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GERARDOYOEL (ORG.

lmAGEm,
ETICA
EFllOSOFIA
COSACNAIFY
!

O cinema como experimentação filosófica


Ala in Badiou

1
Vamos falar de cinema e filosofia ... Serão oito horas de conversa: quatro hoje,
quatro amanhã . ~ uma espécie de maratona, e a ideia é ir devagar.
Começo dizendo o seguinte: o cinema tem uma relação bastante singular
com a filosofia. O cinema é uma exper iência filosófica. Isso coloca dois pro -
blema ; Primeiro: como a filosofia conside;a o cine m a. Não é que a filosofia
pense o cinema e o conheça . A relação ~ntre ~les não é de conhecimento -
é viva, concreta, uma relação de transformação. Segundo: como o cinema
transf~ a a filosofia :; u seja, a própr ia noção de ideia. Na realidade, o ci-
nema é a criação de novas ideias sobre o q_ueé a ideia . Eis o que eu gostaria
de discutir com vocês .
Poderíamos formular a questão de outro modo : o cinema é uma situação
filosófica. Para começar, deixem -me explicar o que é uma situação filosófica.
De maneira abstrata, u~a situação filosófica é a_relação entre ter mos que em
geral não mantêm r: lação entre si. Uma situação filosófica é um encontro,
uma junção. Um encontro de termos estranhos uns aos outros .
Darei três exemplos . O pr imeiro foi tirado de um diálogo de Platão, Gór-
gias. Nele, ocorre a intervenção brutal de um personagem chamado Cálicles.
O debate que se segue estabe lece uma relação entre ele e Sócrates. Essa relação
é uma situação filosófica, uma espécie de teatro filosófico . Por quê? Porque
............
....
______ ~

o pensamento de Sócra tes e o de Cálicles não têm nenhuma medida comum. sol~ado. Mas Arquimedes não responde. O soldado romano ue també -
São dois modos de pensar alheios um ao outro. A discussão entre eles não devia ter muito interesse pela matemática diz· ''Arquimed ' q m nao
-lo''. Arquimedes levanta um b • . . " es, o general quer \'ê-
prova nada, exceto que estamos diante de dois pensamentos incomparáveis. nha dem - .. " pouco a ca eça e diz: Espere até eu terminar mi-
Uma relação entre dois termos estranhos. Cálicles sustenta que o direito é a onstraçao. Mas Marcellus quer vê-lo!': diz o soldad "Q .
força, que o homem feliz é o tirano, enfim, o homem que prevalece sobre os
a sua demonstra ão? " A . . º· ue importa
h ç . rqu1medes continua a fazer seus cálculos se d
demais; para Sócrates, o homem autêntico é o justo. Logo, não há verdadei- n uma resposta . Então, num acesso d fú . 1 ' m ar ne -
cai morto sobre a fig , . e na, o so dado mata Arquimedes. Ele
ramente uma relação entre a justiça enquanto violência e a justiça enquanto ura geometnca que estava desenhando
ideia. Trata-se não de uma discussão, e sim de um confronto. Ao ler o diálogo, Por que essa é uma - tiloso, fica? Porque ela mostra
situa çao . que não h .
d.d
percebe-se que haverá um vencedor e um vencido, que um não vai conseguir i a co mum entre o direito do Estado e o . a me-
cussão de verdade Em úJt' ·1· pensamento criador. Não há dis -
persuadir o outro. Cálicles é, por fun, vencido, mas isso só acontece na ence- . 1ma ana 1se o pode · · 1· .
criador só conhe . ' . r e a v10 enc1a. O pensamento
nação de Platão. Aliás, é bem provável que essa tenha sido a única vez em que éo ce as própnas regras. Arquimedes está no seu elemento que
alguém como Cálicles foi vencido. São as delícias do teatro. pensamento. A ação do poder não o alcan a Afi 1 , . '
lência eclode. Não existe d"d ç . na• e por isso que avio-
Estamos então diante de uma situação filosófica. Em que consiste a filo- . me I a comum entre o pod d
dade, de outro - a verdade . - er, e um lado, e a ver-
sofia nessa situação? Em mostrar que devemos escolher. Devemos escolher enquanto cnaçao Entre d d
existe uma distância: a dist· . . po er e ver ade, portanto,
entre dois modos de pensar. Isso implica uma decisão: ficamos ou do lado de sofia . anc 1a entre MarceUus e Arquimedes. Cabe à filo-
Sócrates ou do lado de Cálicles. Filosofar, aqui, é pensar a escolha, a decisão - ponderar, refletir, explicar essa distância.
tornar a escolha clara. Assim, poderíamos dizer que uma situação filosófica é Primeira definição de situa ã til ' fi
decisão. Segunda defin · - . ~-o os~ ~ª· ~ortanto: elucidar a escolha , a
a elucidação de uma escolha. A escolha de um modo de viver ou pensar. É a O . içao. exp icar a distancia entre o poder e a verd d
terceiro exemplo vem de um til , a e.
primeira definição de situa ção filosófica. cinema. Um filme ad . , 1d . m~. Ja era tempo de começar a falar de
O segundo exemplo nos é dado pela morte do grande matemático grego. m1rave o Japones Miz h. h
crucificadosf Ch 'k . oguc ,, c amado Os amantes
natural da Sicília, Arquimedes. A Sicília tinha sido invadida e ocupada pelos mais belos filme~ daematsu ,~~noali~t .an, Kenji Mizoguchi, 1954J.Talvez um dos
romanos e Arquimedes fora um dos participantes da resistên cia, mas os roma - amor Jª re 1zados.
nos saíram vencedores. Arquimedes foi um dos maiores espíritos que a huma- A história é bem simp les: uma mulher .
pequena gráfica . JOvem se casa com o dono de uma
nidade já conheceu: ainda hoje seus escritos matemáticos parecem espantosos. por mteresse. Um homem d b -
seja. Então, aparece um ra e e~, mas ela nao o ama, não o de-
Já naquele tempo . ele especulava sobre o infinito e praticamente inventou o cál- bem banal Estam J p~ por quem ela se apaixona. Trata-se de uma história
culo infinitesimal séculos antes de Newton. Era um gênio excepcional. Quando · os no apao mediev 1 •
com a morte Os a , a • epoca em que o adultério era punido
se inicia a ocupação romana, Arquimedes retorna seus afazeres. Um de seus campo. Aliás. ~an~es adulteros devem ser crucificados. Eles fogem para o
hábitos era desenhar figuras geométricas na areia. Um dia , enquanto desenhava , a sequencia da fuga p J fl
se refugiam n , . e a oresta, pe Ios lagos, é extraordi nária. Eles
alguma s figuras complicadas, aparece u um soldado romano. Este o avisa que uma espec1e de natureza 'f E .
tenta protegê-los EI , poe ica. nquanto isso, o bom marido
um general romano gostar ia de vê-lo. Os romanos tinham muita curiosidade · e mesmo sera considerado I d -
tenta ganhar tem o diz ue . . cu pa o, se nao os entregar. Então,
em relação aos sábios gregos, um pouco como um animal inteligente desperta rea!m p , q a mulher v1aJOUpara o interior U b .
a nossa curiosidad e. O general Marcellus queria ver Arquimedes. Acho que . ente. Mesmo assim, os amantes sã . . . . m om mando,
imagens finais do fiJ u o pego s e conduzido s ao suplício. São as
-~·'º'" ' não era muit o bom em matemática, mas, me smo assim, queria ver me. vemos que os do·
um cavalo, amar d d is seguem para o suplício no lombo de
"" -- ""'"' Marcellus quer vê-lo", repete o ra os e costas um para o outro . O piano rea 1ça a imagem . dos
amantes sendo conduzidos ao suplício,e não é que eles sorriem? Ambos sorriem Segundo, explicar a distância entre poder e pensamento, entre Estado e
vagamente. Um sorriso extraordinário! Seu destino é a morte atroz, uni~os no verdade; medir essa distância e saber se é possível superá-la ou não.
amor, mas não se trata da fusão românticade amor e morte. Eles nunca quiseram Terceiro, esclarecer o valor da exceção, o valor do acontecimento e o valor
morrer. O amor é o que resiste à morte. Deleuzee Malrauxafirmavamo mesmo da ruptura. E isso contra a imobilidade do existente, contra o conservado-

a respeito da obra de arte. Ao que tudo indica, é isto, no fu~do, que o amor rismo social.
verdadeiroe a obra de arte têm em comum: ser aquilo que resistea morte. O sor- São essas as três grandes tarefas da filosofia,desde que a filosofiaseja mais
riso dos amantes é uma situação filosófica.Por quê? Por nos mostrar que, entre que uma disciplina acadêmica, algo que conte para a vida.
a eventualidadedo amor, a brusca reviravoltado destino, e a ordem estabelecida, E~ últJ.maanálise, a filosofiaé o vínculo entre escolha, distância e exceção-
as leis da cidade, as leis do casamento, tampouco existe medida comum. O que o vínculo,.? conceito, no sentido de que fala Deleuze,ou seja, uma criação da fi-
dirá a filosofiadesta vez? Que é preciso pensar o acontecimento; pensar a exce- losofiapor excelência.Se olharmos a questão mais de perto, é possívelverificar
ção; descobrir o que temos a dizer sobre o que fogedo usual. Em outras palavras, que ela implica sempre um vínculo, um nó entre um problema de decisão,um
problema de distância ou afastamento e um problema de exceção.Os conceitos
é preciso refletir sobre a mudança da vida. _ . • .
Vamos, então, resumir as tarefas da filosofia em relaçao às s1tuaçoes. Pn - filosóficosmais profundos estão sempre a dizer algo como: "Sequiser que a sua
meiro elucidar as escolhas fundamentais que se apresentam ao pensamento. vida tenha um sentido, é preciso aceitar o acontecimento, manter distância d~
Elas s;mpre implicam a identificação do que está e do que não está em questão. poder e mostrar firmeza nas decisões''.Essa é a história que a filosofiasempre
conta, sob as mais variadas formas. Permanecer no terreno da exceção,no que
tange ao acontecimento, guardar distância do poder e fazer valer a decisão to-
mada. Nesse sentido, a filosofiaé o que contribui para mudar a vida.
Rimbaud disse que "a verdadeira vida está ausente". Pensando bem a ra-
zão des er da fil;sofia-é tornar presente a verdadeira vida. Diremos que 'a ver-
dadeira vida está presente na escolha, na distância e no acontecimento.
Nos três exemplos dados, havia uma relação entre termos heterogêneos:
Cáliclese Sócrates, o soldado romano e Arquimedes, os amantes e a sociedade.
Essa relação, ou a encenação dessa relação, é quase como uma história que se
conta. O debate entre Cáliclese Sócrates nos é contado, assim como a morte de
Arquimedes,e o filme de Mizoguchi conta a história dos amantes crucificados.
O que se conta, no nosso caso, é a história de uma relação. Mas não se
trata de uma relação de fato - é a negação da relação. Tanto é assim que, no
final, o que se contou foi uma ruptura. Para contá-la, foi necessário contar
uma reJaçao.- eontudo, no final das contas, o que se relata é uma ruptura.
Te~emosde escolher entre Cálicles e Sócrates, ou seja, romper com um dos
dois. Se ficarmos com Sócrates, já não estaremos com Cálicles; se ficarmos
com
. Arquimedes, Jª . , nao
- estaremos com Marcellus; e, quando vivemos uma
h tstória de am
or ate. o 1·umte,
. nao
- é do Iad o das leis
. da sociedade
. que ficamos.
Cena finalde Osamantescrucificados
.
O cinema .
Alain Badiou comoexperimentação filosófica 35
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Diremos, então, que a filosofia se interessa por relações que não são rela- que falo. Falo do amor por uma coisa, por uma cria -
cr iação; falo da obra-prima que é a .d •.çao, no momento de sua
ções. Deleuze tinha uma expressão para isso: s(ntese disjuntiva,ou seja, uma precia a por milhões de
relação que não é uma relação. Uma conexão paradoxal, uma ruptura. Há fi- mento em que passa a existir Or . pessoa.~ no mo -
. a, o cinema nos dá ex J ,
losofia sempre que se queira pensar essa espécie de relação. Afinal, a filosofia disso: os filmes de Charles Cliapl' emp os categoricos
m, por exemplo Os fi1 d CJ .
vistos no mundo inteiro até e t . . mes e iaplm foram
é a teoria da ruptura, o pensamento da ruptura. . . ' n re os esquimós. E todo mund
Foi o que disse Platão, ao comentar que a filosofia era um despertar; mas imediatamente que eles falavam da human1 . 'd ad e f;alavam o f,compreendeu
d
o que é o despertar senão a ruptura do sono? Nesse sentido, a filosofia é o ralmente da humanidade _ da "h 'd d ' . pro un a e visce-
umam a e genérica" h
humanidade para além de suas d·c I f; 'como a c amarei, a
momento da ruptura refletido no pensamento. uerenças. sso az com que o
Resumindo, toda vez que houver uma relação paradoxal, uma relação que de Carlitos, embora perfeitamente s't d . personagem
i ua o, SeJao representa t d h
não é uma relação,uma sit~ção de !uptura - aí, então, pode haver filosofia. dade genérica para um africano . ê n e a umani-
' um Japon s ou um esqui ó É
Insisto neste ponto: não é porque algo seja dado que há filosofia. Estou que salta aos olhos, mas há outros , e nao _ apenas no cmema . mc.· .um exemplo
inteiramente de acordo com Deleuze: filosofar não é absolutamente refletir e melodramático. Por exemplo fil . om1co,burlesco
, um me extraordmariam t .
sobre o que quer que seja. Há filosofia, pode haver filosofia, na medida em traordinariamente inventivo u d . en e intenso, ex-
' m os poemas cmematográfi .
que há relações paradoxais, rupturas, decisões, distâncias, acontecimentos. realizadosaté hoJ·
e_ falo de Au ..
o [S . cos mais notáveis
, ra unnse: A Song of Two H
O cinema, por exemplo, apresenta uma definição paradoxal, por isso ele Murnau -, fez tremendo sucesso à , umans, i927J, de
epoca, um pouco como Ti't . [
\ l
constitui uma situação para a filosofia.O paradoxo do cinema pode ser defi- meron, 1997] na ocasião de seu 1 ' ame James Ca-
Al . ançamento, guardadas as devidas r -
ém disso, sabemos que obras -pr·imas d e todos os r , p oporçoes.
nido de duas maneiras: a primeira, e mais filosófica, é dizer que ele constitui
uma relação inteiramente singular entre o artifício !otal e a realidade total. De
fato, o cinema é a possibilidade de uma reprodução da realidade e, ao mesmo
grande público
Raoul Walsh e ~e;:
: filrn e ipos ca1ram no gosto do
:: tros.es de Fritz Lang, Hitchcock, John Ford, Hawks,

tempo, o lado inteiramente artificial dessa reprodução. Em outras palavras, o Assim, não se discute que o cinema ossa s
comparação com nenh p er uma arte de massas sem
cinema é um paradoxo que gira em torno do "ser" e do "parecer''.É uma arte uma outra arte O s' J
poetas de massas· Victor H . ecu o x1x teve escritores de massas,
ontológica. Assim o definiram desde cedo inúm eros críticos, em especial An- . ugo, por exemplo na Fran , , h .
de massas. ' ça, e ate OJeum escritor
dré Bazin. Esse importante crítico francês mostrou que a grande questão do
cinema, em última análise, era a questão do ser - isto é, daquilo que é mos- Na França, quando queremos montar ,
queremos ganhar d' h . um espetaculo popular, quando
trado quando se mostra. É por isso, em primeiro lugar, que se pode falar de m e1ro, o que fazem é ,
ern Victor Hugo E . os uma comedia musical baseada
uma questão ou de um problema do cinema. . . ssa contmua a ser a melh .
últunos anos na F . or receita. O maior sucesso dos
Vamos partir de uma constatação evidente: o cinema é uma "arte de mas- de Paris.Em Nov r;nçka foi u~a ~OJ~édiamusical baseada em Notre-Dame
sas", expressão que definirei da maneira mais simples possível. Uma arte é uc a or , Os rmserave1stambé 1·
i~ouvee há esc .t d .m es ao eternamente em cartaz.
"de massas" quando obras de arte, obras-primas incontestáveis, são vistas e à d'-- -- O .n ores e massas. Nunca, porem,
o cinema , numa escala comparável
apreciadas por milhões de pessoas no momento mesmo de sua criação. Essa - · cmema per · ,
pressão "arte d manece msuperavel como arte de massas A
última ressalva é muito importante, pois sabemos que certo "efeito de pas- . e massas" no e . . . ex-
sun paradoxal. Por '. . ntanto, implica não uma relação evidente, e
sado" às vezes entra em jogo aí. Milhões de pessoas visitam os museus porque urna
•. categoria qu que digo . isso?
. . Porque "massas" é uma categoria política
gostam de tesouros, e também porque os tesouros são uma atração turística. na aristocrát·
- 1ca. e possui efet1v1dadepolítica, enquanto "arte" e' uma catego-'
As pessoas podem contemplar todos os tesouros do mundo, mas não é disso
Oc111erna
cornoex
Alain sadJou perlnientaç ào filosófica
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• .É poss1vel
• .
analisar o cinema
questão da imagem Essa é b , pensa.r s.ua relação paradoxal, a partir da
Dizer que arte é uma categoria aristocrática não consiste em emitir um · ª
a ertura class1ca Foi . .
juízo de valor; o que acontece, simplesmente, é que "arte" traz implícita a ideia sobre o cinema como arte ontológica. . o que menc1one1 há pouco
de criação, logo, exige os recursos indispensáveis para compreender a cria-
~
Podemos partir da questão do tem o Se .
ção. Exige, portanto, certa intimidade com a história da arte, uma formação sucessão das artes do elen o d p . gunda maneira. E também da
' c as artes, se preferirem d
especial, e isso contribui para fazer de "arte" uma categoria aristocrática. Já com as demais artes Eis o te . d • comparan o o cinema
· rce1ro mo o.
"massas" é uma categoria eminentemente democrática. ''Arte de massas", por- ~ , .Épossível investigar como se dá a rela _
tanto, supõe uma relação paradoxal entre um elemento democrático e um .i O último caminho seria aborda . _çfiao e_nt~e.arte e não arte no cinema.
r a s1gru caçao etica ou mo a1d .
tu an o sua relação com as gr d fi r o cmema, es-
elemento aristocrático. d · d a·
d Gostar an es. guras da existência humana.
Todas as artes, em dado momento, foram de vanguarda. A pintura foi ia e izer algumas palavr s b d
arte d~ vanguarda até entrar para os museus. Os Picassos podem ser igual- Em primeiro lugar, a questão da i:a :: r~ ca ª.um~ des~as tentativas.
mente contemplados como tesouros. A música também foi, e ainda é, arte de é explicar por que o cinema é u dg . osso mtmto, nao nos esqueçamos ,
ma arte e massa s Ora d" - ,
vanguarda. A poesia foi uma arte de vanguarda. Podemos afirmar que o sé- sas porque é uma arte da im . . , irao, e uma arte de mas -
agem, e a lffiagem fascina t d d
culo xx foi o século das vanguardas - e da arte de massas. A primeira grande o cinema é concebido como fab . - d o o mun o. Nesse caso,
-- ncaçao e uma aparên . .
arte de massas aparece e se desenvolve justamente na época dos movimentos uma espécie de duplo do real D't d eia extenor da realidade ,
- d --- - . i o e outro modo é a arte d 'd ifi
va a ao seu mais alto grau de e . - , a , ent cação !e-
de vanguarda. -:-- -- peneiçao. Nenhuma out .
No cinema, portanto, verifica -se uma relação paradoxal, uma relação en- çao com tamanha força Por . . ra arte permite a identifica-
. isso, o cmema é uma art e d
tre termos heterogêneos: a arte e as massas; a aristocracia e a democracia; a poderosos mecanismos de idenffi - . e massas, porque aciona
i ca~ao. Essa e a primeira 1·
inve;çãÕ ·; a inve stigaçã o, Õnovo ~ o gosto predominante. Por isso, porque o Vejamos agora como o c1·ne . b.
ma e conce ido a t" d
exp JCaçãopossível.
cinema apresenta uma relação pãradoxal, a filosofia se interessa por ele. Logo, urna questão fundamental para Deleuze pa_rir o aspecto temporal -
O cinema é uma arte d e para muitos estudiosos do cinema
temos de nos indagar, a propósito dele também, a respeito da escolha, da dis- - - - e massas porque transfor .
.!º!ºª
m
o tempo visível e assim cria
' •
.
um sentunento do te
ma o tempo em percepção,
tância e da eventualidade.
Que possibilidade tem a filosofia de pensar esse objeto? Como entrar na -· esmo 'll'e o tempo vivido Nat l mpo, o que não é o
ata do tempo mas o .
· ura mente tod

t
os emos uma vivência ime -
questão do cinema? Como entrar na questão da relação paradoxal que define di ' cmema transforma ess . • .
mostra o tempo. a v1venc1aem representação. Ele
o cinema? Como pensar o cinema enquanto arte potencialmente de massas?
Pois nem sempre o cinema é arte de massas; há os filme s de vanguarda, há um Se o inte, rpretamos desse modo, como verem
cinema aristocrático , há um cinema difícil , que pressupõe o conhecimento -~. ª d! musica, que tarnbé ,
. .
. • . os adiante, o cmema se apro-
m.ostrá-lo. m e uma expenenc1a do tempo, uma maneira de
da hi stória do cinema. Entr etanto , o cin ema é sempre uma art e de massas em
potencial. A filosofia deve pensar essa rela ção que nã o é uma relação. temEm última anális d. ·
po, enquanto o e,. mamos simplesmente que a musica , · permit e ouvir o
O que significou o cinema, enquanto ruptura, para a história da humani - t\ -; cmema permite ver o t empo - e também ouvi-lo, já que
ll'lusica faz parte do .
dade? A humanidade com o cinema seria diferente da humanidade sem ele?
per:tir ver o tempo. cmema. No entanto, próprio ao cinema é o fato de ele
Não haveria uma estreita correlação entre o aparecimento do cinema e as no-
agem e t empo seriam d
corno arte ·
vas corrent es do p ensam ento? de m uas maneiras filosóficas de abordar .
A m eu ver, hou ve cinco tentati vas princip ais de pensar o cinema, ou me- assas . Mas não sa-o . . o cmema
as umcas.
lhor, cinco maneiras dif eren tes d e ent rar no problema .
Ocinemacomo~x .
Alainaadio\J penmentação filosófka 39
A terceira possibilidade é compará-lo com as outras artes. O cinema limiar da não arte. É uma arte saturada de não arte, ou seja, uma arte ainda
guarda das outras artes precisamente o que elas têm de ~opul.ar;o cinema,.ª saturada de formas vulgares.Sob certos aspectos, o cinema é sempre inferior
sétima arte, tira das outras seis aquilo que elas têm de mais universal, de mais à arte. Enfim, ele explorajustamente a fronteira entre arte e não arte, tal como
adequado para a humanidade genérica. ela se define de tempos em tempos. Ele se mantém sobre essa fronteira. Ele
Darei alguns exemplos. incorpora as novas formas assumidas pela vida, sejam elas artísticas ou não,
o que O cinema conserva da pintura? Pensando bem, a ideia da beleza do e.procede a uma seleção, embora esta nunca seja exaustiva. Assim, em todo
mundo sensível. Ele não conserva o processo intelectual da pintura, nem os filme, mesmo nas obras-primas, há sempre imagens banais, materiais vulga-
modos complexos de representação, e sim a relação sensível e estruturada do res, estereótipos, imagens já vistas, coisas sem interesse. Isso não impede que
quadro com O universo exterior. Nesse sentido, o cinema é uma pintura sem o filme seja ~a obra de arte consumada; pelo contrário, facilita sua com-
pintur~, um mundo pintado sem pintura. . preensão por todos. É possível abordar a arte do cinema pelo ângulo da não
o que O cinema conserva da música? Não exatamente as complex.idades da arte. No caso das outras artes, dá-se o contrário. Devemos abordar seus de-
composição musical,nem os grandes princípiosde desenvolvimentodo material feitos, seu lado inartístico, a partir da arte, do plano superior em que ela se si-
ou do tema, e sim a possibilidadede proporcionar um acompanhamento sonoro tua. No cinema, nós podemos progredir. Podemos partir até mesmo do nível
ao mundo. Certa dialéticado visívele do audível.No fundo, o encantamento do do espectador comum, dos sentimentos mais banais; podemos não ter bom
som, quando ele está presente na vida. No cinema, como todo mundo sabe, há gosto e com o tempo, quem sabe, aprimorá-lo; podemos alcançar um nível
uma emoção musicalligada a situações subjetivas,uma espéciede acompanha- de profundidade e refinamento. Mas não temos de fazer o caminho inverso.
mento do drama, uma música sem música, por assim dizer, uma música sem Já nas artes aristocráticas, há sempre o receio de escorregar, de cair. Vamos
técnica musical, uma música tomada de empréstimo, porém restituída à vida. ao cinema, no sábado à noite, para descansar tranquilamente da grande arte.
o que O cinema conserva do !:_ om3nce? Não a penetração na psicologia Na realidade, a arte, no cinema, está acima de tudo isso. É como uma re-
dos personagens, mas ª-forma ~o rel~o. Contar grandes histórias, contar his- compensa que recebemos com agrado, mas sua ausência talvez não chegue a
tórias para toda a humanidade. estragar a noite - assim mesmo teremos feito um bom programa.
o que O cinema conserva do teatro? A figura c!,oator e da atriz - a graç~ O mesmo não acontece diante de uma pintura ruim. A pintura ruim é
sedutora, a aura do ator e da atriz, aquilo que os transforma em estrelas. Di- a pintura ruim, não há muita esperança de que ela se torne boa. Não nos
ríamos, então: cinema é o que transforma o ator em estrela. elevaremos,já nos rebaixamos, portanto, fazemos parte de uma aristocracia
Para concluir, portanto, é verdade que o cinema faz empréstimos de to· decaída. Já no cinema, o espectador é sempre um democrata em ascensão.
das as artes, em geral aquilo que elas têm de mais acessível.O cinema torna Essaé a relação paradoxal, a ligação paradoxal do cinema com a aristocracia
todas as artes acessíveis;ele abstrai o lado aristocrático, complexo e composto e a democracia - o que, em última análise, remete à relação arte/ não arte in-
da grande arte e devolve tudo isso à imagem da vida - enquanto pintura ~e'.11 trínseca ao cinema. ! também isto o que faz a força política do cinema: nele,
pintura, música sem música, romance sem psicologia, teatro pelo fas~m10 as opiniões do senso comum se cruzam com a reflexão filosófica. Não encon-
dos atores. No fundo, o cinema é a popularização de todas as artes, dai sua tramos essa relação, sob essa forma, em nenhuma outra parte. É a quarta hi-
vocação universalista. Essa é a terceira hipótese, segundo a qual a sétima arte pótese. O cinema é uma arte de massas por explorar as fronteiras da arte. Ele
promoveria a democratização das outras seis. . . I" está sempre na iminência de passar para o outro lado.
Há outras hipóteses ainda. A quarta seria verificar como se da, no cmema, Creio haver uma última hipótese - a significação ética do cinema - para
a relação arte/ não arte. O cinema é uma arte de massas por estar sempre no explicarpor que ele é uma arte de massas. O cinema é, além de uma arte de

Alain Badioll O cinemae


omo experimentação filosófica 41
40
figuras do espaço ou do mundo, consideradas na sua exterioridade, uma arte pode haver uma medida comum. O discurso do sofista Cálicles e o discurso
de personalidades eminentes, uma arte das importantes figuras da humani- de Sócrates são desconexos. Mas a filosofia vai se colocar no lugar da desco -
dade atuante. Uma espécie de panorama da ação universal. São formas fortes, nexão. Ela dirá que é preciso escolher. Sócrates demonstra que quem é feliz,
que encarnam os principais valores debatido s em certos momentos. O ci- na verdade, é o justo - um ponto muito importante para ele. Ou seja, ele cria
nema é o veículo de uma espécie de heroísmo individual : Somente nele ainda uma síntese entre o seu argumento - "'É preciso ser justo" - e o argumento
existem heróis - e nosso mundo é tão pouco heroico ... O cinema continua b.ásico de Cálicles - "l?.preciso ser feliz': A sínte se não suprime a ruptura,
a apresentar figuras heroicas. 'É impossível imaginá -lo sem os grandes tipos ela se constrói em seu lt:_gar.Ela faz do justo a figura do filósofo, aquele que
morais, sem a grande luta do bem contra o mal. Evidentemente, aí se verifica incorpora o argumento do adversário, que não lhe deixa argumento. Esse
também a influência do cinema americano, da imagem da política projetada é um exemplo bastante importante, bastante genérico. A filosofia não se li-
pelo western,que às vezes é desastrosa. Mas também há um lado admirável, m~ c~statar d~renças , ela inventa novas sínteses que são operadas no
tão admirável quanto a tragédia grega em seu tempo: propor a um amplo lug_:r da diferença. 'É uma ideia um pouco complicada, já que não se trata
piíblico figuras típicas, grandes conflitos da existência humana. O cinema de de uma síntese de termos diferentes. Sócrates nunca diria: "Chegamos a
certo modo fala da coragem, da justiça, da paixão, da traição. E os gêneros uma síntese do filósofo e do sofista''. Essa espécie de monstro, um "Sócrates-
mais importantes do cinema, os mais codificados, como o melodrama e o -Cálicles': não poderia existir. Então, não se trata bem de uma síntese da
western,são prec isamente os gêneros éticos, isto é, aqueles que se dirigem à dif~ença, e si~ de uma síntese construida no lugar da difere~ça , uma sín-
humanidade para lhe propor um~ mi~ologia mor~. Nesse sentido, o cinema tese que considera em separado alguns elementos introduzidos pelo outro
herdou algumas funções do teatro, daquele teatro que a certa altura se dirigia termo . Por exemplo, no caso da ~iscussão com Cálicles, tem-se a questão
aos cidadãos. É por isso também que "7>cinema é uma arte de massas: todo da felicidade. Ao demonstrar que o homem justo é quem é feliz, Sócrates se
mundo se interessa pelo grande tema do momento. apropria da questão de Cálicles, operando uma síntese em que a noção de
Eis como podemos abordar o paradoxo do cinema. Vamos agora fazer felicidade muda de sentido. O justo é feliz, não pela violência e pela domi-
uma pausa. nação, mas sim por outras vias. Volto ao exemplo de Os amantes crucificados,
à imagem dos amantes sendo conduzidos ao suplício, porque aí também há
uma síntese. Obviamente, os amantes estão numa relação de incompatibi-
Há uma definição muito antiga de filosofia que tem a ver com o que acaba- lidade com as leis da sociedade. Mas a unidade de seu sorriso é o anúncio
mos de dizer. Dissemos que filosofar é refletir sobre rupturas, ou sobre rela- de outra sociabilidade possível. Não significa apenas disjunção com as leis
ções que não são relações; dissemos também que filosofar é inventar sínteses. da sociedade; implica também a ideia de que as leis podem mudar. Existe
operá-las, já que uma síntese não é algo dado. Dito de outro modo, a filoso- a possibilidade de uma ordem social capaz de integrar o amor. em vez de
fia cria uma nova síntes e onde havia uma ruptura. Como exemplo, vamos excluí-lo. Os amantes do filme são universais por causa da síntese - síntese
voltar à oposição entre Sócrates e Cálicles. Diria que Cálicles toma o partido entre ª exceção que eles representam e a lei comum. Fica claro, então, que
da força, da violência e da dominação, principalmente porque isso propor- toda exceção, todo acontecimento, não deixa de ser igualmente uma pro-
ciona felicidad e. Ele não defende a violência e a dominação por si mesmas. ~essa feita a todos. Caso contrário, o filme não teria conseguido transfigu -
O homem feliz, como ele explica, é o poderoso - ou seja, há uma associação rarª exceção em efeito artístico.
entre felicidade e poder. Feliz é quem pode agir como quer. Sócrates. por sua tu ~ filosofia, ao pensar a ruptura, a escolha, a distância, a exceção ou a even-
aüdade do a . . ,
vez, toma o partido da justiça, da verdade e dos valores. É por isso que não , con 1ec1mcnto, mventa uma nova smtese. Certo, é preciso csco-

Ocinemae . •
42 Alain Badiou orno expenmentaçao filosófica
43
lher, contudo a escolha tem de conserva r algo da alternativa excluída . Ce rto, é vítima às vezes se retira e o algoz fica sozinho no escuro, antes de começar
preciso guard ar distância do poder, verdad e e poder nada têm a ver - mas não a se arrastar de novo. Agora, porém, ele conta com algo mais: com o relato
existe o poder da verdade? Certo, é preci so estar à altura do acontecimento "dos tempos bem-aventurados do azul''. A propósito, Beckett diz: "Vive-se na
excepcional, porém, apesar disso, existe uma promessa de alcance universal. just iça. Nunca ouvi dizer o con tr ário''. Viver "na justiça" é a promessa filo-
É isso que chamo de novas sínteses da filosofia. Simplificando mui to, o que sófica, é a razão pela qual Platão dirá que o justo é feliz. Constatar a ruptura
há de universal numa ruptura? Eis a grande qu estão da filosofia. A ruptura não é tudo , é preciso cons truir um a síntese, a fim de que possamos estar
é fundamental, mas o que a filosofia procura alcançar é o valor universal da todos na ruptura, de modo que a ruptura não seja apenas uma aventura
ruptura. Este, por sua vez, exige sempre um a nova síntese, o que explica a im - excepci onal , mas também uma pr omessa universal. É isto a síntese: uma
portância atribuída por Platão ao momento da sintese. Ora, por que é preciso criação filosófica propriamente dita. :.
provar que o justo é feliz? Por que não bastaria dizer que o justo tem tanta Por que lhes digo tudo isso? Ora, porque o cinema, a meu ver, inventou
existência quanto o sofista ou o criminoso? Porque, quando Platão afirma que ~ sínteses, ampli ~u as possibilidades da síntese. É esse o aspecto da ques-
"o justo é feliz': o que ele quer dizer, na verdade, é que "a jus tiça é possível para tão, fundamental para a relação entre cinema e filosofia, que gostaria de lhes
todos''. É possível viver na justiça. apresentar . Se a filosofia é realmente a invenção de novas sínteses, de sínteses
Isso me lembra - faço um parêntese - uma fór mula extraordinária do da ruptura, então o cinem a desempenha um importante pap el, pois modifica
gra nd e escr itor Samuel Beckett, uma fórmula filosófica que sempre achei as condi ções de possibilidade da síntese.
lapidar. Está no roma nce chama do Como é. Nele, a hum anidad e é repre - i.1 Os exempl os a seguir foram extra ídos das hipóteses que acabamos de exa-
sentad a um po uco como no Inferno, de Dante. As pessoas vivem se arras - minar. Vamos falar sobre o tempo,por exemplo, que sempre foi essencial e de-
tando na escuridão com suas saco las de provisões; ser humano é arrastar- terminante para a síntese. Temos as célebres proposições de Kant, mas vamos
-se na escuri dão carrega ndo uma sacola . Logo, o campo da experiência é simplificar ao máximo: podemos intuir faciln:ente qu e o tempo é a síntese
restrito. O que se passa, então? As pessoas topam um as com as outras, eis ~ experiência; no ssa experiência é sin tetizada no tempo. Ora, ~s operações
tudo. É realmente extr aord inário: a única coisa que pode acontecer é um do cinema envolvem o tempo. Há modos muito diversos de concebê- lo no
encontro. Pura verda de. De fato, arrastamo-nos na escur idão ca rr egando cinema. Por exemp lo, o tempo como construção ou síntese ativa de diferentes
uma sacola - o que muda é a escuridão ou a sacola. Mas também é verdade ~ s - um tempo , por assim dizer, "feito de encaixes''. Isso está relacionado
que podemos encontrar alguém, esse é o acontecimento . O problema é que com o fato de o cin ema ser uma art e da montagem, portanto, capaz de tornar
exis te uma diferença entre aqu ele que en contr a e aqu ele que é enco ntrado . vis~ve~ a mont agem do tempo. Um dos exemplo s mais clássicos é O encou-
Estamo s no escuro , deparamos com algu ém, no en tanto esse alguém não raçadoPotemkin [BronenosetsPotemkin, Serguei Eisenste in, 1925],em que a
nos viu chegar. Portanto, há aque le que encontra e aque le que é encontrado: constru ção tempo ral do acontecimento, a insurreição, a repressão etc. são to-
o algoz e a vítima, como Beckett os denomina. O enco ntro de ambos é, para talmente organizadas pela mont agem. A mon tagem desloca as simu ltaneida-
esse escritor, o amor, o que ele chama de amor estoico. A relação entre o al- d~s, por isso fala-se em "tempo construído": um tempo inteiramente singul ar,
goz e a vítim a se dá, na verdade, no plano da lingu agem. Ou seja, o que feit~ de encaixes. Contudo, o cinema também utiliza const ruções temporais
o algoz pret ende é que a vítima lhe conte uma história . Uma história dos co~pletamente d iferen tes, até mesmo opostas a essa. Há o tempo obtido por
tempos em que o mundo era azul e não sombrio. Uma história daquilo que estiramento , .
, como se o espaço se torna sse elastico no tempo. É o caso das lon-
Beckett chama de "os tempos bem -aventurados do azul''. Magnífico. Então, gas sequênc ias filmadas com a câmera parada ou em movimento pelo espaço
comO '
é isto o amor: evocar "os temp os bem-aventurad os do azul "; na sequên cia, a que desenrolando o novelo do tempo.

Oc!nen,ae001 0 . • .
44 Alain Badiou expcnm entaçao fllosofir~
Um exemplo que sempre ache i su rpr eenden te está em Rebecca,a mulher vem no tempo construído, o que se pode demonstrar facilme nte. Em Aurora,
inesquecível [Rebecca,Alfr ed Hit chcoc k, 1940 ]. Rebecca é um filme cons- há um a sequência absolut am ent e ext raord inária , a de um bonde descendo a
truído em torno de um enigma, que se rá desvendado por uma confissão. encosta de uma colina. O movimento puro filmado de dentro do veículo cria
Com efeito, o herói, interpretado por Laurence Oli vier, acabará confessando um sentim ento particularmente intenso de duração, a um só tempo maleável e
O cr im e. E que gosto extraordinár io tem Hitchcock pela confissão! Ele se de- poética. Aurora,por outro lado, é um filme bastante construído, bastante mon -
licia quando alguém conta um crime. A sua simpatia é toda direcionada para tado. Para concluir, o que o cinema propõe, e acho que apenas ele faz isso, é a
os culpados; ele chega mesmo a dizer que nós todos o som os. Em Hitchcock, possibilidade de inscrever a duração pura na temporalidade construida. Isso é
como sabemos, um dos traços subjetivos mais refinados é que o inocente é o que chamamos propriamente de síntese - uma nova síntese.
mai s culpado do que o culpado. É exatam ente o caso de Rebecca,poi s o crime A metafísica se caracteriza geralmente pela utilização de categorias opos -
era justificado. O culpado, po rtan to, era inocente. Mas a cena que nos inte - tas. Em última instância, ela se define pelo dualismo, pelas grandes oposições:
ressa é a cena da confissão propriamente dita . É uma longa sequência, um finito e infinito, substância e acidente, corpo e alma, sensível e inteligível etc.
longo relato, em redor do qual a câ mera gira. O tempo é o do relato, um a A oposição bergsoniana entre duração pura da consciência e tempo exterior
com prid a pata de animal que se esti ra , e não comporta nenhuma monta · da ação e da ciência é uma delas, o que faz de Bergson um metafísico .
gem - aliás, nenhuma articulação -, beirando a duração pura. É, então, outra Assim, talvez se possa dizer qu e há algo de antimetafísico no cinema. Em
concepção, outra ideia do tempo, o que nos faz supor que o cinema apresenta outras palavras, trata -se de uma arte da época do fim da metafísica. Pensando
pelo meno s dua s con cepções distintas do tempo: o temp o co mo construção bem, o cinema teria podido agradar a Heidegger, que teria ficado surpre so
e monta gem, e o tempo como dilatação da imobilidade. Encontramos aí algo co m isso. Ach o que ele via o cinema como uma arte da técnica, portanto,
das distinções de Bergson, sobretudo a oposição essencial que o filósofo esta - como um a arte m etafísica. Mas um exame aprofundado mostra qu e as nova s
beleceu entre o tempo exterior e co nstruído - em ú ltima análise, o tempo da sínteses cr iada s pelo cinema não são m etafísicas; ao contrário, elas vão de
ação e da ciência - e a duração pura, qualitativa e indivisível, que é verdadei- encontro ao dualismo metafísico. Darei um exemplo bem suc into. Co mo o
rament e o temp o da cons ciência. Temos, portanto, O encouraçadoPotemkin, sensível se difer en cia do inteligív el no cinema? Na verdad e, não há diferença.
por um lado, e a cena da confissão de Rebeccapor outro. No cinema, o int eligível é apenas uma gradação do sensível. Uma colo ração,
Faço um rápid o par êntese sobre a confissão em Rebecca.Parece incrível, e uma nuance do se nsível. É por essa razão tamb ém que o cinema pode ser a
é fascinante, m as há um a cena simétrica a essa em outro filme de Hitchco ck, arte do sag rad o, como é a do milagre. Penso no cinema de Rossellini e de
Sob o signo de Capricórnio[Under Capricorn,1949]. Aí também temos uma Bresson. Eles separam o sagrado ou o inteligível do sensível? Não, porque o
longa cena de confissão e o trat ame nto do temp o é quase idêntico . A úni ca cinema permite que o sagrado e o inteligível se manifestem num registro pu -
diferença reside no fato de ser uma mulher , e não mais um homem , o autor da ramente sensível. Dou um exemplo: o final do filme de Rossellini, Viagem à
co nfissão. Observem atentamente as du as sequên cias e dirão que Hitchcock Itáliã[Viaggioin ltalia, 1954), que é tamb ém um filme sobre o amor. Pergunto
O que seria do cinema sem o amor, o que seria de nós sem o amor. Viagemà
conseg uiu a proeza de filmar a diferença entre a duração femin ina e a duração
masculina. Façam o exercício; requer sutileza, mas é interessante . Em última Itáliaé a história de um casal em crise. Nós todos sabemo s o que é isto. Eles
anális e, poré m , a grandeza do cinema não está em reproduzir a distinção de viajam à Itália com a vaga esperança de resta ur ar o equilíbrio da relação, mas
nad a d'tsso aconte ce: o homem se sen te atraído por outras mulhere s, ela pre -
Bergson entre tempo construído e duraçã o pura, e sim em mostrar que é pos -
sível sin tetizar as duas coisas . Tanto é assim que, nos grandes filmes - penso fere ficar um pouco à margem de tudo . No entant o, o filme term ina com uma
em Aurora, de Murnau , de que já falei - , momento s de dura ção pura se insere- autêntica recon strução de seu am o r, recon struçã o que to ma a form a d e uma

Ocinem
Alain Badíou a como experime nta ção filos ófica 47
espécie de milagre. Rossellini quer nos dizer que o amo r é mais forte do que Com o cinema é diferente. O cinema propõe sínteses efetivas de valores
a vo ntad e; que, quando se esforçam por salvar a relação, os amantes caem plásticos e musicais. Tomemos um exemplo, ent re muitos: Morte em Vc m ~za
numa abstração; que, no fundo, há qualquer coisa na relação que se salva [Morte a Venezia, 1971], de Visconti, adaptado de um romance de Thomas
só por si. Como se o amor fosse um novo sujeito, e não o objeto de uma ne- Mann. O filme começa com a chegada de um personagem a Veneza. Não
gociação. Pensando bem, o que Rossellini quer nos dizer é que o amor não sabemos muito a seu respeito, mas o vemos chegar com sua bagagem, subir
é um contrato, e sim um acontecimento. Se algo pode salvá-lo, portanto, será ao barco, atravessar os canais de Veneza. Sem dúvida, os valores plásticos
um acontecimento. Na sequência final, o milagre é filmado - não vou entrar são notadamente realçados dada a relação estética de Visconti com a cidade.
em detalhes, é preciso ver o filme. O milagre acontece no meio da multidão. Não são apenas belas imagens de Veneza. É bem mais do que isso: já é uma
O mais impressionante, porém, é que se possa filmar o milagre. Isso, sim, é espécie de poema fatídico, uma grandiosa e melancólica travessia . Visconti
notável. 'Talvez o cinema seja mesmo a única arte capaz de operar milagres. integra à sequência o adágio da Sinfonia n. 5 de Mahler, que se tornará o leit-
Uma das maneiras de refazer a história do cinema seria identificar todas as motiv do filme. Em momento nenhum, o que é extraordinár io, a música tem
cenas de milagres, ostensivos ou velados, pois esse é um dos temas preferidos função decorativa. Entre o personagem - que se acha parado no barco e do
do cinema. Um milagre pode ser filmado; pintar um milagre, entretanto, é qual vemos o rosto e o sembla nte -, Veneza, os canais, os prédios e a Sinfonia
difícil, contar um milagre também. Mas filmar um milagre é possível. Por n. 5 de Mahler, dá-se uma perfeita integração sintética cujo efeito singular
quê? Porque o milagre pode ser filmado a partir do sensível, basta modificar nã o pode ser atribuído a nenhuma arte em particular. Não é uma impressão
levemente seus valores. Fazendo uso da luz, em particular, pode- se dar a ver a musical isolada, não é uma impressão pictórica, não é uma notação psicoló-
luz interior do visível. Então, o próprio visível se torna acontecimento. Essa é gica ou rom anesca, e sim uma ideüfpuramente cinematográfica - uma síntese.
uma das grandes sínteses possibilitadas pelo cinema; ele mesmo, no fundo, Síntese de valores plásticos e musicais, e talvez romane scos, síntese que teria
é uma síntese do se nsível e do intelig ível. Também se pode simplesmente sido impossível antes do apa recimen to do cinema. Daí a invenção, pelo ci-
mostrar o inteligível como gradação da luz. Eis o que eu tinha a dizer sobre as nema , de novas sínteses - e sempre onde há ruptura , onde há disjunção entre
possibilidades de síntes e no cinema a partir do tempo. arte pictórica e arte musi cal. É um bom exemplo do que eu dizia há pouco.
Se agora considerarmos o cinema pelo ângulo bem mais familiar da multi- Nessa sequência de Morte em Veneza,a diferença entre música e pintura não
plicidade das artes, veremos que ele também propõe novas sínteses. Ainda não foi suprimida em absoluto, isso não faria sentid o. Pelo contrário, a diferença
se falava em multimídia e o cinema, por si só, já era uma multimídia. Ele su - persist e, no entanto nela foi ope rad a uma síntese, na verdade, uma criação
gere sínteses que envoivem os valores artísticos. A relação de valores plásticos puramente cinematográfica. É mais um exemplo revelador das faculdades
e valores musicais é um problema que atravessa toda a história da arte. Como sintéticas do cinema.
alcançar sua síntese? Esse, por exemplo, é o grande problema da ópera como
gênero. Em geral, a ópera efetua uma síntese de valores teatrais, plásticos, ce-
nográficos, técnicas de iluminação etc. É uma das principais fontes na qual o Vamos examinar agora a relação entre arte e não arte. Também aqui encon -
burlesco tem se inspirado: mostrar que a síntese não funciona. Vejam, ou reve- tramo s sínteses cinematográficas inéditas, em particular a exploração pelo ci-
jam, os irmãos Marx em Uma noite na ópera[A Nightat the Opera,Sam Wood nema dos grandes gêneros populares e a transformação das formas do espe -
e Edmund Goulding, 1935].A base de sua comicidade é o pressuposto de que táculo popular em material artístico. Entre outras mais conhecidas, podemo s
tnenciona r o circo,
. que d a, 1ugar a uma verdadeira transfiguração cinematográ-
os valores musicais funcionam perfeitame nte em teoria. Contudo, se a cantora
6
for um elefante e o cenário despencar, é porque a síntese não funcionou. ca. Esse tema mereceria um estudo mais detido , com base em O circo [The

O cinema e
Alai n Badiou omo experimPnbr :in l'llM -'"·-
Circus,Charles Chaplin, 1928) em primeiro lugar, em Os palhaços[I Clowns, e sim descobrir as falsas aparências do mundo - em especial, as femininas. Eis
Federico Fellini, 1970], em Parada [Parade,Jacques Tati, 1974) - na verdade, um problema de cinema. O exemplo acabado disso está em A dama de Shnn-
não faltam exemplos. O circo é tratado como gênero popular, porém inte - ghai [TheLadyfrom Shanghai,Orson Welles, 1947]. Aí temos a perfídia da mu -
grado a uma nova síntese artística . Não é reportagem sobre o circo, nem có - lher, mas também a questão de seu reflexo: numa sequência famosa, em que
pia dos procedimentos circenses, mas sua integração sintética a outro veículo. Rita Hayworth é refletida ao infinito por espelhos, e os espelhos são despeda -
O mesmo vale para os espetáculos de cabaré ou de variedades . Certamente, çados um após o outro por tiros de revólver, a imagem da mulher construída
eles formam um capítulo formidável da história do cinema ... Sabemos, por pelo filme é feita em estilhaços no próprio filme. O filme é a construção de um
exemplo, que os irmão s Marx começaram como atração de variedades, de ca- mito noir e, concomitantemente, sua desconstrução . Expõe-se assim cará-
O
baré. O espantoso, porém, é que, se não tivessem passado disso, provavelmente ter aberto da forma, tanto que se propõe uma nova síntese. Ele mostra que é
não teriam deixado nenhuma lembrança. É nesse ponto, portanto, que inter- possível incorporar a forma do romance noir como arcabouço, construir uma
vém uma operação de natureza especificamente cinematográfica e que con - mitologia e ao mesmo tempo negá-la. Simultaneamente - isso sim é extraor-
siste em reconstruir as variedades, dotá-las de apelo universal e integrá-!~ dinário. Não se trata de uma operação de desconstrução exterior ao filme, mas,
uma nova síntese. O mesmo se aplica ao romance policial ou ao noir. O ro- num único movimento, uma espécie de poesia mitológica e a desconstrução
mance policial, o noir e mesmo o sentimental já forneceram material para crítica dessa mitologia. Temos, se preferirem, um gênero, o romance noir,e ao
obras-primas do cinema. Aqui, cabe uma rápida observação sobre o romance mesmo tempo a sua explosão literal. Eis a força do cinema. Não é construir e a
policial. Seria o caso de indagar por que o romance noir se sai muito melhor seguir desconstruir, bem entendido, mas ambos ao mesmo tempo. Voltando
no cinema do que o romance de suspense. É um questionamento muito inte- à questão "cinema e metafísica", 0<cinema é apto a expor a metafísica e, no
ressante porque mostra os limites da operação cinematográfica. O cinema não mesmo movimento, sua desconstrução . Todos os filmes de Orson Welles em
poderia assimilar qualquer material. O romance noir lhe trouxe uma poesia especial contêm uma explicação poética: mostrar uma mitologia metafísica
totalmente fundamental. Já o romance de suspense é mais resistente. Sem dú- e sua destruição num só movimento cinematográfico . t por isso, aliás, que
vida, por ser mais abstrato e porque seu interesse deriva consideravelmente da Welles faz uso intensivo tanto da montagem como do plano estático. Ele é O
matemática. Ora, por razões que não irei desenvolver aqui, o cinema não tem grande cineasta da montagem e do plano-sequência não por razões formais, e
boas relações com a matemática. Em geral as pessoas não as têm. O cinema sim porque apresenta mitologias ao mesmo tempo que provoca seu colapso, o
é como as pessoas. Como não combina com a matemática, em consequência, que é absolutamente inovador para a filosofia contemporânea.
não assimila bem o suspense abstrato. Por outro lado, ele desenvolveu uma Concluirei esta visão panorâmica da síntese examinando a última possibili-
relação essencia l com a poética do romance noir. Isso se explica, em minha dade, a última hipótese, que é a significação ética do cinema, sua função moral.
opinião, porque o romance de suspense constitui uma estrutura fechada para O cinema utiliza dois procedimentos básicos para representar os grandes
o cinema, visto que comporta o enigma e sua solução mediante o esgotamento conflit ' · H,
os et1cos. a o que se poderia chamar de a ''forma do grande horizonte"
das hipóteses. Um romance de suspense é isto: alguém encontra um cadáver ou da grande ficção, em que o conflito moral se desenha a partir de uma aven-
na biblioteca , há dez pessoas, todas com bons motivos para ter cometido o tura um .
• a epopeia, um western ou filme de guerra. Nesse caso, o conflito é
crime; há o detetive, que vai descobrir qual dentre elas é o assassino, após ter expandido, é apresentado contra o fundo de um horizonte bem mais vasto.
provado que não foram as outra s nove. No cinema, isso não funciona bem, O cenário, a na tureza ou o espaço d esempenham um papel crucial, como em
2001· Um d' .
pois implica uma estrutura fechada. Voltarei a esse ponto. A estrutura do ro· .._·. ª o zsserano espaço [2001: A Space Odissey,Stanley Kubrick, 1968),
mance noir é, pelo contrário, aberta. A questão não é o suspense e sua solução, que e um west f' . ,
ern meta 1s1co. A1 temos um espaço vastíssimo em que, por as-
O cinema e0010 .
50 Alain Badiou experimentação filosófica
51
sim dizer, os valores serão situados de modo a se fazerem visíveis, exatamente Vamos, então, concluir sobre esse ponto: o cinema é uma invenção sinté-
como a silhueta dos heróis do westernse recorta contra o horizonte. É uma tica formidável, resta saber se ele é capaz de transformar a filosofia, caso seja
possibilidade - amplificar, expa ndir o conflito. A qu estão da amp lificação do verdade que a filosofia também inventa novas sínte ses. Acho que a filosofia
conflito é muito antiga. Por que a tragédia grega punha em cena reis e rainhas? ainda não compreendeu inteiramente o cinema. Ainda estamo s no começo,
Na época da tragédia grega, não havia reis nem rainhas em Atenas, somente visto que a relação entre ambos foi inicialm ente estética. O questionamen to,
a assembleia e a democracia. Por que, então, havia sempre reis e ra inhas no . a princípio, era: cinema é ou não uma arte? E, no caso de se r, por que e como?
palco da tragédia? Por razões poéticas, naturalmente , porque eles são símbolos Foi a primeira grande questão , um a controvérsia estética. Houve uma verda-
de elevação - ou seja, o contrário do dem ocrata da esquina. Eles simboliza- deira batalha em torno desse ponto. No entanto, o ponto mais importante
vam grandeza. No caso, a amplificação resultava da superioridade da função, não é esse, e sim saber o que o cinema troux e de novo, quer seja considerado
da altura dos personagens. No cinema, ela é produzida pelo hori zonte. A fim arte ou não. A m eu ver, o cinema provocou uma revira volta, no centro da
de transcender o caráter prosaico dos personagens e das situações, o conflito qual estava a criaçã~e nov~s sínt ese!. Novas sínte ses no temp o, novas sín-
é ambientado num espaço singular. Mas há outra possibilidade contraposta a teses ent re as arte s, novas sín teses de arte e não arte, novas sínte ses nas ope -
essa: 0 huis elos,o espaço fechado , o grupo reduzido. No grupo reduzido, cada rações de representação da moral. É preciso buscar o conceito dessas novas
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indivíduo representa um valor ou uma posição. cinema~a mb ém pode tirar sínteses . É esse o sentido que atribuo a um a fórmula de Deleuz e: "A partir
partido de um espaço sufo cante. Há certos procedimentos cinematográficos de certas ideia s de cinema, talvez seja pos sível elaborar conceitos". Formu -
adequados para isso, os quais consistem em achatar o espaço. Orso n Welles lação difícil, pois o que Deleu ze chama de "ideias de cinema " é o conteúdo
costuma posicionar a câmera bem rente ao chão, de modo a sup rimir total - da criação cinematog ráfica. Isso nada tem a ver com o cinema . Como, então,
mente O horizonte: os personagens aparecem achatados no espaço. É ou tr o seria possível elab orar conce itos filosófico s a partir de ideias de cinema? É
modo de tratar o conflito. A inten sidade do conflito é obtida por contração, uma questão bem comp licada. Os grandes livros de Deleuze so bre o cinema,
assim como noutros filmes é obtida por expan são. O notáv el é que o cinema A imagem-movimento e A imagem-tempo,' oferecem uma so lução parcial
é capaz de ope rar uma síntese também aí. O filme pode passar da expansão para esse problema. Os novos conceitos por ele propo stos dizem respeito
para a contração, pode utilizar o método do horizonte e o do achatamento ao ao tempo e ao movimento. Eles são ilu strados por análises de filmes, mas
mesmo tempo . Encon tram os essa combi nação em alguns clássicos do western. não se originam dessas análises. Na realidad e, originam- se de uma discussão
Um exemplo é o filme O preçode um homem {TheNaked Spur,Anthony Mann, com Bergson. A situação do livro de Deleuze é, portant o, compl exa. Temos
as ~<leias-cinema, que são analisada s com grand e argúcia; temo s conceitos
1953]. É uma típica história de western:um grupo reduzido de pessoas - entr e
elas doi s arquirrivais - viaja de um lugar para outr o. Temos então a viagem, o filosóficos, principalmente sobre o tempo e o movim ento, mas também sobre
espaço, com as cachoeira s. as corredeiras, as mont anha s, e, ao mesmo temp o, o ritual, e tem os a ide ia de uma passagem das ideias -cinema para os concei-
enclausuramento do grupo, com a exasperação das tensõe s e o aume nt o pro - tos. Mas faltam as ope raç ões seq uenciai s dessa passagem. Gostaria de propor
O
gre ssivo da violência. Isso é, na realidade, uma síntese: ela nos mostra que é que a passagem entr e as ideia s cinematográfica s e os conceitos filosóficos
possível utilizar simultan eament e o métod o da amplificação e o da contr ação está contemplada na questão das síntes es. Se for possível elaborar conceitos
para tratar um conflito ét ico. Estamos na tra gédia grega e, ao mesmo tempo, de filosofia a partir do cin ema, será mediante a transforma ção das sínteses
no huis cios sartrian o. Temo s reis e rainh as e dois personagens em um sótão.
Ambos são proced imentos válidos para aborda r os grandes conflitos. A apti- GiUes Deleuze, Cinema 1: A imagem-movimento, trad. S1cllaSenra. São Paulo: Brasiliense,
198
dão espec ial do cinem a, no entanto, é poder circular entre um e outro. S e Cinema 2: A imagem-tempo, trad. Eloisa Araújo Ribeiro.São Paulo: Brasiliense,1990.

O cinema
Alain Badiou como experimentação filosófica
52
filosóficas à luz das novas sínteses cinematográficas. Darei um exem plo. Há A descontinuidade terá cont inuid ade. Haverá uma nova imagem, inédita, e
pouco, eu disse que ex_istemnovas sínteses temporais no cinema. O cinema talvez ela seja a continuação do mesmo poema. Por isso o cinema existe. Vá-
mostrou que não existe verdadeira opos ição entre tempo montado e duração rios exemplos podem ser dados. Nas obras-primas do cinema, há tanto uma
pura, uma vez que ele pode instalar uma coisa noutra, como fazem os gran- espécie de continuidade essencial quanto aparições súbitas, su rpr eend entes,
des diretores de cinema, com efeito os maiores - Murnau, por exemplo, Ozu mas que se dão simultaneamente na continuidade. Penso em Era uma vez
ou Welles -, pois é uma operação realmente difícil ... Trata-se de algo que 'em Tóquio [Tôkyômonogatari,1953], um filme de Ozu. É a história de um
os grandes poetas do cinema logram. No cinema, portanto, não somos obri- homem idoso - o idoso é um dos grandes temas do cinema, há um número
gados, filosoficament e falando, a separar essas duas dimensões temporais. expressivo de obras-primas dedicadas a eles. Temos, por exemplo, Morte em
Ora, isso é importante porque implica saber o que é uma ruptura no tempo. Veneza,temos um filme extraordinário como Morangossilvestres[Smultrons-
E se a questão da filosofia é a ruptura, a relação das rupturas e do tempo é tãllet, 1957], de Bergman, Era uma vez em Tóquio,entre outros. Os idosos
fundamental. E apresenta igualmente uma natureza política: a revolução, por podem se considerar gratos ao cinema, por tudo aquilo que lhes deu.
exemplo. "Revolução" nomeava uma ruptura no tempo. Havia a ideia de que A cadência de Era uma vez em Tóquioé particularmente lenta . É uma es-
as rupturas temporais produziriam novas sínteses políticas. Era essa a ideia pécie de l: ntidã o ritmada, que to_rna visível a temporalidade da velhice. Uma
de revolução . Também era uma ideia filosófica, já que pressupunha a concep- temporalidade distendida e secretamente acelerada, visto ser demasiado idên-
ção de uma nova existência, de uma nova vida. A razão de ser da filosofia era tica a si mesma. Ozu filma isso de maneira admirável; depois, bem, há a his-
tornar presente a verdadeira vida. Ora, isso requ er que se passe de uma vida tória e há alguns pÍanos estáticos, uma nesga de céu, uma estrada de ferro, os
para outra, o que Platão chamava de "conversão", antes que a religião se apos-
..
cabos de alta tensão sobre a estrada de ferro. Essa imagem surge como um
sasse do termo. Logo, a ruptura no tempo implica a questão da vida nova, a lampejo precisamente porque não há quase nada, e esse "quase nada" é, na
exemplo da revolução em política. O cinema anuncia novas sínteses tempo- verdade , a brusca aparição do novo. Nova na dimensão do visível, a imagem,
rais. Isso sign ifica que as oposições entre tempo construído e duração pura, sempre a mesma, retorna de tempos em tempo s. É um símbolo extraordiná-
continuidade e descontinuidade, talvez não sejam irredutíveis. Seria possí- rio da síntese de continuidade e descontinuidade. Insisto neste ponto: não é
vel pensar a descontinuidade na continuidade, ou o acontecimento na sua a ideia de que a descontinuidade desaparece na continu idad e, é o fato de a
imanência. O acontecimento não é necessariamente tran scendente, e isso é descontinuidad e ser sempre possível, a ponto de se poder viver nela. Na rea-
indicado pelo cinema. Ele chega até _ai não pela reflexão, é claro . O cinema lidade, é como se o cinema nos dissesse: "O milagre permanente é uma pos-
é uma prática artística, não uma filosofia, mas um modo artíst ico de pensar. sibilidade concretâ'. Ora, dirão vocês, "Se o milagre é permanente, ele deixa
Não existe uma teoria da continuidade e da descontinuidade no cin ema, e ~~s er milagre''. Contudo, o cinema diz outra coisa. Ele promete - não que
sim novas relações entre continuidade e descontinuidade. Esse talvez seja ele sustente a promessa, ele a cumpre - que o milagre pode acontecer sempre,
o ponto mais importante. O que se passa num filme é continuo e descon- sem deixar de ser milagre. Não é porque acontece a toda hora que o mila-
tínuo, ao mesmo tempo. Isto, nos grandes filmes; nos medíocres, não é isto gre se torna rotineiro. O cinema é o milagre do visível - enquanto milagre e
nem aquilo - são simplesmente e imagens. Mas nas grandes obras há, por ~ptura permanentes. É isso, sem dúvida, o que devemos ao cinema e o que
assim dizer, irresolução entre continuidade e descontinuidade. Uma nova ª filosofia deve tentar
compreender. Talvez somente uma experiência tenha
imagem, até então inédita, surge na tela, mas o filme é o mesmo. Ou seja, a chegado perto dessa antes do aparecimento do cinema: a experiência do amor.
continuidade se alimenta da descontinuidade . Dito de outro modo, o cinema Se tivermos uma visão positiva do amor - ou seja, se não tivermos uma visão
é a promessa talvez sem igual de que a vida na descontinuidade é possível. cinica do amor, a de algo que começa muito bem e depois desanda, ou que

Alain Badiou o cinemarn- - .


54
não passa de ilusão -, se o concebermos como o verdadeiro milagre da exis - est ranha relação entre amor e cinema. Não só porque se fala mu ito de amor
tência, todo o problema se reduz em saber se o milagre é duradouro. A partir no cinema, mas porque ambos sintetizam o contínuo e o descontínuo P nor-
do momento em que dizemos "não é duradour o': recaímos na concepção cí- que, no fundo, encerram a mesma promessa, a da cont inuidad e do mila~re .
nica. Pode ser que tenha havido um milagre, mas o destino é a realidade. Por- A filosofia, no fundo , gira em torno da inda gação: terá a verdadeira vida
tant o, se pretendemos um a concepção positiva do amor, é necessário afirmar realmente se conc reti zado? A verdadeira vida é uma vida? Algo que tenha
a possibilidade do milagre permane nte. A possibilidade ou a imp ossibilidad e duraç ão, continuidad e, algo que seja como um milagre, porém um milagre
de uma renovação permanente da existência na figura do amor têm sido lon - cont ínuo? O cine ma nos dá algo como o amo r através da s imagens, e é por
game nte debatidas. Por isso, as discussões sob re co ntinuidad e e descontinui - isso que gostamos dele. Após discorrer sobre amor e sínt ese, é preciso voltar
dad e se baseiam na experiência amorosa. ao tema da imagem.
Como o acontecimento do amo r é o símbolo da descontin uid ade na
vida e o casamento é o símbolo da continuidade, tod o o problema consiste li

em sa ber como o amor se ajusta ao casamento - ou coisa que o valha, sob Começo com um par êntes e. "Continuar" é justam ente o que nos inter essa
outra denominaç ão. Mais uma vez, o ver dad eiro pr oble ma filosófico en- aq~i, pois se trata de saber como o cinema segue existindo no interior de um
volve ruptura e sí nt ese . Será o amor capa z de inventar a síntese da rup - filme e também no interior de sua hi stória. O programa do ciclo inclui a pro -
tura? A inv enção dessa síntese equivale à invenção do milagre permanente, jeçã o de História(s) do cinema [Histoire(s)du cinémn, Jean-Luc Godard, entre
e adivinhamos por quê. Cons erv amos a descontinuidade e ao mesmo tempo 1988 e 1998}. Pensando bem, o fulcro da reflexão de Godard so bre O cinema
emprestamos algo da continuidade. Bem no início, eu disse que Sócrates é a respeito de como o cinema segu irá existindo. Existe essa possibilidade?
conservava sua opo sição absoluta a Cá licles , mas lhe tomava empr est ada Há continuidad e no cinema? Assim, "continuar " é de fato um problema do
a ideia de felicidade. É o mesmo com o am or. Conserva mo s a descontinui - cinema. Para continu ar, é preciso voltar-se para o passado. Portanto , vou re-
dad e do acontec imento, mas tomamos algo da continuidade, a saber, o cará- sumir rapidamente o que disse ontem.
ter rela tivamen te duradouro das consequências do encontro amoroso. Não Em primeir o lugar , a definição de situ ação filosófica, que vem a ser a
ser á mera ilusão passageira, mas de fato uma rea lização duradoura. Nisso relação ent re duas realidades heterogêneas, uma relação que é na verdad e
consiste a expe riênc ia do amo r. Essa experiência , em termos filosófico s, sus- uma ruptura. Portanto, a filosofia pensa a ruptura e a mudança da vida. Em
cita esta int erroga ção: é possível construir uma síntes e na ruptura? Eviden - segundo lugar, o cinem a é um a situação filosófica por duas razões. De início,
temente, amor e revolução sempre andaram de mãos dadas, trata -se mesmo por uma razão ontológ ica: por criar uma no va relação entr e aparência e reali-
de uma ilu stração clássica do problema. Porém , a ideia de revolução está em dade, entre uma coisa e seu duplo, ent re o virtual e o atual. Aqu i, faço um pa-
crise. Já não há certeza de que a síntese através da revolução seja possível , rêntese sobre a te 1 . d. . 1 . .
cno ogia 1g1ta, que cons t1tu1um a nova etapa nas relaçõe s
visto que ela subentendia a possibilidade de construir um poder revolu - entre _aparência e realidade. Na verdade, trata -se de uma nova relação entre
a realidade , e
cionário. Com a revolução , viria uma força que a protegesse - a revolução . e os numero s porque, no 1undo , o cinem a digital é a redução da
permanente, o mil agre permanente. Na rea lidade, não houv e nad a disso. realidad e a c·f
.
, ·
l ra s numencas.
c b
orno sa em os, essa é uma concepção muito
antiga Na G é . .
Não houve milagre permanente. Assim, a ideia de revolução se ecl ipso u. .· r eia Antiga, a filoso fia era postulada pela escola de Pitágoras:
a realidad ' , .
Com o amor, o problema permanece o mesmo: poderá o acontecime nt o d , e e nu rnenca. O problema dos pitagóricos era que não dispunham
perdurar? Poderá ele produzi r uma síntese? O amo r, apesar de tudo, talvez e num eras em .d d fi .
, quantl a e su 1c1ente, um a vez qu e conh ec iam apenas os
nu mero s i t · _
ainda seja o principal exemplo. O segund o exemplo seria o cinema. Há uma n e1ros e as relaçoes entre eles. Então, descobriram que a reali -

Oc111ema
comO
56 Alain Badiou experimentação filosófica
57
dade não correspondia a tais números. É o que se pode chamar de "drama enfrenta sozinho a injustiça - é um recurso inesgotável do cinema. O cinema
da diagonal do quadrado"! Um roteiro de filme: "O drama da diagonal do é povoado por justiceiros solitários. Todos junto s formariam uma multidão,
quadrado "! É um bom título. A diagonal do quadrado não é mensurável por uma multidão solitária. Ainda assim, o justiceiro solitário é um personagem
números inteiros, nem por relações entre números inteiros. Logo, a hipótese fundamental. Cabe indagar por quê. Porque o cinema mantém uma relação
de Pitágoras não tinha fundamento. Na sequência, os gregos substituíram singular com a lei; a América mantém uma relação singular com o tema da lei.
a aritmética pela geometria, guiados pela noção de que as relações naturais Portanto , Cinema + América resulta em uma relação inteiramente singular
eram as geométricas. Sem números em quantidade suficiente, dedicaram-se com a lei. Um problema americano - falo da outra América, a do Norte - é
a desenvolver uma tecnologia geométrica. Afinal, chegaram à proposição de a relação singular entre lei e vingança. Em última análise, a noção corrente
que "o mundo é geométrico''. Por exemplo, no Timeu, um diálogo de Platão, na América é de que a lei é uma bela invenção, mas nula para quase todos os
há uma teoria geométrica do mundo. O mundo é composto de poliedros efeitos. Em especial, é um entrave para a vingança justa. O justiceiro solitário,
regulares . As visões de mundo baseadas na geometria têm longa história. portanto, é aquele que corrigirá as deficiências da lei. É o herói da lei, mas
O mais notável em tudo isso é que a tecnologia digital nos remete à hipótese onde ela não existe mais, onde está ausente, onde é insuficiente. A câmera do
de Pitágoras. O mundo sensível é composto de números. Hoje, dispomos de cinema acompanha o herói solitário em suas relações com um mundo sem
números o bastante para pensar isso, além de aparelhos digitais para concre- lei. São imagens fortes. Imagens de um herói singular, que acaba coincidindo
tizá-lo. Pode-se dizer então que um filme como Matrix [The Matrix, Andy com um determinado ator, e, ao mesmo tempo, de um mundo em certo sen-
Wachowski e Lana Wachowski, 1999] é pitagórico. Pitágoras teria gostado tido desértico, um mundo violento, que o cinema mostra com os formidáveis
de assistir a Matrix. "Vejam",diria ele, "o estofo do mundo sensível é numé- recursos da imagem e da cor. Aí~ dá uma conexão especificamente cinema-
rico:' Matrix é um filme sobre isso, sobre a aparência numérica. Mais uma tográfica entre um lado solitário, um lado subjetivo, e a amplitude do mundo,
vez, portanto, o cinema é o instrumento da desforra de antigas concepções. a figura geral daquilo que é o mundo. Assim, o motivo do justiceiro solitário
Embora seja bem recente, ele corresponde a sonhos muito antigos. Esse foi convém com perfeição ao cinema, que praticamente construiu sozinho essa
o parêntese sobre Pitágoras. figura. Tem-se, em suma, a figura da vingança. A história contada por esses
A primeira explicaçãopara a nova relação entre cinema e filosofiaé a nova filmes é quase sempre a de uma grave injustiça que a lei não permite reparar,
relação entre realidade e aparência. Em suma, uma nova relação entre o nú- tarefa que caberá ao justiceiro solitário. Com frequência, ele mata muito mais
mero, a tecnologia e a realidade. gente do que o criminoso, já que a reparação do crime é espinhosa. Mata de-
A segunda explicação é de ordem política. O cinema é uma "arte de mas- zenas de pessoas, até chegar ao verdadeiro bandido. Trata-se de uma cultura
sas': ou seja, ele configura uma nova relação entre democracia e aristocracia. singular, que repousa sobre um equilíbrio bastante instável entre lei e vin-
Foi o segundo ponto que examinamos: o cinema é uma situação filosófica. gança. Ora, um dado surpreendente é que a relação entre lei e vingança cons-
Em terceiro, é possível pensar a situação paradoxal do cinema a part ir titui o tema mais antigo do teatro. É o que se conta em Oréstia,a grande peça
de noções filosóficase, pelo menos, de cinco maneiras diferentes: tomando de Ésquilo, em que a lei toma o lugar da vingança mediante a criação de um
como ponto de partida a imagem, o tempo, o sistema das artes, a fronteira tribunal público. É uma das primeiras peças de teatro. O teatro, portanto, co-
entre arte e não arte e as figuras heroicas da justiça ou da moralidade. meça com a ideia de que é preciso substituir a vingança pela lei. O cinema, ou
Gostaria de retomar o último ponto: a relação do cinema com a figura certo cinema, conta uma história quase oposta: como a vingança toma o lugar
do justiceiro. O justiceiro solitário é um dos grandes temas do cinema, não da justiça por interm édio da figura do justiceiro solitário. É um lado muito in-
import a se é o herói do western, o velho policial solitário ou o cidadão que teressanteda história, pois se trata, afinal de contas, de um cinema anterior ao

O cinema . _ .
Alaln Badiou como cxpenmentaçao filosóf ,ca 59
58
teatro - anterior, na verdade, à instauração da relação de justiça representada o do outro, e sim o da identidade? E se cremos no pensamento da identidade,
pelo teatro. Evidentemente, esse é um dos aspectos da relação entre teatro nós nos tornaremos inimigos do cinema, pois o cinema exige o outro. Então,
e cinema - uma questão bem intrincada. Certo, no entanto, é que a relação a discussão entre Parmênides e Platão envolve também o cinema. "Não vá ao
com a lei não se apresenta da mesma forma para um e outro. Nem a história, cinema!': poderia ter dito Parmênides, ao que Platão teria respondido: "Meu
nem a dialética são as mesmas. Esse foi o parêntese sobre o teatro. pai não quer que eu vá, mas eu vou mesmo assim''.
Quarto ponto: a filosofia cria uma síntese onde há uma ruptura. Eis uma . Quinto ponto: o cinema propõe novas sínteses entre o tempo montado e a
possível definição de filosofia. A filosofia pensa a ruptura e o faz criando uma duração pura, entre os valores plásticos e os valores musicais, entre as formas
síntese em seu lugar. A síntese mais importante talvez seja aquela entre o ser populares e eruditas, entre a técnica do "grande horizonte" e a do "espaço fe-
e o nada . É uma bela história, iniciada com Parmênides, que censurou essa chado", além de muitas outras.
síntese. No poema de Parmênides, que viveu em um tempo anterior à filosofia, Sexto ponto: existem pontos de contato entre as sínteses propostas pelo
está dito "Não enveredeis pelo caminho do não ser, permanecei firmemente amor, pela política e pelo cinema. Temos aí novo tema para reflexão, talvez
do lado do ser"; "Não busqueis uma síntese do ser e do não ser". No diálogo sob as rubricas de "amor, revolução e cinema': "amo r e política': já que o ci-
O sofista,Platão afirma : "Tenho de dizer algo contra Parmênides''. Isso é terrí- nema também se define por certa relação entre amor e política, ou entre amor
vel, quando se tem em mente que ele considerava Parmênides seu pai. Então, e mundo.
Platão diz: "Vou matar meu pai"; "Vou cometer um parricídio ''. Em que consiste Sob esse aspecto, também se verifica uma relação com o teatro. O tema
o parricídio? Numa síntese entre o ser e o não ser. Platão chama essa síntese da tragédia clássica francesa, em Corneille ou Racine, por exemplo, é sem -
de "o outro". Tanto é que a filosofia, a partir de então, se torna pensamento do pre certa relação entre amor e política, paixão e poder. Como o cinema se
outro. Na verdade, quando dizemos que a filosofia é uma síntese no lugar de define igualmente por certa relação entre amor e política, qual é a diferença
uma ruptura, estamos dizendo com Platão que "a filosofia é o pensamento do entre teatro e cinema a esse respeito? A meu ver, o teatro apresenta uma rela-
outro''. A relação entre filosofia e cinema poderia, então, ser formulada assim: ção mais imediata com a política. Por quê? Porque a política é essencialmente
"Será o cinema uma nova maneira de pensar o outro?". Creio que sim. Creio linguagem, é o que se diz, o que se declara. A declaração política é um instru-
que o cinema é um novo pensamento do outro, uma nova maneira de atribuir mento fundamental desde a Antiguidade. O que se espe ra de um político é
existência ao outro. Há muitos argumentos nesse sent ido, mas o mais simples que ele exponha seu pensamento político por meio de palavras. O discurso
talvez seja a constatação de que o cinema no s permite conhecer o outro. Hoje, é fundamental, sempre aguardado. Ele vai falar, ele vai dizer algo. As vezes,
O político não diz nada, mas esperamos que o faça. Do mesmo modo, há
há realidades que só conhecemos através do cinema. Vamos tomar o exemplo
do Irã. O que saberíamos do Irã sem Kiarostami? O mesmo vale para o cinema sempre uma memória das grandes declarações políticas. É uma possível de-
asiático. Que realidade teriam para nós o Japão, Hong Kong e Taiwan se não finição de política: um corpo vivo arrebatado por uma declaração, um corpo
fossem Ozu, Kurosawa, Mizoguch i, entre outros? Vale destacar que o cinema ativado por uma declaração. Assim , existe um vínculo estreito entre política
nos apresenta o outro no mundo, na sua intimidade, no seu modo de se rela- e linguagem, e, pela mesma razão, entre política e teatro. Desde o princípio.
cionar com o espaço, com o mundo. A.tragédia de Ésquilo é de natureza política. O teatro se criou juntamente com
O cinema amplia enormemente a possibilidade de pensar o outro. Se a ª Política · H'a um v mcu
' 1o estreito
· entre am b os. H a' 1gua
· 1mente um vínculo
estreito entre . ., . . , d '
filosofia é o pensamento do outro, como diz Platão, existe uma relação entre fihne é cinema e amor, Ja ~ue o cme~a n~o ~ uma arte a 1ala. Um
ele e a filosofia. Se Parmênides tinha razão ou não é outra história. O que .M falado, fique bem entendido, a fala e muito importante no cinema.
significa isso, senão que ao seu tempo o pensamento predominante não era as é sempre bom ter em mente que o cin ema já foi mudo - ele pode ser

O cinema
60 Alain Badiou como experimentação filosófica 61
mudo, ele pode se calar. Embora seja importante no cinema, a palavra não distinto. Podemos notar também - conclu irei com este último ponto - qu e
é essencial. Então , o cinema é uma arte do silêncio. Ar te do sensível, art e do a técnica da imagem difere, conforme passamos do amo r para a p olítica ou
silên cio. O amor também é silencioso. Gosta ria de propor uma definição de do amor para a história. Por um lado, temos a imagem da intimidade, que é
a mor: "O amor é o silê ncio qu e se segue a uma de cla ração': Alguém diz "eu necessar iam e nte contida, focalizada de muito perto; e, por outro, a imagem
te amo ': e não há senão calar -se. Seja como for, a d eclaração crio u a situação. do s grandes acontecimentos, que é épica , aberta . A tendência do cinema é
A relação silenciosa, a expos ição do corpo, convém ao cinema. O cinema é abrir a imagem, mostrar co mo a imagem da intimidade contém a imagem
também uma arte do corpo sexual, uma arte da nud ez. É po ssível refazer toda de grande alcance. É um movim en to de abertura pr opriam ente cinemato -
a hist ór ia do cinem a através da história da nudez no cinem a. Tudo isso con - gráfico. A aptidão especial do cinema vai além da imagem; ela inclui a aber -
tribui para criar um forte víncul o entr e cinema e amor. Assim, o movimento tura da imag em. Também é possíve l mo strar qu e o problema do teatro é de
do cine ma iria do am or à política , enquanto o mo vi ment o do teatro iria da conce ntr ação . De início, temos a abertura da linguagem , partimos do caráter
política ao amo r. São traj etos opostos, aind a que, em última análise, o pro- naturalmente aberto da ling uagem , e, e m seg uid a, deve mo s nos co ncentrar
blema seja o mesm o: o que é a intensidadesubjetiva numa situação coletiva? nas figuras. Portanto, a relação do teatro e do cinema com a abe rtur a não é a
<.. - -
Mas o teat ro aborda o proble ma por meio da linguag em e o cinema, por mêio mesma. O qu e leva naturalm ente à nossa q uestão da imagem, que havíamo s
do silêncio. deixam os de lado.
Para ilustrar esse ponto, vamos nos ser vir de alguns exemp los referentes à Começamos por definir co rr etame nt e o que é "imagem ''. Em sua acep -
Segunda Guerra Mundial, no tocante à relação entr e a situação amorosa e ção prim ária, "imagem " é um termo da psicologia. Tem-se a imagem de algo.
a situ ação de gue rra. Posso citar dois filmes exemplare s nesse sen tido, intei- '~a~m" é a cóp ia menta l de algo...,Aima gem const itui um a relação de co -
ram ent e di st intos um do outro: um filme clássico, um melodrama clássico , ;: hecimento _com a realidad e. Na verda de , ela indica a sepa ração entre a cons -
Amar e morrer [A Time to Love anda Time to Die, Douglas Sirk, 1958], e um ~iência e o mund o exterior. Se aceitarmos essa definição, a questão do cinem a
filme moderno, Hiroshima, meu amor [Hiroshima, mon amour, direção de pod eria ser assim exposta em termo s psicológico s: que relação h á entr e a con s-
Ala in Res n ais e roteiro de Marguerite Dur as, 1959). Ora, o que distingue am- ciência e a imagem ? Ou ainda , que imagem se pode ter das imagens? Isso le-
bo s os filmes é que eles se co nc entra m na realidad e da gue rra , não se esq ui - vando em conta que o espectado r d e cinem a é alguém que po ssui imagens de
vam dela. Em Amar e morrerhá seq uên cias extremamente fortes da guerra na imagen s. Sabem os, por exp eriência, o qu e é falar de um filme. É um tópico
frente rus sa. O assunto de Hiroshima, meu amor é a bomba atômi ca lan çada de conversa na s reuni ões noturnas. As pessoas dizem "sim, é bom ... " ou "não
em Hirosh ima e a oc upação da França pelos alemães. É inevitável, portanto, é ruim': e quase sempr e contam o filme . Na realidade , todo mundo tem ima-
que nos confrontemos com algun s elementos da situação históric a e política, gens do filme, mas elas não são iguais. Muitas vezes, é difícil saber ao cer to se
elementos muito importantes. No entanto, eles nos serão apresentado s por ~ pessoas estão falando do mesmo filme, pois tudo o que resta são imagens de
intermédio da fala amorosa, do encontro do s corpos , da intensidade da en - ~~g ens, que não são o filme, e sim a relação do espectador com o filme. Em
trega na intimidade. É esse, a m eu ver, o verdadeiro mov imento do cinema. últuna aná lise, portanto, o que resta são relações entre imagens. Então, para
O movimento do teatro é diferente, pois ele precisa traduzir a situação gera l falar con cre tam ente de cinema, é prec iso empregar a pa lavra "imag em" d e
outro modo · É necessano
, ·
em termos de linguagem , para, então , construir as s ingularidades. -~ tenta r d ep urar a ·imagem de toda psicologia. Foi o
As duas art es, teatro e cinema, mant êm uma rela ção essencial com a situa - que Deleuze
E! - bu s d fi . . .
cou : e mr a imagem e o c111e
1
m a, exc uindo toda psico logia.
ção config urada pela relação e ntr e amor e política. Os trajetos de um e outro , p e t~nta fazer de "ima gem" uma n oção da realid ade , e não da co nsciência.
ara isso to B
por ém, di ferem, visto que o teatr o é um a art e da linguagem e o c inema , algo • ma ergson com o ponto de partida. Qual foia grande descoberta

O cinemacon,O .
62 Alain Badiou experimentação filosófica
de Bergson? Cito Deleuze: "Não se pode contrapor o movimento, enquanto tomaria a forma de uma classificação das imagens. Esta, que não compete
realidade física do mundo exterior, à imagem, enquanto realidade psíquica da propriamente ao cinema, requer conceitos. Vemos, então, como tudo isso
consciênciá'. De fato, esse ponto é crucial. Para pensar o cinema, afirma De - se articula : por um lado, o cinema produz imagens-movimento e imagens -
leu ze, é preciso abandonar a oposição entre movimento exterior e realidade
1 -tempo, e, por outro, a filosofia produz conceitos - os conceitos do cinema
inter ior da imagem. O que BE:!gso!ld~sc9briu foi que movimento e "i1!1agem"
são a mesma coisa. Entã; , Deleuze vai falar em "imagem -movim _ento" e, com
l serão sintetizados com base na classificação das imagens. Cito Deleuze, bem
n? início de seu livro sobre o cinema: "Este estudo é uma taxonomia, um en-
mais profundidade, em "i~ia~-tempo". Isso, evidentemente, é uma síntese. ~io de classificação das imagens e dos signos''. O livro tem um objetivo claro:
Também aqui nos conformamos à definição geral de filosofia: na ruptura entre realizar uma classificação das imagens e dos signos. Depois de Bergson, vem
imagem e movimento, Deleuze, seguindo os passos de Bergson, opera uma o fil_ó~fo ameri <:_
ano Pierc~. O primeiro responde pela teoria da imagem e o
nov.a sín tese, a qual chama de "imagem-movimento': Graças a essa a qual, o segundo, pel~ ~oria dos signos. Quando realizamos uma classificação das
cinema se torna um dado da realidade, e não mais uma representação. Visto imagens e dos signos a partir do cinema, trilhamos um e outro em filosofia.
que imagem e movimento são a mesma coisa, a imagem não pode ser a repre- O livro é, na realidade, uma síntese da teoria dos signos e da teoria da ima-
sentação do movimento, mas "imagem-movimento': Logo, o cinema deixa de gem, síntese que toma a forma de uma classificação. Temos, por exemplo,
ser uma representação. Talvez possa ser uma criação - a criação da "imagem - três espécies de imagem-movimento. Cada categoria é ilustrada pelos autores
-mo~{mento" e da "imagem-tempo". cinematográficos pertinentes. A classificação é exemplificada por filmes e di-
Nesse sentido, o cinema é certamente feito com imagens. No entanto, a retores . Ela mesma decorre de conceitos filosóficos. Temos em decorrência
imagem não é uma representação: é aqtiilo de que o cinema se serve para três espécies de imagem-movimento: a imagem-percepção,a primeira delas,
pe ns;r . E O pensamento é sempre uma criação. Novamente cito Deleuze: "Os compreende direto res como Grémillon, Vigo, Vertov, por diferentes razões ...
grandes autores cinematográficos pensam através de 'imagens-movimento' e ~m seguida, temos a imagem-afecção, ilustrada por Griffith, Sternberg, Dreyer
de 'i magens-tempo ', e não de conceitos". Eis aí, portanto, uma concepção bem _:!~on; e, por último , a imagem-ação,ilustrada pelos grandes filmes épicos,
clara. o cinema são as imagens, as quais não são cópias ou representações, e ~ue constituem a forma maior da imagem-ação, e pelos filmes burlescos, que
sim algo cuja natureza é igual à do movimento e do tempo . Quando se criam cons!ituem a forma menor.
"imagens -mov imento" ou "imagens-tempo", cria-se um pensamento, um pe~- Vemos, assim, como tudo se articula . Temos os conceitos filosóficos fun-
samento cinematográfico, distinto da filosofia, que por sua vez pensa atraves damentais, que são os de tempo, movimento, imagem e signo; temos os fil-
de conceitos. Um filme pensa mediante a produção de imagens-movimento mes, que produzem imagens-tempo e imagens-movimento; e temos a síntese
de ambos, que é uma classificação. Essa classificação tem dupla utilidade: em
e imagens-tempo. .
O que significa pensar filosoficamente o cinema? Que relação existe en- primeiro lugar, introduzir certa ord em na história do cinema. Há escolas cine-
tre cinema e filosofia? Esse é outro problema, sobre o qual falei brevemente. matográficas que produzem de preferência imagens -afecção, ou imagens-per -
o cinema pensa através de imagens, enquanto a filosofia o faz por meio de cepção ou imagens-ação, o que permite a Deleuze falar livremente em cinema
alemão
. ' francês o u russo nao
• mais
· como categorias
· nac1ona1s,
· · e sim
· como ca-
conceitos. Há aí uma ruptura. Qual poderia ser a síntese, uma vez que füo!~-
tegorias
. da· unagem propriamente
· · . Por exemplo, temos um grande cinema
dita
far é produ;ir uma sín tese no lugar da ruptura? Nesse ponto, Deleuze pr~põe éP1co sov· 't' . . .
um camin ho possível, a saber: a filosofia poderia empreender uma classifica· . ie ico, que constttm uma forma particular da .imagem -ação. Essa é a
ção das imagens. Isso, o cinema não faz. O cinema produz imagens, mas não ~Imeira utilidade da classificação, o que vai permitir a Deleuze o exercício
~~ili~· no dC ·
e 1alar sobre a quase tota!tdade ·
dos cmeastas mundiais, com
uma classificação delas. A intervenção filosófica, portanto, a síntese filosófica,
Ocinerna
AlainBadioú cornoexperimentação filosófica 65
64
análises bastante minuciosas, mas observando uma ordem conceituai que é a ria algo mais no cinema. Outro recurso filosófico, possibilidades mais amplas
ordem da classificação. do que a tran sformação do pensamento do tempo. Gostaria de indagar sobre
A classificação tem uma segunda utilidad e, de natureza filosófica, já que o lugar exato da no ção de "imagem" na criação cinematográfica. Falarei disso
naturalm ente modifica o nosso modo de pensar a imagem. Graças ao ci - mais à frente.
nema, podemos fazer distinções muito mais sutis. Não apenas dispomos da
imagem-movimento, mas também de variedades da imagem-movimento que
nun ca terlamos cogitado, se não fosse o cinema. É, de fato, uma classificação Vamos examinar as condições de produção da imagem cinematográfica.
do cinema; contudo, em última análise, ela permite transformar os conceitos Para escrever um poema, precisamos de papel e lápis. E, quem sabe, de
da filosofia.O empreendimento apresenta, portanto , duplo resultado: por um toda a história da poesia mundial. Essa história, porém, possui uma existência
lado; uma ordenação do cinema, uma classificação conceituai da imagem - virtual, ela não tem materialidade concreta.
-tempo e da imagem-movimento. Nesse âmbito, Deleuze produz análises de Para realizar uma pintura , nosso ponto de partida é igualmente uma au-
extraordinário pormenor . Por outro lado, temos uma criação filosófica, uma sência, um vazio, uma superfície. E também toda a história das artes plásticas
nova teoria da imagem. Com efeito - é muito important e ressaltar isso -, como virtualidade fundamental ... E assim por diante.
chegamos a uma síntese onde havia uma ruptura entre cinema e filosofia. Não se exige nada disso para começar um filme. As condições de fabri-
Cinema é produção de imagens-movimento e imagens-tempo, algo inteira- cação, a compos~ç30material da imagem-movimento ou da imagem-tempo,
mente diferente da produção de conceitos. Portanto , temos uma ruptura. No são inteiramente singulares. É preciso mobilizar recursos técnicos e materiais
filme sobre a conferência de Deleuze que projetamos, ele dizia: "Os cineastas altamente complexos, sobretudo materiais heterogêneos. Por exemplo, são
não têm necessidade da filosofia para pensar''. O que é evidente, já que eles necessários locações, cenários naturai s ou construído s, espaços. Um texto,
não pensam através de conceitos. Há realmente uma ruptura, pois os cineas- um roteiro, diálogos, ideias abstratas. É preciso dispor de corpos de atores
tas não precisam da filosofia.No entanto, Deleuze mostra que a filosofiapod e e, num estágio posterior, de uma química e de um sistema eficiente e coor-
se servir do cinema, que é possível operar uma síntese dessa ruptura, e isso, denado de aparelho s de montagem. Requer-se, portanto, um conjunto de
em suma, produzirá uma mudança da própria filosofia num ponto crucia l, aparelhos e acessórios, um complexo material que é preciso dominar satisfa-
que é a concepção do tempo em profundidade - é disso que se trata. O tempo toriamente para que seus recursos sejam aplicados na inscrição da imagem.
para Deleuze, como sabemos, é o ser mesmo. Portanto, o cinema tem conse- Embora seja um aspecto banal do cinema, considero importante. O cinema
quências ontológicas. Ele permite uma transformação do pensament o do ser é.u~a arte impura . E isso desde os primórdios, pois suas condições de pos-
e, por conseguinte, uma transformação fundamental da filosofia.A reflexão ~ibihdade configuram um sistema material impuro. Em última análise, tal
de Deleuze nos propõe uma relação integral de filosofiae cinema. Entretanto, ~pure za é redutível a uma realidade bem conhecida: o cinema demanda
ela pressupõe a hipótese: o cinema pensa através de imagens. Fica enten- dinheiro• Mu·t d. h . '[ 1
1 o m e1ro. a vez um pouco mais, um pouco menos, mas, no
1
dido, mais uma vez, que "imagem" não significa representação ou cópia, e ~.ª d~s contas, sempre muito. E o que é o dinheiro senão aquilo que nivela
sim a presença do tempo. O que está em pauta é a própria hipótese. Temos oisas mteirarnente diferentes? Dinheir o é o salário dos atores, a construção
dos cenário ·
de pensar o cinema a partir da categoria da imagem? Mesmo que a "imagem" s, o equipamento de filmagem, as salas de montagem, o planeja-
tenha sido esvaziada de psicologia? Gostaria de levantar essa questão, não mento da distribuição, a publicidade, centenas de coisas absolutamente hete-
para criticar Deleuze, já que sua obra sobre o cinema é extraordinariament e rogênease dís . V . • .
éa . . pa1es. m aspecto dessa 111velaçao que nos 111teressa
em especial
inventiva e se insere na liberdade da filosofia, mas para indagar se não have- IIleXl
stência' de uma "pureza c111ematogr,
. áfi1ca". Num artigo famoso sobre

Ocinemacom .
O experimentação filosófica
66 Alain Badiou
o cinema, Malraux explicava o que era a imagem, explicava por que Charles Nos primeiros tempos do cinema , os filmes eram rodados em estúdio, com
Chaplin era exib ido na África e comparava o cinema com as outras artes. cenár ios construídos, não havia som, não havia cor. O cinema estava muito
A última frase do artigo era : "Por outro lado , o cinema é uma indústria': Será próximo de uma arte primitiva . Mas, que sorte para o artista! Ele tinha
mesmo "por outro lado"? Na realidade, o cinema é uma indústria e isso é muito mais controle sobre o visível. O cenário não era a vastidão da natureza ,
válido inclusive para os grandes artistas . Parcela significativa deles trabalhou era um artifício. Ele não precisava se preocupar com as cores, as cores são
no sistema industrial do cinema. De modo que "din~iro" e "indústria" são urna terrível armadilha . Nem som havia propriamente. O cinema ainda estava
palavras que ~izem algo sobre a natureza do cinema, e não apenas sobre stiâs muito longe da infinitude do mundo e muito próximo da construção artística.
cond ições sociais. O ponto de partida do cinema é a impureza total. A arte é Depois vieram o som, a cor, as filmagens em externas, e, por fim , os recursos
extrair dessa impureza alguns fragmentos de pureza, uma pureza localizada. do cinema digital. Pode- se fazer qualquer coisa, mas isso é assustador para
A pureza localizada seria, por assim dizer , algo como a imagem-tempo ou a a arte! Como seria possível controlar, dominar a infinitude sensível? Minha
imagem-movimento, embora "arrancada" a uma impureza básica. Diria, em opinião é: isso não é possível. Não se domina a infinitude sensíve l. Essa impos-
consequência, que o cinema é um processo de depuração. É o produto desse sibilidade é a realidade do cinema. O cinema é uma luta com o infinito. Uma
processo. Exagerando um
pou êo, poderíamos compará-lo ao processamento Juta pela depuração do infinito. Infinitude do visível, infinitude do sensíve l, in-
--
de lixo . De início, há um amontoado de coisas di ferentes, uma espéci e de finidade das outras artes, infinidade de músicas, infinidade de textos disponí -
material industrial em estado bruto. O artista irá trabalhar esse material se - veis. O cinema é essencialmente urna luta "corpo a corpo" com a infinitude do
lecionando, concentrando, elim inando, juntando, reunindo as diferenças na sensível. °É,portanto, uma arte da simplifica ção, enq uanto as demais são artes
esperança de produzir momentos de pureza. É um aspecto muito importante da complexidade. Elas criam uma çomplexidade a partir do nada. Já o cinema
porque, na música, na pintura, na literatura e mesmo na dança, o ponto de é idealmente a criação do nada a partir de uma complexidade. O ideal do ci-
partida é a pureza . Como dizia Mallarmé, partimos da pureza da página em nema é a pureza do visível. A visibilidade feita transparência, o corpo humano
branco. Nas outras artes, o objetivo é preservar a pureza, conservá-la através feito corpo essencial. O horizonte feito puro horizonte . A história feita história
da própria obra. Conservar o silêncio na fala, a página branca na escrita, o in- exemplar. É o ideal do cinema. A fim de alcançar esse ideal, porém, o cinema
visível no visível, o silêncio no som - e a grande questão da arte é a fidelidade precisa abrir caminho em meio à impureza, precisa lançar mão de todos os
a essa pureza elementar. recursos possíveis. Precisa, sobretudo, encontrar o caminho da simplicidade
O cinema funciona em sentido inverso. Partimos da desordem, da acu- em meio a tudo isso.
mula'°ção, da impureza para tentar cr iar a pureza. Isso é muito difícil. Nas Gostaria de dar alguns exemplos, como a questão do som. Como se apre-
demais artes , de in ício é preciso criar a partir do nada, da ausência, do vazio. senta o mundo contemporâneo sob esse aspecto? Como uma grande confu-
No cinema, há sempre excesso. Se eu quiser filmar uma garrafa, por exemplo, são sonora. É um traço do mundo contemporâneo. O tempo todo estamos
não posso aproveitar nada. O rótulo é dispensável, a cor da rolha está ex- expostos a ruídos terríveis, músicas impossíveis de ouvir, barulho de motores,
cessiva, a forma é supérflua. Afinal, o que irei filmar? Como criar a ideia da conversas dispersas, som de alto -falantes ... O mundo contemporâneo é um
garrafa a partir da garrafa? É preciso depurar, simplificar. O cinema é uma caos sonoro. Que relação pode haver entre o cinema e o caos sonoro? Das
arte essencialmente negativa . Parte de um acúmu lo e chega a uma espécie duas, uma: ou ele reproduz o caos sonoro e deixa de ser uma criação, ou abre
de simpl icidade elaborada . Hoje, a situação é ainda mais crítica, as dificul - caminho pelo caos e procura descobrir e propor uma simplic idade possíve l
dades ainda maiores, pois os recur sos técnicos multiplicaram enormemente do som. É, mais uma vez, um prob lema de síntese . Não se trata de negar o
as possibilidades. caos sonoro - assim estaría mo s renunciando a falar do mundo tal como ele é.

Ocinen, a
68 Alain BadiOU como experimentação filos ófica
Ao mesmo tempo, é preciso criar um som puro a partir do caos sonoro, da O terceiro exemplo seria o sexo, outro aspecto essencial do cinema: a
música terrível dos tempos atuais, desse padrão rítmico baseado no ruído. imagem dos corpos, a imagem do enlace amoroso. _Étambém um lugar co-
Godard é um ótimo exemplo. Um filme de Godard é um caos sonoro . Várias mum tão desinteressante quanto a imagem do automóvel, embora o público
pessoas falam ao mesmo tempo, não se chega a compreender muito bem o espere ver, desde sempre, e, no final das contas, não chegue a ver nada. Essa
que diz em . Há fragmentos de música, ruído de automóveis passando. Um decepção é o que se pode chamar de pornografia. A imagem pornográfica
verdadeiro caos sonoro. Mas, aos poucos, esse caos é organizado, os ruídos é tão essencial quanto o ruído, o automóvel, os disparos de revólver. O pro -
se ordenam, o ruído ele mesmo é amortecido, abafado. Aos poucos, Godard blema que se levanta aqui é o mesmo: o que fazer com esse material? Um
transforma o caos sonoro num murmúrio, recria uma nova espécie de si- grande cineasta deve ter pudor, deve abstrair o corpo, abstrair o sexo? Não é
lêncio. É um exemplo notável dos procedimentos utili zados atualmente pelo essa, evidentemente, a melhor decisão. O melhor seria aceitar o repertório de
cinema. Partimos da impureza do ruído contempo rân eo e nos servimos dele imagens pornográficas e transformá-lo a partir de dentro. Isso pode ser feito
nâo para reproduzi-lo meramente, e sim para inventar um novo silêncio, um de três maneiras. A primeira é transformar a imagem pornográfica numa
silêncio co ntemp orâneo do caos sonoro. Em Goda rd , o caos sono ro se trans - imagem amorosa, interiorizar a chama do amor na figura do sexo. A segunda
forma em murmúrio, como se ouvíssemos uma confidência do mundo. é estilizá-la, torná-la quase abstrata, produzir uma espécie de beleza ideal a
O segundo exemp lo ser ia o uso do automóvel no cinema. É um dos gran- partir dos corpos, sem abandonar a figuração sexual. Alguns filmes apresen -
des estereótipos do cinema e da televisão. Diria que dois em cada três filmes tam imagens notáveis nesse sentido - os de Antonioni, por exemplo. A ter-
ou quatro em cinco emissões de televisão começam com a imagem de um ceira maneira é superar a pornografia a partir da própria pornografia. É o
automóvel. Um automóvel que parte, um automóvel que chega - pode haver que se poderia cham ar de superpornogra.fia,uma pornografia de segundo
imagem mais banal? Um grande diretor pode prescindir do automóvel. O qu e grau, qu e encontramos em algumas sequê nci as de Goda rd , como na cena de
dissemos sobre o caos sonoro é aplicável aqui. Se o cineasta elimina r as ima- prostituição em Salve-sequem puder (Sauve qui peut (la vie), 1980]. O dado
gens banai s de automóveis, não alcançará a sín tese com o dado do mundo inicial, aqui também, é a impureza total, o cará ter banal e obsceno da ima-
contemporâneo. Logo, não se servirá da impureza para criar. Um grande di- gem. Em seguida, ela será trabalhada a partir de dentro para dar lugar a uma
retor inv enta ria um novo uso para o automóvel no cinema. Partiria da ima - nova simplicidade.
gem banal de um automóvel com pessoas dentro e a transformaria a partir do O último exemp lo que gostaria de dar, na mesma linha, são as cenas de
interior. Dois exemp los me ocorrem. Primeiro, a função do automóvel como briga, os tiroteios, os disparos de revólver. De novo, dificilmente poderia ha-
lugar da enunciação nos filmes de Kiarostami. Em vez de uma imagem ligada ver algo mais anódino. O número de tiros disparados no cinema é extraordi-
à ação, como a do carro de gângsteres ou de policiais, o automóvel se faz o nário! A principal atividade humana, diríamos, é a troca de tiros. Pois bem,
O grande artista irá descartar o revólver? Claro que não! As cenas de tiroteio
abrigo da palavra sobre o mundo. Ele se torna o destino de um sujeito. Aqui
também, portanto, a impureza da imagem inicial dá lugar a uma nova pureza, estão presentes até nas obras-primas do cinema. A figura, contudo, será ree-
em última análise, a da palavra contemporânea. O que poderíamos articu- laborada em outro regi stro. Anteriormente, citei o exempl o de A dama de
lar do âmag o do mundo absurdo que é o automóvel? O cineasta português Shangai,filme em que os tiros eram ao mesmo tempo imagens que se desinte-
Manoel de Oliveira, em cujos filmes o automóvel é igualmente um lugar de gravam. Mas é possível fazer novos usos do clichê. Por exemplo, transformar
autoconhecimento, uma espécie de movimento de retrocesso até as origens, as cenas de pancadaria numa espécie de dança , de coreografia. É o que vemos
usa procedimentos afins. A impureza, mais uma vez, a imagem banal do au- nos filmes de John Woo, por exemp lo, e, num sentido ainda mais sutil, nos
tomóvel não é sup rimida , mas purificada. melhore s filmes de Kitano. Também nesse caso partimos do material dado ,

O cinema
Alatn Badiou como experimentação filosófica 71
70
partimos das convenções do filme de gângsteres e as submetemos a uma sim- a processos de depuração. Às vezes não há criação,apenas a reprodução pura e
plificação singular. simples do dado social; em outras vezes,criam-se novas simplicidades.
A característicamais marcante do cinema é partir do material dado, daquilo O cinema é capaz de reproduzir o ruído do mundo e inventar um novo
que chamaria de "repertório contemporâneo de imagens': e reelaborá-lo. O au- silêncio; de refletir o nosso desassossego e inventar novas formas de imobili-
tomóvel, a pornografia, a figura do gângster, os tiroteios, o folclore urbano, a dade; de assimilar a nossa pobreza de enunciação e inventar uma nova forma
música atual, a corrupção, os ruídos, explosões, incêndios, enfim, tudo o que de trocar palavras. Seja como for, os materiais inicialmente dados são os mes-
compõe o imaginário social moderno. Aceitar a complexidade infinita dessa mos. Por isso, um grande filme pode ser apreciado por milhões de pessoas
matéria-prima, tirar alguma pureza disso. É verdade que o cinema trabalha como algo contemporâneo à sua existência. No caso das outras artes, isso só é
com o lixo contemporâneo. :Éuma arte absolutamente impura, e como tal é possível após longo aprendizado. Não quero dizer que o cinema seja superior
também a arte do dinheiro. O impulso artístico do cinema visa transformar às outras artes, pois aquelas que exigem longa preparação possuem intensi-
o material a partir de dentro, produzindo imagens-movimento ou imagens- dade igual ou maior que a dele. Ainda assim, esta é uma particularidade do
-tempo por uma espécie de travessia da impureza. Partindo dessa hipótese, po- cinema: ser uma arte que todos podem compartilhar. Atualmente, ele é com-
demos compreender por que o cinema é uma arte de massas. Voltamos a en- partilhado por toda a humanidade.
contrar a síntese do início. O cinema é uma arte de massas porque compartilha Já conhecemos todas as implicações contidas na definição do cinema como
o imaginário social com as massas. Esse é o seu verdadeiro ponto de partida. arte de massas. Porém, temos de indagar o custo que isso teve, pois houve um
Em contraste, qual é o ponto de partida da pintura ou da música contempo- preço. E, a meu ver, o preço foi este: a impureza é tão grande, a infinidade de
rânea? Uma história singular de uma arte específica. Para ouvir Schoenberg, é materiais tamanha e a questão do dinheiro tão premente que se tornou impos-
preciso compreender ou pelo menos saber o que aconteceu com a música na sívelpara o cinema alcançar o mesmo grau de pureza das demais artes. Sempre
época de Wagnere depois dele. Para compreender Picasso,é preciso conhecer a haverá uma impureza residual, algo que subsiste, um resto. Todo filme tem tre-
trajetória que leva do impressionismo a Cézanne, e de Cézanne ao cubismo. No chos banais, imagens supérfluas, diálogos redundantes, cores berrantes, canas-
caso das artes particulares, há a incorporação da história dessas artes. Por isso, trões, pornografia não controlada, e assim por diante. Ora, o cinema é uma luta
e não por acaso, elas são chamadas de "vanguarda",termo que implica certo po- contra a impureza. Quando assistimos a um filme, no fundo, assistimos à luta
sicionamento diante da história, certa relação com a novidade. Obviamente, o do cinema contra a impureza de seus materiais. O que vemos na tela não são
cinema também tem uma história, mas a sua função é outra. Aliás,a história do apenas imagens-tempo ou imagens-movimento, mas uma batalha. Assistimos
cinema é bem curta, mal chega a ser uma história propriamente: duas ou três à batalha da arte contra a impureza. Essa batalha ora é ganha, ora é perdida, às
gerações, ou seja, praticamente nada. Portanto, o ponto de partida do cinema vezes no mesmo filme. Tanto que podemos reconhecer um grande filme pelo
não é sua história, e sim a impureza de seus materiais. E que materiais são es- nú11:erode vitórias que ele logra, afora as poucas derrotas inevitáveis. Por isso,
ses? O próprio mundo contemporâneo, suas imagens, suas mitologias. Trata- tais filmes têm qualquer coisa de heroico, porque eles saíram vitoriosos da ba-
-se de uma arte democrática, todo mundo é capaz de identificar as imagens da talha.A relação entre espectador e filme não é, portanto, de contemplação. No
contemporaneidade num filme. Sob esse aspecto, não existe diferença entre os casodas outras artes, não raro cabe a contemplação pois o que se tem de saída
filmes comerciais e os grandes filmes. A matéria-prima de ambos é a mesma. éª grande pureza, a fidelidade à pureza. Já no cinema, o que há é o "corpo a
corp0 " b . _
logo,eles são acessíveis,todos podem reconhecer o material Daí em diante, as • ª atalha, a impureza, portanto, nao podemos adotar uma atitude de
operações diferem. O material poderá ser reproduzido, copiado ou submetido contemplaç- ao. A nossa at1tu
· de e' necessariamente
· de envo1v1mento:
· · · -
part1c1pa
rnosda batalha, julgamos as vitórias, assim como as derrotas, tomamos parte da

O cinema
AlainBadiou como experimentação filosófica
72 73
criação de alguns momentos de pureza. E são tão extraordinários os momentos filosofia consiste em criar sínteses conceituais no lugar de rupturas. O traba -
de vitória num filme que eles explicam o poder afetivo do cinema! Além do lho do cinema é criar pureza a partir dos materiais mais impuros. Nisso são
poder afetivo das histórias contadas, além dos afetos mobilizados pela relação cúmplices. A filosofia contemporânea talvez tenha tido a sorte de contar com
cinema-amor, há a emoção do combate . De repente, a pureza de uma imagem o cinema. O cinema é uma chance para nós, filósofos, pois nos demonstra
nos surpreende e, como ela resultou de uma batalha, nos provoca forte emoção; o poder da depuração, o poder da síntese, a possibilidade de produzir algo
participamos da vitória. Por isso, choramos no cinema, choramos de alegria, a partir do que há de pior. Em última instância, o cinema é uma lição de es-
choramos pela vitória, e não somente pelas emoções que o amor ou outros perança, e isso para a própria filosofia. No fundo , o cinema quer nos dizer:
sentimentos despertam. Ali acontece quase o impossível. O cinema aproveita "Nada está perdido': Precisamente por lidar com o que há de mais abjeto -
o que há de pior no mundo e arranca um fragmento de pureza. Seu material a violência, a traição, a obscenidade -, ele é capaz disso. "Não é porque hoje a
preferido, seja dito de passagem, é o que há de pior no mundo: os gângsteres, realidade seja esta': nos diz o cinema, "que a filosofia está perdida:' A filosofia
a máfia, a pornografia, a prostituição, a miséria, a morte, o assassinato . Um poderá triunfar exatamente aí. Nem sempre, não em toda parte, mas ela há
horror! Eis todo o problema do estatuto da violência no cinema. O cinema se de alcançar vitórias. A vitória, como sabemos, é uma questão importante no
compraz muito facilmente com a violência e com a obscenidade. É um traço mundo contemporâneo. Durante mui to tempo, sob o influxo da ideia de revo-
flagrante, mesmo entre os principais diretores . Há cenas de violência insupor tá- lução, alimentou-se a esperança de uma vitória definitiva, irreversível. Depois,
vel, de obscenidade acintosa. No entanto, o cinema atinge uma síntese artística a ideia de revolução se eclipsou. Nós somos órfãos dessa ideia. E, de uma hora
a partir dessa matéria-prima ord inária e ainda mostra a luta que é o processo para outra, demos para cismar que nenhuma vitória é possível, que o mundo
de depuração a que submete seus materiais . Há, nesse sentido, alguns filmes está desencantado, e finalmente nos resignamos. Vamos em frente, bem ou
contemporâneos surpreendentes. É o caso, por exemplo, dos filmes de gângs- mal, como der. Temos o cinema e ele, a seu modo, nos mostra que mesmo
teres de Kitano. São filmes realmente insuportáveis pela violência das relações, no pior dos mundos a vitória é possível. É bem provável que a "a vitória': a
pelo caráter sombrio e terrível das histórias. Contudo, qualquer coisa de lumi- grande vitór ia, não seja possível, mas há vitórias possíveis. Acreditar nisso já
noso sucede, e não é mediante a negação do material. É diferente, é algo mis- é o bastante para a filosofia. Então, vejamos os filmes de modo filosófico, não
terioso, como uma transmutação no sentido alquímico, como se algo terrível e só porque eles nos brindam com novas figuras da imagem, mas por nos dizer
pavoroso desse lugar a uma espécie de simplicidade, de pureza desconhecida. que o pior dos mundos não é motivo para desespero . Eis o que diz o cinema.
Podemos voltar agora ao tema "cinema e filosofia".Ambos têm em comum, Devemos ter estima por ele. Se soubermos ver nele uma batalha contra o
a meu ver, a ideia de que é preciso partir do dado, da realidade e de que a mundo da impureza, uma coleção de preciosas vitórias, ele será capaz de nos
realidade não é refratária ao pensamento - ao contrário das outras artes, que tirar do desespero.
partem da pureza das próprias histórias; ao contrário da ciência, que parte
dos próprios axiomas, da própria transparência matemática.
O cinema e a filosofia partem da impureza. Partem de opiniões, imagens, Perguntas
práti~as, singularidades, partem da experiência humana. Ambos apostam na ~
criação de ideias a partir desse material. Ambos sustentam que a ideia nem O senhorpoderia nos explicarmais uma vez como a noçãode tempo muda a
sempre se origina da ideia, que ela pode provir de seu contrário: no cinema, Partirda relaçãocom o cinema?
do repertório de imagens do mundo, de sua impureza infinita; na filosofia, No momento em que o cinema apareceu, havia um forte debate filosófico
das rupturas da existência . Nos dois casos, haverá elaboração. O trabalho da sobre o tempo. E tamb ém um forte debat e científico, pois foi o momento em

Oc111em
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