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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO – MESTRADO EM DIREITO


ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS

Angelo Arruda

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E TRIBUTAÇÃO:


A EXTRAFISCALIDADE COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA PÚBLICA DE
INCLUSÃO SOCIAL NO ÂMBITO MUNICIPAL

Santa Cruz do Sul, março de 2007


1

Angelo Arruda

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E TRIBUTAÇÃO:


A EXTRAFISCALIDADE COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA PÚBLICA DE
INCLUSÃO SOCIAL NO ÂMBITO MUNICIPAL

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-


Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Direito
– da Universidade de Santa Cruz do Sul, para a
obtenção do título de Mestre em Direito

Orientador: Prof. Dr. Hugo Thamir Rodrigues

Santa Cruz do Sul, março de 2007


2

FOLHA APROVAÇÃO
3

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos colegas e professores do Programa de Pós-Graduação em


Direito – Mestrado, em especial ao meu orientador, Dr. Hugo Thamir Rodrigues, pela
oportunidade de compartilhar conhecimento e pela relação fraterna.
4

RESUMO

Pretende demonstrar esta pesquisa que o não cumprimento pelo Estado de


direitos sociais, assegurados pela Constituição Federal, é resultado de estruturas
econômicas e políticas equivocadas, construídas a partir da falta de políticas
públicas eficientes à inclusão social. O desafio identificado diz respeito a conseguir
modificar estas estruturas, inclusive com reavaliação do federalismo, que em vários
aspectos tem se mostrado nocivo e predatório. Para tanto, foi utilizado, como
método de abordagem, o dedutivo e, como técnica de procedimento, a monográfica,
concentrando-se a consulta em elementos doutrinários. As conclusões do trabalho
estão dirigidas à necessidade de revisar questões pontuais envolvendo o
federalismo brasileiro, a solidariedade fiscal e o caráter extrafiscal da tributação.
Também há conclusão pela possibilidade de ações efetivas na esfera municipal,
vinculadas à função extrafiscal da tributação, de modo a resgatar e viabilizar
garantias constitucional e infraconstitucionalmente.

Palavras-chave: Federalismo e Direitos Sociais. Princípios constitucionais tributários


e valores jurídicos. Políticas Públicas e Poder local. Extrafiscalidade e inclusão
social.
5

ABSTRACT

This study intends to show that the non-execution of social rights by the State,
assured by the Federal Constitution, is the result of unfair economic and policy
structures, based on the lack of efficient public policies for the social inclusion. The
challenge identified regards changing these structures, as well as reassessing
Federalism, which has shown to be harmful in many aspects. To do so, the deductive
approach method was used, and as a procedure technique, the monograph, focusing
consultation on doctrinal elements. Concerning authors to be used as theoretical
reference, J.J. Gomes Canotilho and Ricardo Lobo Torres on the constitutional
principles and their realization were used. Secondly, when analyzing the matters
involving local power and extrafiscality, the choice made was Ricardo Hermany and
Hugo Thamir Rodrigues. This paper is divided into three chapters: the first one is
about the State and its role in implementing social rights; the second one focuses on
Federalism and the importance of local power; finally, the third one involves public
administration and extrafiscality, thus, revealing its connection with the research line -
social rights and public policies. This paper concludes that there is the need of
reviewing essential matters involving Brazilian Federalism, fiscal solidarity and the
character of extrafiscality in the taxation. There are also conclusions on the possibility
of effective actions in the municipal scope, attached to the function of extrafiscality in
the taxation, in order to retrieve and assure the guarantees of the Constitution and
under it.

Key-words: Federalism and Social Rights; Taxation constitutional principles and


judicial values. Public Policies and Local Power. Extrafiscality and social inclusion.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 07

1 O ESTADO E SEU PAPEL NA IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS ....... 11


1.1 O Estado: raízes históricas na busca da efetivação das necessidades sociais ..... 12
1.1.1 Estado Liberal de Direito ..................................................................................... 16
6

1.1.2 Estado Social de Direito ...................................................................................... 22


1.1.3 Estado Democrático de Direito ............................................................................ 30
1.2 A Crise do Estado Social: incapacidade de efetivação dos Direitos Sociais .......... 34
1.3 O Estado e o seu papel na implementação dos Direitos Sociais ........................... 36

2 FEDERALISMO E DIREITOS SOCIAIS: A IMPORTÂNCIA DO PODER LOCAL ..... 45


2.1 Estado Unitário e Estado Federal ........................................................................... 45
2.2 Conceito de Federalismo ........................................................................................ 49
2.3 Modalidades de Federalismo .................................................................................. 52
2.4 Federalismo Fiscal ................................................................................................. 54
2.5 Federalismo em crise: a importância do poder local .............................................. 57
2.5.1 Município: possibilidade de efetivação da cidadania ........................................... 60
2.5.2 Princípio da subsidiariedade ............................................................................... 66

3 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E TRIBUTAÇÃO: A EXTRAFISCALIDADE E AS


POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCLUSÃO SOCIAL NO ÂMBITO MUNICIPAL ............... 75
3.1 O Sistema Jurídico: normas, princípios e regras .................................................... 75
3.2 Valores no Direito Tributário ................................................................................... 79
3.2.1 O princípio da liberdade ....................................................................................... 81
3.2.2 O princípio da igualdade ...................................................................................... 86
3.2.3 O princípio da justiça ........................................................................................... 88
3.2.3.1 O princípio da capacidade contributiva ............................................................. 90
3.2.3.2 O princípio da solidariedade ............................................................................. 93
3.2.4 O princípio da segurança jurídica ........................................................................ 96
3.3 Políticas públicas – perspectivas ............................................................................ 98
3.4. A extrafiscalidade ................................................................................................... 106
3.5 A Lei de Responsabilidade Fiscal ........................................................................... 110
3.6. Administração Pública: a extrafiscalidade como instrumento de política pública .. 115
3.7 O Município e as medidas extrafiscais possíveis ................................................... 118

CONCLUSÃO ............................................................................................................... 134

REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 138


7

INTRODUÇÃO

No Brasil a carga tributária1 atingiu nos últimos anos níveis expressivos, sendo
que as conseqüências disto são de todos conhecidas, em especial o fato de a
sociedade não ver transformados em serviços os tributos pagos, bem como uma
falta cada vez maior de investimentos.

Não obstante as manifestações freqüentes das autoridades governamentais no


sentido da necessidade de esforços conjuntos para a obtenção do equilíbrio fiscal, a
verdade é que as demandas públicas generalizadas, o comprometimento de parte
significativa das receitas com o pagamento do serviço das dívidas interna e externa,
além das resistências de grupos que integram a máquina estatal, impedem a
redução das despesas públicas. E com isto, repetida e permanentemente se
verificam pressões para o incremento das receitas da União, Estados, Distrito
Federal e Municípios, como forma de permitir o atendimento dos direitos sociais
assegurados pela Constituição Federal.

Ocorre que nos últimos anos o Brasil obteve arrecadações fantásticas, com
recordes seguidos de superávit primário2, sem que os direitos sociais recebessem
melhorias por conta de tais fatores3, circunstância que evidencia que não é e não
será com maior receita fiscal que tais direitos serão prestigiados.

Neste sentido, o aumento da carga tributária definitivamente não pode mais ser
cogitado, até porque a luta para manter a atual tributação, como, por exemplo, nos
casos da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira de Valores e de

1
No primeiro semestre de 2006, a carga tributária em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) atingiu 39,41%,
contra 39,16% no primeiro semestre de 2005. Nesse período, os tributos federais totalizaram R$ 269,5 bilhões
(69%), os estaduais R$ 102,9 bilhões (26%) e os municipais R$ 20,3 bilhões (5%). O índice per capita dos seis
primeiros meses do ano teve um incremento de 8,97%, o que significa que cada brasileiro pagou R$ 175,53 a
mais de tributos. Em uma projeção para esse ano da carga tributária per capita, o IBPT estima um aumento de
9,84% nominal e 5,68% real. Com isso, cada pessoa deverá pagar R$ 4.380,00 em tributos, contra R$ 3.987,46
do ano passado. A carga tributária brasileira deu um salto nos últimos 50 anos, passando de 14,5% para quase
37,37% do PIB. (Fundação Escola Superior de Direito Tributário).
2
O setor público brasileiro consolidado fechou o ano passado com superávit primário de R$ 90,144 bilhões. Em
termos de comparação com o Produto Interno Bruto (PIB), o saldo correspondeu a 4,32%.(Fonte: Valor on line).
3
Para ‘honrar’ compromissos assumidos com a remuneração do capital financeiro especulativo, base de
sustentação e tônica da política econômica dos governos FHC e Lula, o setor público vem realizando
considerável ‘esforço fiscal’ para ‘fazer caixa’ para o superávit primário. Em outras palavras, vem deixando de
investir em áreas sociais prioritárias como saúde, educação, saneamento e habitação.
8

Créditos e Direitos de Natureza Financeira - CPMF4, em nível nacional, e do Imposto


sobre Operações de Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de
Transporte Intermunicipal e Interestadual e de Comunicação - ICMS, no estado do
Rio Grande do Sul, tem se mostrado significativamente difícil e desgastante em face
da resistência operada pelos setores produtivos e reação negativa da opinião
pública.

Diante deste contexto, medidas dirigidas à modernização do aparelho de


arrecadação, associadas à adoção de um sistema tributário adequado com a atual
situação e estrutura do Brasil, se mostram urgentes. É que o modelo atual tem se
caracterizado pela centralização da parte mais expressiva da arrecadação. Em
síntese, quase tudo passa pela União, gerando prejuízos expressivos aos Estados,
Distrito Federal e Municípios, que, ano após ano, têm assumido mais encargos na
área social. Por isso, há muito têm se mostrado crescentes as pressões para a
reorganização do Estado, mediante a implementação de reformas, que vão desde a
política, passando pela da previdência social, chegando até a tributária.

Entretanto, até que tudo isto se viabilize, passando do plano teórico para o
prático, necessária se mostra a busca de medidas capazes de permitir o
atendimento das demandas sociais pelo Estado. E é aqui que se inclui a
extrafiscalidade, como no decorrer deste trabalho procurar-se-á demonstrar.

Nos últimos anos por inúmeras razões o Estado tem sido repensado. Como
adiante será tratado, de uma postura neutra no chamado período liberal, o Estado
passou a ter destaque sobretudo a contar da segunda metade do século XX, em
face da formulação de políticas intervencionistas. Foi a fase conhecida como de
“bem-estar social”, que permitiu, em alguns casos, significativos avanços sociais e
econômicos.

4
A Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza
Financeira – CPMF foi instituída no ordenamento jurídico-positivo para vigorar inicialmente pelo prazo máximo de
dois anos, pela Emenda Constitucional nº 12/96, que incluiu o art. 74 ao Ato das Disposições Constitucionais
Tributárias.
9

Este modelo, no entanto, por fatores diversos acabou entrando em crise,


certamente por não conseguir responder adequadamente às diversas demandas a
que estava vinculado e obrigado.

Esta crise, por se manter estática, como não poderia deixar de ser, acaba por
gerar discussões generalizadas no campo da Política, da Economia e do Direito. É
isto que ocorre atualmente no Brasil, permitindo renovadas propostas reformistas
estimuladas pela dinâmica imposta pelo mundo globalizado, com destaque para a
redução do tamanho do Estado e para a implementação de políticas para
desenvolvimento do mercado enquanto instituição, como forma de possibilitar o
alcance de padrões econômicos capazes de gerar benefícios à sociedade.

Nestas condições, neste trabalho serão feitas inicialmente considerações


relativas ao Estado e seu papel na implementação dos direitos sociais. Depois será
analisado o federalismo e a crise ocasionada pelas características do hoje existente
no Brasil, sobretudo em face da forma de arrecadação e divisão das receitas
públicas, bem como dos respectivos deveres dos entes federados, na viabilização
dos direitos sociais.

Na seqüência, ao final, a extrafiscalidade será examinada de forma mais


focada ao Município, com projeções não só de seus reflexos positivos no âmbito das
políticas públicas de inclusão social, mas também pela análise de possíveis
desdobramentos nefastos, resultantes inclusive da guerra fiscal, geradora de um
federalismo predatório, que podem ir desde o surgimento de situações que tornem o
Estado refém de determinados setores da economia, até quadros condutores de
verdadeira exclusão social.

Destaca-se, quanto aos autores escolhidos como referencial teórico, que


optou-se por J. J. Gomes Canotilho e Ricardo Lobo Torres no capítulo ligado aos
princípios constitucionais e sua concretização. Em um segundo momento,
especificamente quando da análise das matérias envolvendo poder local e
extrafiscalidade, a escolha recaiu em Ricardo Hermany e Hugo Thamir Rodrigues.
10

De modo a permitir o desenvolvimento e conclusão do presente trabalho, a


opção em relação à metodologia foi pelo método dedutivo, uma vez que se partiu de
algumas certezas, isto é, de que o federalismo brasileiro tem se mostrado predatório,
que tal modelo permite e viabiliza a chamada guerra fiscal entre Estados e
Municípios, e que tais entes federados muitas vezes acabam reféns de segmentos
econômicos, para depois se deduzir, por desdobramento, que a utilização da
extrafiscalidade como instrumento de política pública de inclusão social se mostra
viável, desde que seja resultado de adequada e criteriosa decisão. Em caso
contrário, o efeito gerado poderá ser inverso, isto é, de exclusão social.

Dedução outra também restará demonstrada, no sentido de que as vantagens


concedidas pelos entes federados aos setores vinculados à assistência social
representam estímulo a iniciativas de comportamento solidário, razão pela qual
devem ser estimuladas e ampliadas.

Também serão verificadas as possibilidades de ações efetivas na esfera


municipal, vinculadas à função extrafiscal da tributação, com o propósito de viabilizar
garantias resultantes da cidadania, objetivando a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, com a promoção do desenvolvimento nacional e erradicação da
pobreza e redução das desigualdades sociais, garantindo, em conseqüência, a
consolidação dos valores supremos da República Federativa do Brasil.

Desta forma, procurar-se-á ainda atingir outros objetivos da pesquisa, de


verificação do papel do Estado em relação à implementação de políticas públicas, se
é possível obter eficiência nesta tarefa com capacidade limitada de recursos e
investimentos, como harmonizar as medidas respectivas com a Lei de
Responsabilidade Fiscal, como alcançar um Estado austero, responsável e
equilibrado, que consiga conciliar disciplina fiscal e desenvolvimento, sobretudo na
implantação de medidas ligadas aos direitos sociais, demonstrando, enfim, como é
perfeitamente possível a utilização da extrafiscalidade como instrumento eficiente de
política pública de inclusão social e de solidariedade fiscal.
11

1 O ESTADO E O SEU PAPEL NA IMPLEMENTAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

No início deste trabalho será realizada uma sistematização da evolução do


Estado Moderno5, para que seja possível compreender como, no decurso histórico,
foram desenvolvidas idéias vinculadas à implementação de políticas públicas, com o
fim de se obter a concretização dos direitos sociais, inclusive no Brasil, considerando
disposições constitucionais.

Cabe destacar de imediato, que a Carta da República, no seu artigo 1º, ao


proclamar o Estado Democrático de Direito, busca seu fundamento na cidadania e
na dignidade da pessoa humana, entre outros valores. Em complemento, o artigo 3º
aponta como objetivos fundamentais do Estado a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária, para, em seguida, o artigo 6º, indicar os direitos sociais como
sendo a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados.

Por fim, o artigo 203, procurando dar efetividade aos direitos e aos valores
mencionados acima, determina que seja prestada assistência social a quem dela
necessitar, independentemente de pagamento de contribuição à seguridade social,
explicitando seus objetivos nos incisos I a V, entre os quais, a proteção à família, à
maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, o amparo às crianças e aos
adolescentes carentes, a promoção da integração ao mercado de trabalho, a
habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de
sua integração à vida comunitária. E, para atingir tais objetivos, o artigo 204, de
forma clara, prevê a atuação paralela das entidades beneficentes de assistência
social.

5
A expressão “Estado Moderno” é utilizada para caracterizar estruturas em que o governo, de modo direto ou
indireto, obedece a regras escritas ou consuetudinárias, que determinam seu funcionamento e resguardam as
pessoas de direito privado da interferência indevida do Poder Público. Referir Estado Moderno é modo de definir
o Estado de Direito, em que a escolha dos governantes é feita pelo povo, através do voto direto ou indireto,
sendo os candidatos apresentados por partidos políticos.
12

Assim, primeiramente se mostrará a contextualização dos modelos estatais,


passando pelo Estado Liberal e o que derivou do mesmo, ou seja, o Estado Social,
dirigido a propiciar direitos e serviços sociais de maneira geral e igualitária. Depois,
em um segundo momento, após considerações sobre o Estado Democrático de
Direito, será analisada a crise do Estado e suas deficiências na tarefa de efetivação
dos direitos sociais.

Finalmente, concluindo este primeiro capítulo, buscar-se-á uma incursão


acerca do efetivo papel do Estado na implementação dos Direitos Sociais, sobretudo
em face das disposições constitucionais antes apontadas.

1.1 O Estado: raízes históricas na busca da efetivação das necessidades


sociais

Para que seja possível realizar uma incursão pela evolução do Estado,
necessário de início conceituá-lo. Antes vale o alerta de Dalmo de Abreu Dallari
(2001, p. 41), no sentido de que são muitos os conceitos, formulados com grande
diversidade por todos que o têm em profundidade estudado, razão pela qual se
mostra necessária precisa fixação, de modo a evitar possíveis divergências
resultantes de concepções diversas.

Em complemento, registra, para fins de permitir a constatação da amplitude


destas divergências, dois extremos opostos. De um lado, lembra o historiador
Edward Meyer (2001, p. 42), que atribui ao Estado a condição de principal
organizador de todas as sociedades, pelo que por esta concepção o “[...] Estado é
um componente necessário da sociedade humana, tendo existido desde que surgiu
o primeiro agrupamento de homens sobre a Terra e devendo durar enquanto existir
a humanidade”. De outro lado, em outro extremo, cita Dallari (2001, p. 42) autores
como Balladore Pallieri, que “concebem o Estado como realidade histórica, dotada
de características certas e determinadas, todas indispensáveis, bastando que falte
uma delas ou que não possa ser claramente identificada para que se negue a uma
sociedade a condição de Estado”.
13

Feitas estas observações iniciais, importante lembrar Max Weber (2004, p.


525-526) quando afirma que o Estado hoje:

[...] é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território –


este, o “território”, faz parte da qualidade característica – reclama para si
(com êxito) o monopólio da coação física legítima, pois o específico da
atualidade é que todas as demais associações ou pessoas individuais
somente se atribui o direito de exercer coação física na medida em que o
Estado o permita. Este é considerado a única fonte do “direito” de exercer
coação. [...] O Estado do mesmo modo que as associações políticas
historicamente precedentes, é uma relação de dominação de homens,
apoiado no meio da coação legítima (quer dizer, considerada legítima). Para
que ele subsista, as pessoas dominadas têm que se submeter á autoridade
invocada pelas que dominam no momento dado. Quando e por que fazem
isto, somente podemos compreender nos quais se apóia a dominação.

Hans Kelsen (1998, p. 309) registra que Estado “[...] é uma sociedade
politicamente organizada, porque é uma comunidade constituída por uma ordem
coercitiva e esta ordem é o direito”.

Antônio Gramsci (1989, p. 25) já o define por meio da seguinte


esquematização: “Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia
revestida de coerção”.

Agustín Gordillo (1977, p. 89), afirma que o termo Estado para designar:

É utilizado tanto para designar: 1)a realidade política de um povo inteiro; 2)


como a figura jurídica que personifica esse povo no âmbito do direito; 3)
como conjunto de órgãos jurídicos através dos quais atua essa figura
jurídica. No primeiro caso temos o Estado na sua personalidade política, no
segundo temos a personalidade jurídica do Estado; no terceiro temos o
Estado na sua organização atuante.

De acordo com Cristiano Carvalho (2005, p. 291): “Estado é o foco principal de


emissão das ordens imperativas e contém o monopólio da coerção”.

Manuel Gonçalves Ferreira Filho (1995, p. 45) compreende ser o Estado “[...]
uma ordem jurídica relativamente centralizada, limitada no seu domínio espacial e
temporal de vigência, soberana e globalmente eficaz”.

Já para Walter Ceneviva (2003, p. 31), o Estado apresenta-se como uma:


14

[...] uma entidade jurídico-social soberana, constituída pelo povo, sob o


governo exercido sobre o espaço delimitado. Visto como instituição
compreende os elementos fundamentais indicados (povo, território e
governo), cuja conceituação, por envolver ramos diversos das ciências,
varia conforme a posição do observador.
Povo e espaço delimitado são realidades, humanas e físicas, sem cuja
existência não há falar em Estado. Pode haver povo sem Estado (os
israelenses, antes de Israel, os palestinos, nos últimos anos do XX, mesmo
após o reconhecimento pela Organização das Nações Unidas) e espaços
territoriais sem povo (a região polar da Antártida).
A conjugação dos dois elementos dá base ao Estado, enquanto entidade
jurídica e social, sob o governo.
O trinômio é insuficiente, sendo completado pela soberania.

Por fim, indispensável o conceito objetivo dado por Dallari (2001, p. 49), ao
afirmar que o Estado é a “[...] ordem jurídica soberana, que tem por fim o bem
comum de um povo situado em determinado território”.

Dos registros transcritos acima, possível se mostra concluir que a visão de


Estado, quando não avaliada em seu aspecto apenas formal, traz consigo,
geralmente, a noção de coexistência, coerção e dominação. Assim, na seqüência
deste trabalho será enfocada a questão da busca pelo alcance dos direitos sociais,
tarefa que esteve e está a marcar a evolução do Estado.
Por óbvio, não se pretende trabalhar com as formas primitivas de Estado, mas
como seu conceito moderno. Assim, delimitada a dimensão espacial da pesquisa,
cumpre esclarecer que o Estado Moderno encontra-se dividido em Estado
Absolutista e Estado de Direito.

O Estado Absolutista é marcado pelo domínio total do soberano, no qual está


centralizado o poder de administrar a população. Diante da necessidade de limitação
desse poder, surge o Estado de Direito. Segundo Cezar Saldanha Souza Júnior
(2002, p. 75) a expressão “Estado de Direito”6 significa:

[...] submissão do poder do Estado a uma ordem jurídica que garante os


direitos fundamentais das pessoas, conquista da tradição liberal diante do
absolutismo. A adjetivação “social” revela, por sua vez, que se acrescentam
novos conteúdos a esses direitos e que toda a estruturação jurídica do
poder é adaptada às novas condições da sociedade contemporânea.

6
“Bem observa Agustín Gordillo que falar em Estado de Direito não quer dizer que todo o Estado deve ser
‘Estado de Direito’, o que vale dizer é que deve atuar com sujeição aos princípios jurídicos fundamentais,
respeitar os direitos individuais e, “em especial, a liberdade, ou seja, ‘saber se as normas jurídicas impetrantes
num determinado país submetem ou não o Estado’.” (MACEDO; FERRARI, 2005, p. 17).
15

Regina Maria Macedo e Nery Ferrari (2005, p. 16) afirmam que no século XX,
os Estados sofreram conseqüências de crises políticas, econômicas e ideológicas,
sendo que na evolução das instituições políticas é fundamental uma percepção de
Estado de Direito para que se possa compreender o status angariado pelo Estado:

O Estado de Direito nada mais é do que um sistema normativo com base


nos pressupostos filosóficos e políticos da democracia liberal, tendo como
princípios o império da lei, a separação dos poderes, a legalidade da
administração e os direitos e garantias individuais.

Na mesma linha situa-se o posicionamento de José Afonso da Silva, (1999, p.


116-117) ao afirmar que o Estado de Direito traz de forma intrínseca um conceito
liberal:

[...] daí falar-se em Estado Liberal de Direito, cujas características básicas


foram: (a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu
conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder
Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo-cidadão; (b)
divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a
produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último
em face dos demais e das pressões dos poderes particulares; (c) enunciado
e garantia dos direitos individuais. Essas exigências continuam a ser
postulados básicos do Estado de Direito, que configura uma grande
7
conquista da civilização liberal .

7
“A concepção liberal do Estado de Direito servira de apoio aos direitos do homem, convertendo os súditos em
cidadãos livres, consoante nota Verdú, a qual, contudo, se tornara insuficiente, pelo eu a expressão Estado de
Direito evoluíra, enriquecendo-se com o conteúdo novo.
Houve, porém, concepções deformadoras do conceito de Estado de Direito, pois é perceptível que seu
significado depende da própria idéia de que se tem do Direito. Por isso, cabe razão a Carl Schmitt quando
assinala que a expressão ‘Estado de Direito’ pode ter tantos significados distintos como a própria palavra
“Direito” e designar tantas organizações quanto as que se aplica à palavra ‘Estado’. Assim, acrescente ele, há
um Estado de Direito feudal, outro estamental, outro burguês, outro nacional, outro social, além de outros
conformes com o Direito natural, com o Direito racional e com o Direito histórico. Disso deriva a ambigüidade da
expressão Estado de Direito, sem mais qualificativo que lhe indique conteúdo material. Em tal caso a tendência é
adotar-se a concepção formal do Estado de Direito à maneira de Forsthoff, ou de um Estado de Justiça, tomada
a justiça como um conceito absoluto, abstrato idealista, espiritualista, que, no fundo, encontra sua matriz no
conceito hegeliano do Estado ético, que fundamentou a concepção do Estado fascista: ‘totalitário e ditatorial em
que os direitos e liberdades humanas ficam praticamente anulados e totalmente submetidos ao arbítrio de um
poder político onipotente e incontrolado, no qual toda a participação popular é sistematicamente negada em
benefício da minoria [na verdade, elite] que controla o poder político e econômico’. Diga-se logo, que o Estado de
Justiça, na formulação indicada, nada tem a ver com Estado submetido ao Poder Judiciário, que é um elemento
importante do Estado de Direito. Estado submetido ao juiz é Estado cujos atos legislativos, executivos,
administrativos e também judiciais ficam sujeitos ao controle jurisdicional no que tange à legitimidade
constitucional e legal. É também uma abstração confundir Estado de Direito com uma visão jusnaturalista do
Estado.
Por outro lado, se se concebe o Direito apenas como um conjunto de normas estabelecidas pelo Legislativo, o
Estado de Direito passa a ser Estado de Legalidade, ou Estado legislativo, o que constitui uma redução
deformante. Se o princípio da legalidade é um elemento importante do conceito de Estado de Direito, nele não se
realiza completamente”. (SILVA, 1999, p. 117-118).
16

O Estado de Direito apresenta as seguintes classificações: Estado Liberal de


Direito, Estado Social de Direito, Estado Democrático de Direito. (Lênio Luiz Streck;
José Luis Bolzan de Morais, 2000).

A seguir examinar-se-á cada uma delas dessas classificações.

1.1.1 Estado Liberal de Direito

O Estado Liberal de Direito surgiu após a Revolução Francesa8, ocorrida no


final do século XVIII. Constituiu-se no primeiro regime jurídico-político da sociedade
que materializava as novas relações econômicas e sociais, colocando de um lado os
capitalistas (burgueses em ascensão) e do outro a realeza (monarcas) e a nobreza
(senhores feudais em decadência).

É conhecido o lema dos revolucionários: "Liberdade, Igualdade e Fraternidade",


lema este que contemplava desejos da burguesia. Em síntese, a liberdade individual
para a expansão dos seus empreendimentos e a obtenção do lucro; a igualdade
jurídica com a aristocracia visando à abolição das discriminações; e a fraternidade
dos camponeses, com o intuito de que apoiassem a revolução e lutassem por ela.

De maneira resumida, é possível identificar como características básicas do


Estado Liberal a não intervenção na economia, a vigência do princípio da igualdade
formal, adoção da Teoria da Divisão dos Poderes de Montesquieu9, supremacia da
Constituição como norma limitadora do poder governamental e, por fim, a garantia
de direitos individuais fundamentais.

8
A Revolução de 1789 foi uma revolta social da burguesia, inserida no Terceiro Estado francês, que se elevou
do patamar de classe dominada e discriminada para dominante e discriminadora, destruindo os alicerces que
sustentavam o absolutismo (antigo regime), pondo fim ao Estado Monárquico autoritário.
9
No tocante à Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu, adotada pelo Estado Liberal, José de
Albuquerque Rocha observa que o objetivo de Montesquieu ao idealizar os poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, era preservar os privilégios da sua própria classe, a nobreza, ameaçada tanto pelo rei, que almejava
recuperar sua influência nacional, quanto pela burguesia, que dominando o poder econômico, intentava o poder
político. Elaborou, então, sua teoria que repartia o poder entre a burguesia, nobreza e realeza, afastando, deste
modo, a possibilidade da burguesia em crescimento ser a sua única detentora. (ROCHA, 1995, p. 128).
17

Assim, muitos dos princípios que integram a noção do constitucionalismo, que


se apresenta como uma característica do Estado Liberal Clássico10, já estavam
presentes na Idade Média. Pode-se citar como um dos exemplos de tais princípios a
limitação do poder político pelos freios jurídicos. (SOUZA JÚNIOR, 2002)11.

Com a dissolução do poder dos senhores feudais e a ascensão da burguesia,


os reis formalizaram a centralização da administração, acabando com o poder dos
senhores feudais, fazendo surgir o Estado Nacional Moderno, com a unificação da
monarquia em torno do rei. (SOUZA JÚNIOR, 2002).

Neste contexto, o Estado Liberal surge como uma reação ao Estado Nacional.
Tal reação teve o seu início na Inglaterra, onde o processo de unificação do Estado
desenrolou-se com maior antecedência, e esteve caracterizado pelo esforço em
limitar o poder político e responsabilizar:

[...] seus detentores, por meio de freios jurídicos positivos e institucionais, a


partir de uma Constituição escrita, num quadro político que conferem ao
Estado, “soberania” diante dos grupos integrantes da comunidade e diante
de qualquer sanção religiosa ou de outra natureza, provinda de exterior
(SOUZA JÚNIOR, 2002, p. 22).

O Estado Liberal Clássico apresenta-se, igualmente, como uma resposta


política às mudanças científicas, sociais e econômicas que iniciaram a partir do
século XV, trazendo bases filosóficas completamente distintas das defendidas pela
ordem medieval:

10
“O liberalismo político de Locke, no âmbito filosófico, e o Estado Liberal que, no plano histórico, se consolida a
partir da independência dos Estados Unidos da América e da Revolução Francesa, assinalam uma expressiva
ruptura com o formalismo jurídico do padrão absolutista. Apesar da preferência de muitos autores por destacar
os seus desvios e os seus deméritos, e a verdade é que ambos, sob a lua da doutrina dos direitos naturais,
realizaram uma façanha de não ouço magnitude, a estruturação de um modelo de Estado Material de Direito que
se antecipou em mais de um século à forma constitucional da generalidade das democracias ocidentais do
mundo contemporâneo (Alemanha, Espanha, Portugal, Itália, Brasil etc.), com os seus catálogos de direitos
fundamentais geralmente conectados a uma cláusula de intangibilidade normativa. Só uma miopia severa,
adquirida ao preconceito antiburguês, poderia impedir alguém de enxergar aí a exemplar sintaxe da filosofia de
Locke e dos movimentos revolucionários do século XVIII na América e na Europa”. (Martins Neto, 2003, p. 105).
11
“O liberalismo fez surgir [...] o chamado Estado Democrático de Direito. A fonte de legitimação do poder não é
mais o direito divino (império e monarquia), mas a escolha do governante pelo voto popular. Esse é o seu
aspecto democrático. A síntese principal do ‘Estado de Direito’, por outro lado, é a delimitação do poder político
através de sua qualificação jurídica. O emissor fundamental da ordem normativa já não é mais a figura do rei ou
imperador, cuja fonte de poder é supostamente divina e imutável, mas sim uma figura criada por uma
Constituição, ou Carta Fundamental de criação de direitos e deveres numa nação. [...] Tal tipo de Estado fez
surgir o capitalismo laissez faire, denominação que veio de uma expressão (laissez faire, laissez passeur)
utilizada pelos franceses do século XVIII, defensores do livre mercado. [...] O governo não controlava os rumos
18

A sociedade medieval é comunitária, tentando integrar o individual e o social


do homem na noção de pessoa humana. A filosofia liberal clássica vê o
homem antes de tudo como um indivíduo, em vista da satisfação de seus
desejos. A sociedade medieval natural decorre de uma lei que, em última
instância, é divina, de um Deus que está acima do mundo. O liberalismo
clássico, embora preserve parcialmente a separação entre Deus e o mundo,
“seculariza a transcendência”: o fundamento do direito natural passa a ser a
razão humana, colocada no lugar de Deus. A filosofia do Estado liberal
clássico está compendiada na cosmovisão do iluminismo, que dominou o
século XVIII, individualista, naturalista, mecanicista e crente no progresso
indefinido. (SOUZA JÚNIOR, 2002, p. 23).

O liberalismo, pois, segundo Souza Junior (2002), defende a não-atuação do


Estado no âmbito econômico12. A função do Estado, para ele, restringe-se a garantir
a livre competição, baseada na apropriação privada dos bens de produção “[...]
mediante a garantia da ordem interna e da segurança externa, e uma adequada
administração da justiça para proteger os direitos de cada indivíduo”. (2002, p. 29).

Destaca ainda que as constituições que regeram o Estado Liberal Clássico não
apresentam referência direta à ordem econômica e social, de sorte que buscam
passar a imagem de que são constituições políticas preocupadas com a organização
da estrutura política do Estado. Tal não impede, segundo o referido autor, que se
reconheçam tais constituições como econômicas, ou seja, caracterizadas pela busca
da organização econômica fundamental, vez que os textos constitucionais liberais
clássicos incluem entre as liberdades públicas os direitos individuais de propriedade,
de comércio, de indústria, de profissão. Pode-se afirmar, assim, que correto é dizer
que o Estado Liberal subordinou a atividade política à econômica ou, melhor ainda, à
estrutura do Poder, às classes emergentes na sociedade burguesa. (2002, p. 31).
A ideologia liberal está caracterizada pela idéia de que o ser humano é um ser
individual, de forma que na relação indivíduo-sociedade, o primeiro prevalece. Os
direitos do indivíduo apresentam-se como absolutos, apenas encontrando limite
frente a direito igual de outro indivíduo.

da economia, mas punia condutas que violassem direitos e liberdades individuais, agindo mais por provocação,
de forma a calibrar a ordem social”. (Carvalho, 2005, 291-294).
12
“Não se deve, porém, exagerar demasiadamente, no plano doutrinário, o não intervencionismo estatal, pelo
menos na contribuição legada por Adam Smith. Julgava ele que o Estado tem apenas três deveres a cumprir:
primeiro, o de defender a sociedade da violência e da invasão por outras sociedades independentes; segundo, o
de proporcionar uma adequada administração da justiça, para os inevitáveis conflitos de interesses entre os
indivíduos; e terceiro – aqui o relativo intervencionismo de Smith -, o de propiciar aquelas obras públicas (public
Works) ‘de tal natureza, que o lucro jamais reembolsa as despesas de um indivíduo ou de um pequeno número
deles e, por esse motivo, não há razão para esperar que algum indivíduo ou pequeno grupo (small number of
individuais) as erija ou mantenha’.” (SOUZA JÚNIOR, 2002, p. 29).
19

De acordo com João dos Passos Martins Neto (2003, p. 107), a estrutura desse
modelo de Estado é de um “[...] Estado Material de Direito, cujo antagonismo com o
absolutismo compreende ainda a adesão ao princípio da soberania indivisível, ou da
separação de poderes (divisibilidade funcional) [...]”. Para ele, o nome do Estado
Liberal foi atribuído não em virtude de uma neutral submissão a restrições materiais,
mas sim levando em conta o conteúdo ideológico dos limites impostos a partir das
matérias consideradas indisponíveis ao legislativo sob a forma de direitos
fundamentais. Isto no seu entender nada mais foi do que “[...] imunizar as liberdades
individuais contra o arbítrio do poder [...]”.

O autor citado continua a sua explanação ressaltando que o Estado Liberal não
se resumiu na defesa única exclusiva dos direitos de liberdade:
Particularmente na França, porque a revolução almejava a destruição do
ancien regime fundado em privilégios aristocráticos e estamentais, o acento
maior foi colocado na igualdade, ou na proclamação do direito de todos os
indivíduos, pela sua só condição humana, a uma igual proteção das leis,
sem distinções por motivo de nascimento ou título de nobreza. Nos Estados
Unidos, devido à recepção da cultura jurídica inglesa, fortemente marcada
por institutos de natureza processual, ganharam proeminência a garantia do
devido processo legal e outras que lhe são correlatas (defesa, contraditório,
júri etc.). Paralelamente, completando o núcleo dos bens jurídicos mais
caros ao ideal dos movimentos revolucionários da modernidade, os direitos
à vida e à prosperidade obtiveram geral reconhecimento no seio liberal.
Começava, então, sob a armadura ideológica do liberalismo, uma nova
história do homem, que Bobbio viria a nomear de a era dos direitos.
Acresce considerar que os direitos políticos, sobretudo o direito de sufrágio,
embora num primeiro momento só consentidos aos proprietários, podem ser
considerados como uma conseqüência do Estado Liberal. (2003, p. 107-
108).

Registre-se que a primeira Constituição escrita dos Estados norte-americanos


(Virgínia, 1776) já contemplava o princípio da soberania popular, razão pela qual não
demorou a consolidar o entendimento de que a única forma de viabilizar o exercício
da soberania popular, é através da atribuição ao maior número de cidadãos do
direito de participar direta e indiretamente na tomada das decisões coletivas. É neste
contexto que o Estado Democrático aparece com um prosseguimento e um
aperfeiçoamento do Estado Liberal. (MARTINS NETO, 2003).

Em que pese os ideais liberais alcançarem outros direitos que não apenas a
liberdade, pode-se concluir, que, de modo geral, o Estado, na visão liberal, deveria
20

intervir o mínimo possível, estando as suas funções afetas apenas à composição de


conflitos internos e à segurança em relação a perigos externos (outros Estados),
bem como à administração da justiça (Souza Junior, 2002). Nesse sentido, afirma
Manuel Gonçalves Ferreira Filho (1977, p. 110) que a missão do Estado é simples,
não lhe cabendo a realização do “[...] bem-estar dos indivíduos, a sua felicidade, já
que esta há de provir da natureza, por meio de suas leis sábias [...]”. Conclui que
cabe ao Estado “[...] apenas e tão somente estabelecer a ordem jurídica e mantê-la
contra os que violarem [...]”.

Ao Estado está, portanto, reservada a função de garantir a ordem e a defesa,


sendo que a livre competição estabelece a regulação do mercado. Verifica-se que o
liberalismo puro privilegia o individualismo, concepção que, contudo, a partir de
1880, passa por mudanças diante da nova realidade econômica que começa a
surgir, especialmente no setor industrial. O Estado passa a ter a função de remover
obstáculos ao autodesenvolvimento dos homens. (Streck; Morais, 2000, p.54). Desta
forma reduz-se a liberdade do indivíduo, aumentando o poder de intervenção do
Estado.

Assim, pode-se afirmar que o Estado Liberal consolida-se no decurso do século


XIX, período em que fica sujeito, também, a alterações:

Os liberais e os partidos e movimentos liberais mudaram a estrutura


econômica, social e política da Europa, e modificaram drasticamente, a
comunidade internacional, quando, então, terminaram a escravidão,
incapacidades religiosas, garante-se a tolerância; liberdade de imprensa,
discurso e associação; a educação foi estendida; o direito de voto ampliou-
se até às mulheres; elaborações constitucionais limitando e
responsabilizando os governos.Por outro lado, na medida em que o sufrágio
se estendeu a outros setores sociais, os partidos políticos começaram a
surgir, buscando votos de modo a governar na base do que ofereciam ao
eleitorado, tornando os governos suscetíveis às solicitações populares, o
que vai impor uma mudança de rota no projeto do Estado Mínimo no sentido
da intervenção do poder público estatal em espaços até então próprios da
iniciativa privada. (STRECK; MORAIS, 2000, p.56).

O ideário do liberalismo sofre alterações substanciais no final do século XIX


passando a apresentar um caráter intervencionista e uma busca por justiça social.
Tais alterações podem ser atribuídas, dentre outras razões, à crise econômica
gerada pelas Primeira e Segunda Guerras Mundiais, a Depressão de 1929, aos
movimentos socialistas, à influência do Manifesto Comunista de 1848, ao
21

aparecimento de grandes concentrações urbanas e industriais, à maior participação


política, ao aparecimento de monopólios econômicos em virtude da liberação de
mercado. (STRECK; MORAIS, 2000).

Souza Junior (2002, p. 36-37) afirma que, no momento em que o Estado deve
ficar o mais ausente possível do domínio das atividades econômicas e sociais,
pouco espaço resta para as funções denominadas “de governo”. Funções tais que
se refletem na vida econômica e social desenvolvidas por meio de políticas
públicas13 pelos órgãos específicos de governo, objetivando responder às demandas
dos diversos grupos integrantes da comunidade, bem assim deixar a competição
que se dá entre eles por recursos escassos.

A presença de um governo que toma decisões e determinada políticas, muitas


vezes, sem a participação do parlamento, mas estando sob o seu controle e também
do Judiciário, na concepção de Souza Junior (2002), é impensável num ideário de
Estado Liberal Clássico.

Eros Roberto Grau (2001, p. 14-15) alerta, contudo, que o Estado sempre
esteve presente na atuação do campo econômico. Em suas palavras: “[...] ao tempo
do liberalismo era o Estado, seguidas vezes, no interesse do capital, chamado a
intervir na economia”. Angelita Maria Maders (2004) compartilha deste entendimento
ao afirmar que os Estados tiveram que assumir um papel ativo na industrialização
capitalista e no desenvolvimento social, resultando no que se convencionou
denominar de liberalismo tardio caracterizado por um Estado marcadamente
intervencionista14. Como afirma Caio Tácito (1998, p. 02):

A sociedade liberal, baseada na livre iniciativa, aprofundou-se em


contradições e antagonismos. Os interesses se organizaram em grupos,
provocando conflitos intoleráveis com os postulados da ordem democrática.
O Poder Público foi convocado a disciplinar e conter a atividade privada,
sujeitando-a aos princípios do bem comum e da justiça social.

13
Tal conceito será abordado, especificadamente, no Capítulo Terceiro.
14
Importante realizar a distinção entre intervencionismo, dirigismo e planificação: intervencionismo – são as
medidas eventuais por parte do Estado, caracteriza o início da derrocada do ideal liberal; dirigismo – caracteriza-
se pela intervenção mais acentuada e auxílio à iniciativa privada; planificação – a intervenção é ainda maior com
a elaboração de projetos e análises da economia global. (Streck; Morais, 2002).
22

Ademais, como esclarece Martins Neto, o ideal liberal defrontou-se com a


impossibilidade de colocar em prática a sua retórica, contando, ainda, com a
formação do proletariado como decorrência de um processo de industrialização
ocorrido no século XIX, que acabou culminando com o surgimento de uma nova
concepção de Estado:

Começou-se a perguntar desde então, com acento claramente irônico, em


que consiste a liberdade de pensar para um analfabeto, ou a liberdade de
empresa para um pobre, e logo se percebeu, como disse Wigny, que “uma
liberdade jurídica, mesmo protegida, corre o risco de não ser exercida senão
pelo mais forte”. Com a evolução dos acontecimentos, ficou evidente que o
Estado Liberal, se bem limitava o arbítrio monárquico, favorecia a exclusão
da numerosa classe dos trabalhadores dependentes ou assalariados dos
proveitos efetivo dos valores liberais. A proliferação da pobreza urbana
mostrou quem, na verdade, o jugo do rei acabara substituído pela opressão
do rico, e os estratos materialmente carentes da população estavam
deixados ao abandono por uma autoridade política que, nas duras palavras
de Burdeau, apenas “prepara a arena e, em seguida evacua os cadáveres”.
É no meio dessa crise que uma nova concepção de Estado encontrará seu
lugar. (MARTINS NETO, p. 109).

Com tais mudanças ocorridas, uma nova forma de Estado vai surgindo,
trazendo consigo valores de cunho social. Surge, então, o Estado Social de Direito.

1.1.2 O Estado Social de Direito

O que se verificou com o passar dos anos foi a existência de uma igualdade
somente formal, a qual, somada ao absenteísmo do Estado Liberal relativamente às
questões sociais, serviu para impulsionar o capitalismo, com conseqüente
agravamento das condições da classe trabalhadora, que passava a viver sob
condições miseráveis.

Este descompromisso com o aspecto social, que foi agravado pela Revolução
Industrial, culminou com a Revolução Russa de 1917, conduzindo os trabalhadores
a se organizarem, como única alternativa de garantir direitos. Como efeito disto e
para neutralizar os ideais revolucionários do leste europeu, surgiu o Estado Social,
caracterizado pela intervenção do Estado na economia, pela aplicação do princípio
da igualdade material e pela realização da justiça social.
23

Houve, pois, uma verdadeira inversão do quadro, ou seja, a defesa do


intervencionismo estatal no campo econômico e social, objetivando acabar com a
postura de omissão do Estado. Portanto, o ponto principal foi a substituição da
igualdade formal, presente no Estado Liberal, que apenas contribuiu para o aumento
das distorções econômicas, pela igualdade material, que tinha por fim alcançar a
justiça social.

Em realidade, o princípio da igualdade material ou substancial não apenas


considera todas as pessoas abstratamente iguais perante a lei. Está dirigido também
para a realidade, que exige tratamento desigual para as pessoas efetivamente
desiguais, de modo a possibilitar que desenvolvam as oportunidades que lhes
assegura, abstratamente, a igualdade formal. A partir disto, surge a convicção pela
necessidade de tratar desigualmente as pessoas desiguais, na medida desta
desigualdade.

Nesta linha Manuel Garcia-Pelayo (1982, p. 18), na busca da conceituação de


Estado Social15 ensina que:

15
“Por oportuno, há três apontamentos sobre questões de terminologia. O Estado Social, assim concebido,
naturalmente não se confunde com os sistemas políticos de inspiração marxista. Com efeito, como adverte
Bonavides, há lago, no ocidente, que o distingue, desde as bases, do Estado proletário ou comunista que o
socialismo radical intenta implantar: ‘é que lê conserva sua adesão á ordem capitalista, princípios cardeal ao qual
não renuncia’. Daí, a propósito, a explicação para opinião em geral difundida quanto a constituir o Estado Social
“um meio termo entre a proposta socialista revolucionária e o liberalismo em crise’. Nesse caso, uma vez que o
emprego do mesmo nome para designar objetos distintos é inaceitável, sob pena de frustração da função
primordial da linguagem, aos sistemas políticos marxistas se deve reservar uma nomenclatura própria e
exclusiva, como Estado Socialista, Estado Marxista ou Estado Comunista, a bem de espancar confusões
semânticas.
O Estado Social tem sido ainda, muitas vezes, assimilado aos chamados Estado-providência e Estado de Bem-
Estar. Alguns autores utilizam as expressões como sinônimas. Contudo, o caráter providencial ou beneficente diz
respeito, somente, à obrigatoriedade de o poder público fornecer um conjunto mínimo de bens e serviços
considerados essenciais à dignidade da existência humana, como em matéria de saúde, educação, assistência e
previdência, para o fim de liberar as classes pobres de uma alternativa inóspita; ou a constatação a título
oneroso no mercado privado ou a dependência de instituições caridosas de eficácia incerta. O aspecto da
providência liga-se, pois, essencialmente, à atividade estatal no campo da educação e da seguridade, que é
apenas uma das dimensões da política intervencionista que se generaliza a partir da segunda década do século
XX nos países ocidentais capitalistas. Por isso, Estado-Providência é uma categoria de abrangência limitada,
que está para a categoria Estado Social como um círculo menor desenhado dentro de outro mais vasto.
Na literatura política, o Estado Social já apareceu sob a denominação de Estado Contemporâneo. De fato, é
assim, entre nós, Pasold entendeu de nomear o novo modelo estatal que, ao menos no plano do discurso
constitucional, surge na segunda década do século passado, em 1917, com a Constituição Mexicana, e, em
1919, com a Constituição Alemã (ou de Weimar). Todavia, a divergência, aqui, é apenas aparente simbólica. O
Estado Contemporâneo de Pasold é justamente aquele que tem, como desígnio inerente à sua própria
existência, uma função social a cumprir, qual seja, a realização prioritária dos valores fundamentais da pessoa
humana (saúde, educação, trabalho, liberdade e igualdade), num ambiente jurídico-político em que se façam
imperar os mecanismos típicos do regime democrático (eleições, plebiscitos e referendos). Não é, pois, nem o
Estado liberal clássico, nem o Estado Socialista ortodoxo, mas o Estado Social da tradição ocidental, que exorta
a fraternidade entre os homens sem lhes aniquilar a autonomia.
Cabe averbar que, no mérito, a distância guardada do Estado Socialista tem conseqüências relevantes para a
compreensão do Estado Social. Posicionado numa linha intermediária entre individualismo e coletivismo, o
24

O Estado Social significa historicamente a tentativa de adaptação do Estado


tradicional (pelo qual entendemos aqui o Estado Liberal burguês) às
condições sociais da civilização industrial e pós-industrial, com seus novos e
complexos problemas, mas também com suas grandes possibilidades
técnicas, econômicas e organizativas para enfrentá-los. Não temos de ver
as medidas de tal adaptação como algo totalmente novo, porém como uma
mudança qualitativa de tendências surgidas no século XIX e começo do
Século XX.

O Estado Social surge, assim, a partir da mudança fundada na substituição do


liberalismo econômico pelo intervencionismo estatal, que ocorreu por meio de
medidas emergenciais e que propiciou a interação dos sistemas político e
econômico. O Estado passa a atuar sobre a sociedade, reestruturando-a e
condicionando seu existir. De outro lado, a sociedade, através de seus diversos
grupos representativos, procura influir sobre a política estatal, em favor dos
interesses de tais grupos16.

O Estado que até então estava baseado no individualismo, decorrente da


concepção da ideologia liberal, passou aos poucos a ter um cunho mais social,
especialmente em decorrência dos movimentos operários na busca do alcance de
direitos referentes à redução da jornada de trabalho, aos benefícios previdenciários,
à assistência social, à moradia, à salubridade do ambiente de trabalho,
caracterizando o que se denomina de Estado Intervencionista, ou Estado de Bem-
Estar (Welfare State)17, ou Estado Providência ou, ainda, Assistencial18. (MADERS,
2004).

Estado Social parte de uma idéia de dignidade da pessoa humana que se assenta primeiramente no
reconhecimento de um direito humano de autodeterminação, cuja contrapartida é o dever de auto-
responsabilidade. Assim, se o Estado Social não tolera o abandono de cada qual à própria sorte, também não
admite que o homem renuncie às responsabilidades que tem para consigo mesmo. A propósito do direito
constitucional alemão, Benda cuidou de acentuar esse aspecto, observando que o Estado Social não implica a
administração de um sistema de serviços de provisão absoluta, que libere o indivíduo de todas as preocupações
e cuidados pessoais com a construção de sue próprio futuro existencial. (MARTINS NETO, 2005, p. 114-116).
16
“Esse binômio que integra a noção de Estado Social vem consagrado expressamente em duas constituições
contemporâneas. A Lei Fundamental de Bonn, de 1949, em seu artigo 28, declara ser a Alemanha Ocidental “um
Estado republicano, democrático e social de direito”. Por sua vez, a Constituição espanhola, em seu artigo 1.º
proclama: “A Espanha constitui-se num Estado social e democrático de direito”. (SOUZA JÚNIOR, 2002, p. 75).
17
Registre-se que o laissez faire como sistema social foi paulatinamente sendo desacreditado, gerando como
decorrência crescimento do Estado. O princípio do Welfare State é o da redistributividade, ainda que uma
estatização parcial seja freqüente em alguns casos, o que realmente importa é a redistribuição da riqueza
produzida pela iniciativa privada. (CARVALHO, 2005).
18
Para Antonio Carlos Wolkmer (1990, p. 26): “Todas essas são rotulações que justificam e legitimam momentos
do Estado Contemporâneo, os quais indistintamente do modelo político econômico de que servem, quer seja o
Capitalismo, quer seja o Socialismo estatizante (concentração das decisões por parte de um Superestado que se
diz representante dos trabalhadores em geral), apresentam características ora comuns, ora específicas”. Em
sentido diverso entende Morais (2002, p. 37): “O modelo constitucional do Welfare State, principiou as ser
construído com as Constituições mexicana de 1917 e de Weimar de 1919, contudo, não tem uma aparência
uniforme. O conteúdo e os instrumentos próprios desta forma estatal se alteram, se reconstroem e se adaptam a
25

Em realidade, no século XX, a cidadania adquiriu um conteúdo social, eis que


ser cidadão implica ter direitos de natureza econômica, social e cultural. Sem dúvida,
esta nova noção de cidadania foi fruto do desenvolvimento econômico e social do
século XX, que configurou o chamado Welfare State, o qual, em termos gerais,
representou um esforço de reconstrução econômica, moral e política.

José Luis Bolzan de Morais (2003, p. 3) afirma que o Estado do Bem-Estar


Social corresponde aquele

[...] no qual o cidadão, independentemente de sua situação social, tem


direito a ser protegido, através de mecanismos/prestações públicas estatais,
contra dependências e/ou concorrências de curta ou longa duração, dando
guarida a um fórmula onde a questão da igualdade aparece – ou deveria
parecer – como fundamento para a atitude intervencionista do Estado.

Significa dizer, de outro modo, que o Estado do Bem-Estar Social corresponde


à institucionalização dos direitos sociais. Este modelo de Estado é identificado em
face de garantir a todo cidadão direitos básicos, como alimentação, educação,
saúde, habitação. E isto mediante o reconhecimento de que tais garantias importam
em efetivo direito político.

Silva (1999, p. 120-121) afirma que a expressão Estado Social de Direito não
está aplicada com total propriedade pois:

[...] manifesta-se carregada de suspeição, ainda que se torne mais precisa


quando se lhe adjunta a palavra democrático como fizeram as Constituições
da República Federal da Alemanha e da República Espanhola para chamá-
lo Estado Social e Democrático de Direito. Mas aí, mantendo o qualificativo
social ligado a Estado, engasta-se aquela tendência neocapitalista e
petrificação do Welfare State, com o conteúdo mencionado acima,
delimitadora de qualquer passo à frente no sentido socialista. Talvez, para
caracterizar um Estado não socialista preocupado, no entanto, com a
realização dos direitos fundamentais de caráter social, fosse melhor manter
a expressão Estado de Direito, que já tem uma conotação democratizante,
mas, para retirar dele o sentido liberal burguês individualista, qualificar a
palavra Direito com o social, com o que se definiria uma concepção jurídica
mais progressista e aberta, e então, em lugar de Estado Social de Direito,
diríamos Estado de Direito Social [...].

situações diversas. Assim é que não se poderia falar em ‘o’ Estado do Bem-Estar dado que sua apresentação,
por ex., americana – do Norte, é claro – se diferencia daquela do État-Providence francês ou do protótipo anglo-
saxão ou, mesmo dos países nórdicos, se quisermos constituir alguns núcleos básicos”.
26

A par das colocações anteriores, depreende-se que fator determinante para a


mudança de visão de Estado está assentado na própria revolução industrial. Neste
sentido, destaca Dallari relativamente à segunda revolução industrial (2001, p. 79-
80):

A revolução industrial foi, na verdade, paradoxal. Ela só foi possível porque


o Estado não interferiu nas atividades econômicas. Mas enquanto ela se
desenvolvia, e por causa dela, foram sendo criadas as condições que iriam
tornar imprescindível a intervenção do Estado. Guiados por critérios
exclusivamente econômicos, os detentores do capital impunham condições
degradantes aos economicamente fracos, acentuando-se os desníveis
sociais. Ao mesmo tempo, transferindo-se o eixo econômico para as
cidades, foi sendo criada uma sociedade predominantemente urbana, com a
concentração de grandes massas proletárias, necessitadas de auxílio para a
obtenção do indispensável à sua própria sobrevivência. Paralelamente,
também os detentores do capital passaram a necessitar do Estado para que
este lhes proporcionasse, e aos seus empregados, determinados bens e
serviços que os indivíduos ou grupos privados não podiam ou não queiram
oferecer. Tudo isso estimulou a ampliação e o aprofundamento da
participação do Estado na vida social.

O Estado, diante de tais reivindicações, vê-se compelido a assumir funções


próprias do setor privado, primando pela implementação de direitos sociais aos
indivíduos19. Contudo, a partir de uma visão crítica, Streck e Morais (2000, p. 71)
defendem que o que ocorreu, na verdade, foi uma acumulação de capital por parte
da classe burguesa:

O intervencionismo estatal, condição de possibilidade para a realização da


função social do Estado e caminho para aquilo que se convencionou
chamar de Estado Social ou Estado de Bem-Estar Social, serviu apenas
para acumulação de capital e renda para as elites brasileiras. Nesse
sentido, é importante lembrar que esse “Estado intervencionista não é uma
concessão do capital, mas a única forma de a sociedade capitalista
preservar-se, necessariamente mediante empenho na promoção da
diminuição das desigualdades socioeconômicas. A ampliação das funções
do Estado tornando-o tutor e suporte da economia, agora sob conotação
pública, presta-se a objetivos contraditórios: a defesa da acumulação do
capital, em conformidade com os propósitos da classe burguesa, e a
proteção dos interesses dos trabalhadores.

19
Afirma Nuria Belloso Martín (2005, p. 76) que o ideal do Estado de Bem-Estar Social está assentado em: “[...]
políticas públicas de bem-estar social [que] se baseiam na idéia de que assegurar um mínimo de bem-estar
social não é apenas necessário, mas que exige interferência no livre funcionamento do mercado livre,
redistribuindo riqueza sob a forma de serviços públicos. Os serviços de bem-estar social constituem, portanto,m
um elemento constitutivo indispensável de cidadania social, pois pretendem evitar a hostilidade entre os
contribuintes e que se identifique os beneficiários, como indivíduos inferiores. Ao contrário, asseguram a
existência de níveis de vida mínimos para todos os membros da comunidade social: são universais, evitam a
súplica e não se está exposto com isto a discricionariedade oficial. Desta forma, o direito ao bem-estar social se
tornou em uma parte essencial da cidadania em si, o mesmo que os direitos de propriedade e de voto”.
27

O Estado Social, no pensamento de Bobbio (2004), assume a função de


promover a construção de um Estado fundado no ideal do bem comum20, assim, o
Direito passa a se apresentar como um instrumento não apenas de promoção das
liberdades individuais, mas também de prestações positivas ligadas às esferas social
e econômica21.

Martins Neto (2003, p. 113-114) afirma que o Estado Social está diretamente
ligado ao reconhecimento dos direitos sociais22, o que lhe confere uma amplitude
maior na proteção de direitos:

[...] O Estado Social é também, em sua estrutura lógica, um modelo de


Estado Material de Direito, à medida que, como Estado Liberal, igualmente
se apresenta juridicamente conformado por normas substantivas de
validade superior. A diferença decisiva está, porém, na maior latitude do
catálogo de direitos fundamentais do Estado Social, que precisamente
acrescenta ao rol dos tradicionais direitos liberais e políticos até então
afirmados, em maior ou menor número, os assim ditos direitos sociais, com
a intenção declarada de corrigir ou reduzir os graves desequilíbrios
provocados pelo liberalismo originário. Mas não se conclua daí que essa
diferença é apenas quantitativa, porque, em verdade, com a expansão do
catálogo jusfundamental, o Estado Social, erguendo-se sob a tríade

20
“O bem comum [...] tende, numa primeira instância, a conservação da ordem e da paz interna, numa segunda
instância, para a proteção dos cidadãos contra os ataques externos e contra o cometimento de atos delituosos, e
numa terceira instância, para o fomento dos propósitos particulares das pessoas na medida em que seja
necessário ou útil para a paz e ordem da comunidade. A meta do Estado é prover ao bem comum na ordem
temporal.
Na concepção tomista, o homem não desaparece no Estado: seu fim último não é a comunidade terrena, mas
um outro fim mais elevado, um fim transcendente, sobrenatural. A pessoa humana ultrapassa o Estado em tudo
aquilo que se relaciona com os direitos protegidos pela lei natural. O bem comum não é o bem de uma
coletividade, nem a soma dos bens individuais: o bem comum possui natureza distinta. Esses bens são, por sua
vez, o pressuposto pra que os homens possam desenvolver seus fins particulares. Por isso, a finalidade ad
comunidade não é senão contribuir com os problemas para a obtenção desses bens. A lei não qualquer
mandamento arbitrário dos detentores do poder, mas somente o mandamento inspirado num fim justo, e o bem
comum é o fundamento jusnaturalista geral e o limite das atribuições da autoridade, pelo que somente nesse
âmbito se pode expedir um direito positivo obrigatório. Por isso, a finalidade da lei positiva é adequar o direito
natural às distintas situações e épocas. Nesta oportunidade, é apropriado recordar o célebre provérbio ‘Serás rei
se agires retamente, se assim não agires, não o serás’.
Em resumo, existe uma perimira obrigação do contribuinte de respeito à ordem jurídica em geral e das
obrigações tributárias em particular, sendo um dever inexorável o cumprimento dos deveres fiscais. Entretanto,
para que tal fim seja cumprido, o Estado, observando adequadamente a ordem normativa, deverá empenhar-se
em criar as bases necessárias para obter um razoável clima de paz ou segurança jurídica que permita o normal
cumprimento das obrigações dos contribuintes, esclarecendo dúvidas e afastando incertezas. Desta forma, os
sujeitos sabem ao que se ater e em que situações de conflito suas demandas será adequadamente ouvidas em
tribunais imparciais para se protegerem de eventuais comportamentos arbitrários.” (Altamirano, 2005, p. 133-
134).
21
Cristiano Carvalho (2005, p. 298) afirma que o Estado de Bem-Estar Social ou Welfare State foi marcado por
uma crise caracterizada pela incapacidade de satisfazer as expectativas sociais pelo bem-estar: “O resultado é
uma crise profunda do Welfare State, cujos sistemas jurídicos não entendem mais às expectativas sociais,
tendendo, então, a fazer crescer mais seu intervencionismo, apenas para fracassar novamente. Isso leva
invariavelmente à conclusão de que apenas numa ordem política liberal é que se pode sustentar o Estado
Democrático de Direito que a ordem política liberal, por sua vez, necessita desse Estado de Direito, numa
interdependência recíproca. O Welfare State, através do feedback positivo, acaba por levar a ordem social ao
caminho da servidão”.
22
Os direitos sociais serão abordados de forma mais aprofundado na seqüência.
28

liberdade, democracia e justiça, assume um conteúdo ideológico que o faz


qualitativamente diverso do Estado Liberal originário.

De acordo com Carvalho (2005, p. 298) o que ocorre é uma incapacidade do


Welfare State23 de satisfazer as expectativas sociais pelo bem-estar. A capacidade
de regulamentação normativa do Estado providenciário não consegue mais
acompanhar a velocidade de mudanças dos sistemas sociais:

A tendência parece ser a derrocada, não só do welfare state, mas também


do próprio Estado-nação (na verdade os dois estiveram intimamente
relacionados no século XX), e o surgimento de um Estado liberal mundial,
do tipo laissez faire. A chamada “nova economia”, baseada em novos
paradigmas, como os de alta tecnologia e informação, vem mostrando essa
tendência. As inovações tecnológicas que permitiram o crescimento cada
vez mais rápido da capacidade comunicativa humana superam, em muito, a
capacidade regulatória dos sistemas econômico, causado pelos sistemas
normativos que, não obstante sua incapacidade regulatória, ainda mantêm o
monopólio da coerção, intervindo nas ordens econômicas, mas também
ruído causado nos sistemas normativos, proveniente de feedback dos
sistemas econômicos cada vez mais dinâmicos, que não toleram
intervenções em demasia.

Martín (2005, p. 72-73) defende que, frente à crise manifestada pelo Estado de
Bem-Estar Social, devem residir preocupações também, em torno da questão da
cidadania social, uma vez que ela “[...] sofre cada vez mais ataques e críticas que,
por sua vez, se correspondem com as dirigidas também contra a política social, os
direitos sociais e os serviços sociais [...]”. Lembra ainda, que a cidadania atual
encontra seu apoio no que chama de “Estado de Bem-estar parcial”, caracterizado
por excluir grandes grupos dos direitos sociais. E conclui:

Estas alterações acabam produzindo um fortalecimento dos direitos


individuais frente aos direitos sociais. Aqueles que têm seus empregos
estáveis tendem a buscar espaços privados de previdência (planos de
pensões, assistência médica privada) frente aos riscos do mercado de
trabalho e os cortes das políticas públicas. É o que se denomina “cidadania
privada”. Tudo isso acabou desembocando em uma dualização social com
dois grupos diferenciados: o dos cidadãos que são trabalhadores com
empregos estáveis, com rendas públicas e privadas de alto nível (proteção
social pública forte ou sistema privado de previdência); e, de outra parte, os
“cidadãos sem”, os não integrados (os sem trabalho, sem papéis, sem
espaço, sem lugar na sociedade). A estes últimos, sem trabalho ou com um

23
As reivindicações sociais conduziram o chamado Estado mínimo a se transformar em um Estado interventor e
social, com o propósito de neutralizar a exploração e os abusos praticados pelas classes economicamente mais
fortes, tutelando os interesses sociais de uma forma ampla e plural. Em relação ao Brasil, muito embora inegável
a influência deste processo na elaboração da Carta Política 1988, sobretudo ao elevar a dignidade da pessoa
humana a fundamento da República, na busca de uma sociedade livre, justa e solidária, entendemos que
inexistiu uma fase capaz de ser chamada de welfare state.
29

trabalho instável tem-se reconhecido um mínimo de assistência social


pública que evite, não a fragmentação, mas a desintegração de uma parte
da sociedade e suas conseqüências ameaçadoras – delinqüência,
criminalidade, miséria [...]”.

Neste contexto, assinala Flávio de Azambuja Berti (2004, p. 43) que, a contar
da metade dos anos setenta, problemas sintomáticos começaram a ser notados “[...]
particularmente à vista de sucessivas crises econômicas como a do petróleo, a
inflação galopante, o endividamento crescente de países periféricos, a saturação de
sistemas e de formas de agir, [...]”, razão pela qual teve início um processo de
releitura e revisão do posicionamento do Estado Social.

Assim, um ideário de promoção de necessidades sociais acaba por esbarrar na


falta de efetivação24, momento em que é possível verificar a necessidade de
transformação da realidade. A partir deste contexto, viés para implementação do
Estado Democrático de Direito começa a se fazer presente.

Portanto, é possível afirmar que o Estado Democrático de Direito surge como


uma clara tentativa de correção de deficiências presentes no Estado Social.

24
“Cabe perguntar-se em que situação se encontra atualmente o Estado social. Não se pode esquecer que o
Estado social surge com a finalidade de corrigir as deficiências de segurança e de bem-estar, que expôs o
Estado Liberal, com o objetivo de corrigir o predomínio do individualismo clássico e do absenteísmo estatal. Sua
legitimidade se apóia precisamente em que é um Estado inspirado em princípios de solidariedade e justiça
social.
Mas o Estado social tem-se encontrado tanto com críticas procedentes de ideologias de esquerdas como de
correntes mais conservadoras [...]. Os primeiros destacavam suas contradições, quer dizer consideravam que o
Estado social não é mais que uma forma que adotou o capitalismo para encobrir as relações de dominação
existentes na sociedade e para encobrir as relações de dominações existentes na sociedade e para obter novas
formas para a aquisição de mais capital [...].
Por sua vez, a corrente neoliberal defende uma diminuição de impostos – estes são considerados como uma
violação do direito de propriedade, uma vez que se projeta que a redução de impostos proporciona um aumento
do investimento provado proporcionalmente, coisa que não tem ocorrido – uma privatização do setor público –
com o objetivo da redução da carga tributária e porque e, principalmente, porque o Estado não tem que se
ocupar da realização de políticas sócias, pelas quais se deve desmantelar as estruturas administrativas que
funcionam neste âmbito. Entre a posição social e neoliberal, entre as vantagens que apontam os primeiros e as
críticas e inconvenientes que destacam os segundos, entendemos, como Offe, que o Estado de bem-estar se
transformou em uma estrutura irreversível, quer dizer, não cabe uma volta atrás nem seu desmantelamento.”
(Martín, 2005, p. 81).
30

1.1.3 O Estado Democrático de Direito

O viés democrático25 antes referido, irá instalar-se numa nova concepção de


Estado. Segundo Silva (1999, p. 121-122), o Estado de Direito, quer como Estado
Liberal de Direito, quer como Estado Social de Direito nem sempre caracteriza o
Estado Democrático:

Este [o Estado Democrático] se funda no princípio da soberania popular,


que “impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública,m
participação que não se exaure [...] na simples formação das instituições
representativas, que constituem um estágio de evolução do Estado
Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento. [...] Conclui-se daí
que a igualdade do Estado de Direito, na concepção clássica, se funda num
elemento puramente formal e abstrato, qual seja a generalidade das leis.
Não tem base material que se realize na vida concreta. A tentativa de
corrigir, [...] foi a construção do Estado de Social de Direito, que, no entanto,
não foi capaz de assegurar a justiça social nem a autêntica participação
democrática do povo no processo político. Onde a concepção mais recente
de Estado Democrático de Direito, como Estado de legitimidade justa (ou
Estado de Justiça material), fundante de uma sociedade democrática, qual
seja a que instaure um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos
mecanismos do controle das decisões e de sua real participação nos
rendimentos da produção.

25
Para Bobbio (2000, p. 388) democracia significa “poder em público” no sentido de que deve haver um poder
visível aos súditos para que compreendam as decisões que são tomadas pelos detentores do poder. Explica o
autor que “para os antigos a imagem da democracia era completamente diferente: falando de democracia eles
pensavam em uma praça ou então em uma assembléia na qual os cidadãos eram chamados a tomar eles
mesmos as decisões que lhes diziam respeito. ‘Democracia’ significava o que a palavra designa literalmente:
poder do démos, e não, como hoje dos representantes do démos. Se depois o termo démos entendido
genericamente como a ‘comunidade dos cidadãos’, fosse definido dos mais diferentes modos, ora como os mais,
os muitos, a massa, os pobres em oposição aos ricos, e, portanto, se democracia fosse definida ora como poder
dos mais ou dos muitos, ora como poder do povo ou da massa ou dos pobres, não modifica em nada o fato de
que o poder do povo, dos mais, dos muitos, da massa, ou dos pobres, não era aquele de eleger quem deveria
decidir por eles, mas de decidir eles mesmos [...]”. (p. 372).
Segundo Regina Maria Macedo e Nery Ferrarri (2005, p. 19): “A democracia nada mais é do que o governo do
próprio povo, pelo povo e para o povo, segundo conceito que deve a Lincon. É um conceito histórico, que
representa o instrumento de realização dos valores essenciais da convivência humana, traduzidos nos direitos
fundamentais do homem. Messe sentido, a democracia não é conceito estático abstrato, mas um processo de
afirmação do povo e de suas garantias fundamentais, que vai conquistar no correr da história. [...] A democracia,
por sua vez, repousa sobre dois princípios fundamentais: o da soberania popular, segundo o qual o povo é a
única fonte de poder, e o da participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este seja a expressão da
vontade popular. Nos casos de participação indireta surge um princípio que se poderia dizer secundário ou
subsecundário, que é o da representação”.
Silva (1999, p. 112) afirma que: “a democracia é um processo de convivência social em que o poder emana do
povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo. Diz-se que é um processo de
convivência, primeiramente para denotar historicidade, depois para realçar que, além de ser uma relação de
poder político, é também um modo de vida, em que, no relacionamento interpessoal, há de verifica-se o respeito
e a tolerância entre os conviventes”, ou seja, com as opiniões dissidentes”. Ainda que: “a democracia, como
realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, é conceito mais
abrangente do que o Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica da democracia liberal. A superação
do liberalismo colocou em debate a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade democrática. A
evolução desvelou sua insuficiência e produziu o conceito de Estado Social de Direito que a Constituição acolhe
np art. 1.º como um conceito-chave do regime adotado, tanto quanto o são o conceito de Estado de Direito
Democrático da Constituição da República Portuguesa (art. 2.º) e o Estado Social e Democrático de Direito da
Constituição Espanhola (art. 10). (p. 116).
31

O Estado Democrático de Direito26 estaria representado por processos


contraditórios e pela busca de uma justiça social, de sorte que a Carta Política de
1988 não prometeu a transição para o socialismo com o Estado Democrático de
Direito, eis que apenas abriu perspectivas de realização social profunda pela prática
dos direitos sociais que ela inscreveu, considerando os instrumentos que ofereceu à
cidadania e que possibilitam concretizar as exigências de um Estado de justiça
social, fundado na dignidade da pessoa humana. (Silva, 1999, p. 124).

Silva (1999, p. 123) refere que a denominação Estado Democrático de Direito


não se reduz à união das expressões Estado de Direito e Estado Democrático. Em
realidade representa a criação de um novo conceito, composto pelos elementos
citados acrescidos de um “[...] componente revolucionário de transformação do
status quo [...]”. Por isso, conclui que se mostra de vital importância a redação do
artigo 1º da Constituição Federal 1998, quando afirma que a República Federativa
do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, “[...] não como mera
promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e
fundando [...]”.

Continua o autor esclarecendo que a concepção de democracia trazida pelo


Estado Democrático de Direito está assentada num processo que visa à solidificação
da solidariedade:

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um


processo de convivência social numa sociedade livre, justa, e solidária (art.
3.º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do
povo, diretamente o por representantes eleitos (art. 1.º, parágrafo único);
participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo
decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a
pluralidade de idéias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre
opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de
formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser
processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não
dependem apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais,
políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições
econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício. (SILVA, 1999, p.
123-124).

26
“[...] é importante lembrar que o artigo 1.º da CF/88 deixa claro que o Brasil é um Estado Democrático de
Direito; vale dizer, a reunião de elementos próprios do Estado de Direito (protetivo de propriedade, liberdade etc.)
e do Estado Social (modificador da realidade em função da isonomia, solidariedade etc.).
A CF/88 assume feição nítida de uma solução de compromisso entre concepções distintas de Estado;
compromisso que implica não haver prevalências genéricas de nenhum dos dois conjuntos de elementos (nem
do Estado de Direito nem do Social), mas reconhece a necessidade de proceder a constantes ponderações de
valores que podem levar episodicamente e diante de determinados casos concretos à prevalência de uns ou de
outros.” (GRECO, 2005, p. 172).
32

Para Rogério Gesta Leal e Janriê Rodrigues Reck (2004, p. 968):


A idéia de Estado Democrático de Direito, [...], está associada,
necessariamente, à existência de uma Sociedade Democrática de Direito, o
que de uma certa forma resgata a tese de que o conteúdo do conceito de
democracia aqui se assenta na soberania popular (poder emanado do povo)
e na participação popular, tanto na sua forma direta como indireta,
configurando o que podemos chamar de princípio participativo, ou, em
outras palavras; democratizar a democracia através da participação
significativa em termos gerais, intensificar a optimização das participações
dos homens no processo de decisão.
Para tanto, a desificação da democracia à sociedade brasileira implica,
salvo melhor juízo, não si oportunidades materiais de acesso da população
à gestão pública da comunidade, mas fundamentalmente de fórmulas e
práticas de sensibilização e mobilização dos indivíduos e das corporações à
participação, através de rotinas e procedimentos didáticos que levem em
conta as diferenças e especificidades de cada qual.

A partir de uma concepção de Estado Democrático de Direito27 passa-se a


focar as forças na alteração do status quo ante, no sentido de que somente com a
transformação material e substancial da realidade será possível efetivar
verdadeiramente o alcance dos direitos aos cidadãos28. Partilhando da mesma idéia,
destacam Streck e Morais que, para uma melhoria na implementação do bem
comum, é necessário ultrapassar o âmbito formal e buscar uma modificação das
condições materiais de existência. Para os referidos autores, o Estado Democrático
de Direito apresenta os seguintes princípios:
a) Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma
Constituição como instrumento básico de garantia jurídica;
b) Organização Democrática da Sociedade;
c) Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como
Estado de distância, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem
uma autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado

27
No uso da expressão “Estado Democrático de Direito” estão presentes componentes que tendem a fazer da
liberdade ao mesmo tempo liberdade-autonomia e liberdade-participação. De um lado, isto vem marcado pelo
modo como se estendem os direitos políticos à sua máxima universalidade, aliados à plena extensão dos direitos
sociais, econômicos e culturais. De outro, pelo empenho em se evitar que, no modo como se adquirem, numa
sociedade, aliados à plena extensão dos direitos sociais, econômicos e culturais. De outro modo, pelo empenho
e, se evitar que, no modo como se adquirirem, numa sociedade pluralista, tais direitos, venha o seu exercício
cingir-se e esgotar-se no mero jogo de classes dominantes. Seus efeitos, assim, não devem se produzir apenas
frente ao Estado, mas em relação aos particulares; na relevância da sociedade civil deve-se ver o
reconhecimento de que os controle da legitimidade constitucional não é só a expressão de uma fiscalização
formalmente orgânica, mas também uma tarefa comum, que deve fazer a Constituição uma prática e não
somente um texto ao cuidado dos juristas; a participação, não apenas do Legislativo, do Executivo, do Judiciário,
mas também do cidadão em geral, na concretização e na efetivação dos direitos, uma peça primordial do seu
contexto democrático-social legítimo. (FERRAZ JÚNIOR, 2005, p. 221).
28
Clóvis Gorczevski (2005, p. 1283) afirma que “[...] de uma maneira geral, define-se cidadania com qualidade
ou direito de cidadão. Cidadão como sendo o indivíduo no gozo de seus direitos civis e políticos em um Estado”.
Afirma o autor, ainda, a importância da constituição de uma sociedade bem instruída para o exercício da
cidadania: “[...] neste início de novo milênio, urge uma nova educação, mais abrangente, mais humana, mais
crítica, onde seja possível uma efetiva preparação para a cidadania. Uma educação ministrada com dedicação,
amor e respeito. Esta deve ser a prioridade em todas as instâncias públicas ou privadas, pois bem lembra
Resende que os problemas fundamentais do nosso país se acumulam e não serão resolvidos sem a efetiva
participação da sociedade através de uma mobilização consciente, inteligente e objetiva.” (p. 1297-1298).
33

antropologicamente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa humana e


empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da
solidariedade;
d) Justiça Social como mecanismos corretivos das desigualdades;
e) Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também, como
articulação de uma sociedade justa;
f) Divisão de Poderes e Funções;
g) Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um
meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regras, formas
e procedimentos que excluem o arbítrio e a prepotência;
h) Segurança e Certezas Jurídicas. (STRECK; MORAIS, 2000, p. 90).

Assim, o Estado Democrático apresenta-se de modo diverso dos Estados


Liberal e Social, uma vez que “[...] carrega em si um caráter transgressor que implica
agregar o feitio da Democracia ao Direito [...]”, determinando uma postura de
reestruturação da sociedade e “[...] revelando uma contradição de seus primados
básicos de certeza e segurança jurídicas, para adaptá-las a uma ordenação jurídica
voltada para a garantia/implementação do futuro, e não para a conservação do
passado [...]”. (STRECK; MORAIS, 2000, p. 95).

A partir de uma visão democrática conjugada com a percepção de Estado,


alcança-se a assertiva de que necessária é a mudança da situação social, no
sentido de viabilizar meios de efetivação dos direitos não apenas de segurança e de
defesa, mas de prestações positivas relacionadas à saúde, à educação, à moradia.

Nesta linha de colocações, a lição de Dantas (1989, p. 27), ao referir que o


Estado Democrático de Direito concilia "[...] duas das principais máximas do Estado
Contemporâneo, quais sejam a origem popular do poder e a prevalência da
legalidade."

Em outras palavras, é possível afirmar que fundem-se as diretrizes do Estado


Democrático com as do Estado de Direito, na medida em que formam uma forte
relação de interdependência, conforme registro feito por Bobbio (1986, p. 20):

Estado Liberal e estado democrático são interdependentes em dois modos:


na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são
necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder
democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no
sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência
e a persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco
provável que um estado não liberal possa assegurar um correto
34

funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um


estado não democrático seja capaz de garantiras liberdades fundamentais."

Nestas condições, possível no ponto identificar um vetor de mão dupla, isto é, o


direito fundamental da liberdade, garantido pelo Estado de Direito, se revela
necessário para o perfeito exercício da democracia, representando esta uma
condição singular para a existência, manutenção e ampliação dos direitos e
garantias individuais, razão responsável pelo surgimento do Estado Democrático de
Direito.

Como resta evidente, o Estado Democrático de Direito, assentado nos pilares


da democracia29 e dos direitos fundamentais, nasce como uma forma eficiente de
bloqueio e restrição à propagação de regimes totalitários, que, muitas vezes,
adotando a forma de Estado Social, acabam violando as garantias individuais,
maculando a efetiva participação popular nas decisões políticas.

Neste sentido, no Estado Democrático de Direito coexistem de maneira


harmônica o Princípio da Soberania Popular, aplicado através do regime
democrático, e o Princípio da Legalidade, herança do Estado Liberal.

Não obstante tudo isto, o que se verifica é a existência de uma grande


dificuldade do Estado contemporâneo de colocar em prática de forma eficiente o
ideário a que se propõe, no sentido de efetivar, por exemplo, os princípios e
preceitos constitucionais, sobretudo os vinculados à efetivação dos direitos sociais.

Assim, o Estado passa a vivenciar uma crise existencial.

1.2 A Crise do Estado Social: incapacidade de efetivação dos Direitos Sociais

Resumindo as fases de evolução do Estado registradas nos capítulos


anteriores, verificamos que o Estado Liberal assegurou o direito individual, no plano

29
Paulo Bonavides (1980, p. 17) ensina que democracia é "[...] aquela forma de exercício da função governativa
em que a vontade soberana do povo decide, direta ou indiretamente, todas as questões de governo, de tal sorte
que o povo seja sempre o titular e o objeto – a saber, o sujeito ativo e o sujeito passivo de todo o poder legítimo."
35

do ser, que evidenciava uma postura omissiva, de não intervir, limitando a atuação
política estatal na esfera do indivíduo, visando assegurar ampla liberdade.

Na seqüência, o Estado Social ampliou o conceito de direito público subjetivo,


criando os direitos sociais - plano do ter, exigindo políticas governamentais positivas
que garantissem o mínimo de bem-estar, limitando o poder econômico, objetivando
implementar a igualdade material.

Por seu turno, o Estado Democrático de Direito Brasileiro ampliou o conceito de


direito social, impondo ao Estado um comportamento ativo dirigido à implementação
no modelo previsto na Carta Política de 1988, pautado nos ditames da justiça,
solidariedade e pluralismo.

Percebe-se, assim, que a evolução do Estado, percorrendo-se os seus tipos,


esteve e está marcada pela busca de um meio de efetivação dos direitos almejados
pelos cidadãos. Tal busca revela relações de poder e de dominação, apresentando-
se como um grande desafio a identificação de formas para realização deste objetivo,
uma vez que o Estado não conseguiu primar pela efetiva consecução dos direitos
sociais30, possibilitando, em conseqüência, a inclusão social31.

A Constituição Federal de 1988, como antes já referido, caracteriza o Estado


Brasileiro como Democrático de Direito32. Todavia, enfrenta sérias dificuldades no
sentido de efetivar ao que se propôs33. Em realidade, como é possível depreender a
partir do estudo da evolução do Estado, a partir do momento em que este foi
chamado para promover o alcance e viabilizar os direitos aos cidadãos, passou a
enfrentar problemas relacionados à falta de recursos públicos, circunstância que

30
No art. 6º da CF/88 que estão indicados como direitos sociais, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o
lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição.
31
Segundo Sandra Regina Martini Vial (2005, p. 91-92), a sociedade hodierna é marcada pela insegurança,
incerta e contradição, “[...] além disso, é uma sociedade que opera sempre a partir do paradoxo
inclusão/exclusão.”
32
Artigo 1º da Constituição Federal de 1988: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”.
33
No artigo 5º da CF/88 trata dos direitos fundamentais, individuais e coletivos, estabelecendo que todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
36

determinou o aumento da carga tributária, o que, por sua vez, fez surgir problemas
ainda maiores.

Ricardo Hermany, Liane Tabarelli e Everton J. Helfer de Borba (2004, p. 1144-


1145) afirmam que uma alternativa para alegada crise seria, justamente, a
valorização do poder local como centro de efetiva decisão e participação do cidadão:

[...] visando-se a instigar um pouco mais o debate sobre essas


problemáticas, mister se faz, dessa forma, fazer-se um estudo acerca da
valorização do poder local na atual conjuntura globalizada. Trata-se, aqui,
da questão da globalização excludente e da crise dos Estados nacionais,
além das implicações que o processo de globalização econômica produz no
que tange à valorização do poder local e a revisitação do conceito de
cidadania.

Realmente, a valorização do poder local constitui medida capaz de representar


contribuição importante para aperfeiçoamento das ações do Estado, na
implementação de políticas públicas dirigidas à efetivação dos direitos sociais.

Outro fator que contribuiu com a crise em exame, foi o processo de


globalização34, determinante de uma maior concentração de renda, de exclusão e
marginalização de segmentos sociais. Trata-se de fenômeno que, inclusive, tem
modificado de forma substancial a idéia de soberania e do próprio conceito de
Estado, em face dos reflexos que provocou nos modelos de políticas públicas.

1.3 O Estado e o seu papel na implementação dos Direitos Sociais

João dos Passos Martins Neto (2003, p. 166) afirma que os direitos sociais35
são, geralmente, apresentados como uma subclasse dos direitos fundamentais ou,
ainda:

[...] atendendo ao critério cronológico, como direitos de segunda geração,


por só terem logrado definitivo reconhecimento nos inícios do século XX,
posteriormente, portanto, à afirmação dos chamados direitos de liberdade
(tanto civis como políticos). Vistos desse modo, os direitos sociais surgem
no curso de um processo evolutivo, marcado pela progressiva expansão do
conteúdo dos primeiros catálogos jusfundamentais do mundo da cultura

34
O termo é utilizado para designar a crescente e acelerada transnacionalização das relações econômicas,
financeiras, comerciais, tecnológicas, culturais e sociais, fenômeno ocorrente nas duas últimas décadas.
35
Importante registrar que o presente trabalho deter-se-á ao conceito de direitos sociais presente na Constituição
Federal de 1988, para que, a partir dele, seja possível verificar em que ponto será necessária a adoção de
medidas a fim de obter a sua efetiva implementação, propiciando a inclusão social.
37

ocidental em decorrência da crise liberal que leva ao Estado Social de


Direito.

De acordo com o autor referido, os direitos sociais, geralmente, identificam-se


com prestações positivas36. Não são como “[...] como as liberdades, meros poderes
de agir, mas sim poderes de exigir [...]”, tendo como “[...] sujeito passivo o Estado, e
seu objeto é, tipicamente, a prestação de um serviço, como o serviço escolar, ou
uma prestação em dinheiro, como no caso do seguro-desemprego [...]”. (Martins
Neto, 2003, p. 174-175).

Ao realizar uma análise mais detida acerca da vinculação dos direitos sociais a
prestações positivas, destaca Martins Neto (2003, p. 157) que se está diante de uma
determinação inexata, pois, dentre os direitos sociais estariam, também, direitos que
demandariam uma postura negativa por parte do Estado e, mesmo, direitos cuja
prestação não estaria atribuída ao Poder Público. Continua Martins Neto (2003, p.
178):

É inevitável, pois, que termine inteiramente desacreditada a tradicional


concepção dos direitos sociais como obrigações estatais positivas.
Pretender, com base nela, agrupar os direitos sociais como um complexo de
instituições homogêneas, seria pecar por incontável falta de rigor, salvo se a
abordagem assim feita viesse acompanhada da ressalva de que somente se
está levando em conta a regulação constitucional das tarefas estatais de
natureza providencial (ou em educação, assistência, previdência ou saúde),
campo realmente aberto à possível ocorrência de direitos de prestação
contra a administração pública. Como quer que seja, por hora, o dado
relevante a registrar é que, entre os direitos sociais, podem existir tanto
direitos de abstenção como direitos de prestação, e o interesse prático da
constatação está em que essa cisão em dois grupos repercute,
naturalmente, sobre os respectivos modos de satisfação.

Depreende-se a partir disto uma certa dificuldade de conceituação dos direitos


sociais, justamente pela também dificuldade de definição do conteúdo dos direitos
sociais. Todavia, possível é presumir que o seu objetivo é o alcance de uma
liberdade associada à igualdade, uma liberdade igual para todos, alcançada
somente por meio da supressão das desigualdades sociais.

36
Os direitos sociais são, por conseguinte, sobretudo, endereçados ao Estado, para quem surgem, na maioria
das vezes, certos deveres de prestações positivas, visando à melhoria das condições de vida e à promoção da
igualdade material. (Bontempo, 2005, p. 70).
38

André Ramos Tavares (2003, p. 585-586) esclarece que os direitos de ordem


social elencados na Constituição Federal, não excluem outros, eventualmente
agregados à ordem jurídica pátria, seja através da legislação ordinária, seja
mediante a adoção de tratados internacionais. Assim, em relação aos direitos sociais
não há que se fazer um leitura restrita, limitada, até porque o caput do artigo 7º, da
atual Carta Política estabelece que não estão excluídos outros direitos sociais que
visem à melhoria da condição social dos trabalhadores.

Tal concepção refere-se à classificação dos direitos sociais como direitos


fundamentais37. Nesse sentido, Ingo Wolfgrang Sarlet (2001) esclarece que a
Constituição Federal de 1988 acolheu os direitos fundamentais sociais
expressamente no seu Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais),
concedendo-lhes um capítulo próprio e reconhecendo o seu status de direitos
fundamentais.

Alessandra Gotti Bontempo (2005, p. 305) observa38 que o texto constitucional


de 1988 revela uma verdadeira expansão dos direitos sociais de cunho prestacional,
sem precedentes na história constitucional brasileira, além de “[...] por múltiplos
deveres endereçados ao Estado, consubstanciados na realização de políticas
públicas [...]”, elevando tais direitos à categoria de direitos fundamentais.

Martins Neto (2003, p.173-174), ainda acerca desta questão, depois de referir
que não pode ser admitida a possibilidade de abolição dos direitos sociais por meio
de emenda constitucional, eis que isto representaria reconhecer ao poder
constituinte derivado a possibilidade de rever “[...] a ordem constitucional em sua
mais íntima essência, por falência de vínculos substantivos que garantam algo mais
do que uma democracia feita de liberdades meramente formais [...]”, conclui que os

37
“Buscando promover a igualdade material a Constituição de 1988, traz um Capítulo próprio (Capítulo II),
dedicado aos direitos sociais, encartado no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, trazendo, ainda
um título especial sobre a Ordem Social.” (BONTEMPO, 2005, p. 71).
38
“Partindo-se do pressuposto, portanto de que os direitos sociais são direitos fundamentais, submetem-se eles
à principiologia e lógica próprias dessa categoria de direitos. Vale dizer: devem ser interpretados de modo a
garantir a dignidade da pessoas humana; seus efeitos devem ser maximizados u otimizados, nos termos do
princípio da aplicabilidade imediata e são intangíveis por meio de reforma constitucional.
E essa preocupação com a eficácia das normas constitucionais é redimensionada em se tratando dos direitos
sociais, na medida em que a grande maioria desses direitos previstos na Constituição de 1988 são enunciados
sob a roupagem de normas programáticas que são, em um primeiro momento, endereçadas aos Poderes
Públicos: o legislador, já que necessitam de concretização legislativa; ao administrador, para a implementação
39

direitos sociais, pelo fato de apresentarem-se com direitos fundamentais, são


também pétreos.

Em complemento a isto tudo, Tavares (2003, p. 586) aponta como


característica marcante dos diretos sociais a irrenunciabilidade. Para ele, os direitos
sociais estão vinculados a normas cogentes, vale dizer, de ordem pública, pelo que
não se mostra possível “[...] abrir mão ou dispor dos direitos anotados pela
Constituição [...]”.

A Constituição Federal de 1988, neste sentido, além de prever direitos civis e


políticos, inclui também direitos econômicos, sociais e culturais que, nas
Constituições anteriores, encontravam-se dispersos no âmbito da ordem social
sempre misturada com a ordem econômica. Tais direitos, previstos no catálogo dos
direitos fundamentais, requerem a execução de ações específicas para este fim.
Significa que a implementação efetiva de tais direitos depende da realização de
políticas públicas. (Bontempo, 2005, p. 204).

Isto tudo, evidentemente, sinaliza para a idéia de planejamento. Pode-se


afirmar, assim, que há necessidade de um planejamento para que seja possível
efetivamente viabilizar os direitos sociais. Bercovici (2003, p. 191) registra que

[...] o planejamento é absolutamente necessário para a promoção do


desenvolvimento. As atividades do Estado devem ser coordenadas para o
desenvolvimento econômico e social e esta coordenação se dá por meio do
planejamento, que não se limita a definir diretrizes e metas, mas determina,
também, os meios para a realização destes objetivos.

Grau (2001, p. 364) afirma que o planejamento39 é uma imposição da


Constituição dirigente40 a partir da substituição do Estado Liberal pelo “Estado das
Políticas Públicas”.

das políticas públicas que buscam efetivá-los; e aos juízes, quando apreciam as demandas judiciais que visam
garantir a sua concretização.” (BONTEMPO, 2005, p. 192-193).
39
Bontempo (2005, p. 202-205) entende que o Poder Executivo deve comprometer-se com planejamento de
metas para a viabilização dos direitos sociais: “Para garantir a efetivação dos direitos sociais, especialmente
levando em consideração a necessidade de que estes sejam “progressivamente realizados”, entende-se que
deverá haver um sério comprometimento do Poder Executivo com o planejamento das metas e diretrizes a
serem perseguidas; a elaboração das leis orçamentárias, de modo a priorizar os recursos necessários à
efetivação dos direitos sociais; e, por fim, a implementação de políticas públicas que garantam a plena realização
desses direitos. O planejamento, nunca é demais ressaltar, deve ser concebido, nos termos do art. 174 da
Constituição de 1988 – sob a égide do princípio da legalidade. Nesse passo, deve traçar as metas a serem
perseguidas pelo Estado e dispor sobre os recursos públicos para a implementação de políticas públicas
necessárias ao exercício dos direitos sociais, em função das prioridades estabelecidas pela Constituição. [...]
40

Na mesma direção, a posição de Comparato (1989, p.102):

O goverment by policies, em substituição ao goverment by law, supõe o


exercício combinado de várias tarefas, que o Estado Liberal desconhecia
por completo. Supõe o levantamento de informações precisas sobre a
realidade nacional e mundial, não só em termos quantitativos (para o qual
foi criada a técnica da contabilidade nacional), mas também, sobre fatos não
redutíveis a algarismos, como em matéria de educação, capacidade
inventiva ou qualidade de vida. Supõe o desenvolvimento da técnica
provisional, a capacidade de formular objetivos possíveis e de organizar a
conjunção de forças ou a mobilização de recursos matérias e humanos –
para a sua consecução. Em uma palavra planejamento.

Tal comprometimento do Poder Executivo não pode, contudo, estar embebido


de discricionariedade desenfreada, de sorte que ela própria, a discricionariedade,
encontrará limites no ideal buscado pelos direitos sociais:
A discricionariedade existente no planejamento da ação estatal no que
concerne aos direitos sociais é mínima, atendo-se apenas e tão somente à
forma das políticas públicas que serão desenvolvidas para a sua
concretização, jamais à convivência ou não de serem implementadas as
citadas políticas públicas.
É necessário, na análise de demandas que busquem aferir os limites desta
discricionariedade, que o poder Judiciário se sensibilize com estas questões
e busque extrair a máxima efetividade dos preceitos referentes aos direitos
sociais, já que os mesmos são autênticos e verdadeiros direitos
fundamentais, devendo como tais ser reivindicados e garantidos
(BONTEMPO, 2005, p. 205-206).

Diante desta perspectiva de que, para que sejam efetivados os direitos sociais,
é necessário haver um planejamento, e da evidente incapacidade do Estado em
promovê-los, propõe o presente trabalho um resgate do Poder Local como meio a
dinamizar tal processo, justamente em razão do fato de que se acredita que a
viabilização dos direitos sociais pode ser alcançada se os meios para tanto foram
efetivamente eficientes, sendo para tanto importante ações no meio municipal.

Para atender à exigência da “progressiva implementação” dos direitos sociais, “na medida do máximo dos
recursos disponíveis”, não se vislumbra outro caminho que o sério comprometimento com o planejamento da
utilização dos recursos públicos, bem com como a delimitação das prioridades a serem realizadas, figurando,
dentre elas, inegavelmente, por força da nossa Constituição dirigente e por força dos fundamentos de nosso
Estado, a implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais.”
40
Na década de 70, quando da formulação da nova Constituição Federal portuguesa, José Joaquim Gomes
Canotilho propõe uma nova fórmula a ser aplicada à esta Carta Política: a constituição dirigente. Entendia o
autor, que a CF deveria ter estampado os programas políticos do país, sendo estes vinculantes. Não havia
espaço ao administrador público cumprir de forma diversa os programas sociais estampados no limiar da referida
carta. Isso é percebido muito nitidamente no art. 18 da Constituição Federal portuguesa, ao afirmar que as
normas constitucionais são vinculantes. A crítica feita à constituição dirigente se mostra no tocante ao fato de
que esta não apresenta soluções de acordo com a evolução do tempo. O administrador fica engessado diante
das disposições da CF. A discricionariedade marca indelével da política, quase não há. Ou seja, a constituição
dirigente não acompanha a evolução dos tempos. Também, a crítica se assenta no fato de a Constituição
misturar o político com o jurídico, de forma a transformar o administrador público em mero executor de tarefas do
legislador constituinte (originário e derivado).
41

Assim, sugere-se voltar uma maior atenção ao Poder Local, como forma de
alcançar um pouco da tão desejada efetivação dos direitos sociais, oportunizando
uma maior eficiência nas políticas públicas de inclusão social. Tal alternativa,
evidentemente, deve ser vista de forma vinculada à questão da existência de
recursos públicos. No ponto importante alerta faz Martín (2005) quanto à intenção de
incutir no meio social a impressão de que apenas os direitos sociais possuem um
custo elevado para sua implementação. Em razão deste custo elevado, não restaria
outra alternativa que não a sua inexecução, diante da deficiência de recursos
apresentados pelo Estado. O que, contudo, não é revelado, de acordo com a citada
autora, é que todos os direitos detêm um custo para a sua realização, sejam eles
sociais ou não, de sorte a ausência de recursos não pode ser a justificativa para falta
de sua implementação.

Ora, a efetivação de qualquer tipo de direito impõe custos ao Estado como


lembra Martin (2005, p. 101), pelo que não pode ele apresentar “[...] somente alguns
como indispensáveis (civis e políticos). E, se o Estado não pode oferecer os outros
direitos, apresenta-os como acessórios ou supérfluos (os direitos sociais) [...].” Por
isso conclui que os “[...] os direitos sociais são imprescindíveis para que os
indivíduos possam sentir-se cidadãos, de maneira que somente possuindo
condições econômicas, sociais e culturais mínimas pode-se falar de verdadeira
cidadania [...].”

A justificativa para a inércia do poder público na implementação dos direitos


sociais acaba, assim, por fundamentar-se na questão da reserva do possível, como
observa Bontempo (2005, p. 222). Entretanto, salienta que embora “[...] seja preciso
compatibilizar a efetivação dos direitos, e, sobretudo, dos direitos sociais, com a
proclamada “reserva do possível”, isso não pode significar, de nenhum modo,
autorizar uma “não-atuação” do Poder Público [...]”. É que, para a autora referida, o
caráter imperativo das normas constitucionais, em especial às vinculadas aos
direitos fundamentais, como é o caso dos direitos sociais, torna inaceitável que sob o
argumento da impossibilidade de realização “[...] por questões financeiras, materiais
ou políticas, o comando constitucional acabe destituído completamente de eficácia
[...]”.
42

Neste contexto, se, para a sua implementação os direitos sociais dependem de


recursos públicos, para assegurar-se a força normativa da Constituição, necessária
a adoção de raciocínio inverso. Significa que, ao invés de condicionar a realização
dos direitos sociais à existência de “recursos públicos”, é preciso condicionar a
existência de “recursos públicos” à implementação dos direitos sociais. Como efeito,
se mostra de importância fundamental que o Executivo, na elaboração das leis
orçamentárias, e o Legislativo ao apreciá-las e aprová-las, destinem prioritariamente
os recursos necessários à implementação de políticas públicas que visem à
concretização dos direitos sociais. (Bontempo, 2005, p. 224).

O quadro de agravamento das desigualdades sociais nada mais é, portanto, do


que resultado da substituição pelo Estado de ações que deveriam ser prioritárias41.
O que se vê é a existência de um claro dilema em relação à implementação dos
direitos sociais, ou seja, decidir se cumpre os compromissos constitucionais
assumidos, aplicando, como assim exigem, o máximo de seus recursos disponíveis,
ou se privilegia o corte dos gastos públicos para atingir metas neoliberais, em
detrimento da efetivação dos direitos sociais. (Bontempo, 2005, p. 144-145).

Há que se ressaltar, nesse contexto, que não poderá ser admitida qualquer
possibilidade de retrocesso em relação à consecução e proteção dos direitos
conquistados. Estes já estão garantidos, necessitando, agora, serem
implementados, estando amparados pela cláusula do retrocesso social:

41
Registra neste sentido Faria (2002, p. 113-114): “Concebidos para se concretizar basicamente por meio de
políticas governamentais de caráter compensatório e distributivo, os direitos sociais também têm sido
mortalmente atingidos pelos processos de desformalização, deslegalização e descontitucionalização, pela
desregulação do mercado de trabalho, pela abdicação de determinadas funções públicas do Estado via
privatização de serviços essenciais, pela negação da idéia de justiça distributiva via ação fiscal e pelo crescente
condicionamento de todas as esferas da vida pelos valores e regras do mercado, corroendo os fundamentos
igualitários da própria democracia. Os princípios básicos e os padrões morais inerentes aos direitos humanos e
aos direitos sociais – como a dignidade, a igualdade, a solidariedade e a inclusão econômica, por exemplo –
estão levando a pior na colisão frontal com os imperativos categóricos da economia globalizada, como a
produtividade, a competitividade e a cumulação levadas ao extremo. Na medida em que as obrigações são
progressivamente reduzidas ao conceito geral de mercadorias e convertidas em negócios privados, em que o
papel de consumidor cada vez mais se sobrepõe ao de trabalhador, em que os titulares de um direito civil se
transformam em meros consumidores de bens e serviços produzidos e/ou prestados pela iniciativa privada em
por fim, em que os titulares dos direitos sociais e dos direitos humanos de última geração são reduzidos ao
simples papel de “clientes”, ao acesso a serviços essenciais – como educação, saúde, previdência, energia
elétrica, água, telefonia etc. – passa a depender de contratos provados de compara e venda. [...] Com, isso
aqueles que não têm condições de comprar esses serviços básicos e aqueles que não têm como pagar por
serviços já consumidos, ou seja, os “excluídos” e os inadimplentes no plano econômico, convertem-se também
nos “sem-direitos” no plano jurídico, não mais parecendo com portadores de direitos subjetivos públicos.”
43

Com efeito, a manutenção das conquistas obtidas em matéria de direitos ou


garantias sociais decorre da “cláusula de proibição do retrocesso social”,
decorrência lógica da “progressividade” dos direitos sociais.
A proibição do retrocesso constitui, por conseguinte, um verdadeiro princípio
pelo qual deve se pautar o Poder Legislativo, na medida em que está
vinculado à manutenção dos direitos ou garantias de cunho social ao
elaborar as leis necessárias à concretização dos direitos sociais previstos
na Constituição Federal (e nos tratados internacionais de que o Brasil é
parte), bem como está vinculado a aprovar leis orçamentárias que não
sejam regressivas no tocante aos recursos necessários para a “progressiva”
implementação dos direitos sociais. [...] Da mesma forma, o princípio da
proibição do retrocesso atinge o Poder Executivo, que se obriga a observá-
lo ao realizar o planejamento das metas e diretrizes a serem perseguidas; a
elaboração das leis orçamentárias, de modo a priorizar os recursos
necessários à efetivação dos direitos sociais e, por fim, a implementação de
políticas públicas que garantam a plena realização desses direitos.
A constatação de que norma ou política pública é regressiva – por meio da
comparação que coloque em evidência de modo concreto e categórico que
esta é menos favorável para o seu titular que a que a substituía – conduz a
uma presunção de inconstitucionalidade, transferindo ao Estado o ônus de
provar o binômio da razoabilidade-proporcionalidade e a justificativa da
medida proposta. [...] Em síntese, o compromisso do Estado com a
progressiva implementação dos diretos sociais (e conseqüentemente com a
proibição do retrocesso), vincula a atuação dos Poderes Legislativo e
Executivo, atribuindo ao Poder Judiciário o “dever” de aplicar o Direito,
fazendo valer, com rigor, a “vontade da Constituição”. (BONTEMPO, 2005,
p. 224-229).

Assim, os Poderes, conjuntamente, têm o dever de promover a implementação


dos direitos sociais, lutando contra qualquer possibilidade que denote um retrocesso
ao que até o momento foi conquistado em relação à condição de uma vida mais
digna42.

A consecução dos direitos sociais deve estar garantida pela disponibilização de


recursos. Significa dizer que deve ocorrer a adaptação dos recursos aos direitos
sociais, e não os direitos sociais aos recursos disponíveis, evitando que haja uma
inversão de valores. Manifesta-se Bontempo (2005, p. 297) nesta linha:

Entende-se que o Poder Judiciário há de se afastar, na análise de


demandas relativas a violações de direitos sociais, da concepção de que

42
Bontempo (2005, p. 306) sustenta que os Poderes Executivo e Legislativo têm ”[...] o compromisso e a
responsabilidade de priorizar a realização dos direitos sociais, sob pena de sua conduta ser questionada perante
o Poder Judiciário. Neste prisma, para garantir a efetivação dos direitos sociais, especialmente levando em
consideração a necessidade de que estes sejam “progressivamente realizados”, há de existir um sério
comprometimento do Poder Executivo com o planejamento das metas e diretrizes a serem perseguidas; a
elaboração de leis orçamentárias que priorizem os recursos necessários à efetivação dos direitos sociais; e, por
fim, a implementação de políticas públicas que garantam a plena realização desses direitos.” Já em relação ao
Judiciário, afirma que tem ele a “[...] a responsabilidade de aplicar o Direito e, para tanto, há de pautar-se pela
lógica do Estado social de Direito delineado pela Carta de 1988, buscado garantir que sejamos atingidos, dentre
outros objetivos enunciados no seu art. 3.º, “uma sociedade livre justa e solidária” e “erradicar a pobreza e a
marginalização. Para alcançar tais objetivos é necessário que o Poder Judiciário deixe de se conduzir pela lógica
própria do Estado liberal de Direito – que exige uma postura de “não-atuação” de “abstenção” – transitando para
a lógica do Estado social de Direito, marcada pela responsabilidade do Estado na implementação das políticas
públicas necessárias à implementação dos direitos sociais.”
44

esses direitos são apenas “direitos”, isto é, são apenas realizáveis, se


existirem “cofres cheios”. Entende-se que, à luz dos princípios
constitucionais e das propriedades que a Carta de 1988 preordenou, deve-
se adotar o raciocínio inverso: não é a implementação dos direitos sociais
que se subordina à existência de recursos orçamentários, mas, ao contrário,
a existência de recursos orçamentários que se subordina à realização dos
direitos sociais.

Diante de tais colocações, partir-se-á ao exame da possibilidade de efetiva


realização dos direitos sociais, acreditando na força do âmbito municipal para
otimizar tal ideário.
45

2 FEDERALISMO E DIREITOS SOCIAIS: A IMPORTÂNCIA DO PODER LOCAL

A par da já mencionada crise enfrentada pelo Estado quanto à efetivação dos


direitos sociais, a proposta do trabalho agora é voltar atenção ao âmbito local, ou
seja, ao Município como ente federado, com o fim de analisar a viabilidade de
obtenção de maior êxito na construção de um espaço cidadão em tal esfera.

Neste sentido, inicialmente, será necessário, investigar os conceitos atribuídos


ao que se convencionou denominar de Federalismo. Para tanto, serão abordadas as
definições de Estado Unitário e Estado Federal, buscando depois um conceito de
Federalismo. Também serão examinadas as modalidades de Federalismo,
realizando uma rápida incursão na crise do Federalismo e, especialmente, do
Federalismo Fiscal.

Em seguida, a investigação recairá na análise do Município como meio de


obtenção da cidadania substancial, privilegiando a importância do princípio da
subsidiariedade.

2.1 Estado Unitário e Estado Federal

A forma federativa de Estado é uma cláusula pétrea da Constituição Federal de


198843, o que impõe a proibição de modificação mesmo que seja por emenda
constitucional.

Em razão da necessidade de, no âmbito dos Estados Modernos, obter-se uma


repartição das funções para gestão dos recursos públicos, formas de organização do
Estado foram surgindo. A partir destes critérios diferenciadores, de acordo com
Rogério Leite Lobo (2006, p. 8) pode-se perceber a existência de uma grande
dificuldade de realizar a classificação das formas de Estado, uma vez que várias:

43
artigo 60, parágrafo 4º inciso I: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a
forma federativa de Estado [...].
46

{...} subcategorias capazes de expressar peculiaridades que interessem as


mais diversas ênfases conceituais, as divisões consideradas clássicas – que
postulavam a existência de Estados Unitários Centralizados, Estados
Unitários Descentralizados, estados Federais e Confederações de Estados
– evoluíram para o reconhecimento de que os Estados institucionalizados
funcionarão sob a forma que lhes impuser os seus respectivos Diplomas
Fundamentais, sendo cada vez mais difícil a alocação de limites
apriorísticos estanques, quais os que serviam às categorias de outrora.
(2006, p. 8)

Também assim se mostra o entendimento de Antunes Rocha (1997, p. 169),


para quem atualmente a própria classificação das formas de Estado passa por um
profundo ajuste. Isto porque, segundo ela, os modelos oferecidos pela doutrina
constitucional não guardam correspondência exata com o que os povos estão
buscando viver. Desta forma, os paradigmas que se têm catalogado não são exatos
para o que os sistemas constitucionais oferecem, em especial para o que os povos
querem experimentar segundo uma base jurídica nova.

Em que pese exista esta dificuldade quanto à classificação das formas de


organização do Estado, o presente trabalho delimitará as duas formas mais
tradicionais, ou seja, o Estado Unitário e o Estado Federal, que serão, a seguir,
abordadas.

O Estado Unitário44 pode ser definido como aquele que apresenta um único
centro de poder, o qual é a cúpula e núcleo do poder. Pode, outrossim, tal modelo
de Estado apresentar uma forma descentralizada na esfera administrativa, legislativa
ou política, cujo alcance passa a depender do poder central que pode sempre
suprimi-lo (Porfírio Júnior, 2004, p. 3). Já o Estado Federal45 caracteriza-se pela
descentralização administrativa, legislativa e política, com a atribuição de

44
Raul Machado Horta (2002, p. 305) afirma que o Estado Unitário apresenta uma evolução a caminho da
descentralização: “[...] o Estado Unitário acha-se submetido a um processo de renovação estrutural, que decorre
da ampliação do grau de descentralização, para alcançar as formas mais avançadas do regionalismo. O estado
Unitário com descentralização regional, como ele se encontra organizado na Constituição da república Italiana de
1947, e na Constituição da Espanha de 1978, representa o ensaio de nova forma estatal – o Estado Regional –,
tipo intermediário, que se localiza nas fronteiras do estado Unitário e Estado Federal”.
45
José Afonso da Silva (1996, p. 56) afirma que: “[...] o Estado Federal é o todo, dotado de personalidade
jurídica de direito público internacional. A União é a entidade federada formada pela reunião das partes
componentes, constituindo pessoa jurídica de direito público interno, autônoma em relação aos Estados e a
quem cabe exercer as prerrogativas da soberania do Estado. [...] Os Estados Membros são entidades federativas
componentes, dotadas de autonomia e também de personalidade jurídica de direito público interno”. Paulo
Bonavides (1983, p. 205) afirma que Estado Federal é o “[...] Estado soberano, formado por uma pluralidade de
estados, no qual o poder do Estado emana dos Estados-membros, ligados numa unidade estatal”.
47

autonomias a entes regionais, a partir da delegação voluntária por parte do centro


único de poder.

De acordo com Regina Maria Macedo e Nery Ferrari (2005, p. 189), Estado
Federal:
É uma forma de Estado Composto, onde se encontra a união de
comunidades públicas dotadas de autonomia constitucional e política, ou
seja, é um tipo de Estado descentralizado politicamente, cuja competência
dos entes jurídicos parciais decorre de previsão constitucional.
A constituição, ao criar o Estado Federal, o faz de modo que o poder não
fique concentrado em uma única pessoa de direito público, mas se reparta
entre esta e os entes coletivos que o compõem.

No Estado Federal, sobre um mesmo território e sobre uma mesma


população, encontra-se a incidência de várias ordens estatais, constituindo diversas
esferas governamentais: a da União, a dos Estados Membros e a dos Municípios,
bem como a de outras pessoas jurídicas de direito público interno, conforme
determinar a Constituição respectiva.

Desta forma o presente estudo direcionará maior atenção ao Estado Federal46,


ante a tendência cada vez mais presente de se buscar uma descentralização para
melhor repartição de poderes entre a União e os demais entes federados, dirigida a
uma melhor eficiência na utilização de recursos públicos. Ou, no dizer de Kelsen
(1998, p. 435):

Um dos motivos para a descentralização é precisamente o fato de que ela


fornece essa possibilidade de se regulamentar a mesma matéria de modo
diference para diferentes regiões. As considerações que tornam apropriada
tal diferenciação da ordem jurídica podem ser geográficas, nacionais ou
religiosas. Quanto maior for o território do Estado, e quanto mais variadas
forem as suas condições sociais, mais imperativa será a descentralização
por divisão territorial.

Seguindo esta linha de colocações, para que seja possível falar em Estado
Federal, é necessária a presença de requisitos específicos, quais sejam: a repartição

46
“Não entram em acordo os autores no apontar os traços característicos do Estado Federal. Assim, v.g., Duguit
nele vislumbra a existência de dois governos no mesmo território e a impossibilidade de aleirarem as
competências de cada um deles, sem a anuência de ambos. Já Hauriou sustenta que, no federalismo, há
diversidade de leis e várias soberanias secundárias, sob uma soberania comum. Jelinek, sempre rigoroso,
aponta como da essência do Estado Federal a autonomia, salvaguardada pela Constituição, das unidades
federadas. Lê Fur, de sua parte, considera existente uma Federação quando as unidades federativas entram na
formação da vontade do Estado. Kelsen, com sua visão formalista do Direito, distingue o Estado Federal dos
demais pela existência, nele, de três ordens jurídicas: duas parciais (a União e a as unidades federadas) e uma
48

constitucional de competência; a autonomia estadual, compreendendo a auto-


organização, o autogoverno e a auto-administração; a participação dos Estados-
membros na organização e na formação da vontade da Federação; e a
discriminação constitucional das rendas tributárias, com a repartição da competência
tributária e a distribuição da receita tributária. (Velloso, 1992, p. 54).

Dallari (1998) apresenta como características do Estado Federal as seguintes:


a condição de os Estados membros perderem a sua condição de Estados; a
Constituição ter a característica de base jurídica do Estado; somente o Estado
Federal ter soberania; atribuição e distribuição de competências fixadas na
Constituição; renda própria destinada a cada esfera de competências e uma
cidadania nacional, que é do Estado Federal.

Ainda, para Rodrigues (2004, p.1017), as características do Estado Federal


são: a) a co-existência entre um poder central e o poder de cada uma das unidades
federadas; b) a atribuição do exercício da soberania apenas à União (entendendo-se
que exista soberania); c) o reconhecimento, a cada uma das entidades federadas,
de autonomia; d) a existência de uma Constituição Federal que se sobrepõe a
qualquer outra lei, quer federal quer das unidades federadas; e) a existência de
constituições próprias para os Estados-Membros; f) a vedação ao direito de
secessão; g) a atribuição de competências, pela Constituição Federal, a cada uma
das unidades federadas; h) o reconhecimento do direito de intervenção federal nos
Estados-Membros; i) a representação dos Estados-Membros no legislativo federal; j)
o reconhecimento da democracia e da repartição dos poderes como instrumentos
dificultadores da concentração de poder, tanto no plano vertical como no plano
horizontal; e l) a possibilidade de as unidades federadas possuírem arrecadação
financeira própria.

Macedo e Ferrari (2005) afirmam que a Constituição Federal de 1988, ao criar


o Estado Federal, impediu que o poder se concentrasse numa única pessoa jurídica
de direito público, para que fosse repartido entre os demais entes que o compõem.

global (a da Constituição, que as domina, delimitando-lhes a competência e encarregando um órgão de fazê-la


49

Outrossim, não há que se confundir, como alerta Roque Antônio Carrazza


(2005, p.133), Estado Federal e Estado Unitário Descentralizado, uma vez que no:

[...] Estado Unitário Descentralizado as competências dos governos locais


estão subordinadas ao governo central, que, por seu Poder Legislativo,
pode restringir-lhes a autonomia. Na Federação, pelo contrário, a autonomia
dos governos estaduais está a salvo das incursões do Poder Legislativo
federal. Dito por outro modo, as leis ordinárias da União não podem lanhar a
autonomia dos estados-membros, garantida pela própria Constituição
Federal. [...] Resumamos. O essencial é que, num Estado Unitário
Descentralizado, o legislador central pode mutilar (ou até anular) as
competências locais, ao passo que, num Estado Federal, o Legislativo da
União não está autorizado a usurpar as competências estaduais, que,
repitamos, estão perfeitamente gizadas, no texto da Constituição.

Conceituadas as formas de Estado, partir-se-á ao exame do que se


convencionou denominar de Federalismo.

2.2 Conceito de Federalismo

Do exercício do poder no Estado Federal foi cunhado o termo Federalismo47


que, segundo Lobo (2006, p.12), nasceu como forma de exercício do poder político
num território estatal com a elaboração da Constituição Norte-Americana de 1787:

Embora se pretenda vislumbrar um incipiente embrião do Estado Federal no


relacionamento que jungiu as chamadas “cidades-estados da Grécia Antiga
(Atenas, Esparta, Creta, etc.) ou mesmo nos reinos da Itália Renascentista
(Florença, Veneza, Roma, etc.) a doutrina considera a união dos Estados
Norte-Americanos, na formação desenhada na Constituição de 1787, como
o “marco zero” do Federalismo em sua moderna acepção.

Afirma Nelson de Freitas Porfírio Júnior (2004, p. 05) acerca do surgimento do


Federalismo que em 1787:

cumprir)”. (CARRAZZA, 2005, p. 123).


47
“Embora alguns autores apontem a Confederação Helvética, surgida em 1291, como o primeiro exemplo de
aliança federativa entre Estados, reconhece-se geralmente que o Estado Federal moderno nasceu apenas em
1787, com o surgimento dos Estados Unidos da América, a partir da integração definitiva de treze ex-colônias
britânicas, que haviam logrado suas independências em 1776. Observa-se que, em um primeiro momento, essas
colônias reuniram-se sob a forma de uma confederação, criada por meio de um tratado – os Artigos de
Confederação -, celebrado em 1777 e ratificado em 1781. O objetivo maior dos Artigos era a preservação da
independência das ex-colônias perante a Inglaterra. Nessa primeira etapa, certamente em virtude de lembrança
do recente passado de forte opressão e dominação pelo poder inglês, as ex-colônias optaram por manter
intactas “soberania, liberdade e independência” recém-adquiridas, concedendo á então criada União
(denominada de Estados Unidos da América) somente alguns poucos poderes que, na prática, limitavam-se à
autorização para realização de negociações internacionais e à manutenção de uma força aramada comum”.
(PORFÍRIO JÚNIOR, 2004, p. 4-5).
50

Os representantes dos Estados reuniram-se na cidade de Filadélfia, para


proceder à revisão dos Artigos de Confederação e, após acalorados
debates, acabaram por aprovar a transformação da confederação em
federação, elaborando uma Constituição comum, à qual todos os Estados
passaram a se submeter, abrindo mão se suas soberanias. Sob a forte
influência de Montesquieu, concebeu-se uma doutrina conhecida côo “freios
e contrapesos” (checks and balances), com a separação dos poderes em
Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes e harmônicos entre si.

De acordo com o ensinamento de Lobo (2006, p. 129), Federalismo “[...] como


forma de Estado, surgiu sob o signo da dualidade de núcleo de poder, consolidando-
se, depois, como instrumento de afinação do postulado da ‘diversidade na unidade’”.

Silva (1999, p. 103) ensina que Federalismo, em Direito Constitucional, quer


dizer “[...] uma forma de Estado, denominada federação ou Estado Federal,
caracterizada pela união de coletividades públicas dotadas de autonomia político-
constitucional, autonomia federativa”. Ainda de acordo com o referido autor, a
Constituição Federal de 1988 buscou resgatar o “[...] princípio federalista e
estruturou um sistema de repartição de competências que tenta refazer o equilíbrio
das relações entre o poder central e os poderes estaduais e municipais.” (p. 106).

Neste sentido, destaca também Paulo de Barros Carvalho (1991, p. 363) que
os:

[...] municípios também foram prestigiados pelo constituinte, que alargou o


conceito de federação, normalmente significando a união de Estados numa
Nação, fazendo incluir os primeiros no pacto federativo. Diversas outras
normas constitucionais, notadamente as que definem as competências
legislativas, servem à consecução da forma federativa de Estado.

A idéia que melhor sinaliza para o princípio federativo é a da isonomia das


pessoas constitucionais. Não há superioridade entre a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios; cada ente tem as suas competências definidas na
Constituição. O pacto federativo só é possível se houver autonomia entre os entes
de direito constitucional interno. Inclusive, a imunidade recíproca é um dos limites
objetivos para que se mantenha tal autonomia.

Por isso Konrad Hesse (1988, p. 180-181) define federalismo como: “[...] a livre
unificação de totalidades políticas diferenciadas, fundamentalmente, com os
mesmos direitos, em regra, regionais que, deste modo, devem ser unidas para
51

colaboração comum”. Em complemento Antunes Rocha (1997, p.171) assevera que


o elemento informador do princípio federativo é a “[...] pluralidade consorciada e
coordenada de mais de uma ordem jurídica incidente sobre um mesmo território
estatal, posta cada qual no âmbito de competência previamente definida [...].”

Michel Bothe (1995, p. 259) afirma que os fins da forma federativa de Estado
são os seguintes:
a) meio de se preservarem a diversidade e particularidades históricas;
b) proteção das minorias políticas (se estiveram separadas em espaços
geográficos definidos);
c) em atenção à subsidiariedade (princípio segundo o qual se atribui
competência à comunidade menor, que poderia solucionar mais
adequadamente o problema, por estar mais próxima);
d) meio de se assegurar a liberdade – divisão vertical do poder – com
fortalecimento da liberdade individual; e,
e) meio de se promover a democracia, uma vez que por meio do
Federalismo se abre um plano adicional de participação.

Verifica-se que, em tese, o que se almeja com a forma federativa de Estado é,


justamente, obter uma maior distribuição não só do poder, mas também um acesso
da população às possibilidades de participação, relativamente a tomada de decisões
quanto à destinação de recursos públicos.

Carvalho (1991, p. 09), contudo, quanto à realidade brasileira, informa que a


partir da “[...] Constituição de 1988, pretendeu-se adotar um federalismo especial,
com três esferas de poder: União, Estados-membros e Municípios [...]”. Observa,
todavia, que os “[...] Municípios ainda não estão em pé de igualdade com os
Estados-membros [...], tendo em vista que entre outros fatores, “[...] não contam com
representantes próprios no Senado Federal e, além de se sujeitarem à Constituição
Federal, ainda estão sujeitos às Constituições Estaduais [...].”

Diante de tais pressupostos, necessárias agora algumas considerações sobre


as espécies de federalismo, que são a seguir enumeradas.
52

2.3 Modalidades de Federalismo

Diante da necessidade de se manterem íntegros os poderes dos Estados que


se uniram, a Constituição Norte-Americana de 1787 trouxe como característica o que
se denominou de Federalismo Dualista48, composto pela:

[...] existência de duas esferas de poder nitidamente distintas, com


atribuições e competências próprias, ou seja, há uma repartição horizontal
de competências, geralmente acompanhada por uma previsão de tributos
próprios. Não existe nenhuma preocupação constitucional com a
coordenação ou a harmonização das atividades exercidas por cada uma
delas. Esse é o tipo clássico de federalismo, mais característicos das
federações formadas por agregação. (CARVALHO, 1991, p. 8-9).

Esta forma de federalismo vinculava-se ao declínio do Estado Liberal,


consagrado pela não intervenção do Estado, fazendo surgir um Estado mais
intervencionista, dando ensejo à existência de um novo tipo de federalismo, o
Federalismo Cooperativo49 (Lobo, 2006). Este, diferentemente do dualista, busca o
trabalho conjunto dos Estados para a resolução dos problemas do país. (Porfírio
Júnior, 2004).

Gilberto Bercovici (2004, p. 58-59) afirma que o fundamento do federalismo


cooperativo, em termos fiscais, resulta da cooperação financeira, a qual se
desenvolve em decorrência da necessidade de solidariedade federal, que se
viabiliza através de políticas públicas conjuntas e de compensação das disparidades
regionais. Salienta que esta cooperação financeira tem como principal característica
a responsabilidade conjunta da União e dos entes federados pela realização de
políticas públicas comuns. O objetivo, pois, passa a ser claro, ou seja, dirigido à
execução uniforme e adequada de serviços públicos equivalentes em toda a
Federação, de conformidade e em harmonia com os princípios da igualdade e da
solidariedade.

48
No Federalismo Dualista: “[...] o Governo federal dispunha de poderes enumerados, limitados pelas
disposições constitucionais, dotando-se os estados dos poderes residuais, ou seja, todos aqueles não
outorgados expressamente para o Governo central.” (LOBO, 2006, p. 13).
49
“A promulgação da Constituição de 1988 trouxe consigo a restauração do federalismo cooperativo brasileiro,
mas não como o fizera a Constituição de 1934, pois a concentração de competências ainda é demasiadamente
acentuada na esfera da União. Embora entendamos justas as críticas, o certo é que os parâmetros do
federalismo cooperativo estão presentes na Constituição de 1988. Podemos observar o sentido de cooperação
nas competências comuns disciplinadas no art. 23 e em especial no seu parágrafo único ao dizer: ‘Lei
53

No Brasil, a Constituição Federal prevê diversos mecanismos de cooperação,


como o estabelecimento de órgãos regionais de desenvolvimento, os repasses
obrigatórios de receitas tributárias (federais para Estados-membros e Municípios, e
estaduais para Municípios), a concessão de subsídios e incentivos fiscais e outros.

Não obstante isto, os aspectos fundamentais do Estado Federal de viés


cooperativo expressam-se na descentralização do poder e na autonomia dos entes
federativos, destacando-se o aspecto financeiro dessa autonomia como verdadeira
viga central da estrutura federalista (Lobo, 2006, p. 29). Assim, mostra-se
imprescindível a busca de uma descentralização do poder estatal, com uma abertura
financeira e uma liberdade quanto à aplicação dos recursos estatais.

Todavia, como resultado da conjuntura político-econômica globalizante que se


foi estabelecendo no mundo ocidental ao longo do século passado, observou-se
forte tendência centralizadora nos Estados federais, externada na ampliação de
poder do Governo central e na submissão dos entes periféricos às diretrizes ditadas
por aquele, causando, dentre outras conseqüências, uma flagrante dependência
financeira.

Neste contexto, o princípio da subsidiariedade50 obtém espaço, uma vez que


proporciona uma reestruturação das possibilidades de implementação das
necessidades sociais, mediante a uma maior participação do poder local. Os
postulados fundamentais deste princípio acabam por assumir especial importância
no processo de reestruturação do modelo cooperativo de Federalismo, na medida
em que fornecem consistência conceitual político-jurídica às realocações, nas
esferas menores de poder, das funções administrativas que lá melhor sejam
exercidas e das fontes de receitas tributárias essenciais ao seu custeio. (Lobo, 2006,
p. 130).

complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional’”. (SIQUETTO, 2004, p. 275).
50
O princípio da subsidiariedade será abordado, de forma mais aprofundada em capítulo próprio.
54

Várias modalidades51 de Federalismo foram surgindo, todas pautadas pela


busca de aprimoramento da organização do Estado, sem, contudo, obter êxito na
implementação dos direitos sociais.

Com base nesta concepção, analisar-se-ão, mais detidamente, os reflexos


ocasionados pela forma de estruturação do Federalismo Fiscal.

2.4 Federalismo Fiscal

Importante, de início, conceituar o que Marco Aurélio Greco (2005, p. 182)


denomina de Estado Fiscal, pois na medida em que uma sociedade:

[...] quer um Estado que não seja proprietário de todos os bens (de cuja
exploração resultariam recursos suficientes para seu funcionamento) e,
mais, se ela pretende que esse Estado faça algo (p.ex., proveja à
seguridade social), o dinheiro de que necessita deverá vir de alguma origem
que não seja a mera exploração de seu patrimônio. Vale dizer, virá da
tributação. Daí falar-se em “Estado Fiscal” como aquele que, para subsistir,
necessita de tributos.

Assim, o pagamento do tributo apresenta-se como um dever por parte do


cidadão para que o próprio Estado possa se manter. Isso, contudo, não significa “[...]
livrar o Estado de seus compromissos junto à sociedade, nem minimizar o poder de
controle que esta possui perante os modos de aplicação dos recursos assim
arrecadados.” (Greco, 2005, p. 182)52.

51
Tavares (2003, p. 797), por exemplo, elenca outras modalidades de Federalismo: Federalismo Orgânico,
Federalismo de Integração e Federalismo de Equilíbrio.
52
“O Estado – como instrumento que é da sociedade – deve agir em sintonia com os objetivos e prioridades por
esta escolhidos, ao mesmo tempo em que este papel implica estar investido de responsabilidades inafastáveis.
Neste contexto, o Estado não é pura estrutura investida de “poderes” cuja legitimidade emanaria de fontes
externas à própria sociedade. Ao Revés, ao Estado cabe cumprir “deveres” perante a sociedade (por ser seu
instrumento) e os poderes que lhe são atribuídos limitam-se ao suficiente para viabilizá-los e em dimensão que
não ultrapasse o necessário para tanto.
Este perfil que a CF/88 atribui ao Estado repercute em diversos campos, inclusive ilumina os princípios que o
caput, do artigo 37 impõe à Administração Pública. Dentre estes, merecem menção o da moralidade (como
postura responsável perante o indivíduo interlocutor do Poder Público) e o da eficiência que – num Estado
instrumento da sociedade – deve ser visto não apenas da perspectiva da presteza, celeridade, continuidade etc.,
mas principalmente da ótica da busca dos fins constitucionalmente qualificados. Ou seja, parâmetros da
eficiência são os valores e fins constitucionais e não o mero produto mediato da atividade realizada.” (GRECO,
2005, p. 173-174).
55

Na mesma direção orienta-se o pensamento de Luis Eduardo Schoueri (2005,


p. 03), que esclarece que embasado num ideário trazido pela Constituição de 1988,
o Estado contemporâneo deve adotar as “[...] finanças funcionais, que se propõem a
intervir no campo sócio-econômico, com fins de tutela, redistribuição, equilíbrio, etc.”.

Schoueri (2005, p. 01) utiliza a expressão Estado do Imposto (Steuerstaat)53


para afirmar que o aspecto tributário é uma das grandes características do Estado
contemporâneo cuja:
[...] fonte de financiamento é, predominantemente de origem tributária e,
especialmente, proveniente dos impostos.
Em sua função arrecadadora, os tributos vêm merecendo atenção da
doutrina, cujo desenvolvimento, principalmente no último século, permitiu
que se firmassem seus contornos jurídicos, refletindo-se tal evolução, no
caso brasileiro, até mesmo no texto constitucional, que se dedicou
extensamente à matéria.

Paulo Roberto Siquetto (2004, p. 286), nesse contexto, afirma que o


fundamento do Federalismo Fiscal é “[...] a cooperação financeira, que se
desenvolve em virtude da necessidade de solidariedade federal por meio de políticas
públicas conjuntas e de compensações das disparidades regionais”.

O autor citado ressalta que no Brasil, com o surgimento de forma espelhada do


modelo inspirador norte-americano, o que acabou se estruturando foi um federalismo
patrimonialista, provocando através do clientelismo. É que embora tenhamos
avançado para um federalismo cooperativo, a verdade é que a distribuição de renda
ainda ocorre de forma mais política do que institucional, sem que haja instrumentos

53
“A ideologia, que reinou até o início do último século, segundo a qual o Estado atuaria como mero vigilante de
uma economia que se auto-regulava, viu-se superada com o modelo a partir do qual o Estado passava a
desempenhar um papel ativo e permanente nas realizações inseridas no campo econômico, assumindo
responsabilidades para a condução e funcionamento das próprias forças econômicas. Esse fenômeno encontra,
no plano constitucional, uma primeira manifestação no México, em 1917 e, logo, em seguida, ma Alemanha, com
o texto de Weimar. Viu-se paulatinamente estendido a outros textos constitucionais, alcançando o Brasil, em
1934 e a partir daí deitando raízes mais profundas nos textos constitucionais subseqüentes.
É neste sentido que se afirma que o Estado contemplado pela Carta de 1988 não é neutro. Seguindo a tendência
acima, o constituinte revelou-se inconformado com a ordem econômica e social que encontrara, enumerando
uma série de valores sobres os quais se deveria firmar o Estado, o qual, ao mesmo tempo, se dotaria de
ferramentas hábeis, a concretizar a ordem desejada. No lugar de se ter um ordenamento dado, que deve ser
apenas mantido ou adaptado, o legislador constituinte preconizou uma realidade social nova, ainda inexistente,
cuja realização e concretização, por meio de medidas legais, passa a ser interesse público. Esta nova realidade
se traduz no desenvolvimento econômico, prestigiada pelo Constituição de 1988, que inclui, no artigo 3.°, entre
“os objetivos fundamentais da República” o da garantia do desenvolvimento nacional”, o que, entretanto, não se
compreende isoladamente de outros objetivos, como o da construção de uma “sociedade livrem justa e
solidária”, onde se erradicarão “a pobreza e a marginalização” e se reduzirão “ as desigualdades sociais e
regionais”, promovendo, enfim, “o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”. Daí, ao se ressaltar a importância do desenvolvimento econômico, ser possível
qualificá-lo como “justo para que se trone legítimo”, não sendo um fim em si mesmo, devendo afinar-se como
desenvolvimento humano”. (SCHOUERI, 2005, p. 01-02).
56

efetivos que possam acompanhar e aferir a utilização final dos recursos. (Siqueto,
2004, p. 286).

Daniel Goldberg (2004, p. 28) sustenta que a Constituição Federal de 1988


constituiu um federalismo fiscal bastante rígido:

[…] Amparado em (i) competências tributárias exclusivas para todas as


pessoas jurídicas de direito público interno, (ii) transferências constitucionais
mandatórias (cf. arts. 157 a 162 da Constituição Federal, que disciplinam o
mecanismo de transferências fiscais), (iii) transferências verticais voluntárias
para os fins mais diversos, a exemplo dos fundos de desenvolvimento
regional, (iv) determinações a priori de destinações orçamentárias por todos
os entes, a exemplo do que ocorre com a educação, (v) autonomia
financeira e orçamentária para os entes federativos, relativizada com a nova
lei de responsabilidade fiscal.

Diante de tais peculiaridades, segundo Lobo (2006, p. 189), identifica-se


atualmente uma grave crise enfrentada pelo Federalismo Fiscal brasileiro:

Percebe-se uma indisfarçável dinâmica centrípeta tomando força nas


entranhas estruturais e nas condutas práticas que conformam o nosso
Federalismo Fiscal, esvaziando os espaços de atuação dos governos locais
em favor de uma centralização normativa e financeira da União,
centralização que não deveria encontrar guarida à luz dos valores e dos
princípios que estão consagrados sob o manto do Estado Federal adotado
na Constituição de 1988, e que se mostra incompatível com o crescente e
inexorável processo de deslocamento, para os governos locais, da
execução de custosas funções administrativas.

Alternativas para lidar com a mencionada crise são apontadas por Goldberg
(2004, p. 28-29), destacando três pontos específicos: o primeiro, com a eliminação
dos focos de rigidez do sistema, ou seja, a Constituição deve assegurar a autonomia
orçamentária aos entes federativos sem predeterminar gastos ou destinações dos
orçamentos municipais ou estaduais; o segundo, com a reestruturação das
competências tributárias, transferindo “bases de incidência”, em troca de
transferências fiscais amparadas em critérios que mereçam o esforço fiscal de cada
ente; e o terceiro, com a criação de mecanismos de coordenação entre União,
Estados e Municípios, bem como de desincentivos a estratégias não-cooperativas
por parte dos entes federativos.

Portanto, preciso Siquetto (2004, p. 290) quando afirma que se faz necessário
organizar um novo pacto federativo em que as relações intergovernamentais tenham
como propósito a redistribuição do bolo tributário, com critérios objetivos e
57

determinados, privilegiando as entidades federativas mais fracas econômica e


financeiramente, estimulando uma maior responsabilidade dos entes que
empregarão os recursos distribuídos, inclusive mediante um eficaz
acompanhamento.

Latente está, portanto, a afirmação de que o Federalismo está em crise, sendo


diversas as alternativas para modificar o quadro que se encontra instalado. Entre tais
alternativas é possível apontar a valorização do poder local, como uma forma de
reestruturação do modelo federalista.

2.5 Federalismo em crise: a importância do poder local

Porfírio Júnior (2004, p. 11-12) identifica a crise do Federalismo diante da


adoção de medidas que transformam um Estado Federal em verdadeiro Estado
Unitário, pela pouca autonomia reservada aos entes federados. Tal diminuição da
autonomia:

[...] regional freqüentemente conduz, por sua vez, à redução do nível de


democracia e de participação popular na administração pública, uma vez
que as decisões relevantes sobre o destino do país passam a se dar muito
longe do alcance do cidadão médio. Assim, embora o federalismo e
democracia não estejam necessariamente sempre vinculados, pode-se
constatar que, como regra geral, as grandes democracias modernas utilizam
a forma federal de repartição de competências. A estrutura federal parece
assim ser mais resistente a tentativas de monopolização do poder político
que levam ao surgimento de Estados Totalitários. Finalmente, parece que o
futuro do federalismo será mais positivo quando maior o grau de
participação popular na formulação das políticas públicas e na definição das
prioridades a serem atendidas pela administração. O federalismo será então
mais eficaz à medida que melhor prover os recursos financeiros necessários
para que todos os entes possam definir quais as suas prioridades dentro do
orçamento que lhes foi destinado.

Fernando José Dutra Martuscelli (2001, p. 99-100) afirma ser possível verificar
uma forte centralização de poder, impossibilitando a participação efetiva de Estados
e Municípios na administração do Estado Federativo Brasileiro. No seu entender, é
possível concluir pela “[...] não-existência de federalismo efetivo no Brasil e de
isonomia entre as pessoas constitucionais, da prevalência da União Federal sobre
os demais entes federados [...]”, como também dos inegáveis interesses patrimoniais
58

dos “[...] entes integrantes da Administração indireta da União Federal sobre a


autonomia dos Estados-Membros e Municípios [...]”.

Ao que tudo indica, a pretendida busca de descentralização do poder e a


conseqüente participação dos espaços locais está fadada a permanecer somente no
papel. O que se verifica é uma centralização cada vez maior de decisões que
dirigem o país:

Outros Estados federais vêm enfrentando crises similares à que acomete a


Federação brasileira, com a adoção de políticas que efetivamente dêem
solução à demanda por serviços públicos mais ágeis e próximos dos
cidadãos, descentralizando a execução das funções administrativas para
os governos locais, sempre que estes as possam cumprir de maneira mais
eficaz e diligente. Para dar sustentação a tais políticas percebe-se, nesses
países – especialmente nos Estados Unidos da América e na Alemanha –
uma clara tendência ao fortalecimento da autonomia financeira e tributária
dos entes subnacionais. [...] O Brasil pós-Constituição de 1988 parece
estar [...] concentrando cada vez mais no Governo central, quantitativa e
qualitativamente, os poderes financeiros e tributários, além da arrecadação
das receitas tributárias em si, promovendo-se ulterior repasse de
substancias valores às unidades federadas das outras esferas (no eixo
vertical da discriminação de rendas) mediante as chamadas transferências
condicionadas. (LOBO, 2006, p. 190).

Assim, verifica-se uma “[...] inaptidão do modelo de Federalismo Fiscal, hoje


em voga no país, para conduzir os governos locais ao fortalecimento financeiro que
se impõe [...]”, pelo que é inegável que as soluções para este cenário “[...] passam
fundamentalmente por alterações estruturais no esquema da discriminação das
rendas tributárias que vem sendo praticado e por uma ampliação da competência
legislativa tributária dos entes subnacionais [...]”. (Lobo, 2006, p. 196). E mesmo em
se tratando da adoção de um Federalismo cooperativo, o que se pode perceber,
muitas vezes, é a intervenção demasiada da União, culminando por transformar-se
num Estado Unitário descentralizado, caracterizando o Federalismo de integração.
(Porfírio Júnior, 2004).

Destaca Porfírio Júnior (2004, p. 10-11) que o que deve ser almejado é a busca
de tratamento diferenciado entre os Estados, de modo a fazer prevalecer a tônica de
que distinção perante diferentes e de igualdade perante iguais. Neste sentido,
defende a adoção de um federalismo: “[...] que permita manter a autonomia dos
entes locais, ao mesmo tempo em que apresente flexibilidade suficiente para permitir
59

a realização de planos, programas e projetos conjuntos entre as diversas esferas,


sob a coordenação do poder central”.

Tal ampliação da participação em âmbito local acaba por ocasionar a


possibilidade de um efetivo espaço democrático:

O respeito à integridade das índoles locais dá-se por meio da outorga aos
entes contemplados nos limites territoriais do Estado (as “personas” acima
aludidas), de poderes cujo exercício permita um relativo – mas inconcusso –
funcionamento autônomo nos assuntos de seu interesse. Conseqüências da
manutenção da multiplicidade regional vão se espraiar tanto no
fortalecimento da democracia e da liberdade individual quanto no sentido de
solidariedade e no compromisso de cooperação que, em última análise,
representam a argamassa capaz de manter sem coação aqueles entes
locais. (LOBO, 2006, p. 29).

Assim, o estudo do Federalismo Fiscal abrange: “[...] a verificação da


compatibilidade entre os cânones da isonomia e da autonomia, e, indiretamente, a
vários outros valores e princípios (solidariedade, democracia, proporcionalidade,
subsidiariedade, etc.) que lhe são tangentes.” (Lobo, 2006, p.71).

Neste contexto, José Maurício Conti (2001, p. 24-25) assinala que o estudo do
Federalismo Fiscal se processa a partir da análise:

[...] da maneira pela qual as esferas de governo se relacionam do ponto de


vista financeiro, que podemos denominar de Federalismo fiscal, englobando
a análise da maneira pela qual está organizado o Estado, qual é o tipo de
federação adotado, qual é o grau de autonomia dos seus membros, as
incumbências que he são atribuídas e, fundamentalmente, a forma pela qual
serão financiadas.

A partir da concepção acima explanada, pode-se concluir, como o faz Manuel


Gonçalves Ferreira Filho (2003, p. 44), que a autonomia de um ente federado está
diretamente ligada à sua possibilidade de implementar políticas com a renda que lhe
é destinada. Significa que a existência efetiva da autonomia depende da previsão de
recursos suficientes para que os Estados e Municípios possam desempenhar suas
atribuições. É claro que estes recursos deverão se mostrar correlativos à extensão
dessas atribuições. Se foram “[...] insuficientes ou sujeitos a condições, a autonomia
dos Estados-Membros só existirá no papel em que estiver escrita a Constituição. Daí
o chamado problema da repartição de rendas [...]”. (Ferreira Filho, 2004, p. 44).
60

Assim, depreende-se que devem ser promovidos esforços para que, em âmbito
local, seja possível uma maior atuação possibilitada pelo auferimento de renda
necessária ao Município.

2.5.1 Município: possibilidade de efetivação da cidadania

Sem dúvida alguma, o federalismo54 ao acolher o Município55 como um de seus


entes integrantes, avançou de forma expressiva permitindo a ampliação da
participação no que diz respeito à execução do gasto público, sobretudo em ações
sociais fundamentais. A esfera municipal passa a ser vista como local preferencial
para a execução de políticas públicas, dirigidas especialmente à erradicação da
pobreza, sobretudo pela possibilidade de um melhor controle do gasto público, visto
que os governos locais têm uma menor propensão ao endividamento exagerado,
com desequilíbrio das suas contas.

Ademais, a proximidade com o cidadão constitui fator determinante de uma


maior cobrança, no sentido da obtenção de resultados mais pragmáticos das ações
administrativas.

Neste sentido, Lobo (2006, p. 136) destaca que com a Constituição Federal de
1988, buscou-se a formulação de um ideário de descentralização do poder, com
vistas a permitir uma maior participação dos municípios e estados, inclusive, em
matéria tributária, sinalizando o fortalecimento da autonomia financeira das unidades
federadas. Desta forma, evidenciou-se na nova ordem constitucional, no mínimo

54
De acordo com Lobo (2006, p. 47-48), o Federalismo foi consagrado pela Constituição Federal de 1988 que
traz em seu texto “[...] a utilização do termo ‘Federativa’ no próprio nome do país (‘República Federativa do
Brasil’), passando pela dicção de inúmeros dispositivos que versam os Princípios Fundamentais e a
Organização do Estado (v.g.: arts. 1.º, 3.º, 4.º, 12, 18, etc) até a expressa afirmação dos cânones básicos da
autonomia (art. 18, ‘caput’) e da isonomia (art. 19, III) dos entes federativos. Diferentemente das demais
Federações contemporâneas, entretanto, aquela erigida pelo constituinte brasileiro de 1988 contempla
peculiaridade única, que lhe confere, segundo a doutrina, desenho heterodoxo que não encontra similar dentre
os outros Estados Federais: em vez das tradicionais duas esferas autônomas (União e Estados-Membros), a
Federação brasileira é descentralizada em três ordens de competência legislativa, política e administrativa, com
a expressa inclusão também dos Municípios na classe maior dos entes federativos.”
55
Bonavides (1993, p. 273) destaca a importância de se analisar o artigo 18 da Constituição Federal de 1988,
tendo em vista que: “Esse artigo inseriu o município na organização político administrativa da República
Federativa do Brasil, fazendo com aquele, ao lado do Distrito Federal, viesse a formar aquela terceira esfera de
autonomia, cuja presença, nos termos em que se situou, altera radicalmente a tradição dual do Federalismo
brasileiro, agora de nova dimensão básica.”
61

uma tendência descentralizadora na esfera financeira, revelando uma tentativa de


permitir aos Estados e Municípios uma maior receita tributária, compatível com a
descentralização de funções administrativas que também foi promovida pela Carta
de 1988.

O Município56 passou a ter um papel principal, contando com a função


subsidiária assumida pelos Estados-membros e pela União, caracterizando a
qualificação dos espaços locais como adequados para o exercício das funções que
neles sejam possíveis efetivar. Em outras palavras, deixa-se reservado para os
outros entes federados a atuação complementar, isto é, subsidiária, para a hipótese
de não se mostrarem eficientes as soluções encontradas no espaço menor. (Lobo,
2006, p. 34).

Nesta linha, registro importante é feito por Morbidelli (1999, p.188-199), quando
afirma que a Constituição de 1988 buscou reestruturar o Estado Federal segundo as
concepções do Estado moderno, sinalizando para um modelo ser cooperativo, com o
estabelecimento da co-participação entre os entes federativos, isto é, da relação de
igualdade e responsabilidade entre a União e as unidades federadas.

Lobo (2006, p. 58-59) destaca em complemento que, no plano da produção


legislativa, a Constituição Federal de 1988 revela o conteúdo do modelo cooperativo
nos artigos 23 e 24, quando da estipulação das competências comum e concorrente
entre os membros da federação.

Refere também, que no aspecto financeiro, a cooperação entre os entes tem


por objetivo suprir o desequilíbrio decorrente das significativas disparidades
regionais, cooperação esta que deve se operar principalmente através da
transferência vertical dos recursos públicos.

56
“O Município, enquanto ente estatal federado, possui uma função social, qual seja a de buscar a concretização
do Bem Comum dos munícipes, sendo dinâmico o seu conteúdo, devendo, cada Município, com base nos
direitos fundamentais (os quais corporificam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana),
perceber, em seu tempo e no seu espaço, quais suas peculiariedades e, assim, priorizar políticas públicas
adequadas a cada realidade. (RODRIGUES, 2004, p. 1039-1040).
62

Frisa, ainda, que a manutenção dos aspectos político e administrativo da


autonomia dos entes federativos será resultado da autonomia financeira57, a qual
deve estar estruturada de forma precisa na Carta Política, ou seja, mediante a
fixação de uma adequada e proporcional discriminação de rendas, bem como de
dispositivos que garantam a respectiva intangibilidade. É sobre tais bases que
repousará a real e efetiva autonomia dos Estados e Municípios, sobretudo porque a
disponibilidade de rendas suficientes constitui fator primordial a viabilizar o exercício
pleno das competências que lhes foram conferidas. (Lobo, 2006, p. 68)

Na realidade, não pode ser de forma diversa, visto que estaria afastada de
qualquer lógica a concessão de autonomia58 aos Municípios, sem o aferimento aos
mesmos de renda adequada para execução de seus serviços.

Verifica-se, assim, que a autonomia está ligada ao tanto de receita que é


atribuída ao ente federado. Importante diante dessa perspectiva, que se analise
mais a fundo quais as características da autonomia municipal. Neste sentido
Carrazza (2005, p. 163) vislumbra ser necessário perceber que deve existir uma
relação horizontal entre União, Estado e Município, e não uma relação caracterizada
pelo verticalismo. Para ele, o conceito de autonomia municipal toma por base duas
características: a) provimento privativo dos cargos governamentais; b) competência
exclusiva no trato de assuntos de seu peculiar interesse.

Desta forma, conclui que no Brasil o governo e a administração de cada


Município equivale ao que seu povo, através de seus representantes, delimita nas
respectivas leis votadas pela sua casa legislativa. Significa que o Município pode
governar-se e administrar-se como entender melhor, livre de qualquer interferência
de outras esferas, desde que, evidentemente, observe os princípios constitucionais
que regem a correspondente atuação. Em reforço a esta a assertiva, a norma do

57
Macedo e Ferrari (2005, p.92) registram: “Reza o art. 30, III, que compete ao Município “instituir e arrecadar os
tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas
o publicar balancetes nos prazos fixados em lei”. Portanto, a autonomia financeira consiste na capacidade de ter
receita própria para realizar a despesa necessária. [...] Assim, a autonomia financeira fica, no atual sistema
constitucional, garantida pela instituição e arrecadação de tributos, nos termos dos arts. 145, 156 e 158) da
Constituição Federal, bem como pelo recebimento de repasses das verbas concernentes a tributos arrecadados
por outras esferas administrativas, União e Estados Membros.”
58
Silva (1999, p.621) conceitua autonomia como “capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de
um círculo prefixado por entidade superior”.
63

artigo 30, II, da CF, confere aos Municípios competência para suplementar a
legislação federal e a estadual no que couber. (CARRAZZA, 2005, p. 163-165).

Nesta linha, a autonomia municipal está assentada em quatro características. A


primeira é a capacidade de auto-organização, que se evidencia mediante a
elaboração de lei orgânica própria; a segunda, corresponde à capacidade de
autogoverno, que se identifica pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores às
respectivas Câmaras Municipais; a terceira, diz respeito à capacidade normativa
própria, em face da sua competência para elaboração de leis municipais sobre
matérias reservadas à sua competência exclusiva e suplementar; e a quarta, se
refere a sua capacidade de auto-administração, no sentido da implementação de
administração própria, para manter e prestar os serviços de interesse local. (SILVA,
1999, p. 622-623).

Na opinião de Silva, (1999) com a Constituição Federal de 1988, passou a ser


possível falar com maior precisão em autonomia municipal59, porque somente a
partir dela é que características como as de auto-organização, autogoverno e
previsão de competências exclusivas ao Município foram vislumbradas:
A autonomia municipal é assegurada pelos arts. 18 e 29, e garantida contra
os Estados no art. 34, VII, c, da Constituição. [...] E é a Constituição Federal
que se apresenta como poder distribuidor de competências exclusivas entre
as três esferas de governo [...]. As Constituições até agora outorgavam aos
Municípios só governo próprio e a competência exclusiva, que
correspondem ao mínimo para que uma entidade territorial tenha autonomia
constitucional.
Agora foi-lhes reconhecido o poder de auto-organização, ao lado do
governo próprio e de competências exclusivas, e ainda com ampliação
destas, de sorte que a Constituição criou verdadeiramente uma nova
instituição municipal no Brasil. Por outro lado, não há mais qualquer

59
“A autonomia, que a Constituição de 1988 outorga ao Município, contém uma qualificação especial que se dá
um conteúdo político de extrema importância para a definição de seu status na organização do Estado brasileiro,
inteiramente desconhecido no regime anterior. Antes, o reconhecimento da autonomia municipal tinha um
sentido remissivo. Quer dizer, a Constituição remetia aos Estados o poder de criar e organizar seus Municípios.
O dito sentido remissivo consistia em determinar aos Estados que, ao organizarem os seus Municípios, lhes
assegurassem a autonomia, mas apenas quanto às capacidades de auto-administração, autolegislação e
autogoverno. A o fazê-lo, os Estados haviam de respeitar a autonomia assegurada na Constituição Federal em
termos genéricos relativos ao peculiar interesse local.
Veja-se que a diferença fundamental da outorga da autonomia municipal: as normas constitucionais anteriores
sobre ela se dirigiam aos Estados-membros, porque estes é que deveriam organizá-los, assegurando-a, mas, aí,
se reservavam a eles poderes sobre os Municípios, que agora já não têm: o poder de organizá-los, de definir
suas competências, a estrutura e competência do governo local e os respectivos limites. Agora não, as normas
constitucionais instituidoras da autonomia dirigem-se diretamente aos Municípios, a partir da constituição
Federal, que lhes dá o poder de auto-organização e o conteúdo básico de suas leis orgânicas e de suas
competências exclusivas, comuns e suplementares (arts. 23, 29, 30 e 182).
Isso significa que a ingerência dos Estados nos assuntos municipais ficou limitada aos aspectos estritamente
indicados na Constituição Federal, como, por exemplo, os referentes à criação, incorporação, fusão e ao
desmembramento de Municípios (art. 18, § 4.º) e à intervenção (arts. 35 e 36).” (SILVA, 1999, p. 622-623).
64

hipótese de prefeitos nomeados. Tornou-se plena, pois, a capacidade de


autogoverno municipal entre nós (SILVA, 1999, p. 621).

Cabe registrar que as Constituições anteriores já previam competências


próprias dos Municípios. Contudo, com a Constituição Federal de 1988, tais
previsões ganharam maior relevo.

Há de se ter presente, portanto, que o princípio da autonomia municipal confere


liberdade para que o Município estabeleça as suas metas, desde que não confronte
os preceitos constitucionais, e possa efetivamente corresponder aos interesses
locais, ou seja, aqueles que o afetam diretamente. Neste aspecto, mencionam
Macedo e Ferrari (2005, p. 91-92) que:

Não é demais esclarecer que tais assuntos têm repercussão maior no


Município, cujos poderes são os mais capazes e apropriados para atendê-
los, mas não quer dizer que venham a interessar apenas ao Município, visto
que interesse privativo não significa interesse exclusivo, pois sempre acaba
por repercutir, de alguma maneira, nas esferas estadual e federal. Num
sistema federativo isolá-los, como se pudessem interessar somente à esfera
municipal.

De outro lado, alertam, também, que o interesse local a ser alcançado com a
autonomia conferida ao Município, pode perfeitamente não se apresentar apenas
como interesse local, mas como interesse que diga respeito também à União e aos
Estados membros. Destacam que não há interesse local que de alguma forma
também não seja “[...] reflexamente da União e dos Estados Membros, como não há
interesse nacional ou regional que não se reflita nos Municípios, como parte
integrante de uma realidade maior que é a Federação brasileira [...]”. (MACEDO;
FERRARI, 2005, p. 114-115).

A importância de se configurar uma autonomia municipal assume grande


relevância no momento em que se percebe nela a possibilidade de efetivamente
resolver os problemas de interesse local e patrocinar a participação dos cidadãos60,
porquanto conhecedores dos problemas que os cercam e, quiçá, portadores das
melhores alternativas para resolvê-los.

60
Observa Tavares (2003, p. 824) que os “[...] municípios representam uma excelente fórmula de
descentralização administrativa do Estado. Quanto mais descentralizado o exercício do poder do Estado,
maiores as chances de participação política do cidadão e, por conseqüência, mais elevado o nível democrático
que se pode alcançar”.
65

O Município, uma vez proporcionada uma efetiva autonomia, apresenta-se


igualmente como a oportunidade de criação de espaços democráticos. Não é demais
frisar que quem melhor sabe das suas necessidades é justamente aquele que as
vive.

Diante de tais constatações, verificam-se dois desdobramentos bem nítidos. O


primeiro está vinculado à plena possibilidade de, no âmbito municipal, serem
definidas, implementadas e fiscalizadas políticas sociais dirigidas à inclusão social,
como adiante, em capítulo futuro, será melhor detalhado. De outro lado, e aqui o
segundo desdobramento, diz respeito às formas de participação dos cidadãos em
decisões de interesse local, pois, segundo princípios constitucionais, o Estado
Brasileiro deve estar comprometido com a construção da cidadania para que seja
possível vislumbrar uma sociedade em que a justiça social prevaleça.

Hermany, Tabarelli e Helfer de Borba (2004, p. 1147), neste contexto,


destacam a importância da elaboração de novas formas de relacionamento entre
sociedade e Estado:

Para tanto, são fundamentais novas possibilidades de relação entre


sociedade e Estado, tanto no que se refere a novas modalidades de
participação nas decisões, como as novas formas de relação entre
democracia representativa e democracia participativa, e as alterações no
interior do próprio Estado.
Desse modo, assume relevo a questão do cooperativismo, no sentido de
uma participação ativa dos grupos da sociedade na busca da solução das
demandas que os afligem.

A própria leitura dos preceitos constitucionais deve estar pautada pela


participação popular, de sorte que “[...] é inadmissível a interpretação da
Constituição sem a participação do cidadão e sem as potências públicas; a
legitimação plural é expressão do direito fundamental à cidadania.” (HERMANY,
TABARELLI, BORBA, 2004, p. 1143).

Em conclusão, o Município, como ente federado que goza de certa autonomia,


pode e deve ser condutor de políticas públicas dirigidas ao atendimento de
demandas sociais, políticas estas que devem ser definidas a partir de decisões
66

tomadas em espaços democráticos, em que se verifique a ampla participação do


cidadão.

2.5.2 Princípio da subsidiariedade

Na seqüência dos registros antes feitos a respeito da possibilidade de atuação


eficiente do Município no atendimento de demandas sociais, indispensável que
sejam feitas algumas considerações relativas ao princípio da subsidiariedade61. E
de imediato cumpre destacar registro feito por Faber Torres (2001, p 35-36),
vinculando o princípio da subsidiariedade com o federalismo:

No plano político, traduz-se no princípio federativo, empregando-se quer


como critério de repartição de competência entre as diversas esferas
federativas, quer como regra para a solução de conflitos de atribuições que
surjam entre elas, de modo a fortalecer sempre, afinal, o poder local, e
manter a gestão administrativa o mais próximo possível do cidadão. Implica,
pois, em definir que tarefas cumprem às instâncias menores e quais, por
dedução, devem ser realizadas pelos entes maiores e central.

Na realidade, a idéia de subsidiariedade há muito vem se disseminando nas


Ciências Humanas. Utilizada como regra de Filosofia Social, as primeiras
manifestações sobre tal princípio aparecem nas obras de Aristóteles (Politique), São
Tomás de Aquino (Somme Théologique) e Dante (De Monarchia). Entretanto, há que
se reconhecer que toda a construção dogmática da idéia de subsidiariedade foi
difundida pela Doutrina Social da Igreja Católica, especialmente quando contrapôs
a autonomia dos indivíduos e o pluralismo da vida social às ideologias coletivistas do

61
Acerca do Princípio da Subsidiariedade afirma Torres (2000, p. 304-305): “O princípio da subsidiariedade, que
se afirma no pensamento social da Igreja desenvolvida a partir do final do séc. XIX vincula totalmente o Estado
dos nossos dias, que se torna um Estado Subsidiário. Corresponde à ideologia do liberalismo social e representa
uma nova forma de equilíbrio entre Estado e sociedade. Recorde-se que, no início do liberalismo, na fase do
Estado Guarda-Noturno, havia a preponderância dos interesses individuais sobre os do Estado; durante boa
parte do século XX, com a emergência dos socialismos democráticos e da social-democracia, fortaleceu-se o
Estado de Bem-Estar Social ou Exatidão Providência, com a prioridade do Estado sobre a sociedade; hoje, com
o liberalismo social e o Estado subsidiário, assiste-se a nova equação no relacionamento entre Estado,
sociedade e indivíduo, com a prevalência da sociedade, por seus corpos intermediários e pela afirmação dos
direitos difusos sobre o Estado, e a do indivíduo frente à sociedade.” Janice H.F. Morbidelli (1999, p. 60-61)
registra que: “O princípio da subsidiariedade, inspirado na Constituição alemã, completa a doutrina federativa
contemporânea. Ele prevê que funções que possam ser realizadas pelas comunidades locais jamais sejam
assumidas pelas comunidades maiores. Essas teorias e aplicações práticas do Federalismo intergovernamental
vêm promovendo uma modernização dos poderes, que não envolve somente a questão de devolução de
poderes para as unidades constituintes da federação, mas também a possibilidade de transferência de
autoridade sobre assuntos julgados mais propícios a cada esfera de governo, onde podem ser mais efetivos
respondendo certos desafios.”
67

início do Século XX e final do século XIX, com o propósito de combater os excessos


do liberalismo, promovendo uma maior integração social, com comunidades maiores
dando estímulos para comunidades menores. (Quadros, 1995, p. 12-14).

Tendo tais valores como base de apoio, o Princípio da Subsidiariedade


acabou introduzido no mundo da Ciência do Direito, de modo mais específico no
Direito Público, tendo maior aplicabilidade e repercussão na esfera do Direito
Administrativo.

Quadros (1995, p. 17) afirma que o princípio da subsidiariedade

[...] vem levar a cabo uma repartição de atribuições entre a comunidade


maior e a comunidade menor, em termos tais que o principal elemento
componente do seu conceito consiste na descentralização, na comunidade
menor, ou nas comunidades menores, das fundações da comunidade maior
[...], sendo que a comunidade que ocupa o mais alto grau nessa pirâmide é
o Estado.

Resulta disto a idéia de que a comunidade maior somente poderá realizar


atribuições da comunidade menor, se esta, havendo necessidade de efetiva
realização, não tiver condições de realizá-las de melhor forma. Se assim for o
princípio da subsidiariedade entendido, certamente ele será no entender de Quadros
(1995, p.18) um princípio fundamental da ordem jurídica do moderno Estado Social
de Direito, “[...] na medida em que conduz à aceitação da persecução do interesse
público pelo indivíduo e por corpos sociais intermediários situados entre ele e o
Estado”.

Também nessa mesma linha o entendimento de Moreira Neto (2003, p. 135)


quando afirma que “[...] atende-se ao princípio da subsidiariedade sempre que a
decisão do Poder Público venha ser tomada da forma mais próxima possível dos
cidadãos a que se destine”.

Nestas condições, segundo o apontado princípio, o Estado deve desempenhar


uma função subsidiária em relação aos particulares. E nesta função subsidiária tem
duas atribuições específicas: a primeira é criar as condições necessárias para
possibilitar a atuação do particular; e a segunda a de suprir as atividades dos
particulares, quando estas se tornam insuficientes ou inadequadas. Em
68

conseqüência, o Estado não deve realizar as atividades que a iniciativa privada


pode, com eficácia, desenvolver sozinha. Nesta linha é possível concluir que o
princípio da subsidiariedade, de certa forma impede o intervencionismo estatal,
preservando a liberdade e o pluralismo social. (BARACHO, 1996, p. 47)

Há que se ter presente, outrossim, que a criação de um espaço local de


tomada de decisões, por meio do princípio da subsidiariedade, não quer parecer que
as demais esferas sejam preteridas, mas apenas que, quando a questão a ser
decidida para a efetivação dos direitos sociais envolve interesses cujas respostas
estão colocadas em âmbito municipal, os espaços estaduais e federais não precisam
estar presentes, permitindo que os munícipes tomem a decisão.

Diferentemente do que aconteceria caso o Município não pudesse resolver


determinada situação isoladamente, necessitando do auxílio estadual ou federal,
oportunidade em que, pelo princípio da subsidiariedade, tais esferas seriam
acionadas62. É esta justamente a característica mais marcante do princípio em tela,
ou seja, utilizá-lo não significa ultrapassar competências, mas privilegiar as vontades
e prioridades locais, valorizando e efetivando a voz do munícipe que melhor
identifica do que precisa.

De outro lado, ao mesmo tempo permite que as esferas mais distantes dele
sejam também contatadas, caso o Município não possa resolver sozinho o
problema63.

62
Deve ser viabilizada a participação ativa da sociedade da resolução de problemas que nascem no seu meio,
justamente, para que seja evitada a sua dependência ao Estado: “Nas relações orçamentárias entre o Estado e a
sociedade a satisfação das necessidades deve se fazer prioritariamente pelos órgãos societais. O Estado só
concederá prestações financeiras, auxílios ou subvenções quando houver impossibilidade de solução dos
problemas por parte da própria sociedade. Os incentivos fiscais e os privilégios, adverte Tipke, prejudicam o
princípio da subsidiariedade e criam desnecessária dependência da sociedade. As próprias relações no âmbito
da seguridade devem ser governadas pela subsidiariedade de tal forma que o Estado só conceda subvenções e
ajudas após esgotadas as potencialidades societais. (TORRES, 2000, p. 305-306).
63
“[...] a abertura do espaço público estatal, permitindo a ampliação da articulação dos atores sociais, a partir de
uma ótica subsidiária, não traz como conseqüência a superação das instituições, mas, sim, a conciliação dessas
com o controle social. Nesse sentido, o destaque para a atividade interpretativa da sociedade em relação aos
princípios constitucionais mostra-se novamente adequado, a partir do conceito de interpretação mutativa das
normas constitucionais que não se restringe ao Poder Judiciário, mas, por outro lado, não significa a superação
dos paradigmas estatais.” (HERMANY, 2005, p. 1408).
69

Assim está direcionado o entendimento de Torres (2000, p. 304) quando afirma


que o [...] “princípio da subsidiariedade sinaliza no sentido de que a ação do Estado
deve ser complementar e auxiliar do indivíduo e da sociedade’, razão pela qual o [...]
“Estado só interfere ou ajuda na impossibilidade ou incapacidade de a própria
cidadania resolver os seus problemas”.

Diante desse ideário trazido pelo princípio da subsidiariedade64, pode-se falar


em um novo federalismo, justamente porque, nas palavras de Hermany (2005, p.
1411):

[...] o princípio da subsidiariedade, ao propor uma nova relação entre Estado


e sociedade, em suas diferentes esferas, afasta-se dos extremos, ou seja,
do absenteísmo, que provocaria um retorno ao modelo liberal clássico e seu
conseqüente déficit social, e da posição estatista, notadamente em função
de uma crise de financiamento do Estado. Diante do princípio da
subsidiariedade, que se concretiza num novo federalismo, a atuação do
Estado recebe uma dupla repercussão, pois esta noção atua na perspectiva
negativo-positiva, seja como restrição consubstanciada na autonomia local,
seja na ótica do dever de auxílio às entidades da sociedade em caso de não
ser possível atingir suas finalidades sem o apoio estatal.

Em realidade, não há como negar que a administração centralizada, muitas


vezes característica dos Estados Federados, ainda que formalmente almejem a
descentralização, com o princípio da subsidiariedade, passa por uma reformulação,
como salienta Torres (2000, p. 305):
No âmbito do federalismo [...] o governo central passa a ser subsidiário dos
entes menores, eis que passa aos Estados-membros e aos municípios a
incumbência da entrega das prestações ligadas aos direitos fundamentais e
aos sociais, máxime no campo da saúde, educação e seguridade.
Na visão horizontal do Estado os órgãos da administração descentralizada
passam a ganhar papel de relevo diante dos órgãos centrais.

64
Ricardo Hermany (2005, p. 1403) analisa o princípio da subsidiariedade mediante o estudo do sistema
constitucional português afirmando ser possível a sua aplicação ao sistema brasileiro: “É essencial que o poder
local se estruture no sentido de consagrar a idéia de subsidiariedade, seja em relação à atribuição de
competências à esfera local, seja na modificação estrutural do próprio poder local a ponto de estabelecer uma
nova dinâmica na relação entre espaço público estatal de nível local com a sociedade, amparada numa lógica de
integração. Dessa forma, a concepção de subsidiariedade, inserida em nível constitucional no Estado Português
e perfeitamente compatível com a ordem constitucional Brasileira, permite que se constitua uma nova estrutura
na formação das decisões públicas, deixando de repetir em nível local as estratégias tradicionais, caracterizadas
pela subordinação. Em relação à atribuição de competências, a adoção do princípio mostra-se fundamental, haja
vista que a definição das atribuições municipais no Brasil vincula-se ao indeterminado conceito de interesse
local. Em vista disso, a idéia de subsidiariedade deve servir de critério definidor da atuação do Município no
federalismo brasileiro, permitindo que um maior número de atribuições seja gerido a partir da esfera local,
sempre que exista um interesse, ainda que não exclusivo, por parte dos cidadãos do Município.”
70

No mesmo sentido é o entendimento de Lobo (2006, p. 36), ao referir que o


Princípio da Subsidiariedade tem ampla aplicação na dinâmica contemporânea do
Federalismo, especialmente a partir das concepções de descentralização e de
autonomia. Desta forma, a idéia básica da subsidiariedade, transportada para a
doutrina do Federalismo, determina que as comunidades maiores somente atuem
naquelas questões em que as comunidades menores não têm condições de resolver
por si próprias, estipulando como que uma natural descentralização no exercício das
funções do Estado, com uma garantia de autonomia das comunidades inferiores.

Continua o autor referido afirmando que “[...] se a autonomia dos integrantes da


federação é “conditio sine qua non” para a caracterização do próprio Estado Federal
em sua feição moderna – no molde cooperativo e animado pelo princípio da
Subsidiariedade [...]”, vai ser justamente no aspecto financeiro dessa autonomia que
concentrarão “[...] os esteios mais profundos dos garantes da atuação autônoma dos
entes federativos, principalmente os Estados-membros e os Municípios [...]”. (2006,
p. 64).

Ainda, quanto à questão da reestruturação do modelo federativo, manifesta-se


Faber Torres (2001, p. 225-226) acerca da concepção do federalismo cooperativo, a
partir da ótica do princípio da subsidiariedade:

[...] o Federalismo cooperativo adequadamente considerado compreende


uma concepção subsidiária – notando-se que a subsidiariedade implica,
sobretudo, uma ajuda ao ente menor quanto às tarefas que ele não
consegue realizar por si com eficácia – sem que, com isso, se enseje uma
perda injustificada de competência dos Estados membros em benefício do
ente central. Ao revés, fortalecem-se os entes regionais e locais, que obtêm
maiores condições de prestar com eficácia os serviços públicos aos
cidadãos, dilargam-se as manifestações de solidariedade e alcança-se, com
maior eficiência, o objetivo maior do Estado, que é a realização do bem
comum.

Inegavelmente, pois, o modelo federalista brasileiro, com o princípio da


subsidiariedade, passa por uma reestruturação, na medida em que possibilita a
construção de espaços de participação cidadã65 que adquirem maior concretização
quando consideradas as particularidades do âmbito local. (Hermany, 2005).

65
Observa Hermany (2005, p. 1412) que estes são os requisitos para que se fale também num direito social
condensado: “São justamente esses os pressupostos necessários para a consolidação de um direito
condensado, razão pela qual a proposta de um novo federalismo, amparada numa estrutura municipalista que
71

O que se deve buscar, portanto, é a superação, como refere Hermany, do


entendimento segundo o qual os interesses da sociedade e do Estado estão sempre
em flagrante descompasso, permitindo a alegação de que é necessária uma ordem
estatal repressora para manter o controle social. O princípio da subsidiariedade
busca uma interação entre sociedade e Estado, como alternativa para a busca de
concretização dos preceitos constitucionais de efetivação dos direitos sociais:
O princípio da subsidiariedade deve ser inserido neste contexto de
compatibilização e cooperação entre Estado e sociedade, superando,
conforme Baracho (1996), o entendimento de que os objetivos do Estado e
da sociedade sejam conflitantes. Pelo contrário, a idéia consagrada pelo
princípio da subsidiariedade demonstra a intrínseca relação entre esses
interesses, o que permite a vinculação entre a proposta defendida de direito
social com a idéia de descentralização a partir da subsidiariedade.
Cabe destacar que essa relação próxima entre Estado e sociedade, numa
visão amparada no princípio da subsidiariedade, se manifesta mais
claramente a partir de espaços locais de poder. Nesse sentido, o autor
destaca as vantagens dessa interação a partir da esfera municipal, em que
se permite uma visão efetiva dos problemas a serem enfrentados
conjuntamente pelo poder público e pela sociedade, esta assumindo uma
posição de sujeito ativo no processo de regulação e controle de gestão
pública.
Por conseguinte, é possível referir que existe uma vinculação intrínseca
entre essas duas perspectivas de aplicação da idéia de subsidiariedade,
haja vista que a maior interface entre Estado e a sociedade se potencializa
na esfera local. É a partir da descentralização que, segundo Baracho
(1996), pode ser consolidado o princípio da subsidiariedade, o qual se
vincula à existência de um conjunto de esferas autônomas de poder, de
abrangência local, bem como da maior atuação da sociedade no processo
de obtenção do consenso, que se traduz numa estratégia de integração,
substituindo a lógica tradicional de dominação da sociedade pela ordem
estatal. (HERMANY, 2005, p. 1408).

Ainda para Hermany (2005), a importância de se buscar uma reestruturação de


competências, privilegiando a descentralização do poder, pois a atribuição de
autonomia ao Município, isoladamente, não tem o condão de implementar a
participação do cidadão. Propõe ele, portanto, uma reorganização das funções em
âmbito municipal.

Diante disso, é imprescindível que a (re)definição de competências, a partir da


idéia de subsidiariedade, esteja coadunada com uma nova correlação de forças

agregue o viés participativo, é indispensável para a atuação comunicativa dos atores sociais. Diante disso, o
Município, no federalismo brasileiro, deve ter o seu espectro ampliado para além de um simples estudo de
enumeração de competências, passando para uma verificação dos instrumentos e estruturas capazes de permitir
a atuação da sociedade civil como sujeito ativo do processo decisório, sem olvidar, contudo, a necessária
vinculação aos princípios constitucionais referenciais.”
72

entre Estado e sociedade, porque a simples autonomização da esfera local, com a


ampliação de atribuições, não significa a concretização de uma nova relação entre
sociedade e Estado, esta igualmente amparada numa ótica subsidiária. (HERMANY,
2005, p. 1408-1409).

Sílvia Faber Torres (2001, p. 246) afirma que o princípio da subsidiariedade


auxilia na concretização de condições para uma vida melhor, destacando a
importância das administrações municipais na implementação de melhorias na
qualidade de vida dos cidadãos, objetivo que é alcançado através das políticas
públicas locais, cujo planejamento e execução se efetiva de conformidade com
realidades sócio-econômicas locais, viabilizadas a partir da definição de prioridades
e metas, o que enseja aumento da eficiência da administração.

Nesse aspecto, o princípio da subsidiariedade mostra-se ligado ao princípio da


eficiência66, de sorte que, por exemplo, no tocante ao interesse fiscal, este terá
maiores garantias de efetiva arrecadação quanto mais próximo do contribuinte
estiver. (LOBO, 2006).

De outro lado, o princípio da subsidiariedade apresenta-se como meio para


alcançar a almejada participação em âmbito municipal dos cidadãos, uma vez que
chama ao processo democrático e opinativo quem até então não tinha voz. Assim:

[...] a idéia de subsidiariedade, além de servir como critério definidor das


competências no interior do próprio Estado, contribui para a modificação de
suas relações com a sociedade. Com isso, amplia-se o princípio da
subsidiariedade para além do incremento de competência das esferas
locais, determinando-se também uma nova lógica relacional no próprio
espaço local, a partir da inserção dos atores sociais como autores do
processo de construção das decisões públicas. (HERMANY, 2005, p. 1407).

66
“[...] o Princípio da Eficiência, também chamado de Princípio da Conveniência por alguns autores, reclama
que nos atos de formulação da descriminação de renas tributárias seja verificado, pelos constituintes, o nível de
eficiência dos entes destinatários na gerência operacional dos tributos, ou seja, nos procedimentos de
lançamento, fiscalização, arrecadação e utilização dos valores coletados. Nesse processo há que se perquirir
não apenas a adequação das bases de incidência em compasso com a eficiência na prestação dos serviços
custeados, mas, muito além, como se viu, devem ser analisados também os requisitos da “proximidade” e da
“eficácia” na alocação dos gravames, da mesma forma que tais requisitos terão sido levados em conta na
outorga das funções administrativas e dos serviços públicos a serem prestados pelos integrantes do Estado. A
verificação desses requisitos resultará, enfim, na aplicação do cânone da subsidiariedade integrado à diretriz da
eficiência, priorizando-se a alocação das fontes tributárias nas menores esferas de governo sempre que estas se
mostrem mais eficientes que os demais entes federativos”. (LOBO, 2006, p. 132).
73

A própria idéia de democracia67 alça vôo para a sua possível concretização,


quando se trabalha com o ideário de tomada de decisões em âmbito local,
possibilitando que o cidadão efetivamente integrado na sociedade reivindique as
suas necessidades primeiras.

Neste contexto, ao iniciar-se um processo democrático, possibilita-se a


estruturação da idéia de “pertencimento” no meio social, e o cidadão passa a
compreender-se como agente que pode tomar decisões e melhorar o ambiente em
que vive.

De fato, é no espaço municipal que o ator social deixa o plano da abstração e


da generalidade e passa a ser entendido e considerando diante de suas
especificidades e necessidades concretas. É também da esfera local, portanto, a
partir do Município ou do espaço regional, que se possibilita a efetiva atuação dos
atores na construção de uma normatividade e na formação de decisões públicas
decorrentes da apropriação do espaço público pela sociedade, dentro dos limites e
pressupostos da democracia participativa, compatíveis, portanto, com a ordem
constitucional. (BARACHO, 1996).

Assim, a participação popular em âmbito municipal apresenta-se como meio


de galgar o espaço da cidadania68. E aqui deve ficar bem presente a idéia de
cidadania local, que compreende no âmbito financeiro o conjunto de direitos e
deveres que se afirmam no espaço dos Municípios e Estados-membros. E é neste

67
“[...] é a democracia local que favorece o desenvolvimento de uma cultura participativa de caráter permanente,
construindo-se num novo espaço político. Tal perspectiva desloca a discussão acerca da estrutura de
desenvolvimento econômico para o espaço local, valorizando o debate realizado com os cidadãos e estimulando,
com isso, a participação popular. A esfera local potencializa a idéia de pertencimento, de responsabilidade social,
estimulando, dada a proximidade do processo decisório, a ativa participação da sociedade, o que acarreta
inúmeros benefícios. Portanto, o fator que se constata em todas as estratégias bem-sucedidas de poder local
reside no maior grau de abertura dos processos decisórios para a população.” (HERMANY, 2005, p. 1410).
68
Ensina Torres (2000, p. 147-148): “A idéia de cidadania surge na Antigüidade clássica. Entre os gregos e os
romanos a cidadania criava o elo entre o homem livre e a cidade, reconhecendo-lhe direitos e impondo-lhe
obrigações, orientando-lhe a conduta cívica e despertando-lhe a consciência das virtudes. No patrimonialismo a
concepção de cidadania fica ligada ao complexo de privilégios e de regalias usufruído pelos que pertencem a
determinado estamento e que, em conseqüência, adquirem o status correspondente. Mas é com a revolução
francesa que a concepção de cidadania se expande para abranger os direitos fundamentais do homem,
entendidos como direitos da liberdade suscetíveis de concretização na cidade e no Estado, e os direitos
vinculados à idéia de igualdade e justiça: liberte, egalité et fraternité, de um lado, e Droits de l1Homme et du
Citoyen, de outro. A cidadania em sua expressão moderna tem entre os seus desdobramentos, a de ser
cidadania fiscal. O dever/direito de pagar impostos se coloca no vértice da multiplicidade de enfoques que a
coextensivos desde o início do liberalismo.”
74

contexto que fica bem evidente que o exercício da cidadania local se mostra por
demais relevante para a afirmação dos direitos sociais e econômicos.

Com base nestas idéias é que se passará ao capítulo terceiro, buscando-se


justamente um novo canal para viabilização plena dos direitos sociais, em que o
cidadão, consciente da sua função no seu meio social69, assume papel ativo na
transformação do status quo de sua sociedade/município.

Este novo caminho está vinculado à tomada de decisões que permitam a


utilização da extrafiscalidade, com instrumento de políticas de inclusão social.

69
Já defendia Rudolf Von Jhering (2002) que a vida em sociedade é um viver para o outro. A conduta de um irá
influenciar, diretamente, a conduta de outro cidadão. Nesse sentido, necessária a compreensão de que se deve
assumir um papel de cidadão ativo para que o meio social no qual se está inserido possa perceber os reflexos de
condutas que buscam pela efetivação dos direitos sociais.
75

3 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E TRIBUTAÇÃO: A EXTRAFISCALIDADE E AS


POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCLUSÃO SOCIAL NO ÂMBITO MUNICIPAL

Diante da constatação de que as medidas que visam pela implementação da


cidadania70 realmente se afiguram como substanciais, cumpre neste terceiro capítulo
focar mais detalhadamente a função extrafiscal do tributo, como alternativa eficaz de
promoção dos direitos sociais. Antes, porém, serão analisados princípios e valores
vinculados ao Direito Tributário para, então, realizar-se uma imersão relativamente
aos reflexos possíveis de sua observação em políticas públicas extrafiscais dirigidas
à inclusão social.

3.1 O Sistema Jurídico: as normas, os princípios e as regras

Indispensável de início fazer uma breve distinção entre normas, em sentido


amplo, como gênero, e regras e princípios, como suas respectivas espécies71, eis
que fundamental para uma precisa compreensão de sistema jurídico72.

Em palavras simples pode-se dizer que os princípios correspondem a normas


jurídicas, ou seja, espécie do gênero norma, que convivem com as regras, que nada
mais são do que também espécies de normas.

Silva (1996, p. 94) sustenta que os princípios são verdadeiras ordenações que
se irradiam e imantam os sistemas de normas, ou, são "[...] núcleos de
condensações nos quais confluem valores e bens constitucionais". Com efeito, os

70
Registre-se que cuidaremos aqui da cidadania fiscal em seu sentido amplo, que abrange, além da
problemática da receita, os aspectos mais largos da cidadania financeira, que, compreendendo a vertente da
despesa pública, envolve as prestações positivas de proteção aos direitos fundamentais e aos direitos sociais e
as escolhas orçamentárias, questões que apresentam o maior déficit de reflexão teórica no campo da cidadania.
71
Autores diversos discorrem a respeito deste assunto, sendo adotado no presente estudo a posição de
Canotilho (2000, p.1123), que considera a Constituição Federal como um sistema aberto de regras e princípios.
72
Canotilho (2000, p. 1123) concebe a idéia de que o sistema jurídico deve ser visto como um sistema normativo
aberto de regras e princípios: [...] (1) – é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas; (2) – é
um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica {Caliess} traduzida na disponibilidade e ‘capacidade de
aprendizagem’ das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às
concepções cambiantes da ‘verdade’ e da ‘justiça’; (3) – é um sistema normativo, porque a estruturação das
expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas, é feita através de normas; (4) – é um sistema
de regras e de princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob
a sua forma de regras.”
76

princípios são antes de tudo a base das normas jurídicas, constituindo-se em


preceitos básicos da organização constitucional.

Conceito semelhante é apresentado por Celso Antônio Bandeira de Mello


(1996, p. 545-546):

Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de


um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia
sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério
para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica
e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá
sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a
intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por
nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que
transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa
não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema
de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,
conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência
contra o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia
irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

De outro lado, é possível considerar as regras jurídicas como uma espécie de


padrão de comportamento, que é imposto ao cidadão, em benefício dele próprio, na
medida em que, pelo menos em tese, viabiliza a vida em sociedade. Por isto tem
caráter impositivo e, em conseqüência, deve ser aceita.

Tal aceitação se justifica sob uma ótica pragmática, pela possibilidade da regra
ser usada como base de fundamentação de pretensões ou exercício de poderes.

Robert Alexy (1997, p. 86) sustenta posição de que entre normas-princípios e


normas-regras existe não apenas uma diferença gradual, mas também uma
distinção qualitativa. Para ele “[…] el punto decisivo para la distinción entre reglas y
princípios es que los principios son normas que ordenam que algo sea realizado en
la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes.”

No que diz respeito às regras, Alexy afirma que:

[...] son normas que sólo pueden ser cumplidas o no. Si una regla es válida,
entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. Por
lo tanto, las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y
jurídicamente posible. (1997, p.87).
77

Assim, para o referido autor, de acordo com a definição standard da teoria


dos princípios73, são eles, os princípios, mandamentos de otimização, na medida em
que correspondem a normas que ordenam a realização de algo numa medida tão
ampla quanto possível em relação às possibilidades fáticas ou jurídicas. Já no que
diz respeito às regras, registra que se tratam de normas que só podem ser
cumpridas ou não cumpridas.

Todavia, para Alexy a distinção entre regras e princípios se acentua com


maior nitidez quando se trata de conflito entre regras e colisão de princípios. Esses
embates são chamados de antinomias jurídicas, sendo que o primeiro deles se
caracteriza como antinomia jurídica própria e o segundo como antinomia jurídica
imprópria. (1999, p.75)

Desta forma e a partir das observações feitas, é possível identificar nas normas
constitucionais tanto princípios, como regras74, cabendo alertar para a possibilidade
de existência de conflitos entre as espécies de normas referidas que para serem
resolvidos necessitam da projeção dos valores envolvidos no caso concreto, com
consideração, portanto, de uma perspectiva axiológica. Isto também pode ocorrer
entre princípios, na medida em que, em um mesmo sistema jurídico constitucional,
dois princípios, em um caso específico, podem entrar em conflito, em colisão.

73
A teoria dos princípios de Robert Alexy, juntamente com a teoria das posições jurídicas básicas, formam a
base da teoria estrutural dos direitos fundamentais que foi apresentada por ele à comunidade jurídica alemã em
meados da década de 80, tornando-se, posteriormente, referência obrigatória no estudo dos direitos
fundamentais.
74
Em relação às diferenças entre regras e princípios, Canotilho (1999, p. 1088-1089) ensina ainda que: "Em
primeiro lugar, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus
de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos;as regras são normas que prescrevem
imperativamente uma exigência(impõe, permitem ou proíbem)que é ou não é cumprida(nos termos de
Dworkin:applicable in all-or-nothing fashion);a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebelsky), a convivência
de regras é antinômica; os princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se. Conseqüentemente, os
princípios, ao constituírem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses(não
obedecem, como as regras, à < lógica do tudo ou nada> ), consoante o seu peso e a ponderação de outros
princípios eventualmente conflitantes;as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma
regra vale(tem validade) deve cumprir-se na exata medida das suas prescrições, nem mais nem menos.(...)em
caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação, de harmonização,pois eles contêm
apenas <exigências> ou <standards> que, em < primeira linha>(prima facie)devem ser realizados;as regras
contém <fixações normativas>definitivas, sendo insuscetível a validade simult6anea de regras contraditórias.
Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade e peso(importância, ponderação, valia);as
regras colocam apenas questões de validade(se elas não são correctas devem ser alteradas)." GRAU (1998,
p.89-90), afirma que as regras devem ser aplicadas por completo ou não, não comportando exceções. Para ele o
mesmo não ocorreu com os princípios, que não se excluem, comportando exceções no âmbito de sua aplicação:
"(...)as regras jurídicas não comportam exceções. Isso é afirmado no seguinte sentido; se há circunstâncias que
excepcionem uma regra jurídica, a enunciação dela,sem que todas essas exceções sejam também enunciadas,
será inexata e incompleta. No nível teórico, ao menos, não há nenhuma razão que impeça a enunciação da
totalidade dessas exceções e quanto mais extensa seja essa mesma enunciação(de exceções), mais completo
será o enunciado da regra."
78

A solução não passará pelo plano da validade, mas sim pela esfera dos valores
envolvidos, o que significa não obrigatoriamente a necessidade de se afastar um ou
outro princípio, mas apenas reconhecer que, na hipótese posta em apreciação, um
deles deve ser mais considerado que o outro. Por óbvio, isto não significa que em
outra situação específica, possa o entendimento ser diverso, sendo privilegiado
outro princípio, que na situação anterior tenha sido rejeitado.

Para Canotilho (1999, p. 1146-1147) a expressão “norma” é concebida como


aquilo que é expresso por um enunciado normativo, ou seja, o gênero, abrangendo
as regras e os princípios, pelo que a “[...] a distinção entre regras e princípios é uma
distinção entre duas espécies de normas [...]”. A par desta diferenciação, apresenta
ele cinco critérios para distinguir os princípios das regras. O primeiro corresponde ao
grau de abstração, contendo os princípios grau relativamente elevado,
diferentemente das regras, onde o grau é reduzido; o segundo corresponde ao grau
de determinabilidade na aplicação do caso concreto, onde os princípios, dotados de
vagueza e indeterminabilidade, exigem a mediação concretizadora do legislador,
enquanto as regras se mostram aplicáveis diretamente; o terceiro diz respeito à
fundamentalidade no sistema das fontes de direito, momento em que os princípios
se constituem em normas estruturantes, assumindo papel fundamental no
ordenamento jurídico; o quarto está vinculado à “proximidade” da idéia de direito,
sustentando que “[...] os princípios são “standards” juridicamente vinculantes
radicados nas exigências de “justiça” (Dworkin) ou na “idéia de direito” (Larenz);”,
enquanto que “[...] as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo
meramente funcional.”; e) natureza normogenética, na medida em que os princípios
fundamentam as regras.

Feitas estas observações, indispensável agora também distinguir valores e


princípios, que para Torres (2005a, p. 193) exibem as mesmas características: “[...]
interação, equilíbrio, polaridade e ausência de hierarquia.” Alerta ele, de outro lado,
que “[...] entre eles há diferenças relevantes, como sejam as de extensão, eficácia,
positivação e legitimação”.
79

Na esfera tributária, que no ponto nos interessa de forma mais especifica,


Torres (2005a, p. 199-200), adotado aqui como referencial teórico, após apresentar
algumas classificações dos princípios constitucionais tributários, sugere uma sua,
que comporta princípios de legitimação que abrange os da ponderação,
razoabilidade, igualdade e transparência; os princípios estruturais, nos quais se
inserem os do Estado de Direito, Federalismo, República e Separação dos poderes;
os princípios fundamentais correspondentes ao da soberania, cidadania, dignidade
da pessoa humana, trabalho e livre iniciativa e pluralismo político; e, por fim, os
princípios vinculados a valores, equivalentes ao da liberdade, da justiça e da
segurança jurídica.

São esses últimos princípios que neste trabalho primordialmente interessam e


que, por isso, a seguir serão analisados, juntamente com os da solidariedade e da
capacidade contributiva, que estão, segundo a classificação de Torres, relacionados
ao princípio da justiça.

Antes, porém, como forma de introdução ao tema, considerações serão feitas


em relação aos valores no Direito Tributário.

3.2 Valores no Direito Tributário

Etimologicamente a palavra valor provém do latim valere, ou seja, que tem


valor, custo. O conceito de valor freqüentemente está vinculado à noção de
preferência ou de seleção (Michaelis, 2003). De acordo com Carvalho (2005, p. 34,):

O valor está intrinsecamente ligado à ação humana. O indivíduo, ao agir


racionalmente, i. e., a partir de uma escolha consciente, está a optar entre
agir dessa ou daquela forma. Essa escolha pressupõe o ato de valorar, de
preferir uma alternativa e rejeitar outras. Sendo assim, o ato de valorar
depende de um sujeito que valora, é subjetivo. [...] [Mas] Apesar do ato de
valorar ser subjetivo, pois provém de um indivíduo, os valores se objetivam
na relação do sujeito com a realidade, no contexto da ação humana. Nesse
sentido, também têm uma porção objetiva, pois necessitam de um objeto.
Não há sentido para a beleza, a honestidade ou a utilidade
(respectivamente valor estético, valor ético e valor econômico) sem o belo, o
honesto e o útil.
80

Os valores jurídicos75 assentam-se exatamente sobre esta idéia. Apresentam,


outrossim, como características um sistema aberto: a objetividade, pois independem
de subjetivação; a parcialidade, visto que compartilhados com a ética; a interação,
porque estão em constante busca do equilíbrio, sem verificação de hierarquia; a
polaridade, no sentido de que caminham sempre para a sua contrariedade; a
analogia, porque a partir deles se deduzem os princípios e as regras; e a
generalidade e a abstração, pois não permitem a sua tradução em termos
constitucionais. (TORRES, 2005a).

Diante disto, para Torres (2005a, p. 44) tornou-se absolutamente insustentável


a idéia de sistema fechado de valores, diante da expansão dada pela democracia
moderna, a complexidade crescente dos fatos sociais e a sua carência ideológica,
associada à idéia de sociedade pluralista e do pluralismo constitucional, de sorte que
a abertura do sistema de valores consiste na pluralidade de opções que se oferecem
à obra do legislador ordinário, com a intermediação dos princípios constitucionais
tributários.

Possível afirmar, pois, que liberdade, segurança, justiça e solidariedade são os


valores ou postulados básicos do Direito. Esclarece Torres (2005a) que desde uns
trinta anos para cá ocorreu o retorno ao exame dos valores como um meio de
superação do positivismo76, recebendo imprescindível influência da filosofia de Kant,
no ponto em que propõe a reaproximação entre ética e direito.

Preciso se mostra o ensinamento de Miguel Reale (1968, p.118), no sentido de


que o Direito “[...] se caracteriza antes por estar indistintamente a serviço de todos
os valores, para que todos os valores concomitantes e garantidamente valham.” Daí

75
“Os valores jurídicos não possuem nenhuma especificidade, isto é, não se colocam na esfera axiológica com
entidades autônomas, ao lado de outros valores (artísticos, religiosos, científicos, econômicos, etc.). O valor
jurídico, como disse Miguel Reale, é um valor franciscano, competindo-lhe ser suporte de todos os outros
valores.
Nem mesmo na esfera do dever ser o valor jurídico é total, pois divide com os valores morais a missão
axiológica. A justiça e a liberdade, por exemplo, são valores jurídicos e morais.” (Torres, 2000, p. 118).
76
Luís Cabral de Moncada (1995) afirma que o conceito de Positivismo poderia ser tomada em duas acepções,
uma restrita e lata a outra. Na primeira, ter-se-ia o sistema de idéias filosóficas fundado pelo francês Augusto
Comte (1798-1857). Na segunda, serviria para designar um movimento mais vasto, dentro do qual caberiam
numerosas escolas e tendências do século XIX, dentro e fora da França, em matéria de filosofia, de métodos
científicos, de psicologia, de sociologia, de história, de direito e de política.
81

ter ele escrito “[...] que a justiça é um valor franciscano cuja função é bem servir a
todos e a cada um”.

A partir destes registros, em relação ao Direito Tributário cumpre destacar que,


em sendo ele parte do Direito Financeiro77, é caracterizado por sua
instrumentalidade e processualidade, fator que, contudo, não o deixa afastado dos
valores éticos e jurídicos que devem estar presentes nas políticas públicas que
visam efetivar, sobretudo porque a lei financeira, que serve de instrumento para a
consolidação da liberdade e para a consecução da justiça, igualmente deve também
possibilitar a garantia e a segurança dos direitos fundamentais.

Como antes já referido, Torres (2005a, p. 200) faz no ponto interessante


abordagem em que oferece um quadro amplo dos princípios, atrelando-os aos seus
valores fundantes. A partir desta perspectiva, em acréscimo aponta o que seriam os
subprincípios deles derivados.

Assim trabalhar-se-á, em seguida, com tais princípios vinculados a valores:


liberdade, justiça e segurança jurídica.

3.2.1 O princípio da liberdade78

O tributo é o “[...] preço da liberdade, pois serve de instrumento para distanciar


o homem do Estado, permitindo-lhe desenvolver plenamente as suas
potencialidades no espaço público [...]”, conforme registra Torres (2005b, p. 04).

77
“Ao questionar a respeito da finalidade do Direito Tributário alguns confundem este com o tributo. Dizem, então
que a finalidade do Direito Tributário é viabilizar a arrecadação dos recursos financeiros dos quais necessita o
Estado para alcançar seus objetivos. Isto é um equívoco que precisas ser afastado. O tributo este, sim – tem
essa finalidade, que não se confunde com a finalidade do Direito Tributário.
O direito Tributário existe para delimitar o poder de tributar, transformando a relação tributária, que antigamente
foi uma relação simplesmente de poder, em relação jurídica. A finalidade essencial do Direito Tributário, portanto,
não é a arrecadação do tributo, até porque esta sempre aconteceu, e acontece, independentemente da
existência daquele. O Direito Tributário surgiu para delimitar o poder de tributar e evitar os abusos no exercício
deste.” (Machado, 2003, p. 53).
78
“A positivação da liberdade se dá em dois planos sucessivos e interdependentes: no dos princípios
fundamentais do ordenamento (art. 1.º da CF) e no dos direitos humanos, fundamentais ou da liberdade (art. 5.º
da CF), com a sua projeção fiscal nos arts. 150, 151 e 152. A idéia de liberdade vai se positivar, em um primeiro
momento de grande abstração, amalgamada às idéias de justiça e segurança e com a intermediação dos
princípios formais de legitimação (igualdade, razoabilidade,m ponderação, etc.), nos princípios fundamentais do
art. 1.º da CF: soberania, cidadania, liberdade de iniciativa e trabalho, democracia.” (Torres, 2005a, p. 109).
82

De outro lado, o tributo também pode ser visto como o preço pela proteção do
Estado representada pela disponibilização de bens e serviços públicos, de modo a
que indivíduo algum seja privado de parcela de sua liberdade sem que haja uma
contrapartida. (TORRES, 2005b, p. 04).

Por isso, Torres (2005b, p. 05) classifica de dramático o relacionamento entre


liberdade e tributo, visto que se afirma sob o signo da bipolaridadade. Neste cenário:

[...] o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a


extraordinária aptidão para destruí-la; a liberdade se autolimita para se
assumir como fiscalidade e se revolta, rompendo os laços da legalidade,
quando oprimida pelo tributo ilegítimo. Quem não percebe a bipolaridade
da liberdade acaba por recusar legitimidade ao próprio tributo.

Esta estreita ligação entre liberdade e tributo abriga um paradoxo: ao mesmo


tempo em que representa uma segurança contra o Estado, pode ser também uma
forma de opressão exercida por ele:

Liberdade e tributo, conseguintemente caminham juntos no decurso da


evolução do Estado Financeiro, pelo que se pode cogitar de uma liberdade
fiscal: o tributo nasce no espaço aberto pela autolimitação da liberdade,
constitui o preço da liberdade, pois é o instrumento que distancia o homem
do Estado, e pode implicar na opressão da liberdade, se o não contiver a
legalidade. O relacionamento entre liberdade e tributo é dramático, pois vive
sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo
tempo, possui a extraordinária aptidão para destruí-la; a liberdade se
autolimita para se assumir como fiscalidade e se revolta, rompendo os laços
da legalidade, quando oprimida pelo tributo. (TORRESa, 2005, p. 59-60).

Assim, a liberdade fiscal pode ter conotação negativa, de sorte a representar


uma limitação do poder de o Estado tributar certas liberdades como, por exemplo, a
liberdade de locomoção, refutando, ainda qualquer forma de tratamento desigual
entre os cidadãos. Contudo, para a constituição de um tributo não basta uma
postura negativa por parte do Estado frente à liberdade do cidadão, faz-se
necessário ainda “[...] que se garantam as condições iniciais de liberdade mediante a
proibição de incidência fiscal sobre o mínimo necessário à existência digna”79,
conforme registra Torres. (2005a, p. 96).

79
“O fundamento do direito ao mínimo existencial, por conseguinte, está nas condições para o exercício da
liberdade, que alguns autores incluem na liberdade real, na liberdade opositiva ou na liberdade para, ao fito de
diferençá-la da liberdade que é mera ausência de constrição.” (TORRES, 2005a, p. 96-97).
83

Pode-se afirmar, então, que o tributo que nasce com os ideais liberais aos
poucos vai ganhando concepção diferente, variando de acordo com o ideal de
Estado que é apresentado:

A dimensão libertadora do tributo vai se afirmar no liberalismo através do


elogio da riqueza e do trabalho e da aceitação do lucro, dos juros e do
consumo do luxo.
No Estado Social de Direito a justificativa do tributo se apóia em argumentos
de justiça, máxime no da capacidade contributiva sacada diretamente da
vida econômica. Decresce, aí, o interesse pela questão da liberdade e de
suas relações co o tributo.
No Estado Democrático de Direito, com o neocontratualismo, há o retorno
da idéia de que o tributo é o preço da liberdade. De feito, o tributo é o preço
da liberdade por servir para distanciar o homem do Estado, permitindo-lhe
desenvolver as suas potencialidades no espaço público, sem necessidade
de entregar qualquer prestação permanente de serviço ao Estado.
(TORRES, 2005a, p. 99).

Convém ainda lembrar, que a positivação da liberdade do cidadão em relação


ao aspecto tributário ocorre com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
na qual está reservado um item denominado de Declarações de Direitos dos
Contribuintes. Na Constituição Federal de 1988, a liberdade ganha amparo nos
artigos 150, 151 e 152.
A liberdade, nela incluídas as condições iniciais para o seu exercício, vai se
positivar, relativamente aos tributos, nas declarações de direitos dos
contribuintes, parte integrante das declarações dos direitos do homem e do
cidadão. No Brasil a positivação se dá nos arts. 150, 151, 152 da
Constituição de 1988, que, sendo projeções do catálogo de direitos
fundamentais declarados no art. 5.º, estabelecem as limitações ao poder de
tributar (imunidades e proibições de desigualdade); mas também está
presente em outros dispositivos constitucionais, especialmente no que
concerne aos mínimos sociais.
Imunidade é intributabilidade, impossibilidade de o Estado criar tributos
sobre o exercício dos direitos da liberdade, incompetência absoluta para
declarar impostos sobre bens ou coisas indispensáveis à manifestação da
liberdade, não-incidência ditada pelos direitos humanos e absolutos
anteriores ao pacto constitucional. Os positivistas é que a viam como
autolimitação do poder tributário. Concretiza-se no art. 150, incisos IV, V
(imunidade e tributos) e VI (imunidade e impostos), bem como em inúmeros
outros dispositivos relativamente ao mínimo existencial (art. 5.º), itens
XXXIV, LXXIII, LXXIV, art. 153, § 2.º, item II e § 4.º, etc.).
As proibições de desigualdade visam a garantir a liberdade relativa, isto é, a
igual liberdade das pessoais diante da intervenção fiscal do Estado, e se
positivam nos princípios constitucionais que vedam as discriminações e os
privilégios odiosos (arts. 150, II, 151 e 152). (TORRES, 2005, p. 111).
84

Com base em tais observações, na classificação antes referida proposta por


Torres relativamente aos princípios constitucionais tributários, como desdobramento
do princípio da liberdade, aponta ele as imunidades e a proibição de desigualdades.

Em relação às imunidades tributárias, têm elas disciplina pontual no


ordenamento jurídico brasileiro80. Representam instrumentos de limitação da

80
No art. 150, VI, "c" da CF/88, está prevista a imunidade:
"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios:
(...)
VI - instituir impostos sobre:
(...)
c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos
trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos
da lei;
(...)
§ 4º As vedações expressas no inciso VI, alíneas b e c, compreendem somente o patrimônio, a renda e os
serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas".
No art. 14 do CTN, tem-se os requisitos para a fruição dessa imunidade:
"Art. 14. O disposto na alínea c do inciso IV do artigo 9º é subordinado à observância dos seguintes requisitos
pelas entidades nele referidas:
I não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; (NR)
II - aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;
III - manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de
assegurar sua exatidão.
§ 1º Na falta de cumprimento do disposto neste artigo, ou no § 1º do artigo 9º, a autoridade competente pode
suspender a aplicação do benefício.
§ 2º Os serviços a que se refere a alínea c do inciso IV do artigo 9º são exclusivamente, os diretamente
relacionados com os objetivos institucionais das entidades de que trata este artigo, previstos nos respectivos
estatutos ou atos constitutivos".
Por sua vez, o art. 12 da Lei n. 9.532/97, também, tratou do assunto:
"Art. 12. Para efeito do disposto no art. 150, inciso VI, alínea "c", da Constituição, considera-se imune a
instituição de educação ou de assistência social que preste os serviços para os quais houver sido instituída e os
coloque à disposição da população em geral, em caráter complementar às atividades do Estado, sem fins
lucrativos.
§ 1º Não estão abrangidos pela imunidade os rendimentos e ganhos de capital auferidos em aplicações
financeiras de renda fixa ou de renda variável.
§ 2º Para o gozo da imunidade, as instituições a que se refere este artigo, estão obrigadas a atender aos
seguintes requisitos:
a) não remunerar, por qualquer forma, seus dirigentes pelos serviços prestados;
b) aplicar integralmente seus recursos na manutenção e desenvolvimento dos seus objetivos sociais;
c) manter escrituração completa de suas receitas e despesas em livros revestidos das formalidades que
assegurem a respectiva exatidão;
d) conservar em boa ordem, pelo prazo de cinco anos, contado da data da emissão, os documentos que
comprovem a origem de suas receitas e a efetivação de suas despesas, bem assim a realização de quaisquer
outros atos ou operações que venham a modificar sua situação patrimonial;
e) apresentar, anualmente, Declaração de Rendimentos, em conformidade com o disposto em ato da Secretaria
da Receita Federal;
f) recolher os tributos retidos sobre os rendimentos por elas pagos ou creditados e a contribuição para a
seguridade social relativa aos empregados, bem assim cumprir as obrigações acessórias daí decorrentes;
g) assegurar a destinação de seu patrimônio a outra instituição que atenda às condições para gozo da
imunidade, no caso de incorporação, fusão, cisão ou de encerramento de suas atividades, ou a órgão público;
h) outros requisitos, estabelecidos em lei específica, relacionados com o funcionamento das entidades a que se
refere este artigo.
§3º Considera-se entidade sem fins lucrativos a que não apresente superávit em suas contas ou, caso o
apresente em determinado exercício, destine referido resultado, integralmente, à manutenção e ao
desenvolvimento dos seus objetivos sociais".
85

atividade de tributação, pelo que a sua concessão deve ser considerada como
mecanismo viabilizador dos valores fundamentais da sociedade.

Nas palavras de Silva Martins (1998, p. 32):

[...] a imunidade, nas hipóteses constitucionais, constitui o instrumento que o


constituinte considerou fundamental para, de um lado, manter a democracia,
a liberdade de expressão e a ação dos cidadãos e, por outro, atrair os
cidadãos a colaborarem com o Estado, nas suas atividades essenciais, em
que, muitas vezes, o próprio Estado atua mal ou insuficientemente, como na
educação, na assistência social etc.

Registre-se, por oportuno, que, em um Estado Democrático de Direito, como o


instaurado em nível normativo pela atual Carta Política brasileira, é possível
identificar a presença de imunidades81 tributárias que têm por fundamento valores
diversos do que a simples ausência de capacidade contributiva. Com efeito, a
perspectiva vai ser outra, na medida em que a imunidade é vista como importante
instrumento de concretização de vários outros valores fundamentais para a
sociedade, como por exemplo a saúde e a educação.

Por isso, em relação ao modo de incidência, as imunidades podem ser


classificadas em subjetivas, objetivas e mistas. As primeiras, as subjetivas, também
chamadas de pessoais, são as fixadas em razão da condição de determinadas
pessoas, em decorrência da sua natureza jurídica ou devido ao relevante papel que
desempenham no âmbito social. Trata-se aqui da imunidade prevista no artigo 150,
inciso VI, alíneas ‘a’ e ‘c’, §§2º e 4º da Constituição Federal, dirigida às pessoas
políticas, autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, partidos
políticos, instituições de educação e de assistência social, etc.

81
A imunidade é instituto constitucional. Traduz-se, para uns, em limitação ao poder de tributar e, para outros,
em uma regra constitucional de incompetência, no sentido de ser um instrumento que auxilia no desenho da
regra de competência tributária. Para Paulo de Barros Carvalho a Imunidade Tributária é "[...] a classe...de
normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a
incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos
que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas". ( 2003, p. 181). Para Yves Gandra da
Silva Martins, trata-se de uma "[...] vedação absoluta ao poder de tributar nos limites traçados pela Constituição".
(1998, p. 31). Nestas condições, imunidade não pode ser confundida com isenção. Aquela, a imunidade, se
encontra no plano constitucional e está relacionada com a norma de competência; já a isenção é criada e
regulada por norma de natureza infra-constitucional.
86

De outro lado, as imunidades objetivas ou reais são as outorgadas em função


de determinados fatos, bens ou situações, como no caso das relativas a livros,
jornais e periódicos e ao papel destinado à respectiva impressão, conforme previsão
do art. 150, inciso VI, alínea ‘d’ da Constituição Federal.

Finalmente, na terceira categoria, a mista, ocorre combinação das duas


anteriores, isto é, de critérios de natureza pessoal e material. Exemplo desta
modalidade se verifica no caso do Imposto Territorial Rural, nos termos previstos no
art. 153, §3º da Carta Magna, em que se exige para a devida caracterização a
existência de uma única gleba rural – que corresponde ao critério material, bem
como a exploração pessoal ou familiar – equivalente ao critério pessoal.

Como resta possível concluir, a imunidade tributária em todos seus aspectos se


apresenta vinculada a valores importantes, pelo que constitui importante instrumento
de salvaguarda do princípio básico da solidariedade social.

Examinada a imunidade tributária, a seguir serão feitos apontamentos a


respeito da proibição de desigualdades, via igualdade fiscal, considerando a
importância do respectivo princípio.

3.2.2 O princípio da igualdade82

Para que seja possível pensar em democracia, é indispensável pensar também


em igualdade, na medida em que é ela quem direciona o Estado na busca de
mecanismos que possibilitem a construção de uma sociedade justa e fraterna.

A idéia de que todos os homens nascem iguais em direitos e obrigações,


embora antiga, se mantém atual. Prova disto é que o princípio da igualdade é
postulado básico dos Estados modernos, tendo sido freqüentemente reinterpretado
por imposição do surgimento de novos cenários, caracterizadores de quadros de

82
O princípio da igualdade tem previsão no caput do artigo 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, [...]. “
87

desequilíbrio social. Por isso a devida compreensão deste princípio importa em não
avaliá-lo de forma limitada, apenas ao sentido formal. Impõe-se a sua interpretação
de forma harmônica com outras normas constitucionais, orientada nas atuais
exigências de justiça e solidariedade social.

Esta idéia remete para o campo da tributação, onde o princípio da igualdade se


mostra por demais relevante e passível de necessária avaliação harmônica com
outras normas. Derzi (1997, p. 523) neste sentido observa que

[...] não pode haver igualdade parcelada, justiça parcelada, pois a


Constituição integra as suas partes distintas em um todo harmônico e
coerente. Por isso mesmo, generalidade, capacidade contributiva e outros
valores, ditados pela política econômica e social do país, são
desdobramentos de um mesmo e único princípio, o da igualdade.

Torres (2005a, p. 143) também percebe tal peculiaridade, ao referir a


igualdade83 além de apresentar-se como princípio constitucional, enquanto valor “[...]
deve ser apreciada sobretudo com os instrumentos da ética, da filosofia política e
jurídica e se apresenta no contexto em que se comunica estreitamente com os
outros valores84: liberdade, justiça e segurança jurídica.”

Necessário destacar ainda, que não se pode conceber apenas uma positivação
que busca a igualdade formal, eis que necessária a luta pela igualdade material, de
sorte que se a tributação estiver amparada pela busca formal de um conceito de
igualdade, pode incorrer em falta de legitimação social.

83
“Há um problema inicial que consiste em saber se realmente a igualdade é um valor, isto é, se tem, no seu
espectro normativo, o status de idéia supraconstitucional.
A aceitação da igualdade como valor é essencial ao Estado Democrático de Direito, eis que, mesmo destituído
de conteúdo prévio, imanta todos pois outros valores. O valor formal não deixa de ser valor, tendo em vista que
procura sempre permear os valores que apresentam conteúdo possível.” (TORRES, 2005a, p. 143).
84
A igualdade apresenta-se como valor que vai interferir em todos os demais valores buscando a sua
compatibilização: “A igualdade é o tema fundamental da filosofia jurídica e política e penetra, como medida,
proporção ou razoabilidade, em todos os valores, dando-lhes a unidade. Participa, portanto, das idéias de justiça,
segurança e liberdade. [...] A igualdade tributária também é vazia, repudiando as discriminações arbitrárias,
afastadas da fundamentação ética dos valores. Serve de medida e harmoniza simultaneamente a justiça (e os
seus princípios da capacidade contributiva, da redistribuição de rendas, do desenvolvimento econômico), a
segurança (e os seus princípios da legalidade, da irretroatividade, da vinculação do lançamento, etc.) e a própria
liberdade absoluta (e as suas imunidades explícitas ou implícitas), mediante o sopesamento desses valores. Não
basta que a lei crie a tributação justa, afinada com a capacidade econômica do cidadão, mas que a imponha
igualmente a todos; nem se esgota a segurança no direito de ir à presença do juiz expor a sua pretensão contra
o Fisco, mas de estar em pé de igualdade com a outra parte; nem a imunidade significa apenas intributabilidade
dos direitos da liberdade, senão que aponta para a igual vedação de incidência para todos os homens. Demais
disso, a igualdade tributária não está presa a um único fundamento, eis que pode se justificar por motivos fiscais
ou extrafiscais, financeiros ou políticos, conjunturais ou permanentes.” (TORRES, 2005a, p. 153).
88

Sendo assim, o fato de haver expressa indicação da igualdade no caput do art.


5º da Carta Magna, no título que trata dos direitos e garantias fundamentais do
cidadão, revela a importância deste princípio, sinalizando um sentido valorativo
orientador do ordenamento jurídico, pelo que inspirador de outros princípios
aplicáveis de forma direta à esfera tributária, como, por exemplo o princípio da
capacidade contributiva.

Nesta linha de argumentação, possível afirmar em complemento que a Carta


Política vigente atribui relevante valor ao princípio da igualdade ao enumerar em seu
artigo 3°85 como objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento
nacional, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Ora, não é possível pensar na construção de uma sociedade livre, justa e


solidária, se a orientação dos processos necessários a se alcançar tal objetivo não
estiver inspirada pelo princípio da igualdade. Raciocínio idêntico pode ser utilizado
em relação às medidas dirigidas à erradicação da pobreza e da marginalização. Isto
porque deve-se partir do princípio de que os atores destes cenários têm também
direito à ascensão social.

Por fim, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de


todos implica reconhecer que todos são efetivamente iguais.

São estas as considerações acerca da igualdade, pelo que se passará agora,


ao estudo da justiça fiscal.

3.2.3 O princípio da justiça

85
Art. 3º. Constituem-se objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - Construir uma sociedade
livre, justa e solidária; II - Garantir o desenvolvimento nacional; III -Erradicar a pobreza, a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
89

Desdobra-se a Justiça em várias dimensões, até “[...] porque a Justiça é valor,


é princípio, é fim e é virtude”, com destaca Paulo Ferreira da Cunha. (2007, p. 44).

Segundo Torres (2005a, p.113-114) a justiça fiscal86 apresenta-se como forma


de implementar a equânime distribuição de rendas, “[...] com a adjudicação de
parcelas da riqueza nacional a indivíduos concretos [...], pelo que abrange “[...]
simultaneamente a justiça orçamentária, a tributária e a financeira (subvenções e
transferências) [...].”

Schoueri (2005, p.03) registra que na:

[...] visão de Klaus Vogel, a justiça tributária ultrapassa os limites de mera


justiça distributiva, no sentido aristotélico (enquanto distribuição justa da
carga estatal), e passa a ser uma justiça “estruturante” (gestaltende
Gerechtigkeit). Enquanto a primeira é reativa, já que parte das relações em
que os contribuintes vivem, a justiça “estruturante” é ativa, visto que atua no
sentido de uma modificação planejada da própria estrutura social.

Em que pese ser esta a sua primordial função, alerta o autor referido, que a
redistribuição de rendas pode encontrar empecilhos para a sua verificação, diante da
falta de possibilidade de concretização, pelo que [...]. é preciso, por conseguinte,
surpreendê-la nos seus princípios maiores, como sejam a capacidade contributiva, o
custo-benefício, a distribuição de rendas e a solidariedade do grupo [...]. (Torres,
2005a, p. 113).

Destaca-se que, embora exista grande dificuldade de verdadeira concretização


da distribuição de rendas, a justiça fiscal ainda apresenta-se como veículo primeiro
para a sua viabilização, no momento em que permite a ligação entre a justiça
social87 e a política. Nas palavras de Torres (2005, p. 124) verifica-se que:

[...] a justiça fiscal se transforma no caminho mais promissor para a


efetivação da justiça distributiva, pela sua potencialmente para proceder,
sob vários aspectos, à síntese entre a justiça social e a política.

86
“A justiça tributária compreende o processo sobre o justo na cobrança dos imposto, taxas, contribuições e
empréstimos compulsórios [...].” (TORRES, 2005a, p. 122).
87
“Justiça social, inicialmente, quer significar superação das injustiças na repartição, a nível pessoal, do produto
econômico. Com o passar do tempo, contudo, passa a conotar cuidados, referidos à repartição do produto
econômico, não apenas inspirados em razões micro, porém macroeconômicas: as correções na injustiça da
repartição deixam de ser apenas uma imposição ética, passando a consubstanciar exigência de qualquer política
econômica capitalista.” (GRAU, 2001, p. 259).
90

A justiça fiscal é obtida por intermédio dos órgãos do Estado, especialmente


o Legislativo, ao qual incumbe concretizar os princípios constitucionais
tributários e orçamentários.
Mas a só representação não explica o fenômeno fiscal, eis que, pela
simbiose entre o Estado e Sociedade e diante das novas possibilidades de
atuação no espaço público, a tributação e o orçamento passam a sofrer a
influência e o controle dos órgãos societais.
Tributos e orçamento, por conseguinte, instrumentos por excelência da
justiça distributiva, devem refletir as escolhas da cidadania e as demandas
sociais.

Do mesmo modo que a liberdade, a justiça fiscal está ligada à manutenção de


um mínimo existencial ao cidadão, contando, contudo, com uma definição mais
abrangente88:
A justiça fiscal é uma das possibilidades mais concretas da justiça política.
Sendo a justiça que se atualiza por intermédio do Fisco, tem a sua
problemática indissoluvelmente ligada à das instituições políticas e à da
Constituição.
Uma averbação inicial deve ser feita. As discussões sobre a justiça fiscal
começam após o exame da questão do mínimo existencial, que se inclui na
problemática da liberdade. O cidadão tem o direito às prestações positivas
do Estado para que possa satisfazer as suas necessidades mínimas, abaixo
das quais deixa de ter uma vida humana digna. Esse direito às condições
iniciais da liberdade ou dos direitos humanos, está em íntimo contato com o
da justiça fiscal, embora com ele não se confunda, tendo em vista a
implicação desses valores.
A justiça fiscal é termo amplo que abrange a justiça orçamentária, a
tributária e a financeira propriamente dita (transferência intergovernamentais
e subvenções econômicas e sociais. (TORRES, 2005, p. 123).

A par de tais observações, destaca-se ainda que a justiça extrafiscal deve


também estar presente, sob pena de descaracterizar o viés social do tributo. Isto
pela simples razão de que a justiça extrafiscal é a que orienta a exigência tributária
do ponto de vista da proteção à vida econômica e social.

Nesta linha de desdobramentos, cumpre ainda tecer considerações


especificamente a respeito de outros dois princípios vinculados à justiça, na
classificação de Torres, e que são o da capacidade contributiva e o da solidariedade.

3.2.3.1 O princípio da capacidade contributiva

88
De uns trinta anos para cá reacendeu-se o interesse pela idéia de justiça fiscal. A crise do petróleo deflagrada
em 1973 fez com que s passasse a meditar sobre a escassez dos recursos públicos e por muito mais que mera
coincidência, foi publicado o livro fundamental de John Rawls sobre a Teoria da Justiça, tantas vezes citado.
91

Nogueira (1999, p. 12) ensina que o “[...] princípio da capacidade contributiva89


é um conceito econômico e de justiça social, verdadeiro pressuposto da lei
tributária.”

A Constituição da República consagra o Princípio da Capacidade Contributiva,


em seu artigo 145, §1º, ao estabelecer que sempre que possível, os impostos terão
caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica90 do
contribuinte, facultando à administração tributária, especialmente para conferir
efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos
termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do
contribuinte.

Moraes (1997, p. 118) define a capacidade contributiva como sendo o princípio


“[...] pelo qual cada pessoa deve contribuir para as despesas da coletividade de
acordo com a sua aptidão econômica, ou capacidade contributiva, origina-se do
ideal de justiça distributiva.”

Por óbvio, a aplicação rigorosa deste princípio está vinculada à idéia do que
seja tratamento justo, na medida em que impõe ao legislador considerar as

Deu-se a “virada kantiana”, isto é, a retomada de alguns pontos de reflexão do filósofo de Königsberg, como o
relacionamento entre direito e moral e a concepção de contrato social.” (TORRES, 2005, p. 123).
89
A primeira sinalização no direito pátrio ao princípio da capacidade contributiva constou da Carta Magna de
1824, que no seu artigo 179, §15, estabelecia que “Ninguém será isento de contribuir para as despesas do
Estado em proporção a seus haveres”. Entretanto, somente na Constituição de 1946 é que o apontado princípio
teve expressa referência no artigo 202. Posteriormente, na Constituição de 1967 foi suprimido do respectivo texto
constitucional. Mais recentemente, quando da elaboração do texto da atual Constituição, a chamada comissão
Afonso Arinos fez constar o princípio da capacidade contributiva no artigo 149 do anteprojeto, que deveria ser
observado em relação a todos os tributos: “Os tributos terão caráter pessoal, sempre que isso for possível, e
serão graduados pela capacidade econômica do contribuinte segundo os critérios fixados em lei complementar”.
No entanto, o texto constitucional ao final promulgado acabou por restringir aplicação do princípio, determinando
a sua observância apenas com relação aos impostos, pelo que restou afastado das demais espécies tributárias.
90
A utilização da expressão "capacidade econômica" para Silva Martins (1989, p.34), representou equívoco do
legislador: “À luz de tal distinção, percebe-se que o constituinte pretendeu, ao mencionar a capacidade do
contribuinte, referir-se à sua capacidade contributiva e não à sua capacidade econômica, nada obstante o núcleo
comum de ambas, que implica densidade econômica capaz de suportar a imposição.” A capacidade contributiva
pressupõe uma relação jurídica entre o contribuinte e a Fazenda Pública, em que esta impõe àquele o dever de
arrecadar aos cofres públicos, nas medidas de suas possibilidades, isto é, no limite de sua capacidade
contributiva. De outro lado, a capacidade econômica é a exteriorização da potencialidade econômica de uma
pessoa em razão de seus rendimentos, independente de sua vinculação ao referido poder. É a aptidão dos
indivíduos em obter riquezas, sendo que estas se expressarão através de sua renda, do consumo ou do seu
patrimônio. Portanto, tem capacidade econômica todo aquele indivíduo que disponha de alguma riqueza ou de
aptidão para obtê-la, de uma forma geral. (p.35). Desta forma, em tese é possível que uma pessoa tenha
capacidade econômica e ao mesmo tempo não tenha condições de contribuir com o Fisco. Não obstante tais
observações, a CF-88 não reconhece tal distinção, tendo utilizado a expressão capacidade econômica como
sinônimo de capacidade contributiva.
92

diferenças dos cidadãos, tratando de forma desigual os desiguais, impondo o


recolhimento de impostos, considerando a capacidade de cada um em separado. E
não é possível entender-se de forma diversa, visto que o tributo somente pode ser
considerado justo se estiver harmonizado à capacidade econômica de quem deve
suportá-lo.

Destaca-se que, na aplicação do princípio da capacidade contributiva o que


deve ser aferido é a capacidade subjetiva do contribuinte, ou seja, a sua real aptidão
de pagar o tributo à fazenda pública. Nesse sentido a lição de Baleeiro (1997, p.
693):

Do ponto de vista subjetivo, a capacidade econômica somente se inicia


após a dedução das despesas necessárias para a manutenção de uma
existência digna para o contribuinte e sua família. Tais gastos pessoais
obrigatórios ( com alimentação, vestuário, moradia, saúde, dependentes,
tendo em vista as relações familiares e pessoais do contribuinte, etc.)
devem ser cobertos com rendimentos em sentido econômico – mesmo no
caso dos tributos incidentes sobre o patrimônio e heranças e doações – que
não estão disponíveis para o pagamento de impostos. A capacidade
econômica subjetiva corresponde a um conceito de renda ou patrimônio
líquido pessoal, livremente disponível para o consumo, e assim, também
para o pagamento de tributo. Desta forma, se realizam os princípios
constitucionalmente exigidos da pessoalidade do imposto, proibição do
confisco e igualdade, conforme dispõem os arts. 145, §1º, 150, II e IV, da
Constituição.

Nestas condições, da mesma forma como se reconhece que o cidadão deve


contribuir para a manutenção do Estado para que este possa atingir os seus fins,
também deve ser assegurado que a respectiva obrigação deve operar-se na medida
do que seja possível, na proporção das respectivas capacidades.

Em conseqüência, trata-se de uma verdadeira limitação ao poder do Estado de


instituir e cobrar tributos, sendo que sempre que for possível a exigência deverá ser
graduada de forma progressiva em nome da justiça e da igualdade, sob pena de ser
instituído e cobrado tributo inconstitucional. Baleeiro (1997, p. 689) vai mais além ao
sustentar que “[...] a capacidade contributiva é princípio que serve de critério ou de
instrumento à concretização dos direitos fundamentais individuais, quais sejam, a
igualdade e o direito de propriedade ou vedação do confisco.”
93

Em outras palavras, é possível sintetizar que quem dispõe de maior riqueza


deve, em termos proporcionais, pagar mais tributos do que quem tem menor poder
econômico e riqueza, isto é, deve contribuir mais para a manutenção da coisa
pública, até porque na lição de Amaro (2001, p. 136) o “[...] princípio da capacidade
contributiva inspira-se na ordem natural das coisas: onde não houver riqueza é inútil
instituir imposto, do mesmo modo que em terra seca não adianta abrir poço à busca
de água.”

A capacidade contributiva é, de fato, a espinha dorsal da justiça tributária. É um


critério de comparação que inspira o princípio constitucional da igualdade. (Baleeiro,
1997, p. 546). Em verdade, trata-se de um desdobramento do Princípio da
Igualdade, aplicado no âmbito da ordem jurídica tributária, na busca de uma
sociedade mais igualitária, menos injusta, impondo uma tributação mais pesada
sobre aqueles que têm mais riqueza.

Concludentemente, o Princípio da Capacidade Contributiva constitui clara e


fundamental orientação do Estado Democrático de Direito, sendo imprescindível
para o exercício e viabilização da igualdade na esfera do Direito Tributário.

3.2.3.2 O princípio da solidariedade

O valor solidariedade é reconhecido como objetivo da República Federativa do


Brasil, precisamente no inciso I, do artigo 3º da Constituição Federal, segundo o qual
constitui um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir
uma sociedade livre, justa e solidária.

Resta evidente, portanto, que o comando constitucional acima indicado sinaliza


verdadeira ordem, no sentido de que a sociedade brasileira deve dirigir ações
concretas objetivando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A
norma apontada sinaliza uma direção a seguir, tendo como norte a busca de um
estado ideal, a ser alcançado através de um conjunto de ações estatais e privadas.
94

Ressalte-se que o fato da norma constitucional em exame apresentar como


característica certo grau de abstração não tem qualquer relevância maior. É que
atinge ela de forma indistinta todos que estiverem submetidos à ordem jurídica
estabelecida pela Carta Política, no sentido da implementação de medidas dirigidas
a um estágio ideal de sociedade.

Especificamente em relação ao direito tributário, o princípio da solidariedade


resulta da observância da norma do art. 145, § 1º, antes já analisada, e que trata do
instituto da capacidade contributiva. Sem dúvida alguma, quando o dispositivo citado
determina que os impostos serão graduados segundo a capacidade econômica do
contribuinte, está de forma reflexa sinalizando que, em homenagem à idéia de
construção de uma sociedade solidária, que constitui objetivo da República
Federativa do Brasil, aqueles que mais ganhos auferem, serão mais intensamente
tributados, como forma de compensar a ausência de receita daqueles que menos
ganham, que menos condições têm.

A solidariedade91, pois, está associada à idéia de que todos os cidadãos são


responsáveis pela boa estruturação social. Todos unidos92 em busca de um ideal de
vida em comum93:

A idéia de solidariedade sinaliza no sentido de que as contribuições sociais,


necessárias ao financiamento da seguridade social, devem ser suportadas

91
“De feito, a solidariedade era valor fundante do Estado de Direito e já aparecia na trilogia da Revolução
Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Solidariedade é fraternidade. Sucede que o pensamento jurídico
posterior a Kant exacerbou a idéia de liberdade, diluindo-a na de legalidade, com o que ficaram esquecidas as de
justiça e solidariedade. A própria igualdade, que poderia se abrir às considerações de justiça ficou presa a
ideologias conflitantes: de um lado o liberalismo igualitário, revolucionário ou radical, com a figura exponencial de
Rousseau, que absolutizava o conceito de liberdade e atribuía à igualdade certo conteúdo político e econômico;
de outra parte, o liberalismo de tipo inglês, moderado ou doutrinário, que defendia, com Toqueville, Benjamim
Constat e outros, o conceito negativo de liberdade política e civil, restringindo a igualdade aos aspectos formais e
econômicos da ausência de constrição estatal.” (TORRES, 2005a, p. 180-181).
92
Há que se registrar que a solidariedade deve ser buscada mesmo nos pequenos grupos que compõem a
sociedade, como observa Torres (2005a, p. 585): “Muito para notar que a solidariedade, como assinala a
doutrina germânica, cria o sinalagma não apenas entre o Estado e o indivíduo que paga a contribuição, mas
entre o Estado e o grupo social a que o contribuinte pertence, considerando este às vezes em função do trabalho
e da profissão e outras vezes em razão de situações existenciais (velhice, doença, gravidez, morte, etc.). Porém,
a solidariedade não se esgota em ser uma atitude frente ao Estado, senão que também opera dentro do próprio
grupo: os princípios da igualdade e da proporcionalidade devem ser respeitados; os subgrupos, como os dos
patrões e dos empregados, seguem diferentes subprincípios derivados do princípio maior da solidariedade, como
sejam os do equilíbrio de risos e do dever de assistência; a solidariedade é uma decorrência da responsabilidade
social do empregador (sozialen Verantwortung Von Arbeitgebern)”.
93
“[...] como princípio orçamentário que é, a solidariedade se sintetiza na visão conjunta da receita a de despesa
e se comunica intimamente co o princípio da redistribuição de rendas. Solidários são os contribuintes e os
beneficiários da seguridade social, em conjunto. Diz Isensee que a solidariedade do beneficiário
(Leistungsempf¨nger) corresponde aos deveres solidários do contribuinte (Solidarische Pflichten): o trabalhador
alimenta o estudante.” (TORRES, 2000, p. 223).
95

por todos os que participam do mesmo grupo socioeconômico (ex. patrões e


empregados), ainda que alguns deles não recebam diretamente os
benefícios. Muito para notar que a solidariedade, como salienta a doutrina
germânica, cria o sinalagma não apenas entre o Estado e o indivíduo que
paga a contribuição, mas entre o Estado e o grupo social a que o
contribuinte pertence, considerado este às vezes em função do trabalho e
da profissão e outras vezes em razão de situações existenciais (velhice,
doença, gravidez, morte, etc.). (TORRES, 2000, p. 222).

Sob a ótica acima, a solidariedade94 está ligada diretamente ao dever de pagar


tributos, já que o seu ideário está pautado pela fraternidade e pela busca de
conscientização da responsabilidade de cada indivíduo para a manutenção de uma
convivência harmoniosa, numa sociedade mais justa:

A idéia de solidariedade se projeta com muita força no direito fiscal por um


motivo de extraordinária importância: o tributo é um dever fundamental. Sim,
o tributo se define como dever fundamental. Sim, o tributo se define como o
dever fundamental estabelecido pela Constituição no espaço aberto pela
reserva da liberdade e pela declaração dos direito fundamentais.
Transcende o conceito de mera obrigação prevista em lei, posto que
assume a dimensão constitucional. O dever não é pré-constitucional, como
a liberdade, mas se apresenta como obra eminentemente constitucional.
Ora, se a solidariedade exibe primordialmente a dimensão do dever segue-
se que não encontra melhor campo de aplicação que o do direito tributário,
que regula o dever fundamental de pagar tributo, um dos pouquíssimos
deveres fundamentais do cidadão do Estado Liberal, ao lado dos de prestar
os serviços militar, compor o júri e servir à justiça eleitoral (TORRES, 2005,
p. 181-182).

Assim, a solidariedade fiscal está ligada à liberdade, na medida em que o dever


de pagar tributos deve ser reconhecido por cada indivíduo inserido na sociedade. De
outro lado, a solidariedade influencia também a justiça95, no sentido de que objetiva
a distribuição de renda e a proporcional capacidade contributiva.

Tais são os pressupostos da solidariedade fiscal que, como mais adiante será
visto, está de forma profunda relacionada com a extrafiscalidade. Isto porque quase
sempre será possível identificar a solidariedade como fator determinante da

94
A idéia de solidariedade será desenvolvida de modo mais aprofundado na seqüência do trabalho.
95
“A solidariedade se aproxima da justiça por criar o vínculo de apoio mútuo entre os que participam dos grupos
beneficiários da redistribuição dos bens sociais. A justiça social e a justiça distributiva passam pelo
fortalecimento da solidariedade. Os direitos sociais, ou direitos de segunda geração como preferem outros,
dependem dos vínculos da fraternidade. Solidários são os contribuintes e os beneficiários das prestações
estatais, em conjunto. Diz Isensse que “às pretensões solidárias correspondem deveres solidários”. A
solidariedade entre os cidadãos deve fazer com que a carga tributária recaia sobre os mais ricos, aliviando-se a
incidência sobre os mais pobres e dela dispensando os que estão abaixo do nível mínimo de sobrevivência. É
um valor moral judicizável que fundamenta a capacidade contributiva e que sinaliza para a necessidade da
correlação entre direitos e deveres fiscais.” (TORRES, 2005a, p. 584).
96

minoração ou majoração tributária, naqueles casos específicos em que o objetivo


maior não seja a arrecadação gerada pela exigência tributária.

Antes, porém, será feito exame do princípio da segurança jurídica.

3.2.4 O princípio da segurança jurídica

Para Torres (2005, p. 168), segurança jurídica “[...] é certeza e garantia dos
direitos é paz. Como todos os valores jurídicos, é aberta, variável, bipolar e
indefinível [...].” Conclui que a segurança jurídica significa a segurança dos direitos
fundamentais.

Neste sentido, a segurança jurídica é elevada à condição de direito


fundamental96, na medida em que se apresenta como proteção contra
arbitrariedades por parte do Estado:

A segurança jurídica torna-se valor fundamental do Estado de Direito, pois o


capitalismo e o liberalismo necessitam de certeza, calculabilidade,
legalidade e objetividade nas relações jurídicas e previsibilidade na ação do
Estado, tudo o que faltava ao patrimonialismo. Afirmou-se nas obras de
Hobbes, como a segurança contra violência praticada pelos outros, e de
Locke, como proteção contra os Estado e garantia de propriedade.
Positivou-se nas Constituições das Colônias americanas e na Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Foi apelidada por Marx
como “segurança do egoísmo” burguês. Identificou-se com a só legalidade
do Estado de Direito formal na obra de Kelsen. Perdeu muito de seu
interesse na primeira metade do século XX e no tempo do fastígio do
Estado de Bem-estar Social, mas volta a ocupar lugar de destaque no
momento em que a injustiça também recuperou a sua importância.
(TORRES, 2005, p. 168-169).

96
“[A segurança] é um autêntico direito fundamental, no sentido de que as leis tributárias do Estado e a própria
Fazenda Pública constituem res publica, ou direitos republicanos, ou direitos de 3.ª geração como preferem
outros, garantidos pelo ordenamento jurídico e acionáveis pelo Ministério Público ou por qualquer um do povo.
Nessa perspectiva é que Alberto Nogueira pode falar em Direitos Humanos da Tributação. Flávio Bauer Novelli
dissertou proficientemente sobre o tema: “A segurança é o direito fundamental, enquanto situação subjetiva
protegida explicitamente pela Constituição... é evidente que a segurança que a Constituição protege não é só a
segurança individual... É também, ou é até mesmo em primeiro lugar, a segurança do direito enquanto
pressuposto e fundamento daquela outra. Este entendimento me parece digno de consideração, particularmente
no que se refere ao Direito Tributário, uma vez que o exato respeito dessa disposição, em todos os seus
desenvolvimentos e implicações, poderá ter conseqüências significativas, quer no momento da edição da lei
tributária, quer no momento de sua interpretação”. Isensee diz que “direito fundamental” à segurança”
(Grundrecht auf Sicherheit) exibe o status negativos, configurando na legislação que protege o cidadão contra o
Estado, e o status positivus libertatis, consubstanciado na garantia do processo judicial e do administrativo.”
(TORRES, 2005, p. 170-171).
97

O preceito que garante tal condição está previsto no artigo 5.º, caput, da
Constituição Federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade [...]”97.

O princípio da segurança jurídica é da “[...] essência do próprio Direito,


notadamente de um Estado Democrático de Direito, de tal sorte que faz parte do
sistema constitucional como um todo [...]”, como observa Celso Antônio Bandeira de
Mello. (2002, p. 104). E não pode se projetar o apontado princípio de forma diversa,
mesmo porque a segurança corresponde a um dos valores fundamentais da
humanidade, cabendo ao Direito a sua proteção e preservação.

Torres aponta como alternativa para neutralizar riscos, a mobilização da própria


sociedade, que não pode apenas perceber-se como detentora de direitos, mas como
implementadora de deveres. Essa postura demanda a adoção de novos preceitos,
de uma reestruturação do ideário de individualismo para se alcançar uma
solidariedade social, podendo-se falar, inclusive, na instauração de um Estado de
Segurança ou de Prevenção. Acrescenta ainda:

Esse clima de insegurança postula a doação de novos princípios éticos e


jurídicos, A transparência, a responsabilidade, o custo-benefício, a
solidariedade social e a solidariedade do grupo passam a fundamentar as
exações necessárias ao financiamento das garantias da segurança social.
Habermas chega a falar em uma nova dimensão estatal: a do Estado de
Segurança (Sicherheitstaat), ou de Prevenção (Präventionstaat), fundado no
princípio da solidariedade e na prevenção coletiva, e que, sucedendo o
Estado de Direito (Rechtsstaat) e o Estado Social (Sozialstaat), tem
ampliadas a base financeira (Geldbasis) e a do conhecimento
(Wissensbasis). (TORRES, 2005a, p. 179-180).

Ainda, com esta nova visão de comprometimento social, as próprias


instituições públicas e os Poderes estariam em constante interligação, motivados
pela busca de efetivação dos direitos sociais e pela garantia de segurança98 de que
eles sejam mantidos.

97
“A Constituição da Espanha contém dispositivo semelhante (art. 9.º, 3). A Constituição da Alemanha não
contém declaração explícita sobre a segurança, que é lida nas entrelinhas da cláusula do Estado Social” (Torres,
2005a, p. 169).
98
Observa Torres ( 2005a, p. 180): “Uma outra característica marcante da sociedade de risco é que nela as
instituições políticas e as instituições sócias entram em novo relacionamento. O Ministério Público e o Judiciário
passam e exercer papel mais ativo na defesa dos direitos difusos, em cooperação com as instituições sociais,
afastando-se da missão neutra que desempenhava na sociedade industrial. A sociedade de riscos, com a
98

Examinados todos os princípios constitucionais tributários vinculados aos


valores, a seguir serão analisadas formas alternativas de ações dirigidas à
implementação de direitos sociais.

3.3 Políticas públicas – perspectivas

De início, cumpre conceituar o que convencionalmente denominou-se política


pública. Bobbio (1995) afirma que a palavra política99 encontra-se associada a tudo
o que se relaciona à cidade, civil, sociável ou social. A significação originária do
grego possuiria a designação de pólis, daí porque a possível associação da palavra
ao conceito pública (que denota comum a todos, do Estado, o povo em geral) para
conceituar o que tem ligação ao planejamento, aplicação e execução das medidas
necessárias à estruturação da sociedade. (MICHAELIS, 2003).

Bucci (2002, p. 269) observa que o adjetivo “pública”, justaposto ao substantivo


“política”, sinaliza tanto os destinatários como também os autores da política.
Acrescenta que uma política será pública quando efetivamente contemplar
interesses públicos, voltados à coletividade. E isto não como uma mera fórmula
justificadora de que seja diferente dos interesses particulares, mas sim por ser sua
realização desejada pela sociedade. Conclui, alertando, que uma política pública
também deve ser expressão de um processo público, no sentido da possibilidade de
participação de todos os interessados, diretos e indiretos, permitindo manifestação
clara e transparente dos interesses respectivos.

pluralidade de interesses em jogo, é necessariamente uma sociedade litigiosa. Surge um novo esquema de
separação de poderes, no qual destacam a flexibilização da legalidade tributária, a tipificação administrativa e a
judicialização da política.”
99
“Derivado do adjetivo de pólis (politikós), significa tudo aquilo que se refere à cidade, e, portanto, ao cidadão,
civil, público e também sociável e social, o termo ‘política’ foi transmitido por influência de grande obra de
Aristóteles, intitulada Política, que deve ser considerada o primeiro tratado sobre a natureza, as funções, as
divisões do Estado, e sobre as várias formas de governo, predominantemente no significado de arte ou ciência
do governo, isto é, de reflexão, não importa se com intenções meramente descritivas ou também prescritivas
(mas os dois aspectos são de difícil distinção), sobre as coisas da cidade”. (BOBBIO, 2000, p. 159).
99

Assim, percebe-se que a política pública traz consigo, como pressuposto, a


participação dos cidadãos na tomada de decisões acerca de projetos e atividades
que irão influenciar diretamente as suas vidas.

Para Bontempo (2005, p. 210) as políticas públicas estão diretamente ligadas à


implementação dos direitos sociais, destacando que a constitucionalização de tais
direitos sociais exigem uma postura ativa por parte do Estado, com a finalidade de
promover condições para que eles possam ser efetivamente usufruídos. Conclui que
estas condições, que devem ser produzidas pelo Estado, nada mais são do que as
chamadas “políticas públicas”.

Por oportuno há que se referir também, que a visão de política pública está
ligada à concepção de Estado que se adota, ou seja, o ideário do modelo de Estado
é que irá determinar a política pública a ser adotada. Segundo Bucci (2002, p. 244-
245):

Uma primeira dificuldade em se trabalhar com a noção de política pública


em direito diz respeito à relação entre o direito e o modelo de Estado. Pois,
se se concebe a política pública como criação do Estado de bem-estar,
expressa sempre como forma de intervenção do Estado, e se adota como
premissa a exaustão do Estado de bem-estar – o que é uma constatação
não apenas de autores neoliberais – seria, discutível definir o Estado
contemporâneo como “fundamentalmente, Estado implementador de
políticas públicas”. Teria sentido falar em Estado implementador de políticas
públicas no caso da era do Estado de bem-estar?

No mesmo sentido é a visão de Azevedo (2001, p. 08-09), ao sustentar que as


políticas públicas, como qualquer ação humana, são definidas, implementadas,
reformuladas ou desativadas com base na memória da sociedade ou do Estado.
Tais políticas, em seu entender, são construídas a partir das representações sociais
que cada sociedade desenvolve a respeito de si própria, pelo que são ações que
guardam intrínseca conexão com o universo cultural e simbólico, que é próprio de
uma determinada realidade social.

Nestas condições, para ele são as referidas representações sociais


predominantes que fornecem os valores, normas e símbolos que estruturam as
relações sociais, fazendo-se presentes como tal no sistema de dominação,
100

atribuindo significados à definição social da realidade que vai orientar os respectivos


processos de decisão, formulação e implementação das políticas públicas.

Desse modo, pode-se presumir que a ideologia100 trazida por determinada


visão de Estado é que vai determinar o tipo de políticas públicas que serão
escolhidas. Em um Estado, cujo ideário esteja vinculado à busca de implementação
dos direitos, caracterizado como provedor de direitos sociais, partir-se-á para a
concretização de políticas públicas interventivas na vida social, com o caráter de
prestações estatais positivas. Projetando outro extremo, se o ideário a nortear a
visão de Estado estiver ligado à concepção liberal, a tendência será outra.

Feitas estas observações, cabe referir que Bucci (2002, p. 241) define políticas
públicas101 como:

[...] programas de ação governamental visando a coordenar os meios à


disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de
objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Políticas
públicas são “metas coletivas conscientes” e, como tais, um problema de
direito público, em sentido lato.

Depreende-se, a partir da concepção acima apontada, que as políticas públicas


podem promover uma participação conjunta entre Estado e sociedade para a
realização de metas coletivas, ou seja, Estado e sociedade andando juntos para

100
Jürgen Habermas (1999) defende que o conceito de ideologia surgiu com a nova organização social,
constituída pela ascensão da burguesia como classe dominante e do modo de produção capitalista que passou
a legitimar formas de poder estatal, fundamentadas na livre iniciativa do mercado e na não intervenção estatal.
Já para Marilena Chauí (2001, p. 55) a distorção trazida pela ideologia não decorre de ela apresentar-se como
uma aparência, mas de ela estar voltada para “neutralizar a história, abolir as diferenças, ocultar as contradições
e desarmar toda tentativa de interrogação. [...] A ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é
uma maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social,
econômico e político, de tal sorte que essa aparência (que não devemos simplesmente tomar como sinônimos
de ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o
ocultamento ou a dissimulação do real. [...] Universalizando o particular pelo apagamento das diferenças e
contradições, a ideologia ganha coerência e força porque é um discurso lacunar que não pode ser preenchido”.
101
“[...] As políticas públicas devem ter como objetivo a justiça social de fato, entendendo-se a justiça não em um
sentido utilitarista, pois se assim for incorre-se em um sério problema. [...] Partindo-se do pressuposto da
existência de uma justiça social de fato, tem-se uma sociedade que inclui a todos somente porque é possível, ao
mesmo tempo, excluí-los. Este problema deve ser afrontado também pelos economistas, tendo em mente a
perspectiva da justiça não no sentido utilitarista. Não se pode esquecer que o utilitarismo tem, ainda, uma grande
influência nos definidores de políticas públicas, tanto nacionais quanto internacionais. Aliás, quando se trata de
economia internacional, o utilitarismo, seguindo as idéias de James Meade, no clássico livro Trade and Welfare,
fez-se presente, afirmando literalmente que, adotando-se a antigo critério utilitarista se decidirá cada ação
política do ponto de vista dos seus efeitos sobre uma soma complexiva. Dessa forma, parece que a idéia da
tutela dos direitos fundamentais passa distante das reflexões fundamentadas na perspectiva utilitarista”. (VIAL,
2005, p. 94-95).
101

buscar a solução de problemas que afetam o funcionamento e a coordenação das


exigências sociais.

Assim, políticas públicas acabam por apresentar-se como uma forma de


Estado socialmente forte, na medida em que sua preocupação reside na efetivação
de direitos sociais que até o momento apenas estão formalmente previstos,
promovendo uma nítida substituição do governo das leis pelo governo das políticas
públicas. É este justamente o pensamento de Bucci (2002, p. 252):

As políticas públicas são instrumentos de ação dos governos – o


government by policies que desenvolve e aprimora o government by law. A
função de governar – o uso do poder coativo do Estado a serviço da coesão
social – é o núcleo da idéia de política pública, redirecionando o eixo de
organização do governo da lei para as políticas. As políticas são uma
evolução em relação à idéia de lei em sentido formal, assim como esta foi
uma evolução em relação ao government by men, anterior ao
constitucionalismo. E é por isso que se entende que o aspecto funcional
inovador de qualquer modelo de estruturação do poder político caberá
justamente às políticas públicas.

Registre-se, ainda, que a decisão por políticas públicas pode apresentar-se


como uma forma reguladora da discricionariedade administrativa, propiciando a
verificação da legitimidade dos motivos e fundamentos apresentados para sua
elaboração102. O controle, pois, da discricionariedade torna-se relevante, na medida
em que se percebe que as políticas públicas, relacionadas que estão ao interesse
público, representam uma alternativa de efetiva implementação de direitos sociais.
Assim:

A escolha das diretrizes da política, os objetivos de determinado programa


não são simples princípios de ação, mas são os vetores para a
implementação concreta de certas formas de agir do Poder Público, que
levarão a resultados desejados. E essa é a conexão das políticas públicas
com o direito administrativo. Cada vez mais os atos, contratos,
regulamentos e operações materiais encetados pela Administração pública,
mesmo no exercício de competências discricionárias, devem exprimir não a
decisão isolada e pessoal do agente público, mas escolhas politicamente
informadas que por essa via demonstrem os interesses públicos a
concretizar. (BUCCI, 2002, p. 268).

102
“A temática das políticas públicas, como processo de formação do interesse público, está ligada à questão da
discricionariedade do administrador, na medida em que “o momento essencial da discricionariedade é aquele em
que se individualizam e se confrontam os vários interesses concorrentes”. E um interesse é reconhecível como
interesse público quando é assim qualificado pela lei ou pelo direito, que é exatamente o que se faz no processo
de formação da política pública como dado de direito, ou seja, sancionar determinados fins e objetivos, definindo-
os legitimamente como a finalidade da atividade administrativa”. (BUCCI, 2002, p. 265).
102

Desta forma, não há como negar que se as políticas públicas representam


efetivos instrumentos para o cumprimento de compromissos previstos no
ordenamento constitucional, impossível deixar de admitir que o grau de
discricionariedade de que dispõe o administrador público na implementação das
ações correspondentes que objetivem dar efetividade aos direitos sociais deve ser
por demais restrito.

Assim, se as políticas públicas têm por fim orientar a atuação governamental


para um objetivo constitucionalmente previsto, devem estar dirigidas ao cumprimento
das tarefas correspondentes à concretização de direitos sociais, como é o caso dos
direitos à saúde, à educação, ao trabalho, à moradia.

As colocações acima acabam por sinalizar para um desdobramento


interessante e vinculado à idéia de inconstitucionalidade por omissão, que pode ser
perfeitamente objeto de controle pelo Poder Judiciário, sobretudo se considerado
que há na Constituição Federal instrumentos processuais específicos possibilitando
este tipo de atuação. Significa dizer que na omissão do Poder Executivo, em caso
da não implementação de políticas públicas para viabilizar os direitos sociais
assegurados constitucionalmente, pode tal inação ser apreciada pelo Judiciário, eis
que, como antes sustentado, a discricionariedade do administrador tem limites

Frischeisen (2000, p. 95-96), acerca da discricionariedade permitida na


concretização dos direitos sociais, afirma que o administrador não tem:

[...] discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência


de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social
constitucional, pois tal restou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador
que elaborou as normas de integração. Os meios pelos quais deve atuar
também já se encontram determinados bem como, em várias áreas, suas
fontes de custeio. [...] A discricionariedade na implementação das políticas
públicas constitucionais da ordem social só poderá ser exercida nos
espaços, eventualmente não preenchidos pela Constituição ou pela lei, não
podendo valer-se, tampouco, de conceitos normativos tidos como fluidos ou
permeáveis a várias interpretações, pois esses deverão ser preenchidos por
interpretação de acordo com os fundamentos e objetivos da República,
estabelecidos na Constituição.

Nesse sentido, as políticas públicas deverão buscar sempre a implementação


dos direitos sociais, de sorte que a própria oportunidade e conveniência deverá ser
perquirida tomando-se como referencial a ordem social. E na medida em que se
103

compreende o papel imprescindível de tais políticas na vida social e na promoção


dos interesses e anseios públicos, percebe-se a importância da participação do
cidadão na tomada de decisões que lhe irão afetar diretamente. Bucci (2002, p.
269), neste contexto, destaca que uma política pública somente terá êxito se
garantido um processo democrático de participação popular:

[...] o processo administrativo de formulação e execução das políticas


públicas é também processo político, cuja legitimidade e cuja “qualidade
decisória”, no sentido da clareza das prioridades e dos meios para realizá-
las, estão na razão direta do amadurecimento da participação democrática
dos cidadãos. O sucesso da política pública, qualquer seja ela, está
relacionado com essa qualidade do processo administrativo que precede a
sua realização e que a implementa. As informações sobre a realidade a
transformar, a capacitação técnica e a vinculação profissional dos
servidores públicos, a disciplina dos serviços públicos, enfim, a solução dos
problemas inseridos no processo administrativo, com o sentido lato
emprestado à expressão pelo direito americano, determinarão, no plano
concreto, os resultados da política pública como instrumento de
desenvolvimento.

Certamente, na medida em que este processo democrático for sendo


construído, com a participação do cidadão efetivamente se solidificando, possível
será a identificação e a escolha de políticas públicas mais eficientes e, por isso, mais
acertadas. Isto porque, entre outros fatores, o cidadão consciente da sua
fundamental presença no meio social, saberá também dizer o que lhe parece
necessário para que seus direitos sejam concretizados.

O que se constata a partir de todas as colocações acima, é que embora a


escolha e a implementação de políticas públicas devam resultar de um amplo
processo democrático, a verdade é que as efetivas ações acabam vinculadas e
implementadas pelo Poder Executivo103.

Nesse contexto, surge a necessidade de se avaliar também o quanto as


políticas públicas estabelecidas pelo Poder Executivo podem receber o controle do
Poder Judiciário, sem que isso represente uma invasão de esferas.

103
Observa Bucci (2002, p. 269-270): “Parece relativamente tranqüila a idéia de que as grandes linhas das
políticas públicas, as diretrizes, os objetivos, são opções políticas que cabem aos representantes do povo e,
portanto, ao Poder Legislativo que as organiza sob forma de leis, para a execução pela Poder Executivo,
segundo a clássica tripartição das funções estatais em legislativa, executiva e judiciária. Entretanto, a realização
concerta das políticas públicas demonstra que o próprio caráter diretivo do plano ou do programa implica a
permanência de uma parcela da atividade “formadora” do direito nas mãos do governo (Poder Executivo),
perdendo-se a nitidez da separação entre os dois centros de atribuições”.
104

Bontempo (2005, p. 298) manifesta-se favoravelmente à justiciabilidade das


políticas públicas104, referindo que a própria lógica do Estado social impõe que o
Poder Judiciário, analisando as demandas vinculadas aos direitos sociais, adote
uma ótica renovada do princípio da separação dos Poderes e da discricionariedade
administrativa, pelo que podem ser combatidas as teorias que pregam a não
justiciabilidade das políticas públicas.

Comparato (1998, p. 46) compartilha deste entendimento:

Verificada a clássica falsa objeção á justiciabilidade das políticas


governamentais estabeleçamos, desde logo, que o juízo de
constitucionalidade, nessa matéria, tem por objeto não só as finalidades,
expressas ou implícitas, de uma política pública, mas também os meios
empregados para se atingirem esses fins. No tocante a este última hipótese,
por exemplo, é de se assinalar que uma política de estabilidade monetária
fundada na prática de juros bancários extorsivos e na sobrevalorização do
câmbio, pode-se revelar, de modo geral, incompatível com os fundamentos
constitucionais de toda a ordem econômica, quais sejam a valorização do
trabalho humano e a exigência de se assegurar a todos existência digna
(art. 170, caput), e, bem assim, com o princípio da busca do pleno emprego
(art. 170, inc. VIII). Da mesma sorte, uma política de incriminada concessão
de incentivos com o princípio de defesa do meio ambiente (art. 170, inc. VI).
Pode ocorrer, ainda, que a política governamental viole a Constituição em
razão da própria maneira como é estruturada. O exemplo, aqui, seria o de
uma política estadual ou municipal de saúde pública desligada do sistema
nacional único, imposto pelo art. 198 da Constituição. Tudo isso, quanto à
inconstitucionalidade comissiva. Impossível, porém, não reconhecer que,
também em matéria de políticas públicas, pode haver inconstitucionalidade
por omissão.

Em sentido diverso, no entanto, manifesta-se Habermas (1997), para quem a


intervenção do Poder Judiciário representa a desmobilização de um ideal de
participação cidadã. Acredita ele que, caso o Poder Judiciário desempenhe um
papel atuante na reivindicação da consecução de direitos sociais, os cidadãos
portar-se-ão apenas como clientes frente ao Estado. Outro argumento
freqüentemente utilizado está assentado na separação dos poderes: o Poder
Judiciário não poderia invadir esferas de competência do Poder Executivo. Mas isso
como se viu anteriormente, comporta divergências.

104
“É preciso provocar o Poder Judiciário, submetendo-lhe, com ousadia, demandas relativas aos direitos
sociais, evitando a permanência no ordenamento jurídica de leis e políticas públicas contrárias a esses direitos e,
por conseqüência, à ‘Vontade da Constituição’.” (BONTEMPO, 2005, p. 300).
105

Entretanto, um detalhe não pode ser negado. A possibilidade de consolidação


de um quadro de crescente participação do Poder Judiciário, com significativo
deferimento de medidas impondo ao Executivo ações específicas, especialmente na
área da saúde e assistência social, pode conduzir a um cenário grave, de
comprometimento de reservas orçamentárias. Em outras palavras, o orçamento de
determinado órgão ou secretaria de governo ficará muito mais vinculado, para não
dizer refém, às decisões judiciais dirigindo sua utilização para casos específicos, do
que propriamente ao que determina a lei orçamentária. E isto, certamente, poderá
gerar desdobramentos diversos, que podem ir desde o engessamento de parte da
administração pública, até implicações vinculadas à Lei de Responsabilidade Fiscal.

Os argumentos, portanto, em ambos os lados, são múltiplos, e a questão ainda


não encontrou um porto seguro. Todavia, em que pese a divergência apontada,
pode-se concluir que o Poder Judiciário também tem papel fundamental na
realização dos direitos sociais, sobretudo porque pode ser um instrumento poderoso
de formação de políticas públicas, em decorrência do acolhimento de ações judiciais
promovidas por particulares ou pelo próprio Ministério Público, dirigidas ao
reconhecimento e efetivação de direitos sociais.

As novas perspectivas, pois, em relação às políticas públicas, que aqui se


pretendeu apontar, estão vinculadas, primeiro, à possibilidade efetiva de
interferência do Poder Judiciário, diante da inércia do Executivo. E esta inércia se
mostra atualmente injustificável no Brasil, diante do volume expressivo de
arrecadação tributária, com recordes permanentes de superávit primário.

De outro lado, perspectiva também possível para consecução de políticas


públicas está apoiada no caráter extrafiscal do tributo, o que será examinado no
capítulo seguinte.
106

3.4 A extrafiscalidade

Há dificuldade na identificação da origem histórica da extrafiscalidade. No


entanto, existem registros de fatos históricos105 marcantes em que governos fizeram
uso de tributos para viabilizar objetivos distintos da simples arrecadação para o
Estado, como, por exemplo, os incentivos fiscais estabelecidos pelas Coroas de
Portugal e da Espanha, para o fim de financiamento de viagens em busca do
desbravamento de novas terras, o que se verificou também com ingleses e
holandeses. (Berti, 2003, p. 37).

Importa aqui, em realidade, que o estudo da extrafiscalidade revela sua


presença em épocas diversas da civilização, com sua utilização de maneira variada
por sociedades, com o propósito de atingir interesses outros que não a mera
arrecadação, dirigidos à correção de situações sociais e econômicas anômalas.

Feito este registro histórico, cumpre dizer que é também antiga a discussão
sobre os institutos da fiscalidade, parafiscalidade e extrafiscalidade, levando em
conta o critério finalístico da tributação, razão pela qual cabem no ponto alguns
registros diferenciadores. Assim, um tributo terá natureza fiscal quando a sua
cobrança objetivar apenas a arrecadação de recursos para os cofres públicos, com o
propósito de sustentar os encargos que são próprios da administração pública. Por
esta razão, afirma-se que o tributo será fiscal quando seu objetivo principal for a
arrecadação de recursos financeiros para o Estado.

A parafiscalidade ocorre quando a arrecadação tributária se desenvolve com a


finalidade de obter recursos para sustentar encargos, que não são específicos da
administração direta do Estado, mas decorrentes de atividades que interessam ao
governo que sejam desenvolvidas. Esta é a razão por que se afirma que tais
imposições revestem-se de característica parafiscal, porque se destinam à
sustentação de encargos paralelos aos da administração pública.

105
Anota Berti (2003, p. 37) que “observou-se que na Europa do pós-guerra houve diversas formas de incentivo
para a reconstrução dos paises mediante o uso extrafiscal de impostos variados. Isto se deu particularmente
naqueles lugares em que os efeitos maléficos do conflito bélico foram sentidos de modo mais intenso até
meados do ano de 1945.”
107

Por fim, a tributação assumirá característica extrafiscal quando não objetivar,


de forma prioritária, prover o Estado dos meios financeiros ao seu custeio, mas sim
intervir no domínio econômico com o propósito de criar ou modificar cenários
estruturais econômicos e sociais.

A doutrina mostra-se uniforme neste critério de diferenciação, tanto que


Machado (2003, p. 68) afirma que o tributo106 quanto ao seu objetivo pode ser: “a)
Fiscal, quando seu principal objetivo é a arrecadação de recursos financeiros para o
Estado; b) Extrafiscal, quando seu objetivo principal é a interferência do domínio
econômico, buscando um efeito diverso da simples arrecadação de recursos
financeiros” [...].

Para Martuscelli (2001, p. 60) diz-se:

[...] fiscal um tributo quando sua finalidade básica for geração de ingressos
para o Erário. Toda e qualquer finalidade não-arrecadatória, que prepondere
sobre os interesse meramente arrecadatório, dará ao tributo uma conotação
extrafiscal. As finalidades fiscais e extrafiscais convivem em todos os
tributos, entretanto, o que haverá e será relevante para a distinção entre
uma ou outra modalidade dessa classificação dos tributos em análise, será
não a exclusividade de um fim, mas a preponderância de um fim sobre o
outro.

Na mesma linha, Rodrigues (2005, p. 58) didaticamente ensina que a função


fiscal da tributação visa apenas arrecadar recursos para os cofres públicos,
enquanto que a extrafiscal se materializa em verdadeira política pública de
ingerência no meio econômico ou social, tornando mais ou menos gravosas as
exigências tributárias.

Baleeiro (1999, p. 576) procura ser mais direto relativamente à finalidade


extrafiscal, ao afirmar que a respectiva natureza se evidenciará quando a exigência
legal visar ordenar a propriedade de acordo com a sua função social ou intervir em
dados conjunturais ou estruturais da economia. Em complemento, destaca que o
ordenamento jurídico reconhece ao legislador tributário a faculdade de estimular ou
desestimular comportamentos, de acordo com os interesses prevalentes da

106
O artigo 3.º do Código Tributário dispõe que: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória em moeda ou
cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante
atividade administrativa plenamente vinculada”.
108

coletividade, através de uma tributação progressiva ou regressiva, como também


mediante a concessão de benefícios e incentivos fiscais.

Rodrigues (2005, p. 58) faz registro semelhante, ao sustentar que o caráter


extrafiscal do tributo apresenta-se como forma de incentivo ao setor privado para a
implementação de interesses públicos:

O fato é que a extrafiscalidade sempre atuou e se fez presente, nalguns


períodos de modo menos intenso e desenvolvido, noutros de modo mais
marcante e criativo, espalhando-se por formas e instrumentos variados.
A extrafiscalidade desenvolve-se não só por intermédio da imposição
tributária, que vai desestimular certas atividades do setor privado, como por
meio de isenções, imunidades e incentivos que vão, ao contrário, estimulá-
las caso seja de interesse público.

Neste contexto Yamashita (2005, p. 62) afirma que as normas extrafiscais


podem ser “[...] i) desestimulantes a um comportamento socialmente indesejável,
mediante oneração tributária; ou ii) estimulantes a um comportamento socialmente
desejável mediante desoneração tributária.”

Além das vantagens acima citadas, possibilitadas pelo uso extrafiscal, pode-se
destacar outra grandiosa característica, mencionada por Rothmann (1970, p. 108),
correspondente à “[...] aplicação das leis tributárias, visando precipuamente a
modificar o comportamento dos cidadãos, sem considerar o seu rendimento fiscal”.
Na mesma linha segue o pensamento de Meirelles (1984, p. 380-381) ao defender a
“[...] utilização do tributo como meio de fomento ou de desestímulo a atividades
reputadas convenientes ou inconvenientes à comunidade.”

Como se vê, um dos princípios inspiradores da extrafiscalidade é o da


supremacia do interesse público sobre o privado, assumindo especial papel na
implementação de medidas em benefício da sociedade. Ademais, a desvinculação
de um caráter apenas arrecadatório abre espaço para a possibilidade de
implementação de medidas que, por desdobramento acabarão dirigidas às
necessidades sociais. Por isso:

[...] a extrafiscalidade é corolário do Estado Social e tem por missão criar


condições para que o Poder Público tenha facilitada a sua tarefa de
preservar alguns valores que são muito caros à sociedade, cuja realização é
de fundamental importância, sobretudo com forma de satisfazer ao interesse
109

público que sempre deve preponderar sobre o interesse privado. Tal escopo
é o fim do Estado e também o meio para o desenvolvimento efetivo de um
Estado de Direito que realize a justiça fiscal. Evidentemente, há parâmetros
para a realização destes fins, todos muito bem definidos na Constituição,
geralmente sob a forma de enunciados conhecidos como “Princípios
Constitucionais Tributários” ou “Limitações Constitucionais ao Poder de
Tributar”.
Desta forma, é possível afirmar que a extrafiscalidade foi objetivada pelo
legislador constituinte, tanto que o mesmo previu regras específicas para
estimular seu uso, contudo sempre guardados o respeito e a adequação ao
Sistema Tributário como um todo. (BERTI, 2004, p. 36-37).

A linha de colocações acima desenvolvida sinaliza para uma evidencia, qual


seja, a da importância da extrafiscalidade na evolução do Estado Social, resultado
de grandes transformações pelas quais passou esta forma de organização do poder
político. Berti (2004, p. 39) destaca que foram muitas as lutas e as conquistas até
que se chegasse ao Estado Contemporâneo107, no qual o uso da função extrafiscal
da tributação ganhou destaque expressivo, imensurável, “[...] sobretudo por ser
externado cada vez com maior freqüência ao gosto das necessidades e interesses
de diversos setores da sociedade e sob os auspícios da criatividade e
discricionariedade do Legislativo e dos órgãos de governo.”

Assim, considerando-se a crise vivenciada pelo Estado, cuja falha reside na


ausência de efetivação satisfatória do social, a extrafiscalidade, diante das
possibilidades que viabiliza através de medidas dirigidas à melhoria na consecução
do interesse público, apresenta-se como alternativa interessante e, sobretudo,
possível, como instrumento de implementação de políticas sociais108. Berti (2004, p.
43-44), assevera que a crise enfrentada pelo Estado contemporâneo pode ser
contornada com a utilização de políticas extrafiscais:

107
A indicação de Estado Contemporâneo é feita por Berti (2004, p. 39) ao definir quatro fases distintas do
processo de evolução do Estado enquanto forma de organização do poder político até sua atual configuração:
Estado Antigo na Grécia e em Roma; o Estado Medieval; o Estado Moderno; e o Estado Pós-moderno ou
Contemporâneo. Foi no Estado Contemporâneo, em especial após a Segunda Grande Guerra, que de seu a
mudança na postura do Estado em decorrência do surgimento de novas necessidades da sociedade. É neste
cenário que surge o chamado Estado Social, amparado na doutrina norte-americana do Welfare State. (Berti, p.
42).
108
O uso extrafiscal dos tributos deve submeter-se à tutela constitucional, como alerta Martuscelli (2001, p. 60-
61): “A relevância das finalidades extrafiscais de alguns entes tributários não lhes subtraem a tutela
constitucional. Ainda que extrafiscais, essas entidades remanescem como tributos e, posto isso, submissas ao
regime constitucional tributário. As exceções à regra de submissão ao regime constitucional tributário dos tributos
ditos fiscais são dadas pela própria Constituição Federal. Dessa forma, embora certas finalidades extrafiscais
justifiquem um tratamento constitucional diferenciado para os tributos ditos, desta feita, extrafiscais, tal
diferenciação não implica uma abolição irrestrita dos direitos e garantias integrantes do estatuto do Contribuinte.”
110

[...] a consolidação de grandes blocos econômicos, a globalização crescente


e a independência de mercados, juntamente com a grande velocidade de
trânsito do capital financeiro flutuando só fizeram agravar e transparecer os
problemas estruturais do Estado Contemporâneo. Tal é o contexto de crise
em que está a situação vivenciada nos dias atuais, em especial no Brasil,
aonde a extrafiscalidade de impostos encontra espaço aberto para
desenvolver-se cada vez mais, dependendo apenas da boa vontade dos
governos e da criatividade do legislador.

Esta, pois, a extrafiscalidade, a segunda perspectiva de viabilização de direitos


sociais, via políticas públicas, ao lado da intervenção mais efetiva do Poder
Judiciário.

Diante destas observações e a par das vantagens trazidas pelas políticas


extrafiscais, imprescindível desenvolver algumas colocações vinculadas à Lei de
Responsabilidade Fiscal, sobretudo como a mesma pode restringir ou exercer
influência na utilização das políticas públicas de caráter extrafiscal. É o que se fará a
seguir.

3.5 A Lei de Responsabilidade Fiscal

A Lei de Responsabilidade Fiscal - Lei Complementar n° 101/2000 foi editada


com o intuito de estabelecer um esquema de controle pautado pela transparência na
utilização dos gastos públicos. Ela estabeleceu diversos instrumentos de
fiscalização, formas de adequação quanto a procedimentos, como também sanções
institucionais, em caso de inobservância. Em outras palavras, criou um sistema de
controle institucional múltiplo que permite que todos os Poderes estejam sujeitos
igualmente à fiscalização e ao cumprimento de regras.

Na prática, a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, representou instrumento


determinante de mudança no comportamento dos administradores públicos,
especialmente em face da possibilidade de divulgação das informações
orçamentárias e contábeis através de canais de amplo acesso público. Nesse
sentido, como bem ilustra Nunes (2002, p. 361), “[...] cria relatórios periódicos –
bimestral, quadrimestral e anual – e audiências públicas – quadrimestral sobre as
111

metas fiscais e semestral sobre o custo fiscal do Banco Central – além, da


obrigatoriedade de divulgação em meio eletrônico.”

O que é possível identificar, pois, é que a apontada norma possibilita um maior


controle do gasto público, inclusive por permitir que este controle se dê através de
segmentos da sociedade, que há muito reclamava, e ainda reclama, por uma gestão
mais austera e eficiente.

Inegáveis, assim, os benefícios da LRF, que segundo Silva Martins (2002, p.


275) “[...] não fez senão regrar os princípios constitucionais, tornando-se num
instrumento de controle da gestão pública – transparente e adequado – para toda a
sociedade.”

Cavalcanti (2002, p. 302-303) na mesma linha destaca que:

A lei de responsabilidade fiscal, norma de natureza complementar, operou


grande modificação no modelo econômico que havia sido consagrado em
nossa Constituição. Ai fazer eficiente nosso sistema constitucional de
transferência de recursos fiscais e instituir a figura do gestor fiscal,
responsável, um novo modelo de Estado foi criado. Não voltamos à época
do Estado do bem-estar social, mas sepultamos o modelo do Estado
intervencionista. Disso resultou o modelo austero, equilibrado, responsável
e, pr isso, apto a cumprir seu papel social. É possível, então, conciliar
disciplina fiscal e desenvolvimento econômico.

Assoni Filho (2004, p. 257-258) ressalta o caráter positivo da LRF, ao referir


que todas as condições, limites e vedações nela existentes, no que diz respeito ao
crédito público, às despesas com o pessoal e às transferências voluntárias, têm
como finalidade racionalizar as contas públicas e conter o aumento descontrolado da
dívida pública, que atingiram níveis tão significativos que podem até ser
determinantes de uma crise sistêmica na Federação brasileira, com agravamento
das desigualdades.

Ademais, a Lei de Responsabilidade Fiscal cria condições para conferir


consistência intertemporal à política fiscal e assegurar ao orçamento o papel que ele
de fato deve ter numa sociedade democrática, ou seja, o de peça de controle do
gasto público e de definição das prioridades nacionais. Sem dúvida, o fortalecimento
112

da democracia obriga o orçamento a espelhar os reais anseios da sociedade, em


termos de determinação do volume e da finalidade dos gastos, assegurando com
isso o equilíbrio entre receitas e despesas. (Nunes; Nunes, 2002, p. 361).

Registre-se, contudo, que não obstante os alegados benefícios trazidos pela


LRF, há que se investigar se as medidas por ela impostas à administração pública
não acabam por tornar as atividades correspondentes extremamente engessadas,
sobretudo para os Municípios. Sem dúvida, não há como negar o conteúdo rígido do
apontado diploma legal, referindo inclusive Torres (2000, p. 302), que tem ele “[...]
conotação centralizadora, ao prever severo controle das finanças municipais”.

Na mesma direção está o posicionamento de Cavalcanti (2002, p. 308), ao


afirmar que LRF dificultou a solução de problemas regionais/localizados, diante da
restrição na utilização de recursos financeiros. Alerta ainda que:

Nessa federação de desigualdades, quais os instrumentos à disposição dos


entes federados para tratar de problemas econômicos localizados, além da
concessão de benefícios fiscais e transferência direta de verbas da União?
Poucos, ou melhor, apenas o recurso ao mercado financeiro e o
recebimento de transferências automáticas de recursos fiscais e convênios.
A LRF veio a restringir, ainda mais, os recursos à disposição das regiões
pobres do País e daquelas que sofrem de problemas econômicos
periódicos.
Com a LRF restam poucas soluções, além dos recebimentos de
transferências voluntárias e constitucionais e da celebração de convênios. E
o problema não está apenas nas regiões pobres do País, pois Estados ricos
também enfrentam problemas com a LRF, posto não terem conseguido se
adaptar aos limites fixados pela lei.

Entretanto, no desenvolvimento deste trabalho, interessa, de forma mais


pontual, verificar como a LRF pode refletir nas políticas públicas vinculadas à
extrafiscalidade. Por óbvio, a liberdade quanto à utilização de políticas públicas que
se fundem na extrafiscalidade, não é absoluta, encontrando limites decorrentes da
referida lei. (Cavalcanti, 2002). Uma das soluções para trabalhar com o problema
causado pelo engessamento é a flexibilização orçamentária109. Nesse sentido
Cavalcanti (2002, p. 308) destaca:

109
“A flexibilização do orçamento é um temo que merece ser abordado quando se discute o papel social do
Estado e o bem-estar social. O Brasil é uma federação com elevado índice de federalismo fiscal e com mais de
5.500 entes da federação. Há um evidente grau de disparidade regional em uma federação com as dimensões
da brasileira, ainda mais num país em que há profunda desigualdade de renda e de distribuição de riquezas.”
(Cavalcanti, 2002, p. 307-308).
113

Talvez no Brasil a melhor maneira de garantir o bom desempenho do papel


do Estado em épocas de recessão seja a realocação das verbas
orçamentárias de maneira flexível. Para tanto, a Lei de Diretrizes
Orçamentárias talvez seja o caminho indicado para fazer operar
“estabilizadores automáticos”, garantindo a realocação de verbas, mesmo
que em detrimento de limites da LRF, com a finalidade de assegurar o bom
desempenho do papel do Estado.

Em acréscimo há de se referir também outra alternativa, para aplacar a crise


enfrentada pelo Estado, no tocante ao cumprimento do seu papel social. Consiste na
atração de investimentos para a realização de obras, tornando-se, assim, possível
ao Estado destinar verbas para atender a sua verdadeira vocação, o bem-estar
social, as quais seriam dirigidas àqueles investimentos. É aqui que se situa
justamente a extrafiscalidade, na medida em que a busca por investimentos, como
referido acima, pode perfeitamente ser implementada mediante estímulos fiscais,
que se verificam através de inúmeras variações - incentivos, subsídios, isenções,
remissões, anistias, alíquotas zero, financiamentos, etc., e têm por objetivo fortalecer
e estimular o desenvolvimento e o crescimento do país ou de algumas regiões
específicas, fenômeno que, a princípio, não ocorreria caso não houvesse sua
respectiva concessão.

Eventuais obstáculos, indiscutivelmente, podem ser superados, na medida em


que o legislador constituinte tratou de assegurar exceção ao princípio da igualdade,
de modo a permitir o desenvolvimento regional. Esta conclusão decorre do exame
atento e criterioso da redação do inciso I, do artigo 151 da CF, que ao mesmo tempo
em que proíbe a União de instituir tributo que não seja uniforme em todo o território
nacional ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito
Federal ou a Município, em detrimento de outro, admite a concessão de incentivos
fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico
entre as diferentes regiões do país. Rodrigues (2005, p. 60) percebeu isto ao
registrar

[...] que as limitações impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal não


implicam na vedação da extrafiscalidade, a qual pode ser implementada por
Políticas Públicas que, valendo-se do princípio isonômico, tratem os
diferentes como diferentes, ou seja, que se instrumentalizem pela
seletividade e pela progressividade de alíquotas, atentando, quanto aos
impostos, o disposto no art.145, § 1º, da Constituição Federal, que
114

determina que, sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e


serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte.

Significa, como visto que, por previsão constitucional, os estímulos fiscais são
de expressiva relevância como instrumento de viabilização de políticas de
desenvolvimento. Mas como conciliar os princípios da estrita administração da coisa
pública, em rígida conformação orçamentária, com a necessidade de promover o
desenvolvimento através de estímulos? Não há, segundo Silva Martins (2002, p.
277), maior dificuldade. É que todo

[...] incentivo fiscal que não se vincule a qualquer receita programada, para
o qual não haja qualquer projeção de gastos, ou seja, em que o custo
municipal para sua concessão é zero, refoge a rigidez orçamentária à falta
de elemento capaz de perturbar o equilíbrio entre receitas e despesas
públicas. Em termos diversos, todo o estímulo fiscal cuja concessão possa
provocar um impacto negativo no orçamento, com possível redução de
receitas, deve ser submetido a todos os severos controles que a
Constituição e a lei orçamentária impõem. Não aqueles cujo impacto é
nenhum, visto que sua concessão não reduz receitas – no futuro aumentá-
las-á -, não tem reflexos, não afeta o orçamento, não gera qualquer
despesa não programada.
Inclusive, é neste sentido o espírito do art. 14 da LRF. Assim, a possibilidade
de criação de estímulos fiscais sem impacto sobre orçamento110 corresponde à
ferramenta importante para a administração pública, na medida em que atrai
investimentos, possibilitando a criação de empregos e permitindo futura geração de
receita tributária como resultado das atividades econômicas desenvolvidas.

Em conclusão, há possibilidade de harmonização da extrafiscalidade com a


LRF.

Em vista de tais considerações, partir-se-á à análise da viabilidade da utilização


da extrafiscalidade como política pública de desenvolvimento econômico e de
solidariedade fiscal.

110
Ainda, no tocante aos meios para a obtenção de uma maior flexibilização em relação às medida previstas
pela LRF, destaca Rodrigues (2005, p. 60) ser possível, embora existam amarras, implementar também políticas
públicas pautadas pela extrafiscalidade: [...] Constata-se, da análise da Lei de Responsabilidade Fiscal, em
primeiro lugar, que os entes federados devem instituir todos os respectivos tributos, previstos
constitucionalmente, principalmente os impostos, cuja não implantação implica perder o direito a transferências
voluntárias; em segundo, que os atos de renúncia fiscal ficam totalmente atrelados a formalismos ou ações que
impeçam prejuízos orçamentários ou de arrecadação; em terceiro, que, tendo-se em vista o teor do caput e do
inciso I, do art. 14, a renúncia, mesmo sem previsão de fonte alternativa de recursos, é possível; e, por último,
que a lei em questão não criou nenhum empecilho para, via renúncia fiscal, evitar a migração interna de
empresas.”
115

3.6 Administração Pública: a extrafiscalidade como instrumento de política


pública

Conforme exposto, a utilização da função extrafiscal do tributo apresenta-se


como instrumento de implementação de direitos que, por meio da simples
arrecadação, não poderia ser alcançada. Assim, no momento em que a
extrafiscalidade é entendida como instrumento de política pública a ser
desenvolvida, amparada em critérios claros e uniformes, com neutralização da
guerra fiscal111, pode apresentar-se como meio motivador do desenvolvimento
econômico e da solidariedade fiscal.

A forma mais comum de atuação extrafiscal é via benefícios fiscais112, forma de


redução da carga tributária, dirigida a estimular ou desestimular práticas
comportamentais que o Estado entende serem mais apropriadas para a sociedade.
Por isso é possível afirmar que o benefício fiscal corresponde a um instrumento de
política extrafiscal, consistente na redução ou eliminação do ônus tributário,
vinculado a ações econômicas e sociais dirigidas à consecução do bem comum.
Nabais (1998, p. 648-649) estabelece diferenciação entre benefícios fiscais stricto
sensu, ditos benefícios fiscais estáticos, dos incentivos ou estímulos fiscais, ditos
benefícios fiscais dinâmicos:

Os primeiros dirigem-se, em termos estáticos, a situações que, ou porque já


se verificaram (já estão consumadas), ou porque ainda que se não tenham
verificado ou na parte em que se não tenham verificado, não visam, ao
menos diretamente, fomentar ou incentivar, mas tão-só beneficiar por
superiores razões de política geral de defesa, externa econômica, social,
cultural, religiosa, etc. Por seu turno, os segundos (benefícios fiscais
dinâmicos) visam estimular ou incentivar determinadas atividades,
estabelecendo, para o efeito uma relação entre as vantagens atribuídas e
as atividades estimuladas em termos de causa e efeito. Enquanto naqueles

111
Estados e municípios amparados em seu direito para instituir e isentar tributos, tem gerado um verdadeiro
conflito federativo, chamado de “guerra fiscal”, que nada mais é do que a exacerbação de práticas supostamente
competitivas. Nos últimos anos a “guerra fiscal” tem se intensificado, em face dos benefícios fiscais e financeiros
que vêm sendo concedidos de forma indiscriminada, em especial às grandes empresas, como forma de estímulo
para que estas se instalem em seus respectivos territórios. Entretanto, a realidade tem mostrado que apesar das
vantagens decorrentes do aumento dos níveis de emprego, os apontados benefícios têm gerado uma
concorrência nefasta entre entes federados, circunstância que a médio e longo prazo vem acarretando o
agravamento da crise financeira em que já se encontram Estados e Municípios.
112
A CF/88 dispõe no parágrafo 6º, do art.150: “Qualquer subsídio ou isenção, redução da base de cálculo,
concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser
concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima
enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art.155, par.2, XII, g.”
116

a causa do benefício é a situação ou atividade em si mesma, nestes a


causa é a adoção (futura) do comportamento beneficiado ou o exercício
(futuro) da atividade fomentada.

Cabe ainda outro alerta, no sentido de que incentivo fiscal não pode ser
confundido com incentivo financeiro. Aquele atua nas obrigações tributárias antes de
seu termo, enquanto este corresponde a benefício ocorrente em momento posterior
à extinção da apontada obrigação. Destaca-se que o art. 155, § 2º, XII, “g”, da
Constituição Federal, cuida exclusivamente de incentivos fiscais, não tratando dos
incentivos financeiros.

Desta forma, no instante que o crédito tributário é pago, fica extinta a


respectiva obrigação, cessando a relação entre fisco e contribuinte. Por decorrência,
os recursos respectivos passam a se submeter às regras de um outro direito, que é
o direito financeiro113. Com efeito, a princípio, o ente federado passa a ter liberdade
total para destinar os recursos que lhe pertencem a quem desejar, observadas as
disposições da lei orçamentária e da Constituição114.

Sendo assim, caso desejar destinar recursos ao financiamento, por exemplo,


de atividades empresariais, e o orçamento e a legislação previrem tal possibilidade,
para incentivar o desenvolvimento regional, poderá fazê-lo sem problemas, na
medida em que como antes afirmado, tem livre disponibilidade dos recursos.

Portanto, este financiamento tem natureza financeira e não fiscal, podendo ser
realizado com amparo na autonomia outorgada aos entes federados, pelo que não
há que falar em eventual infringência de acordos entre Estados, na medida em que a

113
O direito tributário e o direito financeiro são considerados atualmente ramos autônomos do direito, integrando
o campo das finanças públicas. Isto porque a CF/88 optou por separá-los: os arts. 145 a 156 cuidam do sistema
tributário (relações entre o poder impositivo e o contribuinte); os arts. 157 a 169, cuidem das finanças públicas e
dos orçamentos, abrangendo a partilha das receitas tributárias entre os entes federativos (arts. 157 a 162), as
regras das finanças públicas e administração da moeda e do crédito (arts. 163 e 164) e dos orçamentos (arts.
165 a 169).
114
Conforme Nabais (1998), a lei que estipular os benefícios fiscais para determinados setores da atividade
econômica terá sua aferição constitucional verificada de maneira limitada à constatação se as mesmas se
revelam arbitrárias ou se apresentam excessivas ou desproporcionais aos fins para que foram criadas. Em razão
da tributação negativa, adotada com a finalidade de privilegiar os contribuintes que adotam comportamentos
previstos pela legislação estipuladora dos benefícios fiscais, não poderá se dizer que se está ofendendo o
princípio da igualdade, uma vez que, justamente por terem o caráter de normas de cunho econômico-social e
fiscal, é que sua verificação constitucional deve ser limitada ao comportamento estipulado para se obterem, o
qual não poderá ser desproporcional e conter excessos em relação ao fim colimado. Assim, é por ter
essencialmente caráter extrafiscal que os benefícios fiscais têm de ser analisados não sob a ótica estritamente
tributária, mas de acordo com os fins a serem buscados e a sua natureza econômico-social.
117

Constituição determina apenas que os incentivos fiscais, e não financeiros, tenham


sua concessão condicionada a acordo no Conselho Nacional de Política Fazendária
- CONFAZ115.

Assim, no caso de incentivo fiscal, o benefício se dá em momento anterior ao


do pagamento do tributo. Se for hipótese de isenção, a obrigação tributária nasce
normalmente, apenas não se transformando em crédito tributário, por força do
estímulo (art. 175 do CTN). De outro lado, tratando-se de incentivo financeiro, todo o
processo de surgimento da obrigação tributária, posterior constituição do respectivo
crédito e sua extinção, ocorre normalmente. Os recursos, tendo ingressado nos
cofres públicos, podem ser utilizados pelo ente federado para financiar atividades
econômicas-empresariais, na forma delimitada e autorizada pela lei orçamentária,
como antes já registrado.

Nesta linha, resta claro que se trata de dois tipos absolutamente distintos de
estímulos e que não podem ser confundidos. O primeiro, de natureza tributária,
previsto na letra “g”, do inciso XII do art. 155 da Carta Política; e o segundo, de
natureza financeira, subordinado às disposições constantes dos arts. 165 a 169 da
CF.

Independente do tipo de vantagem fiscal escolhida, a verdade é que a sua


concessão permite a identificação de um conjunto de resultados satisfatórios para a
sociedade. Entre muitos, a geração de novos empregos deve ser destacada,
sobretudo pelos desdobramentos que acarreta na qualidade de vida daqueles
diretamente favorecidos com as vagas de trabalho criadas.

Com tais colocações, resta evidente a possibilidade de amplo manejo por parte
dos entes federados para a implementação de políticas extrafiscais. A questão
principal, todavia, é a escolha adequada de tais políticas, cujos critérios norteadores
devem ter por influência os possíveis efeitos positivos decorrentes de sua adoção,
no que diz respeito às vantagens geradas em favor da sociedade. Em outras

115
O CONFAZ – Conselho Nacional de Política Fazendária foi criado para evitar a guerra fiscal entre os Estados-
membros. No entanto, no decorrer dos anos diversos Estados de forma isolada passaram a conceder incentivos
de forma direta, sem a anuência do Conselho, de forma que cada vez mais o seu poder ficou relegado a plano
secundário.
118

palavras, não deve a extrafiscalidade ser motivada pelo interesse em favorecer


segmentos sociais e produtivos que não necessitam de socorro governamental.

No entanto, é isso que se tem visto, ou seja, empresas com precisa projeção
de seus custos produtivos e de instalação, estabelecem a partir disso um processo
de competição entre governos estaduais e municipais, para ver “quem dá mais”.

Na prática, tal distorção tem gerado um quadro curioso, ou seja, o ente


federado acaba, no futuro, refém daquele a quem concedeu o favor fiscal. É que
passado o período de vigência do benefício, geralmente o poder público vê-se
obrigado a viabilizar a prorrogação da vantagem, sob pena de perder para outro
Estado ou Município, a respectiva atividade produtiva.

Exemplos claros disso são recentes no Estado do Rio Grande do Sul, com
transferência de fábricas de calcados para os estados do nordeste, bem como de
fumageiras para o de Santa Catarina. Desta forma, as políticas extrafiscais somente
poderão ser tidas como instrumento de efetiva de inclusão social, quando planejadas
devidamente, para que não tenham vida útil curta, para que seus efeitos positivos
possam permanecer por longo tempo.

O que fazer então? Quais os critérios e cuidados que devem ser tomados pela
administração no processo de concessão de benefícios? Quais as medidas
extrafiscais possíves? É o que procuraremos apontar no capítulo seguinte.

3.7 O Município e as medidas extrafiscais possíveis

A partir do exame da função extrafiscal do tributo, das obrigações do Estado


em face dos direitos assegurados pela Carta Política, dos problemas envolvendo o
federalismo brasileiro e dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal,
necessário agora examinar quais as medidas possíveis e viáveis, capazes de,
efetivamente, permitir que a extrafiscalidade possa ser vista como alternativa de
política pública de inclusão social.
119

Indispensável lembrar aqui, que o artigo 174 da Constituição dirige ao Estado,


como agente normativo e regulador da atividade econômica, o exercício das funções
de fiscalização, incentivo e planejamento. E é justamente na idéia de planejamento,
construída a partir da extrafiscalidade, que se concentram as alternativas de
implementação de medidas de engajamento da iniciativa privada, sobretudo na
realização de determinados objetivos vinculados aos direitos sociais.
Restou claro até aqui que, através da extrafiscalidade, o tributo poderá ser
utilizado como meio de fomento ou de desestímulo de atividades consideradas
convenientes ou inconvenientes à comunidade. A extrafiscalidade nada mais é,
portanto, do que política fiscal, ou seja, de ação do Estado para atingir fins sociais
através da maior ou menor imposição tributária.

Nestas condições, o tributo acaba sendo utilizado como instrumento auxiliar


deste poder regulatório do Estado sobre as atividades privadas, que estejam ou
possam ser vinculadas com o bem-estar social. Em outras palavras, através da
maior imposição tributária é possível afastar certas atividades ou modificar práticas
reputadas contrárias ao interesse público. De outro lado, pelo abrandamento da
tributação torna-se possível incentivar a conduta individual ou coletiva conveniente à
comunidade.

Dessa forma, enquanto a função fiscal evidencia a obtenção de receitas para o


gasto público, a extrafiscal está dirigida a fins diversos, podendo abranger incentivo
e estímulos dirigidos às políticas econômicas, sociais, e até mesmo ambientais, de
proteção dos recursos naturais. E tais políticas, por óbvio, estão ligadas à qualidade
de vida e ao bem estar dos cidadãos, ou seja, a sua saúde, segurança, educação,
moradia, etc, que dizem respeito à dignidade da pessoa humana, garantia
fundamental assegurada pelo Estado Democrático de Direito, nos termos constantes
do artigo 1°, inciso III, da Carta Política.

O exercício tributante extrafiscal deve, assim, ser visto sob uma perspectiva de
solidariedade, no sentido de possibilitar o acertamento de inúmeras situações
geradoras de desigualdades.
120

Feitas estas colocações, cumpre aqui repetir as interrogações lançadas no


capítulo anterior, ou seja, quais os cuidados, que critérios devem ser observados
para que as políticas extrafiscais sejam efetivamente instrumento de inclusão social
e não mecanismo de vantagem temporária e de favorecimento exclusivo de
determinado segmento econômico ou grupo de pessoas?

A primeira providência é a adoção de medidas para neutralizar a chamada


“guerra fiscal”, eis que as vantagens concedidas não retornam à sociedade de
maneira satisfatória e proporcional como forma de benefício social. Esta competição
descabida tem provocado inegavelmente perda de arrecadação para Estados e
Municípios, razão pela qual se mostra necessária uma reforma tributária para
disciplinar a concessão de benefícios. E mais: tem também tal competição se
mostrado eficiente instrumento de exclusão social. É que, na prática estimula a
migração de atividades econômicas e produtivas de uma região para outra. Em
conseqüência, com a mesma intensidade que aquece e impulsiona a economia em
determinado local, gera desemprego e crises generalizadas em outro. Aliás,
recentemente o estado do Rio Grande do Sul pôde sentir isso, com a transferência
de empresas dos setores calçadista e fumageiro para os estados do Ceará e de
Santa Catarina, respectivamente.

Em virtude desta mudança, os entes federados obrigatoriamente acabarão por


dirigir quaisquer medidas extrafiscais aos fins a que efetivamente devem se destinar,
sem que um gere ao outro problemas nas esferas social e econômica. Vale lembrar
que, no federalismo, a extrafiscalidade pode ser manejada livremente por qualquer
dos entes federados, desde que isto se verifique no âmbito de suas respectivas
competências, conforme limites estabelecidos pela Constituição Federal.

Ressalte-se que, a par das regras relacionadas à competência, a criação dos


tributos pelos entes federados deve observar o princípio da legalidade116. Assim, de
forma resumida, a competência para legislar sobre a criação das diversas espécies
tributos segue divisão precisa e detalhada. Cabe à União os impostos sobre
importação de produtos estrangeiros; exportação, para o exterior, de produtos

116
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios:I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; [...]
121

nacionais ou nacionalizados; renda e proventos de qualquer natureza; produtos


industrializados; operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou
valores mobiliários; propriedade territorial rural; grandes fortunas, nos termos de lei
complementar117 ; mediante lei complementar, impostos não previstos no rol anterior,
desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo
próprios dos discriminados na Constituição; na iminência ou no caso de guerra
externa, impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência
tributária, os quais serão suprimidos, gradativamente, cessadas as causas de sua
criação118.

Aos Estados e ao Distrito Federal cabe a imposição tributária sobre a


transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; operações
relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as
prestações se iniciem no exterior; propriedade de veículos automotores119 .

Finalmente, aos Municípios cabe a tributação sobre a propriedade predial e


territorial urbana; transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens
imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os
de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; serviços de qualquer
natureza, não compreendidos no art. 155, II120, definidos em lei complementar.

Quanto à divisão de competências e receitas, necessário ainda fazer três


registros, que, de certa forma, se mostram importantes no contexto deste trabalho. O
primeiro é o de que a Carta Política faculta ao Senado Federal o direito de estipular
alíquotas para impostos estaduais121, como por exemplo o ICMS, com o propósito
específico de neutralizar medidas caracterizadoras da chamada guerra fiscal. Esta
prerrogativa concedida ao Senado para definir alíquota mínima, certamente resulta
do fato de ser ele composto por representantes dos Estados, bem como porque a

117
Art. 153 da CF.
118
Art. 154 da CF.
119
Art. 155 da CF.
120
Impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior,
que são de competência dos Estados e do Distrito Federal.
121
Art. 155, § 2º, V.
122

guerra fiscal se mostra significativamente prejudicial à federação, em face da


redução de receitas estaduais decorrentes de incentivos fiscais, quase sempre
exagerados.

O segundo registro resulta do fato da Constituição Federal estabelecer que


vinte por cento do produto da arrecadação do imposto que a União instituir sobre
importação de produtos estrangeiros pertence aos Estados e ao Distrito Federal,
bem como o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos
de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título,
por aqueles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem122.

Por fim, o terceiro registro diz respeito às outras receitas municipais,


correspondentes ao produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e
proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a
qualquer título, pelos municípios, suas autarquias e pelas fundações que instituírem
e mantiverem; 50% do produto da arrecadação do imposto da União sobre a
propriedade territorial rural, relativamente aos imóveis neles situados, cabendo a
totalidade na hipótese do ITR ser fiscalizado e cobrado pelo Município; 50% do
produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos
automotores licenciados em seus territórios; 25% do produto da arrecadação do
imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre
prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação123.

Como se demonstrou em vários momentos deste trabalho, a Constituição


Federal propicia receitas próprias a todos entes da federação. Todavia, a
descentralização de programas e metas, a falta de medidas harmônicas entre União,
Estados e Municípios, acaba por tornar insuficientes as receitas destes dois últimos,
determinando freqüentes déficits orçamentários. A compensação destes resultados
negativos, por óbvio, acaba recaindo e ficando a cargo da União, eis que na
condição de maior arrecadadora das receitas, deve promover a distribuição de
recursos a fim de equilibrar as desigualdades regionais.

122
Art. 157 da CF.
123
Art. 158 da CF.
123

Embora isso reste evidente no plano teórico, na prática, o que se tem visto é
algo diverso, especialmente nos últimos anos, em que a União tem dirigido esforços
e medidas com o propósito de gerar um maior superavit primário, cujo resultado em
sua parte significativa tem sido dirigido ao pagamento de encargos da dívida pública.
Significa em outras palavras, que os compromissos com os credores internos e
externos da União têm sido privilegiados em relação aos credores de políticas
públicas de inclusão social.

Esta realidade não tem sido aceita pacificamente. Prova disto é o recente
movimento promovido por governadores e prefeitos, com a finalidade de
implementar reforma que possibilite uma divisão das receitas oriundas da
Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira - CPMF. A reivindicação
constituiria mecanismo de negociação para que houvesse apoio para aprovação da
prorrogação da própria CPMF, como também da Desvinculação das Receitas da
União - DRU, que permite ao governo gastar livremente 20% do orçamento,
incluindo, portanto, aquelas receitas vinculadas a fins específicos como a CIDE e a
CPMF, por exemplo.

Registre-se que houve reação contrária por parte das autoridades


governamentais, como noticiado amplamente pelos meios de comunicação124. Tal
postura apenas confirma a necessidade de revisão do pacto federativo no Brasil,
que se tem mostrado extremamente predatório. Enquanto houve ampliação das
obrigações dos Estados e Municípios relativamente à viabilização de compromissos
sociais, especialmente na área da saúde, não ocorreu em contrapartida um conjunto
de medidas que possibilitem a efetivação das ações correspondentes.

No caso antes referido, se a receita da CPMF se destina à saúde, por que não
deixar uma fatia da arrecadação diretamente nos Municípios e Estados? Por que
impor a centralização da arrecadação, com a distribuição posterior dos recursos
correspondentes pela União?

124
O jornal ZERO HORA de 31 de janeiro 2007, p. 8, noticiou que para a Ministra Dilma Rousseff, “[...] a União
não pode ceder a Estados e Municípios o equivalente a R$ 9,6 bilhões, com os 30% reivindicados da CPMF.
124

Sem dúvida, não há resposta razoável para as interrogações lançadas, o que


revela claro interesse de utilizar os recursos com propósitos políticos, com
enfraquecimento do poder local e do equilíbrio federativo.

Diante de tais colocações e procurando dirigir agora a análise à


extrafiscalidade no âmbito municipal, necessário deixar bem claro que todas as
espécies tributárias, em tese, podem ser utilizadas como mecanismo de medidas
extrafiscais. E mais: que todos os entes federados, em especial os municípios,
devem procurar mecanismos próprios para solução das demandas sociais que lhes
são impostas, sem aguardar a iniciativa ou colaboração espontânea de outros
partícipes da federação.

Neste cenário, interessa aqui, como já referido, mais especificamente focar os


municípios, a quem a Constituição Federal na divisão das receitas estatais, destinou
tributos específicos. Assim, até porque restrita a utilização da extrafiscalidade a tais
tributos, indispensável planejar a mesma considerando três momentos distintos. O
primeiro vai corresponder à fase que antecede a concessão do benefício, vinculada
ao planejamento e decisão sobre os tipos de atividades que devem ser estimuladas.

Posteriormente, em um segundo momento, a decisão estará dirigida à forma e


aos critérios de escolha dos contribuintes beneficiados com as vantagens fiscais. E,
por último, o terceiro momento diz respeito a todo um processo de fiscalização, não
só do atendimento de todas as exigências estabelecidas para gozo do benefício,
como também de avaliação se os objetivos inicialmente traçados para concessão
das vantagens foram efetivamente alcançados.

Vejamos uma a uma cada fase, de forma mais detalhada.

Planejar a extrafiscalidade importa em uma decisão democrática. Significa que


não pode ser algo decorrente da vontade do chefe do poder executivo, muitas vezes
influenciada por interesses questionáveis. Para isso, há possibilidade - e é
aconselhável que assim ocorra - de utilização de instrumento de viabilização da
125

participação da sociedade125. Trata-se da audiência pública126, forma de participação


e de controle popular da Administração Pública no Estado Social e Democrático de
Direito. Corresponde a um instrumento destinado a conduzir uma decisão política
com legitimidade e transparência. Em outras palavras, equivale a uma etapa do
processo de tomada da decisão administrativa ou legislativa, através da qual a
autoridade competente abre espaço para que todas as pessoas que possam sofrer
os reflexos dessa decisão tenham oportunidade de se manifestar, antes que a
decisão final seja efetuada.

Na prática, é através da audiência pública, com contato direto com os


interessados, que o administrador responsável pela decisão terá acesso às diversas
opiniões a respeito da matéria posta em debate. Cabe ressaltar, que tais opiniões
não têm o poder de vincular a decisão que será tomada, na medida em que sua
natureza é essencialmente consultiva.

Hermany (2003, p. 312-313) bem ressalta a importância da audiência pública:

Outro instrumento de extrema importância, que vem se consolidando a partir


da previsão do constituinte originário, é a audiência pública, capaz de
garantir a transparência nas decisões públicas e desenvolver a idéia de
gestão compartilhada, traduzida na participação dos atores sociais tanto na
deliberação acerca das políticas públicas e normas a serem implementadas,
quando a fiscalização da execução destas atividades. Tais mecanismos

125
Vários são os instrumentos de participação da sociedade, previstos na CF e legislação infraconstitucional, que
podem ser utilizados pela administração pública: a) consulta pública (abertura de prazo para manifestação por
escrito de terceiros, antes de decisão, em matéria de interesse geral); b) audiência pública (sessão de discussão,
aberta ao público, sobre tema ainda passível de decisão); c) colegiados públicos (reconhecimento a cidadãos, ou
a entidades representativas, do direito de integrar órgão de consulta ou de deliberação colegial no Poder
Público); d) assessoria externa (convocação da colaboração de especialistas para formulação de projetos,
relatórios ou diagnósticos sobre questões a serem decididas); e) denúncia pública (instrumento de formalização
de denúncias quanto ao mau funcionamento ou responsabilidade especial de agente público; ex. representação
administrativa); f) reclamação relativa ao funcionamento dos serviços públicos (difere da representação
administrativa, pois fundamenta-se em relação jurídica entre o Estado ou concessionário do Estado e o
particular-usuário); g) colaboração executiva (organizações que desenvolvam, sem intuito lucrativo, com alcance
amplo ou comunitário, atividades de colaboração em áreas de atendimento social direto); h) ombudsman
(ouvidor); i) participação ou "controle social" mediante ações judiciais (ação popular, ação civil pública, mandado
de segurança coletivo, ação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, entre outras); j) fiscalização
orgânica (obrigatoriedade, por exemplo, de participação de entidades representativas em bancas de concursos
o
públicos, v.g, OAB). Tais instrumentos procedimentais têm previsão na CF (arts. Art. 5 , XXXIII, XXXXIV, "a",
o o o
LXIX, LXX, LXXI, LXXII, LXXIII, LXXVII; 10; 37, 3 .; 58, II; 74, §2 ; 132; 216, §1 .), como também em normas
infraconstitucionais (Lei de Normas Gerais de Processo Administrativo (Lei 9784/99, arts. 31 a 34).
126
Cumpre fazer a distinção entre audiência pública e consulta pública. Embora ambas constituam formas de
participação popular na gestão e controle da Administração Pública, não se confundem. A audiência pública
propicia o "debate público e pessoal por pessoas físicas ou representantes da sociedade civil", considerado "o
interesse público de ver debatido tema cuja relevância ultrapassa as raias do processo administrativo e alcança a
própria coletividade". Cuida-se, no fundo, de modalidade de consulta pública, com a particularidade de se
materializar através de "debates orais em sessão previamente designada para esse fim". A oralidade, portanto, é
seu traço marcante. De outro lado, a consulta pública tem a ver com o interesse da Administração Pública em
"compulsar a opinião pública através da manifestação firmada através de peças formais, devidamente escritas, a
serem juntadas no processo administrativo". (CARVALHO FILHO, 2001, p. 186).
126

permitem, por exemplo, a consolidação de um planejamento urbano


democrático (art. 29, inciso XII, da CFB/88), bem como a administração
democrática e descentralizada da seguridade social (art.194, inciso VII, da
CFB/88).

Em complemento, refere que as audiências públicas se mostram fundamentais


para que se dê uma alteração de estratégia na gestão pública, bem como na
consolidação de novos pressupostos de legitimação do processo legislativo, visto
que, “[...] além de permitir a abertura do espaço público estatal à atuação da
sociedade, possibilita que se consubstancie um sentimento de pertencismo e de
responsabilidade por parte do cidadão”. Conclui:

Este passa a assumir uma posição de partícipe das decisões públicas, e


não de simples destinatário de políticas geradas no seio da própria
administração, deslocando-se o eixo decisório, o que se reveste de um
importante “caráter pedagógico”, conforme Oliveira (1988, p. 167), em razão
de a cidadania ter uma efetiva oportunidade de conscientização e educação
sobre as diretrizes e políticas públicas. (2003, p. 313)

Neste espaço democrático, pois, é que deve ser discutido e avaliado se a


atividade econômica a ser estimulada realmente interessa ao grupo social, ao
Município. Isto porque é indispensável exame criterioso, caso a caso, sobre a
existência efetiva de interesse público na concessão de favores fiscais para o setor
privado. Há que se verificar de forma crítica se, na hipótese concreta, não estará, por
exemplo, determinada sociedade empresária, que se habilita ao benefício, apenas
protegendo seu capital próprio, transferindo os riscos do investimento que deveria
ser seu, ao Município.

Se tal circunstância for identificada, a decisão deverá ser pela não concessão
da vantagem, eis que, no futuro, esgotado o prazo de sua vigência, certamente a
atividade empresarial restará inviabilizada, o que sinaliza para a sua extinção ou
migração para outro ente federado, que assegure vantagem fiscal semelhante.

Na realidade, o que deve ser evitado é que a atividade se instale atraída


exclusivamente pelas vantagens econômicas oferecidas, sem qualquer compromisso
de reciprocidade com o Poder Público ou com o meio social. Quando isso ocorre,
gera-se o risco de, no futuro, a cessação da atividade se dar sem maiores
127

constrangimentos, acarretando um quadro caracterizado por prejuízos e frustrações


para a comunidade.

Aqui nesta fase, por óbvio, serão projetados todos os desdobramentos


possíveis, que vão desde a existência de vocação da região para as respectivas
atividades econômicas, até mesmo possíveis conseqüências negativas na área
ambiental. Da mesma forma, é neste momento que devem ser projetados os
benefícios diretos que poderão de alcançados, como por exemplo, o aumento das
vagas de emprego e a possibilidade de instalação de atividades econômicas
paralelas, inclusive geradoras de receitas outras para o município.

Registro ainda deve ser feito em relação à orientação constante da Lei de


Responsabilidade Fiscal, que, em seu artigo 14, estabelece quais as diretrizes que
devem orientar a concessão de incentivo ou benefício tributário, dos quais possa
decorrer renúncia de receita127. Inclusive, a referida norma determina que a
efetivação de benefícios deverá ser acompanhada da devida estimativa do impacto
orçamentário-financeiro, tanto no exercício em que iniciar a vigência da vantagem,
como nos dois posteriores.

Relativamente à segunda fase, proposta interessante e lúcida é apresentada


por Tramontin (2002, p.147), para quem não obstante existir previsão constitucional
para a outorga de incentivos, é necessário que a administração pública observe os
princípios que devem reger sua atividade, indicados no artigo 37 da Carta Política.

Em complemento sustenta que:

A primeira direção a ser tomada é no sentido de atender ao princípio da


publicidade. Ou seja, deve-se tornar público que o Município, ou Estado,
decidiu oferecer incentivos a empresas privadas que se instalarem em seu
território, pois dispõe de um imóvel, infraestrutura, treinamento de mão-de-
obra, tem condições de conceder isenção tributária e outros atrativos
econômicos para determinado setor que quiser instalar-se em sua unidade

127
Em complemento o mesmo artigo 14 dispõe que devem ser atendidas igualmente as disposições da Lei de
Diretrizes Orçamentárias, além de, no mínimo, a uma das condições expressas em seus incisos I e II, assim
redigidos: “I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei
orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio
da lei de diretrizes orçamentárias; II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado
do caput, por meio de aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo,
majoração ou criação de tributo ou contribuição.”
128

territorial e aí usufruir dos benefícios ofertados. Tal postura contraria a


costumeira clandestinidade como são tratados esses assuntos.
(TRAMONTIN, 2002, p. 147-148).

A posição transcrita revela a clara possibilidade de estabelecimento de uma


política de incentivos, executada de forma impessoal e transparente, medida que
pode ser alcançada via fixação de regras claras, para permitir a todos os
interessados o acesso às vantagens ofertadas pelo Poder Público. Significa que se
mostra necessária a devida publicidade para que qualquer interessado em auferir os
benefícios oferecidos tome conhecimento dos mesmos, como também dos requisitos
para a sua respectiva fruição. A noção de publicidade se contrapõe a da
clandestinidade, correspondendo a princípio128 que deve nortear os atos da
administração pública, em face da necessidade de devida transparência dos atos
administrativos.

Para Cretella Júnior (1996, p. 47) a publicidade é, “[...] assim, princípio


consubstancial a um instituto administrativo, singularizado pela inspiração de abrir ao
exame público a celebração de contrato em que é parte a Administração, a fim de
lhes expungir liminarmente a eiva de clandestinidade, corrupção ou parcialidade.”

Esta forma de proceder, com observância do princípio da publicidade, permite


uma inversão do que atualmente ocorre. Significa que ao invés do Município sair à
procura de sociedades empresárias que queiram os incentivos, serão estas que
deverão se habilitar para consegui-los junto ao Poder Público. (Tramontin, 2002, p.
148-149).

Isso tudo, evidentemente, se observado, possibilitará também um melhor e


mais eficiente controle da atividade administrativa.

Por fim, a terceira fase está vinculada ao processo fiscalizatório, relativo ao


atendimento pelo beneficiado dos incentivos, de todas as exigências estabelecidas
para a concessão, bem como no que diz respeito ao alcance dos objetivos e metas
projetadas. De forma semelhante à primeira fase, também aqui a participação da

128
O princípio da publicidade está inserido entre os fixados pelo artigo 37 da CF. Segundo a referida norma
devem orientar os atos da administração direta e indireta os princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência.
129

comunidade se mostra viável e importante, e se dará através dos instrumentos


legais que lhes são postos à disposição, inclusive através de associações de bairros,
e conselhos municipais de saúde e meio ambiente.

Há, todavia, outras possibilidades de fiscalização, mediante instituições outras,


como por exemplo, o Legislativo Municipal, o Ministério Público e o Tribunal de
Contas.

Este processo todo, envolvendo as três fases acima tratadas, ganha especial
relevância aqui se considerado que o Município, por ter competência tributária
restrita, praticamente tem apenas para implantar a política de inventivos a
possibilidade de utilização de dois tributos em especial – o Imposto Sobre Serviços
(ISS), e o Imposto Sobre Propriedade Territorial Urbana (IPTU). Assim, a
extrafiscalidade em nível municipal, sofre limites bem claros.

Não obstante isso, no caso das taxas e das contribuições de melhoria a


extrafiscalidade pode se dar mediante a isenção dos contribuintes de baixa renda,
como forma de permitir o acesso a serviços postos à disposição da comunidade pelo
município, e aos benefícios decorrentes de obras públicas das quais decorra
valorização imobiliária.

Registro neste sentido é feito por Rodrigues (2003, p. 203):

[...] pode-se ter que a utilização extrafiscal de tais espécies tributárias pode
ocorrer tanto em razão do grau de pobreza de determinadas pessoas como
enquanto instrumento que vise, por exemplo, à geração de empregos para
habitantes de determinado Município, o que se daria pela não-cobrança de
taxas, por período determinado, ou pela não-cobrança de contribuições de
melhoria decorrentes de obras de terraplenagem em terreno de empresa a
se instalar ou de obras que facilitem o acesso à mesma [...].

No caso do Imposto de Transmissão Inter Vivos, da mesma forma pode o


Município isentar aqueles contribuintes que estiverem sujeitos à tributação, no caso
de aquisição de primeiro imóvel, desde que de baixo valor e esteja comprovada a
pequena renda familiar. Rodrigues (2003, p. 205) manifesta posição favorável a isso
ao referir que em relação “[...] ao ITBI, possível a isenção do mesmo, ou redução de
130

sua alíquota, por exemplo, em planos de moradias populares destinadas a camadas


da população que não tenham como pagá-lo [...]”.

Oportuno se mostra lembrar que o déficit habitacional constitui uma triste


realidade em praticamente todas as regiões do país. Atacar o problema implica a
adoção de ações concretas em todos os níveis da administração pública, que vão
desde políticas de estímulo à construção civil, com disponibilização pela União de
recursos para financiamento de construções com encargos subsidiados, até a
redução de alíquotas de impostos estaduais, como por exemplo, o ICMS, incidente
sobre materiais de construção.

Neste processo de facilitação, obviamente não pode o município ser excluído.


E aqui, como antes já referido, a extrafiscalidade constitui elemento essencial a
viabilizar o acesso à moradia, podendo se dar através da redução de alíquota ou
isenção do imposto de transmissão inter vivos, para grupo de pessoas que
preencher certos requisitos.

Posteriormente, em um segundo momento, também a exigência do IPTU pode


sofrer ajustes, de modo a bem combinar a correspondente obrigação tributária ao
princípio da capacidade contributiva.

Rodrigues (2003, p. 205) assim se manifesta quanto às possibilidades


extrafiscais do IPTU:

A extrafiscalidade do IPTU, de forma escancarada, é percebida no art. 182,


§ 4º, da CF/88, para fins de cumprimento da função social da propriedade.
Também possível, dado que os termos seletividade e progressividade não
se confundem, fixar-se alíquotas diferentes em razão da localização e do
uso do imóvel, nos termos do art. 156, § 1º, II, da CF/88, como, por
exemplo, para imóveis comerciais, residenciais e para terrenos baldios,
verificando-se, portanto, também nesse dispositivo, sua vocação extrafiscal.
Quanto à progressividade prevista no art. 156, § 1º, I, em razão do valor do
imóvel, tal pode ocorrer também com finalidades extrafiscais, visto que seu
objetivo pode ser não o aumento de arrecadação, mas sim a melhor
aplicação dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade.
Sua não-cobrança, ou a redução de alíquota, por outro lado, ainda pode
servir de incentivo a empresas que possam ter interesse em permanecer ou
se instalar em dado Município, [...] .

Tudo sinaliza, pois, para, em nível municipal, ser o IPTU a espécie tributária
que maiores possibilidades apresenta para fins de utilização extrafiscal.
131

No que diz respeito ao Imposto Sobre Serviços (ISS), a extrafiscalidade


igualmente pode se dar através de redução de alíquotas e mediante isenção, com o
propósito de estimular a instalação de determinadas atividades no município, desde
que sejam de interesse desse, considerando o seu perfil e vocação. Rodrigues
(2003, p. 206) identifica outras possibilidades ao referir que quanto ao ISS “[...]
também em função dos princípios da capacidade produtiva e da igualdade, nos
limites impostos pela CF/88 e por Lei Complementar é possível não apenas o uso da
seletividade, mas até mesmo da não-cobrança, por tempo determinado, para
aqueles que estejam iniciando no mercado (advogados novos, por exemplo), ou,
mesmo por tempo indeterminado para pessoas portadoras de deficiência física ou
mental, [...].”

Independente das colocações acima, é possível identificar também alternativas


interessantes de utilização da extrafiscalidade no âmbito municipal, como política de
proteção ao meio ambiente. Importa, neste aspecto, observar que o caput do art.
225, da Constituição Federal, estabelece que o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado constitui direito fundamental129. Nestas condições, o
direito ao meio ambiente equilibrado se diferencia de um direito individual ou de um
direito social, considerando que as medidas a ele correspondentes não equivalem
apenas a um dever jurídico do Estado, mas sobretudo do próprio cidadão tomado
individualmente.

Com efeito, a partir desta noção, de que o direito ao meio ambiente sadio está
vinculado a interesses públicos e privados, possível afirmar também que está
fundado na idéia desta solidariedade, visto que somente se conseguirá efetividade
com a participação de todos, nos termos indicados pela norma constitucional antes
apontada, que impõe ao Poder Público e a toda coletividade o dever de protegê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

129
De forma diversa dos chamados direitos da primeira geração - direitos individuais, considerados como
garantias do indivíduo diante do poder do Estado, e dos direitos de segunda geração - direitos sociais,
caracterizados por prestações que o Estado deve ao indivíduo, o direito ao meio ambiente na condição de direito
fundamental da terceira geração - direitos difusos, representa um direito-dever, no sentido de que o cidadão ao
mesmo tempo em que dele é titular, também precisa atuar na sua preservação.
132

Assim, não há como negar que os municípios desempenham função importante


em políticas de proteção ao meio ambiente. Na esfera de competência tributária
municipal, o imposto predial e territorial urbano (IPTU), corresponde à ferramenta
essencial a serviço da conservação da natureza. E isto por quê? Porque da mesma
forma como a propriedade rural, também a propriedade urbana deve observar a sua
função social. No ponto, merece ser lembrado o impacto causado pela força da regra
constante do inciso XXIII, do artigo 5°, da Carta M agna, indicando que a propriedade
deve atender a sua função social, muito embora tenha, de certa forma, a
propriedade urbana ficado esquecida por mais de dez anos após a vigência da nova
ordem constitucional.

Em realidade, somente no final de 2001, com a entrada em vigor do Estatuto


da Cidade – Lei n° 10257, a propriedade urbana e su a função social voltou a ser
objeto de discussão, muito embora há muito se justificava o estabelecimento de
outra ótica, mais abrangente, sobretudo porque se mostra importante, como alerta
Leal (2003, p. 03), “[...] lançar novos olhares à cidade enquanto espaço político e
filosófico, enquanto cenário em que se dão os movimentos sociais e humanos”.

Nesta linha de desenvolvimento, a maneira de dar efetividade ao princípio da


função social da propriedade urbana passa pela observância dos ditames dos
artigos 156, § 1º, e 182, §§ 2º e 4º da Constituição Federal. Neste sentido registro
de Sebastião (2006, p.283), de que tal efetividade será alcançada:

[...] atendendo às exigências fundamentais de ordenação da cidade


contidas no plano diretor, com a utilização do Imposto mediante alíquotas
progressivas vinculadas ao adequado aproveitamento do solo urbano pelo
proprietário contribuinte (progressividade no tempo), assim como em razão
do valor do imóvel (progressividade no espaço), sendo ainda permitida a
adoção de alíquotas diferenciadas relativamente à localização e o uso do
imóvel urbano. O Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257, de 2001, ao
regulamentar o mencionado art.182, § 4º da Constituição Federal, viabilizou
a aplicação da progressividade no tempo para o Imposto sobre a
Propriedade Predial e Territorial Urbana.

Dessa forma, o Município tem o poder-dever de preservar o meio ambiente,


valendo-se, para tanto, da tributação ambiental como instrumento eficiente
direcionador de condutas, impondo concomitantemente o uso da propriedade urbana
de forma a cumprir a sua função social.
133

Também o imposto sobre serviços pode aqui ser utilizado, em benefício ao


meio ambiente das cidades, através da isenção de atividades incrementadoras de
ações preservacionistas, como, por exemplo, as ligadas ao ecoturismo.

Evidentemente, as alternativas de utilização de políticas extrafiscais no âmbito


local, voltadas a implementação de direitos sociais, não se esgotam nas alternativas
antes apontadas. Cabe a cada município, individualmente, se mostrar criativo no
desenvolvimento de idéias direcionadas ao estímulo de atividades de interesse das
suas respectivas comunidades.
134

CONCLUSÃO

A decisão que envolve a concessão de benefícios fiscais, como de uma


maneira geral a que estiver vinculada às políticas públicas de inclusão social, é
basicamente uma decisão de natureza política.

Em verdade, a definição quanto ao destino dos gastos públicos, de uma


maneira geral, é resultado de convicções políticas, sociais, religiosas, mas
fundamentalmente ideológicas, do grupo que está no poder. As influências são,
portanto, muitas, envolvendo também interesses individuais e de segmentos
específicos. Por esta razão, mais do que nunca é preciso tomar consciência da
importância e da gravidade do gasto público e da concessão de benefícios fiscais
indevidos, desnecessários e equivocados.

Necessário é aprofundar e solidificar a idéia de que toda a despesa pública,


que também envolve os benefícios fiscais e financeiros, deve estar vinculada aos
direitos do homem, que não podem mais ser apenas justificados em discussões
acadêmicas e em palanques em períodos eleitorais, na medida em que precisam ser
efetivamente protegidos e viabilizados. Ademais, de forma definitiva, a tributação
deve ser vista como um direito da sociedade e não do Estado. Significa dizer que
toda a arrecadação, toda a receita pública pertence à sociedade, e não a um
governo ou a um grupo determinado.

Se assim efetivamente é e precisa ser, a sociedade deve ser a primeira


beneficiada com a destinação dos recursos públicos, o que inclui as vantagens
resultantes de políticas extrafiscais. E é aqui que entra o comando do Estado, que
precisa se mostrar ético em seu compromisso e dever de dirigir as políticas públicas
ao atendimento das necessidades básicas da sociedade brasileira. Deve ser austero
e criterioso, no sentido de não desperdiçar recursos e bem definir prioridades nos
gastos.

O que se demonstrou no decorrer deste trabalho é que há necessidade de


privilegiar gastos públicos e vantagens fiscais. A primeira dívida é, pois, com os
135

direitos sociais, com a saúde, educação, segurança, habitação, etc, até porque
existem normas constitucionais expressando tal compromisso. Depois, em segundo
plano, devem ficar obrigações do Estado de natureza contratual, sobretudo as
resultantes das dívidas públicas com grupos econômicos e financeiros.

A posição muitas vezes assumida, de que os direitos sociais devem abrigar


certa relatividade, de modo que o Estado possa com os recursos que arrecada
garantir medidas com maior ampliação social, inclusive com amparo nos princípios
da solidariedade e da igualdade, deve ser atacada. E isto pela simples razão de que
há nessa idéia um componente falacioso, eis que o atendimento de determinadas
medidas não implica na necessária obrigação de afastar ou relativizar os direitos
assegurados pela Constituição Federal.

Na realidade, o que se tem visto no Brasil são manobras orçamentárias com o


propósito de desviar recursos da destinação para a qual foram arrecadados. Prova
disto é a CPMF, que tem 20% de sua receita desviada para outros fins, diversos da
área da saúde, por conta da norma constitucional que desvincula parte das receitas
da União.

A dificuldade de modificar esses vícios da administração pública, os quais por


manobras políticas encontram amparo na própria Carta Magna, amparados em
emendas de discutível constitucionalidade, sinaliza para a necessidade de busca de
alternativas que possibilitem ganhos sociais independentes do processo
arrecadatório do Estado.
Em conseqüência, o Estado moderno deve cada vez mais e com maior
intensidade, aumentar suas relações com a sociedade civil, realizando pelos
mecanismos jurídicos colocados a sua disposição, além da atividade gerenciadora,
fiscalizadora, arrecadadora ou mesmo empreendedora, políticas públicas dirigidas a
influir direta e favoravelmente na ordenação da vida social.

Nessas relações, o Estado precisa direcionar ações e investimentos,


dinamizando determinados setores de atividade e certas regiões. E no instrumental
jurídico de que dispõe, encontram-se as medidas ligadas ao caráter extrafiscal do
tributo, de modo que o Estado pode provocar o setor privado para que atue neste ou
136

naquele setor, ou se instale nesta ou naquela região. Neste cenário é que


procuramos destacar a extrafiscalidade, em especial no âmbito local, cujas medidas
respectivas devem ser resultado de decisão democrática, dirigida à viabilização de
benefícios pontuais para o município.

O que o estudo revelou, ao final, foi que a extrafiscalidade está relacionada


não só aos valores econômicos. Ela pode sim ser vinculada à ordem econômica,
que promove a valorização do trabalho e da livre iniciativa, define parâmetros e
delineia o processo de desenvolvimento, indicando claramente objetivos que devem
ser alcançados. Mas, da mesma forma, pode ser ligada à ordem social, que fixa
objetivos de extrema relevância social, tais como a proteção da família, do idoso, da
criança, do adolescente, a promoção da cultura e do desporto.

Também a extrafiscalidade se vincula aos direitos sociais: saúde, educação,


trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à
infância, assistência aos desamparados. E tudo isso porque facilmente é possível
identificar normas na legislação tributária que prestigiam os valores relacionados
com os direitos acima apontados, como, por exemplo, as que fixam imunidade para
as entidades educacionais e de assistência social.

A extrafiscalidade nesse sentido, pode ser econômica, política e social. Se


caracterizará como econômica quando estiver dirigida ao desenvolvimento de
determinada região ou segmento empresarial; será política quando seus valores e
medidas estiverem voltadas ao fortalecimento do federalismo; e será social, quando
focada na educação, na saúde, no trabalho, na moradia, no lazer, na segurança, na
previdência social, na proteção à maternidade e à infância, na assistência aos
desamparados.

Evidentemente, e isto também a pesquisa evidenciou, as decisões por políticas


relacionadas com a extrafiscalidade não podem representar tendência de renúncia
de arrecadação, muitas vezes decorrente de imposição de segmentos econômicos.
Deve ser resultado de decisões democráticas, sobretudo para que a própria
comunidade local se sinta responsável pelas conseqüências respectivas. Em caso
contrário, a tendência é que a administração pública corra o risco de se tornar refém,
137

no sentido de não poder no futuro eliminar o benefício, sob pena de acarretar efeitos
sociais negativos. É que a possibilidade de perda pelo município de determinada
atividade econômica, como resultado da extinção das vantagens fiscais, certamente
poderá ser fator de exclusão social, ocasionada com a migração da atividade
empresarial para outro ente federado.

Neste contexto, cabe também ressaltar, que a Lei de Responsabilidade Fiscal


não pode ser vista como fator de engessamento de iniciativas por políticas de
desenvolvimento. Em verdade, ela não é impeditiva da extrafiscalidade, visto que
apenas disciplina a concessão de vantagens fiscais pelo Estado.

Independente de tudo isso, a certeza a que se chegou ao final deste trabalho,


foi a de que o Estado tem plenas condições de promover um conjunto de medidas
que garantam à sociedade brasileira o bem-estar social assegurado pela Carta
Política, utilizando-se, entre outros instrumentos, da extrafiscalidade como
alternativa de política pública de inclusão social, de estímulo ao desenvolvimento de
regiões e expansão de setores produtivos do país.

De mesma forma, ao isentar ou garantir imunidade a determinadas atividades,


como nas áreas da saúde, educação e assistência social, pode estimular iniciativas
e comportamentos por parte do setor privado, reveladores de solidariedade.

Trata-se, portanto, a extrafiscalidade, de instrumento eficaz de política pública


de inclusão social, devendo ser considerada com alternativa eficiente à disposição
dos entes federados, em especial dos municípios.
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