II, before and after the
fall of the Berlin Wall and the Soviet Union, before
and after the hegemony of the Neoliberal capital-
ism of the 1980s and 1990s. Let us follow Pasolini’s
fireflies, rescued by Georges Didi-Huberman. In
the early 1940s, Pasolini quoted Dante, who wrote
about the contrast between the stunning light of
paradise (luce) and the glimmers of light from the
cruel, evil spirits, transformed into fireflies (lucci-
ole). In Pasolini’s chronicles, this image is reversed:
The filmmaker compares the blinding light of fascist
propaganda and its glorious and over-exposed poli-
tics with Dante’s light from Paradise and compares
the Anti-fascist resistance to the fugitive fireflies
that reveal their discrete, yet insistent signals. Here
we are reminded of the movie Triumph of the Will, by
Leni Riefenstahl, in which the Army and the masses
helping Hitler cannot have their own individuali-
ty and must conform to the large, collective and
abstract body of the Aryan nation, which answers to
a single leader, face, and voice that dominates the
scene, that of a mythical dictator. These are fragile,
fleeting moments that resist the world of terror.
In 1975, three decades later and in the post-war
era, Pasolini reclaims the metaphor of the fireflies:
Instead of the fascist light from totalitarian States,
he sees an implicit Neofascism in mass culture that
has the capacity to eliminate popular resistance
through a perverse integration with consumer
society. Once again it is the fireflies, with their
fleeting flashes of light, that offer an alternative.
Didi-Huberman revives the fireflies to describe
the image in its insurgent power. It is necessary
to restore the sudden apparition of each image,
to once again make it flash to interrupt the spec-
tacle and oppression, both as resistance and as
an operator of intensities and choices. It is these
fireflies, these small, precious lights that are
perhaps capable of resisting not only the dazzling,
blinding light of the over-exposure to Nazi-fascist
propaganda and its glorious politics, but also the
narcosis caused by the spotlights of the spectacle
society. It is these discrete and erratic fireflies,
these solitary glimmers, that offer other horizons
beyond the blinding light of tyrannies and servi-
tudes, regardless of what they are: Capital, politics,
churches, the media... “Focusing only on the horizon
makes it impossible to see the smaller picture,”
observes the author. That “firefly image,” whose
unexpected flash can be the first “political operator
of protest, crisis, criticism, or emancipation.”6
Therefore, there are transformations in the re-
lations between modern sovereignty and biopolitics,
between obedience and the agencying of desire. But
what would fascism look like today, when financial
capitalism becomes hegemonic (spectacular, global-
ized, with the new networked communication tech-
nologies)? When does this prove to be increasingly
incompatible with democracy and the rule of law
(which emerged in the 18th century), with individual
freedom, freedom of expression, the press and opin-
ion, the freedom of associative organization etc.?
“Globalization” is often defined as the pro-
cess of market integration, but it is primarily the
world produced by financial capital, at the speed of
electronic networks; the transformation of produc-
tion, organization, and circulation methods in the
race for a monopoly of visibility and loyalty. The
decline of the industrial work, whether Fordist or
Taylorist, and its different forms of representation,
like trade unions. When we talk about globalization,
is it not the image of a common world that has
always existed in the Western imaginary and in the
desires of universality and totalization? However,
this is a world that has lost the keys to its own
interpretation, a world that is constantly reflected
on itself and on its own abyss. Without interior
or exterior, relationships of strength and power
apparatuses operate in networks in a subtler and
50
Jacaranda - Nº 6
si mesmo, sobre seu próprio abismo. Sem fora
ou dentro, as relações de força e os dispositivos
de poder operam em rede, de modo muito mais
sutil e interiorizado: precipitam-se sobre as
formas de vida, modelando-as, informando-as;
incidem sobre o desejo e a linguagem, os corpos
e a percepção, as relações e os saberes, as subje-
tividades... Incidem, inclusive, sobre aquilo que
nomeamos “arte”. Uma dominação, mais dissem-
inada e invisível que as colonizações do passado
e as ideologias modernas, se instaura. Do mesmo
modo, rebeliões e desvios mais difusos se propa-
gam: em micropolíticas, dos movimentos ligados
a gênero e a sexualidade (movimentos feministas,
LGBTQI etc.) aos movimentos negros e dos povos
ameríndios. Ou em grandes levantes, basta ver
os efeitos das redes da internet nos protestos
que eclodiram pelo mundo a partir de 2010: do
Egito e da Primavera Árabe às manifestações que
tomaram conta das cidades brasileiras em 2013.
O fogo de um poder coletivo acende aqui e ali,
buscando novas formas, novos rastilhos por onde
queimar, e que não cessam de ser apropriados da
pior forma possível. Entre o extravio do mundo
comum projetado pela História e o mundo que se
produz pela globalização do capital financeiro;
o mundo único e idêntico torna-se tão factual
quanto espectral; a humanidade, uma quimera.
Esse abismo, esse vazio ontológico, parece
provocar duas tendências que terminam por
confundir-se. Um desamparo que nos coloca
possibilidades e riscos: ou encaramos o abismo
e afirmamos os vários mundos e várias humani-
dades, a pluralidade e a abertura dos mundos
com suas muitas singularidades, com as dif-
erenças que nos constituem, ou o fechamos com
violência e abjeção. E ao fechar, ao colocá-lo sob
a pressão do tamponamento, o que o abismo nos
devolve (quando não olhamos para ele) são as
figuras de ressentimento, intolerância e ódio.
Não suportando essa ferida ontológica aberta,
afloram por toda a parte identitarismos e naciona-
lismos, fundamentalismos religiosos, terroristas
ou criminosos. Se nas possibilidades desse vazio
talvez encontrássemos uma abertura ao igual
desigual, ao semelhante dessemelhante, com o
qual temos que ensaiar um complexo aprendizado
das vizinhanças, a reaprender a difícil costura
entre as diferenças, seu fechamento e negação
promovem nossa conjunção como identificação
fusional, em que aquilo ou aquele que não cabe
ou lhe difere é excretado. Um abre as perspecti-
vas, outro as fecha com terror e violência, osci-
lando entre a guerra de todos contra todos e a
51
eleição de cabeças ressurgentes de comunidades
monocéfalas, que oriente a dispersão da multi-
dão, seja na figura de um soberano centralizador
(Deus, a identidade, o Chefe), seja na invenção
da cabeça inimiga a ser decapitada, convertida
ela própria no Grande Mal a ser eliminado (a
busca por um inimigo é tanto eco dessa crise
como salvaguarda desse anseio de totalidade
e unidade, a preservação perversa desse olhar
unívoco e monolítico que não distingue meios
tons). Autorreferentes, reproduzem polarizações
e juízos maniqueístas. E este filme nós já assisti-
mos: o século XX foi aquele de genocídios épicos.
A um só tempo, o capitalismo financeiro acir-
ra os abismos sociais na concentração exponen-
cial da riqueza nas mãos de 1% da humanidade
e se apresenta como a única saída, afirmando
que não há mais saída, salvo em sua voracidade e
asfixia. O futuro como projeto histórico e comum
foi substituído pela compressão global do tempo
e pela gestão das emoções, do medo e do ressen-
timento. Como diz Paul Virilio: o poder político
funciona pela administração do medo, gerando-o
e gerindo-o sem cessar sob a ameaça de grandes
fantasmas: o colapso econômico, o terrorismo e o
crime, a pandemia etc.7 Ora, se o capitalismo é um
sistema de crédito e endividamento perpétuos,
uma dívida sem perdão que organiza e molda as
subjetividades, no capitalismo financeiro – que
impõe a generalização do crédito, como falam
autores como Maurizio Lazzarato8 – não se fab-
ricam mercadorias como no capitalismo indus-
trial; fabricam-se mundos, desejos e crenças.
Algo que vem se tornando mais complexo com
as novas tecnologias de comunicação. Muitos cel-
ebram como as novas tecnologias vieram deslocar
a produção, a circulação e a exibição de conteúdo
informativo e opinativo, antes centralizadas e
monopolizadas pelas grandes mídias corporati-
vas como o jornal e a televisão, interferindo na
partilha e na distribuição das imagens e vozes.
Mas as redes sociais e seus robôs têm se tornado
um novo sistema de poder cujos mecanismos de
controle são ainda mais intrincados que as antigas
mídias. Fórmulas e algoritmos definem as notí-
cias que vão para o alto das páginas pessoais dos
usuários, quais devem aparecer mais e com que
frequência; esses mecanismos não apenas deter-
minam o que o vamos ver, mas também o modelo
de negócio das plataformas sociais. Se as redes
eletrônicas intervêm na violência gerada pelo
controle da opinião e pela produção da verdade
exercidos pelas mídias, nelas são difundidas
informações cuja autenticidade ninguém questio-
more internalized way: They swoop down other
forms of life, modeling and informing them; they
impact desire and language, bodies and perception,
relations and knowledge, subjectivities. They also
impact that which we call “art.” A domination – more
disseminated and invisible than the colonization
of the past and of modern ideologies – takes hold.
In the same sense, rebellions and more diffuse
deviations spread: In micro-politics, movements
tied to gender and sexuality, (feminist movements,
LGBTQI), Black and Amerindian people movements.
Or in great upheavals – one such example being
the effects of the Internet covering the protests
that broke out around the world in 2010: Egypt and
the Arab Spring all the way down to the protests
that took over Brazilian cities in 2013. The fire of a
collective power burns here and there, searching
for new methods, new fuses to light, and which do
not cease from being appropriated in the worst
way possible. Between the loss of the common
world projected by history and the world produced
by the globalization of financial capital, the sin-
gle and identical world becomes as factual as it
is spectral – and humanity turns into a chimera.
This abyss, this ontological hollowness, appears
to provoke two trends that eventually merge. A
helplessness that offers us possibilities and risks:
We either face the abyss and affirm the various
worlds and various humanities, the plurality and
openness of worlds with their many unique char-
acteristics (with the differences that make us who
we are), or we close things down with violence and
abjection. And, by closing them down, by placing
them under tight pressure, what the abyss returns
to us (when we do not pay attention) are images
of resentment, intolerance, and hatred. With no
tolerance for this open ontological wound, identi-
tarianism and nationalism, religious, terrorist, and
criminal fundamentalism emerge. In this hollow-
ness we could place the unequal that is equal,
the dissimilar that is similar, with whom we must
practice a complex learning of our neighbors to
re-learn the difficult weaving between differences.
Its closure and denial would promote this merge
as fusional identification, in which this person or
that object which does not fit or is different is
excreted. One opens perspectives, the other closes
them using terror and violence, shifting between
the all-against-all war and the election of leaders
that re-emerge from single-brained communities.
This guides the dispersal of the crowd, whether
through the figure of a centralizing sovereign (God,
identity, the Boss), whether in the invention of the
enemy leader to be decapitated, converted into the
Big Evil to be eliminated. The quest for an enemy
echoes this crisis and safeguards this longing
for totality and unity; the perverse preservation
of this unambiguous and monolithic perspective
that does not see half-tones. Self-referring, they
reproduce polarizations and Manichean judge-
ments. And we have seen this movie already: The
20th century, which featured epic genocides.
At once, financial capitalism widens social gaps
in its exponential concentration of wealth in the
hands of 1% of humankind. It presents itself as the
only possibility, affirming that the only way out is
through its voracity and painful suffocation. The
future as a historic, common project was replaced
by the global compression of time and by the
management of emotions, fear, and resentment.
As Paul Virilio would say: Political power works by
administrating fear, generating and managing it
relentlessly under the threat of major phantoms:
Economic collapse, terrorism and crime, pandem-
ics, and more.7 Indeed, if capitalism is a system
based on perpetual credit and indebtedness – or
an unforgivable debt that organizes and shapes
subjectivities –, unlike industrial capitalism, there
is no product manufacturing in financial capital-
ism – which imposes the generalization of credit,
as described by authors like Maurizio Lazzarato8:
Worlds, desires, and beliefs are fabricated.
This is something that has become more
complex with the new communication technologies.
Many celebrate how new they would shift the pro-
duction, circulation, and presentation of informative
and opinionated content. That was before it was
centralized and monopolized by major corporate
media, such as newspapers and television, which
interfered with how images and voices were shared
and distributed. However, social media and its
robots have become the new power system whose
control mechanisms are even more intricate than
those of old media. Formulas and algorithms define
what piece of news will appear first on the user’s
personal pages, and which pieces should appear
more frequently. These mechanisms do not only de-
termine what we see, but also the business model of
social platforms. If electronic networks intervene in
the violence generated by media-regulated control
over opinions and fabrication of truth, they broad-
cast information whose authenticity is not ques-
tioned. Information that, through instant replication,
mobilizes emotions in a synchronized and ubiquitous
way. A war of accounts extends out into cyberspace.
As stated by Paul Virilio, power would increas-
ingly cease from being based on opinion control
only and would primarily serve to manipulate and
52
Jacaranda - Nº 6
na e que, em sua replicação imediata, mobilizam
a emoção de modo sincronizado e ubíquo. Uma
guerra de versões se estende ao ciberespaço.
Cada vez mais o poder deixaria de ser base-
ado, apenas, sobre o controle da opinião, para
ser instaurado, sobretudo, sobre a manipulação e
“sincronização da emoção sentida em escala mun-
dial”, como pontua Paul Virilio. Não estamos mais
no regime da informação que norteou a moderni-
dade desde a invenção da imprensa, mas da pro-
paganda que fabrica o real e empreende doravante
guerras entre imaginários. O verdadeiro e o falso
tornam-se indiscerníveis se o espetáculo se legiti-
ma unicamente por meio do espetáculo. Diz Viril-
io: “estamos diante da possibilidade de uma guer-
ra ao real. Cada indivíduo começa a se perguntar
o que é ou não real. A tela se tornou um campo
de batalha, uma arma, ao mesmo tempo daqueles
que detêm os meios de informação e daqueles que
os utilizam de maneira desviada [...]. O grande
risco é a ‘desrealidade’ das populações, um tipo de
loucura coletiva. O imediatismo e a ubiquidade de-
formam, fazem desaparecer referências, a loucura
coletiva é uma ameaça, uma arma de guerra. O
suicida tem uma arma de persuasão em massa.”9
Ora, o regime da propaganda opera pela
crença. Pode-se contra-argumentar: “você está
passando fome!” O corpo sente essa depauper-
ação mas continua dizendo que é preciso jogar
aos porcos os feijões porque assim se anunciou.
A realidade perdeu o lastro, ou antes, a realidade
da propaganda é mais real que a fome que estou
passando. É uma dimensão tão enlouquecedora
que nos parece impossível romper essa hipnose
suicida e coletiva. Talvez devêssemos nos pergun-
tar de que ordem é essa hipnose, que formas de
afeto, desejo, amor estão por ela sequestradas,
fazendo rodar essa engrenagem que nos condena
à servidão e à morte. Desejamos e amamos o que
nos domina e nos mata? A grande máquina suici-
da, aos poucos e de modo implacável, nos engole?
A transformação dos dispositivos midiáticos
desloca também as relações entre visibilidade e
subjetivação. O olho de controle e vigilância se
dispersa e esparge. Na tecnologia disciplinar,
para a qual Foucault deu a figura emblemática
do panóptico de Bentham, o olho que vigia é o
olho central que domina a totalidade do campo
visual dos espaços fechados como o presídio, a
escola, o hospital, a fábrica. O poder se realiza
pela administração da vida, confinando aqueles
que se desviam dos comportamentos norma-
tizados, como o louco, o marginal, o infame.10
Na internet, os dispositivos de vigilância
53
operam sobre os rastros deixados nas redes:
monitoram-se gostos, consumos, sensibilidades,
comportamentos. A vida se transforma em código,
em dados coletados, classificados, armazena-
dos e vendidos. O olho de controle e vigilância
se dispersa em redes de espionagem e monito-
ramento. É o olho do espectro, olho invisível
que vigia, mas não é visto. Torna-se ainda mais
espectral e espargido: todos vigiam todos, da
grande potência política e dos conglomerados
empresariais ao vizinho ao lado. A intimidade
não é mais o espaço das insurreições secretas,
mas passa a ser exteriorizada e exibida nas
redes de relacionamento e vitrines midiáticas.
Quem autoriza a minha existência? É a in-
terrogação implícita. Nessa pulsão de exposição,
no “narcisismo das pequenas diferenças”, os
conflitos são projetados sobre os outros, violen-
tamente. As redes sociais tornam-se o espaço
de catarse sem expiação (porque imediata e
fugaz) e ataque ao outro sem qualquer pudor.
Sem possibilidade de purificação e saciedade, é
preciso sempre um novo bode a ser sacrificado,
um indesejável a ser linchado. Redes de soli-
dariedade e indignação se multiplicam na mesma
proporção que fundamentalismos e intolerâncias.
Nas efígies publicitárias, o desejo é anulado
na gestão comercial do visível e no apelo fusion-
al (como nas propagandas em que aquele que
vê funde-se ao que é visto ao crer que deseja o
que vê). Ver e crer, gozo e poder estabelecem
nexos profundos e antigos. A ilusão capitalista
impõe a todos as figuras de felicidade e infelici-
dade como produtos a serem consumidos. Mas,
fundamentalmente, é nosso desejo, nossa capaci-
dade de imaginar e ficcionalizar outros mundos
e outros possíveis que nos são sequestrados.
Entre servidões e resistências, a arte pre-
cisa encarar suas contradições; não apenas
porque ela alimenta o marketing cultural (e dele
também se sustenta), mas porque os poderes
(como o mercado e as religiões, o espetáculo e
a mídia) não são exteriores, definem a “arte”
de modo intrínseco. A resistência da arte é,
portanto, também uma resistência a si mesma
e uma resistência ao que somos. São guerras
e querelas consigo mesma, eis o paradoxo.
Por isso não creio que a criminalização das
artes que vem acontecendo no país deva-se apenas
ao conservadorismo moral ou à visibilidade dada
pelas artes às vidas indesejáveis (com evidente
uso político de grupos de extrema-direita fo-
mentando o ódio à alteridade), mas porque as
artes ocupam um lugar muito sensível e ambíguo,
“synchronize the emotions felt on a global scale.”
We are no longer in the era of information that
guided modernity since the invention of press,
but rather of propaganda that fabricates reality
and engages in wars among different imaginaries.
True and false become indiscernible if the spec-
tacle’s legitimacy is based solely on the spectacle
itself. “We are faced with the possibility of a war
against what is real. Each begins to wonder what
is real and what is not. The screen becomes a
battlefield, a weapon that belongs simultaneously
to those who hold the means of information and
those who use them in a skewed way [...]. The
big risk is the ‘disreality’ of populations; a type
of collective madness. Immediacy and ubiquity
deform, they make references vanish. Collective
madness is a threat, a weapon of war. The suicidal
has a weapon of mass persuasion,”9 said Virilio.
Indeed, the propaganda regime operates based
on belief. One could say: “You are hungry!” The body
would feel this impoverishment yet continue to say
that it needs to throw beans to the pigs because
this is what was advertised. Reality lost its track,
or yet, the reality of propaganda became more real
than the hunger one feels. This is such a maddening
dimension that it seems impossible to awake from
this suicidal and collective hypnosis. Perhaps we
should ask ourselves what kind of hypnosis this is,
what types of affection, desire, and love are impris-
oned there, turning the very gears that condemn us
to servitude and death. Do we desire and love what
dominates and kills us? Does this great suicidal
machine gradually and ruthlessly swallow us up?
The transformation of media devices also shifts
the relations between visibility and subjectifica-
tion. The eye of control and surveillance spreads
and scatters. In disciplinary technology, for which
Foucault designated the emblematic figure of
Bentham panoptic, the watchful eye is the central
eye that dominates the entire visual field of private
spaces, such as prisons, schools, hospitals, and
factories. Power is exercised through the adminis-
tration of life, confining to those spaces those who
deviate from what we consider normal behaviors,
like the insane, the marginal, or the infamous.10
Online, surveillance devices operate based on
the trails left on the networks: They monitor likes,
products purchased, sensitivities and behaviors.
Life turns into code – into data that is collected,
classified, stored, and sold. The eye of control and
surveillance spreads out in espionage and monitor-
ing networks. It is the eye of the spectrum, the in-
visible eye that watches but is not seen. It becomes
even more ghostly and scattered: Everyone watches
.
everyone else, from major political power and
business conglomerates to the neighbor next door.
Intimacy is no longer a space for secrete insurrec-
tions, it became something exterior, displayed on
dating websites and media showcases. Who autho-
rizes my existence? It is an implicit interrogation. In
this thrust for exposure, in the “narcissism of small
differences,” conflicts are violently projected over
others. Social media becomes the space for cathar-
sis without atonement (since it is immediate and
ephemeral) and attacks the “Other” without a shred
of decency. Without the possibility for purification
and satiety, there must always be a new goat to
sacrifice, an unsavory one to be lynched. Solidar-
ity and indignation networks multiply in the same
proportion as fundamentalisms and intolerances.
In advertising effigies, desire is annulled in the
commercial management of the visible and in the
fusional appeal – like in advertising pieces where
the one watching fuses with what is being seen
while believing that what one sees is what one
desires. Seeing and believing, pleasure and power,
establish deep, ancient connections. The capitalist
illusion imposes itself on all ideas of happiness
and unhappiness, like products to be consumed.
However, it is fundamentally our desire, our
capacity to imagine and fictionalize other worlds
and other possibilities that have not be seized.
Between servitudes and resistances, art needs
to face its contradictions. Not only because it
feeds cultural marketing (and is also fed by it), but
because the powers (like the market and religions,
spectacle, and the media) are not exterior; rath-
er, they define “art” intrinsically. Resistance to
art, therefore, is also resistance to oneself and
resistance to what we are. These are wars and
disputes with oneself, and therein lies the paradox.
This is why I do not believe that the criminaliza-
tion of arts that occurred in the country is only due
only to moral conservatism or the visibility given
by arts to undesirable lives (with the clear political
use by extreme-right groups to fuel hatred towards
others), but rather because the arts occupy a very
sensitive and ambiguous place between servitude
and freedom. But this is exactly why – like Pasolini’s
and Didi-Huberman’s fireflies – art can be the small
flashing force that sparkles during threatening
times, the one that reflects and interferes in the
world in which we live – even if in a minimal and
problematic way. Because maybe in this critical and
dangerous stance art can open gaps so that differ-
ent voices are heard, and infinite faces appear. May
it have the power to rescue our life pulse, our de-
sire, our power for imagination and fictionalization.
54
Jacaranda - Nº 6

entre a servidão e a liberdade. Mas é exatamente

Fiction is not the creation of an imaginary world
por isso que a arte pode – como os vaga-lumes
that contradicts the real world. It is a combination
de Pasolini e Didi-Huberman – ser a pequena
of unprecedented and bold kinds of connection be-
intermitência que cintila no momento da ameaça,
tween a referential world and the other (potential)
que reflete e interfere (ainda que de modo míni-
worlds that cross or orbit around it. Between what
mo e problemático) no mundo em que vivemos.
we are and not are, there are interruptions and
Porque talvez nesse ponto crítico e perigoso
rearrangements of times, spaces, and affections,
a arte seja capaz de abrir fendas para que se
shattering the codes of enunciation and visibility
enunciem as diferentes vozes e se apresentem os
that establish lives in pre-determined and exclusion-
infinitos rostos. Que seja capaz de retirar desse
ary places. This is its cosmogonic power, its power
sequestro nossa pulsão de vida, nosso desejo,
of imagination, freedom and insurrection. Therefore,
nossa potência de imaginação e ficcionalização.
art is not something that takes on the responsibility
E ficção não é a criação de um mundo ilusório
to fictionalize; instead it opens the conditions and
se contrapondo ao real: são formas inauditas e
possibilities for others to operate their very creative
ousadas de conexão entre um mundo referencial
fiction. Art is what awakens in others the power of
e os outros mundos (potenciais) que o atravessam
their gestures, giving form and figure to our capac-
ou orbitam à sua volta. Entre o que somos e não
ity to change the world. Gestures of imagining and
somos, são interrupções e rearranjos de tempos,
desiring, gestures of a radical reinvention of worlds.
espaços e afetos, estilhaçando os códigos de enun-
ciação e visibilidade que fixam as vidas em lugares 1. After Guattari, Deleuze, and Foucault. See: Michel Foucault,
“Introduction to the Non-Fascist Life,” a preface to Gilles Deleuze
predeterminados e excludentes. Essa é sua potên- and Félix Guattari, Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia,
cia cosmogônica, sua potência de imaginação, translation by Robert Hurley, New York: Viking Press, 1977.
2. Gilles Deleuze and Félix Guattari, “Micropolitics and Segmentarity,”
liberdade e insurreição. Por isso a arte não é o in: A Thousand Plateaus – Capitalism and Schizophrenia, translation by
que toma para a si a tarefa de ficcionalizar para o Brian Massumi, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987.
3. Paul Virilio apud Gilles Deleuze, and Félix Guattari,
outro, é o que abre ao outro as condições e possi- “Micropolitics and Segmentarity.” Op. cit.
4. Gilles Deleuze and Félix Guattari, “Micropolitics and Segmentarity.” Op. cit.
bilidades para ele operar a própria ficção criado- 5. Quoted by Gilles Deleuze and Félix Guattari,
ra. É o que desperta no outro a potência de seus “Micropolitics and Segmentarity.” Op. cit.
6. Didi-Huberman, Georges. Survivance Des Lucioles (“Survival
gestos, de dar forma e figura à nossa capacidade of the Fireflies”). Paris: Les Éd. De Minuit, 2009.
7. Paul Virilio and Bertrand Richard, L’Administration
de mudar o mundo. Gestos de imaginar e desejar, de la Peur, France: Textuel, 2010.
gestos de uma reinvenção radical dos mundos. 8. Maurizio Lazzarato, The Making of the Indebted Man, translation
by Joshua David Jordan. Cambridge: MIT Press, 2012.
1. A exemplo de Guattari, Deleuze, Foucault. Ver: Michel Foucault, 9. Paul Virilio, “Guerra sem limites” (“War without Limits”), interview granted to
“Introdução à vida não fascista”, prefácio de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Fernando Eichenberg, Folha de São Paulo, April 4, 2004. Available at http://www1.
O Anti-Édipo, tradução de Luiz B. L. Orlandi, São Paulo: Editora 34, 2010. folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0404200408.htm, last accessed on March 21, 2018
2. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Micropolítica e Segmentaridade”, tradução 10. Michel Foucault. Discipline and Punish: The Birth of the Prison,
de Suely Rolnik, in: Mil Platôs volume 3 – Capitalismo e Esquizofrenia, tradução translation by Alan Sheridan, Pantheon Books, 1978.
de Aurélio Guerra Neto et alii, São Paulo: Editora 34, 1996, pp. 83-85.
3. Paul Virilio apud Gilles Deleuze e Félix Guattari,
“Micropolítica e Segmentaridade”. Op.cit. p. 113.
4. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Micropolítica e Segmentaridade”. Op.cit. p. 113.
5. Citado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Micropolítica
e Segmentaridade”. Op.cit. p. 113.
6. Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos Vaga-lumes, tradução de
Marcia Arbex e Vera Casa Nova, Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
7. Paul Virilio e Bertrand Richard, L’Administration
de la Peur, France: Textuel, 2010.
8. Maurizio Lazzarato, O Governo do Homem Endividado,
tradução de Daniel P.P. Costa, São Paulo: N-1 Edições, 2017.
9. Paul Virilio, “Guerra sem limites”, entrevista concedida a Fernando Eichenberg,
Folha de S.Paulo, 4 de abril de 2004. Disponível em:  http://www1.folha.uol.com.br/
fsp/mundo/ft0404200408.htm, acessado em 21 de março de 2018.
10. Michel Foucault. Vigiar e Punir: nascimento da prisão,
tradução de Raquel Ramalhete, Petrópolis: Vozes, 1987.

55 56
Jacaranda - Nº 6
Mensageiros do medo: atos
iconoclastas no Brasil atual
* Maria Angélica Melendi e Lais Myrrha
(...) a luta não é contra Deus ou contra a sobera-
nia suprema (...), mas contra os anjos, os mensage-
iros e os funcionários que parecem representá-lo.
Agamben
Em 2015, Antonio Obá realiza a performance
Atos da Transfiguração – Desaparição ou Receita
para Fazer um Santo. Nela, o artista põe em ação
um ritual que é, ao mesmo tempo, um ato iconoclas-
ta, um ajuste de contas, um gesto iniciático e, por
fim, uma manifestação iconófila. A ação consiste
em passar uma efígie de gesso de Nossa Senhora
da Aparecida por um ralador até transformá-la em
um montículo de pó branco com o qual recobre seu
corpo nu. Essa performance mostra uma história do
Brasil em andamento, uma história não acabada.
A ação começa com uma gamela, uma rala-
dor e uma imagem de Nossa Senhora da Apare-
cida dispostas no chão. Em seguida, aparece o
artista. Cuidadosamente, ele se posiciona fren-
te à gamela, ajoelha-se, segura o ralador com
uma das mãos, a santa padroeira do Brasil com
a outra, e assim dá início à transfiguração.
Uma imagem da Virgem Maria foi encontra-
da em 1717 no Rio Paraíba, não por inteira, mas
já dilacerada (primeiro encontraram seu corpo e
depois, numa segunda investida, os pescadores
resgataram a sua cabeça). As partes foram cola-
das e ela rapidamente tornou-se santa de devoção
popular. Foi construída uma capela para abrigá-
-la e, posteriormente, com o aumento cada vez
maior de fiéis, um santuário foi erguido em seu
louvor. Em 1978, já no santuário de Aparecida, a
imagem foi atacada e despedaçada. Em seguida,
foi restaurada pelo Museu de Arte de São Paulo
(MASP). Foi batizada Nossa Senhora da Conceição
Aparecida e foi consagrada padroeira do Brasil.
A Nossa Senhora da Aparecida é uma das tantas
manifestações da Virgem Negra que existem pelo
mundo, não apenas em países cuja população é
majoritariamente negra ou mestiça, como no Brasil.
Ao contrário, grande parte delas encontra-se na
57
Europa e foi produzida durante o medievo, dizem
que realizam milagres. A maioria delas é feita de
madeira policromada, a nossa foi moldada em terra
cota e a sua reprodução é feita comumente em gesso.
Em iorubá a palavra efun designa um pó calcário
utilizado no candomblé durante uma das etapas da
feitura do santo, com o qual o corpo do iniciado é
pintado. Efum fum é pó branco, como aquele que
resulta da transfiguração da santa padroeira do
Brasil pelo artista. Mas na performance de Anto-
nio Obá, não é apenas a santa que é transfigurada,
também o são o próprio artista e seu gesto.
Sem muita dificuldade podemos inferir dessa
ação que nela há um desfazimento de uma im-
agem cultural (católica-colonialista) para fazer
emergir outra: a de cultura/povo continuamente
massacrados, os afrodescendentes, mesmo que
sob formas (mal) dissimuladas como a do sin-
cretismo. As três primeiras acepções da pala-
vra sincretismo no dicionário Houaiss são:
1 frm.; ant. ato ou fato de se coligarem par-
tes inimigas; conciliação 2 rel fusão de diferentes
cultos ou doutrinas religiosas, com reinterpre-
tação de seus elementos ‹o s. ocorre nos vários
países católicos da América Latina onde perdu-
ram sobrevivências islâmicas e fetichistas› 3 fil
síntese, razoavelmente equilibrada, de elemen-
tos díspares, originários de diferentes visões do
mundo ou de doutrinas filosóficas distintas.
Mas aqui no Brasil, efetivamente, o sincretismo
foi menos uma saída conciliatória que pressupõe um
equilíbrio de forças, um acordo, do que um sinto-
ma de um sistema de opressão e submissão de um
povo por outro. É, então, signo de uma cultura da
censura e da cesura, não de coesão, tolerância ou
diversidade. Palavras escassas, talvez inexistentes
no vocabulário do Brasil colonial, território para
onde, possivelmente, os ancestrais de Obá foram
trazidos à força para serem escravizados, lugar no
qual foram proibidos de exercerem livremente os
ritos de sua religião porque eram identificados com
o paganismo e a bruxaria. Vocabulário escasso,
Messengers of fear:
iconoclastic acts in Brazil today
* Maria Angélica Melendi e Lais Myrrha
(...) the fight is not against God or supreme
sovereignty (...), but against the Angels, messen-
gers and officials who seem to represent Him.
Agamben
In 2015, Antonio Obá performs Atos da Transfigu-
ração – Desaparição ou Receita para Fazer um Santo
(“Acts of Transfiguration – Disappearance or Recipe
to Make a Saint”). Therein, the artist sets in motion a
ritual that is at once an iconoclastic act, a settling of
scores, a rite of passage and, ultimately, a declara-
tion of love for the pictorial arts. The act consists of
using a grater to turn a plaster effigy of Our Lady
of Aparecida into a mound of white powder which
covers his naked body. This performance shows a
Brazilian story in progress, an unfinished narrative.
The performance begins with a wooden
trough, a grater and an image of Our Lady of
Aparecida placed on the floor. Then the artist
shows up. He carefully positions himself in front
of the wooden trough, kneels, holds the grater
with one hand and the patron saint of Brazil with
the other, and thus begins the Transfiguration.
An image of the Virgin Mary was found in 1717
in the Paraíba River, not as a whole, but already
torn into pieces (fishermen first found her body and
then, in a second attempt, rescued her head). The
parts were glued, and she quickly became a saint of
popular devotion. A chapel was built to shelter the
image, but with the increasing numbers of believ-
ers, a sanctuary was later erected in her praise. In
1978, already in the Shrine of Aparecida, the image
was broken and shattered into pieces, but later
restored by the São Paulo Museum of Art (MASP).
Baptized as Nossa Senhora da Conceição Apareci-
da (“Our Lady of the Appeared Conception”), she
became the consecrated patron saint of Brazil.
Our Lady of Aparecida is one of the many
manifestations of the Black Virgin around the
world, and not just in countries whose population
is mostly black or half-breed, like in Brazil. On the
contrary, many of these so-called miracle-per-
forming saints are in Europe and originated during
medieval times. While most of them are made of
polychrome wood, ours took a mold of terra cotta
and its reproduction is commonly made with plaster.
In Yoruba, the word efun denotes a lime-
stone powder used in Candomblé during one of
the stages of the initiation process, with which
the body of the initiate is painted. Efum fum is
white powder, like the one that results from the
transfiguration of the patron saint of Brazil by
Antonio Obá. But in the artist’s performance,
the transfiguration is not only that of the saint,
but also of the artist himself and his gesture.
We can easily conclude that this act aims to
destroy the image of a Catholic and colonialist
culture to make another emerge, the image of
a constantly massacred culture/people of Afro
descent, even in (poorly) disguised forms like that
of syncretism. The first three meanings of the
Portuguese word sincretismo (“syncretism”) in
the Houaiss Dictionary are defined as follows:
1 formal; anc.: act or fact of connecting opposing
parts; conciliation; 2 relig.: merging different cults
or religious doctrines, with reinterpretation of their
elements ‹noun. occurs in some Catholic coun-
tries in Latin America where Islamism or fetishism
remains› 3 phil.: reasonably balanced synthesis
of disparate elements, originating from different
world views or distinct philosophical doctrines.
The matter of the fact is that, in Brazil, syn-
cretism was less a conciliatory means to reach a
compromise and a balance of forces than a symptom
of an oppressive system that subjugates one people
over another. It is a sign of a culture of censorship
and caesura, rather than a culture of cohesion,
tolerance and diversity – words that were either
scarce or did not exist in the vocabulary of colonial
Brazil. This was a territory where the ancestors of
Obá were very likely brought into slavery against
their will, a place where they were forbidden to freely
participate in their own rites of religion as these were
58
Jacaranda - Nº 6
talvez até hoje, no Brasil republicano, que teve, entre
2011 e 2015, um aumento de denúncias de intolerân-
cia e violência religiosa, segundo dados do Disque
100 – Disque Direitos Humanos, do governo feder-
al. “Passaram de 15 para 556 no período de quatro
anos, ou seja, um aumento de cerca de 37 vezes”.1
Assim, ao transfigurar de imagem para pó a
efígie da Padroeira do Brasil, Obá não apenas traz
para a cena a tradição dos cultos afro-brasileiros
dos quais ele próprio provavelmente deriva: isso é
apenas uma primeira camada. O que é muito impor-
tante no trabalho é que ele não se configura como
um duelo entre uma e outra cultura, entre uma e
outra tradição, no qual uma tenta vencer a outra.
Seu gesto é, antes de tudo, antropofágico. Nele, Obá
seleciona muito bem o que digerir, o que canibalizar.
Ao se apresentar nu, ou melhor seria dizer,
lembrando Agamben, quiçá Duchamp, desnudo,
não é a nudez o que primeiro vemos, mas um corpo
que faz lembrar as proporções e os contornos das
esculturas clássicas. Assim, revestida pelo manto
da tradição artística e especificamente da tradição
artística clássica, que é, aliás, o paradigma de boa
parte da arte eleita para representar o poder, o artista
transfigura também o (ab)uso dessa tradição.
Transfigurar significa, em uma de suas acep-
ções, mudança na maneira de proceder, de pensar,
de sentir. É justamente isso que o artista faz: a ação
literal de ralar a Nossa Senhora da Aparecida não é
mera iconoclastia, é parte de um processo de trans-
formação que visa introduzi-la, inicia-la em um
outro ritual no qual sua função será vestir, imantar o
corpo negro, desnudo e de proporções perfeitas do
artista que transmuta a Santa, a própria Graça (sua
beleza) e também a Pemba que não será mais pura,
o barro branco encontrado no fundo dos rios, mas
pó branco extraído da história e da cultura cristãs.
Deste modo, o artista restitui tanto à sua cultura
de origem quanto à ocidental os valores ritualísti-
cos e politeístas que ambas partilham. Quando ele
cobre seu corpo com o pó branco, ele despe ambas
as culturas do manto com o qual o cristianismo
eclipsou e sufocou tantas culturas. Por fim, Obá
devolve, como Hélio Oiticica “devolve a terra à terra”2
(e aqui não nos esqueçamos que a Nossa Senhora
da Aparecida era feita de barro), a arte à arte. Pre-
cisamos de mais gestos complexos como esse.
*****
Em 1995, Sergio Von Helder, pastor evangéli-
co brasileiro, bispo da Igreja Universal do Reino de
Deus, apresentava ao vivo, na TV Record, o pro-
grama “Palavra de Vida”. No 12 de outubro – dia
em que se celebra a Nossa Senhora da Aparecida,
padroeira do Brasil –, o bispo, que estava do lado de
uma escultura da Virgem, começou sua pregação
59 instando aos brasileiros a não adorarem santos,
ídolos ou imagens, pois, de acordo com a Bíblia,
eles não têm nenhum poder. Para demonstrar sua
tese, o bispo aplicou golpes e pontapés na ima-
gem, chamando-a “boneco feio e desgraçado”.
Em 2001, o governo islâmico do Talibã decidiu
destruir os Budas de Bamiyan, gigantescas esculturas
escavadas em nichos de rocha, entre os séculos V e
IX de nossa era. Disparos desde tanques e explosões
com dinamite devastaram o local. Eram ídolos e,
portanto, inaceitáveis pelos ensinamentos do Corão.
O iconoclasmo, uma ação anacrônica nas
sociedades cada vez mais secularizadas e mul-
ticulturais do século XX, parece estar em pauta
novamente. O mundo atual, submerso num fluxo
ininterrupto de imagens, começou, paradoxal-
mente, a manifestar sintomas que nos levam a
evocar a tão longínqua Querela das Imagens3.
A Santa Face, o Sudário de Turim, a Virgem de
Guadalupe e outros ícones que emanaram da divin-
dade sem intermediários se multiplicam na tradição
cristã. A menção à imagem aquiropoética, não feita
pelas mãos do homem, é usual nos textos teológicos e
histórias sagradas desde meados do século VI. Hoje,
na impossibilidade de acreditar na existência de ima-
gens aquiropoéticas, aceitamos que toda e qualquer
imagem traz, em si, a marca da falibilidade humana.
A certeza de que os ícones foram feitos por mãos de
carne e osso, para muitos, retiraria seu poder, os dimi-
nuiria, os contaminaria4, os transformaria em ídolos.
Bruno Latour denomina iconoclash5 o conflito
que se instaura quando há incerteza a respeito do
papel exato da mão que trabalha na produção de uma
imagem. Seriam mãos amorosas, estendidas para
fazer, manter, proteger, acolher e honrar a sacralidade
ou mãos profanas prontas para fazer imagens falsas?
Conhecemos esse conflito, sabemos que as imagens
são fascinantes, enganosas, belas, dúbias, traiçoeiras,
consoladoras, temos certeza de que são perigosas e,
no entanto, esquecemos distraidamente o segundo
mandamento6, saturamos o mundo de figurações
e nos debatemos num círculo de atração, rejeição,
encantamento, desprezo, admiração e vergonha pela
imagem que nos foi, desde o começo, interditada.
*****
Os exemplos mencionados nos parágrafos
anteriores – Antonio Obá transformando em pó
e o pastor chutando e insultando réplicas de ges-
so de da Aparecida, os soldados do Talibã ex-
plodindo os milenares Budas de Bamiyan – não
poderiam ser, a princípio, mais diferentes, nem
mais idênticos; porque quando uma imagem é
destruída, destrói-se alguma coisa a mais, alguma
coisa que não residia no gesso nem na pedra e que
parece, a posteriori, importar imensamente.
Obá transfigura a imagem e, ao destruí-la,
mantém, com um gesto, a sacralidade da
matéria. O pastor e o mulá a destroem pela
associated with paganism and witchcraft. Scarce
vocabulary perhaps even today in Republican Brazil.
Between 2011 and 2015, according to data from
Disque 100, the Human Rights Hotline of the federal
government, there has been an increase in complaints
about religious intolerance and violence, “going from
15 to 556 within four years, a 37-time increase.”1
Upon transfiguring the effigy of the patron saint
of Brazil into powder, Obá not only stages the tra-
dition of Afro-Brazilian cults from which he himself
may have descended: This is only the first layer. The
relevance of the performance lies in the fact that it
does not represent a duel between one culture and
the other, between one tradition and the other, there
is no attempt to one triumphing over the other. Obá’s
gesture is, above all, anthropophagic; the artist hand-
picks what will be digested, what will be cannibalized.
When Obá presents himself nude (or should we
say “bare”, in line with Agamben and Duchamp), it
is not nudity what we first see; it is instead a body
that is reminiscent of the proportions and shapes
of classical sculptures. The performance, covered
under the cloak of artistic tradition – specifically of
classical artistic tradition, which is the paradigm of
most art selected to represent power –, the artist
too transfigures the (ab)use of this tradition.
One of the meanings of the word “transfigure”
is to change the way one behaves, thinks, and feels.
This is precisely what the artist does: The literal
action of grating Our Lady of Aparecida is not merely
iconoclastic in nature, it is part of a transforma-
tion process that seeks to introduce it, initiate it
in another ritual. In this ritual, the function of the
grated saint will be to dress and magnetize the
black, naked and perfectly-proportioned body of the
artist who transmutes the Saint, Grace itself (its
beauty) and the no longer pure Pemba (chalk used
in Afro-Brazilian rituals). This is no longer the white
clay found at the bottom of the river, but the white
powder extracted from Christian history and culture.
By doing so, the artist restores the ritualistic
and polytheistic values shared by his own and the
Western culture. When he covers his body with
white powder, he removes from both cultures the
cloak used by Christianity to suffocate and dis-
appear many a culture. Ultimately, Obá promotes
the return of art to itself, just like Hélio Oiticica
“returned earth to the earth”2 (let us not forget
here that Our Lady of Aparecida was made of
clay). We need more complex gestures like that.
*****
In 1995, Brazilian evangelical pastor Sergio
Von Helder, Bishop of the Universal Church of the
Kingdom of God, presented the Palavra de Vida
(“Word of Life”) program live on Record TV chan-
nel. On the day when the patron saint of Brazil, Our
Lady of Aparecida, is celebrated (October 12), the
bishop, standing next to a sculpture of the Virgin,
began his preaching urging fellow Brazilians not
to worship saints, idols or images because, ac-
cording to the Bible, they have no power. To prove
his point, Von Helder banged and kicked the im-
age, calling it an “ugly and wretched dummy.”
In 2001, the Islamic Government of Taliban decid-
ed to destroy the Buddhas of Bamiyan, gigantic sculp-
tures carved into the side of a cliff between the fifth
and ninth centuries of our era. Shots fired from tanks
and dynamite explosions wrecked the site. They were
idols and thus unacceptable by the Koran teachings.
Iconoclasm, an anachronistic action in the
increasingly secular and multicultural societies of the
20th century, seems to be in vogue again. The pres-
ent-day world, immersed in an uninterrupted flow of
images, has paradoxically begun to exhibit symptoms
that remind us of the distant Image Struggle3.
The Holy Face, the Shroud of Turin, the Vir-
gin of Guadalupe and other icons emanated from
godhood without intermediaries multiply in Chris-
tian tradition. Acheiropoieton images, those not
made by the hands of man, are often referenced
in theological texts and sacred stories dating back
to the middle of the sixth century. Today, when
the belief in the existence of acheiropoieton im-
ages is no longer possible, we accept that every
image symbolizes human fallibility. For many, the
assurance that icons are made by hands of flesh
and bone would remove their power, diminish
them, contaminate them4, turn them into idols.
Iconoclash5 is the name given by Bruno Latour
to the conflict when the exact role of the hand that
works in producing an image is inconclusive. Would
they be loving hands that produce, maintain, pro-
tect, welcome and honor the sanctity, or are they
profane hands willing to make false images? We
are familiar with this conflict. We understand that
images are fascinating, deceptive, beautiful, dubious,
treacherous, comforting. We are sure that they are
dangerous and yet we forget the second command-
ment6. We flood the world full of fantasies and we
struggle with attraction, rejection, enchantment,
contempt, admiration, and shame for the image
that was forbidden to us since the beginning.
60
Jacaranda - Nº 6
própria pulsão de aniquilação, acreditam na
santidade das imagens, por isso as arruínam.
De Akhenaton aos povos nativos da América, as
imagens sagradas dos outros (e também as próprias)
despertaram sempre as mais intensas paixões:
Saberá sua Majestade que se descobriam
uns ídolos na província de Mani, povoado da
Coroa Real. E como não havia ainda vindo o
bispo, Frei Diego de Landa, como juiz ordinário
[…] invocou o braço secular, um juiz que enviou
vossa Majestade à minha petição, que se cha-
ma Doutor Quijada […] ele foi à província de
Mani com muitos espanhóis manu armata…7
Diego de Landa, com o apoio daque-
les soldados espanhóis, promoveu, em Mani,
um auto de fé, durante o qual eles não só
destruíram templos e ídolos, bibliotecas e
códices, mas também torturaram e assassina-
ram homens, mulheres e crianças maias.
Nunca conseguiremos determinar se o
ataque se exerce sobre uma imagem consid-
erada falsa ou sem valor – “são pedras”, disse o
mulá Omar quando mandou destruir os Budas
de Bamiyan – ou se o iconoclasta destrói a ima-
gem porque ela o fascina, porque é tão magnífica,
tão poderosa, que lhe é impossível suportá-la.
*****
A palavra censura provém do latim censere, no
sentido de contar, avaliar, julgar. Na antiga Roma,
o censor era o magistrado eleito que recenseava a
população, cuidava das finanças e era responsável
pela manutenção dos bons costumes. Apesar da
vulgarização do termo censurar, cujo significado
hoje parece mais próximo de repreender, criticar
ou avaliar negativamente e até proibir, considera-
mos a censura uma ação exercida sobre o cidadão
comum pelos magistrados que exercem o poder.
Assim, as reclamações de grupos de civis sobre
os conteúdos de certas obras de arte que acon-
teceram nos últimos meses em algumas cidades
do Brasil parecem-nos menos atos graves de
censura do que a aceitação dessas petições pelas
instituições que fecharam espaços de exibição.
O crescimento, no país, do evangelismo e da
Renovação Carismática Católica, que, sem se afastar
do catolicismo, adere a algumas das práticas dos
cultos evangélicos protestantes (ambos parecem
se ater mais aos ensinamentos do Velho Testamen-
to que aos Evangelhos), propiciaram a reaparição
dos iconoclasmos, seja como destruição violenta
de imagens, seja em forma de insultos ou protes-
tos, muitas vezes acatados pelas instituições.
61
*****
Em dezembro de 2004, durante a exposição
retrospectiva de León Ferrari, no Centro Cultural
Recoleta, em Buenos Aires, dois homens jovens
romperam dez garrafas que integravam a insta-
lação 1492-1992 V Centenário da Conquista, que
aludia aos 500 anos da colonização de América,
aos gritos de “Viva Cristo Rei”. Ao serem impedi-
dos pelos outros visitantes, ameaçaram-nos com
as garrafas quebradas até que os seguranças da
instituição lograram detê-los e conduzi-los à polícia.
O então cardeal Jorge Bergoglio – hoje Papa Fran-
cisco – se opôs à mostra, e convocou os católicos
para um dia de jejum e oração como desagravo ao
que considerava uma ofensa aos símbolos religio-
sos mais sagrados. A exposição foi fechada por
ordem de uma juíza, mas, depois de examinada
por um coletivo de magistrados, foi reaberta.
*****
Em maio de 2006, a direção do Banco do Brasil
decidiu cancelar a exposição Erótica - Os Sentidos na
Arte, curada por Tadeu Chiarelli, no Centro Cultur-
al Banco do Brasil (CCBB) de Brasília. O motivo do
cancelamento foi o impasse causado por pressões de
um grupo católico chamado Opus Christi para que
fosse retirada da mostra, no CCBB do Rio de Janeiro,
a obra da artista plástica Márcia X (1959-2005),
Desenhando em Terços, que mostra dois pênis
cruzados feitos com rosários religiosos. Os outros
artistas protestaram e a exposição foi fechada. Curi-
osamente, ninguém mencionou que os fios de contas
usados pela artista são uma modificação do terço
católico, pois foram acrescentadas algumas contas
e outra cruz, talvez com o sentido de definir melhor
o desenho; talvez para acentuar a profanação.
*****
Alguma coisa havia sido gestada nas ainda tur-
vas jornadas de junho de 2013, quando os “líderes”
de um movimento multitudinário que se pretendia
“horizontal” baniram qualquer bandeira ou iden-
tificação partidária. Afinal, bandeiras são imagens
plenas de sentidos, afiliações, afetos, memórias,
tomadas de posição. Veríamos depois que o bani-
mento das bandeiras partidárias ou pertencentes a
grupos minoritários e sua substituição pela bandeira
do Brasil significaram a apropriação do símbolo
nacional por um grupo multipartidário derrotado
nas urnas e que apoiaria, em 2016, o impeachment
da presidenta eleita. Sob a insígnia verde-amarela,
indignados e festivos grupos da classe média, que
usavam a camiseta da seleção nacional de fute-
bol, solicitaram a queda da presidenta proferindo
insultos machistas e ofensas de gênero, elogiaram as
forças policiais e o Exército e clamaram pelo retorno
à ditadura. Aprovado o afastamento da mandatária,
*******
The examples mentioned in the above para-
graphs – Antonio Obá turning image to powder, the
pastor kicking and insulting the plastered Aparecida,
Taliban soldiers exploding the millennial Buddhas
of Bamiyan –could neither be more different nor
more identical at first. Because when an image is
destroyed, something else is destroyed; something
that did not dwell in plaster or stone and seems to
have utter importance after the accomplished fact.
Obá transfigures the image and, while destroying
it, preserves the sanctity of matter with a gesture.
The destructions by the pastor and the mullah are
driven by their urge to annihilate; they believe in
the sanctity of images, therefore destroy them.
From Akhenaten to the indigenous peoples of
the Americas, the sacred images of others (and their
own) have always aroused the most intense passions:
Thee Majesty shall know that some idols have
been discovered in the province of Mani, a village of
the Royal Crown. And as the bishop had not yet come,
Friar Diego de Landa, as ordinary judge [...] invoked the
secular arm, a judge that sent thy Majesty to my peti-
tion, who is called Doctor Quijada [...] he went to the
province of Mani with many Spanish manu armata …7
With the support of those Spanish soldiers,
Diego de Landa promoted an act of faith in Mani,
during which they not only destroyed temples and
idols, libraries and codices, but also tortured and
murdered Mayan men, women and children.
We will never be able to determine whether
the attacked image was false or worthless – “They
are stones,” said Mullah Omar when ordering
the destruction of the Buddhas of Bamiyan – or
whether the destruction of the image happens
because it fascinates the iconoclast; its magnif-
icence and power being impossible to bear.
*****
The term “censorship” comes from the Lat-
in word censere, meaning to tax, assess, judge. In
ancient Rome, the censor was the elected magis-
trate who took population censuses, took care of
the finances and was responsible for preserving
good customary practices. Despite the vulgarization
of the term, whose meaning today seems closer to
rebuking, criticizing, evaluating negatively and even
banning, we believe that censorship is an action
exerted on ordinary citizens by the magistrates
in power. Therefore, we find the complaints from
civilian groups about the contents of certain works
of art that have taken place in recent months in
Brazilian cities are less serious acts of censorship
than the acceptance of these petitions by the in-
stitutions that have closed the exhibition spaces.
The Catholic Charismatic Renewal, without
distancing itself from Catholicism, adheres to
some of the practices of the Protestant Evangel-
ical faith (both seem to stick more to the teach-
ings of the Old Testament than to the Gospels).
Across the country, the growth of Evangelism and
the Catholic Charismatic Renewal have furthered
the reappearance of iconoclasm, either by way of
violent image destruction or in the form of insults
and protests, often accepted by the institutions.
*****
In December 2004, during the retrospective exhi-
bition of León Ferrari at the Recoleta Cultural Center
in Buenos Aires, two young men shouting “Long Live
Christ the King” broke ten bottles that were part of
the work 1492-1992 Quincentennial of the Conquest,
which alluded to the 500 years of colonization of the
Americas. Blocked by other visitors, the two threat-
ened to hurt them with the broken bottles until the
security guards managed to restrain and take them
to the police. The then Cardinal – Jorge Bergoglio,
today Pope Francis – opposed the show, and called
Catholics to a day of fasting and prayer as a revenge
for what he considered an offence to the most
sacred religious symbols. The exhibition was closed
under orders from a judge but was later reopened
after being examined by a group of magistrates.
*****
In May 2006, the management of Bank of Brazil
decided to cancel the exhibition Erótica - Os Sentidos
na Arte (“Erotica - The Senses in Art”), curated by
Tadeu Chiarelli, at the Bank of Brazil Cultural Center
(CCBB) in Brasilia. The reason for the cancellation
was the impasse created by Catholic group Opus
Christi, who asked for the removal of plastic artist
Marcia X (1959-2005)’s performance Desenhando
em Terços (“Drawing on Rosaries”) from the show at
CCBB in Rio de Janeiro. The work depicts two crossed
phalluses made with religious rosaries. Despite the
protest from other artists, the show was canceled.
Interestingly enough, no one mentioned that the bead
strands used by X are a modified version of the origi-
nal Catholic rosary; she added a few more beads and
an additional cross, whether in an attempt to redefine
the design or to emphasize the desecration aspect.
*****
In those troubled days of June 2013, when the
“leaders” of a multitudinous and so-called “hori-
zontal” movement banished any banners and party
affiliation, there was something in the making. After
all, banners are images full of senses, affiliations,
affections, memories, stances. We would later realize
that the veto of banners belonging to any parties or
minority groups, all of which were replaced by the
62
Jacaranda - Nº 6
começou uma cruzada contra a educação pública e
laica8. No annus horribilis de 2017, finalmente, a
mira desses grupos fixou-se na arte contemporânea.
As imagens passaram a ser duramente ataca-
das, e não somente as imagens. Algumas exposições
foram fechadas e artistas e curadores, interrogados
pela polícia sob acusações de pedofilia, bestialis-
mo e blasfêmia. Grupos integrados, na sua maior
parte, por simpatizantes do MBL9, evangélicos e
católicos carismáticos, incitados por seus líderes,
protestaram agressivamente para pedir o fecha-
mento de algumas exposições como Queermuseu
- Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no
espaço Santander Cultural de Porto Alegre, e Faça
Você Mesmo Sua Capela Sistina, do artista Pedro
Moraleida, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte.
Também interferiram na performance La Bête (O
bicho), do performer e coreógrafo brasileiro Wagner
Schwartz, na abertura da exposição 35o Panora-
ma da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna
(MAM) de São Paulo. Para se precaver das agressões,
o MASP inaugurou a mostra Histórias da Sexua-
lidade com proibição para menores de 18 anos.
*****
O campo da arte contemporânea, alheio às
disputas pela sacralidade ou pela transcendência da
imagem, é o lugar de uma produção feita por mentes
e mãos humanas, um espaço de criação onde tem-se
destruído e reconstruído todas as normas seculares
de representação por serem consideradas inefici-
entes, “(um) fabuloso experimento niilista em larga
escala”10. Paradoxalmente, o afã iconoclasta dos ar-
tistas das primeiras vanguardas proliferou em novas
imagens produzidas em novas mídias, que se con-
formaram como intermináveis fluxos imagéticos ou
como cascatas de imagens, no dizer de Bruno Latour.
Louis Marin postulou que a função das pin-
turas religiosas cristãs não é mostrar nada; pelo
contrário, elas procuram enturvar a visão, redi-
recioná-la para outra imagem.11 Generalizando,
poderíamos dizer que qualquer imagem de arte nos
redireciona para todas as outras imagens porque
tem com elas uma secreta e potente relação de
mimese, paródia, disputa, oposição, fascinação.
Como se a imagem fosse um signo entreaberto,
do qual emanassem e ao qual ingressassem, in-
terminavelmente, significâncias. Por essa fresta,
através dessa rachadura, o estatuto da imagem
conecta-se também com o da política. Os icono-
clasmos sempre foram ações elitistas, cuidadosa-
mente planejadas e conduzidas por forças de poder,
nunca espontâneas e muito menos populares.
A querela das imagens que assola o Brasil se
apoia em instâncias de dominação cultural que
63
atacam e igualam numa mesma plataforma “co-
munismo” (sic), performatividade de gênero e
profanações aos princípios religiosos cristãos.
Os iconoclastas de ocasião não querem nos dei-
xar ver corpos nus ou, mais ainda, corpos que
eles não aceitam fora dos rasos parâmetros
midiáticos, corpos ambíguos e desejantes.
Giorgio Agamben, em seu ensaio Nudez12, busca
demonstrar (para desmontar) como funciona o
dispositivo teológico que nos faz vê-la (a nudez)
como um acontecimento (desnudamento) e não
um estado (a nudez). Examina como a doutrina
judaico-cristã atua sempre (re)vestindo o corpo nu:
primeiro, no paraíso, os corpos de Adão e Eva rec-
obertos pela graça; depois de expulsos do paraíso,
suas partes genitais cobertas por folhas de figueira
e, em seguida, pelo manto de pele animal (o manto
da morte) usado por Deus para recobri-los e que no
batismo é, simbolicamente, substituído pela veste
de linho branco simbolizando a vida. Segundo o
autor, o que esse dispositivo visa, por fim, ocultar é
a pura visibilidade e presença que a nudez revela, a
simples corporeidade. Para Agamben é justamente
essa pura aparência, essa ausência de segredo e
de significado da nudez que nos trespassaria.
Dito isso, poderia parecer que a performance de
Antonio Obá reitera tal dispositivo teológico e assim,
de certo modo, esconde a nudez, o que em alguma
medida pode ser um argumento válido. Entretanto,
ao usar seu próprio corpo, um belo corpo cujas pro-
porções remetem às esculturas clássicas, ele também
reifica a si próprio, torna-se imagem, objeto, e com
isso nos lembra da nossa capacidade infinitamen-
te humana de revestir a nudez de significados.
Brazilian flag, meant the hijacking of the national
symbol by a multiparty group that has been defeat-
ed by ballot vote and that would in 2016 support
the impeachment of the elected president. Under
the yellow-green insignia, outraged and festive
middle-class groups wearing the national soccer
team’s jersey demanded the removal of the presi-
dent while throwing macho slurs and gender-related
insults, praised law enforcement authorities and
the Army, and called for the return to dictatorship.
Once the president’s impeachment was approved, a
crusade against public and secular education kicked
off.8 In the wake of annus horribilis 2017, these
groups ultimately aimed at contemporary art.
Images were strongly censured. But not just the
images: Some exhibitions were closed, and artists
and curators were questioned by police on accu-
sations of pedophilia, bestiality and blasphemy. In
aggressive protests, groups formed in their majority
by sympathizers of the MBL party9 together with
Evangelicals and charismatic Catholics influenced
by their leaders demanded to close exhibitions such
as Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte
Brasileira (“Queermuseu - Cartographies of Differ-
ence in Brazilian Art”), at the Santander Cultural
Center, in Porto Alegre, and Faça Você Mesmo Sua
Capela Sistina (“Make Your Own Sistine Chapel”), by
artist Pedro Moraleida, at the Palace of Arts, in Belo
Horizonte. The performance La Bête (“The Beast”),
by Brazilian performer and choreographer Wagner
Schwartz, was also interrupted upon the opening
of the 35th Panorama of Brazilian Art exhibition
at the São Paulo Museum of Modern Art (MAM).
To safeguard against aggression, the São Paulo
Museum of Art (MASP) opened the show Histórias
da Sexualidade (“Histories of Sexuality”) by pro-
hibiting entrance to minors under 18 years old.
*****
The field of contemporary art, oblivious to the
controversies on the sacredness or transcendence
of images, is the place where production is made by
human minds and hands. In this creative space, all
secular norms of representation have been destroyed
and reconstructed for being considered an inefficient,
“large-scale nihilistic experiment.”10 Paradoxically,
the iconoclastic eagerness of the first avant-garde
artists proliferated in new images produced in the
new media, creating endless flows of imagery or,
as stated by Bruno Latour, “cascades of images.”
Louis Marin declared that Christian religious
paintings are not meant to present anything; on the
contrary, they seek to blur vision and redirect it to
another image.11 On the other hand, we could state
that any image of art redirects us to all other images
because of their secret and powerful relationship
based on mimesis, parody, dispute, opposition, and
fascination. As if the image were an open sign, from
which came, and to which entered endless mean-
ings. It is through this interstice, this crack, that
the status of the image also connects to politics.
Iconoclasm has always been associated with elitist
actions, carefully planned and conducted by forces
of power, never spontaneous and much less popular.
The Image Struggle that plagues Brazil is based
on resorts of cultural domination that attack and
level off “communism” (sic), gender performance
and desecration of Christian religious principles.
These opportunistic iconoclasts will not allow us
to see naked bodies, or the ambiguous and desir-
ing bodies that are unacceptable for not fitting the
simplistic parameters of the dominating media.
Giorgio Agamben’s essay “Nudity”12 tries to prove
(and deconstruct) the workings of theological tactics,
which make us see nudity as an event (denudement),
rather than a status (nudity). His paper also exam-
ines how the Judeo-Christian doctrine is always (re)
covering naked bodies: At the beginning, the bodies of
Adam and Eve in Paradise are covered by grace; once
expelled, their genitals are hidden with fig leaves and
later by coats of animal skin. This mantle of death
used by God to cover them is symbolically replaced
during baptism by a white linen robe symbolizing
life. According to the author, this ideology ultimately
aims at concealing the sheer visibility and presence
revealed by nudity, its simple corporeality. For
Agamben it is precisely nudity’s pure appearance and
absence of secrecy and meaning that trespasses us.
That said, it might seem that Antonio Obá’s per-
formance reiterates such a theological plot and, in a
way, conceals nudity. To a certain extent, this may be
a valid argument. However, while using his own body,
a beautiful body whose shape is reminiscent of clas-
sical sculptures, he also reifies himself. Obá becomes
image, object, and by doing so we are reminded of our
infinitely human ability to cover nudity with meaning.
64
Jacaranda - Nº 6
*****
Em novembro de 2017, a filósofa norte-ameri-
cana Judith Butler, um dos nomes mais relevantes
nos estudos de gênero, participou em São Paulo
do seminário “Os Fins da Democracia”, organi-
zado pelo Convênio Internacional de Programas
de Teoria Crítica (Universidade da Califórnia,
Berkeley) e pelo Departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo. Depois de coletar
assinaturas para que não se apresentasse, man-
ifestantes receberam-na com atos de repúdio e
queimaram um boneco caracterizado como uma
bruxa, que exibia uma imagem do rosto de Butler.
A queima da bruxa faz lembrar uma imagem
insólita que apareceu durante as manifestações
que precederam o impeachment da primeira
presidenta do Brasil. Bonecos de Dilma e Lula
apareceram enforcados do guarda-corpo de um
viaduto. A violência simbólica que encerram essas
representações, supervivência da violência dos
regimes autoritários ancestrais, alarma-nos e faz
lembrar um passado não tão longínquo, onde as
diferenças de religião ou de pensamento eram
punidas com a morte infame. Desse passado ainda
clamam por justiça as bruxas anônimas queima-
das pela Inquisição, os indígenas massacrados
por serem idólatras, os diferentes, os rebeldes, os
pobres: Tiradentes, Lampião, Antônio Conselheiro,
Vladimir Herzog, Zuzu Angel, Angel Stuart, Am-
arildo e tantos cujos nomes nunca saberemos...
1. http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/cadernos/
vida-urbana/2016/10/15/interna_vidaurbana,156024/conciliacao-em-
tempos-de-intolerancia.shtml, acessado em 21 de fevereiro de 2018.
2. Em dezembro de 1979, Hélio Oiticica fez a experiência Kleemania, ou
Devolver a terra à terra, em homenagem ao centenário de nascimento
de Paul Klee. Ele levou terra ao aterro no Caju e a inseriu numa forma
quadrada de madeira. Depois de retirado o molde, manteve-se o quadrado
de terra, de 10cm de altura. O artista classificou o ato de contra-bólide.
3. O mundo bizantino apresentou, nos séculos VIII e IX, o confronto
teológico da relação entre imagem e culto. Os teólogos orientais, nesse
confronto, argumentaram: o ícone é o documento divino e humano que
anula a proibição do velho testamento de fazer imagens de Deus, pois supõe
a encarnação. A partir de 724, o imperador Leão III começou sua campanha
contra as imagens e ordenou sua destruição. Os bispos ortodoxos reagiram
a favor delas e o papa Gregório II (715-731) condenou a iconoclastia. Em 843,
houve o restabelecimento definitivo do culto às imagens no Oriente.
4. Bruno Latour, “What is Iconoclash? Or is There a World Beyond
the Image Wars?”, in: Iconoclash, Karlsruhe: ZNM, 2002. p. 21.
5. Iconoclash poderia ser traduzido como conflito ou choque de ícones.
6. Êxodo 20:4. “Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do
que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra”.
7. Francisco Toral, «Tomo II». Documento XXXIV en Scholes, Francia y Eleonor
Adams, Don Diego Quijada, alcalde mayor de Yucatán, (1561- 1565). México:
Antigua Librería Robledo,1963. p. 465. Tradução livre. Os abusos foram detidos
temporalmente pela intervenção do bispo de Iucatã, Francisco de Toral, quem
o denunciou ante às autoridades eclesiásticas e governamentais espanholas.
8. Uma das primeiras medidas que se seguiram ao impeachment de
Dilma Rousseff foi a tentativa de extinguir o Ministério da Cultura,
provocando a ocupação de vários prédios da Funarte por artistas. Também
congelou-se por 20 anos o investimento em cultura e educação.
9. Sigla para Movimento Brasil Livre, movimento político formado no final de 2014
por aliados a partidos de direita e que tem declaradamente como seu principal
inimigo político o Partido dos Trabalhadore
10. Bruno Latour, “What is Iconoclash? Or is There a World Beyond the Image
Wars?”, in: Iconoclash, Karlsruhe: ZNM, 2002, p. 21.
11. Louis Marin, Opacité de la Peinture. Essais sur la Représentation. Paris: Usher,
1989. p.33.
12. Cf. Giorgio Agamben, “Nudez”, in: Nudez, trad. Davi Pessoa
Carneiro - ed.; 1 reimp., Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
65
*****
In November 2017, US philosopher Judith
Butler, one of the most relevant figures in gender
studies, participated in Os Fins da Democracia (“The
Ends of Democracy”) in São Paulo. This seminar
was organized by the International Consortium of
Critical Theory Programs (University of California,
Berkeley) and by the São Paulo University Depart-
ment of Philosophy. After petitioning for Butler’s
removal from the program, protestors organized
acts of disapproval and burned a witch-look-
ing dummy with an image of Butler’s face.
The burning of the witch evokes another unusual
image that appeared at the manifestations preced-
ing the impeachment of the first female Brazilian
president: Figures of President Dilma and former
President Lula appeared hanging by the neck from
an overpass railing. The symbolic viciousness within
these representations not only revives the violence
of ancient authoritarian regimes but also alarms and
reminds us of a much nearer past, where differenc-
es in religion or lines of thought would be punished
with infamous death. Still calling for justice from
this past are the anonymous witches burned under
the Inquisition, the indigenous massacred for their
idolatry, those who were different, the rebels, the
poor, Tiradentes, Lampião, Antônio Conselheiro,
Vladimir Herzog, Zuzu Angel, Angel Stuart, Amarildo
and so many others whose names we will never know.
1. http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/cadernos/
vida-urbana/2016/10/15/interna_vidaurbana,156024/conciliacao-em-
tempos-de-intolerancia.shtml, last accessed on February 21, 2018
2. In December 1979, Helium Oiticica created the Kleemania experience,
whose aim was to “return earth to the Earth”, in honor of Paul Klee’s birth
centenary. He took earth to the landfill in Caju and placed it into a square
wooden shape. After removing the mold, the squared earth remained,
10cm high. The artist has classified the act as “counter-bolide”.
3. During the eighth and ninth centuries, the Byzantine world introduced
the theological dispute of the relationship between image and worship.
In this confrontation, Eastern theologians argued that the icon is the
divine and human document that overrules the Old Testament ban on God
imagery, since it assumes incarnation. As of 724, Emperor Leo III began his
campaign against images and ordered their destruction. Orthodox bishops
reacted in favor of the images and Pope Gregory II (715-731) condemned
Iconoclasm. In 843, image veneration was ultimately restored in the East.
4. Bruno Latour, “What is Iconoclash? Or is There a World Beyond
the Image Wars?,” in: Iconoclash, Karlsruhe: ZNM, 2002. p. 21.
5. Iconoclash could be translated as conflict or clash of icons.
6. Exodus 20:4. “Thou shalt not make unto thee any graven image,
or any likeness of any thing that is in heaven above, or that is in the
earth beneath, or that is in the water under the earth.” (KJV)
7. Francisco Toral, «Volume II». Document XXXIV en Scholes, Francia y
Eleanor Adams, Don Diego Quijada, Mayor of Yucatán, (1561-1565). México:
Antigua Librería Robledo,1963. p. 465. Free translation. The intervention
of the Bishop of Yucatán, Francisco de Toral, who denounced the Spanish
ecclesiastical and government authorities, put a temporary halt to the abuses.
8. One of the first measures following the impeachment of Dilma Rousseff
was the attempt to abolish the Ministry of Culture, which prompted
artists to occupy several National Art Foundation (FUNARTE) buildings.
Investment in culture and education was barred for 20 years.
9. Acronym for Movimento Brasil Livre (“Free Brazil Movement”),
a political movement formed in late 2014 by right-wing party
allies whose main political enemy is the Workers’ Party.
10. Bruno Latour, “What is Iconoclash? Or Is There a World Beyond
the Image Wars?,” in: Iconoclash, Karlsruhe: ZNM, 2002, p. 21.
11. Louis Marin, Opacité de la Peinture. Essais sur la Représentation (“The
Opacity of Painting. Essays on Representation”). Paris: Usher, 1989. p.33.
12. See Giorgio Agamben, “Nudity,” in: Nudities, transl. David Kishik
and Stefan Pedatella, Stanford: Stanford University Press, 2010.
66
Jacaranda - Nº 6
Imagem, ficção e gueto
* Daniela Name
Escrevo este texto meses depois do fecha-
mento da mostra Queermuseu – Cartografias
da Diferença na Arte Brasileira, apresentada
no Santander Cultural, em Porto Alegre, e dos
problemas de classificação etária enfrentados
por Histórias da Sexualidade no Museu de Arte
de São Paulo (MASP). Embora muitos distin-
tos em termos curatoriais, esses dois projetos,
rejeitados por segmentos conservadores da
população brasileira em igual medida, apontam
para um novo surto de iconoclastia, notável em
maior ou menor grau em todo o mundo, mas
com contornos bastante peculiares no Brasil.
No mesmo período, a performance La Bête,
apresentada por Wagner Schwartz no Panorama
da Arte Brasileira, realizado pelo Museu de Arte
Moderna paulistano (MAM-SP), virou caso judicial
e de polícia depois que um vídeo realizado sem
autorização, na sala onde ocorreu a performance,
foi viralizado nas redes sociais. Ele mostrava uma
menininha tocando nos pés do artista. A criança
estava acompanhada pela mãe, que mediou sua
participação no trabalho, uma homenagem e uma
citação aos Bichos, esculturas interativas de Lygia
Clark, pioneira da participação e do amálgama
entre arte e vida no Brasil. Schwartz propunha que
os espectadores manipulassem as extremidades
(braços e pernas) de seu corpo nu, inerte e abso-
lutamente não pornográfico como se ele também
pudesse ser um Bicho, uma escultura viva.
Em Histórias da Sexualidade, a fúria con-
servadora se levantou genericamente contra o
que entendia serem cenas de nu e sexo explícito,
alegando que tais imagens deveriam ser vedadas
categoricamente a menores de idade, mesmo
que seus pais ou responsáveis consentissem e
acompanhassem o acesso às salas do museu. Em
Queermuseu, as críticas gerais foram semelhan-
tes, mas houve ainda uma cruzada moral específi-
ca contra os trabalhos Cena de Interior II (1992),
de Adriana Varejão, e a série Crianças Viadas
(2017), de Bia Leite. Para realizar esse conjunto de
67
trabalhos, Bia frequentou grupos de redes sociais
em que os próprios usuários se identificam como
crianças viadas e, já adultos, postam imagens de
suas infâncias com legendas bem-humoradas,
caso de “Criança viada, rainha das águas” ou “Cri-
ança viada, rainha da lambada”, que acabaram em
títulos e parte integrante da obra da artista. Todas
as imagens e palavras foram reinterpretadas com
consentimento e entusiasmo dos retratados.
O caso de Adriana Varejão é ainda mais impor-
tante para que se entenda o que está ocorrendo
no Brasil hoje. Diante de Cena de Interior II,
uma imagem que circula no país há quase três
décadas, os detratores de Queermuseu se dis-
seram chocados com o que acusavam ser cenas
de sexo grupal e de zoofilia. Criada a partir de
imagens históricas apropriadas/repintadas, a
obra da artista carioca faz parte de uma série que,
como boa parte de sua obra, debruça-se sobre a
controvertida herança histórica e imagética do
período colonial brasileiro. De fato, há entre as
imagens a que retrata um negro sendo estuprado
pelas costas por um homem branco, enquanto
claramente também é obrigado a praticar sexo
oral em outro homem, também branco. Há ainda
uma outra cena, dentro da grande cena, que
mostra um homem se relacionando com uma
cabra, algo bastante comum em um país coloni-
zado e violentado por homens portugueses, que
chegavam aqui desacompanhados de mulheres
conterrâneas. E então inventavam, na maioria das
vezes à força, parceiros(as) que faziam parte dos
grupos indígenas dizimados, dos negros africa-
nos escravizados e arrancados de suas origens.
Eventualmente, esses parceiros também eram an-
imais. Histórias de homens se relacionando com
bodes, vacas, cabras e porcos são relativamente
comuns até hoje em regiões do interior do Brasil.
As imagens criadas por Adriana não são
elogios ou cartilhas para determinadas práticas
e sim retratos ficcionais com rigorosa pesquisa
histórica. O que choca, na fúria que se levantou
Image, fiction and ghetto
* Daniela Name
I write this text months after the shutting
down of Queermuseu – Cartografias da Diferença
na Arte Brasileira (“Queermuseum – Cartogra-
phies of Difference in Brazilian Art”), exhibited at
the Santander Cultural Center in Porto Alegre,
and by the age classification problems faced by
Histórias da Sexualidade (“Histories of Sexual-
ity”) at the São Paulo Museum of Art (MASP).
Although very distinct in terms of curatorship
and rejected by conservative segments of the
Brazilian population in equal measure, these two
projects point to a new iconoclastic outbreak,
notable in greater or lesser degree throughout the
world, but with very eccentric shapes in Brazil.
During the same period, Wagner Schwartz
presented La Bête (“The Beast”) in the Panora-
ma of Brazilian Art at the São Paulo Modern Art
Museum (MAM-SP). After a non-authorized video
was recorded in the room where the performance
was taking place, it went viral on social networks
and became a legal case involving the police. The
video showed a little girl touching the artist’s
feet. The child was next to her mother, who had
control over her participation in the performance.
La Bête is a tribute to Bichos (“Animals”), inter-
active sculptures by Lygia Clark, a pioneer in the
participation and blend between art and life in
Brazil. Schwartz proposed spectators to manipu-
late the extremities (arms and legs) of his naked
body, a body inert and absolutely unpornographic
as if he too could be Bicho, a living sculpture.
In Histórias da Sexualidade, the conservative
fury generically revolted against what was regard-
ed as nude scenes and explicit sex, claiming that
such images should be categorically concealed
from the view of minors, even if their parents or
guardians consented and accompanied them to
the museum rooms. In Queermuseu, the overall
criticism was similar, but there was also a specific
moral crusade against Cena de Interior II (“Inte-
rior Scene II”) (1992), by Adriana Varejão, and the
Crianças Viadas (“Queer Children”) (2017) series, by
Bia Leite. To complete this series, Bia participated
in social networking groups in which users identi-
fied themselves as queer children and, as adults,
would post their childhood images with humorous
subtitles. This was the case of “Queer Child, Queen
of the Waters” or “Queer Child, Lambada Queen,”
which were used in titles and became an integral
part of the artist’s work. All images and words
were reinterpreted with the consent and enthu-
siasm of the persons involved in the portrayal.
Varejão, a Rio de Janeiro native, is an even more
relevant case to understand what is happening in
Brazil today. In Cena de Interior II, an image that
has circulated the country for almost three de-
cades, Queermuseu detractors said to be shocked
and accused of the scenes characterizing group
sex and zoophilia. Created with reclaimed/repaint-
ed historical images, the artist’s piece is part of a
series that, like most of her work, deals with the
controversial historic and pictorial heritage of the
Brazilian colonial period. There is in fact among the
images one that portrays a black man being raped by
a white man, while he is clearly forcefully subjected
to oral sex with another white man. There is yet
another setting, within the great scene, that depicts
a man having intercourse with a goat, something
quite common in a country colonized and raped by
Portuguese men, who arrived here unaccompa-
nied by fellow countrywomen. These men sexually
partnered, mostly by force, with individuals who
were part of the decimated indigenous groups, or
the African descendants, enslaved and stripped from
their origins. These partners eventually included
animals too. Stories of men interacting with goats,
cows, goats and pigs are relatively common even
today in regional parts of the Brazilian countryside.
The images produced by Varejão are not compli-
mentary, nor are they booklets for certain practices;
they are in fact fictional portraits with rigorous
historical research. In the fury that rose up against
the artist’s piece, the shock is the lack of skills to
deal with the fictional and metaphorical, pointing
68
Jacaranda - Nº 6
contra a obra da artista, é a falta de traquejo com
tudo o que é ficcional e metafórico, o que aponta
para o novo levante iconoclasta de que falei no
início. A exemplo do que aconteceu no período
bizantino, durante a reforma protestante ou
ainda acontece entre os povos sob o totalitarismo
talibã, a dominação e a fidelização/fanatização
de um rebanho de seguidores tem uma mola
propulsora poderosa no movimento que con-
stantemente põe a imagem e a criação (literária,
cinematográfica, teatral, musical) sob suspeita.
Signos não têm gabarito: sugerem infinitas
possibilidades de significantes. Daí serem tão
perigosos para governos e movimentos total-
itários – e não há mais dúvida de que o Brasil
se vê mergulhado em uma onda conservadora e
autoritária desde antes do impeachment que re-
tirou do poder a presidente legitimamente eleita,
Dilma Rousseff, em articulações promovidas por
seus antigos aliados e figuras proeminentes no
Congresso Nacional e no alto escalão jurídico do
país. Além dessa cruzada antificcional, é extrema-
mente chocante, no caso específico da obra de
Varejão, que se tenha enxergado suruba e zoofilia
onde há violência e subjugação de uma população
negra, até hoje apartada pela elite brasileira.
Há uma dificuldade geral para o entendimento
da representação e da metáfora ficcional (“Isso
não é um cachimbo”, já nos ensinou Magritte), e
ela não está restrita às artes visuais e nem a gru-
pos milicianos e/ou associados à direita conser-
vadora – embora estes sejam aqueles que mais lu-
cram e mais manipulam o analfabetismo funcional
cada vez mais evidente nas redes sociais. Recen-
temente, Chico Buarque, um dos maiores com-
positores e cantores da música brasileira, foi alvo
de críticas virais depois que o primeiro single de
seu último disco, Caravanas, foi divulgado. Tua
Cantiga é narrada por um eu lírico que diz que vai
largar “mulher e filhos” para ficar com a amada,
aquela para quem canta. Certos grupos feministas
e a manada sempre pronta a dar shares no Twitter
e no Facebook compreenderam a letra de modo
literal, como se ela espelhasse o próprio Chico,
compositor que no mesmo disco, em outra canção
(Blues para Bia), inventa distinto narrador, este
disposto a “virar menina” só para Bia (moça linda
que ele supeita não gostar de meninos) ter, quem
sabe, o desejo de namorá-lo. O mesmo Chico
que, no passado, assumiu personas femininas
e cantou com voz imaginada de mulher clássi-
cos da música brasileira como Olhos nos Olhos,
Atrás da Porta e Uma Canção Desnaturada.
Escrevo pensando em Chico e ouvindo sua
69
voz saindo de meu notebook, por acreditar que
seu último trabalho tem chaves para os episódios
recentes no campo das artes visuais. Carava-
nas, música-título do CD, fala do medo do outro,
vizinho e ao mesmo tempo estrangeiro, próximo
e ao mesmo tempo desconhecido. Na música,
esse outro aterrorizante ganha corpo nos grupos
vindos dos subúrbios e das favelas para aprove-
itar a praia na Zona Sul carioca; grupos que a
elite branca, no Rio de Janeiro e no Brasil, não
quer incluir e considerar, prefere nem mesmo
enxergar. Um outro episódio recente do meio
musical é bastante exemplar nisso: a divulgação
do videoclipe Vai Malandra, da cantora Anitta,
causou desconforto generalizado nos forma-
dores de opinião e na multidão virtual pelo fato
de a pop star, alçada ao Top 10 do Spotify, ter
se voltado para suas origens ligadas ao funk, à
favela e à população negra e periférica do país.
E o que Anitta, negros, Caravanas e a favela
têm a ver com a censura às artes? Tudo. O não
ver de aspectos importantes da obra de Adri-
ana Varejão é apenas um dos sentidos de uma
via que tem muitas direções. Uma delas mostra
que a produção visual contemporânea brasilei-
ra é desconhecida para boa parte da população
do país. E essa é uma relação de mão dupla: os
articuladores do meio de arte parecem não achar
importante que obras, exposições e debates
ultrapassem as fronteiras de uma elite familiari-
zada com museus e galerias. O desconhecimento
e a cegueira que permeiam essas relações são
facilmente manipuláveis no modus operandi
da internet, que produz Judas em série, o algo
ou alguém da vez, aquilo que se precisa odiar.
Soma-se a isso, é claro, o grande déficit em edu-
cação básica e universitária existente no país.
Não ver: temos uma elite conservadora e
branca que não quer ver a favela no clipe de
Anitta e nem o estupro de escravos no trabalho de
Varejão. Mas também temos, nesse nosso atribu-
lado século XXI, um sistema de artes de um país
latino-americano, majoritariamente negro, que
praticamente não conta com negros em seu corpo
de artistas, de críticos, pesquisadores, curadores.
E, se meio e mercado se confundem, isso signifi-
ca que o meio se apequena, perdendo escopo e
poder de combate. Não existe gueto apenas na
base da pirâmide. A torre também é gueto e se
torna invisível e frágil quando perde capacidade
de diálogo. Fica então bastante fácil para os
conservadores pregarem qualquer tipo de rótulo,
temor ou preconceito naquilo que é desconhecido
e ignorado por boa parte da população. Respon-
to the new iconoclastic uprising mentioned at the
beginning of this text. Similar to what happened in
the Byzantine period, in the Protestant Reformation
or among the peoples under Taliban totalitarianism,
dominating and turning a flock of loyal followers into
fanatics has a powerful driving force in the move-
ment that constantly places image and (literary, cin-
ematic, theatrical, musical) creation under suspicion.
Signs have no templates: They suggest end-
less possibilities of meaning. And this is why they
are such a threat to totalitarian governments and
movements – and there is no doubt that Brazil has
been immersed in a conservative and authoritarian
period since prior to the removal from office of
the rightfully elected president, Dilma Rousseff.
The impeachment process was articulated by her
former allies and prominent figures in the Nation-
al Congress and in the highest legal ranks of the
country. In addition to this anti-fiction crusade,
in the specific case of Varejão’s work, it is ex-
tremely shocking that one sees orgy and zoophilia
where what is clearly depicted is the violence
and oppression against the Black population, to
this day marginalized by the Brazilian elite.
The widespread difficulty with understanding
the representation and fictional metaphor (“This is
not a pipe,” as previously illustrated by Magritte),
is not restricted to visual arts and militia groups
and/or associated with the conservative right-wing,
although these are the ones that profit more and
further manipulate the increasingly evident func-
tional illiteracy in social networks. Recently, Chico
Buarque, one of the greatest songwriters and sing-
ers of Brazilian music, was at the epicenter of viral
criticism after the first single of his latest album,
Caravanas (“Caravans”) was released. Tua Cantiga
(“Your Song”) is narrated by a lyrical I who says he
will leave “wife and children” behind to be with the
sweetheart for whom he sings. Certain feminist
groups and the herd that is always ready to share
on Twitter and Facebook understood the lyrics in a
very literal sense, as if it reflected Buarque himself.
This is the same composer who writes another song
in the same album, Blues para Bia (“Blues for Bia”)
and, while creating a new narrator, says he is willing
to “turn into a woman” in the hopes that Bia – a
beautiful girl who he thinks is not into boys – will
have the desire to be with him. The same Buarque
who, in the past, took on female personas and sang
classics of the Brazilian music, such as Olhos nos
Olhos (“Eye to Eye”), Atrás da Porta (“Behind the
Door”) and Uma Canção Desnaturada (“A Miser-
able Song”), with an imaginary female voice.
As I write, I think about Buarque and hear his
voice coming out of my notebook as I believe that
his latest work has the key to understand the recent
episodes in the field of visual arts. Caravanas, the
CD’s title song, speaks of the fear of the other,
a neighbor and a foreigner, close and unknown.
In music, this terrifying other is embodied by the
groups that come from the suburbs and slums to
enjoy the beach in the sophisticated South Zone of
Rio de Janeiro; groups that the white elite both in
Rio and Brazil does not want to include and consider,
rather not even see for themselves. Another recent
episode of the music scene is quite representative
in this regard: The release of the video clip Vai
Malandra (“Go Bad Girl”), sang by Anitta, caused
widespread discomfort among opinion makers and
the social media crowd given that the pop star,
having reached Spotify’s Top 10 ranking, would turn
to her origins linked to funk music, slums and the
Black and marginalized populations in the country.
And what do Anitta, Afro descendants, Carava-
nas and slums have to do with censorship in the art
world? Everything. Not seeing the truly important
aspects of Varejão’s work is just one direction of a
pathway with many. One such direction shows that
the contemporary Brazilian visual art production is
mostly unknown in the country. And this is a two-
way relationship: Articulators of the art medium
do not seem to realize the importance of artworks,
exhibitions and debates going beyond the borders
of an elite familiar with museums and galleries.
The lack of awareness and blindness that permeate
these relationships are easily manipulated in the
Internet’s modus operandi, which produces Judas in
series, the something or someone of the time that
needs to be the target of hatred. Add to that the
major deficit in primary and higher education across
the country and the recipe for disaster is ready.
The blindness: Our white, conservative elite
does not want to see the slum life in Anitta’s vid-
eoclip nor the rape of slaves in Varejão’s artwork.
Yet, in a troubled 21st century, the art system
in our Latin American country, with a predomi-
nantly black population, has virtually no Blacks
represented as artists, critics, researchers or
curators. And if medium and market combine, this
means the medium is belittled, losing reach and
fighting power. The ghetto is not only at the base
of the pyramid. The tower too can be ghettoed
and become invisible and fragile when it loses its
capacity to dialogue. This makes it quite easy for
conservatives to preach any kind of label, fear or
prejudice in what is unknown and ignored by much
of the population. They respond with ignorance and
suspicion to what is often unknown and detached.
70
Jacaranda - Nº 6
de-se com desconhecimento e suspeição àquilo
que frequentemente se desconhece e aparta.
A confusão entre meio e mercado também
provoca silêncios e acontecimentos dicotômi-
cos, que em certa medida reproduzem o tipo
de funcionamento viral/superficial que norteou
a onda censora. Temos assistido a grupos de
artistas que se aglutinam em torno de jovens
e não-tão-jovens curadores em redes como o
Instagram, assumindo o papel de claque; vimos
também uma grande lacuna crítica em relação aos
trabalhos criticados/condenados pelos grupos
iconoclastas. Histórias da Sexualidade, parte de
um pertinente trabalho desenvolvido pela cura-
doria do Masp, foi devidamente resenhada, mas,
a não ser por honrosas exceções, pouco se disse
ou se procurou entender o que de fato foi Queer-
museu, uma mostra que eu não tive oportunidade
de visitar, devido a seu prematuro encerramen-
to, mas cujo catálogo estudei vagarosamente.
Por esta publicação, a curadoria de Gaudêncio
Fidélis me parece forçar a adequação de certos
trabalhos a um rótulo “queer”. A começar pela já
citada obra de Varejão, que de modo algum fala
de uma relação homoerótica e sim de um estu-
pro, de uma violência histórica até hoje presente,
subliminarmente, na sociedade brasileira. Outros
trabalhos, de artistas como Portinari e Lygia
Clark, também me parecem inclusões gratu-
itas. Uma ansiedade quantitativa (mais de 200
obras em um espaço que talvez coubessem 100)
e falta de critério conceitual derivam em prob-
lemas que só contribuem para a falta de com-
preensão do que é a arte brasileira no presente.
Nenhuma censura é aceitável. Toda censu-
ra é absurda, tanto aquela que atinge os bons
quanto aquela que mira nos maus trabalhos.
Mas estes episódios talvez tenham fornecido
alertas antes inaudíveis para os criadores e
fomentadores da arte brasileira: a oportuni-
dade de furar o próprio gueto; a possibilidade de
abrigar e entender os outros guetos; o chamado
urgente de um mergulho em critérios concei-
tuais e éticos, com o entendimento de que eles
são a melhor possibilidade de sobrevivência.
71
The confusion between medium and market
also causes dichotomous silences and events, which
to some extent repeat the kind of viral/superficial
action that has led to the censorship wave. We have
witnessed groups of artists who mingle with young
and not-so-young curators across social networks
like Instagram, taking on the role of cheerleaders;
we have also seen a major critical gap in relation to
the work criticized/condemned by iconoclast groups.
Histories of Sexuality, part of a pertinent piece of work
developed under the curatorship of MASP, was duly
reviewed. Yet, save honorable exceptions, little was
said or there was little attempt to understand what
Queermuseu actually was. This is a show that I have
not had the chance to see, due to its untimely closure,
but whose catalogue I have deeply studied. Through
the catalogue, I find that Gaudêncio Fidélis’s cura-
torship forced the adequacy of certain works to the
“queer” label. Beginning with the aforementioned art-
work of Varejão, which in no way depicts a homoerotic
relationship but rather illustrates rape, a historical
violence whose presence is still felt in Brazilian society
– even in subliminal terms. I find that other pieces,
by artists like Portinari and Lygia Clark, were also
included purposelessly. An anxiety to have quantitative
relevance (over 200 pieces in a space that might only
fit 100) and the lack of conceptual criteria result in
problems that only contribute to the lack of under-
standing of what Brazilian Art is in this day and age.
No amount of censorship is acceptable. All cen-
sorship is absurd, whether it targets good or lousy
works of art. But these episodes may have provided
inaudible warnings to the creators and promoters
of Brazilian art: The opportunity to leave their own
ghetto; the possibility of sheltering and understand-
ing other ghettos; the urgent call to closely examine
the conceptual and ethical criteria, with the under-
standing that these are the best ways to survive.
72
Jacaranda - Nº 6
Tudo – ainda – está
em seu lugar
* Clarissa Diniz
À época dos debates que se inflamaram com
o encerramento precoce da exposição Queermu-
seu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira
por parte do Santander Cultural – momento em
que a crítica moral se acirrou contra a arte e, por
outro lado, desde a mesma –, os artistas Bárbara
Wagner e Benjamin de Burca apresentaram Terre-
moto Santo (2017), um filme musical construído
a partir de parceria com a Mata Sul, gravadora
gospel da cidade de Palmares, em Pernambuco.
Diferentemente da ironia ou da crítica sociopolítica
que marca grande parte da produção de artistas
contemporâneos que lidam com as igrejas pente-
costais, Terremoto Santo não é sobre evangélicos,
mas com eles. Tampouco é exatamente acerca da
religião, mas eminentemente um filme de arte: como
um musical elaborado com os levitas da zona da
mata pernambucana – os músicos que compõem,
cantam e tocam em adoração a Deus –, Terremoto
Santo se debruça sobre a performatividade gospel.
Ao deslocá-las do contexto da liturgia do culto, os
artistas e os levitas criam pequenos clipes para as
músicas, performadas não na igreja, mas em outros
ambientes da região de Palmares, como cachoeiras,
pedras, rádios, canteiros de obra. Articulados, os
clipes dão a ver o território social daquela produção
musical: ao implicar o trabalho estético dos levitas à
paisagem e à economia na cultura açucareira – como na
cena em que um pastor, mestre de obras, canta junto a
outros pedreiros dentro de sua futura igreja, ainda em
construção –, Terremoto Santo se torna um filme sobre
a diversidade do sensível e as abissais diferenças entre
os diversos territórios da produção cultural.
É nesse sentido que, como um filme de artistas
realizado com outros artistas, o musical se suste-
nta sobre uma espécie de “pacto de honestidade”
cujo eixo é a criação – de seus lugares sociais às
suas variadas formas de expressão. Ombreados
pela “condição” de artista/levita, os colaboradores
de Terremoto Santo instauram um fundo comum,
de caráter estético e performativo (como na cum-
plicidade da câmera que treme quando a música
invoca um terremoto, numa espécie de atestado
73
cinematográfico de presentidade), contra o qual se
delineiam as muitas diferenças que igualmente os
circunscrevem. Interessados pela “música popu-
lar”, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca não se
debruçam sobre ela a partir de uma perspectiva
judicativa, senão, ao trabalhar com outros artis-
tas, imergem e colaboram com essa alteridade
poética de um modo que as críticas políticas quase
sempre pautadas pela distância social dobram-se
contra o próprio lugar de fala da arte. Ficciona-
lmente constituindo, junto a outras formas de
produção sensível, um fundo comum a partir do
qual perceber, negociar, tensionar e/ou endereçar
as diferenças sociais que lhe são constitutivas,
Terremoto Santo estende a luta de classes e seus
corolários epistêmicos contra o lugar privilegia-
do da arte, desestabilizado por exterioridades
que – na obra de Bárbara e Benjamin – se tornam
inerentes e singulares, não mais generalizadas por
diferenças de caráter extrínseco ou extensivo.
A operação da dupla e seus colaboradores vem
à tona no mesmo momento em que outro artista da
assim nomeada “música popular”, Benito di Paula,
responde – por meio de um vídeo postado nas redes
sociais – ao deputado Carlos Marun (PMBD-MS), o
qual havia parodiado Tudo Está no Seu Lugar (1974)
em comemoração à vitória [sic] da base do governo
pela rejeição da segunda denúncia contra o presi-
dente Michel Temer: “Tudo está no seu lugar, graças
a Deus, graças a Deus! Surramos mais uma vez essa
oposição que não consegue nenhuma ganhar!”:
“Eu, quando comecei minha carreira de artista
(...), eu era muito pobre. Eu detesto essa palavra –
pobre –, mas a gente era muito pobre mesmo. Eu
tinha 13 irmãos e mais dois adotados pela minha
mãe, de afrodescendentes. E eu amava muito eles.
(...) E a casa de mamãe estava caindo. Eu trabalha-
va em São Paulo e tinha goteira para caralho. Aí eu
pedi ajuda a uma porrada de prefeito, e ninguém
me ajudou. Ninguém me ajudou a acertar a minha
casa, a botar um telhado na casa de minha mãe. Aí
eu vim para São Paulo e trabalhei feito uma besta!
Everything – still – in its
right place
* Clarissa Diniz
At the time of the discussions inflamed by the
premature closure of the exhibition Queermuseu – Car-
tografias da Diferença na Arte Brasileira (Queermuse-
um – Maps of Difference in Brazilian Art) presented by
Santander Cultural – when moral criticism was stirred
up both against and by art –, the artists Bárbara Wag-
ner and Benjamin de Burca presented Terremoto Santo
(Holy Earthquake) (2017), a musical film constructed
in partnership with Mata Sul, a gospel recording label
from the city of Palmares, in Pernambuco. In contrast
to the irony and sociopolitical criticism that charac-
terizes much of the work of contemporary artists
when addressing Pentecostal churches, Terremoto
Santo is not about Evangelicals, but is made with them.
Neither is it exactly about religion, but is rather, and
eminently, a film about art: with music created by the
priests of the forested region of Pernambuco – the
songs that they write, sing and play in praise of God
–, Terremoto Santo explores gospel as performance.
In transferring the context of the religion’s
liturgy, the artists and priests create brief videos for
the songs, performed not in the church, but in other
environments of the Palmares region, such as wa-
terfalls, on rocks, in radio stations and construction
sites. Linked together, the videos reveal the social
territory of this musical production: by relating the
aesthetic work of the priests to the landscape and
economy of the sugar industry – as in the scene where
the priest, the master of ceremonies, sings with other
builders inside their future church, as it continues
under construction –, Terremoto Santo becomes a
film about the significant and profound differences
between different territories of cultural production.
It is in this sense that, as a film by artists made
with other artists, the musical is constructed from a
kind of “pact of honesty” whose axis is creation – from
its social spaces to its various forms of expression.
Based on the comparative “condition” of the artist/
priest, the participants of Terremoto Santo created a
common fund, of an aesthetic and performative nature
(as in the complicity of the camera which shakes
when the music invokes an earthquake, in a kind of
cinematic testament to nowness), against which the
many differences that surround them are highlighted.
Fascinated by “popular music”, Bárbara Wagner and
Benjamin de Burca do not address it from a judgmen-
tal perspective but rather, working with other artists,
immerse themselves in, and collaborate with, this
poetic otherness in a way that political critics, almost
always removed by social distance, turn against the
very space that speaks of art. Fictionally construct-
ing, together with other forms of sensitive work,
a common fund from which to perceive, negotiate,
highlight and/or address the social differences that
are their constituents, Terremoto Santo extends the
class struggle and its epistemic corollaries against
the privileged place of art, destabilized by external-
ities which - in the work of Bárbara and Benjamin –
become inherent and singular, no longer generalized
by differences of an extrinsic or extensive nature.
The work of the pair and their associates has
surfaced at precisely the moment when an artist
of so-called “popular music”, Benito di Paula, has
responded – by way of a video posted on social
networks – to the parliamentary deputy Carlos Marun
(PMBD-MS), who parodied Tudo Está no Seu Lugar
(Everything In Its Right Place) (1974) in celebrating
the victory [sic] of the government coalition in
rejecting a second accusation made against President
Michel Temer: “Everything in its right place, thank
God, thank God! Once again we trounced the
opposition who are never able to win anything!”:
“When I began my career as an artist (...), I was
very poor, I hate that word – poor -, but we really were
very poor. I had 13 brothers and sisters and two more
adopted by my mum, of African descent. I loved them
a lot. (...) And my mum’s house was falling down. I
worked in São Paulo and there were loads of leaks. So
I asked for help from many people from city hall, and
nobody helped me. Nobody helped me repair my house,
or to put a roof on my mother’s house. So I came to
São Paulo and worked like a dog! Like a horse! I took
loads of SHIT, from sons of BITCHES! You know? I
put up with EVERYTHING! I put up with the dictator-
ship, I put up with this FUCKING SHIT! Now someone
comes along and takes my music, which I made for my
mother, and sings Tudo Está No Seu Lugar because the
74
Jacaranda - Nº 6
Feito um cavalo! Tomei porrada na CARA, de filho
da PUTA! Sabe? Encarei TUDO! Encarei ditadura,
encarei o CARALHO!! PORRA! Agora o cara pega a
minha música, que eu fiz pra minha mãe, e vai cantar
Tudo Está No Seu Lugar porque o cara ganhou?! Isso
não é música de político não, rapaz! Isso é música
de família! Eu sou um homem de família! Eu tenho
idade o bastante, e repertório o bastante e públi-
co o bastante para não admitir uma coisa dessa!
Entendeu? Eu não quero saber se você ganhou, se
você perdeu, nem nada. Eu detesto política! Tô puto
da vida com essa porra! Me peça autorização, que
eu não dou! (...) Porra! É foda! O cara pegar o meu
trabalho e botar num negócio que não tá funcio-
nando! Que essa porra não funciona! Política não
funciona! Tem que estudar, estudar pra ser políti-
co, CARALHO! Eu tenho terceira série primária;
eu não seria político nunca! Porque eu não tenho
cultura, caralho! Tudo está no seu lugar o caralho!
Tá tudo errado! Eu fiz essa música pra minha mãe,
pra minha mãe! Respeite a minha mãe! Porra!”
Como adverte, Benito di Paula é “de família
pobre. Papai era ferroviário, mamãe dona de casa.
Eu não tenho um diploma pra colocar na parede.
Nunca estudei nada. Nada. Eu sou autodidata até pra
andar!”1 Depois de ser crooner no início de sua car-
reira, ao longo das décadas de 1970 e 1980, Benito
– que teve Ataulfo Alves como um mestre – concebeu
uma sonoridade singular que foi depois pejorati-
vamente chamada de samba-joia ou sambão, um
samba menos percussivo (muitas vezes com absoluto
protagonismo do piano), com características do
rock, do soul e quase sempre romântico, resvalando
também para o bolero, como evidente em um de
seus primeiros sucessos, Retalhos de Cetim (1973).
Ainda que, recentemente, tenha sido gravada
por bandas e músicos como Casuarina, Sambô ou
Diogo Nogueira, à época, Retalhos de Cetim e a
produção musical de Benito di Paula foram rejeit-
adas pela crítica especializada: “Benito di Paula
fez-se notar graças à autoria de uma série de sambas
banais, de ritmo duvidoso e letras grotescas”.2 “Beni-
to di Paula — pianista notável pelo lançamento da
fracassada moda do brinco em uma única orelha e
de uma intragável mistura de cuíca ao bolero, que ele
imagina ser samba”.3 Criticado por suas experimen-
tações no samba e, por elas, vinculado ao universo
da “música cafona” – suas composições foram gra-
vadas por cantores como Agnaldo Timóteo, Angela
Maria, Roberto Carlos, Cauby Peixoto e Agnaldo
Rayol, dentre outros – Benito di Paula ingressou
no universo da música popular brasileira por seu
absoluto sucesso comercial (durante a década de
1970, esteve quase sempre entre as músicas mais
75
ouvidas do ano nas rádios brasileiras), sem, todavia,
ter sido integrado à tradição hegemônica da MPB,
que, produzida dentro de contextos universitários
e intelectuais da classe média e alta, fora consagra-
da nos festivais também por seu caráter político.
Nesse sentido, a obra de Benito di Paula foi muitas
vezes compreendida como alienada e alienante –
donde o “joia” do termo samba-joia, por sua apologia
à felicidade e ao amor em meio ao regime autoritário,
ainda que seu primeiro disco (1971) tenha sido
censurado pela gravação de Apesar de Você, de Chico
Buarque, bem como o fora Tributo A Um Rei Esquecido
(1974), música em homenagem a Geraldo Vandré.
De modo geral, no entanto, sua obra se manteve
distante de um posicionamento político (ou moral) que
afrontasse os valores burgueses, em razão do que Tudo
Está no Seu Lugar é, para muitos, uma ode ao estado de
exceção nacional, o que Benito contesta.4
Com seu vídeo recente, além de recolocar-se
politicamente em tempos de um novo desman-
telamento do regime democrático, di Paula revela
também uma consciência de classe que, expressa
em argumentos em torno de uma ideia de atuação
política, bem como de cultura, não deve passar-nos
despercebida: “Eu tenho terceira série primária;
eu não seria político nunca! Porque eu não ten-
ho cultura, caralho!”. Seu desabafo é revelador
do descolamento social que ainda persiste sobre
a cultura, lembrando-nos da cisão engendrada
pelo golpe militar, quando foram “cortadas as
pontes entre [estas e] o movimento cultural” no
momento histórico em que, como analisa Roberto
Schwarz no ensaio Cultura e Política, 1964-1969,
buscava-se justamente a “reorientação da relação
entre a produção intelectual e as massas”. Segundo
aquele ensaio seminal, escrito no calor do regime
de exceção, restou à cultura uma situação curiosa:
“Apesar da ditadura da direita, há relativa
hegemonia cultural da esquerda no país. (...) O seu
domínio, salvo engano, concentra-se nos grupos
diretamente ligados à produção ideológica, tais
como estudantes, artistas, jornalistas, parte dos
sociólogos e economistas, a parte raciocinante
do clero, arquitetos etc. – mas daí não sai, nem
pode sair, por razões policiais. Os intelectuais são
de esquerda, e as matérias que preparam de um
lado para as comissões do governo ou do grande
capital, e de outro para as rádios, televisões e os
jornais do país, não são. É de esquerda somente a
matéria que o grupo – numeroso a ponto de for-
mar um bom mercado – produz para si mesmo.
Esta situação cristalizou-se em 64, quando gros-
so modo a intelectualidade socialista, já pronta
para a prisão, desemprego e exílio, foi poupada.
Torturados e longamente presos foram somente
guy won?! This isn’t politician’s music, no way, man!
This is family music! I’m a family man! I’m old enough
and have enough of a repertoire and audience not
to have to accept something like this! Understand? I
don’t want to know if you won, or lost, or anything. I
hate politics! I’m pissed off with this shit! If you ask
me for permission, I’m not going to give it! (...) Fuck!
It’s fucked up! The guy takes my work and puts it
somewhere that doesn’t work! This shit doesn’t work!
Politics doesn’t work! You have to study, to study to
be a fucking politician! I completed the third grade,
elementary; I would never be a politician! Because
I have no fucking education! Fuck Tudo está no seu
lugar! It’s all fucked up! I composed this song for my
mother, for my mother! Respect my fucking mother!”
As he warns, Benito di Paula is from “a poor fami-
ly. Dad was a railway worker, mum was a housewife. I
have no diploma to put on the wall. I never studied any-
thing. Nothing. I even taught myself to walk!”1 After be-
ing a crooner at the start of his career, throughout the
1970s and 1980s, Benito – who had Ataulfo Alves as a
teacher – developed a unique sound that was later pe-
joratively called samba-joia or sambão, a less percus-
sive samba (often completely dominated by piano), with
aspects of rock, soul and which was almost always ro-
mantic, and redolent of bolero, as is clear in one of his
first hits, Retalhos de Cetim (Remnants Of Satin) (1973).
Even though, recently, it has been recorded by
bands and musicians such as Casuarina, Sambô and
Diogo Nogueira, at the time, Retalhos de Cetim and
the musical work of Benito di Paula were rejected by
specialist critics: “Benito di Paula became notable
thanks to his authorship of a series of banal sambas, of
doubtful rhythm and grotesque lyrics”.2 “Benito di Paula
— a pianist notable for pioneering the doomed fashion
of wearing an earring in one ear and for the unpalat-
able mixing of the cuíca with bolero, that he thinks is
samba”.3 Criticized for his experiments with samba
and, as a result of them, associated with “corny music”
– his compositions have been recorded by singers such
as Agnaldo Timóteo, Angela Maria, Roberto Carlos,
Cauby Peixoto and Agnaldo Rayol, among others –
Benito di Paula became a part of the Brazilian popular
music world thanks to his phenomenal commercial
success (during the 1970s, his songs were almost
always among the most listened to music of the year
on Brazilian radios) without ever becoming part of the
dominant tradition of MPB (Brazilian Popular Music),
whose songs, produced within the university and intel-
lectual contexts of the middle and upper classes, were
also celebrated at festivals for their political content.
In this regard, Benito di Paula’s work was often
considered alienated or alienating – hence “joia” (“jew-
el”) from the term samba-joia, due to its celebration
of happiness and love under the authoritarian regime,
despite the fact that his first record (1971) was cen-
sored due to its recording of Apesar de Você (Depsite
You), by Chico Buarque, as well as the fora Tributo A
Um Rei Esquecido (Tribute To A Forgotten King) (1974), a
song in honour of Geraldo Vandré. Generally speaking,
however, his work avoided any political (or amoral)
positions that might affront bourgeois views, which is
why Tudo Está no Seu Lugar is, for many, an ode to the
state of national emergency, which Benito denies.4
With his recent video, in addition to repositioning
himself politically during another stage of the dis-
integration of the democratic regime, di Paula also
reveals a class consciousness which, expressed in
arguments regarding notions of political and cultur-
al action, is unlikely to go unnoticed: “I completed
elementary third grade; I would never be a politician!
Because I have no fucking education!” His outburst is
revealing of the social disconnect that still persists
in relation to culture, remembering that the schism
produced by the military coup, when “bridges were
burnt between [these and] the cultural movement” at a
historic moment where, as Roberto Schwarz observes
in his essay Cultura e Política, 1964-1969 (Culture and
Politics, 1964-1969), there was a search precisely for
a “reorientation of the relationship between intellec-
tual production and the masses”. According to that
seminal essay, written at the height of the state of
emergency, culture found itself in a curious situation:
“Despite the rightwing dictatorship, the left enjoys
cultural hegemony in Brazil. (...) Its dominance, if
I’m not mistaken, is concentrated in groups directly
linked to ideological work, such as students, artists,
journalists, some sociologists and economists, the
thinking wing of the clergy, architects etc. – but
it doesn’t emerge from this world, nor can it, for
reasons concerning the police. The intellectuals are
on the left, but the materials they prepare, on the
one hand for government commissions or those of
big state capitals, and on the other, for radio and
television stations, and the country’s newspapers,
are not. The only thing that is leftwing is the work
that the group – sufficiently large to form a good
market – produces for itself. This situation crystal-
lized in 1964, when the intellectual left, vulnerable to
imprisonment, unemployment and exile, was spared.
The only ones who were tortured or imprisoned for
long periods were those who had organized contacts
with workers, peasants, sailors and soldiers.”5
Benito di Paula was working at this time in history
without, however, forming part of a cultural land-
scape dominated by the left. With the economic elite’s
monopoly of the cultural market’s means of production
being challenged by industry and, in particular, by the
76
Jacaranda - Nº 6
aqueles que haviam organizado o contato com
operários, camponeses, marinheiros e soldados.”5
Benito di Paula atua nesse mesmo momento
histórico sem, todavia, integrar o território da hege-
monia cultural da esquerda. Com o monopólio, pela
elite econômica, dos meios de produção do mercado
cultural posto à prova pela indústria e, em especial,
pela expansão da televisão e, posteriormente, por
outras tecnologias (como a internet), a partir dos
anos 1960 o Brasil passa a assistir e a participar, em
escala ampliadíssima, de tensões públicas no cerne
do campo cultural. Serão compostas músicas que
advertem o público e os demais agentes do campo
acerca das posições em disputa: “que me perdoe/
se eu insisto nesse tema/ mas não sei fazer poema
ou canção/ que fale de outra coisa/ que não seja o
amor/ se o quadradismo dos meus versos/ vai de
encontro aos intelectos/ que não usam o coração/
como expressão” (Você Abusou, Antônio Carlos &
Jocafi, 1971) ou, ainda: “tá legal, eu aceito o argu-
mento/ mas não me altere o samba tanto assim/
olha que a rapaziada está sentindo a falta/ de um
cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim./ Sem
preconceito ou mania de passado/ sem querer ficar
do lado de quem não quer navegar./ Faça como um
velho marinheiro/ que durante o nevoeiro/ leva o
barco devagar (Argumento, Paulinho da Viola, 1975).
À época, como por vezes ainda hoje, engajamen-
to político e expressão dos sentimentos pareciam
esquematicamente colocados em lados opostos da
discussão, num binarismo talvez devedor da ped-
agogia burguesa que, emancipada da educação da
igreja e de seus dogmatismos teológico-metafísicos,
fundara uma pedagogia racionalista (de discipli-
na e de autocontrole) que produziu, de um lado,
gentlemen burgueses que se tornaram homens de
negócios e, de outro, mão de obra disciplinada para
atender ao novo sistema produtivo pós-revolução
francesa. Obviamente, além do legado burguês,
principalmente no campo da poesia brasileira, o
aparente binarismo encontrou âncora na matriz
construtiva que transformara os usos da lingua-
gem: “contra a introspecção autodebilitante e
contra o realismo simplista e simplório”6. “Contra
a poesia de expressão, subjetiva. Por uma poesia
de criação, objetiva. Concreta, substantiva. (...) A
poesia concreta acaba com o símbolo, o mito, com
o mistério. O mais lúcido trabalho intelectual para
a intenção mais clara. Acabar com as alusões.”7
Benito di Paula surge na esteira dessa revulsão
de linguagem, quando na década anterior, a partir
da bossa nova, “o gentleman burguês” e “o poeta
revolucionário” – da zona sul carioca – encon-
traram, em João Gilberto, uma espécie de síntese
.
77
que apresentava o coração não mais numa chave
extrovertida e audaz, mas intimista e modesta: Bim
bom bim bim bom bom/ bim bom bim bim bom bim
bom/ bim bom bim bim bom bom/ bim bom bim bim
bom bim bim/ é só isso o meu baião/ e não tem mais
nada não/ o meu coração pediu assim, só (Bim Bom,
João Gilberto, 1959). Essa musicalidade de caráter
camerístico8 opunha-se a “uma interpretação que se
tenha afirmado com base na demagogia pessoal, em
virtuosismos vocais ou recursos extramusicais [em
prol da] discrição, [da] sutileza e [do] rigor (...), os
característicos básicos de sua arte”9. Nesse sentido,
como sublinhado pelo maestro Júlio Medaglia, tinha
implicações políticas por ser “facilmente cantável
e assimilável, [permitindo e sugerindo], com isso,
a participação inclusive da assistência”, ao passo
que permitia que “artistas não-cantores”, de menor
virtuosismo vocal, “com suas vozes imperfeitas,
mas naturais”, igualmente pudessem participar
do campo profissional da música, como no caso
de Astrud Gilberto, então casada com João. Como
advertia o maestro no calor da hora, essas escolhas
estéticas eram parte de um conjunto de operações de
classe: “Sendo a bossa nova uma realidade oriunda
da faixa urbana da população; tendo essa faixa da
população melhores condições materiais e práticas
de receber informações, via livros e periódicos;
sendo a BN um movimento preponderantemente
jovem, constituído, em grande parte, de estudantes;
sendo o jovem e o estudante em todo país sub-
desenvolvido o mais vivo estopim de inflamação
político-ideológica, compreende-se o surgimento
de uma linha de canções de cunho participante.”10
Acontece que, por um processo histórico cuja
complexidade escapa a esse texto (e à sua autora),
mesmo no seio de uma ditadura militar, a revolução
estético-política daquela burguesia – ainda que,
no caso da bossa nova, estivesse inextricavelmente
ligada a uma produção cultural de outra classe, o
samba, por sua vez recriado por um sambista de
classe média, Noel Rosa – tornou-se culturalmente
hegemônica também por sua impressionante pen-
etração midiática e comercial, nacional e interna-
cionalmente. Movimento que se deu num momento
de prematura fratura, como já mencionado por
Schwartz, entre a “intelectualidade e as massas”,
reverberando ainda hoje na zona de contato entre
as disputas do campo cultural e a luta de classes.
Algo que se vê, por exemplo, no lapso histórico,
estético, social, moral, econômico e político entre
as respostas às críticas recebidas por hipotéticas
deturpações do “samba autêntico”, que teriam sido
engendradas por João Gilberto e Benito di Paula,
respectivamente: “Se você disser que eu desafino
expansion of television and, later, by other technolo-
gies (such as the Internet), from the 1960s onwards
Brazil began to observe and participate, on a very
broad scale, in the political tensions at the heart of the
cultural field. Songs would be composed that warned
the public and other field agents about positions
under dispute: “que me perdoe/ se eu insisto nesse
tema/ mas não sei fazer poema ou canção/ que fale de
outra coisa/ que não seja o amor/ se o quadradismo
dos meus versos/ vai de encontro aos intelectos/ que
não usam o coração/ como expressão” (“forgive me/
if I keep going on about this subject/ but I don’t know
whether to make a poem or a song/see how the boys
are missing/the cavaco/pandeiro and tambourine/
Without prejudice or obsessing about the past/without
wanting to be around those who don’t want to sail./
Act like the old sailor/who, when the fog descends,/
steers the boat slowly (Você Abusou – You Went Too
Far -, Antônio Carlos & Jocafi, 1971) or, again: “it’s fine,
I accept the argument/but don’t change the samba
too much/ see how the boys are missing/the cavaco/
pandeiro and tambourine/Without prejudice or ob-
sessing about the past/without wanting to be around
those who don’t want to sail./Act like the old sailor/
who, when the fog descends,/steers the boat slowly
(Argumento – Argument -, Paulinho da Viola, 1975).
At the time, as sometimes today, political engage-
ment and the expression of feelings appear schemat-
ically positioned on opposite sides of the debate, in
a binarism that perhaps owes a debt to bourgeois
pedagogy which, emancipated from the education of
the church and its teleological-metaphysical dogma-
tisms, founded a rationalist pedagogy (of discipline
and self-control) which produced, on the one hand,
bourgeois gentlemen who became businessmen
and, on the other, a disciplined workforce to serve
the new post-French revolution production system.
Obviously, in addition to the bourgeois legacy, prin-
cipally in the field of Brazilian poetry, this apparent
binarism found an anchor in the constructive matrix
that transformed the uses of language: “against
self-debilitating introspection and against simplistic
and simple realism”6. “Against the subjective poetry of
expression. In favor of an objective poetry of creation.
Concrete, substantive. (...) Concrete poetry rejects
symbol, myth and mystery. The most lucid intellectual
work for the clearest intention. An end to allusions.”7
Benito di Paula emerges in the wake of this
linguistic revulsion when, during the previous decade,
through bossa nova, “the bourgeois gentleman” and
“the revolutionary poet” – from the South Zone of Rio
de Janeiro – found, in João Gilberto, a kind of synthesis
who presented the heart no longer in an extroverted or
audacious key, but in an intimate modest one: Bim bom
..
bim bim bom bom/ bim bom bim bim bom bim bom/ bim
bom bim bim bom bom/ bim bom bim bim bom bim bim/
é só isso o meu baião/ e não tem mais nada não/ o meu
coração pediu assim, só (…this is just my baião music/
and there’s nothing else/ that’s just how my heart
asked for it) (Bim Bom, João Gilberto, 1959). This musi-
cality of a chamber style8 contrasts with an “interpre-
tation based on personal demagogy, virtuosic vocals
and extra-musical resources [in favor of] discretion,
subtlety and rigor (...), the basic characteristics of his
art”9. In this regard, as highlighted by the master, Júlio
Medaglia, it had political implications due to its being
“easily singable and assimilable, [allowing and sug-
gesting], as a result, the participation of the audience”,
inasmuch as it allowed “non-singing artists”, of lesser
vocal virtuosity, “with their imperfect, more natural
voices”, to participate equally in the professional field
of music, as in the case of Astrud Gilberto, then mar-
ried to João. As the master warned, in the heat of the
moment, these aesthetic choices were part of a series
of class operations: “As Bossa nova was a reality orig-
inating in the urban segment of the population; where
this segment of the population enjoyed better material
conditions and means of receiving information, through
books and periodicals; with BN being a predominantly
young movement, largely comprising students; the
youth and student population of every underdeveloped
country being the liveliest agents of political-ideo-
logical agitation, it is understandable that a form of
music with a participative character emerged.”10
It so happens that, by a historical process whose
complexity is beyond the scope of this text (and its
author), even at the heart of a military dictatorship,
the aesthetic-political revolution of this bourgeoi-
sie – even though, in the case of bossa nova, it was
inextricably linked to the cultural activity of another
class, namely samba, in turn recreated by a middle
class samba musician, Noel Rosa – clearly also became
dominant due to its impressive media and commer-
cial penetration, both nationally and internationally.
It was a movement that emerged during the first
fracture, as mentioned by Schwartz, between the
“intellectual class and the masses”, which continues to
reverberate today in the zone of contact between the
disputes of the cultural field and the class struggle.
This is visible, for example, in the historical,
aesthetic, social, moral, economic and political gulf be-
tween the responses to criticism received by hypothet-
ical misrepresentations of “authentic samba”, engen-
dered by Gilberto and Benito di Paula, respectively: “Se
você disser que eu desafino amor / saiba que isto em
mim provoca imensa dor / só privilegiados tem o ouvi-
do igual ao seu / eu possuo apenas o que deus me deu /
se você insiste em classificar / meu comportamento de
78
Jacaranda - Nº 6
amor / saiba que isto em mim provoca imensa dor
/ só privilegiados tem o ouvido igual ao seu / eu
possuo apenas o que deus me deu / se você insiste
em classificar / meu comportamento de anti-musical
/ eu mesmo mentindo devo argumentar / que isto
é bossa-nova, isto é muito natural / o que você não
sabe nem sequer pressente / é que os desafinados
também têm um coração” (Tom Jobim. Desafina-
do, 1959) e, por outro lado, “Estão querendo tirar
meu nome do samba / tirar meu tempo de bamba /
dizendo até que eu já me despedi / (...) estão quer-
endo acabar comigo de vez / eu não ligo, eu não sou
freguês / vou ficar com meu samba osso duro de roer
/ é que ainda não chegou minha vez de ir embora
/ deixa essa gente falar / é inveja que eles sentem /
canto mais um samba / que é pra todo mundo ver /
a minha bandeira do samba / Deus ajuda a defend-
er” (Benito di Paula, Osso Duro de Roer, 1975).  criticaram justamente o uso “desmedido” do adjetivo
O que se aguça a partir da década de 1970 será,
assim, a disputa estético-política nos interstícios
do campo da cultura, conflitos que estão quase
sempre vinculados à luta de classes, mas que, de
modo geral, não são tratados como tal. Parece-
mos às voltas com questões de gosto e de moral,
tachando de “cafonas”, “demagógicas”, “banais”,
“fracassadas” as produções artísticas que surgem e
circulam contra e à revelia do campo da hegemonia
cultural da esquerda a qual, combalida, mantém-se
todavia persistente. Obviamente, agendas e per-
spectivas políticas tornam essas disputas ainda mais
complexas, quando não difusas, obnubiladas por
debates públicos recheados por acusações mútuas
de conservadorismo, reacionarismo ou fascismo.
No entanto, o que precisa ser sublinhado –
ampla e criticamente discutido – é a (não tão sutil)
diferença entre embates estéticos e um processo que
é dele diverso e mesmo antagônico, o epistemicídio.
Como tem desenvolvido o sociólogo Boaventura de
Souza Santos a partir de uma perspectiva eminente-
mente social e política, é certo que “o epistemicídio
foi muito mais vasto que o genocídio [na expansão
europeia] porque ocorreu sempre que se pretendeu
subalternizar, subordinar, marginalizar ou ilegalizar
práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a
expansão capitalista ou, durante boa parte do nosso
século, a expansão comunista (...); e também porque
ocorreu (...) contra os trabalhadores, os índios, os
negros, as mulheres e as minorias em geral (étni-
cas, religiosas, sexuais)”11. Contudo, além de sua
presença no âmbito da colonização moderna, como
ressalta Aparecida Sueli Carneiro, o epistemicídio é
“um processo persistente de produção da indigência
cultural: pela negação ao acesso a educação, sobretu-
do de qualidade; pela produção da inferiorização
79
intelectual; pelos diferentes mecanismos de desle-
gitimação (...) e de rebaixamento da capacidade cog-
nitiva pela carência material e/ou pelo comprometi-
mento da autoestima (...). Isto porque não é possível
desqualificar as formas de conhecimento dos povos
dominados sem desqualificá-los também, individual
e coletivamente, como sujeitos cognoscentes”.12 Algo
que aparece no contraste entre as respostas de Desa-
finado e de Osso duro de roer: para a autointitulada
bossa nova, tratava-se de, privilegiadamente, dis-
cutir qualidade (“classificar meu comportamento an-
ti-musical”), enquanto que, para o pejorativa e het-
eronominado samba-joia13, tratava-se de defender o
direito à existência (“estão querendo tirar meu nome
do samba/ (...) estão querendo acabar comigo de
vez”). Contraste que adquire aspectos quase irônicos
quando lembramos que o concretismo e a bossa nova
por parte de uma poesia que, de outro ponto de vista,
parecia estar lutando para, fundamentalmente,
garantir seu direito a uma existência substantiva.
O risco de uma política epistemicida no campo
da cultura é, também, o de camuflar as tão corrosi-
vas assimetrias de classe em nosso país, posto que a
desqualificação da posição cultural do outro incorre
na invisibilização não apenas de “sua cultura”, como,
fundamentalmente, de seu lugar social. O inverso ab-
soluto – a absorção das diferenças de classe por meio
de uma lógica de equivalência cultural – seria igual-
mente perverso. De modo que parece fundamental
exercitar a consciência de classe dentro do campo
cultural, o que, se visto de uma perspectiva não
conservadora, nos leva questionar – política, moral
e esteticamente –, nossa outrora supostamente he-
roica hegemonia de classe, a um só tempo de classe
cultural e de classe social. Correlativa – a classe so-
cial dos agentes do campo da cultura – e inextricavel-
mente: o campo da cultura enquanto classe social.
Se, a partir dos anos 1970, com as revoluções
culturais ocorridas sob o guarda-chuva da contra-
cultura, consolidou-se – no Brasil como em tantas
outras partes do mundo – a hegemonia cultural
de uma posição social específica (apontada, por
Schwarz, como uma esquerda intelectualizada de
classe média), os embates hoje em curso parecem
indicar um movimento que, sendo moral e politica-
mente conservador, coloca-se, contudo, como força
culturalmente contra-hegemônica. Uma espécie
de contra contracultura que busca questionar as
premissas hoje dominantes, como na fala de Kim
Kataguiri em torno da performance La Bête: “qual a
agenda que está por trás disso?”14. As irresponsáveis
e apressadas acusações desse que é um dos líderes
do Movimento Brasil Livre (MBL) descolam-se da
anti-musical / eu mesmo mentindo devo argumentar /
que isto é bossa-nova, isto é muito natural / o que você
não sabe nem sequer pressente / é que os desafinados
também têm um coração” (If you say I’m singing out of
tune, my love / know that this causes me great sadness
/ only special people have an ear like yours / I only have
what God gave me / if you insist on classifying / my
behavior as anti-musical / even I were lying, I should
argue / that this is bossa nova, it’s very natural / what
you don’t know or even sense / is that people who sing
out of tune also have hearts) (Tom Jobim. Desafinado
– Out of Tune -, 1959) and, on the other hand, “Estão
querendo tirar meu nome do samba / tirar meu tempo
de bamba / dizendo até que eu já me despedi / (...) estão
querendo acabar comigo de vez / eu não ligo, eu não
sou freguês / vou ficar com meu samba osso duro de
roer / é que ainda não chegou minha vez de ir embora
/ deixa essa gente falar / é inveja que eles sentem /
canto mais um samba / que é pra todo mundo ver / a
minha bandeira do samba / Deus ajuda a defender”
(They want to erase my name from the samba
/ to take my time away from ‘bamba’ / even saying
that I’ve already bid farewell / (…) they want to do
away with me now / I don’t care, I’m not a client /
I’m going to keep my hard-boned samba / because
my time to leave has not yet come / let them speak
/ its jealousy they’re feeling / I’m going to sing
another samba / for everyone to see / my flag of
samba / that God helps to defend) (Benito di Paula,
Osso Duro de Roer – Hard Bone To Crack -, 1975).  point of view, seemed to be fundamentally struggling
What intensifies during the 1970s is, thus, the
aesthetic-political dispute in the interstices of the
cultural field, conflicts which are almost always
related to the class struggle, but which, generally
speaking, are not treated as such. We seem to be
dealing with questions of taste and morality, labeling
as “tacky”, “populist”, “banal” and “failed” the artis-
tic work that emerges and circulates against, and
in contrast to, the field of cultural dominance of the
left which, while debilitated, continues to resist. Of
course, political agendas and perspectives render
these disputes still more complex, when not clouded or
obscured by public debates rife with mutual accusa-
tions of conservatism, reactionaryism or fascism.
However, what needs to be highlighted – and
broadly and critically discussed – is the (not so subtle)
difference between aesthetic conflicts and a process
that is distinct from, and even antagonistic to it:
epistemicide. As the socialist, Boaventura de Souza
Santos, has argued from an eminently social and
political perspective, it is clear that “epistemicide was
much more extensive than genocide [in the European
expansion] because it occurred whenever there was
a desire to subordinate, marginalize or render illegal
social practices or groups that could threaten capi-
talist expansion or, during a large part of our century,
communist expansion (…); and also because it occurred
(...) at the expense of workers, Indians, blacks, women
and minorities in general (ethnic, religious and sexu-
al)”11. However, in addition to its presence in the sphere
of modern colonization, as Aparecida Sueli Carneiro
emphasizes, epistemicide is “a persistent process
of the production of cultural indigence: by denying
access to education, above all quality education; by
cultivating a sense of intellectual inferiority; through
different mechanisms of de-legitimization (…) and by
reducing cognitive capacity as a result of material
deficiencies or the undermining of self-esteem (…).
This is because it is not possible to disqualify the
forms of knowledge of conquered peoples without also
disqualifying the people, individually and collectively,
as cognizant subjects”.12 This is something that appears
in the contrast between the reponses to Desafinado
and Osso duro de roer: for the self-named bossa nova,
this was, primarily, concerned with discussing quality
(“to classify my anti-musical behavior”), while, the
pejoratively and hetero-denominated samba-joia13, was
concerned with defending the right to existence (“they
want to erase my name from samba/ (...) they want to
do away with me now”). This contrast acquires some-
what ironic aspects when we recall that ‘concretism’
and bossa nova specifically criticized the “excessive”
use of the adjective by a poetry which, from another
to guarantee its right to a substantive existence.
The danger of an epistemidical politics in the
field of culture is also that of camouflaging the highly
corrosive asymmetries of class in Brazil, since the
disqualification of the cultural position of the other
leads to rendering invisible not only “its culture”, but
also, fundamentally, its social space. The absolute
opposite – the absorption of class differences by
means of a logic of cultural equivalence – is similarly
perverse. For this reason it seems essential to exercise
class consciousness within the cultural field, which, if
viewed from a non-conservative perspective, leads us
to question – politically, morally and aesthetically -, our
once supposedly heroic class dominance, both in terms
of cultural and social class - correspondingly – to the
social class of the agents of the field of culture – and
inextricably, to the field of culture as social class.
If, during the 1970s, with the cultural revolutions
that took place under the umbrella of the counter-cul-
ture, in Brazil – as in many other parts of the world
– the cultural dominance of a specific social position
(identified by Schwarz as that of the intellectualized
middle-class left) was consolidated, the conflicts
unfolding today seem to suggest a movement which,
80
Jacaranda - Nº 6
situação específica que as motivara, a presença de
uma criança na ação performática no Museu de Arte
Moderna de São Paulo, para atacar as premissas da
arte: “Pode até ser museu, pode até ser moderno,
mas de arte não tem absolutamente nada”. Noutro
depoimento, Kim Kataguiri insufla uma crítica ao
campo da cultura de modo mais amplo, apontando
“arrogância da classe artística”, acusando-nos de
“monopolistas da virtude”, “artistas que acreditam
ser a aristocracia”, “artistas que acreditam ser os
seres iluminados que devem governar todo o resto,
e que são intocáveis”: “No mundo real, no mundo
do seu João e da dona Maria, as pessoas trabalham
– diferente do Projacquistão –, as pessoas pensam,
as pessoas debatem, as pessoas divergem entre
si sem perseguir ou patrulhar aqueles que pen-
sam diferente; existe um debate saudável. Apesar
de Vocês15, nós vivemos numa democracia.”16
Apropriando-se moral e politicamente da luta de
classes ao falar em nome de seu João e dona Maria,
a classe trabalhadora, o MBL saqueia certa ideia de
“anonimato social” contra uma espécie de “reconhe-
cimento privilegiado” que seria gozado por artistas,
os quais Kim Kataguiri situa num lugar social em
oposição ao do “trabalhador”, o “Projacquistão”
(Projac – Projeto Jacarepaguá, estúdio da TV Globo).
A “classe artística” é, diversas vezes, tomada por ele
como um eixo em torno do qual as perspectivas se in-
vertem e se tornam, assim, dignas de crítica política,
como no vídeo em que discorre sobre a disparidade
da ideia de “boicote” para a esquerda, ao se referir
ao boicote conduzido pelo MBL contra Queermu-
seu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira:
“tem um pessoalzinho aí de esquerda dizendo
que o MBL é autoritário, que o MBL é fascista, que o
MBL persegue a cultura, persegue a arte... Simples-
mente porque a gente promoveu uma campanha
de boicote a uma exposição que queria mostrar
pedofilia [sic], zoofilia e ofensas à fé cristã [sic]
(...) para crianças. Agora, o engraçado é que, hoje,
confundem boicote com censura. Mas antes essa
mesma esquerda boicotou a Alezzia, aquela empresa
de móveis planejados, que fazia propaganda com
uma mulher de biquíni, falando que era um absurdo,
era objetificação da mulher... (...) Boicotou a Ria-
chuelo, porque no dia dos namorados a Riachuelo
só colocou namorados heterossexuais. Direito de
vocês boicotarem, assim como é o nosso direito
boicotar algo que é absolutamente inadmissível.”17
Não por coincidência, é também um giro
muito similar a esse o que faz o deputado Car-
los Marun ao rebater a dura crítica de Benito
di Paula ao uso de Tudo Está no Seu Lugar:
“Não me cabe dizer, censurar, quase que
81
impor um novo AI-5, e a partir daí definir o que
os outros podem cantar nas suas músicas. Você já
fez muito sucesso, um tempo atrás, e suas músi-
cas passaram quase que a fazer parte da vida de
muitas pessoas... Você agora querer proibir que
alguém possa cantá-las, mesmo que seja num
ambiente de política, porque a política faz parte
da vida das pessoas e é essencial para a democra-
cia. E a censura – essa censura que você busca –,
essa não, essa é completamente desprezível.”18
Em suas críticas, Kim Kataguiri e Carlos Marun
convocam concepções de povo e de público para se
contrapor a práticas culturais consideradas como
não democráticas por, de um lado, “impor” e, em
contrapartida, rejeitar os valores do outro. Ao fazê-
lo, opõem, assim, regimes “distintos” de liberdade
e de autonomia: o da “classe artística”, que seria
privilegiado, e o do “público”, que estaria sendo
normatizado e cerceado pelo campo cultural, re-
spectivamente, por imposição e rejeição de valores.
Retórica e politicamente, jogam com conflitos soci-
ais não para lançar luz sobre a luta de classes, mas
para forjar uma “guerra cultural” entre as mesmas.
Com a inestimável e cínica colaboração de interess-
es político-partidários e do fundamentalismo de
algumas igrejas – em especial, as neopentecostais,
em assustadora expansão no Brasil –, apontam
epistemicídios e os catapultam moralmente.
Não têm tido dificuldades em perpetrar seu
projeto contra contracultural, uma vez que, por
um processo histórico que tem sido politicamente
perverso com o lugar social da arte, encontram um
campo cultural socialmente fraturado desde seu
interior, do que nos adverte a recente resposta de
Benito di Paula – “eu não tenho cultura, caralho!”
– e sua própria trajetória de legitimação no campo
da música, que estaria, segundo acusa o artista,
impossibilitando seu acesso às suas instâncias
hegemônicas (gravadoras e programas de televisão),
ainda que ele tenha já vendido “mais de 52 milhões
de discos” e tenha seus shows lotados: “eu não sei
o que que é... acho que é uma tal de geladeira em
que estão me botando. Eu não sei também por que
é que é. (...) Eu não tenho tido oportunidade nenhu-
ma. Nem de gravar, nem de mostrar meus discos.
A gravadora falou que meus discos estão sendo
devolvidos, mas eles continuam lançando mais...
(...) É uma coisa que machuca muito o artista. Eles
não vão ganhar nada com isso, porque quem está
perdendo é o público que gosta muito de mim.”19
Rechaçado estética e politicamente pela tradição
hegemônica da MPB, Benito foi tratado como “(...)
isca para atrair espectadores incautos”, acusado
de “redundâncias e acefalias (...)”20, recorrente-
being morally and politically conservative, presents
itself, nevertheless, as a culturally counter-hegemonic
force; a kind of counter counter-culture that seeks to
question the premises dominant today, as in the words
of Kim Kataguiri concerning the performance La Bête:
“what is the agenda behind this?”14. The irresponsible
and rash accusations of the latter, who is one of the
leaders of the Movimento Brasil Livre (Free Brazil
Movement) (MBL) are relocated from the specific situ-
ation that prompted them, the presence of a child at a
work of performance art at the Museum of Modern Art
of São Paulo, to attack the premises of the art: “It may
be a museum, it may even be modern, but in absolutely
no way is it art”. In another statement, Kim Katagu-
iri delivers a much broader criticism of the field of
culture, citing the “arrogance of the artistic class”, ac-
cusing us of being “monopolists of virtue”, “artists who
consider themselves an aristocracy”, “artists who con-
sider themselves enlightened beings who should rule
over the rest, who are untouchable”: “In the real world,
in the world of Mr and Mrs Smith, people work – in con-
trast to Projacquistão –, people think, people debate,
people disagree with each other without persecuting
or censoring those who think differently: there is a
healthy debate. Despite You15, we live in a democracy.”16
By morally and politically misappropriating the
class struggle, by speaking in the name of Mr and
Mrs Smith - the working class -, the MBL invokes a
notion of “social anonymity” against a kind of “priv-
ileged recognition” which is supposedly enjoyed by
artists, who Kim Kataguiri locates in a social space in
opposition to that of the “worker” - that of “Projac-
quistão” (Projac – Projeto Jacarepaguá, the studio of
TV Globo). The “artistic class” is repeatedly represent-
ed by him as an axis around which perspectives turn
and are inverted, rendering them worthy of political
criticism, as in the video where he holds forth on the
incongruity of the notion of a “boycott” for the left, in
referring to the boycott by the MBL of the Queermu-
seu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira:
“there are these little people on the left there
saying that the MBL is authoritarian, that the MBL
is fascist, that the MBL persecutes culture, that it
persecutes art... Simply because we staged a boy-
cott of an exhibition that wanted to show pedophilia,
zoophilia and attacks on the Christian faith (...) to
children. Now, the funny thing is that today they
confuse boycotts with censorship. But in the past,
this same left boycotted Alezzia, that company which
made pre-planned furniture, which had an advert
with a woman in a bikini, saying that it was absurd,
that it was objectifying women... (...) They boycotted
Riachuelo, because on Valentine’s Day, Riachuelo
only showed heterosexual couples. You have the
right to boycott, just as we have the right to boy-
cott something which is wholly unacceptable.”17
It is no coincidence that the parliamentary
representative, Carlos Marun, adopts a simi-
lar logic in refuting the harsh criticism of Benito
di Paula for using Tudo Está no Seu Lugar:
“It’s not up to me to say, to censor, to declare a
new AI-5 (governmental decree), and based on this to
determine what other people can sing in their songs.
You’ve already had great success, back in the past, and
your songs have practically come to form a part of the
lives of many people… Now you want to prohibit people
from singing them, even in a political environment, be-
cause politics is part of people’s lives and it’s essential
for democracy. And censorship – the censorship that
you are seeking -, this is completely despicable.”18
In their criticisms, Kim Kataguiri and Carlos Marun
invoke conceptions of the people and the public to
oppose cultural practices considered non-democratic,
for, on the one hand, “imposing” and, on the other,
rejecting the values of the other. In doing so, they thus
compare “different” notions of freedom and auton-
omy: that of the “artistic class”, which is privileged,
and that of the “public”, which is being standardized
and circumscribed by the cultural field, respectively,
through the imposition and rejection of values. Rhe-
torically and politically speaking, they are using social
conflicts not to shed light on the class struggle, but
to engender a “cultural war” between them. With the
invaluable and cynical participation of party-political
interests and of the fundamentalism of some church-
es – particularly, the neo-Pentecostalists, which are
expanding at a frightening rate across Brazil – they
invoke epistemicides and morally catapult them.
They have had few difficulties in perpetrating
their counter counter-cultural project, since, by a
historical process that has been politically perverse
in relation to the social place of art, they encounter a
cultural field fractured from within, of which Benito di
Paula’s recent response warns us – “I have no fucking
culture!” – and his own trajectory of legitimation in
the field of music, which, as he claims, has barred his
access to hegemonic institutions (recording labels and
television programs), despite the fact that he has sold
“over 52 million records” and plays to full houses: “I
don’t know what it is ... I think it’s that box in which
they’ve place me. Neither do I know why. (...) I’ve never
had any opportunity. Either to record, or show my
records. The record label said my records were being
sent back, but they continue to release more... (...) This
is something that really hurts an artist. They’re not
going to gain anything from this, because the ones
who are losing are the public who really like me.”19
Rejected aesthetically and politically by the dom-
82
Jacaranda - Nº 6
mente desqualificado em sua racionalidade – prá-
tica indicativa não apenas de um debate estético,
como também de um processo de epistemicídio.
Sem conseguir acessar o campo de legitimidade
da MPB com o qual se identificava, Benito muitas
vezes deixou transparecer, em suas músicas, essas
fronteiras que são também de classe, o que apa-
rece em Banda do Povo, uma homenagem a Chico
Buarque que suscita, por sua vez, uma atitude ética
de caráter diverso: “Esse moço de olhos claros,/ de
sorriso inteligente/ sabe as coisas do meu povo,/ se a
gente sofre, ele sente/ Esse amigo, camarada,/ sabe
do meu paradeiro/eu confesso, de verdade,/sempre
fui seu companheiro./ Vamos saudar/ o nosso poeta
mais novo/ botando na raça/ a banda na praça do
povo” (Banda do Povo, Benito di Paula, 1979). O
“moço de olhos claros e inteligente”, apresentado
de forma distintiva em relação ao “povo”, é contudo
saudado e bem-vindo por Benito, que se apresenta
socialmente como parte desse povo (“meu”), ao
passo que política e esteticamente identificado ao
moço que sorri, mas que sabe perceber o sofri-
mento do outro – “sempre fui seu companheiro”.
Parece-me, assim, que é não apenas por perspectivas
morais (e estéticas) distintas, como também
fundamentalmente pelas implicações de classe
no campo da cultura que têm tortuosamente sido
reverberadas as críticas à arte aguçadas com
Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte
Brasileira. Disputas de classe que hoje, pós-Lula e
transformações na cultura de consumo do país –
considerando também o crescimento sem precedentes
de igrejas pautadas pelo lucro pessoal e corporativo
–, tornam-se extremamente complexas e quiçá mais
facilmente manipuláveis para a criação de um nevoeiro
diante do qual inclusive os “velhos marinheiros”
se mostram desnorteados, questionando-se sobre
estratégias que, outrora como agora, “levam o barco
devagar”.
Ancorado na crítica à hegemonia cultural, esse
nevoeiro demanda escuta e análise crítica das
práticas deste nosso hegemônico campo, atentos aos
epistemicídios e proselitismos culturais, estéticos,
sociais, morais e políticos que estão implicados em
nossas concepções de arte, de alteridade e de público.
Aceitar irrestritamente a ideia de uma “guerra cultural”
(claramente apropriada por grupos reacionários,
como o tem feito Olavo de Carvalho21) e planejar
“contra-ataques” sem a devida problematização da
luta de classes que a circunscreve – e que, por fim, faz
estremecer nossa hegemonia – me parece um ato de
conservadorismo e hostilidade. É preciso mexer nas
coisas e em seus lugares. Terremoto.
83
1. https://oglobo.globo.com/cultura/musica/benito-di-paula-
se-musica-mudasse-algo-geraldo-vandre-teria-mudado-tudo-
22013422#ixzz54OuKgXL3, acessado em 29 de março de 2018.
2. “Elizeth x Benito”, Veja, nº 384, 14 de janeiro de 1976, p. 86.
3. Joaquim Ferreira dos Santos, “Ingênua Vanguarda”,
Veja, nº 436, 12 de janeiro de 1977, p. 92.
4. “Eu fiz ‘Tudo está no seu lugar, graças a Deus’ numa época muito difícil, porque
ninguém venha me dizer que a época da ditadura era fácil. Ainda mais pra mim, que
trabalhava à noite, tinha cabelo comprido, tinha de andar de madrugada. Toda hora
era chamado pra dizer aonde ia, o que foi, o que aconteceu. O Ziraldo chegou pra mim
e disse que quando ele fazia um trabalho e ficava pronto ele falava: ‘Tudo está no seu
lugar, graças a Deus’. Confundir isso com uma música pra ditadura? Tá maluco? Não
tem sentido alguém fazer uma música pra ditadura, certo?”. Disponível em: https://
revistatrip.uol.com.br/trip/muito-benito-hein, acessado em 29 de março de 2018.
5. Roberto Schwarz, Cultura e Política, 1964-1969, 3ª
edição, São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 8.
6. Augusto de Campos, Poesia Concreta: manifesto. Originalmente publicado na
revista AD – Arquitetura e Decoração, no 20, novembro/dezembro de 1956.
7. Décio Pignatari, Nova Poesia: concreta. Originalmente publicado na revista
AD – Arquitetura e Decoração, no 20, novembro/dezembro de 1956.
8. “Diversa de uma manifestação musical oriunda de um terreiro de
Vila Isabel (...), [a bossa nova seria] uma música mais voltada para o
detalhe, baseada quase sempre no canto, violão e pequenos conjuntos;
desenvolver-se-ia a prática do “canto-falado” ou do “cantar baixinho”. Júlio
Medaglia, “Balanço da Bossa Nova”, O Estado de São Paulo, 1966.
9. Júlio Medaglia, “Balanço da Bossa Nova”, O Estado de São Paulo, 1966.
10. Idem.
11. Boaventura S. Santos, Pela Mão de Alice, São Paulo: Cortez Editora, 1995.
12. Aparecida Sueli Carneiro, A Construção do Outro como Não Ser como Fundamento
do Ser, tese do Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade de São Paulo, 2005.
13. Benito di Paula critica o termo: “Samba-joia foi um trouxa que inventou! (...) Isso é
ridículo. Não existe samba-joia, como não existe pagode! (...) É samba. Tudo é samba!”.
https://www.youtube.com/watch?v=ark1hdnb4NU, acessado em 29 de março de 2018.
14. https://www.youtube.com/watch?v=9MIGAO2lLv8,
acessado em 29 de março de 2018.
15. Neste vídeo, uma resposta a uma crítica de Caetano Veloso contra o MBL, Kim
Kataguiri perversamente redireciona o vetor da crítica política que a geração do cantor
havia endereçado à ditadura militar com Apesar de Você (1970), de Chico Buarque.
16. https://www.youtube.com/watch?v=2-ewq1e0yE8,
acessado em 29 de março de 2018.
17. https://www.youtube.com/watch?v=I8RkIFuEsWs,
acessado em 29 de março de 2018.
18. https://www.youtube.com/watch?v=o_DrYv46ciY, acessado em 29 de março de 2018.
19. https://www.youtube.com/watch?v=Anj7PiFFKzs, acessado em 29 de março de 2018.
20. Renato de Moraes, “Pobreza de sons”, Veja, nº 336, 12 de fevereiro de 1975, p. 49.
21. http://www.seminariodefilosofia.org/guerra-cultural-inscricoes/, acessado em 29 de
março de 2018.
inant tradition of MPB, Benito was used as “(...) bait to ultimately, only causes our hegemony to totter – seems
attract unwary spectators”, accused of “redundancies to me an act of conservatism and hostility. We need
and idiocies (...)”20, repeatedly having his reasoning to stir things up, in their places: An Earthquake.
questioned – a practice indicative not only of an
1. https://oglobo.globo.com/cultura/musica/benito-di-paula-
aesthetic debate, but also of a process of epistemicide. se-musica-mudasse-algo-geraldo-vandre-teria-mudado-tudo-
Without access to the field of legitimacy of MPB with 22013422#ixzz54OuKgXL3, accessed on March 29th, 2018.
2. “Elizeth x Benito”, Veja, nº 384, January 14th, 1976, p. 86.
which he identified, Benito often highlighted these 3. Joaquim Ferreira dos Santos, “Ingênua Vanguarda”,
barriers in his songs, which are also class barriers, and Veja, nº 436, January 12th, 1977, p. 92.
4. “I made ‘Everything in its right place, thank God’ at a very difficult time, because
which appear in Banda do Povo (Band Of The People), nobody can come and tell me that the period of the dictatorship was easy. Even
less so for me, who worked at night, had long hair and had to go about in the early
a tribute to Chico Buarque and which invokes, in turn, hours of the morning. I was always being asked where I was going, where I had
been, what had happened. Ziraldo came up to me and said that when he did a job
an aesthetic attitude of a different kind: “Esse moço and it was ready he would say: ‘Everything is in its right place, thank God’. Are
de olhos claros,/ de sorriso inteligente/ sabe as coisas you going to confuse this with a pro-dictatorship song? Are you crazy? It doesn’t
make any sense to make a pro-dictatorship song, right? Available at: https://
do meu povo,/ se a gente sofre, ele sente/ Esse amigo, revistatrip.uol.com.br/trip/muito-benito-hein, accessed on March 29th 2018.
5. Roberto Schwarz, Cultura e Política, 1964-1969, third
camarada,/ sabe do meu paradeiro/eu confesso, de edition, São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 8.
verdade,/sempre fui seu companheiro./ Vamos saudar/ 6. Augusto de Campos, Poesia Concreta: manifesto. Originally published in the
magazine AD – Arquitetura e Decoração, no 20, November/December 1956.
o nosso poeta mais novo/ botando na raça/ a banda na 7. Décio Pignatari, Nova Poesia: concreta. Originally published in the magazine
praça do povo” (This blue-eyed boy / with his intelligent AD – Arquitetura e Decoração, no 20, November/December 1956.
8. “Unlike a form of music originating in a backyard in Vila Isabel
smile / knows things about my people / if we suffer, (...), [bossa nova was] a form of music more focused on detail, and
almost always based on the singing, violin and breif phrases; thus
he feels it / This friend, this companion / knows my the practice of “spoken-singing” or “quiet singing” emerged.” Júlio
whereabouts / I sincerely admit / I was always his Medaglia, “Balanço da Bossa Nova”, O Estado de São Paulo, 1966.
9. Júlio Medaglia, “Balanço da Bossa Nova”, O Estado de São Paulo, 1966.
comrade / Let’s greet / our youngest poet / putting 10. Idem.
11. Boaventura S. Santos, Pela Mão de Alice, São Paulo: Cortez Editora, 1995.
the band / in the people’s square) (Banda do Povo, 12. Aparecida Sueli Carneiro, A Construção do Outro como Não Ser
Benito di Paula, 1979). The “intelligent blue-eyed boy”, como Fundamento do Ser, dissertation from the Post-Graduate
Programme in Education of the University of São Paulo, 2005.
presented by contrast with the “people”, is neverthe- 13. Benito di Paula criticizes the term: “Samba-joia was a nonsense that they
less greeted and welcomed by Benito, who presents dreamed up! (...) It’s ridiculous. There is no such thing as samba-joia, just as
there is no such thing as pagode! (...) It’s samba. Everything is samba!”. https://
himself socially as part of this (“my”) people, to the www.youtube.com/watch?v=ark1hdnb4NU, accessed on March 29th 2018.
extent that he politically and aesthetically identifies
14. https://www.youtube.com/watch?v=9MIGAO2lLv8, accessed on March 29th 2018.
15. In this video, in response to criticism by Caetano Veloso of the MBL, Kim
Kataguiri perversely redirects the criticism which the singer’s generation leveled
with the smiling boy, who is able to appreciate the
against the military dictatorship with Apesar de Você (1970), by Chico Buarque.
suffering of others – “he was always my comrade”. 16. https://www.youtube.com/watch?v=2-ewq1e0yE8,
acessado em 29 de março de 2018.
It thus seems to me that it is not only due to 17. https://www.youtube.com/watch?v=I8RkIFuEsWs, accessed on March 29th 2018.
different moral (and aesthetic) perspectives, but 18. https://www.youtube.com/watch?v=o_DrYv46ciY, accessed on March 29th 2018.
19. https://www.youtube.com/watch?v=Anj7PiFFKzs, accessed on March 29th 2018
also fundamentally to class implications in the field 20. Renato de Moraes, “Pobreza de sons”, Veja, nº 336, February 12th 1975, p. 49.
21 http://www.seminariodefilosofia.org/guerra-cultural-
of culture that the criticisms of art, inflamed by the inscricoes/, acessado em 29 de março de 2018
Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Bra-
sileira, have reverberated so torturously. These class
conflicts today, post-Lula and with the transformations
of consumer culture in Brazil – bearing in mind also the
unprecedented growth of churches based on personal
and corporate profit –, have become highly complex
and perhaps more easily manipulable in order to
create a fog before which even the “old sailors” have
become disorientated, putting in doubt strategies that,
previously, as now, suggested “sailing the boat slowly”.
Anchored in the criticism of cultural hegemony,
this fog requires listening to, and a critical analysis
of the practices of this hegemonic field, which is
attentive to the epistemicides and cultural, aesthet-
ic, social, moral and political proselytisms that are
implied in our conceptions of art, otherness and the
public. To unreservedly accept the idea of a “culture
war” (clearly appropriated by reactionary groups, such
as has been done by Olavo de Carvalho21) and plan
“counter-attacks” without the due problematization
of the class struggle that circumscribes it – which,
84
Jacaranda - Nº 6
Herança conquistada,
direitos esquecidos, espelhos
devolvidos: a presença da
ancestralidade africana no
entendimento da arte e da
cultura brasileiras
* Marcelo Campos
À memória da vereadora Marielle Franco
dedico, humildemente, este texto, o que já fiz e o
que poderei fazer para a valorização da arte e da
cultura afrodescendentes. Ativista, defensora de
histórias marginais e invisibilizadas por uma po-
lítica excludente e homicida, a vereadora ocupou
espaço e emitiu sua voz exercendo a mobilidade
social tão temida por parte da elite brasileira.
Silenciar uma voz é calar a possibilidade de
escuta e diálogo potencialmente capazes de pro-
mover mudanças, atualizações e suturas em partes
da sociedade marcadas por condutas coloniais, por
heranças cruéis e por tentativas seculares de ma-
nutenção das desigualdades entre classes, gêneros
e etnicidades. O ano de 2017 foi marcado por di-
versas tentativas de silenciamento. Manifestações
artísticas em exposições, teatros, escolas e rodas
de samba foram questionadas e, em alguns casos,
impedidas, parcial ou completamente, de aconte-
cer, por ordens judiciais ou por iniciativas de outras
ordens. Com isso, retornamos à necessidade de
relembrar e explicitar conflitos históricos e sublin-
har a conquista por liberdade que parecia resolvida,
mas que retrocede, a cada dia, de forma alarmante.
Voltamos a saber que, frequentemente, ma-
nifestações culturais e religiosas, como as rodas
de samba e o candomblé – riquezas resultantes
de tradições e reinvenções da população negra
–, vêm enfrentando preconceitos e proibições de
todo tipo. Isto acontece desde as gritas e calúnias
postadas na internet às impossibilidades que
definem, por exemplo, a necessidade de se pedir
autorização para práticas de cultos já mais do que
estabelecidas e seculares na sociedade brasileira.
85
Tais impedimentos continuam crescendo e
tomando sistematizações legais, porém ilegítimas,
nas administrações públicas cariocas. A prática
religiosa do candomblé e da umbanda há muito se
estabelece pelas ruas da cidade, cachoeiras, praias,
encruzilhadas, matas, que sempre foram lugares
de acolhimento de oferendas e de realização de
cultos, marcados por cantos, danças, transes,
passes, defumação. Qualquer carioca tem, em sua
memória afetiva, alguma lembrança de benzedei-
ras, banhos de ervas, receitas de bons presságios,
isto sem entrarmos nas práticas de uso de roupas
brancas e de oferenda de flores ao mar destinadas
a Iemanjá, que se tornaram calendário oficial na
passagem do ano. As escolas de samba, desde os
anos 1960, louvam os orixás e a mitologia africana
em alas, fantasias, encenações. Mais do que exibi-
cionismo, estas são práticas de vida e resistência
sociocultural brasileiras. Assim, o povo se olhava
no espelho, se reconhecia e gritava por respeito.
As crianças cresciam conhecendo a história dos
orixás, percebendo que uma narrativa branca,
colonizada, não podia ser a única possibilidade de
se lidar com compreensões culturais relativas à
ancestralidade. Porém, jamais se conseguiu manter
sistematizado o ensino da cultura africana nos
âmbitos escolares, mesmo no ensino superior. A
mitologia afro-brasileira nos ensina que rainhas,
reis, princesas, gente do povo foram vitoriosos em
lugares longínquos, nas matas profundas e nas ci-
dades de Lagos, Oyó, Abeokuta, Benin. De lá vieram
nossos avós. E nossos ancestrais foram divinizados
e continuam nos protegendo, olhando por nós.
Os povos de origem africana foram raptados
Earned heritage, forgotten ri-
ghts, returned mirrors: the
place of african ancestry in the
understanding of Brazilian art
and culture
* Marcelo Campos
I humbly dedicate this text — as well as every-
thing I have done so far and shall do towards the
appreciation of Afro-descendant art and culture
— to the memory of Marielle Franco. As an activist
defending marginal and invisible causes and those
crushed by an excluding and murderous system;
the councilwoman secured her space and made
her voice heard by making social mobility a reality:
something much feared by the Brazilian elites.
To silence a voice is to suppress the possibility of
listening and establishing dialogue: processes which
are fundamental to creating change and improvement
for those parts of society that have been marked
by colonial perspectives, cruel legacies and secular
attempts to maintain class, gender and ethnic in-
equality. 2017 was a year of many silencing attempts.
Artistic expression in exhibitions, theatres, schools
and samba circles were questioned and, in some cases,
prevented from happening — either partially or fully —
by judicial warrants or other initiatives. Considering
this, it is of paramount importance to recall and explain
historical conflicts and to emphasise how although
the right to freedom appeared to have been achieved,
it is actually still backtracking at an alarming pace.
We are aware that once again cultural and
religious expressions, such as samba circles and
candomblé 1 — which form part of the wealth of con-
tributions resulting from black people’s traditions and
their reinvention — have been prohibited and affected
by prejudices of all sorts. This has taken place in the
form of rants and slander posted on the Internet, or
rules that prescribe the need to request authorisation
for religious practices that have long been established
in Brazilian society. Such obstacles are increasingly
developing and acquiring legal — albeit illegitimate —
status amongst Rio de Janeiro’s public administration.
The religious practices of candomblé and umbanda2
have long been visible on the city’s streets, waterfalls,
beaches, crossroads and bushes: places that have
always been home to offerings and rituals that are
characterised by chants, dances, trances, passes3
and fumigations. Anyone from Rio de Janeiro has
some affective memory of blessings, herbal baths and
recipes for good omens, not to mention the practice
of wearing white clothes and offering flowers to the
sea in honour of Iemanjá — the goddess of the sea
—, which is a popular tradition at New Year’s Eve.
Since the 1960s, samba schools have been exalting
the divine spirits of orixás and African mythologies in
their parades and costumes. More than exhibitionism,
these practices are forms of sociocultural resistance
rooted in Brazilian culture: they allow people to look
in the mirror, recognise themselves and demand
respect. As children grew up hearing stories about
their orixás, it was perfectly understandable for them
that a white, colonised narrative could not be the only
way of understanding ancestry. However, the teaching
of African culture has never been a systemic part of
formal education, not even at the higher levels. Af-
ro-Brazilian mythology teaches us that queens, kings,
princesses and common people were champions of
faraway places, such as the deep forest and the distant
cities of Lagos, Oyó, Abeokuta and Benin. That is where
our grandfathers came from. Our ancestors became
divine and continue to protect us and watch over us.
African people were inhumanely captured by
slavery: a system that began in the sixteen hundreds
and lasted for more than three centuries. This was
86
Jacaranda - Nº 6
com a mais ampla crueldade pela escravidão que se
estendeu por mais de três séculos, do XVI ao XIX,
justificada pela ganância de uma colonização bran-
ca que buscava ouro, riqueza e terras, marcando,
até hoje, várias famílias que vivem do agronegócio e
que mantêm tais riquezas na exploração das popu-
lações afrodescendentes, relegadas a condições de
trabalho adversas. O candomblé, o samba, as artes
visuais não solucionam as marcas da escravidão,
mas contribuem para o vir-a-ser, desde que haja
liberdade de expressão, para o reconhecimento e
a reflexividade nas justificativas de nossos altares
particulares, nas bênçãos recebidas, nos abraços de
caboclos, pretos velhos e orixás que permanecem
em práticas afrorreligiosas. Reconhecemos nosso
passado e projetamos nosso futuro com estratégias
de manutenção e reconhecimento do lugar, das es-
cutas, das falas e resistências vividas no cotidiano
mais próximo que pode ganhar visibilidade nas mí-
dias, nas escolas, no Congresso. Por que negar esta
possibilidade? É inadmissível misturar religião, po-
lítica e cultura em gestões de espaços que deveriam
ser inclusivos, porque públicos e humanitários.
No Brasil, qualquer proximidade a gestos e infle-
xões de discriminação e censura gera sentimentos
de revolta e combate e, infelizmente, voltamos a
tratar deste assunto 50 anos depois das maiores
atrocidades cometidas pela ditadura militar.
A sobrevivência do negro foi, em muitos casos,
a própria história de organizações sociopolíticas
hibridizadas. Neste sentido, arte, cultura e repre-
sentação social se configuraram em mediações
polifônicas. Sindicatos, como os dos trabalhadores
da estiva e arrumadores dos portos, foram lugar de
formação sociocultural importante para a histó-
ria de escolas de samba, como o Império Serrano.
Mano Elói, fundador da escola, foi, concomitante-
mente, líder sindical, sambista, praticante dos cul-
tos de matriz africana. Mesmo com tamanha lide-
rança, a população negra se vê calada por empregos
e condições sociais desiguais, ocupando morros, fa-
velas e estatística de mortes em confronto com po-
liciais e crimes sociopolíticos de várias naturezas.
Uma cidade com a riqueza cultural do Rio de
Janeiro não pode se tornar um local de delimi-
tação e discriminação social, artística e cultural.
Mas tomemos atenção, pois práticas excludentes
são estimuladas a todo instante, a cada dia, na
ausência de negros, pobres, trans, mulheres
das listas de exposição, das salas de museus, do
mercado de arte, das aulas de história da arte.
O que farei, a seguir, é adensar a importância
de uma cultura marginalizada e explicitar a pene-
tração da ancestralidade afro-brasileira nas mais
87
amplas manifestações culturais. De outro modo,
pode-se perceber que a arte, a literatura e a música
tratam da riqueza cultural afrodiaspórica como
fonte de conhecimento, ampliação, unidade nacio-
nal e, inevitavelmente, como componente revolu-
cionário singular. O que pretendo é gerar reflexão
e compromisso para uma reavaliação dos modos
como seguimos produzindo arte e cultura no Brasil,
a partir da conscientização de que viemos de uma
cultura afrodiaspórica que reviu suas heranças e
devolveu sua ancestralidade em práticas culturais.
+ and embraces from the spirit of a caboclo, a wise old
A cena do romance mostra um conflito que se
estabelecia como prática de intolerância religio-
sa nos primeiros decênios do século passado. O
delegado Pedrito Gordo se tornou famoso por
invadir candomblés na Bahia, como o de Pai
Procópio. O delegado de polícia, na cena descrita
por Jorge Amado, chegava ao candomblé de Majé
Bassã preparado para quebrar objetos litúrgicos
e decretar a prisão dos praticantes da religião de
matriz africana. Porém, Pedro Archanjo, um dos
adeptos do terreiro, caracterizado por lutas em
favor dos negros, protagonista do livro Tenda dos
Milagres (1969), gritou palavras em iorubá e a
cena se desfez com o orixá Ogum correndo atrás
da polícia. Ao final da história, um belo afoxé toma
as ruas da capital baiana e proclama a sobrevi-
vência da cultura negra. A religião afrodescen-
dente já havia sido retratada em outro romance
do autor, Jubiabá, de 1934, livro responsável pela
curiosidade de Pierre Verger e Carybé antes de os
mesmos conhecerem a Bahia. Nesta história, um
famoso pai de santo figurava como protagonista.
Jorge Amado foi o deputado federal mais
votado do Estado de São Paulo, em 1945, e autor
da lei, ainda em vigor, que assegura o direito à
liberdade de culto religioso. Assim como tantos
outros escritores e artistas, ele contribuiu para
que as matrizes africanas se tornassem destaca-
das na formação do imaginário brasileiro. Muito
antes, ainda no século XIX, a população negra,
escravizada, vinha adquirindo protagonismo
cultural. As negras de ganho são destaque nas
aquarelas de Debret, Rugendas, além de figurarem
nos cartões de fotografia de Christiano Júnior e
Victor Frond. Portanto, indumentárias, avelóri-
os, joias de crioula, panos da costa frequentam as
representações visuais do Brasil, todas de fundo
religioso e cultural. Por mais que se possa falar
de “apropriação cultural”, a sociedade brasileira
se via, concomitantemente, refletida e aviltada.
Paralelamente a tais representações, a popu-
lação negra, abandonada à própria sorte, ocupara
the product of a white colonising system, greedy in its
search for gold, wealth and land. This is the same sys-
tem that continues to be driven by many agribusiness
families, who sustain their wealth through the exploita-
tion of afro-descendants forcing them into adverse
working conditions. Candomblé, samba and the visual
arts are not a quick fix that can reverse the stains of
slavery. However, these practices will continue to con-
tribute to the emancipation of Afro-populations as long
as there is freedom of speech and freedom to recog-
nise and see a reflection on private altars and blessings
man called preto-velho, or another deity — all of which
still prevail in Afro-religious practices. By recognising
our past and projecting our future through strategies
for maintaining and acknowledging everyday places
of being, listening, talking and resisting, these will
become visible in the media, schools and the Congress.
Why should this possibility be denied? It is unjustifiable
to use religion, politics and culture as an excuse to
control places that should be inclusive given their pub-
lic and humanitarian character. In Brazil, any emphasis
on discrimination and censorship, generates feelings
of revolt and combat. It is unfortunate that we are still
talking about these problems 50 years after the great-
est atrocities perpetrated by the military dictatorship.
The survival of the black man coincides, in many
cases, with the development of hybrid social-political
organisations. In this sense, art, culture and social
representations are configured in polyphonic medi-
ations. Unions, such as those formed by dockyard
and port workers, were important places for the
social and cultural evolution of samba schools, like
Império Serrano. Its founder Mano Elói was a union
leader, sambista and a keen follower of Afro-Bra-
zilian cults. Even with this degree of leadership, the
black population is still marginalised by unequal
employment and social conditions; inhabiting hills
and favelas under atrocious death statistics, which
are often the result of confrontations with the police
or a consequence of other socio-political crimes.
A culturally rich city like Rio de Janeiro cannot
become a place of social, artistic and cultural limita-
tion and discrimination. We must become aware of
the excluding practices that keep black, poor, trans-
gendered people and women away from exhibitions,
museums, art markets and art history lessons.
I shall highlight below the important cultural
contributions of people from marginalised groups and
uncover the relevance of Afro-Brazilian ancestry to a
wide range of cultural manifestations. Art, literature
and music have drawn from the cultural wealth of the
African diaspora, using it as a source of knowledge, ex-
pansion, national unity and, inevitably, as a revolution-
ary element. My aim here is to commit to reflecting on
and reassessing the ways we produce art and culture
in Brazil, and to cultivate an awareness that our cul-
ture has revived the heritage of our African ancestry in
its cultural practices.
+
A novel depicts a conflict born of religious intol-
erance in the first decades of the last century. Police
chief Pedrito Gordo became notorious for invading
candomblé houses in Bahia, such as Father Procópio’s.
In the scene described by author Jorge Amado, the
high rank policeman arrives at Majé Bassã’s candomblé
house, prepared to destroy religious objects and arrest
Afro-descendant worshipers. However, Pedro Arch-
anjo, one of Majé Bassã’s locals who was a prominent
figure in the struggle for black people’s rights, as well
as being the protagonist in Amado’s book Tenda dos
milagres (1969), shouts something in Yoruba and the
police chief ends up being chased by the orixá Ogum.
At the end of the story an afoxé — a beautiful mu-
sic-filled procession in the streets of Salvador, Bahia
— announces the survival of black culture. Prior to this,
Afro-Brazilian religions had already been depicted in
another novel by the same author titled Cuiabá (1934).
The book triggered the interest of Pierre Verger and
Carybé even before they visited Bahia for the first
time. In this story, the protagonist is a famous pai-
de-santo: a male priest in candomblé and umbanda.
In 1945, Jorge Amado was the most voted federal
assemblyman in the state of São Paulo. He authored
the law that protects the right to free religious wor-
ship, which is still in force today. Like many other writ-
ers and artists, he contributed to establishing the Af-
rican foundations that make up the Brazilian imagery.
However, prior to this, as early as the 19th century, the
black population started to secure some level of cultur-
al prominence. Waged slaves were highlighted in De-
bret and Rugendas’ watercolours. They also featured
in Christiano Júnior and Victor Frond’s photo-cards.
Garments, beads, jewellery and shawls adorned visual
representations of Brazil, highlighting the diverse
religious and cultural backgrounds. Even though we
can talk about ‘cultural appropriation’, Brazilian society
was at the same time reflected and demeaned.
In parallel to such representations, the black
population, abandoned to their own devices, occupied
the streets, took small jobs and gathered in popu-
lar celebrations. Even as early as the 18th century,
black fraternities built convents and sponsored side
altars in baroque churches. However, these initia-
tives were carried out in hardship, year after year. In
some fraternities — often dedicated to Saint Benedict
and Our Lady of the Rosary — black women created
cults, such as Irmandade da Boa Morte in Cachoei-
88
Jacaranda - Nº 6
as ruas, os pequenos ofícios, as festas populares.
Ainda antes, desde os idos do século XVIII, nas
irmandades negras, construíam-se conventos
e patrocinavam-se altares laterais das igrejas
barrocas. Mas tais iniciativas se edificavam por
anos a fio, pela absoluta falta de recursos. Em
irmandades específicas, muitas vezes dedicadas
a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, as
negras criavam cultos, como os da Irmandade
da Boa Morte, em Cachoeira, recôncavo da Ba-
hia. Assim, cacumbis, cheganças, lundus, jongos
coroavam reis e rainhas negras, do Congo, aludin-
do a tradições africanas por todo o Brasil. Tudo
sincrético, misturado, impuro, como se carac-
teriza a realidade brasileira até os dias atuais.
No Rio de Janeiro, mais especificamente,
desde o fim do XIX registram-se festas em lou-
vor à rainha do mar, além de práticas religiosas e
pagãs nas casas das tias baianas, Ciatas, Amélias,
Percilianas, também tias do samba. Samba e
candomblé, portanto, criaram relações seculares.
Enquanto isso, depois de reformas urbanas, o
contingente negro da cidade era relegado aos
morros, favelas e subúrbios. Apesar de tudo, os
negros construíram uma arte e uma cultura de
resistência, impregnada e imiscuída no âmago
da arte brasileira. O candomblé e a umbanda são,
entre outras manifestações, parte desta fonte de
saber, mitologia e visualidade. Como nos afirma
Joel Rufino, todas as entidades religiosas, artísti-
cas, recreativas, políticas “fundadas e promovidas
por pretos e negros” são movimento negro1.
Dois congressos afro-brasileiros, um em
1934, organizado por Gilberto Freyre, em Recife,
e outro em 1937, em Salvador, tendo uma Iyal-
orixá importante, Mãe Aninha, como figura de
destaque, construíram laços entre poderes pú-
blicos, políticos, artistas e sacerdotes da religião
do candomblé. Uma das práticas combatidas à
época era, justamente, a intolerância religiosa e os
ataques aos terreiros. Os participantes do congres-
so de Salvador, por exemplo, foram recebidos no
terreiro do Opô Afonjá, comandado pela referida
Iyalorixá. Nestes eventos, foram selados a difusão
e o pertencimento mais amplo da religião afrode-
scendente como cultura nacional, riqueza e re-
sistência de uma população pobre e discriminada.
Se quisermos ampliar a relação imbricada en-
tre religião, arte e cultura brasileiras, para além das
pesquisas modernistas, teremos desde as viagens
folclóricas de Mário de Andrade à convivência de
Di Cavalcanti, Pancetti, Goeldi com a população de
ascendência africana. Adensando tal presença, o
protagonismo de negros como artistas e autores,
89
de Machado de Assis a Heitor dos Prazeres, dos
irmãos Rebouças a Milton Santos. Sem falar nos
mais destacados dentro desta relação da arte e da
cultura afro, como Rubem Valentim, Mestre Didi,
Ronaldo Rego, Emanoel Araújo, Rosana Paulino,
Arjan, Sidney Amaral, Dalton Paula, Jaime Lauri-
ano, entre tantos outros. Deve-se destacar que a
política de cotas contribuiu para uma importante
ampliação da presença de artistas negros na arte
contemporânea nos últimos dez anos. Portanto,
nunca se podem distinguir cultura e arte no Brasil
sem a herança africana como contexto, assunto e
potência. Isto sem falar na música, dos maxixes,
sambas, bossas novas, afrossambas, tropical-
ismos ao funk, hip hop, rap, que poderiam ser
de influência americana, por exemplo, mas, no
Brasil, se misturam a partido alto, repentes, axés.
+ hills, favelas and suburbs. Despite everything, black
A história desta relação entre cultura e arte
afrodescendentes não pararia por aqui. Porém,
inacreditavelmente, hoje, em 2018, temos que
levantar a voz e a pena para pedir providências
frente a casos inacreditáveis de intolerância
religiosa e fundamentalismos de todo o tipo.
Como se não bastassem toda potência e presen-
ça artística, cultural e social de terreiros que
somente nos anos 1980 começaram a se tornar
patrimônio imaterial –contando, hoje ainda, com
baixo quantitativo frente a centenas de terrei-
ros por todo o país –, vemos casos inadmissíveis
e criminosos de perseguição e preconceito.
Um vídeo de 2017, compartilhado pelas redes
sociais, mostra um sujeito empunhando um bastão
de beisebol, onde se lê “diálogo”, diante de um
jovem, provavelmente o zelador do terreiro, com
o rosto de Jesus Cristo estampado na camiseta,
quebrando um peji (ou roncó), nome dado a altares
litúrgicos dos terreiros de umbanda e candomblé.
Em outro, frente à câmera de celular, uma sac-
erdotisa é obrigada a destruir louças, colares,
guias, exibindo um conteúdo, até então, secreto
e privado, o quarto dos orixás, e revelando o que
se guarda e cultua dentro dos ibás, vasilhames
destinados a reservar os assentamentos dos deuses
afro-brasileiros. A fragilidade e a rendição da
senhora nos fazem refletir e nos revolta. O que
aconteceu? Como alguém pode invadir uma casa
de culto, ordenar a destruição da fé alheia? Em que
época estamos? Será que antes da lei escrita por
Jorge Amado ou dos congressos afro-brasileiros?
Um outro vídeo, de 2015, também fartamente
difundido nas redes sociais, nos demonstra uma
espécie de tomada de satisfação. Desta vez, Mãe
Márcia D’Obaluaê se dirige a uma vendedora,
ra, in the inland region of the state of Bahia known
as Recôncavo. Cacumbi dances, Iberian-inspired
popular events called cheganças, African rhythms
like lundu and jongo, and coronations of black kings
and queens from Congo alluded to African tradi-
tions all across Brazil. Everything was syncretic,
mixed and impure, just like Brazilian culture today.
Since the end of the 19th century in Rio de Ja-
neiro, there are records of public celebrations in
homage to the Queen of the Sea, as well as religious
and pagan practices in the houses of tias (‘aunties’)
Ciata, Amélia and Perciliana: influential black women
who migrated from Bahia to Rio de Janeiro and also
played a prominent role in the samba milieu. Samba
and candomblé instigated secular interrelations. At
the same time, after a process of urban reform, Rio de
Janeiro’s black contingent was consigned to the city’s
people created art forms and a culture of resistance,
steeped and infused into the core of Brazilian art.
Candomblé and umbanda are, amongst other expres-
sions, part of this source of knowledge, mythology
and visuality. According to Joel Rufino, all religious,
artistic, recreational or political entities ‘founded
and promoted by blacks’ are the black movement.4
In the 1930s, two Afro-Brazilian congresses
were able to build links between the authorities,
politicians, artists and candomblé priests. The first,
in 1934, was organised by Gilberto Freyre in Recife,
and the second, in 1937, in Salvador, featured the
influential Iyalorixá5 ‘Mother’ Aninha, as one of their
main guests. At the time, one of the causes defend-
ed by the black movement was the end of religious
intolerance and the attacks to terreiros: places
of worship in candomblé and umbanda. Congress
delegates were received at the terreiro Opô Afonjá
in Salvador, headed by the distinguished ‘Mother’
Aninha. At the congresses, Afro-Brazilian religions
were consecrated as part of the broader national
culture and wealth and as a form of resistance for
an impoverished and discriminated population.
We can go further in the analysis of the inter-
woven relation between Brazilian religion, art and
culture by including modernist research, from Mário
de Andrade’s folkloric travels to the links between
Di Cavalcanti, Pancetti and Goeldi and Afro-Brazil-
ian populations, as well as the prominence of black
artists and authors, from Machado de Assis to Heitor
dos Prazeres, and from the brothers Rebouças to
Milton Santos. This list does not even include the
most acclaimed figures within Afro-Brazilian art and
culture, such as Rubem Valentim, Master Didi, Ronaldo
Rego, Emanoel Araújo, Rosana Paulino, Arjan, Sid-
ney Amaral, Dalton Paula, Jaime Lauriano, amongst
many others. It is worth mentioning that the current
policy of quotas has contributed to a significantly
increased presence of black artists in contemporary
art in the last ten years. Therefore, we can never talk
about culture and art in Brazil without the African
legacy as a context, theme and driving force. And
this is aside from music, including maxixe, samba,
bossa nova, afrossamba, tropicalismo, and funk,
hip-hop and rap, which despite being influenced by
American music, have always been combined with
rhythms such as partido alto, repente and axé.
+
The impact of the history of Afro-Brazilian culture
and art is inexhaustible. However, it is utterly beyond
belief that today, in 2018, we have to raise our voices
and pens in order to demand solutions for hard-to-
swallow cases of religious intolerance as well as
many forms of fundamentalism. We currently see a
myriad of unacceptable and unlawful cases of perse-
cution and prejudice despite the artistic, cultural and
social power and presence of terreiros, which only
in the 1980s were allowed to receive the status of
immaterial heritage. However, to date, even though
there are hundreds of terreiros across the coun-
try, only a handful have been granted this status.
A video from 2017 that was shared on social media
shows a man wearing a Jesus Christ t-shirt holding
a baseball bat with the word ‘dialogue’ written on it.
He is wrecking a peji (or roncó) — the name given to
shrines in umbanda and candomblé — as a young man,
probably the terreiro’s caretaker, watches. In anoth-
er video, a priestess is forced to destroy crockery,
necklaces and beads, exposing the orixás room:
something that until then had been secret and private.
As she does this she reveals the holy items that are
kept inside the ibás — containers used to safeguard the
objects that represent the orixás in the physical world.
The woman’s vulnerability and surrender infuriates
us and makes us reflect. What happened? How can
someone invade a place of worship and demand the
destruction of someone else’s faith? In what times are
we living in? Is this happening in an era before Jorge
Amado’s law or the Afro-Brazilian congresses?
Another video from 2015, also widely shared
on social media, shows the reaction to an insult.
Here, ‘Mother’ Márcia D’Obaluaê confronts a black
saleswoman who assaulted her laô (spiritual daugh-
ter), expelling her from the shop. The laô is typically
dressed: wearing white clothes and an ojá turban.
The saleswoman, speaking on behalf of evangelical
dogmas, insulted the young woman for belonging to a
religion that was supposedly ‘from the devil’. ‘Mother’
Márcia, whose language is clear and eloquent, asks:
‘who gave you the right to judge me? I don’t know
90
Jacaranda - Nº 6
negra, que havia agredido sua filha de santo (Iaô),
expulsando-a da mesma loja. A Iaô, por preceito,
portava-se com caracterizações na indumentária,
usando exclusivamente a cor branca e torsos
(ojás) na cabeça. A vendedora, falando em nome
de dogmas evangélicos, havia insultado a menina
por pertencer a uma suposta religião “do diabo”.
Mãe Márcia, em fala esclarecedora e organizada,
pergunta: “quem te dá o direito de me julgar? ”.
E continua: “eu não te conheço, não sei quem
você é, nunca te vi e pretendo não ver mais”. A
vendedora permanece incólume. “Eu nunca vim
aqui na sua porta para te chamar para ir no meu
candomblé, embora os seus batam na minha”. A
Ialorixá se referia à prática pentecostal de difusão
dos cultos, oferecendo panfletos ou, mesmo,
tocando a campainha de desconhecidos. “Você
deveria respeitar não só ela (apontando para a
filha de santo), mas qualquer pessoa de qualquer
religião”. “Eu tenho casa de candomblé aberta no
Rio de janeiro há 27 anos e foi a primeira vez que
eu tive que sair da minha casa (...), passar o dia
inteiro numa delegacia dando queixa contra você”.
Estes fatos demonstram alto grau de com-
plexidade em relações que deveriam estar mais
do que normatizadas, a partir de leis de proteção.
A intolerância religiosa não pode sequer existir.
E, talvez, seja necessário aplicar políticas afir-
mativas, para que a liberdade de culto se esta-
beleça, como na adoção de cotas raciais, em favor
da igualdade de direitos. Se a história deixou
irregulares os privilégios entre negros e bran-
cos, que a mesma se faça na sedimentação de
práticas para que as desigualdades diminuam.
É comum ouvirem-se críticas sobre o modelo
das cotas raciais, mas a mobilidade da sociedade
precisa fluir. Outras regras devem ser criadas e
repensadas. Hoje, para me ater aos mecanismos
da arte, as grandes divisões entre cultura popular
e erudita, arte formalista e contextual não de-
vem mais concorrer para uma suposta elevação
classista da qualidade de uma obra de arte. Há
muitas urgências a serem colocadas em questão.
A separação entre kitsch e vanguarda, de Clement
Greenberg, o conceito de negatividade de Theo-
dor Adorno funcionaram num momento em que
uma conjecturada distinção formal se estabelecia.
Mas precisamos rever essas bases. O que se pede,
agora, é a presença, a participação, a ampliação
do contingente antes marginalizado nas bienais,
nos salões, no sistema oficial. E todos precisamos
rever as classificações comparativas e valorativas.
Entre Volpi e Rubem Valentim, privilegiou-se o
primeiro, mesmo tendo Valentim críticas positivas
91
de Giulio Carlo Argan, por exemplo. Uma obra de
arte pode criar sentidos ampliados, num grupo, no
orgulho de uma tradição, num bairro. Os objetos
de culto do candomblé continuam nas instituições
policiais. E, o pior, eles muitas vezes estão lacrados,
escondidos. Por quê? Qual o sentido? Se o museu é,
como quer James Clifford, uma “zona de contato”,
será necessário que a cultura material se explicite,
entregando-se à análise e a uma convivência viva
e performativa com o público, não mais entro-
nizada, somente, por especialistas, mas, antes,
destinada a uma escuta junto aos grupos dos quais
as mesmas peças foram retiradas, apropriadas.
Mais do que entretenimento e selfies, a
arte afro-brasileira lida com a possibilida-
de de criar elos de herança junto a objetos e
histórias que necessitam ser reconduzidos
ao mundo, reinterpretados pela sociedade
brasileira e global. Sabemos que assim nin-
guém resistirá aos encantos de um espelho.
1. Joel Rufino apud Petrônio Domingues, “Movimento Negro
Brasileiro: alguns apontamentos históricos”, Tempo [online], 2007,
vol. 12, n. 23, pp.100-122. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/
tem/v12n23/v12n23a07, acessado em 26 de março de 2018.
you, I don’t know who you are and I do not expect to More than entertainment and selfies, Af-
see you again’. The saleswoman remains speechless. ro-Brazilian art deals with the possibility of cre-
‘I have never come to your door to ask you to come ating heritage links between objects and stories
to my candomblé, even though your colleagues knock that need to be taken to the world and reinter-
on my door all the time’. The Iyalorixá priestess is preted in Brazil and internationally. We know
referring to the practice carried out by some Christian that nobody will resist the allure of a mirror.
cults to convert followers, offering leaflets or even
1. Candomblé is a religion founded on African traditions
knocking on people’s doors. ‘You should respect her with millions of followers in Brazil.
(pointing to the young woman) and anyone else from
any other religion. I have had my candomblé house
in Rio de Janeiro for 27 yeas and this was the first
time I had to leave my house (…), spend the whole day
in a police station filing a complaint against you’.
These examples demonstrate the level of complexi-
ty surrounding relations that should have been nor-
malised since the passing of protection laws. Faith intol-
erance should not even exist. Perhaps it is necessary to
apply affirmative action policies in order to fully realise
freedom of worship in the same way racial quotas
are used to foster equal rights. If past history has left
irregularities in terms of privileges between black and
white people, the history of the future should be written
using practices aimed at decreasing these inequalities.
Criticism against the model of racial quotas is very
widespread. However, social mobility is something
that must be pushed. Other rules must be created and
reviewed. Today, specifically in the field of art, the
long-standing divisions between popular and erudite
culture and formalist and conceptual art, should not
be applied as a classist means of over-evaluating the
supposed quality of a work of art. There is a plethora
of other more urgent issues. Clement Greenberg’s
separation between kitsch and avant-garde and Theodor
Adorno’s negative dialects, worked well in a time when
an assumed formal distinction was being established.
However, we must review these foundations. What
we need now is a wider presence and participation of
groups of society that have been marginalised from
biennials, salons and the official system. We all need to
reconsider comparative and evaluative classifications.
Between Volpi and Rubem Valentim, the former has
always been favoured, even though the later received
positive reviews by, for instance, Giulio Carlo Argan.
An artwork can create wider sentiments in a group, a
pride to be part of a tradition, or a community. Ob-
jects of candomblé worship are still found in police
institutions. And, worst of all, some of them are locked
away and hidden. Why? What is the point? If, accord-
ing to James Clifford, the museum is a ‘contact zone’,
material culture must be explicit, giving itself over to
analysis and to interactive and live contact with the
public. Only then will it be freed from the control of
specialists and understood as a way of listening to the
group from which it was snatched or appropriated.
92
Jacaranda - Nº 6
Veneno-Remédio: arte e
liberdade de expressão
* Ronaldo Lemos
Introdução
Estamos vivenciando na prática o conflito a
respeito dos limites da liberdade de expressão. Por
exemplo, presenciamos uma onda de protestos contra
manifestações artísticas, incluindo exposições por seu
suposto conteúdo “profano” ou “pornográfico”, ou ain-
da performances em que o corpo humano se coloca nu.
Muitas dessas manifestações são orquestradas por
grupos políticos conservadores, que, valendo-se de
vídeos e outras estratégias inflamatórias na internet,
conseguem disseminar pânicos morais. Vale notar
que pânicos morais não são novidade. Especialmen-
te em momentos de tensão social, comportamentos
coletivos desse tipo podem emergir, como já acon-
teceu com filmes como Je Vous Salue, Marie (1985),
de Jean-Luc Godard, proibido no Brasil, ou Stallone
Cobra (1986), de George Pan Cosmatos, cuja proibição
foi cogitadada na época por causa da violência e teve
classificação indicativa de 18 anos. Ou, ainda, com
videogames como Counter Strike, Postal ou Ever-
quest, que chegaram a ser objeto de decisões judiciais
proibindo sua comercialização e acesso no país.1 Ainda
mais recentemente, com o temor a respeito do jogo
Baleia Azul, que alegadamente induziria crianças e
jovens ao suicídio, culminando na proposição de uma
CPI no Congresso Nacional para tratar do tema.2
Usualmente, pânicos morais rapidamente se
transformam em propostas de mudança legislati-
va. Como conseguem despertar a atenção de muitas
pessoas (ainda que por um curto espaço de tem-
po), acaba surgindo algum congressista buscando
“surfar” naquela comoção para se posicionar como
campeão moral a respeito do tema. Um exemplo
é o projeto de lei 8740, proposto em outubro de
2017 na Câmara dos Deputados e que, para pro-
teger crianças e adolescentes, na prática teria por
efeito a proibição da nudez em obras de arte.
Ainda pior, muitas vezes pânicos morais são
utilizados para alavancar agendas altamente nocivas
de supressão de direitos, que de outra forma jamais
avançariam. Nesses casos, a comoção é instrumental-
izada para fazer avançar algum tipo de proposta que
atende a certos grupos de interesse, que, em situações
93 normais, não conseguiriam fazer avançar aquele tema.
Nesses casos, a mudança proposta costuma ser não
pontual (como no caso do projeto acima) mas estru-
tural. É o caso da CPI da Baleia Azul. Conforme análise
que publiquei no jornal Folha de S. Paulo, o objetivo
da CPI não é a proteção de crianças e adolescentes,
mas sim o controle puro e simples da internet:
A CPI prestes a ser instalada não é contra a
Baleia Azul. É contra todos os que usam a internet no
país para criticar políticos. Como não seria aceitável
instalar uma CPI para apurar “críticas realizadas
aos políticos pelos cidadãos”, usa-se o subterfúgio
da proteção das crianças e adolescentes — prática
que já está ficando manjada — para fazer andar a
tentativa de censurar a rede. A agenda de controle
da internet no Brasil infelizmente permanece en-
tre nós. Ela foi fortemente defendida, por exemplo,
pelo ex-deputado Eduardo Cunha, que conseguiu
articular toda uma geração de projetos de lei com
essa finalidade. Nenhum foi aprovado ainda, mas
vários avançam a passos largos. Sempre que algum
“pânico moral” relativo à rede ganha força, a tenta-
tiva de controlar a internet no país pega carona.3
É especialmente incômodo em muitos desses casos
ver que a proteção a crianças e adolescentes, tema de
vital importância, acaba sendo utilizada como justifica-
tiva para fazer avançar agendas de supressão de direi-
tos e que atendem a grupos de interesse organizados.
Em outras palavras, para quem acompanha o debate
sobre liberdade de expressão no Brasil, já é conhecida a
estratégia de utilizar a proteção a crianças e adolescen-
tes como bucha de canhão para promover mudanças le-
gislativas liberticidas. Por essa razão, não causa surpre-
sa essa estratégia ter sido novamente empregada nos
casos recentes envolvendo exposições artísticas e per-
formances onde havia a presença do corpo humano nu.
O Dilema da Liberdade de
Expressão: Arte e “Fake News”
Não é fácil ser um defensor da liberdade de
expressão no mundo de hoje. A palavra é uma mo-
dalidade de exercício do poder. E todo poder pode
ser abusado. A mesma liberdade de expressão que
permite a livre criação e manifestação artística é
invocada para que grupos políticos organizados
Poison-Remedy: art and free-
dom of expression
* Ronaldo Lemos
Introduction
We have been experiencing, in practical terms,
the conflict regarding the limits of freedom of
expression. The wave of protests against artistic
performances, including exhibitions for their
supposedly “profane” or “pornographic” content, or
yet performances displaying the nude human body,
are such examples.
A great deal of such protests is orchestrated by
conservative political groups, who manage to
disseminate moral panic using videos and other
inflammatory strategies on the Internet. It is worth
pointing out that moral panics are not something
new. Especially in times of social tension, this type
of collective behavior can emerge. This is what
happened with the movie Je Vous Salue, Marie
(1985), by Jean-Luc Godard, which was banned in
Brazil, or the movie Stallone Cobra (1986), by George
Pan Cosmatos, whose violent content prompted
an attempted ban and ended up being rated R. The
same happened with video games such as Counter
Strike, Postal or Everquest, which became the subject
of judicial orders prohibiting them to enter and
be sold in the country.1 It happened again recently
when the Blue Whale game raised concerns, as it
would allegedly lead children and adolescents to
commit suicide; it culminated with the proposal for a
Congressional Investigative Commission (CPI) in the
Brazilian Congress to address the issue.2
Usually, moral panics quickly turn into pro-
posals for legislative change. Since they manage
to arouse the attention of many people (even for
a short time period), some members of Congress
might take advantage of that commotion to posi-
tion themselves as moral champions on the issue.
One such example is the Bill 8740, proposed in
October 2017 at the House of Representatives
and that, in practice, would have banned nudity in
works of art to protect children and teenagers.
Even worse, moral panics are often used to lever-
age highly damaging agendas for the suppression of
rights, which would never move forward otherwise.
In these cases, commotion is manipulated to put for-
ward proposals that meet the needs of certain groups
of interest, who would not be able to put the theme
forward under regular circumstances. In those cases,
the proposed change is often not specific (such as in
the bill mentioned above) but structural. This relates
to the CPI on the Blue Whale game. According to the
analysis I published in the Folha de São Paulo news-
paper, the goal of the CPI is not to protect children
and teenagers, but the sheer control of the Internet:
The CPI whose work is about to start is not
against Blue Whale, it is against all those who use the
Internet in the country to criticize politicians. Since it
would not be acceptable to open a CPI to investigate
the “criticism of politicians by citizens,” the alleged
protection of children and teenagers is used to cam-
ouflage the attempt to censor Internet content — a
practice already well known. The agenda to control
the Internet in Brazil has unfortunately survived.
It was fiercely supported by former congressman
Eduardo Cunha, for example, who managed to set up
a series of bills for this purpose. None of them has
been approved yet, but several are quickly moving
forward. Whenever an Internet-related “moral panic”
consolidates, the attempt to control it reemerges.3
In many of these cases, it is especially uncom-
fortable to see that the protection of children and
teenagers, a matter of vital importance, ends up
being used as justification to put forward agendas on
the suppression of rights that meet the needs of or-
ganized groups of interest. In other words, for those
who follow the debate on freedom of expression in
Brazil, the strategy to use the protection of children
and teenagers as allegation to promote anti-free-
dom legislative changes is already known. For this
reason, it is no wonder that this strategy was used
again in recent cases involving artistic exhibitions and
performances that displayed the nude human body.
94
Jacaranda - Nº 6
realizem ataques de “assédio direcionado”4, valen-
do-se para isso de notícias falsas, memes inflamatóri-
os, robôs, perfis falso, entre outras estratégias.
Em outras palavras, defender a liberdade de
expressão no mundo de hoje é atividade que evoca o
conto moral da espada da Dâmocles. Como se sabe,
Dâmocles era um súdito bajulador e dizia que o rei
Dionísio de Siracusa, por causa do seu poder, era um
homem de grande fortuna. Em face disso, Dionísio
propôs trocar de lugar com Dâmocles por um dia, para
que ele experimentasse o gosto da fortuna. Dionísio en-
tão determinou que uma espada fosse pendurada sobre
a cabeça de Dâmocles, presa apenas por um único fio da
crina de um cavalo. O súdito, ao ver a espada pairan-
do sobre sua cabeça, perdeu o interesse pelo gozo da
fortuna que lhe foi oferecida e abdicou do posto.
Em um mundo tomado por um processo pro-
fundo de manipulação da esfera pública, onde a
verdade é distorcida de formas flagrantes ou sutis,
onde robôs assumem a forma de cidadãos comuns,
onde debate e propaganda se confundem, o defen-
sor da liberdade de expressão está fadado a viver
sob a espada de Dionísio. Especialmente por sa-
ber que está lidando com um direito fundamental
que se tornou um verdadeiro veneno-remédio.
Vale notar que o próprio debate sobre “fake news”
está despertando em si uma modalidade própria de
pânico moral. E tal como no caso daquele que assolou
o mundo das artes, o temor contra as “fake news” e sua
possibilidade de manipular resultados políticos está
levando diversos grupos de interesse no país a se mo-
bilizarem para fazer avançar agendas de supressão de
direitos que de outra forma também não avançariam.
De fato, vivemos em um mundo em que a infor-
mação circula de forma cada vez mais rápida. Lidar
com esse desafio de forma construtiva e democrática
é uma das tarefas mais importantes do nosso século.
Uma das dimensões do problema é eviden-
ciada por um estudo publicado na revista Science.
Ele demonstrou que informações falsas que “vi-
ralizam” tendem a circular mais rápido que as in-
formações verdadeiras que tentam corrigi-las.5  A função do Judiciário não é decidir o que é falso ou
Apesar dessa dinâmica, o estudo consta-
tou também que a mentira tem “pernas curtas”.
Depois do pico inicial de desinformação, a in-
formação verdadeira acaba alcançando a infor-
mação falsa. Só que o tempo para isso acontecer
é muito maior (pode levar meses, ou até anos).
Um dos casos analisados foi o boato dissem-
inado nos Estados Unidos de que o vírus Ebola
teria sofrido uma mutação e se tornado trans-
missível a longas distâncias pelo ar. No momen-
to inicial em que o boato se espalhou, a cada três
tuítes publicados com a informação falsa, apenas
95
um o desmentia. Foram necessárias algumas se-
manas para que a informação falsa perdesse to-
talmente o fôlego e desaparecesse das redes.
No Brasil tem havido diversos casos similares. Por
exemplo, na semana anterior à votação da abertura
do processo de impeachment da presidente Dilma
Rousseff na Câmara dos Deputados, em 2016, houve
um surto de notícias falsas na rede, com ao menos três
delas chegando à topo dos “trending topics”, a lista de
assuntos mais compartilhados no Twitter. Na semana
seguinte essas mesmas três notícias falsas haviam
praticamente desaparecido, mas a reparação do que
circulou por meio delas certamente demorou bem mais.
Essa dinâmica cria um desafio especial para os
momentos de campanha eleitoral. Marqueteiros
de má-fé muitas vezes buscam “viralizar” boatos
na tentativa de criar ondas de influência na opinião
pública. A receita para isso está ficando cada vez
mais escancarada. Por exemplo, criam-se veícu-
los “noticiosos” não oficiais para publicar notícias
falsas. A partir daí, dá-se a essa notícia um título
“bombástico”, que é disseminado em redes sociais
como se fosse um grande furo de reportagem.
Muitos usuários da internet tornam-se en-
tão “veículos” de disseminação do boato. Mesmo
não encontrando qualquer confirmação se aquilo é
verdadeiro ou não, resolvem passar a informação
manipulada para frente por causa de sua aparente
“urgência”. Isso gera um efeito cascata. Outras pes-
soas vão passando a notícia falsa adiante e a men-
tira vai ganhando ares de “verdade” simplesmente
porque tem muita gente falando sobre aquilo.
Qual seria então a solução? Remover conteú-
dos assim que eles emergem? Censurar a internet
para impedir a circulação de falsidades? Essa seria
a pior das soluções. Aquela que joga fora o bebê (a
liberdade de expressão) junto com a água do ban-
ho (as notícias falsas e a manipulação política).
Criar qualquer tipo de lei que entregue ao Poder
Judiciário a capacidade de decidir o que é falso ou
verdadeiro seria decisão equivocada e temerária.
verdadeiro, mas sim o que é legal ou ilegal. A verdade
é uma construção social, que depende de mecanismos
complexos, como a “falseabilidade” proposta por Karl
Popper, a ação comunicativa de Jürgen Habermas,
ou o emprego do método científico, uma das maiores
conquistas da humanidade. Em outras palavras, a con-
strução da verdade depende de um amplo legado insti-
tucional que envolve toda sociedade. Seria teratológico
entregar exclusivamente para que juízes decidam, de
pronto, o que é verdadeiro (e merece circular) e o que
é falso (e merece ser suprimido imediatamente).
O mesmo raciocínio vale para as manifestações
The Freedom of Expression
Dilemma: Art and Fake News
It is not easy to be an advocate for the freedom
of expression in today’s world. Language is a way
of exercising power and all power can be abused.
The same freedom of expression that allows for
free creation and artistic expression is evoked by
organized political groups to carry out targeted
harassment4 attacks, use of fake news, inflammatory
memes, robots, fake profiles, among other strategies.
In other words, supporting freedom of expres-
sion in today’s world is a task that evokes the moral
tale of the Sword of Damocles. As it is well known,
Damocles was a flattering servant who used to say
King Dionysius of Syracuse was a truly fortunate
man because of his power. As a result, Dionysius
proposed to exchange places with Damocles for a
day, so he could experience Dionysius’ fortune. The
King then ordered hanging a sword over Damocles’s
head, which was held only by a single strand of a
horse’s mane. As the servant saw the sword hovering
over his head, he lost interest in the fortune that has
been offered to him and surrendered the position.
In a world filled with a profound process of
manipulation of the public sphere, where truth is
distorted in flagrant or subtle ways, where robots
take the place of ordinary citizens, where debate
and propaganda get mixed up, freedom of expres-
sion advocates are bound to live under the sword of
Dionysius, especially when dealing with a fundamen-
tal right that has become a true poison-remedy.
It is worth pointing out that the very debate
about fake news is generating a peculiar form of
moral panic. Just like the case that swept the art
world, the concern around fake news and its ability
to manipulate political results is leading various
groups of interest in the country to mobilize them-
selves to put forward agendas on the suppression of
rights, which also would not go forward otherwise.
In fact, we live in a world where information
propagates increasingly faster. Tackling this chal-
lenge in a constructive and democratic manner is one
of the most important undertakings of our century.
Part of the problem is evidenced by a
study published on Science magazine. It shows
that fake information that “goes viral” tends
to propagate faster than the authentic in-
formation that attempts to correct it.5  nicative action or the use of scientific method, one
Despite those dynamics, the study has also
verified that a lie has no legs. After the initial peak
of misinformation, authentic information ends up
catching up with the fake, yet it takes more time
for that to happen - could be months or years.
One of the analyzed cases was the rumor
disseminated in the United States that the Ebola
virus had mutated into an airborne virus that could
cross long distances. At first, when the rumor had
spread out, at every three tweets published with
fake information, only one would deny it. Only a
few weeks later would the fake information com-
pletely lose steam and disappear from the web.
There have been several similar cases in Brazil.
In 2016, for instance, the week prior to the vot-
ing for the opening of President Dilma Rousseff’s
impeachment process in the House of Representa-
tives, there was a surge of fake news on the Internet
and at least three of them became Twitter’s top
trending topics. In the following week, those same
three pieces of fake news had virtually disappeared,
although the recovery from what had propagat-
ed through them certainly took much longer.
Those dynamics generate a special challenge
in times of political campaigning. Marketers that
act on bad faith often seek to make rumors “go
viral” to generate surges of influence on the public
opinion. The recipe for such tactic is increasing-
ly easier to achieve. Unofficial “news vehicles”
are created to publish fake news; after that, that
piece of news receives a “bombastic” title, is prop-
agated on social networks as if it were scoop!
Many Internet users then become rumor-spread-
ing “vehicles.” Even if they are not able to confirm
the rumor’s authenticity, they decide to post the
manipulated information because of its seeming-
ly “urgency,” which generates a cascade effect.
Other people pass the fake news forward and the
original lie starts looking “authentic” simply be-
cause of the number of people talking about it.
What would be the solution then? Remove
content as soon as it emerges? Censor the Internet
to prevent the propagation of lies? This would be the
worst solution; sounds like throwing the baby out
(freedom of expression) with the bath water (fake
news and political manipulation). Creating any kind of
law that would give the Judiciary the ability to decide
what is fake or true would be wrong and reckless.
The role of the Judiciary is not to decide what
is fake or true, but rather what is legal or illegal.
Truth is a social construction that depends on
complex mechanisms, such as Karl Popper’s pro-
posed “falsifiability,” Jürgen Habermas’s commu-
of the greatest discoveries of humankind. In other
words, the construction of truth depends on a broad
institutional legacy that involves the entire society.
It would be teratological to hand over exclusively
to judges the prompt decision-making of what is
authentic (and deserves to be propagated) and what
96
Jacaranda - Nº 6
artísticas. Seria absolutamente temerário entregar
para o Poder Judiciário a capacidade de decidir o
que é manifestação artística e o que não é. Da mes-
ma forma que a “verdade”, a arte é uma construção
social complexa. Vale dizer que passa por mecanis-
mos similares de legitimação, que misturam a de-
terminação de valores estéticos (e o antagonismo a
eles), círculos de legitimação envolvendo múltiplas
instituições e funções (academia, museus, curadores,
pesquisadores) e assim por diante. Da mesma for-
ma como não cabe ao Judiciário determinar o que é
verdadeiro em uma sociedade, não deve caber a ele
também a capacidade de determinar o que não é.
Por essa razão, para as manifestações lícitas,
ainda que incômodas ou ofensivas, o caminho de
maior prudência deverá ser sempre aquele que evita a
supressão liminar com base em um juízo provisório.
É claro que a responsabilização a posteriori
poderá acontecer, pois não existe poder absoluto
cujos abusos não devam ser coibidos. Para isso, os
institutos penais da lei brasileira que tornam ilí-
citos a calúnia, a injúria e a difamação permitem
a margem necessária de aplicação da lei para coi-
bir casos em que essas práticas se configurem.
Mais do que isso, em muitos dos casos envol-
vendo “fake news”, as modalidades de violação da lei
são ainda mais claras, indo além das figuras tradicio-
nais da calúnia, injúria e difamação. Nesses casos é
frequente verificar a violação de direitos autorais e
direitos de imagem. Muitos dos memes difundidos
por redes sociais acabam filmando cidadãos comuns
sem qualquer tipo de autorização prévia. A imagem
dessas pessoas circula por todo o país, expondo-as. Tal
tipo de prática é sim ilegal. Da mesma forma, muitos
dos materiais que circulam apropriam-se de obras
intelectuais indevidamente, indo além dos limites
permitidos pelas exceções e limitações consagradas
pelo artigo 46 da lei de direitos autorais e, até mesmo,
além dos limites toleráveis em regimes como o de
“uso legítimo” (“fair use”). Esses casos precisam ser
analisados de forma autônoma e simultânea à questão
de se determinar se houve calúnia, injúria e difamação.
Em outras palavras, a lei brasileira já dispõe
de mecanismos para enfrentar uma parcela sig-
nificativa do problema. É preciso valorizar o que
já existe nas leis atuais, evitando-se aventuras
de querer adotar ainda mais dispositivos capaz-
es de desequilibrar a liberdade de expressão.
É preciso ter uma visão legalista e precisa dos
contornos da lei para tratar dessas questões, des-
confiando de propostas casuísticas que queiram ir
além, motivadas por pânicos morais circunstan-
ciais. Legislar é um exercício de prudência. Ativi-
dade que não deve ser feita sob o julgo das fortes
97
emoções despertadas por comoções sociais.
Essa cautela justifica-se especialmente porque
o Brasil é um ponto fora da curva no contexto lati-
no-americano com relação à liberdade de expressão.
Uma análise objetiva e baseada em dados do que
acontece no país hoje já mostra que a liberdade de
expressão no país sofre cerceamentos cotidianos e
severos no país. Por exemplo, há hoje um grande núme-
ro de juízes ordenando não só a remoção de alegações
da internet como exigindo que essas informações per-
maneçam banidas, especialmente quando dizem res-
peito a políticos. Os casos mais graves são pura censura
prévia: ordens judiciais mandando que algo não seja
sequer publicado. Se for publicado, que seja removido.
Se for removido, que não seja publicado novamente.
Temos casos recentes de proibição de pub-
licação de matérias em jornais, de proibição da
circulação de livros biográficos ou satíricos e as-
sim por diante. A grande maioria dessas decisões
é tomada para proteger políticos, que querem se
defender da possibilidade de serem criticados por
cidadãos comuns, especialmente na internet.
Relatório recente da Associação Brasileira de
Jornalismo Investigativo (Abraji), que analisa da-
dos sobre liberdade de expressão no país, mostra
que especialmente no período eleitoral os pedidos
de censura prévia no Judiciário explodem.6 A cada
ano eleitoral, o país bate o recorde do ano anteri-
or de ordens judiciais ordenando censura prévia.
São demandas contra cidadãos, empresas de mídia,
sites e jornalistas ordenando-os a calarem a boca.
Vale notar que, em geral, de um a cada cinco
pedidos de censura prévia acabam sendo concedi-
dos pelo Judiciário. Infelizmente, por conta de todas
essas questões, o Brasil destoa das regras de liber-
dade de expressão que são praticadas nos países
democráticos, inclusive na América. Desvia-se não
só do modelo dos EUA, onde políticos e figuras
públicas praticamente não têm direito de reparação
contra ofensas, mas também dos nossos vizinhos
latino-americanos. Países como Argentina, Costa
Rica, El Salvador, México, Nicarágua e Uruguai nunca
criminalizaram ou recentemente revogaram suas leis
que permitiam a políticos recorrer ao Judiciário para
banir afirmações (mesmo que ofensivas) contra eles.
Um bom exemplo disso é a Lei Kimel, apro-
vada na Argentina em 2009. O país foi condenado
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
ao punir o jornalista que expôs os agentes públicos
responsáveis pelo massacre da Igreja de São Patrício.
A Lei Kimel limita que figuras públicas possam
acionar o Judiciário para proteger sua “honra”.
Enquanto nossos vizinhos ampliam a liberdade
de expressão, a jurisprudência dos nossos tribu-
is fake (and deserves to be immediately suppressed).
The same logic applies to artistic demonstra-
tions: It would be reckless to hand over to the
Judiciary the ability to decide what is artistic and
what is not. Art is a complex social construction
just like the “truth.” It is worth pointing out that
are undergoes similar mechanisms of legitimation,
which combine the determination of aesthetic values
(and the antagonism towards them), legitimation
circles involving multiple institutions and roles
(academy, museums, curators, researchers) and
so on. The same way that it is not up to the Judi-
ciary to determine what is true in society, it is also
not up to it the ability to determine what is not.
For this reason, the wiser path for lawful
demonstrations, despite their being inconvenient or
offensive, should always be the one that avoids pre-
liminary suppression based on provisional judgment.
It is clear that a posteriori accountability
might happen since there is no absolute power
whose abuse should not be restrained. For this
purpose, the criminal institutes of Brazilian law
that make slander, libel and defamation illegal,
allow for the necessary margin of law enforcement
to restrain cases where such acts might occur.
Additionally, in many cases involving fake news,
it is even clearer when the law has been violated,
which goes beyond the traditional figures of slander,
libel and defamation. In these cases, it is common to
witness copyright and image right violations. Many
of the memes social networks broadcast are record-
ings of ordinary citizens without their prior autho-
rization. These people are exposed as their image is
propagated throughout the country, a conduct that
is by all means illegal. Similarly, many propagated
materials violate intellectual property rights, going
beyond the limits allowed by the exceptions and
limitations provided for in Article 46 of the Brazil-
ian copyright law and beyond the permissible limits
known as “fair use.” These cases need to be analyzed
independently but at the same time investigated on
whether there was slander, libel and defamation.
In other words, Brazilian law already has
mechanisms to deal with a significant por-
tion of the problem. It is important to consider
what is already laid out in the current legisla-
tion to avoid adopting additional provisions that
could destabilize freedoms of expression.
To address these issues, it is important to have
a legalistic and precise view of the limits of the law,
while suspecting of casuistic proposals that want
to go beyond that, motivated by circumstantial
moral panics. One needs caution when formulating
laws. It should never be done under the influence
of strong emotions aroused by social commotion.
This caution is especially needed because
Brazil is an outlier within the Latin American con-
text when it comes to freedom of expression.
An objective and data-driven analysis of what
happens in the country today already shows that
freedom of expression in Brazil undergoes daily and
severe restrictions. A number of judges today are
not only ordering the removal of Internet allegations
but also require permanent banning of such infor-
mation, especially when it refers to politicians. The
most serious cases are sheer preliminary censorship:
Judicial orders blocking information even before it
has been published. If published, it must be re-
moved. If removed, it must not be published again.
Recent cases include the prohibition to
publish newspaper articles, circulation of bi-
ographical or satirical books and so on. The
goal of most such decisions is clearly to shield
politicians, who want to protect themselves
against the possibility of being criticized by the
ordinary citizen, especially on the Internet.
A recent report by the Brazilian Association of In-
vestigative Journalism (ABRAJI), which analyzes free-
dom of expression data in the country, shows that
especially in political campaigns there is a surge of
requests for preliminary censorship in the Judiciary.6
At every electoral year, the country beats the previ-
ous year’s record on judicial orders requiring prelim-
inary censorship. These are lawsuits trying to silence
citizens, media companies, websites and journalists.
It is worth pointing out that the Judiciary grants
one in every five requests for preliminary censorship.
Unfortunately, because of all these issues, Brazil is
not at par with the rules of freedom of expression
implemented in democratic countries, including
those in the Americas. The Brazilian model diverg-
es not only from the US model, where politicians
and public figures have virtually no right to remedy
against offenses, but also from our Latin American
neighbors. Countries like Argentina, Costa Rica,
El Salvador, Mexico, Nicaragua and Uruguay have
never criminalized or repealed laws that allowed
politicians to appeal to the Judiciary to ban state-
ments (no matter how offensive) about them.
One good example is the Kimel Act, approved
in 2009 in Argentina, which was convicted by the
Inter-American Court of Human Rights for punishing
the journalist who exposed public agents respon-
sible for the massacre of Saint Patrick’s Church.
The Kimel Act imposed limits to public figures in
relation to filing a suit to protect their “honor.”
While our neighbors expand their own freedom
of expression, the case law of our superior courts re-
98
Jacaranda - Nº 6
nais superiores continua desanimadora. Quando
têm de decidir sobre o conflito entre liberdade
de expressão e a proteção à honra, os mesmos
vêm optando pela honra em 70% dos casos.
Com isso, é preciso construir caminhos mais dura-
douros e fundamentados na sociedade para a coibição
do fenômeno das “fake news” e do assédio direcionado.
Se é a sociedade quem constrói os conceitos de “ver-
dade” e de “arte” é preciso fortalecer as instituições
que valorizam esses dois conceitos. Esse é o caminho
promissor e duradouro, capaz de sedimentar os modos
para superarmos os dilemas que vivemos hoje.
Por exemplo, é preciso apoiar e fortalecer insti-
tucionalmente cada vez mais a chamada “checagem
de fatos” (“fact-checking”) em tempo real. De 2008
a 2012 as matérias com “fact-checking” já cresciam
mais de 300% nos EUA. Com a ascensão de Donald
Trump — que assimilou a desinformação como
estratégia eleitoral -, a prática cresceu ainda mais.
No Brasil, além da imprensa tradicional, há várias
iniciativas novas de “fact-checking”, que incluem a
Agência Lupa, a Agência Pública e o portal Aos Fatos.
São organizações que trabalham com a ideia de
método e de objetividade para se estabelecer o que
é “verdadeiro” no âmbito do jornalismo. Iniciativas
como essas são salutares e com potencial duradouro.
É fundamental também investir em educação para
a mídia (“media literacy”). A primeira lição é aprender
a questionar fatos e, sobretudo, não repassar para
frente tudo que chega pela rede parecendo ser “urgen-
te”. Essa sensação de urgência é a arma dos marquetei-
ros para disseminar boatos. Em outras palavras, parar
de agir como “veículo” de ideias pré-fabricadas produ-
zidas maliciosamente por grupos de marketing político.
Da mesma forma, é fundamental fortalecer as raíz-
es sociais da arte. Nesse sentido, fortalecer o discurso
público sobre a arte não só nas mídias tradicionais, mas
também na internet. Apoiar e promover o protagonis-
mo de museus, escolas de arte e outras instituições que
compõem o ecossistema de produção artística para
que esse debate adquira raízes sociais mais perma-
nentes. Quanto mais a arte for “supérflua” e “desen-
raizada”, sendo assunto apenas por parcelas pequenas
da sociedade, mais vulnerável ela se encontrará.
É preciso consolidar do ponto de vista educacional
a capacidade ampla e geral de que todo cidadão
ou cidadã do país torne-se capaz de formular seis
perguntas essenciais sobre qualquer informação:
Quem criou a mensagem? Quais técnicas foram
usadas para atrair minha atenção? Que estilos de
vida ou valores são apresentados ou omitidos na
mensagem? Por que essa notícia foi compartilhada?
Como outras pessoas podem entender essa informa-
ção de modo diferente de mim? Note-se que essas
99
perguntas valem tanto para a questão das mídias
quanto para o próprio campo das artes. Essas per-
guntas são fundamentos iniciais para se orientar em
um mundo fluido como o de hoje, tanto no universo
informacional quanto artístico. Se todos os cidadãos
e cidadãos forem capazes de formular perguntas
como essas, menos vulneráveis se encontrarão.
Nesse sentido, mais grave que o próprio proble-
ma pode ser a reação a ele. Na tentativa de coibir essa
dinâmica, muitos políticos têm buscado mudanças
legislativas para se criarem mecanismos ainda mais
perversos de censura prévia por meio do Judiciário.
Nesse sentido, existem hoje diversos projetos de lei
tramitando no Congresso Nacional para modificar o
Marco Civil da Internet. Muitos políticos brasileiros
jamais engoliram o Marco Civil, pelo fato de ele ter
traduzido direitos constitucionais como privacidade e
liberdade de expressão para a internet. Prefeririam que
o Brasil fosse mais parecido com a Turquia, a Rússia, ou
até mesmo a Arábia Saudita, no que tange ao trato da
internet. Nesses países há inclusive agências gover-
namentais, ligadas diretamente ao Poder Executivo,
que removem conteúdos considerados ofensivos ou
contrários “à ordem pública”. Felizmente o Marco Civil
nos colocou em outro caminho e por essa razão vem
sendo elogiado internacionalmente, tanto por figuras
como Tim-Berners Lee (criador da World Wide Web)
como pelo Parlamento da Itália, que seguiu assumi-
damente a influência do Marco Civil para criar sua
própria Declaração de Direitos na Internet em 2016.
É nesse contexto que o Brasil precisa repensar o
crescente fenômeno da “censura judicial” que cresce
entre nós. A internet traz desafios, mas a melhor
forma de lidar com eles é com mais informação, e
não com menos. Como já recomendou o Conselho
de Comunicação do Congresso Nacional (órgão do
qual, vale dizer, fui vice-presidente) por unanimi-
dade: “A melhor reação a um discurso ou relato
considerado problemático é a resposta a ele na
esfera pública. Em vez de supressão ou tolhimento,
mais discursos, mais versões, mais contraditório.
Essa é a praxe saudável de uma sociedade que se
governa sob um Estado Democrático de Direito”.7
1. Ver Ronaldo Lemos et. alli, “O Poder Judiciário e os Games”, leitura
dramática por cosplayers das decisões que proibiram games no Brasil,
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5RcCvdht78w,
acessado em , acessado em 23 de março de 2018.
2. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/2017/05/1880025-
cpi-da-baleia-azul-e-tentativa-de-controlar-a-internet-no-
brasil.shtml, acessado em 23 de março de 2018.
3. Ibidem
4. Tradução do termo em inglês “targeted harassment”.
5. Disponível em http://science.sciencemag.org/content/359/6380/1094.
full), acessado em 23 de março de 2018.
6. Disponível em http://www.anj.org.br/2016/12/08/censura-judicial-recorde-
marcou-a-eleicao-de-2016-diz-abraji/, acessado em 23 de março de 2018.
7. Disponível em https://feed.itsrio.org/liberdade-de-expressao-no-
periodo-eleitoral-ed76e7675379, acessado em 23 de março de 2018.
mains discouraging. When asked to decide on the con-
flict between freedom of expression and the protec-
tion of honor, honor was chosen in 70% of the cases.
Therefore, we need to build long-lasting and
socially driven paths to restrain the phenomenon
of fake news and targeted harassment. If society
is responsible for creating the concepts of “truth”
and “art,” we need to consolidate the institutions
that value those two concepts. This promising
and long-lasting path will consolidate the means
to overcome the dilemmas we face today.
We need to increasingly support and provide
institutional strength for real-time “fact-checking.”
From 2008 to 2012, fact-checked articles had grown
more than 300% in the US. With the rise of Donald
Trump — whose adoption of misinformation was an
electoral strategy –, the figures grew exponentially.
In Brazil, in addition to traditional press, there are
several new fact-checking initiatives, which include
Agência Lupa, Agência Pública and the Aos Fatos
portal. These organizations work with the concepts
of method and objectivity to establish what is “true”
in the sphere of journalism. Initiatives like these
are beneficial and have long-lasting potential.
It is also crucial to invest in media literacy. The first
lesson to learn is that facts should be questioned and,
above all, not passed forward on the Internet despite
looking “urgent.” This sense of urgency is the tool for
marketers to spread rumors. In other words, to stop
acting as a “vehicle” of manipulated ideas maliciously
created by political marketing groups.
Similarly, it is crucial to strengthen art’s so-
cial roots; to strengthen public speech about art
not only on traditional media, but also on the In-
ternet. To support and promote the leadership
of museums, art schools and other institutions
that form the artistic production ecosystem so
that this debate has longer lasting social roots.
The more art is considered “superfluous” and
“uprooted”, a subject of interest by small por-
tions of society, the more vulnerable it will be.
From an educational point of view, it is import-
ant to consolidate the broad and general capacity of
every citizen in the country to formulate six essen-
tial questions about any piece of information: Who
created the message? What techniques were used to
attract my attention? What lifestyles or values are
being displayed or omitted in the message? Why was
this piece of news shared? How could other people
understand this information differently from me?
Note that these questions apply to both the media
and the arts. They are the initial foundation to guide
us in today’s fluid world, both in terms of information
and arts. If every citizen has the ability to formulate
these questions, the less vulnerable they will be.
In this sense, the reaction to the problem could
be more serious than the problem itself. In an
attempt to restrain such dynamics, many politicians
have sought legislative changes to create even more
perverse mechanisms of preliminary censorship
using the Judiciary. There are several bills current-
ly pending in the National Congress to modify the
Brazilian Civil Rights Framework for the Internet.
Many a Brazilian politician has never accepted such
Framework because it transferred constitutional
rights such as privacy and freedom of expression
to the Internet. They would prefer the country to be
more like Turkey, Russia or Saudi Arabia, as far as the
Internet is concerned. In these countries government
agencies directly connected to the Government can
remove content considered offensive or contrary
to “the public order.” Fortunately, the Brazilian Civil
Rights Framework for the Internet has placed us on
another path and for this reason has been praised in-
ternationally, by prominent figures such as Tim-Ber-
ners Lee (the creator of the World Wide Web) and the
Italian Parliament, whose 2016 Internet Bill of Rights
is decidedly influenced by the Brazilian Framework.
Brazil needs to reconsider the growing phe-
nomenon of “judicial censorship.” The Internet
brings challenges, but the best way to deal with
them is with more, not less information. As unan-
imously recommended by the Brazilian National
Congress Communication Council (of which I was
Vice President): “The best reaction to a so-called
problematic speech or report is to respond to it
within the public sphere. Instead of suppression
or restraint, more speeches, more accounts, more
conflict. This is the healthy practice of a society
governed by a democratic State ruled by law.”7
1. See “O Poder Judiciário e os Games” (“The Judiciary and the Games”)
by Ronaldo Lemos et al., a dramatic reading by cosplayers about decisions
that have banned games in Brazil, available at https://www.youtube.
com/watch?v=5RcCvdht78w, last accessed on March 23, 2018.
2. Available at http://www1.folha.uol.com.br/colunas/
ronaldolemos/2017/05/1880025-cpi-da-baleia-azul-e-tentativa-de-
controlar-a-internet-no-brasil.shtml, last accessed on March 23, 2018.
3. Ibidem
4. Translation of the term in Portuguese “assédio direcionado.”
5. Available at http://science.sciencemag.org/content/359/6380/1094.
full, last accessed on March 23, 2018.
6. Available at http://www.anj.org.br/2016/12/08/censura-judicial-recorde-
marcou-a-eleicao-de-2016-diz-abraji/, last accessed on March 23, 2018.
7. Available at https://feed.itsrio.org/liberdade-de-expressao-no-
periodo-eleitoral-ed76e7675379, last accessed on March 23, 2018.
100
Jacaranda - Nº 6
A crise de 2017
* Bernardo Mosqueira
-1.a
“Em 2017, sofremos, no campo das artes visuais
em diversas cidades brasileiras, uma série de episó-
dios de ameaça à liberdade de expressão.” Essa frase
ou suas derivações foram repetidas ao longo desse ano
em postagens, reportagens e ensaios nos mais diversos
meios de informação e comunicação. Por mais que seu
conteúdo faça referência direta a recentes ocorrências
relativas a exposições como Queermuseu (Santander
Cultural, Porto Alegre), 35o Panorama da Arte Brasileira
(MAM-SP, São Paulo) e Faça você mesmo sua Capela
Sistina − Pedro Moraleida (Palácio das Artes, Belo
Horizonte), ela também pode inspirar algumas pergun-
tas que apontam para questionamentos fundamentais,
embora irresponsavelmente até hoje deixados de lado.
Quem seríamos “nós” que sofremos as ameaças?
Principalmente, quem não é “nós”? O que delimita
o “campo das artes visuais”? E de que maneiras esse
campo se relaciona com o que lhe é externo? Que
“diversas cidades brasileiras” estão mapeadas nesse
campo? A que “episódios” de fato nos referimos quando
falamos dessas ameaças? Será que apenas “sofremos
uma ameaça”? A que corresponderiam essas ameaças?
Quem seriam seus autores? Por que aconteceram e
ainda acontecem? Por que estávamos vulneráveis? A
“liberdade de expressão” de quem foi ameaçada? Em que
disputa? E, por fim, “2017”? E antes? Sobretudo, e agora?
-1.b
Vivemos, na segunda metade do século XX no Brasil,
um significativo movimento na direção do estabeleci-
mento de mais autonomia da produção artística nacional
em relação aos cânones estrangeiros. O processo de
industrialização e urbanização do país foi acompanhado
pela fundação de instituições comprometidas com a
modernização do campo da cultura, como, por exemplo,
o Masp (1947), o MAM-Rio (1948), o MAM-SP (1948), o
Masc (1948), o Margs (1954), o Museu de Arte da Pampu-
lha (1957), o MAM-BA (1960) e a Bienal de São Paulo
(cuja primeira edição ocorreu em 1951). Nas décadas
de 1960 e 1970, parte relevante da produção de arte
no Brasil viveu a dicotomia de levar para dentro dessas
instituições a tensão política característica da época e,
101
concomitantemente, desenvolver gestos de radicalidade
e experimentação fora desses espaços. Nas décadas se-
guintes, outras bienais e grandes eventos regulares ocor-
reram no país, assim como foram inaugurados às deze-
nas museus e centros culturais, públicos ou privados,
além de alguns raros espaços independentes e projetos
de residência. Aumentou o número de escolas e de estu-
dantes de arte no país, bem como consideravelmente a
participação de artistas brasileiros em bienais, festivais,
prêmios e exposições internacionais. Inauguraram-se
ainda casas de leilão e galerias: quanto mais se aproxi-
mava o século XXI, mais fortemente se transformava o
mercado nacional de obras de arte e mais se ampliava o
interesse internacional pela produção de arte brasileira.
Ainda que esses acontecimentos denotem cer-
tamente a expansão do sistema da arte no país e
a ampliação de sua complexidade, é fundamental
identificar as (muitas) falhas nesse processo e per-
ceber o que a persistência de alguns desses erros
causou na estrutura da relação entre o povo brasi-
leiro e o cenário das artes visuais na atualidade.
-1.c
Em dezembro de 2015, Eduardo Cunha, então
presidente da Câmara dos Deputados, para vingar-se dos
votos de três deputados do Partido dos Trabalhadores
que apoiaram sua cassação, decidiu aceitar o pedido de
impeachment de Dilma Rousseff. Desde então até agosto
de 2016, vivemos no Brasil um processo de intensa
convulsão popular e midiática de extrema violência tanto
em defesa quanto contra a proposta de afastamento de
Dilma. Grande parte dos artistas, atores e acadêmicos
se manifestou de maneira contrária ao impedimento da
presidenta, postando textos e fotos, assinando cartas
abertas, apoiando manifestações etc. Em resposta,
como forma de invalidar o outro lado, grupos como
Movimento Brasil Livre (MBL) lançaram uma série de
investigações reais e notícias falsas sobre os usos e maus
usos da Lei Rouanet, de incentivo à cultura. Começava
assim uma batalha antiartística que surfaria na onda
anti-intelectualista, característica de nosso tempo em
diversas partes do mundo. Assim que o golpe parlamen-
tar de 2016 foi concretizado, Michel Temer anunciou o
The 2017 crisis
* Bernardo Mosqueira
-1.a
“In 2017, we suffered a series of episodes that
threatened freedom of expression in the field of visual
arts in several Brazilian cities.” This phrase or others
to the same effect were repeated throughout the year
in posts, news reports, and essays in various means of
information and communication. Although its content
makes direct reference to recent occurrences related to
exhibitions such as the Queermuseu (Santander Cultural,
in Porto Alegre), the 35th Brazilian Art Panorama (MAM-
SP, in São Paulo), and Make your own Sistine Chapel, by
Pedro Moraleida (Palácio das Artes, in Belo Horizonte), it
may also inspire some questions that point to fundamen-
tal questions, albeit irresponsibly kept aside to this day.
Who would be the “we” who suffered the threats?
More importantly, who is not included in the “we?” What
defines “the field of visual arts?” And in what ways
does this field relate to what is external to it? Which of
the “several Brazilian cities” has been mapped in this
field? Which are the “episodes” we refer to when we
talk about these threats? Did we only “suffer a threat?”
To what would these threats correspond? Who did the
threatening? Why did they happen and still happen? Why
were we so vulnerable? Whose “freedom of expression”
was being threatened? In which dispute? Lastly, “2017?”
What about before? Most importantly, what about now?
-1.b
In the second half of the twentieth century in Brazil,
we had a significant movement towards establishing
more national artistic production autonomy from
foreign canons. Brazil’s process of industrialization
and urbanization was accompanied by the opening of
institutions committed to cultural modernization. Some
examples are the São Paulo Art Museum (Masp - 1947),
the Rio de Janeiro Museum of Modern Art (MAM-Rio -
1948), the São Paulo Museum of Modern Art (MAM-SP
- 1948), the Santa Catarina Art Museum (Masc - 1948),
the Rio Grande do Sul Art Museum (Margs - 1954), the
Pampulha Art Museum (1957), the Bahia Museum of
Modern Art (MAM-BA - 1960), and the São Paulo Art
Biennial, which held its first edition in 1951. In the 1960s
and 1970s, a relevant part of Brazilian art production
lived under the dichotomy of bringing political tension
– a characteristic of the time – into these institutions
while, at the same time, developing radical movements
and experimentation outside these spaces. For the
following decades, other biennials and major events
took place in the country. Dozens of museums and
cultural centers, both public and private, opened during
that era, along with a few rare independent spaces and
residential projects. The number of art schools and
students in the country increased, as well as the par-
ticipation of Brazilian artists in international biennials,
festivals, prizes, and exhibitions. New auction houses
and galleries also opened. The closer we got to the 21st
century, the more the national market for works of art
was transformed and the production of Brazilian art
gained increasingly greater international interest.
Although these events certainly denote the
expansion of the art system in the country and the
deepening of its complexity, it is instrumental to
identify the (many) failures in this process and to
perceive what the persistence of some of these errors
caused in the structure of the relationship between
the Brazilian people and the visual arts scene today.
-1.c
In December 2015, Eduardo Cunha, then president
of the Brazilian House of Representatives, as payback
against three Workers Party (PT) Representatives who
voted to have him removed from Congress, decided to
accept Dilma Rousseff’s impeachment request. Since
then, and until August 2016, we experienced in Brazil an
extremely violent process of intense media and popular
unrest, both for and against the proposal to impeach
Dilma. A great number of artists, actors, and academ-
ic minds expressed their distaste for the president’s
impeachment posting texts and photos, signing open
letters, supporting demonstrations etc. In response, as
a way of invalidating the other side, groups such as the
Free Brazil Movement (MBL) launched a series of real in-
vestigations and fake news about the uses and misuses
of the Rouanet Law, which was designed as an incentive
to culture. Thus began an anti-art battle that would surf
the anti-intellectualist wave, characteristic of our time
102
Jacaranda - Nº 6
fechamento do Ministério da Cultura, substituído pela
Secretaria Nacional de Cultura submetida ao Ministério
da Educação. Durante meses, Temer procurou quem
aceitasse encabeçar a tal secretaria, tendo convidado a
atriz Bruna Lombardi, a apresentadora Marília Gabriela,
a antropóloga Cláudia Leitão, a consultora Eliane Costa
e a cantora Daniela Mercury, mas todas recusaram.
Enquanto isso, espalhavam-se pelo país manifestações
contra o fechamento do Ministério. Os edifícios da Fu-
narte foram ocupados por artistas e ativistas em Aracaju,
Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campo Grande, Cuiabá,
Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, João Pessoa,
Macapá, Maceió, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de
Janeiro, Rio Branco, Salvador, São Luís e São Paulo. Algu-
mas dessas ocupações, como a carioca, duraram mais de
100 dias com intensa programação de shows de música,
espetáculos de teatro, exposições, performances, rodas
de aprendizagem e assembleias. A indústria criativa na-
cional fez o “Fora Temer” chegar em lugares inimaginá-
veis. Sob pressão, Temer recriou o Ministério da Cultura
e deu posse a Marcelo Calero, ex-secretário municipal
de Cultura do Rio de Janeiro, que, poucos meses depois,
entregaria o cargo denunciando estar sofrendo pressão
de Temer e de seus assessores para favorecer o ex-depu-
tado e então ministro-chefe da Secretaria de Governo,
Geddel Vieira Lima: coagiam-no para que forjasse uma
licença do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional
para um edifício em Salvador do qual Geddel adquirira
um apartamento. Em meio à polêmica, o ex-deputado de-
mitiu-se no dia seguinte à denúncia alegando fragilidade
da saúde; sete meses depois, seria preso pela primeira
vez; e mais dois meses adiante, seriam encontrados em
um apartamento de sua família na capital baiana 51 mi-
lhões de reais em espécie. Para substituir Calero, Temer
convidou Roberto Freire, que, entretanto, logo deixaria
a pasta, na sequência da divulgação das gravações da
famosa conversa entre Temer e Joesley Batista, um dos
donos da JBS, também preso. A vaga deixada por Freire
foi ocupada pelo cineasta João Batista de Andrade, mas
apenas durante um mês, pois Temer descumpriu um
acordo importante a fim de indicar um “apadrinhado”
seu para o controle da Ancine, Sérgio Sá Leitão, também
ex-secretário de Cultura do Rio de Janeiro, que veio a ser
o novo ministro. Em seus poucos meses como presi-
dente até agora, Temer teve no Ministério da Cultura a
maior rotatividade de ministros e um de seus maiores
desafios. Conseguiu, porém, arquitetar sua vingança
contra a classe artística: realizou sua própria reforma
da Lei Rouanet (após a conhecida articulação com a
Bancada Parlamentar Cristã) e cortou 43% do orça-
mento da Cultura. Se o Ministério da Cultura já recebeu
por volta de 0,08% do orçamento anual da União e
se a meta do Plano Nacional da Cultura é 0,043% em
2020, com Temer essa fração chegou a 0,012%.
103
1 in different parts of the world. As soon as the parliamen-
Assim que percebemos que a violenta onda conser-
vadora característica de nosso tempo se armava contra a
arte, seu sistema, suas instituições e contra os próprios
artistas, começamos a nos organizar em grupos de
discussão e articulação coletiva, política e jurídica. Em
uma só semana, dezenas de grupos de conversa foram
abertos nos aplicativos Whatsapp e Telegram, e outras
dezenas de grupos presenciais iniciaram seus encontros.
Durante algum tempo, houve programação permanente
de reuniões ao longo da semana − artistas, músicos,
atores, escritores, curadores, diretores de instituições,
produtores, jornalista, arquitetos, professores, estudan-
tes, militantes, advogados, empresários, juristas e todos
os interessados pensando, juntos, formas de construir
movimentos estratégicos de resistência, reação e inven-
ção contra os ataques ao sistema da arte por movimentos
moralistas de direita e principalmente fundamentalistas
evangélicos. Universidades, escolas de arte, museus, es-
paços independentes e praças públicas acolheram esses
encontros de grupos bastante distintos: alguns elitiza-
dos, outros diversificados; alguns pragmáticos, outros
confusos; alguns organizados e com lideranças claras,
outros caóticos, caórdicos e horizontais; alguns contro-
versos, nebulosos e contraditórios, outros transparen-
tes, potentes e genuinamente afinados com as urgências
desse tempo. Tendo membros em comum, a comunica-
ção entre as frentes e dos grupos separadamente foi fun-
damental para a movimentação estratégica do sistema.
Foi interessante perceber pessoas de gerações
distintas, com crenças e atuações profissionais muito
diferentes, e até mesmo com desavenças e inimizades
históricas lutando lado a lado. Num sistema da arte tão
marcado pelo paradigma da escassez, pela competição,
pelo ressentimento, pela falsidade, pela oposição vio-
lenta e gratuita e pela intriga, foi bom ver uma aproxi-
mação geral e viver a utilização coletiva do paradigma
da abundância. Apesar do momento de grave crise, está-
vamos todos no mesmo barco, ainda que naufragante.
Dos movimentos promovidos por articulações
e grupos então formados em todas as grandes cida-
des brasileiras, destacamos a manifestação contra
a censura em Porto Alegre, o 342Artes, o Censu-
raNuncaMais, a Frente Nacional contra a Censu-
ra, o Cólera Alegria e a Carta das Instituições.
O fechamento da exposição Queermuseu, no
Santander Cultural em Porto Alegre, provocou um
empoderamento com relação aos violentos movimen-
tos moralistas gaúchos. A grande manifestação contra
a censura na porta da instituição proposta por artistas
e ativistas LGBTQ foi fundamental para evidenciar
que os espaços conquistados pelo movimento queer
nos últimos anos não serão entregues facilmente.
O 342Artes deriva do 342Agora, autodefinido como
tary coup of 2016 was over, Michel Temer announced
the dismantling of the Ministry of Culture, which
was replaced by the National Secretariat of Culture,
becoming a department of the Ministry of Education.
For months, Temer looked for anyone who would agree
to head that office and invited actor Bruna Lombardi,
TV host Marília Gabriela, anthropologist Cláudia Leitão,
consultant Eliane Costa, and singer Daniela Mercury,
but they all refused. Meanwhile, demonstrations against
the end of the Ministry spread throughout the country.
The National Foundation for the Arts (Funarte) build-
ings were occupied by artists and activists in Aracaju,
Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campo Grande, Cuiabá,
Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, João Pessoa,
Macapá, Maceió, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de
Janeiro, Rio Branco, Salvador, São Luís, and São Paulo.
Some of these occupations, such as the one in Rio de
Janeiro, lasted more than 100 days with intense cultural
activity – musical concerts, theater, exhibitions, perfor-
mances, workshops, and debates. The national creative
industry has made the motto “Fora Temer” (Out with
Temer) travel unimaginable distances. Under pressure,
Temer re-created the Ministry of Culture and sworn in
Marcelo Calero, the former Rio de Janeiro municipal
Secretary of Culture. A few months later, Calero would
resign, denouncing pressure from Temer and his advis-
ers to favor former Representative and then Cabinet
Minister Geddel Vieira Lima. He was being coerced into
forging a license from the Institute of National Histori-
cal Heritage for a building in Salvador, in which Geddel
had acquired an apartment. Amid the controversy,
the former Representative resigned the day after the
complaint, alleging health issues. Seven months later, he
would be arrested for the first time. Then, two months
later, a pile of cash worth over 15 million dollars would
be found in an apartment that belonged to his family in
Salvador, the capital of Bahia State. To replace Calero,
Temer invited Roberto Freire, who would soon leave the
Ministry, after the tapes of the conversation between
Temer and Joesley Batista, one of the owners of JBS,
who was also arrested, became public. The position
left by Freire was occupied by filmmaker João Batista
de Andrade, but only for a month, since Temer did not
comply with an important agreement and named one of
his protégées to control the Brazilian Cinema Agency
(Ancine), Sérgio Sá Leitão, also a former Rio de Janeiro
Secretary of Culture, who eventually became the new
minister. In a few months as president, Temer had the
highest turnover of Ministers of Culture, which was one
of his greatest challenges. However, he succeeded in
orchestrating his revenge against the artistic class; car-
rying his own reform of the Rouanet Law (after the well-
known articulation with the Christian Representative
stronghold) and cutting 43% of the Culture budget. The
Ministry of Culture might have already received approx-
imately 0.08% of Brazil’s annual budget and the plan
was to contemplate the ministry with 0.043% in 2020,
but under Temer this fraction has receded to 0.012%
1
As soon as we realize that the violent conservative
wave characteristic of our time was gaining momentum
against art, its system, its institutions, and against the
artists themselves, we began to organize discussion
groups and collective political and legal articulation. In a
single week, dozens of discussion groups opened in apps
such as Whatsapp and Telegram, and dozens of other
groups started their meetings in person. For a while,
there were permanent meetings scheduled throughout
the week – visual artists, musicians, actors, writers, cu-
rators, directors of institutions, producers, journalists,
architects, teachers, students, militants, lawyers, busi-
nesspeople, jurists, and all concerned put their minds to-
gether to build strategic movements of resistance, reac-
tion and creation against the attacks on the art system
by right-wing moralist movements and especially evan-
gelical fundamentalists. Universities, art schools, muse-
ums, independent institutions and public squares hosted
these meetings populated by very distinct groups: some
were part of the elite, others were more diversified;
some pragmatic, some confused; some organized and
with clear leadership, others chaotic, ‘chaordic’, and hor-
izontal; some controversial, nebulous and contradictory,
others transparent, powerful and genuinely attuned to
the urgencies of our time. Having members in common,
communication between the fronts and the groups was
instrumental to the system’s strategic movement.
It was interesting to see people of different
generations, with very different belief systems and
professional backgrounds – even among disagreements
and historical enmities – fighting side by side. In a
system of art so marked by the paradigm of scarcity,
competition, resentment, falsehood, violent opposi-
tion, and intrigue, it was nice to see people coming
together and experiencing the collective use of the
abundance paradigm. Despite the time of severe crisis,
we were all in the same boat, even if a bit wrecked.
Of the movements promoted by the articulations
and groups formed then in all major Brazilian cities,
we highlight the demonstration against censorship
in Porto Alegre, the 342Artes, the CensuraNunca-
Mais, the Frente Nacional contra a Censura, the
Cólera Alegria, and the Carta das Instituições.
The closing of the Queermuseu exhibit, at Santand-
er Cultural in Porto Alegre, caused an empowerment
against violently moralistic Rio Grande do Sul State
movements. The large demonstration against cen-
sorship on the doorstep of the institution proposed
104
Jacaranda - Nº 6
“Movimento suprapartidário contra corrupção e pelo
apoio e solidariedade na luta por um Brasil melhor”, lide-
rado inicialmente por Paula Lavigne e criado para gerar
pressão popular em pautas importantes no contexto de
um Brasil sequestrado pela politicagem golpista. O nome
342Agora faz referência aos 342 votos de deputados
necessários para que a primeira denúncia de corrupção
contra Temer fosse aceita pelo Poder Legislativo de
forma que ele pudesse ser julgado pelo Supremo Tribunal
Federal. Utilizando o apoio e as redes de influência de
muitos artistas, atores, pensadores, escritores, acadê-
micos, políticos, advogados, juristas, celebridades e dos
próprios movimentos sociais, o 342Agora gerou conteú-
do significativo e organizou “tuitaços” enquanto colheu
apoio de instituições privadas e públicas, além de articu-
lar movimentações com o próprio Poder Judiciário. Se o
“Fora Temer” do 342Agora era um ponto de convergên-
cia nacional, as pautas do 342Artes, que se define como
um “movimento contra a censura e a difamação”, não
tinham igual apelo popular. Grande parte dos artistas e
atores que defenderam publicamente a bandeira do mo-
vimento foram difamados tanto por internautas como
por perfis falsos e bots. Chegou-se ao absurdo de o ex-a-
tor militante de direita Alexandre Frota, do MBL, e do
deputado e pastor evangélico Marco Feliciano liderarem
um movimento de difamação chamado Caetano Pedófilo
e de o ex-músico Roger, da banda Ultraje a Rigor, lançar
em suas redes sociais uma imagem da artista Adriana
Varejão com a sobreposição do desenho de um pênis e
da inscrição “puta” em razão de seu apoio ao 342Artes.
Por fim, Alexandre Frota e os integrantes do MBL foram
processados e condenados a apagar as postagens, com
multa de R$10.000 diária em caso de descumprimen-
to. A sequência de processos e condenações contra os
principais caluniadores foi fundamental para atenuar sua
ferocidade diante de algum restante de justiça no país −
assim como também foi importante a desmoralização
causada pela matéria de Bruno Abbud para a revista
Piauí em que mostrou dois meses de conversas no grupo
de whatsapp formado pelos membros do MBL com
empresários de São Paulo. O 342Artes também articulou
uma importante e muito bem feita matéria no progra-
ma Fantástico, da TV Globo, intitulada “Casos recentes
de ódio e intolerância têm se espalhado pelo Brasil”.
Derivação de “Tortura Nunca Mais”, o título Censu-
raNuncaMais nomeia movimento coletivo surgido no Rio
de Janeiro que tem grande parte de seus colaboradores
formada por trabalhadores da cultura anteriormente já
ligados a movimentos feministas, estudantis, antirra-
cistas, LGBTQ e também a grupos como o Ocupa Minc
e o Reage Artista. Formou-se em resposta à censura da
Prefeitura do Rio no caso das mostras Curto-Circuito,
no Castelinho, e Queermuseu, no MAR, teve algumas ra-
mificações e se expandiu de forma descentralizada para
105
outras cidades por meio da viralização de uma expressão
muito simples e forte que alcançou grande capilaridade
a partir de manifestação diante do Cine Odeon, na Cine-
lândia, durante a abertura do Festival do Rio de Cinema
− “Censura Nunca Mais”, . Até mesmo o artista chinês Ai
Weiwei levantou uma placa com esses dizeres em visita
ao Brasil, e o baterista do U2, Larry Mullen Jr., usou cami-
sa com a expressão nos quatro shows que a banda fez em
São Paulo para mais de 70 mil pessoas; há também um
vídeo com dezenas de atores, cantores e artistas baianos
contra o desmonte da cultura que utiliza a expressão.
O grupo original do CensuraNuncaMais foi o principal
responsável pela grande manifestação-assembleia do
dia 12 de outubro em frente ao MAR, na Praça Mauá.
A Frente Nacional Contra a Censura formou-se
em Belo Horizonte, com apoio de diversos grupos
mineiros da área da cultura e da educação, e construiu
forte rede nacional em torno da defesa do sistema da
cultura contra a censura. Mesmo atacado por políticos
locais e por grupos conservadores radicais, o movi-
mento continua sua atuação com força e qualidade.
O Cólera Alegria é movimento anônimo e coletivo
de construção de pinturas-cartazes com mensagens
libertadoras, contagiantes, afinadas com as urgências
do Brasil contemporâneo e com potencial de viralização
online. De vigoroso tom contracultural, os trabalhos
se nutrem em diversas referências, realizam-se com
doses equilibradas de precisão e ambiguidade e são
construídos de maneira absolutamente sedutora. Como
na poesia visual, muito além de dizer apenas o que as
palavras dizem, as mensagens acontecem, em toda a sua
potencialidade: na vibração entre letras, cores e formas
escolhidas para pintar e escrever; na junção ou sepa-
ração das letras; nos tecidos ou materiais escolhidos e
nas imagens ou formas que compõem, junto às pala-
vras, as pinturas-cartazes. A produção do movimento
atinge questões que vão do empoderamento feminino
à defesa do aquífero guarani, do desmonte da UFMG ao
genocídio indígena, da defesa do cerrado até ataques
ao prefeito João Dória Jr. De forma muito potente e
inteligente, o coletivo deixa de ser mera forma de reação
e passa a propor pautas importantes, positivando sua
atividade política. Sem um grupo definido nem um
“perfil autor” online, a reunião das pinturas-cartazes do
Cólera Alegria se dá, basicamente, com o uso do hashtag.
Em respeito a sua intenção de permanecer anônimo e
descentralizado, nos limitamos a essas informações,
mas veiculamos suas imagens ao longo deste texto.
Articulada pelo MAR e por diversos diretores de
museus brasileiros e lançada em 2 de outubro de 2017, a
“Carta pública de diretores, curadores e profissionais dos
museus e das instituições culturais brasileiras” demons-
trou certa unidade entre os 73 líderes de grandes institui-
ções de arte, que somaram seus prestígios na defesa dos
by LGBTQ artists and activists was instrumental to
show that the spaces won by the queer movement
in recent years would not be easily reclaimed.
342Artes derives from the 342Agora (or 342Now),
self-defined as “a supra-partisan movement against cor-
ruption, supportive in the struggle for a better Brazil,”
initially led by Paula Lavigne and created to generate
popular pressure on important issues in the context of a
Brazil hijacked by the politics that succeeded the coup.
The name 342Agora refers to the 342 votes required in
the House of Representatives to guarantee that the first
official complaint of corruption against Temer would
be accepted by the Legislative Power and he could be
tried by the Supreme Court. Using the support and
networks of influence of many artists, actors, thinkers,
writers, academic minds, politicians, lawyers, jurists,
celebrities, and social movements, it has generated
significant content and organized “tweet waves” while
enlisting support from private and public institutions, in
addition to articulating movements with the Judiciary
Power. If the “Out with Temer” by 342Agora was a point
of national agreement, the guidelines for 342Artes,
which is defined as a “movement against censorship
and defamation,” did not have the same popular appeal.
Most of the artists and actors who spoke out defending
the movement’s ideals were maligned by Internet users,
false profiles, and bots. The reaction reached absurd
status when former actor and right-wing activist Alex-
andre Frota, from the MBL, and Representative slash TV
Evangelist Marco Feliciano led a defamation movement
called Caetano Pedophile. Also when former musician
Roger, of Ultraje a Rigor fame, post on his social media
a picture of artist Adriana Varejão with a penis super-
imposed and the word “whore” because she supported
342Artes. Later, Alexandre Frota and other members
of MBL were prosecuted and sentenced to erase their
posts and pay a 3,000 dollars daily fine in case of non-
compliance. The sequence of lawsuits and convictions
against the main detractors was paramount to mitigate
their ferocity in the face of some remnant of justice in
the country. Just as important was the demoralization
resulting from Bruno Abbud’s article on Piauí magazine,
in which he exposes two months’ worth of conversations
in a WhatsApp group formed by members of MBL with
entrepreneurs from São Paulo. The 342Artes also artic-
ulated an important and very well made newscast on the
program Fantastico, Globo TV, entitled “Recent cases of
hate and intolerance have spread throughout Brazil.”
Derived from the “Tortura Nunca Mais” (the
“Torture Never Again” movement), the title Censur-
aNuncaMais names a collective movement born in Rio de
Janeiro composed largely by culture workers previously
linked to feminist, student, anti-racist, LGBTQ move-
ments and by groups such as the Ocupa Minc and the
Reage Artista. It was formed in response to the Rio de
Janeiro City Hall censorship of a short-subject film festi-
val at Castelinho and to the Queermuseu exhibit at the Rio
Art Museum (MAR). It gained ramifications and expanded
in a decentralized way to other cities by going viral with
a very simple but strong expression that reached great
capillarity, starting with the demonstration in front of
Cine Odeon, at Cinelandia, during the opening of the Rio
de Janeiro International Film Festival. That expression is
“Censorship Never Again.” Even Chinese artist Ai Weiwei
raised a sign with these words during a visit to Brazil. U2
drummer Larry Mullen Jr. wore a shirt with the expres-
sion during the band’s four concerts in São Paulo, with
an audience of over 70 thousand people. There is also a
video by dozens of actors, singers, and artists from Bahia,
speaking against the dismantling of culture and using the
expression. The original organizers of CensuraNunca-
Mais were also responsible for the large demonstration
on October 12 in front of the MAR, at Mauá Square.
The National Front against Censorship was formed
in Belo Horizonte, with the support of several Minas
Gerais culture and education groups. It has built a
strong national network around the system of culture
defense against censorship. Even under attacked by local
politicians and radical conservative groups, the move-
ment continues its activities with strength and quality.
Cólera Alegria is an anonymous collective for the
creation of poster-paintings with liberating and conta-
gious messages attuned to the urgencies of contempo-
rary Brazil and with the potential to go viral online. With
a vigorous countercultural tone, the works are based on
several references, coming to fruition with balanced dos-
es of precision and ambiguity and seductively designed.
As in visual poetry, way beyond just saying what words
convey, the messages fulfill all their potential. They live in
the vibration between letters, colors, and shapes chosen
to paint and write; in the choice to gather or separate let-
ters; in the fabrics or materials chosen; and in the images
or forms that form, along with the words, the post-
er-paintings. The production of the movement reaches
issues ranging from female empowerment to the defense
of the Guarani aquifer, from the dismantling of the Feder-
al University of Minas Gerais to indigenous genocide, from
the conservation of the Cerrado to attacks on Mayor João
Dória Jr. In a very potent and intelligent way, this collec-
tive is no longer a mere form of reaction. It proposes ma-
jor agendas, taking a positive stand on its political activity.
Without a defined group or an online profile, the collection
of poster-paintings by Cólera Alegria can only be known
by its hashtag. To respect its intention to remain anony-
mous and decentralized, we limit ourselves to this infor-
mation, but we are publishing its images with this text.
Organized by The Rio Art Musem (MAR) and several
directors of Brazilian museums, and launched on Octo-
106
Jacaranda - Nº 6
espaços destinados à arte em todo o país. Seu impacto na
luta, porém, foi inferior ao possível aprendizado decor-
rente da análise dessa listagem, que conta com apenas
15 líderes de fora da Região Sudeste. Vale lembrar, por
exemplo, que o Rio Grande do Sul, com 11 milhões de
habitantes e 450 museus, apresenta a média de 25 mil in-
divíduos por museu, enquanto a São Paulo, com seus 45
milhões de pessoas e 630 museus, cabe a média, quase
três vezes maior, de 70.500 habitantes por museu. Além
disso, o título da carta faz referência ao conjunto das
“instituições culturais brasileiras”, embora, na verdade,
reúna em grande parte apenas as maiores, mais ricas e
prestigiadas instituições, descartando desse processo
as menores e mais frágeis. Talvez isso explique a relativa
pouca adesão à carta quando submetida aos sistemas
de coleta de assinaturas online, pouco mais de 10 mil
pessoas até janeiro de 2018 (vale lembrar que há mais de
360 mil assinaturas contra a palestra de Judith Butler).
2a
Em 2013, a partir do inesperado estopim nas mani-
festações contra o aumento do preço das passagens de
ônibus, o povo brasileiro encontrou o ponto de catálise
de nossa agressividade, o instante em que descobri-
mos coletivamente nossa necessidade e capacidade de
estar-em-oposição-efetiva. No ano anterior, o Facebook
alcançara um bilhão de usuários e tornara a Linha do
Tempo ferramenta obrigatória para todos, aumentando
o poder de seus logaritmos sobre nossa organização em
comunidades. Assim, dadas a insatisfação decorrente
da crise econômica no Brasil e as disputas por poder em
ano anterior às eleições de 2014, a convergência inicial
das manifestações de 2013 logo se transformou em
polarização. Durante os anos seguintes nem o resul-
tado das eleições, nem mesmo o golpe contra Dilma
conseguiram criar escoamento fértil, eficaz, suficiente
e construtivo para aquela energia de 2013. O governo
Temer e os inesgotáveis escândalos e absurdos que
transpareceram aumentaram a tristeza e a revolta da
esquerda e causaram constrangimento e arrependi-
mento em parte do centro e da direita. A polarização
migrou, portanto, para outros campos da vida política.
Um dos grandes problemas da organização do
campo político em dois polos é que, no movimento
pendular da discussão entre as partes, o eixo permanece
o mesmo. No momento em que poderia haver a troca, a
construção coletiva, a elaboração na esfera do comum,
a real mudança, há apenas o reforço das diferenças,
da surdez e da disputa violenta por um lugar de poder.
Um misto de ingenuidade, simploriedade e violência
faz com que as pessoas tenham grande dificuldade em
reconhecer aliados, estando sempre caçando inimigos
a combater; tudo isso reforçado por um sistema de
comunicação online que estimula a desinformação e a
107
criação de grupos ensimesmados, arrogantes e opostos.
É fundamental entender que a maior preocupação
dos políticos em 2017 é com os resultados das eleições
de 2018. Devido à indignação generalizada, à aprova-
ção de Temer abaixo dos 5%, à profusão de denúncias
das mais variadas ordens contra políticos no país
inteiro, à sensação de que toda a mobilização pela
saída de Dilma teve na verdade razões e consequências
escusas, e à resistência da liderança de Lula em todas
as pesquisas de intenção de voto para a Presidência
apesar de tudo, a incerteza a respeito dos resultados
de 2018 se tornou vertiginosa para a classe política.
Basicamente, estando os corruptos que manipu-
laram o povo com o discurso “contra a corrupção” no
momento do impeachment de Dilma sendo desmasca-
rados, a direita decidiu utilizar, dessa vez, o discurso
“em defesa da família”. Os ataques moralistas do MBL
e dos demais grupos evangélicos e conservadores não
aconteceram por acaso naquele momento específico
do segundo semestre de 2017. Suas falas desenhavam
um novo arco de tragédia: “A família está sendo des-
truída aos poucos pelos artistas e por outros desvia-
dos, que vêm espalhando silenciosamente há muito
tempo a pedofilia, a zoofilia, a homossexualidade e a
transexualidade para nossas crianças e comunidades;
se nada for feito, será o fim da nossa sagrada família!”.
Como se sabe, o único fator que pode interromper
o destino fatal da tragédia é o surgimento da figura
heroico-messiânica. Mirando os resultados de 2018,
é nesse papel que se colocou a direita reacionária.
Há ainda outra farsa nessa equação. Vivemos
num país absolutamente tóxico ou mortal para LGB-
TQIs e cujo sistema cultural é marcado por abandono
e precarização. De acordo, porém, com a narrativa
da direita moralista, LGBTQIs e artistas são pode-
rosos algozes, com a missão de acabar com a famí-
lia − e talvez instaurar o comunismo no Brasil.
Os grupos que arquitetavam esse movimento contra
a arte se valiam da fé e da ferocidade online tanto dos
evangélicos (que já constituem quase 25% da população
nacional) quanto da direita radical, recentemente empo-
derada e reforçada pelo golpe de 2016. A fim de mano-
brar esses enormes grupos de haters, o MBL, a bancada
evangélica e outros grupos conservadores manipulavam
as informações em postagens nas mídias sociais com
seus perfis oficiais e com o uso de bots de maneira a
incitar a indignação, por meio da legendagem falsa, da
descontextualização ou simplesmente da mentira, em
derivações do uso das fake news, sempre buscando a
construção do ódio, a ser conjugado com o messianismo.
A crise que vivemos em 2017 com as censu-
ras e ameaças de cerceamento da liberdade de ex-
pressão tinham, portanto, o sistema da arte como
objeto, mas as eleições de 2018 como objetivo.
ber 2, 2017, the “Public letter by directors, curators,
and professionals of Brazilian museums and cultural
institutions” demonstrated a certain unity among the
73 leaders of major art institutions, who granted their
prestige to the defense of spaces dedicated to art all
around the country. Its impact on the struggle, how-
ever, was not as great as expected when it comes to
the learning process this list could have achieved since
it has only 15 leaders from regions other than South-
eastern Brazil. It is worth mentioning, for instance,
that the state of Rio Grande do Sul, with its 11 million
people and 450 museums, presents an average of
25,000 individuals per museum, while São Paulo, with
its 45 million people and 630 museums, averages
almost three times that, with 70,500 inhabitants per
museum. In addition, the title of the letter refers to all
of the “Brazilian cultural institutions,” although in fact,
it brings together only the largest, richest and most
prestigious institutions, discarding from the process the
smallest and most vulnerable. Perhaps this explains the
relatively low adherence to the letter when subjected to
online signature collection systems – just over 10,000
people by January 2018 (note that there are over 360
thousand signatures against Judith Butler’s lecture).
2a
In 2013, starting with the unexpected trigger for
major demonstrations against the rise in bus ticket
prices, the Brazilian people found the point of catal-
ysis of its aggressiveness, the moment in which we
collectively discovered our need and ability to oppose
effectively. In the previous year, Facebook reached a
billion users and made the Timeline a mandatory tool
for all, increasing the power of its logarithms over
our ability to organize in communities. Thus, given
the dissatisfaction arising from the economic crisis
in Brazil and power disputes in the year preceding
the 2014 elections, the initial convergence of the 2013
demonstrations soon turned into polarization. In the
following years, neither the outcome of the elections
nor the coup against Dilma managed to create a fertile,
effective, sufficient, and constructive outlet for that
2013 energy. The Temer administration and endless
scandals and absurdities that have transpired since
increased the sadness and revolt of the Left and caused
embarrassment and regret on the Center and Right.
Polarization has migrated to other fields of political life.
One of the great problems of the political field
organization in two poles is that, in the pendulum-like
movement of the discussion between the parts, the
axis remains the same. At a time when there could
be an exchange of ideas, collective construction,
elaboration upon similarities, real change, there is
only galvanized differences, deafness, and violent
struggles for a place of power. A mixture of inge-
nuity, simplicity, and violence makes it difficult for
people to recognize allies, always hunting enemies to
fight, reinforced by an online communication system
that encourages misinformation and the creation
of self-absorbed, arrogant, and opposing groups.
It is essential to understand that the great-
est concern of politicians in 2017 is the result of
the 2018 elections. Because of several issues – the
widespread indignation, Temer’s approval rate at
less than 5%, the profusion of accusations against
politicians all over the country, the feeling that Dil-
ma’s impeachment had, in fact, ulterior motives and
consequences, and Lula’s leadership in all presidential
election polls – the uncertainty regarding the results
of 2018 became vertiginous for the political class.
Basically, with the corrupt who manipulated the
people with the “anti-corruption” speech at the time of
Dilma’s impeachment being unmasked, the Right decided
to start using the “in defense of the family” speech. The
moralistic attacks by the MBL and other evangelical
and conservative groups did not happen by chance at
that specific time during the second half of 2017. Their
speeches drew a new arc of tragedy: “The family is
being gradually destroyed by artists and other deviants,
who have long been silently spreading pedophilia, besti-
ality, homosexuality, and transsexuality among our chil-
dren and communities; if nothing is done, it will be the
end of our holy family!” As we know, the only element
that can interrupt the fatal destiny of tragedy is the
emergence of the heroic-messianic figure. Targeting re-
sults 2018, the reactionary Right chose to play that role.
There is yet another farce in this equation. We live
in an absolutely toxic or deadly country for LGBTQ-
Is, whose cultural system is marked by neglect and
precariousness. However, according to the narra-
tive of the moralist Right, LGBTQIs and artists are
powerful executioners, in a mission to destroy the
family – and perhaps institute communism in Brazil.
The groups that orchestrated this movement
against art used the faith and online ferocity of evangel-
icals (who already make up almost 25% of the Brazilian
population) and the radical Right, recently empowered
and reinforced by the coup of 2016. In order to control
these huge groups of haters, MBL, the evangelists, and
other conservative groups manipulated the information
in social media posts with their official profiles and the
use of bots, inciting outrage through false subtitling,
decontextualization. These are nothing but derivations
of the use of fake news, always aiming at the construc-
tion of hatred, to be conjugated with messianism.
The crisis we experienced in 2017, with the
censorship and threats of curtailing freedom of
expression had, therefore, the art system as an
object, but the 2018 elections as an objective.
108
Jacaranda - Nº 6
2b
Dos aprendizados e percepções desses meses de cri-
se, parece ser especialmente grave a noção de que a liber-
dade de expressão e, sobretudo, a liberdade dos artistas
não são entendidas pelo povo brasileiro como valor a ser
defendido. Em outras palavras, a partir de nossa expe-
riência nas praças públicas e nas mídias sociais digitais,
obtivemos a clara sensação de que “não somos problema
de ninguém”. A fissura entre o mundo da arte e a vida do
povo brasileiro é tamanha, que o cerceamento da liber-
dade dos artistas e das instituições culturais se demons-
trou muito pouco emocionante para o público em geral.
Uma das razões para essa situação está no fato de
que o sistema da arte no Brasil se expandiu, se tornou
complexo e se estruturou de maneira elitista, cons-
truído por pessoas de elite econômica, com formas de
pensar e maneiras de fazer próprias da elite, e dirigido
majoritariamente à elite. Dados o quadro da gigan-
tesca diferença social do país e o baixo investimento
em educação, essa alienação criou um abismo entre o
sistema da arte e a vida das pessoas. Como as formas
e os códigos mais valorizados nesse sistema dizem
respeito ao contexto cultural dos mais ricos e como
as liberdades no contexto do sistema da arte estão
muito além das liberdades cotidianas dos cidadãos, o
mundo da arte passou a ser visto pelas pessoas como
um ambiente privilegiado, cínico e autorreferente −
nem carente, nem digno de qualquer solidariedade.
Além disso, segundo o capítulo Percepções e Cultura
da ilustre pesquisa do Ipea de 2010 para formação do
Sistema de Indicadores de Percepção Social, 90% dos
entrevistados disseram que nunca ou muito raramente
vão a museus ou centros culturais, 70% nunca foram a
esses espaços e apenas 7% disseram que, se tivessem
mais tempo, os frequentariam. Quanto aos motivos
para essa ausência, 70% acreditavam que os preços
altos eram um impedidor. A variação nos dados por
idade, escolaridade, região do país e classe social foi
muito pequena. A conclusão da pesquisa foi de que a
distribuição espacial dos equipamentos culturais não
gerava “oportunidades de fruição e consolidação do
gosto pelas práticas culturais”, mas talvez haja outra
interpretação possível, posto que 55% dos entrevistados
disseram que o público frequentador das instituições
é elitista e 43% afirmaram considerar desinteres-
santes ou enfadonhas suas atividades culturais. Algo
na direção e programação desses espaços impede
as pessoas de se sentir acolhidas e estimuladas.
Mesmo que o campo da arte contemporânea ainda
esteja muito ligado ao sistema capitalista clássico de
produção de objetos de propriedade exclusiva e em-
bora as formas disruptivas e transformadoras da arte
possam ser facilmente anuladas pelo mercado, cujo
valor de troca financeira usurpa o lugar dos sistemas
109
complexos de valores, ainda temos o potencial de
construir o sistema da arte como um território propí-
cio à inspiração do vigor transformador que pulsa no
humano. Um dos desafios herdados desses meses de
experiência é a criação da consciência coletiva de que as
manifestações − pelo fim da violência contra a mulher,
pela vida dos jovens negros, pelo fim do genocídio dos
povos indígenas, pela dignidade e pelos direitos dos
trabalhadores, pela distribuição de renda e de terras,
pelo direito à água, pelo fim do uso de agrotóxicos, pelo
fim do racismo, pela liberdade religiosa, pelos direitos
LGBTQIs, pelos direitos humanos e pela liberdade de
expressão e de criação artística – fazem parte da mesma
luta: por um mundo mais justo, livre, saudável, diver-
so e alegre para todos. Atrela-se a arte diretamente à
capacidade humana de imaginar de maneira radical
o que não havia antes – e, por isso, é importante para
todos. Como, porém, diminuir a indiferença às ativida-
des artísticas e ao conhecimento produzido sobre arte?
Faz-se evidente a necessidade de construirmos
estruturas mais democráticas, capazes não apenas de
atrair público mais numeroso, mas também de criar
melhor envolvimento. Para isso, é fundamental a elabo-
ração de programas relacionados às áreas de interesses
das comunidades a partir de novas formas de interação,
escuta e troca com o contexto, gerando estruturas mais
porosas, receptivas, inclusivas, abertas e inteligentes.
Mais do que dar “oportunidade de fruição” e permitir
a “consolidação do gosto pelas práticas culturais”, é
preciso entender como travar relações respeitosas e
potentes, colaborativas e transformadoras. Para que a
liberdade das instituições culturais se torne uma questão
de fato pública é preciso que a população deixe de ser
“visitante”, “público-alvo” ou “consumidor” e passe a
entender esses espaços como territórios seus, de seus
interesses e de sua própria liberdade. Isso não signifi-
ca criar exposições sempre agradáveis, mas construir
programas envolventes que gerem identificação, afetem,
façam vibrar, criem laços e, finalmente, desatem nós.
2b
From what we have learned and perceived during
these months of crisis, it seems to be especially
serious the notion that freedom of expression and,
above all, the freedom of artists are not understood
by the Brazilian people as a value to be defended. In
other words, from our experience in public squares
and digital social media, we get the feeling that “we
are nobody’s problem.” The gap between the world
of art and the life of Brazilians is so great that re-
stricting the freedom of artists and cultural institu-
tions has proved very unemotional for the public.
One of the reasons for this situation lies in the fact
that the art system in Brazil has expanded, become
complex and structured in an elitist way. It was built by
the economic elite, with ways of thinking and ways of
doing things that belong to the elite, and it is directed
mainly to the elite. Given the gigantic social difference
in the country and the low investment in education,
this alienation has created an abyss between the art
system and people’s lives. The codes and forms most
valued in this system relate to the cultural context of
the wealthy. Therefore, the freedoms in the context of
the art system are far removed from the daily freedoms
of citizens. The art world has come to be seen by people
as a privileged, cynical and self-referent environ-
ment – neither needing nor worthy of any solidarity.
In addition, according to the “Perceptions and Cul-
ture” chapter of the eminent research by Ipea, in 2010,
to create the System of Social Perception Indicators,
90% of respondents said that they never or rarely go
to museums or cultural centers, 70% have never been
to these spaces, and only 7% said that if they had more
time, they would go. As to the reasons for this ab-
sence, 70% believed that high prices were a deterrent.
The variation in data by age, schooling, region of the
country and social class was very small. The research
concluded that the spatial distribution of cultural
equipment did not generate “opportunities for fruition
and consolidation of a taste for cultural practices,” but
perhaps another interpretation is possible, since 55%
of the interviewees said that the public attending the
institutions is elitist and 43% said they considered their
cultural activities uninteresting or boring. Something in
the administration and programming of these spaces
prevents people from feeling welcomed and stimulated.
Even though the field of contemporary art is
still closely linked to the classic capitalist system of
producing objects for exclusive property, and al-
though the disruptive and transforming forms of art
can easily be nullified by the market, where the value
of financial exchange usurps the place of complex
systems of values, we still have the potential to build
the art system as a territory conducive to inspire the
transformative force that pulsates in humans. One of
the challenges inherited from these months of ex-
perience is the creation of collective awareness that
the demonstrations – to end violence against women,
racism, the genocide of indigenous peoples, the use of
pesticides, for the lives of young black people, for the
right to water, dignity and distribution of income and
land, religious freedom, LGBTQI rights, human rights,
freedom of expression, and artistic creation – are part
of the same fight. It is a struggle for a fairer, freer,
healthier, more diverse and joyful world for all. Art is
tied directly to the human capacity to imagine what did
not exist before – and so it is important for everyone.
However, how do we diminish the indifference to artistic
activities and to the knowledge produced about art?
How does one take a stand on the urgent issues of
our time without limiting them to the struggle itself?
How to avoid taking hold of causes and hushing our
voices? How to construct a space that stimulates hori-
zontal exchanges and does not impose itself, arrogantly
and vertically, even being a museum or cultural center
with its history and traditions? How to shelter diver-
sity without the danger of uniformity? How to build a
mediation role for cultural institutions in the face of
this new connected public sphere in which people are
already accustomed to autonomously and horizontally
produce and share culture, knowledge, information,
images, and symbols? How to update the institution
without reproducing neoliberal values, without subject-
ing human relations to the laws of the market? How
to build and truly share the power of the institution?
It becomes evident that we need to build structures
that are more democratic, capable not only of attracting
a larger audience but also of creating better involve-
ment. To achieve this, it is paramount to elaborate
programs that can relate to the community, using new
forms of interaction, discussion, and exchange with the
entire context, generating more porous, receptive, inclu-
sive, open, and intelligent structures. More than giving
“opportunities for fruition” and allowing “the consolida-
tion of a taste for cultural practices,” one must under-
stand how to maintain relationships that are respectful
and potent, collaborative and transformative. To turn the
freedom of cultural institutions into a matter of public
knowledge, it is necessary that people stop being “vis-
itors,” “the target audience,” or “consumers,” and start
seeing these spaces as their territory, a stage for their
interest, and part of their own freedom. This does not
mean always creating pleasant exhibitions, but building
engaging programs that generate identification, affect,
vibration, create ties, and ultimately untie the knots.
110
Jacaranda - Nº 6
‘Ignorância sobre arte não é
o que justifica o acontecido.
É a instrumentalização
premeditada dela’
* Gaudêncio Fidélis, em entrevista por e-mail a Luisa Duarte e Suzana Velasco
1- A que você atribui a censura a Queermu-
seu – Cartografias da Diferença na Arte Bra-
sileira e que consequências sofre a produção
e circulação de arte após uma série de ataques
conservadores às artes brasileiras em 2017?
A censura da Queermuseu faz parte de
um movimento concatenado de setores da
ultradireita do país, encabeçados pelo MBL -
Movimento Brasil Livre, e que eventualmente
se juntam a lideranças fundamentalistas. Há um
consenso em torno disso e diversos analistas
políticos e jornalistas falaram dessa migração
da pauta do MBL em direção ao universo simbó-
lico, portanto da arte, da cultura e da produção
de conhecimento. Quanto aos fundamentalis-
tas, eles já estavam com essa pauta em curso há
muito tempo. Eles apenas não tinham ingressado
no terreno da arte. Esse processo de ataques, que
depois se estendeu a vários setores da socieda-
de, objetiva construir no imaginário social um
cerceamento da liberdade de expressão para
ingressar no terreno dos costumes, com o obje-
tivo de atender a diversos interesses (políticos,
econômicos, eleitoreiros, ideológicos), especial-
mente ao crescimento do fundamentalismo no
país, que é visível com o aumento das bancadas
de representantes evangélicos no Congresso e no
Senado. Não se podem confundir os evangélicos
com seus representantes, que não respondem em
sua extensa maioria aos interesses de seus cons-
tituintes nem os representam. Diversos estudos,
documentos e relatórios dão conta disso e falam
explicitamente do crescimento do fundamenta-
lismo no país e no mundo, com especial ênfase
na América Latina, em países como Brasil, Chile,
Colômbia e outros. Em todos estes países há uma
junção do populismo fundamentalista com o ra-
111
dicalismo da extrema-direita. As consequências
para a produção artística são desastrosas. Mas a
arte não é a única. Nesse contexto, presenciamos
ataques cada vez mais acirrados às religiões de
matriz africana, a uma manifestação popular
como o carnaval,  às universidades como centros
de produção de conhecimento. Diferentemente
do “sucateamento” da universidade pública que
vinha acontecendo, estes agora são ataques des-
moralizantes da universidade diante da opinião
pública. A ideologia da “escola sem partido” tam-
bém faz parte dessa operação concatenada de
ataques em diversas frentes. Eles apenas chega-
ram na arte e na cultura mais tarde, mas já mos-
travam sinais de aparecimento há algum tempo.
Quem diz que a Queermuseu foi atacada pelo
mérito da exposição apenas demostra profunda
ignorância dos fatos, até mesmo porque são
pessoas que não viram a mostra, e esta é uma
plataforma curatorial que se realiza no espaço.
Não é um simples conjunto de obras sem nexo. E
ainda assim exposições não podem ser sujeitas
a ataques justificados de natureza fascista ou
fundamentalista pelo seu suposto conteúdo.    increase of evangelical groups in both houses of the
2 - A convocação e a sessão da CPI dos Maus-
-Tratos Infantis no Senado Federal, evidenciou um
desconhecimento do que era Queermuseu, já que
muitas das perguntas poderiam ter sido respondi-
das com uma rápida consulta a informações sobre
a exposição. Em que medida houve um uso político
e midiático da polêmica em torno da mostra?  in Brazil and the world, with special emphasis on Latin
É uma percepção equivocada achar que se trata
de desconhecimento. Tudo o que aconteceu na CPI
foi premeditado e manipulado como estratégia
política de cunho eleitoreiro com forte caráter de
teatralização, como é típico do fundamentalismo
mais radical (é preciso lembrar que o presidente
“Ignorance about art was not the
cause of what took place. It was
brought about, rather, by the
premeditated instrumentalization
of ignorance”
* Gaudêncio Fidélis, in an interview by email with Luisa Duarte and Suzana Velasco
1 – What reasons do you think underlie the
censorship of Queermuseu – Cartografias da Dif-
erença na Arte Brasileira, and what consequences
has the circulation of art suffered after a series of
conservative attacks on the Brazilian arts in 2017?
The censorship of Queermuseu is part of an
interrelated movement of Brazil’s ultra-right sectors,
headed up by the Movimento Brasil Livre [Free Brazil
Movement, MBL] and eventually joined by fundamen-
talist leaders. There is a consensus concerning this,
and various political analysts and journalists have
discussed this migration of the MBL’s platform toward
the symbolic world, that is, of art, culture and the
production of knowledge. For their part, the fundamen-
talists had already been adhering to this platform for
a long time. They had just not entered into the realm
of art. This process of attacks, which later extended
to various sectors of society, is aimed at curtailing
freedom of expression within the social mindset, in
order to then enter the realm of customs, with the goal
of furthering various (political, economic, electoral,
ideological) interests. The goal is especially to further
the growth of fundamentalism in Brazil, as seen in the
Brazilian Congress. The evangelical individuals should
not be confused with their representatives, who for
the most part do not respond to the interests of their
constituents and do not represent them. Different
studies, documents and reports have discussed this
and explicitly talk about the growth of fundamentalism
America, on countries such as Brazil, Chile, Colombia
and others. In all of these countries there is a com-
bination of fundamentalist populism with ultra-right
radicalism. The consequences for artistic production
are disastrous. But art is not the only target. In this
context, we have witnessed increasingly fierce attacks
on religions from an African background, on popular
manifestations such as Carnival, on the universities
as centers of the production of knowledge. Unlike
the “scrapping” of the public university that has been
taking place, the current attacks are aimed at demor-
alizing the university in public opinion. The ideology
of the Escola Sem Partido [School Without a Party]
movement is also part of this interrelated operation
of attacks on different fronts. Although they only
arrived at art and culture later, for some time they had
already been showing signs of heading in that direc-
tion. Whoever says that Queermuseu was attacked
only on the basis of the exhibition’s merits merely
demonstrates a profound ignorance of the facts,
especially since they are people who did not attend
the show, and there is a curatorial platform realized
in that space. It is not a simple group of artworks
without connection. And in any case, exhibitions
cannot be subject to attacks of a fascist or funda-
mentalist nature justified by their supposed content.
2 - The convening of a session by the Parliamen-
tary Investigative Commission (CPI) on child abuse in
the Federal Senate evidenced a lack of knowledge and
understanding of what Queermuseu was, since many
of the questions could have been answered by a quick
look at the information about the exhibition. To what
extent did politicians and the media make manipula-
tive use of the controversy surrounding the show?
It is a mistaken perception to think that it
stemmed from a lack of knowledge or understanding.
Everything that took place in the CPI was premed-
itated and manipulated as a political strategy with
electoral aims and a strong theatrical character, as is
typical of the most radical fundamentalism (it should
be remembered that the president of the CPI, Senator
Magno Malta, is a notorious member of the funda-
mentalist congressional caucus). The staging of the
112
Jacaranda - Nº 6
da CPI, senador Magno Malta, é notório membro
da bancada fundamentalista).  Não se pode con-
fundir a encenação das oitivas da CPI, dos infinitos
discursos de parlamentares no Congresso atacando
a exposição e as obras, com a realidade do conhe-
cimento. Não esquecendo mais uma vez que o MBL
fez disso uma cruzada moralista e realizou dezenas
de vídeos difamatórios sobre a exposição, que eles
sabiam perfeitamente que se tratava de mentira,
também porque muitos destes vídeos foram grava-
dos in loco antes de a mostra fechar. Mesmo que de-
monstrem ignorância e desinteresse pela arte eles
sempre souberam o que estavam fazendo e tinham,
sim, acesso a qualquer material que desejassem,
inclusive ao catálogo da exposição fornecido pelo
Santander. Também não considero, como já disse
inúmeras vezes, que esse processo seja uma “polê-
mica”.  Polêmica é um fenômeno de duas vias. Isso
foi um ataque de uma via apenas. Mas não é como
se pudéssemos ensinar a ignorantes o que eles não
sabem. Todos sabem do que se tratava, por isso em-
preenderam o ataque. Por isso escolheram especifi-
camente cinco obras das 263 disponíveis para criar
uma narrativa difamatória, justamente porque elas
funcionariam melhor no imaginário social através
das redes. Não se pode evidentemente esperar que
esses indivíduos tenham respeito ou sensibilida-
de para a arte, mas ignorância sobre arte não é o
que justifica o acontecido. É a instrumentalização
premeditada dela. Além do mais, a CPI não é o
centro desse processo, apenas uma parte do todo.  da obrigação jurídica que me foi facultada (esgo-
3- Em muitas entrevistas sobre a censura e
na CPI, você afirmou que o grande problema era
que cinco obras foram “retiradas de sua verdade,
e a elas atribuídas uma nova narrativa”. Seria a
defesa de uma verdade das obras o ponto central?
Não deveria haver uma defesa da liberdade de
discursos críticos? Você afirmou que as criações
de Bia Leite, por exemplo, denunciam o bullying,
mas a artista afirmou elas falam da formação de
uma identidade LGBT desde a infância. Cruzando
Jesus Cristo com o Deus Shiva, de Fernando Baril,
trataria de sincronismo religioso, mas o próprio
artista salienta que há ali uma crítica à Igreja. Não
seria mais correto defender que essas obras  po-
dem ser sim incômodas a muitos grupos, mas nem
por isso incitam a pedofilia ou são criminosas?
Eu não afirmei que “o grande problema” seria
esse. Afirmei que um dos problemas era a falsifica-
ção do sentido verdadeiro das obras. Mas é preciso
ter consciência de que isso era uma CPI, portan-
to usei uma figura de retórica utilizada em uma
situação de ausência de liberdade de expressão. O
grande problema foi o uso criminoso da exposição
113
para fins obscuros. Não se tratava de uma aula de
história da arte. Tratava-se, isso sim, de uma oitiva
de uma CPI, que ocorre dentro e determinados
protocolos formais. Em outras palavras, eu estava
lá involuntariamente, convocado em desacordo
com o objeto da CPI, já que os crimes imputados à
exposição não existiam, isso já dito pelo Ministério
Publico no segundo dia depois do fechamento da
exposição. Pela mesma razão aquele ritual parla-
mentar respondia a um modo estratégico de tratar
um caso de infração de direitos (civis e humanos
inclusive) dentro do que eu considero um “estado
de exceção”, onde profissionais da arte são convo-
cados coercitivamente pelo Congresso para depor
sobre crimes falsamente imputados e criminaliza-
dos. Veja que há inclusive disputas entre juristas se
o Congresso pode de fato convocar coercitivamente
indivíduos para depor, e alguns disputam que tal
convocação só poderia ser feita através da permis-
são de um juiz, o que não foi o caso. Lembre-se que
logo depois as conduções coercitivas foram suspen-
sas pelo STF. Havia toda sorte de irregularidades
na minha convocatória, assim como na de Wagner
Schwartz e outros. Tanto é assim que a condução
coercitiva foi retirada pelo senador Magno Malta
horas antes da audiência, sendo mantida a convo-
cação.  Dito isso, eu não estava ali para dar uma aula
de história da arte nem de crítica como sua pergun-
ta parece sugerir, mas responder tecnicamente a
uma investigação que considerava irregular, dentro
tados todos os instrumentos jurídicos para barrar
minha convocação) em uma infração grave  de
todos os meus direitos de cidadão e profissional.
Como eu disse no inicio de meu depoimento na CPI,
quando acentuei discordar da convocatória: “estou
aqui para cumprir a lei”, ou seja, nesse caso contra
minha vontade e não porque a lei é justa, mesmo
porque esse era um ato político e não jurídico. Há
uma diferença entre uma CPI, em que você por
qualquer razão pode receber voz de prisão, ou um
ambiente de plena liberdade de direitos de expres-
são. Ainda sobre a questão interpretativa: não há
discordância entre minha interpretação e a dos
artistas. Ela é complementar e expressa no con-
texto de uma CPI, para um audiência restrita, no
caso dos parlamentares e para um vasto público,
no caso de quem assistia. Vale dizer ainda que tudo
que falei sobre as obras está em acordo com o que
discuti com os artistas em meu processo de curado-
ria. Sobre  a obra de Bia Leite, menção ao bullying
é o que consta no material educativo da exposição
referente  a esta obra, uma das escolhidas para o
material didático. Ainda lembro que na CPI falei
CPI’s hearings, the infinite speeches by members of
Congress attacking the exhibition and the artworks
should not be confused with the reality of the knowl-
edge. And it must be borne in mind that the MBL once
again made this into a moralist crusade and produced
dozens of defamatory videos about the exhibition,
which they knew perfectly well were deceptive,
especially since many of those videos were recorded
on-site before the show’s closing. Even if they demon-
strate ignorance and disinterest for art, they always
knew what they were doing and therefore had access
to any material they wanted, including the exhibition
catalog furnished by Santander. I also do not think,
as I have said countless times, that this was a “con-
troversial” process. Controversy is a two-way street.
This was a one-way attack. But is not as though they
could teach ignorant people what they do not know.
Everyone knew what this was about, which is why
they waged the attack. This is why they specifically
chose five of the 263 artworks in the show in order to
create a defamatory narrative, precisely because they
would work better in the popular mindset through the
networks. Clearly one cannot expect that these individ-
uals have respect or sensitivity for art, but ignorance
about art was not the cause of what took place. It was
brought about, rather, by the premeditated instru-
mentalization of ignorance. Moreover, the CPI is not
the center of this process, only a part of the whole.
3- In many interviews about the censorship and
the CPI, you stated that the main problem was that
five artworks were “displaced from their truth and
attributed a new narrative.” Is the defense of a truth
of the works the main point? Shouldn’t there be a de-
fense of the freedom of critical discourses? You have
stated that the creations of Bia Leite, for example,
denounced bullying, but the artist herself has stated
that they speak of how her own LGBT identity was
formed since her childhood. You have considered that
Cruzando Jesus Cristo com o Deus Shiva [Crossing
Jesus Christ with the God Shiva], by Fernando Baril, is
about religious synchronism, but the artist himself has
underscored that it involves a criticism of the Church.
Wouldn’t it be more correct to say that these works
could indeed be annoying to many groups, but even so,
they do not promote pedophilia and are not criminal?
I didn’t say that this was “the main problem.” I said
that one of the problems was the falsification of the
true meaning of the artworks. But one must be aware
that this was a CPI, so I used a figure of rhetoric in a
situation where there was no freedom of expression.
The main problem was the criminal use of the exhi-
bition for obscure purposes. It was not a class in the
history of art. Rather, it was a hearing of a CPI, which
took place within certain formal protocols. In other
words, I was there involuntarily, summoned there, in
disagreement with the CPI’s goal, since the crimes
imputed to the exhibition did not exist, which is some-
thing the Public Prosecutor’s Office had already stated
on the second day following the exhibition’s closing.
For the same reason, that parliamentary ritual was a
strategic means of treating on a case of the repression
of rights (both civil and human) within what I consider
a “state of exception,” where art professionals are sub-
poenaed to testify under a state of arrest about events
and situations that are falsely imputed as criminal. I
also see that there are debates among jurists whether
Congress can in fact subpoena individuals to testify
under a state of arrest, and that some jurists hold
that such a subpoena can be made only with a judge’s
authorization, which was not the case. I remember
that a short time later the subpoenas to testify under
a state of arrest were prohibited by the Brazilian
Supreme Court. There was every sort of irregularity
in my subpoena, as there also was in that of Wagner
Schwartz and others. So much so that the subpoena to
testify under a state of arrest was withdrawn by Sena-
tor Magno Malta just hours before the hearing, though
the summons was maintained. This being stated, I was
not there to give a class in art history or criticism, as
your question may suggest, but to technically respond
to an investigation I considered irregular, within the
juristic obligation foisted on me (I had exhausted all
the legal resources to bar my subpoena) in a serious
infraction of all my civil and professional rights. As I
said at the beginning of my testimony at the CPI, when
I emphasized that I disagreed with the summons: “I
am here to fulfill the law,” that is, in this case against
my will and not because the law is just, especially
since this was a political act, not a legal one. There is a
difference between a CPI in which you for any reason
can be arrested, and an environment where one has
full freedom of expression. Also about the interpretive
question: there is no disagreement between my inter-
pretation and that of the artists. Mine is complementa-
ry to theirs, and was expressed in the context of a CPI,
to a restricted audience – the members of Parliament
and a vast public that was watching the proceedings.
It should furthermore be stated that everything I
said about the artworks is in agreement with what I
discussed with the artists in my curatorship process.
Concerning Bia Leite’s work, the mention of bullying is
what is found in the exhibition’s educational material
referring to this piece, one of those chosen for the
didactic material. I also remember that at the CPI I said
that this was a work “made based on the perspective
of the LGBT community,” which is precisely the same
thing. I was also not there to exhaustively cover all
the interpretations. Nor is it a discussion by someone
114
Jacaranda - Nº 6
que esta era uma obra “feita a partir da perspectiva
da comunidade LGBT”, ou seja, exatamente a mes-
ma coisa. Eu não estava ali também para esgotar a
interpretação. Também não se trata uma discus-
são de quem é o “sujeito da fala” pois comparecer
e responder àquela audiência, que poderia ter
imensas consequências para mim como cidadão,
e também para a comunidade artística em geral,
diante da ameaça a qual eu estava sujeito, depen-
dendo de meu desempenho, foi facultada a mim. A
responsabilidade de responder à CPI foi atribuída
a mim contra a minha vontade e cabia exclusiva-
mente a mim responder, diante de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (uso o termo por extenso
propositadamente), para que nós tenhamos ciência
da gravidade da situação e não se pense que isso
era uma disputa de excelência intelectual funda-
mentada na vaidade. Era, sim, de responsabilidade
pública assumida por mim e exercida sob coerção.
4- Uma decisão do Ministério Público
obriga o Santander a realizar duas exposições
sobre diversidade em 2018, mas não a re-
abrir Queermuseu. Como você vê essa decisão?  ciedade, tendo como ponto de partida tanto as
Minha posição foi de que esta negociação foi
uma farsa, porque estas exposições já estavam
agendadas pelo Santander dentro de uma “trilogia”
de mostras sobre diversidade, que foi inclusive
proposta por mim e da qual a Queermuseu seria a
primeira. O “acordo” entre o MP e o Santander, e
eu o chamo assim propositadamente, só beneficiou
o Santander, pois não penaliza a instituição pelo
crime que cometeu contra a arte e a cultura brasi-
leiras, mas determina apenas que ela venha a fazer
o que sempre faz, ou seja, mantenha sua própria
rotina. E como se não bastasse abre um precedente
ao determinar, através de um instrumento jurídico,
como uma exposição deve ser feita, explicitando
inclusive os detalhes temáticos da mesma. Cha-
mei atenção para isso também, pois vejo como um
risco de que no futuro outras instituições o façam
da mesma forma e isso vire uma norma disfarça-
da de rotina. Quanto ao fato de a mostra não ser
realizada no Santander, ela não poderia ser mesmo
a esta altura, depois que ele desacatou a recomen-
dação (uso o termo técnico) do MP para reabri-la
e realizar uma outra exposição reparatória, por
entender que este tinha cometido um dano público
e um privado ao fechar a Queermuseu. Isso quan-
do a exposição inteira ainda estava “sequestrada”
pelo Santander, como permaneceu por um mês. Na
medida em que o Santander se recusou a fazê-lo,
ele não teria mais condições éticas para recebê-la.
Eu mesmo não concordaria que  ela fosse reaberta
lá, pois o Santander é uma instituição censora e
115
esse é um crime que uma instituição cultural não
pode cometer. Chamo a atenção para o seguin-
te: o promotor do MP que fez a recomendação
de reabertura não é o mesmo que fez o posterior
acordo. Houve uma troca na promotoria. Estas
coisas não podem ser tomadas como mero acaso,
mas como fatos concretos que mudaram radi-
calmente  o curso do processo, uma vez que os
procedimentos anteriores do MP estavam corretos
e sintonizados com as prerrogativas de repara-
ção e justiça, enquanto este acordo não está.   I intentionally use the unabbreviated term to make
5 – A reabertura de Queermuseu mereceria
vir acompanhada de um debate sobre as questões
por ela colocadas, além de gerar a oportunidade
de se debater amplamente a censura que lhe
foi infligida.  Fazer do episódio uma platafor-
ma pedagógica através de um fórum de debates
em torno da questões levantadas pela mostra,
e os ataques por ela sofridos, parece ser funda-
mental. Depois de sete meses do fechamento da
exposição, o que você destacaria como pontos
que merecem maior reflexão conjunta da so-
questões levantadas pelos artistas presentes na
mostra quanto pela censura que esta sofreu?     The “agreement” between the Public Prosecutor’s
Como é de conhecimento público, desde quan-
do a exposição foi anunciada pelo diretor da Escola
de Artes Visuais do Parque Lage (onde Queermuseu
será realizada, após campanha de crowdfunding),
Fábio Szwarcwald, em outubro de 2017, já havia a
determinação de realização de um grande fórum de
debates sobre vários assuntos que se relacionam
a tudo o que aconteceu. Adicionamos ao projeto
de reabertura uma lista de mais de 30 possíveis
tópicos para debates que devem ser realizados
paralelamente à exposição, entre eles questões
relacionadas à comunidade LGBTQI+, fascismo e
ultradireita, fundamentalismo, judicialização da
arte, “fake news”, questões pertinentes à liberdade
de crenças, ataques à cultura popular, legislação,
desenvolvimento infantil, financiamento público e
privado, e evidentemente questões especificamente
relacionadas à produção artística, além de outras.
6 – O fato de Queermuseu ter sido abrigada
em uma instituição voltada à arte mas erguida
por meio de incentivo fiscal, como estratégia de
marketing de um banco, parece-lhe sinalizar os
problemas das instituições de arte no Brasil e,
além disso, desse modelo que privilegia o incenti-
vo à cultura por parte de marcas que, a princípio,
nada têm haver com aquilo que estão promovendo?  that engages in censorship and this is a crime that
O incentivo fiscal nunca foi um problema e
não o é aqui. O problema é exclusivo do Santander
neste caso. Deixe-me dar um exemplo necessário:
who is the “subject of speech” since my appearing at
and responding to that hearing – which could have
had immense consequences to me as a citizen, and
also to the artistic community in general, in light
of the threat to which I was subjected, depending
on my performance – was something that was
thrust upon me. The responsibility of responding to
the CPI was attributed to me against my will and
it was exclusively up to me to respond, before a
parliamentary investigative commission, and here
us aware of the gravity of the situation and for no
one to think that this was an intellectual debate
based on vanity. It was, rather, a public responsibil-
ity that I assumed and exercised under coercion.
4- A decision by the Public Prosecutor’s
Office obliged Santander to hold two exhibitions
about diversity in 2018, but not to reopen
Queermuseu. How do you see that decision?
My position was that this negotiation was
a farce, because those exhibitions were already
scheduled by Santander in a “trilogy” of shows
about diversity, which was actually proposed by
myself and of which Queermuseu was to be the first.
Office and Santander, and I use the term “agree-
ment” purposefully, was nothing else than a benefit
for Santander, since it did not penalize the institu-
tion for the alleged crime against Brazilian art and
culture, but merely stipulated that the bank contin-
ue doing what it had always done, that is, maintain
its own routine. And it moreover established a prec-
edent by determining, through a legal instrument,
how an exhibition should be held, even explaining the
thematic details. I also called attention to this, as I
see a risk that in the future other institutions may
do the same and this will become a rule disguised as
a routine. In regard to the fact that the show was
not going to be held at Santander, it could not have
been held there at that point anyway, after the bank
had ignored the “recommendation” (I use the techni-
cal term) of the Public Prosecutor’s Office to reopen
it and hold another reparative exhibition, under the
understanding that it had harmed and deprived the
public by closing Queermuseu. This was when the
entire exhibition was still “sequestered” by Santand-
er, for a period of one month. Insofar as Santander
refused to do it, the bank no longer had the ethical
conditions to host it. I myself did not agree that it
should reopen it, since Santander is an institution
a cultural institution cannot commit. I call atten-
tion to the following: the prosecutor of the Public
Prosecutor’s Office who made the recommendation
for the reopening is not the same one that made the
later agreement. There was a change of prosecutor.
These things cannot be considered as mere chance
occurrences, but as concrete facts that radically
changed the course of the process, since the pre-
vious procedures of the Public Prosecutor’s Office
were correct and in tune with the prerogatives of
reparation and justice, while this agreement is not.
5 – The reopening of Queermuseu deserves to
be accompanied by a debate about the questions
it poses, besides generating the opportunity of
broadly debating the censorship to which it was
subjected. Making the episode into an educational
platform through a forum of debates around the
questions raised by the show, and the attacks it
suffered, seems fundamental. Now, seven months
after the closing of the exhibition, what do you
emphasize as points that merit a combined reflec-
tion by society, taking as a starting point not only
the questions raised by the artists present at the
show, but also by the censorship it suffered?
As is publicly known, ever since the exhibition
was announced by the director of the Escola de
Artes Visuais do Parque Lage (where Queermuseu
will be held, after a crowdfunding campaign), Fábio
Szwarcwald, in October 2017 had already decided
to hold a large forum of debates about various
subjects related to everything that happened. We
added to the project of the reopening a list of more
than 30 possible topics for debates that should be
held in parallel to the exhibition, including questions
related to the LGBTQI+ community, fascism and
the far right, fundamentalism, the judicialization
of art, “fake news,” and questions pertaining to
the freedom of beliefs, attacks on popular culture,
legislation, childhood development, public and pri-
vate financing, and evidently questions specifically
related to artistic production, as well as others.
6 – Do you feel that the fact that Queermu-
seu was held at an institution dedicated to art
but built through governmental tax incentives
for the encouragement of culture, as part of the
bank’s marketing strategy, points to problems
in the art institutions in Brazil and, moreover, in
this model that privileges the promotion of cul-
ture by brand names which otherwise would have
nothing to do with what they are promoting?
The tax incentives were never a problem and
are not one here. The problem in this case pertains
exclusively to Santander. Allow me to give a nec-
essary example: Itaú bank, the financial institution
with the largest sponsorship of art and culture in
Latin America, has produced hundreds of exhibitions
and publications, many of which were attacked,
116
Jacaranda - Nº 6
o banco Itaú, que é  maior instituição financeira
patrocinadora da América Latina, realizou cente-
nas de exposições e publicações, muitas das quais
foram atacadas, e nunca censurou nada. Conhec-
emos apenas um incidente de censura de uma
instituição financeira, que foi o do Centro Cultural
Banco do Brasil (CCBB) em 2005, quando uma obra
de Márcia X foi retirada de uma exposição por
pressões da Igreja Católica. E eu nem tenho certeza
se podemos considerar a resposta àquele inciden-
te como uma política do Banco do Brasil ou se foi
da própria direção do CCBB em uma estratégia
de autoproteção. Instituições financeiras patro-
cinam as plataformas curatoriais mais variadas.
Em nenhum lugar do mundo é diferente. Portanto,
precisamos deixar claro que a atitude do Santander
é única, não mantém nenhuma relação ao fato de
ele ser uma instituição financeira. Vale dizer que
as alegações feitas pelo banco, de cancelamento
de contas feitas e ataques a funcionários, mostr-
aram-se inverdades. A primeira foi desmentida pela
imprensa, pois foi constatado que o Banco Central
não detectou nenhum cancelamento de supostas
20 mil contas, e  segunda não seria justificativa
para o fechamento, pois tais ataques, se é que
aconteceram, ocorreram depois do fechamento. A
timeline de eventos mostra que não foram antes.   participate politically in regard to the episodes
7. O chamado mundo da arte foi convocado
a participar politicamente a partir dos episódios
de censura da qual foi alvo em 2017. Creio que
ficou claro para todos que tais casos encontram
eco em um contexto maior, de fragilidade não
das instituições, como da própria democracia do
país. Como você enxerga essa relação entre os
ataques à arte e uma realidade mais ampla da vida
política (ou falta dela) na contemporaneidade
Trata-se sim de fragilidade das instituições. As
instituições é que são responsáveis por assegurar
o processo democrático antes de tudo. Nós luta-
mos pela democracia mas ela não é uma entidade
em si, desvinculada da vida institucional. Não se
pode esquecer que o Santander é uma institui-
ção cultural com 17 anos de existência e que fez
dezenas de exposições, portanto foi avalizado pela
comunidade artística, que lhe deu credibilidade
(tanto com audiência como com suas obras), e pelas
instâncias governamentais, que lhe deram apoio e
concederam isenção fiscal, por exemplo. Os museus
brasileiros não souberam responder aos ataques de
censura, nem aqueles diretamente atacados nem
os que deveriam tomar uma posição pública diante
de ataques que dizem respeito a toda comunidade
artística e a profissionais do meio. A exceção é o
Museu de Arte do Rio (MAR), que imediatamente
117
se pronunciou para levar a exposição para o Rio de
Janeiro, tendo chegado a marcar data de abertura
(15 de novembro de 2017), até a intervenção do pre-
feito Marcelo Crivella. E evidentemente o Parque
Lage. Se nós não tivéssemos uma institucionali-
dade claudicante, nenhum desses ataques teriam
acontecido desta forma. As instituições teriam feito
frente a tudo isso e barrado de imediato esta onda
obscurantista. Quantos museus vieram a público
e fizeram uma coletiva de imprensa dizendo que
tudo isso era um processo de difamação de cunho
obscurantista, esclarecendo a opinião pública? Esta
é a primeira vez que tenho conhecimento que uma
instituição cultural, como o Santander, não só não
defende uma exposição que promove, patrocina
e abriga como a condena publicamente em uma
nota de Facebook e nunca mais se retrata. Veja
por exemplo o que aconteceu recentemente com
o Museu Metropolitan de Nova York, quando uma
pessoa oportunista resolveu fazer uma abaixo-as-
sinado para retirar uma pintura que ela acusou
de pedofilia, como se pedofilia sequer pudesse
se materializar em um quadro, de Balthus neste
caso, uma pintura de 1938. O museu disse catego-
ricamente que não a removeria, que não abdicava
dessa prerrogativa inalienável, e tudo acabou ali.
and has never censored anything. We know about bring the exhibition to Rio de Janeiro, and even set
only one incident involving censorship by a financial a date for the opening (November 15, 2017), until
institution, which was that of the Centro Cultural the city’s mayor Marcelo Crivella intervened. And,
Banco do Brasil (CCBB) in 2005, when an artwork of course, Parque Lage. Were it not for the lame
by Márcia X was removed from an exhibition due institutional response, none of these attacks would
to pressure from the Catholic Church. And I am have taken place in the way they did. If institutions
not sure if we can consider the response to that had taken a stand against all of this, they would
incident as the policy of the Banco do Brasil as it have immediately barred this obscurantist wave.
may have come from the directors of the CCBB How many museums came out in public and held a
itself as a strategy of self-protection. Financial press conference, enlightening the public opinion by
institutions sponsor a wide range of curatorial saying that all of this was a process of defamation
platforms. It’s the same all over the world. We for obscurantist aims? This is the first time that I
therefore need to make it clear that Santander’s have seen a cultural institution, like Santander, not
attitude is unique, it has nothing to do with the fact only shrink from defending an exhibition it promot-
of it being a financial institution. It should be said ed, sponsored and held, but also publicly condemn
that the allegations made by the bank, that clients it in a posting on Facebook, never retracting it.
were closing their accounts and its staff members Consider, for example, what happened recently with
were being attacked, have been shown to be false. the Metropolitan Museum of New York, when an
The former was proven false by the press, since it opportunistic person decided to collect signatures
was shown that the Central Bank of Brazil did not for the removal of a painting that she accused of
detect any canceling of an alleged 20,000 accounts, promoting pedophilia, as though pedophilia could be
and secondly it would not be a justification for the materialized in a painting, by Balthus in this case,
closing the exhibition, since those attacks, if they a work from 1938. The museum stated categori-
took place, occurred after the closing. The timeline cally that it would not remove it, that it would not
of the events show that they were not before. give up its inalienable prerogative to decide what
7. The so-called art world was invited to it would show, and everything ended right there.
of censorship which targeted it in 2017. I believe
it was clear to everyone that such cases find
an echo in a larger context, involving a fragility
not of institutions, but of the country’s democ-
racy. How do you see this relationship between
the attacks on art and a wider reality of politi-
cal life (or the lack of it) in contemporaneity?
It does indeed involve a fragility of institutions.
Above anything else, it is the institutions that are
responsible for ensuring the democratic process.
We fight for democracy but it is not an entity in and
of itself, unlinked from institutional life. It cannot
be forgotten that Santander is a cultural institution
with 17 years of existence, which has held dozens
of exhibitions and was therefore backed by the
art community, which gave it credibility (through
both its audience and artworks), and by the gov-
ernment agencies, which supported it and gave it
tax incentives, for example. The Brazilian museums
did not know how to respond to the attacks of
censorship. This was true of those directly at-
tacked as well as those who should have taken a
public stand concerning those attacks that affect
the entire artistic community and professionals
in the field. The exception is the Museu de Arte do
Rio (MAR), which immediately stated that it would
118
Jacaranda - Nº 6
O abuso da vida
Matriz do inconsciente
colonial-capitalistístico
* Suely Rolnik
Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é
prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto.
(Gilles Deleuze e Félix Guattari, 1991)1
O esgotamento dos recursos naturais provavelmente
está muito menos avançado do que o esgotamento dos
recursos subjetivos, dos recursos vitais que atinge nossos
contemporâneos. Se nos satisfazemos tanto em detalhar a
devastação do ambiente, é também para cobrir a assus-
tadora ruína das subjetividades. Cada maré negra, cada
planície estéril, cada extinção de espécies é uma imagem
das almas em farrapos, um reflexo de nossa ausência de
mundo, de nossa impotência íntima para habitá-lo.
(Comitê Invisível, 2016)2
O planeta encontra-se hoje sob o impacto de forças
vorazmente destrutivas – e nós com ele. Um mal-estar
alastra-se por toda parte: são várias as sensações que nos
lançam neste estado. Uma perplexidade diante da toma-
da de poder mundial pelo regime capitalista em sua nova
dobra – financeirizada e neoliberal –, que leva seu projeto
colonial às últimas consequências, sua realização global-
itária. Junto com a perplexidade diante deste fenôme-
no, somos tomados por um pavor diante de um outro,
simultâneo, que contribui para o ar tóxico da paisagem
ambiente: a ascensão de forças conservadoras, com tal
nível de violência e barbárie que nos lembra, para ficar-
mos apenas no século XX, os anos 1930 que antecederam
a Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, os anos
de regimes ditatoriais que foram se dissolvendo ao longo
dos anos 1980 (os regimes militares da América do Sul
ou o governo totalitário da União Soviética, entre out-
ros). Como se tais forças jamais tivessem desparecido de
fato, mas apenas feito um recuo estratégico temporário à
espreita de condições favoráveis para sua volta triunfal.
Neoliberalismo e (neo)conservadorismo
À primeira vista, a simultaneidade entre estes dois
fenômenos nos parece paradoxal: são sintomas de forças
reativas radicalmente distintos, assim como são distintos
seus tempos históricos. O alto grau de complexidade,
flexibilidade e sofisticação perversa, próprio do modo
119
de existência neoliberal e suas estratégias de poder, está
a anos luz do arcaísmo tacanho e da rigidez das forças
abrutalhadas deste neoconservadorismo – cujo prefixo
“neo” só faz sentido porque articula-se com condições
sociopolítico-econômicas distintas das anteriores.
Porém, passado o choque inicial, vai se tornando evi-
dente que o capitalismo financeirizado precisa destas
subjetividades rudes no poder, para fazer o trabalho sujo
imprescindível para a instalação de um Estado neolib-
eral: destruir todas as conquistas democráticas e re-
publicanas, dissolver seu imaginário e erradicar da cena
seus protagonistas – entre os quais prioritariamente as
esquerdas em todos seus matizes, mas não só elas. E se
os neoconservadores aceitam a incumbência é porque
neste objetivo específico seus interesses coincidem com
os dos neoliberais, o que permite sua aliança temporária.
A torpe subjetividade dos neoconservadores é ar-
raigadamente classista e racista, o que os leva a cumprir
seu papel nesta cena sem qualquer barreira ética e numa
velocidade vertiginosa. Quando nem bem nos damos conta
de uma de suas tacadas, uma outra já está em vias de aconte-
cer, geralmente decidida pelo Congresso na calada da noite.
O exercício desta tarefa lhes proporciona um gozo narcísico
perverso, a tal ponto inescrupuloso, que chega a ser obsce-
no. Com seu trabalho sujo gozosamente realizado, prepa-
ra-se o terreno para o livre fluxo de capital transnacional, o
mais eficazmente possível e já isento de qualquer estorvo.
O mal-estar ultrapassa um limiar
de tolerabilidade: o trauma
Mas o mal-estar não para por aí: soma-se à per-
plexidade e ao pavor uma profunda frustração com
a atual dissolução em cascata de vários governos de
esquerda pelo mundo, especialmente na América
Latina – fruto da ascensão das forças reativas do con-
servadorismo e do neoliberalismo, temporariamente
unidas. Tal frustração mobiliza a memória traumática
da decepção com o destino funesto das revoluções do
século XX, que se agrava com a constatação da im-
potência das esquerdas face a este novo cenário.
Com a soma destas sensações – perplexidade, pavor,
frustração e decepção –, o mal-estar ultrapassa um limar de
The abuse of life
the colonial-capitalistic
unconscious matrix
* Suely Rolnik
It is always a question of freeing life wherever it is
imprisoned, or of tempting it into an uncertain combat.
(Gilles Deleuze and Félix Guattari, 1991)1
The exhaustion of natural resources is probably less
advanced than the exhaustion of subjective resources,
of vital resources, that is afflicting our contemporaries.
If so much satisfaction is derived from surveying the
devastation of the environment it’s largely because this
veils the shocking destruction of interiorities. Every oil
spill, every sterile plain, every species extinction is an
image of our souls in shreds, a reflection of our absence
from the world, of our personal inability to inhabit it.
(Invisible Committee, 2015)2
The planet today is under the impact of voraciously
destructive forces – and we are tagging along. A malaise
spreads everywhere and several sensations throw us into
this state. A perplexity in the face of the takeover of world
power by the capitalist regime in its new financialized
and neoliberal version that takes its colonial project to
its ultimate consequences: Global domination. In addi-
tion to the bewilderment caused by this phenomenon,
another simultaneous phenomenon instills fear in us
and contributes to the toxic air in the environment: The
rise of conservative forces. Their level of violence and
barbarism is such that reminds us, only to remain in the
twentieth century, the 1930s that led to World War II, and
the more recent years of dictatorial regimes dissolved
throughout the 1980s of South American military re-
gimes, the Soviet Union’s totalitarian government, among
others. As if such forces had never really disappeared
but instead had made a temporary strategic retreat
waiting for favorable conditions to triumphantly return.
Neoliberalism and (Neo)Conservatism
At first glance, the simultaneity between these two
phenomena seems paradoxical as they are symptoms of
radically distinct reactive forces, and so are their histor-
ical times. The high degree of complexity, flexibility, and
perverse sophistication, characteristic of the neoliberal
mode of existence and its power strategies, is very far
from the narrow archaism and rigidity of the abrupt forces
of this neoconservatism – the prefix “neo” here only
makes sense because the social, political and economic
conditions with which it articulates are different from
the previous ones. However, after the initial shock, it
becomes evident that financialized capitalism needs these
ruthless subjectivities in power to do the dirty work that
is essential for the establishment of a neoliberal State:
Destroy all democratic and republican achievements,
dissolve its imaginary and eradicate its protagonists –
among which is primarily the left in all its nuances, but
not only. If the neoconservatives accept the task, it is
because their interests match those of the neoliberals
in this specific goal, allowing for a temporary alliance.
The vile subjectivity of neoconservatives is rooted
in classism and racism, which allows them to play the
role without any ethical barrier and at breakneck speed.
As soon as we realize one of their blows, there is yet
another one on its way, often decided by Congress in
the still of the night. This exercise gives them a perverse
narcissistic enjoyment, so unscrupulous it is obscene.
Once the dirty work has been joyfully accomplished, the
ground is set for the free flow of transnational capital, as
effectively as possible and free of any encumbrances.
The Malaise Surpasses A Thresh-
old of Tolerability: The Trauma
Yet the malaise goes further: A deep frustration with
the current cascading dissolution of several leftist govern-
ments around the world, especially in Latin America – a re-
sult of the rise of temporarily united reactive forces against
conservatism and neoliberalism – adds to the perplexity and
dread. Such frustration mobilizes the traumatic memory
of deception with the terrible destiny of the revolutions of
the twentieth century, worsened by the acknowledgement
of the impotence of the left faced with this new scenario.
All these sensations added – perplexity, dread,
frustration and disappointment –, the malaise surpasses
a threshold of tolerability. A state of alert settles into our
subjectivity, much similar to when the scarcity of resources
essential to life goes beyond a threshold that puts it at risk.
A sense of urgency invades us and evokes the desire to act.
120
Jacaranda - Nº 6
tolerabilidade. Um estado de alerta instala-se na subje-
tividade, como quando a escassez de recursos essenciais
à vida passam de um limiar que a coloca em risco. Somos
então tomados por uma urgência que convoca o desejo a
agir. As respostas do desejo a estas situações traumáticas
oscilam entre dois extremos: um polo reativo, patológi-
co, no qual nos despotencializamos, e um polo ativo no
qual se preserva nossa potência vital, tendendo inclusive
a intensificar-se. Nesta segunda resposta ao trauma,
amplia-se o alcance de nossa mirada, o que nos permite
ser mais capazes de acessar os efeitos da violência em
nossos corpos, de sermos mais precisos em sua decifração
e expressão e mais aptos a inventar maneiras de com-
batê-los. É nesta experiência que emergem insurreições
na cena social, performatizando novas estratégias em
função dos problemas singulares que as deflagraram.
Assim são as insurreições que vêm irrompendo por
toda parte e que têm introduzido estratégias nas quais o par
direita/esquerda deixa de ser um operador suficiente para
delinear as forças em jogo e acertar os alvos do combate.
São movimentos de resistência que têm surgido sobretu-
do nas gerações mais jovens (em especial nas periferias
dos centros urbanos e, mais especialmente, entre negros,
mulheres e LGBTQI), assim como nos povos indígenas e
nas comunidades quilombolas. Ora, não será exatamente
a presença desta mudança de estratégia o que nos sur-
preende nestes novos movimentos? Não será precisamente
isso o que nos fascina nestes movimentos insurrecionais,
apesar da dificuldade de decifrá-lo e nomeá-lo? E não será
justamente a existência destes movimentos o que tem nos
impedido de sucumbir à paralisia melancólica e fatalista
em que nos lança a sombria paisagem que hoje nos rodeia?
Nestes territórios em vias de formação, que vêm sendo cada
vez mais povoados, há uma complexificação de alvo do com-
bate, o qual passa a incluir um deslocamento das políticas de
subjetivação dominantes. O horizonte que se alcança com
esta nova modalidade de resistência expande a abrangência
de nossa visão, nos permitindo vislumbrar mais nitida-
mente a esfera micropolítica. Mas como se opera, nesta
esfera, a violência do regime colonial-capitalístico? 3
O abuso da força vital
O que caracteriza micropoliticamente o regime
colonial-capitalístico é a cafetinagem da vida enquanto
força de criação, transmutação e variação – sua essência
e também condição para sua persistência, na qual reside
seu fim maior, ou seja, seu destino ético. Este estupro
profanador da vida é a matriz do regime nesta esfera, a
ponto de podermos designá-lo por “colonial-cafetinísti-
co”. É a força vital de todos os elementos da biosfera
que é por ele expropriada e corrompida: a terra, o ar, as
águas, o céu, as plantas, os animais e a espécie humana.
Em nossa espécie, a força vital tem uma característica
particular: a linguagem que tal força dispõe para expres-
121
sar-se é mais elaborada e complexa, o que amplia o poder
de variação das formas de vida. Por esta razão, Freud
atribuiu-lhe o nome de “pulsão”, de modo a distingui-la do
instinto, termo que ele reservou à força vital nos animais.4
O psicanalista também aponta que a ampliação de tal
capacidade de variação em suas concretizações, própria da
força vital no humano, pode levar igualmente à interrupção
dos processos de criação de novas formas de vida, o que ele
chamou de “pulsão de morte”. Isso faz com que nossa espé-
cie seja talvez a única que ousa interromper este processo,
desviando a pulsão vital de seu destino ético. O que podem-
os (e devemos) acrescentar ao que Freud logrou ver é que a
predominância ou não desta tendência depende da política
dominante de subjetivação em cada contexto histórico.5 No
regime colonial-capitalístico, cuja política de subjetivação
é a que nos interessa aqui decifrar, é precisamente essa a
tendência que predomina. Seu efeito é a despotencialização
da vida, o que chega hoje à destruição das próprias fontes
de energia vital da biosfera – fontes que, nos humanos,
incluem os recursos subjetivos para sua preservação.
Se a tradição marxista, originada no capitalismo
industrial, nos trouxe a consciência de que a expropriação
da força vital humana em sua manifestação como força de
trabalho é a fonte de acumulação de capital, a nova versão
do capitalismo nos leva a reconhecer que tal expropriação
não se reduz a este domínio. É que em sua nova dobra, radi-
caliza-se e torna-se mais evidente o objeto da expropriação
que permite a acumulação de capital: é do movimento pul-
sional em seu nascedouro que o regime se alimenta. Ou seja,
ele se nutre do próprio impulso de criação de formas de
existência e de cooperação nas quais as demandas da vida
concretizam-se, transfigurando os cenários do presente e
transvalorando seus valores. Desviada pelo regime deste
seu destino ético, a pulsão é por ele canalizada para que
construa mundos segundo seus desígnios: a acumulação de
capital econômico, político, cultural e narcísico. O estupro
da força vital produz um trauma que leva a subjetividade a
ensurdecer-se às demandas da pulsão. Isto deixa o desejo
vulnerável à sua corrupção: é quando ele deixa de agir
guiado pelo impulso de preservar a vida e tende, inclusive,
a agir contra ela. Resultam desta política de desejo cenários
nos quais a vida se vê cada vez mais deteriorada: é isso
o que faz com que hoje a destruição da vida no planeta
atinja limiares que ameaçam sua própria continuidade.
É esta, precisamente, a violência do regime colonial-
capitalístico na esfera micropolítica: uma crueldade própria
de sua política de desejo perversa, sutil e refinada, invisível
aos olhos de nossa consciência. É uma violência semelhante
à do cafetão que, para instrumentalizar sua presa, opera
por meio da sedução. Sob feitiço, a prostituta tende a não
perceber a crueldade do cafetão; ao contrário, ela tende
a idealizá-lo, o que a leva a entregar-se ao abuso por seu
próprio desejo. E ela só se livrará desta triste submissão se
conseguir quebrar o feitiço da idealização do opressor. A
The responses to this desire caused by traumatic situations
fall into two extremes: One, reactive, pathological and dis-
empowering; the other, an active response that preserves
and tends to intensify our vital force. In this second re-
sponse to trauma, the scope of our gaze is widened, allow-
ing us to better access the effects of violence in our bodies, tendency that prevails. Its effect is the disempowering
to more precisely decipher and express such effects,
and to find the ways to fight. Insurrections, with strate-
gies based on the singular problems that have triggered
them, emerge in the social scene from this experience.
These are the insurrections that have been erupting
everywhere. In the strategies they introduced, neither the
right nor the left can adequately operate the forces at play
and hit combat targets. They are movements of resis-
tance that have arisen among younger generations from
the outskirts of urban centers (mainly formed by black,
women and LGBTQI people), as well as among indigenous
peoples and quilombola community representatives. Could
this change in strategy be what surprises us in the new
movements? Despite our difficulty to decipher and name,
is it not precisely this what makes such insurrection
movements fascinating to us? Is it not exactly the existence
of such movements what has been preventing us from
succumbing to the melancholy and fatalistic paralysis of
the surrounding dark landscape in which we find ourselves
today? In these increasingly populated forming territo-
ries, the target of combat becomes more complex, and
displaces the dominating subjectification policies. The
horizon that is created with this new form of resistance
amplifies our perspective and allows for a clearer view of
the micropolitical sphere. But how does the violence of
the colonial-capitalistic regime operate in this sphere?3
The Abuse of Vital Force
The micropolitical element that characterizes the
colonial-capitalistic regime is the pimping of life as force
of creation, transmutation, and variation – its essence
and the condition for its persistence, where its ultimate
purpose resides: Ethical destiny. This profaning rape
of life is such that we can call the matrix of the regime
“pimping-colonialist.” The vital force of all elements in
the biosphere is expropriated and corrupted by it: Earth,
air, water, sky, plants, animals and the human species.
In our species, the vital force has a unique character-
istic: The language used by such force to express itself is
more elaborate and complex, which amplifies the varying
power of life forms. Freud called it the “drive” to distinguish pleasure stems from his power to dominate and manipulate
it from the instinct, a term reserved for the vital force in
animals.4 Freud also points out that expanding such varying the existence of the other has no value for the pimp, the
capacity in concrete forms – characteristic of the human
vital force – can also interrupt the creation of new life
forms, which he called the “death drive.” For this reason,
our species may be the only one that dares to interrupt this dissolves; without his character, the show cannot go on.
process, diverting the vital drive from its ethical destiny.
What we can (and must) add to what Freud could see is that
this tendency will prevail or not, according to the domi-
nating subjectification politics in each historical context.5
In the colonial-capitalistic regime, whose subjectification
politics is our subject of study here, this is precisely the
of life, leading to the destruction of the very sources of
vital energy in the biosphere – such sources in humans
include the subjective resources for our conservation.
If the Marxist tradition born during industrial capital-
ism brought us the realization that the source of capital
accumulation is the expropriation of the human vital
force when it manifests as labor force, the new version of
capitalism leads us to recognize that such expropriation
is not reduced to such domain. In this new version, the
object of expropriation that allows for capital accumulation
becomes more radical and apparent: The regime feeds
from the drive movement at its birth. It is nourished by its
own impulse to create forms of existence and cooperation
in which the demands of life come true, transfiguring the
present scenarios and transcending their values. The re-
gime diverts the drive from its ethical destiny and canalizes
it to create worlds according to its purpose: To accumulate
economic, political, cultural and narcissistic capital. The
trauma produced by the rape of vital force deafens subjec-
tivity to the demands of the drive, leaving the desire vul-
nerable to corruption. This is when the desire is no longer
guided by the impulse to preserve life and revolts against it.
This politics of desire results in the increasing deterioration
of life, causing its destruction on the planet, which today
has reached break points that threaten its own continuity.
This is exactly the violence of the colonial-capitalist
regime in the micropolitical sphere: A cruelty inherent to its
perverse, subtle and refined politics of desire, invisible to
the eyes of our conscience. The violence is similar to that of
the pimp who seduces to manipulate his prey. Spellbound,
the prostitute fails to perceive his cruelty; on the contrary,
she tends to idealize him, leading to her surrender to the
abuse by means of her own desire. She will only escape this
sad submission if she can break the spell of the oppressor
idealization. This perverse spell in only broken when she
finds out that the omnipotent mask of power over herself
and the world behind which the pimp hides – a mask that
she interprets as the guarantee of protection and safety
– only covers one of the most sordid human miseries: For
him, she is only an object of narcissistic pleasure. Such
the other at his own will. In short, when she realizes that
spell breaks. When revealed, the unconscious dynamics
that held the prostitute prisoner of her own character,
playing a supporting role in the pimp’s perverse scene,
A perverse dynamic, like that of the prosti-
122
Jacaranda - Nº 6

quebra deste feitiço perverso depende de sua descoberta de tal redução são altamente nefastas para a vida. Mas em tute-pimp, guides the unconscious regime of the the power to evaluate affects is extra-cognitive – and this is
de que, por trás da máscara onipotente de poder sobre si que consiste esta outra esfera da experiência subjetiva? characters in the capitalist scene, which I propose to what we often call “intuition.” However, because of its con-
mesmo e sobre o mundo com a qual o cafetão se traveste – Em nossa condição de viventes somos constituídos pe- designate as “colonial-capitalistic unconscious”6, or tempt for everything that is not related to the subject’s in-
máscara que ela interpreta como a garantia de sua proteção los efeitos das forças do fluxo vital e suas relações diversas more precisely, the “pimping-colonial unconscious.” herent cognition, this is such a disqualified term in our cul-
e segurança –, o que há de fato é uma miséria humana das e mutáveis que agitam as formas de um mundo. Tais forças ture that I propose to replace it with “body-knowledge” or
mais sórdidas: o outro para ele é um mero objeto para seu atingem singularmente todos os corpos que o compõem – Strange-Familiar: The Inescapable “knowledge-of-the-living, an “eco-ethological knowledge.”
gozo narcísico. Tal gozo lhe é proporcionado por seu poder humanos e não humanos –, fazendo deles um só corpo, em Paradox of the Subjective Experience Unlike communication, the medium through which the
de dominar o outro e instrumentalizá-lo a seu bel prazer. variação contínua, que se tenha ou não consciência disto. The reduction of subjectivity to its experience as relationship with the other is established in this sphere is
Em suma, o feitiço se rompe quando ela se dá conta de que Podemos designar estes efeitos por “afetos”. Trata-se de subject is the main feature of this regime of the uncon- intensive resonance, in which there is no distinction be-
para o cafetão o outro não tem a mais mínima existência. uma experiência extrapessoal (pois aqui não há contorno scious. But what does this experience consist of? tween cognizant subject and external object, as is the case
Quando isto se desvela, dissolve-se a dinâmica inconsci- pessoal, já que somos os efeitos cambiantes das forças da Intrinsic to the cultural condition of human beings in the subject’s experience. In the out-of-subject subjective
ente que mantinha a prostituta prisioneira de seu próprio biosfera – o que inclui nosso planeta, mas não se reduz a and shaped by their imaginary, the role of the subject is experience, the other effectively lives in our body through
personagem, coadjuvante do cafetão na cena perversa; sem ele –, os quais compõem e recompõem nossos corpos), to enable us to decipher the present forms of the society affects: The effects of their presence in us. Such effects
seu personagem, tal cena não tem como sustentar-se. extrassensorial (pois se dá via afeto, distinto da percepção, in which we live, its places and functions, their distribu- occur within the context of the living condition that both
Uma dinâmica perversa similar a do par prostitu- própria do sensível) e extrassentimental (pois se dá via tion and relational dynamics, their respective codes and share, and which makes them a single body. By entering
ta-cafetão orienta o regime de inconsciente dos person- emoção vital, distinta da emoção psicológica que chamamos representations. Based on our capacities of perception our body, the forces of the world join the forces that
agens da cena capitalista. Para marcar sua especificidade, de “sentimento”). O modo de decifração próprio do poder and feeling (psychological emotion), the act of deciphering animate it, and in this encounter, they fecundate it. Thus,
proponho designá-lo por “inconsciente colonial-capitalísti- de avaliação dos afetos é extracognitivo, o que costumamos is made through cognition, enabled by intelligence and embryos of other virtual worlds are generated and produce
co”6, ou se quisermos ser mais precisos, podemos também chamar de “intuição”. No entanto, esta é uma palavra tão reason. Perception and feeling are marked by the reper- a feeling of strangeness. This is the micropolitical sphere of
designá-lo por “inconsciente colonial-cafetinístico”. desqualificada em nossa cultura – por seu desprezo em toires of sociocultural representations that structure the human existence; inhabiting it is essential for us to position
relação a tudo o que não é da ordem da cognição própria subject and its language. What we perceive and feel we ourselves in relation to life and to make choices that pro-
Estranho-familiar: o paradoxo incon- ao sujeito –, que proponho substituí-la por “saber-do-cor- associate with certain representations and project them tect and empower it. It relies on a process of creation that
tornável da experiência subjetiva po” ou “saber-do-vivo”, um “saber eco-etológico”. onto the subject, which allows us to classify and recog- has its own temporality, distinct from the chronological
O principal traço deste regime do inconsciente Diferentemente da comunicação, o meio de relação nize, to define the subject and produce meaning. In this time of the macropolitical sphere, in which the rhythm is
é a redução da subjetividade à sua experiência como com o outro nesta esfera é a ressonância intensiva, na qual sphere of subjective experience – sensory, sentimental previously established. This process results in the becom-
sujeito. Mas em que consiste esta experiência? não há distinção entre sujeito cognoscente e objeto exterior, and rational – the other is experimented as an external ings of space, of itself and of the world, unlike the dynamics
Intrínseca à condição cultural própria do humano e como é o caso na experiência do sujeito. Na experiência body, separated from the subject; and the relationship characteristic of the macropolitical sphere, in which
moldada por seu imaginário, a função do sujeito é nos ca- subjetiva fora-do-sujeito, o outro vive efetivamente em with the other takes place through communication, based the forms of time and space are repeated in principle.
pacitar para decifrarmos as formas atuais da sociedade em nosso corpo, por meio dos afetos: efeitos de sua presença on sharing the same language, which allows for reciprocal
que vivemos, os lugares e funções, sua distribuição e suas em nós. Tais efeitos se dão no âmbito da condição de recognition. It is in the experience of the subject that habits The Paradox Malaise Summons the Desire to Act
dinâmicas relacionais, seus respectivos códigos e repre- viventes que ambos compartilham, e que faz deles um are founded, establishing an organization in (concrete) The familiar and the strange, different sensations that
sentações. Tal decifração se faz pela prática da cognição, só corpo. Ao se introduzirem em nosso corpo, as forças space and (chronological) time in our daily life, giving us come to us respectively from the subjective experiences
viabilizada pela inteligência e pela razão, a partir do que do mundo compõem-se com as forças que o animam e, a sense of familiarity. This is the macropolitical sphere of of the subject (the personal) and the out-of-subject (the
nos indicam nossas capacidades de percepção e sentimento neste encontro, o fecundam. Geram-se assim embriões human life; it is essential to inhabit it for the existence in extra-personal), work simultaneously and indissociably,
(emoção psicológica). Estas últimas são marcadas pelos rep- de outros mundos em estado virtual, os quais nos pro- society. The problem of the colonial-capitalist unconscious but according to different temporalities, just as their
ertórios de representações socioculturais que estruturam o duzem uma sensação de estranhamento. Esta é a esfera regime is the reduction of subjectivity to its experience as logics are also different and dynamic. There is no pos-
sujeito e sua linguagem. Associamos aquilo que percebemos micropolítica da existência humana; habitá-la é essencial a subject, which excludes its experience inherent to our sibility of conciliatory synthesis or translation between
e sentimos a certas representações e as projetamos sobre para nos situarmos em relação à vida e fazermos escolhas condition of living, the out-of-subject. The consequences them; a paradox marks their relation, which on principle
ele, o que nos permite classificá-lo e reconhecê-lo, de modo que a protejam e a potencializem. Isso depende de um of such a reduction are highly damaging to life. But what is unavoidable. The point is that world embryos trigger
a defini-lo e produzir sentido. Nesta esfera da experiência processo de criação que tem sua temporalidade própria, does this other sphere of subjective experience consist of? the driving movement of their germination, which leads
subjetiva – sensorial, sentimental e racional –, o outro é distinta do tempo cronológico da esfera macropolítica em In our living condition we are organized by the effects life to take shape in other world formats. These are not
vivido como um corpo externo, separado do sujeito; e a que o ritmo é previamente estabelecido. Deste processo of the vital flow forces and their diverse and mutable designed in opposition to the existing forms, but rather by
relação com o outro se dá pela via da comunicação, baseada resultam devires do espaço, de si e do mundo, diferente- relationships that stir world forms. Such forces affect all the affirmation of becomings, whose effects jeopardize
no compartilhamento de uma mesma linguagem, o que mente da dinâmica própria à esfera macropolítica, na qual bodies– human and non-human – in a unique way, turning their continuity. Unsettled by the paradoxical experience of
permite a recíproca recognição. É na experiência do sujeito se repetem por princípio as formas de espaço e tempo. them into a single, constantly varying body whether they the strange-familiar, subjectivity is then tensioned between
que se constituem os hábitos, os quais imprimem uma are aware of it or not. We call these effects “affects.” It is two movements. On the one hand, the movement described
organização no espaço (concreto) e no tempo (cronológico) about an experience that is extra-personal (where there above that pushes it towards life conservation in its germi-
em nossa cotidianidade e nos proporcionam uma sensação O mal-estar do paradoxo convoca o desejo a agir is no personal shape since we are the changing effects of nating power to be embodied in new modes of existence.
de familiaridade. Esta é a esfera macropolítica da vida hu- O familiar e o estranho, sensações totalmente distintas biosphere forces– including but not limited to our planet – On the other hand, a movement that pushes it towards the
mana; habitá-la é essencial para a existência em sociedade. que nos vêm respectivamente das experiências subjetivas which compose and recompose our bodies), extra-sensory conservation of the current ways of existence, in which life
O problema do regime de inconsciente colonial-capitalísti- do sujeito (o pessoal) e do fora-do-sujeito (o extrapessoal), (as it occurs through affect, distinct from perception, which is temporarily materialized and subjectivity is accustomed
co é a redução da subjetividade à sua experiência como funcionam simultânea e indissociavelmente, mas segun- is related to sensibility) and extra-sentimental (as it occurs to acknowledging itself in its experience as a subject.
sujeito, o que exclui sua experiência imanente à nossa do temporalidades díspares, assim como são díspares via vital emotion, distinct from the psychological emotion The malaise caused by the tension between strange
condição de viventes, o fora-do-sujeito. As consequências suas lógicas e dinâmicas. Não há entre elas qualquer we call “feeling”). The deciphering mode, characteristic of and familiar, as well as between the two movements

123 124
Jacaranda - Nº 6
possibilidade de síntese conciliadora ou de tradução;
sua relação é marcada por um paradoxo, por princípio,
incontornável. É que os embriões de mundos disparam
o movimento pulsional de sua germinação, o qual leva a
vida a plasmar-se em outras formas de mundo. Estas não
se desenham por oposição às formas vigentes, mas pela
afirmação de devires cujos efeitos colocam em risco a
continuidade das mesmas. Desestabilizada pela experiên-
cia paradoxal do estranho-familiar, a subjetividade se vê
então tensionada entre dois movimentos. De um lado, o
movimento acima descrito que a pressiona em direção à
conservação da vida em sua potência de germinação, para
corporificar-se em novos modos de existência. De outro,
um movimento que a pressiona em direção à conservação
dos modos vigentes, nos quais a vida se encontra tempo-
rariamente materializada e a subjetividade está habitu-
ada a reconhecer-se em sua experiência como sujeito.
O mal-estar provocado pela tensão entre estranho
e familiar, bem como entre os dois movimentos desen-
cadeados por esta experiência paradoxal, é o que coloca a
subjetividade em estado de alerta, tal como nos acontece
nos dias de hoje. Isso acontece porque o mal-estar funciona
como um alarme que convoca o desejo a agir para recobrar
um equilíbrio vital, emocional e existencial – equilíbrio
abalado pelos sinais de um mundo nascente, simultâneos e
indissociáveis dos sinais de dissolução dos mundos vigen-
tes. Impõe-se ao desejo uma negociação constante entre
estes dois movimentos. É precisamente neste ponto que
se definem as políticas do desejo – das mais ativas às mais
reativas. O que as distingue é o tipo de negociação entre
os dois referidos movimentos que o desejo privilegiará em
suas ações – ou seja, sua micropolítica. Esta escolha não é
neutra, pois dela resultam distintos destinos da pulsão que
implicam distintas formações do inconsciente no campo
social, portadoras de maior ou menor teor de afirmação
da vida. Esta é a base micropolítica sobre a qual todo e
qualquer regime sociopolítico-econômico-cultural adquire
sua consistência existencial, sem o que não poderia suste-
ntar-se. Sendo assim, é do embate entre políticas do desejo
que se constitui o campo de batalha na esfera micropolítica.
O inconsciente colonial-capitalístico
Nas subjetividades sob domínio do inconsciente
colonial-capitalístico, reduzidas que são a sua experiência
como sujeito, prevalece uma micropolítica reativa: tende
a impor-se em maior ou menor escala o movimento de
conservação das formas de existência em que a vida se en-
contra corporificada no presente. É que, dissociada de sua
condição de vivente e desconhecendo o processo contínuo
de mutação próprio à dinâmica vital (dinâmica pulsional,
no humano), a subjetividade vive a pressão dos embriões de
mundo como ameaça de desagregação de si mesma e de seu
campo existencial, já que “este mundo”, aquele em que o su-
125
jeito habita e no qual se estrutura, é por ela vivido como “o
mundo”, único e absoluto. Nestas condições, para recobrar
um equilíbrio, o desejo agarra-se às formas estabelecidas,
as quais busca conservar a qualquer custo. E quanto maior
a desestabilização, mais veementemente a subjetividade
acastela-se no instituído e o defende com unhas e dentes,
podendo chegar a altos níveis de violência para garantir sua
permanência – inclusive a eliminação concreta de qualquer
outro que não seja seu espelho, cuja existência tenha por
efeito abalar a fé na absoluta universalidade de seu mundo.
É esta separação da subjetividade em relação à sua
condição de vivente que prepara o terreno para que
o desejo se entregue (gozosamente) à cafetinagem da
pulsão, de cujos movimentos ele é o executor. A entrega
manifesta-se sob o modo da conversão da potência
pulsional de “criação” de novos modos de existência em
resposta às demandas da vida, em força de “criatividade”,
a ser investida na composição de novos cenários para a
acumulação de capital. No lugar da criação do novo, o que
se produz (criativa e compulsivamente) são “novidades”, as
quais multiplicam as oportunidades para os investimentos
de capital e excitam a vontade de consumo. Ou seja, a
potência vital passa a ser usada para a reprodução do
instituído; apenas mudam-se suas peças de lugar ou
se fazem variações sobre as mesmas – com maior ou
menor criatividade. Em situações de crise, o desvio da
pulsão e a entrega do desejo a seu abuso se intensificam,
manifestando-se em movimentos de massa que clamam
pela manutenção do status quo, como é o caso da ver-
tiginosa ascensão do conservadorismo na atualidade.
Em ambos os tipos de ação desejante reativa frente à
experiência do estranho-familiar – a conversão da criação
em criatividade e os movimentos conservadores –, o
gozo do sujeito vem da ilusão de garantir sua estabilidade
e seu pertencimento, placebo para o medo de estigma-
tização e vergonha social que a desestabilização de seu
mundo lhe provoca, por interpretá-la como perigo de
colapso. O que resulta destes tipos de ação desejante é um
destino funesto da pulsão: a interrupção do processo de
germinação da vida coletiva. E se é na existência coletiva
que este processo se interrompe é porque mesmo que
tal germinação seja apenas brecada na existência de um
indivíduo ou grupo, ela gera necessariamente um ponto
de necrose na vida do corpo social e em seu ambiente.
Este é um exemplo da política dominante de subjetivação
na qual se produz o mencionado fenômeno exclusivo à
espécie humana que consiste em agir contra a vida.
O abuso profanador da pulsão é difícil de captar, já que
ele se dá numa esfera que escapa à consciência e cuja ex-
periência é anestesiada no modo de subjetivação hegemôni-
co, sob o feitiço da sedução perversa. Porém, suas inúmeras
manifestações no campo social são plenamente acessíveis
àqueles que toleram manter-se atentos aos processos de de-
unleashed by this paradoxical experience, is what puts the desire to consume. Vital power is used to reproduce
subjectivity in a state of alertness, as it happens to us what has been instituted; only its parts are moved around
today. This occurs because the malaise works as an alarm or undergo change – with varying degrees of creativity. In
that triggers the desire to regain a vital, emotional and crisis situations, drive deviation and surrendering to the
existential balance – a balance shaken by the signals of abuse of desire intensifies, manifesting itself in mass move-
a nascent world, simultaneous and inseparable from the ments that call for the maintenance of the status quo, as it
signals of dissolution of existing worlds. Desire is under is the case of the current vertiginous rise of conservatism.
constant negotiation between these two movements. It is In both sorts of desiring action that reacts to the
precisely at this point that desire politics are defined – from strange-familiar experience – converting creation into
the more active to the more reactive politics. What distin- creativity and the conservative movements –, the subject’s
guishes them is the type of negotiation between the two enjoyment stems from the illusion that stability and belong-
mentioned movements privileged by desire in its actions – ing are guaranteed; a placebo for fear of stigmatization
namely, its micro-politics. This is not a neutral choice, since and social shame caused by world destabilization, since
it results in distinct drive destinations that imply different there is the threat of collapse. What results from these
formations of the unconscious in the social field, whether types of desiring action is a terrible destiny for the drive:
they carry more or less content on the affirmation of life. Interruption of the collective life-germination process. And
This is the micropolitical basis upon which any socio-po- if this process is interrupted in the collective existence, it is
litical-economic-cultural regime acquires its existential because even if such germination is only interrupted in an
consistency. Without it the regime could not sustain itself. individual’s or group’s existence, it necessarily creates ne-
It is from the conflict between the politics of desire that crosis in the life and environment of the social body. It is in
the battlefield is formed in the micropolitical sphere. this example of politics dominating subjectification that the
previously mentioned phenomenon, exclusive to the human
The Colonial-Capitalistic Unconscious species that consists in acting against life, is produced.
In the subjectivities under the domain of the colo- The profaning abuse of the drive is difficult to
nial-capitalistic unconscious, with their experience reduced perceive, since it occurs in a sphere that escapes con-
as subject, a reactive micro-politics is what prevails: The sciousness, and whose experience is anesthetized in the
movement of conservation of the forms of existence in hegemonic mode of subjectification, under the spell of
which life is currently embodied is imposed in a larger or perverse seduction. However, its several manifestations
smaller scale. Dissociated from its living condition and in the social field are fully accessible to those who remain
unaware of the continuous process of mutation, unique to attentive to the processes of life degradation present
vital dynamics (driving dynamics, in human beings), subjec- in all its symptoms of violation. The most obvious are
tivity lives under the pressure of world embryos, threaten- the relationships with the environment that generate
ing to disintegrate subjectivity and its existential field, since ecological disasters. Or the classist, sexist, homophobic,
“this world” – in which the subject dwells and in which it is transphobic, racist, xenophobic, chauvinist, nationalist,
structured – is lived by subjectivity as “the world,” unique colonialist relations of power. If, in these two examples
and absolute. Under these conditions, the desire clings to where the abuse of the drive manifests, the subject
already established ways to recover balance, which it seeks confines the other in an imaginary place where the other
to maintain at any cost. The greater the destabilization, is an object at the service of the subject – as it happens
the more strongly subjectivity protects itself in what has in the relations of power found in the pimping mode –,
already been instituted, defending it tooth and nail and in the phenomena detected in the second example, such
reaching high levels of violence to ensure its permanence abuse is sustained by the imaginary understanding that
– including the concrete elimination of any other than its projects a supposedly inferior and subhuman nature onto
mirror, whose existence has the effect of shaking the this object-reduced other. Such a projection can lead to
subjectivity’s belief in the absolute universality of its world. the object’s full invisibility, non-existence, and eventual
This separation of subjectivity from its living condition extermination, which, in extreme cases, culminates with
is what lays the groundwork for the desire to (joyfully) the disappearance of their body. This is what Nazism called
surrender to the pimping of the drive, of which movements the “final solution,” referring to its policy of relationship
it is the performer. Surrendering manifests itself when with the other when the use of gas chambers and cre-
it converts the driving power of the “creation” of new matoria ovens reached the most extreme and explicit
modes of existence in response to life demands into the radicalism. This solution, along with other procedures, such
“creativity” force that forms new scenarios for capital as throwing bodies to sea, was later adopted by dictatorial
accumulation. Instead of creating something new, what is regimes in Latin America from the 1960s to the 1980s.
(creatively and compulsively) produced are “novelties” that The previously mentioned examples of the profaning
multiply the opportunities for capital investment and foster abuse of life manifesting itself are not therefore epiphe-
126
Jacaranda - Nº 6
gradação da vida, presentes em todos os sintomas de sua vi-
olação. Os mais óbvios são as relações com o meio ambiente
geradoras de desastres ecológicos. Ou ainda as relações de
poder classistas, machistas, homofóbicas, transfóbicas, rac-
istas, xenofóbicas, chauvinistas, nacionalistas, colonialistas
etc. Se nestes dois tipos de exemplo da manifestação do
abuso da pulsão o sujeito confina o outro num lugar imag-
inário de objeto a seu serviço – como nas relações de poder
no modo-cafetinagem –, no conjunto de fenômenos evo-
cados no segundo exemplo tal abuso é sustentado por um
imaginário que projeta sobre este outro, reduzido a objeto,
uma suposta natureza inferior ou mesmo sub-humana. Tal
projeção pode chegar a sua total invisibilidade e inexistência
e até levar a seu extermínio, que, em casos extremos, culmi-
na com o desaparecimento de seu corpo (é o que o nazismo
chamou de “solução final”, referindo-se à sua política de
relação com o outro quando esta atingiu sua mais extrema e
explícita radicalidade, com o uso de câmaras de gás e fornos
crematórios; solução posteriormente adotada pelos re-
gimes ditatoriais nos anos 1960 a 1980 na América Latina,
com outros procedimentos, como jogar os corpos ao mar).
Os exemplos de manifestações do abuso profanador da
vida acima mencionados não são portanto epifenômenos
do regime, mas sintomas de sua própria medula na esfera
da política dominante de desejo e de subjetivação. Diante
disto, fica evidente que não basta subverter a ordem dos
lugares destinados a cada um dos personagens em jogo
na cena das relações de poder (insurreição macropolíti-
ca), é preciso abandonar os próprios personagens e suas
políticas de desejo (insurreição micropolítica), inviabili-
zando assim a continuidade da própria cena – como ocorre
quando se dá a quebra do feitiço do poder do cafetão na
subjetividade de sua presa. Com lógicas e temporalidades
díspares e paradoxais, da insurreição contra a violência
em ambas as esferas depende, incontornavelmente, a
dissolução do regime por toda parte e em cada uma das
atividades humanas. Esta é a condição sine qua non para
que se viabilize uma transmutação efetiva do presente,
já que, em sua nova versão, o regime logrou colonizar o
conjunto do planeta, incidindo macro e micropoliticamente
em todas suas entranhas, ao ponto de que hoje nenhuma
atividade humana lhe escapa. Neste novo cenário con-
seguimos vislumbrar a razão da impotência das esquer-
das, sobretudo as institucionais, face aos desafios do
presente: o fato de seu modo de resistência reduzir-se à
esfera macropolítica, o que limita o horizonte de alcance
de sua visão e, portanto, o êxito de suas estratégias.
O que faz, afinal, as esquerdas
estarem hoje tão perdidas?
Antes de mais nada, somos forçados a reconhecer
que se a atual guinada à direita nos governos do poder
de Estado contribui para a impotência das esquerdas, tal
impotência não se explica apenas como resultado de forças
127
externas adversas. Sua causa encontra-se também em
seu próprio interior. Nisto reside talvez sua maior dificul-
dade, que inclusive compromete seu combate contra tais
forças externas. A forma de mundo em que se movem as
esquerdas é a mesma em que tendem a mover-se todos
no regime colonial-capitalístico – pois é neste regime que
as esquerdas têm sua origem e seus desdobramentos ao
longo do tempo. Como é apenas na esfera macropolítica
que elas atuam, o resultado de suas ações de resistência
permanece confinado na própria forma de mundo que
sua (nossa) luta tem como alvo. A perspectiva que orien-
ta a resistência das esquerdas, em suas várias vertentes,
perpetua assim a lógica do próprio regime que elas (nós)
visam(os) ultrapassar. Tendo isso em vista, não é de se
surpreender que suas ações não logrem combatê-lo e
resultem sempre em sua triste e frustrante reprodução.
É incontestável que no interior deste regime, onde
atuam as esquerdas, sua posição é a mais justa, pois, de
diferentes maneiras e em diferentes medidas e escalas
de êxito e fracasso, ela visa a uma distribuição de lugares
menos assimétrica – nos âmbitos social, econômico e
político –, bem como um Estado que sustente esta ampli-
ação da igualdade. E é fato que, com distintas magnitudes
e durações, tal objetivo foi várias vezes alcançado. Se esta
luta é, sem dúvida, indispensável e tem um inegável valor,
o problema é que limitar-se a ela deixa de fora a esfera
micropolítica: esfera das formações do inconsciente no
campo social que definem os modos de existência e às quais
correspondem uma certa política dominante de subje-
tivação e sua respectiva política de desejo (relembrando
que tais micropolíticas constituem a base existencial de um
regime sociopolítico-econômico-cultural, seja ele qual for).
E mesmo quando as esquerdas, principalmente as
institucionais, abordam os modos de existência, tendem a
fazê-lo apenas desde uma perspectiva macropolítica: tais
modos são classificados em entidades identitárias, nas
quais são confinados e com as quais tendem a confundir-se
as próprias subjetividades que os praticam, passando a
resistir apenas neste âmbito. Isto é particularmente grave
quando se trata de camadas sociais desfavorecidas, ao
lado das quais se dá prioritariamente a luta das esquerdas.
Estas tendem a classificá-las na categoria “operário”: lugar
identitário fetichizado, destinado aos oprimidos em seu
imaginário, por ser este limitado às relações de classe e às
visões de mundo e de resistência originadas no capitalis-
mo industrial. E quando se trata de setores da sociedade
que não têm como serem encaixados em tal categoria
(por exemplo, indígenas, trabalhadores terceirizados e
precarizados, imigrantes ilegais, refugiados), o que as
esquerdas buscam é promover sua “inclusão” no mapa
oficial da democracia, de modo que possam aceder aos
direitos dos operários (é justamente o caso do tratamento
dado aos indígenas pelas esquerdas no Brasil).7 Se aceder a
direitos civis é essencial, no entanto a redução a esta meta e,
nomena of the regime, but symptoms of its own core in
the sphere of the politics dominating desire and subjectifi-
cation. It is clear then that it is not enough to subvert the
order of the places assigned to each actor in the power
relations scene (macropolitical insurrection), one needs to
abandon the actors and their politics of desire (micropo-
litical insurrection), making it impossible for the scene to
continue – much like when the pimp’s spell is broken within
the subjectivity of his prey. With distinct and paradoxical
logics and temporalities, the dissolution of the regime
everywhere and in every human activity inevitably depends
on the insurrection against violence in both spheres. This is
the sine qua non condition to enable an effective trans-
mutation of the present, since in its new version the regime
succeeded in colonizing the whole of the planet, entering
with such force in every slot of macro- and micro-politics
that today no human activity can escape from it. In this
new scenario, we can glimpse why the left movements,
especially the institutionalized left, feels impotent in the
face of today’s challenges: Their mode of resistance is
reduced to the macro-political sphere, which limits the
scope of their vision, and the success of their strategies.
So, Why Is the Left So Lost Today?
First, we are forced to acknowledge that, if the
current inclination to the right by State powers contrib-
uted to the weakening of the left, such weakness cannot
be explained solely as a result of adverse external forces.
The cause also rests in its own interior, and herein lies
perhaps its greatest difficulty, which further compromises
its fighting power against external forces. The world form
in which the left moves is the same in which everyone
else in the colonial-capitalist regime tends to move – it
is in this regime that resides the origin of the left and
its development over time. As the left only acts in the
macropolitical sphere, the result of its resistance remains
confined in the very world form its fight, which is also ours,
is aimed at. The perspective that guides the resistance
of the left, in its various aspects, perpetuates the logic of
the very regime that it (we) strives to overcome. It is not
surprising then that its actions fail to combat the regime
and always result in a sad and frustrating reproduction.
It is undeniable that the left has the fairer posi-
tion within the regime where it operates. In different
ways and measures and diverse scales of success and
failure, the left pursues a less asymmetric distribution
of places – in social, economic and political scopes –,
as well as a State that supports this enlarged equality.
With different magnitudes and durations, such objective
was reached many times. If the struggle is undoubtedly
indispensable and has an undeniable value, limiting it to
this fight compromises the micropolitical sphere, the
sphere where the unconscious is formed in the social
field, which defines the modes of existence and to which
a dominating policy of subjectification and its respective
politics of desire correspond – let us not forget that such
micro-politics constitute the existential basis of a social,
political, economic, cultural regime, whatever that may be.
And even when the left – especially left-wing insti-
tutions – approaches these modes of existence, it tends
to do so only from a macropolitical perspective: Such
modes are classified in entities of identity, in which they
are confined and with which the very subjectivities that
practice them tend to blur, limiting resistance to this
sphere alone. This is particularly serious when it comes
to disadvantaged social strata, where the fight of the left
primarily takes place. Such strata tend to be classified in
the “worker” category: A fetishized identity place des-
tined for the oppressed in the imaginary of the left, which
is limited to class relations and the visions of world and
resistance originated in industrial capitalism. And when
it comes to sectors of society that cannot fit into such a
category (indigenous people, outsourced and precarious
workers, illegal immigrants, refugees, for example), the
left tries to promote its “inclusion” in the official map of
democracy so that these sectors can access the rights
of the workers – this is precisely the treatment given by
the left to indigenous populations in Brazil.7 If the access
to civil rights is essential, limiting the scope to this one
goal based on the denial of the unique experience of such
social agents, which the left replaces with an identity
caricature, tends to put these sectors into a submissive
adaptation to the hegemonic mode of subjectification.
To limit itself to promote “inclusion” as its main, if not
only, goal is not only a sign that the left is in fact refer-
encing the dominating cartography, but it also indicates
that the left believes to be “the” absolute and universal
reference, according to which all others should be shaped.
From the point of view of the dominating cartography, any
different mode of existence is assessed according to in-
dexes of delay in the stages of a supposedly “universal civ-
ilization progress” to which the whole of humanity should
be destined. The singular experience of these subjectivities
is neutralized, and any other alterity is denied. Even more
serious, access to the essential experience of inhabiting the
relational network, woven between different modes of exis-
tence, is lost and so is the experience to sustain its possible
transforming effects that lapse the dominating cartogra-
phy. In other words, what is interrupted by this macro-poli-
tics-reduced perspective is the possibility of the vital force
to fulfill its ethical destiny: Create responses to the needs
of change, arising precisely from the effects of (human and
non-human) alterity on the bodies that make up the social
fabric. It is from these effects that emerge the becomings
of collective life, typical of the micropolitical resistance.
And when such becomings happen and new modes
of existence emerge in the process of collective life, they
are read by the left through the same lenses, making them
128
Jacaranda - Nº 6
sobretudo, a partir de uma negação da experiência singular
de tais agentes sociais – a qual é substituída pelas esquerdas
por uma caricatura identitária –, tende a levá-los a uma
adaptação submissa ao modo hegemônico de subjetivação.
Limitar-se a promover “inclusão” como sua prin-
cipal meta – senão a única – é não só um sinal de que as
esquerdas, de fato, tomam a cartografia dominante como
referência, mas nos indica que, mais do que isso, elas a con-
sideram como “a” referência, absoluta e universal, segundo
a qual todas as demais deveriam moldar-se. É que do ponto
de vista da cartografia dominante – que, neste aspecto,
as próprias esquerdas compartilham –, as diferenças de
qualquer modo de existência em relação a esta referência
são avaliadas como índices de atraso nas etapas de um
suposto “progresso civilizatório universal” a que estaria
destinado o conjunto da humanidade. Neutraliza-se assim a
experiência singular destas subjetividades e denega-se toda
e qualquer alteridade. Mais grave ainda é que, com isso,
perde-se o acesso à imprescindível experiência de habitar a
trama relacional tecida entre distintos modos de existência
e, sobretudo, de sustentar seus possíveis efeitos transforma-
dores que tornam caduca a cartografia dominante. Em out-
ras palavras, o que se interrompe com esta visão reduzida
à macropolítica é a possibilidade da força vital cumprir seu
destino ético: a invenção de respostas às necessidades de
mudança, advindas precisamente dos efeitos da alteridade
(humana e não humana) nos corpos que compõem o tecido
social. É a partir de tais efeitos que emergem os devires
da vida coletiva, próprios da resistência micropolítica.
E quando tais devires acontecem e novos modos de
existência emergem no processo da vida coletiva, eles são
lidos pelas esquerdas com a mesma lente, o que faz com
que estas tendam igualmente a confiná-los em entidades
identitárias. É o caso, por exemplo, de como as esquerdas
reagem aos movimentos que hoje alargam o terreno de
experimentação na sexualidade, os quais abalam as noções
de gênero, hetero e homossexualidade que orientam as
práticas hegemônicas neste campo. Tais noções confinam e
modelizam a força erótica, cuja possibilidade de variação e
transfiguração seria indispensável para a saúde vital, como
em todos os domínios de atividade humana. No domínio
da sexualidade, como nos demais, as esquerdas ignoram os
processos de singularização em curso em suas insurreições,
neutralizando assim os efeitos de seu impulso vital de trans-
mutação nas políticas de subjetivação hegemônicas e as
mudanças das formas de existência individuais e coletivas
que dele resultam. Em suma, o que é ignorado e neutral-
izado é a potência de resistência micropolítica de que
tais movimentos são portadores. Ainda que algumas das
correntes de esquerda reconheçam e valorizem a existência
destes movimentos, elas tendem a reduzi-los à questão da
desigualdade, remetendo o foco de sua insurreição à luta in-
terna às relações de poder, seguindo seu modelo de luta de
classes. Isso manifesta-se igualmente no mundo acadêmico,
129
onde boa parte dos intelectuais das distintas esquerdas
mantém seu trabalho de pensamento submetido à perspec-
tiva dominante neste campo: reduzir a investigação à esfera
macropolítica, o que torna a produção universitária um
mero conjunto de elucubrações estéreis. Isso faz com que a
tendência dominante nas análises acadêmicas de esquerda
sobre o atual estado de coisas seja restrita à questão da
crise da democracia, tendo como foco o Estado e a pergunta
de como reformá-lo para melhor representar o povo.
A limitação do horizonte das esquerdas à esfera mac-
ropolítica vem do fato de que, ao permanecer sob o domínio
dos modos de existência hegemônicos, sua subjetividade
tende a reduzir-se à experiência como sujeito, assim como
tende a reduzir ao sujeito a subjetividade de seus outros;
daí sua impossibilidade de alcance da esfera micropolítica.
Em última análise, a razão da impotência das esquerdas
face aos novos desafios é a política de subjetivação que
nelas tende a predominar: uma política guiada pelo incon-
sciente colonial-capitalístico. É precisamente isto o que
impede que seu foco de resistência abranja este terreno.
Já é um grande passo reconhecermos este fato, em vez
de permanecermos paralisados, lamentando melancolica-
mente a impotência das esquerdas perante a nova dobra
do capitalismo ou nossas frustrações com os governos sob
seu domínio. Mas não basta constatá-lo, cabe a nós darmos
um passo adiante: explorar pragmática e teoricamente a
esfera micropolítica, suas diferenças em relação à esfera
macropolítica e a inextrincável conexão entre ambas, de
modo a ajustar o foco de nossas estratégias de resistên-
cia. O que segue são algumas anotações nesta direção.
Em que diferem as insurreições macro e micropolítica?
Examinemos, ponto por ponto, as insurreições em
cada uma destas esferas, para decifrá-las mais de perto e,
também, vislumbrar o que as distingue. Sendo na micro-
política que, neste momento, a vida nos impõe a urgência
de ampliar nossa compreensão, assim como nossos modos
de ação para melhor protegê-la, esta esfera receberá uma
atenção mais demorada na maior parte dos pontos escolhi-
dos para a tentativa de análise a que nos propomos a seguir.
Agentes
Macropolítica
Os agentes em potencial da insurreição macropo-
lítica são “apenas os humanos”. Embora a consciência
da injustiça social decorrente da assimetria de direitos
em todas as camadas da vida social, assim como a von-
tade de combatê-la, possam surgir mesmo entre aqueles
que não ocupam a posição de subalterno nas relações
de poder, é mais provável que os próprios subalternos
sejam os principais agentes da resistência nesta esfera.
Micropolítica
Os agentes em potencial da insurreição microp-
olítica são todos os elementos da biosfera que se in-
equally prone to confinement into entities of identity.
This is the case, for example, when the left reacts to
the movements that today broaden the field of sexual
experimentation, which shakes the notions of gender,
hetero- and homosexuality that guide hegemonic practices
in this field. Such notions confine and model the erotic
force, whose possibility of variation and transfiguration
are indispensable for a healthy life, as in all domains of
human activity. In the field of sexuality, as well as in others,
the left ignores the ongoing processes of singularization
in its insurrections, while neutralizing the effects of its
vital impulse of transmutation on the hegemonic politics
of subjectification and the changes applied to individual
and collective forms of existence that result from this
impulse. In short, what is ignored and neutralized is the
power of micropolitical resistance carried by such move-
ments. Although some of the left-wing currents recognize
and value the existence of such movements, they tend
to reduce them to the issue of inequality, changing the
focus of their insurrection to the internal struggle against
power relations, following the old model of class struggle.
This is also evident in the academic world, where most
intellectuals of the different left-wing currents keep their
line of work subject to a single ruling practice: To limit
research to the macropolitical sphere, turning university
production into a simple set of unfruitful speculation. The
prevailing tendency in left-wing academic analysis on
the current state of affairs is therefore restricted to the
crisis of democracy, with a focus on the State and on how
it should be reformed to better represent the people.
The left’s limited understanding of the macropo-
litical sphere comes from the fact that, by remaining
under the authority of hegemonic modes of existence,
its subjectivity tends to reduce itself to the experience
as subject, just as it tends to impose on the subject the
subjectivity of others; hence its impossibility to grasp the
micropolitical sphere. Ultimately, the reason for the left’s
impotence in the face of new challenges is the subjecti-
fication policy that tends to dominate it – a policy guided
by the colonial-capitalist unconscious. This is precisely
what prevents its resistance focus to cover this area.
Great progress has been achieved by acknowledg-
ing this fact, instead of remaining paralyzed, gloomily
bemoaning the helplessness of the left in the face of
capitalism’s new fold or our frustrations with capitalist
governments. But this is not enough, and we must move
forward: Explore the micropolitical sphere with pragma-
tism and theory, its differences from the macropolitical
sphere and the inextricable connection between both, in
order to adjust the focus of our strategies of resistance.
What follows are some suggestions in this direction.
How Are Macro- and Micro-Polit-
ical Insurrections Different?
Let us examine insurrections in each of these spheres,
point by point, taking a closer look and devising what distin-
guishes them. If it is in micro-politics that in this right mo-
ment life imposes on us the urgency to broaden our under-
standing, as well as our modes of action to better protect it,
this sphere will receive more attention in most of the points
chosen for the attempted analysis we propose below.
Agents
Macro-Politics
The potential agents of macropolitical insurrections
are “only human.” While the will to fight social injustice, as
well as the awareness of its resulting from the imbalance
of rights at every level of social life, may surface even
among those not occupying a subordinate position in power
relations, it is more likely that subordinates themselves
will be the main agents of resistance in this sphere.
Micro-Politics
The potential agents of the micropolitical insurrec-
tion are all elements of the biosphere that rebel against
violence directed at life, “human and non-human.” However,
there are differences in the dynamics of the response
to this violence. Non-humans capture the vital anemia
that results from their abuse and create transfigura-
tions that allow them to take back control. For example,
a river that dries up by the excess of colonial-pimping
garbage and reacts by flowing again – only now under-
ground, where it is protected from toxic effects8 – or a
tree that blooms before spring, preventing the risk of
sterility that can result from accumulated pollution9.
Human’s response to abuse depends on the dominat-
ing politics of desire, which varies among cultures. As we
have seen, in the culture of colonial-capitalistic regime and
its various folds, reducing subjectivity to its experience as a
subject that is inseparable from the abuse of the drive gen-
erates trauma, and reactive responses tend to dominate –
this is the basis of the hegemonic politics of subjectification
in this regime. We interpret the state of fragility in which
we are put by such abuse as a sign of failure, and this is
when desire clings to the status quo, acting against life
perseverance, not in its favor. The resulting formations of
the unconscious in the social field are responsible for the
emergence of the hordes of zombies that have populated
the planet in an increasingly frightening way. But when
desire succeeds in actively responding to the trauma of the
abuse, it leverages itself and tries to react to the decolo-
nization of the unconscious, trying to move the vital drive
from the destiny where pimping would prefer to keep it
confined. Subjectivity then has the possibility of inhabiting
the subject and the out-of-subject, in an attempt to retake
power to decide the destiny of the drive, thus assuming
again the control of its ethical responsibility before life – it
is in this process that subjectivity becomes the agent of
the micropolitical insurrection. If the decolonization of
130
Jacaranda - Nº 6
surgem contra a violência dirigida à vida: “humanos e
não humanos”. No entanto, há entre eles diferenças de
dinâmicas de resposta a esta violência. Os não humanos
captam a anemia vital resultante de seu abuso e, diante
disso, criam transfigurações que lhe permitem retomar
seu pulso. Por exemplo, um rio que seca pelo excesso de
lixo colonial-cafetinístico e que, diante disso, se insurge
voltando a fluir, agora no subterrâneo onde se encontra
protegido destes efeitos tóxicos8; ou ainda árvores que
florescem antes da primavera, prevenindo-se do risco de
esterilidade que pode decorrer do acúmulo de poluição9.
Já no elemento humano, como a resposta ao abuso de-
pende da política de desejo dominante, esta varia segundo
as diferentes culturas. Na cultura do regime colonial-capi-
talístico em suas várias dobras, como vimos, a redução da
subjetividade à sua experiência como sujeito, inseparável
do abuso da pulsão, gera um trauma diante do qual tende
a vencer a resposta reativa – base da política hegemônica
de subjetivação neste regime. Interpretamos o estado de
fragilidade em que tal abuso nos coloca como sinal de nossa
falência e é neste caso que o desejo tende a agarrar-se ao
status quo, agindo assim contra a perseveração da vida, e
não a seu favor. As formações do inconsciente no campo
social que disso decorrem são responsáveis pelo surgimen-
to das hordas de zumbis que têm povoado o planeta cada
vez mais assustadoramente. Mas quando o desejo logra
responder ativamente ao trauma do abuso, ele se potenciali-
za e tenta agir em direção à descolonização do inconsciente,
buscando desviar a pulsão vital do destino no qual sua cafet-
inagem a mantém confinada. A subjetividade ganha então
a possibilidade de habitar o sujeito e o fora-do-sujeito, em
busca de tentar retomar em suas mãos o poder de decidir o
destino da pulsão, reassumindo assim sua responsabilidade
ética perante a vida – é neste processo que ela se torna agen-
te da insurreição micropolítica. Partindo do princípio que a
descolonização do inconsciente implica necessariamente o
terreno de nossas relações, das mais íntimas às mais distan-
tes, os efeitos de qualquer gesto nesta direção são coletivos.
Como na esfera micropolítica estamos todos sob o
domínio do regime de inconsciente colonial-cafetinísti-
co, ser agente da insurreição nesta esfera independe de
nosso lugar na cartografia social, econômica e cultural
e da posição que ocupamos nas relações de poder – seja
de soberania ou de subalternidade, em seus diferentes
graus –, por mais estranho que isso possa nos parecer
do ponto de vista macropolítico e, mais estranho ain-
da, quando nosso horizonte reduz-se a essa esfera.
Mas é inegável que, como tudo que é vivido no plano
das formas e seus códigos é indissociavelmente vivido
também no plano das forças que as animam e também as
desordenam, as distintas posições nas relações de poder
na esfera macropolítica (relações de classe, raça, etnia,
gênero etc.) têm seus efeitos na esfera micropolítica.
Porém, não há qualquer simetria ou paralelismo entre
131
os agentes potenciais da insurreição em cada uma destas
esferas. Se na esfera macropolítica estes se distribuem em
uma cartografia organizada em pares binários, sendo o
polo subalterno o agente por excelência da insurreição, a
lógica de sua distribuição no diagrama de forças próprio
da esfera micropolítica é outra e pode surgir de qualquer
lugar na trama social. Em que tenderiam então a distin-
guir-se os efeitos micropolíticos do abuso da pulsão nas
subjetividades que, na esfera macropolítica, ocupam
respectivamente o lugar de subalternos e de soberanos?
Do lado dos subalternos, sofrer opressão, exploração
e exclusão (as quais situam-se enquanto tal na esfera mac-
ropolítica) gera no sujeito a experiência de um intolerável
sentimento de humilhação. Este tem um efeito traumático
na esfera micropolítica: a tendência a machucar mais ainda
sua pulsão vital já debilitada pelo medo do colapso de si
provocado pelo abuso. Os traumas de classe, de raça e de
etnia estão entre os mais difíceis de superar, porque não
param de se reproduzir do começo ao fim da existência do
indivíduo, de sua família e de sua comunidade. Mais do que
isso, tais traumas têm início mesmo antes do nascimento, já
que são herdados dos ancestrais e inscritos no DNA desde
as experiências longínquas da colonização e da escravidão,
e não param de se reatualizar, reproduzindo-se até hoje. O
duplo trauma – o medo do colapso gerado pelo abuso e o
terror da humilhação gerado pela opressão, a exploração e
a exclusão – coloca a vida num tal grau de ameaça à sua in-
tegridade que as respostas do desejo, das mais ativas à mais
reativas, tendem neste caso a intensificar-se. A resposta
reativa é uma estratégia de defesa psíquica que se origina
de um enrijecimento dos obstáculos da subjetividade para
acessar seu saber-do-vivo. Isto tende a impedir o desejo de
agir na direção de livrar-se da colonização do inconsciente,
o que pode levar a uma submissão ainda maior tanto ao
abuso da pulsão quanto à opressão (a parcela das classes
desfavorecidas que apoia fervorosamente figuras como o
deputado federal Jair Bolsonaro é um eloquente exemplo
deste tipo de reatividade). Mas a mesma ameaça à integri-
dade pode, ao contrário, gerar uma resposta ativa: impul-
sionar os subalternos a reconectar-se com o saber-do-vivo
por uma questão de vida ou morte. Isto os leva a buscar
livrar-se dos fantasmas nascidos de seu duplo-trauma que
obscurecem sua visão da realidade e deturpam a interpre-
tação da causa de seu mal-estar. Quando isto acontece,
eles tendem a atingir um alto grau de lucidez e não só
ganham mais força para resistir micropoliticamente tanto
ao abuso como à humilhação, mas também em sua luta
macropolítica contra a opressão, a exploração e a exclusão.
Enquanto que, do lado do soberano, pelo fato de que
o medo do colapso oriundo do trauma do abuso da pulsão
não vem acompanhado pela experiência traumática da
humilhação de classe e/ou de raça, o som do alarme é menos
estridente em sua subjetividade e, consequentemente,
é menor o grau de alerta de ameaça à vida que o alarme
the unconscious necessarily implies the groundwork of
our relations, from the most intimate to the most distant,
the effects of any gesture in this direction are collective.
As strange as it may seem to us from the macropo-
litical point of view, and, even stranger when our horizon
is reduced to that sphere, since in the micropolitical
sphere we are all under the domain of the colonial-pimp-
ing unconscious regime, to be an agent of insurrection
in this sphere does not depend on our place in social,
economic and cultural cartography and on the position
we occupy in power relations – whether of sovereign-
ty or subordination, and in its different degrees.
But it is undeniable that, since everything lived on the
level of forms and their codes is also inseparably lived on
the level of the forces that animate and disorganize them,
the different positions in the relations of power in the
macropolitical sphere (relations of class, race, ethnicity,
gender etc.) affect the micropolitical sphere. However,
there is no symmetry or parallelism between the potential
agents of insurrection in each of these spheres. If in the
macropolitical sphere they are distributed in a cartography
organized in binary pairs – the subordinate pole being the
agent par excellence of the insurrection –, the logic of their
distribution in the diagram of forces characteristic of the
micropolitical sphere is different and can arise from any
place in the social fabric. How would then the micropolitical
effects of the abuse of the drive distinguish themselves in
the subjectivities that, in the macropolitical sphere, occupy
the place of subordinates and sovereigns, respectively?
On the side of subordinates, oppression, exploitation
and exclusion (in the macro-political sphere) generate
in the subject the experience of an intolerable feeling of
humiliation. It has a traumatic effect on the micropolitical
sphere: The tendency to hurt even more its vital drive
already weakened by the fear of its own collapse pro-
voked by the abuse. Class, race and ethnicity traumas are
among the most difficult to overcome because they keep
being reproduced from the beginning to the end of the
individual’s, their family’s and community’s existence. Such
traumas go further back, starting even before birth, as
they are inherited and inscribed in the DNA since remote
experiences of colonization and slavery, continuing to be
updated and reproduced to this day. The double trauma
(the fear of collapse generated by abuse and the horror
of humiliation generated by oppression, exploitation and
exclusion) places on life such a degree of threat to its
integrity that the responses of the desire, from the most
active to the most reactive, tend to intensify. The reactive
response is a strategy of psychic defense that originates
from a stiffening of the obstacles of subjectivity to access
its knowledge-of-the-living. It tends to block the action of
the desire to get rid of the unconscious colonization, which
can lead to an even greater submission of both abuse of
the drive and oppression (the portion of the disadvantaged
classes that fervently supports figures like Congressman
Jair Bolsonaro is a clear example of this type of reactivity).
On the contrary, the same threat to integrity can generate
an active response: To encourage subordinates to recon-
nect with the knowledge-of-the-living as a matter of life
and death. It leads them to exterminate the ghosts born of
their double-trauma that obscure their view of reality and
misinterpret the cause of their malaise. When this happens,
they tend to reach a higher degree of rationality and are
empowered not only in their micropolitical resistance to
both abuse and humiliation, but also in their macropolitical
struggle against oppression, exploitation and exclusion.
Whereas on the sovereign’s side, the fear that the
trauma-induced collapse caused by the abuse of the drive
is not accompanied by the traumatic class experience
and/or race humiliation, the alarm sound is less strident
in its subjectivity; consequently, the degree of life-threat-
ening alert announced by the alarm is lower pitched. The
response of the desire, in this case, fluctuates between two
extremes of possible destinies for its drive. His reactive
response originates in the sovereign’s diminished impulse
to resist, leading to a victory of the micro-politics that
submits his vital drive to the will arising from the sover-
eign’s experience as a subject, even if (macro)politically
correct. Such reactive tendency is intensified by the
material and vital comfort of the place of sovereignty in
the relations of power (the opposite of the discomforting
place occupied by the subordinate). This makes his residing
subjectivity to cling more tightly to the established forms,
for fear of losing material privileges, which is confused
with a supposed privilege of his way of life, miserable and
barren. The sovereign is different from the subordinate
as the latter, in this macro-politics sphere, has nothing
to lose, much on the contrary. But the very fact that the
degree of alertness is lower in his subjectivity may, on the
other hand, extend psychic conditions so that subjectivity
does not succumb to trauma, and the desire is propelled
to resist on a micropolitical level, reconnecting itself
with eco-ethological knowledge and seeking to free the
drive from abuse. In this case, material conditions may
favor change, rather than stop it. Desire then tends to act
towards creative practices, that are not only manifested
in art, but also and above all in the transfiguration of
modes of existence and in activist movements that rise in
the various relationship domains in the areas of gender,
sexuality, race, ethnicity, and more. Transfigurations
and movements that, for the above reasons, gain special
attention in the outskirts of urban centers. In the artistic
field particularly, the relations between art and politics are
being discussed again with renewed urgency in the face of
a serious world situation. The focus is not so much on art
works and their challenge to problematize the art system,
but rather on the following questions: How to resist the
pimping of creative power in art, its very micropolitical
132
Jacaranda - Nº 6
anuncia. A resposta do desejo, neste caso, oscila igualmente
entre dois extremos de destinos possíveis de sua pulsão.
Sua resposta reativa origina-se na diminuição do impul-
so do desejo a resistir, o que pode levar à vitória de uma
micropolítica de submissão de sua pulsão vital à vontade
oriunda de sua experiência como sujeito, mesmo que este
seja (macro)politicamente correto. Tal tendência reativa
intensifica-se pelo conforto material e vital do lugar de
soberania nas relações de poder (o oposto do desconforto
do lugar ocupado pelo subalterno). Isto leva a subjetivi-
dade que nele habita a apegar-se mais ferrenhamente às
formas estabelecidas, por medo de perder seus privilégios
materiais, que ele confunde com um suposto privilégio
de seu modo de vida, na verdade totalmente miserável e
estéril. Nisto ele se diferencia do subalterno, que nesta
esfera, macropolítica, não tem nada a perder; ao contrário,
só tem a ganhar. Mas o mesmo fato de que o grau de alerta
seja menor em sua subjetividade pode, ao contrário, ampliar
as condições psíquicas para que ela não sucumba ao trauma
e o desejo ganhe um impulso para resistir micropoliti-
camente, reconectando-se com o saber-eco-etológico e
buscando livrar a pulsão de seu abuso. Neste caso, inclusive,
suas condições materiais podem favorecer a mudança, ao
invés de brecá-la. O desejo tende então a agir na direção
de práticas criadoras. Estas manifestam-se não só na arte,
mas também e sobretudo nas transfigurações dos modos
de existência e nos movimentos ativistas que se insurgem
nos vários domínios das relações nos âmbitos de gênero,
sexualidade, raça, etnia etc. – transfigurações e movimentos
que, pelas razões acima apontadas, ganham especial brilho
de radicalidade nas periferias dos centros urbanos. No
campo artístico, especificamente, a questão das relações
entre arte e política voltou à baila com renovada urgência
diante da grave situação mundial. O foco passa a ser menos
as obras e seu desafio de problematizar o sistema da arte
em seu próprio interior e mais as seguintes perguntas:
Como resistir à cafetinagem da potência de criação na arte,
sua potência micropolítica? Como estratégias artísticas
podem intervir na vida social, instaurando espaços para
processos de experimentação, sua proliferação, seus
devires? E, mais radicalmente, como contribuir para
liberar a potência de criação de seu confinamento na arte?
É evidente que no campo das subjetividade não há
generalizações possíveis; as figuras acima desenhadas
de reação ao abuso, seja as dos subalternos ou dos so-
beranos, misturam-se em diferentes graus compondo
políticas de desejo que variam ao longo da existência.
Em suma, as dinâmicas na esfera micropolítica são
mais complexas e paradoxais do que as das posições
que cada um ocupa macropoliticamente na sociedade.
Nada garante que os subalternos sejam todos eles, por
princípio, agentes em potencial da insurreição microp-
olítica, já que sua subjetividade pode estar sob o feitiço
do inconsciente próprio ao regime dominante, mesmo
133
que o combatam macropoliticamente. E vice-versa:
o soberano pode tornar-se eventualmente seu agen-
te, quando se quebra em sua subjetividade o feitiço
dos valores oriundos deste tipo de inconsciente.
O que move seus agentes
Macropolítica
O que move os agentes a insurgir-se na esfera
macropolítica é o impulso de “denunciar” em palavras
e ações as injustiças do mundo em suas formas vigen-
tes visando a uma distribuição de direitos mais justa.
Isso leva a “mobilizar as consciências” a agir na mes-
ma direção, engrossando o caldo da força para lograr
tais mudanças no interior das formas vigentes.
Micropolítica
O que move os agentes a insurgir-se na esfera
micropolítica é o impulso de perseveração da vida que,
nos humanos, manifesta-se como impulso de “anun-
ciar” mundos por vir num processo de criação e ex-
perimentação que busca expressá-los. Performatizado
em ações concretas, tal anúncio tende a “mobilizar os
inconscientes”, agregando novos aliados à insurreição
micropolítica. Estes, por sua vez, tenderão a lançar-se em
outros processos de experimentação, nos quais se per-
formatizarão outros devires do mundo, imprevisíveis.
Intenção
Macropolítica
A intenção de insurgir-se na esfera macropolítica é
o “empoderamento” do sujeito: libertar-se da opressão,
da exploração e da exclusão; sair da invisibilidade e da
inaudibilidade, para ocupar afirmativamente um “lu-
gar de fala” e de direito de existência digna. Como se
trata de promover uma redistribuição de posições que
seja mais igualitária – não só no campo econômico e
social, mas também no campo político –, a intenção
aqui inclui instaurar um Estado mais democrático.
Micropolítica
A intenção de insurgir-se na esfera micropolítica é
a “potencialização” da vida: reapropriar-se da força vital
e de sua potência de criação. Nos humanos isso depende
de reapropriar-se da pulsão e da força desejante de
experimentação na linguagem, o que implica habitar a
zona tensa e paradoxal entre as experiências subjetivas
do sujeito e do fora-do-sujeito. Isto é indispensável para
que o movimento pulsional possa orientar o desejo na
direção de buscar conexões que lhe permitam criar algo
que o expresse. Neste processo de experimentação – por
meio do qual se criam palavras, imagens, gestos, modos
de existência, de sexualidade etc. –, os mundos ainda em
estado larvar que se anunciam ao saber-do-vivo tornam-se
sensíveis. Vale enfatizar que expressá-los em ações con-
cretas é distinto de explicá-los; a experimentação requer
implicação e não explicação. Esta é a condição para que o
power? How can artistic strategies intervene in social life,
establishing spaces for experimentation, their proliferation
and becomings? And, more radically, how to contribute to
liberate the creative power from its confinement in art?
In the field of subjectivity, one cannot generalize; the
aforementioned reactions to abuse, whether by the sub-
ordinate or by the sovereign, mix in different degrees and
create politics of desire that vary throughout existence.
In sum, the micropolitical sphere dynamics are more
complex and paradoxical than those of the macropolitical
positions occupied in society. Nothing guarantees that
every subordinate, on principle, is a potential agent for
the micropolitical insurrection, since their subjectivity
may be under the spell of the unconscious of the dom-
inating regime, even if they fight it on a macropolitical
level. Likewise, the sovereign can eventually become
the agent, when the spell of values coming from this
type of unconscious is broken in his subjectivity.
What Moves Its Agents
Macro-Politics
What moves agents to rise in the macropolitical
sphere is the impulse to “testify” in words and actions
the injustices of the world in its current forms, aiming at
a fairer distribution of rights. This leads to “prompting
consciences” to act in the same direction, increasing the
power to achieve such changes within the existing forms.
Micro-Politics
What moves agents to rise in the micropolitical
sphere is the impulse to preserve life, which in humans
manifests itself as the impulse to “reveal” new worlds
in a process of creation and experimentation that seeks
to express them. Performed in concrete actions, such
revelation tends to “prompt the unconscious,” adding new
allies to the micropolitical insurrection. These, in turn, will
try other processes of experimentation, in which more
unpredictable becomings of the world will be born.
Intention
Macro-Politics
The intention to rise in the macropolitical sphere is the
“empowerment” of the subject: To free oneself from op-
pression, exploitation and exclusion, to leave invisibility and
inaudibility, to affirmatively occupy a “place of speech” and
the right to a dignified existence. Since this is a matter of
promoting a more equitable redistribution of positions – not
only in the economic and social, but also in the political field
– the intention here is to establish a more democratic State.
Micro-Politics
The intention to rise in the micropolitical sphere is
the “enhancement” of life: To take back the control of the
vital force and its creative power. In humans, this relies
on taking back control of the drive and the force desiring
experimentation in language, which implies inhabiting
the tense and paradoxical zone between the subjective
experiences of both the subject and the out-of-subject. This
is crucial for the drive movement to guide the desire in the
search for connections that will allow it to create some-
thing that expresses it. In this process of experimentation
– through which words, images, gestures, modes of exis-
tence, sexuality, are created –, the worlds, in a larval stage
that announce themselves to the knowledge-of-the-living,
become sensitive. Expressing them in concrete actions is
different from explaining them; experimentation requires
implication rather than explanation. This is the condition
for the drive movement to complete itself in its ethical
destiny, producing an aftermath: The transcreation of its
own reality and that of the world and its respective values.
To produce life strengthening is therefore different
from subject empowerment, an intention unique to the
insurrection’s macropolitical sphere. Both intentions are
important; the problem is when the insurrection only aims
at empowering, because tis imprisons us in the logic of the
very system that we seek to combat. Differentiating them
is indispensable for the bodies considered of less value in
the social imaginary – such as the body of the poor, the
precarious worker, the refugee, and also the black, indig-
enous, women, homosexuals, transsexuals, transgenders
etc. When the insurrection of these bodies incorporates
the desire for power and the need for empowerment, the
driving movement is more likely to find its expression
and result in effective transmutations of individual and
collective reality, in its macropolitical sphere as well.
Criteria for Evaluating Situations
Macro-Politics
The criteria for evaluating situations in the
macropolitical sphere are “rational”: What guides
the choices and actions in this sphere is a moral
compass, whose needle will point to one of the sys-
tems of value of the current mode of existence.
Micro-Politics
The criteria for evaluating situations in the micro-
political sphere is the “drive”: What guides our choices
and actions in this sphere is an ethical compass. Its
needle will point to what life demands as a condition
to persevere whenever it is weakened by suffocation
in the existing modes of existence and values, val-
ues that have no meaning for what life requires.
Modes of Operation
Macro-Politics
Insurrection takes place in the macropolitical sphere
“by denial”: It is about acting against the oppressor,
subverting the distribution of positions within the relations
of power. If the insurrection here operates by means of
opposition, it is because the interests of the two struggling
poles in the relations of power are in fact opposed, and the
dynamic of the struggle between them is therefore dialec-
134
Jacaranda - Nº 6
movimento pulsional se complete em seu destino ético,
produzindo um acontecimento: a transcriação da real-
idade de si e do mundo e de seus respectivos valores.
Produzir potencialização da vida é, portanto, distinto
de empoderamento do sujeito, uma intenção própria à
esfera macropolítica da insurreição. Ambas as intenções
são importantes; o problema é quando a insurreição visa
apenas ao empoderamento, pois nos faz permanecer cati-
vos da lógica do próprio sistema que buscamos combater.
Diferenciá-las é especialmente indispensável para os corpos
considerados de menor valor no imaginário social – como o
corpo do pobre, do trabalhador precarizado, do refugiado,
e também o do negro, do índio, da mulher, do homossexual,
do transexual, do transgênero etc. Quando a insurreição
destes corpos abarca um desejo de potência, para além
da necessidade de empoderamento, é mais provável que
o movimento pulsional encontre sua expressão e dele
resultem transmutações efetivas da realidade individ-
ual e coletiva, inclusive em sua esfera macropolítica.
Critérios de avaliação das situações
Macropolítica
O critério de avaliação das situações na esfera macrop-
olítica é “racional”: o que orienta as escolhas e ações nesta
esfera é uma bússola moral, cuja agulha aponta para um
dos sistemas de valores do modo de existência vigente.
Micropolítica
O critério de avaliação das situações na esfera
micropolítica é “pulsional”: o que orienta nossas escol-
has e ações nesta esfera é uma bússola ética. Sua agulha
aponta para aquilo que a vida pede como condição para
perseverar a cada vez que se vê debilitada por sua asfix-
ia nos modos de existência vigentes e seus valores, os
quais perderam sentido para aquilo que ela necessita.
Modos de operação
Macropolítica
É “por negação” que se opera a insurreição na
esfera macropolítica: trata-se de agir contra o opres-
sor, para subverter a distribuição de posições no inte-
rior das relações de poder. Se a insurreição aqui opera
pela via da oposição é porque são, de fato, opostos os
interesses dos dois polos em luta nas relações de pod-
er, sendo portanto dialética a dinâmica da luta entre
eles. São estratégias de “combate contra” a opressão e
a exploração em todas suas manifestações na existên-
cia individual e coletiva e as leis que as legitimam.
Micropolítica
É “por afirmação” que se opera a insurreição na esfera
micropolítica: trata-se de um “combate pela” vida em sua
essência germinativa. Tal combate implica não ceder ao
abuso da pulsão, o que depende de um longo trabalho
de travessia do trauma que tal abuso provoca: a despo-
tencialização da força vital que decorre de sua violação e
135
prepara o terreno para sua cafetinagem. Resistir ao abuso
é a condição para desarticular o poder do inconsciente
colonial-capitalístico em nossa própria subjetividade, o qual
nos faz permanecer enredados nas relações de poder, seja
na posição de subalterno (mesmo quando nos insurgimos
macropoliticamente contra ela) ou de soberano (mesmo
que sejamos os mais macropoliticamente corretos).
Tomemos como exemplo o combate das mulheres.
Embora seja indispensável e inadiável que a mulher se
insurja contra a desigualdade nas relações de gênero, se
ela tenta sair de seu lugar subalterno insurgindo-se apenas
nesta esfera, macropolítica, nada garante que sua subje-
tividade recupere sua plena existência, o que depende de
ela reapropriar-se da pulsão, cujo destino lhe foi seques-
trado por estas mesmas relações de poder. Neste caso, é
provável que ela continue mantendo-se dependente do
olhar do homem para sentir-se existindo e, com isso, ela
não só caia na cilada da dominação masculina e do abuso
machista, mas o alimente com seu próprio desejo. Em
outras palavras, ao não incorporar a esfera micropolítica
ao combate, a resistência tende a ficar prisioneira de uma
lógica de oposição ao homem. A luta torna-se então uma
disputa de poder que toma como referência universal
e absoluta o personagem masculino da cena machis-
ta e, com isso, mantêm-se sua hegemonia e a própria
cena – precisamente o que a mulher visava combater.
Mas se a mulher, ou qualquer figura que ocupe a
posição de subalternidade no script das relações de poder,
deserta seu papel – seja de vítima do opressor ou, na melhor
das hipóteses, de seu mero opositor –, transfigurando-se
em outro(s) personagem(ns) ou simplesmente abandonan-
do a cena, o opressor fica falando sozinho e a cena não tem
mais como prosseguir. Não será precisamente esta operação
insurrecional micropolítica o que vem sendo introduzido
pelos movimentos atuais acima mencionados, sobretudo
nas relações de poder nos âmbitos de raça, sexo e gênero?
E com esta transfiguração do personagem da mulher
na cena machista, o que acontece com o personagem no
qual se encontra confinado o homem? Diante da angústia
que lhe provoca a desestabilização da cena onde ele tinha
até então seu lugar garantido, são várias suas possíveis
respostas. Se ela for ativa – o que vem acontecendo cada vez
mais, embora ainda minoritariamente –, tal experiência
pode impulsioná-lo a superar sua desconexão com o ex-
trapessoal, assim como sua impossibilidade de sustentar-se
na tensão entre o pessoal e o extrapessoal. A partir daí, ele
tenderá a recriar-se a si mesmo para interagir com o(s) no-
vo(s) personagem(ns) que com ele contracena(m) e este(s),
por sua vez, tenderá(ão) a transmutar(em) nesta interação.
Neste caso, também ele torna-se um agente da insurreição
micropolítica. Nesta dança, pode surgir um novo script,
no qual a política de desejo que orienta os personagens e
a dinâmica de sua relação já não estejam submetidas ao
inconsciente colonial-cafetinístico, levando à formação de
tical. These are the strategies to “fight against” oppression
and exploitation in all its manifestations in individual and
collective existences and in the laws that legitimize them.
Micro-Politics
Insurrection takes place in the micropolitical sphere
“by affirmation”: It is about a “fight for” life in its ger-
minative essence. Such a struggle implies not giving
in to the abuse of the drive, which implicates a long
path to overcome the trauma that such abuse causes:
The weakening of the vital force that results from its
violation and paves the way for its pimping. Resisting
abuse is the condition for dismantling the power of the
colonial-capitalistic unconscious in our own subjectivity,
which maintains us entangled in the relations of power,
whether in the subordinate (even when we rebel against it
on a macropolitical level) or sovereign (even if we are the
ones who are most macro-politically correct) position.
The struggle of women is an example. Although it
is indispensable and urgent for women to rise against
inequality in gender relations, if they try to get out of
their subordinate position by rebelling in this macropo-
litical sphere alone, there are no guarantees that their
subjectivity will recover its full existence since they need
to take back control of the drive, whose fate was kid-
napped by these same relations of power. In this case,
they are likely to keep depending on men’s approval to
confirm their existence, and therefore, not only fall into
the trap of male domination and abuse, but also nourish
him with their own desire. In other words, by not incorpo-
rating the micropolitical sphere into the fight, resistance
tends to be trapped in a logic of opposition to men. The
fight then becomes a power struggle whose universal
and only reference is the male character of the sexist
scene, which maintains male hegemony and the scene
itself – precisely what women were fighting against.
But if the woman, or any figure who occupies the
subordinate position in the script that dictates relations
of power, abandons her role – be it of the victim of the
oppressor or, at best, of his sheer opponent – transfiguring
into another character or simply leaving the stage, the
oppressor is left alone, and the scene cannot proceed. Isn’t
precisely this micropolitical insurrection that has been
introduced by the movements mentioned above, especially
in the relations of when related to race, sex and gender?
And with this transfiguration of the woman’s char-
acter in the sexist scene, what happens to the character
in which the man is confined? Faced with the anguish that
causes him to destabilize the scene where until then he had
his place guaranteed, there are several possible answers.
If she is active – something that has been increasingly
more frequent, although among minorities alone – such an
experience can encourage him to overcome his discon-
nection from the extra-personal, as well as his inability to
sustain himself in the tension between the personal and
the extra-personal. From there, he will tend to recreate
himself to interact with the new character(s) with whom he
shares the stage, and these, in turn, will tend to transmute
in this interaction. In this case he becomes an agent of the
micropolitical insurrection, and a new script can emerge.
A script in which the politics of desire that guide the
characters and their relationship dynamics are no longer
subject to the colonial-pimping unconscious, leading to
the formation of another regime of the unconscious and
to the consequent establishment of new scenes in the
social landscape. But it is obvious that the cancellation of
the sexist theater and the man’s impossibility to continue
playing the role of oppressor can also lead to a reactive,
violent response, driven by his exasperated desire to keep
the scene and his character at any price, for fear of collaps-
ing. Unfortunately, this trend is not only prevailing, but also
expanding exponentially in recent times, creating a tsunami
of increasingly narrow and cruel conservatisms that have
devastated the planet. One of its most obvious manifesta-
tions is the astonishing upsurge in the number of femicides
as the feminist insurrection advances – especially in former
colonies, such as in the Latin American and African regions.
In sum, if the macropolitical resistance operation aims
to redistribute the places within the relations of power, the
operation of resistance characteristic of the micropolitical
sphere aims, on the other hand, to disrupt such relations.
The struggle against the pimping of the drive, the matrix of
the colonial-capitalistic unconscious, implies the construc-
tion of another body for oneself, the abandonment of the
shell of a body structured in the dynamics of abuse – just
like grasshoppers abandon their exoskeleton for another
body, still embryonic, to germinate and take its place. And
if this fight is by affirmation and not by opposition, as is
the case in the macropolitical sphere, it is because the
dynamics of the tension between the personal and the
extra-personal is not dialectical, but paradoxical, and to
face it implies affirmative actions of another becoming
of the characters in the scene of relations of power.
In this operation of resistance, the borders limiting
politics, clinic and art become undetectable. Its clinical
dimension lies in the fact that the goal is to have the
unconscious abandon its colonial-capitalistic pathology.
It is a quest to “cure” life of its impotence as much as it
can – such impotence being the remains of its captivity
in the relational fabric of abuse that alienates the sub-
jectivity of vital demands and holds the desire hostage of
the dominating regime in its pimping essence. And such
healing operation is only inseparable from the artistic
operation because the creation of new modes of exis-
tence that perform vital demands will make it complete.
The exercise of creation under the colonial-capitalist
regime is confined to a specific field of human activity, es-
tablished a few centuries ago in this context and which has
136
Jacaranda - Nº 6
um outro regime de inconsciente e à consequente instau-
ração de novas cenas na paisagem social. Mas é óbvio que o
cancelamento do teatro machista e sua impossibilidade de
seguir atuando no papel de opressor pode levá-lo, igual-
mente, a uma resposta reativa, violenta, movida por sua
exasperada vontade de conservar a cena e seu personagem
na mesma a qualquer preço, por medo de colapsar. É esta,
infelizmente, a tendência que vem não só prevalecendo
mas, inclusive, expandindo-se exponencialmente nos últi-
mos tempos, responsável pelo tsunami do conservadorismo
cada vez mais tacanho e cruel que tem devastado o planeta.
Uma de suas manifestações mais óbvias é justamente o
espantoso aumento do número de feminicídios, à medida
que avança a insurreição feminista – principalmente nas
regiões das ex-colônias, como a América Latina e a África.
Em suma, se a operação de resistência macropolítica
visa redistribuir os lugares no interior das relações de
poder, a operação de resistência própria da esfera micro-
política visa, diferentemente, desmanchar tais relações.
Combater a cafetinagem da pulsão, matriz do inconsciente
colonial-capitalístico, implica construir para si um outro
corpo, abandonando a carapaça de um corpo estruturado
na dinâmica do abuso – como os gafanhotos abandonam
seu exoesqueleto para que um outro corpo, ainda em-
brionário, possa germinar e tomar o seu lugar. E se este
combate se dá por afirmação e não por oposição, como
é o caso na esfera macropolítica, é porque a dinâmica da
tensão entre o pessoal e oextrapessoal não é dialética mas
paradoxal e enfrentá-la implica ações afirmativas de um
devir-outro dos personagens na cena das relações de poder.
Nesta operação de resistência as fronteiras entre
política, clínica e arte tornam-se indiscerníveis. Sua
dimensão clínica reside no fato de que o que se visa é livrar
o inconsciente de sua patologia colonial-capitalística.
Trata-se de uma busca por “curar” a vida de sua impotên-
cia, o máximo que se puder, sequela de seu cativeiro na
trama relacional do abuso que aliena a subjetividade das
demandas vitais e mantém o desejo refém do regime
dominante em sua essência cafetina. E se tal operação
de cura é indissociável da operação artística é porque
ela só se completa com a criação de novos modos de
existência que performatizem as demandas vitais.
Ora, o exercício da criação sob o regime colonial-cap-
italístico encontra-se confinado num campo específico da
atividade humana, inaugurado neste contexto há poucos
séculos, ao qual se deu o nome de “Arte”. No modo de op-
eração micropolítico, visa-se libertar este exercício o mais
que se puder deste seu confinamento, o suficiente para que
ele se reative nas demais práticas da vida social. E que se
reative, inclusive, nas próprias práticas artísticas pois, sob
o capitalismo financeirizado, tal exercício tornou-se quase
impossível também neste campo. Em sua nova dobra, o
regime apropriou-se da criação artística como fonte privile-
giada para seu abuso, que consiste não só em neutralizá-la
137
convertendo-a em criatividade, mas também em usá-la
como signo de pertencimento às elites transnacionais a ser
ostensivamente exibido. Ser colecionador, conhecer um
meia dúzia de nomes de artistas e curadores que estejam na
crista da onda do mercado, frequentar vernissages e fazer
turismo nas grandes exposições internacionais pelo mundo
passou a constituir um elemento essencial do glamour
projetado sobre a estéril existência de tais elites, o qual
lhes dá um plus de sedução e aumenta o poder de seu self-
brand no mercado. Além destas vantagens micropolíticas
que a arte lhes traz e de seus efeitos em seu poder mac-
ropolítico, esta tornou-se mais do que nunca um terreno
privilegiado para a especulação e a lavagem de dinheiro.
Modos de cooperação
Macropolítica
É pela “construção de movimentos organizados e/
ou partidos políticos” que se coopera na insurreição
macropolítica, cujos agentes se agrupam “via recognição
identitária”. Trata-se de uma construção programática,
que se faz a partir de um plano de ações previamente
definido, visando a um fim relativo a uma mesma reivin-
dicação (neste caso, uma demanda concreta) e em função
de uma mesma posição (subalterna) num determinado
segmento da vida social. Nesta posição, que pertence à
esfera da “pessoa” na experiência subjetiva (o sujeito),
desenha-se um suposto contorno identitário, que dá a
liga para a necessária agrupação. Vários destes segmentos
podem unir-se num só movimento (em torno de reivindi-
cações que implicam, por exemplo, gênero, raça e classe);
assim como movimentos de diferentes segmentos podem
juntar-se em torno de uma causa que diz respeito a todos.
Este modo de cooperação visa gerar força de pressão para
viabilizar uma reversão efetiva nas relações de poder no
plano institucional (o que inclui o Estado e suas leis, mas
não se reduz a ele). Tal combate tem um tempo finito de
duração em cada campo visado, o qual se encerra quando
se alcança o objetivo de nele reverter as relações de poder.
Se unir-se para este fim é essencial, o problema é
quando isto leva a subjetividade a confinar-se no contor-
no identitário, reduzindo-se a ele. Tal redução resulta na
interrupção dos processos de subjetivação impulsionados
pela tensão entre o pessoal e o extrapessoal, decorrente
dos efeitos das forças do outro na esfera micropolíti-
ca quando estes extrapolam e dissolvem os contornos
identitários. Interrompidos tais processos, não há pos-
sibilidade de uma transformação efetiva da realidade.
Micropolítica
É pela “construção do comum” que se coopera na
insurreição micropolítica, cujos agentes se aproximam
“via ressonância intensiva” que se dá por meio de uma
mesma frequência de afetos (emoções vitais). Trata-se de
tecer múltiplas redes de conexões cujos elos são germes
been called “Art.” In the micropolitical mode of operation, It is by the “construction of the common” that
cooperation can occur in the micropolitical insurrec-
the goal is to free this exercise as much as possible from its
tion, whose agents approach “via intensive resonance,”
confinement; to the point that it is ignited in other practices
which occurs through the same frequency of affects
of social life. And then reignite it in the very artistic practic-
es, because under financial capitalism such exercise has be- (vital emotions). It is about weaving multiple networks
come almost impossible. In its new fold, the regime appro- of connections whose links are germs of the world
that inhabit the bodies that participate in them and
priated artistic creation as a privileged source for its abuse,
which consists not only in neutralizing and converting require them to create forms in which such worlds
materialize. This is only possible in a relational field.
creation into creativity, but also in using it as a sign of be-
longing for the transnational elites to ostensibly display it. Joining by “resonance” is different from doing so by
Being a collector, being acquainted to a half dozen names of “identification,” a way of grouping that is characteristic of
artists and curators who are popular in the market, attend- the macropolitical sphere. And resonance is different from
ing vernissages and touring major international exhibitions empathy, another word too worn out in our culture that has
worldwide has become an essential element of the glamor reduced its use to the sharing of opinions, ideologies and
projected over the sterile existence of such elites, which feelings – more precisely, good feelings –, the entire sphere
gives them an extra level of seduction and increases the of the subject. Restricting the use of the term “empathy”
power of their self-brand in the market. In addition to theseto the macropolitical sphere and to good feelings means
micropolitical advantages offered by art and their effects inserting it into the lexicon of politically correct attitudes
on macropolitical power, more than ever art has become a that deny the tensions characteristic of the relationship
privileged ground for speculation and money laundering. with alterity and do not require any action. In short, empa-
thy is used in attitudes that deny the micropolitical sphere.
Modes of Cooperation Cooperation in this sphere takes place around unique
Macro-Politics situations, experiences and languages, from which tempo-
It is by “the construction of organized movements and/ rary, varied and variable relational territories are created.
or political parties” that one cooperates in the macropolit- In these territories, collective synergies are produced,
ical insurrection, whose agents are grouped “via identity providing a reciprocal welcoming space to dare while
recognition.” It is a programmatic construction, based experimenting with modes of existence different from the
on a previously defined action plan, whose goal is related hegemonic ones – this is what values and legitimizes it. It
to the same claim (in this case, a concrete demand) and also enables the overcoming of the trauma resulting from
resulting from the same (subordinate) position in a certain the perverse operation of the colonial-capitalistic regime
segment of social life. In this position, which belongs that confines subjectivities in the current forms and values
to the sphere of the “person” in the subjective experi- marked by the expropriation of the driving movement. As
ence (the subject), a supposed identity shape is drawn, such overcoming implies endless work, it must reach in
and it binds the much-needed cluster. Several of these every situation a threshold that allows the creative vital
segments can be united in a single movement (around force to be freed, at least in part, from its pimping. This
claims involving, for example, gender, race and class); is the condition for achieving an individual and collective
movements of different segments too may gather around body that resists to the abuse of life and is able to repel
a cause that concerns all. This mode of cooperation aims it – this is what we call “construction of the common.”
to generate pressure and enable an effective reversal of The possibility to create emergency fields of events
the institutional relations of power (which includes but depends on such collective efforts to take back ownership
is not limited to the State and its laws). Such fight has a of the drive. These fields result from the germination of
finite duration in each target field, which ends when the world embryos that resonated among bodies and led them
goal of reversing the relations of power is achieved. to unite, giving birth – in this relational field – to other
If uniting for this purpose is crucial, the problem modes of existence and their respective cartographies.
is when it confines subjectivity to the identity shape, Events are, therefore, the result of the creative processes
reducing subjectivity to this shape. Such reduction typical of micropolitical insurrection, unlike actions of
results in the interruption of the subjectification pro- macropolitical insurrection, which start from a predefined
cesses boosted by the tension between the personal end. If the latter’s mode of cooperation creates pressure
and the extra-personal, which arises from the effects to enable a “fairer distribution of rights” in the ongoing
of the forces of the other in the micropolitical sphere cartography, the mode of micropolitical cooperation
when they extrapolate and dissolve the identity shape. generates a force of “trans-individual metamorpho-
Once such processes have been interrupted, there is sis”10 that will create new cartographies altogether.
no possibility of effective transforming this reality. In view of this new state of affairs, it becomes urgent
Micro-Politics to associate the programmatic protest of the consciences
138
Jacaranda - Nº 6
de mundo que habitam os corpos que delas participam e
lhes exigem que criem formas nas quais tais mundos se
materializem, o que só é possível num campo relacional.
Juntar-se por “ressonância” é distinto de fazê-lo
por “identificação”, meio de agrupação próprio da esfera
macropolítica. E ressonância é distinto de empatia, outra
palavra por demais desgastada em nossa cultura, que redu-
ziu seu uso ao compartilhamento de opiniões, ideologias e
sentimentos (emoções psicológicas) – mais precisamente,
bons sentimentos –, todos da esfera do sujeito. Ainda no
âmbito da redução do uso do termo empatia à esfera mac-
ropolítica e aos bons sentimentos, é sua atual inserção no
léxico de atitudes politicamente corretas, as quais denegam
as tensões próprias da relação com a alteridade e não im-
plicam uma exigência de ação. Em suma, o termo empatia
é usado em atitudes que denegam a esfera micropolítica.
A cooperação nesta esfera se dá em torno de situações,
experiências e idiomas singulares, a partir dos quais se cri-
am territórios relacionais temporários, variados e variáveis.
Nestes territórios se produzem sinergias coletivas,
provedoras de um acolhimento recíproco para a ousadia
de experimentação de modos de existência distintos dos
hegemônicos, o que a valoriza e legitima. Isso favorece o
trabalho de superação do trauma resultante da operação
perversa do regime colonial-capitalístico que confina as
subjetividades nas formas e valores vigentes marcadas pela
expropriação do movimento pulsional. Como tal superação
implica um trabalho sem fim, o importante aqui é que ela
atinja em cada situação um limiar que permita que a força
vital criadora se libere, pelo menos em parte, de sua cafeti-
nagem. Esta é a condição para que se logre compor um cor-
po individual e coletivo resistente ao abuso da vida e capaz
de o repelir – é nisto que consiste a “construção do comum”.
De tais reapropriações coletivas da pulsão depende
a possibilidade de constituição de campos de emergência
de acontecimentos. Estes resultam da germinação dos
embriões de mundos que ressoaram entre os corpos e os
levaram a unir-se, a qual produz neste campo relacional o
nascimento de outros modos de existência e suas respec-
tivas cartografias. Os acontecimentos são, portanto, o
resultado dos processos de criação próprios da insurreição
micropolítica, diferentemente das ações insurrecionais
macropolíticas, as quais partem de um fim pré-defini-
do. Se o modo de cooperação destas últimas geram uma
força de pressão para viabilizar uma “distribuição mais
justa de direitos” na cartografia em curso, o modo de
cooperação micropolítico gera uma força de “metamor-
fose transindividual”10 que cria novas cartografias.
Em suma, em vista do novo estado de coisas torna-se
inadiável aliarmos ao protesto programático das consciên-
cias (insurreição macropolítica) o protesto pulsional dos
inconscientes11 (insurreição micropolítica)12. A desartic-
ulação entre ambas as esferas da insurreição só contribui
para a reprodução infinita do status quo. Mais grave ainda é
139
quando se estabelece entre seus agentes uma conflitiva po-
laridade, na qual há uma demonização recíproca em torno
do que seria a suposta “verdadeira atitude revolucionária”.
Um tipo de relação que, infelizmente, esteve bastante pre-
sente nos levantes dos anos 1960 e 1970, causando muito
mal-entendido, muita despotencialização e muita dor. É
que verdade e revolução são conceitos criados no âmbito
da política de produção de uma subjetividade antropo-fa-
lo-ego-logocêntria, própria da cultura moderna ocidental
colonial-cafetinística. Nosso desafio está, portanto, em
superar em nós mesmos a nefasta dicotomia entre micro e
macropolítica, buscando articulá-las no campo relacional
de nossa cotidianidade e de nossas ações insurrecionais.
Para lograr enfrentar este desafio é preciso antes de
mais nada refinar a decifração do regime hegemônico
do inconsciente e seus efeitos na existência individual
e coletiva, desde uma perspectiva teórica transdisci-
plinar e indissociável de uma pragmática clínico-estéti-
co-política. O objetivo é criar ferramentas adequadas ao
trabalho implicado na descolonização do inconsciente:
esta é a matriz da resistência micropolítica. E se tal tarefa
impõe-se hoje com máxima urgência, é porque a resistên-
cia neste âmbito mal começou a engatinhar. É nesta
direção que se esboçam a seguir algumas sugestões.
Dez sugestões para descolonizar o inconsciente:
• Desanestesiar nossa vulnerabilidade às
forças em seus diagramas variáveis, potência da sub-
jetividade em sua experiência fora-do-sujeito;
• Ativar o saber-eco-etológico: a experiência do
mundo em sua condição de vivente, cujas forças produzem
efeitos em nosso corpo, o qual participa desta condição
que compartilha com todos os elementos da biosfera;
• Desobstruir o acesso à paradoxal e ten-
sa experiência do estranho-familiar;
• Não denegar a fragilidade resultante da
desterritorialização desestabilizadora que o esta-
do estranho-familiar promove inevitavelmente;
• Não interpretar a fragilidade e seu descon-
forto como “coisa ruim”, nem projetar sobre eles lei-
turas fantasmáticas (ejaculações precoces do ego,
provocadas por seu medo de desamparo e falência
e suas consequências imaginárias: o repúdio, a re-
jeição, a exclusão social, a humilhação, a loucura);
• Não ceder à vontade de conservação das formas
e à pressão que esta exerce contra a vontade de potência
da vida em seu impulso de produção de diferença. Ao
contrário, buscar sustentar-se no fio tênue deste esta-
do instável até que a imaginação criadora construa um
lugar de corpo-e-fala que, por ser portador da pulsação
do estranho-familiar, seja capaz de atualizar o mundo
virtual que esta experiência anuncia, permitindo as-
sim que as formas agonizantes acabem de morrer;
• Não atropelar o tempo próprio da imaginação
(macropolitical insurrection) to the driving protest of the
unconscious11 (micropolitical insurrection)12. The disconnect
between both spheres of insurrection only contributes
to the infinite reproduction of the status quo. Even more
serious is when a conflicting polarity is established be-
tween its agents, in which there is reciprocal demonization
about what is the supposedly “true revolutionary attitude.”
A type of relationship that, unfortunately, was present
in the uprisings of the 1960s and 1970s, causing a great
deal of misunderstanding, weakening and pain. The point
is that truth and revolution are concepts created by the
politics of producing an anthropo-phallus-ego-logocentric
subjectivity, typical of Western colonial-pimping modern
culture. Our challenge is therefore to overcome within
ourselves the horrendous dichotomy between micro- and
macro-politics, in an attempt to articulate them in the
relational field of our daily lives and insurrection actions.
To face this challenge, one must first better decipher
the hegemonic regime of the unconscious and its effects
on individual and collective existence, from a transdisci-
plinary theoretical perspective that is inseparable from a
clinical-aesthetic-political pragmatic. The goal is to create
adequate tools for the work involved in the decolonization
of the unconscious: This is the matrix of micropolitical
resistance. If such task is urgently required today, it
is because resistance in this area is still very incipient.
Some suggestions in this direction are outlined below.
Ten Suggestions to Decolonize the Unconscious
• Sensitize our vulnerability to the forces in
their variable diagrams, the power of subjec-
tivity in their out-of-subject experience.
• Activate the eco-ethological knowledge: The
experience of the world in its living condition,
whose forces produce effects in our body, a partic-
ipant who shares with all biosphere elements.
• Clear access to the paradoxical and tense
experience of the strange-familiar.
• Do not deny the fragility resulting from the
imbalance of de-territorializing, inevitably pro-
moted by that the strange-familiar state.
• Do not interpret fragility and discomfort as
“something bad,” neither project ghostly readings
on them (premature ejaculations of the ego, pro-
voked by their fear of helplessness and failure, and
their imaginary consequences: Repudiation, rejec-
tion, social exclusion, humiliation, madness).
• Do not give in to the will to conserve the forms and to
the pressure that it exerts against the will of vital power
in its impulse to produce difference. On the contrary, seek
to hold on to the tenuous thread of this unstable state
until the creative imagination builds a place of body-and-
speech that, by being the carrier of the strange-familiar
pulse, can update the virtual world that this experience
announces, thus allowing the agonizing forms to die.
• Do not rush the time required by creative imagi-
nation to avoid the risk of interrupting the germination
of a world and make imagination vulnerable to letting
itself be expropriated by the colonial-pimping regime
that deviates it from its ethical destiny. It is in this
deviation that germination is captured and tends to
submit to the imaginary that such a regime seductive-
ly imposes on us and, therefore, becomes sterile.
• Do not give up on desire and its ethics of the
affirmation of life, which implies keeping ethics as
fruitful as possible all the time, flowing in its unlimit-
ed process of differentiation and trans-valuation.
• Do not negotiate what is not negotiable: Every-
thing that hinders the affirmation of life in its essence
of creative power. Learn to distinguish it from what is
in fact negotiable: Everything that could be readjusted
because it does not weaken the instituting vital force
but, instead, generates the objective conditions for
an event to occur, thus fulfilling its ethical destiny.
• Practice full-fledged thinking – indissocia-
bly ethical, aesthetic, political, critical and clinical.
Re-imagine the world in every gesture, word, mode
of existence, mode of relationship with the other (hu-
man and non-human) – whenever life demands it.
It is evident that this is not a prescription for a
supposed “cure” of the pathological effects of our culture,
in a kind of clinical-artistic-micropolitical messianism that
would replace the much-weakened macropolitical messian-
ism contained in the revolutionary utopia – both heirs of the
idea of paradise where life would finally find the supposed
eternal stability. This bricolage of the self, on which decolo-
nization depends in the micropolitical sphere, never reach-
es its full and definitive realization. Faced with new tensions
throughout our existence, we oscillate between varied and
variable positions in a wide range of micro-politics, from
the most active to the most reactive. We are always faced
with the challenge of combating in ourselves the reactive
dominating tendency in our culture: The challenge of not
subjecting ourselves to the power of the ghosts that bring
us back to our usual character in the colonial-capitalistic
scene and with whom we share the relations of abuse by
our own will, regardless of where we stand. The decolo-
nization of the unconscious implies a constant effort to
dismantle this character, to take back control of the drive
and, guided by it, create as many characters that live up
to life, embodying its power as transfiguring variation.
The micropolitical insurrection is therefore a res-
urrection of the vital force. It is never definitely given;
to achieve it, one must remain alert to the driving move-
ments. Such combat involves a subtle and complex work
that is only interrupted by death. But each time we can
take a step forward in this direction, another particle of
the dominating regime inside and outside us dissolves,
and therein lies the power of propagation, in addition to
providing us with the joy of life that warms our hearts.
Facing this challenge requires an infinite work of each 140
and many: this is the goal of the work I share here.
 criadora, para evitar o risco de interromper a germi-
nação de um mundo e tornar a imaginação vulnerável a
deixar-se expropriar pelo regime colonial-cafetinístico
que a desvia de seu destino ético. É neste desvio que ela
é capturada e tende a submeter-se ao imaginário que tal
regime nos impõe sedutoramente e, com isso, se esteriliza;
• Não abrir mão do desejo em sua ética de afir-
mação da vida, o que implica mantê-la o mais possível
fecunda a cada momento, fluindo em seu proces-
so ilimitado de diferenciação e transvaloração;
• Não negociar o inegociável: tudo aquilo que
obstaculiza a afirmação da vida, em sua essência de
potência de criação. Aprender a distingui-lo do nego-
ciável: tudo aquilo que se poderia reajustar porque não
debilita a força vital instituinte mas, ao contrário, gera
as condições objetivas para que se produza um acon-
tecimento, cumprindo-se assim seu destino ético;
• Praticar o pensamento em sua plena função:
indissociavelmente ética, estética, política, crítica e
clínica. Isto é, reimaginar o mundo em cada gesto, palavra,
modo de existir, modo de relação com o outro (humano
e não humano) – toda vez que a vida assim o exigir.
É evidente que não se trata aqui de um receituário para
se atingir uma suposta “cura” dos efeitos patológicos de
nossa cultura, numa espécie de messianismo clínico-artísti-
co-micropolítico, que viria substituir o tão combalido mes-
sianismo macropolítico contido na utopia revolucionária
– ambos herdeiros da ideia de paraíso onde a vida encon-
traria enfim a suposta estabilidade eterna. Este trabalho
de bricolagem de si, do qual depende a descolonização na
esfera micropolítica, jamais alcança sua plena e definitiva
realização. Face a novas tensões, ao longo de nossa existên-
cia, oscilamos entre posições variadas e variáveis num amp-
lo leque de micropolíticas, das mais ativas às mais reativas.
Estamos sempre diante do desafio de combater em nós a
tendência reativa, dominante em nossa cultura: o desafio
de não nos submetermos ao poder dos fantasmas que nos
trazem de volta para nosso personagem habitual na cena co-
lonial-capitalística e com o qual participamos das relações
de abuso por nosso próprio desejo, seja qual for nossa
posição nas mesmas. A descolonização do inconsciente im-
plica um constante esforço para desmancharmos este per-
sonagem, nos reapropriarmos da pulsão e, por ela guiados,
criarmos outros tantos personagens que estejam à altura da
vida, encarnando sua potência de variação transfiguradora.
A insurreição micropolítica é portanto, nela mesma,
uma ressurreição da força vital. Esta nunca está dada de
uma vez por todas; para lográ-la é preciso manter-se em
estado de alerta aos movimentos pulsionais. Tal combate
envolve um trabalho sutil e complexo que só se interrompe
com a morte. Mas a cada vez que se consegue dar um passo
adiante nesta direção é mais uma partícula do regime domi-
nante em nós e fora de nós que se dissolve, e isto tem poder
de propagação, além de nos proporcionar um gozo da vida
em nós que nos traz alegria. O enfrentamento deste desafio
141 requer um trabalho infinito de cada um e de muitos: é neste
horizonte que situa-se o trabalho aqui compartilhado.
1. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Que é a Filosofia?, cap.
“Percepto, Afecto e Conceito”, trad. Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Muñoz, São Paulo: Editora 34, 1992, p. 222.
2. Comitê Invisível, Aos Nossos Amigos: crise e insurreição, trad.
Edições Antipáticas, São Paulo: N-1 Edições, 2016; pp. 37-38.
3. “Capitalístico” é uma noção proposta por Félix Guattari. O psicanalista francês
parte da ideia de Karl Marx de que o capital sobrecodifica os valores de troca,
submetendo assim o conjunto do processo produtivo a seus desígnios. Guattari
estende esta ideia aos modos de subjetivação que, sob o regime capitalista, são
igualmente sobrecodificados. Isto que tem por efeito calar a singularidade dos
idiomas próprios a cada vida. E mais grave ainda é seu efeito de interrupção dos
devires – processos de singularização que se desencadeariam nos encontros entre
os corpos e seus idiomas próprios –, assim como de bloqueio da transmutação da
realidade e da transvaloração dos valores que tais processos tenderiam a produzir.
Como na economia, com esta operação, as subjetividades tendem a submeter-se aos
propósitos do regime com seu próprio desejo, reproduzindo o status quo em suas
escolhas e ações. O sufixo “ístico” acrescentado pelo autor a “capitalista” refere-se
a esta sobrecodificação, uma das operações micropolíticas medulares deste regime,
a qual incide sobre todos os domínios da existência humana. Esta constitui umas
das ideias mais inovadoras e fecundas do pensamento de Guattari, tendo sido
retomada em sua posterior parceria com Gilles Deleuze desde O Anti-Édipo, seu
primeiro livro em co-autoria, como um dos principais eixos de sua obra conjunta.
4. Se a distinção que Freud estabelece entre o instinto nos animais e na espécie
humana é, sem dúvida, um avanço, ainda assim o autor se mantém na tradição
antropocêntrica ao pensar o instinto como um mero automatismo, esquema
estereotipado de ações pré-moldadas. Ou seja, Freud ainda naturaliza o instinto,
reservando a capacidade de criação exclusivamente à espécie humana. No
entanto, já na época de seus escritos, outros autores mostravam que todas as
espécies, desde as mais rudimentares, são portadoras de atividade expressiva,
a qual excede as funções instrumental e adaptativa e, inclusive, as potencializa.
Desde então vários estudos nos mostram que se há uma especificidade da
espécie humana neste campo, ela consiste apenas no fato de que sua capacidade
expressiva é mais complexa, o que amplia as opções para a transmutação das
formas de existência quando a vida assim o exige. Ver Brian Massumi, O Que
Os Animais nos Ensinam sobre A Política, São Paulo: N-1 Edições, 2017.
5. Se Freud logrou decifrar a dinâmica metapsicológica e seus sintomas, faltou-
lhe vislumbrar que as políticas desta dinâmica são indissociáveis de um contexto
histórico e, mais do que isso, são elas que lhe dão sua base existencial. Este
trabalho vem sendo desenvolvido ao longo da história da Psicanálise e da Filosofia,
e talvez seja em Félix Guattari e Gilles Deleuze que tenha encontrado sua máxima
radicalidade de elaboração possível até hoje. É a obra destes autores que nos
permite vislumbrar que não há mudança possível de uma forma de realidade, sem
que se promova desvios do modo de subjetivação dominante. Deste perspectiva,
pode-se dizer que Freud introduziu um desvio não só na Filosofia, na Medicina e
na Psicologia então nascente como ciência, mas também na cultura e na política
da tradição moderna ocidental. O psicanalista promoveu a reconexão com o
saber próprio de nossa condição de viventes, cujo acesso foi interrompido no
modo de subjetivação dominante no regime colonial-capitalístico. E mais, ele
o fez não só teoricamente, mas introduzindo um ritual – a prática psicanalítica
– em que tal reconexão se dá por meio de um longo processo de iniciação.
Cabe a nós, expandir este ritual para além do âmbito restrito das práticas
psicoterapêuticas, como um dispositivo essencial da resistência micropolítica.
6. Descobri recentemente (ou simplesmente rememorei o que já soube
e havia esquecido, mas que permaneceu na memória de meu corpo)
que a noção de “inconsciente colonial-capitalístico”, que propus há
alguns anos para designar o regime de inconsciente próprio do sistema
capitalista-colonial, é uma soma de sua designação por dois autores.
Frantz Fanon já falava em “inconsciente colonial” nos anos 1950 e Guattari
falava em “inconsciente capitalístico” já no início dos anos 1980.
7. A esse respeito ver a citação de Eduardo Viveiros de Castro numa
conversa com Marcio Ferreira da Silva, incluída em uma reportagem de
Rafael Cariello (““O Antropólogo contra o Estado”, Revista Piauí, dezembro
de 2013): “O PT, a esquerda em geral, tem uma incapacidade congênita
para pensar todo tipo de gente que não seja o bom operário que vai se
transformar em consumidor. Uma incapacidade enorme para entender as
populações que se recusaram a entrar no jogo do capitalismo. Quem não
entrou no jogo – o índio, o seringueiro, o camponês, o quilombola –, gente
que quer viver em paz, que quer ficar na dela, eles não entendem”.
8. Isto de fato aconteceu no Rio Doce, na aldeia Krenak, situada à sua margem
esquerda, no município Resplendor. Algum tempo depois desta parte do rio
ter ficado aparentemente morta, pelo impacto devastador de seu abuso pela
Vale do Rio Doce, descobriu-se que havia voltado a fluir, caudaloso, sob a
terra. Ver Ailton Krenak, “Em Busca de Uma Terra sem Tantos Males”, O Lugar
onde a Terra Descansa. Rio de Janeiro: Núcleo de Cultura Indígena, 2000.
9. Tal fenômeno tem acontecido, nos últimos anos, na cidade de São Paulo.
10. A respeito da ideia de “força de transformação transindividual” ver Brian
Massumi, op. cit.
11. A ideia de um “protesto dos inconscientes” foi proposta por Gilles Deleuze e
Félix Guattari em 1972. Ver “Sur Capitalisme et Schizophrénie”, entrevista a Backès-
Clément, Catherine, publicada na revista L’Arc, n. 49, março de 1972, Paris; pp.47-
55. Incluída com o título “Entretien sur l’Anti-Oedipe (avec Félix Guattari)” in Gilles
Deleuze, Pourparlers 1972-1990 (Paris: Minuit, 1990; p.36). Edição brasileira:
“Entrevista sobre o Anti-Édipo (com Félix Guattari)” in Conversações. 1972-1990.
São Paulo: Editora 34, 1992; p.34.
12. A ideia de acrescentar a qualificação de “pulsional” ao “protesto dos
inconscientes”, sugerido por Deleuze e Guattari, tem sua origem na noção
de “inconsciente pulsional” e seus desdobramentos, tal como propostos
pelo psicanalista João Perci Schiavon. Ver deste autor “Pragmatismo
Pulsional”, in Cadernos de Subjetividade, Revista do Núcleo de Estudos
da Subjetividade, PP. 124-131, São Paulo, 2010. ISSN: 0104-1231.
1. Gilles Deleuze and Félix Guattari, What is Philosophy?, chap.
"Percept, Affect and Concept," translated by Graham Burchell
and Hugh Tomlinson, London: Verso, 1994, p. 163.
2. The Invisible Committee, To Our Friends, transl. Robert
Hurley, Cambridge: The MIT Press, 2015.
3. "Capitalistic" is a concept proposed by French psychoanalyst Félix Guattari. Based
on Karl Marx's idea that the capital imposes a new layer of code to exchange values,
thus subjecting the whole of the productive process to its intents, Guattari extends
it to modes of subjectification, which also receive a second layer of code under the
capitalist regime. The resulting effect is to silence the singular languages that are
unique to each life form. Even more serious is the effect of interrupting becomings
(singularization processes that would unleash in the encounter of bodies and their
languages) and of blocking the transmutation of reality and the trans-valuation
of values these processes would produce. As in economics, the very desire of
subjectivities tends to conform to the purposes of the regime with this operation,
reproducing the status quo in their choices and actions. The "istic" suffix added by
the author to the term "capitalist" refers to this new layer of code, one of the central
micropolitical operations of this regime, which impacts every domain of human
existence. This is one of Guattari's most innovative and fruitful ideas, which was
later used when he collaborated with Gilles Deleuze, starting with their first co-
authored book, Anti-Oedipus, and which became the center point of their joint work.
4. If Freud's distinction between animal and human instinct is undoubtedly an
advance, the author still retains the anthropocentric tradition of thinking of
instinct as pure automatism, a stereotyped scheme of preformed actions. Freud
still naturalizes instinct, reserving to the human species the exclusive capacity to
create. However, already at the time of his writings, other authors proved that
all species, even the most rudimentary, carry expressive activity, which exceeds
instrumental and adaptive functions and even enhances them. Since then, several
studies have shown that if there is something unique about the human species in this
field, it is only the complexity of its expressive capacity, expanding the options for
transmutation acting on forms of existence when life demands it. See Brian Massumi,
What Animals Teach Us About Politics, Durham: Duke University Press Books, 2014.
5. If Freud managed to decipher the meta-psychological dynamics and its symptoms,
he failed to see that the politics of this dynamic are inseparable from a historical
context; instead, they provide it with existential basis. This work has been developed
throughout the history of Psychoanalysis and Philosophy, and it was perhaps Félix
Guattari and Gilles Deleuze who took it to the most radical elaboration to date.
The work of these authors allows us to understand that there is no possibility of
change in the form of reality without promoting deviations from the dominating
subjectification. From this perspective, it can be said that Freud introduced deviation
not only in Philosophy, Medicine and Psychology, a fledgling science then, but
also in the culture and politics of the modern Western tradition. He promoted the
reconnection with the knowledge inherent to our living condition, whose access
was interrupted in the dominating subjectification mode of the colonial-capitalist
regime. Moreover, he did so not only in theory, but also by introducing a ritual – the
psychoanalytic practice –, in which such reconnection takes place through a long
initiation process. It is up to us to expand this ritual beyond the restricted scope of
psychotherapeutic practices, as an essential device of micropolitical resistance.
6. I have recently discovered (or simply recalled what I already knew and
had forgotten but remained in my memory) that the notion of "colonial-
capitalistic unconscious" – which I proposed some years ago to designate
the unconscious regime characteristic of the capitalist-colonial system
– is a sum of ideas by two authors: Frantz Fanon, who had already spoken
about the "colonial unconscious" in the 1950s and Guattari, who had
spoken spoke about the "capitalist unconscious" in the early 1980s.
7. In this regard, Eduardo Viveiros de Castro said in a conversation with Marcio
Ferreira da Silva, included in a report by Rafael Cariello (O antropólogo contra
o Estado (“O Antropólogo contra o Estado”, in Revista Piauí, December 2013):
"The Workers Party, the left in general, has a congenital inability to think
of other kinds of people different than the good worker who will become a
consumer. A huge inability to understand the populations that refused to enter
the capitalist game. Whoever did not enter the game – the indigenous people,
the rubber tapper, the peasant, the quilombola –, people who want to live in
peace, who want to mind their own business, they do not understand."
8. This indeed happened on the left bank of Doce river, running through the
Krenak village, in the municipality of Resplendor. A while after this part of the
river was apparently dead due to the devastating impact of its abuse by mining
company Vale do Rio Doce, it was found flowing torrentially again under the
earth. See Ailton Krenak, “Em Busca de Uma Terra sem Tantos Males”, O Lugar
onde a Terra Descansa. Rio de Janeiro: Núcleo de Cultura Indígena, 2000.
9. This phenomenon has happened, in recent years, in the city of São Paulo.
10. Concerning the idea of "trans-individual transformation
force" see Brian Massumi, op. cit.
11. The idea of a "protest of the unconscious" was proposed by Gilles Deleuze
and Felix Guattari in 1972. See "Sur Capitalisme et Schizophrenie," interview with
Backès-Clément, Catherine, published in L'Arc magazine, n. 49, March 1972, Paris;
pp.47-55. Included with the title "Entretien sur l'Anti-Oedipe (avec Félix Guattari)"
in Gilles Deleuze, Pourparlers 1972-1990 (Paris: Minuit, 1990; p.36). English
translation: "Gilles Deleuze and Félix Guattari on Anti-Oedipus" in Negotiations
1972-1990 (New York: Columbia University Press, 1995) by Martin Joughin.
12. The idea of adding the "drive" qualification to the "protest of the unconscious,"
suggested by Deleuze and Guattari, has its origin in the notion of "driving
unconscious" and its developments, as proposed by psychoanalyst João Perci
Schiavon. See by this author "Pragmatismo Pulsional," in Cadernos de Subjetividade,
Revista do Núcleo de Estudos da Subjetividade ("Journals on Subjectivity, Nucleus
of Subjectivity Studies Magazine"), pp. 124-131, São Paulo, 2010. ISSN: 0104-1231.
142
Jacaranda - Nº 6

11. Fear’s daughter, Anger, is the mother of Cowardice. 17. Stop killing the poor.
12. A narrow mind leaves in fear. 18. Anger and joy.
146
13. Stop killing indigenous populations. 19. Other people are not the enemy.
14. The night will be long. 20. Not afraid to fight.
15. Brazilwood. 21. This too shall pass.
16. Brazil's elite knows nothing about the real Brazil. (All images extracted from Social Media)