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Segregação, sexismo e racismo1

Heloisa Caldas2

O movimento feminista tem muitas facetas. Algumas se devem à evolução


histórica do movimento ao longo de décadas, outras se apresentam dentro do
movimento atual quando são levadas em consideração especificidades relativas às
mulheres. Dentre estas, destaca-se o feminismo negro3 que aponta às evidências de
que a violência contra mulheres atinge mais as negras. De fato, nos últimos dez anos,
o feminicídio das negras brasileiras aumentou 54%, contra 9% das mulheres brancas4.
Diante dessas considerações, penso ser oportuno comentar a questão da
segregação presente tanto no racismo como no sexismo à luz do texto de Jacques-
Alain Miller, “Racismo e extimidade”5, uma vez que aí ele afirma que “a segregação
é justamente o que está em questão sob o nome um pouco batido de racismo” e
assinala “a validade do termo sexismo, que está construído sobre o termo ‘racismo’”.
Acrescenta ainda que “homem e mulher são duas raças”, não no sentido físico, mas
como efeito de discurso.
Seguindo com Miller, podemos afirmar que também foi por efeito de discurso
que o racismo do branco contra o negro surgiu na esteira de formas mais antigas como
a do antissemitismo. Forma que também produziu escravagismo, conforme a Bíblia
denuncia. Quando na Idade Média, interessou à Europa colonialista escravizar e
explorar as terras africanas e americanas, uma outra forma surgiu a partir de um traço
de diferença convenientemente escolhido, criando assim o ‘negro’ como novo objeto


1
Publicado em Aleph, Revista da Delegação Paraná – EBP, n. 5, 2017.
2
AME da Escola Brasileira de Psicanálise - EBP e da Associação Mundial de Psicanálise - AMP.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ.

3
Ribeiro, D. Quem tem medo do feminismo negro? Em: Carta Capital. Disponível em
http://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/quem-tem-medo-do-feminismo-negro-
1920.html. Acesso em 22/08/2016.
4
Franca, L. “Machismo e racismo são o cerne da violência cotidiana contra mulheres negras”. RBA
Rede Brasil Atual (2015). Disponível em http://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-
rede/2015/11/machismo-e-racismo-sao-o-cerne-da-violencia-cotidiana-que-sofremos-5446.html.
Acesso em 22/08/2016.
5
Miller, J.-A. (2016) Racismo e extimidade. Derivas analíticas, revista digital de psicanálise e cultura
da Escola Brasileira de Psicanálise – MG, edição 04. Disponível em:
http://revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/racismo. Acesso em 04/06/2016.

de segregação. Como assinala Laurent, “o racismo muda seus objetos à medida em
que as formas sociais se modificam, mas conforme a perspectiva de Lacan, sempre
jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável, domínio de uma
barbárie possível”.
Indubitavelmente as evidencias atestam que mulheres negras e descendentes
de séculos de escravagismo no Brasil sofrem mais violência do que as mulheres
brancas. Não restam dúvidas de que o racismo se soma ao sexismo agravando muito a
violência contras as mulheres negras. Mas é verdade também que, em algumas
culturas negras e asiáticas, encontramos inúmeras formas graves de sexismo, como a
mutilação genital feminina e o infanticídio de meninas, que não trazem conotação
racista pois se dão entre pessoas da mesa raça e crenças culturais.
Logo o racismo parece ser um fator agravante no preconceito contra a mulher,
mas não constitui sua raiz primordial. Ao contrário, o racismo e o sexismo são formas
de segregação que derivam da operação de diferenciação sexual que, com Lacan,
chamamos de sexuação e sobre a qual nos deteremos aqui.
Na sexuação temos uma segregação primeira e estrutural do ser humano que
não se deve a identificações culturais, que só surgirão em um segundo tempo, como
seus efeitos. Nesse tempo original, a segregação se deve à disjunção entre gozo e
saber. Uma disjunção porque apenas parte do gozo pode ser submetida à mestria de
um saber através do significante, o que implica que resta um gozo Outro
irreconhecível e, por isso mesmo, inassimilável.
Assim, o resultado da operação de sexuação divide o gozo, para cada ser
falante, em duas modalidades que não coincidem com as diferentes identificações
culturais como ‘homem’ ou ‘mulher’, ‘branca’ ou ‘negra’. As identificações são, a
rigor, tributárias da diferença sobre o gozo sexual. Pela diferença sexual se distingue
um gozo fálico – de caráter significante e que permite um saber fazer com parte do
gozo – de um Outro gozo que, por ser fora-do-sentido, arrasta o sujeito para fora de si,
o que leva o sujeito a evita-lo. Lacan nomeou esse gozo Outro como gozo feminino,
indicando que sua manifestação não se dá de forma regular e controlável. O gozo
fálico promove um funcionamento necessário e de certa forma previsível ao sintoma.
O gozo feminino dissolve as identificações sintomáticas. Essa diferença dá ao gozo
fálico seu caráter normativo e protocolar que, desde então, passa a ser defendido para
garantir sua soberania diante de gozos estranhos, ameaçadores ao seu domínio de
saber e crença, uma vez que tanto saber como crença estão do lado do que pode ser
significantizado. Pode se constatar, na própria divisão de cada falante, que o gozo
fálico encontra-se em uma posição de poder e superioridade.
No entanto, as modalidades de gozo derivadas da sexuação não se reduzem à
esfera do corpo próprio. Elas se transmitem para o corpo social e ecoam em suas
políticas. Como Miller nos explica, no referido texto, um grupo pode adotar um modo
compartilhado de gozo combatendo o Outro gozo, inassimilável àquela identificação.
A esse respeito, Laurent nos lembra que “para construir a lógica do laço social, Lacan
não avança a partir da identificação ao líder, mas de uma primeira rejeição pulsional”,
acrescentando que “esta lógica coletiva é fundada na ameaça de uma rejeição
primordial, de uma forma de racismo”6. As diferentes formas de sexismo e de racismo
evidenciam, assim, uma recusa ao gozo Outro sustentando para isso uma
superioridade fálica de um saber fazer de mestria.
Cabe então perguntar se a superioridade é sempre, de fato, necessária; se os
sujeitos, no plano coletivo, podem vir a respeitar a diferença sexual sem ter que supor
que ela seja uma ameaça, sem ter que se defender dela de forma tão cega e violenta.
Não se trata de uma pergunta fácil de responder. Segundo Laurent, o ódio a si
mesmo, não tanto do lado do narcisismo, mas do lado do ódio ao seu próprio gozo é a
má notícia que a psicanálise traz, pois esse ódio estrutural é o obstáculo que coloca
em risco um programa de universalização, desmistificado por Lacan, nos anos 68,
quando se pretendia através da liberdade e da igualdade, pelo amor dito livre,
alcançar um amor uniano, aquele que pretende de dois fazer Um. Dessa forma,
nenhum humanismo, mesmo que embasado pela ciência, alcança dar acesso a um
saber útil para estabelecer uma relação sexual7. Não há relação sexual no sentido de
uma harmonia idealizada e complementar entre parceiros sexuais.
Há no entanto, afetos que sustentam laços ensejando uma relação, ali onde ela
estruturalmente não existe. Lacan, bem no início de seu ensino8, comentou as três
paixões do ser ou do Outro9– amor, ódio e ignorância – apontando que estão a serviço


6
Laurent, É. "O racismo 2.0”. Lacan Cotidiano, N. 371, 18 de fevereiro de 2014.
http://ampblog2006.blogspot.com.br/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html
7
Laurent, É. Colóquio de la Extimidad. En refencia al libro Extimidad de Jacques-Alain Miller. Buenos
Aires: Grama ediciones, 2013, p. 66.
8
Lacan, J. (1953-1954/1986) O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor.
9
As paixões do ser podem ser chamadas também de paixões do Outro em função de que o ser advém
do Outro como linguagem. Cf. Vieira, M.-A. (1998) O ser da paixão. Em: As paixões do ser. Rio de
Janeiro: Contra Capa editora.
da segregação pois visam elidir a diferença. O amor pela identificação, fusionando
dois em um; o ódio buscando eliminar o erro; e a ignorância ao considerar a diferença
como engano.
O fato de que se ama certa particularidade de seu gozo, da qual não se pode
ceder, é consoante com algo do seu próprio gozo que se odeia e que também, ainda
que se queira, também não se pode abrir mão, na medida em que uma modalidade de
gozo é o avesso da outra. Ao se eliminar uma delas se apaga o próprio sujeito que as
funda. Daí o amódio ser, por excelência, “a paixão fundamental do ser humano [...] na
experiência subjetiva”10 pois não se pode amar o outro como a si mesmo, na medida
em que não se ama integralmente a si mesmo, assim como, ao contrário, só pode odiar
o outro como a si mesmo. É triste verificar que o ódio é anterior ao amor, como já
assinalava Freud11 e, pela segregação que produz, parece também ser superior.
De novo a questão se coloca. Como lidar com essa nefasta superioridade
presente nas mais diversas formas de racismo e sexismo? Essa é uma pergunta que a
psicanálise não pode responder no plano do coletivo, justamente porque o coletivo
exige que se ceda do que é irreconhecível em cada um, para aceitar a identificação de
um gozo protocolar, o que gera, em cada um, mais ódio ainda. Assim, as
identificações que pretendem dizer o que é uma mulher ou especificamente uma
mulher negra, entre inúmeras outras identificações que explodem na
contemporaneidade, em busca de reconhecimento e valendo-se da força de um
coletivo, exigem poder de direito para suas formas de ser. A superioridade muda de
lugar, mas se mantém. Certamente que as identificações coletivas e empoderadas tem
enorme valor político de cidadania. Não se trata de combate-las, mas de atentar para o
que delas pode advir. Quando qualquer poder se torna muito forte, seu avesso,
inevitavelmente, aparecerá alhures. Como Lacan bem profetizou, tem havido uma
escalada do racismo porque não conseguimos deixar o Outro entregue a seu modo de
gozo, não lhe impondo o nosso12.


10
Laurent, É. Colóquio de la Extimidad. En refencia al libro Extimidad de Jacques-Alain Miller. Buenos
Aires: Grama ediciones, 2013, p. 66.
11
Freud, S. (1915/2015) As pulsões e seus destinos. Em Obras incompletas de Sigmund Freud. Edição
bilíngue. Belo-Horizonte: Autêntica, p. 61.
12
Lacan, J. (1972-2003)Televisão. Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, p, 532-533.
A psicanálise pode, no entanto, trabalhar por outra via, contrária à
identificação que fundamenta o coletivo, uma vez que, ela busca, na singularidade de
cada um, o avesso da identificação – o inidentificável de si mesmo. Com isso, uma
análise visa um saber fazer com isso do gozo que não se sabe bem o que é. O saber
fazer com isso, tomando isso no sentido freudiano do termo, implica em não
privilegiar o saber fazer da mestria que corresponde ao gozo fálico. O saber fazer com
isso desbanca a crença e o saber do gozo fálico, destitui sua superioridade e, ao
mesmo tempo, acolhe o que lhe ultrapassa, o gozo Outro, feminino, arrefecendo o
repúdio e o ódio ao que não se sabe... porque não tem nome e nem medida.

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