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32 timawias pa visteniioane, “do que acontece no mundo, o horror ea injustiga nio si aikima palavra”, Podem também se encontrar na conviesio “de que hi uma ordem oculta em tudo 0 que vive”, segundo a expressio de Germaine Tillon* ‘Tentemos agora imaginar individuos capazes de possuir os dois lados e de se deslocar para o interior e para o exterior: estar em relagio intensa com sua consciéncia, em outras palavras, ir ao mais fundo da interioridade; ser capaz, a0 mesmo tempo, de avangar a0 méximo no exterior, no horizonte absoluto de que fala Havel. £ muito provével que esses seres humanos con- sistentes, proyidos de coluna vertebral, sejam independentes das muletas cexistenciais do olhar exterior vindo de cima. Essas pessoas ndo sio necessariamente aquelas que se saem melhor nas organizagées ou nas instituig6es. Elas néo sio muitos maledveis, ndo tém nem a agilidade, nem a malicia dos “espertinhos”, dos malandros institucionais ¢ outros delinquentes relacionais. Estio longe do tipo de hhomem que tende a promover 0 mundo contemporaneo”. De modo que «ssa reflexio nao pode contornar a ideia de uma certa tragédia da moder- nidade, Na verdade, trate-se de identidade, de temporalidade (por meio dos efeitos Comte, Tocqueville, Weber acumulados") ou de fé (ou de transcendéncia), esses tes dispositivos sio profundamente desestabilizados nna modernidade tardia (ou hipermodernidade), 0 que abre uma avenida ppara as tiranias da visibilidade, [Nao hé nenhuma obrigacio de tirar daf conclusécs antimodernas. De ‘maneira mais prosaica, fata aprender a habitar essa modernidade demo- critica, a pior com excecio de todas as outras, ¢ a forjar uma sabedoria democritica que seja menos deficiente que no séeulo xx. O desafio é grande: 26.G.Tillon, A le recherche du vat etd jute, & propos rompus ave lesidle, 27, Segundo L. Bolanski eE. Chiapllo, Le Nowwel exprit dcaptaiome, “a permanéncia, ce sobreeudo a permanénciaem sou 0 vinewl duradouto com “valores, so extcsves ‘como rigidez incngrua, até mesmo patolgica, «de acardo com os contextos, como ineficica,impoldez, intolerincia,incapacidade de se communica”, 28, Nio podendo desenvolver ese ponto, permiti-nos-emos remeter a nosso estudo (P. Zawadaki, “Les Equivoques du présentisme”, Eiprit,n, 6, 2008, PARTE VII OS PARADOXOS DA VISIBILIDADE, 19° Um Valor Controverso: as Criticas Doutas da Visibilidade Nathalie Heinich Ame QUE CoLocARE! é seguinte: em que medida avisbilidade é considerada pelos atores um valor, ¢em que medida & considerada ‘um antivalor? O que isso significa concretamente? Se admitimos que um valor €0 prinefpio em nome do qual se enuncia uma avaliagio, postiva ou negativa, entio a visibilidade é um valor desde que se possa dizer de algo: “E bom porque dé visbilidade” (ou ainda: “E ruim porque priva da visi lidade"); e um antivalorse€ possivel dizer: “E ruim porque dé visibilidade” (owainda: “E bom porque isso evita a visibilidade”). No primeiro caso, sua presenca & desejada, sua auséncia, deploradas no segundo, é evidentemen- te, sua presenca que é deplorada, ¢ sua auséncia, desejada. Vamos ver que cessas duas hipéteses se confirmam pelo exame dos julgamentos dos quais ela é 0 objeto no mundo académico (ndo tratarei aqui de seu estaturo no mundo comum, por falta de pesquisa especficas, ou por nfo ter constitufdo tum corpus de expressbes espontincas ¢ duradouras, como 0 so os esctitos daqueles que tém acesso 4 publicagio de suas opinies). Contrariamente ao que se poderia acreditar, essa ambivaléncia da visi- bilidade, 20 mesmo tempo valor eantivalor, néo tem nada de excepcional: cla é até mesmo uma situagio muito disseminada, banal, desde que nos de- bbrucemos sobre o repertério de valores invocados pelos atores em contextos precisos. Assim, numa pesquisa sobre os prémios cientificos, constatamos 315 6 Timawnas DA visiautipaDe que, no mundo da pesquisa, o individualismo tanto pode ser criticado em nome da solidariedade quanto elogiado em nome da originalidade; dda mesma forma, a emulagio, que pode ser percebida como rivalidade ou ‘como espitito esportivo; ou ainda a ostentagio de marcas de luxo, por ser tuma questéo de vaidade ou, a0 contrério, de orgulho em pertencer a uma cequipe eficente’. EssasvariagGes nao se produzem evidentemente a0 acaso, ‘mas dependem das “gramaticas axiol6gicas’, dos mundos de representagées, dos siscemas de justficagées pertinentes para tais ou tais atores, em tais ou tais contextos, a propésito de tais ou tais objetos. Entio 0 que vai nos interessar aqui sio as argumentagées em nome das quais sio feitos 0s elogios ou as eriticas sobre a visibilidade; em outras palavras, os outros valores em fungio dos quais a experiéncia factual da visibilidade pode ser cla prépria avaliada, até mesmo transformada em valor, isto é, em prinefpio de avaliago. Em suma, vamos pesquisar as con- digdes axioldgicas de “valorizacio” da visibilidade. Esse trabalho sc inscreve, «sclarego, no Ambito de uma sociologia dos valores: o que quer dizer que cle nao tem como objetivo fazer avaliagSes, mas analisar as avaliagbes dos atores, logo numa perspectiva néo normativa mas descritiva, conforme a0 imperativo weberiano de neutralidade axiol6gica. VALOR A necessidade de visibilidade dos humanos foi colocada em evidéncia, como necessidade legitima, por todo tipo de especialistas. Encontra-se sua expressio ‘nos psiquiatras: por exemplo, Daniel Marcell, que vincula as reivindicag6es sociais & luz de uma reivindicagio primordial que seria a de um “olhar de ‘consideragéo"’ nos antropdlogos: por exemplo, Tzvetan Todorov, que fiz dda “necessidade de ser olhado” uma necessidade constitutiva do humano, 1. N. Heinich e P, Verdeager, “Les Valeus scientifiques au travail", Sovolgi tis vol 00cm, 1.2, 2006. “Hi defato um fio condutor, apenas um, ports de todas as agBes dé revindicags, ‘qoaisquer que sejam eas: 0 ator que ‘revindica’reclama, exge que o olhem com consideragi; que o considerem como pessoa ou coma grupo quase sempre minoti- trio), que considerem sua exigéncia, que considerem sua causa e sua legitimidade (Gegundo seu ponto evista). Ee faz tudo para que o olhar dos ours, oolhar social, OM VALOR coNTROVERSOW.. 317 “a verdade das outras necessidades”, a ponto de a diferenga entre 0 faro de olhar ¢ 0 fato de procurar 0 olhar do outro constituir, para ele, “a primei- ra grande separagio entre 0 homem € os outros animais superiores"; em rangoise Heéritier, para quem ser olhado é 0 que fundamenta o “sentimento deexistir”, da mesma forma, alids, que para o filésofo Francois Flahaule’, que insiste no fato de que o “sentimenco de existir” nao é evidente e que o olhar do outro exerce um papel determinante em sua construgio. Mais geralmente, a visibilidade pode ser valorizada por se opor & dissimulagio, a0 segredo, isto é por favorecer a eransparéncia, a busca da verdade, a aurentcidade. Simetricamente, é invisibilidade que pode aparecer como um antiva- lor, uma infragao contra a ética, no sentido de prejudicar alguém. Trata-se entio menos de uma invisiblidade real — a pessoa em questio néo seria vista de forma alguma — do que de uma “negacio do olhar”, a espeito do qual a socidloga Claudine Hafoche* mostrou ser “suscetivel de provocar 4 perda da interioridade e de desapropriar 2 pessoa de seus atributos mais fundamentais”; ou ainda, nos termos do fildsofo alemio Axel Honneth’, se volte paral, para mobilizar ese olhat”(D. Marcel Les Yew dans les yeus.L‘Enigme berger "A necesidade de serolhad nio é uma motvasso humana dentreoutas: 2 verdade das outrasnecssidades. Asim soa iqucras materia: ao sio um fim em si mesmas, ‘mas 0 meio de nos assegurar a consideragio do outto. (..] Assim também sio os praveres os ms intenso soos que reiramas de um cert olhar sobre n6s pels outros’ (1. Todorov, La Vie commune, Esai danthropologe générale); "A vegunda fase (depois de “ser reconfortado], a do olhat, comeca nio pel fato de olhar ~ isso a rian faz desde que nasce -, mas pelo fito de procurar 0 olhar do outro, de querer sr olhado. 'Adilerenga entre os dos essen, e marca a primeira grande separagio entre homem 08 outros animais superiors” (idem, ibidem). 0 sentimento de exstncia nos é dado, ou melhor, € validado, pelo olhar do outro. Viver com alguém que deixa de nos aha, que no nos otha, que foge do nosso olhar, 6 mio € pior do que viver com alguém que jd ndo fala conosco” [P. Hesiir, “Regard ct anthropologe. Enteten avec Claudine Haroche”, Communications ("Le Sens dt regard"), 1m. 75,2004], ,Flahaul, Le Soutien deciter. Ceo qu me vat pas de C. Haroche, “Fasoas de wor, maniéres de regarder dans les socigésdémcoratiques ‘cantemporsnes", Communications ("Les Sens du regard’), n.75, 2004 |A. Honneth, "Visiibilicé et ivisiblité. Sur Pépistémologie de la “reconnaissance”, Revue di MAL, n. 23,2004. |... de uma “recusa de reconhecimento”, manifestada nesse “olhat obliquo” ‘que 86 pode ser vivido por suas vitimas como um “sinal de humilhagio”. ANTIVALOR Se pesquisadores ou pensadores sentiram a necessidade de se lembrar dessa fangdo positiva da visibilidade, é porque por muito tempo ela foi oculta- dda, negada ou denegrida, no pensamento continental, pela valorizagéo da auronomia individual contra a dependéncia em relacio a0 outro, da auten- ticidade de uni “eu” puro de todo condicionamento “social”. Esse ponto de vista foi exemplarmente encarnado por Jean-Jacques Rousseau, que Claudine Haroche mostrou ter sabido diagnosticar a importincia do olhar para a existéncia social, e sua inscricéo numa I6gica agonistica de luta pelo reconhecimento', a0 mesmo tempo que ~ como analisado notavelmente pot Todorov ~o préprio Rousseau desvalorizava essa vulnerabilidade ao re- conhecimento como uma forma de inautenticidade. Esse desconhecimento das condigdes da “vida coum” ~ para retomar o belo titulo do livro que Todorov dedicou a esse tema — decorre daquilo que o socidlogo alemao Norbert Elias" estigmatizava como “ilusio do homo claus. Nessa perspectiva, a visibilidade & um “antivalor”: um estado a que atribuimos uma avaliagio negativa (a visibilidade é uma coisa ruim por- que ela é isso ou aquilo), até mesmo um principio ao qual aplicamos uma idade). Hi, vveremos, uma rendéncia que se acentuou consideravelmente na época atual, desvalorizasao (essa coisa € ruim porque decorre da 8 “Rowsca fi um dos primeiros que se mostaram pariularmente sensves& neces sidade fundamental de ser visto, de ser olhado, condigio para a autoestina, para a slignidade e para a integridade. Os sentimentos vindos do olhar esto no préprio fandamento do sentimento de exiténci: a invisibilidadendo procurada poderia susie ‘um sentimento de inexisténci. [..] Algumas plavasbastaram, outrora, pare Rowseatt ‘stabelecer 0 papel do olhar na sociedade, sew caréter profundamente paradoxal: a ‘necesidade de olhar no €facilmente dssocivel da necesidade de arengo, objeto de "uma lta pela preferénct: no instante em que se que se visto, o outros vers privado do olar.[...] Asim cl elucidou 0s mecanismosinerentes 30 olhar: no simplesmente ser olhado, mas inevitavelmente, de modo delberado ou no, ser mais olbado que os contra’ (C. Haroche op, ct) 9. .N. lias, La Société de individus be vaton GONTROVERSO.. 319 por meio de uma bateria de argumentos que vou analisar, limitando-me a0 contexto francés. ACRITICA DO MERCADO. ‘Uma primeira categoria de crticas da visibilidade estéretacionada com a eré sica do mercado (ou, para retomar a terminologia de Boltanski e Thévenoe", do “mundo mercantil”), tipico da tradigéo marxista. Vimo-la, por exem- plo, emergir no ensaio justamente famoso de Edgar Morin sobre Les Stars [As Enirelas] a estrela sendo 0 arquétipo do ser que é por definigéo mais visivel do que os outros. Esse livro teve o mérito de ser um dos primeiros a apontaro interessesociol6gico ou antropolégico de um fenémeno que, na época em que foi escrito (1957), 86 tinha duas gerages. Apés uma andlise em geral minuciosa, ¢ em muitos aspectos ainda hoje convincente, desse ‘emblema da vsibilidade que si as estelas de cinema, ocorte ~ um pouco antes da pagina cem da edicio de bolso [francesa] — uma diatribe que des- toa de tanto que parece datada (nela se verifca, seja dito de passagem, que nada envelhece pior que a sociologia critica). Assim “o star stem € uma insticuigdo especifica ao grande capitalismo”; por isso “todo cinema que, no mundo contemporineo se situa seja fora, seja & margem, seja em lura contra o grande capitalismo, seja até num nivel captalista subdesenvolvido, niéo conhece a estrela, no sentido em que a entendemos”. ‘Quais vicios o sistema mercantil carrega, entio, para macular assim, por meio das estrela, a visibilidade? O primeiro vicio a massificagio: Ela €a mercadoriatipica do grande capitalismo: os enormes investimentos, as téenicas industrais de racionalizasao e de padronizagéo do sistema fazem efe- tivamente da estela uma mercadoria destinada ao consumo das massas. A estrela tem todas as vireudes do produto de série adaprado ao mercado mundial, como 0 chiclete a geladeira o sabio, a Himina de barbear ete.” to. L, Bolanski e L, Thévenot, Del justification. Les éeamomies de a grandeur x, E, Morin, Les Stars 12, Idem, idem. 320 TiRANIAS DA visiNILIDADE Nota-se de passagem que a massificacao pode ser invocada tanto positi- vvamente quanto negativamente pelos adversirios do capitalismo, conforme se trate de exaltar o poder das massas, no regime comunista, ou de deplorar sua invasio, no regime capitalista, (© segundo vicio é o da multiplicagéo das imagens, oposta & raridade ‘ou 3 unicidade do valor auténtico: “A difusio maciga é garantida pelos maiores multiplicadores do mundo moderno: imprensa, ridioe filme, evi- dentemente, [...] a estrela-mercadoria néo se desgasta nem definha com © constumo. A multiplicacio de suas imagens, longe de alteré-la, aumenta seu valor, torna-a mais desejével”®. Massificacio e reprodugio mecinica ‘como desvios capitalistas da verdadeira cultura: reconhecem-se ai temas familiares & Escola de Frankfurt, em particular em Theodor Adorno ¢ Walter Benjamin. Nessas condicées, a estrela s6 pode ser um valor “no sentido financeiro do termo”, como diz o préprio Morin: “A estrela permanece original, ra, \inica, mesmo quando é partilhada, Matri2 preciosissima de suas proprias imagens, é assim uma espécie de capital fixo 20 mesmo tempo que um valor no sentido financeiro do termo". Ele desfia sem complexo a metifora: Ela € uma mercadoria-capital, A estrela é como 0 ouro, matéria a tal ponto preciosa que se confunde com a prépria nogio de capital, cam a propria nosao de luxo {joia) e confere um valor 3 moeda fiduciria, O lastro das somas bancirias durante séculos garanti, como dizem os economistas, mas sobretudo, impregnow ‘isticamente acédula de papel. © lastro de Hollywood aurenticaa pelicula cinerna- togrifica, O ouro e a estrela sio dua forgas miticas, que atracm vertiginosamente ativan unl as ambigges husmanas”, Assim, seria uma falsa garantia, ou uma falsa autenticacio, que seriam conferidas 20 dinheiro ou ao filme por esses falsos valores ~ esses “mitos” — que sio 0 ouro ou a estrela: a ilusio mitica aparece entéo como o tercci- ro vicio do mercado, depois da massificacio ¢ da reprodugio mecinica, 13. Idem, idem. 14, Idem, idem. 15. Idem, bide. va vALOR conTROvERSO... 321 € lembramo-nos aqui que as Mythologies (Mitologias| de Barthes foram publicadas exatamente no mesmo ano que o livro de Morin. Quarto vicio, enfim: como cudo o que concerne a0 mundo c: a estrela nfo seria uma pura criagio, mas uma “fabricago” inauténtica, inteiramence conscruida com fins lucrativos. Assim, “suas caracteristicas internas so as mesmas do grande capitalismo industrial, mercantile fi nanceito. O star system & antes de tudo fabricacéo”*. Aqui, é entio o valor de autenticidade que embasa a critica da visbilidade. ACRITICA DO PODER Encontra-se ainda hoje esse tipo de critica, que visa ao “mercado” ou & “mercantilizagio”, até mesmo ao “grande capital”, mas de preferéncia sob © termo “neoliberalismo”, em moda atualmente. Todavia, cla é acompa- nnhada de um outro t6pico, que viveu seu momento de gléria nos anos 1970 e que continua com seu impulso: é a critica do poder. © poder do olhar, avisibilidade como modalidade de exercicio de um poder totalité- rio sobre os individuos: reconhecemos ai um tema levantado por Michel Foucault em Surveiller et punir (Vigiar e Punir], no qual evoca 0 “olhar branco do poder”. Cito aqui o resumo sugestive que Anne Vincent-Buffault faz dele, a propésito da questio do olhar: ‘A ordem ea seguranca requerem o desaparecimento das zonas de sombra, Na cidade grande, apoicia se rorna um olharconstantemente em ago, que olha tudo ‘e que procura apreender tudo, (..] O olhar se tornaintrusivo, a atengio moral se transforma em poder inquisitorial. (..] Michel Foucaule insiste na importancia dese olhar que penetra os segeedos”. A visibilidade, entéo condigao comum de cada um, torna-se no mais © privlégio ambfguo que era o da estrel, mas uma desvantagem absoluta 16. Idem, biden 17 A. Vincent-Buffaul, "Regards, égards, garements dans a ville aux xvi etx ies" Communications (Le sens du regard”), 2.75, 2004. | |... 322 TIRAMIAS DA visinnLipapE diance da onipocéncia suposta do malvado Leviaté, que parece a reencarna- «fo do pai intrusivo impondo sua influéncia no psiquismo da criancinha, segundo a bela andlise proposta pelo psicanalista Paul Denis, nesse mesmo iimero notivel de Communications, consagrado ao olhat. A.cRETICA DA “PUBLICIDADE” ‘Um terceiro tipo de critica visa néo mais a0 mercado ou ao poder, mas a0 espaco pil privada pelo embaralhamento da fronteira entre piiblico e privado. Ai, 19 ou, mais precisamente, a0 atentado a intimidade da vida a estrela volta a ser um objeto de escolha para assentar a condenacio de uma condigao demasiado visivel, tao visivel que ela perderia, em tiltima instancia, sua humanidade. Citemos simplesmente ~ esperando retomé-lo, pois é um argumento fandamental hoje em dia ~ 0 historiador da fotografia, André Rouillé: ‘As grandes estrels so puras imagens. Imagens superexpostas: pura exterorida- des, sem interioridade, em individuaidade, sem intimidade. So sees inciramente piblicos, sem vida pessoal, ou melhor, cuja vida pessoal tem como objetivo final se cornar pliblica. A grande estrelajé no € realmente um sujeito, um ser human, mas um objeto, um produto de consumo”. E notemos de passagem que o argumento do excesso de publicidade vai de par com um argumento um pouco mais antigo, oriundo diretamente da tradi¢io marxista: o da reificagio, isto é, da reducdo do humano 2o estado de objeto, de coisa, sem interioridade, sem nenhuma outa finalidade além do consumo. A ORITICA DA ALIENAGAO iso que nos leva diretamente ao nosso quarto ¢ iltimo tipo de critica da lade: a critica da alenagio, diretamente emprestada, mais uma vez, 18. P, Denis “Sousle regard de Freud”, Communication ("Le Sens du regard”), n. 75,2004 19, A. Rouilé, La Phonograph uM vaLon coNTROVERSO... 323 da tradigio manxista, mas notavelmente revigorada pelo famoso ensaio con- sagrado por Guy Debord a La Societé du spectacle [A Sociedade do Espetdcule). (O essencial de sua argumenta¢ao se enuncia nas primeiras paginas do livro. Ela visa nao mais 4 encarnagéo caricatural da visibilidade ~a estrela ~ mas, ‘como em Foucault, sua forma trivial, que € a condi¢éo do homem mo- demo, Para parafrasear Hannah Arendt, é mais a “banalidade do mal” da visibilidade que Debord ataca, do que suas declinages monstruosas. Em primeito lugar, portanto, o espetéculo, que se tornou a principal modalidade das sociedades ocidentais modernas, éalienante por ser apenas representagéo: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condigdes modernas de produgio se anuncia como uma imensa acumulacéo de es- peticulos. Tudo 0 que era diretamente vivido se afastou numa represen- aio”. Em segundo lugar, cle € alienante por implicar a separagio: “Pelo fato de esse setor ser separado, cle é 0 lugar do olhar enganado e da falsa consciéncia; ¢ a unificagéo que ele promove nio é nada mais do que uma linguagem oficial da separacéo generalizada™", Em terceiro lugar, 0 espe- taculo éalienante porque é mediagéo: “o espeticulo néo é um conjunto de imagens, mas uma relaglo social entre pessoas, mediada por imagens”. Por fim, ele éalienante porque passa por uma simbolizagdo: “A linguagem do espeticulo é constituida por signos da produgio reinante, que so a0 ‘mesmo tempo a derradeira finalidade dessa producto”. Retomemos as coisas na ordem légica, ¢ nfo mais na ordem em que aparecem no livro. Representacio e simbolizagio sio duas modalidades da ‘experiencia que nos colocam em relagio direta nfo com o real, mas com aucedineos deste, imagens ou signos de toda orem: ja nfo se esté, diria Erving Goffman”, no “quadto primario” da experiéncia comum, mas no “quadro transformado” do “modo” (até mesmo, para os paranoicos, da “fabricagdo”). Por conseguinte, o individuo se encontra néo imerso no mundo, mas separado dele por algo que, a um s6 tempo, Ihe permite se 120. G, Debord, La Soi de spetale at. Idem, ibidem. 22, Idem, ibidem. 23, Idem, ibidem. 24. E, Goffman, Les Cadhe de Fespévenc. 34 TIRANIAS DA visiBILIDADE comunicar com ele, impedindo-o de ter acesso direto a ele, € que € entdo uuma mediacéo. Dai um problema de autenticidade: o “espeticulo” é0 que separa da interioridade, Ginica realidade humana considerada “auténtica”, contra as miragens da aparéncia e da submissio & opinio do outro, E essa experiéncia da inautenticidade que Debord chama de “espetécu- 1”, depois de os marxistas a chamarem de “alienacio”; € ela ambém que se encontra hoje nas condenagées do abuso televisivo: 0 abuso de uma relacéo com o mundo que passaria exclusivamente, ou quase exclusivamente, pela visio, pela imagem, pela representacio. E é importante notar que, se 0 en- saio de Edgar Morin chegou ao Spice da cultura do cinema como diversio ‘mundialmente popular, o de Guy Debord chega alguns anos depois que a televisio comecou destronar o cinema nas priticas de lazer, permitindo a este se tomnar, cada vez mais, uma “arte” destinada a um publico relativa- ‘mente culto, a0 passo que a televisio se tornava a ocupacéo por exceléncia das categorias sociais mais baixas na hierarquia”. ‘A mediagio me parece entéo sero argumento principal dess critica mo- derna da vsibilidade. Certamente, dizer isso pode parecer voltara enunciar tum trufsmo, de tanto que a “ertica das midias” setornou um lugar-comum, dligno de figurar num Dictionnaire des idées recues de hoje; mas &rambémm, parece-me, apontar por tris do lugar-comum a légica profunda do que constitui a ambivaléncia da visibilidade, no sentido de ela ser a0 mesmo tempo um valor desejado e um antivalor denegrido. De fato, ndo € tanto a visibilidade que parece ser um problema nas criticas das quais ela & atualmente objeto, mas sua amplificagso por meios técnicos de reprodugio — ao que se chama, precisamente, midias, ¢ euja forma principal passou a sera televiséo. Parece que a visibilidade nao mi- diatizada continua, em sua esséncia, uma condicio nao problemtica, até mesmo desejada, ao passo que a visibilidade midiatizada, portanto a0 mesmo tempo amplificada e separada da experiéncia comum, passa para o império do mal. Fla éentéo tanto mais atacada—em todo caso por aqueles que tém acesso & publicacao de suas opiniées ~ quanto é ardentemente consumida nos meios populares. Eis agora alguns exemplos familiares do que se torna 25. N. Heinich, “Aus origines dela cinéphili: les éapes de a perception ethéxique”, em J-P, Esquenazi (org), Politique des auteurs et theres da cinéa. ‘UM VALOR CONTROVERSO... 325, a visibilidade, aos olhos do mundo erudito, uma vez que ela é midiatizada pela televiso. A CONVERSAO PELA MIDIATIZAGAO {Uma primeira critica feita&visbilidade televisiva é seu cardterefémero:esta- 1mos na era do tempo curto dos valores superficiais,€ néo no tempo longo dos valores auténticos. Como escreve Dominique Pasquier num artigo de socio- logia das profisses televsivas, “a televisi s6 consagra no instante ela produz uma notoriedade fulgurante mas perfeitamenteefmera™. Fis o que resume uma parte das reprovagées recorrentes feitas & televisio: assim, o filésofo Régis Debray, em sua critica da “mediocracia™”, denunciava principalmente 4 “destituiéo da obra pelo acontecimento™ Sigifica dizer que, a seus olhos, a ileima das “tés eras” da intelligentsia, da midia ou “mediocraci dara da universidade e da era da edigio, sofre de uma extrema ileg A visibil antidemocritico, pelo fato de cla acentuar as “diferencas de grandeza” entre pessoas comuns e celebridades. E essa desigualdade que aponta, por exem- plo, 0 diretor inglés Peter Watkins num panfleto contra as midias lade televisiva pode igualmente ser criticada por seu carder © reenquadramento midiético, akamente seletivo ¢ centralzado, sobre um individuo famoso em detrimento de milhares de oueusconsticui um dos aspectos petigoss ¢ antidemocriticos das midias de massa contemporineas. Ao apagar assim o papel das “pessoas comune” e de suas hutas dias em favor das estes, as midias encarnam a antitese do pluralismo e da consciénca coletiva™ Sea televisio pode estigmatizar por ser antidemocritica, néo é apenas porque a grandeza que ela proporciona ao conferir visibilidade ¢ excessiva em 26, D, Pasquier, “Conlls professionnel er lures pour la viii a eévision Fanease", Ehnologefranate, xxv, 2008, 27. Usilia-s, com frequéncia e de manciraabusiva, o termo médiveratie no lugar de médiacratie para qualifiar uma sociedade dominada pela comunicagio de massa. (w dor) 28, R. Débray, Le Pour inelltuel en Prance 29, N. Heinich, L-Epreae de le grandeur. Prix linéaire reconnaissance 3o. P. Watkins, Media Criss 326 rumanas oa visionuipape ‘quantidade, ampliando de forma exorbieante a desigualdade entre o famoso 0 individuo comum: é também por ela ser deficiente em qualidade, pelo fro de nao estar indexada a um verdadeiro meérito da pessoa que se beneficia dela. Esse problema se coloca principalmente quanto aos apresentadores"; ficou evidente, com os programas realty-show, como Laff Story", que con- ferem uma visiblidade imediata e, com ela, uma certa grandeza pelo fato de se tomar celebridade, a jovens que no mostraram nenbum esforco para isso ~de acordo com uma étca popular do trabalho — nem nenhum talento particular —de acordo com a ética artistica da criatividade ~ a no sero de parecer simpético aos olhos dos selecionadores ¢ dos telespectadores. Em tltima instincia, chega-se & famosa frase de Andy Warhol “Sou sobrecudo conhecido por minha fama”: &a notoriedade pela notoriedade, sem nenhu- ma outta justificativaalém dela prépria, que Dominique Noguez estigmatiza ironicamence, a propésito dos intelectuais que chamamos de “midisticos”: Ora, o que os desenvolvimento contemporineos da sociedade mididtica~ ou ‘melhor televisiva ~nos mostraram claramente€ que esa andlise deve ser comigida: © queé monetizado na ago mididtieo-politica daqueles que Benda chama alhuces de “funcionarios de forum” ~ a expressio merece ficar ~ nfo é a competéncia adguirida numa dre, nfo 0 alto pensamento especulativo, mas simples notorie- dade legtima ou nio — provocada por essa competéncia ou por esa especulagéo, Eis por que vemas agora o papel do grande escitor(grantérivain®)[..] exercido ‘tanto por isos... historiadores ou socilogos [..],especalsas em ciéncias ‘humanas [.], ecologists [..], quanto por censtas puros [...], matematicos [..., 31 "Para aquees que less inferoreshierarquicamente, camo as profisabescnicas, a profes visi colocam um outa tipo de prblema: so os fale ofcioe, eae sem formacio identificivel e sem competéncias averiguadas. Os técnicos,diretores inclusive, geralmente io r8m, pelos ators de elevsio, © mesmo rexpeto que possuem pelos atores de teatro ou cinema: a televsio ainda €, na Franga, um setor parte no mercado de trabalho dos atores, um setor em que se vi por fala de algo melhor, ou «em fim de carteira. Sua visio dos apresentadores¢ ainda pior. © apresentadar nfo sabe faer nada de parccularalém de agradar a0 pico e sua popularidade Fulguante — ‘enquanto ele esti no ar— parece desproporcional sua auagio” (D. Pasquier 9p it). 32. Nome, na Franga, do programa Big Brother (x. do) 33. Palavraalie criada por Dominique Nogue em se liv Le Grantécrinan er autres ‘exter. Combinagio de “grand” (grande) e “éexvain” (escrito) (dor) UM YALOR CONTROVERSO... 327 smédicos [...],eclesisticos [...],atores ou cantores ...}fantasistas (Coluche, Guy. Bede), esportistas, até mesmo resgatadores de empresas. Visibilidade cfémera, visibilidade inigualicéria,visibilidade nao mereci- dda: a esses trés tipos de erticas feitas contra a midiatizagéo da visibilidade acrescenta-se uma quarta, a critica do embaralhamento da fronteira entre © piblico e o privado ~ em que se encontra a critica da publicidade evo- cada anteriormente a propésito dos argumentos cléssicos que objetivam a visibilidade em geral, e no mais apenas suas formas midiatizadas em grande escala pelo dispositivo televisivo. Esse argumento também esteve muito presente no caso Laft Story, mas jé tinha aparecido em primeiro plano nas crticas suseitadas, nos anos 1990, por aquilo que se chamou de reality-shows ~ programas que exibem pessoas comuns vivendo dificulda- des pessoais. No livro que consagrou a essa “televisio da intimidade”, a sociéloga Dominique Mehl assinala que, “de todos os argumentos, o mais forte, o mais recorrente, 0 mais pa fo da vida pessoal. Impudor, indecéncia, indiscriggo, violagao da intimidade ainda io o leitmotiv das eriticas. O par exibicionismo/voyeurismo é denunciado como o sumo da perversio midiética contemporanea induzida por essas encenagées”®. Os psicanalistas pareciam estar particularmente atentos aos possiveis danos dessa transparéncia imposta pela transgressio piiblica das frontciras da intimidade; citemos, por exemplo, Paul Denis: ilhhado se refere & exibi ‘A muliplicidade de imagens que nos sio propostas, ou impostas, vai de par cia de transparéncia que se desloca da esfera das questées publicas para o registro pessoal e até para intimidade. Aproximamo-nos de uma situaga0 em que a exigtncia de exibigio seria a regra. Trata-se de exibigfo pols, sea “trans paréncia” exige que a sonda penetre nos rinse coragées,é sobretudo as tins que sio mostrados, j que os coragbes se tornam inacessivels peas préprias condigées clas exigéncias de sua exposicio™. 34. D. Noguer, Le Grandin et autres textes 35. D. Mehl, La Talvison de Fut 36. P, Denis op it pd rinantas pa vistantroane Registremos, enfim, que o cariter intrusivo de uma visibilidade que excede as fronteiras da vida privada é um tema recorrente a propésito do ico das celebridades; encontramo-la obviamente no pri- meiro plano das indignag6es suscicadas pelo caso Lady Di, com a deniincia das “puls6es voyeuristas” do piiblico e de sua exploragio cinica pela midia « pelos paparazzi. De fato, nesse caso, a violéncia exercida pela injungso imposta a uma celebridade de se submeter & uma visibilidade tio extensa ‘quanto possivel foi levada As iltimas consequéncias, 0 acidente morta, amplificando ¢ exemplificando os perigos potenciais de toda visibilidade ‘quando, exacerbada pela caixa de ressonancia midiética, vai, se nio a ponto de matar diretamente, pelo menos a ponto de provocar a morte de seu proprio objeto. Nessa inquictude manifestada a propésito da porosidade das ronteiras entre vida publica ¢ vida privada, hé, como vimos, uma critica mais ou menos explicita do voyeurismo, frequentemente associado a “pulsées”. Essa é— depois do cardter efémero, no igualitirio, imerecido e intrusivo a visibilidade midiatizada ~ uma quinta categoria de argumentos contra a visibilidade: o interesse que ela suscta teria a ver com a itracionalidade. Cito de novo, por exemplo, André Rouillé: ‘A méquina de culo is celebridades prvatizao espago piblico ao opor aio, 20 logos do qual a cidade €o espago de prdilesso, s fore da emosio, do pathos, aque prevalecem no espaso privado. A sensagio sucede & reflexio, a emosio & ratio, o coragio a0 cérebro,o espeticulo 3 informagio.[...] Ba cidadani, 6a possibilidade de eforjar uma opinido que, ness perda de dstanciamento critio, encontram-se profundamenteafecadas”, E isso que pertenceria a uma “civilizagio da sensacio”, segundo 0 psicanalsta Paul Denis, que deplora igualmente o cariter viciante do uso «excessivo das imagens, principalmente televisivas: “A superabundancia de imagens cons assim uma espécie de toxicomania das imagens, que se apareiita com a i uma barreira a nosso mundo interior: pode existir 37. A. oul, op. cit, DM VALOR CONTROVERSO... 329 traumatofilia e que, como todo recurso a um t6xico, visa a reprimir 0 surgimento dos afetos”™ Existe, enfim, um iltimo tipo de argumentos, mas que, contrariamente a0s precedentes, em a particularidade de ser pouco explicitado. No entanto, sentimo-lo aflorar em varias condenagées da visibilidade midiética e, em particular, clevisiva: € 0 argumento da vulgaridade. O édio do povo no é ‘um sentimento muito bem aceito na sociedade atual, principalmente nos ‘meiosintelecuais, em que ee é, todos nds sabemos, politicamente incorret. Sem divida éa raaio pela qual cle endossa o habito muito mais apresentivel do desprezo pelas midias. Assim, quando o crftico e cineasta Jean-Louis ‘Comolli, em secembro de 1993, interpelava bruseamente num artigo do Le ‘Monde Miseille Dumas seu programa Bas ls masque, tipico do reality show, sentia-se que o escudo brandido contra a exibicio midiética da vida pessoal visava também ao que tais programas podiam rer de popular, no sentido pejorativo de “vulgar”. E 0 que jéreplicava Bernard Pivot a respeito das in- vectivas de Régis Debray contra o poder indevido do programa Apostrophes [Apéstrofes] sobre a vida intelectual francesa, num artigo do Le Monde do dia 14.de maio de 1979, inttulado “Réponse aux apostrophobes” [“Resposta 408 apostrofébicos”]: no fundo, haveria af apenas uma forma de elitismo”, MIDIATIZAGAO, MEDIAGAO E INAUTENTICIDADE Concluindo, tentarei mostrar, em algumas palavras, a Kégica dessa situagdo contraditéria, em quea visiblidade vista pelo mundo dcadémico pode ser, an mesmo tempo, valorizada e desvalorizada, valorizante ¢ desvalorizante. Vimos que 0 que provoca a transformacio do valor em antivalor é a ‘idiatizasio, em particular sob sua forma televisiva, que tem como caracte- rfstica ser em grande escala a0 mesmo tempo que profundamente popular, logo maculada pela vulgaridade. 38. P. Denis, op it 39. Eo que os lembram Hervé Hamon ePatick Rotman, em Les Imellocrates Expédition ‘ev haut intelligentsia, depois de trem esurnido a argumentacio de Debray a tlevisio {0 maior fator de corrupgi jomalsta destronou o autor, aera das midis sucedeu ‘ra da universidade e aera da edig, o programa de Pivot exece um nivelamento i ai tte i i ner Ran sei act meme hog remem ome a 330 FURANAS DA vistaiLioaDE Fica entéo a questio: 0 que é que, na midiatizagéo, tem a propricdade de degradar assim a visibilidade? Para responder a isso, vou me apoiar novamente na argumentagio de Peter Watkins contra as midias. Eis o que cle afirma a propésito da morte de Lady Di: Posso compreender a emogio daquelejover inglés que fi assist aosFunerais da princesa Diana para Ihe prestar uma homenagem pessoal, e que flava com «emogo da visita que ea the tinha feito no hospital onde foi tratado, Trat-s af de uma reagio pessoal a uma experincia pessoal. Muito mais inguietante foi a ‘mens emocio cocina daquees milhares de pessoas que nunca tiham enconcrado Diana e que s6 2 coneciam por meio da medio da tela eda imprensa. Alguns pretenderio que a reagio do piiblico € sincera e que no resulta de nenhuma tmanipulagio, mas sua amplitude fenomenal (que as miiasreconhecem como “uma das mais importantes demonstrages de tristeza coleiva da histria ingles") constitul um acontecimento compésito, uma alquimia complexa que combina autenticidade eartifcio “Que combina autenticidade ¢ artificio”: tem-se al, por um lado, a aurenticidade de um sentimento, que a evidéncia da emocio garante; Por outro, o artificio ou, em outras palavras, a inautenticidade de um Adispositivo constitutivamente impessadl, pelo fato de que ele & 20 mesmo tempo coletivo (“a imensa emogio coletiva”) midiatizado ("a mediagéo da tela eda imprensa’). Ora, em que a mediacio e a coletivizagio se opoem & personalizagio da relagio? Por um lado, porque profbem a proximidade (a proximidade da qual o “jovem inglés”, em compensagio, se beneficiou, _gragar a uma visita “pessoal”); e, por our lado, porque profbem a reci- procidade, Com efeito,o distanciamento (a tela, a pagina de revista), tanto quanto a multidéo, impede de se aproximar do fdolo; e mesmo que se conseguisse tocé-lo, clas proibem a reciprocidade da relagio, de tio grande que € a dissimetria entre a massa dos adoradores a unicidade do adorado*. 40. P. Watkins op. et ‘4 Contrariamente 20 que aftma Luc Boltanski em La Soufftance distance. Morale ‘manicaire, médias et politique, a exigtncia de simnettizagio no €condigio da “comum Ihumanidade a seuages de disimetria entre humanos so indimerss, © que nio provoca, no entanto, 2 desumanizacio. O que eventualmente abala osencimento de om vaton contaovEnso.. 331 Proximidade ¢ reciprocidade sio as condigbes de uma relagio “pessoal” (a palavra é usada varias vezes em Watkins); ora, séo clas, justamente, que ‘io destruidas néo apenas pela “midiatizagio” mas, de modo mais gerd, pela “mediagio"*, Pois € preciso generalizar nossas palavras e vinculé-las a fendmenos muito mais antigos, como a querela do iconoclasmo. Essa opunha, sabe- ‘mos, aqueles que aceitavam, até mesmo veneravam, a imagem do {dolo, porque seria uma mediacio positiva que daria acesso ao divino; Aqueles que recusavam, até mesmo destrufam, tal imagem, porque seria uma mediagéo negativa, criando uma barreira & presenca do divino. Estou resumindo brutalmente uma ambivaléncia axiolégica com ramificagbes muito mais complexas, como mostrou Marie-José Mondszain®; mas parece-me que por tris da contradigio entre uma visibilidade accita, até mesmo desejada, uma visbilidade recusada, até mesmo execrada, se delineia uma mesma logica, centrada no papel ambiguo atribuido & mediagao, conforme se veja nla o que aproxima ou, 20 contritio, o que afasta do objeto de admiracio, de amor ou, simplesmente, do olhar. A ambivaléncia da mediagéo aparece assim como homéloga & ambivaléncia da propria visiblidade, ao mesmo tempo criticada por sua falta de autenticidade (0 “espeticulo”) e elogiada por sua capacidade de expor, de tirar do segredo, de dizer tudo (Loft Stony), Em suma, a mediagio/midiatizagao € 0 que torna a visibilidade inauténtica, logo ma. Mediagio auténtica, por permitiro vinculo, até mesmo amplificé-o; ou inauténtiea, por rompé-lo ou degradé-lo:é nessa ambivaléncia que intervém a questi, crucial, da proximidade, cla propria garantia da reciprocidade, portanto da personalizacio do vinculo. Significa dizer que 0 que chamei em algum lugar de “antropologia da admiracio” tem forgosamente a ver pperencimenta a uma humanidade comum & uma excrema dissimetia, porque ela proibe esas das condig6es da rao pessoal - a proximidade e a reciprocidade. 42, Eo que também sugeria A. Vincent-Buffaul (op, ct) 20 opora presenga ea copresenca A onipresenga: “A interposigo de dspostivos visuals que colocam 8 distincaapresenga (cimera, fotografia, tela) e x onipresenga da imagem tansformam essa vgincia em passvidade facinada ou em repulso sem implicar as consderantes nem a sedugdo ou ‘alard introdusidos pela copresena” 4 Me]. Mondseain, Imag, ine, économie. EE 3 timawaas pa vestanuipape. ‘com uma éca do préximo, qual nos leva inevitavelmente a questio da visibilidade. E significa dizer, enfim, que a pregndncia atual do tema da visi- bilidade deve er relacionada 4 répida progressio do valor de autenticidade. +20- Do Reconhecimento a Insignificancia Jan Spurk ‘ER, 0 see visto, bem como o problema da injungio da vsibilida- de, esto intimamente ligados ao problema do reconhecimento € 2 injungio do teconhecimento. £ esse vinculo que gostarfamos de esbosar neste capitulo. CONTRADIGOES DA VISIBILIDADE {Um grande nimero de contribuigdes para este volume mostra as mill e uma formas da injungio da vsibilidade em nossas sociedades contemporiness, profandamente trahalhadlas pela indistria cultural, bem como as diferentes formas de se tornar visiel. ‘Nao pretendo insistir em sua grandeza e onipresenga em nossas socieda- des; gostaria apenas de citar 0 mundo académico para ressaltar um aspecto ‘A mancira mais habitual de ser reconhecido nesse “mundinho” (Lodge) social é publicar. Nel alguém é reconhecido como membro integral se & ‘um “pesquisador que publica”, segundo a nova expresséo burocraticamente correta Isto é, que se deve tornarvisivel gracas as objetivagées de seu traba- Iho: livros, artigos ou intervengGes em coléquios, bem como a organizagio de coléquios, sem esquecer 0s escritos ¢ 0s programas na midia de massa. 3B

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