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CAESAR AUGUSTUS

Entre Práticas e Representações


Esta publicação é o resultado das parcerias:
Projeto Antiguidade: Maria Regina Candido (Direção)
Projeto Editorial Kairós: Carlos Eduardo da C. Campos, Luis Filipe B. de
Asumpção e Renan M. Birro (Direção)
CAESAR AUGUSTUS
Entre Práticas e Representações

ORGANIZADOR
Carlos Eduardo da Costa CAMPOS
&
Maria Regina CANDIDO

Departamento de Línguas & UERJ-NEA


Vitória/Rio de Janeiro
2014
Copryright © 2014. Todos os direitos desta edição estão reservados a Carlos
Eduardo da Costa Campos, 2014.

Capa: Renan Marques Birro.


Editoração e Diagramação: Carlos Eduardo da Costa Campos, Luis Filipe
Bantim de Assumpção e Renan Marques Birro.
Revisão: Karine Lima da Costa e Renan M. Birro

Conselho Editorial:
Anderson Martins Esteves – UFRJ
Giselle Marques Câmara – PUCRJ
José Maria G. Neto – UPE
Maria Regina Candido – UERJ
Maricí Martins Magalhães – MHN
Moacir Elias Santos - UNIANDRADE
Pedro Paulo A. Funari - UNICAMP
Renan M. Birro – UNIFAP

Assessoria Executiva:
Alair Figueiredo Duarte – CEHAM/UERJ
Carla Lavinas – NEA/UERJ
Liliane C. Coelho - UNIANDRADE
Luis Filipe Bantim de Assumpção – CEHAM/UERJ
Vinicius Zavalis – NEA/UERJ
Paula Aranha – NEA/UER – MHN

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


C186c

Campos, Carlos Eduardo da Costa & Candido, Maria


Regina
Caesar Augustus: entre práticas e representações / Carlos
Eduardo da Costa Campos & Maria Regina Candido -
Vitória/Rio de Janeiro: DLL-UFES/UERJ-NEA, 2014.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-61857-17-2
1. César Augusto 2. Práticas e representações 3. História
4. História Antiga 5. História Medieval 6. História da Ásia
7. História Contemporânea I. Título: Caesar Augustus:
Entre práticas e representações.

CDD: 941
CDU: 94
Índice
Prefácio, ix
Maria Luiza Corassin & Moisés Antiqueira

Apresentação, xv
Ana Teresa Marques Gonçalves

Parte I
I. Atenas sob o domínio do imperator Cesar Augusto, 1
Maria Regina Candido & Alair Figueiredo Duarte

II. O Princeps Augusto e as relações políticas com a sociedade


espartana, 25
Luis Filipe Bantim de Assumpção

III. L’Egitto e i poteri di Augusto: una breve rilessione sulle


Provinciae Caesaris, 51
Davide Ambrogio Faoro

IV. Espaço e poder no principado augustano: a criação da


província da Lusitânia em perspectiva, 65
Airan dos Santos Borges

Parte II
V. Religious policy and the rule of Augustus - Between political
exploitation and righteous restoration, 85
Christoph L. Hesse
VI. Práticas sacriiciais humanas por Caio Otávio?
Uma proposta de debate, 111
Carlos Eduardo da Costa Campos

VII. Augusto, Tito Lívio e as ambiguidades do divino Rômulo, 129


Moisés Antiqueira

VIII. Avgvstales e outros Collegia sacerdotais sob Avgvstus:


testemunhos epigráicos na Campania, 153
Maricí Martins Magalhães

IX. A Domus Augusta no Vicus Sandaliarius: imagem e presença


augustana num altar romano (2 AEC), 173
Claudia Beltrão da Rosa & Debora Casanova da Silva

X. Augusto, a Gália e o culto imperial, 191


Tatiana Bina

Parte III
XI. O gênero do poder: Plutarco e a contenda de
Otávio e Cleópatra, 215
Gregory da Silva Balthazar
XII. Sexualidade e política à época de Augusto: considerações acerca
da ‘lei Júlia sobre adultério’, 239
Sarah Fernandes Lino de Azevedo

XIII. Augusto e a escravidão, 257


João Victor Lanna & Ygor Klain Belchior

XIV. “Nunquam ex malo patre bona ilia”: a questão sucessória


no principado de Augusto, 285
Henrique Modanez de Sant’Anna
Parte IV
XV. Augusto índico: a apropriação da imagem de Augusto pelos so-
beranos kushans nos sécs. 1-2 EC, 299
André Bueno

XVI. Pax Augusta e pax Christi na literatura escandinava


medieval, 317
Renan Marques Birro

XVII. O bimilenário do nascimento de Augusto na Espanha


franquista (1939-1940): leitura e escrita da História entre
o passado e o presente, 341
Glaydson José da Silva & Rafael Augusto N. Ruino

XVIII. Augusto e a coleção do Museu Histórico Nacional:


alguns exemplos numismáticos, 367
Cláudio Umpierre Carlan
O PRINCEPS AUGUSTO E AS RELAÇÕES
POLÍTICAS COM A SOCIEDADE
ESPARTANA

Luis Filipe Bantim de Assumpção1

A maneira pela qual a Antiguidade, por vezes, nos foi


transmitida no decorrer de nossa formação escolar lida com a
noção de “História em Gavetas”. Ou seja, o que deveríamos saber
sobre as sociedades do Mediterrâneo Antigo se encontra bem
delimitado em compartimentos, tais como as gavetas, nas quais
podemos consultar sempre o que acharmos necessário para o nosso
cotidiano. Tal perspectiva produz certos problemas históricos,
como a visão de que as sociedades se encontram – praticamente
– isoladas no tempo e no espaço. Deste modo, a “História
compartimentada em Gavetas” acabou nos fornecendo modelos
de análises que limitavam a compreensão de seus interlocutores.
Falamos aqui a um nível fundamental e médio das instituições de
ensino brasileiras, onde os alunos “ingerem” o Mundo Antigo em
blocos demarcados que se iniciam pela Mesopotâmia, passando
pelo Egito, tangenciando a Hélade Clássica (com ênfase para
Atenas) e inalizando com Roma. Esse modelo deixa transparecer
que tais sociedades não existiram concomitantemente. Ou
ainda, que com o passar do tempo uma deu lugar a outra através

1 Mestre pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade do Estado


do Rio de Janeiro. Docente do Curso de Especialização em História Antiga e
Medieval – UERJ, assim como membro do Núcleo de Estudos da Antiguidade –
UERJ e do ATRIVM – UFRJ.
26 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

de uma perspectiva evolucionista, pautada na formação, no


desenvolvimento, na decadência e na substituição por um grupo
de sujeitos mais fortes.
Em virtude do exposto, nos propomos a mapear como a
sociedade de Esparta desenvolveu as suas interações políticas no
decorrer do século IV a.C., até o período em que Roma estabeleceu
a sua hegemonia no Mediterrâneo. Após tal contexto, almejamos
discorrer sobre as relações políticas que a sociedade espartana
manteve com o princeps Augusto (séc. I a.C. a I d.C.).
Destacamos que a sociedade de Esparta foi um dos grandes
expoentes político-culturais da Hélade entre os períodos Arcaico
e Clássico. Contudo, após a sua derrota militar para os tebanos
em Leuctra (371 a.C.) e a perda da região da Messênia, Esparta
não conseguiu recuperar a hegemonia2 que outrora deteve entre
os helenos. Embora a pólis espartana tenha se envolvido em
outros embates pelo mundo helênico, a mesma não resistiu à
consolidação político-militar da Macedônia. Como argumentou
o pesquisador Paul Cartledge, os esparciatas3 liderados pelo basileu
Agis III, tentaram se revoltar contra a autoridade macedônica e
foram deinitivamente derrotados em Megalopólis, pelo exército
de Antípatro (331 a.C.)4. Podemos destacar que da segunda
metade do século IV a.C. ao inal do período Helenístico5, a pólis
de Esparta perpassou por um conjunto de modiicações político-
institucionais que pretendiam restabelecer a sua hegemonia junto

2 Este conceito será debatido ao longo deste texto.


3 Em linhas gerais, os esparciatas seriam espartanos adultos, ilhos de pai e mãe
espartana, que teriam perpassado pelo processo de formação comum e com
recursos para arcar com as despesas do seu philition. Na pólis de Esparta estes eram
os cidadãos com plenos direitos políticos. ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de.
As Relações de Poder na pólis de Esparta através dos escritos do período Clássico.
In: CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa; BIRRO, Renan Marques. Relações de Poder:
da Antiguidade ao Medievo. Vitória: DLL/UFES, 2013a, p.86-96.
4 CARTLEDGE, Paul. The Spartans – an Epic History. London: Pan Books, 2003.p.217.
5 Como veriicamos em outra ocasião, o período Helenístico terminaria após a vitória
de Caio Otávio na batalha do Ácio, em 31 a.C. ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim
de. As periodizações da Hélade – considerações acerca dos conceitos de Arcaico,
Clássico e Helenístico. In: Nearco: revista eletrônica de Antiguidade. Vol. I, Ano VI, nº
1, 2013b, p.110-111.
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 27

às sociedades helênicas.
Ao interagir com o discurso6 de Plutarco acerca dos basileus
Agis IV e Cleomenes III, o historiador Nigel Kennell enfatizou
que parte das representações construídas sobre Esparta se focou
na argumentação de que a sua desestruturação ocorreu devido
ao não cumprimento dos valores políades ancestrais7. A assertiva
pode ser endossada ao veriicamos que os esparciatas e os basileus
lacedemônios foram representados pelos pensadores clássicos8
como os sujeitos que alcançaram a sua proeminência política por
seguirem a tradição de seus antepassados. De forma semelhante,
ainda que Esparta tenha adequado os seus valores em decorrência
do contexto histórico, o tradicionalismo de suas práticas9 político-
culturais não permitiram que esta pólis readquirisse a sua hegemonia
frente aos helenos.
No inal do século III a.C., os enfrentamentos que Esparta
travou com a Macedônia e a Liga Acaia10 acabaram enfraquecendo
a “pólis de Licurgo”, em uma perspectiva política, econômica e

6 Na perspectiva de Pierre Bourdieu, o discurso seria o lugar em que se desenvolvem


as relações interpessoais por meio do ato da fala, no intuito de transmitir valores,
modos de pensamento e práticas no interior de um território. BOURDIEU, Pierre.
O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p.94.
7 KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.170.
8 Aqui podermos citar os discursos de Heródoto (História, I, 65-66) e Xenofonte
(Constituição dos Lacedemônios, com exceção do capítulo XIV), os quais airmaram
que os esparciatas e basileus lacedemônios alcançaram o sucesso político-social por
seguirem ielmente as determinações do mítico legislador Licurgo.
9 Pierre Bourdieu deiniu o conceito de prática como todo e qualquer conjunto de ações
que são interiorizadas por um grupo de sujeitos, sendo este passível de utilização
em todas as instâncias da sociedade. BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Trad.:
Maria Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p.25-26.
10 A Liga Acaia foi uma confederação organizada pelas cidades que formavam a região
da Acaia, ao norte do Peloponeso. A mesma teria sido elaborada, no século IV
a.C., no intuito de se protegerem de ataques de piratas, provenientes do golfo de
Corinto. Com a morte de Alexandre III a Liga Acaia se desfez, sendo reorganizada
em 280 a.C. por Arato de Sícion, o qual permitiu que outras cidades integrassem
a confederação, ainda que não fossem detentoras da matriz cultural dos aqueus.
Referências: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/3396/Achaean-
League (consultado no dia 22 de fevereiro de 2014).
28 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

demográica. Ainda que no século IV a.C. a sociedade espartana


tenha empregado mercenários11 em seus exércitos em virtude da
perda de um amplo contingente de seus cidadãos, o contexto
do século III a.C. teria agravado essa condição. Tendo em vista
os inúmeros insucessos militares e o enfraquecimento de suas
instituições políticas, em 207 a.C., Nábis12 se tornou basileu de
Esparta.
Nos dizeres de Políbio, Nábis teria usurpado a autoridade real
de Esparta e acabado com os últimos vestígios da “glória ancestral”
espartana, sendo qualiicado pelo pensador de Megalopólis como
um tirano (POLÍBIO, Histórias, XIII, 6.1-3). Segundo Nigel
Kennell, o posicionamento de Políbio a favor da Liga Acaia
teria contribuído para uma representação disforizada do governo
de Nábis13. Entretanto, podemos notar pelos indícios literários
que Nábis tentou reconquistar a posição hegemônica que Esparta,
outrora, deteve no Peloponeso. Tito Lívio nos descreveu que Nábis
construiu uma muralha ao redor do centro político espartano
como um meio de prevenir ataques externos (TITO LÍVIO,
História de Roma, XXXIV, 28.2). Convergindo com esse viés,
Políbio ressaltou que Nábis teria redistribuído as propriedades
do vale do Eurotas e fornecido a cidadania espartana a periecos,
hilotas14 e mercenários no intuito de fomentar o poder militar

11 Na deinição de Alair Figueiredo Duarte, o mercenário era um guerreiro especializado


que combatia em prol de um governo estrangeiro em troca de recursos pecuniários.
DUARTE, Alair Figueiredo. Guerra e Mercenarismo na Atenas Clássica. Rio de Janeiro:
Rio-DG; UERJ/NEA, 2013.p.57.
12 Tal como iremos veriicar, o espartano Nábis tomou o poder político de Esparta
em um contexto de crise, após assassinar o herdeiro ao trono – que nessa ocasião
mantinha uma monarquia (DIODORO, Biblioteca de História, XXVII, 1.1). Embora
tenha sido denominado por Políbio e Tito Lívio como um tirano, veriicamos que
durante o seu reinado a sociedade de Esparta presenciou diversas inovações sociais
e arquitetônicas.
13 KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.177-
8.
14 Os hilotas eram os escravos da pólis de Esparta que não poderiam ser vendidos
para o exterior. Os mesmos deveriam trabalhar na terra dos esparciatas, seja na
Lacedemônia ou na Messênia e atuavam nas atividades domésticas da casa dos seus
senhores. No contexto do período Clássico, os mesmos passaram a atuar como
guerreiros junto aos exércitos lacedemônios. ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de.
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 29

de Esparta (POLÍBIO, XIII, 6-8; XVI, 13). Tais medidas foram


interpretadas por Paul Cartledge como um projeto de inovação
econômica, com o qual Nábis almejava fortalecer Esparta de tal
maneira que esta pudesse enfrentar a Liga Acaia15.
No entanto, é importante destacar que no período em que
Nábis se manteve como governante de Esparta, os romanos
estavam desenvolvendo relações políticas com o Oriente, no qual
a Hélade estaria inserida. Desta maneira, os embates promovidos
no interior do Peloponeso teriam sido um dos aspectos que
motivaram os segmentos dirigentes de Roma a direcionar as
suas primeiras atenções a Esparta. Quando a Segunda Guerra
Macedônica veio à tona, o basileu Filipe V forneceu a Nábis o
controle temporário sobre Argos, fazendo com que o governante
espartano se mantivesse a favor da Macedônia e contra os
romanos. Segundo o discurso de Tito Lívio, Nábis conseguiu o
apoio popular em Argos ao distribuir terras e abolir as dívidas dos
seus habitantes (TITO LÍVIO, XXXII, 38.2-8). Entretanto, por
volta de 197 a.C., o general romano Tito Quinto Flaminino e o
seu irmão Lucio Quinto Flaminino, bem como Átalo de Pérgamo
e Nicóstrato da Acaia, se reuniram com Nábis em Micenas.
Mediante esta reunião, Nábis se aliou a Tito Quinto Flaminino,
enviou tropas para combater os macedônios e estabeleceu uma
trégua com a Acaia (TITO LÍVIO, XXXII, 39.5-10). Como
enfatizou Nigel Kennell, a derrota da Macedônia e o anúncio
romano acerca da liberdade dos gregos tornou a ocupação que
Nábis sobre Argos uma situação embaraçosa para Roma16.
Tomando como referencial a tradição literária que vigorava em
sua época, o escritor Tito Lívio declarou que o governo de Nábis
se caracterizava pela crueldade e a ganância, típica das tiranias.
Prosseguindo em suas considerações, o mesmo enfatizou que se
os romanos tivessem permitido que Nábis controlasse Argos as
suas pretensões teriam se estendido por toda a Grécia, fazendo

As Relações de Poder na pólis de Esparta através dos escritos do período Clássico.


In: CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa; BIRRO, Renan Marques. Relações de Poder:
da Antiguidade ao Medievo. Vitória: DLL/UFES, 2013a, p.100-7.
15 CARTLEDGE, Paul. The Spartans – an Epic History. London: Pan Books, 2003,
p.235.
16 KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.179.
30 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

com que a batalha anterior contra Filipe V da Macedônia perdesse


o seu sentido de realização (TITO LÍVIO, XXXIII, 44.8-9). A
partir dos vestígios documentais e da historiograia moderna,
podemos pontuar que as medidas romanas sobre o Peloponeso
se tornaram incisivas somente quando os seus interesses políticos
foram ameaçados pelos governos locais. No que concerne a
Esparta, notamos que os esforços de Nábis em projetar a sua
sociedade acabaram tomando proporções maiores do que o seu
regime político17 poderia administrar, e com a hegemonia de
Roma, os seus esforços acabaram se chocando com a imagem que
os romanos pretendiam promover junto aos helenos de então, ou
seja, de libertadores da Hélade18.
Retomando o discurso de Tito Lívio, Flaminino teria recebido
do senado romano um decreto de guerra contra Nábis. Todavia,
ao reunir as delegações das cidades helênicas aliadas de Roma, Tito
Flaminino orquestrou um discurso onde caracterizou que a decisão
por atacar Nábis caberia aos gregos e não aos romanos (TITO
LÍVIO, XXXIV, 22.7-13). Mediante os indícios documentais
de Tito Lívio, podemos conjeturar que as medidas empregadas
por Tito Flaminino se enquadravam na perspectiva teórica da
hegemonia. Como nos esclareceu o teórico político Herfreid
Münkler, a hegemonia seria a supremacia de um território sobre
outros que, embora tenham o direito a participação política em
suas interações, são mantidos sob a tutela de uma sociedade de
maior preponderância político-militar19. Dessa maneira, o discurso

17 Convergindo com os estudos de Norberto Bobbio, o regime político seria o


conjunto de instituições cujas interações ordenam a luta e o exercício do poder, se
estendendo aos valores que movimentam essas instituições. LEVI, Lucio. Regime
Político. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco
(Coord.). Dicionário de Política. Trad.: Carmen Varriale. 2 Vol. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1998, p.1081-1084.
18 Como havíamos demonstrado, Tito Lívio declarou que os romanos pretendiam
libertar a Grécia do jugo da Macedônia. No entanto, seguindo pelo viés do
imperialismo que Roma estava promovendo no Mediterrâneo, transmitir um discurso
voltado para a liberdade das sociedades sob a sua inluência seria legitimar a sua
autoridade através de um mecanismo que não estivesse diretamente atrelado ao uso
da força física, mas sim à cooptação política.
19 MÜNKLER, Herfreid. Empires: the Logic of World Domination from Ancient Rome to the
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 31

foi um mecanismo empregado por Flaminino para legitimar


a hegemonia de Roma perante os seus aliados gregos. Ainal, o
mesmo teria demonstrado que embora os romanos tivessem a
preponderância política sobre parte das sociedades do Oriente,
lhes cabia determinar a sua conduta. Agindo assim, Flaminino
teria fornecido a impressão de que os gregos ainda participavam
de suas determinações políticas, angariando a simpatia destes para
com Roma. Seguindo por esse viés, ainda que Tito Flaminino
tenha recebido ordens diretas para guerrear Nábis, o seu discurso
acabava eximindo Roma de qualquer responsabilidade política
imediata junto aos gregos.
Tomadas às devidas medidas junto aos helenos (gregos), Tito
Flaminino reuniu um grande contingente de guerreiros e atacou
o norte da Lacedemônia. Enquanto Tito Flaminino iniciava a sua
investida militar ao vale do rio Eurotas, Lucio Flaminino preparava
um ataque marítimo a Nábis, chegando a receber o apoio voluntário
de algumas cidades costeiras da Lacedemônia. Nas palavras de Tito
Lívio, Flaminino recebeu o apoio de espartanos exilados, os quais
pretendiam reaver as suas propriedades com a morte de Nábis
(TITO LÍVIO, XXXIV, 26-28). Após o território litorâneo de
Gitión (Gytheion) ter sido conquistado por Lucio Flaminino e a
área do vale do rio Eurotas ter sido devastada por Tito Flaminino,
Nábis almejou um tratado de paz (TITO LÍVIO, XXXIV, 28-31).
Ao interagir com Tito Lívio (XXXIV, 35) e convergindo com Nigel
Kennell, podemos resumir que o senado romano determinou a
submissão de Nábis a duras penas de guerra, tais como renunciar
o território de Argos e outras possessões, retornar os escravos aos
seus donos, restaurar os exilados em Esparta e adjacências, limitar-
se a apenas dois barcos de pequeno porte, além do pagamento
de acentuadas indenizações. Segundo Kennell, após estas sanções
romanas, Esparta teria se tornado uma espécie de “protetorado”
da Liga Acaia20.
Retomando os estudos de Herfreid Münkler, podemos notar
que as pretensões de Roma para o Oriente já demonstravam o seu
viés imperialista, haja vista a expansão de sua esfera de poder para

United States. Trans.: Patrick Camiller. Cambridge: Polity Press, 2007, p.06.
20 KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.179.
32 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

zonas até então tidas como periféricas21. No entanto, como nos


esclareceu o romanista Carlos Eduardo da Costa Campos, com a
derrota de Cartago na Segunda Guerra Púnica (por volta de 201
a.C.), Roma teria desencadeado o seu interesse expansionista para
o Mediterrâneo22. Contudo, Campos enfatizou que embora o
imperialismo pressuponha a ampliação dos interesses geopolíticos
de uma potência sob outros territórios, o mesmo não lida com
o uso exclusivo da força física. Com isso, os romanos teriam
empregado uma política de alianças e cooptação junto às elites
locais dos territórios conquistados, sendo este um meio eicaz de
assegurar a sua dominação. Logo, convergindo com Campos, o
imperialismo teria especiicidades conforme a sua utilização, em
virtude das diferenças culturais das sociedades sob o seu poder23.
Conjeturando a partir dos apontamentos de Münkler e Campos,
podemos sugerir que o imperialismo foi assegurado por intermédio
da prática da hegemonia, que ao ser atribuída às aristocracias locais
permitia que Roma cooptasse as suas lideranças. Desse modo, a
sociedade romana conseguia garantir a realização dos seus interesses
sem o uso exclusivo da coação física nas áreas provinciais. Sendo
assim, no momento em que Roma difundiu a prática imperialista
pelo Mediterrâneo, a hegemonia se tornou um mecanismo a ser
exercido em prol do império, o qual era assegurado pela parcial
liberdade político-constitucional de alguns territórios periféricos.
Por volta de 192 a.C., quando Roma direcionou as suas
atenções para Antíoco da Síria, Nábis tentou reaver as cidades
costeiras da Lacedemônia e de Gitión (TITO LÍVIO, XXXV,
25). Tais medidas levaram a atuação de Filopêmen24 no comando

21 MÜNKLER, Herfreid. Empires: the Logic of World Domination from Ancient Rome to the
United States. Trans.: Patrick Camiller. Cambridge: Polity Press, 2007, p.8.
22 CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. A Estrutura de Atitudes e Referências do Imperialismo
Romano em Sagunto (II a.C. – I d.C.). Rio de Janeiro: UERJ/NEA, 2014, p.52.
23 Ibidem, p.58.
24 Filopêmen foi um general helênico oriundo de Megalópolis, o qual ajudou a
reorganizar a Liga Acaia, chegando a comandá-la em diversas ocasiões. Foi elogiado
por diversos pensadores posteriores, como Políbio, Cícero e Plutarco. GREEN,
Peter. D’Alexandre à Actium – Du partage de l’Empire au triomphe de Rome. Paris: Robert
Laffont,1997, p.1028.
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 33

da Liga Acaia e a favor dos interesses romanos, o qual devastou


as imediações de Gitión e manteve uma guarnição em espera
nas proximidades da cidade (PLUTARCO, Vida de Filopêmen,
14.3-7). Nábis teria solicitado o auxílio da Liga Etólia25 que,
secretamente, se manteve a favor dos romanos. Dessa maneira,
Nábis acabou sendo traído e morto por um dos guerreiros etólios
que havia solicitado (TITO LÍVIO, XXXV, 34-35). Interagindo
com os discursos de Tito Lívio e Plutarco, ambos declararam
que após a morte de Nábis, Filopêmen adentrou em Esparta
e persuadiu os homens mais inluentes a fazerem com que a
cidade integrasse a Liga Acaia, assim deixando a sua condição
de “protetorado” para se tornar um membro da confederação
(TITO LÍVIO, XXXV, 37; PLUTARCO, Vida de Filopêmen,
15.2-3). Sendo assim, podemos airmar que o reinado de Nábis
foi marcado por um intenso processo de transformações para a
sociedade de Esparta, seja em uma perspectiva política, econômica
ou social. Entretanto, devido à difusão do interesse imperialista de
Roma junto a Hélade, a política de Nábis não correspondeu às
pretensões latinas. Com isso, Roma passou a conter os interesses
espartanos, os quais objetivavam estender a sua hegemonia ao
Peloponeso. Imersos nessa perspectiva, a conduta de Filopêmen
junto a Esparta foi politicamente adequada, tendo em vista que
o mesmo era comandante dos guerreiros da Liga Acaia, a qual
desempenhava a hegemonia sobre o Peloponeso, em concomitância
com a política imperialista romana. De maneira semelhante, a
lealdade da Liga Acaia para com Roma lhe assegurava benefícios
junto ao império, na mesma proporção que garantia a realização
de parte dos interesses imperiais sobre o Peloponeso.
Ao integrar a Liga Acaia, uma série de guerras civis acometeu
Esparta, fazendo com que Filopêmen selecionasse um contingente

25 Nas palavras dos pesquisadores Klaus Freitag, Peter Funke e Nikola Moustakis, a
Liga Etólia seria uma confederação formada por póleis, vilarejos e assentamentos
que se arrogavam como detentores de uma matriz cultural Etólia, estando
geograicamente situada ao norte do golfo de Corinto. FREITAG, Klaus; FUNKE,
Peter; MOUSTAKIS, Nikola. Aitolia. In: HANSEN, Mogens Herman; NIELSEN,
Thomas Heine. An Inventory of Archaic and Classical Poleis – an investigation conducted
by the Copenhagen Polis Centre for Danish National Research Foundation. Oxford: Oxford
University Press, 2004, p.379.
34 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

de guerreiros para conter as manifestações espartanas. Em


aproximadamente 188 a.C., Filopêmen invadiu a Lacedemônia
pelo norte e exilou trezentos homens apontados como responsáveis
pelos embates civis, restabeleceu a cidadania dos espartanos que
haviam sido expulsos de seu território, vendeu três mil hilotas
e derrubou os muros ao redor de Esparta. Por im, Filopêmen
determinou que os jovens não poderiam ser formados nos
moldes ancestrais de treinamento (a agogé), e que outrora foi o
responsável pela formação dos esparciatas, icando submetidos
ao modelo educacional dos jovens da Liga Acaia (PAUSÂNIAS,
Descrição da Grécia, VIII, 51.3). Complementando a perspectiva
de Pausânias, Tito Lívio expôs que Filopêmen não somente
proibiu que os jovens de Esparta fossem treinados no habitus26
ancestral, como também as leis e os costumes de Licurgo foram
banidos (TITO LÍVIO, XXXVIII, 34). Ao interagirmos com Tito
Lívio, este denominou Filopêmen como pretor27, cabendo-lhe a
responsabilidade de manter coesos os membros da Liga Acaia
(TITO LÍVIO, XXXVIII, 30-31).
Devemos nos atentar que Esparta, enquanto membro da
Liga Acaia, teve de se adequar aos interesses políticos das demais
sociedades confederadas. Com isso, podemos conjeturar que as
ações de Filopêmen pretendiam manter a sociedade de Esparta
sob a hegemonia da Liga Acaia e conforme os interesses imperiais
de Roma. Entretanto, devido aos excessos dos espartanos de então,
a supressão dos seus valores ancestrais teria sido um mecanismo
empregado por Filopêmen para desestruturar a identidade étnica28

26 O habitus é um sistema de disposições duráveis e transponíveis que atuam como


princípios geradores e organizadores das práticas (em geral), das representações e
dos modos de pensamento que são objetivamente adaptados às pretensões do
segmento hegemônico de um território. BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Trad.:
Maria Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 2009, p.87.
27 O pretor seria um título que pressupunha a administração das questões judiciárias,
assim como também poderia assumir o comando das legiões nas áreas provinciais.
LONG, George. Praetor. In: SMITH, William. A Dictionary of Greek and Roman
Antiquities. London: John Murray, 1875, p.956.
28 A identidade étnica seria uma representação calcada em pressupostos políticos-culturais,
cujo objetivo seria conigurar os espaços geográicos com base no interesse do
grupo social hegemônico e no princípio de diferenciação étnico que este estabelece
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 35

desta sociedade, minimizando a inluência da tradição sobre


as atitudes dos homens de Esparta. Desse modo, a punição
que Filopêmen teria estabelecido para a sociedade espartana
poderia ser compreendida como uma política de repressão, que
possui como característica o enfraquecimento das elites locais
e o estabelecimento do controle das determinações políticas da
Lacedemônia. Estas medidas assegurariam a hegemonia da Liga
Acaia sobre o Peloponeso, haja vista a sua interação direta para
com a prática imperialista romana.
O historiador Nigel Kennell nos esclareceu que Esparta
permaneceu sob a hegemonia da Liga Acaia até 146 a.C., quando
os romanos determinaram que os espartanos deveriam retomar
os seus costumes e as suas leis ancestrais29. Segundo Erich
Gruen, o posicionamento de Roma teria gerado a insatisfação
dos membros da Confederação da Acaia, os quais deram início
a um embate armado contra a incontestável supremacia romana
na Hélade30. Como nos esclareceu Sergej Tokhtas’ev, havia no
Peloponeso como um todo a presença de uma elite política que
era simpatizante aos interesses dos macedônios. Entretanto,
com a derrota da Macedônia para os romanos, esses sujeitos
passaram a se opor a autoridade imperialista de Roma31. Nesse
contexto, segundo o geógrafo Pausânias, Esparta teria mantido
uma intensa oposição às decisões da Confederação da Acaia, o
que levou o senado romano a intervir no Peloponeso por meio de
uma embaixada32. Quando os dirigentes de Roma determinaram
que Esparta, Corinto, Argos, Orcômeno arcádia e Heracleia do

para com os demais. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.: Fernando


Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A., 1989, p.112-115.
29 KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.p.182.
30 GRUEN, Erich. The Origins of the Achaean War. In: Journal of Hellenic Studies,
Vol. 96, 1976, p.46.
31 TOKHTAS’EV, Sergej. Achaeans, Achaea. In: CANCIK, Hubert; SCHNEIDER,
Helmuth. Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol. I – A-Ari. Leiden;
Boston: Brill, 2002, p.75.
32 Embora as regiões que compunham o Peloponeso mantivessem a sua identidade
geográica, as determinações políticas dos peloponésios, como um todo, recaíam
sobre a Liga Acaia.
36 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

monte Eta deveriam ser liberadas da Liga Acaia, esta declarou


guerra aos espartanos (PAUSÂNIAS, VII, 12-14). A oposição que
a Confederação da Acaia manteve para com as sentenças de Roma
levaram o senado a estabelecer que Lucio Mummio33 conduzisse
um contingente de guerreiros para enfrentar as manifestações dos
aqueus (PAUSÂNIAS, VII, 15.1).
Dialogando com Sergej Tokhtas’ev, este nos elucidou que
os romanos submeteram as sociedades da Liga Acaia a então
autoridade da província da Macedônia. Entretanto, a confederação
teria se mantido em um sentido eminentemente religioso34.
Interagindo com Nigel Kennell, após a derrota dos aqueus, Esparta
adquiriu o estatuto romano de ciuitas libera35. Complementando
as considerações de Kennell, Eckart Olshausen pontuou que a
ciuitas libera não estava submetida às determinações políticas da
província em que se encontrava, ainal, as suas interações estavam
diretamente associadas a Roma36. Logo, Esparta enquanto
ciuitas libera mantinha certa autonomia política em relação à
administração provincial, porém, devido a sua tradição ancestral,
a mesma estava diretamente inserida na prática imperialista
romana. Mediante a perspectiva apresentada podemos veriicar
que a política imperial de Roma não ocorria por um viés estático,
podendo se adaptar às circunstâncias e aos seus interesses junto
aos territórios subordinados.
No contexto das Guerras Mitridáticas (113-63 a.C.), os
indícios da documentação literária nos demonstram que parte
de uma elite espartana não se mantinha inclinada aos interesses

33 Lucio Mummio foi cônsul romano em 146 a.C., sendo posteriormente considerado
como o responsável pela destruição de Corinto. GREEN, Peter. D’Alexandre
à Actium – Du partage de l’Empire au triomphe de Rome. Paris: Robert Laffont,1997,
p.1024.
34 TOKHTAS’EV, Sergej. Achaeans, Achaea. In: CANCIK, Hubert; SCHNEIDER,
Helmuth. Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol. I – A-Ari. Leiden;
Boston: Brill, 2002, p.75.
35 KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.182.
36 OLSHAUSEN, Eckart. Achaia [Roman Province]. In: CANCIK, Hubert;
SCHNEIDER, Helmuth. Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol.
I – A-Ari. Leiden; Boston: Brill, 2002, p.80
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 37

romanos. Em seu discurso, Apiano de Alexandria airmou que


durante a primeira guerra contra Mitrídates do Pontus, Esparta
se aliou ao governante asiático (APIANO, História Romana,
XII, 29). Nigel Kennell identiicou esse momento entre 90 e 85
a.C. e argumentou que pouco tempo depois um contingente de
espartanos poderiam ter se aliado a Lucio Cornélio Sula durante
as guerras civis romanas37 (APIANO, Guerras Civis, I, 79). Por sua
vez, como airmou Nigel Kennell, os recorrentes conlitos em que
Roma esteve inserida – em virtude das guerras civis e dos embates
estrangeiros – izeram com que a mesma fosse levada a ampliar o seu
controle nas áreas provinciais, como um mecanismo para assegurar
os seus interesses político-econômicos38. Tal argumentação nos
permite veriicar que embora Esparta estivesse em uma condição
política aparentemente privilegiada junto a Roma – por ser uma
ciuitas libera – os seus habitantes não deixaram de se posicionar
contra o império romano quando os seus interesses políticos
estiveram ameaçados pelos mesmos, ou quando foi vantajoso
estabelecer alianças com outras sociedades mediterrâneas. De
maneira semelhante, devemos considerar que as retaliações que
Roma impôs a Esparta foram meios de garantir a autoridade
imperial e a sua dinâmica econômica sobre o Mediterrâneo
Antigo. Entretanto, podemos pontuar que a sociedade espartana
nunca chegou a ameaçar o poder imperial romano.
Embora o nosso enfoque seja analisar Esparta no período do
principado de Augusto, a escassez de estudos sobre as interações
políticas, sociais e militares espartanas no decorrer dos séculos IV,
III e II a.C. nos levaram a historicizar as transformações ocorridas
em Esparta para uma melhor compreensão da mesma. Deste
modo, notamos que as relações de Esparta com Roma já estariam
ocorrendo desde o século III a.C., e com a emergência do poder
político de Augusto os laços de ambas as sociedades acabaram se
estreitando.
Na contenda entre Júlio César e Pompeu Magno, os espartanos
se mantiveram a favor deste último (CÉSAR, Comentário sobre as
Guerras Civis, 3.4). Todavia, ainda que Esparta tenha se colocado

37 KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.183.


38 Idem.
38 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

contra a igura de Júlio César, isso não a impediu de manter,


posteriormente, boas relações com Caio Otávio, seu herdeiro e
futuro princeps Augusto. Dialogando com o discurso de Plutarco,
este enfatizou que na batalha de Filipos (42 a.C.), Caio Otávio
contava com um contingente de guerreiros espartanos para
enfrentar Marco Junio Bruto. Nesta ocasião, devido à derrota
de Caio Otávio, dois mil homens de Esparta foram mortos
(PLUTARCO, Vida de Bruto, 41.4). Em suas considerações,
Suetônio ressaltou que durante as guerras civis, Lívia (futura
esposa de Augusto), o seu marido39 e o jovem Tibério40 se
refugiaram na Lacedemônia41 (SUETÔNIO, Vida de Tibério, 6).
Dião Cássio complementa tal assertiva ao airmar que Augusto
honrou a sociedade de Esparta pelo auxílio prestado a Lívia
quando esta estava fugindo de Roma, em decorrência das guerras
civis (DIÃO CÁSSIO, História de Roma, LIV, 7.2). Com isso,
podemos sugerir que a relação de Augusto com a sociedade de
Esparta teria se fundamentado na interação que este manteve com
os espartanos antes mesmo de se tornar o princeps. Logo, embora
os feitos da Esparta clássica tenham sido retomados em prol do
imperialismo romano, os benefícios que Augusto cedeu a ciuitas
espartana provinham de sua gratidão para com esta sociedade.
Podemos ampliar tais considerações ao interagirmos com as
disputas político-militares de Caio Otávio e Marco Antônio,
dentre as quais Esparta se manteve a favor do primeiro. Seguindo

39 Nos dizeres de Antony Spawforth, antes de contrair matrimônio com Caio Otávio,
Lívia foi casada com o patrício Tibério Claudio Nero, um membro proeminente
da família Claudia (CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and
Roman Sparta – A tale of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002,
p.87). Por sua vez, Tibério Claudio Nero teria sido um opositor de Caio Otávio em
seu embate com Sexto Pompeu e posteriormente apoiou Marco Antônio. Dessa
maneira, Claudio Nero e Lívia tiveram que fugir em decorrência das guerras do
Segundo Triunvirato, tendo permissão para retornarem a Roma após a anistia
concedida por Augusto. BARRETT, Anthony. Livia – First Lady of Imperial Rome.
New Haven; London: Yale University Press, 2002, p.19-21.
40 Tibério foi ilho de Lívia e enteado de Augusto, e com a morte deste acabou
assumindo o principado em Roma.
41 Nos dizeres de Suetônio, no período em que Lívia se refugiou em Esparta esta
ciuitas já estava sob a proteção da família Claudia (SUETÔNIO, Vida de Tibério, 6).
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 39

o viés apresentado por Plutarco, Esparta atuou diretamente em


benefício da causa de Caio Otávio (PLUTARCO, Vida de Marco
Antônio, 67.2-3). Tais fatores teriam sido determinantes para a
boa relação que a sociedade espartana manteve com o princeps
Augusto. Todavia, para um maior aprofundamento de nossas
argumentações anteriores, devemos retroceder ao início do século
II a.C. Após a morte de Nábis, o poder político de Esparta foi
administrado por famílias proeminentes do próprio território.
Com isso, no século I a.C. uma das famílias (sing.: gens; pl.:
gentes) de maior preponderância política em Esparta seria a de
Lacares. Convergindo com os estudos de Antony Spawforth,
Lacares foi um partidário de Júlio César, sendo um dos espartanos
de maiores recursos e inluência na Lacedemônia. Spawforth nos
expôs que a riqueza e a proeminência político-social de Lacares
na Lacedemônia foram alcançadas por meio da pirataria42,
aspecto este que nos permite lançar alguns apontamentos sobre as
atividades econômicas de Lacares.
Como nos esclareceu o pesquisador Philip de Souza, a
pirataria teria sido uma prática recorrentemente combatida
pelos romanos, sobretudo no século I a.C. Em decorrência da
difusão do imperialismo, Roma passou a ser representada pelos
seus pensadores e políticos como a defensora das sociedades
mediterrâneas, na qual os piratas estariam inseridos em uma
categoria inversa43. Souza comentou que a pirataria ameaçava os
interesses comerciais romanos, haja vista a importação de grãos
pelo Mediterrâneo44. Retomando a igura de Lacares, os escritos de
Antony Spawforth nos leva a conjeturar que o referido espartano

42 CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale


of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002, p.89.
43 Conjeturando a partir de Carlos Eduardo da Costa Campos, as atividades marítimas
teriam garantido a prosperidade econômica de Roma, o que tornaria plausível a
difusão de um discurso de combate a pirataria. CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa.
Discurso e Representação sobre a Paisagem e as Práticas Marítimas no Tratado da
República de Marco Túlio Cícero. In: MARIA NETO, José. Antigas Leituras. Vol. 2.
Recife: EDUPE, 2014.( In Prelo).
44 SOUZA, Philip de. Piracy in the Graeco-Roman World. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999, p.154, 157.
40 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

teria sido uma ameaça aos interesses político-econômicos de


Marco Antônio, no Peloponeso e na Lacedemônia45. Ao interagir
com o discurso de Apiano, Philip de Souza declarou que no
período em que Caio Otávio e Marco Antônio se uniram para
combater Sexto Pompeu, este último teria angariado aliados entre
os peloponésios46 (APIANO, Guerras Civis, V, 77). Spawforth47
nos pontuou que com a derrota de Sexto Pompeu, Marco Antônio
retomou a sua autoridade sobre a província da Acaia48. Com isso,
podemos sugerir que Lacares teria sido um antigo partidário de
Sexto Pompeu. Do mesmo modo, ao exercer o seu poder político
sobre o Peloponeso, Marco Antônio teria tomado medidas para
ampliar e difundir a sua autoridade sobre esta região, levando o
mesmo a atacar possíveis adversários regionais. Nesse contexto,
ainda que Lacares tenha exercido atividades de pirataria na costa
da Lacedemônia, a sua possível aliança com Sexto Pompeu e a sua
inluência no Peloponeso teriam levado Marco Antônio a eliminá-
lo, em virtude de representar uma ameaça política a este último.
Em decorrência da medida de Marco Antônio para com
Lacares, Plutarco enfatizou que na batalha do Ácio (31 a.C.)
o espartano Eurícles se colocou a favor de Caio Otávio, no
intuito de se vingar pela morte de seu pai Lacares (PLUTARCO,
Vida de Marco Antônio, 67.2). Seguindo por esse viés, Antony
Spawforth comentou que o auxílio prestado por Eurícles e os
seus companheiros à causa de Caio Otávio izeram com que este,
ao assumir o título de princeps Augusto, concedesse a Eurícles a

45 SPAWFORTH, Antony. Greece and the Augustan cultural revolution. Cambridge:


Cambridge University Press, 2012, p.87.
46 SOUZA, Philip de. Piracy in the Graeco-Roman World. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999, p.194-5.
47 SPAWFORTH, Antony. Greece and the Augustan cultural revolution. Cambridge:
Cambridge University Press, 2012, p.87.
48 Devemos esclarecer que no segundo triunvirato, Caio Otávio e Marco Antônio
teriam cedido o poder político da província da Acaia a Sexto Pompeu, através do
“Pacto de Misena” (39 a.C.). Entretanto, o mesmo não chegou a governá-la, pois
Caio Otávio e Marco Antônio airmaram que o ilho de Pompeu Magno não
cumpriu a sua parte do tratado, fazendo com que o mesmo fosse considerado um
traidor. SOUZA, Philip de. Piracy in the Graeco-Roman World. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999, p.188-9.
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 41

hegemonia política sobre Esparta49. Esses elementos se inserem na


perspectiva teórica de Carlos Eduardo da Costa Campos acerca do
imperialismo romano, como citado anteriormente. Assim, a política
imperial de Augusto teria dado continuidade a diversas práticas
que o antecederam, entre elas a de cooptação das elites locais das
províncias como um mecanismo de assegurar os interesses da Urbs.
Do mesmo modo, como demonstrou Campos50, a cooptação faria
com que houvesse uma concessão gradual de poder e a ampliação
da administração romana sobre os territórios submetidos.
Podemos endossar as nossas considerações através das análises
de Susan Alcock. A pesquisadora airmou que as aristocracias gregas
provinciais tentavam fomentar a sua identidade em concomitância
com os valores político-culturais de Roma51. Alcock declarou que
as atitudes do centro de poder imperial auxiliaram na consolidação
deste ideal, como um mecanismo de legitimação política. Logo,
o respeito que os romanos mantinham pela herança político-
cultural helênica seria uma estratégia imperial que garantia a
interação entre o centro de poder e as áreas provinciais, sendo este
um poderoso recurso de dominação romana52. Podemos inserir
aqui a categoria política do espartano Eurícles, o qual se vinculou
diretamente aos interesses augustanos como uma maneira de
alcançar os seus objetivos político-econômicos na Lacedemônia.
Convergindo com a proposta de Antony Spawforth53, podemos
sugerir que o fato de Eurícles deter a hegemonia política sobre uma
ciuitas libera, atrelado ao apoio que obteve de famílias espartanas
proeminentes, teria levado o mesmo a exercer um regime político-

49 CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale


of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002.p.90.
50 CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. A Estrutura de Atitudes e Referências do Imperialismo
Romano em Sagunto (II a.C. – I d.C.). Rio de Janeiro: UERJ/NEA, 2014.p.46.
51 ALCOCK, Susan. The reconiguration of memory in the eastern Roman empire.
In: ALCOCK, Susan; D’ALTROY, Terence; MORRISON, Kathleen; SINOPOLI,
Carla (Ed.). Empires – Perspectives from Archaeology and History. Cambridge: Cambridge
University Press, 2001.p.330.
52 Ibidem, p.330-331.
53 CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale
of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002, p.90.
42 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

econômico sem muitas restrições.


O geógrafo Estrabão, ao narrar à vitória de Caio Otávio no
Ácio, declarou que este teria fundado Nicópolis54 para celebrar
a sua campanha militar bem sucedida. Segundo Estrabão, na
entrada do golfo do Ácio foi erigido um templo para Apolo
Ácio e para o qual era celebrada a cada cinco anos a “Ácia”, jogos
em honra a esta divindade. O referido geógrafo expôs que os
responsáveis pela supervisão desta celebração a Apolo eram os
lacedemônios (ESTRABÃO, Geograia, VII, 7.6). Este aspecto
nos chamou a atenção, pois na ocasião de comemorar a vitória de
Augusto os lacedemônios liderados por Eurícles teriam recebido
a honra de assegurarem a boa realização desta festividade. Com
isso, veriicamos que a proeminência político-religiosa que os
espartanos adquiriram junto às festividades de Nicópolis teria sido
um reconhecimento de Augusto para com a contribuição político-
militar que Eurícles e os seus aliados forneceram na batalha contra
Marco Antônio. Do mesmo modo, ao atuar sob a égide augustana,
Eurícles ampliou a sua autoridade política enquanto difundia o
poder imperial do princeps.
Seguindo nessa ótica, Nigel Kennell sugeriu que o poder
que Eurícles exercia em Esparta se fundamentava, unicamente,
na amicitia/philia que este mantinha com Augusto55. Em
concomitância a este fator, Eurícles teria recebido a cidadania
romana – sendo identiicado por Claudio Julio Eurícles – a qual
poderia ter diminuído a oposição política que este mantinha
junto a outros espartanos de recursos56. Ampliando as concepções
de Kennell e Antony Spawforth, Andrew Wallace-Hadrill nos
informou que a concessão da cidadania romana aos membros das
elites nativas das províncias seria um meio de Roma expandir a
sua política imperialista junto às regiões submetidas ao Império57.

54 Esta pólis foi fundada por Augusto na Acarnânia como um meio de celebrar a
sua vitória contra Marco Antônio e Cleópatra, no Ácio. A sua denominação seria
formada pela junção dos vocábulos Niké (Vitória) e pólis (PAUSÂNIAS, VII, 18.8).
55 KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.184.
56 CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale
of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002, p.90.
57 WALLACE-HADRILL, Andrew. Rome’s Cultural Revolution. Cambridge: Cambridge
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 43

Por outro lado, devemos considerar que para Eurícles a difusão


dos interesses imperiais, bem como a sua associação direta com
os valores romanos, seria uma forma de ratiicar a sua autoridade
política em Esparta, bem como com outras sociedades da província
da Acaia e do Mediterrâneo.
Por meio dos escritos de Dião Cássio, Nigel Kennell airmou
que Augusto teria visitado Esparta entre 22 e 21 a.C.58. Dião
Cássio elucidou que Augusto teria honrado os lacedemônios com
a ilha de Citera e por participar de seus repastos coletivos, sendo
esta uma retribuição pelo asilo que os espartanos concederam
a Lívia quando esta fugia da península itálica no período das
“Guerras Civis” (DIÃO CÁSSIO, LIV, 7.2). Estrabão, por sua
vez, declarou que a ilha de Citera seria propriedade privada
de Eurícles (ESTRABÃO, VIII, 5.1). Complementando tal
argumentação, Pausânias airmou que Augusto concedeu a Esparta
a autoridade sobre Cardamile e Túria, identiicados como antigos
assentamentos periecos (PAUSÂNIAS, III, 26.7; IV, 31.1). Através
dos indícios literários, veriicamos que a política imperialista
romana foi perpetuada no principado de Augusto, tendo em vista
o processo de cooptação que manteve junto às elites locais das
áreas provinciais, sendo este um mecanismo para assegurar os seus
interesses político-econômicos no Mediterrâneo.
Andrew Wallace-Hadrill enfatizou que em 146 a.C., Roma
determinou que os valores ancestrais elaborados por Licurgo
deveriam ser retomados em Esparta. Assim, veriicamos um discurso
que colocava Roma como a guardiã da ancestralidade espartana59.
Desta forma, podemos observar uma medida de valorização das
práticas culturais de Esparta, por parte dos segmentos aristocráticos
romanos. Como exemplo, podemos indicar a participação de
Eurícles na batalha do Ácio, o qual foi representado como um
referencial de virtus60 espartana guerreira, junto a determinados

University Press, 2010 (2008), p.81.


58 KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010.p.184.
59 Ibidem, p.238.
60 Como explicitou François Renaud, a virtus foi primeiramente concebida como
virilidade e coragem, sendo este um ideal difundido em concomitância com a
perspectiva guerreira dos romanos. RENAUD, François. Virtue. In: CANCIK,
44 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

círculos políticos de Roma. Antony Spawforth pontuou que, na


transição da república para o principado, pensadores ilohelênicos,
tal como Cícero, consideraram os espartanos como um modelo
de conduta militar61. Todavia, embora o estilo de vida militar dos
homens de Esparta fosse estimado pelos pensadores romanos,
Cícero demonstrou que os guerreiros de Roma eram superiores,
pois ao invés de marcharem ao som da lauta iam em silêncio
ao encontro dos inimigos (CÍCERO, Disputas Tusculanas, II,37).
Spawforth comentou que a disciplina espartana – do período
Clássico – foi empregada pelos romanos como um ideal de
conduta, fazendo com que os guerreiros de Roma tomassem o
comportamento grego como um exemplo62. Nesse contexto,
Plínio “o velho” airmou que os espartanos foram os inventores
do elmo, da espada e da lança, aspecto este que demonstrava a
proeminência desta sociedade em assuntos de guerra (PLÍNIO,
História Natural, VII, 57). Podemos destacar que os autores
do período imperial romano representavam Esparta como um
exemplo de conduta viril e militar, digna de admiração por Roma.
Veriicamos também que o débito que os romanos mantinham
para com a sociedade espartana residia, sobretudo, nos feitos e
valores que os seus homens desenvolveram no período Clássico63.
Logo, ao se estimar o habitus de Esparta, os romanos estariam se
colocando como defensores dos seus antigos valores culturais, os
quais os espartanos do império teriam abandonado.
Tal apreciação que os romanos mantinham pela tradição
espartana pode ser endossada pelos indícios documentais de
Dião Cássio. Como já havíamos citado, ao visitar Esparta,
Augusto participou dos repastos coletivos (syssitia/philitia) que

Hubert; SCHNEIDER, Helmuth. Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient


World. Vol. XV – Tuc-Zyt. Leiden; Boston: Brill, 2010, p.458.
61 SPAWFORTH, Antony. Greece and the Augustan cultural revolution. Cambridge:
Cambridge University Press, 2012, p.87.
62 Ibidem, p.87-8.
63 Em períodos anteriores ao de Augusto, o pensador Políbio destacou que Esparta
e Roma detinham semelhanças em suas respectivas constituições, pois tomavam
elementos das três formas de governo que existiam até então, ou seja, a monarquia,
a aristocracia e a democracia (POLÍBIO, VI, 3-10).
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 45

eram realizados nesta sociedade (DIÃO CÁSSIO, LIV, 7.2).


Conjeturando a partir dos dizeres de Xenofonte e Plutarco, a
philitia teria sido uma instituição político-social que pretendia
fomentar o ideal de grupo entre os esparciatas e basileus, sendo este
um mecanismo voltado para fomentar a identidade étnico-cultural
dos mesmos. As comidas servidas provinham da contribuição de
todos os integrantes e a aceitação do sujeito em um dos philition
garantia o seu reconhecimento como cidadão de Esparta. Tanto
Xenofonte quanto Plutarco representaram a philitia como uma
criação do mítico legislador Licurgo que almejava minimizar os
excessos dos espartanos por meio de uma alimentação frugal e
um estilo de vida comum (XENOFONTE, Cons. Lac., 5.2;
PLUTARCO, Vida de Licurgo, 12.1-2). Desse modo, o ideal
político-militar que Augusto objetivou por fomentar entre os
romanos poderia tomar a sociedade de Esparta como um modelo de
conduta no principado, haja vista a obediência ao habitus ancestral
e o preparo físico com o qual os esparciatas foram representados.
Andrew Wallace-Hadrill pontuou que Augusto legitimou o seu
poder político por declarar que defendia o mos maiorum, ou seja, os
valores e as práticas ancestrais que ao serem desempenhadas no seu
cotidiano ratiicavam o “ser romano”64. Sendo assim, ao se tomar
elementos culturais da Esparta Clássica, a política imperialista de
Augusto estaria se apropriando da tradição helênica como um
mecanismo voltado para a legitimação política do princeps e de
Roma sobre as demais regiões do Império.
Ao atrelar esses pressupostos ao período de Augusto, notamos
que os romanos admiravam a virilidade e a conduta austera da
Esparta clássica, cujos feitos se materializaram no modo de
pensamento latino através da tradição oral e literária. Com isso, ao
se arrogarem como os defensores da tradição helênica, as práticas
da sociedade espartana foram meios de se ratiicar o imperialismo
de Roma na Lacedemônia. Seguindo por essa perspectiva, os
valores de Licurgo passaram a “pertencer” aos romanos, que ao
rememorarem e legitimarem essas práticas entre os homens de
Esparta geravam um débito político-cultural destes últimos com a

64 WALLACE-HADRILL, Andrew. Rome’s Cultural Revolution. Cambridge: Cambridge


University Press, 2010 (2008), p.215.
46 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

igura de Augusto e com o império romano.


Ainda no contexto da interação entre o princeps Augusto e
Eurícles, este último teria promovido uma exposição assídua de
sua lealdade junto à casa imperial romana. Antony Spawforth
declarou que Eurícles foi o fundador e o primeiro sacerdote do
culto imperial em Esparta. Do mesmo modo, Eurícles também
estabeleceu relações de cordialidade com Marco Vipsânio Agripa,
genro e homem de coniança de Augusto. Segundo Spawforth,
Agripa teria visitado Esparta em 12 a.C. e nessa ocasião Eurícles
mandou cunhar moedas em sua homenagem65. Observamos
a associação que o ilho de Lacares mantinha com homens
poderosos, seja do império ou de outras sociedades mediterrâneas,
como uma maneira deste garantir o seu poder político entre os
espartanos. Devido à autoridade que o império efetuava nas regiões
do Mediterrâneo, veriicamos que Eurícles soube orquestrar as
suas ações de modo que os seus adversários fossem suprimidos
ou minimizados e o seu poder fosse assegurado na Lacedemônia.
Contudo, embora Augusto fosse um admirador dos valores
espartanos, o descomedimento político de Eurícles fez com que
o princeps começasse a observá-lo de uma maneira mais ríspida
com o passar dos anos. Dietmar Kienast nos informa que em sua
viagem pela Ásia, Eurícles manteve laços de reciprocidade com os
basileus Herodes da Judéia e Arquelau da Capadócia. Com isso,
Eurícles teria desenvolvido intrigas entre Herodes e seus ilhos,
chegando a receber cinquenta talentos pelo auxílio prestado e a
amizade para com o governante asiático66. Este episódio foi citado
e comentado pelo pensador Flávio Josefo, o qual diferentemente
de outros autores antigos, representou Eurícles como corrupto e
luxurioso, tendo se aproximado de Herodes e Arquelau no intuito
de conseguir recursos para si (JOSEFO, Guerra Judaica, I, 513;
Antiguidade Judaica, XVI, 300-310). Os indícios de Josefo nos
fornecem outra perspectiva sobre as ações de Eurícles. Logo,

65 CARTLEDGE, Paul; SPAWFORTH, Antony. Hellenistic and Roman Sparta – A tale


of two cities. 2nd. Edition. London; New York: Routledge, 2002, p.90.
66 KIENAST, Dietmar. Eurycles. In: CANCIK, Hubert; SCHNEIDER, Helmuth.
Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol. V – Equ-Has. Leiden;
Boston: Brill, 2004, p.214.
Luis Filipe Bantim de Assumpção - 47

podemos materializar a ideia de que o referido espartano estaria


tentando ampliar as suas riquezas e inluências políticas, com base
na amicitia de Augusto. Do mesmo modo, podemos sugerir que
Eurícles se utilizou dos vínculos que mantinha junto ao Império
para projetar a sua igura em outras sociedades.
Com base em suas pesquisas, Dietmar Kienast airmou que
Eurícles teria tentado ganhar inluência sobre as sociedades da
Lacedemônia que integravam a “Liga dos Lacedemônios”67.
Concomitantemente, Eurícles teria construído um grande
gymnasium em Esparta e uma luxuriosa casa de banhos em Corinto,
e em meio a esses empreendimentos o mesmo foi considerado
benfeitor de Gitión e honrado em Atenas68 (PAUSÂNIAS, II,
3.5; III, 14.6). Convergindo as informações apresentadas, por
meio de suas interações políticas com Augusto e com aristocracias
de outras regiões mediterrâneas, Eurícles pôde angariar recursos
no intuito de promover a sua imagem pessoal, sem se restringir
a Lacedemônia. No entanto, não podemos deixar de citar que
Eurícles detinha a hegemonia política em Esparta, a qual estava
sob a autoridade imperial da Roma augustana. Sendo assim, as
relações políticas que Eurícles estaria desenvolvendo poderiam ter
sido consideradas como uma ameaça a famílias ricas espartanas,
cuja projeção do ilho de Lacares as inviabilizava de receber as
honras imperiais.
As circunstâncias descritas teriam levado as elites locais
espartanas a denunciarem os excessos de Eurícles frente a Roma.
Nos dizeres de Flávio Josefo, Eurícles foi acusado em duas ocasiões
diante de Augusto, uma por promover sedição na Acaia e outra
por saquear algumas de suas cidades (JOSEFO, Guerra Judaica,
I, 530). Devemos pontuar que a proeminência de Eurícles não
poderia se sobrepor a autoridade do princeps Augusto. O discurso
de Estrabão nos permite materializar a perspectiva apresentada.

67 A Liga dos Lacedemônios foi formada após a derrota de Nábis pelas sociedades
periecas e permaneceu sob a proteção da Liga Acaia de 195 a 146 a.C. WELWEI,
Karl-Wilhelm. Eleutherolakones. In: CANCIK, Hubert; SCHNEIDER, Helmuth.
Brill’s New Pauly – Encyclopaedia of the Ancient World. Vol. IV – Cyr-Epy. Leiden;
Boston: Brill, 2004, p.918.
68 Idem.
48 - O PRINCEPS AUGUSTO e as relações políticas com a
sociedade espartana

Nos dizeres do referido geógrafo, ao promover distúrbios entre as


sociedades da Lacedemônia, Eurícles teria abusado excessivamente
da amizade de Augusto, fator que teria gerado o seu exílio de
Esparta (ESTRABÃO, VIII, 5.5). Segundo Nigel Kennell, Eurícles
teria morrido no exílio em um período próximo ao ano 02 a.C.,
sendo a sua hegemonia sucedida por seu ilho Laco69. Por sua vez,
Augusto separou as cidades periecas da autoridade de Esparta,
reorganizando a “Liga dos Lacedemônios” sob a denominação
de “Liga dos Lacônios Livres” (koinòn tôn Eleutherolakonon)70.
Mediante esses indícios veriicamos que Augusto, na sua qualidade
de princeps, não poderia permitir que uma liderança local pudesse
ameaçar o seu poder político em áreas provinciais. Ainda que
Eurícles e Augusto mantivessem uma relação de amicitia, o poder
da Urbs deveria estar acima de qualquer laço de reciprocidade.
Em virtude do exposto, concluímos que a sociedade espartana,
no período romano, foi representada como um relexo da sua
glória de outrora. Através do nosso mapeamento documental
e historiográico pudemos observar que Esparta acabou
transformando os seus valores frente à realidade da Hélade,
sobretudo a partir da segunda metade do século IV a.C. Quando
Roma passou a despontar entre as sociedades do Mediterrâneo,
as lideranças políticas de Esparta ainda tentavam projetar a sua
hegemonia no Peloponeso com base nos valores de Licurgo e
nas conquistas oriundas do período Clássico. Tais fatores teriam
fomentado no modo de pensamento antigo que os espartanos
eram exímios guerreiros, cujas práticas cotidianas condicionavam
a obediência junto a uma tradição ancestral que permitia a esses
sujeitos a legitimação de sua identidade entre os lacedemônios e
peloponésios.
Em meio à expansão imperial romana, a documentação literária
nos demonstrou que Esparta teria defendido os seus interesses
junto aos grupos hegemônicos mediterrâneos, mesmo que isso lhe
custasse derrotas militares. Assim, podemos citar o caso de Eurícles,
cujos interesses políticos, econômicos e pessoais o levaram a aderir
a causa de Caio Otávio. A igura de Eurícles nos permitiu veriicar

69 KENNELL, Nigel. Spartans – A New History. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010, p.185.


70 Ibidem, p.185-186.
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a maneira como a sociedade de Esparta mantinha os seus valores e


práticas, mesmo sob a autoridade de Roma. Seguindo por essa via,
Eurícles teria se utilizado da amicitia de Augusto para alcançar os
seus objetivos, aspecto este que culminou no seu exílio e perda de
poder político.
Todavia, ainda que Eurícles e os espartanos tenham contribuído
com a causa de Caio Otávio, durante o principado, Augusto se
utilizou politicamente de uma valorização dos costumes ancestrais
espartanos que pudessem ratiicar a sua política de moralização
social, com base no mos maiorum. Dessa maneira, em meio as
nossas escolhas historiográicas, veriicamos que, diferentemente
da Esparta clássica, os espartanos do período romano interagiam
com a Urbs, tal como qualquer outra sociedade mediterrânea.
No entanto, as glórias de outrora e os feitos político-militares
de Esparta foram apropriados entre os pensadores latinos, como
um mecanismo político voltado para a legitimação do poder do
princeps.

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