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Copyright © 2021 Stev Deacker

RELICÁRIO

1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou
mecânico sem consentimento e autorização por escrito do autor/editor.

Capa: LA Creative

Revisão: Lidiane Mastello

Diagramação: April Kroes

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer
semelhança com fatos reais é mera coincidência. Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios
existentes – tangíveis ou intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº
9.610/98, punido pelo artigo 184 do código penal.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA.


Sumário

Epígrafe

Prólogo

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14
Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Epílogo

Nota do autor
Solte essas correntes, meu amigo
Eu mostrarei a raiva que tenho escondido

Perece o sacramento
Engolido, mas nada está perdoado
Eu e você não podemos decidir
Qual de nós passou despercebido
Faça as pazes
Alguns de nós estão destinados a sobreviver

Dê um passo à frente, veja o diabo em mim


Por muitas vezes deixamos chegar a esse ponto

Dê um passo à frente, veja o diabo em mim


Você irá perceber que eu não sou mais o seu demônio

Sob as palavras dos homens


Algumas coisas são tentadoras ao pai
Onde está a sua vontade, meu amigo?
Os insaciados nunca sequer se preocupam
Eu e você, errado ou certo
Negociando uma mentira pelo poder
Entre a lente na luz
Você não é o que parece

THE DEVIL IN I, SLIPKNOT


20 ANOS ATRÁS

Quem sou eu?

Para essa única pergunta, existem ao todo, duas respostas singulares...

Antes daquele dia, eu era Sophia Wolf, baixinha e sardenta no auge dos meus seis anos, já com
a certeza de entender tudo sobre a vida, com os olhos castanhos sempre bem abertos, prestando o
máximo de atenção a tudo o que acontecia ao redor, tentando, do meu jeito, entender como o mundo
funcionava enquanto andava por aí em vestidos xadrez que minha mãe adorava, mas que me faziam
parecer uma pequena mesa de piquenique com perninhas e tranças ruivas.

Meu pai, Abraham Wolf, era um homem alto e magro, com os cabelos enrolados sempre bem

penteados, sempre com os ternos escuros que usava em seu trabalho como advogado em uma cidade
próxima, enquanto minha mãe, Evellin, era a mulher mais linda que já havia visto, com os cabelos

castanhos bem claros que escorriam como um rio até a altura de seus ombros, com seu corpo tão bem
desenhado que parecia quase como uma pintura...

Nós morávamos em uma pequena cidade, que, na verdade, era apenas um amontoado de casas
distantes uma da outra, no topo de um dos alpes que cortavam a fronteira entre a Alemanha e a

Áustria, onde todos os moradores eram descendentes dos judeus que conseguiram fugir.

Os filhos de uma pátria que, até poucas décadas atrás, os queriam mortos.

E para eles, aquele havia se tornado um refúgio, longe das grandes cidades, da polícia que eles
tanto temiam, que agora haviam se tornado os fantasmas de um passado cruel.

Longe do resto do mundo que ainda parecia tão assustador para aqueles mais velhos, que viram
de perto o que o ódio era capaz de causar.

Nossa casa era antiga, construída pelos meus avós com a madeira das árvores que eles mesmo

cortaram, e como todas as outras casas ali, eram repletas de esconderijos pelas paredes, que na
época, pareciam mais como um parque de diversões para mim e para todas as outras crianças, que
adoravam correr por dentro das paredes de madeira, brincar de pique-esconde nos túneis que
cortavam por baixo da cidade e principalmente pelas antigas guaritas de pedra que agora pareciam
monumentos antigos no horizonte.

Mas, naquela tarde, foi como se meu mundo tivesse sido tomado de mim.

Era hora do almoço quando meus pais e eu estávamos envolta da mesa daquele almoço de
domingo, na cozinha espaçosa que havia sido tomada pelo cheiro da carne assada que minha mãe
havia acabado de tirar do forno, enquanto as batatas esfriavam, ainda soltando uma fina linha de
fumaça no ar.

E antes do almoço, meu pai rezava em hebraico, enquanto minha mãe me segurava em seu colo,

já com um pouco de dificuldade por causa do meu tamanho, mas eu adorava ficar ali apenas para que
pudesse sentir o cheiro de seu cabelo, mais doce do que qualquer sobremesa que eu já havia

provado.

Eu mantinha meus olhos fechados, enquanto deixava com que as palavras que ele entoava
vibrassem, graves, em meu peito.

— Dignai-vos, Senhor — meu pai falava em hebraico, entoando um cântico que ele já havia

começado a me ensinar, mas eu sempre me esquecia na metade. — Abençoar o alimento que tomar,
para melhor vos servir e ama...

E antes que meu pai pudesse continuar a oração, suas preces foram interrompidas por duas
batidas fortes na porta da frente, que ficava atravessando a sala, onde a televisão ligada fazia fundo.

— Vida, quem será que é? — minha mãe perguntou enquanto me colocava no chão.

— Não sei — meu pai respondeu coçando a barba espessa. — Pode ser os Dreyfus querendo
aproveitar a hora do almoço. — E rindo meu pai começou a caminhar em direção à porta.

Eu o acompanhei, dando passos curtos enquanto observava atenta a porta, mas minha mãe
levou sua mão até meu ombro, me segurando ali, junto a ela.

— Deixe que seu pai atenda a porta, Amor — ela disse séria, passando a mão pelo meu cabelo
e me levando junto a ela.

Observei pelo canto da porta enquanto meu pai abria a porta de madeira, enquanto via o sol
quente do verão tomar parte da sala.

— Pois não?

— Gostaria de saber se esta é a casa da família Wolf. — A voz rouca falou com o sotaque
carregado de Berlim.

— Essa mesmo — meu pai respondeu colocando uma das mãos no bolso. — Sou Abraham

Wolf, quem gostaria?

— Ah! Que ótima notícia — a voz disse em um tom alegre, estendendo a mão coberta por uma

luva branca, que meu pai cumprimentou com calma. — Sou o Doutor Strauss, trabalho em nome do
Charité na área de planos de saúde, e vi que sua família havia se inscrito pedindo uma vaga para a
sua filha...

— Sim! — meu pai disse em tom animado, olhando em direção à minha mãe que pareceu

comemorar. — Por favor, entre! Acabamos de servir o almoço.

— Eu adoro a comida do interior — o homem respondeu, e no mesmo instante minha mãe foi
apressada buscar mais um prato para colocar à mesa.

Strauss era um homem magro, com o cabelo loiro penteado para trás, ele usava um terno inglês
escuro, com um sobretudo branco que carregava o símbolo da medicina em seu peito, e em suas mãos
havia uma pequena maleta de couro.

— Que bela casa, senhor Wolf — o médico disse observando cada pequeno detalhe da sala. —

Ela é dos anos sessenta?

— Cinquenta — meu pai corrigiu enquanto os dois andavam em direção a mesa. — Meu pai
que construiu quando chegou aqui.

— É uma bela propriedade — o homem falou sentando à mesa, sorrindo ao ver a carne assada
e as batatas. — Ah... A comida do interior, me lembra minha infância!

— Você cresceu por aqui? — minha mãe perguntou sorrindo.

— Não... Não! Quem me dera poder crescer em um lugar lindo como este — o homem
expressou enquanto seus olhos corriam pela cozinha, até que os mesmos se encontraram com os
meus. — Então está é a pequena Sophia, não é mesmo?

E enquanto ele estendia a mão em minha direção, recuei, estranhando a postura do homem, que

riu ao ver minha reação.

— Crescer no campo deixou ela meio selvagem — minha mãe disse rindo enquanto me dava

dois tapinhas leves nos ombros, me repreendendo. — Vamos para a mesa, filha?

Ela me pegou no colo, me segurando por debaixo dos braços, me colocando em cima de uma
cadeira que tinha uma almofada, me permitindo ficar na altura da mesa.

— Achávamos que nossa vaga no Charité[1] havia sido negada... — papai falou apreensivo
enquanto tirava uma fatia do assado para o médico. — Estávamos preocupados em como iríamos
pagar os... Os...

— Procedimentos... — minha mãe completou.

— Muito obrigado. — Cordialmente, o homem pegou uma das batatas com o garfo e colocou
em seu prato, junto a carne. — Sabe, problemas como o da sua filha são raros... A má formação que
existe no coraçãozinho dela é bem complexa, mas o que nos chamou mais atenção foi o sangue dela...

— O sangue dourado? — Mamãe disse rindo e olhando para o meu pai. — Sabe, foi uma

surpresa para nós também...

— Sério? — o homem perguntou enquanto provava a carne que havia em seu prato. — Porque
esse tipo sanguíneo só é passado quando os dois pais possuem o RH Nulo...

— Nós não temos... — meu pai havia completado, ríspido, fazendo com que o silêncio tomasse
conta da mesa de almoço.

— Este assado está incrível! — o médico disse comendo mais um pouco enquanto olhava
gentilmente para minha mãe. — Quem me dera poder comer tão bem lá em Berlim.

— Agradecida — mamãe respondeu erguendo uma das sobrancelhas. — Mas... Ela foi aceita
ou não?

— FOI! — o médico exclamou animado, batendo com o punho na mesa. — Lógico que foi,

nunca iríamos deixar uma garotinha tão importante quanto ela sem o devido tratamento... — Ele se
abaixou, enquanto eu seguia seus movimentos, colocando minha cabeça para baixo da mesa, vendo-o

sorrir para mim enquanto alcançava sua maleta.

— ADONAI ECHAD![2] —mamãe disse animada, enquanto abria um sorriso... Mas meu pai
não o fez.

Ele continuava ali, sentado na mesa, encarando o homem vestido de médico.

— E quanto os... procedimentos — papai disse devagar. — Vão nos custar?

— Qual dos dois é mais ligado a garota? — o médico perguntou ainda revirando a maleta.

— Como? — minha mãe indagou franzindo o cenho.

— Eu perguntei qual dos dois... — E tirando alguma coisa metálica, quadrada e fria de dentro
da maleta e apontando o cano com um cilindro preto emborrachado em minha direção, meus pais se
assustaram, com meu pai quase se jogando para trás, mas ele parou assim que o médico puxou um
pedacinho de metal que ficava no negócio metálico, fazendo um barulhinho estranho.

Olhei para minha mãe, que havia ficado mais branca, com sua boca rosada perdendo a cor...

— Ela é mais ligada à mãe... — meu pai disse com os dentes cerrados, igual o cachorro dos
Le’petid quando chegávamos perto demais da cerca...

Então o médico parou de apontar aquela coisa para mim e apontou com pressa para o meu pai,
que apenas fechou os olhos enquanto uma bola de fogo saía de dentro do cano daquela coisa, que
jogou a mão dele para trás.

Eu tentava entender o que havia acontecido enquanto o barulhinho abafado sumia rápido, mas
papai foi jogado para trás com força, caindo da cadeira enquanto minha mãe gritava.
Olhei para ela, enquanto o médico levantava da cadeira, jogando sua maleta no chão e

apontando aquela coisa para nós.

— Tem uma ambulância lá fora, você vai pegar a menina e vai levar até a parte de trás dela,
entendeu? — o médico disse enquanto minha mãe engolia o choro e corria até mim, me tirando com

força da cadeira e me jogando contra seu peito, onde eu agarrei seu vestido com minhas mãos.

— Por... Por favor... Não a machuque — minha mãe pediu enquanto me abraçava com força e
corria pela cozinha em direção a porta da sala.

— Não se preocupe — o médico respondeu enquanto nos seguia. — Eu garanto que vou cuidar

muito bem de você.

Minha mãe me carregou, soluçando, até a ambulância grande que estava estacionada na grama,
enquanto eu olhava para trás, vendo papai que estava deitado no chão lá atrás, pensando o porquê ele
não iria vir com a gente.

— Por que você matou o velho? — um outro homem vestido de médico questionou enquanto
saía detrás da ambulância. — Assim a gente perde uma bolsa de sangue...

— A porra da menina é adotada! — Strauss respondeu enquanto empurrava minha mãe e eu em

direção a porta da ambulância ao mesmo tempo o outro médico abria, mostrando a caixa de metal
vazia.

— Nem fodendo! — o outro médico xingou enquanto trancava a gente ali dentro, fazendo com
que o silêncio tomasse conta, deixando apenas o barulho do choro e da respiração ofegante.

E ali, minha mãe me abraçou contra seu peito, com suas lágrimas descendo pelo meu rosto que
estava próximo ao dela, enquanto suas mãos trêmulas iam até seu pescoço, tirando o colar dourado
que ela carregava e o colocando em meu bolso com pressa.

— Não importa o que aconteça... Sophia — minha mãe disse passando os dedos pelo meu
rosto. — Você só não pode esquecer quem você é....
“Sabemos tão pouco do que estamos a fazer neste mundo, que eu me pergunto a mim próprio

se a própria dúvida não está em dúvida.”

LORD BYRON

Eu ainda sentia o cheiro de sangue em mim quando saí do banho naquela noite.

Aquele havia sido o primeiro dia em que pessoas haviam estado na minha casa depois de tudo
o que havia acontecido, e agora o chalé vazio não soava mais como uma casa...

Aquele era um túmulo.

Como se cada parede exalasse o cheiro da morte, como se cada parede ou móvel ali me
lembrasse de tudo o que eu havia perdido, como se de alguma forma eu pudesse sentir o vazio que

havia em mim, crescendo dentro de cada cômodo, mas havia um em que esse sentimento se tornava
pior.

Encarei a escada de madeira que subia para o quarto, e sentindo o peso que havia em cada
degrau, subi até lá, apenas para encontrar a porta entreaberta, mostrando a cama de casal que eu me

recusava a me deitar sozinho.

Mas havia algo em cima dela.

Empurrei a porta com calma, a ouvindo ranger enquanto me aproximava aos poucos do que
parecia ser um lenço branco, solto por cima das cobertas muito bem arrumadas, e escrito em letras
tortas de caneta estava.

“Para Bem De Ângelo”

Senti meu coração apertar enquanto eu puxava o lenço que Ângelo sempre carregava em seu

terno, apenas para mostrar ali...

Um charuto, ao lado de um isqueiro metálico banhado em ouro.

Peguei o charuto e o encarei por um instante, encarando as voltas e os sulcos que as folhas de
tabaco criavam e aos poucos senti o nó em minha garganta se formar.

Alcancei o canivete que estava em meu bolso e com cuidado cortei um dos lados do charuto, o
coloquei em minha boca e com o isqueiro dourado, o acendi, deixando a fumaça densa tomar conta
de minha boca com seu sabor amargo.

“Eu ainda sinto a falta dela”


A voz de Ângelo ecoava em minha mente enquanto soltava a fumaça, que era puxada em

direção a janela, onde o Sol já nascia, deixando a luz entrar no quarto.

“Sabe, era como se houvesse algo na Helena que fosse único, e não importava com quantas
mulheres eu ficava, nunca era a mesma coisa... Então não tente encontrá-la em outras, você só vai

morrer um pouco a cada foda”

A voz dele era tão clara que era como se eu pudesse ouvi-la no quarto.

“Você precisa seguir em frente, Ben, não ficar preso neste lugar, com o fantasma dela andando
em cada canto, precisa deixá-la ir”

Deixei aquelas palavras tomarem conta de mim, enquanto eu segurava o charuto entre os dentes
deixando a fumaça tomar conta da minha boca à medida que abria as portas do guarda-roupa, tirando
uma mala marrom e a enchia com minhas roupas, tentando manter minha cabeça focada, com a
esperança de que assim, eu não hesitaria.

“Você não morreu naquela noite, Ben, não importa o quanto pareça que sim, no final, você
ainda está aqui, ainda há chances de redenção para você”

E como uma confirmação, a voz de Arthur veio em seguida.

Não fazia uma hora desde que o avião deles saiu do aeroporto de Frankfurt em direção ao
Brasil, mas agora Alice estava com sua irmã e Gabriel carregava Arthur, que mesmo com os ossos
quebrados pela queda na água, não conseguia parar de sorrir.

Soltei um pouco da fumaça enquanto fechava a mala e a jogava em meu ombro, e olhando em
volta uma última vez, tentando prestar atenção no máximo de detalhes possível, como se pudesse
gravá-los em minha mente.

Tentando me lembrar do tom da tinta que cobria a madeira, e de como Helena gritou rindo
quando havia a encontrado em meio ao catálogo.
A roupa de cama roxa que ela havia amado tanto que me fez comprar cinco iguais.

A bíblia que ficava sempre na mesa de cabeceira, que ela lia todas as noites antes de dormir...

Se houvesse um céu, com certeza Helena estaria nele, junto ao nosso filho... Mas se existisse
um paraíso, eu jamais poderia entrar.

Condenado ao inferno pelo ódio que eu sentia.

Pelas mortes que eu carregava.

Pelo ódio que fluía em minhas veias.

Observei uma última vez o lugar onde havia deixado meu coração e minha alma, antes de dar
adeus a vida que um dia tive ali, as lembranças que agora doíam fundo em meu peito toda vez que
tomavam conta de minha mente.

Quando fechei, com calma, a porta de madeira e comecei a descer as escadas, tentei manter as
lágrimas longe de meus olhos, tentando ser forte por eles, uma última vez enquanto passava em frente
a porta do quarto com a porta azul, sem coragem o suficiente para olhar em direção a ele.

Lutei contra as lembranças de Robert...

Mas era como se ainda pudesse ouvi-lo, rindo toda vez que cantávamos uma música e

errávamos a letra.

Como se ainda pudesse ouvir seus passos, correndo pela casa toda, fazendo barulho quando
esbarrava em alguma coisa e gargalhando quando algo caía no chão e quebrava...

Tentei ignorar as memórias que laceravam meu peito, mesmo sabendo que seria impossível.

Tentei esquecer... Como fazia a maior parte do tempo.

Mas naquele momento eu sabia que precisava daquilo, precisava da dor... Pelo menos uma
última vez.
Na sala, ao lado da lareira, havia dois galões de gasolina, e depois de colocar a mala na

garagem, voltei para o chalé e comecei a despejar o combustível, enquanto mantinha o charuto aceso

em minha boca.

O cheiro da gasolina era quase inebriante enquanto eu a despejava sobre a mesa, onde ainda

havia os papéis e mapas que tínhamos usados para planejar a noite anterior.

A despejava sobre o sofá marcado pelas minhas últimas noites sozinho, o carpete, a lareira, os
álbuns de fotografia que havia sobre a estante...

E quando o primeiro galão havia se esvaziado, despejei o segundo pela escada, deixando o

líquido amarelado escorrer pelas frestas da madeira, até perceber que cada parte do lugar já estava
encharcado.

Despejei o resto do galão por toda a saída da casa até a garagem, que agora estava vazia,
deixando um pequeno rastro que levava até a parte de dentro da casa.

Traguei com calma o charuto, enquanto as brasas acendiam em sua ponta, mas antes que eu
pudesse acender o fogo que expurgaria todas as dores da minha alma, e à medida que soltava a
fumaça que tomava conta de minha boca com seu sabor amargo, deixei o que restava dele cair em
meio a gasolina, que se incendiou com violência.

Caminhei com calma até a caminhonete que estava na rua enquanto observava as chamas que
tomavam conta do que um dia foi meu lar, enquanto o fogo limpava todas as lembranças, todos os
dias felizes, tudo o que havia restado de alguém que ainda tinha alguma esperança.

O fogo precisou de algumas horas para que pudesse consumir o que havia ali, mas quando o
que restava não passava de uma pilha de carvão e cinzas, eu já estava longe, me entregando de vez as
vontades do Ceifeiro, que agora parecia ser minha única companhia.

E ali, restou apenas um balanço de pneu pendurado em uma árvore velha.


O que restava para um homem que já perdeu tudo?

O que sobrava quando você perdia todos aqueles que já amou?

No meu caso, tudo o que havia restado eram anos e anos de treinamento e todo o ódio que
corria pelas minhas veias, e graças a Arthur, sabia onde alguém como eu ainda poderia ser útil.

Havia dirigido quatro horas desde que saí de Frankfurt, e estava próximo de Munich quando
precisei parar para abastecer a caminhonete.

O sol do verão já gritava com força enquanto o gramado verde que cortava ao redor da rodovia
ainda estava úmido pelo que parecia ter sido uma chuva bem forte na noite anterior.

O horizonte era coberto por colinas e montanhas, onde alguns pastos e pequenas fazendas de
trigo se estendiam, manchando o verdejante tapete de grama curta que cobria a paisagem, e ao fundo,
gigantes hélices de energia eólica giravam lentamente, como moinhos antigos, cortando os céus.

Estacionei a caminhonete em frente ao posto azul claro que se iluminava na beirada da rodovia,
com alguns carros entrando para se abastecer com gasolina, ao mesmo tempo que outros apenas eram
carregados nas tomadas enquanto seus donos aproveitavam para fumar ou conversar, deixei o carro
na vaga que ficava mais próxima à loja de conveniências, onde as enormes janelas de vidro
mostravam o movimento de poucas pessoas que esperavam em uma fila silenciosa.

Fechei a porta da caminhonete com cuidado, observando em volta os homens que pareciam
distraídos em seus próprios mundos, e quando tive a certeza de que não havia ninguém estranho por
ali, caminhei até o telefone metálico que estava pendurado na parede.

Os Filhos prezavam, acima de qualquer outra coisa, a descrição e a privacidade, e dentre as


poucas regras que havia na instituição, a que era levada mais a sério era a de sempre ligar de um

telefone público.

O que até pode parecer estranho em uma época onde cada um tem um telefone em seu bolso,
mas havia um motivo para isso: quando você pensa em rastrear um telefonema, sempre pensa nos

celulares, nos telefones residenciais, pensa em colocar uma escuta no carro, na carteira, na merda do
cachorro do desgraçado que você quer grampear...

Mas quem iria grampear a porra de um telefone público?

Claro que ainda se pode rastrear a chamada, mas para isso deveria existir uma.

Me aproximei do telefone vermelho que estava fixo em sua base, preso por um fio metálico, e
enquanto me encostava na parede, o aproximei do meu ouvido, ouvindo o barulho artificial contínuo
que mostrava que havia linha, em sequência bati a sequência de números que jamais poderia
esquecer.

“23433476[3]”

O telefone chamou duas vezes antes de ser atendido por uma voz feminina suave.

— Harry & Harry, controle de pragas e pestes — a voz disse em um inglês carregado de

sotaque alemão. — Quem gostaria?

— Eu gostaria de saber se vocês possuem uma oportunidade de trabalho — falei em voz baixa.

— Claro, Senhor — a voz respondeu com o barulho de uma caneta de fundo. — Qual a sua
função?

— Exterminador — retorqui.

— Qual região você se encontra? — ela perguntou enquanto anotava algo em uma agenda. — E
qual o seu nome?

— Benjamin Blackburn, estou próximo a Munich.


— Pode deixar, Benjamin, entraremos em contato, tenha um ótimo dia! — E sem mais palavras,

a ligação foi desligada.

Deixei o telefone recair sobre a base e esperei pacientemente enquanto fitava ao longe as
nuvens que tomavam conta do céu, manchando o azul com a escuridão que culminavam em raios

azulados que cortavam o horizonte com sua violência quase divina.

E enquanto o fazia, tentei manter afastado de minha mente qualquer pensamento sobre minha
antiga vida que estaria agora, deixando para trás de uma vez por todas.

Esperei ali por alguns minutos, enquanto cada um dos homens que estava dentro da pequena

loja de conveniências saía, carregando sempre algum energético ou maço de cigarros consigo, e
quando restou apenas o atendente, eu entrei no lugar, sentindo o impacto do ar-condicionado contra
minha pele.

Fui com calma até o balcão, passando por pequenas gôndolas repletas de balas e doces e uma
pequena geladeira lotada de energéticos e latas de cerveja, em direção a uma mulher jovem, com um
dos braços marcados por tatuagens coloridas, o cabelo curto pintado de vermelho, com o uniforme
branco e azul, e na mesma hora senti seus olhos azuis claros correndo pelo meu rosto.

Fui em direção a ela, sendo seguido por seus olhos, então me apoiei com o ombro contra a

parede à minha esquerda, enquanto tentava observar o que eram os desenhos coloridos em seu braço,
até que eles se tornaram dragões japoneses muito bem desenhados.

— No que posso ajudar? — ela perguntou enquanto mordia o lábio inferior.

Observei o telefone que estava em sua mesa, apenas um instante antes dele tocar.

— Acho que é para mim — disse, vendo seus olhos transbordarem curiosidade enquanto
empurrava o telefone em minha direção, e quando o tirei da base e o coloquei em meu ouvido, já
pude ouvir a voz feminina mais uma vez.

— Doutor Von Strauss — a voz disse com urgência. — Você vai ter até um milhão e meio de
euros para a busca e execução, com setecentos mil dólares pelo corpo, três milhões pela alma, última

pista do Doutor está em um pub chamado Rosenrot[4] em Munich.

E com a ligação sendo desligada de uma vez, eu já tinha um novo objetivo.

Um novo homem para matar.

“Setecentos mil dólares pelo corpo, três milhões pela alma...”

Neste ramo, a gente aprendia primeiro que todo homem tinha um preço, fosse ele baixo ou alto,
todos estavam dispostos a pagar pela cabeça daqueles que odeiam, como se o dinheiro fosse apenas
um detalhe.

E eles sempre diziam, ele é a ferramenta.

Mas isso não passava de uma mentira, porque no fundo, a mão que tirava a vida sempre seria a

minha.

Eu sou a ferramenta.

E o dinheiro... Bem, ele é só um incentivo.

Não que eu fosse o ser humano mais ambicioso do mundo, na verdade, estava longe disso, mas
o que me motivava era a missão.

O desafio de tirar a vida de um homem que já fez tanto mal a esse mundo, que acabou chegando
ao Ceifeiro, como uma súplica.

O Ceifeiro jamais cobrava dos seus fieis para matar alguém... Muito pelo contrário, ele só
pedia o nome da alma que devesse ser buscada, junto com as provas de seus pecados, e então, o
nome aparecia para nós, em uma lista contendo boa parte das informações do nosso alvo.

“Mas... Se é assim, quem paga a recompensa?”

Essa foi uma pergunta que eu fiz durante boa parte das minhas primeiras missões, até eu

entender que um homem morto não precisava de posses...

E isso era uma parte muito importante, porque a segunda coisa que descobrimos era que...

Uma recompensa alta, significava apenas um inimigo ainda mais perigoso.

E o Doutor Strauss, era uma das maiores recompensas que eu já tinha visto, com setecentos mil
pela sua morte e três milhões se eu fosse capaz de entregá-lo com vida... O que não era nada comum,
afinal, éramos assassinos de aluguel, não policiais para sair prendendo os outros.

Mas o Ceifeiro gostava disso...

Ceifar pessoalmente os piores nomes de sua lista.

Todos esses pensamentos tomaram conta de minha mente enquanto eu acelerava a caminhonete
por entre as estradas emborrachadas que levavam até Munich, atravessando os túneis que cortavam
as montanhas que cortavam boa parte da Alemanha, marcando o horizonte como muralhas de pedra,

servindo apenas para nos lembrar o quanto éramos pequenos em relação ao mundo.

O quão insignificante nós éramos...

Acelerei ainda mais a caminhonete, deixando o motor gritar enquanto cortava a rodovia, já
podendo ver ao longe a cidade branca e marrom que se levantava, mostrando a Cidade Antiga,
marcada pelas torres e construções de pedra, mais velhas do que a própria lembrança de um tempo
em que elas não existiam.

Havia muito tempo desde que tinha passado por essa parte deste país, mas minhas lembranças
de Munich ainda doíam, vívidas em meu peito.
Desacelerei o carro enquanto chegava aos arcos de pedras que marcavam a entrada da cidade,

com os prédios modernos, com suas fachadas espelhadas, que aos poucos se misturavam com as

torres e igrejas de pedras brancas, já amareladas pelo tempo, enquanto o asfalto moderno e
emborrachado dava lugar as pedras irregulares, que balançavam o carro de um lado para o outro

através das ruas estreitas, repletas pelos prédios históricos que se pareciam mais com muralhas de
pedras lotadas por janelas e afrescos antigos que marcavam os beirais.

“Rosenrot”

Procurar um pub na Cidade da Cerveja era como procurar uma palha dentro de um palheiro,

mas por algum motivo aquele nome não era estranho, como se eu devesse saber onde ele ficaria.

Segui, atravessando as ruas de pedra, passando pelas praças redondas onde as igrejas
medievais se estendiam, com suas torres que cortavam o céu azul claro, com as pessoas passando de
um lado para, tão fechadas em suas próprias mentes que era como se cada uma delas vivessem dentro
de uma bolha, tão focada em sua própria existência que era como se não fossem capazes de ver quem
estava ao seu lado.

“Rosenrot”

Permaneci andando pela cidade, tentando seguir meu próprio instinto de direção, cruzando pela

avenida das padarias e confeitarias, onde o cheiro das massas sendo assadas nos fornos antigos
tomavam conta do ar.

E mantendo em frente, cheguei ao distrito dos bares, pubs e cervejarias, com as placas de
madeira marcadas a fogo sinalizando cada um deles.

As mesas tomavam conta das calçadas, que já haviam se tornado largas, as pessoas
aproveitavam e bebiam canecas altas de cerveja gelada, aproveitando o sol do verão, enquanto
comiam pretzels e riam com amigos, mas meus olhos estavam focados nas placas...

Segui, atravessando a rua movimentada, com os olhos fixos nas placas, tentando encontrar o
lugar que, a cada quarteirão, parecia se tornar apenas uma lembrança enevoada em minha mente.

Mas por que eu me lembrava deste pub?

O que ele deveria ter de especial?

E chegando ao final da avenida, com os pubs acabando em uma praça redonda quase vazia,
com seus bancos de madeira que circulavam uma fonte alta, e ali eu duvidei que aquele lugar
realmente existisse.

Estacionei a caminhonete, enquanto o motor reclamava depois de tanto tempo funcionando, e

jogando meu corpo para trás, deixei minhas costas baterem contra o banco, encarei a poeira que
flutuava no ar quente do carro, batendo contra o sol.

— Helena... O que eu faço? — falei com a voz ainda meio rouca pelo tempo que passei em
silêncio.

E ali, fiquei em silêncio, ouvindo o barulho da cidade que era abafado pelo carro, mesmo não
sabendo ao certo pelo que esperava...

Mas a única coisa que tive como resposta foi o silêncio.

— Merda... — xinguei baixo enquanto saía do carro, deixando o cheiro da cidade tomar conta

de mim, sentindo o vento que batia com força em meu rosto ao mesmo tempo que eu prendia meu
cabelo, com a esperança de que o ar puro pudesse me ajudar.

Olhei em volta, tentando me localizar em meio àquela praça, e a poucos metros à minha frente
havia um pub com o nome em germânico antigo, e mesmo que a única palavra que eu conseguisse
entender fosse “Javali” uma cerveja provavelmente faria bem.

Atravessei a praça, enquanto sentia o olhar das poucas pessoas que estavam ali, a maioria
sendo homens bem mais velhos, jogando baralho ou xadrez em algumas das mesas, mas havia algo de
estranho...
Como se eu não fosse bem-vindo naquele lugar.

O pub era uma pequena casa quadrada de madeira com vitrais verdes que apenas escureciam o

lugar, que cheirava a tabaco, cerveja e carne de porco, como qualquer outro pub alemão.

Observei o balcão de madeira que ficava logo em frente a porta, com pequenos detalhes

entalhados, já gastos pelo tempo, enquanto as mangueiras de cerveja subiam, uma ao lado da outra,
mas apenas duas delas estavam marcadas pelas gotas de água condensada no metal frio.

E na prateleira de madeira que havia ali atrás, podia ver algumas garrafas que se acumulavam
junto a pequenos barris de metal que tomavam o chão.

— Vai beber? — Uma voz quase grunhida veio da minha direita.

Olhei para o lado, onde dois homens jogavam o que parecia ser poker sobre uma mesa de
madeira.

Um deles era um senhor, de cabelo branco bem penteado para trás e a barba bem-feita, sentado
com a postura rígida, vestindo uma camisa escura bem alinhada, com calças sociais e sapatos bem-
lustrados, os óculos quadrados de hastes finas pousavam na ponta do nariz.

Uma de suas mãos segurava as cartas, enquanto a outra estava apoiada em sua coxa, com a

palma virada em direção ao seu quadril.

Sempre é fácil reconhecer um homem armado.

Mas quem jogava com ele era quem realmente chamava a atenção.

Um homem alto, com a cabeça raspada e a barba loira bem-marcada no rosto, ele vestia uma
camisa preta sobreposta com um avental de couro, os coturnos iam quase até seus joelhos.

Seus braços eram cobertos de tatuagens... E entre caveiras e corvos, dois desenhos me
chamaram a atenção:

Uma rosa marcada em vermelho.


E os dois raios da “SS”.

— Vai beber? — o homem repetiu, com os dentes cerrados.

— Uma cerveja clara, por gentileza — disse com a voz ríspida, observando a reação dos dois
homens.

E quando os dois se olharam, o barman deu um sorriso amarelo para o outro homem, e então se
levantou, indo em direção ao balcão.

— Quem é você? — o homem mais velho perguntou enquanto me olhava de cima a baixo,

prestando atenção nas minhas tatuagens.

— Hans — respondi passando a mão pelo cabelo, o jogando para trás e tentando carregar o
máximo possível meu alemão. — Hans Von Hausser, sou de Frankfurt, cheguei na cidade hoje.

— Von Hausser? — o senhor indagou com um olhar de curiosidade, enquanto ajeitava os

óculos. — Você é descendente do Paul Hausser[5]? O Obergruppenführer[6]?

Concordei com a cabeça, enquanto o barman vinha carregando duas canecas grandes de
cerveja, me entregando uma e sentando novamente em seu lugar, levantando a caneca no ar.

— Ao General! — ele disse, enquanto eu levantava a caneca, aceitando o brinde e dando um

gole grande o suficiente para que eu pudesse engolir o nojo e o asco que sentia por aqueles homens.

— E o que leva alguém de sangue puro descer da terra dos lagos até a civilização? — o
homem mais velho me perguntou, enquanto cruzava as pernas.

— Além de apreciar a cerveja — falei colocando a caneca em cima da mesa e puxando uma
cadeira. — Achei que seria hora de voltar a ficar com os meus.

— Fez bem... Aquele lugar está lotado de estrangeiros — o barman disse, quase cuspindo as
palavras.

— Mas já sabe se alguma célula vai aceitar você? Pode ter sangue puro, mas o sobrenome não
vai lhe dar tudo de mãos beijadas — o homem mais velho disse me olhando de cima a baixo.

— Estava com a esperança de que vocês pudessem me ajudar nisso — respondi, vendo um

sorriso se abrir no rosto do homem.

—Me diga... Sr. Hausser, o quão bom é o seu cruzado de direita? — ele inquiriu enquanto

colocava os óculos no lugar.


“A coisa mais misericordiosa do mundo é, segundo penso, a incapacidade da mente humana

em correlacionar tudo o que sabe. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares
negros de infinitude, e não fomos feitos para ir longe.”

H. P. LOVECRAFT

10 ANOS ATRÁS
O que te faz um ser humano?

Afinal, nós somos apenas animais... Com um ego bem grande, é lógico... Mas ainda somos
apenas animais, feitos de carne, ossos e instintos.

E como animais, nós somos forjados pelo meio em que vivemos.

A maior parte dos espécimes que formavam a raça humana, viviam em suas casas, em meio a
uma selva de pedra que nós mesmos construímos, com a esperança e nada além dela, de que essa

seria a melhor forma de se viver.

E por isso nós acabamos nos esquecendo de como nós podemos nos tornar animais muito
raivosos quando crescemos em outro tipo de ambiente, em como o ódio podia tomar conta de nossa
mente...

Em como a vingança podia se tornar nosso único objetivo.

Esses pensamentos tomavam conta da minha mente enquanto observava a pequena janela, por
onde eu poderia ver o sol nascendo por entre as montanhas que tomavam conta do horizonte,
iluminando o quarto, que no final não passava de uma cela disfarçada, com as paredes de cimento

pintadas de branco, uma cama de casal com um lençol branco que cheirava a aguarrás, assim como as
roupas brancas que lotavam os cabides de plástico que estavam fixados na parede.

Aquele era o meu lugar no mundo, entre as paredes brancas, jalecos e os médicos que me
furavam e cortavam como se eu fosse apenas um pedaço de carne recheado com o sangue dourado
que eles tanto queriam...

Me revirei na cama, chutando as cobertas para o chão, deixando o ar frio da manhã marcar
minha pele, mas apenas a esperança de poder sentir algo que não fosse as agulhas que perfuravam
minhas veias já valia a pena.
Respirei fundo, deixando o vapor que saía de minha boca se dissipar no ar à minha volta,

enquanto ajeitava meu pijama, que não passava de uma camiseta e uma calcinha, ambos brancos, se

misturando com o resto do lugar, e com a cabeça apoiada no travesseiro, tentei limpar minha mente
dos pensamentos que vinham e voltavam, como se fossem apenas vagalumes vagando pela noite.

Eu conhecia aquela sensação... Era o resultado da abstinência das drogas que me davam.

Dos calmantes que injetavam em mim para que eu não arrancasse os olhos deles com as unhas
ou rasgasse a garganta de nenhum dos enfermeiros com os dentes...

Não de novo.

“Pequeno Demônio”

Era como me chamavam, entre os médicos e enfermeiros que eram os responsáveis por me
furar e retalhar, apenas para tirar a única coisa com que eles se importavam: O meu sangue.

A merda do meu sangue.

Porque no final, eu era apenas o reservatório daquele líquido vermelho tão precioso.

— Sophia! — a voz feminina disse, seguida de três batidas na porta, me tirou daquele pequeno
transe em que eu me encontrava, fazendo com que meu coração pulasse em meu peito. — Transfusão

em meia hora.

— Merda! — xinguei alto enquanto pulava da cama, sentindo o piso frio contra meus pés.

Fui com calma até o cubículo que insistiam em chamar de banheiro, e pude encarar meu rosto
no espelho que ficava protegido atrás de uma grade de ferro, e nele pude ver a imagem de um
fantasma, que apesar de se parecer comigo, não era eu...

Era apenas uma mulher jovem, com a pele sem cor pelos remédios e a falta de sol, as olheiras
escuras que marcavam meus olhos, que apesar de azuis, agora se escureciam a cada novo dia que se
passava, como se eles fossem capazes de se acostumar com aquele inferno.
Lavei o rosto com a água gelada e não fiz questão alguma de escovar os dentes, apenas abaixei

em direção a torneira de metal e deixei um pouco da água com gosto ferroso lavar minha boca.

As roupas que me davam eram basicamente uma camisa branca de algodão, e uma calça larga,
sem sapatos, sutiãs ou qualquer tipo de dignidade.

Me vesti com calma e fui em direção a parede que ficava em frente a porta, como nos
ensinaram a fazer, apenas para que eles pudessem ter a certeza de que eu não faria nada com os
coitadinhos.

E quando os passos firmes voltaram a ecoar pelo corredor, a porta pesada de metal se abriu,

revelando a única pessoa que ainda era capaz de me conduzir para as sessões de transfusão.

A única que eu não faria questão de matar na primeira oportunidade.

E o motivo pelo qual eu ainda não havia tentado fugir...

— Oi filha. — A voz de minha mãe bateu com força contra meu peito. — Está pronta?

Os corredores daquele lugar eram como labirintos.

Todos marcados no mesmo branco frio, que depois de tanto tempo, era como se a cor estivesse
queimada em minhas retinas, como se essa fosse a única cor do mundo.

E o cheiro de aguarrás estava em todos os lugares, em cada canto, cada peça de roupa, toalha
ou lençol.

Havia “quartos” como os meus, mas para mim a maioria deles eram apenas portas de metal
com tags.

“Medula”

“Córnea”

“Coração”

“Bolsa de sangue”

Algumas delas mudavam quando o doador já não tinha utilidade ele era levado, e então não
tinha como imaginar o que aconteceria longe daquele prédio, que mesmo passando boa parte da

minha vida aqui, ainda não conseguia entender o que ele realmente era.

Não conseguia entender ao certo se era um hospital... Pelo menos não me lembro de como seria
um, mas eu me lembro de que tudo ali era separado em alas.

A minha era a ala da esquerda, a dos “Doadores”

Doadores...

Falando assim era quase como se nós estivéssemos ali por vontade própria.

Eu não era a única, éramos em muitos, mas eles sempre tomavam cuidado para que nós não nos

conhecêssemos, obviamente com medo de que acabássemos nos juntando contra eles em uma
revolta...

Ou em um suicídio em massa.

Isso havia acontecido pouco antes de eu chegar aqui... Foi assim que eles perderam a última
doadora de sangue real.

E desde então todos os espelhos tinham grades de ferro.

Os desgraçados precisaram de um ano até encontrar outra doadora, mas depois de perder muito
dinheiro e alguns clientes, os médicos tiveram a brilhante ideia de manter sempre um doador reserva,
e por isso eles foram atrás de mim, com a esperança de que meus pais tivessem a mesma maldição
que corria em minhas veias.

Mas, para a desgraça deles, eu havia sido adotada, e assim eles foram obrigados a ir atrás de
um plano B, só não contavam que ele sairia melhor do que o esperado.

Minha mãe permaneceu ao meu lado durante todo o caminho, que já havia feito por tantas vezes
que era como se meus pés pudessem seguir as pequenas listras amarelas no chão por conta própria.

Ela só estava aqui por minha causa...

Sempre tentei entender o porquê todos os doadores fixos, assim como eu, sempre tinha alguém,
um parente próximo que era o responsável por cuidados pessoais e alimentação, além de trabalharem
com pequenos serviços para o lugar, e com o tempo descobri que eles não eram acompanhantes.

Eram uma garantia.

O único motivo que nos impedia de jogar a merda no ventilador e tentar fugir deste inferno.

E enquanto eu andava, lado a lado com ela, nós éramos sempre vigiadas por um guarda armado
que se vestia de branco assim como o resto da equipe, sempre atento se nós não iríamos conversar
sobre nada que parecesse suspeito enquanto atravessávamos os intermináveis corredores, que agora

já se pareciam menos com a prisão em que eu vivia, e mais como algo diferente...

O concreto branco dava lugar a pedra muito bem cortada e brilhante, que subia do piso em
direção ao teto, que agora era repleto de lâmpadas, que sempre focavam nos quadros que decoravam
as paredes, que eram as únicas coisas que quebravam o branco.

E bem a nossa frente estava a porta dupla e larga que levava até o ambulatório, com a cruz
vermelha que marcava o simbolismo daquele lugar, e ao lado dela, estava uma das enfermeiras, com
a minha ficha em mãos, enquanto lia e marcava algo a caneta.

Nenhuma palavra foi dita enquanto atravessávamos aquela porta, que parecia levar para um
outro mundo.

Havia uma parede de vidro que separava a sala em dois ambientes:

O lado dos doadores e o lado dos pacientes.

Do meu lado, tinham duas cadeiras, ambas com cintos e fivelas, com o objetivo de nos prender
ali, sem qualquer chance de escaparmos, enquanto as agulhas e canos eram presos em nossos corpos.

E do outro lado do vidro, era uma sala de espera, onde sofás de couro serviam para os pais
orgulhosos, maridos e esposas do paciente esperar, com todo o conforto, para que aqueles que

estivessem nas poltronas de couro do outro lado do vidro pudessem ter sua transfusão do seu
precioso sangue dourado.

Era sempre a mesma rotina... Eu sentava e era presa à cadeira, e iriam aplicar um pequeno
“anestésico” em mim, para que eu não pudesse fazer nada além de servir como a merda de uma bolsa
de sangue.

Só não contavam para o paciente, que essa merda não passava de uma droga, viciante o
suficiente para que em pouco tempo ele estivesse uma crise de abstinência tão forte, que eles não
teriam outra opção senão trazê-lo para outra transfusão, que parecia ser a única coisa que o curava

de suas doenças.

Então prenderiam as agulhas e os tubos que atravessavam o vidro até o braço de seja lá quem
estivesse do outro lado, e quando eu terminasse, traziam outro paciente...

E então outro.

E mais outro...

Até que estivesse prestes a perder a consciência.

Então eu seria colocada em uma maca e levada até a enfermaria, onde iriam injetar mais e mais
remédios até que eu estivesse pronta para mais.
Eu sabia o quanto isso se parecia com o inferno, mas nele... Havia algo que fazia valer a

pena... A única pessoa com quem eu realmente conversava.

E ele já estava ali, sentado em sua cadeira, com o cabelo castanho penteado para o lado, com
um sorriso perfeito estampado em seu rosto.

— Olá, Sophia — ele disse, me olhando pelo reflexo do vidro.

— Oi, Bran — respondi devolvendo o sorriso enquanto ia até o meu lugar.

Mesmo tendo a minha idade, ele sempre pareceu mais velho, principalmente porque ele havia

chegado aqui muito depois de mim, e além do meu único amigo...

Ele era meu noivo.


“O mundo é deveras cômico, mas a piada está na raça humana”

H. P. LOVECRAFT

Sempre havia um limite até onde um homem podia aguentar.

Com o passar dos anos eu acabei convivendo com os piores tipos de seres humanos, desde
todos os militares com complexo de Deus que encontrei em meus anos de exército, a espiões,
gangsters, mafiosos e traficantes...

Mas de todos os tipos de pessoas, os piores sempre eram os nazistas.

Era inacreditável como eles eram capazes de se julgarem a “raça superior”, em como a morte e
a tortura de todos aqueles diferentes do “ideal ariano” era a lei superior.

Eram os juízes, os carrascos, as vítimas e os advogados de sua própria causa.

Mas no fundo, não passavam de porcos, tão chafurdados na própria merda que não conseguiam
ver o quão nojentos eles eram...

Mas agora, aguentar a vontade de matar cada um daqueles desgraçados era a única opção para
encontrar o Dr. Strauss...

E só então eu poderia dar um jeito no resto do chiqueiro.

Por sorte, não precisei passar muito mais tempo com aqueles dois, porque segundo eles, era a
hora da “reunião”, e quando finalmente saí daquele lugar e pude voltar para o meu carro, o céu azul
de verão estava dando lugar ao tempo pesado, repleto de nuvens escuras, que cortavam o céu com
raios azuis.

— Pode seguir a gente, mas tente não ficar perto demais — o barman avisou entrando em um

carro esportivo junto com o senhor, que acabei descobrindo ser o seu pai.

E, assim eu o fiz, atravessando as avenidas movimentadas de Munich enquanto a chuva


começava a cair, primeiro de forma calma, fazendo com que todos corressem para dentro das lojas e
marquises, e então aumentando sua violência, até se tornar uma tempestade quase torrencial, me
obrigando a diminuir a velocidade para que pudesse me manter nas estradas de pedra, que se
tornavam apenas mais escorregadias com a água.

Passamos pela praça central, dando a volta por praticamente toda a cidade, que já havia
mudado com a chuva, perdendo o clima caloroso do verão e se tornando apenas um aglomerado de
carros e guarda-chuvas.

Enquanto seguia o Audi de perto, mantive a mente focada, tentando ao máximo não deixar a

torrente de lembranças ruins tomarem conta.

Levamos quarenta minutos para que atravessássemos praticamente toda a cidade, por onde a
estrada já havia voltado a se tornar asfalto e os casebres e chalés clássicos já haviam se tornado
prédios, e então casas, que agora não passavam de prédios e galpões do que parecia ser uma área
industrial, que com o entardecer, parecia ter se tornado deserta.

A chuva que havia se tornado praticamente uma tempestade, já havia dado trégua, enquanto o
vento começava a castigar com seus suspiros gélidos que entravam pela janela entreaberta do carro.

Ali pensei em rezar, imaginando o que Gabriel falaria por eu estar me envolvendo com os

nazistas, que para ele, nunca haviam sido dignos da misericórdia divina.

Pensei em Arthur se mantendo sério, com uma arma sempre engatilhada por baixo do
sobretudo, enquanto olhava aqueles homem nos olhos, sem piscar, até que eles desviassem o olhar
daquele homem que sempre parecia estar pronto para matar.

Pensei em Ângelo... Fazendo milhares de piadas sobre como matar um nazista engasgado com
um salsichão ou o afogando em cerveja...

E por um instante, era como se eles estivessem ali comigo.

Fui retirado de meus pensamentos por uma piscada de farol do carro que seguia, mostrando que
já estávamos chegando no lugar, que, na verdade, não passava de um galpão alto, com o teto de metal
já meio enferrujado, dentro de um terreno cercado por muros altos cobertos com arame farpado.

Havia um grande portão de ferro que separava aquele lugar escuro da rua, e em cima do
mesmo, uma pequena guarita mostrava que aquele não parecia ser um lugar como os outros.

Cerrei um pouco os olhos quando viraram uma lanterna em minha direção, enquanto um homem
que parecia ser um guarda abria apenas uma fresta do portão, indo em direção ao carro dos dois
nazistas que estavam bem à minha frente.

Me mantive sério, com as duas mãos no volante enquanto a luz ainda era apontada em minha

direção, tentando não levantar suspeitas sobre minhas reais intenções naquele lugar, e quando o
guarda que conversava no carro da frente me olhou com espanto por um instante, eu sabia que havia
escolhido o nome certo para esta missão.

Tudo parecia estar dando certo.

Certo até demais...

O homem olhou em minha direção, dando dois passos à frente, diminuindo a distância entre nós
para que ele pudesse me enxergar melhor, enquanto a luz do holofote que batia em suas costas, o

transformando em apenas uma sombra, mas eu ainda era capaz de sentir seus olhos fixos em mim.

E ali, ele esticou seu braço, mantendo a palma da mão sempre virada para baixo.

— HEIL HITLER! — ele disse, em tom alto e retumbante.

Senti meu corpo todo parar por um instante, enquanto eu ainda era capaz de sentir a tensão
cortando o ar, com aquele homem me encarando...

Esperando sua resposta.

E ali, engoli em seco toda minha ética e moral, enquanto estendia meu braço direito, lutando
contra meu próprio corpo.
— Heil Hitler! — devolvi o cumprimento, sentindo o gosto amargo que ele havia deixado em

minha boca.

E mesmo que não pudesse o ver, sabia que o guarda estava sorrindo quando abaixou seu braço
e voltou com pressa até o portão, soltando suas correntes que caíram pesadas ao chão enquanto ele

arrastava o metal, abrindo passagem para os carros.

Encarei a luz forte do holofote, enquanto o homem na guarita a apontava para longe do meu
rosto, voltando ao seu posto de guarda.

Acelerei o carro com calma, olhando em volta pela rua que parecia deserta, a não ser por um

carro que havia acabado de dobrar a esquina.

O lugar por dentro não era muito diferente do lado de fora, com o chão de terra batida e as
paredes de cimento cru, praticamente sem acabamento, o telhado do galpão era coberto com folhas
de um metal avermelhado, já com o desgaste do tempo.

Mas o que realmente chamava a atenção era a quantidade de carros que estavam estacionados
lá.

Eles iam dos mais caros aos mais baratos, passando pelos beetles passando pelos carros

populares e parando nas BMW.

Todos carros alemães.

Estacionei a caminhonete em uma vaga ao lado, enquanto os dois homens desciam do carro
conversando com o guarda baixo, enquanto nenhum dos três tiravam os olhos de mim...

Eu estava prestes a adentrar o ninho das cobras.

Corri os dedos pelo porta-luvas do carro, onde havia deixado algumas facas, e tateando
procurei pela melhor lâmina para aquela situação, puxei uma bowie, uma faca de lâmina longa, com a
ponta levemente curvada.
Era uma lâmina de caça, porque nesta noite...

Eu iria caçar.

A deixei presa com sua bainha na parte interna da minha calça jeans, deixando a camisa xadrez
que estava usando cobrir seu cabo, respirei fundo uma última vez, e me preparei para sair do carro,

enquanto os homens já vinham em minha direção.

— É sempre uma honra conhecer os descendentes dos homens que fizeram deste país o que ele
é hoje. — E esticando a mão em minha direção, o guarda sorriu ao me ver.

— É sempre uma honra conhecer os homens que tentam manter esse país nos eixos acima de
qualquer outra coisa — respondi, apertando a mão do homem, mesmo que a única imagem que se
passava pela minha mente era como seria incrível rasgar a garganta daquele homem.

— Vamos, temos muito para te mostrar — o homem mais velho disse andando em direção a
duas portas vermelhas que marcavam a entrada do barracão.

Enquanto me aproximava, ouvindo o barulho que nossos passos faziam contra o chão que era
coberto de cascalho, pude perceber um som diferente...

Um grave, baixo o suficiente para que mal pudesse ouvi-lo, mas era capaz de sentir sua

vibração no chão abaixo de meus pés.

Caminhei junto àqueles homens, olhando em volta tentando imaginar como faria para fugir
daquele lugar caso eu não fosse capaz de resistir à vontade de matar cada um daqueles filhos da puta.

Era apenas um guarda na guarita com o holofote e um responsável pelo portão, o que seriam
dois alvos fáceis caso estivessem desarmados, o que seria a melhor das hipóteses.

Claro que para isso eu teria que matar os dois homens que estavam comigo.

À essa altura eu tinha certeza de que o velho estava armado, então eu teria que matar ele
primeiro, em seguida passar para o guarda, e só então o barman, mas antes disso eu...
Minha linha de pensamento foi quebrada no mesmo instante em que chegamos em frente à porta,

com o guarda a abrindo de uma vez apenas para mostrar o interior daquele galpão...

Que estava lotado de nazistas.

O lugar era como um enorme pub, com um dos lados do lugar sendo marcado por um extenso

balcão de madeira, completamente adornado pelos raios da “SS”, enquanto nas paredes, os quadros

carregando as imagens dos grandes nomes do Reich, desde Goebbels[7] até Himmler[8] , todos
pintados usando os uniformes escuros, marcados pelas suas condecorações.

No centro da parede que ficava ao fundo do lugar, havia um palco, onde a imagem de Hitler era
exposta, tão grande que era capaz de tomar toda a parede, com seus olhos escuros observando a tudo
e a todos, como se o retrato fosse capaz de esboçar o orgulho que aquele demônio sentia ao ver que
mesmo depois de tanto tempo, homens como ele ainda perpetuavam e entoavam suas palavras de
ódio.

Aos pés do palco, a águia de ferro pousava vigilante, carregando a suástica que parecia estar
estampada por cada canto daquele lugar.

E no centro do galpão, havia um ringue, feito por cordas que cortavam por entre pilares de

metal, e à volta dele havia feixes de feno, para deixar um espaço macio caso algum dos lutadores
caísse nas cordas.

E de fato, havia lutadores.

Dois homens, vestindo apenas regatas brancas e bandagens enroladas em suas mãos, trocavam
socos, que batiam secos em suas carnes, soltando um som abafado de cada golpe que era acertado em
cheio.

Os dois pareciam ser novos, claramente com menos de vinte e cinco anos, mesmo que o rosto
inchado e marcado pelo sangue não ajudasse a diferenciar os dois, que possuíam a pele branca e os
cabelos claros, a única coisa que facilitava entender quem era quem, eram as tatuagens.
Suásticas, raios, águias e as cruzes de ferro estampavam o corpo dos dois lutadores, em seus

braços, peitos e pernas.

Olhei ao redor do ringue, onde a plateia assistia atenta o massacre que parecia acontecer por
parte do garoto maior, que ostentava uma suástica tatuada onde ficaria a sua braçadeira, e por um

instante precisei piscar uma ou duas vezes para entender o que realmente acontecia ali.

Era como se todos fossem a mesma pessoa.

Todos com o mesmo tom de pele, mesma cor de cabelo, mesma forma de se vestir.

Alguns usavam ternos escuros, muito bem alinhados, com broches enfeitando suas lapelas, mas
outros se vestiam com roupas militares, com as calças camufladas, camisetas brancas e coturnos bem
polidos.

Generais e soldados...

Deixei meus olhos vagarem, tentando mapear aquele lugar, procurando qualquer saída de
emergência, observando as paredes adornadas, procurando talvez por uma maçaneta escondida ou
por um quadro grande o suficiente para esconder uma porta...

Mas era como se o lugar tivesse sido projetado para que não houvesse uma outra saída que não

fosse a porta principal.

Continuei observando, mapeando o lugar em minha mente, até que meus olhos pararam em um
quadro, onde uma rosa traçada em preto estava marcada em uma faixa vermelha.

“Rosenrot”

O nome do lugar veio à minha mente, tentando entender como caralho eu teria descoberto esse
lugar se não tivesse sorte o suficiente para que isso acontecesse.

“Helena... Mesmo longe, você ainda me traz sua sorte.”

Fiz da lembrança dela meu escudo, enquanto atravessava o salão, enquanto os dois homens me
guiavam, cortando espaços entre seus companheiros que pareciam tão focados na luta que era como
se não fossem capazes de me enxergar ali.

— Esta é a célula principal da Rosenrot — o mais velho disse enquanto apontava em direção
às pessoas. — São sessenta e sete afiliados aqui, mas somos mais de duzentos por toda a Munich.

— E qual as condições para poder entrar nesta célula? — perguntei, tentando parecer
interessando, enquanto passávamos próximos ao ringue improvisado, com a torcida vibrando quando
o favorito acertou um cruzado com violência contra as costelas do garoto que já estava com o rosto
manchado pelo próprio sangue.

Nenhum dos dois lutadores usavam luvas, então cada golpe acertava em cheio o adversário,
deixando o barulho de ossos trincados ecoarem altos pelo salão.

— Este é um lugar apenas para os melhores entre os melhores — o homem respondeu com tom
de orgulho, enquanto empurrava um homem que parecia estar completamente bêbado.

— E quem escolhe os participantes? — indaguei, desviando do bêbado que olhou torto para
nós.

— Eu, obviamente — o senhor retorquiu rindo. — Hermann Berchtold, o reichführer[9].

“Berchtold...”

As palavras dele ecoaram em minha mente, enquanto o homem me encarava, esperando minha
reação ao saber seu nome que parecia carregar algum significado maior.

— Me desculpe, mas seu sobrenome não me parece estranho... — disse, logo sendo cortado
pelo homem, que me encarou com desaprovação.

— Sou o filho mais novo de Joseph Berchtold[10], o precursor do Reich — ele falou, fazendo
com que algo em mim queimasse com mais força.

Algo que eu nunca soube responder se era raiva ou ódio...


Levantei as sobrancelhas, tentando esboçar surpresa o suficiente para que ele não me fizesse

mais perguntas sobre.

— Claro que meu pai nunca teve tanta atenção quanto ao seu... — Ele parou de andar por um
instante, me olhando nos olhos. — O que o Obergruppenführer era de você mesmo?

— Avô — respondi sem hesitar, o fazendo pensar um pouco apenas para dar de ombros logo
em seguida, para encontrar o balcão do bar que estava logo à nossa frente.

— Claro, avô — ele disse fazendo sinal para que eu sentasse em um dos bancos pretos que
ficavam em frente ao largo balcão, e sem tirar os olhos dele, o fiz. — Vamos ter mais duas lutas

depois desta, e então teríamos o duelo principal da noite, mas um de nossos lutadores sofreu um
acidente de proporções trágicas... Então, como você é um novato por aqui, o que acha de substituí-lo
para que possamos conhecer mais de suas habilidades?

— Não vejo problema algum — respondi —, sempre gostei da nobre arte.

— Esplêndido! — ele exclamou abrindo um sorriso amarelado. — Então pode ficar aqui, que
eu vou falar com os generais.

Ele correu os olhos pelo bar enquanto falava, e eu segui seu olhar pelas torneiras de cerveja e

pelas garrafas que estavam dispostas por uma prateleira de madeira, adornada com águias.

Mas meus olhos pararam na mulher, que estava de costas para nós, cujos cabelos ruivos claros
caíam sobre os ombros.

Ela vestia uma regata branca, deixando algumas tatuagens que cobriam sua pele à mostra, a
calça jeans escura que ela vestia marcava seu corpo, mostrando principalmente a arma que ela
carregava na parte de trás de seu corpo.

Hermann bateu na madeira do balcão, fazendo com que ela se virasse, abrindo um sorriso em
nossa direção, e de alguma forma eu soube que havia algo de diferente nela.
— Sieg Heil, reichführer[11] — ela disse com uma voz calma, enquanto seus olhos iam do

homem e seu filho, que havia nos seguido, até os meus.

— Sieg Heil — o homem respondeu. — Queria te apresentar Hans Von Hausser, ele vai
substituir o Karl na luta de hoje, então a bebida dele vai ser por nossa conta.

Ela confirmou com a cabeça, sem tirar o riso do rosto.

Hermann olhou para mim, dando dois tapinhas em meu ombro, e então voltou para entre a
multidão, me deixando sozinho com a barwoman, que caminhava em minha direção.

Seu corpo era marcado por cicatrizes e algumas tatuagens, mas a que mais me chamava atenção
era aquela que cobria a parte de cima de seu peito...

“Royal Blood[12]”

— O que você vai querer beber, Sr. Hausser? — ela perguntou sem tirar os olhos de mim, mas
o sorriso que estava em seu rosto já havia se dissipado.

— Não vou querer beber nada, muito obrigado senhorita...

— Sophia — ela disse dando um passo à frente, com seus olhos correndo pelas tatuagens em
meu braço. — Sophia Wolf.
“Há uma teimosia em relação a mim que nunca pode suportar ter medo da vontade dos

outros. Minha coragem sempre aumenta a cada tentativa de me intimidar”

JANE AUSTEN

10 ANOS ATRÁS
— Olha só... — a voz rouca do Doutor Strauss disse com um tom de ansiedade. — Acho que

alguém logo... logo vai estar pronta para cumprir seu papel, não é mesmo? — ele falou rindo, vendo

o lençol manchado de sangue...

Meu papel...

Acompanhei com os olhos enquanto o homem esguio ria e anotava a data e hora em uma
prancheta e a entregando para uma enfermeira... E por mais que sua voz sempre assombrasse meus
pesadelos, era como se o seu rosto sempre estivesse borrado em minhas lembranças.

Como se, de alguma forma, minha mente tivesse apagado a imagem daquele homem, com a

esperança de que assim essas se tornassem menos dolorosas.

Havia apenas um motivo para eles terem ido atrás de um casal com sangue real... Para que eles
pudessem ter a merda de um estoque de bolsas de sangue.

No começo eles imaginavam que teriam acertado ao encontrar uma um casal com uma filha,
mas eles não contavam que eu era a merda de uma órfã, mas para a sorte deles, os desgraçados já
tinham um garoto que serviria.

E tudo o que lhes restava era um pouquinho de paciência, até que a garotinha pudesse dar à luz

a próxima leva de doadores.

A porra dos bebês dourados.

Eu tinha seis anos no momento em que pisei aqui pela primeira vez, e agora já fazia dez anos
desde que morava nesse lugar, vivendo por entre os corredores, celas e ambulatórios como uma
escrava destes “médicos”.

E eu morreria antes de colocar outra vida para passar pelo mesmo inferno.

No começo, eu comecei a acordar mais cedo, quando eu sabia que minha menstruação estava
para descer, e usando o papel higiênico do banheiro acabava improvisando um absorvente, também
enrolava uma toalha, tentando esconder meus seios que haviam começado a crescer.

E isso funcionou durante dois anos...

E tudo estava indo bem, até àquela manhã, quando um dia antes as enfermeiras haviam testado
em mim um novo “coquetel” de remédios, com a esperança de que com eles, meu corpo terminaria de

amadurecer.

Naquela manhã fui acordada pelas enfermeiras que já haviam chegado em meu quarto, e mesmo
antes de abrir os olhos eu já sabia o que havia acontecido...

Mas o que realmente me preocupava, era o que estava prestes a acontecer.

Quando todos foram embora do quarto, a única coisa que fui capaz de fazer foi tomar um
banho.

Com a esperança de que a água quente fosse capaz de tirar o medo e a angústia que haviam
tomado conta de mim.

Senti aos poucos a água escorrer pela minha pele, com a temperatura alta a marcando em
vermelho, e mesmo que aquilo doesse, era bom sentir algo que não fosse raiva.

Naquele momento, mesmo com todos os anos vivendo em meio àquele lugar, foi a primeira vez
que pensei em desistir.

O primeiro momento em que a morte pareceu se tornar realmente uma saída.

Olhei para o chuveiro de metal que saía da parede, e em como a água descia dele até meu
corpo, e ali a imaginei enchendo meus pulmões...

Não seria rápido.

Não seria indolor...

Mas talvez o que houvesse do outro lado fizesse valer a pena.

Talvez... A chance de fugir desta vida fosse o suficiente para entrar na morte um alívio...

— Filha?! — A voz da minha mãe que veio seguida do bater da porta, foi o suficiente para que
meus pensamentos se dissipassem.

— No banheiro! — gritei alto, passando a mão no rosto, como se tentasse limpar as lágrimas
que se misturavam com a água, enquanto eu saía do banho, e destrancava a porta.

E a primeira coisa que senti, foi o abraço dela, me aninhando em seu colo.

— Mãe... Eu estou toda molhada... — disse, mas sem me afastar.

— Filha... Vem cá... — Ela me puxou para ela, enquanto eu molhava as roupas pesadas que ela
usava.

Envolvi seu corpo com meus braços, deixando meu rosto em seu peito.

Ela pegou a toalha que estava estendida e me envolveu nela, enquanto íamos aos poucos em
direção a minha cama, onde ela já havia tirado o lençol manchado e trocado por um limpo, e ali eu
me deixei cair.

Minha mãe, com todo o cuidado que apenas ela tinha comigo, secou com corpo sem pressa,
porque mesmo que eu tentasse lutar contra a enxurrada de sentimentos que tomavam conta de mim
naquele momento, era como se meu próprio corpo houvesse desistido de tentar...

Como se não houvesse forças suficientes em mim para que eu pudesse lutar contra aquilo.

Tudo o que havia me restado era aceitar que eu seria apenas mais uma peça daquele joguinho.
Apenas um pedaço de carne para eles me usarem.

— Filha... Tá tudo bem? — minha mãe me perguntou com a voz rouca de preocupação.

— Está... — menti.

Me virei na cama, para que pudesse vê-la melhor, apenas para ver seus olhos azuis cheios
d’águas me olhando, enquanto ela passava a toalha macia pelo meu rosto.

— Eu estou com você, filha — ela disse enquanto secava uma lágrima que desceu pelo meu
rosto. — Sempre vou estar, tá?

— Obrigada... Mãe — falei tentando, em vão, esconder o sentimento que transbordava em


minha voz.

— Sabe... Eu fiquei com medo do dia em que eles descobrissem — ela contou, com a voz mais
calma que pode, mas eu ainda era capaz de sentir a dor que habitava cada palavra. — Mas eu me
sinto tranquila em saber que você se tornou uma mulher forte... Que mesmo com todo o inferno pelo
qual a gente passa... Você ainda é forte...

— Mas, do que adianta? — perguntei, enquanto puxava a coberta, cobrindo meu corpo. — Do
que adianta ser forte sem ter nenhuma esperança de sair daqui?

— Força sem fé não cria soldados, minha filha — ela disse enquanto se aproximava de mim.
— Mas força acompanhada de uma boa porção de fé, cria anjos... E não há nada que impeça os anjos
de voar.
“Quando um louco parece completamente lúcido é o momento de colocar-lhe a camisa de

força”

EDGAR ALLAN POE

Mas, sentado naquele balcão, eu percebi que havia algo de estranho.

Na maioria das vezes era fácil identificar um nazista, principalmente pelas roupas, forma de
falar e sem dúvida alguma pela forma única de agir, de quando você tem a certeza de que faz parte de
uma raça superior e de que todos a sua volta deveriam se ajoelhar perante a sua presença.

E esses eram traços que eu não era capaz de perceber na Sophia.

Acompanhei ela com os olhos, enquanto apoiei um dos braços no balcão e deixei minha mão

direita envolver o cabo da faca que estava presa em minha cintura, e observar aquela mulher
trabalhando era algo quase hipnótico.

Ela andava pela parte de dentro do balcão com os olhos correndo em cada um que se
aproximava, entregando para cada homem ali o que ele queria antes mesmo que ele fizesse o

pedido...

Como se conhecesse bem cada um deles.

Poucos homens acabavam a cumprimentando, mesmo que eles fizessem questão de soltar um
“Heil Hitler” ou um “Sieg Heil” para cada maldito desgraçado que encontrassem ali, mas por sua
vez a bartender parecia não fazer questão alguma de soltar estas palavras.

— Eu acho melhor você nem tentar. — A voz do homem que havia encontrado no pub, filho do
Velho, fez com que eu me virasse.

— O que disse? — perguntei, observando o movimento que se formava atrás do homem que se
vestia como um militar agora, sem o avental de couro.

A luta parecia ter acabado, enquanto um dos garotos, o maior, virava uma caneca de cerveja,
seu adversário era arrastado para fora do ringue, deixando uma pequena faixa de sangue pelo chão.

— A Sophia — ele disse se aproximando, cravando seu olhar nela. — Todo mundo aqui já
tentou, mas pouquíssimos conseguiram.

Rindo, ele apoiou a mão em meu ombro, me obrigando a fechar a minha ao redor do cabo da
faca presa em meu cinto.
Mas aquilo havia apenas aumentado minha curiosidade.

— E o que eu tenho que fazer para conseguir? — perguntei, tentando manter meus olhos nela da

mesma forma que ele.

— Sabe... Eu acho que você ainda tem chances — ele respondeu jogando um par de bandagens

hospitalares no meu peito. — Ela sempre sai com novatos ou o pessoal que está indo para missões.

— Então eu acho que vale a pena tentar. — E forçando uma risada, peguei as bandagens que
estavam em meu colo. — Quais são as regras?

— Luta sem luva — ele disse com pressa, vendo que estava sendo chamado em meio à
multidão que rodeava os dois novos lutadores que subiam no ringue. — Não vale mão aberta nem
golpes abaixo da cintura, cinco rounds e só se vence por nocaute.

E com dois tapinhas no ombro, ele voltou para o centro do galpão.

Voltei com os olhos em direção da bartender, apenas para quase cair do banco quando percebi
que ela estava a dois palmos de mim, enchendo uma caneca de cerveja em uma torneira que estava do
meu lado.

— Lutador novo, homem que não bebe nada? — ela disse em um alemão rasgado.

— Membro novo — respondi colocando as bandagens em cima do balcão. — Mas sabe, acho
que vale a pena beber.

Eu precisava de uma desculpa para continuar conversando com aquela mulher.

— Então, o que o senhor gostaria? — ela perguntou apontando para a prateleira de bebidas
atrás dela.

Nunca havia sido um grande apreciador de bebidas, principalmente antes de qualquer missão,
onde Gabriel e Ângelo sempre enchiam a cara com qualquer coisa que continha álcool e pudesse ser
misturada com energético...
Mas Arthur sempre foi mais controlado.

Ele bebia whisky, boa parte das vezes, e sempre de uma mesma marca que era

surpreendentemente boa...

Procurei o rótulo entre as garrafas e sorri ao encontrá-lo.

— Aquele whisky, com a garrafa vermelha... — disse apenas para ser interrompido.

— Red Breast, vinte e um anos? — ela questionou erguendo uma das suas sobrancelhas. —
Whisky Irlandês?

Confirmei com a cabeça, imaginando o quão estranho seria para um nazista pedir uma bebida
estrangeira, mas ela apenas soltou um sorriso de curiosidade e foi até o balcão com calma, tirou a
garrafa do seu lugar, pegando dois copos redondos e baixos e voltando até minha direção.

— Sabe, é difícil alguém pedir algo diferente de cerveja e jägermeister. — E com delicadeza,
ela colocou a garrafa sobre o balcão, mostrando o pássaro vermelho escuro que marcava o rótulo.

Tomando cuidado, ela despejou o líquido quase cremoso e avermelhado nos dois copos,
arrastando um com dois dedos para minha direção e pegando o outro para ela.

— Prost! [13]— ela disse erguendo o copo no ar e bebendo tudo de uma vez só.

— Prost. — Brindei, bebendo de uma vez o líquido avermelhado, sentindo o gosto forte do
álcool e da madeira que marcavam a bebida.

— Seu alemão — ela disse passando o dedo pelos lábios, limpando um pouco de bebida. —
Ele tem um sotaque diferente... De onde é?

— Estados Unidos — respondi sentindo o gosto amadeirado que havia ficado em minha boca.
— Me mudei para cá há quase dez anos, mas é difícil se livrar de alguns costumes.

— E o que um homem das terras mestiças veio fazer na Germânia? — Era engraçado como ela
parecia se forçar a usar algumas palavras.
— Vim a trabalho — respondi prestando atenção em como ela parecia mais interessada agora

ao saber que eu era de fora. — Mas ele não durou muito tempo, porém acabei ficando com o objetivo

de conhecer um pouco mais sobre as minhas raízes e sobre meus antepassados.

— E como tem ido na sua jornada pela árvore genealógica? — Sorrindo de uma forma

estranha, ela abriu a garrafa e voltou a nos servir.

— Não muito bem — disse pegando meu copo onde já havia uma nova dose, e acompanho os
olhos dela fixos em mim. — Eu estou procurando um tio, que minha família toda tinha certeza de que
havia morrido.

— Por isso veio para a Rosenrot? — ela perguntou rindo. — Bem, eu conheço todo mundo
aqui, se quiser me dizer quem ele é, posso tentar ajudar.

— Acho que não deve ser difícil se lembrar, ele tem um nome diferente — respondi, tentando
deixá-la apenas mais curiosa enquanto bebia mais um pouco da bebida amarga. — Ele é um médico,
se chama Doutor Strauss, conhece?

E por um momento, foi como se o olhar dela se perdesse em direção ao meu.

Como se eu pudesse ver o caos que havia se formado dentro dela, de uma forma tão poderosa

que eu podia senti-lo.

Ela entreabriu os lábios, como se tentasse encontrar palavras para me responder, enquanto eu
prestava atenção em sua boca, no objetivo de tentar reconhecer qualquer letra ou palavra que ela
pudesse estar pensando...

Mas logo fui puxado de volta para a realidade com um puxão no ombro.

— Hausser! — A voz de um homem vestido com uma camiseta branca manchada de sangue
com um apito pendendo em seu peito veio seguida de um tapa nas costas. — Vamos para o vestiário,
a sua luta é a próxima.
Cumprimentei a mulher com um sorriso e me levantei, levando as bandagens comigo enquanto

me misturava com a multidão...

Mas ainda era capaz de sentir seu olhar me seguindo.

Prestando atenção em cada passo que eu dava dentro daquele lugar.

O cheiro de sangue seco parecia estar impregnado nas paredes.

Quando o homem, que parecia ser o juiz das lutas, veio me buscar, acabei sendo levado para o
que deveria ser o vestiário do lugar, mas que se parecia mais com a porra de um abatedouro.

O cubículo branco, com o piso gasto manchado de sangue, assim como parte das paredes, era
marcado pelo cheiro forte de sangue e suor, com algumas bandagens manchadas de vermelho jogadas
em um lixo encardido que já estava transbordando.

A única luz, que pendia presa a um fio, piscava em um tom amarelado, que apenas mostrava o
quão precário era aquele lugar.

Olhei em volta, procurando um gancho onde poderia prender minha camisa, mas encontrei
apenas um vergalhão de metal que saía da parede crua do galpão.

Desabotoei minha camisa, a prendendo ali mesmo, enquanto pensava no que poderia fazer com
a faca que estava presa em minha cintura.

Pensei em prendê-la na parte de dentro da minha calça, mas as chances de alguém perceber que
ela estava ali eram altas demais para tornar essa uma opção viável...
Olhei para minhas botas, apenas para perceber que o cano alto era o suficiente para esconder a

maior parte do cabo...

Era perfeito.

Prendi minha faca de caça ali, cobrindo o restante do cabo com a barra da calça, e então

comecei a passar a bandagem hospitalar.

Comecei dando algumas voltas pelo pulso da mão direita, tentando a deixar o mais firme
possível, e então dei uma volta ao redor do meu polegar, passando direto para a palma da mão, entre
os dedos e então os nós dos dedos, dando voltas e voltas para garantir o mínimo de proteção.

Quando terminei de prender a bandagem na mão direita, fechei e abri os dedos para ter certeza
de que estava firme, e então passei para a mão esquerda...

Apenas para ver o brilho da luz amarelada que iluminava a aliança que estava ali.

Servindo de aviso.

Que agora, era isso que eu era, um homem a vidas de distância de quem um dia eu realmente
fui...

Longe o suficiente para que as lembranças boas agora parecessem desbotadas.

Para que os ecos de qualquer sentimento bom, já estivessem cessados.

Tirei a argola de ouro do dedo, guardando-a no bolso da calça, hesitando por um instante em
deixá-la ali... Como se fosse errado sair sem ela em minha mão.

Como se ela ainda simbolizasse alguma aliança...

Limpei à mente, enquanto soltava a respiração lentamente, enrolando a bandagem da mesma


forma que havia feito antes, mas desta vez prestando atenção em cada detalhe, com a esperança de
que assim eu pudesse manter minha cabeça no lugar.

Porque se eu pisasse naquele ringue com a lembrança de Helena, provavelmente não sairia de
lá com vida.

— Pronto, Hausser?! — a voz do Juiz gritou pela porta.

— SIM! — respondi, tentando passar o máximo de energia possível.

Encarei o espelho trincado que havia em minha frente, observando meu próprio rosto, que
agora estava marcado pelas noites de insônia, meu corpo mais magro do que de costume, com meus
músculos sendo marcados pela pele fina, que por sua vez, estava marcada pelas tatuagens que o
cobriam.

Cada uma feita entre as missões no exército.

Como troféus, por ter sido capaz de sobreviver por mais um dia.

Prendi meu cabelo, que solto caía quase na altura dos meus ombros, e passei as mãos pelo
rosto, sentindo o toque áspero das bandagens e seu cheiro estéril.

Respirei fundo e comecei a caminhar em direção a porta, chacoalhando os braços para que
pudesse soltar meus músculos, e no mesmo momento em que saí do vestuário, fui recebido com a
salva de palmas e gritos dos homens que criavam um corredor humano em direção ao ringue
improvisado.

— E NO CORNER AZUL, TEMOS ELE! — A voz rouca e gritada do juiz me anunciava,


abafada pela vibração dos porcos que guinchavam na plateia. — NETO DO CONQUISTADOR DE
VARSÓVIA, HANS VON HAUSSER!!

Os holofotes que foram virados em minha direção me cegaram por um instante, enquanto eu
continuava andando em direção ao ringue de cordas, atravessando o corredor criado pelos homens
que gritavam e aplaudiam, levantando seus copos e derramando cerveja uns nos outros.

Outros homens me olhavam de longe, me observando como quem espera algum tipo de
aprovação.
Observei o outro lado do ringue, mas o encontrei vazio, então fui com calma até lá,

atravessando entre as cordas do ringue e me posicionando em um dos cantos, abrindo e fechando as

mãos para ter certeza de que a bandagem estava no lugar, enquanto observava em volta.

O piso ali já estava gasto, por isso era mais áspero que o normal, o que poderia ser útil para

apoiar minha base para os golpes.

— E NO CORNER VERMELHO! — o juiz gritou apontando em direção a porta que ficava do


outro lado do galpão, enquanto eu tentava manter meus olhos fixos naquela direção, esperando meu

adversário. — O SOBRINHO DO AÇOUGUEIRO DE PRAGA[14], HEINRISH HEYDRICH!!

E por entre o corredor de homens que o aplaudiram e louvavam, pude ver a silhueta alta que
vinha em minha direção, com os olhos azuis tomados por ódio.

Ele era alto, mais do que eu esperava, com o corpo coberto por tatuagens que, como de quase
todos ali, eram os símbolos de uma Alemanha que tantos tentavam esquecer, mas entre elas, a que
chamava mais atenção era a águia de ferro que estampava seu peito, com a ave fria segurando uma
suástica com suas garras longas e arqueadas.

Além das tatuagens, seu corpo também era marcado por cicatrizes, principalmente na sua

cabeça raspada, onde era possível ver os cortes que marcavam o que deveriam ter sido tentativas
fracassadas de assassinato.

Meu adversário usava calças militares com coturnos, estava sem camisa assim como eu, e já
estava com as bandagens em punhos quando atravessou as cordas, se colocando à minha frente do
outro lado do ringue, sorrindo enquanto me observava de cima a baixo.

— Que Deus tenha piedade da alma de meus inimigos, pois eu não terei piedade alguma —
falei em voz baixa, com minhas palavras sendo abafadas pelo barulho da plateia.

O juiz, que estava do lado de fora do ringue, olhou em minha direção, sinalizando com a
cabeça, perguntando se eu já estava pronto, e ali eu sinalizei que sim.
Ele fez o mesmo com o homem à minha frente, que também confirmou com a cabeça.

— E QUE COMECE A LUTA! — ele exclamou batendo um martelo pesado sobre uma bigorna,

deixando o estalo do metal ecoar no galpão, seguido de outra salva de gritos e risadas dos bêbados.

Cerrei os punhos enquanto dava um passo à frente, vendo aquele homem partir para cima de

mim com suas mãos fechadas, prontas para me acertar.

Ele era mais alto do que eu, então meus golpes seriam de baixo pra cima, o que já era uma
desvantagem para mim...

Então seria necessário acertar onde eu pudesse usar toda minha força.

Apoiei meu pé esquerdo no chão enquanto me impulsionava para frente, em direção ao homem
que parecia me ler, procurando entender o que eu estava prestes a fazer.

Usei o peso do meu corpo para aumentar minha velocidade, me jogando em direção ao corpo
dele com minha mão direita indo direto em suas costelas, dando um cruzado da direita para a
esquerda.

Ele jogou seu corpo para trás, deixando minha mão cortar o ar à sua frente.

Apoiei meu pé esquerdo no chão enquanto me recuperava do golpe, observando o homem à

minha frente que sorriu ao ver que havia conseguido esquivar, já se preparando para me acertar.

Ele lançou seu punho em direção ao meu rosto, rápido o suficiente para me deixar sem muitas
opções além de continuar avançando.

Levantei meu braço esquerdo para segurar o golpe, deixando a mão do homem me acertar com
força o suficiente para que eu pudesse sentir cada músculo do meu ombro até meu pulso latejar.

Impulsionei meu corpo mais uma vez em direção ao homem, que ainda se balançava pelo golpe
que havia me dado, e com violência, arremessei minha mão em direção às suas costelas, mais rápido
do que ele era capaz de abaixar sua guarda.
Minha mão explodiu contra suas costelas com força o suficiente para que eu pudesse sentir os

ossos cedendo levemente contra os nós dos meus dedos, que afundavam em sua carne.

Levantei meus olhos para o rosto do homem, que havia se tensionado de tal forma que pude ver
as veias de seu pescoço saltarem com a dor, e ao mesmo tempo, ele jogava seu cotovelo para baixo,

tentando acertar meu braço que já não estava mais lá.

Aquela era minha chance de acabar com a luta antes de sofrer com a força daquele desgraçado.

Meu segundo golpe era focado no meio do seu peito, mirando em cheio à suástica que estava
estampada aos pés da águia, e com a mão que estava meio dormente pelo golpe que havia segurado,

usei todo o peso do meu corpo com a esperança de aumentar minha força.

Meu soco acertou o homem, que balançou para trás, ficando em pé apenas por ter sido ágil o
suficiente para se apoiar, recuando um passo em direção as cordas...

E ali eu percebi o quão exposto eu estava.

Olhei para minha esquerda, acompanhando a mão do homem que já estava levantada, vindo em
minha direção com velocidade... Perto demais para que eu pudesse desviar.

O golpe atingiu meu rosto em cheio, fazendo minha visão piscar em branco, enquanto meu

corpo todo parecia chacoalhar e minha boca se enchia com o gosto de sangue.

Tentei manter meus pés fixos no chão, enquanto minha consciência oscilava, e foi então que
toda minha experiência falou mais alto do que minha própria mente, porque aquele tinha sido só o
primeiro golpe.

Pulei para trás, e mesmo com a minha visão ainda turva, pude ver a mão do homem que passou
a centímetros do meu rosto.

E aquela era a minha oportunidade para continuar.

Ainda tonto, deixei meu corpo agir, voltando a avançar, com meus punhos voando em direção
às costelas do homem com um direto que conseguiu o acertar de raspão enquanto ele tentava, em vão,
sair do meu alcance.

Meu segundo soco o acertou no mesmo lugar, enquanto eu usava a mão esquerda para proteger
meu rosto do golpe que viria, e mesmo que ele tenha me acertado, ele já estava sentindo mais dor do

que eu.

Seu corpo se curvou, enquanto minha mão o empurrava para trás, e pela primeira vez naquela
luta o rosto dele estava ao meu alcance.

Minha mão esquerda, que estava dormente por ter segurado mais um soco, voou em direção ao

queixo dele, e com meu punho fechado, acertei o queixo do homem que acompanhou minha mão com
os olhos.

E foi como se eu pudesse ver a consciência do homem sendo desligada.

O corpo dele pendeu, caindo em direção as cordas enquanto eu tentava manter meus pés firmes
no chão, dando meio volta com meu corpo para que pudesse continuar indo em sua direção, porque
eu não iria parar...

Não até aquele desgraçado estar acabado.

Ele caiu com as costas nas cordas, enquanto seus olhos abriam e fechavam lentamente, com sua
mente já fora de si, mas isso não me impediu de dar mais um soco, que acertou o filho da puta no
queixo, jogando seu corpo para trás, apenas para ele voltar em minha direção, ricocheteando nas
cordas, pronto para mais.

E assim eu dei mais um soco.

Mais dois.

Mais três...

E a cada golpe, sentia os ossos das minhas mãos bater com violência contra a cabeça do
homem que já estava desacordado, com seu sangue quente manchando meus punhos e pintando a
bandagem de rubro.

Deixando o ódio que habitava em mim, fluir em cada soco.

E lá no fundo, aquele não era eu, mas sim, uma besta que ainda insistia em esconder embaixo

da minha carne.

Aquela era a minha alma.

Violenta, marcada pelo sangue e ódio.

Feroz e cega.

Ergui meus punhos, preparando para mais um soco, mas senti meu braço ser agarrado.

Olhei para trás, com minha respiração ofegante e a mente ainda atordoada, e encontrei o Velho
segurando meu braço com uma das mãos, e com um sorriso estampado em seu rosto, ele ergueu minha
mão para cima, e ali, eu fui ovacionado por aqueles homens.

Como se fosse um deles.

Porque ali... Eu era.


“Memórias e possibilidades são cada vez mais hediondas do que realidades”

H. P. LOVECRAFT

10 ANOS ATRÁS

O que torna alguém humano?

O seu cérebro?
À sua mente?

A porra do seu polegar opositor?

Uma vez René Descartes [15]disse “Cogito ego sun”, que apesar de algumas pessoas traduzirem

como “Penso logo existo”, a tradução correta na verdade é “Penso logo sou”

Penso logo sou...

Essa era a forma correta de ler aquilo que te tornava humano, porque pensar era e sempre seria
aquilo que nos diferenciava dos demais seres vivos.

Porque pensar, era o maior ato de contraversão que uma pessoa podia ter.

Pensar é sobre se rebelar, sobre refletir e chegar às suas próprias conclusões.

Pensar é um ato político.

É um ato rebelde.

Porque, muitas vezes, as pessoas podiam tentar te impedir de tomar as próprias decisões, mas
elas jamais poderiam te impedir de pensar, e mesmo que usassem de toda e qualquer forma de
violência contra você, elas não seriam capazes de parar uma vontade, um pensamento.

Uma ideia...

E ali, uma ideia era tudo o que eu tinha.

Lutar pela minha liberdade ou morrer tentando ser livre.

Depois que descobriram que eu já estava pronta para ser usada de corpo e alma por eles, foi
uma questão de dias até que eles decidirem que já estava na hora...

Respirei fundo na cama, e agora, depois da terceira noite em claro seguida, era como se minha
mente já não funcionasse mais como deveria, como se o mundo todo a minha volta fosse aos poucos
perdendo o sentido, com as imagens se misturando em algo disforme, enquanto meus olhos fixos na
janela absorviam o pouco de luz do nascer do sol que entrava por ela.

Tentava imaginar como eles fariam tudo.

Como seria o processo...

Porque, no fundo, era tudo o que seria para eles... A merda de um processo.

Uma procriação, como a do gado...

Com os donos tomando cuidado para que a vaca estivesse pronta para mais e mais filhotes
depois que o primeiro viesse ao mundo...

— Sophia! — A voz feminina veio seguida de três batidas fortes na porta, que fizeram todo o
meu corpo se arrepiar. — Acorde e se prepare!

Levantei, sentindo meu corpo gelado pelo ar da manhã que tomava conta de mim, tentando usar
o que me restava de forças para as tarefas que deveriam ser feitas.

O banho daquela manhã foi longo, com a água quente correndo pelo meu corpo como se fosse
capaz de limpar toda a raiva que havia em mim, mesmo que eu soubesse que isso era impossível.

Porque ela já fazia parte de quem eu era.

Tão profunda em mim quanto minha própria alma.

E quando me sequei e vesti a mesma roupa que usava todo dia e me sentei na cama, olhando
pela janela tentando em vão, arquitetar algum plano de fuga em minha mente.

Mas nada parecia provável...

Eu não sabia como era o resto daquele lugar, e muito menos onde ele ficava no mundo.

Não sabia em que país estava ou sequer qual língua falavam por aqui além do alemão.

Nem quais cidades havia em volta... Se é que houvesse alguma perto o suficiente para que
pudéssemos chegar a pé.
E ali, observando o mundo pela janela, percebi que havia algo de errado.

No começo era como um vulto, correndo afastado pelo horizonte, como uma sombra, que se

aproximava lentamente plainando aos poucos pelo céu.

Cerrei os olhos enquanto me colocava de pé, me aproximando da janela enquanto o pequeno

ponto escuro nos céus voava, tomando forma do que parecia ser algum tipo de avião, mesmo que
ainda estivesse alto demais para que pudesse entender o que era.

Eu só sabia que nunca havia visto algo assim antes.

Não aqui.

— Sophia, está pronta?! — A voz rouca do Dr. Strauss me arrancou de dentro daquele transe.

Meu coração pulou em meu peito enquanto eu sentia meu corpo todo ceder.

— Lutar ou morrer — disse em voz baixa, para poder gritar. — ESTOU!

Gritei com vontade, com força suficiente para sentir minha garganta queimando, e antes mesmo
que eu pudesse terminar, a porta abriu com violência, batendo contra a parede de concreto, com dois
homens entrando e se colocando ao lado do batente, enquanto o próprio Strauss entrava.

E na minha lembrança, a única coisa que era capaz de me recordar, eram dos óculos redondos

que ele usava no dia, marcando seu rosto que agora era apenas uma sombra.

Um borrão.

Sem vida nos olhos azuis claros o suficiente para que se pudesse ver o inferno que havia dentro
daquele homem.

O demônio que habitava cada um dos meus pesadelos, até mesmo aqueles em que eu estava
dormindo.

Observei a porta, esperando para ver se meu único pedido para aquele dia havia sido atendido.
— Sua mãe não vai participar — Strauss disse arrumando os óculos. — Ele já está esperando,

vamos aproveitar que está no auge do período fértil.

Mantive minha mente focada, em cada passo que dei da cama até a porta, enquanto minha mente
lutava e gritava, como uma fera, tentando escapar.

Tentando, com todas as suas forças, tomar conta de mim, com seu rugido ecoando tão fundo em
minha mente que era como se eu pudesse sentir tua presença arranhando meu peito.

Não falaram palavra alguma enquanto atravessávamos os corredores brancos, enquanto eu era
escoltada pelo médico, os dois enfermeiros armados e mais pessoas que vinham em nossa direção,

como se fosse a merda de um desfile.

Em cada canto, cada maldita sala, as pessoas me olhavam passar, com orgulho, porque depois
de tanto tempo de espera, o plano deles estava prestes a acontecer.

Pouco a frente, atravessando os primeiros corredores que adentravam por entre alas que eu
nunca havia visto.

Os quartos hospitalares haviam dado lugar ao que pareciam ser laboratórios, com paredes de
vidro onde qualquer um que passasse poderia ver o que estava acontecendo dentro das salas...

Segui com os olhos a primeira janela que apareceu, com a sua luz destoando do branco sem
vida do resto do corredor, e dentro dela, havia dois médicos que conversavam, apoiados em um
pequeno armário branco que tomava uma das paredes do lugar.

Ambos usando jalecos emborrachados completamente sujos de sangue, com suas máscaras e
óculos também manchados pelo líquido que escorria pelas suas roupas, pingando até formar uma
pequena poça no chão.

E no centro da sala havia uma maca, tão repleta de sangue que era difícil ver o corpo que
estava ali, e a única imagem que tive daquela pessoa, foi seu rosto...
Era uma mulher um pouco mais jovem que minha mãe, com os cabelos recém-raspados e a

boca semiaberta, observando com seus olhos enevoados, já sem vida, a janela que estava a poucos

passos de distância dela.

Como se, de alguma forma, ela estivesse tentando alcançá-la.

Tirei os olhos daquela cena com pressa, mesmo sabendo que agora, aquela imagem, de alguma
forma, fazia parte de quem eu era.

Sabendo que ela me acompanharia pelo resto da minha vida.

Meu corpo todo estremeceu, enquanto me forçava a continuar andando por aquele lugar,
atravessando pelas outras salas que, desta vez, me recusei a olhar.

Os corredores, com o tempo, haviam se tornado mais vazios, com o piso de azulejos largos
tomando forma para algo mais cru, com as paredes já ganhando a cor do cimento acinzentado que as
cobriam e a iluminação se tornava amarelada pelas luzes que tremeluziam lentamente sobre nós.

Paramos em frente a duas portas vermelhas, que estavam dispostas uma ao lado da outra, com
poucos centímetros de concreto as separando.

Dois guardas estavam ali, cada um ao lado de uma delas, com armas em punho como se

protegessem o cofre de um banco.

—Vamos! — Strauss disse segurando meu ombro com sua mão de dedos esguios, me
colocando em frente a porta da direita. — Tente facilitar as coisas, não queremos ter que te sedar
para que o Bran faça todo o trabalho sozinho.

E aquelas palavras foram como uma faca sendo atravessada em meu peito, enquanto ele abria a
porta, revelando um pequeno cômodo com as paredes e o chão feitos apenas de concreto cru, com um
pequeno colchonete no chão, com dois travesseiros de fronha branca.

E no canto do quarto, estava Bran.


Ele me olhou, vestindo as roupas brancas que o hospital dava para nós, enquanto seu cabelo

castanho, já longo o suficiente para que caísse na altura de seus ombros, estava bagunçado.

Seus olhos amendoados correram diretamente para mim, enquanto ele estava lá, sentado sobre
as próprias penas em um canto do pequeno quarto, apenas me esperando.

Meu coração bateu forte ao ver os olhos dele se encontrando com os meus, porque ali eu sabia
que havia chegado a hora que eu mais temia em todo tempo que estava aqui.

Senti a mão que segurava meu ombro me empurrando para dentro da porta, que se fechou como
um estrondo atrás de mim, me deixando ali, enquanto eu sentia meu corpo todo se paralisar.

Bran me olhou, com seus olhos marcados sobre os meus, tão ofegante que eu podia sentir sua
respiração.

Olhei em volta, tentando entender o que era aquele quarto, apenas para que pudesse me ver em
um espelho que cobria a parede esquerda do quarto.

Observei o reflexo e pude ver marcas de dedos e mãos que arrastavam pelo vidro... Era um
espelho de mão dupla.

— Os dois podem começar retirando as roupas para que possamos começar a reprodução

assistida. — A voz robotizada do Dr. Strauss saía pelos alto-falantes que estavam através do
espelho.

Meus olhos e do Bran se reencontraram, enquanto eu esperava a reação que ele teria e meu
coração pulava no peito, batendo mais forte do que eu podia me dar conta naquele momento.

— Eles me obrigaram... — ele falou, com a voz sendo engolida pelo medo. — Eu não quero...
Eu não... Eu...

— Bran, tá tudo bem... — disse dando um passo à frente, me afastando da porta. — Eu sei, não
se preocupe com isso, tá?
— Eles falaram que... Que se eu não conseguir... Vão aplicar uma injeção em mim e me fazer

usar a força... — Bran continuou falando, mas não era como se falasse diretamente para mim. — Eu

não quero... Eu não... Eu não posso fazer isso com você...

Aquele não era ele, mas sim, o medo.

—Bran, eu sei que você não está aqui por escolha — falei olhando em volta, para aquele
cubículo branco, tentando pensar em alguma forma de escapar por entre as grades desse pesadelo. —
Não importa o que acontecer, somos irmãos, não é mesmo?

Olhei para ele, com o rosto coberto por lágrimas e os olhos amendoados manchados pelo

vermelho do choro, e em meio ao desespero, ele concordou com a cabeça.

“Lutar ou morrer, Sophia...”

Pensei comigo mesma, encarando o espelho que estava ali.

— De pé... — falei baixo, cerrando os dentes para Bran, que me olhou levantando uma
sobrancelha. — Levanta e tira a roupa.

Ele me encarou, tentando entender o que se passava pela minha cabeça, mas eu tinha outros
planos.

Eles não iriam tirar mais isso de mim.

Agarrei a parte da camisa surrada que estava vestindo e a tirei, ficando seminua na frente de
todos, e era como se pudesse sentir os olhos deles queimando em minha pele, correndo pelo meu
corpo...

Bran se levantou, tirando sua camiseta, e durante todo o tempo, seus olhos não saíram dos
meus.

— Terminem de se despir e comecem! — A voz pareceu ainda mais ríspida desta vez.

Mas essa seria a última.


Enrolei a camiseta na minha mão, tentando ao máximo proteger meus dedos para o que eu

estava prestes a fazer.

Joguei meu corpo para o lado, e com um soco forte, acertei com tudo o vidro do espelho,
fazendo ele tremer e vibrar contra meu punho, enquanto podia ouvir ele começando a se lascar.

— Mas que merda! — a voz do Strauss gritou do outro lado. — Pare com iss...

Mas antes que ele pudesse responder, acertei meu segundo golpe contra o espelho, usando toda
a força que havia em mim.

Usando toda a raiva que gritava em meu peito.

Minha mão queimava de dor, enquanto o barulho alto do vidro e das vozes era abafada pelo
som dos meus próprios batimentos que agora já haviam se tornado tão altos que era impossível ouvir
qualquer outra coisa.

Observei o vidro que ainda vibrava, apenas para fechar a mão mais uma vez e acertar um novo
soco no vidro.

E depois mais um.

E mais um.

Mas antes que eu pudesse dar o próximo soco, já ouvindo os estilhaços de vidro que estavam
se formando, vi o vidro explodir de vez, espalhando os pequenos estilhaços por toda a mesa de
madeira que estava do outro lado...

Olhei para Bran, que estava com a sua camisa enrolada na mão, com o sangue escorrendo pelo
tecido, com seu rosto também tomado por raiva.

Do outro lado da sala, havia uma mesa de madeira, que agora estava... Vazia.

As cadeiras e poltronas que tomavam conta do lugar também estavam, e tudo o que havia era a
merda de uma filmadora que ainda estava ligada.
— Mas que merda... — A voz rouca de Bran era coberta de preocupação enquanto ele pulava

para o outro lado, caindo sobre a mesa que estava coberta pelos cacos de vidro.

Desenrolei a camisa da minha mão com pressa e a joguei sobre meu corpo enquanto o copiava,
me jogando sobre a mesa, senti o vidro cortando meu joelho quando caí, e descendo pela mesa,

observei a porta aberta, enquanto Bran corria até lá, olhando em volta no corredor.

E ali eu pude ouvir o barulho dos tiros que tomavam conta do lugar.

O barulho ensurdecedor ecoou pelas paredes, vibrando dentro de meu peito, enquanto o cheiro
de pólvora começava a se tornar tão forte que era quase nauseante.

Os disparos eram tantos que tomavam conta do ar, sem parar por nenhum momento, como se um
exército marchasse por entre aqueles corredores estreitos.

Me abaixei, enquanto andava de olho no corredor que era tomado por pessoas, correndo para
todos os lados, apavoradas.

E algo que jamais sairia da minha mente eram os gritos, altos o suficiente para serem capazes
de abafar o barulho dos disparos, mesmo que por alguns segundos.

A maioria deles eram os médicos, agora sem seu orgulho, correndo pelas suas vidas como nós

fizemos por tanto tempo...

E observando aquela cena, não pude deixar de sorrir.

— Mas que merda está acontecendo?! — Bran disse enquanto vinha em minha direção, com os
olhos arregalados com a cena.

— Eu preciso encontrar minha mãe — respondi, ainda tentando entender o que acontecia. —
Ela está perto da ala dos doadores...

E assim que dei o primeiro passo em direção a porta, os barulhos dos disparos aumentaram.

Um dos seguranças correu do corredor que virava em nossa direção, com o corpo coberto pelo
medo, vestindo um uniforme branco completamente manchado de sangue.

Meus olhos acompanharam o guarda, que se virou em direção ao corredor com sua pistola e

começou a atirar...

Apenas para ser atingido por um disparo na cabeça.

Uma nuvem de sangue voou do buraco aberto em sua nuca, e seu corpo caiu sem vida no chão.

— MERDA! — Uma voz grave veio do corredor, seguida de passos pesados que ecoavam
pelas paredes. — ESSA É A PORRA DE UM HOSPITAL ILEGAL!

— FILHOS DA PUTA! — uma segunda voz gritou, mas essa era carregada de um sotaque
estranho. — NOS MANDARAM PARA A PORRA DE UMA MISSÃO SUICIDA, PARA MORRER
NA MERDA DE UM PAÍS DESGRAÇADO.

— PRAGA, ÂNGELO! — mais uma voz, mais grave respondeu. — ESTAMOS EM PRAGA,
SEU IMBECIL!

E então as vozes se tornaram pessoas.

Quatro soldados apareceram correndo através do corredor.

Todos vestiam fardas pretas, que agora também estavam manchadas de sangue.
“Tudo o que vemos ou parecemos não passa de
um sonho dentro de um sonho.”

EDGAR ALLAN POE

Até onde você iria por algo?

Porque, àquela altura, já havia começado a me perguntar até onde eu estava disposto a
continuar naquele papel.
Depois da luta, colocaram uma caneca de cerveja na minha mão, seguida de abraços e

felicitações em um alemão tão carregado pelas vozes bêbadas que mal conseguia entender, apenas

para me mandarem para um quarto branco nos fundos.

No começo não entendi o porquê, mas apenas segui para onde havia me apontado enquanto eles

desmontavam o ringue improvisado e eu via o Velho subir até o palanque, com um microfone em
mãos.

O lugar era um tipo de banheiro, mas um pouco maior do que o convencional, com algumas
cabines com chuveiros e outras com vasos sanitários, mas estava tudo limpo demais para ser algo

para os bêbados, devia ser algo para os lutadores.

Dei a volta em uma maca que estava no meio do lugar e andei até a pia, onde deixei a caneca
de cerveja e resolvi lavar o rosto, e quando a água fria escorreu pelo meu rosto, vi ela descer
avermelhada pelo ralo.

“Merda...”

Pensei enquanto levantava e encarava meu rosto no espelho, tateando meu rosto onde o corte no
meu supercílio estava...

— O cruzado dele é realmente forte. — Encarei Sophia pelo reflexo no espelho enquanto ela
entrava com a garrafa de Red Breast na mão. — Mas acho que você já percebeu isso.

Ela estava com seus olhos fixos em mim, observando as tatuagens pelo meu corpo, como se
esperasse encontrar algo...

Como se esperasse encontrar uma tatuagem com os símbolos deles.

— Mas acho que fui mais forte — respondi me virando e encostando na pia, cruzando meus
braços. — Apesar de sentir o sangue do meu avô fervendo em mim por espancar um dos
descendentes do reich.
— Heydrich é um boçal, nunca fez nada de útil para a causa além de ser bom lutador. — Dava

para perceber a raiva em sua voz, quando praticamente cuspiu aquelas palavras. — Quer que eu dê

um jeito no corte? A outra enfermeira está ocupada consertando a cara daquele desgraçado.

— A outra enfermeira? — perguntei levantando uma sobrancelha. — Achei que você fosse a

bartender.

— É errado uma mulher ter dois empregos nos Estados Unidos? — Deixou a garrafa em cima
da maca, caminhou em minha direção, mas dessa vez com os olhos fixos nos meus.

Havia algo de diferente nela... Como se estivesse me medindo de cima a baixo, procurando por

algo em cada palavra que saía da minha boca, em cada movimento ou até mesmo na falta deles.

A essa altura, não poderia dar brechas para que ela descobrisse quem eu era e o que estava
fazendo ali.

Ela continuou vindo em minha direção, me fazendo abrir caminho para que ela mexesse nas
duas portas que ficavam abaixo da pia do banheiro, puxando uma maleta vermelha com uma cruz, a
colocando ao lado da caneca de cerveja.

— Sieg Heil! — A voz do Velho no microfone ecoou seguida de um coro de vozes o

respondendo. — É uma honra ver tantos irmãos aqui nesta noite, mesmo com muitos de nós
participando das missões de...

— Então... — A voz da Sophia desviou minha atenção de volta para ela, enquanto tentava
ainda prestar atenção no que o homem dizia em cima do palanque — Você disse que está procurando
seu tio... Qual o nome dele mesmo?

— Strauss — respondi enquanto ia em direção a maca, pegando a garrafa que estava sobre ela
e colocando sobre um pequeno armário de metal. — Doutor Strauss.

— Ele é seu tio de primeiro ou segundo grau? — ela perguntou, revirando a caixa.
— Consideração — respondi tentando fugir do assunto de parentesco. — Meu pai e ele eram

extremamente próximos quando eu era mais novo, mas acabamos perdendo contato.

Os desgraçados tinham algo com a maldita árvore genealógica da porra da “raça pura” que
pregavam, seria fácil dela me pegar mentindo sobre isso.

— E quando vocês eram próximos — ela continuou falando, mas dessa vez pude ouvir que ela
havia parado de mexer na caixa —, ele falava algo sobre o trabalho?

— Médico... — menti, tentando inventar uma ocupação plausível para o Doutor enquanto me
sentava na maca. — Meu pai sempre falava que ele era um tipo de médico.

— Cirurgião? — ela perguntou sem mexer um músculo.

— Uhum... — respondi estranhando a forma com que aquela conversa estava caminhando. —
Você o conhece?

— Conheço bem... — E mesmo que não pudesse ver seu rosto, sabia que ela estava sorrindo.
— Você vai beber isso?

Ela apontou para a caneca de cerveja, ainda de costas para mim.

— Não gosto de beber depois de lutar — respondi cruzando apenas uma das pernas, deixando

minha faca fácil de alcançar em uma situação extrema. — Fique à vontade.

Devia ter um litro de cerveja na caneca que era grande o suficiente para obrigá-la a usar suas
duas mãos para erguer e virar todo o líquido cremoso de uma única vez, gole após gole, sem sequer
parar para tomar fôlego.

Quando terminou, ela bateu o fundo da caneca contra a pia e limpou a boca com as costas da
mão, e quando virou de volta para mim, ainda com um sorriso no rosto, já havia encontrado linha de
sutura e agulha na caixa.

— Vamos dar um jeito nisso daí? — ela disse vindo em minha direção.
Na maioria dos casos era aconselhado você evitar tomar pontos de uma enfermeira bêbada e

aparentemente nazista, mas a essa altura, eu só pude agradecer dela estar bebendo o suficiente para

deixar passar qualquer mentira mal contada que eu pudesse soltar no processo.

— Vamos — falei, ajeitando a minha postura, ainda sentado na maca.

Ela caminhou pacientemente em minha direção, com a linha de sutura já passada na agulha e
parou à minha frente, a dois passos de distância.

— Acho melhor pegar uma luva para isso — ela comentou colocando uma das mãos na cintura.
— Você pega uma para mim, está no armário atrás de você.

Concordei com a cabeça, enquanto descia da maca e me virava para pegar as luvas, apenas
para perceber que a única coisa no pequeno armário de metal era a merda da garrafa...

—MERDA! — xinguei alto, enquanto me virava em direção a ela, já tentando alcançar a faca
em minha bota, mas antes que pudesse terminar o movimento, senti o corpo dela se chocando contra
as minhas costas.

Um dos seus braços prendeu meu pescoço em seu bíceps, enquanto o outro travava o seu pulso,
de uma forma em que eu não era capaz de soltar.

Suas pernas haviam se enrolado no meu quadril, travando meu diafragma com tanta força que
não era capaz sequer de tentar puxar o ar.

Eu não iria aguentar muito tempo assim...

Agarrei um de seus braços com as mãos, tentando me desvencilhar do golpe o mais rápido
possível, enquanto a mulher se balançava, ainda presa ao meu corpo, me fazendo perder o equilíbrio.

— Escuta aqui seu merda — ela disse enquanto trazia seu rosto para perto do meu ouvido. —
Se você não se debater tanto, talvez eu te mate de uma forma menos dolorosa, entendeu?!

Senti os braços dela prenderem com ainda mais força o meu pescoço, ela girou seu corpo, me
arremessando no chão com violência, enquanto minhas mãos tentaram, em vão agarrar o armário de
metal, que caiu derrubando a garrafa que não quebrou com o impacto.

Minha visão havia começado a ficar turva e meu corpo estava se tornando mais e mais pesado
com a falta de ar, mas agora eu precisava fazer algo para revidar, e tateando o chão enquanto ela

prensava mais meu rosto contra o piso gelado, procurei a garrafa que havia acabado de cair, mas
assim que consegui tocar o vidro gelado com a ponta dos dedos, ela bateu minha cabeça com raiva
contra o azulejo.

— Olha só ele — ela falou rindo, puxando meu pescoço para trás e batendo com força minha

cabeça contra o chão. — Ele está tentando alcançar a porra da garrafa para bater em uma mulher...
Cadê o seu cavalheirismo?

Foram um golpe atrás do outro, enquanto minha visão era completamente tomada pela
escuridão e meu corpo parecia pesar uma tonelada.

Minha mente havia se perdido completamente em trevas, enquanto meu corpo já não era mais
capaz de lutar.

E naquele momento, tudo que havia em meus olhos já fechados...

Era Helena...
“O preço que se paga para conseguir o que se quer, é conseguir o que se queria”

NEIL GAIMAN

10 ANOS ATRÁS

Existia algo único no cheiro do sangue.


É como se, toda vez que você sente o cheiro metálico do sangue humano, seu cérebro gritasse

avisando que havia algo de errado.

Como se ele tentasse te avisar que junto ao cheiro de sangue, vinha o cheiro da morte.

Chegava a ser engraçado, porque em vários momentos da minha vida eu ouvi sobre o cheiro

que a morte deixava nos lugares por onde ela passava, como se ficasse presa nas paredes, e sempre
tentei imaginar como seria este cheiro.

Se ele fedia como os corpos.

Ou era doce como a esperança.

Mas, naquela manhã, eu descobri que o cheiro da morte, na verdade, era algo mais sutil.

Um detalhe, tão pequeno que podia passar facilmente despercebido se você não sabia o que
estava procurando.

Mas, naquela manhã, o cheiro da morte estava forte o suficiente para que eu fosse capaz de
senti-lo em mim, preso a minha pele como perfume.

Já fazia alguns minutos desde que os soldados haviam atravessado o corredor na frente da sala
de reprodução assistida, tão concentrados em continuar atirando e seguindo em frente dentro daquele

labirinto de corredores que três deles sequer haviam percebido que estávamos ali.

Mas o quarto soldado havia nos visto pela porta entreaberta, e por um único segundo, nossos
olhos se encontraram.

Os olhos do soldado eram claros e turvos, com o verde parecendo se fundir a um castanho tão
escuro que tornava impossível encontrar alguma forma em meio ao furacão que se tornava sua
pupila...

Ele não havia dito palavra alguma enquanto seguia seus companheiros, mas nossos olhos
permaneceram um no outro, uma voz parecia tomar conta da minha mente.
Uma voz rouca, grave, como se já soubesse tudo o que estava prestes a acontecer.

E essa voz dizia “Tudo vai ficar bem”...

Tudo vai ficar bem...

Observei pela fresta da porta, os soldados atravessando o corredor, dando alguns poucos
disparos no meio do caminho até que se distanciaram o suficiente para que o barulho de seus
disparos se tornassem apenas um eco distante em nossas mentes.

Longe o suficiente para que nós estivéssemos seguros.

— Mãe... — falei baixinho, como se de alguma forma aquela palavra soltasse uma descarga de
adrenalina em meu corpo, e sem pensar duas vezes.

Comecei a correr.

Meu coração batia forte e descompassado em meu peito enquanto eu tentava ao máximo me
lembrar o caminho que levava até a minha ala do hospital, mas os soldados pareciam ter facilitado o
trabalho.

Porque todo o corredor estava coberto por corpos.

Médicos, enfermeiras e guardas estavam mortos, caídos pelos corredores enquanto o sangue

ainda quente se parecia com um pequeno rio, escorrendo para os ralos que havia nos cantos de cada
sala e antessala do hospital.

O cheiro de sangue que tomava conta do lugar se misturava aos poucos com o da pólvora, que
gritava em meus pulmões a cada nova tentativa de puxar o ar carregado que me fazia tossir enquanto
eu corria com todas as forças que ainda havia em mim.

Enquanto eu cortava os corredores, que agora tinham seu branco estéril manchado pelo sangue
dos homens que haviam construído aquele inferno, acompanhava com meus olhos os corpos que
caíam pelos cantos, que mesmo marcados pelos tiros que haviam tomados, ainda pude reconhecer
alguns dos médicos e enfermeiros pelos olhos e rostos, quando ainda tinham algum para que eu
pudesse reconhecer.

E ali, havia algo que parecia tomar conta do meu peito...

Porque naquele lugar, cercada pelos corpos daqueles que tiraram minha liberdade, senti o

sabor da vingança pela primeira vez.

O sentimento que a partir daquele momento iria fazer parte do resto da minha vida.

Mantive o passo enquanto passava pela ala cirúrgica, observando as janelas de vidro, que

agora estavam quebradas, observando as macas que agora estavam vazias, e tentei imaginar para
onde os pacientes foram após serem libertados pelos soldados.

Mas eu sabia que alguém não teria conseguido fugir.

Porque em uma das primeiras salas, havia uma mulher em uma maca que havia morrido com a
esperança de que ainda seria forte o suficiente para que fosse capaz de escapar daquele lugar... Mas
quando cheguei em frente à sala, não vi corpo algum...

Apenas um lençol estendido sobre ela, ainda na maca.

Sabia que não poderia perder um segundo sequer, porque ele poderia ser a diferença entre

encontrar minha mãe ou não, mas foi como se meu corpo paralisasse em frente aquela cena.

Os dois médicos que antes estavam conversando naquela sala, agora estavam caídos no chão,
com as nucas marcadas pelos buracos que os tiros que os mataram haviam feito.

Mesmo em meio ao caos daquela guerra que estourava dentro do hospital, eles haviam parado
para cobrir o corpo dela.

— SOPHIA! — A voz de Bran foi seguida do barulho dos seus passos no carpete ensopado por
sangue.

Olhei para o lado apenas para ver ele correndo em minha direção, pulando alguns dos corpos
que tomavam conta do corredor, e em suas mãos ele carregava uma pistola.

— Vamos! — chamou me agarrando pela mão, me fazendo voltar a correr. — Peguei isso aqui

de um dos guardas.

— Você sabe onde fica o quarto da minha mãe? — perguntei, enquanto sentia meus pés

deslizarem nas poças de sangue.

— Fica ao lado do meu — ele disse enquanto apertava mais o passo.

Mas assim que viramos a esquina, para entrar no primeiro bloco de doadores, Bran e eu demos

de cara com um mar de pessoas.

Aqueles eram os doadores, assim como eu, que agora estavam livres, correndo de um lado
para o outro em meio a gritos e empurrões, tentando ao máximo encontrar uma saída daquele lugar,
correndo por entre aquele labirinto sem ter certeza para onde estavam indo.

Engolindo tudo e todos que havia pela frente.

Antes que Bran e eu pudéssemos ter tempo de pensar, fomos engolidos pela multidão
desesperada, enquanto tentávamos manter o ritmo, caminhando contra a corrente humana que aos
poucos foi nos afastando.

Por mais que nossas mãos estivessem presas uma à outra, as pessoas, em meio a pressa e
desespero, começaram a nos distanciar, até que nossos dedos se desentrelaçaram, e eu perdi seu
toque...

— BRAN!? — gritei olhando para trás, procurando por ele em meio às pessoas.

—SOPHIA! — Ouvi a voz dele, já abafada pelas pessoas. — SOPHIA, EU ESTOU... EU


ESTOU... ME SOLTA! MERDA!

E então, todas as minhas lembranças se misturam...

Lembro de ter visto de relance Bran sendo puxado de um lado para o outro, enquanto alguns
homens brigavam com ele pela pistola que ele carregava.

Lembro do flash dos disparos.

E da multidão, apavorada pelo barulho e pelos tiros, me arremessando contra o chão, enquanto
os pés descalços deles acertavam meu corpo com violência, forçando meus ossos e carne a cada

novo impacto.

Tentei cobrir meu rosto com os braços, enquanto minhas costelas eram tão acertadas que sentia
meu pulmão se contrair.

Pensei em gritar, mas antes que eu pudesse abrir minha boca, senti o peso de alguém atacando
minha garganta.

E tudo se tornou escuridão.


“Às vezes podemos escolher o caminho que seguimos. Às vezes nossas escolhas são feitas

por nós. E às vezes nós não temos escolha nenhuma...”

NEIL GAIMAN

— Quem você disse que ele é mesmo?! — A voz rouca me acordou.

A pior parte de acordar sem ter noção de onde você estava, era não saber quem estava ao seu
redor.

Mantive meus olhos fechados enquanto controlava minha respiração para que não percebessem

que eu já estava acordado, enquanto tentava entender o que estava acontecendo.

Meu corpo estava preso, mas estava sentado em uma espécie de cadeira larga, e eu podia sentir

parte de uma corda arranhando meu peito nu, mas ainda sentia a calça jeans, as botas, e
principalmente a minha faca que estava presa à bota.

Meus braços estavam amarrados nas costas enquanto meus tornozelos também estavam presos,
com o que pareciam ser correntes e meu corpo todo parecia feder a whisky...

Fedia a Red Breast...

— Neto de algum oficial da SS. — A voz era da Sophia. — Ou qualquer merda parecida, mas
não é isso que importa, mas ele conhece o Strauss, deve significar algo para o desgraçado.

—Sophia... — uma outra voz feminina falou em tom baixo, enquanto eu podia ouvir um passo
leve em minha direção. — As tatuagens dele... Não tem nenhuma suástica, nenhum raio da

schutzstaffe[16]l...

— Mas ele tem aquela tatuagem no antebraço — a voz masculina disse, seguida de um baque

seco no chão, que ecoou pelas paredes e teto.

Eu estava no subsolo.

— Qual tatuagem? — Sophia parecia desconfiada.

— Duas foices cruzadas — a voz feminina disse andando em minha direção. — E acho que ali
no peito dele é uma águia, né?

— É uma águia americana, não uma alemã — a voz masculina corrigiu. — São nações
completamente diferentes.

— Judeus, hindus e ciganos são completamente diferentes — Sophia falou vindo em minha
direção enquanto arrastava algo metálico no chão. — Mas eles não se importavam com isso enquanto
nos cortavam e tiravam cada pedaço da gente...

Quando o barulho parou e eu pude ouvir alguma coisa se balançando no ar com violência.

Joguei meu peso para o lado, fazendo a cadeira leve girar sem cair para o lado, o que foi o

suficiente para escapar do golpe que eu iria levar.

E finalmente abri os olhos.

Ali era uma espécie de porão e toda a iluminação que havia era de uma pequena lâmpada

avermelhada, que iluminava apenas uma parte do cômodo.

As paredes estavam cobertas por espuma acústica, e o cheiro de cola velha se misturava com o
cheiro do sangue e morte que havia naquele lugar.

Havia uma maca cirúrgica à minha frente, manchada por sangue seco e ferrugem, e ao seu lado
havia um longo armário de madeira que corria por quase toda a parede, e ele estava lotado de
alicates, martelos, pinças e facas.

Na parte de cima, havia jarros de vidro, cheios de um líquido denso e amarelado, mas o que
mais me surpreendeu foi o que estava dentro daqueles jarros...

Dedos, olhos, mãos, e até a merda de uma cabeça inteira, com as pálpebras flutuando
mostrando os olhos enevoados e a pele já escurecida pela morte.

Na minha frente estava Sophia, com uma regata agora já manchada com sangue, que
provavelmente era meu, calças jeans escuras e botas, e em suas mãos estava um pé de cabra, pronto
para me acertar.

No fundo, aos pés de uma escada escura, havia duas outras pessoas que eu tentava entender
como eram, mas agora havia um assunto muito mais urgente para ser tratado...

O segundo golpe de Sophia, que vinha em minha direção.


Ela girou o corpo, usando o pé de cabra como um taco de beisebol, na esperança de acertar

minha cabeça com toda a força que tinha em seu corpo.

Lancei meu corpo para trás, deixando a cadeira que era feita de um tipo de madeira
compensada, cair contra o chão em um estalo seco, fazendo minhas mãos sofrerem o impacto, já que

as duas estavam amarradas em minhas costas.

Deixei meus olhos fixos em Sophia, que estava prestes a descobrir o problema de fazer um
ataque longo com uma arma pesada...

A inércia.

O golpe dela cortou o ar, fazendo seu corpo todo rodar junto ao pé de cabra, tirando ela da
postura de ataque, a obrigando a perder tempo e força para conseguir frear o próprio ataque.

Tempo que eu precisava aproveitar.

Olhei para baixo, vendo a corrente grossa que amarrava meus pés juntos, e encontrei onde
ficava a base do nó que a prendia, o que era o suficiente para que eu pudesse encaixar as correntes
nos pés da cadeira, e com um puxão, senti os elos da corrente deslizar uns contra os outros,
desfazendo o nó e me deixando livre para ficar em pé mais uma vez.

Me deixei cair para frente, parando de joelhos contra o chão, deixando minhas mãos ainda
presas perto o suficiente da minha bota para que pudesse puxar deslizar minha faca através da bainha
de couro, e correndo o fio pelas cordas, senti minhas mãos ficarem livres a tempo de ver o pé de
cabra voltando em minha direção.

Mas dessa vez eu tinha como me defender.

Virei a lâmina da faca ao contrário, aparando o golpe com as costas da faca, enquanto sentia o
aço batendo contra aço, soltando algumas faíscas no ar.

Sophia recuou, dando um passo para trás, o que me trouxe um fio de esperança de que pudesse
assumir o controle daquela situação...

Mas a esperança foi varrida de uma vez com o chute que ela deu contra meu peito.

Tentei usar meu braço para segurar o chute, mas, mesmo assim, a força dela foi o suficiente
para fazer com que meu corpo quase caísse, me obrigando a usar a mão que segurava a faca para me

apoiar.

E então mais um golpe.

Ela brandou o pé de cabra no ar, o arremessando de cima para baixo em minha direção,

aproveitando o peso que a ferramenta tinha na tentativa de me nocautear, me obrigando a arremessar


meu corpo para o lado, rolando no chão de concreto até parar ajoelhado a alguns centímetros de onde
as faíscas cortavam o ar quando o metal explodiu contra o chão com violência.

— SEU FILHO DA PUTA! — ela gritou enquanto largava o pé de cabra e corria em minha
direção puxando uma faca militar de sua cintura. — EU JÁ MATEI OUTROS DEZESSETE IGUAIS
A VOCÊ, NÃO VAI SER A MERDA DE UM NAZISTA QUE VAI ME ASSUSTAR.

— EU NÂO SOU NAZISTA, PORRA! — disse enquanto me colocava em pé, observando a


mulher que corria em minha direção, mantendo sua faca com a lâmina sempre virada para trás.

A faca dela cortou o ar a centímetros do meu rosto enquanto eu me esquivava com pressa,
dando um passo para trás.

— NÃO?! — ela esbravejou, com seus olhos castanhos tão tomados pela raiva que era como
se pudesse ver labaredas de fogo dançando dentro deles. — A PORRA DO LOIRINHO DE OLHOS
CLAROS QUE ESTAVA EM UMA CÉLULA NAZISTA, NA VERDADE, NÃO É NAZISTA, POR
FAVOR, ME DESCULPE O ERRO!

Ela deu mais um passo em minha direção, enquanto girava a faca no ar, me obrigando a recuar,
apenas para que eu encontrasse a parede de espuma em minhas costas.
Merda...

Quando ela me viu encurralado, avançou em minha direção, enquanto mantinha a faca em

direção ao meu pescoço.

Apoiei um dos meus pés contra a parede e me joguei para frente, parando a lâmina que vinha

em minha direção a acertando com a minha faca, fazendo com que a dela voasse para longe com a
força do impacto.

Seus olhos correram até mim, com nossos corpos a poucos centímetros de distância, comigo
ainda indo em sua direção, e naquele pequeno instante, vi o ódio tomar conta de seu rosto.

Uma de suas mãos agarrou meu pescoço enquanto a outra foi direto para o meu pulso, me
impedindo de me defender com a faca que ainda estava nela, e usando seu próprio corpo como
contrapeso, ela girou nossos corpos, fazendo com que minhas costas acertassem com força o chão de
cimento enquanto ela subia sobre meu corpo.

Ela esticou meu braço, prendendo meu pulso com uma mão e com a outra ela acertou um soco
pesado no meu antebraço, obrigando meus dedos a começarem a abrir...

Antes que ela pudesse tirar da minha mão, joguei minha faca para longe.

Seus olhos, tomados pela fúria, voltaram para o meu rosto, enquanto a mão que antes socava
meu braço vinha com velocidade em direção ao meu rosto, me obrigando a segurar o soco dela com a
mão que me restava.

Apertei sua mão contra a minha, ainda sentindo o impacto do soco, e impulsionei meu tronco
para frente, na tentativa de me desvencilhar dela, que para não ser jogada para trás, entrelaçou suas
pernas em volta do meu quadril enquanto tentava agarrar meu pescoço com a mão livre.

Me coloquei de joelhos, e joguei o peso dos nossos corpos para frente, me coloquei de pé,
colocando a mulher de costas na parede, prendendo uma de suas mãos ao lado do seu rosto e
segurando a outra.
O corpo dela queimava contra meu peito e suas pernas se apertavam com força contra meu

quadril, a segurando ali.

Sua respiração ofegante se misturava com a minha, com nossos rostos a centímetros de
distância e os olhos dela corriam pelo meu corpo, como se procurasse alguma maneira de se soltar,

até perceber que não haviam restado muitas opções.

— Eu não sou a merda de um nazista — disse enquanto ela ainda se debatia, tentando se soltar,
então me virei em direção às duas pessoas que ainda estavam na escada. — EU NÃO SOU A
MERDA DE UM NAZISTA!

E ali, me vi obrigado a dar mais um passo à frente, cortando o espaço que ainda havia entre
nós, deixando nossos corpos colados um no outro enquanto, sentia seu corpo ferver contra a minha
pele.

Nossos rostos se aproximaram, enquanto seus olhos se fixaram nos meus e em um instante eu vi
o fogo que queimava neles se transformar em uma enorme dúvida.

Seus braços pararam de se debater no mesmo instante em que ela pareceu segurar sua
respiração.

— Quem caralho é você? — ela perguntou com a voz rouca.

— Meu nome é Benjamin Blackburn — respondi mantendo a voz imposta. — E eu não sou a
porra de um nazista, entendeu?!

— Então o que você estava fazendo na porra de uma célula nazista?! — Sophia indagou com os
dentes cerrados.

— Eu sou um soldado — disse dando um passo para trás, enquanto ela soltava as pernas do
meu quadril, mas ainda mantinha nossos rostos colados. —E também um caçador de recompensas, e
tem uma bem gorda pela cabeça do Doutor Strauss.
—Claro! — Sophia esbravejou enquanto balançava os braços com raiva. — Desculpe por não

ter percebido de cara que você é a porra de um assassino de aluguel, me desculpe pelo incômodo!

— De quanto é a recompensa? — uma voz masculina perguntou, com seu dono ainda escondido
nas sombras.

— Setecentos mil dólares pela cabeça, igual àquela que você tem em cima daquele armário —
disse apontando para o jarro de formol, mas sem tirar meus olhos dela.

E ali, eu vi os olhos dela abrirem, e pela primeira vez, seu olhar desviou dos meus até a porta,
onde seus dois amigos permaneciam escondidos nas sombras.

— E quem está disposto a pagar tudo isso pela cabeça de um velho?! — ela questionou com a
voz carregada de raiva e desconfiança.

— E isso realmente importa? — disse dando de ombros. — Dinheiro é dinheiro, não importa
muito onde ele estava antes de ir para a sua mão.

— Deixa eu ver se eu entendi... — ela falou voltando seus olhos para mim e se aproximando
ainda mais de mim, com seus punhos se fechando mais uma vez em minha direção, com ela pronta
para me atacar mais uma vez. — Então você, loirinho dos olhos verdes, saiu direto dos Estados

Unidos e veio até aqui, para a Alemanha, só para matar o Strauss?

— Não — respondi enquanto recuava. — Vocês viram na televisão o massacre no castelo em


Frankfurt?

E tentando usar toda a calma que ainda havia em mim, comecei a caminhar pela sala até onde
minha faca estava.

— O que o helicóptero explodiu sobre a cidade? — a voz masculina perguntou com um tom
assustado na voz.

— Todo mundo viu — Sophia completou. — Falaram que a porra do míssil que explodiu o
helicóptero saiu de uma base desativada em Heligoland... Mas o que CARALHOS isso tem a ver

com você?

Peguei minha faca que estava caída no chão e observei as marcas novas que corriam pelo metal
frio.

— Aquele castelo era fachada para um esquema de tráfico de mulheres — falei enquanto
limpava a lâmina na minha calça. — Eu e mais dois filhos do ceifeiro fomos cuidar do problema...

— Pronto! — Sophia disse brava enquanto cruzava os braços. — Estamos diante do Rambo em
pessoa aqui, que com seus amigos SOZINHOS, mataram a porra de TRINTA E DOIS homens dentro

de um castelo medieval... Me perdoe por não estar batendo palmas para você...

— Não estávamos sozinhos — respondi enquanto passava os dedos pelo fio da faca,
conferindo se ainda estava afiada. — Tinha uma médica e um padre com a gente.

— Seu filho da puta... — E sem pensar duas vezes, ela fechou as mãos, pronta para voltar a
avançar contra mim, mas antes que ela pudesse tentar qualquer coisa, o homem que estava na porta
deu um passo à frente.

Ele não devia ter sequer trinta anos e estava vestido com uma camiseta, calça e tênis escuros, e

em uma de suas mãos havia uma bengala de madeira com o cabo prateado.

Seu cabelo ondulado e escuro caía sobre seu rosto, mas, mesmo assim, ainda era possível ver a
faixa escura que cobria seus olhos...

— Deixe-o... Benjamin, não é? — ele disse apoiando o corpo sobre a bengala. — Deixa o
Benjamin continuar, afinal, para onde ele pode correr?

— Exatamente — concordei colocando minha faca na bainha e pegando a dela que estava no
chão. — Para onde eu posso correr?

— Então, Ben... Posso te chamar de Ben, não é mesmo? — o rapaz disse abrindo um sorriso.
— Como fazemos para conseguir todo esse dinheiro.

— O Ceifeiro só pede uma prova de morte — respondi testando e observando a faca da Sophia

e a lâmina desbastada pelo uso. — Pode ser desde uma foto até um membro ou a própria cabeça do
alvo.

Enquanto respondia, caminhei até Sophia, que me encarava, acompanhando cada movimento
meu.

— Mas é claro que existem algumas pessoas que sobressaem... Pessoas ruins o suficiente para
que o próprio Ceifeiro faça questão de levar a alma dela direto para o inferno, então, nesses casos

únicos, entregamos o alvo com vida para ele. — E tentando não fazer nenhum movimento brusco, fui
em direção a Sophia e devolvi a faca para ela. — Mas é claro que nesses casos pagam melhor pelo
serviço.

— Então, Ben, nesse caso... Quanto estão dispostos a pagar pelo Strauss com vida? — o rapaz
perguntou ajeitando a postura e segurando a bengala com as duas mãos.

—Três milhões de dólares — respondi vendo o homem abrir um sorriso caótico em seu rosto,
enquanto Sophia revirava os olhos.
“O tempo é um químico invisível, que dissolve, compõe, extrai e transforma todas as

substâncias morais”

MACHADO DE ASSIS

— Hugo, você só pode estar de brincadeira em acreditar nele! — disse deixando toda a raiva
sair do meu peito enquanto batia a porta do porão com força o suficiente para fazer pó e cimento cair
do teto.

Era como se cada veia do meu corpo pulsasse com meus batimentos acelerados, como se a

raiva se tornasse mais e mais forte.

Minha mente passava cada momento daquela briga, cada golpe que eu poderia ter acertado,

cada movimento que eu poderia ter feito de uma forma diferente...

Uma faca, como eu não havia me tocado de revistar o desgraçado?

Tentei deixar meu corpo relaxar, enquanto me encostava na porta de madeira, ainda sentindo

minha respiração descompassada e meus ombros doloridos pelo esforço de golpear com o pé de
cabra.

Eu nunca havia perdido uma briga antes...

Principalmente quando estava brigando contra um cara amarrado na merda de uma cadeira.

Mas era como se houvesse algo de estranho com ele, porque de alguma forma eu sentia que já o
conhecia, mesmo nunca tendo o visto antes, e agora, tudo que minha mente parecia fazer era tentar
lembrar de onde eu já havia o visto, de onde eu deveria reconhecer aqueles olhos verdes que agora
pareciam gritar algo que eu não sabia entender.

— Sophia... — Hugo respondeu chamando minha atenção batendo a bengala em alguns dos
degraus. — Você falou que o homem chegou hoje na Rosenrot, certo?

— Certo...

— Você o viu cumprimentando os outros membros com frases do Reich? — ele perguntou
enquanto se sentava no degrau mais próximo a ele.

— Não... — respondi quase cuspindo as palavras. — Mas...

— Você no mínimo, chegou a ver o pobre desgraçado participando de algum acordo entre os
membros ou fazendo QUALQUER ação que dê a entender que ele é um porco antissemita? — Puxou
um maço de cigarro e deixou um em sua boca.

— Não! — bufei enquanto observava ele acender o cigarro e tragar lentamente.

— Você viu como ele luta — Hugo disse soltando um pouco de fumaça e colocando a bengala
de madeira encostada na parede. — Ele teria te matado se quisesse.

— Ah, claro! — ironizei cruzando os braços. — Porque você viu a luta inteira, não é mesmo?

— Até o cego viu que a única coisa que ele fez foi se esquivar e se defender — ele respondeu
com um sorriso tão descarado no rosto que me obrigou a bufar.

— Saiba que agora eu estou revirando os olhos para você, Hugo, mesmo sendo algo que você
não possa ver ou sequer tentar — disse com raiva enquanto passava as mãos sobre o rosto, para tirar
o suor.

Mas em minhas mãos havia o cheiro dele...

O que havia de errado com esse homem?!

Era como se, de alguma forma, algo no fundo do meu peito gritasse toda vez que os olhos
verdes dele corriam contra os meus, como se minha alma gritasse tentando me avisar de algo que
ainda não havia entendido o que era.

E quanto mais esse sentimento queimava em mim.

Mais raiva eu sentia dele.

O que ele tinha de diferente? Por que eu deveria dar ouvidos para alguém que eu tinha acabado
de conhecer e ainda não sabia sequer se ele falava a verdade?

— Muito engraçado, estou chorando de rir — ele disse soltando um pouco de fumaça pelo
canto da boca e apoiando as mãos nos degraus. — Mas, não é porque ele estava no meio do
chiqueiro que você precisa confundir o homem com um porco, até porque ele te conheceu no mesmo
chiqueiro....
— É diferente...

— Por que é diferente, Sophia?! — E segurando o cigarro entre os lábios, ele tragou devagar

enquanto falava: — Sabe qual é o seu problema? Você não confia em mais ninguém, mesmo que o
mundo te gritasse que ele está falando a verdade você não acreditaria só porque ele não é um de nós.

— E em quem mais eu deveria confiar?! — inquiri enquanto me desencostava da porta, dando


passos pesados em sua direção para que ele pudesse ouvir. — Nós somos uma família, e só se deve
confiar em quem é da família.

— Apesar de você achar que somos uma, a única coisa que temos em comum foi a merda

daquele hospital. — Mesmo sabendo que ele havia falado apenas para me provocar, senti meu sangue
ferver.

— Hugo, não me obrigue a te bater mais uma vez...

— Isso, bate no cego — ele respondeu com a voz carregada de ironia, me fazendo bufar de
raiva. — Mas isso não vai mudar a verdade, que se ele estiver falando a verdade, o dinheiro que
ganharíamos ia ser o suficiente para ajudar todos os outros que escaparam, de ajudar aqueles que se
perderam a se reencontrarem, o suficiente para dar uma vida decente para a Maya...

E então ele parou por um momento, ainda com o cigarro entre os dentes, prestando atenção ao
nosso redor, me fazendo olhar em volta procurando por algo.

— SOPHIA, CADÊ A MAYA?! — ele gritou enquanto quase se engasgava com a fumaça que
estava soltando.

— Ela subiu as escadas quando a briga começou, não foi? — respondi me abaixando para ver
se ela aparecia no alto da escada. — Ela odeia brigas.

— Não lembro de ela ter passado por mim... — Hugo respondeu.

Por um instante a gente ficou em silêncio, até ouvir duas vozes vindo detrás da porta fechada.
— Então todos vocês realmente tem armas nos Estados Unidos? — A voz inocente dela foi o

suficiente para que eu me jogasse da escada em direção a porta, a abrindo com tanta força que pude

ouvir um pedaço da parede quebrar com o impacto do trinco.

Maya era tudo para mim, porque sempre ela sempre foi como uma irmã mais nova, mesmo ela

me vendo quase como a mãe que ela nunca teve...

Ela tinha doze anos, quase a idade que eu tinha quando eu a encontrei no hospital... Ou
melhor... Ela me encontrou, e desde o primeiro momento em que a vi, com os olhos de cores
diferentes me encarando cheios de lágrimas, soube que era o meu destino protegê-la.

Mas agora ela estava ali, sentada de pernas cruzadas na cadeira em que antes eu havia
amarrado o homem.

E com seus jeans escuros com all star, camiseta de uma banda de rock, seu cabelo curto com
óculos de armação redonda, era como se a luz avermelhada a jogasse para dentro de um clipe de
música alternativa.

Meus olhos correram pela sala procurando por ele, que estava encostado no armário, com o
jarro onde estava a cabeça de Reinhart Müller em suas mãos, observando o rosto sem vida do nazista
desgraçado.

Agora os dois estavam me encarando, como se eu fosse a mulher mais louca desse mundo.

— MAS QUE MERDA VOCÊ PENSA QUE ESTÁ FAZENDO, MAYA? — perguntei enquanto
via em seu rosto a cara de quem sabia a merda que estava fazendo.

—Eu nunca tinha conhecido alguém dos Estados Unidos antes, e queria saber como é lá... —
ela disse como se fosse a coisa mais normal do mundo.

— E como você sabe que ele realmente é dos Estados Unidos, hein? — perguntei enquanto ia
até a direção dela. — E você, puta que pariu, coloca a merda dessa cabeça no lugar, porque esse não
é o único jarro que eu tenho que cabe uma.
Observei ele dando de ombros com a merda de um sorriso no rosto enquanto colocava a

cabeça no armário.

— Dá para saber que ele é dos Estados Unidos, você ouviu o sotaque que ele tem? É bem
óbvio se você prestar atenção... — Maya respondeu, ajeitando os óculos enquanto sorria.

Tudo o que eu queria era poder gritar com ela, alto o suficiente para colocar um pouco de juízo
naquela cabeça oca de adolescente.

— E ele era um soldado das forças especiais, um navy-seal, igual aqueles que salvaram a
gente...

Eu era capaz de aguentar muita coisa... Menos aquilo.

— MAYA, PELO AMOR DE DEUS, OLHA PARA ESSE HOMEM — gritei forte o suficiente
para fazer minha garganta toda doer. — VOCÊ ACHA QUE ALGUÉM COMO ELE VAI SER COMO
UM DOS SOLDADOS QUE SALVARAM A GENTE DAQUELE INFERNO?

Então meus olhos voltaram para ele, enquanto eu engolia em seco sentindo meu sangue
voltando a ferver.

— Quantos anos você tem, pelo amor de Deus?! — disse dando dois passos em sua direção —

Trinta?!

— Trinta e seis... — ele disse com os olhos para o chão, o que só me deixou mais puta ainda.

— OLHA SÓ! O OPERAÇÕES ESPECIAIS AINDA ESTÁ EM IDADE MILITAR! — Dei


dois passos com força em direção a ele e bati com as costas da mão no peito dele. — Pelo jeito você
ainda está bem em forma, então o que te fez sair do exército e largar a farda verde oliva?

— Preto... — ele falou em voz tão baixa que eu nem sequer fui capaz de ouvir.

— O que disse, SOLDADO?! — repeti, mantendo o tom de voz.

— Nós vestíamos preto — ele respondeu cerrando os dentes. — E estou aposentado.


— Então o vovô já não consegue mais dar conta do recado, é? — perguntei enquanto levantava

o rosto, dando um passo à frente, o obrigando a olhar para baixo para me olhar nos olhos.

— Sophia... — A voz do Hugo veio da porta, seguido do som da bengala batendo contra o
chão.

— O que foi, Hugo?! Não quer saber como o Capitão América aqui se aposentou antes de
ganhar o soro de super soldado? — indaguei rindo, sem tirar os olhos dele.

— Escuta aqui, Garotinha — ele disse dando um passo em minha direção. — O que eu fiz antes
não importa para você, o que importa é que agora a gente quer o mesmo desgraçado morto, então ou

você aceita a minha ajuda ou me dá licença que eu tenho um trabalho para fazer.

— Tenta sair por essa porta que eu vou enfiar uma faca na sua... — eu disse abrindo um
sorriso, enquanto observava ele cortar toda a distância entre nós.

— Você consegue provar que está falando a verdade? — A voz de Hugo me interrompeu.

— Tenho sim — ele disse desviando o olhar para o homem atrás de mim — A cabeça que essa
psicopata guardou naquele vidro, por acaso, é de um homem chamado Reinhart?

— É sim, por quê? — perguntei levantando uma sobrancelha. — Como você sabe?

— A mancha que ele tem na testa, em formato de “X”.

— E o que a cabeça de um oficial da nova “SS” vai provar o seu ponto? — Hugo falou tirando
as palavras da minha boca.

— Tem uma recompensa aberta de cem mil por ele, se me derem um telefone eu posso chamar
o coletor e ele traz a recompensa para vocês. — Assim que o homem terminou de falar, pude ouvir a
risada abafada de Maya atrás de mim.

Eu pensei em gritar, xingar, e acertar um soco bem dado na cara daquele homem...

Mas antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, senti a mão de Hugo segurando meu ombro,
como se ele pudesse saber de tudo o que eu estava pensando.

— Você tem uma chance de provar seu ponto, Matador de Aluguel — Hugo disse com a voz

calma. — Mas se descobrimos que você mentiu, seu corpo e alma vão ser todos dela.

E Deus... Nunca quis tanto que estivessem mentindo para mim.


“Mas um estranho em uma terra estranha, ele não é ninguém. As pessoas não o conhecem e

não conhecer é não se importar.”

BRAM STOKER

Era incrível, quase inacreditável, que uma mulher como ela pudesse carregar tanta raiva dentro
do próprio peito.
“Trabalhando na enfermaria do batalhão eu descobri que só existem dois tipos de soldados,

Ben, os que matam porque precisam, seja pelo seu trabalho, pela honra ou pela segurança do seu

país, e tem os que precisam matar, pela raiva que sentem ou para matar alguma sede se sangue...”

A voz da Helena parecia viva em minha mente, enquanto via Sophia encarando o homem ao

lado dela.

Mesmo com o cabelo ruivo na altura dos ombros e o rosto sardento que só dava para ela mais
o tom de “anjinha”, os olhos dela queimavam, como se dentro deles eu fosse capaz de sentir o calor
das chamas.

Ela era uma mulher perigosa.

E no mesmo instante em que acabou a briga, eu sabia que ela não ia se convencer fácil, que eu
iria precisar provar que estava falando a verdade ou então seria a minha cabeça a próxima a ser
colocada em um vidro de formol... O mais engraçado é que isso foi exatamente o que me salvou.

Havia um sistema fechado dentro dos Filhos do Ceifeiro, um site de uma empresa
especializada em controle de pestes, e com um login e senha que todo Filho ganhava depois da
iniciação, você tinha o que eles chamavam de “Contratos Públicos”.

Pessoas que tinham uma recompensa, mas não eram consideradas “peixes grandes”, então
disponibilizavam uma foto e a recompensa sobre a cabeça.

Geralmente os anúncios ficavam lá por menos de uma semana, e então já eram dados como
resolvidos... Mas havia uma recompensa que estava lá por tempo o suficiente para que todos
começassem a achar estranho.

Um único homem que conseguiu fugir da justiça do ceifeiro.

Reinhart Müller, bisneto do líder da Gestapo, ligado a diversas células neonazistas e também a
merda de um estuprador em série.
E por isso, toda vez que abríamos o sistema, dávamos sempre com o rosto gordo e o sorriso de

dentes tortos do desgraçado, que também tinha uma marca gigante na testa em formato de “X”.

Era quase como uma piada do destino.

Como se de algum lugar, Deus, se é que ele realmente existia, estivesse olhando para mim e

rindo naquele momento, de ter me jogado em um porão apenas para encontrar o rosto mais conhecido
de todos os Filhos do Ceifeiro.

Era engraçado, porque mesmo que alguns Filhos até tivessem ido atrás dele uma ou duas vezes,
nenhum fez questão de procurar por muito tempo, principalmente porque a recompensa por ele era

uma das menores por um homem morto.

Mas aqui estava o desgraçado...

Como a minha única chance que eu tinha para provar para eles que eu estava falando a
verdade.

— Preste bem atenção — Sophia disse voltando para mim, depois de ter conversado algo no
ouvido de Hugo, que apenas balançou a cabeça com um sorriso no rosto. — Você tem uma ligação, e
se não conseguir provar a história de filme de ação dos anos oitenta que você contou... Ou então eu

vou acertar o seu saco com tanta força com aquele pé de cabra que você vai se engasgar com as
próprias bolas, entendeu?

Apenas afirmei com a cabeça, tentando sorrir enquanto olhava para Hugo e Maya, que
pareciam revirar os olhos enquanto ela falava...

— Vamos, tem um telefone na sala, nem fodendo eu vou devolver o seu celular — ela falou
virando em direção a porta, mas antes soltando um olhar de fúria para Maya, que pulou da cadeira e
foi até Hugo, dando o braço para ele.

Observei os três andando em direção à escada, iluminados pela luz avermelhada, com a
esperança de entender qual o tipo de ligação os três deveriam ter para se tornarem tão unidos dessa
forma.

Sophia e Hugo pareciam ter a mesma idade, mas era possível ver que algo havia acontecido

com ela, não só por toda a acidez que ela tinha, mas também pelas tatuagens que cobriam seu corpo.

Sem dúvida a “Royal Blood” era a que mais chamava a atenção, marcada e traçada com

precisão, mas as outras que cobriam seu ombro e nuca também manchavam de tinta a pele clara que
ela tinha.

Mas, vendo agora, percebi que ela mancava com a perna esquerda, provavelmente um
ferimento antigo de alguma briga.

Junto com ela, Maya também parecia esconder algo atrás dos óculos de armação redonda, com
os olhos, um de cada cor, observando através das lentes cada movimento meu.

E ao contrário das duas, Hugo era o extremo oposto... Era como se ele aceitasse com
facilidade tudo o que eu falava, mas no final isso era apenas uma forma de conseguir cada vez mais
informação, para que ele pudesse balancear em sua mente os prós e os contras antes de qualquer
decisão.

Segui os três através do porão, com Sophia ficando parada na porta, para que pudesse ir atrás

de mim, enquanto Maya ajudava Hugo a subir todos os degraus.

A escadaria era simples, com cada degrau ainda cru no cimento, mas desta vez a luz era
normal, pendurada no teto por um longo fio e balançando suavemente de um lado para o outro,
fazendo com que as sombras caminhassem conosco a cada passo.

Quando chegamos na parte de cima, subindo o que deviam ser quinze degraus ao todo, Maya
abriu uma porta com dificuldade, fazendo o barulho de metal que vinha com o movimento da madeira
mostrar quantas correntes e cadeados deveriam estar ali, segundo o segredinho sujo que os três
escondiam.

Senti Sophia se aproximando ainda mais de mim enquanto atravessávamos pela porta,
mostrando o interior de uma casa antiga.

Aquela era o que parecia ser a sala, com as paredes cobertas por um papel de parede vermelho

escuro com textura de tecido, combinando com os móveis antigos, todos com a mesma cor que as
paredes, mas sempre adornados com detalhes dourados já gastos pelo tempo e pelo uso.

Havia uma lareira ali perto, com uma boa quantidade de cinzas acumuladas, o que mostrava o
uso quase constante dela, mesmo nas noites de calor, e um rádio grande e pesado no canto entre dois
sofás tocava “The Smiths” baixo, enquanto a voz do Morrisey deixava o clima estranhamente
melancólico.

Em cima de uma mesa de centro, com o tampo de vidro completamente riscado, estava um
cinzeiro repleto de bitucas de cigarro, e ao seu lado, um telefone de numeral circular, já desbotado e
com marcas de uso.

— Vamos lá, hora da verdade — Hugo disse enquanto soltava seu braço de Maya e caminhava
sem dificuldade alguma através da sala, sentando no sofá em frente ao cinzeiro e apagando nele o
cigarro que estava em sua boca.

Mas antes que pudesse ir em direção ao telefone, senti algo frio correr pelas minhas costas.

— E faça o favor de colocar na viva-voz — Sophia falou se aproximando de mim, enquanto eu


sentia a ponta de sua faca rasgar lentamente um pedaço da minha pele.

Fui até o telefone, observando o carpete branco e aparentemente novo que cobria o piso da
sala antiga.

— Belo carpete... O antigo estava muito sujo de sangue? — brinquei, tentando fazer a
provocação sair com o mínimo tom de ameaça possível.

Hugo e Maya sorriram enquanto tudo que Sophia fez foi contrair o lábio, como se estivesse
praticamente rosnando em minha direção.
E enquanto andava, o mais devagar possível, olhei pelo vidro da janela que estava fechado,

apenas para encarar o dia que nascia, com o sol amarelado do verão cortando por trás dos prédios

antigos de Munich, e para a minha surpresa, eu reconheci um deles...

Era o pub em que havia conhecido o Velho e onde seu filho era Barman, fácil de ser

reconhecido entre a decoração de pedra dos pubs que cortavam a sua volta, e pela altura, essa
deveria ser uma rua elevada, o que era muito comum para esse tipo de cidade.

Me sentei no sofá com essas informações na cabeça, enquanto Hugo se virara para mim ao
sentir minha presença ali, e com um cigarro já em sua boca, ele me ofereceu o maço.

Aceitei um, puxando o cigarro de dentro do maço e o colocando em minha boca, Hugo acendeu
o seu com um isqueiro simples, e em seguida me entregou, acendi meu cigarro e devolvi o isqueiro
para a sua mão que havia continuado estendida, e enquanto tragava lentamente o cigarro, sentindo a
fumaça esquentar meu peito, tirei o telefone do gancho e apertei o botão que sinalizava o viva-voz,
deixando o som rasgado do aparelho sair por três aberturas em sua frente.

Eu sabia como ligar para eles de um número particular poderia ser um problema, mas como
aquela era uma missão de alto risco e eu estava em uma situação de vida ou morte, não imaginava
que fossem reclamar o pequeno transtorno de se livrar dessa linha telefônica.

“23433476”

Rodei na argola de metal do aparelho cada um dos números, deixando com que ele batesse a
cada número discado, e assim que terminei, ele chamou apenas uma vez antes de ser atendido.

— Harry & Harry, controle de pragas e pestes — a voz feminina rouca disse em um inglês
carregado de sotaque alemão. — Quem gostaria?

Olhei para Hugo, que fumava seu cigarro, com a curiosidade estampada em seu rosto, em
seguida olhei para Sophia que levantava uma sobrancelha em minha direção.

— Benjamin Blackburn — respondi tirando todo o sotaque alemão do meu inglês, fazendo
Maya arregalar os olhos ao me ver falar assim. — Gostaria de informar a central sobre a realização

de um serviço freelancer.

— Claro, Senhor Benjamin... Mas já estou vendo aqui no seu sistema que você está no meio
de uma dedetização específica... — a voz afirmou, seguida de dois cliques e algumas teclas sendo

digitadas.

— Foi um serviço sem agendamento, de última hora — respondi tentando manter o tom de voz
o mais tranquilo possível, sabendo que todos naquela sala estavam prestando atenção a cada palavra
minha. — Acabei encontrando um velho amigo e precisei lhe fazer este serviço.

— Compreensível, Senhor Benjamin — ela respondeu, fazendo meu peito se acalmar, a última
coisa que eu queria agora eram os Filhos desconfiados da minha lealdade. — Qual o código de área
da casa que você dedetizou?

— Zero, zero, zero, um — respondi em alto e bom tom.

Minha resposta foi seguida de um silêncio breve, que eu aproveitei para soltar a fumaça que
estava em meus pulmões.

— A casa número um?! Impressionante... — a voz respondeu quase rindo. — Bem, garanto

que todos na central ficarão felizes em saber que conseguiu resolver este problema tão...
Duradouro de pragas que o Senhor Reinhart estava sofrendo... O Senhor tem alguma prova
material ou simbólica de seus serviços?

— Material — respondi. — E gostaria de receber meus honorários em espécie pelo serviço.

— Bem, é claro, Senhor Benjamin — a voz disse antes de voltar a digitar. — Estaremos
enviando o coletor para a residência desta ligação, por sorte ele se encontra próximo e deve levar
aproximadamente quinze minutos para a sua chegada, por gentileza aguarde com a prova material
da realização do serviço em mãos, muito obrigada pelo trabalho exemplar, a Harry & Harry,
controle de pragas e peste agradece os seus serviços.
Assim que a mulher desligou a ligação, coloquei o telefone de volta no gancho e olhei em

volta, para encontrar Hugo com um sorriso largo no rosto, Maya rindo com curiosidade em minha

direção e Sophia, que olhava em minha direção, ainda com sua faca em mãos.

— Você não deu o endereço, como eles vão vir até aqui?! — ela indagou apertando os dedos

ao redor do cabo da faca.

— Rastreando a ligação quando forem apagar os registros da ligação — respondi me


reclinando no sofá. — Lamento em dizer que vocês provavelmente também vão perder a linha
telefônica.

— Então você deu nosso endereço para eles?! — Sophia quase cuspiu as palavras, segurando
com mais força a faca em suas mãos.

— Os desgraçados são uma organização de assassinos de aluguel, Sophia — Hugo respondeu,


reclinando no sofá, soprando uma bola de fumaça de sua boca. — O endereço é o menor dos nossos
problemas... Aliás, Harry & Harry, controle de pragas, é um péssimo nome para uma organização
como essas.

Eu sabia que ele estava jogando comigo naquela conversa, e provavelmente seria assim até o
coletor chegar... Mas a essa altura, se tivessem sido espertos, teriam decorado o número que eu

disquei, sabiam meu nome e como conversar com a atendente.

O melhor era entregar informações suficientes para que eles se sintam no controle, sem
entregar nada que pudesse ser usado contra mim no futuro...

E, claro que meias verdades cairiam bem.

— Esse é um nome de fachada — respondi tragando devagar, deixando um intervalo grande


entre cada palavra. — Uma forma de disfarçar as ligações, sem contar que é uma ótima forma de
lavar dinheiro...

— Então vocês têm outro nome? — Sophia me cortou, impaciente.


— Claro — retruquei com um sorriso em sua direção.

— E qual seria o nome verdadeiro dessa organização tão organizada? — Hugo disse

balançando uma de suas mãos no ar.

— Filhos do Ceifeiro — respondi mostrando a tatuagem das foices cruzadas em meu

antebraço.

— Esse sim é um bom nome... — Maya disse rindo, fazendo Sophia dar um tapa sem força em
seu ombro.

— E quem vocês são? — Hugo perguntou. — Além é claro de serem filhos de um ceifeiro...

— A grande maioria ex-militares — respondi dando um último trago no cigarro e me curvando


para apagá-lo no cinzeiro. — Mas existem outros, alguns caçadores que resolveram ir atrás de presas
mais interessantes, outros são mercenários e paramilitares, matadores de facções extintas... Temos
até um samurai.

— UM SAMURAI?! — Maya perguntou quase pulando na cadeira.

— Ronin[17]... Na verdade — Respondi balançando os ombros. — Mas ele usa uma katana[18].

— Então são um bando de assassinos treinados que caçam pessoas por aí... — Hugo disse

também apagando seu cigarro.

— Se essa pessoa merecer, é claro. — A minha resposta trouxe olhares curiosos de todos na
sala. — Nós não matamos mulheres, crianças ou inocentes, em hipótese alguma, só matamos os
homens que realmente merecem estar mortos.

— Olha só, assassinos com princípios — Hugo disse com uma risada rouca. — Então vocês
matam os homens maus e ficam com os prêmios... Mas, vocês tem outra forma de se identificarem
além da tatuagem de foices, um olho de vidro, um dedo cortado, um aperto de mão...

— Um chip instalado no peito, que se nosso coração parar de bater, os Filhos dão um jeito de
acabar com todas as provas de que o afiliado existiu — falei essa meia verdade tentando parecer o
mais sério possível.

Porque isso realmente acontecia... Mas apenas com os membros sênior, coisa que eu não era.

— Quer dizer que se você morrer... — Hugo começou.

— Eles mandam a merda de um míssil na gente assim como fizeram no helicóptero em


Frankfurt — Sophia completou, falando com os dentes cerrados. — Foi isso que aconteceu, não é?
Seu colega morreu e eles acabaram com as provas e com seja lá quem for que estivesse lá.

— Exatamente — respondi olhando nos olhos da Sophia, falando na maior calma possível. —
E aconteceria igual se você tivesse me matado naquele porão, o quarteirão todo teria virado apenas
um enorme buraco no chão sagrado da Alemanha.

Mesmo que Hugo não estivesse enxergando, ele virou seu rosto em direção a Sophia, que
mordeu o lábio inferior com força.

Mas antes que pudéssemos continuar a conversa, um carro pesado parou em frente à casa, com
o barulho dos freios e a buzina avisando de que o coletor já havia chegado para buscar a prova
material.

Sophia foi até a janela ao lado do sofá, observando por um tempo, como se tentasse entender o
que estava acontecendo, e então me olhou com o rosto marcado pela dúvida.

— Por que tem a merda de uma van dos correios parada ali na frente? — ela perguntou em tom
sério, sem tirar os olhos de mim.

— Bem... Acho que o coletor não estava tão longe assim — respondi enquanto me levantava.
— Eu iria dizer para pegar uma camisa emprestada do Hugo, mas acho que não vai servir, ele é
musculoso demais.

— Bem, Maya, você pode pegar o excelentíssimo senhor Reinhart para nós? — Hugo disse
rindo enquanto se levantava e colocava uma mão no meu ombro. — Já sabe, não é mesmo? Se você

fizer qualquer coisa de estranho, vai ter que se ver com ela...

Maya foi até a porta e começou a descer as escadas com pressa, enquanto eu observava a van
amarela que estava parada na frente da casa, e assim que meus olhos bateram no carteiro, eu já sabia

quem ele era.

— Se você correr, falar algo que não deve ou tentar fazer qualquer... — Sophia começou a
falar, ainda olhando pela janela.

— Você vai arrancar minha língua e me fazer engolir ela mais uma vez, eu já entendi — eu

disse, porque sabia que agora ela iria pensar duas vezes antes de tentar fazer qualquer coisa, afinal, o
medo do chip que ela achava que estava em meu peito era o suficiente para assustar até mesmo ela.

Fiquei em pé, esperando que ela tomasse a iniciativa de ir até a porta, o que ela só fez depois
de guardar a faca que estava em suas mãos na bainha em sua cintura, cobrindo o cabo com a regata.

Hugo ficou com a mão no meu ombro, acompanhando o som que ela fazia enquanto andava e
abria a pesada porta de madeira, que rangeu alto enquanto ela abria, com uma nuvem de poeira que
subiu quando o vento quente da manhã entrou, e só então eu percebi como o lugar cheirava a mofo.

— Olá, é aqui que marcaram uma coleta em nome de Benjamin Blackburn? — A voz
desconfiada do Luke dizia quase tudo, obrigando Sophia a olhar para mim, fazendo um sinal com a
cabeça de que era a minha deixa para ir.

Maya estava subindo as escadas quando caminhei com Hugo até a porta, apenas para ver a
figura mais exótica que os Filhos do Ceifeiro já haviam tido.

Luke era alto e magro, com o corpo todo marcado de tatuagens tão coloridas que era difícil
entender o que eram cada um daqueles desenhos, sua barba castanha que descia até a altura do
umbigo, vestindo um uniforme de carteiro com calças pesadas e uma camisa larga.

Ele estava em pé ao lado da van, com um baseado no canto na boca e os olhos vermelhos
observando a rua vazia.

— Luke! — falei enquanto ia em direção a ele, passando pela porta, sentindo os olhos de

Sophia me acompanharem.

— Ben! — ele exclamou tirando o baseado da boca e esticando a mão em minha direção. —

Como você está, irmão?

— Trabalhe e sirva — respondi apertando a mão dele.

— Trabalhe e sirva... — Ele soltou minha mão, dando um trago longo no baseado em sua boa.

— Sinto muito pelo Arthur e pelo Ângelo, eram ótimos irmãos...

— Viveram pelo código e morreram por ele — respondi, sentindo o peso em meu peito que
essas palavras me causavam.

Por mais que eu soubesse que Arthur, na verdade, já deveria estar no Brasil a essa altura, a
lembrança da última conversa que tive com Ângelo ainda estava vívida em minha mente.

O peso em sua voz, sabendo que estava prestes a morrer...

A dor de perdoar o homem que tirou a vida que ele sempre quis.

— Uma vez soldado sempre soldado. — E soltando uma nuvem densa de fumaça, ele tirou o

baseado da boca e me ofereceu, o que eu apenas neguei com a cabeça, o que fez ele dar de ombros e
colocá-lo novamente entre os dentes. — Mas então, a central me disse que você pegou o Reinhart...
Cadê ele?

Olhei para trás, procurando Maya, mas para minha surpresa encontrei apenas Hugo comigo,
segurando o vaso com a cabeça.

Peguei o vidro, observando uma expressão estranha no rosto do Hugo, que respirava rápido em
direção a fumaça densa que estava se dissipando no ar.

— Filho da puta... — Luke disse pegando o vidro das minhas mãos e observando a cabeça que
boiava de um lado para o outro enquanto girava de um lado para o outro. — Esse cara está aqui há
quanto tempo?

— Dois anos — Hugo respondeu antes que eu pudesse sequer inventar algo. — Guardamos
caso precisássemos de dinheiro... — E então ele respirou fundo e olhou em direção a Luke. — Isso é

uma Índica Caramelo?

— As coisas apertaram, foi?! — Rindo, Luke tirou o baseado da boca e deu dois toques no
braço de Hugo, que esticou a mão. — Eu mesmo que plantei essa strain.

Agindo com a maior naturalidade do mundo, Luke puxou a porta lateral da van e entrou

carregando a cabeça, a cobrindo de um pequeno saco de tecido preto e colocando ela em pé entre
outros pacotes que estavam cobertos com o mesmo pano preto, em seguida caminhou até a frente da
van onde havia um cofre e após digitar alguns números, pegou uma maleta que carregava as duas
foices cruzadas estampadas.

— Essa aqui é realmente boa — Hugo disse enquanto soltava uma nuvem de fumaça no ar.

— Gostou? — Luke respondeu de dentro da van, enquanto abria a mala metálica e conferia o
dinheiro. — O segredo está em regar com chá de cogumelos.

Pulando para fora da van, e antes de bater à porta, ele me entregou a maleta que estava mais
pesada do que o normal.

— O Ceifeiro anexou um pagamento extra que deveria ser do Arthur e do Ângelo para você. —
Antes de esticar a mão para se despedir ele tirou outro baseado do bolso da camisa e acendeu. — Ei,
amigo, se quiser mais um pouco dessa ou tiver afim de algo mais forte, pega meu número com o Ben,
é a melhor de toda Europa.

— Pode deixar que eu vou — Hugo respondeu com um sorriso no rosto.

— E Ben, é sempre um prazer te ver. — Com um aperto de mão ele se despediu, subindo para
o banco do motorista e seguiu seu caminho.
Olhei para os dois lados na rua ainda vazia pelo horário, observando as casas tradicionais que

se estendiam por todo o quarteirão, com os jardins bem-arrumados, os carros estacionados que ainda

tinham uma camada de orvalho...

Mas meus olhos pararam em uma casa específica, do outro lado da rua, onde uma árvore tinha

um balanço de pneu, que ia de um lado para o outro com o vento que batia.

No mesmo instante senti a mesma fisgada no peito, que me lembrava de tudo o que eu já tive
um dia...

Tudo o que eu jamais teria.

— Vamos para dentro, acho que ouvi o telefone da Sophia tocando — Hugo disse, apoiando a
mão em meu ombro.

Juntos caminhamos até a sala, onde Sophia estava sentada em uma poltrona, mexendo no
celular, com a pele avermelhada.

Maya passou rápido por mim e foi fechar a porta atrás de nós, enquanto Hugo foi para o seu
lugar no sofá.

— Acho que no fim o Rambo estava falando a verdade — Hugo falou para Sophia, que olhou

em minha direção.

Coloquei a maleta metálica na mesa e a empurrei em direção a ela, que guardou o celular e a
puxou, olhando estranho quando percebeu o peso.

Seus dedos finos correram por toda a fechadura simples, e quando a abriu, pude ver o brilho
nos seus olhos observando as notas esverdeadas.

— Tem mais de cem mil aqui — ela disse puxando um pequeno bloco de notas presas por um
elástico e correndo os dedos para conferir uma a uma.

— Eu perdi dois companheiros na missão de ontem — respondi cruzando os braços. — Essa é


a parte deles pelos serviços prestados.

— E essa foi a primeira vez que vi alguém reclamar por receber mais do que imaginou —

Maya disse indo até Sophia, arregalando os olhos para a quantidade de dinheiro que tinha lá e
pegando um bloco de notas, sentindo o cheiro doce das notas.

— Considere sua dívida paga — Sophia falou tirando o bloco de dinheiro da mão de Maya e o
guardando de volta junto com o dinheiro que havia pegado.

— E qual dívida é essa? — perguntei.

— A por eu não ter arrancado seus olhos com a merda de uma colher. — Batendo a maleta ela
me olhou nos olhos, mas ao invés de raiva... Havia outra coisa ali. — Mas mesmo que você tenha
falado a verdade, saiba que se você fizer merda, eu não vou hesitar antes de arrancar a cabeça do seu
corpo... Mas temos outra coisa para resolver, o Hermann ligou, estão convocando todos para a
Rosenrot, descobriram que tem um espião na corporação.

E assim que ela terminou de falar, eu já esperava o pior.

Mas nem no meu pensamento mais pessimista eu fui capaz de imaginar o que estava prestes a
acontecer.
“Estamos todos usando máscaras. É isso que nos torna interessantes.”

NEIL GAIMAN

Todos nós temos um pesadelo frequente.

E na maioria das vezes, ele não era sobre quem você era hoje, mas sim por algo que te marcou
de tal forma que não importa quanto tempo passasse, o medo e o desespero que você sente, assim que
você é jogada para dentro dele sempre será o mesmo.

E esse pesadelo só existia para te lembrar de uma coisa...

De como você já foi frágil.

Para mim, ser frágil nunca foi uma opção, mas naquele pesadelo, tudo o que eu sou é uma
garotinha presa em uma sala de cirurgia, e apenas de lembrar era como se ele passasse tão vívido em
minha mente que eu era capaz de vê-lo.

A sala de cirurgia, com a cor branca que foi a única que conheci por anos, o cheiro estéril dos

produtos de limpeza que usavam para limpar cada canto daquele maldito hospital, as luzes de cor
esbranquiçada viradas para o meu rosto enquanto eu estava presa em uma maca, com tiras de couro
segurando meus braços e pernas.

Na minha frente, vestido com roupa de açougueiro e com os malditos óculos em formato de
meia lua, estava Strauss, com um cutelo em mãos e o rosto borrado, como em todas as minhas
lembranças.

Ali, eu era dele, como uma boneca... Feita apenas para ser usada.

Sem vida.

Sem alma.

Enquanto ele cortava cada parte do meu corpo, rasgando minha pele com cutelos, bisturis e
facas, abrindo minhas costelas com serras, arrancando meu coração do peito e abrindo um sorriso
macabro ao vê-lo em suas mãos.

Durante todo o processo, eu sentia cada corte, cada pequeno detalhe do que ele fazia com meu
corpo, que mesmo eu envelhecendo, naquele sonho eu era apenas uma menina.

Um objeto de estudos para um homem doente.

Uma doadora...
Desde o dia que eu saí pela porta daquele hospital, que havia se tornado também um enorme

cemitério e túmulo para aqueles que mereceram e para muitos que não o fizeram, o maior medo que

eu tive era voltar a pertencer a alguém.

Em voltar a ser a menininha do doutor.

Deixei esses pensamentos entrarem e saírem da minha mente enquanto eu dirigia pelas ruas
centrais da cidade, mantendo os olhos fixos na caminhonete que seguia atrás de mim.

— Um assassino de aluguel... — falei para mim mesma enquanto parava o carro em um


semáforo na Bundesstraße. — A MERDA DE UM ASSASSINO DE ALUGUEL...

“Nós matamos apenas os homens que merecem morrer.”

E onde ele estava nos últimos dez anos?

Onde essa organizaçãozinha que aparentemente só veio para “ajudar” estava quando nós
estávamos sendo usados por eles? Quando fomos deixados à própria sorte depois que o hospital
havia se tornado um banho de sangue?

Onde eles estavam quando os que sobraram morreram por não ter como viver depois de serem
retalhados pelos médicos do Strauss?

Respirei fundo, apertando com força o volante do carro, tentando limpar minha mente de tudo
isso.

Observei o trânsito, enquanto as pessoas iam de um lado para o outro em uma das avenidas
mais movimentadas de Munich.

As lojas abrindo, deixando as fachadas coloridas das marcas de grife costuravam as calçadas,
os homens de terno que entravam e saíam aos montes das cafeterias, carregando os copos brancos
lotados de café, as mulheres com roupas esportivas que atravessavam as ciclovias a pé, correndo
com seus relógios que medem batimentos cardíacos...
Uma vida normal.

Observei o relógio no painel do carro, tentando imaginar se eu estaria viva daqui a uma hora,

porque contra dois ou três homens eu era capaz de lidar... Mas eram cinquenta e sete homens naquela
célula.

E mesmo que o homem na caminhonete atrás de mim pudesse ser de alguma ajuda caso o pior
acontecesse, até onde ele estaria disposto a ir para salvar as nossas vidas?

A partir de qual momento deixaria de sermos uma dupla e passaríamos a ser cada um por si?

E foram esses pensamentos que me seguiam, me atormentando por cada instante, enquanto
seguia até a zona industrial, até chegar no galpão da antiga metalúrgica onde agora era uma base para
que os porcos pudessem grunhir uns para os outros os absurdos que eles concordavam.

Por mais que fizesse oito meses que eu trabalhava naquele lugar, o porteiro ainda me olhava de
cima a baixo antes de abrir o portão, porque não importava se eu era alguém mais importante do que
ele ali dentro.

Eu ainda era uma mulher.

E eles ainda a porra de um bando de nazistas.

Abaixei o vidro do carro para que o homem vestido com uma roupa preta pudesse me olhar nos
olhos através de uma brecha no portão de metal e só depois de me encarar por mais tempo do que ele
realmente precisava, ele abriu o portão, fazendo o metal bater com força contra o concreto, tentando
imaginar se aquela ia ser a última vez que eu passaria por aquele portão.

Porque eu morreria ali antes de deixar que eles encostassem em mim.

Atravessei o portão enquanto o guarda começava a arrastá-lo de volta e estacionei meu carro
na vaga que já era minha, sentindo nojo de mim mesma por tê-la, mas não desci dele, apenas fiquei
ali, observando o portão.
Benjamin havia ficado um pouco para trás, porque já havia sido estranho o suficiente eu ter

ficado uma hora trancada com ele no vestiário e depois ter saído de lá arrastando o homem

desacordado e fedendo a whisky que eu virei nele para fingir que ele tinha tido um teto preto.

“Sophia, preciso de você aqui agora, temos a merda de um impostor na célula... E se você

estiver com ele, traga o Hausser contigo, temos algumas coisas para resolver com ele...”

As palavras do Hermann martelavam em minha mente enquanto eu sentia meu pé bater forte
contra o piso do carro repetidamente, como se agisse por conta própria.

Eu conhecia aquele sentimento...

A ansiedade antes de cada guerra.

Porque eu sabia que se aquela caminhonete não atravessasse o portão nos próximos minutos,
seria a prova de que aquele homem poderia ter me entregado.

Afinal, ele era um assassino de aluguel... Qual era a prova de que Strauss era realmente o alvo
dele e não eu?

Mas antes que a paranoia continuasse cavando qualquer pensamento pessimista que eu poderia
ter, o portão se abriu, e através dele eu vi a caminhonete com Benjamin vindo, e de alguma forma o

barulho dos pneus no cascalho me trouxe alguma paz.

Como eu era capaz de duvidar tanto de um homem que ao mesmo tempo parecia me trazer
alguma paz?

Ele estacionou em uma vaga um pouco distante e começou a vestir uma camisa, ainda dentro do
carro, e eu aproveitei para pegar a única coisa que eu realmente podia confiar.

Dentro do porta-luvas, escondida em um canto dentro de um coldre estava a pistola que Bran
havia pegado de um guarda morto no hospital.

A envolvi em minha mão, e no mesmo instante em que o aço frio encontrou minha pele, de
alguma forma, era como se eu pudesse sentir a presença dele ali comigo.

Como se parte dele ainda estivesse presa a mim.

E enquanto ela estivesse comigo, ele também estaria.

Prendi o coldre em minha cintura e desci do carro, vendo Benjamin que pelo menos tinha tido a
decência de colocar uma camisa, andando em minha direção, com os olhos correndo pelos guardas,
que agora estavam acorrentando o portão.

Ele sabia o que estava prestes a acontecer.

Juntos seguimos até a porta vermelha que separava aquele galpão do resto do mundo, e assim
que ele abriu a porta, encontrei percebi que havíamos sido os últimos a chegar.

Todas as portas do galpão estavam fechadas, lacradas por correntes e cadeados, enquanto as
janelas se mantinham cobertas pelas cortinas vermelhas, que deixavam o lugar todo mais opressor.

Havia uma dezena de homens do Reich, vestindo ternos escuros com os sobretudos de couro
descendo até embaixo dos seus joelhos, e todos estavam com armas atravessadas em seu uniforme,
todos parados como estátuas ao redor do palco.

Em frente a eles, estavam Hermann e seu filho, em posição de sentido, observando todos os

outros homens da célula, que agora formavam um círculo ao redor deles, como soldadinhos em
formação.

Ao redor de todo o galpão, os quadros com os rostos dos membros do antigo Reich
observavam toda a cena, com seus olhos frios, vazios de vida e marcados pelo ódio que tinham em
vida.

— Sophia, Hausser — Hermann falou com a voz postada. — Por favor, entrem em posição.

Pensei em avisar Benjamin para que ele não me seguisse, porque já não bastava ser a merda da
única mulher naquele lugar, não precisava do novato ao meu lado para aumentar as suspeitas sobre
mim, mas de alguma forma, ele deve ter pensado o mesmo sobre mim, e acabamos em lados opostos
do círculo, de forma que ficamos um de frente para o outro.

Os homens que completavam o círculo eram os mesmos da noite anterior.

Os gêmeos de Berlim, ambos gordos e carecas, com os corpos lacrados de tatuagens nórdicas.

O sobrinho do último general vivo da “SS”, alto com os olhos azuis fundos, que era fácil de
reconhecer pelos raios tatuados em seu pescoço.

Os bêbados que davam em cima de mim toda noite em que eu vinha para esse maldito lugar

com a esperança de que um dia eu pudesse ter a chance de ser enviada para a missão certa que me
colocaria dentro do hospital novo do Strauss.

Boa parte deles ainda mostravam sinais de embriaguez, muitos com os olhos fundos pela
ressaca da noite anterior.

Aquele era o último lugar que eu queria estar, mas não podia esquecer que não ir para uma
reunião de emergência poderia levantar suspeitas, e suspeitas levavam a investigações...

Não havia como fugir deles, não aqui, na cidade deles.

No país deles...

— Bem... Acho que não é segredo para ninguém aqui que eu e vocês somos uma família —
Hermann começou a falar, enquanto andava, observando os homens que o cercava. — E como
família, somos um só com aqueles que nos antecedem, somos fortes por aqueles que morreram pela
causa!

Enquanto caminhava, ele parou em frente a Heinrish, que mal era capaz de abrir os olhos, pelos
golpes que havia tomado de Benjamin ontem à noite.

— Nós lutamos e sangramos pelo Reich.— Colocou as duas mãos no ombro do homem que era
tão alto quanto ele, pude ver o peito do lutador se inflar pelo orgulho cego que eles tinham por esse
país. — NÓS LUTAMOS E SANGRAMOS PELA NOSSA NAÇÃO!

[19]
— DEUTSCHLAND UBER ALLES! — todos gritaram em coro, tão alto que era possível
sentir em meus ossos o grave das vozes.

A ponto de que eu pudesse sentir meu estômago se revirando ao ouvir minha voz misturada a
daqueles homens, gritando a frase que marcou a morte de milhões de pessoas.

— Alemanha acima de tudo... — Hermann voltou a dizer, enquanto andava pelo círculo,
passando pelos seus soldados de confiança, os homens que iam e voltavam nas missões. — É

incrível como a cada dia, essa frase... Essa pequena afirmação, tem se tornado mais e mais forte, e
ela só tem esse poder, porque diferente do resto do mundo, a Alemanha continua sendo a Alemanha,
seguimos firmes, sem nos dobrar aos vermes e ratos que tentam rastejar para o nosso país.

O Velho caminhou por quase todo o círculo enquanto falava, passando por mim, deixando o seu
perfume extremamente doce de canela e menta no ar, mas antes que ele continuasse o discurso...

Ele parou em frente ao Benjamin.

— Mas não são todos que conseguem enxergar a verdade... — colocou as duas mãos sobre o
rosto do assassino de aluguel, Hermann o olhou fundo nos olhos —, existem aqueles que vêm de

países podres, enviados com o objetivo de minarem a força de nossas ações... E para esses ratos, só
resta a ratoeira.

Uma batida forte tomou conta do galpão, fazendo com que todos olhassem ao filho do Velho,
que havia acabado de bater com um taco de beisebol em uma das vigas de metal, deixando o som
ecoar como um sino enquanto ele andava até o pai, que ainda tinha Benjamin em suas mãos.

— Existem aqueles que vêm até aqui com a ilusão de que matar um homem como nós é uma
tarefa fácil, mas eles se esquecem que a honra nos torna imortais. — Com dois tapas sem força no
rosto de Benjamin, o Velho pegou o taco das mãos do filho e deu um passo para trás, ficando frente a
frente com ele. — E para os traidores da raça, a única pena é a morte.
Sem chance de que qualquer um pudesse fazer alguma coisa, rápido o suficiente para que a

única reação do tal Filho do Ceifeiro fosse correr as mãos pela sua cintura, Hermann brandou o taco

de beisebol no ar, o erguendo e girando o próprio corpo com uma destreza inacreditável para sua
idade.

Apenas para parar o movimento descendo o taco com força, apontando para o homem que
estava a poucos metros à minha direita

— Herbert Von Baur! — ele disse, na mesma hora que os homens que estavam ao redor do
homem alto e magro de cabelo loiro cortado em forma de moicano o segurassem, com um deles

pulando para suas costas, prendendo seus braços com as mãos, enquanto outro puxava um pedaço de
pano do bolso e amarrava a boca do homem, deixando apenas que seus gritos abafados tomassem
conta do galpão. — VOCÊ ACHOU QUE NÓS NUNCA ÍAMOS DESCOBRIR?! Que você só está
aqui para me matar.

Acompanhei com os olhos o homem se debater, tentando se desvencilhar dos dois soldados que
agora o seguravam com tanta força que era possível ver as marcas vermelhas que marcavam seu
pescoço e seus braços.

— Hans Von Hausser — o Velho falou se virando para Benjamin, estendendo para ele o taco de

beisebol. — Como nosso mais novo membro, as honras são suas.

Naquele momento, todos os olhos se viraram em direção a ele, esperando pela reação daquele
que havia sido escolhido para uma das maiores honras dentro daquele lugar, matar o traidor...

“Não matamos mulheres, crianças ou inocentes...” A voz dele ecoou em minha mente, enquanto
eu engolia em seco, tentando entender o que ele estava prestes a fazer, mas para a surpresa de todos,
ele empurrou o taco de beisebol, fazendo com que todos ali observassem a cena sem acreditar.

— Traidores não merecem tanta piedade — Benjamin disse, e cerrando os punhos, ele
atravessou a sala em direção ao seu alvo.
Enquanto ele andava, era como se eu pudesse ver a raiva que tomava conta dele, brilhando

como fogo em seus olhos que do verde claro se tornaram verde escuro, marcado em rubro pela luz

avermelhada das cortinas.

Era como se eu pudesse sentir...

Como se eu pudesse sentir a raiva que fluía através dele, gritando a cada passo que ele dava
em direção ao homem imobilizado à sua frente, que agora se debatia com mais e mais força, tentando
se desvencilhar dos homens que o seguravam, com sua voz abafada pelo pano.

Vendo o homem que ia matá-lo chegando um passo de cada vez.

Se aproximando, até estar perto o suficiente para acertar o primeiro soco.

Ele girou o corpo, com a mão fechada, mirando no tórax... Um golpe seco, de baixo para cima,
acertando em cheio as costelas do homem que estava preso, com os olhos vidrados em Benjamin, e
no mesmo instante que o soco explodiu contra o peito do homem, o barulho das costelas dele
trincando ecoou por todo o salão.

Antes mesmo que Herbert pudesse se recuperar daquele soco, o segundo já estava voando em
sua direção, com Benjamin balançando seu corpo para trazer ainda mais força para um soco direto no

peito do homem que arfou alto quando todo o ar que havia em seus pulmões foi empurrado para fora.

Os próximos minutos foram assim, enquanto os homens seguravam o traidor, Benjamin o


atacava, acertando primeiros as suas costelas e peito com socos tão destruidores que o barulho dos
ossos ecoava pelas paredes do galpão, no começo eram altos estalos, seguido dos gritos abafados
pela mordaça, mas a cada golpe era como se o peito dele fosse moído pelos golpes, se tornando um
barulho parecido com o som de quando se chuta um punhado de pedras.

Já não tinha como saber o que estava batendo no que, como se já não houvesse nenhuma costela
inteira.

A cada novo soco, era como se ele estivesse tomado por raiva, como se através dele fosse
capaz de sentir o ódio que ele deixava fluir pela violência, com suas mãos se tornando vermelhas

enquanto a camiseta de Herbert já havia rasgado e ele agora deixava o corpo do homem em carne

viva...

Aqueles não eram golpes normais, aquilo não era uma execução...

Era um expurgo.

Era o que havia de pior no ser humano, sendo libertado como uma besta enfurecida quebrando
as grades que a prendiam, sedenta por sangue.

Implorando por vingança.

Isso durou até que Herbert caiu de joelhos, com a pano em sua boca se manchando em sangue
que vertia de sua boca enquanto ele engasgava e tentava puxar o ar com força, apenas para perceber
que seu diafragma estava tão detonado que não era mais capaz de encher seus pulmões.

Ele se engasgava com o próprio sangue enquanto usava as forças que ainda lhe restavam para
rasgar a própria garganta, com a esperança de que assim, de alguma forma, ele pudesse sentir o ar
voltando para o seu corpo...

Benjamin olhou a cena em pé, a centímetros do homem que agonizava, e pacientemente ele

caminhou até suas costas, puxando uma faca de sua cintura, e com uma mão ele segurou a testa de
Herbert, puxando sua cabeça para trás expondo o seu pescoço... Com a outra ele colocou a lâmina em
seu pescoço, correndo de um lado para o outro, abrindo um corte tão profundo que agora toda a
roupa do homem havia se tornado vermelho sangue, pelo líquido denso e espesso que agora se
empoçava ao redor dos dois.

Ben ficou ali, segurando a cabeça do homem enquanto ele se debatia, cada vez mais
lentamente, em tentativas frustradas de conter o sangramento que, querendo ou não, apenas o havia
poupado de mais agonia.

— ESSA, SENHORES, É A FÚRIA DO SANGUE! — Hermann gritou, quando Ben deixou o


corpo do homem cair, sem vida no chão. — ESSE É O RESULTADO DAQUELES QUE TENTAM

DERRUBAR O REICH!

— SIEG HEIL! SIEG HEIL! — todos ali gritavam em coro, enquanto comemoravam, socando
uns aos outros como se fossem animais.

E ali, no meio de tudo aquilo, Ben guardou sua faca em silêncio, com os olhos fixos no sangue
que corria pelo galpão, enquanto os dois homens que antes imobilizavam Herbert, agora carregavam
seu corpo, o arrastando por entre chutes, cusparadas e xingamentos dos outros membros.

Ali eu percebi que Benjamin era um homem quebrado.

Ele era como Hugo.

Como Maya.

Como Bran...

E em sua raiva, de alguma forma, ele também era como eu.


“Certas coisas ficam à espreita, esperando pacientemente por nós, em passagens sombrias

da nossa vida. Acreditamos que ficaram para trás, que as ultrapassamos, que lá vão ressecar e
encolher e serão levadas pelo vento – mas estamos enganados. Elas permanecem lá na escuridão,
à espera, se exercitando, praticando seus golpes mais potentes, o soco impetuoso, duro e
insensível no estômago, só aguardando o momento em que voltaríamos por aquele caminho.”

NEIL GAIMAN
Quem você é quando ninguém está olhando?

Quando a porta do quarto se fechava e você se encontrava ali, sozinho, longe de qualquer
julgamento ou análise, era quando estávamos mais perto de quem realmente éramos.

Ali, naquele pequeno momento, nós éramos nós mesmos.

Mas só nos permitimos isso, justamente por estarmos sozinhos, porque a presença de uma
pessoa, mesmo que ela seja a pessoa mais próxima e íntima de você, já é o suficiente para que
reprimamos certos impulsos...

Certos pensamentos.

Certas emoções.

Mas, em outros momentos, era como se a linha que traçamos se perdesse, apagada pela força
de tudo aquilo que existe em nós, aqueles sentimentos que lutavam todo dia para saírem, que naquele
momento, tomava o controle de nosso corpo, nos transformando em algo diferente de quem realmente
éramos.

E nesses momentos, nós mostramos quem nós éramos sem os panos que usamos para cobrir
nossos impulsos ou acabamos nos tornando os demônios que nos atormentavam?

Porque ali, com minhas mãos cobertas de sangue, a única coisa que eu conseguia me sentir, era
um monstro.

Um demônio.

Uma alma corrompida...

Olhei em volta, para o galpão tomado pela luz vermelha do sol batendo nas cortinas, nos
homens que gritavam e comemoravam a morte de um dos seus, pelas minhas mãos...

O Velho que sorria orgulhoso para mim, como se tivesse acabado de ver em mim o reflexo de
quem um dia ele foi.

Quem poderia dizer que eu não era? Quais provas teriam para me apontar de que, apesar dos

meus pecados, ainda havia alguma bondade em mim?

Que voltei a matar não com o objetivo de tornar o mundo um lugar melhor, livre de homens tão

terríveis que o próprio Ceifeiro, fosse lá quem ele realmente fosse, os queriam mortos...

Quem garante que eu não mato por que eu gosto...?

Que eu e o ódio que corria em minhas veias já não havíamos nos tornado um.

Porque, há muito já havia apagado em meu peito a única coisa bonita que um dia já existiu em
mim, e agora...

Principalmente agora.

Não era capaz de ver esperança alguma de que a dor que gritava em meu peito se calasse, nem
de que o vazio pudesse ser preenchido com qualquer coisa que não fosse sangue.

Respirei fundo, deixando o cheiro ébrio e metálico encher meus pulmões enquanto guardava
minha faca na bainha, sentindo o sangue nela correr pelo couro, e assim pude ver o estado que
estavam minhas mãos.

Os calos dos nós dos meus dedos manchados de vermelho, o sangue pegajoso que escorria pela
minha mão, pingando na poça vermelha em meus pés.

“Helena... Por que você me abandonou?”

Desde que conheci Helena, era como se ela estivesse comigo o tempo todo, como se mesmo
com o tempo, com a distância que estávamos desde o último dia em que nos vimos...

Ela sempre estava ali, como se sua paz e seu amor ainda estivesse vivo em mim.

Mas agora, era como se paz fosse apenas uma lembrança distante, como se agora, tudo o que eu
tivesse fosse raiva...
Fosse o vazio.

Porque ali, quando me mandaram matar aquele homem...

Eu não hesitei.

Em nenhum momento sequer eu hesitei antes de matar aquele homem, que estava sendo acusado
de coisas que eu sequer entendia o motivo.

Sabia apenas de que, se não o fizesse, provavelmente não teria chances de conseguir as
informações que precisava.

Que se não o fizesse, provavelmente a minha vida seria a próxima a ser tirada.

Mas o quanto a minha vida valeu mais do que a dele?

Observei o corpo do homem ser arrastado para longe, vendo os homens ao meu redor
xingarem, cuspirem e o chutarem, e o Velho, sorrindo, caminhou em minha direção após um discurso
que eu não fui capaz de ouvir palavra alguma, porque em minha mente, era como se todas as vozes
houvessem se tornado gritos.

— Sabe, eu sei que você é americano, foi a primeira coisa que percebi em você — ele disse
chegando bem perto de mim. — Mas eu sempre tive certeza de que o sangue que corre em suas veias

não mente, você é príncipe do Reich, e eles sabem disso!

Quando ele disse que “eles” sabiam, falou apontando para os homens de terno que observavam
tudo em frente ao palco.

— Eles foram atrás do seu passado, Sr. Hausser, desde quando você tinha outro nome lá nos
Estados Unidos — ele falou bem perto do meu ouvido. — Um militar exemplar, com missões o
suficiente para que pudesse se aposentar jovem... Isso é bom, porque ainda há muito do soldado em
você, e isso vai ser muito útil para nós, e para nosso amigo em comum... Dr. Strauss, ele está
precisando de soldados novos, porque existem alguns homens que o querem morto, entende, não é?
— Entendo muito bem — respondi baixo, percebendo o quão rouca minha voz estava.

— Muito bem, muito bem... — Ele segurou minha mão, observando as marcas e as tatuagens

que a cobria. — Sabe, quando um de nós mata pela causa a primeira vez, geralmente passamos o
sangue do inimigo nas nossas mãos, como um batismo... Mas acho que com você não vai ser

necessário, não é mesmo?

— O que ele fez? — perguntei, e naquele momento o homem me olhou, levantando uma das
sobrancelhas. — O que o traidor fez para ser julgado?

— Demos uma missão para ele e ele não conseguiu cumprir — ele respondeu, dando dois

tapinhas em meu ombro. — Era um homem fraco, e todo homem fraco é um traidor... Claro que
normalmente nós apenas o mandaríamos embora com desonra, mas precisávamos saber se você ainda
sabia obedecer a ordens.

— Então tudo era um teste? — perguntei, observando os homens à minha volta que agora já
estavam novamente com canecas de cervejas em suas mãos, mostrando que Sophia provavelmente já
estava no bar.

— A gente se conheceu ontem, acha que íamos confiar cegamente em um desconhecido? — o


Velho indagou com a voz amarga. — Estamos precisando do máximo de homens possível, é verdade,

e ter alguém treinado como você faz total diferença, mas queríamos saber de qual lado a sua alma
está, e agora sabemos que está do nosso, então, se eu fosse você aproveitava e tirava a sua ruivinha
do bar e levava para casa, porque amanhã vamos viajar.

Sorrindo, ele foi em direção aos homens com os ternos escuros, deixando pegadas de sangue
por onde andava.

“Sua ruivinha...”

Antes que eu pudesse perceber, minha mão já estava ao redor da faca em minha cintura,
sentindo como o cabo parecia se encaixar tão bem ali, como se fizesse parte do meu corpo... O que
não deixava de ser verdade.

Porque se eu era um demônio, aquelas eram minhas garras.

Respirei fundo, com a esperança de que isso fosse o suficiente para controlar a vontade de
rasgar a garganta daquele desgraçado, e meus olhos correram pelo galpão, passando quase

envergonhados pelos quadros dos antigos líderes da “SS” que em seu olhar sem vida nas fotografias
preto e branco, me observavam com orgulho...

Eu era como eles.

Mas quando encontrei o bar, observei Sophia, que tirava canecas e mais canecas de cerveja
para alguns dos homens que circulavam o balcão, tão bêbados que não era capaz de entender como
ainda conseguiam andar depois de beber tanto.

Eram porcos, aproveitando a lavagem.

Cortei o lugar, deixando minhas pegadas em sangue no piso de concreto, com minha cabeça alta
e os olhos fixos no galpão, sem desviar o olhar de Sophia, que me observava por cima das torneiras
metálicas do bar, e qualquer homem que estivesse no meu caminho passou a se esquivar de mim, com
uma expressão de orgulho no rosto.

Eu reconhecia essa expressão, era a mesma que um soldado usava quando olhava para o seu
superior.

Era ridículo como ganhar a admiração desses homens era simples.

Avancei em direção a um lugar vago no balcão empurrando com a mão os homens que estavam
em meu caminho, e no momento em que se viravam para reclamar, desistiam assim que me viam ali.

Me joguei no banco, apoiando as mãos, que estavam quase em carne viva, sobre o balcão de
madeira que já estava melado com a cerveja derramada.

“Helena... O que eu me tornei?”


Pensei, respirando fundo, com a esperança de que viria alguma resposta... Mas só ouvi o

barulho abafado das vozes falando alto à minha volta.

O que ela acharia de quem eu me tornei hoje?

O que acharia do homem que matava com facilidade, que não se importava mais com o cheiro

do sangue em suas mãos.

Que agora, matava por dinheiro.

— Você é bom... — A voz de Sophia pareceu pular em minha mente, me arrastando para fora

daqueles pensamentos.

Olhei para ela, iluminada pela luz avermelhada do lugar, e acompanhei o traçado do seu rosto,
fino e delicado, com seus olhos castanhos escuros... Tão... Únicos.

Como se eu pudesse mergulhar dentro deles e ser lançado para um universo a parte,
acompanhando tudo que transformou uma mulher tão delicada em alguém que carregava tantos
sentimentos...

Tantas desconfianças.

Tanta... raiva...

Era engraçado pensar nela em alguém que, assim como eu, carregava um sentimento tão pesado
consigo, como se aquilo que a transformou em quem ela era hoje, de alguma forma, tivesse a deixado
com o mesmo sentimento que agora queimava em cada veia do meu corpo.

Observei mais um pouco, o rosto dela, com o cabelo cor de fogo, curto, que ela arrumava com
a ponta dos dedos, o jogando para trás...

Então meus olhos foram puxados direto para sua boca.

Mesmo que ela não usasse batom, o tom rosado dos seus lábios tão bem desenhados era único,
assim como seus olhos... Como se todo o seu rosto tivesse sido desenhado por mãos atentas a cada
pequeno detalhe.

Em silêncio eu a observei abrir e fechar a boca, hipnotizado, e enquanto meu sangue se

esquentava, tudo que se passava em minha mente era como sua pele era macia, lembrando de quando
nossos corpos estavam juntos quando tinha colocado ela contra a parede de espuma...

Eu sabia que ela estava falando comigo, mas era como se eu não fosse capaz de ouvi-la,
porque ali, todas as vozes haviam se tornado abafadas, todos os sons se confundiam em meio a
adrenalina que gritava tão alto em mim.

Mas então, tudo mudou, como se minha mente fosse jogada de volta à realidade com tanta

velocidade que só então percebi como minhas mãos estavam doendo.

O que me tirou daquele estado, foi um toque...

Ela passou os dedos pelas minhas mãos, enquanto segurava um pano úmido, limpando onde
havia me machucado, e a cada toque dela, era como se uma onda de calor tomasse conta do meu
corpo.

Observei, enquanto ela limpava minhas mãos com cuidado e o pano úmido que estava quente,
ajudando a tirar o sangue que eu já não era capaz de saber se era meu ou do homem que havia

acabado de matar.

— Oi? — Foi a única coisa que consegui pensar em falar naquele momento.

— Eu tinha certeza de que você não estava me escutando — ela falou, com a voz meio
dispersa, atenta no que estava fazendo. — Tinha falado que você é realmente um bom boxeador, só
deveria cuidar mais do seu cruzado de esquerda, ele acerta meio fora de ângulo às vezes...

— Foi tudo um teste... — disse abrindo e fechando os dedos da mão, sentindo se tudo ainda
estava no lugar. — O homem não tinha feito nada, só não tinha conseguido cumprir uma missão.

Ela olhou para os homens à nossa volta, certificando que ninguém estava prestando atenção na
nossa conversa, mas todos estavam tão bêbados, ocupados gritando e falando alto uns com os outros

que já era difícil para que nós pudéssemos nos escutar, mesmo estando tão perto um do outro.

— Eu imaginei que fosse — ela respondeu, começando a limpar a outra mão. — Herbert nunca
foi muita coisa dentro da organização, mas também não faria nada contra a causa... Você tem uns

calos muito estranhos aqui... O que você treinou além de boxe?

— Krav Maga — respondi, pensando o quão irônico era. — Era obrigatório no exército.

— Você realmente serviu no exército norte-americano? — ela perguntou, parando um instante


para me olhar nos olhos.

— Dos dezoito aos vinte e quatro — respondi, levando a mão que já estava limpa ao bolso de
trás da minha calça, buscando minha carteira. — Operações especiais secretas, esquadrão “Angels”.

— Parece importante demais para um garoto — ela disse enquanto eu passava os dedos entre
os cartões de banco, o cartão de crédito preto dos filhos do ceifeiro, e ali, encontrei minha antiga
identificação do esquadrão.

— E quantos anos você tem para me chamar de garoto? — inquiri entregando para ela o meu
cartão de identificação.

— Não te interessa — ela respondeu pegando o cartão e olhando com atenção. — Médico de
combate?! Sério?

— Sim, me formei em medicina pela faculdade do exército — expliquei. — Mas, sendo


sincero, o máximo que fiz foi colocar uns ossos no lugar, costurar uns cortes e fechar uns buracos de
tiro.

— Seu nome aqui está Benjamin Blackburn... — ela afirmou passando a unha pelo papel. —
Mas o papel aqui é diferente, deve ser o mesmo tipo de papel, mas essa parte me parece um pouco
nova demais.
— Você deveria trabalhar com isso, foi a primeira pessoa que percebeu — falei, vendo que

tinha uma caneca de cerveja cheia em cima do balcão, ainda no apoio da torneira. — Essa caneca

tem dono?

— Por que trocou o seu sobrenome? — ela perguntou me devolvendo a identificação e

entregando a caneca de cerveja.

— Norma dos Filhos — respondi pegando a caneca e dando um gole longo, deixando o líquido
cremoso e amargo escorrer pela minha boca, lavando o gosto metálico do sangue. — Todos nós
mudamos o sobrenome quando entramos.

— Porque são todos Filhos do... — Ela balançou a cabeça para não terminar o nome. — Faz
sentido... Mas agora, o que o velho disse para você?

— Que eu fui aceito para ser um dos guardas do Strauss — respondi, vendo seus olhos se
abrirem em choque. — E que amanhã vou viajar.

— Filho da puta... — ela disse dando um passo para trás e apoiando as mãos sobre o balcão.
— Eu estou aqui tentando pegar qualquer missão que me colocasse para dentro e você consegue na
merda do primeiro dia? Filhos da... Eu vou com você.

— Você sabe para onde vamos? — perguntei dando mais um gole longo na cerveja.

— Não... Mas sei quem sabe — respondeu com um tom sério.

E então, deu a volta, saindo do balcão do bar e deixando a porta aberta, gritando alto que
estava saindo e quem quisesse podia ficar à vontade para pegar a merda da sua bebida.

Com pressa, ela me puxou pela mão, me levando com ela para fora do galpão, enquanto os
homens riam e gritavam ao vê-la saindo comigo.

Mas, como sempre, ela parecia não se importar com a opinião de mais ninguém.
Fiquei sentado no banco do motorista enquanto ela dirigia com pressa pela cidade, cortando o
trânsito entre os carros sempre que podia.

Fitei as ruas largas da região mais afastada do centro da cidade, com as árvores tomando conta
das calçadas e quintais muito bem cuidados, a grama curta sempre bem aparada ao redor das longas

praças lotadas por pessoas caminhando de um lado para o outro, preocupadas com o horário, com
seus trabalhos e famílias.

— Eles são a porra de um bando de porcos, mas sabem guardar segredo — ela falou,
acelerando ainda mais o carro, fazendo o barulho do motor gritar alto, assustando um casal de
velhinhos que estava na calçada. — Eu tento há quase um ano entrar na MERDA de uma missão
dessas, e eles te colocam porque você tem um pau no meio das pernas e uma carteira falsa das forças
armadas...

— A carteira é de verdade — respondi, jogando o corpo contra o banco de couro do carro. —

O nome é falso...

— Então ela é falsa e ponto! — ela exclamou, jogando o volante com força para o lado,
fazendo as rodas de trás do carro derrapar enquanto ela fazia uma curva fechada, seguida de uma
sequência de buzinadas dos carros ao nosso redor.

— Sophia, eu sobrevivi a quarenta e duas missões de ranking “S” — disse segurando firme no
painel do carro, depois de mais um solavanco —, mas eu juro que nunca estive tão perto da morte
quanto agora.

— Do que você está falando? — perguntou acelerando ainda mais o carro quando entramos em
uma avenida.

As árvores eram apenas borrões verdes, enquanto as pessoas eram como vultos coloridos, o

motor do carro trabalhava com força o suficiente para que eu pudesse sentir o banco tremendo
enquanto os pistões pulavam com força embaixo do capô.

— Nada não... — respondi, percebendo que continuar essa conversa seria uma causa perdida.
— Para onde estamos indo?

— Yuri Meyer — ela respondeu, mantendo o ritmo do carro, ignorando qualquer semáforo ou
placa no nosso caminho. — Ele era um dos braço direito do Hermann há três anos, foi o responsável

por organizar as missões que as células fazem, e foi ele que fechou o acordo entre a Rosenrot e o
Strauss.

— E por que o Strauss é tão importante para o Reich? — perguntei, olhando para ela, tentando
ignorar o quão rápido nós já estávamos.

— Conhece a farmacêutica Hoffen?

— Claro! — respondi, estranhando a pergunta.

Hoffen[20] era de longe a maior farmacêutica da Europa, e provavelmente a maior do mundo.

Eles ganharam muito dinheiro com a venda de remédios “experimentais” contra doenças que
até então nunca se havia pensado em uma cura, todos vendidos ao que se considerava ser a “margem
da lei”, mas como muitos realmente chegaram a dar certo, todo o mundo pareceu ignorar o que eles
chamaram de “taxa de risco”, que eram os remédios que nunca funcionaram.

Mas a esperança que eles vendiam nas prateleiras tinha um preço alto, com remédios custando
mais do que um salário-mínimo na maioria dos países... Mas em horas como aquelas, pouco se
importa os valores, apenas a vida do seu pai, mãe, irmão, filho, marido...

— Strauss é o herdeiro da farmacêutica — Sophia contou, e aquilo foi o suficiente para tudo
fazer sentido na minha cabeça. — E pelo desgraçado estar nadando no dinheiro como o Tio Patinhas

da puta que pariu, não foi problema doar uma quantia gorda para a teta do Reich.

— Ele é o investidor... — disse, voltando meus olhos para a rua, enquanto ela parecia
desacelerar o carro.

— A merda do investidor... — falou prestando atenção nas casas ao nosso redor.

Aquela era uma rua residencial, afastada do centro, com casas quase coloniais em terrenos
largos, cercadas por pomares e árvores altas, com carros de luxo estacionados na calçada e famílias
andando de bicicleta pelas ciclovias largas sinalizadas em vermelho.

— Ele deve ser o único que realmente sabe a localização do Strauss — Sophia continuou
falando enquanto olhava em volta, estacionando o carro. — Eu e Hugo passamos duas semanas
revirando qualquer informação que os nazistas tinham sobre ele...

— Mas se você sabia onde ele morava, por que não interrogou ele antes? — perguntei, olhando
em volta, olhando entre as árvores e carros se alguém havia nos seguido até aqui.

— E o que eu iria fazer com essa informação?! — ela respondeu me olhando nos olhos. —
Como que eu iria até lá? Como conseguiria armas ou ajuda para lutar? Eu iria estragar meu disfarce à

toa e só colocaria minha cabeça a prêmio, mas agora eu tenho você, e uma maleta enorme de
dinheiro.

Puxou o freio de mão, ainda olhando para mim, eu tinha certeza de que ela iria nessa até o fim.

Olhei para a nossa direita, para o outro lado da rua, praticamente uma mansão, construída em
estilo clássico alemão, com o pé direito alto ostentando um ático grande e com uma janela aberta,
com as cortinas voando com o vento.

A varanda era ampla, com cadeiras e sofás estofados, e o lado direito da casa era uma enorme
garagem aberta, repleta de armários e suportes de ferramentas para carros, enquanto uma BMW M5
estava lá dentro, com o capô aberto e o motor à mostra, com o óleo escuro que pingava escorrendo
pela calçada.

— É essa casa — ela disse, levantando a regata, puxando uma Glock[21] de um coldre surrado.

— Está carregada? — perguntei, enquanto ela brigava para puxar o carregador da arma.

— Sim, mas em dez anos eu nunca atirei com ela... — Quando ela finalmente tirou o carregador
da arma, pude ouvir o barulho de metal raspando.

— Isso é um mal sinal... — disse me virando para ela. — Posso dar uma olhada?

Quase como um reflexo, ela segurou a arma firme, com suas duas mãos em volta dela, como se

quisesse a manter segura...

De alguma forma, deveria significar muito para ela.

Com o tempo, qualquer soldado se apegava a sua arma, porque querendo ou não, ela era a sua
única companheira... Aquilo que estava do seu lado a todo momento, o que você cuidava e que de
alguma forma, ela também cuidava de você.

— Olha, uma arma como essa não foi feita para ficar parada — comecei a falar com calma,
tentando fazer ela se sentir mais confortável. — Ela precisa ser limpa, precisa de óleo e alguma
manutenção... Se ela está arranhando assim para tirar o carregador, pode ser que o mecanismo interno

possa estar danificado pelo tempo e falta de uso, e nesse caso, atirar com ela pode ser muito pior
para você do que para a pessoa em que você esteja mirando, sabe?

— Não se preocupe, não sou de apelar para armas de fogo — ela respondeu batendo o
carregador de volta e guardando a pistola no coldre. — Vamos antes que o Yuri perceba que estamos
aqui para matar ele...

— Achei que íamos só pegar uma informação — falei abrindo a porta do carro, esperando que
ela descesse primeiro.

— É praticamente a mesma coisa — Desceu do carro, observando a garagem onde um homem


aparecia, ainda escondido atrás do carro.

Atravessamos a rua com calma, enquanto eu olhava em volta, apenas para perceber que o lugar

era mais quieto do que parecia... O que seria um problema caso ele gritasse ou atirasse, em um lugar
como esse um disparo podia ser escutado em cinco ou seis quarteirões de distância.

O carro que estava na garagem, e aparentemente o único do lugar, estava com o motor içado
por correntes, então ele só poderia fugir a pé, o que era uma vantagem grande, mas claro que nazistas
tinham o costume de se matar antes de dar qualquer informação importante... O que só diminuía
nossas chances de sucesso.

Mas que outra opção nós tínhamos?

Porque a essa altura, eu já tinha certeza de que, mesmo eu não concordando, essa mulher iria
comigo encontrar o Strauss.

Não foi preciso sequer que nós subíssemos na calçada para o homem perceber nossa presença
ali, e já começar a andar em direção a porta metálica da garagem.

Yuri Meyer era um homem com um pouco mais de meia idade, com o cabelo castanho já
manchado pelo grisalho, ele vestia uma camiseta branca, manchada de graxa, uma calça jeans

desbotada e um par de coturnos, com os braços repletos de tatuagens com os traços já bagunçados
pelo tempo, e mesmo com a idade se fazendo presente, seu corpo ainda estava em forma.

— Posso ajudar? — ele perguntou, com o rompante alto e a voz postada, enquanto ele nos
seguia com o olhar frio.

— Sou Sophia Wolf, venho em nome do Reichfüher Berchtold — ela disse enquanto subíamos
a calçada e caminhávamos em sua direção, que estava apoiado no capô do carro.

— E quem é você? — ele perguntou olhando em minha direção.

— Hans Von Hausser.— Assim que pronunciei o sobrenome, ele levantou a sobrancelha. —
Um novo membro da Rosenrot.

— Hausser?! É uma honra conhecer o neto do homem que reconquistou para a Alemanha o que

sempre foi nosso por direito. — Ele estendeu a mão em minha direção.

Apertei a mão daquele homem, sentindo meu sangue voltar a queimar com raiva.

— Mas não lembro de você na Rosenrot... — ele disse desconfiado, mantendo a postura firme.
— E o Hermann e eu conversamos apenas pessoalmente.

— É que temos uma situação crítica... — Sophia começou a falar, apenas para ser

interrompida.

— Toda situação é crítica quando se trata da causa — ele falou franzindo a sobrancelha. —
Podem ir embora, vou ligar para o Hermann e resolver isso eu mesmo.

— Mas, Senhor, isso é uma emergência, precisamos de algumas informações e para isso... —
Sophia tentou mais uma vez, mas foi em vão.

— Se vocês não sabem de algo é porque não devem saber — ele disse enquanto levantava o
braço, com as costas da mão virada em direção da Sophia, que mordeu o lábio com raiva na mesma
hora.

Olhei na direção dela, e por um instante eu pude ver as chamas queimando em seus olhos, mas
em questão de segundos elas se apagaram.

Ela sabia que não podíamos fazer algo ali, era muito exposto e seria fácil dele chamar a
atenção...

Precisávamos dele lá dentro.

— Senhor... — comecei a falar, vendo os olhos dele correrem em minha direção pela audácia.
— Nós estamos aqui porque o Dr. Strauss foi traído pelos Filhos.

E ali, eu vi os olhos azuis do homem se arregalarem em nossa direção.


— Merda... — ele disse abaixando o braço e socando forte a lataria do carro. — MERDA! Eu

sabia que era uma questão de tempo para isso acontecer, não se deve confiar naqueles que não

seguem a causa, mas o Strauss queria o poder... Ele estava cego pelo poder que eles ofereceram...

Ele olhou para os dois lados da rua e então deu um passo para trás, entrando na garagem.

— Vamos, não é seguro falar aqui fora. — Foi em direção ao console que fechava o pesado
portão de metal, Sophia e eu entramos.

Ela me olhou enquanto caminhávamos, levantando uma sobrancelha, quase sem acreditar que
bastou eu dizer apenas isso para que conseguíssemos entrar.

A garagem era apertada, com o carro tomando a maior parte do espaço, e as paredes pareciam
ser grossas, e todos os armários e ferramentas nas paredes eram o suficiente para abafar qualquer
barulho mais alto que pudéssemos fazer.

A porta de metal bateu, seca, lacrando o lugar, enquanto eu observava o velho se aproximando
de uma bancada de madeira que ficava perto de uma porta fechada que aparentemente dava para a
parte de dentro da casa.

— Eu falei que isso não daria certo... — Ele se apoiou com as costas na bancada, cruzando os

braços. — Os Filhos são assassinos, lotados de tudo o que há de pior, eles só se importam com o
dinheiro... Mas o Strauss achou que ajudando eles e dando o nome da concorrência, ele ganharia
mercado... Mas por que decidiram ir atrás dele agora?

— Não sei dizer o porquê — Sophia disse, andando pelo corredor formado pelo carro e a
parede repleta de ferramentas. — Mas tenho uma ideia.

— E qual seria? — o homem respondeu levantando uma sobrancelha.

— Que é porque ele é só um nazista nojento — ela disse, fazendo os olhos do homem
arregalarem em nossa direção.
Tomando impulso, ela pulou na direção do homem, que não teve tempo sequer de tentar revidar

o golpe que veio com violência.

Ela foi com as solas dos pés contra a bancada de madeira enquanto agarrava o pescoço do
homem, e quando já tinha sua garganta nas mãos, ela se impulsionou na bancada, girando no ar e

derrubando o homem de joelhos no chão, enquanto ela ainda segurava com força seu pescoço.

— Mer... Merda... — o homem disse, sufocando, enquanto seus olhos correram sobre mim, até
pararem na tatuagem das foices no meu braço. — FILHO DA...

Antes que ele pudesse continuar, joguei o peso do meu corpo para a perna direita, acertando

um chute contra o diafragma dele, com força o suficiente para fazê-lo soltar todo o ar que tinha nos
pulmões.

Assim ele só iria sufocar mais rápido.

— Onde fica o hospital do Strauss? — Sophia perguntou, fechando o mata leão que estava
dando nele, marcando sua pele em vermelho.

E usando a vantagem da diferença do seu peso, o homem tentou se levantar, mas antes que
pudesse sequer tirar os joelhos do chão, Sophia apoiou um dos pés na cômoda, que agora estava

atrás dela, se jogando para frente, forçando ainda mais o pescoço do homem.

— AONDE FICA A PORRA DO HOSPITAL, FILHO DA PUTA? — ela gritou girando o


próprio corpo para fazer pressão contra o homem.

Mas como resposta, o homem grunhiu, babando já sem ar, com seus olhos revirando enquanto
ele se sufocava.

— Ele já perdeu a consciência — disse dando um passo à frente, atravessando entre eles e o
carro. — Interroga ele que eu seguro.

Ela me olhou, levantando uma sobrancelha, segurando mais um pouco o mata leão, até que ela
percebeu que o homem já havia quase parado de se mexer.

— Tá bom então — ela concordou soltando o golpe e se levantando, indo para frente, correndo

os olhos pelas prateleiras, lotadas de ferramentas expostas. — Vamos ver como é o jeito americano
de imobilizar.

Quando ela soltou o mata leão, o desgraçado que até então estava quase morto, puxou o ar com
força, apenas para grunhir de dor enquanto caía contra o chão.

— Você respirou rápido demais — eu falei me abaixando em direção a ele e puxando seu
braço esquerdo, já mole pela falta de oxigenação. — Quando você está sendo sufocado, seu pulmão

se comprime, quase colando as paredes umas nas outra, tentando aproveitar o máximo de ar
possível...

Falando calmamente, me levantei, puxando o braço dele, enquanto Yuri grunhia de dor no chão,
se debatendo quase sem forças, tentando se desvencilhar de mim, mas antes que ele recuperasse as
forças, segurei o pulso esquerdo dele com as duas mãos e apoiei minha bota em seu ombro, dando um
solavanco enquanto puxava o braço dele.

Com um estalo alto, senti o ombro dele sendo jogado para frente contra a sola da minha bota,
enquanto seu braço pesou em minhas mãos, já sem movimento.

Ele tentou gritar, mas assim que puxou o ar com força novamente, tudo o que foi capaz foi
voltar a grunhir com a dor.

— Era disso que eu estava falando... — Continuei a falar, soltando o braço dele que caiu mole
rente ao corpo. — Quando você respira com força dessa forma seu pulmão infla rápido demais, por
isso parece que alguém acabou de virar um balde de brasas direto pros seus pulmões.

Então me abaixei novamente, enquanto ele tentava tirar seu braço direito do meu alcance, mas
ele já não estava em condições de fugir.

Segurei o braço dele, me levantando já com minha bota sobre seu ombro, sentindo os músculos
se esmagando aos poucos, e quando já estava de pé, puxei seu braço direito com o máximo de força

que consegui, trazendo seu ombro para baixo com o peso do meu corpo.

Dessa vez ele gritou, com tanta força que era possível ouvir suas cordas vocais rasgando aos
poucos pela força.

Alto o suficiente para que eu agradecesse pelas paredes serem grossas, assim o barulho não
chamaria a atenção dos vizinhos.

Mas ainda não era uma boa ideia brincar com a sorte.

Tirei meu pé do ombro do homem e o levei para o seu pescoço, apertando com força a sua
traqueia, fazendo com que ele parasse de gritar, querendo ou não.

Olhei para Sophia, que segurava uma enorme chave de grifo vermelha, que facilmente tinha
mais de um metro de cabo antes da boca arredondada cerrada de dentes feitos para abrir e fechar
canos.

— Puta que pariu... — ela disse com uma cara de surpresa. — Mas de que merda de exército
você veio?!

— De um que teoricamente nunca existiu — respondi, enquanto tirava o pé do pescoço do

homem e abaixava, o trazendo para cima segurando pelos cabelos, o apoiando de joelhos novamente.
— Ele é todo seu.

— Seus... Seus... Filhos da... Seus filhos da puta... — o homem disse com dificuldade, com a
respiração ofegante. — Eu vou... Eu vou matar os dois...

— Presta atenção, seu nazista de merda — Sophia falou dando um passo em direção a ele. —
Você vai ter duas opções... Ou você fala onde a merda do Strauss está agora, ou você só vai falar
quando eu terminar.

— Vai a merda, sua puta desgraça...


— Abre a boca dele — Sophia pediu, interrompendo o homem e olhando para mim.

E se antes os olhos dela já pareciam ter sido tomados pelo fogo, agora, era como se eu pudesse

ver todo o incêndio que tomava conta dela.

Como se a raiva gritasse através deles, implorando para sair.

Confirmei com a cabeça, mantendo a cabeça do homem presa pelo cabelo enquanto colocava
minha outra mão entre os dentes dele, empurrando sua mandíbula inferior para baixo.

Sophia segurou a chave grifo pela cabeça, erguendo o cabo de metal até a altura dele, e sem

rodeios ou qualquer ameaça...

Ela começou a colocar a ponta do cabo na boca do homem que grunhia, se balançando para os
lados, tentando se soltar...

Mas era tarde demais.

O ódio que emanava dela, era forte o suficiente para que eu pudesse sentir, como se minha
própria pele fosse tomada pelo fogo que queimava nela.

Se houvesse realmente uma besta em mim, criada pela raiva que eu carregava em meu peito...
Também havia uma nela.

E ali, eu estava a vendo rugir, gritando para escapar das grades de sua prisão.

Ela apoiou o cabo com as duas mãos, empurrando mais e mais dentro da boca dele, que
babava, grunhindo e tentando gritar a cada centímetro que ela forçava, enquanto eu apoiava o corpo
do homem contra minha perna, mas quando ela começou a acertar a garganta, foi quando tudo piorou.

Sua garganta toda era forçada a cada pedaço novo que ela empurrava, segurando o cabo agora
com as duas mãos, como se empunhasse uma lança, usando para atravessar cada vez mais
profundamente seu inimigo, que agora tremia, balbuciando algo tão distorcido que era impossível de
entender.
Seus dentes batiam com força contra o metal, a ponto que era possível ouvi-los estralando e

quebrando enquanto Sophia mexia na chave, tentando encontrar um ângulo onde ela pudesse

continuar.

Palmo a palmo, ela continuou, até o ponto em que eu pude sentir o corpo todo do homem tremer

contra minha perna, e quando soltei sua cabeça, ela continuou apontada para cima.

A respiração de Sophia já havia se tornado ofegante, quase brutal, enquanto ela permanecia
focada, imersa no que estava fazendo, com os olhos vidrados nas expressões do homem que
torturava, tendo certeza de que ele estaria sentindo cada instante da dor, da agonia, do desespero...

Isso continuou quase até o final do cabo, quando a partir de um momento em que ela percebeu
que o homem estava prestes a desmaiar, e então, ela puxou o cabo de volta, que deslizou, raspando
nos dentes quebrados do homem que parecia não acreditar que seu tormento havia cessado.

E ali, seus olhos verteram em lágrimas, uma vez que ele estava livre.

Ela jogou para longe a ferramenta, que agora estava quase por completa suja por sangue
enquanto eu deixava o homem cair para frente, vomitando sangue enquanto seu corpo tremia.

Assisti aquela cena sem dar uma palavra sequer, vendo Sophia prestar atenção em cada

movimento do homem, porque no fundo eu sabia do que aquilo se tratava...

A violência podia vir por muitos motivos.

Às vezes ela vinha rápida, limpa e eficiente, quando feita por um soldado cumprindo o seu
dever.

Por outras, ela vinha longa, brutalizada pelo impulso.

Algumas vezes ela vinha quase como um espasmo, motivada por uma descarga de adrenalina...

Mas de longe o pior tipo de violência era a motivada pela vingança, porque no fim, ela vinha
lenta, quase sempre brutal, acompanhada do deleite do vingador, observando nela o ato de limpeza
de sua alma, lavando suas dores em sangue...

Era esse sentimento que eu vi naquele dia, porque mesmo estando ali buscando informações, a

vingança conosco, quase como uma entidade, observando naquela garagem uma mulher trazendo à
tona tudo o que havia de mais obscuro em sua alma.

Quando o homem terminou de vomitar uma poça de sangue grosso, Sophia se abaixou em sua
direção, olhando nos olhos do homem.

— Não me obrigue a perguntar mais uma vez, Doutor Meyer. — E com a voz marcada pelo
ódio e satisfação, não foram preciso mais palavras.

— Ba... Bariloche... — ele disse com a voz fraca e rouca, quase inaudível. — Em uma...
Estação de esqui... Saints... Heinrich.

— Muito obrigada, Doutor — ela disse, enquanto se levantava. — Mas, acho que eu e você
temos mais um assunto pendente.

Fui até Sophia, andando por cima do homem que agora estava sentado, com os braços
pendendo ao lado do corpo, que tinha os olhos vermelhos vidrados nela.

E sem tirar os olhos dele, devolvendo o olhar vidrado, ela me esticou a mão aberta, e não

precisou de uma palavra sequer para entender o que aquele pedido significava.

Saquei a faca que estava em minha cintura e a entreguei para Sophia, que segurou o cabo com
força, enquanto a respiração do homem voltava a ser ofegante.

— Você era bem diferente quando andava com seu jaleco branco... — ela disse caminhando e
girando a faca entre os dedos com destreza. — Foi até difícil te reconhecer... Mas agora eu tenho
você só para mim, igual você teve tantas mulheres na sua mesa de cirurgia, mas sabe qual a diferença
entre nós? Eu só vou te matar, diferente do que você fazia, metendo esse seu pau nojento em mulheres
que não tinham a chance sequer de se mexer.
Senti meu estômago revirar a cada palavra dela, que caminhou até ele, virando seu corpo sem

forçar de barriga para cima, esticando seus braços pelo sangue que se empoçava no chão.

— Eu quero que você saiba que a dor que você sentiu hoje não é nem um terço da dor que
aquelas mulheres sentiram, mesmo com as anestesias que você aplicava, para que elas não tivessem a

chance de revidar. — Enquanto falava, ela afundou a lâmina no braço daquele desgraçado, abrindo
todo seu antebraço até o pulso, tão lentamente que era possível ouvir sua carne rasgando. — E cada
gota desse seu sangue nojento, não vale uma gota sequer do sangue delas, porque daqui a pouco você
vai ser apenas um corpo frio nessa merda de garagem, enquanto aquelas que tiveram a sorte de

sobreviver, viveram quebradas.

Repetiu o processo no outro braço, ela levantou, deixando com que ele sangrasse no chão, com
a respiração descompassada e sem mais nenhuma força em seu corpo.

— O maior erro que vocês cometeram foi deixar que nós escapássemos, porque eles nunca
serão esquecidos enquanto um de nós ainda permanecer vivo — Sophia disse, de cabeça erguida. —
Nós somos e sempre seremos... Relicário.

Ficamos ali, observando em silêncio, até o último instante daquele homem, e então nós
voltamos para o carro, deixando a garagem fechada.

Naquela manhã eu dirigi até a casa dela, sendo guiado por poucas palavras, enquanto nenhum
de nós sequer comentou o que havia acontecido naquela casa ou sobre o que houve naquele galpão,
mas nós sabíamos...

Que naquele dia, havíamos sido tomados pela raiva.

Mas depois que ela ia embora, tudo o que existia era dor, o vazio de ter perdido para o que
havia de pior no ser humano.

De ter manchado em sangue mais um pedaço da nossa alma.


“Senhor Uhtred! - O padre Willibald veio correndo na minha direção. - O que está

acontecendo? O que está acontecendo? - Decidi começar uma guerra, padre - respondi cheio de
animação. - É muito mais interessante que a paz “

BERNARD CORNWELL

Às vezes, quando eu fechava os olhos, me lembrava da chuva.


E de alguma forma, isso me trazia paz.

Quando eu era criança, no hospital, minha mãe sempre ficava comigo nos dias que não havia

pacientes, e como o lugar ficava no topo de uma montanha, esses pequenos momentos de paz eram
sempre embalados pelo barulho da chuva.

“Deus está na chuva...”

Era o que ela sempre me falava, enquanto me deitava em seu colo, passando as mãos pelas
cicatrizes em meus braços.

Quando se cresce em um ambiente como aquele, algumas coisas passavam a perder o real
sentido... E para mim a palavra “lar” nunca teve haver com uma casa, afinal, depois de tanto tempo
vivendo em uma cela, você se esquecia o que era ter uma casa.

Lar, para mim, sempre foi ali, nos braços da minha mãe, ouvindo a chuva cair, até o momento
em que ela não estava mais ao meu lado, e a partir daquele momento minha casa se tornou Hugo e
Maya.

E naquela manhã de verão era com eles que eu estava, nós estávamos sentados na sala enquanto
a chuva caía do lado de fora.

Desde o momento em que Benjamin e eu chegamos de carro, a chuva já caía tímida, mas desde
que nós começamos a conversar, era como se ela gritasse do lado de fora, batendo com violência
contra a janela.

Minha mente estava dispersa, quase perdida dentro do caos que havia tomado conta de mim
naquela garagem...

Era como se, no fundo, ainda fosse capaz de ouvir a raiva que gritava no fundo do meu peito,
desesperada por mais sangue.

O cansaço tomava conta do meu corpo, com os músculos dos meus braços tremendo pelo
esforço que havia feito, enquanto meus olhos se tornavam embaçados pela falta do sono, mas mesmo

que o cansaço estivesse ali, era como se meu coração estivesse batendo rápido demais para pegar no

sono.

Eu estava sentada de pernas cruzadas na poltrona, de frente para o sofá onde estava Hugo,

fumando enquanto seus ouvidos continuavam atentos, ele estava soltando uma fina linha de fumaça
pela boca.

Maya estava sentada no chão, com os olhos fixos em mim, como se tentasse entender o peso
que aquela conversa realmente tinha, mas provavelmente estava dispersa em meio aos próprios

pensamentos.

Benjamin estava na poltrona do outro lado da sala, com uma expressão estranha no olhar, como
se de alguma forma ele tentasse se encontrar enquanto conversávamos, com seus olhos verdes agora
em um tom mais escuro fixos em um ponto qualquer, enquanto ele deixava queimar um cigarro entre
os lábios, que havia acendido, mas não havia tragado.

— Argentina? — Hugo questionou balançando a cabeça de um lado para o outro. — De tantos


lugares, por que a Argentina?

— Tráfego livre para os Estados Unidos e uma carta branca para a Inglaterra — Benjamin

respondeu, ainda com o olhar perdido, e então ele se virou novamente para mim. — Um governo
corrupto, polícia desmotivada e uma proteção de fronteira ridícula... Sem contar que fica ao lado do
Brasil, que é o maior polo de tráfico humano atualmente.

— Isso responde muita coisa... — Hugo disse, concordando com a cabeça, enquanto tragava
lentamente o cigarro.

“Dr. Strauss foi traído pelos Filhos...”

A voz do Benjamin veio, flutuando em minha mente enquanto o observava.

Era estranho o fato de que há poucas horas, a única opinião que tinha sobre ele era a
desconfiança, e agora, era como se nos conhecêssemos há tanto tempo...

Como se de alguma forma ele devesse estar ali, com a gente, como se já fizesse parte da

família.

Como se fosse um de nós.

Mas algo em mim gritava que ele não era, que tudo o que eu estava fazendo era abrir a minha
vida para que o inimigo pudesse entrar.

Abrindo a minha casa.

A minha família...

— Você disse que os Filhos do Ceifeiro traíram Strauss... — disse, chamando a atenção de
todos, que olharam diretamente para Benjamin.

— Disse sim... — ele afirmou enquanto se arrumava na poltrona, mantendo o cigarro aceso
entre os dentes. — Eu não conheço muito bem os detalhes, porque sinceramente, não conheço muito
da parte interna dos Filhos, mas a central tem acordos com algumas outras instituições, como o

I.R.A[22], que sempre fornece armas para os Filhos, e no caso do Strauss, aparentemente ele fornecia
remédios e alguns procedimentos médicos de emergência em troca de deixar seu nome de fora da

lista.

— E o que aconteceu para que vocês quebrassem esse pacto tão sagrado? — Hugo indagou,
deixando o corpo relaxar contra o sofá.

— Ninguém sabe o que se passa pela cabeça do Ceifeiro — ele disse, percebendo que o
cigarro em sua boca já havia queimado por inteiro, o apagando no cinzeiro que estava à sua frente.

— Você chegou a ver o Strauss? — Maya perguntou.

— Não... Não — ele respondeu balançando a cabeça. — Eu soube de um ou dois Filhos que
chegaram a precisar de uma cirurgia com ele, mas era tudo feito por baixo dos panos, em algum lugar
que não era território de nenhum grupo ou organização, terra de ninguém, para que nenhum dos lados
se arriscassem, mas ninguém tinha noção do que ele fazia realmente, porque de médicos clandestinos

os Filhos são cheios.

“Talvez ele esteja falando a verdade, Sophia...”

Era como se eu pudesse ouvir a voz da minha mãe, suave e calma, como se tentasse me
aconselhar, e quase como impulso, desci as mãos pela minha cintura, deixando com que elas
escorregassem para dentro dos bolsos da calça que estava usando, enquanto me ajeitava na cadeira,
senti uma coisa que ainda estava em meu bolso.

Segurei a aliança, fria, na ponta dos meus dedos enquanto a rodava entre eles, tentando
imaginar o que aquilo significava... Porque se ele fosse casado, provavelmente já teria perguntado
por ela.

Já teria pedido de volta... Não é mesmo?

Ou ele havia casado há pouco tempo e ainda não havia se acostumado a usar, ou então na
adrenalina de tudo que aconteceu acabou não se tocando de que estava sem...

Segurei a aliança de ouro na palma da minha mão, enquanto meus olhos passeavam pela sua

forma, imaginando como deveria ser casada com alguém...

“Esse lugar não é para sempre, minha filha... Em algum momento você vai sair daqui, vai
cursar uma faculdade, vai arrumar um trabalho e um marido, e vai ter filhos lindos com o cabelo cor
de fogo...”

Era engraçado pensar na minha mãe falando sobre isso... Porque hoje, mesmo não tendo ido à
escola, eu havia estudado.

Estudei história, para entender o que havia acontecido com meus antepassados.

Estudei sociologia, para entender porque o mundo parecia odiar a mim e a todos aqueles à
minha volta.

Estudei alemão, para saber falar como eles, e inglês, para poder sair deste lugar quando tudo

estivesse acabado.

De alguma forma estranha, ainda tinha um trabalho, mesmo que fosse servindo bebidas para os

homens que eu queria matar, e também tinha uma família...

Mas, nesse tempo todo, eu nunca tive alguém ao meu lado de verdade.

Tudo o que eu tive foram casos rápidos, uma noite e ponto, porque nunca houve espaço na

minha vida para um relacionamento, e isso sempre funcionou para mim...

Mas e se eu tivesse tido tempo? Se eu tivesse tido uma vida normal... Será que eu estaria
casada agora?

E se eu fosse, como seria ele?

Como seria o seu rosto... Seu cabelo... Sua voz e como ele falaria comigo?

Era estranho me imaginar assim, com alguém, porque mesmo com Hugo e Maya comigo,
sempre fui eu contra o mundo, brigando por espaço, por justiça e vingança.

E eu era forte assim!

Como se nada fosse capaz de me atingir ou me abalar, porque no fundo, nada era mais forte do
que a minha força e a minha vontade...

Forte o suficiente para ter a certeza de que ter alguém comigo, seria apenas uma fraqueza,
afinal, era algo que eu não poderia controlar, sentimentos que eu não sabia exatamente como eram.

Demandaria tempo, atenção, confiança...

Para que eu pudesse ficar com alguém, ele deveria ser forte, como eu.

Ser forte...
E ser como eu.

Minha mente foi jogada de volta à realidade, apenas para que eu pudesse perceber que durante

esse tempo todo, meus olhos estavam colados no Benjamin, observando seu rosto, sua barba, seus
olhos...

— Benjamin, eu achei isso aqui no seu bolso àquela hora — disse, tirando a aliança do meu
bolso e jogando em sua direção.

Seus olhos seguiram o anel dourado que parou em sua mão.

— Obrigado... — ele respondeu de forma dispersa, enquanto encarava a aliança em sua mão.

Olhei para o lado Hugo perguntando baixinho o que era para Maya, que respondeu dando de
ombros e falando que não havia visto, mas achava que era uma aliança.

Mas minha atenção estava toda no Benjamin, como se eu estivesse esperando...

Esperando... que ele abrisse a mão e a colocasse no dedo anelar, observasse como ela ficava e
desse um sorriso pensando em sua esposa... E junto com esse pensamento era como se algo estranho
dentro de mim apertasse aos poucos meu coração.

Tentei desviar esses pensamentos sem nexo enquanto o observava correr a ponta dos dedos

pela aliança, respirar fundo, tirar sua carteira do bolso...

E guardá-la ali dentro.

— Você é casado, Benjamin? — Hugo perguntou, acendendo o terceiro cigarro seguido.

Ali eu quase agradeci por ter feito a pergunta que pulava em minha mente.

Mas a resposta que eu tive, não foi dada apenas em palavras, mas sim em um olhar.

Seus olhos, por um instante, se perderam... Como se tivessem ido para outro lugar, bem distante
dali, com o verde se tornando cada vez mais escuro até o ponto de se perder.
— Já fui... — ele respondeu de uma forma tão difícil que era como se eu sentisse a sua dor na

minha garganta. — O nome dela era Helena, a gente se conheceu no exército, na época em que eu

servia... Mas ela não fazia função de combate, era enfermeira militar.

— O que aconteceu? — E por mais que eu estivesse evitando, por mais que quisesse lutar

contra, essa pergunta saiu da minha boca sem que eu me desse conta.

— Meu esquadrão não era oficial, nós éramos os homens mandados para matar aqueles que o
exército julgava um inimigo secreto do estado, mas muitas vezes o governo não tinha o direito de
matar homens que sequer eram do seu país. — E enquanto falava, ele abriu o primeiro botão da sua

camisa, mostrando uma tatuagem em seu peito que estampava um par de asas de anjo, uma preta e
uma branca. — Esquadrão de Operações Especiais “Angels”... “Death Angels”, e ele era composto
apenas por pessoas que, tecnicamente, não deveriam sequer estar naquele país...

— Imigrantes ilegais? — Hugo perguntou, soltando a fumaça do cigarro pelo canto da boca.

— Exatamente — Benjamin respondeu fechando a camisa. — Um italiano, filho único de um


[23]
mafioso que estava nos Estados Unidos para estudar, um russo ex-espião da KGB que resolveu
trocar de lado, um brasileiro que toda a família estava ilegal e eu...

— E o que você é? — perguntei, observando seus olhos voltarem para mim de forma brusca.

— Hans von Hausser não é um nome inventado. — Quando ele respondeu, senti meu corpo
todo estremecer de uma só vez. — Meu pai era filho de Paul Hausser, que acabou fugindo durante a
operação “paper clip”, mas ele continuou acreditando nos ideais do meu avô, então mesmo que esse
não seja meu nome real, era como eu sempre fui chamado dentro da minha casa, mas no momento em
que recusei seguir os ideais dele, meu pai surtou...

Com um suspiro longo, ele deixou o corpo cair contra a poltrona.

— Naquela época minha vida era um inferno... Eu tinha doze anos, e minha mãe havia morrido
durante meu parto... — ele continuou, enquanto passava a mão pela barba loira —, eram brigas atrás
de brigas, até o dia em que ele resolveu partir para a violência, e no meio do caos, eu o empurrei,

que caiu batendo a cabeça na lareira da sala... Ele perdeu a consciência e eu chamei a polícia, mas

além do corpo dele acharam os papéis... As bandeiras, armas, uniformes... Foi o suficiente para que
eu fosse para o reformatório até fazer dezoito anos e ir para o exército, o resto vocês já sabem...

Enquanto ele falava, podia ver em minha mente aquele homem matando outro com as próprias
mãos, atacando como um animal encurralado, tomado pelo medo e pela adrenalina, e
principalmente...

Podia ver tudo pelo que ele havia passado.

Eu quis ter raiva, juntar toda a desconfiança em mim e gritar com ele, tirar a arma que estava
em minha cintura e disparar contra seu peito e acabar com mais um nazista, porque mesmo que ele
negasse a causa da sua família ele ainda tinha o sangue puro que eles tanto ostentavam.

Mas a única coisa que senti, foi um aperto pesado em meu peito, porque mesmo que nossa
história fosse tão diferente... Nossas dores eram parecidas.

— E como essa bela história termina? — Hugo perguntou, quebrando o silêncio que havia
tomado conta da sala.

— Nós matamos pessoas importantes, e com o tempo, havíamos nos tornado um risco para toda
a estrutura que eles criaram — Benjamin continuou. — Então, em um dia, eles decidiram que o
melhor seria se livrar de nós, e acabaram jogando a gente na merda de uma missão suicida, nos
deixando em um ninho de traficantes de órgãos... Nós conseguimos soltar algumas pessoas que
estavam presas, mas eram inimigos demais...

Enquanto falava, ele levou a mão ao bolso e tirou sua carteira, revirando entre os itens que
havia ali.

— Durante a incursão, nos perdemos dentro do lugar que parecia mais um labirinto e eu acabei
ficando para trás enquanto os três seguiam, e pouco tempo depois eu fui atingido por uma granada,
que me deixou inconsciente. — Puxou uma foto de dentro da carteira, ele se levantou e começou a

caminhar em minha direção. — Acordei quatro dias depois em um hospital de campanha perto de

Ostrava, na República Tcheca, com uma medalha de honra na minha cabeceira, estilhaços de granada
no meu peito e uma carta de aposentadoria com a condição de que eu deveria sair do país em até um

ano e nunca mais voltar.

— E os seus colegas? — Hugo indagou.

— O exército me falou que eles estavam mortos, mas, no final, eles haviam conseguido fugir do
lugar, mesmo estando feridos — ele respondeu sério, tirando uma foto da carteira e colocando em

seu colo, e voltando a mexer entre os papéis que havia lá.

— Então você pegou sua aposentadoria e saiu do país para viver seu grande amor longe da
maior potência mundial... — Hugo continuou, com um sorriso no rosto. — Por que isso parece o
meio de uma história de romance triste?

— A gente se mudou para Frankfurt há sete anos... — Benjamin disse abrindo um sorriso
apagado em seu rosto, com uma fotografia em suas mãos. — Ficamos em um chalé colonial que a
família dela tinha por lá, reformamos tudo nós mesmos, resolvemos ter filhos... E foi incrível até
que... Até que...

E dos olhos verdes dele... Eu vi escorrer uma lágrima.

Fria e solitária correndo pelo seu rosto, embalada pelo som da chuva torrencial que apenas
continuava castigando o dia que amanhecia.

— Os homens que gerenciavam o cartel de órgãos descobriram que eu estava vivo, de uma
forma que eu nunca entendi realmente... E em uma madrugada eles mandaram um grupo de homens até
a nossa casa. — Sua voz rouca, agora havia se tornado rasgada pela dor e pelo choro, que brotava
em seus olhos, apertando ainda mais meu coração dentro do peito. — Eu e ela havíamos tido um...
um filho... Robert... Eles mataram os dois... Me fizeram assistir, enquanto faziam... Enquanto
cortavam as suas gargantas...

Meu corpo estremecia a cada nova palavra, com minha temperatura caindo enquanto eu sentia o

chão fugir aos meus pés.

Olhei para Maya, que agora estava com o rosto marcado em vermelho, enquanto as lágrimas

corriam pelo seu rosto, pingando contra o carpete, mas Hugo permanecia imóvel, absorvendo tudo o
que ele falava.

Foram necessários alguns minutos para Benjamin se recompor, enquanto Maya se levantou e foi
até à cozinha, buscar um copo de água para ele, que agradeceu e tomou tudo em um gole só.

— Depois que tudo isso aconteceu... Eu estava sozinho, e a havia uma apenas uma única coisa
que eu poderia fazer — ele voltou a falar, pegando um cigarro no maço que estava solto em cima da
mesa e acendendo, tragando e soltando a fumaça pelo canto da boca. — Levou quatro meses para que
eu achasse todos os responsáveis, hospedados na merda de um hotel no País de Gales... Pouco tempo
depois os filhos me acharam, fui recrutado por um dos companheiros de esquadrão, que descobriu
pelo jornal que eu estava vivo, quando viu minha foto e da Helena em uma manchete de jornal...
Desde então eu estou nos filhos.

Com um aceno leve, Benjamin devolveu o copo vazio para Maya, que já estava com o rosto

inchado pelo choro, e se levantou, me entregando as duas fotos que estavam em sua mão.

A primeira era uma foto dele ao lado de uma mulher alta, com o cabelo castanho enrolado, com
algumas tatuagens que subiam pelos seus braços.

Ela usava um vestido florido, com um par de all stars coloridos, enquanto ele estava com uma
camiseta branca e jeans claros.

Os dois sorriam, enquanto ele a abraçava por trás, e em seus olhos eu podia ver que ambos
estavam felizes...

Como um casal de comercial.


Senti o nó em minha garganta apertar enquanto meus olhos corriam pela foto, tentando imaginar

o que os dois deviam ter passado juntos...

Os encontros para beber enquanto conversavam sobre a vida.

Os jantares e piqueniques que deveriam ter feitos um ao lado do outro.

Cada dia que ficaram juntos, e que agora, eram apenas passado... Apenas lembranças,
reduzidas a uma foto.

Maya se aproximou, segurando o copo com as duas mãos juntas.

— Posso? — perguntei baixo antes de entregar a foto para Maya, e com uma confirmação com
a cabeça, eu a entreguei.

— Ela tinha um sorriso lindo... — Maya disse, mordendo o lábio inferior.

— Tinha mesmo... — ele respondeu, ainda com a voz rouca.

Respirei fundo enquanto tentava manter minha mente no lugar, segurando a outra foto, que
deveria ser da época do exército.

Observei a paisagem, formada por barracas camufladas, que ficavam mais em evidência com o
fundo pelo céu nublado e marcado pela escuridão, e os quatro homens estavam no centro de tudo.

A esquerda havia um homem alto, com o cabelo escuro bem cortado e o corpo coberto por
tatuagens, segurando uma arma enorme sobre seu ombro.

Do lado direito havia outro homem, com o cabelo bem penteado para trás, com os olhos
escuros e um sorriso cínico no rosto, com uma metralhadora no colo.

No meio estava um homem mais velho, com o cabelo marcado por grisalho e a barba já branca
bem-alinhada, carregando um crucifixo em suas mãos.

E no canto, estava um homem de cabelo loiro bem cortado, com os olhos verdes e olhar
centrado, com uma metralhadora em suas mãos.
E todos usavam fardas pretas...

As mesmas fardas... Dos soldados que haviam invadido o hospital...

— O lugar... Dos traficantes de órgãos... — falei, sentindo minha voz falhar. — Onde ele
ficava?

— Era um tipo de hospital, perto de Praga — ele disse, fazendo meu coração parar por um
instante.

Porque, no fundo, eu sabia que sempre havia conhecido aqueles olhos verdes.
“Não há melhor túmulo para a dor do que uma taça de vinho ou uns olhos negros cheios de

languidez. “

ÁLVAREZ DE AZEVEDO

Existiam alguns momentos na vida, em que tudo parecia se encaixar.

Poucos momentos, em que as coisas pareciam fazer algum tipo de sentido, como se a vida fosse
um enorme relógio, com pequenas engrenagens tão bem encaixadas que tudo parecia funcionar de
uma só forma.

Mas, mesmo assim, de alguma forma era quase inacreditável imaginar quantas voltas a minha
vida deu... Por quanta coisa eu tive que passar e quantas mortes eu carreguei em minhas mãos até

chegar aqui.

Em uma sala, rodeado pela única coisa realmente boa que um dia eu havia feito.

As únicas vidas que eu havia salvado.

— Merda... MERDA! — Essas foram as únicas coisas que Sophia foi capaz de dizer, e de uma
hora para a outra, era como se houvesse mudado a pessoa que até então estava na minha frente.

Seus olhos, naquele instante, se encheram d’água enquanto estavam fixos nos meus, me
observando de uma forma completamente diferente.

— NEM FODENDO! — Hugo gritou, rindo tão freneticamente que eu imaginei que ele iria
perder o ar.

A parte mais engraçada de toda essa história, era que até aquele momento, eu ainda não tinha
entendido o que estava acontecendo.

Sophia pulou da poltrona, sem tirar os olhos de mim, enquanto Hugo se levantava do sofá e
Maya deixava o copo cair de suas mãos no carpete, e os três começaram andar pela casa, com Hugo
apoiado em meu ombro.

Eles me levaram, praticamente correndo pela casa antiga, atravessando por entre uma copa,
decorada com uma enorme mesa de madeira adornada, com seis cadeiras estofadas, enquanto as
paredes eram cobertas de quadros pintados à mão retratando campos e gramados, em seguida fui
levado até uma escadaria que subia para o segundo andar, parando em um corredor largo, com quatro
portas ao seu redor.
Atravessei, seguindo Sophia que ia na frente e Maya que vinha logo atrás, e enquanto

andávamos atravessei por três portas fechadas, sendo levado até a porta que estava no final do lugar,

Sophia abriu a porta, entrando no quarto ainda escuro.

Parei por um instante, estranhando o fato de estar entrando em um quarto escuro com pessoas

que havia acabado de conhecer, mas depois de tudo o que havia feito...

Tudo o que havia falado...

Senti a mão de Hugo apertando mais forte meu ombro, como se pedisse para que eu
continuasse, e assim eu fiz, mas quando estava a apenas um passo de entrar naquele lugar, passando

pelo carpete escuro e desbotado que cobria o chão, uma luz amarelada foi acesa, e ali estava, colada
nas paredes, espalhada pelas mesas, armários e por todo o piso.

Fotos, documentos, maquetes e pastas médicas.

Nas paredes que rodeavam o quarto, havia nomes, alguns riscados e outros marcados por
anotações, feitos a caneta contra o papel de parede claro e desbotado.

— Isso aqui é tudo... — Sophia disse, enquanto olhava em volta. — Tudo o que a gente
conseguiu tirar daquele lugar depois da invasão... São as provas de tudo o que eles fizeram.

Andei para dentro daquele lugar, observando os detalhes da sala, as fotos de homens e
mulheres, vestidos com uma roupa de linho branca, com os olhos fundos em seus rostos marcados por
todos os horrores que deveriam ter passado ali... Todos magros com as linhas do rosto tão duras e
frias que era possível ver o quanto todos estavam sofrendo.

Alguns daqueles rostos pareciam familiares, em meio ao caos de sangue e pólvora que eram as
lembranças daquele dia, em meio aos gritos, as cenas de horror que vimos pelas salas de cirurgia
daquele lugar, o cheiro de formol pelos corredores...

Havia uma mesa, lotada de papéis, e entre eles havia uma planta do lugar, desenhada em papel
azul, e acompanhei com os olhos o caminho que lembrava ter feito por aqueles corredores, e reparei
que alguns quartos daquele lugar tinham nomes marcados.

Puxei uma das pastas amareladas que estavam ali, folheando as páginas e observando as

anotações...

“Marry Howard Hopcker, 23 anos, doadora de coração, olhos, fígado e rins.”

“Jefferd O’Harry, 20 anos, doador de córneas, sangue, rins e fígado”

“Amelia Clarke Smith, 19 anos, doadora de pele, coração e rins.”

“Sophia Wolf, 6 anos, doadora de sangue (Rh Neutro)”

Segurei em minhas mãos a ficha que estava com o nome dela, observando a foto da menininha
sardenta de cabelos ruivos, completamente assustada, com os olhos avermelhados pelo choro.

— Como eles escolhiam... — perguntei, tentando encontrar palavras para o que estava para
perguntar. — Como eles escolhiam...

— Os doadores? — Hugo respondeu, balançando as cinzas do cigarro no tapete, fazendo Maya


olhar brava em sua direção.

— Isso... — respondi.

— Oferta e demanda, na maior parte das vezes, como a Sophia. — E voltando a tragar o
cigarro, ele continuou: — Maya nasceu lá dentro, filha de um médico com uma enfermeira, quando a
encontramos mal sabia andar, e eu fui vendido pelo meus pais para que pudessem pagar uma dívida
que tinham com drogas.

— Eu tenho sangue dourado... — Sophia parecia imersa em meio àquelas lembranças enquanto
falava, com os olhos apagados observando as fotos. — Um tipo de sangue extremamente raro, foram
atrás de mim porque a última “bolsa de sangue” havia se matado, e você sabe... Sangue raro é mais
caro, principalmente quando aqueles que precisam da transfusão são os filhos e netos de bilionários.

— O que houve com vocês? — perguntei, com o nó preso em minha garganta. — Depois que
tudo aconteceu...

— Os doadores entraram em desespero, tentando fugir todos ao mesmo tempo, eu tentei voltar

para a minha cela, procurando pela minha mãe... Mas fiquei presa em meio à multidão, eu e um
garoto... Bran... Ele tinha uma arma e ameaçou atirar, então foram para cima dele... — Sophia

respondeu, deixando os olhos se perderem pelas coisas naquela sala. — Eu fui pisoteada e acabei
desmaiando... Acordei algumas horas depois, apenas para encontrar o corpo dele, ainda abraçado
com essa arma...

Ela puxou a regata que estava usando para cima, mostrando a arma que estava em seu coldre.

— Passei algumas horas procurando por ela pelo hospital, tentando encontrar nas celas... Mas
o lugar estava quase inteiro destruído, o chão repleto de sangue e corpos de guardas e alguns
doadores... — ela continuou, dando um passo para trás, mostrando uma foto presa na parede de um
garoto magro de cabelos castanhos. — E enquanto estava perdida, acabei encontrando o Hugo,
andando pelo lugar enquanto se guiava pelas paredes...

— Ela me ajudou a andar pelo lugar, e começamos a procurar outros sobreviventes, mas a
única que encontramos foi a Maya em um berço — Hugo continuou falando enquanto fumava. —
Passamos a noite em um dos quartos dos oficiais, e no outro dia acabamos encontrando a sala da

administração, onde pegamos tudo o que está nessa sala, naquele dia, colocamos em malas e saímos
de lá em seguida.

— O lugar era no meio do nada, então passamos algumas horas andando por uma rodovia até
chegar em Praga, onde havia uma equipe da INTERPOL que estava tentando catalogar os
sobreviventes — Sophia continuou, com o tom de voz rasgado pelas lembranças.

— Mas eles estavam na lista de pagamento do Strauss... — Hugo completou. — Então


evitamos os uniformizados, mas os que não tiveram a mesma sorte, nunca mais foram vistos...
Passamos algumas semanas perdidos pela cidade até que um casal de velhinhos nos encontrou
tentando roubar comida e acabaram cuidando da gente por um tempo... A casa é deles, diga-se de
passagem.

A essa altura, era como se minha mente estivesse anestesiada, como se assim fosse mais fácil
aceitar toda a verdade que estavam jogando em cima de mim durante aquela conversa.

Meu coração batia com tanta força em meu peito que eu era capaz de sentir meu sangue
correndo pelas veias, enquanto a respiração descompassada pelo choro ainda doía em meu peito.

— O que eles faziam com vocês lá? — Desde que começamos essa conversa, essa pergunta
nunca havia saído da minha mente, mas algo em mim dizia que era algo doloroso demais para ser

jogado ao ar sem antes conhecer suas histórias.

— Os desgraçados tiraram um dos meus rins — Hugo disse, puxando a camiseta grossa que
estava usando e mostrando a cicatriz que cortava seu corpo. — Também tiraram parte do fígado,
algumas amostras de medula, pele e a porra dos meus olhos... Um para transplante de córnea e outro
para experiência...

— Meu olho castanho era dele — Maya disse enquanto tirava os óculos, o que deixava apenas
mais visível a diferença de cor dos seus olhos. — Sabe a história de que a única parte do corpo
humano que não cresce com o tempo são os olhos? Então... Eles queriam saber se era verdade, por

isso colocaram o olho de um adolescente em um bebê.

— Eu era uma bolsa de sangue... Assim como o Bran — Sophia respondeu, com os olhos na
foto do garoto que estava na parede. — Tínhamos o mesmo tipo sanguíneo raro, que só se consegue
quando os dois pais possuem a mesma condição, então o plano era que nós... Que nós tivéssemos
filhos, para que eles sempre tivessem o tipo sangue disponível.

— Merda... — Enquanto eu os ouvia falar, meu sangue começava a queimar, enquanto a raiva
voltava, ainda mais forte.

— Depois que tudo passou, nós tentamos encontrar o máximo de sobreviventes possíveis —
Sophia falou me entregando uma pasta diferente. — Não sobrou muitos de nós, mas alguns

conseguiram seguir em frente, tentando uma vida nova, longe de tudo aquilo... Mas outros...

— Alguns nunca conseguiram superar, se jogando em qualquer forma de escapar do mundo real
— Hugo completou jogando o que havia sobrado do seu cigarro no chão, enquanto Maya correu para

pegar antes que as brasas incendiassem o tapete.

— Mas outros são como nós, buscando vingança pelos que não tiveram a sorte de sair com
vida... — Sophia falou, me olhando nos olhos. — Nós somos os que se lembram... Nós somos
Relicário.

Nós somos Relicário...

Aquela frase me acertou com força no peito enquanto eu via as três pessoas à minha frente,
percebendo aquilo que, até então, eram apenas especulações.

Existiam alguns tipos de pessoas que, com o tempo, você ia acabar conhecendo em sua vida.

Existiam aquelas que sorriam com você, enquanto apertavam sua mão, te dariam água e comida
quando estiverem ao seu lado, mas elas serão aquelas pessoas que, no instante em que você precisar,
elas não estarão mais lá.

Existiam aquelas que não iriam se importar com você, que para elas, a convivência contigo não
passaria de um meio para um fim, mas elas não desdenharam de quem você era, porque não se
importar não significava não respeitar.

E existiam algumas poucas pessoas que se veriam em você, que mesmo com o tempo e com a
diferença, se encontrariam ao seu lado...

Aquelas que matariam e morreriam contigo quando você precisar.

Eles eram esse tipo raro de pessoas que estavam dispostas a matar quem precisasse para
vingar aqueles que passaram pelo mesmo inferno que eles.
Estavam dispostos a morrer se fosse necessário.

E ali, nós tínhamos o mesmo alvo... O homem que tirou sua vida, sua liberdade, partes de seus

próprios corpos e alma.

Agora eu sabia que não estava procurando somente o alvo que o Ceifeiro havia me dado, mas

também o homem que foi o responsável por tirar tudo aquilo que eu tinha.

— Nós somos Relicário... — repeti, vendo o quão bem aquelas palavras soavam juntas.
“O tempo é um químico invisível, que dissolve, compõe, extrai e transforma todas as

substâncias morais. “

MACHADO DE ASSIS

Um plano.

Isso era tudo o que nós tínhamos.


Ele tinha falhas, buracos e espaços em brancos que, sinceramente, não tínhamos ideia de como

iríamos lidar com eles quando chegasse a hora, mas atualmente, era a única coisa que nos dava

esperança.

E eu morreria apenas pela chance de finalmente conseguir por minhas mãos em Strauss.

No fundo eu sabia que precisaríamos dele com vida, mas algo em mim gritava que não, que a
única coisa a ser feita era matar aquele homem da pior forma que eu pudesse imaginar...

Naquele momento eu queria saber quem ganharia aquela batalha que estava sendo travada em
meu peito, entre a razão que afirmava o quanto todo aquele dinheiro faria bem para as pessoas que

passaram por todo aquele inferno, mas a emoção gritava que não haveria nada melhor para todos do
que Strauss morto.

Mas só havia uma maneira de descobrir.

Não era comum voos diretos entre Alemanha e Argentina, então para que pudéssemos chegar a
tempo iríamos precisar chegar lá de uma maneira não convencional, e por sorte, Ben tinha contatos o
suficiente para facilitar todo o processo.

Havia uma organização que ele chamou de I.R.A, um grupo de Irlandeses traficantes de armas,

bêbados e aparentemente com um ótimo senso de humor, e segundo ele, ótimos aliados dos Filhos do
Ceifeiro.

Foram precisos dois telefonemas para que conseguíssemos um voo para o próximo dia de
manhã, o único problema seria que teríamos que pousar em um aeroporto “alternativo” em algum
lugar no sul do Brasil, em uma base secundária deles, enquanto alguns homens seguiriam rumo a
capital do estado, carregando um lote enorme de metralhadoras, eu teria que ir em direção a
Argentina, atravessando a fronteira de carro.

Em um país estranho.

Em um lugar que eu nem sabia ao certo que língua falavam, mas Ben havia garantido que tinha
amigos de confiança naquele lugar, e que eles ajudariam em todo o processo.

Benjamin havia ido sozinho até a Rosenrot depois de descobrir tudo, disse que precisava da

sua mala para se preparar, e neste meio tempo eu, Maya e Hugo juntamos todas as informações que
tínhamos sobre o hospital de Praga e colocamos em duas malas grandes e descemos tudo o que

podíamos até a sala, onde eu me sentei em uma das poltronas que havia ali, enquanto Maya e Hugo
foram comer alguma coisa na cozinha.

Pouco tempo depois Benjamin voltou, com uma única mala de couro escuro que agora estava
aos seus pés.

Ainda era estranho saber quem ele era...

Desde que comentamos sobre, foi como se todas as lembranças em minha mente estivessem
vindo à tona, gritando em minha mente de uma vez só, e entre todas elas uma sempre voltava...

Um soldado, vestido com uma farda preta e pesada, com uma arma em seus braços, os coturnos
cheios de sangue, o rosto coberto por um capuz e os olhos verdes me olhando por cima da máscara
que usava.

Era estranho pensar que já nos conhecíamos, e principalmente da forma que acabamos nos

encontrando pela segunda vez, como se nossos caminhos estivessem unidos.

Depois daquele dia, ele construiu uma família, se casou e tentou formar uma família... E agora
estava aqui, comigo, para que pudéssemos nos vingar do mesmo homem que tirou tudo de nós.

“O destino trabalha de várias formas, minha filha... E te garanto que não importa o quanto você
tente entender, ele sempre vai te surpreender.”

Às vezes, quando eu me lembrava das conversas que tive com a minha mãe, quando nós duas
ainda estávamos no hospital, era como se ela soubesse de tudo o que iria acontecer e só estivesse
tentando me avisar.
Avisar das partes boas e ruins...

Me restava descobrir o que ele ainda significava.

— Benjamin provavelmente vai sair daqui às nove da manhã — Hugo disse, enquanto voltava
para a sala, com Maya segurando em seu braço. — Se forem seguir com o planejamento normal, ele

vai até Berlim de ônibus, e de lá ele vai pegar um voo até Paris, e então outro até Bariloche...

— Isso significa que a gente vai ter que sair daqui até... — perguntei, com os olhos fixos em
Ben, que agora digitava algo em seu celular.

— O voo do I.R.A vai sair às seis da manhã — ele respondeu firme, enquanto guardava o
celular em seu bolso e deixava o corpo cair contra a poltrona. — De uma pista a vinte e quatro
quilômetros daqui, vão fazer um voo direto até o Brasil, e dê lá vocês vão de carro até Bariloche...
Sabem se eu vou ficar em algum hotel ou pousada até a hora de ir para a estação?

— Provavelmente vão passar a noite em algum lugar diferente, dentro da cidade... — falei, me
debruçando na poltrona, enquanto Maya deixava o braço de Hugo e ia até a cozinha. — Mas eu
queria realmente saber como nós vamos entrar naquele lugar.

— Acho que essa parte vai precisar ser improvisada — Ben disse, guardando a faca de volta

na bainha. — Mas levando em conta que Bariloche fica nos pés da Cordilheira dos Andes...
Provavelmente o lugar todo vai ser escavado na montanha, eles vão precisar de um sistema de
ventilação, deve ser a melhor maneira de entrar.

— E quanto as armas? — Hugo perguntou, batendo a bengala contra a poltrona em que eu


estava, e então se aproximou, apoiando seu ombro no encosto. — Ela não vai entrar lá só com uma
pistola, não é mesmo?

— Vocês vão estar em um avião do Exército Republicano Irlandês — Benjamin afirmou rindo.
— O que mais vai ter por lá vão ser armas, mas eu aconselho você escolher uma coisa fácil de
carregar, um fuzil compacto ou uma submetralhadora, aproveite e tente comprar um colete a prova de
balas...

— Qual você vai usar? — questionei olhando para ele, que me encarou de forma estranha. —

Qual arma você vai estar usando?

— Eu não uso armas de fogo... — ele respondeu enquanto Maya voltava para a sala, com uma

garrafa de café e algumas xícaras.

— O quê?! — falei indignada, quase em coral com Hugo.

Era quase inacreditável que aquele homem estava disposto a entrar naquele lugar apenas com

facas...

Quais chances ele teria?

Quais chances nós teríamos?

— Eu fiz uma promessa — ele respondeu, e aquilo foi o suficiente para que eu pudesse
entender que uma arma de fogo estava fora de cogitação...

Maya entregou uma xícara de café quente para cada um de nós, sorrindo enquanto servia.

Eu sabia o quanto ela deveria estar animada para essa viagem, mesmo sem ter certeza de que
nós pudéssemos voltar dela...

Ela havia nascido naquele lugar, e desde então havia nos acompanhado, mesmo que eu tenha
sempre a tratado como uma irmã, sabia que no final eu e Hugo éramos como pais para ela...

Era estranho saber que os dois teriam que ir até o outro lado do mundo comigo, mas não era
seguro deixá-los aqui... Correndo o risco de descobrirem que eu traí a célula... Eles tinham meu
endereço, poderiam vir aqui atrás deles...

Mesmo depois que tudo isso acabasse, eu sabia que não seria seguro continuar nesta cidade...
Nem se depois disso poderíamos continuar no mesmo país.

Incertezas e ansiedade.
Eram tudo o que havia me restado, tudo o que eu podia me agarrar.

Passei uma vida toda esperando por esse momento, para ter a chance de me vingar, e mesmo

que isso custasse a minha vida eu seguiria em frente, assim como eu tinha a certeza de que Benjamin
também o faria, sem remorsos ou hesitações.

Mas eu não estava disposta a entregar a vida de quem eu amava para o mesmo destino.

Eu precisava de uma garantia...

Precisava de um plano “B” para eles... Um lugar para ficarem caso o pior acontecesse comigo,

uma esperança de que eles ficariam bem, apesar do resultado do nosso plano suicida.

Deixei meus olhos correrem pela sala, que Maya fazia ao máximo para deixar limpa e
organizada, apesar dos meus esforços e Deus... Pelos esforços de Hugo que deveria ser a pessoa
mais desorganizada que eu já vi em toda a minha vida.

Era impressionante como ele realmente sabia o que estava fazendo.

Dei um gole no café quente, sentindo seu gosto amargo esquentar meu peito, e só então percebi
o quanto estava cansada...

Era como se não dormisse há dois dias... Porque eu realmente não dormia há dois malditos

dias, e era como se cada pedaço do meu corpo implorasse por apenas um momento de sono para que
eu pudesse apenas desligar.

Fingir que o mundo era um lugar lindo e que algumas pessoas não precisavam morrer...

Mas eu não conseguiria fazer isso sem antes resolver a única coisa que ainda tomava conta da
minha mente, antes que não tivesse mais tempo para resolvê-la antes que eu estivesse presa em uma
lata de metal lotada de armas e irlandeses malucos.

Deixei meus olhos pararem em Benjamin, que estava conversando com Maya alguma coisa
sobre como a Inglaterra tinha cheiro de mofo e umidade enquanto ela olhava para ele com os olhos
abertos, quase brilhando, enquanto ele sorria, entre um gole e outro do café, acomodado na poltrona
como se nada o preocupasse.

Como se ele tivesse o controle de tudo, correndo os dedos pela barba loira enquanto pensava
na próxima frase, no próximo comentário sobre o mundo que parecia conhecer tão bem, como se já

tivesse passado por cada pedaço dele.

— Mas como você sabe a hora certa de virar o carro se a mão é invertida? — Maya
perguntava, atenta em cada palavra que ele dava, respondendo cada pergunta com atenção e...
Carinho.

— É natural quando pega o jeito... O problema é até você se acostumar, às ruas perto do
aeroporto vivem com trânsito por causa dos acidentes dos turistas — Benjamin falava com um
sorriso leve em sua boca, entre um gole e outro do café.

— Lá é o único país que tem a mão invertida? — ela perguntou, levantando uma sobrancelha.

— Não, existem muitos países que usam, como o Japão, Índia, Malásia, Austrália — ele
continuou falando alguns outros países, mas minha mente foi tomada apenas pelo movimento da sua
boca, abrindo e fechando de forma tão hipnótica...

Tão hipnótica que quando voltei para mim, já não sabia ao certo há quanto tempo estava ali,
apenas observando os dois conversarem, querendo me perder ali, imersa em algo tão leve que era
como se estivesse em outra realidade...

Eles falavam sobre o clima em outros lugares, sobre como a Coca-Cola tinha gosto diferente
em várias partes do mundo, sobre os doces estranhos que vendiam no Japão e a mania dos norte-
americanos de colocar ketchup em tudo...

— Você está bem, Sophia? — Hugo indagou, me jogando para fora daquele pequeno pedaço do
meu mundo que não estava um caos, e por um instante eu o odiei por isso.

— Estou sim... — falei enquanto me alongava, sentindo meu corpo reclamar pela falta de sono
— Por quê?

— Você ficou quieta, achei que tinha dormido — ele disse deixando o corpo cair sobre o braço

da poltrona, se sentando ali, com o rosto sendo iluminado pela luz que entrava na sala.

Às vezes eu queria entender como ele via o mundo à sua volta.

“De alguma forma eu acho que ainda enxergo, eu sei onde estão os objetos e memorizo eles em
minha mente, tento me lembrar de como as cores são e como devem ser os objetos com elas... Mas é
claro que eles existem apenas ali, na minha mente, porque a partir do momento em que você os tira
do lugar sem que eu saiba, eu tenho apenas uma falsa impressão do mundo...”

E não teríamos todos?

O que seria do mundo senão a nossa forma com que nós o enxergamos... O valor que damos às
coisas que nos rodeiam e os sentimentos, muitas vezes equivocados, que entregamos às pessoas.

Merda... Acho que o sono havia me pegado de jeito.

Deixei a xícara de café, que agora já havia esfriado, em cima da mesa e me levantei da
poltrona enquanto minha coluna toda parecia estalar, eu apoiei minhas mãos na base da minha cintura
e me alonguei mais um pouco.

— Eu preciso dormir um pouco — falei, enquanto Benjamin colocava sua xícara em cima da
mesa e puxava sua bolsa para mais perto.

— E eu precisava de um banho... — ele falou olhando em volta. — Tem algum banheiro que eu
possa usar?

Sempre ouvi dizer que as maiores decisões da sua vida você toma sem que perceba o real peso
que elas irão ter na sua vida.

E por isso elas eram tão especiais.

Elas eram únicas, simples e naturais, sem segundas intenções ou nada além da própria vontade
do corpo e da alma...

— Tem um no meu quarto, você pode usar se quiser — falei, sem sequer pensar, enquanto ele

levantou, sem hesitar, carregando sua bolsa no ombro.

Fui da sala em direção às escadas, com Benjamin me seguindo em direção ao meu quarto.

Quando passei por Hugo, que havia se jogado na poltrona em que eu estava, ele sorria com um
cigarro sem acender entre os lábios e um isqueiro aceso em mãos, a alguns centímetros do rosto.

Mas existia outro motivo pelo qual as escolhas sem pensar sempre eram as melhores da nossa

vida...

Era porque raramente nos arrependíamos delas.

Pelo menos... Eu nunca me arrependi.


“Há coisas que nunca se poderão explicar por palavras.”

JOSE SARAMAGO

Às vezes, era como se tudo apenas fluísse.

Como se, em pequenos momentos, tudo se tornasse tão natural que não éramos capazes de
perceber a estranheza daquilo que nos rodeava.
E enquanto estávamos nesta pequena bolha temporal, nossas ações se tornavam autênticas,

fluindo sem julgamentos ou carregadas de medos e traumas antigos, porque ali, nossas mentes se

tornavam livres de todo peso que estávamos acostumados a carregar.

Durante este pequeno espaço de tempo, não existiam dores.

Não existiam arrependimentos, julgamentos ou ódio.

E tudo o que nos restava era a vida, em sua forma mais simples e pura.

Naquele momento, em que eu estava subindo as escadas seguindo Sophia, que caminhava

degrau a degrau tomada pela calma que apenas o sono e o cansaço nos traziam, meus olhos correram
por ela, e era estranho pensar que há apenas algumas horas aquela mulher estava tentando me matar.

Sorri sozinho, pensando em como a vida era irônica, em como o destino parecia apenas rir
cada vez mais de mim enquanto me jogava de um canto para o outro como bem entendia...

Mas talvez isso me levasse a lugares que nunca imaginei ir.

A sentimentos que nunca imaginei revisitar...

Acompanhei ela sem que falássemos uma só palavra, subindo até o corredor e depois seguindo
para a primeira porta à esquerda, e quando ela abriu a porta e acendeu a luz, entrando em seu quarto,

percebi que ele era exatamente o que eu esperava.

O quarto era simples, com uma cama de casal bagunçada entre cobertas e roupas no centro de
tudo, acompanhada por uma mesa de cabeceira antiga, onde havia uma enorme pilha de livros com
uma garrafa de whisky ao lado do abajur que ainda estava aceso.

No canto, uma cômoda de madeira já repleta de marcas pelo uso e do tempo estava com
algumas gavetas entreabertas, com as roupas caindo pelos lados e algumas outras jogadas por cima
do móvel.

A luz era fraca, mesmo com o abajur ligado, porque as janelas estavam cobertas por cortinas
pesadas, e as paredes...

As paredes estavam cobertas por fotos.

Meus olhos estranharam a cena por um instante, como se de alguma forma eu conhecesse os
rostos que estavam estampados naqueles papéis amarelados...

Até eu perceber que realmente os conhecia.

Todos eles eram os rostos dos homens que eu já havia visto na Rosenrot, com seus olhos
fundos e cortes de cabelos militares, as tatuagens que ostentavam símbolos nazistas e as roupas e

uniformes que apenas gritavam ainda mais a que lugar todos eles pertenciam.

Parei um tempo para prestar atenção naqueles homens, mesmo que alguns fossem apenas uma
lembrança, um vulto em minha mente, achei melhor tentar me lembrar do máximo de rostos fosse
possível, afinal... eu estava prestes a me trancar em um avião com todos eles.

Mas o que chamava a atenção naquela parede, eram algumas fotos específicas...

Fotos com um enorme “X” vermelho correndo de um lado ao outro do papel, tão sútil quanto
uma bomba atômica.

— Não se importe com a bagunça — Sophia disse, enquanto se jogava na cama.

— Eu não me importo — respondi me virando para ela, que agora tirava as botas com os pés,
as jogando para longe, revelando um par de meias longas vermelhas. — Onde fica o banheiro?

— Ali à esquerda — falou enquanto bocejava, apontando uma porta de madeira próxima a
cama. — Não se preocupe em gastar água ou energia, a gente não paga mesmo.

Era impossível não rir de uma cena dessas, mas achei melhor me manter sério para evitar
qualquer tipo de problema.

Atravessei o quarto, desviando de uma ou outra peça de roupa no chão e fui até o banheiro, que
apesar de simples era muito bonito, com os azulejos antigos adornados por flores douradas, com um
armário de madeira com uma tampa de mármore claro, e a torneira dourada, assim como o chuveiro
metálico.

Deixei minha mala no chão enquanto fechava a porta, parando para observar mais uma vez
Sophia, que agora estava deitada com os olhos fechados, prestes a pegar no sono, sabendo que em

pouco tempo era a minha vez de precisar dormir um pouco.

Abri a mala e procurando uma calça de moletom e uma toalha, e deixei as duas perto do box de
vidro que cercava o chuveiro e comecei a tirar minha roupa.

Desabotoei a camisa, que agora estava com algumas manchas de sangue por tudo o que havia

passado naquele dia, mas sabia que elas só não estavam piores que minhas mãos, onde os nós dos
meus dedos apenas começavam a doer mais e mais enquanto meu corpo esfriava da adrenalina.

Joguei a camisa suja em cima da mala, em seguida tateei os bolsos, tirando o celular, que tinha
algumas mensagens do Gabriel para responder, e a carteira, os colocando em cima da pia.

E quando voltei as mãos para os bolsos, apenas para ter a certeza de que não estava
esquecendo nada... Encontrei aquilo que mais estava tentando evitar.

Minha aliança.

Meu peito pesou, enquanto eu passava os dedos por ela... A sentindo fria ao toque, sem vida.

Um símbolo vazio, diferente de tudo o que ela já foi um dia.

A deixei ali, em cima da pia de mármore enquanto tirava o resto da minha roupa, a deixando
em um canto, me sentindo livre delas o suficiente para respirar fundo, sentindo o ar frio que saía das
paredes contra minha pele.

Fui até o chuveiro, sentindo o frio do piso contra meus pés, observando os vidros de shampoo
e os cremes de cabelo que estavam em um pequeno espaço na parede, e por algum motivo que ainda
não sabia ao certo qual era...
Senti meu peito esquentar quando reparei no cabelo ruivo no chão do banheiro.

Talvez eu tivesse estranhado me sentir confortável naquela situação, ou apenas me senti bem ao

saber que, de alguma forma, ela havia começado a confiar em mim.

Era diferente pensar nela depois que descobri sobretudo.

Sobre o fato de nos conhecermos há tanto tempo, sem ao menos saber da existência um do outro
como uma pessoa além das lembranças bagunçadas e dos rostos assustados.

Abri o chuveiro com a mente longe, enquanto eu sentia a água quente batendo contra minhas

costas, escorrendo pelo meu corpo, lavando todos os sentimentos ruins e ansiedades que tentavam a
todo custo tomar espaço entre meus pensamentos.

Não demorei muito, tomando um cuidado para lavar bem os machucados em minhas mãos e
aproveitando o shampoo e condicionador para meu cabelo e barba, com a esperança de que ela não
fosse reclamar pela audácia, e enquanto secava meu corpo com a toalha escura que havia trazido,
meus olhos foram de encontro a um copo em cima da pia, onde estava o creme dental e uma escova
de dentes.

Uma escova de dentes...

De alguma forma aquilo me tranquilizou... Sabendo que não havia outra pessoa dividindo o
banheiro com ela.

Deixei esse pensamento entrar e sair da minha mente enquanto terminava de me vestir, ficando
sem camisa ou meias, com o cabelo ainda meio molhado por pura preguiça de perder mais tempo o
secando, e quando abri a porta boa parte do quarto foi engolido pelo vapor, e entre a névoa quente,
encontrei Sophia ainda deitada na cama, com a respiração pesada embalada pelo sono, deitada
virada em minha direção, com as duas mãos apoiando o rosto...

Deixei meus olhos correrem por toda a extensão de seu rosto, acompanhando o traçado fino
que contornava a sua boca, tão bem desenhada que parecia um imã, atraindo meus olhos para ela.
Seu corpo era magro, com a cintura bem marcada aparecendo por baixo da regata, com a pele

clara dela chamando a atenção dos meus olhos enquanto eu observava algumas sardas que marcavam

seus braços, sua barriga, sua cintura...

Era estranho sentir isso novamente, mesmo eu não tendo sequer um nome para atribuir àquele

sentimento que fazia meu peito se esquentar, meu coração acelerar e depois quase parar.

Cheguei mais perto, dando um passo em direção a ela, enquanto acompanhava sua respiração
subir e descer com calma, fazendo com que meu corpo pedisse para que eu apenas me deitasse ali, ao
lado dela...

Mas eu não faria... Não assim.

Havia dois travesseiros em cima da cama, e com cuidado para não a acordar, peguei o que
estava no lado oposto, o trazendo comigo para o outro lado do quarto, e brigando contra a tentação
de ir para a cama, me sentei no chão, usando o travesseiro para apoiar minha cabeça contra a parede,
deixando minhas pernas esticadas.

Quando me ajeitei no travesseiro, o cheiro dela tomou conta de mim...

Doce e floral, que de alguma forma, combinava tão bem com seu rosto, com seu corpo...

Com sua pele...

Mesmo sentindo sono, eu não queria fechar os olhos, não ainda, porque eu queria ficar mais
tempo apenas a vendo dormir, ouvindo sua respiração que tomava conta do quarto, sentindo seu
cheiro que parecia com perfume.

Queria mais daquele sentimento.

Daquela paz...

Sem mais preocupações, sem dores ou arrependimentos.

Apenas o ali e o agora, sem mortes ou sangue...


Apenas a mulher dos cabelos cor de fogo.

Embalado por esse mar de pensamentos, fui aos poucos pegando no sono, imerso pelas

fantasias de uma realidade mais calma.

Onde, talvez, eu e ela pudéssemos ter existido de outra forma.

De outro jeito.

Outros amores.

Outros beijos...

Mesmo que meu corpo todo já estivesse quente, nada se comparava ao toque dela contra minha
pele.

Acompanhei com os olhos enquanto ela vinha em minha direção, mordendo o próprio lábio

enquanto descia da cama.

Segurei minha respiração por um instante quando ela estava ali, me encarando, com seu rosto
tão próximo do meu que era possível sentir sua respiração...

Sentir seu cheiro.

Seu calor...

Ajeitei minha postura, enquanto levei minha mão em direção ao seu rosto, apenas para
encontrar sua pele que parecia queimar ao meu toque, tão macia e suave que foi impossível resistir.
Cortei a distância entre nós, levando minha boca para perto da sua, mas tudo o que eu tive

como resposta foi um sorriso, enquanto ela levava seu dedo indicador a minha boca, pressionando

meus lábios enquanto me levava para trás.

— Hoje não... — ela falou, com a voz rouca. — Hoje você é meu.

Ela desceu sua mão até o meu peito, correndo os dedos por toda a minha pele, acompanhando o
traçado das minhas tatuagens, e sem pudor algum ela me colou contra a parede, subindo pelo meu
corpo enquanto trazia sua boca em direção a minha, parando apenas quando nossos lábios estavam
prestes a se encostar, sorrindo enquanto seus olhos me encaravam, tão profundos que era como se a

qualquer momento eu pudesse cair para dentro deles.

Mas ela não fez questão de me fazer esperar...

Ela me beijou, envolvendo meu rosto em suas mãos, fazendo com que seu cheiro tomasse conta
de mim em um beijo tão suave que eu duvidei de como aquela boca podia ser macia, com nossas
línguas se encontrando e brincando em nossas bocas.

Apoiei minhas mãos em sua cintura, escorregando para baixo de sua regata, trazendo seu corpo
para mim enquanto ela se deixava ir, se debruçando sobre mim enquanto eu apertava a sua cintura,
sentindo sua temperatura subir no meu toque.

Sentindo nossos corpos queimarem.

E antes que eu pudesse continuar, ela agarrou meu rosto com as mãos, aumentando a
intensidade do beijo mordendo minha boca, rebolando no meu colo.

Sentindo como meu pau já estava ficando duro embaixo dela.

Sua boca desceu da minha, passando sem pressa até o meu pescoço enquanto suas mãos
desciam pelo meu peito, com suas unhas arranhando minha pele, deixando que eu pudesse senti-la ali,
tomando conta de mim, mordendo e chupando cada pedaço do meu corpo enquanto continuava
descendo, parando apenas para beijar cada uma das tatuagens que eu tinha.
Seu corpo escorregou pelo meu, descendo devagar enquanto minhas mãos começavam a puxar

sua roupa, para que eu pudesse ver sua pele clara, marcada pelas sardas e tatuagens que cobriam seu

corpo.

Ela continuou descendo até minha barriga, lambendo devagar os músculos que desciam por

todo o meu abdômen, com sua língua quente percorrendo todo o caminho, enquanto uma de suas mãos
desciam direto para o meu pau, me agarrando por cima da calça, sentindo o quanto eu já estava duro.

O quanto eu já estava pedindo por ela, que apenas ria, quase me devorando com o olhar, com
uma cara de safada que me fazia querer apenas ficar a olhando para o resto da minha vida.

Com um movimento rápido, ela abaixou a calça de moletom, liberando meu pau que foi
rapidamente envolvido pelas suas mãos, que percorreram toda a minha extensão, fazendo com que eu
delirasse apenas de sentir sua pele quente contra ele.

Ela continuou beijando, descendo até ele bem devagar, enquanto suas mãos continuavam o
trabalho, com seu corpo ainda descendo apenas para que ela pudesse empinar sua bunda com as
mãos me segurando com vontade, com sua boca brincando ao redor do meu pau que já latejava.

Antes que pudesse me colocar em sua boca ela chegou bem perto, lambendo toda minha
extensão, parando com um último sorriso, antes que começasse a descer sua boca em torno dele.

Não tinha como explicar a sensação de ver aquela boca perfeita me engolindo, quente e
molhada enquanto seus olhos permaneciam nos meus, deslizando até minha base e voltando, me
massageando com sua língua.

Ela subiu e desceu lentamente, enquanto uma de suas mãos se apoiava na minha coxa e a outra
continuava deslizando pelo meu corpo.

Eu gemia baixo, sentindo meu pau pulsar em sua boca enquanto ela ia cada vez mais rápido, até
me tirar de dentro dela de uma vez, me lambendo de baixo para cima...

Minhas mãos envolveram seus cabelos, tomando conta do ritmo enquanto ela ria uma última
vez antes de me colocar todo dentro de sua boca, engasgando em meu pau enquanto seus olhos

castanhos eram tomados pelo vermelho e suas unhas cravavam fundo em minha pele.

Meu corpo todo queimava quando eu senti um espasmo tomar conta de mim, fazendo cada
pedaço do meu corpo tremer, me jogando para o lado.

E... quando eu abri os olhos, estava sozinho no quarto.

Senti minha respiração ofegante, meu corpo quente, enquanto eu esfregava minhas mãos contra
o rosto tentando entender o que estava acontecendo.

MERDA!

Suspirei fundo no mesmo instante em que eu percebi o que havia acontecido, sentindo minha
cabeça começar a doer e minha boca seca.

Olhei em volta, observando apenas a sombra dos poucos móveis no quarto escuro, onde a
única luz era aquela que se esgueirava pela fresta por baixo da porta do banheiro, me fazendo
agradecer por ela estar longe no instante em que acordei.

Deixei minha cabeça afundar no travesseiro em que estava apoiado, e quando o cheiro dela
voltou a tomar conta de mim, senti meu corpo se arrepiar apenas pela lembrança.

Olhei para baixo, vendo marcado na calça o estado que aquele sonho havia me deixado... Que
apenas a imagem dela havia causado em mim, e sem pensar duas vezes tirei o travessei da parede e o
deixei no meu colo, me xingando em pensamento por ter deixado a mala com as roupas dentro do
banheiro.

Antes que eu pudesse agradecer por estar sozinho nessa situação, ouvi a porta do banheiro se
abrir, com uma nuvem de vapor denso tomando conta do quarto, enquanto um jogo de sombras
parecia dançar através da luz.

Reconheci na hora a silhueta cheia de curvas do seu corpo, caminhando em minha direção com
leveza, até que seus olhos distraídos se encontraram com os meus.

Ela vestia um short curto e um top, deixando sua pele clara pintada pelas sardas e algumas

tatuagens que subiam do seu quadril até suas costas, o cabelo ainda meio molhado penteado para o
lado.

— Te acordei? — ela perguntou, correndo os dedos pelo cabelo curto, tão cheio de vida, que
destacava ainda mais o rosado de sua boca.

— Não... — falei pigarreando, tentando disfarçar a vergonha. — Acordei agora pouco.

Ela balançou a cabeça, com seu olhar se perdendo em algum ponto do quarto enquanto
caminhava sem pressa até a cama, se sentando com as pernas cruzadas por entre as cobertas, com a
meia luz iluminando seu rosto, trazendo um ar quase melancólico.

E aquele era um olhar que eu conhecia muito bem...

— Você está preocupada com eles, não é? — falei, fazendo com que ela voltasse a olhar para
mim, e não foi preciso mais do que isso para que eu tivesse a certeza do que estava acontecendo.

— Não tem como ficar tranquila sabendo que eu posso não voltar — ela respondeu,
suspirando, deixando o corpo cair contra a cabeceira da cama, amortecida pelo travesseiro. — Eles

sempre dependeram de mim para tudo, sempre fui eu quem correu atrás de trabalho, de comprar
comida, pagar as contas em dia... Maya é praticamente uma criança, e Hugo é teimoso demais para
aceitar ajuda, então eu sei que se alguma coisa der errado, não é apenas a minha vida que está em
jogo.

— Eu tinha vinte e um anos quando me alistei no exército, sem experiência e com uma ficha
criminal longa o suficiente para não ser aceito nem pelo Mcdonalds, mas assim que fui aceito, fui
mandado para um treinamento intensivo e saí de lá com uma patente alta o suficiente para que não
precisasse me preocupar com dinheiro — contei sem pressa, com a esperança de que assim eu
pudesse colocar minha mente no lugar e voltasse a focar no que realmente importava agora. — E o
único motivo para isso é que eu, assim como Arthur, Ângelo e Gabriel, não tínhamos nada a perder,

nem família, amigos ou qualquer pessoa que se importasse conosco além de nós mesmos, por isso

aceitávamos sem hesitar qualquer missão, mesmo sabendo que ela poderia ser a última.

Me ajeitei no chão, esticando meus braços no ar, sentindo meus músculos doloridos pelos

golpes que havia dado mais cedo.

— Não se culpe por ter para onde voltar, errado seria se isso não fosse sua maior preocupação
agora — continuei —, isso te torna melhor do que qualquer soldado...

— Mas eu não sou um soldado, Benjamin — ela me interrompeu, se virando para a minha

direção. — Eu não tenho treinamento ou o sangue frio, nem experiência o suficiente com armas,
estratégias de combate... Não sou como você, nem como os homens que estavam ao seu lado naquele
hospital... Eu tenho... Medo...

Medo...

Tentei imaginar como teria sido para ela se abrir desta forma comigo, principalmente porque
ela não parecia fazer isso com qualquer um... Mas passar por situações como essa sempre traziam à
tona qualquer coisa que estivesse enterrada no fundo da nossa alma.

Estar frente a frente com a morte, olhando nos olhos do Ceifeiro, te lembrava de tudo o que
você já passou, os melhores e piores momentos da sua vida, as coisas que você fez...

Mas o que realmente doía era se lembrar das coisas que você deixou de fazer.

O dilema do soldado...

Estar sempre pronto para a morte, mas ainda tão preso à vida que não ia se entregar com
facilidade.

— Eu me lembro muito bem daquele dia... — falei olhando em volta, até encontrar a garrafa de
whisky na cômoda, a peguei e tirei a tampa, dando um gole longo, deixando a bebida queimar em
minha boca e garganta. — Falaram que ia ser um acampamento de um grupo terrorista, nos colocaram

no avião com munição o suficiente para vinte... trinta minutos de combate cerrado, e no momento em

que caímos no telhado do lugar e vimos a dimensão daquele hospital, sabíamos o que aquilo
significava, e quando o helicóptero deu meia volta, tínhamos a certeza de que morreríamos ali.

Ainda era difícil reviver algumas daquelas lembranças, porque mesmo passando por tantas
missões e por tantas mortes, o problema naquele dia foi o volume...

A quantidade de corpos, os litros e mais litros de sangue, o cheiro da pólvora que levou dias
para sair das minhas mãos.

Enquanto eu falava ela veio até mim, sentando na beirada da cama, ainda de pernas cruzadas,
me olhando de cima para baixo com olhos atentos, com a mão esticada pedindo a garrafa.

— No começo enfrentamos os guardas que estavam vestidos de branco, e mesmo que eles
tivessem armas, não acredito que eles sabiam como usar, foram alvos fáceis... — falei enquanto
observava ela dando um gole longo no whisky e depois deixando a garrafa em seu colo. — Ângelo
era nosso batedor, acho que ele derrubou doze guardas sozinho, enquanto Arthur deve ter matado o
dobro, Gabriel e eu matamos seis cada, cuidando dos flancos... O problema de verdade começou
com os guardas que vestiam preto, usando coletes com placas de metal tão pesadas que nem os fuzis

conseguiam perfurar, nossa munição acabou em questão de minutos, e depois foi apenas o caos...

Eu não precisei pedir a garrafa para que ela a entregasse em minhas mãos.

— Como foi para vocês ver o que acontecia lá? — ela perguntou mordendo o lábio.

— Aquilo parecia como o inferno... As salas de cirurgia, os experimentos... — Antes de


continuar, sabia que ia precisar de mais um gole de whisky. — Foi a primeira coisa que vimos
quando descemos, as salas de cirurgias... Arthur e Ângelo mataram cada um dos médicos enquanto
Gabriel e eu fomos ver se algum dos pacientes ainda estava vivo... Depois daquilo tínhamos a
certeza de que nenhum dos funcionários dali merecia sair vivo, nem que tivéssemos que morrer para
isso... E na maior parte do tempo a gente teve certeza de que realmente ia morrer.

— Quantos vocês mataram? — ela perguntou deixando as pernas descerem para a beirada da

cama, às balançando devagar enquanto falava, como se aquele assunto fosse a coisa mais simples do
mundo. — Eu sempre imaginei o motivo pelo qual vocês deixaram o Strauss sair vivo...

— Não sei ao certo quantos foram, quando a munição acabou, pegamos as armas dos guardas
mortos e continuamos... — falei devolvendo a garrafa para ela. — Limpamos as salas de cirurgia e
abrimos as celas, então passamos para as alas administrativas, matamos todos os que encontramos
até chegarmos onde estavam os clientes... Eles estavam trancados em uma espécie de bunker, tinha

uma porta de vidro blindado, mas as paredes, o chão e o teto eram de metal, tão grosso e pesado que
nem mesmo as granadas iam fazer algum estrago, mas no meio do caminho Arthur havia achado um
lança-chamas... Até hoje tenho medo de saber o motivo de terem um... Mas aquele era uma lata de
metal e tínhamos o fogo, Arthur e Ângelo tiveram a ideia, Gabriel disse que seria sádico até para
aquele tipo de gente e eu apenas observei enquanto eles discutiam por quatro minutos sobre o que
queriam fazer, e no fim, foi meu o voto de minerva...

Ela respirou fundo, com a garrafa em mãos, mas não bebeu, apenas passou os dedos por onde a
bebida escorreu pelo vidro, prestando atenção em cada palavra, e quando eu terminei, ela escorregou

para o chão, sentando à minha frente com as pernas passando ao lado das minhas.

— O que você decidiu? — ela perguntou, apertando firme a garrafa em suas mãos.

— Existe uma lei chamada oferta e demanda... Aquele lugar só existia porque aquelas pessoas
estavam lá, dispostas a pagar — falei enquanto deixava minha cabeça bater de leve contra a parede
de madeira. — Arthur desligou a chama piloto e jogou gasolina por todo o lugar... Deixou a maior
parte escorrer pelas frestas da porta enquanto todo mundo tentou se esconder no fundo, gritando alto,
implorando por misericórdia... Gabriel procurou se tinha alguma criança entre eles, e quando
confirmou que não tinha e toda a gasolina do lança chamas havia escorrido para dentro da sala,
Ângelo pegou seu isqueiro, acendeu um charuto, tragou devagar e o deixou cair... Olhei no meu
relógio, foram quatorze minutos até o fogo apagar... Quatorze minutos de gritos, tão fortes que fui

capaz de ouvir as cordas vocais de algumas pessoas sendo rasgadas, mas o pior foi o cheiro da carne
queimando, acho que nunca saiu da minha mente.

Ela engoliu em seco enquanto me ouvia falar, os olhos fixos nos meus com os lábios
comprimidos.

Tentei imaginar como deveria ser para ela, saber que as pessoas que a fizeram passar por tudo
aquilo haviam morrido da pior forma possível.

Não havia orgulho algum no que nós havíamos feito naquele dia, fomos monstros, cruéis e
frios, mas de alguma forma sabíamos que não havia sido em vão.

— O que aconteceu depois? — ela indagou com a voz rasgada pelos sentimentos que
provavelmente estavam presos em sua garganta.

— Quando tudo acabou, havia apenas um amontoado de corpos queimados e a certeza de que
havíamos feito tudo o que podíamos, então voltamos para os corredores e matamos quantos guardas e
outros médicos conseguimos. — E com uma pausa breve para respirar fundo, me inclinei para frente,
diminuindo a distância entre nós dois e continuei: — Quando fomos cercados, usamos as granadas e

uma das explosões me jogou para trás e eu acabei batendo a cabeça contra uma parede, fiquei em
coma por seis dias e quando acordei já estava em uma base na Flórida.

— O que houve... Com os outros?

— Nós carregávamos um remédio chamado pervitin, que era uma dose enorme de adrenalina e
estimulantes... Eles tentaram me dar uma dose e quando não acordei achavam que eu havia morrido,
então tomaram as deles para conseguir ignorar os machucados e fugiram com alguns dos carros que
estavam lá — falei tentando me lembrar da história que Arthur havia me contado alguns anos atrás.
— Fugiram até um aeroporto clandestino que um amigo de Ângelo tinha... Ele foi para Londres, onde
tinha uma família para cuidar dele, Gabriel foi para a Bielorrússia onde tinha uma irmã e o Arthur
ficou por lá, não havia ninguém para onde ele pudesse voltar... Com o tempo ele acabou fazendo

alguns trabalhos para as pessoas que precisavam de soldados como ele e acabou entrando para os
filhos... O resto é história.

Depois daquela conversa, senti minha cabeça leve pela bebida com o estômago vazio, e tentei
imaginar como ela deveria estar depois de saber a história dos seus “salvadores”.

Não éramos heróis, não usávamos uniformes coloridos nem fazíamos poses para o pôr do sol...

Éramos assassinos.

Monstros e demônios.

Esperei por algum tempo a reação dela para tudo aquilo, todas as informações e todo o ódio
daquelas palavras...

Imaginei que ela gritaria, me expulsaria do quarto ou voltaria a me olhar com desconfiança,
mas nunca imaginei que ela faria o que realmente escolheu fazer...

— Eu estou cansada... Acho que preciso dormir mais um pouco, e pelo jeito você também —
ela falou enquanto se levantava, devolvendo a garrafa na cômoda ao lado da cama. — Você... Quer

vir?

Senti meu coração bater forte no peito, mas respondi, sem hesitar:

— Quero sim...

Fui com ela para a cama, enquanto ela apenas puxava as cobertas dando espaço para nós, e
mesmo que estivesse calor lá fora, sabia que seria bom ficar ali com elas.

Deitamos, um ao lado do outro, e no exato momento em que nós nos ajeitamos, respirei fundo e
sorri...

Porque o cheiro dela era uma das melhores coisas que já havia sentido...
Mas nada se comparava com o toque da sua pele.
“Tive tantas facas presas dentro de mim, que quando me dão uma flor, não consigo entender

do que se trata. Leva tempo...”

CHARLES BUKOWSKI

Quando foi a primeira vez que você sentiu borboletas no seu estômago?

“Um dia você vai encontrar a pessoa certa, Sophia... E quando isso acontecer, não importa
como vai estar o dia, ele vai ser lindo, não importa como estará o clima, ele vai ser perfeito, e na
primeira palavra dele, seu estômago vai ser tomado por borboletas...”

Borboletas...

Nunca havia entendido esse termo, como se não fizesse muito sentido um sentimento tão

específico para explicar algo tão... Abstrato, que quando aconteceu pela primeira vez eu levei um
tempo para entender o que aquilo significava.

Quando acordei, sentindo meu corpo dolorido agora que a adrenalina havia passado, me
levantei da cama ainda sonolenta e o encontrei, sentado no canto do quarto, com a cabeça encostada

na parede, uma das pernas arqueada, a outra esticada indo quase para baixo da cama e um dos braços
apoiados no joelho.

Ele estava sem camisa, com o corpo e as tatuagens à mostra, passei um tempo observando cada
uma delas, os desenhos e os traços.

As cores.

As cicatrizes escondidas em meio à tinta, que marcavam os músculos bem marcados em cada
parte do seu corpo...

Respirei fundo, quando percebi que já estava o vendo dormir por tempo o suficiente, e me
levantei com pressa, antes que ele acordasse e me pegasse secando seu tanquinho.

Fui para o banho, encontrando o banheiro ainda quente pelo vapor que ele havia deixado, mas
a primeira coisa que vi quando cheguei lá foi a aliança, sobre o mármore.

Tentei ignorar, fingir que ela não estava ali... Mas era mais forte do que imaginei, porque no
fundo eu sabia que ele já havia tido um casamento...

Um relacionamento normal, longe de todo esse caos...

E era apenas isso que eu poderia entregar para ele.


Caos.

Tentei limpar minha mente de todos aqueles pensamentos, sabendo que com ele, seria apenas

uma missão e mais nada, como uma estória de cinema, e o que era mais engraçado é que ele
realmente parecia com um protagonista de filme.

Um bad boy.

Sempre ouvi falar que “bad boys” eram homens tatuados, debochados e sem nenhum pouco de
amor à própria vida... Mas o que mais se falava era sobre como eles eram fechados.

Frios.

Sempre escondendo o jogo e seus sentimentos.

Mas o Benjamin estava longe disso, com seus olhos verdes tão transparentes que era fácil de
entender o que se passava em sua mente, e agora, percebia o quanto se abria com facilidade, como se
seus sentimentos e suas ações fossem interligados...

Mesmo que ele parecesse um dos mocinhos maus na primeira vez que você olhava, já havia
percebido que ele estava longe de ser mau.

A merda de um mocinho de um livro de romance... Era isso que ele parecia para mim.

Daqueles cheios de cenas de ação e tensão nos capítulos, onde o autor parece gostar de brincar
com os sentimentos de quem estivesse lendo...

Se isso fosse um romance clichê, nesse caso, eu seria uma mocinha indefesa, que me jogaria
nos braços dele...

Mas isso não era um clichê.

E eu estava longe de ser uma mocinha indefesa.

Terminei meu banho, coloquei um pijama e voltei para o quarto, e depois disso foi como se
meu coração tivesse sido atropelado, batendo tão forte e longe do ritmo normal, como se tivesse
pulado tantas batidas que era difícil respirar.

Ouvi, quase sem piscar, cada uma das palavras dele, deixando que elas entrassem pelo meu

peito e tomassem o lugar que precisavam ali, porque depois de tanto tempo eu sabia a verdade.

Sabia o que houve no dia em que nasci...

Porque, para mim, sempre foi assim.

Eu era uma antes daquele dia, e agora era outra, depois de ter saído daquele inferno sem nada
além de coragem, Hugo e Maya, que a partir daquele dia se tornaram minha família....

Mas de alguma forma era como se Benjamin sempre tivesse feito parte de tudo isso, eu só não
sabia ainda.

Quando deitamos um ao lado do outro, tão íntimos que não havia porque temer, foi como se por
um instante todo o mundo lá fora fosse apenas um detalhe.

Adormeci, imersa em sonhos inquietos e distantes como lembranças antigas.

E quando finalmente acordei, não fiz questão de abrir os olhos, apenas fiquei ali.

Apenas sentindo sua respiração, sua pele contra a minha, e só conseguia pensar em como seria
estar ali com ele de outra forma...

Se tivéssemos nos conhecido em um bar, com ele falando sobre a forma com que vê a vida,
algumas doses de whisky irlandês e uma noite em um quarto de hotel.

Mas o que tínhamos era uma cama bagunçada e algumas horas até que nós dois estivéssemos
indo para a porra de uma missão suicida.

Será que as pessoas normais tinham esse sentimento?

De estar à beira do precipício, observando o fundo, que já estava tão longe que se perdia na
escuridão, uma queda sem esperança de sobrevivência... E a única certeza era que você ia ter que
pular para a outra margem, que agora parecia tão longe que mal podia ser vista por entre a névoa.
E não se sabia se você ia alcançar o outro lado, com seus pés acertando o chão com força, ou

se ia ser apenas o seu corpo, caindo em direção ao abismo.

Levando em conta a situação, seria um milagre se acabássemos saindo vivos de lá...

E se nós estávamos prestes a perder tudo... Por que não aproveitar um pouco da vida?

Me virei na cama, deixando meus olhos correrem por cada parte do corpo dele, que estava com
as cobertas na altura de sua cintura, deixando todo seu tronco à mostra.

Observei seus detalhes, suas marcas e cicatrizes, algumas tão profundas que era como se

pudessem contar suas próprias histórias, e então prestei atenção nas tatuagens, com uma em especial
me chamando a atenção...

Uma frase escrita em seu peito, em uma língua de deveria ser latim.

— Memento... Mori — falei baixo, observando as letras escritas em uma fonte de máquina de
escrever, com meu rosto tão próximo dele que era capaz de sentir o cheiro da sua pele.

E foi praticamente inevitável não tocar seu corpo.

Levei minha mão até ele, passando a ponta dos meus dedos pela tatuagem, sentindo as marcas
dela em seu corpo e como a tinta se fazia presente com uma textura única...

E fui capaz de sentir seu corpo arrepiar ao meu toque.

— Nunca se esqueça de que você vai morrer um dia... — A voz dele me chamou a atenção,
rouca e marcada pelo sono.

Olhei para cima, apenas para encontrar seus olhos verdes em minha direção.

— Isso é uma coisa que não consigo esquecer ultimamente — falei, mas sem tirar minha mão
do seu corpo...

Eu queria senti-lo...
Sentia sua pele esquentando ao meu toque.

Porque, de alguma forma, isso me acalmava.

— As tatuagens... Tem algum significado? — perguntei começando a correr os dedos pela


águia que marcava a maior parte do seu peito, com as asas subindo para os ombros.

— Boa parte são tatuagens do exército, praticamente todos os soldados têm, como a águia, o
barco, o farol e a âncora — ele falou, mostrando as tatuagens que estavam espalhadas pelo seu
corpo. — Mas as outras... Bem, são sobre isso.

— Sobre a morte?

— Sobre não esquecer de viver — ele disse, quase para confirmar o que estava pensando até
agora.

Ali percebi que eu não era a única com aquela ideia, pairando sobre nós como uma enorme
dúvida.

“E se...?”

Deixei minha mão escorrer sobre ele, apertando de leve seu abdômen enquanto me aproximava
um pouco mais de seu rosto, observando seus olhos...

A sua boca bem marcada pela barba loira...

Uma de suas mãos subiu em direção ao meu rosto, passando os dedos pela minha nuca, me
trazendo para ele enquanto eu fechava os olhos ao toque dos nossos lábios, e quando nossas línguas
se encontraram, tudo se tornou fogo dentro de mim.

Me apoiei em seu peito, subindo para o seu colo enquanto ele corria suas mãos pelo meu
corpo, segurando minha cintura.

Durante aquele beijo, eu percebi que em certos abismos, o melhor era se jogar de cabeça.

E ali eu fui capaz de me entregar, deixando nossos corpos juntos enquanto queimávamos,
deixando meu corpo todo sobre ele enquanto eu alternava beijos firmes, tomando o controle de sua
língua com a minha, sugando seu lábio e saindo da sua boca apenas para morder seu pescoço,

cravando minhas unhas no seu peito cada vez que ele descia suas mãos para minha bunda, me
apertando com vontade a cada mordida que eu deixava, a cada aranhão...

A cada arrepio.

Me levantei, vendo os olhos dele me devorarem quando comecei a passar minhas mãos por
toda a extensão do meu corpo, subindo da minha cintura até onde estava o top, o arrancando de mim
em um movimento só, deixando meus peitos livres para ele que mordia o lábio, tentando me trazer

para ele, mas antes que ele pudesse os alcançar com a boca, me desvencilhei das suas mãos as
colocando acima da sua cabeça, segurando seus dois pulsos com minha mão direita e colando meu
rosto no dele que me olhava com um maldito sorriso no rosto.

— Escuta aqui — falei calma, bem perto do seu ouvido. — Essa é a minha casa, o meu quarto
e a minha cama... Então quem vai mandar aqui sou eu, entendeu?

Segurei suas duas mãos firmes em meu pulso, apertando mais um pouco enquanto ele sorria,
mostrando suas presas.

— Entendeu?! — perguntei quase rosnando, enquanto batia suas mãos contra a cama.

— Entendi muito bem — ele respondeu rindo em um tom de deboche.

Merda... Eu adorava os debochados...

Porque eram eles que mais sofriam na minha mão.

— Se você abrir a sua boca sem permissão ou colocar suas mãos onde não deve, vai receber
uma punição — disse mergulhada nos olhos verdes do homem, deixando que ele me olhasse de perto
para entender o quanto cada palavra minha era séria. — Se tentar tirar minha roupa, vou colocar mais
uma peça, se quando eu beijar sua boca sua língua não estiver bem molhada, vai receber uma
mordida... E se você gozar antes de mim... Eu garanto que você não vai gozar de novo por um bom
tempo, entendeu?

— Sim, senhora — ele respondeu, e dessa vez, muito menos debochado.

— Então me faça um favor e se livre dessa calça — falei descendo do seu colo, pulando para o
chão.

Observei com atenção e de braços cruzados o homem chutar as cobertas para longe da cama e
tirar de uma vez só a calça de moletom, liberando seu pau que já estava completamente duro, e uma
vez que tinha ele por inteiro, puxei a gaveta da cômoda e tirei dois objetos de lá.

— Está vendo esse cinto? — falei jogando o cinto de couro em cima de seu peito, fazendo-o
me olhar levantando uma sobrancelha. — Quero que prenda suas mãos com ele.

Para provar que minhas ameaças não eram vazias, prendi com um só golpe uma faca na parede
de madeira logo acima da cama, fazendo seus olhos se prenderem nela por um instante.

Primeiro ele o prendeu no fecho da fivela de correr, então colocou a ponta do couro em sua
boca, atravessou suas duas mãos no laço e o apertou com a boca, deixando seus dois pulsos o mais
presos possível.

— Bom garoto... — disse puxando a ponta do couro, trazendo seus braços para mim, e dando

mais um laço ao redor do cabo da faca. — Agora você é meu, entendeu? — falei dando um passo à
frente, puxando seu rosto para mim.

E como resposta, tive apenas um sorriso, carregado de malícia que durou apenas até minha
boca encontrar com a dele.

Suguei sua língua e deixei uma mordida forte em seu lábio enquanto voltei a subir na cama,
indo em direção à frente do homem que logo abriu um espaço entre suas pernas para que eu pudesse
me encaixar, enquanto encarava seu pau que latejava, com as veias bem marcadas em toda sua
extensão.
O agarrei, começando com uma mão na base, e assim que vi que não tinha chegado nem na

metade do seu comprimento, coloquei minha outra mão e ainda sobrou uns bons três dedos...

Ele ia dar trabalho.

Apertei ele bem devagar, apenas para senti-lo pulsando em minhas mãos enquanto começava a

subir e descer, observando enquanto ele fechava os olhos mordendo o lábio.

Aos poucos fui aumentando a força da mão que segurava sua base, deixando a outra um pouco
mais solta, acariciando com a ponta dos dedos a cabeça do seu pau, que começava a ficar molhado
ao meu toque.

Deixei que o corpo dele me guiasse, acompanhando cada espasmo ou respiração mais forte que
ele deixava escapar por entre os dentes, e quando entendi quais eram seus pontos mais sensíveis, usei
todos eles ao meu favor.

Aumentei a pressão da ponta dos meus dedos, passando-os ao redor de toda a cabeça,
aproveitando a sensibilidade para provar mais uma vez meu controle, fazendo suas pernas se
contraírem, enquanto ele respirava forte, soltando o ar devagar entre gemidos roucos.

Só de ver um homem como aquele, se contorcendo nas minhas mãos, era o suficiente para me

deixar completamente encharcada.

Me deitei sobre ele, tirando uma das mãos enquanto a outra continuava subindo e descendo sem
parar, e comecei a passar meus pés pelo seu corpo, sentindo sua pele e seus músculos aos poucos
enquanto subia em direção ao seu rosto.

Quando finalmente alcancei, empurrei sua cabeça para trás com meu pé, esfregando devagar
pelo seu rosto, sentindo sua respiração esquentá-lo enquanto eu fazia movimentos circulares para que
ele aproveitasse cada pedacinho meu.

Para a minha surpresa, não foi sequer necessário que eu mandasse ele me chupar, porque no
mesmo instante ele abriu a boca, com sua língua massageando meus pés, fazendo com que eu sentisse
ela macia e quente nas solas e entre os dedos...

Puta que pariu, como aquilo só me fez queimar ainda mais de tesão.

Desci minha mão livre pela minha barriga, sentindo minha própria pele enquanto continuava a
massagear seu pau.

Quando invadi minha calcinha, comecei a passar os dedos por toda minha extensão,
aproveitando a cena daquele homem em meu poder.

Passei uma última vez meus pés pelo seu rosto, enquanto tocava a parte mais sensível do meu

corpo, mas agora eu queria mais...

Eu precisava de mais!

Trouxe minhas pernas de volta, vendo o prazer estampado em seu rosto quando tirei meus pés
dele, e me coloquei em pé mais uma vez, andando enquanto rebolava em sua direção, deixando seus
olhos passarem por todo meu corpo.

Parei bem perto do seu rosto e me virei de costas para ele enquanto me abaixava e me
libertava de toda a roupa, deixando com que aproveitasse um pouco da visão antes de subir de volta
para a cama, mas dessa vez o alvo era o seu rosto.

Subi com cuidado para não soltar o homem, me apoiando na faca que estava bem presa à
parede, e me coloquei ajoelhada, com o rosto dele bem preso entre minhas coxas.

— Eu quero um orgasmo! — falei enquanto passava os dedos e prendia seu cabelo entre eles,
observando seus olhos de cima para baixo, com boa parte do seu rosto preso entre minhas coxas.

— Sim, senho... — Mas antes mesmo que ele pudesse terminar de falar, soltei um pouco do
meu peso, deixando que sua boca encontrasse minha boceta, completamente encharcada.

Não demorou para que eu sentisse sua língua investindo contra mim, aproveitando a posição
privilegiada que ele tinha, e apenas para aumentar o controle, tirei o cinto do cabo da faca e eu
mesma segurei seus pulsos contra a parede, enquanto ainda mantinha seu cabelo bem preso em minha
mão.

Não tive pudor algum e sequer pensei em nenhum tipo de julgamento enquanto rebolava sobre
ele, sentindo sua língua subindo e descendo por toda a minha extensão enquanto eu ajudava a

controlar seus movimentos, tentando manter minha cabeça minimamente focada em me lembrar de
levantar em algum momento para que ele pudesse recuperar o ar.

Mas enquanto isso não acontecia, joguei meu peso todo para frente, deixando que ele
encontrasse o ponto que realmente ia me fazer gozar, sabendo que com o tesão que já estava

queimando em mim, não iria demorar muito para que isso acontecesse.

Antes mesmo que eu me desse conta, com sua língua parando de me estimular apenas para que
começasse a sugar com vontade, fazendo com que fosse obrigada a segurar os gemidos para não fazer
mais barulho do que já estava fazendo.

Mas eu não iria apenas segurar meus gemidos assim...

Deitei mais um pouco sobre ele, segurando com força seu rosto entre minhas coxas, até que
minha boca alcançou seu braço, para que eu pudesse ter o que focar e abafar minha voz.

Sentindo o orgasmo começando a tomar conta do meu ventre, cravei meus dentes do braço
dele, abafando meu maior grito enquanto finalmente gozava, rebolando sobre o rosto dele, que me
sugava com vontade, aproveitando cada pedaço de mim que estava sobre ele.

O orgasmo tomou cada pedaço do meu corpo, quase me abraçando por completo enquanto eu
fechava meus olhos, me entregando por inteira àquele sentimento único que vibrava em mim, e
quando ele passou, senti novamente o peso voltar para o meu corpo, me jogando para o lado.

Ele respirou fundo, tão ofegante quanto eu, enquanto recuperava o fôlego, e permaneci ali,
ajoelhada ao seu lado, observando o fio de sangue que escorria pelo seu braço, direto da marca que
havia deixado, seu rosto lambuzado por mim, seu olhar de luxúria enquanto seus olhos, que agora
estavam avermelhados, corriam pelo meu corpo, gritando o quanto ele me queria.

E agora, eu só o queria ainda mais...

Queria por completo.

Em um movimento rápido, puxei a fivela do cinto, liberando suas mãos que em questão de
segundos já estavam sobre o meu corpo, me deitando na cama enquanto ele subia em minha direção,
se encaixando em mim, deslizando para dentro com uma pressa controlada, enquanto meu corpo se
acostumava com todo o seu tamanho.

Ele grunhiu de uma forma quase selvagem quando entrou por completo, com seu rosto colado
no meu, foi sua vez de encontrar minha boca, me beijando de uma forma indecente enquanto eu
sugava sua língua, sentindo meu gosto nele.

Minhas mãos foram até seu rosto, o segurando naquele beijo por mais tempo enquanto ele
investia com brutalidade contra meus quadris, fazendo seu pau entrar e sair em um ritmo que
aumentava a cada nova estocada.

Envolvi minhas pernas ao redor da sua cintura, fazendo com que ele nunca saísse de mim
completamente, mesmo com os movimentos se tornando ainda mais rápidos.

Eu o sentia dentro de mim, batendo tão fundo que me obrigava a descer minha boca até seu
pescoço para que me impedisse de gemer mais alto do que devia, ao mesmo tempo que passava
minhas mãos pelo seu corpo, o agarrando e o trazendo todo para mim.

Por um instante, afastei meu rosto dele para que pudesse tomar fôlego, com minha respiração
tão descompassada que era como se o mundo todo parecesse estar em movimento, acompanhando o
ritmo que nós estávamos ditando, e quando seus olhos voltaram a encontrar os meus, ele me devorou,
com um sorriso que deixava suas presas à mostra e entregava que não iria deixar barato o que fiz
com ele.

A cada nova estocada, era como se minha mente saísse de mim, dando lugar apenas ao êxtase.
Ao prazer que pulsava em mim.

Antes que eu fosse capaz de perceber, as mãos dele encontraram as minhas, empurrando meus

braços para cima, me prendendo com força enquanto ele ria.

— Agora você que é minha — ele falou, colando seu rosto no meu, empurrando seu pau com

ainda mais pressão contra mim. — E eu vou te usar. Ah... Eu vou.

E antes que eu pudesse retrucar, ou mesmo tentar retomar o controle, ele correu com sua língua
pelo meu pescoço, indo lentamente para o meu peito, o abocanhando de uma vez só, sugando meu
mamilo com uma forma selvagem, correndo com a língua em movimentos circulares, me obrigando a

morder meu próprio lábio para abafar o barulho.

Quando as sugadas viraram leves mordidas, meu corpo todo reagia, esquentando e esfriando de
uma forma tão intensa que me obrigou a puxar a cintura dele com minhas pernas, o trazendo tão fundo
em mim que foi impossível segurar o gemido, mas antes que o segundo pudesse sair pela minha boca,
sua mão a cobriu, abafando o grito que eu dei quando ele recuou e avançou com brutalidade contra
mim.

Quando o ritmo se tornou mais forte, fiz questão de estar com os olhos abertos para ver o rosto
do homem que agora gemia baixo, com a voz rouca, enquanto sua boca percorria cada pedaço do meu

corpo que estava ao seu alcance, com uma necessidade tão forte sobre mim.

Sua língua passeava pela minha pele, quente e molhada, fazendo com que cada parte minha
reagisse aos estímulos.

Ele apertou suas mãos contra meus pulsos, me empurrando em direção ao colchão de forma
bruta, com as investidas ganhando um novo ritmo, com seu pau me invadindo e ficando mais tempo
dentro de mim, pulsando firme enquanto meu corpo o apertava.

Tirando a mão e liberando minha boca, ele subiu seu rosto até o meu, me trazendo para ele com
vontade, sugando minha língua enquanto eu finalmente fechava os olhos, me entregando a sensação do
orgasmo que parecia vir com violência para o meu corpo.

Quando ele tentou sair de dentro de mim, o prendi entre minhas pernas.

Forcei minhas mãos, o obrigando a me soltar, com elas atacando de uma única vez seu
pescoço, minhas unhas cravando fundo em sua pele enquanto eu mordia seu lábio.

Gozei sentindo seu pau pulsar em mim, latejando forte enquanto meu corpo fazia pressão contra
ele, graças ao efeito do orgasmo em mim.

Senti seu corpo se deitar sobre o meu enquanto eu mantinha minhas mãos ao redor do seu

pescoço, o trazendo para baixo para que se aninhasse em mim, com sua boca beijando de leve o
caminho que fez até meu peito, onde ele se deitou, enquanto eu ainda era capaz de sentir sua
respiração pesada contra minha pele suada.

Meu corpo todo estremeceu com a sensação de tê-lo saindo de mim, e pareceu desmoronar
enquanto minha pele esfriava.

O envolvi com meus braços, o mantendo ali mais um pouco, e quando seus braços se
envolveram ao redor do meu corpo, devolvendo o abraço, fui incapaz de segurar o sorriso.

Porque nem em um sonho eu conseguiria imaginar o quanto aquilo teria sido bom.
“Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre o homem que busca.”

HERMANN HESSE

Há certos momentos.

Apenas isso.

Momentos únicos, ainda tão latentes na memória, que jamais seriam apagados por tal.
Momentos que estão lá e sempre haveria de estar.

Vívidos e intensos, falando de forma tão gritante que chegava a ser absurdo o simples fato de

nunca termos os escutado antes.

Como se nos olhassem de cima para baixo, rindo da nossa cara por nos termos feito de tão

orgulhosos para não escutar todos os sinais do universo.

E aquele, para mim, era um desses momentos.

Meu corpo todo parecia ter perdido as forças enquanto eu apenas fiquei ali, deitado sobre seu

corpo, aninhado nela enquanto a abraçava...

Sentindo seu cheiro, que tomava conta de mim.

Seu toque, enquanto seus dedos passavam pelas minhas costas, contornando cada uma das
tatuagens.

Não sei ao certo quanto tempo ficamos sem dizer uma palavra sequer, aproveitando a
companhia um do outro como se fosse tudo o que precisássemos...

Porque de fato era.

Respirei fundo, beijando de leve sua pele que arrepiou ao toque dos meus lábios, me fazendo

rir ao ver como seu corpo ainda tremia.

E no mesmo momento que eu ri, senti um tapa de leve na minha nuca.

— Para de rir que a culpa é sua — ela falou de forma séria, mas apenas pelo tom da sua voz eu
sabia que ela estava sorrindo.

— E a culpa pelo sangue que tá escorrendo do meu braço é sua também, mas não estou te
batendo por isso, sabia? — disse deixando outro beijo em seu corpo.

— Sabe que eu não te ouvi reclamar na hora. — Com um riso, ela entrelaçou os dedos pelo
meu cabelo.
— Eu estava com a boca um pouco ocupada no momento, sabe? — falei soltando um riso e

virando meu rosto em direção a seu corpo, respirando fundo para que seu cheiro preenchesse meus

pulmões.

— Você não presta, hein? — ela envolveu seus braços em volta do meu corpo, ela me abraçou,

me segurando ali por um tempo. — Não presta mesmo...

Meu coração batia forte em meu peito, com força o suficiente para que eu sentisse o sangue
correndo em cada parte do meu corpo, e era como se no mundo todo, só existisse a gente.

Juntos como dois adolescentes.

Fazia muito tempo desde que me senti assim pela última vez... Tempo o suficiente para pensar
que jamais aconteceria novamente.

Que todos os meus momentos bons já haviam se esgotado, ficando no passado como qualquer
lembrança ou sentimento bom que ainda existia em mim.

Mas ali era diferente... Como se aquela fosse uma nova chance.

Mesmo que soasse bobo falar dessa forma, mas tudo o que eu queria estava ali, e eu morreria
para ter isso mais uma vez...

Não apenas o sexo.

Mas a conexão.

O único problema era que, de fato, eu realmente poderia estar morto antes que tivesse uma
nova chance.

— Você sabe que horas são? — perguntei, com a voz abafada pelo seu corpo.

— Tem um relógio aqui do meu lado, mas estou com medo de olhar. — Tirou um dos braços
que me envolvia, ela conferiu o relógio. — Merda... Temos que sair em duas horas.

Aquelas palavras cravam tão fundo no meu peito que chegou a doer.
— Você precisa falar com eles? — indaguei, me virando para que pudesse ver seu rosto, e

aproveitei para mapear com os olhos cada parte de seu corpo.

— O Hugo é complexado com horários, é mais fácil os irlandeses se atrasarem. — Com


delicadeza ela apoiou a mão sobre meu rosto, com os dedos passando pela minha bochecha. — Mas

eu acho que vou precisar de outro banho.

— Somos dois — falei fechando os olhos e aproveitando seu toque. — Mas acho que eu vou
precisar de um curativo...

— Só um? — perguntou passando os dedos sobre meus ombros, e quando ela acertou um ponto

específico, senti arder onde não havia mais pele.

— Você vai acabar comigo desse jeito, sabia?

— E vou fazer de um jeito que você vai implorar por mais — ela respondeu com um tapinha de
leve sobre o meu rosto, como sinal para que eu abrisse espaço para ela.

Me levantei, sentindo meu corpo pesado, e me sentei de costas para a parede enquanto
observava ela deitada.

Seu corpo curvilíneo, suas sardas pelo corpo, as tatuagens...

Tudo nela era lindo.

Tudo era tão... Excitante.

Passei a língua pelos meus lábios, sentindo o gosto dela que ainda estava lá, e foi impossível
não sorrir vendo enquanto ela me encarava, mordendo o lábio inferior.

Olhei para o lado, e encontrei a faca presa na parede, foi impossível não tentar puxá-la para
ver o quão preso eu realmente estava, e para a minha surpresa foi preciso realmente muita força para
tirá-la de lá.

Balancei a faca, sentindo seu peso, enquanto observava a lâmina levemente curva... Que tinha
alguma coisa presa em sua ponta...

— Isso é por acaso é san... — comecei a falar, apenas para ser interrompido por ela, que havia

colocado um dos seus pés contra meu rosto.

Ela o deixou ali por um tempo, passando ele suavemente pelo meu rosto enquanto eu fechava

os olhos, aproveitando a temperatura da sua pele e o quão macia ela era...

Respirando fundo seu cheiro...

— Sem perguntas — ela falou rindo. — E você realmente gostou disso, não é?

Deixei um beijo ali antes que ela o tirasse do meu rosto e voltasse a se sentar na cama,
alongando os braços enquanto olhava em volta, nas paredes repletas de fotos, nas roupas bagunçadas
e principalmente para uma pequena caixa preta que ainda não tinha reparado.

— Eu tenho uma mochila com algumas roupas separadas para caso de emergência, acho que
não vou querer levar mais do que isso — ela falou balançando a cabeça. — Só me diga que... Que
você tem algo preparado caso não dê certo... Para eles, no caso.

Seu rosto tomou um aspecto de preocupação, com os olhos dela em direção aos meus.

— Tenho alguns amigos muito queridos no Brasil, os que você vai conhecer quando chegarem

lá — contei com calma, com a esperança de que fosse o suficiente para deixá-la o mais calma
possível. — Acho que vai ser melhor deixar os dois por lá enquanto resolvemos a situação, e se algo
acontecer com a gente, vão cuidar dos dois como se fossem da família.

— Eles são os soldados que estavam com você? — ela perguntou, fechando as mãos devagar.

— São sim — respondi, vendo o alívio em seu rosto. — Gabriel, que agora é algum tipo de
padre alcoólatra e levemente degenerado, e Arthur, que agora é casado com uma mulher chamada
Alice, ela é médica.

— Se algo acontecer comigo eu quero que você...


— Eu só vou sair daquele lugar ao seu lado, não importa como for. — Minha voz saiu firme,

afirmando a única coisa que eu conseguia pensar naquele momento. — Nós vamos entrar juntos, e

vamos sair juntos.

Assim que eu terminei de falar ela me encarou por alguns segundos, em silêncio, atravessou a

cama lentamente e se inclinando, me beijou, selando nosso pequeno pacto.

Eu havia levado tempo demais para reencontrar esse sentimento, e não deixaria que tirassem
ele de mim novamente.

Tomamos um banho longo, enquanto conversávamos sobre qualquer coisa que não fosse sobre
a missão suicida para qual nós estávamos indo.

Era incrível como, mesmo passando pelo inferno que ela passou, ainda havia uma pessoa doce

por baixo de toda a raiva que ela parecia usar como escudo contra o mundo.

Mas enquanto estávamos juntos, não havia escudos ou máscaras.

Apenas ela e eu.

Entre conversas sobre nossos livros favoritos, enquanto ela falava como Harry Potter era
apenas um plágio e discussões sobre nossos personagens favoritos em Crônicas de Gelo e Fogo,
acompanhava seu corpo com as minhas mãos, a puxando para perto, apenas para provar mais uma
vez de sua boca.

Ela ria e me encarava entre cada beijo, com suas mãos apoiadas em meu peito, deixando com
que a água quente corresse por nós, fingindo que éramos apenas mais um casal, porque no fundo, nós
sabíamos que a partir do momento em que saíssemos pela porta do quarto, a realidade cobraria seu

preço...

Mas até lá, apenas nos restava aproveitar o último momento de calmaria antes da tempestade.

Enquanto ainda tínhamos tempo, usamos ele para conhecer melhor um ao outro, apenas para
perceber que mesmo que tivéssemos tido vidas completamente diferentes, era como se houvesse algo
que nos ligasse.

Entre os filmes favoritos, a forma com que gostávamos do nosso café e as cervejas favoritas,

também via nela a mesma vontade pelo mundo que enxergava em Maya.

O desejo por explorar lugares novos, alguns que eu inclusive já havia estado, e quando
comentei sobre eles, contornando muitas vezes suas expectativas, eu a sentia ali, tão presente e atenta
ao que eu tinha a dizer...

Era engraçado como isso fazia toda a diferença.

Nós estávamos acostumados a falar, mas no final, boa parte das nossas conversas eram apenas
dois monólogos... Duas pessoas que estavam falando não para manter um diálogo, mas apenas pelo

fato de externalizar seus pensamentos, e quando eram contrariados, com seu ouvido cometendo o
grave crime de ter uma opinião contrária, era como se a bomba relógio dessa relação vazia
explodisse.

Mas ali, ela e eu estávamos entregues àquele momento, observando e absorvendo as


experiências um do outro.

Terminamos o banho, com ela saindo apenas de toalha do banheiro, enquanto meus olhos
passeavam pelo desenho de seu corpo.

Era engraçado como a nossa intimidade surgiu rápido, de forma tão espontânea e natural que
chegava a ser assustador como dois desconhecidos podiam se entregar tão facilmente.
Peguei a toalha que ela havia separado para mim e sequei meu corpo, tomando um cuidado

para a mordida que havia em meu braço e nos arranhões que estavam espalhados por todo o meu

corpo, rindo ao ver como ela havia marcado minha pele.

Assim que terminei, enrolei a toalha na cintura e fui até a minha mala, que ela havia trazido

para dentro do quarto, mas no meio do caminho, algo voltou a me chamar a atenção...

Inerte sobre o mármore da pia, reluzindo em tom dourado no canto da minha visão, estava
minha aliança...

Tentei evitá-la a todo custo, fugindo de todo o sentimento que poderia tomar conta de mim

quando a hora de a encarar chegasse, mas eu sabia que isso seria apenas infantil.

Quando a encarei, foi como se nela eu visse uma vida toda refletida nas imagens retorcidas em
meio ao ouro.

Cada dia passado.

Cada conquista.

Cada momento.

Lembranças que rapidamente se entregaram à minha mente, tomando conta da forma com que eu

as enxergava, porque agora era como se todas estivessem tomadas por um tom sépia...

Desbotadas.

Fui até ela, a segurando firme entre meus dedos, sentindo o toque do metal que estava quente
pelo vapor que tomava conta do banheiro.

Pensei em colocá-la uma última vez, mas seria injusto...

Seria injusto comigo, com Sophia e com Helena.

Seria injusto com o meu passado, com meu presente e talvez futuro.
Então apenas a virei, observando a data e o nome que estavam estampados na parte interna,

lembrando do dia em que ela foi entregue a mim.

“Helena Hoffman – 11/08/2007”

Respirei fundo com essa última memória...

O dia de sol na praia, as decorações em branco e dourado que ela havia escolhido depois de
horas de indecisão...

Seu vestido branco enquanto ela atravessava o tapete vermelho estendido sobre a areia branca,

como uma princesa vindo em minha direção, com um sorriso e os olhos marejados...

“Passado é passado, Ben... Sempre foi assim e sempre vai ser, mas o importante mesmo é não
se deixar preso a ele, mas apenas lembrar... Mas lembre-se com carinho, tá?”

A voz dela tomou conta da minha mente na mesma hora que um arrepio percorreu meu corpo,
fazendo com que cada parte dele se arrepiasse.

Aquela foi a última vez que ouvi sua voz...

— Pelo amor de Deus, alguém ajuda a Maya com as malas! — Hugo falou, com a voz abafada
pela fumaça do cigarro.

Eu e Sophia descemos as escadas em direção à sala, estava carregando minha mala


atravessada nas costas enquanto ela levava apenas uma mochila.

Era engraçado como aquilo simbolizava mais sobre ela do que qualquer palavra.
A casa toda estava fechada e escura, não que fosse o lugar mais iluminado do mundo antes,

mas, ainda assim, havia algo de diferente quando descemos até a sala.

Todos os móveis ainda estavam no lugar, o cinzeiro ainda estava cheio e havia xícaras de café
espalhadas pela mesa de centro... Mas de alguma forma aquela já era uma casa vazia, com a noite

tomando conta de toda a paisagem pelo lado de fora das janelas.

Hugo estava com uma blusa escura de gola alta, com uma jaqueta jogada por cima dos ombros,
com óculos escuros cobrindo onde estariam seus olhos, com uma mala de couro escuro apoiada em
seus pés.

Já Maya, por sua vez, usava uma camiseta branca com uma jaqueta jeans quase grande demais
para ela, com calças escuras e um sorriso enorme estampado no rosto, quase saltitando pela
ansiedade que parecia tomar conta dela...

Tinha cinco malas ao seu redor, todas tão cheias que estavam prestes a explodir.

— MAYA! — Sophia falou alto, descendo rápido pelos degraus que faltavam até chegar a ela.
— Pelo amor de Deus, o que você está fazendo? Eu falei para levar o mínimo...

— Esse é o mínimo — ela respondeu de forma séria. — Eu tive que deixar um monte de

discos, livros, HQ’s, roupas...

— Deixa ela levar... — respondi terminando de descer a escada, com os olhos das duas se
voltando de uma única vez na minha direção. — Duvido que os irlandeses vão reclamar sobre
excesso de bagagem.

— Obrigada! — Maya agradeceu, dando um pulinho no ar com as mãos juntas.

Caminhei até eles, com os olhos da Sophia me seguindo, enquanto ela apoiava uma mão na
cintura e ria...

Ela estava vestida com uma jaqueta escura, um par de calças escuras e botas, com um cinto
largo que ajudava a esconder a arma que ela carregava.

— Você vai acabar mimando essa menina, Benjamin — ela falou com um sorriso no canto de

sua boca.

— Então ele vai ficar com a gente por tempo o suficiente para conseguir mimar nossa pequena?

— Hugo perguntou com um sorriso, mantendo o cigarro entre os dentes.

Até eu me arrependi por ele, porque no mesmo instante que ele terminou de falar, Sophia o
acertou em cheio com um soco no ombro, fazendo com que ele se segurasse na poltrona para não cair.

E eu sabia muito bem como um soco dela podia doer.

— Vamos antes que a gente perca a hora — Sophia voltou a falar, fingindo que nada havia
acontecido. — Em qual carro nós vamos?

— Acho que não cabe todo mundo na caminhonete — respondi.

— Então vamos no meu — ela falou indo em direção à mesa de madeira que ficava ao lado da
porta, pegando as chaves do carro e as jogando para mim, que as peguei no ar. — Você que sabe o
caminho, não é?

Hugo se virou para mim, provavelmente acompanhando o barulho da chave, com a cabeça

inclinada e um sorriso no rosto, enquanto massageava o ombro que havia sido golpeado.

Desci o resto das escadas, ouvindo os degraus rangerem embaixo dos meus pés, e quando
cheguei até a sala, atravessei o espaço lembrando de como há poucas horas nós estávamos neste
mesmo lugar em uma situação completamente diferente.

Sophia olhou em volta, com um olhar vago por entre os móveis e os cômodos daquela casa, em
um último momento naquele lugar que parecia simbolizar um momento muito importante para ela.

Eu conhecia esse sentimento...

O de ter tido um lugar que serviu de escudo contra o mundo, um único momento de estabilidade
em meio ao caos.

Hugo apenas deu de ombros, segurando sua mala firme em uma das mãos e deixando o cigarro

ainda aceso cair no cinzeiro cheio.

Mas Maya repetiu o movimento da Sophia, olhando ao seu redor, para o lugar que serviu de

casa por tanto tempo... Mas em seus olhos não havia nostalgia alguma.

Ela olhava para aquele lugar como um passarinho olha para a gaiola que havia acabado de
fugir...

Uma alma grande demais para aquele lugar.

Sophia segurou a mala restante de Maya e foi até a porta em silêncio, a abrindo e deixando o ar
gelado da madrugada cortar o lugar, com ventos fortes os suficientes para que pudéssemos senti-lo
cortando o cômodo.

— Vamos? — ela indagou, respirando fundo e dando um passo em direção a porta, eu e Hugo a
seguimos.

— Benjamin... — Maya falou baixo, me fazendo olhar para trás enquanto os dois continuavam
indo até o carro. — Eu não ligo se você ficar com a gente...

Olhei para ela, que sorria com olhos em minha direção.

— Eu também não me importaria em ficar — respondi baixinho, sorrindo de volta para ela.

Naquela madrugada, quando saímos daquele lugar em direção ao que seria a guerra das nossas
vidas, deixamos para trás apenas uma casa vazia.

E no jardim que havia naquela vizinhança, em meio a um canteiro de flores em frente a fonte de
água repleta de carpas.

Repousava uma aliança.


“Eu nunca tinha visto nada que anunciasse um estrondo tão silencioso quanto a ansiedade.”

RUPI KAUR

A madrugada era fria depois da chuva.

Observei a estrada, iluminada apenas pelos faróis do carro, enquanto Benjamin dirigia, com os
olhos fixos pela rodovia, uma das mãos sobre o volante e a outra apoiada na porta.
Maya estava no banco de trás, dormindo enquanto se apoiava na janela, e Hugo estava ao seu

lado, com seus fones de ouvido.

Meu coração estava acelerado no peito, enquanto eu olhava o tempo escuro e os raios que
cortavam o céu, com a chuva fina molhando a estrada.

Naquele momento, eu me sentia como anos atrás, quando juntos fomos andando do hospital até
a primeira cidade que encontramos no caminho...

Praga era uma cidade linda, com as muralhas do castelo antigo ainda firmes, cortando o céu,
enquanto a cidade crescia viva ao seu redor, sempre cheirando a carne de porco e chocolate, como se

todo o lugar soasse como casa...

Mas para nós, aquela realmente foi uma casa.

Havíamos passado dois anos naquele lugar, com um casal de idosos que nos encontraram
vagando pelas ruas, fugindo dos agentes da Interpol que estavam caçando a todo custo aqueles que
haviam conseguido escapar do hospital com vida, apenas para que pudessem jogá-los em outro lugar,
ainda mais longe e esquecido do mundo, enquanto abafavam o caso até a próxima guerra forjada ou
ataque terrorista muito bem planejado para que pudessem abafar o caso...

Sempre soube que eles o fariam, que nada do que aconteceu naquele hospital seria noticiado,
que os mortos seriam apenas números esquecidos em uma planilha qualquer...

Por isso nós continuávamos lutando.

Pela memória deles.

Para que, mesmo depois de terem passado por tanto sofrimento, eles ainda pudessem ser
lembrados como seres humanos.

— Sabe... — Benjamin falou em tom sério, enquanto eu me virava para ele. — Quando tudo
aconteceu... Quando os homens do Strauss vieram atrás de mim na minha casa e fizeram tudo o que...
Quando tudo aconteceu, eu fui atrás deles, e acabei encontrando um lugar em País de Gales, sabe o

que era aquele lugar?

— Não... — respondi, sentindo meu peito apertar por não ter resposta alguma.

Eu sabia como era viver sem uma resposta para o sofrimento...

Era como uma dor, latente e fria, que prendia em seu peito e parecia arder a cada vez que você
se lembrava...

Dos momentos de dor.

Dos dias ruins....

— Eles eram experientes... Sabiam o que estavam fazendo... Sabiam como fazer a dor durar
mais... — ele falou, com a voz carregada. — Mas não sabiam lidar como lidar quando reagiam,
deviam estar acostumados a fazer aquilo com civis... Deixaram minhas mãos amarradas na frente do
corpo e quando um deles foi me soltar eu puxei a arma que estava na cintura dele, foi a última vez
que usei uma arma...

Ele respirou fundo, apertando as mãos contra o volante, mantendo os olhos fixos na estrada...

Em momento algum ele me olhou nos olhos como fazia antes.

— Deixei um deles vivo tempo o suficiente para fazer contar de onde eram e então fui até
eles... — e com uma pausa para poder fazer uma curva mais fechada, percebi que seus olhos estavam
marejados enquanto falava —, então peguei um avião direto para o lugar... Parecia um bunker antigo,
feito de cimento queimado a uns quatro metros embaixo da terra... Tinham doze homens naquele
lugar, e eu matei cada um deles com dois pares de facas... Quando tudo acabou tinham chamado a
polícia e eu acabei sendo preso, a situação ia virar manchete em um jornal na manhã seguinte, mas de
alguma forma os Filhos ficaram sabendo e Arthur foi até lá, pagou os policiais e pelo jeito ameaçou
uns jornalistas, então eu entrei para os Filhos... Desde então eu ganhei um apelido.
Ele acelerou mais um pouco o carro antes de fazer uma curva fechada em direção a uma

pequena estrada de chão que cortava por entre as árvores.

Eu sabia o quanto deveria ser difícil falar sobre isso, mas eu estava feliz por ele estar falando
sobre.

Guardar sentimentos assim te consumia por dentro.

Eles invadiam seu coração, seus pulmões, sua mente... E quando não restava mais nada dentro
de você que o ódio e o remorso pudessem consumir, não ia ter mais nada além disso.

Dor e ódio.

Estava me sentindo bem em saber que ele confiava assim em mim...

Confiava o suficiente para se abrir.

O carro balançava, entrando naquele lugar que parecia mais dentro da floresta densa e
retorcida, com a chuva fina parando aos poucos, dando lugar ao vento que uivava pelo lugar,
servindo quase como trilha para o sol que estava nascendo no horizonte.

E seguindo aquela trilha estreita, podia ver algumas luzes poucos metros à frente.

— Nós já chegamos? — Maya falou com a voz rouca pelo sono, enquanto olhava em volta.

— Chegamos sim — Benjamin respondeu, desacelerando o carro.

Prestei atenção em como o carro andava, olhando em volta apenas para perceber que não
estávamos em lugar algum.

Para onde eu olhava, via apenas verde.

A floresta que estava mais densa, com a relva alta e vinhas que desciam por algumas das
árvores, e bem à nossa frente, o fim da trilha por entre o que parecia ser uma enorme parede feita de
plantas e algumas árvores.
E pouco antes do carro a acertar em cheio... Benjamin acelerou.

Meu reflexo gritou alto, quando minhas mãos quase pularam em direção ao volante, com a

esperança de virá-lo para o lado.

Mas quando o carro acertou a parede... Ele apenas a atravessou, com ela passando pelo vidro

como um tecido grosso cheio de folhas e vinhas retorcidas.

Camuflagem...

Em questão de segundos nós tínhamos sido engolidos para uma clareira aberta em meio a

floresta, com a mesma camuflagem sendo espalhada por todas as árvores que circulavam o lugar.

Lá dentro havia um galpão baixo feito de madeira já manchada pelo tempo, com alguns barris
ao seu redor, onde dois homens estavam fumando e bebendo algo que parecia ser whisky, e ao lado
deles, um avião curto e largo, com a lataria de metal fosco, parado de frente para uma pista marcada
por tinta na grama baixa.

Um dos homens era mais velho, com o cabelo castanho penteado para o lado e a barba já
manchada por fios grisalhos, ele vestia uma roupa escura, com uma arma atravessada em seu peito,
presa em um coldre de couro.

O outro era mais novo, com o cabelo loiro penteado para trás e algumas tatuagens à mostra
pelo corpo, vestindo uma camisa branca, calças jeans escura e botas, com uma jaqueta jogada sobre
os ombros enquanto fumava, e ele também tinha uma arma presa em um coldre em seu peito.

Benjamin parou o carro ao lado do galpão, que realmente parecia ter alguns bons anos,
enquanto os dois homens nos seguiam com os olhos.

— BENJAMIN BLACKBURN! — o homem mais velho falou alto em um inglês cheio de


sotaque, colocando o que parecia ser uma xícara de café sobre um dos barris e vindo em direção ao
carro. — A porra do Açougueiro de Gales.
“Deste então eu ganhei um apelido.”

Açougueiro...

Achei um apelido justo para alguém que só usa facas.

— Billy O’Cavern... Seu escocês de merda — Benjamin disse abrindo um sorriso ao ver o
homem, enquanto abria a porta e descia do carro, o cumprimentando com um abraço.

Preciso confessar que lidar com aquele tipo de gente não me agradava... Afinal eles não eram
os mocinhos ajudando uma causa, eram traficantes de armas.

Os homens que forneciam o meio para um fim.

Pelo pouco que eu conhecia sobre o I.R.A, eles eram um grupo de irlandeses separatistas que
vendiam armas para a causa de separar a Irlanda do domínio britânico, mas no final gastavam todo o
dinheiro com bebidas, drogas e prostitutas...

Mas estavam dispostos a ajudar, e não pareciam ser o tipo de pessoa que iriam nos julgar pelos
nossos atos ou planos.

Então eu poderia relevar o fato deles serem uns merdas.

Maya cutucou Hugo para que ele pudesse tirar os fones, e pela conversa já entendeu o que

estava acontecendo a abriu sua porta, tateando com a bengala do lado de fora para saber o que lhe
esperava, enquanto Maya pulava com energia para fora do carro.

E quando eu saí, os olhos dos dois homens correram até mim.

— Então é essa família feliz que vamos levar até o Brasil? — o Escocês perguntou dando dois
tapinhas no ombro de Benjamin.

— Eles mesmo — Ben respondeu, e então encarou o garoto que ainda estava sentado
observando. — E quem é seu amigo?

— O brasileiro mais irlandês que eu já conheci, ele era aprendiz do Regan... Que descanse em
paz. — E com um sinal de mão, ele chamou o rapaz que caminhou até nós apagando o cigarro no chão
úmido pela chuva. — Deixe que eu faça as apresentações, Danny, este é o Benjamin, um dos Filhos

do Ceifeiro.

Os dois apertaram as mãos, com os olhos de Benjamin o encarando como se fosse o filho de

algum amigo.

— Muito prazer — Danny cumprimentou com um sotaque forte. — Regan sempre falou muito
bem dos Filhos do Ceifeiro, confesso que fiquei ansioso para conhecer um de vocês.

— O prazer é todo meu em conhecê-lo — Benjamin respondeu em tom sério. — Regan era um

homem incrível.

— Eh... Dos piores ele era o melhor que tinha — Billy falou com a voz carregada.

E então todos ficaram em silêncio por um instante.

— Agora que todos foram devidamente apresentados, vamos pegar a estrada antes que a chuva
volte. — o Escocês falou dando um sinal para Danny, que foi em direção dos barris, pegando um
deles que me pareceu mais leve do que deveria e começou a levar para o avião. — Entendo porque o
Regan gostava dele, fala pouco e trabalha muito... Agora me deixe conhecer as pessoas que vou levar

para o outro lado do mundo.

Benjamin me olhou, como quem perguntava se eu gostaria de fazer as apresentações.

— Sou a Sophia — respondi tentando soar menos agressiva quanto fosse possível. — Ele é o
Hugo e ela a Maya.

Hugo acenou com a cabeça, enquanto Maya sorriu para o homem que devolveu o sorriso.

— Muito prazer em conhecê-los — Billy respondeu tentando parecer elegante. — Se tiverem


alguma bagagem, podem levar para o Danny que ele ajuda vocês a prenderem elas no avião, o piloto
está cochilando na cabine, então já vou acordar ele para que possamos ir.
Nos deixou ao redor do carro, o Escocês foi em direção ao avião, enquanto o garoto terminava

de subir os últimos dois barris.

— Eles estão levando bebidas para o avião? — Maya perguntou curiosa. — O loiro é
bonitinho, né?

— Ele é o que, Maya?! — falei alto, quase sem acreditar na cara de pau daquela garota,
enquanto Hugo e Benjamin riram. — Faz um favor e começa a descer as suas malas, já que você
quem trouxe a maioria.

Ben apertou um comando na chave que subiu a tampa do porta-malas, enquanto ela ainda com

um sorriso no rosto foi até lá e começou a pegar a mala que tinha trazido com ela.

Hugo foi até lá, com Maya entregando a mala para ele, e também pegando a que estava com os
documentos que havíamos tirado da sala de estudos...

Todas as provas, documentos e arquivos de que todo aquele inferno foi real.

Tudo o que havia sobrado.

Benjamin nos ajudou, pegando as malas de Maya e levando com ele até a porta traseira do
avião, que estava aberta formando uma rampa metálica para nós, e quando entramos carregando

nossas malas, vimos apenas um amontoado enorme de barris de carvalho, que subiam do chão ao
teto, presos com cordas grossas e correntes, que faziam um barulho metálico enquanto andávamos.

O avião parecia ser mais largo por dentro, com as paredes repletas de correntes finas que
corriam até o chão, pás e marretas penduradas ao lado de bandeiras da Irlanda e dezenas de trevos
de quatro folhas...

O chão era frio, mesmo através dos calçados, e lá dentro cheirava a madeira dos barris, e
pólvora, tão forte que era como se ela estivesse no nosso cérebro.

Mas bem... Pelo menos não era cheiro de sangue.


Um pouco afastado dos barris, perto da parede metálica que separava aquele lugar da cabine

do piloto, estavam alguns bancos para passageiros,

Bem acima de alguns bancos vermelhos que estavam dispostos uns de frente para os outros,
havia fuzis e pistolas enfileirados pela parede, ao lado de dezenas de carregadores.

Danny nos seguiu, ajudando a prender as malas com cordas e correntes, prestando atenção e
tomando cuidado nos detalhes para que elas não apertassem demais o que estava dentro delas, e
Maya estava ao meu lado, quase babando em cima do garoto que estava com a mente tão distante que
sequer percebeu.

Benjamin atravessou o avião, indo direito para a cabine do piloto, e quando a porta se abriu
pude ver Billy e o piloto em si conversando enquanto tomavam café.

O piloto era um homem de meia-idade, o cabelo escuro penteado para trás, com um uniforme
bem alinhado e tatuagens escuras cobrindo todo seu braço esquerdo.

Ben entrou e cumprimentou os homens, sorrindo para os dois, e então conversaram algo em voz
baixa, como se ele estivesse dando ordens para os dois que prestaram muita atenção em cada uma
das suas palavras, e se despedindo ele saiu fechando a porta pesada.

— O voo vai durar doze ou treze horas até o Brasil — Benjamin avisou, vindo em minha
direção, com os olhos correndo pelas armas na parede. — Vão descer e terão dois carros esperando,
um para Hugo e Maya e outro para você.

Ele se aproximou, cortando a distância entre nós, parando bem ao meu lado colocando uma
mão em meu ombro, e quase instintivamente, fui até ele, me apoiando em seu corpo, deixando meu
rosto próximo ao seu peito para que pudesse sentir seu cheiro.

Quando senti sua mão me envolvendo em um abraço, quis que aquele momento durasse para
sempre.

— Gabriel vai te levar até Bariloche, vai ser uma viagem longa, mas ele costuma ser uma
ótima companhia — ele falou, deixando um beijo em minha testa. — Ele provavelmente vai te

acompanhar até a cidade e vai te ajudar a chegar no lugar, mas pedi que ele não entrasse em combate,

vamos precisar de um plano de fuga caso algo aconteça.

— Eu queria que você fosse com a gente... — falei em tom de desabafo. — Quem vai cuidar

deles?

— Alice, ela é a esposa do Arthur... Eu acho. — Aquele “eu acho” soou quase de forma
engraçada. — Ela é uma mulher forte, e também é médica, eles vão estar em boas mãos.

— Bom dia, senhoras e senhores, aqui quem fala é seu copiloto, Billy O’Cavern e agradeço

por terem escolhido a “Irish Republican Army, Armas & Voos Clandestinos”. — A voz dele saía
quase robotizada pelos alto-falantes. — Nossa rota Alemanha -Brasil promete tempo firme, poucas
nuvens e, se Deus quiser, nenhum caça da força aérea para encher o saco.

— Bem, acho que é agora que nos despedimos — Benjamin falou me apertando mais contra
ele, e então abrindo seus braços para que eu desse espaço. — Hugo, acho que não vai ser muito
seguro fumar nesse avião.

— Prometo me controlar — Hugo respondeu sorrindo, se apoiando na bengala.

— Maya, aproveita que está no Brasil e prova uma coisa chamada pão de queijo — Benjamin
falou, bagunçando o cabelo dela com as mãos. — E fica longe da cachaça, hein?

— Não prometo nada — ela respondeu com um sorriso de olhos fechados.

— E Danny, espero que cuide bem deles — ele disse cumprimentando o garoto com um aperto
forte de mãos.

— Eu vou — ele respondeu com a voz firme.

Quando os olhos de Ben voltaram para mim, meu coração bateu descompassado em meu peito,
que parecia ainda mais apertado pelo que parecia demais uma despedida para o meu gosto...
— Eu vou com você até o carro. — Ele concordou com a cabeça.

Não me lembro ao certo de termos andado até o carro, com minha mente imersa em tantos

pensamentos que se tornava difícil de acompanhar...

“E se acontecer algo durante o voo, como iríamos chamar ajuda sendo ilegais? E se chegarmos

lá e não tiver ninguém nos esperando? Se não conseguirmos achar o lugar? Se eu não pudesse mais
ver ele...”

Mas quando dei por mim, estava lá, em frente ao carro, com ele encostado na porta do
motorista me olhando como se eu fosse um quadro que ele estava tentando entender.

— Queria ter certeza do que vai acontecer... — falei com um nó preso em minha garganta.

— Não tem como saber, mas isso não é o que importa — disse vindo até mim, me puxando
para ele com uma mão em minha nuca e outra me acompanhando pela cintura. — O que importa é que
vamos fazer tudo o que podemos, e vamos fazer juntos.

Cortei toda a distância que havia entre nós, com um beijo lento, com a esperança de que fosse
o suficiente para que o tempo congelasse ao toque dos nossos lábios... Mas infelizmente isso não
aconteceu.

Então só havia restado uma coisa a se dizer.

— Juntos... — repeti com o rosto ainda colado no dele.

Além de uma despedida, aquela era uma intenção...

Porque eu levei uma vida para encontrar alguém que fosse capaz de me encarar não apenas
como um monstro ou apenas como algo passageiro.

E agora, não perderia ele...

Não importa quantas vidas precisasse tirar no processo.


“Há mais perigo em teus olhos do que em vinte espadas!”

WILLIAM SHAKESPEARE

Eu nunca me importei com a morte.

Quando você escolhia se tornar um soldado, aprendia também a conviver com o fato de que
qualquer missão podia ser a sua última.
Para a maioria, isso era um processo, causado pelo treinamento que o exército desenvolveu

com o único objetivo de transformar homens em máquinas de matar, sem sentimentos ou alma,

desmontando o garoto que chegava no quartel e montando um fantoche do estado.

E durante o processo, ele era ensinado que morte em combate era uma honra.

Como se fôssemos vikings, agraciados pela possibilidade de atravessar para o Valhala em


nome de um monte de generais velhos e gordos que ficavam rindo atrás de suas mesas, sem nunca
sequer ter pegado na merda de um fuzil...

Sem nunca ter sujado suas mãos de sangue.

Mas eu sempre fui diferente, porque quando cheguei no exército, minhas mãos já estavam sujas
de vermelho.

Lembro de Gabriel ter falado que de todos do esquadrão, eu era aquele mais perto de Deus,
porque sempre estava disposto a me encontrar com ele, independente do dia ou hora.

E por causa disso, sempre fui responsável pelas partes mais “sensíveis” dos planos que ele e
Ângelo montavam.

Sempre fui o primeiro a me disponibilizar para desarmar as minas terrestres, plantar os

explosivos ou tomar a linha de frente contra a artilharia.

Em nenhum momento senti medo da morte.

Quando saí do exército, as coisas mudaram bruscamente.

De um momento para o outro, me tornei um homem casado, com alguém que eu amava ao meu
lado e uma vida nova, com a chance de me tornar aquilo que nunca havia tido ou nunca sequer havia
presenciado.

Uma pessoa boa.

Fiz o meu melhor com a nova chance que a vida havia me dado, indo para os lugares que
sempre quis ir, passando pelas experiências de uma vida toda em questão de anos, com a esperança
de que elas fossem o suficiente para preencher um vazio que sempre existiu em mim.

Mas mesmo escalando uma montanha ou me jogando de um avião, o medo da morte nunca
existiu.

Claro que, a vida cobrava seu preço, e no dia em que perdi tudo aquilo que tive, também não
temi o fim da minha vida...

Mas o desejei.

Implorei para Deus, se é que realmente existisse algum, para que me levasse, que se ele fosse
piedoso como diziam, que colocasse um fim no meu sofrimento e na dor que tomava conta do meu
peito, e quando fui até Gales, invadindo aquele lugar armado apenas com lâminas, nunca imaginei
que fosse capaz de sobreviver.

Mas sobrevivi.

Depois entrei para os Filhos, onde mais uma vez me tornei o mensageiro da morte, me
aproximando cada vez mais dela a cada dia que se passava.

A cada gota de sangue que eu derramava.

Ali tive a certeza de que essa era a minha sentença, minha maldição...

Jamais temeria a morte, e assim, jamais seria capaz de viver inteiramente.

Preso ao vazio de não ter mais nada a se perder.

De ter subido aos céus em uma vida plena, e então ser jogado novamente no inferno, apenas
para que eu descobrisse que nunca fui digno de felicidade alguma, que tudo o que já tive, foi tirado
de mim pelo simples fato de eu nunca ter sido capaz de aproveitá-la...

Esse sentimento cresceu em meu peito por toda uma vida, apenas para ser cortado de um dia
para o outro quando uma mulher de cabelos cor de fogo cruzou meu caminho da maneira mais brusca
e inesperada possível.

Depois que deixei ela no aeroporto dos Irlandeses, que no final nem eram tão irlandeses assim,

voltei para Munich, sentindo o peso do que até então tinha tudo para ser apenas uma despedida.

Deixei o rádio ligado alto, com a esperança de que ele fosse o suficiente para abafar o barulho

que minha mente fazia, como um pequeno ruído que gritava o quanto eu estava prestes a me jogar
novamente naquele mesmo sentimento.

De encontrar o amor apenas para que a vida pudesse tirá-lo de mim.

A viagem de volta não pareceu tão longa, principalmente com a ansiedade que gritava dentro
de mim me fazendo acelerar mais do que deveria até que voltasse para a cidade, indo direto para o
galpão onde encontraria Hermann e seus homens.

Quando cheguei, encontrei o portão aberto, sem guardas ou homens protegendo a entrada do
galpão.

Havia deixado o carro estacionado na rua anterior, para que não estranhassem o fato de que eu
estava dirigindo o carro da Sophia, porque mesmo com as desconfianças deles sobre o que havia
entre nós, não queria entregar mais o que estava realmente acontecendo.

— Hausser, já estava achando que não viria com a gente — Hermann falou com um sorriso
quando me viu cruzando o portão.

O galpão estava fechado, com todos os homens pelo estacionamento, e pela primeira vez, não
vi uniforme algum, assim como nenhum deles usava roupas militares.

Pelo contrário, muitos usavam roupas sociais, como ternos e camisas, assim como eu, enquanto
outros vestiam moletons ou roupas esportivas de marca...

Assim seria fácil que eles desaparecessem em meio à multidão.

Camuflagem...
— Eu não perderia isso por nada — falei, ainda me mantendo sério. — Que horas saímos?

— Em breve, Hausser — ele respondeu vindo em minha direção e me dando um abraço. — Me

conta, a noite foi boa com a Ruivinha? Você está com o cheiro dela...

Ele continuou falando depois dessa frase, mas não fui sequer capaz de ouvir em meio ao som

que meu coração estava fazendo, batendo tão forte contra as paredes do meu peito que todo o meu
sangue fervia.

Havia duas facas presas à minha cintura, escondidas por entre a camisa folgada que estava
usando, assim como havia uma faca em cada bota que estava usando... E só de ouvir a voz daquele

homem perto do meu rosto, cheguei à conclusão que não usaria lâmina alguma contra ele...

Porque a essa distância, poderia facilmente rasgar sua garganta com meus dentes.

Pensei no gosto do sangue dele em minha boca enquanto o homem grunhia no chão, sangrando
até a morte enquanto sua última visão seria meu rosto manchado de vermelho...

Com um sorriso largo, enquanto seu sangue pingava da minha boca.

Apenas com esse pensamento, consegui sorrir quando ele se afastou de mim, dando dois
tapinhas em meu ombro e voltando a falar com alguns homens que haviam acabado de chegar.

Sempre soube que não seria fácil conviver com aqueles homens, mas eles pareciam se esforçar
para trazer todo o ódio que gritava em mim à tona.

Descobri naquele momento que se eu quisesse sobreviver a tudo aquilo, ia precisar me manter
afastado de todos eles.

Para a minha sorte, eles também não faziam muita questão de trocar meia dúzia de palavras
comigo, porque mesmo que eu tivesse o “sangue puro”, ainda tinha sido criado em um país diferente.

Meu alemão ainda tinha sotaque norte americano.

Havia um homem que estava distribuindo bebidas e maços de cigarro.


A última coisa que eu queria era acabar bêbado no meio daqueles homens... Mas o cigarro me

parecia uma boa opção para ficar de boca fechada.

Peguei dois maços e abri o primeiro ali mesmo, enquanto encontrei um lugar mais afastado o
suficiente para mostrar que não estava afim de conversar com ninguém, mas não tão afastado para

que soasse como se eu estivesse tentando não me misturar, e encostado na parede de concreto do
galpão, com a mente presa ao barulho das conversas e dos passos no cascalho, esperei quase uma
hora e meia até que um ônibus de viagem chegasse.

Nesse meio tempo eu fumei quase um maço todo, o que serviu para esconder o cheiro dela em

mim...

Mas pelo jeito eu devia estar cheirando igual ao Hugo.

No exato momento em que subi no ônibus, atravessando por entre as poltronas espaçosas que
começavam a se encher de homens bêbados que riam alto e faziam questão de fumar dentro do lugar,
encontrei um lugar vazio próximo ao fundo, e assim que abri a janela, me sentei, deixando minha
mala embaixo do assento.

Olhei ao redor, para saber quem havia sentado ao meu redor e verifiquei em qual lugar
Hermann estava, e para a minha sorte ele havia ficado na primeira poltrona, junto com seu filho que

já estava caindo de bêbado.

Respirei fundo, deixando meu corpo cair contra a poltrona, me afundando em meio a espuma
macia que serviu apenas para que eu percebesse o quanto já estava cansado.

Passei os dedos pelo meu rosto, sentindo onde o pequeno corte em meu supercílio estava
começando a cicatrizar, lembrando dos detalhes da luta.

Ali imaginei como eu estaria depois que tudo terminasse...

Não demorou muito tempo para que o ônibus saísse em direção a Berlim, e com poucos
minutos de estrada, percebi que o melhor a se fazer era descansar, afinal, do que adiantava ficar
alerta enquanto estava trancado em uma lata de sardinha lotada de nazistas?

O que eu poderia fazer ali para salvar a minha vida caso eles me considerassem um inimigo?

Observei a janela do ônibus, onde a manhã já havia tomado forma, passando por algumas ruas
que já conhecia da cidade, observando a vida começar a seguir seu fluxo.

Antes que pudesse chegar a alguma conclusão sobre meus pensamentos que começavam a se
tornar aéreos...

Adormeci.

Ruínas.

Pedras brancas que pareciam estar há muito esquecidas em algum lugar tão afastado da própria
existência...

Tão longe de qualquer sinal de felicidade que deveria ser esquecido até pelo próprio Deus.

Olhei ao meu redor, tentando me encontrar, mas tudo o que conseguia entender pelo
emaranhado de paredes tombadas era que, em algum momento em um passado distante, aquilo um dia
deveria ter sido um castelo, com um salão amplo e arredondado.

Do lado de fora das paredes quebradas, tudo o que pude ver era a floresta de pinheiros
escuros, que logo eram engolidos pela escuridão densa da noite.

Caminhei, observando com atenção os detalhes da pedra que formava aquele lugar, que parecia
ser algum tipo de castelo antigo, com desenhos que cortavam os enormes blocos de pedra cobertos
pela relva e pelo musgo, e entre as paredes grossas, iluminadas apenas pela luz de uma fogueira de
chama azul, encontrei um trono vazio.

Um trono antigo, lapidado na pedra que crescia pelo centro de um altar, com as sombras
criadas pela chama azulada dançando ao seu redor de forma quase poética, como se anunciassem

algo que estava por vir.

Olhei ao meu redor, ainda confuso, tentando entender o que ao certo era aquele lugar e qual o
motivo que havia me levado até um lugar tão inóspito, mas antes que pudesse chegar a alguma
conclusão concreta sobre aquilo, algo pareceu perceber a minha presença.

No começo eram apenas ruídos, cortando a relva ao redor da fogueira, mas aos poucos ela
começou a tomar forma.

E do meio da noite, surgiu a névoa.

Fria e densa.

Correndo por todo chão de pedra coberto pelo limo...

A névoa escura rodopiou, correndo com força pelos cantos e frestas, tomando conta de todo o
lugar, subindo aos poucos do chão, preenchendo todo o altar de pedra, até que ela se acumulou ao

redor do trono de pedra.

E da névoa, surgiu ele.

Coberto por um manto negro, rasgado e desbotado, que escorria por todo seu corpo
esquelético, enquanto seu rosto descarnado permanecia inerte.

E o único sinal de vida que parecia transpassar daquela figura sinistra, eram seus olhos, que
mesmo sendo apenas órbitas vazias, ainda era capaz de sentir seu olhar cortando meu peito.

Repleto de julgamento e frieza.

— Benjamin... Benjamin... Tantas mortes... Tanto... Sangue... — Mesmo que sua boca não se
mexesse, podia ouvir sua voz fantasmagórica ecoando em minha mente. — E mesmo depois de tudo o
que lhe aconteceu você ainda é capaz de amar novamente... Curioso...

— O que é curioso? — perguntei, apenas para perceber que minha própria voz soava fraca e
sem vida alguma.

— Você teve todos os avisos, todas as... Dicas... De que isso aconteceria — ele continuou,
com a voz carregada de um tom tão sereno que era como se ele soubesse tudo o que já aconteceu, e
principalmente...

Como se soubesse tudo o que estava para acontecer.

— E o que você tanto me avisou? — perguntei, sentindo um arrepio tomando conta do meu
corpo.

— Que aqueles que viveram pelas minha leis, Benjamin... Sempre morrem por ela — ele
falou com sua voz tomada por um tom sério.

— Então isso é uma ameaça? — inquiri, devolvendo o tom de ameaça.

— E quem sou eu para ameaçar o Açougueiro de Gales? — ele continuou: — Estou apenas
lhe afirmando de que, você já teve tudo isso antes... Teve o amor... Teve a família e uma vida

normal... E seus atos, mesmo que inconscientes da justiça que cairia sobre você, ainda foram os
responsáveis pela tua desgraça...

— Dessa vez vai ser diferente... Ela é diferente! — falei alto, com minha voz falhando no meio
da frase, me obrigando a pigarrear. — Ela é... Diferente.

— Ela é diferente das outras pessoas... Sim, ela é... Mas o problema é que ela ainda é igual
a você, Benjamin. — A cada palavra que ecoava daquele vulto sem vida, sua voz se tornava mais
grave, até o ponto de que eu fui capaz de sentir suas vibrações em meu peito.

— E o que isso significa?!


— Que ela também vive pelas minhas leis... E por isso, irá morrer por elas. — No mesmo

instante que sua voz cessou, meu corpo todo queimava em um ódio frio.

Como se eu fosse capaz de matar quem fosse necessário.

Disposto a morrer se assim fosse...

Apenas para que ela pudesse continuar.

— Como eu faço para que possa liberar ela desse fardo? — perguntei firme, sem hesitar.

— Uma alma por uma alma, Benjamin — ele respondeu, enquanto voltava a se dispersar em

névoa. — Sempre foi uma alma por outra....

E como um rio, enfurecido pela sua correnteza, a névoa que o cercava veio em minha direção,
me jogando para longe daquele lugar.

— Tem alguém sentado aqui? — A voz desconhecida me acordou.

Abri os olhos, ainda meio atordoado pelo sonho que havia acabado de ter, precisando de um
tempo para que meus olhos pudessem voltar a se acostumar com a luz.

Esfreguei o rosto com as mãos, respirando fundo e sentindo o cheiro do tabaco que ainda
estava impregnado nelas, e então olhei para o lado, onde encontrei um...

Um garoto.

Ele não devia ter mais de dezenove anos, com o cabelo loiro cortado quase na altura dos olhos,
vestindo uma camisa bem ajeitada, calças jeans e tênis, com um óculos quadrado no rosto.

Olhei em volta, estranhando como ele destoava em meio aos outros passageiros daquele ônibus
desgraçado, apenas para ter a certeza de que ele deveria estar lá por algum tipo de engano ou piada.

— Oi? — perguntei, com a voz rouca de sono.

— Olá... Me desculpe te acordar, mas tem alguém sentado aqui? — ele falou com a voz calma,
quase dócil, apontando para a poltrona vazia ao meu lado. — É que estão fumando muito lá na frente
e isso está começando a me fazer mal...

Levantei uma sobrancelha, tentando entender o que alguém como ele fazia em meio a pessoas
como essas...

Mas a essa altura, negar o lugar poderia só chamar uma atenção desnecessária.

— Está vago — respondi, tentando soar o mais seco possível, com a esperança de que fosse o
suficiente para evitar mais conversas.

— Muito obrigado! — ele falou se sentando, colocando a mochila que estava carregando no
chão, ao lado da minha mala. — Eu geralmente não passo mal por causa dos cigarros, mas estamos
em um lugar muito fechado.

Naquele momento, a única coisa que se passava pela minha cabeça era puxar o maço fechado
que estava em meu bolso e fumar um atrás do outro, apenas para não ter que continuar aquela
conversa, onde qualquer palavra errada poderia ser usada contra mim...

Mas, ainda assim, havia algo nele que me fazia hesitar.

Porque, como eu já disse, é fácil reconhecer um nazista quando se vê um, o ego, a certeza de

superioridade, o ódio incrustrado em sua alma e a porra do fascismo cego.

E eu não fui capaz de enxergar nada disso nele.

Então apenas confirmei com a cabeça e voltei a me encostar na janela, apoiando o rosto sobre
a mão enquanto deixava a luz do sol esquentar meu rosto.

O dia lá fora estava mais bonito do que imaginei, com o céu limpo depois da chuva, mostrando
os campos de grama lotados por hélices de energia eólica, que cresciam imponentes, cortando os
céus como se fossem capazes de puxar as nuvens.

Meu corpo aos poucos foi voltando para o estado de sono, relaxando na poltrona.
— Qual é o seu nome? — ele perguntou, fazendo com que acabasse me assustando pelo sono.

— Hans Von Hausser — respondi com a voz ainda rouca. — E o seu?

— Simon Becker — ele falou ajeitando os óculos e apoiando os braços em seu colo.

Becker...

Passei em um tempo revirando em minha mente o nome de qualquer nazista de alto escalão com
esse sobrenome, principalmente algum que pudesse ter algum descendente com essa idade, mas não
consegui me lembrar de nenhum.

— Você que deu uma surra no Heydrich, não é mesmo? — ele falou quase em tom de animação.
— Eu assisti a luta, você quebrou três costelas, o nariz e seis dentes dele...

Aquela era a prova de que, apesar da aparência, ele ainda era um deles.

— Você contou ou é da equipe médica? — falei, soando mais ácido do que pensei.

— Ele é meu primo... — ele respondeu envergonhado. — E passou os últimos dias sem
conseguir sair da cama.

— Não foi ideia minha entrar em um ringue com ele, foi apenas azar — respondi, encarando o
garoto, fechando o punho com a esperança de que a intimidação funcionasse. — Azar dele...

— Onde aprendeu a lutar assim?

— Exército — respondi, já tendo a certeza de que essa conversa não iria acabar tão cedo. — E
você, luta?

— Tentei caratê uma vez...

— Não me parece uma luta muito germânica. — Merda... Não me imaginava dizendo isso.

— Mas você luta Krav Maga — ele retrucou rindo. — Quer algo pior do que isso?

— A culpa é minha por crescer nos Estados Unidos? — falei mostrando a águia tatuada em
meu peito através da gola aberta da camisa.

— Eu desconfiei do sotaque. — Ele arrumou os óculos e voltou a encarar minhas tatuagens. —

Você se alistou quando?

— Essa semana — respondi tentando soar o mais natural possível. — Me aposentei do

exército e voltei para a terra da minha família, e em terras germânicas, achei que ainda poderia ser
útil.

— Qual é a sua patente? No exército, digo...

— Navy Seal — respondi tirando um olhar de surpresa do garoto.

— Okay... Isso é muita coisa — ele falou rindo.

— Mas e você, por que se alistou? — perguntei realmente interessado na história dele.

— Meu pai... — E de uma hora para a outra, seus olhos se tornaram marejados, manchados de
vermelho como se estivesse prestes a chorar. — Ele foi aliado do partido quando era mais novo, mas
quando se casou com a minha mãe acabou saindo da causa... Mas ele ainda tinha uma tatuagem no
peito... Um dia ele estava no parque e por algum motivo deve ter se esquecido dela... Algumas
pessoas viram e bateram nele até que... Até que...

Ele respirou, devagar e profundamente, com a esperança de que fosse o suficiente para abafar
o choro.

— Meus pêsames. — Por mais que soasse estranho desejar isso sobre a morte de um nazista...
Ainda foi o mais sincero possível.

— Depois disso eu entendi que não tem como negar... Sempre vamos ser nós por nós. — E
nesse momento, pela primeira vez, vi ódio em sua voz...

Ali estava o ego nazista.

— E a sua mãe? — perguntei, tentando entender mais o que fez um garoto como ele entrar de
cabeça nesse tipo de vida. — O que ela achou de você se juntar ao partido?

— Ela se enforcou no dia do enterro... — Sua voz era rasgada pela dor e pelas lembranças.

Merda...

Encarei ele mais uma vez, e mesmo em meio a todo o ar que a raiva trazia para ele, era como
se eu me visse quando tinha a sua idade.

Um garoto que não tinha mais nada, que encontrou um grupo de pessoas que o apoiaria, mesmo
que não fossem exatamente boas pessoas que traziam algo que ele já não tinha mais.

Uma família.

Para mim, foi o exército e para ele... A porra dos nazistas.

Isso significava que, agora, ele fazia parte do pequeno grupo que estava entre mim e meu
alvo...

Significava que eu teria que matá-lo.

— Senhores, é com um enorme prazer e satisfação que eu anuncio que chegamos ao


Hauptstadtflughafen — Hermann falou em voz alta quando o ônibus parou.

Olhei pela janela, apenas para ver Berlim, que crescia pelo horizonte, com os prédios
modernos cortando os céus e o luxuoso aeroporto criava uma muralha de janelas, que refletiam a luz
do sol para toda a avenida.

— Mas queria dizer que, infelizmente, teremos pequenas mudanças nos planos de voo —
Hermann continuou falando: — Dr. Strauss me ligou antes de sairmos e pediu para que chegássemos
com urgência, e para isso, ele fretou um voo direto, então chegaremos seis horas antes do previsto!

MERDA!
“Nunca se fez nada grande sem uma esperança exagerada”

JULIO VERNE

Sacrifícios...

No final, nossos planos sempre eram sobre sacrifícios.

Fossem eles sobre comprar um carro novo, o que fazer no fim de semana, na escolha de um
livro ou filme, qualquer planejamento, na verdade, era sobre o que íamos deixar de ter para
conseguirmos alcançar um objetivo em nossa vida.

Uma troca.

Boa parte das vezes esta troca era baseada em tempo ou dinheiro...

Mas o plano que eu estava prestes a colocar em prática cobrava muito mais do que isso.

Eu passei uma vida toda lutando como se fosse o mundo contra nós, porque boa parte do tempo
realmente foi, e qualquer pessoa que não tivesse passado pelo mesmo inferno que minha família não

seria digna de pena ou compaixão.

Mas eu sabia que, no final, sempre vi o mundo dessa forma porque sempre foi a maneira mais
fácil de lidar com certos problemas.

Se você não sabia em quem podia confiar, odiar todos podia ser muito mais simples do que
estar disposta a quebrar a cara e o coração buscando novas amizades e amores.

Assim eu criei um escudo, baseado em raiva e rancor...

Mas nos últimos dias eu havia encontrado alguém diferente, que de alguma forma conseguiu
fazer com que eu me sentisse à vontade em baixar algumas armas e aproveitar mais de um sentimento

que até então nunca havia provado antes.

Enquanto eu me trocava mais cedo, com ele ainda terminando seu banho, pensei em tudo o que
eu poderia perder se este plano não desse certo... Porque não era apenas sobre tempo e dinheiro.

Eu estava apostando nossas vidas em nome de uma vingança.

Estava apostando num futuro diferente, longe de toda essa guerra que sempre foi a minha vida.

Longe de todo o caos.

De toda a desgraça, de todas as mortes e do sofrimento que era reviver aquelas lembranças
todas as noites antes de dormir.
Por um momento eu hesitei em minha escolha... Pensei se talvez estivesse errada em continuar

com esse plano suicida, mas essa escolha não era apenas minha.

Era sobre todas as pessoas que morreram naquele lugar, pelas mãos daquele homem.

E principalmente...

Era uma escolha sobre todas as vidas que ele um dia poderia tirar.

Não importava quantas vidas eu tivesse que tirar no processo, nem se acabaria perdendo a
minha...

Benjamin estava disposto a entregar a dele se também fosse necessário...

Talvez tenha sido isso que fez com que nós acabássemos nos aproximando no final de contas,
éramos almas tão perdidas que não nos importávamos com mais nada além da vingança e do ódio...

Mas se conseguíssemos sair juntos daquele lugar, a única certeza de que eu tinha era que faria
questão de fazer tudo valer a pena.

Uma turbulência leve me jogou para fora daqueles pensamentos, com o barulho das correntes e
cordas batendo de um lado para o outro.

Já estávamos voando há muitas horas, e tudo foi muito mais calmo do que eu estava imaginando

que seria.

Acabei pegando no sono assim que decolamos, afinal, não tinha certeza quando seria a próxima
oportunidade que teria para conseguir dormir novamente, e quando acordei,

Como os bancos ficavam grudados nas laterais do avião, em dois pares diferentes, ficamos
sentados com uma certa distância, um de frente para o outro.

Eu estava sentada ao lado do Hugo, que usava com fones de ouvido e aparentemente estava
dormindo há um bom tempo, preso pelo cinto de segurança em formato de “X”.

Na minha frente estava Danny, que estava limpando uma pistola prateada, passando um pano de
polir que fazia seu brilho ficar cada vez mais chamativo...

E ao lado dele estava Maya, que estava sorrindo para mim com os olhos fixos no garoto,

prestando atenção em suas tatuagens.

— Você entende de armas? — perguntei em inglês, tentando chamar a atenção do garoto,

mesmo já sabendo a resposta.

Afinal, ele era a porra de um traficante de armas.

— Entendo sim — ele respondeu, levantando uma sobrancelha.

— Eu tenho uma... Mas faz anos que não uso, e o Ben falou que ela pode estar precisando de
manutenção — falei levando a mão por baixo da camiseta e puxando a arma da minha cintura.

— Ela está com munição na câmara? — ele perguntou colocando a arma dele em um coldre
que estava preso em sua coxa.

— Oi?

— Tem uma bala na agulha? — ele questionou rindo.

Levei a mão até a parte de cima da arma e puxei, fazendo com que ela abrisse, mostrando uma
munição pronta para ser disparada.

— Tem sim — respondi deixando o metal da arma bater com força.

— Tem um botão na lateral da arma — ele me explicou apontando para o lugar —, quando
você apertar o carregador vai cair.

Deixei uma das mãos embaixo da arma e apertei o botão com força, e então o pente escorregou
e eu o segurei.

— Agora é só segurar o ferrolho em cima e empurrar a arma para frente — ele falou,
colocando o pano de polir no bolso. — Segura o ferrolho e empurra a arma.
Assim eu fiz, deixando o carregador da arma no colo, segurando a parte metálica da arma com

a palma de mão e empurrando o corpo dela para frente, fazendo com que ela cuspisse uma munição

de dentro dela.

— Agora pode colocar o carregador nela. — Assim eu fiz, sentindo enquanto ele deslizava e

se encaixava na superfície interna de metal. — Pronto, agora pode me jogar.

Segurei ela firme e a arremessei com cuidado para ele que a pegou no ar.

— Bela Glock — ele falou observando a arma mais de perto. — Mas nunca confiei muito em
armas de plástico.

Seus dedos correram pela arma, tirando toda a parte superior da pistola, em seguida ele
desrosqueou o cano, puxando o pequeno cilindro e dando uma olhada.

— Ela está bem suja, mas ainda funciona. — E com a boa notícia, ele continuou tirando
algumas peças menores, olhando para o lado, procurando algo, até seus olhos encontrarem um estojo
verde escuro a sua direita. — Maya, por gentileza, consegue me alcançar aquela bolsa ali?

Maya me olhou, com um sorriso tão largo como se falasse “Ele lembra meu nome!” e animada
ela agarrou o estojo com as duas mãos e entregou para ele que ainda estava prestando atenção na

arma.

Quando ele foi pegar a bolsa, ela escorregou as mãos para as dele, que olhou para ela meio
assustado e colocou o estojo no colo.

— Eh... Obrigado — ele falou, passando os olhos para mim, quase falando “eu não tenho nada
a ver com isso”

— Não foi nada! — ela respondeu sorrindo e voltou a observá-lo.

— O Billy disse que você é do Brasil — falei, enquanto ele concordava com a cabeça,
prendendo duas molas da arma entre os dentes e puxou uma escova da bolsa. — Como é morar lá?
— Não tenho muito do que reclamar — ele respondeu, começando a passar a escova pela parte

interna da arma e colocando as molas no lugar. — A qualidade de vida é boa, as pessoas são

incríveis e a comida não tem igual, mesmo eu não tendo conhecido muitos lugares, tinha um amigo
que conheceu cada país desse mundo, e ele falava que o Brasil tinha algo que nenhum outro lugar

tinha... Mas ainda acho que ele estava falando de uma mulher.

— Você é do Rio de Janeiro? — Maya perguntou, tentando puxar assunto.

— Não, sou de São Paulo — ele respondeu, ainda concentrado na arma. — É um lugar bem
diferente, mas já fui para o Rio algumas vezes, as praias são lindas.

— Esse seu amigo conhecia o Benjamin? — perguntei tentando acompanhar o que ele estava
fazendo com a arma. — Como era o nome dele?

— Regan Mc’Crowley — ele respondeu, agora voltando a montar a arma. — Provavelmente


sim... Regan parecia conhecer todo mundo, era incrível chegar em algum pub, parecia que todos
deviam um favor para ele, sem contar que ele fornecia armas para alguns dos Filhos, principalmente
os da América do Sul.

— O que houve com ele? — Maya perguntou, me fazendo pensar se ela realmente não havia
entendido ou estava ocupada prestando atenção no garoto e não no que ele falava.

— Houve um incêndio em um sítio. — Eu queria esganar a Maya por não ter tido senso para
fazer uma pergunta sobre... Mas Danny parecia extremamente tranquilo para falar sobre o assunto. —
Sua arma está pronta, mas achei uma coisa engraçada... Tem algumas inscrições na parte de dentro da
sua arma, sabia?

— Inscrições?

— Sim — ele falou jogando a arma de volta para mim, que peguei ela no ar. — Parecem ser
um tipo de oração em latim, algo sobre São Nicolau...

Olhei a arma em minhas mãos, me lembrando sobre como ela acabou chegando até mim...
Me lembrando do Bran e tudo o que houve...

— Ele vai pagar... — falei baixo, segurando firme a arma em minhas mãos. — Ele vai pagar.

— Atenção, senhoras e senhores, é com o peito em festa e o coração a gargalhar que eu


venho informar que estamos nos preparando para o pouso no ilustríssimo aeroporto clandestino

da Irish Republican Army, Armas e Voos Clandestinos — Billy disse pelos alto-falantes. —
Agradecemos a confiança, não que vocês tivessem alguma escolha.

Me ajeitei no banco, enquanto todos fizeram o mesmo, se preparando para o pouso, enquanto o
avião começava a tremer com o que parecia ser o trem de pouso sendo baixado.

Hugo se ajeitou no banco, tirando seus fones de ouvido e ajeitando os óculos escuros, enquanto
Maya ajeitou o cabelo e começou a balançar as pernas de ansiedade.

Danny, por sua vez, apenas ajeitava suas ferramentas no estojo verde e o colocava em um
compartimento na parede do avião.

E como um terremoto, sentimos o avião acertando a terra firme, com cada barris, mala, corda
ou corrente vibrando e fazendo barulho enquanto ele desacelerava, até finalmente parar de uma vez.

— Muito obrigado por voar conosco — Billy continuou falando: — Não se esqueçam de

conferir se as malas, pertences pessoais ou armas foram esquecidas nos assentos, e caso tenham
sido, saibam que não iremos devolver.

Então a porta da cabine de metal se abriu com um estrondo, com Billy saindo de lá enquanto se
espreguiçava, sendo seguido do piloto que reclamava com ele em uma língua que eu nunca tinha
ouvido antes.

Danny soltou os cintos de segurança, e eu fiz o mesmo, parando apenas para soltar os de Hugo.

Quando me levantei, senti meu corpo reclamar o tempo que passei sentada na mesma posição.

— Eu não tenho mais idade para isso... — Hugo disse se alongando, fazendo com que alguns
dos seus ossos estralassem.

— Sabe que eu nem vi o tempo passar... — Maya falou, deixando um sorrisinho para Danny,

que já estava soltando nossas bagagens das cordas que as prendiam na parede do avião.

Olhei para ela, com a esperança de que ela entendesse que aquele olhar significava “depois a

gente conversa sobre isso”, mas acho que a essa altura, já não havia muito o que eu pudesse falar que
mudasse o fato de que ela estava crescendo...

Ainda era engraçado pensar na garotinha pequena e rosada que havia encontrado naquele berço
tanto tempo atrás...

Dez anos ao nosso lado, tendo apenas a mim e ao Hugo como pais, tutores, conselheiros e
irmãos...

E, ainda assim, ela era uma ótima aluna, mesmo que tivéssemos que mantê-la em escolas
particulares, que não faziam perguntas sobre o seu passado, e pelo preço certo, não pediam sequer
documentos mais complexos.

Danny deixou as malas no chão, e se juntou ao Billy e ao piloto, enquanto desciam a porta
pesada de metal, deixando o avião sendo tomado pela luz do sol e pelo cheiro...

Deus... Aquele cheiro.

Era uma mistura de grama fresca e mato, mas era tão... doce, como se tudo lá fora fosse feito de
açúcar, como se tudo lá fora fosse um enorme desenho animado.

Andei até a porta, respirando fundo e deixando que aquele cheiro de floresta tomasse conta de
mim, caminhando por entre os barris e as malas que estavam no chão, e quando eu cheguei até a
porta, encontrei algo que nunca havia visto antes.

O céu era azul, em um tom mais claro do que já tinha visto, com poucas nuvens tão claras que
se perdiam no horizonte, e nele, havia árvores, para todos os lados que pudesse imaginar.
Havia grama, para todos os lados, tão macia que parecia um enorme tapete verde, tomando

conta do chão marcado pela terra avermelhada...

E ao redor do avião... Havia centenas de barracas.

Algumas eram feitas de lona e outras de madeira ou concreto, com milhares de pessoas que iam

e vinham de todas as direções, algumas estavam vestidas como chefs de cozinha, outros com roupas
mais rebuscadas, falando alto em celulares em uma língua que eu não entendia direito.

Carros, carrinhos de compra, motos e caminhonetes cortavam algumas ruas estreitas por entre
as barracas, com o fluxo se misturando ao de pessoas, que pareciam caminhar naquele lugar quase

como um enorme rio de correnteza humana.

E em todas as barracas, em cada porta ou mercadinho... Havia frutas.

Eram tantas... De tantas formas, cores e cheiros, lotando enormes balcões e caixas que eram
empilhadas aos montes, com caminhões chegando de todos os lados, levando e buscando aquelas
caixas lotadas de frutas e verduras.

— Bem-vinda ao Brasil — Danny falou rindo, vendo minha cara de espanto para aquela cena.

— Eu achei que seria um aeroporto clandestino... — disse, ainda tentando entender o que

estava acontecendo.

— E qual seria a desculpa para pararmos um avião de carga no meio do nada sem chamar a
atenção?! — Billy falou rindo alto. — Devem ter mais dois ou três aviões aqui, todos trazendo
comidas e bebidas importadas, assim como nós, que estamos trazendo o que há de melhor em whisky
irlandês.

Olhei para dentro do avião, coberto do chão ao teto em barris, e tudo fez muito mais sentido do
que imaginava.

— Então é por isso que o ar está cheirando a frutas? — Hugo falou rindo, andando pelo avião
enquanto tateava o chão com a bengala. — Achei que era porque eu estava chapado.

— Que lugar é esse e por que eles estão carregando tantas frutas? — Maya perguntou para

Danny, que estava puxando uma prancheta da parede do avião, enquanto descia a rampa.

— Isso é uma feira — Danny respondeu observando os itens da prancheta. — Uma das

grandes, principalmente porque estamos perto da fronteira, pessoas de todos os países vêm para cá
comprar comida, bebida, frutas, carnes...

— Quase tudo que está aqui está à venda — Billy falou em tom de deboche, dando um passo à
frente para espiar a prancheta de Danny. — Até eu estou à venda se quiserem pagar o preço certo.

Maya riu, assim como Hugo, que bateu com a bengala até acertar minha bota, e então se
aproximou para que eu pudesse ajudar ele a descer pela rampa, com Danny deixando a prancheta
para Billy e puxando seu celular, mandando algumas mensagens.

— Ali, acho que é seu contato chegando — Billy falou apontando para dois carros escuros que
chegavam.

Observei os carros se aproximando, todos com insulfilme escuro, vindo devagar em direção ao
avião, parando a poucos metros de distância, e deles saíram duas pessoas.

Um deles era um homem alto, com uma barba manchada de grisalho na altura do peito, vestindo
uma batina de padre, com o cabelo quase todo branco bem penteado para trás.

E do outro carro, desceu uma mulher, praticamente da minha altura, com o cabelo ondulado
marcando seu rosto bem desenhado, com a boca rosada bem marcada, usando uma camisa com calça
e tênis.

— Você é a Sophia? — a mulher perguntou com um sorriso encantador.

— Sou sim — respondi levantando uma sobrancelha. — E você, quem seria?

— Me chamo Alice Zofia, e ele é o Padre Gabriel, somos amigos do Benjamin — ela falou
sorrindo.

Eles vão estar em boas mãos...


“E enquanto houver um reino nesta ilha varrida pelo vento, haverá guerra. Portanto não

podemos nos encolher para longe da guerra. Não podemos nos esconder de sua crueldade, de seu
sangue, do fedor, da malignidade ou do júbilo, porque a guerra virá para nós, desejemos ou não.
Guerra é destino, e o destino é inexorável.”

BERNARD CORNWELL
Diziam que o mais importante antes de qualquer passo importante, era tentar manter a calma.

Era praticamente uma questão de sobrevivência.

Levaram menos de vinte e três minutos entre o momento em que desci do ônibus em frente ao
aeroporto e o avião decolar.

Hermann foi na frente do grupo, falando com algumas pessoas que foram as responsáveis por
fazer toda aquela operação passar desapercebida a olhares menos atentos, com todos os homens
passando em pequenos grupos até um avião de viagem pequeno, que havia sido fretado apenas para
que nos levassem até a Argentina, sem termos que passar por questões políticas ou burocráticas...

Eles haviam comprado tantas pessoas, que sequer passamos por detector de metais, o que me
economizou a mentira de dizer que eu ainda era um militar norte americano em missão, porque no
final das contas, eu ainda estava carregando algumas facas comigo.

Simon me seguiu praticamente o tempo todo desde que começamos a conversar no ônibus,
ficando no grupo de homens em que eu estava quando fui em direção ao avião, cortando pelo
aeroporto claro e extremamente limpo, que era formado por pequenas alas, demarcadas por pequenas
fitas amarelas, separando onde eram as áreas de embarque e desembarque.

As pessoas que havia lá, estavam tão imersas em seus próprios problemas e vidas que
pareciam ser incapazes de entender o que estava acontecendo.

Fomos sem falar com absolutamente ninguém, fazendo o menor contato visual possível com
quem cruzava nosso caminho...

E durante toda aquela caminhada, me sentia como um animal indo para o abate.

De cabeça baixa, cercado pelo pior tipo de seres humanos, que mesmo tentando parecer
minimamente como pessoas normais, era possível enxergar a maldade dentro deles, como se pudesse
sentir a podridão das suas almas.
Mas não importava quão desastrosa fosse aquela situação, Simon ainda soava como um

garotinho empolgado, observando tudo à nossa volta, as palavras e cartazes escritos em outras

línguas ao nosso redor, as pessoas que falavam de formas que ele não era capaz de entender...

Seus olhos corriam pelo mundo ao seu redor, absorvendo o máximo que podia, com um sorriso

quase inocente em seu rosto.

Atravessamos quase toda a extensão do aeroporto até o avião que estava nos esperando, em
uma parte mais afastada de todo o resto, nos fazendo descer por uma escadaria longa até a pista de
pouso para que pudéssemos caminhar até ele, que se parecia mais com um avião antigo militar, largo

e comprido, quase como uma versão reduzida de um boeing, pintado inteiramente de branco, com
duas letras “S” marcadas em vermelho em sua porta.

O interior era pouco luxuoso, com poltronas enfileiradas por toda sua extensão, com pouco
espaço entre elas, mas ainda era mais confortável do que muita classe econômica.

Sentei mais ao fundo, já sem esperança de que acabaria sozinho, com Simon ainda me
seguindo, ficando ao meu lado na poltrona.

Mas dessa vez eu fiz questão de me sentar no corredor.

Joguei minha mala no chão, apoiando meus pés sobre ele e reclinando ao máximo a poltrona
para trás, com a esperança de conseguir dormir um pouco.

— Existem tantas línguas diferentes... — Simon falou baixo, provavelmente consigo mesmo.

Ignorei no começo, me ajeitando na poltrona, cruzando os braços e subindo as mangas da


camisa, enquanto esperava todos os homens terminarem de chegar.

Iam ser seis horas a menos de viagem, ou seja, eu iria chegar no hospital muito antes da
Sophia, o que me daria a vantagem de conhecer todo o terreno antes de realmente começarmos.

Não íamos conseguir nos comunicarmos antes de tudo, então o melhor a se fazer era esperar,
me aproximar das pessoas certas lá dentro para que assim eu acabasse bem-posicionado na hora que

ela chegasse, o que provavelmente iria acabar com o caos sendo instaurado dentro do lugar.

— Suas tatuagens — Simon falou, encarando meus braços. — O que elas significam?

— Que eu tinha dinheiro e o tatuador tinha tempo na agenda — respondi tentando cortar o

assunto, mas já sem esperança de que isso aconteceria.

— Não é possível que nenhuma delas tenha significado — ele disse, prestando mais atenção
nos desenhos. — Você tem várias coisas interessantes aqui, sabia? Faróis, ampulhetas, navios,
foices, facas... Mais as tatuagens do Reich que você deve ter.

— E você, não tem nenhuma tatuagem para encher de significado? — perguntei, tentando tirar o
assunto de mim.

— Nunca tive coragem de fazer — Simon falou, vendo os últimos homens que entravam no
avião. — Tenho agonia das agulhas...

— Então você está se dispondo a entrar em uma missão onde pode acabar tomando um tiro ou
uma facada e tem agonia de agulhas? — indaguei em tom ácido, me ajeitando na poltrona, me
preparando para dormir, enquanto o último grupo de homens entrava no avião.

— Eu preciso disso — Simon respondeu com tamanha certeza e coragem na voz que me
obrigou a observar por cima do ombro.

— Precisa do quê?

— Meu pai e minha mãe morreram por nada... Eu não quero isso. — Enquanto ele falava,
levantei uma sobrancelha vendo o garoto fechar os punhos, batendo com força contra as próprias
pernas. — Eu quero morrer... Quero de uma forma que eu faça a diferença, para mim, para os amigos
do meu pai, que me acolheram como família quando eu perdi tudo...

— É assim que você quer honrar seus pais? — falei sem pensar. — Morrendo por uma causa
que ele mesmo já tinha abandonado?

— Eles falam que nós somos monstros, mas eles não veem o que fazem conosco... Mataram

meu pai por causa de uma tatuagem, igual as que você tem. — Sua voz havia sido tomada por um
sentimento forte demais para que eu pudesse explicar, com suas mãos tão fechadas que vi seus dedos

ficando vermelhos pela força. — Eles não se importaram, não se arrependeram nem por um
momento, e a porra da polícia não fez questão alguma de ir atrás de quem fez isso com ele por causa
da ficha criminal... Falaram que ele era uma pessoa de muitos inimigos, que muitas pessoas tinham
motivos, e quando eu estava indo embora... Um dos policiais falou que o mundo ficaria melhor sem

ele...

— Simon... Se acalme — falei voltando a me sentar, apoiando minha mão em seu ombro antes
que sua voz alta começasse a chamar atenção.

Ele me olhou, com os olhos tomados por lágrimas, as limpando com a camiseta enquanto
respirava fundo, tentando se acalmar.

— Eu só tenho a causa, Hausser — ele falou com a voz quase falha, já com a respiração
ofegante. — Só tenho os homens que me ajudaram quando faltou dinheiro para o velório, que me
deram apoio quando não tinha mais ninguém e que realmente foram atrás dos homens que tiraram a

vida do meu pai... E eu só quero ser útil para eles, mesmo que eu precise morrer no processo... Só
quero retribuir o favor.

— Não precisa ser assim — disse dando dois tapinhas em seu ombro e voltando a me deitar,
agora que ele já estava mais calmo. — Existem outras maneiras de você se tornar útil para a causa.

— Como eu vou ser útil?! Não tenho treinamento militar, não sei usar uma arma e também não
sei brigar... — Com um suspiro, ele deixou sua poltrona se reclinar e se deitou, com os olhos fixos na
janela.

— Todos nós temos um objetivo de vida, e mesmo que pareça difícil ou até mesmo impossível,
ainda vai encontrar o seu — falei tentando me ajeitar na poltrona estreita. — Agora aproveita que
esse é um voo particular e não vão pedir para subir as poltronas na decolagem e tenta dormir um

pouco, não tem como saber qual vai ser a nossa próxima chance de dormir tanto tempo.

— Como você sabe que não vão pedir para subir as poltronas? — ele perguntou, me fazendo

revirar os olhos para manter a calma.

— Já voei muito em voos fretados assim, a gente que paga, então eles não se importam muito
com esse tipo de coisa — respondi, já fechando os olhos.

Simon falou algo depois disso, mas minha mente já estava longe, perdida em meio ao sono e as

lembranças da noite anterior.

Sempre voltando para ela...

Pouco tempo depois o avião levantou voo, logo depois de passarem uma gravação sobre a
segurança durante a decolagem e como deveríamos agir em caso de desastre, mas junto as vozes altas
dos homens que conversavam quase gritando, era impossível de ouvir.

E antes que desse por conta, já estava rendido aos sonhos confusos causados pelo sono leve
demais, agradecendo por Simon ter me deixado dormir em paz...

Eu só queria ter descoberto mais cedo que aquele iria ser meu último momento de paz naquele
lugar.

— Atenção, homens! — A voz de Hermann chamou a atenção de todos, ficando em pé em


frente a todo com o avião já no ar. — Gostaria de passar a palavra para um amigo antigo do Doutor
Strauss, que está sendo o responsável por toda essa operação.

Abri os olhos, voltando a me sentar na poltrona sentindo o corpo ainda meio cansado pelo
sono, apenas para ver ao lado de Hermann um homem vestido com um terno escuro, e mesmo sem as
insígnias e as marcas do Reich, ainda era capaz de reconhecer o ego que inflava seu peito, com o
cabelo loiro penteado para trás e a barba bem-feita.
— Senhores, como vocês sabem estamos indo de última hora para Bariloche por causa de uma

emergência sem precedentes — o homem falou com a voz grave e marcada por um tom sério. —

Doutor Strauss, depois do incidente em Praga, fez um acordo com uma organização de assassinos,
com o objetivo de proteger seu patrimônio e o do Reich, porém essa instituição TRAIU o Doutor há

poucos dias, colocando um prêmio por sua cabeça.

Merda...

Aquilo não parecia uma boa notícia.

— Estes homens, que se autodenominam Filhos do Ceifeiro, são soldados e assassinos

extremamente bem-treinados, focados em executar homens da maneira mais rápida e eficiente


possível — ele continuou falando, se apoiando na parede para evitar uma pequena turbulência que
chacoalhou o avião. — Não sabemos quantos ou quais homens destes irão atrás do Doutor, mas será
a nossa função protegê-lo a qualquer custo, e para isso, precisamos conhecer quem são nossos
inimigos.

Filho da puta...

— Boa parte deles possuem histórico militar, o que significa que são extremamente bem-
treinados em combate, mas isso é o de menos, em sua grande maioria, são homens suicidas. — E com

um passo em direção ao corredor que separava as poltronas ele continuou: — Alguns deles, os mais
experientes, possuem um chip instalado no peito, que fica ligado direto ao coração, e se eles
morrerem, um sinal vai para a central daqueles filhos de uma puta, e eles dão um jeito de explodir
tudo ao redor, seja com uma granada, um míssil ou a merda de uma bomba nuclear, eles não se
importam...

Ele andou sem pressa até a metade do avião, olhando para alguns homens e se aproximando
cada vez mais do fundo.

Escorreguei minha mão direita até uma das facas presas em minha cintura, agarrando com força
o cabo entre os dedos.

— O problema é que eles não são como as outras raças que ainda tentam negar a superioridade

que temos... Porque aquela é uma organização impura, quase mestiça... — ele falou, parado no meio
do avião. — Podemos esperar qualquer tipo de gente, até mesmo um irmão ariano, então vamos ter

que prestar a atenção em coisas menores... Em todos aqueles que vocês nunca viram matar pela
Germânia, naqueles que parecem compactuar com raças impuras, e claro, eles também ostentam
símbolos, como nós, então prestem atenção em qualquer um que carregue duas foices cruzadas em
sua pele ou em qualquer peça de roupa ou arma, mantenham os olhos bem abertos e as armas

carregadas... Não sabemos quando eles vão atacar.

Quando o homem terminou de falar, deu meia-volta e caminhou com calma até a cabine do
piloto, de onde havia saído.

Naquela hora eu não tinha certeza de como tudo acabaria, mas não podia correr mais riscos do
que já estava correndo... Porque no exato momento em que ele falou sobre as tatuagens, eu e Simon
tínhamos plena noção daquela situação, então agora havia a ponta de uma faca entre as suas costelas,
na esperança de garantir que ele ficasse quieto.

— Você não vai falar nada e não vai fazer nenhum movimento brusco — falei baixo, me

inclinando em direção a ele para esconder a faca em minhas mãos. — Se tentar fazer alguma coisa
heroica, você vai morrer sem nunca ter feito nada na vida.
“É muito raro encontrar almas livres, mas logo se vê quem são.”

CHARLES BUKOWSI

Era estranho estar com aquelas pessoas.

Eu havia passado uma vida inteira me achando estranha, porque o tempo todo eu olhava para o
lado e via pessoas que jamais seriam capazes de me entender...
Que não conheciam uma vida que se passou movida a medo.

Pessoas que jamais saberiam como é não conseguir dormir à noite com medo de acordar

naqueles dias ruins...

Pessoas normais jamais seriam capazes de olhar para mim e me enxergar como uma delas,

porque eu era a estranha, a paranoica, a criatura cheia de raiva e ódio que jamais fariam questão de
olhar mais do que o necessário.

Mas parecia que desde o momento em que Benjamin apareceu na minha vida, todas as pessoas
que começaram a surgir em meu caminho...

Eram como eu.

— Menina, eu e meu marido amamos Slipknot — Alice falou em tom doce, falando com a
Maya enquanto reparava a camiseta de banda que ela estava usando.

— Sério? — ela respondeu animada. — Você já foi no show deles?

— Ainda não, mas o Arthur é louco para ir — ela disse com um sorriso, com as duas subindo
pela rampa de metal, pegando as malas da Maya e descendo até o carro. — Ele é rockeiro desde que
tinha a sua idade.

— Sério?!

— Aham — Alice concordou descendo, colocando as malas dentro do porta-malas do carro.


— Nós acabamos de nos mudar pro interior, e na casa nova tem uma sala só para ele ouvir música e
tocar guitarra.

Era engraçado como em menos de cinco minutos de conversa, ela e Maya haviam formado uma
amizade.

O mundo à nossa volta parecia um lugar caótico, com tanta gente indo e voltando por entre as
barracas carregando de tudo o que se imaginava em carros e caminhões, com o próprio Danny
começando a descer alguns barris e os colocando ao lado do avião.

Estávamos escondidos em meio à multidão.

— Ela se dá muito bem com crianças — Gabriel falou se aproximando enquanto eu ajudava
Hugo a descer as malas até o carro que ele ia. — Ele falou que vocês estavam no hospital em Praga...

— Estávamos sim — respondi colocando a mala do Hugo junto as da Maya, que agora estava
no banco de carona do carro escolhendo a playlist da viagem junto com Alice.

— Eu não consigo imaginar como deveria ser aquele inferno — ele disse passando os dedos

pela barba, olhando para mim e para Hugo com um olhar carregado de lembranças. — E sou capaz
de apenas imaginar tamanha a sua coragem de estar disposta a entrar naquele lugar novamente.

— Eu não quero que nenhuma outra pessoa saiba o que é viver em um lugar como aquele —
respondi, ajudando Hugo a encontrar o banco do carona.

— Mas isso não muda o fato dela ser maluca — Hugo disse, se apoiando na bengala.

— Hugo! — exclamei enquanto dava um chute na bengala, fazendo ele perder o equilíbrio e
cair para dentro do carro.

— Ele vai passar as próximas horas em um carro com você, é melhor saiba onde está prestes a

se meter — ele falou rindo, se ajeitando no banco.

— Eu entendo pelo que você está passando — Alice disse, sentada no banco do motorista, com
o rosto mergulhado em um sentimento que eu conhecia muito bem. — Também tive que voltar para o
meu próprio inferno... E mesmo que em algum momento tudo pareça impossível, saiba que tudo o que
você passou te tornou mais forte.

“Tudo o que você passou te tornou mais forte...”

Repeti aquela frase em minha mente, conseguindo entregar apenas um sorriso como resposta.

Alice saiu do carro, assim como Maya, e as duas vieram até mim.
— Vem cá, obedece a Alice e o marido dela, viu? — falei me abaixando para ficar na altura

dela. — Nada de encher o saco dos dois com um mundo de perguntas.

— Não posso prometer nada — ela respondeu vindo em minha direção, me envolvendo em um
abraço apertado.

Senti o cheiro do cabelo dela, com a minha mente indo para época em que aquela mocinha era
apenas uma criança...

Em tudo o que passamos juntos.

Deixei que ela saísse do meu abraço, tentando memorizar como era tê-la ali, seu cheiro, sua
voz, seu sorriso...

— E você, vê se não gasta o dinheiro que a gente não tem em cigarros, viu? — falei dando um
chute leve na perna de Hugo que estava para fora da porta.

— Não prometo nada — ele respondeu rindo. — Vê se não morre, viu?

— Não vou — respondi enquanto sentia meu coração batendo firme no peito. — Alguém vai
precisar cuidar de você quando terminar de carbonizar o seu pulmão.

Fechei a porta do carro, deixando Hugo voltar a colocar seus fones de ouvido e se ajeitando no

banco.

— A cidade onde a gente mora não é muito longe daqui, e garanto que eles vão estar em boas
mãos — Alice falou me dando um abraço apertado. — Seja forte, viu? Vai dar tudo certo.

— Obrigada... — respondi devolvendo o abraço.

Acompanhei com os olhos ela voltando para o carro, e saindo dali, deixando apenas eu e
Gabriel ali, observando enquanto eles se perdiam na multidão.

Segurei o choro que crescia dentro de mim, tomando conta da minha garganta como um nó, me
fazendo olhar em volta, tentando fazer minha mente se afastar de qualquer paranoia sobre como o
plano que tínhamos era frágil e fácil de se perder em meio a todas as possibilidades.

Olhei para trás, vendo Danny terminando de tirar os barris que estavam no avião, enquanto

Billy cumprimentava dois homens de cabelo ruivo que haviam acabado de chegar, então achei melhor
não atrapalhar os negócios deles.

Ajeitei a mochila que estava nas minhas costas e me virei para Gabriel, que observava os
barris do I.R.A, marcados pela bandeira e por um trevo de quatro folhas.

— Aquilo não me parece bebida — ele falou levantando uma sobrancelha. — Pronta para a
viagem até Bariloche?

— Claro! — respondi sem hesitar, aproveitando para dar uma última olhada ao redor e então
indo em direção ao carro.

— Hey... Onde pensa que está indo? — ele falou rindo. — Achei que estava com pressa.

Olhei para o Padre que estava rindo me vendo tentar abrir a porta do carro, me fazendo franzir
a sobrancelha.

— Nós não vamos para lá?

— Leva trinta horas para ir de carro, e Ben falou que vocês estavam precisando chegar lá de

preferência no mesmo dia... — Gabriel disse rindo enquanto se virava e começava a caminhar para a
lateral do avião dos irlandeses. —Então falei com Arthur que tem amigos aqui no Brasil que estavam
devendo um favor para ele, então vamos com algo um pouco mais rápido.

Segui ele, enquanto caminhávamos pela grama até que eu pudesse enxergar o que estava ao
lado do avião...

Um helicóptero.

— E, claro que eu não ia negar a chance de voltar a pilotar — Gabriel disse enquanto íamos
em direção a aeronave.
Respirei fundo, sabendo que se desse tudo certo, eu chegaria um pouco antes dele no hospital,

o que me daria tempo para tentar entender o que realmente estava acontecendo naquele lugar.
“Aquele júbilo, aquela loucura. Os deuses deviam sentir-se assim em todos os momentos

durante todos os dias. É como se o mundo ficasse mais lento. Você vê o atacante, vê que ele está
gritando, mas não ouve nada, e sabe o que ele fará, e todos os movimentos dele são muito lentos e
os seus são muito rápidos, e nesse instante você não pode fazer nada errado, você viverá para
sempre e seu nome será gravado no céu numa glória de fogo branco porque você é o deus da
batalha.”

BERNARD CORNWELL
Existia uma grande diferença entre matar um homem com um disparo e matar alguém usando

uma lâmina.

Atirar em uma pessoa era como desligar uma chave.

Um clique no gatilho e aquela pessoa se tornaria apenas um corpo inerte no chão...

Rápido e fácil.

Mas uma lâmina cobrava mais de quem a usa, demandava mais habilidade e sangue frio,
porque muitas vezes, apenas um golpe não era o suficiente para matar...

Uma faca no peito, por exemplo, podia se tornar extremamente desastroso caso você errasse o
ângulo e sua faca acabasse sendo presa entre as costelas, podendo até quebrar dentro da caixa
toráxica do alvo.

E é claro, além da dificuldade estar próximo o suficiente do alvo, alguns golpes letais podiam
não ser tão eficientes assim.

Uma pessoa conseguia sobreviver até sete minutos depois de ter seu pescoço cortado, claro
que isso dependia do ângulo e da lâmina usada, mas você sempre precisava trabalhar com o pior dos
casos.

A não ser que você conhecesse o suficiente sobre o corpo humano para saber onde cortar.

Apesar de ter o título de médico de combate, nunca tive exatamente uma aula de medicina,
afinal, o exército nunca esperou que nós sobrevivêssemos as missões... Esse nunca tinha sido o
objetivo, então eu estava muito mais para um enfermeiro de combate.

Mas era o suficiente para que eu soubesse exatamente onde cortar para atingir alguns objetivos
específicos.

Um corte profundo no diafragma e o alvo perdia completamente a capacidade de respirar por

conta própria...

E quem não respirava, não podia falar.

Claro que a pessoa ainda podia insistir em grunhir ou gemer de dor alto o suficiente para
chamar a atenção de quem estiver ao redor... Então para resolver o problema a única maneira de
garantir uma morte rápida e instantânea era pela nuca ou órbita ocular.

Um golpe forte e seco... Mas para isso eu precisaria de espaço.

— O que... O que você vai fazer? — Simon perguntou, sentindo o aço atravessando a sua
camiseta, encostando em sua pele.

— Se você ficar quieto, não vou fazer nada — falei tentando manter a voz o mais calma
possível. — Nós vamos seguir o voo, tranquilamente, e chegando lá você vai passar mal e pedir para
não participar da missão.

— Não...

— Simon, isso não é uma opção, entendeu? — falei, mas ainda mantendo a voz o mais calma

possível. — Isso é um aviso, e eu só vou dar mais um deles antes de tomar uma medida de contenção
de danos, entendeu?

— Entendi... — Simon respondeu, se ajeitando na poltrona, enquanto seu rosto era tomado por
uma expressão de pavor, enquanto ele suava frio, abrindo e fechando as mãos.

Aquilo era pânico.

E isso era uma aposta...

Quando alguém estava em pânico, existiam duas reações possíveis e contrárias que pessoas
costumavam tomar:
A primeira era se paralisar, temendo pela própria vida, pelo seu futuro, o de seus filhos,

sobrinhos, netos, ou seja, lá o que eles tivessem.

E a segunda reação era algo brusco e alarmante...

Uma descarga desastrosa de coragem e impulsividade, tomando o indivíduo por uma fúria tão

grande que ele acha possível fazer qualquer coisa, não importando o quão suicida podia ser...

E esse era o meu maior medo no momento.

— Por quê... Por que você está fazendo isso? — ele perguntou, engolindo em seco antes de

continuar a falar. — Merda... Você é um assassin...

Antes que ele fosse capaz de continuar, deixei a lâmina correr levemente por sua pele, apenas
para lembrá-lo sobre quem estava no comando daquela situação.

Me aproximei mais dele, o suficiente para que fosse capaz de sentir seu medo.

— Strauss é um demônio, matando pessoas para poder tirar seus órgãos, deixando crianças em
cativeiro e as obrigando a viver em celas... — falei baixo, mostrando o quanto aquilo era sério,
deixando a raiva escoar pelas minhas palavras. — Eu já o impedi uma vez, salvei centenas de
pessoas das mãos dele... E depois ele mandou homens atrás de mim e os desgraçados mataram a

minha esposa...Eles cortaram a cabeça dela fora com a merda de um cutelo, e depois foram atrás do
meu filho... Ele tentou se esconder, mas o acharam e cortaram a sua garganta...— falei tentando
manter o tom baixo, sentindo a raiva que esquentava meu corpo e chocava o homem, que mordia os
lábios enquanto raspava as unhas contra o tecido da calça.

— Isso aqui não é sobre dinheiro, é pessoal — continuei —, seu pai foi assassinado sem
motivo algum, mas minha mulher foi morta porque eu salvei vidas, isso aqui é apenas justiça.

— Justiça... — ele falou baixo com os olhos fixos na poltrona da frente. — Se existe alguma
forma de justiça, ela não está do seu lado.
— Simon, você é um garoto que perdeu muita coisa, e eu entendo o fato de você ter encontrado

algum conforto com pessoas que parecem se importar — expliquei recuando um pouco meu corpo,

mas mantendo minha faca ali. — Mas é apenas isso, eles se importam com uma causa, não com as
pessoas envolvidas.

— Não fale sobre o que você não conhece, porque eles são pessoas boas — ele falou com uma
certeza preocupante na voz. — São seres humanos com famílias, esposas e... Filhos... E você vai
fazer o que, matar cada um deles a sangue frio?

— Simon, me escuta, não é isso que...

— Não me venha com desculpas, porque é isso que você veio fazer aqui... — ele continuou,
com sua respiração se tornando cada vez mais ofegante. — Quantos você está disposto a matar? Ou
melhor, quantas vidas você já tirou? Porque você é só um assassino, como qualquer outro...

— Eu nunca matei alguém que não merecesse morrer — respondi tentando tomar o controle da
situação.

Mas já era tarde.

— Eles mereciam?! E quem falou que mereciam? — E se virando para que pudesse me olhar

nos olhos, pude ver que ele chorava. — Quando foi feito o julgamento dos homens que você matou?
Quando eles tiveram a chance de se defenderem?

— Simon...

— Tem mais de quarenta homens aqui, e você está sozinho... Se eu não falar nada quantos você
vai matar quando tiver a chance, hein? Porque se eu gritar você não vai ter a chance de pegá-los de
surpresa, não é mesmo? — Assim que terminou de falar, ele mordeu os lábios, enquanto afundava
suas unhas na própria perna.

— Simon, não é assim que a gente vai...


— VON HAUSSER É O ASSASSINO! — Simon gritou, tão alto que sua voz vibrou grave

contra meus ossos no mesmo instante em que uma carga de adrenalina tomou conta do meu corpo, e

assim que ele terminou, eu podia sentir os olhos de todos em mim... E com um olhar frio e calmo, ele
me olhou novamente. — Contenção de danos...

Aquelas foram suas últimas palavras.

Joguei meu corpo para frente, empurrando a faca entre as suas costelas em um movimento
brusco, sentindo a resistência na lâmina quando ela atravessou seu pulmão, e quando ela estava quase
toda cravada no peito, apertei o cabo com força e a empurrei, seguindo o vão das costelas, até que

sentisse a faca batendo na caixa toráxica.

Nos olhos do homem que morria à minha frente, de alguma forma, eu vi paz, enquanto seu
sangue ainda quente escorria pelas minhas mãos.

O caos tomou conta do avião, enquanto eu era capaz de sentir as vibrações no chão de todos os
homens que pulavam das suas poltronas apenas para que pudessem vir na minha direção.

Deixei aquela faca ali, cravada no peito do garoto, enquanto me virava de forma brusca,
tentando entender o estado em que aquele lugar já estava, mas a única coisa que fui capaz de ver foi
um dos homens que estavam sentado ao meu lado, pronto para se jogar contra mim.

Deixei meu peso cair para trás, tentando me equilibrar o suficiente para me impulsionar para
frente, deixando que minha bota acertasse o centro do peito do homem alto e magro, fazendo com que
seu corpo fosse arremessado contra a parede do avião.

Olhei para o lado, apenas para ver o mar de homens que se formavam no corredor, com muitos
deles se jogando um sobre os outros, correndo para ver qual deles colocaria a mão em mim primeiro.

Puxei a outra faca que havia em minha cintura, indo para o corredor do avião, quase sendo
empurrado pelo primeiro homem que fazia a linha de frente daquele pequeno exército.

Brandei minha faca no ar, a segurando firme enquanto ela passava em direção ao pescoço do
homem que estava tão focado em sua investida contra mim que não foi capaz de ter reflexo algum

quando minha lâmina rasgou a carne do seu pescoço, fazendo com que o sangue jorrasse ao redor.

Com a mão livre, agarrei o colarinho da camisa que ele usava e joguei o corpo que se debatia
para o lado, mostrando o homem baixo que avançava, e quando ele viu a faca em minha mão, colocou

a dele contra o rosto, fazendo questão de não parar o avanço contra mim.

Chutei o peito dele, fazendo com que seu peso servisse como um escudo, empurrando o resto
dos homens para trás, que gritavam e grunhiam com raiva o suficiente para fazer todo o chão do
avião estremecer.

— MATEM O FILHO DA PUTA! — um homem gritou, pulando das poltronas para cima de
mim.

Ele deveria ter a minha altura, careca e com o rosto marcado por tatuagens, usando uma
camiseta preta larga.

Deixei que o corpo dele fizesse força contra a lâmina que eu esticava em direção ao seu
estômago, com minha mão agarrando a gola da sua camisa, o jogando para o outro lado, sobre as
poltronas vazias que estavam no fundo do avião, me liberando espaço para que pudesse continuar.

O homem baixo já estava a poucos centímetros de mim, ainda com as mãos sobre o rosto.

Trouxe a faca para perto do meu corpo, ganhando espaço para que pudesse acertar um soco nas
mãos do homem com a mão que estava segurando a lâmina.

As mãos dele foram arremessadas para o lado, com a faca correndo pelo rosto do homem, que
gritou no momento em que a ponta da lâmina atravessou seus olhos, raspando nos ossos do seu
crânio.

Antes que eu pudesse fazer qualquer outra coisa contra o homem, ele parou de correr, o que foi
o suficiente para que ele fosse engolido pela multidão, sendo jogado em direção ao chão.
O cheiro de sangue começava a aparecer, metálico e forte, enquanto meu coração batia

desesperado em meu peito, fazendo com que eu fosse capaz de escutar cada pequeno batimento dele.

Meu sangue corria com tamanha força que eu fui capaz de senti-lo, latente em minhas mãos que
já estavam marcadas pelo vermelho.

Mas eu sabia...

Sabia que aquela era uma guerra perdida.

Eram mais de quarenta homens contra mim, e mesmo que ainda tivesse minhas facas, não seria

o suficiente para que pudesse escapar por aquela lata de sardinha nazista.

Hesitei por um instante, enquanto observava quase em câmera lenta os homens que urravam,
correndo enquanto batiam uns contra os outros em minha direção, pisoteando o corpo do colega ainda
vivo que havia caído contra o chão.

A única coisa que eu queria evitar era ser levado ao Strauss...

Não queria me tornar uma de suas cobaias ou doadores.

E a única maneira de ter a certeza de que isso não aconteceria, era com um único corte,
rasgando minha garganta, e em questão de minutos seria o meu fim.

O fim da guerra...

Da dor.

Segurei a faca com força, torcendo para que ainda estivesse afiada o suficiente, mas não fui
capaz de apontá-la contra mim mesmo, porque ali, em meio ao caos, a única coisa que tomava conta
da minha mente era ela...

Seu cabelo cor de fogo bagunçado enquanto dormia, com seu cheiro tomando conta de mim.

Aquela mulher...
Eu havia chegado perto... Tão perto...

Depois de tudo, eu tive uma nova chance...

Eles poderiam tirar minha vida, mas nunca teriam sido capazes de tirar aquilo de mim.

Aquela era a minha vez de atacar.

Apoiei meus pés no chão que já estava sujo de sangue e avancei contra o primeiro homem da
fila, que para minha sorte era mais alto e mais forte do que eu.

Deixei que minha faca atingisse seu diafragma, rasgando carne e tecido enquanto o impacto do

corpo dele sendo arrastado por dezenas de pessoas me atingia, fazendo com que eu fosse arrastado
para trás.

Girei a lâmina dentro do corpo do homem, fazendo com que ele urrasse de dor alto o suficiente
para que assustasse os homens ao redor.

Aquela era a minha oportunidade.

Agarrei o pescoço do homem que se debatia, já perdendo o fôlego, e aproveitando o escudo


humano, continuei avançando por entre o corredor, com os homens que estavam à minha frente caindo
para os lados.

Eu precisava chegar à cabine do piloto.

Aviões assim tinham um console padrão, simples de pilotar, e com a rota já programada eu só
precisava trancar a porta e deixar com que ele seguisse seu curso, e quando chegasse na pista de
pouso, abriria a porta do piloto e me jogaria com um paraquedas, deixando que o avião caísse em
qualquer lugar da montanha.

Aquela era a minha chance.

Minha última chan...

Era engraçado como tudo podia mudar em questão de segundos... Porque antes mesmo que eu
pudesse me dar conta do que estava acontecendo, senti meus pés saindo do chão.

Olhei em volta, observando os outros homens, que agora pareciam flutuar como gravidade

zero, com muitos debatendo os pés, com a esperança que isso, de alguma forma fosse o suficiente
para levá-los ao chão.

O corpo do homem que segurava, que já estava com sangue escorrendo por entre sua boca, se
tornou leve, enquanto ele continuava se debatendo, sem entender o que estava acontecendo.

Merda... Aquilo era uma turbulência.

E tão rápido quando começou, ela acabou.

Meu corpo foi arremessado com violência contra o chão, assim como o de todos os homens ao
meu redor.

E na queda, senti minha nuca batendo contra o braço de uma das poltronas, no mesmo instante
em que minha boca foi inundada pelo gosto do sangue.

Minha visão no começo havia se tornado completamente escura...

Mas depois, tudo se tornou ela.

— Sophia... — falei, observando seus olhos castanhos que me encaravam enquanto ela abria

um sorriso.

E para mim, só restou o frio.


“Quando uma criatura humana desperta para um grande sonho e sobre ele lança toda a

força de sua alma, todo o universo conspira a seu favor.”

GOETHE

Observei o chão abaixo dos meus pés.

Era engraçado o quanto a vida dava voltas de maneira tão brusca que muitas vezes não éramos
capazes sequer de acompanhá-la.

Há dois dias eu estava na Alemanha, servindo bebida em uma célula nazista, imaginando se um

dia eu realmente iria conseguir colocar as mãos em Strauss...

E agora eu estava sobrevoando a Argentina, sabendo que quando essa viagem terminasse, tudo

o que eu sempre sonhei...

Tudo o que mais queria e fantasiava na vida...

Estaria acabado.

Minha mente era tomada pela ansiedade da dúvida, afinal era apenas isso que eu tinha...
Dúvidas, sobre como seria aquele lugar e principalmente o que eu poderia fazer para colocar um fim
naquele império da morte.

O helicóptero voava mais alto do que imaginava ser possível.

Por mais que ele parecesse agressivo e assustador pelo lado de fora, durante o voo ele chegava
a ser confortável, com o banco macio que quase abraçava meu corpo dentro da cabine do piloto.

Observei o painel luminoso à minha frente, tentando entender o que todos aqueles botões,
visores e alavancas faziam, enquanto Gabriel parecia pilotar como se estivesse simplesmente

dirigindo um carro.

Ajeitei os fones de ouvido enormes que quase cobriam meu rosto, olhando para trás, onde os
outros assentos do helicóptero estavam cheios por duas bolsas pretas, cobertas com uma lona,
tentando imaginar o que seria aquilo.

— Algumas coisas nunca saem como o planejado. — Por mais que Gabriel estivesse ao meu
lado, o barulho das hélices era tão alto que seria impossível de ouvi-lo sem os fones, que tinham um
microfone felpudo embutido. — Aquele é o plano “B”.

— O que é? — perguntei, ouvindo minha própria voz sair robotizada pelos fones.
— Existe uma lei na Rússia sobre o que é um avião militar — ele começou a responder, com

um sorriso no rosto. — Se possui armas acopladas, ele é militar, se você tira as armas, ele é de

passeio... Mas nada impede de que as lojas certas vendam as armas separadas do conjunto do
avião.

Soltei uma risada vendo aquele homem falar.

Era estranho estar ali, mas para mim era ainda mais estranho estar com ele... Mais um dos
homens que já me salvou uma vez...

Tentei lembrar o que Benjamin falou sobre ele, e tudo o que consegui pensar naquele momento

era que ele era o mais velho, com a patente maior... Algo como o líder do esquadrão.

— Você se lembra de como era o hospital em Praga? — perguntei, voltando a observar pela
janela.

O chão abaixo de nós era uma mistura de uma floresta verde escuro, com as montanhas e
colinas tomando conta de todo o horizonte.

A neve e o gelo traziam para o lugar um clima único, com os lagos congelados refletindo a luz
branca do sol de inverno, enquanto por entre as colinas eu podia ver enormes blocos de gelo

azulados...

E tudo o que eu conseguia imaginar era como Maya iria querer saber de tudo sobre a viagem
quando me encontrasse.

Ela ia adorar ver esse lugar.

— Lembro... — ele falou suspirando, mexendo no controle de voo, fazendo com que
continuássemos subindo. — Deus está em todos os lugares, Sophia, em cada pequena parte desse
mundo... Sempre acreditei nisso... Mas quando entrei naquele lugar, cheguei à conclusão que em
algumas partes desse mundo, é como se o mal tivesse vencido... Mas Deus nos fez fortes para lutar
contra ele.
“Deus nos fez fortes...”

Por um instante era como se pudesse ouvir minha mãe falando...

Mãe...

Essa era a minha chance de saber o que houve com ela... Depois de tantos anos.

No começo eu a procurei, entre os livros e arquivos que havíamos pegado, mas era como se
ela nunca tivesse existido, esquecida em meio a tantos papéis e nomes... Depois comecei a procurar
na internet, no sistema da delegacia em meio aos desaparecidos...

E então comecei a procurar no obituário....

Mas seu nome nunca apareceu em nenhuma das listas.

— Eu não consigo imaginar como deve ter sido passar a infância em um lugar como aquele
— ele continuou, com os olhos fixos no horizonte. — Me conte, Sophia, você ainda acredita em
Deus depois do que aconteceu?

Eu não estava esperando uma pergunta como aquela...

— Depende do dia...

— Você acredita nele hoje?

— Só se eu conseguir sobreviver, acho que sim... — respondi, tentando imaginar o que minha
mãe acharia sobre aquilo. — Meus pais eram de uma família judaica, lembro de crescer em meio a
cultura... As orações em hebraico...

— É uma língua santa — ele respondeu. — Você parou de praticar?

— Minha mãe falava muito sobre a guerra e tudo que meus avós e bisavós passaram... —
Não sabia ao certo o motivo, mas algo em mim queria falar sobre isso. — Ela falou que quando os
soldados entraram nos alojamentos em Auschwitz, havia coisas escritas nas paredes de pedra, e
em uma delas um prisioneiro havia escrito “Se existe um Deus, ele terá que implorar pelo meu
perdão”.

— Sabe... Às vezes eu penso o mesmo — ele continuou falando, mas sua voz havia tomado um

tom completamente diferente. — Mas então eu acordo e penso em tudo o que já me aconteceu... Em
todas as oportunidades que eu tive de mudar o rumo da vida, quantas vidas eu fui capaz de

salvar... E quando eu olho para o horizonte e vejo algo como aquilo, começo a pensar se ele já não
pediu perdão por tudo... Mesmo sabendo que ele tem um plano para nós, um pai sempre lamenta
pelo castigo de um filho...

Enquanto ele falava, apontou para frente, onde a Cordilheira dos Andes crescia através da luz

fria do sol, coberta por uma camada grossa de neve, me fazendo torcer para que tivesse um casaco
dentro da minha mochila...

Por mais que aquilo fosse uma enorme reflexão sobre tudo o que eu nunca acreditei... Eu
entendia o que Gabriel queria falar...

“Tem uma oração...”

A voz de Danny passou rapidamente pela minha mente.

Por que teria uma oração escrita dentro da arma que Bran estava usando?

E se tinha alguém que entenderia sobre oração, era um Padre.

— Eu tinha um... Amigo... Dentro do hospital — falei puxando a arma do coldre devagar o
suficiente para que ele não imaginasse que eu tinha uma segunda intenção fazendo aquilo. — No meio
da confusão acabamos nos perdendo e ele voltou com essa arma, e quando estava limpando,
descobri que tinha uma oração escrita no metal, você sabe me dizer o que é?

Ele franziu as sobrancelhas, olhando para a arma em minhas mãos, e como resposta, eu tive
apenas uma gargalhada.

Tão alta que me obrigou a tirar um dos lados do fone.


— Seu amigo era um garotinho magro, de cabelo castanho, mais ou menos uns quinze anos?

— ele falou, descrevendo o Bran, me fazendo levantar uma sobrancelha.

— Como você sabe?

— Essa arma era minha, no meio da confusão ele apareceu assustado tentando tirar uma do

coldre de um guarda morto, mas ela já estava aberta sem munição, então perguntei se ele sabia
usar uma e quando respondeu que sim, dei minha pistola reserva para ele. — E apenas de ouvir
falar sobre isso, meu coração parou por um instante. — A oração que tem dentro dessa arma é a
mesma que eu e meus colegas fazíamos antes de uma missão... Você quer saber qual é?

— Quero... — respondi sentindo meu corpo todo arrepiar.

Não só por, mais uma vez, ver o destino rindo da minha cara enquanto ele me colocava dentro
do que parecia ser o roteiro de um livro, tão cheio de coincidências que me obrigava a imaginar qual
seria o próximo passo...

Mas também me arrepiei por ver ali, pouco abaixo de nós, eu podia ver...

Crescendo pela montanha, uma enorme parede de concreto com uma porta metálica que deveria
ter metros de altura, e ao seu redor, dezenas de carros, ônibus e a merda de um avião...

Havia chegado a hora.

A partir de agora, seria vida ou morte.

— Bendito seja o Senhor, minha rocha, que adestra minhas mãos para o combate e meus dedos
para a guerra — falei em voz baixa, enquanto caminhava pela neve.

Gabriel havia pousado o helicóptero na parte de trás de uma colina coberta por neve, com a

esperança de que ninguém houvesse percebido que estávamos ali.

Mesmo com o frio intenso, o clima parecia estável, sem previsões para uma nevasca mais

pesada que pudesse atrapalhar o voo de volta, mas a umidade do ar pesava nos pulmões, se tornando
presente a cada nova tentativa de respirar, enquanto o vento gelado batia contra minha pele.

A base da montanha era plana, com a rocha crescendo como uma muralha, com o topo
impossível de ser visto por entre as nuvens acinzentadas, se unindo ao resto da cordilheira que

rasgava o horizonte.

A neve era fofa e constante, deixando minha bota e meias molhadas assim que desci.

— Uma chance, é tudo o que você tem — Gabriel falou enquanto ia comigo até os pacotes
escuros de lona que estava carregando, com a barba sendo tomada por flocos de neve. —E uma
pistola não vai ser o suficiente... Você sabe usar isso?

Nas minhas mãos, ele colocou um fuzil.

Segurei a arma pesada nas minhas mãos, estranhando o peso e observando por entre um

pequeno quadrado metálico que estava em cima do cano.

— É simples — ele falou pegando outro para ele, mostrando as partes que completavam a
arma. — Esse botão solta o carregador e esse é a trava do gatilho, quando colocar um carregador
novo, puxa essa alavanca para trás.

Repeti os movimentos dele, agradecendo por ter assistido filmes de ação o suficiente para
reconhecer algumas coisas, com a esperança de que fosse o suficiente.

— Essa coisa em cima do seu cano é uma mira holográfica. — E com um toque em um botão
lateral do mecanismo, um pequeno ponto vermelho apareceu por entre o vidro. — É simples, coloque
o ponto sobre o que você quer acertar e puxe o gatilho, ele é calibre .556, não se preocupe com o

coice.

Além da arma, ele tirou um colete a prova de balas com mais cinco ou seis carregadores na
altura do peito, abrindo o velcro e me ajudando a vestir por cima da camiseta que estava usando,

agradecendo por ele ser quente...

Apesar de parecer que eu estava carregando a Maya no colo.

— Isso aqui eu acho que não preciso explicar como usar — Gabriel continuou enquanto puxava
uma granada de dentro da lona, fazendo meu corpo todo gelar.— Você segura esse gatilho aqui, puxa

o pino e jogue, mas se quiser mirar, ela não vai explodir até você soltar o gatilho, mas tente correr,
isso aqui faz mais estrago do que parece.

Ele tirou outras quatro granadas e as prendeu na lateral do meu colete, em pequenos suportes
onde eu só precisava puxar para que elas se soltassem, me fazendo torcer para que nenhum tiro as
acertasse em cheio.

— Onde você vai ficar? — perguntei, tentando memorizar onde estava cada coisa no meu
colete.

— Vou armar o helicóptero, o que vai demorar apenas alguns minutos, e depois vou subir para
dar apoio aéreo — enquanto falava, ele puxou um pequeno fone de ouvido e me entregou. — Vamos
nos comunicar por isso daqui, se alguma coisa acontecer você só precisa me falar, porque mesmo
que a montanha possa parecer segura, não deve ter um metro de rocha até as paredes internas, o que
não é nada para mísseis 12mm.

Ouvir aquilo, de alguma forma, era extremamente reconfortante.

— Benjamin já chegou? — ele perguntou, fazendo meu peito voltar a apertar.

— Não tenho certeza... — E aquele era o motivo da maior parte da minha ansiedade. — Eu
achava que ele ia ligar quando chegasse em algum aeroporto ou conexão...
Enquanto falava, coloquei o pequeno fone preso em minha orelha.

— Tem um avião particular parado ali na frente — Gabriel falou colocando o seu próprio fone

de ouvido. — Eles não podiam ter usado um particular para ganhar tempo?

E só de pensar na possibilidade de ele já estar ali dentro, senti meu sangue começar a

esquentar.

— É uma possibilidade...

— Não se preocupe com o bem — Gabriel falou, com sua voz agora saindo também pelo fone.

— Ele é muito mais forte do que parece... E olha que ele já parece forte pra caralho.

Rimos, olhando um para o outro, parando por um instante, enquanto meu olhar se perdia por
entre as nuvens carregadas que cortavam os céus acinzentados...

Eu esperei uma vida toda por esse momento...

Nunca havia pensado no que faria depois... E ainda não sabia ao certo o que esperar da vida
depois disso.

Mas ainda tinha uma certeza...

Eu queria passar o resto da minha vida ao lado do Benjamin.

Gabriel entrou dentro do helicóptero, procurando algo enquanto eu ainda estava imersa
naqueles pensamentos, e quando ele saiu, carregava um sobretudo em suas mãos.

— Toma, vai te ajudar com o frio — ele disse enquanto eu vestia o casaco que descia até quase
arrastar no chão, com meus pés afundando uns bons centímetros na neve fofa. — Ele é do Arthur, o
marido da Alice... Pelo menos eu acho que já é marido, não é fácil entender aqueles dois.

— Não posso julgar — respondi colocando as mãos no bolso do sobretudo, deixando o fuzil
pendendo em meu peito pela bandoleira.

— Tente não morrer, Sophia — Gabriel pediu, me olhando nos olhos.


— Digo o mesmo — respondi respirando fundo, deixando o ar gelado encher meus pulmões.

Com um abraço, nos despedimos, enquanto ele continuava mexendo nas lonas que estavam lá,

preparando o helicóptero, fazendo com que eu me perguntasse quanto tempo iria levar para que ele
pudesse me ajudar.

Era um espaço de quase duzentos metros de neve entre onde havíamos pousado e o que
pareciam ser as entradas de ar do hospital, com grades de metal cortando a montanha, como
Benjamin havia avisado que aconteceria.

Atravessei a neve, olhando para os lados, prestando atenção em qualquer movimento na neve.

O vento era frio e úmido, pesando nos pulmões, enquanto o frio era tanto que meu corpo estava
começando a ficar dormente nas extremidades, mas eu sabia que precisava continuar.

Não havia chegado tão longe para desistir.

Minhas botas começavam a pesar contra a neve fofa, me obrigando a usar cada vez mais força
para continuar seguindo em direção a abertura na pedra, já podendo ver a luz.

— O caminho está parecendo limpo — a voz do Gabriel falou no fone.

— Meu medo é que tenha alguém vigiando de cima da montanha — afirmei enquanto tentava

olhar para cima, sendo cegada pelo reflexo que o sol fazia contra a neve.

— Não que eu consiga ver daqui — ele respondeu, com sua voz sendo seguida pelo barulho
de metal batendo. — Não vou levar muito tempo para terminar de acoplar o armamento.

— Me deixe informada.

— Digo o mesmo — ele respondeu com a voz rasgada pela força que estava fazendo.

Enquanto caminhava, cheguei próximo o suficiente da abertura para que já pudesse sentir o
calor que emanava pelas frestas.

A grade de metal se parecia com a tampa de um bueiro, fixa na parede mais ou menos na altura
do meu peito, emanando calor e luz pelas frestas do metal, junto com a um barulho que não conseguia
entender ao certo o que era.

Me aproximei, ficando de frente para o lugar enquanto observava os cantos, procurando


qualquer abertura ou parafuso que eu pudesse usar para abrir, mas era como se não houvesse nada

que eu pudesse usar.

— Não estou conseguindo ver nenhuma abertura ou parafuso — falei o mais baixo possível no
fone.

— Você pode tentar atirar e torcer para que eles não escutem — Gabriel respondeu do outro

lado.

— Não sei se é uma boa ideia — disse enquanto olhava ao redor, até que encontrei algo de
estranho na neve. — Tem um tubo de metal subindo pela neve, como se fosse uma chaminé.

— Deve ser o respirador dos andares subterrâneos — ele respondeu enquanto eu caminhava.

Deveria ser como um grande tubo de esgoto, mas com a neve, havia apenas um metro para fora
da neve.

Ele devia ser grande o suficiente para que eu pudesse passar.

Segurei o fuzil com força e acertei a tampa frágil do cano com a coronha da arma, fazendo com
que o alumínio acabasse amassando na beirada da estrutura, fazendo com que eu precisasse de
apenas mais com golpe para abrir espaço o suficiente para que eu conseguisse puxar a tampa para
fora com as mãos, sentindo o metal congelando contra os meus dedos.

— Você consegue ver até que profundidade ele vai? — Gabriel perguntou do outro lado.

Olhei para dentro do cano metálico, mas tudo o que eu pude ver era escuridão.

— Não, está tudo escuro — respondi colocando o fuzil de volta na bandoleira, deixando que
ele ficasse pendente ao meu peito. — Mas é isso ou nada.
— Tome cuidado, tente descer com calma — Gabriel falou, mas não era nada que eu já não

houvesse feito antes.

Subi na estrutura, apoiando meus pés contra a parede da frente, torcendo para que a neve não
houvesse os deixado escorregadios demais, e então me deixei escorregar, apoiando as costas na outra

parede.

Fiz força para esticar as pernas o máximo possível, fazendo pressão com meu corpo para que
pudesse me manter no mesmo lugar, e com o movimento de andar para trás, comecei a deixar que
minhas costas escorregassem aos poucos.

— Espero que você não tenha caído de costas no chão — Gabriel falou no fone.

— Ele era estreito o suficiente — cochichei de volta, tentando manter o ritmo na descida, até
que senti o metal cedendo ao meu peso.

Olhei para onde estava pisando, separando meus pés para que pudesse prestar atenção no metal
entre eles.

Tirei o fuzil do ombro, o segurando solto entre as mãos e forçando o cano da arma contra a
parede do túnel, que começou a rasgar...

Aquilo não era metal.

Trouxe o fuzil para trás, e em uma estocada, senti a ponta da arma rasgando o tecido, abrindo
espaço para que a luz pudesse entrar, iluminando o espaço onde eu estava.

Olhei para baixo, procurando onde estaria o final, mas tudo o que consegui encontrar foi mais
escuridão...

Aquilo estava longe do fim.

Passei a arma, tentando abrir caminho pela abertura que parecia ter cerca de um metro de
altura, com pouco mais disso de largura, e apesar da luz, aquilo ser apenas um duto lateral.
— Encontrei algum tipo de tecido na parede do túnel, mas acho que ele dá para mais um duto

— falei baixo no fone.

— Isso deve ser isolante térmico — Gabriel disse. — É um bom sinal, você deve estar em
algum lugar movimentado.

Terminei de tirar todo o tecido grosso da parede, com a pouca luz que vazava me ajudando a
ter uma dimensão melhor de onde e como eu estava, e então eu comecei a rodar dentro do túnel,
andando para os lados até que minhas costas estivessem quase alcançando o duto.

Eu precisaria de impulso para que conseguisse entrar lá, e só conseguiria impulso usando as

pernas.

Quando estava a poucos centímetros acima da abertura na parede, respirei fundo, torcendo para
que aquilo desse certo, e me deixando cair, chutei a parede com toda a força que tinha.

Aquela queda pareceu durar uma eternidade, enquanto eu lutava para manter meus olhos
abertos, tentando ver para onde havia ido...

Apenas para sentir minhas costas acertando em cheio o chão metálico do duto.

— Consegui! — falei baixo, comemorando. — Estou dentro.

— Graças a Deus! — Gabriel comemorou.

Respirei aliviada, começando a engatinhar pelo lugar apertado, tentando enxergar algo pelas
frestas que estavam abaixo de mim, e foi como se todas as minhas lembranças...

Aquele era um corredor branco.

Com o mesmo maldito tom de branco...

Tentei encontrar algum sinal de onde estava, se aquele era uma ala de celas, parte cirúrgica ou
até mesmo a recepção... Mas não conseguia ver nada além do chão do lugar.

Continuei seguindo por lá, mapeando os corredores enquanto não era capaz de ver ninguém
andando...

Isso era estranho.

— NÃO! — Ouvi uma voz feminina gritando alto em inglês carregado de sotaque espanhol
vindo de poucos metros de distância na minha frente. — ELE NÃO, POR FAVOR! ME LEVA.. ME

LEVA!

A voz de desespero era marcada pelo choro, tão desesperada...

Acelerei o passo, chegando lá o mais rápido possível, sentindo meu coração bater forte no

peito.

— Senhora, nós precisamos dele. — Outra voz feminina pareceu vir do mesmo lugar.

Deitei no chão, bem em cima de onde as vozes estavam vindo, com a esperança de ouvir
melhor a situação e encontrar onde exatamente elas estavam.

— ELE É SÓ UMA CRIANÇA... VOCÊS NÃO PODEM! — a mulher que estava chorando
gritou mais uma vez...

Não precisava de mais uma dica para entender o que estava acontecendo.

Era arriscado... Eu sabia que era...

Mas não era como se eu fosse capaz de deixar que isso continuasse acontecendo... Eu não ia
deixar outra pessoa passar por aquilo, não na minha frente.

Segurei o fuzil com força em minhas mãos, e com uma coronhada, acertei a chapa de metal que
estava embaixo de mim.

Em questão de segundos eu estava caindo em direção ao chão.

Coloquei o fuzil apoiado em meu ombro, acompanhando com os olhos durante a queda as duas
figuras que estavam à minha frente.
Havia duas pessoas, um guarda alto de cabeça raspada, vestido com o terno branco que

insistiam em usar, com uma pistola no coldre em sua cintura.

A outra era uma enfermeira, usando um jaleco branco fechado.

Não tive dúvidas em quem atirar primeiro.

Meu dedo correu pela arma, parando no gatilho enquanto eu alinhava o pequeno ponto
vermelho da mira no peito do guarda, puxando o gatilho duas vezes o mais rápido que pude, sentindo
o impacto da arma contra meu ombro.

Vi uma pequena bola de fogo sendo cuspida pelo cano de arma e no mesmo instante o corpo do
guarda caiu em direção ao chão, com uma nuvem de sangue voando de suas costas.

Os olhos da enfermeira correram do corpo do homem de volta para mim a tempo para que
fosse a próxima em minha mira, e com mais uma puxada no gatilho, havia agora dois corpos no chão.

Corri em direção a porta da cela, mantendo o passo firme e o fuzil em mãos, enquanto era
capaz de ouvir a voz de Gabriel preocupada no fone de ouvido, mas com a adrenalina correndo forte
em minhas veias.

Olhei para dentro do quarto, apenas para sentir meu coração sendo atingido pelas piores

lembranças que tinha...

Era um quarto idêntico ao meu, mas dessa vez ele não tinha janela alguma, no chão, encostados
na cama, havia uma mulher mais velha, com mais ou menos trinta anos, com os cabelos curtos o rosto
abatido, com os olhos arregalados em minha direção, segurando um menino de no máximo quatro
anos entre seus braços.

— Quem... Quem é você? — ela perguntou, com a respiração ofegante, apertando o filho contra
o peito.

— Eu vim ajudar — falei entrando no quarto, olhando para o corredor, esperando a hora em
que mais guardas iriam aparecer. — Está tudo bem?

— Es.. Estamos sim — ela respondeu me olhando de cima a baixo. — De onde você veio?

— Sou do exército — menti, sabendo que assim seria mais fácil dela confiar em mim. — Está
tudo bem com você e com seu filho?

— Está... Está sim... Muito obrigada... — Pude ver em seu rosto as lágrimas que brotavam aos
poucos, escorrendo pelo seu rosto.

— Eu preciso saber, você viu se chegaram alguns homens aqui hoje? — perguntei, dando uma

olhada no fuzil, tentando saber se estava tudo certo com a arma.

— Não sei... Não... — ela falou, ainda em choque pelo que havia acontecido.

E por mais que eu quisesse tornar aquilo o menos traumático possível, eu precisava saber o
que estava acontecendo...

Cortei a distância entre nós, indo em direção a mulher que me olhava ainda desconfiada,
jogando o filho para trás, se usando como escudo.

— Olha... Eu sei como é estar no seu lugar, porque eu já estive aqui, em um quarto como esse
— falei enquanto me abaixava, olhando a mulher nos olhos. — E eu estou aqui para acabar com esse

inferno... Mas para isso eu preciso saber o que vou enfrentar.

Os olhos dela grudaram nos meus, como se ela finalmente entendesse o que estava
acontecendo.

— Chegaram pessoas hoje... Não sei dizer quantas, mas o barulho era como o de um avião...
Depois disso, eu ouvi muitas pessoas falando ao mesmo tempo, algumas estavam gritando em alemão
ou russo... Eu não sei diferenciar — ela contou, ansiosa, com a voz ainda rouca pelos gritos.

E aquilo era tudo o que eu precisava saber... Porque agora tinha a certeza de que Benjamin
estava aqui.
Mas eu ainda precisava ajudar aquela mulher...

Precisava ajudar todos os que estavam naquele lugar.

— Essa é a ala dos doadores? — perguntei, vendo os olhos da mulher se arregalarem.

—Sim!

Fui correndo até a porta, atravessando o quarto todo em um único salto, e então observei o
corredor...

Ele era exatamente como eu me lembrava, com a luz branca que deixava todo o lugar em um

tom mórbido, combinando com a cor sem vida que cobria do chão ao teto.

E nas paredes não havia nada além de setas vermelhas, que serviam para orientar os
enfermeiros.

Todas as portas que estavam do mesmo lado do corredor, separando os quartos de cada um
deles, tentando imaginar quantas pessoas estavam presas naquele lugar...

E principalmente quanto tempo levaria para o resto dos guardas chegarem.

Tomada pela pressa e a ansiedade, fui correndo em direção ao guarda morto, procurando algo
que ele estivesse usando como chave, até encontrar no bolso da sua camisa um cartão de

identificação.

Olhei para a porta que estava aberta, e quando vi o leitor eu senti meu coração bater forte no
peito.

Corri em direção a porta ao lado que ainda estava trancada, onde havia uma placa escrita
“rins”, indo direto ao leitor digital, passando o cartão sujo de sangue com a esperança de que ele
funcionasse.

Quando o visor foi tomado por uma luz verde, a porta se abriu com um solavanco.

Olhei em direção ao quarto, onde um garoto quase da idade do Hugo estava com as costas
coladas na parede, vestido com a mesma roupa branca que nos davam...

Seus olhos assustados se encontraram com os meus, mas não fiz questão de explicar.

— SOPHIA, ESTÁ TUDO BEM?! — A voz de Gabriel gritou no meu ouvido.

— Aqui onde eu estou, na direita do respirador, aqui é a ala dos doadores — falei enquanto
corria para a porta do lado, repetindo o processo. — Elas confirmaram a chegada do avião e disse
que eles estavam gritando em alemão.

No momento em que abri aquela porta, uma mulher saiu correndo por ela, se esbarrando contra

mim com força o suficiente para que eu fosse arremessada em direção ao chão...

Mas quando uma mão me segurou, eu olhei para cima, vendo a mulher com o filho.

— Deixa que eu abro as portas, vai atrás dos outros! — a mulher falou me colocando de pé.

E mesmo que eu quisesse abrir porta, por porta, daquele lugar... Sabia que Benjamin
provavelmente estava precisando de mim.

Deixei o cartão na mão da mulher, que segurou as dela na minha por um instante, com os olhos
ainda marejados, e ali eu soube o que aquilo significava...

Sabia como era estar naquela posição...

— Onde ficam as outras alas? — perguntei para ela enquanto via a mulher correndo em
direção a próxima porta, mas não antes dela sinalizar um não com a cabeça.

— Qual delas? — A voz fraca do rapaz que havia soltado chamou minha atenção.

Ele estava na porta do quarto, com o rosto marcado pelo medo, me encarando como se eu fosse
um fantasma.

— Onde o Strauss fica? — perguntei fazendo-o arregalar os olhos quando ouviu o nome.

— Ele tem uma sala própria, na ala cirúrgica... — ele falou cerrando os pulsos. — Eles
estavam com meu irmão mais novo e me fizeram trabalhar de faxineiro...

— Consegue me levar até lá?

— Consigo — ele falou respirando fundo. — É por aqui!

Então ele começou a correr em direção à minha direita, fazendo com que eu o seguisse
enquanto acompanhava com os olhos a mulher que estava correndo de porta em porta, libertando as
pessoas dos quartos.

Ali eu sabia que já havia feito a diferença...

Mas não ia ser o suficiente... O lugar era frio demais para que eles pudessem sair andando
daqui... Íamos precisar de apoio.

— Gabriel! — gritei no fone enquanto corria, tentando me manter o mais perto do garoto
possível.

— Sim?

— Vamos precisar de apoio, esse lugar é frio demais para que essas pessoas saiam apenas
andando daqui — falei sentindo o peso do colete batendo contra o meu corpo a cada passo que eu
dava.

— Quer que eu chame quem? O exército? A O.N.U? Os Ceifeiros? — ele perguntou enquanto
eu pude escutar o barulho das hélices do helicóptero começando a rodar.

— Todos eles! — disse enquanto fazia uma curva brusca para a esquerda, acompanhando o
garoto que havia entrado com tudo para um novo corredor.

O novo corredor dava em direção ao que parecia ser uma antessala ampla, com o carpete
ganhando tons de vermelho com detalhes em dourado, com algumas cadeiras e sofás espalhados,
bem-iluminados por um lustre luxuoso que pendia do teto com uma luz amarelada.

Aquela deveria ser uma sala de espera central.


Antes que nós pudéssemos continuar o caminho, ouvi um estampido alto e seco, e em seguida

vi um pedaço de gesso voando da parede à minha frente.

Me virei, já com o fuzil apontado em direção da onde vieram os disparos, para encontrar dois
homens que estavam nos seguindo, os dois vestidos com o terno branco dos seguranças, um com a

arma em punho e o outro já estava levando a mão para o coldre.

— NÃO PARE DE CORRER — gritei, apoiando a arma no meu ombro um instante antes de
puxar o gatilho.

Segurei a arma com força, sentindo o fuzil pular a cada novo disparo que eu dava em direção

aos homens.

O primeiro e o segundo disparo foram em cheios no homem que estava armado, um no peito e o
outro na altura do estômago, fazendo com que seu corpo sofresse com o impacto, enquanto o sangue
voava, manchando as paredes brancas de vermelho.

Mas meus outros dois tiros erraram o alvo, com um deles acertando a esquerda do guarda que
já estava sacando a arma e o outro quebrando o lustre sobre nós.

— MERDA! — gritei enquanto tentava alinhar a mira novamente no homem, mas antes que eu

conseguisse, a mão do garoto agarrou meu sobretudo, me puxando para uma porta de madeira que
estava em um dos cantos da sala.

Meu corpo caiu sobre os degraus de uma escada, a tempo de ver quatro tiros batendo contra o
chão de onde eu estava poucos instantes atrás.

Subi engatinhando alguns degraus e então parei, ainda na escada, apoiando o fuzil entre minhas
penas, mantendo a mira em direção a entrada da escada.

Primeiro fui capaz de ouvir os passos do homem vindo em minha direção, em seguida pude ver
sua sombra surgindo, balançando para os lados graças ao lustre que havia acabado de tomar um tiro,
e quando seu ombro apareceu entre os batentes da porta, disparei.
O tiro pegou na altura do ombro, fazendo com que seu corpo rodasse e caísse, enquanto ele,

por reflexo, atirava em direção a parede à sua frente.

Por um instante, eu observei seu corpo caído à minha frente, com o rosto em direção ao carpete
vermelho que já estava se enchendo de sangue... Mas eu sabia que ele não iria morrer com aquele

tiro, então eu apontei a arma de volta em sua direção e escorreguei o dedo pelo gatilho.

O disparo acertou as costas do homem na altura do peito, fazendo com que seu terno branco se
manchasse em vermelho.

Minha respiração havia se tornado ofegante, com o cheiro da pólvora inflando meus pulmões

que doíam assim como o resto do meu corpo, tensionado pelo stress e pelo peso extra do colete.

— VAMOS! — o garoto gritou, me puxando pela gola do sobretudo, fazendo com que eu me
colocasse de pé.

Mas havia algo de errado...

Segurei ele por um instante, puxando pela barra da camisa larga, tentando ouvir algo que
parecia estranho.

E no fundo, eu pude ouvir passos... Passos o suficiente para saber que aqueles deveriam ser o

reforço chegando.

— Qual a distância até chegar ao escritório? — perguntei, tentando imaginar quanto tempo
tínhamos até que eles chegassem.

— Mais dois lances de escada e um corredor — ele respondeu ofegante.

Merda...

Olhei para baixo, no meu colete, onde as granadas estavam balançando, batendo umas nas
outras fazendo...

— Sobe para o topo da escada e me espera lá — falei em tom sério, puxando uma das granadas
do colete.

— Merda! — o garoto xingou, subindo a escadaria dois degraus de cada vez.

— Gabriel, é apertar o gatilho, puxar o pino e jogar? — perguntei, já segurando o pino em


minha mão, apertando o gatilho da granada.

— Apertar o gatilho, puxar o pino e jogar — ele repetiu, com o barulho do helicóptero se
tornando ainda mais alto.

Puxei o pino com a mão esquerda, sentindo a resistência do metal, enquanto ouvia os passos se

aproximarem.

Era tudo uma questão de tempo.

Mantive o gatilho puxado, sentindo a pressão que ele fazia contra os meus dedos, tentando aos
poucos escapar, como se a violência contida dentro dela estivesse implorando para ser libertada...

Quando as sombras apareceram, gritando sobre o corpo perto da escada, eu sabia que estava
na hora.

Deixei a granada rolar degrau por degrau, saindo correndo escada acima enquanto me
preparava para a explosão.

Não sei ao certo quanto tempo levou para que a granada detonasse, quando pouco depois de tê-
la soltado eu já estava no segundo lance de escadas, correndo junto ao garoto até que finalmente
senti.

O chão todo pareceu tremer, assim como as paredes e o teto, que soltaram lascas de gesso e
cimento enquanto a onda de choque batia grave, ecoando em meus ossos.

Em questão de instantes, tudo foi tomado pelo cheiro quase nauseante de pólvora e sangue...
Tão fortes que era como se estivessem presos dentro do meu crânio.

Pelo barulho de concreto e cimento caindo, eu tinha a certeza de que tudo na escadaria havia
desmoronado.

Seguimos correndo, atravessando o último lance de escadas, com ele tomando a frente,

enquanto chegávamos até a porta em formato de arco que estava fechada.

Ele correu em direção a maçaneta, a girando e abrindo as portas com as duas mãos, e com um

estrondo e uma luz amarelada, vi a nuvem de sangue e cérebro que voaram da cabeça dele, com seu
corpo caindo em direção aos meus pés.

— Acho que já temos convidados demais para essa conversa... — Não importava quanto
tempo havia se passado, a voz do Strauss ainda era capaz de ter o mesmo efeito sobre mim.

A sala era enorme, marcada por quatro colunas gregas que sustentavam um teto de vidro que
mostrava o topo da Cordilheira dos Andes.

Havia quadros espalhados no fundo da sala, mostrando a porra dos mesmos rostos dos nazistas
que cobriam as paredes do galpão da Rosenrot, com seus bustos em preto e branco encarando tudo o
que acontecia ali, como se fossem os próprios donos daquele lugar.

Nas paredes laterais, havia uma enorme arquibancada, como se fosse um teatro antigo, e nas
cadeiras, estavam dezenas de homens...

Os mesmos homens que eu havia servido por todos esses anos, me olhando como se eu fosse a
merda de um fantasma, todos com armas apontadas em minha direção.

Ao redor de toda a sala havia macas, com corpos sem vida estirados, expostos enquanto poças
de sangue se juntavam ao redor delas.

No centro de tudo aquilo estava Hermann, que agora balançava de um lado para o outro com
uma corda presa em seu pescoço, com seu corpo já pálido pela falta de vida.

Ao lado do corpo sem vida do homem, Strauss estava com uma camisa, colete e gravata, com
as mangas puxadas até a altura dos cotovelos, usando calça e sapatos sociais...
Com a merda de uma pistola apontada para a direção da porta.

E pela primeira vez desde que havia fugido daquele hospital, eu pude ver o rosto dele, com o

cabelo loiro penteado para o lado, os olhos azuis tão profundos que era como se eu estivesse
encarando o próprio inferno.

E atrás dele, deitado inerte em uma maca metálica sem camisa, estava Benjamin...
“Os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a

morte apenas uma vez.”

WILLIAM SHAKESPEARE

Minha mente parecia não fazer sentido algum.

Era como se, em meio à penumbra que havia se formado em frente aos meus olhos, os vultos e
gritos tomassem conta de cada parte da minha alma.

— Vamos matar o filho da puta! — uma das vozes gritou.

— Não... Não podemos — outra respondeu em tom sério. — Lembra que eles têm um chip? Tá
querendo explodir a porra do avião?!

— Como você sabe que ele é um dos que tem um chip?

— Olha para ele, o desgraçado matou aqueles homens só com uma faca e ainda está indo atrás
do Strauss sem a merda de uma arma... — a voz respondeu. — Se ele não é um dos maiores... Tenho

medo dos que são.

O cheiro e o sabor metálico do sangue tomavam conta da minha cabeça, fazendo com que as
luzes que brilhavam e piscavam sobre meu rosto fossem e voltassem, com todos os sons se
misturando em uma coisa só.

Todos os gritos e vozes.

O barulho das turbinas e o som dos corpos sendo arrastados.

Antes que eu fosse capaz de tentar entender tudo o que estava acontecendo ao meu redor, meu
corpo foi jogado em direção ao chão, com meu corpo sendo arremessado direto para uma cadeira de

madeira.

Eu havia voltado para o chalé...

Olhei em volta, com as paredes de madeiras marcadas em carvão pelo fogo que havia
consumido todo o lugar, enquanto o teto havia caído, liberando espaço para o céu estrelado.

Olhei na mesa de madeira, já carbonizada, apenas para perceber que havia algo de estranho
ali...

Havia um charuto aceso sobre a mesa.

— Eu achei que pelo menos a morte ia me livrar desses seus olhos verdes... — A voz
carregada de sotaque italiano fez meu corpo todo se arrepiar. — Mas até aqui você vem atrás de
mim.

Olhei para o lado, vendo o homem alto, vestindo um terno vermelho escuro bem-alinhado, com
um colete e gravata justos, o cabelo longo penteado para trás e o maldito sorriso sarcástico

estampado no rosto.

— Não consegui ficar longe de você, Princesa — falei rindo, enquanto o via caminhar até a
cadeira que estava à minha frente, se sentando enquanto apoiava os dois pés sobre a mesa de voltava
a colocar o charuto aceso na boca.

— Que merda você pensou que estava fazendo indo atrás do Strauss? — ele falou, gesticulando
com as mãos, enquanto soltava uma nuvem de fumaça ao nosso redor. — Ele quase fodeu com a gente
naquele dia e éramos em quatro homens muito bem armados e treinados, e agora você decide ir atrás
dele com uma garotinha que mal sabe operar uma zarabatana e o Santíssimo Padre Gabriel?

— Que outra escolha eu tinha, Ângelo? — respondi, apoiando os braços sobre a mesa. —
Arthur está quebrado igual um ovo de páscoa que caiu do caminhão e você está morto.

— E morto eu ainda consigo ser mais útil que você — ele falou sorrindo, com o charuto preso
entre os dentes. — Por que não chamou outros Ceifeiros?

— A Sophia precisava do dinheiro do Strauss para os outros sobreviventes...

— ELA PRECISAVA DE VOCÊ VIVO! — ele gritou colocando as duas mãos ao redor da
boca. — Coisa que aparentemente você não está.

— Como você sabe que eu não estou vivo, Ângelo? — perguntei batendo as mãos na madeira,
sentindo como o carvão marcava meus dedos.

— Eu estou aqui, não estou? — ele falou, já em tom sério. — E te garanto que eu, pelo menos,
estou morto pra caralho.
— E como é estar morto? — perguntei enquanto o via balançar a cabeça para os lados,

tragando lentamente o charuto.

— Não tenho muito do que reclamar... A bebida tem um gosto melhor, os charutos não fazem
meu pulmão queimar. — Ele segurou o charuto nas mãos, o observando por um tempo. — E a

companhia é boa...

— Como ela está? — perguntei sem hesitar.

— Ela está em um lugar onde eu não posso chegar — Ângelo respondeu voltando a fumar. —
Está em um lugar que é apenas dela... Com o menininho, correndo pelos campos verdes e calmos da

Alemanha.

Olhei para ele à minha frente, me lembrando de quantas noites passamos assim, conversando
antes de cada missão.

Falando sobre como a vida parecia tão simples...

Matar os homens maus, salvar os homens bons, ficar com as mocinhas e encher a cara quando
tudo estivesse tranquilo, e foi bom...

Até o dia em que deixou de ser.

— Me desculpe por tudo, Ângelo — falei, sentindo minha voz falhar.

— Puta que pariu, nem morto você deixa de ser um pé no saco, hein? — Ângelo disse rindo. —
Olha, Ben... Eu já te desculpei em vida, e hoje, te perdoo em morte, mesmo sabendo que seu único
erro foi não acordar...

— O que disse? — perguntei vendo o tom estranho com que ele disse a última palavra.

— Acordar, Benjamin... — ele falou se levantando. — Você precisa acordar.

— E como eu faço isso? — perguntei, o vendo abrir um enorme sorriso.

— Assim! — E com sua mão aberta voando com violência contra meu rosto, explodindo em um
tapa tão forte que me jogou de volta ao mundo real, pude voltar a abrir os olhos.

Agora eu estava deitado, sentindo meu corpo frio contra uma maca de metal, e no mesmo

instante em que tentei abrir os olhos, vi uma luz forte me cegando, enquanto minhas pupilas ainda
pareciam se acostumar.

Estava sem camisa, sentindo como se um elefante houvesse acabado de pisotear o meu peito.

Quando minha visão finalmente pareceu voltar ao normal, duvidei do que meus olhos estavam
vendo, porque eu estava encarando a merda da Cordilheira dos Andes, com o topo das suas
montanhas cortando as nuvens escuras...

E por algum motivo eu tive a certeza de estar vendo a porra de um helicóptero soviético
sobrevoando aquele lugar.

Olhei para o lado, tomando consciência de onde eu estava e principalmente do que estava
acontecendo.

Havia tantos nazistas ao meu lado que eu senti como se estivesse no próprio inferno, e a
poucos metros de mim estava Sophia, com os olhos marejados de lágrimas, gritando algo que eu era
incapaz de ouvir naquele momento.

Meus olhos continuaram correndo até o desfibrilador que havia ao lado da minha maca, com
uma ideia na minha cabeça...

Uma chance para resolver tudo aquilo.

Mas eu sabia que se não agisse rápido, eu e ela acabaríamos mortos...

E se eu fosse rápido o suficiente, apenas eu morreria naquele dia.


“Ganhar uma guerra é tão desastroso quanto perdê-la.”

AGATHA CHRISTIE

Naquele momento eu quis apenas puxar o fuzil que havia em minhas mãos e atirar contra aquele
homem.

Queria ser capaz de fazê-lo rápido o suficiente para que conseguisse matar Strauss antes que
todos aqueles homens fossem capazes de me matar...

Queria gritar no fone para que Gabriel atirasse um míssil naquele lugar, mas isso não mataria

apenas a mim e aqueles filhos da puta...

Mas mataria Benjamin também;

Eu sabia que ele ainda estava vivo, afinal aquele lugar ainda estava de pé... O que mostrava
que o chip em seu peito ainda estava funcionando.

Então tudo o que havia me sobrado, era tentar ver onde a merda daquele teatrinho ia me levar,

porque agora que eu pude olhar novamente nos olhos daquele desgraçado, era como se todas as
memórias houvessem voltado à tona de uma única vez.

— Sophia Wolf... — Strauss falou, abaixando a arma e a colocando de volta no coldre que
estava cruzando seu peito. — A Diabinha de cabelos ruivos e a porra do sangue dourado... Por algum
motivo eu sempre imaginei que acabaria cruzando o seu caminho novamente.

— Seu filho da puta... — falei cerrando os dentes, enquanto dois homens armados vinham em
minha direção, puxando o fuzil que estava em meu peito, me obrigando a arrancar a bandoleira e o
outro ia até minhas costas, puxando o sobretudo que estava vestindo, que caiu no chão enquanto ele

tirava o colete do meu peito.

— E já começamos com as carícias... — Strauss falou andando até a minha direção, puxando
um maço de cigarros do bolso. — Seu nome esteve na merda da minha folha de pagamento por anos...
Mas eu não fazia ideia de que esse era seu nome... Sophia Wolf.. Quem poderia imaginar, não é
mesmo? Mas eu tive que enforcar o Hermann ali apenas pela audácia de ter contratado a merda da
filha de dois judeus.

Só de ouvir ele falando sobre meus pais, meu sangue corria quente pelas veias, a ponto de que
tudo em mim queimava em um tom quase febril.

— Eu consegui recuperar quase todos os doadores que fugiram naquele dia... Mas eu perdi
praticamente todos os meus clientes — ele falou enquanto dava meia-volta, olhando para Benjamin

que ainda estava na maca. — E aquele é o único dos homens que esteve lá que ainda está vivo... E o

desgraçado está bem aqui, mais uma vez no meu hospital... Chega a ser irônico, não é mesmo?
Principalmente depois que ele matou todos os mercenários que mandei atrás dele.

Ele caminhou em minha direção, com os passos firmes contra o chão gelado, os olhos fixos em
mim enquanto ele gesticulava com as mãos, mantendo os cotovelos colados na cintura.

— Onde está... A minha mãe? — indaguei, cerrando os dentes com tanta força que fui capaz de
escutá-los estalar em minha boca.

— Como vai o coração, Sophia? — ele questionou levantando uma sobrancelha, tão próximo
de mim que eu podia sentir o perfume de menta que ele usava. — Você tinha um pequeno problema na
válvula aórtica, não é mesmo? Um problema hereditário...

— A MINHA MÃE, PORRA! — gritei dando um passo à frente, ouvindo todas as armas que
estavam apontadas em minha direção sendo engatilhadas. — ONDE ELA ESTÁ?

— A sua mãe? Não faço a mínima ideia... — ele falou afrouxando a gravata em seu pescoço, a
tirando e colocando no bolso. — Mas se estiver falando da Evellin, aquela mulher maravilhosa...
Ah... Que mulher.

Ele levou uma de suas mãos em direção ao meu rosto, parando a poucos centímetros da pele da
minha bochecha, e então ele me encarou, com seus olhos tão vidrados que eu tinha a certeza de que o
filho da puta estava se divertindo.

— Ela era realmente uma mulher incrível... Para uma judia, é claro. — E então, ele aproximou
mais o dedo do meu rosto, até encostar nele. — Uma mulher... Dotada... De certos dons que eu nunca
mais fui capaz de ver ou sentir...

Ele correu seu dedo por toda a extensão do meu rosto, enquanto eu sentia meu coração acelerar
tanto, que imaginei quanto ainda aguentaria antes que ele parasse.
A raiva que sempre esteve dentro de mim, agora gritava como uma besta, arranhando as

paredes do meu crânio, implorando para que eu a deixasse tomar conta...

Mas essa era uma escolha que não afetaria apenas a mim...

— Fico me perguntando se certas habilidades são passadas de mãe para filha... Mesmo que

você seja apenas uma pirralha adotada. — Então ele tirou o dedo do meu rosto, levando até a sua
boca e o lambendo, abrindo um sorriso nojento.

Cerrei os punhos, enquanto lutava contra as lágrimas que pareciam tomar conta dos meus olhos,
fazendo com que minha garganta doesse de tanta força que estava fazendo para conter o choro.

Segurei minha respiração, na esperança de que fosse o suficiente para impedir que eu
desabasse na frente daquele homem.

— Onde está... a minha mãe? — perguntei mais uma vez, sentindo minha voz falhar.

— Ela está aqui — ele falou rindo, com os olhos fixos em mim.

— Onde...?

— Aqui — ele falou balançando os braços ao seu redor. — Não está vendo?

— Onde ela está...? — perguntei uma última vez, sentindo minhas lágrimas tomarem conta dos

meus olhos, escorrendo pelo meu rosto.

Strauss me olhou sério, cortando a distância entre nós de forma brusca, enquanto levava suas
mãos à gola da sua camisa branca, forçando os botões até fazê-los rasgar o tecido fino, os fazendo
cair por todo o chão.

— ELA ESTÁ AQUI, PORRA! — ele gritou com um sorriso no rosto, abrindo a camisa.

Meus olhos correram por ele, descendo do seu pescoço até...

Até a cicatriz que cortava o seu peito, descendo por toda a extensão da sua caixa toráxica.
Meu corpo todo perdeu as forças enquanto eu sentia o ódio tomar conta de mim em forma de

lágrimas.

Eu não era capaz... Não era capaz de acreditar.

De um momento para o outro, as lembranças da minha mãe tomaram conta de mim, como se eu

tentasse ignorar o que havia acabado de descobrir, como se minha mente se recusasse a acreditar em
tudo aquilo.

Os cabelos castanhos bem claros que escorriam até a altura dos ombros e os vestidos
coloridos...

Mas agora, em minha mente, tudo se tornava confuso.

Ela tinha o cabelo loiro e os olhos azuis...

Tentei lembrar da sua voz.

Mas agora ao invés do sotaque judaico...

Ela tinha sotaque alemão.

— SEU FILHO DA PUTA! — gritei, o mais alto que pude, com a esperança de que isso fosse o
suficiente para expurgar todo o caos que havia se instaurado em mim. — EU VOU MATAR VOCÊ...

EU VOU ACABAR COM A MERDA DA SUA VIDA... EU VOU...

— Grita, sua puta! — Strauss falou sorrindo, desabotoando o colete que estava usando e o
jogando no chão. — Grita que isso só faz com que eu sinta mais vontade de provar da merda dessa
sua carne mestiça, e depois que eu acabar, cada um dos homens nessa sala vai aproveitar o que
puderem de você, e quando todos tiverem acabado, eu vou arrancar a merda dos seus braços e das
suas pernas, para que você vire a apenas a porra de uma boc...

— ESPERO QUE ESTEJA MEDINDO A PORRA DAS SUAS PALAVRAS, PORQUE ELAS
PODEM SER AS ÚLTIMAS. — A voz Benjamin ecoou por toda a sala, fazendo com que todos
olhassem em sua direção.

Ele estava em pé, em frente a maca em que antes estava deitado, e em suas mãos havia dois

desfibriladores, colados em seu peito...

E apenas de ver ele... Algo em mim se acalmou.

— Merda... — Strauss falou mantendo os olhos fixos nele enquanto começava a andar
lentamente em direção a ele. — O sangue dos Hausser deve ser uma coisa maravilhosa, porque
depois daquela concussão você ainda consegue ficar de pé e ameaçar se matar... Meus parabéns.

— Eu posso até morrer, mas quando o chip no meu peito parar de apitar para a merda do
satélite que está sobre nós... Esse lugar todo vai explodir junto comigo. — Enquanto Benjamin
falava, eu podia ver em seus olhos...

Podia ver que ele estava falando sério.

— Eu não sei o que tinha na merda da minha cabeça quando decidi começar a trabalhar com
vocês... Filhos do Ceifeiro — Strauss falou enquanto andava na direção de Benjamin. — Um bando
de psicopatas com fetiche em suicídio... Mas guarde seus blefes, sei que não vai matar a sua
Ruivinha...

“Sua Ruivinha...”

— Pelo menos nós não matamos mulheres e nem crianças— Ben cuspiu aquelas palavras.

— Ah... É verdade — o Doutor continuou falando enquanto andava de um lado para o outro. —
Me desculpe por isso, sabia que não deveria ter contratado a merda de um motoclube... Mas aquela
era a época das vacas magras, hoje as coisas são diferentes, jamais teria pedido para que eles a
matassem... Ia trazer ela com a criança até aqui, e então ia vender a merda da criança, depois ia abrir
o corpo da sua mulher e vender órgão por órgão dela, como a porra de uma VACA!

Mas enquanto Strauss falava, havia algo de errado com Benjamin.


Cerrei os olhos, tentando afastar o efeito que o choro havia deixado em mim, e então percebi

que os olhos dele estavam colados em mim, como se tentassem chamar a minha atenção, e no mesmo

instante em que ele viu que estava prestando atenção, ele olhou para cima...

Segui seus olhos, vendo o helicóptero de Gabriel, que sobrevoava o lugar.

Quando voltei a olhar para Ben, confirmei com a cabeça, sabendo que ele me entenderia.

Merda... O que você está planejando, Benjamin.

O que você está...

— Eu espero que todos vocês, Nazistas de merda, queimem na porra do inferno — Benjamin
falou com um sorriso em seu rosto, com seus olhos nos meus uma última vez antes que ele acionasse
o desfibrilador.

Naquele instante foi como se o mundo todo entrasse em câmera lenta, enquanto eu via seu
corpo estremecer com a onda de choque, um pouco antes de que ele caísse, sem vida em seus olhos,
contra o chão frio.

E foi como se meu próprio coração parasse de bater....

Observei ao redor, enquanto todos os homens nas cadeiras dos palanques gritavam,

atropelando uns aos outros, descendo correndo pelas escadarias que iam em minha direção, para que
pudessem sair pela única porta que havia...

A que estava às minhas costas.

Strauss olhava para o corpo caído de Benjamin, sem reação, pouco antes de se virar para mim
com o rosto coberto pelo pânico...

Olhei para os céus, esperando o míssil ou a bomba nuclear que estava prestes a cair, mas não
havia nada.

Nada...
Pensei em gritar com os céus, implorando para que aquilo acabasse, colocando um fim em tudo

aquilo... A todo o sofrimento...

Mas, enquanto eu via os homens que agora caíam por toda a escadaria, atirando uns nos outros
para abrir espaço com o objetivo de salvar a própria vida... Me perguntei porque Benjamin

perguntou se o helicóptero acima de nós era Gabriel...

Qual a diferença se todo o lugar iria explodir?

MERDA!

— GABRIEL! — gritei enquanto corria em direção em direção a Benjamin, alinhando meu


corpo em direção ao Strauss.

E do helicóptero que sobrevoava o domo de vidro no teto, eu pude ver em um único instante, as
duas bolas de fogo que ele cuspia em direção àquela sala.

Corri o mais rápido que pude, enquanto Strauss levava as mãos em direção ao coldre que
estava em sua cintura, tentando sacar sua pistola...

Mas eu era mais rápida.

Puxei a arma que estava presa à minha cintura em um único movimento, apontando em direção

ao braço do homem, atirando quantas vezes eu fui capaz.

Os disparos fizeram a arma pular em minha mão, com as balas atingindo o ombro direito do
médico que me olhava enquanto uma nuvem de sangue abria espaço pelas suas costas.

O espaço entre nós já havia encurtado o suficiente para que eu pudesse me abaixar, agarrando o
corpo do médico e o jogando sobre meu ombro, o carregando comigo enquanto corria em direção a
Benjamin, me jogando no chão ao seu lado enquanto eu era capaz de ouvir as bombas rompendo o
domo de vidro.

Antes da explosão, que acertou a porta em cheio, onde os nazistas agora brigavam pela chance
de passarem por ela, com a esperança de salvarem suas vidas, sem saber que, na verdade, estavam
indo em direção a morte...

Eu estava do outro lado da sala, deixando que o Strauss caísse longe, acertando a parede com o
quadro de Hitler, que poderia assistir mais uma vez seus aliados morrerem.

Quando as bombas explodiram contra a porta, meu corpo estava sobre o de Benjamin, enquanto
eu segurava seu rosto em minhas mãos enquanto o beijava uma última vez...

E enquanto eu o beijava, sentindo a onda de choque batendo contra nossos corpos e nos
jogando em direção a parede, ele abriu os olhos, me envolvendo em seus braços.

— Eu sabia... — falei com minha boca colada na dele, antes de sermos engolidos pela
explosão.
— SOPHIA! — A voz da Maya foi o que me trouxe de volta.

Abri os olhos, sentindo a sensibilidade à luz queimar minha retina por um instante antes que eu
pudesse realmente me acostumar a estar com os olhos abertos novamente.

Meu corpo todo doía, latejando como se labaredas estivessem tomando conta de mim, enquanto
meus órgãos latejavam, como se eu tivesse acabado de ser chacoalhada de um lado para o outro até
que tudo que estivesse dentro de mim saísse do lugar.

Respirei fundo sentindo meu pulmão inflar novamente, e a primeira coisa que senti foi o cheiro

do cabelo da Maya.

— Sophia... — ela falou, embalada em lágrimas.

— Oi, Bebê — disse baixo, sentindo minha voz rouca.

Com meus olhos se acostumando à luz, olhei em volta, observando o que parecia ser o quarto
de um hospital...

Mas esse não tinha as paredes brancas.

Eu estava em uma cama macia, com um pequeno cobertor jogado no meu colo, e no meu braço
esquerdo havia um acesso, sendo alimentado com um soro que pingava vagarosamente.

Ao meu lado, agarrada ao meu braço direito, estava Maya, vestida com uma camiseta de banda
grande demais para ela, com um casaco preto felpudo, e na minha frente, com um sorriso de um lado
ao outro do rosto, estava Hugo, apoiado em sua bengala.

— O que... O que aconteceu? — perguntei, com minha voz quase sem força custando a sair da
garganta.

— Você conseguiu — Hugo falou com calma, me deixando saborear o gosto daquelas palavras.

“Você conseguiu.”

— O helicóptero estava com bombas menos potentes que o normal, o que garantiu que você
estivesse viva... — A voz masculina veio de um homem que estava em pé, encostado no batente da
porta, vestindo uma camisa escura e um sobretudo, com dezenas de tatuagens subindo pelo seu
pescoço, braços e mãos. — Às vezes acho que o Gabriel consegue prever esse tipo de coisa... Mas o
que importa é que, pouco depois que o lugar veio abaixo, o exército Argentino, a guarda nacional, o
F.B.I e até a porra da O.N.U estava chegando, resgatando as pessoas que estavam do lado de fora,
congelando no frio.

— O Arthur tem razão. — A voz feminina veio do meu lado esquerdo, e quando olhei por cima

do ombro, ainda com dificuldade, vi Alice que estava com um jaleco médico, com um estetoscópio
pendurado no pescoço. — O Gabriel parece saber dessas coisas.

— O que... Houve com o Strauss? — perguntei acompanhando Arthur com os olhos, enquanto
ele entrava no quarto.

— Gabriel alertou aos Filhos que Strauss estava pronto para a coleta, então enviaram alguém
para buscar, e quando ele chegou lá o Doutor Strauss ainda estava vivo, mesmo que ninguém tenha

certeza como, era como se o coração dele se recusasse a parar — Arthur falou com calma, indo até o
sofá cor de creme que estava no canto do quarto. — Ele foi levado para a justiça do Ceifeiro... E a
essa altura, duvido muito que ele ainda esteja vivo.

— Havia um setor administrativo naquele hospital — Hugo continuou falando com seu tom de
voz calmo. — E dessa vez não tiveram como esconder o que estava acontecendo... Todos os nomes e
identidades das pessoas que morreram pelas mãos daqueles homens foram revelados, as famílias
foram indenizadas pelo governo, e os nazistas e guardas que sobraram estão sendo julgados um a
um... Os julgamentos passam até na televisão.

— E para a surpresa de todo mundo, todos os documentos do hospital de Praga apareceram


para a Interpol, com uma cartinha de agradecimento — Maya completou com um sorriso, enquanto
beijava meu braço.

— Agora não somos apenas nós que nos lembramos, Sophia — Hugo falou, apoiando o corpo
em sua bengala.

Ali, meu coração, que agora parecia tão cansado, bateu mais leve.

Mas ainda havia uma dúvida...

Mais uma pergunta.


— Benjamin... O que aconteceu com ele? — falei, olhando em volta para todos no quarto,

tentando encontrá-lo.

— Bem aqui, vivo e... Quase inteiro. — A voz dele ecoou pelo corredor.

Mantive meus olhos fixos na porta, apenas para que pudesse vê-lo entrar, sendo empurrado por

Gabriel em uma cadeira de rodas.

Seus olhos verdes estavam cheios de vida, com o cabelo loiro preso em um coque, a barba
alinhada enquanto ele sorria.

E na cadeira, pude ver que a explosão havia cobrado um preço.

Parte do seu corpo estava queimada, descendo pelo seu lado direito até onde antes estava a sua
perna, onde agora havia apenas um curativo na altura do joelho.

Meus olhos se encheram de lágrimas ao vê-lo, enquanto Gabriel o deixava ao lado da minha
cama, perto o suficiente para que pudesse segurar seu rosto com as minhas mãos, como havia feito
aquele dia.

— Eu não saberia o que fazer da minha vida se não tivesse você... — falei, sentindo as
lágrimas escorrerem pelo meu rosto.

— Mas então, o que planeja fazer agora que você me tem? — ele perguntou sorrindo.

— Viver... — respondi, olhando em seus olhos enquanto trazia seu rosto em direção ao meu,
me entregando novamente aquele beijo.

Depois daquele dia, nunca mais senti a raiva que antes tomava conta de mim, porque agora
tudo o que eu tinha era paz.

E em meio as cicatrizes e marcas que uma vida de guerra havia deixado em nossos corpos,
Benjamin e eu havíamos arrumado um pequeno espaço para nos marcarmos com uma tatuagem, que
com o passar do tempo, todos os que estavam naquele quarto fizeram.
“Relicário”

Escrito em letras de mão, na altura do peito, para que pudéssemos, para sempre, nos lembrar

de uma coisa...

Que nós somos recipientes, feitos para guardar lembranças, e elas são as responsáveis por nos

moldar.

E depois daquele dia, em meu peito, havia apenas lembranças felizes.


Quando eu comecei esse livro, não fazia noção do que me esperava.

Relicário, foi para mim, como uma passagem, um momento de reflexão e autoconhecimento,
que me fez enxergar com novos olhos a minha vida e a forma com que eu levo.

Não foi fácil escrever este livro, que pareceu brigar contra mim a cada página, impondo suas
vontades contra as páginas em branco, não perdoando sequer seu próprio autor durante o processo.

Não sei ao certo quantas madrugadas passei debruçado sobre essas páginas.

Quantas vezes eu ri de desespero tendo a certeza de que não seria capaz de terminar essa
estória.

Quantas vezes falei comigo mesmo e com meus personagens para que me dessem um momento
de respiro em meio ao caos que se tornou minha rotina...

Mas aqui está ele, denso e complexo como tinha que ser.

Recheado por experiências e sentimentos que nem mesmo eu sou capaz de decifrar com
maestria.

Este não é apenas um livro...

Não... Não é mesmo.

Aqui em suas mãos existe um pedaço da minha alma, tão profundo e limpo que não entendo
como fui capaz de viver com ele em mim por tanto tempo, porque no fundo, sempre soube que ele
precisava sair.

E ele saiu para contar a história de Benjamin Blackburn, um homem cansado de perder,
frustrado pelo fato de ter chegado tão longe apenas para voltar a não ter nada, que durante essas
páginas me ensinou tanto sobre o luto e sobre as formas com que vemos nossos próprios sentimentos,

que aqui me sinto na obrigação de agradecer a esse personagem por ter me feito superar tantos
sentimentos.

E Sophia... Ah, Sophia...

Ela se recusou a qualquer custo a seguir meus planos para ela, brigando contra qualquer ideia
de impor minhas vontades a sua história, então apenas deixei que ela contasse para vocês sua própria
versão destes acontecimentos.

No momento em que termino esse livro, eu sinto que dei o meu melhor para trazer a vocês uma
estória tão feroz quanto Sophia, mas tão bela e doce quanto Benjamin.

A você, leitor (a) eu só tenho a agradecer por ter aproveitado, sofrido e surtado ao meu lado.

E a todos os meus erros, os quais dedico e homenageio neste livro, muito obrigado por terem
me tornado quem sou hoje.

Ass. Stev Deacker.

[1]
O Charité — Universitätsmedizin Berlim é um hospital universitário afiliado à Universidade Humboldt e à Universidade Livre de
Berlim. Após a fusão com o seu quarto campus em 2003, o Charité se tornou um dos maiores hospitais universitários na Europa.

[2]
“O Senhor é único” em hebraico

[3]
Equivalente a palavra “ceifeiro” em números de telefone.

[4]
Rosa vermelha em alemão
[5]
Paul Hausser (1890-1972) foi um condecorado militar alemão, tenente-general do Reich de Hitler e, subsequentemente, um dos
maiores líderes do braço militar da SS. No pós-guerra ele se tornou um dos mais famosos ex-líderes nazistas após escrever dois livros
sobre o lado alemão da guerra.
[6]
A segunda patente de maior poder dentro da SS, sendo usada apenas por membros sêniores dentro do Reich.

[7]
Paul Joseph Goebbels (1897-1945) foi um político alemão e Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista, além de ser um associado
e devoto apoiante de Adolf Hitler. Goebbels ficou conhecido pelas suas capacidades oratórias em público e pelo seu profundo e fanático
antissemitismo.
[8]
Heinrich Luitpold Himmler (1900-1945) foi um dos principais líderes do Partido Nazista, também conhecido como um dos homens
mais poderosos da Alemanha Nazi e por ser um dos responsáveis diretos pelo holocausto.
[9]
Título especial que depois acabou se tornando a maior patente de poder dentro da SS, sendo equivalente à patente de marechal de
campo.

[10]
Joseph Berchtold (1897-1962) foi um dos primeiros homens a assumir uma posição de liderança no Partido dos Trabalhadores
Alemães (DAP), uma pequena organização extremista que depois se tornou conhecido como o Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães (Partido Nazista). Berchtold foi a última pessoa sobrevivente a ocupar o posto de reichführer.

[11]
Expressão alemã que significa “salve a vitória”, utilizada como slogan pelos participantes do partido nazista como forma de enaltecer
o poder do partido.

[12]
Sangue Real em inglês.

[13]
Prost é um brinde e expressão comum e popular na Alemanha, com a palavra podendo significar “felicidades” ou até mesmo
“aproveite” ou “por favor”.
[14]
Reinhard Tristan Eugen Heycrish (1904-1942) foi um oficial superior alemão durante a Segunda Guerra Mundial, e um dos principais
arquitetos do Holocausto, sendo idealizador e diretamente responsável pelo Einsatzgruppen, que eram os grupos de intervenção
especiais que assassinaram mais de dois milhões de pessoas, incluindo 1,3 milhões de judeus.
[15]
René Descartes foi um filósofo e matemático francês (1596-1650)
[16]
Schutzstaffel, também conhecida como “SS”, foi uma organização paramilitar ligada ao Partido Nazista, responsável pelo genocídio
de cerca de 5,6 a 6 milhões de judeus e milhões de outras vítimas durante o holocausto.
[17]
Ronin, no Japão feudal, foi um samurai que não seguia o daimyo, ou seja, que não possuía um mestre.
[18]
Tradicional espada japonesa usada pelos samurais.
[19]
“Alemanha acima de tudo” é o primeiro verso do hino nacional alemão, que após a criação do Partido Nazista, também foi usado
como símbolo do nacionalismo.
[20]
“Ter esperança” em alemão.
[21]
Glock é uma série de pistolas semiautomáticas com armação em polímero.
[22]
Sigla de “Irish Republican Army”, um grupo separatista irlandês, conhecido pelo histórico ligado a guerra e ao tráfico internacional de
armas.
[23]
A KGB foi a principal organização de serviços secretos da União Soviética.

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